Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SEXO E DESTINO / Chico Xavier
SEXO E DESTINO / Chico Xavier

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SEXO E DESTINO

 

       Qual acontece entre os homens, no Mundo Espiritual que os rodeia, sofrimento e expectação esmerilam a alma, disciplinando, aperfeiçoando, re­construindo...

       Enquanto envergamos a veste física, habitualmente imaginamos o paraíso das religiões encravado para lá da morte. Sonhamos o apaziguamento integral dos sentidos, o acesso à alegria inefável que anestesie toda lembrança convertida em chaga mental. No entanto, atravessada a fronteira de cinza, eis-nos erguidos à responsabilidade inevitá­vel, ante o reencontro da própria consciência.

       Uma vida humana, a continuar-se naturalmen­te no Além, assume, assim, a forma de partida, em dois tempos distintos. Diferem campos e ves­timentas; entretanto, a luta da personalidade, de um renascimento a outro na Terra, afigura-se la­borioso prélio em duas fases. Anverso e reverso da experiência. O berço inicia, O túmulo desdobra. Com raríssimas exceções na regra, somente a reencarnação consegue transfigurar-nos de modo fun­damental.

       Deixamos no esquife o casulo mirrado e trans­portamos conosco, na mesma ficha de identificação pessoal, para outras esferas, os ingredientes espi­rituais que cultivamos e atraímos.

       Inteligências em evolução na eternidade do espaço e do tempo, os Espíritos domiciliados na Moradia Terrestre, em abandonando o invólucro de matéria mais densa, assemelham-se, figuradamente, aos insetos. Larvas existem que se retiram do ovo e revelam-se na condição de parasitas, enquanto que outras se transformam, de imediato, em fale-nas de prodigiosa beleza, ganhando altura.

Encontramos criaturas que se afastam do es­tojo carnal, entrando em largos processos obsessivos, nos quais se movimentam à custa de forças alheias, ao lado de outras que, de pronto, se ele­vam, aprimoradas e belas, a planos superiores da evolução. E entre as que se agarram profunda­mente às sensações da natureza física e as que conquistam a sublime ascensão para estágios edi­ficantes, no Grande Além, surge a gama infinita das posições em que se graduam.

Emergindo na Espiritualidade, após a desen­carnação, sofremos, a princípio, o desencanto de todos os que esperavam pelo céu teológico, fácil de granjear.

A verdade aparece por alavanca renovadora. Padecendo ainda espessa amnésia, relativamen­te ao passado remoto, que descansa nos porões da memória, somos então defrontados por velhos pre­conceitos que se nos entrechocam no íntimo, tom­bando despedaçados. Suspiramos pela inércia que não existe. Exigimos resposta afirmativa aos ab­surdos da fé convencionalista e dogmática que re­clama a integração com Deus para si só, excluindo, pretensiosamente, da Paternidade Divina, os que não lhe comunguem a visão acanhada.

De semelhantes conflitos, por vezes terríveis e extenuantes, nos recessos da mente, muitos de nós saímos abatidos ou revoltados para extensas incursões no vampirismo ou no desespero; a maior parte dos desencarnados, porém, a pouco e pouco se acomoda às circunstâncias, aceitando a conti­nuidade do trabalho na reeducação própria, com os resultados da existência aparentemente encer­rada no mundo, à espera da reencarnação que pos­sibilite renovação e recomeço...       

Essas ponderações afogueavam-me o pensa­mento, reparando a tristeza e o cansaço do meu amigo Pedro Neves, devotado servidor do Minis­tério do Auxílio. (1)

Partilhando expedições arrojadas e valorosas em atividade benemérita, ainda não lhe víramos he­sitações quaisquer. Veterano de empreendimentos socorristas, jamais entremostrara desânimo ou fra­queza, por mais opressivo se lhe evidenciasse o peso de compromissos e obrigações.

Advogado que fora, na existência última, ca­racterizava-se por extrema lucidez, no exame dos problemas que as eventualidades do caminho apre­sentassem.

Sempre denodado e humilde; agora, porém, enunciava sensíveis alterações de comportamento.

Soubera-o com breves encargos, na esfera fí­sica, para atender, de modo mais direto, a necessi­dades de ordem familiar, cuja extensão e natureza não me houvera sido possível perceber.

Desde então, mostrava-se arredio e desencan­tado, copiando o feitio de companheiros recém-che­gados da Terra. Isolava-se em funda reflexão. Fu­gia à conversação fraterna. Queixava-se disso ou daquilo. E vez por outra, em serviço, denotava lágrimas que não chegavam a cair.

Ninguém ousava sondar-lhe o sofrimento, tal a fibra moral em que se lhe exprimiam as atitudes.

Provocando, porém, algumas horas de desafo­go, num banco de jardim, busquei habilmente lan­çá-lo à extroversão, alegando dificuldades que me preocupavam. Referi-me aos descendentes que dei­xara no mundo e às inquietações que me causavam.

Pressentia-lhe na tristeza a presença de lutas domésticas a lhe torturarem a alma, quais ulcerações em recidiva, e não me enganei.

O amigo absorveu a isca afetiva e desenovelou os sentimentos.

 

(1) Organização de “Nosso Lar”. — Nota do Au­tor espiritual.

 

A principio, falou vagamente das apreensões que lhe assomavam ao espírito agoniado. Aspirava a esquecer, alhear-se; no entanto... a retaguarda familiar no mundo lhe infligia dolorosas reminis­cências difíceis de extirpar.

— É a esposa quem o aflige, assim tanto?

— Aventurei, procurando localizar o carnicão da mágoa que lhe abria as comportas do pranto silen­cioso.

Pedro fitou-me com a postura dolorida de um cão batido e respondeu:

— Há momentos, André, nos quais será pre­ciso biografar-nos, ainda que superficialmente, para vascolejar o pretérito e extrair dele a verdade, so­mente a verdade...

Meditou, algo sufocado por instantes, e pros­seguiu:

— Não sou homem que me deixe governar por sentimentalismos, embora aprecie as emoções pelo justo valor. Além disso, a experiência, desde mui­to, me ensinou a raciocinar. Há quarenta anos, moro aqui e, há quase quarenta anos, a esposa com­peliu-me a absoluto desinteresse do coração. Dei­xei-a quando a mocidade das energias físicas lhe estuava no sangue, e Enedina, compreensivelmente, não pôde sustentar-se a distância das exigências femininas.

E prosseguiu esclarecendo que ela se associara a outro homem, num segundo casamento, entre­gando-lhe seus três filhos por enteados. Esse novo marido, entretanto, arredou-a completamente de sua convivência espiritual. Homem ambicioso, senhoreou os cabedais que ele ajuntara, logrando multiplicá­-los imensamente, à força de astúcia em arrojadas empresas comerciais. E agiu com tanta leviandade que a esposa, dantes simples, se apaixonou pelas comodidades demasiadas, gastando o tempo terres­tre em prodigalidades e tafulices, até que se rojou às derradeiras viciações nos desvarios do sexo. Observando o esposo em aventuras galantes, de modo permanente, na posição de cavalheiro rico e desocupado, quis desforrar-se, estabelecendo para si mesma desordenado culto ao prazer, mal saben­do que apenas se transviava, em lamentáveis de­sequilíbrios.

—        E meus dois filhos, Jorge e Ernesto, ludi­briados pelo fascínio do ouro com que o padrasto lhes comprava a subserviência, enlouqueceram no mesmo delírio do dinheiro fácil e se animalizaram a tal ponto que nem de leve guardam qualquer traço de minha memória, não obstante serem atualmente negociantes abastados, em idade madura...

—        A esposa, no entanto, ainda se encontra no mundo físico? — arrisquei, cortando a pausa longa, para que a explicação não esmorecesse.

—        Minha pobre Enedina voltou, há dez anos, abandonando o corpo pela imposição da icterícia, que lhe apareceu por verdugo invisível, evocado pelas bebidas alcoólicas. Fitando-a, edemaciada, ven­cida, ensaiei alarmado todos os processos de so­corro à minha disposição...

Atemorizava-me a perspectiva de vê-la escravizada às forças aviltan­tes a que se jungira sem perceber; ansiava retê-la no corpo de carne, como quem resguarda uma crian­ça inconsciente em disfarçado refúgio. Entretanto, ai de mim! Colhida por entidades infelizes, às quais se consorciou levianamente, em vão procurei esten­der-lhe algum consolo, porqüanto ela mesma, de­pois de desencarnada, se compraz na viciação, ten­tando a fuga impossível de si própria. Não há outro recurso senão esperar, esperar...

—        E os filhos?

— Jorge e Ernesto, hipnotizados pela riqueza material, para mim fizeram-se inabordáveis.

Men­talmente, não me registram a lembrança. Intentan­do captar-lhes cooperação e simpatia, o padrasto chegou a insinuar que não seriam meus filhos e sim dele próprio, através de união com minha es­posa. ao tempo de minha experiência terrestre, o que Enedina, infelizmente, não desmentiu...

O         companheiro esboçou um sorriso amarelo e considerou:

—        Imagine! Na carne, o medo é comum, àfrente dos desencarnados e, em meu caso, fui eu quem se afastou do ambiente doméstico, sob sen­sações de insopitável horror... Ainda assim, a bon­dade de Deus não me arrojou à solidão, em se tra­tando da ternura familiar. Tenho uma filha de quem jamais me separei pelos laços do espírito... Beatriz, que deixei na flor da meninice, suportou pacientemente as afrontas e conservou-se fiel ao meu nome. Somos, assim, duas almas, na mesma faixa de entendimento...

Pedro enxugou os olhos e acrescentou:

—        Agora, com quase meio século de existência entre os homens, presa embora ao carinho que con­sagra ao esposo e ao filho único, prepara-se Bea­triz para o regresso... Minha filha vem atraves­sando os derradeiros dias terrenos, com o corpo torturado pelo câncer...

—        Mas, atormenta-se você por isso? A idéia do reencontro pacífico não será, antes, motivo para alegrar-se?

—        E os problemas, meu amigo? Os problemas do grupo consangüíneo? Por muitos anos, estive à margem de todas as tricas do navio familiar... Fi­zera-me ao oceano largo da vida... Agora, por amor à filha inesquecível, sou compelido a topar, com espírito de caridade, a irreflexão e o descara­mento. Estou inapto, desambientado... Desde que me postei à cabeceira da doente querida, vejo-me na condição do aluno debilitado pela expectativa de erros constantes..

Dispunha-se Neves a prosseguir, mas urgente chamado de serviço nos impeliu à separação e, con­quanto diligenciando acalmá-lo, despedi-me, sob o compromisso de irmanar-me a ele, nas tarefas de assistência à enferma, de modo mais intenso, a par­tir do dia seguinte.

 

Repousava Dona Beatriz no leito bem-posto, patenteando enorme cansaço.

A doença, decerto, consumia-lhe a forma física, desde muito, porqüanto aos quarenta e sete anos de idade mostrava o rosto singularmente engelhado e o corpo leve.

Refletia, ensimesmada, tristonha... Fácil de se lhe ver a preocupação, ante a crise iminente.

Idéias a lhe fluírem, vivas e nobres, indicavam que se habituara à certeza da desencarnação próxima. Notava-se-lhe fixada no pensamento a convicção do viajante que atingira o término de espinhosa trilha, da qual, por fim, lhe competia sair.

Conquanto tranqüila, inquietava-se pelos vín­culos que a prendiam no mundo. Apesar disso, visualizava as portas do Além, plasmando formosos quadros íntimos, como quem sonha à luz da vigília, e recordava Neves, o pai que perdera na infância, qual se visse prestes a recuperá-lo, em definitivo, tal a extensão do amor que os acolchetava um ao outro.

Observávamos, porém, sem dificuldade, que a alma afetuosa da enferma se dividia mais fortemente, na Terra, entre o esposo e o filho, dos quais se reconhecia em gradativo processo de inevitável separação.

No aposento acolhedor, que alguns adereços ataviavam, tudo transparecia limpeza, reconforto, assistência, carinho.

Ante o leito, encontramos sisudo enfermeiro desencarnado que Neves abraçou, demonstrando guardá-lo à conta de imensa estima.

E apresentou-nos:

- Amaro, temos aqui André Luiz, amigo e médico que, doravante, nos partilhará os serviços.

Saudamo-nos cordialmente.

Neves inquiriu, atencioso:

— O irmão Félix veio hoje?

— Sim, como sempre.

Informei-me, então, de que o irmão Félix, des­de muitos anos, era o superintendente de importante casa socorrista, ligada ao Ministério da Rege­neração, em Nosso Lar (2). Famoso pela bondade e paciência, era conhecido como sendo um apóstolo da abnegação e do bom-senso.

Não dispúnhamos, entretanto, de qualquer tem­po para considerações pessoais.

Dona Beatriz experimentava dores agudas e o companheiro mostrou o propósito de aliviá-la, atra­vés do passe confortativo, enquanto a senhora se via aparentemente a sós. Em grande prostração física, revelava profunda sensibilidade mediúnica.

Oh! os sublimes pensamentos do leito de dor!... De olhos cerrados, a doente, embora não assina­lasse a presença paterna, lembrava a ternura do genitor, que lhe parecia distante e inacessível no tempo. Identificava-se, de novo, com a ingenuidade infantil... Na acústica da memória, ouvia as can­ções do lar, voltava, encantada, às horas da me­ninice... Reconstituindo na imaginação as relíquias do berço, sentia-se no regaço paternal, à maneira da ave de regresso à penugem do ninho!

Dona Beatriz chorava. Lágrimas de enterne­cimento inexprimível perolavam-lhe a face. E sem que a boca enunciasse o menor movimento, clama­va intimamente com toda a alma: «pai, meu pai!...” 

 

2) Organizações no Plano dos Espíritos. Nota do Autor Espiritual.

 

Meditai, vós que, no mundo, admitis para os desencarnados a indiferença da cinza! Para lá dos túmulos, amor e saudade muitas vezes se trans­formam, no vaso do coração, em pranto comburente!

Neves cambaleou, agoniado... Enlacei-o, con­tudo, a pedir-lhe coragem. A ventania da angústia, porém, sobre o ânimo do companheiro atribulado, perdurou apenas alguns momentos.

Refeito, a re­compor o semblante que o sofrimento transfigu­rara, espalmou a destra na fronte da filha e orou, suplicando o amparo da Bondade Divina.

Chispas de luz, quais minúsculas flamas azu­líneas, evolavam-lhe do tórax, a se projetarem naquele corpo fatigado, revestindo-o de energias calmantes.

Emocionado, observei que Dona Beatriz se aco­modava a suave torpor. E antes que pudesse enun­ciar qualquer impressão, uma jovem, figurando-se nas vinte primaveras da experiência física, entrou cautelosamente no quarto. Renteou conosco, sem perceber-nos, de leve, e tomou o pulso da enferma, verificando-lhe as condições.

A recém-chegada esboçou o gesto de quem re­conhecia tudo em ordem. Encaminhou-se, logo após, na direção de pequenino armário próximo e, mu­nindo-se dos recursos necessários, voltou à cabe­ceira da dona da casa, aplicando-lhe injeção anes­tesiante.

Dona Beatriz não mostrou a mínima reação, continuando a descansar, sem dormir.

O concurso magnético de minutos antes insen­sibilizara-lhe os centros nervosos.

Perfeitamente tranqüila, a moça, na qual ob­servávamos a posição da enfermeira improvisada, retirou-se para um dos ângulos do aposento, a lar­gar-se em acolhedora poltrona de vime. Em seguida, descerrou um dos segmentos da janela qua­dripartida, atraindo a corrente de ar fresco que nos bafejou sem alarde.

Respirando à saciedade, a jovem, com grande surpresa para mim, acendeu um cigarro e passou a fumar distraidamente, dando a idéia de quem diligenciava fugir de si mesma.

Neves fitou-a, deitando-lhe significativo olhar em que se mesclavam piedade e revolta e, indican­do-a, discreto, informou-me:

— Trata-se de Marina, contadora de meu gen­ro, que se dedica ao comércio de imóveis...

Agora, a pedido dele, desempenha funções de assistente...

Evidente sarcasmo transparecia-lhe da palavra reticenciosa.

- Imagine! — voltou a dizer — fumar aqui. numa câmara de dor, onde a morte está sendo esperada!...

Contemplei Marina, cujos olhos denotavam re­côndita inquietude.

Manifestando ainda alguns laivos de respeitosa estima para com a nobre senhora estirada no leito, soprava, para além da janela, as baforadas cinzen­tas que lhe escapavam da boca.

Repartindo a própria atenção entre ela e Ama­ro, o nosso amigo da esfera espiritual, Neves, con­quanto mudo e constrangido, parecia querer falar à vontade e desinibir-se.

Tentei, porém, adquirir mais amplo conheci­mento da posição.

Aproximei-me reverentemente da jovem, no propósito de sondá-la em silêncio e colher-lhe as vibrações mais intimas; contudo, recuei assustado.

Estranhas formas-pensamentos, retratando-lhe os hábitos e anseios, em contradição com os nossos propósitos de socorrer a doente, fizeram-me para logo sentir que Marina se achava ali, a contragosto. A sua mente vagueava longe...

Quadros vivos de esfuziante agitação ressuma­vam-lhe na cabeça... De olhar parado, escutava, adentro de si própria, a música brejeira da noite festiva, que atravessara na véspera, e experimentava ainda na garganta a impressão do gim que sorvera, abundante.

Apesar de surgir-nos, superficialmente, à guisa de menina crescida, sob o turbilhão de névoa fu­marenta, exibia telas mentais complexas, a lhe re­lampaguearem na aura imprecisa.

Trazido pelas circunstâncias a colaborar na solução de um processo assistencial, sem qualquer intuito menos digno, passei a estudar-lhe o compor­tamento isolado. A Medicina terrestre, no futuro, para atender com eficácia, ao doente, examinar-lhe-á, com minúcias, a feição espiritual de todas as peças humanas que lhe articulam a equipe.

Respeitoso, iniciei os apontamentos de ampla anamnese psicológica.

Marina apresentou, a princípio, a figura de um homem amadurecido, cunhada por sua própria ima­ginação, a repetir-se-lhe, muitas vezes, acima da fronte.

Ela e ele, juntos... Percebia-se-lhes, de pron­to, a intimidade, adivinhava-se-lhes o romance...

Fisicamente, semelhavam pai e filha; entretanto, pelas atitudes sentimentais, não conseguiam disfar­çar a estuante paixão um pelo outro. Nos painéis sutis que surgiam e se desfaziam, alternadamente, mostravam-se ambos extasiados, ébrios de prazer, fosse aboletados no automóvel de luxo ou enlaçados na areia morna das praias, conchegados sob a pro­teção de arvoredo tranqüilo ou sorridentes em tu­multuados abrigos de encantamento noturno... Des­lumbrantes paisagens de Copacabana ao Leblon desfilavam por admirável fundo pictórico.

A moça entrefechava as pálpebras para senho­rear, com mais segurança, as reminiscências que lhe empolgavam os sentidos, para, logo após, men­talizar, surpreendentemente, outro homem, tão jo­vem quanto ela mesma, evidenciando-se-nos entre­gue às cenas de um filme interior, diferente...

For­mava novo tipo de palco para exibir a lembrança das próprias aventuras, no qual se destacava igualmente ao pé do rapaz, como se estivesse afeiçoada aos mesmos sítios, desfrutando companhias diver­sas... Ela e ele também juntos, no mesmo carro entrevisto ou na condição de pedestres felizes, sa­boreando refrescos ou repousando em animados entendimentos nos jardins públicos, sugerindo o en­contro de crianças enamoradas, a entretecerem as­pirações e sonhos..

Naqueles rápidos minutos de fixação espiritual, em que se exteriorizava tal qual era, Marina reve­lava a personalidade dúplice da mulher dividida entre o carinho de dois homens, jugulada por pen­samentos de medo e inquietude, ansiedade e arre­pendimento.

Neves, que de algum modo me partilhava a inspeção, quebrou a calma reinante, enunciando, abatido:

— Está vendo? Julga que é fácil para mim, pai da doente, suportar aqui semelhante criatura?

Tratei de consolá-lo e, por solicitação dele pró­prio, passamos a pequeno salão de leitura, contíguo ao aposento da enferma, a fim de que pudéssemos refletir e conversar.

 

Na peça isolada, o amigo cravou os olhos lú­cidos nos meus e obtemperou:

— Após a desencarnação, achamo-nos na se­gunda fase da própria existência e ninguém, na Terra, imagina as novas condições que nos tomam de assalto. .. De começo, renovamos a vida...

Equi­pes salvadoras, apoio na prece, estudo das vibra­ções, escola da caridade. Ensaiamos, felizes, o culto dos grandes sentimentos humanos... Depois, quan­do trazidos, de retorno, ao trabalho mais íntimo, na arena doméstica, que supúnhamos varrida para sempre da memória, como na situação especial de meu caso, a didática é outra... É preciso espre­mer o sangue do coração para confirmar o que ensinamos com a cabeça... Avalie que me encon­tro nesta casa, em serviço, apenas há vinte dias e já recebi tantas punhaladas na alma, que, não fossem as necessidades de minha filha, teria fugido, incontinenti... Sem minhas observações pessoais, não teria admitido tanta leviandade em meu gen­ro... Bilontra, fanfarrão despudorado.

Sim, sim... — tentei cortar as doloridas alegações.

Comentei, breve, a excelência do olvido de todo mal, argumentei quanto ao merecimento do auxílio silencioso, através da oração.

Neves sorriu, meio desconsolado, e ajuntou:

— Compreendo que você se reporta à vanta­gem do pensamento positivo na fixação do bem e creia que, de minha parte, farei quanto puder para não esquecê-lo. Agora, porém, tolere, por favor, as minhas considerações talvez descabidas. .. A Me­dicina é ciência luminosa, recheada de raciocínios puros; no entanto, muitas vezes é obrigada a des­cer da alta cultura para dissecar os cadáveres...

Endereçou-me o olhar de alguém que anseia derramar-se noutro alguém e continuou:

— Saiba você que na quinta noite de minha permanência aqui, notando Beatriz em aguda crise de sofrimento, diligenciei buscar meu genro para assisti-la em pessoa... E sabe onde o encontrei?

Nada de escritório, segundo a falsa informação que deixara em casa. Indignado, fui surpreendê-lo numa furna penumbrosa, em plena madrugada, jun­to da menina que você acaba de conhecer. Os dois unidos, qual marido e mulher. Champanha corren­do e música lasciva. Entidades perturbadoras e perturbadas, jungidas ao corpo dos bailarinos, en­quanto outras iam e vinham, a se inclinarem sobre taças, cujo conteúdo lábios entediados não haviam conseguido sorver totalmente.

Em recanto multi­colorido, onde algumas jovens exibiam formas se­mi-nuas em coleios esquisitos, vampiros articulavam trejeitos, completando, em sentido menos digno, os quadros que o mau-gosto humano pretendia apre­sentar, em nome da arte. Tudo rasteiro, impró­prio, inconveniente... Fisguei meu genro e a co­laboradora, nos braços um do outro, recordei minha filha doente e revoltei-me. Súbito desespero apos­sou-se de mim. Oscilou minha razão escurecida, pois cheguei a justificar, de relance, a deplorável atitude dos companheiros desencarnados que se transformam em vingadores intransigentes. O «ho­mem velho que eu fora e o «homem renovado» que aspiro a ser digladiavam em minhas fibras recônditas...

Estacou numa pausa, rearticulando os pensa­mentos, e continuou:

— Tinha visto, apavorado, em outro tempo, aqueles que se animalizavam, depois da morte, nos lares que lhes haviam sido reduto à felicidade, a se precipitarem, violentos, sobre os entes amados que lhes desertavam da afeição... Funcionara, en­tusiasmado, em diversas comissões socorristas, pro­curando esclarecê-los e modificá-los para o bem, a fazer-lhes sentir que as lutas morais, depois da desencarnação, se erigiriam igualmente em penosa herança para todos aqueles com os quais se desar­monizavam; advertia-os de que o túmulo esperava também quantos, na Terra, lhes sonegavam leal­dade e ternura... E, bastas vezes, lograva acal­má-los para a retirada benéfica. Mas ali.. Im­prudentemente agastado contra a insensibilidade do homem que me desposara a filha querida, vi-me chamado a praticar os bons conselhos que havia administrado...

O         amigo fez ligeiro intervalo, enxugou as lá­grimas que lhe corriam no rosto, ao evocar a própria inconformação, e completou a frase, aditando:

— Mas não pude. Tomado de cólera incoercí­vel, avancei, qual fera desacorrentada, e, irrefleti­damente, esmurrei-lhe a face. Ele deixou-se cair nos ombros da companheira, acusando agoniada indisposição, como se estivesse sob o impacto de súbita lipotimia... Dispunha-me, em seguida, a torcer-lhe o corpo, em meus braços rijos; entretanto, não consegui. Uma senhora desencarnada, de sem­blante nobre e calmo, aproximou, desarmando-me o íntimo. Não entremostrava sinais exteriores de elevação. Patenteava-se, aliás, tão profundamente humana, quanto nós mesmos. Diferenciava-se ape­nas através de minúsculo distintivo luminoso, que lhe brilhava palidamente no peito, qual jóia rara a emitir discreta radiação. Afagou-me, de leve, a cabeça e induziu-me à serenidade. Envergonhado, fitei-a, constrangido. A dama inesperada não me censurou, nem fez qualquer alusão ao meu gesto infeliz. Ao revés, falou-me com bondade, quanto à filha doente. Demonstrava conhecer Beatriz, tanto quanto eu próprio. E acabou convidando-me a sair do recinto, para acompanhá-la até ao quarto da enferma. Atendi sem relutância. E porque a gentil interventora, no trajeto, somente se reportasse aos méritos da compreensão e da tolerância, sem qual­quer referência aos desvarios da casa que vínha­mos de deixar, procurei reprimir-me, para cogitar, exclusivamente, de socorro à filha em dificuldade. A mensageira anônima recolocou-me no lar, despe­dindo-se, delicada; e depois disso não mais a vi, pelo que, ainda agora, me lembro dela, positiva­mente intrigado...

Ensaiava alguma observação reconfortante, re­memorando minhas experiências, quando Neves, in­terpretando-me os pensamentos, obtemperou depois de longa pausa:

— Você, André, nunca se viu defrontado por acontecimentos assim desagradáveis?

Recordei, emocionadamente, as primeiras im­pressões que me haviam transtornado a sensibilida­de, após a desencarnação. Reconstituí na memória todas as telas em que me surpreendera desanima­do, excitado, dilacerado, vencido...

As transformações domésticas, os empeços familiares, os impositivos da luta humana e as sugestões da natureza física que me haviam alterado a esposa e os filhos, na Terra, quando se reconhe­ceram sem a minha presença direta, retornaram-me ao coração. Senti-me mais estreitamente ligado ao meu interlocutor, assimilando-lhe o torturado in­fluxo mental, e comentei:

— Sim, meu amigo, atravessada a grande bar­reira, os meus problemas, a princípio, foram enor­mes...

Entretanto, não foi possível desabafar-me. Ca­valheiro maduro e simpático penetrou o recinto, compreensivelmente sem perceber-nos.

Neves, contrafeito, indicou-o, explicando-me:

— É Nemésio, meu genro...

O recém-chegado mirou-se, atenciosamente, em espelho próximo, repassou lenço alvo sobre a testa suarenta e, quando reajustava a gravata bem-posta, escutou prolongado suspiro. Lançou-se, incon­tinenti, para a câmara contígua e seguimo-lo.

Marina veio recebê-lo com amável sorriso, con­duzindo-o à cabeceira da senhora, que passou a fitá-lo entre confortada e abatida.

Dona Beatriz estendeu a mão descarnada que o marido beijou. Trocando com ela enternecido

olhar, acomodou-se Nemésio rente aos travesseiros, a endereçar-lhe perguntas carinhosas, ao mesmo tempo que lhe alisava a descuidada cabeleira.

A doente pronunciou algumas palavras breves, diligenciando agradá-lo, e ajuntou:

—        Nemésio, você me perdoará se volto ao caso de Olímpia... A pobre criatura perdeu a casa qua­se que totalmente... É necessário que você lhe ga­ranta abrigo seguro... Penso nela com os filhos ao desamparo. Tire-me dessa aflição...

O         interpelado mostrou profunda emotividade e respondeu, cortês:

- Beatriz, não há dúvida alguma. Já enviei um amigo, construtor experiente, ao local. Não se preocupe, tudo faremos sem qualquer sacrifício. Questão de tempo...

—        Receio partir de uma hora para outra...

—        Partir para onde?

Nemésio acariciou-lhe a fronte descolorida, sa­cou um sorriso amargo e prosseguiu:

—        Enquanto você estiver em tratamento, nos­sas viagens estão sustadas. Não é hora de São Lourenço...

— Minha estação curativa será outra.

— Não me fale em pessimismo... Ora, ora... Onde a primavera de nossa casa? Você anda esquecida de que nos ensinou a colocar alegria em tudo? Largue os ares sombrios... Ainda ontem, ouvi nosso médico. Você entrará em convalescen­ça, ja, ja... Amanhã, tomarei providências definitivas para que o barraco seja levantado. Você estará restabelecida em breve e ambos iremos ao primeiro café em casa de nossa Olímpia...

Dona Beatriz, ante o carinho dele, pareceu rea­nimar-se. Entreabriu-se-lhe a boca num largo sor­riso, que se me afigurou uma flor de esperança num cacto de sofrimento.

Aqueles olhos imensamente lúcidos derrama­ram duas lágrimas de felicidade que o esposo enxugou com gracioso gesto. Na face amarei ada, lampejaram raios de confiança.

Experimentando-se mentalmente renovada, a enferma acreditou no reerguimento do corpo físico e ansiou viver, viver por muito tempo ainda no aconchego familiar. Manifestando o próprio recon­forto, solicitou de Marina uma chávena de leite.

A enfermeira atendeu, comovida. E, enquanto a doente sorvia o líqüido, gole a gole, refleti na bondade daquele homem que a palavra do compa­nheiro me apresentara noutras cores.

O pensamento de Nemésio revelara-se-nos, até ali, claro e puro. Trazia Dona Beatriz no cérebro, nos olhos, nos ouvidos, no coração. Dispensava-lhe a compreensão de um amigo, a ternura de um pai.

Neves endereçava-me estranho olhar, qual se estivesse, tanto quanto eu, defrontado por indizível assombro.

Alguns momentos escoaram-se, rápidos.

Quando a enferma devolveu a xícara, outro quadro se nos desdobrou à visão.

Nemésio levantara-se rente ao leito e, por trás da cabeceira alteada, estendeu à Marina, que se mantinha do lado oposto, a mão grossa e hirsuta a que ela entregou a destra alva e leve.

O marido passou, então, a falar brandas pa­lavras para a esposa satisfeita, afagando, simultaneamente, os róseos dedos da jovem que, pouco a pouco, se desinibia, através do olhar brejeiro.

Contemplei Nemésio, admirado. Alteravam-se-lhe agora os pensamentos, que me pareceram, então, incompatíveis com a sensação de respeitabili­dade que ele nos inspirava.

Voltei-me, instintivamente, para Neves, e ele, indicando-me as duas mãos que se acariciavam, uma à outra, exclamou para mim:

— Este homem é um enigma.

 

Acomodados, de novo, no aposento próximo. buscava soerguer o ânimo de Neves, positivamente desapontado.

Arrojara-se o companheiro ao clima da digni­dade ofendida, dando a impressão de que a família encarnada ainda lhe pertencia. Exprobrava a con­duta do genro. Exalçava os merecimentos da filha. Aludia ao passado, quando ele próprio vencera lan­ces difíceis na luta sentimental.

Desculpava-se.

Ouvia-lhe, condoído, os apontamentos, a refle­tir, de minha parte, quanto à dificuldade com que somos todos nós defrontados para dissipar a ilusão da posse sobre os outros. Não fosse a obrigação de respeitar-lhe os sentimentos e, certo, me exor­bitaria, ali mesmo, em comprida tirada filosófica, recomendando o desprendimento: contudo, logrei apenas confortá-lo:

— Não se aflija. Desde muito aprendi que para as pessoas desencarnadas, quase sempre, as portas do lar se fecham no mundo, quando a morte lhes cerra os olhos.

Entretanto, não pude prosseguir.

À guisa de duas crianças enlevadas e jubilosas, Nemésio e Marina penetraram a câmara, fugindo claramente à presença da enferma.

Guardavam no semblante a expressão dos na­morados felizes, quando alimentam o clássico «en­fim sós», trancando-se contentes.

Dispus-me, instintivamente, a sair, mas Neves sustou-me o impulso de retirada, convidando-me, aturdido:

— Fique, fique... Não louvo a indiscrição; no entanto, estou, ao lado de minha filha, em sentido direto, simplesmente há alguns dias e devo saber o que ocorre, para ser útil...

A esse tempo, Nemésio enlaçara a enfermeira, qual se voltasse, de improviso, aos arrebatamentos da juventude. Amimava-lhe as mãos miúdas e os cabelos sedosos, reportando-se ao futuro. Justifi­cava-se, copiando as preocupações de um adoles­cente, interessado em vacinar a escolhida contra o ciúme. Deveriam ser bons para Beatriz, às portas do fim, e agradecer ao

Destino que os livrava dos aborrecimentos e percalços de um desquite, mesmo amigável...

Ouvira o médico, na véspera, infor­mando-se de que a doente não conseguiria viver mais que algumas semanas. E sorria, qual menino travesso, explicando que não admitia a sobrevivên­cia da alma; no entanto, a seu ver, se houvesse vida além da morte, não desejava que a esposa par­tisse, nutrindo por eles ressentimentos quaisquer. Apaixonado, procurava convencer-se de que se via correspondido, cravando a atenção nos olhos enig­máticos da companheira, a quem se reconhecia ima­nizado por intensa atração.

Marina retribuia, como quem se deixava querer bem; no entanto, apresentava o fenômeno singular da emoção jungida a ele e o pensamento voltado ao outro, empenhando-se, por todos os meios, a en­contrar nesse outro o incentivo necessário a essa mesma emoção.

Nemésio comentava os próprios empeços, sen­sibilizado.

Confessava-lhe devoção inexcedível. Não a que­ria de ânimo inquieto. De futuro, abandonaria os negócios. Viveriam felizes, na casinha de São Con­rado, que transformaria em bangalô confortável, entre o verde do mar e o verde da terra. Mandaria aprestar a reconstrução em estilo novo, a fim de que a moradia os recebesse, no momento oportuno. Que ela confiasse. Aguardaria apenas a modificação do próprio estado social para conferir-lhe o título de esposa, esposa para sempre.

Isso tudo era dito num jogo de manifestações carinhosas em que a sinceridade prevalecia num lado e o cálculo no outro.

Assinalei, porém, estranha ocorrência.

Ele e ela comunicavam-se, entre si, as mais ternas expansões de encantamento recíproco, sem ser dissoluto, e pareciam aderir, automaticamente, às impressões que esboçávamos, de vez que acom­panhávamos os mínimos gestos dos dois, com agu­çada observação, prejulgando-lhes os desígnios com o fundo de nossas próprias experiências inferiores já superadas.

Semelhantes registros que formulamos, com absoluta imparcialidade, são dignos de nota, porqüanto, atento qual me achava ao estudo, vimo-nos obrigados a reconhecer que a nossa expectativa maliciosa, aliada ao espírito de censura, estabelecia correntes mentais estimulantes da turvação psíqui­ca de que ambos se viam acometidos, correntes essas que, partindo de nós na direção deles, como que lhes agravava o apetite sensual.

O marido de Beatriz acentuava, em transpor­tes de felicidade juvenil, embora a voz ciciante, o anseio com que lhe aguardava o carinho perma­nente no refúgio caseiro.

De inopinado, porém, a jovem prorrompeu em pranto copioso.

O companheiro beijou-lhe a face, aspirando a aliviar-lhe a tensão convulsiva.

De nosso lado, entretanto, reparávamos que Marina se fixava, cada vez mais, no moço cuja fi­gura se lhe engastava à imaginação.

Escabroso, sem dúvida, o conflito de que se verificava possuída, à vista da sinceridade inequívoca de todas as promessas que lhe eram endere­çadas.

Olvidando os compromissos abraçados, perante a esposa, que lhe requisitava, naquela hora, mais amplas evidências de fidelidade e ternura, bandea­ra-se o chefe da casa, apaixonadamente, para ela, entregando-se-lhe sem reservas. Inteligente bastan­te para entender quanto se lhe debilitara o racio­cínio de homem circunspecto, a menina identificava a fase perigosa da partida infeliz a que se lançara e aturdia-se, ali, confundida entre aflições e remor­sos a lhe arpoarem o coração.

Compelidos pelas circunstâncias à penetração dos assuntos em exame, assinalávamos as telas mentais da moça, a se lhe derramarem do Intimo, irradiando-lhe a história.

Fizera-se querida pelo maduro genro de Neves, sem dedicar-lhe outros sentimentos que não fossem reconhecimento e admiração... Todavia, agora que os acontecimentos lhe impeliam a alma na direção de laços mais profundos, tremia pelas indébitas con­cessões que lhe havia feito. Remoía-lhe no espírito as recônditas reminiscências de sua aventura afe­tiva, recapitulando todos os sucessos pelos quais havia atraído o protetor experiente aos seus mé­todos sutis de sedução, para concluir, assustada, que amava até à loucura aquele rapaz franzino, que se lhe destacava do pensamento, através de cativantes apelos da memória.

Dentro dela, embatia-se guerra terrível de emo­ções e sensações.

Nemésio consolava-a, formulando frases de pa­ternal solicitude. E, ao responder-lhe às reiteradas perguntas, quanto ao choro intempestivo, a jovem adotou largo processo de perfeita dissimulação, in­vocando problemas domésticos para articular eva­sivas com que encobria a realidade.

Tentando esquivar-se de si mesma, reportou-se a supostas agruras do lar. Salientou exigências maternas, falou em dificuldades financeiras, ale­gou fantásticas humilhações que colhia no trato da irmã adotiva, mencionou incompreensões do geni­tor, em rixas constantes nos círculos da família...

O interlocutor reconfortou-a. Que não se amo­finasse. Não estaria a sós. Partilhar-lhe-ia todos os impedimentos e dissabores, fossem quais fossem. Tivesse paciência. O desenlace de Beatriz, indicado para breves dias, ser-lhes-ia o marco fundamental da ventura definitiva.

Exprimia-se Nemésio em tom de súplica. E talvez percebendo que apenas à força de palavras não conseguiria subtrai-la aos soluços, arrancou de pasta próxima um livro de cheques, colocando-lhe expressivo concurso amoedado nas mãos que o len­ço molhado umedecera.

A moça pareceu mais comovida, exibindo no rosto a apreensão de quem se recriminava sem qual­quer justificativa de consciência, ao passo que ele a enlaçava, afetuoso. No silêncio que sobreveio, voltei-me para Neves, mas não consegui pronunciar palavra.

Não obstante desencarnado, o amigo se me afi­gurava agora um homem positivamente vulgar da Terra, que a revolta azedava. Sobrecenho crispado alterava-lhe a feição no desequilíbrio vibratório que precede as grandes crises de violência.

Receava se lhe transfigurasse a calamidade emotiva em agressão, mas sucedeu o imprevisto.

A súbitas, venerando amigo espiritual pene­trou a câmara.

Arrebatadora expressão de simpatia marcava-lhe a presença. Radioso halo circundava-lhe a cabeça; no entanto, não era a luz suave a se lhe extravasar docemente da aura de sabedoria que me impressionava e sim a substância invisível de amor que lhe emanava da individualidade sublime.

Fitei-lhe os olhos, de relance, com a idéia en­ternecedora de quem revia um companheiro, longa­mente esperado por aflitivas saudades acumuladas no coração.

Fluidos calmantes banhavam-me todo, qual se fosse visitado no âmago do ser por inexplicáveis radiações de envolvente alegria.

Onde teria conhecido, nas trilhas do destino, aquele amigo que se me impôs ao sentimento qual irmão de velhos tempos? Debalde vascolejei a me­mória naqueles segundos inolvidáveis.

Num átimo, vi-me recambiado às sensações pu­ras da infância. O emissário, que estacara à frente de nós, não me fazia retomar simplesmente a se­gurança a que me habituara, quando menino, ante os braços paternos, mas também ao carinho de minha mãe, que nunca se me apartara do pensa­mento.

Oh! Deus, em que forja da vida se constituem esses elos da alma? em que raízes de júbilo e so­frimento, através das reencarnações numerosas de trabalho e esperança, dívidas e resgates, se compõe a seiva divina do amor que aproxima os seres e lhes transfunde os sentimentos numa só vibração de confiança recíproca?

Levantei meus olhos de novo para o benfeitor que se avizinhava e fui compelido a sofrear a pró­pria emotividade a fim de não retê-lo instintiva-mente em arremessos de regozijo.

Erguemo-nos de chofre.

Após cumprimentá-lo, disse Neves, então desa­nuviado, a apresentar-me quase sorrindo:

— André, abrace o Irmão Félix...

Adiantou-se, porém, o recém-chegado, ofertan­do-me um abraço e proferindo saudação calorosa, com o evidente propósito de frustrar quaisquer elo­gios no nascedouro.

— Grande contentamento o de vê-lo — disse, benevolente.

— Deus o abençoe, meu amigo...

A comoção, entretanto, imobilizava-me. Não lo­grei arrancar do coração à boca as expressões com que anelava pintar o meu enlevo, mas osculei-lhe a destra com a simplicidade de uma criança, rogan­do-lhe mentalmente receber as lágrimas que me caíam da alma, por mudo agradecimento.

Ocorreu, em seguida, algo de inusitado.

Nemésio e Marina transferiram-se, de repente, a novo campo de espírito.

Confirmei a impressão de que a nossa curio­sidade enfermiça e a revolta que dominava Neves até então haviam funcionado ali por estímulos ao magnetismo animal a que se ajustavam os dois enamorados, que nem de leve desconfiavam da mi­nuciosa observação a que se viam sujeitos, porqüanto bastou que o irmão Félix lhes dirigisse compassivo olhar para que se modificassem, incon­tinenti.

A visão de Beatriz enferma cortou-lhes o es­paço mental, à feição de um raio. Esmoreceram-se-lhes os estos de paixão. Assemelhavam-se ambos

a um par de crianças, atraidas uma para a outra,

cujo pensamento se transfigura, de improviso, ante

a presença materna.

E não era só isso. Não podia auscultar o mun­do Intimo de Neves; contudo, de minha parte, sú­bita compreensão me inundou a alma.

E se eu estivesse no lugar de Nemésio? Es­taria agindo melhor? — Silenciosas indagações se me incrustavam na consciência, impelindo-me o es­pírito a raciocinar em nível mais alto.

Fitei o atribulado chefe da casa, possuido de novos sentimentos, percebendo nele um verdadeiro irmão que me cabia entender e respeitar.

Embora confessando a mim mesmo, com indis­farçável remorso, a impropriedade da atitude que assumira, momentos antes, prossegui estudando a metamorfose espiritual que se processava.

Marina passou a revelar benéfica reação, como me estivesse admiravelmente conduzida em ocorrên­cia mediúnica, de antemão preparada. Recompôs-se, do ponto de vista emotivo, patenteando integral desinteresse por qualquer forma de entretenimento físico, e falou, com delicadeza, da necessidade de voltar aos cuidados que a doente exigia. Nemésio, a refletir-lhe a renovada posição interior, não ofe­receu qualquer embargo, acomodando-se em pol­trona próxima, enquanto a jovem se retirava, tran­qüila.

Reparei que Neves ansiava conversar, desaba­far-se; no entanto, o benfeitor, que nos granjeara os corações, apontou o esposo de Dona Beatriz e convidou:

—        Meus amigos, nosso Nemésio está seriamen­te enfermo, sem que ainda o saiba. Ignoro se já lhe notaram a deficiência orgânica... Procuremos socorrê-lo.

 

Imperfeitamente refeitos do assombro que seme­lhante atitude nos causava, passamos a colaborar com o irmão Félix, na aplicação de recursos, a beneficio do amigo que, embora nos desconhecesse a presença, se mantinha agora em aturada reflexão.

Ao contacto das mãos do benfeitor que mobi­lizava, proficiente, a energia magnética, Nemésio expunha as deficiências do campo circulatório.

O coração, consideravelmente aumentado, de-notava falhas ameaçadoras com endurecimento das artérias.

O examinando, rebuçado por fora, era enfermo grave por dentro. Entretanto, a característica mais constrangedora que apresentava surgia na arterios­clerose cerebral, cujo desenvolvimento conseguía­mos claramente positivar, manejando diminutos aparelhos de auscultação.

Comprovando longa experiência médica, o ir­mão Félix apontou-nos determinada região, em que notei a circulação do sangue reduzida, e informou:

— Nosso amigo permanece sob o perigo de coágulos bloqueadores e, além disso, é de temer-se a ruptura de algum vaso em qualquer acidente mais importante da hipertensão.

Como se nos percebesse a movimentação e nos registrasse os apontamentos, o genro de Neves, na cadeira estofada a que se recolhera, instintiva-mente respondia ao inquérito afetuoso a que lhe submetíamos a memória, elucidando-nos todas as dúvidas, através de reações mentais específicas. Acreditava-se afundado na imaginação, ignorando que se nos revelava, por inteiro, na feição de um doente voltado para os esclarecimentos da anamne­se. Rememorou as tonturas ligeiras que vinha ex­perimentando amiúde. Vasculhava a lembrança, atendendo-nos às perguntas. Alinhava aconteci­mentos passados, fixava pormenores. Reconstituiu, quanto possível, as fases do desconforto a que se vira atirado, subitamente, com a perda dos senti­dos que sofrera, no escritório, dias antes. Senti­ra-se desamparado, de chofre. Ausente. O pensa­mento esvaíra-se-lhe da cabeça, como se expulso por martelada interior. Pavoroso delíquio que se lhe representara infindável, quando perdurara sim­plesmente por segundos. Retomara a noção de si mesmo, atarantado, abatido. Curtira apreensões, ensimesmado, por muitos dias.

Para desafrontar-se, expusera a ocorrência pe­rante velho amigo, na antevéspera, já que não sabia como destrinçar o fenômeno.

A tela rearticulada por ele, na imaginação, sa­lientava-se tão nítida que lográvamos contemplá-los juntos, Nemésio e o companheiro que lhe tomara confidências, como se estivessem filmados.

O marido de Beatriz, inconscientemente, confi­gurava informes precisos, acerca do desmaio expe­rimentado, das inquietações conseqüentes, da entre­vista que provocara com o colega de negócios e do entendimento cordial havido entre ambos.

Consignamos os avisos que o interlocutor lhe transmitira.

Não lhe cabia adiar providências. Devia pro­curar um médico, analisar as próprias condições, definir os sintomas. Traçou advertências. Verifi­cava-se-lhe facilmente a fadiga. No Rio, obteria melhoras em alguma clínica de repouso. Umas fé­rias não lhe fariam mal. Qualquer síncope, a seu ver, equivalia a puxão de campainha, no aparta­mento da vida. Sério vaticínio, enfermidade à porta.

Nemésio, calado, sem perceber que se comuni­cava conosco, repetia espiritualmente as alegações que formulara.

Difícil a consulta. Responsabilidades em pen­ca, o tempo escasso. Acompanhava a esposa, na travessia das horas derradeiras, em doloroso tér­mino de existência e não encontrava meios de cuidar de si. Não discutia a oportunidade das admoesta­ções, mas admitia-se obrigado a transferir o tra­tamento para quando pudesse.

No entanto, no âmago do pensamento, por no­ticiário vivo secretamente arquivado no cofre da alma, desvelava, para nós, motivos outros que não tivera coragem de expender.

Enternecido ao toqde de amor fraterno do ben­feitor que o auscultava, liberou, em silênçio, as mais fundas preocupações.

Semelhava-se a menino peralta, quando espon­tâneo e obediente no clima dos pais.

Aclarou, positivo, a razão da fuga a qualquer assunto relacionado com a provável submissão a preceitos médicos. Receava conhecer o próprio es­tado orgânico. Amava, novamente, crendo-se de regresso às primaveras do corpo físico. Identifi­cava-se espiritualmente jovem, feliz. Qualificava a afeição de Marina como sendo o reencontro da mo­cidade que ficara para trás.

Alinhavando recordações e meditações, exibia, diante de nós, a trama dos acontecimentos que lhe sedimentavam as noções precárias da vida, possibi­litando-nos retratar-lhe a realidade psicológica.

Beatriz, a companheira em vésperas de desen­carnação, erigia-se-lhe, agora, no ânimo, em forma de relíquia que situaria, reverentemente, em breve, no museu das lembranças mais caras.

Imperturba­velmente correta e simples, transformara-lhe a vo­lúpia em admiração e a chama juvenil em calor de amizade serena. Estranho ao benefício da rotina construtiva, colocara a esposa no lugar da genitora que a morte levara. Disputava-lhe, por instinto, o sorriso benevolente e a bênção da aprovação. Que­ria-lhe a presença, como quem se acostuma ao ser­viço de um traste precioso. Harmonizava-se consigo próprio, ao chegar, suarento, em casa, descansando a cabeça fatigada em seu olhar.

Entretanto, Nemésio, de formação materialista e de índole utilitária, conquanto generoso, desconhe­cia que as almas nobres colhem no amor esponsa­lício da Terra o fruto da alegria sublime, cuja polpa o tempo sazona e torna mais doce, eliminando os caprichos transitoriamente necessários da casca.

Insistia na conservação de todos os impulsos emotivos da juventude corpórea. Andava em dia com todas as teorias da libido.

Vez por outra, demandava cidades próximas, em noitadas boêmias, asseverando, de retorno, aos amigos que assim procedia para desenferrujar o coração. Dessas escapadas, voltava trazendo à es­posa corbelhas de alto preço que Beatriz acolhia, enlevada. No decurso de algumas semanas, mostra­va-se para ela mais compreensivo e mais terno. Reconduzido, porém, mais dilatadamente, aos freios do hábito, não sabia consagrar-se às construções espirituais que só a disciplina favorece e garante. Varava, de novo, as fronteiras que os compromissos morais estabeleciam, à maneira de animal arrom­bando cerca.

Em determinadas ocasiões, acontecia fixar a esposa, invariavelmente abnegada e fiel, perguntan­do à própria alma o que sucederia se ela adotasse conduta igual à dele, e aterrava-se.

Isso nunca, pensava. Se Beatriz pusesse, ainda que de leve, o voto feminino em outro homem, era capaz de matá-la. Não hesitaria.

Nesses momentos, impressões contraditórias agitavam-lhe o espírito limitado. Não se interessa­va absolutamente pela mulher, mas não toleraria concorrência à posse daquela a quem confiara o seu nome.

       Inquietava-se, imaginava coisas, mas recompu­nha-se, tranqüilo, recordando a esquisita conceitua­ção de velho amigo que consumira a existência alcoolizado entre os despojos endinheirados de pa­rentes ricos, e que lhe tisnara os sonhos do lar, quando menino, a repetir-lhe, freqüentemente: «Ne­mésio, mulher é chinela no pé do homem. Quando não presta mais, é preciso arranjar outra.

Compreensível que, regando a raiz do caráter com as águas turvas de semelhante filosofia, atin­gisse o genro de Neves o marco dos sessenta anos com os sentimentos deteriorados, no tocante ao res­peito que um homem deve a si mesmo.

Por todos esses motivos, na quadra difícil e obscura que atravessava, reaprendera os cuidados da preservação individual.

Readquirira o gosto de vestir-se com distinção, selecionando figurinos e alfaiates. Refinara a sen­sibilidade masculina, afeiçoara-se aos programas radiofônicos de ginástica, no que, aliás, lograra des­pojar-se da adiposidade oscilante. Disputava o in­gresso em agremiações festivas para atualizar a linguagem e requintar o porte.

Não lhe importavam as tochas brancas que lhe esmaltavam de prata a cabeleira densa. Elegia nos perfumes raros e nas gravatas coloridas motivos de leveza e elegância sempre novos.

Pagara habilmente instruções e pareceres de improvisados professores em renovação da perso­nalidade e embelezara-se, vaidoso, lembrando antigo edifício sob nova decoração.

       Evidentemente, não — raciocinava, apreen­sivo —, não se resignaria a qualquer terapêutica que não fosse a de se lhe acentuar disposições ao prazer. Recusaria, peremptório, toda medida ende­reçada a suposto reajustamento orgânico, já que se supunha perfeitamente idôneo para comandar as próprias sensações. Euforia, o problema. Providência medicamentosa, apenas a que lhe arejasse o espírito, rejuvenescendo-lhe as forças.

O irmão Félix voltou a dizer-nos:

— Nemésio demonstra enorme esgotamento, àvista dos hábitos demolidores a que se rendeu.

A inquietação emotiva descontrola-lhe os nervos e os falsos afrodisíacos usados solapam-lhe as energias, sem que ele mesmo perceba.

Diante da afirmativa, o esposo de Beatriz fixou agoniado vinco mental, entremostrando haver assi­milado, mecanicamente, o impacto do grave enun­ciado.

— E se piorasse? — considerou de si para si.

A figura de Marina repontou-lhe da alma.

Nemésio divagou, cismarento.

Concordaria, sim, em recuperar a saúde, mas somente depois... Depois que retivesse a jovem no lar, entregue a ele, em definitivo, pelos laços do matrimônio. Enquanto não a recolhesse, nos bra­ços, sob regime de compromisso legal, não aceita­ria proteção médica. Cabia-lhe sustentar-se capaz e moço aos olhos dela. Fugiria deliberadamente de conselhos ou disciplinas tendentes a desviá-lo da ronda de passeios, excursões, entretenimentos e bebedices que, na posição de homem enamorado, acreditava dever-lhe.

O irmão Félix não contrapôs qualquer argu­mentação. Ao revés, administrou-lhe recursos magnéticos em toda a província cerebral, dispensando-lhe assistência.

Ao término da longa operação socorrista, Neves, taciturno, não encobria o próprio desapontamento. A desaprovação esguichava-lhe da cabeça, plasman­do pensamentos de censura, que, não obstante res­peitosa, nos alcançavam em cheio, por chuva de vibrações negativas.

Talvez, por isso, o benfeitor sugeriu ao dono da casa abandonar o recinto, solicitação muda que Nemésio atendeu, de pronto, já que se munira das escoras que o amigo espiritual espontaneamente lhe oferecia.

Os três, a sós, tornamos à conversação.

Félix, sorrindo, afagou de leve os ombros do meu companheiro e ponderou:

— Entendo, Neves, entendo você...

Encorajado pela inflexão de carinho com que semelhantes palavras eram ditas, o sogro de Nemé­sio desafogou-se:

— Quem entende menos sou eu. Não admito tanto resguardo para um cachorro de má qualida­de. Um homem igual a este, que me desrespeita a confiança paterna! Quem não lhe vê no espírito a poligamia declarada? Um sessentão desavergo­nhado que enxovalha a presença da esposa agoni­zante! Ah! Beatriz, minha pobre Beatriz, por que te uniste a um cavalo?

Dementara-se Neves, diante de nós. Retroce­dera mentalmente ao círculo acanhado da família humana e chorava, transtornado, sem que lhe pu­déssemos cercear a emoção.

— Faço força — gemia acabrunhado —, mas não agüento. De que me vale trabalhar odiando? Nemésio é um mascarado! Tenho estudado a ciência de perdoar e servir, tenho aconselhado serviço e perdão aos outros, mas agora... Divididos por simples parede, vejo o sofrimento e o vício debaixo do mesmo teto. De um lado, minha filha confor­mada, aguardando a morte; de outro, meu genro e essa mulher que me insulta a família. Deus do céu! que me foi reservado? Andarei auxiliando uma filha doente ou sendo chamado à tolerância? Mas, como suportar um homem desses?

Não adiantou um aceno à prudência, na pausa curta.

— Antigamente — tartamudeou ele, desespe­rado — acreditava que o inferno, depois da morte, fosse pular em vão num cárcere de fogo; hoje aprendo que o inferno é voltar à Terra e estar com os parentes que já deixamos... Isso é a purgação de nossos pecados!...

Félix aproximou-se e ponderou, segurando-lhe afetuosamente as mãos:

— Calma, Neves. Sempre surge para todos nós o dia de provar aquilo que somos naquilo que en­sinamos. Além disso, Nemésio deve ser entendido...

— Entendido? — entaramelou-se o interlocu­tor — não chegará ter visto?

E acrescentou, quase irônico:

— Sabe o senhor qual é o rapaz que vem ocu­pando o pensamento dessa moça?

— Sei, mas deixa-me explicar — clareou Félix com brandura. — Principiemos por aceitar Nemésio na posição em que se encontra. Como exigir da criança experiência da madureza ou pedir raciocí­nio certo ao alienado mental? Sabemos que cresci­mento do corpo não expressa altura de espírito. Nemésio é aluno da vida, qual nós mesmos, sem o benefício da lição em que estamos sendo instruí­dos. Que seria de nós, na situação dele, sem a visão que atualmente nos favorece?

Provavelmente, cai­ríamos em condições piores...

— Quer dizer que devo aprová-lo?

— Ninguém aplaude a enfermidade, nem louva o desequilíbrio; no entanto, seria crueldade recusar simpatia e medicação ao doente. Consideremos que Nemésio não é um companheiro desprezível. Ema­ranhou-se em sugestões perigosas, mas não fugiu da esposa a quem presta assistência; mostra-se en­godado por extravagâncias emotivas de caráter de­primente que lhe dilapidam as forças; contudo, não esqueceu a solidariedade, resolvendo oferecer casa própria e gratuita à senhora que lhe presta servi­ços remunerados; acredita-se dono de juvenilidade física absolutamente irrisória, quando, na realida­de, carrega um corpo em prematuro desgaste; dedi­ca-se apaixonadamente a uma jovem que o menos­caba, conquanto lhe consagre apreço respeitoso...

Não bastariam estas razões para merecer benevolência e carinho? Quem de nós com a possibilidade de auxiliar? Ele que anda cego ou nós que discer­nimos? Não posso enaltecer-lhe as manobras la­mentáveis, na esfera do sentimento; entretanto, sou obrigado a confessar que ele, na ficha de anal­fabeto das verdades da alma, ainda não tombou de todo...

Com significativo tom de voz, o instrutor acen­tuou:

—        Neves, Neves! A sublimação progressiva do sexo, em cada um de nós, é fornalha candente de sacrifícios continuados. Não nos cabe condenar al­guém por faltas em que talvez possamos incidir ou nas quais tenhamos sido passíveis de culpa em outras ocasiões.

Compreendamos para que sejamos compreendidos.

Neves silenciou, decerto controlado pela influên­cia do amigo venerável, e, quando consegui fitá-lo, depois de alguns momentos de expectativa, percebi que se pusera, humildemente, em oração.

 

De volta ao aposento da enferma, certificamo­-nos de que Nemésio e Marina haviam saido. A camareira da casa velava.

Neves, desenxabido, absteve-se de qualquer co­mentário. Retraíra-se no claro propósito de sopitar impulsos menos construtivos.

Recompondo-se, momentos antes, rogara do ir­mão Félix lhe desculpasse o ataque de cólera em que extravasara rebeldia e desespero.

Descera à inconveniência, acusava-se, humilde. Fora descaridoso, insensato, penitenciava-se com tristeza. O irmão Félix, com bastante autoridade, se quisesse, poderia demiti-lo do piedoso mister que invocara, com o objetivo de proteger a filha; en­tretanto, pedia tolerância. O coração paternal, no instante crítico, não se vira preparado, de modo a escalar o nível do desprendimento preciso, decla­rava com amargura e desapontamento.

Félix, porém, abraçara-o com intimidade e, sor­ridente, ponderou que a edificação espiritual, em muitas circunstâncias, inclui explosões do sentimen­to, com trovões de revolta e aguaceiros de pranto, que acabam descongestionando as vias da emoção.

Que Neves esquecesse e recomeçasse. Para isso, contava com os talentos da oportunidade, do tempo. Obviamente por isso, o sogro de Nemésio ali se achava agora, diante de nós, transformado e So­lícito.

Por indicação do paciente amigo que nos orien­tava, formulou uma prece, enquanto ministrávamos socorro magnético à doente.

Beatriz gemia; no entanto, Félix esmerou-se para que se aliviasse e dormisse, providenciando, ainda, para que não se retirasse do corpo, sob a hipnose habitual do sono. Não lhe convinha, por enquanto, esclareceu ele, afastar-se do veículo fa­tigado. Em virtude dos órgãos profundamente en­fraquecidos, desfrutaria penetrante lucidez espiri­tual e não seria prudente arremessá-la, de chofre, a impressões demasiado ativas da esfera diferente para a qual se transferiria, muito em breve.

Aconselhável seria a mudança progressiva. Graduação de luz, intensificando-se, a pouco e pouco.

Largamos a filha de Neves em repouso nutrien­te e restaurador, e demandamos a rua.

Acompanhando Félix, cujo semblante passou a denotar funda preocupação, alcançamos espaçoso apartamento do Flamengo, onde conheceríamos, de perto, os familiares de Marina.

A noite avançava.

Transpassando estreito corredor, pisamos o re­cinto doméstico, surpreendendo, no limiar, dois ho­mens desencarnados, a debaterem, com descuidada chocarrice, escabrosos temas de vampirismo.

Vale assinalar que, não obstante pudéssemos fiscalizar-lhes os movimentos e ouvir-lhes a loqua­cidade fescenina, nenhum dos dois lograva registrar-nos a presença. Prometiam arruaças. Argumen­tavam, desabridos.

Malandros acalentados, mas perigosos, conquan­to invisíveis para aqueles junto dos quais se erguiam por ameaça insuspeitada.

Por semelhantes companhias, fácil apreciar os riscos a que se expunham os moradores daquele ninho de cimento armado, a embutir-se na constru­ção enorme, sem qualquer defesa de espírito.

Entramos. Na sala principal, um cavalheiro de traços finos, em cuja maneira de escarrapachar-se se adivinhava, para logo, o dono da casa, lia um jornal vespertino com atenção.

Os atavios do ambiente, apesar de modestos, denunciavam apurado gosto feminino. O mobiliário antigo de linhas quase rudes suavizava-se ao efeito de ligeiros adornos.

Tufos de cravos vermelhos, a se derramarem de vasos cristalinos, harmonizavam-se com as rosas da mesma cor, habilmente desenhadas nas duas telas que pendiam das paredes, revestidas de ama­relo dourado. Mas, destoante e agressiva, uma es­guia garrafa, contendo uísque, empinava o gargalo sobre o crivo lirial que completava a elegância da mesa nobre, deitando emanações alcoólicas que se casavam ao hálito do amigo derramado no divã.

Félix encarou-o, manifestando a expressão de quem se atormentava, piedosamente, ao vê-lo, e no-lo indicou:

— Temos aqui o irmão Cláudio Nogueira, pai de Marina e tronco do lar.

Fisguei-o, de relance. Figurou-se-me o hospe­deiro involuntário um desses homens maduros que se demoram na quadra dos quarenta e cinco janei­ros, esgrimindo bravura contra os desbarates do tempo. Rosto primorosamente tratado, em que as linhas firmes repeliam a notícia vaga das rugas, cabelos penteados com distinção, unhas polidas, pi­jama impecável. Os grandes olhos escuros e móveis pareciam imanizados às letras, pesquisando moti­vos para trazer um sorriso irônico aos lábios finos. Entre os dedos da mão que descansava à beira do sofá, o cigarro fumegante, quase rente ao tripé anão, sobre o qual um cinzeiro repleto era silen­ciosa advertência contra o abuso da nicotina.

Detínhamo-nos, curiosos, na inspeção, quando sobreveio o inopinado.

Diante de nós, ambos os desencarnados infe­lizes, que surpreendêramos à entrada, surgiram de repente, abordaram Cláudio e agiram sem-cerimônia.

Um deles tateou-lhe um dos ombros e gritou, insolente:

— Beber, meu caro, quero beber!

A voz escarnecedora agredia-nos a sensibili­dade auditiva. Cláudio, porém, não lhe pescava o mínimo som. Mantinha-se atento à leitura. Inal­terável. Contudo, se não possuía tímpanos físicos para qualificar a petição, trazia na cabeça a caixa acústica da mente sintonizada com o apelante.

O assessor inconveniente repetiu a solicitação, algumas vezes, na atitude do hipnotizador que in­sufla o próprio desejo, reasseverando uma ordem.

O resultado não se fez demorar. Vimos o pa­ciente desviar-se do artigo político em que se entranhava. Ele próprio não explicaria o súbito de­sinteresse de que se notava acometido pelo editorial que lhe apresara a atenção.

Beber! Beber!...

Cláudio abrigou a sugestão, convicto de que se inclinava para um trago de uísque exclusiva-mente por si.

O pensamento se lhe transmudou, rápido, como a usina cuja corrente se desloca de uma direção para outra, por efeito da nova tomada de força.

Beber, beber!... e a sede de aguardente se lhe articulou na idéia, ganhando forma. A mucosa pi­tuitária se lhe aguçou, como que mais fortemente impregnada do cheiro acre que vagueava no ar.

O assistente malicioso coçou-lhe brandamente os gor­gomilos. O pai de Marina sentiu-se apoquentado. Indefinível secura constringia-lhe o laringe. Ansia­va tranqüilizar-se.

O amigo sagaz percebeu-lhe a adesão tácita e colou-se a ele. De começo, a carícia leve; depois da carícia agasalhada, o abraço envolvente; e de­pois do abraço de profundidade, a associação recí­proca.

Integraram-se ambos em exótico sucesso de en­xertia fluídica.

Em várias ocasiões, estudara a passagem do Espírito exonerado do envoltório carnal pela matéria espessa. Eu mesmo, quando me afazia, de novo, ao clima da Espiritualidade, após a desen­carnação última, analisava impressões ao transpor, maquinalmente, obstáculos e barreiras terrestres, recolhendo, nos exercícios feitos, a sensação de quem rompe nuvens de gases condensados.

Ali, no entanto, produzia-se algo semelhante ao encaixe perfeito.

Cláudio-homem absorvia o desencarnadO, a gul­sa de sapato que se ajusta ao pé. Fundiram-se os dois, como se morassem eventualmente num só cor­po. Altura idêntica. Volume igual.

Movimentos em-crônicos. Identificação positiva.

Levantaram-se a um tempo e giraram integral­mente incorporados um ao outro, na área estreita, arrebatando o delgado frasco.

Não conseguiria especificar, de minha parte, a quem atribuir o impulso inicial de semelhante gesto, se a Cláudio que admitia a instigação ou se ao obsessor que a propunha.

A talagada rolou através da garganta, que se exprimia por dualidade singular. Ambos os dipsômanos estalaram a língua de prazer, em ação si­multânea.

Desmanchou-se a parelha e Cláudio, desemba­raçado, se dispunha a sentar, quando o outro co­lega, que se mantinha a distância, investiu sobre ele e protestou: «eu também, eu também quero!

Reavivou-se-lhe no ânimo a sugestão que es­morecia..

Absolutamente passivo diante da incitação que o assaltava, reconstituiu, mecanicamente, a impres­são de insaciedade.

Bastou isso e o vampiro, sorridente, apossou­-se dele, repetindo-se o fenômeno da conjugação completa.

Encarnado e desencarnado a se justaporem. Duas peças conscientes, reunidas em sistema irre­preensível de compensação mútua.

Abeirei-me de Cláudio para avaliar, com impar­cialidade, até onde sofreria ele, mentalmente, aquele processo de fusão.

Para logo convenci-me de que continuava li­vre, no íntimo. Não experimentava qualquer espécie de tortura, a fim de render-se. Hospedava o outro, simplesmente, aceitava-lhe a direção, entre­gava-se por deliberação própria. Nenhuma simbio­se em que se destacasse por vítima.

Associação implícita, mistura natural.

Efetuava-se a ocorrência na base da percussão.

Apelo e resposta. Cordas afinadas no mesmo tom.

O         desencarnado alvitrava, o encarnado aplaudia.

Num deles, o pedido; no outro, a concessão.

Condescendendo em ilaquear os próprios sen­tidos, Cláudio acreditou-se insatisfeito e retrocedeu, sorvendo mais um gole.

Não me furtei à conta curiosa. Dois goles para três.

Novamente desimpedido, o dono da casa esti­rou-se no divã e retomou o jornal.

Os amigos desencarnados tornaram ao corre­dor de acesso, chasqueando, sarcásticos, e Neves, respeitoso, consultou sobre responsabilidade.

Como situar o problema? Se víramos Cláudio aparentemente reduzido à condição de um fanto­che, como proceder na aplicação da justiça? Se ao invés de bebedice, estivéssemos diante de um caso criminal? Se a garrafa de uísque fosse arma deter­minada, para insultar a vida de alguém, como de­cidir? A culpa seria de Cláudio que se submetia ou dos obsessores que o comandavam?

O irmão Félix aclarou, tranqüilo:

— Ora, Neves, você precisa compreender que nos achamos à frente de pessoas bastante livres para decidir e suficientemente lúcidas para racio­cinar. No corpo físico ou agindo fora do corpo fí­sico, o Espírito é senhor da constituição de seus atributos. Responsabilidade não é título variável. Tanto vale numa esfera, quanto em outras. Cláudio e os companheiros, na cena que acompanhamos, são três consciências na mesma faixa de escolha e ma­nifestações conseqüentes.

Todos somos livres para sugerir ou assimilar isso ou aquilo. Se você fosse instado a compartilhar um roubo, decerto recusa­ria. E, na hipótese de abraçar a calamidade, em são juízo, não conseguiria desculpar-se.

Interrompeu-se o mentor, volvendo a refletir após momento rápido:

— Hipnose é tema complexo, reclamando exa­mes e reexames de todos os ingredientes morais que lhe digam respeito. Alienação da vontade tem limites. Chamamentos campeiam em todos os ca­minhos. Experiências são lições e todos somos aprendizes. Aproveitar a convivência de um mestre ou seguir um malfeitor é deliberação nossa, cujos resultados colheremos.

Verificando que o orientador se dava pressa em ultimar os esclarecimentos sem mostrar o mínimo propósito de afastar as entidades vadias que pesavam no ambiente, Neves voltou à carga, no intuito louvável do aluno que aspira a complemen­tar a lição.

Pediu vênia para repisar o assunto na hora.

Recordou que, sob o teto do genro, o irmão Félix se esmerava na defesa contra aquela casta de gente. Amaro, o enfermeiro prestimoso, fora si­tuado junto de Beatriz principalmente para correr com intrometidos desencarnados. O aposento da fi­lha tornara-se, por isso, um refúgio. Ali, no entanto...

E perguntava pelo motivo da direção diversa. Félix expressou no olhar a surpresa do profes­sor que não espera apontamento assim argucioso por parte do discípulo e explicou que a situação era diferente.

A esposa de Nemésio mantinha o hábito da oração. Imunizava-se espiritualmente por si.

Repelia, sem esforço, quaisquer formas-pensamentos de sentido aviltante que lhe fossem arremessadas. Além disso, estava enferma, em vésperas da desen­carnação. Deixá-la à mercê de criaturas insanas seria crueldade. Garantias concedidas a ela erguiam-se justas.

— Mas... e Cláudio? — insistiu Neves.

— Não merecerá, porventura, fraterna demonstração de caridade, a fim de livrar-se de tão temíveis ob­sessores?

Félix sorriu francamente bem-humorado e ex-plicou:

—        «Temíveis obsessores» é a definição que você dá. — E avançou: — Cláudio desfruta excelente saúde física. Cérebro claro, raciocínio seguro. É inteligente, maduro, experimentado.

Não carrega inibições corpóreas que o recomendem a cuidados especiais. Sabe o que quer.

Possui materialmente o que deseja. Permanece no tipo de vida que pro­cura. É natural que esteja respirando a influência das companhias que julgue aceitáveis. Retém li­berdade ampla e valiosos recursos de instrução e discernimento para juntar-se aos missionários do bem que operam entre os homens, assegurando edi­ficação e felicidade a si mesmo. Se elege para comensais da própria casa os companheiros que acabamos de ver, é assunto dele. Enquanto nos arrastávamos, tolhidos pela carne, não nos ocorre­ria a idéia de expulsar da residência alheia as pes­soas que não se harmonizassem conosco. Agora, vendo o mundo e as coisas do mundo, de mais alto, não será cabível modificar semelhante modo de pro­ceder.

O         tema desdobrava-se, assumindo aspectos novos.

Curioso, interferi:

—        Mas, irmão Félix, é importante convir que Cláudio, liberto, poderia ser mais digno...

—        Isso é perfeitamente lógico — confirmou. Ninguém nega.

—        E por que não dissipar de vez os laços que o prendem aos malandros que o exploram?

O         alto raciocínio da Espiritualidade superior jorrou, pronto:

—       Cláudio certamente não lhes empresta o conceito de vagabundos. Para ele, são sócios estimáveis, amigos caros. Por outro lado, ainda não investigamos a causa da ligação entre eles para cunhar opiniões extremadas. As circunstâncias po­dem ser saudáveis ou enfermiças como as pessoas, e, para tratarmos um doente com segurança, há que analisar as raízes do mal e confirmar os sintomas, aplicar medicação e estudar efeitos. Aqui, vemos um problema pela rama. Quando terá nascido a comunhão do trio? Os vínculos serão de agora ou de existências passadas? Nada legitimaria um ato de violência da nossa parte, com o intuito de sepa­rá-los, a titulo de socorro. Isso seria o mesmo que apartar os pais generosos dos filhos ingratos ou os cônjuges nobres dos esposos ou das esposas de condição inferior, sob o pretexto de assegurar lim­peza e bondade nos processos da evolução. A res­ponsabilidade tem o tamanho do conhecimento. Não dispomos de meios precisos para impedir que um amigo se onere em dívidas escabrosas ou se des­penque em desatinos deploráveis, conquanto nos seja lícito dispensar-lhe o auxílio possível, a fim de que se acautele contra o perigo no tempo viável, sendo de notar-se que as autoridades superiores da Espiritualidade chegam a suscitar medidas es­peciais que impõem aflições e dores de importância aparente a determinadas pessoas, com o objetivo de livrá-las da queda em desastres morais iminen­tes, quando mereçam esse amparo de exceção. Na Terra, a exata justiça apenas cerceia as manifes­tações de alguém, quando esse alguém compromete o equilíbrio e a segurança dos outros, na área de responsabilidade que a vida lhe demarca, deixando a cada um a regalia de agir como melhor lhe pa­reça. Adotaremos princípios que valham menos, pe­rante as normas que afiançam a harmonia entre os homens?

Rematando as elucidações lapidares que entre-tecia, o irmão Féllx revestira-se de um halo bri­lhante.

Enlevados, não encontrávamos em nós senão silêncio para significar-lhe admiração ante a sabe­doria e a simplicidade.

O instrutor fitava Cláudio com simpatia, dando a entender que se dispunha a abraçá-lo paternalmente, e, receando talvez que a oportunidade esca­passe, Neves, humilde e respeitoso, pediu se lhe relevasse a insistência; entretanto, solicitava fosse aclarado, ainda, um ponto dos esclarecimentos em vista.

Diante do mentor paciente, perguntou pelos promotores de guerra, entre os homens. Declarara Félix que a justiça tacitamente cerceia as ações dos que ameaçam a estabilidade coletiva. Como en­tender a existência de governantes transitórios, eri­gindo-se na Terra em verdugos de nações?

Félix sintetizou, reempregando algumas das pa­lavras de que se utilizara:

— Dissemos «cercear» no sentido de «corrigir», «restringir». Assinalamos igualmente que toda cria­tura vive na área de responsabilidade que a lei lhe delimita. Compreendendo-se que a responsabilidade de alguém se enquadra ao tamanho do conhecimen­to superior que esse alguém já adquiriu, é fácil ad­mitir que os compromissos da consciência assumem as dimensões da autoridade que lhe foi atribuida. Uma pessoa com grandes cabedais de autoridade pode elevar extensas comunidades às culminâncias do progresso e do aprimoramento ou afundá-las em estagnação e decadência. Isso na medida exata das atitudes que tome para o bem ou para o mal. Natu­ralmente, governantes e administradores, em qual­quer tempo, respondem pelo que fazem. Cada qual dá conta dos recursos que lhe foram confiados e da região de influência que recebeu, passando a colher, de modo automático, os bens ou os males que haja semeado.

Víamos, porém, que Félix não desejava esten­der-se em mais amplas considerações filosóficas.

Assentando no rosto a expressão de quem nos pedia transferir para depois qualquer nova interro­gação, acercou-se de Cláudio, a envolvê-lo nas sua­ves irradiações do olhar brando e percuciente.

Estabeleceu-se ligeira e doce expectativa.

O benfeitor acusava-se emocionado. Parecia agora mentalmente distanciado no tempo.

Acariciou a cabeleira daquele homem, com quem Neves e eu, no fundo, não nos afínáramos assim tanto, se­melhando-se médico piedoso, encorajando um doen­te menos simpático.

Aquele momento de comoção, entretanto, foi rápido, quase imperceptível, porque o irmão Félix retomou-nos a intimidade e comentou, despreten­sioso:

— Quem afirmará que Cláudio amanhã não será um homem renovado para o bem, passando a edu­car os companheiros que o deprimem? Por que atrair contra nós a repulsão dos três, simplesmente por­que se mostrem ignorantes e infelizes? E admitir­-se-á, porventura, que não venhamos a necessitar uns dos outros? Existem adubos que lançam ema­nações extremamente desagradáveis; no entanto, asseguram a fertilidade do solo, auxiliando a plan­ta que, a seu turno, se dispõe a auxiliar-nos.

O benfeitor esboçou o gesto de quem encerrava a conversação e lembrou-nos, gentil, o trabalho em andamento.

 

Entramos em aposento contíguo, onde encon­tramos jovem franzina, em dorida atitude.

Sentada num dos leitos que se estiravam no quarto gracioso e limpo, refletia, torturada, permitindo-nos entre-ver-lhe o drama oculto.

O         irmão Félix apresentou-a.

Tratava-se de Marita, que os donos da casa haviam perfilhado ao nascer, vinte anos antes.

Bastou uma vista de olhos para que me con­doesse ao contemplá-la. Rosa humana, embora exa­lasse a fragrância da juventude, aquela moça, quase menina, de mãos enclavinhadas sob o queixo, ma­tutando, parecia carregar o peso estafante de tri­bulações cronicificadas e dolorosas.

Figurava-se-lhe a cabeleira ondeada lindo toucado de veludo cas­tanho sobre a cabeça. O rosto esculpido em linhas raras, os olhos escuros contrastando com a bran­cura da tez, as mãos pequenas e as unhas róseas complementavam belo manequim de carne, apresen­tando por dentro uma criança assustada e ferida.

Tristeza maquilada. Aflição no disfarce de flor.

Obedecendo a instruções de Félix, abordei-a, enternecido, rogando-lhe, mentalmente, algo escla­recesse, em torno de si própria.

Desde o contacto com Nemésio, o benfeitor ensaiava-me, provavelmente sem querer, em novo gênero de anamnese: consultar o enfermo espiritual em pensamento, evidenciando a terna compreensão que um pai deve aos filhos, a fim de pesquisar conclusões para o trabalho assistencial.

Compelido a operar individualmente, recompus emoções.

Recobrei os sentimentos paternais que me ha­viam animado entre os homens e cravei o olhar indagador naquela criaturinha cismarenta, imagi­nando-a por filha de minha alma.

Solicitei-lhe, sem palavras, confiasse em nós, de­soprimíndo-se. Relacionasse, por gentileza, as suas impressões mais recuadas no tempo. Desenovelasse o passado. Reconstituisse na lembrança tudo o que soubesse de si, nada escondesse.

Propúnhamo-nos auxiliá-la. Não conseguiría­mos, porém, agir ao acaso. Era imprescindível que ela se nos revelasse, arrancando à câmara da me­mória as cenas arquivadas desde a infância, expon­do-as na tela mental para que as analisássemos, imparcialmente, de maneira a conduzir as ativida­des socorristas que intentaríamos desenvolver.

Marita assimilou-nos o apelo, de imediato. In­capaz de explicar a si mesma a razão pela qual se via instintivamente constrangida a rememorar o pretérito, situou o impulso mental no ponto em que obtinha o fio inicial das suas recordações.

Os quadros da meninice se lhe estamparam na aura, movimentados como num filme.

Vimo-la pequenina, hesitante, nos passos pri­meiros.

E, enquanto desfilavam os painéis ingênuos do que lhe havia acontecido, logo após o soerguimento do berço, ela alinhavava elucidações inarticuladas, respondendo-nos às perguntas.

Sim — relembrava, supondo falar consigo —, não era filha dos Nogueiras. Dona Márcia, a espo­sa de Cláudio, adotara-a. Nascera de jovem suicida. Aracélia, a mãezinha que não conhecera, fora to­mada a serviço do casal, por ocasião do matrimônio daqueles que o destino lhe impusera na condição de pais. Quando se entendera por gente grande, a genitora de Marina lhe dera a saber, através de informações pessoais, a breve história da mulher simples e pobre que a trouxera ao mundo. Recém-chegada do interior, procurando emprego humil­de, Aracélia acolhera-se-lhe à moradia, encaminhada por senhora de suas relações. Era bonita, espon­tânea. Brincava, gostava de festas. Findos os com­promissos caseiros, divertia-se. Pela ternura ex­pansiva, granjeara amizades, passeava, dançava. Alegre e comunicativa, mas operosa e correta. As vezes, regressava, tarde da noite, ao aposento que a família lhe destinara; de manhãzinha, porém, es­tava no posto. Nunca se queixava. Invariavelmente prestimosa, a desvelar-se do tanque à cozinha. A vista disso, embora os patrões não lhe estimassem as companhias pouco recomendáveis, não se sen­tiam com direito a lançar-lhe reproches. Dona Már­cia era habitualmente precisa nas referências. Lem­brava-se dela, enternecida. Por ocasião do nasci­mento de Marina, a filha única, fizeram-se mais amigas, mais íntimas. Aracélia desdobrara-se, junto dela, em carinho e dedicação. Contudo, justamente nessa época, verificara-se a grande mudança. A doméstica devotada engravidara-se, com muito padecimento físico. Por mais se esforçassem os donos da casa, instando a que se manifestasse quanto ao responsável pela situação, apenas chorava, abolindo qualquer possibilidade de se lhe tentar casamento digno. Sabia-se que, freqüentando bailes a rodo, decerto se precipitara em aventuras diversas. Com­padecidos, os patrões deram à jovem mãe solteira a mais ampla assistência, inclusive internando-a em estabelecimento adequado, para que a criança nas­cesse sob o amparo possível.

Nesse tópico das amargosas reminiscências, a menina estacou, mentalmente, qual se estivesse can­sada de pensar no mesmo assunto. Fora assim que ela, Marita, chegara ao mundo.

Marejaram-se-lhe os olhos de lágrimas, esta­belecendo confronto entre as provações da mãezi­nha e as dela própria; no entanto, para não distrair a pesquisa em curso, sugeri-lhe continuasse.

Dona Márcia contara-lhe — prosseguiu no so­lilóquio — que, retornando a casa, mostrara-se Ara­célia irremediavelmente abatida. Lágrimas inces­santes, irritação, melancolia. Não valeram adver­tências, nem cuidados médicos. Na noite em que sorveu grande dose de formicida, conversara ani­madamente com a patroa, fornecendo a impressão de que se recuperava. Entretanto, pela manhã, foi achada morta, com uma das mãos agarrada ao seu berço, como se, na última hora, não lhe quisesse dizer adeus.

Fundamente comovida, a jovem procurou, em vão, revisar o começo, interessada em relatar-nos quanto conhecia de si mesma. Certificava-se tão-somente de que despertara para a vida no colo de Dona Márcia, que considerara, a principio, sua mãe verdadeira, que se ligava a Marina como se lhe fosse irmã no sangue, apegando-se a ela em todos os brincos da infância. Juntas freqüentaram a escola, juntas comungaram a meninice. Parti­lhavam excursões e entretenimentos, alegrias e jo­gos. Manuseavam os mesmos livros, vestiam cores iguais.

Processava-se a análise, normalmente, mas, tal­vez porque o tempo avançasse, o irmão Félix se despediu, alegando obrigações urgentes. Serviços na instituição pela qual se responsabilizava não lhe permitiam delongar a visita.

Asseverou, gentil, que nos hipotecava confiança. Observou, com a delicadeza do chefe que solicita, ao invés de mandar, que esperava por zelosa aten­ção de nossa parte, ao pé daquela menina inexpe­riente, enquanto a prestação de concurso fraterno se nos tornasse possível.

Enunciando a petição, no­tava-se-lhe o embaraço. Compreendi que ele, es­pírito superior, ali se achava por generosidade, àfeição do professor destacado e enobrecido que des­ce de sua cátedra para alentar o ânimo de alunos detidos no alfabeto.

Ele sorriu com desapontamento, percebendo a interpretação que me assomara à cabeça, e escla­receu, discreto, que possuia fortes razões para con­sagrar-se à felicidade daquela casa, com entranhado afeto; entretanto, a família teimava em fugir de toda atividade religiosa ou beneficente.

Ninguém, ali, se interessava pelo cultivo da oração ou do es­tudo. Nenhum dos quatro componentes da equipe doméstica se inclinava para o serviço ao próximo. À face disso, não obstante amasse Cláudio com pa­ternal solicitude, não se sentia autorizado a locali­zar-lhe, na residência, servidores sob sua orienta­ção, sem objetivos sérios que lhe fundamentassem a atitude.

Não lhe sendo lícito assim proceder, satisfazen­do a mero capricho, reconhecia-se impelido a com­parecer, sob aquele teto, exclusivamente de quando em quando, ou rogar a colaboração de amigos iti­nerantes.

Neves e eu, pesarosos, ao vê-lo partir, des­tacamos nossas deficiências, mas prometemos boa-vontade. Permaneceríamos de sentinela e, se algu­ma eventualidade ocorresse, apelaríamos na direção dele.

Félix sorriu e informou que Amaro, o enfer­meiro de Beatriz, e cooperadores diversos operavam nas cercanias. Todos dedicados, amigos, prontos a auxiliar, embora sem qualquer obrigação para isso. Otimista, acrescentou que, na hipótese de neces­sidade, o pensamento preocupado funcionar-nos-ia por sinal de alarme.

Achamo-nos a sós, em serviço.

Findo o ligeiro intervalo, retomamos a análise em curso. Observei que Neves se esmerava, mais atentamente, em ser útil.

Marita, que se alheara das próprias reminis­cências, por instante rápido, voltou, automaticamen­te, a memorizar, expondo-nos à vista as telas do passado próximo, que lhe eram abordáveis ao co­nhecimento.

Mergulhada na imaginação, qual se devaneasse, em conta própria, surpreendia-se mentalmente no regaço materno ou colada à irmãzinha, na segu­rança inocente de quem se supunha plenamente ajustada ao quadro familiar. Revia Cláudio, a sustê-la nos braços, por flor tenra desabotoada num tronco juvenil, transmitindo-lhe a impressão de pai legítimo.

Oh! a felicidade fugidia da infância!. -. As do­ces convicções dos dias primeiros! Como suspirava pelo retrocesso do tempo para dormir na simpli­cidade!

Súbito, confrangeu-se-lhe a alma, como se im­placável bisturi lhe retalhasse os nervos. Vimo-la cair numa explosão de lágrimas. Coloriu-se-lhe na mente a festa distante que lhe havia comemorado o término do primeiro curso escolar, nove anos an­tes. Detinha-se no instituto garrido, nos adeuses aos colegas, nas palavras de saudação e reconheci­mento que proferira, feliz, diante dos mestres, e nos beijos que recebera sobre os cabelos a se lhe derramarem nos ombros.

Depois... em casa, o olhar diferente de Dona Márcia, no aposento à porta fechada.

Iniciara-se-lhe, desde então, o conflito da vida inteira. A revelação inesperada ferira-lhe o espí­rito, à maneira de pedra contundente. Esvaecera­-se-lhe, de improviso, a alegria infantil. Sentira-se criatura humana adulta, amadurecida e sofredora, de um momento para outro. Não era filha da casa. Era órfã, adotada pelos corações queridos, aos quais amava tanto, julgando pertencer-lhes.

Isso lhe arre­bentara o coração. Pela primeira vez, chorara com medo de enlaçar-se àquela a cujo peito se alberga­va, até ali, nas horas difíceis, como se se aninhasse no refúgio maternal. Sentia-se machucada, sozinha. Dona Márcia, diligenciando esclarecer com evidente bondade, explicava, explicava. Ela, até então me­nina estouvada e risonha, repentinamente tortura­da, ouvia, ouvia.

Ansiava perguntar o porquê de tudo aquilo, mas a voz calara-se-lhe na garganta. Era preciso aceitar a verdade, conformar-se, sofrer. Esforçara-se a mãe adotiva por diluir a amargura da notificação no bálsamo do carinho, mas não se esquecera de lhe dizer em tom conselheiral: «você deve crescer sabendo tudo, melhor saber hoje que amanhã; filhos adotivos, quando crescem ignoran­do a verdade, costumam trazer enormes complica­ções, principalmente quando ouvem esclarecimentos de outras pessoas)>, e acrescentara, diante do silên­cio em que ela afogava as próprias lágrimas: «não chore, estou apenas explicando; você sabe que cria­mos você por filha, mas é necessário que conheça a realidade toda; adotamos você, lembrando Ara­célia, tão amiga, tão boa.»

E os informes foram imediatamente comple­mentados com a exibição de fotografias e relíquias da genitora suicida, arrancadas de pequena caixa de madeira que Dona Márcia trouxera.

Espantada, revirara nervosamente nas mãos aqueles retratos e adereços de moça pobre.

Sensi­bilizara-se ao ver os colares de fantasia, os anéis de plaquê. Era tudo quanto restava daquela mãe que desconhecia. Contemplou a imagem dela nas fotos que o tempo amarelecera e experimentou pro­funda e indizível atração por aqueles olhos grandes e tristes que pareciam arrebatá-la do quarto para um mundo diferente.

Não amadurecera, porém, o raciocínio para pen­sar nas angústias daquela mulher que o sofrimento abatera. A reflexão, em torno da mãezinha desen­carnada, durara um momento só.

Achava-se melin­drada em demasia para deslocar-se facilmente da sua dor. Ouvira Dona Márcia, ao despedir-se, arre­cadando aqueles ternos vestígios do passado, sem prestar-lhe maior atenção. Aquelas palavras: «ado­tamos você, lembrando Aracélia tão amiga, tão boa», percutiam-lhe na cabeça.

Então, era assim que a despachavam para a estação da orfandade em que lhe competia viver?

E os beijos do lar que admitia lhe pertencerem? E os mimos domésticos que julgava partilhar com Marina em partes e direitos iguais?

Figurara-se-lhe Dona Márcia decididamente em­penhada em falar-lhe sem a menor manifestação do efusivo amor que lhe caracterizava os gestos de outras horas. Demonstrara-lhe carinho, sem dúvi­da, mas racionava os afagos, qual se quisesse tra­çar, dali em diante, severa fronteira entre ela e a família. Imaginava-se, por isso, esbulhada, ferida. Fora simplesmente albergada, tolerada, enganada. Não era filha, era órfã.

A inteligência precoce compreendia toda a si­tuação, conquanto não conseguisse inclinar-se, na­quele dia, a qualquer agradecimento pela compaixão de que se reconhecia objeto, assaltada qual se acha­va pelo orgulho infantil.

Em seguida a pausa rápida no curso das co­movedoras reminiscências, Marita desdobrou-nos à vista uma cena enternecedora e inesquecível.

De minha parte, nunca registrara uma dor de criança, assim, tão funda.

Ah! sim, aquele fato nunca mais se lhe des­vinculara da memória. Quando a esposa de Cláudio a deixou em pranto desconsolado, viu a cadelinha da casa, magra e anônima, que Marina, semanas antes, recolhera na rua. O animalzinho abeirara-se dela, como se lhe aderisse à mágoa, lambendo-lhe as mãos. Ela, por sua vez, retribuira-lhe a carícia, qual se lhe transferisse toda a carga de amor que acreditava lhe fora restituída naquele instante, por Dona Márcia, e, chorando, abraçou-se à cachorri­nha afetuosa, gritando num desabafo: «ah! «Jóia, não é só você que foi enjeitada! eu também...»

Desde esse dia, transfigurara-se-lhe a vida. Per­dera, de todo, a espontaneidade.

A partir da revelação que não mais se lhe desencravou do cérebro, conjeturava-se diminuída, lesada, dependente.

Semelhante suplício moral, que adquirira aos onze de idade, atenuava-se tão-somente pela dedi­cação incessante do pai adotivo que se lhe confir­mava mais terno, à medida que Dona Márcia e a filha se lhe afastavam da comunhão espiritual.

Era sozinha em assuntos de seu sexo.

Mãe e filha empenhavam-Se, deliberadamente, na abstenção de qualquer parecer, quando se tra­tasse das incertezas dela na escolha de figurinos. Deixavam-na à revelia de qualquer assistência nos cuidados que uma jovem deve a si mesma, embora Dona Márcia, de quando em quando, a escutasse com ternura maternal, em tudo o que se referia às suas indagações de menina e mulher, necessitada de instrução para a vida íntima.

Quando sobrevinha a possibilidade do inter­câmbio afetuoso, certificava-se de que a esposa de Cláudio possuía vasto patrimônio de compreensão e carinho, abafado sob o peso de conveniências e convenções, semelhando tesouro enterrado nas raí­zes de sólido espinheiro.

Aproveitava-se dessas horas de efusão entre ambas, exibindo-lhe todas as dúvidas e perplexida­des que se lhe estacavam na imaginação, aguar­dando a brecha propícia.

Dona Márcia afigurava-se largar distâncias e respondia-lhe entre beijos, demonstrando vivamente que o lume da dedicação e da confiança de outros tempos não se lhe arrefecera no coração. Sorria, encantava-se. Expandia-se-lhe a meiguice mater­nal, em apontamentos sábios e doces. Suprimia-lhe a insipiência no trato com os problemas começan­tes da vida feminina, dando-lhe a impressão de haver reencontrado a mãezinha, que acreditara pos­suir ao pé do berço, quando aquelas mãos belas e finas, agora distanciadas, lhe afagavam a cabe­leira.

Entretanto, o momento luminoso escoava-se, rápido.

Marina chegava e turvava-se o ambiente.

Assistia, espantada, à transformação que se operava de improviso. A interlocutora comprazia­-se num espetáculo de personalidade dúplice.

Ocultava-se a mãezinha espiritual, afável e aco­lhedora, e aparecia Dona Márcia, avalentoada e cortês, na atmosfera psíquica.

Inventava, de repente, alguma atividade em aposento vizinho, dava-lhe incumbências a distância, a fim de apartá-la. Assumia ares diferentes. Queixava-se subitamente de dores que, até então, Jaziam ignoradas.

Ante a reviravolta, analisava o reverso do quadro.

Ambas, unidas, completavam-se em pequeninas torpezas para deprimi-la, humilhá-la. Diminuta man­cha no vestuário constituía razão para sarcasmo; ligeira indisposição orgânica atraía-lhe complicada série de admoestações jocosas e indiscretas. Con­cediam-lhe, raramente, a honra da companhia para compras no centro. E se as casas comerciais vi­sitadas não dispunham, eventualmente, de recursos mobilizáveis na entrega de encomendas, não se pe­javam, mãe e filha, de carregá-la com pacotes di­versos, exercitando crueldade risonha nos pejora­tivos com que lhe agravavam o constrangimento e a subalternidade.

Dona Márcia e Marina, juntas, à frente dela, significavam provação inqualificável que lhe competia agüentar em silêncio. Nesses instantes, sen­tia o coração descompassado, em desconforto indi­zível, como se estivesse encantoada num teste de tolerância e paciência, perante examinadores que lhe avaliavam as reações, entre o chiste e a impiedade.

Cedo percebeu que a irmã, filha única, não abriria mão de ínfima parcela dos mimos caseiros, de que se supunha senhora.

Dominado o segredo de sua origem, modificara a conduta para com ela. Tramava motivos para bio­grafá-la, nas conversações com as amigas, suprimindo, previamente, quaisquer dúvidas, suscetíveis de ocorrer, com relação às duas, no meio social. Criticava-lhe os gostos, as atitudes. E a genitora não fazia mistério na tomada de posição.

Em separado, não vacilava ceder-lhe a ternura que vinha do passado, enriquecida talvez pela com­paixão que ela, moça pobre, inspirava no presente. Isso, porém, exacerbava-lhe a secura.

Ansiava re­pouso em dedicações estáveis. Pesava-lhe a solidão, sem qualquer parente consangüíneo que lhe dispu­tasse os vínculos da amizade. Mensagens aos familiares de Aracélia nunca mereceram resposta. Informações procedentes da remota cidade em que sua mãe nascera inteiraram-na, por fim, de que to­dos eles haviam demandado outras regiões do país, apetecendo melhor sorte.

Retinha suficiente autocrítica e discernia a si­tuação. Estava só.

Marita, que conjeturava reaver lembranças por impulso deliberado, franqueou o propósito de re­crear-se para dar conta de si, como quem se pro­põe alijar, por momentos, a carga que transporta, a fim de interrogar-se, quanto aos empeços do caminho.

Afrouxamos, com naturalidade, a observação aguda com que lhe acompanhávamos a exposição silenciosa.

Aliviada, indagou de si mesma se não fora o insulamento a causa de exagerar tão cedo a necessidade de companhias diferentes das que lhe traçavam no lar o estreito círculo de provas.

Encerrada nos pensamentos que lhe armavam as fantasias e receando exteriorizá-los, pelo temor do ridículo, recorrera à evasão.

Ave cansada pelo exercício prematuro das pró­prias asas, inquiria por que se lhe recusara alimento afetivo no ninho, onde conseguira distendê-las.

Antes, porém, que se acomodasse em algum esconderijo da mente, para fixar-se em contristações inúteis, solicitamo-la a que viesse, por genti­leza, em apoio da análise que empreendíamos, no intuito de auxiliá-la e protegê-la.

Docilmente, retomou as elucidações interrom­pidas, relacionando os primeiros dias de atividade na profissão de comerciánia a que se afizera.

As rememorações externaram-se em jorro.

Entremostrou-nos o movimentado estabeleci­mento comercial em que Cláudio lhe obtivera a fun­ção de balconista. Pequeno mundo da preferência feminina. Bijuterias, perfumes, tecidos leves, rou­pas feitas.

No dia imediato àquele em que o pai adotivo lhe trouxera da rua um bolo enfeitado com dezessete rosas pequenas, para comemorar-lhe o ani­versário, entrara em serviço.

De começo, tudo hesitação e novidade.

Vira-se, depois, atirada aos embates do senti­mento. Ligações novas, idéias renovadas.

Aliciara relações confortadoras, expandiram-se-lhe os interesses, permutava confidências, conquis­tava simpatias.

A imaginação agora se lhe excitava em des­controle, sugerindo-lhe adornar-se com esmero, de modo a se destacar diante do herói que lhe viria, decerto, governar o império emotivo, oferecendo-lhe um lar, pedaço de paraíso em que pudesse aneste­siar o coração, desoprimir-se e achar a felicidade.

Menina bisonha, circunscrevia, até então, to­dos os conhecimentos, em matéria de amor, aos romances em que cinderelas anônimas acabavam em deslumbramento, nos braços de príncipes que as arrancavam da obscuridade para a glória. En­tusiasmava-se com novelas e filmes que terminassem pelo altruísmo coroado ou pelas supremas as­pirações humanas, convenientemente atendidas.

O destino, entretanto, escarnecera-lhe da ino­cência.

Comparava o contacto da vida prática a podão implacável que lhe talara todas as flores do jardim de sonhos juvenis.

A principio, a desilusão conturbara-lhe o âni­mo, através de um colega que a obsequiava, repe­tidamente, com entradas de cinema. Conhecia-lhe a noiva, professora jovem e distinta que se lhe afeiçoara ao convívio.

Que mal em se verem juntos para uma fita simpática, de vez em vez? Iniciaram-se os momentinhos de encontro fraterno. Intimidade dos minu­tos propícios. Copacabana, aqui e ali. Um cafe­zinho de bar, nas horas de vento frio, um sorvete na praia, quando o calor vinha forte. Mera cama­radagem. Amiguinho, fazendo o papel do irmão que não tivera.

Veio, porém, a noite em que ele se apresentou, transtornado. Chegara sem a noiva, que se dirigi­ra a Petrópolis. Acontecimento natural, conquanto raro. Nada prenunciava sucessos desagradáveis, nenhum motivo de inquietação.

Conversaram, pacificamente, nas areias do Leme. A Lua nascera, plena, inspirando-lhes pensamentos mansos e alegres, enquanto se expunham ao sopro refrigerante do mar.

O trabalho na loja fora banho de suor copio­so, no dia cálido.

Falavam acerca de freguesas apressadas, men­cionando clientes ásperos. Riam-se, despreocupados, ao jeito de colegiais, no intervalo das lições.

Ele, no entanto, começou o inesperado, repor­tando-se a medidas. A fita métrica, a seu parecer, não satisfazia, de todo, em casos determinados de atendimento. Necessária a adoção de recursos psi­cológicos para tranqüilizar compradores inquietos, quando se interessassem simplesmente por fragmen­tos de rendas ou passamanes.

Nisso, pediu-lhe a mão pequena para confron­tá-la com a dele e, respondendo, espalmara a destra sem qualquer prevenção.

Assustou-se, ao sentir-lhe a mão hirsuta e más­cula, comprimindo-lhe os dedos.

Intentou desvencilhar-se. O rapaz, contudo, fez-se claro nos propósitos infelizes. Puxou-a, num gesto brusco, de encontro ao peito, gaguejando de­clarações.

Na vertigem da pessoa atingida pelos efeitos de um raio, em momento de céu aparentemente azul, quis gritar, reclamar socorro, mas o sangue tur­bilhonava-lhe na cabeça.

Impetuosamente submetida àqueles lábios que se colavam aos dela, desfaleceu por segundos.

O hálito sedutor do primeiro homem que a re­tinha, submissa, destilava o magnetismo da serpen­te, quando hipnotiza o pássaro confiante.

O desmaio, no entanto, durara um instante só. A profunda e invencível reação da feminilidade unida à consciência surdiu, rápida. A noção de res­ponsabilidade relampagueou-lhe no raciocínio.

Bas­tou isso e o impulso sexual esmoreceu, neutralizado. Ideou a imagem da amiga ausente, compreendeu todo o perigo a que se expunha.

Aspirava, sim, a ser mulher de um homem, companheira de alguém que lhe fosse companheiro.

Compenetrava-se, com humildade, da sua condição de criatura humana, moça sequiosa de afeto, pre­libando emoções da maternidade, mas não concor­daria com o próprio aviltamento em deslealdade ou devassidão.

Apelou para todas as energias de que se re­conhecia capaz e, tocada de súbita resistência, arro­jou longe o perseguidor que lhe pressionava o busto tremente.

Desembaraçada, o pranto explodiu-lhe quente e doloroso.

Interpelações da alma sincera estouraram, con­tundentes e francas.

Onde os compromissos do noivado? que fazia da jovem correta que lhe empenhara o destino? trazia, assim, o coração rolando tão baixo? não pos­suía acaso, mãe e irmãs, para as quais exigia vali­mento e respeito?

Lívido e atarantado, o colega escusou-se, asse­verando, impudente, que não a supunha meninota antiquada.

Estava comprometido, noivo há meses, no en­tanto — sublinhou, cínico —, a seu modo de ver, era muito natural que ele e ela, Marita, ainda jo­vens, desfrutassem o tempo, acrescentando, ainda, em sua filosofia desabusada, que todo viajante cons­ciente, embora conheça o caminho certo, é livre para saborear os frutos que pendam de plantas erguidas à margem.

Zombou-lhe das lágrimas e retirou-se, garga­lhando, sarcástico, para depois hostilizá-la em serviço.

Ocorreram outros impedimentos e tentações.

       O sobrinho do chefe, bonito rapagão recém-casado, insinuara-se, começando por um presente de aniversário e terminando por solicitar-lhe cola­boração no escritório, onde pretendeu arrancar-lhe atitudes inconfessáveis. Angariara inimigo novo e amargara preterições.

Enquanto isso, observava que Marina se alte­rara, sensivelmente. Favorecida pelo devotamento materno, alcançara diploma de contadora, situan­do-se com manifestas vantagens. E, decerto pelo motivo de ganhar expressivas somas na profissão, sustinha, desajuizadamente, prodigalidades e exces­sos. Figurinistas de prol, penteados extravagantes, bebedeiras e tafulices.

Nesse ponto das confidências mudas, o vulto de um jovem raiou, nítido. Ao estampá-lo na pai­sagem dos mais recônditos pensamentos, transfigu­rou-se a castigada criança.

Desanuviou-se-lhe o firmamento íntimo. Quei­xas arredadas, apreensões esquecidas.

Clareou-se a aura de tal modo, ao refletir o rapaz, que o fenômeno induzia às mais belas apreciações do entusiasmo poético. Vaso pensante que incorpora o privilégio de esculpir-se e alindar-se, à vontade, para encertar a flor predileta. Lago cons­ciente, mantendo a faculdade de esconder, de inopi­no, todos os detritos de suas águas, metamorfosean­do-se em espelho suave e cristalino para retratar uma estrela.

Marita amava o escolhido com a firmeza da ár­vore que se levanta sobre a raiz principal de apoio, com a abnegação das mães, que preferem morrer, felizes no sacrifício extremo, se for essa a condição para que os filhos queridos logrem viver.

Enlevado com o painel, que se configurava qual retábulo vivo, incutindo respeito religioso, interro­guei-me, quanto ao lugar onde teria visto quadro idêntico: jovem mulher plasmando aquele rosto no campo mental.

Vasculhei a memória e identifiquei-o. Era o adolescente cujo semblante repontava dos pensamentos de Marina, senhoreando-lhe o coração, de parceria com Nemésio.

Ambas as meninas jaziam espiritualmente ima­nadas a ele por laços idênticos. Cruzavam-se-lhes as preferências, sócias de análogo destino.

Relanceei o olhar sobre Neves, que me esprei­tava, atento, exercitando-se em serviço de análise psíquica, percebendo-lhe a face transida de mágoa.

Bastou recolher-me o sinal e aproximou-se, im­pulsivo, segredando-me, transtornado:

— Ainda não nos entendemos devidamente. Sabe você quem é este? É meu neto, Gilberto, filho de Beatriz...

Articulei breve aceno, rogando-lhe aguardar en­sejo que fosse vantajoso à conversação, e graduei, dentro de mim, os efeitos do impacto emocional. Eu, que me abeirara daquela atormentada criança, imaginando-me na posição de um pai socorrendo uma filha, sopitei, a custo, o espanto que me assal­tava, para não tresmalhar-me na inconveniência da compaixão destrutiva.

Não sabia de que modo o pesar me doía mais, se ao refletir em Marina, a dividir-se entre pai e filho, ou se ao concentrar a atenção naquela moça triste, profundamente lesada nos tesouros do sen­timento.

Estanquei no Intimo as impressões que me sen­sibilizavam e prossegui, pesquisa adiante.

A muda confissão da jovem avançou em remi­niscências vivas e francas.

Conhecera Gilberto, precisamente há seis meses, no gabinete do chefe. Ela prestava informações de serviço, ele representava os interesses do próprio pai, em negócios alusivos à venda de imóveis.

Com que deslumbramento lhe recebera os pri­meiros olhares afetuosos e indagadores! Elos de intensa afinidade passaram, desde então, a jungi-los um ao outro, sem que lhe fosse possível justificar a sede crescente de comunhão que a dominava.

Para surpresa maior, na excursão inicial que lhes precedera a série de passeios e entretenimentos felizes, soubera, satisfeita, que Marina, recentemen­te empregada, se fizera contadora da firma em que o genitor dele se destacava como sendo a figura mais importante.

Riram-se da coincidência com a ingenuidade de duas crianças.

Marita confiara-se a ele, integralmente. Ama­va-o, sentia-se amada.

Desde que se lhe apoiara ao braço, pronto a enlaçá-la e protegê-la, mais vastos horizontes se lhe descerraram à alma. Tolerava as alfinetadas do cotidiano, transformando-as em notas de perdão e alegria. A Natureza desvendava-lhe encantos no­vos. Admitia que outra luz se lhe acendera nos olhos, permitindo-lhe descobrir a beleza do mar; de­tinha, sem explicá-la, certa música nos ouvidos para assinalar, contente e embevecida, as ternas arengas das crianças e as vozes dos passarinhos. Desliga­ra-se do calvário doméstico; o tempo voava, doce, ao coração. O amor correspondido anestesiara-lhe a sensibilidade. Nenhum peso a carregar, nenhuma noção de sacrifício.

Dera-se a Gilberto, copiando a passividade da planta que se rende ao cultivador, da fonte que se entrega ao sedento.

O filho de Nemésio Torres prometera-lhe casa­mento. Falava do futuro risonho, suscitava-lhe so­nhos de maternidade e ventura. Para fazê-la inte­gralmente feliz, apenas aguardava a melhoria eco­nômica que adivinhava perto.

Apesar de tudo, tinha agora o coração farpea­do, abatido. Convencia-se de que Gilberto se enfas­tiara, que ambos, precipitados à fome de prazer, haviam colhido, antes do tempo, a flor da felicidade que parecia frustra.

Marina adiantara-se. Sempre Marina...

Na véspera, surpreendera a irmã e Gilberto num colóquio, que não deixava dúvidas. Ouvira-lhes a conversação impregnada de ternura ardente, sem ser pressentida.

Nesse ponto das lembranças amargas, ao modo de ave repentinamente ferida, estirou o corpo des­governado, abandonando-se a lágrimas convulsas.

 

Rematara os apontamentos que me propunha alinhar, e, reconhecendo que a paciente chorava, em prostração, visivelmente distanciada do exame que me fora permitido desenvolver, Neves pergun­tou se podíamos trocar entendimento rápido.

—        Como não?

—        André — inquiriu ele, sem ocultar a perple­xidade —‘ que vem a ser isto, meu amigo? Você percebeu? Meu neto, o moço é meu neto!... Onde estamos? Quatro criaturas enoveladas... Mulher entre pai e filho, um rapaz entre duas irmãs... Ignorava o que vemos. Há dias, tento confortar mi­nha pobre Beatriz, só isso. Não fazia a menor idéia das perturbações que a rodeiam... Ah! meu amigo, como pai, estaria agora mais consolado se a visse agonizando numa casa de loucos!...

E apontando Marita:

—        Esta moça disse a verdade toda?

—        Neves — acentuei —, você não desconhece que determinado grupo familiar se define como sen­do um engenho constituído de peças diferentes, em­bora ajustadas entre si para a função que lhe cabe. Cada um daqueles que o integram é parte das rea­lidades que se entrosam no conjunto. Marita foi sincera. Expôs o que sabe. Ela é um pedaço da verdade que procuramos.

Para descobrir o que você conceitua por verdade toda» é inevitável consul­tar as pessoas que ela hospeda no mundo intimo.

O         amigo debuxou o leve sorriso de quem reüne compreensão e conformidade.

Arrojando-se, porém, ao desconforto com que supunha reverenciar a justiça, lastimou-se, áspero:

—        Imagine você! Gilberto! Um menino... Se o pai auxiliasse!... Mas Nemésio é um caso de ma­nicômio. Não tem jeito...

Olhou, compadecido, para a moça em pranto e salientou:

—        Veja esta menina. Correta, fiel... Subme­teu-se, confiante. Que culpa no vaso de porcelana, violentamente destampado por um animal? E esse animal é um garoto que eu amo tanto!... Ela poderia ser a esposa que idealiza, mãe digna, dona de casa para um homem de bem... No entanto, lá se vai Gilberto, embeiçado por uma pinóia. Marina e Marita... Incrível hajam crescido sob o mesmo teto! São irmãs adotivas, como acontece à serpente e à pomba...

Diante da pausa curta, não me fiz tardio nas ponderações.

Investi-me, indebitamente, na posição de con­selheiro fortuito e roguei ao companheiro asserenar-se.

Achávamo-nos ali para emendar, proteger, rea­lizar o melhor. Certo, o bem suscetível de ser plantado, naquele grupo, redundaria em socorro a Beatriz. Colocássemos nela o pensamento. A irri­tação lhe avinagraria o ânimo e ele, Neves, de sen­timento azedado, lançaria sobre a filha ingredien­tes fluídicos de índole negativa, arruinando-lhe as forças.

Paciência e atividade fraterna servir-nos-iam de apoio.

Além do mais, não conseguiríamos precisar até quando perdurariam os sofrimentos físicos da es­posa de Nemésio. E’ justo prever, calcular. Entre­tanto. poderiam ocorrer determinações superiores, recomendando lhe fosse prolongado o prazo de es­tada na Terra. Nada impossível viesse a continuar adstrita ao corpo carnal, relativamente melhorada, por meses, anos talvez, conquanto os prognósticos enunciassem a desencarnação para breve. Mas, e se acontecesse o inverso? Exasperação ou desâni­mo, de nosso lado, marcariam o término das possi­bilidades de cooperação. Os supervisores que nos dirigiam, não obstante compassivos e prestimosos, removernos-iam da cabeceira da doente, sem a me­nor dificuldade. Contavam com recursos para lo­calizar-nos em tarefas, até mesmo mais suaves e mais reconfortantes, em outra parte, como quem nos agaloava em serviço. Agiriam, assim, em pro­veito da própria doente, impedindo os prejuízos que lhe pudéssemos acarretar com qualquer carga de vibrações desconcertantes.

Neves tolerou o aviso com paciência.

Acabou rogando compreensão. Retirara-se do convívio familiar, por longo tempo — justificou-se —, a fim de adestrar-se em cordura e despren­dimento. Regressando, no entanto, ao abrigo do­méstico, topava, a cada instante, em si mesmo, o homem que fora. Comodista, agarrado às raízes consangüíneas, absorvido no bem-estar dos que reputava como sendo flores no tronco do coração. Sabia-se em prova árdua. Acusava-se analisado, esqüadrinhado, sopesado, na própria assimilação dos princípios de caridade e indulgência que pas­sara a ministrar, sob o influxo dos mentores sábios e amigos que lhe haviam descerrado a porta das escolas de aperfeiçoamento nas esferas superiores.

Ao jeito de qualquer pessoa terrestre, encer­rando consigo méritos e falhas, declarou-se disposto a dominar-se, e, impelindo-nos a recordar antigos condiscípulos da fase juvenil, quando encorajados e vacilantes ao mesmo tempo na solução dos pro­blemas de autocontrole, solicitou-nos colaboração a fim de que se mantivesse calado, tanto quanto possível, na presença dos instrutores.

A submissão do companheiro dava para co-mover.

Acreditava-se temporariamente perturbado, acentuou humilde. Partilhava as agruras da filha.

Voltara instintivamente à agressividade e à extro­versão que lhe marcavam o temperamento no pas­sado; entretanto, comprometia-se à revisão de ati­tudes. Apesar disso, que lhe relevássemos qualquer desabafo inconveniente, quando nos demorássemos a sós. Sempre chegava o momento em que ele, por mais aplicado ao burilamento íntimo, sentia que as excitações, longamente acumuladas, lhe pe­savam no espírito, qual nuvem de gases comburen­tes. Desinibia-se ou dementava-se, ao modo de al­guém que carregasse bombas estourando no próprio peito.

Fi-lo sossegar-se. Não precisava vexar-se da­quela maneira. Entendia tudo, perfeitamente. De nossa parte, não apresentávamos qualquer traço de superioridade. Também nós, criatura humana de­sencarnada, conhecíamos de sobra os lances da ba­talha interior, em que o adversário somos sempre nós mesmos, na arena das qualidades inferiores que nos tocam sublimar.

Desaconselhável, porém, prosseguir, conversan­do à margem do serviço.

A frágil menina desoprimia-se, em pranto. Cho­ro vozeado, não obstante discreto. Soluços.

Dispúnhamo-nos a intervir, quando sucedeu o inesperado.

Cláudio batia, de leve, à porta, decerto inco­modado pelo som lastimoso daqueles gemidos que Marita, em vão, buscava reprimir.

Respiramos confortados.

Indubitavelmente, o inquieto coração paternal vinha ao encontro da moça desfalecente, ansiando soerguer-lhe as energias, e, nós próprios, através de estímulos magnéticos, insistimos com ela para que atendesse.

Empregando vontade e forças para vencer a crise de lágrimas, a jovem anuiu aos nossos apelos e cambaleou, desaferrolhando a passagem.

Cláudio entrou, mas não vinha só. Um daque­les dois companheiros desencarnados que lhe alteraram a personalidade, justamente o que se abeira­ra dele, em primeiro lugar, para o trago de uis que, enrodilhava-se-lhe ao corpo.

O verbo enrodilhar-se, na linguagem humana, figura-se o mais adequado à definição daquela ocor­rência de possessão partilhada, que se nos apre­sentava ao exame, conquanto não exprima, com exatidão, todo o processo de enrolamento fluídico, em que se imantavam. E afirmamos “possessão partilhada”, porque, efetivamente, ali, um aspirava ardentemente aos objetivos desonestos do outro, completando-se, euforicamente, na divisão da res­ponsabilidade em quotas iguais.

Qual acontecera, no instante em que bebiam juntos, forneciam a impressão de dois seres num corpo só.

Em determinados momentos, o obsessor afas­tava-se do companheiro, a distância de centímetros; contudo, sempre a enlaçá-lo, copiando gestos de felino, interessado em não perder o contacto da vi­tima. Achavam-se, entretanto, irrestritamente con­jugados em vinculação recíproca.

Isso conferia ao semblante de Cláudio expres­são diferente, O hipnotizador, cuja visão espiritual não nos atingia, senhoreava-lhe sentimentos e idéias, enquanto ele se deixava prazerosamente senhorear. O olhar obediente adquirira a turvação caracterís­tica dos alucinados, O recém-chegado transfigura­ra-se. Estranho sorriso franzia-lhe a boca. Diante das percepções limitadas de Marita, era ele um homem comum; no entanto, à nossa frente, valia por duas personalidades masculinas numa só re­presentação. Dois Espíritos exteriorizando impul­sos aviltados, complementando paixões idênticas na mesma tônica da afinidade total.

Neves fitou-me, espantado. Mas, não era só ele, menos experiente, que jazia transido, amarro­tado. Nós também, acostumados, no plano espiri­tual, aos embates do sentimento, alimentávamos aflitivas apreensões.

 Aquele quarto, dantes povoado pelos devaneios doridos de uma criança, metamorfoseara-se em jau­la, onde Cláudio e o vampirizador, singularmente brutalizados pelo desejo infeliz, constituíam juntos uma fera astuciosa, calculando o caminho mais fácil de alcançar a presa.

Um clarividente reencarnado que contemplasse o dono da casa, naquela hora, vê-lo-ia noutra más­cara fisionômica.

A incorporação medianímica, espontânea e cons­ciente, positivava-se em plenitude selvagem. O fe­nômeno da comunhão entre duas inteligências —uma delas, encarnada, e a outra, desencarnada —, levantava-se, franco; ainda assim, desdobrava-se tão agreste quanto o furacão ou a maré, que se expressam por forças ainda desgovernadas da Na­tureza terrestre, não obstante a ocorrência, do ponto de vista humano, efetivar-se na suposta mu­dez do plano mental.

Para nós, porém, não se instituíam apenas as formas-pensamentos, dando conta das intenções li­bertinas da dupla animalizada, com estruturas, co­res, ruídos e movimentos correlatos; amedrontava-nos igualmente escutar as vozes de ambos, em diálogo, claramente perceptível.

As palavras escapavam do crânio de Cláudio, aparentemente silencioso para a filha adotiva, qual se a cabeça dele estivesse transfigurada numa caixa acústica de aparelho radiofônico.

Magnetizador e magnetizado denotavam sen­sualidade do mesmo nível.

Refletindo na corrida à garrafa, momentos antes, avaliávamos o perigo aberto à menina indefesa. A diferença, ali, é que Cláudio ainda encon­trava recursos a fim de parlamentar, dentro da hipnose — hipnose que ele, aliás, amimalhava.

Discorria o obsessor, comovendo-o, no intuito patente de arruinar-lhe os restos do escrúpulo, atra­vés da emoção:

—        Agora, agora sim!... O amor, Cláudio, éisto... Esperar, por vezes, anos a fio, para domi­nar a felicidade num simples minuto. Existem mu­lheres aos milhões; entretanto, esta é a única. A única que nos poderá, enfim, aplacar a sede. Pon­tos de apoio alongam-se em toda parte, mas o pás­saro viaja, léguas e léguas, suspirando por des­cansar na penugem do próprio ninho... Na fome física, todo alimento serve, mas no amor... No amor, a felicidade é semelhante ao aro de que o homem possui a metade e a mulher detém a outra. Para que a euforia vibre perfeita no círculo, é im­perioso que as metades sejam da mesma substância. Ninguém alcança a fusão de um pedaço de ouro com um pedaço de madeira. Paganini tocou numa corda só; entretanto, a corda se harmonizava com ele. Jamais arrancaria no mundo o menor sinal do próprio gênio, se apenas dispusesse para o violino das cordas de cânhamo, ainda mesmo que essas cordas o desafiassem a toneladas. Cada homem, Cláudio, para realizar-se nos domínios da vitalidade e da alegria, há de encontrar a mulher magnética que lhe corresponde, companheira na afinidade ab­soluta, capaz de lhe oferecer a plenitude interior, que transcenda convenções e formas ... (3)

Pausava-se a voz, por segundos, para continuar, suplicante, proclamando sofismas arguciosos:

—        Vamos! Marita é nossa, nossa!... Somos homens sequiosos, sofredores... Apiedamo-nos de enfermos abandonados, administrando-lhes remédio seguro; somos o apoio certo de mendigos que tro­peçam

 

(3) Compreendemos o caráter negativo da lingua­gem do Espírito desencarnado, quando em deploráveis condições de ignorância, mas acreditamos seja nossa obrigação consigná-la, nestas páginas, ainda mesmo esbatida qual se encontra, prevenindo criaturas senal­veis e afetuosas, que, às vezes, abdicam impensada­mente do próprio raciocínio, arrojando-se em profundo sofrimento moral, em nome do coração. (Nota do Autor espiritual.)

 

às tontas... Acaso, mereceremos simpatia menor? Os que enlouquecem, esfaimados de ternu­ra, serão piores do que os infelizes, a se estirarem na rua por falta de pão? Você, Cláudio, tem amargado angustiosa carência. Um pedinte na praça não tem leve pitada de suas aflições. De que va­lem vencimentos fartos e experiências de lupanar, quando o amor verdadeiro grita insatisfeito na car­ne? Você vive no lar, à moda de cão na sarjeta. Escoiceado, ferido... Marita é a compensação.

       O cultivador, porventura, não tem direito ao fruto que amadurece? Você abrigou esta menina nos bra­ços, embalou-a no peito; viu-lhe o crescimento, como quem acompanha a evolução da flor que desabro­cha, e acabou descobrindo nela o seu tipo. Não estará você cansado de vê-la e desejá-la, ardente­mente, todos os dias, resignando-se ao suplício da distância, vivendo tão perto?

—        Criei-a, no entanto, como sendo minha pró­pria filha... — suspirou Cláudio, crendo falar para si mesmo.

—        Filha? — insistiu o sedutor. — Mero ar­tifício social. Apenas mulher. E quem assegurará que ela também não espera por seu beijo com a sede da corça, presa ao pé da fonte? Você não é nenhum neófito; sabe que toda mulher estima ren­der-se, em trabalhosa porfia.

Conjeturando-se dividido mentalmente em duas personalidades distintas, a de pai e a de enamo­rado, Cláudio argumentou, desencorajando-se.

Não desconhecia que a moça já se revelara. Elegera Gilberto, o rapaz com quem se dava a passeios freqüentes. Era impossível que o amasse, a ele, Cláudio, em segredo. Não alentava dúvidas. Ciumento, acompanhara-os, discretamente, em ex­cursões domingueiras, sem que lhe desconfiassem da presença ou do zelo ofendido. Nunca lhes ouvi­ra as palavras; entretanto, apanhara-lhes, às ocul­tas, os gestos equívocos. Admitia-se com ra­zão para convidar o estouvado a compromisso. Calculara, calculara. Todavia, quando se inclinava a pedir conselho de autoridades policiais, chocara-se com o imprevisto. Homem de prolongada vida no­turna, passou a esbarrar com a filha, em recantos de prazer, não apenas na companhia de Nemésio Torres, o cavalheiro que desempenhava, junto dela, a função de chefe, mas igualmente com Gilberto, o filho, em posição comprometedora. Os desregra­mentos de Marina, desde muito, se haviam tomado para ele em calamidades inevitáveis. A principio, atormentara-se. Pai contundido pela licenciosidade em família.

Contudo, Márcia, a esposa, ditava os figurinos. Nos primeiros tempos do consórcio, emer­gira entre ambos a muralha da discórdia, da dis­córdia que lhes emanava do âmago, em ondas tor­velinhantes de aversão instintiva, cuja existência não haviam sequer pressentido, de leve, antes do casamento.

De começo, rixas e discussões. Depois, a indiferença, o cansaço total um do outro. Aventuras unilaterais. Cada qual em seu caminho.

Marina, evidentemente, seguira a trilha materna. Desligara-se dele. Classificava a filha, em seu juízo de homem, por mulher livre; contudo, tolerável no lar, enquanto exercesse a profissão que lhe assegurava sustento às fantasias. Em casa, habitualmente reuniam-se à mesa, a esposa, Marina e ele, à feição de três animais inteligentes, dissimulando o desprezo recíproco, através da convenção ou do chiste.

No conceito dele, porém, Marita definia-se àparte. Flor no ramo espinhoso daqueles antagonis­mos flagelantes.

Afastara-a, intencionalmente, na direção do ser­viço. Inventara meios de obrigá-la a tomar refei­ções em Copacabana, para que as picuinhas do cír­culo doméstico, no Flamengo, não lhe torturassem o espírito.

Espiava-lhe os passos, ouvia-lhe os chefes.

Uma vez instalada no exercício da nova con­dição, ele mesmo, quanto possível, manter-lhe-ia a independência.

Amando-a com entranhado carinho mesclado de egoísmo tirânico, feriam-lhe as humilhações que a esposa e a filha não regateavam a ela, no trato mais íntimo.

Queria-a para ele, com a ternura de um pombo e com a brutalidade de um lobo. Não concordava lhe dessem a beber afronta ou sarcasmo. Tais ati­tudes acabaram revestindo-a de liberdade mais am­pla, que Marita utilizava no culto afetivo a Gil­berto, de vez que, por vocação, se distanciava de festas. Márcia e Marina, sempre mais absorvidas nas extravagâncias em que se inculcavam por duas irmãs doidivanas, nem deram por isso. A ausência dela como que as aliviava de um peso. Certifican­do-se de que não lhe dobrariam o caráter, acusa­vam-se felizes por não serem induzidas a suportar-lhe a fiscalização.

Embrenhado nos raciocínios que lhe derivavam, rápidos, do ligeiro auto-exame, sob o controle do vampirizador que o influenciava, recordava-se Cláu­dio de que há muitos dias concluíra que Gilberto não hesitava embair as duas moças, e, depois de refletir maduramente, resolvera silenciar.

Não seria conveniente sopesar as próprias van­tagens? Denunciar Marita por jovem ultrajada re­dundaria em arredar-lhe a confiança. Apontar Ma­rina no páreo significava insultar a filha adotiva, aplicando-lhe temíveis lesões de ordem moral. Ar­diloso, deixava o tempo correr, achando preferível, a seu ver, fosse Marita machucada pelas circuns­tâncias. Quando se voltasse para ele, fatigada e desiludida, convertê-la-ia, talvez sem dificuldade, na amante a que aspirava.

Engodado pelo interlocutor que lhe era invisí­vel, enfileirou as reflexões apressadas que lhe vinham à mente; no entanto, assoprado agora por ele, deixava-se iludir por imaginosa expectativa, formulando-se outra espécie de inquirições. Envolvido nas sutilezas do obsessor, esmerilhava o próprio íntimo, tentando saber se estava sendo inspirado com segurança naquela hora. Andaria enganado? Acaso, Marita entregar-se-ia a Gilberto, pensando nele, Cláudio, de quem se afastava por escrúpulos de consciência? Semanas havia, fizera-se a jovem mais esquiva. Estranhara. Darse-ia o fato de re­colher-lhe telepaticamente as apreensões ou deli­berara fugir-lhe, de propósito, a fim de ocultar a simpatia amorosa que, possivelmente, lhe impelia o coração de mulher a querê-lo?

Ele mesmo fornecia ao perseguidor a argumen­tação com que se lhe arruinava a resistência.

Até ali, trancara, bem ou mal, diante da jovem, os sentimentos que lhe transbordavam do peito. Não chegara, porém, aos limites do enigma? Ca­ber-lhe-ia sofrear-se até à loucura?

O         hipnotizador, em cujo semblante se podia ler a desmesurada sede de volúpia, sorriu, satisfeito, e sussurrou, mentalmente, ganhando preponderância:

—        Cláudio, compreenda. Iniciativa, em assun­to de amor, não é passo feminino. Velho rifão: «la­ranja à beira de estrada não tem preço». Disse um filósofo: «prazer sem conquista é bife sem sal.

Adiante, adiante!

Esquadrinhando o imo do companheiro, à caça de recursos com que o próprio Cláudio lhe pudesse fortificar a posse magnética, o obsessor, por se­gundos, cravou nele o olhar penetrante. E, decerto, exumando-lhe as desrespeitosas ilusões em matéria de ligação afetiva, que ele, Cláudio, embutira na cabeça, desde menino, começou a martelar:

—        Cigarro! Lembre-se do cigarro e da boca! Manita é mulher igual às outras... Cigarro, cigarro na vitrina... Cigarro, cigarreira, piteira e cha­ruto não escolhem comprador... A carne é flor desabrochada na terra do espírito, só isso. O cul­tivador não sabe o que seja a formação essencial do canteiro, tanto quanto desconhece o que está no fundo da planta. Proclamava Salomão que «tudo é vaidade»; acrescentamos que tudo é ignorância. Entretanto, na superfície das situações e das coisas, é possível enxergar claramente. Flor que ninguém colhe é perfume que se perde. Hora de amor de­saproveitada vem a ser pétala no estrume. Rosa murcha, adorno para o chão. Carne sem viço, adubo para a erva. Aproveite, aproveite...

Percebíamos que o desencarnado não era sim­ples dipsomaníaco, que o álcool apenas lhe cons­tituía porta de escape, de vez que as palavras que selecionava para aliciar influência e o jeito astu­cioso de sensibilizar o parceiro, antes de empalmar­-lhe o raciocínio, demonstravam técnicas de explo­radores consumados das paixões humanas.

Aquele perseguidor não era vagabundo aci­dental.

O anseio incontido com que impelia Cláudio para a jovem e a expressão com que a fitava, apai­xonadamente, pareciam chegar de muito longe. Mas a ocasião não comportava investigações de reta­guarda. O momento reclamava atenção. Necessário contornar obstáculos, improvisar medidas socor­ristas que protegessem a triste menina desarmada.

O excêntrico dueto prosseguiu entre os dois amigos que se entendiam, sem o concurso da boca.

O magnetizador pressionava, o magnetizado re­sistia.

Por fim, Cláudio avançou dois passos, quase vencido.

Idéias, contradições, estímulos e arrebatamen­tos abalroavam-se-lhe, violentamente, no espaço es­treito do crânio. A terrível batalha interior de alguns instantes esmorecia. A natureza animal ampliara domínio. O sedutor desencarnado rematava a obra.

Não mais a gritaria de Espírito. Não mais o entrechoque das mudas ponderações entrecortadas a esmo.

Sim — deduzia, transtornado —. ele era ho­mem, homem... Marita, incontestavelmente mais jovem, não passava de mulher. Não lhe cabia, por­tanto, diminuir-se. Ela chorava, ele podia acalentá-la, aquecer-lhe o coração.

Alucinado de lascívia, envolveu-a em longo olhar, inferindo que, não fossem o temor de vê-la fugir em definitivo e o receio de verificar-se por ela própria desonrado, tomar-lhe-ia o colo entre os braços, qual guri destemeroso, buscando desen­tranhar-lhe a ternura.

Entanto, os derradeiros arrazoados esmaeciam. Esbarrondara-se, dentro dele, a última trincheira que lhe cerceava os impulsos. Sujeitou-se de todo à direção do vampirizador que o comandava. Co­laram-se, fundiram-se, enfim.

Marita ergueu para ele os olhos súplices, imi­tando as atitudes da ave perseguida, para quem não resta outra alternativa que não seja esperar pela piedade do atirador.

Jungido ao companheiro infeliz, Cláudio adian­tou-se, acomodando-se, assumindo ares de protetor, resolvido a ultrapassar os limites da afeição pura e simples.

— Pelo que vejo, esse pilantra do Gilberto vem abusando... — sussurrou, adocicando a voz.

Em seguida, tomou-lhe a destra pequena en­tre as suas mãos nervosas, mal disfarçando a lu­bricidade duplicada que o possuía.

A jovem registrou o impacto das forças avilta­das a lhe requisitarem adesão, calando a repulsa.

Escutara o apontamento, num misto de estranheza e revolta, mas, reprimindo-se, passou a responder, esforçando-se por desculpar o rapaz e atribuindo a si o desmantelo emotivo; entretanto, à medida que o pai adotivo dilatava a liberdade das atitu­des, apagava-se-lhe a energia para a conversação, até que silenciou, como se o interesse, ao redor do problema, houvesse desaparecido de chofre. E, num átimo, realinhou na mente as impressôes amargas dos tempos últimos...

Assinalara, havia me­ses, a reservada mudança do trato paterno. Des­concertava-se ao perceber que Cláudio demorava sobre ela o olhar insistente. Amedrontara-se. Re­agira, porém, energicamente, contra si mesma. Con­sagrava-lhe o respeitoso amor de filha reconhecida e não lhe cabia conspurcar sentimentos semore mantidos imáculos, desde a intimidade da infância. Opusera-se à suspeita. Lutara, não queria aceitar-se visada por ele, sob a inspiração de qualquer propósito menos digno.

Ainda assim, por mais brandisse argumentos contra si própria, inexplicável sensação advertia-lhe o espírito, exortando-a a policiar as maneiras com que Cláudio agora a cercava. Pelos motivos mais fúteis, exagerava cuidados, multiplicando fra­ses de dúbio sentido.

Torturada pela dúvida, afirmava a sua des­confiança e desdizia-se, intimamente.

Naquele instante, porém, o instinto de defe­sa sentenciava prudência, segredava-lhe vigilância.

Pressentindo, em espírito, a presença do «outro», arregimentou, sem querer, todas as suas forças na posição de alarma.

O contacto de Cláudio comunicava-lhe insegu­rança.

Batia-lhe o coração desritmado, ao senti-lo en­saiando meios de enlaçar-se a ela, ávido de carinho.

— Não negue, filha — entaramelou-se o pai, um tanto trêmulo —, não desejo contrariá-la, mas venho analisando, analisando... Você não nasceu para esse meninão caprichoso. Compreendo você... Não sou apenas seu pai pelo coração, sou também seu amigo... Esse rapaz...

Marita cobrou ânimo e, antecipando-se-lhe às ilações reticenciosas, explicou ingenuamente que amava a Gilberto, que lhe hipotecava confiança, que o pai estivesse tranqüilo, e acentuou, sorrindo quase, que as lágrimas daqueles minutos não se reportavam a qualquer desgosto e sim a indisposição orgânica indefinível. Deduziu, de relance, que seria justo desvelar-lhe mais ampla zona da alma, anulando mal-entendidos no nascedouro, e, intencio­nalmente, prosseguiu confidenciando, a expor-lhe, com lealdade, a expectativa com que aguardava o anel esponsalício, determinada a medir as reações de Cláudio, a fim de orientar, sem tergiversações, a própria conduta.

Atrapalhava-se, todavia, ao consignar-lhe a in­dignação pintada no rosto. Na meia-luz do quarto, podia ver-lhe a face congesta, nos esgares da ira.

Compreendeu que a borrasca naquele espírito voluntarioso se mostrava prestes a estalar; no en­tanto, continuou apresentando razões para colher reações.

E a explosão do interlocutor não se fez de-morar.

Cerrando os punhos, Cláudio cortou-lhe a conversa, exclamando, irritado:

— Percebo, percebo, mas não precisa maçar-me... Estimo, porém, que você me conheça melhor o devotamento.

Avançando na intimidade, qual se aspirasse a enredá-la no próprio hálito, continuou — agindo por si e pelo «outro» — na queixa primorosamente lavrada:

— Filha, é necessário que você me ouça, que me entenda...

E, assaltando-lhe a emotividade para esbater-lhe a resistência:

- Você não desconhece o que sofro. Imagine a tragédia de um homem que morre, a pouco e pouco, desolado, sozinho... de um homem que dá tudo, sem nada receber... Você cresceu, vendo isso... Infelicidade, solidão. É impossível que não se con­doa. Esta casa é meu deserto. Chego esfalfado, diariamente, sem achar mão amiga. Márcia, embo­ra quarentona, vive de jogatinas e festas... Você está moça, inexperiente, mas deve saber. Descul­pe-me o desabafo, mas os próprios amigos me lastimam o drama... Estará você em condições de avaliar os conflitos de um pobre diabo algemado a companheira de vida irregular? Ela, porém, não me fere com isso. No começo, o corte sangrava, mas coração calejado não sente. Habituei-me a de­testá-la. Dar-lhe o dinheiro que exige, para que suma depressa, é hoje o que me consola... Por outro lado, Marina, cujo afeto poderia proporcionar-me algum reconforto, faz empenho de humilhar-me com a própria devassidão! Sou um homem falido. Dias surgem, nos quais me reconheço o palhaço mais desditoso da Terra...

Nesse ponto, sob o governo do obsessor, a voz de Cláudio entravara-se na garganta.

Alterara-se de todo, comovido na aparência.

Com isso, amolgara-se a jovem, sinceramente compadecida, e, concluindo que atingira o alvo a que se propunha, acrescentou, exaltado:

— Só você, somente você me prende ao lar infeliz. Ainda agora, o Banco me propôs excelente comissão em Mato Grosso; entretanto, pensei em você e desisti... Por você, filha, tolero os insultos de Márcia, as ingratidões de Marina, os dissabores da profissão, os aborrecimentos cotidianos. Conse­guirá você compreender-me?

A moça suspirou, diligenciando expulsar de si as vibrações de sensualidade com que a “dupla” lhe envolvia a cabeça, e falou, calma:

— Sim, papai, entendo as dificuldades que são nossas...

— Nossas! — repetiu ele, ganhando novas energias para chegar à meta —, sim, minha filha, as dificuldades são nossas, mas é preciso que você saiba que nossas também devem ser as esperanças e as alegrias. Anseio pelo instante em que você me veja não exclusivamente por pai...

Atentando no olhar da infortunada menina que se tocara de imenso espanto, acentuou num supre­mo esforço por revelar-se:

—        Marita, pareço um velho, mas você me far jovem... O coração é seu, seu...

O         obsessor, com trejeitos de lascívia, prelibava o lance final.

Marita, no entanto, percebendo a intenção ine­quívoca do homem apaixonado, que arrojava o ros­to maduro e bem tratado sobre o dela, intentou recuar.

—        Não, não! — gemeu, suplicante, ao sentir-lhe o hálito.

Cláudio, porém, cujas forças jaziam somadas àvalentia do «outro», enlaçava-lhe o busto, copian­do o procedimento de um jovem mal comportado.

Qual se houvéramos combinado previamente a defesa. Neves e eu saltamos na direção dela, ofer­tando-lhe as mãos, para que pudesse arrancar-se, e a vitima, crendo apoiar-se nos próprios recursos, conseguiu levantar-se num prodígio de ligeireza, estacando, à frente dele, que a fitava, agora, com a expressão desconfiada de um animal repentina-mente ferido.

—        Papai, não me faça mais infeliz... Poupe-me a humilhação!...

O         dono da casa, ao impacto da recusa impre­vista, pareceu desligar-se do amigo desencarnado, lembrando a fera que se desvencilhasse, de inopino, do encantamento mantido pelo domador; entretan­to, o parceiro trazia uma carga de paixão vigorosa demais para desistir facilmente. Retomou, impetuo­so, o próprio domínio, a ponto de antepor a más­cara fisionômica ao semblante de Cláudio. Cerra­va os punhos, despedia cólera letal. Estabelecia-se pavoroso conflito na mente de cada um. Num de­les, o desapontamento e o desespero, no outro, a malignidade e a agressão.

O         pai adotivo, carregando o estranho fardo de angústia, mesclada de revolta, incapaz de compre­ender os sentimentos contraditórios que o faziam avizinhar-se da loucura, passou a clamar, inconsi­derado:

— Isto é a explosão de muitos sofrimentos acumulados. Fiz tudo para esquecer e não pude...

Que fazer com esta inclinação que me arrasta? Sou palha no vento, minha filha! Desde que a vi me­nina, carrego esta idéia fixa... Se eu fosse religio­so, diria que um demônio mora dentro de mim.

Um demônio que me atira constantemente sobre você. Em sua presença, quero pensar em você, como sendo minha filha, crescida em meus braços e não posso... Li muitos livros de Ciência para saber o que se passa, mas o enigma continua. Quis pro­curar um médico; entretanto, senti vergonha de mim próprio... É só você que eu vejo em tudo! Odeio Márcia, desprezo Marina...

Tenho acalen­tado a esperança de uma viuvez que nunca chega, a fim de oferecer-me a você, sem condições... Te­nho ciúmes, ciúmes que me afogam a alma em labaredas... Detesto esse rapaz leviano, incons­ciente...

A voz de Cláudio amaciara-se, adquirindo tom lacrimoso. Identificava-se-lhe o abalo sentimental. O perseguidor duplicou em desprezo tudo o que ele exprimia em emotividade, provocando inespe­rada reviravolta. O pai enternecido deu lugar ao enamorado violento.

Avinagrara-se a ternura, se­melhando calda azedada. Revelando súbito trans­torno, deitou à filha adotiva um olhar de escárnio, traumatizando-a de horror, a esbravejar, demen­tado:

— Não, não posso humilhar-me assim. Você sabe que não sou nenhum tonto. Há quinze dias, acompanhei vocês dois a Paquetá, sem que me vis­sem... Segui-lhes o passo descuidado e feliz, como se eu fosse um cão escoiceado pelo destino... Ao cair da noite, vi quando vocês dois se enlaçaram, trocando promessas e falando bobagens, na Ribei­ra... Arrastei-me no matagal e vi tudo... Desde então, enlouqueci... Pelo jeito, vocês andam aca­nalhados, há muito tempo... Você! você, que eu supunha intangível, entregue a um menino doido!... Ingênua! Julga que não tenho motivos para expul­sá-la! Você imagina que me falta coragem para chamar às contas esse dilho de papai rico»?

Alterando o tratamento paternal de que se valia, rugiu, brutalizado:

— Marita, fique sabendo que você agora não é mais criança! Você é apenas mulher, não passa de mulher, mulher...

A jovem soluçava. Reconhecendo-se descober­ta nas mais íntimas nuanças da conduta impensada, não ousava erguer a fronte.

Neves, incapaz de remover o próprio assom­bro, abeirou-se de mim, rezingando:

— Você está vendo? Este homem será louco ou desbriado?

Temendo-lhe a impulsividade, fi-lo recordar as atitudes ponderosas e cristãs do irmão Félix, informando, discretamente, que me achava em ora­ção, a exorar o auxílio da esfera superior, porqüan­to, ali, não dispúnhamos de maiores recursos para impedir um assalto passional de penosas conse­qüências.

— Oração? — chasqueou o companheiro, po­sitivamente desencantado — não creio que os anjos se ocupem de casos como este. Aqui, meu amigo, e em outros lugares onde tenho visto muito bicho velho fantasiado de gente, só a polícia...

Efetivamente, os anjos pessoalmente não nos atenderam às rogativas silenciosas, enunciadas des­de o início da cena desagradável; no entanto, o socorro apareceu.

Ouviu-se barulho de ferrolho em ação e alguém penetrou em casa, ruidosamente.

Sobreveio o choque providencial.

Cláudio, em sobressalto, desligou-se do hipno­tizador, que se lhe postou de lado, um tanto desen­xabido.

— Que é que há?

Marita cobrou energias, regressando ao leito, enquanto o chefe do lar se recompunha à pressa.

Espantados, notamos, porém, a surpreendente capacidade de fabulação da qual Nogueira dava mostras. Ele próprio, sem qualquer ingerência do obsessor, começou a tramar em pensamento a des­culpa com que se justificaria.

Agindo quase que mecanicamente, libertou a porta que havia prendido, perspicaz, abriu janela próxima e, de imediato, esbelta senhora surgiu, in­dagando, apreensiva:

— Que é que há?

Tratava-se da esposa que voltara, de impre­visto.

Dona Márcia alegava susto, asseverando ter ouvido um vozeirão ao chegar. Cláudio, no entanto, repondo a máscara das conveniências, entornou pela boca a versão que inventara, ali, naquele momento, diante de nós.

Fixou a moça, de modo significativo, e tran­qüilizou a senhora, dizendo-lhe, com a maior sem-cerimônia, que chegara a casa, momentos antes, encontrando o gás do fogão a volatilizar-se.

Fechara as saídas que a cozinheira deixara abertas e exortou a que se lhe chamasse a atenção, no dia seguinte. Dona Justa, a companheira do serviço doméstico, devia examinar os aparelhos da casa, minuciosamente, antes de se retirar. Acentuou que, atemorizado, descerrara as janelas, arejando o am­biente. Quando envergava o pijama, aduziu com absoluta seriedade a lhe transparecer do semblan­te, ouvira gemidos agoniados. Correu ao aposento das meninas, surpreendendo Marita a gritar, in­consciente. Sonâmbula, sonâmbula como sempre... Acordara-a, atarantado, averiguando, porém, que tudo estava em ordem.

A jovem, mergulhada na penumbra, cobriu o rosto com o lenço para ocultar as lágrimas, abandonando-se à inércia, como se transferisse a cabeça de um sono para outro.

A recém-chegada riu-se, sem suspeitar, de leve, do vulcão que faceava, e, qual se desejasse com­pensar-lhe a indiferença, Cláudlo, de volta ao sa­lão, esboçou um aceno gentil, convidando Márcia a descansar.

 

       Instalados na sala de visita, os cônjuges en­trefitaram-se de estranha maneira. Adversários declarados, em tréguas cordiais.

       Dona Márcia definia-se. Espécime comum das damas que lutam, garbosas, contra as arremetidas do tempo. Ninguém lhe atribuiria os quarenta ja­neiros integralmente dobados. Os cabelos abundan­tes, que os líqUidos medicinais mantinham perfei­tamente escuros e brilhantes, acomodavam-se num penteado gracioso que lhe guarnecia o rosto, se­melhante ao das pessoas que se maquilam para efeitos de arte e que nunca se deixam analisar realmente sem que a água quantiosa lhes resti­tua os poros à carícia da Natureza. Delgada, na magreza característica dos que usam moderadores do apetite para a manutenção do peso ideal, apre­sentava-se em figurino da alta.

       O fundo alvo do linho, ligeiramente estampado de pequeninas flo­res róseas, dava-lhe ao vestido primoroso certa diafaneidade que lhe realçava a beleza quase ou­toniça.

       Era a mesma criatura das telas mentais de Marina, exibindo-se, porém, de modo diverso, espécie de livro, claramente identificável, mas expos­to numa encadernação mais viva e mais rica.

       Pela herança e pela convivência, talhara, sem dúvida, o aspecto da filha única, porqüanto, sentada agora, lembrava Marina em todos os traços, conquanto muito mais asserenada e amadurecida. Longe de aparentarem a verdadeira condição de mãe e filha, podiam ser interpretadas à conta de irmãs, salientando-se que Dona Márcia se revelava talvez mais simpática, pela brandura estudada dos gestos.

Via-se-lhe com tranqüilidade o sorriso espon­tâneo, sorriso, no entanto, que mostrava o engenhoso artifício dos que se distanciam deliberadamente dos problemas alheios para que não lhes constituam empeço ao avanço. Doçura trabalhada do egoísmo atencioso, pronto a sorrir, nunca a se incomodar.

Ainda assim, os olhos, ah! os olhos traíam-lhe a alma sibilina. Fisgados no esposo, pareciam inte­ressados em agarrar-lhe as mínimas reações, em proveito próprio.

Ela não aspirava a conhecer qualquer vestígio da conduta dele, anelava encobrir-se. Serena e bem­-posta, renteando o marido, dava a impressão de um viajante hábil, preocupado em ilaquear o guar­da-barreira, a fim de seguir, incólume, caminho adiante, sem largar as aquisições clandestinas.

Por outro lado, o marido assemelhava-se ao guarda-bar­reira, calejado no suborno, mais aplicado em res­guardar-se, que em denunciar viajores, tão ma­treiros quanto ele próprio. Naquela hora, sobre­tudo, em que fora quase detido em culpa flagrante, esmerava-se em mesuras.

Amodorrava-se para ou­vi-la, com a pachorra de um cão astucioso que pa­rasse de caminhar, atento às falcatruas do gato.

Para Cláudio, em tal circunstância, valia estu­dar tudo, ouvir tudo. Afinal, aquilo era inevitável. Márcia chegara ao quarto de Marita num momento psicológico. Imperioso esfumar-lhe qualquer dúvi­da ocorrente, à custa de uma tolerância que não mais praticava, desde muito. Para isso, estirava-se, ali, sossegado e complacente.

Nos dois, porém, flutuava a desconfiança re­cíproca. Duas bocas que se entendiam, duas cabeças que discordavam uma da outra. Cada frase vinha pré-fabricada na garganta, dissimulando o pensamento.

Adocicando a voz, a esposa comentou os abor­recimentos no bufete do baile beneficente em que havia funcionado. Muita gente. Alguns jovens em­briagados, forjando obstáculos. Garotos furtando. Por tudo isso, estafara-se.

Desconfiando que o marido, não obstante mos­trar-se quase afetuoso, não se inclinaria a longa conversação, quis reter o momento raro, tornan­do-se mais terna.

Afável, estendeu-lhe prateada carteira.

Cláudio agradeceu. Não queria fumar. Ela, no entanto, bateu, várias vezes, a ponta do cigarro, de encontro a pequenina bolsa metálica, fez fogo num isqueiro diminuto, e, após envolver-se em ba­foradas, relaxou-se na poltrona, sugerindo a inten­ção de exprimir-se mais à vontade.

— Imagine você — aduziu, cuidadosa —, que embora o sarau esteja longe de terminar, larguei tudo. O leilão de prendas esperava por mim, quall­do senti um constrangimento esquisito.

Tive medo. Passei minhas obrigações para Dona Margarida e voltei. Atormentava-me, supondo houvesse algo atrapalhado em casa, alguma ligação elétrica es­quecida, a presença de algum malfeitor. Vejo, po­rém, que você talvez tenha tido o mesmo palpite e chegou antes, retificando o fogão... Felizmente, tudo passou... Mesmo assim, reconheço que o meu regresso foi providencial, pois, desde muitos dias, venho espreitando um momentinho em que você esteja calmo e bem-humorado, como agora, para tratarmos, juntos, de assunto sério... Coisa que nos toca de perto, que não posso decidir sem você...

Neves e eu notamos, para logo, o regime de choques e contrachoques em que respiravam aque­las duas almas adversas, aprisionadas socialmente uma à outra, por exigências da provação.

Inferin­do que a companheira se lhe aproveitaria da bene­volência eventual para chamá-lo a questões de res­ponsabilidade, Cláudio despiu a máscara afetiva com que a brindara, de inicio, e, taciturno, colocou-se em guarda. Do sorriso, tornou ao sobrecenho. Fino sarcasmo tisnou-lhe os modos. Comandou a palavra, buscando, em vão, disfarçar o azedume. Afirmou-se fadigado, alegou esgotamento adquirido em horários de serviço extra e rematou, pedindo à esposa resumisse, quanto possível, o que tinha a dizer-lhe. Queria ler, pensar, refazer-se.

A esposa fingiu não ver o olhar irônico que ele lhe endereçava e começou referindo-se ao cansaço de que se sentia possuída.

Possivelmente, ele próprio ignorasse; entretan­to, submetera-se a vários exames, por solicitação do ginecologista. Desde muito, atravessava as noi­tes em claro, sofria palpitações, sufocações, sensa­ção estranha de peso, calores no peito. O médi­co acreditava em menopausa precoce e receitara. Ela, contudo, supunha-se depauperada, neurastêni­ca. Exauria-se nos problemas domésticos. A arru­madeira despedira-se. E, desde que se fora, via-se obrigada a passar roupa, encerar, e, de certo modo, auxiliar no fogão para que Dona Justa não es­morecesse. O conserto da geladeira custara um di­nheirão. As contas, no fim do mês, haviam au­mentado. Marina trouxera duas gratificações que recebera em serviço extraordinário, mas, ainda as­sim, estava onerada. Tinha necessidade de quinze mil cruzeiros.

Nesse tópico da entrevista, o interlocutor fi­tou-a, sarcástico, e indagou:

— É só?

A interrogação, carregada de zombaria, pairou no ar da mesma forma que uma chicotada cortante.

Dona Márcia emudeceu, ao impacto da descon­sideração inesperada.

O marido não dispensara sequer a mínima aten­ção aos padecimentos orgânicos de que se queixara. Desconhecia-lhe, de propósito, os achaques. En­quanto relacionava os incômodos de que se via aco­metida, assustara-se ao divisar-lhe a dura expres­são dos olhos frios. Conhecia aquela atitude gelada de profundo desdém. Ao passo que se lamentava, tinha a impressão de que ele, Cláudio, lhe pergun­tava em pensamento: «por que não acaba você de morrer?» Em outras ocasiões, chegara a enunciar semelhante inquirição, com palavras redondas, cla­ramente pronunciadas e repetidas. Por que tanto ódio? indagava a si mesma. Não contava receber uma ternura que os atritos incessantes haviam in­cinerado entre ambos; contudo, cria-se com direito a pequeno retalho de acatamento. Se ele adoecia, de leve, conquanto não o amasse, vigiava-lhe a ca­beceira. Zurzia o clínico da família pelo telefone. Todas as providências à hora. Entretanto, ao referir-lhe o tratamento que reputava importante, a fim de evitar uma cirurgia comprometedora, recebia dois monossílabos secos que o marido lhe pespegava no rosto, como se a repelisse com dois calhaus.

Persistindo o silêncio que se alongava, Cláudio fez menção de retirar-se; contudo, a esposa frus­trou-lhe o impulso, exclamando, agora irritadiça:

— Não saia. É preciso que você fique. Esta casa não é minha só. Acaso, não está vendo?

Ma­rina e Marita... Criam-se os filhos com desvelo, com carinho... Em crianças, são anjos; crescidos, são pesadelos. Tenho sofrido calada, mas agora... Isso não pode continuar sem que você se mexa. Entre uma e outra, não é possível a indiferença. Acolhi essa menina estranha em meus braços como se fosse minha própria filha. Suportei afrontas, esqueci minha saúde, meu tempo... Não me pou­pei, fiz o que pude... Nada lhe faltou, entretanto, hoje...

— Hoje, o quê? — revidou o esposo, admi­rado.

— Pois você não percebe a humilhação a que Marina se expõe? — acentuou a companheira, em lágrimas súbitas, qual se estivesse habituada a cho­rar, quando quisesse. — Você não enxerga as difi­culdades de nossa filha?

Cláudio riu-se, como quem decidira zombetear.

—        Márcia, deixe de cenas... Você fala em Ma­rina, como se a nossa desmiolada estivesse na forca. Não entendo. Vejo-a feliz e desorientada, como nunca. Se me detiver em qualquer problema dela, será para admoestá-la, reprimi-la. Não fosse você com o desregramento de suas concessões e com os seus maus exemplos, haveria de corrigi-la, ainda que obrigado a interná-la no hospício...

—        Que ouço, meu Deus? — gritou a senhora.

Estancara-se-lhe o pranto, alarmada que se achava, ao verificar o rumo improviso do entendimento.

—        Você ouve a pura verdade — prosseguiu Cláudio, implacável. — Ainda anteontem, impelido por dever da profissão a comparecer num coquetel, oferecido a um dos chefes, numa casa de regalias noturnas, fui constrangido a pretextar uma enxa­queca e afastar-me. Sabe por quê?

Nossa filha, que você pretende inculcar por santa, estava lá, posi­tivamente nos braços de um cavalheiro maduro e bem-posto, que não a beijava paternalmente. Senti tanta vergonha, que pedi a um colega me repre­sentasse, e sai, à pressa, antes que Marina me per­cebesse.

—        Oh! a pobrezinha! ... — objetou Dona Már­cia, faces em fógo, tremendamente revoltada.

Naquele instante, os dois tiravam, mecanica­mente, os últimos disfarces. Postavam-se, em espírito, um à frente do outro, com rudeza indissi­mulável. Dois inimigos soberanos, aversão contra aversão.

E o diálogo azedo continuou:

—        Pobrezinha, por quê?

A esposa mediu-o, de alto a baixo, com um olhar de zombaria, e passou a acusá-lo:

— Não quero discutir agora a sua presença de homem velho e casado, numa casa de tolerância, pois não acredito nessa história de homenagens a chefes, em horas avançadas da noite.

Você foi sempre imoral, indigno, mentiroso, mas, por amor àfamília, esqueço tudo isso, para que você conheça toda a situação...

Refletindo na conveniência de sensibilizá-lo para os efeitos a que se propunha, Dona Márcia baixou calculadamente a escala de rispidez, abran­dando a inflexão da voz que se tornara por demais agressiva.

— Cláudio, atenda — continuou quase melí­flua —, Marina, obediente, nunca me ocultou a ver­dade. Não proceda com malícia; desde a piora da esposa do senhor Nemésio, vem repartindo, cari­dosamente, o tempo, entre as obrigações do em­prego e o lar do chefe, onde a infeliz senhora vem morrendo, pouco a pouco... Impossível que você não lhe admire a abnegação, porque, de modo al­gum, precisaria interessar-se pela vida íntima da família Torres, a ponto de velar junto deles, por várias noites consecutivas, por simples espírito de sacrifício... Não sei se você chega a vê-la, quando volta de manhã, mostrando fundas olheiras e faces pisadas.

Na mente inventiva do interlocutor, entretanto, operava-se complicada reviravolta. Assinalando as palavras injuriosas de Dona Márcia, sentira ímpe­tos de esbofeteá-la. A indignação ruborizara-o; to­davia, conteve-se. Não que desistisse de revidar chasqueando, mas permanecia convicto de que Ma­rita escutava. Aspirava a conquistá-la a qualquer preço. Mormente agora que se declarara, não es­tava inclinado a recuar. Prosseguiria.

Dona Márcia, enganada, aceitara a versão do pesadelo e acreditava que a moça dormisse, de vez que lhe recebera a presença no quarto sem dizer palavra.

Ele, porém, sabia-se ouvido, examinado. Não adotaria qualquer procedimento incompatível com a galanteria que começara a desenvolver. Se es­bravejasse, agravaria a distância. Deliberou agüen­tar remoques e insultos, fossem quais fossem, estudando como orientar-se na conversa para tirar o melhor partido.

Além disso, o amigo desencarnado, ao lado dele, acalentava-lhe a rijeza de alma, insuflando-lhe idéias. A fabulação de um complementaVa-Se no outro. Concluíam, juntos, que se fazia mais ra­zoâvel para eles examinar minudências e falar com intenção. Manejariam Márcia para alcançar Mari­ta. A interlocutora ser-lhes-ia instrumento. Usá­-la-iam por trampolim, rumo ao alvo.

Todas essas consideraçõeS relampeavam no es­pírito de Cláudio, enquanto a senhora se empenha­va justificar-se, na defesa da filha. Dominado pelos novos pensamentos, não sorriu, mas suavizou a expressão, como quem se resigna aos ditames da paciência.

Algo desarmada por aquela impassibilidade que se lhe figurava benevolência, Dona Márcia conti­nuou:

—        Acontece que o senhor Torres se encontra francamente desarvorado, diante da tragédia que a fortuna dele não pode conjurar. Dinheiro farto e coração abatido, negócios prosperando e morte à vista. Nossa menina compadeceu-se. Tanto am­parou a doente que acabou descobrindo os sofrimen­tos do homem que se aproxima, conscientemente, da viuvez... É por isso que vem buscando revi­gorá-lo, como pode...

—        Mas, assim como estão fazendo? Afogan­do-se em bebidas e prazeres noturnos, em que os dois se assemelham a duas crianças destempera­das? Não os vi rezando pela tranqüilidade da enferma...

— Deixe de ironias. Você, com toda a certeza, numa situação igual, não se consolaria com lágri­mas, procuraria distrações. Não há inconveniente algum em que o senhor Torres, numa hora dessas, se dirija para um ambiente alegre, a fim de ganhar forças, e não vejo maldade em que trate Marina por filha dele próprio, afagando-a por boneca mimada que sempre foi. Muito justo, muito claro. Dona Beatriz e o esposo conseguiram somente um filho, não tiveram, como nós, a ternura de uma filhinha no lar e nem adotaram alguma pequenina estranha a eles. Marina dá conta a mim, que sou mãe, de tudo o que se passa. Você sabe que ela é profundamente sensível e carinhosa. Tem muita pena do chefe e tenta reconfortá-lo...

— Reconfortá-lo? — gracejou Cláudio, reto­mando a galhofa.

— Não adiantam sarcasmos — rogou Dona Márcia, afetando desapontamento. — Nossa filha vem agindo corretamente. Tanto assim que a nos­sa conversa deve esclarecer grave assunto.

E, alterando o tom de voz, que se fez mais persuasivo e mais doce:

— Você não ignora que Marita se enamorou, há meses, de Gilberto, o filho dos Torres.

Vendo, de minha parte, os dois, em ligação constante, acre­ditei piamente que o jovem nutrisse por ela uma inclinação segura.

Misturando reserva e malícia, passou a histo­riar-lhe as entrevistas, os passeios, os telefonemas, os bilhetes... Salientou que se afligira ao apanhá­los, a sós, numa excursão domingueira, em plena floresta da Tijuca, dias atrás. Admitia que seria preciso examinar-lhes o caso. Aborrecera-se ao des­cobri-los, assim, positivamente isolados, sob as ár­vores. Mulher e mãe, inquietava-se ao pensar na filha adotiva...

Cláudio, nessa altura, marcava-lhe os avisos, de olhos em fogo e coração aos saltos.

Então Márcia também sabia... Aquele jeito arisco da esposa nas confidências não o enganava.

Indubitavelmente, ela senhoreava minúcias que pre­feria esconder. Não chegava Paquetá. A mataria, igualmente, fora teatro dos colóquios e beijos que detestava. Não esperava aquele noticiário miúdo na própria casa. Não supunha a mulher, assim, cons­ciente da situação de que se conjeturava exclusivo conhecedor... Naquele minuto, olvidava a menina que se lhe desenvolvera nos braços, anulava-se na condição do pai, chamado a zelar-lhe o nome. Irrom­pia nele o animal ferido, o homem selvagem que lhe dórmia habitualmente na polidez, espicaçado pelo ciúme.

Esfregando os dedos contra as palmas das mãos, num gesto que lhe particularizava o desagrado, levantou-se, deu alguns passos pela sala e resmungou:

— Ingratidão!

A esposa usufruia a cena com a volúpia de quem alcançava os próprios fins, porqüanto, desde o princípio da conversação, aspirava a estabelecer um clima favorável à filha legítima, a detrimento da outra. Julgava que o marido, com semelhante exprobração, resumia numa palavra o asco que pro­vavelmente albergaria contra o procedimento da pupila que desejava arredar. Muito distante da rea­lidade, não percebia que a indignação dele se arrai­gava no azedume do apaixonado que se vê preterido e, por isso, ensaiava um sorriso triunfante...

Nós, porém, conseguíamos analisar-lhe as telas mentais e verificar quanto lhe doía o desprezo.

Via-se, espiritualmente, ao pé do jovem, medindo forças. Ah! se lhe fosse dado enxergá-lo, naquela hora, ao alcance das mãos! Certo lhe despejaria todo o peso da cólera na constituição de menino e moço, esfrangalhando-lhe os ossos...

— Comove-me a sua reação contra Mana!... Registrando a frase retícenciosa da companheira, deu-se conta do papel desaconselhável que co­meçava a assumir. Quase que se denunciara, de todo. Ultrapassara os limites da circunspeção que lhe cabia conservar no próprio interesse e delibe­rou recompor-se. Reconheceu que Márcia lhe apre­ciava a repulsa, crendo vê-lo unicamente no lugar de pai, machucado pelas circunstâncias, e deixou que ela se acomodasse a essa interpretação, encas­telando-se, mentalmente, na defensiva. Reprimiu o desespero que o possuia, sentando-se, de novo, a relaxar os nervos tensos. Apagou exteriormente to­dos os sinais de excitação, aparentou calma súbita.

A senhora, que ambicionava amontoar vanta­gens para a filha, longe de imaginar-se iludida naquele jogo, em que marido e mulher se nos re­presentavam dois parceiros astuciosos, nos golpes estudados um contra o outro, falou serena, presu­mindo controlar agora toda a situação:

— Sua atitude respeitável de pai me encoraja e me alegra. Graças a Deus, sinto em você o chefe da casa e da família.

Cláudio ouvia, atento.

É necessário que você saiba — prosseguiu ela — que Gilberto não quer coisa nenhuma com Marita, que vive a derreter-se sem razão, O rapaz é apaixonado por Marina e tudo indica possibilidades de um casamento vantajoso, que não pode­mos jogar fora.

O interlocutor ardiloso deduziu que chegara para ele a oportunidade da vingança. Fingindo des­conhecer a trama de sentimentos em que ambas as jovens se enredavam, comentou, em voz alta, os novos aspectos do problema, a fim de ser clara­mente escutado por Marita, que sabia de atalaia, no quarto próximo. Depois de encarecer a exce­lência do caráter da filha adotiva, destacando o apreço e a ternura com que se dedicaria a prote­gê-la, acentuou, jocoso:

— Ah! o biltre!... então, essa farsa de va­guear com Marita, arrastando-a por aí, não é senão alcovitice e trampolinagem... O peralta está ca­rambolando. E’ o bilhar dos namorados, bate-se numa bola para acertar em outra...

E relacionou pobres moças, traídas na confian­ça, explicou que Marita era suscetível de uma psi­cose de duras conseqüências. Se Gilberto estava propenso a desposar Marina, que se manifestasse. Não oporia embargos, no entanto, exigia franqueza.

Dona Márcia, repentinamente lisonjeada, ao co­lher-lhe as disposições tão favoráveis, arrolou as confidências da filha.

O rapaz confessara-se. Admirava-lhe não só os encantos pessoais, mas gabava-lhe a educação fina. De começo, apenas se cumprimentavam, de quando em quando. Ele, porém, tivera necessidade da cooperação de alguém que o auxiliasse na tra­dução de alguns textos franceses.

Marina expuse­ra a competência adquirida, O trabalho realizado erigia-se em característicos tão primorosos que ob­tivera louvor na Embaixada. Desde essa empresa, trabalhavam quase que unidos. Marina revelara-lhe que o próprio senhor Nemésio, sempre solícito, passara a nomeá-la por nora.

Cláudio, acintosamente, dizia, de quando em quando:

—        Márcia, não estou ouvindo bem, fale um pouco mais alto.

A companheira, elevando sempre a modulação da voz, contou que os dois, embora a situação cons­trangedora da saúde de Dona Beatriz, no momento, traduziam poesias deliciosas de autores ingleses, marginando-as de trechos sentimentais que lhes expressavam a ternura recíproca, compondo lin­do álbum cuja leitura lhe arrancara lágrimas de enternecimento. O amor entre ambos era claro como água. Indispensável apoiarem a filha, na con­cretização de suas esperanças.

Afirmava-se con­fortada em reconhecer, a tempo, que a cultura de Gilberto não se compadecia com as deficiências de Marita, para quem o moço não seria, por isso, um partido feliz. Asseverava, convicta, que compe­tia a ele, Cláudio, e a ela a orientação do assunto. Ponderou ainda que o auxílio dispensado por Ma­rina a Dona Beatriz estreitara as relações entre os jovens, e, supondo o esposo agastado à vista de contrariedades prováveis para a filha adotiva, acres­centou, entre desabrida e chistosa, que Marita se arranjaria, na época oportuna. Inclinações de mo­ças, problemas delas.

O marido não acreditou em tópico nenhum do que ouvira. Pai, desiludira-se com a filha. As investidas noturnas pelos recantos boêmios, as ma­neiras inconfessáveis, no trato com o chefe de ser­viço, não lhe deixavam dúvidas. Ao revés, as no­ticias entusiásticas de Márcia acordavam-no para realidades mais agressivas. Inferia que Marina an­dava sem escrúpulos entre o velho e o moço. De outro modo, na condição de esposo, não lograria embair-se. A companheira figurava-se-lhe a mu­lher desleal aos compromissos domésticos, mulher que ele mesmo plasmara com os seus exemplos de homem refratário ao equilíbrio emotivo. Impossí­vel queixar-se. Com a tarimba da sociedade menos digna, fizera-se Márcia astuciosa, cruel. Dissimu­lava para ganhar. Certamente, não lhe confiava quanto sabia. Estaria informada de todas as liga­ções escusas da filha com o senhor Torres, tanto quanto ele próprio. Capearia as inconveniências, incentivaria, talvez, a leviandade com propósitos de lucro; entretanto, aquele era o momento de atrair a confiança de Marita e, à face dessa razão que se lhe alteava no ânimo empedernido, calou a re­volta e partilhou a farsa, afiançando confiar na menina que amavam por filha. Tentaria distraí-la, renová-la, e, de acordo com ela, Márcia, procura­ria incluí-la num roteiro de turismo a Buenos Aires, para o qual fora convidado por amigos, no banco. Marita esqueceria, esqueceria.

O entendimento avançava, mas o serviço nos convocou ao aposento próximo, onde a mágoa da jovem explodia, inarticulada, em vibrações de in­tensa dor.

 

Estirada no leito, chorava Marita, desconsolada. As revelações ouvidas naquele diálogo, a curta distância, revolviam-lhe o coração, quais pinças de fogo. Sentia-se abandonada, desejava morrer.

Então — confirmava-se —, todo aquele devo­tamento de Gilberto não passava da superfície.

Apropriara-se-lhe da alma, empolgara-lhe os sen­timentos, para deixá-la sem comiseração.

Recordava-se de que, realmente, semanas antes, indagara-lhe ele que outros idiomas conhecia.

Algo vexada, informara que somente conseguira o curso primário. O moço retirara da algibeira uma com­posição de Shelley. Lera o inglês e traduzira para ela os vemos lindos. Em seguida, aconselhara-lhe estudos suplementares à noite. Poderia auxiliá-la, relacionava-se com professores distintos. Ela rira-se, queria o lar, a escola do lar com ele. Apenas ali, na decepção que a molestava, compreendia a extensão do arrufo com que se despedira. Ah! sim, aspirava ao casamento com moça culta. Ignoran­te! — dizia para si mesma — não passo de uma ignorante. Marina era diferente, dominava outras línguas.

Tudo já estava tramado, deliberado.

À vista disso, a irmã recusava-lhe intimidade nos dias últimos. Por mais a rodeasse de mimos, mais se afastava.

Agora reconhecia igualmente a causa de mos­trar-se o rapaz enfastiado e irritadiço. Entretanto — perguntava-se, triste —, se ele a desprezava, assim, por que lhe abusara da confiança? Por que o arrebatamento com que lhe acorrentara a alma às inesquecíveis impressões da menina que se faz re­pentinamente mulher? Não selara com ela um ajus­te de matrimônio? Não lhe testemunhava extrema ternura nos encontros domingueiros, quando se en­tregavam a comunhão mais íntima?

Incapaz de duvidar da legitimidade do carinho que recebera, voltava-se mentalmente para a irmã que lhe surrupiava as mínimas alegrias. A nova infelicidade — conjeturava — seria culpa dela.

Com toda a certeza, Marina cobiçara o rapaz, a envol­vê-lo na teia de artimanhas que entretecia como ninguém. Gilberto caíra-lhe no engodo. Ave no visco. Contudo, ao descobrir toda a trama, reco­nhecia-se irremediavelmente lesada. Debatia-se em pranto, sob o peso das considerações familiares. Era imperioso certificar-se de que era enjeitada e ignorante. Nada sobraria para ela, tudo para a outra. Marina possuía méritos, ela não.

A exposição de Dona Márcia, naquela hora, insuflara-lhe a tortura do réu que ouve sentença inapelável. Ainda assim, chorava, inconformada. A contingência de perder Gilberto induzia-lhe o sen­timento a matar ou desaparecer. Rememorou as tragédias, lidas na imprensa, mas o fratricídio re­pugnava-lhe ao coração. A idéia do suicídio, con­tudo, qual semente a se lhe ocultar no imo do ser, evocada pelo esboço ligeiro da alma, como que germinara, de súbito. Acariciou-a, de leve, e a su­gestão infeliz ganhou corpo. Divagações negativas tomaram-na de assalto. Renunciar a Gilberto e lar­gar os planos feitos doeriam muito mais que morrer

— pensava, desolada. Mas seria justo acovardar-se, assim tanto? Repeliu o estranho apelo e, con­quanto as lágrimas, prometeu coragem a si própria. Lutaria pela felicidade. Explicar-se-ia com o rapaz, baniriam, juntos, a ameaça pendente. Entretanto, se Gilberto não lhe aceitasse os argumentos, que fazer do destino, se, com o golpe sofrido à frente, percebia também o fantasma da esquisita inclina­ção do pai adotivo pela retaguarda?

Por que a peça que a vida lhe pregava? Devia esquivar-se ao afeto do jovem que amava, numa consagração natural, para ganhar a paixão do ho­mem maduro que se habituara a respeitar como pai e que lhe acenava com uma espécie de união para ela inaceitável? Estarrecia-se ao ouvi-lo na­quela hora. Identificava-lhe o tom de alegria triun­fante, ao dar-se conta da felicidade com que se desembaraçaria de Gilberto, no campo em que se prometia apresá-la.

Cláudio como que lhe falava de longe, ao di­rigir-se à esposa. Aquelas referências louvaminheiras com que a obsequiava, perante Dona Márcia, confirmavam-lhe a decisão de dobrá-la, demovê-la. Entre o asco e a piedade, rememorava-lhe as ca­rícias, que somente naquela noite conseguira com­preender.

Como desvencilhar-se?

Flor sacudida no vento da provação, pergun­tava por quê, por quê?...

Sopesando as ocorrências, pela primeira vez sentia medo daquele ninho familiar a que se reco­nhecia encadeada por filha do coração.

De repente, elevou o pensamento à memória materna... Ah! nunca imaginara que um coração feminino pudesse encontrar dilemas tão aflitivos, quanto aqueles a que se via largada, de instante para outro! Que não teria sofrido sua própria mãe, que a deixara no instante do alvorecer? Nunca sou­bera, ao certo, as circunstâncias que lhe haviam rodeado o nascimento. Concluía agora, porém, que talvez a genitora tivesse conhecido o cálice que ela agora amargava! Que noites de agonia moral atra­vessara, sozinha, ao acariciá-la no ventre! Que in­júrias padecera, que privações experimentara? Ela, que tudo desconhecia acerca do pai, refletia no mar­tírio da genitora, jovem e abandonada, quando, pro­vavelmente, lhe aguardava, em vão, o carinho e a proteção, noite a noite.

Dona Márcia, ao biogra­far-lhe a mãezinha, dissera «moça brincalhona». Teria sido mesmo?

Possivelmente, gargalharia para não soluçar, ansiando abafar em ruídos de festa os gritos da própria alma... Quem sabe ter-se-ia dedicado a algum homem proibido, empenhado o coração a algum moço que lhe fora roubado à ter­nura de menina e mulher?

Nas lágrimas que lhe corriam, suspirava pôr fazer-se criança... Por que não vivera a mãezinha, a fim de lutarem juntas? Consagrar-se-iam uma à outra. Permutariam as próprias mágoas...

Muita vez, na loja a que servia, escutava apon­tamentos sobre comunicações de mortos, inteira­va-se de experiências sobre a continuação da vida no Além... Seria aquilo verdade? — indagava-se. Se Aracélia, libertada, estivesse em alguma parte, indiscutivelmente lhe acompanharia o calvário, com­partilhar-lhe-ia o infortunio...

Mecanicamente, implorava ao Espírito materno a abençoasse, fortificasse, protegesse...

Conquanto sem qualquer idéia religiosa definida, formulava prece muda, que valia por funda invocação...

Intentávamos consolá-la, buscando asserenar­-lhe a mente, quando duas senhoras desencarnadas penetraram no quarto, de improviso.

Saudaram-nos, afetuosamente, revelando a con­dição de entidades familiares, vinculadas àquele re­fúgio doméstico.

Das recém-chegadas, a que nos pareceu menos experiente adiantou-se para a menina em oração. Controlava-se, dificilmente. Tremia, ao enxugar o pranto silencioso. Inclinou-se para o leito, como qualquer mãe desventurada e aflita da Terra, quan­do teme acordar um ser querido...

Embora sem elucidações prévias, não nos era licito alimentar qualquer dúvida. Aquela, era a jo­vem do retrato que Marita conservava, em imagem, nas telas do pensamento. Aracélia, amparada pela doce afeição de venerável amiga, ali estava, diante de nós! Mãe amorosa, vinha talvez de muito longe para acudir às angústias da filha... Enternecendo-nos, a pobre mãe ajoelhou-se para beijar-lhe os cabelos... E, oh! segredos insondáveis da Provi­dência Divina!... Quem conseguirá definir com pa­lavras humanas a essência do amor que Deus si­tuou nas entranhas maternas?... A dama incli­nou-se, muito de manso, e abraçou-a, com ternura, à maneira de planta que se fechasse sobre a única flor que lhe nascera...

A castigada menina acalmou-se, de súbito. Adivinhando a visita pela qual suspirava, alijou a tensão, percebendo-se mentalmente ocupada pela presença da genitora, cujos traços tentava, afetuo­sa, lembrar e reconstituir.

Outro quadro, entretanto, superpôs-se, como­vedor.

Aracélia, que orava e chorava em profundo si­lêncio, buscava em pensamento outra mulher, cuja evocação lhe renovava as energias.

A mãe desencarnada via-se pequenina, junto da lavadeira singela que a trouxera, na reencarnação última, para o teatro da vida humana. Identifica­va-se criança, agarrada à saia daquela moça doen­te, que mergulhava as pernas no rio para ganhar o pão... Tão fundo atingia a acústica da memória, que chegava a escutar o ruído daquelas mãos miú­das, esfregando as peças ensaboadas... Recolhia-lhe, de novo, o olhar meigo, em que lhe pedia pa­ciencia... Calada, na areja, por vezes esperava, esperava, depois que a mãezinha lhe repunha o corpo frágil, à curta distância, a fim de atender ao serviço... E rememorava o enlevo e o júbilo que sentia, quando os braços maternos a retoma­vam, para fazê-la dormir, ao som do velho estri­bilho, a que se acostumara no lar de telha vã....

De olhos parados, como se buscasse, além, no espaço infinito, o colo agasalhante que o tempo arrebatara, assumiu nova posição, colocando a ca­beça da jovem no próprio regaço e, emocionando-se até às lágrimas, qual se tivesse nos lábios aqueles lábios de mãe, humilde e enferma, que jamais es­queceria, Aracélia, em pranto resignado, cantou suavemente diante de nós:

 

Lindo anjo de meus passos,

Descansa, meu doce bem;

Dorme, dorme nos meus braços,

Enquanto a noite não vem.

Dorme, filhinha querida;

Não chores, encanto meu;

Dorme, dorme, minha vida,

Tesouro que Deus me deu...

 

Qual se fora repentinamente magnetizada, Ma­rita caiu em pesado sono.

Isso feito, a senhora, que tutelava a compa­nheira, atraiu-a brandamente de encontro ao peito, no manifesto propósito de consolá-la e, seguran­do-a, falou-nos, triste:

— Irmãos, nossa Aracélia ainda não está em condições de amparar a filha.

E, ajuntou, entre gentil e desapontada:

— Perdoem-nos a interferência. Nós, as mães, em certas dificuldades, nada mais temos que al­guma velha canção para dar aos nossos filhos!...

Em seguida, retirou-se, sustendo Aracélia, que se lhe refugiara nos braços, soluçando...

 

Ainda não nos refizéramos da emoção, quando vimos Marita, em espírito, afastar-se do corpo den­so, guardando a inquietação da criança que anseia inutilmente pelo calor materno... Qual ocorre, po­rém, à maioria das criaturas encarnadas, no plano físico, mostrava lucidez oscilante, insegura... Cam­baleou no quarto e, percebendo eu que Neves se dispunha a amimá-la, sustive-lhe o impulso, fazen­do-lhe sentir que a nossa intervenção direta pode­ria frustrar-lhe os desejos e que, a fim de prestar­-lhe auxílio eficiente, era mister deixá-la à vontade, sob vigilância discreta, de modo a examinar-lhe as necessidades mais íntimas.

Sucedeu, quase que de imediato, o que não pre­vzamos.

Esfumaram-se os arroubos da filha saudosa, esmaeceram-se atitudes infantis, a menina de Ara­célia desaparecera e ressurgiu nela a personalidade feminina, estuante e clara.

A moça não nos via. Guardava a mente nebu­losa que caracteriza os pequeninos ainda tenros, incapazes de particularizar as impressões, quando se transferem de lugar; entretanto, qual lhes acon­tece, quando ao reterem idéias fixas, quais sejam o brinquedo ou a guloseima, concentraramse-lhe todos os pensamentos num ponto só: Gilberto.

Queria ver Gilberto, ouvir Gilberto.

Semelhantes impulsos a se lhe conglomerarem na cabeça, repetidamente emitidos, galvanizavam-lhe a vontade, revestindo-lhe o pensamento de uma certa clareza, que a favorecia, porém, tão-só na di­reção dos seus anseios de mulher. Essa penetração parcial como que lhe conferia agora seguro apoio íntimo, e Marita, figurando-se-nos senhora de si, conquanto absolutamente presa ao desejo ardente em que se obstinava, largou o aposento e, descen­do os largos trechos da escadaria que contornava o elevador, deixou para trás o enorme edifício, qual sonâmbula, magnetizada pelos próprios reflexos.

Seguimo-la, atentos, não obstante confiando-a à própria discrição.

Cabia-nos estudar-lhe os ímpetos extrovertidos, consultar-lhe as inclinações. Não tivemos, todavia, qualquer dificuldade para adivinhar-lhe o rumo.

Em tempo reduzido, a filha adotiva de Cláudio alcançou a residência de Nemésio, que já se nos fizera conhecida.

Na certeza instintiva de quem se endereça a determinada pessoa, pelos recursos do olfato, sem atender a quaisquer convenções de forma e núme­ro, avançou casa a dentro, acalentando a imagem de Gilberto, que lhe substancializava o pensamento dominante.

Impulsionada pelas percepções indefiníveis da alma, demandou amplo dormitório, localizado nos fundos da moradia, e, sem que nos fosse possível avaliar, de pronto, a resolução de garantir-lhe a liberdade, a fim de analisar-lhe as reações, sobre-veio o choque doloroso.

Naturalmente sobressaltados, apenas consegui­mos ampará-la pela retaguarda.

Entrando no quarto, Marita surpreendeu Gil­berto nos braços da irmã, e bradou, estarrecida:

—        Canalha! Canalha!...

Aquelas imprecações, entretanto, nem de longe atingiram o jovem par, completamente absorto na permuta de gratificações afetivas.

Neves e eu não trocamos palavra. Precipita­mo-nos, automaticamente, para a menina atribulada, intentando anular-lhe a agitação convulsiva.

Mais alguns minutos e despertou no corpo denso, obrigando-nos a pensar numa pequena fera aguilhoada, retornando à gaiola. Descerrando as pálpebras, vagarosamente, denotava no olhar a fei­ção dos loucos, quando relaxam os músculos em seguida a perigoso acesso de fúria - Tateou, espan­tada, a fronte suarenta. Fez luz, com fome de rea­lidade física. Atarantada, sentou-se para fixar as paredes, com mais segurança, e certificar-se de que se achava no leito e no lar.

A pouco e pouco, readquiriu a confiança, acal­mou-se, refazendo energias; no entanto, acusava uma espécie de tranqüilidade constrangida e amarga.

Pesadelo? — indagava-se, aterrada — ou quem sabe os padecimentos simultâneos lhe acarretavam crises de loucura?

Doía-lhe a cabeça, sentia-se desajustada, febril. Marita regressara ao agasalho físico, sob pres­sa demasiada, sem que nos fosse possível adotar qualquer providência para anestesiar-lhe a memória.

Retinha no pensamento particularidades do quadro visto e ouvido, e encarcerada, de novo, en­tre as impressões superficiais dos sentidos corpó­reos e a noção da verdade profunda, que não lograva apalpar, entrou em pranto agoniado, para somente dormir, com relativa calma, aos clarões do dia.

 

       Colaborando nós na assistência a Dona Beatriz, que enlanguescia sempre, tornamos a ver Marita, no encerramento da tarefa diária.

       Chegara novembro com chuvas torrenciais.

       Naquele dia, depois de algumas horas marca­das de canícula intensa, nuvens gigantescas ocultaram os picos, abreviando o crepúsculo, que se adensava, abastecido de água e névoa.

       Copacabana molhada, nas horas de movimentação culminante, acentuara a algazarra. Todo o povo que transitava nas ruas parecia disputar a melhor num concurso de pressa. Maratona improvisada. Veículos despe­javam filas enormes de pessoas, evidentemente se­quiosas de tranqüilidade doméstica, que vinham do norte e do centro, carros fonfonavam no espelho irrigado do asfalto, pedindo vez. Transeuntes en­capuzados acotovelavam-se, esperando as conduções que vinham do extremo sul.

       A filha adotiva de Cláudio alcançou o vasto edifício, arrostando o aguaceiro.

       De Copacabana ao Flamengo, o trajeto de ôni­bus, tão logo iniciado, fora rápido, e do coletivo até a casa o trecho de caminho constara simples­mente de alguns passos; contudo, mesmo assim, despiu a capa, diante do elevador, como quem dei­xava a piscina.

       Tudo frio e sombra, em torno; entretanto, mais dolorida que a tarde caliginosa, surgia-lhe a alma atormentada, através dos olhos pisados de cansaço e vigília.

De subida, a vizinha solicitou-lhe a atenção para os adornos leves que carregava numa cesta de arame. A jovem, chamada a si, examinou li­geiramente os papéis pintados para festiva noite de aniversário, em apartamento próximo, pronun­ciou automaticamente breves palavras de admira­ção e ensimesmou-se, abafada, para somente ali­viar-se, de algum modo, ao reconhecer-se no re­canto familiar.

Ninguém a esperava.

Sozinha, estirou-se no leito, procurando reca­pitular os acontecimentos da véspera, mas o estô­mago reclamava alimento. Recordou que varara o dia em absoluto jejum. Levantou-se.

Consultou os recursos da copa; entretanto, os pratos que haviam sobejado não lhe acordaram o apetite. Não obs­tante a temperatura baixa a se lhe refletir nas mãos álgidas, sentia excitação, calor. Fatigara-se de pensar, trazia os nervos tensos. Desejou mate frio. Abriu a geladeira e serviu-se. Parou os olhos pestanejantes no telefone a distância curta. Não se conteve. Discou. Da residência dos Torres, po­rém, uma voz imprecisa informou que Gilberto saí­ra, não estava. Ela esmoreceu ainda mais ...

Arrastou-se, tornando ao quarto, e descerrou a janela. Queria desafogar-se no ar fresco.

Debruçou-se no parapeito, contemplando a ci­dade, lá em baixo - Sob a chuva, os automóveis figuravam-se animais fugitivos.

A moça refletia, refletia... Mirando o casario iluminado, deduziu que milhares de pessoas aí se aglomeravam, suportando talvez problemas piores ou semelhantes aos dela, inquirindo, em vão, de si mesma, o porquê de encontrar-se tão entranhadamente agrilhoada a Gilberto, quando centenas de rapazes respiravam, não longe, com excelentes pre­dicados para lhe interessarem o coração.

Sentia-se desalentada, insatisfeita. Aspirava a entreter-se, fugir de si mesma.

Inutilmente fez menção de envergar um ca­saco e descer à rua, a fim de se distrair, apesar do mau tempo. Entretanto, não era apenas a chu­va copiosa que lhe frustrava os impulsos. O es­pírito almejava deslocar-se, o corpo não. Exacer­bação e fadiga. Tentou engolfar-se na leitura, reacomodando-se no leito, depois de apanhar uma novela, em que o marcador lhe indicava o lance interrompido, mas lembrou-se de Cláudio. O pai adotivo raramente atrasava e, desde a véspera, não conseguia recordá-lo sem temor. Reergueu-se e pre­parou-se para o descanso. Precavida, apagou to­das as luzes. Quando chegasse, decerto acredita-la-ia distante.

Trancada agora na sombra, atirou-se à cama, com o abandono de quem larga um fardo importuno, e passou a meditar... Realinhavou na me­mória todas as esperanças e sonhos, provas e ini­bições da existência curta, deitando lágrimas no linho do travesseiro.

Daí a instantes, escutou os passos do chefe da casa, que se movia de uma peça para outra.

Pela sutileza do andar, percebeu quando Cláudio veio, muito de leve, espreitar-lhe o aposento.

Experi­mentou a maçaneta, mas não insistiu. Ela e Marina guardavam o hábito da vedação, ao se ausentarem à noite. Ouviu o barulho inconfundível da garrafa em atividade e, logo após, assinalou-lhe o regresso à rua, ao mesmo tempo que lhe notava o nervo­sismo pela maneira violenta de cerrar a porta, ao sair.

Aliviada, fez-se menos inquieta.

Marita achava-se realmente só, de vez que até mesmo os dois vampirizadores do apartamento, ao que presumíamos, andavam fora, ajustados ao com­panheiro.

Horas passaram, lentas, difíceis...

Onze em ponto, quando Neves e eu nos dispu­semos ao socorro magnético. Oramos, exorando a bênção do Cristo e o concurso do irmão Félix, a beneficio da moça exausta.

Mobilizamos as possibilidades de nosso âmbito estreito.

Ela, a princípio, reagiu negativamente, empe­nhando-se na vigilia, mas cedeu, enfim.

Operamos, cautelosos, reduzindo-lhe a capaci­dade de movimentação, obrigados que nos víamos a prever-lhe o intento de reunir-se a Gilberto, qual sucedera na véspera.

Efetivamente, desligada do corpo, expressou completo alheamento, sem manifestar o mínimo in­teresse pelo ambiente.

Absorvida na paixão que lhe empalmava todas as forças, monologava, ideando alto:

— Gilberto! Onde está Gilberto?

Tentou equilibrar-se; entretanto, rodopiou, va­cilante.

— Alguém que me ampare! — mendigou, afli­ta — preciso encontrá-lo, encontrá-lo!...

Apoiamo-la, prestos.

Iniciávamos a saída quando se abeirou de nós simpática senhora desencarnada, declarando-se men­sageira do irmão Félix, que nos esperava num pos­to socorrista.

Prestimosa, abraçou a paciente com o jeito característico da mulher e pusemo-nos mais facil­mente a caminho.

Demandaríamos bairro próximo, onde respeitá­vel instituição espírita-cristã nos ofereceria acon­chego — instruiu a recém-chegada, que se nos apresentara sob o nome de irmã Percília.

Notei que Neves e ela permutaram delicadezas mudas, revelando conhecimento anterior.

Percília, contudo, não se demorou em qualquer consideração individual. Mais entregue ao trabalho que a si mes­ma, conversou com a frágil menina, encorajan­do-a. Esforçava-se por descentralizar-lhe a atenção, apontando quadros e ocorrências do trajeto, sem resultado. A moça não apresentava outros pensamentos, palavras e objetivos que não fossem Gil­berto. Fascinação, enredando todos os reflexos. A cada apontamento afetuoso, revidava perguntando em que lugar e a que instante seria finalmente conduzida à presença dele, ao que a benfeitora res­pondia, com admirável senso materno, sem a menor expressão de chiste ou desagrado, qual se pales­trasse com uma filha doente, procurando reajus­tá-la dentro de amorosa solicitude, comportamento esse com que nos impelia à imitação. Nem Neves e nem eu nos sentíamos, dessa forma, inclinados a considerar, de maneira negativa, nenhuma daque­las frases francas de menina e moça, que lhe denotavam os estímulos sexuais, limpos e inocentes, convertendo-a, naquela hora, em criança extro­vertida.

Alcançando o recinto de atividades espirituais que se nos erguia por meta, fomos acolhidos pelo irmão Félix, em pessoa, acompanhado de mais dois amigos.

O instrutor inteirou-nos de que nos recebera o comunicado, acentuando, modesto, que, dispondo de algum tempo, deliberara vir, ele próprio, exa­minar o que sucedia.

Marita contemplou-o extática, indiferente, figu­rando-se aparvalhada, absolutamente inepta e dis­tante para avaliar a importância do sábio que a brindava com paternais gentilezas.

Mentalmente encravada nas recordações do jovem Torres, as indagaçõeS que propunha dariam decerto para escandalizar, não estivéssemos prepa­rados a fim de auscultar-lhe os conflitos.

Amparada por Félix que nos dirigia, tolerante, entrou no edifício, inquirindo se havia chegado, por fim, ao clube onde comumente surpreendia Gilber­to; encaminhada ao compartimento espaçoso, em que recolheria o necessário socorro magnético, quis saber o motivo pelo qual se imprimira tanta mu­dança ao salão de baile; mirando, distanciada, pe­quena equipe de servidores desencarnados, que desenvolvia tarefa assistencial, em ângulo oposto, alegou que a orquestra não devia adotar silêncio contínuo, e, escutando as buzinas que guinchavam, na rua, procurou descobrir se Gilberto vinha che­gando para dançar.

De raciocínio obliterado, qual se achava, lobri­gava por fora as criações mentais que arquitetava por dentro, sem ligeira noção da realidade exterior.

Félix, no entanto, ouvia-lhe todas as manifes­tações inconsideradas, com a ternura de um pai. Grave sem aspereza, compreensivo sem atitudes açucaradas que lhe comprometessem a autoridade de educador. Replicava sempre entre a bondade e a circunspeção devidas a um enfermo, abstendo-se de melindrar-lhe os sentimentos ou de encorajar-lhe as ilusões.

Instalando-a em ampla cadeira, fé-la descansar na hipnose tranqüila.

Calou-se Marita, ilhada nas memorizações em que se comprazia, ao passo que o instrutor lhe mi­nistrava passes balsâmicos.

A operação magnética foi longa, minuciosa.

Em seguida, Félix rogou-lhe falar, expondo o que mais anelasse de nós, ao que a moça gaguejou acanhada, suplicando a presença de Gilberto e asse­verando que alimentava dúvidas sobre se aquele era realmente o grêmio em que se entrevistavam... Pediu socorro, proteção... Inclinou-se para Percí­lia, no impulso da criança, quando tem fome do colo materno, e chorou, de manso, como a implorar que não a detivéssemos.

O irmão Félix, compassivo, informou-nos, sem que a paciente lhe penetrasse o fundo das elucida­ções, que, infelizmente, a intervenção efetuada em favor dela não poderia ultrapassar a superfície, prevalecendo tão-só para a sustentação do repou­so físico; que a paixão juvenil se convertera em psicose grave; que a pobre menina se deixara ar­rastar pelo desvario afetivo, a ponto de cair no pior tipo de possessão, aquele no qual a vítima adere, gostosamente, ao desequilíbrio em que se consome.

E acentuou que lhe consultara o organismo, no sentido de se lhe atalhar a alienação mental começante, com o socorro de alguma enfermidade séria que, ao arrojá-la no leito, lhe modificaria a mente, predispondo-a a diferentes impressões; en­tretanto, o corpo da jovem não se mostrava habilitado a receber esse gênero de amparo. Marita, sumamente desorientada e enfraquecida, desencar­naria no desajuste orgânico mais pronunciado que viesse a sofrer, em caráter providencial.

Não sur­gia outra alternativa, senão a de esperar pela re­sistência moral dela própria.

Convidados a escoltá-la até a casa, Neves, Per­cília e eu colocamo-nos, de volta.

Marita não revelava aspecto algum para melhor, quanto à condição mental, mas o auxílio magné­tico surtira efeito imediato e salutar, porqüanto, reajustada ao corpo denso, passou a repousar sem agitação, pelo que deixamo-la a dormir profunda­mente.

Despedimo-nos de Percília, ante o céu estre­lado, e, de novo a sós, talvez porque me sentisse a indagação inarticulada, Neves confidenciou:

— André, você conhece essa senhora?

E, ao meu sinal negativo:

— Essa é a mesma que eu vi no cabaré, quan­do agredi meu genro, num gesto impensado; a des­conhecida que me apoiou, no regresso ao aposento de Beatriz, apenas com a diferença de que hoje não traz consigo o distintivo luminoso... Mas, não tenho dúvida alguma. É a mesma pessoa...

 

Neves e eu permutávamos conjeturas, quando alguém nos abraçou, de afetuosa maneira.

Era o irmão Félix, a despedir-se.

Espírito admirável pela abnegação e pela ciên­cia, reverenciado por todos os seareiros do bem, onde passasse, em se referindo aos protagonistas do drama familiar que se nos oferecia à atenção, apresentava os olhos marejados de pranto.

Via-se-lhe, não somente a piedade fraterna, mas também o imenso amor àquelas quatro almas, reunidas ali, naquele aprazível recanto do Rio.

Parados, agora, respirando as aragens que en­crespavam docemente as águas da Guanabara, en­quanto o céu da madrugada imprimia mais amplo realce às estrelas, enternecia-nos reconhecer-lhe o paternal carinho, qual se fora um homem comum descansando conosco, à frente do mar.

Tão grande e tão puro o devotamento de que dava mostras, ao descerrar-nos os tesouros do co­ração, através das palavras, que o próprio Neves, irrequieto às vezes, ao escutar-lhe as apreciações, cumpria espontaneamente o que prometera. Ne­nhuma observação impulsiva, nenhuma interjeição impensada.

A atitude do instrutor, ao deter-se nas lutas escabrosas do plano físico, educava cativando.

Ele­vação em cada frase, luz do sentimento em cada idéia.

Conquistava, sem pedir, o nosso interesse na prestação de assistência voluntária ao lar de Cláudio, cuja estabilidade periclitava, na conceituação dele mesmo.

Compadecia-se — elucidava, prestimoso — da­quelas quatro criaturas, atiradas ao oceano da ex­periência terrestre, sem a bússola da fé. A prin­cípio, esforçara-se por abrir-lhes um caminho espi­ritual, mas debalde. Afundavam-se em profunda névoa de ilusão, hipnotizados pelas gratificações transitórias dos sentidos carnais, ao jeito de pas­sarinhos agarrados à casca apodrecida de um fruto, sem a mínima disposição de consultar a saborosa riqueza da polpa.

Descobrindo algo mais à própria intimidade, relatou-nos que vira Cláudio renascer, que acompa­nhara Dona Márcia no berço, que seguira, de perto, a reencarnação de Marina e Marita, deixando ver nas reticências as lágrimas que semelhantes reali­zações lhe haviam custado, sem alardear virtude ou superioridade, em torno dos empeços vencidos.

Hipotecara dedicação, amizade, confiança e tempo, a fim de entrosá-los em alguma obra de be­nemerência, de maneira a cultivar-lhes a espiritua­lidade latente; no entanto, Cláudio e Márcia, de novo no estágio físico, sob o esquecimento inevi­tável e providencial do pretérito, haviam recapitulado certas experiências infelizes.

No mundo espiritual, antes de recomeçarem o trabalho terrestre, analisando as necessidades e os remorsos que lhes atenazavam as consciências, ha­viam prometido empregar o prêmio da internação no veículo carnal, edificando a sublimação íntima e corrigindo excessos de outras épocas,através do suor no serviço ao próximo; contudo, imperfeita­mente chegados à juventude das forças corpóreas, tinham abraçado paixões que lhes frustravam todas as possibilidades de libertação próxima. Ele, Félix, e outros companheiros empenhavam-se em auxiliá­-los, mas infrutiferamente. Os quatro resistiam a toda espécie de sugestão reparadora; repeliam, de pronto, qualquer projeto construtivo.

Nobres amigos de outras eras, aplicados a es­tender-lhes apoios preciosos, acabaram desiludidos, largando-os ao próprio arbítrio.

Cláudio e Márcia, principalmente, ao elegerem o dinheiro e o sexo desgovernados por chaves dos próprios dias, nada mais estavam conseguindo que desajustar os fundamentos da tranqüilidade domés­tica. Em razão disso, Marina e Marita não obti­nham alicerces para a felicidade real. Jovens ainda, complicavam-se as duas em perigos e tentações, de que muito dificilmente se desvencilhariam, sem do­lorosas marcas na alma.

Tamanha se evidenciara a rebeldia de Cláudio que, naquela hora significativa e ameaçadora da existência, não contava, além da Providência Divi­na, senão com raros amigos. Ainda assim, esses amigos — acrescentava modesto, certamente ponde­rando quanto às dificuldades dele mesmo — não se viam com direito a solicitar socorros especiais e, absorvidos por responsabilidades numerosas, acha­vam-se na contingência de apenas dispensar-lhe auxilios esporádicos, incertos.

Compreendemos onde o benfeitor categorizado e humilde se propunha chegar e adiantamo-nos, prometendo nossa adesão decidida ao programa assistencial que ele delineasse.

Dispúnhamos de oportunidade, não nos seria difícil.

Além do tempo que me era licito despender, atento à concessão dos meus superiores para cola­borar em apoio de Neves, possuía um requerimen­to em trânsito, junto das autoridades competentes, para que me fosse concedido um estágio de dois anos, em alguma das organizações destinadas, em Nosso Lar (4), aos serviços de psicologia sexual, com finalidades reeducativas, e ciente de que ele,

 

(4) Cidade consagrada à educação e ao reajusta­mento da alma, no Plano Espiritual. — (Nota do Autor espiritual)

 

irmão Félix, responsabilizava-Se pela direção de um dos melhores institutos desse gênero, pedia-lhe, por minha vez, me endossasse a petição.

Sentir-me-ia feliz com o ensejo de estudar e trabalhar, assimilando-lhe a experiência e receben­do-lhe o patrocínio.

O instrutor reafirmou a sua simplicidade, de­clarando que a obra pela qual respondia talvez não pudesse satisfazer-nos a expectativa, mas obriga­va-se — acentuava Félix, sem alarde — a favorecer-nos os estudos que intentaríamos.

Notando-me o entusiasmo, Neves não vacilou compartilhar-me os propósitos.

Faria requisição idêntica.

Nosso interlocutor, comovido, esclareceu que isso vinha reconfortá-lo, sobremaneira, porque, aten­dendo a ditames de afetividade e reconhecimento, alcançara permissão para recolher Beatriz, em sua própria residência, tão logo a esposa de Nemésio pudesse retirar-se da esfera física, depois da desen­carnação.

Hospedá-la, junto de Neves, o genitor que a filha jamais apartara da lembrança, ser-lhe-ia con­tentamento enorme.

Ambos desfrutariam abençoada convivência, re­gozijar-se-iam unidos, recordando o passado e arti­culando novos planos de trabalho e alegria.

Enquanto o devotado coração paterno se des­manchava em agradecimentos, Félix se despediu, afetuoso.

Demandando algum refazimento, esboçávamos projetos, ideando medidas de ação.

Manifestava-se Neves tocado de energias e es­peranças novas. Aguardaria a filha, sim, confiante no futuro. Almejava o reequilíbrio total, ansiava reeducar-se, a fim de lhe ser mais útil.

Emprega­ria todos os recursos, de modo a ampará-la, for­talecê-la.

Eufóricos, deliberamos concentrar, a partir do dia que se anunciava, todas as nossas atividades de vigilância ao lado de Dona Beatriz, prestes a se desobrigar das células doentes, e, certificando-nos de que a moradia dos Nogueiras reclamava plan­tão, urgia revezar-nos em serviço.

O amigo, contudo, ponderou com razão que a filha se abeirava do transe final, que receava não dispor da serenidade precisa, caso fosse defrontado, sozinho, por obstáculos constrangedores.

Era hu­mano, adorava aquela filha padecente. Queria afa­gá-la, alentá-la, conquanto não se presumisse com merecimento bastante para estender-lhe apoio e consolação.

Não seria recomendável se mantivesse, em ca­rater permanente, no lar dos Torres, ao passo que me reservaria o compromisso de cooperar na paci­ficação dos Nogueiras.

Isso apenas por alguns dias, enquanto a libe­ração de Beatriz estivesse pendente.

Tanto quanto possível, por outro lado, poderia, de minha parte, tornar para junto dele, partilhan­do-lhe o clima da filhinha agonizante, onde nos aco­modaríamos aos imperativos de nossa edificação moral, estudando e servindo, para mais amplo ren­dimento das horas.

Aquiesci, contente, àquelas nótulas sensatas.

Foi assim que, refeito, regressei, manhã alta, ao apartamento de Cláudio, no intuito de investigar, a sós, a paisagem que me pautaria o quadro funda­mental de aplicação ao dever assumido. Cabia-me conhecer as minudências, suscetíveis de adquirir maior importância, de momento para outro, esqua­drinhar pontos de apoio, tomar contactos, e, se pos­sível, ouvir pessoalmente os dois irmãos desencar­nados, que ali desempenhavam lamentável papel.

Entrei. Apenas Dona Márcia, conversando com a senhora que se incumbia das mais pesadas obri­gações no recinto doméstico, a comentarem os tópi­cos engraçados de certo programa de televisão, que a família acabava de instalar, com espírito de no­vidade e alegria.

Tudo calmo, os vampirizadores ausentes. Lim­peza e ordem.

Em dado instante, a figura de Marita invadiu-me o cérebro. Afeiçoara-me à pobre menina. Era uma filha espiritual que me tocava resguardar soli­citamente.

Desassossegado, precipitei-me para a rua e, a breve trecho, vi-a na loja colorida e simpática, ensaiando sorrisos para as freguesas bem-postas.

Abracei-a, paternalmente, expressando-lhe em silêncio votos de paz e otimismo. Ela respondeu, de modo instintivo, acalentando vagas idéias de re­equilíbrio e esperança.

Registrava-se-lhe a melhora inequívoca.

O amparo magnético assimilado funcionara, efi­ciente. Ignorando por que motivo, acusava-se tran­quila, mais forte. Repousara, reconstituíra-se. Re­tomara o gosto pelo trabalho, palestrava animada­mente, selecionando algodões estampados.

Nossa presença passou a despertar-lhe refle­xões. Não obstante opinasse nisso ou naquilo, entre as clientes amigas, começou a pensar, pensar...

Depois de alguns minutos, pressionada pelas lembranças, caminhou para o telefone e chamou Dona Márcia, perguntando se ela viria, na parte da tarde, a Copacabana, e, informada afirmativamente, rogou à mãezinha adotiva a procurasse, se possível, às quatro. Lanchariam juntas, tinha algo a dizer-lhe.

Concluí que significaria abuso incomodá-la no trabalho, em que se obrigava a retalhar atenções, através dos pensamentos descontínuos, e aguarda­mos a ocasião adequada, a fim de inteirar-nos acer­ca de atividades ou problemas em que nos fosse possível desenvolver algum préstimo.

No horário previsto, acompanhamos mãe e fi­lha até pequenino recanto de hospitaleira sorve­teria, considerando a gravidade da tarefa de que fôramos investidos.

Postadas ambas em clima de segredo, Marita desafogou-se com dificuldade, começando a falar, discreta e humilde.

Que Dona Márcia lhe perdoasse os aborreci­mentos daquela hora; entretanto, não tinha culpa.

Não desconhecia a extensão da mágoa que lhe cor­taria a alma, daria tudo para não feri-la, mas sen­tiria remorsos se não lhe contasse o sucedido. Hesitara muito, antes de resolver situá-la no as­sunto, adiantou, acanhada. Sentia-se, porém, sua filha pelo coração, devia confiar-lhe tudo.

E, na ingenuidade de moça inexperiente, rela­tou a confissão que Cláudio lhe fizera, a descre­ver-lhe os modos, lance por lance. Espantara-se, sofrera muitíssimo. Jamais esperava por semelhan­te ocorrência. Tivesse parentes e não vacilaria mu­dar-se para evitar escândalos. Era, contudo, depen­dente, sozinha. A única família que possuía eram eles mesmos, os Nogueiras, cujo nome usava, or­gulhosa, desde a infância. Andava desorientada, receosa. Pedia conselhos.

A interlocutora, todavia, escutara sorrindo, nem mesmo interrompendo, de leve, a deglutição da taça de creme, que saboreava, com requintes de paladar.

Tamanha impassibilidade esfriou a disposição da jovem, que passou a resumir, quanto pôde, as confidências e alegações que se inclinava a expen­der; e, com indizível surpresa, não somente para Marita que lhe aguardava, ansiosa, a palavra, mas igualmente para nós, que não contávamos com o ardiloso expediente de Cláudio, defendendo-se pre­viamente, Dona Márcia patenteou, no semblante sereno, absoluta incredulidade e participou que o marido, na véspera, a convidara para conversação, à parte, comunicando-lhe certas apreensões. Disse­ra-lhe que, à noite, no entendimento mantido, não tivera coragem de mencionar o assombro que o per­seguia, porqüanto julgara prudente refletir sobre o acontecimento que tanto o penalizava, antes de avançar em qualquer conclusão. Entretanto, após meditar, aturadamente, deduzira que ela, Marita, necessitava da proteção de um psiquiatra.

Dona Márcia perfilhou um tom de voz em que se conjugavam inquietação e advertência, e conti­nuou informando, informando...

Dissera-lhe Cláudio haver experimentado imen­so alívio, ao vê-la penetrando no quarto, na noite da antevéspera, porqüanto, momentos antes, ao des­pertar a filha adotiva sonambulizada, fora assal­tado por ela com muitos beijos, que lhe ouvira fra­ses inconvenientes, que se forçara à reação, pelo que a esposa percebera as vozes com as quais tan­to se assustara. Anunciara-lhe ter refletido sufi­cientemente e acabara aceitando a hipótese de um desequilíbrio. Rogara-lhe concurso para que um psiquiatra interferisse no problema. Assumiria ele a responsabilidade das despesas e, preocupado qual se achava, faria mais ainda... Envidaria esforços para que uma excursão à Argentina lhe restaurasse as energias, evidentemente alteradas.

Diante da estupefação que nos dominava, a se­nhora Nogueira tomou posição conselheiral.

Recomendou à menina procurasse esquecer, dis­trair-se. Explicou que não viera ao encontro, no intuito de abordar o caso. Ante as alegações da filha, entretanto, não encontrava outra saída, além daquela em que lhe abria o coração. Esposa e mãe, defenderia a paz de todos. Não concordava em que se tomasse partido. Cláudio, efetivamente, contraí­ra contas com ela, Dona Márcia, nas ingratidões de marido. Isso sim. Mas, no tocante às filhas, sempre tivera a conduta de pai exemplar. Nada justo in­criminá-lo. Tudo não passava de imaginação enfer­miça dela própria, Marita. Fase de moça namora­deira.

E o martelo verbal tornou aos estribilhos do passado. As festas de Aracélia, as companhias de Aracélia, as desilusões de Aracélia...

Verificando no olhar da jovem a penosa im­pressão com que era obrigada a recolher tais lembranças, a interlocutora, sem mais fundo lastro de amor para comovê-la, modificou a tática afetiva e alinhou histórias de seu conhecimento, em que sonâmbulos realizavam proezas diversas.

Argumentou que ela e Cláudio, perante a ocor­rência, que analisavam com o carinho de pais ver­dadeiros e não com qualquer espírito de censura, haviam recordado que ela, em criança, muitas ve­zes acordava aos gritos, pela madrugada, fazendo birra e queixando-se de inexplicáveis terrores.

Le­vada ao médico, o facultativo receitara calmantes. Rememorou, bem-humorada, a opinião de velho ami­go da família, que dissera a ela e a Cláudio andar a menina atacada de nictofobia, e que, somente depois, ambos recorreram ao dicionário, a fim de aprenderem que a palavra significava «medo da noite».

Dona Márcia riu-se àquelas chistosas evocações, completamente alheia à importância do assunto. Afagou os ombros de Marita e aconselhou-lhe juízo.

A jovem, perplexa, tanto quanto nós mesmos, não teve ânimo para desmentir. Ignorava como des­lindar a meada que o sedutor entretecera. Preferiu acriançar-se, aparentando aprovação com o silêncio.

No íntimo, contudo, revoltava-se.

Cláudio trapaceara e a mãe adotiva caíra no logro.

Não possuía recursos para demonstrar a ver­dade. Tocava-lhe tão-somente suportar e esperar.

Dona Márcia, no claro propósito de evitar o problema e, aliás, denotando naquela hora elogiável sinceridade na compaixão pela moça que supunha doente, convidou-a a examinarem, juntas, o primo­roso estoque de «boutique» vizinha.

Marita aquiesceu, conformada, e o entendimen­to malogrado passou, superficialmente, valendo para nós por aviso grave, a fim de que reforçássemos todo o sistema de vigilância, no compromisso assis­tencial.

Transcorreram cinco dias, sem que apareces­sem acontecimentos dignos de menção. Contava jus­tamente uma semana de contacto com os novos amigos, quando, ao partilhar as inquietações de Neves, fui procurado por atencioso companheiro a quem solicitara cooperação. Avisava-me de que cer­ta senhora demandara o banco, procurando Cláudio no assunto que nos tomava a atenção.

Ao sol da manhã em giro alto, dirigi-me para o local, encontrando-a em pequena sala de espera, contígua a extenso escritório, no qual operosa equi­pe de funcionários desdobrava operações de con­tabilidade interna.

A dama aguardava Nogueira, ausente em ser­viço.

A recém-chegada trajava-se com primor, exi­bindo, porém, o ar das mulheres que, depois de perderem as ilusões, acabam fazendo negócio dos prazeres que já não são mais capazes de usufruir.

Detínhamo-nos no exame despretensioSO da personagem que tangenciava com a nossa história, quando Cláudio se apresentou, lépido e bem-posto. Junto dele, o acompanhante desencarnado, qual se lhe fora a sombra, não mais me admirando vê-los visceralmente associados, pensando e falando em absoluta simbiose.

Conheciam-se os dois, porqüanto ele a nomeou, para logo, de madame Crescina, inclinando-se, familiar, para a conversação cochichada, demonstran­do-se ambos naturalmente acostumados aos segre­dos que se transmitem, da boca ao ouvido.

Alguma novidade? — indagou ele, esfregan­do as mãos uma na outra, com o sorriso brejeiro de quem prelibava festas.

A visitante, contudo, falou, encabulada, dos motivos que a traziam.

Recebera-lhe Marita, a filha adotiva, horas an­tes, e, sinceramente — informava —, não conseguira subtrair-se ao obséquio que lhe suplicara com lá­grimas.

Diante do interlocutor, atento, prosseguiu co­mumcando que a moça desejava encontrar-se, na noite próxima, com Gilberto, um rapaz que, vez por outra, lhe freqüentava o casarão. Escolhera para isso o compartimento separado, nos fundos, o nú­mero quatro, por mais reservado e acolhedor. A pobre criança — acentuava, compadecida — for­mulara-lhe o apelo, em caráter confidencial. Pro­pusera-lhe a concessão, muito abatida, nervosa. Não pudera alhear-se ao pedido.

Também tinha duas filhas no mundo, também era mulher. Acedera.

Mas, não era só isso. Marita remunerara-a, com bondade, para encarregar-se de entregar um bilhete ao filho dos Torres.

E, perante os olhos espantados do amigo, que acumulava na curiosidade o anseio do vampirizador, a confidente arrancou da bolsa o documento pe­quenino, em que a jovem implorava ao namorado fosse vê-la, às oito da noite, no lugar indicado. Saberia não incomodá-lo, não tivesse receio. Roga­va-lhe a presença e solicitava resposta.

Cláudio lia, lia, entre ciumento e indignado. Sim — refletia —, era o cúmulo do sarcasmo. Gilberto a governá-la daquela maneira! O comparti­mento dos fundos, o número quatro!...

Conhecia-o. E esquisita coincidência! Era o recanto que ele tam­bém, por vezes, elegia para si próprio, quando bus­cava a pensão alegre de Crescina, para entreter-se, descansar... Marita, sem saber, compartia-lhe as preferências!... O despeito comprimia-lhe o cora­ção, enquanto o «outro» se demorava a enlaçá-lo, estampando no rosto larga expressão de astúcia.

A empreiteira de regalias noturnas cortou a pausa longa, repetindo que não lhe era lícito esquivar-se; entretanto, acrescentou, ladina, que ele, Cláudio, era cliente de sua casa e, por isso, colo­cava-o ao corrente dos fatos, não só por dever de lealdade aos fregueses, como também para evitar aborrecimentos, suscetíveis de atrair os olhos da polícia que nunca interferira nas acomodações e negócios que lhe diziam respeito.

Para isso, inteirava-o de tudo e pedia conselhos. Nogueira reprimiu a cólera e vimo-lo interessado em concentrar-se mentalmente, esquadrinhan­do a cabeça, à cata de idéias.

Ignorando embora que se acostumara a absor­ver-se nas sugestões de uma inteligência estranha à dele, buscava-lhe, sequioso, os estímulos, supondo naturalmente que batia às portas da imaginação para desencravar os pensamentos.

Obsessor e obsidiado passaram a trocar im­pressões, de cérebro a cérebro. Alguns momentos de ajuste silencioso e mecânico, que um observador terrestre interpretaria como sendo vertiginosa fa­bulação, e os dois entraram em acordo implícito.

Alcançamos semelhante conclusão, pela rama, ao vê-los repentinamente asserenados, já que não me sentia capaz de verificar-lhes planos e intentos, forçado que me reconhecia a dividir atenções, entre eles e a recém-vinda, cujos informes e apontamen­tos não me cabia perder.

Cláudio esboçou um sorriso amarelo. Em se­guida, agradeceu a gentileza de que se tornava ob­jeto, passando a extravasar as alegações fantasio­sas que começara a elaborar. Disse à amiga, sur­presa, que Marita realmente assumiria, talvez em dias breves, compromisso de matrimônio com o ra­paz e que, não obstante considerasse a entrevista mencionada pura irreflexão de jovens, concordava em que madame Crescina levasse o bilhete, alco­vitando a conferência afetiva.

Logicamente, acrescentou a mascarar-se de bom-humor, que os meninos teriam entrado em ar­rufo e aspiravam à reconciliação. Sim, não iria pessoalmente criar qualquer obstáculo. Preferia aconselhar a filha, no dia seguinte.

Entretanto, aduziu após refletir um minuto em consonância com o amigo invisível, gratificá-la-ia por um obséquio, de vez que tendo paternal inte­resse em que se efetuasse o encontro dos jovens, aos quais se permitia chamar “quase noivos”, soli­citava-lhe fosse o bilhete entregue somente às duas da tarde, horário em que Gilberto estaria no escri­tório com toda a certeza.

Dona Crescina prometeu satisfazê-lo, recolhen­do a gorjeta e anunciando que telefonaria para a moça, depois do ajuste, a sorrirem-se ambos no aperto de mãos.

Restituído a si próprio, Nogueira, sempre enla­çado pelo obsessor, não se deu tempo a maiores reflexões.

Aproximou-se do telefone e vacilou um instan­te. Pensou consigo que essa era a primeira vez que se dirigiria ao rapaz que detestava.

A hesitação, porém, não passou de segundos. Discou, resoluto, para Gilberto.

Atendido, prontamente, formulou a consulta, untando a voz de cortesia. Se possível, desejava vê-lo e ouvi-lo, solicitar-lhe um favor com vanta­gens mútuas, mas rogava-lhe a gentileza da dis­crição. Entendimento pessoal para aquele instante.

O rapaz gaguejou do outro lado, denotando viva emoção, e aquiesceu sem muitas palavras.

Ambos consultaram o relógio. Onze em ponto.

Ele, Cláudio, seguiria de táxi para o almoço, em casa, no Flamengo, e esperá-lo-ia no Lido.

Não se preocupasse o interlocutor. Conheciam-se bas­tante, embora sem contactos pessoais.

Além disso, abordá-lo seria fácil para ele. Conhecia-lhe o carro.

Efetivamente, escoados que foram alguns mi­nutos, achávamo-nos os quatro, Cláudio, Gilberto, o assessor espiritual de Nogueira e eu, no lugar indicado.

O jovem, muito pálido, assemelhava-se ao alu­no culpado que comparece diante do professor, mas o sorriso largo e calculado com que era recebido colocou-o à vontade, mais apressadamente que su­punha.

Caminharam, lado a lado, permutando banali­dades sobre o tempo, até que se instalaram num recanto de bar, à frente de um guaraná que to­caram, de leve.

Cláudio, aparando as cinzas do cigarro, de mo­mento a momento, esforçava-se, quanto possível, por parecer natural.

Invariavelmente ligado ao vampirizador que o não perdia, começou dizendo ao filho de Nemésio que lhe entendia a situação com clareza; que o sa­bia, de certo modo, inclinado para Marina, a filha legítima, e que, na condição de genitor, conquanto se visse na obrigação de preservar-lhe a felicidade, não devia bisbilhotar, à margem de assuntos pri­vativos deles dois; entretanto, acentuava, dramá­tico, criara Marita, igualmente por filha; amava-a, enternecidamente, e anelava para ela o bem-estar que sonhava para a outra.

Gilberto, inexperiente, escutava embasbacado, comovido.

O antigo bancário, aparentando elevada con­descendência, asseverou que, em verdade, somente atribuiria ao destino a coincidência que vinha de observar, porqüanto se achava convencido de que ambas as meninas queriam o moço, talvez com análogo afeto.

Verificava, assombrado, a máscara de paternal ternura com que Nogueira recobrira o semblante.

No íntimo, acalentava a repulsão, dura, violen­ta. Dissimulava, habilmente, os ímpetos de amarrotar o filho de Beatriz que, satisfeito e acalmado, lhe agasalhava as afirmações.

Reprimindo-se, prosseguiu astucioso.

Salientou que, decerto, a menina bisonha, ao albergar-lhe os testemunhos de apreço, escorregara na paixão, que lhe devastava, agora, a juventude em psicose e doença. Preocupava-se, afligia-se. En­contraria recursos para sanar as dificuldades, mas, para isso, constrangia-se a solicitar-lhe concurso, a fim de que Marita sofresse menos.

Contaria com ele e, ao registrar-lhe as primei­ras palavras de assentimento, baixou o tom de voz, anunciando-lhe em caráter confidencial que a filha adotiva lhe escrevera um recado. Sabia disso. Com­pondo o quadro estudado de interesse paternal, indagou se ele havia recebido. Ante a resposta negativa, explicou que a moça lhe endereçara um papelucho, no qual lhe rogava um encontro para a noite. Sem que lhe suspeitasse do zelo, conse­guira ler o petitório, tanto assim que poderia re­peti-lo. E recitou de cór o pequeno texto, sílaba a sílaba, dando a impressão de proceder assim para exteriorizar com mais segurança o próprio enter­necimento.

Depois de caracterizar o papel, rogava ao ra­paz dois favores: responder afirmativamente, por escrito, que estaria no local indicado, atendendo ao horário certo, e abster-se de comparecer no mo­mento preciso.

Fantasiou que a menina andava desorientada, enferma - Temia um choque. Não dispunha de ou­tro remédio senão pedir-lhe aquele tipo de coope­ração. Isso porque, naquele mesmo dia, estava pro­videnciando a aquisição dos documentos necessários, para que ela fosse à Argentina, em companhia de Márcia, numa viagem de refazimento e recreio. Não seria prudente estragar-lhe o ânimo, naquela hora, com uma negação formal. Naturalmente que o in­terlocutor era dono de si.

Agisse como melhor lhe parecesse. Ele, porém, nos sentimentos de pai que o moviam, receava conseqüências. Nada custaria satisfazer-se àquela particularidade que considera­va providencial. Se Gilberto aprovasse a idéia, ele próprio, Cláudio, se incumbiria de buscá-la, no en­dereço marcado, não só com a noticia positiva da viagem, no bolso, de modo a proporcionar-lhe reno­vadora alegria, ao mesmo tempo que poderia apre­sentar a ela as desculpas dele, quanto à ausência.

Compreensível que, com a autoridade afetuosa de pai amigo, se responsabilizasse pelas escusas do moço, de vez que usaria o tato imprescindível.

Por fim, consultava-o como justificá-lo, no ins­tante oportuno, se devia alegar a razão do bolo como sendo negócios, serviços, empeços domésticos ou inesperado afastamento do Rio.

O         filho dos Torres ouviu tudo, encantado.

A proposta pareceu-lhe uma peça vazada em profundo bom-senso. Além disso, respirava feliz. Verificava haver encontrado alguém que o levaria, passo a passo, a libertar-se de um compromisso que lhe pesava demasiado na consciência.

Chegado a esse ponto, desinibiu-se. Perdera os derradeiros resquícios da desconfiança com que iniciara a conversação. E, ao desembaraçar-se, afi­xou a máscara fisionômica que julgou cabível à defesa das próprias conveniências, asseverando que dedicara a Marita uma boa amizade, de irmão para irmão, nada mais. Destacou que, efetivamente, no­tara nela determinadas alterações que o haviam desgostado, e, já que se sentia inequivocamente atraído para Marina, afastara-se, cauteloso, na ex­pectativa de que tempo e distância funcionassem.

Cláudio escutava, boquiaberto, admirando-lhe a delicada frieza das justificações e indagando a si mesmo qual deles dois seria maior na arte de fingir.

Francamente encorajado, Gilberto declarou que Lhe compreendia as apreensões, quanto lhe aceitava conselhos e bons ofícios. Escreveria, obrigando-se a comparecer, mas não arredaria pé de casa, mes­mo porque Marina fora a Teresópolis, pela manhã, a serviço da companhia, e talvez só regressasse no dia seguinte. O senhor Nogueira, qual o chamava, em buscando a menina, às oito, estaria autorizado a comunicar-lhe, da parte dele, o agravamento da saúde materna. Não seria falso, ajuntou, porqüan­to a genitora extinguia-se, lentamente.

Cláudio, obtendo o que desejava, refletia no rosto a satisfação que, somada ao voluptuoso pra­zer do obsessor que o assessorava, parecia interesse afetivo, devotamento. Finalizando, asseverou-se no­tificado quanto à viagem da filha, e reportou-se, em termos carinhosos, à situação de Dona Beatriz, que ele e Márcia visitariam. Destacou as acerbi­dades dos impedimentos em família, durante as mo­léstias longas, apelou para o otimismo necessário e, ateu confesso, chegou até mesmo a exalçar a confiança que se deve ter em Deus, no decorrer de tais circunstâncias.

Montada a obrigação que os jungia, separaram-se com abraço efusivo, enquanto, de nossa parte, rumamos do Lido para o Flamengo, penosamente intrigados, conjeturando sobre o que estaria por suceder.

 

Tornei ao Flamengo, apreensivo.

Não conseguira auscultar as minudências do plano obscuro que se formava. Os pensamentos de Cláudio e do vampirizador entrelaçavam-se em estranhos propósitos imprecisos.

Expedi comunicação, em despacho rápido para o irmão Félix, salientando a necessidade de nosso encontro, recolhendo-lhe a resposta, que não me alentava (5). Viria à noitinha, não mais cedo, àvista de inadiáveis obrigações.

Seria desaconselháVel qualquer recurso a Ne­ves, que sabia ocupado e, talvez, providencialmente ocupado, já que as dificuldades morais se esboça­vam em labirinto e alguma ameaça de irritação nos frustraria objetivos e movimentos. Amigos outros, de cujos préstimos seria licito dispor, jaziam longe do assunto.

Era forçoso agir só, trabalhar por mim mesmo.

O momento não comportava aflições inúteis. Necessário manejar os recursos em mão.

Para intervir sem vacilações, julguei prudente ouvir o acompanhante desencarnado, de Cláudio, que eu desconhecia de todo. A princípio, encontrá­ramos dois. Entretanto, apenas um deles se mantinha

 

(5) Diante dos microaparelhos existentes no Pla­no Fisico para emissão e recepção de mensagens, a longas distâncias, é desnecessário comentar as facilida­des de intercâmbio no Plano Espiritual. — (Nota do Autor espiritual.)

 

constante, aquele cuja inteligência aguçada me ferira a atenção.

Não seria justo investigá-lo, perquirir-lhe os anseios?

Rememorei experiências anteriores, em que jun­tamente de outros amigos desencarnados modificara a apresentação externa, através de profundo es­forço mental.

Aspirava a fazer-me visível à frente daquele amigo enigmático que claramente habitava o lar dos Nogueiras.

Poderia transfigurar-me, adensando a forma, como alguém que enverga roupa diversa.

Recolhi-me em ângulo tranqüilo, à frente do mar. Orei, buscando forças.

Meditei, fundo, compondo cada particularidade de minha configuração exterior, espessando traços e mudando o tom de minha apresentação habitual.

Quase uma hora de elaboração difícil esgotou-se, até que me percebi em condições de empreen­der a conversação cobiçada.

Não me autorizava a perder um minuto.

Avancei, prédio acima, batendo à porta, ceri­monioso.

Aconteceu como previa, porque o parceiro in­variável de Cláudio veio atender.

Olhou-me, desconfiado, de alto a baixo, esqua­drinhou-me os intuitos.

Humilhei-me, vulgarizei a linguagem quanto pude.

Semelhante atitude era indispensável pela mi­nha necessidade de informações. Atento a isso, afe­tei absoluto desinteresse pelos moradores do apar­tamento, centralizando nele o núcleo natural de minha atenção.

Expliquei andar procurando um amigo e per­guntei pelo outro camarada que vira, ali, dias antes. Vira-os, juntos, precisamente naquele local, quando transitava no corredor; entretanto, passa­va, apressado, a peso de obrigações. Guardara, po­rém, a impressão de que o companheiro cujo encon­tro ambicionava era ele.

Esse o expediente mais simples que me ocorreu para cativá-lo, conversando com espírito de submis­são e fraternidade naturais, de modo a ganhar-lhe alguma confiança e carinho.

Ele pareceu sensibilizar-se, tratou-me com a generosidade acidental de um fidalgo que não se desmerecia por dar migalha de consideração a um mendigo.

Compleição robusta e enorme, tocou-me o om­bro com a destra, ensaiando o gesto de quem se prepara a despachar, polidamente, uma pessoa im­portuna, e catou minudências. AnaliSou-me, pers­crutou-me, repisando inquirições.

Inteirando-se do exato momento em que os vira reunidos e reconhecendo os detalhes que consegui­ra, de minha parte, mencionar, esclareceu tratar-se de um amigo, que costumava hospedar, de vez em vez, para o reconforto de uns “drinques”. Naquele momento, contudo, não estava. Ao que sabia, re­creava-se numa casa, em Braz de Pina, cujo ende­reço indicou.

Lamentei. Solicitei-lhe o nome, estava reconhe­cido à gentileza do acolhimento e tornaria ao Fla­mengo em outra oportunidade. Estimaria nomeá-lo com a possível intimidade quando voltasse, na hi­pótese de ser constrangido a perguntar por ele a desconhecidos.

Ele não se fez de rogado. Respondeu, cortês. Chamava-se Ricardo Moreira. Em alguma necessidade, porém, bastaria que o designasse tão-só por Moreira. Era estimado, possuía numerosas re­lações, contava com muitas afeições no prédio. Se chegaSSe a vê-lo, de nOVO, em companhia do colega ao qual me reportava, que o sacudisse, despertan­do-lhe a atenção.

Até ali, tudo bem. Era necessário, entretanto, que eu lhe examinaSse as mais íntimas reações.

Imprescindível conheCêdO, sopesá-lo.

Acusei-me cansado, deprimido. Se ele era ali o mordomo, que me permitisse entrar, por gentileza, ainda que por instantes breves, a fim de que me fosse possível refazer as forças. Ato de bondade fraterna. Nada além de alguns minutos. Carecia de ambiente humano, amigo.

Operou-se, entretanto, a reviravolta.

Vi perdida a posição que granjeara.

Moreira arremessou-me olhar terrível, que fun­cionou sobre mim qual punhalada vibratória.

Ajun­tou frases irônicas e gritou que a casa tinha dono; que, diante dos «descascados» (6), quem mandava ali era ele; que, para atravessar a porta, seria pre­ciso removê-lo; que eu dispunha da rua larga para dormir; e finalizou, agressivo:

— Que tem você aqui? Dê o fora, que não vou com sua lata! Vá se catar, vá se catar!...

Nenhuma outra alternativa senão descer esca­das, desabaladamente, porque avançou em minha direção, arregaçando punhos decididos.

Regressei ao aconchego do mar, entrando em prece.

Reavendo a condição que me é peculiar, voltei ao mesmo ponto.

No interior da peça, o casal acomodara-se para o almoço, com as atenções de Dona Justa, em serviço.

Moreira, que não mais me assinalava a pre­sença, instalara-se na cadeira de Cláudio e com Cláudio, de tal modo, que, certo, se alimentava tão claramente quanto ele, através de um dos nume­rosos processos em que se catalogam as ações da osmose fluidica.

A conversa entre os cônjuges deslizava, banal, mas, consultando o cérebro de Nogueira, conven­cemo-nos para logo de que o tema do dia circulava,

 

(6) Um dos pejorativos pelos quais a gíria dos planos Inferiores designa os Espíritos desencarnados. — (Nota do Autor espiritual.)

 

ativamente, no sistema de conjugação mental que prevalecia entre ele e o acompanhante.

       Registrava-se-lhes o anseio por notícias que lhes facultassem conexões para o objetivo inconfessável, que come­çavam a entremostrar em espírito.

Agora, à mesa, a dupla exteriorizava os in­tentos escusos, nas formas-pensamentos em que as duas mentes enfermiças se revelavam. Tudo se acla­rava, de súbito. Digeriam o plano em silêncio.

Abordariam Marita, à feição de dois caçadores, co­lhendo uma lebre. Antegozavam o assalto, articu­lavam-se-lhes os pensamentos em lances dissolutos. Determinavam-se a surpreendê-la, em casa de Cres­cina, como se apanha um fruto resguardado na árvore.

Perplexo, decifrei a trama inteira.

Cláudio ergueu a voz e, fingindo ignorar a via­gem da filha, perguntou à mulher por Marina, de vez que, no fundo, queria notícias da outra.

Dona Márcia caiu, de imediato, na indução. Respondeu que ele, provavelmente, se havia esque­cido de que a moça avisara, na véspera, que iria a Teresópolis, a serviço da imobiliária. O chefe, impedido, indicara-a para representá-lo em algumas transações importantes. Voltaria, sem dúvida, na manhã seguinte. Quanto a Marita, horas antes te­lefonara de Copacabana, solicitando para que não a esperassem ao jantar. Talvez demorasse em ser­viço extra, na contabilidade da loja, até mais tarde.

O marido pigarreou, mudou de assunto, comen­tou alguns sucessos políticos e a refeição terminou sem maiores delongas.

No intuito de colaborar com eficiência, na pre­servação da harmonia geral, demandei a habitação de Crescina, onde não tive qualquer dificulda­de para identificar o apartamento número quatro. Recanto isolado para casal, completamente desliga­do da comprida construção de um pavimento só.

A vivenda, pela extensão enorme, aparentava profunda calma; entretanto, pela ruidosa conver­sação dos desencarnados menos felizes, que aí bu­lhavam, desocupados, era possível imaginar as agi­tações da noite.

Depois de atenciosas idas e vindas pelo terre­no, examinando situações, vi a dona da casa tomar o fone. Aproximei-me. Crescina perguntava por Gilberto, no escritório dos Torres.

Atendida, combinou visitá-lo às duas, daí precisamente a meia hora.

O programa foi cumprido em todas as seqüên­cias previstas.

De retorno, Crescina chamou para a loja e comunicou à jovem que o rapaz escrevera. Tudo certo. Leu o bilhete, em que lhe participava a re­solução de estar firme, no lugar indicado, às oito.

Que ela aguardasse, confiasse.

A pobre menina exultou e as minhas inquieta­ções doíam agigantadas.

Necessitava desdobrar medidas de proteção; en­tender-me com algum amigo encarnado, em ligação com o grupo; sugerir providências que evitassem a consumação do projeto; criar circunstâncias em que o socorro chegasse em nome do acaso, entre­tanto... Debalde, girei da pensão alegre ao escri­tório, do escritório à loja, da loja ao banco, do banco ao apartamento no Flamengo... Ninguém estendendo antenas espirituais, com possibilidades de auxílio, ninguém orando, ninguém refletindo... Em todos os lugares, pensamentos entouçados so­bre raízes de sexo e finança, configurando cenas de prazeres e lucros, com receptividade frustrada para qualquer interesse de outro tipo. Até mesmo um dos chefes de Marita, do qual me acerquei, ten­tando insuflar-lhe a idéia de reter a jovem, no serviço, até altas horas da noite, ao sentir-lhe a imagem, na tela mental, transmitida por mim, para inicio de entendimento, acreditou estar pensando consigo mesmo, inclinando o assunto para questões salariais; concentrou-se, de pronto, nas vantagens econômicas, agarrou-se a cifras, encheu a cabeça com parágrafos da legislação trabalhista e expulsou-me a influência, sumariamente, monologando no intimo: “essa moça já percebe o suficiente, não lhe darei nem mais um centavo.” Nenhum outro re­curso senão permanecer no casarão, de sentinela.

Inúteis as diligências.

Ás sete e trinta da noite, Cláudio apresentou-se com esmero, sem mesmo esquecer-se de uma peruca leve que lhe remoçava as linhas fisionômicas.

Solerte, espiou a vivenda de Crescina, a peque­na distância. Ele e o outro. Moreira não parecia menos interessado.

Acompanhei-os.

O marido de Dona Márcia, aperaltado, buscava um telefone, que não teve dificuldade para encon­trar. Café vizinho facilitava. Discou, chamando Fafá, o porteiro da pensão, que ficáramos conhe­cendo em nossas investigações cordiais, durante o dia. Atendido, rogou-lhe que fosse encontrá-lo, con­fidencialmente. Questão de negócio. Não se arre­penderia do segredo. Riram-se pelo fio.

O empregado, velho bonachão que o álcool já começava a excitar naquelas horas verdes da noite, veio à pressa. Atencioso e sabido, conquanto guar­dasse um sorriso de bondade, parado no rosto, que tanto podia ser para o bem como para o mal, in­clinou o ouvido para a boca de Cláudio, a fim de escutar melhor. Nogueira cochichou, solene. Solici­tava-lhe concurso urgente. Precisava esclarecer-se quanto aos jovens que se reuniriam no «quatro». A moça era sua filha. Não faria barulho, não es­candalizaria a ninguém, mas desejava certificar-se. Nada de complicações.

Necessário reconhecer o de­sencaminhador, de maneira a solucionar o problema de família, sem alarde. Recorria aos préstimos dele, companheiro dedicado. Não lhe dispensaria a cola­boração.

Fafá disse compreendê-lo e participou que a menina esperada já se instalara. Vira-a sozinha, através da porta semicerrada. Estava sentada no leito, folheando revistas. E, ante as perguntas que se acumulavam, confirmou que era a jovem, vista por ele, cedinho, em conversação com a mundana. Sim, guardara-lhe o nome. Era Marita, sim.

Fez-se Cláudio mais reservado e pediu-lhe «ble­caute». Que o porteiro lhe fizesse o favor de de­sajustar o fusível, na instalação elétrica, O con­serto exigiria uns quinze minutos de sombra. Isso bastava para que se inteirasse de tudo, sem que a patroa e os hóspedes lhe percebessem a presença. Colocar-se-ia no escuro, em ângulo oposto à ilumi­nação pública, e, assim, facilmente identificaria o rapaz.

O serventuário, não obstante semi-embriagado, fixou expressão matreira e salientou que era pro­blema sério, aquele. Satisfaria ao chefe, mas bico calado. Nada de envolver-se com os tiras.

Cláudio deixou escorregar para a mão dele duas cédulas de quinhentos cruzeiros, e Fafá, menos inquieto, indagou pelo horário exato, ao que Nogueira aclarou, afirmando faltar unicamente dez minutos, de vez que aguardaria a luz apagada, as oito em ponto.

Separaram-se os dois e, quando me perdia em dolorosas conjeturas, revigoradora surpresa me vi­sitou o espírito. Dera apenas alguns passos na rua e fui agradavelmente defrontado pelo irmão Félix, que me abraçava.

Comovi-me. Revê-lo e confiar-lhe todas as in­quietações foi trabalho de segundos.

Nas minhas frases curtas, o instrutor recolheu todo o material informativo.

Sem detença, rumamos para a vivenda coleti­va, cujas lâmpadas esmoreceram, de chofre, quando lhe transpúnhamos a entrada. Tive a idéia de que o acontecimento era comum, porqüanto a escuridão não estabeleceu o menor alarme. Velas bruxulean­tes piscavam, aqui e ali.

Tomamos a direção do aposento isolado.

Cláudio estacara à porta, enlaçado pelo vam­pirizador. Ambos justapostos um ao outro. Dupla de sentimentos e propósitos iguais. Ambos emocio­nados, corações pulsando precipites, prelibavam a caça que não lhes escaparia. A distância reduzida, notei que os dois se postavam sob o halo das ener­gias balsânlicas de Féllx; entretanto, o admirável fenômeno para eles era como se não existisse.

Diante do quadro inquietante e enternecedor, imaginei comigo fitar dois lobos humanizados, aos quais piedoso emissário dos Céus tentasse, inutil­mente, entregar a palavra e a inspiração de Jesus­-Cristo.

Enrodilhavam-se os dois num charco mental de lascívia, com tamanha sofreguidão, que não cabia ali, naquele vulcão de apetites sexuais, a menor frincha pela qual se pudesse arremessar alguma idéia de elevação.

Agressivo perfume de cravos me invadiu o olfato desprevenido. Onde sentira, naquele dia, um cheiro igual? Recordei, espantado. Aquele era o extrato usado por Gilberto. Conhecera-O, na pales­tra do Lido. Minudenciei observaçõeS e reconheci que Nogueira tivera igualmente o cuidado de usar indumentária, em tudo semelhante à do moço, in­clusive a gravata, quanto ao nô e ao tamanho. Nenhuma particularidade fora esquecida.

Antes que Félix e eu pudéssemos estudar me­didas de contenção, a dupla avançOU quarto a dentro.

Nós, que podíamos enxergar na obscuridade, vimos a pobre menina levantar-se, sussurrando fra­ses de arrebatadora paixão e de intensa saudade, abrindo, ansiosa, os braços, sem guardar para si o mínimo resquício de vigilância... Acreditava-se diante do amado... Era ele, não devia recear...

Naquele instante, em todas as suas intenções e em todos os seus nervos, um pensamento só, um apelo só entregar-se...

Cláudio e o outro, a fremirem de emoção, man­tinham absoluto silêncio.

Nada que pudesse evitar a integração indese­jável.

Nogueira, agindo por si e pelo acompanhante, atraiu-a, de encontro ao peito, e beijou-a, convulso.

A indefesa criança, hipnotizada pelos próprios reflexos, abandonou-se, vencida...

Irmão Félix, tangido por sentimentos que eu não poderia avaliar, deixou o recinto e acompanhei-o.

Atingindo o degrau externo da porta de en­trada, vi que o benfeitor, transido, se deteve, de olhos fitos no céu... Quanto a mim, conturbado, não me sentia capaz de articular uma prece. Nada pude fazer senão calar-me, reverente, perante o agoniado coração paterno, que vinha das esferas superiores para desmanchar-se ali, em suplício in­dizível, velando, através da oração muda que lhe extravasava agora em grossas lágrimas!...

Homens, irmãos, ainda que não possais viver santamente, à face dos instintos inferiores que nos atenazam as almas, animalizadas ainda por duros gravames do passado culposo, reduzi, quanto pu­derdes, as quedas de consciências! quando não seja por vós, fazei-o pelos mortos que vos amam de uma vida mais bela!... Disciplinai-vos, em respei­to a eles, guardiães invisíveis que vos estendem as mãos!... Pais e mães, esposos e esposas, filhos e irmãos, amigos e companheiros, que supondes per­didos para sempre, em muitas ocasiões vos acom­panham de perto, acrescentando-vos a alegria ou partilhando-vos a dor!... Quando estiverdes a pon­to de resvalar, nos despenhadeiros da delinqüência, pensai neles! Ser-vos-ão generosos, indicando-vos o caminho, na noite das tentações, à feição das estrelas que removem as trevas! Vós que sabeis reverenciar as mães e os mestres encanecidos na abnegação, que ainda respiram no mundo, compa­decei-vos também dos mortos, transfigurados em afetuosos cireneus, a nos compartirem as cruzes das provações merecidas, em dorido silêncio, quan­do, muitas vezes, não somos dignos de oscular-lhes os pés!...

Diante de Félix, em pranto amargo, meu co­ração, imperfeito e pobre, passou então a recorrer ao Evangelho e confortei-me ao lembrar que Jesus, o Divino Mestre, fora também o amigo sensível e carinhoso, ao chorar, um dia, na Terra, ante Láza­ro, morto!...

Decorridos quase vinte minutos de expectação, a luz reapareceu e ouviu-se um grito agoniado, em que o espanto e a dor se mesclavam com terrível acento.

Marita, com a rapidez de uma corça dilacerada, saltou a janela, em sentido oposto, e disparou em desalinho...

Antes, porém, que nos fosse possível esboçar qualquer socorro, alguém chegou, apressadamente, e abordou a porta do solitário aposento, espancan­do-a com fúria. Esse alguém era Dona Márcia.

Nogueira, assistido pelo amigo desencarnado, recompôs-se num átimo e, ao esbarrar com a es­posa, fez um risinho ridicularizador, exclamando, mordaz:

— Era só o que faltava!... Você também? Aqui?...

Dona Márcia, que costumava entreter-se no pô­quer, junto de amigas, não longe da pensão de Crescina, com quem mantinha relações de amizade, fora imediatamente informada por ela quanto à chegada do marido, com a observação de que ele talvez entrasse em rixa acirrada com os jovens.

O porteiro, receando complicações, aviara-se, diligente, comunicando à patroa quanto sabia, e a patroa, a seu turno, julgando que a moça e Gil­berto estivessem reunidos, não hesitara invocar a presença da amiga, no intuito de conjurar possíveis desastres.

A senhora Nogueira, ao chegar, inquieta, vira a filha adotiva que debandava e, em topando o marido, desapontado, saindo a sós, entendeu, num relance, tudo o que se passara...

— Canalha! — bradou, indignada — eu não acreditei nessa menina infeliz! Eu que poderia ter evitado!...

E a voz da recém-chegada assumiu dolorosa inflexão:

— Como é que você não pensou? Tenho co­migo todos os papéis de Aracélia, todos os seus bilhetes... Ela nunca esteve com outro homem, a não ser você mesmo!... Você nunca soube da última carta, em que ela me entregava a menina, dizendo que preferia morrer para que eu fosse feliz!... A memória dessa moça pobre e leal é a única coisa boa que eu tenho no coração... O res­to você destruiu... Ah! Cláudio, Cláudio!... a que baixezas descemos nós?... Louco! Você ultrajou sua própria filha!...

Ele apoiou-se, cambaleante, na porta, como que fulminado por um raio, Dona Márcia prorrompera em soluços; entretanto, de nossa parte, era forço­so sair.

 

Adiantamo-nos, Félix e eu, ao encontro da jovem.

Marita estugava o passo, amarfanhada, atur­dida.

Da Lapa, onde se localizava a habitação cole­tiva que vínhamos de deixar, até à Cinelândia, cor­rera quase.

Sentia-se tangida por todos os ventos da adver­sidade, expulsa da Terra. Traída nos mais íntimos sentimentos de mulher, a injúria experimentada transcendia para ela toda a noção de sofrimento. Teria agradecido ao homem que conhecera por pai o punhal ou o veneno, mas não dispunha de forças para perdoar-lhe aquela afronta. A revolta sacu­dia-lhe os membros. Tremia, desesperada. Na ca­beça, uma idéia só, ganhando extensão: o suicídio. Ansiava atirar-se sob os carros que deslizavam à frente. Morrer... desaparecer... meditava, cho­rando. Entretanto, era preciso viver um tanto mais. Restava um enigma: Gilberto. Por que se esquivara, a substituir-se, cruel? Que trama teria havido entre eles? Lera-lhe a missiva, conhecera-lhe a letra. Escrevera, afirmando vir... Por que desistira? Como soubera Cláudio do encontro? Através de Crescina?

As interrogações sem resposta convulsiona­vam-na toda. Desvairava. Rangia os dentes, querendo gemer.

A morte, a morte!... — pedia, mentalmente, tentando apertar os lábios que se abriam sem voz.

Ainda assim iria consultar Gilberto, sugeriam as últimas réstias do sonho desmantelado. Sim, aprovava no turbilhão dos pensamentos em descon­trole, era necesssário ouvir Gilberto... Uma vez só que fosse. Imperioso conhecer a verdade, mor­rer com a verdade...

Quem saberia? Talvez que o rapaz lhe esten­desse um fio de luz, por onde se desvencilhasse da sombra... Se ele dissesse: «vive, vive para mim», conseguiria esquecer o insulto daquela noite, con­tinuando a viver... Ao contrário, tudo extinto...

Caminhando apressada e indiferente à aragem que lhe acarinhava os cabelos, repelia-nos, em es­pírito, as maiores demonstrações de ternura e consolo.

Nenhuma idéia que se lhe não afinasse com a repulsão.

Decididamente, se Gilberto participara da ar­madilha a que se arrojara, inocente, estava tudo acabado. Tão-somente lhe restaria o desprezo final.

Alcançou o Largo do Passeio e parou um mo­mento... Fitou, angustiada, aquelas árvores frondejantes que tanto amava... Galharias balouça­das ao vento pareciam chamá-la para abraços de adeus... Marita soluçou, teve medo, mas seguiu adiante... Varou a massa risonha que deixava os cinemas, recordou Gilberto e a menina feliz que ela fora, vendo namorados saboreando pipocas; con­tudo, seguiu, seguiu sempre, vencendo encontrões. Atingindo a Praça Marechal Floriano, abancou-se, vasculhando o cérebro atormentado...

Sentia-se, enfim, absolutamente sozinha, com­pletamente desamparada. Comprimindo a cabeça entre as mãos, queria idéias, alguma idéia que lhe ofertasse saída do antro pungente da angústia.

Debalde, irmão Félix, ao enlaçá-la, lhe asso­prava conceitos de paciência e cordura, inutilmente se referia à bondade e ao perdão. Aquele coração juvenil, conquanto bondoso, figurava-se, agora, um lago límpido que vulcão oculto, de inesperado, fa­zia referver. Todas as orlas abertas, em bocas de incêndio, pelas quais as ondas do pensamento fu­giam, precipitadas. Nenhum lugar exposto à recep­tividade, nenhum ponto marcado ao equilíbrio e ao silêncio.

No crânio tumultuado, uma idéia surdiu, ense­jando-lhe tênue fio de esperança. Telefonar!...

Poderia telefonar para a residência dos Torres. Gilberto, indubitavelmente, estaria ao pé da geni­tora enferma. Além disso, Marina viajara pela ma­nhã. Uma razão a mais para que se não retirasse do carinho necessário à doente. Ainda assim — refletiu —, seria muito provável que ele, a distân­cia, lhe embaísse a boa-fé. Insopitável desconfiança amargava-lhe o coração qual raiz espinhosa. Não descortinava, contudo, saída melhor. Conversar! Ouvi-lo! Tinha sede da verdade, ansiava saber, saber!.

Raciocínios contundentes entrechocavam-se-lhe na cabeça atribulada... Não, não retornaria ao lar do Flamengo... Entre voltar à casa dos Nogueiras e morrer, preferia morrer...

Perscrutou circunstâncias, analisou-se, meditou, meditou...

Pensamento estranho assomou-lhe, de súbito. Disfarçar-se, fingir. Para alcançar a verdade, men­tiria.

Entraria, sim, no jogo com aquilo que se lhe apresentou à imaginação, como sendo a cartada final.

Marita concluía que ela e a irmã, pela intimi­dade e pela convivência, tinham vozes semelhantes, maneiras afins. Chamaria o rapaz como sendo Ma­rina, imitar-lhe-ia, quanto possível, o tom de pales­tra, repetir-lhe-ia as palavras de uso mais freqüen­te no trato doméstico. Simularia estar voltando, inopinadamente, de Teresópolis. O moço, assim abordado, confessaria, de modo inequívoco, tudo o que sentisse, com respeito a ela própria.

A sofredora criança consultou o relógio-pul­seira. Dez minutos para as nove.

Desejava ambiente familiar para a ligação. Lembrou-se de Dona Cora, cliente da loja em Copacabana, que se lhe fizera amiga íntima e em cujo apartamento costumava telefonar, quando ine­vitável. Levantou-se, algo reanimada, para a bus­ca de condução; entretanto, somente aí  deu pela falta da bolsa que largara na fuga. Faltava o di­nheiro, mas não desistiu. Acenou da calçada ao primeiro táxi disponível. Consultou o motorista se lhe podia fazer o favor de atender, com pagamento à porta de casa. Estava sozinha e esquecera-se do horário, O profissional correto notou-lhe a tristeza e o acanhamento. Compadeceu-se. Alegou que re­cusava, sistematicamente, conduzir pessoas que en­comendavam serviço, criando problemas; entretan­to, no caso, faria exceção e aquiesceu.

A breve trecho, seguíamos, junto dela, para Copacabana.

No endereço indicado, saltou, fez-se acompa­nhar pelo condutor ao apartamento da amiga, sen­do recebida com a lhaneza que esperava. Segredou, envergonhada, para Dona Cora que se achava em apuros, se ela não dispunha, naquela hora, de al­gum dinheiro para emprestar. Pagaria no dia se­guinte. A dona da casa, espontânea e bondosa, não titubeou.. Abriu pequena gaveta e falou sorrindo: «só quatrocentos cruzeiros», O marido não esta­va. Marita, reconhecida, explicou que a importância bastava. Depois da corrida paga, disse para a se­nhora que andara em serviço extra, fora em se­guida ao Leblon visitar um doente, afetando que somente naquele instante conseguiria tomar o ôni­bus para casa. Antes disso, porém, tinha necessi­dade de um telefonema.

Conversação com pessoa muito íntima. Dona Cora cedeu-lhe a peça inteira e acrescentou, gentil, que ia arranjar um cafezinho. Falasse à vontade, ninguém a interromperia. As duas filhinhas dormiam, há muito, e o esposo que substituia um colega, no trabalho, não regressaria tão cedo. A dona da casa afastou-se para a cozi­nha, isolando a sala.

E, ali, diante de nós, sem que nos percebesse, de leve, os corações solidários, Marita discou, so­freando a emoção de modo a fantasiar a alegria da outra.

Escutamos, transidos, o diálogo juvenil que nos ficaria, então, na memória, gravado frase a frase:

—        Da residência dos Torres?

—        Sim.

—        Quem no aparelho? Gilberto?

—        Sim, sim.

—        Oh! meu bem, pois você não está conhe­cendo?

—        Conhecendo quem?

—        Eu, eu... Marina. Acabo de chegar...

—        Ah! ah! Marina!... que surpresa boa!... por que essa demora? ....... Estamos todos em casa, esperando... Telefonar por quê?

—        Quis saber, meu amor, se você está bem, se passou bem o dia...

—        Saudades!

—        Eu também... Muita saudade...

—        Venha.

—        E a mamãe? Melhor?

—        Pouquinho.

—        Escute...

—        Para que conversar? Corra para cá, venha logo...

—        Um momentinho só... Escute. Passei ra­pidamente em casa, no Flamengo, para conversar com mãezinha certas coisas... Estive com duas ami­gas em Teresópolis que me encheram a cabeça..

Estou perturbada, ciumenta...

—        Que é que há?

—        Marita...

—        Ora... Marita! Tenho nada com ela.

—        Mas eu soube...

—        Soube o quê?

—        Que vocês dois estão em compromisso. Sei que vocês andavam juntos, mas tanto assim não sabia...

—        Bobagem!

—        É muita conversa que não pude desmentir...

—        Perda de tempo. É muita gente biruta... Morou? (7)

—        Estive com papai ainda agora...

Nesse ponto da conversação singular, a voz dela titubeou. Ouvira o bastante para reconhecer-se desdenhada, batida. Entretanto, aspirava à lia do cálice. Necessário inteirar-se acerca de quanto Gil­berto havia descido. Receava descobrir-se. Indis­pensável toda precaução, a fim de escalpelar o in­sulto de que fora vítima. A pausa, no entanto, foi curta. Gilberto, no outro lado, pronunciou a deixa oportuna:

—        Então...

—        Explique-se.

—        Bem, você naturalmente deve saber agora o que aconteceu. O velho me procurou... Ele mesmo telefonou, sabe? Conversamos pessoalmente, acer­tamos tudo.

—        Quer dizer que Marita...

—        Imagine! escreveu-me pedindo encontro. O velho soube de tudo antes e me pediu dizer que iria, mas que eu não fosse. Entende?

—        No fim de contas, como é que você se arranjou?

—        Escrevi um bilhete, prometendo vê-la, mas combinei com o velho para que ele mesmo fosse buscá-la. Ele mesmo é quem propôs a solução. Você sabe, não podia deixar de atendê-lo... Primeira vez.

—        Estou perplexa, nervosa... Não compre­endo...

 

(7) Expressão de gíria. “Morar” significando com­preender. — (Nota do Autor espiritual.)

 

—        Ele me pediu escrever aceitando, para que Marita não ficasse chocada. Disse que ela tem es­tado borocoxô e prometeu que ele iria procurá-la, de modo a dar conselhos e a reanimá-la com uma boa notícia, uma excursão à Argentina...

—        Como?

—        Olhe lá, Argentina... Uma viagem para a Argentina...

Uma risada seguiu-se e, depois dela, a consi­deração sarcástica:

—        Sanatório, meu bem. Sanatório ou hospício. Para Marita, só sanatório e, quanto mais longe, melhor!... Argentina para uma e Petrópolis para dois...

Nesse ponto da entrevista, a jovem baqueou. Debruçou-se na cantoneira, inabilitada a reto­mar o fone, à vista dos soluços que lhe rebentavam do peito.

Escutávamos, nitidamente, a voz do rapaz, a distância, gritando:

—        Marina! Marina! diga o que há, diga, diga!...

A pequenina mão encharcada de lágrimas, no entanto, repôs o fone no gancho, com a tristeza de quem cerrava, em definitivo, as portas do co­ração.

A moça dedicou alguns minutos ao refazimen­to, reconstituiu, quanto possível, a tranqüilidade fisionômica e tornou à sala.

Embaraçada, referiu-se ao dinheiro empresta­do. Que Dona Cora lhe perdoasse o incômodo.

Se não pudesse voltar em pessoa, no dia seguinte, a companheira de seção na loja, Néli, que lhes era também íntima, faria o pagamento, considerando-se a hipótese de ela, Marita, não se achar em serviço. Bastaria procurar.

Dona Cora riu-se, cordial. Não pensasse na­quilo.

Prestimosa, estendeu-lhe o café que ela aceitou, constrangida. Conversa vai, conversa vem, a amiga estranhou-lhe o abatimento, a palidez, os olhos que não cessavam de chorar. Marita explicou-se, en­saiando um sorriso que não chegou a debuxar-se. Alegou-se gripada. Tinha coriza renitente, coriza brava. E, a propósito, indagou se ela julgava pos­sível encontrar ainda o senhor Salomão, naquele instante, depois das dez, na farmácia vizinha. Gos­taria de se aconselhar com ele sobre um antigripal. Trazia a cabeça pesada, os pulmões doloridos.

A delicada anfitriã pediu um momento e correu ao telefone para voltar, quase de imediato, dizendo que o farmacêutico a esperaria. Estava a sair do plantão, que ela não se delongasse.

Marita agradeceu, despediu-se e seguimo-la, passo a passo.

O senhor Salomão, velhinho calmo e compla­cente, em cujo olhar se adivinhava a brandura dos que se fazem servidores espontâneos da Humani­dade nos encargos que exercem, acolheu-a, solícito.

Ocultando os intentos recônditos, a recém-che­gada falou-lhe do resfriado. Afirmou sentir dores, vertigens. O boticário, de modos antigos, habituado ao ofício a representar-se de médico para os ami­gos, nos casos sem maior importância, pediu-lhe mostrasse a língua. Examinou-a com a prática de muitos anos, ao pé de enfermos, sem achar motivo de preocupação. Aplicou o termômetro. Nenhuma febre.

Sorriu, paternal, e aconselhou-a a ir para a casa, descansar. Não deveria aceitar serviço extra, até aquela hora da noite, comentou bonachão, e acrescentou que ela facilmente encontraria remé­dios para comprar, mas não a saúde. Indicou-lhe aspirina para a nevralgia, que supunha em ação, e... repouso.

A jovem recolheu os medicamentos, fez o gesto de quem se inclinava a retirar-se, satisfeita, e vol­tou à carga, aparentando recordar uma providên­cia esquecida.

— Salomão — disse com decidida curiosidade a transparecer-lhe da voz -, não sei se você está lembrado de “Jóia,” a minha velha cadelinha, que os meninos algumas vezes abraçaram na praia...

— Como não? Aquela inteligência de animal, brincando de esconder!... Até hoje, os netos imi­tam o andar de gatinhas que ela inventou...

— Pois é — prosseguiu Marita, afetando pena -, nossa pequena «Jóia» está no fim...

— Que foi?

— O veterinário explicou, mas não guardei o nome da moléstia, doença incurável. Grita sem pau­sa, um martírio.

Continuando, falou para Salomão que o bichi­nho se tornara problema no apartamento. O síndico reclamara várias vezes. Vizinhos andavam con­trafeitos. Os pais aguardavam que o veterinário amigo voltasse de São Paulo, a fim de que se apli­casse a eutanásia; entretanto, haviam autorizado tanto a ela, quanto à irmã, o emprego de algum remédio que pudesse trazer o descanso final. “Jóia” estava abatida, gasta. Lamentava perdê-la, fora-lhe companheira, no Flamengo, desde quando se ausen­tara da escola, simples menina. Ainda assim, adi­tava, era preciso enfrentar os fatos e poupar ao animalzinho maiores sofrimentos. Não teria o ami­go algumas pílulas adequadas?

Ouvira referências a comprimidos que, administrados em dose alta, propiciavam a morte, absolutamente sem dor; no entanto, não lhes conhecia o nome.

O         farmacêutico, sem qualquer prevenção, con­firmou. Sim, talvez tivesse no estoque alguns des­ses anestésicos de elevada potência e salientou que se a cadelinha fora condenada pelo veterinário não deveria ser conservada.

Convencido pelas informações reiteradas da moça, dirigiu-se a pequeno depósito, procurando, procurando...

Nisso, Félix e eu abordamo-lo, mentalmente.

O paternal benfeitor rogou-lhe examinasse a si­tuação. Fitasse aquela menina, assim fatigada e só, além das dez horas da noite, longe de casa. Despenteada, olheiras fundas, sem bolsa, sem agasalho. Ele também, Salomão, era pai e avô sensível. Não desse orientação em torno de venenos. Tivesse cuidado. Sossegasse aquela criança abatida com algum soporífero, fazendo-a admitir que leva­va o agente letal. Mentisse por piedade, mostrasse compaixão, adiando entendimento mais claro para depois.

Aquele homem, com toda a certeza, se agrisa­lhara em rudes experiências para adquirir a sensi­bilidade aguçada com que nos assimilou os apelos, porque, de imediato, se enterneceu. Voltou-se, dis­cretamente, para o balcão e mirou a freguesa, pela porta semicerrada, espantando-se ao vê-la, num instante como aquele em que não se supunha ob­servada.

Marita afigurou-se-lhe uma peça do museu de cera, amarrotada, inerte. Somente os olhos, embora parados, se evidenciavam ativos, em razão das lá­grimas copiosas.

«Oh! meu Deus — refletiu ele, desconsolado

—, isso não é coriza, isso é dor moral, dor ter­rível!...)

Salomão renunciou à pesquisa iniciada e sacou de largo recipiente de vidro alguns sedativos co­muns e tornou-lhe à presença. Fingiu despreo­cupação e apresentou-lhe os comprimidos, asseverando:

— São estes. Para a cachorrinha, no estado de que você fala, basta um.

— Tão violento assim? — perguntou a jovem, diligenciando reanimar-se.

— Isso é uma bomba de aplicação muito rara.

Aparentando-se embaído, para angariar-lhe a confiança, o boticário paternal alegou, porém, que só forneceria ante a receita médica. A responsa­bilidade pesava-lhe, muito grande.

Ela, contudo, insistiu. Que o farmacêutico não duvidasse. O veterinário assinaria o papel.

Consul­tou se poderia adquirir dez unidades. Melhor agir na certa. Não agüentava mais os gemidos ao pé do leito.

Salomão refletiu, refletiu... Voltou ao depósito e escolheu dez comprimidos calmantes, de potencia­lidade suave. Se ingeridos por ela, funcionariam beneficamente, prodigalizando-lhe sono reparador.

Marita agradeceu e despediu-se.

Salomão recomendou-lhe repouso, juízo.

Seguimo-la, de perto.

Vagarosa, atravessou dois quarteirões pela frente, ganhou a Avenida Atlântica e acolheu-se num bar.

Solicitou um copo de água simples, sem gás, em recipiente de plástico. Delicadamente atendida, transpôs o asfalto, pulou do calçamento de pedra no lençol argenteado de areia e acomodou-se no lugar que lhe pareceu mais escuro...

Aspirava a morrer, ao pé do mar, daquele mar sereno e bom que nunca a enjeitara, refletia com lágrimas... Queria partir, contemplando aquele mar que a beijava sem malícia...

Antes do gesto que considerava supremo, re­cordou a mãezinha que não conhecera e supôs-se mais infeliz. A genitora, não obstante desprezada pelo homem a quem se entregara, conseguira um teto para o momento do grande adeus. Ela não. Fora maltratada, espezinhada, escorraçada. Devia partir do mundo com um nome emprestado que de­testava, agora... Classificava-se por lixo da terra, supunha desafogar a todos, renunciando à existên­cia. Rememorou as manhãs felizes em que desfru­tara, ali mesmo, tantas vezes, o ar puro que vinha das águas e o agasalho do Sol. Parecia rever a massa domingueira, fraternalmente confundida na carícia da espuma. Atenta, imaginava-se ouvindo, de novo, a algazarra das crianças, lançando a bola ou manejando a peteca... Sim, não possuía um lar para morrer, mas dispunha da praia, hospitaleira e amiga, que reunia desconhecidos, aos milhares, sem nunca fazer-lhes perguntas indiscretas, a todos abraçando por verdadeiros irmãos...

Lamentou-se e chorou, longo tempo, enquanto Félix e eu esperávamos que dormisse para enfren­tarmos os problemas eventuais.

Marita despejou os dez comprimidos na boca e engoliu-os de um sorvo com água pura. Em se­guida, arrimou-se no encosto do passeio de pedra, qual se se dispusesse a meditar... Dos olhos, pen­deram as lágrimas que ela acreditou fossem as úl­timas e deixou que a brisa lhe afagasse os cabelos.

Brando torpor anestesiou-a.

Consultamos o horário. Cinqüenta e cinco mi­nutos depois da meia-noite.

Félix orou por instantes.

Não pude compreender, de imediato, se por obrigações de vigilância ou se correspondendo aos apelos do instrutor, dois rondantes desencarnados apareceram, ofertando serviço. Félix aceitou, reco­nhecido, e, enquanto os recém-chegados passaram a velar, ele e eu empreendemos a tarefa restaura­tiva. Providências para que a jovem não se afas­tasse, em espírito, do corpo desgovernado, passes reconfortantes nos centros de força, estímulos va­riados em diversas seções do campo cerebral, insu­flações nos vasos sangUíneos. Operações minuciosas e demoradas.

Acupuntura magnética do plano es­piritual, em que o orientador patenteava notável mestria.

Quase quatro horas foram despendidas, ao fim das quais, Marita repousava tranqüilamente.

Reconfortado, via nos olhos do benfeitor a es­perança luzindo... Nisso, porém, um “gari” assel­vajado largou a rua e caminhou em nossa direção, regando a areia... Dando com os olhos na menina adormecida, sentiu-se mordiscado de curiosidade. Não valeram recursos manobrados pelos vigias. O fanfarrão, relativamente moço, avançou para ela e sacudiu-a, rouquejando: «acorda, vagabunda», «acorda, vagabunda».

Feriram-se-me as fibras do sentimento, não só pela criança injustamente maltratada, mas também pela imensa dor que se estampou no semblante de Félix que, pela expressão agoniada, tudo daria para materializar as mãos e impedir aquele assalto.

«Acorda, vagabunda», «acorda, vagabunda»... As palmadas estalavam no rosto, cujas lágrimas o vento enxugara, piedosamente.

Frustrados, vimo-la abrir os olhos, estarrecida. Que homenzarrão aquele que, ao vê-la estremecer, não se pejava de comprimir-lhe o busto com as mãos libidinosas?

Não obstante atordoada, perguntava a si mes­ma se teria morrido, se estaria no inferno renteando com um demônio...

Intentou gritar, mas a garganta esmorecera. Mesmo assim, ergueu-se, aterrada, e aligeirou

o passo, cambaleante. Superando embaraços, ga­nhou a calçada em que um banco orvalhado convidava ao repouso, porém, não dispunha de sereni­dade para assimilar-nos as sugestões. Pisou, ata­rantada, no asfalto, indiferente aos princípios do trânsito... Oscilou, aqui e ali, estremunhada...

Automóveis deslizavam velozes, lambretas es­trondeavam em correria. Pedestres iam e vinham, diligenciando alcançar o trabalho a distância ou regressando ao aconchego doméstico, depois das atividades noturnas. Agitavam-se funcionários da limpeza e veículos ocupados em serviços da ma­drugada.

Preparava a cidade o dia novo.

Seguíamos a pobre menina, espíritos contun­didos por amargos presságios.

Parecia-me Félix um educador venerando, re­pentinamente descido a saracoteios na via pública, no propósito de salvar uma criança querida. Entre simpatia e respeito, eu acompanhava, penalizado, o grande instrutor que se apequenava e se afligia por ajudar...

Rapazes semi-embriagados na esquina próxima, ao fitarem Marita, vacilante, gargalharam, invec­tivando: «tipa de pileque! tipa de pileque! Mo­toristas de passagem gritavam-lhe injúrias, e, sem que aparecesse algum braço humano que a sus­tentasse no atordoamento que lhe impunha reitera-dos tropeções, foi colhida e projetada a pequena distância, por automóvel em velocidade excessiva, qual trapo de carne que se arremessasse, violen­tamente, no chão.

O         carro chispou, transeuntes acorreram.

Moças que regressavam de excursões alegres gritaram, alarmadas. Uma delas prorrompeu em choro histérico, sendo contida à força. No trânsito interrompido, em que debalde se buscava positivar responsabilidades, todos os veículos despejavam curiosos que se reuniam em torno da jovem, inerme.

O         corpo planara, a cabeça batera contra a pedra e, em seguida a curta reviravolta, caíra de bruços.

Pessoalmente, achávamo-nos atônitos. Não con­távamos com experiência bastante para ocasiões qual aquela em que o desastre consumado exigia improvisações. Todavia, entre os clamores de quan­tos apelavam para o socorro policial, irmão Félix sentara-se no asfalto. Aplicando vigorosos estí­mulos magnéticos sobre a cabeça da menina aci­dentada, fê-la cobrar energias para ganhar, meca­nicamente, o decúbito dorsal, a fim de que res­pirasse indene de maiores dificuldades, através de movimentos que, para muitos dos circunstantes, significavam esgares da morte.

Marita aquietara-se de todo.

Tive a nítida impressão de que a base do crâ­nio se fraturara, mas não me era lícita qualquer inquirição. A carga emocional pesava em demasia, para que me fossem possíveis quaisquer conside­rações de ordem técnica.

O         irmão Félix, na atitude dos pais, profunda­mente humanos e sofredores, acomodava-se de tal modo que a cabeça da jovem se lhe estendia no regaço. Erguendo as mãos sobre as narinas em sangue, levantou os olhos e orou em voz alta, que eu destacava da multidão em crescente vozerio:

— Deus de Infinito Amor, não permitas que tua filha seja expulsa da casa dos homens, assim, sem nenhuma preparação!... Dá-nos, Pai, o be­nefício do sofrimento que nos consinta meditar! O’ Deus de amor, mais uns dias para ela, no cor­po dolorido, algumas horas só que sejam!...

Calou-se o instrutor, como qualquer criatura terrestre, machucada de angústia...

Logo após, acenou para mim e recomendou-me demandar o apartamento do Flamengo, para ob­servar o que seria razoável obter, no tocante a medidas de auxílio. Que eu procurasse Cláudio ou Márcia, que lhes suplicasse apoio, compaixão. Ele, Félix, inspiraria alguém a telefonar. Os Nogueiras estariam entre ele e mim, a fim de que se inteiras-sem do acidente e fossem mentalmente movidos à piedade... Permaneceria ali, velando, fazendo quan­to pudesse para que a desencarnação imediata não se verificasse... Quando eu voltasse do Flamen­go, reunir-nos-íamos de novo...

Ao vê-lo assim humilhado na abnegação de que dava testemunho, arranquei-me à pressa, não só para atender à incumbência, mas também para desabafar-me. Às vezes, é preciso que as lágrimas nos sirvam de confidentes, quando não haja alguém que nos ouça... Tanto trabalho daquele benfeitor sublime para salvar uma criança gravada de du­ras provas!... Tanto sacrifício de um orientador, cuja grandeza se quintessenciara nas Esferas Su­periores, para ofertar-lhe os braços; entretanto, o malogro de tudo se me afigurava inevitável...

Antes que me arremessasse, da Avenida Atlân­tica para o Túnel Novo, ouvi muitas vozes que se elevavam, exclamando: «morta!... morta!...» Incapaz de sopitar as lágrimas, voltei-me para contemplar no rosto do irmão Félix o efeito de se­melhante notícia, concluíndo comigo mesmo: «tudo inútil, tudo inútil!...» Mas, vigoroso impacto de esperança me banhou o coração!. .. Tive a idéia de que fontes imponderáveis de energia jorravam do firmamento claro e estrelado sobre aquele re­canto de Copacabana, que o mar acariciava de perto, como a rogar-nos confiança em Deus, na linguagem ciciante das ondas!...

Não!... A batalha não arrefecera!...

Tínhamos conosco o suprimento do amor e a luz da oração!... Nem tudo estava perdido...

O benfeitor, guardando paternalmente nos bra­ços aquela criança desfalecida, fixava os olhos nas alturas e, recolhido a profundo silêncio, parecia agora falar com o Infinito.

 

       Quase cinco da manhã, quando nos vimos na intimidade dos Nogueiras.

       A casa jazia quieta. Peças mudas, silêncio.

       Agitava-se, porém, Dona Márcia, sob a colcha leve, cansada de vigília. Varara a noite em aflição. Na penumbra do quarto, apoiava o cotovelo no travesseiro e a cabeça na mão, de pensamento lon­ge. Tinha os olhos empapuçados de chorar. A fi­lha adotiva não voltara. Ansiosa, esperava que o dia se levantasse... Telefonaria para a residência dos Torres, para saber do regresso de Marina. Se preciso, chamaria Teresópolis. Queria comunicar-se com alguém, desentranhar-se. Sentia medo, o coração palpitava catástrofe.

       Consultei-a mentalmente, procurando noticias de Cláudio.

       Alcancei-lhe a resposta inarticulada. Supondo reconsiderar os sucessos da noite, passou a lem­brar-lhe o retorno, horas antes, totalmente embria­gado. Chegara tateando paredes, esbarrando com os móveis. Inferira que ele tentara afogar o re­morso em copázios de uísque. Ouvira-lhe os vômitos, escutara-lhe as descomposturas à porta, mas trancara-se, precavida. Carraspana e ressaca re­matando a criminosa aventura... Não desejava cenas.

       Súbito, quebrou a linha de reflexões em que penetrara. Repeliu-me a influência, convicta de estar reafirmando para si mesma que atingira o ponto final da tolerância... Nada mais com Cláudio.

       Convertera a mágoa em nojo. Aspirava a nova atitude, suspirava por desquitar-se, fugir...

Deixamo-la engolfada nas alegações negativas, buscando o aposento dos fundos. Nogueira aí se despejara em cama de solteiro, completamente equipado, sem alijar nem mesmo o paletó.

Estirava-se de lado, a expelir saliva grossa pelo canto da boca, ressonando, tranqüilo, e, com ele, o vam­pirizador, relaxado sob os efeitos do álcool. Am­bos largados, embrutecidos.

Demorava-me na inspeção, quando a campainha do telefone retiniu.

Com certeza, irmão Félix obtivera meios de abrir-me alguma porta, a fim de que me fosse possível atuar, favoravelmente. Imprescindível ata­car o problema, advogar a proteção de que fora incumbido.

Tornei à sala.

Dona Márcia, em baby-doll», punha o fone ao ouvido, carregada de escuros pressentimentos.

A voz de um homem simples repontou no aus­cultador:

—        Estou falando com o “seu” Cláudio Nogueira?

—        Na casa dele.

—        Ele está?

Dona Márcia reconhecia de todo impraticável o ensaio de qualquer conversação com o esposo, escornado àquela hora, e respondeu, positiva:

—        Não, não está.

—        Quero falar com ele ou com a madama.

A interlocutora, experiente demais em trotes e adestrada no jogo das conveniências sociais, pres­supôs estar em contacto com algum novo despro­pósito do marido, e indagou, prudente:

—        Com quem estou falando?

—        Com Zeca, lixeiro. Estou em Copacabana, preciso dar notícia de um desastre.

—        Que desastre?

— A senhora é a dona da casa?

—        Não sou, mas trabalho aqui. Sou empre­gada...

Dona Márcia receava cair em complicações, na hipótese de transpor as raias do anonimato, e, a vista disso, antes que o desconhecido revidasse, acrescentou:

—        Os patrões estão ausentes, mas posso dar o recado.

—        Olhe — gaguejou o informante —, o caso é com Dona Marita, a moça da loja.

- Que há? diga, por favor, que há?

A senhora Nogueira sentiu-se traspassada de angústia, enquanto, de minha parte, concluía que Félix angariara o concurso de um lixeiro presti­moso para transmitir a notícia, preparando o ter­reno que me cabia encaminhar ao plantio da com­paixão.

—        Diga aos patrões que ela foi atropelada...

—        Onde? como? quando?

—        Bem, eu não sei como foi, mas vi que era ela...

—        Agora?

—        Há uma boa meia hora, aqui perto, na Ave­nida Atlântica...

—        Está aí?

—        Não está, a ambulância já levou.

—        Mas o senhor tem certeza?

—        Tenho toda a certeza... Ela estava sem bolsa, ninguém a reconheceu... Mas eu conheço Dona Marita, foi sempre amiga de minha mulher desde que veio para cá. Minha mulher é empregada no edifício da loja... Coitada de Dona Ma­rita, moça tão boa! Ela é que conseguiu lugar para minhas duas filhas na escola!...

—        Mas, escute — Dona Márcia cortou as re­ferências, terrivelmente chocada —, como está ela?

—        Dizem que morreu...

Embora calejada contra as emoções, a esposa de Cláudio abandonou o fone e afastou-se, pálida.

Arremessou-se à cama e agarrou a própria ca­beça, entre as mãos, julgando enlouquecer...

— Morta! Marita morta! — refletiu, atribu­lada.

Recordou o ultraje que a pobre menina expe­rimentara naquela noite que o dia nascente esfumara, qual se expulsasse um pesadelo, e a mente divagou... Aracélia, a servidora e amiga...

Vinte anos antes. O suicídio!... E agora a filha, na mesma tragédia, com o mesmo homem...

Decerto, Marita, envergonhada, procurara a morte. Inexpe­riente, sucumbira. Ajustava argumentos por dedução. Crescina falara-lhe de encontro com Gilberto, no entanto, apanhara Cláudio em desconcerto fla­grante. Tudo indicava a intromissão dele em al­gum arranjo dos jovens, para infligir à filha o imperdoável insulto... Indubitavelmente, a desven­turada menina preferira morrer...

Nesse entretempo, intervim. Assimilei-lhe os pensamentos de simpatia e fi-la meditar nas tribulações de Marita, dentro da noite, esforçando-me por incliná-la à compaixão... Largasse o maras­mo, sacudisse Cláudio, chamasse, implorasse... Se o marido não estivesse em condições de compre­endê-la, que ela própria saísse à rua... Procu­rasse a moça... Telefonasse à Polícia, refletisse nela, como sendo sua própria filha... Corresse ao Pronto Socorro da Zona Sul, inquirisse funcionários, ouvisse médicos, visitasse a morgue... Al­guém auxiliaria, encontraria a criatura que a Pro­vidência Divina lhe pusera nas mãos... Quem sa­beria? Talvez que ela ainda estivesse nas raias do fim a esperar-lhe as mãos piedosas, como quem aguarda uma bênção!...

Dona Márcia ouviu mentalmente. Ao recolher-me as sugestões, imaginou a filha estendida no necrotério, comoveu-se e chorou...

Entretanto, a senhora Nogueira não era pes­soa que renunciasse a peso e medida, em matéria de questões sociais e domésticas. Reagiu para logo, crendo-se piegas. Não queria afundar-se em senti­mentalismo, confessou, na suposição de que falava consigo mesma. Era necessário sopesar prós e contras.

Do pesar ao cálculo, mediaram apenas alguns instantes.

Efetivamente, lastimava Marita e enojava-se de Cláudio, monologou, todavia, era mãe. Nada de alhear-se ao destino da filha. Marina aprumava-se. Os Torres eram ricos, talvez riquíssimos.

Am­bas as moças disputavam Gilberto. Afinal, a morte de Marita surgia por solução. Assim que pudesse chamar o esposo a brios, combinariam plano certo Levantariam a hipótese de acidente, inventariam versão plausível. Ela própria afirmaria que con­cedera à jovem permissão para pernoitar em casa de parente enfermo, recomendando-lhe o regresso tão cedo quanto fosse possível para a obtenção de notícia urgente.

Indispensável maquinar situações, engenhar detalhes. Os chefes da loja, amigos de Marita, se interessariam pelos fatos. A imprensa tomaria atenção. Cabia-lhe preparar-se a fim de facear repórteres e fotógrafos. Pensou no modelo azul com que se apurava na representação a funerais e vas­culhou a memória para saber onde colocara, dis­traída, os óculos escuros.

Quando a manhã se adiantasse, despertaria o esposo, com vista ao ajuste. Conversariam seriamente. Até lá, fantasiaria a história convinhá­vel ao público, em função da felicidade e do futuro de Marina. Se a outra estava morta, para que preocupar-se? Importava-lhe agora a filha, somen­te a filha... E, depois que a filha se casasse.. nada de Cláudio. Não se sentia inútil, mas andava cansada de dar no batente, suportando inibições e contrariedades pôr um esposo que, desde muito, se lhe fizera detestável. Não se escravizaria. Re­cebera um convite de Selma, companheira de in­fância, para negócio que considerava lucrativo, na Lapa. Na frente um café, acompanhado de ape­ritivos e guloseimas e, nos fundos, quartos de aluguel...

Reconhecendo que Dona Márcia se imobilizava, mentalmente, em digressões esconsas, tornamos àpresença de Félix para a obtenção de roteiros precisos.

Acomodada num leito de emergência, Marita figurava-se em coma.

Félix, assistido agora por dois médicos desen­carnados, em serviço na grande instituição socorrista, se mantinha sereno, apesar da tristeza que lhe velava o semblante.

Acolheu-me, paciente. Ouviu-me.

De posse das informações de que me fizera mensageiro, recomendou-me esperá-lo alguns minu­tos. Sairíamos, à cata de reforço.

Enquanto isso, auscultei a jovem acidentada, que jazia inconsciente, em terrível depressão.

Escassas reações dos centros nervosos, anoxemia, sen­síveis alterações dos capilares, lesões no peritônio. Os esfincteres descontrolados davam passagem a líquidos e excrementos que empastavam a veste.

Félix mobilizou as providências cabíveis e ro­gou aos colegas desencarnados nos substituissem por instantes.

Demandamos a residência de Cláudio.

A caminho, notei que o benfeitor, em silêncio, adensava a própria forma, transfigurando-se na apresentação. A ocorrência, que eu conseguia ape­nas depois de paciente elaboração mental, obtinha-a Félix com esforço ligeiro. Rápidos momentos e im­primiu ao corpo espiritual novo ritmo vibratório.

O instrutor assumira as características de um homem vulgar.

Por que a transformação?

— André — respondeu, assimilando-me os pen­samentos —, ninguém pode fazer tudo senão Deus. Você é também médico e não ignora que, em cer­tas ocasiões, é imperioso pedir remédio ao pilriteiro. Na Terra, às vezes, para socorrer um santo é necessário dosar um veneno. Marita, em súbita decadência física, precisa agora dos préstimos de alguém que a ame infinitamente. Chegou a hora de esmolar para ela o socorro dos que a feriram amando...

A voz do amigo carregava-se de pesar; con­tudo, não nos era possível comentar a filosofia que enunciava, de vez que atingíramos o prédio em que se dependurava o ninho dos Nogueiras, banhado pelo sol recém-vindo.

Subimos.

Qual aconteceu comigo na véspera, o instrutor bateu à porta semicerrada.

Após reiterados chamamentos, Moreira veio atender, como qualquer ser humano estremunhado.

Não me via, porqüanto de tempo não dispu­sera eu para a metamorfose necessária, mas, ren­teando com Félix, desenrolou comprida fieira de insultos, que o benfeitor recebeu com humildade.

Quando terminou, algo desenxabido pela ausência de qualquer resposta que lhe alimentasse a ira gra­tuita, Félix comunicou-lhe o acidente. Sabia-o in­teressado na proteção da moça, rogava-lhe amparo. Diante da incredulidade com que era acolhido, so­licitou-lhe fizesse a gentileza de verificar se a menina amanhecera no lar.

Moreira correu ao interior e voltou, coçando a cabeça. Sim, atenderia ao apelo, mas não des­pertaria o dono da casa enquanto não averiguasse a realidade.

Carrancudo, ladeou o instrutor, sem dizer pa­lavra, do Flamengo ao estabelecimento de socorro público, mas, topando a moça, entregue à miserabilidade orgânica, o peito se lhe explodiu numa torrente de lágrimas, semelhante a rocha que se partisse de repente para revelar uma fonte. .

Rodou sobre os calcanhares e arrancou-se qual flecha.

Félix, confortado, explicou que, pelo visto, Cláu­dio não tardaria, informando-me de que, segundo lhe era lícito ajuizar, Marita conseguira pequena moratória. Mais alguns dias no corpo amarfanha­do, quinze a vinte no máximo... Tempo de medi­tação, preparo valioso ante a vida espiritual... O cérebro seria protegido, mas não recuperado. Desorganizara-se. Dentro de algumas horas, a moça poderia pensar e ouvir com regularidade, reaver alguns recursos da sensibilidade e enxergar im­precisamente; entretanto, não mais contaria com o centro da fala. Naquele estado, aditou ele, per­maneceria facilmente, na esfera física, por muito tempo ainda, mas o peritônio sofrera contusões de efeitos irreversíveis. Não valeriam antibióticos, por maior fosse a carga. Ainda assim, sentia-se reconhecido aos supervisores espirituais, que ha­viam advogado a pequena dilação. As horas fi­nais ser-lhe-iam preciosas. Desfrutaria o ensejo de aprontar-se para a renovação, enquanto que Cláu­dio, Márcia e Marina talvez reconsiderassem ca­minhos.

Arrecadava-lhe o otimismo, comovidamente. Transcorridos pouco mais de cinqUenta minu­tos, Cláudio, seguido por médico que se lhe afei­çoara à família e que conhecia Marita, desde muito, deu entrada no posto de assistência. Márcia, sob a pressão de Moreira e interrogada pelo marido, liberara as informações de que dispunha.

O facultativo recém-chegado deixou o bancário no vestíbulo para efetuar a inspeção, identifican­do a menina sem maiores dificuldades. Feito isso, tomou providências, junto aos colegas, para que a Jovem fosse imediatamente transferida para o Hospital Central dos Acidentados, com vistas ao tratamento urgente e minucioso. E depois de li­gações telefônicas, no preparo da instalação neces­sária, determinou as medidas inadiáveis. Que lim­passem Marita, que se lhe purificasse o ambiente, que mesmo acreditada em coma fosse tratada com o máximo apreço.

Seja dito, no entanto, que não se registrara, ali, qualquer desleixo. As condições precárias da moça exigiam repouso, quietação. Justo observá-la, antes de qualquer alteração suscetível de agravar-lhe os constrangimentos.

Com efeito, iniciada a laboriosa remoção que Cláudio e Moreira seguiram, de longe, a cabeça, pendida para trás, impeliu o sangue a movimento retrógrado e surgiu a possibilidade de asfixia.

élix controlou, quanto pôde, as mãos dos condu­tores, e, tão logo a vimos ajustada em novo leito, vali-me do socorro magnético de profundidade que as circunstâncias exigiam. Sentei-me, de maneira a guardar aquele corpo abatido em meus braços, envolvendo-o no meu próprio hálito, numa opera­ção que nos permitiremos nomear aqui por adição de força, cujos resultados se destacam surpreen­dentes, quando a criatura retida no envoltório fí­sico se mostra nos últimos lances da resistência.

Nesse ínterim, Félix aconselhou que eu me adensasse na apresentação, a fim de que Moreira me enxergasse os exercícios. Conservava a espe­rança de vê-lo oferecer-se para manter a respiração da moça em boa ordem.

Orei, empenhando-me na consecução do objeti­vo, e quando Nogueira e o acompanhante vararam a porta do quarto em que a administração nos localizara, o vampirizador deitou-me olhar espan­tadiço.

Cambalearam sensibilizados, aflitos...

Incoercível emoção me tomou a alma.

Cláudio abeirou-se, trêmulo, da filha e rompeu em soluços.

Tanto quanto me era dado perceber, aquela hora significava para ele doloroso balanço de cons­ciência.

Instintivamente, tornou à infância e à moci­dade... Lembrou as leviandades primeiras.

Irreflexões do passado corporificaram-se-lhe na memó­ria. Enfileirou na imaginação os desvarios sexuais das trilhas percorridas. Cada jovem que iludira, cada mulher de cujas fraquezas abusara reponta­vam-lhe na tela mental, como que a lhe pergun­tarem pela filha que a vida lhe trouxera...

Aquele homem que me inspirava sentimentos contraditórios e de quem teria desejado distanciar-me, tocado de aversão, me insuflava agora um en­ternecimento que somente as lágrimas exprimiam!...

Perante a enfermeira impressionada, Cláudio ajoelhou-se e, com ele, pôs-se Moreira genuflexo... Em choro convulso, o pai alisou aqueles cabelos despenteados, contemplou a fisionomia de cera que a morte parecia estar modelando, mirou a face e os lábios intumescidos por equimoses, aspirou o ar deteriorado que se lhe exalava dos pulmões e, mergulhando a cabeça nos lençóis, gritou, ven­cido:

—        Ah! minha filha!... minha filha!...

Quase no mesmo instante, a fronte de Moreira vergou, como se esmagada de sofrimento...

Am­bos jaziam, ali, debruçados, rente aos meus joelhos, com a mesma rendição dentro da qual Marita se me conchegava ao regaço.

Reconheci que a Providência Divina, em seus desígnios, não me aproximava unicamente da vitima. Os verdugos também pediam amor. Segu­rando a moça inerme, à altura do peito, afaguei-os com a destra, sustentando-me em prece... E a prece clareava-me o pensamento, corrigindo-me a visão!... Sim, tentando consolar aqueles dois ho­mens que o remorso dobrava em tormento indizí­vel, refleti nos meus próprios erros e compreendi os propósitos da vida!... Não!... Eles não eram os estupradores, os obsessores, os inimigos, os car­rascos que eu detestara na véspera!... Eles eram meus amigos, meus irmãos!...

 

Confrangido, mas sereno, Félix acercou-se de Nogueira, administrou-lhe energias de refazimento e, após levantá-lo, despediu-se, asseverando que voltaria.

Que não me inquietasse, falou, bondoso. Es­taríamos juntos, enviaria cooperadores, tomaria providências.

Respondi, sossegando-o. Afeiçoara-me àquela menina que, afinal, era nossa filha em espírito.

Não, não a deixaria na dura fase da desencarnação.

Entrementes, Cláudio afastou-se, buscando o especialista.

Moreira, que me observava desde a chegada, fitava-me agora com simpatia, que me empenhava em conservar.

Em dado momento, interpelou-me. Amaciou o tom de voz e disse reconhecer-me. Queixou-se.

Vira diversos irmãos desencarnados, avizinhando-se da porta e acenando com asco.

Apontavam Marita com desprezo, referiam-se a figurações des­pudoradas, traçavam gestos no ar, sugerindo qua­dros obscenos, e um deles chegara ao desplante de abordá-lo, indagando quem era aquela mulher que transpirava carniça.

Tratei de consolá-lo. Aquilo passaria. Esperá­vamos companheiros, abastecidos com os recursos necessários, a fim de que isolássemos o recinto.

Satisfazendo-lhe as perguntas, esclareci que, sem querer, assistira ao desastre e condoera-me daquela moça sozinha, jogada no asfalto.

Quis saber minudências; contudo, temendo ém­baraços, prometi-lhe que, logo aparecesse oportu­nidade, colheria informes seguros para nós ambos.

Tentando harmonizá-lo com as exigências do serviço que nos defrontava, roguei-lhe permissão para cooperar. Ficaria contente se ele me aceitasse o concurso, ali, ao pé daquela jovem que a pro­vação humilhava. Colhera alguma experiência em hospitais e poderia ser útil.

Moreira comoveu-se e aprovou a idéia. Sim, aclarou, devotava-se a ela, com ardente afeição, e me reconhecia o desinteresse em servi-la. Con­taria comigo, reportou-se a compensações.

Conhe­cia meios de auxiliar-me, defender-me-ia, ser-me-ia companheiro fiel.

Em seguida, examinou curiosamente o proces­so pelo qual a respiração de Marita era auxiliada e pediu-me instruções. Queria substituir-me. E com tanta diligência e humildade se colocou no meu posto que, em minutos breves, atendia à manuten­ção da jovem, com segurança superior àquela que me esforçava em cultivar.

Procurei adestrá-lo. Obedeceu docilmente e guardou nos braços aquele corpo amarrotado, que se transfigurara num fardo de dor, salpicado de fezes. O perseguidor da véspera, tocado no âma­go, enlaçou-a com a dignidade de um homem pie­doso que socorre uma irmã, empregando-se no tra­balho de instilar-lhe energias e reaquecer-lhe os pulmões com o próprio hálito.

Sensibilizado, ao identificar-lhe a transforma­ção, concluí que nem sempre é o salva-vidas, tecni­camente construído, a peça que assegura a sobre­vivência do náufrago, e sim o lenho agressivo que teimamos em desdenhar.

Retirei-me, por instantes, à busca de Cláudio e encontrei-o em compartimento próximo. Valia-se do intervalo, em que era constrangido a esperar pelo médico, para telefonar.

A voz inconfundível de Dona Márcia vinha do outro lado. O esposo falava, sob traumatismo evi­dente; ela, no entanto, não respondia fora da des­treza mental que lhe conhecíamos. Folgava em sa­ber que a filha estava ainda viva. Melhor encer­rassem o assunto. Se a Medicina já estava em cena, desistia de aumentar as aflições que lhe inçavam a casa.

Nogueira passou do noticiário às súplicas. Se­ria conveniente que ela viesse amenizar a situação.

A senhora, porém, mencionou compromissos inadiáveis. Estava de saída para a aquisição de linhas, destinadas à confecção de vários enfeites encomendados por Marina. Compreendia que a moça talvez não se recuperasse; entretanto, incli­nava-se a crer que tudo não passava de episódio sem importância. Marita sempre fora exagerada em questões de sensibilidade, gostava da ostentação de ridículo. Além disso, se estivesse tão mal quanto o marido supunha, ele, na condição de pai, se achava lealmente junto da filha, eximindo a ela, Dona Márcia, de sacrifícios maiores do que aqueles que já lhe sobrecarregavam os ombros. Fez chiste, mascarando de sarcasmo o desaponta­mento com que recolhia a informação de que a filha adotiva não estava morta, impelindo todos os constrangimentos da família à estaca zero. Re­cordou ao esposo que o Rio não era interior e que doente algum se podia dar ao luxo de contar com mais de uma pessoa, acalentando o leito, numa capital que excedia o tamanho de Babilônia. De­clarou-se cansada de bobagens e arrufos entre jo­vens namorados e afirmou preferir tricotar a fazer adulação para uma filha que não era dela e que sempre timbrara em loucura e faniquito. Rema­tava, aconselhando para que não se complicassem com despesas. Que ele ouvisse os médicos e re­movesse a menina, quanto antes, para casa.

Nogueira, desolado, insistiu, pintando o qua­dro em que se contristava; entretanto, a senhora encerrou a conversação, atirando-lhe uma frase que lhe despedaçou as últimas esperanças:

— Bem, Cláudio, tudo isso é problema seu.

Nogueira discou para a residência dos Torres.

Marina ainda não voltara.

Desacoroçoado, chamou para a casa do chefe. Atendido, prestou sucinto relatório da apertura, indagando sobre a concessão de férias no banco. O diretor sossegou-o. Compreendia a emergência, também era pai. Não apenas despacharia favoravel­mente a petição, mas se colocava igualmente ao dispor dele para qualquer eventualidade.

Tornando ao aposento onde Moreira velava, entrou em conversação com a facultativo de serviço.

O médico registrou-lhe a inquietude e compa­deceu-se. Asseverou que era cedo para um pro­nunciamento mais claro. Empreenderia exames, prescrevera transfusões de sangue e antibióticos, estudaria as reações. Mesmo assim, não dispensa­ria a consideração de um neurologista, na hipótese de surgirem complicações, em vista da pancada forte, havida no crânio.

Nogueira concordou e, humilde, solicitou per­missão para instalar-se junto da filha. Não se quei­xaria de preços, advogava para ela o melhor tra­tamento.

O         clínico prometeu cooperar, favorecer.

Daí a instantes, Marita foi novamente trans­ferida de quarto, onde Cláudio, Moreira e eu pas­samos a intimidade mais ampla. Aqueles dois Es­píritos, que se avalentoavam por bagatela, mani­festavam -se agora diferentes, submissos.

O         esposo de Dona Márcia trazia os olhos ma­rejados de pranto. Partira-se-lhe a alma. A convicção de que a filha tentara o suicídio, por culpa dele, requeimava-lhe o coração, qual lâmina esfo­gueada que se lhe enterrasse no peito. De tantos escândalos escapara, de tantas proezas se ocultara, impassível; entretanto, aquele corpo abatido que a morte espreitava parecia encerrar-lhe o destino. Sentia-se arrasado, a ponto de não lhe importar nem mesmo a confissão de todos os delitos da existência, em praça pública... Delitos que supunha para sem­pre esquecidos, nos escaninhos do tempo, assoma­vam-lhe agora à lembrança exigindo reparação... Sobretudo, Aracélia!... A genitora de Marita que ele próprio aniquilara, a peso de sarcasmo e ingra­tidão, parecia alcançá-lo pelo túnel da consciên­cia... A imagem daquela moça inexperiente da roça crescia-lhe por dentro. Lastimava-se, acusava, per­guntava pela filha, pedindo-lhe contas!...

Conjeturava-se Nogueira às portas da loucura. Não fosse a resolução de recuperar a filha

prostrada, usaria o revólver contra si mesmo. Afi­gurava-se-lhe o suicídio como sendo a válvula de livramento. Adotá-lo-ia, raciocinava, taciturno. Se Marita morresse, não desejava sobreviver.

       Cerrar-lhe-ia os olhos e destruir-se-ia sem compaixão. Ao passo que as reflexões amargas lhe obs­cureciam a mente, colava-se Moreira aos pulmões da triste menina, num espetáculo comovedor de paciência e dedicação. De minha parte, assinala­va-lhe o devotamento sincero, os propósitos puros. O corpo injuriado não lhe inspirava repugnância. Enlaçava Marita com a veneração de quem se con­sagra a uma filha padecente para quem todos os cuidados e todos os carinhos são sempre escas­sos... De quando em quando, passava uma das mãos no rosto para enxugar as lágrimas...

       Aquele Espírito que eu conhecera áspero e agreste amava profundamente, porque é preciso amar a alguém, com extremada ternura, para sorver-lhe com ale­gria o hálito fétido e acariciar-lhe a pele mancha­da de excrementos, com o enlevo de quem preserva um tesouro imensamente querido ao coração...

O         silêncio era apenas cortado, de vez em vez, pelos movimentos da enfermeira que vinha fisca­lizar o soro a descer no braço, gota a gota, ou aplicar injeções, segundo os avisos médicos.

O dia avançava. Três da tarde. Calor. Para Cláudio, as horas assemelhavam-se a correntes que arrastava no cárcere do remorso. A noção de iso­lamento agigantou-se-lhe no espírito. Voltou ao telefone e procurou por Marina.

A filha atendeu. Palestraram.

Cientificara-se do acidente por Dona Márcia; no entanto, esperava que a ocorrência desagradá­vel não passasse de susto. Não, não lhe era pos­sível comparecer no hospital. Dona Beatriz, que passara a considerar igualmente por mãe, piorara muitíssimo. Aguardava-se-lhe o fim, a qualquer hora. Que o pai a desculpasse; entretanto, admi­tia que a irmã devia estar satisfeita ao saber-se assistida por ele. Impossível pedir mais.

Nogueira regressou ao quarto, esmagado pelo desânimo.

Ninguém para migalha de apoio, ninguém a entender-lhe o suplício moral.

Às cinco, no entanto, alguém apareceu, um ve­lho que solicitara a recomendação de clínico pres­timoso.

A sós com Nogueira, apresentou-se.

Era Salomão, o farmacêutico.

Declarou-se amigo da moça acidentada. Esti­mava-lhe a lhaneza de trato, apreciava-lhe as gentilezas. Vizinho da loja, partilhava com ela o café, quando obrigado ao lanche fora de casa.

Surpre­endera-se com a notícia do atropelamento e deli­berara visitá-la, mesmo porque acreditava tivesse sido um dos últimos amigos que Marita ouvira na véspera.

E, diante da curiosidade e do reconhecimento do interlocutor, narrou quanto sabia, pormenor a pormenor.

Evidente, concluiu, que alguma desilusão recôn­dita lhe ditara o gesto desesperado. Recordava-se, perfeitamente, de lhe haver notado o pranto que ela, em vão, buscava disfarçar. Teria ingerido os soporíficos que lhe dera, e, identificando-lhes o ca­ráter inofensivo, certamente que se projetara sob um automóvel em disparada...

Cláudio ouviu, chorando... Intimamente, acei­tou a hipótese. Sem dúvida, a filha não pudera sobreviver ao insulto de que ele próprio se acusava. Aquele desconhecido confirmava-lhe as impressões. Refletiu no suplício moral da jovem humilhada, an­tes de se lançar ao gesto infeliz, sentiu-se o mais abjeto dos homens, no arrependimento que lhe azor­ragava todas as fibras da consciência, e agradeceu ao interlocutor, sofreando os soluços. Abraçou Sa­lomão, num impulso de louvável sinceridade, e sa­lientou que ele, o visitante gentil, era o verdadeiro e talvez o único amigo daquela criança que procu­rara a morte e que tudo fariam para reaver.

O         farmacêutico apiedado arriscou um alvitre. Confessou-se espírita e assinalou que os pas­ses, sob a cobertura da oração, beneficiariam a menina prostrada. Ignorava quais os princípios religiosos de sua família; entretanto, possuía um amigo, o senhor Agostinho, a quem poderiam recorrer. Confiava na prece, no amparo espiritual. Se Cláudio permitisse, buscá-lo-ia. Nogueira acei­tou com humildade. Afirmou-se sozinho. Não lhe seria lícito recusar um auxílio que lhe era ofere­cido com tanta espontaneidade. Apenas admitiu que se via na obrigação de rogar o consentimento das autoridades.

O         facultativo, que lhes atendeu ao chamado, ouviu a petição. Homem experimentado em angús­tias humanas, fitou Marita, não só com a inteli­gência do técnico que observa um aparelho, a ca­minho do desmonte para verificações finais, mas também com o sentimento de um pai afetuoso, e asseverou que Cláudio dispunha do direito de pres­tar à filha a assistência religiosa que desejasse, e que, em se abstendo de ferir o regulamento da instituição, fora do quarto, ali estava como em sua própria casa.

Compadecido, ele mesmo favoreceria a vinda de Salomão com o espírita que indicasse. E, às oito da noite, o boticário de Copacabana entrou com o amigo que carregava pequeno pacote, em que se encontrava um livro.

Nogueira espantou-se. Aquele homem, que o saudava fraternalmente, e que lhe era apresentado por senhor Agostinho, freqüentava o banco, onde se alinhava entre os clientes mais respeitados. Co­nhecia-lhe a posição de comerciante distinto, con­quanto não lhe desfrutasse a intimidade. Entre­tanto, se o recém-chegado o reconhecia, não dava qualquer mostra.

Interessou-se delicadamente pela moça e intei­rou-se de todas as minudências do desastre, com as atenções de quem escuta a própria família.

Logo após, entre Cláudio e Salomão, orou, emocionado. Suplicou a bênção do Cristo para a menina atropelada, qual se expusesse, diante de Jesus invisível, uma filha profundamente cara, e, em seguida, ministrou-lhe passes de longo curso com o devotamento de quem lhe transferia as próprias forças.

Cooperamos com ele, sob o olhar penetrante de Moreira, que tudo anotava como que sequioso de aprender.

A operação, saturada de agentes reconstituin­tes do plano físico, infundiu grande bem à moça, melhorando-lhe a condição geral. Relaxou-se-lhe mais intensamente o esfíncter da micção, a respiração desoprimiu-se e conseguiu entrar em sono calmo.

Cláudio solicitou a presença da enfermeira e, enquanto a serviçal modificava a rouparia, os três conversaram em saleta próxima. Informado, en­tão, de que Nogueira jamais tivera contacto com princípios religiosos, Agostinho ofereceu-lhe o livro que trazia, um exemplar de «O Evangelho segun­do o Espiritismo», e prometeu voltar na manhã seguinte.

 

Nogueira, reinstalado no aposento, ensimes­mou-se, refletindo, refletindo...

Lá fora, a noite de chumbo e, com ele, o si­lêncio, apenas entremeado pela respiração sibilante da filha...

Se fosse unicamente Salomão o interventor inesperado! — pensava, cismarento —, e talvez não se permitiria maior detenção no assunto. Aquele vendedor de remédios que lhe confidenciara os su­cessos da noite, inspirando-lhe, aliás, gratidão e simpatia, parecera-lhe excelente pessoa; entretanto, na simplicidade bonachona com que se apre­sentava, poderia não passar do crente de boa-fé, lamentavelmente emblocado na superstição... Agos­tinho, no entanto, agitava-lhe o espírito.

Comer­ciante abastado e instruído, não se deixaria enrolar em tapeações. Conhecia-lhe a agudeza de raciocínio, a honestidade. Além disso, possuiria ocupa­ções mais vantajosas em que aplicar atenção e tempo.

Que doutrina aquela, capaz de induzir um ca­valheiro dinheiroso, a entrar em prece, num quarto de hospital, chorando de compaixão por arrasada menina, à beira da sepultura? Que princípios im­peliam, assim, um homem educado e rico a esque­cer-se, no socorro aos infelizes, a ponto de tocar-lhes as matérias fecais, imbuído daquele amor, que somente os pais conhecem nas entranhas do coração?

Fitou Marita que dormia, calma, e recordou os dois homens abnegados que lhe haviam trazido alívio, sem nada perguntar... Ele que jamais se aproximara de ensinamentos religiosos, habitualmente tratados por ele com manifesta desconside­ração, acolhia-se agora a vasta série de porquês.

Abafado, agoniava-se com a sede de algo... Sem o apoio fluídico de Moreira, que dedicava to­das as energias à moça em decúbito, lembrou o cigarro, mas dizia de si para consigo que não era mais o cigarro o objeto que desejava.

Aspirava a sair, correr ao encontro de Agos­tinho e Salomão, a fim de perguntar-lhes pela fé em Deus. Anelava inteirar-se de como conseguiam entesourar tanta crença. Ambos haviam suavizado a opressão que lhe supliciava a filha... Naquele instante, indagava a si mesmo se não era igual­mente digno de piedade. Marita repousava no sono das vítimas, que a justiça resguarda na paz invio­lável da consciência, enquanto que ele se ator­mentava na vigília dos réus!... Reconhecia-se en­fermo da alma, náufrago que afundava no rede­moinho do desespero... Queria agarrar-se a alguém, a alguma coisa. Singela raiz de confiança mantê­-lo-ia à margem da queda total!... A solidão asfixiava-o. Tinha fome de companhia.

Sugeri-lhe a leitura. Que ele abrisse o volume com que fora brindado. O livro conversaria em silêncio, ser-lhe-ia companheiro. Não se compro­metesse a digerir-lhe, de vez, todas as instruções.

Consultasse trechos, aqui e ali. Respigasse idéias, selecionasse conceitos.

Assimilou-me a indução e tomou a brochura, compulsando-a. Ainda assim, tentou reagir.

Acusa­va-se incapaz, inquieto. Não retinha a menor par­cela de serenidade para ler com aplicação ao as­sunto.

Insisti, porém.

Os dedos nervosos tatearam o índice. Relan­ceou o olhar, através das legendas. No capítulo 11º, esbarrou com um item sob o título: «Cari­dade para com os criminosos». Aquelas sílabas invadiram-lhe o cérebro atribulado quais gazuas de fogo. Sentia-se descoberto por tribunal invisível. Sim! — monologou, desconsolado — é imprescin­dível examinar-se. Na própria conceituação, qua­lificava-se por malfeitor, foragido da grade. Du­rante o dia inteiro fora visto e acatado, ali, sob aquele teto, como sendo pai carinhoso, mas sabia-se estuprador, filicida...

Carregava a dor irre­mediável de haver impelido a filha querida à lou­cura e à morte!... Que condenações enfileiraria aquele volume contra ele? Merecia escutar a pró­pria sentença, junto daquela que lhe caíra sob o golpe aniquilador...

Procurou a folha indicada e oh! surpresa!... O livro não lhe amaldiçoava a presença. Leu e releu, chorando, aquelas frases que ressumavam brandura e entendimento. Identificou-se à frente de um apelo à fraternidade e à compaixão, que não pintava os delinqüentes por seres infernais, ausen­tes da órbita do Amor Divino. A pequena mensa­gem concitava à tolerância e terminava rogando preces, a benefício dos que sucumbem na voragem do mal.

As lágrimas borbotaram-lhe mais profusamen­te dos olhos!... Aquelas palavras chamavam-no a razão. Percebia que o mundo e a vida deviam estar banhados de profunda misericórdia.

Classificava-se por matador e achava-se ali, reconsiderando o pró­prio caminho, com suficiente lucidez para analisar-se e pensar... Aquele primeiro contacto com as verdades do espírito fendia-lhe, de alto a baixo, a cidadela do ateísmo. Com a sofreguidão do se­dento que atravessa longo deserto, mortificado de sede, atirou-se aos textos, de cujos caracteres ideias esclarecedoras e balsâmicas vertiam, sublimes, lem­brando torrentes de água pura. Esquadrinhou vá­rios temas...

Adquiriu conhecimentos rápidos acer­ca da reencarnação e da pluralidade dos mundos, meditou nas maravilhas da caridade e nos prodí­gios da fé, através das chamas imortais do Cristianismo que ali renasciam para ele, reaquecendo­-lhe o coração!...

Quando olhou o relógio, os ponteiros marcavam duas da madrugada.

Varara quatro horas, mergulhado no livro, sem perceber. Sentia-se outro, O cérebro clareara-se, crivado de pensamentos renovadores que lhe sus­citavam ardentes inquirições. Aquela era uma dou­trina que lhe permitia sentir e indagar livremente, qual filho no regaço de mãe... Em verdade, con­jeturava, se Deus não existisse, se não houvesse uma vida, além da Terra, por que se entregava, daquele modo, a tão funda compunção? Se tudo na existência acabaria em animalidade e lodo, que ra­zões lhe ditariam o suplício moral, diante da filha, que lhe inspirava contraditórios sentimentos?

Ama­va tanto aquela menina desventurada!... Por que não lograra sustentar-se, na posição de pai, infen­ção aos impulsos do sexo? que forças o haviam arrastado até à condição do verdugo em que se aviltara? A idéia da reencarnação relampejou-lhe na cabeça. Ele e ela remanesciam de experiências anteriores... Indubitavelmente, algemada a domi­nadoras alucinações afetivas, teriam vivido no pas­sado, padecido e chorado juntos!... Aquela devo­ção por Marita era para ele comparável ao iceberg que mostra reduzido fragmento, ocultando o peso enorme na vastidão das águas... Naquele momen­to, algo lhe dizia, na acústica do espírito, que ele, Cláudio, a trouxera, de novo, para o mundo, atra­vés da paternidade, a fim de orientá-la com lim­peza e abnegação!... A sabedoria da vida restitui­ra-lhe o carinho, no sorriso filial, por algum tempo, para que retificasse os erros do tirano amoroso que deveria ter sido em épocas passadas e as pai­xões cujos rescaldos lhe calcinavam agora o co­ração... As realidades do destino se lhe alteavam do pensamento, belas e difusas, como o brilho dos raios de luz ao fundirem a névoa...

Ainda assim, não se desculpava. Reconhecia ter agravado os próprios débitos.

Entrevendo as realidades da vida Além-Túmu­lo, apelava para os amigos que vira partir!... Que se apiedassem dele e de Marita! que suplicassem a Deus para trocar-lhe a existência pela dela...

Ele que se classificava pai criminoso expiaria, no mundo espiritual, as próprias faltas, para, em se­guida, renascer na Terra, mutilado, ressarcindo os débitos contraídos. Que ele se afligisse, expungin­do as nódoas da alma; entretanto, que a filha vi­vesse e fosse feliz!... E, se lhe cabia continuar, ainda, no mundo, transportando no peito a angús­tia daquela hora, que a deixassem mesmo assim, abatida e muda, em seus braços! Teria forças para carregá-la’     Ser-lhe-ia apoio, refúgio!... Que ela ficasse! que se lhe desse oportunidade de trans­figurar, junto dela, todos os caprichos de homem rude em manifestações de amor puro... Aconche­gá-la-ia, de algum modo, ao coração. Obteria uma cadeira de rodas, conduzi-la-ia a qualquer parte. Acolheria sem reclamar quaisquer obstáculos; en­tretanto, implorava à Providência Divina poupasse Marita ao gládio da morte para que não faltasse a ele o ensejo de reajuste e reparação!...

Abracei-o, sugerindo-lhe esperança. Que não esmorecesse. Confiasse. Quem estaria na Terra, sem problemas? Quantos, naquela mesma hora, em outros lugares, se achariam em lutas semelhantes? Aquele volume, que lhe sacudia o pensamento, se mantinha, ali, qual sinal de trânsito, na estrada do destino. Valia interpretar o remorso por marca vermelha, suscitando parada.

Conviria frear o car­ro dos próprios desejos e pensar, pensar!... Todos atingimos um dia de reconciliação com a própria consciência; que não desertasse da luz que lhe acen­diam na marcha.

Compreendesse que a lei de Deus não se afirma em condenação, mas sim em justiça e que a justiça de Deus nunca se expressa sem piedade. Que ele meditasse, concluíndo que se nós outros, os homens imperfeitos, já conseguíamos adicionar compaixão à justiça, por que motivo Deus, que é o Amor Infinito, haveria de exercê-la, im­placável? Ali, transpúnhamos a escuridão da noi­te... a alvorada não tardaria e, com ela, o sol diurno que chegava sempre novo!... Que levan­tássemos todos os sentimentos para a renovação que começava!...

Moreira, que me avistava enlaçado a ele, en­dereçou-me ansioso olhar, como a inquirir pelas idéias que eu lhe insuflava. Antes, porém, que me viesse substituir, cioso do lugar de conselheiro que me permitia ocupar, apelei para Cláudio, inclinan­do-o a iniciar, ali mesmo, a obra reparadora.

O bancário não vacilou.

Fundamente enternecido, levantou-se, caminhou na direção da cama e ajoelhou-se à cabeceira.

Confessava a si próprio que, pela primeira vez, depois de muito tempo, fitava o semblante da filha, sem que a mais leve tisna de fascinação sexual lhe alterasse os sentimentos.

Tremeu-lhe o coração, atormentado.

Acariciou-a com uma espécie de ternura que jamais experimentara, deixou que as próprias lágrimas lhe orvalhassem o rosto e suplicou, em surdina:

— Perdão, minha filha!... Perdão para seu pai!...

A rogativa desfaleceu na garganta que os soluços embargavam...

Marita evidentemente não respondeu; no en­tanto, o afago paternal instilou-lhe energia dife­rente e tanto Moreira quanto eu próprio registra­mos, espantados, o gemido que ela desferiu, deno­tando sinais de retorno a si mesma.

Cláudio, esperançado, desligou-se. O carinho impregnara-se nele de súbito respeito.

Intimamen­te comparou aquele afeto imaculado que lhe nascia ao lírio alvo que desponta num charco.

Outros gemidos repetiram-se imprecisos, dolo­rosos...

O genitor escutava-os, ralado de angústia. Da­ria o que tivesse para traduzir aqueles vagidos de criança inconsciente... Conjeturou, porém, que eles exprimiam padecimentos físicos inenarráveis e ago­niou-se em choro convulsivo. O ex-vampirizador, transfigurado em servo diligente, ergueu-se, pres­to, e veio abraçá-lo, no intuito de propiciar-lhe reconforto, mas notei que os dois amigos jaziam, agora, perto e longe um do outro. Juntos por fora e distantes por dentro. Ombros unidos e pensa­mentos opostos. Moreira fora atingido pelos acon­tecimentos, mas não tanto. Patenteava enorme afei­ção por Marita, lutava por ela, mas, no fundo, não escondia o propósito de seguir controlando Cláudio, no resguardo de seu próprio interesse. Identifi­cando o parceiro tocado no coração pelos sentimen­tos edificantes que a leitura lhe sugerira, revelava o desapontamento semelhante ao de um pianista que surpreendesse o instrumento favorito com as teclas mudas.

Alarmado, desfechou-me perguntas. Sosseguei-o, afirmando que o cérebro de Nogueira se anulava, naquele instante, por arrasadoras co­moções; entanto, no íntimo, certificara-me de que ele havia dado um passo adiante e de que o com­panheiro menos feliz deveria elevar-se no mesmo diapasão para desfrutar-lhe a convivência, se não quisesse perder-lhe a companhia.

A mente do bancário emergia daquelas horas reduzidas de estudo compulsório, sob a tormenta moral, ao jeito de paisagem, quando varrida de terremoto. Nenhuma analogia com o que era an­tes.

Em razão disso, enfadava-se o outro, melin­drado, triste.

Mesmo assim, Moreira retomou o trabalho de manutenção da jovem prostrada.

Nisso, porém, chegaram dois auxiliares, Arnul­fo e Telmo, que vinham, da parte do irmão Félix, colaborar no auxílio à menina.

Ambos simpáticos, espontâneos.

Apresentei-os ao mantenedor magnético, sur­preso, cuja posição espiritual reconheceram, de pronto; contudo, na gentileza característica dos co­rações generosos, envidaram todos os esforços para não constrangê-lo com qualquer linha divisória de tratamento. Rodearam-no de otimismo e bondade, qualificando-o na categoria de colega estimável.

Na antevéspera, aquele irmão, que se avalentoa­va no Flamengo, não aceitaria tal camaradagem; todavia, Marita ali respirava, entre dois mundos... Fatigada, dispneica...

Por Marita, suportava as alterações, sofreava os impulsos.

A madrugada abeirava-se do dia.

Acercamo-nos de Cláudio.

Indispensável fazê-lo descansar, dormir.

Moreira, com iniludivel desgosto a se lhe es­tampar na fisionomia, observou-nos o cuidado, na administração dos passes balsâmicos, aos quais o paciente aquiesceu sem qualquer contradita.

Aliás é de mencionar-se a sensação de alívio com que Cláudio nos respondeu ao toque sugestivo. Acabava de viver minutos de martírio inominável. Aspirava ao repouso, mendigava esmola de paz.

Todavia, enquanto se lhe relaxavam os nervos tensos à pressão do sono que lhe impúnhamos, brandamente, Moreira a tudo assistia, no crescente desagrado da pessoa que contempla a agitação e a mudança de sua casa, conturbada em serviços de reforma que não pediu. Lançava ondas de aze­dia e amargura no sorriso amarelo. Tudo para ele surgia deslocado, revirado... Entre o amigo que lhe fugia ao comando e a jovem, cujo corpo físico se decidia a preservar, sentia-se atônito, desen­xavido...

Compreendendo que não lhe seria lícito incom­patibilizar-se conosco, simplesmente à face da assis­tência que o esposo de Dona Márcia recolhia de nós, aplicou-se com mais veemência às atenções para com a moça, cujos pensamentos mais profun­dos empenhava-se agora por auscultar.

Marita, a seu turno, porque assimilasse mais amplo montan­te de força, acabou reassumindo o leme dos centros cerebrais, que ainda se lhe mantinham à disposi­ção. Recuperou a sensibilidade olfativa, percebia, raciocinava e ouvia com relativa segurança; con­tudo, estava hemiplégica, nada enxergava e extin­guira-se-lhe a fala, de modo irreversível. A prin­cípio, admitiu-se acordando no sepulcro. Ouvira muitas narrações, alusivas a mortos que desperta­vam no túmulo, lera depoimentos relacionando su­cessos dessa ordem e assistira a vários filmes de horror. De alma opressa, supunha-se num transe desses, estendida ali no leito que tomava por ataú­de, no silêncio de aflições inapeláveis... Forcejava por gritar, reclamando socorro; no entanto, veio-lhe a idéia de haver esquecido o processo de arti­cular as palavras. Sabia-se pensando com a própria cabeça, mas ignorava agora os movimentos coor­denadores da voz. Apesar de tudo, reconhecia-se consciente.

Sentia, memorizava. Recordou os acon­tecimentos que lhe haviam inspirado o propósito de morrer. Arrependia-se. Se a vida continuava, para que provocar o fim do corpo? — considerava, desditosa. Lembrou as ocorrências da Lapa, a en­trevista com Gilberto pelo telefone de Dona Cora, os comprimidos de Salomão, o sono à frente do mar, o desconhecido prestes a assaltá-la, a corrida para o asfalto, a queda sob o automóvel em movi­mento... Depois, aquilo ali... O corpo estatelado que lhe parecia de pedra, a consciência ativa, as percepções aguçadas e a incapacidade de expres­são... Intimamente, o esforço desesperado para fazer-se notar; no entanto, sentia-se entalada por gargalheira de chumbo. Irritou-se, debalde. Fre­mia de impaciência, de espanto, de dor... Mágoa e revolta, petitórios e indagações esmaeciam-se-lhe, imanifestos, no âmago do ser.

Por mais se empe­nhasse a chorar, desoprimindo-se, as lágrimas se lhe represavam no peito, sem nenhum canal que lhe extravasasse as agonias. Os olhos, tanto quanto a língua, se lhe figuravam desligados do corpo...

Estaria morta — perquiria a jovem num misto de perplexidade e sofrimento —, ou quase a morrer?

Escutou os passos da enfermeira de plantão e registrou a respiração sibilante do pai, sem a pos­sibilidade de identificar-lhes a presença e, em vão, tentou pedir explicação para o cheiro nauseante que a cercava.

Transcorridas duas horas de angústia recôn­dita, que Moreira assinalava com acuidade e precisão, a moça como que se aquietou, mentalmente, e perscrutando-lhe, por minha vez, o campo intimo, notei que se fixava lamentavelmente em Marina.

O companheiro desencarnado que, até então, se fazia suporte psíquico de Cláudio e que neces­sitava de base moral para garantir o próprio re­equilíbrio, encontrou pasto robusto a nova desorien­tação.

Descobri o perigo, sem poder conjurá-lo.

Percebendo-se demitido da complacência do ami­go que se lhe transformara em joguete, procura­va-lhe na filha motivos outros em que se lhe fa­cultasse permanecer atrelado à demência.

De nossa parte, não era possível pressionar a menina acidentada, no sentido de lhe sustar as lamentações. Qualquer dispêndio de energias, além das estritamente necessárias ao seu sustento, po­deria precipitar-lhe a desencarnação.

Insciente das complicações que gerava com se­melhante procedimento, a filha de Aracélia recons­tituiu na imaginação as aperturas da existência. Acusava a irmã por todos os infortúnios. Exibia-lhe a figura na tela da memória como sendo a inimiga imperdoável... Marina a furtar-lhe as ca­rícias maternas, Marina a surripiar-lhe as oportu­nidades, Marina a roubar-lhe as afeições. Marina a subtrair-lhe o eleito dos sonhos juvenis...

Não valeram ponderações que lhe endereçáva­mos, inquietos.

A influência de Moreira, que lhe amimalhava as incriminações, surgia naturalmente muito mais vigorosa para ela, que diligenciava encontrar sim­patia e adesão.

Aquela desventurada menina desconhecia os poderes do pensamento. Não sabia que, fora da indulgência e da brandura, invocava desagravo e, assim procedendo, não apenas enredava a família em duras provações, mas igualmente punha a per­der o valioso trabalho de recuperação daquele ami­go necessitado de afeição e de luz.

O ex-assessor de Cláudio, ao absorver-lhe as confidências mudas, em que relacionava os pesares mais íntimos, dos quais não tivera ele conhecimen­to, retomava, a pouco e pouco, a brutalidade que, anteriormente, lhe marcava a expressão.

Esvaeciam-se-lhe as melhoras de espírito.

A pretexto de auxiliar a protegida, reavivava os instintos de vingador.

O olhar que se adoçara de compaixão, readqui­riu a lividez dos alienados. Sumiram-se todos os indícios de retorno à sensatez e à humanidade que patenteava, desde o momento em que renteara com a moça abatida.

Inútil seria qualquer tentame para reconduzi-lo à serenidade. Embebendo-se nos queixumes daque­la que classificava como sendo para ele a mulher querida, restaurava em si mesmo a selvageria da fera sequiosa de sangue. Respondendo-nos às pe­tições de calma e tolerância, clamava que não, que não... Ninguém o faria renunciar à guerra pela tranqüilidade daquela que amava; alegava desco­nhecer, até então, o martírio que a irmã lhe apli­cara durante a vida inteira e insistiria no das­forço...

Ao vê-lo abandonar o serviço a que volunta­riamente se impusera, incapaz de refletir nas con­seqüências da própria deserção, compreendi que o ex-obsessor convertido em amigo fora assaltado por crise de loucura e inclinei-me a considerar se o irmão Félix não errara solicitando a permanência de Marita no corpo desarticulado, tal a extensão dos males que o ex-vampirizador seria capaz de estender, a partir daquela hora; no entanto, repri­mi-me... Não! eu não detinha o direito de julgar o companheiro destrambelhado que se afastava de nós, enquanto o sol da manhã se aprumava no céu. O irmão Félix sabia o que fizera e, com certeza, em outro tempo, não me desequilibrara e nem de­sacertara em ponto menor...

Competia-me simplesmente trabalhar, socorrer. Transferi nossos encargos às atenções de Arnulfo e Telmo e demandei a residência dos Torres, o único lugar para onde Moreira, a nosso ver, de­certo rumaria.

Entrei...

Na casa silente, cochichava-se a medo. Lágri­mas no semblante dos servidores humildes.

Dona Beatriz, em coma, esperava a morte.

Neves e outros afeiçoados do mundo espiritual rodeavam o leito. Dedicada enfermeira observava a senhora prestes a mergulhar no grande repouso, diante de Nemésio, Gilberto e Marina, que se aco­modavam a pequena distância.

Aturdido, porém, verifiquei que Moreira não se achava ainda aí. A surpresa, entretanto, se desfez para logo, de vez que, transcorridos alguns mo­mentos, o ex-acompanhante de Cláudio, seguido por quatro camaradas truculentos e carrancudos, pe­netrou, desrespeitosamente, o recinto... E, sem a menor comiseração pela agonizante, acercou-se da filha de Dona Márcia e gritou, encolerizado:

—        Assassina!... Assassina!.

 

Debaixo da agressão, Marina experimentou irre­primível mal-estar. Empalideceu. Sentia-se sufocar. Registrava todos os sintomas de quem recebera pan­cada forte no crânio. Jogou a cabeça para trás, na poltrona, esforçando-se por esconder a indispo­sição, mas debalde. Os Torres, pai e filho, perce­beram-lhe a vertigem e acorreram, pressurosos.

Nemésio tomou a palavra, atribuindo o des­maio à fadiga de quem se movimentara durante a noite inteira, sem o mínimo descanso no decor­rer do dia anterior, ao redor da dona da casa, cujo corpo se consumia com dolorosa lentidão, ao passo que Gilberto trazia água fresca, antes de telefonar para o médico.

No ambiente espiritual, o impacto não foi me­nos constrangedor.

Neves fitou-me, irrequieto, como a rogar so­corro para não explodir. Conhecia Moreira, de nos­sa primeira visita ao Flamengo; entretanto, igno­rava os acontecimentos que nos apoquentavam, desde a antevéspera. Pelo olhar de censura que nos arremessou, concluí que julgava o aposento da filha invadido por malfeitores desencarnados, numa investida sem qualquer significação, incapaz de ajuizar quanto às causas que impeliam o ex-con­selheiro de Cláudio àquele gesto de revolta, para o qual arrebanhara colegas infelizes, efetuando um ataque categorizado por ele à conta de empreitada punitiva e justiceira.

Uma das senhoras desencarnadas, que aguar­dava o momento de acolher Beatriz, liberta, abor­dou-me, pedindo providências.

Moreira e os aderentes despejavam ditérios e obscenidades, injuriando a dignidade do recinto, depois de haverem burlado a vigilância mantida em torno da casa. Não formulava o pedido para que se articulasse a contenção deles, a propósito de preconceitos humanos. Aceitava os recém-che­gados na posição de credores da maior comisera­ção; no entanto, a senhora Torres estava nas der­radeiras orações, em vias de partir. Esmolava tranqüilidade, silêncio.

Em determinadas terapêuticas, não se pode restabelecer a normalidade orgânica senão remo­vendo o centro de infecção, e, ali, o pivô da desar­monia era Marina.

Afastada a moça, retirar-se-iam com ela os agentes da desordem.

Abeirei-me da menina carecedora de piedade. Supliquei-lhe saisse. Fosse repousar. Não teimasse ante a solicitação nossa em seu proveito.

Ela obedeceu a contragosto.

Pediu licença aos amigos, a fim de esperar o médico na dependência dos fundos, e acompanhei-a.

O bando, porém, renteou comigo e Moreira interpelou-me. Queria saber de minha simpatia pela jovem que ele hostilizava. Indagava, desabrido, se eu não a conhecia suficientemente, se não lhe assis­tia às bacanais entre pai e filho e por que me in­teressava de modo tão especial por aquela a que ele chamava bisca, bonita por fora e devassa por dentro.

Ironizando-me a escassa inclinação à conversa, reportou-se, com enérgicas rabecadas, à dama que nos havia rogado a execução de medidas para afas­tá-lo do quarto, declarando que não era covarde para incomodar moribundos, e perguntou, insolen­te, por que razão as entidades veneráveis e amigas, que ele apelidava por «aquelas mulheres», nos compeliam a retirá-lo, quando ali deixavam Marina res­pirar à vontade, acentuando que, por ser franco e áspero, não se considerava pior.

Crivou-me de objurgações repassadas de fel. Desafiando-me, por fim, a enunciar o meu ponto de vista, utilizando palavras que colocavam em jogo a confiança com que me honrava, desde a véspera, arrisquei-me a ponderar que Marina, ape­sar de tudo, era filha de Cláudio Nogueira e irmã de Marita, aos quais tributávamos ambos calorosa afeição. Qualquer fracasso em prejuízo dela seria desastre para eles. Não me cabia reprovar corri­gendas, capazes de lhe fortalecer a vigilância, com manifesta vantagem para ela; no entanto, por ami­zade aos Nogueiras, não concordaria em que fosse massacrada.

Ele sorriu e obtemperou que as apreciações não eram de todo desprovidas de senso, prometen­do que amainaria o desforço, mas não desistiria da correção.

Despachou os cooperadores, recomendando aos quatro lhe aguardassem as ordens no pátio lateral, e acompanhou-nos, segurando-a, descortês.

Indiferente a qualquer idéia de companhia es­piritual, Marina penetrou na câmara, encostou a porta e ajeitou-se no leito, cerrando os olhos.

Relaxou-se.

Aspirava a dormir, descansar... Mas não con­seguiu.

Moreira, insensível, indicando o propósito de arrasar em mim qualquer simpatia pela contadora indefesa, participou-me que ia submetê-la a inter­rogatório, em torno de Marita, para que eu lhe ou­visse o depoimento inarticulado e avaliasse o caso por mim mesmo.

Suspirei pela obtenção de respostas que eno­brecessem o inquérito mental em preparo; contudo, minhas esperanças se desvaneceram no nascedouro.

O indesejável patrocinador de Marita, erguido por si mesmo à condição de juiz, pespegou um pe­jorativo contundente aos ouvidos da moça e recla­mou-lhe a opinião, sobre a irmã hospitalizada.

Que se manifestasse, que expusesse o seu ponto de vis­ta, quanto àquele suicídio comovedor.

Marina, embora debilitada, conjeturou-se tan­gida pelos próprios pensamentos a lhe buscarem atenção para a irmã acidentada e, presumindo mo­nologar, deixou que os pensamentos lhe pululassem do cérebro, sem o travão da autocrítica.

Compadecia-se da irmã — parafusava, cal­culista —, no entanto, confessava-se agradecida ao destino por se ver livre dela. Indiscutivelmente, não teria tido coragem de impeli-la à morte; todavia, se ela própria deliberara desaparecer, cedendo-lhe posição, sentia-se aliviada. Gilberto inteírara-a de um telefonema que recebera na noite da antevés­pera. Confiara-lhe as impressões.

Nada de trote. Pelo jeito, deduziram que Marita lhe imitara a voz, efetuando sondagem...

Convencida de que o ra­paz não a desejava, preferira morrer. Gilberto fora claro. Pelos tópicos da conversação pelo fio, dos quais lhe transmitira os mínimos pormenores, Ma­rita investigara-lhe os sentimentos, no intuito de arrancar-lhe uma declaração indireta. Desiludida, optara pela renúncia. Em razão de tudo isso, não lhe cabia perder-se em divagações. Se o jovem Torres a amava, no mesmo grau de carinho com que se lhe entregara, e se a outra resolvera sumir, nenhum motivo para ralar-se, O próprio Gilberto, semanas antes, perguntara-lhe, de estranha manei­ra, pelas esquisitices da irmã. Julgava-a desequi­librada, neurótica, ao que se lhe referira à pater­nidade anônima. O filho de Nemésio acreditava em sífilis na cabeça, asseverando que Marita não servia para casar.

Após ligeira pausa no pensamento, como quem apaga uma luz e a reacende, alterando o cenário, a jovem do Flamengo seguiu pensando, memori­zando...

Telefonara para casa, durante a noite, e a mãezinha informara que Manta ainda não havia morrido; contudo, o médico esclarecera a ela, Dona Márcia, em ligação confidencial, que a Ciência não dispunha de meios para recuperá-la e que o óbito era questão para da! a alguns dias. O facultativo solicitara-lhe atenções especiais para Cláudio, es­magado de angústia. Recomendara-lhe nada dizer ao marido, quanto à opinião aberta que expunha, parecer que formulava apenas para com ela, ao re­conhecê-la mais calma, diante do sofrimento. Que ela, na condição de mãe, se premunisse contra emo­ções muito fortes, a fim de sustentar a família, no transe que sobreviria, a qualquer momento.

Aquelas elucidações, no silêncio, feriram Mo­reira nas últimas fibras.

As notícias médicas, assim desdobradas, porta­vam para ele os efeitos de um tiro.

Não se resignava à idéia de perder Marita, no plano físico. Ela, inconscientemente, despendia re­cursos fluídicos que se casavam com os dele, for­necendo-lhe sensações de euforia, robustez.

Retirava dela os estimulantes mentais que lhe vigorizavam a masculinidade, tanto quanto se valia habitual­mente de Cláudio, para viver sobre a Terra como qualquer ser humano.

Entre a frustração e a inconformidade, desig­nou Marina com um nome chulo e justificou-se, diante de mim, quanto à determinação de puni-la. Infantilizado, colérico, bradou que nós ambos vía­mos, juntos, o regozijo com que cismava no infor­túnio da outra; que eu não lhe podia negar a frie­za de sentimentos; que a minha palavra apoiasse a dele, em momento oportuno; que eu lhe servisse de testemunha.

Marina, porém, continuava meditando, aclaran­do, qual se aditasse, espontaneamente, impressões marginais ao tema que Moreira lhe propusera.

Amava a Gilberto, sim. Apenas a ele. Desco­briria recursos para desvencilhar-se de Torres, pai. Quanto mais corria o tempo, com maior segurança afiançava a si mesma pertencer ao rapaz.

Ane­lava desposá-lo, ser-lhe a mulher em casa e mãe de seus filhos...

No entanto, quando o esboço do lar futuro se lhe configurou na imaginação, o meu interlocutor arremeteu-se contra ela e bramiu:

— Nunca!... Você nunca será feliz!... Você matou sua irmã... Assassina! assassina!...

Agredida sem que me fosse permitido prote­gê-la, porqüanto a minha interferência isolada se fazia desaconselhável, a benefício dela mesma, a jovem experimentou-se invadida de estranho mal-estar.

Aquelas incriminações percutiam-lhe fundo, qual se alguém lhe varasse o pensamento.

Ofegou em desassossego.

Começou a refletir, acerca de Marita, sob no­vos aspectos, estabelecendo confrontos. Debalde es­grimia idéias, tentando impugnar o remorso que se lhe infiltrava na consciência. Julgava contraditar-se. Gemia em desconforto. Ignorava-se em luta com uma Inteligência que se lhe mantinha invisível, a pedir-lhe contas do proceder. Á medida, porém, que o adversário martelava as censuras, às quais aderia por saber-se culpada, passou a perder posi­ção. Enevoava-se-lhe o raciocínio, mobilizou todas as energias para não desmaiar, temia a loucura...

O contendor desafiara a fortaleza, proclaman­do-lhe as brechas. A fortaleza resistiria, incólume, se fosse inteiriça; entretanto, as brechas existiam e, por elas, o inimigo lançava petardos de maldição e sarcasmo, gerando a demência e invocando a morte.

Em vão, diligenciei no silêncio, articulando agentes mentais de auxílio para que a vítima se libertasse; contudo, a menina, bastante hábil para movimentar-se, entre os homens, sem comprome­ter-se na superfície das circunstâncias, jazia desar­mada de conhecimento enobrecedor, com que se advertisse, recuando na trilha percorrida para ado­tar direção diferente.

Marina, à mercê da força que lhe espatifava os recursos psíquicos, sentia-se derrotada...

Da impassibilidade ante o desastre ocorrido com a irmã, transferiu-se à opressão, ao temor...

Ao toque do inquisidor que lhe vasculhava a cabeça, começou a imaginar que Marita, em verdade, não intentaria o suicídio, se nela houvesse achado uma companheira honesta e piedosa.

Rememorou a noite em que divisara Gilberto pela primeira vez. O jovem saía de um cinema, em companhia da irmã, amparando-a contra a chuva. Tamanha a doçura daqueles olhos, tão grande o carinho daqueles braços!... Julgou encontrar Ne­mésio mais moço. Comprometida com Torres, pai, presumia enxergar no filho os atributos de juve­nilidade que lhe faltavam... Capricho ou afeição, apaixonara-se pelo rapaz, cortejara-o abertamente. Enlaçara-o com os dotes de inteligência, até acen­der-lhe na alma entusiasta o anseio de comparti­lhar-lhe sonhos e emoções.

Convidara-o a entre­tenimentos, agarrara-lhe o coração. Instalara nele a necessidade dela, tornara-o dependente, escravo. Manobrava-o, inteiramente, o que a irmã, inexpe­riente e sincera, não se animara a fazer, conquan­to lhes conhecesse, através dele próprio, o com­promisso oculto.

Ao sabê-lo aprisionado à outra, requintara-se, aliás, nos processos de sedução. Aca­riciava-o, impunha-se, maníetava-o, à maneira da aranha entretecendo o fio veludoso para cativar o inseto que se dispõe a devorar...

Perante o libelo do juiz inesperado, perguntava­-se pela tranqüilidade própria. Examinando escru­pulosamente, as atitudes que assumira, verificava, espantada, que lesara a si mesma. O remorso fi­gurou-se-lhe trado invisível a verrumar-lhe o crâ­nio. Lágrimas abundantes lhe subiram do peito aos olhos, lembrando jorros de água que a broca somente consegue arrancar, ao subsolo, ao tatear lençóis mais fundos.

O médico, assistido pessoalmente pelo dono da casa, apanhou-a em crise de pranto. Não obstante apreensivo, consolou-a, erguendo-lhe o ânimo. Fa­lou em cansaço. Elogiou-lhe a pontualidade e o devotamento de enfermeira, prescreveu-lhe tranqüi­lizantes. Que ela repousasse, que não desampa­rasse a si mesma.

Marina, porém, não ignorava que a consciência se debatia em pânico, que era inútil qualquer ten­tame para largar o foro íntimo. Quando o facul­tativo se despediu, retomou o choro convulso, dian­te de Nemésio que, intimidado, trancou a porta e se abicou, junto dela, no intuito de confortá-la e confortar-se.

Constrangido a facear com a cena de ternura, sem fundamentos de afeição recíproca, inquietei-me por Moreira, que zombeteava, lançando frases ultrajantes.

Nemésio rogava à moça tratar-se, refazer-se. Tivesse paciência, que se regozijassem ambos.

Nada além de mais alguns poucos dias e estaria em pes­soa, no Flamengo, para os derradeiros arranjos do casamento. Contava com ela e queria fazê-la feliz. Encantado, beijava-lhe o rosto molhado, qual se aspirasse a sorver-lhe as lágrimas, enquanto que a jovem, francamente conturbada, lhe arremessava olhares de esguelha, entremeados de compaixão e repulsa.

Convidei Moreira à retirada. Ele, porém, de­sapiedado, indagou se me falhava a coragem para conhecer Marina, tanto quanto ele, e, porque me inclinasse a defendê-la, acrescentou que não se achava ali na posição de carrasco. Escarninho, re­comendou-me não acusá-lo, asseverando que deti­nha tanta culpa na indisposição da jovem quanto aquela que teria um bisturi na ablação de um tumor.

Pedi-lhe, em consideração a Cláudio, nos auxi­liasse a proteger-lhe a filha, menina recruta na guerra contra o mal, embora se acreditasse sufi­cientemente sabida.

Por que não nos conservarmos a porta, resguar­dando-a? Um momento talvez chegasse em que passaríamos a rogar-lhe concurso. Não obstante alegar que nunca se acomodara à alcovitice, que não tinha vocação para capa de malfeitores, aquies­ceu e saímos. Do lado externo, porém, à vista de referir-me à hipnose, no campo afetivo, expendendo considerações ao redor da paciência, que nos toca exercer, junto de todas as pessoas em distúrbios do sexo, ele riu-se abertamente e comentou, galho­feiro, que não me adiantava falar grego, diante de obscenidades que para ele possuíam nomes pró­prios, e advertiu-me que quando o pai se retirasse viria o filho e que eu perderia a graça e o latim de qualquer jeito.

Efetivamente, quando o chefe da casa se re­tirou, o rapaz, cansado da vigília noturna, veio em nossa direção e entrou no quarto.

O         colega endereçou-me olhar significativo; con­tudo, antes que se desregrasse na crítica, apareceu alguém com bastante simpatia e piedade para des­focar-nos a mente.

Era o irmão Félix.

Através da expressão, dava-me a perceber que se inteirara de todos os sucessos em curso; no en­tanto, abriu os braços para Moreira, à feição do pai que reencontra um filho. O amigo, que volvera ao desequilíbrio sentimental, por sua vez, reconhe­ceu-se invadido por eflúvios regenerativos e recor­dou, sensibilizado, o primeiro encontro em que o benfeitor lhe solicitara colaboração para Marita, e enterneceu-se.

Félix, sem um gesto que lhe exprobrasse a deserção, apelou para ele com absoluta confiança:

— Ah! meu amigo, meu amigo!... Nossa Ma­rita!...

E, ante as indagações do interlocutor, que o tratava como de igual para igual, esclareceu que

a menina piorara. Dores agudas lhe mortificavam o corpo. Afligia-se, fatigada. Desde o momento em que ele, Moreira, se afastara, tudo indicava que a pobrezinha entrara em regime de carência. A so­fredora criança necessitava dele, esperava por ele, a fim de aliviar-se.

Ante as frases sinceras que o atingiam no fun­do, o ex-assessor de Cláudio acudiu, incontinenti, regressando em nossa companhia para o hospital, onde realmente a moça se estirava em situação lastimável.

Quatro horas haviam escoado, modificando-nos a tela de serviço.

Averiguamos que o pedido de Félix não se ali­cerçava num artifício piedoso. Escorada por Telmo, que lhe insuflava energias, Marita não lhe assi­milava a influência com tanta segurança.

Sem qualquer propósito de censura, é licito registrar que faltava entre eles aquela harmonia necessária às crenas das rodas de engrenagem deter­minada, num plano de sustentação. Telmo, rico de forças, apoiando-a, lembrava um sapato novo e precioso em pé doente. Cedendo lugar ao recém-chegado que o rendeu, pronto, verificou-se, de ime­diato, alguma desopressão. Marita ajustou-se, me­canicamente, aos cuidados que Moreira lhe oferecia. Ainda assim, a peritonite instalava-se, dominante.

Aumentara o mal-estar.

A filha de Aracélia gemia sob a atenção atri­bulada de Cláudio, que a observava, azorragado de sofrimento íntimo. Entretanto, agora, o ex-vampi­rizador do Flamengo encontrava enorme diferença. Acicatada pelos padecimentos físicos, Marita não dispunha de facilidades para pensar senão nas pró­prias dores, contundida, suarenta, amarfanhada... E o martírio corporal que lhe transfundia todos os impulsos, num gemido que não conseguia arti­cular, provocava em Moreira, unicamente, simpatia e compaixão.

 

No entardecer do dia imediato, enquanto se­guíamos de perto a crescente renovação íntima de Cláudio que, por algumas vezes, já conseguira se entender com Agostinho, adquirindo mais amplos recursos de cultura espírita, a filha de Aracélia repousava, sob o patrocínio de Moreira, que se re­confortava ao identificar o resultado compensador do próprio esforço. Ele mesmo, agora, compreen­dia que a moça se lhe afinava, com mais segu­rança, ao apoio fluídico. E regozijava-se com isso.

A Providência Divina abençoava o lavrador bi­sonho, propiciando-lhe a ventura de contemplar os grelos promissores das primeiras sementes do bem que ele plantava.

Se algo distante do posto, durante alguns mi­nutos, a jovem, cujo corpo espiritual se revestia de inexprimível suscetibilidade, em vista do desgas­te físico, passava a gemer, denotando sofrimento agravado, para calar-se, em súbita acalmia, tão logo o sustentador retomasse a posição.

Moreira sentia-se útil, orgulhava-se. Encontra­va motivos para conversar conosco, permutando impressões. Solicitava esclarecimentos, a fim de en­trar em processos mais eficazes de auxílio.

Adqui­rira interesse para o trabalho. Assemelhava-se a um homem que houvesse debalde suspirado, muito tempo, pela condição de pai e, tendo achado uma criança, conseguira com ela ocupar o vazio do coração.

Cláudio, a seu turno, não se circunscrevia àprópria transformação. Desdobrava-se por dispen­sar à filha todo o carinho e toda a assistência de que se via capaz.

O facultativo amigo trouxera pela manhã um neurologista. Falou-se em modificação do tratamento e na conseqüente internação da menina numa casa de saúde em Botafogo; entretanto, a perito­nite desaconselhava a mudança rápida. Por essa razão, concordou-se na aplicação maciça de anti­bióticos, até que a melhora esperada autorizasse a medida.

O genitor não regateava cuidados, nem desen­corajava qualquer providência tendente a sõcorrê­-la, custasse o que custasse.

Chegada a noite, o irmão Félix veio até nós e, após felicitar Moreira pela tarefa que realizava, participou-nos a desencarnação de Dona Beatriz.

A esposa de Nemésio desligara-se, enfim, do corpo que o câncer combalira.

Verificada a estabilidade dos serviços em an­damento, o instrutor convocou-nos a tomar-lhe o rumo, na direção dos Torres.

Seguimos.

De jornada, conquanto discreto, desabafou-se. Preocupava-se por Marina. Indispensável protegê-la contra a obsessão começante.

Afastara-se Moreira; no entanto, permaneciam lá, no pátio interno, os arruaceiros e vampirizado­res que ele contratara. Perseguidores gratuitos e infelizes que, inevitavelmente, trariam outros para tumultuar a vida mental da moça, comprometida pelo remorso.

Os termos e a inflexão de voz do irmão Félix acentuavam-lhe a grandeza de alma. Ele não via na filha de Dona Márcia a jovem corrompida que nós mesmos, em alegações destituídas de qualquer malícia, não hesitávamos enquadrar nas linhas da prostituição, nem lhe conferia certificado de avil­tamento nas idéias recônditas. Reportava-se a ela, como quem menciona terra nobre que a desídia do cultivador entrega à serpente. Marina, na concei­tuação dele, era uma filha de Deus, credora de veneração e ternura. Confiava nela, esperaria o futuro.

Antes, porém, que as circunstâncias me exi­gissem algum pronunciamento, esbarramos com a moradia da família que a morte visitara.

Entramos atentos.

Lustres providos de luz intensa punham à mos­tra a reduzida assembléia que se habilitava ao velório.

Aqui e ali, frases convencionais, atiradas sem maior sentimento aos ouvidos do esposo e do filho da senhora desencarnada.

Nemésio e Gilberto não entremostravam gran­de pesar nas fisionomias cansadas e impassíveis.

A moléstia prolongada no reduto doméstico estraga­ra-lhes a resistência para a representação de peças sociais, mesmo singelas. Amarrotados pelas vigí­lias consecutivas, não ocultavam a própria deso­pressão. Referiam-se à morta, no feitio de um viajor atormentado que, de há muito, deveria ter ancorado no porto do extremo refrigério.

O invólucro abandonado por aquela alma boa e veneranda recolhia atenções especiais, para apre­sentar-se no catafalco de luxo, ao passo que ela mesma, inconsciente, se asilava nos braços de ir­mãs afetuosas, sob o olhar comovido de Neves e de outros familiares em carinhoso desvelo.

O irmão Félix, assumindo o comando, deu ins­truções.

Beatriz, que se preparara laboriosamente para aquela hora, seria conduzida, com presteza, à or­ganização socorrista do plano espiritual, no próprio Rio, até que restaurasse as forças, de modo a se­guir viagem.

Tudo harmonia nas disposições traçadas.

Entretanto, quando o triste retrato físico de Dona Beatriz foi trazido ao estrado de repouso que se lhe improvisara, Marina apareceu em pranto de compunção. Chorava, tocada de dor sincera e inexprimível. Parecia, naquela reunião de etiqueta, a única pessoa ligada por laços de amor à piedosa dama, que encerrava, calada e humilde, a derra­deira página da existência naquela casa que a for­tuna abrilhantava. Ao fitar aquele corpo hirto, caiu de joelhos, em lágrimas copiosas. Invejou aquela cujo último sorriso de complacência ali se estam­pava sereno, qual se estivesse satisfeita por dei­xá-la no lugar que ocupara, durante tantos anos, ao pé de um esposo que a enganara sempre.

       Ah! Dona Beatriz!... Dona Beatriz!...

As palavras soluçadas escapavam daquele pei­to juvenil, como se quisessem traçar uma longa confissão.

Acercamo-nos da moça, no propósito de auxi­liá-la; entretanto, Félix considerou que o desafogo lhe faria bem.

Marina, fatigada de insônia e desgastada pela ação dos obsessores que lhe exauriam as forças, sentia medo.

Contemplava o envoltório descarnado de Dona Beatriz, através das lágrimas, refletindo nos segre­dos da morte e nos problemas da vida...

Se a alma sobrevivia ao corpo — pensava, in­quieta —, decerto que a senhora Torres vê-la-ia agora sem o mínimo subterfúgio. Certificar-se-ia de que ela fora, ali, não a enfermeira espontânea e sim a mulher que lhe dominava o esposo e o filho...

Atemorizada, rogava-lhe entendimento, perdão.

Que diria aquela boca silenciosa para ela, se pudesse falar, depois de auscultar a verdade?...

Beatriz, porém, naquele instante conduzida ao refazimento, jazia inacessível às complicações da sociedade terrestre. E, em lugar dela, era o pró­prio remorso que se lhe alteava na imaginação, acusando, acusando...

A mágoa da jovem provocava simpatia nos cir­cunstantes e despertava, tanto em Nemésio quanto no filho, novos motivos de atração. A frente do choro pungente, ambos fitavam-na, enternecidos, exprimindo reconhecimento nos olhos, cada qual desejando nela a companheira ideal para casamen­to próximo, sem a menor suspeita, quanto às con­vicções um do outro.

Naquela mesma noite, assinalei a falta de Dona Beatriz no ambiente caseiro.

O afastamento da filha de Neves e dos amigos espirituais que lhe freqüentavam a companhia dei­xara a vivenda qual praça desarmada de quaisquer recursos que lhe garantissem a ordem.

Transcorrido algum tempo sobre o velório em si, vagabundos desencarnados nele tiveram acesso livre.

O         nível dos pensamentos descambou para a conversação libertina. Nem mesmo a dignidade que a morte infundia ao recinto foi acatada. Relatos jocosos irromperam, suplementados pela chacota dos próprios anedotistas. Um dos presentes co­mentou, entusiasta, os espetáculos debochados de que fora testemunha, em recente viagem ao estran­geiro, suscitando o interesse de vampirizadores que ouviam as narrações, seduzidos pela tentação de repetí-los, na versão deles próprios.

Não contentes, por fim, com os licores aristo­cráticos, desde muito guardados nos armários da família, beberrões encarnados e desencarnados im­peliram Nemésio à encomenda telefônica de vinhos e uísques, rapidamente gorgolejados por gargantas sequiosas.

O irmão Félix, prevendo a leviandade, reco­mendara se aplicasse, à matrona desencarnada, re­cursos anestesiantes, a fim de que se lhe manti­vesse o isolamento do licencioso festim, praticado em nome da solidariedade afetiva perante a morta.

Os derradeiros afeiçoados de Beatriz, no plano espiritual, se retiraram, discretos, e nós mesmos não tivemos outro recurso senão largar a residên­cia, alta madrugada, depois do socorro a Marina, relegando os despojos da nobre senhora às gros­sas nuvens de emanações alcoólicas que instalavam, por toda a habitação, atmosfera dificilmente res­pirável.

Somente no dia seguinte, acabados os funerais, voltei do hospital ao ninho dos Torres, onde a filha de Cláudio se demorava.

Telefonemas diversos, entre mãe e filha, exa­minavam a nova situação. Dona Márcia reclamava o regresso, Nemésio desejava que a secretária lhe amparasse a moradia. Ele próprio, em dado mo­mento, chamou Dona Márcia pelo fio, solicitando­-lhe concessões. Que Marina permanecesse orien­tando as servidoras que lhe atendiam a casa. Mais algumas semanas e tudo se aclararia satisfatoria­mente.

A senhora Nogueira, honrada com a gentileza, não vacilava confiar. Aquiesceu lisonjeada, feliz.

Em cada frase que o chefe lhe deitara de lon­ge aos ouvidos, pressentia a aliança de Nogueiras e Torres pelo casamento entre os jovens.

Marina, entretanto, explorada nas próprias energias pelos agentes da perturbação que Moreira lhe pespegara, definhava no leito. Trancara-se no quarto. Doía-lhe a deslealdade que cultivara, incessantemente, diante da filha de Neves, culpa­va-se pelo desastre que arruinara Marita, a quem não tinha coragem de visitar ou rever. Ela que se vira, até então, vitoriosa em todas as partidas, sentia-se derrotada, à feição de contendor arredado da arena pela própria imperícia. Chorava.

Ouvia vozes, declarava-se perseguida por vultos estra­nhos. Fugia de todos, enfadada, nervosa. Se re­cebia Nemésio ou Gilberto, caía em crise de pranto que os conselhos não removiam e nem os medica­mentos conseguiam sedar.

Escoados cinco dias de apreensões, Nemésio telefonou para Dona Márcia, com mais clareza, ro­gando-lhe permissão para um entendimento pes­soal, no Flamengo, na manhã seguinte. Informado de que o chefe da família Nogueira não poderia afastar-se do hospital, insistiu com a interlocutora para que lhe acolhesse a visita. Marina andava abatida. Tencionava levá-la a Petrópolis. Mudança de ares, renovação de paisagem. A menina tom­bara em prostração, à face dos sacrifícios que lhe exigira a esposa morta. Pretendia homenagear-lhe a dedicação, com a permanência de alguns dias no clima serrano, mas, para isso, estimaria ouvir a família, fazer planos.

Dona Márcia, aspirando a expor respeitabili­dade familiar, indagou se Gilberto iria também, como que temendo acumpliciar-se em alguma liga­ção indesejável e prematura entre os jovens.

Nemésio, porém, apaixonado bastante pela moça, não era capaz de penetrar a sutileza da esposa de Cláu­dio, que assim se exprimia no intuito de fazer-se passar, diante dele, por severa guardiã das virtu­des domésticas; e a senhora Nogueira, aguardando Gilberto para genro e ignorando a intimidade en­tre a filha e Torres, pai, não atinava, em toda a extensão, com aquele efusivo atestado de garantia moral que Nemésio, automaticamente, lhe oferecia, pedindo-lhe confiança.

Estivesse tranqüila. A moça seguiria exclusi­vamente com ele e uma governanta. Mais ninguém.

Dona Márcia louvou a medida, agradeceu.

Mesmo assim, a entrevista ficou marcada para o dia seguinte.

No momento aprazado, acompanhamos Nemé­sio ao Flamengo, como quem estuda ingrediente perigoso, antes de aditá-lo a processo curativo em andamento.

A recepcionadora não esqueceu particularidade alguma do bom-tom, à vista do luto em que os Torres haviam entrado.

Enfeites discretos na sala, hortênsias azuis, conjunto de peças em roxo para o café.

O negociante quedou agradavelmente surpre­endido. Cumprimentando a anfitriã bem-apessoada num modelo de algodão transparente e suave, não sabia se a progenitora era uma segunda edição da filha ou se lhe cabia interpretar a filha por se­gunda edição dela.

Comodamente sentados, a palestra começou pela troca de sentimentos recíprocos. Pêsames pela morte de Dona Beatriz, pesar diante do acidente ocorrido em Copacabana. Moléstia de Marita, can­saço de Marina. Devotamento de Cláudio pela fi­lha hospitalizada. Elogio a parentes.

Apontamen­tos ao redor das apertüras da vida.

Dona Márcia, com requintes de apresentação, comentava todos os assuntos propostos, com apru­mo de inteligência. Otimismo irradiante, finura de trato.

Nemésio, encantado, fumava e sorria, admi­rando-lhe a personalidade.

Conversa vai, conversa vem, a viagem a Pe­trópolis surgiu à tona e o diálogo mais vivo de­senrolou-se entre aquela que o visitante esperava para sogra e aquele com quem a interlocutora não contava para genro.

—        A senhora descanse — recomendava Torres, eufórico —, Marina seguirá em minha companhia, tudo em ordem. Creia que a mudança de ares éa terapêutica adequada. A pobrezinha merece re­pouso, excedeu-se em trabalho...

—        Não tenho objeções — acentuou a genitora de Marina, estranhando o lume daqueles olhos per­cucientes que lhe investigavam as reações —; no entanto, o senhor sabe... Sou mãe. Além disso, tenho o marido ocupado com a outra filha que, apesar de adotiva, é para nós um pedaço do co­ração... Uma viagem, assim, à pressa...

— Oh! mas não se preocupe, de modo algum; afinal, não sou mais uma criança...

— Sim, mas o senhor compreende... Enquan­to sua esposa estava de cama, a permanência de minha filha em sua casa era justa, mas agora... Sei que Marina não se encontra no convívio de estranhos, o senhor para nós não é somente o diretor da firma em que ela trabalha, o senhor para ela é também um amigo, um protetor, um pai...

—        Muito mais do que isso!...

A senhora Nogueira estremeceu. Que projeta­va dizer o entrevistador com semelhante afirmação, diante das frases que articulara intencionalmente reticenciosas, aguardando que ele lhe fornecesse alguma esperança positiva no enlace próximo dos filhos? Sem querer, tornou a refletir, de escanti­lhão, nas suspeitas de Cláudio. Os passeios e di­vertimentos do abastado comprador de imóveis com a menina, que ela admitira fossem apenas motivos de consolação para um velho sofrido, assumiriam o aspecto inconfessável que o marido lhes confe­ria? «Muito mais do que isso!...» Aquelas pala­vras, no tempero de ternura com que eram ditas, varavam-lhe a cabeça.

Acordavam-na para a rea­lidade que nem de leve pressentira. Ainda assim, não se dispunha a acreditar. Impossível! impos­sível que Marina...

Num átimo, empregou toda a sua curiosidade feminil no rico negociante, fisgando-o, de alto a baixo. Excessivamente humana para não examinar o jogo em que se encontrava sem conhecer exatamente a posição que lhe competia na defesa do próprio interesse, descobriu no viúvo, que supusera arcaico e patriarcal, atrativos marcantes, suscetí­veis de impressionar favoravelmente qualquer moça desprevenida. Conhecia Gilberto em pessoa, clas­sificando-o, aliás, como sendo um rapaz notável; entretanto, concluía, ali, que o velho ganharia do moço em qualquer torneio de sedução. Ela que se orgulhava de experiências avantajadas, em ma­téria de ligações afetivas, receava agora... Quis falar, inventando uma saída brilhante, mas engas­gava-se. Os olhos conquistadores, na elegância da­quele Brummel amadurecido e circunspecto, per­turbavam-na.

Tremeu, desconcertou-se.

Nemésio sorriu, atribuindo-lhe a emoção ao contentamento de mãe que se garante, quanto ao futuro da filha, e observou:

— A senhora não tem razões para afligir-se. Marina é credora de minha melhor consideração.

Esteja convicta de que, nestes dois meses de trato diário, ela vem desfrutando a maior liberdade em minha casa. É hoje dona de nossa absoluta inti­midade. Estou certo de que a senhora é dama de nossa época, sem clausura e sem preconceitos. Não se agastará, desse modo, ao saber que Marina em meu lar faz o que quer, gasta o que quer, dor­me onde quer, sem que ninguém a incomode...

Dona Márcia escutou as alegações com defe­rência e inferiu que Nemésio lhe estimava a filha desinibida, liberta. Mesmo assim, ficou sem saber onde Torres, pai, diligenciava chegar, em se repor­tando à independência que Marina usufruía... Não lograva perceber em que situação o cavalheiro a desejava mais livre, se junto dele ou se junto do filho... Hábil o suficiente para não se arriscar a qualquer apreciação capaz de arruinar-lhe van­tagens futuras, recompôs as energias, esboçou um sorriso brejeiro e falou, afável:

— Bem, eu não tenho uma filha namorando, no tempo dos mártires; no entanto, gostaria que o senhor fosse mais explícito...

E, deixando-a quase a estatelar-se de pasmo, Nemésio copiou a doçura de um menino e confes­sou-lhe o próprio romance. Amava-lhe a filha, as­pirava ao matrimônio. Enlutara-se, mas, em breves semanas, o tributo social desapareceria. Que ela, Dona Márcia, conservasse o segredo perante o ma­rido. Rendera-se-lhe ao entendimento afetuoso e extravasara o coração, solicitando-lhe auxílio.

Ante aqueles olhos dominados de assombro, que ele interpretava por júbilo materno, relacionou parte da fortuna que amontoara. Enumerou seis dos melhores apartamentos que possuía, alugados em condições excelentes, salientou os negócios da imobiliária, cujos lucros eram satisfatoriamente compensativos, embora manejasse capitais alheios, a juros módicos, para os empreendimentos de maior vulto.

A senhora Nogueira sentia-se perplexa, es­magada.

Não sabia em que pensar, se no inusitado da situação, se na sagacidade da filha. Reconhecia-se excedida em astúcia, atirada para trás.

Em fração de segundos, imaginou a posição de Gilberto. Como estaria o rapaz, arrebatado à outra?

Mulher experiente, conquanto, por vezes, che­gasse a conclusões tardias quanto ao esposo e à filha, em matéria de inclinação e conduta, não se enganava sobre as ligações que Nemésio intentava esconder na conversação deleitosa. A inflexão apai­xonada com que o viúvo esmaltava cada frase, no momento em que as flores no sepulcro da morta não haviam emurchecido, dispensava para ela quais­quer circunlóquios. Aquele homem lhe mencionava a filha, não na expectativa do admirador ingênuo, mas sim com a certeza do amante consolidado.

A que estouvamentos se entregara Marina, no lar dos Torres? — conjeturava, inquieta. Se em­polgara o próprio chefe, enredando-lhe o espírito nas teias de lamentável alucinação, que procedi­mento adotara perante o jovem, alterando-lhe os rumos? Inferindo, porém, que as qualidades de Ne­mésio, com os cabedais financeiros de que se se­guiam, não eram, em seu conceito, um partido para desprezar, ouvia tudo, imobilizando um sorriso com­placente no rosto.

Quando se dispunha, no entanto, a mergulhar no assunto, o telefone chamou.

A campainhada valeu-lhe por desafogo. Inter­valo providencial que lhe modificava o pensamento, conferindo-lhe tréguas para analisar os episódios em curso.

Era o médico amigo, em aviso confidencial.

Satisfazendo-lhe a solicitação, formulada dias antes, participava-lhe a piora de Marita. Se dese­jasse vê-la com vida, não atrasasse a visita. Cláu­dio não compreendia a gravidade do problema e ainda sonhava com o reerguimento da moça; en­tretanto, nele, cínico amadurecido, já não havia lugar à esperança. Reportou-se à peritonite, ao pro­cesso renal, à caquexia, às feridas que haviam sur­gido das contusões...

Dona Márcia agradeceu e fez-se pálida, a tal ponto, que Nemésio se viu forçado a correr de um lado para outro, a fim de ampará-la. Inteirando-se do que ocorria, ofereceu-se para conduzi-la até o leito da filha. Explicou que usufruiria não somente a satisfação de acompanhá-la, como também apro­veitaria o ensejo para cumprimentar a jovem aci­dentada e levar um abraço pessoal ao pai de Ma­rina, que considerava, antecipadamente, um amigo e familiar.

Assustada, aflita, a senhora Nogueira aceitou e, a breves instantes, os dois se punham de automóvel, a caminho do hospital, com as aparências de um casal elegante e feliz, rolando sobre o as­falto para uma visita de cerimônia.

 

Valendo-nos da condução, seguiamos igualmen­te para o hospital, em objetivo de serviço.

Enquanto o automóvel chispava, a senhora Nogueira fitava Nemésio ao volante, apreciando-lhe a sisudez aparente e o porte desempenado. Inquietava-se consigo mesma, de vez que refletia naquilo em que não queria pensar. À vista daquele tipo galhardo, indagava-se por que razão Marina preferira o filho ao pai, se o genitor, cavalheiro dinheiroso e simpático, era, em tudo, a pessoa ca­paz de assegurar-lhe independência e posição.

De quando em quando, envolvia-lhe o perfil numa olhadela mais comprida e concluía, de si para consigo, que a juventude não tinha lógica.

Mais alguns minutos e penetramos no estabe­lecimento, onde o par foi recepcionado pelo facultativo com quem Dona Márcia se comunicara, mo­mentos antes.

O médico, gentil, notificou ter avisado Cláudio quanto à possibilidade da surpresa, mas Dona Már­cia desconversou, para não dar ao pai de Gilberto a impressão de que se dispusera a vir até ali pela primeira vez. Referiu-se à temperatura, comentou particularidades do ambiente, qual se repetisse observações corriqueiras. E o clínico, longe de per­ceber-se a servir de instrumento, respondia-lhe às perguntas calculadas, atendendo-lhe, involuntaria­mente, aos fins em pauta.

Foi assim que, ao transpor a entrada do apo­sento indicado, Nemésio guardava a convicção de acompanhar um símbolo vivo de ternura materna.

Cláudio, abatido, acolheu, a seu turno, os re­cém-chegados, entre sóbrio e atento. A princípio, o desconforto íntimo... Depois, a conformação. Sofria demais para escolher discutir e aprendera o suficiente, naqueles dias de angústia, para incli­nar-se a reclamações. Aliás, ao facear com Nemé­sio, endereçou-lhe o olhar do homem atribulado que roga a outro homem comiseração e socorro.

Recebeu-lhe o amplexo franco, depois das apresen­tações promovidas pela mulher, e imaginou-se na condição de um aluno em exame.

Torres, que ele conhecia tão bem, conquanto a distância, figurou-se-lhe diferente. Sabia-o osten­tando-lhe a filha em noitadas vadias e vezes diver­sas sopitara o ímpeto de esmurrá-lo, ao retirar-se humilhado de recintos alegres para não agüentar desacatos; entretanto, agora lhe contemplava o rosto, imbuido de sentimentos novos. Identifica­va-se num teste de compreensão e de tolerância. Num átimo, associou os ensinamentos espíritas-cris­tãos que lhe metamorfoseavam o íntimo com Ma­rita em decúbito, fixou Nemésio e Márcia, e de­duziu que não lhe competia julgar aquele homem que lhe explorava a família. Mecanicamente re­cordou Jesus e a lição da primeira pedra... Es­tabeleceu confronto rápido e catalogou-se em nível inferior. Torres entretinha-se com uma jovem que lhe dava liberdade, e filha de outro homem. Ele, porém, não vacilara em abusar da própria filha, depois de encantoá-la na sombra, através de em­buste soez. Com que direito assumiria, ante a pró­pria vítima tombada, o papel de censor?

Indubitavelmente — concluía em reflexões ins­tantâneas —, amigos espirituais traziam-lhe o negociante detestado, experimentando-lhe a renovação. E a ele próprio, também — considerou, humilde — cabia o dever de sopesar as próprias reações, categorizar-se tal qual era, no fundo da consciência.

Naquela prova de segundos, volveu o olhar para a esposa e não mais encontrou em Dona Márcia a inimiga cordial de tantos anos. Aquele sem­blante embonecado por excessiva maquilagem, na presença das concepções novas que passara a nu­trir, mascarava um coração insatisfeito, cujos de­sastres haviam sido provocados por ele mesmo. Exterminara-lhe os sonhos, logo após o casamento. Recordou-se de como se enfadara, desapiedado, da esposa, então menina cândida e espontânea, tão-só por vê-la disforme, na gravidez de que Marina sobreviera, e de como transferira, na direção de Aracélia, os instintos de homem selvagem. Desde o choque em que se vira coagida a criar duas fi­lhas, em vez de uma, a personalidade real de Már­cia desaparecera.

Desequilibrara-se. E ele, ao invés de regenerar-se, recuperando-a, jamais regressara da caça de aventuras. Como exigir contas da mu­lher, se devia acusar-se? Nada lhe impedia fugir do auto-exame, abraçando conversas triviais; en­tretanto, inferiu que não conseguiria ausentar-se da própria alma. Mais justo esquadrinhar-se, su­portar-se... Percebeu que Nemésio e Márcia, ex­pectantes, lhe estranhavam a atitude e, muito mais para não incomodá-los que por subtrair-se a qual­quer crítica, dirigiu o olhar para a filha desfigu­rada, que somente as energias de Moreira conju­gadas com a alimentação artificial retinham no corpo físico, e falou para o genitor de Gilberto, com inflexão de profundo sofrimento:

— Veja o senhor... Nossa filha está muito mal...

Os recém-chegados fitaram, atônitos, aquele ca­dáver que ainda respirava...

Sentiu-se Dona Márcia esmagada de assombro, mesclado de piedade, mas reprimiu-se.

Torres, por sua vez, apertou os dedos contra as palmas das mãos, num gesto peculiar de nervo­sismo. A moça descarnada devolvia-lhe a imagem de Beatriz. Recuou, automaticamente, procurando o pai de Marina a fim de exprimir-lhe amizade, mas deparou com Cláudio, de lenço ao rosto, tentando, debalde, sofrear o pranto que lhe escorria do quei­xo hirsuto.

A senhora Nogueira fez as honras.

Conquanto abalada, não somente ao consignar a decadência da pupila, mas igualmente ao testi­ficar a inesperada sensibilização do marido, contro­lou-se o bastante para falar com desembaraço.

Doseou as verdades que ouvira do médico, res­peitando o pesar do esposo, recapitulou a versão do acidente que ela mesma engenhara, para satis­fazer aos amigos, e rogou desculpas pelo trauma­tismo com que Cláudio se apresentava. Confessa­va-se também machucada — observou, polidamente —; contudo, ao ver o marido subjugado pelo des­gosto, não tivera outro recurso senão reabilitar a resistência própria, a fim de que não escasseasse comando à situação.

O esposo, em lágrimas copiosas, compreendeu que ela mentia para impressionar e que enfileirava frases bem-postas, no intuito de dar a entender que não arredava pé do hospital; no entanto, não lhe rebateu as afirmativas.

Limitava-se a chorar em silêncio. Em lugar da indignação a que se rendia, em outros tempos, quando a via fingir, penalizava-se agora. Imagi­nava-se na posição do viajor que houvesse espalhado farpas em todo o caminho, por onde seria fatalmente impelido a regressar...

Confirmando-lhe as impressões, Dona Márcia levantou-se e, contendo a repugnância que o cheiro desagradável do leito lhe causava, ajeitou os tra­vesseiros da filha inanimada, derramou algumas palavras de carinho e, verificando que Nemésio se mantinha constrangido no ambiente que as exala­ções do processo renal tresandava, conclamou ao regresso.

Não seria licito reter o senhor Torres por mais

tempo, alegou. Quanto a ela, que Cláudio a espe­rasse. Voltaria mais tarde.

       Despedidas e protestos de solidariedade surgi­ram à tona.

O         irmão Félix, presente, seguira o encontro em todas as minúcias e ponderou que se eu volvera ao estabelecimento, em objeto de serviço, pela mes­ma razão me aconselhava o retorno ao lar de Ne­mésio, a fim de socorrer Marina, cujo problema obsessivo se agravava. Conviria, porém — acres­centou —, acompanhar ambos os visitantes, de ma­neira estudar-lhes as reações, com fins de auxílio.

Aboletei-me no carro para a volta.

Torres, dominando-se, escolheu caminho mais longo, em marcha lenta.

A tortura de Nogueira suscitava-lhe falsas im­pressões. Cotejando-se com ele, qualificava-se por homem de rija têmpera que, dias antes, assistira àmorte da própria companheira, sem quebrar-se, ao passo que o genitor de Marina se derretia ao pé de uma filha adotiva, cuja situação, naquela hora, pedia a tranqüilidade do necrotério.

De vez em vez, deitava olhares furtivos para Dona Márcia, supondo compreendê-la melhor. A mãezinha daquela que pretendia desposar, perfeita­mente comparável à filha em beleza e inteligência, não seria feliz junto daquele cavalheiro chorão.

O         comerciante esperto retomara as caracterís­ticas próprias. A pouco e pouco, olvidou a menina acidentada e o bancário arrasado que classificava por maricão e passou a exaltar o encantamento do dia em curso, qual se aspirasse a despertar Dona Márcia para a convicção de que se achava no auto, sob o patrocínio de um companheiro com­preensivo e vigoroso, capaz de assegurar-lhe a eu­foria. Indagou se ela freqüentava os passeios ca­riocas mais estimáveis. Referiu-se aos almoços suculentos das Paineiras, aos piqueniques da Pe­dra do Conde, aos banhos em Copacabana, à vista inigualável no Pico da Tijuca nos dias ensolarados, onde o binóculo parecia trazer a restinga de Ma­rambaia para dentro dos olhos...

Dona Márcia conhecia todos os sítios mencio­nados, quanto a palma das mãos; contudo, fez-se de ingênua. Sabia, de experiência própria, que os homens da casta de Nemésio preferem as mulheres frágeis e acanhadas, que se voltem para eles com a bisonhice das criaturas necessitadas de proteção. Declarou nada conhecer dos pontos guanabarinos mais freqüentados, além do Pão de Açúcar, que visitara numa excursão, aliás muito rápida, junto das filhas ainda pequeninas.

Afetando-se novata, em matéria de experiências romanescas, informou que se casara muito nova e que, desde então, a existência lhe fora um suplício entre escovões e panelas, com a obrigação de tolerar um marido resmelengo, segundo ele próprio, Nemésio, pudera verificar. Que lhe avaliasse o martírio de mulher acorrentada a um matrimônio infeliz pela mostra de Cláudio choramingas, a recebê-los sem uma pa­lavra de cordialidade e de apreço.

Torres gostou das definições. Riu-se. Falou em psicoses. Reportou-se a neurologistas distintos.

Dona Márcia debuxou um sorriso malicioso, fitou-o demoradamente, e disse que era muito tar­de para tratamentos, que havia muito tempo vi­via separada do esposo, embora continuassem sob o mesmo teto.

Acostumara-se a sofrer, declarava suspirando. Nemésio entendeu a insistência daqueles olhares e experimentou recôndita satisfação ao averi­guar-se reqüestado.

A presença da futura sogra não lhe desagra­dava. Não fosse Marina — pensou —, e não hesitaria atraí-la a convívio mais íntimo. A manhã toda, na companhia daquela mulher que reputava formosa e inteligente, constituíra-lhe um tônico. Esquecera-se, distraira-se. Mesmo assim, não julgou conveniente precipitar-se. Puxou o relógio e, verificando que faltavam apenas cinco minutos para meio-dia, convidou-a para o almoço. Conhecia ex­celente restaurante no Catete.

A senhora Nogueira aceitou. E a refeição trans­correu alegre.

Esforçava-se a convidada em pressentir as es­colhas do anfitrião, de modo a compartir-lhe os pratos prediletos. Sóbria, acomodou-se à água mi­neral e, no cardápio, comeu pouco. Em compensação, pensou muito e falou o possível, no intui­to de cativar o companheiro. Em dado momento, refletiu nos riscos a que Marina se expunha e, abemolando a voz, provocou a deixa.

Prevendo a despedida próxima, asseverou não desejar o encer­ramento daquele encontro feliz sem agradecer-lhe o devotamento à filha. Além disso, rogava-lhe per­missão para assinalar que a moça era demasiado jovem, que temia pela inexperiência dela...

Torres, lisonjeado, reiterou a confiança na es­colhida, não sem um gesto significativo para a interlocutora, como a dizer-lhe que, embora lhe aguardasse a filha, no lar, não queria que a sogra lhe olvidasse a dedicação de amigo certo. A es­posa de Cláudio apanhou a sugestão no ar e asseverou, de modo galante, que, na qualidade de mãe abnegada, anelava para a filha a felicidade que o mundo não lhe pudera conceder.

Entre ambos, o contrato afetivo não apresen­tava qualquer dúvida, apesar de todos os itens do acordo se evidenciarem por entrelinhas e alusões, suspiros e reticências.

Quando o genitor de Gilberto disse adeus, no Flamengo, retomou o volante admitindo-se visita­do mentalmente pela imagem da senhora Nogueira. Fugindo-lhe à influência, opunha-lhe a figura da filha. À face disso, entrou em casa, decidido a en­contrar-se com Marina, de pronto.

Recolhido ao quarto particular, tomou o pija­ma, calçou os chinelos silenciosos e, absorto, andou, de manso, na direção do compartimento, em que pretendia surpreendê-la, comunicar-lhe impressões e, sobretudo, dissipar os pensamentos intrometidos que Dona Márcia lhe suscitara.

Empalmou, de leve, a maçaneta e abriu a por­ta, sem ruído; no entanto, fez força para não cair, garroteado de assombro. Gilberto e a moça bei­javam-se em amplexo apaixonado, efusivo. De costas para a entrada, o filho não lhe assinalou a presença; todavia, Marina, a situar-se de frente, cruzou o olhar com o dele, viu-lhe o rosto cris­par-se, esverdinhado, e desmaiou.

A cena foi rápida.

Retirou-se Nemésio, à maneira de um cão es­pancado, arrastando-se em terrível asfixia.

Dificilmente, ganhou o quarto e precipitou-se no leito, a sentir-se arrasado de sofrimento.

Ponderações contraditórias vararam-lhe o crâ­nio - Como deslindar o enigma doloroso? Teria Gil­berto abusado da menina enfraquecida ou dividia-se a jovem pelos dois? Intentou erguer-se, mas, como se houvesse recebido uma pedrada por dentro do coração, doía-lhe o peito, suava frio, sufocava-se.

Decorrido um quarto de hora, Gilberto, ins­ciente do vulcão de lágrimas que o pai se empenhava a esconder, veio participar-lhe que Marina piorara, depois de ligeiro dellquio. Voltara da sín­cope, francamente possessa. Gritava, chorava, mor­dia-se, feria a si mesma...

Nemésio, porém, pousou nele os olhos magoa­dos e pediu-lhe comandar as medidas necessárias. Chamasse o médico, telefonasse para o Flamengo e insistisse com a genitora para vir, e explicou, não sem esforço, que ele também tornara da rua, incompreensivelmente abatido...

Aplicando-me a socorrer Marina, reconheci a obsessão instalada. Os vampirizadores que Morei­ra trouxera, coadjuvados por outros, haviam do­minado, de todo, a jovem desprevenida. O choque experimentado esbarrondara-lhe as últimas resis­tências. Marina, sob o jugo dos malfeitores desen­carnados, jazia hipnotizada, vencida...

Em breve tempo, Dona Márcia, em pessoa, renteava com a filha, que a recebeu, dementada, irreconhecível.

O médico optou pela hospitalização imediata, que Nemésio declarou patrocinar com a impassibi­lidade de quem cumpre um dever. Dona Márcia, por desencargo de consciência, entendeu-se com Cláudio pelo fio, suavizando a notícia. Inteirava-o de que a filha se extenuara em trabalho excessivo, arrojara-se a grande fadiga mental e o facultativo indicava ligeira estação curativa, numa clínica de repouso. Ela, com a responsabilidade de mãe, não opunha qualquer embargo; entretanto, não lhe se­ria lícito deixar de ouvi-lo, aguardava-lhe a opinião.

Nogueira não contraditou e Dona Márcia deu-se pressa em confiar Marina a estabelecimento psiquiátrico de nomeada, cujos portais a menina transpôs, inspirando cuidado e compaixão.

Regressando à bela vivenda, depois de dois dias, encontramos Gilberto atarantado e infeliz; contu­do, mais dedicado à moça que antes. Nemésio, po­rém, ruminava a antiga concepção do amor como sendo chinelo no pé e, apenas decorridas quarenta e oito horas sobre o acontecimento, já permutava confidências com a senhora Nogueira, em torno dos fatos novos, e ambos, na maior intimidade, já haviam encontrado motivos para desculpar aqui­lo a que chamavam doucuras da mocidade», cul­tivando consolações um no outro.

 

Duas semanas precisamente sobre o desastre em Copacabana e Marita amanheceu preparada à desencarnação.

Moreira inspirava piedade. Aqueles dias aben­çoados de ensinamento e dor lhe haviam alterado a vida íntima. Percebendo que a menina entrara nos derradeiros lances da decadência orgânica, cho­rava, consternado.

Marita desligava-se, a pouco e pouco, de toda a relação com o mundo corpóreo. Nem mesmo o calor daquele amigo generoso que a sustentava, qual se lhe ofertasse um pulmão suplementar, a interessava mais...

Conquanto imóvel, sentia-se agora lúcida, pro­fundamente lúcida. Os olhos quedavam quase apa­gados; no entanto, o apoio magnético incessante lhe descerrava a luz da visão espiritual.

Nos últimos dois dias, atingira avançada re­novação. Assinalava com absoluta clareza as palestras freqüentes que Cláudio mantinha com mé­dicos e enfermeiros, gravava as preces e os comen­tários de Agostinho e Salomão, na hora do passe.

De começo, ao experimentar que as mãos pa­ternas lhe asseavam o corpo, desesperava, claman­do de si para consigo que não se conformava com tanta humilhação... Lançava pensamentos de re­volta contra o destino que a jungia daquele modo a um homem que odiava; entretanto, à força de perceber-lhe a ternura reverente, expungindo-lhe as excreções que se lhe agarravam à epiderme ferida, acabou plantando no coração um sentimento novo. Enterneceu-se, transfigurou-se. Ouvia-o falar em Deus e, às vezes, identificava-lhe os de­dos a lhe roçarem a fronte, ao mesmo tempo que entremeava afagos e orações... Num dos minutos comovedores em que ela cismava, sem atinar com os motivos daquela transformação, Félix aproxi­mou-se... Acariciou-lhe paternalmente os cabelos em desalinho e disse, na convicção de quem cen­tralizava todas as energias, a fim de sugerir-lhe, com êxito, a atitude aconselhável:

—        Filha, perdoa, perdoa!...

Ela registrou, emocionada, a voz desconhecida e recordou a mãezinha que a deixara no berço.

Sim — concluía —, somente o amor materno voltaria do túmulo para inclinar-lhe o coração in­cendiado à fonte da indulgência...

Perdoar — monologou — que outra coisa lhe competia fazer diante da morte? Sim, devia partir olvidando mágoas e afrontas... Reconhecia-se na armadura dos ossos, à feição de pinto no ovo. Tênue pancada ou breve movimento conseguiria despejá-la e deveria sair, conquanto não soubesse para onde... Por que não seguir, apagando as la­baredas que lhe requeimavam os sentimentos?...

Meditou naquelas mãos que a despiam, enxu­gando-lhe a pele molhada para vesti-la outra vez, com o carinho apenas visto nas mães quando to­cam, de manso, os filhinhos doentes, e concluiu que lhe cabia desculpar, esquecer...

Compadeceu-se, então, diante do pai irrefletido. Perdoar-lhe, sim!... Pensou nisso, com o júbilo de quem achara uma bênção... Ele agora a res­peitava, limpava-a, orava... Viveria na Terra, tal­vez carregando amargas penas, enquanto que ela viajaria para regiões que ignorava, apegando-se, porém, à confiança naquela voz que lhe impelia o espírito atribulado à calmaria do perdão... Rememorou-lhe o pranto da noite em que lhe decla­rara a paixão despropositada e tocou-se de enten­dimento. Pobre pai aquele que nunca desfrutava refúgio no próprio lar!... Teria um cérebro nor­mal um homem assim, varado em casa, diariamen­te, qual se fosse um cão infeliz? Quem poderia saber se ele se aproximara dela na condição de um enfermo buscando lenitivo que não sabia qualificar, na turvação dos próprios sentidos? Prova­velmente havia recebido, na pensão de Crescina, o assalto de um louco e não a injúria de um ho­mem!... Por que não justificar o pai que se de­mentara?... Reconstituiu-lhe, na memória, os ges­tos de brandura e de amor, nos brincos da infância. Cláudio lhe fora o único amigo... Se chorava em pequenina, recolhia-se-lhe ao colo, buscando o re­gaço de mãe que não tivera. Demorou-se a revê-lo nas telas da imaginação, transportando-a nos bra­ços para que se distraísse, admirando os bichos do jardim zoológico... Degustava, de novo, men­talmente, os sorvetes que ele lhe adquiria, praze­roso, nas tardes de verão... Recordava, recordava.... Não, não! — bradava-lhe a consciência, o pai não era perverso, era bom... Como recusar-lhe compaixão se Dona Márcia o abandonava, se Ma­rina lhe evitava a presença? Decerto, sofrera mui­to, antes de conturbar-se... Como não exculpar a loucura de uma noite, num benfeitor de vinte anos? Por que não morrer, abençoando semelhante dedi­cação? De que modo condená-lo, se ele, Cláudio, prosseguia ali, paciente e abnegado, tolerando-a?...

Recordou a mãe adotiva, imaginou-se à frente da irmã e aspirou, em espírito, à reconciliação com elas... Quem afirmaria que Dona Márcia e Mari­na também não estivessem sob desequilíbrios ocul­tos? quem diria com certeza que não fossem doen­tes? Naquele instante em que se harmonizava com Cláudio, queria igualmente conciliar-se com ambas. Estavam perdoadas por todas as incompreensões e, no Intimo, pedia-lhes perdão por todos os dis­sabores que, involuntariamente, lhes tivesse cau­sado!... No desfile das reminiscências, Gilberto não faltou. A figura do rapaz surdiu-lhe na cabeça, envolvida das doces vibrações do sonho que lhe constituíra a luz da vida!... Não conseguiria odiar a quem amava tanto!... Gilberto teria encontra­do razões para afastar-se dela e também, naquelas reflexões graves e extremas, lhe aparecia na ter­nura revestido com a beleza de um companheiro amado e limpo!...

Ao enunciar esses pensamentos, Marita sentiu-se mais leve, quase feliz!...

Intentou movimentar-se, gritar ao pai que ela o considerava um homem de bem, que não detinha motivo algum para acusá-lo, que os sucessos na moradia de Crescina tinham sido apenas um lamen­tável engano, que ela realmente morreria, rogan­do-lhe, no entanto, viver e continuar a ser bom!... Contudo, só ao pensar no próprio soerguimento, teve a impressão de que se algemava a uma está­tua. Nenhuma reação favorável nos membros hir­tos, nenhuma voz na garganta que lhe parecia de pedra; todavia, tão grande e tão heróico se lhe externou o esforço da alma renovada, que bagas de pranto lhe rolaram dos olhos semimortos.

Desde esse minuto solene de pacificação, co­meçou a distinguir, vagamente, vozes e formas do plano espiritual, entre alegre e amedrontada, qual se estivesse acordando num clarão traspassado de bruma...

Fitando-lhe o semblante orvalhado de lágri­mas, Nogueira, reanimado, chamou o médico.

Aquilo não seria indício de reação, de melhora?

O facultativo, porém, meneou a cabeça, cir­cunspecto, e pediu mais tempo de observação, a fim de pronunciar-se, concluindo, no entanto, de si para consigo que a menina se achava em condição pré-agônica, transtornada, delirante...

Clareado o dia que antecedeu a noite da desencarnação, o clínico prestimoso convidou Cláudio a entendimento e comunicou-lhe, por fim, que a moça não mais viveria muitas horas. Para a Ciên­cia, tudo terminava... Que ele, pai afetuoso e cren­te, orasse segundo a fé que alimentava no coração, buscando forças...

Nogueira baixou os olhos e agradeceu, humilde. Telefonou para Agostinho e Salomão, participando-lhes o aviso.

Os amigos vieram à noitinha.

Rogou orassem por ele, queria ser digno da fé que aceitara. Pela primeira vez, pediu um passe em favor de si mesmo. Baixou os olhos e espalmou as mãos para recebê-lo, imitando o gesto de uma criança infeliz, suplicando uma esmola.

O velho farmacêutico e o negociante consola­ram-no. Não seria justo reter a menina padecente num corpo qual aquele, deprimido e irrecuperável; no entanto, ao se despedirem, achavam-se ambos engasgados de emoção.

Cláudio, mais desolado que nunca, às nove ho­ras solicitou licença para trancar-se. Queria estar só com a filha, dizer-lhe adeus. Ninguém recusou aquele favor suplicado com humildade.

Isolado à frente dela, Nogueira demorou-se a meditar... Recompunha o pretérito na memória, imaginando as estradas percorridas por ruínas das quais se via afastado para sempre. Entretanto, ao fixar a agonizante, pelo amor purificado que lhe passara a dedicar, simbolizava, na existência junto dela, o futuro de que se via distante. Entre o pas­sado que lhe inspirava repugnância e o porvir na comunhão espiritual com a filha querida, sentia-se esmagado, sozinho...

Enternecia-nos as recônditas fibras da alma contemplar aquele homem vergado ao peso do suplício moral, fugindo a recordações para entrar em prece... Os gritos inarticulados do peito jugulado de angústia ao apelarem para Deus, no silêncio do quarto, assemelhavam-se a cânticos de dor que as lágrimas sufocavam!...

Ás onze, o irmão Félix e outros amigos, in­cluidos Neves e Percília, estavam conosco.

Em todos os semblantes, a expectativa discre­ta, com exceção de Moreira, que se agitava em pranto.

O instrutor levantou-o num gesto de brandu­ra, comunicando-lhe que a tarefa terminara. Que não se deveria vitalizar, por mais tempo, aqueles pulmões que a morte começava a enregelar. O tris­te amigo obedeceu, em choro convulso.

Em seguida, impondo as mãos naquela cabeça despenteada, Félix transmitiu-lhe subitâneo calor.

Marita senhoreou inopinada agilidade mental. Supunha-se reviver, renascer. Escutava os ruí­dos em derredor, com extrema acuidade auditiva...

O benfeitor abeirou-se de Cláudio e segredou-lhe algo. Certo, sugeria-lhe conversar, despedir-se. Ignorando-se tocado pelo mentor espiritual, vi­mo-lo revestido de estranha coragem.

Nogueira ergueu-se, avançou dois passos e ajoelhou-se ao pé da agonizante... Pousou a cabeça rente ao corpo imóvel, mas a intensa emotividade traiu-lhe as ener­gias. O pranto abalava-lhe os membros, ao jeito de tempestade sacudindo os galhos de um tronco prestes a cair.

Marita percebia-lhe o arfar do tórax, na escala ascendente dos soluços, e desejou acariciá-lo; con­tudo, os braços se lhe afiguraram parafusados àcama.

Amparado nas forças magnéticas de Félix, que passou a apoiá-lo inteiramente, Cláudio cobrou âni­mo, recolheu o exemplar de O Evangelho segundo o        Espiritismo», que deixara na cadeira próxima, e falou com voz trêmula:

— Filha do meu coração, se você me escuta, atenda a seu pai, por piedade!... Perdoe-me!...

Não sei se você sabe que estou transformado... Conheci Jesus, minha filha, e sei hoje que Deus émisericórdia, que ninguém morre, ninguém... Sei que a justiça está em nós mesmos, que sofremos pelos males que praticamos, mas Deus não nos re­cusa o resgate!... Compreendo o mal que fiz a você, sou um criminoso, mais nada... Pense, mi­nha filha, no remorso que carregarei pelo resto da vida!... Você sabe que vou agora caminhar sem ninguém, agüentando a solidão que mereço... Onde você estiver, compadeça-se de seu pai!... Confie em Jesus e nos bons Espíritos!...

Eles sabem que você não se suicidou, sabem que sou um assassi­no... Ah! minha filha, pense nesta palavra assim tão triste!... Assassino! Auxilie-me a lavar esta mancha da consciência! Rogue por mim aos envia­dos do Cristo, para que eu tenha a força de fazer o que devo fazer!...

Cláudio fez ligeira pausa, ao ver que o rosto da filha se cobria de lágrimas e, ansiando reconhecê-la devolvida à própria consciência para que lhe assinalasse a renovação, guardou a íntima cer­teza de que ela o escutava, em plena lucidez, ben­dizendo-lhe os votos de melhoria. Aflito e expec­tante, na convicção de que estava sendo ouvido e entendido, continuou:

— Apesar de tudo, filha querida, não fique triste com minha súplica!... Sou um réu, mas te­nho esperança! Veja a revelação de Jesus que eu achei!...

Em seguida, com as mãos trementes, num gesto de piedosa confiança, colocou-lhe o livro na destra inerme.

A filha desperta registrou a presença do volu­me sobre os dedos inteiriçados e respondeu com o pranto mais vivo, mais copioso.

Nogueira, encorajado por aquela manifestação de inteligência, levantou a voz e rogou-lhe escu­tasse o que tinha a dizer...

Declarando saber-se diante de amigos espiri­tuais, que lhe testemunhariam a sinceridade, e certo de que empenhava a própria alma nas afirma­ções que se dispunha a formular, abriu-se à filha.

Confessou ali, diante dela, todas as faltas de que se acusava; relatou-lhe o drama de Aracélia; asse­verou que sinceramente ignorava fosse ela filha dele, o que apenas viera a saber por informação de Márcia, porqüanto, leviano e inconseqüente qual fora, na mocidade, admitia, erroneamente, que Ara­célia desempenhara o papel de companheira para vários homens; participou-lhe que a esposa o cha­mara à realidade, na noite horrível em casa de Crescina; descreveu como se abatera, atormen­tado pelo arrependimento, desde que a vira pros­trada, implorava-lhe perdão por havê-la induzido ao suicídio... Comunicou-lhe haver lido e apren­dido muito sobre reencarnação, desde o primeiro dia de hospital, e asseverou-se persuadido de que ambos se achavam ligados, através de múltiplas existências; disse que a paixão alimentada por ele teria sido fruto da invigilância e da crueldade que ainda trazia no coração... Acrescentava, porém, ali, ante os padecimentos dela que lhe constituíam sentença de dor inapelável, que prometia regenerar-se, por mais áspero o reajuste... Finda a lon­ga exposição, que Marita assinalou, compungida­mente, frase por frase, Nogueira retirou o livro da mão pequenina e descarnada, rematando em choro convulsivo:

— Tenho orado e tenho recebido a misericór­dia de Deus para mim, malfeitor... Mas se a Bon­dade Infinita me pode favorecer ainda com nova esmola, abençoe-me, filha querida, dê-me um sinal de benevolência, antes de partir... Se você está ouvindo o réu que sou, acompanhe-me neste dese­jo... Ore também!... Rogue a Deus forças... Mova um dedo, um dedo só para que eu saiba que você perdoou a seu pai!... Não me deixe na in­certeza, agora que vou recomeçar o destino, entre­gue às conseqüências de minhas próprias faltas!.

Registrando os soluços paternos, que lhe revol­viam a alma, a jovem associou-se-lhe aos votos. Desejou ansiosamente, veementemente, satisfazer-lhe o pedido...

Perdão!... Perdão!... A palavra ressoava-lhe no espírito, à maneira de cântico que descesse do céu, ecoando nas paredes em torno!... Perdão!... Aquelas seis letras, enfileiradas em forma de sons, pareceram-lhe música da eternidade, que estivesse sendo executada no firmamento, em trompas de estrelas, cujos brandos acentos lhe aliviavam o coração!...

A pobre menina concentrou todas as energias num pensamento de confiança e de gratidão a Deus e rogou, mentalmente: — «Perdão, Senhor!... Per­dão para meu pai, perdão para mim!... Perdão para todos os que erraram!... Perdão para todos os que caíram!... »

Aguçaram-se-lhe as percepções e sentiu-se como que banhada de alegria inefável... Contemplou Cláudio, distintamente agora, fitou Moreira em lá­grimas e, alongando a atenção mais serenamente em derredor do leito, viu-nos a todos. Félix, em silêncio, endereçou-lhe eflúvios magnéticos a deter­minada área cerebral, e Cláudio, atônito, viu a des­tra inerme levantar-se...

Agoniado e reconhecido, tomou avidamente aqueles pequenos dedos frios e quis dizer «obrigado, meu Deus!», tentando, debal­de, movimentar a garganta que os soluços embar­gavam; contudo, em lugar da palavra dele, foi a voz de Félix que se ergueu, de nosso lado, arre­batando nos em prece:

— Senhor Jesus, nós te agradecemos a felici­dade que nos concedeste na lição do sofrimento, nestes dias de trabalho e de expectação!...

Obrigado, Senhor, pelas horas de aflição que nos clarearam a alma, pelos minutos de dor que nos despertaram as consciências! Obrigado por es­tas duas semanas de lágrimas que realizaram por nós o que não nos foi possível fazer em meio sécu­lo de esperança!..

Em te alçando nosso agradecimento e louvor pedimos ainda!... Lança, por misericórdia, a tua bênção na irmã que se despede e no companheiro que ficará. Transfunde-lhes o pesar em renovação, a mágoa em regozijo!... Recebe-lhes o pranto, como sendo a oração que te elevam, aguardando-te a paz no caminho!...

Entretanto, Mestre, não te exoramos a piedade somente para eles, irmãos bem-amados, que consi­deramos filhos da própria alma!... Suplicamos-te arrimo para todos os que resvalaram nos enganos do sexo desorientado, quando nos ofereceste o sexo por estrela de amor a brilhar, assegurando-nos a alegria de viver e garantindo-nos os recursos da existência!...

Consente, Senhor, possamos relacionar, diante de ti, aqueles irmãos que as convenções terrestres tantas vezes se esquecem de nomear, quando te dirigem o coração.

Abençoa os que se tresmalharam na insana ou no infortúnio, em nome do amor que não chegaram a conhecer!

Socorre nossas irmãs entregues à prostituição, já que todas nasceram para a felicidade do lar, e corrige com tua munificência os que as impeliram para a viciação das forças genésicas; acolhe as vítimas do aborto, arrancadas violentamente ao claustro materno, dentro dos prostíbulos ou em recintos que a impunidade acoberta, e retifica, sob teu auxílio, as mães que não vacilaram asfixiar-lhes ou degolar-lhes os corpos em formação; res­taura as criaturas sacrificadas pelas deserções afetivas, que não souberam encontrar outro recurso senão o suicídio ou o manicômio para ocultarem o martírio moral que lhes transcendeu a capaci­dade de resistência, e compadece-te de todos aque­les que lhes escarneceram da ternura, transfor­mando-se, quase sempre, em carrascos sorridentes e empedernidos; protege os que renasceram desa­justados, no clima da inversão, suportando cons­trangedoras tarefas ou padecendo inibições regene­rativas, e recupera os que se reencarnaram nessa prova, sem forças para sustentar as obrigações assumidas, afogando a existência em devassidão; recolhe as crianças que foram seviciadas e renova, com a tua generosidade, os estupradores que se animalizaram, inconscientes; agasalha os que ro­laram na desencarnação prematura, por efeito de golpes homicidas, nas tragédias da insatisfação e do desespero, e ampara os que se lhes tornaram os verdugos padecentes, vergastados pelo remorso, seja na liberdade atenazada de angústia ou no es­paço estreito dos calabouços!...

Mestre, digna-te reconduzir ao caminho justo os homens e as mulheres, nossos irmãos, que, do­minados pela obsessão ou traidos pela própria fra­queza, não conseguiram manter os compromissos de fidelidade ao tálamo doméstico; reequilibra os que fazem da noite pasto à demência; conforta os que exibem mutilações e moléstias resultantes dos excessos ou dos erros passionais que pratica­ram nesta ou em outras existências; reabilita a cabeça desvairada dos que exploram o filão de tre­vas do lenocínio; regenera o pensamento insensato dos que abusam da mocidade, propinando-lhe en­torpecentes; e sustenta os que rogaram antes da reencarnação as lágrimas da solidão afetiva e as receberam na Terra, por medida expiatória aos des­mandos sexuais, a que se afeiçoaram, em outras vidas, e que, muitas vezes, sucumbem de inanição e desalento, em cativeiro familiar, sob o desprezo de parentes insensíveis, a cuja felicidade consagra­ram a juventude!...

Senhor, estende também a destra misericordio­sa sobre os corações retos e enobrecidos!

Desperta os que repousam nos ajustes legais, acatados nas organizações terrestres, e esclarece os que respi­ram em lares, revestidos pela dignidade que mere­ceram, a fim de que tratem com humanidade e compaixão os que ainda não podem guardar-lhes os princípios e imitar-lhes os bons exemplos!... Ilumina o sentimento das mulheres engrandecidas pelo sacrifício e pelo trabalho, para que não de­samparem aquelas outras que, até agora, ainda não conquistaram a maternidade premiada pelo respei­to do mundo, e que, tantas vezes, lhes suportam a brutalidade dos filhos nos lupanares! Sensibiliza o raciocínio dos homens que encaneceram honrados e puros, de modo a que não abandonem os jovens desditosos e transviados!...

Senhor, não consintas que a virtude se conver­ta em fogo no tormento dos caídos e nem permitas que a honestidade se faça gelo nos corações!...

Tu, que desceste às vielas do mundo para curar os enfermos, sabes que todos aqueles que jorna­deiam na Terra, atormentados pela carência de ali­mentação afetiva ou alucinados pelos distúrbios do sexo, são doentes e infelizes, filhos de Deus, neces­sitados de tuas mãos!...

Inspira-nos em nossas relações uns com os ou­tros e clareia-nos o entendimento para que saiba­mos ser agradecidos à tua bondade, para sempre!...

Quando Félix emudeceu, o compartimento de­morava-se invadido pelo clarão que se lhe exterio­rizava do peito; contudo, não éramos somente nós, os comandados dele, que trazíamos, ali, o espírito subjugado por intensa emoção!... Todas as enti­dades desencarnadas, em serviço no estabelecimen­to, mesmo as que se vinculavam a outros cultos religiosos, se perfilavam à frente do acanhado re­cinto, discretas e atenciosas... Espíritos ignoran­tes e vampirizadores, em trânsito nos sítios adja­centes, acorreram para junto de nós, atraidos pelos jorros de luz solar que o aposento irradiava em todas as direções, e, muitos deles, a curta distân­cia, baixavam a fronte, emocionados e reverentes.

Aquele quarto da venerável instituição socor­rista, em plena noite, na rua do Resende, assemelhava-se a fulgurante coração de alvenaria, cons­telado de amor!...

Cláudio nada ouvia, mas, empolgado pelas vi­brações balsâmicas do ambiente, chorava, de manso, percebendo a mão gélida que se colara às dele, afrouxando a pressão do adeus. Agoniado, fitou o semblante da filha e notou que o palor da morte nele esboçava o derradeiro sorriso... Levantou-se e cerrou, cuidadosamente, aquelas pálpebras fati­gadas, orvalhando-as de lágrimas; no entanto, ren­teando com ele, Moreira não continha os soluços.

Telmo aplicava passes anestesiantes à jovem e um médico espiritual, que se nos incorporara ao trabalho de equipe, cortou os últimos ligamentos que ainda retinham a alma cativa ao corpo inerme.

Quando viu Marita liberta e agasalhada nos braços de Félix, figurando-se uma criança cansada e adormecida, Moreira, na aflição e na humildade dos que se olvidam integralmente, para destacarem os que mais amam, indagou, desolado:

—        Irmão Félix, que farei doravante, inútil como sou?

—        Moreira — respondeu o instrutor, abençoan­do-o com o olhar —, somos uma família só.

Muito em breve, terás o necessário, de modo a retomar o convívio de Marita, que pede agora paz e refa­zimento; mas, antes, somos nós os companheiros que te pedem auxílio! Marina sofre... Precisamos libertá-la. Contamos contigo como quem tudo es­pera de um amigo, de um irmão!...

O         ex-assessor de Cláudio, ansiando patentear correta submissão, pôs-se genuflexo e deixou pen­der a fronte, confundido ao reconhecer que o orientador lhe rogava sanar uma brecha que ele, Moreira, havia agravado, e prometeu, em pranto, atender à obrigação que se lhe indicava. Tudo o que anelava agora, acentuou, era aprender, auxi­liar, dedicar-se ao bem, trabalhar, .......

 

Felizes da Terra! Quando passardes ao pé dos leitos de quantos atravessam prolongada agonia, afastai do pensamento a idéia de lhes acelerardes a morte!...

Ladeando esses corpos amarrotados e por trás dessas bocas mudas, benfeitores do plano espiritual articulam providências, executam encargos nobili­tantes, pronunciam orações ou estendem braços amigos!

Ignorais, por agora, ovalor de alguns minutos de reconsideração para o viajor que aspira a exa­minar os caminhos percorridos, antes do regresso ao aconchego do lar.

Se não vos sentis capacitados a oferecer-lhes uma frase de consolação ou o socorro de uma pre­ce, afastai-vos e deixai-os em paz!... As lágrimas que derramam são pérolas de esperança com que as luzes de outras auroras lhes rociam a face!.

Esses gemidos que se arrastam do peito aos lábios, semelhando soluços encarcerados no coração, quase sempre traduzem cânticos de alegria, à frente da imortalidade que lhes fulgura do Além!...

Companheiros do mundo, que ainda trazeis a visão limitada aos arcabouços da carne, por amor aos vossos sentimentos mais caros, dai consolo e silêncio, simpatia e veneração aos que se abeiram do túmulo! Eles não são as múmias torturadas que os vossos olhos contemplam, destinadas à lousa que a poeira carcome... São filhos do Céu, pre­parando o retorno à Pátria, prestes a transpor o rio da Verdade, a cujas margens, um dia, também vós chegareis!...

 

Ao entardecer, Agostinho e Salomão acompa­nharam Cláudio e os despojos da filha até ao Caju.

Cerimônia simples que a prece consagrou.

De volta, Nogueira, acabrunhado, despediu-se dos amigos, na Cinelândia, e tomou táxi para o Flamengo.

Alcançou o prédio, subiu e, sequioso de com­panhia, abriu a porta. Vasculhou peça por peça e sentiu frio no corpo e na alma...

No apartamento deserto não havia ninguém.

 

Satisfazendo a recomendações de Félix, que nos esperava a cooperação, junto de Cláudio e Marina demoramo-nos no Flamengo, ao pé do amigo que a consternação abatia.

Entregue a si mesmo, sem qualquer consola­ção humana, Nogueira refletiu e compreendeu.

Havia lido bastante. Conversara o suficiente com Agostinho e Salomão. Não lhe cabia escusar-se àverdade. Recolhera a fé por misericórdia da Bon­dade Divina; entretanto, a Divina Justiça não po­deria forrá-lo à solidão que ele mesmo plantara.

Represava-se-lhe o coração de saudades da fi­lha que o túmulo escondera. Aquela quinzena de hospital unira-os em espírito para sempre. Ao lado de Marita, obtivera a luz da renovação. Doía-lhe pensar que não mais experimentaria o conforto de carregá-la, sustentá-la, socorrê-la...

Abatido, sentou-se e chorou.

A noite avançava e Márcia não aparecia.

Telefonou, discreto, para vizinhos de Dona Justa. A servidora, chamada por obséquio à residência de amigos, veio atender. Informou-se da de­sencarnação de Marita e lamentou não haver con­seguido a notícia, antes, com o tempo necessário para assistir-lhe ao funeral. Esclareceu que a ma­dama subira a Petrópolis, sem precisar o regresso. Dona Márcia alegara cansaço, depois da interna­ção de Marina para tratamento, e avisara-a de que pretendia passar alguns dias na serra, ganhando forças. Ela, Dona Justa, segundo o combinado, comparecia, pela manhã, no apartamento, e folgava à tarde.

Nogueira perguntou pelo estabelecimento, onde se achava a filha doente; no entanto, a servidora respondeu com sinceridade que não sabia. Dona Márcia não lhe fornecera informações.

Aliás, soli­citava licença para inteirá-lo, sem a menor inten­ção de afligi-lo, de que julgava a patroa também esgotada. Parecia nervosa, enferma.

Cláudio agradeceu e tomou o catálogo tele­fônico.

Pediu, infrutiferamente, ligação para conhecida casa de repouso em Santa Teresa. E seguiu pro­curando pelo fio, até que na sexta pesquisa encon­trou o que buscava. Enfermeira prestimosa, com quem Dona Márcia deixara endereço, respondeu de uma casa de saúde, localizada em Botafogo, noti­ficando que Marina aí se hospedava. As visitas, no entanto, mesmo para os familiares, estavam proi­bidas. A moça andava em crise, sob a atenção dos médicos.

Mesmo na condição de progenitor, que ele fi­zesse a gentileza de ouvir a administração, antes de procurar pessoalmente avistá-la.

Cláudio acolheu-se à poltrona, a fim de pensar. Restava a casa dos Torres. Gilberto, com certeza, poderia elucidá-lo; entretanto, a figura do rapaz assomava-lhe à imaginação semelhante a bisturi que lhe retalhasse uma chaga mental. Rememo­rava a entrevista do Lido, em que lhe ilaqueara a boa-fé, e envergonhava-se. Meditou, meditou. Examinou-se sem compaixão para consigo, e aca­bou inferindo que, se quisesse realmente apresentar personalidade nova, não lhe cabia isentar-se das con­seqüências que as passadas faltas lhe propunham.

Consolidado o raciocínio, não mais vacilou.

Recorreu ao fone com escassa esperança de ouvir o rapaz, já que o relógio assinalava mais de nove da noite, mas o moço atendeu.

Não obstante acanhado, Cláudio expressou-lhe o pesar pelo falecimento da genitora, ao mesmo tempo que lhe comunicava a perda de Marita.

Figurou-se-lhe Gilberto deprimido, torturado.

O filho de Nemésio confessava-lhe desconhecer, não só a extensão do acidente, mas também o óbi­to. Decerto que, pelas provações da família, com a lenta agonia de Dona Beatriz e com a enfermi­dade de Marina, que logo se lhe seguiu, não tives­sem Dona Márcia e a filha encontrado ocasião para referir-lhe a gravidade das ocorrências. Lastimava o sucedido e enviava pêsames.

Prezara sempre em Marita uma irmã pelo coração. Consultado por Nogueira, explicou que Marina fora acometida por acessos de fúria. O facultativo de confiança admi­tira demência precoce, mas desistira da assistência. Entregara o problema a psiquiatras.

O diálogo prosseguiu.

Antecipando justificativas, Gilberto anunciou haver assumido novas resoluções, nos dias últimos. Quando no encontro de ambos, em Copacabana, estava, sim, decidido a casar-se mais cedo, despo­sar Marina e recolher-se à tranqüilidade do lar, mas, apreensivo ao ver a moça doente qual se acha­va, o pai, embora reconhecido aos serviços que a jovem lhes prestara, impelira-o à mudança de rumo. O genitor, que se achava ausente em descanso restaurativo, usara franqueza.

Não aprovaria o ca­samento, não considerava Marina suficientemente habilitada para as responsabilidades do matrimô­nio. Além disso, falara-lhe de «certas coisas» e aconselhara-o a sair do Rio. Sustentá-lo-ia em ou­tra cidade, onde pudesse recomeçar estudos inter­rompidos. Ele, porém, Gilberto, compreendia a vida de outro modo e, à face das imposições paternas, sentia-se acabrunhado, vencido...

Cláudio aceitou as alegações com humildade e acentuou que ele era ainda muito jovem, que não devia opor contradita aos conselhos de Torres pai e sim continuar refletindo, de vez que casamento, em qualquer pessoa, reclama liberdade, consciên­cia... Tão sensatas e confortadoras observações formulou, pacificando-lhe o intimo e clareando-lhe a compreensão para o trato com o próprio pai, que Gilberto se modificou, perante aquela brandura inesperada. Supunha ouvir um outro Nogueira, mais velho, mais amigo... Emocionado, agradeceu e che­gou a pedir-lhe não o abandonasse. Verificava-se agora sozinho. O genitor era bom, generoso, mas homem de negócios.

Cabeça cheia. Sentia necessi­dade de alguém que o inspirasse, que lhe esten­desse as mãos.

Estimaria encontrá-lo, ouvi-lo mais vezes.

Percebeu que Cláudio lhe falava em tom de lágrimas, agradecendo-lhe o apreço. Aquilo como que lhe insuflava confiança nova naquele homem com quem se entendera, dias antes, mas de modo imperfeito.

Nogueira, submisso, consultou acerca de Már­cia. Provavelmente que, em se afastando para Pé­trópolis, a esposa lhe teria deixado o telefone. Gil­berto confirmou. Dona Márcia, ao viajar, solicita­ra-lhe atenção para Marina. Se a menina piorasse, que fizesse o obséquio de chamá-la, incontinenti. E ao expressar-lhe semelhante recomendação, de­clarara que lhe passava a incumbência e não ao marido, por sabê-lo ocupado no hospital.

De posse das informações, Cláudio agradeceu de novo e repôs o fone no gancho. Em seguida, confiou-se à meditação. Pelo tom da conversa, o rapaz se alterara de todo. Em tudo o que expusera, media as frases. Cerimonioso, desencantado. E que teria desejado dizer com aquelas duas pa­lavras certas coisas? Ele, Nogueira, sentia-se re­novado; entretanto, a experiência do pretérito cons­tituía-lhe o fundo da grande transformação. Não ignorava que a filha se arriscava a dualidade pe­rigosa, na aventura afetiva. Convencia-se de que algo de muito grave teria ocorrido.

Era bastante maduro para não desconfiar de que pai ou filho houvesse apanhado algum flagrante desagradável. Deduzia que a jovem baqueara, caindo em abati­mento, como quem achara nisso a deserção de si mesma. Pensou nela e compadeceu-se. Afinal, não se fizera crente para censurar. Aspirava a com­preender, servir. Sabia agora que a obsessão pro­vocava tragédias. E ele mesmo, que nunca auxi­liara a filha, na edificação da vida íntima, não po­dia queixar-se. Cismou, cismou e, depois das dez, chamou a esposa.

Dona Márcia respondeu.

Interpelada, comunicou estar descansando, jun­to de pessoas amigas. Ciente da morte de Marita, confessou-se aliviada. Não a desejava sobreviven­do ao desastre, deformada como a vira.

Alinhou comentários desairosos, fez chiste.

Pela inflexão com que se manifestava, o es­poso reconheceu-a num dos dias mais infelizes.

Sarcasmo em cada sílaba. Irritação à mostra.

Cláudio apequenou-se, rogou desculpas. Não queria interromper-lhe a excursão. Não conseguia, porém, sossegar-se quanto à filha doente. Se pos­sível, ensinasse a ele o melhor caminho de visitá-la com urgência. Solicitava-lhe o nome dos médicos amigos. Esperava colher-lhes a opinião.

A palavra dele deslizava tão mansamente no fio que a interlocutora mudou de jeito. Amaciou-se. Informou que precisava completar informações com amigas, que ele, Cláudio, aguardasse um mi­nutinho.

Transcorridos instantes breves, voltou partici­pando que viria ao Rio, na manhã seguinte, a fim de conversarem. Guardava (certos assuntos» para tratar com ele, mas preferia falar-lhe de boca a boca. Que ele a esperasse no Flamengo. Chegaria cedo, de automóvel, apenas com o objetivo de vê-lo e retornar ao hotel serrano em que repousava.

Efetivamente, no dia imediato, antes das nove da manhã, logo após entender-se com Dona Justa, em matéria caseira, viu-se o bancário defrontado pela esposa.

Dona Márcia parecia regressar de outro país. Adereçada, sorridente. Os cabelos em penteado ex­cêntrico realçavam-lhe a graça, remoçando-a intei­ramente. Harmonizava-se a maquilagem com o ró­seo do vestido novo. O porte se lhe erguia nos sapatos de salto alto, com a esbelteza da cegonha jovem, quando caminha descuidada em campo livre. Exibia cores, desfilava perfumes.

Contudo, a flor humana em que se metamor­foseara não escondia para nós as larvas que a carcomiam. Jazia Dona Márcia assessorada por pe­quena corte de vampirizadores desencarnados que lhe alteravam a cabeça.

Mesmo à nossa frente, que nos acostumáramos a identificá-la por matrona difícil, mas ajustada ao lugar que as conveniências lhe indicavam, surgia quase irreconhecível.

Metalizara-se-lhe a voz, o olhar fizera-se mais frio.

De entrada, cumprimentou o marido e Dona Justa com ademanes de protetora complacente.

Assustou-se Nogueira. Não compreendia. Pa­deciam em casa a provação de uma filha morta e outra enferma... Por outro lado, Márcia, pelo fio, anunciara-se esfalfada. De que maneira se amoldava a uma excursão, assim festiva? Instintiva-mente, recordou Gilberto preocupado com certas coisas» e a própria esposa prometendo-lhe (certos assuntos» e, apreensivo, perguntava-Se que suces­sos ocultos se lhe vedavam ao coração...

A recém-chegada sentou-se, cruzando as per­nas com desenvoltura juvenil, e, sem mais aquela, reportou-se à pressa que trazia.

Nogueira indagou por Marina.

Dona Márcia, evidentemente interessada em outros problemas, sintetizou, quanto pôde, a histó­ria da enfermidade, indicou o psiquiatra que res­pondia pelo caso, aludiu ao conforto de que a filha se rodeava na casa de saúde e exalçou a genero­sidade do senhor Torres, que não calculava sacri­fícios para que lhe sobejasse assistência. Comentou largamente a nobreza do viúvo de Dona Beatriz, cuja grandeza de alma apenas agora — dizia, en­tusiasmada —, começava a conhecer. E, finalmen­te, propôs um ajuste de providências pelas quais se transferisse a menina para um sanatorio em São Paulo, onde estagiasse, no tratamento devido, por alguns meses. Bastava que ele, Cláudio, con­cordasse. Nemésio, em sinal de gratidão da firma pelos serviços prestados por Marina, custearia to­das as despesas.

Cláudio escutou, humilde, e obtemperou que a situação talvez não fosse tão grave, que a palavra “meses” o alarmava. Acreditava que a filha, con­jugando medicação do corpo e da alma, lograria recuperar-se em menos tempo.

Argumentou, sensato. Demonstrou, sem afeta­ção de virtude, que não lhes seria lícito abandoná­-la, destacou que a proteção dinheirosa significava muitíssimo, principalmente naquela hora em que os cuidados exigidos por Marita lhe haviam esgotado as reservas, mas admitia que a filhinha conturbada reclamava deles carinho, dedicação.

Após enfileirar judiciosos apontamentos que a interlocutora recebia, contrafeita, levantou para ela os olhos súplices - e convidou-a, com dignidade, a abraçar, junto dele, uma existência nova.

Vida de harmonia, de construção recíproca. Sincero, con­fiou-lhe todos os propósitos diferentes que edificara naqueles dias de luta, dos quais emergira trans­formado. Descerrava-lhe o íntimo. Fizera-se espí­rita-cristão. Sentia-se outro homem. Participou-lhe que, entre ele e o passado, erigia-se a fé por bar­reira de luz. Aspirava, agora, à bênção do lar, àtranqüilidade da família...

Comprometia-se a ado­tar conduta reta, ser-lhe-ia companheiro leal. Não lhe constrangeria o ânimo a aceitar-lhe as idéiás; no entanto, anelava mostrar-lhe quanto a amava... Disse-lhe que vinha orando, desde a véspera, rogan­do a Jesus o inspirasse, no sentido de revelar-se a ela, abertamente, para que ela, Márcia, lhe per­doasse e o compreendesse... Concedia-lhes Deus o futuro à frente.

Penitenciar-se-ia quanto aos erros cometidos, dispunha-se a testemunhar-lhe fidelida­de, afeição...

A senhora, porém, aprumou-se de um salto, plantou as mãos na cintura, numa risada de escárnio, e zombeteou:

—        Sim, senhor! o diabo, depois de velho, se fez ermitão!. .. sempre a mesma história!.

E aditou com ar de troça:

—        Era só o que faltava! Você espírita!... Eu logo vi!... Juro que no hospital você já estava nessa baboseira. Aquele jeito de conversar, quan­do Nemésio e eu fomos lá, aquele modo de tratar Marita!... Ora, ora!... quem teria hipnotizado você dessa forma?...

O         marido, arrancado à esperança que alentava no sentido de se reconciliarem para uma experiên­cia doméstica respeitável e batido na fé que prin­cipiava a entesourar, objurgou, francamente ofen­dido:

—        Mas você conhece o Espiritismo?

Márcia, obsidiada, com a disposição de quem procura deixar o carreiro, trilhado desde muito, para arrojar-se a outro caminho, revidou, irônica:

—        Perfeitamente, conheço sim! Quando Aracé­lia morreu, andei conversando nisso com amigas e acabei desistindo. Espiritismo é um movimento de pessoas, querendo sentar cachorros no banco e apa­nhar estrelas como se fossem laranjas!. .. Boba­gem! Nós todos no mundo somos canalhas!... Eu sou, você é, os outros são!... Os espíritas me pa­recem cães querendo sentar na poltrona da falsa virtude. Asneira deles! Temos de rolar é no chão mesmo...

—        Eu não penso assim...

— Pois se você pensa de maneira diversa e se é verdade tudo o que você me falou, é pena que a mudança chegue tão tarde!... Venho de Petró­polis, justamente para dizer a você que entre nós tudo está acabado... Agora, meu velho, faça a sua vida, que eu vou me arranjar...

E continuou alegando que, depois de sofrer tan­tos anos, naquele apartamento que apelidava por «minha gaiola», iria fazer ninho certo. Esperaria tão-somente as melhoras de Marina, a fim de pro­mover o desquite. Se ele, Cláudio, não assinasse, que escolhesse rumo. Declarava-se farta.

Queria liberdade, sossego, distância...

Nogueira escutava, triste.

Repunha no pensamento as instruções de Agos­tinho e Salomão, lembrava Marita, reconstituia na memória os textos lidos.

Sim, concluía mentalmente, aquele matrimônio destruído era obra dele. Recolhia o que semeara. Uma filha morta, outra doente e a esposa obses­sa... Seara de espinhos para quem os plantara Fitou Márcia, aplicada ao sarcasmo, e reconheceu que ambos eram comparáveis a dois náufragos na viagem do mundo, com a diferença de que ele acei­tara refúgio no salva-vidas da fé, ao passo que ela preferia mergulhar no desconhecido. Por minutos amargos, ouviu-lhe, pacientemente, os remoques, até que o «homem antigo» ressurgiu nele.

Impossível agüentar tanto insulto — monolo­gou de si para consigo. A doutrina restauradora que abraçara não se destinava a criar homens in­dignos. Doutrina de compreensão e benevolência, mas também de limpeza e respeitabilidade. Não se julgava habilitado a receber tanta injúria sem revolta. Indignou-se. Quis reagir, esbravejar, espan­cá-la... Entretanto, ao querer deslocar a destra, a fim de agredi-la, a noção de responsabilidade acordou-se-lhe, de repente... Recordou o hospital e reviu na imaginação a pequena mão gelada que o saudava, num gesto de perdão, no momento do adeus... Os dedos submissos e frios da filha desencarnada estavam nas mãos dele, relembrando-lhe que devia perdoar como tinha sido perdoado... Súbita calma lhe tomou o coração e entrou em lágrimas copiosas...

Márcia divertiu-se. Destacou que não faria falta a um marido que se efeminara, tornando-se poltrão e choramingueiro. Afirmou que, mediante aquele espetáculo de covardia, estava decidida a não contar com Marina, refeita. Tomaria atitude. Nada mais tinha a ver com aquela casa. Chamou Dona Justa e avisou com o indicador em riste que mandaria buscar todos os seus pertences para se­rem alojados em casa de Selma, a companheira de infância que residia na Lapa. E, vociferando, colérica, estrondou a porta, atrás dos próprios pas­sos, sem mais uma palavra para o esposo que per­manecia na sala, esmagado de sofrimento.

Demorou-se Nogueira em casa, durante algu­mas horas, refazendo forças. À tarde, procurou Salomão, em Copacabana. Consolou-se ao vê-lo. Palestraram por momentos. Da própria farmácia, telefonou ao psiquiatra que a esposa nomeara.

O especialista ouviu, cortês. Sim, proporcio­nar-lhe-ia todas as facilidades para que se avis­tasse com a filha, no dia seguinte.

Cláudio agradeceu e, encerrando a ligeira con­versação pelo fio, rogou a Salomão um minuto de entendimento em particular. Atendido, solicitou ao amigo para que o auxiliasse através da oração, em benefício da outra filha, que supunha obsidia­da, relacionando-lhe o problema de modo sucinto.

Salomão confortou-o. Possuía companheiros di­versos, dedicados à desobsessão. A todos solicitaria socorro, junto aos benfeitores que lhes supervisio­navam as tarefas, no plano espiritual. A seu tur­no, consagrar-se-ia ao caso, imbuido da melhor confiança. Notando que o pai de Marita entremos­trava o coração atenazado de angústia no sem­blante abatido, convidou-o ao café e, sentados em recanto ameno, permutaram confidências, observações projetos, esperanças.

Partilhariam atividades espirituais, seriam irmãos no trabalho, no ideal.

Nogueira retornou, aliviado, ao Flamengo, e, na manhã imediata, estava a postos, em Botafogo.

No horário marcado, ganhou o recinto a que Marina foi trazida.

Afligiu-se em lhe verificando a depressão. Ema­grecera. Desfigurara-se. Por fora, o alheamento de si mesma; entretanto, através dos olhos, des­pedia a alma incendiada de angústia.

Comovi-me, não apenas ao abraçá-la, mas tam­bém ao notar Moreira rente, esmerando-se na exe­cução do que prometera.

Enquanto o amigo que se guindara à condição de enfermeiro me acolhia, fraterno, a jovem enlea­ra-se ao pai numa explosão de lágrimas.

Sentaram-se.

A enfermeira deixou-os a sós e Marina per­guntou pela mãezinha. Por que não viera, por que a desprezava? por quê? por quê?

Empenhou-se Nogueira em acalmá-la e fê-lo de tal modo que a menina, espantada, cobrou mais ampla lucidez. O pai dirigia-se a ela num tom que nunca ouvira. Vasculhava-lhe as fibras mais in­timas, lenindo, ajustando... Falou-lhe de forças imponderáveis à maioria das pessoas, reportou-se a Inteligências desencarnadas que se imanizam às criaturas em perturbação, agravando-lhes os dese­quilíbrios. Persuadiu-a quanto à obrigação de aca­tar as instruções médicas, participou-lhe que fora iniciado nos júbilos da prece, desde o acidente que lhes arrebatara Marita, de cuja desencarnação a inteirou com afetuosa cautela. Transmitir-lhe-ia oportunamente as instruções que recebera de ami­gos, acerca da reencarnação, do sofrimento repa­rador, da obsessão e do intercâmbio espiritual. Estudariam juntos e acrescentou, piedoso: «Mesmo que Márcia não quisesse». Que ela, Marina, guar­dasse paciência, calma, inspirando confiança naque­les que a tratavam. Dissesse a ele, pai renovado pela fé, o que mais a preocupava. Achava-se ali para alentá-la, entendê-la. Que se desabafasse, para que ele soubesse por onde começar. Nada lhe ocul­tasse, nada temesse. Queria vê-la robusta, feliz. Todas as palavras lhe escapavam da boca impreg­nadas de tanto carinho, e clareadas por tamanho amor, que ela se lhe aconchegou ao peito com mais devoção, lembrando alguém que se agarrasse a inesperada raiz ao escorregar na direção de queda fatal... Perguntou ao pai se ele algum dia che­gara a ouvir vozes estranhas, se já divisara vultos que ninguém percebia. Cláudio acariciou-a, asse­gurando que lhe explicaria semelhantes fenômenos tão logo a visse refeita, insistindo, porém, para que o auxiliasse com as informações de que carecia, a fim de prestar-lhe o apoio necessário.

Foi então que a filha, implorando a ele não a condenasse e estimulada pelo sorriso bondoso com que era ouvida, descreveu para o genitor os caprichos femininos com que requestara Nemésio Torres. Ele, amadurecido, ela, quase criança; con­tudo, ensoberbecia-se ao reconhecê-lo chefe e vas­salo. A principio, os passeios alegres, o dinheiro a rodo, os afagos recíprocos, aos quais ela se en­tregava muito mais pela vaidade de impressioná-lo que por motivos de atração. Contou como Nemé­sio, cativo, deu para escravizá-la. Historiou a noite em que ele a embriagara de propósito, quando lhe despertou nos braços, dentro de uma casa rústica em São Conrado, que, até então, não conhecia... Desde essa época se lhe fizera companheira, en­trando, a instâncias dele, para o serviço de Dona Beatriz, para que a tivesse sempre a mão... Apai­xonara-se por ela, repetia-lhe• declarações, aspirava a desposá-la, assim que a viuvez sobreviesse natu­ralmente. Mas Gilberto aparecera e, por mais lutas­se contra si própria, não conseguira controlar-se. Desde o primeiro encontro, adivinhou nele o ho­mem com que sonhava... Pintando as emoções ao vivo, com todas as tintas de realismo que o delírio lhe punha nas palavras, confessou que o provocara, afastando-o, deliberadamente, da irmã e, vingan­do-se de Nemésio, copiou-lhe a iniciativa... Numa noite de farra, impeliu-o a exceder-se no uísque e, ao tê-lo inflamado, conduziu-o, ela mesma, ao quarto de que dispunha no lar dos Torres, a título de fazê-lo descansar, para entregar-se a ele, sem qualquer noção de vigilância ou censura... Ao acor­dar, induzira-o a crer-se responsável pelo futuro...

Passara, dessa forma, a dividir-se com habilidade entre um e outro, embora conservasse a indiferen­ça por Nemésio transformada em aversão. Quanto mais se comunicava com o filho, mais detestava o genitor, até que a morte de Dona Beatriz pre­cipitara os acontecimentos. Observando o chefe positivamente decidido ao matrimônio, apegara-se-lhe ao filho com loucura, a ponto de ser surpre­endida por Nemésio, em situação desconcertante...

Nogueira escutava, compungido.

Detinha a impressão de tomar contacto com os familiares pela primeira vez, em toda a vida.

Machucado ainda pelas considerações de Márcia, ignorava agora quais as feridas que mais lhe doíam na alma, se as que a insensibilidade da esposa lhe abrira no espírito, se as que lhe eram produzidas nos tecidos do coração pelos segredos da filha pa­decente. Enlaçou-a, porém, com mais ternura, e Marina, encorajada, repetiu que anelava libertar-se de Torres pai, ansiando casar-se com Gilberto, ser-lhe a esposa no lar, compreendê-lo, torná-lo feliz. Cláudio prometeu cooperar, destacando, no en­tanto, a necessidade da saúde primeiro...

Contudo, o doloroso relatório não terminara. Imprescindível sorvesse o cálice até à lia.

Em frases entrecortadas de soluços, Marina cientificou-o de que fora visitada, ali mesmo, por Nemésio, quatro dias antes; acentuou que o chefe se prevalecera da intimidade e lhe asseverara que não a cederia ao filho de modo algum, que a es­peraria para as segundas núpcias e que manteria todos os compromissos formulados anteriormente, no sentido de enobrecê-la no casamento e benefi­ciar-lhe toda a família, se ela abandonasse o rapaz, que ele, na qualidade de pai, pretendia remover para o sul... Porque respondesse claramente que não renunciaria a Gilberto, implorando-lhe perdão e que a tratasse por filha, revoltara-se, ameaçan­do-a... Se o preterisse, matá-la-ia. Ela chorara, suplicara compaixão, assegurando que não tinha coragem de continuar fingindo por mais tempo... Amava Gilberto, queria sarar, viver com ele e por ele... Nemésio rira, mordaz, acentuando que ela lhe pagaria a desconsideração, que jamais lhe per­mitiria a felicidade junto daquele filho que passa­ra a odiar e que, para humilhá-la, acintosamente, conquistara as atenções de Márcia, sem resistência, decidindo-se a levá-la para Petrópolis, em substi­tuição dela mesma...

Cláudio ambicionava crer que a jovem tres­variava, mas a lembrança da esposa transtornada comprovava o que ouvia e, quanto a mim, recolhia de Moreira a devida confirmação. O enfermeiro, em breves palavras, deixara-me saber que chusmas de Espíritos perturbadores, após a desencarnação de Beatriz, lhe haviam arrebatado o marido, ex­plorando-lhe as energias genésicas.

Nogueira percebeu a gravidade do problema; no entanto, ao término da entrevista, reconfortou a fi­lha, descortinando-lhe paz e esperança à mente ator­mentada. Recomendou-lhe trabalho, confiança, pa­ciência e controle, a fim de recuperar-se, mais de­pressa, e garantiu-lhe que se entenderia com Márcia e com ambos os Torres, para que os planos da felici­dade futura fossem concretizados em harmonia.

Marina recebeu-lhe a despedida, a sorrir con­fortada, patenteando sinais de melhora, mas, em se revendo na rua, Cláudio entrou em prece, e, re­conhecendo-se no prelúdio de provas amargas, com­primiu a destra de encontro ao peito alanceado, como quem trazia da visita espinhos de fogo a lhe requeimarem o coração.

 

Rumei, junto de Neves, para o instituto de re­novação que Félix dirigia na esfera espiritual.

A caminho, reconfortava-me ouvindo o compa­nheiro asserenado, contente. Acompanhava o res­tabelecimento de Dona Beatriz, nutrindo júbilos novos. Luzia-lhe o olhar povoado de sonhos.

E contava-me as surpresas da filha recém-che­gada ao plano superior. Afeições de outros tempos, familiares queridos chegavam de longe para felici­tá-la. Beatriz concluíra nobre tarefa — dentre as muitas empresas admiráveis cuja extensão é ava­liável apenas na pátria dos Espíritos —, a tarefa da renovação íntima, obtida à custa de sacrifícios ignorados. As lágrimas vertidas no silêncio e as dores anônimas lhe haviam granjeado paz e luz. Mulher desconhecida no mundo, aparentemente es­crava de um marido e de um filho que não a valori­zavam, atingira realizações sublimes em si própria, entesourando no íntimo riquezas inalienáveis para a imortalidade. Decerto não retornara alçada àglória angélica, mas, tanto quanto era possível, na condição em que renascera, voltara triunfante.

Regozijava-me igualmente com as impressões que ouvia e, de propósito, fiz quanto pude para não ser inquirido acerca dos Torres que, a meu ver, ainda estavam por aproveitar os merecimentos da missionária de abnegação que os servira. Receava embaciar o espelho de otimismo em que as espe­ranças do amigo se retratavam. Neves, talvez pelas mesmas razões, nada me perguntou, em torno do genro e do neto que, sem a guardiã maternal, se viam agora entregues a si mesmos.

Fomos defrontados pelo instituto que deman­dávamos, O “Almas Irmãs”, assim chamado pelos fundadores que o levantaram em socorro dos ir­mãos necessitados de reeducação sexual, após a desencarnação, exibia plano extenso de construções. Conjunto de linhas harmoniosas e simples, ocupan­do quatro quilômetros quadrados de edifícios e arruamentos, parques e jardins. Autêntica cida­de por si.

Inalava-se tranqüilidade, alegria.

Das aléias em verde repousante, flores tangi­das pelo vento figuravam-se acenos de boas-vindas.

Rostos sorridentes nos saudavam, de permeio com os semblantes circunspetos que nos lançavam olhares de simpatia.

Todas as idades aí se expressavam nos com­panheiros de ambos os sexos, com os quais ren­teávamos, satisfeitos.

Bloco de casario sugeria universidades reu­nidas.

Mas, longe de encontrar representantes da psi­copatia ligada às perturbações sexuais, eram cria­turas de aparência hígida as que nos acolhiam, afetuosas.

Neves, que ali aportara dias antes, interpelado por minha curiosidade, esclareceu que a agremiação possuía vasta dependência reservada a enfermos; entretanto, que eu modificasse qualquer conceitua­ção prévia, com respeito à obra ali desenvolvida, porqüanto os verdadeiros alienados em conseqüên­cia de alucinações emotivas, trazidas da Terra, per­maneciam reclusos em manicômios, sob tratamento indicado, sempre que apartados das falanges de­mentadas nas regiões tenebrosas. Acrescentou que muitos daqueles que nos cumprimentavam, tran­qUilos, remanesciam de tragédias passionais, inten­samente vividas no mundo; todavia, revelavam-se agora pacificados e lúcidos, quais as próprias per­sonalidades humanas, depois de reprimir as crises de insânia, quando se rendem ao desequilíbrio mental.

As elucidações, no entanto, se interromperam de brusco, porque atingíramos o ponto em que nos cabia tomar contacto com Félix, antecipadamente avisado quanto à nossa presença.

O instrutor, contudo, prevenia-nos da impossibi­lidade de abraçar-nos, de pronto. Aguardarnos-ia, mais tarde, na própria residência. Enternecia-nos, entretanto, com grata surpresa. Belino Andrade, amigo que eu não via há precisamente dez anos, e com quem convivera, intimamente, em atividades outras, ali se achava a fim de iniciar-nos no conhe­cimento da casa.

Abraçou-nos, fraternal, e, como que retomando os esclarecimentos que Neves empreendera, come­çou dizendo que pisávamos num hospital-escola de suma importância para os candidatos à reencar­nação, Os internados ou estudantes vinham, em maioria, de estâncias purgatoriais, após alijarem as conseqüências mais imediatas dos vícios e paixões aviltantes, por eles acalentados no plano físico. Rigorosamente examinados, atendiam a critério de seleção, nas paragens de angústia expiatória em que se demoravam, e somente depois de julgados dignos entravam naquele pouso de refazimento para estações mais ou menos longas de estudo e meditação, pesquisando as causas e observando os efeitos das quedas de natureza afetiva em que se haviam precipitado...

Enquanto nos detínhamos em caminhada agra­dável, Belino prosseguia informando que todos eles, depois de suficientemente instruídos, são recambia­dos ao domicílio terrestre, onde reencarnam nos ambientes em que faliram e, tanto quanto possí­vel, nas equipes consangüíneas que lhes impuseram prejuízos ou que lhes sofreram os danos.

No Almas Irmãs» obtinham a láurea do co­nhecimento, na Terra volviam a aplicá-lo, através das dificuldades e tentações da faina material, que nos comprovam a assimilação das virtudes adqui­ridas.

Apresentando-nos praças graciosas ou aprecian­do aspectos da paisagem, Belino comparou as fi­nalidades do educandário aos centros de cultura superior, existentes no mundo, que conferem títulos acadêmicos para o exercício de funções deter­minadas, dentro da especialização profissional, e confrontou a arena terrestre com a esfera da prá­tica, em que os alunos diplomados são impelidos às experiências e aos encargos que lhes fixam o mérito ou o demérito. Ali, a mente se rearticu­lava, aprendia, refazia, restaurava, mas, de modo geral, sempre no objetivo de retornar ao mun­do, a fim de incorporar em si mesma o valor das lições recebidas. Acrescentou que a não serem as reencarnações compulsórias, por motivos premen­tes, o problema do regresso requeria considerações específicas e preparações adequadas, razão pela qual muitos companheiros do «Almas Irmãs» se corporificavam na Terra com programas domésti­cos preestabelecidos, de maneira a hospedarem com os seus próprios recursos genésicos os colegas afins. Dali, do estabelecimento, esses colegas, que se lhes indicavam na posição de filhos para o fu­turo, os resguardavam e defendiam, até a ocasião em que lhes fosse possível mergulhar no berço terreno, constituindo-se, dessa forma, famílias in­teiras, em edificações e provas redentoras, que, no fundo, representavam, espiritualmente, o trabalho do instituto, entre os homens, qual ocorre a múl­tiplas organizações congêneres e a numerosas as­sociações outras, consagradas à regeneração e ao progresso da alma, nas esferas de ação espiritual que circundam a Terra.

Aquele hospital-escola qualificava-se, dessa ma­neira, na condição de posto avançado da espiri­tualidade construtiva, sustentando permanente con­tacto com a vida humana.

Cada individualidade reencarnada com vínculos no “Almas Irmãs”, ali se encontra convenientemente fichada, com todo o histórico do que está realizando na reencarnação obtida, no qual se lhes vê o balanço dos créditos conquistados e dos dé­bitos contraídos, balanço esse que é examinável a qualquer momento, para efeito de auxílio maior ou menor aos interessados, segundo a lealdade que demonstrem na desincumbência das obrigações a que se empenharam e conforme o esforço espon­tâneo que revelem na construção do bem geral.

Indaguei de Belino se conhecia a média geral de aproveitamento na comunidade e ele informou que sim, acentuando que, em oitenta e dois anos de existência, o “Almas Irmãs”, que detinha habitualmente uma população oscilante de cinco a seis mil pessoas, apontava, no coeficiente de cada cem estudantes, dezoito vitoriosos nos compromissos da reencarnação, vinte e dois melhorados, vinte e seis muito imperfeitamente melhorados e trinta e qua­tro onerados por dívidas lamentáveis e dolorosas.

À minha nova inquirição sobre se os fracas­sados eram readmitidos, informou que ninguém na Terra consegue avaliar a expectativa, a ternura, o esforço e o sacrifício com que os amigos desencarnados torcem pelo triunfo ou pelo aprimoramen­to parcial dos afeiçoados, em serviço no mundo, e nem imaginar a desolação que lhes sacode o âni­mo, quando nân logram abraçá-los de volta, mes­mo ligeiramente renovados para o suspirado con­vívio. Noticiou que os companheiros em malogro positivo, após a desencarnação, passam, automati­camente, às zonas inferiores, onde, por vezes, ainda se demoram, por muito tempo, em desequilíbrio ou devassidão, conquanto nunca percam o devotamen­to dos amigos ali domiciliados, que intercedem por eles, junto a colônias dedicadas a outros tipos de assistência. Sabia, porém, de casos pertinentes a vários rematriculados depois dessas refregas. Em compensação, exaltou os prêmios atribuídos aos vencedores. Os aprendizes que se laureiam, atra­vés do aproveitamento substancial dos recursos for­necidos pela organização, ai se honram com ad­miráveis oportunidades de trabalho, em estâncias superiores, conforme os desejos que expressem.

Atingíramos, entretanto, comprido agregado de edifícios, nos quais Andrade informou estarem lo­calizadas diversas atividades de instrução.

Iniciamos vistoria afetuosa.

Os salões de aula comoviam pelas revelações, e os professores pela simpatia. O sexo, por tema central, merecendo o maior apreço.

Os alunos contemplavam gravuras e croquis que configuravam implementos do sexo, com o interesse carinhoso de quem se enternece ante o colo maternal e com a atenção de quem agradece con­cessões divinas.

Todos nos acolhiam denotando cordialidade, sem que a nossa passagem lhes alterasse a aplicação; contudo, é de salientar a emoção que me empolgava ao observar o crescendo de veneração com que o sexo era homenageado nas diversas fa­culdades de ensino, pesquisado e enobrecido em ca­deiras diferentes. Matérias professadas em regime de especialização. Cada qual atendida em constru­ção apropositada. Sexo e amor. Sexo e matrimô­nio. Sexo e maternidade. Sexo e estímulo. Sexo e equilíbrio. Sexo e medicina. Sexo e evolução. Sexo e penalogia. E outras discriminações.

Disse Andrade que todas as disciplinas são freqüentadas por grande cópia de alunos, e, ten­tando saber em quais delas se inscrevia o número mais extenso, viera a saber que os assuntos de «sexo e maternidade, e «sexo e penalogia» reti­nham proeminência franca. O primeiro reúne centenas de criaturas que se endereçam aos ajustes de lar, na Terra, e o segundo enfeixa enorme quan­tidade de Espíritos conscientes que examinam a melhor maneira de infligirem a si próprios deter­minadas inibições, para se corrigirem de hábitos deprimentes no curso da reencarnação a que se dirigem. Muitos chegam a deixar escritas nos ar­quivos da casa as sentenças que lavram contra si mesmos, antes de se envolverem nas provações que consideram necessárias ao aperfeiçoamento e feli­cidade que demandam.

Tornavam-se as elucidações de Belino cada vez mais interessantes e refletia, de minha parte, na extensão das obras da cidade espiritual em que me achava, há quinze anos, longe de conhecer-lhe todos os monumentos de benemerência e cultura, quando alcançamos a residência do diretor.

Félix, em companhia do Irmão Régis, que nos apresentou por substituto eventual dele, acolheu-nos amavelmente. Admirei-me.

Não parecia o amigo que se apequenava no Rio para compartilhar-nos o trabalho.

Reverenciado e querido, era ali distinguido dignitário do conheci­mento superior, a quem a administração de (Nos­so Lar» delegara responsabilidades vultosas. Diri­gente e comandante, pai e irmão.

O ambiente no gabinete em que nos alojara, afetuoso, ressumava simplicidade sem negligência, conforto sem luxo.

Por trás da poltrona singela de que se servia, salientava-se tela de proporções avantajadas, na qual a mão de pintor exímio gravara o retrato de nobre matrona em prece nas regiões inferiores. A venerável mulher elevava os braços para• o céu plúmbeo, que filtrava revérberos de luz qual se lhe respondesse às rogativas e, em torno dela, mago­tes de Espíritos conturbados a se rojarem no solo, taciturnos, entre consolados e estarrecidos.

Registrando-nos o assombro, Félix explicou que conservava naquela obra de arte a lembrança de magnânima servidora do Cristo, desconhecida entre os homens, consagrada no mundo espiritual ao so­corro de corações mergulhados nas trevas. Visita­va as furnas de expiações pungentes, às vezes so­zinha, e, de outras, acompanhada por equipes de colaboradores, amparando, reconfortando... Adota­va criminosos desencarnados por filhos da alma, infundia-lhes o ideal da regeneração, levantando-os e instruindo-os. De quando em quando, ele, Félix, ia vê-la no asilo maternal que, ainda hoje, a abne­gada educadora sustenta nas regiões sombrias por almenara de amor. Prosseguiu relatando que nesse abrigo permanecem, freqüentemente, mais de mil hóspedes, sempre substituidos, de vez que a ben­feitora efetua o encaminhamento constante dos re­colhidos a escolas beneméritas, com vistas à reen­carnação na Terra ou a estágios de retificação em outras paragens. E informou dever a ela, que no­meava por Irmã Damiana, o primeiro contacto com a verdade, oitenta anos antes. Guardava aquele quadro, confeccionado a pedido dele próprio, para não se esquecer, nas horas de supremas decisões, nas responsabilidades e encargos de que fora investido, da lama em que um dia se afundara e de que se vira arrebatado por aquela missionária en­grandecida no Espaço, a serviço dos infelizes.

Neves, porém, imprimiu novo rumo à palestra, colocando em relevo a satisfação de que nos sen­tíamos possuídos com a revista proveitosa nos ór­gãos de ensino, que acabávamos de realizar, e os apontamentos se voltaram para as questões do sexo, que, no «Almas Irmãs», assumiam aspectos inu­sitados.

O         Irmão Régis explicou que também se sur­preendera, a princípio, com o respeito profundo ali dedicado aos estudos do sexo, em vista da descon­sideração com que autoridades políticas, religiosas e sociais terrestre. habitualmente o menoscabam, ressalvadas as exceções. E sublinhou, com humor, que nós, os homens, somos contraditórios quando reencarnados, porqüanto estamos sempre ávidos de consertar uma tomada em desajuste e queremos sonegar a Deus o direito de socorrer e reabilitar os seus filhos em desequilíbrio emotivo.

O         anfitrião, explanando as idéias que nós, os presentes, aventávamos, historiou, em síntese, que na Espiritualidade Superior o sexo não é conside­rado unicamente por baliza morfológica do corpo de carne, distinguindo macho e fêmea, definição unilateral que, na Terra, ainda se faz seguir de atitudes e exigências tirânicas, herdadas do com­portamento animal. Entre os Espíritos desencarnados, a partir daqueles de evolução mediana, o sexo é categorizado por atributo divino na indivi­dualidade humana, qual ocorre com a inteligência, com o sentimento, com o raciocínio e com faculda­des outras, até agora menos aplicadas nas técni­cas da experiência humana. Quanto mais se eleva a criatura, mais se capacita de que o uso do sexo demanda discernimento pelas responsabilidades que acarreta. Qualquer ligação sexual, instalada no cam­po emotivo, engendra sistemas de compensação vi­bratória, e o parceiro que lesa o outro, até o ponto em que suscitou os desastres morais conseqüentes, passa a responder por dívida justa. Todo desman­do sexual danificando consciências reclama corri­genda, tanto quanto qualquer abuso do raciocínio. Homem que abandone a companheira sem razão ou mulher que assim proceda, gerando desregramentos passionais na vítima, cria certo ônus cár­mico no próprio caminho, pois ninguém causa pre­juízo a outrem sem embaraçar a si mesmo. Va­ticinou que a Terra, a pouco e pouco, renovará princípios e conceitos, diretriz e legislação, em ma­téria de sexo, sob a inspiração da Ciência, que situará o problema das relações sexuais no lugar que lhe é próprio. Empenhou-se a repetir que na Crosta

Planetária os temas sexuais são levados em conta, na base dos sinais físicos que diferenciam o homem da mulher e vice-versa; no entanto, pon­derou que isso não define a realidade integral, porqüanto, regendo esses marcos, permanece um Espírito imortal, com idade às vezes multimilenária, encerrando consigo a soma de experiências complexas, o que obriga a própria Ciência terrena a proclamar, presentemente, que masculinidade e feminilidade totais são inexistentes na personali­dade humana, do ponto de vista psicológico. Ho­mens e mulheres, em espírito, apresentam certa percentagem mais ou menos elevada de caracte­rísticos virís e feminis em cada indivíduo, o que não assegura possibilidades de comportamento ín­timo normal para todos, segundo a conceituação de normalidade que a maioria dos homens estabe­leceu para o meio social.

Tendo Neves formulado consulta sobre os homossexuais, Félix demonstrou que inúmeros Espíritos reencarnam em condições inversivas, seja no domínio de lides expiatórias ou em obediência a tarefas específicas, que exigem duras disciplinas por parte daqueles que as solicitam ou que as aceitam. Referiu ainda que homens e mulheres podem nascer homossexuais ou intersexos, como são suscetíveis de retomar o veículo físico na con­dição de mutilados ou inibidos em certos campos de manifestação, aditando que a alma reencarna, nessa ou naquela circunstância, para melhorar e aperfeiçoar-se e nunca sob a destinação do mal, o que nos constrange a reconhecer que os delitos, sejam quais sejam, em quaisquer posições, correm por nossa conta. À vista disso, destacou que nos foros da Justiça Divina, em todos os distritos da Espiritualidade Superior, as personalidades huma­nas tachadas por anormais são consideradas tão carecentes de proteção quanto as outras que des­frutam a existência garantida pelas regalias da normalidade, segundo a opinião dos homens, obser­vando-se que as faltas cometidas pelas pessoas de psiquismo julgado anormal são examinadas no mes­mo critério aplicado às culpas de pessoas tidas por normais, notando-se, ainda, que, em muitos casos, os desatinos das pessoas supostas normais são con­sideravelmente agravados, por menos justificáveis perante acomodações e primazias que usufruem, no clima estável da maioria.

E à ligeira pergunta que arrisquei sobre pre­ceitos e preconceitos vigentes na Terra, no que tange ao assunto, Félix ponderou, respeitoso, que os homens não podem efetivamente alterar, de chofre, as leis morais em que se regem, sob pena de precipitar a Humanidade na dissolução, entendendo-se que os Espíritos ainda ignorantes ou ani­malizados, por enquanto em maioria no seio de todas as nações terrestres, estão invariavelmente decididos a usurpar liberalidades prematuras para converter os valores sublimes do amor em crimi­nalidade e devassidão. Acrescentou, no entanto, que no mundo porvindouro os irmãos reencarna­dos, tanto em condições normais quanto em con­dições julgadas anormais, serão tratados em pé de igualdade, no mesmo nível de dignidade humana, reparando-se as injustiças assacadas, há séculos, contra aqueles que renascem sofrendo particulari­dades anômalas, porqüanto a perseguição e a cruel­dade com que são batidos pela sociedade humana lhes impedem ou dificultam a execução dos encar­gos que trazem à existência física, quando não fa­zem deles criaturas hipócritas, com necessidade de mentir incessantemente para viver, sob o Sol que a Bondade Divina acendeu em benefício de todos.

A conversação era fascinante, mas um compa­nheiro de serviço veio avisar que Dona Beatriz se achava pronta a receber-nos.

Demandamos o interior.

O chefe apresentou-nos duas senhoras que lhe partilhavam o refúgio doméstico, Sara e Priscila, que lhe haviam sido irmãs consangüíneas na Terra. Ambas de cativante simpatia na lhaneza de trato.

Notificou Félix que, a princípio, ali morava junto de colaboradores afeiçoados; no entanto, nos anos últimos, conseguira que as duas manas, ser­vindo em outros setores, se transferissem para o «Almas Irmãs», a fim de trabalharem juntos, pre­parando o futuro. Remanesciam os três de família cujos membros, em quase todo o conjunto, se acha­vam novamente domiciliados na esfera física, e, aparteando, Sara chasqueou, afiançando que não se demoraria a tomar o mesmo rumo.

Parando, de trecho a trecho, para conhecer minudências do extenso átrio que atravessávamos, fiquei sabendo que o instituto sustenta zonas re­sidenciais, além dos edifícios reservados à administração, ao ensino, à subsistência e à hospitali­zação transitória. Aí se acomodam famílias intei­ras, casais, Espíritos em conjunções afetivas e re­públicas de estudiosos que se visitam ou recebem amigos de outras organizações e de outras plagas, efetuando excursões edificantes e recreativas ou atendendo a empresas artísticas e assistenciais, de permeio com as obrigações de rotina.

Satisfazendo-nos as inquirições, Félix informou que Marita se encontrava naquele mesmo sítio, in­ternada num parque destinado a convalescentes; todavia, não nos encorajou o impulso de revê-la, assim de imediato, à face de achar-se bastante traumatizada, conquanto tranqüila. A desencarna­ção precoce acarretara-lhe prejuízos. Ele, porém, rogara de orientadores amigos as possíveis concessões, a fim de que fosse reposta, com urgência, no ambiente familiar do Rio, de modo a que se não perdessem medidas em andamento para o resgate do pretérito. O decesso prematuro representara fundo golpe no programa estabelecido ali, no «Al­mas Irmãs», anos antes; contudo, nutria a espe­rança de reparar as brechas, restituindo-a ao con­vívio dos entes caros, pela reencarnação de emer­gência. Dessa forma, aproveitaria oportunidade e clima de serviço, à maneira de operário que muda de máquina sem se afastar da oficina. O processo alusivo ao retorno tramitava, desde a véspera, nos órgãos competentes, pelo que não julgava oportu­no interessá-la em assuntos suscetíveis de lhe modificarem a mente, voltada para o reduto domés­tico.

Neves abordou a tese referente ao dia determi­nado para a desencarnação, defendida por alguns religiosos na Terra, ao que Félix enunciou:

— Sim, não nos é lícito desacreditar os ensina­mentos religiosos. Há planos prefixados e ocasiões previstas com relativa exatidão para o depereci­mento do veículo físico; no entanto, os interessa­dos costumam alterá-los, seja melhorando ou pio­rando a própria situação. Tempo é comparável a crédito que um estabelecimento bancário empresta ou retira, segundo as atitudes e diretrizes do de­vedor. Não podemos, assim, olvidar que a cons­ciência é livre para pensar e agir, tanto nas áreas físicas quanto nas espirituais, mesmo quando jun­gida às conseqüências do passado culposo...

E, sorrindo, rematou:

— Qualquer dia é dia de criar destino ou re­constituir destino, de vez que todos somos consciên­cias responsáveis.

Nesse ínterim, fomos defrontados pelo aposen­to da senhora recém-desencarnada, a quem Sara e Priscila dispensavam cuidados especiais.

Beatriz remoçara.

No semblante, a circunspeção que lhe conhecía­mos, mas nos olhos o clarão juvenil da criatura que retoma aspirações de há muito esmaecidas.

Neves aproximou-me. Conversamos. Declara­va-se encantada, agradecida aos hospedeiros.

Fala­va como se estivesse num lar de pessoas desconhe­cidas, sem suspeitar das atenções que recebera de Félix, antes de liberar-se do corpo enfermiço.

A palestra deslizou sobre os patins da ternura recíproca. Ela reconhecida e os anfitriões satis­feitos.

Assuntos numerosos vieram à baila. Notava-se que Félix se empenhava em distraí-la, desentra­nhando-lhe o pensamento fincado no antigo lar. Todos nos esforçávamos por induzi-la a esquecimento construtivo; entretanto, mesmo assim, adivi­nhando-nos na fase terminal do reencontro, aquele coração generoso de mulher não deixou de se pa­tentear, lembrando a Neves que, até aquele mo­mento, ainda não obtivera qualquer notícia da mãe­zinha que os precedera no mundo espiritual, tantos anos antes, como também rogava para que os cir­cunstantes a favorecessem com uma visita, na pri­meira oportunidade, à casa que ficara na Terra. Discípula aplicada do ambiente renovador em que se reconhecia, solicitou com os olhos marejados de pranto que lhe desculpássemos o apego à retaguar­da, mas isso acontecia, acentuou com humildade e grandeza de alma, porque acreditava ter sido no mundo imensamente feliz, entre as mulheres mais felizes, ao lado de um esposo que, na apreciação dela, era dos companheiros mais leais do mundo e pai do melhor dos filhos...

A noite avançara.

Neves confortou-a, propiciando-lhe esperanças, e enquanto nos despedíamos, demandando o repou­so, refleti na transformação do amigo que apren­dera a colocar o amor por cima de mágoas recal­cadas, a endereçar afetuoso sorriso para a filha confiante e adiando a verdade para momento opor­tuno.

 

Precedendo o descanso, entendi-me a sós com Félix, que me aprovou o desejo de continuar pres­tando assistência a Nogueira e à filha.

Cientificara-se o instrutor de todos os sucessos em curso, mas solicitava minudências. Ouviu-me a exposição, preocupado, e deduziu que as dificulda­des de Cláudio e Marina atingiam o climax.

Ne­cessário apoiá-los, socorrê-los. Mediante os com­promissos em que se emaranhavam, impossível alinhar previsões.

O benfeitor falava sereno. Para mim, porém, muito fácil verificar-lhe o suplício oculto. De quan­do em quando, lágrimas lhe umedeciam os olhos, que ele, padrão de coragem, não chegava a der­ramar.

Mesmo assim, contendo a emotividade, sugeriu providências e articulou planos. Que eu voltasse, encetando a nova etapa de assistência, junto de Marina, em Botafogo. Apreciava em

Moreira um cooperador diligente que o tempo se incumbiria de valorizar; todavia, supunha trabalho complexo de­mais para ele sozinho o encargo de manter a jovem doente livre dos vampirizadores, cujo número au­mentava com as atitudes inesperadas de Márcia, estimulando Nemésio a uma aventura que ralava pela demência. Que me reunisse, desse modo, a Mo­reira, alentasse Marina, estendesse os braços para Cláudio e, quanto nos fosse possível, amparasse Márcia e os dois Torres, sempre que nos propi­ciassem os meios para isso. Prometeu que nos acompanharia, confiando na Bênção do Senhor, que a tudo prevê e provê nas horas justas.

Compreendi. Félix sofria conformado. Chora­va por dentro.

Acatando-lhe as instruções, no dia seguinte dispus-me ao retorno. Antes, porém, de empreender o regresso, porque me interessasse pelos as­suntos de sexo e penalogia, refletindo nas enfer­midades obscuras que enxameiam na Terra, o pró­prio Félix conduziu-me, de passagem, a pequeno palácio, localizado no centro da instituição. «Casa da Providência», esse o nome com que o edifício é designado. Curioso foro do «Almas Irmãs», onde dois juizes funcionam, atendendo aos petitórios for­mulados pelos integrantes da comunidade, com res­peito aos irmãos reencarnados na esfera física.

De entrada, faceando com dezenas de pessoas que iam e vinham, Félix, sempre cumprimentado com apreço por todos os passantes, explicou-me que ali somente se organizavam processos de au­xílio e corrigenda, relacionados aos companheiros destinados à reencarnação e aos que já se achas­sem no estágio físico, espiritualmente ligados aos interesses do instituto.

Renascimentos, berços tor­turados, acidentes da infância, delitos da juven­tude, dramas passionais, lares periclitantes, divór­cios, deserções afetivas, certas modalidades de sui­cídio tanto quanto moléstias e obsessões resultantes de abusos sexuais e uma infinidade de temas co-nexos são aí examinados, segundo as rogativas e as queixas entregues aos pronunciamentos da jus­tiça. A Casa da Providência apenas delibera em definitivo nos problemas que se limitem ao «Almas Irmãs»; contudo, os casos, em maioria, revelam derivações para outros setores. Nessa hipótese, as questões são aí discutidas, de começo, seguindo para instâncias superiores. Ainda assim, os dois magistrados amigos e ele mesmo, Félix, que é cons­trangido pela força do cargo a estudar e informar todas as peças, uma por uma, não decidem só por si. Um conselho constituído por dez orientadores, seis companheiros e quatro irmãs, com méritos su­ficientes perante a Governadoria da cidade, opina, através de assembléias semanais, em todas as reco­mendações e diligências, aprovando-as ou contra­riando-as, a fim de que as decisões não se compro­metam em arbitrariedades. Alegou, talvez por hu­mildade, que, em muitas ações, fora esclarecido muito mais pelos pareceres dos juizes e dos con­selheiros que pelo próprio critério, o que lhe for­necia dobradas razões para respeitá-los. Clareando com mais segurança os informes iniciais, voltou a esclarecer que mais da metade dos autos tramitam na direção de autoridades do Ministério da Rege­neração e do Auxílio que, aliás, primam pela rapi­dez nos despachos e provimentos.

No corpo do edifício, seguimos por vias inte­riores, no rumo do gabinete central.

Félix, que se achava ali unicamente para fa­vorecer-me, não se atribuía o direito de penetrar, intempestivamente, no salão de audiências públi­cas, onde a massa de requerentes e querelantes se acomodava. Alguns talvez lhe dirigissem apelos pessoais, no intuito, embora vão, de pressionar os julgadores, inconveniência que era preciso evitar.

Em recinto sóbrio, o instrutor deu-me a sa­tisfação de saudar o juiz Amantino, que se achava em serviço, acompanhado de cinco auxiliares. Am­biente digno, em que a direção e a subalternidade não se confundem, conquanto reunidas pela cor­dialidade na base do acatamento recíproco.

A chegada de Félix provocou afetuoso tumulto que ele próprio suprimiu, avisando que se tratava de contacto ligeiro. Apenas uma vista de olhos. E frisou que eu voltaria, mais tarde, com tempo bastante para engolfar-me no estudo.

Os colaboradores retornaram posição. Aman­tino, porém, pelo jeito, queria ofertar-nos alguns minutos de atenção, que era forçoso receber.

Sentamo-nos.

Mais para corresponder à gentileza que pelo propósito de analisar de afogadilho os mecanismos da casa, que exigiam aturada consideração, per­guntei pela percentagem dos companheiros que re­gressam, absolutamente irrepreensíveis, da existência terrestre, segundo as conclusões daquele templo de justiça, e o interpelado respondeu com humor que principiávamos o interrogatório manejando inesperada proposição. Elucidou, afirmando que em apontamentos fiscalizados de quase oitenta anos consecutivos, a média de irrepreensibilidade não excedia de cinco em mil, não obstante surgi­rem fichas honrosas de muitos que atingiam até mais de noventa por cem na matéria de distinção absoluta, o que, no Almas Irmãs», representa elevado grau de mérito.

Articulando novas inquirições, Amantino acla­rou que, apesar da eqüidade nos julgamentos, pre­valece o rigor no registro de todas as culpas e de­fecções dos reencarnados, para que não se afrouxe a disciplina; no entanto, os limites da tolerância, na Espiritualidade Superior, são mais amplos. Isso porque os árbitros e mentores não se valem exclu­sivamente dos textos, mas também dos princípios de compreensão humana que lhes palpitam nas consciências e, usando a própria consciência, o exe­cutor da lei não ignora as dificuldades que se an­tepõem às criaturas para que se conduzam em medidas de correção integral, no dédalo dos pró­prios sentimentos, quase sempre ainda tisnados pela eiva da animalidade primitiva.

Aproveitei o assunto e indaguei sobre o di­vórcio.

O juiz atendeu. Em se reconhecendo que todos os matrimônios terrestres, entre as pessoas de evo­lução respeitável, se efetuam na base dos progra­mas de trabalho, previamente estabelecidos, seja em questões de benefício geral ou de provas legi­timas, o divórcio é dificultado, nas esferas superio­res, por todos os meios lícitos; contudo, em muitos casos, é permitido ou prestigiado, sob pena de transformar-se a justiça em prepotência contra vi­timas de crueldades sociais que a legislação na Terra, por enquanto, não consegue remediar, nem prever. Surgido o problema, o companheiro ou a companheira, responsável pela ruptura da confian­ça e da estabilidade da união conjugal, passa à condição de julgado. A vítima é induzida à gene­rosidade e à benevolência, através De recursos que a Espiritualidade Superior consiga veicular, a fim de que não se frustrem planos de serviço, sem­pre importantes para a comunidade, compreen­dendo-se dentro dela os Espíritos encarnados e os desencarnados, cujas vantagens são recíprocas com a humildade e a benemerência de qualquer dos seus membros. Em razão disso, alcançam a Pátria Espiritual, na condição de enobrecidos filhos de Deus, as grandes mulheres e os grandes homens, justificadamente considerados grandes, diante da Providência, quando suportam, sem queixa, as infidelidades e as violências do parceiro ou da par­ceira de reduto doméstico, esquecendo incompre­ensões e ultrajes recebidos, por amor às tarefas que os Desígnios do Senhor lhes colocaram nos corações e nas mãos, seja no amparo moral à fa­mília consangüínea ou na sustentação das boas obras, Os que possuem semelhante comportamento dignificam todos os grupos espirituais a que se en­trosam e venham dessa ou daquela religião, desse ou daquele clima do mundo, são acolhidos sob ga­lardões de heróis verdadeiros, por haverem abra­çado sem revolta os que lhes espancavam a alma, sem repelir-lhes a afeição e a presença. No en­tanto, os que patenteiam incapacidade de perdoar as afrontas, conquanto se lhes lastime a ausên­cia de grandeza íntima, são igualmente ampara­dos, no desejo de separação conjugal que reve­lem, adiando-se-lhes os débitos para resgates fu­turos e concedendo-se-lhes as modificações que requeiram. Chegados a esse ponto, o homem ou a mulher continuam recolhendo o apoio espiritual que lhes seja preciso, segundo o merecimento e a ne­cessidade de cada um, atribuindo-se tanta liberda­de e tanto respeito ao homem quanto à mulher, no que tange à renovação de companhia e caminho, com as responsabilidades naturais que lhes decor­ram das decisões.

Assim acontece, ajuntou Amantino compreen­sivo, porque a Divina Providência manda exaltar as virtudes dos que amam sem egoísmo, sem des­considerar o acatamento que se deve às criaturas de vida reta espoliadas no patrimônio afetivo. Os Executores das Leis Universais, agindo em nome de Deus, não aprovam a escravidão de ninguém e, em qualquer sítio cósmico, se propõem levantar consciências livres e responsáveis, que se elevem para a Suprema Sabedoria e para o Amor Supre­mo, veneradas e dignas, ainda mesmo que para isso escolham multimilenárias experiências de ilu­são e de dor.

Impressionado, inquiri sobre a moral nos paí­ses terrestres, onde um homem guarda o direito de possuir várias esposas. Amantino, porém, des­tacou que a poligamia, mesmo aparentemente legalizada entre os homens, é uma herança animal que desaparecerá da face do mundo e que, em nos achando numa estância inspirada pelos ensinamen­tos do Cristo, não nos cabia olvidar que, perante o Evangelho, basta um homem para uma mulher e basta uma mulher para um homem.

Ponderou que há provações e circunstâncias difíceis em que o homem ou a mulher são chamados à abstenção sexual, no interesse da tranqüilidade e da elevação daqueles que os cercam, situação essa que não mo­dificam sem alterar ou agravar os próprios com­promissos.

Perguntei se a Casa providenciava auxílio, conforme a extensão dos erros. Ele redargüiu, bem­

-humorado, que o auxílio se verifica justamente pela extensão dos acertos. Quanto mais exato o Espírito reencarnado, na prática dos deveres que lhe competem, mais amparo recolhe nos dias obs­curos em que resvale no desatino. Qualquer pedido de ajuda ali formulado, antes de tramitar, é ana­lisado à luz de contabilidade segura, pelo documen­tário pertencente ao candidato para quem se re­quisita favor. Acertos como haveres, desacertos por débitos. Somados uns e outros, verifica-se, de imediato, até que ponto será possível ou aconse­lhável o atendimento, determinando-se a média do auxilio atribuível a cada petitório individual. Sa­lientou, entretanto, que, nessa clara aplicação do direito, muitos requerimentos de socorro, nas dili­gências empreendidas, se transformam, automaticamente, em provisões de corrigenda, porque, se escasseassem créditos aos interessados, sobejando dívidas, o resguardo assumia a forma de emenda, o que, às vezes, irritava os solicitantes, sem que lhes fosse possível modificar o curso da justiça. Nesse sentido, as preces ou mesmo apenas as vibrações de alegria e reconhecimento de todas as criaturas encarnadas ou desencarnadas, beneficia­das pelos requeredores, funcionam à guisa de abo­nos e cauções de significado muito importante para cada um, tanto ali quanto em qualquer lugar, su­blinhou Amantino, convincente. Creia ou não na imortalidade, qualquer pessoa é alma eterna. Por isso, independentemente da própria vontade, as leis da Criação marcam no caminho de todo Espírito os bens ou os males que pratique, devolvendo fru­tos na base da sementeira. Efetuando-se o aperfeiçoamento moral de etapa em etapa e compre­endendo-se a existência física por aprendizado da alma, entretecido de acertos e desacertos, com ra­ras exceções a individualidade, em qualquer plano da vida, é apreciada e sustentada, acima de tudo, pelo rendimento de utilidade com que se caracte­rize no bem comum. Isso, destacou o juiz, é prin­cípio geral da Natureza. Árvore benfeitora atrai a defesa imediata do pomicultor. Animal prestimoso recebe do dono cuidados especiais.

       Lícito que a pessoa, quanto mais valor demonstre para a cole­tividade, na Terra ou em outras paragens, mais devotamento receba das Esferas Superiores.

De nossa parte nenhuma objeção. Todas as ponderações articulavam-se ali em direito líqüido, espontâneo.

Enunciei o propósito de saber como se opera­vam as audiências; todavia, diante da recusa de Félix, que não concordava em alterar o serviço, Amantino propôs se ouvisse, pelo menos, um caso, ali mesmo no gabinete, para que mostra ligeira me fosse facultada.

O instrutor anuiu, solicitando, porém, a pre­sença de dois sentinelas, capazes de guarnecerem a entrada.

Estranhei a exigência do amigo, cuja simpli­cidade me habituara a venerar; no entanto, o inesperado se encarregaria de sossegar-me.

Descerrada a passagem, uma senhora triste compareceu.

Assinalando a presença de Félix, esqueceu-se da autoridade de que Amantino se achava reves­tido e precipitou-se na direção do instrutor, pros­ternando-se de joelhos.

Félix acenou para os guardas e recomendou que a levantassem.

Apenas aí cheguei a entender que o mentor se preparara, de antemão, a rejeitar qualquer manifes­tação de idolatria, fugindo à lisonja que ele usual­mente não suportava.

A recém-chegada, não obstante contrafeita, foi constrangida a falar de pé, mantida por aqueles que a sustentavam.

— Instrutor, tenha compaixão de nós! — cho­rou a mulher, entregando-lhe os autos que trazia — roguei proteção para minha filha e veja o re­sultado... Manicômio, manicômio... Coração de mãe concorda com isso? Impossível, impossível...

O         benfeitor leu a peça e obtemperou:

—        Jovelina, sejamos fortes e razoáveis. O des­pacho é justo.

—        Justo! pois o senhor não conhece minha filha?

—        Ah! sim — disse Félix com indefinível tris­teza a lhe velar o semblante. — Iria Veletri... Lembro-me de quando se ausentou, há trinta e seis anos... Casou-se aos dezoito e se desligou do ma­rido, homem digno, aos vinte e seis, unicamente porque não pudesse o companheiro sustentar-lhe a vocação para o luxo desmesurado. Em oito anos de ligação conjugal, nunca se portou à altura dos compromissos e praticou seis abortos... Abando­nando o lar e afundando-se em prostituição, foi convidada, indiretamente, e por várias vezes, sob a inspiração de amigos daqui, para que se afastasse dos hábitos dissolutos, fazendo-se mãe respeitável de filhos que, embora nascidos do sofrimento, se lhe transformariam, com o tempo, em tutores e companheiros abnegados... Diversos tentames fo­ram empreendidos... Iria, no entanto, expulsou todos os filhinhos, arrancando-lhes do seio o corpo em formação... Seis abortos até agora e, até agora, nada fez que lhe recomende a permanência do mun­do... Não lhe consta da ficha o mínimo gesto de bondade à frente dos semelhantes... Ela própria se entregou de bom grado aos vampirizadores que lhe desgastam as energias... E a nossa Casa não lhe opôs contradita à vontade de viver assim obsi­diada, para que não continue convertendo o claus­tro materno em antro da morte...

E deixando entrever funda melancolia no olhar, rematou, enlaçando-a com paterna solicitude:

— Ah! Jovelina, Jovelina!... Quantos de nós aqui teremos filhos amados, nos hospícios da Ter­ra... O manicômio é também refúgio levantado pela Divina Providência para expurgar nossas cul­pas... Volte aos afazeres e honre a filha, traba­lhando e servindo mais... Seu amor de mãe será junto de nossa Iria assim como a luz que remove as trevas!...

A requerente fitou os olhos do instrutor, olhos que lhe falavam de recôndito martírio moral, e

agradeceu, engasgada de angústia, beijando-lhe a destra com humildade.

A sala retomou a feição própria, mas a entre­vista não estimulou comentários.

Separei-me dos novos amigos e, a poucos pas­sos, fora do edifício, despedi-me também de Félix.

Mais algumas horas e entrei na clínica de ner­vosos, em Botafogo.

Marina, sob as atenções de Moreira, dormia, agitada.

 

Na casa de saúde, Marina exigia cuidado, vigi­lância. Entre os bastidores da luta, empenhávamo­-nos nisso, Moreira e nós, e, por fora, Cláudio e Salomão entrelaçavam energias, garantindo coope­ração.

O apoio espiritual, conjugado à Medicina, fun­cionava com segurança.

Mesmo assim, complicavam-se os problemas em derredor.

Nemésio e Márcia, após cinco semanas no cli­ma da serra, retomaram ao Rio, algo modificados pela aventura. Ela interessada em ligação defini­tiva; ele, hesitante. Instado a patrocinar-lhe o des­quite, recuara, de pronto. Tinha medo. Não recea­va, porém, as gralhas do mundo social. Temia a si próprio. Aquele mês de folga, nos braços da mu­lher que não esperava, insuflara-lhe inquietação. Não que Márcia perdesse para ele os encantos com que o seduzira.

Assustava-se consigo mesmo, jun­to dela. Nas excursões, chamava-lhe «Marina». Acordava, alta noite, supondo-se com a jovem que aceitara por noiva, sonhava reencontrá-la, qual se estivessem os dois na meninice, e, sonâmbulo, cos­tumava formular confissões de amor, como nos tem­pos em que Beatriz se derreava no leito.

Por várias vezes, fomos arrancá-lo dessas crises. movimentando recursos magnéticos, anotando-lhe as sensações de alívio, ao verificar que Márcia, expe­riente e maternal, sabia tolerá-lo, compreendê-lo...

A esposa de Cláudio, a seu turno, não obstan­te se propusesse cativá-lo, reconhecia o obstáculo. Percebia claramente que Nemésio trazia a menina fixada à lembrança. O negociante amava-lhe a filha, pertencia-lhe pela alma, embora não lhe re­cusasse apreço e ternura. De começo, quis estrilar. Em seguida, calculou, como de hábito, e concluiu que não se achava pessoalmente num caso de amor e sim numa transação, cujas vantagens não se dis­punha a perder. No fundo, pouco lhe importava que ele adorasse a moça. Aspirava a prendê-lo, ganhar-lhe a fortuna e a confiança. Para isso en­genhava todos os modos de se fazer necessária. Ordens atendidas, refeições prediletas, gotas esti­mulantes na hora certa, chinelas a mão...

Solicitado por ela a optar pelo casamento em país que aprovasse o divórcio, Nemésio prometia satisfazê-la; entretanto, de volta ao Rio, preferiu mantê-la em casa de Selma, a companheira que residia na Lapa, mencionando Gilberto. Importan­te não se reunissem de vez, até que lhe conseguisse a mudança. Organizava interesses comerciais em cidade do sul, para removê-lo. Que Márcia aguar­dasse, e Márcia esperava, apesar de se acharem ambos em conjunção incessante. Passeios, jantares, diversões, noitadas...

Gilberto, no entanto, parecia a si mesmo de­sacoroçoado, abatido. Criança sem guia, navegante sem bússola. Sem o menor incentivo ao trabalho e sem âncoras de ideal que lhe governassem os sentimentos, esbanjava o dinheiro paterno. Farra e uísque. Muita vez, embriagado, falava em suicídio, referindo-se a Marina, distante. Sentia-se der­rotado, infeliz. Aqui e ali, ouvia apontamentos de­sairosos em torno do pai e de Dona Márcia, através de amigos, mas trazia ainda uns restos de nobreza para rechaçar aquilo que considerava invencionice e maledicência. Sabia o genitor descansando e não ignorava que Dona Márcia demandara igualmente o repouso. E, para defendê-los, esbravejava frené­tico, quase sempre bêbado e atuado por alcoólatras desencarnados, que o manobravam facilmente como se maneja uma taça.

Todavia, no centro das derrocadas, o Espírito Félix reconstruia...

Após dois meses de tratamento, Marina regres­sou ao Flamengo, resguardada pelo carinho paterno.

Em horas breves, inteirou-se quanto à nova situação.

Perdera a assistência maternal e não desco­nhecia os empeços com que devia contar, a fim de reerguer-se na profissão. Informara-se, por inter­médio de enfermos recuperados, que se tornava ha­bitualmente muito difícil a obtenção de emprego para egressos de hospício.

A princípio, alimentava complexos, sofria.

Contudo, encontrara um pai cuja grandeza de coração até ali ignorara e uma fé que lhe reabilitava a esperança.

Cláudio cercou-a de meiguice e bondade. Re­pletava-se o apartamento de mimos e flores, e os textos espiritas, lidos por vezes com lágrimas, lhe infundiam a consoladora certeza nas verdades e nas promessas do Cristo, que passara a aceitar por mestre da alma. Acolheu a amizade de Salomão, qual se lhe fosse filha, e inscreveu-se entre aqueles que constituíam agora para Cláudio a família es­piritual. Interessou-se por singelo serviço benefi­cente, mantido em favor de pequeninos desampa­rados, junto de senhoras consagradas ao socorro de irmãs infelizes. E quando o genitor convidou-a para que se afeiçoassem ao culto semanal do Evan­gelho no lar, recolheu, entusiasmada, a sugestão, rogando a Nogueira instalassem Dona Justa, viúva e sozinha, em definitivo, junto deles em casa. A antiga servidora, contente, foi guindada à condição de governanta, com a segurança de parenta feliz.

A vivenda ressumava tranqüilidade, não obs­tante, Moreira e nós outros prosseguíamos atentos na defensiva.

Conversações e leituras, tarefas e planos sur­giam por flores auspiciosas que Félix, de quando em quando, vinha ver, encantado, partilhando-nos júbilos e orações.

Em torno de Nemésio e de Dona Márcia, o si­lêncio. Pai e filha empenhavam-se no propósito de olvidá-los, mas Gilberto...

Amigos solicitavam para ele compaixão e so­corro, O rapaz afundava-se. Largado, abatido.

Pileques, correrias. Se Cláudio e Marina não pu­dessem protegê-lo, pelo menos lhe providenciassem a hospitalização.

Como negar-lhe apoio?

Cláudio notou que a filha ainda amava o rapaz enternecidamente, ardentemente, e decidiu-se a res­peitar-lhe as decisões.

Após entendimentos ponderosos, atendendo às indicações de Marina, o bancário escolheu a oca­sião que lhe pareceu favorável e abraçou-o numa churrascaria do Leme. Partilharam lanche rápido e Nogueira convidou-o para jantar no dia seguinte. Ele e a filha esperá-lo-iam em casa.

Torres filho sorriu e comprometeu-se.

Seis meses haviam corrido sobre a transfor­mação de Cláudio, e maio, ao entardecer, abanava o Rio com as brisas refrigerantes que desemboca­vam do mar.

Gilberto compareceu no momento previsto. Tristonho, sóbrio. De começo até à refeição, re­portou-se a banalidades, sofrimentos, malogros. Confessava-se fracassado, deprimido. A pouco e pouco, no entanto, compenetrou-se de que se acha­va entre dois corações que lhe aprumavam os sen­timentos e elevou o nível da palavra.

O anfitrião interferia na conversa com a pru­dência de um pai e a moça exprimia-se com segurança, entremostrando nos olhos o amor e a espe­rança inextintos.

O visitante experimentava-se reconfortado. Con­jeturava-se mergulhado num banho de forças balsâmicas. Imaginava-se de retorno ao lar antigo, refletia na mãezinha que a morte arrebatara, e chorou...

O chefe da família, comovido quanto Moreira e nós, diante daquela explosão de lágrimas, acariciou-lhe a cabeça e perguntou por que lhes aban­donara a amizade.

Gilberto desabafou, noticiando que o genitor o chamara a contas. Denunciara-lhe Marina por jovem desencaminhada. Asseverara-lhe que ele pró­prio, Nemésio, lhe desfrutara o carinho, descre­vera-lhe intimidades, inteirara-o de que a escolhi­da se desmoralizara, que não servia para casar e ameaçara-o, constrangendo-o, por fim, a alegar que desistia de futura ligação com ela, por sabê-la doen­te... Afastara-se por semelhantes razões, embora continuasse amando a moça, com quem, aliás, não tinha a intenção de se reconciliar, levando em con­ta as acusações havidas...

Marina, acabrunhada, não confirmou, nem se defendeu. Restringiu-se a chorar discretamente, enquanto Cláudio se esforçava por harmonizar os dois corações desavindos.

Moreira, que assumira apaixonadamente a de­fesa da menina, perdeu a calma. Retomou a insolência de que desertara e clamou para mim, em voz alta, que, apesar de possuir seis meses de Evan­gelho, sentia muita dificuldade para não reunir a turma dos companheiros de outro tempo a fim de punir o velho Dom Juan, com o rigor de meirinho implacável.

Apreensivo, roguei a ele se calasse por amor ao bem que nos propúnhamos realizar.

Moreira assustou-se ao me ouvir a recomen­dação incisiva. Expliquei-lhe que, nas imediações, irmãos infelizes teriam ouvido a intenção que ele formulara e quantos simpatizassem com a idéia, com toda a certeza, demandariam a residência dos Torres, sondando brechas.

Vali-me do ensejo para transmitir-lhe avisos que me foram extremamente úteis, nas minhas primeiras experiências de homem desencarnado em processo reeducativo.

Disse-lhe que aprendera de vários benfeitores que o mal não merece qualquer consideração além daquela que se reporte à corrigenda. Entretanto, se ainda não conseguimos impedir-lhe o acesso ao coração, na forma de sentimento, é forçoso não se pense nele; contudo, se não contamos com recur­sos para arredá-lo imediatamente da cabeça, é im­perioso evitá-lo na palavra, a fim de que a idéia infeliz, já articulada, não se faça agente vivo de destruição, agindo por nossa conta e independen­temente de nós. Salientei que o ambiente ali jazia limpo de influências indesejáveis; no entanto, ele, Moreira, falara abertamente e companheiros não distantes, interessados em nosso regresso à cruel­dade mental, teriam assinalado a sugestão...

Gilberto despedira-se.

Moreira, nos apuros do aprendiz que reconhece a prova errada, perguntava o que fazer, mas não tive dúvida. Esclarecemos que habitávamos agora o plano espiritual, onde pensamento e verbo adqui­rem muito mais força de expressão e de ação que no plano físico, e que não nos restava outra alter­nativa senão seguir, ao lado de Torres filho, de maneira a observar até que ponto se alargara o perigo, a fim de remediá-lo.

O amigo, inquieto, pela primeira vez, depois de muito tempo, deixou o lar dos Nogueiras e acompanhou-me.

Ambos nós, de carro, faceando com o jovem, absorto...

O rapaz entrou em casa, lembrando Marina mo­dificada... Aqueles cabelos penteados com singe­leza, o rosto tratado sem excessos, os modos e as frases sensatas e Cláudio a informar, sem queixa, que Dona Márcia, ultimamente, andava sempre fora para descanso, o clima doméstico destilando tranqüilidade... Tudo aquilo era para ele coisa nova, sensação nova... Sentia-se perturbado, experimen­tava remorsos pela franqueza de que se utilizara, sem saber se fora ciumento ou descortês.

Instintivamente, tomou a direção do quarto que a jovem ocupara e onde a vira, desfalecente...

Queria recordar-se, refletir.

Seguíamo-lo, obedecendo às disposições do ta­pete macio; entretanto, ao rodar, de leve, a ma­çaneta, como quem não pretendia apartar-se do sonho, viu, assombrado, através da porta entreaber­ta, que o genitor e Dona Márcia se beijavam e, em torno deles, sobressaía, para a nossa visão espiri­tual, a chusma dos amigos conturbados, para cujos serviços Moreira apelara, inconscientemente... Aque­les vampirizadores, registrando a indireta, mostra­vam-se em atividade, metamorfoseando simples im­pulsos de afeto do par outoniço em voluptuoso arrebatamento.

Nemésio, de costas, foi visto sem ver, qual ocorrera com ele próprio, Gilberto, meses antes, e, como acontecera a Marina, Dona Márcia, situada de frente, observou-lhe a chegada e o espanto que lhe terrificara a fisionomia.

O rapaz afastou-se, na ponta dos pés, mordido de angústia. A dúvida esmagava-o. O ídolo pater­nal ruira de chofre. Teria realmente o pai razões verdadeiras para separá-lo da jovem que ainda amava?

De nosso lado, porém, fazia-se indispensável a colaboração em favor de Moreira, arrependido. O amigo avançara para a quadrilha que o compli­cava, supondo aprazê-lo, oscilando entre a revolta e a paciência.

Interferi, rogando serenidade. Acatássemos Ne­mésio e a companheira, não tínhamos o direito de escarnecê-los, escarmentá-los.

O bando retirou-se e Moreira transferiu aten­ções para Dona Márcia, que, suficientemente ladi­na para criar problemas, não desmaiou, à feição da filha. Raciocinando friamente, desligou-se de Torres pai sem alarde e afagou-lhe a testa, afirmando que viera da Lapa unicamente para vê-lo, porqüanto se afligira ao notá-lo indisposto na véspera. Não pre­tendia lesar-lhe a saúde. Auxiliou-o a deitar-se no leito próximo, de onde evidentemente o amigo se levantara a fim de recebê-la, e, após dirigir-lhe conselhos afetuosos, afastou-se, pretextando a ne­cessidade de se entender com empregadas.

Fora, no corredor, perguntava a si própria de que maneira contornar a dificuldade. Conquanto impassível em se tratando de preservar interesses, ainda era mãe e pensava na filha. Seria justo aza­rá-la, envenenando o ânimo de Gilberto? nada fa­zer por Marina, reaproximando-os? Não seria des­moralizar-se, de todo, permitindo que o moço a interpretasse por mulher sem escrúpulos, já que talvez um dia viessem a ser madrasta e enteado?

Moreira aproveitou aqueles minutos de recon­sideração e enlaçou-a, respeitoso, pedindo-lhe pie­dade. Favorecesse Marina, apoiando Gilberto. Bus­casse o rapaz, enquanto usufruia oportunidade, conversasse com ele, apaziguasse os jovens...

Enternecido, aproximei-me também dela e su­pliquei-lhe a intercessão. Ela podia ajudar. Não tencionava reconciliar-se com Cláudio, queria efe­tivamente o desquite. Por que não praticar um ato de justiça e caridade para com a filha doente, en­caminhando aquele menino entregue à decadência moral ao matrimônio digno? Recolhera Marina nos braços de mãe, dera-lhe as cantigas do berço, orien­tara-lhe a infância, preparara-lhe o sentimento para a felicidade... Como largá-la, assim, num momen­to em que o destino lhe facultava todos os recur­sos para estender-lhe as mãos? A esposa de Cláu­dio, ao impacto dos argumentos que assimilava em forma de reflexões, rememorou o passado e cho­rou. Naquele instante, o sentimento pulsava-lhe puro, como na noite em que a víramos, tomada de indignação e de dor, ao defender Marita em casa de Crescina. Entre a consciência e o coração, não havia lugar para o cálculo astucioso. Não ti­tubeou. Dirigiu-se ao aposento de Gilberto, entrou com a sem-cerimônia de mãe que assiste um fi­lho, sentou-se à beira da cama em que o rapaz se abatera, amuado, e falou-lhe, lacrimosa. Prin­cipiou, rogando-lhe desculpas. Em seguida, pediu-lhe permissão para confessar-lhe que ela e Nemé­sio se amavam, há tempos. E, num rasgo de ge­nerosidade que a elevava, mentiu pela felicidade da filha... Comunicou-lhe que, desde muito, se des­ligara de Cláudio, cuja presença infelizmente não mais tolerava, e declarou que, antes do falecimento de Dona Beatriz, se tornara íntima de Nemésio, com quem se encontrava, amiúde, em lances clan­destinos. Acentuou, com inflexão estudada para impressionar o interlocutor, que errara, lamenta­velmente, ao consentir que a jovem se tornasse enfermeira da senhora Torres, porqüanto, desde aí, possuia razões para supor que o velho lhe cobi­çava a filha.

Reconhecendo-o interessado nela, en­ciumara-se... Venerava, porém, a grandeza espi­ritual de Dona Beatriz, a quem estimava de longe, e tivera forças para aguardar-lhe a morte, antes de assumir qualquer atitude. Desfeito o impedi­mento, resolvera abandonar a casa, em definitivo, a ponto de não se incomodar com a menina doente e acompanhar Nemésio a Petrópolis, onde se de­moraram juntos em deleitoso refúgio. E continuou justificando, justificando... Agora que ele a sur­preendera nos braços paternos, que lhe perdoasse como um filho, cujo apreço se esmeraria em con­servar. Não retornaria ao Flamengo. Desquitar-se-ia de Cláudio, de qualquer modo, e, de qualquer modo, partilharia o destino de Nemésio, enquanto Nemésio o permitisse... Mesmo assim, era mãe e rogava-lhe por Marina. Se a amasse, que não lhe desse indiferença ou desprezo, num momento como aquele em que se refazia de dura perturbação. Que a protegesse, fazendo pela menina o que ela, Már­cia, não mais conseguiria...

A senhora Nogueira finalizara, sinceramente comovida, e vimos sensibilizados os prodígios da compreensão e da bondade num coração juvenil. Olhos chamejantes de júbilo, o rapaz ergueu-se e ajoelhou-se diante daquela mulher que lhe sosse­gava o espírito, com a versão caridosa de que ne­cessitava para reconstituir o caminho.

Em lágrimas de alegria, osculou-lhe as mãos e agradeceu-lhe em palavras quentes de carinho filial. Entendia, sim — comentou —, que o pai, não obstante bondoso, teria obedecido a sugestões de despeito, a fim de apartá-lo da escolhida. Procu­raria Marina, prometia olvidar o passado, de modo a não ferir a dignidade maternal com que ela, Dona Márcia, lhe patenteara a nobreza de sentimentos, torturada qual se achava entre a paixão de com­panheira e o devotamento de mãe.

Informou que, na tarde daquele dia, estivera com Marina. Nota­ra-lhe a sinceridade e a tristeza. Fora rude com ela, espezinhara-lhe o coração, mas voaria naquela mesma hora para o Flamengo e fariam as pazes. Quanto ao futuro, não tinha motivos para incom­patibilizar-se com Cláudio; entretanto, já que o desquite se fazia iminente, envidaria todos os es­forços para que o genitor e Dona Márcia se con­sorciassem num país onde o divórcio merecesse aprovação legal.

Da entrevista ao telefone e do telefone a novo encontro com Marina, foi para Gilberto questão de minutos.

Perante os jovens reunidos, Nogueira enlevou­-se,     regozijando-se em preces de reconhecimento. Moreira e eu expedimos informações para o

irmão Félix, que veio, na noite do dia seguinte, compartilhar-nos as orações de alegria.

       Depois de abraçar Cláudio e os dois namora­dos que demandavam Copacabana, à busca do convívio de Salomão, o benfeitor rumou para a Lapa, em nossa companhia.

Márcia, recostada num divã, fumava cismando, na expectativa da chegada de Nemésio para jan­tarem na Cinelândia, com um filme subseqüente, mas Félix, magnânimo como sempre, acercou-se dela, ignorando as baforadas, e beijou-lhe a fron­te, mostrando lágrimas...

Não dispúnhamos de estatura espiritual para auscultar-lhe os pensamentos sublimes. Observa­mos apenas que ele a contemplou, enlevado, como quem lhe agradecia a inesperada abnegação, e mur­murou, ao despedir-se:

—        Louvado seja Deus!

Do dia imediato em diante, azedou-se o inter­câmbio entre pai e filho. Nemésio, intrigado; Gilberto, arredio. E, decorridas algumas semanas, ao inteirar-se de que o rapaz e a menina Nogueira passeavam de relações reatadas, o negociante via­jou para o sul, em companhia de Márcia, no in­tuito de situar o filho junto de antigos camaradas de juventude, residentes em Porto Alegre. Por lá se deteve o par, semanas e semanas, trazendo, na volta, expressivo programa de serviço e de estudo que Gilberto, convidado pelo genitor a entendimen­to, recusou, cortês, desistindo das vantagens que lhe eram oferecidas.

Presenciando-lhes o diálogo em ambiente fe­chado, consignamos a respeitosa ternura com que o jovem se dirigiu ao genitor, implorando-lhe au­xílio. Tivesse a bondade de não transferi-lo, que o deixasse no Rio. Rogava desculpas se o magoa­va, mas reconhecia-se em maioridade e aspirava ao casamento com Marina, de quem se reaproxi­mara. Desde cedo, acostumara-se a trabalhar com o pai. a colaborar com ele, na imobiliária. Aguar­dava-lhe, por isso, a proteção.

Nemésio ouvia, ressentido, revoltado. Marina reconquistada pelo filho significava para ele ban­carrota moral insuportável. Nunca a amara tanto, quanto naquela hora em que se lhe esvaiam as esperanças. Entrevia-se calcado, vencido. A pouco e pouco se desinteressara de Márcia, conquanto a conservasse. Marina significava-lhe mocidade, eu­foria, entusiasmo, improvisação.

Justamente quan­do ruminava desígnios de recuperar-lhe o carinho, adiantava-se o filho, frustrando-lhe os projetos.

Certificando-se de que Gilberto concluíra, vi­brou rude golpe na mesa com uma régua pesada e, enceguecido pela cólera que o envolvia por juba de fogo, esbravejou:

— Nunca!... Você nunca se casará com essa...

E multiplicou pejorativos e desaforos que o moço agüentou, estonteado e ferido. Mesmo assim, depois da tirada de injúrias, retorquindo aos ape­los e intimações de última instância, assegurou que saberia tolerar todas as conseqüências, mas não renunciaria ao compromisso que assumira consigo próprio.

O genitor, possesso, entregou-se às vias de fato, esmurrando-lhe o rosto.

Gilberto rodou nos calcanhares e tombou no piso, para reerguer-se e cair de novo sob pancadaria grossa, até que Nemésio, semelhando fera solta, infligiu-lhe tremendo chute, vociferando:

— Rua, miserável!... Rua, rua!... Suma da­qui! Não me. apareça mais!...

Acompanhamos o menino atônito, que alcan­çou a via pública tentando estancar com o lenço um filete de sangue a escorrer-lhe num dos cantos da boca.

Daí a quarenta minutos, um ônibus despeja­va-nos no Flamengo.

Os Nogueiras terminavam o almoço e, antes de rumar para o banco, Cláudio recolheu, junto da filha, o relatório doloroso.

O trio machucado entendia perfeitamente a gravidade da situação. Nogueira, porém. ofereceu­-se para ajudar. Diligenciaria obter para Gilberto um emprego no estabelecimento de crédito em que trabalhava. Considerava o dirigente por amigo. So­licitar-lhe-ia os bons ofícios. Que o rapaz esquecesse os agravos e aceitasse em Nemésio um en­fermo da alma.

Gilberto rememorou os segredos de Dona Már­cia, condoeu-se do interlocutor e entrou em lágrimas. Aquele homem, muito mais ofendido que ele mesmo pelo pai prepotente, aquele homem espoliado no coração, impetrava benevolência para o seu próprio verdugo.

Marina, que sazonara o entendimento da vida, exortava também à concórdia e ao olvido. E tanto se adestrava em renovação que, após o curativo nos lábios de Gilberto, sugeriu ao pai fosse o rapaz conduzido sem delonga ao gerente. Não se devia perder a oportunidade, nada de lamentar sobre o inevitável. Ensaiou apontamentos de bom-humor, emprestou comicidade ao drama que lhes cabia vi­ver, endereçando o pensamento ao futuro, e inven­tou notas alegres para a dificuldade, qual se de­pendurasse guirlandas numa sala encrespada de espinhos, conseguindo que Torres filho, chorando e rindo, trincasse alguns pastéis, antes de sair.

O diretor de Nogueira acolheu o candidato com simpatia; no entanto, não relacionava meios para colocá-lo em regime de urgência. Aguardasse um mes. Não se admitiam aspirantes ao serviço, sem provas de habilitação, previamente ordenadas, mas prometia entender-se com os chefes. Acreditava na possibilidade de aproveitar-lhe o concurso, em caráter de interinidade.

Gilberto agradeceu.

A sós com o protetor, referiu-se com humil­dade ao problema de moradia.

Afinal, sabia-se expulso de casa a pontapés.

Cláudio tranqüilizou-o.

Certo, não calhava, por enquanto, a presença dele no lar do Flamengo, embora julgasse a medida irrepreensível. Competia-lhes, porém, imunizar Ne­mésio contra qualquer novo ataque de fúria. Conhecia pensão de estudantes corretos e pediu-lhe para que não lhe recusasse as garantias.

Entre moços respeitáveis, esperaria a convocação. Depois, resgataria os pequenos débitos que viesse a con­trair. Que não se vexasse. Acariciou a cabeça do jovem e salientou que se achavam na condição de pai e filho e que, em razão disso, o dinheiro entre ambos deveria ser gasto em condomínio.

O         rapaz, não obstante constrangido, aquiesceu.

Daí a algumas horas, ciente de que o genitor se ocupava em serviço, contratou caminhão e colheu da residência os pertences que julgou indis­pensáveis, sossegando a dedicada governante com a informação de que se ausentava para trabalhar, durante algum tempo, com o pai de Marina, a fim de tentar a sorte.

O         comunicado surtiu efeitos imediatos.

Dispensando a possível assistência ao ânimo inquieto de Nogueira, vimos, no dia seguinte, quan­do Nemésio entrou no banco, às duas da tarde, a esbaforir-se. Enraivado, no centro de vasto grupo de Espíritos galhofeiros, solicitou a presença de Nogueira em recinto particular. Um funcionário acenou para o companheiro e Cláudio veio; mas, pressentindo que seria intimado a rigoroso teste­munho de tolerância, preferiu atender no vestíbulo, rente ao público.

O         visitante começou dizendo que lhe exigia contas do filho, acentuando que não lhe permitiria influenciá-lo.

Cláudio mobilizou todas as reservas de humil­dade e rogou licença para informar que o moço tão-somente o tratava por amigo, sem, no entanto, abdicar do livre-arbítrio; que não se via autorizado a responder por ele; que...

O         genro de Neves, todavia, interceptou-lhe a palavra e rugiu:

—        Cale-se, besta!... joão-ninguém! paspalhão! Tome lá, seu espírita de meia-tigela!...

O         punho do negociante batia no rosto de Cláu­dio, arremessando-lhe pescoções violentos, enquan­to a vitima procurava defender-se, debalde, escon­dendo a cabeça entre as mãos.

A agressão fora rápida.

Antes que os circunstantes se refizessem do

choque, o bancário jazia no pavimento e somente

a cooperação de intercessores anônimos impediu que

o          esmurrador asselvajado lhe pisasse o corpo em

decúbito. Contido à força, berrava insultos, asses­sorado por Espíritos infelizes.

O         injuriado ergueu-se disposto a revidar. Ira­do, contundido. Referviam-lhe no peito as dores acumuladas. Tomaria desforra. O comerciante au­dacioso conhecer-lhe-ia o desagravo. Massacrálo-ia naquele mesmo instante como se achata um verme. Num átimo, contudo, ao levantar a destra para medir punhos com o adversário, sentiu o reflexo de Marita. Aquela mão pequena e fria que se ele­vara da morte, a fim de abençoá-lo, estava na dele. A menina atropelada surgia-lhe na memória, como a perguntar-lhe pelos votos de melhoria. Prome­tera-lhe renovar-se, ser outro homem... Impossí­vel quebrar o compromisso. Recordou-a padecente, o corpo recoberto de escaras dolorosas. Não tinha sido ele o culpado? não fora a Divina Providência suficientemente compassiva, deixando que a falta de que se acusava passasse despercebida, à frente dos homens? não recebera, acaso, o perdão da fi­lha que amava? que diria ela, do Além, se também não perdoasse ao carrasco que lhe seduzira a pri­mogênita e lhe furtara a mulher? Abraçara prin­cípios que lhe preceituavam clareza de raciocínio, a fim de que aprendesse a conjugar bondade e discernimento, justiça e caridade... Cabia-lhe ver, nos inimigos gratuitos, enfermos exigindo socorro e benevolência. De que modo condenar alguém na­quilo em que se inculpava? Não trazia, porventura, o espírito endividado, em meio de falhas e ten­tações?

Afrouxou-se-lhe o braço antes reteso e, escu­tando os sarcasmos de Nemésio que se retirava, truculento, constrangido por pessoas que clamavam em alta voz pela intervenção da rádio-patrulha, o marido de Dona Márcia, encostado à parede, sob os olhares de simpatia de todo o auditório, não se acanhava de libertar o pranto amargo e espesso a pingar-lhe do queixo escanhoado.

O         gerente assomou à cena, quando o autor das bofetadas ganhava o meio-fio, e indagou pela causa do tumulto.

Um funcionário emocionado apontou para o co­lega ofendido, falou no espancamento e aduziu:

—        Decerto, não reagiu porque ele hoje é reli­gioso, é espírita..

O         chefe comoveu-se. Desejando desfazer o cli­ma geral de indignação, inquiriu, à porta:

—        Quem é esse brutamontes de jaula?

Velhinha que esperava atendimento, de cader­neta à mão, informou:

—        Conheço. É Nemésio Torres, proprietário de lotes e mais lotes...

—        Tubarão! — comentou o recém-chegado com inflexão de menosprezo —, onde pensa que estamos?

E relanceando o olhar pelos clientes embasba­cados, protestou:

—        Gente, nós estamos no Rio!... no Rio!... Como é que vocês soltam um criminoso desses? um caso assim, é polícia, corda, cavalaria, cadeia...

Esbarrou, porém, com Cláudio imóvel e, recom­pondo-se, abraçou-o para acabar conduzindo-o a saleta distante. Aí, ouviu do subordinado a histó­ria da filha e do rapaz que lhe fora apresentado na véspera. Entre revoltado e condoído, autorizou o ingresso do moço no serviço, acrescentando que lhe faria os possíveis vencimentos até que lhe vis­sem a situação devidamente legalizada.

Na reta final para o casamento, Gilberto con­seguiu empregar-se, estimado de todos.

Nemésio, contudo, acabrunhado e desgostoso, convidou Márcia para uma excursão de seis meses em países da Europa. Atravessariam Portugal e Espanha, França e Itália, com alguma demora na Suíça. Declarava-se infelicitado pelo destino, desde a morte de Beatriz. Caipora. Malogrado. Anelava mudança, refazimento.

A senhora Nogueira, que cortara os telefone­mas para a família, desde Petrópolis, deu-se pressa em comunicar o acontecimento à filha, através de um cartão. Confessava-se esperançosa, encantada. Seguiria juntamente daquele a quem não trepidava em designar por futuro esposo» e prometia enviar notícias de cada cidade que visitassem.

Marina recolheu a mensagem com discrição, sem que o pai e o noivo soubessem de semelhantes férias, a não ser indiretamente pela boca de amigos.

A ausência do par traçou, para o trio, bendito parêntese, recheado de alegria e sossego, de ponta a ponta.

O apartamento do Flamengo convertera-se em colmeia de paz e luz. E enquanto Moreira resguar­dava Marina com fidelidade incondicional, retomei estudos e experiências, junto de Félix, embora acom­panhando com afetuoso interesse os amigos do Rio, a se prepararem, contentes, para o enlace feliz.

A união esponsalícia de Gilberto e Marina rea­lizou-se precisamente no último dia do ano que se seguiu à desencarnação de Marita. Solenidade mar­cada por flores e orações, abraços e promessas.

A ventura do novo casal atingiu-nos, igual­mente, no “Almas Irmãs”, onde pequena equipe de companheiros se reuniu em prece pela segurança dos nubentes que se entregavam a novas respon­sabilidades e novas lutas.

Destaquei, no entanto, com desagrado, a au­sência da filha de Aracélia. A própria Beatriz com­partilhara os júbilos votivos, conquanto desconhe­cesse completamente o que sucedia, com referência ao esposo.

Félix, porém, ao registrar-me a estranheza, quanto àquilo que eu imaginava como sendo pre­terição, elucidou que a menina, prestes a regressar para as lides terrenas, demandava cautelas espe­ciais. E prosseguiu aclarando que obtivera permis­são para que o processo regenerador do conjunto Nogueira-Torres fosse remodelado. Marita não lo­grara desposar Gilberto, por influência da irmã; contudo, voltaria a viver entre os dois, na condição de filha, para que a fração de tempo, concedida ao grupo para a existência em comum, no plano físico, viesse a ser aproveitada nos recursos possí­veis, sempre valiosos, por mínimos que fossem. In­discutivelmente, não se tratava de reencarnação organizada a rigor e nem compulsória, por motivos judiciais. Medida, entretanto, de caráter premente que ela seria impelida a aceitar, em favor de si mesma. Para esse fim, ela reveria o Rio, oportu­namente, junto de nós, pela primeira vez, depois de quase onze meses de internação em parque de repouso, onde vivera apenas de saudade e recorda­ção, para efeito indutivo. Abraçaria tão-só os que quisesse, atenderia exclusivamente a própria von­tade, para que se lhe avantajasse o impulso de voltar. Compreendendo-se que Gilberto lhe consti­tuiria o tema central das compensações emotivas, sublinhava Félix que todos os nossos cuidados, na ocasião, se concentrariam nele. Seria necessário que Marita o surpreendesse a sós, ignorando-lhe o matrimônio, porqüanto os ressentimentos hauridos da convivência com a irmã ainda lhe doíam na memó­ria, quais chagas entreabertas. E, entendendo-se que ambas se reencontrariam, mais tarde, por mãe e filha, em conflito vibratório, visando ao expurgo dos erros e aversões recíprocas que carregavam de remoto passado, era de todo indispensável que a reencarnante dormisse para o renascimento físico, sob a impressão de euforia perfeita.

 

Aceitando a lógica das explicações, fui avisado, dias transcorridos sobre a conversa, quanto à data escolhida para a excursão.

No instante aprazado, participou-me Félix não só o envio de dois companheiros, incumbidos da preparação de ambiente junto ao filho de Beatriz, como também cientificou-me de que se valia do ensejo em andamento, por sabê-lo em estudos, ànoite, na intimidade de vários colegas, numa resi­dência da Glória, com vistas a concurso próximo para a efetivação no cargo que exercia no banco.

Efetivamente, partimos com Marita, calculando o tempo necessário para encontrá-lo fora de casa, prevendo-se o término das tarefas noturnas para depois de zero hora, segundo notificações recebidas.

Cumpriu-se o programa com diminutas dife­renças de horário.

Estimulávamos os júbilos de Marita, que des­cia conosco sobre a Guanabara feérica. De longe, os contrastes de luz, entre o morro do Leme e o casario da Urca, mais além, a praia de Botafogo...

Mais alguns instantes, a Avenida Beira Mar, dian­te de nós... Tocando o chão do Flamengo, a moça multiplicava interjeições de alegria, revendo a ci­dade que lhe senhoreava a ternura.

Parados, diante das águas remansosas, assimi­lando energias nutrientes da Natureza, fomos inteirados pelos batedores amigos de que Gilberto descera de carro particular em esquina adjacente.

Sem delonga, conduzimos a jovem ao ponto indicado, e, ao identificá-lo, embriagada de ventura, chamou, ansiosa:

— Gilberto!... Gilberto!...

O interpelado não lhe registrou a voz com os tímpanos carnais; no entanto, assinalou-lhe a presença em forma de lembrança. Recordou, de ino­pino, aquela que ainda supunha como sendo pupila de Claúdio e tomou direção oposta à que seguiria, parando, além, a fim de refletir e contemplar a bala prateada de lua... Sim, ali, naquelas areias, jurara-lhe amor eterno, planeara o futuro...

Meu Deus! — pensou — como a vida mu­dara!...

Enlaçado pela jovem desencarnada, desentra­nhava-lhe a imagem do pensamento, enxugando os olhos...

Félix, contudo, apartou-a brandamente e per­guntou-lhe o que mais desejava.

— Viver com ele e para ele!...

A resposta alcançava-nos como um grito de esperança, rebuçado em soluços.

O instrutor, que não aguardava outra coisa, dirigindo-se a ela de modo paternal, ponderou a conveniência de tornarmos ao domicílio. Empenhar-se-ia por assegurar-lhe o regresso. Que se acal­masse. Retomaria a convivência e a dedicação de Gilberto. Não aconselhava, porém, se lhe dilatasse o arrebatamento, nocivo a ambos, mesmo porque, muito em breve, estariam juntos.

A menina obedeceu, mas pousou sobre nós os olhos molhados, indagadores. Percebi-lhe no espí­rito os reflexos de Márcia e Marina; todavia, afas­tou-lhes a figura do pensamento e inquiriu se lhe era facultado rever Cláudio, acentuando que o pai lhe fora o derradeiro amigo, nas angústias do adeus....

O orientador anuiu, contente.

Mais quinhentos metros de espaço e atingimos o apartamento, acolhidos à entrada por Moreira, vígil. O enfermeiro reconheceu Marita, sob emoção forte, mas eclipsou-se a um aceno de Félix, que desejava poupá-la a divagações.

Atormentada, tremente, a moça, assistida por nós, penetrou no aposento paterno e, oh surpresa!

— Nogueira, em espírito, rente ao corpo que res­sonava de manso, como que lhe aguardava a pre­sença, pois estendeu-lhe os braços e gritou, misturando enlevo e regozijo, na exaltação que passou a comandar-lhe todas as forças:

— Minha filha!... minha filha!...

A jovem rememorou os quadros que imaginara no hospital, o suplício das horas lentas, as preces que lhe amenizavam as amarguras, a invariável devoção daquele pai que se lhe redimira no con­ceito à custa de sofrimento, e ajoelhou-se, diante dele, procurando-lhe o regaço, como quando em criança.

Cláudio, perplexo, não nos via, concentrava-se totalmente na visão a exercer sobre ele inigualável fascínio. Afagou com a destra hesitante aqueles cabelos desnastrados que tanta vez alisara, na ins­tituição dos acidentados, e relembrou Marita, nas atitudes da infância, quando vinha da escola, e indagou:

—        Filha do meu coração, por que choras?

A recém-chegada endereçou-lhe um gesto sú­plice e rogou:

— Papai, não se aflija!... Estou feliz, mas quero Gilberto, quero voltar para a Terra!... Que­ro viver no Rio com o senhor, outra vez!...

Patenteando carinho imáculo, Nogueira conser­vou-a sob as mãos que tremiam de júbilo e, levan­tando o olhar para o teto, com a ânsia de quem se propunha romper o monte de alvenaria para dirigir-se a Jesus, diante do firmamento, clamou em lágrimas:

— Senhor, esta é a filha querida que me en­sinaste a amar com pureza!... Ela quer retornar ao mundo, para junto de nós!... Mestre, dá-lhe, com a tua infinita bondade, uma nova existência, um corpo novo!... Senhor, tu sabes que ela per­deu os sonhos de criança por minha causa... Se é possível, amado Jesus, permite agora que lhe dê minha vida! Senhor, deixa que eu ofereça à filha de minha alma tudo o que eu tenho! Oh! Jesus, Jesus!...

Félix considerou que a emotividade excessiva poderia abatê-lo e recolheu Marita nos braços, re­comendando que me atrasasse, no sentido de au­xiliá-lo a reaver o envoltório físico enlanguescido.

Retirou-se o instrutor carregando a menina pa­ternalmente, ao passo que Moreira e eu investía­mos Cláudio sobre a máquina orgânica em movi­mento de impulsão. Depois de passe reconfortante, Nogueira acordou em choro convulso, guardando na memória todos os detalhes da ocorrência.

Daí a instantes, ouvimos passos na sala.

Gilberto entrava, de leve. O sogro intentou aprumar-se e chamá-lo para narrar o acontecido; entretanto, assimilou-nos a exortação ao silêncio, para colaborar com o futuro...

Sim — concordou, qual se estivesse conversan­do consigo mesmo —, a verdade da vida não deve brilhar para a maioria dos homens, senão por in­termédio de sonhos vagos, para não confundir-lhes o raciocínio nascituro, assim como o Universo de Deus não pode fulgir para as criaturas da Terra, senão em forma de estrelas, semelhantes a pingos de luz nas trevas, de modo a lhes não arrasar a pequenez...

Entretanto, a certeza de que Marita retornaria ao mundo, reencarnada, iluminava-lhe o pensamen­to e aquecia-lhe o coração.

 

Atingira Marina o quinto mês de gestação. Entre o esposo e o pai, acompanhada pelo devo­tamento de Dona Justa, que a servia por mãe, transpirava regozijo, embora os estorvos naturais.

Cláudio seguia o acontecimento, enternecido. No íntimo, detinha a convicção de que Marita se achava, junto da família, prestes a ressurgir em novo berço. Cada noite, orações pela tranqüilidade do Espírito que voltava, preces pela felicidade dos filhos. Visitas mensais ao médico, prestando assis­tência à filha. Passes de reconforto à gestante. Mimos para o bebê.

Demorávamo-nos, por vezes, a admirar-lhe a paciência e a ternura, lendo para a filha, ao tricô, páginas educativas de ginecologistas e pediatras, instruindo-a, asserenando-a.

De permeio, Gilberto, feliz, na expectativa de um sucessor.

Conjeturava-se, quanto ao sexo da criança, pla­nejavam-se realizações, endereçavam-se ao porvir. Dona Justa repetia a história do homem que car­regava o cesto de ovos, sonhando com fazendas que lhe adviriam dos pintos improváveis.

Riam-se.

De nosso lado, resguardando Marita, quanto possível, no processo reencarnatório, junto da irmã, partilhávamos o enlevo geral.

Tudo esperança, sossego.

A criança encomendada figurava-se no grupo familiar um sagrado penhor de reconciliação com a vida. A paz, aparentemente definitiva, entrara no lar do Flamengo, como se todos os pesares trans­corridos estivessem para sempre arquivados nas gavetas do tempo. Entretanto, o passado palpita­va naquele trato de ventura, como a raiz parcialmente enferma, escondida no solo, sustentando embora o tronco florido.

Apareceu a tarde em que ambos os bancários surpreenderam a jovem dona da casa em agoniado abatimento.

De princípio, atribuiu-se a alteração ao pro­blema orgânico, mas, agravada a ocorrência, chamou-se o médico, sem que o facultativo atinasse com a origem da queda súbita.

Marina enlanguescia...

Finda uma semana, valeu-se Cláudio de ensejo para a conversação a sós e investigou-a.

Suspira­va por vê-la recuperada, fortalecida. Receava com­plicações. Exortou-a à confiança e ao otimismo. Orasse, tivesse fé. No conhecimento espírita, não ignorava que a criança, em vias de nascer, lhe re­clamava descanso, alegria. Notando que a moça, em determinado ponto do entendimento, pendia a cabeça, de lenço aos olhos, fez-se mais persuasivo, rogando para que se abrisse com ele. Não lhe opu­sesse reservas. Afligia-se, era pai. Excetuando Gil­berto, que passara a bem-querer por filho, não dis­punha, na Terra, de outra pessoa, senão dela, para incentivar-se ao trabalho.

A interlocutora, comovida, levantou-se, deman­dou o quarto e trouxe-lhe um papel. Uma carta. Cláudio leu-a, sem dissimular no rosto o assombro e o sofrimento.

O escrito vinha de Nemésio. Participava o re­gresso ao Rio, após seis meses de Europa.

Confes­sava-se, desabrido. Afirmava-se entediado de tudo, menos dela, a quem amava ainda com inusitado calor. Informara-se do casamento; ao retornar, no entanto, jamais a consideraria por nora. O filho não passava de um tonto, de um espantalho, dizia ele, do qual se deveriam afastar para o cultivo da felicidade que ele mesmo, Nemésio, frustrara, abandonando-a sem maior consideração. Pedia es­cusas e aguardava-a. Conhecera países novos, con­templara maravilhas que lhe afetaram os olhos, mas o coração quedava ermo, jungido a ela atra­vés do pensamento.

Até à metade do relatório afetivo, reportava-se Torres pai a conceitos de compaixão e carinho, mas, na última parte, incidia na irreverência. Sa­cudia-lhe a memória. Perguntava-lhe por lugares menos recomendáveis. Acusava-se desajustado, sau­doso. Pedia encontro. Dar-lhe-ia instruções para o desquite. Possuía excelentes amigos no Foro. Que ela não o desapontasse, porque, de outro modo, uma bala na cabeça ser-lhe-ia a solução. Não va­cilaria entre a felicidade com ela e o suicídio. Que escolhesse. Punha-lhe o destino nas mãos.

O missivista não traçava a menor referência quanto a Márcia.

Nogueira analisou a gravidade da situação, pen­sando, pensando... Recordou, calado, o espanca­mento sofrido no banco, que não mencionara aos filhos, e deduziu que Nemésio era capaz de todas as violências. Anteviu a tormenta que se esboçava, mas tratou de consolar a filha.

Desanuviou o sem­blante e sorriu, paternal. Aquilo tudo não passa­ria de momento infeliz. Que não se amofinasse. Procuraria o negociante em pessoa, a fim de ro­gar-lhe serenidade e reconsideração, ao mesmo tem­po que lhe participaria a chegada próxima da criancinha que seria para ele também, Nemésio, um sorriso de Deus. Impossível que a notícia não lhe acordasse enternecimento. Que a filha não se afligisse. O sogro investir-se-ia na condição de avô, antecipadamente, e olvidaria o passado, abraçando a reconciliação com a família para a felicidade geral.

Nos olhos da interlocutora, seduzida pelo mag­netismo daquelas palavras, a esperança brilhou com a paz que o genitor lhe devolvia ao coração.

Na manhã seguinte, Cláudio, discreto, pôs-se em campo. Rogou a colaboração de amigos ínti­mos, a fim de que alguns dos corretores da imo­biiária fossem ouvidos, e veio a saber que os turistas haviam regressado, semanas antes. O chefe, contudo, vira-se defrontado por notícias desagra­dáveis e mostrara-se irritadiço. O afastamento do filho desequilibrara a balança dos negócios, não somente porque isso golpeara os créditos morais de Nemésio, mas também pelo fato de a circunstância encorajar abusos da parte de subordinados que não se revelaram à altura da autoridade recebida. A longa viagem, numa época de crise na organização, à face da ausência de Gilberto. atraira desastres financeiros, abrindo brechas dificilmente recuperá­veis. Amigos da firma haviam retirado, à pressa, capitais importantes, desistindo dos depósitos com que lhe garantiam a segurança. Prejudicado o mo­vimento, onerara-se a imobiliária com dois vultosos empréstimos, para cujo resgate entregara Nemésio duas terças partes dos próprios bens. Não detinha agora senão possibilidades estreitas para lastrear as operações imediatas e evitar a falência. E fosse por vê-lo destituído das propriedades que a fasci­navam ou porque houvesse esgotado as reservas afetivas para com ele, Dona Márcia abandonara-o e residia com Selma, planeando a formação de um restaurante.

Nogueira recolheu todos os informes, apreen­sivo. Mesmo assim, após o almoço, vencendo a pró­pria repugnância com os recursos da oração, de­mandou a moradia dos Torres.

Levava o espírito pressago, triste...

Fez soar a campainha no vestíbulo ajardinado; no entanto, o pai de Gilberto vira-o, de longe, quan­do apeava do ônibus, e do terraço em que fumava, à sesta, expediu aviso. Um empregado, em nome dele, veio dizer a Cláudio fizesse a gentileza de se considerar Indesejável. Não lhe receberia a visita naquela hora, nem noutras.

Nogueira retirou-se, compreensivo.

Inútil o tentame.

Voltou ao trabalho e rogou entendimento com o chefe que se lhe tornara mais amigo. Mostrou-lhe a carta que o conhecido agressor lhe dirigira à filha e ponderou, quanto à necessidade de pro­tegê-la, sem parecer ao genro que assim procedia defendendo-a do sogro.

O gerente, prestativo e humano, associou-se-lhe aos cuidados e sugeriu-lhe uma licença de seis me­ses. Nenhum impedimento para ele, antigo funcio­nário com excelente folha de serviço.

Nessa fór­mula, apoiaria a moça e resguardá-la-ia, desde a caixa do correio, impedindo que novas cartas lhe chegassem às mãos, até a assistência contínua em casa, hora a hora, para que se lhe garantisse a tranqüilidade na gravidez. Incumbir-se-ia de comu­nicar a Gilberto e colegas que ouvira de médicos amigos a recomendação de impor-lhe descanso in­determinado, e se entenderia, ele próprio, com os clínicos, que não lhe sonegariam a concessão. Que repousasse e atendesse a filha.

Cláudio agradeceu, confortado.

Vinda a noite, entrou em conversação com a filha, sossegando-a. Afirmou possuir razões para acreditar que Nemésio não mais a molestaria. Es­clareceu ter estado na residência dos Torres; contudo, não- avançou além de semelhante informe, dando a impressão de que o problema fora liqui­dado na origem. E interessados quais se achavam em apagar o pretérito, pai e filha se entretiveram no assunto da licença. Marina rejubilava-se. Am­bos se devotariam a trabalhos diversos. Juntos, construiriam o berço do nenê. Dariam nova dispo­sição ao apartamento.

Diferentes decorações. Cláu­dio fez humor. Salientou que Gilberto e ele se empenhavam em apostas. O genro aguardava um príncipe. Ele contava com uma princesa. De qual­quer forma, era preciso organizar o palácio. Di­zia-lhe o coração que a neta se achava em caminho... Por isso, concordava em renovar os móveis e pintar as paredes, mas exigia que todo o serviço fosse feito com predominância de rosa. Graceja­ram. Aprovando os planos, Marina solicitou-lhe o concurso na organização de um álbum que andava formando para o bebê, enquanto esperavam por Gilberto, que prosseguia estudando à noite, com vistas à melhoria.

Demandando, por fim, o leito, Cláudio sensi­bilizava-nos com oportunas reflexões, permeadas de preces ardentes. Previa, inquieto, que doravante seria compelido a novos encargos. Acautelaria Ma­rina e, conseqüentemente, Marita, de cuja reencar­nação guardava a certeza. A carta de Nemésio, ressumando inconformidade, e a rudeza com que lhe havia cerrado a porta, não lhe conferiam mar­gem a dúvidas. Teria conflitos e injúrias à frente; no entanto, nada razoável desanimar. Orava, im­plorando recursos aos Espíritos amigos. Que o não deixassem confiado a si mesmo, que lhe impedis­sem as manifestações de fraqueza, que lhe frus­trassem qualquer propósito de revide. Identifica­va-se num teste. Indiscutivelmente prejudicar Ne­mésio Torres em outras existências. Devia pagar. Somente ao clarão da lógica espírita destrinçava a meada dolorosa.

Aquele homem castigara-o na alma e na carne, transformara-se para ele em co­brador do destino. A consciência determinava-lhe aceitar os desafios com humildade. Se bem não se sentisse em condições de se acomodar com a vir­tude, anelava solver os débitos contraídos, ainda que isso lhe custasse a existência. Por essa razão, suplicava o apoio do Cristo, a fim de esquecer-se, de maneira a seguir caminho afora, segundo as Leis Divinas...

Efetivamente, conhecendo o horário aproxima­do de recepção do Correio, no prédio, Nogueira desceu, no dia seguinte, com a desculpa de obter pão mais fresco e recolheu nova carta de Nemésio, endereçada a Marina, cuja identidade estabeleceu para logo, através da letra. Abriu-a. Era coleção de recados, sabendo a fel. Misturava declarações e libelos, alegava dificuldades, crises. Dizia preci­sar dela para recompor as finanças. Restaurar-se-ia em reduzido tempo, se o atendesse. Não obstante os prejuízos que experimentara, ainda era suficien­temente abastado para fazê-la feliz. Reclamava resposta. Ameaçava.

Nogueira, reservado, queimou o papel.

A ocorrência, no entanto, se repetiu diaria­mente, por dois meses.

Minuciosa ou sintética, a missiva chegava, pon­tualmente. Cada texto mais inconveniente que o outro. Por vezes, relatava as andanças a que se entregava no Flamengo, tentando revê-la. Noutras ocasiões, depois de frases melífluas, exigia pronun­ciamentos descabidos, sob pena de estourar o crâ­nio, deixando queixa à Polícia contra ela, com o fim de arruiná-la. Em bilhetes comprometedores, proibia-lhe dar filhos a Gilberto. Preferia matá-la ou matar-se a receber netos do lar que haviam formado. Referia-se ao revólver, qual se lhe fosse companheiro incessante.

Dia a dia, o negociante se figurava ao leitor paciente mais contraditório e menos lúcido. Cada vez que entregava os manuscritos ao fogo, Cláudio percebia que o redator de tantos aleives se atas­cava, sempre mais, em loucura e obsessão, sem que lhe fosse facultado assumir qualquer providência, entre o genro feliz e a filha gestante. Cumpria-lhe tudo amargar, sem dividir com pessoa alguma a dor que o espicaçava. E para que a filha não pudesse penetrar os motivos de tamanha solicitude, ele se lhe convertera no pajem de todo instante.

No encontro último de consultório, indicara o médico ligeiros exercícios físicos. Nenhuma ginás­tica. Algo suave. Bastariam marchas diminutas a pé. Realizasse à noitinha curto passeio até à praia, em esforço diário, enquanto lhe fosse possível. Nada mais que isso. A gestante obedeceu e, como era de esperar, Nogueira se lhe erigiu em guarda-cos­tas, sustentando o coração repassado de inquie­tude. Não se lhe oferecia ensejo de opor embargos à prescrição. Para a filha, aquela primeira mani­festação de Nemésio, pelo serviço postal, fora var­rida do pensamento.

Marina, enlaçada ao pai, largava o prédio, efe­tuando breve percurso, para sentar-se, junto dele, nunca por mais de meia hora, ao pé do mar. Aí se entretinham habitualmente nos temas caseiros, quando não se internavam em assuntos do espírito.

Escorridos seis dias sobre as excursões acon­selhadas, o registro de Torres pai veio diferente.

Acompanhando Nogueira, analisamos a alte­ração. A letra modificada, configurando insultos, revelava superexcitação fronteira à demência. Co­municava à esposa de Gilberto tê-la visto, por fim, na praia, em companhia daquele pai, que crivava de pejorativos e ofensas, e verificara que ela, afi­nal, se engravidara contra as ordens que lhe ditara em observações anteriores. Acreditava-se o mais desmoralizado de todos os homens desmoralizados. Enojava-se da paixão que nutrira por ela, preferia morrer. Confessava-se falido. Escasseava-lhe tudo. Acabara-se o dinheiro, desertavam amigos. Resta­va-lhe de seu, tão-só, a moradia, assim mesmo hi­potecada. Esperara por ela, pelas decisões dela. Se juntos, contaria com a possibilidade de se re­erguer. Entretanto, a gravidez apontada desiludi­ra-o. Plantaria uma bala na cabeça. Despedia-se dela e do mundo com repugnância. Que visse nos borrões freqüentes daquelas páginas com que en­cerrava a existência as marcas das lágrimas que chorava. Lágrimas de revolta, desprezo, repulsão. Finalizava, alinhando obscenidades e informando estar assinando o nome pela última vez.

Nogueira, assustado, leu e releu o documento e, antes de reduzi-lo a cinzas, insulou-se no quarto e orou por aquele homem que, pelo jeito, se afun­dava em pavoroso desespero.

Compadeceu-se. Im­praticável, todavia, colocar o genro ao corrente da situação. Nemésio delirava. Mais justo que o filho aguardasse noticias do tresloucado genitor por ou­tras fontes.

Impressionou-se, contudo, de tal for­ma com a mensagem recolhida que, após o almoço, demandou, com discrição, algumas das organizações policiais e hospitalares que lhe pareciam suscetíveis de fornecer alguma pista, com referência ao sui­cídio anunciado, mas em vão. Nenhum vestígio. Depois da caminhada, junto da filha, repousou mais cedo. Sentia fome de meditação mais prolongada. Concentrando-se em pensamentos de benevolência e de fé, rogava a Jesus pelo adversário. Que os mensageiros do Cristo se apiedassem de Nemésio, amparando-o. Se ainda estivesse no corpo carnal, que se lhe estendesse o socorro preciso para que não resvalasse em deserção; se houvesse forçado irrefletidamente as portas da vida espiritual, que fosse bafejado pela proteção dos Emissários Di­vinos...

Enquanto Moreira e eu lhe acompanhávamos a súplica, Percília entrou.

Esperou o momento oportuno e comunicou-nos que vinha da parte do irmão Félix, a fim de cola­borar conosco. Os apelos de Cláudio, durante todo o dia, transmitidos para o «Almas Irmãs, tinham impelido vários amigos a rogar auxílio em benefí­cio dele. Chegara no objetivo de ser útil. E nós. que lhe admirávamos a bondade silenciosa, enter­necemo-nos ao observar a devoção com que se ins­talou no aposento, qual enfermeira afetuosamente consagrada a doente querido.

Mais quatro dias transcorreram sem episódios especiais, a não ser a extrema dedicação de Per­cília que, diante de Cláudio, era análoga ao amor de Cláudio para com a filha.

Entre sete e oito da noite, descemos do prédio e demandamos os sítios conhecidos...

Os Nogueiras conversavam tranqüilamente, em torno de assuntos triviais, à frente das águas man­sas, tão mansas que refletiam prateadas faixas do firmamento, a constelar-se de luz.

A aragem soprava, aliviando a tensão do dia. Novembro seguia, cálido. Aqui e ali, na paisagem, transeuntes encarnados e desencarnados, sem novidades que chamassem atenção...

Após o descanso, a volta.

Pai e filha, à beira da pista asfaltada, espe­ravam vez, notando os carros que desfilavam, velozes.

Locomovia-se Marina, pesadamente; em razão disso, reconhecido o sinal de passagem livre, ini­ciaram a travessia com vagar; no entanto, o im­previsto aconteceu.

Automóvel a deslocar-se de longe, com lenti­dão, adquiriu estranho movimento, qual se perdesse todos os controles e, quebrando as regras do trân­sito, precipitou-se sobre pai e filha, em tremenda impulsão. Nogueira, rápido, dispôs simplesmente de um segundo para arredar a filha e foi arremes­sado a distância, depois de sofrer o impacto da máquina à altura do tronco...

Percília, Moreira e eu, assombrados, vimos Nemésio ao volante, com a fisionomia de louco, mantendo o auto, qual avião em decolagem, des­norteando guardas e populares, que, debalde, se dispunham a segui-lo.

Marina, em gritos, foi imediatamente escorada por senhoras que acudiram, emocionadas.

Sobre-veio a agitação. Motociclistas dispararam no en­calço do agressor. Funcionaram telefones próximos para o socorro urgente. O bolo crescia, em torno de Nogueira, que tombara em decúbito ventral. Bradava-se contra choferes desalmados, contra jo­vens inconscientes...

Cláudio, tonto a princípio, recuperou os sen­tidos e virou-se com dificuldade. Superando a resistência do corpo que se tornara rígido, conseguiu sentar-se, apoiando-se nos dois braços a se retesa­rem, forçando as mãos espalmadas no solo.

A filha!... Ansiava enxergá-la, sabê-la viva, salva!... O sangue pingava-lhe da boca, mas, sobrepondo-se à curiosidade dos circunstantes, per­guntou por ela. Marina, firmando-se em benfeitoras anônimas, arrastou-se até ele. Não sofrera sequer um arranhão; todavia, aturdira-se.

Receava desfalecer. No entanto, fitando o genitor a domi­nar-se para insuflar-lhe segurança, cobrou forças. Cláudio ensaiou um sorriso quase alegre, que o san­gue entristecia, e rogou-lhe calma. Ferira-se um pouco. Apenas isso, explicava. Problema simples que a hospitalização de algumas horas viria re­solver. Afligia-se tão-somente por ela. Ficasse boa­zinha, suplicou. Confiasse em Deus. Tudo termi­naria bem. Solicitou a presença do genro, que um dos cavalheiros presentes se prontificou a buscar, no endereço da Glória, que ele mesmo forneceu. Intentou prosseguir conversando, para consolo da filha, mas notou que as energias lhe escapavam...

Percília, acomodada no chão, resguardava-o em lágrimas. Desencarnados amigos que procediam das vizinhanças, satisfazendo-nos o apelo, prote­giam a gestante, dispensando-lhe auxilio. Moreira e eu diligenciávamos fortificá-lo, conjugando recur­sos magnéticos.

Em derredor, a balbúrdia...

O         acidentado, contudo, alheou-se, em reflexão.

       Novembro... Lembrava-se de que dois anos jaziam transcorridos sobre o desastre no qual supunha haver Marita procurado a morte. Ela tom­bara perto do mar, ele também... Ambos atropelados por automóvel. Contemplou o céu e recordou que a filha caíra quando as estrelas se apagavam, ele, quando as estrelas se acendiam... Fixou Ma­rina que chorava, baixinho, e verificou que as lá­grimas represadas lhe constringiam a garganta. Queria tanto viver para aquela filha, aguardava com tanta ternura a criancinha por nascer!... Nisso, sentiu que se lhe reconstituia na mente a visão em que se reconhecera visitado por Marita, e as pa­lavras da prece que formulara lhe vieram, uma a uma, ao ádito da memória. «Senhor, tu sabes que ela perdeu os sonhos de criança por minha cau­sa... Se é possível, amado Jesus, permite agora que lhe dê minha vida!... Senhor, deixa que eu ofereça, à filha de minha alma, tudo o que eu te­nho!...» Quando esses trechos da oração se lhe rearticularam no pensamento, sorriu e compreen­deu. Sim, considerou intimamente, devia regozijar-se. Acreditava que Marina e Marita ali se achavam juntas... juntas... Por que não dar alegremente a vida para que a filhinha prematuramente desen­carnada, por culpa dele, viesse a refazer a exis­tência? por que não agradecer ao Senhor o bendito instante em que pudera acautelar Marina contra o carro homicida? Não seria aquela hora, para ele, Espírito endividado, a maior manifestação da bon­dade de Deus? Impelira a filha para a morte, in­criminara-se sem que a justiça da Terra lhe infli­gisse punições. Nas preces costumeiras, rogava aos amigos espirituais o ajudassem no resgate da falta cometida. Se lhe competia encetar o pagamento do débito assumido, apenas no curso de existências porvindouras, por que não iniciá-lo, mesmo ali, en­tre os rostos desconhecidos que Marita, igualmen­te, fora constrangida a defrontar?...

Soberana tranqüilidade se lhe instalou no es­pírito.

Diante da ambulância que chegara, pediu a própria internação no Hospital dos Acidentados.

Que o serviço policial o favorecesse. Carregado por braços generosos, despediu-se da filha, a recomen­dar-lhe otimismo, serenidade. Esperasse por Gil­berto e lhe participasse o acontecido, sem exagerar as impressões. Nada de alarmes. Se necessário, pediria o concurso de alguém para dar noticias ao telefone. Que não se apoquentasse por sustos.

Dentro do carro, enquanto Nogueira pensava em Marita, ao viajar num carro igual àquele, nas mesmas circunstâncias, Percília, que o aconchegava de encontro ao colo, se desfazia em pranto copioso. Concluindo, porém, que Moreira e eu nos desassossegávamos, ao vê-la assim, aquela criatura, comu­mente silenciosa, falou, submissa:

— Irmãos, perdoai-me a comoção excessiva!... Cláudio é meu filho... Não choro de dor ao ver-lhe o corpo caído, mas sim de alegria por abraçar-lhe o espírito levantado!... Choro, irmãos, ao reco­nhecer que eu, mulher prostituída no mundo, hoje em serviço de minha regeneração depois de provas árduas, posso aproximar-me do filho que Deus me confiou, a fim de pedir-lhe perdão pelos maus exem­plos que lhe dei...

Diante daquele testemunho de humildade, Mo­reira e eu baixamos a fronte, envergonhados...

Quem deveria ali penitenciar-se por maus exem­plos senão eu? Que não teria padecido aquela co­rajosa mulher, cujos laços de parentesco terrestre com Nogueira eu desconhecia até então, para ex­pressar-se assim? Que martírios amargara na Terra e depois da desencarnaçãO para senhorear a sere­nidade com que se acusava, ela, que eu aprendera a venerar, como sendo minha própria mãe, em dois anos de trabalho constante, invariavelmente inte­ressada em compreender e servir? Não podia aus­cultar os sentimentos de Moreira. A emotividade sufocava-me. Sei apenas que ele e eu, num movi­mento instintivo de respeitosa afeição, inclinamos as cabeças, ao mesmo tempo, sobre a destra ma­ternal que afagava o ferido, osculando-a com re­verência...

Mais alguns minutos de expectativa e dávamos entrada no estabelecimento que nos era familiar.

O médico que se responsabilizara, de mais per­to, pela assistência a Marita, a pedido de Nogueira foi chamado pelo fio. Atendeu sem delonga.

Expedíamos mensagem para irmão Félix; en­tretanto, não acabávamos a transmissão e o benfeitor, com a naturalidade de quem já sabia de tudo, surgiu rente a nós.

Informou que chegara ao Rio, minutos antes, mas, não desconhecendo que Nemésio se mantinha relegado ao próprio infortúnio, decidira-se a exa­miná-lo, de imediato, para considerar que espécie de socorro seria capaz de receber.

De minha parte, quis perguntar se Torres pai enlouquecera; entretanto, o olhar do instrutor, na­quela hora, não encorajava indagações.

Ativou-se-nos o trabalho socorrista, em cola­boração com a medicina terrestre. Apesar disso, Félix inteirou-nos de que Nogueira se achava pres­tes a desligar-se do corpo. Nenhuma providência humana conseguiria sustar a hemorragia interna em efusão crescente, O médico dedicado improvisava medidas de salvação, que redundavam infru­tíferas.

Nogueira esmorecia. Diligenciava mentalizar a figura de Marita, reconhecer lugares, mas a cabe­ça não se aprumava. Aguçou-se-lhe a atenção para o desequilíbrio e, inteligente, sondou o ânimo do facultativo, perguntando-lhe se julgava oportuno algum chamamento aos filhos, O interpelado con­cordou e, pelo olhar profundo que lhe dirigiu, adi­vinhou que o fim da atividade orgânica se aproxi­mava... Rememorou as noites de vigília, nas quais se agasalhava no apoio de Agostinho e Salomão. Reportou-se de leve a isso. Agostinho demandara o mundo espiritual, semanas antes, mas, se possí­vel, estimaria abraçar o amigo de Copacabana...

O médico entendeu e comunicou-se com Gil­berto e Salomão, pelo fio. Viessem com urgência.

Sensibilizando-nos, Cláudio, em prece, rogava forças. Desejava apelar para o genro e para a filha, invocar-lhes a benevolência para Márcia e Nemésio...

Félix redobrou esforços para sustar o fluxo hemorrágico, ainda que por minutos, e, colaborando intensamente com o médico, obteve o que pro­curava.

O ferido ganhou inesperada melhora. Racioci­nava com firmeza, conseguia comandar-se.

Lúcido, viu quando Gilberto e Marina entra­ram, compungidos. Daí a momentos, verificou a chegada de Salomão. Declarou-se reanimado e ale­gre, cunhando as palavras com a serenidade pos­sível. Olhou, de maneira acariciante, para a filha ansiosa e avisou, com um sorriso forçado, que tal­vez fosse compelido a efetuar grande viagem para tratamento mais amplo.

Marina compreendeu a significação do gracejo e caiu em choro. O genitor, no entanto, advertiu-a com doçura. Onde a fé que cultivavam? como não confiar em Deus que renova o Sol cada manhã, para que a vida permaneça triunfante? Tencionava falar-lhes de assunto sério...

Marejaram-se-lhe os olhos de pranto e, com inflexão de súplica, rogou-lhes bondade e entendimento para Nemésio e Márcia. Desconhecia o paradeiro de um e outro; contudo, quando a opor­tunidade aparecesse, que o lar do Flamengo se man­tivesse repleto de carinho para eles, tanto quanto fora farto de amor para ele, Cláudio, que se apro­veitava do momento para agradecer-lhes a abnega­ção incessante... Confessou que Márcia era excelente companheira, que ele, tão-somente, devia ser culpa­do pela separação... Acentuou que não detinha qualquer motivo para malquerer Nemésio, que o considerava um irmão, pessoa da família, com cre­denciais para ser acatado e compreendido em qual­quer circunstância...

Entrementes, passou a respirar com dificul­dade.

— Mas, meu sogro — tartamudeou Gilberto, sopitando as lágrimas —, como quer o senhor lar­gar-nos assim?...

Ajustando o punho ao tórax, como para con­ter-se, aditou:

— E seu neto?

O         agonizante esboçou uma expressão quase risonha e ponderou:

—        Minha neta...

E acrescentou, reticencioso:

—        Um espírita não aposta... Mas... se eu tiver vantagem... na teima... peço uma coisa. Peço... para que a menina... tenha o nome de Marita... prometam...

Agravaram-se-lhe a palidez, o cansaço.

Desfazia-se, por fim, o efeito das forças mag­néticas concentradas. Nogueira ainda pôde solicitar ao amigo uma prece, um passe... O farmacêutico orou, trêmulo, e administrou-lhe o benefício. Logo após, o agonizante recordou o adeus de Marita e teve a impressão de que alguém lhe tocava os de­dos. Era Percília que o acariciava, maternalmente. Alongou a destra, na direção da filha, fixando nela o derradeiro olhar. Guiada por Félix, Marina es­tendeu-lhe a mão pequena que ele apertou, forte­mente, até que, em se lhe relaxando a tensão, deu a perceber que repousara.

Cláudio entrou em coma, qual se dormisse, e durante quatro horas o coração vigoroso pulsou no tronco inerte, apesar do nosso empenho em li­bertá-lo.

Manhãzinha, sempre assistido pelos filhos e por Salomão, que velavam conosco, Félix ergueu-se em prece e, com o amparo de outros amigos da Esfera Superior, a cujos préstimos recorrêramos, afastou-o finalmente do veículo fatigado, depondo-lhe a ca­beça nos braços de Percília, para a caminhada que nos cabia empreender...

O         Sol fulgia, renascente, e, contemplando-lhe os raios, coroando aquela mãe amorosa, que con­chegava o filho ao colo, tive a idéia de que o Pai de Infinita Bondade, ao vê-los renovados, queria mandar buscá-los da Terra para os Céus, num car­ro de ouro.

 

Recolhido à organização assistencial vinculada aos nossos serviços, nas adjacências do Rio, No­gueira desencarnado refazia-se.

Félix, que não sossegou enquanto não lhe ad­mitiu o reequilíbrio perfeito, no-lo entregou aos cuidados, sem retornar a vê-lo.

Desperto agora, Cláudio nos recebia as manifes­tações de amizade e apreço, vexado, confundido. Momento a momento, acusava-se, denotando exces­sivo apego a complexos de culpa.

Empregamos todos os meios justos para dis­suadi-lo.

Aproveitássemos os erros por lições, anotan­do-os nos cadernos do passado, para a consulta no ensejo próprio. Arvores alijam folhas mortas, não obstante lhes sirvam de adubo às raízes. As Leis Divinas preceituam esquecimento do mal a fim de que o bem se nos incorpore à individualidade, ge­rando automatismos de elevação. Também nós atra­vessáramos crises semelhantes; contudo, acabára­mos descobrindo no serviço o remédio para as enfermidades do sentimento. Somos todos obriga­dos a prevenir-nos contra a agitação constante de sedimentos dos vícios e transgressões do pretérito, no vaso da alma, sob pena de frustrarmos as pos­sibilidades do presente para melhorar o futuro, conquanto a vida nos recomende jamais esquecer a nossa pouqüidade, visto que, consciências endi­vidadas que ainda somos, por muito tempo ainda, aonde formos, estaremos carregando no espírito o bagaço de velhas imperfeições. Cultivasse paciência, que ninguém logra aperfeiçoar-se sem paciência, até mesmo consigo próprio. Contava com amigos no “Almas Irmãs”, de onde havia descido às lides da reencarnação. Andava transitoriamente esque­cido, sob o efeito natural das experiências a que se condicionara no plano físico; entretanto, opor­tunamente recuperaria mais amplos potenciais da memória, rejubilando-se com reencontros abençoa­dos. Referimo-nos ao irmão Félix, que mostrava para com ele devotamento particular, se nos fosse facultado descortinar inclinações especiais naquele Espírito aberto a todos os apelos da fraternidade sublime.

O         companheiro reconfortava-se, esperançado. No quarto dia, após o transe, comoveu-nos

com um pedido. Reconhecia-se amparado por mui­tos benfeitores, porque, somente à custa de muitos favores — opinava humilde —, pudera acordar, antes da morte, para as realidades da alma... Envergonhava-se, porém, de procurar-lhes imedia­tamente o convívio, que aspirava a merecer, no porvir. Se a Divina Providência, por amigos tão dedicados, lhe pudesse conceder novas esmolas, a ele que se categorizava por mendigo de luz, ane­lava permissão para continuar trabalhando, mesmo desencarnado, no seio da família, sem ausentar-se do Rio. Amava os filhos, considerava-os ainda mo­ços e inexperientes, ambicionava converter-se para eles num servidor.

       Mas não era só... Duas cria­turas deixara, junto das quais se reconhecia deve­dor, Nemésio e Márcia. Não pretendia largar a oficina terrestre na condição de insolvente. Além de suspirar. por se redimir, diante dos credores, sonhava auxiliá-los e amá-los. Não lhe competia devotar-se ao bem dos outros e, sobretudo, à feli­cidade daqueles dois associados do destino, prati­cando os ensinamentos espíritas-cristãos que teo­ricamente havia aprendido?

       Decerto, por discrição e respeito, na conside­ração Intima do passado, não fez referências a Marita, cuja imagem se lhe retratava no espelho da mente...

Acrescentou Nogueira que, se atendido, obe­deceria lealmente aos programas de ação que lhe fossem traçados, não cobiçava outra coisa senão instruir-se, melhorar-se, compreender e ser útil...

A petição enternecia-nos; entretanto, não de­tínhamos competência para decidir.

Autoridades do estabelecimento que nos alber­gava acolheram o assunto com simpatia e oferece­ram medida básica à solução do impasse. Desde que se munisse de aprovação, Nogueira residiria ali mesmo, apesar de se manter em atividade na proteção aos parentes.

Agradecemos, felizes, e quase que na mesma hora Percília partiu, com atribuições de mensageira. Advogaria a causa no «Almas Irmãs», convicta de que Félix lhe emprestaria prestígio e patrocínio.

Com efeito, no dia imediato, regressou com o requerimento referendado.

Permitia-se a Cláudio o período de dez anos de serviço ao pé dos familiares, antes de se elevar aos círculos imediatos da Espiritualidade para jul­gamento da existência transcorrida, reservando-se à Casa da Providência o direito de corrigir a con­çessão, fosse dilatando o tempo, se o interessado demonstrasse aplicação ao cumprimento das pro­messas que formulava, ou cassando a licença, na hipótese de se revelar indigno dela.

O requerente, satisfeito, exultou. Estimulado pelo apoio que recebia, rogou colaboração para vol­tar ao Flamengo. SentIa-se fraco, vacilante. Pás­saro implume, ansiando despencar-se do ninho... Mesmo assim, queria sair de si mesmo, trabalhar, trabalhar...

Ajustaram-se providências.

Moreira, que se mantinha com funções defini­das ao lado de Marina, auxiliá-lo-ia.

Admirei sem palavras o mecanismo de amor da Bondade Divina. Aquele que lhe fora assessor no desequilíbrio, ser-lhe-ia, e muito compreensivel­mente, o arrimo nas tarefas do reajuste.

Seis dias sobre o acidente que levara Nogueira à desencarnação. Amanhecia, quando pisamos nas areias do Flamengo, reconduzindo-o ao lar.

Certificamo-los de que o amigo se reiniciava confiante. De propósito, atravessamos com ele a pista de asfalto, no sítio em que tombara; no en­tanto, não fez o mínimo apontamento, com relação ao desastre. Apoiando-se em Percília, junto de mim, penetrou em casa, acolhido por Moreira que nos precedera, cauteloso. Demandou o aposento em que se instalara,observando que os filhos conserva­vam-no intacto. Sentou-se no leito a refletir.

O despertador anunciou as seis horas, quando Marina se ergueu. Isolou-se no banheiro por ins­tantes, preparou-se e, antes de se entender com Dona Justa, sobre o lanche matinal do marido, penetrou no recinto em que nos achávamos e, em pensamento, dirigiu-se a Jesus, rogando-lhe aben­çoasse o genitor desencarnado, onde estivesse. En­levados, ouvimo-la, palavra a palavra, no clima dos pensamentos harmônicos em que nos entrelaçáva­mos, conquanto a jovem senhora exorasse o am­paro do Senhor em silêncio.

Levantou-se Cláudio, abeirou-se dela. Ao tocá­-la, fremente de júbilo, percebeu que a filha trazia no corpo e na alma a doce presença de Marita nas­citura... Deu um passo à retaguarda, parecendo-nos receoso. Temia conspurcar a excelsitude do quadro sublime que o defrontava.

Figurou-se-lhe Marina uma planta luminosa, modelada na carne, encerrando uma flor quase a desabrochar.

A idéia de Cláudio relampeOu na oração. Su­plicava a Deus não lhe permitisse alçar caprichos acima de obrigações... Em seguida, reaproximou-se dela, abraçou-a brandamente e apelou:

— Minha filha!... Minha filha!... que é feito de Nemésio? Procuremos Nemésio! É preciso ampará-lo!... Ampará-lo!...

A moça, expectante, não assinalou a advertên­cia com os sentidos físicos, mas, sem que pudesse explicar a si mesma a razão disso, rememorou a solicitação paterna de última hora...

Nemésio, sim... — concluiu mentalmente. Ela e o esposo tinham recebido notícias ao telefone, principalmente da parte de Olímpia. O médico da família procurara Gilberto no banco. As informações eram alarmantes; entretanto, hesitavam... Ela, sobretudo, angustiava-se ao imaginar-se no re­encontro. Comentava-se, porém, que o sogro jazia enfermo, em estado grave... Rearticulou, na me­mória, a rogativa de Cláudio, ao partir, e decidiu-se em espírito. Olvidaria o passado e ajudaria o doente no que lhe fosse possível. Inclinaria Gil­berto à reconciliação. Não adiariam por mais tem­po a visita.

Os compromissos caseiros, no entanto, povoà­vam-lhe a mente e afastou-se, conservando, toda­via, na forma de intenção consolidada, o pedido que Nogueira lhe insuflara.

Ao café, sugeriu ao esposo as primeiras medi­das atinentes ao caso. Cláudio que observava, aten­to, entrou, direto, em serviço. Alimentou as dis­posições favoráveis do casal. Que não recuassem. Atendessem. Nemésio era também pai. Marina pro­punha, Gilberto ponderava. Por fim, o marido con­cordou. Telefonaria do banco, sondando o médico. Se a doença fosse mesmo grave, embora os cons­trangimentos da companheira, na gravidez avança­da, tomariam táxi à noite, para vê-lo.

Deixando Percília, Cláudio e Moreira entregues à atividade, busquei a vivenda dos Torres, no en­calço de Nemésio, que eu não mais vira, desde o trágico instante do carro em disparada.

Entrei.

Silêncio vazio nas peças principais.

Espantado, procurei-lhe o quarto, o quarto es­paçoso em que lhe conhecera a esposa doente.

Junto dele, hemiplégico e afásico no leito, apenas Amaro, o fiel amigo espiritual que velara por Dona Beatriz.

Mobilizei compreensão e resistência para não sensibilizar-me em demasia, prejudicando, ao invés de auxiliar.

Perplexo, ouvi do enfermeiro o resumo da tra­gédia em que se envolvera aquele homem, dantes tão bajulado e tão rico.

Cedendo à paixão que lhe empolgava os sen­tidos e excitado pelos obsessores que o abandona­ram tão logo lhe viram o corpo arruinado e inútil, Torres pai se decidira a exterminar Marina e sui­cidar-se em seguida. Ao praticar o crime, porém, verificou que atropelara Nogueira e não a filha, entrando em desespero e esse desespero lhe cres­ceu tanto no espírito que o corpo doente não re­sistira. Sobreviera o derrame. Ele, Amaro, avisado por amigos, fora encontrá-lo semiparalítico e sem fala, no automóvel, parado longe do local em que se desenrolara o delito.

Parecia prestes a desen­carnar, mas Félix aparecera de improviso e requi­sitara o apoio de todos os órgãos espirituais de assistência, situados nas imediações, acumulando fatores de intervenção em favor dele. Orara, supli­cando aos Poderes Divinos não lhe permitissem a saída do plano físico sem aproveitar o benefício da enfermidade no veículo carnal, que se desarran­jara sem probabilidades de conserto. O diretor do «Almas Irmãs» advogara para ele as vantagens da dor, que reputava santas, e o processo desen­carnatório tinha sido imediatamente sustado. Quem era ele, Amaro, para censurar as decisões do ir­mão Félix — alegava o amigo, confidencioso —; no entanto, indagava a si mesmo se valia conti­nuar um homem ativo e inteligente, qual Nemésio, atado a um corpo desajustado assim... Desde a intercessão de Félix, o velho Torres era aquilo que eu via, um farrapo de gente, largado à cama A casa fora devassada pelos credores e empregados desonestos haviam fugido carregando copioso fru­to de saque. BaixeIas, pratarias, cristais, porcelanas, roupas, telas, pequenos tesouros dos ascenden­tes das famílias Neves e Torres e até mesmo o piano e as jóias de Dona Beatriz jaziam perdidos na voragem. Apenas Olimpia, antiga companheira, vinha até ali duas vezes por dia, a fim de prestar ligeira assistência ao enfermo, que, embora perfei­tamente lúcido, não conseguia articular palavra, em vista das alterações nos centros nervosos. E isso tudo — rematava o informante, desencantado — há menos de uma semana...

Condoído, ali aguardei a noite.

Vi        quando Gilberto e Marina atravessaram o vestíbulo, seguidos de Percilia, Moreira e Cláudio, tomados de surpresa dolorosa.

Imaginando-se sozinhos, o jovem bancário e a esposa não conseguiam dominar as exclamações de assombro, até que à frente do leito, cuja solidão o lustre feérico parecia exagerar, se prosternaram em lágrimas. Nemésio reconheceu-os. Debalde in­tentou soerguer a carcaça dorida. Quis falar, mas não pôde, apesar do supremo esforço despendído.

—        Pois é o senhor que encontramos assim, pa­pai? — arfou Gilberto em desconsolo.

Cabeça trêmula, o interpelado apenas engro­lava:

— Ah, ah, ah, ah, ah!...

Para os dois circunstantes, a terrível confissão paterna era simplesmente longa série de interjeições sem sentido.

Vimos então que Nogueira avançava realmente para o bem que se comprometera a dignificar.

Somente naquela hora vinha a saber quem fora o autor do atentado que lhe impusera a morte... Longe, porém, de pedir-nos orientações ou conse­lhos, recordou, instintivamente, outra noite, além daquela em que perdera a existência... A noite na pensão de Crescina, cujas sombras lhe haviam acobertado os ultrajes à filha, compelindo-a ao de­sastre fatal... Viu Marina, ajoelhada, e, obedecen­do aos ditames da própria alma, caiu genuflexo, abraçando-se a ela e, qual se ocupasse o íntimo da jovem senhora, atenazada de sofrimento moral, fê-la buscar a destra de Nemésio para beijá-la com a reverência que os filhos devem aos pais.

O enfermo, tocado no coração por semelhante gesto de respeitosa ternura, tartameleava sons inin­teligíveis, implorando mentalmente: — (Perdão!... perdão!..

Cláudio, testemunhando corajosa humildade, le­vantou-se, de súbito, e, erguendo os olhos para o alto, clamou em pranto:

— Deus de Imensa Bondade, perdão para mim também!...

Naquela mesma noite, uma ambulância atendia à hospitalização de Nemésio que, após alguns dias de tratamento, sempre custodiado pelos filhos, su­bia, em cadeira de rodas, no prédio do Flamengo, onde passou a habitar, mudo e inerme, sob os des­velos da nora e incessantemente amparado por Nogueira, no aposento que pertencera àquele que perseguira por rival e que se lhe erigia agora por denodado guardião.

Os êxitos morais de Cláudio, comentados com admiração por alguns amigos no «Almas Irmãs», estabeleceram para o irmão Félix um problema gra­ve, embora sem qualquer importância na feição ex­terior. Dona Beatriz, ciente de que o genitor de Marina, já desencarnado, obtivera licença para se demorar ao pé dos familiares em missão de auxilio, queria também, pelo menos, rever o esposo e o filho. Cientificara-se, de maneira superficial, quanto aos acontecimentos desagradáveis em que se envolviam os entes queridos. Muito longe, porém, de abranger-lhes toda a extensão, alegava essa cir­cunstância para reforçar o propósito. Peça viva na engrenagem doméstica, não devia alhear-se, argu­mentava. Se Marina desposara Gilberto, aceitava-a por filha, e se os pais mantinham contendas, que não conhecia em todos os pormenores, nada mais justo que partilhar as dificuldades, oferecendo me­diação.

Estabelecida a pretensão, negou-se Félix a atender.

Dona Beatriz recorreu a Neves, mobilizou a afeição de Sara e Priscila e voltou à carga; entretanto, o diretor se conservou irredutível. Neves, porém, que não se curara, de todo, da impulsivi­dade, destacava o caráter aparentemente razoável do pedido, e colocou tantas relações e tantos em­penhos no assunto, que o instrutor não encontrou outra alternativa senão aderir.

Conquanto preo­cupado, determinou providências para que se efetuas­se a excursão. Instado a prestigiar Dona Beatriz com a sua presença, escusou-se, delicado, confe­rindo, àquele que lhe fora genitor, ampla liberdade de ação e tempo. Particularmente, todavia, reco­mendou-me fizesse companhia aos dois viajantes, pai e filha. Que eu cooperasse com Neves na so­lução de qualquer emergência. Pressentia obstá­culos, receava riscos.

Dona Beatriz, entusiasmada na contemplação do Rio, embora soubesse que Nemésio passara a residir com o filho, não apenas ansiava por abra­çá-lo, como também suspirava reavistar a antiga moradia. Queria sorver o perfume da felicidade que tivera, exclamava, contente. E o pai, satisfeito, incentivava-lhe todos os programas. Acompanhan­do a dupla, não me permitia opor embargos.

Demandei o Flamengo, ouvindo a senhora Tor­res e admirando as reservas de sensibilidade e meiguice que lhe vibravam na alma de escol. Ex­teriorizava o júbilo de ave recém-liberta. Entre­tanto, logo após recebidos por Moreira e Cláudio, ao divisar o marido desfigurado na postura dos paralíticos, empalideceu, debruçando-se na cadeira de rodas que o albergava. Enleou-se a ele, que lhe não assinalava as carícias, a crivá-lo de perguntas lastimosas... Por que mudara tanto em dois anos apenas? que lhe acontecera para se relegar a seme­lhante ruína física? que fizera? por que? por quê?...

Escutando tão-somente o ruído de Marina e Dona Justa, nas atividades rotineiras, experimentava-se Nemésio tocado de fundas reminiscências... Não conseguia explicar a si mesmo a razão das idéias que lhe borbulhavam da cabeça, mas pen­sava em Beatriz. Reconstituia-lhe a imagem no imo do ser. A esposa!... Ah! — refletia o doente, em cujo espírito a afasia requintara a vida interior — se os mortos pudessem amparar os vivos, se­gundo a crença de tantos, certamente que a velha companheira se compadeceria dele, estendendo-lhe as mãos!... Rememorava-lhe a compreensão si­lenciosa, a dignidade irrepreensível, a bondade, a tolerância!...

Ignorando que respondia, mecanicamente, às inquirições da esposa, amarrotada de angústia, ali colada a ele, revisou todos os acontecimentos pos­teriores à desencarnação dela, como que a lhe pres­tar severas contas. Gilberto, Marina, Márcia e Cláu­dio eram os protagonistas principais daquelas cenas que a memória perfeitamente lúcida lhe traçava nos painéis relampagueantes da aura, exibindo para a companheira e para nós outros, qual num filme pujante, a verdade toda, até o instante em que se precipitara no crime. Se Beatriz estivesse no mun­do — concluía —. estaria isento de aflições e ten­tações. Junto dela, teria recolhido defesa, orien­tação. Profundas saudades lhe acicatavam a alma... Recompunha na imaginação os sonhos da juven­tude, o casamento, os projetos de ventura concen­trados em Gilberto pequenino... Movimentou difi­cilmente a mão esquerda para enxugar o pranto que lhe encharcava o rosto, sem saber que a esposa o auxiliava, soluçando...

Neves, apreensivo, tentou soerguer a filha que se estirara no pavimento, à maneira de mãe tortu­rada, incapaz de alijar do peito um filho semimorto. Em vão pronuncIou palavras de encorajamento, exortações à paciência, conceitos evangélicos, pro­messas de futuro melhor... A filha magoada res­pondeu que amava Nemésio, que preferia ser amar­rada num catre, ao lado dele, a separar-se de novo. Agradecia o devotamento de que andara cercada no “Almas Irmãs”; entretanto, pedia vênia para considerar que o esposo sofria. Como descansar, lembrando-lhe os suplícios? Jesus também — pon­derava chorosa —, carregara a cruz por amor àHumanidade...

Como fugir de suportar diminutas contrariedades na Terra, amenizando o martírio do homem a quem adorava? A doutrina cristã ensi­nara-lhe que Deus é um pai compassivo e um pai compassivo não aprovaria ingratidão e abandono.

O genitor, que não contava com a imprevista resistência, disse-me à socapa que Torres pai nada fizera para merecer semelhante abnegação e incli­nava-se ao estouro, mas sugeri-lhe calma.

Censu­ras agravariam a situação sem proveito.

Interferi.

Salientei para a senhora Torres que o filho se preparava a dar-lhe uma neta, que a conformidade da parte dela, no tocante às provações do marido, ser-nos-ia uma bênção.

Acatando-me a solicitação, ergueu-se, contrafei­ta, acompanhou-nos até Marina, cuja história real na família passara a conhecer pelas memorizações do enfermo... Alma generosa, porém, compreen­deu as ligações havidas e, fitando Cláudio, que lhe perdoara ao esposo tantas injúrias, beijou-lhe a filha com enternecimento de mãe. Abraçou Dona Justa, com simpatia, e, em seguida, retornou em nossa companhia ao quarto de Nemésio, onde nos compartilhou a oração e o trabalho de socorro mag­nético. Pareceu reconfortar-se, sobremodo, quando viu Gilberto em casa para o jantar, encantando-se ao notar que o filho buscara o doente para a re­feição, após afagar-lhe a testa, acompanhando o gesto afetuoso com expressões de bom ânimo e ca­rinho; entretanto, quando Neves falou em regres­sar, a devotada mulher enrodilhou-se ao marido e, desligada por nós, quase à força, revelava sinais de alienação começante.

Beatriz desceu do prédio abatida, muda. No intuito louvável de reaquecer-lhe o coração, Neves, que conhecia somente por alto a bancarrota co­mercial do genro, propõe se lhe realizasse naquela hora o desejo de uma visita, ainda que rápida, àantiga moradia. A filha, agora apática, não con­testou. Obedeceu, automaticamente.

A noite caíra de todo, quando abordamos a vivenda que se reduzira a um casarão às escuras.

A Lua plena assemelhava-se a uma lâmpada enor­me que estivesse conscientemente recolhida a dis­tância, envergonhada de apresentar à dona do pa­lacete uma visão assim funesta.

O         genitor, arrependido da instigação infeliz, diligenciou recuar, mas não pôde...

Dolorosamente magnetizada pelas próprias recordações, Beatriz avançou apressada, à procura dos tesouros domés­ticos; todavia, não encontrou, nos lúgubres recin­tos, senão poeira e sombra do oásis familiar que construíra... Além de tudo, o elegante domicilio, condenado a leilão, transformara-se em valhacouto de malfeitores desencarnados, aos quais se reco­nhecia absolutamente sem forças para expulsar... A desesperada criatura correu de peça em peça, de susto em susto, de grito em grito, até que se ro­jou de borco, nos tacos da espaçosa câmara que lhe merecia a preferência, pronunciando frases des­conexas...

Beatriz enlouquecera.

Postei-me de vigia, asserenando-a, enquanto Neves, desolado, recorria aos serviços de amparo urgente, ligados ao “Almas Irmãs”, em local não distante.

O         auxilio não tardou.

No dia seguinte, enfermeiras especializadas co­laboraram conosco, por determinação de Félix; mas, somente depois de quatro dias sobre o incidente, logramos reentrar no instituto, reconduzindo-a, de­mentada.

Duas semanas de trabalho vigoroso e atenção constante se esvaíram, infrutiferamente, no lar de Félix, até que um dos orientadores da equipe mé­dica recomendou a internação da enferma em hos­pital adequado, a fim de que se lhe apllcasse a sonoterapia, com algum exercício de narco-análise, para que se lhe exumassem as recordações pos­síveis da existência anterior, com a cautela devida, de modo a que se não precipitasse em mergulhos de memória, alusivos a períodos precedentes.

O         parecer foi acatado.

Félix convidou-nos, a Neves e a mim, compa­recer, junto dele e do irmão Régis, no gabinete em que se efetuaria a pesquisa.

No momento indicado, ao pé de Beatriz, que dormia num leito, cujo travesseiro se achava munido de recursos eletromagnéticos especiais, perma­necíamos, Félix, o irmão Régis, o distinguido psi­quiatra que aventara a medida, acompanhado de dois assistentes, o chefe de arquivo do “Almas Ir­mãs”, Neves e eu, ao todo, oito companheiros ob­servando a paciente, sendo forçoso explicar que as autoridades ali reunidas dispunham de aperfeiçoa­do sistema de comunicação, para consulta rápida às repartições a que se mantinham vinculadas.

Félix circunspecto, Neves sob nervosismo, os médicos diligentes e nós outros em expectação...

Iniciada a experiência, Beatriz, denotando voz e maneiras diversas das que lhe eram habituais, revelou-se num ponto indeterminado de existência anterior, reclamando contra uma certa Brites Cas­tanheira, mulher à qual imputava os infortúnios que lhe devastavam a alma... Pelas considerações amargas, via-se que o analista esbarrara com ex­pressivo foco de exacerbação, facultando-lhe fácil penetração nos domínios recônditos da mente. Pre­valecendo-se disso, o médico indagou onde conhe­cera Brites, em que época e em que circunstâncias. Beatriz, sempre em sono provocado, replicou que para isso precisaria lembrar a juventude e, devi­damente estimulada, elucidou que nascera no Rio, em 1792, e se chamava Leonor da Fonseca Teles, nome que lhe adviera do homem com quem se consorciara em segundas núpcias. Informou haver nascido na rua de Matacavalos, numa casa singela em que vivera descuidosa meninice. Em 1810, po­rém, modificara-se-lhe o destino. Desposara um rapaz português, de nome Domingos de Aguiar e Silva, que se demorava no Brasil, em serviço do Duque de Cadaval, na Corte de D. João VI. Dessa união tivera um filhinho, que recebera o nome de Álvaro, em 1812. O marido, no entanto, falecera prematuramente no Caminho do Boqueirão da Glória, quando se responsabilizava pela condução de alguns potros bravos, adquiridos para as cocheiras reais. Referiu-se com gratidão às manifestações de estima com que se vira brindada por personali­dades influentes da época e às promessas articula­das em favor do pequenino que ficara órfão. Viúva aos vinte e dois de idade, foi reqüestada por rico ourives, que montara estabelecimento na rua Direita, Justiniano da Fonseca Teles, moço mais velho que ela apenas três anos, cuja proposta de casamento aceitou. Alegrara-se por verificar en­teado e padrasto em abençoada camaradagem.

Álvaro cresceu afetuoso e inteligente e, como não possuia rebentos do segundo matrimônio, a criança se levantara entre ela e o esposo por laço de luz e amor. Ainda assim, aos quinze de idade, em 1827, o menino embarcara no rumo da Europa, sob o patrocínio de fidalgos amigos do pai, tendo realizado estudos brilhantes em Lisboa e Paris...

A magnetizada narrava sucessos da época, ex­teriorizando impressões, acerca de pessoas, coisas, realizações e ocorrências, qual se trouxesse a ima­ginação recheada de crônicas vivas.

Confidenciou que o filho regressara em 1834. Para ela e Justi­niano, a casa transformara-se, de novo, num mar de rosas, até que certa noite...

Diante das reticências, o irmão Félix, visivel­mente comovido, solicitou que o serviço de análise se detivesse nas possíveis recordações da noite mencionada.

O orientador da pesquisa atendeu.

Beatriz franziu a testa, patenteando o sofri­mento de quem esbarrava com uma ferida no próprio corpo, sem meios de extirpá-la, e respondeu, descontente:

— Devo explicar que Brites era casada com Teodoro Castanheira, rico negociante que morava na rua da Valinha. Ambos moços, com uma filha única, Virgínia, pequenota de onze anos...

Embo­ra eu tivesse ultrapassado os quarenta, junto de Brites que ainda não alcançara os trinta, queria­mo-nos intensamente, enquanto que nossos maridos nos copiavam a afeição, com a mesma diferença de idade... Eles unidos pelos negócios e nós pelos sonhos caseiros...

E continuou:

— Na noite que comecei a mencionar, meu esposo e eu apresentávamos Álvaro à sociedade, num sarau do Comendador João Batista Moreira, na Pedreira da Glória... Senti horríveis pressentimentos quando Álvaro e Brites se cumprimenta­ram, parando extáticos, de olhos um no outro, para ouvir as sonatinas... Debalde inventei motivos para retirar-nos cedo... Voltamos tarde com o rapaz, devaneando. Supunha impossível que ela fosse ca­sada e mãe de uma filha... Parecera-lhe simples menina de salão na graça de que se enfeitava. Fiz quanto pude para evitar o desastre, mas o desti­no... Ambos tomados de paixão recíproca, inicia­ram-se em passeios... Voltas pelo Mangrulho e brincadeiras na praia de Botafogo, excursões de caleça para a Fazenda do Capão, passeios para lá da Muda da Tijuca... Isso tudo acontecia pacifi­camente, até que Teodoro os descobriu juntos num quarto do Hotel Pharoux. Escandalizado, o mari­do desinteressou-se da mulher, embora não se re­tirasse do lar por amor à filha... Mas, mesmo nessa posição, cortejou a menina Mariana de Cas­tro, a que chamávamos Naninha, jovem de bons costumes, que residia com os pais na rua do Cano... Brites, longe de se magoar, até mesmo facilitou quanto pôde a ligação, para ver-se livre... Naninha acabou cedendo às escondidas, mas enjeitou dois filhos do comerciante nas portas da Misericórdia, como é do conhecimento público...

A senhora Torres entrou em crise de lágrimas e seguiu contando que o filho, depois de quatro anos, se enfadou de Brites e só então comunicou à família que deixara uma prometida em Lisboa...

Suspirava por voltar, mas receava que a amante se despenhasse no suicídio. Depois de muitas ne­gaças em vão para retirar-se, arquitetou um plano maquiavélico, de que resultara para ela, mãe amo­rosa, a infelicidade irremediável. Percebendo, a pou­co e pouco, a fraqueza de Brites pelas jóias, insi­nuou ao padrasto que ela ansiava possuir-lhe a de­dicação, fantasiando recados e amando embustes. Justiniano, vencido pelas sugestões do enteado, pôs-se em ação, conseguindo impressionar Entes com presentes raros, até que no primeiro encontro, for­jado pelo próprio Álvaro, interferiu ele na cena, assumindo o papel de companheiro ultrajado, afastando-se, enfim, para Portugal, deixando várias tra­gédias em andamento.

O         golpe infundira na senhora Castanheira uma nova personalidade. Convertera-se em pavorosa mu­lher, calculista, cruel. Nunca mais se lhe vira um gesto de piedade. Metamorfoseara Justiniano num homem de sexualidade pervertida, extorquindo-lhe dinheiro e mais dinheiro, até ao ponto de entregar-lhe a própria filha, Virgínia, que atravessara os quinze de idade, vendendo-a ao amante, homem já velho, para senhorear terras e haveres. Ainda as­sim, não contente com os próprios desvarios, de­sencaminhava moças de nobre formação, atirando-as no prostíbulo, estimulava infidelidades, vícios, crimes, abortos...

       Virgínia, com quem Justiniano passara a viver, em definitivo, abandonando a esposa, transfigura­ra-se em pomo de discórdia entre o senhor de Fon­seca Teles e Teodoro Castanheira, que se atormen­taram mutuamente em onze anos de conflitos inú­teis, até que o marido de Dona Brites, então vi­vendo maritalmente com Naninha de Castro, desde muito, aparecera morto a punhaladas, na rua da Cadeia, atribuindo-se o homicídio a escravos fora­gidos. Naninha, porém, não ignorava que Justinia­no fora o mandante e tramou desforço. Uniu-se a outro homem, em cujo espírito insuflou despeito e ódio contra o ourives da rua Direita, e os dois, então morando num recanto da praia de Botafogo, planejaram assassiná-lo num suposto acidente. Jus­tiniano, já idoso e enfermo, adquirira o hábito da visita domingueira à Bica da Rainha, no Cosme Ve­lho. Quando regressava de uma dessas jornadas, ànoitinha, guiando o carrocim em que se fazia con­duzir, Naninha e o companheiro, ocultos na som­bra, crivaram o cavalo de pedras revestidas de far­pas, depois de escolherem local que favorecesse o desastre... O animal desembestado arrojou-se ladeira abaixo, rebentando freios e arremessando o velho do cimo de um barranco sobre um monte de lajes que se empilhavam em baixo, onde Justiniano encontrara a morte, quase que instantânea.

E Dona Beatriz rematou, lacrimosa:

— Ah! meu Deus, tudo por nada, porque Ál­varo, de retorno a Portugal, achou a prometida casada com outro, por imposição dos pais, regres­sando, mais tarde, ao Brasil, onde acabou na con­dição de professor solteirão... Ah! meu filho, meu filho!... Por que te fizeste o autor de tantas cala­midades?...

Nesse tópico das revelações, o irmão Félix so­licitou dos cientistas um intervalo para explicações, antes de se retirar.

A doente foi restituída ao sono e o instrutor pediu ao chefe do Arquivo a certidão da saída de Beatriz, já que se ausentara dali mesmo, quase cin­qüenta anos antes, para a reencarnação no Rio.

O interpelado, atento ao caso em exame, trouxera consigo a ficha de Dona Beatriz Neves Torres.

Sim, precedendo-lhe o nome atual, aparecia o de Leonor da Fonseca Teles, que desencarnara no Rio, estivera, por algum tempo, em regiões infe­riores, morara por vinte e oito anos em colônia espiritual de reeducação não distante, e passara apenas dois meses no Almas Irmãs», em 1906, por solicitação do próprio irmão Félix, que lhe pa­trocinara o renascimento no lar de Pedro Neves, ali presente.

Félix, porém, rogou as informações possíveis, acerca de personalidades referidas por Beatriz, que estivessem vinculadas ao Instituto.

Aparelhos funcionaram e o Arquivo respondeu com presteza. Justiniano da Fonseca Teles, Teo­doro Castanheira, Virgínia Castanheira e Naninha de Castro estavam reencarnados no Rio. Todos com certidão de saída do «Almas Irmãs». Justi­niano era Nemésio Torres, negociante, com débitos agravados; Teodoro Castanheira apresentava-se com o nome de Cláudio Nogueira, já desencarnado, mas ainda em serviço na Terra, com melhoras sensí­veis; Virgínia Castanheira respondia agora por Ma­rina Nogueira Torres, com índices promissores de reforma íntima; Naninha de Castro fora Marita Nogueira, que estivera recentemente desencarnada num dos parques de repouso da organização, e que se achava em processo de novo renascimento no plano físico, por pedido expresso do próprio diretor do Instituto, enquanto que Brites Castanheira en­vergava na Terra o nome de Márcia Nogueira, cuja ficha era desoladora. O registro dessa mulher so­mava longa série de abortos e deserções do dever, além de vários compromissos indiretos em lares destruidos e existências sacrificadas. Anotações das piores nas piores anotações da instituição.

Um dos médicos presentes, talvez empolgado com o depoimento de Beatriz, indagou por notícias de Álvaro. O Arquivo elucidou que Alvaro de Aguiar e Silva não possuía atestado de saída para a reencarnação pelo “Almas Irmãs”. Achava-se apenas cadastrado no departamento de queixas. Leonor, que lhe fora mãe carnal, Justiniano, o pa­drasto, e a própria Brites Castanheira, antes do regresso a novas lides terrenas, haviam inscrito se-veras acusações contra ele, embora os dois últimos tivessem estado, apenas de modo ligeiro, no Insti­tuto, ao saírem de colônia penal.

O         irmão Félix perguntou se constava dos apon­tamentos de Márcia algum gesto nobre, por onde se ensaiasse eficiente auxilio a ela. Constava, sim, aclarou a repartição competente. Um dia, empe­nhara-se, com os melhores impulsos maternais, a garantir casamento digno à filha enferma.

O         instrutor, então, conjugando dignidade e mo­déstia, levantou-se, e, arrasando-nos com a valo­rosa humildade de que dava testemunho, partici­pou-nos que Álvaro de Aguiar e Silva e ele eram a mesma pessoa, o mesmo Espírito, que ali se er­guia diante de Deus e diante de nós, num julga­mento em que a consciência lhe exigia implorar, voluntariamente, a reencarnação, a fim de se colocar ao encontro de Brites, então na personalidade da viúva Nogueira... Esforçar-se-ia na regenera­ção de si mesmo e dar-lhe-ia a existência, já que se reconhecia o verdugo, categorizando-a por ví­tima.

Um raio não nos fulminaria com tanta força.

Os médicos jaziam cabisbaixos, o irmão Régis tinha lágrimas, Neves empalidecera e eu mal con­seguia respirar...

Corajoso, Félix continuou elucidando que a Mi­sericórdia Divina, à medida que o Espírito se es­clarece, entrega ao tribunal da consciência o dever de se corrigir e de se harmonizar com as leis do Eterno Equilíbrio, sem necessidade do apelo a dis­posições compulsórias, e que, em razão disso, da­quela hora em diante tornaria pública a decisão de se recolher aos trabalhos preparatórios do renas­cimento na arena física.

Confessou que a delinqüência sexual gerara para ele responsabilidades semelhantes às de um malfeitor que dilapidasse um edifício ou uma cida­de, através de explosões em cadeia. Lesando os sentimentos de Brites Castanheira, mulher respei­tável até à ocasião em que lhe transtornara o coração e o cérebro, identificava-se, diante dos prin­cípios de causa e efeito, culpado, até certo ponto, por todos os delitos de natureza emotiva por ela cometidos, de vez que após abandoná-la, impelin­do-a deliberadamente à deslealdade e à aventura, podia compará-la a uma bomba, por ele preparada na direção de quantos a pobre criatura prejudicara, como querendo vingar no próximo o duro revés que lhe infligira.

Rogava-nos, ele, a quem devíamos tanta feli­cidade, apoio fraterno para que se lhe conseguisse um lugar de filho no lar de Gilberto, assim que Marina restaurasse o claustro materno, após o renascimento de Marita. Idealizara encontrar-se com Márcia, na ternura de um neto... Ser-lhe-ia o com­panheiro nos tempos áridos da velhice corpórea, recolher-lhe-ia o amor puro, sofreriam juntos, dar-lhe-ia o coração. Não lhe competia a indiferença, persuadido qual se achava de que a Infinita Bon­dade de Deus poderia conceder à viúva de Cláudio um valoroso resto de tempo na estância física... Se o Senhor lhe facultasse o favor que impetrava, que o auxiliássemos a ser fiel nos compromissos, desde o raciocínio infantil; que o amparássemos nos dias de tentações e fraquezas, que lhe perdoásse­mos as rebeldias e as faltas, e que, por amor àconfiança que ali nos congregava, não lhe patro­cinássemos, em tempo algum, qualquer mergulho em facilidades nocivas, a título de amizade...

Austero e doce, dirigiu-se particularmente ao irmão Régis, inteirando-o de que ambas as irmãs, Priscila e Sara, se achavam em preparativos para o retorno à Terra, que partiriam antes dele, que contava com a possibilidade de se retirar da dire­ção do Instituto, dentro de aproximadamente seis meses, a fim de aprontar-se, e que não anelava ou­tra coisa que não fosse a experiência e a felicidade do companheiro à frente da organização.

Nenhum de nós, contudo, dispunha de energias para largar o silêncio. Os médicos requisitaram substitutos que assegurassem o descanso de Bea­triz; Régis, mudo, afastou-se dando o braço ao chefe do Arquivo; Neves abeirou-se da filha inerte, dando a idéia de quem ansiava esconder-se para meditar na lição. Vi-me só diante do instrutor. Alçando para ele os olhos, como na primeira vez que o fitara, na residência de Nemésio, procurei recompor-me, ao fixar-lhe o rosto imperturbável. Era o mesmo homem que eu não saberia dizer se amava como sendo meu pai ou meu irmão. Ele me percebeu o estado de alma e abraçou-me. Atra­vés daquele olhar firme e percuciente, compreendi que não me desejava sensibilizado, e tentei reequi­librar-me. Apesar disso, incapaz de controle total, pus a cabeça, que a emoção desgovernava, naquele ombro que me habituara a venerar, mas, antes que eu chorasse, senti-lhe a destra a me afagar, de leve, os cabelos, ao mesmo tempo que me pergun­tava pela aula de fluidoterapia, de que não me se­ria lícito ausentar.

Saímos juntos.

Lá fora, ao vê-lo caminhar erecto e calmo, tive a impressão de que o Sol rutilando nos céus era uma advertência da Sabedoria Divina a que susten­tássemos lealdade na marcha constante para a Luz.

 

Obtendo a dilação de prazo para mais amplos estudos no «Almas Irmãs», acompanhei o irmão Félix até que se retirasse da chefia para entregar-se à preparação das novas tarefas.

O instrutor escolhera a Casa da Providência para se despedir da comunidade.

Na data prefixada, desde cedo, as portas do edifício jaziam abertas para quantos quisessem di­zer adeus ao querido orientador, que todos os resi­dentes no Instituto consideravam herói.

Ministros da cidade, admiradores situados em lugares vizi­nhos, comissões de vários órgãos de serviço, todas as autoridades da organização, amigos, discípulos, beneficiários e companheiros outros, que procediam de longe, ali se reuniam, irmanados numa só vibra­ção de agradecimento e de amor.

Informara-se Régis de que o chefe estimaria rever os doentes nas últimas horas de ação administrativa, mas, convencido de que não conseguiria ele satisfazer a esse propósito, por escassez de tem­po, recomendou-nos selecionar, nos setores de ir­mãos hospitalizados, aqueles que se evidenciassem capazes de comparecer à transmissão de poderes, sem dano para as atividades em pauta.

Alinhamos, para logo, duzentos que não cria­riam problemas e, aspirando a salientar a dedicação incessante de Félix para com os menos felizes, determinou Régis fossem acomodados na primeira fila do auditório, como homenagem silenciosa àque­le que os amava tanto... Destacavam-se, quase todos eles enfraquecidos e trêmulos, simbolizando vanguarda de saudade e sofrimento na assembléia, portando ramalhetes nas mãos... Contemplava-os, enternecido, quando Félix chegou, por fim, deno­tando a firmeza e a serenidade que lhe marcavam as atitudes. Instalou-se, tranqüilo, entre o Ministro da Regeneração, que representava o Governador, e o irmão Régis, que o substituiria; contudo, ao re­lancear os olhos pelos milhares de circunstantes que repletavam entradas, saídas, escadas e galerias, com os enfermos à frente, estampou no semblante abalo inexprimível.

Quinhentas vozes infantis, de antemão prepa­radas por irmãs reconhecidas, cantaram em coro dois hinos que nos arrebataram a culminâncias de sentimento, O primeiro deles se intitulava «Deus te abençoe», executado por oferenda dos compa­nheiros mais velhos, e o outro se subordinava à expressiva legenda «Volta breve, amado amigo!», preito de reverência endereçado ao instrutor pelos mais jovens. Emudecidos os derradeiros acordes da orquestra, que imprimira ignota beleza às me­lodias, os duzentos enfermos desfilaram diante de Félix, em nome do “Almas Irmãs”, que delegava aos companheiros menos afortunados o júbilo de apertar-lhe as mãos, ofertando-lhe flores.

A transferência de autoridade foi simples, com a exposição e leitura respectiva de um termo re­ferente à modificação. Cumprido o preceito, o Mi­nistro da Regeneração abraçou, em nome do Go­vernador, o irmão que partia e empossou Régis que ficava.

O novo diretor, com a voz de quem chora­va por dentro, expressou-se, breve, suplicando ao Senhor abençoasse o companheiro de regresso à reencarnação, hipotecando-lhe, simultaneamente, vo­tos de triunfo nas lides que esposava. Confundido e humilde, acabou convidando Félix não só a usar da palavra, como também a prosseguir exercendo o comando daquela Casa, por direito que ele, Régis, julgava imprescritível.

Intensamente comovido, o interpelado levan­tou-se e, qual se nada mais tivesse a ditar àquela instituição que lhe recolhera mais de meio século de trabalho, alçou a fala em prece:

— Senhor Jesus, que te poderia rogar, quando tudo me deste no carinho dos amigos que me cer­cam na luz do amor que não mereço? Entretanto, Mestre, em nos colocando sob tua bênção, temos algo ainda a implorar-te, confiante!... Agora que novas realizaçôes me chamam na Terra, auxilia-me, por piedade, para que eu seja digno do devota­mento e da confiança desta casa, onde, por mais de meio século, recebi a magnanimidade e a tole­rância de todos!... Diante da alternativa de tomar novo corpo, no plano físico, a fim de resgatar dé­bitos contraídos e curar as velhas chagas interio­res que carrego por doloroso rescaldo de minhas transgressões, induze, por misericórdia, os amigos que me escutam a me socorrerem com a benevolência de que sempre me cercaram, para que eu não resvale em novas quedas!... Senhor, abençoa-nos e sê glorificado para sempre!...

Félix pronunciara as últimas palavras, sobres­tando, dificilmente, a emotividade que o traía, mas, como se o firmamento lhe respondesse, de ime­diato, à apelação, amigos das esferas superiores ali presentes, conquanto se nos mantivessem ina­cessíveis ao olhar, valendo-se das forças espirituais de todo o auditório, positivamente orientadas numa só direção, materializaram farta chuva de pétalas luminosas, que desciam do teto a se desfazerem, tão logo nos tocavam a fronte, em vagas de perfume inesquecível.

A expectação prosseguia por instantes de jubi­loso silêncio, quando um carro estacou, à porta do foro repleto, e, logo após, certa mulher penetrou o recinto, revestida de luz.

Num átimo, todos os circunstantes se levan­taram, inclusive o Ministro da Regeneração, que a envolveu, para logo, num olhar de fundo respeito.

Hesitei um momento só. Reconheci-a, feliz. Era a Irmã Damiana, que integra em Nosso Lar o quadro de campeões da caridade, nas regiões das trevas, de quem conservava Félix o retrato e a quem se ligava por entranhados laços de afeto... A benfeitora, que revelava imensa modéstia, trajara-se de esplendor — daquele esplendor que, de­certo, tantos sacrifícios lhe custara —, tão-só para mostrar o regozijo com que vinha receber e apron­tar para novo renascimento aquele a quem amava por filho do coração!...

 

Quatro anos passaram, celeremente.

Esperança, esforço, trabalho, renovação...

Embora nunca me esquecesse de Félix, vários instrutores nos haviam recomendado o afastamen­to temporário da nova incumbência de que se in­vestia, para não sermos tentados a prejudicá-lo por excesso de mimos. No entanto, quando menos esperava, o irmão Régis enviou-me fraterna men­sagem, avisando que cessara o impedimento. Félix vencera todas as lutas no ajustamento ao veículo físico. Alguns dias depois, Cláudio, Percília e Mo­reira, em serviço no Rio, convidaram-me, em me­morando afetuoso, a rever o inolvidável amigo, que todo o «Almas Irmãs até hoje cerca de infatigável carinho.

Revivendo comovedoras lembranças, tornei ao Flamengo; contudo, o tempo tudo alterara. Famí­lia diversa ocupava o apartamento que se me vin­culava às recordações. Um amigo desencarnado, por solicitação de Moreira, que o cientificara de minha visita eventual, me forneceu, prestativo, o novo endereço, explicando que Gilberto e Marina se viram na contingência de vender a moradia, a fim de atenderem a questões de inventário, meses após a desencarnação de Cláudio.

A família morava agora em Botafogo, para onde me dirigi, ansiosa­mente.

Nenhuma frase terrestre para delinear a ven­tura do reencontro. Cláudio e Percília estavam lá. Moreira, ausente em serviço, chegaria mais tarde. Enleado nas vibrações balsâmicas do acolhimento de meus anfitriões espirituais, revi o casal em pa­lestra com Dona Justa, reavistei Marita, na forma de menina bonita e chorona... Profundamente sen­sibilizado, contemplei Félix, que passara a chamar-se Sérgio Cláudio, na rósea ternura dos quatro anos de idade. Temperamento visceralmente diver­so da irmãzinha, já entremostrava serenidade e lu­cidez nos pensamentos e nas palavras. Quedara-me impressionado, ignorando como externar a ale­gria... Era ele mesmo!...

Encantado, divisava novamente a chama daqueles olhos inesquecíveis, conquanto brilhasse num corpo de criança despreo­cupada...

Cláudio e Percilia informaram-me que Nemé­sio fora conduzido ao plano espiritual, um ano antes, em seguida a escabrosos padecimentos. Con­taram que verdadeiras maltas de obsessores amea­çavam o apartamento de Botafogo, quando o pobre companheiro se achava prestes a partir. Percilia, porém, acompanhara o movimento intercessório que se levantara em favor dele, no “Almas Irmãs”. Amigos devotados interpunham recursos, deprecan­do caridade e misericórdia, quando se soube que a Justiça, no Instituto, o considerava incurso em definitivo banimento. Antigos companheiros, em apelos calorosos, mencionavam os gestos de bene­ficência que praticara, ao tempo de Dona Beatriz, somados ao triênio de enfermidade e paralisia que suportara, resignado. Diante dos empenhos multi­plicados, de que o próprio Irmão Régis partilhava, já que, seguindo a orientação administrativa de Félix, inclinava o poder à benevolência, os magis­trados permitiram a reabertura do processo para debates amplos. Reposto o assunto em exame, a Casa da Providência enviara dois notários a Botafogo, para instruir com segurança as petições que se adensavam; todavia, os serventuários tinham chegado exatamente na ocasião em que Nemésio, parcialmente desencarnado, enlouquecera ao desco­brir, em derredor do refúgio doméstico, a presença das companhias infelizes que irrefletidamente cul­tivara. Verificando-se o inesperado, os juizes, por espírito de eqüidade, recomendaram se lhe conser­vasse a demência por benefício, no que, aliás, tinham sido referendados pelo Irmão Régis, porqüanto essa era a única fórmula pela qual se lhe podia dar uma guarda conveniente, de modo a subtrai-lo à sanha de malfeitores desencarnados, que anela­vam possuir-lhe o concurso em vilezas, tão logo alijasse o corpo destrambelhado. Em vista dessa bênção, obtivera a internação num manicômio res­peitável, mantido pelo “Almas Irmãs em região purgatorial de trabalho restaurativo, onde conti­nuava em tratamento vagaroso, incapaz de assu­mir compromissos novos com as Inteligências das trevas.

Quanto a Márcia, andava doente, mas arredia. Nunca mais retornara ao convívio familiar, não obstante o interesse incansável de Gilberto e Ma­rina para reaver-lhe a confiança. Dizia detestar parentes. Apesar de enferma, bebia e jogava com desatino. Cláudio acentuava, porém, que os filhos espreitavam ensejo, a fim de apresentar-lhe os netos. E Percília aditava que eu chegara justamente na véspera de tentativa promissora. Naque­le sábado, pela manhã, o casal se inteirava de que ela freqüentava diariamente a praia de Copacaba­na, descansando na areia a fim de inalar os ares puros do mar alto, a conselho médico. No dia ime­diato, domingo, Gilberto e a companheira contavam com tempo bastante para nova investida à conquis­ta da suspirada reconciliação. Estava convidado a cooperar. Descansasse ali, junto deles. Aguar­dasse.

Entretivemo-nos largo tempo, em torno das ma­ravilhas da vida. Percilia comparou a experiência terrestre a um tapete precioso, de que o Espirito reencarnado, tecelão do próprio destino, somente conhece o lado avesso.

Noite avançada, apareceu Moreira, acrescen­tando-nos a cordialidade reconfortante.

Recolhido, por fim, ao repouso, aspirei a apro­ximar-me de Sérgio Cláudio, para auscultar-lhe a posição espiritual naquela fase da infância, mas sufoquei o impulso. Prometera, de minha parte, no “Almas Irmãs”, nada praticar, em nome do amor, que lhe arriscasse o desenvolvimento tran­quilo.

Vali-me dos momentos de calmaria para estu­dar, refletir, recordar...

Manhãzinha, achávamo-nos a postos.

Marina, madrugadora, movimentou-se às seis e, às oito horas, sob os desvelos de Dona Justa, a família se reunia à mesa, em ligeiro repasto, prelibando os divertimentos da praia. Marita que­ria o maiô verde e a lata de bolo. Sérgio Cláudio preferia sorvete.

Antes da saída, a esposa de Gilberto, revelan­do admirável madureza, pensou na missão que de­mandavam, lembrou-se de Cláudio, sentindo-se es­piritualmente assistida por ele, e pediu aos dois garotos orassem juntos.

O pequeno empertigou-se no meio da sala e recitou a prece dominical, seguido pela irmãzinha que, embora mais taluda, gaguejava numa ou nou­tra expressão.

Em seguida, Marina solicitou ao pequerrucho:

— Meu filho, recorde em voz alta a oração que ensinei a você ontem...

— Esqueci, mãezinha...

— Comecemos outra vez.

E, erguendo a fronte para o Alto, na atitude reverente que lhe conhecíamos, o menino repetiu, uma a uma, as palavras que ouvia dos lábios ma­ternos:

— Amado Jesus... nós pedimos ao senhor tra­zer vovozinha... para morar... conosco...

A pequena caravana, acompanhada por nós, desceu do ônibus nas adjacências da praia. Nove da manhã. Sol esplêndido. Éramos quatro compa­nheiros desencarnados, junto aos quatro.

Para que Dona Márcia não lhes prejulgasse as intenções, Gilberto e Marina resolveram mergulhar, imitando as crianças. Em torno, milhares de ba­nhistas que compartilhavam, risonhos, a festa per­manente da Natureza. O bancário e a mulher, a se entreolharem, de maneira significativa, vasculha­vam recantos, aqui e acolá... Pesquisaram, até que enxergaram Dona Márcia, em maiô, estirada sob tenda acolhedora. Parecia cansada, triste, con­quanto sorrisse para o bando álacre das amigas.

Cláudio, emocionado, ponderou que dispúnha­mos da possibilidade de envolvê-la em reminiscên­cias edificantes.

Acercamo-nos dela, enquanto Gilberto e Mari­na, com os rebentos, se aproximavam, guardando aparente despreocupação.

Sob nossa influência, a viúva Nogueira come­çou, inexplicavelmente para ela, a pensar na fi­lha...

Marina! Onde estaria Marina? Que sauda­des! Como lhe doía agora a separação!... Como lhe tinha sido espinhoso o caminho!... Rememo­rava o lar, de ânimo opresso, revia o princípio...

Cláudio, Aracélia, as filhas e Nemésio rearticula­vam-se-lhe na imaginação, reintegrando quadros de amor e dor que jamais pudera esquecer!... Tanta amargura seria a vida? E indagava-se, de alma inquieta, se teria valido a pena existir para alcan­çar a velhice em tamanha solidão...

Nisso, percebe que a turma se avizinha, er­gue-se, assustada, e reconhece o grupo, observando-se apanhada de surpresa. Atônita, fixou Mari­na, Gilberto e Marita, de relance; entretanto, ao esbarrar com os olhos de Sérgio Cláudio, que-dou enlevada!... «Oh! Deus, que estranha e linda criança!... — monologou no íntimo.

O menino largou, apressado, a destra materna, após lhe haver Marina cochichado algo aos ouvidos, e atirou-se a ela, gritando, comovedoramente:

- Ah! vovó! Vovozinha!... Vovozinha!...

Márcia estendeu maquinalmente os braços para acolher aqueles braços diminutos que a enlaçavam... O minúsculo coração, que passou a bater de encon­tro ao dela, figurou-se-lhe um pássaro de luz que descia dos céus a pousar-lhe no tórax abatido. Fez menção de oscular o pequenino, mas recôndi­tas impressões de felicidade e de angústia lhe in­fundiam sensações de amor e medo. Por que lhe despertava o netinho tão contraditórios pensamen­tos? Antes, porém, que se decidisse a acariciá-lo, Sérgio Cláudio levantou a cabeça que lhe entrega­ra por momentos ao ombro nu, e cobriu-lhe o rosto de beijos... Não houve mecha de cabelos que não alisasse com dedos ternos e nem ruga que não afa­gasse com os lábios enternecidos. Enleada, Márcia recolheu as saudações dos filhos, abraçou a menina, que via igualmente pela primeira vez, referiu-se à saúde e, quando entrou a comentar, quanto à viva­cidade dos netos, Marina recomendou ao filhinho declamasse a prece da vovozinha, que pronunciara em casa, antes de sair.

Sérgio, com a noção inata do respeito que se deve à oração, despencou-se do regaço a que se agarrara, perfilou-se diante de Dona Márcia. fin­cando os pés rechonchudos na areia... E, cerran­do os olhos, em laboriosa diligência de imaginação para ofertar de si mesmo aquela manifestação de carinho, repetiu, firme:

— Amado Jesus, nós pedimos ao senhor trazer vovozinha para morar conosco...

Dona Márcia prorrompeu em lágrimas copio­sas, enquanto o pequenino se lhe asilava, de novo, nos braços que tremiam de júbilo...

—        Que é isso, mamãe? a senhora chorando — Inquiriu Marina, carinhosa.

—        Ah! minha filha! — respondeu Dona Már­cia, aconchegando o neto ao peito — estou ficando velha!...

Logo após, despedia-se das companheiras, avi­sando que naquele domingo almoçaria em Botafo­go, mas, intimamente, estava persuadida de que não mais largaria a residência da filha em Botafogo, nunca mais...

O         menino prendera-lhe o coração.

Acompanhei o grupo até o asfalto. Gilberto, feliz, chamou um táxi. Cláudio, Percília e Moreira, que seguiriam, de volta, me abraçaram em festa. Contemplei o carro que deslizou na direção do Lido, para seguir adiante...

Sozinho em espírito, diante da multidão, con­fiei-me às lágrimas de enternecimento e regozijo.

Ansiei abraçar aquela gente generosa e espontâ­nea, que brincava entre o banho e a peteca, en­saiando a fraternidade por família de Deus...

Cambaleando de emoção, tornei ao local em que Márcia e o neto tinham fruido o reencontro sublime, a simbolizarem para mim o passado e o presente, urdindo o futuro na luz do amor que nun­ca morre. Osculei o chão que haviam pisado e orei, rogando ao Senhor os abençoasse pelos ensinamen­tos de que me enriqueciam... Dos milhares de companheiros reencarnados, em risonha agitação, nenhum me assinalou, de leve, o culto de reconhe­cimento e de saudade. O mar, entretanto, qual se me visse, compadecido, o gesto medroso, arremes­sou extenso véu de espuma sobre o trato de areia que eu beijara, como se quisesse guardar a nota apagada de minha gratidão e reverência, na pauta das ondas, incorporando-a à sinfonia imponente com que não cessa de louvar a beleza sem-fim.

 

                                                                                            Chico Xavier  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades