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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SANGAREE / Frank G. Slaughter
SANGAREE / Frank G. Slaughter

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SANGAREE

 

      Passado na atmosfera escaldante e carregada de paixão do Savannah, na época turbulenta que se seguiu à Revolução, Sangaree é a história do belo sonho da Democracia e Liberdade legado por um velho batalhador e proprietário da Jórgia a hercúlea tarefa de construir uma nova Utopia que, ao morrer, confia a Tobias Kent, um jovem que arrancara ao trabalho duro dos campos, à submissão e à miséria e do qual fizera um cirurgião promissor. A emancipação dos escravos, a divisão equitativa dos lucros da terra por quantos nela deixavam o seu suor e ambicionavam uma vida melhor e mais digna, tinham por força de fomentar ódios, calúnias e lutas. Os outros proprietários - os senhores feudais que criavam escravos como quem cria gado e que consideravam letra morta o espírito da Revolução que os tornara livres e independentes - não podiam tolerar esta outra revolução, diferente, sem sangue nem armas, mas tão profunda que abalava irremediavelmente os alicerces do seu sistema de vida. Sangaree é, por isso, um romance cheio de movimento e de acção, de rixas e emboscadas, de traições e duelos em que se combate com a palavra, as armas... e os punhos. Mas é também um romance de amor e de renúncia, no qual se descreve a luta de um homem escarnecido e humilhado pela mulher que ama, pela bela e arrogante Nancy Darby que o testamento do velho sonhador ligou ao seu destino por laços de ódio e despeito; a luta sem tréguas de um homem só e íntegro, que preza acima de tudo a amizade e a honra do seu maior amigo e que tem ainda de encontrar forças para passar a vida a fugir dos ardis da mulher deste, da ardente Martha sensual e sem escrúpulos.

      Sangaree é ainda a história arrebatadora de um pioneiro da cirurgia, dos tempos em que as operações eram uma aventura condenada pelos médicos afoitos; em que ao opiato leve se juntava a força dos punhos para mergulhar o paciente num sono misericordioso; em que os instrumentos toscos e imperfeitos rasgavam carne e músculos, sondavam às cegas, a tactear, o mistério do corpo humano, abrindo tantas vezes o caminho à infecção fatal, mas também, e sobretudo, à bela realidade da cirurgia de hoje.

        

     O FORTE

      Por instantes ficou imóvel, junto da improvisada mesa de operações, com o escalpelo aninhado na concha da mão. O aço - que, como um olho frio, semicerrado, despedia reflexos sob a luz intensa das velas - parecia troçar, naquela noite, da sua indecisão. No fim de contas, esta não passava de mais um familiar momento de pânico, de um momento em que desejava, como em nenhum outro, nunca se ter lembrado de seguir a carreira de cirurgião, em tempo de guerra ou de paz.

      O soldado que jazia na mesa operatória soltou novo grito estrangulado; mas para o Dr. Tobias Kent já não era novidade ouvir gritos. Pousou a mão livre, suavemente, no ombro do rapaz e segredou-lhe, como se falasse através de uma nuvem de morfina, que estivesse calado. Aquele casaca vermelha ia precisar de todas as suas forças (e de todo o oxigénio que ainda lhe restava nos pulmões, que arfavam loucamente) para sobreviver ao próximo quarto de hora. Toby decidira-se a operá-lo, sem se importar com as poucas probabilidades de êxito. Não era altura de reflectir no capricho do destino que poupara um rapaz de faces frescas durante seis anos de caça aos rebeldes, na América, para afinal o abater à sombra da bandeira americana, meses depois de os rebeldes triunfarem.

      Infecção na garganta, de carácter virulento, com oclosão quase total da faringe, por uma membrana. Inflamação pútrida na garganta, em gíria de soldado, como Kent registara no diário, quando recebera o ex-inimigo na enfermaria do Forte Washington. Uma hora antes, ao verificar-se a crise, mandara um relatório ao posto avançado britânico que ficava defronte, do outro lado do lago Vermont.

      Passou os olhos pelo teatro operatório e deteve-os por momentos nos braços de grossos tendões dos seus dois enfermeiros que apertavam, como tornos vivos, os joelhos e os ombros do enfermo; no joelho do seu assistente, firme atrás do pescoço do rapaz, e no negro alto, recortado de perfil pela chama das velas empunhadas por uma dúzia de mãos, a aparar, imperturbável, uma pena de peru. Os dois enfermeiros trabalhavam consigo desde que se alistara no exército de Gates, em Saratoga; Roy Darby, o seu assistente, formara-se ao mesmo tempo que ele, em Edimburgo; Billy, o negro liberto, servira-o, e a Roy, desde estudantes e acompanhara-os depois na guerra. Constituíam uma equipa que trabalhava como um todo, sem palavras.

      O Dr. Tobias Kent inclinou a cabeça diante de cada um dos presentes, sucessivamente, e contornou com o escalpelo a zona a operar, na traqueia do doente. Por fim, inclinou-se também perante os ex-inimigos. Os oficiais britânicos, obedecendo rigidamente ao protocolo, encontravam-se, em uniforme de gala, junto da parede de troncos colmatados com barro, e a luz das velas, que arrancava reflexos aos galões das golas e aos botões areados, mostrava-se generosa para com o seu esplendor: emprestava ao escarlate vivo das sobrecasacas a cor mais suave do peito do rouxinol; dava às enormes lapelas brancas um tom quente, de marfim, e atenuava o avermelhado das faces, sinal de bom passadio, de maneira a não contrastar demasiado com os vultos magros dos americanos postados junto da mesa operatória. O Dr. Toby Kent considerou a reunião desproporcionada com as suas causas, e sintomática como reflexo do aborrecimento que minava os aquartelamentos de Inverno de ambos os lados da nova fronteira, aborrecimento que o pequeno drama interrompera.

      - Com sua permissão, milorde, posso começar?

      - A sua fama é conhecida, Dr. Kent. O doente pertence-lhe.

      Toby formulara a pergunta sem tomar consciência da sua ironia, e Lorde Wystan, cirurgião-chefe do forte situado do outro lado da fronteira, respondera-lhe da mesma forma. Desde o começo da guerra que os membros da confraria do escalpelo transpunham muitas fronteiras semelhantes àquela, animados de mútua boa vontade. Ao encontrar os olhos de Wystan, Toby sentiu voltar-lhe a confiança, numa onda consoladora.

      - Visto não haver outra alternativa...

      - Opere, sir. Concordei com o seu diagnóstico.

      O Dr. Kent aceitou o cumprimento em silêncio e enterrou o escalpelo. A primeira incisão, breve e firme, abriu a área marcada e expôs, num jorro de sangue, a faringe do doente. O jovem soltou um lamento longo e abafado, que se extinguiu de súbito.

      - Jack é uma boa ordenança, doutor - observou Wystan, calmamente. - Não calculava que desmaiasse tão depressa.

      A faca continuava a sua obra. Tony, vendo-a trabalhar quase sem necessidade da intervenção consciente do seu cérebro, redarguiu, com igual serenidade:

      - É forte e novo, milorde. Se conseguir admitir o ar nos pulmões, teremos probabilidades de o salvar.

      Geralmente, a sua concentração era absoluta, em tais momentos; mas naquela noite sentia necessidade de falar, uma necessidade maior do que o risco que corria.

      - Fabrício descreveu esta operação há mais de um século. Os antigos executavam-na para aliviar turgescências malignas como esta. Chamavam-lhe traqueotomia.

      Os seus dedos moviam-se enquanto falava, fazendo pressão para estancarem hemorragias superficiais. No fundo da ferida, estava agora a descoberto, numa série de anéis brancos e brilhantes, a proeminência óssea da cartilagem laríngea. O pescoço do rapaz arfava como um fole fatigado. O escalpelo apontou, e evitou, a grande curva palpitante da carótida e o latejar duplo das jugulares, que se enchiam e despejavam ao ritmo do coração.

      Não havia tempo de confessar que ia proceder às cegas, confiando num conhecimento exacto da anatomia para perfurar a traqueia num ponto seguro, embora escolhido ao acaso.

      - A infecção virulenta da garganta é quase sempre fatal - observou Wystan. - Quando a membrana bloqueia a passagem dentro...

      - Esta noite ignoraremos essa membrana.

      Toby inclinou-se vivamente para diante e todos os pescoços presentes pareceram imitá-lo, em uníssono. O paciente, flácido como um boneco nas mãos dos dois enfermeiros, quase deixara de debater-se. O tom azulado que lhe alastrara dos lábios às faces contava a sua história cruel tão claramente como o fim brusco da respiração rouca. Com a oclosão da traqueia, a morte olhava-os friamente e desafiava o escalpelo a vencê-la.

      - A pena, por favor, Billy - pediu Tony, com simplicidade.

      Dedos negros cruzaram-se com dedos brancos e o cálamo da pena de peru passou para a mão livre do operador. O escalpelo moveu-se à velocidade da luz e perfurou a cartilagem da traqueia no momento em que esta cedia sob a lâmina e se achatava como um tubo apertado entre os dedos. O aço penetrou na parte mais macia da cartilagem, mergulhou na passagem tubular da traqueia propriamente dita e revelou, quase acto contínuo, a primeira bomba na fina camada de sangue que obscurecia o fundo da ferida. Passado um segundo, o ar assobiava através da estreita abertura, com um som agudo que se assemelhava ao primeiro vagido de uma criança.

      - No momento oportuno, milorde. Observe como é fácil arranjar uma traqueia provisória.

      A lâmina cortara já outra cartilagem e alargara a abertura, para que o ar passasse livremente. Sem levantar a cabeça, Toby adivinhou que o cirurgião britânico tinha os olhos dilatados, antes mesmo de a pena de peru estar colocada. A abertura cerrou-se em redor do tubo, ajustada à medida, e a hemorragia, contida por compressas bem apertadas, ficou reduzida a um gotejar sem importância. Uma vez mais, um misto de sorte e de perícia salvara uma vida.

      - Vejam como a cianose diminuiu...

      Um murmúrio encheu o aposento e os ingleses aproximaram-se, todos ao mesmo tempo. O operado respirava quase normalmente pela traqueia improvisada e dentro de uma semana - calculou o operador, embora com reservas - o corpo jovem e robusto encontrar-se-ia em condições de travar a sua batalha com um mal que estava, afinal, localizado. A juventude e o bom sangue de camponês fariam o resto, graças à audácia de um cirurgião rebelde, num canto ermo coberto de neve.

      - O doente é vosso, cavalheiros.

      Foi a vez de Lorde Wystan inclinar a cabeça. De olhos baixos, a lavar-se numa mesa ao lado, Toby Kent aceitou o murmúrio de aplauso dos oficiais britânicos.

      - Claro que podem deixá-lo na nossa enfermaria enquanto a crise não estiver vencida. Que diriam a uns bifes de urso para o jantar?

      Os ingleses bateram os calcanhares, em uníssono, Toby despediu com um gesto os homens que seguravam as velas e Billy levou o operado, tão facilmente como se este fosse uma- criança grande. Vestida a sobrecasaca do uniforme, Toby devolveu o sorriso de Wystan. Ambas as guarnições sabiam que a ordenança fora mandada ao Forte Washington, antes de adoecer, precisamente para negociar os bifes de urso.

      - Bifes por rum - disse o inglês. - Trouxemos de trenó seis garrafões de Jamaica. Quer acompanhar-nos num brinde com o seu pessoal?

      - Depois de registar a operação no meu diário.

      Sorriam todos; o motivo da tensão desaparecera e

      Toby esforçou-se sinceramente por participar da boa disposição geral e afastar o mal-estar que havia muito tempo o oprimia. Permutas semelhantes tinham mantido as guarnições bem alimentadas durante o longo Inverno. Era bom não esquecer que a guerra acabara, apesar de as odiadas casacas vermelhas dos seus velhos inimigos ainda brilharem, como sangue fresco, à luz das velas.

      À porta dos seus aposentos, Toby levantou uma das mãos, com a palma para fora, no tradicional gesto de paz, mais velho que uniformes ou exércitos. O sorriso forçado continuava a entreabrir-lhe os lábios quando a porta se fechou, embora pensasse, uma vez mais, que a sua guerra pessoal não poderia acabar tão facilmente.

      No capítulo de comodidades, o seu quarto era muito bom. O colchão de folhelho de milho e a pilha de mantas não tinham, felizmente, piolhos, quase não entrava vento por entre os troncos bem colmatados e o lume que dançava na chaminé aberta tornava o minúsculo aposento tão alegre como a maioria dos quartos de solteiro no fim de uma guerra.

      A esse conforto acrescentava-se ainda outro pequeno milagre: a estreita janela virada a noroeste, que servira primeiro de portinhola de armas, tinha vidro, pois Billy fora especialmente a Burlington para comprar, ou roubar, a preciosa vidraça. Ao recordar as horas que passara junto daquela portinhola, a ver o Inverno apoderar-se da superfície cinzento-azulada da água do lago, Toby aproximou-se e parou a observar, uma vez mais, o vizinho Canadá, prateado pela lua cheia e tão desolado como a própria face da Lua.

      O Canadá devolveu-lhe o olhar, inexpressivamente, na noite; e o Forte Cornwallis - réplica britânica do seu equivalente americano, que se divisava na brancura do gelo - pareceu-lhe fazer parte da encosta granítica.

      Forte Cornwallis, Forte Washington... Dois nomes gravados no cérebro de soldados exaustos, que não passavam de meros peões no tabuleiro de xadrez da guerra e demasiado insignificantes para merecerem um nome. Abandonado havia anos, quando a luta se desviara para o sul, o Forte Washington estava transformado em toca de raposas na altura em que o regimento de Toby chegara, em chalupas, debaixo de chuva, a fim de assentar arraiais atrás dos seus muros. Agora era o seu último aquartelamento de Inverno, enquanto defrontavam o velho inimigo nos monótonos e derradeiros meses de tréguas armadas e esperavam que as coisas se decidissem em Champlain.

      Um jovem cirurgião cheio de ambições brilhantes como aço acomodara-se facilmente a um modo de vida que às vezes parecia idêntico ao contentamento - ou não definiria a palavra contentamento o limbo em que vivia há tanto tempo?

      Um homem cujo destino se cumprira até ali não tinha de que se queixar se, de vez em quando, esse mesmo destino o tolhia demasiado. A guerra fora, evidentemente, uma das coisas que mais o tolhera, apesar de lhe ter proporcionado vasto ensejo de aperfeiçoar a sua cirurgia. Seguira na vanguarda das operações, centralizadas em Champlain, acompanhara Washington do Forge para Monmouth e trabalhara horas intermináveis nas enfermarias do hospital de Albany, onde a fama da sua equipa cirúrgica se firmara solidamente. Não era, pois, culpado de se recordar da guerra aos bocados.

      Pelo menos não considerara a revolução americana palco para exibir a sua perícia, embora tivesse servido tanto esse propósito como Edimburgo. A sua contribuição para a causa também não fora menos valiosa pelo facto de o seu primeiro cargo no Exército Continental, e as honras que se lhe seguiram, terem sido arranjados pela mão de outrem.

      Não sentira qualquer rebate de consciência quando o general Victor Darby lhe comprara a patente de capitão, em Filadélfia, pois o velho Victor invocara para isso as mais nobres razões e, ao escolher um protegido, traçara-lhe definitivamente o futuro. O Dr. Clemens, cirurgião do interior que transportava os instrumentos nos alforges da sela, tomara parte no plano de Victor, assim como o próprio filho deste, Roy, durante os anos de estudo que tinham compartilhado. Agora, como episódio final desse mesmo plano, esperavam ordens num forte cercado de neve, no coração do deserto e do Inverno.

      Encolheu os ombros, afastou do pensamento a imagem gelada que lhe ocorrera e inclinou-se para a lareira, a fim de acender a vela da secretária. Billy deixara uma remessa de penas novas, junto do tinteiro, e o diário estava aberto debaixo do pedaço de rocha que lhe servia de pisa-papéis. Afastou-o e releu o que escrevera naquela mesma tarde, numa caligrafia impecável, cheia de arabescos. Até os arabescos devia a Victor Darby!

      O estado de V. D. continua estacionário, com pletora talvez ainda mais acentuada. Drenagem estabelecida com incisões cutâneas e sangria ao fim da manhã. O estado hiarópico parece, no entanto, desesperado. Pele abdominal tensa como a dum tambor; juntas dos braços e das pernas inchadas, a ponto de não ser possível a articulação. O coração não deve resistir mais uma noite.

      Toby olhou fixamente a nota, até as letras lhe dançarem debaixo dos olhos. Geralmente, os seus apontamentos não eram tão concisos; ao registar a traqueotomia que acabara de fazer, a sua pena parecera ganhar calor e alargara-se em comentários que adornavam, por assim dizer, o caso clínico. Mas nenhum comentário podia embelezar a morte certa, nem existia médico capaz de negar que o general Victor Darby estava moribundo. O velho Victor ia morrer numa terra tão diferente da sua Geórgia natal como os desertos de qualquer planeta desconhecido.

      O vento esmoreceu, lá fora, e Toby levantou os olhos do diário. Apesar do soalho grosso, de pinho, ouvia a pena do outro riscar o papel, no quarto de baixo. Todo o forte sabia que o comandante ditava o testamento a Sam Hoyt, seu inspector principal, mandado vir da Geórgia quando o regimento se instalara no seu último aquartelamento de Inverno. Pelo mesmo motivo, Roy e Toby tinham vindo apressadamente do hospital de Albany. Sabiam por que razão o velho Vic punha a casa em ordem.

      Revisto e refundido uma dúzia de vezes, o testamento do general constituíra pretexto suficiente para que o velho continuasse a viver, à medida que o Outono dava lugar aos primeiros nevões do Inverno, em Vermont.

      Era típico de Victor Darby continuar no seu comando. Qualquer dos seus ajudantes se podia ter encarregado dos ingratos pormenores do último aquartelamento, e o próprio general, se quisesse repousar à sombra dos merecidos louros, podia ter deposto a espada no seu estado natal e redigido o seu testamento em atmosfera mais agradável. Mas o regimento conservara a sua identidade, a sua estrutura, enquanto os combatentes cediam o lugar aos diplomatas, e agora, com o tratado já assinado e selado, em Paris, os famosos raiders de Darby esperavam ainda a ordem definitiva de licenciamento. Oficiais e soldados, vivendo como nunca tinham vivido no campo de batalha, continuavam a percorrer o terrapleno do Forte Washington, a realizar manobras no gelo, a observar o inimigo, com certa melancolia, através do grande lago gelado, e a aguardar uma ordem de assalto que nunca receberiam.

      O velho Victor registara as suas disposições em pergaminho e fazia cumprir, do seu leito de doente, a disciplina familiar. O homem que recrutara a sua primeira companhia a expensas próprias, nas terras baixas do Savannah, e a conduzira depois para norte, a fim de receber ordens do comandante-geral, morreria como vivera. Havia no general Darby uma grandeza autêntica que lhe sobreviveria.

      O cirurgião-chefe - outro veterano dessa primeira e intrépida companhia - folheou o diário ao acaso, até encontrar uma nota que teria sempre presente no espírito:

     

      29 de Setembro de 1777.

      Acampámos esta manhã nas praias da baía de Missisquoi, à espera das chalupas do nosso general. Erguemos tendas de lona num bosque de abetos azuis, muito acima dos pântanos desta desolada região e longe das malditas moscas, que este ano parecem nunca mais acabar. Preparávamo-nos para tratar dos feridos quando os raiders de Darby regressaram da missão na outra margem...

      Os raiders de Darby haviam anunciado a sua chegada naquela tarde, muito antes de estarem à vista, surgidos da miragem de calor intempestivo da vasta baía setentrional. Impelidos por remos que cortavam vigorosamente a água, e a cantar, pareciam arrastar consigo jorros de fogo que rugia na margem distante. O fumo enovelado, alto como uma nuvem, não deixava dúvidas quanto ao êxito do assalto ao depósito de provisões de Burgoyne, no ponto em que a baía de Missisquoi se unia ao lago Champlain. Um grito do próprio Darby, proveniente da chalupa da frente, atraíra o cirurgião, que correra rodeado pelos feridos que podiam andar.

      Levantaram o acampamento em poucos minutos e desapareceram no silêncio verde dos pântanos ao cair da noite, enganando os batedores índios do inimigo. Nessa tarde salvara o braço de um homem, extraindo fragmentos de osso com o ferido deitado numa chalupa oscilante, e ousara deixar a ferida numa tala aberta, para cicatrizar ao ar livre. Tratara também um crânio fracturado e estancara incontáveis hemorragias; sondara e ligara com gestos rápidos e seguros; cortara carne humana sem pensar se voltaria a nascer... Os cirurgiões do general tinham aprendido, a operar em fuga ou a perecer. O próprio protegido de Darby regulara a marcha desde o princípio.

      Mais uma vez Toby se perguntou por que motivo a recordação daquela aventura compartilhada já não o emocionava, ou por que razão um jovem médico sem fantasias, que sobrevivera a uma longa guerra sem que esta o marcasse - a não ser com a tendência para gritar, de vez em quando, durante o sono -, olhava o seu diário com tão grande desagrado como se aquelas folhas toscamente cosidas fossem uma pedra que para sempre o prendesse ao passado.

      Certamente aquele Inverno marcava o fim das ordens, no que respeitava ao Exército Continental; certamente já nada devia a Victor Darby, agora que o general morria.

      Ao percorrer com a vista as notas concisas, sem pretensões a manterem qualquer sequência, assaltavam-no inúmeras recordações:

      Canhoneio num pomar de pessegueiros, em Jersey, onde vultos brancos e azuis haviam flanqueado uma coluna escarlate. Nesse dia operaram debaixo de fogo, no Palácio de Justiça de Monmouth...

      Frio de rachar, no Forge, e o vulto alto, encapotado, do general comandante, nítido como o de uma estátua recortada no céu, enquanto as tropas extenuadas desfilavam. Naquele Inverno o seu escalpelo cortara sobretudo dedos gelados, mas o sangue que o cirurgião fazia correr ficava muito aquém, em quantidade, do que manchava a neve...

      O cheiro quente, verde, das enfermarias de Albany, onde os destroços da guerra continuavam a superlotar o armazém e as lojas das ruas laterais e a morte imperava em pulmões congestionados e cotos de membros enegrecidos pela gangrena...

      Albany, Monmouth, um fatídico acampamento na Pensilvânia e agora aquele derradeiro aquartelamento no coração da nova Commonwealth de Vermont. Já não se estranhava que um jorgiano seguisse o exército revolucionário por quase todos os cantos do país, excepto pelo seu, nem que Roy o seguisse também, como uma sombra paciente - Roy Darby, o estudioso nato, cujo lugar mais parecia encontrar-se junto dos livros e do seu absurdo microscópio do que naquelas andanças. Não o surpreendia, sequer, que o velho Victor estivesse prestes a exalar o último suspiro.

      O general considerava essa eventualidade despreocupadamente, enquanto conversavam à cabeceira da sua cama de colunas, uma Hepplewhite autêntica, trazida desarmada para o forte, a fim de tornar mais suportáveis os últimos dias do comandante.

      - Partirei de boa vontade, Toby. Porque não? Ganhámos a guerra e fiz o meu trabalho o melhor que pude. Tu e Roy completá-lo-ão.

      - O seu trabalho, general?

      Victor levara tempo a responder e Toby ainda sentia a fixidez do seu olhar, a interrogação oculta no cérebro do doente.

      - Porque não? Foram ambos treinados para isso. E bem treinados, se assim posso referir-me às minhas intenções.

      - A mim habilitou-me em Medicina, general, juntamente com Roy. Não me preparou para dirigir as propriedades dos Darbys.

      Mas o general ignorara a interrupção do seu capitão-médico e prosseguira:

      - Não será trabalho fácil de reatar, isso te garanto. A maioria dos plantadores estão arruinados e os que sobreviveram não admitirão a necessidade de recomeçar. Quanto às propriedades dos Darbys... bem, a Nancy fez o possível por conservá-las unidas. Mas a Nancy é apenas uma mulher, embora seja minha filha.

      - Nesse caso, general, eu confiaria nela em tudo.

      Mais uma vez o velho general fizera ouvidos de mercador:

      - Há muito dinheiro para gastar no que for preciso, graças a Deus. Sam Hoyt tratou disso quando mandou os meus barcos para Boston, em 78, sem perder um mastro. Coloquei-os sob as ordens de capitães ianques que valiam o seu peso em ouro e ainda não faço ideia de quanto esses navios ganharam. Mas tu verás isso, meu rapaz, pois o Sam escriturou tudo nos livros, até ao último centavo.

      O orgulho do general - pensou Toby ao recordar a conversa - era mais que justificado. Patrício jorgiano que sempre embarcara o seu tabaco e o seu arroz directamente nas suas docas de Savannah, o velho Victor compreendera a tempo os sinais de perigo e soltara as amarras anos antes de os britânicos assolarem o Sul. Em Boston, os seus velozes brigues haviam ganho mais do que o necessário para reparar as terras devastadas.

      - Roy deve beneficiar da sua prudência e do seu bom senso, general. Roy, a sua mulher, a sua irmã...

      - Confio em que beneficiarão, com o tempo. Mas Roy é um sonhador e a mulher uma megera que precisa muito de rédea presa. A minha filha também, embora noutro sentido, e essa... nunca sequer ouviu falar em rédeas! - O velho Victor soltara uma gargalhadinha, nas profundezas das inúmeras mantas garridas que o cobriam, e prosseguira: - Como vês, Toby, as terras dos Darbys precisam de um administrador, se queremos que voltem a produzir. E, por mais que me esforce, nunca conseguirei sublinhar bastante a palavra administrador.

      - Se sugere que eu...

      - Não estou a sugerir nada, meu rapaz, mas sim a explicar porque te treinei...

      - Para exercer a Medicina, general!

      - Para a Medicina... e para isso!

      - Mas o senhor já tem um administrador.

      A enorme cama estremecera de novo com o riso do general, um riso que devia parecer grotesco, pois saía de pulmões moribundos, mas que era forte como a própria vida e como ela inconsciente do amanhã.

      - Se te referes ao Sam Hoyt, contradigo-te firmemente. Não há dúvida de que Sam é um realizador, de que, na realidade, está bons cem anos à frente do seu tempo...

      - Ouvi dizer o mesmo do senhor, general.

      - Considero essas palavras um cumprimento, Toby. Na realidade, um homem com os meus recursos pode dar-se ao luxo de condescender com uma filosofia de previsão do futuro sem que lhe chamem mais que idiota. Antes de 1776 matei três amigos porque insisti na minha crença de que os homens nascem iguais; agora Mr. Jefferson apoia-me, o que significa apenas que parti em vão o pescoço de três bons tories... Mas Sam Hoyt é outra história; estava afundado em dívidas até ao pescoço quando o salvei... e assim continuaria, se a nossa revolução não mandasse desta para melhor a maioria dos seus credores. É bom homem, sem dúvida, mas incapaz de equilibrar os livros; serve apenas para cumprir ordens.

      - Minhas não, general.

      - Quem mais poderá fazê-las cumprir?

      - Importa-se de falar claramente?

      - Deixa-me completar o meu testamento. Esta noite explicarei.

      E mais uma vez afastara com um gesto quaisquer objecções:

      - Não me venhas com o teu franzir de sobrancelhas profissional, Dr. Kent! Viverei até à meia-noite... palavra de honra!

      Não houvera tempo para mais. O general fechara os olhos e, após bater os calcanhares, o capitão-médico afastara-se, a fim de visitar os doentes da enfermaria e de salvar mais uma vida na mesa da messe. Mas levava consigo, no âmago do seu cérebro, a ordem que não chegara a ser proferida. Quando o fosse, deixar-lhe-ia pouco por onde escolher. Com uniforme ou sem ele, havia tanto tempo que obedecia a Victor Darby que não poderia, agora, pôr em dúvida a sua sabedoria.

      O sussurro de vozes emudeceu, por momentos, na sala da messe, ao lado do quarto. Na breve acalmia, Toby ouviu a respiração difícil que vinha do quarto de baixo e, com igual nitidez, o barítono tonitruante do comandante que, ignorando bagatelas como pulmões moribundos, reatava o ditado.

      “Devia ir lá abaixo” pensou Toby, “mesmo que nada possa valer-lhe, agora.” Mas a inércia permitia-lhe apenas andar de um lado para o outro no aposento estreito, ao compasso do vozeirão do doente.

      Graças ao lume bem aceso por Billy, naquela noite o quarto do cirurgião-chefe estava confortavelmente aquecido. Mais do que confortavelmente, para um veterano - pensou Toby -, atirando a sobrecasaca para o cabide de parede mais próximo. A peça de vestuário pairou no ar como uma ave e desceu no lugar da costume. Depois de seis anos de uniforme, era natural que a sobrecasaca soubesse o caminho e parasse onde devia, como um oficial em parada. Toby olhou melancolicamente a fila de brilhantes peças do fardamento: o tricórnio orlado de ouro, com o penacho novinho em folha; o capote, com a magnífica guarnição de zibelina e a série de botas brilhantes como espelhos. Ao contrário de tantos heróis esfarrapados naquela luta por um mundo melhor, os raiders de Darby tinham vivido bem, nos períodos entre as campanhas. O cofre de guerra pessoal do comandante velara por isso e por muito mais.

      Graças, também, à liberalidade do velho Victor, a sala de operações de Toby raramente tivera falta de material; a enfermaria era sempre reabastecida quando o regimento retirava para lamber as feridas. Até apetrechos difíceis de obter, como cuvettes e escalpelos fabricados em Paris, lhe vinham parar às mãos, e o velho Victor limitava-se a encolher os ombros se o médico lhe perguntava quanto tinham custado. Como todos os verdadeiros idealistas, Victor Darby não olhava a despesas quando estava em causa uma autêntica mudança social.

      A própria vida de Toby, incluindo a sua carreira até à data, decorrera no mesmo ritmo rápido. A progressão - de rapaz do interior a cirurgião de um famoso regimento - fora tão deliberadamente planeada pelo general como a maior parte das suas especulações comerciais, e Victor Darby orgulhava-se serenamente do êxito total do empreendimento.

      Ao recordar essa progressão, Toby sentiu acalmar-se o nervosismo que o atormentava. O diário aberto na secretária já não era um inimigo, mas sim um possível guia do seu futuro. Sentou-se na cadeira de braços e começou a ler com cuidado; talvez não voltasse a ter oportunidade de rever o passado, de localizar o momento exacto em que ligara o seu destino ao de Darby.

      A data oficial era fácil de recordar - o dia em que primeiro encontrara Victor Darby em pessoa, na aula de pó de giz da escola de Clay Creek...

      Recordou primeiro o cheiro - um cheiro baseado no mesmo pó de giz, que parecia pairar no ar como pólen branco, misturado com o odor de corpos mal lavados, com o aroma ácido das flores murchas da árvore da China da entrada da porta, das folhas secas de palmeira e das terras de aluvião cobertas de giestas, saturadas de sol e languidez. Lembrou a seguir a sala sombria, de toros colmatados de barro, com o tosco quadro e as carteiras mais toscas ainda, e a terrível majestade do estrado onde o pedagogo local se entronizava atrás de uma fila de clássicos encadernados de carneira. Naquele dia outro professor substituíra Mr. Williams: um indivíduo alto, vestido de cinzento, de fulgurantes olhos azuis e cabeça que fazia lembrar o busto de Platão de Mr. Williams, sem as improváveis patilhas do filósofo. Não havia dúvida de que o novo professor era um cavalheiro, das brilhantes fivelas de aço dos sapatos ao cabelo bem penteado, preso pela primeira fita de seda que Toby jamais vira. Não troçava do sotaque do mato, como Mr. Williams tantas vezes fazia, e escutava com grave atenção enquanto os alunos papagueavam a dinastia dos Plantagenetas, que naquela manhã deviam saber de cor. Mas à hora do recreio constou não se tratar de nenhum professor, mas sim de Victor Darby em pessoa, do monarca em tudo, menos de nome, de toda a região montanhosa ricamente arborizada.

      Toby ouvira contar tantas histórias acerca de Victor Darby que não duvidava da sua existência, embora ele lhe parecesse sempre tão distante como um deus. Não refutou o boato, quando Gabriel Thatch o divulgou no pátio de barro endurecido do recreio, mas disse para consigo que Gabe fantasiava, como de costume. Custava a crer que um homem tão poderoso tomasse conta das aulas da manhã da escola de Clay Creek, mesmo que fosse verdade ter sido Darby quem mandara construir a escola e quem pagava ao professor, mesmo que os seus inspectores insistissem em que todas as crianças dos respectivos distritos frequentassem a escola até aos catorze anos.

      Gabriel acrescentara que Victor Darby visitava todas as primaveras os seus domínios do interior, a fim de verificar os progressos alcançados, sobretudo na educação dos jovens, e que o grande homem de Savannah tinha uma palavra bondosa para todos, quer servos, quer rendeiros, e mesmo para os negros que suavam nas serrações de madeira ou nas plantações de tabaco. Até os negros - afirmara Gabriel - podiam trabalhar para comprar a sua liberdade nas propriedades de Darby!

      - Onde já se viu um preto livre?

      - Há uns bons vinte, em Darbyville, e mais libertaria se a lei lho consentisse.

      - Mentes, Gabe!

      Thatch esmurrara-o sem cerimónias, e lutaram um bocado na poeira encarnada do pátio, como dois pequenos linces, pelo simples prazer de lutar... Mas nem só as palavras são como as cerejas, as recordações também; contava apenas nove anos quando Gabe espalhara essas incríveis fantasias. Depois, quando já ia nos quinze e experimentava os anseios meio formados de um homem, pudera dar-se ao luxo de ouvir com um sorriso tolerante - e de piscar o olho a Martha Gillespie - o seu melhor amigo repetir as mesmas fantasias. Fora até capaz de regressar ao alpendre da classe, com um ar de desinteresse muito bem imitado, quando Mr. Williams o chamara da entrada da porta. Victor Darby estava ainda na cadeira do professor, a folhear a caderneta. Ao levantar a cabeça para o rapazola alto e desengonçado, o seu sorriso e a sua voz, tão vibrante, mas todavia tão suave, pareceram pertencer a outro mundo melhor.

      - Senta-te, Toby. Deixa-me ver-te.

      Toby avançara um passo, mas tanto bastara para que perdesse todo o constrangimento. Sentara-se sem dificuldade na cadeira oferecida, como se sempre tivesse conhecido Victor Darby, e fitara aqueles chamejantes olhos azuis como se a sua alegre boa disposição fosse um eco da que ele próprio sentia.

      - Mr. Williams disse-me que foste o seu melhor aluno desde o princípio.

      Toby vira a careta do velho Williams e ousara abanar a cabeça. Fora, de facto, o melhor em Matemática e História, mas Gabriel Thatch ultrapassara-o por vezes nesta última matéria e sempre em ortografia e Lógica, e confessara-o sem rebuço nem vacilações.

      - Se tivesse mais tempo... isto é, se aproveitasse mais o tempo...

      As sobrancelhas correctas franziram-se numa autêntica careta joviana. Apesar dos óculos encavalitados na bela fronte e do tufo de folhos sob o queixo fendido, Victor Darby cada vez se parecia mais com Platão.

      - Sei que a tua família é numerosa. O trabalho tem-te impedido de estudar?

      - Não, senhor. O meu... o meu tutor compreende. Todos nós temos de nos instruir.

      Toby falara num murmúrio. Constituía uma espécie de milagre local o facto de os rendeiros de Darby poderem mandar os jovens à escola sete meses no ano, enquanto os trabalhadores de Yancy, o vale próximo, mal sabiam escrever o nome.

      O velho Williams intrometera-se, do seu canto, num sussurro seco:

      - São os seus espécimes, senhor... Ou deveremos dizer, antes, dissecações? Encontrará tudo isso mencionado na caderneta.

      - Já vi - redarguira Victor Darby.

      - Como o senhor sabe, interessava-me um pouco pelas ciências antes de me mandar para aqui... Não vi inconveniente em emprestar ao rapaz os meus livros e instrumentos.

      - Sem dúvida - aquiescera Darby. - Estou encantado por encontrar uma... - como direi? - uma centelha de verdadeira ciência no coração da Jórgia.

      O professor corara de prazer.

      - Já estudou os antrópodes e na próxima semana começará com os peixes.

      - Porque não com o homo sapiens, também?

      - Perdão?

      Mas o olhar e a voz de Victor Darby concentravam-se já exclusivamente em Toby.

      - Deixa ver as mãos, rapaz. Abre-as na secretária... assim. É o que eu esperava, Williams; as pontas dos dedos como molas de aço... Gostavas de ser cirurgião, Toby Kent?

      A pergunta fora feita (bruscamente, mas Toby calculara que os olhos inteligentes de Darby o haviam observado desde o princípio e que possuía ideia muito nítida de qual seria a sua resposta. As suas palavras foram apenas compreensiva lisonja dirigida à sua vaidade juvenil:

      - Pensa no assunto, se quiseres; não te censuro por teres ficado surpreendido, talvez até impressionado. Mas como tenciono mandar o meu filho estudar aqui, este Outono...

      - Com Mr. Williams?

      - Porque não? Mais tarde mandá-lo-ei praticar com o Dr. Clemens, em Augusta. Podiam começar juntos, se quisesses. - Victor Darby sorrira docemente, quando o rapaz tentara falar, e recomendara-lhe: - Pensa no assunto, Toby; amanhã conversaremos outra vez. Espero que, pelo menos, gostes do Roy. Até agora tem sido educado com brandura, mas pelo coração é um americano e não perderia nada se tivesse um amigo como tu.

      As suas palavras envolviam o rapaz numa onda quente de humanidade e os seus olhos vivos pareciam dizer-lhe: “Aceita-me como igual. Esquece que é minha a terra em que trabalhas, que os comprei a quase todos no mercado inglês, tão facilmente como outros homens compram negros. Lembra-te, antes, da rapidez com que os liberto, assim que o merecem. Lembra-te, sobretudo, de que continuarás a ser senhor do teu destino, mesmo que aceites o meu auxílio.”

      - Reflectirás na possibilidade de vires a ser médico, Toby?

      - Sentir-me-ia muito honrado, senhor, mas o meu... o meu tutor...

      Hesitara ao proferir a última palavra, revendo mentalmente a imagem do irascível Angus MacLane e vendo-o abrir a boca no berro familiar. Angus era um homem bom, um homem justo; dera um lar ao seu protegido órfão e em troca esperava receber gratidão - e gratidão, para Angus, traduzia-se em todo o trabalho que um rapaz a espigar pudesse fazer, desde o nascer ao pôr do Sol, com um intervalo, concedido sem muita relutância, para as aulas de Mr. Williams. A boa vontade de Angus não abrangia, porém, a instrução científica que o professor proporcionava a Toby. Este ouvia ainda as pragas do escocês a respeito da idiotice de matérias como Zoologia e dissecação.

      Mãos fortes como as de Toby - dizia - deviam agarrar um dos lados da serra braçal, no campo de derrube de árvores. Que diria da incrível oferta de Victor Darby?

      Mas Victor Darby afastara esse receio com a maior das naturalidades:

      - Acabo de resgatar-te e, além disso, dei a Angus uma conta redonda para o compensar das horas que perdeste em devaneios.

      Os seus olhos exerciam sobre ele acção quase hipnótica, como dois sóis azuis paralelos, irradiavam um encanto muito pessoal. Fora nesse momento, exactamente, que Toby selara o seu acordo com os Darbys.

      - Não devíamos chamar-lhes devaneios, Toby, mas sim futuro.

      - Futuro, senhor?

      - Se Clemens te passar um certificado, mandar-te-ei para Edimburgo. - Victor Darby estendera-lhe a mão, mão aristocrática, comprida e pálida, com força inesperada nas pontas dos dedos. - Creio que, por enquanto, nada mais tenho a dizer. Quando saíres, importas-te de me mandares o teu condiscípulo Gabriel Thatch, aquele que te leva a palma em Lógica?

      Começara assim, com tanta simplicidade e com tanta magia...

      Gabriel Thatch fora também contratado para a propriedade dos Darbys, naquela Primavera, com a condição de, no Outono, ir aprender a arte de impressor em Savannah. Ao proporcionar estas oportunidades aos jovens, Victor Darby procedera apenas como era seu costume. Todas as primaveras percorria as suas escolas nas montanhas, estudava as cadernetas dos professores e escolhia alunos a quem conferia honras especiais. Pelo menos fora o que Gabriel dissera quando, juntos, planeavam o futuro, um futuro que o procedimento de Darby não deslustrava. Generosidade como a sua parecia natural numa família que criara raízes com Oglethorpe. Em meio século, os Darbys tinham comprado a sua posição, rio acima, seguindo com firme determinação atrás dos machados dos pioneiros. Haviam adquirido florestas virgens e fazendas ribeirinhas, arrozais no estuário do Savannah e plantações de tabaco, e confiado sempre as suas terras às mãos robustas dos camponeses. A homens como Angus MacLane, que dera a Toby um tecto depois de os pais morrerem, e como o gordo John Singleton, que se resgatara anos atrás e dirigia agora a hospedaria de Clay Creek. Os Darbys tinham encorajado sempre os seus servos - importados para aquele paraíso moderno aos barcos cheios, de Londres ao Clide - a comprar a liberdade o mais depressa possível, a melhorar também o mais depressa possível a sua sorte, depois de libertados, e a melhorar a sorte dos seus filhos.

      O próprio pai de Victor construíra a casa dos Darbys, em Savannah, e fora Jonathan Darby quem lançara a primeira pedra de Sangaree, esse edifício ainda mais magnificente que se erguia, como um arcanjo branco, sobre os arrozais próximos da foz do rio. Ao contrário de outros proprietários, Jonathan vendera os seus bens em Londres no dia em que fizera a primeira aquisição a um chefe Yamacraw e transferira a sua frota mercante de Pool para aquele rio largo e encarniçado, no sertão havia pouco descoberto. Os Darbys seguintes tinham-se limitado a aplicar os seus bens na mesma argila encarnada que os alimentava.

      Mas isso era, de certo modo, história antiga. A febre amarela assolara Savannah dez anos antes e arrebatara grande parte da geração de Victor, incluindo a mulher e os filhos mais velhos. Tinham sobrevivido apenas Roy e Nancy, sua irmã, e esta tornara-se a castelã da família quando Victor anunciara que não voltaria a casar. Tudo isto era, no entanto, simples cronologia para Toby, enquanto esperava nas montanhas da Geórgia que o seu futuro adquirisse forma. O próprio Victor se transformara numa recordação e Nancy parecia-lhe irreal, como personagem de um conto de fadas. Quando Roy se lhe juntara, para estudar durante algum tempo na escola de Mr. Williams e compartilhar o seu quarto por cima do celeiro de Angus MacLane, não contribuíra de maneira nenhuma para dissipar essa irrealidade, embora, franzino e débil, correspondesse à imagem que Toby idealizava do ricaço ribeirinho.

      Tornaram-se amigos sinceros muito antes de começarem o aprendizado com o Dr. Clemens. Apesar da sua gravidade aparente, Roy sabia ser folgazão, quando estava de maré. O uísque (bebida de feitores, segundo dizia, o que não o impedia de beber a sua conta, com Toby e Gabriel...), em Augusta, contribuía para demonstrar essa faceta do seu carácter, assim como acampar sob as estrelas, quando conseguiam escapar à ira de Angus MacLane, que acreditava deverem os rapazes, como o gado, recolher ao redil mal escurecia.

      Sucedera-se, numa sequência natural, o namorico com as raparigas da hospedaria de John Singleton - tão naturalmente como levar uma delas para a adega, quando o estalajadeiro virava compreensivamente as costas. “Fazer amor”, como Clay Creek interpretava a pouco terna frase, parecera sempre a Toby Kent tão lógico como respirar, graças aos ensinamentos de Gabriel.

      Nem a intromissão de Martha Gillespie conseguira perturbar a sua amizade, embora durante algum tempo a modificasse. Martha fora sempre vizinha de Toby; seu pai, que era feitor de Darby em Clay Creek, arrendara a terra ao lado da de MacLane. Como os Gillespies eram pessoas de posição na comunidade, Toby nunca se atrevera a relacionar Martha, nos seus sonhos secretos, com as criadas da hospedaria de Singleton, mesmo depois de descobrir serem os seus beijos ainda melhores do que os delas.

      A visita de ambos à Sachem Cave fora apenas consequência inevitável dessa descoberta. Começara tudo inocentemente, num passeio dominical ao longo do carreiro que levava à margem do rio, até que um aguaceiro de Verão os apanhara à entrada da floresta, mesmo debaixo da encosta. Mais tarde, ao recordar o episódio, Toby perguntara a si próprio se ela não teria planeado acabar o passeio exactamente naquele lugar e rejubilado interiormente quando a primeira bátega lhe proporcionara o pretexto para sugerir:

      - Vamos para as cavernas, Toby.

      - Chegaremos lá encharcados; chove a cântaros.

      - Se corrermos não nos molharemos.

      E afastara-se a correr, levantando as saias para dar maior liberdade às pernas esguias. Transpuseram a primeira entrada da caverna, oculta por trepadeiras, e ela rira alto e lançara-se nos braços que a esperavam. Por baixo deles, a tempestade fazia turbilhonar as águas barrentas do Savannah. Uma cortina cinzento-branca de humidade envolvia a praia distante e os penhascos e emprestava à paisagem gotejante da Jórgia ar simultaneamente fantasmagórico e quente. “Se são fantasmas que arrastam os longos dedos na orla do entardecer”, pensara Toby, “parecem-me muito cordiais.”

      - Não tens a sensação de estar a ser observada? - perguntara, sem quase se aperceber de que falava, com a boca encostada aos cabelos de Martha.

      - Não. Sinto-me pré-histórica, como Eva à procura de Adão.

      - Lilith coaduna-se melhor contigo.

      - Seja Lilith, então. Mas como podem observar-nos se somos as únicas pessoas sobre a terra? - Entrara na caverna, soltando uma gargalhada para a qual, apesar dos seus verdes anos, Toby só encontrara uma interpretação.

      A areia estava seca, sob os seus pés. O rapaz ajoelhara junto da tosca lareira improvisada por si e por Roy, na expedição campista do ano anterior, certo de que encontraria gravetos e erva seca entre as pedras. O guerreiro vermelho ocre, pintado na parede fronteira por algum artista primitivo de uma eternidade atrás, sorriria como sempre assim que a primeira labareda palpitasse. E Martha, ao secar o vestido de tecelagem caseira ao calor do fogo, representaria um enigma igual ao do sorriso do guerreiro.

      - Porque me trouxeste aqui, Toby?

      Resolvido a mostrar-se cavalheiresco durante mais alguns momentos, não lhe lembrara que fora ela quem sugerira aquele passeio.

      - Estás arrependida de ter vindo tão longe? - perguntara-lhe por seu turno.

      - Pelo contrário! Admira-me, até, que não me convidasses há mais tempo.

      O seu sorriso era um convite aberto, mas Toby fingira-se atarefado com o lume e deixara-a afastar-se sem lhe tocar, aproximar-se da entrada da caverna e ver a chuva fustigar o vale. A tarde cinzenta, cortada pela luz lívida dos relâmpagos, emoldurara-a no emaranhado de trepadeiras bravas. Toby sentira o coração parar-lhe no peito, ao notar-lhe o palpitar dos seios sob o vestido, e calculara que nada sustinha os dois pomos gémeos e erectos - como nada susteria a própria Martha Gillespie.

      - Não queres admirar a tempestade, Toby?

      - Acho melhor secares-te primeiro.

      - Por baixo do vestido estou seca e quente.

      “Hei-de obrigar-te a vires ter comigo, agora que estou seguro de ti!”, prometera Toby a si mesmo, enquanto dizia, em voz alta:

      - A luz cinzenta favorece-te, Martha. Brilhas nela como uma labareda!

      - Onde aprendeste essa tirada?

      - Ensinou-me o Gabe, claro - confessara, sorridente. - Mas ele também a copiou de um livro, não sei de que poeta.

      - Não sei se te lembras de que te ensinei a beijar como deve ser, não há ainda muito tempo... - insinuara a rapariga, sem desviar os olhos das cordas de água que caíam.

      - Estou-te grato pelo ensinamento.

      - E eu satisfeita por teres aprendido algumas lições com outras. Tais como cumprimentos...

      - Não fiques por aí.

      - E a amar, suponho - acrescentara devagar, atirando-lhe as palavras como um desafio.

      - Aproxima-te do lume. Tens o vestido a pingar.

      - Secará antes de nos irmos embora.

      Nem mesmo ao vê-la erguer o vestido desgracioso, primeiro das ancas e depois dos ombros, e ao confirmar que estava de facto nua debaixo dele, acreditara totalmente nos seus olhos. Não' trocaram uma palavra. O seu corpo de linhas doces, de lira, vibrante numa nota alta de êxtase, reclamara-o sofregamente, submergira-o numa eternidade cega, que engolfara todas as suas dúvidas.

      Houvera outras visitas à caverna, naquele Verão, cada uma das quais mais agradável do que a anterior. Toby não se sentira muito magoado por calcular que Martha acompanhara Gabriel e Roy em aventuras semelhantes, mas custara-lhe a acreditar nos próprios ouvidos quando soubera que Roy tencionava desposá-la no próximo Outono. Não soubera, tão-pouco, que atitude tomar quando os boatos adquiriram a consistência da verdade e Victor Darby fora a Creek, a fim de combinar com os Gillespies os pormenores do casamento.

      Clay Creek rira à socapa da sorte de Martha. Ao visitar Victor Darby, a pedido deste, Toby não tivera tanta dificuldade como calculara em aceitar o espectáculo de um Roy apaixonado, e de um pai que parecia demasiado ansioso por aprovar o enlace. Como se isso não bastasse, surpreendera em si próprio a esperança crescente de que o casamento fosse um êxito, apesar do passado de Martha.

      - Mandei o meu rapaz para as montanhas por duas razões, Toby - confessara-lhe Victor Darby. - Primeiro, porque precisava de ter mais alguma coisa na vida do que os livros; segundo e mais importante, porque esperava que encontrasse noiva nestas florestas.

      - Aqui?

      - A Jórgia foi colonizada por gente como os Kents e os Gillespies. Quando se escrever a nossa história, a eles caberá o crédito de terem desbravado esta terra; os Darby serão lembrados, se forem, como os ricaços que engordaram a expensas vossas. Sim, orgulho-me de Roy ter escolhido Martha.

      - E a sua filha, senhor? - Toby, que acabava de ter conhecimento do casamento de Nancy com um ricaço do rio, fizera a pergunta inconscientemente. - Teria gostado se ela... - mas calara-se, ao ver a testa franzida de Victor Darby.

      - Tinha outros planos para Nancy, meu rapaz... planos que me parece inútil mencionar agora. Um dia, se visitares a minha biblioteca de Sangaree, talvez te divirtas a lê-los.

      - Honra-me muito, senhor.

      - Os meus amigos chamam-me filósofo sem auditório...- murmurou o velho Victor, perdido em pensamentos. - Pelo menos, nunca os aborreci com as minhas verdadeiras ideias (ou deverei dizer esperanças?) acerca dos meus filhos e da Jórgia. Encontrarás essas esperanças registadas nos meus diários; podes lê-los quando quiseres. - E, como se despertasse de um sonho, acrescentara: - Mas falávamos de minha filha, creio, e não das minhas esperanças...

      - Não tenho o direito de...

      - Tolice; o teu interesse agrada-me. A Nane tomou sempre muito a sério os seus deveres. Ou deverei dizer a sua dívida para comigo e para com Roy? Talvez o casamento a ajude a esquecer esse fardo estéril. Claro que o marido tem excessiva consciência dos seus pergaminhos familiares...

      - Acha que devo ouvi-lo, senhor?

      - Toda a gente sabe a minha opinião acerca dos Gregorys. São uma família de primeira categoria, mas excessivamente pedante, o que, aliás, é pecha dos nossos monárquicos. No entanto, George Gregory representa uma melhoria na vida que Nancy levava.

      - Ainda bem que está contente com o enlace, senhor.

      - O facto de aceitar o meu genro não significa que esteja contente - redarguira-lhe Victor Darby, como se pensasse alto. - Talvez eu procedesse mal... talvez errasse em conservar a Nancy na Jórgia quando a mãe morreu. É possível que ela e Roy fossem mais felizes como ingleses do que como coloniais... ou americanos - e pronunciara a última palavra vagarosamente, como se saboreasse o seu tom de rebelião. - Mas o que não tem remédio... Talvez o Roy se salve, pois deposito esperanças em Martha e em ti.

      - Em mim, senhor?

      - Meu filho confia muito em ti, Toby. Progrediu bastante desde que trabalharam ambos com Clemens e é por isso que os vou mandar juntos para Edimburgo.

      - Mas se ele se casa...

      - A noiva insiste em que acabe os estudos, embora o acompanhe.

      Depois disso, fora fácil deixar que os acontecimentos seguissem o seu curso, e mais fácil ainda evitar Savannah na semana do casamento, como evitara Martha depois do anúncio formal do noivado. Seguira para Charleston via contrafortes da Carolina, metera-se num barco directo para Glasgow e daí para Edimburgo. Obedecendo a um instinto de sensatez, alugara aposentos numa estalagem de muda, na Charles Street, quase à sombra da universidade e da mole de pedra húmida da sua famosa Faculdade de Medicina.

      Sabia que Roy alugara casa em Horse Wynd, onde recebia prodigamente, como convinha a um nababo colonial, e que Martha, qual borboleta fascinante naquela atmosfera estranha, se adaptara imediatamente ao ambiente e se transformara da noite para o dia numa lady, embora conservasse intacto o seu encanto bravio.

      Sim, com o trabalho a servir-lhe de antídoto poderoso, fora-lhe fácil aceitar a metamorfose e não ligar, sequer, importância ao espanto de Roy por o seu velho amigo jantar tão raras vezes consigo. O trabalho absorvera-os desde o princípio. Ao operar na famosa clínica da escola, com o grande John Hunter a registar a duração dos golpes de escalpelo, Toby compreendera que encontrara a vocação da sua vida e tempo para aperfeiçoar a sua técnica. Pelo seu lado, Roy transformava-se no clínico perfeito, com os seus dias de prática hospitalar, de consultório e de laboratório. Como equipa médica, os dois jovens doutores completavam-se tão absolutamente que, por vezes, não custava a esquecer o abismo que os separava.

      Terminaram o curso com a guerra às portas do seu mundo. Ao lado dos diplomas de pergaminho, novinhos em folha, tinham cartas a avisá-los de que a frota Darby seguiria toda para Havana, a fim de fugir da tempestade. Quando os tiros disparados em Lexington ecoaram através do Atlântico, como o trovão do dia de juízo, Toby recebera ordem de se dirigir imediatamente para Filadélfia, onde Victor Darby se preparava para oferecer ao Congresso um regimento de raiders jorgianos. Roy reunira-se-lhes depois de conduzir Martha para lugar seguro, em Cuba. Ao que parecia, Nancy Gregory seguira já para Nassau, pois o marido decidira servir o seu rei.

      Roy e Toby, sempre de acordo com as ordens recebidas, partiriam de Clydebank em barcos diferentes. Ao sair da sua estalagem para o “Correio de Glasgow”, Toby sentira-se singularmente contente, para um homem prestes a mergulhar no seio de uma revolta. Graças à sua condição de solteiro, fora-lhe fácil embrulhar-se num capote mais e sentar-se na boleia, deixando o interior da carruagem para Roy e Martha.

      Desde a última tarde passada em Sachem Cave conseguira evitar ficar só com Mrs. Roy Darby, embora isso às vezes fosse difícil. Felizmente, em Glasgow não haveria tempo para despedidas prolongadas, pensara, enquanto atravessavam a Escócia atrás do bater de dezasseis ferraduras.

      Roy estivera constantemente ocupado, em Glasgow, a fazer compras para o corpo médico que em breve organizariam em Filadélfia. Insistira em tratar de tudo sozinho e em que Martha descansasse na estalagem, até à hora da partida. Toby inventara também assuntos pessoais a tratar, como medida de precaução, mas quando soubera que Martha andava às compras, com o mordomo negro, escondera-se. Extenuado, fechara-se no quarto e deitara-se, mesmo vestido, em cima da cama.

      Acordara ao escurecer, sentindo uns dedos quentes pousados na testa e uma boca escaldante em busca da sua. Estava uma mulher consigo na cama, nos seus braços, uma mulher que o desejava com todo o seu corpo sábio no amor. Disso tivera consciência antes de acordar por completo, e só quando ela murmurara o seu nome compreendera ser aquela a ideia que Martha Darby fazia de uma despedida íntima.

      Nem o próprio Galaad saltaria da cama com maior veemência!

      - Como entraste?

      - O amor ri-se das fechaduras, Toby.

      - Imaginaste por um momento que eu...? Encararam-se na penumbra crescente e a gargalhada rouca que Martha soltara vibrava de desejo.

      - Se não cometesses a descortesia de acordar... e de te lembrares de quem és...

      - Sais tu... ou eu?

      - Dispomos de uma boa hora antes da partida do meu barco e o Roy ficou de ir ter comigo ao cais. Porque não admitiremos, entretanto, que somos humanos?

      - Sairei eu, já que insistes - murmurara Toby, notando que ela não esboçava a mínima intenção de se levantar e que nem sequer cobria com as rendas da combinação as pernas compridas e macias.

      - Ouvir-me-ás primeiro. Dei ao Roy tudo quanto ele quer de mim, ou talvez mais. Porque não havia de procurar-te hoje se sei que não prejudico ninguém?

      - Será preciso lembrar-te que és uma Darby?

      - Lamentar-me-ias um pouco se te confessasse que o meu casamento foi um erro?

      A voz tremia-lhe e, por momentos, Toby tivera medo de acreditá-la.

      - Sabias o que querias, Martha.

      - E obtive o que queria. Mas significará isso que sou feliz?

      - Não encontrarias marido mais bondoso. Quantas vezes traíste a sua confiança?

      - Esta é a minha primeira imprudência... e mesmo assim vais deixá-la incompleta.

      Lembrando-se de certos mexericos que lhe tinham já chegado aos ouvidos, em Edimburgo, Toby enfurecera-se e redarguira, veemente:

      - Devia ter avisado o Roy há dois anos! Se lhe tivesse dito tudo...

      - Roy ter-se-ia rido da tua história, então. Agora matar-te-ia.

      - Acredito. Porque não recompensas como merece a devoção e a confiança do teu marido?

      - Haverá alguma mulher que goste de ser amada por um cérebro? - Levantara-se, finalmente, e passara-lhe os dedos pelos cabelos, num gesto suplicante. - Se soubesses quanto tempo esperei que te lembrasses de que me conheceste, outrora!

      - Nenhum casamento é perfeito, Martha! - afirmara, o mais brutalmente possível. - Fizeste o teu com os olhos bem abertos; agora deves sujeitar-te às consequências.

      - Nós somos iguais, Toby; trabalhamos ambos para os Darbys, embora de maneira diferente. Pertencemos aos Darbys, por mais livres que sejamos. Porque não aproveitar umas pequenas férias, de vez em quando?

      - Julguei que tivesses mais orgulho.

      - Não digas tolices!

      Selara-lhe a boca com um beijo que o transportara, num abrir e fechar de olhos, a Sachem Cave. Fora ele que a levara para o leito ou Martha que o arrastara para o seu lado? Fosse, como fosse, libertara-se com um gesto violento e recuara, cambaleante até à porta, antes que a sua proximidade anulasse a lealdade que dedicava a Roy.

      - Considero isto o nosso adeus, Toby. Talvez sejas mais ousado quando voltarmos a encontrar-nos.

      Nunca soubera como chegara à rua nem como passara o tempo até ter a certeza de que o barco partira de Clydebank. Mas lembrava-se de se ter aproximado por entre os armazéns, a fim de se certificar, e de o ver entrar no canal, com a maré. As vigias da cabina da popa estavam iluminadas, e Martha, como se sentisse o seu olhar, colocara-se junto de uma delas e via Glasgow ficar para trás.

      Fora uma espécie de vitória, mesmo na retirada. Mas, ao encaminhar-se para o cais seguinte, onde o paquete de Filadélfia carregava antes de rumar para águas rebeldes, Toby não tivera a certeza de quem vencera.

      O resto pertencia já ao diário que tinha na mão: a uniformes esfarrapados, que o ouro de Darby trocara por novos, ao fumo da guerra e ao cimentar da sua amizade por Roy Darby junto das fogueiras de cem acampamentos. Hoje - repetiu-o solenemente - nenhuma mulher conseguiria abalar tal amizade. Aquele momento em Glasgow fora a última ameaça digna de ser recordada.

      A andar de um lado para o outro no seu quarto do forte de Vermont, ouvindo o vento assobiar pelas vastas extensões geladas de Champlain, o Dr. Tobias Kent parava de vez em quando e lançava às chamas um punhado de folhas do diário. Sabia que era um gesto romântico, mas desanuviava-lhe o espírito. Dir-se-ia que, com as folhas cheias da sua caligrafia fina, queimava a própria indecisão, forjava o seu futuro nas fracas labaredas que ateavam.

      Por fim, chegou a vez das duas cartas. A primeira, de Martha, trazia-a consigo desde que, havia três meses, chegara de Savannah para alegrar - e confundir - aquele último e longo acampamento. Amaldiçoara a sua ousadia, ao abri-la, mas mesmo assim lera-a centenas de vezes. Custou-lhe queimá-la, apesar de ter passado muito tempo e de ser capaz de repetir de cor todas as palavras, enquanto via a bola de papel desfazer-se em cinzas.

     

      Savannah, Jórgia, 1 de Dezembro de 1783.

      Meu querido Toby:

      Cumprimentos de uma velha admiradora a um herói que em breve regressará. Poderei dizer menos - ou ousarei dizer mais - agora que voltei do meu longo exílio, a fim de aguardar, na minha casa em Savannah, o regresso do meu marido? Traz-mo são e salvo, queridíssimo amigo, e, se a Deus aprouver, devolve o meu sogro à sua família, ou ao que dela resta depois desta ruinosa guerra...

      Até aqui, limitava-se a obedecer à moda arrebicada da época, em que o estilo de quem escrevia parecia mais importante do que os seus sentimentos. Ao imaginá-la a redigir aquelas linhas ocas (de négligé vaporoso, com uma chávena de chocolate a fumegar na mesa-de-cabeceira e, perto, uma criada preta de warming pan (Caçarola de cabo comprido, coberta, onde se punha carvão e que antigamente se usava para aquecer as camas. (N. da T.) na mão, Toby tivera vontade de rir do seu suave cinismo. Era, pelo menos, uma espécie de escudo protector da carta propriamente dita, que continuava, quase sem transição:

      Savannah está marcada pela guerra, pobre e orgulhosa como uma beleza estiolada, e para esta visitante mundana mais maçadora do que é possível imaginar. Duas coisas suavizam a minha tristesse, nestes dias: a companhia do teu bom amigo Gabriel Thatch (que, como sabes, voltou para reabrir a sua tipografia e reatar a publicação do seu inimitável Mercury e - será preciso dizê-lo? - a guerra quase aberta que existe entre mim e a minha cunhada. Porque há-de a guerra das mulheres recomeçar no momento em que a dos homens termina?

      Mas, ai de mim, é compreensível e inevitável que a Nancy e eu estejamos em pé de guerra!

      Primeiro, por causa da minha origem - ou deverei baixar a cabeça e dizer, antes, “os meus humildes princípios”?

      Segundo, porque sou senhora da nossa casa na Wright Square (que os canhões ingleses pouparam), ao passo que ela tem de viver entre ruínas, aranhas e pretos tagarelas, em Sangaree.

      Terceiro, e principalmente, porque ela suspeita de que me corre sangue nas veias, em vez do pálido ícore do seu coração patrício.

      Por falar em corações, meu querido, peço-te que não desesperes se te parecer que te desnudo o meu. Não te esforces, também, por fugir-me, pois o teu destino e o meu estão ligados para sempre, por outros laços além dos da carne... Acredita que nada te será impossível em Savannah se jogares as tuas cartas com sensatez e confiares nos meus conselhos.

      Nada mais, por agora. Está descansado que as delicadezas superficiais continuam a ser respeitadas, por aqui. A elegante viúva Gregory mantém-se na sua órbita e eu na minha. Se digo que me detesta, se afirmo e repito que se sente frustrada como uma égua solitária na pastagem, é apenas porque vejo Nancy Gregory, nascida Nancty Darby, com olhos de mulher. Ela é, agora, minha inimiga; será tua também, por outras razões, a partir do momento em que puseres os pés em Savannah. Não te iludas, Toby; as suas raízes são profundas, mas o seu desprezo e o seu ódio por pessoas como nós são ainda mais profundos. Não devemos cometer o erro de lutar separadamente contra ela.

      Esclarecerei este pormenor quando nos encontrarmos. Entretanto, diz ao Roy que estou ansiosa por tê-lo de novo nos meus braços... Pensando melhor, não lhe digas nada. Conheço-te bem e estou certa de que só a tortura te levaria a admitir que recebeste esta carta da que foi tua escrava no amor e pode agora chamar-se apenas

      Tua obediente serva,

      MARTHA GILLESPIE DARBY

     

      Sim, era uma carta audaciosa, mesmo para Martha, embora tivesse vindo por correio especial e com poucas probabilidades, portanto, de se transviar.

      Toby perguntara-se centenas de vezes quais seriam os motivos que a tinham levado a escrever tais coisas e ficara com a suspeita de que só podia atribuí-las a um tédio desmedido. No entanto, não podia duvidar da sua fundamental sinceridade. Não se dera ao trabalho de responder-lhe, pois supunha que Martha não esperava resposta. Como todas as mulheres seguras da sua presa, podia dar-se ao luxo de aguardar.

      A segunda carta era de Gabriel Thatch, mas Toby queimou-a também, quanto mais não fosse para limpar a secretária. Havia nela uma vivacidade jornalística que lhe deu a sensação de o estoira-vergas do amigo se encontrar ali, no quarto.

     

      Savannah, Jórgia,

      2 de Fevereiro de 1784. Meu amigo:

      Saltitando entre ambos os campos (como todo o bom escritor deve fazer), posso agora oferecer-te um acertado relato provisório do bailado que nós, veteranos, escolhemos para erguer a nossa última tenda. Aproveitando a metáfora, deixa-me dizer-te que optámos por um bosque cheio de vespões de todos os géneros.

      Primeiro os tories, evidentemente... Tories hipócritas, que ficaram e viraram a casaca, mas conservavam os corações lealistas (como o clã Bristol, cujo patriarca é o Dr. Mathew Bristol, teu principal concorrente). Tories sinceras, como a irmã Roy, que partiu com o marido para o exílio e regressou com o mesmo coração que levou. Ou são independentes e alistam-se no campo dos conservadores (esse grande domínio que vive contente com. os seus “ontens” e faz cara de pau ao “amanhã”) ou regressam viúvas de Nassau, como Nancy Darby Gregory (deves lembrar-te de que o marido prosperou durante algum tempo como capitão de um barco, mas acabou por morrer de febre maculosa).

      Geralmente, este tipo regressa a penates de cabeça baixa, mas a incorrigível viúva Gregory regressou com a sua bem levantada, e no momento em que escrevo esta carta faz todos os possíveis por olhar de alto Mrs. Darby, a quem estão confiadas as chaves do reino até ao regresso do marido.

      Como sabes, a Jórgia só foi salva para o lado vitorioso por jovens temerários como eu e por velhos temerários como o nosso estimado comandante. (Quem dera, por amor da lenda que dele há-de ficar, que morresse a combater, em vez de na cama!) Agora que conquistámos a paz, a vitória mostra-se muito incómoda em todos os sentidos. O comércio está parado; o odioso Don berra ameaças através das St. Marys, enquanto se reapodera das Floridas; os guerreiros de Sua Majestade navegam abertamente no nosso estuário, sob o pretexto de procurarem desertores...

      Mas isto são concomitantes de qualquer paz. O que na realidade me perturba são os rumores de descontentamento na própria Savannah, maleita mais funda que os maus tempos e que de certo modo afecta todos. Chama-lhe “doença-tory”, se quiseres, à obstinada determinação da aristocracia (e tu sabes muito bem em como esse clube se formou na nossa bela colónia e quanto é rigorosa a admissão...) em governar como se nada tivesse acontecido, ou em arruinar, se preferires.

      Esses, pelo menos, conhecem-se uns aos outros e sabem o que querem. Nós sabemos apenas que somos americanos, e esta palavra está ainda por definir. Irmãos-de-armas, poderemos continuar irmãos-de-paz e travar a boa luta por um mundo que seja todo nosso, sem tributos a reis ou a senhores?

      Acho melhor ficar-me por aqui, antes que o meu eloquente interrogatório nos avassale a ambos... Se queres que te diga, estas apaixonadas interrogações são retóricas e responder-lhes-á um ressoante “Sim” no meu editorial da semana. Se voltares no próximo mês e encontrares a tipografia transformada num monte de escombros fumegantes, e o editor convertido em espantalho carbonizado no pântano, saberás porquê.

      Informa quando o destino do general Darby se cumprir. Monárquico incurável, tenho uma página especial composta, a recordar os seus serviços à Jórgia, com um poema laudatório escrito por um tal Michael Ravenna, um bardo local muito parecido com este teu humilde criado. Quando um verdadeiro chefe morre, os homens ficam demasiado atordoados para chorar...

      Assuntos profissionais levar-me-ão a Augusta em meados de Março; por isso, tenho esperança de regressar na tua companhia, se continuares resolvido a visitar Clay Creek antes de vires para Savannah, procedimento que merece a minha aprovação. Como todas as utopias corrompidas, a nossa bela cidade deve ser abordada devagar, desempoeiradamente, para poder ser saboreada como deve.

      Tuus Amicus (e isto é, também, do coração),

      G. T.

     

      Animado, como sempre, pela recordação de Gabriel - e pelo génio com que ele descia deuses dos seus pedestais -, Toby achou-se com coragem para suportar a provação que o esperava quase calmamente. Iria para Savannah quando chegasse a altura e abriria um consultório de sociedade com Roy; não havia outro fim lógico para o que Victor Darby iniciara na escola de Clay Creek.

      Enfrentaria até, o melhor que pudesse, a irmã de Roy e o seu conclave de dragões. Quanto à aliança proposta por Martha... bem, não pensaria nisso enquanto não voltasse a vê-la.

      Invadiu-o uma grande paz, a paz que só sentem aqueles que tomaram uma decisão. Atravessou o quarto em três enormes passadas, envergonhado de se ter esquecido dos visitantes ingleses e dizendo para consigo, antes de o cheiro dos bifes de urso lhe assaltar as narinas, que havia meses não sentia tanta fome. De súbito, ouviu a porta de Victor Darby abrir-se com violência e rumor de passos céleres pela escada acima. Parou, petrificado, com a mão na maçaneta, e só com grande esforço de vontade a largou. Na messe quente, cheia de fumo e a cheirar a rum da poncheira, misturavam-se sobrecasacas encarnadas e azuis. Lorde Wystan segurou-lhe num braço, com uma suave pressão significativa de que o inglês compreendera, também, o que queriam dizer aqueles passos apressados. Roy apareceu e o amigo leu-lhe nos olhos, antes mesmo que falasse, o veredicto fatal - um veredicto que, embora considerado inevitável havia semanas, não era por isso menos impressionante.

      - Vem depressa! Creio que ainda há tempo...

      Oficiais vestidos de encarnado e de azul perfilaram-se em sentido e um silêncio de morte reinou no aposento, enquanto Toby corria para a escada, seguido de Roy. Da porta escancarada do quarto do comandante saía o clarão amarelo da luz das velas, de mistura com um silêncio significativo.

      - Porque não me chamaste há mais tempo?

      - Foi ele que quis assim, Toby.

      Billy estava ajoelhado aos pés da cama de colunas, com a cabeça apoiada nos punhos negros, e Sam Hoyt era uma sombra baça e imóvel na penumbra, junto da mesa onde escrevera durante tanto tempo. Toby apercebeu-se de que os seus olhos pousavam, antes de mais nada, nesta mesa, e notou, sem surpresa, que na mesma se encontrava apenas uma folha de papel com um tinteiro quase vazio em cima. Primeiro escreve as suas ordens, depois transmite-as, pensou, sem vestígios de azedume; Victor Darby procedera sempre assim.

      O general, encostado nas almofadas, com um capote pelos ombros, parecia uma máscara de bronze de si mesmo, fundida em linhas heróicas. A longa doença não lograra roubar-lhe o bronzeado das faces e as suas mãos, que traçavam desenhos imaginários nas mantas que o cobriam, continuavam a dar uma ideia de força, embora a vida lhe fugisse, por assim dizer, pelas pontas dos dedos. Toby suspirou, ao sentir a perscrutação habitual dos seus olhos, deteve-se um instante, como que pregado por eles ao chão, e depois avançou até aos pés da cama e pousou a mão no ombro de Billy.

      O negro não levantou a cabeça. Da sombra, Sam Hoyt olhava-o sem o ver.

      - Perdoa-me, Toby... Como vês, enganei-me ao calcular o tempo.

      As palavras de Victor quebraram a tensão que o tolhia e Toby avançou e prendeu nas suas a mão do velho.

      - Não fale; só servirá para o enfraquecer.

      - Tenho de falar. É a minha última oportunidade... na terra. Não posso... perdê-la. - O tom vibrante da voz parecia desmentir a advertência de Toby, mas as longas pausas entre as palavras e a luta que travava para respirar traíam a agonia do general.

      - Já me deu as suas ordens, senhor; bem sabe que as cumprirei.

      - Não te dei todas as ordens, Toby - esclareceu Victor Darby, com um gesto débil na direcção da única folha de papel colocada debaixo do tinteiro. - Sam lê-las-á... daqui a bocado. Queria lê-las... eu próprio, explicá-las... embora não precisem de explicação...

      Sam estremeceu, na sombra, e Toby, sem se afastar da cama, interpretou o gesto suplicante do administrador. Acenou com a cabeça e as pálpebras do moribundo palpitaram. Prometeria tudo quanto Victor Darby quisesse.

      - Não houve ninguém como tu, Toby; ninguém. Completaste os outros... ou completarás, antes de chegares ao fim. - Se a voz tremia e fraquejava, a determinação não vacilava, nem a força da mão presa nas de Toby. - Lembras-te de te dizer que tinhas aço nas pontas dos dedos? De te perguntar se querias ser cirurgião? Agora sabes que não me enganei, não é verdade, Toby? - Mais uma vez a batalha perdida da respiração foi prolongada por um milagre de resistência. - Há outras doenças na Jórgia... demasiadas doenças... tão profundamente arreigadas que o escalpelo não poderá chegar-lhes. Mas há também outras maneiras de as combater... de as expulsar. Não na minha vida... nem na tua; na seguinte. Que importa? Lutar é que conta. Viver pela luta... compreender que a luta mais dura virá depois da guerra terminada.

      - Todos nós o compreendemos, senhor.

      - Esquecê-lo-ão, com o tempo. Esse papel é para to lembrar.

      Sam Hoyt aproximou-se e estendeu a folha de papel a Toby, que o fitou fixamente. Como sempre, Sam recordava-lhe um mastim grotesco e manso, desde as barrigas das pernas salientes até aos cabelos bastos, cortados rentes. Um antigo Filho da Liberdade que demonstrava ser humano citando Payne e Rousseau em vez de ladrar... Arrancou o pensamento ao insensato devaneio, mais uma vez consciente dos olhos de Víctor. Bem vistas as coisas, talvez o devaneio não o tivesse levado tão longe como poderia parecer. Sam fora soldado na guerra, antes e depois da invasão da Geórgia, e inevitavelmente tinha de fazer parte dos planos de Victor Darby.

      - Sam assinou - disse Victor, em voz subitamente fatigada. - Sei que tu e o Roy também assinarão.

      - Não se trata, então, do seu testamento?

      - Trata-se de um acordo entre vocês... embora os homens bons não precisem de acordos escritos. Esse papel é... para o mundo ler... sobretudo o nosso pequeno mundo de Savannah. - Singularmente, o tom da voz de Victor Darby era agora natural, sem esforço, como se debatesse um ponto filosófico enquanto saboreava um cálice de Porto. - Gabriel Tatch publicá-lo-á no Mercury quando lhe deres ordem para o fazer. Já seguiu uma cópia, com o meu testamento, que o meu advogado terá lido quando chegarem a Savannah... para proteger os vossos interesses.

      - O Sam pode lê-lo, em voz alta?

      - Não há tempo, Toby... nem é preciso. Prometeste... cumprir os meus desejos e sei que respeitarás essa promessa. - A voz enfraquecera-lhe, embora o velho continuasse a exprimir-se com facilidade. - Comprei inteligências e burilei-as... ajudei homens a lançarem-se na vida... mas tu foste o melhor instrumento que jamais forjei.

      Toby falou em voz rouca, para tentar contrabalançar as lágrimas que não podia esconder. Do outro lado da cama, Roy ajoelhara.

      - Tentarei... pagar-lhe, senhor.

      - Faz por isso, meu rapaz. Sam, começa a ler... quero ouvir as palavras... antes de morrer.

      Sam quis obedecer, mas a comoção sufocava-o. Estendeu de novo o papel a Toby, que o apanhou no ar no momento em que caía dos dedos trémulos do administrador.

      Por instantes as palavras dançaram-lhe na frente, ininteligíveis, e Tobias Kent amaldiçoou as lágrimas que lhe enchiam os olhos; mas a visão não tardou a clarear. Mesmo à luz baça das velas, a caligrafia redonda de Sam, aprendida, como a de Toby, numa escola perdida nas montanhas, era nítida como uma estampa.

      “Eu, Victor Darby, conhecedor de que em breve serei chamado pelo meu Criador e tendo já ditado as minhas últimas vontades e o meu testamento, acrescento este solene codicilo que, como o próprio testamento, vinculará os meus herdeiros e...”

      A voz de Toby vacilou nas longas frases preambulares. De certo modo, esperara eloquência comparável à de Jefferson ou, pelo menos, algum gesto de bravura perante o destino, de acordo com o credo do autor.

      - Continua - murmurou Victor Darby. - A poesia vem depois...

      “...vinculará os meus herdeiros e procuradores, com as excepções assinaladas abaixo. Deixo tudo quanto possuo a uma companhia que deverá ser organizada pelas seguintes pessoas: Dr. Tobias Kent...”

      - Continua, Toby. Eu disse-te que era poesia!

      “Dr. Tobias Kent; Dr. Roy Darby, meu filho; Sam Hoyt, meu administrador principal, e Nancy Darby Gregory, minha querida filha. A companhia será administrada e os lucros distribuídos como abaixo se explica. Como presidente e director principal, o Dr. Tobias Kent interpretará esses regulamentos como achar conveniente, incluindo a aplicação de todos os dinheiros. Embora seja meu veemente desejo que discuta todas as decisões com os três directores atrás citados, as suas decisões serão finais, o seu poder de veto absoluto...”

      Havia mais, mas as letras baralharam-se no momento em que Toby tomava consciência do destino que Victor Darby lhe traçara. Por entre a neblina das lágrimas, olhou pela última vez nos olhos o seu general comandante. No momento em que, quase inconscientemente, o seu cérebro de médico notava a sombra da morte atrás da cortina azul da íris, ouviu o estertor rouco, laríngeo, símbolo de todas as mortes.

      - É uma promessa, Toby...

      - É uma promessa, senhor!

      Os dedos que repousavam nas mantas procuraram em vão um apoio, algo a que agarrar-se, e tudo acabou. Afastaram-se e Billy, a chorar serenamente, aproximou-se e cerrou os olhos mortos do general.

      - Quer continuar, doutor? - perguntou Sam, em tom estranhamente casual.

      - Aqui não, Sam! - redarguiu-lhe Toby, sufocando a cólera.

      - Ele queria que acabasse de ler. Disse-mo, enquanto me ditava.

      - Acabaremos na outra sala.

      Roy seguiu-os, maquinalmente, à antecâmara do pai, e Toby notou que o amigo estava calmo, apesar das lágrimas que lhe brilhavam nos olhos. Surpreendentemente calmo, até, para um herdeiro legítimo cujo futuro estava encerrado num documento meio lido, meio compreendido. Os olhos de Tobias Kent fixaram-se no papel que tinha na mão, enquanto o doutor dominava o impulso de deitar para o lume que dançava na lareira as instruções de Victor Darby.

      - Não posso acreditar que tenha acabado!

      Roy falara por fim, em voz seca e dura. Como Toby, parecia ter os olhos fixos no vácuo.

      - Deu-nos ordens durante demasiado tempo... Naturalmente não podem parar assim! - E Roy bateu com o punho na palma da mão aberta, com surpreendente violência. - Lê esse papel até ao fim, Toby; será a sua última ordem!

      - Pelo que já li, diria, antes, que se trata apenas do começo.

      Com uma pequena vénia respeitosa, Sam tirou-lhe o papel da mão:

      - Não será melhor ler eu e os senhores escutarem? A voz de Sam era concisa como a de um escrivão de tribunal. Ao compreender que o administrador falava naquele tom para os acalmar, Toby puxou Roy para o banco tosco, defronte da lareira. Roy tinha razão; o facto de os restos mortais de Victor Darby se encontrarem no quarto ao lado não significava que o seu espírito não pairasse ainda sobre a cena.

      “Faço esta estipulação”, começou Sam, “com perfeito conhecimento de que o Dr. Tobias Kent é de uma integridade acima de todas as suspeitas e de que norteará sempre as suas acções baseado no mesmo princípio que inspira a nossa jovem república: E Pluribus Unum.”

      A citação latina estava de acordo com a personalidade de Victor Darby. Sem querer, Toby sorriu perante a dificuldade de Sam em pronunciar a frase. O velho Victor não lhe levaria a mal aquele sorriso!

      “Fica também estipulado”, prosseguiu Sam, “que a minha casa na Wright Square, em Savannah, será ocupada pelo Dr. Kent, como uma espécie de sede da companhia que chefiará. Este domicílio, de acordo com o meu testamento, constitui parte do legado geral que lhe faço, com a cláusula de que o meu filho Roy, sua mulher e herdeiros, e a minha filha Nancy e herdeiros, tenham o direito de ocupar a mesma casa enquanto viverem.”

      - Gregory deixou herdeiros?

      Toby não tencionara interromper: as palavras saíram-lhe dos lábios como impelidas por vontade própria. Sem nenhum motivo que o justificasse, imaginara sempre Nancy Darby Gregory como uma solteirona seca e áspera, apesar do seu longo casamento e exílio.

      - Gregory deixou Nancy sem filhos - respondeu Roy, fitando o amigo como se a pergunta também o surpreendesse. - Creio que a cláusula se destina a evitar exigências de dote, se ela casar outra vez. Suponho que um dos Bristols a corteja.

      - Não se trata de simples corte, Mr. Roy - esclareceu Sam. - Miss Nancy - ou Mrs. Gregory - espera apenas que o senhor regresse para anunciar o noivado. - Hesitou, de olhos fitos no papel, obviamente surpreendido com a interrupção, mas, ao mesmo tempo, compreendendo-a. - Se querem que lhes diga, Miss Nancy e Mr. Harvey Bristol serão os maiores obstáculos no nosso caminho...

      - Porque havia Nancy de objectar? - perguntou Roy. - Certamente isso é também no seu interesse.

      - Talvez seja melhor continuar a ler - sugeriu Sam.

      Não voltaram a interrompê-lo até ao fim da leitura das instruções de Victor Darby. Cláusula a cláusula, a estrutura da proposta companhia emergiu da voz monótona do administrador. Victor não esquecera nenhum dos seus bens: do bosque mais remoto à frota que começava a reunir-se nas suas docas do rio Savannah; das plantações de tabaco ao armazém da aldeia de Darbyville; das serrações à destilaria de terebintina de Clay Creek; da vasta plantação de arroz chamada Sangaree, numa ilha a jusante do Savannah, até ao pequeno lote destinado à cultura experimental de algodão, tudo estava anotado, com a última avaliação e o rendimento provável se recomeçassem a produzir na totalidade.

      Toby sentia a cabeça andar à roda numa tentativa infrutífera para tomar plena consciência do valor daqueles algarismos. Soubera sempre que Victor Darby era um homem rico, mas nunca imaginara ao certo de onde lhe vinha a riqueza.

      O que mais o impressionou, porém, foi a maneira como as propriedades deviam ser administradas, e o poder confiado às suas mãos. O fundador - e parecia apropriado dar esse título ao velho Victor, agora que estava para além de louvores ou censuras - era explícito nesse ponto: o espólio podia ser vendido ou redistribuído de acordo, apenas, com a vontade de Toby, e os lucros divididos como ele achasse conveniente. Embora o fundador insistisse em que todos os seus trabalhadores deviam ser pagos proporcionalmente à sua contribuição, a Toby competia determinar o valor dessa contribuição no êxito do conjunto. Em resumo, em vez de constituir uma empresa fechada, para benefício apenas dos herdeiros, a Companhia Darby dividiria os seus lucros, começando pelos próprios directores e acabando no mais humilde escravo.

      Quanto aos escravos - talvez mais de mil, espalhados de Sangaree até às plantações do interior -, era, por enquanto, evidentemente, impossível manumitir todos ou, mesmo, a maioria. As notas do fundador a esse respeito sugeriam um caminho sensato entre o idealismo e a conveniência: embora abominasse a escravatura de todo o coração, procedera cautelosamente, de acordo com a época em que vivia, mas ousando educar os negros que lhe pareciam capazes de beneficiar, aumentando o seu conforto de seres humanos o suficiente para assegurar a sua saúde e lealdade, sem desafiar a cólera colectiva dos plantadores vizinhos. No novo regime, Toby recebia instruções para acelerar o processo, aumentar o nível educacional tanto quanto permitissem os costumes locais e, sobretudo, manumitir tão rapidamente quanto ousasse. Nesse capítulo, contudo, deveria guiar-se, também, pelas tendências dos tempos e pelas elevadas taxas de manumissão.

      Os trabalhadores presos por contratos às fazendas do interior deveriam, como até ali, ser incitados a comprar os seus contratos, transacção que receberia um grande impulso agora que esses servos brancos passariam a ser pagos proporcionalmente à colaboração prestada e aos lucros obtidos. Claro que conviria encorajá-los a permanecer na companhia, quando atingissem a cidadania. Sempre segundo o critério de Toby, a sua remuneração deveria aumentar de acordo com a sua iniciativa.

      O critério exposto - e o fundador sublinhou-o mais de uma vez nas suas instruções - era de importância primordial na administração da companhia. Cada um dos directores receberia remuneração substancial, mas nunca superior ao que a sua contribuição - mais uma vez a avaliar por Toby - justificasse. A mesma bitola deveria aplicar-se aos numerosos herdeiros do velho Victor, fora da família propriamente dita - pessoas que, pela natural ordem das coisas, esperariam legados substanciais, pela simples razão dos laços de sangue que a ele as unia. A estes, estipulava o fundador, seriam oferecidos lugares na companhia, segundo a sua competência, e receberiam tão-somente aquilo que merecessem.

      Toby trabalharia nesta base num período experimental de dois anos. Os lucros, na sua acepção corrente, deveriam ser estritamente tomados em consideração, mesmo depois da distribuição conjunta. Se, no termo do período experimental, os resultados fossem substancialmente inferiores aos do antigo regime, o projecto seria abandonado.

      Sam leu os parágrafos finais com certa ênfase, como se eles pretendessem compensar o que ficara dito antes:

      “É meu especial desejo - um desejo que, estou certo, é querido também ao coração de meu filho e ao do Dr. Kent - que abram consultório, de sociedade, em Savannah; para isso os eduquei desde o princípio. Considero, no entanto, mais importante ainda que caminhem pelo seu próprio pé como médicos, e singrem de acordo com os seus méritos. Portanto, nada lhes deixei no meu testamento para se estabelecerem na sua profissão, a não ser a criação e dotação de uma clínica anexa à companhia Darby, onde todos os doentes pobres de Savannah deverão ser tratados gratuitamente e o melhor que aos médicos for possível. Mais tarde, desejo que se construa um hospital para o mesmo fim, destinado a velar pela saúde de todos os membros da companhia e de tantos doentes pobres quantos for possível acomodar. Esse hospital será erigido à discrição do presidente da firma e deverá, evidentemente, ser vendido quando e se a companhia for liquidada.

      “Com referência à acima mencionada liquidação, ter-se-á em conta, ao fim de dois anos, se o empreendimento foi abençoado com o êxito ou se, como aconteceu a outra utopia projectada pelo general Oglethorpe, está condenado a soçobrar sob a investida conjunta da inveja e da ganância. A verificar-se a segunda e infeliz hipótese, é meu desejo que o remanescente, incluindo a casa atrás mencionada e legada ao Dr. Kent, reverta em favor da minha filha Nancy, à quem o meu testamento confere o direito de liquidar qualquer ou todos os bens que achar necessários em seu benefício, sobretudo para manter a sua residência, a casa senhorial conhecida por Sangaree.

      “Faço esta melancólica provisão como homem do mundo e não como misantropo. Sendo viúva, minha filha poderia encontrar-se sem meios de subsistência, se a companhia se malograsse irremediavelmente. Ao Dr. Roy Darby e ao Dr. Tobias Kent não será difícil ganhar a vida, quaisquer que sejam as circunstâncias, dada a profissão que possuem. Sam Hoyt, o meu administrador, está igualmente habilitado a fazer frente aos rigores de um mundo de homens.

      “É meu ardente desejo que o Dr. Tobias Kent, Roy Darby e Sam Hoyt, assinem esta folha de instruções, como prova de que aceitam as cláusulas nela contidas. É igualmente meu desejo que, no momento em que o meu testamento for aberto em Savannah, minha filha Nancy aponha também a sua assinatura, como sinal de idêntica aceitação. No entanto, se ela o não fizer, as minhas instruções deverão ser seguidas da mesma maneira, sem que os seus direitos na comparticipação dos lucros da companhia sejam de qualquer modo afectados.”

      Seguiu-se um longo silêncio depois de Sam Hoyt terminar a leitura. Quebrou-o Roy, com uma pergunta inevitável:

      - Lamentas ter prometido, Toby?

      - Ainda não sei.

      Aos ouvidos de Tobias Kent, a sua voz soou tão vaga como as próprias palavras. A cabeça continuava a andar-lhe à roda. No dia seguinte avaliaria, sem dúvida, todo o peso da sua responsabilidade; naquela noite limitava-se a rejubilar por Victor, na sua sabedoria, ter fixado um prazo limite para a experiência. No entanto, apesar do repto que acabava de lhe ser dirigido o entontecer e atordoar, todo o seu ser correspondia à ideia grandiosa que ouvira expor. No campo das utopias, aquela não deixava de ter uma nota de bom senso. Certamente que, com a boa vontade dos directores, podia contar com as mãos brancas e negras ao serviço dos Darbys. O seu sangue de camponês insistia nessa convicção, embora o seu cérebro de homem do mundo multiplicasse os perigos que o esperavam.

      Sam sentara-se, entretanto, com o papel aberto nos joelhos.

      - Ele pediu-nos a todos que assinássemos debaixo do seu nome. Como os senhores vêem, já assinei.

      - Supôs que não o faríamos? - perguntou Roy, arrancando-se ao devanear em que também mergulhara. - Depois de Toby ter dado a sua palavra? É isso apenas que importa.

      Toby levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, consumido de dúvidas.

      - Que dirá a tua irmã de tudo isto?

      - Lutará contra nós com unhas e dentes - respondeu-lhe Roy, calmamente. - Creio que Bristol é advogado e que, se não estiver mencionado no testamento, a ajudará a anulá-lo. Se o não conseguirem, tentarão declarar a companhia ilegal.

      - Consegui-lo-ão?

      - Não, se soubermos ripostar. Para mim não será novidade; já tenho lutado várias vezes com Nancy. De qualquer maneira, já esperava uma batalha das grandes por causa de Martha.

      Toby estremeceu ao ouvir o nome de Martha, mas esperou que nenhum dos outros tivesse notado a sua reacção. Os acontecimentos da última hora tinham apagado singularmente a antiga paixão.

      - Que pensas acerca da alforria dos negros?

      - No conjunto, o mesmo que meu pai: devemos proceder devagar, com cautela. Se a companhia tiver êxito, talvez consigamos manumitir um quarto dos actuais, enquanto vivermos. Para o espírito sulista, a escravatura é demasiado valiosa, e o seu valor talvez aumente com os anos. Se é possível aperfeiçoar o século em que vivemos, num ou noutro pormenor, é impossível modificá-lo por completo.

      - E você, Sam?

      - A escravatura é a nossa praga, Dr. Toby - respondeu o administrador, passado um bocado. - Quanto a mim, pensava que a revolução devia ter ido até ao fim, até à sua abolição. Agora, porém, leio com maior clareza no cérebro dos líderes. Seja como for que a vejamos, a nossa revolução não foi na realidade uma revolução. Provou apenas que não precisávamos de pagar mais impostos aos Ingleses, que, doravante, temos liberdade de enriquecer à nossa maneira.

      - Não costuma ser tão cínico, Sam.

      - Talvez seja consequência do passamento do velho senhor. Não havia muitos como ele na Jórgia. Um homem rico que tem sempre no pensamento o fardo dos homens pobres é tão raro como a virtude no inferno, se me perdoam a comparação.

      - Seremos atacados de todos os lados.

      - Só do exterior. A nossa gente lutará por nós, da beira-rio às montanhas. Garanto-o!

      - Também eu, por Deus!

      Toby estacou, surpreendido com a própria veemência, mas Sam Hoyt, o rude rendeiro que subira pelo seu próprio esforço, o pensador autodidacta que lia Paine, Locke e Hume à luz de uma vela de fabrico caseiro, riu baixinho.

      - Compreende o que eu queria dizer, Mr. Roy? Nós colaboraremos, e o mesmo farão todos os homens das vossas plantações.

      - Das nossas plantações, Sam - corrigiu Roy, gravemente.

      - Correcção aceite... por um período de dois anos. Deixem o mato para mim, cavalheiros, com pretos, brancos e mestiços de mistura; conservem abertas as docas no Savannah e eu farei com que a riqueza passe por elas. - Foi a vez de Sam começar a andar de um lado para o outro, emocionado com a visão que lhe surgira. - Talvez me enganasse, talvez a revolução tenha afinal vencido... no nosso canto da Jórgia.

      - Achas que venceremos, Roy?

      - Acho que vale a pena tentar - respondeu o interpelado, vagarosamente. - Sozinho, porém, não me atreveria.

      - Sentes-te infeliz por não te deixar tudo, sem reservas?

      - Há muito tempo sabia que meu pai planeava qualquer coisa deste género. Pediu que te ocultássemos tudo, até estar seguro de ti.

      - Quando se decidiu?

      - Deves procurar a informação nos seus papéis pessoais - recomendou-lhe o amigo, com um leve sorriso.

      Toby acenou maquinalmente com a cabeça. Não era a primeira vez que ouvia mencionar os “papéis” de Victor Darby. Soubera sempre que, além de grande senhor, o general era, também, um sábio e um escritor.

      - Está de acordo com a personalidade do teu pai deixar as suas memórias.

      - Hás-de lê-las quando visitares Sangaree. Uma dúzia de cadernos grandes! Estão fechados na secretária, na biblioteca, mas creio que a Nancy te emprestará a chave.

      - Tens a certeza de que ele gostaria que os lesse?

      - Sim, tu antes de mais ninguém.

      - Confesso que não percebo.

      - Compreenderás. Tencionava, até, publicá-las, um dia.

      - Quer dizer, as nossas ordens finais estão em Sangaree?

      - Exactamente. E teremos de lutar apenas contra o mundo de Nancy... que é um grande mundo, Toby!

      Toby acenou novamente, numa confirmação muda. Sabiam ambos que só por um triz a Jórgia não aderira ao lado legalista, e quantos desses legalistas tinham saído das tocas, agora que a paz com a Inglaterra era uma realidade. Ao juntar a esse bloco os conservadores naturais, que ajudaram a revolução apenas para se livrarem das suas dívidas em Londres, Toby compreendeu que tinham pela frente um verdadeiro exército de inimigos.

      - Por direito, devias estar do lado deles - observou, dando voz às suas dúvidas.

      - Não fales em lados, Toby! - redarguiu-lhe Roy, irritado. - Meu pai pertencia ao futuro e morreu por ele, como há pouco viste. Porque não hei-de apoiá-lo agora? - Somos, então, três contra uma?

      - Precisaremos dessa maioria na companhia.

      - Talvez estejamos a ser injustos para com a tua irmã.

      - Não falarias assim se a conhecesses! Nancy casou com um Gregory e, ao que parece, está prestes a casar com um Bristol. Poderei dizer mais que isto, Sam?

      - Miss Nancy é uma lady, cavalheiros - interveio o administrador, encolhendo os ombros. - Sempre o foi, e está convencida de que as ladies formam uma raça aparte. Têm morrido homens por desafiarem essa crença, e olhem que não só no campo de honra!

      - Talvez tenhamos dito o suficiente, todos nós - murmurou Tobias Kent, muito sério.

      - Acrescentarei um pensamento - disse Roy. - Mesmo que Nancy se esqueça de que é uma lady e se atire ao teu pescoço...

      - Ou vice-versa?

      - ...ou vice-versa, valerá a pena travar esta luta.

      Do alto do forte, viu a aurora alastrar, como fogo branco, sobre o Canadá. À sua esquerda, a vasta planura do lago, açoitada pela ventania da noite anterior, mostrava grandes bocados de gelo refulgente, que começava a brilhar sob os pálidos raios que anunciavam o novo dia; à sua direita, os montes de Vermont - cheios de rochas, de árvores e, aqui e ali, manchados pelo fumo de lenha de algumas chaminés - respiravam tranquilidade e segurança. O Dr. Tobias Kent estremeceu no seu capote de gola de pele, e aspirou a paz que o rodeava como uma bênção.

      Segundo toda a lógica, aquela deveria ser a manhã mais triste da sua vida, com o seu benfeitor morto, num quarto fechado, e um futuro repleto de ameaças a espreitá-lo. Mas não se lembrava de se ter sentido mais em paz com o mundo nem mais certo do seu poder - nem mais feliz numa dedicação que o ultrapassava a si mesmo.

      Talvez se tivesse curado da melancolia que o torturava nesse acto de dedicação; talvez tivesse vivido demasiado consigo e com o seu estojo de cirurgião... Percorreu o terrapleno, mergulhado nos seus pensamentos, protegendo os olhos do clarão branco-azulado da baía de Missisquoi e voltando-se com alívio para a floresta verde, de abetos, do leste. Aí, como um dedo apontado, via-se o fumo que assinalava a estalagem de posta da pista de St. Albans, o único elo real que os ligava à região habitada do sul; aí, dentro de poucos dias, selariam as primeiras montadas para a longa cavalgada até Burlington. Amanhã, ou no dia seguinte, seria altura de iniciar a havia tanto adiada partida. Com o velho Victor Darby no seio daquela terra gelada (era característico do velho Victor insistir em ser enterrado onde morresse, com simples honras de soldado), tinham todo o direito de resignar os seus comandos e partir. O coronel Wriston podia tomar conta do forte até ao degelo, na Primavera, e os enfermeiros de Toby, como veteranos de muitas batalhas, podiam haver-se com os ataques de febre e as ulcerações provocadas pelo frio.

      Uma dedicação que o ultrapassava a si mesmo, murmurou, deixando as palavras escaparem-lhe dos lábios com a nuvem semigelada do hálito. Pareciam pretensiosas, pronunciadas em voz alta, mas a emoção que as ditava era genuína.

      Se a vida de Victor Darby tivera significado, traduzira-se em independência para os Tobias Kents daquela democracia recém-fundada. Se Victor Darby o treinara para consolidar essa independência, alargá-la e dar-lhe significado vivo, aceitaria a tarefa para que fora escolhido. Era difícil visionar o êxito, mesmo no âmbito do domínio dos Darbys. Impediam-lhe o caminho muitos ídolos velhos, muitos ódios antigos renasceriam, agora que a paz reinava. Mas valia a pena travar tal luta, mesmo que a vitória nunca surgisse.

      Os acordes de um clarim soaram através da neve, arrancando eco aos montes de Vermont, e Toby voltou-se para a parada do seu forte e o que viu deixou-o sem respiração.

      Todos os rangers de Darby haviam comparecido ao toque de alvorada, até ao último homem. Em formação de parada, com o coronel Wriston a receber a continência dos comandantes de companhia, ofereciam um belo espectáculo, apesar da profusão de barretes de pele das últimas fileiras. Toby viu a bandeira descer a meia adriça, sobre o rastrilho de madeira do portão, que acabara de se abrir para o trenó puxado a cães dos ingleses poder sair.

      Os rangers perfilaram-se e saudaram a bandeira, e o grupo de oficiais britânicos, que se moviam na neve como aves de plumagem brilhante, fizeram o mesmo, levando as mãos enluvadas à testa, com precisão e aprumo dignos das Guardas Reais. O clarim tocava ainda quando a fila escarlate, a marchar garbosamente atrás do trenó, desapareceu entre dois bancos de neve da baía de Missisquoi.

      Novinha em folha, a bandeira da jovem nação ondulava suavemente à brisa matinal, com as treze estrelas da união a brilhar no quadrado azul. Toby deu consigo a saudá-la também, antes de descer para dar ordens acerca do funeral do seu comandante.

     

     O SAVANNAH

      Do ponto onde flutuava, contente como uma toninha na crista das ondas, a barcaça parecia-lhe um gigante parasita da água, a persegui-lo preguiçosamente. Misturado com argila vermelha em todas as praias, onde a superfície revolta alastrava entre os oleandros e os carvalhos de água das terras baixas, o Savannah era bastante claro a meio da corrente e palpitava de uma maneira especial, na sua corrida para o mar. Toby abriu as pernas nuas e deixou-se levar pela corrente, sentindo-se outra vez identificado com a Jórgia, esquecendo deliberadamente todos os problemas e voltando a ser por momentos o rapaz descuidado de outros tempos.

      Mergulhara da barcaça meia hora antes, acordado pelo sol quente de Março. A embarcação, atracada junto da última destilaria de terebintina dos Darbys, com o casco a gemer profundamente mergulhado na água, acabava de receber o último barril de resina. Os dois negros, que haviam rido ao vê-lo atirar-se à água, largaram os cabos da popa. Lutando por momentos com a corrente, Toby permitiu que a barcaça seguisse a seu lado. O cheiro do presunto que fritavam a meia-nau, juntamente com o aroma do café moído, exerciam sobre si poderosa atracção, a que, por enquanto, resistia. Aquele intervalo, sozinho- com a corrente encarniçada tão sua conhecida, era demasiado precioso para o abandonar de ânimo leve.

      Darbyville, e tudo quanto ficava atrás dos seus campos de tabaco, esperava-o depois da primeira curva. Segundo tudo indicava, aquele seria o seu último momento a sós.

      Toby embarcara para Charleston, no porto de Providence, na Nova Inglaterra, enquanto Roy e Sam Hoyt ficavam a conferir as contas do período de guerra, com o administrador de Boston. Preferira percorrer o lado comprido do triângulo, até Clay Creek, para um último olhar aos lugares da sua juventude, a viajar directamente para Savannah e traçar o padrão do seu futuro. Não tivera nenhum motivo para visitar Savannah antes de o testamento do velho Victor ser aberto, nenhuma desculpa para verificar o que sentiria ao reencontrar Martha, nenhuma razão, sequer, para tomar conhecimento do enigma que constituía Nancy Darby Gregory enquanto Roy não a preparasse, até certo ponto, para o receber no mundo dela. Pelo menos fora o que pensara ao viajar pelo interior naquela Primavera verdejante, ao aspirar a largos haustos a atmosfera do passado, ao deliciar-se com cada som e com cada odor que recordava.

      Aqui e ali, no interior, a guerra deixara a sua marca. Toby encontrou aldeias queimadas, onde os ingleses e os seus lacaios índios tinham atacado linhas de abastecimento na longa batalha de “ataca-e-foge” de que nunca resultara uma vitória decisiva para qualquer dos lados; fazendas e campos devastados, regressados ao estado de matagal, sobretudo depois de atravessar o rio em High Ford e galopar pelos trilhos de argila vermelha do seu estado natal. Ainda agora era fácil verificar que as propriedades dos Darbys não tinham sido poupadas. Pelo contrário, os ataques pareciam ter incidido deliberadamente em tudo quanto pertencia ao comandante dos famosos rangers, como se o facto de se encontrarem muito longe fosse um incentivo.

      Talvez, afinal, não tivesse sido má ideia que o velho herói, com a sua habitual precisão, acumulasse outra fortuna com uma frota corsária, durante a guerra. Toby sabia que seria precisa uma fortuna, e muita economia, para devolver o resplendor da abundância àquela terra.

      Fora esses pormenores, fora-lhe relativamente fácil esquecer a guerra quando chegara a Clay Creek. Atarefada como sempre, com a lavra da Primavera ou a abertura de novas pistas através do matagal, a fim de facilitar o acesso aos campos de terebintina, Clay Creek aceitara a revolução com naturalidade e encarava a presente emancipação dos ingleses com a calma característica da gente do interior. Do mesmo modo, com igual compostura recebera o seu filho ilustre. Sabia bem ser recebido pelo que era, sem a patina da riqueza dos Darbys. Caminhar horas a fio pelos ermos, conversar com os lenhadores nas manhãs entorpecentes de calor, levar em segredo a nova criada da hospedaria a Sachem Cave e exorcizar alguns fantasmas no longo crepúsculo primaveril...

      Muito para montante, o grande sino da destilaria de terebintina anunciou a folga do pequeno almoço com três toques prolongados. Obedecendo a um instinto que não sabia identificar, Toby nadou vigorosamente contra a corrente, até alcançar a grande barcaça e poder saltar-lhe para dentro. O som vibrante do sino era como uma voz a chamá-lo da infância. Trepou para cima de uma pilha de madeira, a meia-nau, protegeu os olhos com a mão e olhou para o amontoado de edifícios na praia distante, como se quisesse guardar uma última imagem do mundo que deixava. As seis grandes destilarias tinham sido construídas numa ligeira elevação, para ficarem ao abrigo das enchentes. Apesar da hora matinal, o forno cónico de alcatrão expelia para o céu golfadas de fumo cor de tinta. Embora estivesse demasiado longe para ouvir o gemido das serras na serração, Toby teve a impressão de ver o reflexo das suas folhas ao sol.

      Deixou-se arrastar pelas recordações, enquanto a barcaça entrava, pouco segura, na curva seguinte, inconsciente da nudez húmida do seu rio. Um grito de um dos negros arrancou-o ao seu devaneio e Toby mal teve tempo de se baixar, pois um ramo de um carvalho gigantesco por pouco não derrubou a pirâmide mais alta da carga.

      - Acorda, Adão de barro encarnado! Alguma vez se ouviu falar num Adão que meditasse antes do pequeno almoço? - gritou Gabriel Thatch da porta da cabina da ré, que compartilhavam naquela indolente viagem iniciada em Augusta.

      Gabriel surgiu por sua vez ao sol, com o bocejo prodigioso de um jovem-velho cheio de vitalidade, tão deslocado naquela barcaça atravancada como Beau Nash num trigal. Pela sétima vez em outros tantos dias, Toby ficou boquiaberto perante a indumentária do amigo. Das botas resplandecentes - concessão ao facto de ter de cavalgar pelos campos naquele dia - aos magnificentes botões dourados do estupendo colete, Gabriel parecia acabado de chegar de um alfaiate londrino. Só a cabeça cor de cenoura, rapada como uma bala, era familiar a Toby, mas mesmo essa não tardaria a ser coberta por uma peruca branca, pormenor que se coadunava com a sua qualidade de editor do principal jornal jorgiano.

      - Agora que emergiste da limosidade primordial, não seria conveniente lembrares-te de que o diabo nos ensinou a ser pudicos? - perguntou Gabriel ao amigo. - Não tardarão a aparecer casas ao longo da margem e, depois, Darbyville.

      O jornalista sentou-se, enquanto falava, levantando fastidiosamente as abas da casaca, para não as sujar na barrica enlameada. Toby saltou obedientemente para a coberta oscilante e preparou-se para aguentar firme, enquanto Billy, vindo da coberta, o “regava” liberalmente com baldes de água limpa.

      Era um ritual de todas as manhãs, desde que tinham partido de Augusta, tão regular como o prato de fumegante pão de milho, o presunto com angu, o bule de chá fervente afogado em natas da região. Toby devorava os petiscos enquanto secava ao sol e sorria da careta preocupada de Gabriel. O jornalista estava indolentemente refestelado à sombra, com um chicote de montar enrolado nos dedos compridos e brancos, e parecia mais perplexo do que divertido.

      “Talvez esperasse encontrar-me nervoso como um tourão, esta manhã...”, pensou Toby. Como a maioria dos cínicos, Gabriel ficava sempre decepcionado se um simples mortal conseguia sobrepor-se, sem auxílio, aos seus pecados ou a qualquer provação próxima.

      - Ainda não te vais vestir?

      - Será impróprio de Adão gozar a sua liberdade até ao último momento? - perguntou-lhe Toby, mas submeteu-se de bom grado quando Billy lhe trouxe roupas interiores novas.

      Gabriel continuou de testa franzida ao vê-lo enfiar ceroulas de linho até aos joelhos, apertar nos quadris a bela faixa e calçar botas justas, de montar. Billy colocou um largo cinto de marroquim sobre a faixa e apertou até Toby ficar sem respiração.

      - A camisa pode ficar para depois, quando estivermos mais perto. Quero aproveitar ao máximo o sol.

      Gabriel deixou-se ficar na sombra, enquanto Toby se estendia ao comprido na amurada, para bronzear as costas.

      - Esse tom castanho-escuro pode ser muito apropriado nos aquartelamentos, mas verificarás que os cavalheiros de Savannah preferem uma palidez nocturna.

      - Continua - redarguiu-lhe Toby, resignado. - É a bem dizer a tua última oportunidade de me dares uma lição de maneiras.

      - Posso acrescentar que serei eu que visitarei esta tarde os campos de tabaco, com o Sam. Tu, meu amigo, seguirás sozinho para Savannah.

      - Não me esqueci.

      - Nesse caso devias vestir-te a condizer. Fivelas de prata e polainas de seda, pelo menos. E cetim cinzento, para salientar os músculos dessas coxas clássicas! Entreguei-te tudo isso, e mais ainda, quando nos encontrámos em Augusta, além de uma colecção de cabeleiras de fazer crescer água na boca a um duque. Porque não rapaste ainda essas melenas, para o Billy te ajustar as cabeleiras?

      - Obrigado, mas usarei o meu próprio cabelo.

      - Não achas que escandalizaste já o suficiente Savannah, mesmo sem te mostrares?

      Toby suspirou, satisfeito, e flectiu as pernas compridas, como se se preparasse para lutar. Gabriel contara-lhe já, sem tibiezas nem panos quentes, a fúria que reinara em Savannah quando o testamento de Victor Darby fora tornado público, através das páginas do Mercury, o seu jornal. Desde a partida de Lorde Cornwallis que nenhum homem era amaldiçoado com tanto ardor como o Dr. Tobias Kent, embora a inspiração das maldições fosse um pouco diferente.

      Gabriel, a tamborilar numa das refulgentes botas, acrescentou à descrição que então fizera:

      - Esfola a carteira de um bretão se lhe queres expor o coração. Os nossos inimigos de Savannah continuam a ser bretões, embora tenhamos mudado de bandeira. Para eles a nossa república serve muito bem desde que não lhes ameace os privilégios e o seu dinheiro esteja a bom recato, em cofres estrangeiros.

      - Não estás a ser um pouco duro com a nossa melhor gente?

      - Nós somos a nossa melhor gente, Toby.

      - Todos nós?

      - Naturalmente que não; há macacos e velhacos em todas as camadas. Mas se esta revolução significa alguma coisa, os homens como tu e como eu - homens do mato, com miolos na caixa craniana - têm oportunidade de progredir, uma oportunidade autêntica, pela primeira vez na história. O testamento de Victor Darby proporciona-nos essa oportunidade. Por isso, os ricaços te amaldiçoam alto e bom som; os ricaços têm resistido sempre a tudo quanto cheire a modificação, desde que se inventou o ouro.

      - Apraz-me que tu, pelo menos, estejas do meu lado.

      - Esqueceste, acaso, quem financia o Mercury? - A voz de Gabriel era suave como manteiga, como se lamentasse o seu impulso fraternal. - Perdeste muitos leitores?

      - Pelo contrário, ganhei alguns. Todos os nababos que travaram a guerra repimpados em Nassau ou em St. Augustine parecem ansiosos por descobrir o que faremos seguidamente. A propósito, é natural que esperem declarações tuas, quando te instalares. Como terás muito que fazer durante algum tempo, preparei-as antecipadamente.

      - Também pensas por mim?

      - Não pensámos sempre como um só? Lembra-te de que travei' dois duelos desde que publiquei o editorial a louvar a companhia! Amanhã publicarei o manifesto de Victor Darby, na íntegra, como sendo a maior afirmação de princípios desde a Declaração. Se acrescentares a isso a tua declaração de que tencionas cumprir e completar os desejos do fundador, começarás também a ser desafiado para duelos. Como sabes, Harry Bristol já anda a apregoar que te desafiará.

      - Disseste-lhe que dei as minhas provas em Edimburgo?

      - O jovem Bristol não é nenhum idiota; a Nancy não desposaria um idiota... nem um cobarde. Além disso, sabe disparar quase tão bem como tu. Talvez não fosse mau irmos ao nosso treino matinal de tiro ao alvo, para não perdermos a prática.

      - Sê razoável, Gabriel - pediu-lhe Toby, sem se mexer de onde estava. - Esses ex-tories não podem combater-nos antes de me darem uma oportunidade, sobretudo o noivo da Nancy. No fim de contas, é também seu advogado.

      - Nunca menosprezes um inimigo, principalmente logo após o fim de uma guerra. Combater-nos-ão com chumbo e livros de leis, com ambos ao mesmo tempo, se lhes convier... embora creia que darão primazia à lei. Até agora, o jovem Bristol só te amaldiçoou quando estava com uns copos. Estás preparado para provar haver motivo para contestar o testamento?

      - Não sou advogado, mas defenderei essa tese.

      - O juiz Armstrong ouvirá amanhã ambas as partes - murmurou Gabriel, pensativo. - Reflectiste nisso?

      - Com certeza. Não tens feito outra coisa senão lembrar-mo.

      - Não se perde nada por isso. - Gabriel esqueceu por momentos o seu aprumo, dirigiu-se para a proa da barcaça e fitou a imensidade avermelhada do rio. - Mais uma vez te pergunto como podes estar tão calmo.

      - Estivemos juntos em Monmouth, e também em Saratoga e no Forge. Tu próprio aprendeste, então, a ser calmo, a descansar quando pudesses e a deixar de pensar. Depara-se-me agora outra espécie de batalha; limito-me a descansar antes de a travar.

      - Um pouco de estratégia não seria despropositada.

      - Como queres que estude a minha estratégia antes de conhecer os inimigos que enfrentarei?

      - Não acreditas na minha palavra de que estão a afiar as baionetas, de Nancy para baixo?

      - Claro que acredito. Mas confio que a nossa artilharia susterá o ataque.

      - Portanto, tens um plano?

      - Os créditos pertencem ao Sam Hoyt. A nossa munição mais pesada é metal sonante: libras inglesas e letras de câmbio londrinas, dinheiro que serviu de pagamento a presas feitas durante a rebelião dos colonos britânicos. Ouro suficiente para nos aguentar nos dois anos de experiência, ou mais. Se o Sam não se engana, os teus tories regressados do exílio - incluindo os Bristols - não dispõem de outra moeda além da nobreza.

      - Não julgues que poderás comprá-los.

      - Sei que os gentlemen não leiloam o seu direito de nascimento. Mas no mercado livre é possível vender por preço inferior... ou cobrir-lhes os lances.

      - Tencionas, então, lutar pelo teu quinhão no negócio?

      - Eles é que terão de lutar, Gabriel. Nós possuímos barcos e dinheiro. Setenta por cento das embarcações de Savannah virão reunir-se nas docas Darby, a julgar pelas primeiras informações do Sam, e os nossos depósitos navais estão bem fornecidos, graças a Deus, pois os Ingleses não foram além de Clay Creek. Ainda de acordo com o relatório do Sam, conseguiremos uma safra de tabaco este Outono, se estivermos dispostos a pagar bem aos jornaleiros; só metade dos campos de Darbyville regressaram ao estado de matagal durante a guerra. Claro que em Sangaree a história é outra; talvez o arroz nos acarrete prejuízos, mas não temos outro remédio senão abrir valas e plantar.

      - Falas como um camponês - comentou Gabriel. - E se os nossos inimigos ricos não nos comprarem?

      - Boicotá-los-emos por nossa vez e venderemos no estrangeiro. Tenho a impressão de que, neste primeiro ano, os nossos lucros principais provirão de França e Inglaterra.

      - Supõe que os Ingleses fecham os seus portos aos barcos americanos? Já consta que nos expulsarão das Índias.

      - Nesse caso conservaremos as nossas armas e abriremos caminho na Europa, onde há mercados para tudo quanto produzimos, desde arroz a resina. Foi lá que os ianques venderam durante toda a revolução. Se os barcos de Darby tentaram a sua sorte ao lado dos corsários de Boston, porque não havemos nós de seguir-lhes o exemplo?

      - Não te assusta o risco?

      - Não temos outro remédio, por enquanto. Concordo que uma má colheita ou algumas perdas no mar poderão arruinar-nos, antes de estarmos lançados. Sam calcula que, na melhor das hipóteses, perderemos dez mil libras neste primeiro ano. Espero ganhar vinte mil, quando estivermos de novo a produzir plenamente.

      Gabriel suspirou e observou Toby por entre as pálpebras semicerradas. Aquele suspiro, pensou Kent, era, no amigo, sinal de admiração.

      - A continuar nesse ritmo, a Companhia Darby poderia comprar a Jórgia em dez anos.

      - A produção nesta escala pode tornar a Jórgia mais rica do que qualquer Midas. Se conseguirmos provar que alguns milhares de honestos trabalhadores, actuando como um todo, são capazes de lucrar pessoalmente e de enriquecer, ao mesmo tempo, o seu estado... - Toby não concluiu o pensamento e olhou, melancolicamente, a água barrenta. - Claro que, por ora, falo por símbolos e números redondos... o que tem bastado para conduzir à ruína homens melhores que eu. No entanto, estou convencido de que devemos expor o nosso caso ousadamente.

      - Observei-te há pouco que já o fizeste - redarguiu-lhe Gabriel, recomeçando a tamborilar com o chicote na bota.

      - Talvez seja melhor dar uma vista de olhos pela declaração a publicar no Mercury.

      - Poderás ver amanhã as provas; não estava ainda composta quando parti. No entanto, duvido que até tu sejas capaz de lhe dar maior vigor.

      Toby levantou-se e espreguiçou-se ao sol.

      - Seja, Gabriel; confiar-te-ei a minha primeira declaração pública.

      - E combaterás apenas as pessoas que te indicar?

      - Está prometido, também. O trabalho não me deixará tempo para duelos.

      - Tem tento na língua e guarda as tuas opiniões para ti - recomendou-lhe o amigo. - Duvido que te desafiem declaradamente, a não ser que os provoques.

      - Não tenciono provocar ninguém... excepto se uma oferta de amizade for considerada provocação.

      Gabriel suspirou mais uma vez.

      - Se pretendes firmar amizade com cavalheiros, acho conveniente usares os mesmos casacos e cabeleiras que eles. Se eu consegui habituar-me, porque não o conseguirás tu também?

      - Talvez gostes mais de te pavonear do que eu.

      - Sem dúvida que gosto! Uma certa dose de casquilhice não faz mal a ninguém, e muito menos a um intruso do interior. Ou, como dizem os Choctaws, quando se anda com lobos deve vestir-se a pele deles.

      - Desculpa, mas continuarei a ser o que sou. Lutarei com as armas que já indiquei e dentro da minha própria pele.

      Gabriel levantou-se, finalmente, e dirigiu-se para a amurada, onde ficou muito tempo a olhar para jusante, sem falar.

      - É essa, então, a tua insensata resolução para amanhã? Deixar-te-ei com duas convicções, Toby: apesar dos teus ares de fanfarrão, sentes-te só e tens medo.

      - Em parte tens razão, embora não tencione admiti-lo.

      - Todos nós, homens do interior, somos solitários e medrosos; faz parte da nossa herança. Atenuamos a solidão com os nossos amigos. Nesse capítulo podes considerar-te mais feliz do que a maioria; de um lado tens este teu amigo, do outro Roy e, para o trabalho de força, Sam, mas o medo é mais difícil de afugentar. Está em cada pulsação deste continente.

      - Se te ouvissem, os pioneiros saltavam na sepultura!

      - Terá havido algum que não sentisse medo na sua solidão? Maior glória merece a memória daqueles que souberam lutar contra esse medo e aguentar! Bem sabes que todos nós somos ainda pioneiros, que o pior dos peralvilhos ribeirinhos tem ainda no sangue um travo dessa magia tribal. Entretanto, claro, teve tempo de sobra para recear outras coisas. Intrusos, por exemplo, ou homens como o velho Victor, agora apodado de traidor contra a sua classe.

      - Por outras palavras, nunca daremos, realmente, as mãos.

      - Só quando vencermos juntos esse medo, só quando nos considerarmos uma nação, e não treze comunidades mutuamente desconfiadas.

      - Por outras palavras, longa vida à Companhia Darby e ruína aos seus inimigos.

      - Exactamente - concordou Gabriel, de olhos postos no Savannah, que alargava. - Pelo menos a Companhia Darby é uma revolução que sabe o que quer, e porquê.

      - Isso é um pensamento para o teu próximo artigo?

      - É um pensamento para os séculos. Entretanto, podias levantar-te e tomar consciência do que se passa. Eis Darbyville.

      De pé com Gabriel à proa da barcaça, Toby viu que a última curva do Savannah marcara uma divisão entre o braço comprido e pantanoso de montante e as terras baixas desbravadas. Ao descrever essa curva a barca chegara à civilização, ou pelo menos aos seus arredores. Navegando suavemente entre alcantis baixos, abrindo, aqui e ali, as suas águas barrentas para abraçar uma ilhota debruada de salgueiros, o próprio rio parecia domado e menos rebelde no seu cativeiro.

      Do lado da Carolina, havia gradeamentos a dividir uma série de pequenas quintas, cada uma com o seu conjunto de edifícios anexos em redor do inevitável pátio de areia branca e a casa residencial de madeira, deserta àquela hora da manhã, enquanto toda a família labutava para não atrasar as plantações vernais.

      Os olhos de camponês de Toby notaram imediatamente que se tratava de fazendas em regime de plantação a meias, e notaram também que vários portos em redor das casas tinham sido invadidos pelo matagal. Nos próprios campos se viam palmitos, testemunho mudo de uma guerra cujas feridas ainda não haviam cicatrizado.

      Ali, do lado da Jórgia, o quadro era mais brilhante e activo: montes de tabaco pontilhavam, até onde a vista alcançava, a terra rica e bem arada e dezenas de escravos, de enxada e ancinho, trabalhavam na mais delicada das plantações, no seu circuito complexo da terra para os celeiros de secagem. Estes, semelhantes a gigantescas pedras de gigantesco tabuleiro de damas, erguiam-se aqui e ali, nas pernas altas, vazios (agora que a colheita do próximo Outono estava havia pouco na terra) e limpos, da chaminé aberta, de pedra, à asna manchada de fumo do telhado.

      Toby, que trabalhara durante vários estios em campos como aqueles, compreendeu acto contínuo que a vasta plantação estava bem planeada e tratada. No meio dela, imóvel num macho alto, cinzento, Sam Hoyt vigiava atentamente o trabalho. Nem sequer olhou quando passaram, embora a barcaça tocasse na margem a menos de cinquenta metros do ponto onde se encontrava.

      Quando a barcaça atracou na sua doca, Darbyville ofereceu vincado contraste com o restante: uma série de barracões de telhados baixos, a convergirem para o cais e para o rio como as hastes de monstruoso leque, tendo no meio deles trilhos tão certos que dir-se-iam traçados à régua. Aos ouvidos de Toby chegou a cocofonia familiar e doce das vozes dos negros e o ritmo mais suave ainda dos pés descalços na poeira e na lama.

      A coberta da barcaça encheu-se de estivadores. Billy, que tinha família em Darbyville, saltara para terra, com um aceno de despedida, e perdera-se numa floresta de braços negros e de risos. Um capataz alto, de fato de trabalho manchado de suor, gritou uma saudação da porta do armazém mais próximo e perguntou:

      - Qual dos senhores é Thatch?

      Gabriel deu uma palmada nos ombros nus do amigo ( e comentou:

      - Não precisas de me dizer que gostarias de trocar o teu lugar pelo meu; sei que estás mortinho por isso. Mas descansa que não terás de enfrentar os dragões sozinho; Roy espera-te em Savannah.

      - Talvez ainda peça um cavalo e vá também... Como esta será a nossa primeira colheita a render dinheiro...

      - O Sam fornecer-te-á, amanhã, um relatório esclarecedor, e eu também, via Mercury.

      - Trabalhei em mais plantações de tabaco que tu e o Sam juntos.

      - Sem dúvida, meu amigo. Mas isso não impede que seja dever do Sam fiscalizar a plantação e meu oferecer uma imagem cor-de-rosa da mesma nas colunas do jornal, quanto mais não seja para confundir os nossos inimigos. O teu dever, se me permites a ousadia, é fortificar sem demora o nosso quartel-general.

      Toby rendeu-se à evidência e viu o amigo afastar-se e perder-se na nuvem de poeira encarniçada que assinalava o ponto onde os armazéns e os campos se uniam. Sentiu-se subitamente só, sem alento para combater a solidão e o pânico irracional e crescente que dele se apoderara. Solidão e medo eram os inimigos, dissera Gabriel. Consciente dessa verdade, Tobias Kent sentia-se rodeado de olhos hostis e escarnecido por risos trocistas, embora o cais estivesse deserto, agora que o último negro seguira para terra com o seu carregamento. Apenas ficara o capataz alto, que o fitava com um sorriso cordial e vazio, de conterrâneo.

      - Vai para Savannah, senhor?

      A pergunta arrancou-o aos seus devaneios e ajudou-o a afastar o impulso insensato de recuar no tempo e regressar ao coração do mundo que conhecera. Mais tarde recordaria a maneira atenta como o indivíduo o observara, desde que a barcaça atracara, e o facto de ter guardado a pergunta para o fim, para quando as amarras da ré estavam já soltas. Mais tarde recordaria também, com curiosidade, o estremecimento da sombra que se encontrava dentro do armazém. Na ocasião, limitou-se a responder com um aceno de cabeça e a olhar fixamente a rapariga que saía do edifício para a luz do sol.

      Caminhava com passo desenvolto, de sapatos a dar a dar numa das mãos e os pés descalços a desenharem-se na poeira do cais. Levantou a cabeça e sorriu, e Toby sentiu o coração saltar-lhe no peito. Embora o rosto fosse demasiado atrevido e a boca sorridente demasiado generosa, não se lembrava de ter visto rapariga mais bonita nem mais confiante nos seus encantos. O vestido simples, de tecelagem caseira, cingido na cintura por uma tira de pele de porco curtida, revelava uma figura delgada nos lugares convenientes, voluptuosamente cheia noutros e uns seios- altos e erectos, mais do que suficientes para roubar a tranquilidade de espírito a qualquer rapaz. Toby arrancou-se a custo ao inventário mental e retribuiu o cumprimento. Havia muito tempo que nenhuma rapariga lhe sorria com tão cativante candura, com um daqueles sorrisos que nascem e morrem nos olhos.

      - Ela também vai para Savannah - esclareceu o capataz. - Se o cavalheiro quisesse ser amável com uma passageira...

      - Porque não? Há espaço de sobra.

      Saltou para bordo assim que Toby falou, ágil como um gato que sabe o seu destino e tenciona alcançá-lo custe o que custar. No salto, o chapéu de sol caiu-lhe para trás e descobriu-lhe a cabeleira cor de cobre, toda anelada, a emoldurar-lhe o rosto atrevido. Fitava-o com uma audácia sem malícia, com a calma certeza de que era sinceramente bem recebida.

      Mais tarde, recordaria o silêncio súbito do cais, quando a barcaça desatracara, a maneira como os estivadores negros interromperam as chalaças e o trabalho e ficaram a olhar de olhos esbugalhados, e a rapidez com que o capataz desaparecera entre as pirâmides de barricas vazias de tabaco, à porta do armazém. Naquele momento, porém, estava tão satisfeito com a inesperada companhia que nem reparou nos restantes pormenores.

      - Sou Dolly Lake - apresentou-se a rapariga, com naturalidade. - E você?

      A voz condizia com as suas atitudes: embora franca e cordial, não era ofensivamente ousada. Uma suave voz provinciana, que ia bem com o aroma seco e pungente dos palmitos de Augusta, com o falar monótono do fazendeiro ao macho do arado, com o murmúrio dos pinheiros no pálido céu crepuscular. Toby esforçou-se por fugir ao seu encanto, grato pela necessidade de a ajudar a passar da amurada para a coberta da ré. Com uma simples pergunta, aquela maravilhosa criatura fizera-o reviver a Jórgia que conhecia e amava. O nó que se lhe formou na garganta era tão real como as inúmeras recordações que o assaltaram.

      - Dr. Kent - conseguiu dizer por fim, furioso com o tom surdo da sua voz; a moça era capaz de tomar nostalgia por lascívia!- Dr. Tobias Kent, de Savannah. Um seu criado, Dolly.

      Se a familiaridade não lhe agradou, não o deu a entender. Ao vê-la percorrer a coberta atravancada da barcaça, Toby encostou-se por momentos a uma pilha de madeira, a aspirar a frescura acerba da resina, enquanto os olhos se lhe saciavam no gingar suave das coxas da rapariga, sob o vestido solto. Sem lhe tocar, sequer, tinha a certeza de que Dolly Lake não usava nem precisava de espartilho. E pensou que poderia abraçá-la à vontade, com o simples acto de percorrer o pequeno espaço que os separava.

      Mas nessa certeza não havia autêntico desejo; como o aroma puro da madeira acabada de cortar, a presença da rapariga era mais tonificante que perturbadora.

      - Nem era preciso perguntar - observou ela, serenamente. - Você tinha de ser o Dr. Kent... embora seja o primeiro doutor que vejo nessa figura.

      Toby corou e esperou que o bronzeado da sua pele disfarçasse a tendência infantil para corar que às vezes ainda o perseguia. Se os seus olhos fossem ternas mãos a acariciar-lhe o peito e os ombros nus, Dolly Lake não demonstraria mais eloquentemente o seu interesse por ele.

      - Mr. Thatch bem me recomendou que vestisse a camisa... Creio que, no íntimo, não passo de um rústico.

      - Desculpe a liberdade, doutor, mas Mr. Thatch nasceu para perseguir mulheres desprotegidas, com ou sem camisa. Por isso, esperei que se afastasse para aparecer.

      - Conhece-o, então?

      - O suficiente para saber que uma rapariga não deve confiar nele - respondeu, com a mesma brejeirice encantadora. - Mais, ele sabe que é assim! Enquanto falava, apoiou uma das mãos no ombro nu de Toby e saltou agilmente para um monte de fardos, à sombra da amurada alta.

      - Que a leva a Savannah, Dolly?

      - Trabalho em Sangaree, na casa de Mrs. Nancy Darby Gregory. Já lá esteve, com certeza?

      - Não, sou novo em Savannah.

      - E não conhece Mrs. Gregory?

      - Receio que seja também um prazer que por demasiado tempo me recusei.

      - Porque diz isso, doutor?

      - Porque não, se você está ao seu serviço? Aproximou-se devagar, para lhe permitir tomar a atitude que preferisse, e como ela continuasse imóvel inclinou-se no monte de fardos e prendeu-a com um cotovelo contra cada uma das coxas macias e roliças. Com essa investida estratégica, verificou que Dolly escolhera o campo de batalha tão cuidadosamente como ele. Protegidos pela amurada de dois metros e pelas pilhas de lenha da meia-nau, os dois negros que manejavam as varas, na popa, não podiam vê-los. É certo que o espelho do rio formava um arco ofuscante, à frente, mas a sua superfície, nua como um lago de algum mundo pré-histórico, não constituía ameaça ao namoro.

      - Julguei que o senhor era de confiança, doutor! - exclamou, com ar grave. - Foi por isso que pedi passagem.

      - Não está a confiar em mim, agora?

      Francamente, não sabia o que lhe agradava mais, se o tom de aço da sua voz, se o estender lento e convidativo do seu lábio inferior. Sem deixar de a prender com os cotovelos, ergueu os antebraços e rodeou-lhe com as mãos a cintura flexível. Não se enganara, verificou alegremente: entre si e Dolly havia apenas o vestido de tecido grosseiro.

      - Se a minha confiança não é merecida, senhor...

      Afinal, não a beijou. Gabriel dissera-lhe que Savannah ficava a três boas horas de Darbyville, pelo rio, mesmo em maré cheia. Haveria tempo suficiente para beijos, ou para até mais, depois de almoçarem. Em vez disso, desceu-a dos fardos e, com um braço em redor da sua cintura, conduziu-a à escotilha de carga, para verem o lento remoinhar castanho do Savannah, sob o talha-mar.

      - A sua confiança é merecida, Dolly. Acredite que encontrará em mim um cavalheiro... se me corresponder na mesma moeda.

      Soltou uma gargalhada, ao ver como os olhos lhe faiscavam quando respondeu ao desafio:

      - Se isso significa que não me considera uma senhora...

      - Você e as outras como você são as únicas verdadeiras senhoras que até agora conheci! - afirmou, em tom grave. - Tranquiliza-a a resposta?

      - Eu e as outras como eu?

      - Sim, as raparigas criadas no campo. Raparigas com a sabedoria da terra, que não receiam enfrentar os seus homens em pé de igualdade. Já confessei que sou um provinciano... ligado a uma estranha aventura.

      - Ouvi falar nessa aventura - comentou, com a mesma calma surpreendente.

      - Não pense nisso agora. Fale-me primeiro de si. Há quanto tempo está ao serviço?

      - Desde que me lembro. Meu pai trabalhava para o velho Darby - aquele que morreu há pouco no Norte. Vivíamos na pradaria atrás de Darbyville, na terra de tabaco chamada Cagle Hundred.

      Toby acenou com a cabeça; Cagle Hundred era uma das mais antigas, e das mais ricas, propriedades dos Darbys.

      - Nesse caso, frequentou a escola do velho Victor?

      - Até ao oitavo ano. Depois fui para Sangaree.

      Toby voltou a acenar. O regime do velho Victor, no que respeitava às filhas dos seus arrendatários, estipulava esses anos de escolaridade obrigatória, antes de poderem trabalhar nos campos ou como criadas. Fez a pergunta seguinte com muita cautela; o valor de Dolly, como uma espécie de prelúdio da sua batalha com a ama, crescia de momento a momento.

      - Acompanhou-a ao estrangeiro, quando começou a guerra?

      - Acompanhei, a Nassau. Partiu-lhe o coração deixar Sangaree, mas o marido insistiu... Se quer que lhe diga, doutor, George Gregory era tory, mas ela não. Claro que não é isso que dizem, agora, em Savannah...

      - Agrada-me que seja leal para com a sua ama. E agrada-me ainda mais que não considere as minhas perguntas atrevidas.

      - Não as considero mais atrevidas do que o senhor próprio - redarguiu Dolly Lake, soltando-se, com aprumo do braço que a rodeava. - Continue a perguntar; responderei às que me agradarem e não farei caso das outras.

      - Porque veio hoje a montante do rio?

      - Para visitar a minha família... ou o que dela resta.

      - Viaja muitas vezes assim? É demasiado bonita para andar sozinha.

      - Eis um cumprimento, doutor... de um connoiseur.

      Toby pestanejou, perplexo. Não esperara que uma rapariga de Cagíe Hundred empregasse um vocábulo francês com uma pronúncia quase impecável. As palavras seguintes da rapariga explicaram o mistério:

      - Quando regressámos, ainda havia soldados franceses aquartelados em Sangaree, oficiais da marinha dos esquadrões do conde d'Estaing. Compreendi que me seria mais fácil correr com eles se aprendesse a sua língua - pelo menos o suficiente para os amaldiçoar.

      - Assez bien pour dire “non”?

      - Assez bien pour ça - replicou, esquivando-se ao seu braço.

      - Mas, com tudo isso, ainda não respondeu à minha pergunta: como se atreve a andar por aí sozinha?

      Dolly encolheu os ombros:

      - Às vezes gosto de andar sozinha.

      - E também do risco que corre?

      - Talvez não arrisque tanto como julga. Estou certa de que não é tão perigoso como quer parecer.

      - Oh, mas eu não sou absolutamente nada perigoso! Desejo apenas... poderei dizer apreciar o que você aprecia? - Falava com inteira verdade; o prazer que experimentava com o artificioso retraimento da rapariga era sincero.

      Dolly afastou-se com passos ligeiros, dando-lhe outra oportunidade de admirar-lhe as pernas morenas e nuas, sob o remoinho da saia. Desta vez seguiu a direito e foi sentar-se no pontalete da proa, a agarrar os joelhos, como se o desafiasse a persegui-la. Mas Toby foi suficientemente esperto para fazer o seu jogo. Sentou-se à sombra de uma pilha de lenha e fitou-a gravemente, como se quisesse pedir-lhe perdão com o olhar.

      - É a criada pessoal de Mrs. Gregory?

      - Criada da cozinha. Não me suba de categoria; sou apenas primeira ajudante de Monsieur Fichte, o cozinheiro.

      - Mas vê-a muitas vezes?

      - Sirvo-lhe chocolate todas as manhãs e conferencio com ela acerca das ementas. Quer que lhe diga o que vai jantar esta noite? Posso dizer-lhe o nome dos pratos todos, a não ser que ela tenha mudado de ideias.

      - Preferia uma descrição do que vou encontrar.

      - Uma descrição da minha ama, ou do seu mundo?

      - De ambos, se não é pedir muito.

      - Creio que é, doutor, pois ainda não nos conhecemos.

      - Cinja-se aos factos, então. Diz que a sua ama tenciona dar-me de jantar, esta noite... - Visionou o acontecimento, por momentos, esquecido da proximidade de Dolly e do malicioso desafio dessa proximidade. - Com certeza não serei obrigado a viajar para Sangaree, logo na minha primeira noite em Savannah?

      - Mrs. Gregory está na cidade. Em Wright Square... com Monsieur Fichte na cozinha. A jovem Mrs. Darby insistiu nos seus serviços para a festa desta noite.

      - Nesse caso, é Mrs. Darby quem me dá o jantar, não Mrs. Gregory...

      Fechou os olhos e tentou rever a presença perigosa de Martha. Todavia, singularmente, a imagem da mulher que nunca vira surgia-lhe e impunha-se com maior nitidez. Uma beleza gelada, com cabelos cor de cinza a formar uma tiara fantástica, e olhos como um fiorde no Inverno - olhos cujo gelo se fundia um nadinha ao notarem que ele sabia curvar-se sobre a mão de uma dama tão bem como qualquer marquês...

      - No mês passado, Mrs. Gregory veio muitas vezes a Savannah, a fim de falar com o advogado.

      Toby voltou à realidade, pouco contente.

      - Por minha causa?

      Dolly Lake baixou pudicamente os olhos, antes de replicar:

      - Quem sou eu para responder a essa pergunta, doutor?

      - Mrs. Gregory instala-se sempre em Wright Square quando vem à cidade?

      - Onde havia de instalar-se? Era o seu segundo lar, antes de a nova Mrs. Darby regressar.

      Toby riu-se ao vê-la baixar novamente os olhos, pois não lhe escapara o clarão de cólera que neles brilhara.

      - A lealdade é um bom sentimento, Dolly; não se envergonhe dele. É natural que a sua ama esteja ressentida com a nova Mrs. Darby, assim como esta com a sua ama.

      - Com que direito faz tal suposição?

      - Os médicos também são estudiosos da humanidade... ou deviam ser. Notei, mais de uma vez, que não pode haver duas rainhas para um trono só, sobretudo num reino tão hermético como Savannah.

      - Como pode julgar Savannah se nunca lá esteve?

      - Seja sincera, Dolly, prefere Savannah a Cagle Hundred?

      - Prefiro Sangaree a ambas.

      Toby fitou-a com atenção, perguntando-se o que saberia ela, na realidade, acerca da Companhia Darby - ou da violenta hostilidade que a sua criação provocara. Absorto em tais pensamentos, deixou escapar, inadvertidamente, a pergunta seguinte:

      - Quem pensa que sou, Dolly?

      - O principal administrador dos Darbys - respondeu, sem hesitar. - Mais importante que Sam Hoyt, pois combateu na guerra com o velho Victor e o Sam ficou para trás. Dizem que é, também, um bom médico e um bom organizador. Foi por isso que o velho o contratou e estipulou no testamento que continuaria contratado, fosse qual fosse a opinião dos herdeiros.

      Falava em tom monótono, como se repetisse em voz alta uma série de factos bem conhecidos.

      - Desculpe-me se for mais importante do que isso, doutor - pediu, inclinando a bonita cabeça para um lado e sorrindo-lhe de maneira cativante. - Não sei...

      - Será como diz, Dolly, se lhe agrada assim - respondeu-lhe Kent, que recuperara o bom humor. - Vim a Savannah para pôr a casa Darby em ordem, para ganhar tanto dinheiro quanto for possível.

      - Ainda ontem ouvi dizer isso mesmo na cozinha! - exclamou a rapariga, triunfante. - Um grande administrador - maior que todos os dos Darbys, maior, até, que o velho Victor.

      - Ninguém pode ser maior que o velho Victor.

      Viu que a expressão dos seus olhos se transformava com aquelas palavras e que, por instantes, o tom zombeteiro desaparecia deles. Inacreditavelmente, havia uma tremura de lágrimas na sua voz, quando voltou a falar:

      - Dizem que pode dar ordens e todos terão de cumpri-las, de Miss Nancy para baixo.

      - Quem lhe disse tal coisa? Miss Nancy?

      - Toda a gente o diz, das bancas do mercado ao mais belo salão da Buli Street. - O ar de desafio voltara aos belos olhos de Dolly Lake. - Todos, menos Miss Nancy, que não admite haver uma palavra de verdade em tudo isso. Afirma que vai mobilar de novo Sangaree e levar para lá o novo marido, no Outono, como estava planeado... e que pagará tudo com os fundos da família.

      A voz tremeu-lhe de novo e Tobias Kent teve a certeza de ver-lhe lágrimas nas pestanas. Não lhe restaram dúvidas de que os seus dedos esguios e morenos eram tão capazes de arranhar como de acariciar, conforme a disposição, e riu interiormente dessa descoberta. Uma batalha desse género condimentaria o jogo que planeava para depois da segunda garrafa de Marquês de Riscai, na fresca cabina da ré.

      - Porque não continua, Dolly? Ou terá falado de mais?

      - Não diga que não o avisaram - murmurou, em tom rouco.

      - Posso  dar-lhe um recado para a sua ama?

      - Não vale a pena; tinha razão: já falei de mais. Quem sou eu para recomendar a um cavalheiro que tenha cuidado?

      - Eu podia seguir o conselho, vindo de si.

      Levantou-a suavemente pelos cotovelos, enquanto falava, dando-lhe toda a oportunidade de resistir. Desta vez não havia tensão entre eles quando a beijou, nenhuma sensação de barreiras quando o seu corpo pareceu prestes a render-se completamente, embora se libertasse do seu abraço. Toby deixou-a afastar-se, exultante com a primeira vitória.

      - Obrigado, Dolly.

      - De quê? - A sua frieza surpreendeu-o e o seu orgulho masculino definhou, pois acabava de compreender que ela se limitara a aceitar os seus beijos, mas não os retribuíra.

      - Por me tratar como amigo - respondeu, o mais resolutamente que lhe foi possível -, quando sou ainda um desconhecido.

      - Posso provar-lhe que sou uma verdadeira amiga e preparar-lhe o almoço?

      - Só se consentir que a ajude.

      - Cozinhar é a minha profissão, ganhar dinheiro a sua. Não nos intrometamos no caminho um do outro.

      Correu, a rir, para a cozinha, mas Toby ficou taciturno; o seu sentimento de poder desvanecera-se como se nunca tivesse existido. Naquele momento nada mais sentia que uma obscura satisfação por Billy, o impagável cozinheiro dos acampamentos militares, conservar sempre a cozinha impecável.

      Mesmo que a possuísse - e tinha de fazê-lo, quanto mais não fosse por uma questão de orgulho -, seria uma conquista sem significado. Se a criada de Nancy Gregory era capaz de vencê-lo num duelo de amor, para não dizer de perspicácia, como iria haver-se com a ama?

      Ao puxar a primeira garrafa de vinho para bordo, pela corda comprida que a mergulhava na água, verificou que praguejava como um primeiro sargento, mas que as pragas não lhe proporcionavam qualquer conforto. Arrancou a rolha com os dentes e bebeu longamente, desejoso de recuperar o optimismo. Ouviu Dolly cantarolar na cozinha e adquiriu a certeza de que tinha de possuí-la, pelo menos como símbolo de futuro êxito.

      A chuva começou a cair sem aviso, quando abriam a segunda garrafa de Marquês de Riscai na cabina fresca da ré. Começou por chover pouco, mais vapor do que chuva, como se o calor sufocante do meio-dia se tivesse condensado noutro elemento; mas de súbito, num abrir e fechar de olhos, o Savannah mudou de cor, como um camaleão doente, passando de avermelhado para verde peçonhento, de verde para cinzento frio. Raiado de cristas espumosas nos baixios, enquanto o vento empurrava a nuvem de tempestade pelo largo vale, e batido pelo chicote do forte aguaceiro, o rio não assustava Toby. Não tinham conta as vezes que vira chuvadas daquelas desabar sobre a Jórgia, arrefecer a terra ressequida e proporcionar à gente do interior a oportunidade de refrescar a própria pele na violência das bátegas.

      Não se surpreendeu, por isso, ao ouvir os dois negros das varas gritar de prazer, e não precisou de ver para saber que se limitavam a suster a embarcação na corrente, enquanto aparavam a água nas costas. Lembrou-se a tempo que um cavalheiro de Savannah deve recolher-se em semelhantes contingências, recuou e sorriu a Dolly, consciente de que ela lhe adivinhara os pensamentos.

      - Há quanto tempo não corre, nu, pela areia e deixa um aguaceiro morder-lhe a pele?

      - Há muito, muito tempo - respondeu, melancólico. - E você?

      - Sabia que Clay Creek era atrasada, mas nunca me constou que as suas raparigas andassem nuas, à chuva.

      Oprimido pelo mal-estar que o atormentara durante todo o almoço, Toby não correspondeu ao gracejo.

      Era um abatimento espiritual, sem qualquer relação com a maravilhosa refeição que as mãos hábeis de Dolly tinham conjurado das panelas de Billy. Naquele momento, ao aceitar o prato de nédios pêssegos que ela tirara da mala que trazia consigo, notou que o observava atentamente, como admirada com a sua falta de iniciativa. Mas ficou calado, quase alheio às preciosas milhas que se escoavam sob a proa molhada da barcaça.

      - Dentro de meia hora estaremos na doca de Darby, doutor. O pensamento deprime-o?

      - Como sabe? - perguntou, surpreendido com a sua estranha clarividência.

      - Pela casa de Kirby, na encosta. Quando se vê aquela coluna, pode acertar-se o relógio.

      Toby espreitou por entre a chuva, sobressaltado ao ver a grande casa branca que se erguia na margem do rio, acima do relvado extenso. Embora rodeada do inevitável cenário de palmeiras e pinheiros, a casa de Kirby era, inequivocamente, um posto avançado citadino. As suas colunas brancas, atarracadas, e as janelas largas eram como um aviso: haveria outras casas pelo caminho. A sedução de Dolly Lake, se assim podia chamar-se, tinha de verificar-se sem demora, ou nunca.

      Seria possível que ela também contasse os minutos que faltavam e ansiasse por mais beijos seus? Sentiu voltar-lhe o bom humor ao considerar essa ardente possibilidade.

      - Mais vinho, Dolly?

      - Beba você mais um copo, primeiro. Talvez o anime ou, pelo menos, o torne mais falador.

      Toby encheu um dos copos de Billy e bebeu dois grandes goles. Sentia-se um pouco impressionado pelo facto de Dolly ter bebido tanto como ele e continuar sóbria como um professor em manhã de segunda-feira.

      - Será o vinho que o torna taciturno, doutor? O serei eu?

      - Você não, Dolly - afirmou, categórico. - Você não, embora não tivesse retribuído os meus beijos.

      - Isso foi há duas horas. Não me diga que esteve a remoer duas longas horas na minha... - como direi?

      - Na minha falta de ardor?

      - Continua a não sentir ardor?

      - Creio que o caso é mais complicado do que isso - volveu, ignorando a sua pergunta como ignorava a mão que lhe pusera sobre o ombro. - Esperava uma coisa, quando entrei a bordo - quero dizer, esperava uma rapariga no género das que tem conhecido até agora -, e como lhe saiu outra diferente amuou.

      - Garanto-lhe que não estou nada decepcionado - respondeu, deixando a mão deslizar-lhe lentamente ao longo do corpo.

      Embora Dolly não se mexesse, sentiu-lhe a carne estremecer sob a carícia suave dos seus dedos. Quando se baixou para depor um beijo leve no ponto de ataque que acabava de escolher, ficou sem saber se estava furiosa ou simplesmente condescendente. Soube apenas que o coração lhe batia com força e que o sulco entre os seus seios ardia com um fogo abrasador.

      - Nada decepcionado, Dolly. E você?

      - Já esperava isto - respondeu-lhe, com a mesma calma irritante. - Para ser franca, doutor, surpreende-me, até, que tivesse esperado tanto tempo. A julgar pela sua reputação...

      - Que sabe da minha reputação?

      - Mais do que imagina; em Savannah sabemos muito a seu respeito. Sabemos como se infiltrou na vida de Victor Darby, como lhe apanhou o que queria quando exalou o último suspiro...

      Falara lentamente, presa no círculo dos seus braços, com os olhos baixos para a mão que lhe aprisionava um seio. Se fosse uma cobra que ali se houvesse aninhado, Dolly Lake não a olharia com maior aversão. Não o repeliu - estava, parecia, acima de tais atitudes - nem levantou, sequer, a cabeça quando Toby se afastou por sua livre vontade.

      - Conhecia-me, então, quando embarcou em Darbyville?

      - Por que outro motivo teria embarcado?

      - Planeou tudo?

      - Claro. Tinham-nos dito, em Sangaree, quando desceria o rio e sabíamos que Mr. Thatch desembarcaria e o deixaria continuar a viagem sozinho. Pareceu uma oportunidade excepcional para... - como dizer? - para o estudar sob o seu pior aspecto.

      - Dolly Lake respondeu-lhe sem reservas e Tobias Kent precisou de todo o seu autodomínio para suportar, imperturbável, o fogo do seu olhar.

      - Não direi que me encorajou, Dolly; isso não seria cavalheiresco, como vocês dizem. Mas você sabia que quereria amá-la. Que homem não quereria, com essa cara e esse corpo?

      - Guarde o mel para as marafonas, doutor!

      Mas ele continuou, surdo às suas palavras, e ergueu um pouco a voz:

      - Admita que sabia o que aconteceria quando embarcou, admita que não fez nenhum esforço para evitar as minhas ousadias...

      - Admito-o de boa vontade! De outra maneira, como havia de o desmascarar?

      - Portanto, a sua patroa mandou-a espiar. Foi isso?

      - Mandou-me obter informações, quer o doutor dizer.

      - Porque não pôde esperar ou vir ela própria?

      - Orgulhei-me de correr o risco.

      - Muito obrigado por ter medo, minha querida. Posso fazer-lhe mais uma pergunta, antes de reclamar a minha recompensa?

      - Recompensa, doutor?

      - Agora usamos o mesmo vocabulário.

      - Tornou-se senhor da fortuna Darby. Que mais pretende conquistar?

      Foi a sua vez de proceder sem reservas, envolvendo-a violentamente nos braços. Cingiu-a ao corpo, fê-la compreender que era, agora, verdadeiramente sua prisioneira. Dolly debateu-se com todas as forças e por duas vezes o esbofeteou, mas Toby riu-se da fútil tentativa e aguardou, calmo, que os lábios dela se erguessem para os seus. Desta vez Dolly Lake beijá-lo-ia por sua própria alternativa!

      - Mais uma pergunta, Dolly. Porque confessou? Porque não se limitou a voltar para a sua ama e a contar-lhe o pouco que aprendeu?

      Dolly não respondeu, mas Toby Kent sentiu-lhe o coração bater como se quisesse saltar-lhe do corpo. E sentiu o seu próprio coração corresponder quando o corpo dela, embora ainda a debater-se, começou a tomar a forma do seu desejo.

      - Posso enumerar o que descobriu, Dolly? O que poderá dizer-lhe? Que sou um homem como qualquer outro, que lutarei nos seus próprios termos e demonstrarei que tenho razão... Diga-lhe também que teria aprendido muito mais se me tivesse procurado francamente e feito as perguntas que desejasse.

      - Creio que sabemos... tudo quanto queremos... a seu respeito, doutor. - Quase deixara de debater-se e a sua respiração, embora ainda agitada, tornara-se mais calma.

      - Continue; também estou a gostar disto.

      - Agora sabemos que é implacável, que continuará a apoderar-se do que pretender, quer se trate da fortuna Darby, quer de uma criada da família.

      - É esse o seu discurso de rendição?

      - Jamais me renderei - murmurou, quase inaudivelmente. - Terá de vencer-me.

      - Nesse caso, embarcou na esperança de ser vencida?

      Dolly não respondeu nem levantou os olhos, mas Toby obtivera a resposta que queria e afastou-a de si o mais suavemente possível.

      - Esta é, então, a sua primeira aventura amorosa, Dolly... Perdoe se não o descobri mais cedo.

      - Como sabe que é a... a minha primeira?

      - Por essas lágrimas que lhe molham as faces. Não me sinto lisonjeado, apesar de estar disposta a sacrificar-se por Mrs. Gregory. Deve ser uma extraordinária patroa para inspirar tal lealdade.

      Voltara-se enquanto falava, incapaz de suportar o espanto magoado que se estampara no rosto da rapariga. Ao ouvi-la soluçar atrás de si, não soube se o fazia de cólera, se de alívio. Mas não o enganou o deslizar dos seus pés nus no chão, quando correu da cabina da ré para a coberta, sob o açoite violento da chuva.

      Seguiu-a o mais depressa que os pés calçados de botas lhe permitiram, escorregou no soalho molhado da proa e parou aí, com a cabeça ainda à roda, do vinho e do desejo sufocado. Quando a ouviu rir, percebeu que se esquivara por entre os montes de lenha de meia-nau. Estava agora na amurada, de onde gritava uma ordem aos negros das varas. Com os sapatos numa das mãos e a mala pendente do ombro, parecia, dos pés à cabeça, uma cigana encharcada de chuva, que recuperara o entusiasmo e o desejo de vagabundear.

      - Espere, Doll!

      A barcaça, que deslizava junto da costa da Jórgia com toda a força da corrente atrás de si, correspondera imediatamente à sua ordem, posta em prática pelos negros. Entre a amurada e a margem havia agora três escassos metros de água cor de chocolate. Demasiado assustado para gritar também uma ordem contraditória, e sabendo de antemão que não a alcançaria a tempo, Toby tentou pedir-lhe outra vez que esperasse, mas as palavras não lhe saíram da boca. Diante dos seus olhos apavorados, Dolly Lake saltou da amurada para terra, com a mesma agilidade felina com que embarcara. Viu um pé escorregar-lhe na lama da margem e esperou que, afinal, fosse cair, quanto mais não fosse para ter o prazer duvidoso de a salvar. Mas Dolly agarrara-se ao ramo de um salgueiro, atirara os sapatos e a mala para a relva e lançara-se atrás deles.

      Por momentos, o desejo de segui-la foi quase irresistível. Seria fácil apanhá-la ali, entre a erva alta, possuí-la, como ela esperara ser possuída desde o princípio. Sim, porque disso pelo menos adquirira a certeza, ao libertá-la; Dolly não lhe agradeceria se deixasse perder a última oportunidade de subjugá-la. Mas, enquanto assim pensava, enquanto o latejar do desejo, em vez de diminuir, ameaçava enlouquecê-lo com a sua violência, a tira de rio cor de chocolate alargava, entre a barcaça e a margem. E os pés rápidos de Dolly - mesmo àquela distância ouvia a restolhada que faziam entre o matagal - levavam-na para longe do rio, na direcção da escarpa rochosa baixa que se avistava adiante.

      Parou um instante no cimo da mesma, recortada no céu que começava a limpar-se. Toby colocou as mãos em concha, na boca, para gritar, mas a voz dela atravessou primeiro a água, cristalina e irónica: :

      - Obrigada pela sua hospitalidade, doutor. Lamento não poder gozá-la por mais tempo.

      E partiu, desaparecendo como uma dríada veloz no matagal de carvalhos bravos e vinhas bravas que coroavam a margem. Toby olhava ainda na direcção onde ela se sumira quando a barcaça contornou a última curva do rio.

      Qual rainha modesta no seu trono sobranceiro ao rio, coroada por um sol que a chuva lavara, Savannah sorria-lhe, finalmente!

     

      Savannah continuava a sorrir-lhe, com igual tranquilidade, quando uma hora depois, à janela do seu quarto na Wright Square, Tobias Kent observava as suas feições uma por uma, detidamente. A geografia constituiria um passatempo aceitável - pensou, melancólico - até poder analisar os impulsos que haviam ditado o estranho duelo de amor ocorrido na barcaça ou decidir que espécie de pragas se coadunariam melhor com Nancy Darby Gregory, quando enfim se conhecessem.

      A sua chegada ao cais Darby e o trajecto até à imponente casa jorgiana da praça tinham sido vagamente repousantes. Como Roy tivera de ausentar-se de manhã, a fim de atender a chamada de um doente, Jubal, o criado que tão nobremente o servia em Edimburgo e ascendera agora à categoria de mordomo, esperava a barcaça com dois escravos e uma padiola para transportar as malas do doutor pela rampa íngreme que serpenteava pela encosta acima. Jubal ajudara gravemente o recém-chegado a subir para a vasta e arejada esplanada conhecida pela Baía, fronteira ao rio e ao labirinto de ilhas.

      Não menos gravemente o escoltara depois ao longo da larga Bull Street, ladeada de amoreiras, até ao passeio de madeira da Wright Square, localizada quase geometricamente no centro da cidade. Fora um trajecto silencioso, singularmente apaziguador para os seus nervos tensos - uma recordação composta de paredes de tijolo ocultas sob maciços de folhas; de murmúrios de botas na areia; de negros de voz suave num enorme mercado com telhado de zinco; de paz mais profunda que o silêncio de meio da tarde que pairava como uma bênção sobre os telhados que o sol aquecera.

      Toby saiu para a varanda que contornava o quarto e fitou, com silenciosa melancolia, a cidade que se estendia a seus pés.

      Com o fim da tarde, começava a andar gente pelas ruas; Savannah, dissera-lhe Jubal, seguia o costume dos seus vizinhos do sul e respeitava a hora da sesta. Esse facto fora um bom presságio, pois conviera-lhe percorrer as ruas quase desertas e verificar, à chegada, que as senhoras da Wright Square não estavam visíveis àquela hora.

      Do ponto onde estava, a forma exacta e euclidiana de Savannah era ainda mais pronunciada: meia dúzia de praças como aquela, a régua larga e central da Buli Street, tendo de um lado a Baía e, do outro, o longo rectângulo verde do Trustees' Garden. A leste e oeste, continuavam intactas as paliçadas que haviam resistido aos longos cercos da guerra. O tempo e a magia verde dos jardineiros da cidade tinham reparado os danos infligidos aqui e ali pelos canhões dos exércitos contendores.

      Durante muito tempo, Toby continuou a olhar para os campos do oeste e para a estrada esburacada que serpenteava entre quintas distantes e ia perder-se na vastidão azulada das terras do interior. Perguntava a si mesmo se Dolly percorreria ainda a última milha que a levaria à entrada ocidental da cidade, e o que ela diria quando voltassem a ver-se. Por estranho que parecesse, quase desejava esse reencontro.

      Bastava-lhe fechar os olhos para a rever nitidamente - revê-la em toda a sua beleza esguia e flexível, da auréola acobreada do cabelo ao apoiar firme dos seus pés descalços na amurada da barcaça. Só não conseguia integrá-la na moldura polida daquela casa da Wright Square.

      Talvez a reencontrasse de manhã, quando descesse a escada central para ir tomar o café... Ou mais tarde, quando, qual caçador desejoso de proporcionar à sua presa uma luta leal, tomasse ar na horta da casa. - Ou mais tarde ainda, se a luta daquele dia a tivesse perturbado deveras, algures no labirinto alcatifado do vestíbulo daquele andar... No dia seguinte teria tempo suficiente para explorar aquela mansão rica e surpreendente - tempo suficiente para enfrentar os livros, os advogados e o enigma de Nancy Darby.

      Tempo para encarar o facto de que aquela dor que lhe alastrava no coração só acalmaria quando tivesse de novo Dolly Lake nos braços, encontrasse os seus lábios desejosos dos seus beijos e lhe pedisse perdão pela sua atitude, ao mesmo tempo tão cavalheiresca e grosseira, a bordo da barcaça.

      Talvez, se interrogasse Jubal, conseguisse saber alguma coisa acerca da situação da rapariga na casa. Sem dúvida que, se representava uma espécie de elo de ligação entre Nancy e a cozinha, a sua presença devia ter-se tornado notada. Seria natural, portanto, referir que viera com ela de Darbyville. Mas quando a porta do vestíbulo se abriu e Jubal apareceu, impecável como sempre, com o seu corpo de batráquio estrangulado em esplendoroso cetim, para a soirée, e a sua cara de lua cheia quase submersa em gigantesca gravata, Toby sentiu as palavras morrerem-lhe na garganta.

      Dolly Lake revelar-se-ia à sua maneira, e na ocasião que achasse oportuna. Até lá, entregar-se-ia à sua mercê.

      - Mr. Roy recebê-lo-á agora, doutor. Convida-o para um cálice de xerez na sua sala, antes de saudar os convidados.

      O mordomo avançou um passo, bateu as mãos papudas numa caricatura de mestre de ballet e os dois escravos que tinham estado a limpar os vestígios do banho de Toby acorreram como um único homem. Sem comando visível, executaram rapidamente as respectivas tarefas: um estendeu a Toby as luvas novas e lustrosas, o outro apresentou-lhe, entre as mãos reverentes, o seu melhor casaco feito em Londres.

      Com a gola de veludo ajustada no pescoço, Tobias Kent parou junto do espelho, para uma revisão final. Escarpins prejxís, elegantes como os de um mestre de dança, com fivelas quadradas, de ouro, dignas de um príncipe de sangue; meias da mais fina seda natural, vindas directamente de Paris; calções de cetim verde seco, mais justos que a sua própria pele; colete absurdamente comprido, quase até aos joelhos também com fivelas de ouro, belo na sua maciez de penas de cisne e enfeitado com uma guerra entontecedora de macacos e periquitos em petit point; uma cascata de renda branca no pescoço e o brilho negro e correcto da sobrecasaca, completavam maravilhosamente a sinfonia. Só o cabelo natural, preso numa fita de gorgorão, o denunciava como rapaz rústico e não como veterano de cem recepções mundanas.

      Toby sorriu a si mesmo, no espelho, e surpreendeu-se com o seu à-vontade. Segundo toda a lógica, devia sentir-se um monstruoso mascarado, mas a felicidade persistiu enquanto seguia Jubal no vestíbulo branco e vermelho.

      De onde se encontrava, o corredor parecia interminável. Os seus aposentos, incluindo um espaçoso bureau que Jubal dissera destinar-se ao seu gabinete particular, quando escolhesse o mobiliário, ficavam no lado do jardim; o lado da rua e a escadaria que descia para os aposentos de baixo pareciam longínquos como um sonho. Encaminhou-se lentamente para o corredor, contando os grandes rectângulos de mogno de acesso a outros quartos, portas com enormes fechos refulgentes, de latão, e bandeiras neoclássicas, com intrincados arabescos brancos. A meio do caminho, ouviu uma voz feminina num dos quartos e perguntou a si mesmo se seria Nancy Gregory. Talvez Dolly tivesse andado depressa e já se encontrasse ali, a contar o sucedido à ama e a rir maliciosamente de certos pormenores... Afastou a imagem do pensamento e estugou o passo, sentindo o pescoço a arder.

      Na escadaria, olhou um instante para baixo, para a serenidade da praça ladeada de carvalhos, a que o crepúsculo começava a dar um tom azulado. Acabava' de parar uma carruagem e Toby susteve a respiração ao ver apear-se uma senhora com um enorme vestido em forma de sino, de renda e tafetá, ajudada por um peralta de calções amarelo-canário. Risos masculinos e femininos subiram pela escada, a recordar-lhe a provação que em breve teria de enfrentar. Endireitou os ombros, decidido a alhear-se da ameaça, e, a um gesto deferente de Jubal, contornou a balaustrada da escada e entrou na saleta particular do dono da casa.

      O pequeno aposento era aconchegado e alegre, desde o refulgir do frasco na mesa Chippendale à dança das chamas dos nós de pinho na pequena lareira de mármore preto. Toby estendeu as mãos para o lume, grato pelo seu calor. Pela primeira vez tomava consciência do arrefecimento que a brisa marinha nocturna trouxera a Savannah, como a recordar que o Inverno ainda pairava no horizonte daquela terra encharcada de sol. Não se voltou quando Jubal saiu, a recuar, com a mesma impecável deferência de sempre, e só levantou a cabeça ao ouvir abrir-se a porta de comunicação pela qual entrou Martha Darby, com as mãos estendidas.

      Compreendendo imediatamente que ela preparara o encontro com a habitual desenvoltura, Toby ficou tão atrapalhado que não se mexeu nem esboçou qualquer gesto para evitar os seus lábios vermelhos e cheios. Martha era uma visão rosa e ouro no círculo de luz irradiado pela lareira. Usava um penteado alto, com os cabelos empoados armados em redor de uma tiara de brilhantes, e um fio de pérolas, que contornava o decote baixo, emergia da curva opulenta do seio direito para desaparecer logo a seguir numa nuvem de rendas... Martha, produto perfeito do seu longo planear, era agora uma Darby, uma lady em todos os sentidos de uma palavra mal usada, e uma femme du monde que podia procurar um antigo amante no preciso momento em que lhe agradava e moldar o seu ardor conforme lhe apetecesse.

      Ou talvez julgasse que assim era, pensou Toby, recuando para a admirar. Sorriu intimamente ao lembrar com quanta loucura a desejara, outrora, e como lhe escapara por um triz, naquela tarde em Glasgow.

      - Há tanto tempo, Martha!

      - Há demasiado tempo! - redarguiu, e estendeu-lhe outra vez os braços.

      Voltou à Beijá-la, longamente, pois sabia que estavam ao abrigo de olhos indiscretos. Tratava-se, afinal, de saudar uma velha amiga que não via há muitos anos. O facto de, noutros tempos, se terem amado, carecia agora de significado, tanto mais que a libertação de um dos amantes era completa - graças a acontecimentos ocorridos a bordo de uma barcaça, no Savannah. Podia beijar a mulher do seu melhor amigo sem por isso ser desleal para com Roy.

      Era, pelo menos, o que pensava ao recuar pela segunda vez, um pouco intrigado com o riso de Martha.

      - Alma puritana em corpo pagão! - exclamou aquela. - Saíste-me um jorgiano muito estranho, Tobias Kent!

      - Que queres dizer? - A pergunta era instintiva, pois por de mais a compreendia.

      - Pensas que estou outra vez a tentar-te, mas na realidade trata-se apenas de boas-vindas e de perdão.

      - De perdão, Martha?

      - Com certeza! Pelo teu mau gosto quando me desdenhaste, há alguns anos. Ou tens pior memória do que eu?

      - Possuo uma memória incomodamente exacta - replicou, devagar. - Eras casada, então, e és casada, agora.

      - Sim, meu querido, casada e feliz por ter deixado para trás os ardores da minha juventude. Como médico competente, não achas que uma mulher pode cometer também as suas loucuras juvenis e resgatá-las depois com um procedimento impecável?

      - Queira Deus que digas a verdade, desta vez!

      - A verdade pura, Toby. Fui afortunada com o meu casamento e sinto-me feliz com a situação que desfruto aqui. Sê sincero: alguma vez me viste com melhor aspecto?

      - Nunca!

      Não mentia. O fim da guerra permitira a Martha Darby um desabrochar pleno e exótico. Era como um fruto demasiado doce, pensou acto contínuo, perguntando-se ao mesmo tempo como passara aqueles anos em Havana. Quantos homens teriam contribuído para o seu desabrochar e sorrido, numa roda de amigos, ao recordar os seus favores?

      - Também amadureceste, mas à tua maneira grave - comentou Martha. - Diria que te tornaste mais belo se não receasse dar-te volta à cabeça... Além disso, temos assuntos a tratar antes de descermos.

      - Os convidados não estão a chegar?

      - A Nancy recebê-los-á. Lembra-te de que esta casa também é sua, graças ao testamento do nosso patriarca. - Proferiu o comentário em tom levemente ácido, mas esqueceu o azedume ao acrescentar: - Não te preocupes com a Nancy; está na cidade apenas para te examinar. Amanhã retirará para Sangaree a fim de planear a acção contra ti. Ou deverei dizer contra todos nós?

      - Creio que devo enfrentar agora a minha Némesis - volveu com firmeza, encaminhando-se para o vestíbulo.

      - Precisas de armas, Toby - lembrou-lhe Martha, detendo-o. - De armas que poderei fornecer-te. Não te esqueças de que estou em Savannah há um ano inteiro e que a observei quando regressou de Nassau, convencida de que uma viúva tory podia reocupar a sua antiga posição sem que lhe contestassem esse direito.

      - A acreditar em Gabriel, foi isso mesmo que aconteceu com Mrs. Gregory: reocupou a sua antiga posição.

      - Com a maior das naturalidades! Tal qual como invadiu a minha casa, esta noite, e recebeu os meus convidados como se fossem seus. Exactamente como visitará, amanhã, o juiz Armstrong, com o enfatuado do noivo, e requererá que o testamento seja anulado.

      - Apoiá-la-ás nisso, Martha?

      - Para estragar a oportunidade da tua vida e da de Roy?

      Toby observou-a com atenção, ainda intrigado com a veemência das suas afirmações.

      - Queres dizer que a oferta de me ajudares era sincera?

      - Não acreditaste na minha carta? Todas as palavras que escrevi foram ditadas pelo coração.

      - Escreveste-a por admirares os desígnios de Victor Darby? Ou por desejares ver a sua filha humilhada?

      - Um pouco pelos dois motivos, se queres que seja franca. Estão acorrentadas à sorte dessa companhia cinco mil almas, contando pretos e brancos, pessoas do interior, como tu e eu, Toby. - Aproximou-se da lareira, enquanto falava, e contemplou, a sorrir, a soberba imagem reflectida no pequeno espelho redondo, sobre a mesma. - Porque não hei-de defendê-las de uma mulher, se for capaz? E porque não hei-de ajudar-te, como tu me ajudaste?

      - Nunca te ajudei, Martha. Traçaste sempre o teu destino e construíste a tua felicidade.

      - Uma palavra tua podia ter detido Roy. Graças ao teu silêncio, sou hoje a primeira dama de Savannah... ou sê-lo-ei, quando depusermos Mrs. Gregory.

      - Pela última vez, esqueçamos o passado; é um livro fechado. Se podes fazer Roy feliz, agora...

      - Posso fazer de Roy o que me apetecer. Roy é um marido fácil de manejar, desde que tenha o seu laboratório e possa contar contigo.

      - A propósito, onde está ele?

      - A pouca distância, no quarto de Mary Bristol.- Brindou-o com o seu sorriso familiar, ao vê-lo arquear uma sobrancelha, e esclareceu: - Uma convidada e uma paciente. Mas seria preciso acrescentar a última qualidade?

      - Queres dizer que recebem doentes, aqui?

      Martha encolheu os ombros:

      - Poderíamos fazer menos do que isso? Um dia, Mary será cunhada de Nancy.

      - Voltamos a Nancy.

      - Voltarás sempre a Nancy, enquanto não ajustares as tuas contas com ela.

      - Posso ajustá-las à minha maneira?

      - Tens, então, um plano?

      - Tenciono cumprir à letra o testamento do seu pai, quer ela se torne, quer não, sócia da empresa. Afinal, tenho dois anos para provar que sou honesto.

      - E se ela conseguir, amanhã, a anulação do testamento?

      - O velho Victor estava no seu perfeito juízo quando o redigiu; todos nós podemos testemunhá-lo.

      - Todos vocês são parte interessada. O noivo-advogado de Nancy encontrará outras testemunhas que jurarão o contrário: oficiais do antigo regimento ranger, homens dispostos a odiar-te à primeira vista, agora que a guerra terminou.

      Toby bateu com o punho na palma da mão. Era-lhe difícil admitir que camaradas de regimento se voltassem contra si. No entanto, o velho Victor recrutara a maior parte dos seus homens na Jórgia e não se admiraria se algum peralvilho o detestasse, por via da sua humilde origem. Agora podiam exprimir o seu ódio de uma maneira que o feriria mais.

      - Certamente que o testemunho de Roy valerá de alguma coisa?

      - Não falta quem considere o meu marido uma extensão da tua sombra... e até um renegado, por ter casado comigo.

      - Seja como for, Mrs. Gregory tem todo o direito de contestar o testamento do pai. Devemos combatê-la o melhor que pudermos.

      - Precisamente. Creio que será possível detê-la agora, se procederes como te disser.

      Os olhos de Martha chamejavam e o fio de pérolas, pouco mais branco que a carne sobre a qual repousava, estremeceu com o erguer altivo do seu busto. Se representava, pensou Toby, saboreava o seu papel avidamente.

      - Um seu criado, Mistress Darby... pelo menos até certo ponto.

      - Entende-te, então, com ela esta noite, adverte-a de que deve proceder com cautela.

      - Receio que isso só não chegue.

      - Diz-lhe que sei tudo quanto preciso saber - e até mais - das suas relações com Félix Pagnol. Diz-lhe que as revelarei ao mundo se não desistir do processo.

      - E quem é Pagnol?

      - Capitão Félix Pagnol, ex-oficial de D'Estaing, cavalheiro muito distinto, que se demora em Savannah por razões muito suas e está constantemente na companhia da viúva Gregory. Savannah julga-o apenas um bom amigo do defunto George Gregory, mas eu estou melhor informada...

      Toby recuou um passo, perturbado não só com a sua veemência, como também com a notícia.

      - Mrs. Gregory tem o direito de escolher os seus amigos.

      - Pagnol estabeleceu o seu quartel-general em Havana quando a revolução atingiu o apogeu; era então corsário às ordens do rei de França.

      - Não é ilegal...

      - É ilegal ter um pé em três campos, e eu posso provar que se apoderou de presas de Boston e Nassau, assim como de Havana.

      - A guerra acabou, Martha.

      - Não para homens como ele, Toby; a guerra desses é eterna. Caçaram sob outra bandeira na revolução, caçam agora sob a bandeira da caveira e das tíbias.

      - Estás, portanto, disposta a demonstrar que esse capitão francês é pirata e Mrs. Gregory sua cúmplice em terra?

      - Na cara dela, se for preciso! Mas creio que a ameaça chegará.

      Embora a observasse atentamente enquanto proferia tais invectivas, Tobias Kent não sabia se improvisava ou se tudo aquilo não passava de desesperada conspiração em seu favor.

      - Sê franca, Martha: até que ponto podes provar o que dizes?

      - Posso provar o suficiente para a assustar e levar a desistir dos seus intentos.

      - O facto de esse homem ser corsário não é nenhuma vergonha. De que outro modo a frota Darby fez fortuna durante a guerra?

      - A guerra acabou, mas todos os dias se perdem navios mercantes no mar.

      - Acusas, então, Pagnol, por causa do que fez durante a guerra?

      - Por que outro motivo se demoraria em Savannah? Porque está constantemente com Nancy?

      - Talvez seja rival do jovem Bristol... Não será melhor observarmos calmamente a luta?

      - Recusas, pois, a minha oferta?

      - A chantagem é uma arma ignóbil, minha querida. Prefiro lutar francamente.

      - Esperemos que não lamentes a preferência.

      - Postas as coisas nestes termos, não será altura de conhecer os meus inimigos em carne e osso? Com certeza já se encontram todos lá em baixo.

      - Todos menos os Bristols. Esses têm as suas razões para se afastarem, doravante.

      Tobias Kent inclinou-lhe a cabeça, enquanto ela transpunha a porta de acesso ao vestíbulo.

      - Se pretendes falar por enigmas, Martha...

      - Roy explicar-te-á a última parte. Queres falar com ele, não é verdade?

      Deixou-o sem acrescentar mais nada e desceu airosamente a nobre escadaria, ao encontro de um murmúrio de vozes e de risos. Toby ficou imóvel, perplexo com a súbita retirada, mas Martha parou no patamar e lançou-lhe um último olhar - uma pausa, compreendeu imediatamente, que realçava de maneira admirável a perfeição dos seus ombros cor de marfim.

      - É a quarta porta à direita - informou-o. - Diz-lhe que não se demore. Os dois sócios devem entrar ao lado um do outro, não achas?

      O seu sorriso, com todas as suas implicações, seguiu-o enquanto se dirigia à porta indicada. Roy mandou-o entrar, quando bateu. O rosto pálido e grave do amigo, iluminado pela luz das velas no quarto cujas janelas estavam fechadas, pareceu-lhe uma nota de estabilidade naquele estranho lar. O seu casual aperto de mão completou o quadro e bastou para que Toby se sentisse logo à vontade. Dir-se-ia encontrarem-se de novo no Forte Washington, prontos a inspeccionar, juntos, uma enfermaria. A rapariga que jazia na cama e o escravo alto, de peruca branca e castiçal na mão, eram as únicas notas discordantes.

      - Podes ir, Daniel, eu pego na vela - disse Roy ao escravo, sem se voltar, e em seguida sorriu a Toby e depositou o castiçal na mesa ao lado da cama de colunas. - Como vês, administrei-lhe um opiato leve. Passou uma tarde má e receio que a noite ainda seja pior.

      Toby debruçou-se sobre a doente. Frágil como um fantasma no vasto deserto branco da cama, Mary Bristol parecia nem respirar. De uma palidez de magnólia, com crescentes azulados sob as pestanas cerradas, dir-se-ia aguardar, indiferente, que a morte a levasse.

      - Que tem ela?

      - Talvez confirmes o meu diagnóstico, Dr. Kent.

      Roy puxou para trás os lençóis e os dois médicos trabalharam silenciosamente durante momentos, como uma boa equipa que não precisava de palavras para se entender e completar. Sempre calado, Toby aproximou-se da janela, terminado o exame, e olhou para a praça. Continuavam a chegar carruagens, mas naquele instante era como se não existissem.

      - É, como suponho, Miss Mary Bristol?

      - É.

      - Filha do nosso principal competidor?

      - O caso tem o seu lado humorístico - confessou Roy. - No entanto, não sinto vontade de rir.

      - A rapariga encontra-se grávida pelo menos de seis semanas.

      - Pelo menos. Foi por isso que procurou a protecção de Nancy.

      - O pai sabe que está de esperanças?

      - Bristol sabe apenas que a filha ama um homem que não merece a sua aprovação. É um tenente da marinha chamado Stanton, um tipo decente e, de certo modo, um herói. Mas a pobre... - Roy olhou o amigo, e depois acrescentou, muito depressa: - De momento persegue piratas algures na Florida, mas planearam casar quando ele voltasse. Mary é maior e está resolvida a desafiar o pai.

      - Parece uma heroína clássica.

      - No que respeita, também, à sua impulsividade? - indagou Roy, com um sorriso amarelo.

      - A isso e à sua procura de protecção. Há quanto tempo cá está?

      - Desde ontem, apenas. Adoeceu e Nancy trouxe-a de Sangaree. Devo acrescentar que os Bristols ficaram tão furiosos por a termos recebido que recusaram assistir a esta festa em tua honra.

      - Pela minha parte, receio não gostar dos Bristols.

      - Tenho a certeza de que não gostarás. O velhote é da escola antiga e desde o princípio que ficou com vontade de nos devorar. Agora tem mais um motivo para isso. 

      - E Harvey, o noivo da tua irmã?

      - Nancy tem o direito de escolher os seus maridos, mas até agora não aprovei nenhuma das suas escolhas. Não há descrição capaz de fazer justiça a Harvey; só vendo-o se acredita naquele peralta. - Roy deu a impressão de ir acrescentar mais qualquer coisa à definição, mas mudou de ideias. - Não julgues que estou a ser severo com Nancy; ela casa com um Bristol para consolidar a sua situação. Agora esta rapariga casará por amor... se viver para o legalizar.

      Toby voltou para junto da cama e auscultou pela segunda vez o pulso fraco de Mary Bristol.

      - Não há dúvida de que a gravidez corre mal. Tentamos agora um diagnóstico?

      Roy sorriu-lhe e replicou:

      - Descansará tranquilamente mais uma hora; deixemo-la em paz. Acho melhor diagnosticares primeiro a inimizade da minha irmã. Se te demoras mais tempo cá em cima, começam a pensar que estás com medo.

      - Porque havia de ter medo dela?

      - Espera e verás! - aconselhou Roy, mas foi ele, e não Toby, quem se demorou um instante mais. - Talvez deva acrescentar que este é o quarto reservado a Nancy pelo testamento do pai. Ela insistiu que Mary o ocupasse até se refazer, e esta noite dormirá na Tondee's Tavern.

      - Porque me dizes isso?

      - Para te provar que é humana. Na minha opinião, a sua insistência nesta festa foi apenas uma questão de bravata. Quando a conheceres, verás que é quase tão humana como tu. Talvez esteja, até, um pouco envergonhada da demanda que vai interpor contra a companhia... - pronunciou as últimas palavras num murmúrio, ao mesmo tempo que abria a porta e fazia sinal ao escravo alto para retomar o seu lugar à cabeceira da doente. - Descemos de braço dado? Ou parecerá demasiado estudado?

      - De modo nenhum - respondeu-lhe Toby. - Mostremos também um pouco de bravata.

      Mas, apesar das suas palavras, sentiu o coração afundar-se-lhe no peito quando, finalmente, se encontrou na presença de Nancy Gregory. O salão comprido, branco e dourado era tal qual o imaginara em cem aquartelamentos batidos pela chuva, com a diferença de estar cheio de gente vestida de seda, rutilante de ouro e de graça. Ali, reflectidas no grande espelho oval que encimava a chaminé, estavam os rostos da melhor gente de Savannah, de uma aristocracia jorgiana já com meio século de existência e convencida de que duraria eternamente, apesar das arremetidas da plebe. Ali, ao abrir caminho por entre a multidão compacta, estava o seu próprio rosto bronzeado e a sua cabeleira negra e farta, em contraste vivo com tantas pomposas perucas e altivas pompadours. E ali, voltando-se em resposta ao chamamento de Roy, estava a cabeça arrogante de Nancy Gregory, que o grupo que a cercava quase ocultava aos seus olhos.

      Ria-se, mas os seus olhos haviam já encontrado os dele, no espelho. Toby sabia que olhava fixamente como nunca. O alto corpo patrício, régio como o de uma princesa no imponente vestido de seda verde-pálido, pertencia indubitavelmente a Nancy Gregory, assim como a mão esguia, carregada de jóias, que naquele momento levava ao pescoço. E a voz. Nem em Whitehall se elidiam as consoantes com tanta perfeição. Tudo isso contribuiu para tornar espantosa - e Tobias Kent compreendeu, acto contínuo, estar mais espantado que surpreendido - a descoberta de que Nancy Gregory era Dolly Lake, a rapariga que quase violentara havia três escassas horas.

      Uma rapariga que pareceu aceitar a homenagem do seu longo olhar com tanta naturalidade como se ele se lhe dirigisse como amante, não como inimigo pré-estabelecido.

      - Dr. Kent - minha irmã, Mrs. Gregory.

      Enquanto, com o cérebro num turbilhão, se inclinava sobre a mão que ela lhe oferecia, Toby teve consciência do súbito silêncio que reinou na sala. O instinto aconselhou-o a falar primeiro, embora o esforço para o fazer quase o estrangulasse.

      - Saúdo-a finalmente.

      - Será saudar a palavra apropriada, doutor?

      - À senhora compete decidir - replicou, obscuramente orgulhoso do timbre de ferro que conseguira imprimir à voz; ouviu Roy rir, atrás de si, e forçou um sorriso, ao mesmo tempo que o silêncio se tornava mais absoluto. - Claro que era a senhora, também, que devia saudar-me, Mrs. Gregory... se de saudações se trata.

      - Por que outro motivo estaria eu aqui, doutor? - retirou suavemente a mão que continuava a repousar na dele, fria como os diamantes que a enfeitavam, e pousou-lha no braço.

      - Saudações hoje, Mrs. Gregory, e demandas judiciais amanhã?

      Alguém soltou uma exclamação abafada, à entrada da porta, e Toby adivinhou, sem se voltar, que fora Martha. Adquiriu a certeza ao ver os olhos de Nancy Gregory semicerrarem-se e ao sentir os seus dedos frios apertarem-lhe o braço.

      - A vida de sociedade tem as suas anomalias, doutor. Habituar-se-á à nossa, com o tempo. Posso apresentar-lhe os meus convidados?

      O possessivo não passou despercebido a Martha, pois Toby notou que tinha as faces esbraseadas quando começaram a percorrer a sala. Notou também que os grupos que a sua chegada petrificara recomeçavam a falar, incitados pelo olhar de anfitriã nata de Nancy. Atrás deles, Roy segredou-lhe, benévolo:

      - Até agora, as honras estão equiparadas, Toby. Conserva a cabeça levantada, pois ainda lhe levaremos a melhor.

      Ao agradecer, em silêncio, o apoio do amigo, Tobias Kent pensou que as honras estavam longe de equiparar-se; naquele momento, Nancy Darby Gregory parecia-lhe tão invencível como o seu aprumo. Oxalá Roy nunca soubesse quão perto da desonra a irmã estivera, naquela tarde, às mãos do seu melhor amigo! Nem quão veementemente esse “amigo desejava que a violação tivesse sido completa.

      O coronel de cavalaria que servira sob as ordens de Francis Marion, magnífico no seu uniforme branco, de gala, cujas bandas brilhavam como marfim, e o juiz vestido de negro cujo nome Toby não fixara na confusão das apresentações, encaravam-no pacientemente, como dois cães velhos que farejassem uma pista. À volta deles, o burburinho de vozes recomeçara intensamente e Nancy, deixando-o com um último sorriso radioso, regressara ao convívio da sua falange de cortejadores. Sem deixar de prestar atenção à conversa banal dos dois homens, Toby viu que Martha estava também rodeada por uma alcateia de elegantes lobos, que lhe dedicavam uma atenção não menos ardente.

      Quanto a Roy, desaparecera pura e simplesmente no meio da turba e, naquele instante, o amigo não se importou com o seu desaparecimento. Afinado para tonalidade de concerto, sabia-se capaz de participar naquele elegante cacófato. Encorajado pela iminente colisão com Nancy e pela certeza de, aí também, poder desempenhar o seu papel, respondeu em tom provocante à última pergunta do coronel, com tanta facilidade como se, em toda a sua vida, tivesse desafiado oficiais de sangue azul.

      - Pelo contrário, senhor. Jamais me desculparei por ter servido fora da Jórgia. No fim de contas, a guerra que travámos foi de libertação. Treze colónias a lutarem como um todo para alcançarem a condição de estados! Terá alguma importância o lugar onde servimos?

      - Há uma questão de lealdade, meu rapaz. Como a definiria?

      - A definição compete-lhe, senhor; eu sou todo ouvidos.

      - Lutei como um jorgiano, senhor, lutei apenas péla Jórgia. E voltarei a lutar, se algum homem ameaçar a sua sobrevivência, quer se trate de um casaca vermelha, quer de um agente dessa estéril Confederação.

      - Sem dúvida precisaremos de algo mais forte do que uma Confederação, para subsistirmos.

      - A Inglaterra proteger-nos-á; continuamos a ser britânicos.

      - Certos observadores crêem que a Inglaterra aguarda apenas o momento de voltar a atacar-nos, depois de se entender com a França.

      - Provocadores, senhor, patifes que só se sentem felizes a combater. Cabeças estouvadas que desejariam que ocupássemos o Canadá e as Floridas depois de amanhã.

      - Confesse, Crowther, que ao saber que a Florida voltara para a Espanha foi de parecer que devíamos atacar St. Augustine - lembrou o juiz, em tom suave.

      - O que seria lógico, Armstrong; meu avô navegou com Oglethorpe, em 33. Constitui uma segunda natureza para nós chamuscarmos os bigodes ao “dom” Alusão aos Espanhóis, que usavam essa partícula antes do nome. (N. da T.), e continuarmos a chamuscá-los enquanto houver um estrangeiro à nossa porta. Mas com o Canadá a história é diferente; os Canadianos são nossos irmãos.

      - Não quando teimam em atacar as nossas fronteiras - interveio Toby.

      - Quem disse que fizeram incursões no nosso território?

      - Eu, senhor - redarguiu o médico. - Repelimos vários bandos de assaltantes enquanto estive nos Rangers de Darby. Depois de assinado o tratado, note! E outros haverá enquanto nos não unirmos sinceramente.

      - Convida-me, então, a aceitar ordens de alguém de Filadélfia? - perguntou-lhe Crowther, com as faces cor de vinho. - De alguém que nem sequer conheço?

      - O general Darby estava disposto a fazê-lo, senhor.

      - O general Darby era um homem rico que podia dar-se ao luxo de satisfazer os seus caprichos. Eu sou um veterano com cercas para consertar.

      Toby acenou com a cabeça, hesitando em provocar demasiado aquele ferrabrás. De certo modo, compadecia-se do tom bombástico de Crowther, que personificava a atitude de muitos outros, naquele grande salão resplandecente. Como o ex-coronel, envergavam os seus melhores trajes, num aparato magnificente; como Crowther, sentiam-se profundamente inquietos. Atraídos para a casa mais rica de Savannah, como corpúsculos magnéticos para uma estrela, faziam o possível por convencer. Apesar das suas roupagens de cetim, Toby suspeitava de que muitos jantariam feijões pretos quando regressassem aos lares de onde até os escravos domésticos tinham fugido, às terras calcinadas onde o mato invadira mais de um limiar senhorial.

      Prestou atenção ao que o juiz dizia, desejoso de conseguir separar o homem de leis do demagogo. Armstrong era, sem dúvida, o juiz que ouviria, no dia seguinte, os advogados de Nancy. Algumas perguntas discretas por certo não seriam consideradas conspiração...

      - Se deixasse, por momentos, de invectivar, Crowther - alvitrou o juiz -, se encarasse a possibilidade de acompanhar os tempos, talvez encontrasse alguém disposto a ajudá-lo a consertar as cercas... aqui mesmo, nesta casa.

      - Só se a sua sentença de amanhã for favorável a Nancy, Armstrong, não a este jovem revolucionário.

      Toby desatou a rir. A franqueza do coronel era, afinal, refrescante.

      - Certamente não me põe de parte tão arrogantemente?

      - É do interior, meu rapaz - volveu Crowther. - Acredita, como esse tratante do Jefferson, que todos os homens foram criados iguais. Não é verdade?

      - Sim, por enquanto, senhor. Creio que, por ser assim, deviam construir o seu próprio destino.

      - E eu creio que a grande maioria dos homens nasceu para servir um senhor. Concordo com aquele velhaco nortista, Hamilton, quando diz que o público é uma grande besta que se sente feliz sob a canga.

      - Importa-se de definir os nossos senhores, coronel?

      - Está a vê-los na sua frente, Kent. São estes os homens que sempre governaram.

      - Crowther refere-se aos nossos proprietários de terras - esclareceu o juiz, secamente.

      - Nasci senhor de metade de um condado do interior; meu pai, antes de mim, herdou essas terras com garantia do próprio Oglethorpe - continuou o coronel. - Naturalmente lutarei se um rei que nunca vi tentar arruinar-me com impostos... e de igual modo lutarei contra você, Kent, se me oferecer dinheiro... e conselho.

      - Aceitaria um sem o outro? - insinuou Toby, sem deixar de sorrir nem de se dominar.

      - Nunca de um inimigo, senhor! E você é meu inimigo jurado. Porque negá-lo?

      - Negá-lo-ei até que me prove o contrário. Lutámos ambos contra os Ingleses; porque teremos de lutar agora um contra o outro?

      - Porque eu lutei apenas pela minha terra, enquanto você, Sam Hoyt e um punhado de proprietários desencaminhados como Darby fizeram uma revolução.

      - Porque odeia essa palavra? O general Darby dizia muitas vezes que este país vivia em estado de pacífica revolução desde o seu começo, que nos revoltaríamos contra velhas ordens e crenças ultrapassadas até morrermos. - Toby continuava a sorrir, mas o sorriso tornara-se tenso. - Talvez lutemos um contra o outro, coronel, mas não poderemos travar uma guerra pacífica?

      - Fala como um democrata, senhor - replicou o coronel, proferindo a palavra como se cuspisse uma ostra estragada. - Um democrata como o vosso administrador, que não descansará enquanto todos os homens deste planeta não forem livres para se arruinarem à sua maneira pessoal!

      - Não foi por isso que quase todos nós viemos para a América?

      - Afaste esses sentimentos da Jórgia, senhor! Leve-os para Virgínia e deponha-os aos pés de Thomas Jefferson, o deus do pobre, ou do ditador Washington. Diga-lhes que os combateremos amanhã mesmo, se tiverem a presunção de dizer a cavalheiros como governar o seu mundo.

      - Calunie Mr. Washington na minha presença, senhor, e combatê-lo-ei hoje mesmo!

      A nova voz era suave, levemente desdenhosa e com uma sombra de sotaque estrangeiro. Voltaram-se todos para o lado de onde partira, e Toby distinguiu um homem alto e moreno, de uma elegância vulpina e ardentes olhos negros que faziam o possível por pregar Crowther à parede.

      O coronel encolheu os ombros e resmungou:

      - É você, Pagnol? Devia ter adivinhado.

      - Quer continuar, coronel? Ou encontramo-nos no Trustees Garden? Ainda há luz suficiente para pistolas.

      - Diabos o levem, Pagnol, não posso disparar contra um antigo aliado.

      - Nesse caso não difame um antigo comandante!

      - Servi sob as ordens de Marion, senhor - declarou Crowther, mas a truculência abandonara-o, como se nunca tivesse existido. - É estranho que você, um francês, defenda um homem que nunca viu, sequer.

      - Não tão estranho como o espectáculo de bons americanos recusando unir-se - redarguiu o francês. - Posso levá-lo do centro da tempestade, Dr. Kent? Ou deverei dizer do ancien regime para outros ares?

      O coronel ficou a resmungar, mas o juiz Armstrong pousou a mão na manga de Toby, amigavelmente.

      - Até amanhã, doutor.

      - Quer vir, Armstrong? - perguntou-lhe o francês. - Acredite, não poderia dizer ao doutor nada que ele não saiba já.

      - Nós acreditamos, monsier Vavocat.

      Pagnol sorriu a Toby com os lábios finos, e este teve oportunidade de admirar, pela primeira vez, a sua beleza de ídolo de madeira. O perfil fino e melancólico ficaria tão bem no sarcófago de um santo como numa antecâmara do Inferno. Fossem quais fossem os seus pecados, pensou o médico, aquele homem tinha vivido e sofrido. Ao contrário do que Martha pretendera, talvez o pudesse ajudar.

      - O nosso Mr. Armstrong é um juiz justo e verdadeiro - observou Pagnol. - Só falará acerca de clientes depois de os ter ouvido. Por aqui, doutor... Adiámos a nossa conversa durante muito tempo.

      Pagnol não olhava nem para a direita nem para a esquerda, ao preceder Toby através do comprido salão.

      Inclinando a cabeça a alguns convidados, como um basilisco doméstico, fitando outros com gelado aprumo, abriu duas portas de vidro de acesso a uma espécie de galeria que cercava um jardim. Mal as portas se fecharam de novo, a festa pareceu afastar-se magicamente, substituída por uma penumbra verde de glicínias e carvalhos americanos e pelo murmurar metálico de um palmito. Pagnol sentou-se num banco, sob as grandes copas, e fez sinal a Kent para se instalar à sua frente.

      - Voilá, doutor, o ar já está mais limpo.

      - Creio que me salvou mesmo a tempo.

      - A ideia foi de Mrs. Gregory, não minha; recomendou-me que o vigiasse, de uma distância discreta. Naturalmente ouvi-o exprimir os seus sentimentos. Posso dizer que coincidem com os meus?

      - Com certeza! É agradável ter um aliado.

      - Talvez seja demasiado cedo para me contar entre os seus aliados, doutor. Lembre-se de que pertenço ao campo de Mrs. Gregory.

      - Trouxe-me aqui, portanto, com um objectivo?

      - Por ordem de Mrs. Gregory, que se nos juntará assim que lhe for possível. Ou direi, antes, assim que conseguir escapar ao olhar acerado da cunhada? - O sorriso de Pagnol tirou o acicate às suas palavras. - A propósito de Mrs. Martha Darby, posso saber que lhe disse de mim, até agora?

      - Se falámos de si, senhor...

      - Oh, eu sei que os cavalheiros não traem uma confidência! - exclamou Pagnol, com um suspiro.

      - Honra-me a qualificação.

      - É um simples facto, doutor. Como estudioso do meu semelhante, reconheci imediatamente o cavalheiro que existe em si, o desejo de ajudar os outros. Idiotas como Crowther vêem apenas o provinciano que deve ser repelido a todo o custo... e destruído, se possível.

      - Posso perguntar-lhe que vê Mrs. Gregory em mim?

      - Ela mesma lho dirá. Voltemos ao assunto absorvente de Félix Pagnol... Quero provar-lhe que também é um cavalheiro, um homem que merece confiança.

      - Tem toda a minha atenção, senhor.

      - E a sua compreensão também? Falou de mim, muito pormenorizadamente, com la belle Martha?

      - Está muito bem informado do que se passa nesta casa, capitão Pagnol.

      - Tenho meios de informação, doutor. Diverte-me manter os meus conhecimentos em dia. Não que seja preciso ser um génio para calcular que já teve o seu entretien com a encantadora Mrs. Darby... Se há uma coisa a que ela não pode resistir, são os mexericos. Mas quando aos mexericos se junta a intriga...

      - Explicará a insinuação, senhor!

      - Acredite, Martha Darby só me merece admiração; é forte, e eu aplaudo a força nas mulheres. Sinceramente, suspeito até que seja mais forte que qualquer de nós. Como homens, a nossa natureza romântica está impregnada de piedade; como mulher, só de si mesma se compadece e não perde tempo com um romance em que não tenha o principal papel.

      - Era de si que falávamos, capitão Pagnol, não de Mrs. Darby.

      - Quando me conhecer melhor, doutor, compreenderá que devo ser estudado tendo em consideração as mulheres que conheci. Não pretendo contar-me entre o número de amantes de Mrs. Darby, nem, tão-pouco, no dos de Mrs. Gregory. - Recomendou a Toby que se calasse, com um gesto indolente, e prosseguiu: - No entanto, ambas as senhoras me interessam. Sobretudo o tédio de Mrs. Roy Darby, que é natural nas circunstâncias.

      - Não me parece que sofra de tédio. Afinal, possui o que desejou.

      - E haverá alguma coisa mais aborrecida do que isso? Na realidade, la belle Marthe não pode ir mais longe em Savannah, e é suficientemente inteligente para o compreender. Ao contrário da sua cunhada e principal competidora, aceitam-na por uma razão apenas: por usar o nome de Darby. Tal como você, meu caro doutor, é aceite - pelo menos pro tem - por ter na mão os cordões da bolsa Darby. - De novo os seus dedos finos, aristocráticos, impediram Toby de o interromper. - Diremos, portanto, que Mrs. Roy Darby se sente, simultaneamente, entediada e frustrada? E que inventa pequenas ficções para enganar a sua infelicidade? Claro que eu proporciono um motivo muito interessante...

      - Receio não compreender.

      - Um cavalheiro estrangeiro, sem ocupação visível agora que despiu o uniforme... Um amigo da sua principal competidora... Ora vamos, Dr. Kent, não idealize o sexo oposto. A elas nada agrada mais que esgatanhar-nos, nas nossas costas... ou vis-à-vis.

      - Mrs. Darby conheceu-o em Havana.

      - Não tanto quanto teria desejado.

      - A modéstia não se conta entre as suas virtudes, senhor.

      - Só os idiotas são modestos, doutor; só os cobardes são discretos. Falemos francamente, antes que Mrs. Gregory venha reclamá-lo. Valeu? Como me classificou desta vez la belle Marthe? Como pirata? Como Casanova? Como espião? Ou como simples pretendente de Mrs. Gregory?

      - Disse-me que foi corsário durante a guerra.

      - Fui oficial do estado-maior de D'Estaing, encarregado do aprovisionamento. Claro que visitei muitos portos à La derobée, para me certificar de que as provisões passavam o bloqueio, assim como tive interesses em vários barcos corsários, quanto mais não fosse para demonstrar a minha fé na guerra como estado normal do homem. Mas se Mrs. Darby insinua que, então, pratiquei a pirataria, está a romancear; se acredita que, actualmente, sou pirata ou agente de piratas, é mais estúpida do que imaginava.

      Pagnol, que falara sem calor, abriu as mãos num gesto final de desinteresse e levantou-se bruscamente. Toby não se mexeu, impressionado, a despeito de si mesmo, com a franqueza das palavras e do olhar do francês.

      - Peça-lhe que diga essas mentiras na minha frente, e verá que não se atreverá. Sabe que me veria obrigado a desafiar-lhe o marido, e não pode correr o risco de perder o Dr. Roy Darby... por enquanto.

      - Permite-me que lhe pergunte, nesse caso, porque está em Savannah, capitão Pagnol?

      - Acusar-me-ia de hipérbole se lhe respondesse que amo o seu país - e o sonho do seu país - como nunca amei mulher nenhuma?

      O tom de voz de Pagnol mudara: por muito que quisesse, Toby não podia duvidar do seu timbre de sinceridade.

      - Muitas das pessoas que se encontram naquela sala, atrás de nós, estão empenhadas na sua rápida destruição - ou, na melhor das hipóteses, em transigências que, com o tempo, destruirão o sonho. Só os melhores de entre vós sonharam verdade: o vosso Mr. Jefferson, o vosso Mr. Franklin, o generoso velho que o encarregou de fortalecer e dar realidade ao sonho, aqui na Jórgia...

      - De que lado está o senhor, capitão Pagnol? - A pergunta escapou a Toby espontaneamente, mas o francês prosseguiu, como se não o ouvisse:

      - Claro que os melhores sonhos se desdouram com o tempo. A meta de Victor Darby - como a da América - talvez exceda o seu alcance. Mas, quem sabe? Pelo menos vale a pena experimentar.

      - Disse-o a Mrs. Gregory?

      - Mrs. Gregory tem conhecimento das minhas opiniões e da minha lealdade.

      - E se umas e outra brigarem?

      - A lealdade terá, evidentemente, de receber preferência. Roguei-lhe que aceitasse a Companhia Darby como a derradeira - e a melhor - expressão da alma de seu pai, mas se ela insistir em trilhar outros rumos não me caberá pôr em dúvida os seus motivos.

      - E se esses motivos demonstrarem que é uma tory?

      - A muita sensatez de Mrs. Gregory não lhe consente que abrace dogma tão cediço. Os tories estão condenados, aqui, no Novo Mundo, como acontece com os seus correligionários em Inglaterra e na França. Que os sobreviventes emigrem e resistam como puderem à sua hora; não há lugar para eles neste azafamado continente. Não, Dr. Kent; se Mrs. Gregory o derrubar nos tribunais da Jórgia, será por motivos muito melhores.

      - Pode indicar-me um?

      - Agora sou eu que devo ser discreto, senhor. Acredite, ao menos, que serei seu amigo, se os fados o permitirem.

      Toby não pôde ignorar a mão que se lhe estendia e que apertou a sua com uma pressão convincente como a sua atitude. Um aperto de mão de espadachim, equivalente ao de cirurgião.

      - Mrs. Gregory acaba de entrar na galeria, doutor. Talvez ela possa lançar luz onde eu não posso.

      Com o capuz da pelica atado sob o queixo por um cordão de arminho, Nancy Gregory parecia-se mais do que nunca com a sua não existente criada - uma figura simples, quase virginal, demasiado alta para sugerir patético, mas singularmente humilde. Apenas o bater dos saltos altos dos sapatos vermelhos traíam a mulher oculta sob aquelas pregas de veludo. Toby levantou-se vivamente, notando que o crepúsculo trouxera consigo a frescura do mar. Ou talvez a sugestão de frio se devesse, afinal, à aproximação de Mrs. Gregory, que correspondeu à sua cortesia com um aceno [ de cabeça quase imperceptível.

      Pagnol foi ao seu encontro e perguntou-lhe:

      - Veux-tu que je reste?

      - Un moment, Felix.

      O francês fez uma vénia como só um francês seria capaz, e Toby, invejoso da sua graça, para não dizer nada da sua estranha intimidade, manteve-se imóvel. No seu léxico, vénias a partir da cintura condiziam com perucas empoadas, e ele não as usava.

      - Não posso demorar-me muito, doutor - anunciou Nancy. - Félix, talvez seja melhor retirares-te agora.

      - Pode falar em francês, se desejar - disse Toby. - Conheço razoavelmente a língua, graças ao seu pai. Insistiu que a estudasse em Edimburgo.

      - Considera este encontro indiscreto, doutor?

      - Pelo contrário, Mrs. Gregory. Aprecio a honra.

      Ouviu o francês rir baixinho, na penumbra crescente. A retirada de Pagnol foi uma obra-prima de suavidade: nas pontas dos pés e a cantarolar inaudivelmente, atravessou o jardim e foi admirar um arbusto em flor, no canto mais distante. Dir-se-ia um actor incapaz de abandonar a cena, embora soubesse que o seu papel exigia que se afastasse do campo auditivo.

      - Qual é o seu jogo, Dolly? - perguntou Toby, com pouca suavidade.

      - Não me chamo Dolly, doutor.

      - Prefiro chamá-la assim, por agora. Porque tentou fazer de mim idiota?

      - Confesse que o consegui maravilhosamente.

      - Porquê?

      - Será preciso perguntá-lo, agora?

      - Com certeza que não, mas pensei que talvez desanuviasse a atmosfera se traduzisse o seu subterfúgio por palavras.

      - Puxe pela cabeça, doutor... Não se lembra de ter dito que eu devia ter embarcado, pessoalmente, na barcaça?

      - Porque se ocultou sob um vestido grosseiro e uma touca?

      - E a pronúncia do interior? Não negue que o iludiu por completo!

      Toby deu consigo a rir e a amaldiçoar-se mentalmente por isso.

      - A arte de representar faz parte dos seus talentos?

      - Representei várias vezes como amadora. Fui Clara Claymore em The Swairís Revenge e Ofélia no Hamlet, incarnado pelo meu noivo. Mr. Thatch elogiou-me muito no Mercury.

      - Disse que dispunha de pouco tempo, Mrs. Gregory. Não seria conveniente dizer o que pretende?

      - O que pretendo é simples, Dr. Kent. Vim expressar-lhe os meus agradecimentos.

      - Que tem a agradecer-me?

      - Como Clara Claymore diria, poupou-me quando estive à sua mercê. Não acha suficiente?

      - A fortuna Darby está ainda à minha mercê. A que atribui maior valor, ao dinheiro ou à sua virtude?

      Esperara que a pergunta provocasse chispas, mas Nancy Gregory mal estremeceu, na obscuridade.

      - Atribuo muito valor a ambas as coisas, doutor. Que mulher solitária não atribui?

      - Respeitei a sua virtude. Ou deverei dizer que respeitei o que considerei a sua... a sua inocência?

      Nancy baixou a cabeça:

      - Aceito a ironia; é deveras merecida.

      - Porque não hei-de respeitar também a sua herança? E fazê-la crescer?

      - Estudei minuciosamente o testamento de meu pai e a escritura da companhia que idealizou. Creio que não estava no seu juízo quando escreveu ambos os documentos, ou que obedeceu a pressão exterior.

      - Ambas as suposições são infundadas, Mrs. Gregory. Não aceita, a esse respeito, a palavra de seu irmão... e a minha? Teremos de provar em tribunal a nossa boa fé?

      - Que homem em pleno juízo pensaria formar uma companhia por acções envolvendo cinco mil pessoas? Cinco mil pessoas que não sabem assinar o seu nome?

      - A maioria sabe fazer pelo menos isso, graças às escolas do mato de seu pai, a maioria trabalharia com mais ardor graças a esse incentivo! É certo que, ao princípio, os lucros seriam reduzidos...

      Mas nada deteria, agora, Nancy Gregory.

      - Os homens devem trabalhar para outros homens; faz parte da natureza humana. A maioria das pessoas são incapazes de trabalhar para si mesmas.

      - Por culpa dos seus senhores?

      - Por culpa da sua própria natureza. É por isso que são precisos os senhores.

      - Não travámos a revolução para abolir os senhores?

      - Não seja sentimental, doutor! Você combateu os Ingleses porque meu pai lho ordenou. Eu ausentei-me até terminar a luta, mas não por acreditar no que meu marido acreditava; queria as colónias livres, queria que os jorgianos fizessem as suas leis, que enriquecessem à sua maneira!

      - Todos os jorgianos, Mrs. Gregory!

      - Todos os que forem dignos ou aptos! Os meus antepassados trabalharam muito para conseguirem a sua riqueza e eu tenciono trabalhar também muito, se lhe levar a melhor no tribunal. Sim, e arranjarei trabalho para aqueles... para aqueles que meu pai tentou ajudar. Mas jamais repartirei com eles os seus bens, pois daqui a um ano estaríamos todos a morrer de fome! - A voz tremia-lhe e Toby tinha a certeza de que havia lágrimas nos seus olhos, embora o seu rosto fosse uma simples mancha branca na sombra do capuz.

      - Tenciona, então, lutar?

      - Tenciono lutar desesperadamente.

      - Não seria mais fácil assinar a escritura, entrar para a companhia como directora e ajudar-nos a evitar prejuízos?

      - Meu pai sabia que eu jamais assinaria a escritura. Ele mesmo o diz, no próprio documento.

      - Podia deixar-nos experimentar sem se comprometer. Mesmo que falhássemos, veria que o dinheiro... - Toby hesitou, receoso de fazer o seu jogo se confessasse francamente as suas próprias dúvidas. - Seu pai contou com a possibilidade de malogro. Mesmo na pior das hipóteses, creio que seria a mulher mais rica da Jórgia se...

      - Se fossem obrigados a devolver-me as propriedades?

      - Dois anos bastariam para a companhia dar as suas provas. Custar-lhe-ia muito esperar esse período, para que eu demonstrasse que sou honesto e que me interesso tanto pelo seu futuro como pelo do mais pobre meeiro de montante do rio?

      - A comparação não me lisonjeia.

      - Julga-se um ser superior?

      - Não foi isso que disse. Quero apenas o que é meu, para o utilizar à minha maneira.

      - Pareceu-me da mesma carne que eles quando a tive nos meus braços. Na realidade, agradou-me mais como Dolly Lake.

      Viu a pelica de veludo estremecer e um braço estender-se, como uma víbora prestes a morder. Mas Nancy Gregory não lhe bateu. Limitou-se a tamborilar nas costas de uma cadeira, como se quisesse dominar a cólera antes de voltar a falar.

      - Merecia isso também, claro - disse por fim. - Consideraria uma proposta, doutor, antes de comparecermos perante o juiz Armstrong?

      - Fale. Não tenho ideias preconcebidas.

      - Há pouco sugeriu que entrasse na companhia como directora. Como sabe, fui a dona da casa de meu pai desde muito nova e as suas... as suas ideias avançadas permitiram-me adquirir tão boa educação como qualquer homem - melhor, direi, até, que a da maioria dos homens que conheço.

      - Sou da mesma opinião.

      - Como médico, admite que as mulheres têm miolos, desde que lhes permitam utilizá-los?

      - Como médico e como ser humano, se mo permite.

      - Mesmo depois de casada fui eu que escriturei os livros dos Darbys; trabalhei durante anos ao lado de meu pai, nos escritórios e nos campos... e posso acrescentar que fui hoje a Darbyville para inspeccionar a plantação de tabaco. Fui eu que escolhi o primeiro campo de arroz em Sangaree e neste momento estou a reunir todos os escravos da ilha para a plantação.

      - É evidente que não podemos perdê-la.

      - Esperava retomar todo esse trabalho finda a guerra, com autoridade absoluta. Esperava que meu pai... enfim, que reconhecesse o meu contributo.

      - A escritura não prova que o reconheceu?

      - Há pouco referi-me a uma proposta. Ei-la: se eu concordar em retirar a demanda para anular o testamento, se prometer fazer tudo quanto estiver ao meu alcance para o auxiliar no exercício da sua profissão de médico em Savannah, desistirá em meu favor da Companhia Darby?

      Toby fitou-a, sem compreender, mergulhado em profundo silêncio.

      - Ter-me-ei enganado a seu respeito, doutor? - perguntou por fim Nancy Gregory, com uma gargalhadinha irónica. - Considerará uma simples mulher incompetente para dirigir as propriedades do seu pai?

      - Penso nos desejos do seu pai e no acordo que assinámos.

      - Apesar disso, a minha proposta é generosa. Daqui a dois anos você será um falhado e eu recuperarei a fortuna e dar-lhe-ei o destino que entender. Porque não hei-de recuperá-la agora? Porque não há-de o doutor encarregar-se do trabalho para que nasceu?

      - Discutiu o assunto com Roy?

      - Não, nem é preciso. Meu irmão tem apenas um desejo: trabalhar consigo em Savannah, como médico. Como já disse, providenciarei amplamente nesse sentido. Construirei, até, um hospital e dotarei uma clínica grátis, como meu pai desejava. Como vê, Dr. Kent, não sou desumana, mas apenas prática. É a única virtude real de uma mulher, quando está só.

      - E o seu projectado casamento no clã Bristol? - Toby não resistia à tentação de sondar aquele incrível plano até ao âmago, embora todos os seus instintos o incitassem a vetá-lo sem hesitar.

      - Harvey Bristol confia no meu discernimento. Casaria com ele se assim não fosse?

      “Harvey Bristol está falido”, pensou Toby. “Pelo que tenho ouvido dizer desse jovem pelotiqueiro, é capaz de apoiar qualquer plano susceptível de lhe encher a bolsa...”

      - Escolhe sensatamente os seus maridos, Mrs. Gregory - comentou, em voz alta. - E o capitão Pagnol?

      - O capitão Pagnol é um amigo muito antigo - redarguiu Nancy, com absoluta compostura. - Naturalmente tem também os direitos de um crítico, mas observa o meu mundo exterior, como um visitante estrangeiro - um visitante civilizado, sem preocupações de dinheiro nem interesses no futuro da Jórgia... ou no meu.

      Recordando-se da advertência de Martha, Toby olhou-a vivamente, perguntando-se se escolhera aquele recanto sombrio para ocultar os seus rubores. Naquele momento, compreendeu que seria preciso muito para fazer Nancy Gregory corar convenientemente. De olhos nos olhos dela, furioso por a altura da antagonista não lhe permitir avantajar-se-lhe, reprimiu o desejo insano de lhe arrancar o capuz e cobrir-lhe de beijos o rosto pálido e atento. O desejo, essa fera imprevisível, retirou-se, a rosnar, para o seu antro, e o Dr. Tobias Kent soltou um profundo suspiro, consciente de ter recuperado a razão. Desejara Dolly Lake na barcaça, na tarde chuvosa, e voltaria a desejar Nancy Gregory, insuportavelmente. Mas era desejo apenas, nada mais que desejo, afirmou a si mesmo, em tom solene. Desejo de destruir, não de amar, pois naquele momento não se lembrava de nenhum ser humano que detestasse mais do que aquela mulher.

      - Acabou?

      - Acabei, doutor. Aguardo a sua resposta.

      - A minha resposta é simples: não aceito subornos.

      - Chame-lhe concessão; soa melhor.

      - Dei ao seu pai a minha palavra de que lutaria até ao fim para que os seus desejos fossem satisfeitos. Assim, como poderia desistir em seu favor, mesmo que confiasse nos seus motivos?

      - Nesse caso, terei de recorrer ao tribunal?

      - O nosso próximo encontro será no gabinete do juiz Armstrong. Acrescento que a mandaria sair desta casa esta noite mesmo se um pormenor não interviesse em seu favor.

      - Poupe-me esse final grosseiro. Já tencionava ficar na Tondee's lavem.

      - Mencionei um pormenor que interveio em seu favor, Mrs. Gregory. Quer ouvi-lo?

      Nancy voltara-se já para sair, mas retrocedeu e encarou-o. Mais uma vez um braço branco saiu das pregas da pelica, como uma víbora prestes a atacar.

      - E que foi que me salvou?

      - Aquela rapariga que sofre lá em cima. O facto de a ter recolhido no seu transe angustioso demonstra que tem coração... desde que saibamos encontrá-lo. Não acrescentarei que me desejou naquela barcaça tanto quanto eu a desejei a si.

      Desta vez a mão ergueu-se para o esbofetear, mas Toby previra-o e agarrou-lhe o pulso no ar, torcendo-lho. Nancy girou nos calcanhares, mas o salto do sapato prendeu-se-lhe numa pedra e partiu-se, com tanta fúria o puxou. Então sentiu-se empurrada contra a parede de tijolo, com ambos os braços dele a aprisioná-la. O coração de Toby exaltou-se, triunfante, ao sentir o corpo de Nancy tornar-se flácido.

      Nunca soube o que se teria seguido. Ao princípio supôs que o grito abafado partira da garganta de Nancy, mas quando o clamor do seu sangue se acalmou compreendeu que viera do interior da casa - um longo grito de dor, repetido e prolongado numa nota aguda, um grito de socorro, que exerceu nele o mesmo efeito de um balde de água fria. Os seus braços soltaram Nancy, que compreendera tão bem como ele a origem do grito.

      - É Mary, doutor, precisa de mim!

      - Precisará de ambos - replicou, seguindo-a apressadamente.

      Roy estava na escada quando chegaram, ignorando a interrogação que se lia no rosto de uma vintena de pessoas que o olhavam com ansiedade. O seu semblante traduziu alívio instantâneo mal Toby se lhe juntou no patamar.

      - Ia procurar-te.

      Nancy precedera-os, sem olhar para trás. Pelo canto do olho, Toby viu Félix Pagnol aparecer à porta da galeria e perguntou a si mesmo o que teria o francês ouvido da batalha que acabara de travar com Mrs. Gregory. Seguiu os outros até ao quarto da doente e entregou-se imediatamente às exigências da sua profissão.

      Martha encontrava-se já à cabeceira da cama de colunas - uma Martha estranhamente vibrante, embora a mão que pousava no ombro de Mary Bristol fosse tranquilizadora. A paciente, que jazia com os joelhos encolhidos e os olhos dilatados de medo e de dor, soltou outro grito dilacerante quando Toby se sentou para a examinar.

      - É o Dr. Kent, Mary. - A voz de Martha era suave como as suas mãos, mas os olhos que fitavam os de Toby trasbordavam de cólera. - Veio ajudá-la.

      Mary Bristol murmurou palavras indistintas, ainda sob os efeitos do opiato que Roy administrara.

      - Onde lhe dói, Mary?

      Mas Tobias Kent calculava onde se localizava o foco da dor antes mesmo de os seus dedos começarem a palpar o ventre da doente. Embora a respiração angustiada da rapariga parecesse significativa de que era o tórax a região afectada, a experiência ensinara-lhe havia muito ser isso geralmente sintoma de perturbações na cavidade abdominal. Encontrou sem demora o que procurava: endurecimento agudo do triângulo acima do osso pélvico direito.

      Não se enganara. - Faça um esforço e fale, Mary. Quando começou isto?

      - Há meia hora apenas. Sabia que havia gente... em baixo... e não quis...

      - É capaz de pedir mais velas, Martha? - Toby levantou vivamente a cabeça, consciente pela primeira vez da presença de Nancy aos pés da cama. - O doutor não poderá examinar Mary às escuras.

      - Já as mandei buscar - respondeu Martha. - Se me derem licença, vou recomendar que não se demorem. - Encaminhou-se para a porta, mas antes de sair acrescentou, irritada: - Podiam ter-me dito há mais tempo. Se eu soubesse do que se tratava... - e saiu, deixando no ar a ameaça não concretizada.

      Toby sorriu, sem querer. Era próprio de Martha adivinhar tão depressa tratar-se de uma gravidez indesejada... O ar de matrona indignada estava-lhe ainda mais a carácter.

      - Aproxima mais a luz, Roy. Creio que poderemos certificar-nos num instante.

      Não lhe restavam dúvidas quando terminou o exame interno, mas hesitou em pronunciar alto o seu diagnóstico.

      - Vamos discutir isto lá fora?

      - Não a deixe na expectativa - interveio Nancy. - Ela tem o direito de saber.

      Toby fitou Mary Bristol, que lhe agarrou num pulso. Havia nos seus olhos um não sei quê - uma coragem firme, que contrastava singularmente com o seu rosto infantil- que o convenceu de que Nancy tinha razão. Duplamente razão, pois não havia tempo a perder.

      - É uma gravidez falopiana - informou, com tanta firmeza quanta lhe foi possível. - Concordas com o diagnóstico, Roy?

      - Receei-o desde o princípio - redarguiu o amigo, com igual segurança.

      Toby falou rapidamente, tentando elucidar a rapariga. Em Edimburgo dissecara muitos espécimes que mostravam a massa do feto incrivelmente pequeno que se gerara no canal que vai do ovário ao útero. Com Roy a seu lado na mesa de dissecação, o seu escalpelo demonstrara as consequências de tal anomalia. Embora fosse possível, se não provável, verificar-se a concepção na trompa de Falópio, o desenvolvimento fetal nesse lugar era, invariavelmente, fatal. Bloqueado, por qualquer acidente, na sua descida para o útero, o pequeníssimo futuro ser provocava, acto contínuo, uma dilatação. Regra geral, a trompa, incapaz de corresponder ao tamanho crescente do feto, rompia-se na cavidade abdominal e sobrevinha a morte.

      Agora só a cirurgia poderia salvar Mary Bristol. Toby declarou-o sem rodeios, ao terminar a pequena lição, mas evitou o olhar das duas mulheres.

      - A faca matar-me-ia de igual modo.

      Olhou então para Mary, surpreendido com a sua calma aceitação da morte. A jovem não exagerara, do ponto de vista leigo. Naquela parte da América, a cirurgia, com excepção da mais elementar, era quase desconhecida; invadir a cavidade abdominal constituía ousadia a que raros médicos se arriscavam.

      - A faca curá-la-á... e libertá-la-á. - Sentiu-se satisfeito ao ver o rubor invadir as faces de Mary, sinal de que compreendera o que quisera dizer-lhe. - Claro que os motivos da operação não passariam daquela porta.

      - Meu pai devia saber.

      - Com certeza. Mando chamar o Dr. Bristol?

      - Não é preciso, Dr. Kent - declarou Nancy, em tom decisivo. - Neste momento, devem atravessar o Savannah pelo menos uma dúzia de alviçareiros, para avisarem o nosso decano da medicina. - Apesar do problema que enfrentava, Tobias Kent surpreendeu-se com o tom amargo das suas palavras.

      - Quanto tempo levaria a operação?

      Compreendeu que Mary Bristol lutava com as suas próprias dúvidas e esforçou-se por falar com a máxima segurança:

      - Uma hora, talvez. Admito que há perigo, mas a técnica não é de modo nenhum complexa. Precisarei apenas de soltar a trompa, extirpar o feto e fechar a ferida. As suas probabilidades de restabelecimento são excelentes.

      Observava Roy sorrateiramente, enquanto falava, na esperança de que o seu jovem colega o ajudasse.

      - Não há melhor cirurgião neste lado do Atlântico - afirmou Roy. - Aconselho-a a entregar-se nas suas mãos, Mary, com toda a esperança.

      - Já fez alguma vez esta operação, doutor?

      - Uma vez, na clínica de Edimburgo. A paciente viveu para me agradecer.

      - É frequente?

      - Só há conhecimento de outro caso, no estrangeiro. Poucas doentes são tão corajosas como você.

      - Que me aconselha, Nancy?

      Por momentos, Nancy não se mexeu. De cabeça baixa, Toby aguardou, à cabeceira da cama, que desferisse o golpe fatal. Mas, quando falou, Mrs. Gregory fê-lo em tom tão firme como o do irmão:

      - O Dr. Kent tem razão, Mary; és uma rapariga corajosa!

      - Acha que devia...?

      - Acho que preferirás viver a morrer, sejam quais forem os riscos. Como Roy disse, não encontrarias melhor cirurgião. Meu pai encarregou-se disso!

      Toby aceitou gravemente o cumprimento e levantou-se. Apesar de acompanhado da etiqueta do preço, valia ouro puro naquele momento.

      - Então, Mary?

      - Pode operar quando estiver pronto, doutor.

      - Estou pronto.

      “Nunca o estarei tanto”, acrescentou silenciosamente, e os seus olhos procuraram os de Nancy, do outro lado da cama, e aceitaram, mudos, aquele desafio final.

      Meia hora depois, ao lavar as mãos à porta da copa, Toby reviu pela última vez os preparativos. Amigos - agradecia aos céus terem chegado providencialmente quando os últimos convidados partiam - ocupavam estrategicamente as janelas do rés-do-chão e Mary Bristol dormia profundamente, graças a um opiato mais forte. Amarrada à mesa de operações, com Roy a seu lado para a segurar, era pouco provável que as suas convulsões prejudicassem o decorrer da intervenção. No patamar, uma braseira punha estranhas sombras na parede da escada, enquanto uma grande cafeteira de latão fervia ao lado da pilha de compressas de linho que um escravo rasgara, por ordem de Toby. Dido, que era mulher de Jubal e, ao mesmo tempo, seu espírito tutelar, cirandava em redor das chamas. O momento precisava de um toque de bruxaria, para lhe dar substância - pensou Toby, que começava a amaldiçoar o risco que ia correr, embora o soubesse inevitável.

      O pior de tudo - não contando com a fé de Mary Bristol na sua omnipotência - era a teimosia de Nancy Gregory em assistir à intervenção. Fechou os olhos, para não ver a sua imagem de avental e lenço branco na cabeça, quando apareceu ao lado de Dido, olhou um momento para ele e desapareceu. Martha, como uma mulher sensata, admitira os seus temores e recolhera havia muito ao seu quarto, com um dos sais de Roy para a acalmar. Porque não procedia Nancy Gregory da mesma maneira?

      Mas o tempo era pouco para tentar compreender por que Nancy, que tinha bastos motivos para desanimar perante tal crise, se mostrava firme e corajosa, ao passo que Martha, que crescera com a morte no mato, se mostrava branda como uma aristocrata criada a recato. Levantou a cabeça ao ouvir as rodas de uma carruagem, perto de casa, suspirou de alívio e endireitou os ombros, pronto a enfrentar a ameaça dos passos que soaram no pórtico. Mais uma vez agradeceu aos céus os olhos amigos que vigiavam, no rés-do-chão, e a certeza de que não teria de haver-se sozinho com a inevitável invasão.

      A porta escancarou-se sem cerimónia, antes de Jubal ter tempo de acorrer ao clamor da aldrava, e em três longas passadas, Toby encontrou-se cara a cara com os intrusos - um homenzarrão de ombros largos, capote antiquado e peruca desgrenhada, e o seu sósia mais jovem, um peralvilho antipático e demasiado elegante, envolto numa aura de brandy.

      - Dr. Bristol, presumo?

      O mais velho inclinou imperceptivelmente a cabeça, quase sem olhar Toby, e o mais novo, a cambalear um pouco numa absurda farsa de dignidade, avançou de mãos nos quadris e fitou Toby com ar arrogante, como um rufião prestes a entrar numa peleja.

      - Dr. Kent, presumo?

      - Um seu criado, senhor.

      - Vá para o diabo com as delicadezas, camarada; sabe muito bem quem somos! Não nos faça perder tempo. Onde está minha irmã?

      - Dobra a língua, Harvey - recomendou-lhe o pai. - Kent percebe tão bem como eu que estás bêbado.

      - Quem o não estaria, senhor? A minha futura mulher ignora-me para se saracotear com este intrometido ...

      Toby ouviu passos apressados no patamar e calculou que Dido se refugiara no andar de cima. Nancy ocupou o seu lugar, a tempo de ouvir a conversa.

      - Diga-me, Kent, antes de levarmos Mary para casa, quando terei o prazer de lhe dar um tiro?

      Mas o Dr. Bristol gritou a pedir silêncio e declarou:

      - Por agora, ninguém dará tiros... enquanto Mary, precisar de nós. Leva-me junto dela, Kent?

      - Com todo o gosto, senhor. Chegou mesmo a tempo.

      - Ninguém levará Mary para casa, e você menos] do que ninguém, Mathew Bristol!

      A voz de Nancy cortava como uma lâmina de aço e a rapariga, branca como um arcanjo alto na penumbra do patamar, afastou-se com relutância para os deixar passar. Mathew Bristol parou na escada, incapaz de acreditar no que ouvia.

      - Tentei não a julgar severamente, minha querida.

      - Mary é maior e confiou-se nas minhas mãos. Ficará aqui!

      - Eu sou pai dela, Nancy. Envergonhou-me, mas agora precisa de mim.

      - Precisa de um médico, Mathew, e já o tem.

      - É minha filha, compete-me julgar as suas necessidades.

      Toby avançou um passo. Embora a diplomacia parecesse definitivamente arredada, achou que devia fazer mais um esforço:

      - Tem todo o direito de a examinar, senhor; creio que o seu diagnóstico concordará com o meu.

      - Nancy! Se consentiu que este labrego pusesse as mãos em Mary... - o velho Bristol engoliu o resto, como se não pudesse acreditar na imensidade da suposição.

      Impelido por outra espécie de incredulidade, Toby tentou dominar a cólera, mas a sua voz soou rouca e vibrante:

      - Se dominar o mau génio, senhor, e se lembrar de que somos ambos médicos...

      - Mencionou um diagnóstico, creio. Qual é?

      - Lá em cima, por favor.

      - Aqui! Diabos lhe levem a arrogância, seu labrego! - Harvey entrou em cena, com uma violência que ameaçou a integridade do corrimão.

      - Apoia essa ordem? - perguntou Toby ao velho, sem o desfitar.

      - Meu filho tem razão. Diga o que tem a dizer e afaste-se.

      - Sua filha sofre de uma gravidez falopiana. Seria fatal levá-la agora.

      Por momentos, receou que o velho Bristol morresse de apoplexia, ali mesmo, e chegou a estender a mão, para o amparar. Harvey afastou-lha, com uma pancada.

      - Repita isso, labrego!

      - Sou médico, Bristol! Sua irmã está grávida, com uma complicação perigosa, e só uma operação imediata a salvará...

      Desviou-se a tempo e o punho que Harvey Bristol lhe dirigia ao queixo falhou por um triz e rachou um painel de madeira. O agressor levantou a outra mão, mas Toby estendeu o pé, rasteirou-lhe as canelas e atirou-o de escantilhão, numa grotesca cambalhota. Ninguém falou quando o gigantesco janota caiu de cabeça pelo poço da escada, se estatelou no vestíbulo e ficou imóvel.

      - Quer confirmar agora o meu diagnóstico, Dr. Bristol?

      O velho médico seguiu-o sem dizer palavra e Nancy ficou imóvel no patamar. No último degrau, Toby voltou-se, mediu com o olhar o vulto inerte de Harvey Bristol, encolheu os ombros e abriu a porta para o velho Bristol entrar.

      - Porque está ela naquela mesa?

      - Já lhe disse que temos de operar, senhor. Sua filha colocou-se nas minhas mãos.

      Mesmo à luz das velas, as faces cor de vinho de Bristol adquiriram um tom de púrpura. Mudo, debruçou-se sobre a improvisada mesa de operações e sobre a jovem amarrada sob os lençóis. Toby recuou, também calado, enquanto os dedos do velho palpavam desajeitadamente a zona distendida. Apesar de habituado aos métodos grosseiros de alguns médicos, espantou-o a rudeza do exame.

      - Uma sondagem interna convencê-lo-ia de que...

      - Trata-se de uma simples inflamação intestinal. Porque lhe administrou opiatos?

      - Repito que é uma dilatação tubária.

      Bristol encolheu os ombros largos, depreciativamente.

      - Tenho a carruagem lá fora, Kent, trouxe homens da minha propriedade e vou levá-la para casa. Não se iluda a tal respeito.

      - Contámos com isso. Gabriel Thacht e o nosso administrador chegaram há pouco e estão no alpendre armados de pistolas. O capitão Pagnol encontra-se na janela da biblioteca, com meia dúzia de mosquetes carregados. Permitiram-lhe a entrada nesta casa apenas por ser o pai de Mary, mas se outro homem puser os pés no alpendre, leva um tiro.

      Toby não tentou medir as palavras e não se arrependeu da ameaça. Não lhe restavam dúvidas de que só uma afirmação de força e uma teimosia que não ficasse atrás da sua convenceriam Matthew Bristol.

      - Diabos o levem, a si e às suas ameaças! Digo-lhe que se trata de simples inflamação e que com uma sangria e umas fomentações amanhã estará boa.

      - E se ela morrer dessa “inflamação” registá-la-á como tal?

      - Tomo a responsabilidade das minhas afirmações, Kent! Entrega-me o que me pertence, ou terei de voltar com forças suficientes para lho tirar?

      Bristol não ameaçava em vão; cumpriria à letra as suas palavras. Se Toby cedesse, se consentisse que levasse Mary e a rapariga morresse, o pai ocultaria o seu erro, mesmo na morte. Certificaria que a inflamação intestinal fora a causa da morte e não haveria possibilidade de autópsia. Toby sabia que na América quase não se efectuavam post-mortems, e muito menos no caso de Mary, com o velho de posse do corpo. Com deliberada perversidade, espalhar-se-ia por Savannah que um labrego médico do mato, um novo rico - o mesmo arrivista que se atrevera a chamar a si a direcção dos bens dos Darbys, se enganara no seu primeiro diagnóstico. Isso seria mais do que suficiente para desacreditar a sua sociedade com Roy, mais do que suficiente, talvez, para lhe ser vedado o exercício da medicina na Jórgia. Seria um maná do céu para Harvey Bristol, o advogado que acabava de atirar pela escada abaixo, e para Nancy Gregory, noiva do dito advogado...

      Mas, com grande alívio e ainda maior espanto, lembrou-se da firme confiança com que Nancy apoiara a sua decisão de operar. Talvez estivesse apenas a experimentá-lo- e a orar mentalmente para que falhasse... Oh, não podia deter-se agora com semelhantes especulações! Bastava-lhe o facto de ela o ter apoiado como médico.

      - A doente está pronta, Dr. Kent - anunciou Roy, entrando bruscamente com a velha mala de instrumentos de Toby e começando a colocar os utensílios numa mesinha, sem olhar sequer para o velho médico, ignorando-o como se ali não estivesse.

      - É melhor ir-se embora, Dr. Bristol.

      - Voltarei, senhor. Se lhe tocar com o escalpelo, mandá-lo-ei cobrir de alcatrão e de penas!

      - Volte daqui a meia hora. Poderá agradecer-me por ter salvo a vida de sua filha.

      - Meu filho tenciona matá-lo, Kent, e agora não vejo motivo para o dissuadir.

      - Seu filho acaba de ser atirado para a rua, Mathew, por minha ordem - informou friamente Nancy, da entrada da porta. - Não creio que amanhã, ou no dia seguinte, esteja em condições de lutar.

      - Esquece que Harvey é seu noivo?

      - Harvey era meu noivo, Mathew, mas acabo de o rejeitar. No caso de ele estar tão bêbado que não se lembre, importa-se de lhe dizer que a minha decisão é definitiva?

      - Posso perguntar porquê?

      - De manhã receberá uma carta a enumerar as minhas razões.

      Um pouco à parte, Toby viu os músculos do rosto do velho retesarem-se, enquanto a boa educação lutava com a ira. Privado, numa só noite, de uma filha e do dote da Darby, era compreensível que um teimoso da sua têmpera não aceitasse calmamente a perda. No entanto, foi com voz singularmente serena que replicou:

      - O seu futuro diz-lhe respeito, mas o atrevimento deste indivíduo é diferente. Pela última vez, Kent, acata a minha advertência?

      Mas Nancy não deixou Toby responder:

      - Quer deixar esta casa, Matthew, ou terei de dar ordens aos meus criados?

      Matthew Bristol endireitou os grandes ombros e saiu do quarto. Nancy fitou Toby por instantes e encaminhou-se também para a porta:

      - Vou certificar-me de que parte, de facto.

      O estridor de uma porta a bater sacudiu as paredes do quarto e deu-lhe a certeza desejada. Roy, que continuava a dispor os instrumentos na mesa, sorriu a Tobias Kent com o mesmo sorriso que lhe dera firmeza à mão numa dúzia de batalhas difíceis.

      - Pelo que sei dos Bristols, o velho Matthew estará aí com um grupo de linchamento, ao nascer do dia.

      - Ao diabo o velho Matthew! Porque correu a Nancy com o filho?

      - Há muito tempo que desisti de compreender as razões de minha irmã. Não bastará que esteja do nosso lado, pro tem?

      - Com certeza que basta! Chama o Billy, sim?

      Temos de andar com isto... depressa!

      Pouco mais de um quarto de hora chegou para completar os preparativos. Agora, com Billy no seu lugar habitual - as duas mãos abertas como maciças raízes negras, para conterem e segurarem a carne da paciente quando da primeira mordedura do aço - e Roy, tenso, no outro lado da mesa, com as primeiras compressas na palma de uma das mãos, Toby debateu-se com a familiar relutância em começar.

      Olhou pela última vez para Nancy Gregory, paciente e imóvel arcanjo atrás do clarão das velas, e aceitou a confiança do seu aceno de cabeça. Escutou uma vez mais o silêncio pesado, interrompido apenas pela respiração assustada dos escravos domésticos, reunidos, como receosos fantasmas negros, em todas as escadas e patamares. Por fim baixou os olhos para o escalpelo que tinha na mão e pensou que precisaria de toda a sua força de vontade para o obrigar à primeira união vermelha com a carne de Mary Bristol.

      No mesmo instante, o escalpelo moveu-se como se os dedos que o seguravam recebessem o impulso de um cérebro independente do seu, o aço tocou na pele à direita do umbigo e desceu, num arco brilhante. Tobias Kent viu os músculos enovelarem-se na angústia do golpe e ouviu o grito sufocado da rapariga narcotizada, que arqueou as costas ao sentir a mordedura implacável da lâmina.

      Ouviu esse grito repetir-se numa dúzia de gargantas, nas profundezas do vestíbulo às escuras, quando os escravos domésticos, considerando sua a agonia, gemeram e cambalearam nas garras de um medo mais velho que a primeira recordação do homem. Levantou os olhos apenas uma vez e encontrou o olhar de Nancy, mas não leu nada nele, nem sequer piedade. Depois a própria Nancy se sumiu na obscuridade que engolira os outros. A partir daquele momento, deixava de ser Tobias Kent, sujeito às leis e às paixões dos seus semelhantes, para se transformar até ao fim da operação, numa máquina que trabalhava a toda a velocidade para salvar uma vida.

      Quinze centímetros de carne haviam-se já separado sob a lâmina e revelado, branca e brilhante, a aponevrose subjacente.

      - O revestimento do rectus abdominis - anunciou Roy, sereno como um professor de anatomia, aplicando dextramente as compressas, para conter o sangue dos vasos seccionados. - Cortas os músculos?

      - Separaremos, antes; o recto corre longitudinalmente.

      O escalpelo, rolando-lhe entre os dedos a compasso com o levantar das compressas, embebeu-se outra vez na ferida, para abrir o revestimento exterior dos músculos. Uma protuberância de tecido contráctil surgiu entre a abertura, como a polpa de um fruto a estalar de turgidez. Servindo-se, agora, do cabo do escalpelo, Toby começou a separar as fibras musculares, tão rapidamente quanto ousava. No fundo da ferida surgiu uma veia de paredes finas, azulada e túrgida de sangue. Os dedos hábeis do cirurgião afastaram-na do campo operatório e voltaram a lâmina, para o próximo e mais perigoso golpe.

      - O profundo epigastro - anunciou Roy, com um par de retractores em forma de ancinho sobre a ferida, à espera de que Toby lhe acenasse para prender e separar as fibras paralelas.

      - Felizmente estava onde devia estar... Cortaremos a partir daqui.

      Outro golpe, e os retractores podiam começar o seu trabalho. Toby arriscou ainda outro corte, consciente de que o peritoneu se encontrava agora mesmo debaixo do aço e de que uma pressão errada da lâmina penetraria nos órgãos vitais subjacentes e arruinaria a operação antes de, a bem dizer, estar começada. Roy colocou-lhe uma compressa na mão e Toby enxugou os últimos resíduos de sangue, sentindo invadi-lo uma onda de satisfação ao verificar que o primeiro obstáculo fora vencido: calculara a pressão do escalpelo com uma exactidão infinitesimal. Ali, no fundo da incisão de quinze centímetros, a brilhar como um fiapo de luar enevoado, estava a parede branca do peritónio - a membrana tensa que encerra a cavidade abdominal -, única barreira que o separava agora da área a operar.

      - Branca, como deve ser - disse Roy. - Quer dizer que, por enquanto, não há hemorragia de importância.

      Toby acenou, com gravidade, enquanto o escalpelo - automaticamente, agora - alargava a ferida. Se não havia hemorragia considerável na zona falopiana, aumentavam as probabilidades de restabelecimento de Mary Bristol. Mas os conhecimentos dos cirurgiões eram ainda aflitivamente incompletos naqueles ciclos misteriosos da gestação tubária, e era possível que o feto - de cuja existência não podia duvidar - descesse para o seu lugar de desenvolvimento normal no momento exacto em que lutava para o isolar. Afastou semelhante pensamento e retirou o escalpelo da cavidade.

      Um fórcipe, manejado com a possível delicadeza, deixou fugir a membrana esbranquiçada, na primeira tentativa. Pela centésima vez, Tobias Kent desejou possuir os instrumentos mais delicados que admirara no museu cirúrgico de Edimburgo, embora aquela tosca pinça de aço tivesse feito bom serviço durante a guerra. À segunda tentativa mordeu firmemente o peritónio, enquanto o escalpelo abria o ponto de entrada inicial. A membrana abriu-se como a casa de um botão e Toby susteve a respiração, à espera da hemorragia que não se verificou. - Desvia os retractores, por favor.

      O aço alargou a abertura, o suficiente para permitir a entrada de dois dedos, um canalete através do qual poderia cortar com facilidade. Roy ajudou, enfiando as pontas curvas de ambos os retractores nas arestas da ferida e separando-as a compasso com o escalpelo. Quatro dedos, e por fim toda a mão, estavam agora na cavidade abdominal. Guiando-se pelo tacto, sabendo que tinha de identificar o ponto de ataque apenas com esse sentido, Toby permitiu-se o mais cauteloso dos sorrisos. Não tinha dúvidas quanto ao órgão firme, em forma de pêra, que acabava de reter entre o polegar e o indicador.

      - Útero normal. Roy respirou fundo:

      - Já o apanhaste?

      - Tenho-o entre os dedos. Agora aproximo-me da trompa propriamente dita...

      Da grossura de um lápis, e colocada tão normalmente como o pormenor de um diagrama num livro de estudo, a trompa de Falópio serpenteou-lhe sob os dedos, enquanto a exploração se efectuava em sentido ascendente, em direcção ao ovário direito. Naquele instante, Toby viu Matthew Bristol rir sarcástica e triunfantemente e quase aspirou o fedor acre da barrica de alcatrão. Mas logo os seus dedos encontraram o que procuravam, no ponto exacto que localizara no primeiro exame: uma pequena turgescência redonda no tecido, um leve, mas definido, enfraquecimento na textura da trompa que continha o feto. O quadro era completo, mas Tobias Kent não ousou traduzi-lo por palavras.

      - Algum sinal de ruptura?

      - Um leve gotejar, apenas. Mas tenho a certeza de que a hemorragia estava para breve, talvez para de manhã.

      - Podemos separá-la?

      - Podemos tentar.

      E acrescentou, dirigindo-se a Billy.

      - Aguenta, Billy; está quase a acabar.

      O liberto sorriu-lhe e Toby começou a puxar a secção da trompa para a incisão. Era uma espécie de código a que obedeciam havia anos, quando uma operação estava perto do apogeu, embora Billy não precisasse de tal encorajamento. Toby vira-o prender um homem com o dobro do seu tamanho no torno daqueles dez dedos abertos, deixando-o debater-se à vontade acima e abaixo do campo operatório, enquanto a ferida se mantinha imóvel como se fosse de pedra.

      Ainda aninhada nos seus dedos, a zona turgescente da trompa libertou-se, por fim. Trazida para a ferida aberta, comprovou o seu diagnóstico insofismavelmente, embora a distensão do canal falopiano não fosse maior que um pequeno ovo. Como calculara, o tecido atingira já o ponto de ruptura. Debaixo dos seus olhos começou a formar-se um pequeno coágulo em redor do foco do enfraquecimento, sinal certo de que o sangue que latejava por baixo ansiava por sair. A distensão era superior ao que o tecido podia suportar.

      - Sutura, por favor. Agora estamos quase a acabar.

      - Passaram apenas vinte minutos.

      Toby agradeceu com um aceno de cabeça, vagamente consciente de que a informação partira de Nancy. Parecera-lhe que decorrera uma hora, pelo menos, desde que uma força independente da sua vontade guiara o escalpelo no primeiro golpe.

      Roy passara-lhe já para os dedos uma agulha curva, de aço, com um fio de sutura pendente do buraco. Levantou a trompa e, enquanto Roy a sustinha entre os dedos, introduziu o aço curvo sob ela, com o cuidado de passar bem por baixo da artéria e da veia que ali existiam.

      - Corta e ata, por favor.

      Um fio de sutura isolaria a trompa entre a minúscula gravidez e o útero; outro cingiria o ligamento largo por debaixo da mesma, permitindo-lhe extirpar completamente a turgescência. Toby aguardou com ar aprovador que Roy completasse a atadura. Os dedos do cirurgião mais novo moviam-se com uma segurança lenta, atando devagar, com receio de que a sutura lacerasse o tecido distendido. O escalpelo entrou de novo em acção, cortando ao longo do cimo do ligamento, sob o canal, separando-o habilmente do seu perigoso apoio. Um segundo fio de sutura estancou a pequena hemorragia, o escalpelo cortou o tecido abaixo do primeiro nó e, liberta por aqueles golpes finais, toda a estrutura ficou na mão de Kent, que soltou um fundo suspiro e a depositou na bacia, ao lado da mesa. Agora que saíra do corpo que ameaçara, parecia incrível que objecto tão minúsculo pudesse constituir um perigo mortal tão grande.

      - Tira os retractores. Podemos suturar.

      - Eu fecho a ferida - ofereceu-se Roy. - É melhor regressares a Savannah, Toby. Embora tenha sido uma obra-prima no género...

      Só então Toby tomou consciência do que o rodeava - dos gemidos exaustos de Mary, das contusões que lhe marcavam a brancura das coxas e dos braços, nos pontos onde a carne se debatera com as correias que a prendiam, e do sangue que salpicava os lençóis do campo operatório. Daí, os seus olhos avançaram para as velas amontoadas e, depois, para o rosto ansioso de Nancy. Ao ler o medo nos seus olhos, Tobias Kent sentiu os seus próprios temores ganharem vida, ao mesmo tempo que o seu cérebro identificava certos sons que quebravam o silêncio fora do quarto. Era um rumor animal, confuso, mais violento que os lamentos dos escravos domésticos, fora da porta - uma crescente trovoada de vozes que parecia ameaçar a casa de todos os lados. O estilhaçar de uma janela, no andar de baixo, e a réplica imediata de uma pistola abafaram por momentos o clamor.

      Roy, que continuava a suturar rapidamente, comentou, na pausa breve:

      - Matthew Bristol andou mais depressa do que eu imaginava.

      - Queres dizer que pretende cumprir a ameaça?

      O vulto do capitão Félix Pagnol, recortado no vão da porta, respondeu a Toby antes mesmo de o francês falar. Aparentemente, esperava havia alguns momentos. Kent admirou uma vez mais o aprumo do indivíduo, quando entrou no aposento.

      - A casa está cercada, doutor.

      - Como puderam vir tão depressa?

      - A notícia do estado da paciente espalhou-se rapidamente por Savannah. Ao princípio, a multidão compunha-se apenas de vizinhos curiosos e de um punhado de rufiões, mas depois Bristol regressou com os seus homens e começou a berrar as suas acusações - como se diz? - à tue-tête. - O francês encolheu os ombros, como quem não liga importância aos pormenores, e prosseguiu: - Agora, como vê, exigem uma vítima. Será preciso recordar-lhe que nada agrada tanto aos jorgianos como besuntarem um estrangeiro de alcatrão quente?

      Outro estilhaçar de vidros sublinhou as suas palavras. Pagnol fez uma vénia e acrescentou, afastando-se:

      - As balas detê-los-ão por uns tempos, mas não definitivamente. - Desta vez duas pistolas dispararam quase em uníssono e os tacões do capitão ressoaram na escada.

      - Sutura completa - anunciou Roy. Ignorando, com um esforço de vontade, o alarido, Toby voltou para junto da mesa quando Billy, a um aceno de Roy, soltava as correias que ainda prendiam a operada. Mary Bristol, com a cabeça a oscilar de um lado para o outro, pareceu sorrir-lhe do limbo da morfina, que ainda espalhava as suas bênçãos por todo o seu corpo. Toby notou que o pulso era fraco, mas firme, e que Roy cosera com tanta perícia como qualquer dona de casa. Graças à sua rapidez e à ausência inesperada de hemorragia, Mary tinha muitas probabilidades de se refazer - se não se verificasse a infecção que tantas vezes desafiava aquele tipo de cirurgia.

      - Posso ajudar?

      Toby inclinou-se levemente, quando Nancy se aproximou e fez a pergunta em voz baixa. Com a ajuda de Billy, a segurar a cabeça inquieta, transferiram suavemente Mary da mesa para a cama e Roy cobriu-a logo de cobertores aquecidos.

      - Vou lá abaixo falar com aqueles estabanados, Toby - anunciou o jovem Darby. - Qualquer coisa me diz que os conheço a todos, até ao último bêbado das docas.

      - Não achas que acabarão por dispersar?

      - Não sem uma boa ensaboadela verbal, pelo menos. Odeiam-nos aqui por muitas razões - principalmente, suponho, por possuirmos a maior parte do dinheiro de Savannah. Os idiotas julgam que dormimos com o ouro debaixo do travesseiro! Claro que nada lhes agradaria mais, esta noite, do que um assalto cheio de virtude...

      - Onde está a ronda, a esta hora?

      - Onde geralmente se encontra: apoiada aos porretes, no beco mais próximo, e a pedir aos céus que façamos o seu trabalho.

      - Nesse caso acho melhor descermos os dois. Mas Nancy bloqueara já a entrada da porta.

      - Roy tem razão; a tarefa é dele, não sua.

      - É por mim que eles berram.

      - E fui eu que o apoiei quando insistiu na operação.

      Toby olhou-a com curiosidade, consciente, pela primeira vez, do novo tom da sua voz.

      - Como por enquanto sou eu que dirijo a companhia e a fortaleza Darby está ameaçada, compete-me acalmar os descontentes.

      - E apanhar um tiro ao tentá-lo?

      - Confesse que isso arrumaria maravilhosamente a nossa disputa - volveu Toby, aproximando-se da mesa onde ainda se encontravam os instrumentos cirúrgicos e a bacia com a secção de trompa que extirpara, cobrindo a última com uma toalha e voltando para a porta. - Infelizmente, não espero levar nenhum tiro esta noite... - declarou, obrigando Nancy a dar-lhe passagem - se convencer o velho Bristol a ouvir-me.

      Afastou-se sem lhe dar tempo a falar. Na escada, pressentiu a pressão da turba comprimida junto do pórtico - uma ameaça tão tangível como a mancha branca dos rostos no jardim fronteiro da casa, avistados numa perspectiva de pesadelo através da bandeira da porta. Desceu a escada a dois e dois, mas estacou ao deparar com Martha no patamar.

      - Não te deixarei sair, Toby!

      Colocou a bacia no pilar do corrimão e olhou-a de frente. Se estava com medo, o seu rosto não o traduzia; nele lia apenas um desejo assaz familiar. Numa fracção de segundo compreendeu que a sua retirada, ao princípio da noite, fora estratégica: com Nancy presente, Martha Darby representaria um fraco segundo papel. Agora, como senhora da sua própria casa, podia retomar a autoridade.

      - Lamento, mas não há outro remédio, Martha.

      - Sam mandou um escravo a Sangaree. Daqui a meia hora estarão aqui vinte homens.

      - E se, entretanto, incendiarem a casa?

      - Não se atreverão. Além disso, as pistolas mantê-los-ão à distância.

      Bruscamente, sentiu-se envolvido nos seus braços, aprisionado contra a balaustrada, enquanto a sua boca, com toda a sedução antiga, se colava à dele e suplicava, entre beijos.

      - Não posso perder-te, preciso muito de ti! Ajudar-te-ei como ela jamais poderia fazer!

      - Roy está lá em cima, Martha! Queres que te ouça?

      - Não me importa que me ouçam, seja lá quem for! - gritou, fora de si. - Tens de compreender. Fomos tu e eu desde o princípio, só tu e eu! Acredita, Toby Kent, seremos dois da mesma espécie até ao fim, nós dois! Deixa esses ricaços enterrarem os seus próprios mortos.

      - Esta tarde falaste de maneira diferente, Martha.

      - Esta tarde não fui sincera.

      - Alguma vez o és?

      Libertou-se com força, tão violentamente que Martha quase se estatelou no patamar, com a roda do vestido aberta como uma nuvem cor-de-rosa. Mesmo assim, Toby teve consciência do seu fascínio e da cólera concentrada no seu olhar.

      - Não compreendes, Toby? Não compreendes que ela pretende apenas servir-se de ti?

      Tobias Kent agarrou na bacia que pousara no corrimão e correu para o vestíbulo como se não a ouvisse. Parou, receoso de que o seguisse, mas ao ouvi-la subir a escada dirigiu-se à sala sombria, iluminada aqui e ali pelo clarão de um dos archotes do jardim. Acendeu uma vela e, protegendo a luz para não ser visto do exterior, levantou a toalha da bacia.

      A secção extirpada, de uma lividez de cera à luz da vela, parecia agora singularmente inerte, mais semelhante a uma peça de museu que a uma ameaça à vida. As suas mãos abriram num gesto rotineiro o escalpelo que trazia sempre na algibeira e, com um movimento rápido, a lâmina cortou ao comprido o pedaço de trompa e revelou a causa da turgescência em forma de ovo. Toby examinou-a atentamente, sentindo as feições distenderem-se num sorriso.

      Matthew Bristol reunira aquela turba como um pai vingador; era justo que a dispersasse como médico! Cobriu a bacia e voltou ao vestíbulo.

      Gabriel, com uma bota encostada à ombreira da porta e o corpo oculto na curva da parede, fez-lhe sinal para retroceder, sem se voltar. Toby olhou por cima do ombro do amigo e através do vidro partido, que lhe servia de apoio de arma. Recortada à luz dos archotes, a multidão aproximara-se mais, embora não se atrevesse ainda a invadir a propriedade. Claro que as armas apontadas lhes inspiravam respeito.

      - Bristol está lá fora?

      - O pai e o filho - respondeu Gabriel. - Esfalfam-se a berrar por acção. Metade daquela malta são escravos deles; o resto, como de costume, apenas curiosos. - Um archote voou pelo ar, naquele momento, e caiu no jardim a um escasso metro do pórtico. - Começam a melhorar a pontaria. Graças a Deus esta tarde choveu!

      - Se um desses archotes cai no pórtico,- ateia um incêndio. Não seria mais simples se eu fosse lá fora?

      - Só depois de eu meter uma bala no corpo do Harvey. Conhece a minha pontaria, por isso não sai de trás dos outros.

      - Pede ao velho Bristol que avance, diz-lhe que quero falar-lhe.

      - Achas que te ouvirá agora?

      - Diz-lhe que a filha se curará e que lhe explicarei porquê.

      Gabriel chegou-se cautelosamente para a frente, até ficar com o nariz junto do vidro partido, e perguntou:

      - Ouviste, Sam?

      - Experimenta, Gabe - replicou o vozeirão do administrador, da janela seguinte, embora Toby mal lhe distinguisse o corpanzil na escuridão. - Talvez ele ouça.

      - Que pensa você, Pagnol?

      A voz do francês veio de mais longe. Toby calculou que se encontrava na mais próxima das duas altas janelas da biblioteca.

      - Só se insistirem. Contava matar o boi eu próprio; tenho-o agora mesmo na mira da minha arma.

      - Como sabe que é ele?

      - Tem um archote por detrás. Além disso, reconheceria aquela tête de boeuf mesmo às escuras - Pagnol riu-se, sem perder a calma. - Diga-lho, Dr. Kent, e ordene-lhe que avance, se não quer cair...

      A multidão mergulhou em silêncio quando Toby gritou a ordem. Esperou, sem respirar, desde uma avançada colectiva a uma rajada de tiros, e quando Bristol respondeu mal pôde crer nos seus ouvidos.

      - Vai sair, Kent?

      - Só se você avançar primeiro.

      Para espanto seu, o velho médico separou-se da multidão e entrou, calmamente, no jardim. Toby afastou a mão de Gabriel, que procurava detê-lo, e saiu para o pórtico, ao seu encontro.

      - Está na mira de três armas, Dr. Bristol.

      - Não cairão na asneira de disparar. Virá connosco sem resistência?

      - Se assim o desejar...

      A turba soltou um rugido, como o animal que pressente sangue, e o respeito de Toby pelo velho médico cresceu ao vê-lo erguer a mão, irritado, e mandar os seus homens retroceder até à demarcação do jardim.

      - Terei de ir ter consigo e trazê-lo pelo colarinho?

      - Falaremos primeiro - respondeu-lhe Toby. - Depois irei... se ainda me quiser.

      - Já disse tudo quanto tinha a dizer!

      - Mas não me ouviu. Não acredita que a sua filha tem probabilidades de se salvar?

      - Operou-a, e eu adverti-o das consequências.

      - Informei-o das minhas razões para operar. - Toby baixou a voz e inquiriu: - Quer ver a prova?

      Qualquer coisa na sua voz penetrou na carapaça de arrogância de que o velho se revestira, pois deu uma longa passada, e depois outra, ao longo do caminho do jardim. Toby susteve de novo a respiração e aguardou.

      - É uma armadilha, pai! Obrigue-o a ir ter consigo!

      A voz de Harvey Bristol soou pastosa, devido ao álcool, e o traga-moiros atreveu-se a aparecer a descoberto. Ninguém se mexeu, na multidão quando a pistola de Gabriel disparou, num aviso. O jovem Bristol girou nos calcanhares e levou a mão ao sítio onde tivera o chapéu.

      - A próxima bala acertará cinco centímetros abaixo - gritou Gabriel, em tom casual. - Recua, agora, ou quer um tiro no focinho?

      Harvey Bristol ficou um instante imóvel, soergueu uma das mãos, para fazer sinal à multidão, mas em vez disso levou-a à testa. A peruca voara com o chapéu, e a sua cabeça, rapada como a de qualquer condenado, dava-lhe um aspecto singularmente infantil, apesar da sua corpulência. Alguém soltou uma gargalhada abafada, na turba, e Toby sentiu a ameaça mudar de cor. Uma dúzia de mãos puxaram Harvey Bristol para o santuário da praça.

      - Bristol, não nos amaldiçoámos já o suficiente, esta noite? - perguntou Toby, quando o silêncio se restabeleceu. - Você é médico... e creio que honesto. Importa-se de proceder como tal e de vir a este pórtico?

      O velho Bristol abanou, fatigado, a cabeça, como um mastim preso pela trela, e em seguida encaminhou-se para o pórtico.

      - Mostre-me a prova... se a tem.

      Toby saiu do jardim, protegendo a bacia de uma dúzia de olhos curiosos. Só o pai de Mary Bristol devia ver o que a toalha levantada revelava.

      Apesar da luz fraca, a identidade do homúnculo contido na bacia era insofismável - a cabeça excessivamente grande, embora mais pequena que a de um dedo mínimo, e os membros tão minúsculos que eram, a bem dizer, inexistentes. Era uma gestação precoce, talvez a mais precoce que Toby já vira, mas iniludível, no ninho da trompa onde se gerara e quase custara a vida à mãe.

      - Como vê, sua filha estava grávida - declarou Toby, em voz baixa, mas firme. - Só uma intervenção cirúrgica poderia salvá-la. Foi arriscado, sem dúvida, mas não concorda que valeu a pena correr o risco?

      Bristol sacudiu a cabeçorra uma vez mais, como um mergulhador a emergir dos abismos, escancarou os olhos e fitou os de Toby. Apesar das circunstâncias, era demasiado orgulhoso para implorar piedade, no entanto foi com voz quase irreconhecível que murmurou:

      - Isto não deve passar daqui.

      - Também sou médico. Não o acredita, agora?

      Bristol fitou-o um momento, inflexível, girou nos calcanhares e dirigiu-se à multidão, em tom frio:

      - Houve um engano; minha filha curar-se-á. É isso apenas que me interessa, agora.

      Toby sorriu intimamente. Era próprio de Bristol não dar a mão à palmatória no que se referia ao erro, mas podia conceder-lhe essa vantagem.

      - Guarda o alcatrão para outra oportunidade? - perguntou-lhe, irónico.

      - Vão todos para casa! - berrou o velho médico. - Já perturbaram bastante a paz, esta noite.

      O berro com que Harvey Bristol respondeu ao pai, na escuridão, perdeu-se num diminuendo crescente, quando as mesmas mãos de pouco antes voltaram a puxá-lo. Debaixo dos olhos de Toby, os archotes apagaram-se, um a um, e a turba, escorraçada pela voz do seu senhor, começou a dispersar com uma ordem suspeita. Como Gabriel Thacht dissera, os escravos de Bristol estavam bem treinados. Os curiosos que se lhes haviam reunido começaram também a afastar-se quando as lanternas da ronda - surgindo como por encanto de uma rua escura do fundo da praça - fizeram a sua aparição. Ouviu-se uma última série de pragas, uma restolhada quando um cacete atingiu uma cabeça, e depois mais nada.

      Bristol voltou-se para Toby, de olhos baixos, .e o cirurgião notou pela primeira vez o ar alquebrado dos seus ombros caídos e do seu pesado queixo pendente.

      - Como sabe que ela viverá?

      - Venha ver com os seus olhos, senhor.

      - Não lhe agradeço o trabalho desta noite, Kent, e advirto-o de que continuamos a ser inimigos.

      - Nem outra coisa era de esperar, não lhe parece?

      - Posso levar a... a prova?

      Toby estendeu-lhe a pequena bacia e o velho médico apressou-se a ocultá-la nas largas pregas do capote, sempre de olhos baixos.

      - Quer ver agora a sua filha?

      - Já não tenho nenhuma filha... apenas honra.

      Os seus olhos encontraram-se por instantes, depois de Bristol pronunciar a velha divisa. Toby ficou no pórtico, imóvel, enquanto o mais altivo patriarca de Savannah atravessava a praça, de cabeça bem erguida, atrás da multidão que dispersava.

      Não lhe restavam dúvidas de que, ao salvar a vida de Mary Bristol, arranjara um inimigo para toda a vida.

      Tobias Kent subiu apressadamente a escada, esquivando-se às congratulações de Gabriel e de Sam. Félix Pagnol, encostado à ombreira da porta da biblioteca, pareceu adivinhar o seu estado de espírito, pois limitou-se a inclinar a cabeça, numa imperceptível vénia.

      Roy esperava ao cimo da escada.

      - Jubal tem brandy e café na sala do fundo, se quiserem fazer o favor. Creio que bem o mereceram!

      - Pousou a mão no braço de Toby, quando este se encaminhou para o quarto da doente, e acrescentou:

      - Está a dormir. Dido velará até de manhã. Se queres examinar a doente...

      - Estou tão cansado que te confio esse encargo - respondeu-lhe o amigo, a sorrir. - Não será melhor darmo-nos as boas-noites e esperar que o dia de amanhã seja mais calmo que o de hoje?

      - Mais calmo... e muito mais trabalhoso. Ou será preciso lembrar-te de que precisamos de nos sentar com Sam - e os seus livros - na primeira oportunidade?

      - E conferir os conhecimentos de embarque,..

      - E o relatório de Sam de Darbyville...

      - E os meus livros da clínica...

      - E a declaração para o juiz Armstrong.

      Roy sorriu e acrescentou:

      - A Nancy gostaria de discutir o último assunto contigo, agora.

      - Disseste Nancy?

      - Encontrá-la-ás na saleta, à direita. Aconselho-te a ouvi-la com atenção.

      - Não me digas que vai recuar!

      - Como de costume, a minha irmã contará a sua história à sua maneira. - Roy segurou-lhe outra vez no braço e disse: - Desde já, posso, porém, afirmar que tu e eu começámos bem, em Savannah. Os Bristols que nos amaldiçoem à vontade! Esta noite fizeste história cirúrgica e amanhã toda a cidade o saberá. - Hesitou, como se pretendesse dizer mais qualquer coisa, e concluiu: - Agora deixo-te com a Nancy; a Martha espera-me.

      Toby sentiu um aperto no coração. Na barafunda do último quarto de hora quase esquecera Martha e a sua louca confissão, naquela mesma escada. Mas os olhos de Roy estavam limpos de dúvidas quando acrescentou:

      - Não achas estranho que se tivesse ido abaixo, depois do mau tempo?

      Deixou-o, com o mesmo sorriso tranquilo, sem se aperceber do olhar parado do amigo. Este endireitou os ombros, como se se preparasse para enfrentar uma ameaça invisível, e entrou na saleta.

      Nancy estava junto da chaminé, com um braço apoiado na consola e a bela cabeça cor de cobre pensativamente pendente. Não se mexeu quando ele entrou, embora Toby adivinhasse, pelo estremecimento das suas costas e dos seus braços, que se apercebera logo da sua presença.

      - Continuamos a nossa disputa, Mrs. Gregory? - Levantou, então, os olhos, sob os quais havia um semicírculo arroxeado, de fadiga. No entanto, apesar do olhar desolado que lhe lançou, nunca lhe parecera tão encantadora. - Não me lembro onde a interrompemos...

      - Nem eu, doutor.

      - Roy disse-me que tinha um recado para mim.

      - Serei breve. Como verificou, reneguei o meu noivo, Harvey Bristol.

      - Seria impertinência felicitá-la por isso?

      - Seria. Esta noite viu o seu pior aspecto.

      - A esse respeito reservo a minha opinião, Mrs. Gregory.

      - As razões por que reneguei Harvey Bristol só a mim interessam; no entanto, o doutor tem o direito de saber que não se tratava de um casamento de amor. O nosso... o nosso contrato estabelecia um pagamento monetário imediato da minha parte. - Levantou a mão, num gesto arrogante, e acrescentou: - Pagamento que estava disposta a fazer de boa vontade, em troca do nome de Bristol.

      - Porque mo diz?

      - Porque não tenho, agora, possibilidade de cumprir essa obrigação. Decidi desistir da minha acção contra você.

      - O juiz Armstrong sabe?

      - Será informado por carta. Amanhã comparecerei no armazém para... para aceitar qualquer tarefa que queira confiar-me.

      Até ali a sua voz igualara a dela em frieza, falara maquinalmente, enquanto o seu cérebro procurava compreender o sentido das suas palavras. Agora, estendeu-lhe a mão e murmurou:

      - Obrigado, Nancy.

      - Por enquanto, nada tem a agradecer-me, doutor.

      - Está a dar-me uma oportunidade de provar o que valho. Não julgue que não lhe fico grato.

      - Trata-se de uma trégua, Dr. Kent - replicou, ignorando a mão estendida. - Não lhe emprestemos o colorido do sentimento.

      - Não poderemos ser amigos, enquanto durar?

      - Seremos associados comerciais, mais nada.

      - Mas, Nancy...

      - E as nossas relações não incluem familiaridades.

      Tobias Kent viu a mão cair, arrastada pelo seu próprio peso morto, e sorriu melancolicamente.

      - Porque me dá, então, uma oportunidade?

      - Esta noite compreendi que a merecia.

      - Mas ainda há uma hora dizia...

      - Sou humana, doutor... embora tenha algumas razões para pensar o contrário. Mudei de ideias, até certo ponto.

      - Estou em experiência. É isso?

      - Esteve em experiência hoje... a bordo da barcaça. E esta noite outra vez, na galeria, uma terceira vez quando desafiou Matthew Bristol e uma quarta quando o enfrentou no pórtico. Devo dizer que se saiu das quatro experiências com algum crédito.

      Toby fitava-a avidamente, à espera de descobrir-lhe no rosto pelo menos a sombra de um sorriso. Mas o perfil pálido de Nancy Gregory tinha a rigidez da máscara de um actor.

      - Incluindo a da barcaça?

      - Incluindo a da barcaça, doutor.

      - E a nossa conversa na galeria?

      - Recusou o meu suborno. Posso confessar-lhe agora que se tratava de um engodo puro e simples... Permite que lhe apresente desculpas pelo subterfúgio?

      Toby sentiu-se corar e ficou furioso.

      - Parece que tinha pouca fé em mim - murmurou, dominando-se.

      - Compreenda-me bem, continua a ser um estranho no nosso meio. Isto não é de maneira nenhuma um gesto de boas-vindas, mas tão-somente uma moratória. Continuo tão convencida como antes de que falhará, mas sei, pelo menos, que é honesto - e corajoso -, assim como obstinado. Pode provar que me engano, se quiser.

      - Por outras palavras, tenho dois anos inteiros para me enforcar!

      - Dois anos inteiros, Dr. Kent. Não lhe desejo sorte.

      - Deseja sinceramente ajudar no armazém?

      - Garanto-lhe que achará os meus conhecimentos úteis.

      - Não será um pouco irregular para uma senhora da sua posição...

      - A minha situação em Savannah depende absolutamente da minha bolsa - interrompeu-o Nancy. - A nossa aristocracia do após guerra devia ponderar nesse facto.

      - Como os Bristols ponderaram?

      - Exactamente. Matthew Bristol é um teimoso do antigo regime, mas não é idiota nenhum. Sabe muito bem que o exercício da sua profissão, aqui em Savannah, mal chegará para manter as suas propriedades, mesmo que a produção regresse ao nível de antes da guerra. Naturalmente, fará tudo para o arruinar; quer o campo médico só para si.

      - Bem sei.

      - E sabe também que eu podia ter-me aliado com ele e, em vez disso, escolhi a Companhia Darby?

      - Posso traduzir essa última observação, para seu benefício?

      - As minhas observações, e a minha lealdade, não precisam de tradução!

      Quase gritavam, agora, enquanto os olhares de ambos se fulminavam.

      - Não se iluda, Mrs. Gregory - replicou Toby, fazendo um esforço para se dominar. - Os seus motivos são mais complexos do que julga! Posso diagnosticá-los, como um bom médico?

      - Continue; creio que o mereço.

      - Merece-o e muito! Voltemos à barcaça. Entrou a bordo por imperativo dos mais baixos motivos femininos: curiosidade e desejo de representar. Esta noite voltou a representar, ao tentar subornar-me para abandonar a companhia. Como hei-de saber que não representa agora, também?

      - Admito tudo isso, menos a parte final.

      - As senhoras da sua espécie têm uma desvantagem, Mrs. Gregory.

      - Que sabe você das senhoras da minha espécie?

      - Mais do que imagina, talvez. Sei, por exemplo, que toda a sua vida foi um ritual, uma representação tão complicada e perfeita que acabou por estontear a actriz.

      - Agora sou eu quem exige que traduza!

      - Julga que cometeu um acto de generosidade ao desistir da demanda, mas a verdade é que desiste por não ter outro remédio. Depois desta noite, era impossível.

      - Acredite que me seria fácil vencê-la.

      - Essa é outra pecha da aristocracia, Mrs. Gregory: acreditar que é imortal e invulnerável. A certeza cega de que lhe basta chamar um juiz, ou armar um exército, para as coisas correrem como deseja... A nossa revolução provou, porém, que quando se trata de exércitos nem só a aristocracia os pode armar... Estamos a construir, aqui, um mundo novo, a partir dos alicerces, e eu faço parte desse mundo e estou cá para ficar. A senhora sabe-o, no seu coração, e por isso se afastou para me deixar passar!

      - Jamais me afastarei, doutor!

      - Mas começará a trabalhar para mim amanhã, nas minhas condições e não vice-versa! Não pode negar essa promessa.

      Viu-a corar intensamente e perguntou-se por que não lhe causava a sua cólera maior prazer.

      - Talvez devamos despedir-nos agora, sem irmos mais longe. Amanhã espera-nos um longo dia, o primeiro de muitos, creio. Sobra-nos que fazer e falta-nos tempo.

      - Não pensei que exultasse com isso - redarguiu, em voz que era pouco mais que um murmúrio rouco.

      - Provavelmente será mais útil nos livros... a não ser que tal trabalho lhe pareça indigno de si.

      - Disse-lhe que escriturava os livros de meu pai. Porque não hei-de escriturar os seus também?

      - Serão precisas viagens aos campos, na altura das colheitas. Contarei com a sua companhia... e os seus conselhos.

      - Estarão às suas ordens, quando os pedir.

      - Tudo correria melhor se fôssemos amigos.

      - Como podemos ser amigos, agora?

      - A verdade magoa assim tanto, Nancy?

      Viu-a estremecer, ao ouvir a pergunta, e atreveu-se a explorar a vantagem. Agarrando-a pelos ombros, com força, obrigou-a a encará-lo mais uma vez, a mergulhar o seu olhar no dele num longo momento escaldante.

      - Quis-me naquela barcaça, tanto como eu a quis a si. Da próxima vez que me quiser, será franca a esse respeito?

      Calculou que lhe bateria, se pudesse, e prendeu-lhe os braços ao longo do corpo, deixando-a debater-se por instantes.

      - Não se assuste; não tenho a mínima intenção de a beijar nem de lhe impor a minha amizade, se não a deseja. Pode até bater-me, se isso a alivia. - Largou-a, então, e sorriu-lhe, à espera da agressão que não se verificou.

      - Obrigada pelo cavalheirismo, doutor.

      - Parta com a última palavra, se quiser; concedo-lhe essa satisfação.

      - Qual é a sua última palavra, se não é impertinência perguntar?

      - Apenas isto, Nancy: às vezes, ser uma senhora é tarefa solitária e triste. Achará mais agradável estar viva.

      - Será essa a minha recompensa por aderir à Companhia Darby?

      - Descobri-lo-á com o tempo. Aguardarei o seu despertar com interesse.

      Nancy Darby endireitou-se com arrogância e volveu:

      - Escriturarei os seus livros, doutor, corrigirei a sua ignorância nas nossas plantações... e no salão; mas ignorarei a sua filosofia e ignorá-lo-ei a si.

      Saiu de cabeça bem levantada, e Toby inclinou a sua e sorriu-lhe, com o seu bom humor intacto. Como uma senhora, Nancy Darby Gregory tivera a última palavra, como era de bom tom. Como homem, obrigara-a a abandonar a liça. Essa vitória lhe bastava, por enquanto.

     

     AS PRIMEIRAS CONTAS

      O aroma das folhas do primeiro tabaco perfumava ainda o ar quando o Dr. Tobias Kent, presidente da Companhia Darby, parou o cavalo à porta do armazém. Agora que a última barrica a abarrotar fora transportada para bordo da última barcaça, agora que o último trabalhador assinara o livro de ponto de Sam Hoyt, o cais de Darbyville regressava à modorra habitual, e assim continuaria até aos preparativos para a sementeira do próximo mês. Aspirou, agradecido, aquela paz, de mistura com o cheiro embriagador do tabaco - única recordação de que aqueles armazéns desolados tinham parecido, na véspera, outros tantos cortiços, enquanto se embalava a última colheita.

      Ouviu um murmúrio de vozes, vindo do armazém maior, e calculou que os trabalhadores de Savannah formavam ainda bicha defronte da mesa de Sam, para receberem os salários. Erguendo-se nos estribos, pôde contar, rio abaixo, a longa fila de barcaças, quase indistintas na névoa primaveril. Tinham entrado no canal naquela manhã, a gemer com a sua preciosa carga: dezasseis ao todo, unidas proa com popa... Sim, fora um bom ano em Darbyville!

      Dentro de poucas horas aquelas dezasseis barcaças começariam a atracar nos ancoradouros da doca Darby, em Savannah, sob as janelas do armazém. Havia algum tempo que era costume de Nancy Gregory contar as embarcações que entravam no porto, enquanto trabalhava à secretária, junto das janelas abertas. Quais seriam as suas emoções quando visse chegar aqueles sinónimos de ouro?

      Certamente não duvidara do seu afã, nem da sua dedicação, enquanto aquela colheita crescia. Com o vestido grosseiro que conhecia tão bem e as pernas protegidas por botas altas das acres nuvens de pó dos campos, acompanhara Sam Hoyt passo a passo, à medida que as intermináveis filas de montículos eram sachadas e plantadas. Quando a inevitável bicha-amarela aparecera, em Junho, gemera tão eloquentemente como o próprio Sam e cacarejara, como ele, quando bandos de perus foram enxotados para os carreiros, a fim de devorarem os intrusos.

      Acompanhada de um Félix Pagnol levemente intrigado, ocupara, com outros vigias, numa semana de noites enluaradas, uma das altas plataformas de observação, esquadrinhando cada palmo daquela terra escura, à procura das borboletas larvares, que traíam ainda a presença de bichas-amarelas entre as plantas. Um grupo de trabalhadores do campo, de lanterna em punho, percorrera, nessa semana, os carreiros, para expurgar os últimos vestígios da peste. Mas, durante algum tempo, as enormes borboletas brancas, cujas asas eram simples arabescos translúcidos à luz do luar, tinham troçado de tal azáfama. Nancy, incitando os trabalhadores da sua plataforma tão implacavelmente como qualquer capataz, recusara-se a regressar a Savannah enquanto não desaparecera o último fantasma branco.

      - Mais, chérie...

      - Va-t-en! J'insiste.

      - Mas estes homens trabalharão de igual modo se estiveres a dançar no baile de Merrick...

      - Não penso em danças, Félix, enquanto a plantação está na terra. Já devias saber que o tabaco é tão exigente como uma amante.

      Toby ouvira esta conversa uma noite, ali, na sombra de um telheiro de secagem, antes de se afastar para gritar com os homens. Quase convencido de que o francês enlaçara a cintura de Nancy, esforçara-se por ignorar a descoberta e a onda nauseante de ciúme que o invadira. No fim de contas, Nancy Gregory era, agora, demasiado valiosa para a Companhia Darby, valiosa de uma maneira que não tinha qualquer relação com o seu sexo.

      - Claro que sei podar, doutor. Sou até capaz de treinar todos os novatos que achou conveniente recrutar na cidade.

      - Preferia que ficasse no armazém, Mrs. Gregory. Os livros...

      - Deixe lá os livros. Durante a próxima semana pertencerei aos campos.

      Provara à saciedade a afirmação, quando as plantas atingiram altura suficiente para a poda - uma beliscadela no gomo que requeria mão exímia, com o podador a trabalhar entre plantas que lhe chegavam à cintura. Toby seguira-a durante um dia, na ténue esperança de que se fatigasse, mas fora ele quem tivera de chamar a si todas as energias, antes de pararem para o almoço. Ao cair da noite, quando os membros lhe pesavam de fadiga e entorpecimento, Nancy Gregory parecera fresca como sempre.

      - Reze para haver tempo seco e sol firme, doutor. Raras vezes vi melhores folhas do que estas antes da época da escolha.

      - Isso deve-se, em parte, aos trabalhadores. Eles também cheiram prosperidade no ar...

      - Se se refere ao facto de os nossos homens trabalharem com participação nos lucros...

      - Indique-me um incentivo melhor, Mrs. Gregory, e abordá-lo-ei na próxima reunião de foreiros.

      Mas Nancy limitara-se a encolher os ombros e a voltar ao trabalho.

      Revia-a agora, desde o movimento firme dos seus antebraços, na brilhante selva verde das folhas novas de tabaco, à madeixa acobreada, tão fora de propósito naquele momento amazónico, a sair-lhe da touca que lhe protegia do sol o rosto atento. Ao rever essa imagem, amaldiçoava a muralha existente entre ambos, a recusa dela em transpô-la, ainda que por instantes. Meia dúzia de palavras frias acerca dos progressos de uma plantação ou de um barco a navegar no meio do oceano ou de uma consignação de arroz para Sangaree, era tudo quanto permitia na sua conversa, nos poucos momentos em que estavam sós. Tinha a certeza de que Nancy não desejava maior intimidade, de que não queria admitir, nem por um instante, que a sua equação era humana e continuava insolúvel.

      As suas últimas e breves visitas a Darbyville haviam obedecido rigidamente a esse padrão. A época da escolha, quando se deixava às plantas apenas as suas melhores folhas, proporcionar-lhe-ia outra demonstração da sua perícia - e da sua competência para levar os trabalhadores a prodígios ainda maiores. As vigílias nos telheiros de secagem, quando as folhas, finalmente estendidas em cavaletes de salgueiro, secavam lenta, mas seguramente, nas espirais do fumo de lenha, eram um desafio final ao seu talento para dirigir escravos. Pelo menos foi o que Toby disse a si mesmo, irritado, embora admitisse que os escravos em questão aceitavam as ordens de Miss Nancy com absoluta boa vontade.

      Recordava agora essas noites sufocantes de Outono em que toda a Darbyville tresandava a suor negro e fumo, e em que Nancy, calma e fria como sempre, corria de telheiro para telheiro, como um cachorro inquieto. A bem dizer que verificara com as próprias mãos o estado de secagem de cada folha, e só os negros de bons pulmões suportavam mais de meia hora do inferno que era um telheiro de seca bem aquecido. Toby, que tratara já uma dúzia de casos de peripneumonia na enfermaria que instalara na doca, sentira sinistra satisfação em demorar-se mais tempo que ela em tais visitas - e um prazer duradouro em reanimá-la numa ocasião em que fora suficientemente feminina para desmaiar ao sair de um telheiro cheio de fumo para o ar livre.

      É certo que os braços de Félix Pagnol tinham estado presentes para a ampararem, na queda... Intrigara-o, até, durante dias, a expressão de transtornada inquietação do francês, quando o ajudara a levá-la para a enfermaria.

      A longa agonia da cura do tabaco atingia o apogeu quando os tabuleiros eram levados para a casa de embalagem. Aí, as folhas eram atadas em molhos apertados e metidas nas barricas. Nesse capítulo, Nancy limitara-se a conferir os seus livros com as anotações dos inspectores, esses importantes guardiões do interesse público que apareciam como por magia para pesarem todas as barricas e certificarem o seu conteúdo. Comprimido o tabaco pelas grandes calcadeiras puxadas a bois e feitas as barricas por mãos negras de tanoeiros hábeis, o rendimento Darby estabeleceu um recorde a partir do primeiro dia de embalagem. Mas até Toby ficou boquiaberto quando Nancy apresentou os cálculos finais, antes do embarque.

      - Uma média de mil libras por cada barrica, doutor. A marca Darby encarregar-se-á do resto.

      - Curvo-me perante a marca Darby, Mrs. Gregory. Nos últimos meses ajudou-me a compreender os motivos da sua excelência.

      - Creio que podemos dispensar os cumprimentos.

      - Mesmo se forem ditados pelo coração?

      - Indiquei-lhe estes números porque isso faz parte dos meus deveres. Não pode aceitá-los com o mesmo espírito?

      - Se o meu entusiasmo lhe parece moderado, sabe quais são as razões...

      - Explique-se, por favor.

      - Esta colheita vale uma fortuna - e uma fortuna em letras de câmbio inglesas. Forneceu-me os cálculos até ao último soberano e eu pergunto-lhe se não a desanima verificar como estamos a ficar ricos.

      Ainda na sela, consciente de que tinha de entrar no armazém e de falar ao grupo de rendeiros, Tobias Kent sorriu intimamente ao recordar o rubor que subira às faces de Nancy, para não falar no esvoaçar da saia empoeirada quando atravessara, empertigada, o armazém, como uma duquesa a quem acabassem de contrariar - comparação que não perdia nenhuma parcela de verdade a despeito do vestido grosseiro... Aquelas mãos recuperariam depressa a mágica brancura, aqueles dedos compridos e hirtos, enegrecidos e ásperos agora pelas semanas passadas no campo, reaprenderiam em breve a tocar Mozart na espineta da sala da casa da cidade, enquanto Pagnol preguiçava num banquinho à sua frente...

      Não era a primeira vez que Toby se deixava sucumbir àquela onda de ódio. Naquele momento entregou-se-lhe de novo, cerrando o punho e brandindo-o a um destino que desconhecia. Logo a seguir, afastou firmemente a imagem de Nancy, saltou da sela e entrou no armazém.

      Em contraste com a soalheira empoeirada do cais de embarque, o armazém, ainda rescendente ao precioso produto que guardara, dir-se-ia uma cave fresca. Toby pestanejou, na suave meia-luz, identificando por instinto os rostos das pessoas presentes. Acima das outras, como um planeta triunfante entre satélites, erguia-se a cara suada de Sam Hoyt, franzida ainda a testa pelos últimos pagamentos feitos aos trabalhadores de Savannah, mas entreabertos os lábios, num sorriso beatífico, na contemplação das moedas de ouro dos dois sacos de lona que tinha em cima da mesa. Ali se encontrava também Hiram Grant, capataz dos Darbys em Red Creek, antigo servo da família, que havia muito possuía uma secção de quarteiro e quinze escravos, mas preferia considerar-se ainda foreiro.

      Ali, lado a lado com Hiram, encontravam-se o jovem servo Timothy Granger, cuja voz conservava um nobre sotaque escocês e cuja parcimónia lhe permitiria comprar a sua alforria naquela Primavera; os três irmãos Munger, conhecedores das manhas da planta do tabaco; o vasto clã Randy - contou treze, sem pensar em nomes -, que viera dos altos ermos atrás de Cagle .Hundred para trabalhar naquela plantação com participação de lucros; a mistura de Gages e Clintons, Tarletons e Moors e Effinghams, Clays e Tylers e Camerons - tudo nomes registados nos livros dos Darbys, embora as suas caras curtidas pelo tempo lhe fossem tão familiares como a sua própria -; foreiros e pequenos proprietários, capatazes e rapazes feitos homens na terra da Jórgia, sob a égide dos Darbys - amigos que esperavam, com os olhos escancarados de simples camponeses, enquanto desdobrava os papéis e se preparava para prestar contas.

      - Desejaria ter o dom da linguagem, meus senhores, desejaria poder dizer-lhes quanto me alegram as notícias que lhes trago e que todos vocês tornaram possíveis...

      - Diga-nos como for capaz, Toby; todos nós sabemos ouvir.

      - Farei o possível, Clint - prometeu o médico, retribuindo o sorriso do que falara.

      Uma das características mais simpáticas daquela aventura era o à vontade mútuo, o conhecimento de que era um dos seus; o emprego de diminutivos constituía apenas extensão dessa camaradagem. O Dr. Tobias Kent era Toby para os seus trabalhadores, desde o princípio, sem que isso se traduzisse por perda de autoridade.

      - Não preciso de repetir as condições em que trabalhamos; tenho a certeza de que as sabem de cor, assim como aquilo que esperam receber. No entanto, não perderei nada em resumi-las, quanto mais não seja para apagar aquele sorriso da cara do Sam Hoyt. É sua intenção levar aqueles sacos de soberanos para Savannah e arrumar mais tarde as contas dos salários com vocês, quando, calcularmos o montante exacto dos nossos lucros. Mas eu tenciono pagar-lhes agora, em metal sonante, e dar-lhes todos os vales a que têm direito, referentes aos lucros e pagáveis em mercadorias ou dinheiro, no escritório.

      Fez uma pausa, ao aperceber-se de que, afinal, estava a discursar, encorajado pelo interesse dos que o rodeavam. Como calculara, o sorriso desaparecera da cara do administrador: Sam, guarda-livros incorrigível apesar de todas as suas ideias de igualdade, jamais prometeria ouro antecipadamente, embora pelos livros de Nancy se verificasse que as barricas de tabaco se podiam considerar vendidas e os soberanos depositados a crédito da companhia em Liverpul. Toby era diferente, considerava todos aqueles homens como a sua gente e não compreendia que tivessem necessidades de dinheiro havendo em caixa um excedente que permitia pagar-lhes.

      - Como sabem, estão em Savannah agentes londrinos, para licitarem sobre o nosso tabaco, e certamente lhes venderemos o suficiente para ficarmos com os barcos livres. Tenciono ainda mandar dois carregamentos directamente para Liverpul, a bordo do Júpiter e do Sachem Queen...

      Uma voz, ao fundo do armazém, interrompeu-o entre gargalhadas:

      - Fumam tabaco americano em Whitehall?

      - Fumavam-no durante a guerra, quando podiam comprá-lo, e continuarão a fumá-lo, mesmo que tenhamos de abrir caminho à força para os seus portos!

      - Não nos interessa como o dinheiro é gasto, Toby - interveio outra vez Clint -; confiamos em si.

      - Devem saber ao menos, como tencionamos vender a folha. Lamento não poder falar-lhes na plantação de arroz, em Sangaree, mas isso é da lavra do Sam. Tenho de aprender essa parte desde o princípio...- Não acrescentou que esperava fosse Nancy Gregory, e não Sam Hoyt, a professora.

      Nancy ficaria furiosa, sem dúvida, quando soubesse que dispusera antecipadamente dos lucros do tabaco; protestara várias vezes contra a sua distribuição liberal dos fundos da companhia antes de os lucros terem sido, de facto, recebidos. No entanto, o acesso ao dinheiro era a necessidade maior da Jórgia daqueles dias. Bastava-lhe olhar para além dos confins da Companhia Darby e contar os que iam oferecer-se ao escritório - para saber quanto a sua cotação subira e que era graças a essa distribuição liberal que todos quantos queriam trabalhar eram bem-vindos.

      Houvera contrariedades, sem dúvida. A cheia que destruíra bons cem acres de floresta, acima de Clay Creek, atirando para a enxurrada primaveril do Savannah terra e madeira; e a perda de dois barcos no mar, ambos carregados de mantimentos e rum das índias. Ainda estava para saber se tinha sido o fogo de barcos piratas que os afundara ou os canhões ingleses. Os Britânicos, esses ávidos lobos do mar, ainda untavam de vez em quando as suas feridas de guerra com uma ou outra presa - e juravam, por todas as leis e códigos, que salvavam apenas propriedade britânica!

      Até agora, valera a pena correr o risco para negociar abertamente com honestos comerciantes de Liverpul e Brest... Toby remeteu a atenção aos seus papéis, apercebendo-se de que estivera a ler distraidamente uma lista de números.

      Nancy Gregory, para quem esses números eram uma forma de poesia, ter-se-ia demorado em cada fracção com verdadeiro deleite... Mandou-a mentalmente ao diabo, atirou a lista a Sam e prosseguiu com a sua peroração:

      - Não direi que a companhia está salva após uma só estação; devemos aceitar o bom e o mau. Um bom rendimento em Darbyville terá de compensar uma cheia no interior; uma boa colheita de arroz, de compensar perdas no mar. Mas direi que não poderia orgulhar-me mais do que orgulhei ao ver como vocês embalaram aquelas barricas! Só espero que sintam metade desse orgulho por nós, quando o dinheiro for depositado em Londres.

      Saiu para se esquivar aos aplausos, como um bom executante, apertando todas as mãos que pôde no caminho. Como sempre, não havia tempo para visitas; já estava atrasado para Savannah, e os livros de Nancy aguardavam a sua verificação final.

      Um escravo levara-lhe o cavalo para o estábulo, atrás do cais, e Toby dirigiu-se imediatamente para a doca e saltou para a barcaça, notando sem surpresa ser a mesma que o trouxera de Augusta. As recordações do passado perdiam-se no turbilhão daqueles dias atarefados, pois tivera pouco tempo para levantar os olhos da estrada recta que devia seguir ou para perguntar a si mesmo se reconheceria o seu destino, quando chegasse.

      Parecera inevitável naquela primeira viagem - um objectivo claramente delineado, como uma operação que houvesse efectuado dúzias de vezes. Era fantástico - e notou a data pela segunda vez, ao sentar-se à secretária da cabina da ré e ao abrir um dos inevitáveis livros de escrituração de Sam - que fizesse precisamente um ano que tivera Nancy Gregory nos braços.

      - Resultará, doutor? Resultará, de facto?

      Apesar da pródiga distribuição de moedas de ouro, Sam mostrara-se afável na viagem pelo rio abaixo. Agora, com Savannah à vista e os negros das varas a gritarem advertências ao crescente tráfego fluvial, a sua pergunta pareceu um final lógico da luta de ambos com um inimigo invencível: a aritmética.

      Toby conseguiu sorrir enquanto limpava a testa e batia com o livro no tampo riscado da secretária. Por muito fatigado que estivesse (e era surpreendente a sua capacidade de trabalho mesmo quando caía de fadiga), não conseguia resistir por muito tempo ao bom humor de Sam, nem à sua fé de que a revolução atingira o seu triunfo na Companhia Darby e assim continuaria no melhor dos mundos possíveis.

      - Responda você mesmo à pergunta. O dinheiro está a entrar como água.

      - E a sair um pouco mais depressa, se percebe o que digo.

      - E isso perturba-o muito?

      Sam soltou um profundo suspiro. . - É a consciência de Sam Hoyt que resmunga, não o Sam pessoalmente. Penso que o dinheiro foi feito para ser usado pela maioria das pessoas, não aferrolhado pela minoria. Bem vistas as coisas, doutor, creio que foi por isso que lutámos; a Inglaterra chupava-nos os ossos e não dava nada em troca. Agora os tories da beira-rio gostariam de substituir a Threadneedle Street. Associações como a Companhia Darby podem sustentar o interior e a beira-rio sem a ajuda tory, o que, a ter êxito, provará que os tories estão arrumados. Talvez, com o tempo, isso seja sinónimo de Jórgia...

      - Fala como um bom federalista, Sam. Quem me dera o seu optimismo!

      - Resultará, doutor? Que pensa, sinceramente?

      - Até agora, tenho tido tanto que fazer que não me sobrou tempo para pensar.

      - É o presidente. Se o preocupa ver os saldos sumirem-se não pague mais dividentos enquanto o dinheiro não estiver depositado em Buli Street.

      - Mas, entretanto, os nossos foreiros precisam de comer e de sustentar os seus escravos.

      - Couratos e farinha de aveia serviam muito bem ao meu pai, entre as colheitas, e até o velho Victor só pagava aos seus foreiros como lhe parecia conveniente.

      - Gostaria que eu fizesse o mesmo?

      - Orgulho-me muito de que o não faça, Toby.

      - Nesse caso, só pode tratar-se de uma coisa...- comentou o médico, com um largo sorriso. - O nosso supervisor principal esteve a moer-lhe o bicho do ouvido, recentemente...

      - Se se refere a Miss Nancy...

      - A quem havia de referir-me? Deve esperar que levemos oito mil libras-ouro, depois do pagamento aos trabalhadores. Que dirá quando souber que as dividimos pelos foreiros, como adiantamento dos lucros?

      - O senhor é que ouvirá a ensaboadela, doutor, não eu. É uma das desvantagens de ser presidente.

      - Devo tomá-la a peito?

      - Miss Nancy é uma boa guarda-livros - murmurou Sam, depois de reflectir.

      - E uma excelente plantadora de tabaco.

      - Quer acredite, quer não, as suas intenções são boas. Quando se trata de negócios, é tão esperta como qualquer homem. Porque não enterram, vocês dois, o machado da guerra?

      - Você sabe porquê, Sam.

      O administrador suspirou de novo. Nas viagens que faziam, das remotas florestas do interior às sucursais que Toby abrira em Charleston e Havana, haviam-se tornado amigos. Inevitavelmente, Toby desabafara os seus ressentimentos, dúzias de vezes.

      - Ela deve compreender que o doutor nasceu para este trabalho.

      - Nasci para empunhar um escalpelo e trabalhar com o Roy. Não julgue que não resignaria amanhã mesmo a favor dela se... - calou-se, surpreendido por ter deixado escapar o pensamento.

      - Se estivesse convencido de que Miss Nancy podia fazer melhor?

      - Julgo-a capaz de ganhar dinheiro tão depressa como eu - ou até muito mais depressa -, mas o velho Victor insistiu que se fizesse esta experiência. Não posso consentir que os milhões Darby voltem para meia dúzia de pares de mãos... pelo menos enquanto não me convencer de que são menos úteis nas minhas... nas suas ou nas de quem quer que deseje trabalhar para os multiplicar.

      - Seja justo com a rapariga, doutor. Já esperava que antipatizasse consigo.

      - Não durante um ano inteiro.

      - As mulheres são orgulhosas, quando se dispõem a isso. Orgulhosas e casmurras. No entanto, ela ajudou-o, e à companhia, o mais que pôde.

      Toby deu um murro na palma da mão. Havia um bocado que andava de um lado para o outro, na coberta, olhando furiosamente ora para o rio cheio de barcos, ora para o semblante calmo de Sam.

      - Quando lhe explico que me limito a realizar os desejos do seu pai, quando lhe digo que todo o império Darby prospera, encolhe os ombros e volta para os seus livros!

      - Já tem idade suficiente para saber que não podemos modificar a nossa natureza. Quem nasceu numa caixa, toma a forma dessa caixa. O mal de Miss Nancy é ser uma senhora... e ser inteligente. E ter tido um pai que a deixou desenvolver essa inteligência...- Sam calou-se, como a reviver uma recordação pessoal, e depois prosseguiu: - Ainda me lembro como Savannah ficou melindrada quando a viu cavalgar ao meu lado pela primeira vez, para ver como se fazia uma plantação... E o franzir de sobrancelhas de Wright Square quando o velho Victor lhe deu um pequeno veleiro e a encorajou a passear nele sozinha.

      - No entanto, ela não podia fazer-lhes mal nenhum. Sam reflectiu, antes de responder:

      - Não tenho o direito de o dizer, mas, na minha opinião, o velho Victor cometeu um erro ao educar a filha. As senhoras não devem receber educação, se hão-de continuar a ser senhoras... Talvez seja tolice minha...

      - Acho, até, que é uma observação muito profunda.

      - Nestes casos de educação de mulheres deve ser tudo ou nada, ou ia até ao fim, ou não começava, sequer. Deixá-la compreender, desde o princípio, que herdaria o negócio, com a condição de apoiar Roy como médico... - Sam riu-se, mas sem alegria. - Julgava que o velho Victor pertencesse a este século, sobretudo no que dizia respeito à filha. Parece que foi suficientemente esperto para perceber que ela arranjaria depressa marido, se não lhe desse bastante poder.

      - Aparentemente, a fórmula resultou - redarguiu Toby, secamente.

      Pela milésima vez, tentou imaginar Nancy Darby Gregory na noite do seu casamento, nos braços do elegante George, e pela milésima vez não o conseguiu. A Nancy virago capaz de espalhar ruína sem levantar a voz, ou a Nancy capaz de representar com prazer a sua criada, pareciam muito mais reais.

      - Que será dela, agora que rejeitou o jovem Bristol e não pode suplantar-me?

      - Sirva-se dos olhos, Toby. Se não puder recuperar as rédeas, casará com Pagnol. Se assim não fosse, porque se demoraria ele aqui um ano inteiro, quando podia estar em Paris a cortejar uma rainha?

      - Miss Nancy não pode, então, perder... Não me peça que rejubile por ela!

      Afastou-se para a proa, antes que se traísse. Os negros das varas iniciavam a manobra enfadonha da entrada na doca Darby, que devia começar bons duzentos metros a montante, para aproveitar o último impulso da corrente. Toby olhou de novo, fixamente, Savannah. No último ano, a recepção sobranceira a bem dizer não mudara, no que dizia respeito ao intruso. E, todavia, ele agora fazia parte de Savannah, contribuía para o seu sangue vital. A cidade crescia e não podia repeli-lo eternamente, mas Nancy Gregory e Matthew Bristol, cada um pelo seu lado, continuariam a maquinar contra ele.

      “Sou teu apaixonado, minha bela”, murmurou à serenidade verde da Baía e aos telhados amontoados e saturados de sol que ficavam para lá dela. “Sou teu apaixonado desde o primeiro dia. Conquistar-te-ei, impor-te-ei as minhas condições antes de chegarmos ao fim! Entretanto, não me baixarei para comprar os teus favores nem comprometerei o meu sonho - ou será o sonho de Victor Darby? - para satisfazer os teus senhores. Aconteça o que acontecer, és digna de ser salva desses amantes caducos.”

      Depois, como além de cavaleiro andante era presidente da Companhia Darby, voltou os seus pensamentos para assuntos mais práticos: as velas de joanete da Darby Belle, que lutava contra a maré, carregada de tipo forjado em Sheffield para a tipografia de Gabriel Thatch - contou os mastros, por hábito, e abençoou a sua sorte por aquele barco, pelo menos, ter regressado de Londres para atravessar, incólume, o Atlântico -; o pavilhão Darby, que flutuava orgulhosamente no armazém, sinal de que o leilão do tabaco estava ainda em progresso; o brilho do sol no pinho cortado de fresco, onde a rampa Darby se unia à Baía, no cimo do penhasco - prova encorajadora de que a ala do hospital Darby, cuja construção tinha sido muito lenta por causa das chuvas da Primavera, era enfim uma realidade...

      Agarrado à amurada, viu o casco estripado da Golden Fleece, a escuna que tinham ousado mandar a Havana pelo interior e que, surpreendida por piratas na escuridão, parecia agora pouco mais que um esqueleto. Nos estaleiros haviam sido obrigados a desmantelar as entrecobertas e os mastros para poderem reparar os estragos causados pelo ataque assassino.

      Toby olhou fixamente o que restava da escuna, antes de saltar da barcaça para a doca. Com os livros de Nancy à espera, era uma lembrança salutar. Por muito que as antigas colónias lutassem por uma prosperidade incerta, ali no interior, enquanto os caminhos do mar não estivessem abertos e os piratas escorraçados das suas baías ocultas, os lucros seriam, pelo menos, um jogo.

      - Devemos armar de canhões todos os nossos barcos mercantes, Sam.

      - Faz ideia do preço que custa em Inglaterra um canhão giratório de primeira?

      - Já mo disse muitas vezes. Talvez possamos navegar em comboio. Até agora ninguém desafiou o Júpiter ou o Sachem Queen.

      - Ex-corsários, ambos. Durante quanto tempo nos permitirá a Marinha Americana termos barcos com uma série dupla de canhões?

      - Enquanto a Marinha Americana não tiver barcos seus, deixará os seus cidadãos protegerem-se o melhor que puderem.

      Engoliu o resto, pois, no fim de contas, Sam era um camarada federalista. Seria inútil repetir as razões que impediam os treze novos estados de provarem a sua identidade de nações no mar alto.

      - Onde vai primeiro, Toby?

      A pergunta prática arrancou-o a devaneios. Como sempre que punha pé em terra após uma viagem fluvial a montante, deparava-se-lhe a acumulação de trabalho por completar, tão tangível como se um empregado lhe puxasse pela manga. Os cálculos da plantação primaveril em Sangaree - as sementes de arroz, observara Nancy mais de uma vez, valiam o seu peso em ouro inglês -; a licitação do tabaco, ainda em progresso no armazém do outro lado do cais largo; as filas e filas de parcelas que o esperavam no seu gabinete particular, no interior daquelas janelas empoeiradas, sobre o penhasco... e Nancy, toda vestida de musselina, com o cabelo preso num carrapito severo e as mangas protegidas por manguitos de papel, a aguardá-lo à porta do escritório, como Némesis em pessoa.

      - Hoje começo pelo escritório, Sam. Encarrega-se você da licitação?

      O seu olhar acompanhou invejosamente o administrador, que atravessou a doca principal e entrou no armazém do tabaco. Donde estava, ouvia o pregão dos leiloeiros, uma lenga-lenga musical, inarticulada para os forasteiros, mas que traduzia riqueza para os Darbys. Os lances, em contraponto com essa harmonia melódica, quase faziam vibrar os telhados. Toby rejubilou com o predomínio do acento cockney; esperara que os compradores ingleses aparecessem em força, naquele dia. Esses indivíduos de bengala nodosa e carteira recheada tinham pago preços elevados desde o princípio, mas os seus lances secos haviam sido igualados, e até ultrapassados, por compradores de Paris, Roterdão e Nova Iorque.

      Uma semana antes, teria confiado as outras tarefas a Sam e ido tomar notas em seu lugar, no meio da multidão; hoje, com o êxito da licitação assegurado, arrastou os pés fatigados pela rampa que levava da doca à Baía.

      Enquanto subia, o rio desdobrava-se debaixo dele como um pergaminho azul-castanho. Distinguia uma grande meia-lua de porto - o ancoradouro era limitado, ao norte, pela ilha Hutchinson e, ao sul, pela costa curva de Savannah -, campos verdes de arroz e montes coroados de oleandros, que pareciam dissolver-se na neblina de ambos os lados da paisagem.

      Nunca vira o porto tão cheio. À primeira vista, um grande barco parecia puxar por dois rebocadores, a pouca distância da praia. O cais Darby, de onde partiam a maior parte das embarcações para todos os portos estrangeiros - embora outras docas começassem já a desafiar o seu poderio -, estava coalhado de barcos e vibrava com os gritos dos estivadores a braços com uma dúzia de carregamentos.

      Entre as docas, ou empoleirados sobre pilares nas águas baixas, as choupanas de Muskrat Town sobressaíam grotescamente, mas cheias de vida, na luz do sol. Muskrat Town, assim chamada pelos habitantes mais afortunados da encosta arejada, era um pequeno mundo fechado, zaragateiro e rixento. Um mundo de linhas de pesca ao peixe-gato e amontoados de barquitos, de crianças de vozes estridentes e mães cadavéricas, de pescadores barbudos, apanhadores de ostras e rufiões de doca, de pobreza impudente e inacreditável fedor.

      Toby, que percorrera durante um ano inteiro todos os recantos da Muskrat Town, nos interesses da clínica de Roy, aprendera havia muito tempo a ignorar a pestilência, assim como a esqualidez. Voltou a ignorá-las ao subir para alturas mais limpas, mas não deixou de reflectir que seria possível beneficiar aquela aldeia miserável, alimentar, vestir e ensinar aquela gente a respeitar-se a si mesma.

      Ou teria de haver uma Muskrat Town à porta de cada Utopia? Afastou do pensamento esse imponderável e entregou-se a preocupações mais prementes, ao chegar aos escritórios Darby, no alto da encosta.

      Nada naquele edifício quadrado e despretensioso demonstrava ser ali o coração da companhia. O raspar das penas dos escriturários, no rés-do-chão, e o murmúrio suave do velho Leary, o guarda-livros principal, a conferir as suas contas com as de um ajudante, faziam parte do ambiente tranquilo e calmo. Toby sentir-se-ia deslocado, numa atmosfera mais febril.

      Aceitou os salamaleques e as boas-noites excessivamente complicadas do velho Leary com o habitual aceno de cabeça. Graças a Deus aqueles escrevinhadores agora respeitavam-no! Nem podia ser de outra maneira, com o balanço do primeiro ano fechado na estante atrás da secretária de Leary. Mas não havia calor nos seus sorrisos superficiais, boas-vindas nos seus olhos; tinham recusado aceitá-lo, nos seus corações, como mais que patrão temporário.

      Aqui, também, havia outro imponderável: os bajuladores dos ricos, que se rebelavam quase tão instintivamente como os próprios ricos contra a mínima mudança na ordem das coisas. Claro que a presença diária de Nancy no grande escritório do andar de cima lhes recordava constantemente os velhos - e, para eles, melhores tempos, era um presságio de que esses tempos voltariam.

      Toby subiu a escada, desejando intimamente não ter mostrado muito má cara a Leary.

      O tampo da sua secretária estava penosamente arrumado, graças a Leary e a Nancy. O escritório desta era contíguo ao seu e a porta entre ambos - notou-o com um aperto no coração - encontrava-se escancarada, sinal certo de que Nancy estava ausente. Obedecendo a um impulso repentino, ignorou as notas que o esperavam na secretária, levantou-se e entrou no escritório ao lado, para descobrir, se pudesse, como ela passara o dia.

      Os dois aposentos, espaçosos, com muitas janelas e forrados de livros, eram de igual tamanho e mobilados com idênticas secretárias Chippendale e cadeiras de braços a condizer. De ambos se via o porto, através das altas janelas, e ambos, graças ao facto de o edifício se erguer no alto da encosta, davam uma sensação de isolamento altivo, entre o céu e o ancoradouro. Aos aposentos de Sam, um sótão atravancado no andar de cima, só se chegava pela escada central; o escritório de Roy, pouco mais era que um armário disfarçado, pois os seus verdadeiros domínios ficavam no hospital que tinham acabado de construir - a despeito dos protestos de Nancy.

      Na primeira reunião de directores, Toby insistira que ele e Nancy ocupassem espaço igual, e mais tarde descobrira que os dois escritórios que lhes haviam sido destinados eram os antigos aposentos do velho Victor. Bastara mandar levantar uma parede, com uma porta de comunicação. Como sempre lhe acontecia, Toby teve consciência da grande diferença existente entre os dois aposentos, não obstante serem iguais. O ar de vida que se respirava naquele contrastava com a atmosfera de austeridade do seu. Até um visitante casual compreenderia imediatamente tratar-se do escritório de uma mulher. Era uma espécie de aura que não se devia apenas ao ramo de corniso numa das estantes, aos naperons das poltronas, às almofadinhas que enfeitavam o sofá ou às suaves aguarelas francesas - Paris, vista do alto de Montmartre, e um pomar de macieiras na Normandia - das paredes.

      “Ninguém põe flores nas minhas estantes”, pensou Toby. “Ninguém se importa que as minhas poltronas sejam confortáveis ou desconfortáveis e as minhas paredes nuas como as da cela de um monge...” Só o velho telescópio do fundador, apoiado como um canhão no tripé junto da janela, dava ao seu escritório uma nota pessoal...

      Afastou do pensamento a queixa infantil e contornou duas vezes a secretária de mogno de Nancy, antes de ceder à tentação e de ler o bilhete que se encontrava no mataborrão. Teve de o reler para que as três frases escritas em francês adquirissem significado:

     

      Mignonne:

      Je fattendrai au bord de Veau. Même heure, même endroit. Ne sois pas tard, je l’implore (Queridinha: Esperar-te-ei à beira-rio. Mesma hora, mesmo lugar. Não te atrases, imploro-te. (N. da T.).

      Félix

     

      Pagnol encontrava-se com ela à beira-rio, num lugar que implicava outros encontros, e, como amante modelo, implorava-lhe que não se atrasasse... Que importava àquele diletante parisiense que ela abandonasse o escritório no meio de um dia de trabalho?

      Ao regressar, furioso, à sua secretária, Tobias Kent perguntava a si mesmo se Nancy não deixara o bilhete deliberadamente à vista, na esperança impudente de que o visse e a censurasse por perder tempo com namoricos. Até agora, ainda não descera tão baixo... mas também era a primeira vez que ele, incitado por um impulso ciumento a que não ousava dar nome, bisbilhotava as suas cartas.

      Quando deu por isso, passava os olhos pela sua própria correspondência sem ler uma palavra. Com um esforço de vontade, dedicou a sua atenção a verdades sóbrias como remessas, notas de venda, conhecimentos de embarque... De Filadélfia, pediam provisões para barcos e madeira - todo o pinho amarelo que pudessem embarcar, para reparar os estragos de outro incêndio na cidade de Delaware. Os Irmãos da Costa prometiam descaradamente passagem livre a todos os barcos Darby, em troca de uma percentagem das suas cargas... Não faltava - e havia muito que deixara de sorrir de tais missivas - uma venenosa carta anónima, assinada por um “Filho de Savannah”, acusando-o de bastardo Darby e ameaçando desmascará-lo se não voltasse imediatamente para o mato, onde era o seu lugar.

      Singularmente civilizado entre as últimas duas cartas, encontrava-se outro bilhete escrito pelo punho de Pagnol: um pedido em impecável inglês, acerca de um assunto que se tornara quase tão familiar a Toby como a chantagem e a calúnia:

      

      Meu caro Dr. Kent:

      Mais uma vez lhe pergunto se posso ter esperanças de contá-lo como meu convidado no último cotilhão pré-quaresmal na Fiação? Julgo inútil acrescentar quanto prazer sentiria este visitante das vossas costas se pudesse sustentar os olhares de Savannah consigo ao seu lado! E embora não possamos verdadeiramente dançar juntos (gesto que levaria o desafio a uma culminância ideal), julgo poder prometer-lhe pelo menos um par.

      Seu humilde J obediente, etc...

      Félix Pagnol

     

      Toby olhou por momentos o bilhete, e por fim queimou-o. Depois de tantas recusas, o francês não devia contar muito com uma resposta. Mesmo que os motivos de Pagnol fossem inspirados na amabilidade, e Toby não acreditava que o visitante procedesse com tanta simplicidade, não podia encarar a ideia de aceitar.

      “Se isto é orgulho”, pensou, “os teimosos de Savannah que tenham paciência e me julguem como entenderem. Se desejam incluir-me na sua sociedade - e eu sei que nada está mais longe das suas intenções -, que sejam eles a vir até mim.” Idênticos motivos o tinham levado a proibir os planos de Martha para jantares e a declinar o seu convite para os dois últimos bailes. Para humilhação bastara a noite na casa da Wright Square.

      Por detrás do desafio divisou a sombra de Félix Pagnol, com o seu sorriso descarado. Para Pagnol, a recusa de Savannah em abrir-lhe as suas portas seria uma provocação, não uma barreira; o assalto àquele bastião social seria, para si, um feito de armas não menos empolgante que a tomada de um reduto inimigo. Mas Pagnol podia viver sem trabalhar, graças à generosidade dos seus antepassados, e, ao contrário do Dr. Tobias Kent, era uma pessoa sempre exuberante de vitalidade e espírito. Sobretudo, ao contrário, também, do intruso do mato, jamais podia imaginar-se realmente indesejado.

      Voltou à sua correspondência, de que restava apenas uma longa lista de parcelas, escritas com a caligrafia certa de Nancy, tendo anexa uma nota do mesmo punho, que dizia:

     

      Dr. Kent:

      9 de Abril de 1785.

      Queira notar que o nosso rendimento total, no primeiro ano da Companhia Darby, excede as despesas em sete mil oitocentos e sessenta e três libras esterlinas (os cálculos são feitos em libras porque o grosso do nosso activo é em ouro inglês). A Companhia Darby negociou sempre com pagamento a dinheiro ou papel negociável, e devo felicitá-lo por, como presidente, ter aderido a essa política e recusado sensatamente trabalhar com moeda americana, enquanto não houver a certeza de que a mesma tem um valor fixo...

     

      Toby sorriu, a despeito do cansaço. Era próprio de Nancy Gregory introduzir um pequeno sermão de finanças num relatório de tesouraria. Aliado ao seu irónico cumprimento, revelava o lado menos atraente da sua personalidade em toda a sua austeridade contabilística... Mas, claro, tinha razão - tanta quanto era possível a um guarda-livros.

      No início da aventura a que haviam metido ombros, Sam Hoyt predissera uma perda de pelo menos dez mil libras no primeiro ano; afinal a companhia ganhara quase oito mil. Se Nancy estava mais surpreendida do que Sam pela sua sorte, não o manifestava nas geladas frases seguintes:

      Como tesoureira de facto da nossa empresa, devo adverti-lo de que, este ano, a sorte foi pródiga nos seus favores para connosco, e aconselhá-lo encarecidamente a reservar a soma dos lucros para cobrir futuras perdas...

      Toby não pôde conter o riso. Nancy não tardaria a saber que distribuíra os lucros até ao último xelim, entre os foreiros da companhia. “Aconteça o que acontecer”, pensou, “terão beneficiado qualquer coisa com esta experiência de cooperação, mesmo que os directores - e isto diz-lhe também respeito, Mrs. Gregory - tenham de trabalhar de graça. Se, no nosso segundo ano, a sorte mudar e sobre nós desabar uma catástrofe, nas despensas de uma centena de lares do interior haverá melhor comida do que cabeças de nabo...” Bateu com o punho na secretária, a sublinhar essa promessa, e só então se apercebeu de que a fizera em voz alta.

      O parágrafo final de Nancy era um antídoto para o hábito de solilóquio que ultimamente adquirira:

     

      Não lhe desejo mais sorte, doutor, pois ela representou já tão grande papel no seu presente empreendimento. Tão-pouco o louvo pelo decidido apoio que tem dispensado aos humildes; foi sempre desejo de meu pai que os humildes das suas terras tivessem boas casas, e o doutor é demasiado honesto para não cumprir os seus desejos, no âmbito da companhia. No entanto, como tem de continuar a trabalhar em Savannah, atrevo-me a aconselhar-lhe um certo rapport entre si e os incorrigíveis ricos desta cidade - cujo apoio é, bem vistas as coisas, essencial ao nosso êxito. Nesse sentido, e para começar, recomendo-lhe que apareça no próximo baile, convenientemente vestido e com maneiras a condizer.

     

      Com que então, Nancy conspirara com Pagnol para o obrigar a comparecer ao cotilhão! Sem dúvida pensara que a sugestão casual, lançada como uma espécie de impertinência amável no fim do relatório, o incitaria a uma recusa imediata. Mesmo que as intenções fossem boas...

      Sufocou violentamente a louca esperança. Dera todo o coração, e tudo quanto essa velha metáfora implicava, a uma mulher inacessível e incapaz de boas intenções, a uma aristocrata no pior sentido da palavra, obstinadamente agarrada aos seus privilégios, a uma mulher altiva e arrogante, que ousava tratá-lo como a um lacaio.

      Sem se lembrar de ter, sequer, pegado na pena, deu consigo a escrever, furiosamente:

     

      Mrs. Gregory:

      Com referência ao seu excelente relatório de tesouraria do primeiro ano do nosso empreendimento, permite-me que lhe agradeça a perfeição e o bom senso? Apraz-me, sobretudo, que tenha havido um excedente de receita, pois Sam dir-lhe-á que os nossos desembolsos de hoje em Darbyville absorveram todos os nossos lucros até à data. Não apresento desculpas nem explicações do facto, visto estar certo de que não compreenderia umas nem outras.

      Quanto à sua sugestão para o baile...

     

      Fitou, carrancudo, a frase incompleta. O silêncio, naquele caso, seria a resposta mais mordaz. Deixá-la repetir o convite de viva voz, se ousasse... ou increpá-lo acerca da sua decisão de distribuir os lucros. Durante mais doze meses seria presidente da Companhia Darby e as suas decisões absolutas!

      Rasgou a carta e queimou-a por cima do cesto dos papéis, deixando as cinzas cair sobre as do bilhete de Félix Pagnol. Que se rissem juntos, se quisessem, da sua grosseria. A verdade, a amarga verdade, era que no dia seguinte estaria tão fatigado que não lhe apeteceria dançar, tão atarefado que não se lembraria, sequer, de que estava vivo.

      Parou um momento à janela, antes de a escancarar e de aspirar profundamente o aroma quente e salgado do porto. Distinguiu, ao longe, o veleiro de Nancy, a atravessar a esteira de um navio mercante que partia. Ao ver a vela branca enfunar-se ao vento, levando o barquito para o largo, invejou à timoneira aquela fuga fácil de um mundo prosaico. Tinha quase a certeza de que era a própria Nancy quem ia ao leme, embora a distância não lhe permitisse reconhecê-la.

      Maquinalmente, girou o telescópio do velho Victor no alto tripé e as suas lentes focaram o veleiro e a timoneira.

      Nancy vestia toda de musselina branca, com excepção da faixa que lhe prendia parcialmente os cabelos agitados pelo vento. Ria como nunca a vira rir e falava animadamente com um passageiro invisível, oculto pela cabina. Adivinhou a identidade do passageiro antes mesmo de este levantar a mão e bater, em jeito reprovador, no joelho da rapariga.

      Era próprio de Pagnol preguiçar assim, deixando à dama da sua escolha o trabalho de pilotar, e próprio de Nancy Gregory alardear a sua arte de marinheira e a sua conquista aos olhos de todo o porto de Savannah - incluindo os do presidente da Companhia Darby, presos, através do telescópio, à sua rota, como se não mais quisessem largá-la.

      Viu-a olhar para trás, antes de o veleiro virar por estibordo em direcção à ilha de Hutchinson e a Sangaree. Por momentos, teve a insensata convicção de que Nancy vira o sol brilhar no velho telescópio e descobrira que a espiava da janela do escritório. Talvez passasse por ali deliberadamente, para que a visse... O veleiro adernou, ao vento, e a vela mestra ocultou timoneira e passageiro. O presidente da Companhia Darby puxou o telescópio e fechou a janela com uma violência que fez tremer todos os vidros.

      Saiu do escritório sem olhar para trás nem fazer caso dos escriturários embasbacados, da secção de contas. Naquele momento sentia-se grato por Roy estar ausente, pois pelo menos teria trabalho à sua espera, na clínica. Verdadeiro trabalho que lhe amorteceria os pensamentos, que o entorpeceria até serem horas de se reunir a Gabriel Thatch, para jantar, na Tondee's Tavern. Sim, sabia-lhe bem voltar as costas àquele mundo de livros e números e entrar noutro onde era conhecido, e preciso.

      Demorara-se um pouco na última enfermaria da clínica, a conversar com Maum Bonnie, a enorme parteira negra que tomava conta da maternidade, e depois cerca de meia hora no dispensário de Roy, a conferir os livros de registo. Em seguida, como desde o princípio soubera que faria, escreveu o bilhete a Martha Darby e mandou Billy entregá-lo na Wright Square. Atravessado esse Rubicão, achou-se com coragem para sair e enfrentar Savannah à suave luz crepuscular.

      Naquela noite não encontrou ninguém com quem pudesse brigar. Em virtude de estar próxima a hora do jantar e de os cavalheiros terem uma tendência especial para aguçar o apetite antes da refeição, a Baía encontrava-se quase deserta, assim como a Buli Street, a larga artéria que atravessava a cidade de norte a sul. Percorreu-a lentamente, decidido a corresponder com um aceno de cabeça ao primeiro olhar hostil com que cruzasse. A primazia coube à velha Mrs. Bayliss, cujo pai fora conde e que se tornara, havia apenas uma semana, uma das primeiras clientes pagantes da clínica. Seguiu-se o idoso Dr. Tyree, deão da academia médica local e parecido com uma morsa bem escanhoada. Daquela vez, o aceno de cabeça do velho médico foi quase delicado. Dar-se-ia o caso de se ter resignado a perder alguns dos seus clientes em favor de homens mais novos - mesmo de arrivistas do mato?

      Pouco adiante, na esquina seguinte, surgiu a silhueta reconfortante da Tondee's. Parou à entrada, a aspirar o aroma ainda mais reconfortante do ponche de rum, e seguindo um costume antigo passou os dedos pelo golpe de sabre que marcava a tabuleta acima da porta - uma das várias cicatrizes a lembrar que na comprida sala de jantar da Tonaee's fora proclamada uma revolução.

      A tabuleta balouçava suavemente ao sabor da brisa marítima que tantas vezes invadia Savannah à hora crepuscular - uma brisa que naquela noite tinha um sabor melancólico, falava de fantasmas perdidos em frondes de jardins, de esperanças adiadas, de sonhos que tinham morrido havia tanto tempo que nem valia a pena lembrá-los. Seria o sonho da igualdade um desses fantasmas vagabundos?

      Toby empurrou com o ombro a porta e entrou, fixando o olhar na grande pipa de vinho por cima do balcão. Tivera rendez-vous com os seus próprios sonhos perdidos, ali, naquela sala fumarenta, nos doze meses que acabavam de completar-se. Oxalá Gabriel o esperasse já no lugar do costume, entre a chaminé e o balcão de serviço.

      Mas o jornalista atrasara-se, naquela noite. Toby instalou-se no seu lugar, tirou da prateleira ao lado da chaminé um cachimbo de barro e encheu-o com a  autêntica folha de tabaco da Jórgia. Sentiu os nervos acalmar assim que a primeira nuvem de fumo lhe chegou às narinas, e conseguiu até olhar para o bar e aguardar os desafios que já não lhe faziam.

      A sala estava cheia, mas Toby via claramente o coronel Crowther que, ao balcão, arrasava pela centésima vez os Cowpens, perante a atenção delicada do jovem Jim Thorne, o ajudante de advogado de Augusta. Toby demorou o olhar nos dois homens e sorriu quando o jovem Thorne desviou o seu. Suspeitava havia algum tempo que o seu encontro com o futuro advogado, nesse nebuloso eufemismo chamado campo de honra, fora planeado por Matthew Bristol.

      O duelo fora bem tramado, sem dúvida. Thorne descera o rio com fama de bom atirador e o desejo ardente de ser bem sucedido no campo jurídico, o velho Bristol acolhera-o nos aposentos do filho, com suspeita alacridade, pouco depois da misteriosa partida de Harvey Bristol para Inglaterra, e, sob a sua égide, o rapaz progredira depressa. O jovem Thorne não perdera tempo a desafiar o presidente da Companhia Darby, valendo-se do mais frágil dos pretextos. Quid pro quo: um lugar de advogado em troca de um inimigo morto - pelo menos assim raciocinara Toby, quando a luva de Thorne lhe batera no rosto, naquela mesma sala.

      Tinham-se encontrado no dia seguinte, sob os pinheiros do Cemitério Judaico. Gabriel, que servira de padrinho a Toby, deixara na tipografia um relato do encontro, predizendo exactamente o ferimento que o jovem Thorne receberia. Savannah ficara boquiaberta ao ler a notícia enquanto bebia o chá da manhã, no momento exacto em que o corpo desfalecido do rapaz era transportado para o consultório de Matthew Bristol, com um grão de chumbo bem alojado no bicípite.

      Houvera segundo recontro, desta vez com um tal tenente Bazelton, ex-oficial do Exército de Sua Majestade e agora uma espécie de administrador numa das plantações dos Bristols a montante do rio. Como acontecera antes, o jornal de Gabriel publicara a notícia antes do que seria de esperar e o adversário de Toby deixara o prélio com os pés para a frente e a berrar pelos cuidados de um cirurgião. Desde esse dia, aristocratas e rufiões tinham deixado em paz o presidente da Companhia Darby.

      - Entretido com o teu passatempo favorito, Toby? Gabriel pousou na mesa a bengala e o elegant tricórnio preto e sentou-se defronte do amigo. Exalava como sempre, boa disposição - uma mistura de vivacidade, arrogância e brandy de boa qualidade...

      - Desculpa se me engano, mas ia jurar que neste momento estavas entretido a odiar alguém. Quem era desta vez? O velho Matthew? Pagnol? Nancy? Ou preferias odiá-la... na cama?

      - Francamente, mais depressa me deitaria com uma gata brava!

      - Que Eros te perdoe a mentira descarada, Tobias Kent. Eh, não disfarces o rubor! Esta noite não te atormentarei muito. Em vez disso, vou mostrar-te as provas do meu artigo de fundo para amanhã... Lê com[ atenção, pois talvez te alegre.

      Gabriel colocou a folha impressa em cima da mesa e Toby leu-a duas vezes antes de acreditar nos seus olhos. Raramente o estilo fluente e polémico de Gabe tratara um assunto com tanta finura. Savannah, dizia, teria em breve uma eleição especial, destinada a nomear um subdelegado de saúde para o porto e para a cidade. Na quinzena seguinte seria publicada uma lista, a qual se reduziria... a um nome.

      - Se pensas que esses ricaços se lembrariam de mim...

      - O sufrágio universal talvez seja ainda um sonho na nossa democracia - interveio Gabriel. - Todavia, não são poucos os proprietários de Savannah conhecedores do que tens feito na clínica da Baía, de como persuadiste a Associação a procurar exterminar a rataria nas caves e armazéns... e do que farias para limpar a própria Muskrat Town, se pudesses derrotar a panelinha do Bristol.

      - Não são eles que controlam o voto de Savannah, assim como a Associação Médica?

      - Agora não, meu amigo. Até mesmo na nossa bela metrópole existem actualmente mais votantes que cavalheiros.

      Toby esboçou um sorriso amarelo:

      - O que significa, claro, que tens esperanças de me eleger.

      - Prometo-te o lugar, se quiseres aceitá-lo. É um porrete para esmagares a cabeça do Bristol, quando aprenderes a manejá-lo convenientemente. Como poderás recusar?

      - Infelizmente, não tenho tempo para combater Matthew Bristol.

      - Não te faltará, se deixares de brincar aos príncipes dos comerciantes. A companhia vai de vento em popa, deixa-a em paz; continuará afinada como o melhor relógio do velho Victor.

      - E o mesmo acontecerá a Nancy Gregory.

      - Que sabes tu, na realidade, de Nancy?

      - Pouco, sem dúvida, embora há um ano inteirinho tente compreendê-la. Limita-se a responder com números às minhas tentativas, para me demonstrar que estou a arruinar todos.

      - Não creio que tenhas tentado, de facto. Quanto a mim, parece-me que te tens limitado a olhá-la de longe, depois de um mau começo. - Gabriel sorriu maliciosamente, ao ver a cara do amigo. - Tens sido visto muitas vezes a vaguear pelas nossas ruas, como um gato sem lar, quando ela passa uma noite na Wright Square, ou a percorrer a estrada do rio, às escuras, e a olhar, através da água, para Sangaree.

      - Sabes de mais, Gabe.

      - Responde-me francamente a isto: porque não foste ainda a Sangaree?

      Toby reflectiu na resposta a dar, sentindo-se furioso com a perspicácia do jornalista.

      - Chamavas-me fantasioso se te dissesse que Sangaree reúne tudo aquilo contra que lutámos na guerra? Ou que, intimamente, teria a sensação de me render a Nancy se pusesse os pés na sua propriedade?

      - Nancy também se rendeu um pouco ao ir trabalhar para o escritório. Quem sabe se não estará disposta a tornar a rendição total? Como podes sabê-lo enquanto não a visitares?

      - Não julgues que tenho medo dela.

      - Diria, antes, que tens medo de ti. - Os olhos do jornalista empreguearam-se, num sorriso malicioso. - Diria até, se me atrevesse, que estás apaixonado por ela. Apaixonadinho de todo, meu filho, mas tão teimoso que não és capaz de o confessar a ti mesmo. - Levantou a mão, para Toby não o interromper, e acrescentou: - Não te dês ao trabalho de o negar. Poderás visitar Sangaree ainda esta semana... quanto mais não seja para veres como vai a plantação de arroz.

      - Sim, mas posso ir de chalupa e proceder à inspecção da beira-rio.

      - A integridade é uma virtude admirável... mas uma companheira de leito muito insossa.

      Foi a vez de Toby sorrir:

      - Talvez eu o saiba... Pelo menos, comparecerei amanhã no cotilhão.

      - Na Fiação?

      - Na Fiação! E como o meu colega, Dr. Darby, ficará até tarde na clínica, escrevi à esposa e pedi-lhe o privilégio de a acompanhar. - Por pouco não riu à gargalhada, ao ver os olhos espantados do amigo. - Mais, convidarei Nancy Gregory para uma dança, se isso te tranquilizar.

      - Só quando vir... - Gabriel calou-se, pois a porta escancarara-se e Harvey Bristol entrara, meio cambaleante, na sala.

      O ano de ausência pouco modificara o corpulento janota, e se alguma diferença havia era na arrogância que parecia ter crescido, a par com o peito de pombo gabarola. Toby observou-o friamente, sobre o ombro de Gabriel: ali estava um indivíduo que esmagaria com prazer, se o ex-noivo de Nancy ousasse aproximar-se demasiado.

      Era do conhecimento comum, em Savannah, que o jovem Bristol aceitara impávido e sereno a quebra do noivado e se limitara a mudar arraiais para Londres, com dinheiro do pai, a fim de caçar outra herdeira - neste caso uma mulher mais velha que ele e cujo dote estava à sua disposição. Consumado o facto, Harvey Bristol desaparecera numa estranha obscuridade. Diziam uns que vivera aquele ano em Londres, como um príncipe e, depois de a idosa esposa fazer o favor de morrer, após poucos meses de bem-aventurança conjugal, em Paris, com um verdadeiro serralho. Afirmavam outros que a mulher estava viva e bem viva e que Harvey se limitara a levá-la, e ao dinheiro, para um palácio em Havana. Constava, até, que o traga-mouros se tornara súbdito britânico e adquirira uma ilha nas Baamas, para seu reino pessoal.

      Quando parou, de mãos nos quadris, no meio da sala subitamente silenciosa, não restaram dúvidas quanto à sua confiança, embora cambaleasse um pouco, como convinha a um ricaço capaz de regar o jantar com três garrafas de clarete e caminhar sem ajuda para o cavalo. Até o mais embrutecido beberrão pressentiu o impacto daquela entrada, o esplendor quase oriental da capa de cetim que lhe cobria o torso magnificente, dos ombros quadrados à cintura fina. Todos os homens compreenderam que a carranca de Harvey, sob o chapéu baixo, de marinheiro, se destinava exclusivamente a Toby. Verificou-se até uma espécie de retirada das mesas para o balcão, à medida que o recém-chegado avançava, em grandes passadas.

      - Quer lutar, Kent?

      - Ao largo, senhor!

      Foi Gabriel quem falou, como uma chicotada, e foi o aço de Gabriel que surgiu à vista quando pegou na bengala e, apertando uma mola na ponta, libertou vinte e dois centímetros de lâmina refulgente. Toby levantou-se, afastou a arma que o protegia e enfrentou Harvey Bristol, como um homem em transe que reconhece e aprecia a inevitabilidade do momento.

      - Desculpa, Gabe, mas ele é todo meu.

      A espada-bengala fizera estacar Harvey. Ao olhá-lo atentamente, o médico não leu medo no seu rosto, mas apenas o franzir de cenho do bruto que decidiu matar e, tomada essa decisão, só sabe actuar por instinto.

      - Quem falará por si, Bristol? Tem padrinho?

      - Diabos lhe levem a impudência, homem! Estou a desafiá-lo para lutar, não para um duelo.

      Toby sorriu. Aquilo também fazia parte do ritual. Indigno do chumbo de um cavalheiro, merecia no entanto o castigo dos punhos do mesmo cavalheiro. Como todos os jovens da sua classe, Harvey Bristol treinara-se em pugilismo desde a infância. Uma cabeça mais alto que Toby e confiante na sua força de touro, escolhera deliberadamente - e com todas as possibilidades de êxito - o seu método de humilhação. “Aquele gesto”, pensou Toby, “era um corolário tão lógico como brutal”.

      - Porque havemos de lutar, Bristol?

      - Você sabe porquê. Levanta os punhos ou quer rastejar?

      - Foi o seu pai que o mandou? Ou a ideia de armar em fanfarrão foi sua?

      Ao fundo da sala alguém riu do atrevimento da pergunta e Toby sentiu-se mais animado; aquela gargalhada dizia-lhe que na sarrafusca que ia seguir-se contava pelo menos com um amigo. Mesmo sem a espada-bengala de Gabriel, talvez a luta fosse mais equilibrada do que ousava esperar.

      A mesma bengala deteve Harvey Bristol pela segunda vez, quando ele avançou com ambos os punhos levantados. Servindo-se da ponta da bengala como de uma alavanca, Gabriel afastou a capa preta de cetim e mostrou que o jovem Bristol estava nu da cintura para cima e não trazia, à vista, quaisquer armas.

      - Toma-o, Toby, se ainda o queres. Teria muito prazer em apará-lo até ficar do tamanho normal, mas...

      - Espero que me responda, primeiro, à pergunta que lhe fiz.

      Bristol semicerrou ameaçadoramente os olhos e redarguiu:

      - Não preciso de razões para o desancar; Savannah sabe por que motivo a tareia foi adiada e por que você a merece.

      - Mesmo assim, diga-no-lo - interveio Gabriel. - Um pensamento seu, seja qual for, merece repetição.

      - Este tipo malbaratou uma das melhores propriedades da Jórgia.

      - O Dr. Kent alimentou mais bocas e curou mais doentes do que você é capaz de contar com a sua aritmética de cavalariço!

      Um clamor de aprovação acolheu estas palavras, um clamor tão forte que Harvey Bristol, ao olhar as caras presentes na sala, pareceu aparvalhado. Não havia dúvida de que esperara que os murros chovessem logo que dissesse ao que ia, sem delongas.

      - Uma coisa lhe garanto, Bristol: o Dr. Kent afastou-lhe a mão do bolo, quando se preparava para encher as algibeiras - prosseguiu Gabriel. - Graças a ele, teve de atravessar um oceano para encontrar mulher suficientemente rica para a sua ganância, e suficientemente idiota para casar consigo.

      - A seguir lutarei consigo, Gabriel, não tenha ilusões!

      - Daqui a dez minutos, não estará em estado de lutar seja com quem for - replicou o jornalista. - Claro que se pensa num duelo à pistola, amanhã, terei muito prazer em fazer-lhe a vontade. Por qual desses olhos ramelosos quer que passe uma bala? Os seus amigos poderão explicar-lhe que sou capaz de furá-lo onde me apetecer, a vinte passos... e o meu amigo Kent não me fica atrás nesse capítulo.

      - Estou farto da sua linguagem bombástica, Thatch...

      - E eu da sua fanfarronice. É uma grande esperteza da sua parte provocar o Dr. Kent para lutar a soco, e não à pistola. Assim, pelo menos, ainda estará vivo amanhã por esta hora. No entanto, Bristol, não foi tão esperto quanto supõe... Se tivesse feito algumas consultas a montante do rio, ficaria a saber que o Dr. Kent foi campeão de luta e de pugilismo de Augusta, quando tinha apenas dezoito anos, e nunca perdeu um combate. Saberia igualmente que, para não perder a forma, tenho sido seu competente instrutor desde que se encontra em Savannah. Mas basta de palavras; como vê, o Dr. Kent está pronto a demonstrar-lhe até onde vai a minha competência...

      Gabriel afastou-se e Toby saiu do canto da chaminé, também nu da cintura para cima e de punhos erguidos. O jovem Bristol arrancou de cabeça baixa, soltou um urro de triunfo e o seu punho abriu a peleja, com um formidável soco nos queixos que atirou Toby de escantilhão. O chão coberto de serradura pareceu explodir quando Bristol lançou todo o seu peso para cima do adversário prostrado, sem lhe dar tempo a rolar para o lado. Procurando agarrar-lhe o rosto e o corpo, Bristol pareceu ter ganho a luta antes mesmo de ela começar a sério.

      Toby, meio atordoado, mal sentiu o peso esmagador do brutamontes. De súbito, porém, os dedos do adversário entrelaçaram-se-lhe nos cabelos e os dois polegares, descrevendo uma parábola ameaçadora do alto da cabeça para a fronte, desceram ao nível das órbitas. Não imaginara Bristol capaz de semelhante baixeza, mas a luta transformara-se em poucos segundos numa rixa de taberna em que tudo valia, em que eram lícitas todas as mutilações.

      Uma unha raspou-lhe pela pálpebra, antes que as mãos criminosas se arqueassem para melhor apoio. Tratara já tantas vítimas de semelhante agressão que não ignorava o objectivo daqueles dois polegares que desciam para os seus olhos. Se conseguissem cerrar-se na junção do nariz com as órbitas e enterrar-se profundamente nas córneas indefesas, ficaria cego, com ambos os olhos reduzidos a duas manchas vermelhas que nenhuma intervenção cirúrgica poderia salvar.

      Felizmente encontrara-se em semelhante situação mais de uma vez, em lutas a montante do rio, e lembrou-se de um expediente que já antes o salvara. Quando as mãos de Bristol se fechavam para consumar o acto, Toby desviou-se um pouco sob o seu peso asfixiante e, com um movimento ágil do pé, abriu-lhe as pernas como se manejasse as pegas de uma tesoura. Liberto um joelho, impeliu-o para cima com toda a sua força e atingiu o adversário em cheio entre pernas, precisamente no sítio onde mais dói.

      O berro de Bristol fez as canecas tilintar, atrás do balcão. O espasmo de dor obrigou-o a afrouxar a pressão dos dedos pela fracção de segundo de que Toby precisava para salvar os olhos - e ganhar o combate. Outro impulso do joelho à virilha, e Bristol encolheu-se todo, aos uivos; mais um movimento brusco, com toda a sua força, e o médico libertou-se do peso que o esmagava, conseguiu levantar-se e castigar a cabeça do homenzarrão com dois pontapés bem apontados.

      Recuou para o balcão, a fim de retomar o fôlego, sem aproveitar a vantagem conquistada. O círculo de rostos que oscilavam no limiar da sua visão clareou lentamente e Toby viu caras conhecidas - pelo menos dois marinheiros de barcos Darby ancorados a meio do rio e, estranheza das estranhezas, a cara de Leary, seu chefe contabilista, que o fitava como se não pudesse crer nos seus olhos. O mesmo acontecia com o velho Crowther, que o olhava com idêntica atenção e incredulidade, calada por momentos a língua tagarela e venenosa.

      A porta escancarou-se de novo e na sala ressoou o pisar pesado de muitas botas. Toby não teve dúvidas de que os recém-chegados eram homens dos Bristols, à espera do sinal para aderirem à zaragata. Os lábios ensanguentados entreabriram-se-lhe num sorriso: Harvey, apesar de toda a pimponice, prevenira-se e não viera só. Não tardaram a trocar-se socos por toda a sala, animadamente, e os homens demonstraram, servindo-se do mais velho dos símbolos, as suas lealdades. Viu Gabe entrar na refrega e a bengala, recolhido o aço, transformar-se num abrir e fechar de olhos no cacete apropriado para mimosear a cabeça rapada de um capataz dos Bristols. Logo, porém, Harvey se lhe atirou acima, com unhas e dentes, e Toby esqueceu o que o rodeava, invadido pela pura alegria animal do combate.

      Apesar da sua fúria, Bristol mal se tinha já nos pés. Um soco acima do coração atirou-o de costas contra o balcão. Seguiu-se outro na cabeça, uma esquerda-direita ao queixo bem fornido de carnes e um murro do chão à boca, que lhe salpicou de sangue a carne rosada, de indivíduo bem tratado. Toby, que vencera já homens maiores, detestou-se pela autêntica chacina. Naquela noite, regalava-se descaradamente sempre que as pancadas acertavam em cheio.

      Outro murro de baixo para cima, uma esquerda-direita ao plexus solar e um directo às banhas do ventre, e depois, com pena, o coup de grâce: um upper-cut com toda a força de ossos e nervos ao queixo. Bristol arquejou, como um balão furado, os joelhos dobraram-se-lhe e escorregou, mais do que caiu, com os olhos postos em Toby, numa surpresa vítrea, inertes como geleia os enormes músculos.

      Dois minutos tinham chegado para “arrumar” Harvey Bristol. Toby devolveu a sua atenção ao combate generalizado e verificou que a “batalha da taberna”, como viria a ser conhecida nos anais de Savannah, estava quase ganha pela Companhia Darby. Ainda teve oportunidade de entrechocar as cabeças de dois forasteiros, que recuavam, tontos, do afago da bengala de Gabriel, e de se afastar, delicadamente, quando o coronel Crowther, que mantivera uma neutralidade inquieta durante toda a refrega, era atirado de escantilhão com o resto das forças dos Bristols. Uma explosão de pragas, na escuridão, e o fragor de passos em retirada, foram elucidativos: os homens dos Bristols, vencidos por inesperada demonstração de força, retiravam, deixando o chefe entregue ao seu destino.

      - Desmente-me se me engano, mas alguma vez gozaste mais desde que estás em Savannah? - perguntou Gabriel ao amigo.

      A respiração do jornalista, que tinha apenas um ombro esfolado e um olho ligeiramente negro, era quase normal. Ninguém falou quando se aproximou do balcão e olhou o corpo caído de Harvey Bristol.

      - Esta manhã, contei trinta e seis barricas de alcatrão, na doca Darby, acabadas de chegar das destilarias de montante do rio - murmurou.

      - Há mais cento e nove no armazém, senhor - informou Leary.

      - Poderiam dispensar uma delas para um fim muito especial?

      A sugestão era a centelha de que a turba precisava para se inflamar. Outras vozes fizeram coro à ameaça, numa sinfonia rouca:

      - Alcatrão e penas! É o que precisa!

      - Arrastem-no pela Buli Street numa grade!

      - Não o deixe escapar só assim, doutor!

      - Entrou por aí dentro como se fosse dono do mundo.

      - Desafiou-o para uma luta leal e depois queria vazar-lhe os olhos!

      - Queimem o tory bastardo!

      - Isso! Alcatrão, primeiro, e fogo, depois! Toby teve de intervir, gritando a pedir silêncio.

      - Lamento, cavalheiros, mas ele continua a ser todo meu.

      Uma dúzia de mãos tentou detê-lo, mas Gabriel e os trabalhadores das docas protegeram-no. O próprio Leary abriu a porta, quando Toby içou o adversário para cima do ombro e abriu caminho para a rua. A tina dos cavalos, a brilhar sob as estrelas, pareceu-lhe tentadora, mas decidiu-se pela montada de Bristol, presa no outro lado da rua.

      A turba saiu no seu encalce e nós de pinheiro irromperam em chamas na improvisada procissão que o cercou. Atirado para o arção da sela, Harvey Bristol caiu como um saco de farinha, estremeceu apenas uma vez para vomitar copiosamente e ficou imóvel, mesmo quando alguém bateu no flanco do cavalo. Pelo caminho apareceram cabeças à janela, como por magia, e Toby ouviu vozes a tagarelar, para lá dos confins da multidão, e apercebeu-se de que a sua escolta de admiradores se tornava maior a cada passo.

      A casa dos Bristols na cidade, um edifício quadrado, jorgiano, no meio de um jardim de palmitos, ficava numa rua sem saída junto da Wright Square, conhecida na vizinhança por Cavalariças dos Bristols. Essa mesma vizinhança saíra naquela noite para a rua, ao ver os archotes no meio das árvores. Toby viu a luz reflectir-se em vários canos de mosquete, sentiu crescer à sua volta o clamor da multidão - um bramido gutural, próprio de um animal contente, prestes a fazer, enfim, a sua vontade - e deixou-se arrastar na onda desse clamor. Era demasiado tarde para o deter, agora.

      Mas, afinal, não houve tiros quando conduziu o cavalo, e a sua grotesca carga, para a entrada das carruagens. Ninguém se mexeu na confusão de amigos e inimigos quando entrou na alameda e, mais uma vez, passou o corpo de Harvey para o ombro. Voltou-se para todos, passou o olhar pelo mar de cabeças e ouviu a algazarra amortecer, obedecendo à mão que ergueu a pedir silêncio.

      - Parem todos! Já vieram demasiado longe.

      - E o senhor doutor?

      Sorriu da pergunta de Gabriel e replicou:

      - Eu vou levá-lo ao seu médico. - Ergueu de novo a mão, a mandar calar as risadas, e acrescentou: - Para mim a noite acabou e aconselho todos a seguirem o meu exemplo.

      Sabia que uma única palavra sua bastaria para que o final daquela noite fosse totalmente diferente. Ao recordar outra noite semelhante, na Wright Square, um ano e muitos trabalhos atrás, pensou que não cometeria injustiça nenhuma se se afastasse e consentisse que aqueles nós inflamados de pinheiro fizessem a sua obra. Todavia, havia inimigos na multidão, muitos deles armados. Embora a razão se debatesse com a sede de vingança, alegrou-se por triunfar a razão.

      A multidão avançou, como um homem só, mas Toby subiu para o alpendre da casa dos Bristols e gritou-lhe que recuasse. Gabriel estava já ao seu lado, empunhando duas pistolas que tirara não se sabia de onde, assim como o velho Leary. Onde fora o contabilista buscar o mosquete que brandia com tanta perícia? A seu lado estava também o capataz das docas Darby e meia dúzia de ajudantes, todos de porrete em punho. A estranha guarda de honra ergueu uma barreira à sua frente, contendo a multidão exaltada enquanto ele abria a porta maciça com um pontapé.

      Não se surpreendeu por encontrar no vestíbulo iluminado apenas um trémulo mordomo, que o mosquete de Leary manteve em respeito, encostado à parede. De pistolas apontadas, Gabriel seguiu nos calcanhares do amigo da porta para o vestíbulo e deste para a arcada alta e escura que dava para os salões de cerimónia.

      Visitara aquela casa mais de uma vez, para reuniões de médicos, e a sua voz e a do velho Bristol tinham ecoado antes por aquela mesma arcada, na luta que ambos travavam para influenciar a mentalidade médica de Savannah. Graças a essas visitas, sabia que o gabinete do velho doutor ficava a seguir às portas corrediças, ao fundo do salão principal - e sabia com igual certeza que, naquela noite, os gritos da multidão não chegariam para arrancar o velho da toca.

      Apesar da cólera que o consumia, não pôde deixar de sorrir do espectáculo que se lhe deparou. Matthewl Bristol, de roupão de seda florida e com a peruca a seu lado, trabalhava afanosamente a uma secretária, com um ajudante. Mordiscava a pena, envolto na aura da luz das velas, e o olhar que lançou na sua direcção por cima dos óculos grossos, trasbordava inocência...

      “Queres levar o joguinho até ao fim, velha raposa...”, pensou Toby. “Esperas ser surpreendido pela notícia de que me encontro cego, caído na serradura da Tondee's lavem, e tens, sem dúvida, provas convincentes de que o teu filho agiu por conta própria, na rixa de há pouco. Naturalmente até serias capaz de te resignares a tratar-me os ferimentos, se nenhum dos médicos teus lacaios quisesse tocar-me.”

      Com passos firmes, passou pela frente do velho e atirou o corpo de Harvey para um sofá, junto da parede do fundo.

      - Não olhe com tanto espanto, doutor. Como vê, seu filho vomitou e sangrou. Encontrará nos manuais de medicina remédios apropriados para a bilis...

      - Que lhe fez?

      O velho Bristol pareceu arrancar as palavras da garganta e caiu de joelhos ao lado do sofá. Ao ver-lhe as mãos descarnadas e biliosas percorrerem o peito de Harvey à procura de costelas partidas, Toby aguardou as consequências.

      - Se o matou, Kent, eu...

      - Se o matei, tenho uma dúzia de testemunhas que afirmarão que o fiz em defesa própria. Pode dizer o mesmo dos dois rufiões a quem pagou para me assassinarem em duelo?

      - Levá-lo-ei ao tribunal por isto!

      - Agradar-me-á muito a oportunidade de o levar a si, e ao seu último rufião, perante um juiz! Deixe de ser idiota, Bristol. Não compreende que estou em Savannah para ficar?

      Saiu do gabinete, sem fazer caso do palavreado iracundo do velho médico, mas estacou ao ouvir destravar uma pistola atrás de si. Gabe, ainda voltado para o gabinete, disparou imediatamente, dando a impressão de que nem apontava. Toby virou-se a tempo de ver o ajudante cambalear atrás da secretária e cair na cadeira, com um pulso esfacelado.

      - Outro ponto a tomar em consideração, doutor: não arme os seus janízaros antes de os ensinar a disparar... e a não ser que queira uma luta de morte. - advertiu Gabriel. - Mais: desista de nos combater, se quer continuar em Savannah. Somos mais que vocês, Matthew, aqui e em toda a parte. Mantenha-se no seu lugar, se quer que nos conservemos no nosso.

      Deu uma palmadinha no ombro de Toby, como um actor donairoso que sabe sair quando ouve a deixa. Atravessaram o vestíbulo juntos., olhando desdenhosamente o trémulo mordomo. No alpendre, a estranha guarda de honra voltou a envolvê-los. Toby caminhou por entre a multidão, apertando as mãos que se lhe estendiam e lendo em cem pares de olhos uma promessa de aliança e de aceitação que ia além de palavras e apertos de mão.

      “De certo modo, Gabriel tem razão”, reflectiu, surpreendido. “Não me enganei acerca dos meus inimigos, nem do que seriam capazes para me destruírem, mas fui um idiota em não contar os meus amigos. Um idiota ao quadrado por não me ter obrigado a atravessar uma fronteira invisível, para ver se Nancy Gregory vinha ao meu encontro a meio do caminho!”

      Lara relinchou quando a porta da cavalariça se abriu. Conhecedora dos hábitos do dono, a égua ruça compreendeu o que ia acontecer antes mesmo de Toby lhe lançar uma manta sobre o dorso. Prolongados trotes ao luar, pela estrada do rio, eram um lugar comum na vida de Lara. Mas Tobias Kent disse em voz alta aonde iriam, quanto mais não fosse para se convencer de que não estava doido varrido.

      - Voltamos a Sangaree, minha linda, e desta vez percorreremos o caminho todo.

      As cavalariças da casa urbana dos Darbys davam para um beco, atrás dos jardins. Toby esgueirara-se enquanto a multidão dispersava na praça, orientando-se por instinto por entre o túnel formado pelos oleandros. Moisés, o cavalariço que tratava, de dia, dos cavalos, afastara-se a uma palavra sua. Como Lara, o escravo conhecia os hábitos do presidente da Companhia Darby e sabia perfeitamente que o Dr. Kent preferia selar a égua por suas mãos e sair sozinho.

      Sim, naquela noite iria até Sangaree, não retrocederia a meio do caminho! Teria, também, coragem de dizer a Nancy Gregory que a amava?

      Se conseguisse realizar esse milagre, deixá-la-ia interpretar a notícia como entendesse. Amando-a confiaria até no seu critério, no que respeitava ao futuro da companhia. Se ela e Pagnol... Mas afastou o francês do pensamento, enquanto conduzia Lara para o pátio, com cuidado, receoso de que os cascos do animal acordassem a casa adormecida. Se Nancy e Pagnol fossem amantes, limitar-se-ia a desafiar o francês e a confiar na sua pontaria. Um médico apaixonado tinha todo o direito de esquecer que era médico.

      Pelo menos assim pensava naquele momento, consciente, todavia, de que uma ética mais sã faria ouvir a sua voz, no dia seguinte - e consciente também de que a dura cavalgada que ia empreender era o único remédio para acalmar o tumulto do seu coração.

      Usara esse remédio muitas vezes, em noites de insónia ou quando o desejo ameaçava romper todas as barreiras. Nessas alturas precisava de ouvir as ferraduras de Lara baterem na estrada do rio, de adquirir a certeza de que algo muito maior do que um rio e um arrogante alpendre branco se entrepunham entre si e Nancy Gregory. Só essas realidades conseguiam convencê-lo a voltar para a cama, para a secretária sobranceira ao Savannah, para o trabalho diário.

      Naquela noite venceria o rio e entraria no jardim de Nancy, bateria à porta até o deixar entrar... Ou essa resolução desvanecer-se-ia quando parasse na margem do rio e fitasse a imagem do seu desejo?

      Saltou para a sela antes que a dúvida o vencesse e estremeceu, ao sentir o frio da meia-noite morder-lhe a carne. Só então notou que ainda estava nu da cintura para cima. Sorriu, ignorando por momentos o bater apressado do seu pulso. Nem um Romeu do mato ousaria declarar-se de calções de pele e botas altas, com o sangue de um adversário ainda a sujar-lhe o dorso nu!

      Prendeu Lara no alpendre da cozinha e entrou em casa pela porta de serviço. Seguindo um caminho muito seu conhecido, do armário das conservas até à cozinha, em cuja chaminé ardia um brasido, atravessou o aposento guiando-se quase só pelo tacto, lembrou-se da tábua que estalava na escada dos criados e chegou ao vestíbulo dos quartos numa dúzia de passadas largas. Aí, encontrou a porta do quarto mais pelo tacto do que pela luz da vela que ardia ao fundo da escada.

      Como de costume, fumegava um jarro de água no fogão, a contar com o seu regresso tardio da clínica. Lavou-se com cuidado, vestiu uns calções limpos e um casaco de uniforme, cujos botões, graças a Jubal, brilhavam ainda como pequenas luas, e pôs um tricórnio que vira a guerra de Saratoga a Vermont. Sem saber porquê, parecia-lhe apropriado invadir os domínios de Nancy Gregory de uniforme.

      O bater leve, à porta, não o surpreendeu; contara com aquele risco. Martha aparecera-lhe muitas vezes, assim, de emboscada, quando ousava regressar a casa antes de Roy. Resmungou um “Entra!”, sabendo antecipadamente que viria de penteador branco, com os cabelos soltos e, antes mesmo de parar defronte da janela iluminada pela luz das estrelas, que não havia mais nada além dela dentro do penteador.

      - Pareceu-me ouvir-te subir, Toby.

      - Não me digas que continuas a ter o sono leve? Por muito que o desejasse, não conseguia falar-lhe sem ironia, nem deixar de insinuar que esperara encontrá-la ausente, com um dos seus cortejadores. O talento de Martha para adquirir, satisfazer e despedir amantes era notório em Savannah. Toby convencera-se havia muito tempo de que Roy, feliz no seu dispensário, era talvez o único macho maduro da Jórgia desconhecedor da sua acessibilidade. Compreendeu, acto contínuo, que naquela noite estava acessível, ardente instrumento pronto a libertar-se do ilusoriamente modesto penteador e a vibrar em qualquer nota que ele desejasse.

      - Esperavas que eu não estivesse, não esperavas?

      - Para te ser franco, esperava.

      - Não estás a ser muito galante, Toby.

      - Posso sê-lo ainda menos e insinuar que estou com pressa...

      - Um encontro... a esta hora?

      - Porque não?

      - Com a habitual senhora dos teus sonhos? A que nunca te aceitará?

      - Nunca tentei desmascarar os teus pecadilhos, Martha. Porque especulas com os meus?

      - Não se trata de especulações, meu querido. - A sua voz adoçara-se como por magia, mas Toby não sabia se o trémulo era autêntico ou mero subterfúgio. - Vi-te trazer a Lara e sei onde tencionas ir esta noite.

      - Como podes saber?

      - Somos amigos há tanto tempo, Toby Kent, que leio em ti como num livro. - Deu um passo em frente, com as longas pestanas a tremer e os olhos baixos e tímidos como os de qualquer donzela. - Vais a Sangaree...

      - Se insistes...

      - ...olhá-la através do rio, como qualquer rapaz doente de amor. Não é verdade?

      - Vou visitar Mrs. Gregory.

      - Não se visitam senhoras a esta hora.

      - A hora não interessa; temos de discutir um assunto há muito adiado. Se queres que te diga, duvido que a minha visita a surpreenda.

      - Sabes que o Pagnol está em Sangaree, esta noite?

      - Pagnol que vá para o diabo!

      - Manda-o para o diabo as vezes que quiseres, mas ele é amante de Nancy Gregory.

      - Não acredito.

      - Foram no veleiro para a casa da plantação antes de escurecer. Voltarão amanhã.

      Ao lembrar-se do que vira pela janela do escritório, sentiu as faces escaldar.

      - Não tens o direito de dizer tais coisas da tua cunhada, pelo menos enquanto não puderes prová-las. Ela não desce a falar de ti, pelo menos que eu tenha ouvido.

      - De que falou ela que tu tenhas ouvido, além de notas de carga e preços de tabaco?

      Voltou-se para a porta e praguejou entre dentes ao ver que se entrepunha no seu caminho.

      - Dá-me licença, Martha; daqui até ao vau é uma longa cavalgada.

      Sem se desviar, Martha pousou-lhe docemente a mão no braço.

      - Talvez seja melhor deixar-te ver com os teus próprios olhos... Sabes que Pagnol deu o dinheiro para a reconstrução de Sangaree?

      - E depois?

      Era voz corrente em Savannah que a maior parte da grande casa da plantação fora restaurada no ano anterior graças à generosidade do francês. Nancy Gregory, escudada atrás do seu orgulho especial, ficara imperturbável perante o boato. - Não te lembras do que te disse na tua primeira noite nesta casa? É um pirata... ou, o que é pior ainda, o cérebro que planeia os assaltos.

      - Pensa no que dizes!

      - Digo-te que Nancy o ajuda, em troca do dinheiro para restaurar Sangaree! Digo-te que ela o informou da data de saída de todos os barcos que a Companhia Darby perdeu!

      - Não podes provar uma só palavra dessas acusações.

      - Tu podias, se te atrevesses.

      - Basta, Martha!

      - Porque és um idiota tão grande, Toby? Sou tua amiga. Porque não me dás ouvidos?

      - Porque é o teu ódio por Nancy que fala, não tu.

      - Não estamos unidos nesse ódio?

      - Talvez tenha sido injusto com ela.

      - Devia ter adivinhado que acabaria por enfeitiçar-te! - exclamou Martha, triunfante. - Como o conseguiu? Convidando-te para o cotilhão de amanhã?

      - Creio que dissemos o que tínhamos a dizer. Mas ela deteve-o uma vez mais, segurando-o pelos ombros e colando ao seu o corpo coleante. Por instantes, Toby sentiu-se irresoluto, perturbado com a sua proximidade.

      - Ela só troçará de ti, Toby, ao passo que eu poderia amar-te como nunca foste amado. Porque não consentes que to demonstre?

      Soltou-se violentamente e voltou-lhe as costas, fitando as brasas quase apagadas enquanto tentava dominar-se. A fome de Martha pela sua carne (apesar do pânico que naquele momento o invadia, tinha a certeza de que essa frase grosseira retratava com justiça os sentimentos de Martha Darby) nunca se manifestara com tanto abandono.

      - Quero pertencer-te, Toby, quero ajudar-te de todas as maneiras...

      Tobias Kent voltou-se, fingindo uma serenidade que não sentia, e perguntou-lhe:

      - Os teus votos matrimoniais não significam, então, nada para ti?

      - Menos que nada. Roy é um bom homem e sei que tenho procedido mal para com ele, mas se soubesses como é enfadonho...- conteve-se com visível esforço e foi com patética sinceridade que prosseguiu: - Não tem importância, Toby. Julgas-me má mulher, mas não o sou, na verdade. Sou apenas... uma insatisfeita. Só outra mulher compreenderia quanto pode ser inadequado um homem como Roy.

      - Pelo menos não te finjas insatisfeita!

      Mas Martha não se ofendeu com a brutal alusão:

      - Outras mulheres têm tido amantes enquanto esperam por aquele que verdadeiramente desejam. - Colou de novo ao dele o corpo perturbante e concluiu: - Se te disser que esses peralvilhos foram menos que nada não acreditarás, talvez nem sequer te importes. Mas é verdade.

      - Boas-noites, Martha.

      - Outrora pertencemo-nos tão naturalmente, Toby! Porque não podemos agora continuar a ser naturais?

      - Boas-noites, Martha!

      - Lembras-te do velho guerreiro da caverna? Lembras-te como parecia sorrir, à luz da fogueira, quando me apertavas nos braços? Quando te suplicava que não deixasses nunca de amar-me e tu prometias que jamais deixarias? Quase cumpriste a promessa! Quero essa espécie de amor outra vez, Toby Kent, quero ser esmagada, vencida e erguida para um mundo diferente!

      Beijava-o ardentemente, abraçava-o como se não pudesse deixá-lo partir, como se os seus braços e os seus lábios não pudessem desprender-se do seu corpo e dos seus lábios. Toby sentiu a sua própria carne tensa, cansada de se dominar, sentiu os grandes instintos primitivos do seu ser vibrar em contraponto com o bater desordenado do coração de Martha. Havia mais de um ano que não tinha uma mulher nos braços - um ano e um dia, exactamente, pois decorrera um ano e um dia desde que Nancy se fizera passar por criada, na barcaça. A recordação salvou-o a tempo, explodindo-lhe como uma luz branca no cérebro. Libertou-se violentamente e agarrou no velho tricórnio de combate, como um homem que se agarra a uma palha num ciclone.

      - Amanhã lamentarás isto, Martha.

      - Tu, tu é que lamentarás, meu querido. Mas não faz mal, voltarás!

      - Não, enquanto estiver no meu juízo.

      - Lembra-te de que me acompanharás, amanhã, ao cotilhão, enquanto o meu legítimo marido labuta no hospital. Não permitas que o medo te leve a proceder com descortesia.

      - Medo não é o termo adequado, Martha. A não ser que honra seja palavra demasiado grande para o teu vocabulário.

      - Nesse caso, prova que não tens medo: dá-me um beijo de boas-noites, antes de partires para Sangaree.

      Abraçou-o outra vez e, sem saber como, Toby compreendeu que as suas bocas se tinham aproximado, unido, misturado. Recordações de um êxtase compartilhado queimaram-lhe os sentidos, despertaram, como uma chicotada, instintos adormecidos, as suas mãos repetiram carícias esquecidas e os seus lábios, descendo da boca para o pescoço e para o colo, relembraram deleites antigos... Mas desta vez - foi Martha quem se libertou, foi Martha quem se afastou e se dirigiu lentamente para o lume quase extinto. Toby leu-lhe o sorriso e identificou o símbolo exterior do triunfo - do mais antigo triunfo da mulher que marcou a sua presa e sabe que pode reclamá-la quando quiser.

      - Vai para Sangaree, Toby; sei que voltarás.

      - Voltarei... para mal de ambos.

      - Não sentes uma palavra do que dizes.

      - Verás, Martha - replicou, lutando ainda por dominar-se completamente.

      - Há pouco estivemos em Sachem Cave. Poderemos voltar quando quisermos, - É impossível voltar atrás, Martha. Adivinhou o seu gesto antes mesmo de os seus dedos agarrarem os cordões do penteador. Viu o tecido abrir-se do pescoço à cintura, da cintura aos artelhos finos, e desaparecer na escuridão, como um pássaro sem ninho. Martha avançou suavemente, para que a claridade do lume lhe iluminasse a perfeição da nudez, e Toby compreendeu que falara verdade: toda aquela carne vibrante lhe lembrava a rapariga de Sachem Cave, a rapariga que fora, em tempos, uma parte de si mesmo, que lhe estivera no sangue.

      - Isto prova-te que tenho razão, Toby?

      - O demónio soube fazer-te!

      Martha agarrou no penteador e desapareceu, parando no vestíbulo para soltar uma gargalhada, mas o murmúrio da sua voz tentadora ficou a vibrar no quarto. Toby foi atrás dela, praguejou ao chocar com o corrimão, desceu às apalpadelas para a cozinha e correu para o ar livre. Lara levantou a cabeça, impaciente, e relinchou de pura alegria equina quando o dono lhe saltou, enfim, para a sela.

      Foi uma longa cavalgada, mas a memória de Toby registou apenas imagens vagas e confusas: pinheiros esguios e descarnados de braços estendidos para as estrelas, o pio de um mocho à beira da água, o murmúrio metálico dos palmitos nas terras baixas - ténues sussurros da natureza que mal roçavam na sua sensibilidade logo se perdiam na cacofonia das ferraduras de Lara e nas pragas guturais que escapavam dos lábios do cavaleiro.

      Muito mais tarde lembrou-se de que metera pelo caminho habitual - a trilha de carros que serpenteava para leste, à saída de Savannah, contornava o matagal do que fora o Trustees' Garden e se juntava à estrada do rio algures entre os limites da cidade e o vau de Sangaree. Mais tarde ainda, admitiu que só por sorte escapara naquela noite sem o pescoço partido, quando, após horas de louca galopada, puxara violentamente as rédeas e parara, enfim, a olhar o seu destino através da superfície calma do rio.

      À luz serena das estrelas, antes de romper o dia, Sangaree parecia distante como um templo “branco, tranquila como um monumento a uma era passada. Observara tantas vezes a grande casa senhorial que não precisava de quaisquer pontos de orientação. Apesar do negrume que parecia envolvê-la como um véu de cetim, podia localizar o alpendre arrojado, os canteiros simétricos dos jardins convencionais, o carvalho que já era verde e musgoso quando Colombo não passava de um visionário inofensivo.

      Ali, agrupados no desembarcadouro, ficavam os edifícios de trabalho da plantação, a forja, o armazém e as eiras; ali, na planície seguinte, erguiam-se, em filas certas, as cabanas dos escravos, caiadas de fresco; ali, a desdobrarem-se em todos os sentidos, estendiam-se os arrozais, de um verde suave na escuridão da noite, a murmurar com a invasão da maré... Os seus olhos fixavam-se em tudo, famintos como os de um homem que olha de longe a entrada de um céu que nunca alcançará. Depois, com uma palavra murmurada a Lara, desmontou e conduziu o animal suado para a água.

      Deixando a montada em liberdade, sentou-se, como sempre fazia, sob o maior salgueiro daquele lado do Savannah, enquanto a resolução - a sua resolução tão firme! - o abandonava lentamente.

      Lara, que bebia, sossegada, à beira do rio, acorreria a um aceno seu. Dentro de poucos momentos, talvez estivesse de novo a caminho, talvez regressasse a casa, a trote lento, a casa e à montanha de trabalho que o esperava. Por enquanto, bastava-lhe olhar a silhueta branca e deixar que a serenidade ambiente lhe invadisse o espírito, de mistura com um anseio que nunca saberia traduzir por palavras. Martha, e a tentação ardente da sua carne, eram menos que nada, agora. No dia seguinte, na Fiação, teria tempo suficiente para pensar nessa ameaça.

      Do lugar onde estava não distinguia bem o curso principal do Savannah. O braço que separava a ilha de Sangaree do continente, e que na realidade não era mais que um regato que enchia e vazava com a maré, tinha talvez cem metros de largura naquele ponto. Vadeável com a maré vazia, a sua profundidade a meio canal permitia no entanto que por ele navegassem as barcaças da plantação e as pequenas embarcações costeiras que serviam as construções agrupadas no ancoradouro. Toby contou as barcaças ancoradas, quase todas de transporte de madeira, embora reconhecesse uma de pedreiro e outra de vidraceiro, esta na própria doca. Tudo indicava que as reparações se efectuavam agora na ala sul. Amanhã, ou no dia seguinte, os vidros seriam repostos no mirante do lado leste e desapareceriam assim os últimos vestígios da revolução. Era estranho como conhecia tão bem Sangaree, embora nunca lá tivesse posto os pés, e mais estranha ainda a facilidade com que, naquela 'noite, aceitava a sua magnificência.

      Como Nancy e a animosidade que, mais forte que um escudo, se erguia entre ambos, aquelas paredes tinham sido construídas para a eternidade. Bastião de riqueza no Novo Mundo, continuariam a dominar tudo à sua volta. A Companhia Darby e a sua procura de abundância podiam ser um êxito ou um malogro; Sangaree continuaria a erguer-se, inviolada. à beira do rio bonançoso, padrão tranquilo' que nenhuma revolução podia modificar.

      Padrão de beleza, como a sua dona... Mesmo que atravessasse agora o vau, que invadisse os jardins que começavam a brilhar como uma imensa esmeralda à luz matinal, que entrasse no seu quarto com a lama do rio ainda húmida nas botas e a possuísse antes que acordasse, mesmo assim, continuaria inviolada.

      Reflectiu nessa possibilidade durante um longo momento, sentindo extinguir-se a última chama de desejo. A posse da carne, essa fome furtiva e eterna, não bastava. Em Martha, talvez fosse a justificação da vida, o pólo em redor do qual toda a existência girava; podia fundir a sua carne na de Martha tão casualmente como Gabriel o fazia com uma rameira de Muskrat Town. Com Nancy, essa união física seria apenas o princípio, com Nancy, teria de oferecer-se a si mesmo, todo ele, antes de pensar em posse.

      Com Nancy, teria de esperar que ela própria se oferecesse, nas suas condições, de esperar, em suma, que ela transpusesse a fronteira que tão fatal e completamente os separava. Não podia acusar ninguém, só o destino era culpado se o braço do rio de Sangaree, tão cruelmente largo no dia nascente, os separava para sempre.

      Mas não se mexeu, embora a razão tivesse voltado e reclamasse a sua contrariada adesão. É possível perdoar a um homem por olhar tempos esquecidos o desejo do seu coração, ainda que o saiba fora do seu alcance.

      A luz avançava agora como uma coisa viva entre as palmeiras e os carvalhos da ilha Sangaree. A aurora, alegre como uma moça a dançar, alastrava da água cor de chumbo ao catavento dourado que encimava a eira, das ardósias do mirante de oeste à mansarda pontiaguda da casa propriamente dita. Toby fitou Sangaree com os olhos dilatados, acariciando cada pormenor do domínio de Nancy: a antiga casa do poço, envolta em trepadeiras; as folhas recortadas do acanto, acima de uma porta com a brancura do marfim; os degraus largos, ladeados de vasos, que desciam para os jardins fronteiros ao Savannah.

      Singularmente, parecera-lhe tudo muito mais real visto à luz das estrelas. Intrigado, reflectiu nesse fenómeno, perguntando-se por que motivo a primeira luz do dia lhe contrairia a visão, como se observasse a residência de Nancy Gregory através de um pequeno telescópio assestado ao contrário, obtendo uma sensação de distância que o seu coração não aceitava, mas que a sua razão sabia inevitável.

      O veleiro balouçava na água havia algum tempo, na sombra da outra margem. De súbito surgiu bem à vista, com o primeiro reflexo do sol a brilhar na ponta do triângulo da vela. Banhada na radiância do novo dia, a pequena embarcação parecia flutuar em pleno ar, em vez de na água, um barco numa miragem, suspenso na luz cinzento-pérola entre céu e mar. Mas a miragem desfez-se e o dia irrompeu violentamente, não deixando a Toby dúvidas quanto à identidade do veleiro: era o de Nancy Gregory.

      Fitou-o durante muito tempo, sem querer admitir, não obstante toda a evidência, que a sua visão e os seus pressentimentos não o enganavam.

      Lara acorreu ao seu assobio e Toby conduziu-a para o abrigo dos carvalhos, prendeu-a o melhor que pôde e regressou ao rio, de gatas. Ocultando-se atrás de uns arbustos, verificou que o veleiro estava ainda demasiado longe para que a sua presença na margem tivesse sido notada. Pelo seu lado, embora reconhecesse a mastreação, também não distinguia se era um homem ou uma mulher quem ia ao leme.

      Apesar de não se ter demorado um quarto de hora naquele esconderijo, pareceu-lhe uma eternidade. Várias vezes esteve quase a desistir e a afastar-se; tudo era preferível, afirmava a si mesmo, a desvendar o mistério daquele barco e de quem o tripulava. O que nele havia de melhor aconselhava-o a montar Lara e a regressar a Savannah, mas uma força oposta obrigava-o a ficar, a esperar que o veleiro ultrapassasse a curva seguinte, pois em virtude da conformação da enseada, o timoneiro teria de passar por ali. O canal corria menos de quinze metros abaixo da margem e quando o botaló virasse outra vez o timoneiro constituiria um alvo excelente... se fosse Félix Pagnol.

      Martha dissera que Pagnol era amante de Nancy... Atribuíra a afirmação a despeito feminino, ainda que não esquecesse o bilhete que encontrara na secretária de Nancy, a imagem que dos dois captara naquele mesmo veleiro, da janela do seu escritório, e o facto ainda mais significativo de a riqueza do francês ter pago a restauração de Sangaree, até ao último tijolo caiado das cabanas dos escravos. Agora, ao ver a brisa enfunar a vela, rezava com toda a alma para que Pagnol não estivesse a bordo. Claro que no coração lhe ia coisa bem diferente. Assolado pela febre verde e venenosa do ciúme, procurava transmitir ao cérebro a loucura que o atormentava.

      Talvez surpreendesse o par culpado sentado no banco do veleiro, de regresso a Savannah após uma noite branca de amor. Nancy ia muitas vezes de barco para a doca Darby, pois preferia o trajecto pelo rio à longa cavalgada pela estrada ribeirinha. O botaló virou-se, a meia corrente, e Toby franziu os olhos, num esforço de concentração. Mas a distância era grande e não lhe permitiu ver pormenores. Percebeu apenas que quem manobrava o leme aproveitava a brisa com perícia e mostrava conhecer bem a rota.

      Teria regressado a Savannah noutras madrugadas, com o francês a seu lado? A sua imaginação transtornada comprazia-se em mostrar-lhe imagens torturantes. O banco seria almofadado e Pagnol, elegante como uma borboleta de cetim, escolheria aquele momento para travar o leme e puxar Nancy para os seus braços...

      Ao recordar o beijo ambíguo que ela lhe concedera, fácil lhe foi imaginar aquele outro beijo e calcular que a audácia do francês não ficaria por aí, o levaria triunfalmente muito para além de simples beijos.

      A razão tentou afastar-lhe o quadro do pensamento, sem muita firmeza. Só um idiota estaria ali de emboscada, como uma fera... Enquanto assim pensava, notou que se encolhera mais atrás da moita e tirara a pistola do cinto. Bastou-lhe um olhar para ter a certeza de que a escorva estava bem seca e a pederneira perfeitamente equilibrada contra o fuzil metálico. Não se tratava de nenhuma arma de janota, mas de uma mortífera pistola inglesa feita do melhor aço de Sheffield, com um gatilho que respondia à mínima pressão. Nunca a utilizara contra um inimigo, embora a tivesse tirado do cinto de um oficial morto do Exército de Sua Majestade Britânica, como trofeu de guerra. Servira-lhe para enganar o tédio, nos anos que passara nos campos de batalha. Os rangers de Darby raro tinham falta de pólvora e de balas e o cirurgião do regimento divertira-se a levar a palma aos seus melhores atiradores.

      A pistola inglesa servir-lhe-ia, agora, para outro fim, se Félix Pagnol ousasse mostrar a cabeça acima da amurada do veleiro que se aproximava velozmente.

      A embarcação encontrava-se a escassos duzentos metros e vogava suavemente com vento de feição, parecendo deslocar-se sem auxílio humano. Seria a sua visão uma realidade? Teriam Nancy e o francês travado o leme para gozarem uns últimos momentos de amor?

      Apoiou-se nas mãos e nos joelhos e levantou-se. Ouviu um estalido metálico quando os seus dedos tensos levantaram o cão da pistola, sem intervenção consciente do seu cérebro. De súbito, o sol nascente cegou-o, com o seu brilho, e as ideias desanuviaram-se-lhe como por encanto. Só então compreendeu, antes mesmo de o bater louco do seu coração acalmar, que jamais seria capaz de levantar aquela pistola para assassinar Félix Pagnol.

      A arma caiu na erva alta, sem um som, e Toby aproximou-se da margem, bem à vista, no momento em que a escota do botaló do veleiro rangia na curva. A deslizar rapidamente com a água castanha a fervilhar no talha-mar, a pequena embarcação aproximou-se de terra, impelida pela brisa matinal, até se encontrar apenas à distância de uma pedrada da margem. O timoneiro continuava oculto pela vela-mestra. De repente, a cana do leme subiu, o botaló virou com brusquidão e o gurupés girou, como se fosse raspar pela barreira esponjosa aos pés de Toby.

      O vento açoitou a vela-mestra e o doutor viu, finalmente, Nancy, estendida ao comprido ao longo da amurada, com o leme preso entre os joelhos e a faixa colorida da cabeça a esvoaçar alegremente ao vento.

      Se se assustou quando os seus olhos se encontraram, soube ocultar admiravelmente a surpresa. Foi a sorrir, até, que ergueu a mão num cumprimento. A balouçar como uma palha no Savannah, o veleiro oferecia-se à inspecção de Tobias Kent, da popa à proa. Em cima do banco encontrava-se apenas uma maleta.

      Um soluço de alívio estremeceu na garganta de Toby, que o sufocou a tempo e levantou a mão, para retribuir o cumprimento.

      - Não saiu hoje muito cedo, doutor?

      - Não mais do que a senhora.

      - Acautele-se, se não chego primeiro ao escritório!

      - Lara anda mais depressa do que esse veleiro.

      - Experimentamos?

      - Como queira.

      Embora a sensação de alívio fosse tão grande que lhe causava vertigens, Kent teve ainda presença de espírito para se admirar da firmeza da sua voz. Urgia que Nancy Gregory não suspeitasse sequer, que a espiava, e a Sangaree, desde a madrugada.

      - Porque está na estrada do rio a esta hora, doutor? Ou a pergunta é inconveniente?

      - Estive fora toda a noite, por causa de uma chamada do interior.

      - Da próxima vez pare em Sangaree e dessedente o cavalo. Se soubesse, levá-lo-ia no veleiro comigo.

      - Não é perigoso para mim... parar em Sangaree? - Levantara um pouco mais a voz, pois o veleiro manobrava para entrar o canal que conduzia à terra.

      - Como quer sabê-lo sem experimentar?

      Toby ficou sozinho na margem até a vela ser apenas um pontinho branco na imensidão barrenta do Savannah. Depois saltou para a sela e deixou a égua seguir à vontade. Naquele dia, pelo menos, Nancy Gregory que fizesse o que lhe apetecesse do escritório Darby e de todas as suas riquezas.

      Talvez que, se cavalgasse pelos ermos até escurecer, conseguisse ordenar os pensamentos turbilhonantes e descobrir maneira de a enfrentar quando se encontrassem no baile da Fiação.

     

     A FIAÇÃO

      Toby olhou fixamente o janota afectado reflectido no espelho, e o janota correspondeu-lhe com um olhar igual, duplicando a expressão carrancuda, as pernas cobertas de seda, o colete justo e a espuma da renda francesa no peito da casaca de cetim preto.

      Demorara-se a vestir-se para o baile da Fiação, desejoso de adiar o máximo que a decência permitia a descida para o salão, onde Martha o aguardava. A calma que invadira o seu espírito era mais letargia que resignação, renúncia de nervos fatigados, entorpecidos por uma noite em claro e por um longo dia passado em sítios ermos, que mal recordava.

      - Para ser franco, sinto-me como um macaco de rabo enrolado.

      - Talvez, meu filho, com essa vestimenta... Mas, se isso pode servir-lhe de algum conforto, lembre-se de que está mais bem parecido, assim.

      Toby recordou-se da presença do capitão Bronson. O comandante da Darby Belle balouçava-se numa cadeira e assistia, com irónico divertimento, aos preparativos do presidente da Companhia Darby para o seu primeiro cotilhão.

      Desprendia-se de Bronson um aroma a mar que ajudava a recuperar o sentido das realidades. Da jaqueta grossa ao barrete inclinado sobre uma têmpora curtida pelo tempo, o capitão era um autêntico marinheiro. Aqueles olhos que tinham visto passar furacões eram capazes de assistir, sem pestanejar, ao ataviamento de um peralvilho. Toby ficara satisfeito por o seu capitão favorito ter escolhido aquela hora para o visitar, pois tudo lhe parecia preferível à certeza de que em breve, pularia com Martha ao compasso da música, sob todos os olhares de Savannah.

      - Porque não vai ao baile, capitão?

      - Agradeço, mas nem pensar nisso é bom. Lutei com canibais e sobrevivi para me gabar disso, mas não arrisco a minha sorte junto de um bando de mulheres tagarelas. Além disso, tenho encontro marcado no Bird in Hand com uma caneca de ponche frio e um peru corado.

      - Podíamos ter falado amanhã...

      - Não com o carregamento a efectuar-se ao ritmo presente. Talvez possa, até, partir com a maré.

      Toby levantou a cabeça das ministrações de Daniel, o escravo doméstico que, ajoelhado aos seus pés, lhe ajustava mais ainda os cordões do colete. O barco de Bronson, ancorado no cais debaixo da encosta, carregava tabaco desde manhã, com um turno completo de estivadores, mas mesmo assim parecia incrível que já estivesse cheio.

      - Contratou estivadores extra, capitão?

      - A ideia foi de Miss Nancy, não minha. Disse que, durante a sua ausência, era ela quem mandava e quanto mais cedo o tabaco chegasse a Whitehall melhor.

      Toby susteve a respiração quando Daniel, puxando com toda a força, lhe ajustou o comprido colete vermelho até ficar tão apertado como um espartilho feminino e lhe ajeitou, por cima, as pontas da casaca. Naquele momento, sentiu-se grato por as exigências da moda lhe tirarem a respiração. Não podia admitir que confiara o escritório a Nancy, naquele dia, por ser incapaz de encará-la, e muito menos que percorrera durante horas a fio a desolação dos campos sem encontrar a serenidade de espírito por que ansiava.

      - Se tivermos tempo de aproveitar a maré, poderei soltar as amarras sem aviso, como de costume?

      - Se já resultou no passado, porque não resultaria agora?

      Bronson riu baixinho do artifício só conhecido de ambos. Nas duas últimas viagens, a Darby Belle largara rio abaixo entre a meia-noite e o nascer do sol e ancorara à entrada da barra do porto. Ao abster-se de anunciar a data da partida, Toby proporcionara ao capitão a possibilidade de fazer-se ao mar sem aviso. Às vezes, apenas para variar, o navio almirante da Companhia Darby ficava no cais dias a fio, até que Bronson convocava a tripulação com uma hora de antecedência e partia quando menos se esperava.

      Ultimamente essas precauções tornavam-se cada vez mais necessárias, sobretudo numa viagem daquelas, com uma fortuna em tabaco superior a bordo. Como todas as companhias jorgianas possuidora de barcos, a Darby sofrera o seu quinhão de prejuízos resultantes da pirataria, embora as suas unidades mercantes estivessem armadas. Bronson, que era tão capaz como qualquer pirata de travar um combate de retirada, preferia simplesmente lograr, pela astúcia, os assaltantes costeiros e os seus espiões de Muskrat Town. Uma vez no Atlântico, a Darby Belle levava a palma em velocidade a qualquer inimigo, desde que não se tratasse de unidade de guerra britânica.

      - Posso, então, informar Miss Nancy?

      - Eu informá-la-ei, capitão. Encontrar-nos-emos na Fiação, daqui a uma hora.

      Bronson ergueu as sobrancelhas, com um ar de morsa embasbacada, mas o brilho malicioso dos seus olhos desmentia essa imagem.

      - Vai, finalmente, dançar com a dama, doutor! Palavra que gostava de ver.

      - Ainda está a tempo.

      - Porque precisa de mim? Não me diga que está a perder a coragem, com todos esses belos cetins?

      O capitão da Darby Bell levantou-se e pareceu encher o aposento, apesar de baixo. Toby despediu Daniel e mais uma vez teve consciência da cordialidade máscula do marinheiro, de uma amizade que se estendia para além do seu interesse comum.

      - Diga-me uma coisa, capitão. Acha sensato... bem, acha sensato informar Mrs. Gregory das datas de partida dos barcos?

      - Porque não? Não é ela que escritura o diário referente ao movimento marítimo?

      - Talvez eu deva fixar mentalmente que tenciona partir de madrugada... Se levantar ferro com a maré, registaremos o facto depois de consumado.

      - Faça como entender, mas na minha opinião ela já sabe Se assim não fosse, porque contrataria todos os matulões da doca para trabalharem desde o nascer do sol?

      Toby encolheu os ombros e voltou-se para o espelho a fim de proceder a uma última e desesperante inspecção. A energia de Nancy dera outra vez provas, demonstrando, neste caso, que os assuntos do escritório podiam andar ainda mais depressa quando o presidente da companhia estava ausente de Savannah. Certamente a altura não era propícia a mencionar a sua vaga e covarde suposição de que Nancy, e ela só, era culpada...

      De quê?

      De ajudar, de cumplicidade com o amante, a arruinar a companhia e a engrossar a bolsa de Pagnol? De avisar os Irmãos da Costa, por intermédio de Pagnol ou por qualquer outro meio, das datas de partida dos barcos Darby? Nunca tal suspeita se lhe apresentara abertamente; era indigna de Nancy, como uma chapada de lama aos pés de uma vitória de mármore. Mas naquela noite permitiu que se expandisse e o avassalasse, até parecer que exercia pressão contra as paredes do seu cérebro.

      - Com licença, doutor, mas o peru já me espera há muito tempo - disse Bronson, encaminhando-se para a porta. - Gosto sempre de uma boa refeição antes de me fazer ao mar.

      - Se eu decidir revogar as suas ordens, onde poderei encontrá-lo?

      O rosto de Bronson, apertado entre as suíças bastas, abriu-se num sorriso heróico. Apesar do barrete atrevido, o capitão passaria facilmente por Jasão, assim banhado pela suave luz das velas, um Jasão sensato, que sabia ser o Tosão de Ouro uma miragem sem significado, mas que mesmo assim continuava a procurá-lo, pelo simples prazer da perseguição.

      - Como estará a pular na Fiação, bastar-lhe-á atravessar a Baía e gritar pela encosta abaixo. Estarei no tombadilho a partir da meia-noite e ouvi-lo-ei, pode ter a certeza.

      - Talvez Mrs. Gregory e eu vamos até lá, juntos...

      - Eis outra coisa que gostaria de ver!

      E Bronson deixou-o, a tremer de riso contido, com as pesadas botas de marinheiro a baterem o compasso com a música que subia pela escada. Só então Toby ouviu a suave melodia e calculou que seria Martha, que tinha o hábito de se entreter assim na espineta do salão grande. Endireitou os ombros, tentou dominar a tremura dos joelhos e foi ao encontro da música.

      O vestíbulo do andar de cima estava mergulhado em penumbra, pois o crepúsculo invadia já os jardins. A criada negra de Nancy, que dormitava à porta da ama, levantou-se e fez uma vénia ao presidente da Companhia Darby, quando este passou a caminho da escada. A lâmina de luz que saía por debaixo da porta feriu-lhe os olhos, ao mesmo tempo que o roçagar do vestido de Nancy, no quarto, e a canção que trauteava lhe feriam o ouvido. Por estranho que parecesse, notou tratar-se da ária que o capitão Bronson cantarolara, ao descer a escada de serviço, a velha balada familiar, apimentada com significado duplo, que Martha tocava no salão.

      Era próprio de Nancy trautear uma ária risquée enquanto se vestia para o baile e dava os últimos retoques nos planos para o manter na ordem, próprio dela demorar-se atrás daquela maciça porta de mogno e obrigá-lo a tomar a iniciativa.

      Vira um escravo trazer-lhe a maleta, da doca, logo seguido pela própria Nancy, após o dia afadigado no escritório. Da janela do quarto, faminto e ingrato, vira a sua sombrinha atravessar a Wright Square e o balão do largo vestido de algodão, do trabalho, quando transpusera o portão da casa. Ao ouvir-lhe os passos no corredor, tivera de lutar contra o desejo de correr à cavalariça, selar outra montada e fugir de novo para a duvidosa paz dos campos.

      Agora, a andar solenemente como um prisioneiro a caminho da forca, estugou um pouco o passo, receoso de que ela escolhesse aquele preciso momento para lhe aparecer. Foi quase com alívio que chegou à escada, transpôs a arcada alta que dava para o salão e se juntou a Martha Darby, que continuava sentada à espineta.

      Esperara encontrá-la, como de costume, com um enxame de galanteadores à sua volta, mas naquela noite parecia solitária, perdida na enorme mancha de claridade loura irradiada pelo grande candelabro. As velas arrancavam reverberações às jóias que lhe enfeitavam os cabelos negros, à rivière de diamantes que lhe afagava a garganta e aos anéis dos dedos que deslizavam pelo teclado. Embora tomasse imediato conhecimento da chegada de Toby, não o denunciou por qualquer gesto; limitou-se a erguer um pouco mais a voz, para sublinhar a quadra que cantava alegremente:

     

      Quando era solteiro sozinho vivi,

      Como tecelão andei a trabalhar

      E o único erro que cometi

      Foi o de jovem e loura donzela cortejar...

     

      Toda a casa sombria parecia vibrar com a velha balada escocesa, tão alegre apesar dos tons menores. Martha cantava-a com malícia, revirando um pouco os belos olhos ao chegar à quadra seguinte, que para si tinha significado duplo:

      Durante todo o Inverno a persegui E também durante todo o Estio, Mas o único erro que cometi Foi salvá-la do fresco, fresco rocio!

      Alguém riu baixinho, oculto atrás da poltrona de orelhas existente ao lado da lareira. Toby voltou-se na direcção de onde o riso partira, contente por saber que Martha não estivera a cantar para seu benefício exclusivo, embora calculasse que Félix Pagnol iria levantar-se da confortável poltrona onde se ocultara e estender-lhe a mão.

      - Sa voix a la vraie beauté, N'est-ce pas, M. le docteur? La beauté de la terre (Em francês no texto. “A sua voz possui a verdadeira beleza, não é verdade, senhor doutor? A beleza da terra.” (N. da T.).

      - Ou au diable! (Idem. “Ou do diabo!” {N. da T.).

      Toby deu consigo a responder concisamente, entre dentes, como lhe acontecia sempre que Pagnol insistia em falar francês. Naquela noite, a sumptuosidade do visitante irritou-o ainda mais que de costume. Mesmo ao lado do flamejante vestido de noite de Martha, o francês era um espelho da moda, uma sinfonia muda de branco e ouro, com comendas reais a brilhar no colete e um fulgor de rubis a faiscar na cruz de cavaleiro romano que lhe pendia de uma fita.

      - Não fique pasmado, doutor - recomendou, passando sem se atrapalhar do francês para o seu inglês com leve sotaque. - Acredite, pois é como conhecedor que lho garanto, que está tão bonito como eu.

      - É verdade - corroborou Martha. - Estás ansioso pela primeira dança escocesa?

      Toby franziu a testa e instalou-se no seu lugar costumado, uma poltrona de costas direitas, perto da porta. Escolhera-a por instinto havia muito tempo; daquele ponto estratégico podia ver o vestíbulo e o salão e, se preciso fosse, fingir que o chamavam do primeiro.

      - Não me julgues descortês, Martha, mas como sabes estou aqui esta noite compulsivamente, por assim dizer.

      - Isso ainda é pior que uma descortesia, doutor - afirmou Pagnol -; é grosseiro. Até o mais atarefado dos homens deve arranjar tempo para a música, para as mulheres e para o riso.

      Martha abanou a cabeça e arrancou à espineta algumas notas lamentosas.

      - Essas três coisas andam sempre juntas, Félix?

      - No meu país, são inseparáveis. E aqui também, se o nosso atarefado doutor quiser admiti-lo.

      Toby olhou fixamente o francês, mas não conseguiu imaginá-lo na mira da sua pistola. Seria mais fácil matar uma maravilhosa borboleta do que meter uma bala entre os olhos daquele pinoca, que só de aspecto o era. Se quisesse, o francês podia ainda ser seu amigo, ou um inimigo igualmente poderoso.

      - Diga-me, doutor - estou certo de que a encantadora Mrs. Darby não se oporá a que falemos de assuntos mais prosaicos na sua presença -, o jovem Bristol mandou-lhe, hoje, os seus padrinhos?

      Toby franziu outra vez as sobrancelhas, levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, nervosamente. Não falara a ninguém desde a rixa na Tondee's Tavern, mas tinha a certeza que a história se propagara por toda a Savannah como fogo de restolho.

      - Deve ter ouvido o que se passou, senhor. O jovem Bristol considera-me indigno da sua espada ou do seu chumbo.

      - Permite-me que o mate por si, como especial favor?

      Martha bateu as mãos, num gesto de irónica reprovação, com um beicinho delicioso:

      - Não consinto que falem em matar alguém em minha casa, cavalheiros.

      - Opõe-se à morte de Harvey Bristol, minha senhora? - perguntou Pagnol, erguendo as sobrancelhas. - Sempre a julguei possuidora da mais rara das virtudes humanas: bom-senso.

      - Mas não é bonito falar em matar alguém.

      - Nem mesmo um abelhudo como o jovem Bristol? Acredite-me, Mrs. Darby, o indivíduo é uma excrescência, uma verruga no grande e vigoroso corpo do jovem gigante a que chamam América! Se lhe extirparem algumas verrugas, o gigante só beneficiará com isso; ficará mais saudável.

      - Fala muito de abelhudos e verrugas, capitão Pagnol. Mas que mais é o senhor?

      Desta vez, Toby achou-se suficientemente calmo para se sentar no maciço sofá Sheraton e cruzar as pernas vestidas de cetim. Embora não imaginasse o motivo por que Martha defendia o jovem Bristol, agradava-lhe a pausa que esse facto lhe proporcionava.

      Pagnol, notou-o, aceitou a alfinetada impávido e sereno. A sua boca perfeita, finamente cinzelada, sorria ainda quando se debruçou sobre a espineta. Antes de falar, os seus olhos deliciaram-se nos contornos opulentos dos ombros e dos seios da interlocutora, demorando-se em cada curva como só os olhos de um francês são capazes de se demorar.

      - O que diz de mim é justo, Mrs. Darby. Aparentemente, não tenho ocupação.

      Martha recostou-se na cadeira, sorrindo também um pouco, como se lhe agradasse o cumprimento mudo do seu olhar acariciador.

      - Claro que têm corrido boatos...

      - Estou ao corrente da maioria. Segundo uns, tenho-me governado a explorar mulheres; segundo outros, sou um bastardo real, pago para me conservar longe de Versalhes. Mas consta sobretudo, com maior insistência, que sou pirata e encontrei em Savannah um porto de abrigo conveniente. Quer que lhe diga quem sou de facto, agora, na presença do doutor?

      - Acha que o acreditaríamos?

      - Palavras duras não ficam bem em lábios femininos, mas a sua beleza consente-lhe que as empregue deliciosamente. - Os seus olhos continuaram a deslizar dos seios de Martha para a cintura implacavelmente espartilhada, despindo-a com uma espécie de delicada avidez, deliciando-se em cada pormenor.

      - Continue, capitão - convidou Martha. - As histórias vão bem com a luz das velas.

      - Asseguro-lhe que não se trata de história nenhuma. O nosso bom doutor é um estudioso das doenças humanas e, com sorte, de vez em quando consegue dar com a cura certa de algumas delas. Mas eu, Mrs. Darby, eu estudo o homem no seu conjunto, inteiro. É esse o trabalho da minha vida; o local da minha residência não importa e o facto de ser francês é puramente acidental. Como aquele grande inglês que defendeu a vossa revolução com tanta eloquência, o mundo é a minha pátria...

      Toby interrompeu-o, irritado com o ar excessivamente convencido do indivíduo:

      - Compara-se a Tom Paine, capitão?

      - Apenas no que respeita a intenção, doutor. Creio que posso considerar-me um verdadeiro revolucionário; vejo os factos com toda a clareza. A vossa recente querela com a Inglaterra não passou, na minha opinião de uma fase da grande onda de inquietação que assola o mundo. No próximo ano, ou no seguinte, talvez se verifique o mesmo em França. Quem sabe onde se verificará a seguir? A única certeza é que o homem luta por libertar-se.

      - Guarde a política para as conversas de taberna, Félix- pediu Martha, em tom lânguido. - Falávamos de Bristol.

      - Exactamente. Esse rapaz é um exemplo ideal do contra-revolucionário.

      - Basta, por favor! A cabeça já me anda à roda.

      - Oh, compreendeu-me perfeitamente! O seu Mr. Bristol é um tirano nato, como o pai. Ambos crêem que o mundo foi feito para príncipes e escravos, mais nada, e eles tencionam continuar a ser príncipes.

      - O mundo seria uma sensaboria sem príncipes, Félix. E porque chamou a Harvey o meu Bristol?

      O rosto do francês não perdeu o seu ar inocente e blandicioso, mas a sua voz escorria malícia:

      - É do conhecimento comum que, quando regressou a Savannah, a sua primeira visita foi a esta casa, e que a senhora o recebeu.

      - Poderia proceder de outro modo? O pobre rapaz veio aliviar o seu coração...

      - Creio que está a creditá-lo com um órgão que não possui.

      - Diga o que disser, Félix, continuarei a defender Harvey Bristol. Chame-me romântica, se quiser...

      - Jamais houve alguém menos romântico, minha tentadora!

      - Afirmo que continua a amar a Nancy. Nega-o?

      - A maioria dos homens que conheceram a sua cunhada acabaram por amá-la. Porque havia o jovem Bristol de fugir à regra?

      Toby, ainda no seu canto do sofá, sentiu as faces escaldar. O duelo de Pagnol com Martha começava a acertar no alvo... Interveio outra vez, em voz que nem parecia sua:

      - Sim, Martha, porquê?

      - Se concordam um com o outro, estragam-me a discussão, cavalheiros!

      Martha levantou-se, enquanto falava, e, como se a enlaçasse um par imaginário, rodopiou graciosamente, num movimento que proporcionou um breve mas perturbador relance das meias de malha aberta, por cima das tiras dos sapatos de baile.

      - Queria apenas dizer que Harvey Bristol voltou para reatar o seu noivado com Nancy.

      - Quando e se a Companhia Darby falhar e Nancy voltar a ser rica? - perguntou Toby, azedo.

      - Pois claro! Que outra coisa podia fazer o pobre rapaz? Regressou sem vintém do ano passado em Inglaterra.

      - Estou informado de que tem uma fortuna escondida em Nassau - declarou Pagnol.

      - Devia confirmar as suas informações na origem, Félix. Harvey esteve menos de um mês em Nassau e teve de trabalhar a fim de pagar a viagem para Savannah.

      - Dizem, também, que a sua mulher inglesa morreu misteriosamente - acrescentou Pagnol, como se não a ouvisse.

      - Não lhe diria isso na cara!

      Toby pestanejou, surpreendido com a veemência de Martha; nunca a vira tão acalorada. Pagnol, porém, limitou-se a encolher os ombros:

      - Ofereci-me para lhe dar um tiro em nome do Dr. Kent. Não porque o doutor fosse incapaz de o matar tão facilmente como eu - fez uma vénia a Toby -, mas porque disponho de mais tempo livre.

      - O assunto é fraco para brincadeira, Félix - comentou Martha ainda com olhos ternos, embora parecesse lamentar a ideia de ter começado semelhante conversa. - Claro que tudo farei para que não vá além destas paredes...

      - Deverei afixar-lhe o nome na casa dos pregões? Ou desafiá-lo através das colunas do Mercury, de Mr. Thatch?

      - Mille regrets, mas perderia o seu tempo - afirmou Gabriel, entrando na sala pelas janelas rasgadas que davam para o jardim.

      Caminhava ligeiro, arqueando o dorso do pé como um gato contente, e dobrou-se delicadamente sobre a mão de Martha. Toby calculou que escolhera o momento da entrada, pois o jornalista, como convinha à sua profissão, não desdenhava parar junto de uma porta entreaberta e escutar o que podia.

      - Não mostre uma cara tão aborrecida, Martha; também fui convidado para o cotilhão desta noite - acrescentou Gabriel. - Mais, reclamo a sua primeira gavota!

      - Lamento, Mr. Thatch, mas já solicitei essa honra - elucidou Pagnol. - Evidentemente que se desejar contestar o meu direito...

      Gabriel pousou o chapéu e as luvas no aparador e desrolhou a garrafa de brandy que ali se encontrava, para uso dos visitantes.

      - Um desafio de cada vez, capitão Pagnol. Ao senhor e a mim será fácil encontrar pretexto para nos batermos em qualquer altura. Tratemos primeiro do Bristol.

      - Mas há pouco insinuou que ele não lutaria, ainda que o desafiasse publicamente.

      - Mesmo que o brutamontes soubesse ler, não estaria cá para aceitar.

      Martha regressou à espineta e começou a tocar um rondo.

      - Podem falar à vontade, cavalheiros; recuso-me a ouvir.

      Gabriel ignorou o lampejo de mau génio e continuou a medir Pagnol, com o olhar.

      - Surpreende-me um pouco, mon capitain, encontrá-lo do nosso lado.

      - A um bom jornalista nada deve surpreender - afirmou o francês. - É conveniente, também, que tenha o sentido das realidades. Porque não poderei provar a... digamos a minha admiração pela Companhia Darby?

      - Por uma razão simples: Harvey Bristol partiu com a maré da tarde, a bordo do navio mercante inglês Ariadne, a caminho de Nassau.

      - Certamente sabia que os amigos do Dr. Kent tencionavam desafiá-lo?

      Gabriel encolheu os ombros e redarguiu:

      - Eu próprio ia a caminho do quadro dos pregões, quando soube da sua partida. Por certo ninguém me' nega o direito de primazia a esse prazer?

      Toby recostou-se melhor no seu canto. Devia, sem dúvida, opor-se àquela discussão casual da morte de Harvey Bristol, mas a verdade era que a mesma o divertia muito. Gostaria de ver Gabriel afixar o seu desafio no quadro da casa dos pregões.

      O velho edifício, que abrigara a burocracia jorgiana desde o princípio de Savannah, sobrevivia havia muito ao seu nome, embora ainda se efectuassem transacções sob a sua cúpula gasta pelo tempo. O quadro de avisos era, por si só, uma instituição. Erguido à entrada da varanda da casa dos pregões e protegido dos assaltos dos elementos por um telhado pintado de branco, o “quadro dos pregões”, como era conhecido, anunciava partidas de barcos para o continente, vendas de gado nas quintas das terras altas, objectos perdidos e roubados que seriam restituídos mediante certo preço, amores desesperados traduzidos em versos de pé quebrado e damas que se ofereciam por determinado preço, em Muskrat Tow.

      Lá se anunciavam também, diariamente, desafios com e sem floreados de retórica. Se algum peralvilho digno desse nome permitia que um desafio para um duelo permanecesse afixado um dia inteiro ou mais, podia considerar-se desonrado. O próprio Gabriel, como jornalista combativo que era, arrancara mais de um desses desafios e devolvera-o ao provocador, a embrulhar uma bala. Como dizia, também tinha o direito de afixar um desafio, para variar.

      Naquela noite limitou-se a encolher os ombros, desanimado, e a murmurar:

      - Agora que a questão é académica...

      - Affaire entendue, Monsieur Thatch - interrompeu-o Pagnol, envolvendo Toby e o jornalista no seu melhor sorriso. - De futuro, competir-lhe-á defender os interesses do seu amigo; eu conservar-me-ei de reserva.

      Toby falou, finalmente:

      - Se o principal interessado pode dizer uma palavra...

      - Mas com certeza, doutor! Damo-nos apenas as mãos para lhe pouparmos... como dizer? - aborrecimentos sem importância.

      - O jovem Bristol não é, quanto a mim, um covarde. Não compreendo, portanto, por que motivo se pôs ao fresco.

      - Foi obra do pai - informou Gabriel. - Até aí soube eu... pela porta do quintal dos Bristols. Aparentemente, a noite passada houve grossa contenda na mansão, depois de entregarmos o corpo... e de o dito começar a falar. Podes ter a certeza, Toby, de que o velho Bristol esperava que o filho te matasse, na Tondee's, e, pior ainda, acreditava que a opinião pública apoiaria o crime. Agora que os cálculos lhe saíram errados, em ambos os sentidos, recolher-se-á ao seu antro por uns tempos, e o jovem Bristol, como armou mais uma vez em parvo, foi pura e simplesmente banido.

      - Não julgues que Matthew Bristol vá conservar-se no seu antro para sempre.

      - Alguma vez subestimei os nossos inimigos? - Gabriel riu baixinho e serviu-se de novo de brandy. - O que importa é que, a noite passada, venceste uma verdadeira batalha e que ele é suficientemente astuto para o admitir, pelo menos no âmago do seu negro coração. Da parte de Harvey não haverá mais bazófia nem olhos arrancados; doravante, servir-se-ão de outros métodos para te combater. No campo comercial, com o apoio das influências inglesas de Harvey, e na Associação Médica, quando eu te eleger responsável pela saúde pública. - Bebeu o brandy, estalou os lábios e acrescentou: - Espero que a batalha te agrade tanto como há-de agradar-me a mim.

      Martha bateu algumas notas altas e levantou-se da espineta, dizendo:

      - Por esta noite chega, cavalheiros. Estou pronta para o cotilhão. O Dr. Kent acompanhar-me-á como prometeu, se for capaz de esquecer ressentimentos e pensar em dançar.

      - Ressentimento, minha querida, é nome pouco apropriado para uma guerra de morte - comentou Pagnol. - Porque não aceita francamente a verdade? E porque, sobretudo, teima que o jovem Bristol é um cavalheiro e não um rufião?

      Desta vez, Martha brindou-os com o mais doce dos seus sorrisos e não recalcitrou.

      - Já não pode uma pobre mulher inculta exprimir a sua simpatia por um homem vencido? Será isso, também, proibido?

      - De modo nenhum! No entanto, estou convencido de que as suas razões são mais profundas que essas.

      - Pode pensar o que quiser, Félix, mas entregue-me o meu doutor, só por esta noite.

      A mão de Martha cerrou-se no braço de Toby, enquanto falava, e os seus olhos obrigaram-no a levantar-se e a colocar-se a seu lado, como dois magnetos. Rendeu-se, por instantes, à sua atracção, mas depois perguntou:

      - Não espera pela sua cunhada?

      - A Nancy que faça a sua entrada quando quiser e lhe apetecer; vou à Fiação para dançar.

      - E o doutor? - indagou Pagnol. Toby sorriu-lhe, desolado, e respondeu:

      - Digamos que compareço como um boneco manejado por fios de seda. Concorda?

      - Excelente, tanto mais que, em tempos, o baile da Fiação era dedicado aos bichos-da-seda. Posso acrescentar que me parece uma vítima muito condescendente?

      - Como não o estaria, na presente companhia? Arrastou Martha para o vestíbulo, aceitou a capa que Jubal lhe estendia e colocou-lha, com o ar mais casual possível, sobre os opulentos encantos. Relativamente calmo agora que a noite começara, notou o contraste violento das guarnições de cetim branco e das abundantes caudas de arminho da capa com os contornos a preto e branco do seu ousado vestido de baile e com o brilho de vidro preto dos seus cabelos.

      - Queira Deus que o Gabe fique cá, com o brandy! - segredou-lhe a companheira.

      - Queira Deus que não fique!

      - Se te desafiasse a passeares comigo pelo Trustees' Garden, aceitarias?

      - Nem que a minha vida dependesse disso!

      - De quem tens medo, Toby, de ti ou de mim?

      - Poderei dizer que tenho medo dos dois?

      - A resposta serve... por enquanto - replicou no mesmo murmúrio vibrante, e recuou um pouco, com os dedos ainda a queimarem-lhe o braço, quando Gabriel pousou o copo e os seguiu.

      Pagnol sentara-se já à espineta, com o ar de um homem que encontrara o seu segundo lar. Os seus dedos, ao deslizarem pelas teclas de marfim amarelecido, arrancavam mágicas harmonias ao frágil instrumento. O rondo de Mozart era o mesmo que Martha tocara pouco antes, mas o francês imprimia-lhe uma delicadeza de teia, uma harmoniosa subtileza que o tornava irreconhecível.

      - Nenhum homem tem o direito de executar uma música com tanta perfeição, sobretudo depois de Martha a ter assassinado a sangue-frio - observou Gabriel, irónico.

      - Qualquer dia, meu caro Gabe, também serás assassinado como mereces! - replicou a mulher, olhando-o sem mostras de rancor. - Vamos, dá-me também o braço para que escandalizemos Savannah!

      Saíram alegremente, como se obedecessem já aos compassos da música. Toby juraria que ouvia os suspiros dos violinos, ali à luz crepuscular, num fantástico contraponto ao rondo que Pagnol tocava com tanta arte. E então, quando passaram do pórtico para o alpendre e deste para o jardim e para o portão que dava para a rua, teve a certeza de que ouvira, de facto, o contraponto, de que não se tratava de imaginação sua: por detrás da janela semicerrada, no andar de cima, Nancy acompanhava docemente a música, a cantalorar enquanto se vestia.

      Abençoando Gabriel pela sua tagarelice despreocupada, voltou-se e olhou para trás, ao chegarem ao passeio que conduzia à Fiação. O cantarolar cessara bruscamente, embora os dedos de Pagnol continuassem a percorrer o teclado com a mesma agilidade, e Toby sentiu o próprio coração parar também, ao olhar para a janela de Nancy. Antes mesmo de branca mão afastar suavemente as cortinas, identificara a silhueta que atrás delas se recortava e compreendera que Nancy notara a sua partida, com Martha Darby pendurada no seu braço.

      De súbito, deu consigo a trautear com os outros, a mover os pés ao compasso de uma dança improvisada. Sem olhar para Martha, percebeu que ela obedecia também a uma música misteriosa e que Gabriel, sensível como sempre ao temperamento feminino, os imitava, alegremente.

      Whitaker Street, sob o seu túnel de folhas novas de amoreira, recebeu-os gravemente. A dançar, mais do que a caminhar, a cantarolar em coro a ária sem palavras, encaminharam-se para a fiação - três camponeses descuidados vestidos com os mais finos cetins franceses, deixando Mozart morrer, ao longe, e apurando o ouvido para o primeiro minuete.

      A sorver o seu brandy e a deixar-se envolver pela onda quente da música, Toby olhava fixamente o bicho-da-seda pintado na arcada do proscénio. Naquela noite os músicos tocavam no palco da Fiação - rapazes do interior com ritmos do interior, apesar das roupas finas e das cabeleiras empoadas. Graças à luz dos seis candelabros existentes sobre o salão de baile, o bicho-da-seda estava rodeado por uma auréola, como o deus de uma bacanal.

      Valia a pena reflectir no símbolo, pensou Toby, enquanto esperava por Martha. Até ali, o ritual do baile decorrera como se obedecesse ao mecanismo de um relógio, cada minuto passara precisamente como ele previra: a imponente procissão da nobreza de Savannah, convergindo para a Fiação da rua sombria, com fachadas de tijolos, da praça onde as árvores ostentavam folhas novas, de casas ao longo da Baía, de caleches rangentes e de carruagens de duas rodas; elegantes esbeltos, em cujos olhos o brandy punha centelhas de ardor; magistrados idosos, advogados e comerciantes de sobrancelhas hirsutas, que conduziam as esposas e as filhas para o santuário de um camarote ao lado da pista de baile; a velha Lady Tyree, que chegara numa das três liteiras ainda existentes na cidade, conduzida por dois escravos suados, e subia a escada para o canto das viúvas nobres, com as papadas do rosto pintadas de vermelhão, como bandeiras de combate; e o velho Bristol em pessoa, impassível aos olhares espantados e aos murmúrios, presente quanto mais não fosse pelo prazer de olhar de alto o seu rival.

      Onde estaria Bristol agora? Toby acabou de beber o brandy e dirigiu-se ao salão de baile, para se certificar de que o inimigo não ousara participar no turbilhão da dança escocesa. Percorreu com o olhar a sala quente, brilhantemente iluminada, até localizar Bristol em conversa animada com Tyree, ao lado do bar improvisado. A ocasião era excelente para se mostrar, também, ousado, e além disso precisava de outro brandy, enquanto esperava por Martha.

      Mas demorou-se ainda um momento, de olhos fitos no bicho-da-seda. Cercado de uma profusão de folhas de amoreira, o símbolo da Fiação fitava a bacanal daquela noite através de olhos apócrifos, olhos que faziam parte da imagem sonhada pelo artista para representar um bicho-da-seda de sonho. Como a própria Fiação, aquela empolada criatura pertencia ao semimundo em que visões não comprovadas aguardam o primeiro sopro violento de realidade, o semimundo a que pertencera o próprio sonho de Oglethorpe e a fortuna gasta em seda quando a Jórgia-colónia dava ainda os primeiros passos. A complicada maquinaria que viera de Clydebank e das Midlands inglesas a fim de tornar esse sonho realidade ainda não enferrujara, sequer; as estruturas de secagem que outrora tinham esperado receber os casulos eram pasto de outros vermes mais tenazes.

      Da visão grandiosa restava apenas um bicho-da-seda pintado e as amoreiras que ornamentavam tantas ruas de Savannah, os homens que tinham vindo com os seus escravos e o seu ouro inglês quando a Utopia começara a deslustrar-se nas arestas... A música terminou com um estridor de címbalos e o gemido final do clarinete, e o Dr. Tobias Kent rompeu a teia das suas divagações e dirigiu-se ao bar.

      Era agradável sentir o sangue latejar nas têmporas ao atravessar a pista de dança, donairoso na sobrecasaca preta, justa, e saber-se uma potência na comunidade, capaz de fitar qualquer homem nos olhos e desafiá-lo a voltar-se; agradável parar no improvisado bar e pedir armagnac. Mas foi sobretudo agradável observar a leve inclinação de cabeça do velho Tyree e vê-lo levantar a taça, na mão sulcada de veias azuladas.

      - Um seu criado, Dr. Kent, com os melhores votos.

      - Qual é agora a sua opinião, senhor, da nossa cura da peripneumonia?

      Notou que a sua voz soava clara e vibrante como o sino da Igreja de Cristo e achou tranquilizador o silêncio que desceu sobre o grupo de bebedores. Tranquilizadora lhe pareceu, também, a severidade das costas de Matthew Bristol, que se voltara para olhar pela janela, e a resposta entusiasmada de Tyree, por cima do ombro de Bristol.

      - O senhor e Roy merecem felicitações, doutor. Não o afirmei já na última reunião?

      - Sem dúvida, senhor. Sabia que, desde Março, se verificaram mais doze curas?

      Toby pressentiu o interesse de Tyree, mesmo através da muralha daquele ombro tenso. Conversou mais alguns momentos, respondendo às perguntas do velho com o cuidado que dispensaria a um examinador de Edimburgo. Que importavam o silêncio e os olhos que nele se fitavam por cima da poncheira? Podia ignorá-los tão friamente como ignorava as costas monumentais de Bristol. Tyree escutava-o, e Tyree era presidente da Associação Médica de Savannah.

      - Não ouves a música, Toby? Prometeste-me a primeira gavota!

      Só então se apercebeu da presença de Martha e do ritmo alegre que começava a atrair os pares para o centro da pista. Por singular coincidência, fora Martha quem lhe ensinara a dançar a gavota, anos atrás, no cais de Clay Creek, tendo como orquestra a rabeca do Lonny e Gabriel a bater palmas,' para marcar o tempo. Fez uma vénia a Tyree e arrastou Martha no primeiro rodopio, sentindo os pés e o espírito leves.

      - Desmente-me se me engano, mas estou convencido de que até o velho Tyree admite agora que estou cá para ficar.

      Percebeu que o último brandy lhe soltara um pouco a língua e lhe inspirara os pés. Martha ria alto e deixava-se conduzir num corropio louco e Toby não se surpreendeu ao notar que o hálito da companheira cheirava também a brandy, pois vira-a desaparecer com Gabriel antes de a última dança acabar e sabia que o amigo trazia sempre um frasco consigo, para emergências daquelas.

      - Pertenceste desde o princípio, Toby. Porque não vieste mais cedo, para o demonstrar?

      - Pertenço, como dizes, apenas porque a Companhia Darby dá lucro e o hospital mantém Savannah de saúde, pela primeira vez. Os plantadores devem respeitar-me - ou fingir - porque não podem embarcar as suas colheitas sem mim; os médicos devem tratar-me com delicadeza com receio de que lhes tire a freguesia...

      “In vino veritas”, pensou, sentindo invadi-lo outra vez a antiga amargura. “Talvez, no fim de contas, não passe, de facto, de um arrivista a gloriar-me com uma vitória barata...”

      A gargalhada de Martha, desta vez tão estridente que fez voltar várias cabeças, arrancou-o aos seus pensamentos.

      - Não amarres o burro, Toby. Esta noite provaste que sabes representar; porque não provas também que as pessoas gostam de ti por ti próprio, já que estás com a mão na massa?

      - Será preciso muito para o provar...

      - Não há nesta sala uma mulher que não deseje ardentemente dançar contigo se...

      - Se os maridos consentirem?

      - Nada tens a recear dos maridos. Não foi isso mesmo que disseste, há pouco?

      - Nada tenho a recear, a não ser, talvez, uma dúzia de desafios para duelo, pela manhã.

      - Travaste o teu último duelo em Savannah. Félix Pagnol teve razão quando disse que foi bom teres vindo. Esta noite podia representar, se quisesses, o ponto decisivo, poderias começar a conquistar os maridos através das mulheres.

      - Como tu conquistaste as mulheres através dos maridos?

      - Zomba à vontade. Sei que tenho mau nome nesta cidade, mas continuo a ser Mrs. Roy Darby e posso preencher como me aprouver o programa de baile do meu acompanhante.

      Toby rodopiou em silêncio, por momentos. Tinha nos braços uma Martha nova, uma Martha mundana e dócil, disposta a compartilhá-lo, pro tem, para benefício dele próprio. Naquela noite, o seu corpo - instrumento hábil, apesar do implacável espartilho - não o atraía nem repelia, pela primeira vez parecia satisfeito com o que lhe cabia em sorte, como a própria Martha. Ao avistar Gabriel, ao rodopiarem junto dele, não o surpreendeu o significativo piscar de olho do amigo.

      - Estou certo de que poderias moldar-me a teu gosto, Martha - murmurou. - Infelizmente, recuso-me a ser moldado.

      - Não sejas idiota! Não te modificaria, mesmo que pudesse. Quero apenas que conheças esta gente, que percas essa mania de que são de uma raça diferente. - Tinha-a apertada nos braços, agora que a gavota chegava ao fim. - Quero que superes Savannah, Toby, que compreendas tratar-se apenas de um princípio para nós.

      - Que dizes, Martha?

      - Ontem disseste-me que o diabo soube fazer-me. Nunca mais esquecerei esse cumprimento.

      - Esta noite repito-o.

      - E eu ainda te provarei que sou a tua única verdadeira amiga. Entretanto, podes chamar-me libertina. Que mais havia de ser, enquanto te esperava?

      Falava num murmúrio ardente, fitando nos dele os olhos húmidos de paixão. “Graças a Deus, Gabriel espera ali perto”, pensou Toby, inquieto.

      - Ainda acabam por ouvir-te, Martha.

      - Que importa? Há muito tempo que deixei de preocupar-me com estas relíquias presentes. Quanto tempo terei de esperar para que deixes de preocupar-te, também, com eles?

      Toby olhou desesperadamente à sua volta, contente por a música atingir naquele momento o crescendo máximo.

      - Esqueceste que teu marido faz parte delas?

      - Sabes muito bem que Roy não conta, que é apenas uma conveniência até... até te decidires a meu respeito e compreenderes que Savannah não é mais que um degrau... - A música terminou e ela afastou-se prosaicamente dos seus braços, aceitando a sua inclinação de cabeça com uma vénia profunda e erguendo a mão com punho de renda para que a beijasse.

      - Quando o tiveres compreendido, Toby Kent, creio que será altura de deixarmos Savannah juntos. Pensa nisso, pois achar-me-ás digna de possuir. - Falava agora num murmúrio quase inaudível e baixou ainda mais a voz quando Gabriel se aproximou.

      - Não deseja tomar um pouco de ar, Mrs. Darby? - perguntou-lhe o jornalista.

      - Com muito prazer, Mr. Thatch. Muito obrigada pela dança, doutor. É agradável encontrar um homem com verdadeiro sentido do ritmo.

      - E mais agradável ainda passar de um para outro - comentou Gabriel.

      - Talvez me compreenda melhor do que seria para desejar, Mr. Thatch - replicou Martha, lançando a Toby um olhar estonteante e saindo da sala pelo braço de Gabriel.

      Os olhos de Toby juntaram-se aos de quase toda a Savannah enquanto o jornalista conduzia Mrs. Darby pela porta fora, sem sequer se dar ao trabalho de olhar para trás.

      Ainda atordoado pelo ataque descarado de Martha, Tobias Kent sentiu que lhe tocavam ao de leve num ombro, voltou a cabeça e encarou Félix Pagnol.

      - Se tiver a amabilidade, doutor, Mrs. Gregory gostaria que continuasse...

      - Pardon?

      - Madame vient à arriver. Regardez là-bas.

      Toby voltou-se para o fundo da sala, a tempo de ver Nancy estender a capa no parapeito do camarote Darby. Toda de verde-folha, com uma coroa de flores douradas na cabeça, Nancy Gregory tinha o ar reservado de qualquer viúva decente. Olhou-a estupidamente, por momentos, sem compreender as palavras do francês.

      - Gostaria que continuasse o quê?

      - Mrs. Gregory teve o prazer de observar a sua gavota, do patamar, e pediu à orquestra que bisasse. Dançará com ela, doutor?

      Esperara tudo menos aquela simulação de tréguas, tudo menos o desassombrado sorriso de boas-vindas com que ela o brindava, através da pista deserta. Mas, quase sem saber como, encaminhou-se para esse sorriso, com a mão de Pagnol ainda no ombro, e inclinou a cabeça para o camarote, tão elegantemente como qualquer peralvilho.

      - É uma honra que há muito desejava, Mrs. Gregory, se me permite a franqueza.

      - Concordo inteiramente consigo, Dr. Kent.

      A música começou mal Nancy se calou, como se o maestro tivesse considerado a pausa a sua deixa. A grande pista oval estava deserta quando ela desceu do camarote e se entregou nos braços de Toby, continuava deserta quando deram os primeiros passos saltitantes e deserta estava ainda após a primeira volta rodopiante pela sala. A dançar como num sonho, com o par leve como a aurora entre os braços, Toby aguardava, sem fôlego, o despertar inevitável.

      - Talvez não acredite, doutor, mas disse o que penso - murmurou Nancy, por fim.

      - Diz sempre o que pensa, Mrs. Gregory. Porque havia de duvidar, agora?

      A face que Nancy encostava à sua, enquanto dançavam, tinha a frieza e a palidez do mármore. Era o único indício, a única certeza de que não estava menos tensa que ele enquanto interrompiam publicamente a desavença que os opunha, para benefício de uma comunidade embasbacada. Toby abriu os dedos nas costas que as barbas de baleia tornavam hirtas, puxou-a um nadinha mais para si e pensou como aquela face escaldaria se ousasse depor um beijo no ponto onde o ombro dela se confundia com o suave ondular do seio, mais pressentido que visto no arabesco de renda que lhe orlava o vestido de baile.

      - Cuidado, doutor!

      - Perdão, todas estas voltas me entontecem um pouco. Pouca prática, como sabe...

      Abençoou a naturalidade com que conseguia falar-lhe e que o surpreendia. O simples evocar da carícia fazia-lhe latejar as fontes e quase bastara para o atirar ao chão.

      - Com prática ou sem ela, a verdade é que dança maravilhosamente.

      - Tão maravilhosamente como administro a fortuna do seu pai?

      - Acha que ficam bem censuras numa soirée de gala?

      - Isso lhe pergunto eu, Mrs. Gregory.

      - Seja franco: porque imagina que o atraí aqui?

      - Disse atraí?

      - Desafiei, se prefere - respondeu com um leve sorriso, ao mesmo tempo que inclinava a cabeça ao primeiro par a segui-los na pista. - Depois do meu bilhete e da indesculpável referência ao seu vestuário, tinha a certeza de que viria. Claro que joguei pelo seguro e recomendei a Félix que... - como direi? - que não o largasse.

      - E Roy... e Martha?

      - E Roy... e Martha. Nunca lhe ocorreu que somos uma família mais ou menos feliz? E que você é o único a obstinar-se em não fazer parte dela?

      - Ocorreu-me muitas vezes.

      - Não lhe parece que um ano é tempo suficiente para ficar à porta, de burro amarrado, a perguntar-se que estará a família a fazer?

      - Quer dizer que me convidou, esta noite, a fim de me dar as boas-vindas ao seio da família?

      - Para lhe sugerir que sigamos um honroso costume Yamacraw e enterremos o machado... em terra jorgiana, não um no outro!

      - Continue; o que diz é música para os meus ouvidos. Música rara, confesso, mas...

      A pista estava agora cheia. As belas e os elegantes de Savannah, saciados de olhar, tinham sucumbido à atracção da música, um par atrás de outro. Toby lançava-lhes olhares hostis e descrevia curvas largas, quase insolentes, num esforço para conservar inviolada a sua porção de pista. A magia da primeira submissão de Nancy começava já a desdourar-se, a adquirir um aspecto espúrio.

      - Pergunta a si mesmo porque mudei e não o censuro - murmurou, por fim.

      - Talvez, afinal, não tenha mudado... Amanhã descobrirei que sonhei tudo isto.

      - Uma coisa lhe garanto, desde já- disse baixinho, e Toby ficou boquiaberto ao vê-la descer as compridas pestanas tão garridamente como qualquer rapariguinha. - Agora que iniciámos o nosso ano final, gostava de conhecê-lo melhor.

      - Desde o princípio que soube tudo quanto lhe interessou saber.

      - Talvez. Mas ajudar-me-á a... a compreendê-lo um pouco, se eu retribuir o cumprimento?

      - Quem iniciou as hostilidades foi você. As tréguas, se assim posso chamar-lhe, são igualmente da sua lavra.

      - A palavra não é inteiramente justa - redarguiu Nancy, ainda de pestanas descidas. - Não imagine também que somos aliados pelo simples facto de dançarmos diante de toda a gente. Esperava, no entanto, que pudéssemos ser qualquer coisa melhor que inimigos neste ano final.

      - É a segunda vez que emprega essa frase. Porque há-de este ano ser final?

      - Ainda posso acalentar esperanças, não acha?

      - Como filha de Victor Darby... ou como proprietária de Sangaree?

      - Como ambas as coisas. Embora me oponha à Companhia Darby, como directora da mesma não tenho outro remédio senão servi-la bem. Mas objectarei até ao fim - e para além do fim - aos seus princípios.

      - Nesse caso, continuamos a ser inimigos.

      - Nada o impõe. Savannah está ainda cheia de tories impenitentes agarrados à esperança de que sejamos demasiado fracos para nos governarmos sozinhos e voltemos ao aprisco britânico. Discordo dessas crenças como discordei de meu marido quando escolheu o lado inglês; mas muitas dessas pessoas são minhas amigas e livres de terem opiniões.

      - E que tenho eu a ver com isso, Mrs. Gregory?

      - Pretendo apenas dizer que devemos adaptar-nos ou, pelo menos, admitir que existem outros pontos de vista, além dos nossos.

      - Talvez a senhora seja mais adaptável que eu. Ou deverei dizer civilizada?

      - Não tarda a afirmar que quem não é por si é contra si.

      - Nesta encruzilhada da nossa história sinto que não podemos dar-nos ao luxo de contar demasiados tories entre nós. A Companhia Darby é democracia microscópica. Você é, também, um luxo que não poderemos conceder-nos indefinidamente, se continuar a opor-se-nos.

      Nancy soltou uma gargalhada vibrante de sinceridade:

      - Pensa demitir-me?

      - Sabe que seria impossível.

      - Mas preferia que me retirasse de directora da companhia, vivesse sempre em Sangaree e aceitasse os lucros que pudesse conceder-me?

      - Talvez fosse mais simples... para todos nós - respondeu, com um profundo suspiro.

      - Incluindo eu própria?

      - Sim, já que não me apoia...

      A música parou, por instantes, e Nancy afastou-se um pouco e bateu levemente as palmas. Dir-se-ia mais divertida que magoada pela sua sugestão.

      - Aplaudo-o a si, ao mesmo tempo que aos músicos - declarou. - Porque não deixa nunca de mostrar-se à altura da situação?

      - Por outras palavras, porque sou tão casmurro?

      - Fala de uma democracia ideal e dá como exemplo a Companhia Darby, mas mesmo uma democracia perfeita precisa, pelo menos, de roda de balanço... ou deverei dizer, antes, de uma boa cabeça para negócios? É capaz de negar que representei esse papel?

      - Estou-lhe grato, Mrs. Gregory, mais do que grato. Mas não me parece justo aceitar o seu auxílio uma vez que...

      - Uma vez que não o apoiei inteiramente?

      - Seria um esforço muito grande apertar a minha mão e desejar-me sorte para este... ano final?

      - Magoá-lo-ia muito aceitar-me tal qual sou, visto não poder dar-lhe mais?

      - Talvez prefira esperar... - afirmou, envolvendo-a nos braços, pois a música recomeçara.

      - Esperar o quê, doutor?

      - Que possa dar-me tudo, que admita que tenho razão acerca da companhia... e do seu futuro.

      - E, entretanto, continuaríamos em guerra aberta?

      - Acha o esforço demasiado?

      - E você?

      - Eu perguntei-lhe primeiro.

      - É privilégio das mulheres responderem a uma pergunta com outra.

      - Cinjo-me a factos. Não me censure se lhe pareço um pouco desconfiado quando me oferece que... Poderei dizer que deitemos abaixo a primeira barreira?

      - Acredite, ao menos, que fiz a oferta de boa-fé. Toby sorriu quase naturalmente, embora o coração lhe batesse como um louco.

      - Qual é o preço?

      - Assistir a acontecimentos como este, quanto mais não seja para salvar as aparências. - Brindou-o de novo com o seu melhor sorriso, enquanto ele a conduzia ao longo dos camarotes e sob os olhares gelados das viúvas. - Confesse que gosta de dançar comigo.

      - Confesso-o de muito bom grado.

      - Este foi o primeiro espectáculo; seguir-se-á um jantar em Sangaree, amanhã, depois de inspeccionarmos os arrozais.

      - Se insiste, Mrs. Gregory...

      - Não lhe pergunto porque se conservou tanto tempo afastado; facilmente o adivinho.

      - Talvez se me tivesse convidado mais cedo...

      - Está dito, apareça em Sangaree! Um escravo conduzir-nos-á através dos campos e depois oferecer-lhe-ei jantar... a si, ao Roy e ao Félix, se conseguir atraí-los. - Hesitou, antes de acrescentar, resolutamente: - Poderemos até sair juntos do escritório, no meu veleiro; poupará tempo.

      - Estarei a ouvir bem?

      - Penso que devemos conversar, doutor. Talvez que, se conseguir que me veja claramente.. - Calou-se, como se receasse falar de mais, e concluiu: - Quem sabe? É possível que enterremos o machado para sempre.

      - Só depois de me desejar sorte - afirmou. - Se lhe pareço um casmurro rústico, paciência; aceito o epíteto.

      - Casmurros rústicos são uma coisa, cavalheiros rústicos, outra. Com jeito, estes acabam, às vezes, por compreender que seguem o caminho errado.

      - E por se unirem aos cavalheiros da cidade contra o populacho?

      Nancy limitou-se a sorrir e a perguntar-lhe: -'Lembra-se da sua primeira noite em Savannah, doutor? E as provas que passou com distinção?

      - Lembro-me demasiado bem.

      - Nessa noite compreendi que era honesto e não sofria de doença mais grave do que integridade aguda... Esta manhã, ao conferir com Sam as contas do nosso primeiro ano, fiz uma descoberta ainda mais agradável: além de honesto, é generoso. Estas virtudes deviam combinar-se com maior frequência.

      - Se alude aos lucros que distribuí em Darbyville...

      - Deve ter compreendido que deu todos os nossos lucros de um ano, e um pouco mais... - interrompeu-o Nancy, devagar. - Até um utopista nato sabe fazer contas.

      - Compreendi-o perfeitamente... e aguardei uma explosão da sua parte.

      - Oito mil libras inglesas, e deu-as todas! Deu-as todas a meia centena de lavradores miseráveis, que vão enterrá-las nas suas terras.

      - Sempre é melhor que deixá-las criar bolor no nosso cofre. - Olhou-a ansiosamente, mas o seu rosto era uma máscara inexpressiva e suave. - Obrigado por classificar o meu gesto de generoso; podia escolher uma palavra mais dura.

      - A sua parte daquele bambúrrio devia ascender a mais de três mil libras, o que lhe chegaria para comprar uma clientela em Londres... e uma mulher para lhe fazer companhia.

      - O dinheiro veio do solo da Jórgia, preferi que fosse enterrado nele.

      Como se não o ouvisse, Nancy Gregory comentou:

      - Sam previa que perderíamos pelo menos dez mil libras, mas em vez disso ganhámos oito mil.

      - Graças à sua ajuda.

      - E à sua sorte, doutor. Mas suponha que, de agora em diante, a sorte desanda?

      - Nesse caso admitirei que venceu... e retirar-me-ei com uma vénia tão graciosa quanto é possível a um labrego.

      - São muitas as probabilidades de que eu vença, graças à sua generosidade. Se tivesse aferrolhado as oito mil libras, poderia mostrar ao juiz Armstrong um balanço favorável e tornar a companhia permanente.

      - Ainda tenho esperanças de o conseguir.

      - As probabilidades são contra si, como o são contra todos os homens que combinam a generosidade com os negócios. Claro que talvez esteja redondamente enganada a seu respeito...

      - Essa é uma das coisas que deseja verificar amanhã?

      Sorriu-lhe outra vez e pareceu afastar-se um pouco, embora continuasse apoiada na curva do seu braço.

      - Podia ser um génio... com um coração de ouro e o toque de Midas. Há muita gente simples que assim o julga.

      - Não me torne mais ridículo do que já sou. Na realidade, não passo de um médico que preferia viver apenas para a sua profissão, um médico que desejaria viver em paz e amizade com a cidade da sua adopção.

      - Ficaria, mesmo que a companhia se malograsse?

      “Ficaria como estivador em Muskrat Town”, pensou, “como escravo nos teus campos de arroz, como cavalariço na Tondee's, ficaria fosse como fosse só para te ver cavalgar pelas tuas terras!”

      Mas, em voz alta, disse apenas:

      - Se o Roy me quisesse, ficaria.

      - Mas suponha que vence, que a companhia prospera para além dos seus sonhos?

      - Nesse caso ficaria até o sonho se tornar realidade, até a companhia poder funcionar sem mim. - Entreolharam-se com firmeza e Toby viu-lhe nas pupilas uma centelha ardente e significativa. - Claro que a senhora arranjaria maneira de conservar Sangaree.

      - Talvez eu aceitasse a derrota e partisse para o estrangeiro.

      - Tolice! Você é Jórgia, também.

      - Não poderia conservar Sangaree sem auxílio.

      - Mas certamente que o capitão Pagnol...

      - O capitão Pagnol, doutor, contribuiu apenas com... uma certa soma para a reconstrução da casa principal. Posso acrescentar que afundei no mesmo projecto muito mais dinheiro meu. - A voz de Nancy tinha agora um tom estranho, sem vida. - Se quer que lhe diga, Sangaree encontra-se hipotecada a mais não poder ser. Agora que a colheita do arroz está a fazer-se, posso alimentar de novo os meus escravos, mas a plantação não voltará a ser o que era enquanto... - hesitou, por momentos, e concluiu, com firmeza: - enquanto não tiver mão livre na fortuna Darby!

      - E, naturalmente, Sangaree é mais importante que o êxito da companhia.

      - Naturalmente.

      - Suponha que poderia contar com cinco mil libras inglesas como dividendo anual, suponha que garantíamos a alimentação dos seus escravos e a manutenção em bom estado das suas eiras. Isso chegaria para... bem, para a satisfazer?

      - Cinco mil libras anuais quase não chegariam para pagar aos meus jardineiros e aos homens que tratam dos canais. Antes de começar a guerra, Sangaree era a maior plantação de arroz ao sul de Charleston, e estou decidida a que volte a sê-lo, a torná-la ainda maior e a conservar os lucros. - A música parou e Nancy soltou-se-lhe dos braços. - Voltámos ao ponto de partida, ou faz-me companhia amanhã, no veleiro?

      Toby sorriu, mas com os lábios tensos, e perguntou-lhe:

      - Quando desiste do seu orgulho, Nancy Gregory?

      - Não dignifique o meu amor à terra com um nome tão nobre.

      - Tem a certeza de que não é, antes, amor ao poder?

      - Será possível ter poder sem terra? Ou terra sem poder?

      Fez-lhe uma vénia profunda e Toby inclinou-se sobre a sua mão:

      - É evidente que continuaremos a brigar até ao fim.

      - Mas isso não o impedirá de ir a Sangaree?

      - Amanhã às sete, no cais. Já é tempo de a ver no seu habitat.

      Só então se apercebeu de que se encontravam sós no meio do deserto encerado da pista, presos ali durante um longo momento suspenso no tempo pela força compulsiva de cem olhares.

      “Aconteça o que acontecer”, pensou, “a nossa próxima batalha não pode ser mais estranha que este encontro”.

      Afastou, desesperado, a convicção de que a vitória de Nancy fora quase completa, a certeza ainda mais sombria de que ela sairia sempre vitoriosa, ofereceu-lhe o braço e conduziu-a formalmente ao camarote, como um acólito com uma relíquia sagrada.

      Pagnol recebeu-os com gravidade, dobrando-se pela cintura, e comentou:

      - Dizer que foram o centro de atracção de todos os olhares seria ficar muito aquém da verdade.

      - Basta, Félix, por favor - pediu Nancy, pondo-lhe a mão num braço. - O doutor já foi bastante espicaçado esta noite, e o mesmo se deu comigo.

      Os seus olhos traduziam uma ordem mais firme do que as suas palavras, e mais uma vez o coração de Toby lhe doeu no peito perante aquele entendimento que não precisava de obedecer a quaisquer leis.

      - Os vossos passos acertam maravilhosamente - prosseguiu Pagnol. - Porque não hão-de os vossos cérebros dançar, também, a compasso?

      - Talvez o meu não goste de dançar - replicou Toby -, sobretudo quando é outro que toca a música. - Inclinou-se de novo e despediu-se: - Às suas ordens, Mrs. Gregory. Até amanhã.

      Sabia que tinha o pescoço escarlate, ao encaminhar-se para a porta sem ousar olhar para a esquerda nem para a direita. Compreendeu a tempo que o par estreitamente enlaçado, na sombra das buganvílias, eram Gabriel e Martha e voltou-se vivamente, em direcção da rua. Ao caminhar por entre os cavalos presos à argola, a sentir a pressão do caminho arenoso nas solas das sapatilhas de baile, descalçou-as e às meias, e continuou a descer, descalço e contente, a Whitaker Street.

      Quando chegou à Baía e se deteve na rampa comprida que levava ao escritório da companhia, grande parte da sua cólera desaparecera. Foi, até, capaz de olhar para baixo, para as luzes dos barcos, e contar os mastros da Companhia Darby com certa dose de calma. Nem sequer lhe importava muito que Nancy e Pagnol estivessem a rir-se de si, enquanto rodopiavam ao compasso de nova música, nem tão-pouco que Savannah, a segredar atrás dos leques, chegasse à conclusão de que o presidente da Companhia Darby se rendera antes de tempo.

      Ali, com as velas à espera que o vento as enfunasse, estava a silhueta atarracada da Darby Belle, como que a suplicar que a libertassem. De súbito, ouviu o capitão Bronson gritar uma ordem final e uma espia molhada bater no cais. A popa da goleta libertou-se suavemente e, por momentos, Toby quase viu o robusto capitão dar uma última volta pelo convés e olhar para a encosta, à espera de alguma contra-ordem. Em seguida soltou-se a bolina, a Darby Belle virou docemente na corrente, as primeiras velas de estai enfunaram-se ao longo do gurupés e a proa apontou ao Atlântico.

      Uma hora antes, invejaria a Bronson aquela fuga, do mesmo modo que invejaria Roy, tão tranquilo no laboratório iluminado da clínica, às voltas com os seus intermináveis almofarizes, feliz numa dedicação em que não entravam imponderáveis como lucros e esposas infiéis. Agora bastava-lhe estar ali descalço, nas suas roupas finas, atirada a sobrecasaca para os sulcos arenosos do caminho, a praguejar à vontade, ouvido apenas pelas estrelas.

      Bastava-lhe, sobretudo, admitir, no recôndito do seu coração, que uma luta séria com Nancy Gregory valia todas as fugas, por muito numerosas que fossem as vitórias da adversária.

      Na véspera à noite a Darby Belle dançara, impaciente como uma feiticeira do mar, naquele mesmo ancoradouro. Naquela risonha manhã primaveril o veleiro de Nancy parecia uma miniatura da goleta de altos mastros, a balouçar na crista da maré. Ao observá-lo da janela do escritório, enquanto comprimia uma toalha molhada contra as têmporas, o Dr. Toby Kent sabia que a própria Nancy prendera a embarcação no ancoradouro, de madrugada, e que tinham sido os seus escravos quem soltara a bujarrona e a vela mestra, enquanto o passageiro de Nancy, ainda contrito após uma noite de insónia passada a sós com a garrafa, adiava o momento em que deveria reunir-se-lhe para a viagem a Sangaree.

      Uma noite insone com a garrafa... Encarou corajosamente a desagradável verdade, na manhã clara e fresca. Bebera desalmadamente enquanto tentava arranjar coragem para regressar à Fiação, antes do baile terminar, e reflectia na conveniência de passar a noite com Martha ou qualquer rameira da Bird in Hand. Ao fim e ao cabo, parecera-lhe mais fácil libertar-se dos atavios, abrir uma garrafa no caixilho da janela do escritório e passar assim o que restava da noite.

      Uma porta bateu, no andar de baixo, e uma restolhada de papéis informou-o de que Leary ou algum dos ajudantes preparava as secretárias para outro dia de trabalho. Não podia ficar ali eternamente, com a cabeça enrolada como um turco infiel, até os seus empregados o encontrarem. Encaminhou-se para o armário do canto, onde tinha sempre uma mala de roupa limpa - camisa semiaberta no pescoço, fato folgado, de algodão branco, com as calças metidas nas botas até ao joelho, e chapéu redondo, de plantador. Era assim que, geralmente, fazia as suas viagens Pelo rio. Viu-se ao espelho, antes de pentear e atar o cabelo. Os seus olhos eram claros, mesmo à luz matinal, e as mãos quase não lhe tremiam quando pôs o chapéu um pouco à banda e saiu para a doca, tão casualmente como qualquer marinheiro que regressasse a bordo após uma noite em terra.

      Experimentou um momento de pânico ao dirigir-se para o veleiro e lembrou-se, demasiado tarde, que devia ter ido pela rampa. Que pensaria Nancy se o visse sair do escritório e compreendesse que passara lá a noite, ansioso como um garoto apaixonado, à espera da hora marcada para o encontro? Tranquilizou-se um pouco ao espreitar, de trás de uma barrica, a coberta aparentemente deserta. Talvez ela chegasse atrasada, quanto mais não fosse para salvar as aparências...

      - Bons dias, doutor. Dormiu bem, depois do baile?

      Estava sentada entre pilhas de madeira que esperavam a sua vez de serem transportadas para bordo de embarcações costeiras. Naquela manhã usava um vestido leve, de algodão, o habitual lenço a prender-lhe os cabelos cor de cobre e outro igual, atado ao pescoço. Toby sentiu-se sufocar, embora estivesse habituado a encontrá-la sempre um pouco mais encantadora do que a imagem que a sua memória conservava. Como de costume falou depressa e despiu a sua voz de todo o indício de homenagem, tão implacavelmente como se banisse um traidor da sua convivência.

      - Se quer que seja franco, não dormi.

      - Não me diga que passou a noite às voltas com os livros!

      Vira-o, então, sair do escritório!

      - Passei a noite às voltas consigo, Mrs. Gregory.

      - Comigo, doutor?

      “Contigo, como em cem noites durante o último ano”, respondeu-lhe mentalmente. “Com a imagem da tua beleza e da tua serena ironia, com a recordação dos teus lábios e do teu riso, com o contacto da tua mão, no baile, com a recordação desse bico que o teu cabelo forma, na testa... Com a necessidade de te possuir e a certeza de que nunca poderás ser possuída...”

      Mas, em voz alta, disse-lhe apenas:

      - A pensar em estratagemas para a conquistar, Mrs. Gregory... para a minha causa, evidentemente.

      - E espera que esses estratagemas dêem, hoje, fruto?

      - Os frutos estão já sorvados - replicou, enquanto descia para a coberta oscilante do veleiro.

      - Descobriu, então, que não posso ser vencida?

      - Não me peça que me confesse derrotado tão depressa - murmurou, conseguindo sorrir. - Partimos?

      - Os meus negros prepararão o barco.

      Toby apoiou-se à amurada, enquanto ela ria, e notou que dois escravos tinham acorrido e soltavam já a vela mestra. Os negros trabalhavam serenamente, ignorando a sua presença na minúscula coberta, e Nancy ignorava-os por seu turno e continuava a tagarelar.

      - Claro, doutor, que não o julgo capaz de esquecer uma promessa... ou uma senhora solitária.

      - Não acredita que velei toda a noite. É isso?

      - Francamente, parece mais repousado que eu.

      - Protesto, Mrs. Gregory! Está fresca como a madrugada.

      - Um cumprimento, finalmente? Agora irei para bordo!

      Segurou-lhe na mão, com a brisa a abrir-lhe graciosamente a saia rodada do vestido, e desceu do cais para a coberta. Só então Toby reparou no diamante que lhe brilhava numa das mãos e no alfinete de esmeraldas que lhe prendia o lenço na cabeça. Os escravos saltaram pela borda fora e, com água até aos quadris, empurraram o veleiro para maior profundidade. Nesse instante o sol nascente, a descer obliquamente sobre os telhados da Baía, envolveu a embarcação e a vela-mestra na sua claridade, arrancando pontos luminosos ao fecho que prendia o lenço na têmpora de Nancy e tocando-lhe os braços brancos e roliços com a sua magia.

      Sem saber porquê, Toby pensou na sombra sedosa de Pagnol e na sombra maior ainda do mundo de que era produto. Versalhes, que nunca vira, e uma rainha estouvada, que mungia vacas por desporto sentada num banquinho cravejado de pedras preciosas; o porto de Savannah e uma rapariga orgulhosa da sua fortuna, que conduzia um veleiro com pedras preciosas no cabelo e um escravo em cada amurada... Estariam, as duas, tão longe uma da outra como pareciam?

      - Ainda sorumbático, doutor?

      Arrancou-se ao devaneio no momento em que o botaló virava docemente e notou que Nancy estava já ao leme.

      - Os rapazes vêm para bordo?

      - Não, ficam aqui.

      Nancy apertou o timão, para apanhar o primeiro sopro de vento, e mãos negras deram um empurrão final ao veleiro.

      - Você constitui a tripulação - acrescentou, maliciosa. - Confio em que acatará as minhas ordens até chegarmos a Sangaree.

      - Vamos a caminho do seu mundo. Disponha de mim como entender.

      Mas naquele momento não eram precisas ordens. Ao afastar-se da margem, o veleiro recebia o vento em cheio no pique de vante, o gurupés rasava a água barrenta e o talha-mar abria uma esteira de espuma. Toby descalçou as botas e correu a prender a bujarrona, com tanta naturalidade como se tivesse trabalhado sempre a bordo. Com igual naturalidade, Nancy empunhava o timão, aproveitando o último impulso do vento e obrigando o tripulante a subir para a amurada superior, para equilibrar a embarcação.

      - Equilibrar-nos-emos ao chegar à bóia do canal. Conserve o seu peso onde está; esta brisa costuma durar até estarmos a sotavento da ilha.

      Toby levou os dedos à testa e Nancy sorriu da mímica náutica, ao mesmo tempo que os seus olhos mediam a espia do brigue mais próximo e se desviava com pouca folga. Savannah desdobrava-se já atrás deles, geometricamente, como a planta de uma cidade banhada de sol e de silêncio matinal. Toby olhou as casas orgulhosas ao longo da Baía, afundadas até aos beirais no verde desdenhoso das suas trepadeiras, recordou as boas-vindas da cidade, um ano antes, e como o fantasma dessa recepção parecera presente em cada regresso. Seria possível que, pela primeira vez, visse Savannah através dos olhos de Nancy? Ou seria a hostilidade velada dela própria que o fitava pelas órbitas das janelas da cidade?

      - Incline-se para fora, doutor, e molhe o topete! Estou a ver se consigo virar.

      Susteve a respiração, a observar a ponta do botaló vergar sob a força brutal do vento, até dar a impressão de que a vela-mestra ia mergulhar na corrente barrenta. Mas, ao lançar todo o seu peso contra a amurada superior, sentiu o veleiro endireitar-se e aumentar a velocidade. Quando se atreveu a olhar de novo, estavam longe das embarcações do porto e seguiam velozmente na direcção da última bóia do canal, com todas as velas esticadas.

      O rio cheio de espuma começava a passar de castanho para água-marinha, um azul de miragem sob o sol primaveril. Ao norte, ficava a ponta pantanosa da ilha de Hutchinson, a parte alta e maninha da ilha e a faixa dos arrozais, percorrida por gado faminto e enevoada pelo fumo das fogueiras de intrusos. Savannah começara já a confundir-se com os pântanos verde-castanhos que cercavam a encosta por três lados. Enquanto olhava, a paliçada do Forte Wayne recortou-se na manhã nebulosa e a bandeira subiu, triunfante, no mastro. Pela força do hábito, Toby perfilou-se e ergueu a mão numa continência, ao passarem pelas treze estrelas da União que esvoaçavam ao vento no topo da adriça.

      Voltou-se, um pouco envergonhado daquela manifestação de patriotismo, mas verificou, surpreendido, que Nancy estava também de mão levantada, a saudar a bandeira.

      - Ainda bem que há uma coisa, pelo menos, em que concordamos, doutor.

      - Em quê?

      - Em que a América está aqui para ficar.

      Não houve tempo para mais. A encosta desaparecia rapidamente, ao longe, e a leste a margem do rio estendia-se em pântanos sucessivos e planos até à linha do horizonte. A ponta oriental da ilha de Hutchinson ficou para trás, a bombordo, e do grupo de negros que cuidavam dos arrozais, naquele ponto da ilha, gritaram-lhes uma saudação quando o gurupés atirou espuma a grande distância.

      - Prepare-se para virar!

      - Estou preparado, capitão!

      A manobra foi executada com perícia, embora Toby molhasse até ao joelho uma perna das calças, ao amarrar em cunho a bujarrona. O veleiro adernou, recebeu o vento no quarto de estibordo e aproou a sudeste.

      - A brisa manter-se-á mesmo depois do sol estar bem alto?

      - Geralmente mantém-se, em Março. Devemos chegar à doca de Sangaree dentro de uma hora.

      O ar do rio desanuviara-lhe magicamente a cabeça e Toby verificou que podia encostar-se à amurada, no mesmo ponto onde vira Félix Pagnol, e sustentar o olhar de Nancy com razoável serenidade. O facto de se encontrarem sozinhos no rio não tardaria a apoderar-se dos seus sentidos e a constrangê-lo; por enquanto, porém, podia descansar e conservar à distância os pensamentos.

      - Prepare-se para voltar!

      Desta vez o gurupés quase raspou pelas dunas baixas da Barnwell Island. Viu Nancy torcer a cana do leme e o jacto de areia sob a bolina, ao entrarem de novo no canal.

      - Não foi demasiado apertado, desta vez?

      - Não, para quem já passou por aqui tantas vezes como eu.

      - Sim, de facto vem por aqui muitas vezes. Tenho perguntado a mim mesmo porque tão raramente usa a estrada do rio.

      Olhou-o com ironia e em seguida prestou atenção ao que fazia. Navegaram por momentos em silêncio, com a água azulada a deslizar sob a quilha e gaivotas a brigar sobre as algas que começavam a aparecer em seu redor.

      - Eu também me tenho perguntado muitas vezes porque percorre tantas vezes a estrada do rio. Vejo-o frequentemente, de manhãzinha... Com certeza não se trata sempre de chamadas de doentes do interior?

      Fez a pergunta com desarmante inocência, mas com os olhos a brilhar de malícia. Toby respondeu-lhe em tom brusco, esperando disfarçar o pânico com a rudeza:

      - Se pretende insinuar que tenho alguma rapariga nos pinhais...

      - Quase desejei que tivesse. Seria agradável verificar que, afinal, é humano.

      - Foi para isso que me trouxe hoje, para pôr à prova a minha humanidade? - Surpreendeu-se com o tom calmo da réplica, pois sentia um desejo quase insuportável de esmagar aquele leme, que se erguia entre eles como uma barreira, e de apertá-la nos braços. - Deve compreender, sem dúvida, que o presidente da Companhia Darby tem tanto que fazer que não pode perder tempo com... com negócios de amor.

      - Nesse caso, porque sai tantas vezes?

      - Porque, além de presidente da companhia, é também médico com muita clientela.

      Nancy atirou a cabeça para trás e permitiu-se um piscar de olhos, pouco digno de uma senhora, ao sol e ao anemómetro.

      - Pelo menos foi suficientemente cavalheiro para não repetir a sua pergunta.

      - Acerca das suas frequentes viagens neste veleiro?

      - Precisamente. Seria obrigada a responder-lhe que a água não deixa vestígios... - Pitou-o, com os olhos risonhos e maliciosos, como se o desafiasse a prosseguir com o interrogatório. - Vamos, doutor, não precisa de fingir que o melindrei! Não me olhe com esse espanto, é inútil negar que está convencido de que Félix Pagnol é meu amante.

      - Um bom médico não dá ouvidos a mexericos, Mrs. Gregory.

      - Apre, chame-me Nancy, pelo amor de Deus! A explosão de mau génio deixou-o boquiaberto:

      - Quer dizer... quando estivermos sós?

      - Sim, quando estivermos sós. E eu chamar-lhe-ei Toby. No fim de contas, tentamos conhecer-nos melhor... pelo menos por hoje.

      - Muito bem, Nancy - aquiesceu, serenamente.- No entanto, repito que um bom médico não dá ouvidos a mexericos.

      - Acha que podia ter um amante, se quisesse?

      - Podia ter o que quisesse, Nancy, como sempre acontece.

      Voltou-se, furiosa, e increpou-o:

      - Julga que sou uma coluna de parcelas nos seus livros, sem coração? Ou uma...

      O resto da frase perdeu-se na confusão que se seguiu, quando tiveram que agarrar-se um ao outro para não serem lançados pela borda fora. A quilha arrastou na areia e inclinou a coberta num ângulo impossível, o veleiro estremeceu uma vez, a todo o comprimento, e ficou adernado, com o botaló no Savannah.

      Nancy encontrava-se finalmente nos seus braços, por um puro acto do acaso, e agarrava-se-lhe com todas as suas forças. Toby sentiu-se inebriado pela sua proximidade, sentiu as mãos apertarem-lhe os braços e puxá-la ainda mais para si... As ideias clarearam-lhe quando ela se libertou e correu para o convés da ré, a fim de soltar os assentos traseiros. Juntos colheram a vela açoitada pelo vento, antes que se enredasse na cabina.

      - Ao que parece, não contava com aquele baixio - murmurou, e acrescentou mentalmente: “Nem eu com um abraço inesperado.”

      - Importa-se de levantar a bolina? - Falava em tom calmo, apenas com uma roseta em cada face, a trair-lhe a emoção. - A maré não baixou e talvez consigamos safar-nos.

      Puxou com toda a força a bolina emperrada e sentiu-a soltar-se e, por fim, subir. Nancy dirigira-se entretanto para o gurupés e, apoiada a um cabo, observava o remoinho da areia, no fundo. Ao vê-la efectuar uma sondagem, admirou-se da sua súbita compostura e do contraste da mesma com o apropriado momento de pânico que a lançara para os seus braços.

      - Bolina livre, capitão.

      - Mas continuamos encalhados...

      - Tem mais de noventa centímetros nessa sonda.

      - Este veleiro é de corrida, Toby. Tem a quilha revestida de cobre e um calado de metro e vinte.

      - Quer que salte para a água e empurre?

      - Se não se importar... Mas ficará encharcado até à cintura.

      - O sol está quente e secarei depressa.

      Pensou pedir-lhe que se voltasse para o outro lado, mas desistiu de tais pruridos, despiu o colete e a camisa e enrolou as calças largas até às coxas. Se se tratava de uma brincadeira, Nancy teria de suportar-lhe as consequências até ao fim. Saltou para a água e parou com os braços apoiados na amurada. Depois do primeiro arrepio a frescura da água nas pernas nuas soube-lhe bem. Aguardou um momento, à espera de que ela tomasse qualquer iniciativa que denunciasse as suas intenções.

      - Aceita o percalço com muita calma - observou.

      - Porque não, com um homem a bordo?

      - Sem dúvida sou o último homem com quem desejaria encontrar-se encalhada?

      - Não foi para discursar que saltou para a água, pois não? Vamos, enterre os dedos no fundo e empurre.

      Sorriu intimamente, convencido de que a compreendia, agora, e esperou, com a água pelo joelho, que ela se levantasse e empunhasse a vara de ponta ferrada. Só quando se encaminhou para o convés da ré reparou que descalçara os sapatos e as meias para melhor se deslocar nas pranchas do veleiro.

      - Pode firmar-se, Toby, ou o fundo tem demasiado lodo?

      - Ainda não experimentei.

      Nancy enterrou profundamente a vara e comentou:

      - Claro que se quiser ficar aqui até a vazante... Sem esperar que concluísse a frase, Toby entrou até ao peito no Savannah, deixando os pés escorregar na marga e nas algas do fundo até encontrarem um local firme para se apoiarem. Caminhou ao longo do casco e verificou que subira um pouco, liberto do seu peso, embora continuasse firmemente encalhado. Ouviu o bater rítmico dos pés nus de Nancy, na coberta, e compreendeu que ela repetia o seu movimento, ao longo da outra amurada.

      - Primeiro vou sacudi-lo no gurupés. Inclinou-se por cima dele, perturbadoramente perto, apoiou as pernas nuas no cabo da vela-mestra e corroborou os seus esforços com vigorosos safanões na vara. Areia esbranquiçada turvou a água, em redor de Toby, que por instantes julgou sentir o casco ceder um pouco, no banco de areia. Encostando o ombro à junção do gurupés com o casco, empurrou com toda a sua força. O veleiro estremeceu, mas continuou preso.

      - Haverá alguma maneira de o tornar mais leve? - perguntou-lhe Nancy.

      - Só se você saltar também para a água.

      - Sim, talvez seja melhor.

      - Estava a brincar, Nancy. Picaria molhada até ao queixo!

      - Até ao queixo, não. A si a água dá-lhe apenas até ao peito, e eu sou pouco mais baixa.

      Olhou-a com franca incredulidade, ao vê-la puxar a vara para bordo, recuar um passo para o abrigo parcial da bujarrona que o vento sacudia inutilmente e desabotoar o corpo do vestido. Como se não reparasse no seu olhar embasbacado, libertou os ombros, soltou o cinto e quando o vestido lhe caiu aos pés atirou-o para o botaló. O corpete que usava por baixo cobria-a quase tão completamente como o vestido de baile que usara na Fiação, mas bastou para que o sangue de Toby lhe latejasse nas veias, ao entrever-lhe os ombros nus.

      - Não se assuste, doutor; como vê, fico decente. Desabotoou um dos saiotes e, calmamente, atirou-o, com um pontapé, para cima do banco. Por mais que se esforçasse, Toby não conseguia arrancar os olhos da curva suave das suas coxas. Era evidente que naquela manhã não usava espartilho; a sua cintura e os seus seios jovens e firmes não precisavam de ser moldados.

      - Afaste-se um pouco, por favor. Vou saltar.

      Corpete e saiotes enfunaram-se de maneira alarmante, quando saltou pela borda fora a menos de um metro do ponto onde ele se encontrava. Fingindo agarrar-se melhor ao casco, o médico conseguiu disfarçar parte da sua confusão, enquanto Nancy se aproximava, com a água quase até ao queixo.

      - Vamos a isto, Toby, ou prefere nadar primeiro um bocado?

      - Estarei pronto quando estiver - redarguiu serenamente, e encostou o ombro ao casco, sob a curva do gurupés.

      Nancy tomara já uma posição paralela, apenas com o talha-mar entre ambos. Instintivamente, Toby apoiou a mão no mesmo, para se equilibrar, e sentiu os dedos da rapariga cerrarem-se sobre os seus.

      - Ao mesmo tempo, hem? - recomendou-lhe Nancy. - Conte até três e depois dê tudo quanto tiver! O barco está quase a flutuar.

      - Um... dois... três... Vamos!

      Sentiu a força dela empurrar o casco, embora lhe visse apenas os dedos entrelaçados nos seus. Empurraram, cada um do seu lado, até que o veleiro estremeceu todo e pareceu empurrá-los também, como se possuísse força própria.

      - Mais força, Toby! Está a ceder.

      Enterrou os dedos mais firmemente no fundo do rio e, com o ombro a estalar da tensão que lhe exigia, juntou a sua força à de Nancy, num arranco final. Quilha e fundo libertaram-se bruscamente, tão depressa que os atiraram de escantilhão. Quando, ao voltar à superfície, viu que Nancy nadava desesperadamente atrás da ágil embarcação, que ameaçava deixar-se levar pela corrente.

      - Salte para bordo e detenha-o! - gritou-lhe. - Depressa, por favor!

      Toby abençoou a proeza juvenil que o levou junto do veleiro numa dúzia de braçadas e a força de camponês que o atirou para bordo, num só impulso. Voltou a proa da embarcação para a corrente, com um toque no leme. Nancy, ainda bons quinze metros à proa, esforçava-se por alcançar a esteira do barco e o proiz, e Toby, que lutava com os caprichos da vela-mestra rebelada contra o vento, deixou-a por momentos entregue à sua sorte, convencido de que saberia tirar-se de apuros.

      - Calma, eu ajudo-a a subir para bordo.

      - Posso subir sozinha, obrigada.

      Mas Toby travou o timão e, de pernas abertas e pés fincados com firmeza no convés da ré, agarrou o proiz com ambas as mãos. Rebocando-a atrás do rápido veleiro, puxou lentamente o cabo, como um pescador clássico, de linha, que acabasse de apanhar “ uma sereia. Com um puxão final e violento, trouxe-a para o lado do barco, agarrou-lhe ambas as mãos e puxou-a facilmente para bordo.

      Os seus olhos prenderam-se nos dele quando se içou do rio para o convés, ao mesmo tempo que o corpete se entreabria e Toby tinha uma visão torturante e fugaz dos bicos rosados e erectos dos seus seios, colados ao tecido ensopado. O veleiro balouçou, apanhado por uma súbita rajada de vento, e Kent amparou-a, com um braço.

      - Obrigada, Toby. Não devia dizê-lo, mas... foi refrescante.

      Ele é que não se sentia nada refrescado ao vê-la prender os ganchos, para erguer a vela-mestra. A arder no desejo de completar aquele abraço natural com outro ainda mais explícito, agarrou-se ao timão e ficou como que soldado a ele. Sob as suas mãos, o veleiro suportou a crescente pressão do vento e deslizou com a corrente para o meio do rio.

      - Torça o botaló - recomendou Nancy. - Entre os dois poderemos içar a vela-mestra. De agora em diante descreveremos um triângulo mais estreito.

      - Não há mais baixios até Sangaree?

      As pálpebras de Nancy palpitaram e Toby ficou sem saber se ria, se procurava nas suas palavras um significado oculto.

      - Imagina que fui eu que planeei o encalhe? - perguntou-lhe, por fim.

      - Disse que lhe agradou, e isso basta-me.

      Pareceu prestes a falar, mas. desistiu e voltou a ocupar-se da verga da vela. Consciente da sua pequena vitória, mas sem vontade para dela tirar partido, verificou se o leme estava bem preso e foi ajudá-la. Juntos no botaló e na verga, içaram a vela-mestra e o veleiro pareceu encontrar o canal por instinto.

      - Se aproveitar o vento, poderei vestir-me atrás da vela - propôs Nancy, agarrando no vestido e no saiote.

      Toby não fez qualquer gesto para a deter quando a viu desaparecer atrás do triângulo de lona, com os pés descalços a passar agilmente por entre as cordas enroladas do convés da ré. Despertou para as realidades a tempo de salvar a embarcação de uma guinada traiçoeira, devida a súbita mudança da direcção do vento. Sentado no banco ao lado do leme, forçando o pensamento a afastar-se da parte do convés onde ela se encontrava, adquiriu a certeza de que não se enganara na interpretação do estratagema de Nancy, embora se recusasse a calcular o que pretendia dele resultasse.

      Visto navegarem a meio da corrente, sem um único barco à vista, Nancy estava tão ao abrigo de olhos estranhos como se se encontrasse no seu quarto, em Sangaree. E protegida, também, dele próprio - pensou, furioso - se sinceramente o desejava ou estava empenhada em provocá-lo de novo. Os seus olhos, fitos no anemómetro do pique de vante, desceram sorrateiramente o mastro, sem fazerem caso das ordens contrárias do cérebro. A vela, de cor parda agora que uma nuvem ocultava o sol, isolava-a como a parede de uma tenda, excepto no cabo tenso do botaló, que deixava ver quinze centímetros das barrigas das pernas, brancas e macias. Enquanto olhava, um saiote caiu na coberta e Nancy levantou os pés e saiu do seu círculo molhado. Seguiu-se outro, e os seus pés repetiram os mesmos gestos, certos e ritmados como num bailado. Veio a seguir um lampejo cor-de-rosa, o bailado repetiu-se e Toby compreendeu que chegara a vez das calcinhas de musselina.

      Sabia-a quase nua, agora, e com o corpo voltado para o sol, como uma flor a abrir, quando a luz irrompeu de novo do azul. A mão tornou-se-lhe rígida, no leme, ao mesmo tempo que a vela mudava outra vez de cor, sob aquela luz quente e dourada. A lona deixou de ser opaca e revelou-lha numa silhueta empolgante, no momento exacto em que puxava o corpete pela cabeça e ficava nua como Eva e como ela despreocupada.

      Inconsciente dos seus olhos devoradores - estaria, de facto, inconsciente? -', Nancy conservou-se imóvel durante um longo momento, como uma estátua de jardim grego. Viu as suas mãos acariciarem a simetria do corpo, moldarem a beleza esguia e perturbante das coxas, as nádegas altas e perfeitas e a planura do abdome, viu-as subir, apararem como duas taças os túrgidos seios, com o sol a banhá-la toda...

      ...E o desejo dissolveu-lhe o cérebro no seu potente alambique, impeliu-o a avançar sem ruído, para enterrar o rosto entre aqueles dois pomos altivos.

      Um cabo chicoteou-lhe o rosto, fazendo-o cambalear e abrigar-se contra a amurada de bombordo. Apanhado por uma rajada traiçoeira, o veleiro adernou perigosamente e o timão abandonado bateu no suporte. Toby, preso entre o botaló e o costado e cego pela lona da vela-mestra, quase não ouviu o baque da queda. O veleiro endireitou-se miraculosamente, permitindo-lhe agarrar no timão, o botaló girou e revelou um convés de ré vazio: Nancy nadava outra vez, já bons trinta metros atrás. Cortava suavemente a água, após o primeiro mergulho, com os cabelos estendidos, como um escudo vermelho dourado, sobre a água.

      - Que aconteceu, Toby?

      Não havia vestígios de susto na sua voz e Toby ficou sem saber se o mergulho inesperado a irritara.

      - Creio que rebentou qualquer coisa. - “Dentro de mim”, acrescentou mentalmente. “Podes agradecer ao vento e ao botaló da vela-mestra teres escapado por um triz... se é que querias escapar!”

      - Venha buscar-me; assim nunca mais o alcançarei.

      Os seus dedos executavam as manobras sem qualquer mensagem consciente do cérebro. O vento abrandara e seria simples virar o veleiro na direcção da nadadora solitária, que não era mais, já, que um ponto vermelho na imensidão do rio. Deslizando suavemente sobre a água, a pequena embarcação pareceu vencer distância como um tapete mágico.

      - Agarre o proiz quando eu passar- gritou Toby a Nancy. - Olharei para o outro lado.

      - Não poderá fazê-lo, Toby. Atropelar-me-ia.

      Kent compreendeu que tinha razão e atreveu-se a passar por ela a uma distância de trinta centímetros. O rio, claro como um mar naquele ponto, revelava-lhe todo o corpo tão completamente como se estivesse num escrínio de jade. Enquanto vivesse, lembrar-se-ia da maneira como os seus cabelos vermelho-dourados se abriam na corrente, emoldurando as linhas esguias e prateadas da sua beleza como um leque todo aberto; a maneira como os seus olhos o haviam desafiado a encontrar forças para voltar-se, enquanto ela nadava vigorosamente para agarrar o proiz e se deixava erguer, numa nuvem de espuma, na esteira da embarcação, emergindo da água lentamente, até restarem submersos apenas os joelhos...

      Toby fixou os olhos no talha-mar quando Nancy saltou para bordo. Certo de que estaria perdido se levantasse a cabeça um centímetro que fosse, governou o veleiro de uma maneira que qualquer mestre marinheiro invejaria, ao mesmo tempo que tentava, em vão, cerrar os ouvidos ao roçagar feminino que vinha, com o vento, de trás da vela-mestra.

      - Não acha que foi um pouco exagerado, Toby? Tentou resmungar uma resposta, mas as palavras não lhe saíram dos lábios.

      - Ouve-me, Toby?

      - Claro que a ouço!

      - Sabe que fizemos tréguas... Achava justo afogar-me... sem sequer levar um saiote para me servir de mortalha?

      Kent notou, com certo pânico, que estivera a praguejar entre dentes, sem dar por isso.

      - Acusa-me, acaso, de a ter feito cair à água? - conseguiu por fim murmurar, em voz rouca.

      - Porque não? Você acusou-me de ter encalhado o veleiro.

      - Se eu retirar essa... acusação, retirará a sua?

      - Não seria melhor se não retirássemos nada e nos considerássemos quites?

      - Como quiser - replicou, e continuou a fitar o talha-mar.

      - Já pode olhar, Toby.

      Levantou os olhos, surpreendido por achá-la já sentada perto de si, a agarrar os joelhos, coberta por um decente volume de pano e a rir através da teia vermelho-dourada dos seus cabelos.

      - Onde estávamos nós, antes de encalharmos?

      - Discutíamos o facto de você ser humana, parece-me.

      - É verdade. Recordo-me de que estava muito irritada. Sabe porquê?

      - Talvez por eu levar tanto tempo a admiti-lo.

      - Admite-o agora?

      - Vivamente, depois do baixio.

      Nancy aproximou-se e sentou-se a seu lado, no banco do leme, tão naturalmente como se aquele tivesse sido sempre o lugar de ambos.

      - Posso tomar conta do timão, agora?

      - De modo nenhum! Depois do seu desprezo pela minha arte de marinheiro, só me desforrarei levando o veleiro até à sua doca.

      - Conduzir-me-á a Sangaree pela sua própria mão? - perguntou-lhe, sorridente. - Talvez eu esteja, afinal, enganada e você também seja humano.

      Quase sem poder acreditar, ouviu o seu próprio riso juntar-se ao dela. Depois o desejo arrebatou-o outra vez num vendaval ardente e sentiu-se cair, cair na direcção dos seus olhos provocantes, do seu riso atrevido. Cair profundamente, perdidamente, amaldiçoadamente, na nuvem dourada do seu cabelo...

      Mas foi um instante apenas, um instante que acabou quando ergueu os olhos e viu a enseada de Sangaree começar a abrir-se sob o gurupés. Altiva e branca como sempre no alto da colina, a grande casa senhorial olhava-o com uma arrogância imperturbável.

      Foi o bastante para lhe recordar o abismo existente entre ambos, embora não encontrasse vestígios dessa arrogância nos olhos de Nancy Gregory, quando se atreveu a fitá-los de novo.

      Uma hora depois, ao percorrer a biblioteca da casa senhorial e ao olhar, pelas janelas do mirante, os relvados bem cuidados, teve a certeza de que o abismo nunca se fecharia. Sangaree justificara todos os seus receios; Sangaree - que remédio senão curvar a cabeça perante o inevitável? - era o mundo de Nancy, um baluarte que jamais conquistaria, embora tivesse penetrado nele por um dia.

      O trajecto do cais para a habitação, através do roseiral, fora como um sonho, um sonho que persistira quando entrara naquela sala alta, forrada de livros, enquanto Nancy dava ordens aos escravos. A realidade impusera-se, com o habitual peso esmagador, apenas durante a longa ausência da anfitriã, ausência que passara a andar de um lado para o outro, a espreitar no mirante e a amaldiçoar entre dentes toda aquela muda magnificência. Sim, a casa senhorial de Sangaree estava ali para ficar! A guerra chegara à soleira da sua porta, mas ela sobrevivera, intacta, à provação. A sua dona não era menos inviolável. Já não lhe restavam dúvidas a esse respeito, embora a tivesse tido nos braços uma escassa hora antes e a houvesse visto nadar toda nua, no rio. Hoje, era capaz de incitá-lo a amá-la, para satisfação da sua vaidade feminina; amanhã, quando se encontrassem diante dos livros da Companhia Darby, voltaria a ser a mesma de sempre.

      Pelo menos era assim que pensava quando se deixou cair numa cadeira e fitou, de novo, a consola de mármore da chaminé e o retrato por cima dela. Victor Darby, magnificente num fato de veludo cor de ameixa e com uma das mãos a descansar suavemente no lombo de um spaniel, sorria-lhe da moldura. Fora Gilbert Stuart quem pintara o retrato, pouco antes da revolução. Bem escondida durante as hostilidades, a tela só regressara ao seu lugar sobre a chaminé quando os operários de Nancy haviam dado por completa a restauração de Sangaree.

      Naquele dia, achava o sorriso do velho Victor um pouco triste, como se aqueles belos olhos fulgurantes olhassem cheios de piedade o espectáculo da avidez humana. E no entanto fora ele próprio quem levantara o pau-de-fileira de Sangaree, fora ele quem insistira em que a propriedade passasse para Nancy, para dela fazer o que quisesse. Sem dúvida o patriarca avaliara que seria precisa uma fortuna para restituir aquela casa ao antigo esplendor, e que só uma fortuna ainda maior chegaria para nele a manter.

      De novo presente e passado se confundiram. Viu Victor Darby, na véspera da sua partida para a guerra, olhar tristemente o cosmos que criara e a castelã que resumia a sua essência. Amando a filha como amava, o fundador da Companhia Darby procurara apenas um acordo entre romance e realidade. Esquecera, porém, que no dicionário da filha acordo era palavra sem significado.

      Essa certeza fê-lo levantar-se outra vez, incapaz de dominar a inquietação. Percorreu a carpete cor de pêssego e parou diante de uma secretária sobre a qual se viam, numa pequena estante, vários volumes alinhados. Pela segunda vez no decorrer daquela hora tocou na chave que estava na fechadura. As portas de vidro abriram-se facilmente e Toby soube, antes mesmo de lhe pegar, que o último volume da fila se tratava de um manuscrito encadernado, e não de um livro vulgar. Roy falava tantas vezes nos escritos do pai e no local onde se encontravam, em Sangaree, que Kent nem precisou de o abrir.

      ESCRITOS ESPARSOS

      DE VICTOR DARBY, nobre.

      Fitou durante muito tempo o título dourado da lombada, antes de arrumar o volume no seu lugar, sem o ler. Talvez ali se encontrasse a chave de muitos dos enigmas que o haviam intrigado naquele primeiro ano em Savannah, talvez, até, um abre-te sésamo para o estranho coração de Nancy Darby Gregory. O velho Victor dissera que o seu protegido encontraria em Sangaree a solução de muitos problemas, se tivesse paciência e soubesse interpretá-la correctamente. Sempre tão explícito nas suas palavras, o fundador da Companhia Darby levara para o túmulo o significado daquelas. Escritos Esparsos de Victor Darby, nobre... Roy aludira àqueles diários encadernados em carneira na noite em que o pai morrera. Seria possível que tivesse sido atraído a Sangaree para finalmente os ler? Tê-lo-ia Nancy deixado sozinho na biblioteca, durante uma longa hora, na esperança de que a estante despertasse a sua atenção?

      Abandonou o devaneio assim que ouviu passos no vestíbulo, e voltou-se para a porta com uma pressão familiar na base do crânio. Era o mordomo de Nancy, que se curvou respeitosamente à entrada da porta, um negro altivo, de cabelo branco, libré cor de canário e um comprido bastão simbólico do seu posto na mão castanha.

      - A senhora espera o doutor no cais. A senhora informa o doutor de que ainda têm tempo de inspeccionar os arrozais antes do jantar.

      As palavras foram ditas sem floreados, apenas com uma dignidade natural que condizia com a alta sala branca, a riqueza sombria de mil volumes, as miniaturas de mármore, de filósofos, em todos os nichos da parede, e o sorriso triste e enigmático de Victor Darby. Olhou o retrato do benfeitor, como se aguardasse uma última ordem, encolheu os ombros e seguiu o negro ao vestíbulo. Darbys ainda mais velhos olhavam-no de todas as paredes e o sol primaveril entrava a jorros pelas bandeiras duplas e pairava no ar como uma patina dourada.

      O silêncio era absoluto como o das profundezas de um túmulo de mármore branco - um mármore branco a que a patina dourada emprestava um calor que de facto não tinha. Talvez essa imagem identificasse Sangaree melhor que todas as pragas proferidas entre dentes.

      Ao seguir o mordomo para o alpendre do lado sul, Toby entreviu uma sala de jantar cheia de dourados e tão espaçosa como o salão de um rei medieval, e uma enorme sala de estar com todos os móveis e adornos cobertos por panos e as janelas fechadas, para que o sol matutino não entrasse. Victor Darby ali vivera e criara família, antes de doar a casa a Nancy. Ainda lhe parecia impossível que se tivessem rido e desfrutado prazer naquelas salas silenciosas, bebido sofregamente na mesa monumental e debatido as verdades recolhidas no santuário da biblioteca.

      - Trabalha aqui há muito tempo?

      O mordomo parou à entrada do pórtico, simultaneamente assustado e contente por o visitante se lhe dirigir directamente.

      - Já era moleque do velho senhor antes de Sangaree ter telhado, e servi o pai de Miss Nancy desde o princípio, senhor.

      Toby notou que o inglês do negro era tão impecável como as suas maneiras.

      - Admira-me nunca o ter visto em Savannah.

      - Só eu me lembrava bem de Sangaree, senhor.

      Melhor ainda que Miss Nancy, que estivera tanto tempo em Nassau, com o marido. Ajudei os operários a reconstruir esta casa como era dantes, e isso ocupou-me todo o tempo.

      - Como se chama?

      - Sou o Rex de Miss Nancy, doutor.

      O Rex de Miss Nancy. Uma afirmação simples, concreta, sem tons patéticos. Nem os animais de carga de Miss Nancy, nem o cavalo castanho que costumava montar nas suas idas a Savannah, aceitariam a escravidão com maior naturalidade. E todavia Rex pertencia àquele ambiente como nenhum homem livre podia pertencer. Que fariam os Rexes daquele mundo sulista - reis no nome, apenas - com uma coisa tão estranha como a liberdade?

      Toby afastou a pergunta do pensamento, furioso consigo mesmo. A aura de Sangaree era já suficientemente poderosa.

      - Se o doutor quiser ter a bondade de me seguir...

      Embora preparado para o cenário que se desfrutava do alpendre sul, Toby ficou boquiaberto perante a enorme extensão de puro verde. Protegida no horizonte pelo quebra-ventos dos pinheirais, enevoada pelo azul do rio sinuoso, a plantação de Sangaree parecia quase interminável, sob a carícia do sol do meio-dia. Os campos de arroz ajudavam a criar essa ilusão, com o labirinto dos seus diques e canais. De onde estava, Toby quase não notava que grande parte da terra fora invadida pelas ervas maninhas, graças ao descuido dos anos de guerra, embora soubesse, pelos livros da companhia, que apenas escassos trezentos acres estavam preparados para a semeadura da Primavera. As extensões de relvados e jardins, as instalações dos escravos e os telheiros de trabalho, os recintos de recolha de coches e carruagens, só por si intermináveis, vistos do alto daquele monte feito pelo homem, eram bem eloquentes e reais.

      Ficou imóvel e silencioso um longo momento, a lutar contra o impacto daquele império independente, daquele mundo que a fortuna de Pagnol e o orgulho de Nancy tinham recreado. Depois, sem se deter a lamentar um idílio desaparecido, nem a recordar a beleza de umas pernas brancas recortadas na lona de uma vela, foi ao encontro da senhora de Sangaree.

      Uma pérgola flamejante de jasmins contornava em semicírculo o relvado sul, o qual dava, por sua vez, para um lanço de escadas que descia, numa série de terraços ladeados de vasos, até à borda-d'água. Ao seguir Rex, Toby via o padrão dos terrenos ganhar forma, ao fundo, e a última extensão de relva, cortada pela alameda de carvalhos que descrevia uma curva larga na ala norte da casa e ia dar aos portões exteriores. Via também o carreiro que atravessava as últimas terras de cultivo dos Darbys e o largo círculo branco onde se juntava à estrada do rio, na junção de uma pontezinha que marcava também o fim da enseada de Sangaree.

      Mergulhando a cada passo, mais profundamente, em familiares imagens de sonho, Kent parou à sombra de um grande buxo, antes de descrever a curva seguinte. Daquele ponto em diante, o caminho era-lhe tão familiar como a palma da sua mão; percorrera-o mentalmente inúmeras vezes, nas desesperadas vigílias na outra margem. Uma rampa estreita, entre edifícios de trabalho, um último lanço íngreme de degraus, onde a base pedregosa do monte se juntava à água da enseada, e estava no cais e no barracão com telhado de zinco que servia de ancoradouro ao veleiro. Aí o esperava Nancy, serenamente, sob uma sombrinha debruada de renda, como uma rainha que dominava tudo quanto a vista alcançava. O seu império incluía, naquele momento, meia dúzia de cabeças mesureiras de outros tantos negros a quem dava ordens e a chata que acabava de afastar-se de um grupo de embarcações e se aproximava do cais.

      Vestia toda de renda branca como a da sombrinha, com os cabelos acobreados presos numa trança em forma de coroa, e deixou escapar um leve sorriso ao vê-lo parar, à sombra do barracão. Como a rainha a que a comparara, despediu os súbditos negros com um gesto da sombrinha e foi ao seu encontro, de mão estendida.

      Toby beijou-lha, irritado, no que esperava fosse imitação razoável da graça de Pagnol.

      - Que visitaremos primeiro, doutor? Os arrozais propriamente ditos ou a eira?

      A sua atitude, naquele momento, era tão fria como a mão que o médico ainda segurava. Recuou um passo, constrangido e magoado com a significativa mudança de tom, embora a tivesse previsto enquanto esperava na biblioteca.

      - A eira, Mrs. Gregory? Julgava que estávamos na época da semeadura.

      - Também utilizamos as eiras para isso. Na realidade, a única desculpa que posso apresentar da minha demora é que estive a inspeccionar as sementes.

      “Bela desculpa!”, barafustou, mentalmente. “Precisaste de uma hora, pelo menos, para secar o cabelo, para não falar no ataviamento desse corpo insuportavelmente perturbador nesses metros de renda irlandesa!”

      - Deixo a escolha ao seu critério - respondeu-lhe, em voz alta. - Lembre-se de que sou apenas um crítico de visita.

      - Lembro-me também de que foi o dinheiro Darby que pagou todo esse arroz.

      Toby verificou que, afinal, podia sorrir, ao recordar a astúcia com que pedira uma hipoteca sobre Sangaree, para poder plantar parte da terra para seu benefício próprio, fora dos ubíquos livros da companhia. Não era o primeiro dinheiro que recebia dos cofres Darby para semelhantes aventuras em e à roda de Sangaree.

      - O dinheiro Darby não podia estar em melhores mãos.

      - Bem, vamos então à eira. No fim de contas, o vosso arroz será plantado exactamente como o meu.

      - O nosso arroz, Mrs. Gregory. Fora deste círculo mágico, repartimos tudo.

      - Sem dúvida... quando há alguma coisa para repartir.

      Colocou-lhe a mão fria no braço, sem lhe dar tempo a replicar, e permitiu-lhe que a ajudasse a descer para o banco largo da popa da chata. O preto de ombros quadrados que empunhava a vara, um Hércules negro vestido apenas de calções incrivelmente brancos, bateu respeitosamente os calcanhares nus quando Nancy ergueu a sombrinha. Ao sentar-se ao seu lado enquanto a embarcação se fazia ao largo, Toby verificou que, ao contrário do que supunha, o círculo de renda proporcionava sombra que chegava para dois.

      - Decepcionado, doutor? - A sua voz continuava gelada, embora lhe falasse num murmúrio, sob a sombrinha compartilhada.

      - Com Sangaree... ou consigo?

      - Não somos inseparáveis, na sua opinião?

      - Nem sempre.

      Sustentou-lhe o olhar, consciente, por instantes, de que a vantagem era sua. Mas logo a seguir, Nancy soltou uma gargalhadinha e recuperou, intactas, as prerrogativas de rainha.

      - Observe aqueles pássaros do arroz, doutor. Este ano chegaram a tempo, como sempre.

      Toby olhou para cima e notou ainda um bater de asas negras contra o sol e um crocitar que pareceu desaparecer no azul juntamente com a restolhada de rémiges. A observação servira a Nancy para retomar o papel impessoal de guia, tão naturalmente como se lhe soldasse no pescoço um anel de ferro.

      - Observe também que os nossos vigias estão nos seus postos.

      Acenou, ao mesmo tempo que ela, à multidão de espantalhos vivos que se encontravam no dique que contornava o campo inundado. Os escravos gritaram um cumprimento em várias línguas, e Nancy ergueu a sombrinha, para receber a homenagem, enquanto a chata deslizava a pouca distância da parede retentora. Chamou a maioria dos negros pelo nome e pareceu sinceramente satisfeita com o encontro.

      - Nada lhes agrada mais que vestir-se de lenços coloridos e fazer de espantalhos. Antigamente, não conseguíamos conservar a semente na terra sem eles, e mesmo assim os pássaros voltavam depois do pôr do Sol e estragavam o que podiam. Este ano espero que seja possível empregar aqueles braços nos campos.

      - Está, então, a “embarrar” o arroz?

      Fitou-o, de olhos muito abertos, e perguntou-lhe:

      - Desde quando sabe o que é “embarrar”?

      - Desde que li um relatório que deixou na minha secretária, a semana passada.

      - Está estragada a minha pequena surpresa! - Recomendou, por cima do ombro, ao barqueiro: - Mete pelo canal leste, Priam; quero que o doutor veja a eira em acção.

      A chata virou bruscamente, saindo da enseada de Sangaree para uma espécie de canal onde a maré chegava. Soerguendo-se um pouco num cotovelo, Toby pôde ver os arrozais, a maioria ainda secos, graças às represas, e alguns já inundados, com uma película de água tão fina que se via claramente a terra preta por debaixo dela.

      - Boa colheita para a passarada, segundo o velho regime - disse Nancy. - O arroz costumava flutuar muito antes de germinar, e muitas vezes perdíamos numa maré mais forte o que os pássaros deixavam. Com o barro, o arroz fica no fundo e as aves, graças a Deus, são tão estúpidas que não o descobrem.

      Enquanto falava, o barco deslizava defronte da eira - uma superfície extensa erguida no coração dos arrozais, com tecto de palmitos entrelaçados, por causa da chuva. À primeira vista, Toby juraria que à sombra dos ramos dos palmitos estava em progresso alguma dança antiga, mas depois verificou que os dançarinos eram outro grupo de escravos que pisavam, descalços, uma camada fina de arroz misturado com bocados de barro encarniçado da Jórgia. Os dedos dos negros, ao moverem-se animados de antigos ritmos, mesmo naquela tarefa plebeia, misturavam barro e arroz num milhar de minúsculas bolinhas e afastavam-se para repetir a operação noutra área.

      Jovens escravos de ambos os sexos, cada um com sua saca, seguiam atrás dos “bailadores” e apanhavam as sementes. Os sacos eram em seguida transportados para bordo de uma série de chatas ancoradas ao longo dos lados abertos da eira.

      - Aquela semente só será utilizada amanhã - explicou Nancy. - No entanto, creio que estão a semear ao sul. Não é verdade, Priam?

      - É, sim, Miz Nancy.

      - Segue pelo canal, então, e corta para os campos na próxima curva.

      A chata deslizou na corrente preguiçosa e descreveu a longa curva com a facilidade do pelicano que rasa a água confiante nas suas asas. Nancy fechou a sombrinha e levantou-se quando iam a virar para o primeiro canal tributário.

      - Observe aquele “tronco”, doutor, e o velador do mesmo - recomendou, com a fluência seca que Toby recordava tão bem. - Dar-lhe-á uma excelente ideia da maneira como os campos são inundados, à profundidade que desejarmos.

      A sua voz era impessoal como a de um professor a ensinar um aluno indiferente, e impessoal foi a mão que lhe estendeu, para que se equilibrasse quando se ergueu a fim de examinar a comporta indicada. Assim de pé, podiam ver a bacia plana e artificial do arrozal e avaliar a profundidade da toalha líquida que se infiltrava nela. Apesar de a água ser turva, Toby conseguiu distinguir os contornos do “tronco”, uma longa conduta de cipreste fechada em cada extremidade por um alçapão que regulava o fluxo do canal para o campo. O “velador do tronco”, um negro de olhos vivos sentado numa espécie de guarita no alto do dique, segurava as cordas dos alçapões com ambas as mãos e observava cuidadosamente a água que subia, devagar, no arrozal.

      - Como verifica, doutor, o arroz deve germinar debaixo de água e efectuar a maior parte do desenvolvimento nesse estado. Todos os campos devem ser inundados várias vezes, entre a sementeira e a colheita. No entanto, para esta última têm de estar secos.

      - Por isso o planta junto de um rio invadido pelas marés.

      - É mais simples e muito menos dispendioso que construir terraços. Mesmo que as represas fossem arrasadas por um furacão, podiam ser escoradas a tempo da próxima colheita. - Deu uma ordem ao velador, que levantou mais as cordas e deixou, assim, um volume maior de água penetrar no campo.

      Ao ouvi-la falar brandamente ao escravo, Toby maravilhou-se mais uma vez com a sua facilidade de combinar rendas com ordens, e com os seus conhecimentos do assunto, por certo superiores aos que a prática proporcionara aos seus capatazes.

      - Mas estas comportas não são fáceis de substituir, pois não?

      - Se recordar a história, doutor, verificará que os Egípcios usaram processo semelhante no Nilo. Aqui, torna-se apenas necessário consultar o almanaque, para estar ao corrente das marés. Para inundar, aproveitamos a enchente e fechamos as comportas; para drenar, temos o cuidado de as abrir na vazante. A influência da Lua faz o resto.

      A voz suave continuou a explicar a primeira inundação dos campos, os primeiros vestígios de verdura. Falava bem, com a autoridade da experiência, e Toby não duvidou de que se sentara já, também, nas guaritas de madeira, a observar o alagamento, de que andara, com botas altas, de homem, entre os primeiros taules tenros, e de que estivera talvez naquele mesmo dique, quando as plantas floresciam e o vasto lençol de água aparecia estrelado de tenras florinhas azuis.

      - Uma vez o arroz em flor, efectuamos aquilo a que chamamos o alagamento de ceifa. Como pode verificar, doutor, os “troncos” regulam minuciosamente o nível da água, conservando-o abaixo da flor, onde o bago se formará. Quando este está totalmente desenvolvido, esgotamos toda a água e entram os cortadores em acção. Depois os canais voltam a ter utilidade, no transporte da colheita para a eira.

      - Vamos então ver a sementeira?

      - Se quiser - condescendeu, com um olhar velado. - Aborreci-o, com a minha pequena lição?

      - Pelo contrário.

      - Para estas bandas consideram-me uma boa plantadora. Meu pai disse-o muitas vezes.

      - Disse-o na minha presença, Mrs. Gregory. Permite-me que compartilhe da sua opinião?

      Nancy aceitou o cumprimento com uma grave inclinação de cabeça e fez novo sinal ao barqueiro. A chata deslizou ao longo de um campo profundamente alagado e parou suavemente junto de outro com as comportas fechadas. Desta vez puderam observar com todo o conforto, do banco da embarcação, como espectadores num camarote aquático.

      No campo abaixo do dique, relativamente seco e sulcado com exactidão geométrica, um numeroso grupo de escravos semeava arroz “embarrado”, sulco por sulco. Os semeadores, vestidos de cores alegres e com movimentos de uma graça ritmada, faziam vivo contraste com a terra preta e empapada, aberta para receber a semente. Toby notou que todos os escravos eram verdadeiros especialistas na matéria, espalhavam a semente com um floreado do braço para diante, mas com uma regularidade surpreendente que garantia um crescimento uniforme dos caules, quando a área fosse alagada.

      - Acha o processo completo, doutor?

      - Muito completo - redarguiu, desejoso de não lhe ficar atrás em frieza. - Evidentemente que não era precisa a demonstração; aceitaria o seu relatório mesmo sem ver.

      A chata dirigiu-se para o canal principal. Notava-se já um certo arrefecimento do ar, agora que o Sol começara a viagem para o poente, embora os arrozais brilhassem ainda como espelhos negros. Ou seria apenas impressão causada pela barreira que entre eles se erguera, não menos tangível pelo facto de os seus corpos se tocarem no banco da embarcação?

      - Agrada-me muito que aprove, doutor. Se lhe dissesse quanto, talvez me acusasse de...

      - Hipérbole?

      - Quis que visse, com os seus próprios olhos, como se cria este ouro branco. - Hesitou uma fracção de segundo, antes de prosseguir: - Queria sobretudo, suponho, que me dissesse que... bem, que tinha o direito de dirigir Sangaree como me parecesse conveniente.

      - Sangaree será sempre sua, Mrs. Gregory... enquanto puder dar-se a esse luxo.

      Nancy ignorou a impertinência e comentou:

      - Ainda não me disse que aprova.

      - Aprovei-a sempre como administradora de uma propriedade.

      - Isso é uma evasiva. Temos mais de oitocentos escravos nestes campos, cem dos quais são meus e os restantes propriedade da companhia. Vivem todos ao fundo do monte. , - Observei as instalações.

      - É capaz de negar que são as melhores instalações que já viu? Acha que, se fossem livres, teriam nem que fosse metade do bem-estar de que gozam?

      - Claro que não... actualmente. Nem mesmo nos tempos mais próximos.

      - Serão mais que um punhado os que compreendem o significado da liberdade?

      - Mais uma vez concordo, Mrs. Gregory.

      - Admitiu que sei zelar pelo que é meu tão bem como qualquer plantador e sabe que a manumissão com raríssimas excepções, é apenas um sonho, no nosso tempo. Disse também que sou capaz de cultivar arroz com lucro.

      - Pretende sugerir que transfira a sementeira para os seus cuidados?

      - A sementeira toda, doutor, a direcção de todos os capatazes e administradores da Darby... e todos os escravos da companhia.

      Toby engoliu em seco, ao avaliar o inteiro significado da sua visita.

      - Por outras palavras, sugere que abdique a seu favor?

      - Apenas no que diz respeito a esta sementeira. Claro que a colheita continuaria a ser propriedade da companhia, para ser vendida como o presidente desejasse.

      - Mas a senhora dirigiria os arrozais da companhia até a colheita se fazer, os seus trabalhadores e as suas máquinas?

      Nancy desceu as pálpebras, na sombra suave da sombrinha, e perguntou-lhe:

      - Seria capaz de dirigi-los melhor, doutor?

      Tobias Kent viu-se constrangido a lançar outra vez mão da evasiva:

      - A sua proposta apanhou-me desprevenido, foi... um choque para mim.

      - Compreendo; os homens ficam geralmente surpreendidos quando verificam que as mulheres são capazes de fazer o seu trabalho.

      - Tenho de pensar...

      - Naturalmente. Importa-se de o fazer na biblioteca do meu pai, enquanto me visto para o jantar?

      - Outra vez a biblioteca, Mrs. Gregory?

      - Porque não? Os homens pensam melhor rodeados de livros.

      - Especialmente dos livros do seu pai? - Lamentou imediatamente a pergunta, ao ver como os olhos lhe enevoavam. - Roy falou-me nos diários do pai - explicou, hesitante. - Pensava apenas...

      - Meu pai foi um grande homem, apesar de incurável idealista. Talvez eu tenha procedido mal ao conservar os seus... os seus papéis aqui em Sangaree; ele esperou sempre publicar os melhores..

      - E a senhora esperou que eu lesse hoje, esses diários, sem ser preciso recomendar-mo. É disso que estamos a falar, com tantos rodeios?

      - É isso, precisamente, o que quero dizer, doutor.

      - Surpreendido, verificou que a confissão, feita em tom suavíssimo, lhe deixara as faces escarlates. - Podia fazer pior do que dar-lhe uma vista de olhos.

      - Ajudar-me-ão a tomar uma decisão acerca da sementeira do arroz?

      - Ajudá-lo-ão a decidir-se acerca de muitas coisas.

      - O rubor acentuou-se, da raiz dos cabelos cor de cobre ao ousado “V” do decote. - Poderei, até, recomendar-lhe um volume em especial, se estiver interessado.

      - Todos os pensamentos de Victor Darby me interessam profundamente.

      Nancy olhava em frente, e Toby sentiu todo o seu corpo tornar-se tenso, no estreito banco da chata.

      - O último volume pareceu-me sempre o mais objectivo. Contém as suas... poderei dizer prescrições para o futuro?

      - Todas as suas prescrições foram para o futuro - redarguiu Toby.- Nunca para o passado.

      - Creio que estas lhe interessarão sobremaneira. Pode agora, falar de outras coisas?

      Obedecendo a um impulso que não soube identificar, Toby pegou-lhe suavemente na mão cerrada, que abandonara no banco ao seu lado, e abriu-lhe os dedos, um por um. Nancy não fez qualquer tentativa para a retirar quando lhe beijou a palma quente.

      - À senhora de Sangaree - murmurou o médico. Quantas vezes terei de repetir-lhe que é digna do título?

      Pedira-lhe que falassem de outras coisas, mas dir-se-iam não precisarem de palavras enquanto regressavam à enseada. Os olhos de Nancy continuavam velados e as suas faces ruborizadas, mas parecia estranhamente tranquila, agora que dissera o que tinha a dizer. Até a mão pequenina e quente que conservava nas dele era uma promessa tácita.

      Depois de o deixar à porta da biblioteca e de Rex, o mordomo, ter fechado os batentes de mogno, Toby andou durante muito tempo de um lado para o outro, sem sequer olhar para as paredes forradas de livros. Nem tão-pouco para a estantezinha de vidro por cima da secretária, onde talvez se encontrasse a chave do seu destino.

      O velho Victor dera outras ordens e ele cumprira-as. Seria singular se, querendo projectar-se para além da sepultura, tivesse escrito a sua última ordem e a deixasse arquivada entre aquelas ricas capas de velino. Mas não, não podia acreditar que a sua vida e a de Nancy pudessem compor-se com tanta facilidade... nem que uma ponte de livros bastasse para vencer o abismo que os separava.

      “Seja como tem de ser...”, murmurou para consigo. “Mas adiarei o milagre um instante mais. Por agora, considero muito mais importante recordar a pressão húmida e quente da sua mão na minha e o ar suplicante dos seus olhos e da sua voz, a maneira como o seu cabelo brilhou na penumbra do vestíbulo e como a respiração se lhe prendeu na garganta, quando falou da escada...”

      “Agora que viu Sangaree de ponta a ponta, acha que vale o que custa?”

      “Sangaree é uma coisa bela, como a sua dona. Aos meus olhos, porém, parece-me ainda uma concha vazia.”

      “Todas as casas o são enquanto não se vive algum tempo nelas. Esta está à espera.”

      “À espera, Mrs. Gregory?”

      “À espera de que a sua dona encontre um marido, doutor. Agora já sabe tudo.”

      Recordava a precipitação com que o deixara, como se a confissão directa a assustasse um pouco. Recordava que ele próprio ficara mudo, ao ousar avaliar o significado das palavras ouvidas.

      Sem qualquer sentido de transição, deu consigo à secretária, a esgaravatar com a chave na fechadura de latão lavrado. O último volume da estante7 estava já na sua mão quando o papel voou para o tampo da secretária... Por estranha coincidência, era o mesmo volume que quase abrira de manhã e devolvera, sem ler, à estante. Voltou a fazê-lo, inconscientemente, enquanto todo o seu ser se concentrava no quadrado de papel caído na secretária.

      Não reparara no bilhete da primeira vez que mexera na estante, embora pudesse muito bem já lá se encontrar, entre os livros. Não lhe restavam dúvidas quanto à caligrafia nem ao significado das frases cheias de arabescos que enchiam ousadamente a página:

     

      Mignone:

      Mauvaise veine! Le prix de nos coeurs m'a echappé. J'attendrai de nouveau le départ de M. le capitaine B. II faut absolument savoir l'heure precise de ces départs: en plein mer, le D. B. est toujours le maitre... La prochaine fois, fais ton avis sur-le-champ. Même messager, même rendez-vous. Je te salue, non âme (1).

      (1) Em francês no texto. “Pouca sorte! Escapou-me o prémio dos nossos corações. Aguardarei nova partida do capitão B. É absolutamente indispensável saber a hora exacta destas partidas: no alto mar, a D.B. tem sempre vantagem... Da próxima vez, avisa-me imediatamente. Mesmo mensageiro, mesmo local. Saúdo-te, minha alma.” (N. da T.)

     

      Cambaleou, tomado de vertigens, como se cada palavra fosse um martelo a castigar-lhe o cérebro, mas os  seus dedos trémulos devolveram o bilhete ao seu lugar na estante. Com o mesmo movimento instintivo arrumou também o último volume das memórias de Victor Darby. A ciência e a previsão do fundador seriam pálido paliativo para a sua descoberta.

      Afinal Martha tivera razão!

      Lia naquele bilhete toda a trama da conspiração de Nancy Gregory, com tanta clareza como se deslizasse sorrateiramente rio abaixo e fosse descobrir o esconderijo do flibusteiro. Na noite anterior, os ladrões da costa haviam esperado o momento de se lançarem sobre a Darby Belle, como abutres pacientes. Mas, soltando as amarras no meio de profunda escuridão, a Darby Belle, com o capitão B. no tombadilho, fizera-se ao mar alto em segurança, ao mar alto onde, como o próprio capitão B. afirmara, pedia meças a qualquer barco.

      Pagnol, ao efectuar actos de pirataria de cumplicidade com Nancy, pagara-se com juros das somas que porventura emprestara para a reconstrução do império particular de Nancy Darby Gregory. Graças ao seu trabalho na Companhia Darby, esta não tivera dificuldade em informar o francês e os piratas a soldo seu das datas exactas da partida dos barcos Darby. O facto de a companhia correr o risco de se arrumar e de se verter sangue nas enseadas abaixo do Savannah, pouca importância tinha para o blandicioso francês ou para a castelã de Sangaree.

      Outros factos pareciam revelar-se claramente com a simples leitura do comprometedor bilhete. O mensageiro mencionado podia ser, apenas, um servo de confiança da própria casa senhorial; o rendez-vous, qualquer ponto a jusante do rio onde Nancy, ou o seu correio, podia dirigir-se no veleiro. A coincidência de o bilhete se encontrar ali escondido, entre as memórias do fundador - provavelmente local já utilizado para outros communiqués -, constituía apenas uma ironia final. Nancy, capaz de tecer planos tão implacáveis noutros aspectos, esquecera, pura e simplesmente, aquele pormenor essencial... Assim pensava Toby, pelo menos, ao percorrer, furioso, a biblioteca e ao amaldiçoá-la, e a tudo quanto se lhe referia, num murmúrio rouco.

      No capítulo de conspiração, aquela tinha a virtude da simplicidade. Combatera-o mais dentro do que fora da companhia e a própria prosperidade dos negócios Darby fora calculada para encher os cofres do francês - e os dela. Se a Darby Belle tivesse sido apresada a noite anterior, numa escaramuça cega entre os pântanos do rio, a perda seria irreparável. Graças à sua situação no escritório, Nancy podia aguardar idêntica oportunidade, em ulteriores viagens da embarcação... Entretanto, se lhe confiasse o controlo da plantação de arroz, facilmente arruinaria a colheita e obteria o mesmo resultado. Com Sangaree por completo nas suas mãos e a companhia falida, poderia casar com Pagnol, com o jovem Bristol ou com quem lhe apetecesse.

      Eram estes os pensamentos que torturavam Tobias Kent quando, mais uma vez, se aproximou da grande janela e olhou a rica terra que parecia já irremediavelmente nas mãos de Nancy.

      Deveria mostrar-lhe o bilhete e esmagá-la com o peso de semelhante prova? Venceu a tentação e logrou acalmar-se um pouco. Agora mais que nunca lhe convinha esperar, até obter provas positivas e irrefutáveis da sua culpabilidade... ou até se decidir, de uma vez por todas, a matar Félix Pagnol.

      No fundo da alma, no recanto onde alimentaria o seu ódio e o seu orgulho ferido até ao dia de juízo, sentia nascer um desejo quase insuportável de uma vingança mais subtil, uma resolução tão dura e tangível como o caroço amargo de uma mandrágora... Por isso estava quase calmo quando a porta se abriu e Nancy surgiu no limiar.

      Mesmo naquele momento em que simultaneamente renunciava a ela e a amaldiçoava, a sua beleza tirou-lhe o fôlego. Envolto num vestido de cetim branco e apertado num espartilho justo que lhe acentuava as curvas juvenis e sazonadas, o seu corpo parecia resplandecer numa promessa tentadora. O seu rosto, aureolado na mesma coroa entrançada, nunca tivera ar mais doce, mais enganoso. Toby arrancou os olhos ao apelo mudo dos lábios cheios e entreabertos e fitou-os na espuma de renda que mal disfarçava o corte fundo do decote. Enclavinhou os dedos, ansiosos por agarrarem essas rendas e desnudá-la, para outra vingança mais antiga. Naquele momento seria capaz de possuí-la com gosto, ali mesmo, nas almofadas da otomana, sob o olhar triste do pai.

      Quando Nancy falou a sua voz tinha um timbre estranho e distante:

      - Está com um ar solene, Toby. Esteve a... meditar?

      - Profundamente!

      - Acerca das memórias de meu pai, espero?

      - Não, Nancy. Não me senti com disposição para memórias.

      Os olhos dela voaram para a estante, em cuja fechadura rendada estava metida a chave. Entrou na sala e fechou a porta, dando a impressão de flutuar em vez de andar, como uma rapariga enfeitiçada.

      - Teria ajudado se lesse o último volume... - comentou.

      - Teria ajudado quem, você ou eu?

      - Ambos, talvez.

      Encostou-se à otomana, enquanto falava, e, surpreendido, Toby verificou que tremia e se esforçava por ocultar o nervosismo. Perguntou a si mesmo se se teria lembrado de que os bilhetes de Pagnol eram ali escondidos, às vezes, e sufocou o impulso que de novo o acometeu de lhe mostrar o que descobrira. Por enquanto, pareceu-lhe, seria muito mais simples fazer o seu jogo.

      - Como lhe disse, não me senti com disposição para ler. Tirou-ma qualquer coisa que você disse, antes de me deixar aqui.

      - Certamente não vai repetir as palavras de uma mulher na sua própria cara? - perguntou, esforçando-se por sorrir.

      - Trata-se de uma declaração concreta, de qualquer coisa acerca de Sangaree...

      - Agora me lembro! Disse-lhe que era apenas uma moldura, à espera de que um casamento lhe devolvesse a vida.

      - Precisamente.

      - E é capaz de argumentar a esse respeito? Com certeza admite que o casamento é a única solução que se oferece à mulher, pelo menos neste século?

      - Estive a pensar qual seria o escolhido. Como correu com o jovem Bristol, só posso presumir que Pagnol seja o felizardo.

      Nancy aparou o golpe sem um estremecimento:

      - Por me ter ajudado a restaurar a propriedade?

      - Não será motivo suficiente, se lhe acrescentarmos os dotes naturais do indivíduo?

      - Acreditar-me-á se lhe afirmar que Félix Pagnol não tem quaisquer desígnios sobre mim ou a minha terra?

      - Só se insistir... - replicou, e sorriu interiormente ao vê-la desviar apressadamente os olhos.

      - Alinha, então, com Savannah! Pensa que, hoje, é meu amante, e que, amanhã, poderá vir a ser meu marido?

      - Se me engano, estou ansioso por conhecer os factos que me elucidem.

      - Os factos são, como de costume, tão simples que ninguém acreditará neles. Durante a revolução, Félix foi corsário ao largo de Havana e meu pai emprestou-lhe uma importância considerável, em nome da amizade que os ligava. O que tem feito por mim, é a sua maneira de pagar a dívida contraída. Acredita na beleza só pela beleza, e graças a ele, Sangaree voltou a ser bela. - Estendeu um braço, num gesto que abrangeu a sala rica e o resto da casa, e acrescentou: - Não deseja outra recompensa.

      - Tem razão, Nancy, custa um bocado a acreditar.

      - Quer ver a carta que Félix escreveu a meu pai? Conservei-a entre os seus diários.

      - Prefiro ouvir a história contada pelos seus lábios. Não quer acabá-la?

      - Já a sabe quase toda. Expor-me a mexericos e intrigas foi pequeno preço a pagar pela restauração de Sangaree. O meu passo final será conquistar a terra para sempre. - Os seus lábios trémulos esboçaram um sorriso. - Entretanto, claro, rezarei para que a Companhia Darby não tenha êxito.

      - Tem-se limitado apenas a rezar?

      - É insulto injusto, esse, e você sabe-o. Fiz tudo quanto pude por si, aqui, em Savannah e em Darbyville.

      - Retiro o insulto, Nancy.

      Continuarei a ajudá-lo até decorrerem os dois anos, mas continuarei também a rezar para que a sua sorte desande.

      - E se eu demonstrar que sou mais forte do que as suas... preces?

      - Nesse caso cederei aos desejos de meu pai e casarei consigo. - Falava num murmúrio vibrante, mas Toby ouviu claramente as palavras que pronunciou. - Se me quiser para mulher, Toby Kent.

      - Desceria tanto, para assegurar a posse de Sangaree?

      - Já não se chamou suficientes nomes feios, no íntimo do seu coração? - A sua voz, tensa como a corda de um violino, dir-se-ia prestes a partir-se, a cada palavra. - Porque há-de ser cabeçudo até ao fim? Porquê, em nome de Deus, não leu o último diário de meu pai?

      - Quer dizer que ele registou esse... desejo por escrito?

      - Era o que desejava, quando o mandou com o Roy para Edimburgo. Claro que desistiu quando casei com George Gregory, mas referiu-se-lhe mais de uma vez depois de saber que enviuvara. - Ria nervosamente, embora as lágrimas lhe molhassem o rosto. - Olhe para mim, Toby Kent! Compreende agora porque não pude aceitá-lo sem mais nem menos?

      - Mas hoje aceitar-me-ia.

      - Se a companhia prosperar... e você me quiser.

      - Pretende que acredite que Victor Darby sancionaria tal negócio?

      - Leia as suas próprias palavras, se teima...

      Deteve-a, quando os seus dedos se fechavam já sobre a chave, deteve-a brutalmente, agarrando-a pelos ombros.

      - Convenhamos que seu pai exprimiu tal desejo, convenhamos que se lhe referiu repetidamente nos seus últimos anos. Ocorreu-lhe, acaso, que eu poderia ter outros planos?

      - Com certeza.

      - Seu pai serviu-se de mim como de instrumento de justiça social, e eu submeti-me; você quer usar-me como instrumento para conservar a sua terra e arrebanhar mais. E se eu lhe disser que estou farto dos dois e tenciono partir para o Oeste amanhã? Se eu prometesse dissolver a companhia a seu favor, conceder-me-ia recompensa mais temporária?

      Os seus braços envolviam-na, finalmente, as suas mãos fechavam-se no tecido do vestido.

      - Posso experimentá-la agora, Nancy, para saber se é sincera? Para saber até onde iria para conservar a sua preciosa terra?

      Não resistiu quando os lábios dele esmagaram os seus, embora, ao princípio, não correspondesse aos beijos que lhe dava. Depois, incrédulo, Toby sentiu a sua boca abrir-se docemente e fundir-se com os seus lábios, sentiu as suas mãos e os seus braços, na mesma rendição inesperada, apertarem o seu corpo, puxá-lo ainda mais a si. Tanto bastou para ter a certeza de que a amaria para além da morte, por muito que o traísse. E, com esse pensamento a invadir-lhe o cérebro como cinzas frias, empurrou-a para as almofadas da otomana.

      - Lamento, Nancy Darby, mas é inútil tentar-me! - gritou-lhe, com a voz ainda rouca de desejo. - Compreende, continuamos a ser inimigos... e receio que o sejamos sempre.

      Essa falsidade derradeira deu-lhe forças para cambalear da biblioteca para o alpendre, com os soluços de Nancy a soarem-lhe aos ouvidos como música sarcástica, que o torturaria nas muitas noites de insónia que o esperavam. Nunca soube como atravessou os relvados e os jardins, nem como desceu o longo lanço de degraus para o cais. Quando o seu cérebro se desanuviou um pouco, encontrou-se no veleiro de Nancy, a conduzi-lo loucamente para a saída da enseada de Sangaree, como se o demónio e todos os seus anjos o perseguissem.

     

     A “DARBY BELLE”

      A operar desde o meio-dia, e grato pelo sentimento de libertação que isso lhe proporcionava, afastou-se um momento da mesa operatória quando o último paciente chegou. Com ele entrou também uma lufada de ar agreste de Novembro, que fez dançar a luz sobre a mesa bem esfregada. Toby ouviu uma janela bater, ao fundo do corredor da clínica, antes de a porta do teatro operatório se fechar e restabelecer o silêncio. Era agradável trabalhar de portas adentro num dia como aquele, alhear-se do mundo; agradável saber que no seu pequeno hospital não entrava a ventania outonal e que o resultado da batalha travada naquele dia com a morte era francamente favorável ao médico. Enquanto toda a Savannah se encolhia em casa, a aquecer as mãos ao borralho, era próprio do louco presidente da Companhia Darby trabalhar à luz das velas, na semiescuridão da tarde cinzenta, natural que concentrasse todos os seus pensamentos no colosso negro que se debatia na mesa e esquecesse temporariamente os problemas que o aguardavam mal saísse a porta da sala de operações.

      - De quem é o negro? Nosso?

      - É Priam, doutor, o barqueiro de Mrs. Gregory, de Sangaree.

      Toby sorriu, por cima da mesa, ao seu jovem e zeloso ajudante. O Dr. Walter Appleby viera de Augusta havia cerca de oito semanas, para trabalhar na clínica como residente. Kent ainda não se habituara à ideia de que Roy Darby estava em Londres desde Agosto, empenhado em conquistar mais um diploma na universidade. Walter desempenhara o seu lugar admiravelmente, desde o primeiro dia, e só na cirurgia haveria trabalho suficiente para ele, quando Roy regressasse; mesmo assim, porém, Toby sentia a falta do amigo, em ocasiões como aquela. O seu cérebro regressou dolorosamente ao mundo que ficava para além daquele santuário de ciência, enquanto os seus dedos hábeis delineavam a incisão que teria de fazer para que Priam regressasse vivo a Sangaree.

      - Quando foi que Mrs. Gregory o trouxe, Walter?

      - Anteontem, Dr. Kent. - A testa bronzeada de Appleby franziu-se numa expressão de perplexidade. - Lembra-se dos tratamentos que fizemos, não lembra?

      - Perfeitamente. Massagens, compressas e, por fim, uma cataplasma. Como verifica o inchaço e a inflamação persistem.

      Os dedos de Toby continuaram a percorrer a grande protuberância de pele esticada, mesmo acima da virilha do negro. Tratava-se de um caso evidente de hérnia estrangulada que só o bisturi poderia, agora, aliviar. Não deixava de ter a sua ironia o facto de o seu último caso da tarde ser um escravo da plantação de Nancy. Dois dias antes, quase se recusara a admitir Priam - como recusara, na altura, receber doentes de outros plantadores vizinhos -, com o pretexto de que o hospital estava a abarrotar. A senhora de Sangaree - pensara, furioso - podia dar-se ao luxo de pagar a um médico.

      Remeteu a senhora de Sangaree a um limbo temporário e debruçou-se sobre o doente. Se trabalhasse com a velocidade habitual e as mãos o ajudassem, talvez conseguisse devolver um escravo vivo à casa senhorial... Mais tarde pensaria em Nancy Gregory e no problema insolúvel que para si representava; mais tarde, quando, relutantemente, passasse do mundo da ciência para o mundo dos homens.

      - Administrou-lhe algum opiato, Walter?

      - O suficiente para o conservar sossegado, se trabalharmos depressa.

      - Praticaremos uma incisão na pele, para vermos o que temos.

      O escalpelo moveu-se, abrindo um golpe de sete centímetros por cima da virilha. O tecido subjacente, abaulado pela pressão dos intestinos enrolados de maneira anormal, parecia prestes a rebentar, mas Kent compreendeu, acto contínuo, que aqueles mesmos músculos rígidos conservariam o intestino indefinidamente prisioneiro.

      - Continua, Dr. Kent?

      - Não tenho outro remédio.

      Toby separou gordura (era pouca a que o negro tinha nos músculos rígidos como tábuas) e pele com os dedos e cortou, a medo, nas camadas mais fundas. A trabalhar às cegas, não podia ter a certeza de onde terminava a faseia e começava o intestino aprisionado; um falso movimento, por muito insignificante que parecesse, redundaria em tragédia, pois o conteúdo intestinal tóxico espalhar-se-ia pelo corpo do paciente e matá-lo-ia tão efectivamente como se lhe cravassem uma faca no coração. Ouviu o suspiro de alívio do assistente quando a camada fibrosa branco-pérola, conhecida por aponevrose, apareceu no fundo da ferida. Dissecara muitas vezes este tecido em cadáveres, onde a estrutura se apresentava frouxa; mas ali, em virtude da tensão profunda que sob ela se verificava, o tecido vivo mostrava-se aderente e transformava a avaliação das camadas num trabalho de conjectura.

      - A obstrução parece localizada nos anéis.

      O jovem Dr. Appleby acenou afirmativamente. Sabiam ambos que o golpe seguinte seria decisivo. Toby voltou o escalpelo, de maneira a ficar com a lâmina bem firme na palma, e conseguiu introduzir o pequeno cabo metálico sob a orla dos tecidos fibrosos, a servir de alavanca. Depois cortou depressa, protegendo as camadas mais profundas com o cabo do instrumento. À medida que os tecidos se separavam, o cabo introduzia-se mais profundamente. O escalpelo adquiriu ousadia quando as fibras branco-pérola se escancararam, aliviando parte da pressão que ameaçava a vida da víscera aprisionada.

      - Prenda-o bem, agora; tentarei soltar a obstrução. Priam, que soltara apenas um uivo prolongado no momento em que a lâmina fizera a primeira incisão, debatia-se agora violentamente, como se estivesse prestes a vencer o coma, enquanto Billy e outro negro do hospital o sujeitavam na mesa. Toby recuou um passo, sem protestar, ao ver o punho de Billy abater-se, como um martelo disciplinado, na base do crânio do paciente. Tinham usado muitas vezes aquele estratagema, na guerra, para prolongar, até ao momento decisivo de uma operação, o efeito de um opiato que começava a perder a acção.

      - Continuemos, Dr. Appleby. Alargue um pouco a ferida, por favor.

      Distinguia finalmente o ponto central do seu ataque, uma segunda camada de músculo que corria numa direcção um pouco diferente e que, em virtude de a hérnia propriamente dita se encontrar sob ela, se apresentava quase tão tensa como a primeira. O escalpelo continuou o seu trabalho, com muito maior facilidade agora que a zona a operar se encontrava firmemente delineada, embora ambos os cirurgiões soubessem que os maiores riscos ainda estavam por correr.

      - O anel interno está obstruído, doutor?

      Toby acenou com a cabeça e retirou a mão da ferida, por momentos, para que o assistente pudesse ver melhor. Puxada para trás a faseia e exposto o peritoneu, a dificuldade era evidente. Servindo-se de uma peça metálica romba e em forma de colher, Toby introduziu-a sob as bordas dos músculos e fez sinal a Appleby para que exercesse pressão. À medida que o músculo se afastava, puderam ver a área contraída, na parte superior, sob a faseia propriamente dita. Carregando muito devagar, com os dez dedos mergulhados no golpe, Toby não sentiu qualquer modificação na bolsa que o intestino enchia, nenhum movimento tranquilizador na direcção da cavidade abdominal.

      - Tenho de fender o anel...

      O escalpelo deslizou-lhe pela palma da mão e mordeu o peritónio brilhante que, ao abrir-se, revelou finalmente a parede intestinal, cuja tonalidade sombria lhe demonstrou que operara no último momento possível. Poucas horas mais, e aquela cor sombria e insalubre transformar-se-ia num azul carregado, prenúncio fatal de um intestino irremediavelmente perdido.

      - Como poderá libertá-lo sem cortar o intestino?

      - É um risco simples, se nos decidimos a corrê-lo. No meio de um silêncio total, o escalpelo continuou a sua tarefa, bem apertado contra o indicador do cirurgião. Num suave movimento para a frente, aço e carne penetraram no orifício aberto no peritoneu. A lâmina fendia à medida que avançava, seguramente, como se o dedo que a segurava possuísse um gume cortante acessório. Ao aproximar-se do fim da bolsa, Toby sentia a pressão aumentar, como se estivesse prestes a rebentar. De súbito, num abrir e fechar de olhos, a obstrução pareceu desaparecer sob a sondagem insistente do cirurgião, e o dedo, liberto da lâmina, deslizou facilmente para dentro do abdome.

      - Cortei o anel - anunciou calmamente Toby. - A bolsa deve reduzir-se agora com facilidade.

      - Está já a fazê-lo, como se procedesse por iniciativa própria - murmurou Appleby, em tom reverente.

      Toby afastou-se da mesa, a sorrir intimamente. No capítulo de milagres, aquele fora dos mais pequenos. No entanto, ainda se lembrava dos tempos em que ele próprio ficava boquiaberto com os milagres do velho Dr. Cagle, no consultório de Augusta que tanto ficava a dever à higiene, ou com a verdadeira magia de John Hunter, no fétido e enfumarado anfiteatro de Edimburgo. Era tranquilizador sentir as mãos daquele rapaz ansioso moverem-se na ferida, ao lado das suas, a ajudarem a parte afectada do intestino a regressar ao seu lugar, encorajador verificar que outros trabalhariam em igual coesão depois de si.

      - Pode suturar a bolsa, Dr. Appleby, se quiser.

      O rapaz corou de prazer quando o cirurgião se afastou da mesa. Ao vê-lo suturar enquanto se lavava, Toby notou que as mãos do assistente eram ágeis e fortes, exacto como uma equação geometricamente demonstrada no encerramento género “cordão de bolsa” que efectuavam.

      - Que temos a seguir?

      - Hoje já fez mais do que a sua conta, Dr. Kent. Este era o último caso.

      - Nada a verificar nas enfermarias?

      - Nada que as enfermeiras não possam fazer, doutor. Sei que está ansioso por regressar ao escritório.

      - Sim, tenho de conferir o manifesto da Darby Belle antes de anoitecer.

      “E uma suspeita que me rói o cérebro há demasiado tempo”, acrescentou para consigo, enquanto limpava as mãos e enfiava a sobrecasaca escura que a mesma Darby Belle lhe trouxera da última viagem a Londres. Olhou por instantes a imagem reflectida no pequeno espelho por cima do lavatório e perguntou a si mesmo se os sulcos profundos que lhe rodeavam a boca estariam vincados para sempre.

      Já era alguma coisa saber que as suas dúvidas iam acabar naquela noite, após meses de espera.] Só desejava que Nancy Darby Gregory ficasse ilibada de toda a culpa, graças ao seu estratagema, de uma vez para sempre. Fora relativamente fácil salvar a vida do negro Priam; o cancro que lhe roía o coração exigia escalpelo mais afiado.

      A chuva bateu-lhe no rosto quando parou à porta do hospital e olhou para baixo, para o porto. Chovia numa cortina branca e cerrada, ao longo do canal, e os navios mercantes pareciam barcos fantasmas. A jusante, o canal mostrava-se sombrio, cheio de fiapos de nevoeiro e deserto como no dia em que o primeiro explorador cauteloso ancorara debaixo da encosta do Yamacraw. Sangaree, imaginou Toby, devia estar mergulhada num nevoeiro cerrado, com as altivas paredes brancas a escorrer humidade, como as da cabana de qualquer pioneiro. Perguntou-se se Nancy estaria só, rodeada de toda aquela gelada magnificência, e depois lembrou-se de que chegara à cidade de manhã, para saber da saúde de Priam e verificar o manifesto da Darby Belle.

      A luz que brilhava no edifício do escritório, do outro lado da rua, provinha dos castiçais da secretária dela. Bastava-lhe atravessar a rua e pô-la à prova... Agora que o momento chegara, amaldiçoava-se por ter esperado tanto tempo.

      Levantou a gola da sobrecasaca e, maquinalmente, observou a fila de barcos ancorados ao longo das bóias do canal, para se certificar de que nenhum recém-chegado ousara furtar-se à quarentena. Como sempre, experimentou uma serena satisfação por esse período de quarentena, fixado por ordem sua e a despeito da oposição irritada de muitos mercadores honestos. Desde a sua eleição para delegado de saúde, acontecimento que pusera a cidade em polvorosa em Junho daquele ano, contava a sua vistoria entre os seus triunfos verdadeiros. Era certo que alguns barcos se esgueiravam, de noite, e iam atracar descaradamente na doca nova de Matthew Bristol, sob a encosta do lado oriental, e era igualmente certo que o velho Bristol desafiava a sua autoridade para multar os capitães dos mesmos ou procurar no interior dos seus cascos epidemias imaginárias. Mas a maior parte dos responsáveis pelas embarcações de Savannah preferiam obedecer às ordens estabelecidas a perder o direito de descarregarem nas docas Darby. Até agora, a entrada do velho Bristol para o campo marítimo não representara qualquer ameaça séria.

      Mesmo assim, Toby levou o seu tempo a olhar, carrancudo, a doca Bristol, naquela tarde cheia de barcos de mastros altos. A maior parte eram unidades costeiras, que navegavam com o pavilhão dos Bristols; outros, embarcações provenientes de Nassau e das índias Britânicas, que descarregavam rum e ferro que seriam trocados por suprimentos navais jorgianos e pelo tabaco que o velho Bristol conseguira reunir a crédito. Ainda na véspera, Toby parara na casa dos pregões e ouvira dizer que o crédito do Bristol florescia. Alguns haviam, até, acrescentado que o seu velho inimigo não tardaria a comprar e a vender a pronto, graças à prosperidade de Harvey Bristol no estrangeiro.

      Kent amaldiçoou a facilidade com que o jovem Bristol ganhava dinheiro e a ameaça futura que o velho Bristol poderia representar, começou a descer a encosta e parou de novo ao abrigo de um monte de arenito, a observar uma vez mais a sua própria prosperidade. Ao fundo, as casas de Muskrat Town pareciam tristes como outros tantos castores à chuva; por contraste, a mole quadrada do armazém Darby fazia lembrar uma fortaleza medieval rodeada de servos sombrios. Dentro das suas paredes havia uma fortuna em arroz ensacado, à espera de barcos que o levassem pelo mar fora e o transformassem em ouro, e outra fortuna em tabaco superior chegaria de Darbyville assim que o tempo melhorasse - uma colheita que ultrapassaria até a do ano anterior, que fora excepcional. Naquele momento, a prova tangível de que a Companhia Darby estava à beira do triunfo não parecia mais real que Bristol e os seus rufiões. Na verdade, nada importava além da sua decisão de experimentar Nancy Gregory, isso e o símbolo dessa decisão, que esticava as amarras no cais Darby.

      O barco principal da frota Darby estava carregadíssimo, tão carregado que oscilava um pouco no ancoradouro, de uma maneira que nenhum rei dos mares devia oscilar. Toby encarregara-se disso dias antes. Fazia parte do seu estratagema providenciar para que toda a Savannah visse embarcar as riquezas Darby, em plena luz do dia, até as escotilhas parecerem prestes a rebentar e o convés estar cheio a mais não poder. O carregamento ficara completo na segunda-feira; era quinta-feira e Bronson e a tripulação aguardavam ainda ordem de partida. Bastava de preliminares; a prova real tinha de fazer-se agora.

      Porque hesitava em pronunciar as palavras que iniciariam a experiência? Se a sua razão insistia em que Nancy Darby Gregory era culpada e maldita, porque hesitava em amaldiçoá-la de vez, com provas concretas e iniludíveis?

      Atravessou a estrada húmida numa dúzia de passadas largas, sem responder às perguntas que o atormentavam. Resistindo ao impulso de demorar-se ainda um momento mais nos degraus do edifício, entrou na contabilidade com os olhos fixos na sua frente, aceitando a adoração do escriturário-chefe, Leary, e do seu entourage sem interromper a corrida para a escada de acesso ao seu gabinete particular, no andar de cima. Ali estava, finalmente, a porta aberta do seu santuário, a secretária com a fila de penas acabadas de aparar, o castiçal com quebra-luz, que mais parecia convidar um sábio que um homem de negócios. Ali, para lá da acolhedora dança das labaredas da lareira, estava o rectângulo escuro da porta que dava para o gabinete de Nancy - fechada como sempre, agora, por mútuo consentimento, embora ele ouvisse o raspar da sua pena e o leve assobio da areia com que secava outra folha do manifesto da Darby Belle. Ali, refestelado como um lagarto preguiçoso ao sol, estava Gabriel Thatch, com as botas apoiadas na secretária, entre os papéis do presidente, e o moderno chapéu de abas largas com a habitual inclinação brejeira.

      - Não precisas de dizer que não me esperavas, Toby; concordo contigo. Também não me digas que não sou bem-vindo, pois nesse caso falarei primeiro com a Nancy.

      Toby atirou a capa molhada para um canto e sentou-se à secretária, de cujo tampo de mogno polido Gabriel retirara os pés.

      - Se vieste à procura de outra entrevista, não tenho notícias para ti.

      - A Companhia Darby é sempre notícia, hoje em dia, sobretudo o seu presidente. - Os olhos do jornalista voltaram-se para a porta fechada do santuário de Nancy. - Posso dizer-lhe que chegaste, finalmente, e tratar de negócios com os dois? Ou é verdade que continuam a não se falar?

      - É parcialmente verdade, apenas - redarguiu Toby, sem tirar os olhos do relatório que fingia ler. - Falamos quando é necessário.

      - O que não acontece com frequência?

      - Exacto. Cada um faz o seu trabalho, na companhia, e por sorte as nossas tarefas respectivas não brigam uma com a outra.

      Gabriel suspirou.

      - Enfim, terei de contentar-me com declarações separadas - murmurou. - Na realidade, do ponto de vista de Savannah, a história será, assim, melhor.

      - Diz o que tens a dizer, Gabe, se é que tens alguma coisa a dizer. Como vês, não me falta trabalho.

      - Pelo contrário, o que vejo é que estás na situação invejável do homem que fez já o que tinha a fazer. Graças à actividade da Nancy, tens lá em baixo, ou nos porões da Darby Belle, um resgate real em arroz; graças ao trabalho do Sam Hoyt a montante do rio, tens outra fortuna em tabaco, à espera de embarque. A não se verificar um ataque pirata ou um acto de Deus, tu ganhaste o jogo e a Nancy perdeu. A tua única preocupação, desde este momento até completares dois anos na presidência da Companhia Darby, será aguardar e rezar.

      - Certo, por enquanto - concordou Toby, com um pequeno sorriso. - Claro que não se perdem evitar os actos de Deus.

      - Nem os Irmãos da Costa, se tiverem a sorte de apanhar o Bronson.

      - Ouviste alguma coisa a esse respeito?

      - Há sempre piratas nos sangradouros da nossa costa, Toby, e havê-los-á enquanto esta jovem nação não aprender a construir uma frota nacional. Claro que deve ter constado que a Darby Belle tem a bordo o seu carregamento mais rico.

      Toby acenou com a cabeça. Aquilo fazia, também, parte da ratoeira que não referira a ninguém.

      - Bronson já lhes escapou várias vezes. Porque não há-de a sorte favorecê-lo também desta, se partir sem aviso?

      - Sim, porque não? - Mais uma vez os olhos de Gabriel se fixaram na porta fechada. - A Nancy está a ferver, ou resignou-se?

      - Lamento não saber, Gabe. Não me pediu que lhe visse a temperatura.

      - Podes chamar-lhe o que quiseres, Toby, mas estou convencido de que a rapariga sabe perder.

      - Porque pensas que está pronta a considerar-se derrotada? Daqui a Abril ainda vai muito tempo.

      - Mas a companhia está na volta final e corre como um puro-sangue. De Havana ao Tamisa, a Companhia Darby é sinónimo de prosperidade. Em Abril os armazéns estarão vazios, ou quase, o que assegurará um lucro nítido durante o segundo ano. Até agora, cumpriste e ultrapassaste os desejos de Victor Darby, e eu repito que a filha dele será a primeira a admiti-lo.

      - Transpõe aquela porta e vai dizer-lho. Aguardarei aqui a explosão.

      Mas Gabriel não se perturbou.

      - Não confessas ainda que estás apaixonado por ela?

      - Creio que já fizeste essa pergunta antes.

      - E continuo à espera de uma resposta sincera... agora que decidiste ir a Sangaree visitá-la.

      - Fui a Sangaree uma vez apenas, por razões comerciais, há mais de seis meses.

      - E só falaram de arroz durante a visita? Toby deu um murro na secretária, furioso.

      - Não me irrites, Gabe!

      - Porque não a procuras agora, em Novembro, e lhe propões que case contigo em Abril, quanto mais não seja para salvar Sangaree?

      - Se a memória não me falha, há seis meses disse-te que preferia deitar-me com uma gata brava.

      - Vigorosa metáfora, mas inexacta. Foi isto que te respondi nessa altura, como deves lembrar-te se a memória não te falhar, de facto, e que te repito agora.

      Ao recordar o último e incrível momento na biblioteca de Sangaree e a rendição ainda mais inconcebível de Nancy, nos seus braços, Toby pensou que o amigo talvez ali estivesse em nome dela e mostrou-se cauteloso.

      - Seja como quiseres. Mas que te leva a pensar que ela me aceitaria?

      - Primeiro, porque és um diabo bem-parecido, mesmo quando estás com uma carranca dessas, e muita viúva saudosa ficaria encantada se pudesse deitar-se contigo com carácter permanente; em segundo lugar, porque em Abril terás às tuas ordens a mais rica propriedade da Jórgia. Sendo assim, porque não hás-de instalar-te em Sangaree e salvar a casa senhorial e a sua dona?

      - Deixa essa tarefa à dona da propriedade, que neste momento tem um crédito de cinco mil libras em Londres, referente à sua colheita de arroz.

      - A maior parte desse dinheiro irá parar aos cofres da Companhia Darby, para liquidação da hipoteca que tem sobre Sangaree.

      - Estás bem informado, Gabe.

      - Dir-te-ei ainda mais, Toby. Nancy contou desde o princípio que tu falharias e que recuperaria, intacta, a sua parte da herança. Foi por isso que pediu dinheiro emprestado para reconstruir a casa, que mandou fazer a eira nova e comprou em Havana noventa negros angolanos jovens.

      - A companhia comprar-lhe-á os negros, a eira e todos os acres de terra que estiver disposta a ceder, por um preço justo. E pagar-lhe-á ainda os seus dividendos de directora, mesmo que não mexa uma palha... - Calou-se, constrangido, ao compreender que estava quase a gritar; no silêncio que se seguiu, ouviu a pena de Nancy a escrever tranquilamente, no gabinete contíguo.

      - Claro que tudo isso é conversa - afirmou Gabe. - Casarias com ela amanhã mesmo, se tivesses a certeza de que te aceitaria, e farias de Sangaree a sede da companhia.

      - Como queiras, Gabe; recuso-me a discutir.

      - Recusas porque não há discussão possível, porque sabes, no teu coração, que Sangaree precisa de um senhor que a torne completa. Como todas as coisas adoráveis - incluindo viúvas - nasceu para ser dominada.

      - A tua poesia tem encanto, mas é difícil de compreender.

      - Nunca fui mais coerente na minha vida - afirmou o jornalista, levantando-se com ar indolente e batendo com o chicote na secretária do amigo. - E tu nunca foste mais desonesto contigo próprio.

      - Creio que disseste o suficiente.

      - Mais do que o suficiente, meu amigo. Continua a fingir que tens muito que fazer, se te apraz, mas repito-te que o teu trabalho aqui acabou. O teu trabalho em Sangaree, pelo contrário, ainda agora começou. Ou deverei dizer o teu trabalho na sua bela dona?

      E afastou-se, ignorando a careta de Toby quando, depois de levíssima pancada na porta de comunicação, entrou no santuário de Nancy.

      Felizmente, era impossível estar zangado muito tempo com Gabriel Thatch. Toby deu algumas voltas pelo gabinete, para acalmar, e deu consigo quase a sorrir. Através da porta fechada ouvia a voz irónica e aguda de Gabriel e as respostas serenas, em voz baixa, de Nancy, sem conseguir apreender-lhes o significado. Esteve tentado a encostar o ouvido ao buraco da fechadura, mas resistiu virilmente à tentação, do mesmo modo que resistira ao impulso ainda mais forte de demorar Gabe junto de si para umas palavras que não se atrevera a pronunciar.

      “Nem mesmo um jornalista de primeira categoria sabe tudo, meu amigo. Nem tu suspeitaste que Nancy Gregory, a mulher com quem me aconselhas a casar, é uma sanguessuga, está associada com piratas!”

      Claro que jamais pronunciaria essas palavras sem prova concludente e positiva e por isso as guardava para si, até ter a certeza.

      Sentou-se à secretária, pegou numa folha de papel e numa pena e escreveu rapidamente, sem medir as palavras:

     

      Mistress Gregory:

      O seu escravo Priam foi esta tarde operado por mim, a uma grave hérnia estrangulada, e tenho a alegria de anunciar-lhe que, na minha opinião e na do meu assistente, Dr. Walter Appleby, se encontra agora livre de perigo.

      Geralmente, quando aceitamos casos de cidadãos que podem pagar os honorários do médico, cobramos, em intervenções de grande cirurgia como esta, cinco libras esterlinas ou cinquenta dólares espanhóis serrilhados. No entanto, como pertence à família Darby oficial, chamemos-lhe assim, permite-me que lhe ofereça este serviço do hospital gratuitamente, apesar de Priam ser propriedade sua e não da companhia?

      Criado às suas ordens,

      TOBIAS KENT

     

      Certo de que o bilhete a magoaria profundamente, fechou-o com uma obreia de cera e pôs-lhe o sinete da companhia. Não era a primeira vez que comunicava com ela assim, quando meia dúzia de palavras gritadas surtiriam o mesmo efeito. Atirou a carta para o cesto da correspondência, onde Leary a encontraria quando fosse ao gabinete, e recomeçou a andar de um lado para o outro, em luta com o desejo de escutar a conversa que continuava a travar-se em voz baixa no gabinete contíguo.

      Suspirou de alívio ao ouvir as botas de Gabe na escada e um suave roçagar significativo de que Nancy descera também, para conferenciar com Leary. Depois, para que o seu cálice de amargura trasbordasse, aproximou-se da janela e olhou para baixo, para os mastros da Darby Belle, esquálidos como forcas no dia tempestuoso.

      Tinha a certeza de que em Savannah ninguém sabia que tencionava mandar partir naquela noite o capitão Bronson, sem olhar ao mau tempo. Só Nancy Gregory o saberia, quando fechasse a porta do seu gabinete! No capítulo de experiências, aquela era de uma simplicidade infantil. Enquanto não estivesse concluída, seria como se uma espada desembainhada lhe vedasse a entrada no gabinete ao lado.

      Estava ainda de olhos postos na secretária quando ouviu Bronson falar, no andar de baixo, e se lembrou, a tempo, de acender as velas, pegar numa pena e abrir um livro ao acaso. A pancada do capitão, na porta, desanuviou-lhe por completo o cérebro. Graças a Deus, daquele ponto em diante não podia retroceder, nem arrepender-se.

      O capitão da Darby Belle irrompeu pelo gabinete com o habitual à vontade, a desabotoar a jaqueta grossa. As bastas suíças que deixava crescer entre as viagens estavam salpicadas de chuva, sinal de que estivera a verificar o equipamento, no convés. Como sempre, Toby sentiu os seus espíritos comungarem, quando as suas palmas se uniram. O aperto de mão de Bronson era franco como os seus olhos muito afastados; o capitão merecia toda a confiança.

      - Felicidades na viagem, capitão.

      - Posso então partir quando quiser?

      - Partirá com a maré desta noite, esteja o tempo que estiver.

      Bronson acatou a ordem com aprumo:

      - O vento já está a mudar de direcção, doutor, e creio que ao pôr do Sol soprará de oeste e se manterá assim. Iremos com as velas de joanete quando quiser.

      - Quero que parta esta noite, aconteça o que acontecer. O tabaco está nos porões há muito tempo e convém desembarcá-lo nas docas Tilbury antes que se estrague.

      Bronson ergueu as sobrancelhas hirsutas. Ambos sabiam perfeitamente que as barricas conservariam o precioso conteúdo o tempo que fosse preciso.

      - Com sua licença, doutor, mas creio que há outros motivos?

      - Sim, tem razão.

      - Espero não ter nenhuma carta de prego no camarote?

      - Pode perguntar-me o que quiser, capitão; responder-lhe-ei francamente.

      - Esta é a minha nona viagem na Darby Belle, e em todas as outras eu próprio escolhi a data de partida, por motivos que ambos conhecemos. Desta vez, além de outras precauções, levo mais duas peças de nove libras. Porquê? Marcou encontro com os nossos amigos da costa, para ver quem tem melhor pontaria?

      - Sabe que não o faria, capitão.

      - Não pense que estou a protestar por partirmos com mau tempo, nem que não me agradaria uma escaramuça com qualquer pirata que mostrasse a cara a norte de Wassaw Sound. - Bronson tirou o tabaco e encheu cuidadosamente um cachimbo de barro. - Claro que se não quiser dizer-me mais...

      - Duas coisas lhe direi, capitão - prometeu Toby, escolhendo as palavras com cuidado, satisfeito com o ar perscrutador de Bronson. - Primeiro, ninguém em Savannah sabe que vai tão bem armado; segundo, pedirei ao céu que não precise de servir-se das duas peças no rio nem no mar.

      - Quererá dizer que tem esperanças de que Savannah esteja em breve suficientemente civilizada que seja possível afixar as datas de partida dos barcos, sem receio da pirataria?

      - Exactamente. Isto trata-se de uma espécie de experiência, confesso que rudimentar. Estou resolvido a só publicar as suas ordens de partida quando estiver no mar alto.

      - Seja como diz, doutor - observou Bronson, expelindo baforadas de fumo. - Tentarei divertir-me.

      - Perdemos já sete embarcações às mãos dos piratas, desde que começámos a trabalhar. Como deve lembrar-se, a maioria dos capitães das mesmas registavam a data da partida no diário de bordo a enviavam uma cópia do registo para este escritório, poucas horas antes de largarem da doca Darby. Depois disso, demos aos capitães de barcos com carregamentos importantes autorização para partirem como e quando entendessem, e as perdas reduziram-se a menos de metade. Que lhe sugere tal estado de coisas?

      - Uma fuga neste escritório, naturalmente.

      - Hoje voltamos - ou fingimos voltar - ao antigo regime. Se o capitão sair a barra do rio sem incidentes, atribuiremos as perdas a que me referi a azar; se tiver de lutar para chegar ao oceano, saberemos que há um traidor entre nós. - Soltou um suspiro fundo e doloroso e concluiu, resolutamente: - E eu tomarei as providências necessárias para pôr cobro à fuga, de uma vez por todas.

      - Tem já alguns candidatos prováveis, doutor?

      - Não mencionarei nomes enquanto não tiver a certeza, capitão. Não seria justo.

      - Acho bem. Pode considerar retirada a minha pergunta. - Apesar de espessa nuvem de fumo lhe ocultar o rosto, Toby juraria que os lábios firmes que seguravam o cachimbo sorriam. - Também não precisa de desculpar-se por utilizar o meu navio como isca; acredite, sinto-me honrado com a preferência.

      - Os homens suspeitam de alguma coisa?

      - Tenho-os a bordo desde o nascer do dia, já a prever uma ordem destas. Têm todos os sabres afiados e estão ansiosos por partir.

      - Acredita-me se lhe disser que daria muito por ir também?

      - E porque não vai, doutor? Creio que, mesmo com sorte, teremos trabalho para um médico extra antes de amanhecer. - Era uma declaração simples, sem notas de falso heroísmo, e foi no mesmo tom casual que Bronson respondeu à pergunta por si próprio feita: - Claro que sei que não pode partir comigo, pois a viagem deve parecer absolutamente rotineira.

      - Creio que é tudo, capitão. Acredite, gostaria de poder dizer-lhe mais.

      - Não se preocupe, doutor. Agora é a minha vez de expor os meus planos. Se chegar à bóia da barra sem incidentes, faço-me ao mar e o doutor saberá que, se não receber notícias, tudo corre bem. De acordo?

      Toby suspirou de novo, murmurando mentalmente uma prece.

      - Oxalá assim seja - disse em voz alta.

      - Se houver canhoneio, ouvi-lo-ão em Sangaree e Miss Nancy poderá informá-lo, se não estiver já em Savannah. Talvez um dos seus capatazes...

      - O vento talvez não permita que o som chegue tão longe, e não podemos arriscar-nos a colocar alguém de vigia na embocadura do rio ou, até, em Wassaw Sound. Se o atacarem, poderão fazê-lo de uma dúzia de esconderijos nos pântanos.

      - Tem razão. - A calma de Bronson era quase homérica, enquanto se concentrava no problema surgido. - Digamos que lhes daremos tanto quanto nos derem, ou talvez mais. Gostaria, mesmo assim, de tentar escapar-me e de lhe mandar notícias via Charleston. Ou, se me derem a valer, de regressar o melhor que puder à doca.

      - Era isso que esperava que dissesse, capitão. Obrigado por tê-lo dito por sua própria iniciativa

      Bronson soltou uma pequena gargalhada, atrás da pestilenta fumarada, e comentou:

      - Lutei ao lado de DeGrasse, doutor. Isto é caça miúda no meu dicionário.

      - Esperemos que o seu dicionário esteja certo. Importa-se de bater àquela porta e de pedir a Mrs. Gregory que traga o conhecimento de embarque?

      Receara que a sua voz tremesse, tivera a certeza de que o olhar se lhe turbaria, quando a porta de comunicação se abrisse e Nancy Gregory se aproximasse. Mas nunca a sua voz parecera mais calma aos seus próprios ouvidos do que ao perguntar-lhe, secamente:

      - Preparou- as listas de carga em duplicado, Mrs. Gregory?

      - Como de costume, doutor.

      - O capitão Bronson assinará agora o original; ficaremos com a cópia para os arquivos de Leary.

      - Como fazemos há seis meses, doutor. - Notou que a sua voz era inexpressiva como a sua atitude, e que o seu corpo erecto e altivo, esguio no vestido de algodão castanho, parecia assexuado como um sarrafo.- Acha necessário informar-me dos rudimentos do nosso sistema de arquivo com o capitão Bronson como testemunha?

      - Hoje é necessário, Mrs. Gregory. - Falou em tom tão gelado como o dela e prolongou deliberadamente a pausa, enquanto Nancy abria o volumoso diário em cima da secretária. - Hoje faremos uma pequena adição ao... duplicado. - Nova pausa, enquanto ambos viam Bronson assinar a última página do primeiro conhecimento. - No entanto, trata-se de pormenor rotineiro e será inútil reter o capitão.

      Ao apertar de novo a mão de Bronson, Toby aceitou de boa-fé o piscar de olho do capitão, para não dizer nada da sua coragem extraordinária. Sentiu apenas um rebate de consciência quando Bronson apertou a mão a Nancy, com igual entusiasmo. Naquele momento pareceu-lhe impossível que aquela esguia rapariga viesse a ser, talvez, o instrumento que atiraria a Darby Belle e a sua tripulação para o fundo, antes de a noite terminar.

      - Boa sementeira para ambos - desejou-lhes o marinheiro, sorridente. - Os arrozais florirão antes de voltarmos a ver-nos.

      - Só se o capitão não bater o record da sua última viagem.

      - Se eu o bater oferece-me um jantar de peru em Sangaree?

      - E terá um bónus deste escritório, capitão - prometeu Toby.

      - Guarde o bónus, doutor. Bastar-me-á o peru de - Miss Nancy, se for servido com recheio de castanhas e clarete do velho senhor.

      E saiu sem dizer mais nada, como se a ventania exterior o tivesse arrebatado. Toby ouviu-o cantarolar pela escada abaixo e despedir-se de Leary, com um adeus tão casual como se fosse partir para uma viagem à outra margem do rio, e não para um recontro quase certo com bucaneiros.

      - Falou numa modificação na rotina, doutor... Ouviu a pergunta fria de Nancy quase com alívio.

      - O capitão Bronson parte para Londres às dez da noite. Importa-se de verificar o horário das marés, na sua secretária, e de anotar o minuto exacto da partida na cópia do conhecimento?

      - Pois sim, doutor. Posso perguntar porquê?

      - Doravante, quero os nossos arquivos completos. O seu rosto não traduzia qualquer emoção quando regressou ao seu gabinete.

      “Se ficou encantada com a possibilidade que se lhe oferece, soube disfarçar muito bem”, pensou Toby, lembrando-se da perfeição dos seus outros disfarces. No fim de contas, fizera de Dolly Lake, sua inexistente criada, com a arte de uma veterana, para não dizer nada do seu papel de mulher de negócios e mulher de sociedade. O seu último disfarce fora de noiva complacente, à sombra do retrato do pai, em Sangaree... De súbito, regressou ao presente tenebroso, ao notar que Nancy esperava a seu lado, com um horário das marés na mão.

      - A Darby Belle partirá às vinte e duas horas e quinze minutos, doutor. Como vê, anotei a data e a hora no duplicado.

      - Muito bem. Pode arquivá-lo no livro do Leary quando quiser. - Viu-a fechar o diário e acrescentou: - Pensando melhor, talvez seja mais seguro fechá-lo na sua secretária, esta noite, pelo menos até o Bronson passar a barra. No entanto, faça como entender.

      - O capitão ainda tem medo dos piratas?

      “Não exageres!”, pensou, enfurecido. “Não me tentes com demasiadas perguntas ingénuas, se não queres que te acuse cara a cara!”

      Mas em voz alta disse apenas:

      - É um risco que corremos em todas as viagens. Claro que confio nos nossos empregados do escritório... E a senhora?

      - Até ao último homem, doutor. Posso sair?

      - Faça favor; não tinha a mínima intenção de a deter.

      Já à porta de comunicação, Nancy voltou-se e disse, de olhos baixos:

      - Recebi o seu memorando... acerca do Priam.

      - Foi uma operação de rotina, não tem importância...

      - É o meu melhor barqueiro, quero agradecer-lhe tê-lo salvo. - Hesitou, antes de acrescentar: - Claro que lhe pagaria a... a intervenção se pudesse, mas não me sobrou dinheiro nenhum depois de pagar a minha hipoteca à companhia. Tenho apenas algumas letras de câmbio em Londres.

      - Disse-lhe que não era necessário pagar. Como é ainda directora...

      - Aceitaria o Priam como pagamento?

      - Francamente, Mrs. Gregory...

      - Talvez não acredite, mas a minha principal preocupação era salvar-lhe a vida. Foi por isso que o mandei para a sua clínica e não ao Matthew Bristol. Quando se curar ser-lhe-á útil, tanto mais que, segundo me constou, tenciona comprar uma chalupa.

      - Se a comprar, manobrá-la-ei sozinho, obrigado. Mas Nancy prosseguiu, como se o não tivesse ouvido:

      - Conhece o Savannah de cor. Ser-lhe-ia útil se o doutor se resolvesse a fazer outra visita a Sangaree.

      - Será necessária tal visita, uma vez que a senhora tem dirigido tudo tão bem?

      Foi com prazer que lhe viu no olhar uma centelha de cólera, mas a explosão que esperava não se verificou. Em vez disso, viu-a voltar-se lentamente para a porta da frente, a que dava para o raramente utilizado gabinete de Roy. Por momentos pensou que Nancy tencionava acolher-se nele em vez de no seu, mas depois compreendeu que prestava apenas atenção ao leve ruído que de lá vinha.

      - Parece que Martha nos fez outra visita, doutor - comentou friamente. - Convido-a a entrar, antes de começarmos a discutir a valer?

      Mas Toby levantara-se já e batia à porta de Roy. Pela primeira vez, Martha seria uma diversão bem-vinda, agora que estendera definitivamente a armadilha. Ambos sabiam que Martha vinha com frequência ao escritório, quando havia algum barco prestes a partir, a fim de expedir cartas para o marido ausente, embora fosse esse o único sinal evidente de que sentia a falta de Roy. Ambos sabiam, também, que recorria a esse subterfúgio para se meter à cara de Toby, naquelas tardes de Outono; Kent lera a interrogação nos olhos de Nancy, quando os seus caminhos se cruzavam na Buli Street. Naquele momento, sentiu prazer em ignorar o desdém silencioso da rapariga e abriu a porta.

      Martha, que enxugava uma carta sentada à secretária de Roy, envolveu-os a ambos no mais ingénuo dos sorrisos. Ao comparar uma vez mais as duas mulheres, Toby amaldiçoou a sua rígida moralidade. Com um vestido de cetim verde justo ao corpo e um vistoso chapéu de plumas, a sedução de Martha fez vibrar no seu coração a nota costumada, uma nota ardente de desejo em que não havia uma parcela de amor. Por contraste com o dela, o severo vestido de algodão castanho de Nancy era quase deselegante. No entanto, apesar de toda a sua assexuada altivez, bastaria a Nancy uma única palavra terna para reduzir a zero a sedução da cunhada.

      - O quê, convidas-me para o santuário nas horas de trabalho? - perguntou Martha na sua voz abafada que, naquela tarde, estava também um pouco insegura.

      “Esteve outra vez a beber”, pensou Toby, desolado, ao conduzi-la galantemente para o gabinete. “Ultimamente tem-me custado afastá-la, mesmo sem a inspiração do brandy...”

      - Se essa carta é para Londres, Martha, pode seguir na mala da companhia.

      - Para quem escreveria eu, a não ser para o meu marido?

      Toby pegou na carta e viu que estava endereçada ao Dr. Roy Darby, Temple Bar, com a caligrafia redonda e infantil que Martha aprendera com tanta dificuldade na escola de Clay Creek - uma caligrafia que contrastava estranhamente com o anel de rubi e esmeralda que faiscava no seu dedo. Largou-lhe a mão, esforçando-se por ignorar a insistência da sua pressão.

      - Só uma carta desta vez, minha querida? - perguntou Nancy, em tom menos áspero do que seria de esperar.

      “Justiça seja feita à rapariga”, pensou Toby, ao ouvi-la; “tem-se esforçado bastante por se mostrar simpática com Martha, mesmo quando as suas estouvanices são mais flagrantes.”

      - Nem tanto ele merece; há meses que não me escreve. - Sorriu a Toby, com um sorriso tão velho como o de Lilith e igualmente significativo, e concluiu: - Graças ao Dr. Kent não me tenho sentido muito solitária... E a ti também, querida, evidentemente.

      Nancy fechou com um movimento brusco o livro de conhecimentos da Darby Belle e redarguiu:

      - Tenho passado em Savannah todo o tempo de que tenho podido dispor.

      - Também te tens sentido só, com o Félix em Filadélfia?

      - Ignoro o paradeiro do capitão Pagnol, Martha.

      - Uns, dizem que está em Filadélfia; outros, garantem que partiu de Savannah por motivos particulares... Esperava que pudesses esclarecer-me, para os mexericos acabarem.

      - Creio que devíamos estar todos acima dos mexericos, Martha.

      - Que mais pode uma pessoa fazer com um tempo destes?

      - Tu lá sabes, minha querida - volveu Nancy, ao mesmo tempo que saía do gabinete com o livro debaixo do braço.

      Martha sorriu, indulgente, ao ver fechar-se a porta.

      - Concedi-lhe a última palavra de propósito, Toby. Caso contrário, nunca mais nos livraríamos dela.

      - Precisavas de ser tão rude?

      - Não me venhas falar em rudeza! Lembra-te de que me acusou praticamente de fornicação, na minha cara!

      - Só depois da tua piadinha acerca do Pagnol, Martha.

      - Avisei-te a respeito de Félix Pagnol logo no teu primeiro dia em Savannah, Toby. Quando te resolves a abrir os olhos?

      Foi-lhe difícil vencer o desejo de desabafar, mas sabia que Martha não servia para confidente.

      - A Nancy teve razão acerca de uma coisa, pelo menos: os Darbys deviam estar acima dos mexericos.

      - Nós somos os dois adventícios no ninho dos Darbys, meu amor. Podemos cantar como nos aprouver... na intimidade, pelo menos.

      Segurava-lhe no braço, com uma pressão insistente como sempre, enquanto falava, e com os dedos da outra mão acariciava-lhe docemente as faces. Toby afastou-se, com um movimento brusco, e foi para a janela olhar a Baía batida pela chuva.

      - Os Darbys têm sido bons para ti, Martha, não deves continuar a zombar deles.

      - Os Darbys sempre me odiaram, Toby. Todos menos o Roy, mas esse tolera-me. Se não tivesse aprendido a rir-me nas suas caras presumidas, há muito que teria endoidecido.

      Não precisou de se voltar para saber que se sentara na sua secretária e enterrara a cabeça nos braços. Ouviu-lhe os soluços fáceis e compreendeu que estaria perdido se se voltasse para a confortar. Não sabia porquê, mas qualquer coisa lhe dizia que, naquele momento, os soluços eram, em parte, verdadeiros, que Martha Darby era, finalmente, vítima da sua própria sede de prazer por todo o preço.

      - Não são horas de te vestires para o jantar, Martha?

      - Jantarei só... a não ser que me faças companhia.

      - Tenho de trabalhar até tarde, esta noite, em negócios da companhia.

      - M... para os teus negócios da companhia! - Continuava a chorar, mas a sua voz começava a recuperar a animação habitual. - Isso significa apenas que jantarás na Tondee e só irás para casa de manhã. Porquê, Toby?

      - Nancy far-te-á companhia.

      - Nancy jantará nos Tyrees, não irá para casa antes da meia-noite.

      Se deixasse a chave do quarto em cima da secretária, Martha não seria mais explícita. Ainda à janela, Toby reviu mentalmente o ritual do ataque, que conhecia de cor. As pálpebras húmidas astuciosamente descidas, para lhe tornarem os olhos o mais misteriosos possível; os lábios entreabertos, prontos a incendiarem-se com os seus beijos...

      - Apesar disso, sou obrigado a decepcionar-te, Martha.- Voltou-se ao ouvi-la levantar-se, o que também fazia parte do seu longo duelo de amor. - Não preciso de te dizer porque não irei para casa cedo.

      - Adiarei o jantar até às nove horas, pois talvez mudes de ideias.

      Pelo canto do olho, viu que contornara a secretária e fora encostar-se à consola da chaminé, numa posição que punha em relevo todas as suas formas opulentas.

      - Deves evitar vir aqui nas horas do serviço - recomendou-lhe Toby, no tom mais delicado possível, sem desviar os olhos do passeio, debaixo da janela. - Já se começa a murmurar...

      - Julgava que os Darbys estavam acima de mexericos.

      Kent encostou a testa à vidraça, com força, e esforçou-se por não perder a calma. Naquele momento Nancy saiu do edifício, agasalhada até aos olhos, e entrou numa liteira que a esperava. Pouco depois a sua cabeça cor de cobre surgiu à janela, liberta do toucado que lhe dava um ar de solteirona. Com uma tenaz de medo a comprimir-lhe o coração, Toby viu-a trocar algumas palavras com um escravo que acorrera, como uma sombra obediente, e que desapareceu logo a seguir no crepúsculo chuvoso.

      Teria provado a sua culpa com meia dúzia de palavras murmuradas? Iria aquele mensageiro negro ao encontro de Pagnol, para o informar de que a Darby Belle levantaria ferro às dez horas da noite?

      Voltou-se para a sala mergulhada em penumbra e para a silhueta de Martha Darby, mais pressentida que vista à suave claridade das labaredas da lareira. Enquanto hesitava à janela, apagara as velas uma por uma, o que constituía outro passo do ritual da sua perseguição. Adivinhando o que aconteceria a seguir, Toby estendeu a mão para se proteger, mas sentiu os dedos dela entrelaçarem-se nos seus e puxarem-lhe a mão e o braço para a cintura delgada.

      - Beija-me só uma vez, Toby, e ir-me-ei embora... por agora.

      Ultimamente houvera demasiados beijos daqueles, pensou, irritado. Abraços loucos e sufocantes, roubados nas sombras do Trustee's Garden ou na obscuridade nocturna de uma escada, pesado tributo exigido por Martha como preço de retirada temporária. Naquela noite, com a ideia de Nancy e da sua culpa a lacerar-lhe o coração, precisava de um antídoto forte, e seria melhor aquele corpo complacente que outro garrafão bebido na sala das traseiras da Tondee's Tavern ou uma rameira em Muskrat Town. Essa convicção, que lhe explodiu no cérebro como pólvora, incendiou-lhe os sentidos. Deu por si a devorar os lábios e a garganta de Martha com beijos sôfregos.

      - Espera, Toby! - a risada gutural que soltou quase lhe abafou as palavras, a ordem aparente que era, afinal, um convite escaldante.

      - Disseste que já esperámos demasiado. - Atirou-a para cima da secretária, empurrando-a pelos ombros roliços enquanto lhe depunha outro beijo longo e furioso entre os seios.

      “Ter-te-ei em cima desta cama dura!”, prometeu-lhe em silêncio, enquanto as suas mãos lhe devassavam o corpo. “Destruir-nos-emos um ao outro entre estes tinteiros e as penas tão bem aparadas pelo Leary... Por alguns momentos de demência, destruiremos pelo menos a recordação de Nancy Gregory, como se ela nunca tivesse existido...”

      - Por favor, Toby!

      Esquecera quanto era forte e resoluta. Uma enguia decidida não lhe teria escapado das mãos com maior rapidez, nem com maior aprumo. Apesar da singularidade do momento, não pôde impedir-se de assistir, boquiaberto, à graciosidade com que Martha recuou para a porta, abotoou o vestido verde até ficar outra vez decentemente coberta e se voltou para o espelho a fim de ajeitar o cabelo.

      - Não me julgues ingrata, amor. Mas quero-te na minha cama... e à minha maneira.

      Toby agarrou-se com força aos cantos da secretária, para não cair. Tão envergonhado que não conseguia falar e muito menos voltar ao ataque, viu-a atar um cordão partido, no decote, e pôr o arrogante chapéu de plumas, com a inclinação brejeira do costume. Nunca odiara nenhum ser humano tão intensamente como a odiava a ela, naquele momento. O desejo dissolvera-se-lhe no sangue naquele escasso meio minuto, substituído por um latejar rítmico e irritante na base do crânio. Mais meia hora e estaria a contas com uma tremenda dor de cabeça que o obrigaria a recorrer ao remédio habitual...

      - Adiarei o jantar até às nove, apesar de tudo. Vai sóbrio, se puderes; somos velhos amigos, Toby Kent, mas a minha paciência tem limites.

      “Está segura de mim, agora”, pensou, desesperado. “Tão segura, que escolhe o local e o tempo...”

      - É melhor ires-te embora, Martha - aconselhou-a, por entre os lábios cerrados. - Esta noite não ficarei na Wright Square.

      - Procura-me sóbrio, se puderes - replicou, como se não o ouvisse -, e tenta chegar antes da meia-noite. Nancy regressará dos Tyrees mais ou menos a essa hora e tem ouvidos de lince.

      - Não intrometamos a Nancy nisto.

      - Não sejas idiota, Toby! Desde o princípio que tem ciúmes de mim.

      A sua voz vibrava de triunfo quando parou à porta. Nunca parecera mais encantadora, mais alegre, nem mais diabólica. Ainda agarrado aos cantos da secretária, como um homem que se agarrasse a qualquer coisa num mundo que acabava de perder o equilíbrio, deixou-a partir sem uma palavra.

      “Mais depressa te verei maldita do que voltarei a tocar-te!”, praguejou, mentalmente. “Beberei até mais não poder na Tondee, verei o fim a esta noite seja como for e reencontrarei a paz quando a manhã chegar. Com a certeza da culpabilidade ou da inocência de Nancy, saberei encontrar outra vez a tranquilidade.”

      Mas enquanto a sua razão lhe ditava estas resoluções sensatas, outra parte de si mesmo, mais astuta e velhaca, engendrava planos a espantosa velocidade: primeiro, um garrafão na Tondee - rum ou uísque, se fosse preciso -; um garrafão fazia boa companhia, quando chovia assim. Depois, um regresso a Wright Square, bem ensopado em álcool, e os braços de Martha. Naquela noite, os braços de Martha seriam um consolo, segredava-lhe insidiosa, essa outra parte de si mesmo. E qualquer consolo seria melhor que mortificar-se com a pergunta que só encontraria resposta na manhã seguinte.

      Eram quase nove horas, a julgar pelos sinos da Igreja de Cristo, e afinal encontrava-se quase sóbrio ao transpor os portões da casa dos Darbys na cidade. Aquela suave fachada jorgiana, que nunca lhe parecera ameaçadora, dir-se-ia agora imensa como Moloch, parecia fitá-lo cruelmente através das órbitas brilhantes, agachada e de fauces hiantes, pronta a devorá-lo se ousasse avançar mais um passo.

      Se tivesse feito maior razia ao garrafão, fugiria, uma vez mais, daquela ameaça; mas ao caminhar quase com firmeza, a dar punhadas na palma da mão como se quisesse afirmar a sua resolução, sabia que tais fantasias eram infundadas. Martha tocava espineta na sala; a borbulhante inexactidão do rondo de Mozart.

      Não podia ter outra explicação. Limitar-se-ia a inclinar-lhe a cabeça, do vestíbulo, explicar-lhe-ia que já jantara na Tondee e subiria a escada para o seu quarto. Com a porta trancada para vedar a entrada a Ero, aguardaria a manhã e notícias de Bronson.

      - Mas - seria mais simples - também podia tomá-la nos braços e acabar o que começara no escritório... Era-lhe quase agradável, agora, flutuar na espécie de limbo entre as duas alternativas, saber que estava bêbado, mas não tanto que procedesse como um animal cego, que a desejava quando a ela lhe convinha.

      A chuva bateu-lhe nos olhos, gelada, e Toby afastou os pingos e puxou o chapéu para baixo, enquanto calcorreava os últimos metros entre os portões e o desejo. Quando a mão se fechou no seu braço, na escuridão torturada pelo vento, quase gritou de susto. Durante um fantástico instante teve a certeza de que o vulto alto, oculto na sombra do oleandro, era Martha que o esperava, como um vampiro. Depois aspirou o aroma misto de brandy e tabaco e compreendeu que o triângulo de carne cercado pelo capuz da capa de marinheiro era o rosto irónico de Gabriel.

      - Já estava farto de te esperar, Toby! - exclamou o amigo, com pouca paciência. - Porque não podes fazer em casa as tuas libações nocturnas?

      - E tu, porque não estás debaixo de telha?

      - Com Lorelei lá dentro? A altura não é para distracções ternas. - O jornalista sacudiu a chuva dos ombros, como um cão de caça na pista, e acrescentou: - Acredita, falo com conhecimento de causa.

      - Vem ao meu quarto, para secares.

      - Não penses nisso! Espero estar ainda mais molhado antes de esta noite terminar. E o mesmo acontecerá contigo, meu amigo. - Gabriel, que puxara já o médico para o precário abrigo do oleandro, baixou a voz e disse-lhe, num murmúrio: - Ou me ouves à minha maneira, ou não ouves. Portanto, agradeço-te que não me interrompas.

      Toby encolheu-se sob o capote. A cada momento que passava sentia diminuir na corrente sanguínea o fogo benigno do bom rum Jamaica, mas havia um não sei quê na atitude de Gabriel que exigia a sua atenção, por muito que isso o irritasse.  - Se fores breve...

      - Breve e azedo, meu amigo. Sabias que a Darby Belle está destinada a ser capturada esta noite?

      Toby recebeu a pergunta com razoável calma, embora o impacto o deixasse estonteado. Bem vistas as coisas, Gabriel ludibriara-o antes com estratagemas semelhantes, para anunciar no jornal uma data de partida...

      - A Darby Belle ainda se encontra ancorada.

      - Partirá com a maré, às dez e um quarto, para ser exacto. Ou seja, daqui a uma hora e vinte minutos, se a água não me deu cabo do relógio.

      - Como sabes? Como podes sabê-lo?

      - Sei mais do que isso. Algures, entre a meia-noite e a madrugada, será atacada de surpresa, abordada e saqueada... ou talvez apresada, até, se o Bronson for tão idiota que dê batalha.

      - Como podes tu saber, Gabe? O jornalista tirou um frasco da algibeira, bebeu um grande gole e passou-o a Toby, sem comentários.

      - Os factos são, como sempre, simples. Esta noite jantei no Bird in Hand com uma senhora cujo nome não mencionarei...

      - Se te referes a Nancy... Gabriel pestanejou, perplexo.

      - Que diabo tem a Nancy a ver com isto? Já que insistes, a senhora não era uma senhora, mas uma criada da Tondee, que esta noite achou mais discreto dormir fora...

      - Deixa a tua matrafona em paz. Onde soubeste a notícia?

      - Onde havia de ser senão no Bird in Hand, no preciso momento em que me deitava com ela? Estavam vários homens no aposento contíguo, todos marinheiros e todos bêbados, tão bêbados que nem repararam na bandeira existente na porta entre os dois quartos... Primeiro pediram rum e depois jantar e começaram a regatear com o taberneiro por causa do preço de aluguer de cavalos. Pareceu-me que queriam  um para cada um, para os levar depressa a Wassaw Sound.

      - E a Darby Belle?

      - Ao ficarem sós, não fizeram segredo do seu ofício... Aparentemente, o seu barco está ancorado na embocadura do rio Wilmington e mandaram-nos para Muskrat Town aguardar ordens de partida. Se fossem por terra, a cavalo, juntar-se ao capitão, sobrava-lhes tempo.

      Toby gemeu alto. Não lhe restavam já dúvidas quanto ao que ia ouvir, mas torturou-se um pouco mais, na ânsia de adquirir a certeza.

      - Ouviste o nome do capitão?

      - Não estavam bêbados a esse ponto. Limitaram-se a afirmar que ele seria capaz de levar a palma a Bronson em velocidade, em esperteza e em alcance de tiro.

      - Tens a certeza de que estavam informados da data da partida?

      - Achas que, se a não tivesse, teria abandonado uma cama quente e uma dama que nunca mais perdoará a minha brusquidão?

      A dor aguda e funda da descoberta persistia, mas a angústia dir-se-ia misericordiosamente embotada pela necessidade de acção e Toby procurava já uma maneira de deter o navio pirata. Se os tripulantes deste planeavam dirigir-se para Wassaw Sound, parecia evidente que o desconhecido comandante era homem deveras ousado. O rio Wilmington, em cuja embocadura o corsário ancorara, vazava através dessa larga baía, escassas dez milhas ao sul da foz do Savannah. Obstruída por ilhas cobertas de vegetação, pântanos banhados pela maré e moitas de iúca e palmitos, Wassaw Sound era o cenário ideal para uma batalha de “ataca e foge”. A água tinha boa fundura até à faixa costeira. Toby sabia-o, pois navegara por lá uma dúzia de vezes quando procuravam uma saída para as suas embarcações mercantes. Na própria faixa a profundidade era suficiente para um piloto conhecedor dos cursos manobrar tranquilamente.

      - A altura foi escolhida com perfeição... - murmurou, quase sem notar que falava em voz alta.

      Bronson navegaria rio abaixo, com a maré, conservar-se-ia no curso do meio, por ser o mais fundo, e aguardaria deliberadamente a primeira claridade, antes de se aventurar a rumar ao mar alto. Graças ao nevoeiro que, no Outono, se levantava dos pântanos costeiros, o pirata tinha a faculdade de escolher o momento propício para desencadear o ataque e alvejar) o barco mercante a bel-prazer.

      - Quem quer que é, o bucaneiro deve ter sido avisado para esperar e, agora, informado do momento ideal para o ataque - observou Gabriel. - Uma pata no choco teria maiores probabilidades do que a Darby Belle...

      - Bronson só parte daqui a uma hora. Podemos retê-lo no cais e enviar um correio a Charleston.

      - E perder a melhor oportunidade de aventura desde a guerra? - perguntou o jornalista desdenhosamente. - Devias conservar-te sóbrio, doutor, mesmo depois de escurecer. O rum não te aguça os miolos, como a mim.

      Tirou novamente o frasco da algibeira e beberam um de cada vez, em grandes goles, com vénias mútuas, como marionettes manejadas por invisíveis cordéis.

      - Estás a perceber onde quero chegar, Toby? Ou terei de fazer um desenho?

      - Começo a entrever os contornos...

      - Ponto um: Sam Hoyt está na doca, a apetrechar a tua chalupa com velas de capa. Ponto dois: podemos chegar a Wassaw Sound, via Savannah, quase tão depressa como eles. Ponto três: se vão a cavalo para o barco, este deve encontrar-se ancorado algures perto do cais de South Road.

      - Provavelmente a sotavento da ilha Wilmington. Sugeres, acaso, que o ataquemos os três, a coberto da escuridão?

      - Sugiro que o façamos ir pelos ares para que a Darby Belle parta à hora prevista. Se falharmos, ainda teremos tempo de avisar Bronson.

      - E como passamos a pólvora para bordo do navio pirata?

      - Não há dúvida, esta noite a tua compreensão é lenta. Não me digas que esqueceste tão depressa a Wasp?

      Toby verificou que, afinal, era capaz de rir, apesar da dor que lhe roía o coração. A única façanha da Wasp constituíra um dos capítulos mais brilhantes da história dos Raiders. Armada pelo próprio Victor Darby para exercer a missão de uma espécie de batedora das águas, a chalupa fora pintada de preto do talha-mar ao pique de vante, e até as suas velas tinham sido tingidas de negro, o que a tornava quase invisível nas noites sem lua. Justificara, porém, o seu nome em plena luz do dia, ao investir, com um mastro-torpedo fixado no gurupés, contra uma barcaça britânica cheia até aos embornais de artilharia para Burgoyne. Fora Gabriel quem acendera o rastilho que atirara pelos ares as munições inimigas, fugindo a nado no último momento para escapar às consequências.

      - Discutiste o assunto com Sam?

      - Deve estar a carregar pólvora, neste momento, no teu cais coberto.

      - Ao que parece, planearam tudo minuciosamente. Tens a certeza de que precisarão de mim para alguma coisa?

      Gabriel estendeu-lhe o frasco com uma pequena vénia grave, e replicou:

      - Essa pergunta não merece resposta, meu caro doutor. Não há dúvida de que planeavas montar a bela Martha na mais pura tradição militar!

      - O que eu planeava não interessa.

      - Claro que eu tinha em mente semelhante distracção. Mas as mulheres esperarão, o corsário é que não.

      - Nesse caso, porque esperamos nós?

      A chuva formava uma espécie de nevoeiro fino quando chegaram à Buli Street, deserta como uma aldeia de fronteira àquela hora tardia. Savannah parecia observá-los de uma centena de portas, como se os lamentasse pelo perigo que iam correr. Toby parou apenas o tempo necessário para cerrar ameaçadoramente o punho ao portão de Matthew Bristol, antes de levantar a gola e de correr atrás de Gabriel, a caminho da rampa que levava da Baía a Muskrat Town. Martha e a fragrante ameaça que representava tinham ficado esquecidas nas trevas, atrás deles, e o mesmo acontecera, momentaneamente, a Nancy Gregory, agora que se mostrava nas suas verdadeiras cores.

      - Calma - recomendou Gabriel. - O nosso pirata deve ainda andar a farejar nas proximidades do cais Darby.

      - Duvido. Afinal, já sabe tudo quanto precisa de saber. Sam deixaria a porta no trinco?

      - Disse que deixaria. Oxalá o encontres, com esta escuridão.

      O vento açoitava-lhes os ombros furiosamente, enquanto tacteavam o caminho ao longo do enorme armazém da doca, onde se encontravam as provisões dos barcos e o cais coberto utilizado pela companhia para reparar as embarcações costeiras. Por momentos, Toby receou que se tivessem perdido no meio das pilhas de mercadorias cobertas de oleados, mas depois os seus dedos encontraram o fecho de latão da porta lateral, fria como uma cabeça de cobra à chuva. A porta cedeu com um gemido alarmante e os dois homens entraram no cais coberto, a pestanejar sob os raios convergentes de duas lanternas. A voz de Sam, suavizante à sua maneira como o chapinhar modorrento da água nos calces dos barcos em reparação, guiou-lhes o olhar para a chalupa e para as barricas alinhadas à proa. Toby notou que a pequena embarcação tinha um jogo de velas novinhas em folha, tão elegante como a pintura recente, e estava pronta a desafiar a ventania que soprava à entrada do cais.

      - Está uma noite para marinheiros, Toby.

      - Acho-a ainda melhor para patos - afirmou Gabriel, enquanto saltava agilmente para o convés. - No entanto, como dizem que a maioria dos capatazes dos arrozais nascem com pés palmados, tenho esperança de que se saia vivo desta, Sam.

      Toby via-os trabalhar. Havia um não sei quê de estranhamente agradável na maneira como Gabriel levava para bordo um par de varas e na cantilena despreocupada de Sam ao arrumar uma vela extra debaixo do banco. Quem os visse e não soubesse o que planeavam, não sentiria qualquer tensão no ar, julgaria talvez que preparavam uma excursão piscatória para o dia seguinte, se o tempo melhorasse. Claro que um sertanejo não se deixaria iludir. Acostumado a enfrentar a violência à sua maneira, o homem do interior podia dar-se ao luxo de fazer calmamente os seus preparativos, reservando o impacto avassalador da sua cólera para o momento oportuno.

      - Aguentará com este tempo, Sam?

      - O vento está a abrandar, doutor. Creio que mudará ainda antes da meia-noite e que a viagem de regresso será, por isso, mais fácil que a de ida.

      - Se ainda flutuarmos... - Toby saltou para o convés, a fim de ajudar o jornalista, e sentiu-se mais sereno. - Agrada-me que pense que vale a pena correr o risco, Sam.

      - Até agora, ainda não tive tempo de pensar, doutor. Pensar não ajuda muito numa noite como esta, 'sobretudo quando se vai caçar um pirata. Estou desconfiado de que teremos de procurá-lo às apalpadelas, quando chegarmos à barra.

      Gabriel emergiu das profundezas da cabina da proa, a sacudir as mãos.

      - Rastilho de pólvora preparado, capitão. Isca pronta e a pólvora propriamente dita protegida contra os ataques do mar. Mais algumas ordens?

      - Creio que valerá a pena escutar com atenção - aconselhou Toby. - Se o Sam nos informar da rota...

      O administrador abrira já um mapa no banco e Toby seguiu o dedo grosso e calejado que assinalava os pontos de referência à luz da lanterna.

      - Aqui é a ilha Sangaree. Vêem como o braço do rio abre para sul e leste?

      - Até aí era eu capaz de navegar, mesmo numa noite destas.

      - O melhor é ser franco, Toby. Não vai ser nada fácil quando ultrapassarmos a ponta sul da Sangaree.

      Gabriel estendeu o dedo e contornou a abertura em forma de baía perto da foz do rio:

      - Não faltará mar aberto - comentou.

      - Mas faltará abrigo. Claro que podíamos descer a direito pelo canal e confiar na sorte até chegarmos à barra, mas não nos esqueçamos de que o pirata não deve tirar os olhos do curso, esta noite. Temos de atacá-lo de outra direcção.

      - Como podemos fazer planos antes de sabermos ao certo onde está ancorado?

      - Se os marinheiros vão a cavalo, têm de ir pela estrada para South Ford, o que significa que o barco está defronte da ilha Irmã, no lado do cais. Ou talvez a jusante do rio, perto da ponta da ilha Cabbage, no caso de terem escondido um pequeno bote.

      - Temos de chegar primeiro que eles a South Ford, se pudermos.

      - Podemos e chegaremos, se atalharmos pelos pântanos. - O dedo calejado demorou-se um instante num canto do mapa: - Costumava haver aqui uma saída, com a maré no máximo. Levaremos as varas... e rezaremos. Este atalho poupar-nos-á uma boa hora.

      - Se conseguirmos aproximar-nos o suficiente para abalroar, como acenderemos os rastilhos?

      - Vai um caldeiro de carvão na proa, capitão - informou Gabriel. - Espero que não sirva para nos aquecer a nós, mas aos piratas...

      - Claro que precisamos de um mastro.

      - Pode escolher um naqueles escaleres do fundo.

      As corridas de escaler tinham estado em voga no Verão, entre os trabalhadores da doca da companhia. Toby escolheu o mastro mais comprido e levou-o para bordo o melhor que pôde. Devido às barricas de pólvora e ao comprido rastilho enrolado em serapilheira, quase não sobrou espaço para os três homens depois de amarrado o mastro, transversalmente, à cabina.

      - Não será melhor partirmos, antes de irmos para o fundo?

      - Levantem a vela-mestra; eu encarrego-me do leme.

      A manobra era possível, graças ao telhado alto e abobadado do cais coberto. Por ordem de Sam, Toby e Gabriel ancoraram a bujarrona e deram pano à ré.

      - E se a desaparelhamos com o vento?

      - É um risco que temos de correr, se queremos chegar primeiro que os cavaleiros ao vau.

      Toby acenou com a cabeça, num assentimento mútuo. A aventura mostrava-se-lhes agora claramente, era inútil tornar-lhe as cores ainda mais sombrias.

      - Podemos partir quando estiverem prontos, meus senhores.

      Um vigoroso impulso duplo das varas foi mais que suficiente para a chalupa sair para a extremidade aberta do cais; um segundo impulso fez girar o talha-mar e permitiu a Sam receber o vento em cheio. A viragem foi feita mesmo a tempo, no momento em que uma violenta rajada de vento soprava pela encosta abaixo e ameaçava virar a pequena embarcação. Depois, firme sob as velas tensas, o casco pareceu erguer-se como uma ave a levantar voo. Estavam a caminho, já profundamente embrenhados no canal e a deixarem para trás a doca a velocidade vertiginosa.  Savannah, vista do negro coração do seu rio, era apenas um penhasco denteado reflectido no céu, vagamente recortado em enevoados fiapos de luar. Toby olhou uma só vez para trás, para a silhueta da Darby Belle ainda presa às amarras. Depois, Sam gritou-lhe uma ordem e esqueceu-se de tudo, até de pensar.

      - Acorda, Toby!

      Estremeceu e resmungou, inquieto, consciente de um frio de enregelar os ossos, de um ressaibo a pragas gritadas mentalmente e da mão de Gabriel no seu ombro. Acordou de vez, com um pulo violento, e percebeu que passara segunda vez pelo sono, no abrigo precário do banco de bordo. Gabriel, enrolado a seu lado como um cachorro molhado, tapava-lhe ainda a boca com a mão.

      - Praguejas sempre no sono, quando andas no mar?

      - Desculpa, não dei por isso... -A tirada que acabara de lançar a Nancy Gregory, dos abismos do seu sonho tormentoso, ecoava-lhe ainda nos ouvidos, embora o seu significado lhe parecesse confuso.

      - Receei que desatasses a gritar de um momento para o outro... - explicou Gabriel. - Sam insiste em que, deste ponto em diante, não se faça barulho.

      Toby estava já bem acordado e consciente do que o cercava. Sam Hoyt, de arcaboiço quadrado como o do próprio Ulisses, segurava com força a cana do leme, para aproveitar ao máximo o vento. À proa, pouca distância a estibordo, estendia-se uma vasta planura verde-prata de pântanos, onde se erguiam aqui e ali maciços de palmitos. O principal braço navegável do Savannah prolongava-se para oeste, ondulava em intermináveis cristas brancas, e Toby mal divisava a mancha vaga do continente, recortado num fundo de nuvens prenhes de chuva, e, à frente, o remoinhar de água branca que marcava os contornos da barra do porto.

      - É impossível termos vindo tão depressa...

      - Mas viemos. O Skidway já ali está, à esquerda, e o Sam não tarda a conduzir-nos através dele.

      A chalupa adernou e os dois homens precipitaram-se doidamente, como dezenas de vezes nas últimas três horas, para as barricas de pólvora, que ameaçavam soltar-se das cordas que as prendiam. Quando a embarcação se endireitou de novo, avançavam já através da água do pântano, com o gurupés a abrir um sulco firme na água agora mais serena.

      - Como encontrou a passagem?

      - Sorte, meus senhores - respondeu Sam. - Rezem para que nos favoreça um pouco mais, pois não podemos encalhar.

      - Por outras palavras, manejem as varas! - exclamou Gabriel, saltando para a amurada; Toby imitou-o, sem fazer caso dos protestos dos tendões entorpecidos.

      Sam manobrava o leme com perícia, aproveitando o mínimo sopro de vento. Graças à maré enchente, foram poucos os obstáculos que tiveram de vencer no quarto de hora seguinte, e Gabriel e Toby, apoiando todo o seu peso nas varas, ajudaram o casco a sair-se dos apuros sem incidentes. Como tudo o mais naquela louca noite, o atalho que seguiam constituía um risco que corriam conscientemente. Após os primeiros momentos de ansiedade, começaram a aceitar a realidade quase com calma.

      - Água aberta à frente, capitão! -'Todos firmes!

      Mais um impulso final do talha-mar, a saltar doidamente num vórtice de areia, branca apesar de vista apenas à luz das estrelas; nova penetração na erva e irromperam num vasto braço de rio, ainda com o vento a favor.

      - Rio Wilmington! - exclamou Sam. - Conseguimos!

      - A não ser que nos tenhamos enganado acerca do poiso do corsário...

      - Rumo a leste, por favor. Não é ocasião para dúvidas.

      - Rumo a leste, capitão.

      Navegavam cautelosamente, agora bem ao abrigo do pântano que acabavam de deixar. A lua desaparecera havia muito e só as estrelas, obscurecidas pelas nuvens a galope, ameaçavam revelar a sua silhueta, enquanto orientavam a rota por um maciço baixo, de árvores, a leste.

      - Ilha Irmã - anunciou Sam. - O cais deve ficar em frente, na outra margem do rio.

      - E se eles têm sentinelas?

      - É outro perigo que temos de correr.

      Rumaram para leste com a mesma velocidade acelerada que mantinham desde a partida de Savannah. Sam apoiava-se no leme e navegava de vento em popa para água aberta, enquanto a chalupa, a dançar na crista das ondas brancas do meio da corrente, atravessava o Wilmington como uma ave direita ao ninho. Todos à uma, os três marinheiros respiraram fundo quando entraram na zona de sombra da margem oposta.

      Ali, como na maioria das ilhas fluviais, descia até à borda d'água uma parede quase impenetrável de cedros, carvalhos e loureiros. Custava a crer que a estrada ribeirinha se encontrava a menos de noventa metros para o interior, paralela à água com a exactidão de uma régua, até se confundir com os sulcos arenosos dos carros, no vau. Mas Toby tinha confiança na perícia de Sam. Contornando a margem tão de perto que o gurupés dava a impressão de cortar as plantas rasteiras como uma foice, o administrador deixava-se levar suavemente pela corrente, como se um sexto sentido lhe permitisse ver nas trevas à sua frente.

      - Lá está o nosso ancoradouro, meus senhores. Algum sinal de visitantes?

      A proa raspou no fundo, enquanto Sam falava, e Toby distinguiu os vultos de alguns palmitos levantados para a luz das estrelas como braços de pesadelo. Ao mesmo tempo surgiu à vista o términus da estrada, uma fita sinuosa de cascas de ostra esmagada, branca à mesma luz irreal.

      - É preciso que um de vocês veja se encontra indícios de passagem recente de cavalos - lembrou o administrador.

      - Aguente-a, Sam; vou a terra.

      Toby saltou pela borda fora, equilibrando-se melhor possível nos pranchões que serviam de cais. Gabriel acendeu uma acha de pinho nas brasas e entregou-lha. Sustiveram a respiração enquanto Toby subia e descia a estrada branca. Mas não havia sinais de vida no ancoradouro, nem vestígios de passagem recente de cavalos na estrada propriamente dita.

      - Aparentemente, conseguimos chegar primeiro.

      - Certifiquemo-nos de que é este o ancoradouro que utilizam - sugeriu Sam. - Claro que é difícil que tenham outro, se estão ancorados tão perto da foz do rio.

      Toby baixou o archote para o chão e encontrou sinais evidentes de utilização recente, incluindo um rectângulo de restolho esmagado e uma falha fresca na madeira podre de prender as amarras.

      - Creio que estiveram aqui a carregar há poucos dias.

      - Nesse caso devem ter deixado um escaler algures. Não é de crer que se atrevessem a avisar, por sinais, o navio pirata da presença de outro barco, mesmo numa noite como esta.

      Toby saltou para bordo e Sam conduziu novamente a chalupa para a corrente. Encontraram o que procuravam a cerca de cem metros do ancoradouro: um pequeno escaler descuidadamente escondido no restolho, no cimo de uma praia suavemente inclinada. Sam conduziu a chalupa em direcção a terra, até a proa ficar firmemente encalhada. Sentiam-se todos mais tranquilos, pois o facto de o escaler se encontrar, relativamente, tão à vista, e sem ninguém a guardá-lo, indicava que o corsário estava convencido de poder atacar do esconderijo sem receio de ser descoberto.

      - Não devem estar muito longe, para jusante - observou Sam -; seria muito difícil manobrar o bote em água aberta. Tenho quase a certeza de que o apanhámos de surpresa... por enquanto. Que fazemos a seguir, Toby?

      Toby hesitou, embora calculasse que Sam e Gabe sabiam antecipadamente qual seria a sua resposta.

      - Acho que devemos atacar primeiro... se encontrarmos o navio pirata a tempo.

      - Acho bem - respondeu Sam, calmamente. - Eu levo as barricas para terra. Cuidado com o rastilho,

      Gabe; tem de conservar-se seco durante muito tempo.

      Toby saltou para a praia, a fim de experimentar a solidez do baixio em que tinham encalhado.

      - Trabalharemos aqui?

      - Não há melhor lugar neste lado da ilha Cabbage. - Enquanto falava, Sam abria um receptáculo improvisado de grossa bolina entrelaçada, no qual Gabriel meteu uma barrica de pólvora.

      - Não se preocupem com os macacos que deixámos em Muskrat Town; com chuva ou sem chuva, ouviremos a tempo o ruído das ferraduras dos cavalos.

      Trabalharam em silêncio, como um trio bem ensaiado que sabia o que fazia e o que a cada um competia. O mastro-torpedo que lhes saiu das mãos era de grande simplicidade. O mastro extra saía bons três metros do gurupés comprido e inclinado da chalupa e estava firmemente amarrado com arame de cobre a ambas as correntes da embarcação. As duas barricas de pólvora, bem aconchegadas nos receptáculos de corda, estavam por sua vez atadas à ponta do mastro e a base deste presa noutro cesto de corda, suficientemente apertado para o conservar no seu lugar, e suficientemente frouxo para permitir que o puxassem para dentro durante a viagem. Seguiu-se a confecção do rastilho. Pormenor mais delicado do que, ao fim e ao cabo, talvez não desse o resultado esperado, exigiu várias tentativas antes de Sam se dar por convencido de que contornava convenientemente o mastro.

      - Que acontecerá se nos esperar mar picado, no resto do trajecto?

      - Espero que a serapilheira conserve o rastilho seco.

      Gabriel, metido até aos joelhos na água turva, passou amorosamente os dedos pelos contornos bem torcidos do rastilho.

      - É uma beleza, Sam! Oxalá não haja contra-explosão!

      Toby aproximou-se, para o experimentar também. Firmemente metido na boca de uma das barricas, o invólucro de serapilheira parecia à prova de água. A pólvora que continha - sentia-a, granulosa, entre os dedos, ao apalpar com cuidado o tecido - não devia ser mais grossa que um dedo mínimo e estava bem comprimida, para que a combustão em cadeia ficasse assegurada assim que se acendesse o rastilho.

      - As barricas ficarão submersas se o mar estiver bravo.

      - São ambas chapeadas de cobre - informou Sam, que tinha a cara suja de pólvora. - Quando partirmos, içá-las-emos para trás do suporte do gurupés. Aí, aguentarão a humidade.

      - Chegou, então, o momento de nos pormos a caminho?

      - Com certeza - concordou o administrador. - É altura de passarmos da teoria à prática.

      - A que distância fica a ilha Cabbage?

      - Cerca de meia milha a jusante. Com sorte, saberemos em que pé nos encontramos por volta da meia-noite.

      Recomeçaram a trabalhar em silêncio, para safarem a chalupa da ilha. Com Gabriel e Sam nos panos de ré, Toby verificou com alívio que a proa desencalhava facilmente do leito de areia e saltou para bordo, com um impulso vigoroso. Sam não tardou a apanhar vento favorável e a chalupa deslizou sem incidentes, apesar do peso das barricas debaixo do gurupés a desequilibrar um pouco.

      - Ilha Cabbage um ponto a bombordo.

      - Com certeza têm sentinelas entre os palmitos.

      - Talvez estejam tão confiantes que não achem necessário. Seja como for, não temos outro remédio senão ir para a frente... e rezar.

      Falavam baixo e, instintivamente, tinham-se agachado como panteras, procedimento que lhes salvara várias vezes a vida quando seguiam com a vanguarda dos Rangers Darby. Por um entalhe da amurada de bombordo, Toby via a ilha Cabbage ganhar forma na escuridão, e esperava, tenso, tiros que, afinal, não se ouviam. A ilha, graças aos seus maciços cerrados de palmitos e à sua inclinação suave, poderia oferecer um certo abrigo se o corsário estivesse ancorado no outro lado.

      - Não seria conveniente pararmos outra vez e procedermos a uma pequena exploração?

      Sam abanou a cabeça e respondeu:

      - Claro que não passa de suposição, mas juraria que os nossos “amigos” estão ancorados numa enseada logo à entrada do areal sul... - Calou-se e levantou a mão, a pedir silêncio; o vento, assobiando por cima das copas dos palmitos da ilha, trouxera aos ouvidos de todos um estalido ténue, mas inconfundível.

      - Talvez ganhasses dinheiro a fazer conjecturas, Sam - observou Gabriel. - Se aquilo não foi um botaló a estalar, desisto da minha licença de marinheiro!

      - Caluda!

      Apuraram de novo o ouvido. Desta vez o som trazido pelo vento através da ponta mais estreita da ilha foi mais sinistro: uma praga ou duas, seguida por um riso e um arroto de bêbado. Sam sorriu, no escuro.

      - Não imaginava que fossem tão descuidados. Afinal, talvez o trabalhinho não seja tão arriscado como parecia.

      - Vamos para a frente e tiramos a prova?

      - Calma, doutor. Um pouco adiante há um grupo de dunas que nos proporcionarão bom abrigo.

      - Se estão tão perto como parece, porque não lhe vemos os mastros?

      - Com esta escuridão é difícil ver seja o que for. Foi isso que nos salvou, até agora... e podem dar-se por felizes por terem um capitão capaz de navegar por tacto!

      - Não há dúvida, capitão! - exclamou Gabriel, entusiasmado. - Mas agora diga-me se a ponta da ilha está inundada.

      - Começa a emergir - respondeu-lhe Sam -; há mais de duas horas que a maré está a vazar. Podíamos ir a pé até ao gurupés deles, se quiséssemos.

      Há mais de duas horas que a maré está a vazar... Toby, ainda encolhido na cabina, estremeceu ao compreender o significado daquelas palavras. Sem saber o que acontecia, o capitão Bronson devia ter já umas boas quinze milhas marítimas entre a ré e a doca Darby. Levantou-se de um pulo, no momento em que a quilha penetrava na areia solta e a embarcação se imobilizava. Sam Hoyt saltou pela borda fora, silencioso e ágil como um monstro marinho, e Toby seguiu-o rapidamente, satisfeito por não terem tempo para hesitações.

      - Aguenta-a assim, Gabe; não nos demoramos.

      O jornalista, de pernas abertas no convés da ré e com as duas varas cruzadas, acenou-lhe em silêncio. Sam levava-lhe um avanço de trinta metros quando Toby emergiu da água gelada do rio. Graças ao vulto esbranquiçado das dunas, era-lhes possível orientar-se. Cerca de um quarto de milha a sul, a ponta da ilha terminava numa suave rebentação de mar alto, a seguir à barra do porto. De leste, por cima das dunas, chegava até eles o bater firme da rebentação, ao longo das praias, ao norte da foz do rio.

      - Temos de trepar lá acima para dar uma olhadela, doutor.

      A meio da difícil encosta não lhe restavam já dúvidas acerca do paradeiro da sua presa e da sua falta das precauções normais. O clarão da fogueira era inconfundível, apesar do ponto onde se encontravam, para não falar nas pragas guturais, nos retalhos de canções e de uma discussão que parecia nunca mais acabar.

      - Estarão os vigias todos bêbados?

      - Talvez, mas não tanto que não sejam capazes de atirar pelos ares um alvo fácil.

      Rastejavam como cobras, abaixo da crista da duna mais alta, aproveitando todas as possibilidades de abrigo e ainda à espera dos tiros das sentinelas. Ouvia-se apenas o rugir da rebentação e o ruído menos sinistro das vozes dos homens. Toby conseguia até, perceber uma frase ou outra, de vez em quando, e tinha a absurda convicção de que para tocar naqueles abutres humanos lhe bastaria estender um braço, através da erva grossa que coroava o pico da duna.

      - E eu disse ao patrão: “Porque não é a minha vez de ir a terra?” E sabem o que ganhei com isso? Levei com as costas da mão na cara!

      - Quando é que aqueles cabeças de burro aparecem?

      - Caluda! Têm ordens para aguardar a informação. - A nova voz, com certo timbre autoritário, impôs silêncio aos homens. - Como sabem que o barco parte esta noite?

      - E como sabemos que não parte? Enquanto o LeClerc e o Dindon ressonam no Bird in Hand, com uma marafona no meio deles...

      Ouviu-se o estalar de uma bofetada, um arrastar de botas e uma explosão final de pragas. Toby ouviu o companheiro respirar fundo, ao seu lado. Desde Savannah que acalentavam a esperança de chegar primeiro que os rufiões do Bird in Hand; o que acabavam de ouvir era prova positiva do seu êxito.

      - Verifiquemos a sua posição - propôs Sam. - Depois abalroá-lo-emos.

      Afastaram os tufos de erva e olharam para baixo, para a curva vaga do ancoradouro. Toby susteve bruscamente a respiração, perante o espectáculo que se lhe deparou. Em vez do corsário insignificante que quase esperara, tinha diante dos seus olhos um brigue bem mastreado, com uma bateria de canhões de nove libras na proa e na ré. Apesar da luz fraca, não lhe restaram dúvidas do poder de ataque do inimigo nem do objectivo que ali o detinha, de atalaia, nem tão-pouco da certeza quase desdenhosa de que venceria o jogo desesperado. Eram provas suficientes dessa certeza o lume da cozinha que ardia no poço do convés e as disputas que tinham irrompido de novo, agora que o homem da mão leve se afastara.

      - Já vi aquele casco antes, Sam.

      - É um brigue de mastreação francesa, rápido e matreiro como todos.

      Toby acenou em silêncio ao ver confirmada a sua pior suspeita. Vira vários vasos de guerra daqueles ancorados ao longo das docas de Delaware, quando trabalhava como cirurgião em Filadélfia, nos últimos anos de guerra. Saídos às dúzias dos estaleiros franceses, aqueles brigues rápidos tinham ajudado os Ingleses a render-se. Tudo indicava que um, pelo menos, se dedicava a aventuras menos honestas, em tempo de paz, graças ao ouro de Félix Pagnol. Como duvidar, agora, da parceria Pagnol-Nancy? Se até os espiões de Muskrat Town tinham nomes franceses!

      - Acho, doutor, que vimos mais do que o suficiente.

      Aceitou em silêncio a sugestão de Sam e quase correu pela duna abaixo. Agora que o apogeu da aventura se aproximava, sentia-se relativamente calmo, com o mesmo à vontade estranho que sobre ele descera quando operava debaixo de fogo, com o entrechocar de sabres à porta da tenda do cirurgião.

      Gabriel segurou-lhe no cotovelo, para o ajudar a subir para bordo, e Sam, de novo no seu posto como um autómato, manobrava o leme de maneira a navegar rente à areia, mas sem encalhar.

      - Atiça os carvões, Gabe; isto acabará mais depressa do que pensamos.

      - Não projectamos primeiro o mastro?

      - Só no último momento; o seu peso, sob a bujarrona, complica-me as manobras. Mesmo sem ele, já tenho de avançar como um mestre de dança... e quase tão depressa.

      As dunas que os tinham ocultado deslizavam agora a bombordo.. Ao embrenharem-se um pouco mais na foz do Wilmington, a corrente tornou-se mais impetuosa, borbulhando no ponto de encontro da areia com o mar. Mais adiante - finalmente! - estava o inimigo, visível em toda a sua arrogância contra o vasto oceano, com os mastros a oscilar docemente enquanto as amarras gemiam sob a pressão da maré.

      - Preparar para virar!

      - Prontos, capitão.

      - Esta é a minha última ordem - avisou Sam, no mesmo tom despreocupado. - Terão de agir por iniciativa própria quando iniciar o novo rumo. Se conseguir o que pretendo, o gurupés ficará apontado a direito à meia nau deles; se vocês se saírem bem, as barricas de pólvora explodirão sem lhes dar tempo de saberem o que lhes aconteceu.

      No mesmo instante, uma voz interrompeu as suas palavras, um grito peremptório, transmitido através de um megafone da coberta do brigue. Na chalupa ignoraram a ordem, o botaló virou e, com o vento por trás, lançou-se sobre o inimigo. Numa questão de minutos encontrar-se-iam no semicírculo de luz pálida reflectida pelo lume aceso a meia-nau. Bem inclinado para a frente, com as cordas que regulavam o mastro-torpedo enroladas nos pulsos, Toby sentiu a embarcação estremecer nas ondas curtas e depois arremessar-se para a frente, como uma seta disparada de um arco.

      - Afastem-se ou disparamos!

      - Tarde de mais, amigos! - berrou Sam. - Disparem.

      Uma bala de mosquete atravessou a vela mestra, seguida por uma rajada furiosa. Graças ao elemento surpresa, os bucaneiros tinham sido apanhados desprevenidos, e o adágio de que os marinheiros são, em regra, maus atiradores, parecia justificar-se amplamente. Uma bala lascou a amurada a cerca de quinze centímetros da cabeça de Toby que, no convés da proa, ajudava o jornalista a empurrar o mastro para a frente, mas os outros tiros perderam-se no mar.

      Bons três metros à frente do gurupés, as duas barricas rasaram a água, abrandando um pouco o ímpeto, mas conservando inalterável a mortífera precisão. O mastro gemeu apenas uma vez e, por instantes, Toby receou que estalasse sob o peso da pólvora e do rastilho, mas os cabos de cobre aguentaram, embora se queixassem perigosamente da força que os puxava para baixo.

      - Acenda o rastilho, Toby, ou será demasiado tarde! - recomendou Sam.

      Toby levantara já a tampa do braseiro e mergulhara uma colher no seu coração incandescente. Com ambas as pernas apoiadas ao instável gurupés, serviu-se da navalha de mola para fazer uma incisão na ponta do rastilho, de onde caiu um pouco de pólvora grossa. No mesmo instante, a chalupa penetrou no semicírculo luminoso que revelava o alvo com tão fatal conveniência. Ouviu Sam Hoyt praguejar pela primeira vez, ao enredar-se numa corda quando começava a amarrar o timão, e apercebeu-se vagamente de que Gabriel efectuava uma retirada prudente para a ré. As balas choviam agora com maior abundância, mas a maioria continuava a furar inofensivamente a vela. Nove metros... sete metros e meio... seis metros... Tudo dependia de saber regular o tempo e de não se deixar influenciar pela explosão de nervos de Sam. - Acenda o rastilho, Toby, pelo amor de Deus! Uma compulsão que não fazia caso de raciocínio nem de gritos histéricos, obrigou-o a levantar a colher. Uma rabanada de vento atiçou os carvões que pingos de água tinham amodorrado, e metade dos mesmos caíram pela borda fora antes que conseguisse introduzir os restantes na abertura da serapilheira. O segundo que decorreu antes que a pólvora fumegasse, ao iniciar-se a combustão, pareceu-lhe uma eternidade. Depois, com um silvo, o rastilho pegou bem fogo, expelindo centelhas como um cometa enlouquecido enquanto a chama corria pelo mastro. As narinas arderam-lhe, com o cheiro da serapilheira a arder e da pólvora e, de novo guiado pelo instinto, correu para a ré, atrás de Gabriel.

      O jornalista deitou-se à água e desapareceu, acto contínuo, num turbilhão de espuma e escuridão. Sam, que dava os últimos nós na corda com que travava o timão, sorriu a Toby, recuperado o aprumo agora que o rastilho ardia.

      - Salte, Toby; o capitão é o último.

      Olhou apenas uma vez para trás, para que a cena lhe ficasse para sempre gravada na memória. O casco monstruoso do corsário, ocultando as estrelas como uma ave obscena; o cuspir furioso de tiros ao longo da amurada; o estrondo de uma portinhola de canhão a abrir-se, uma fracção de segundo tarde de mais, para destruir aquela Némesis... Depois atirou-se à água, num mergulho longo, batendo os pés para ganhar distância ao chocar com a água e submergindo apenas depois de ouvir Sam nadar ao seu lado.

      Mergulhou cada vez mais profundamente na escuridão gelada e borbulhante, consciente de que precisava de ter uma espécie de amortecedor entre o seu corpo e a explosão que não tardaria a verificar-se. Um remoinho fosforescente, à sua direita, disse-lhe que Sam tomava idêntica precaução. Não via sinais de Gabriel, mas esperava que o jornalista tivesse sido mais rápido e se encontrasse já fora do alcance do perigo.

      Porque demorava tanto a explosão? Ter-se-ia o rastilho apagado antes de a chama chegar às barricas? Ou teria o pirata cortado as amarras e escapado à morte por centímetros? Mergulhando ainda mais profundamente no Wassaw Sound, sem fazer caso dos 'sinais de perigo que lhe soavam aos ouvidos, Toby sentia um frio que nada tinha a ver com a temperatura da água. Se o plano falhara no momento crítico, estariam perdidos assim que voltassem à superfície. Da coberta do brigue, com a claridade do lume a guiá-los, localizá-los-iam facilmente, muito antes de conseguirem nadar para fora do alcance das balas.

      De súbito, com o fragor de ensurdecer que esperara, colando-lhe o estômago às costelas como o soco de um gigante e ameaçando rebentar-lhe os pulmões, a explosão deu-se. Apesar da distância, pareceu-lhe ouvir o estalar violento das madeiras, o crocitar dos abutres humanos na agonia. Lembrou-se a tempo de deixar sair o ar do peito quase a explodir também, antes que os pulmões lhe estoirassem, e nadou para a superfície com as poucas forças que lhe restavam.

      A cabeça de Sam emergiu simultaneamente, e apesar do cansaço não contiveram um grito de triunfo quando uma acha a arder descreveu uma parábola diabólica e se extinguiu na água cerca de quinze metros atrás deles. O corsário estava perdido, irremediavelmente perdido. Até um leigo compreenderia o significado daquela meia-nau lacerada ou da sucessão de explosões que atirou as cobertas pelos ares, tão eficientemente como se Belzebu e os seus demónios dessem uma festa no fundo do mar.

      - Em cheio! - exclamou Sam, encantado. - Mesmo no meio, onde apontei!

      - O paiol deve estar a explodir...

      A segunda explosão verificou-se quando Toby acabava de falar e abriu o corsário no sentido do comprimento, como se invisível cutelo tivesse descido da abóboda negra da noite. A língua de fogo irrompeu para o céu, com um concerto final de gritos agudos que gelou os dois homens até à medula, apesar de terem fechado os seus corações à piedade.

      - Toca a nadar, Toby! Creio que os apanhámos a todos, mas nunca se sabe...

      O brigue incendiado, semelhante agora a uma imensa flor diabólica desabrochada na noite, começara já a afundar-se. Toby olhou ainda uma vez para trás, antes de seguir Sam. Apesar do corpanzil, o administrador nadava com a alacridade de uma toninha. Toby resfolegava de fadiga quando chegaram a uma zona de penumbra, fora do círculo mortífero de cujo centro ainda saíam chamas.

      - Onde está Gabriel?

      O jornalista respondeu em tom sepulcral, da escuridão:

      - Pronto a pescar-te do charco, meu amigo, se tiveres a bondade de nadar para estas bandas.

      Uma viga pesada bateu num ombro de Toby, que mergulhou instintivamente e voltou à superfície a cerca de três metros de distância, pestanejando, incrédulo, ao deparar com o vulto da chalupa, toda adernada. Fora o botaló da vela grande que lhe batera no ombro. Gabriel, apoiado nos pés afastados junto da amurada, sacudia o mastro num esforço para endireitar o casco inundado.

      - Como conseguiste sair tão depressa da água, Gabriel?

      - Primeiro vem ajudar-me e depois faz perguntas. Lembra-te que temos de regressar... e que eu tenho uma história ansiosa por ser composta em letra de forma!

      Sam saltara já para bordo e, juntos, começaram a baldear vigorosamente, antes que a embarcação deslizasse para o círculo onde o fogo continuava a crepitar. O progresso foi rápido e Gabriel não tardou a poder levantar a vela grande da água.

      - Acha que nos levará ao nosso destino, Sam?

      - Como uma jóia! Perdeu apenas o gurupés e creio que poderemos manobrá-la sem bujarrona - respondeu Sam, enquanto cortava as cordas com que prendera o timão.

      A chalupa correspondeu, como esperava, e a vela grande, apesar de esburacada pelas balas e com um grande rasgão junto do pique, por onde passara uma acha a arder, puxava-os quase tão bem como antes.

      - Viste, Gabe?

      - De menos de duzentos metros. Detonou menos de três minutos depois de te lançares à água, disparou as duas barricas o melhor possível e retrocedeu, depois do trabalho feito, como a tua avó a retirar-se da varanda. - O jornalista riu-se do sorriso espantado do amigo e acrescentou: - Claro que foi o timão amarrado pelo Sam que nos salvou... Isso e uma rabanada de vento que a fez girar exactamente quando o gurupés quebrava.

      Firme no leme, Sam descreveu uma curva larga, para contornar o horror que ficava para trás.

      - Eu sabia que havia uma possibilidade de que a chalupa não se voltasse por completo. Parece que até nisso a sorte esteve connosco.

      Toby lançou um olhar sombrio ao brasido que começava a amodorrar. À medida que navegavam para oeste e entrepunham entre eles e o trabalho daquela noite a língua de areia, a façanha começava a perder-se na noite, como um pesadelo sem significado. Nada era tão real como a camisa molhada colada às costas ou o calor reconfortante do brandy que Gabriel lhe oferecia.

      - Como médico, devia insistir que retrocedesse-mos...- murmurou com os dentes a bater, e bebeu outra golada.

      - Como jorgiano, sabe que fizemos muito bem - redarguiu Sam. - Fogo e enxofre são o melhor remédio para os parasitas.

      - Pelo menos aquele pirata nunca mais navegará.

      Gabriel, todo encolhido contra a amurada, tinha os olhos postos no rio iluminado pelas estrelas.

      - Se querem que lhes diga, cavalheiros, completámos o nosso trabalho no momento oportuno... Não é o capitão Bronson que demanda a barra como se nada o preocupasse?

      As dunas e os palmitos limitavam o raio de visão, mas o vulto do navio mercante era inconfundível, ao descer arrogantemente o rio a caminho do mar alto. Toby correu para a proa, a fim de ver melhor, quase esquecendo, no seu entusiasmo a falta do gurupés. Ao ver a Darby Belle demandar o oceano, sentiu o coração elevar-se acima do ódio que naquela noite estivera prestes a consumir-lhe o espírito.

      - Se não fosse a falta da bujarrona - disse Sam, aproximando-se um ponto mais do vento -, escoltá-la-ia até sair a barra. Não há dúvida, por um espectáculo destes até vale a pena afogarmo-nos!

      - E matar - acrescentou Gabriel. - Qualquer coisa me diz que, durante algum tempo, os nossos barcos que partirem para Londres não precisam de canhões a bordo.

      - Nem de ocultar as datas de partida - afirmou o administrador. - Valeu a pena correr o risco, doutor... mesmo que não saibamos nunca quem os informou.

      “Mesmo que não saibamos nunca...” Toby praguejou, mentalmente, aceitou o frasco do brandy e ergueu-o num brinde silencioso1 ao vulto cada vez mais pequeno do navio almirante dos Darbys. Não valia a pena explicar a Sam ou a Gabriel nem pensar no resultado terrível que tivera. A conspiração de Nancy Gregory morrera à nascença, e isso é que importava. A vingança seria, doravante, um assunto estritamente pessoal.

      Recomeçara a chover quando vinham ainda longe, e chovia torrencialmente quando entraram no cais coberto, na última hora sombria antes da madrugada outonal. Ao subir a rampa para a Baía, o Dr. Tobias Kent parou uma única vez, para beber o resto do brandy de Gabriel, inconsciente da roupa molhada e dos cabelos despenteados e colados pela chuva à cabeça, soltos havia muito tempo da fita que os prendia. Nem um anjo vingador desceria a desolada e deserta Buli Street com maior fúria, nem os acólitos de Jeová, incendiados de justa cólera, subiriam os degraus da Tondee com passo mais determinado.

      Embora nunca tivesse visitado o francês, sabia que os aposentos de Pagnol ficavam no primeiro andar. Não precisou de usar a aldrava para ter a certeza de que não obteria resposta. Escancarou, por isso, a porta, sem ouvir, sequer, os protestos que a sua entrada ciclónica arrancara ao sonolento vigia nocturno e aos dois criados. Queria ter a satisfação de ver com os seus próprios olhos que o antro de Pagnol estava deserto.

      A sala dos melhores aposentos da Tondee estava mergulhada em decente escuridão, mas do quarto de dormir, contíguo, chegou até ele um leve ruído. Arrancou a lanterna das mãos do vigia e avançou, sem pensar sequer que podia apanhar algum tiro. No primeiro momento de fúria cega juraria que surpreendera Nancy no leito do francês, mas depois a cabeça desanuviou-se-lhe um pouco e verificou tratar-se apenas do criado de Pagnol, em acesa brincadeira amorosa com Alice, uma das criadas mais roliças da estalagem.

      A rapariga foi a primeira a vê-lo e saltou da cama, a gritar, revelando amplos motivos para a preferência do criado ao pegar nas roupas e fugir. Quanto ao homem, sentou-se entre as almofadas e fitou-o com cara de parvo, tão intrigado que nem sentia medo.

      - Eveille-toi, garçon. Ou est ton maitre? (Em francês no texto. “Acorda, rapaz. Onde está o teu patrão?” (N. da T.)

      - Não fiz mal nenhum, cavalheiro... nenhum.

      - Onde está o capitão Pagnol?

      - O senhor capitão partiu... - recuperando um pouco de compostura ao dar com as caras sorridentes dos criados, procurou refúgio para a sua atrapalhação num inglês macarrónico. - Não fui eu que fazer mal, Monsieur le docteur. Entrar assim, como o senhor, não ser de cavalheiro.

      Mas Toby agarrou-o pela camisa de dormir e arrancou-o em peso da cama desfeita.

      - Responde-me! Pagnol esteve em Savannah esta noite?

      - Capitão Pagnol estar ausente de Savannah muitos meses, doutor. Deve sabê-lo.

      Toby passeou a luz da lanterna pelo quarto e verificou que nada sugeria presença, além das desordenadas roupas da cama.

      - Capitão Pagnol disse-me que podia usar este quarto como meu, quando vai a Filadélfia.

      Toby atirou-o para cima da cama, sem querer saber do que dizia. Tirou uma garrafa de brandy da mesa da sala e saiu a arrancar a rolha com os dentes, afastando do seu caminho, à cotovelada, os criados que protestavam.

      De novo na Buli Street, a cambalear entre os sulcos enlameados, deu consigo a cantar, entre goladas, uma canção da sua juventude, mais antiga que os seus antepassados escoceses - a mesma balada maliciosa que Martha Darby tocara na noite do baile da Fiação, e que Nancy trauteara enquanto se vestia:

     

      Sou outra vez solteiro e vivo com meu filho,

      Na oficina do tecelão andamos a trabalhar,

      E todas as vezes que o olho nos olhos

      A jovem donzela loura me faz lembrar.

     

      A jovem donzela loura, como tantas outras, não passava de uma prostituta nata, madura para a colheita e fingindo uma modéstia e um recato que não iludiam ninguém - nem mesmo um tecelão escocês. Eis um pensamento consolador para levar para a casa de Wright Square - um pensamento que talvez pudesse ainda traduzir-se em acção, embora a noite estivesse quase no fim.

     

      Do meu tempo de Inverno me faz lembrar

      E também de parte do Estio

      E dos muitos abraços que soía dar-lhe

      Só para a proteger do agreste rocio.

     

      Calou-se ao chegar à praça e aproximou-se do portão em bicos de pés, parando uma vez apenas para amaldiçoar uma fenda nas pranchas do passeio. Na sombra do pórtico, lembrou-se de descalçar ambas as botas encharcadas e de as atirar para o jardim. A lingueta da fechadura girou silenciosamente quando deu a volta à chave, e a carpete do vestíbulo acariciou-lhe agradavelmente os pés nus e molhados.

      Subiu a escada de gatas, entornando na passadeira a maior parte do brandy de Pagnol, chocou apenas uma vez com a balaustrada e gemeu alto.

      A casa continuava silenciosa quando se levantou. Ergueu a garrafa, avaliando o conteúdo contra a luz do fundo do vestíbulo, e sorriu de satisfação ao verificar que lhe restavam ainda uns cinco centímetros de líquido. Bebeu de novo, para desanuviar as ideias, e tentou lembrar-se onde ficava o quarto de Nancy. Geralmente saía uma lâmina de luz debaixo da sua porta, fossem que horas fossem. Quantas vezes, ao regressar da clínica às primeiras horas da manhã, tivera de lutar com a tentação quase irresistível de bater àquela porta, en route para o seu quarto! Comovia-o e perturbava-o mais do que ousava admitir que Nancy, como acontecia consigo, não conseguisse dormir bem quando o mesmo telhado os abrigava.

      Naquela noite, se lograsse encontrar a sua porta, abri-la-ia de par em par e denunciá-la-ia. Se estivesse deitada tanto melhor, pois aumentaria a sua satisfação arrancá-la do ninho quente e ordenar-lhe que saísse para a chuva.

      Deu alguns passos incertos à procura de um ponto de referência, pois não saía luz de nenhuma porta. Cinco portas à esquerda e à direita, prolongando-se na escuridão como pálidos portais de túmulos. Nancy Gregory dormia, bem ou mal, atrás de uma delas. Ou esperaria, tão assustada que não se atrevia a acender a vela, o seu regresso de jusante do rio?... A terceira da esquerda. Sim, lembrava-se perfeitamente de que a sua porta era a do meio das cinco daquele lado, quando estava voltado para o vestíbulo... Ou seria a terceira da direita? Esquerda, claro... a do lado do coração.

      Para surpresa sua, a porta estava entreaberta. Empurrou-a e saltou, a bem dizer, para o poço de escuridão a que dava acesso. Estendeu a mão e tocou numa coluna da cama, a que se agarrou, procurando orientar-se. A tactear, encontrou a mesinha de cabeceira e a isca com que acendeu a vela.

      Lá estava, profundamente adormecida entre as almofadas em desordem, a respirar docemente como uma criança. Mas... havia um não sei quê que destoava... O seu cérebro entorpecido teve um sobressalto quando os seus olhos se detiveram na auréola de cabelos negros espalhados na almofada e às suas narinas chegou o cheiro a brandy que pairava sobre a mulher numa nuvem quase visível. Só tarde de mais compreendeu que o ombro nu, branco e tentador era de Martha Darby, que eram dela os braços esguios que abraçavam, numa letargia de ébria, o travesseiro, a sonhar talvez com um amante impossível cujo ardor jamais arrefeceria, que jamais se cansaria.

      Graças a Deus não corria o risco de acordá-la; o sono de Martha era tão profundo que só um terramoto o interromperia. Pôde até tirar a garrafa da água de cima da mesa de cabeceira, molhar a cabeça e enxugá-la com a camisa dela, em vez de toalha. Era evidente que adormecera com o frasco de brandy por companhia, enquanto aguardava o rendez-vous tardio, e era evidente também que seria insensato acordá-la, mesmo que a sua tarefa no outro lado do vestíbulo pudesse esperar.

      Abriu a porta e, a cambalear no limiar, localizou imediatamente a de Nancy, mesmo na sua frente. Admirou-se de ter sido tão estúpido que se enganasse, pois o feixe de luz lá estava, a brilhar na junção da porta com a carpete. A não ser que Nancy tivesse acendido a vela no último momento... Tê-lo-ia estado a espiar atrás da porta, como o espiara atrás da janela na noite do baile?

      Com a camisa de Martha ainda pendente da mão, avançou para lho perguntar no preciso momento em que a porta de Nancy se abria. Como calculara, a rapariga parou, com uma capa escura sobre o négligé. Havia nos seus olhos um não sei quê que o fez estacar, mudo e petrificado.

      - Não tem vergonha? Ou está tão bêbado que nem se importa?

      Procurou compreender o que era, enquanto procurava atabalhoadamente o puxador da porta de Martha. Olhou para trás e viu o que Nancy via também: a cama aberta, a garrafa ao lado do castiçal, a mulher nua enroscada a dormir. Vagamente, mas com agudeza, viu-se como Nancy o vira, a regressar, cambaleante, de uma noite de amor, com a camisa da cúmplice ainda presa nos dedos. Inclinou a cabeça para trás, para rir à gargalhada, mas dos seus lábios não saiu nenhum “ som.

      - Se estou bêbado, Nancy Gregory, tenho as minhas razões.

      - Bem vejo.

      - Esteve a espiar-me, então?

      - Claro que não! Acordou-me qualquer coisa com que tropeçou, acendi a vela e saí, julgando ir surpreender um ladrão. - A sua voz readquirira a compostura a cada palavra e agora escorria, literalmente, gelo. - Em vez disso deparei com o melhor amigo de Roy a sair do quarto da mulher dele.

      Bateu com a porta e gritou, furioso:

      - Não se coíba, pense o pior de mim! Sempre o pensou.

      - Nunca, enquanto não me deu razão para isso.

      - Poderei dizer o mesmo de si? - Falava-lhe cara a cara, olhos com olhos, e sentia as ideias desanuviarem-se-lhe, como por magia. - E posso pedir-lhe que deixe esta casa antes que lhe chame... o que é?

      Viu-a cambalear, ao ouvir as suas palavras, e sentiu um prazer sinistro pelo golpe que desferira, um prazer que o incitou a feri-la de novo, sem lhe dar tempo a recompor-se do primeiro ataque:

      - Nega que me odiou desde o princípio? Que fez tudo quanto pôde para arruinar a companhia e me arruinar a mim?

      - Não compreendo o que está a dizer!

      - Então saia desta casa antes que a chame pelo seu nome verdadeiro!

      Susteve a respiração, ao ver Nancy Gregory levantar a cabeça e envolver-se melhor na capa. Apesar de o momento ser de amarga renúncia, nunca lhe parecera mais encantadora nem mais apetecível. Embora a odiasse com todo o seu ser, enlouquecia-o o desejo de a abraçar, de lhe cobrir de beijos as faces pálidas. Gritou, antes que perdesse de todo a cabeça e a coragem:

      - Vai de livre vontade ou... quer que a acompanhe?

      - Supõe que ficaria um instante mais que fosse, depois do que vi? - E passou por ele como um vendaval.

      Ainda petrificado pelos seus olhos esbraseados, ainda a amaldiçoar-se por tê-la deixado partir sem nomear o crime que cometera, viu-a correr pela escada da cozinha, ouviu o bater dos seus saltos no alpendre da porta de serviço e o bater de uma porta na cavalariça. Expulsara-a como planeara, fizera-a regressar ao seu fojo em Sangaree, na madrugada chuvosa... Mas porquê, se a sua vitória fora completa, se debatia, angustiado, nas garras da maior frustração da sua vida?

      Reflectia ainda nesta estranha contradição quando, pela bandeira do vestíbulo, a viu galopar debaixo de chuva, com a capa ao vento, qual flâmula de ódio. Levou a garrafa de Pagnol aos lábios e bebeu sofregamente, para afogar a insistência daquele enigma. Embora tivesse a certeza de que nunca mais voltaria a dormir, o passado e o futuro apagaram-se-lhe misericordiosamente do pensamento, antes mesmo de se arrastar para o quarto e se atirar, como estava, para cima da cama.

      Esperara que a manhã fosse um vácuo interminável, que a semana seguinte constituísse para si um pesadelo vivido de olhos abertos; afirmara a si mesmo que jamais seria capaz de entrar nos escritórios Darby e deparar com a secretária vazia de Nancy sem amaldiçoar o estratagema a que recorrera e o seu inevitável l final. No entanto, os dias seguintes pareceram-lhe quase suportáveis, graças ao trabalho que não lhe dava tréguas, graças sobretudo aos pequenos pormenores cansativos que Nancy soubera tirar-lhe dos ombros.

      Sentira a sua falta em todos os momentos daquela azafamada semana, mas era só quando fechava a porta do seu gabinete, quando terminava a visita de todas as enfermarias da clínica Darby, que a necessidade que dela sentia se reavivava ao rubro. Raramente estava sóbrio depois do sol pôr, e raramente só depois da meia-noite, graças à companhia de Gabriel no Bird in Hand:

      Duas coisas o regozijavam: não traíra Nancy nem referira a convicção que tinha na sua culpa, mesmo nos momentos de maior embriaguez. Martha, que por certo teria arranjado mexericos, partira numa misteriosa visita a Charleston, o que lhe permitia viver com honra em Wright Square, embora raramente se encontrasse no seu quarto durante a noite, pois preferia ir da sua cama em Muskrat Town para o trabalho. Roy devia regressar de Londres no próximo barco e a sua presença emprestaria uma aparência de decoro à vida do amigo. Isto era, pelo menos, o que pensava enquanto, à secretária onde agora se acumulava o trabalho por acabar, espremia o cérebro fatigado, tentava descobrir um modo de vida que não incluísse Nancy Gregory - um modo de vida em que caminhasse sozinho - e procurava uma explicação que satisfizesse o irmão de Nancy, quando voltassem a encontrar-se.

      A bem dizer não se surpreendeu por Roy não se encontrar a bordo do navio britânico que atracou em Savannah. Era natural que o amigo desembarcasse em Sangaree, para uma visita fraternal, e natural também que Nancy tivesse a oportunidade de explicar antes de si por que motivo deixara Savannah. De surpresa, apanhou-o, sim, a inesperada aparição de Roy, poucas horas depois, a maneira rápida como interrompeu as suas saudações e a sua primeira e incompreensível pergunta:

      - Porque deixaste o Bristol tomar conta do caso?

      - Que caso?

      - Certamente sabes que Nancy está doente?

      - Dou-te a minha palavra...

      Mas Roy não tinha tempo para pormenores.

      - Desesperadamente doente, na realidade. Mandei já para lá a Maum Bonnie, da clínica.

      - Não podes começar pelo princípio? Há uma semana que não vejo a tua irmã.

      - É então verdade que brigaram?

      - Foi isso que ela te disse?

      - Ela não me disse nada, Toby. Neste momento delira.

      O coração de Kent caiu-lhe aos pés. Começou a andar de um lado para o outro, a tentar fugir ao olhar acusador do amigo e dar um pouco de ordem aos seus pensamentos.

      - Examinaste-a?

      - Naturalmente, pois está entregue àquele magarefe!

      - Pelo amor de Deus, Roy, quais são os factos?

      - Um caso flagrante de abcesso do mastoideum. Bristol, o grande idiota, diagnosticou inflamação benigna do ouvido interior, receitou Pó Dover e disse-lhe que se dormisse passaria.

      - Quando começou?

      - No dia seguinte ao seu regresso a Sangaree, de manhã, encharcada até aos ossos. Soube-o pelos escravos, antes de... - interrompeu-se e corou. - Ia a dizer antes de começar a amaldiçoar-te. Porque escolheste esta ocasião para brigarem?

      Toby não respondeu. Uma só imagem enchia o seu cérebro: o olhar coruscante de Nancy ao virar costas a Savannah e à Companhia Darby e ao partir a galope, debaixo de chuva. Fora ele que, deliberadamente, a obrigara a tal retirada. Por muitas razões que tivesse, nada apagava esse facto.

      - Não me consentirá em sua casa, Roy - murmurou por fim. - Nem mesmo para lhe salvar a vida.

      - Afirmo-te que só a excisão do osso mastóide a salvará, operação que só a ti confiarei.

      - O próprio Bristol nos recusará a entrada.

      - Não pode fazê-lo; sou irmão da doente e tenho o direito de exigir uma conferência médica. Posso também insistir que operes, se for preciso. Mas manda ao diabo o Bristol, com a breca! Serás capaz de consentir que te impeça de salvar uma vida?

      Silenciosamente, Toby recomeçou o passeio pelo gabinete, a reflectir no pesadelo que tão bruscamente lhe tinham atirado para cima.

      - Examinaste-a minuciosamente?

      - O bastante para ter a certeza do meu diagnóstico. Graças a Deus o Bristol encontrava-se fora de casa... mas estará quando voltarmos.

      - Conheces bem a operação que me pedes que execute?

      - Petit efectuou um trépano atrás da orelha há cinquenta anos e o paciente curou-se. Em Edimburgo vi-te extrair o osso mastóide.

      - Fazes ideia dos riscos inerentes?

      - Tenho a certeza de que Nancy morrerá se não operares, como tu próprio verificarás quando a examinares.

      - Não duvidas então de que te acompanharei a Sangaree...

      - Billy está já a selar os nossos cavalos e Walter Appleby a preparar um estojo de instrumentos. Porque esperamos?

      - Sim, porquê?

      O cérebro de Toby desanuviara-se por completo. Quando menos esperava, apresentava-se uma espécie de libertação... Ou seria expiação a palavra mais adequada?

      - Teremos uma batalha das grandes com o velho Bristol!

      - Estou ansioso por ela, Toby... e tu também.

      - Poderemos trazê-la para o hospital?

      - Com este tempo, isso serviria apenas para acelerar o seu fim.

      Toby saiu pela porta fora sem uma palavra, sem ligar importância ao olhar pasmado dos escriturários, e Roy atirou-lhe uma capa para cima dos ombros. Os cavalos tremiam sob as mantas, na agreste tarde de Novembro. Olhou os cavalariços sem os ver e atravessou a rua alagada na direcção do hospital. O seu cérebro fechara-se já para o exterior, completamente absorvido no novo problema.

      A confiança de Roy na sua perícia, por muito bem intencionada, seria duramente posta à prova naquela noite, se de facto fosse necessário operar o mastóide.

      Lembrava-se tão bem da anatomia dessa área que não se sentia nada tranquilo. Na opinião não cirúrgica! de Roy, a excisão do os mastoideum pouco mais era! que um simples, embora delicado, trépano do crânio, mas a experiência advertia Toby de que a operação era muito mais perigosa do que parecia. O mastóide não era uma superfície óssea vulgar. Espesso, mole, perfurado de células aéreas ligadas com a própria estrutura do ouvido, podia ser traiçoeiro como uma esponja sob o escalpelo do cirurgião. Um movimento errado, bastava para ensurdecer para sempre um ouvido; uma única penetração excessiva do trépano podia destruir o labirinto de veias existente sob o fino córtex interior e a hemorragia, quase impossível de suster naquela área, podia terminar a operação antes de começada.

      Toby não pensou muito nestes imponderáveis enquanto inspeccionava o estojo cirúrgico preparado por Appleby. Os trépanos, brocas de ponta romba com um cabo apropriadamente curvo, tinham um ar de velhos amigos. Haviam salvo muitas vidas na guerra, juntamente com os fórcipes e os escalpelos que os acompanhariam a Sangaree. Fechou o estojo e prendeu-o à sela, elevando uma curta prece em intenção da sua doente. Daquele momento em diante, garantiu a si mesmo, seria apenas uma paciente. Pensar nela como Nancy Gregory seria submeter os seus nervos a rude prova.

      Talvez Bristol não se tivesse enganado, talvez se tratasse, de facto, de febre intermitente, provocada pela exposição ao temporal e centrada no tímpano. Talvez a crise já tivesse passado... Mas sabia, antes mesmo de montar a cavalo, que as suas esperanças eram vãs. A Roy podia faltar a lógica do cirurgião, mas os seus diagnósticos eram quase sempre exactos.

      - Gostaria de ir também, se o doutor quisesse - ofereceu-se Appleby ansiosamente, arrancando-o ao devaneio.

      - O seu trabalho é aqui, Walter. Maum Bonnie terá tudo preparado para nós quando chegarmos. Levo o Billy por uma questão de segurança, apenas.

      - Talvez o Dr. Bristol assista...

      Roy soltou uma gargalhada amarga e redarguiu:

      - Viva mais uns tempos em Savannah, meu rapaz, e verá!

      Puseram-se a caminho, os dois médicos à frente e Billy, metido num velho capote militar, atrás deles, numa mula. Mergulhado nos seus pensamentos, Toby .quase não conservou recordações da cavalgada, embora ela fosse bastante penosa. De vez em quando, levantava os olhos e percorria a vasta planície verde dos pântanos completamente alagados; outras, o frio intenso fazia-o tremer. Mas a maior parte do caminho passou-a a recordar o livro de anatomia, a delinear o campo de batalha que escolhera e a avaliar as suas possibilidades de êxito.

      Chegaram à ponte de Sangaree quando a pálida claridade do dia dava lugar a um crepúsculo chuvoso e agreste. Toby meteu a galope pela alameda, momentaneamente esquecido de Roy, e quase saltou por cima da cabeça do cavalo, na sua ânsia de ver o referido campo de batalha.

      Sangaree, deusa branca e grave mesmo naquele momento, recebeu-os calmamente, e Rex conduziu-os, cerimonioso, ao alto e branco vestíbulo central. Toby despiu a capa ensopada, largou-a onde estava e despiu também o colete.

      - Leva as malas para cima, Billy. É preciso preparar a doente.

      Por instantes, ninguém se mexeu. Billy, detido pelo olhar interrogador do mordomo, pendurou os alforjes no pilar do corrimão.

      - O Dr. Bristol está neste momento com Miss Nancy - informou Rex.

      Roy quase sorriu do olhar pasmado de Toby.

      - Já não te lembravas de que havia um médico a tomar conta do caso? Nem eu!

      - Falo-lhe eu... ou tu?

      - Tenhamos ambos esse prazer.

      Subiram a escada lado a lado, com Billy e o perplexo mordomo três degraus abaixo.

      - Os cavalheiros desejam uma bebida?

      - Obrigado, Rex; viria a calhar.

      Roy conduziu o amigo a uma saleta simples, e nenhum deles falou enquanto esperavam que Rex trouxesse as bebidas, embora a ambos agradasse a breve pausa. A presença de Bristol parecia pairar sobre eles, tão ameaçadora como a nuvem de chuva que começara a erguer-se no oeste, com o sol posto.

      - E se ele se recusar a partir?

      Roy bateu numa algibeira e respondeu:

      - Trago uma pistola comigo. Se for preciso, terei grande prazer em servir-me dela.

      Toby respirou fundo, pois o que tencionava dizer exigia-lhe grande esforço:

      - Acredita que teria vindo logo no princípio... se ela me mandasse chamar ou até mesmo, apenas, se soubesse...

      - Estás cá, e isso é tudo o que me importa. Oxalá não seja demasiado tarde.

      Tirou cada um o seu copo da bandeja de Rex, inclinaram-se um para o outro, num brinde silencioso, e depois, sempre lado a lado, foram ao encontro de Matthew Bristol.

      Maum Bonnie abriu a porta do quarto de Nancy, com o rosto cor de mogno cheio de serenidade e compostura sob o toucado imaculadamente branco. Os olhos de Toby correram, ansiosos, para Nancy, imóvel na cama como uma estátua de mármore, com os cabelos cor de fogo espalhados pela almofada. Mesmo da porta, notou que os seus lábios se moviam num monólogo interminável e que os seus dedos puxavam a colcha. Era um sintoma clássico de doença na fase final, e por isso quase não podia censurar o velho Bristol por negar quaisquer esperanças de desenlace favorável.

      - Posso perguntar qual é o significado disto? Toby estacou vivamente, já com um pé no estrado da cama. O seu velho inimigo encontrava-se junto da lareira, a aquecer as manápulas e a olhar os intrusos com colossal desdém. Parecia um leão cercado e velhaco.

      - Já me constara que estavam ambos cá, mas não quis acreditar nos meus ouvidos.

      Apesar da necessidade de andarem depressa, Toby sufocou a réplica que lhe veio aos lábios e aguardou que Roy falasse. A ética profissional estava ainda muito em voga e tinha muito peso, para não falar no futuro de Roy em Savannah e no seu próprio.

      - Certamente também lhe constou que pedi uma conferência médica, Dr. Bristol - respondeu Roy, em tom firme. - É um desejo que não pode recusar-me.

      - Examine-a pessoalmente, se insiste. Verificará que é um pouco tarde para conferências.

      - Exijo uma, mesmo assim. Uma operação pode ainda salvar minha irmã.

      - Uma operação que Kent efectuaria?

      - Exactamente.

      - Não obstante eu afirmar-lhe que o estado da doente é desesperado?

      - A esse respeito preciso de outra opinião.

      - Proceda como entender, Roy - redarguiu o velho leão, endireitando os ombros. - Se este indivíduo fica no quarto um instante mais que seja, abandono o caso.

      O silêncio foi a melhor resposta. Ninguém se mexeu quando Bristol tirou o relógio, mas Maum Bonnie soltou um suspiro de puro alívio ao vê-lo aproximar-se da mesa de cabeceira e pegar no estojo médico.

      - Devo acrescentar que aceitei este caso de boa-fé; fui médico de seu pai durante anos. Embora a sua pobre irmã esteja quase in extremis, abandono a sua cabeceira sob protesto.

      - Por minha ordem, quer o senhor dizer, visto recusar-se a uma conferência.

      A papada de Bristol tornou-se escarlate.

      - Não efectuo conferências com charlatães! Está resolvido a deixá-lo operar?

      - Resolvidíssimo.

      - Nesse caso advirto-o, Roy: se Nancy morrer, assinarei uma declaração jurada para os privar a ambos da licença.

      - Posso dizer que estamos preparados para isso?

      - Deixe-me acabar, por favor! Informarei também a Academia de Medicina das acções deste indivíduo, tornarei do domínio público o facto de, há uma semana, ter posto Nancy na rua debaixo de chuva, acto de estouvada embriaguez de que resultou esta doença...

      Tentou continuar, mas Toby agarrou-o pelo colarinho de uma maneira que o desencorajou de falar.

      - Abandona este quarto em silêncio ou será preciso que o atire pela escada abaixo?

      - Nega?

      - Eu disse em silêncio!

      Bristol libertou-se da mão que o prendia, com a dignidade porcina intacta.

      - Não esquecerei, também, que me ameaçou. E saiu do aposento, sem olhar para Roy.

      - Começamos, Dr. Darby?

      - Às tuas ordens, Dr. Kent. Aproximaram-se da cama, alheios ao eco da saída de Bristol.

      - Não contava que cedesse tão facilmente - comentou apenas Roy.

      - Os homens como Matthew Bristol nunca cedem. Teremos de quebrá-lo mais tarde, se ele não nos quebrar a nós primeiro.

      Naquele momento não havia tempo para mais considerações. Pela última vez naquele dia, Toby abençoou a sua capacidade de se alhear por completo do mundo exterior, até mesmo da sua cólera.

      A pele do pulso de Nancy escaldava contra a palma da mão de Toby; a sua pulsação era cheia e apressada, sem o bater fraco que constituía prelúdio infalível de tragédia. Roy, que repetia os gestos do amigo do outro lado da cama, exclamou, aliviado:

      - Em estado desesperado, disse aquele bastardo!

      - Está a defender-se valentemente - murmurou Toby.

      Graças ao corpo saudável e à sua vontade de viver, Nancy estava ainda a tempo de ser salva, se a cirurgia' o permitisse.

      Kent afastou-lhe docemente os cabelos da orelha esquerda e estudou o campo operatório, com cuidado. O inchaço ficava abaixo e atrás do lóbulo, e não no ouvido propriamente dito, e um fio de purgamento esbranquiçado escorrera do canal auditivo e sujara a almofada. O cirurgião observou-o com cuidado; era bom sinal o facto de a inflamação descarregar assim, pelas vias naturais, mas devia ser impossível drenar convenientemente apenas pelo ouvido.

      - Temos de atacar através do mastóide; não há outro caminho, agora.

      A palpação provou-lhe, acto contínuo, que não se enganava. A pele atrás da orelha estava vermelha e esticada, quase como se fosse rebentar de um momento para o outro, e Nancy gemia e abanava a cabeça à mínima pressão dos seus dedos.

      - Achas que a tumefacção aumentou desde manhã?

      - Tenho a certeza de que aumentou.

      - Isso significa, pelo menos, que o pus abre caminho para o exterior e não ao contrário, na direcção do cérebro. Se operarmos imediatamente, podemos salvá-la.

      - Billy vem aí com os teus instrumentos. Que mais precisas?

      - Bonnie sabe do que precisamos.

      - Duas cafeteiras de água a ferver - enumerou a negra -, montes de lençóis aquecidos, castiçais...

      - Rex ajudar-te-á - interrompeu-a Roy. - Vem comigo, mostrar-te-ei onde estão as coisas. Se ,o Dr. Kent tomar conta da doente... - saiu sem esperar pela resposta de Toby, a empurrar Bonnie na sua frente.

      Era aquilo que receava mais, o momento em que ficaria só com a mulher que o traíra com tanta crueldade, o momento em que seria obrigado a pensar. Inconscientemente, sentou-se ao lado da cama e pegou na mão de Nancy, cujos dedos se fecharam sobre os seus, como os de uma criança. Em virtude do profundo estado de coma, tinha apenas consciência de um contacto reconfortante, não da sua origem. Era estranho que se encontrasse ali, mas mais estranho ainda que pudesse gozar aqueles segundos de falso contentamento, com a sua mão na dele.

      Estranho, sobretudo, que naquela noite a tivesse como jamais em seu poder. Incapaz de salvar-se a si mesma, a sua vida dependia da perícia de Toby Kent, da exactidão das suas decisões, do seu arrojo.

      Mais uma vez inconscientemente, inclinou-se e depôs um beijo na palma da mão escaldante de Nancy Gregory. Assegurava-lhe assim, do mais profundo do seu coração torturado, que faria tudo, tudo, para lhe salvar a vida naquela noite, por muito que o houvesse traído.

      Quarenta minutos depois, olhava o círculo de pele acabada de barbear atrás da orelha de Nancy e aguardava que acendessem a última vela e acabassem de dispor os instrumentos na mesa de cabeceira. As mãos de Roy, notou, eram mais que competentes na última tarefa. Maum Bonnie, semelhante a um monólito negro à cabeceira da cama, sujeitara já a cabeça inquieta da paciente no torno das suas mãos; Billy, de pernas abertas, para melhor apoio, exercia semelhante pressão nos joelhos de Nancy, aos pés da cama. Daquele momento em diante, Toby pensaria em Nancy como sendo uma doente sua, não como a mulher que amava, não como a rapariga que o torturara implacável e insuportavelmente.

      - Podes começar quando estiveres pronto, doutor.

      Olhou para Roy e sorriu-lhe. Quantas vezes pronunciara o amigo aquelas palavras, no seu mundo especial, com uma vida em jogo entre eles?

      - Estou pronto, doutor.

      - Firme, Bonnie! Vamos começar.

      Os dedos negros viraram a cabeça da doente, oferecendo o mastóide ao aço que o esperava. O primeiro golpe foi, como sempre, o mais difícil. Mentalmente, o cirurgião agradeceu o coma profundo de Nancy, pois assim não sentira o fogo do escalpelo nem a acção triturante do trépano no osso.

      - Compressas, por favor.

      Os dedos de Roy moviam-se atrás dos seus e aplicavam com destreza as compressas castanhas. Toby cortava agora como um veterano, cerrando os ouvidos aos gemidos da rapariga, certo de que as mãos de Maum Bonnie impediriam qualquer espasmo prejudicial. A lâmina cortou para baixo e à roda, até ter seccionado pele e tecido numa distância de cinco centímetros, cerca de um dedo atrás e abaixo da orelha, na direcção da ponta do osso mastóide.

      - Temos de regular a hemorragia pela pressão - nesta zona não ha outra alternativa.

      À medida que a pele se abria, juntamente com o tecido tumefacto subjacente, a ferida apresentava um aspecto pálido, semelhante a geleia, logo salpicada de pontos de sangue. As compressas de Roy, aplicadas , com firmeza, estancavam sem demora os minúsculos géiseres, obrigando-os a coagular sob a pressão. Toby tinha a certeza de que, por enquanto, não seccionara vasos maiores. Seria um grande contratempo se tivesse de parar e pinçar naquela zona delicada, enquanto abria caminho para o osso.

      - O tom da pele parece saudável, agora que a incisão o aliviou.

      - É verdade. O mesmo acontece com a estrutura óssea. O mal localiza-se, com certeza, dentro do mastóide, no espaço médio.

      Uma coisa haviam já conseguido, quer devido à pressão combinada dos seus dedos, quer à oposição de Nancy à lâmina, quando a dor lhe chegava ao cérebro semiconsciente: a purgação através do ouvido aumentara. Corria agora num fluxo lento, directamente do canal auditivo, e ensopava a compressa que Roy encostara à face da irmã. Tudo indicava que a ligação continuava aberta dentro do ouvido, o que era excelente augúrio para os cuidados post-operatórios.

      Toby removeu as compressas e, munido de um instrumento metálico achatado, de ponta aguçada, raspou as bordas do campo operatório, expondo uma superfície óssea crescente.

      - Que área exporás?

      - Cinco centímetros quadrados devem chegar. Afasta as extremidades, por favor.

      Toby aplicou novas compressas e, graças à pressão exercida, surgiu uma abertura de cinco centímetros quadrados na curva branca do mastóide. Chegara o momento que Toby imaginara mais vivamente, e que mais temera. Mas foi sem hesitação que pegou no mais largo e rombo dos seus três trépanos. O instrumento encaixou-se-lhe perfeitamente na mão: o cabo gasto pelo uso, o círculo de aço aguçado apenas o suficiente para a penetração inicial. Como brocava lentamente, seria menos susceptível de danificar algum ponto vital.

      - Firme, Bonnie!

      Encostou o aço ao osso e deu a primeira volta ao cabo. O círculo dentado começou imediatamente a trabalhar, reunindo uma pilha branca de pó de osso em redor das arestas, enquanto penetrava na camada exterior. Continuou a girar o cabo firmemente, mas com o ritmo lento essencial para o êxito da operação. Sabia que os ossos do crânio se compunham geralmente de duas camadas, além de uma secção intermédia perigosa, de estrutura muito mais macia, onde se encontravam os vasos sanguíneos que irrigavam a área. A camada exterior, ou tábua, era tão dura quanto é possível ao osso humano; a média, traiçoeira; a interior, geralmente fina como obreia. Mas a região do os mastoideum era a mais traiçoeira de todas.

      Aí - via o corte transversal pormenorizado do seu livro de anatomia tão claramente como se o volume estivesse aberto na almofada de Nancy -, o osso era mais espesso, sobretudo na chamada região média. Perfurado de imprevisíveis células aéreas ligadas ao ouvido e com tendência para absorver as suas infecções como uma esponja complacente, o mastóide era uma zona de perigo em todos os sentidos. Se não errara o diagnóstico, haveria pus naquele favo ósseo, bolsas de morte em potência em quantidade muito superior à susceptível de ser drenada pelo ouvido.

      No entanto, a formação de pus era bom sintoma. Pus naquela fase da infecção significava que o mal tendia a fixar-se na área, em vez de espalhar-se. O perigo residia no facto de esse mesmo pus encher depressa as células aéreas do mastóide e acumular-se sob pressão, iniciando em seguida, frequentemente, mortífera migração para a camada óssea mais profunda e mais fina, que revestia o cérebro. Uma vez atingidos os grandes espaços sanguíneos dessa região, o resultado só podia ser um.

      Retirou o trépano e limpou o pó de osso da depressão em forma de taça que fizera. O fundo da taça revelou-se liso e firme como uma rocha, sob os seus dedos, sinal de que não traspassara a camada exterior. Introduziu de novo o trépano e iniciou uma penetração mais insistente e mais profunda, resistindo, uma vez mais, à tentação de utilizar um trépano mais aguçado.

      Cinco longos e angustiosos minutos de firme brocagem não provocaram qualquer modificação sensível no campo operatório. A cada revolução do cabo do instrumento, parava e aguardava, de nervos tensos, o súbito mergulho do trépano e o esguicho de sangue arautos de tragédia. Outra volta lenta, outra prece... O pó de osso estaria a mudar de contextura sob a pressão insistente? Pela quinta vez, noutros tantos minutos, levantou o trépano e limpou a cavidade até ao fim. O coração saltou-lhe no peito...

      Aos olhos de um leigo, a depressão funda e uniforme mantinha-se imutável; só o olhar atento e experiente do cirurgião notaria o fluxo quase invisível no fundo da cavidade, a substância esbranquiçada e cremosa que quase se confundia com a estrutura branquíssima do osso circundante.

      - Aquilo não é pus, Toby?

      Os seus olhos fitaram-se nos do amigo, contente por ele também ter visto. Outra gota se coou pela fenda ainda quase invisível do osso, e depois outra. Toby afastou-se um pouco e Roy introduziu uma compressa na cavidade e retirou-a com a prova evidente que pretendiam.

      - É pus! Perfuraste!

      - É melhor não termos a certeza enquanto não alargarmos a abertura - recomendou, incapaz, todavia, de sufocar o tom de elação da sua voz.

      A primeira mordedura do trépano produziu-lhe uma sensação diferente das anteriores, o que lhe deu a certeza de que o osso sob o aço tinha estrutura diferente, mais mole. Até a poeira óssea confirmava as suas esperanças; os pontos de sangue eram uma prova...

      - Temos de aprofundar mais - murmurou, censurando-se pela própria impetuosidade e acrescentando, mentalmente: “Mas não muito.”

      Atormentava-o saber que a não mais de um quarto de polegada abaixo da ponta de aço do trépano se encontrava um cérebro palpitante, a que qualquer pequeno choque provocaria hemorragia.

      A aresta do trépano encalhou e ficou presa, e Toby aumentou a pressão, mas inutilmente. “Toquei no osso interno!”, exultou, cessando, acto contínuo, toda a pressão e fazendo sinal a Roy. Os poucos segundos seguintes pareceram-lhes uma eternidade, enquanto esperavam ver irromper o jorro de sangue que condenaria Nancy irremediavelmente. Ignorava se estalara o osso interno, se o trépano penetrara ou não na cavidade sulcada de veias que o mesmo cobria.

      - Compressas prontas?

      - Prontas, doutor.

      Removeu finalmente o trépano da cavidade afunilada e funda que fizera. O resultado foi instantâneo e muito superior às suas esperanças mais ousadas. Ainda antes de o aço se soltar por completo do osso, já o túnel trasbordava de pus esbranquiçado, numa purgação virulenta que não tardou a passar de branco a amarelo-palha, enquanto Roy mergulhava e retirava compressas sucessivas.

      - Conseguiste, Toby, abriste o mastóide!

      Kent acenou com a cabeça, disposto enfim a admitir a sua sorte. Acontecera exactamente como Petit descrevera a primeira operação do género por ele efectuada: um mergulho súbito do trépano, antes de encalhar no fino osso interno, um jacto de pus fétido na abertura... Inalou sobre a ferida, para confirmar o último pormenor. O odor era, de facto, repugnante. - Creio que podemos alargar à vontade, Roy.

      - A drenagem não é suficiente?

      - Não para aquele osso traiçoeiro. Deve haver outras bolsas.

      Compreendia a relutância de Roy em continuar a exploração, enquanto o canal afunilado continuava a supurar, mas sabia, antes mesmo de Billy aproximar um castiçal da ferida, que a operação não estava ainda concluída.

      Ao princípio foi difícil examinar pormenorizadamente: a profundidade alargada da taça parecia uma caverna com muitos túneis, a expelir para cima o seu conteúdo mortífero. Aguardou, enquanto Roy limpava o resto da primeira erupção com meia dúzia de compressas limpas. Agora podia verificar que o fundo do canal se assemelhava a um favo irregular a que faltava uma porção. A partir dali, o escopro e o trépano podiam trabalhar quase à vontade, medindo com precisão a amplitude dos golpes, até o os mastoideum não existir.

      - Será preciso extrair todo o osso?

      - Talvez não. Veremos, com o decorrer da operação.

      - Quanto tempo resistirá ela?

      - Tem o pulso firme, graças a Deus.

      - Miss Nancy dorme profundamente - informou Maum Bonnie, falando pela primeira vez desde o início da operação. - Faça o que for preciso, Dr. Toby; o corpo desta moça ficará bem contente, quando acabar.

      Toby sorriu ao amigo. Quanta sabedoria encerravam as palavras simples da parteira negra!

      Era evidente que não precisava de explorar toda a zona mastoidal à procura de outras bolsas. O complexo de sorte e perícia que guiara a penetração inicial para o ponto exacto onde aliviaria mais directamente a pressão, ajudá-los-ia a prosseguir. Trabalhando num círculo lento e progressivo a partir do túnel inicial, limitar-se-ia a procurar no favo circundante sinais de perigo. Quando o fórcipe revelasse uma zona de osso são, daria por finda a tarefa, com a consciência tranquila, e deixaria a batalha nas mãos de Nancy.

      - A principal purgação verifica-se do lado do ouvido - informou Roy.

      - Iniciaremos a segunda trepanação aí.

      A broca, a trabalhar agora com verdadeira confiança, revelou uma segunda bolsa mais pequena, quase imediatamente, e logo uma terceira, na direcção da curva do ouvido. Auxiliando o trabalho do trépano com um pequeno escopro de arestas aguçadas, e limpando as lascas de osso com a destreza de um escultor seguro do que pretende criar, Toby alargou a segunda abertura até a transformar apenas numa extensão da primeira. A purgação foi copiosa e contínua. Observou a expressão dos olhos de Roy, ao contar a pilha de compressas ensopadas na mesa de cabeceira: se cada uma delas fosse um soberano acabado de cunhar, não as olharia com maior carinho.

      - Creio que já exploraste o suficiente, Toby.

      - Tentemos a ponta inferior, para termos a certeza.

      A broca tocou ao de leve na extremidade mais distante do ouvido e encontrou uma bolsa minúscula, a um quarto de polegada do ponto de entrada inicial. Fora isso, o osso parecia são. Uma última sondagem, na segunda abertura, convenceu-o de que aquele sector também estava limpo.

      - Drenagem estabelecida, doutor. Pode colocar as compressas.

      Agora que o perigo passara, foi a cambalear um pouco que se afastou da cama. O espelho alto, do outro lado do quarto, devolveu-lhe um rosto cinzento como o crepúsculo exterior, vincado por uma exaustão que ia além da mera fadiga física. Agarrou-se à cama, para se equilibrar, e viu, com serena satisfação, Roy abrir as compressas e colocá-las na ferida, sem calcar.

      - Dorme como uma criança, doutor - murmurou Maum Bonnie docemente, com os olhos postos na doente. - Agora ajudou-a de facto Mist' Toby.

      Pela primeira vez desde que empunhara o escalpelo, Kent ousou olhar para Nancy. O que Bonnie dissera era verdade; dormia agora quase naturalmente, sem mexer os lábios nem as mãos. Claro que grande parte daquela súbita tranquilidade se devia ao desaparecimento da pressão no ouvido; a resposta final tê-la-iam pela manhã. Se o coma passasse e a temperatura baixasse, atrever-se-ia a ter esperança no êxito da intervenção.

      Roy, com invejável velocidade, estava quase a terminar a última parte da operação. Toby notou que o seu trabalho era perfeito, como sempre. Colocadas as compressas a encher a ferida, mas calcadas o suficiente apenas para completarem a drenagem profunda, continha-as no seu lugar uma ligadura em turbante, que dava a Nancy o aspecto de uma múmia novinha em folha. Maum Bonnie levantou-se a um sinal de Roy !e começou a substituir a roupa da cama pelos lençóis acabados de aquecer. Alguns tijolos quentes, enrolados em flanela e substituídos durante a noite, conservariam a temperatura da cama constante.

      O cirurgião já nada tinha a fazer no quarto da doente, mas deixou-se ficar, a procurar no cérebro fatigado motivo para qualquer exame.

      - Ficas com a doente até de manhã, Bonnie?

      - A Bonnie e eu render-nos-emos - prometeu Roy. - Não achas que mereces bem um pouco de repouso?

      - Reservem-me as últimas quatro horas.

      - Não penses nisso - redarguiu o amigo, com firmeza. - Reservamos-te as próximas doze horas na cama do senhor. Rex espera à porta para te ensinar o caminho. Se preferires comer alguma coisa primeiro, a mesa está posta na biblioteca.

      - Que horas são?

      - Quase nove horas. Não leves a mal, Toby, mas nunca te vi com aspecto tão fatigado. Amanhã agradecer-te-ei, como mereces, pois se o fizesse agora eras capaz de esquecer as minhas palavras.

      - Talvez tenhas razão...

      Saiu do quarto de Nancy sem sequer voltar a olhá-la. Estava em boas mãos; fizera tudo quanto era possível para a salvar.

      - Deseja cear agora, doutor, ou prefere descansar um pouco, primeiro?

      Olhou para o mordomo e pestanejou, pois só naquele momento compreendia que descera a escada com Rex a ampará-lo pelo cotovelo e que o negro o conduzia já na direcção das portas abertas da biblioteca. Lembrou-se, então, das últimas palavras que gritara a Nancy naquela mesma sala, onde tivera conhecimento do seu jogo duplo. Claro que Roy não podia estar ao corrente dessa discussão e muito menos da aterradora prova que descobrira entre os diários encadernados da estantezinha... No entanto, porque se lembrara de mandar pôr a mesa junto da convidativa lareira, debaixo dos olhos do retrato do fundador? Porque sugerira que se sentasse lá um pouco, antes de se deitar?

      A resposta às suas perguntas encontrava-se sobre a branca toalha da mesa: o último volume das memórias, voltado para baixo e à espera de atrair-lhe a atenção, o mesmo volume que a própria Nancy o convidara a ler naquela sinistra manhã primaveril. Apesar da fadiga e do desespero, sorriu da ingenuidade de Roy.

      - Porque me trouxe aqui, Rex? Foi a vez de o mordomo pestanejar:

      - Foi o Dr. Roy que o sugeriu, senhor.

      - É costume cear na biblioteca?

      - Miss Nancy toma todas as suas refeições aqui, doutor. É mais agradável que a sala de jantar, quando se come sozinho.

      - Assim parece... - Toby sentara-se já no grande sofá de crina, com a sua decisão tomada: “Se é uma armadilha”, pensou, “deixar-me-ei cair nela às cegas.”

      - Deseja que lhe sirva um pilaf, senhor? Ou prefere uma empada de pombo ou peito frio de galinha-de-angola?

      - A galinha serve muito bem.

      - Clarete, doutor? Ou borgonha branco? Tenho um Montrachet que o velho senhor reservou, quando se construíram as adegas.

      O olhar de ambos ergueu-se simultaneamente para o retrato do fundador da Companhia Darby, pintado por Gilbert Stuart. Naquela noite, os olhos do velho Victor pareciam radiantes, como se uma luz interior especial iluminasse a tela.

      “Planeou isto bem...”, pensou Toby. “Todos vocês o planearam na perfeição. Infelizmente, esqueceram a equação humana.”

      - Acho bem o Montrachet, Rex - respondeu ao mordomo. - Descansarei aqui enquanto espero.

      Não pegou logo no livro, embora a tentação fosse grande. Em vez disso, olhou outra vez para o velho Victor, inexpressivamente, durante um longo momento lutou contra a sonolência que o invadia enquanto pedia perdão ao fantasma do seu benfeitor. Era-lhe fácil imaginar que o fundador pairava sobre ele naquele momento, com perguntas ansiosas nos lábios. As pálpebras cerravam-se-lhe pesadamente quando Rex voltou com uma grande travessa de prata com o peito de galinha e uma garrafa comprida, preta.

      - Foi gelado na fonte, senhor - informou o mordomo, ao servi-lo de vinho. - Espero que esteja ao seu gosto.

      - E eu espero que o cansaço não seja tanto que me impeça de apreciá-lo devidamente. Parece um excelente vinho.

      E era, na verdade, um borgonha extraordinário, mesmo para um Montrachet. Sentiu a cabeça desanuviar-se-lhe logo ao primeiro gole, e quando o mordomo lhe encheu segundo copo estava quase pronto para ler o último volume do diário de Victor Darby. Ao terceiro copo, e depois de chupar até ao osso uma coxa suculenta, pareceu-lhe que seria até capaz de sobreviver ao que lesse.

      - Agora arranjar-me-ei sozinho, Rex.

      - Como desejar, senhor. Toma café e conhaque? Ou um cálice de curaçau?

      - Não tomo nada, obrigado. Lerei um bocado e passarei pelas brasas enquanto espero pelo Dr. Darby.

      Tinha o diário aberto na frente quando Rex saiu. Sorriu, ao vê-lo fechar silenciosamente as portas de mogno; Roy receberia o relatório que aguardava à cabeceira da cama...

      Toby esperara impressionar-se ao rever a caligrafia do velho Darby, mas na realidade as letras firmes, ousadas, pareceram-lhe tão familiares como velhos amigos, e igualmente confortantes. Lera-as um cento de vezes, debaixo de fogo e nos acampamentos, e por isso achou natural lê-las de novo, junto da lareira do próprio Victor, sob a sombra benigna do seu retrato.

      As civilizações, como o próprio homem, nascem apenas para morrer - ou, pelo menos, assim o afirmam os cépticos. Os governos (que, no fim de contas, não passara de instrumentos inventados pela espécie humana para dominar a sua atávica voracidade), estão igualmente condenados à autocorrupção e decadência, ou pelo menos assim nos recordam os mesmos misantropos, ao virarem as páginas cruéis e bolorentas da História. ..

      Sim, aquela maneira de pensar era-lhe familiar! Dir-se-ia estar a ouvir o velho Darby pronunciar aquelas palavras. Voltou a página espessa, de papel almaço, quase assustado por verificar que o diário terminava na folha seguinte. Encheu o copo e bebeu, pensativo, antes de continuar a ler, com os olhos fixos nos volumes iguais arrumados na pequena estante de vidro.

      ESCRITOS ESPARSOS

      DE VICTOR DARBY, nobre.

      Perguntou a si mesmo se o título de “Escritos Esparsos” seria exacto. Os frutos da vida de um grande homem, o seu credo ou o seu desejo maior, estavam aprisionados na frase seguinte. Como duvidar que fosse a essência de tudo quanto ficara para trás?

      A América (emprego a palavra orgulhosamente, com a certeza de que o seu significado se tornará mais profundo e mais rico com os anos) tem sido boa para todos os Darbys, sobretudo para os da minha geração. Dizer que repartirei agora a minha abundância com compatriotas americanos é, evidentemente, impertinência sem verdadeiro significado. Digamos, antes, que tenciono devolver essa abundância à terra jorgiana, para que possa florescer a outras portas além da minha.

      Tenho perfeita consciência de que os meus contemporâneos me chamarão idiota, ou pior do que isso. Mas para que o mundo progrida como deve, para que esta experiência a que chamamos América floresça e frutifique, todos os indivíduos devem ser pioneiros o melhor que puderem. E ser pioneiro significa muito mais que desbravar a selva. À medida que desbravarmos as nossas terras do Oeste, devemos explorar também os nossos corações. À medida que subjugarmos este continente (e estou convencido de que subjugá-lo é o nosso destino, com o tempo), devemos subjugar também o selvagem existente no nosso coração...

      Toby encheu outro copo de vinho e retardou o mais possível a leitura dos últimos parágrafos. Sabendo antecipadamente que se tratava da falha que arruinava a utopia de Victor Darby, relutava em enfrentar a agridoce certeza.

      A utopia é apenas o castelo de nuvens do homem, o sonho que o ampara nas suas imperfeições. É, pelo menos, o que dizem os filósofos, esses homens de alma acanhada que teimam que a natureza humana é imutável e constante. Mas eu estou convencido de que o clima de utopia nos cerca, aqui na América, e de que continuará a cercar-nos se nós, Americanos, tivermos o bom-senso e a sabedoria de crescer com o nosso país, de corpo e alma.

      Para esse fim planeei a Companhia Darby e rezo pelo seu êxito total; para esse fim casei meu filho com uma jorgiana do interior e rezo para que o sangue ribeirinho e o montanhês se encontrem e se misturem, finalmente; para isso desejo que minha filha (agora que se encontra viúva após um chamado casamento aristocrático) despose o presidente da minha companhia, homem prometedor que começou os seus dias como servo contratado.

      Claro que acontecimentos destes estão fora do meu “controlo” e do meu tempo, mas a América deve o seu começo a casos semelhantes. Se a fusão for coroada de êxito, o resultado será melhor que os seus componentes.

      Mas o que é a América, afinal, senão uma mistura do que de melhor há no mundo, para salvação do mundo?

      Muito depois de Toby fechar o diário, o velho Victor encontrava-se ainda na sala; muito depois de o arrumar na estante, entre os outros volumes, o seu benfeitor continuava presente, com o seu desejo a pairar, como um desafio, entre eles... Afinal, reflectiu Toby, a morte do fundador fora providencial. Duvidava que o velho Victor sobrevivesse à descoberta de que o filho casara com uma libertina e de que a filha estava conluiada com piratas e empenhada em arrasar o seu sonho, para benefício pessoal.

      O plano surgia-lhe claramente, por fim, e magoava-o tanto como os próprios planos de Nancy. Victor Darby, ao supor que a filha satisfaria os seus desejos, esperara que a última barreira ao êxito da companhia pudesse ser vencida pelo simples casamento de Nancy com o presidente da companhia... Victor - só de pensá-lo o coração lhe pesava - visionara um império comercial florescente, dirigido em bases estritamente democráticas e capaz de enriquecer toda a Jórgia, e imaginara Sangaree como sua sede e, ao mesmo tempo, jóia principal. Como poderia um homem como Victor Darby adivinhar que Sangaree teria outro destino e outro senhor?

      Fechou os olhos e deixou os sentidos entorpecidos pelo vinho procurarem repouso no sono por que ansiava. Por mais que se esforçasse, não encontrava outra solução para tão melindroso problema. Nancy e a Companhia Darby estavam divorciadas, enquanto esta existisse, e ele não permitiria, enquanto presidisse aos seus destinos, que um inimigo apanhado em flagrante transpusesse o limiar da sua porta. Quanto a Martha... Bem, até Roy se aperceberia das suas infidelidades, com o tempo, e poria fim ao casamento, como se nunca tivesse existido.

      Mas bastava, a respeito da equação humana que o fundador fizera com tão elevadas esperanças. Ao lado do seu desmoronamento, o triunfo financeiro da companhia parecia triste recompensa. Que importava que o armazém Darby rebentasse de riquezas? Que importava, para o seu futuro pessoal, ter salvo a vida de Nancy naquela noite, se a perderia em favor de Pagnol? Adormeceu com a última pergunta agarrada como um parasita ao seu cérebro, a minar-lhe a força que lhe restava. Mas outro pensamento mais sinistro se apoderou do seu coração, conjurando a imagem de uma mulher de membros brancos e cabeleira cor de fogo, em cujos olhos brilhavam velhos pecados e cujos lábios murmuravam segredos que ele nunca conhecera. Estava nos seus braços e o êxtase de possuí-la, como a promessa dos seus lábios escaldantes, não tinha fim.

      - Dormias tão bem que não tive coragem de te acordar.

      Roy sorria-lhe, com o sol a brilhar atrás de si, numa auréola cor de limão. Vagamente consciente do conforto do sofá de crina e do edredão que o cobria até ao queixo, Toby bocejou. Havia meses que não se sentia tão repousado nem tão tranquilo. Espreguiçou-se sob o edredão e manteve as recordações a distância, durante alguns momentos mais.

      - Dormiste alguma coisa, Roy?

      - Bonnie rendeu-me à meia-noite. Achei que não havia perigo e não me enganei.

      Toby acordou por completo e levantou-se. Lembrava-se de que renunciara a Nancy, no sentido mais profundo da palavra, antes de adormecer, e que essa decisão lhe proporcionara uma certa tranquilidade. No andar de cima encontrava-se uma paciente que precisava da sua atenção, antes de deixar pela última vez o seu domínio.

      Uma paciente no andar de cima... Sim, agora conseguia pensar nela nesses termos, quase sem esforço.

      - Queres dizer que está melhor?

      - A crise passou durante a noite. Saiu do coma e dorme normalmente, sob a acção de um calmante fraco. Bonnie deu-lhe um pouco de caldo, ao nascer do dia.

      - Achas que está fora de perigo?

      - Apostaria a minha alma em que está, Toby... graças a ti.

      - Isso não tem importância. Vamos vê-la juntos? Se Roy se sentiu magoado com a sua brusquidão, não o demonstrou. Subiram lado a lado ao andar de cima, quase sem olharem os grupos de escravos parados em cada porta, em atitude de veneração. Toby teve a sensação de que se respirava outro ar em Sangaree, como se um peso invisível tivesse sido retirado de todos os corações.

      - Eles sabem que Nancy está livre de perigo - murmurou Roy. - Sabiam-no antes mesmo de eu lho dizer... não me perguntes como.

      Rex, que aguardava à porta de Nancy, ofereceu a última prova ao dobrar-se para beijar a mão de Toby. Ao ver as lágrimas que toldavam os olhos do velho, o cirurgião aceitou a homenagem o melhor que pôde.

      - Mande selar o meu cavalo, Rex. Tenho de regressar imediatamente a Savannah.

      - Só depois de tomares o pequeno almoço - disse Roy.

      - Almoçarei no escritório. Sabes como o trabalho se acumula...

      - Manda o trabalho ao diabo, ao menos uma vez. Se alguém tem direito a um feriado...

      - Desculpa, Roy, mas não me sinto com disposição para feriados.

      Entrou rapidamente no quarto, sem dar ao amigo tempo para responder.

      Nancy dormia profundamente no seu ninho de almofadas. Sem a ligadura e com os cabelos presos numa grossa trança acobreada, parecia uma castelã exemplar a dormir a manhã na cama. Até um leigo reconheceria, à primeira vista, as melhoras evidentes, o ar de autêntico repouso. Toby sentou-se ao lado da cama, tocou-lhe na testa e nas faces, que estavam frescas, e auscultou-lhe o pulso, que batia com firmeza. O campo operatório, exposto para a sua observação, drenara bem nas últimas doze horas. Embora a purgação continuasse, não havia indícios de inflamação a nublarem o quadro de uma doente que virara as costas à morte.

      - A doente é tua, Dr. Darby.

      Roy tomou o lugar de Toby à cabeceira e pensou a ferida. Nancy estremeceu apenas uma vez, quando o irmão acabava de ligar-lhe a cabeça, e Kent virou-se instintivamente e olhou para a janela, de costas voltadas para o quarto. A presença viva de Nancy derrubara num abrir e fechar de olhos a tranquilidade tão a custo adquirida. Uma Nancy bem acordada e a murmurar palavras de agradecimento, talvez fosse superior às suas forças.

      - Ficarás com ela, claro, até estar assegurada a convalescença...

      - Com certeza - respondeu Roy, levantando-se. Toby observou-o através do espelho e viu o amigo de testa franzida, descontente com a sua retirada.

      - Ficaria se precisasses de mim para alguma coisa...

      - Não tens de desculpar-te, Toby.

      - Nesse caso partirei agora, se me dás licença.

      - Já que insistes... - Deu a impressão de que tencionava dizer mais qualquer coisa, mas voltou-se para a irmã e calou-se.

      Ao passar por ele, Toby tocou-lhe ao de leve no ombro:

      - Podias acompanhar-me ao alpendre. Desceram novamente a escada, lado a lado, e um grupo de escravos precipitou-se para abrir a grande porta de entrada. No alpendre houve outra corrida, desta vez da parte dos cavalariços, desejosos, todos, de terem a honra de ajudar o Dr. Kent a montar.

      Já a cavalo, sentiu o à-vontade voltar e ousou até aceitar a grande chávena de café que Rex lhe oferecia e o tradicional cálice de brandy, oferecido a uma geração de cavalheiros à porta de Sangaree, antes de partirem a cavalo.

      - Voltarás amanhã ou depois? Sorriu a Roy e abanou a cabeça:

      - Só se for realmente preciso. Ela é tua doente, agora.

      - Mas, Toby...

      - Tenho as minhas razões, Roy. Deves conhecer algumas de cor.

      - Disseste que tinham brigado, mas não me explicaste porquê.

      - Agora não tem importância.

      - Se eu pudesse dizer-lhe que estavas disposto a ceder um pouco se ela cedesse outro tanto...

      - Não há possibilidades de acordo entre nós. Nunca haverá. Foi um facto com o qual teu pai não contou.

      - Queres dizer que leste o diário?

      - Com profundo interesse. Escusado é dizer que a sua... a sua inspiração me honra muito.

      - Mas não obedecerás às ordens?

      - É a única ordem a que não posso obedecer, Roy.

      - Dir-te-ei mais uma coisa que talvez ajude. Meu pai sempre desejou que casasses com Nancy, que transferisses o armazém da companhia para estas docas e a sede para Sangaree.

      - Deduzi-o do que li. Imaginas que ela o consentiria, a não ser que o comando fosse exclusivamente seu?

      - Sangaree não poderá nunca manter-se sozinha.

      - Isso é da conta da tua irmã, não da minha. Creio, no entanto, que resolverá o problema, quando se refizer.

      - Referes-te a Pagnol?

      - Porque não havia de casar com ele, uma vez que lhe salvou a propriedade?

      - Porque não casas tu com ela, Toby?

      - Já te disse porquê.

      - Não aceito as tuas razões.

      - Só é possível planear as vidas das pessoas até certo ponto, Roy, não até ao fim. Foi outro facto que teu pai esqueceu, e no fim de contas as utopias têm de assentar em pessoas... em pessoas que se amem.- Respirou fundo, antes de concluir: - Estou convencido de que Nancy é incapaz de amar.

      - E tu, não a amas um pouco?

      - Não precisas de o perguntar.

      - Não me deixes zangado, Toby - pediu Roy, sem largar as rédeas de Lara.

      - Garanto-te que nunca estive mais calmo.

      - Então porque gritas?

      - Não estou a gritar, com os diabos! Tentei apenas dizer-te que não há substitutos para o amor.

      - Pensava que a amavas desde o teu primeiro dia em Savannah, que era por isso que lutavam tão violentamente... Desmente-me, se estou enganado.

      - Informa a tua irmã de que desejo sinceramente que se restabeleça depressa. Se quiser agradecer-me, diz-lhe que bastará permitir à companhia funcionar em paz, doravante.

      - Não percebo o que queres dizer.

      - Nancy Gregory perceberá.

      - Volta daqui a quinze dias e diz-lho tu.

      - Foi a última vez que pus os pés em Sangaree. Tocou com as esporas no flanco de Lara e partiu a galope. Galopava ainda quando atravessou a ponte estreita e meteu pela larga curva da estrada do rio que seguia para norte, para o braço principal do Savannah... “Eu morra se olho para trás!”, prometeu a si mesmo, e cumpriu-o até muito depois do primeiro grupo de palmitos ocultar a casa senhorial.

      “Aconteça o que acontecer”, pensou, “iniciei o meu último ajuste de contas com a Companhia Darby... e Nancy Darby Gregory. De agora em diante, não será preciso modificar o saldo.”

     

     O ÚLTIMO AJUSTE DE CONTAS

      Relativamente ao habitual, reflectiu Tobias Kent, aquela reunião do Conselho Municipal de Savannah, engrossado pela Associação Médica de Savannah, como era costume, tinha a virtude de possuir vivacidade. Naquele momento, dir-se-ia que todos gritavam ao mesmo tempo, e até ele colaborara na berraria geral. Agora, porém, bastava-lhe ocupar o seu lugar à mesa forrada de baeta verde, com as suas notas espalhadas em leque, na frente, e aceitar o olhar carregado dos seus inimigos.

      O coronel McIntosh, novo presidente do município, pediu ordem, mas as vozes contendoras ignoraram-no. Por cima da consola da chaminé, o retrato de sobrecasaca encarnada de Oglethorpe parecia franzir o cenho aos turbulentos, enquanto a decente sala de reuniões branca e dourada - na realidade o salão de banquetes do primeiro andar da Tondee's Tavern... - parecia prestes a ir pelos ares com tanta algazarra. No turbilhão das discussões, o vulto do Dr. Matthew Bristol tinha um ar ainda mais ameaçador que de costume. Refestelado como um tigre preguiçoso na sua poltrona, e aparentemente a dormitar, os seus pensamentos dir-se-iam muito longe dos assuntos em debate. Mas a experiência de outras reuniões municipais tinham ensinado a Toby que aquele poderoso inimigo podia desatar também a gritar num abrir e fechar de olhos.

      - Cavalheiros, fale um de cada vez à presidência!

      - Discute o nosso direito de fecharmos o porto, senhor, se isso for do interesse público?

      - Insinua que sou negociante primeiro e jorgiano depois?

      - Não responda à minha pergunta com outra!

      O martelo de McIntosh bateu na mesa, ao mesmo tempo que a sua rica voz de barítono exigia ordem. O exaltado escocês, com a papada rubra de cólera e a peruca à banda, assentou ambos os punhos na mesa e lançou um olhar fulminante à assembleia subitamente silenciosa.

      - Agora que serenaram os ânimos, meus amigos, podemos escutar por momentos a voz da razão? Ou deverei dizer a voz do nosso delegado de saúde, Dr. Tobias Kent?

      - Porque havemos de presumir que são equivalentes, McIntosh? - perguntou Crowther.

      O cavaleiro que combatera com Marion mostrava-se truculento como sempre, apesar do estado precário da sua desbotada sobrecasaca militar. Mas McIntosh remeteu-o ao silêncio sem cerimónias:

      - Outro sarcasmo desse género, coronel, e passarei sem o privilégio de o conhecer.

      - Às ordens, coronel. Mas recuso-me a deixar-me contagiar pela histeria.

      - Estou farto de ouvir explosões de velhos canhões! O Dr. Tobias Kent tem a palavra, e garanto que expulsarei quem o interromper, sem querer saber para nada quem foi o seu avô!

      Toby estava já levantado, a contar os olhares hostis. Como de costume, pareciam constituir a maioria, embora fosse impossível jurá-lo. Tivera ardentes defensores durante a discussão geral, e muitos daqueles olhares atentos mostravam-se velados. Só Bristol e os seus sicários formavam um grupo bem definido. Naquele momento, rodeavam o chefe mudos como penedos, à espera da sua deixa.

      - Todos nós esperávamos que esta reunião fosse... calorosa; a existência da peste em Savannah é uma ameaça de morte para todos.

      O Dr. Tyree perguntou suavemente, do fim da mesa:

      - Quantos casos de peste certificou, Dr. Kent?

      - Até agora, cinco. Todos originários da borda-d'água e todos fatais.

      - E considera isso uma ameaça?

      - Que lhe chamaria o doutor?

      - Vivi trinta e cinco anos na Buli Street, doutor, e na maioria deles lancetei alguns bubões, a bordo e em terra, e mandei os pacientes para a ilha Lazareto. Porque não faz o mesmo, sem pregar aos nossos honestos negociantes um susto que é outra peste?

      Toby olhou para McIntosh, mas o importante personagem, cuja magnificência dependia dos mercados de fruta e de escravos da Baía, escutava-o com tanta atenção como os outros. Desta vez não havia controvérsia, a serena observação de Tyree resumia a opinião dos restantes assistentes.

      - Alguma vez combateu uma epidemia de peste, Dr. Tyree?

      - Não, graças a Deus.

      - Eu combati, na última guerra, e posso garantir que a doença pode espalhar-se como fogo em restolho, se não forem tomadas precauções sensatas.

      - Se isso é uma acusação, Kent... considere a pergunta retirada - interveio de novo Tyree, no mesmo tom suave. - Tenho a certeza de que as suas intenções são boas. No entanto...

      - Diga o que tem a dizer, Dr. Tyree - convidou Toby. - Estou acostumado a franqueza, nesta sala.

      - Serei a franqueza personificada, doutor. Como nosso delegado de saúde, tem todo o direito de convocar uma reunião plenária do Concelho. Hoje, porém, sinto que abusou desse privilégio, que alarmou desnecessariamente estes bons cidadãos com as suas insinuações de que há uma epidemia.

      - Não me limito a insinuar, doutor, afirmo que está a preparar-se uma epidemia da “morte negra” na zona ribeirinha de Savannah. Se não tomarmos rapidamente as precauções necessárias para a deter na sua origem, podem ter a certeza de que alastrará.

      - Pensa deveras que devíamos encerrar temporariamente o porto?

      - Ordeno que encerremos o porto de Savannah pelo menos durante uma quinzena, Dr. Tyree. É, também, privilégio meu fazê-lo. - Pôs cobro ao murmúrio discordante que se levantou com uma pancada forte na mesa, antecipando-se uma fracção de segundo ao martelo do presidente. - Posso expor o meu caso, coronel McIntosh, ou tenho de submeter-me a mais interrupções e perguntas?

      - Exponha o seu caso à vontade, doutor.

      - É verdade que cinco óbitos por peste bubónica não constituem uma epidemia. Infelizmente, estou convencido de que se verificaram outras mortes que não foram certificadas. - Olhava a direito Matthew Bristol, à espera de uma explosão que não se verificou: o velho Bristol continuava a parecer mergulhado em profunda sonolência, apenas com uma centelha a brilhar por entre cada pálpebra descida, a trair a sua atenção.

      - Quem está a acusar, Dr. Kent? - indagou o presidente.

      - Não acuso ninguém sem provas, mas na última quinzena foram encontrados nada menos de quatro negros a flutuar entre a estacaria do armazém Darby - escravos nus, recém-chegados de África a julgar pelos ornamentos de osso. Em todos os casos havia sinais de que a morte resultara da peste, apesar de estarem cheios de água, e em todos os casos a marca do proprietário fora queimada para desaparecer.

      Parou para tomar fôlego, certo de que tinha agora a atenção geral.

      - Nove casos em duas semanas são mais que suficientes para me convencer de que o porto deve ser fechado, os nossos armazéns desinfectados com enxofre e a rataria dizimada. Sobretudo, não deve permitir-se a entrada de negreiros de África nas docas Bristol, nem em qualquer ponto ao longo da costa.

      O velho Bristol abriu um pouco os olhos semicerrados e soltou uma espécie de grunhido, como um animal a quem perturbassem o sono. Fora isso, a indiferença com que escutava as observações de Toby não podia ser mais insolente.

      - Não havia carga humana a bordo desses negreiros, doutor - interveio McIntosh. - Os seus próprios inspectores o afirmarão, espero.

      - É verdade... quando os barcos zarparam em Savannah. Mas havia a bordo outra população não menos sinistra...

      Tyree interrompeu-o bruscamente:

      - Se pretende referir-se aos ratos mortos que insistiu em que eu examinasse esta manhã...

      - O porão estava cheio deles. Como os cavalheiros sabem, há sempre abundância de ratos em barcos negreiros e uma grande percentagem das suas perdas no mar devem-se a mortes provenientes de mordeduras de ratos. Receio que bom número desses roedores desertasse para a nossa zona ribeirinha; os dois que matámos para servir de amostra estavam ambos doentes. O Dr. Tyree deve lembrar-se de que os espécimes que lhe apresentei estavam inchados.

      - Onde quer chegar?

      - Repito a minha convicção de que os ratos espalham a peste bubónica, insisto em que esses ratos estão já infectados e que outros da sua espécie infestam a parte baixa da nossa cidade.

      - Pode provar o que diz?

      - Pode explicar por que motivo os barcos que são à prova de ratos navegam à vontade ao longo da Costa do Ouro africana sem um caso de peste a bordo?

      - Isso é uma prova negativa, creio. Claro que todos nós gostaríamos de nos livrar dessa praga, mas recuso-me a considerá-los perigo mortal.

      - Concorda que a vida seria melhor em Muskrat Town se exterminássemos a população roedora?

      - De boa vontade.

      - Se a Companhia Darby fornecesse o enxofre e o trabalho, apoiaria a minha ordem de guerra imediata e sem quartel contra os ratos?

      - Com muito gosto, Dr. Kent.

      - Claro que teremos de estender o nosso ataque também aos entrepostos, incluindo as docas Bristol.

      Desta vez os olhos do velho Bristol escancararam-se bruscamente, como se uma mola se tivesse soltado nas órbitas.

      - Se se está a dirigir a mim, Kent...

      - Há algum tempo já que me estou a dirigir a si, senhor. Autoriza-me a limpar as suas docas e armazéns a expensas da minha companhia?

      - Diabos levem a sua impertinência! As minhas docas estão limpas; ainda há poucos meses as revesti de tábuas, por insistência sua.

      - Não estão limpas de ratos, Dr. Bristol. Os meus homens podem afirmá-lo.

      - Diabos levem também os seus bisbilhoteiros! A propriedade de um homem só a ele diz respeito, enquanto não prejudicar os vizinhos.

      - Exactamente o que penso. Nega que procedeu à limpeza de negreiros na sua doca?

      - Porque havia de negar? Leiloaria negros nessa mesma doca, se o município o permitisse.

      Foi a vez de Toby procurar acalmar um murmúrio desaprovador. Embora Savannah praticasse o proveitoso negócio da escravatura havia já uma geração, lembrava-se ainda de que Oglethorpe proibira o seu tráfico real dentro dos limites da cidade. Essa lei, como o sonho utópico do seu criador, fora letra morta antes da revolução e na Baía florescia, às escâncaras um mercado de escravos, do qual era feliz proprietário o coronel McIntosh. Todavia, os negreiros não se atreviam a trazer as suas cargas até à costa. Estas, como todos os habitantes de Savannah sabiam, eram desembarcadas na foz do rio, ou numa das muitas baías de jusante, e juntavam-se às caravanas que vinham a pé da Florida espanhola.

      Nem Matthew Bristol se atreveria a desprezar esta convenção. Agarrado a esse facto e pedindo aos céus que a insolência do inimigo tivesse já granjeado votos favoráveis à Companhia Darby, Toby jogou o seu trunfo com a maior calma que lhe foi possível:

      - Há momentos, Dr. Bristol, mencionei que tinham aparecido a boiar nas águas baixas dos nossos cais os cadáveres de quatro negros. Nega que eram propriedade sua?

      Os olhos do velho doutor, velados agora como os de um basilisco e igualmente sinistros, deram a Toby a desejada resposta. Enquanto esperava que o rosto de Bristol se petrificasse na familiar máscara de desdém, Kent registava maquinalmente, como faria qualquer médico, vários pormenores: o tique na base da órbita de Bristol - um nervo que palpitava como um mecanismo de relógio -; o vasto arquipélago de manchas de fígado que alastrava da face à papada e se perdia na renda imaculada do colarinho do nababo; os dentes amarelos, descobertos num sorriso forçado quando o velho se voltou, finalmente, para McIntosh...

      “Desta vez acertei-lhe em cheio!”, pensou Toby, exultante. “Nem Maquiavel estaria à altura do que preparei para hoje.”

      - Tenho de responder a esta tola pergunta, Donald?

      - Acho que sim, Matthew.

      - Este indivíduo acusa-me de contrabandear escravos?

      Toby antecipou-se a McIntosh ao responder:

      - Todos os presentes sabem que pode comprar os seus escravos no mercado livre, doutor. Limito-me a recordar-lhe as recentes aquisições feitas em seu nome no mercado de St. Augustine, o mês passado. Os negros foram escolhidos para si pelo comandante do bergantim Algeria, em rota para Savannah a fim de ser reparado, após proveitosa viagem a África. Os negros foram entregues pelo mesmo bergantim há quinze dias. Infelizmente o tempo estava inadequado para Primavera, e o calor e o mau cheiro de um negreiro sujo foram prejudiciais à preciosa carga.

      - Onde quer chegar? Peço-lhe que se explique...

      - Já me expliquei, doutor. Acuso-o de esconder os quatro escravos no seu armazém, enquanto lutava inutilmente para os curar de um caso desesperado de peste.

      Toda a gente gritava, agora, na sala, mas o urro animal de Bristol sobrepôs-se a todos os gritos:

      - Isso é mentira, e você sabe-o!

      Os dedos de Toby cerraram-se nas luvas de montar que tinha ao lado dos apontamentos. Por momentos, pareceu-lhe irresistível a tentação de dar com elas na boca sarcástica de Bristol.

      - A sua idade e a sua culpa provada são as suas únicas desculpas, doutor - afirmou por fim, quando as vozes esmoreceram.

      Todos os olhos estavam agora postos em Bristol. Ao ver o cerrar instintivo de fileiras dos homens do adversário, quando este se levantou e sustentou os olhares hostis, Toby adquiriu a certeza de que as suas palavras tinham merecido crédito e resolveu ser ainda mais explícito, para não dar azo a dúvidas:

      - Nega que vieram quatro escravos seus, recém-comprados, a bordo do Algeria, há uma quinzena?

      - Porque havia de dar-me ao trabalho de negar?

      “Responde à minha pergunta, grande cabeçudo!” praguejou Toby, intimamente. “Não compreendes que tenho provas positivas de que atiraste à água aquela carne humana, com o mesmo desembaraço com que te desfarias de quatro muares mortos?” Em voz alta, porém, disse apenas:

      - Tenho aqui o relatório dos meus inspectores e terei prazer em o ditar para a acta, se preferir.

      - Muito bem, recebi quatro negros no meu armazém! Hospitalizei-os durante algum tempo, pois verifiquei que sofriam de peripneumonia, e atirei as suas carcaças ao mar, quando morreram. A maré estava cheia, como havia de adivinhar que encalhariam sob o seu armazém?

      Ergueram-se de novo vozes, mas desta vez deixou o encargo de as silenciar ao martelo de McIntosh.

      - Certificou essas mortes?

      - Claro que não. Não se certifica a morte de um escravo que não está registado. Achei sensato isolá-los, até estar certo do seu estado de saúde. Não é ilegal comprar escravos à coroa espanhola para uso na Jórgia... - Bristol engoliu o resto das palavras e fez-se escarlate de fúria, com a algazarra que se levantou.

      - Pensou na saúde dos seus vizinhos ao dispor desse modo da sua... propriedade?

      - Cadáveres não são novidade no Savannah, nas cheias da Primavera.

      - Nem sequer corpos podres de peste?

      - Prove que os negros tinham peste!

      - Registei o resultado das quatro autópsias no diário da minha clínica. - Toby estendeu um grosso volume a Tyree, sem fazer caso dos dedos de Bristol, que tamborilavam furiosamente na baeta verde da mesa.

      - Pode apresentar os corpos?

      - Evidentemente que não! Foram logo cremados, no interesse da saúde pública.

      - Assim como os alegados casos de peste do seu lazareto?

      - Exactamente. O meu lazareto, como diz, é um barco de carga que converti em hospital flutuante, e que é à prova de ratos. Os meus negros doentes receberam todos os cuidados que pude dispensar-lhes e quando morreram anunciei as mortes na casa dos pregões e mandei cremar os corpos. Este mesmo hospital flutuante tem capacidade para recolher trinta casos, se e quando a epidemia ocorrer.

      Toby falara devagar, para que o escriturário do município tivesse tempo de registar as suas palavras. Quando o último símbolo estenográfico foi lançado ao papel, bateu na mesa, a pedir silêncio, e prosseguiu:

      - Mas tudo isto são jogos de palavras à volta de meia dúzia de factos insofismáveis. Tenho provas de que as docas de Bristol recolheram vítimas da peste e que nas mesmas existem agora ratos que são, pelo menos, uma afronta ao bem-estar público. Tenho provas da negligência do doutor, provas que o Conselho Municipal pode deixar de considerar, atendendo ao seu passado, e peço autorização para inspeccionar Muskrat Town a expensas minhas e pôr cobro à ameaça antes que ela tome forma. Posso solicitar ao presidente que se proceda a votação?

      O coro de “sims” abafou o barulho do martelo de McIntosh. Embora tivesse jogado os seus trunfos com o objectivo de obter aquele resultado, Toby ficou um pouco surpreendido com a recepção dos mesmos. O coronel Crowther levantara-se e gritava agora com a maioria, assim como Tyree e o grupo de médicos de peruca branca que ainda o cumprimentavam por obrigação. Mas Matthew Bristol permaneceu sentado e imperturbável durante a votação verbal.

      - Continuo a afirmar que a propriedade de um indivíduo só a ele diz respeito, para a administrar como entender. E os escravos de um homem são propriedade sua.

      - Não sabia que era peste, Matthew? - perguntou-lhe Tyree, com um sorriso brando.

      - Os casos estão registados nos meus livros como peripneumonia. Só a palavra desse indivíduo afirma o contrário. Com a breca, Tyree, tu mesmo tens deitado negros aos peixes, quando não dispões de braços para os enterrar!

      - Nunca infectados com a morte negra, Matthew! Isso foi ir longe de mais, e tu sabe-lo.

      - Queres dizer que aceitas a palavra do Kent e rejeitas a minha?

      Grande silêncio se abateu sobre a sala quando os decanos dos médicos de Savannah se olharam através da mesa das sessões. Mas os olhos do velho Tyree nem pestanejaram e foi com voz seca, embora um pouco fatigada, que declarou:

      -'Aceito a palavra do Dr. Kent, Matthew.

      - Nesse caso só me resta defender a minha propriedade o melhor que puder.

      - Deves admitir os inspectores do Dr. Kent, quando te procurarem. É da lei.

      - A lei não os manda levar latas de enxofre. Tenho cinquenta barricas de tabaco no armazém principal e não quero arriscar-me a estragá-lo.

      - Outros correm o mesmo risco, Matthew, sobretudo a Companhia Darby.

      - A Companhia Darby que vá para o diabo! E que o diabo carregue também o seu presidente arrivista! A propriedade de um homem é muito sua, para a governar como entender, e os negros de um homem são muito seus, pode dispor deles como achar conveniente. Que seria da Jórgia se estes direitos fundamentais fossem negados? - Bristol, que gritara como se quisesse rebentar os pulmões e com um olho posto no estenógrafo municipal, acrescentou em tom comedido, mas sublinhando cada pausa com uma punhada na mesa: - Defenderei esses direitos até à morte! E aconselho o município a não me provocar demasiado!

      McIntosh sublinhou com uma martelada as últimas palavras de Bristol e exigiu, autoritário:

      - Explique o que quer dizer, Matthew!

      - Sabe muito bem o que quero dizer, Donald. Neste momento tenho vinte rendeiros armados na plantação, à espera de ordens, os quais podem descer o rio em três horas, se for preciso.

      - Declara, então, guerra aos seus amigos?

      - Defendo o que é meu. Garantam-me que este intrometido será mantido à distância, e deixarei esta sala sossegadamente; permitam-lhe levar a sua avante, e estoiro-lhe a cabeça se aparecer nas minhas docas.

      - Ouviu a votação, Matthew. Posso desejar-lhe um bom dia?

      Bristol girou nos calcanhares sem retribuir a vénia de McIntosh e saiu. Os seus sequazes, pequenos proprietários, na maior parte, e alguns feitores feitos comerciantes, foram-lhe no encalce com uma razoável imitação da dignidade do seu chefe. Ninguém se mexeu enquanto a porta não se fechou. Depois, num movimento simultâneo, uma vintena de membros do conselho avançaram e ocuparam as cadeiras vazias em redor da mesa - eram também pequenos proprietários, muitos dos quais Toby conhecia agora pelo nome, e pequenos comerciantes que a custo de muito esforço tinham obtido lugar no conselho municipal, mas até àquele dia não haviam ousado confessar o que pensavam.

      McIntosh olhou calmamente à sua volta e observou:

      - Agora que Mr. Bristol nos deixou, suponho que apoiam por unanimidade o plano do Dr. Kent? Que dizem acerca do seu pedido de encerramento do porto?

      Toby calculara já que a votação daquele pormenor seria menos significativa, mas mesmo assim soube-lhe bem ouvir os argumentos dos novos membros, que ousavam enfim servir-se da língua. Como um ciclone, a saída de Bristol purificara magicamente o ar. Quando se procedeu à votação, a maioria favorável à precaução era pequena, mas definida.

      - Cabe-lhe agora proceder, Dr. Kent - declarou McIntosh. - Uma coisa é dizermos que não permitiremos a entrada de barcos, outra é fazê-lo. - Olhem pela janela, cavalheiros - convidou Toby. - Como vêem, poucos são os barcos que se encontram presentemente no Savannah, excepto os de cada um. Calculo que menos haverá ainda ao sol pôr, quando chegar ao porto a notícia desta reunião.

      Assim era, de facto. A história dos casos de peste em Muskrat Town e a presença misteriosa de um lazareto algures nas proximidades do porto, levara muitos comandantes a levantar ferro, sem esperarem por acabar o carregamento. A notícia de que o porto seria fechado bastaria, na opinião de Toby, para afastar os menos timoratos.

      - No último surto de febre amarela, instalámos um posto de quarentena na ilha Lazareto e obrigámos todos os barcos a retroceder quando não consentiam na inspecção - lembrou o Dr. Tyree. - Podemos fazer o mesmo agora e estabelecer uma segunda quarentena em Darbyville.

      - E a respeito de Matthew Bristol? Deve estar a chegar um barco para ele, das Barbados, e como todos os seus pilotos conhecem a rota, podem zarpar na sua doca sem necessidade de piloto.

      - Importa-se de deixar o meu amigo Matthew Bristol ao meu cuidado, Dr. Kent? - perguntou McIntosh, a sorrir. - Há pouco estava um bocado irritado...

      - Crê poder persuadi-lo a ceder?

      - Pelo menos poderei tentar. Se não for bem sucedido, ocupar-lhe-emos os armazéns pela força; não há outra solução. E faremos retroceder os seus barcos, se ousarem entrar na enseada.

      Toby agradeceu com uma inclinação de cabeça ao presidente e perguntou:

      - Estamos, então, todos de acordo, cavalheiros? Os aplausos que acolheram a pergunta aqueceriam qualquer coração - até o de Toby Kent, que não tinha motivos reais de júbilo quando desceu a escada da Tondee e emergiu na Buli Street, inundada do quente sol de Abril, com outra batalha por travar.

      Ao chegar à Baía, percorreu com o olhar as bóias de demarcação e mal pôde acreditar no que via. Retórica na sala do conselho era uma coisa; realidade era outra, mais dolorosa.

      Do alto da rampa que descia aos armazéns do cais Darby, divisava toda a extensão da enseada do Savannah. Ainda naquela manhã, ao dirigir-se com relutância para a Tondee's Tavern, vira naquele mesmo ancoradouro uma vintena de barcos, cada um ancorado à sua bóia de sino. Agora que o Sol mal passara o zénite, a enseada parecia deserta como a Lua. Enquanto olhava, o derradeiro visitante, um belo brigue com o pavilhão inglês no alto do mastro, virava docemente para a bóia sul, com todas as velas esticadas e o comandante a percorrer a encosta pelo telescópio, como se esperasse ser metralhado de um momento para o outro.

      Obra do boato, pensou, sobretudo quando a este se juntam alguns factos reais. Tinham debatido durante muito tempo, na sala do conselho, a conveniência de fechar o porto e as razões para se dar esse passo drástico. Todos os barcos mercantes que se encontravam no porto, com um homem atento em terra, tinham cheirado quarentena no ar muito antes de abrirem a primeira vela de joanete, e isso transformara num gesto gratuito a magnanimidade do conselho ao decidir fechar temporariamente o porto de Savannah. Enquanto a ameaça de peste não desaparecesse e outro boato mais optimista não alcançasse Nassau, Havana e os pequenos portos do norte, o rio seria um paraíso para os pelicanos.

      De certo modo, constituía um tributo prestado ao Dr. Tobias Kent - e à sua alquimia especial... - que algumas palavras gritadas no conselho produzissem tal reacção. No entanto, Toby não experimentava qualquer sensação de triunfo quando parou diante da “casa dos pregões”.

      Como de costume, o alpendre estava cheio de negociantes de gado e de comissionistas de mercadores com escritórios na Baía. Junto do quadro dos anúncios, a multidão era maior do que habitualmente. Toby não se admirou de que assim fosse quando conseguiu ver o quadro. Na realidade, graças ao tumulto que ia no seu cérebro, teve até de ler duas vezes a notícia antes de compreender o seu significado.

      Por esta declaro que a pessoa conhecida por Félix Pagnol (embora não possa afirmar que este seja o seu verdadeiro nome) é um patife, um, ingrato, um mentiroso e um vil conspirador contra o futuro da nossa comunidade. Cavalheiros com dinheiro, precatai-vos quando ele estiver presente à mesa de jogo. Pais de família, se prezais a virgindade das vossas filhas, fechai-lhe a porta. Maridos, guardai as vossas esposas quando ele estiver perto ou, melhor ainda, embarcai-as sem perda de tempo para terra estrangeira.

      Gabriel Thatch, Esq.,

      2 de Abril de 1786.

      Foi assim que Toby soube que Pagnol devia ter, finalmente, regressado a Savannah e que desconfiou dos objectivos de Gabriel. Ficou-se a olhar a notícia, perplexo, e deu consigo a sorrir, apesar do nevoeiro cinzento que descia, agora, inexoravelmente sobre o seu espírito sempre que se encontrava só e sem nenhuma cruzada para pregar nem nenhum problema a resolver. Afinal, Gabriel era um homem cheio de ideias imprevistas e um grande obstinado quando se decidia a desafiar alguém. Se escolhera Pagnol por razões especiais... Encolheu os ombros e afastou-se, alheio aos olhares que o seguiram até aos degraus do armazém Darby. Só quando parou junto da escada que levava ao escritório apreendeu o verdadeiro significado da audácia do jornalista.

      Claro que o desafio público estava a carácter com a personalidade de Gabriel e por certo daria resultado. Pagnol não teria agora outro remédio senão lutar ou abandonar imediatamente Savannah. E Toby estava convencido de que o francês, a despeito da sua situação enigmática na Jórgia e do seu interesse evidente por Nancy Gregory, não era cobarde.

      Mais de uma vida, no que respeitava a Savannah, ficara arruinada por via de desafio semelhante, feito por alguém sem escrúpulos e bom atirador a vinte passos. Arruinada no primitivo mundo social daquela jovem república, ou arruinada para sempre sob os carvalhos dos Trustees Gardens. Gabriel, que era capaz de partir uma moeda de um dinheiro a vinte passos, tinha perfeita consciência dos riscos que corria. Ao adivinhar em favor de quem o amigo resolvera eliminar Félix Pagnol, Toby subiu a escada num pulo e quase não se surpreendeu por ver Gabriel levantar-se da secretária e cumprimentá-lo com uma das suas melhores vénias.

      - Não me olhes dessa maneira, Toby. Estou certo de que a ideia teve tempo de assentar...

      - Porque fizeste uma coisa daquelas, idiota?

      - Trata-se de uma pergunta honesta ou pretendes apenas ganhar tempo? Devo dizer-te que leste o desafio com bastante calma... Não imagines que não te observava desta janela.

      - Já pensaste que amanhã a esta hora talvez estejas morto?

      - Muitos homens sensatos pensam o mesmo a seu respeito, se vivem na fronteira da selva.

      - Mas porquê, Gabe, porquê? O indivíduo deu provas vinte vezes...

      - Vou arriscar o couro por ti, Toby. Ou deverei dizer por ti e pela doce Nancy?

      - Não penses na Nancy, agora.

      - Pelo contrário, penso nela constantemente... quanto mais não seja para manter o meu cérebro sintonizado com o teu.

      - Deves saber que nos separámos de uma vez para sempre. Nunca mais lhe pus a vista em cima desde que a operei em Savannah, há quatro meses.

      - Facto que não tem importância, se ela está constantemente no teu pensamento. Sabes que ele voltou a Jórgia por uma única razão.

      - As razões de Pagnol não me interessam nada.

      - Mentes com quantos dentes tens na boca, amigo. Ele regressa a Savannah para casar com Nancy! Toda a cidade o sabe, e tu não constituis excepção.

      - Porque não havia ele de casar com Nancy Gregory, se ela estiver pelos ajustes?

      - Porque tu a queres para ti, meu amigo, quando ela dobrar convenientemente a cerviz.

      Toby fitou-o, irritado, mas os olhos do jornalista não se desviaram.

      - Nega, se quiseres. Na minha profissão é essencial saber ver através das ilusões das pessoas e encontrar os seus verdadeiros motivos.

      - Há um ano disse-te que preferia deitar-me com uma gata brava.

      - A observação começa a tornar-se monótona e leva-me a pensar que gostas de gatas bravas. Há muitos homens que gostam, embora não ousem confessá-lo - Infelizmente não sabes a história toda. Contar-ta-ia, se pudesse.

      - Apenas os essenciais interessam. Há dois anos chegaste a Savannah e transtornaste a pequena existência de Nancy Gregory. Provaste que os bens do pai dela, administrados por ti, podiam render dez vezes mais do que ela pensava e desfizestes as suas esperanças de conservar Sangaree nas suas condições. Naturalmente, empregou contra ti todas as armas a que pôde deitar mão. Mas que interessam as armas, agora que levaste a melhor?

      - Não estejas muito certo disso; tenho ainda de prestar as últimas contas. Sam e eu temos de provar ao juiz Armstrong, de maneira a não lhe deixar dúvidas, que a Companhia Darby é de facto proveitosa.

      - Depois disso governarás permanentemente, de acordo com os desejos expressos no testamento de Victor Darby. Sabes tão bem como eu que a aprovação de Armstrong é uma mera formalidade.

      - É verdade que ganhámos uma fortuna razoável no nosso segundo ano, mas não o é menos que pouco do dinheiro ganho está nas nossas mãos: mais de doze mil libras foram parar às algibeiras dos nossos rendeiros, em Darbyville.

      - Mas com certeza isso conta como lucro, numa sociedade como a vossa.

      - O Armstrong talvez não seja dessa opinião. Na realidade, depois de pagarmos esta semana aos empregados, receio que sejamos obrigados a começar a pedir empréstimos por conta dos nossos próximos embarques.

      - És um idiota, Toby. Porque não esperaste pela prestação de contas para distribuir os lucros?

      - Os rendeiros precisam tanto de comer como os proprietários, Gabe.

      O jornalista deu uma volta pelo gabinete, em passadas longas e nervosas, e parou junto da secretária, a ler um dos livros abertos.

      - Se leio bem os algarismos do Leary, esses embarques montam a uma fortuna.

      - É verdade. Tenho uma dúzia de comerciantes ingleses ansiosos por receberem agora o nosso tabaco e outros tantos dispostos a pagar a Nancy o arroz. Mas, antes de receber um cêntimo, tenho de assegurar os embarques. - Os seus olhos fugiram para a janela aberta, através da qual se via o porto. - Quantos barcos contas esta manhã nas nossas docas?

      Gabriel suspirou e pediu-lhe:

      - Responde-me francamente a uma pergunta: tentas falhar por razões que só tu conheces?

      Toby brindou o jornalista com o mais ingénuo dos sorrisos:

      - Porque tiveste semelhante ideia?

      - Primeiro, atiraste pela porta fora todos os lucros, no pior momento possível; segundo, anunciaste uma ameaça de peste quando os teus armazéns estão a abarrotar.

      - Houve nove óbitos motivados pela peste em duas semanas, sem contar com as que Bristol deve ter ocultado nas suas instalações de escravos a montante do rio. Como delegado de saúde desta cidade, não me restava outra solução além de encerrar o porto.

      Gabriel voltou a suspirar, com cinismo.

      - Sim, estou ao corrente da batalha que travaste esta manhã na sala do conselho. A eloquência anda depressa em Savannah... Sei que conseguiste colocar o Bristol numa situação que o obrigará a lutar em campo aberto ou a rastejar e, embora te aplauda como devo, creio que tudo isso leva água no bico...

      Estabeleceu-se silêncio entre os dois amigos, um estranho silêncio hostil que Toby não fez menção de quebrar. Quando Gabriel voltou a falar, a suz voz soou ríspida como o de um professor irritado com um aluno teimoso.

      - Será possível que queiras ver a companhia falhar? Estarás resolvido a render-te a Nancy, depois de tudo quanto tem acontecido, e a deixar Savannah? Se assim é, não vejo de facto motivo para malar Pagnol.

      - É a primeira coisa acertada que dizes.

      - Devo desasá-lo apenas, amanhã, e deixá-lo desposar Nancy? Tenho a certeza de que dará um maravilhoso senhor de Sangaree.

      - Não podes poupar-me nada, Gabe?

      - Disparatamos um com o outro, nem? É mais natural assim. Confessas que tens de dominar a rapariga ou te considerarás um falhado?

      - Confesso que nada me agradaria mais do que fechar amanhã mesmo a porta deste gabinete e dizer adeus a Savannah.

      - Eis um sentimento hipócrita, impróprio de um pioneiro, sobretudo de um pioneiro chamado Tobias Kent. Como poderás ser verdadeiramente feliz se voltares as costas àquilo que de facto queres?

      - Não tenho o direito de ser juiz da minha própria felicidade?

      - Diabos te levem, doutor, não tens! Amanhã afastarei do caminho o capitão Pagnol, que parece ser a principal ameaça à tua felicidade, e depois de amanhã obrigarei a doce Nancy a confessar que és o seu senhor e que te amou loucamente desde o princípio.

      - Impões-te uma grande tarefa...

      - O tempo o dirá. Entretanto, servir-me-ás de padrinho quando levar o francês à ilha do Rei. McIntosh prometeu já que presidiria.

      - Disseste ilha do Rei?

      - Pagnol concordou comigo em que era um lugar perfeito. Desculpa, Toby, devia ter-te dito que o duelo será no estilo de Nova Orleães. - O jornalista abriu a carteira e atirou para cima da secretária uma folha de papel. - Aqui tens uma cópia do cartel. Publicá-la-ei no Mercury da próxima semana, para proporcionar aos meus leitores um pouco de drama genuíno. Se morrer, a minha ousadia fá-los-á vibrar; se viver, escreverei um editorial a amaldiçoar o duelo do pântano como restos de barbarismo.

      - Quantos duelos de pântano travaste, Gabe?

      - Este será o primeiro. Graças aos meus antecedentes, espero apreciá-lo bem.

      Toby passou uma vista de olhos pelo cartel, de testa franzida. As condições do duelo eram simples e rigidamente conformes ao código. Gabriel e Pagnol concordavam em encontrar-se na ilha do Rei, uma língua de areia pantanosa a meio do rio, a menos de duas milhas da encosta de Savannah. Com a forma de um rectângulo irregular de uns seiscentos metros de comprimento, a ilha do Rei tinha uma vegetação densa e emaranhada de carvalhos anões e palmitos, no meio, e margens lamacentas, com erva alta. Os protagonistas do duelo, estipulava o cartel, deviam entrar na selva pantanosa por lados opostos da ilha, depois de determinado sinal e armados apenas com uma pistola de duelo e uma faca de bainha de quinze centímetros, e perseguir-se-iam silenciosamente, por entre o matagal, até a honra ser satisfeita.

      - De quem foi a ideia? Tua ou de Pagnol?

      - Dele, naturalmente. Como fui eu que o desafiei, competiu-lhe escolher o terreno e as armas. Ao que parece travou uma dúzia de duelos semelhantes em Nova Orleães e saiu com vida para se gabar deles. Tenciono interromper-lhe a maré de sorte, amanhã entre o escurecer e a meia-noite.

      - Não podem lutar às escuras!

      - Continua a ler, Toby. O cartel estabelece que deve estar luar.

      Os protagonistas deviam escolher a primeira noite de luar e embarcar em segredo nas docas Darby. Gabriel e o seu padrinho partiriam primeiro, levando consigo o presidente; Pagnol e o seu padrinho - um coronel Ollonais que Toby se lembrava de ver permanentemente no bar da Tondee - partiriam pouco depois. Os padrinhos encontrar-se-iam em terra firme, na margem ocidental da ilha, e verificariam e distribuiriam as armas na presença de McIntosh, que ali ficaria enquanto decorresse o duelo. Cada um dos padrinhos conduziria então o adversário do seu afilhado para extremos opostos da ilha, e levariam lanternas, mas apenas para eles próprios se orientarem. Um tiro de pistola de McIntosh assinalaria o início do prélio. Assim que os protagonistas desaparecessem no matagal, cumpria aos padrinhos ficarem imóveis atrás das suas lanternas, que só voltariam a ser utilizadas depois de se ouvirem tiros ou quando um dos contendores estivesse tão ferido que gritasse por socorro.

      - Nota que McIntosh e Ollonais já assinaram - observou Gabriel. - Há um espaço vazio para a tua assinatura, debaixo da minha.

      - E se eu levar este cartel ao conselho e denunciar o conluio?

      - Como podes fazê-lo, se o McIntosh é presidente de ambas as coisas?

      Toby praguejou e apôs a sua assinatura ao documento.

      - Irei por uma razão apenas: vais precisar dos serviços de um cirurgião. É uma pena que não possa tirar-te o suposto cérebro e dar-lhe uma afinação.

      - Affaire entendue, mon vieux, como diria o capitão Pagnol. - Gabriel levantou-se, dobrou o papel e meteu-o na carteira. - Já que estivemos a falar de duelos, vou deixar-te com um pensamento especial: Harvey Bristol está em Savannah.

      - Nada tenho a ver com Harvey Bristol.

      - Talvez o Roy tenha.

      - Fala claro, Gabe.

      - Onde tens andado desde que Martha Darby partiu para Charleston? Não ouviste dizer que esteve lá a viver com o Harvey, quase às escâncaras?

      Toby deu uma punhada na mesa, irritado:

      - Não digas coisas que não podes provar! - Ele próprio ouvira o boato de uma dúzia de bocas, mas cerrara os ouvidos, por amor de Roy.

      - Viste-a desde que regressou... ou não te atreveste?

      - Porque não havia de atrever-me?

      - Sabemos ambos que é uma meretriz, Toby. Se não aproveitaste enquanto o Roy esteve em Londres, a culpa foi apenas tua. - Gabriel fechou os olhos, como quem se entrega a uma recordação perturbante, e suspirou. - Claro que aproveitar os favores de Mrs. Darby em casa, entre amigos, é uma coisa; conceder tal prerrogativa a Harvey Bristol é outra.

      - Porque não o desafias a ele, depois de te livrares do Pagnol?

      - Creio que é privilégio do Roy fazê-lo, e receio bem que ele o exerça, sobretudo agora, que Harvey ousou segui-la a Savannah. Já ouviste dizer que viajou no negreiro, depois de ter sido recusado a este atracar em Charleston?

      - O único passageiro além dos ratos e dos quatro negros do porão...

      - Se queres que te diga, veio em excelente companhia. Enfim, o que interessa é que parece ter vindo para ficar, provavelmente para oferecer à manta de toucinho do pai um pouco de apoio financeiro e moral. Roy não terá outro remédio senão desafiá-lo. Há certas coisas que nem aqui, neste canto da Jórgia, podemos tragar.

      - Assassinará Roy a sangue-frio.

      - Precisamente. Tenho espremido os miolos a ver se arranjo maneira de adiar o encontro... Porque não espremes também os teus um pouco? - Gabriel voltou-se para a porta, mas deteve-se, antes de sair: - A propósito, onde se encontra hoje o marido enganado?

      - A visitar doentes acima de Darbyville.

      - Graças a Deus, pois isso significa que até amanhã não poderá desafiar Harvey. Talvez nem depois de amanhã, se for tão imune aos mexericos como é costume. Claro que não deixará de saber a verdade... Aconselho-te, pois, a fazer qualquer coisa, enquanto é tempo.

      - Tens alguma sugestão?

      - Uma apenas... se a tomares em consideração. Podias escrever para Sangaree e pedir à encantadora Mrs. Gregory que intercedesse junto de Harvey. No fim de contas, era seu noivo ainda não há muito tempo!

      - Se pensas que levantará um dedo...

      - Roy é irmão dela, lembra-te. Não o deixará morrer, se puder evitá-lo.

      Toby ficou muito tempo sentado à secretária, depois de Gabriel partir. Tinha novamente a sensação, nem por isso muito desagradável de se encontrar na crista de uma onda que o transportava inexoravelmente para o âmago de uma crise que não poderia dominar. Sem dúvida o conselho final de Gabriel fora excelente; se Nancy pudesse, de facto, salvar Roy Darby das balas de Harvey, competia-lhe chamá-la imediatamente... Um bilhete impessoal mandado entregar por Priam, que demonstrara ser um bom barqueiro desde que tivera alta da clínica... Pensando melhor, precisaria de Priam para o duelo do dia seguinte, na ilha do Rei. Billy viajaria ainda mais depressa, a cavalo.

      Não falara nem escrevera a Nancy desde a noite em que lhe salvara a vida; um formal bilhete de agradecimento, mandado de Sangaree, fora o único sinal que ela dera de conhecer a sua existência, nos passados quatro meses. Toby, porém, mantivera-se informado, quer pelos relatórios de Roy acerca da sua rápida convalescença da operação ao mastóide, quer pelas notícias que os próprios escravos de Nancy traziam, quer ainda por intermédio de doentes de Savannah, que tinham jantado com ela em Sangaree. Aparentemente, passava todo o tempo na casa senhorial, a aperfeiçoar o verde brilhante e aveludado dos jardins e a acrescentar mobília nova, de Londres, às suas salas. Diziam as más línguas que preparava o cenário para a reabertura de Sangaree, depois de anunciar o seu casamento com Pagnol...

      Mas Pagnol podia morrer no dia seguinte, graças ao capricho quixotesco de Gabriel. Como se arranjaria Nancy se o protector desaparecesse? Quem lhe asseguraria o bem-estar se Roy fosse também abatido pelo implacável machado do código dos duelos?

      Pegou numa pena e escreveu rapidamente, sem se deter a burilar os pensamentos. Como queria despir a carta de todo o sentimento, as primeiras palavras que lhe ocorreram serviram muito bem.

     

      Mrs. Gregory:

      Surgiu uma situação que exige a sua presença imediata em Savannah. Creia que não lhe faria este pedido se a necessidade não fosse urgente.

      Quererá fazer o favor de passar pela clínica assim que chegar e perguntar por mim ou por Roy?

      Talvez deva acrescentar que o assunto em nada me respeita.

      Criado às suas ordens,

      TOBIAS KENT.

     

      Palavras frias, mas convincentes. Tinha quase a certeza de que a fariam correr para Savannah a toda a velocidade. Selou a carta com o sinete Darby e hesitou, já com a mão no cordão da campainha. Roy estaria em Darbyville até tarde do dia seguinte, e Roy era a causa imediata da carta. Se Billy partisse agora para Sangaree, chegaria ao fim da tarde e Nancy poderia vir antes de escurecer... Não, guardaria a carta até ao dia seguinte. Era certo que Nancy não chegaria a tempo de interceder pelo apaixonado, mas Pagnol saberia defender-se de Gabriel.

      Fechou a carta na gaveta e limpou o tampo da secretária com um movimento do braço. Doravante, a batalha que se travaria para lá do armazém Darby não precisaria de livros. Quanto a Nancy... bem, no dia seguinte reflectiria na conveniência de mandar-lhe a carta.

      Desceu ruidosamente a escada, evitou o olhar dos escriturários, saiu do- edifício sem se voltar uma única vez e pôs-se a caminho da Tondee. Esperava-o o rum e o esquecimento familiar que lhe proporcionava. No dia seguinte teria tempo de enfrentar os seus problemas. Nos últimos meses habituara-se a pagar por esse preço o sossego relativo das suas noites e por isso sabia que estaria sóbrio quando chegasse a altura de partir com Gabriel para a ilha do Rei.

      O remo de Priam, descrevendo um arco largo na água negra do rio, afastou a barcaça do cais Darby. O aviso do negro, pronunciado em tom suave, permitiu aos três passageiros baixarem a cabeça a tempo quando a embarcação passou pesadamente pelo labirinto de cabos da doca e alcançou a corrente. Os quatro barcos costeiros e os dois escaleres que se viam no rio pareciam enormes naquela noite, contra o claro céu nocturno, agora que o último navio mercante abandonara a enseada. McIntosh, a tremer de frio, estendeu o punho fechado à primeira bóia deserta que viram.

      - Falando de ratos, Kent, que me diz dos comandantes que fugiram sem cumprir os contratos?

      - O boato alastra como azeite, senhor. Nunca se sabe onde vai parar.

      - De acordo, doutor, mas como podiam adivinhar, esta manhã, que íamos fechar o porto?

      - Toda a Savannah o soube, Mr. McIntosh, graças as janelas abertas da sala do conselho. Porque não haviam de sabê-lo também os nossos visitantes de além-mar? - Toby conseguiu sorrir, apesar da preocupação e da humidade pesada da noite de Abril. - Olhe para cima, um ponto a estibordo, e verá um barco que não fugiu.

      Calaram-se quando o bergantim saiu de uma baía oculta, do lado da Carolina. Era um barco alto e imponente, que navegava facilmente ao sabor do vento oeste e aproveitando o impulso da corrente, como se lhe fosse devido. Priam, agarrado com força à vara, rumou para montante nas águas baixas junto à margem sul, mantendo-se instintivamente muito distante do bergantim.

      - Não me diga que é o seu barco-hospital, Dr. Kent?

      - É, é o Lady Oglethorpe. Agora está deserto, apenas com uma tripulação fantasma. Tem ordens para atracar no cais Darby, até arranjarmos mais pacientes - o que praza a Deus não aconteça!

      - Toda a Savannah perguntava onde o teria atracado - murmurou McIntosh com um assobio de admiração, enquanto se levantavam todos para verem o bergantim deslizar suavemente rio abaixo. - É um nobre barco para servir de enfermaria, se me perdoa o comentário, doutor.

      - Os doentes merecem o melhor que pudermos dar-lhes, Mr. McIntosh - redarguiu Toby, secamente. - Alguma vez lancetou um bubão de peste e aguardou que a febre baixasse?

      Gabriel, encolhido num canto do banco da proa, pigarreou com pouca delicadeza e observou:

      - Com licença dos cavalheiros, lembro-os de que me conduzem para a ilha do Rei e para um duelo provavelmente fatal.

      - Foi você que escolheu o terreno, Mr. Thatch - respondeu-lhe McIntosh, em tom brusco.

      - Eu e o capitão Pagnol. Por enquanto, não me arrependo, meu caro; está uma noite ideal para uma sangria.

      Toby levantou os olhos para a abóbada cor de cobalto do céu e concordou silenciosamente com a afirmação do amigo. Graças ao luar que iluminava prodigiosamente terra e rio, toda a paisagem jorgiana parecia banhada numa radiância de mercúrio; as sombras das palmeiras ao longo da margem e os ramos altos e altivos dos pinheiros, recortados no céu, dir-se-iam desenhados pela mão de um artista cósmico, de um pintor cujo pincel era simultaneamente ousado e espontâneo. O próprio céu coalhado de poalha de estrelas parecia mais azul que negro, como se a lua alta e redonda houvesse criado uma magia especial, transformado a noite primaveril numa espécie de dia claro.

      - Uma noite ideal para bons atiradores, acho eu - comentou McIntosh. - No seu lugar, Mr. Thatch, rezaria para que surgisse uma nuvem ou duas, antes de ouvir o meu sinal.

      - Não se preocupe, senhor. Priam, olha para trás e vê se o meu adversário já vem a caminho.

      - Vem atrás de nós uma chalupa, Mist' Gabe. Talvez duzentos metros à ré, talvez mais...

      Priam pilotava por instinto, aproveitando todos os palmos de água calma, evitando raízes submersas por escassos centímetros, esquivando-se ao impulso da maré com toda a perícia de uma lontra marinha. No entanto, embora consciente da habilidade do negro, Toby sentia-se vagamente inquieto. Havia em Priam um não sei quê de pré-histórico, a maneira extraordinária como lutava com o Savannah tinha qualquer coisa que não parecia natural. Quase se arrependia de não o ter mandado levar a carta a Sangaree e trazido Billy para a ilha do Rei. Animava-o, pelo menos, a canoa que dançava no proiz, na popa quadrada da embarcação, e na qual mandaria Priam voltar para a doca Darby. Na viagem de regresso, quer Toby, quer McIntosh, tudo dependia do resultado do duelo, manobrariam facilmente a barcaça, ajudados pela maré enchente.

      - Quem vem aos remos? Pagnol ou Ollonais? - perguntou Gabriel.

      - O cronel, Mist' Gabe. O capitão descansa à proa, como o doutor.

      - Com este andamento, chegaremos à ilha com boa meia hora de avanço. Pára num remanso, Priam, para se aproximarem um pouco de nós e se preocuparem um pouco, por ignorarem o que fazemos.

      - Não, Mr. Thatch - recusou McIntosh friamente, quando o negro se preparava para obedecer a Gabriel. - Poderei aproveitar a meia hora de avanço para inspeccionar o campo de honra, se é que pode chamar-se campo de honra à ilha do Rei.

      - O coronel Ollonais e eu inspeccionámo-la toda, esta manhã - informou Toby. - Aceita a minha opinião de que a considero campo de batalha aceitável para dois inimigos... desde que sejam ambos experientes galinhas de água?

      - Se me permite, creio que encara o assunto de ânimo assaz leve, doutor.

      - Não mais leve que o do nosso protagonista, creio. Gabriel soltou uma gargalhada.

      - Para o coronel McIntosh, o nosso negociozinho desta noite é uma dança macabra; para mim, é uma ópera bufa. Como o patife do meu antagonista diria, chacun à son goút.

      McIntosh, que não sabia francês, mexeu-se no lugar, inquieto.

      - Se gosta de troçar da morte, Mr. Thatch, talvez seja melhor conservar-se calado.

      Ninguém voltou a falar até a ilha do Rei surgir, ao longe. A embarcação deslizou suavemente na água parada, a sotavento da ilha, e o emaranhado de árvores e erva ergueu-se como uma parede contra o céu banhado de luar e pareceu pairar sobre a proa.

      - Vês a praia,- Priam?

      - Está mesmo à frente, Mist' Toby.

      O fundo tocou na areia e Toby saltou para terra, satisfeito por poder mexer-se. Com McIntosh na amurada oposta e Priam a manejar a vara com toda a força, foi fácil levar a embarcação para a praia, ao abrigo do impulso da maré. Gabriel, como convinha a um duelista que devia poupar as forças, continuou sentado à proa e só saltou quando encontrou terra seca.

      - Afinal o nosso adversário despachou-se - comentou. - Já aí vem.

      A chalupa surgia, de facto, naquele momento, à vista. Surpreendido, Toby notou que Pagnol empunhava um remo. Os dois veteranos de D'Estaing conjugavam os seus esforços para apressar o andamento da embarcação.

      - Parece tão ansioso por combater como eu - observou Gabriel. - Será isso bom ou mau presságio?

      Ninguém respondeu à pergunta irreverente e os dois franceses saltaram para terra. Até o jornalista pareceu compenetrar-se de que o tempo das irreverências passara. Pagnol vestia todo de negro, com as bandas da sobrecasaca abotoadas até ao queixo, e foi como perfeito duelista que se inclinou sucessivamente diante de cada um dos americanos. Por contraste, o coronel Ollonais, de uniforme branco, parecia preparado para uma parada inexistente. As medalhas do lado esquerdo do peito brilhavam ao luar e as pernas gordas, metidas nas resplandecentes botas altas, negras, davam-lhe um ar de mestre de dança avantajado, quando bateu os calcanhares diante de Toby.

      - Le Nègre... pourquoi es-t-il ici?

      - Inglês, Jules, por favor - recomendou Pagnol. - Não me oponho à presença do escravo do Dr. Kent.

      - O cartel não alude a nenhum barqueiro negro.

      - Priam deixará imediatamente a ilha - afirmou Toby. - Veio apenas para nos mostrar o curso.

      - Vai mandá-lo, então, para Savannah?

      - Com sua licença, coronel Ollonais.

      - Mas será costume os negros viajarem sozinhos depois de escurecer, na Jórgia? - perguntou o gordo francês, todo empertigado.

      - Tem autorização escrita minha - respondeu-lhe McIntosh, igualmente empertigado.

      - Nesse caso, considerem a minha objecção retirada, cavalheiros.

      Ninguém se mexeu no semicírculo hostil quando Priam entrou na água até às coxas, desamarrou o bote preso à popa da barcaça e saltou para bordo. Petrificadas ao luar, as cinco caras brancas voltaram-se ao mesmo tempo para verem a pequena embarcação afastar-se. Uma vez na rota, pareceu ganhar asas e não tardou a desaparecer entre as sombras da outra margem.

      - Podemos começar, coronel? - perguntou McIntosh.

      - Às suas ordens, coronel - respondeu-lhe Ollonais.

      - Tenho conhecimento de que inspeccionou o terreno com o Dr. Kent.

      - Achámo-lo adequado, senhor.

      - E as armas?

      - Creio que é o senhor quem tem o estojo das pistolas. Nós trouxemos as facas.

      Mostrou as lâminas brilhantes, que passaram de mão em mão. Toby verificou que eram ambas facas de tabaco, com cabo de osso e bem afiadas. Com a que lhe coubera na mão, Pagnol girou nos calcanhares e lançou-a pelo ar. O grupo viu, em silêncio, a faca, que fora arremessada com o cabo para a frente, virar-se no ar e cravar-se quase totalmente no tronco esponjoso de um palmito, a bons nove metros de distância.

      - Uma arma bem lançada, cavalheiros.

      Gabriel riu-se, ergueu-se na ponta dos pés e atirou também. A sua espetou-se no palmito logo acima da do francês e ficou a vibrar, num desafio sinistro.

      - Epatant! - exclamou, irónico. - Posso perguntar-lhe onde adquiriu tal perícia, capitão?

      - No Canadá, quando era rapaz - respondeu-lhe o francês. - Com os coureurs de bois. E o senhor?

      - Em garoto, no sertão, com o meu amigo Dr. Kent.

      Tinham falado com perfeita cortesia, mas Toby sentiu o coração apertar-se-lhe ao notar o brilho dos olhos do francês. Estava quase certo de que Pagnol dissera a verdade. Se treinara, de facto, com os caçadores de peles do Canadá, aprendera a defender a vida em território índio, a esgueirar-se através de toda a espécie de vegetação e a aproveitar todos os abrigos naturais com a astúcia de uma cobra. Seria adversário mais que à altura de Gabriel, no estranho e mortífero duelo que os esperava.

      As pistolas de cano comprido passaram também de mão em mão, mas levaram mais tempo a verificar. Toby e Ollonais carregaram-nas, empurrando as balas forradas de cabedal contra as cargas de pólvora e o fecho bem lubrificado contra a pederneira.

      - Devo avisar ambos os interessados de que os dois gatilhos disparam à mínima pressão - advertiu McIntosh.

      Os padrinhos recuaram e o presidente ofereceu as pistolas, de novo no estojo, com um floreado. Como fora Pagnol quem escolhera as armas e o terreno, coube a Gabriel tirar a primeira pistola, que enfiou no cinto, quase sem a olhar. Os dois adversários tinham-se, entretanto, despido da cintura para cima e o francês sujara a cara e o tronco de lodo do rio, até lhes dar um tom preto. Gabriel, para surpresa de Toby, desdenhou tal precaução.

      - É meu dever pedir aos cavalheiros que se reconciliem antes que seja vertido sangue - declarou McIntosh. - Mr. Thatch, retira o que tornou público?

      - E fugia, assim, à minha responsabilidade de cidadão da Jórgia?

      - Já não é altura para retórica, senhor. Capitão Pagnol, o senhor desafiou segundo o código. Retira o desafio?

      - Como cidadão do mundo, considero o duelo inútil; como homem do mundo, sei que é inevitável no bárbaro século em que vivemos. Podia acrescentar que estou ao corrente das verdadeiras razões que levaram Mr. Thatch a desafiar-me, mas isso constitui o nosso segredo. Tendo em consideração a mentalidade do meu adversário, é imperativo que - como direi? - decidamos os nossos diferendos a tiro.

      Toby escancarou os olhos de espanto, ao ouvir a serena declaração, mas Gabriel permaneceu impassível. Dir-se-ia que já não se encontrava ali, como um desesperado que estudasse já a estratégia a empregar.

      - Dr. Kent, acompanhará o capitão Pagnol à ponta sul da ilha; coronel Ollonais, acompanhará Mr. Thatch à ponta norte. Pousarão as lanternas, ficarão ao seu lado e gritarão a informar-me de que o fizeram. O duelo começará quando disparar a minha pistola. - McIntosh respirou fundo e concluiu: - Não há mais regras além destas. Compreendido, cavalheiros?

      - Nunca foi tão claro na sua vida, coronel - respondeu-lhe Gabriel, e foi buscar a sua faca ao palmito.

      - Aos seus lugares, cavalheiros!

      O jornalista foi o primeiro a partir, com Ollonais a oscilar uma lanterna à sua frente. A selva pareceu engolir instantaneamente os dois homens, embora a luz brilhasse ainda por momentos entre o emaranhado de carvalhos e silvas. Por causa das botas pretas e das densas sombras do restolho, o uniforme do francês parecia cortado pela cintura e dava-lhe o aspecto de um fantasma inflado, a flutuar a caminho de qualquer sinistro rendez-vous no coração da ilha.

      - Quando quiser, Dr. Kent...

      Toby pegou na segunda lanterna, inclinou a cabeça a McIntosh e pôs-se a caminho. Pagnol, atrás dele, atirou a faca a um palmito, cravando-a no tronco. - É permitido seguir determinado caminho?

      - Com certeza. Como vê, o terreno apresenta-se razoavelmente limpo assim que se abandonam os palmitos da parte mais baixa. É possível atravessar a ilha do Rei em três minutos, de ponta a ponta, seguindo sempre pelo terreno mais alto.

      - Está a sugerir-me um plano de ataque, Dr. Kent? Toby encolheu os ombros e não respondeu. Como tivera ocasião de verificar, o restolho tornava-se muito menos denso quando se deixava a terra rica do nível do rio e se subia para a espinha arenosa da ilha. Aí, onde apenas alguns cedros torcidos pelo vento e um ou outro palmito proporcionavam abrigo, um homem podia namorar a morte à vontade, à luz do luar. No entanto, se estivesse habituado a cortejá-la em campo aberto, podia esgueirar-se de árvore para árvore, atrair um inimigo mais cauteloso, que preferisse o abrigo mais denso da vegetação da orla pantanosa, e disparar à vontade, quando a restolhada de um palmito traísse a presença do alvo.

      - Naturalmente não se sente com vontade de conversar a esta hora, doutor?

      - Naturalmente.

      - Não obstante, há uma coisa que preciso de lhe dizer, prevendo a hipótese de não regressar para lha dizer mais tarde.

      A lâmina afiadíssima da faca de tabaco espetou-se mais uma vez num tronco, a poucos centímetros da cabeça de Toby. A lanterna tremeu-lhe na mão, quando ouviu o assobio do aço, e a pele da cabeça arrepiou-se-lhe, ao compreender que Pagnol, se quisesse, poderia liquidá-lo com a maldita faca, como um lavrador a abater um leitão.

      - Creio que, nas circunstâncias, nada temos a dizer um ao outro.

      - Pelo contrário, temos muito que dizer e quase nenhum tempo. Por isso serei breve. Primeiro, ambos sabemos que Mr. Thatch resolveu matar-me esta noite por lealdade para consigo; segundo, a causa verdadeira deste duelo não é um desacordo político, como McIntosh crê, mas Mrs. Gregory.

      - Escusamos de meter Mrs. Gregory nisto!

      - Como, se ela é o pomo da discórdia?

      Toby encolheu de novo os ombros e seguiu em frente. De súbito, Pagnol agarrou-o por um ombro e fê-lo voltar-se, ao mesmo tempo que o empurrava contra o tronco de um cedro. Com a mão livre, encostou-lhe a ponta da faca à garganta e manteve-o assim prisioneiro.

      - Foi sempre teimoso e corajoso, doutor, mas não acredito que seja também estúpido. Pensa, de facto, que Nancy Gregory foi minha amante? Ou que tenciona desposar-me?

      Toby quis falar, mas a ponta da faca apoiou-se com mais força à sua carne e obrigou-o a calar-se.

      - Ou que paguei a dívida que contraíra para com o pai dela por outros motivos que não fossem os da amizade? - Semicerrou os olhos, furioso, e Toby sentiu o bico gelado da faca esfolar-lhe a pele. - É verdade que quis casar com ela, que o desejei de todo o coração e que sempre o desejarei. Mas Nancy Gregory não me aceitará sejam quais forem as condições. Será preciso dizer-lhe porquê?

      - Imagina, acaso, que me interessa?

      - Terei de dizer-lhe porquê, Toby Kent? É ainda uma criança nas coisas do amor?

      Pagnol baixou a faca, cuja lâmina brilhou à luz da lanterna, e Toby soltou um longo e profundo suspiro, enquanto continuaram a olhar-se na sombra cor de tinta do cedro.

      - Honra-me a sua confidência, capitão Pagnol - murmurou por fim. - Posso gritar ao McIntosh que suspenda o duelo?

      - De modo nenhum. Tenciono saborear esta caça ao homem tanto como Mr. Thatch.

      - Mas como posso permitir que arrisque a vida, se é verdade o que me disse?

      - Continue a guiar com a lanterna, senhor. A vida é minha, posso arriscá-la como entender.

      - Repito, vou gritar a pedir tréguas e insistir em que o duelo seja anulado!

      Desta vez a faca assentou-lhe nas costas, picando-lhe a carne através da casaca.

      - Siga para o lugar escolhido, doutor. Gritará que estamos prontos, apenas. Uma palavra mais, e trespasso-lhe o coração. Estudei anatomia, em tempos, e não me custará nada encontrar o órgão em questão.

      Tropeçando um pouco ao chegarem de novo ao lamaçal, percorrendo penosamente os últimos trinta metros de restolho denso, Toby obedeceu. Chegados ao seu destino, pousou a lanterna no toco apodrecido de um palmito e parou, com a água do rio a dar-lhe pelas canelas. Pagnol, com a faca ainda encostada às suas costas, parou também. Naquele momento, ouviram Ollonais gritar o sinal do outro extremo da ilha, com a voz abafada pelo matagal que os separava. - Não me diga que um francês é capaz de gritar mais alto que um americano, doutor...

      - Isto é loucura, capitão.

      - Repito-lhe que quero saboreá-la. É verdade que cacei com os coureurs de bois, na minha juventude, mas dou-lhe a minha palavra de que não matarei Mr. Thatch, se puder feri-lo com segurança.

      A faca exerceu maior pressão e Toby sentiu sangue quente, sob o cinto. Instintivamente, levou as mãos à boca e soltou um urro animal, que não ficou a dever nada ao de Ollonais, pelo contrário. Quase no mesmo instante, o sinal da pistola de McIntosh rasgou a noite, como um trovão.

      - Au revoir, docteur. Deseja-me sorte?

      Voltou-se, quando deixou de sentir a pressão da faca, mas Pagnol desaparecera já, como se nunca tivesse existido. Uma leve restolhada entre os palmitos e um som de pés a correr velozmente informaram Toby de que o francês se dirigira para o espinhaço da ilha tão' depressa como um cão de caça, embora nenhuma sombra assinalasse o seu avanço.

      De súbito, o ruído de passos morreu. Toby começou a levantar a lanterna, mas lembrou-se a tempo de que os seus deveres de padrinho eram bem definidos. Aventurou-se a avançar um passo na direcção do terreno mais alto, enquanto os seus olhos se esforçavam por penetrar a escuridão. Muito ao norte, ouviu Gabriel correr pelo restolho e calculou que o jornalista ignorara todas as cautelas na febre de chegar depressa ao melhor local de emboscada. Se Pagnol já lá se encontrava, o duelo terminaria em breve.

      - Venha apanhar-me, Thatch!

      O desafio pareceu provir quase do seu lado, mas Toby tinha a certeza de que o francês avançara bons trinta metros para norte. Gabriel respondeu com um grito de guerra Choctaw. O médico apurou o ouvido e ouviu o ranger da areia ao longo da encosta, sinal de que Pagnol se deixara também de cautelas e avançava para terminar rapidamente a contenda. Decorridos dez angustiosos minutos, ouviu um leve ruído vindo do lado da água, como se uma toninha rolasse na maré. Mas ele sabia que as toninhas raramente vinham tão longe, a montante do rio. Seria possível que Gabriel se tivesse lembrado de entrar no Savannah para atacar Pagnol pela retaguarda?

      - Onde está você, Thatch? Tem medo de lutar?

      À pergunta respondeu novo grito de guerra de Gabriel e o estalar de palmitos. Era evidente que o jornalista não fora para o rio... No entanto, Toby tinha a certeza de que qualquer coisa se mexia, à beira-d'água. A noite estava negra e opaca como veludo, agora que a lua se escondera entre as nuvens, mas ele sabia instintivamente que o “qualquer coisa” era humano e nadava cautelosamente na direcção do círculo da luz da lanterna.

      Com igual cautela, Toby recuou um passo, até ficar na penumbra do clarão da lanterna. A Lua começava a libertar-se da nuvem que a ocultara, o que lhe permitia distinguir os contornos das árvores. O Savannah continuava, porém, mergulhado em trevas quando Gabriel gritou outra vez, do alto do espinhaço.

      O disparar quase simultâneo das duas pistolas pareceu rebentar os tímpanos do médico. Cedros e palmitos surgiram fantasmagoricamente iluminados, por uma fracção de segundo, graças ao clarão sulfuroso dos tiros sucessivos. Toby atirou-se instintivamente para o chão, apoiado nos joelhos e nas mãos, mas compreendeu que o tiro de Gabriel assobiara inofensivamente, por cima da sua cabeça, e que o de Pagnol parecia, pelo contrário, ter acertado no alvo-disparado, talvez, de um abrigo bem escolhido. Esmagado por essa convicção e ainda um pouco surdo pelas detonações, não reparou que à beira do rio acabava de erguer-se um vulto enorme e negro, e só ouviu o pisar de pés descalços na margem lodosa quando esse vulto negro se preparava para atacar.

      Percebeu-o a tempo de salvar a vida, mas com pouquíssima margem. Os braços pretos, ágeis como duas cobras, quase se lhe cerraram nos ombros; dedos negros procuraram-lhe a garganta, para a apertarem, e o inimigo caiu-lhe em cima, por trás, como um pesadelo tornado visível, no intuito de estendê-lo no chão, de cara para baixo. Numa fracção de segundo antes de a tragédia se consumar, Kent lembrou-se do velho truque do exército: dobrou o corpo pelos quadris, atirou-o todo para a frente e lançou o atacante, de cabeça, para os palmitos. Levantou-se antes que o homem se recompusesse e saltou por sua vez, tentando agarrar em qualquer ponto aquela carne negra e nua, que parecia lisa como a pele de uma morsa.

      Por momentos lutaram desesperadamente, às cegas, a soco e a pontapé, empenhados ambos em agarrar-se e não permitir ao adversário fazer outro tanto. Foi a vez de o negro arquear as costas e atirar Toby pelo ar. Conseguiu levantar-se num abrir e fechar de olhos e afastar-se do círculo de luz projectado pela lanterna, antes que o adversário renovasse o ataque. Momentaneamente oculto na sombra de um oleandro, verificou que a Lua se libertara por completo e a sua luz empalidecia a da lanterna. Ao longo da margem, o luar banhava tudo de uma claridade que não lhe deixou dúvidas quanto à identidade do atacante: Priam estava agachado, com as mãos e os joelhos em terra, e os olhos rolavam-lhe nas pálpebras, em busca da presa perdida.

      Não lhe deixaram dúvidas, também, o rugido animal do barqueiro, quando descobriu Toby na sombra precária do oleandro, nem o silvo súbito da faca, que cortou os ares e foi cravar-se, até ao cabo, na base do crânio do negro, nem o grito sufocado de Priam, quando caiu à beira-rio.

      Pagnol entrou no círculo de luz da lanterna quando a Lua se escondia outra vez, atrás de outra nuvem, com a pistola ainda a fumegar pendente do pulso direito. Sorriu a Toby, em silêncio, e depois baixou-se e voltou o rosto do escravo para cima.

      - Felizmente para si, doutor, consegui atrair Mr. Thatch suficientemente perto para lhe poder ser útil, depois.

      Toby verificou que se amparava com uma das mãos no ombro do francês. Olhou para Priam, enquanto O' seu cérebro procurava ainda fugir do medo, de um medo que não era menos real por a sua causa ter sido abatida.

      - Suspeitei de qualquer coisa parecida assim que reconheci o negro - disse Pagnol - e as minhas suspeitas confirmaram-se ao ver a alacridade com que nos deixou, antes do duelo. Por isso, como verifica, esforcei-me por lutar o mais perto possível da sua lanterna e Mr. Thatch colaborou, sem o saber. Se subir aquela encosta, encontrá-lo-á caído numa pequena clareira, com uma bala num braço. Embora o meu exame tenha sido superficial, não creio que o osso esteja partido.

      Toby conseguiu falar, por fim, embora quase inaudivelmente:

      - Porque... voltou aqui? Devia... ter ido juntar-se a... McIntosh.

      - Sim, segundo as leis do duelo. Na minha opinião, porém, a sua vida era mais importante do que as formalidades.

      - Mas como podia saber que ele...? - Ainda atordoado, Toby não concluiu a frase e apontou o corpo caído a seus pés.

      - Não ignora, com certeza, que os Bristols tinham resolvido assassiná-lo há algum tempo? Claro que, para isso, aguardavam um momento ideal, para que as suspeitas não recaíssem neles. E que melhor oportunidade que a desta noite, com uma lanterna a guiar os passos do assassino e um abelhudo francês à mão de semear, sobre o qual lançar, depois, as culpas?

      - Falou nos Bristols, capitão...

      - Precisamente, mas referia-me sobretudo ao patife do filho.

      - Mas Priam era escravo de Mrs. Gregory!

      - Continua tão cego que ainda considera Nancy Gregory sua inimiga?

      - Foi ela que me deu Priam, há meses.

      - E por isso, segundo as suas teorias, é cúmplice dele! Não lhe ocorreu que Priam tivesse tido outros donos antes de Mrs. Gregory o comprar? Nem que ele podia ser mais leal a esses anteriores proprietários que a si? Nem, finalmente, que podia aceitar as ordens e os subornos deles?

      - Quer dizer que Priam pertenceu em tempos a Harvey Bristol?

      - Em Havana, doutor, no fim da guerra. Os nomes e as datas estão registados nos livros de leilão, para quem os quiser ler. Diria até, doutor, que Harvey Bristol poderia libertá-lo de várias perguntas que ultimamente lhe têm tirado o sono. Porque não tenta arrancar-lhe as respostas?

      - Porque não me leva junto de Gabriel?

      - Como quiser, doutor - respondeu, com um encolher de ombros. - Creio, no entanto, que não esquecerá a sugestão que lhe fiz e que, mais cedo do que imagina, a porá em prática. No fim de contas, Harvey Bristol está em Savannah.

      - Encontra-se um homem ferido à espera! Quer fazer o favor de me conduzir junto dele?

      - A ferida não é grave, doutor, pode esperar. Já não posso dizer o mesmo dos seus falsos juízos; com o tempo, darão cabo de si.

      Mergulhou no emaranhado de palmitos, com a lanterna levantada na mão, e Toby seguiu-o, cambaleante, como se os dedos de Priam ainda procurassem cravar-se-lhe na garganta. O grito de boas-vindas com o qual Gabriel saudou a chegada do francês tinha um timbre encorajador, visto tratar-se de um ex-inimigo.

      - Talvez possa ajudá-lo a pensar a ferida, doutor - ofereceu-se Pagnol. - Tenho a certeza de que a sua sondagem encontrará depressa a bala... Compreende, fui estudante de anatomia, em tempos... e pode dizer-se que esse facto salvou a vida do seu amigo, esta noite, assim como a sua.

      Na clareira banhada de luar da ilha do Rei, Gabriel submetera-se sem um queixume à faca de Toby, e na barcaça repousara o melhor possível, enquanto desciam o rio com o corpo de Priam debaixo de um monte de sacos. Agora, na cama da clínica e com os dedos de Roy pousados no ombro, o jornalista pairava como de costume, enquanto Toby limpava pela segunda vez a ferida e aplicava um penso novo.

      - Onde está o meu feliz adversário? Gostaria de o felicitar pessoalmente.

      - E se te deixasses de brincadeiras? - protestou Toby. - Dois centímetros mais acima e à esquerda, e estarias a fazer companhia ao Priam.

      - Estou ainda à espera de que me expliquem o que se passou com o escravo.

      - Já te disse que precisas de descansar. Amanhã haverá tempo para explicações.

      - Deixa-me, ao menos, felicitar Pagnol.

      Em vez de lhe responder, Toby estendeu-lhe um copo. Gabriel levou-o aos lábios, fez uma careta ao provar o calmante e despejou-o em dois goles rápidos.

      - Talvez não acredites que me diverti, apesar da derrota; mas acredita, pelo menos, que tinha os teus interesses a peito... embora me enganasse a respeito do francês.

      - Eu acredito, Gabe, mas agora descansa.

      - É verdade que parte amanhã para Charleston, a fim de embarcar para França?

      - Foi o que me disse quando nos separámos, na ilha. Aceito a sua palavra.

      Gabriel voltou-se, sarcástico, para Roy e perguntou-lhe:

      - Sabias que o indivíduo não tinha intenção nenhuma de casar com a tua irmã?

      - Sabia, há algum tempo já. ultimamente, Nancy não anda com disposição para casamentos. Posso acrescentar que Pagnol tem no estrangeiro propriedades a que perderia o direito se casasse fora de França... embora os bens de um aristocrata não valham grande coisa, com uma revolução em perspectiva.

      - Podias ter-mo dito mais cedo, Roy.

      - E tu podias ter-mo perguntado antes de te meteres no caminho de uma bala.

      - Pro oris infanta... ou acham o meu latim pior ainda do que é costume? - Gabriel bocejou e pouco depois dormia profundamente.

      - Este, pelo menos, diverte-se com os seus negócios de honra - murmurou Roy. - Quem me dera poder dizer outro tanto.

      Toby olhou-o vivamente, mas o rosto do amigo mantinha-se impassível enquanto retirava da mesa de cabeceira do ferido ligaduras e pensos.

      - Com quem tencionas bater-te?

      - Com quem mais, além de Harvey Bristol? Ou não te chegou ainda aos ouvidos que ele insultou o nome dos Darby? - perguntou, com amarga ironia. - Lembra-te de que não sou imune aos factos, Toby, embora viva para o meu laboratório.

      - Trouxe o Gabe vivo, não me obrigues a repetir a mesma rotina contigo. Não me sobra tempo, tantos são os duelos pessoais que travo, para dar um tiro ao Harvey depois de ele te ter dado outro a ti.

      - Não tenho outro remédio senão desafiá-lo, Toby, como deves compreender.

      - A não ser que eu o desafie primeiro.

      - Não se baterá contigo. Aliás, tu mesmo afirmaste ao pai, publicamente, que com o filho só te baterias a murro. Além disso, foi a minha mulher que ele insultou, não a tua.

      - Se pensares um momento, Roy... - Toby, que ia a dizer ser Martha tão culpada como Harvey, engoliu apressadamente o resto da frase.

      - Não defendo Martha - redarguiu o amigo, compreendendo-o. - Pelo menos, perante ti; conhecemo-nos os três demasiado bem. - A sua voz era firme como os seus olhos, que continuavam a fitar o amigo serenamente. - Mas com as outras pessoas é diferente. Viram-nos juntos no Planters' Hotel, em Charleston, e Harvey gaba-se de que ela... de que ela compartilhava lá os seus aposentos. Não vês que tenho de o matar por isso, se continuarmos os dois a viver em Savannah?

      - Já anunciaste o desafio?

      - Desta vez não haverá anúncio, nem retórica à la Gabriel. Desafiá-lo-ei na sua própria casa, se quiseres ser meu padrinho e a doença de Harvey não o impedir de nos receber.

      Toby foi o primeiro a baixar os olhos, ao saírem do hospital. Sentia-se obscuramente grato ao túnel de amoreiras que não deixava entrar o luar e ao silêncio sereno de Roy, que indicava ter o amigo tomado uma decisão definitiva. Sabia que o código de honra de um cavalheiro da Jórgia era inexorável, de uma rigidez que de certo modo garantia uma paz relativa. Olhou uma vez apenas para o amigo, ao desembocarem na Wright Square, mas o sorriso daquele continuava a ser uma maravilha de serenidade. “É como se fôssemos visitar um doente, juntos, como tantas vezes tem acontecido”, pensou, surpreendido, “e não a um encontro com a eternidade.”

      - Savannah nunca pareceu mais limpa - murmurou Roy. - Custa a crer que depois de amanhã - ou esta noite ainda - tenhamos de combater a peste.

      - Disseste que o Harvey está doente. Quando o soubeste?

      - Esta tarde, ao chegar à cidade. O velho Bristol meteu-o na cama, em casa, e deixou-o aos cuidados do mordomo. Neste momento o pai deve treinar a sua tropa particular no armazém Bristol, enquanto o filho convalesce o melhor que pode.

      - Certamente tem alguém a tratá-lo?

      - Creio que Tyree tomou conta do caso.

      - Talvez seja melhor vermos primeiro o doutor. Não podes desafiar um homem que a doença retém no leito.

      Mas Roy decidira-se e nada o faria retroceder.

      - Verei com os meus olhos se está retido no leito. Quem nos garante que não é tudo farsa? - Parou bruscamente, debaixo de uma árvore à esquina da praça, e disse: - Foi uma idiotice pedir-te que me acompanhasses. Se subornaram o Priam para te assassinar...

      - Não temos provas de que o tenham feito, Roy. Talvez esta oportunidade me permita tirar isso a limpo.

      - Achas, então, que vale a pena?

      - Mesmo que não achasse, julgas que te deixava ir àquela casa sozinho?

      Roy seguiu pensativo, enquanto percorriam o passeio de pranchas que levava às cavalariças de Bristol.

      - Constou-me, de várias fontes, que o velho Matthew está a treinar os seus sequazes para nos repelirem amanhã, se nos atrevermos a entrar na sua propriedade. É natural, portanto, que tenha alguns guardas à porta de casa.

      - Não será a primeira vez que defrontamos os seus sicários, Roy.

      Mas, ao chegar aos portões dos Bristols, sentiu um pressentimento gelado, de tragédia iminente, e pareceu-lhe que Roy, apesar da sua vontade de ferro, estava tão perturbado como ele. Exteriormente, a fachada da mansão parecia inocente, sem luz nas janelas e aparentemente deserta como um túmulo. No entanto, não acreditava que o velho Matthew, apesar da sua febril concentração no armazém, fosse estúpido ao ponto de deixar a casa por guardar, nem que o filho, por muito doente que estivesse, não se conservasse atento à chegada de intrusos.

      - Até dá a impressão de que se renderam e abandonaram Savannah! - comentou Roy. - Alguma vez viste uma casa que parecesse mais deserta?

      - O mais certo é haver uma espingarda em cada janela e um olho atento na mira.

      - Experimentamos?

      - Quando quiseres.

      Mas Roy deteve-o ainda um instante:

      - Mais uma pergunta apenas, Toby, antes de nos transformarmos em alvos: que queria Gabriel dizer quando me perguntou se Nancy tencionava casar com Pagnol?

      - Gabe tem uma sede de saber insaciável. Matá-lo-á mais depressa que o álcool.

      - Não me venhas com subterfúgios. Gabriel tentou matar o francês no teu interesse?

      - O nosso amigo jornalista é também um romântico, apesar da sua couraça de cinismo. Crê sinceramente que Nancy... - engoliu em seco, mas fez um esforço e disse o que tinha a dizer: - Crê que devíamos casar. Sabes o que teu pai escreveu no diário... Gabe tomou as suas palavras ao pé da letra.

      - Foi para isso que meu pai as escreveu.

      - Talvez. Mas importas-te se preferir a minha interpretação pessoal?

      - Há certas pessoas que precisavam de um exame à cabeça - replicou Roy, com os olhos postos no alpendre banhado de luar da casa dos Bristols. - Para não falar nos corações...

      - Viemos meter a cabeça na boca do leão, Roy. Não penses agora no coração.

      - Estou a lembrar-me de que talvez amanhã esteja morto... por isso quero que saibas que nunca deixei de pensar que darias um cunhado ideal. - Lançou um olhar rápido, quase tímido, ao amigo, e meteu pelo caminho que levava à porta do inimigo.

      Toby levantou os olhos para as janelas, como que a tentar adivinhar de qual delas disparariam, mal os reconhecessem. Mas não houve tiros nem sinais de vida dentro de casa, quando Roy chegou ao alpendre e bateu com força. “Pelo menos agora estamos protegidos pelo alpendre”, pensou Toby. “Não podem apanhar-nos das janelas laterais... a não ser que disparem através da bandeira... ou que haja um Judas atrás daquela porta...” Roy continuou a bater, com a aldrava e o punho, mas em vão.

      - Estará a casa realmente deserta?

      - Talvez Harvey tenha ido até às docas.

      - Deixariam pelo menos o mordomo, para atender à porta!

      Roy bateu com mais força, com a mão aberta, e a porta cedeu, gemendo um pouco nos gonzos e revelando o vestíbulo alto, iluminado aqui e além por velas quase consumidas nos castiçais e deserto como um palco, depois de os actores saírem. Toby encostou-se o mais possível à porta, imitado por Roy, e passou o olhar pelo aposento, convencido de que devia haver uma armadilha em qualquer lado. Não precisava de olhar para o amigo para saber que ele compartilhava o seu espanto.

      - Não podiam saber que viríamos exactamente a esta hora...

      - Sem dúvida - murmurou Roy, muito baixo. - No entanto, devia estar cá alguém...

      Toby praguejou, descalçou as botas e destravou a pistola. Cautelosamente, sem se afastar da parede, entrou na mansão Bristol. Roy fez o mesmo, na parede fronteira, alcançou a porta escancarada da biblioteca e desapareceu lá dentro. Mais uma vez, Toby aguardou uma luta ou um tiro, mas nada se verificou.

      - Deserta como a Lua, Dr. Kent - informou Roy, pouco depois, com o corpo magro tenso contra a ombreira da porta.

      - Também a casa de jantar.

      - Talvez o velho tenha mandado os escravos para montante.

      - Queres dizer... fechado a casa?

      - De que outra maneira se poderá explicar isto?

      - Quando um homem fecha a sua casa na cidade e se abriga nas docas, não deixa a porta da frente no fecho.

      - Talvez o mordomo esteja na cozinha e não tenha ouvido bater.

      - Lembras-te como se chama?

      - Abner, creio.

      - Abner, está aí?

      Refugiaram-se ambos no abrigo de uma cadeira de braços, na vasta biblioteca silenciosa de Matthew Bristol, obscuradamente aliviados pela veemência do grito de Toby.

      - Tentemos a cozinha, para termos a certeza. Sempre cosidos com a parede, procuraram na copa, na cozinha; na despensa e no alpendre que abria para uma varanda. Tudo deserto e abandonado, vazio. Os olhos atentos de Toby registaram vários pormenores: uma porta a oscilar docemente, impulsionada pela brisa nocturna do Savannah; um armário meio aberto, que aparentemente fora despejado com mais pressa que cuidado; uma panela que ainda fervilhava sobre o lume quase apagado...

      - Os escravos não foram mandados para lado nenhum, Roy; partiram em bloco, por razões que só eles sabem.

      - Não será, mesmo assim, uma armadilha para nós?

      - Como? Ainda há pouco disseste que não podiam esperar-nos exactamente a esta hora.

      - Talvez encontremos a resposta lá em cima.

      - Descalça as botas. Subiremos os dois. Não te esqueças de seguir rente à parede, até termos a certeza.

      - Como é possível que o velho Matthew tenha sido tão descuidado?

      - Creio que ele deixou uma guarda qualquer, mas que ela deve ter partido, assim como os escravos domésticos.

      Subiram devagar, experimentando todos os degraus com receio de que algum estalasse e os denunciasse, mas as precauções começaram a parecer-lhes inúteis muito antes de chegarem ao andar dos quartos de dormir. Por toda a parte havia sinais de que a casa fora abandonada à pressa. Velas quase consumidas, mas ainda acesas, iluminavam os corredores; de uma bandeja de jantar, mais atirada que colocada numa mesa de serviço, num dos andares, caíra para a carpete o copo do vinho e o guardanapo. Até as portas dos quartos estavam abertas nos ângulos mais variados, como se o pessoal doméstico tivesse fugido sem ousar olhar para trás.

      - Que te parece, Toby?

      - Até agora, ainda não me atrevi a pensar.

      Mal acabara de falar, Toby susteve a respiração e soube, antes mesmo de se atrever a olhar para Roy, que o amigo fizera o mesmo. A mão abandonada na carpete, os dedos grossos a espreitar da espuma de renda fina da camisa de dormir, estavam imóveis como os de um cadáver acabado de arrojar à praia. O braço a que a mão pertencia, parado como o de uma efígie de gesso na porta entreaberta, estava petrificado no mesmo repouso sinistro. Mão e braço (e apenas um passo mais bastou para confirmar as suas suspeitas) pertenciam a Harvey Bristol. Despido de dignidade na morte como o fora em vida, o herdeiro dos domínios dos Bristols caíra, como um saco velho, na soleira da porta, com a camisa de dormir grotescamente torcida nas coxas volumosas, os olhos revirados sob um barrete de dormir.

      - Está morto.

      - Morto e bem morto. Não vês o que o matou? Compreendes agora porque fugiu toda a gente?

      Roy ajoelhara já ao lado do corpo e desapertava as fitas da vestimenta do jovem Bristol, embora não precisassem de diagnóstico; o quadro era suficientemente elucidativo. O pescoço inchado, as manchas cor de sangue e do tamanho de moedas de coroa que cobriam peito e ombros e a tumefacção das virilhas, não deixavam dúvidas. Harvey Bristol, abatido pelo machado da peste, sucumbira à porta do quarto ao tentar fugir para o ar livre, numa louca explosão de energia característica dos espasmos finais da doença. Os escravos e os guardas que o velho Bristol porventura deixara em casa, tinham fugido muito antes do delírio do amo atingir o apogeu.

      - Parece que te pouparam um desafio, Roy.

      Roy, ainda ajoelhado ao lado do corpo, não levantou os olhos, e Toby perguntou-se se pelo cérebro do amigo passara naquele instante o mesmo pensamento que cruzara o seu: era raro a justiça castigar tão rapidamente e com significado tão peculiar.

      - É preciso chamar Tyree.

      - Para quê? Vocês são ambos médicos... não lhes cheira a morte quando a têm debaixo do nariz?

      Roy não se mexeu quando Martha transpôs, cambaleante, a porta do quarto. Foi Toby quem lhe pegou na mão e a conduziu para um sofá existente no outro lado do corredor, fingindo-se alheio aos seus passos inseguros e ao cheiro a brandy que a rodeava. A mão que segurava na sua escaldava. Enquanto tentava libertar os dedos que ela apertava com força, uma parte do cérebro de Toby registava maquinalmente o bater louco do pulso e o tom de açafrão das pupilas paradas.

      - Porque não perguntam porque me encontro aqui esta noite? Não experimentam, sequer, curiosidade? - Cambaleou de novo e tentou levantar-se, mas as mãos de Toby impediram-na, suavemente. - Não creio que não sentissem curiosidade... Subiram a escada em bicos de pés, como um par de garotos da escola!

      - Domina-te, Martha - aconselhou Roy. - Levar-te-ei para casa num instante.

      - Nunca mais me levarás para casa. Não quero mais nada com os Darbys nem com Savannah.

      Roy completou o exame, sem fazer caso do grito histérico da mulher e sem tão-pouco a olhar. Levantou-se, foi buscar um cobertor ao quarto e cobriu o cadáver de Harvey Bristol.

      - É preciso avisar o velho Matthew. Eu informarei Tyree depois de levar Martha para casa.

      - Não ouviste o que eu disse, Roy?

      Roy fitou, finalmente, a mulher, e Toby afastou-se, por instinto, ao ler os olhos do amigo.

      - Creio que vimos o suficiente esta noite, Martha. Podes poupar-me o resto.

      - Vou deixar-te e quero dizer-te porquê. Tens de me ouvir!

      - Alguém te viu entrar nesta casa?

      - Que importa que vissem?

      - Posso perguntar-te porque vieste?

      - Claro que podes, Roy!

      Os dedos de Martha arranhavam as têmporas como os esporões de uma ave enlouquecida pela febre. Ao ver-lhe o rosto congestionado através de um véu de lágrimas, Toby admirou-se de alguma vez a ter considerado bonita ou até mesmo apetecível. Naquele momento, Martha Darby oferecia o mais patético dos espectáculos, era uma mulher que começava a desmoronar-se por dentro, vítima do assalto conjugado dos nervos e do álcool.

      - Vim aqui esta noite para salvar a vida de Toby, Se pudesse.

      - Sabias... acerca de Priam?

      - Naturalmente que sabia! Harvey serviu-se de Priam várias vezes, para ajudar os nossos planos, mas nunca imaginei que se servisse dele para... para abater Toby.

      - Pensa o que dizes, Martha!

      - Harvey era meu amante, como deves ter calculado. Foi meu amante em Havana, durante a guerra, e amou-me aqui em Savannah, antes de se lhe meter na cabeça cortejar Nancy...

      Olhou o vulto tapado pelo cobertor com olhos estranhamente impessoais. A sua voz tornara-se quase calma, mas os dedos continuavam a torturar o cabelo húmido de suor, nas têmporas.

      - Deixa lá isso agora. Como soubeste acerca do

      Priam?

      - Disse-te que Harvey era meu amante. Trabalhávamos juntos e Priam era... um dos nossos instrumentos.

      Toby agarrou-a com força por um ombro, enquanto no seu cérebro começava, finalmente, a fazer-se luz. Prestava às palavras de Martha maior atenção ainda que Roy.

      - Era, então, Harvey que atacava os nossos navios, não Pagnol.

      - Claro que era! Porque não te tinhas ainda lembrado disso?

      - Pensa no que estás a dizer, Martha!

      Toby interveio, o mais brandamente que pôde:

      - Disseste-me que Pagnol estava conluiado com Nancy.

      - Poeira nos teus olhos, Toby. Nunca pensei que te cegasse tão completamente.

      - Foste tu que puseste o bilhete na biblioteca de Sangaree?

      - Foi Priam que o escondeu na estante, onde por força o encontrarias. Porque acreditaste, Toby? Quando um homem ama uma mulher como tu amavas Nancy, deve acreditar o melhor a respeito dela, não o pior.

      - E na noite em que afundámos o corsário... - prosseguiu Toby, sem fazer caso da observação.

      - Fui eu que avisei de que a Darby Belle ia partir, do mesmo modo que já avisara de outras vezes. Harvey recompensava-me por cada presa que fazia.

      - Durante quanto tempo operou ele como pirata?

      - Durante o suficiente para enriquecer, desde que a mulher morreu em Inglaterra e lhe deixou o bastante para instalar a sua sede em Nassau... Mas porque me olham pasmados, dessa maneira? A pirataria é uma velha ocupação americana.

      - Ajudaste-o, Martha, é com isso que não me conformo - murmurou Roy.

      Olhou o marido desdenhosamente e replicou:

      - Pelo menos abri os olhos ao Toby; ele devia agradecer-mo. Podia partir de Savannah sem uma palavra; agora que Harvey morreu, nunca suspeitariam, sequer.

      - O velho Matthew sabia disto?

      - Claro que não. Aceitava de boa vontade a ajuda do filho, mas não suspeitava sequer da sua origem. Matthew Bristol é idiota, mas é honesto.

      - Que fizeste da tua... da tua percentagem? - Roy murmurou a palavra a muito custo e concluiu, quase sem descerrar os lábios: - Está aqui, em Savannah?

      - Não me julgues tão ingénua, Roy! Só eu sei onde o dinheiro está escondido e não o direi a ninguém. Fica sabendo, no entanto, que chega e sobra para me libertar do teu mundo.

      - Se imaginas que te deixarei escapar...

      - Nunca te pertenci, Roy, pareci apenas que pertencia. Agora que posso partir, não me deterás.

      - Não pensaste ainda que és uma criminosa, à face da lei jorgiana?

      - Talvez, mas tu és o último homem da Jórgia capaz de me acusares de tal. Tens de pensar no nome da família...

      - Vem comigo para casa, Martha. Amanhã, quando pensares com maior clareza...

      - Nunca me senti tão lúcida, Roy.

      Mas os seus olhos esgazeados desmentiam as suas palavras. Libertando-se da mão de Toby, cambaleou para o círculo de luz do cimo da escada e fitou, num desafio, os dois homens.

      - Não me digam que estou doente; sei que estou. Mas sobreviverei, Roy... - A voz entaramelou-se-lhe, enquanto procurava as palavras, e a mão que segurava a balaustrada tremia violentamente. - Sobreviverei... como sobrevivi à vida contigo... e ao facto de querer Toby... e de nunca o ter tido... nunca...

      - Está bem, Martha. Estás doente, mas havemos de curar-te...

      - Obrigado, mas combaterei a minha própria doença. Boas-noites... cavalheiros. Não lhes desejo felicidades.

      Cambaleou, como se fosse cair, mas os seus pés mostraram-se incrivelmente leves e muito mais rápidos que as mãos estendidas de Roy e o seu grito angustiado.

      - Volta para trás, Martha!

      - Jamais! - gritou-lhe, do vestíbulo do rés-do-chão.

      Toby correu atrás de Roy, ouviu a porta do alpendre bater e os saltos de Martha no passeio, e antes mesmo de chegar à rua sabia já que a perseguição de Roy seria inútil, que qualquer remédio que naquela noite ministrasse à mulher chegaria tarde de mais. O bater desordenado do pulso, a febre, a loucura daqueles olhos esbugalhados, não deixavam dúvidas. A saída de Martha para a rua era outro sintoma da doença que a destruía, da mesma doença que destruíra Harvey Bristol.

      Com o vazio da morte atrás de si e a larga praça banhada de luar aos seus pés, Toby Kent parou um instante no alpendre, a observar a derradeira corrida de Martha Darby com o destino. Os cabelos tinham-se-lhe soltado, os pés, céleres como se tivessem asas, levantavam nuvenzinhas de poeira, pareciam desdenhar o chão, enquanto gastava as últimas forças no esforço desesperado de fugir de Roy. Os seus dedos, transformados em garras pela febre que a consumia, rasgavam o vestido (era característico da peste impelir as suas vítimas para a rua, aos gritos, e levá-las a arrancar o vestuário, para deixarem o mundo tão nuas . como nele haviam entrado.)

      - Espera por mim, Martha!

      A gargalhada com que lhe respondeu pareceu abalar os telhados das casas da praça, enquanto a desgraçada corria para a Buli Street, arrancando o corpo do vestido. Roy alcançou-a, na junção da praça e da rua, antes que tivesse tempo de despir-se por completo. Toby correu atrás deles e viu-os rolar pela rua, antes que uma nuvem de poeira, vermelha como o coração da Jórgia, se levantasse e os ocultasse.

      Martha conseguiu escapar e correu às cegas para o meio da praça. Aí estacou, como transformada em pedra pela varinha de alguma bruxa invisível. Com as pernas rígidas e ambos os punhos levantados para o céu, ficou parada um instante. O luar banhou-lhe o corpo quase nu e aumentou a horrível ilusão de que ela não era já carne viva, mas uma estátua pagã, uma Lilith que se erguia da escuridão para a luz, que oferecia o corpo de mármore ao mundo, condenada a aguardar eternamente a sua realização.

      Até quando caiu foi como uma estátua a cair. Um braço levantado, rígido como pedra, pareceu açoitar a nuvem de poeira que se erguia, e depois ficou imóvel.

      Toby chegou quase ao mesmo tempo que Roy, mas este erguera já Martha nos braços. Um olhar bastou para saber que a bolha negra da peste lhe rebentara no cérebro e a fulminara.

      - Esta manhã estava tão bem como eu - murmurou Roy -; esta tarde, queixou-se de uma febre ligeira e recusou tratar-se; agora está morta. - Falava em tom seco, estranhamente desprovido de emoção. - Tenho a certeza de que não tencionava... fugir. Foi a doença.

      - Pois foi, Roy.

      - As coisas que ela disse... sejam verdadeiras ou falsas... não devem passar daqui.

      - O que ela foi, é agora segredo nosso. Encontra-se para além de todas as censuras, ela e o jovem Bristol.

      - Agradeço-te essas palavras generosas, pois sei, que são sinceras. - Hesitou, com o corpo morto da mulher nos braços, mas a sua voz continuou a denunciar uma espécie de desapego clínico. - Talvez de manhã eu compreenda isto, talvez até decida como... como devo sentir em relação à sua memória.

      “Compreenderás que está melhor morta”, pensou Toby. “Com o tempo, compreenderás até que este foi o momento mais afortunado da tua vida. A sua vida contigo era uma mentira infinita; agora que confessou a mentira, que podias fazer com ela viva?”

      - Devemos levá-la para a doca, Roy. Deixa-me ajudar-te.

      - É ainda uma carga minha, Toby.

      Sabendo que seria inútil argumentar e mais inútil ainda tentar consolá-lo, Toby limitou-se a segui-lo. Percorreram assim a Buli Street e as sombras salpicadas de luar da Johnson Square até à Baía. Foi uma estranha caminhada. Savannah jazia à sua volta como uma cidade morta, a espiar o seu progresso de janelas vazias. Mas Toby sabia que a maioria dos assustados cidadãos se encontravam em casa naquela noite, esforçando-se desesperadamente por erguer um muro entre eles e a morte. As ruas tresandavam a enxofre e a vinagre e não faltavam donas de casa que tinham estendido lençóis encharcados através de portas e janelas, para não deixar entrar a doença.

      A morte negra atacara duas vezes na cidade alta, e ninguém sabia onde atacaria a seguir nem quando os carros da morte parariam defronte daqueles alpendres imponentes para recolherem a sua carga sinistra. Graças aos seus estudos da doença no estrangeiro e à aprovação entusiástica dos seus métodos na reunião do conselho, Toby tinha esperanças de circunscrever a peste à Muskrat Town. Mas essas esperanças constituiriam pequeno conforto para Savannah, naquela noite. No dia seguinte, quando a notícia da morte de Harvey e de Martha se tornasse do domínio público, haveria um êxodo em massa para as propriedades na província e para o sadio ar dos campos.

      As botas de Roy ecoaram no caminho, ao contornarem os armazéns do cais na direcção do barco hospital, que se encontrava a pouca distância.

      - Não podes levá-la para bordo.

      - Bem sei. Certificaremos o óbito e metê-la-emos no esquife para a ilha.

      - Mas, Roy...

      - Não podemos proceder de outra maneira, Toby. Queimámos cinco corpos da Muskrat Town e Tyree mandará queimar também o de Harvey.

      Toby baixou a cabeça, vencido pela lógica e pela sensatez do amigo. Até agora, todas as vítimas da peste tinham sido transportadas para a ilha Lazareto e cremadas em piras erguidas à beira-d'água. O costume e o medo, de mãos dadas, decretavam que não haveria enterramento nem cerimónia fúnebre quando um estivador morria em Muskrat Town ou um escravo na plantação: as vítimas da peste eram simplesmente destruídas, juntamente com o colchão e as roupas da cama. Como médico, Toby aplaudia a decisão do amigo de que a mesma regra rígida se aplicasse aos Darbys.

      O esquife da morte, que não fazia serviço havia vários dias e estava caiado até às amuradas, dançava num proiz comprido, ao fundo do cais. Roy depositou nele o corpo, suavemente, mas sem jeito de cerimónia. Olharam um momento o rosto de Martha, e depois, num movimento simultâneo, cobriram-lhe o corpo com um pano grosseiro, embebido em cal.

      O proiz excepcionalmente comprido deslizou como uma cobra da doca para o rio, depois de Toby ter empurrado a embarcação. Os dois médicos aguardaram que a corrente a apanhasse e o cabo voltasse a ficar tenso.

      “Tyree mandará o seu morto para aquele mesmo barco”, pensou Toby. De manhã, um grupo de escravos mudos de medo rebocariam a macabra embarcação para a pira da ilha Lazareto. Estava certo que Harvey e Martha fizessem juntos a última viagem.

      - Primeiro vou informar o Tyree - disse Roy. - Depois queimarei as minhas roupas à porta da lavandaria e irei ter contigo ao barco hospital. Tem sido uma longa noite para ti, Toby, mas creio que és lá preciso agora.

      Enquanto Roy falava, dirigiram-se para o portaló de acesso ao convés da Lady Oglethorpe. Só então Toby notou que havia luz acesa nas vigias da cabina da ré e a meia nau, onde o jovem Dr. Appleby presidia tão corajosamente ao hospital flutuante.

      - Temos, então, novos casos a bordo! É natural... - “Natural e inevitável”, acrescentou mentalmente; se a peste atacava já na cidade alta, era fácil imaginar o que iria por Muskrat Town.

      - Se quiseres descansar, poderei render-te amanhã - propôs Roy.

      - Tu é que precisas de descansar.

      - Sim, mas prefiro trabalhar, Toby - respondeu-lhe o amigo, esforçando-se por sorrir. - Creio que, durante algum tempo, o descanso sirva apenas para nos trazer recordações, a ambos.

      - Talvez devêssemos sentir-nos gratos, Roy.

      - Talvez...

      Já com um pé no portaló, Toby parou e pôs a mão no ombro do amigo.

      - Se as palavras ajudassem... se houvesse alguma coisa que te ajudasse agora...

      - Martha destruiu-se a si própria - interrompeu-o Roy. - É tão simples como isto. Amava tanto a vida que não pensava no preço que pagava. Não julgues que não a teria salvo, se pudesse.

      - Nenhum homem podia tê-la salvo.

      - Nenhum homem. Não imagines que consentirei que essa descoberta me destrua, também, a mim. - Hesitou, antes de acrescentar, resolutamente: - Há coisas para que devo viver, trabalho muito mais importante do que eu jamais serei. Martha nada mais tinha que o seu desejo.

      A voz tremeu-lhe e Roy afastou-se, parando apenas uma vez para olhar o esquife que dançava na água. Toby arrancou o olhar a idêntica contemplação e subiu a correr o portaló.

      Appleby, com um ar quase alegre à claridade baça da meia nau, saía naquele momento da porta que levava à enfermaria.

      - Tinha mandado Billy procurá-lo, doutor. O nosso primeiro novo caso chegou a bordo cerca de uma hora depois de termos fundeado.

      - Houve outros?

      - Três, ao todo. Um moribundo, o segundo ainda impossível de diagnosticar e o terceiro um caso clássico. Já lancetei o gânglio.

      Toby soltou um suspiro de alívio. Três casos, agora que o navio hospital ousara aparecer no ancoradouro de Savannah, não eram muito alarmantes. Os doentes de Muskrat Town, que até aí acalentavam os seus temores em silêncio, tinham convergido para aquele asilo flutuante, agora que se encontrava ao seu alcance.”

      - Alguns falsos alarmes?

      - Os habituais, doutor. Medicamentei-os e Billy correu com eles. Acha que será seguro continuarmos fundeados, amanhã? Podíamos ancorar a meio do rio e escolher os doentes.

      - O que talvez não seja prático se a doença adquirir carácter epidémico.

      Toby perguntou a si mesmo se Appleby teria visto o corpo que tinham levado para o esquife, mas resolveu não o perguntar. A morte de Martha parecia já estranhamente remota. Os vivos que sofriam a bordo eram muito mais importantes.

      - Espero que tenha conseguido atrair alguns ajudantes?

      - Apenas Maum Bonnie, doutor... e Mrs. Gregory. Estavam à nossa espera, quando atracámos, e nem precisei de ir à clínica.

      - Disse Mrs. Gregory?

      - Porque se mostra surpreendido, Toby? No fim de contas, mandou-me chamar.

      Ficou pasmado, a olhá-la, ao vê-la sair da enfermaria e parar no convés, com a luz atrás de si. Recordá-la-ia sempre assim: de touca impecavelmente branca e com aquele sorriso familiar em que havia amizade, malícia e uma emoção que nunca ousara definir. E odiar-se-ia sempre, também, pela mentira gaguejada que proferiu:

      - Mandei-a chamar porque... chegou a altura de prestar as últimas contas, Mrs. Gregory.

      - Acertemo-las primeiro com a morte, doutor. Já sabe que sou uma boa secretária... e uma boa trabalhadora do campo. Agora descobrirá que sou também uma boa enfermeira.

      Continuava de olhos esbugalhados, incapaz de proferir uma palavra, quando ela regressou à enfermaria. Mas lembrou-se de Appleby e sentiu a autoridade voltar como um manto visível. Ao ler a sua mensagem em Sangaree, Nancy imaginara que precisava dela. Isso bastava, por agora.

      - Temos outro bubão para lancetar, doutor.

      - Com a ajuda de Mrs. Gregory, talvez?

      O sorriso simples, de camponês, de Appleby era reconfortante.

      - Quem julga que ajudou com o primeiro doente, doutor? Surpreender-se-á com o que Mrs. Gregory é capaz de suportar.

      - Engana-se, Walter. - Toby aspirou profundamente o ar fresco e sentiu as forças voltarem-lhe. - Já não me surpreendo com Mrs. Gregory... nem comigo.

      E, antes que o jovem assistente o julgasse doido varrido, entrou na enfermaria e reuniu-se à alta figura de branco que esperava pacientemente ao lado da primeira cama.

      Vinte e nove mortos, vinte sete dos quais de Muskrat Town. Vinte e nove piras fúnebres acesas na ilha Lazareto, num espaço de nove dias. Toby conferiu mais uma vez a lista, antes de fechar o registo. Epidemia fora talvez palavra exagerada para a ameaça contra a qual tinham combatido naqueles nove dias de terror, mas a calamidade estivera sempre à espreita, atenta ao menor descuido. Vinte e nove óbitos e quase cinquenta casos inconfundíveis. O hospital flutuante encontrava-se agora quase cheio de convalescentes e na ilha Lazareto encontravam-se doze doentes cujo estado tudo indicava ser desesperado. Mas a ameaça em si podia considerar-se vencida, queimada em fumos de enxofre, bloqueada no posto de quarentena a jusante do rio, isolada num anel de ferro de guardas e tochas acesas nas docas Bristol.

      Toby deu uma punhada na mesa, a sublinhar esse pequeno triunfo. Provara a Savannah que o fogo e o enxofre - simples método que os Chineses empregavam havia séculos -, sensatamente aplicados, podiam deter a peste. Mais importante ainda: provara até aos mais obstinados que Matthew Bristol, e o seu costume de reter escravos na doca, dera origem à peste. O cerco de vigilantes que, durante nove dias, o isolara e aos seus sicários, cada vez menos convictos, no armazém Bristol, constituía prova de que a lição tivera utilidade.

      Sobretudo, o conselho compreendera, embora tarde, que Muskrat Town constituía uma nódoa no limiar de Savannah. Da janela do seu gabinete via agora a longa fila de tendas brancas da ilha de Hutchinson, onde os vereadores da cidade tinham abrigado os habitantes da cidade baixa até o lodaçal putrefacto ser retirado e construídas habitações dignas de homens.

      Expulso o último rato de Muskrat Town e o labirinto de fantasmagóricas barracas cinzentas à espera do machado demolidor, podia sentar-se finalmente à sua secretária e devotar uma manhã inteira aos negócios da Companhia Darby, sem rebates de consciência. Com Roy a tomar conta do hospital flutuante e Nancy obrigada a repousar doze horas, podia até reflectir no seu futuro e na carta que escrevera e que traçara esse futuro definitivamente.

      Afastando do pensamento a recordação de Nancy e do incansável auxílio que lhe prestara, esforçou-se por dedicar toda a sua atenção à carta. Durante os nove tremendos dias em que o seu cérebro fatigado não lhe dera forças para maldizer a sua cegueira a respeito de Nancy, aferrara-se resolutamente à resolução original, embora várias vezes a sentisse vacilar. Se tivesse podido ficar um momento a sós com ela, se as suas conversas se tivessem desviado por instantes do âmbito da batalha que travava com a morte, talvez as coisas acabassem de outra maneira. Talvez tivesse até feito uma confissão que tornaria inútil aquela carta laboriosamente escrita; nenhuma confissão de erro podia ser mais abjecta que as palavras que escrevera.

      Releu-as mais uma vez, antes de assinar, embora tivesse a certeza de que dali a vinte anos ainda seria capaz de a citar de cor.

     

      Minha Querida Mrs. Gregory:

      Embora seja talvez demasiado cedo para ter mais do que esperança, ouso predizer que o pior da batalha com a peste já lá vai. É portanto meu dever, e meu privilégio também, expor-lhe os meus planos futuros, pois eles afectam a Companhia Darby e as suas próprias perspectivas.

      Permita-me afirmar-lhe desde já que estou perfeitamente ao corrente da imensa contribuição que prestou ao êxito da nossa aventura, e que só um falso orgulho (e uma incompreensão de raízes mais fundas ainda que o orgulho) me impediu de ceder há mais tempo...

     

      Orgulho e cegueira. Talvez devesse queimar a carta e ir pessoalmente dobrar o joelho na sua frente... Devia estar a acordar agora, no sótão ventoso do armazém onde ele e Roy lhe tinham improvisado um quarto, para que embora perto do hospital flutuante estivesse no entanto fora dele. De onde estava, via o pequeno quadrado da sua janela, uma cortina agitada pela brisa do rio... Afastou firmemente a tentação e continuou a ler:

     

      A ignorância (essa mãe da guerra e da loucura) escravizou-me desde o princípio, no que a nós respeitava, levando-me a crer, com blandícias enganosas, que a senhora era indigna da minha confiança. Graças a Deus não traduzi nunca em palavras a minha pior suspeita! Bastará que me confesse em erro desde o começo e que entregue todos os bens de seu Pai nas suas mãos capazes?

      Bastava, como prova de rendição, admitir que ela era, afinal, a mais forte, que se deixara iludir por outros conselheiros quando poderia ter aproveitado a sabedoria que nunca lhe recusara. Por estranho que parecesse, fora-lhe mais fácil escrever essas confissões do que o parágrafo seguinte:

      Leary tem em seu poder todas as contas do segundo e decisivo ano da Companhia Darby. Se as examinar sem ideias preconcebidas, verificará que estivemos muito perto de ter lucro, apesar da minha estúpida generosidade para com os rendeiros e da minha tendência (que tantas vezes deplorou) para comprar novos barcos e novas terras a montante do rio, em vez de guardar uma reserva para uma estação má.

      Se a ameaça de peste nos tivesse permitido expedir dos nossos armazéns a fortuna que contêm, se o nosso tabaco e o nosso arroz fossem agora a caminho do Havre e de Londres, poderia entregar-lhe os livros com um saldo credor em vez de devedor. Acredite, no entanto, que lhos entregaria do mesmo modo.

      Pouco depois de ler esta carta, e dependendo apenas do perigo de doença que porventura exista ainda entre nós, deixarei Savannah e partirei para o interior e para as reservas do Oeste. Do mesmo modo que lhe entrego a si a Companhia Darby, entregarei a clínica ao seu irmão e ao Dr. Appleby. Peço-lhe, pois, que aceite esta carta como a expressão sincera das minhas intenções, que transformarei em realidade o mais depressa que me seja possível.

      Que Deus a abençoe e ao que é seu, Nancy Gregory, e que o seu futuro seja mais feliz do que foi o nosso passado comum! Encerraria esta missiva com um sentimento mais terno, se ousasse, mas como sabe as palavras ternas nunca foram fáceis entre nós.

      Seu humilde criado,

      TOBIAS KENT.

     

      Demorou-se à janela, a ver o escravo descer a rampa com a carta, viu os pés descalços do negro subirem os degraus que conduziam ao improvisado quarto, contou-os um por um e quase lhe pareceu ouvi-lo bater à porta. Só se sentiu mais calmo quando o escravo reapareceu, com um ar mais alegre, depois que cumprira a incumbência.

      “Está a lê-la agora”, pensou, com um aperto no coração. “Sorri suavemente para consigo, agora que a batalha terminou... Ou talvez nem se dê ao trabalho de sorrir, talvez tivesse a certeza, desde o princípio, de que acabaria por vencer...”

      Passou o olhar pelos seus domínios, como se os visse pela última vez. O passeio do capitão, onde passara tantas horas de inquietação, enquanto esperara que um barco já atrasado surgisse ao longe, entre a névoa do sul; o barracão dos leilões, onde o seu coração pulara de alegria ao ouvir os lances dos compradores interessados no arroz e no tabaco Darby; o gabinete aconchegado e fresco, onde lhe gritara que se calasse e que era ele quem mandava... Os seus olhos demoraram-se mais no hospital flutuante, que flutuava serenamente a trinta metros da doca. Nancy voltaria a bordo às três horas, para outro turno de serviço na enfermaria cheia. Se esperasse mais meia hora, vê-la-ia sair do armazém e caminhar como uma rainha, revestida do seu novo poder.

      Apressou-se a sair do armazém, pois sabia que não poderia suportar tal espectáculo. Se alguma vez um homem merecera um copo do melhor rum da Jamaica na Tondee, esse homem era o Dr. Tobias Kent.

      Encontravam-se mais de doze carros de bois na Buli Street e quase tantas carruagens. A maioria dos comerciantes atrevera-se a abrir uma nesga de porta, embora as pessoas ainda evitassem tocar-se e o dinheiro das aquisições fosse ainda recebido em jarros de vinagre, a cada porta. Graças às soberanas propriedades do álcool, não se tomavam tais precauções no bar da Tondee, onde nem mesmo no tempo das colheitas se juntara tanta gente. Gabriel, sentado no canto do costume, acenou-lhe com o braço ligado e arranjou-lhe lugar.

      - Se o doutor ousa parar um momento para um copinho, é de crer que o pior já lá vai. Ou vieste até cá apenas para fechar o punho às docas Bristol?

      - Já lhes fechei pela última vez o punho.

      - Não digo outro tanto de Savannah... O povo continua a dizer que não nos livraremos da peste enquanto os seus armazéns não forem arrasados pelo fogo.

      - O povo deixará de resmungar se passar outra semana sem casos novos.

      - Continuarão a lembrar-se que ele se fechou no armazém até ao fim. Já pensaste que está sentado atrás das armas há quase duas semanas, a desafiar toda a cidade?

      - Já antes desafiou toda a cidade e sobreviveu.

      - Desta vez não terá tanta sorte.

      Toby observou o amigo com atenção; não era hábito do jornalista falar sem motivo.

      - Se estás empenhado nalguma partida, desembucha. Sabes muito bem que o McIntosh não tolerará derramamento de sangue, sobretudo agora, que as coisas começam a recompor-se.

      - A verdade é que estava a pensar em mandar chamar-te. Nós e toda a Savannah estamos prestes a presenciar um divertissement que alegrará o coração de qualquer homem. - Levou o copo aos lábios e abrangeu num gesto largo as pessoas presentes. - Ponto um, só a tua indulgência e a autoridade do McIntosh conservaram os nossos amigos da Muskrat Town na trela; ponto dois, o armazém Bristol teria sido assaltado uma dúzia de vezes se não tivesses insistido em que um cerco de guarda garantiria eficazmente a quarentena.

      - Deixa lá os pontos. Fala-me antes no resultado.

      - O coronel Crowther, às três horas em ponto desta tarde, irá à doca Bristol com uma bandeira branca e fará sair o velho cevado.

      - Vai desafiá-lo, queres tu dizer?

      - Oferecer-se-á para lutar com ele, lá mesmo, com ou sem padrinhos, debaixo das armas dos seus rufiões.

      Toby verificou que bebera o rum sem o saborear. Era voz corrente em Savannah que Crowther amaldiçoara Bristol, da encosta, no dia em que o seu filho fora recebido a bordo do hospital de Toby. Graças à competência do médico e aos cuidados de Nancy, o rapaz vencera a crise num espaço de tempo excepcionalmente curto, depois de lancetado o grande abcesso purulento que tantas vezes levava o foco devastador da doença no coração. Envolto até aos olhos em compressas frias, o jovem Crowther acabara por vencer a febre quase fatal e agora convalescia confortavelmente sob um toldo do hospital flutuante.

      - O desafio do coronel não virá um pouco tarde?

      - Crowther afirma que abaterá Bristol para prestar um serviço público a Savannah. A noite passada, naquele balcão, apelidou-se de idiota por não se ter lembrado há mais tempo do desafio.

      - Tens a certeza de que não o inspiraste?

      - Claro que o inspirei... com o auxílio do melhor armagnac da Tondee. Também me considero um bom cidadão de Savannah, Toby! Se não tivesse já recebido um ferimento honroso na defesa dos teus interesses...

      - Deixa-te de retóricas, Gabe. Vamos imediatamente procurar McIntosh, para pormos cobro a essa idiotice.

      - McIntosh concordou em ser padrinho de Crowther, se Bristol aceitar padrinhos. Não podes ser espectador, para variar, e apreciar o espectáculo?

      Levantou-se e pediu a conta. Toby notou que o bar estava quase vazio, pois os clientes começavam a descer a Whitaker Street, na direcção da Baía. Ao juntar-se ao cortejo sem novos protestos, o médico sentiu-se invadido por estranha excitação, por um presságio de crise que nada tinha a ver com o coronel Crowther nem com o singular gesto do coronel.

      À primeira vista, toda a cidade parecia ter vindo para a esplanada, naquela bonita tarde de Abril. As pessoas ainda caminhavam com cuidado, bons três metros afastadas umas das outras, e alguns dos mais velhos usavam ainda lenços embebidos em vinagre, naquela primeira saída para o ar livre. Para contrabalançar tais precauções, porém, mais de metade da multidão parecia em várias fases de embriaguez e disposta a confraternizar. Toby franziu as sobrancelhas ao notar a quantidade de jovens estouvados que se apresentavam armados.

      - Planeaste isto assim, Gabe?

      A expressão do jornalista era um modelo de inocência ofendida:

      - Terei acaso culpa se meia dúzia de jovens estarolas se lembraram de trazer armas?

      - E se assaltam o armazém?

      - Que queres que faça? Poderá algum homem no seu juízo controlar a combustão espontânea?

      Toby ficou carrancudo, mas não disse nada. Tudo indicava que Gabriel apreciava a força que pusera deliberadamente em movimento e que não pensava nas possíveis consequências.

      Ao fundo da encosta, pararam por mútuo consentimento e olharam para baixo, para a rampa dos Bristols. Desta vez, Toby preocupou-se sinceramente com o aspecto da turba. Por enquanto, não se ouvia ainda o alarido de uma multidão desenfreada e fora de si, mas Toby compreendeu o significado de muitos olhos semicerrados, das pragas guturais e, sobretudo, do viva que soou quando reconheceram Gabriel.

      - Que se seguirá, Gabe?

      - O duelo, evidentemente, se o velho Matthew sair da toca. Não é frequente que o público tenha o privilégio de testemunhar um recontro de cavalheiros.

      Mas Toby tinha a certeza de que as intenções da populaça eram outras. De momento parecia um animal preguiçoso contido pela trela, com os olhos fixos no armazém quadrado, de telhado baixo.

      Estudara muitas vezes o armazém de Bristol, enquanto pensava na maneira de o limpar de ratos, mas na confusão e na pressa não tivera tempo de observar devidamente as suas defesas: bastara-lhe saber que cidadãos honestos guardavam a rampa e a encosta sobranceira, cada um armado com uma tranca para matar ratos e com um archote. Esses mesmos cidadãos continuavam nos seus postos, embora a multidão começasse a querer romper o cerco, aqui e ali. Toby quase não se admirou de ver uma dúzia de archotes acesos, embora ainda fosse dia claro.

      Em contraste com a ameaça que vinha de cima, o armazém parecia inofensivo. Se ainda havia ratos empestados entre as barricas de tabaco de Bristol, se o velho teimoso lançara mais corpos à água, nada o demonstrava. O edifício, com todas as janelas cerradas e as grandes portas de carregamento fechadas a cadeado, parecia abandonado ao seu destino. Só os guardas sabiam que uma vintena de mosquetes esperavam ainda atrás das janelas e que o primeiro homem a entrar no cais sentiria chumbo assobiar-lhe por entre os cabelos.

      Toby notou, de súbito, que dois homens estavam prestes a pôr esse arsenal à prova. Com uma bandeira branca entre eles e as mãos levantadas para demonstrarem que não estavam armados, tinham já deixado a rampa e pisavam a primeira prancha da doca propriamente dita. Mesmo daquela distância, o médico reconheceu a grande peruca branca de Crowther e o andar pesado de McIntosh. O grito do primeiro pareceu querer arrancar os cadeados das portas, quando chamou o inimigo ainda invisível:

      - Sabes porque estou aqui, Matthew. Resolves-te a mostrar a cara e a lutar?

      Ninguém se mexeu na turba vigilante, embora toda a gente parecesse respirar fundo, em uníssono, quando o velho Bristol, carrancudo e abotoado até ao queixo, passou por uma fenda da porta do armazém. Nunca os seus ombros largos tinham parecido mais arrogantes nem a peruca desgrenhada e branca, como uma gigantesca crista de galo, mais adequada à sua loucura.

      - Saiam ambos da minha doca!

      - Apelo para ti como cavalheiro, Matthew. Queres lutar ou confessas-te vencido e abandonas Savannah?

      - Repito, saiam da minha doca!

      Crowther recuou um passo, atordoado pelo berro insano, e foi isso que lhe salvou a vida, por um triz: Bristol levantou bruscamente um braço e a pistola de cano comprido que ocultara na sobrecasaca cuspiu fogo, como uma língua de serpente, na sombra da porta do armazém. Felizmente Crowther tropeçara, ao recuar, e a bala, embora disparada à queima-roupa, serviu apenas para lhe arrancar o chapéu e enfurecer a multidão.

      Toby sentiu o coração irmanar-se com os dos outros, e embora se esforçasse por clarear as ideias, deu consigo a gritar loucamente e aos vivas quando o primeiro archote voou da encosta para o armazém. Num abrir e fechar de olhos, pareceu chover fogo. Ouviu uma dúzia de arcos retezarem-se e compreendeu que outras tantas setas, com um bocado de alcatrão incendiado na ponta, cortavam o ar e chocavam com as janelas do armazém. Alguém se lembrara, também, de abrir uma meda de feno, colocada em lugar muito conveniente, meter-lhe dentro um archote aceso e atirá-la pela rampa abaixo. Elevou-se um grande grito de aplauso quando a bola de fogo chocou com uma janela do rés-do-chão, a abriu e entrou no armazém.

      - Detenham os idiotas! Não haverá ninguém capaz de os deter?

      Soube que a voz era sua, embora soasse rouca e trémula, mas nunca mais se lembrou como desceu a rampa, atrás de Gabriel. Ouviu o jornalista gritar uma ordem, depois de vários tiros dispersos começarem a bater na porta contra a qual Matthew continuava encostado, de pernas bem abertas e pés firmes. De súbito caiu, antes de a primeira bala lhe atingir o coração. Um dos rufiões atirou o mosquete pela janela, em sinal de rendição, ao mesmo tempo que Toby se ajoelhava ao lado do inimigo. Não precisou de lhe procurar o pulso para saber que estava morto.

      - Não desperdices compaixão - recomendou-lhe Gabriel, muito calmo. - Sabes perfeitamente que há muito tempo já estava morto. - Voltou-se para o armazém, levou a mão ilesa à boca e gritou uma ordem: - Toca a deitar os mosquetes cá para fora e a sair da toca! Apanhámos o vosso patrão, não os queremos a vocês para nada.

      As armas começaram a cair na doca, num grotesco contraponto ao rugido que crescia no interior do armazém. Línguas de chamas começaram a aparecer no telhado antes de todos os homens de Bristol saírem; as janelas, rebentando para o exterior sob a pressão das chamas do interior, revelaram um pandemónio que crescia a cada sopro de vento. O fogo devorava a riqueza bem empilhada de Matthew Bristol, passava alegremente de barrica de tabaco para barril de melaço, de pilha de lenha seca para barril de terebintina.

      - Parabéns, meu amigo - disse Toby a Gabriel, fitando-o nos olhos. - Planeaste tudo muito bem.

      Mas o sorriso do jornalista continuou a ser seráfico, mesmo no meio daquele inferno.

      - Combustão espontânea, Toby. A recompensa eterna do homem quando resiste às transformações inevitáveis. - E deixou-o, numa nuvem de fumo, subindo a rampa atrás de Crowther.

      A turba dividiu-se e cerrou-se de novo, ávida de espectáculo. De súbito, o telhado ruiu e um géiser de centelhas foi cair entre as barracas da Muskrat Town, ressequidas em virtude da longa seca e lambuzadas de enxofre até às telhas. “Graças a Deus estão desabitadas!”, pensou Toby, ao ver as primeiras chamas irromperem a caminho do céu. De certo modo, parecia lógico que as destruísse o mesmo fogo que destruíra o domínio Bristol.

      Depois, ao ver o fogo descer, numa dança louca, pela encosta, desatou a correr e a despir-se ao mesmo tempo, até à ponta da doca Darby.

      Era demasiado tarde para retroceder, agora. Se um rastilho de pólvora tivesse partido dali para o armazém Darby, a desgraça não avançaria com maior velocidade nem tão grande fúria. Separado da encosta apinhada pela muralha sulfurosa de fumo, não teve outro remédio senão deitar-se à água, antes que as chamas o apanhassem também. A nadar a toda a velocidade e esforçando-se por aproveitar a corrente, verificou que teria tempo de chegar à sua doca com alguns minutos de antecedência.

      Não era altura para perder a cabeça contra a injustiça de os armazéns Darby terem a mesma sorte dos Bristol, nem para pensar nos grossos diários do escritório e nos lançamentos a tinta vermelha que Leary devia fazer no dia seguinte. Toda a sua energia se orientava para um único objectivo: o hospital flutuante, atracado ao cais Darby com trinta doentes indefesos e dois médicos.

      Como esperara, Roy e Appleby puxavam já o grosso cabo da bolina. Graças a Deus, também, o vulto branco que os seus olhos nunca se cansavam de contemplar corria por entre os rolos de fumo, à esquina do armazém, tropeçando uma vez apenas no comprido vestido do hospital, antes de chegar à amarra. Afastado apenas cerca de trinta metros, Toby abriu a boca para gritar, mas reconsiderou e mergulhou para a popa do Lady Oglethorpe, com toda a sua força.

      A coluna de fumo abriu-se por instantes e o médico viu Nancy apanhar um machado e manejá-lo como um veterano, acima do cabo grosso da ré. Uma segunda machadada, e separou o último nó um segundo apenas depois de os dois homens da coberta terem soltado a bolina. Viu-a largar o machado, ouviu-a gritar quando a ré do barco ficou solta, e compreendeu que o cabo partido se lhe enrolara no vestido comprido e a arrastara para a água.

      O seu corpo caiu a menos de três metros de distância de Toby. Ouviu-a suster a respiração, desesperadamente, antes de ser arrastada para o fundo, e procurou-a às cegas na enxurrada lodosa. Por momentos um dos seus braços prendeu-se também ao traiçoeiro cabo, enquanto o outro a agarrava e puxava para si. Teve a certeza de que estavam ambos condenados, mas de súbito, com um som dilacerante, o tecido do vestido rasgou-se e libertou-a. Ou teria sido, antes, um grito angustiado de Nancy, quando as suas duas cabeças voltaram à superfície?

      Ou um grito rouco, soltado por si mesmo, um segundo antes de o leme de direcção do Lady Oglethorpe lhe ter batido violentamente atrás de uma orelha, mergulhando todo o seu ser em trevas?

      Tinha-a nos braços havia muito tempo, embora não conseguisse ver-lhe o rosto, e as palavras de amor que murmurava contra a sua face perdiam-se enquanto um negro túnel sufocante e sem fim parecia sugá-los. A sua voz continuava a murmurar, uma voz que não soava como a sua, embora cada palavra que dizia fosse arrancada ao coração.

      Murmurava ainda, e a despeito da escuridão crescente sabia que ela o ouvia, quando abriu finalmente os olhos. A escuridão era absoluta, mas sentia-se fogo crepitar, ao longe. Fechou outra vez os olhos e mergulhou num estado de contentamento como nunca conhecera. Estava vivo, e Nancy Gregory escutava-o, a seu lado. Isso bastava, por enquanto. Não acordaria, para não quebrar o encanto.

      - Então? - murmurou Roy. - Estás a dormir há muito tempo, Toby, mas merecias repousar.

      Encontrava-se na sua cama, na casa da Wright Square, coberto até ao queixo com a colcha branca. E o fogo que ouvira, e julgara ameaçá-lo, era apenas a lareira, pois a tarde primaveril estava fresca. Sentado a seu lado, Roy media-lhe a pulsação com um sorriso grave - Espero que a cabeça tenha deixado de doer; não há fractura nenhuma.

      - Quando é que...?

      - Há oito horas. Felizmente Nancy é uma excelente nadadora, mesmo vestida de enfermeira, e conseguiu conservar-te o queixo fora de água, até os içarmos a ambos.

      - E o fogo? - Conseguia pronunciar algumas palavras, mas curtas, e compreender as respostas de Roy, desde que olhasse fixamente para o mesmo lugar, a fim de que a cama não andasse à roda.

      - Extinguiu-se por si, ao anoitecer. Foi uma limpeza, Toby. O nosso armazém e o do Bristol. - E acrescentou, quase a sorrir: - Gabe e uma dúzia de outros estarolas estão presos até se saber o que aconteceu. Se queres que te diga, valeu a pena perder o armazém para recomeçar do princípio.

      Recomeçar do princípio! A cama deixou subitamente de andar à roda, e a sua cabeça também. Sim, podiam recomeçar do princípio. Nancy com a fortuna do pai. reduzida mas não arruinada por aquela aventura nas sendas da democracia; Savannah, com a sua zona ribeirinha limpa de doenças pelo mais antigo flagelo do homem... Lembrou-se da carta que escrevera tão corajosamente e sentiu na boca o amargor da renúncia Nada se oporia às reivindicações de Nancy. agora que a última esperança de lucro fora devorada pelas chamas.

      - E o Lady Oglethorpe?

      - Atracou sem novidade na ilha de Hutchinson. Foi por um triz, Toby, mas libertou-se a tempo, graças a vocês dois.

      - Foi ela, não eu. - Já podia falar quase normalmente, gritar até, se lhe apetecesse, mas era reconfortante fingir-se inválido um momento mais.

      - Discute isso com a minha irmã, que vem já trazer-te o jantar.

      Admirou-se de poder esperá-la sem emoção. Dissera-lhe na carta o mais que poderia dizer-lhe alguma vez; os fantásticos acontecimentos da tarde tinham servido apenas para tornar mais válidos os seus argumentos, mais real a sua capitulação.

      “Mesmo que se mostre encantada com o que aconteceu, acho que poderei resignar-me...” Deve ter dormitado um pouco, a seguir. Quando abriu os olhos e viu o familiar vulto branco à sua cabeceira, o coração começou a bater-lhe no peito como um doido.

      - Caldo primeiro - disse Nancy. - Caldo e um bocadinho de peito de frango. Receita do Roy, mas se comer tudo, acrescentarei um copo de bordéus por minha conta.

      - Não precisa de continuar a ser enfermeira. Queimámos a peste ao mesmo tempo que os lucros da companhia... e eu sinto-me perfeitamente.

      - Coma, Toby, e não diga mais nada enquanto não chegar ao fim. Se se sentir com forças, teremos depois uma pequena cerimónia, com o tal copo de vinho.

      Olhou-a sem perceber, intrigado com o tom da sua voz, mas vagamente satisfeito por Nancy se ter sentado na cama e lhe dar de comer como uma mãe faria a um filho rabugento. Não sabia porquê, mas nunca a imaginara naquele papel. Parecia-lhe mais condizente com Maum Bonnie ou com qualquer das criadas.

      - Agora o bordéus. Sente-se e beba, pois não precisa de fingir que está fraco de corpo ou de alma.

      - Mencionou uma cerimónia, creio? - perguntou Toby, levantando o copo à luz. - Que quer que lhe diga? A Companhia morreu; viva a Companhia!

      Levantou bruscamente a cabeça, ao ouvir rasgar papel, e viu Nancy junto da lareira. Durante muito tempo conservou-se imóvel, como se lhe agradasse o tributo do seu olhar admirado, depois reuniu os bocados da carta e rasgou-os outra vez.

      - É a carta que me mandou esta tarde, Toby. Perdoe o simbolismo, mas é necessário... quando um homem tem a cabeça dura como a sua.

      Toby soergueu-se na cama, ao vê-la deitar os papéis ao fogo.

      - Espero que ao menos a tenha lido até ao fim?

      - Idiota e teimoso! - exclamou Nancy, e nunca a sua voz soara mais terna. - Idiota ao quadrado! Não foi capaz de compreender, ao menos, que o Roy me contaria tudo acerca... acerca de Martha? E da Darby Belle? E das suspeitas que a sua obstinação não permitiu que traduzisse por palavras?

      - Está a correr um grande risco, Nancy - murmurou, enquanto ela via as chamas lamber a carta. - Isso era a sua única prova da minha rendição.

      - Oh, não, Toby, não era! Falou muito, antes de recuperar os sentidos, aqui e a bordo do Lady Oglethorpe. Tenho várias testemunhas.

      O último pedacinho de papel desfez-se e Nancy soltou uma pequena gargalhada feliz. Em tantos meses de luta, não se lembrava de a ouvir rir assim, com tanta naturalidade.

      - Porque me obrigou a queimar a sua primeira carta de amor? E porque havia de se lembrar de bater com a cabeça num leme de direcção antes de me pedir que casasse consigo?

      A memória voltou-lhe, num ímpeto, e com ela as palavras que murmurara no seu sonho. Fechou os olhos mais uma vez, pedindo aos céus que o sonho e a realidade nunca se confundissem. Mas Nancy continuava à cabeceira da sua cama quando se atreveu a olhar, e eram de carne e osso os dedos que entrelaçou nos seus.

      - Isso significa que sou... aceite?

      - Não seja burro até ao fim, Toby! Aceitei-o no momento em que saltei para bordo daquela barcaça, em Darbyville.

      - Só no seu coração, nunca no seu cérebro.

      - O meu coração foi mais sensato. Porque conservou o seu fechado durante dois longos anos? Não compreende que a Companhia Darby precisa de nós dois?

      - Ainda não acabámos de lutar, Nancy!

      - Conhece algum casal que acabe de lutar? Queria dizer-lhe mais coisas, muitas mais, mas as palavras perderam-se de boa vontade contra os lábios dela. Amanhã, ou depois de amanhã, teriam tempo suficiente para discutir.

 

                                                                                            Frank G. Slaughter

 

                      

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