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SOB O OLHAR DE APOLO / Mary Stewart
SOB O OLHAR DE APOLO / Mary Stewart

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SOB O OLHAR DE APOLO

 

"Nada jamais me acontece."

Escrevi pausadamente essas palavras, olhei para elas um momento com um leve suspiro, descansei a caneta esferográfica na mesa do café e procurei um cigarro na bolsa.

Depois de aspirar o fumo, olhei em torno de mim. Ocorreu-me então, ao pensar naquela última frase desanimada de minha carta a Elizabeth, que bastantes coisas estavam acontecendo naquele momento para satisfazer até as pessoas mais famintas de aventuras. Pelo menos, era essa a impressão que Atenas me dava. Todo o mundo andava, falava, gesticulava — falava principalmente. Quando se pensa em Atenas, o que se lembra não é o clamor do tráfego perpetuamente congestionado, nem o constante crepitar das brocas pneumáticas e nem mesmo o velho barulho dos cinzéis que desbastam o mármore pentélico, afinal de contas ainda o material de construção mais barato... O que se lembra de Atenas é o rumor das conversas. Sobe até as altas janelas do hotel, acima do cheiro do pó e do burburinho do trânsito — murmurante como o mar abaixo do templo em Súnio — o som das vozes atenienses que discutem, riem e fa­lam como outrora falaram para dar forma às coisas do mundo entre as colunas da Agora, não muito longe do lugar onde estou.

Era um café popular e afreguesado. Eu tinha achado uma mesa nos fundos da sala perto do bar. Ao longo da parede externa, grandes portas envidraçadas se abriam na calçada, ao pó e à algazarra da Praça Omonia, que é, com efeito, o centro comercial de Atenas. É certamente o centro de todo o barulho e agitação da cidade. O trânsito se arrastava ou corria numa incessante confusão. A multidão, tão engarrafada quanto o trân­sito, se espraiava nas amplas calçadas. Grupos de homens, im­pecavelmente vestidos em trajes urbanos escuros, discutiam o que quer que seja que os homens discutem no meio da ma­nhã em Atenas, com os rostos animados e atentos e com as mãos a brincar incessantemente com as pequenas voltas de "contas nervosas" de âmbar que os homens do Mediterrâneo Oriental costumam levar. As mulheres, algumas elegantemen­te vestidas e outras com as largas saias pretas e a cobertura de cabeça preta das camponesas, transitavam a fazer compras. Um burro, tão carregado de flores que parecia um jardim am­bulante, passava devagar enquanto o seu dono apregoava em vão as suas mercadorias contra o tumulto daquelas quentes ruas matinais.

Empurrei minha xícara de café para o lado, tirei mais uma fumaça do cigarro e peguei minha carta. Comecei a ler o que havia escrito.

"Você já deve ter recebido as cartas que lhe escrevi a respeito de Micenas e Delos, bem como a que lhe escrevi há dois dias sobre Creta. É difícil para mim saber exatamente o que devo escrever — quero tanto dizer-lhe que este é um país admirável mas sem carregar muito a mão para que você não julgue a fratura da perna que a impediu de vir uma tragédia ainda maior do que é. Sim, eu sei, não devo também falar sobre isso... Bem, estou sentada num café na Praça Omonia — que é cal­culadamente o lugar mais agitado desta cidade eternamente agitada — e pensando no que vou fazer em seguida. Acabo de desembarcar de um vapor de minha visita a Creta e não acredito que haja na terra nada que se compare em beleza às ilhas gregas. Creta é uma categoria à parte, magnífica, em­polgante e um pouco sinistra também — mas já lhe falei sobre isso em minha última carta. Agora, tenho de ir a Delfos e todos, em solo e em coro, já me asseguraram que será o ponto alto de minha excursão. Espero que estejam certos; alguns lugares, como Elêusis, continuam povoados de fantasmas, mas o mito e a magia desapareceram. Dizem-me, porém, que Delfos vale realmente a pena. Foi por isso que a deixei para o fim. O único problema é que eu estou começando a ficar preocupada com a parte do dinheiro. Talvez eu não tenha mesmo um pingo de juízo quando se trata de dinheiro. Philip estava certo..."

Nesse momento, um homem que passava entre as mesas em direção ao balcão do bar esbarrou em minha cadeira e eu levantei a vista, sacudida momentaneamente de meus pensamentos.

Uma turma de fregueses — todos homens — estava reuni­da diante do balcão para o que parecia um lanche muito substancial no meio da manhã. O homem de negócios ateniense se sente na obrigação de preencher o intervalo entre a primeira refeição e o almoço com alguma coisa mais substancial do que café. Vi um prato cheio até às bordas de salada russa, outro com apetitosos bolinhos de carne e feijão-verde nadando em azeite, além de inúmeros pratinhos com batatas fritas, ceboli­nhas, pedaços de peixe, pimentões e muitas outras coisas que eu não pude identificar. Atrás do balcão, havia uma fila de jarros de barro e na sombra de seus estreitos gargalos vi azei­tonas, recém-trazidas dos frescos depósitos de Egina e Salamina. As garrafas de vinho na prateleira de cima tinham nomes como Samos, Neméia, Quios e Mavrodafne.

Sorri e voltei à minha carta:

"... mas de certo modo estou achando maravilhoso estar aqui sozinha. Não me interprete mal que não é de você que estou falando! Nada eu desejaria mais do que você estar aqui também, tanto por sua causa, quanto pela minha. Você sabe o que eu quero dizer, não sabe? Esta é a primeira vez em muitos anos em que me vejo inteiramente por minha conta — ia quase dizer "livre da coleira" — e estou realmente gozando a vida de uma maneira que nunca julguei possível. Na minha opinião, nunca acreditei que ele viesse mesmo até aqui. Pode imaginar Philip andando por lugares como Cnossos ou Delos? Ou dei­xando que eu andasse? Procuraria logo partir para Istambul, Beirute ou até Chipre, qualquer lugar, em suma, onde estivessem acontecendo coisas não no passado, mas agora, e se não esti­vessem acontecendo, ele daria um jeito.

"Divertido... sempre foi divertido, mas... também não vou escrever sobre isso, Elizabeth, mas eu estava certa, absolutamente certa. Não tenho mais dúvidas sobre isso. Não teria dado certo, nem num milhão de anos. Esta viagem me mostrou isso com mais clareza do que nunca. Não há arrependimento, mas apenas alívio, pois, agora, terei tempo de ser eu mesma.

Agora, depois de ter confessado isso, vou mudar de assunto. Ainda que eu seja tremendamente incompetente quando se trata de ser eu mesma, é divertido e vou-me arranjando. Mas re­conheço ..."

Virei a página, estendendo distraidamente a mão esquerda para fora a fim de bater a cinza do cigarro. Havia uma marca branca na base do dedo anular, onde eu usara a aliança de Philip. Em dez dias de sol do Egeu, estava começando a desaparecer... Eram seis anos que desapareciam sem mágoa, deixando apenas um montão de recordações alegres que desapareciam também...

"Mas reconheço que a Grande Emancipação tem o seu reverso. As coisas parecem de vez em quando desinteressantes para quem viveu arrastada tantos anos na esteira de Philip, esteira essa magnífica, vamos dizer a verdade... Sinto-me um pouco seca e alheada. Seria de esperar que alguma coisa, alguma migalha de aventura, coubesse a uma mulher jovem (ainda se é jovem aos vinte e cinco anos?) abandonada por conta própria nas vastidões da Hélade...Mas não! Vou de templo em templo, com o guia na mão, e passo as noites sempre estranha­mente compridas escrevendo notas para o admirável livro que vou escrever um dia e convencendo-me de que estou gozando a paz e o sossego que desejava... Creio que é esse o reverso da medalha e que com o tempo acabarei por me habituar. E se alguma coisa realmente interessante acontecesse, não sei exa­tamente o papel que eu poderia fazer... Creio de certo modo que tenho algum talento para viver, ainda que parecesse mui­to fraca diante do excesso de vida e de disposição que "ele" tinha. Mas a vida nunca parece oferecer-se às fracas mãos das mulheres, não é mesmo? Vou acabar no quarto do hotel como de costume, fazendo notas para o livro que nunca che­garei a escrever. Nada jamais me acontece".

Deixei o cigarro e tornei a pegar na caneta. Tinha de aca­bar aquela carta e num estado de espírito diferente, pois do contrário Elizabeth poderia pensar que eu estava de certo modo lamentando a minha emancipação daquele compromisso des­feito.

Escrevi animadamente: "De um modo geral, vou indo muito bem. A língua não constituiu afinal de contas um obstáculo para mim. Quase todo o mundo aqui parece falar um pouco de francês ou de inglês e eu já consegui adquirir seis palavras gregas, ainda que isso tenha apresentado algumas dificuldades.

Não vou muito bem é na parte do dinheiro. Não posso dizer que esteja exatamente dura, mas creio que terei de desistir da ida a Creta. Mas, se tiver de desistir também de Delfos, não me conformarei com isso. É inadmissível que isso aconteça. Tenho de ir até lá, seja como for, mas receio que tenha de reduzir minha visita a uma apressada excursão de um dia, que é só o que minhas posses permitem. Há uma excursão turística de ônibus que partirá na quinta-feira e creio que terei de contentar-me com isso. Se, quando nada, eu pudesse conseguir um carro! Acho que se eu invocasse a proteção de todos os deuses...

Alguém tossiu ao meu lado e uma sombra passou pelo papel em que eu escrevia. Levantei os olhos.

Não era o garçom tentando fazer-me abandonar a mesa do canto. Era um homem moreno e baixo, com roupas sujas e remendadas, uma camisa azul enxovalhada e um sorriso hesitante por trás do inevitável bigode. As calças estavam amarradas com barbante, mas ele não confiava muito nisso, pois ainda as segurava com a mão.

Devo tê-lo olhado com uma fria surpresa, pois a confusão do homem aumentou, mas em vez de afastar-se, falou num francês de quarta classe.

—            É a respeito do carro para Delfos, — disse ele.

Repeti meio atordoada, olhando para a carta sob minhas mãos.

O carro para Delfos?

Queria um carro para ir a Delfos, n'est-ce pas?

O sol havia chegado até àquele canto do café. Olhei o ho­mem à sua luz e disse:

—            Bem, de fato quero. Mas não estou compreendendo...

—            Trouxe o carro — disse ele, estendendo a mão que não estava segurando as calças — para a porta.

Olhei para a porta e vi realmente um carro, grande preto e um tanto maltratado, encostado ao meio-fio.

Escute aqui, meu caro senhor, não estou compreendendo...

Voilá! — disse ele, tirando do bolso o que era evidentemente uma chave de carro e depositando-a em cima da mesa.

Pronto! Compreendo que é uma questão de vida e morte, compreendo perfeitamente. Foi por isso que vim o mais depres­sa que pude...

—            Não tenho a menor idéia de que é que o senhor está falando disse eu, com uma ponta de irritação.

O sorriso desapareceu, deixando em seu lugar um olhar de perplexa ansiedade.

Sei que estou atrasado e peço desculpas. Mademoiselle pode-me perdoar? Tenho certeza de que chegará a tempo. O carro não parece, mas é muito bom. Se Mademoiselle...

Escute aqui, não quero seu carro. Sinto muito que lhe tenha dado uma impressão errada, mas não estou em condições de alugar seu carro. Acontece...

Mas Mademoiselle disse que queria um carro!

Sei disso. Mas peço que me desculpe porque...

E Mademoiselle disse que era uma questão de vida e morte.

Não disse nada disso. Não quero seu carro, Monsieur. Sinto muito, mas não quero.

Mas, Mademoiselle...

Não tenho dinheiro para isso.

O rosto se iluminou imediatamente com um sorriso de dentes alvos e que não deixava de ser simpático.

—            Dinheiro? exclamou ele com desprezo. Quem é que está falando em dinheiro? Além disso, o depósito já está pago.

—            Depósito? Pago?

Sim, Mademoiselle já o pagou.

Dei um suspiro que era quase todo de alívio. Não se tra­tava, afinal de contas, de alguma feitiçaria ou da intervenção pronta demais dos deuses gregos. Era simplesmente um caso de confusão de identidade.

Disse então com firmeza:

—            Sinto muito. Está havendo um engano. Aquele carro não é meu e eu não o aluguei absolutamente.

O homem hesitou por um momento, mas voltou ao ataque com redobrado vigor.

Sei perfeitamente que não foi esse o carro que Mademoiselle viu, mas aquele outro não era bom, sabe? Não prestava. Tinha... como se diz.. um buraco por onde a água saía...

Um vazamento...

Sim, um vazamento! Foi por isso que me atrasei, mas nós escolhemos esse carro, que é muito bom, desde que Mademoiselle diz que é da maior importância que Monsieur Simon tenha o carro imediatamente em Delfos. Poderá partir e ime­diatamente estará em Delfos... dentro de três, quatro horas...

—            ele olhava para mim, como se estivesse fazendo uma avaliação das minhas qualidades ao volante de um carro, — cinco horas talvez. E então é possível que tudo esteja resolvido com Monsieur Simon e esse caso de vida.. .

           ... e morte, — disse eu. — Está muito bem. Mas acontece ainda que eu não sei de que é que está falando. Há algum engano nisso e eu sinto muito. Não fui eu quem pediu o carro. Compreendo que a conhecida desse Monsieur... Simon disse que estaria neste café à espera do carro, não foi mesmo assim? Bem, não vejo mais ninguém aqui no momento que corresponda a quem o amigo procura e, portanto. . .

Ele falou prontamente, com tanta rapidez que compreendi depois que devia estar acompanhando o meu francês muito pelo alto e tinha aproveitado uma frase que fazia sentido, o sentido que ele queria ouvir.

—            Isso mesmo! — exclamou ele. — Este café. Uma moça sentada sozinha. Dez e meia. Mas me atrasei. A senhora é a conhecida de Monsieur Simon, não é?

O homem parecia, com aquele olhar confuso, um pobre macaco cheio de confusão. Isso me deu tanta pena que minha irritação desapareceu e eu sorri para ele abanando a cabeça, ao mesmo tempo que mobilizava uma das seis palavras de grego tão penosamente aprendidas.

—            Ne, — disse eu com tanto vigor quanto me foi possível.

—            Ne, ne, ne. — Ri e abri minha cigarreira. — Sinto muito que tenha havido um engano. Aceita um cigarro?

O cigarro pareceu uma cura maravilhosa para todas as preocupações do homem. A cara se desfranziu como por um golpe de mágica e o seu sorriso resplandeceu de novo.

—            Obrigado, Mademoiselle. Vai ficar muito contente com o carro. Boa viagem, Mademoiselle.

Estava procurando os fósforos em minha bolsa e só depois que levantei a cabeça foi que compreendi o que ele havia dito. E já então era tarde. O homem tinha saído. Ainda o vi sair pela porta do café e desaparecer no meio da multidão que en­chia a rua. Três dos meus cigarros haviam desaparecido tam­bém. Mas a chave do carro estava na mesa diante de mim e o carro preto ainda estava lá fora, encostado ao meio-fio, sob o sol violento.

Foi só então, olhando para a chave, para o carro e para a luz do sol na toalha da mesa onde até pouco antes o homem fizera sombra, que compreendi que o meu inocente ato de ostentação lingüística ia custar-me bem caro. Lembrei-me, com um aperto no estômago, de que ne em grego significa "sim".

É claro que corri atrás dele. Mas a multidão se encapelava em torno de mim com a indiferença de um oceano e não havia sinal em qualquer direção do mal-apanhado mensageiro dos deuses. O garçom que me servira saiu ansiosamente comigo até à calçada, pronto sem dúvida a me agarrar se eu saísse sem pagar o café que tomara. Não lhe dei atenção e olhei ansiosamente para todos os lados. Mas quando ele deu sinais de retirar-se para ir buscar reforços que me levassem de volta à mesa e à conta, julguei que estava na hora de dar por finda a minha busca. Fui até ao meu canto, apanhei a chave, lancei um sorriso breve e preocupado ao garçom ainda desconfiado, que não falava inglês, como eu já havia apurado, e dirigi-me até ao balcão para conversar com o proprietário, que falava, como descobri, tranqüilizada.

Passei por entre os homens agrupados em torno do balcão com um "Parákalo" nervosamente repetido e que, na minha opinião, devia ser a palavra certa para dizer "Desculpe". De qualquer maneira, os homens me deram passagem e eu me apoiei ansiosamente no balcão.

—            Parákalo, kyrie...

O proprietário lançou-me um olhar aflito do alto de uma pilha de batatas fritas e me identificou sem erro:

—            Senhorita?

—            Estou em dificuldades, kyrie. Aconteceu-me há pouco uma coisa muito estranha. Um homem trouxe aquele carro que está vendo ali na porta sim, atrás das mesas azuis para entregá-lo a alguém aqui no café. Por engano, julgou que eu fosse a pessoa que alugou o carro. Pensa que eu vou levá-lo para Delfos para alguma pessoa. Mas eu não sei de nada disso, kyrie. É tudo um engano e agora não sei o que vou fazer!

Ele jogou uma colher de molho sobre alguns tomates, empurrou o prato para um homem sentado num tamborete ao centro do balcão e passou a mão pela testa.

Quer então que eu dê uma explicação ao homem? Onde é que ele está?

Esse é que é o problema, kyrie. O homem já foi-se em­bora. Deixou a chave comigo — aqui está ela — e sumiu. Ten­tei ver se o alcançava, mas não consegui. Será que o senhor sabe quem devia estar aqui para receber o carro?

Não, não sei de nada. — Apanhou uma grande concha, mexeu alguma coisa embaixo do balcão e olhou de novo para o carro lá fora. — De nada. Para quem era o carro?

Já lhe disse, Monsieur, que não sei quem...

Disse que o carro era para ser levado para algum lu­gar ... para Delfos, não foi? O homem não disse para quem era?

—            Ah, sim... Disse que era para um tal Sr. Simon. Serviu um pouco do que estava mexendo — parecia uma espécie de bouillabaisse — num prato, entregou-o a um gar­çom que esperava e disse:

—            Em Delfos? Nunca ouvi falar dessa pessoa. É possível que alguém aqui tenha visto o homem ou conheça o carro. Vou perguntar.

Disse então alguma coisa em grego para os homens que estavam ao balcão e tornou-se no mesmo instante o centro de uma discussão animada, apaixonada mesmo, que durou cerca de cinco minutos, envolveu todos os fregueses masculinos do café e acabou produzindo, com toda a boa vontade deste mundo, a informação de que ninguém havia notado o homem da chave, ninguém conhecia o carro, ninguém conhecia qualquer Monsieur Simon em Delfos (embora um dos homens presentes fosse natural de Crissa, que dista apenas alguns quilômetros de Delfos), ninguém pensava sequer provável que alguém de Delfos fosse alugar um carro em Atenas e (finalmente) que nin­guém eu seu juízo perfeito iria levar um carro até lá.

—            Entretanto, — disse o homem de Crissa, que estava falando com a boca cheia, — é possível que esse Simon seja um turista inglês que está em Delfos. Neste caso, isso explicaria tudo.

Não disse por quê, limitando-se a sorrir com grande bon­dade e encanto por trás de um prato de camarões graúdos, mas eu percebi o que ele queria dizer.

Disse-lhe então:

—            Desculpe kyrie, mas acho que se devia tomar alguma providência sobre o caso. O homem que me trouxe a chave disse... — hesitei um pouco — que era uma questão de vida e morte.

O grego arqueou as sobrancelhas; em seguida, encolheu os ombros. Tive a impressão de que questões de vida e morte eram assuntos quotidianos em Atenas. Disse-me então com ou­tro sorriso encantador antes de voltar-se para os seus camarões:

—            É uma verdadeira aventura, Mademoiselle.

Olhei-o pensativamente durante alguns instantes, murmu­rei alguma coisa e voltei-me para o proprietário, que estava tentando tirar azeitonas de um de seus vasos. Era evidente que o movimento e o calor estavam começando a perturbar até as boas maneiras atenienses. Em vista disso, sorri apenas para ele e disse:

Obrigada por sua gentileza, kyrie. Desculpe tê-lo incomodado. Parece-me que, se o caso for realmente urgente, a pessoa que quer o carro virá certamente buscá-lo de acordo com o combinado.

Quer deixar a chave comigo? Ficarei com ela e suas preocupações terminarão. Posso assegurar-lhe que será um pra­zer.

Não, por enquanto ainda não lhe quero dar esse tra­balho. Confesso que estou também um tanto curiosa. Vou es­perar ainda um pouco e, se a moça chegar, eu lhe entregarei pessoalmente a chave.

E, para alívio do pobre homem, esgueirei-me do grupo formado em frente ao balcão e voltei à minha mesa. Sentei-me e pedi outro café, acendendo depois outro cigarro, tratei de fingir que estava acabando minha carta, quando, na realidade, estava com um olho atento à porta e o outro, ao carro preto, que naquele momento mesmo já devia estar rolando pela es­trada de Delfos naquela questão de vida e morte...

Esperei uma hora. O garçom tinha voltado a olhar de banda para mim e, em vista disso, deixei de lado minha carta e fiz um pedido, depois do que comecei a divertir-me com um prato de feijões e peixes cor-de-rosa, ao mesmo tempo que observava, com uma expectativa que se transformou em inquietação, as idas e vindas constantes na porta do café.

Os meus motivos para esperar não tinham sido tão sim­ples quanto eu sugerira ao homem do café. Tinha-me ocorrido que, desde que eu fora envolvida no caso contra a minha vontade, eu poderia tranqüilamente tirar vantagem do mesmo. Quando a "conhecida de Simon" chegasse para pegar o carro, eu poderia perfeitamente sugerir — ou até pedir diretamente — que ela me levasse no carro até Delfos. E devo confessar que a possibilidade de conseguir uma carona até Delfos não era a única que me havia ocorrido...

Assim, os minutos foram passando sem ninguém chegar e, quanto mais eu esperava, menos possível me parecia sair simplesmente do café e deixar que tudo se resolvesse por si mesmo sem a minha presença, enquanto, por sua vez, aquela outra possibilidade começava a apresentar-se insidiosamente. Procura­va combatê-la, mas ela me aparecia como um desafio, uma dúvida, uma afronta dos deuses...

Ao meio-dia, quando ninguém apareceu à procura do carro, empurrei o prato para o lado e tratei de examinar essa outra possibilidade com a maior frieza possível.

Consistia simplesmente em levar eu mesma o carro para Delfos.

Era evidente que, fosse qual fosse o motivo, a tal moça não ia aparecer. Alguma coisa devia tê-la impedido, pois do contrário ela poderia simplesmente ter telefonado para a gara­gem, cancelando o pedido. Mas o carro — o carro tão urgente­mente necessário — ainda estava ali, com uma hora e meia de atraso na sua partida. Eu, por outro lado, queria muito ir a Delfos e podia tratar disso imediatamente. Eu tinha chegado diretamente do Pireu no vapor de Creta e tinha comigo tudo o que era preciso para uma breve estada em Delfos. Poderia ir naquele dia, entregar o carro, passar dois dias ali com o dinhei­ro economizado na passagem do ônibus e voltar com o ônibus de turismo na quinta-feira. A coisa era simples, óbvia e re­presentava uma intervenção direta da Providência.

Apanhei a chave com os dedos como se estes não me pertencessem e estendi a mão lentamente para a minha única peça de bagagem — a bolsa de tecelagem brilhantemente colo­rida de Mykonos — pendurada nas costas de uma cadeira.

Hesitei com a mão na bolsa. Depois, retirei a mão e co­mecei a girar a chave entre os dedos, vendo-a vagamente brilhar quando a luz do sol tocava nela.

Não era coisa que se fizesse. Era uma dessas coisas que simplesmente não podiam ser feitas. Eu devia estar louca para pensar sequer numa coisa dessas. O que tinha acontecido apenas fora que a conhecida de Simon tinha-se esquecido de can­celar o pedido do carro e de reaver o depósito feito. Eu nada tinha com o caso. Ninguém iria agradecer a minha intervenção num caso que, apesar do ridículo engano, não tinha absoluta­mente qualquer relação comigo. Aquela frase, uma "questão de vida e morte", um pretexto tão convincente para interferir, era apenas uma frase, uma simples frase sobre a qual eu cons­truíra o sentimento de urgência que, na minha opinião, me dava um pretexto para agir. De qualquer maneira, eu não tinha nada com isso. O procedimento lógico — e único — era deixar o carro onde estava, entregar a chave e ir-me embora.

A decisão me deu uma tal sensação material de alívio, que cheguei a ter um sobressalto. No mesmo impulso, levantei-me, peguei a chave do carro e passei pelo ombro a alça da bolsa grande. A carta inacabada para Elizabeth estava em cima da mesa. Peguei-a e dobrei-a, mas antes de guardá-la, uma frase me caiu diante dos olhos: "Nada jamais me acontece"...

O papel da carta estalou de repente entre os meus dedos crispados. Creio que os momentos de fulgurante intuição se apresentam nas ocasiões mais imprevistas e nem sempre são agradáveis. Aquele foi um deles.

Não durou muito. Não consenti nisso. Foi com uma espé­cie de resignada surpresa que me vi mais uma vez diante do balcão e entreguei um pedaço de papel ao proprietário.

— Meu nome e endereço, — disse eu, com a respiração um pouco entrecortada, — se, por acaso, ainda aparecer al­guém à procura do carro. Srta. Camila Haven, Hotel Olympias, Rua Marnis. .. Diga que terei cuidado com o carro. Agi na melhor das intenções.

Saí para a rua e, quando entrava no carro, tive a impres­são de que minhas últimas palavras tinham tido um jeito não muito comum de epitáfio.


 

É longo o caminho para Delfos.

Eurípides: Ion

 

Ainda que não fosse Hermes em pessoa quem me levara a chave, a mão de todos os deuses de Hélade devia estar sobre mim naquele dia, porque eu consegui sair de Atenas viva e, mais do que isso, intacta.

Houve alguns momentos difíceis. Primeiro, foi o engraxate, que estava tão interessado em limpar-me os sapatos que foi comigo até o carro, agarrou-se à porta e teria certamente ficado machucado quando dei partida, se eu me tivesse lembrado de engrenar o carro. Houve depois o momento em que fiz a curva, cautelosamente a vinte quilômetros por hora, mantendo a mi­nha mão do lado esquerdo — saindo da Praça Omonia para a Rua St. Constantine — e fui dar bem de cara com um táxi que eu pensava que estava na contramão até que a constância e o volume dos desaforos do motorista me fizeram voltar para a minha mão. Depois, houve o caso dos dois pedestres que desceram para o meio da estreita rua sem sequer olhar para o meu lado. Como era que eu podia saber que aquela era uma rua de mão única? Tive sorte com os meus freios dessa vez. Não tive tanta sorte assim com o burro das flores, mas feliz­mente só toquei nas flores e o homem foi encantador. Recusou a nota que eu prontamente lhe ofereci e até me deu as flores que eu fiz cair do cesto do burro.

Pesando bem as coisas, as pessoas tinham sido muito inclinadas a perdoar. A única pessoa realmente desagradável ti­nha sido o homem que cuspira no capo quando saí hesitante­mente de trás de um ônibus parado. Não havia necessidade dessa explosão de temperamento. Quase não toquei nele.

Quando consegui chegar à estrada principal que sai de Ate­nas ao longo da Via Sagrada, eu havia descoberto duas coisas. A primeira era que algumas semanas passadas em rolar pelas estradas rurais inglesas no velho Hillman de Elizabeth (Philip nunca me deixara compreensivelmente tocar no carro dele) não eram de fato uma preparação adequada para dirigir através de Atenas num carro desconhecido com a direção do lado esquer­do. A outra era que o velho carro preto dispunha de um motor inesperadamente possante. Se estivesse menos mal cuidado e com aspecto menos arcaico se tivesse sido, por exemplo, um dos alados monstros transatlânticos comumente usados em Atenas como táxis eu jamais teria tido a coragem de dirigi-lo, mas a sua fachada humilde me iludira. Podia ser quase o velho Hillman em que eu aprendera a guiar. Quase. Eu não estava nele nem três minutos quando descobri que o carro tinha uma aceleração como a arrancada de um jato e ao tempo em que tomei conhecimento de suas possibilidades como uma arma mortífera as quais eram ilimitadas era tarde demais. Eu já estava metida no meio do tráfego e parecia muito mais pru­dente continuar lá. Assim, agarrei-me desesperadamente ao vo­lante, mudando de mâo de vez em quando, sempre que me lembrava de que a alavanca de mudança ficava do lado direito e rezava a toda a hierarquia olímpica enquanto seguíamos o nosso caminho sobressaltado através dos subúrbios da cidade até che­garmos à grande estrada de pista dupla que segue ao longo da costa, rumo a Elêusis e a Corinto.

Depois das ruas repletas e difíceis, a estrada parecia aber­ta e relativamente vazia. Era aquela a Via Sagrada. Por aquela larga estrada à beira do mar, os peregrinos antigos tinham mar­chado com cânticos e archotes para celebrar os mistérios de Elêusis. O lago que agora fica à direita era o lago secreto de Demetér. Do outro lado daquela baía à esquerda, a ilha de Salamina se estende como um dragão afogado e ali ali — Temístocles havia destroçado a esquadra persa. . .

Mas eu não olhava nem para a direita, nem para a esquerda quando dirigia. Eu já havia passado por ali e sobrevivera à primeira aguda decepção. Não havia necessidade de abrir o cora­ção aos fantasmas. Eles tinham desaparecido havia muito. A Via Sagrada se abre agora, reta e larga (a pavimentação borbulha um pouco sob o sol forte), entre fábricas de cimento e fundições de ferro. O lago sagrado está quase entupido de mato e escórias. Na baía de Salamina ancoram os vultos feios dos pe­troleiros, e a água cor de vinho reflete as torres de alumínio da refinaria. Do outro lado da baía, vomitavam fumo as chami­nés de Megara e, acima delas, três jatos Vampire circulavam ruidosamente sobre o fundo do inefável céu da Grécia. E essa aldeia suja, quase oculta na ocre fumaça sufocante das fábri­cas de cimento, é a própria Elêusis.

Eu conservava os olhos na estrada e minha atenção no carro, e ia tão depressa quanto a coragem me permitia. Em breve, a região industrial ficava para trás e a estrada, mais estreita e esbranquiçada de poeira sob o implacável céu de setembro, afastava-se da praia e se contorcia entre campos de terra vermelha plantados de oliveiras e onde pequenas casas que pareciam caixas se espalhavam, aparentemente ao acaso, entre as árvores. Crianças esfarrapadas, morenas e magras apareciam dentro da poeira para olhar a minha passagem. Uma mulher, vestida de preto e velada como uma muçulmana, curvava-se para tirar o pão do pequeno forno em feitio de colméia à som­bra de uma oliveira. Galinhas magras ciscavam e um cão cor­reu latindo atrás do carro. Burrinhos trotavam na poeira da beira da estrada, meio escondidos sob enormes cargas de lenha. Uma grande carreta se dirigia para a estrada por um caminho lateral. Estava carregada de uvas que pareciam de cera no seu verde embaciado. Os flancos da mula estavam lustrosos e nédios como uvas pretas. O ar cheirava a calor, esterco, pó e restos da colheita das uvas.

O sol era violento. Sempre que as árvores ficavam perto da estrada, a sombra era como uma bênção. Passava pouco do meio-dia e o calor era tremendo. O único refrigério era o ar fresco produzido pelo movimento do carro e as frondes foscas das grandes oliveiras que navegavam entre a estrada e a grande pira ardente do céu.

Havia pouco movimento na estrada com aquele calor e eu estava disposta a aproveitar-me plenamente dessa folga. Por isso, dirigia ao pino do sol, sentido-me confiante e até segura. Já me estava adaptando às particularidades do carro e ainda não queria pensar no que estava fazendo. Aceitara um desafio dos deuses e os resultados ficariam para quando eu chegasse a Delfos... se conseguisse chegar. Se conseguisse chegar. . .

Estava cada vez mais confiante enquanto seguia com o carro por uma paisagem deserta, através de uma região que se torna mais selvagem e mais bela à medida que a estrada deixa para trás os olivais e sobe para as montanhas do norte da Ática. A minha confiança resistiu até às terríveis curvas fecha­das nas estradas que descem dessas montanhas para os campos sem acidentes da planície da Beócia. Mas não resistiu ao ônibus.

Era o ônibus que faz a ligação regular com Atenas e eu o alcancei no meio da estrada em linha reta que corta a planície. Era pequeno, repulsivo e malcheiroso. Parecia estar atu­lhado até às portas de gente, engradados e vários animais, in­clusive galinhas e uma cabrinha. Estava avançando ruidosamen­te à frente de uma esteira de cinqüenta metros de poeira. Tomei cuidadosamente a esquerda e acelerei um pouco para passar.

O ônibus, que já ocupava o meio da estrada, virou prontamente para a esquerda e acelerou um pouco. Recuei, depois de respirar um bocado de poeira. O ônibus voltou ao centro da estrada e continuou a fazer os seus trôpegos cinqüenta quilô­metros por hora.

Esperei meio minuto e tornei a tentar. Conservei-me bem atrás de suas rodas traseiras, na esperança de que o chofer me visse.

E viu mesmo. Acelerando alucinadamente, tomou-me mais uma vez a frente, botou uma boa distância à frente de meu carro e voltou complacentemente ao centro da estrada. Voltei então à sufocante nuvem de poeira. Procurava não dar a menor atenção ao caso e me esforçava por convencer-me de que, quando o homem se tivesse divertido à vontade, me deixaria passar. Apesar disso, já estava sentindo as mãos crisparem-se na direção e uma veia ou lá o que fosse latejar-me no pescoço. Se fosse Philip quem estivesse dirigindo... Mas logo que me ocorreu esse pensamento, refleti que, se fosse Philip quem es­tivesse dirigindo, nada daquilo estaria acontecendo. As mulheres que dirigem são uma raça livre nas estradas da Grécia.

Passamos por uma tabuleta que dizia em letras gregas e latinas: TEBAS — 5 km; DELFOS — 77 km. Se eu tivesse de ficar atrás daquele ônibus até chegar a Delfos...

Tentei de novo. Dessa vez, quando me aproximei para a ultrapassagem, toquei vigorosamente a buzina. Para minha sur­presa e gratidão, o motorista guinou prontamente para a direi­ta e diminuiu a marcha. Avancei para a abertura. Havia ape­nas espaço suficiente para a passagem entre o ônibus e a borda da estrada alta e de solo friável. Cheia de concentração nervosa, fui em frente e acelerei.

Não estava conseguindo passar. O ônibus se sacudia e roncava, andando mais depressa, mantendo velocidade igual à minha. Meu carro era mais veloz, mas o espaço estava estreitando-se e eu não tinha bastante confiança no meu golpe de vista para saber se dava para passar. O motorista do ônibus ficou mais perto. Não sei se ele queria mesmo jogar-me para fora da estrada, mas quando a balouçante carroçaria verde se aproximou mais, perdi toda a coragem, como sabia que ia acon­tecer. Pisei nos freios. O ônibus se afastou, trovejante, e eu fiquei mais uma vez mergulhada na poeira.

A nossa frente, viam-se as primeiras casas esparsas de Tebas, a cidade lendária que, como eu sabia, se tornara mais irrecuperável do que Elêusis. No mesmo lugar onde Antígona outrora levou Édipo cego para o exílio, os velhos de Tebas sen­tam-se ao sol nos passeios de cimento, ao lado das bombas de gasolina. O tric-trac que jogam durante horas esquecidas é talvez a coisa mais velha de Tebas. Há perdida por ali uma fonte que as ninfas amavam. É só.

Mas não me sobrava tempo para deplorar o passamento das lendas. Não estava pensando então em Édipo ou Antígona, nem mesmo em Philip ou Simon ou no meu deplorável prelúdio de aventura. Continuava a dirigir na estrada de Tebas com os olhos cheios de ódio fixos na frente. Nada havia em minha vida naquele momento senão o desejo de passar aquele imundo ônibus.

Por fim, a oportunidade se apresentou. Um grupo de mulheres que esperavam ao lado da estrada fez sinal para o mo­torista e ele diminuiu a marcha. Fechei logo atrás, com os olhos na faixa de estrada à esquerda, as mãos suarentas na direção e a tal veia começando a pulsar de novo.

O homem parou bem no meio da estrada. Não havia espa­ço para passar. Parei atrás dele e esperei até ele afastar-se novamente de mim. Liguei então a embreagem e afoguei o motor. A minha mão.-tremia na ignição. O motor não queria ligar. Nas bordas de meu campo visual, divisei um rosto nos vidros de trás do ônibus que se afastava, um rosto moreno e jovem todo aberto em riso. Quando dei partida no carro e segui, vi o jovem voltar-se como para chamar a atenção de alguém que estava sentado no banco de trás ao seu lado. Outro rosto se voltou para olhar para mim e rir. E mais outro.

Então, bem perto atrás de mim tão perto que quase me fez correr de medo para a vala ouvi uma buzina. Enquanto eu virava automaticamente para a direita, um jipe, que vinha em grande velocidade na contramão, aproximou-se trovejantemente, ultrapassou-me com as rodas levantando poeira e seguiu em frente, na mesma marcha firme, rumo à retaguar­da do ônibus, tocando a buzina como se fosse uma sirena. Tive uma visão de relance da moça que dirigia, jovem e morena, com os cílios caídos sobre os olhos e a boca franzida e zangada. Estava recostada no banco e dirigia com uma perícia displicen­te, quase arrogante. E, fosse mulher ou não, o ônibus lhe deu passagem, caindo rapidamente para a direita e ali ficando res­peitosamente enquanto ela passava. Não decidi consciente­mente segui-la. A bem dizer, não sei se pisei no acele­rador deliberadamente ou se estava procurando o freio. O certo é que senti um empurrão atrás e o grande carro preto partiu como uma flecha para a frente, tirou um fino do ônibus e seguiu na esteira do jipe com duas rodas no leito da estrada e as outras levantando uma coluna de poeira suficiente para guiar até Tebas todos os filhos de Israel. Qual era a posição das ro­das do ônibus eu não sabia, nem me interessava saber. Nem olhei pelo espelho.

Passei por Tebas e entrei lindamente na contramão pela estrada de carruagens de pista dupla que segue para Levadia e para Delfos.  

A mão de Hermes, deus dos viajantes, ainda me guiava. Havia uma feira de cavalos em Levadia e isso, com os seus acessórios de festival, atravancava as ruas. Mas, depois disso, não encontrei mais nada, a não ser lentas e pequenas cara­vanas de gente do campo que ia para a feira em lombo de burro e de jumento, além de um grupo de ciganos com os seus burros e Cavalos cobertos de mantas vistosas.

Logo depois que passei Levadia, o aspecto da região co­meçou a mudar. As severas banalidades da Ática e a pesada prosperidade em tecnicolor das planícies ficaram para trás, en­quanto as montanhas assomaram. A estrada se torcia entre grandes costelas de escarpas pardacentas que amontoavam a paisagem em patamares de serras. No fundo dos vales, rios mortos se estendiam nos leitos como peles de serpentes em muda. Os lados dos vales eram secos e recobertos dos restolhos amarelados da relva queimada, de pedras soltas e de solo esfarelado.

Quanto maiores eram as montanhas circundantes, mais nua era a terra, tocada de grandes pinceladas de cor que iam do ocre ao terra de sombra e ao fulvo, tudo rematado e superado pela luminosidade ilimitada e admirável. Afinal, destacou-se entre todos um cinzento maciço montanhoso. Não era roxo, nem azul à distância como as montanhas de países mais brandos, mas espectralmente branco, esplêndido como um leão pra­teado. Era o Parnaso, onde viviam os fantasmas das musas mortas.

Só parei uma vez para descansar, um pouco adiante de Levadia. A estrada, que contornava a encosta, estava em sombra e o ar era fresco àquela altura. Sentei-me durante cerca de quinze minutos no parapeito ao lado da estrada. Lá embaixo, num vale bifurcado, havia um lugar onde três caminhos se en­contravam. Era o fantasma de uma antiga encruzilhada onde outrora um moço, que vinha de Delfos para Tebas, fez descer um velho de sua carreta e matou-o...

Mas não havia fantasmas em ação naquele dia. Nem som, nem vento, nem mesmo a sombra de um falcão que pairasse no alto. Só as montanhas nuas e fulvas e a luz incontrolável e implacável.

Voltei ao carro. Quando liguei o motor, refleti que o deus dos viajantes, que tão bons serviços me prestara até àquele momento, iria ter ainda de trabalhar por mais uns trinta quilômetros, depois do que poderia abandonar-me ao meu destino.

Mas, se eu não sair de baixo um bocado depressa, vai haver um desastre na retaguarda.

Aristófanes: As Rãs

Arachova é um local de exposição. A aldeia não tem muita consciência disso, mas o seu cenário é extremamente pitoresco e o estilo grego de construções se encarrega do resto.

A aldeia se encarapita numa encosta escarpada e as casas são construídas em arquibancadas, umas por cima das outras, de tal modo que o pavimento de uma está sempre no mesmo nível de telhado de outra. Toda a aldeia dá exatamente a impressão de que vai rolar a cada momento para o fundo do vale que se estende lá embaixo. As paredes são brancas e os telha­dos são vermelhos puxados para o cor-de-rosa. De todas as paredes, dependuram-se vasos de flores, parreiras cheias de uvas e grandes chumaços de lã tingidos de âmbar, jacinto e sangue. Na curta rua principal, os lugares que vendem tapetes expõem-nos ao sol, fazendo-os contrastar pelo seu colorido com as paredes brancas. A rua tem algumas esquinas e mede uns dois metros e meio de largura. Numa dessa esquinas, dei uma batida num caminhão...

Quer dizer, não foi propriamente uma batida. Consegui fazer o capô de meu carro parar a uns vinte centímetros de distância do dele e ali fiquei paralisada, incapaz até de pensar. Os dois veículos se quedaram assim, faróis contra faróis, como dois gatos que se encarassem, um deles imerso em misterioso silêncio. Eu tinha, naturalmente, afogado o motor...

Tornou-se dentro em pouco evidente que era eu, e não o chofer do caminhão, quem tinha de recuar. Toda a aldeia, a parte masculina dela, apareceu para dizer-me isso por meio de gestos. Foram todos encantadores, deliciosos e terrivelmente prestimosos. Fizeram tudo menos dar marcha à ré no carro para mim. Era mais que claro que não compreendiam como uma pessoa que estava de posse de um carro daqueles não podia dar marcha à ré com a maior facilidade.

Acabei dando marcha à ré, mas fui bater na porta de uma loja.

Toda a aldeia ajudou a levantar os cavaletes caídos e a pendurar de novo os tapetes, assegurando-me que aquilo não tinha a menor importância.

Endireitei o carro e dei marcha à ré de novo, dessa vez em cima de um jumento. Toda a aldeia me assegurou que o jumento não estava machucado e que iria parar a carreira em que saíra daí a um quilômetro mais ou menos, voltando então para casa.

Endireitei o carro e saí em marcha à ré, conseguindo fazer uma linha razoavelmente reta de uns dez metros, enquanto a aldeia toda prendia a respiração. Veio então uma curva na estrada. Parei. Eu não estava de modo algum preparada para a possibilidade de cair com as rodas sobre o parapeito de meio metro e ir acabar no jardim de alguém cinco metros abaixo. Fiquei ali parada, respirando ofegantemente, sorrindo com fero­cidade e em retribuição à gente da aldeia, ao mesmo tempo que desejava nunca ter nascido e que Simon tivesse também deixado de nascer.

Eu tinha parado diretamente ao sol e a reverberação das paredes brancas me ofuscava. Os homens se aproximaram mais, fazendo comentários gentis e, felizmente decerto, incompreen­síveis. O motorista do caminhão, que ria como os outros, de­bruçava-se da boléia com o jeito de um homem disposto a pas­sar o resto da tarde apreciando o espetáculo.

Desesperada, inclinei-me sobre a porta do carro e me dirigi ao mais próximo dos que me ajudavam, um homem robusto e rosado, com olhinhos faiscantes que evidentemente se estava divertindo muito com todo o caso. Falava uma mistura fluente, ainda que um tanto esquisita, de francês e inglês.

— Meu caro senhor, — disse-lhe eu, — não creio que possa resolver o caso. Compreenda que este carro não é meu. Pertence a um tal Monsieur Simon, de Delfos, que precisa urgentemente dele para os seus negócios. Eu... eu não estou ainda muito habituada ao carro e, desde que ele não é meu, não estou com muita vontade de me arriscar... Quem sabe se algum dos se­nhores não podia fazer a manobra para mim? Pode ser até que o motorista do caminhão dê uma mão, se o senhor for falar com ele. O caso é que este carro não é meu...

Senti uma ponta de orgulho em insistir nesse ponto, mas de repente vi que ele não me estava escutando. O sorriso lhe havia desaparecido do rosto alegre e suarento.

De quem foi mesmo que disse que era esse carro? — perguntou ele.

De um tal Monsieur Simon, de Delfos. Mandou-o alugar em Atenas com muita urgência. — Acrescentei, cheia de espe­rança: — O senhor o conhece?

—            Não, — disse ele, sacudindo a cabeça.

Falou, porém, depressa demais e desviando os olhos. O homem que estava ao lado dele me olhou vivamente e então fez uma pergunta num grego rápido, na qual julguei perceber a palavra "Simon". Meu amigo fez um sinal de assentimento, lançou um olhar rápido para mim e disse alguma coisa entre dentes. O homem ao lado dele arregalou os olhos, murmurou alguma coisa e eu julguei ver uma espécie nova de curiosidade furtiva e talvez ávida, substituindo o ingênuo divertimento de poucos momentos antes.

Mas essa foi apenas a mais passageira das impressões. An­tes que eu resolvesse se devia prosseguir em minhas indagações, percebi que nenhum dos homens estava mais olhando para mim. Houve ainda alguns murmúrios rápidos e quase furtivos. Os últimos sorrisos alegres tinham desaparecido e os homens que se congregavam com mais empenho em torno do carro come­çaram a afastar-se, sem ostentação, mas com rapidez, dispersando-se como carneiros ante a aproximação do cão do pastor. Ainda mais, estavam todos olhando na mesma direção.

Ouvi, perto de mim, o estalo de "contas nervosas" e o ho­mem robusto disse suavemente:

—            Ele vai ajudá-la.

—            Quem? — perguntei antes de perceber que ele não es­tava mais ao meu lado.

Virei a cabeça e olhei para onde todos estavam olhando.

Um homem vinha descendo lentamente uma ladeira entre as casas à minha direita.

Tinha cerca de trinta anos, cabelos pretos e rosto queimado de sol como todos os homens do grupo que haviam cercado o carro, mas as roupas, tanto quanto o ar e o porte, faziam-no parecer inconfundivelmente inglês.

Não era muito alto, devendo ter pouco mais de um metro e oitenta, mas os ombros eram largos e a atitude correta, com uma espécie de movimento fácil e bem articulado que traduzia treinamento e perfeita forma física. Pareceu-me simpático, com o rosto magro e queimado de sol, as sobrancelhas pretas, o na­riz reto e a boca firme. Mas, naquele momento, a sua expressão era tal que Jane Austen a chamaria de repulsiva, com o signi­ficado de que, fossem quais fossem os pensamentos que o ocupassem naquela abstração levemente carrancuda, era eviden­te que não queria que fossem perturbados.

Parecia não ter quase consciência de onde estava ou do que fazia. Uma criança subiu a ladeira e passou por ele, evidentemente sem ser notada. Duas galinhas passaram correndo qua­se aos seus pés sem perturbá-lo. Um galho de planta estendido de um jardim derramou algumas pétalas sobre a sua cabeça, sem que ele fizesse o menor gesto para tirá-las.

Quando chegou ao fim da ladeira, parou. Pareceu fugir de repente às suas preocupações, fossem elas quais fossem, e ficou ali com as mãos nos bolsos, observando o que se passava na rua. Os olhos estavam diretamente voltados para o grupo de homens. Vi a testa desenrugar-se e o rosto moreno tornar-se uma remota e fria máscara, que refletia estranhamente a mes­ma cautela que eu percebera nos homens da aldeia. Olhou então para mim e foi com algum choque que lhe enfrentei o olhar. Os olhos não eram pretos como eu esperava. Eram cinzentos, de um cinza muito claro, e bem vivos.

Aproximou-se da porta do carro. O grupo abriu-lhe cami­nho, afastando-se de nós. Não tomou mais conhecimento deles do que tomara das galinhas ou das pétalas de gerânio.

Olhou para mim e disse:

Parece que está com algum problema. Posso fazer al­guma coisa?

Ficaria muito agradecida se pudesse ajudar-me. Estou tentando dar marcha à ré no carro.

—            Estou vendo. Havia talvez uma nota de humorismo na voz agradável, mas o rosto não exprimia nada.

—            Eu estava tentando colocar o carro ali, disse eu.

"Ali" era um espaço além da curva da estrada, que, a cerca de cinqüenta metros atrás, me parecia tão remoto quanto a lua.

E não dá jeito?

Não.

Algum defeito no carro?

O único defeito é que eu não sei dirigir.

—            Oh! exclamou ele com um sorriso e eu me apressei em dizer:

—            O carro não é meu.

Nesse ponto, o chofer do caminhão se inclinou da boléia e gritou alguma coisa em grego, que fez o inglês rir. O riso lhe transfigurou o rosto. A máscara um tanto cuidadosa de indiferença se desfez e ele me pareceu imediatamente mais moço, inteiramente acessível e até bonito. Gritou em resposta alguma coisa que me pareceu excelente grego. De qualquer maneira, o motorista do caminhão compreendeu, porque recuou para dentro de sua boléia e, dentro em pouco, o motor de seu cami­nhão começou a roncar.

O recém-chegado encostou a mão em minha porta.

—            Se me permitir, talvez eu possa fazer o carro andar.

—            Não seria surpresa para mim, disse eu, saindo de trás do volante. Bem me disseram que este país é dos ho­mens. É verdade. Pode entrar.

Ele entrou no carro. Surpreendi-me acalentando a esperan­ça de que ele errasse as mudanças, se esquecesse de pisar o arranque, deixasse o freio de mão ligado, em suma, fizesse qualquer das muitas tolices que eu tinha feito durante o dia inteiro, mas nada disso aconteceu. Cheia de raiva, vi o carro mover-se calmamente para trás. Chegou ao espaço calçado além da esquina, parou a cerca de cinco centímetros da parede de uma casa e esperou ali polidamente que o caminhão passasse.

Este se aproximou com um barulho aterrador e uma nuvem de fumaça negra. Quando passou por nós, o motorista, inclinando-se da boléia, gritou alguma coisa para meu companhei­ro e me fez um cumprimento sorridente que, sem que uma só palavra me fosse inteligível, me deu a entender que, embora incompetente, eu era mulher e, portanto, admirável, justamen­te como devia ser.

O caminhão se afastou barulhentamente. Vi o motorista olhar para trás e levantar a mão para os homens que estavam agora reunidos à porta do café. Um ou dois responderam, mas a maioria estava ainda olhando, não o carro, mas meu companheiro.

Olhei para ele. Fiquei sabendo que eu tinha razão. Ele também teve consciência disso. Os olhos, apertados por causa da claridade do sol, não mostravam mais a vivacidade que eu havia surpreendido neles. Lançou ao grupo um olhar lento e sem qualquer expressão. Pensei que ele estava hesitando. Estendeu a mão para a porta como se fosse sair. Depois, voltou com a mão para o volante e me olhou, como se quisesse perguntar alguma coisa. Respondi ao olhar dele antes que falasse.

—            Pouco se incomoda com meu amor-próprio, não é mesmo? É claro que eu gostaria que guiasse esta carroça através da aldeia para mim. Não há mais um pingo de orgulho dentro de mim. O que eu quero é levar este carro inteirinho a Delfos. Tratarei de juntar depois os destroços de minha personalidade. Ficar-lhe-ei muito grata.

Ele sorriu.

Deve estar muito cansada e este calor não está de brincadeira. De onde foi que veio?

De Atenas.

Ele arqueou as sobrancelhas, mas não fez qualquer comentário. O carro estava marchando quase sem barulho ou con­fusão, através da estreita rua. O pequeno grupo de homens ha­via desaparecido, entrando de cabeça baixa no café quando o carro se aproximou. Meu companheiro nem olhou para eles.

Mas eu não queria deixar o assunto morrer e disse em desafio.

É verdade, sim. Vim de Atenas até aqui sem um arra­nhão.

Parabéns... Pronto. Não há mais casas e já está na estrada de Delfos. Não foi Delfos que disse?

Exatamente. Agora, escute: por acaso, não está queren­do ir para lá também?

Acontece que sim.

E por acaso. . . — Hesitei e então me decidi. — Gos­taria de uma carona? Por assim dizer?

Seria uma prazer. E, se com isso me está convidando a dirigir, fique sabendo que aceito.

Magnífico! — exclamei com um suspiro de alívio. O carro venceu a primeira curva e ganhou força para subir uma rampa. — Gostei de vir guiando, mas, com isso, perdi metade da paisagem.

Não tem importância. Trouxe consigo um pouco da paisagem.

—            Como assim?

—            As penas na capota, — disse ele friamente. — Muito original e de grande efeito.

Penas? Tem certeza?

Em grande quantidade.

—            Deve ter sido a galinha logo depois que saí de Levadia, — disse eu, com um sentimento de culpa acentuado. — Ou, melhor, um galo. As penas são brancas?

—            Exatamente.

—            Bem, o galo estava querendo mesmo que acontecesse o que aconteceu. Cheguei a tocar a buzina e, quando ouvir a bu­zina deste carro, vai ficar convencido de que o galo estava mesmo com intenções sinistras. Mas, nem assim, o matei. Vi perfeitamente quando ele saiu pelo outro lado e começou a correr. Foram só as penas.

Ele riu. Parecia também de alguma maneira indefinível ter-se tranqüilizado. Era como se tivesse deixado todas as suas preocupações para trás em Arachova e, com elas, a impressão de que tinha dado de uma impenetrável reserva. Podia ter sido qualquer estranho simpático que eu tivesse encontrado nas férias.

—            Nenhuma galinha dará a menor atenção ao tal galo enquanto ele não criar penas novas. E não é preciso pedir-me desculpas que o galo não é meu.

Não, mas tenho a impressão de que. . .

O quê? Qual é sua impressão?

Nada. . . Deus do Céu, que vista!

Estávamos seguindo por uma alta estrada branca, que contornava as encostas do Parnaso. Abaixo de nós, à esquerda, a escarpa descia até ao vale do Pleísto, o rio que desce dos flan­cos do Parnaso e das cristas arredondadas do Monte Círfis pa­ra a planície de Crissa e o mar. Às margens do Pleísto na­quela estação uma branca serpente seca de leitos de lajes que cintilavam ao sol ao longo do seu curso, que enchia o fundo do vale com a sua escachoante e sussurrante água verde-prateada, fluíam os olivais. Pareciam também um rio, uma torrente verde-e-prata de galhos empenachados, suave como a espuma do mar, sobre que os ventos onipresentes perpassavam, não em sombras rápidas como fazem no milho, mas em sopros es­branquiçados, pequenos suspiros que levantavam e agitavam as copas das oliveiras como se fossem cristas espumejantes de ondas. Longas ondulações pálidas se sucediam no fundo do vale. Onde, ao fim do vale, o Parnaso levantava um súbito baluarte de rocha na corrente, o mar de árvores cinzentas pa­recia quebrar-se em torno dele, espraiando-se para encher a pla­nície que ficava além, ainda ondulando, ainda movendo-se com o incessante jogo de luz e sombra da água corrente, até que a oeste o movimento amainava contra os flancos das montanhas distantes e, para o sul, contra o súbito brilho do mar. Disse eu ao fim de algum tempo:

Vai ficar em Delfos?

Vou. Estou ali há alguns dias. Vai demorar-se também?

Ri e respondi:

 

Até acabar o dinheiro e creio que não vai demorar muito. Só espero é que haja um quarto para mim em algum canto. Vim inesperadamente e não tive tempo de reservar acomodações. Disseram-me que o Apollon é um bom hotel.

É muito bom. Delfos está com muita gente, mas creio que vai arranjar um quarto. Tenho certeza, aliás. Talvez pos­samos persuadir o Apollon a botar alguém para fora a fim de dar-lhe o quarto. Escute, não acha melhor nos apresentarmos? Meu nome é Lester.

E o meu é Camila Haven. Hesitei. Poderia estar certa na minha conjetura sobre ele? Pensei de novo nos fatos ao meu dispor: a reação dos homens de Arachova ao nome de Simon; o procedimento dos mesmos quando aquele homem aparecera; a voz ao meu lado que murmurara: "Ele vai ajudá-la..."tudo isso parecia concorrer para a solução de meu problema. Disse então lentamente, olhando-o: Tenho também um ape­lido hoje. Pode dizer que eu sou...a pequena de Simon.

As sobrancelhas negras se levantaram e ele me lançou um dos seus olhares rápidos e eletrizantes, depois do que voltou a olhar a estrada. Disse então com voz calma:

—            Muito interessante. Mas por quê? Porque a ajudei em Arachova?

Senti o sangue subir-me ao rosto. Não havia pensado nisso. Disse prontamente:

Não. Quero dizer apenas que estou fazendo às vezes dela — a outra moça — desde que saí de Atenas. Com o carro.

O carro? — perguntou ele sem compreender.

Sim, — murmurei, olhando para ele. Aquilo ia ser ainda mais tolo do que eu havia imaginado. — Quer dizer que... Oh, estou fazendo uma confusão tremenda! Mas este carro é seu de Atenas.

Não pude ver dessa vez no olhar dele senão perplexidade e talvez uma ponta de dúvida sobre o meu equilíbrio mental.

Creio que não estou compreendendo. Meu carro? De Atenas? E que "outra moça" é essa? Perdão, mas de que é exatamente que está falando?

Desculpe. Eu não devia ter falado assim de supetão. É melhor começar do princípio. Fiz uma coisa muito tola e espero que não fique muito zangado comigo, Sr. Lester. Explicarei exatamente num momento como tudo aconteceu, mas o importante é que este é o carro que o senhor está esperando. A moça que encarregou de alugá-lo não apareceu para recebê-lo e o homem da garagem me entregou a chave por engano. Foi por isso que eu lhe trouxe o carro até aqui... Espero que tudo esteja em ordem... Foi muita sorte minha encontrá-lo aqui...

Um momento. Desculpe interrompê-la, mas acontece que ainda não faço a menor idéia de que é que está falando. Diz que alguém alugou este carro em Atenas. Depois, entregaram-lhe a chave e você o trouxe até aqui, foi isso?

Foi. Quer dizer que não tem nada com o caso?

Claro que não. Nada sei sobre um carro de Atenas ou de qualquer outro lugar.

Mas quando estávamos em Arachova...

Hesitei, sentindo-me mais do que nunca leviana e confusa.

Então? O carro diminuiu a marcha, passou por uma ponte sobre uma estreita garganta e acelerou serra acima. O tom dele era displicente, mas de algum modo eu tinha a impressão de que estava profundamente interessado. Que foi que a fez pensar que eu sabia de alguma coisa a respeito do caso?

Estarei errada? Pensei... Escute aqui, seu nome é Si­mon, não é?

Sim, é meu nome. Foram aqueles homens que lhe disse­ram em Arachova?

Não. Quer dizer, sim...Mas isso não tem importância agora. Não disse que está em Delfos?

Disse e estou mesmo.

Então deve ser você! Não pode deixar de ser!

Pois fique sabendo que não sou O olhar rápido que ele me lançou deve ter-lhe mostrado a aflição em meu rosto porque ele sorriu e disse delicadamente: Mas creio que ainda não vejo bem onde é que está o mistério. Com toda a certeza, o homem da garagem lhe deu também o nome e o endereço da pessoa que tinha alugado o carro. Perdeu a nota que tomou ou se esqueceu de tomá-la?

Talvez não acredite, mas nem cheguei a saber.

Compreendo...Guardou apenas na memória que o nome era Simon?

Foi. Não lhe disse que tinha feito uma coisa bem tola? Na hora, tudo me pareceu bem e, ainda em Arachova, pensei que tudo se estava desenrolando maravilhosamente, como numa história, mas agora...Olhei para as profundezas azuis do vale e externei meus pensamentos com ênfase inocente e sem qualquer reserva. Teria sido tão maravilhoso se fosse você mesmo!

Mal proferi essas palavras, percebi a interpretação que lhes poderia ser dada. Pela segunda vez dentro de alguns minutos, senti o calor subir-me ao rosto. Abri a boca para dizer alguma coisa, mas, antes que eu pudesse falar, ele disse amavelmente.

Também acho. Mas não se preocupe com isso. O caso não é assim tão ruim para você, como está pensando. Talvez, se me permir, eu possa ajudá-la. Quer ter a bondade de me dizer tudo o que aconteceu?

Contei. Limitei-me a uma exposição direta dos fatos, desde o momento em que o homem da garagem se havia aproximado de mim com a chave até o momento fatal da decisão que me levara numa coincidência feliz, como eu julgara, aos pés de Simon Lester, em Arachova. Só os fatos; nada lhe disse do miserável emaranhamento de motivos, dos receios, das dúvidas, da decisão audaciosa, mas, quando acabei, tive a impressão de que havia dito mais do que pretendia. Por mais estranho que isso fosse, não me importava. Ele tinha dito que me ajudaria. Bem, o caso era com ele. O sentimento não me era estranho, isto é, não me era tão familiar assim...

Recostei-me no banco do carro, descontraída pela primei­ra vez desde as onze horas daquele dia, enquanto, abaixo de nós, o vento corria com pés brancos pelas oliveiras copadas e ao lado, na alta estrada quente, o sol levantava um cheiro de poeira da terra vermelha e a rocha brilhava e reverberava o calor como uma fornalha.

Ele não tinha feito qualquer comentário depois de ouvir o que eu lhe contara. Naquele momento, disse apenas:

Compreendo. O caso todo se resume no seguinte: você trouxe um carro desconhecido para um homem desconhecido que precisa dele para alguma coisa não especificada e você não sabe onde pode encontrá-lo.

Você não expôs os fatos de maneira muito bondosa, mas a verdade é que eu lhe disse que a história era mesmo tola.

Talvez. Mas em seu lugar eu teria feito exatamente o mesmo.

—            Faria mesmo? Ele riu.

—            Sem dúvida. Que pessoa em seu juízo perfeito poderia resistir a um desafio como esse?

—            Honestamente?

—            Honestamente.

Respirei fundo.

—            Não pode nem calcular o bem que me fez com essas palavras! Mas ao menos você conseguiria manobrar corretamente a aventura, se o caso fosse com você. Parece-me que não basta ser audacioso; é preciso ser competente também. Você nunca se teria visto encalhado em Arachova como eu, só por­que não soube dar marcha à ré no carro...

- Ah, sim, — murmurou ele. — Arachova... — E acres­centou em voz mais baixa: — Simon, de Delfos... Apressei-me em dizer.

— Parece estranho, não é? Poderá haver duas pessoas com o mesmo nome? Delfos é bem pequena, não é?

— Claro que sim.

—            Por isso então é que eu acho que deve ser você.

Ele nada disse a isso. Assumira de novo aquele olhar vazio e aquele ar fechado de muro intransponível. Disse-lhe então:

Não poderia ter havido algum engano? Vamos supor que seja você mesmo. Vamos supor que alguém tenha recebi­do um recado errado e tenha feito confusão. Conhece alguém em Atenas que pudesse... ?

Não! Absolutamente impossível. Não tive absolutamente qualquer comunicação com Atenas, de modo que é impossível admitir que qualquer mensagem se haja extraviado. E você diz que foi uma moça que alugou o carro. Não faço a menor idéia de quem possa ser. Não, creio que isso não tem qualquer relação comigo. — Fez uma pausa e então acrescentou com uma voz diferente, como se receasse ter sido muito abrupto: — Mas, por favor, não se preocupe mais com isso. Dentro em bre­ve, tudo estará esclarecido e você poderá descansar e gozar a sua estada em Delfos. Vai achar que vale bem a pena.

Tudo terá de ser muito bom.

Mas é. — Apontou à frente do carro. — Daqui não se pode ver o lugar, mas as ruínas são deste lado do penhasco, na curva da montanha abaixo daqueles paredões de rocha. Olhe, ali está o templo de Apolo, abaixo das rochas que chamam de Cintilântes. Está vendo?

Sim, eu estava vendo. À nossa frente, a montanha projeta­va aquele grande contraforte na direção do vale, o rio de oliveiras rodava em torno como a água do mar se divide diante da proa de um navio para espraiar-se depois num grande lago que enchia a planície. No alto, bem no ângulo em que o penhas­co se juntava à montanha, vi o templo de Apolo, seis colunas de pedra amarelo-rosada, que resplandeciam contra o fundo ca­da vez mais escuro das árvores. Acima dele, erguiam-se as ro­chas calcinadas pelo sol. Embaixo, um montão ainda irreconhe­cível do que devia ser monumento, tesouro e santuário. De onde estávamos, as colunas quase não pareciam reais ou feitas de pedra que tivesse sentido mão ou cinzel, mas insubstanciais como as colunas lendárias feitas por música. Eram uma obra olímpica, que ficara flutuando entre o céu e a terra, ainda quen­te da mão de um deus. No alto, o indescritível céu da Hélade; embaixo, a onda prateada das oliveiras ondulando incessante­mente até o mar. Nem homem, nem casa, nem animal. Como tinha sido no princípio.

Percebi então que Simon Lester havia parado o carro. Devíamos estar parados havia alguns minutos à beira da estrada, à sombra de um pinheiro. Nem ele falava, nem eu.

Mas eu notei que não eram as colunas do templo de Apolo que atraíam a atenção dele. O olhar de meu companheiro de viagem estava fixo em alguma coisa mais próxima, a meia encosta do Parnaso, acima da estrada. Segui-lhe o olhar, mas nada pude avistar. Só havia a rocha nua que tremia com a efer­vescência líquida do calor.

Ao fim de algum tempo, perguntei:

—            A aldeia fica do outro lado do penhasco?

Isso mesmo. A estrada passa por entre aquelas árvores abaixo das ruínas e então se curva em torno da encosta para chegar a Delfos. Depois da aldeia, desce um pouco precipitadamente para a planície. Crissa — de onde é seu amigo do café — fica no meio do caminho. No fundo, a estrada se bifur­ca na direção de Anfissa e Itéia.

Itéia? É um porto de pesca, não é? Era lá que os pere­grinos desembarcavam antigamente para subirem ao santuário.

Exatamente. Pode ver daqui as casas à beira do mar. — Mudou de assunto de repente, mas, ainda assim, de maneira tão calma que era claro que ele estava durante todo o tempo revolvendo na cabeça os seus pensamentos e que estes não se referiam à vista ou à estrada para Itéia. — Ainda estou curioso de saber como foi que você soube de meu nome. Foram aqueles homens de Arachova? Será.. . que disseram mais alguma coisa?

Não. Eu estava tentando explicar por que não me po­dia arriscar a dar marcha à ré no carro ali.. . A verdade é que se trata de uma manobra que eu nunca fiz com nenhum carro e as condições especiais do local me apavoraram. Durante a explicação, disse que o carro não era meu e que eu tinha de entregá-lo em Delfos a alguém que se chamava Simon. Tive a

impressão de que eles se surpreenderam com essa afirmação. Então, um deles disse alguma coisa aos outros e todos se viraram e ficaram olhando para você. Foi o jeito pelo qual olharam que me convenceu. Não sei se notou...

—            Notei, sim.

—            Ora, foi só isso. Quando você chegou, todos presumi­ram que era você a pessoa que devia tomar conta do carro. Quando me disseram que você era de Delfos, cheguei à conclu­são de que você podia ser Simon, o meu "Simon". E eles. . . pareceram achar também que você era o próprio.

Houve uma pausa infinitesimal antes que a mão dele se dirigisse para a ignição.

Está muito bem, — disse ele. — Quanto mais depres­sa chegar a Delfos e encontrar o homem a quem procura, o autêntico, melhor, não acha?

Acho, sim, — respondi, rindo. — Depois de tudo isso, é bem possível que o encontremos à espera na beira da estrada, dando pulos de impaciência, isto é, se o homem da garagem estava certo e se isso é realmente um caso...

Parei nesse ponto. Tinha repetido tanto as palavras e afi­nal as havia esquecido até àquele momento.

Sim? Que é que tem o caso? Olhei para ele e disse lentamente:

O homem me disse que era um caso de vida e morte...

Continuamos a marcha, mais depressa dessa vez. Abaixo de nós, o mar das oliveiras fluía e ondulava como fumaça. Ao alto, o sol implacável batia de chapa na rocha com um calor que estrondava como um clangor metálico.

Foi só o que ele lhe disse? — perguntou ele.

Foi, mas disse e repetiu.

Um caso de vida e morte?

—            Só isso. Mas é claro que estávamos falando em francês. A frase foi:   "il y va de la vie".

—            E teve a impressão de que ele estava falando a sério?

—            Sim, creio que sim. Não sei se no momento mesmo o caso me pareceu tão urgente, mas creio que foi a frase que me levou a tomar uma decisão tão tola em relação ao carro.

Resolveu trazer o carro e assumir todos os riscos ine­rentes só porque tinha um sentimento subconsciente da urgên­cia do caso?

Não foi só isso...Houve outras razões. Mas, até certo ponto, foi isso mesmo.

O carro subiu uma longa ladeira, fez uma curva fechada e começou a descer. Recostei-me no couro quente, juntei as mãos no colo e disse sem olhar para ele:

Se o homem da garagem estava certo, é até bom que você não seja "Simon", não é mesmo?

É o que parece, disse ele, sem qualquer inflexão na voz. Estamos chegando. De que é que vamos tratar pri­meiro? De Simon ou do hotel?

Das duas coisas. O pessoal do hotel deve conhecê-lo e espero que lá entendam inglês. Minhas seis palavras de grego não me poderão levar muito longe.

—- Ao contrário, disse Simon gravemente, talvez a levem muito mais longe do que espera.

 

E chegas a Crissa sob o Parnaso vestido de neve, no sopé voltado para oeste e as rochas se estendem sobre o lugar e um vale cavo, pedregoso, coberto de bosques se estende embaixo.

 

Hino Homérico a Apolo

 

Fiquei aliviada de saber que o hotel tinha um quarto para mim.

—            Mas, infelizmente, só por esta noite, — disse o pro­prietário que, afinal de contas, falava um excelente inglês. — Sinto muito, mas quanto ao dia de amanhã, não posso ter certeza. Tenho aqui... como é que posso dizer? — uma reserva provisória. Talvez eu possa hospedá-la amanhã, talvez não. Se, infelizmente, não for possível, há o Kastalia, nesta mesma rua, ou o Pavilhão dos Turistas, do outro lado de Delfos. A vista lá é magnífica, mas, — disse sorrindo — cobram muito caro.

—            A vista não pode ser melhor do que esta — disse eu. E era verdade. A aldeia constava apenas de duas ou três

filas de casas de telhado plano, pintadas de ocre, de cor-de-rosa e de um ofuscante branco, estendidas pela encosta escarpada da montanha. No começo da aldeia, a estrada se dividia num Y formado pelas duas ruas. Era nesse ponto que ficava o Apollon Hotel, voltado sobre o vale para as distâncias onde brilhavam as águas do Golfo de Corinto.

Fora do hotel, na beira da estrada que era usada como um terraço, dois grandes plátanos formavam uma profunda ilha de sombra para algumas mesas e cadeiras de madeira. Simon Lester havia parado o carro um pouco adiante das árvores e estava esperando lá. Depois que completei as formalidades de registro no hotel, fui falar com ele.

Tudo certo. Vão arranjar-me um quarto por esta noite e, no momento, é só o que me interessa. Quero agradecer-lhe com muita sinceridade, Sr. Lester! Não sei onde estaria, se não tivesse tido a sua ajuda! Tenho a impressão de que poderia estar no fundo de algum vale, com as águias de Zeus a reco­lher-me os ossos!

Foi um prazer. Mas, agora, que é que pretende fazeií? Vai tomar chá e descansar ou este carro a está preocupando demais?

Um pouco, não nego. Mas creio que o melhor é ir em frente e ver o que é que eu posso fazer.

Escute aqui, — disse ele, — acho que o melhor que tem a fazer é tratar de descansar. Não prefere deixar o caso do carro comigo, ao menos por enquanto? Por que não vai para seu quarto e pede que lhe levem chá — por falar nisso, o chá daqui é excelente — enquanto eu faço algumas investigações para você? Seria muito cruel se preferisse me dizer agora que não me metesse com o que não é de minha conta.

— Nunca seria essa minha intenção. Sabe muito bem que eu nunca diria isso. Apenas que...

Apenas o caso é de sua conta e você quer vê-lo resol­vido? É claro. Mas devo confessar que já agora estou fervendo de curiosidade e, afinal de contas, o caso me interessa também, pois meu nome, certa ou erradamente, está envolvido em tudo isso. Ficaria de fato muito grato se me deixasse ajudá-la. Além disso, não acha melhor ir descansar e tomar um bom chá en­quanto eu faço investigações para você em meu grego fluente, mas sem dúvida um tanto peculiar?

Bem, não sei se devo... Afinal de contas, não é justo deixá-lo sobrecarregado de tantos problemas, — murmurei um tanto confusa e certa apenas de que tinha um forte desejo de que ele fosse sobrecarregado de todos aqueles problemas e muitos mais. Acrescentei sem muita convicção: — Não posso per­mitir ...

Por quê?

Eu... eu... — murmurei e afinal confessei: — Para dizer averdade, eu adoraria que se encarregasse de tudo!

Está resolvido então, — disse ele e olhou para o relógio. — São quatro e vinte agora. Daqui a uma hora, vamos dizer às cinco e meia, virei dizer-lhe o que foi que apurei. Certo?

Certo. Mas se você o encontrar e ele estiver muito zangado...

Sim?

Não quero que se apresente como responsável pelo que aconteceu. Não seria justo e eu não costumo fugir às minhas responsabilidades.

Teria uma surpresa — disse ele enigmaticamente — se soubesse até que ponto já me sinto responsável. Está bem. Até mais logo.

Dando-me adeus, desceu os degraus rumo à estrada.

Meu quarto se abria para o vale e tinha uma grande jane­la com sacada. As cortinas estavam descidas por causa do sol mas,ainda assim, o quarto estava cheio de luz quase incandescente. Quando a porta se fechou depois da saída da empregada que me levara até em cima, fui até à janela e levantei as cortinas. O calor me assaltou como uma lufada de fornalha. O sol estava descambando para o poente, do outro lado do vale, edefronte de minha janela o vale e a planície estavam sob o peso de uma calor dormente. A maré das oliveiras tinha quase cessado e a ilusão de frescura criada pelas folhagens ondulan­testinha desaparecido. Ao longe, um retalho de mar ao fim daplanície batia nos olhos como o reflexo ofuscante de uma lente.

Fechei os olhos a essa claridade e desci as cortinas. Depois, tirei ovestido e lavei-me longamente. Sentei-me na cama escovando os cabelos até que ouvi a empregada que chegava com o chá.Tomei o chá — Simon Lester tinha toda arazão quanto à suaqualidade — recostada nos travesseiros e com os pés em cimada cama. Creio que não pensei em mais nada naquele mo­mento— nem mesmo no carro ou nos dois Simons — senão nosossego do pequeno quarto branco. . Por fim, tirei a bandeja dos joelhos e coloquei-a na me­sinhade cabeceira e tornei a me deitar, com a intenção de des­cansar. Antes que eu tomasse sequer conhecimento de sua aproximação, o sono me envolveu...

Despertei com uma sensação de frescura e ouvindo um barulho incongruente de chuva. Mas a luz ainda se coava através das cortinas e, quando fui até à janela e abri-as um pouco, vi que o sol ainda estava firme, embora mais baixo no horizonte, mas com toda a sua energia. Metade da janela estava em som­bra graças aos galhos dos plátanos que se interpunham ao sol no ocaso. O barulho que eu julgara de chuva era o farfalhar das folhas ao vento que aparecera para refrescar a tarde.

Olhei para o terraço abaixo da sacada. Ele estava ali, sen­tado sob um dos plátanos e fumando. A cadeira estava encos­tada à balaustrada que fechava o terraço e sobre a qual ele pour sava o braço. Parecia perfeitamente tranqüilo. O carro continua­va no mesmo lugar onde ele o havia estacionado. Se, como parecia, não havia encontrado o outro "Simon" para fazer a en­trega do mesmo, o fato é que isso não o devia estar preocupan­do muito.

Refleti, enquanto o olhava pensativamente, que havia necessidade de muita coisa para preocupar Simon Lester. Aquele jeito calmo, aquele ar de estar sempre em boas relações com a vida...e com tudo mais que o cercava é particularmente di­fícil de descrever. Dizer que ele sabia o que queria e marchava para tomá-lo nas mãos seria dar uma impressão errada. Era antes que todas as decisões necessárias já estavam tomadas por ele e eram executadas ou abandonadas com uma confiança qua­se amedrontadora.

Não sei bem se vi tudo isso a respeito dele naquele primeiro dia. Pode ser apenas que eu reconhecesse nele qualidades que me faltavam de maneira tão assinalada. Mas me lembro da im­pressão imediata e vívida que tive de uma auto-suficiência mais firme e mais completa do que qualquer coisa que eu tivesse percebido durante os anos de fanfarronadas de grand seigneur de Philip e ao mesmo tempo de qualidade inteiramente diferen­te. Não via ainda onde estava a diferença. Só sei que me sentia obscuramente grata a Simon por não ter feito com que eu me sentisse muito leviana e, menos obscuramente, por ter cal­mamente tratado de ajudar-me no caso do "outro Simon"...

Pensei, ao cerrar de novo as cortinas, que ele talvez nem se tivesse dado ao trabalho de procurar o "outro"...

Era mais ou menos o que eu imaginava.

Parecia que nisto eu não lhe tinha feito inteira justiça.

Quando desci, encontrei-o com as mãos nos bolsos a olhar para o carro, ao lado de um grego em cuja vistosa camisa azul estava pregada uma insígnia de guia.

Simon levantou a vista para mim e sorriu.

Descansou bem?

Perfeitamente, muito obrigada. E o chá estava muito bom.

Fico satisfeito de saber disso. Será que está com ener­gia bastante para receber o golpe? — disse ele, voltando a ca­beça para o carro.

De certo modo, eu já sabia. Não o encontrou então?

Nem sinal. Estive em outros hotéis, mas não há ne­nhum hóspede com esse nome. Fui então ao Museu para falar com George. Ele me disse que também não sabe de outra pes­soa em Delfos com o nome de Simon.

Só o senhor, JCyrie Lester, — disse o grego.

Só eu, — murmurou Simon.

Que é que vamos fazer então? — perguntei.

Escute, JCyrie Lester, — disse o grego, olhando-o de maneira um tanto curiosa, — não é possível que não haja ou­tro Simon? Talvez não haja engano e alguém tenha usado o seu nome.

Acha que tomaram meu nome em vão? — perguntou Simon, rindo, mas eu sabia que o pensamento já lhe havia ocor­rido. — Não parece provável. Em primeiro lugar, quem iria fa­zer isso? Depois, se fizeram e o caso era urgente, por que não apareceram logo para receber o carro?

Entretanto, a verdade deve ser essa.

Talvez seja. Mas vou investigar esse caso muito a fundo e não apenas para fazer a vontade à Srta. Haven, que está muito preocupada. Escute, George, você tem certeza mesmo? Não há outro Simon aqui, por mais improvável que isso seja? Não há algum avô de perna de pau, um garoto de sete anos ou qualquer dos homens que trabalham nas escavações?

Quanto a essa última parte não sei, mas lhe dou razão. Se houvesse alguém com esse nome, já teria vindo buscar o carro. Em Delfos, não há ninguém. Ninguém mesmo.

—            E nos lugares vizinhos? Você é daqui, não é? Deve conhecer muita gente. Em Crissa, por exemplo... Podia ser em Crissa, que fica a apenas alguns quilômetros de distância. Que é que acha?

George sacudiu a cabeça.

—            Não, tenho certeza. Eu me lembraria. E em Arachova... Simon correu a mão pela carroçaria do auto e, em se­guida, olhou a ponta do dedo.

—            Então.

—            Não, tampouco me lembro de ninguém em Arachova... Simon tirou um lenço do bolso e limpou o dedo.

—            De qualquer maneira, isso eu posso apurar. Vou voltar, para lá esta noite.

O grego olhou-o de uma maneira em que julguei ver curiosidade. Mas disse apenas:

—            Bem, sinto muito, mas é só isso o que tenho para lhe dizer, exceto que... Mas não, isso é outra coisa e não é o que lhe interessa...

—            Mas faça o favor de falar. Pensou em alguém? George disse então:

Há um Simônides em Itéia. Não creio que seja o ho­mem a quem procura, mas é o único que eu conheço. Quem sabe, feyrie, se não seria bom perguntar a outra pessoa? Eu não conheço todo o mundo, mas meu primo, Elias Sarantopoulou, trabalha também na Polícia Turística. Deve estar na repartição agora. Ou talvez esteja no café. .. Se quiser, eu o levarei até lá. Fica defronte do correio.

Eu sei — disse Simon. — Agradeço muito, mas duvi­do de que seu primo saiba mais do que você. Probleminha irritante esse, não acha? Provavelmente, resolver-se-á por si mesmo e muito em breve, mas até lá temos de fazer alguma coisa. Vamos tentar o seu Simônides em Itéia. Quem é Simô­nides e que é que ele faz?

Tem uma pequena padaria perto do cinema, na rua principal, defronte do mar. Chama-se Giannakis Simônides. — Olhou para o relógio. — O ônibus sai daqui a dez minutos. A padaria fica perto do ponto de parada do ônibus.

—            Mas nós temos um carro — disse Simon, rindo.

O sorriso que lhe dei em resposta não foi muito espontâ­neo. A presença daquele carro já me estava irritando os ner­vos.

Simon disse alguma coisa em grego a George e, em se­guida, abriu a porta do carro para mim. —. Acha que é direito? — perguntei.

Por que não? Vamos fazer uma tentativa de entrega do carro perfeitamente legítima. Vamos, quanto mais depressa chegarmos a Itéia, melhor. Estará escuro dentro de uma hora. Ainda está muito cansada?

Não, não estou mais, mas vai dirigir, não vai, Sr. Lester?

Claro que sim. Você não faz a menor idéia do que seja a estrada de Itéia. E faça o favor de me chamar Simon. É mais eufônico do que "Sr. Lester" e, além disso ... — o sor­riso dele quando embarcou no carro e se sentou ao meu lado era malicioso, — o fato lhe dará uma ilusão de conforto.

Não respondi a isso a não ser com um olhar, mas quando o carro já estava em marcha, disse de repente e quase com surpresa para mim mesma:

Estou começando a me sentir apavorada.

Empregou uma palavra bem forte.

Talvez seja, mas não partindo de mim. Sou a pessoa mais covarde do mundo. Cada vez lamento mais não ter tido o bom senso de não me meter em nada disso. Foi uma coin cidência infeliz que eu estivesse na Praça Omonia e...

E com uma vontade louca de vir a Delfos, não?

Exatamente. Compreende o que eu fiz, não compre­ende?

Claro que sim.

O carro tinha atravessado com cuidado a estreita rua alta de Delfos, subiu a eminência defronte do presbitério e então desceu a ladeira para chegar à estrada baixa, já fora da aldeia.

Supõe por um momento que esse Simônides é o ho­mem a quem procuramos? — perguntei de repente.

Não me parece muito provável. Mas não custa nada tentar.

Só para eu sentir que se está fazendo algum progres­so? — Não houve resposta a isso e eu disse: — Sabe que se­ria levar muito longe a coincidência esperar que houvesse dois Simons em Delfos?

De fato, não é um nome muito comum.

Esperei que ele dissesse mais alguma coisa, mas isso não aconteceu. Tínhamos deixado havia muito a aldeia, seguindo uma descida gradativa entre diques de terra vermelha e pedras onde a estrada fora pouco antes alargada. As valas e os mon­tões de terra pareciam feridas na terra requeimada pelo sol. Os raios intensos do sol no ocaso inundavam com a sua forte luz ambarina os espinheiros secos que cresciam por toda parte e se erguiam delicados e firmes, como uma complexa filigrana de fio de cobre. Acima da estrada, o novo hotel parecia tão novo e cru quanto as valas pelas quais íamos passando. As janelas curvas brilhavam ao sol enquanto passávamos e entrá­vamos na primeira curva da descida para a planície dos olivais.

—            Está apenas passando férias aqui em Delfos? — per­guntei.

Eu tinha pretendido fazer a pergunta inteiramente desprendida de qualquer relação com os fatos, como se fosse um pretexto de conversa ou a observação mais natural do mundo que fosse possível fazer a qualquer pessoa que se encontrasse num lugar como aquele. Mas logo compreendi que tudo se articulava e que a minha pergunta estava estreitamente rela­cionada com o que eu dissera pouco antes. Comecei a dizer outra coisa, mas ele já me estava dando a resposta, sem qual­quer indicação de que via alguma coisa além de inocência em minha pergunta.

—            De certo modo. Tenho uma casa em Wintringham, sou professor e ensino letras clássicas.

Não sei o que era que eu esperava, mas não era decerto esse padrão de respeitabilidade e disse francamente:

É natural então que esteja interessado nos lugares clássicos. Como eu.

Não me diga que é minha colega? Outra serva do saber e dos alunos?

Infelizmente.

Letras clássicas também?


—            Sim, só que numa escola de moças isso significa apenas latim, para minha tristeza e vergonha.

— Não conhece o grego antigo?

— Pouco. Muito pouco. O bastante apenas para pegar uma ou outra palavra e saber o que está escrito. Reconheço o alfabeto e tenho uma noção do que dizem alguns cartazes. E tive uma estranha sensação na boca do estômago quando fui assistir a Antígona no teatro em Atenas e ouvi o coro in­vocar Zeus debaixo do mesmo céu sombrio que há três mil anos ouve o apelo. — Acrescentei então, um pouco envergo­nhada de ter aberto assim o coração: — Mas que estrada horrorosa!

O carro contornou de novo uma curva fechada e mergu­lhou pela grande encosta do Parnaso que se estende para a planície de Crissa. Abaixo de nós havia uma aldeia e, além dela, a torrente das oliveiras que fluía na largura de quase dois quilômetros até o mar.

Simon disse então:

Todos os ônibus têm pequenos ícones pregados dian­te do motorista com uma lampadazinha vermelha permanentemente acesa aos pés, acionada pela bateria. Nesta estrada, o ícone se balança loucamente nas curvas de um lado para outro e todos fazem o sinal da Cruz.

Inclusive o motorista? — perguntei, rindo.

Inclusive o motorista, que às vezes chega até a fechar os olhos. — Manobrou o carro numa curva ainda mais fecha­da, tirou um fino num caminhão que vinha em sentido contrá­rio e disse: — Pode abrir os olhos. Já estamos em Crissa.

Fiquei vermelha.

Desculpe. Devo ter perdido todo o ânimo.

É que você ainda está cansada. Teremos de beber al­guma coisa em Itéia antes de ir procurar o tal Simônides.

Por favor, não — murmurei num protesto pronto de­mais.

Ele me olhou um instante e perguntou:

Está de fato com medo, não está?

Estou... sim...

Mas eu acho que não há motivo para preocupações. O caso não deve ter importância. Do contrário, já estaria re­solvido há muito tempo.

Eu sei. Sei que é tolice de minha parte e que tudo isso é muito insignificante e trivial, mas já lhe disse que sou a pessoa mais covarde deste mundo. Essa é que é a verdade, Venho-me convencendo há muitos anos de que sou tão com­petente e auto-suficiente como quem mais o for se tiver a opor­tunidade, mas agora já sei... Não posso nem suportar a dis­cussão mais insignificante, de modo que não sei como me pas­sou pela cabeça a idéia de que eu podia levar avante essa coisa maluca.

Parei e pensei com um pequeno choque que nunca seria capaz de dizer a Philip o,que acabava de dizer nem que tivesse cem anos de oportunidade para isso.

—            Não se preocupe — disse Simon, calmamente. — Eu estou aqui, não estou? Seja o que for que acontecer, eu a desembaraçarei de tudo. Portanto, fique calma.

Se encontrarmos Simon — disse eu.

Se o encontrarmos — disse Simon.

Quando chegamos a Itéia, foi com prazer que o deixei tra­tar de tudo.

Itéia é o porto em que nos tempos antigos desembarca­vam os peregrinos que demandavam o santuário de Apolo em Delfos. O santuário foi durante muitos séculos um centro re­ligioso de todo o mundo antigo e hoje em dia para nós, habi­tuados aos transportes modernos, é espantoso contemplar as distâncias que os homens percorriam a pé, a cavalo ou em pe­quenos barcos para render culto ao deus da luz, da paz e da saúde ou para consultar o famoso oráculo entronizado abaixo do templo. O caminho mais fácil era por Itéia. A viagem por mar, apesar de todos os seus riscos, era menos exaustiva e perigosa do que a viagem através das montanhas e ali, no pequeno porto de Itéia, os peregrinos se aglomeravam, para ver da praia o ondulante vale do Pleísto e, além do espigão do Parnaso onde fica a moderna Delfos, os brilhantes penhascos das Cintilantes que guardam a fonte sagrada.

Hoje em dia, Itéia é uma sórdida e pequena aldeia de pescadores, com uma única rua de lojas e tavernas de frente para o mar e dele separado pela estrada e por talvez cinqüen­ta metros de empoeirado bulevar onde as árvores dão sombra eoshomens do lugar se reúnem para as habituais bebidas, geladas, pegajosos bolos de mel.

Simon parou o carro debaixo das árvores e me levou para uma mesa de ferro meio desconjuntada que parecia ser menos freqüentada pelas vespas do que as outras. Eu gostaria de tomar chá de novo, mas me senti um pouco envergonhada desse desejo tão britânico — e duvidando de que encontrasse alguma coisa mais ou menos próxima do que eu queria — acabei pedindo limonada. Estava deliciosa, fria e com o travo da fruta verdadeira. Com ela, vieram uns biscoitos compridos de trigo, exageradamente cobertos de mel e nozes picadas. Eram magníficos. As vespas gostavam também deles. Quando aca­bamos, pedi mais e fiquei esperando enquanto Simon ia pro­curar a padaria de Simônides.

Fiquei olhando-o, enquanto afugentava uma avantajada e persistente vespa.

De qualquer maneira, eu não julgava que Giannakis Simônides fosse o homem a quem procurávamos. "Monsieur Si­mon, em Delfos..." E só havia um Monsieur Simon em Delfos.

Havia também aquela estranha reserva nas maneiras de Simon, o seu procedimento em Arachova e o jeito pelo qual fugira às minhas perguntas sobre o que estava fazendo em Del­fos. Tudo aquilo tinha deixado de ser um enigma mais ou me­nos incômodo. Estava rapidamente transformando-se num mis­tério, em cujo centro se colocava Simon Lester. E a pequena de Simon...

Acabei os biscoitos e levantei-me. Simon havia pago ao garçom antes de sair. Eu o estava avistando diante de uma por­ta, aalguma distância, mais acima na rua. O lugar parecia um restaurante, porque se via do lado de fora o grande fogão de carvão vegetal, e acima dele um carneiro inteiro rodava len­tamente no espeto, que uma robusta mulher de avental azul acionava. Simon parecia estar perguntando-lhe alguma coisa. A mulher fez vigorosos sinais afirmativos com a cabeça e, por fim, com a mão livre, apontou mais para cima na rua.

Ele olhou para trás, viu-me de pé debaixo da árvore e er­gueu amão em saudação. Fez então um gesto vago para a ou­tra extremidade da rua e partiu nessa direção, caminhando depressa.

Interpretando o gesto dele como um sinal de que tinha alguma informação mas não esperava que eu o seguisse, fiquei onde estava e observei-o. Ele andou talvez cem metros, hesitou, olhou para uma tabuleta e entrou na escuridão de um cinema deserto. Quando ele desapareceu, virei-me na direção contrária e comecei a andar pelo bulevar. Estava muito contente de deixar as investigações com ele. Se Simon era real­mente o centro do mistério, ficasse com ele e que lhe fizesse muito bom proveito...

Enquanto isso, faria aquilo que me levara até Delfos. Des­de que as circunstâncias me haviam feito chegar a Itéia, ponto inicial das antigas peregrinações, eu tentaria ir ver o santuário tal como o tinham visto os velhos peregrinos quando desembarcavam do Golfo de Corinto.

Encaminhei-me rapidamente para a beira do porto. À di­reita, o mar empalidecia com o poente e, através do brilho de opala das águas, surgia um barco de pesca turquesa e branco, com a proa erguida numa arrojada curva para cima de sua imagem líquida. Sob uma vela daquele mesmo tom escarlate, os peregrinos tinham chegado ao porto quando o deus ainda estava em Delfos.

Deixei a praia e atravessei rapidamente a rua. Queria pas­sar aquela fila de casas feias e chegar aos velhos olivais, onde pudesse olhar pelo vale do Pleísto sem ter entre mim o o santuário mais que pedras imemoriais, árvores e céu.

Atrás da rua principal, havia algumas tristes vielas de ci­mento e as casas pareciam, como de costume, esparsas nos tre­chos de terreno entre as árvores. Passei pela última casa, con­tornei um prédio que parecia um depósito em ruínas e segui um pasneio rachado de cimento que parecia levar diretamente ao começo da floresta de oliveiras. O cimento estava cheio de fendas e nelas o mato crescia. Assustei um jumento que pastava e que mergulhou entre as árvores numa nuvem de poeira, para desaparecer entre as sombras. O passeio terminou e eu comecei a caminhar pela terra macia sob a sombra mais pro­funda das árvores. O vento havia aumentado com o cair da noite e, no alto, as oliveiras tinham reiniciado a sua líquida ondulação.

Encaminhei-me para um espaço à frente onde a luz mais forte prometia uma clareira. Tive sorte. Havia uma leve eleva­ção do terreno e ao norte dela as grandes oliveiras eram mais escassas. Do alto da pequena elevação, por sobre as cristas farfalhantes das árvores, pude ver o velho Caminho dos Peregrinos, que o meu século ainda mantinha intacto. Passei alguns minutos ali, olhando no alto para o santuário à luz que rapida­mente fugia.

As colunas do templo estavam invisíveis atrás da curva do penhasco de Crissa, mas havia a fenda escura da Castália e, acima, os grandes penhascos cujos nomes são Chamejante e Rosada, as Rochas Cintilantes... O sol poente corria como fogo pela face da Chamejante.

Era assim que se devia ir a Delfos... não diretamente ru­mo às ruínas atrás de um guia, mas desembarcar de um pequeno navio numa baía cor de pérola e ver como fora visto antigamente, brilhando ao longe como um farol, o fim da jornada.

Uma espécie de mancha escura passou perto de meu rosto. Um morcego. Já estava bem escuro no crepúsculo rápido do Egeíi. Virei-me e vi as luzes pontilhando as casas atrás de mim. Avistei também os postes de iluminação que se estendiam fracos e espaçados pela beira do mar. Pareciam bem distantes. Onde eu estava asombra de uma grande oliveira se alargava como uma nuvem. Tratei de voltar para a aldeia.

Em vez de voltar pelo mesmo caminho, resolvi tomar a direção em que julgava que estivesse o carro. Desci da pequena elevação para as profundezas do olival e segui rapidamente entre os troncos retorcidos e sombrios.

Tinha andado talvez cem metros quando as árvores começaram a rarear. Um pouco à minha esquerda, via as luzes da primeira casa, um posto avançado da aldeia, quando um súbito clarão bem perto de mim e à minha esquerda me fez parar, as­sustada. Era uma lanterna elétrica que fora acesa no fundo das árvores. Talvez as aventuras daquele dia tivessem agido sobre minha imaginação, talvez fosse a influência dos antigos misté­rios que eu tinha tentado invocar, mas o fato é que me senti subitamente apavorada e fiquei imóvel, com o tronco de uma enorme oliveira entre mim e a luz da lanterna.

Percebi então de que se tratava. Havia uma casa no fundo do olival, o habitual caixão de duas janelas, com o seu monte de lenha, o seu telheiro e as suas galinhas magras já empoleiradas. A luz que eu tinha visto me mostrou um homem curvado sobre um carro parado ao lado da casa. Parecia um jipe. O homem abriu o capo e iluminou o motor com a lanterna. Vi-lhe o rosto realçado pela luz estranhamente refletida. Era um rosto bem grego, com os cabelos descendo em anéis pelos malares largos à maneira dos heróis e uma cabeça arredondada cober­ta de cabelos anelados como os de uma estátua.

Nesse momento, acenderam a luz dentro da casa e a cla­ridade se derramou das janelas mostrando em torno da casa um cepo de lenhador com o machado ainda cravado e rebrilhan­te à luz, dois velhos tambores de gasolina e uma vasilha de esmalte descascada para a ração das galinhas. Meus receios infundados desapareceram e eu me virei para continuar meu caminho.

O homem do jipe devia ter visto o movimento de minha saia no escuro porque levantou a vista. Vi-lhe de relance o rosto antes que a lanterna se apagasse. Estava sorrindo. Caminhei mais depressa. Julguei perceber que a luz da lanterna fora voltada para mim, mas o homem não fez qualquer menção de me seguir.

Simon estava sentado no carro, fumando. Saiu quando me viu e deu a volta para me abrir a porta. Respondeu ao meu olhar sacudindo a cabeça.

—            Nada feito. Fiz todas as perguntas que podia e não deu em nada. — Sentou-se ao volante e ligou o motor. — Acho que temos de encerrar as nossas atividades por hoje. Vamos voltar para" Delfos e jantar, deixando que o caso se encaminhe por si mesmo para a sua solução.

—            E é isso o que vai acontecer?

Simon fez a manobra e saiu com o carro na direção de Delfos.

—            Acho que sim.

Tendo em vista o que eu havia pensado pouco antes sobre o "mistério", preferi não discutir e disse simplesmente:

—            Está muito bem. Vamos deixar assim.

Ele me olhou de lado, mas não fez qualquer comentário. Deixamos as luzes da aldeia para trás e ganhamos velocidade na estreita estrada. Simon me jogou no colo um pequeno galho que exalou um cheiro delicioso quando o apanhei.

Que é isso?

Manjericão, a erva dos reis.

O cheiro era adocicado e picante acima do cheiro do pó.

O vaso de manjericão? Não foi dele que tratou o poema de Keats?

Exatamente.

Houve uma pausa. Passamos por um cruzamento onde a luz dos faróis mostrou um sinal: "Anfissa, 9". Viramos à direita para Crissa.

Foi olhar o Caminho dos Peregrinos quando estava em Itéia? — perguntou Simon.

Sim. E tive uma visão magnífica antes que a luz se acabasse. As Cintilantes estavam estupendas.

Encontrou então a pequena elevação de terreno? Não pude dissimular minha surpresa.

Conhece-a então? Já esteve aqui?

Estive aqui ontem.

Em Itéia?

Sim.

A estrada estava subindo. Depois de um breve silêncio, ele disse sem qualquer mudança perceptível de expressão:

—            A verdade é que eu não sei mais sobre esse caso do que você.

As folhas de manjericão ainda estavam cheirosas e fres­cas junto ao meu rosto.

Desculpe. Mas deixo transparecer assim meu pensamen­to? E acha que podia proceder de outra forma?

Talvez não. A coisa toda é meio maluca e eu duvido muito de que, quando se apurar tudo, o caso tenha qualquer importância. Muito obrigado por não fingir que não sabia o que eu estava dizendo.

—            A verdade é que eu não pensei quase em nada mais.

—            Sei disso. Mas noventa por cento das mulheres teriam dito “Que quer dizer com isso?" e nos perderíamos numa bela confusão de personalidades e explicações.

Não havia necessidade de nada disso.

Ótimo. Quer jantar comigo esta noite?

Sim e muito obrigada, Sr. Lester...

Simon.

Simon então. Mas, pensando bem...

Ótimo então. Em seu hotel?

Escute... eu...

Você me deve isso, sabe? — disso Simon friamente.

Devo isso a você? Como? Quer explicar-se?

Como uma reparação pelo fato de ter suspeitado de mim. — Estávamos subindo a rua tortuosa de Crissa e, ao pas­sar por uma loja iluminada, ele olhou o relógio. — São quase sete horas. Pode tolerar jantar daqui a meia hora, às sete e meia?

Está muito bem. Mas não ê cedo demais para a Grécia? Está com tanta fome assim?

Um pouco. Mas não é disso que se trata. Eu... bem, tenho coisas para fazer e quero fazê-las esta noite.

Compreendo. Bem, não será cedo demais para mim. Qua­se não almocei e estava muito inquieta para apreciar o pouco que comi. Portanto, mais uma vez, aceito e agradeço. No meu hotel? Não está hospedado lá também?

Não. Quando lá cheguei, o hotel estava lotado e eu en­tão tive permissão para dormir no atelier da colina. Não o deve ter visto ainda. £ um grande edifício feio e quadrado de alguma altura que se ergue atrás da aldeia.

E é chamado de atelier? Atelier de artistas?

— Sim. Não sei para que foi feito no começo, mas agora tem um encarregado e é alugado a artistas em visita e a estu­diosos de boa fé que não podem pagar hotel. Creio que estou ali alojado sem muito direito, mas eu queria passar alguns dias em Delfos e não pude encontrar um quarto. Agora que estou instalado no atelier acho que o mesmo me convém perfeitamen­te. Só há outro inquilino atualmente, um jovem inglês, que é um artista genuíno, embora não queira que se diga isso.

—            Mas, pelo que sei, você tem direito a ficar no estúdio, — disse eu. — Afinal de contas, você é um estudioso e, como professor de letras clássicas, aproveita-se de boa fé da concessão. Não vejo nenhuma "falta de direito" nisso.

Sei que ele me olhou de lado, mas na escuridão não lhe pude ver a expressão. Mas ele me disse:

Não estou aqui para fazer estudos clássicos.

Oh!

A minha exclamação era insuficiente e eu esperava que não parecesse uma interrogação. Mas a sílaba ficou entre nós como umcompasso de espera.

Simon disse então, olhando para a escuridão à nossa fren­te:

—            Meu irmão Michael esteve aqui durante a guerra. Crissa estava nesse momento abaixo de nós. Muito abaixo

ànossa esquerda quando subíamos a face da escarpa, as luzes de Itéia se espalhavam como contas sob uma fatia de lua.

Foi então que ele disse, ao seu jeito calmo:

Ele esteve no Peloponeso durante algum tempo como BLO (Oficial Britânico de Ligação), entre nosso homens e os anáartes, os guerrilheiros gregos sob o comando de Zervas. Depois, transferiu-se para a região do Pindo com ELAS, o principal gru­po da resistência. Estava nesta parte do país em 1944. Hos­pedou-se com algumas pessoas em Arachova, um pastor chama­do Stéfanos e o filho dele, Nikolaos. Acontece que Nikolaos morreu, mas Stéfanos ainda vive em Arachova. Fui até ali para tentar falar com ele, mas soube que estava em Levadia e só erá esperado esta noite, segundo me disse a mulher da casa dele.

—            A mulher da casa dele? Ele riu.

A esposa dele. Na Grécia, todo o mundo tem de per­tencer a alguém ou a alguma coisa. Todo homem pertence a al­gum lugar e, desculpe, mas toda mulher pertence a um homem.

Acredito — disse eu, sem rancor. — Isso naturalmente dá sentido à vida da pobre criatura, não é mesmo?

Sem dúvida... De qualquer maneira, irei esta noite de novo a Arachova para ver Stéfanos.

Compreendo. Trata-se então para você de uma verdadei­ra peregrinação a Delfos?

Talvez se possa dizer isso. Vim aplacar a sombra de meu irmão.

Oh! Como fui impensada! Desculpe, mas eu não havia compreendido...

Que ele morreu? É verdade.

Aqui?

Sim, em 1944. Nos arredores do Parnaso.

Tínhamos entrado no último trecho da estrada antes de chegar a Delfos. À nossa esquerda, brilhavam as janelas do luxuoso Pavilhão dos Turistas. Lá embaixo, à direita, a lua estava morrendo entre uma profusão de estrelas. O mar se estendia, levemente luminoso abaixo delas, como uma fita de veludo pre­to.

Alguma coisa me fez dizer de repente na escuridão:

Simon.

Sim?

Por que falou em "aplacar"?

Houve uma breve pausa e ele então murmurou:

—            Isso eu lhe contarei depois, se puder. Mas não neste momento. Aqui está Delfos. Vou deixar você e o carro no hotel e me encontrarei com você no terraço daqui a meia hora. Certo?

—            Certo.

O carro foi levado para onde tinha estado antes. Ele deu a volta e abriu a porta para mim. Saltei e, quando quis agradecer-lhe de novo a ajuda que me dera naquela tarde, sacudiu a cabeça, riu, levantou a mão para me dar adeus e desapareceu na íngreme ladeira ao lado do hotel.

Com a impressão de que o ritmo dos acontecimentos se estava acelerando demais para o meu gosto, virei-me e entrei no hotel.


 

"Mas basta de histórias — já chorei uma vez por tudo isso".

Eurípides: Helena

 

Quaisquer receios que eu pudesse ter tido de que a melancólica peregrinação de Simon toldasse a minha primeira vi­sita a Delfos se dissiparam quando desci para jantar e me enca­minhei para o terraço do hotel à procura de uma mesa.

Sete e meia ê sem dúvida escandalosamente cedo para jan­tar na Grécia e só uma outra mesa no terraço estava ocupada etambém por gente inglesa. Simon Lester ainda não havia chegado e eu me sentei debaixo de uma das árvores de cujos galhos negros pendiam lâmpadas, que se balançavam levemen­te aoar quente da noite. Avistei então Simon abaixo da balaus­tradado terraço, incorporado a um grupo extremamente alegre ebarulhento de gregos que cercavam um rapaz louro vestido paraviagem e um jumentinho quase escondido sob os cestos estranhamente carregados que levava ao lombo.

O jovem louro dava a impressão de ter completado uma árdua jornada pelo interior. O rosto, as mãos e as roupas esta­vam sujos, a barba bem crescida e os olhos — como eu podia ver mesmo de onde estava — avermelhados de cansaço. O jumento estava em condições um pouco melhores e se quedava indiferente ao lado dele sob uma carga que parecia composta dos apetrechos de um artista — caixas, telas mal embrulhadas e um pequeno cavalete desmontável, bem como um saco de dormir e a ponta pouco apetitosa de um grande pão preto.

Metade dos garotos de Delfos pareciam ter afluído à che­gada do desconhecido como as vespas ao meu biscoito de mel. Havia em profusão gargalhadas, frases num inglês atroz e pancadas nas costas — esta última parte uma atenção que o es­tranho bem poderia dispensar. Estava cambaleando de cansaço, mas um sorriso vazio lhe dilatava o rosto barbado e sujo em resposta à acolhida. Simon estava rindo também, puxando as orelhas do jumento e trocando pilhérias, que pareciam muito engraçadas, com os jovens gregos. Gritos freqüentes de "Avanti! Avanti!" me confundiram até que eu compreendi que os gritos coincidiam com os alegres tapas sob os quais o jumento cam­baleava também. A cada tapa, uma nuvem de poeira se levan­tava do pelo de Avanti.

Por fim, Simon levantou os olhos e me viu. Disse alguma coisa ao rapaz louro, trocou algumas palavras risonhas com os gregos e subiu rapidamente para o terraço.

Desculpe. Está esperando há muito tempo?

Não. Desci ainda há pouco. Que é que está havendo lá embaixo?

Nada demais. É um pintor holandês que atravessou as montanhas com um jumento e dormiu ao relento. Vem-se saindo muito bem. Está vindo de Jannina, o que é uma viagem extrema­mente longa através de uma região bem áspera.

— Teve uma recepção e tanto, — disse eu, rindo. — Toda Delfos parece estar presente.

Nem mesmo o movimento turístico dissipou por com­pleto nos gregos o gosto pela philoxenia — a "acolhida", que significa literalmente "amor ao estranho", — disse Simon — É verdade que Delfos já devia estar cansada disso, mas, pelo menos, esta noite ele terá tradicionalmente hospedagem gra­tuita.

No atelier?

Sim. É este o fim da viagem dele. Amanhã, venderá o jumento e tomará o ônibus para Atenas.

Quando vi o cavalete, pensei que fosse o pintor inglês seu amigo do estúdio.

Nigel? Não. Duvido muito que uma aventura como essa tivessesequer ocorrido a ele.

—            Você disse que era um bom pintor.

Na minha opinião, é — disse Simon, pegando o menu e passando-o distraidamente às minhas mãos. Estava escrito em grego e eu tive que devolvê-lo. — Mas se convenceu — por simesmo ou ouvindo a opinião dos outros — de que o seu estilo particular de pintura não se usa mais. Reconheço que não está muito em voga, mas a verdade é que ele desenha como um anjo quando quer e eu penso que se trata de um dom tão raro que pode atrair a atenção mesmo entre os pintores mais estridentes dehoje. — Entregou-me o menu. — Não usa muita cor — que é que você quer para começar? — mas o desenho é muito seguro e delicado, empolgando ao mesmo tempo.

Tornei a dar-lhe o menu. Ele começou a examinar as co­lunas garatujadas.

—            Humm... Bem, algum idiota disse a Nigel que o estilo dele évieux jeu e, se não estou enganado, houve até quem usas­se oadjetivo "emasculado". Isso calou fundo nele e ofez em­penhar-se no trabalho, à procura de um estilo que "pegue". Mas, na minha opinião, isso não vai dar certo. Sem dúvida, ele émuito hábil e poderá fazer alguma coisa que impressione e lhe dê bons resultados financeiros, mas não será uma coisa pes­soal e ele nunca se poderá realizar assim. Outra infelicidade éque já está aqui em Delfos há muito tempo e se ligou a uma pequena que não foi muito boa para ele. Ela já saiu da vida dele, mas a melancolia permanece. — Sorriu e concluiu: — Isso repercute de certo modo em mim. Há três dias, tenho sido a única companhia de Nigel no atelier e não posso deixar de ser­vir-lhe de confidente.

—            E governanta?

—            Ou isso — disse ele, rindo. — Ele é muito moço ainda em vários sentidos eos hábitos custam a morrer. Tenho pro­curado ajudar, embora sem saber ao certo oque se pode fazer por um artista mesmo nas melhores circunstâncias. Nas piores, eles se entregam a uma rebeldia espiritual onde não podem ser seguidos mesmo pelo ouvinte mais bem-intencionado.

—            É assim?

—            Claro que é. Eu já lhe disse que ele era bom. Creio que osofrimento é proporcional ao talento.. . Escute, que é que você vai comer? Ainda não escolheu?

Entregou-me ainda uma vez o menu e eu o devolvi "pacientemente, dizendo:

Acho que vou acabar morrendo de fome esta noite. Já olhou bem esse menu? As únicas palavras que para mim fazem algum sentido nele são potatoes, tomatoes e melon. Mas eu me nego a comer batatas, tomates e melão, e a ser vegetariana numa terra que produz deliciosos espetos de carneiro com cogumelos.

Desculpe, — disse Simon. — Aqui está o que você quer. Chama-se souvlakal É o que vamos pedir. — Chamou o garçom, pediu o prato e, depois, piscou o olho para mim. — E que é que vamos beber? Como vai seu paladar?

Se com isso você quer saber se eu já posso beber retsina,a resposta é afirmativa, embora eu não saiba o que é que isso tem a ver com o paladar.

Retsina é um vinho suave fortemente impregnado de resina. Pode ser agradável e pode também ser áspero a ponto de revestir a língua de uma espécie de erupção antisséptica. É en­contrado em belos canecões de cobre e tem cheiro de terebinti­na. Quando se está na Grécia, o certo é adquirir — ou fingir que se adquiriu — preferência pelo retsina e eu, como turista, sou tão esnobe quanto quem mais o for.

—            Retsina, sem dúvida, — disse eu. — Que mais se pode tomar com souvíafea?

Julguei ver um leve traço de ironia nos olhos de Simon.

—            Bem, se você prefere um vinho... Repliquei com firmeza:

Dizem que quando a gente aprende a gostar de retsina, não há bebida melhor no mundo e não se quer outra coisa. Borgonhas, claretes e outras bebidas perdem todo o gosto. Por favor, não interrompa o processo. O meu gosto ainda está fraco mas muito interessado e acho que acabará vitorioso. Mas pode ser que você prefira um bom vinho doce de Samos...

Não o permita Deus. — disse Simon — e pediu ao gar­çom: — Retsina, sim?

Quando o vinho chegou, pareceu-me bom — até o ponto em que o retsina pode ser bom — e o jantar que o acompanhou foi excelente. Não sou uma pessoa que sinta repulsa diante do azeite de oliva e eu gosto da cozinha grega. Tivemos sopa de cebolas com queijo ralado. Depois, souvíafea temperada com limão eervas, juntamente com batatas fritas, vagens com azei­te e um grande prato de salada de tomates. Ainda queijo ehalvas, uma espécie de pão feito de nozes raladas e mel, que é delicioso. Por fim, as admiráveis uvas da Grécia apareceram como ágatas embaçadas, refrescadas com água da fonte acima do templo de Apolo.

Simon falou de maneira muito interessante sobre o jantar, sem mencionar sequer uma vez Michael Lester ou a finalidade da sua estada em Delfos. Por mim, esqueci completamente a nuvem que ainda estava pairando sobre o meu dia e só me lembrei de tudo quando um caminhão diminuiu a marcha ao passar pelo carro ainda estacionado na borda da estreita es­trada.

Simon seguiu o meu olhar. Depositou a sua xícara de café grego na mesa e olhou para mim do outro lado da mesa.

A consciência ainda está ativa?

Nem tanto quanto estava. Não há muito espaço. Mas o jantar foi admirável e eu lhe agradeço muito.

Pensei que... — murmurou Simon e não prosseguiu.

O caminho é longo daqui até Arachova, não é? — disse eu, pensativamente.

Claro que é, mas o carro é seu.

Bem sabe que não é e eu não quero mais tocar nele.

É uma pena, porque com sua permissão, que creio ter, vou seguir dentro em pouco para Arachova e estava de certo modo com a esperança de ter sua companhia.

Sério? Para que quer a minha companhia?

Faça-me esse favor.

Não sei por quê, mas a cor me subiu ao rosto.

Escute, esse caso é particular seu, e não pode querer uma estranha como eu ao seu lado. Estamos na Grécia, mas está querendo levar a philoxenia longe demais.

Prometo não deixar que coisa alguma a aborreça, — disse ele, sorrindo. — Tudo se passou há muito tempo e não mais qualquer tragédia no caso. O que há apenas agora é, vamos dizer assim, curiosidade.

Não é o aborrecimento que possa haver para mim que me preocupa. A minha idéia é que eu sou quase uma desconhecida para você e esse caso é muito particular. Você mesmo dis­se que se tratava de uma "peregrinação".

—            Se eu dissesse o que realmente quero dizer, você me chamaria de maluco. Mas quero dizer-lhe apenas uma coisa que é a pura verdade. Ficar-lhe-ia imensamente grato se me fizesse companhia esta noite.

Houve uma pequena pausa. Lá embaixo, os gregos se ha­viam dispersado. O artista e o jumento tinham desaparecido. Os outros ingleses tinham acabado de jantar, entrando em seguida no hotel. Ao longe, a fatia de lua pairava sobre o mar invisível, mais pálida entre os punhados brancos de estrelas. Acima de nós, o vento nos plátanos tinha um rumor de chuva.

É claro que irei, disse eu, levantando-me. Quando ele apagou o cigarro e se levantou, eu lhe sorri com uma ponta de malícia. Afinal de contas, você me disse que eu lhe devia alguma coisa.

Escute aqui, nunca tive a intenção...murmurou ele apressadamente, mas percebeu a minha expressão e sorriu. Está bem, moça, ganhou. Nunca mais vou tentar intimidá-la.

E me abriu a porta do carro.

—            Michael era dez anos mais velho do que eu, disse Simon. Éramos os únicos irmãos, e nossa mãe morreu quando eu tinha quinze anos. Meu pai fazia de Michael o centro do mundo e acho que eu também... Lembro-me de como a casa pareceu vazia quando ele foi convocado. Daí por diante, Papai vivia atracado com os jornais e o rádio, procurando saber o que fosse possível. Como lhe disse, Michael veio para cá com o SAS Serviço Especial Aéreo quando a Alemanha ocupou a Grécia. Estava fazendo serviço secreto com a Resistência nas montanhas. Já estava nisso havia dezoito meses quando foi mor­to e, como sempre, as notícias foram escassas e não muito exatas. De vez em quando, os homens conseguiam mandar car­tas...Quando se sabia que alguém ia ser recolhido à noite e levado de avião, fazia-se o possível para entregar-lhe uma carta na esperança de que a mesma pudesse ser expedida do Cairo. Tudo isso era um pouco arriscado e ninguém naquele tempo gostava de andar com documentos que não fossem absolutamen­te necessários. Por isso, as notícias eram esparsas e pouco satis­fatórias. Só recebemos três cartas de Michael durante todo esse tempo. Nas duas primeiras, só nos disse que tudo estava bem e que as coisas estavam correndo de acordo com os planos, juntamente com as fórmulas habituais que não nos diziam senão que ele estava vivo ao escrever a carta, meses antes do recebi­mento da mesma.

Fez uma pausa para passar por uma curva fechada, mais perigosa ainda naquela escuridão.

Acabamos sabendo alguma coisa sobre o trabalho dele na Grécia por intermédio de camaradas que tinham estado com ele na Força 133, fazendo contato intermitente com ele. Já lhe disse que ele era oficial de ligação com os guerrilheiros. Talvez seja melhor eu lhe dizer qual era a situação na Grécia depois da invasão alemã. Ou sabe alguma coisa disso?

Muito pouco. Só sei é que a ELAS era a principal organização de guerrilheiros e estava mais interessada em preparar o caminho para os seus comunistas do que em combater os alemães.

Sabe disso então? Ficaria surpresa se soubesse quantas pessoas deixaram de perceber isso mesmo em 1944, quando os alemães deixaram a Grécia e a ELAS se voltou contra o país, tentou encenar um golpe de Estado comunista e começou a massacrar os gregos com as armas e o dinheiro que nós lhe tínhamos dado e que foram escondidos nas montanhas até o mo­mento em que pudessem ser usados em benefício do Partido.

Mas não havia outros guerrilheiros que procediam honestamente?

Claro que sim. Havia alguns grupos e coube a Michael, entre outras coisas, uni-los num plano de campanha mais ou menos coerente. Mas o seu trabalho foi uma decepção, como o foi para todos os oficiais de ligação ingleses na Grécia. A ELAS entrou em ação e desbaratou todas as organizações guerrilhei­ras que lhe caíram nas mãos sujas.

Quer dizer que combateu os próprios gregos durante a ocupação alemã?

Sem dúvida alguma. Destruíram alguns grupos e assimilaram outros até que só restou outro grupo importante, a EDES, sob o comando de Zervas, que era um homem honesto e um excelente soldado.

—            Eu me lembro. Você disse que ele estava no Peloponeso.

—            Isso mesmo. A ELAS tentou naturalmente dar cabo de­le também. Mas não confunda as coisas. Havia alguns homens bons e bravos na ELAS e eles fizeram muito bom trabalho, mas houve também uma grande carga de infâmia para anular as me­lhores coisas. Não é nada agradável a história da Resistência na Grécia. Foram muitas as aldeias saqueadas e incendiadas pelos alemães e depois saqueadas e incendiadas pelos gregos da ELAS em busca dos magros suprimentos de que pudessem dis­por. E a abominação final foi a famosa batalha do Monte Tzou-merka, quando Zervas enfrentava os alemãs com a EDES ea ELAS estava presente sob o comando de Ares um pseudô­nimo arrogante para um dos mais imundos ediabólicos sádicos que o mundo já conheceu. A ELAS esperou até que Zervas estivesse empenhado a fundo na batalha e então atacou-o pelo flanco.

Atacou Zervas enquanto ele estava lutando com os ale­mães?

Sim. Zervas lutou em duas frentes durante várias horas e conseguiu derrotar os alemães, mas perdeu a maior parte do seu valioso material para a ELAS, que o escondeu sem dúvida para esperar o fim da guerra alemã e o dia da Nova Aurora.

Houve então um silêncio, acentuado pelo barulho do motor. Eu sentia cheiro de poeira e de verbenas mortas. As estrelas do outono tinham uma brancura láctea e eram tão grandes quan­to estrelas-do-mar. Os jovens ciprestes se levantavam como lan­ças por entre a sua branda rutilância.

E assim chego ao motivo de minha visita a Delfos, disse Simon.

A terceira carta de Michael? perguntei.

Percebe logo as coisas, hem? Trata-se de fato da tercei­ra carta de Michael.

Fez mudança no carro e este diminuiu a marcha, entrando por uma estreita ponte, colocada em ângulo reto com a estrada. Ele continuou na sua voz agradável e calma:

—            A carta chegou depois de termos tido notícia da morte dele. Não a li nessa ocasião e nem sabia que Papai a havia recebido. Pensou com certeza que eu saberia de tudo no devido tempo, quando o pior tivesse passado. Eu tinha dezessete anos. Mais tarde, Papai não falou mais de Michael. Fiquei sem saber da existência da carta até seis meses atrás, quando meu pai morreu e eu, como seu testamenteiro, tive de examinar-lhe os papéis. A carta...

Fez de novo uma pausa e eu senti uma curiosa emoção. Era a reação inevitável, talvez condicionada por histórias con­tadas através dos séculos, ao velho expediente da fábula: o morto, o documento misterioso, a antiga pista que levava a terras estranhas...

—            A carta não dizia muito, — prosseguiu Simon. — Mas era... não sei bem como dizer, nervosa, exaltada. Até a letra. Eu conhecia muito bem Michael apesar da diferença de idade e percebi que ele estava tremendamente agitado no momento em que escreveu aquela carta. Creio que foi alguma coisa que ele descobriu em algum ponto do Parnaso.

De novo aquela breve emoção. A noite passava por nós, cheia de estrelas. À esquerda, a montanha assomava como o mundo perdido dos deuses. De repente, não me pareceu possí­vel que eu estivesse ali e que aquele chão pelo qual passavam os pneus fosse o do Parnaso. O nome era um arrepio na espinha.

E então? — perguntei com voz trêmula.

É preciso compreender que, quando afinal li a carta, já estava de posse de muitas informações colhidas depois da guerra. Descobrimos, meu pai e eu, exatamente onde e como Michael tinha trabalhado e falamos com alguns dos homens com os quais ele se encontrou aqui. Disseram-nos que ele tinha sido mandado para esta zona na primavera de 1943 e que durante um ano, antes de ser morto, trabalhou com um dos grupos da ELAS cujo chefe era um homem chamado Ângelos Dragoumis. Não pude apurar muita coisa sobre esse Ângelos — por esse nome, que significa "anjo", era ele geralmente conhecido e me parece absolutamente impróprio. Só um dos outros elementos da Força 133 teve contato pessoal com ele as poucas investiga­ções que fiz recentemente sobre ele foram bater numa muralha de pedra. Os gregos não se orgulham de homens como Ângelos. Isso não quer dizer que o grupo dele não tivesse realizado al­guns feitos brilhantes. Estava com Ares e Zervas quando o via­duto de Gorgopotamos foi destruído no nariz dos alemães e hou­ve também o encontro na ponte de Lidorikion, quando eles... Mas isso não importa no momento. O importante é que parece que esse tal Ângelos adotou como modelo Ares, o comandante da ELAS, e fez sentir a sua presença nesta região exatamente como Ares.

Quer dizer que saqueou por conta própria?

Saqueou e fez coisas ainda piores. Deixou o rastro ha­bitual e brutal de incêndios, estupros, torturas, casas destruídas e gente despojada de tudo e condenada à fome quando não era massacrada. O fato ainda mais desagradável é que Ângelos era natural deste distrito. De qualquer maneira, já morreu, ao que se presume. Fugiu pela fronteira da Iugoslávia depois do insucesso do putsch comunista em dezembro de 1944 e nunca mais ninguém teve notícias dele.

De qualquer maneira, não se atreveu a aparecer mais por estas bandas, — disse eu.

Decerto. Ora, era esse o homem com quem Michael es­tava trabalhando e, como já disse, tiveram alguns bons resulta­dos militares, mas então os alemães aumentaram os seus efeti­vos aqui e o grupo de Ângelos se dispersou, refugiando-se nas montanhas. Michael, segundo apurei, ficou agindo por conta própria. Livrou-se da captura durante algumas semanas, escon­dendo-se aqui no Parnaso. Um belo dia, uma patrulha avistou-o. Conseguiu fugir, mas foi atingido por uma bala — nada de grave, mas capaz de tolher-lhe os movimentos e de degenerar se não houvesse tratamento. Um dos contatos dele era Stéfanos, o pas­tor de Arachova a quem vamos ver esta noite. Stéfanos levou Michael para casa e ele e a mulher trataram dele, esconderam-no e tê-lo-iam feito sair do país, segundo creio, se os alemães não tivessem atacado Arachova, quando Michael ainda estava lá.

Os jovens ciprestes se erguiam como espadas à beira da estrada, a mesma estrada por onde os alemães tinham outrora passado.

E encontraram Michael? — perguntei.

Não. Mas tinham recebido informações de que ele esta­va aqui e, em vista disso, prenderam Nikolaos, filho de Stéfanos; e o fuzilaram porque os pais dele não entregaram Michael.

Será possível, Simon?

Era uma coisa comum. Você não conhece este povo. Os gregos resistiam e viam toda a sua família assassinada, mas não traíam um aliado que tivesse comido o pão com eles.

O outro lado da medalha, — disse eu, pensando na ELAS e em Ângelos.

Exatamente. E, quando quiser fazer um conceito muito desfavorável da ELAS, não se esqueça de duas coisas. Primei­ro, o grego nasceu um animal combatente. Não é isso mesmo que mostra a história magnífica e patética desse povo? Se um grego não pode achar com quem lutar, briga com o vizinho. O outro fato é a pobreza da Grécia. Para quem é muito pobre, qualquer credo que traga uma promessa vai direto ao coração.

Não me esquecerei disso, Simon.

Talvez tenhamos esquecido o que vem a ser a pobreza. Quando se vê... Mas não falemos nisso agora. Eu penso que muitas coisas podem ser perdoadas aos pobres.

Fiquei em silêncio. Lembrava-me mais uma vez de Philip e de um mendigo perto dos muros de Carcassonne. Philip exclamou "Meu Deus!" numa voz escandalizada, deixou cair qui­nhentos francos na mão escrofulosa e não pensou mais no caso. E naquele momento, a voz calma e fluente de Simon, falando na escuridão de passadas misérias, exprimia naturalmente uma imensa e tolerante compaixão que eu nunca havia sentido...

Foi então que me atingiu como uma flecha no escuro o fato de que — com mistério ou sem ele — eu gostava muito de Simon Lester.

Alguma coisa? — perguntou ele.

Não, nada. Continue. Os alemães fuzilaram Nikolaos e Michael fugiu.

Sim. Foi aparentemente para as montanhas. Sei muito pouco do que aconteceu depois disso. Até agora, coligi apenas os fatos duros e simples do que nos foi dito depois da guerra por outro oficial de ligação que esteve aqui e do sacerdote de Delfos, que escreveu há algum tempo a meu pai, quando ele estava fazendo as primeiras investigações.

Stéfanos não escreveu?

Stéfanos não sabe escrever, — respondeu Simon. — O que aconteceu depois é apenas conjetura. Michael voltou para as montanhas depois da tragédia da morte de Nikolaos. O ferimento no ombro não estava inteiramente sarado, mas estava bem. Stéfanos e a mulher queriam que ele ficasse, mas Nikolaos tinha deixado um filho e uma filha pequenos e Michael não quis Pôr mais vidas em perigo. E é só o que sabemos. Saiu por aí Por essas montanhas e foi capturado e morto em algum ponto do Parnaso.

Perguntei ao fim de algum tempo:

—            E você quer saber onde está o corpo dele?

Não, isso eu sei. Está enterrado em Delfos, num peque­no cemitério perto do atelier, acima do santuário de Apolo. Já fiz uma visita à sepultura. Não é isso que eu quero saber de Stéfanos. Quero saber exatamente onde Michael morreu no Par­naso.

Stéfanos sabe?

Foi ele quem encontrou o corpo. Foi ele quem remeteu a última carta de Michael, juntamente com as outras coisas que encontrou no corpo. Conseguiu fazer chegar essas coisas às mãos de um oficial de ligação inglês e nós acabamos recebendo-as. Não sabíamos quem as havia remetido, mas, posteriormente, re­cebemos comunicação oficial de que ele estava enterrado em Delfos. Escrevemos então ao papa, o sacerdote. Ele nos comuni­cou os fatos simples de que tinha conhecimento e meu pai escreveu a Stéfanos, que respondeu por intermédio do sacerdote e tudo se encerrou aí.

Até você ver a carta de Michael?

Até eu ver a carta de Michael.

Tínhamos contornado um penhasco sombrio e vimos então, rolando pela encosta como uma cascata, as luzes de Arachova.

Simon levou o carro para a beira da estrada e parou. Des­ligou o motor e tirou uma carteira do bolso de dentro. Tirou um papel da carteira e passou-o às minhas mãos.

Espere um instante até que eu faça funcionar meu is­queiro. Quer um cigarro?

Quero, sim. Obrigada.

Depois de acendermos os cigarros, deixou o isqueiro aceso enquanto eu abria o papel. Era uma folha de papel comum, man­chada em alguns pontos como que molhada pela chuva, ama­relecida nas dobras e com os cantos revirados de tanto ser lida. Tive o estranho sentimento de que era um abuso de minha parte ler o que estava ali escrito. Era curta e começava com as pala­vras "Querido Papai". Não era comovente que Michael Lester, um homem de vinte e sete anos, que passava por duros traba­lhos, se dirigisse ainda assim ao pai, como na infância?

"Querido Papai: Só Deus sabe quando o se­nhor vai receber esta carta, pois não vejo possibili­dade de remetê-la no futuro próximo. Tivemos um pe­ríodo bem agitado, mas isso acabou já e eu estou bem, portanto não se preocupe. Não sei se acha o código de clichês militares tão imbecil quanto eu, embora em algumas ocasiões possa ser útil. Mas agora esta noite há uma coisa que eu lhe quero dizer. Dizê-la assim numa carta não tem qualquer relação com a guerra ou com o meu serviço aqui parece impos­sível. Como é, então, que eu posso transmiti-la? Sabe tão bem quanto eu que muita coisa pode acontecer antes que eu encontre alguém que possa levar-lhe meu recado pessoal. Se minha memória fosse um pouco melhor ou se eu tivesse dado um pouco mais de atenção a meus estudos clássicos há quanto tempo vai isso! poderia encaminhá-lo para o trecho exato em Calímaco, creio que é Calímaco. Mas esqueci onde é que vem a passagem. Temos de ficar nisso. Entretan­to, vou-me encontrar amanhã com um homem em quem posso confiar e eu lhe direi tudo, aconteça o que acontecer. E, se tudo correr bem, isso acabará um dia e nós viremos juntos para cá, para esta brilhante cidadela, e eu a poderei mostrar ao senhor e a meu irmãozinho Simon. Como vai ele? Dê-lhe lembranças minhas. Até esse dia...e que dia será!

Do filho que muito o ama, Michael".

A assinatura era uma garatuja que quase acabava fora do papel. Dobrei a folha cuidadosamente e devolvi-a a Simon, que apagou o isqueiro e guardou a carta de novo na carteira.

Compreende o que eu quero dizer?

Bem, não conheci seu irmão, mas suponho que não era assim que ele costumava escrever.

Claro que não! A carta me parece muito estranha. É rápida, cheia de alusões e até nervosa. Se eu não tivesse conhe­cido Michael bem, diria que a carta é muito feminina.

Compreendo.

Ele riu e ligou o motor.

Desculpe, mas tenho a impressão de que ele estava dominado por intensa emoção quando escreveu essa carta.

Estou de acordo com você. Ê verdade que estava numa situação difícil e...

—            Já tinha estado em dezenas de situações semelhantes. O que me intriga é a insistência num "recado particular" e na transmissão do mesmo. Tinha de fato alguma coisa para dizer.

É claro que deve ter examinado Calímaco.

De fato. Li-o todo e não encontrei a menor pista. — E a "brilhante cidadela"?

—            É a tradução de uma frase do Oráculo de Delfos a res­peito de Juliano, o Apóstata. Creio que só pode ser isso. Refe­re-se ao santuário de Apolo em Delfos.

—            Compreendo. Isso não nos serve de muito. Estávamos de novo aproximando-nos das luzes de Arachova e eu disse:

—            Você usou a palavra "pista". Que é que está esperando encontrar, Simon?

—            O mesmo que Michael encontrou. Depois de uma pequena pausa, eu disse: Compreendo. Está pensando no trecho em que ele fala de mostrar alguma coisa a você e a seu pai, uma "brilhante cida­dela", não é?

Claro. Ele descobriu alguma coisa e ficou tão exaltado com isso que quis logo dizer alguma coisa no papel...

Sim, mas talvez...

Pode dizer.

Disse com alguma dificuldade: - — Quem sabe se você não está vendo alguma coisa que não existe? Concordo que a carta é muito estranha, mas não acha que há outra maneira de lê-la? Uma maneira muito simples que seria a minha interpretação..., mas não pode ser porque eu não conneci seu irmão Michael.

E que maneira é essa?

Bem, se havia exaltação ou emoção de alguma espécie, não podia deixar de haver uma razão para isso. Não podia haver coisas que ele quisesse dizer a seu pai e a você? Quero dizer...

Você quer dizer coisas simplesmente afetuosas? Acha que Michael tinha a premonição de que não conseguiria escapar da situação difícil em que estava e que queria dizer para meu pai... alguma espécie de despedida? Não, Camila, Michael não era assim. Era muito reservado nos seus sentimentos.  E não creio que ele fosse dado a "premonições". Estava a par dos ris­cos e enfrentava-os calmamente. Além disso, ele diz na carta que queria "mostrar" alguma coisa a meu pai e a mim aqui na Grécia.

Talvez o próprio país, que tem interesse suficiente para isso. Talvez achasse que seu pai se entusiasmaria com a Grécia.

Meu pai tinha também estudos clássicos e já havia es­tado várias vezes na Grécia.

—            Ah! Assim é diferente.

—            Também acho. Não, eu sei que estou certo. Ele des­cobriu alguma coisa, Camila. Quase que sei o que foi, mas quero ter certeza. E, para começar, tenho de saber o lugar exato onde Michael morreu e de que maneira....

Outra pausa. Devia estar pensando no que eu dissera sobre a carta, porque murmurou pensativamente:

—            Não, olhando tudo em conjunto, sei que estou certo. Pode parecer muito estranho... Você pode estar certa em falar de "emoção", mas Michael não era assim. Parecia o sujeito mais reservado do mundo, mas quando era mais bem conhecido, pa­recia também o homem mais auto-suficiente e de mais fibra do mundo...

Como o irmão Simon... O pensamento me ocorreu de ma­neira tão clara e natural que, durante um terrível momento, cheguei a pensar que o havia externado em voz alta. Apesar disso, tive a impressão inquieta de que ele sabia exatamente o que eu estava pensando.

—            Aí está Arachova, — disse ele.

Era uma observação desnecessária. Já estávamos entre as paredes das casas, e os tapetes coloridos — ainda pendurados diante das lojas iluminadas — quase roçavam na carroçaria do automóvel. Havia dois os três jumentos, sem cabresto e sem cangalha, passeando pela rua. Vi um bode dentro de um jardim. Olhou-nos de maneira pouco amistosa e desapareceu de um pulo na escuridão. Havia o cheiro que eu já conhecia de poeira, ex­cremento de gado, gasolina e borra de vinho.

Simon parou o carro no mesmo lugar onde ele tinha ficado naquela tarde. Desligou o motor e nós saltamos. Dirigimo-nos para a rua estreita de ladeira onde eu o tinha visto. No principia da ladeira, havia um café de aldeia, cerca de dez mesinhas numa sala de paredes brancas aberta para arua. Estava quase cheio.

Os homens nos olharam... Ou melhor, não olharam para mim. Olharam todos para Simon.

Ele parou um instante no começo da ladeira e me segurou o braço. Vi-lhe o olhar leve e cauteloso tocar os grupos de homens no café, demorar-se um instante neles e afastar-se. Sor­riu então para mim.

—            É lá em cima — disse ele. Tenha cuidado e veja bem onde pisa. Os degraus são traiçoeiros e os jumentos costumam agravar os riscos naturais. Stéfanos, como era de esperar, mora bem no alto.

Olhei para cima. A ladeira tinha pouco mais de um metro de largura e uma rampa acentuada. Os degraus eram muito separados uns dos outros e feitos de granito de Parnaso com um mínimo de aparelhamento. Os jumentos — fortes e sadios animais — tinham passado por ali muitas vezes. No meio da ladei­ra, brilhava uma luzinha.

Por alguma razão, ocorreu-me que era muito esquisita a situação em que eu fora cair. ELAS, Stéfanos, um homem chamado Michael que morrera no Parnaso e estava enterrado aci­ma de Delfos... tudo isso quase imprevistamente e, naquele mo­mento, uma ladeira íngreme e estreita e a pressão de Simon em meu braço. Que nos iria Stéfanos dizer?

E, de repente, compreendi que, fosse o que fosse, eu não queria ouvir.

—            Avantil — disse Simon ao lado.

Deixei de lado o impulso covarde e comecei a subir a la­deira.

 

... Procura teu irmão com uma história que tem de ser ouvida por mais que aterre.

Eurípides:   Electra

A casa de Stéfanos era uma pequena construção de dois andares, no alto das escadas. O andar térreo se abria diretamente para a ladeira e nele ficavam os animais um jumento, duas cabras e algumas galinhas magras enquanto degraus de pedra na parede dos fundos levavam ao andar superior onde afamília vivia. No alto dos degraus, uma larga plataforma de Cimento servia ao mesmo tempo de varanda e de jardim. O parapeito baixo estava cheio de vasos de plantas e coberto por um traçado de galhos que servia de pérgola para uma parreira. Vi Simon abaixar-se para evitar um galho carregado, e um cacho deuvas pendurado me roçou de leve o rosto. A parte superior daporta estava aberta e a luz que dela vinha dourava as gavi­nhasda parreira. Sentia-se o cheiro quente de azeite do jantar dafamília, misturado com o cheiro do jumento e das cabras e com oforte odor de musgo dos gerânios em que eu tocara num vaso.

Nossos passos pela escada tinham sido ouvidos. Quando atravessamos a plataforma, a parte inferior da porta se abriu e um velho apareceu, com a sua corpulenta silhueta recortada à fraca luz que vinha de dentro.

Parei. Simon vinha atrás de mim, ainda nas sombras. Afas­tei-me para o lado, a fim de deixá-lo passar e ele se aproximou com a mão estendida, murmurando alguma coisa em grego. Vi o velho erguer o corpo ao vê-lo. Abriu a boca para proferir al­guma exclamação involuntária. Depois, pareceu recuar um pou­co e disse cerimoniosamente:

—            Irmão de Michael, seja bem-vindo. A mulher da casa disse que o senhor viria esta noite.

Simon retirou a mão, de que o velho parecia não ter tomado conhecimento, e disse com igual cerimônia:

—            Meu nome é Simon. É com prazer que o conheço. Kyrte Stéfanos. Esta aqui é Kyria Haven, uma amiga que me trouxe no seu carro.

O olhar do velho me tocou apenas. Inclinou a cabeça e disse pausadamente:

—            São ambos bem-vindos. Façam o favor de entrar. Virou-se então e entrou na casa.

Devo talvez esclarecer aqui que essas palavras e a maior parte da conversa subseqüente foram ditas em grego e que, portanto, nada compreendi. Mas, depois, Simon me fez uma tradução tão exata quanto possível de tudo e, na ocasião, consegui apreender o que posso chamar de ondas emocionais de conversa. Vou reproduzir, portanto, o encontro tal como se verificou.

Percebi desde o início que a nossa acolhida não fora muito entusiástica e isso me surpreendeu. Eu tinha visto durante mi­nha estada na Grécia tantos aspectos do milagre da hospitali­dade grega que me senti ao mesmo tempo desconcertada e re­pelida. Não me preocupava tanto o fato de que Stéfanos não tivesse falado comigo — afinal de contas, eu era uma mulher e, como tal, tinha uma cotação social muito baixa — mas a re­jeição por ele da mão estendida de Simon fora deliberada e o gesto com que nos convidou a entrar foi tardo e, segundo me pareceu, relutante.

Hesitei, olhando em dúvida para Simon.

Ele não se mostrou absolutamente desconcertado. Limitou-se a arquear as sobrancelhas para mim e esperou até que eu entrasse na casa à frente dele.

A sala única da casa, onde se vivia e dormia, era alta e quadrada. O chão era de tábuas bem lavadas. As paredes eram caiadas e cheias de quadros de santos, num colorido espantoso.

A luz vinha de uma lâmpada elétrica sem abajur. Num canto, via-se um velho fogão a óleo, havendo acima prateleiras para as panelas e uma cortina azul que com certeza escondia manti­mentos e louça. Encostada a uma parede, havia uma imensa cama, coberta naquele momento por uma colcha marrom e que, durante o dia, devia ser usada como um sofá. Acima da cama, via-se um pequeno ícone da Virgem e do Menino, tendo à frente uma lâmpada elétrica vermelha acesa. Havia um armário de as­pecto vitoriano, uma mesa sem verniz, duas cadeiras de cozi­nha e um banco coberto de oleado barato. Uma nota de colori­do pitoresco era dada por um tapete estendido no assoalho. Era defabricação local e feito de um brilhante escarlate e de um verde de papagaio. O aposento tinha um ar de grande pobreza e dequase agressiva limpeza.

Uma velha estava sentada perto do fogão numa das cadei­ras. Achei que devia ser a mulher de Stéfanos e a dona da casa. Estava vestida de preto e, mesmo dentro de casa, usava o pano de cabeça muçulmano, que tapa a boca e o queixo, dando aos trabalhadores do campo na Grécia tão pronunciado aspecto ori­ental. O pano estava descido até abaixo do queixo e eu pude ver-lhe o rosto. Parecia muito velha, como em geral acon­tece às camponesas dos países quentes. As feições eram finas e regulares, mas a pele se encolhia em milhares de rugas e os dentes estavam muito estragados. Sorriu e fez um gesto de tí­mida acolhida, a que respondi com uma inclinação de cabeça e um embaraçado "boa-noite" em grego, ao mesmo tempo que me sentava na cadeira indicada por ela. Não teve mais nenhum gesto para receber-nos e eu notei que o olhar que lançou em resposta ao cumprimento de Simon foi inquieto, quase amedron­tado. Juntou as mãos nodosas no colo, baixou os olhos para elas eassim se deixou ficar.

Simon se sentara na outra cadeira perto da porta e o velho se sentou no banco. Ficou de frente para mim. Pareceu-me tão integrado na terra dos mitos que poderia ter saído diretamente das páginas de Homero. O rosto era bem moreno, enrugado co­mo o da mulher e de expressão patriarcal e benévola. Os cabe­los ea barba branca eram crespos como os do grande Zeus no Museu de Atenas. Estava vestido com uma túnica azul des­botada, abotoada até ao pescoço e descendo até às coxas. Usa­va por baixo o que parecia um jhodpur indiano de algodão bran­co amarrado nos joelhos com faixas pretas. Tinha à cabeça um pequeno gorro preto. As mãos nodosas e fortes pareciam ner­vosas sem um cajado para segurar.

Olhava para Simon por entre as cerradas sobrancelhas brancas sem tomar conhecimento da minha presença. O olhar era grave e, segundo me pareceu, analisador. No canto, ao meu lado, a velha estava sentada em silêncio. Ouvia-se o barulho dos ani­mais que se moviam abaixo de nós e, depois, os passos rápidos de alguém que subia a ladeira.

Stéfanos abriu a boca para falar quando houve uma interrupção. Os passos rápidos subiram na carreira os degraus de pedra. Um jovem atravessou correndo a varanda e chegou à porta com uma mão encostada ao caixilho e a outra metida nas calças. Era uma pose dramática e o jovem era também dramá­tico. Devia ter dezoito anos e era magro, moreno e belo, cóm fartos cabelos pretos e um rosto vivo e exaltado. Usava velhas calças de casimira cinzenta e a camisa mais espalhafatosa e mais horrível que eu já vi.

—            Ele veio, Avô?

Foi então que viu Simon. Pareceu não notar absolutamente a minha presença, mas eu já estava ficando habituada a isso econtinuei sentada em silêncio como a mulher da casa. O rapaz sorriu amavelmente para Simon e fez jorrar uma torrente de palavras gregas, que o avô interrompeu, dizendo:

—            Quem mandou vir aqui, Niko?

Niko voltou-se para replicar. Todos os seus movimentos eram rápidos como os de um felino gracioso mas inquieto.

Soube que ele tinha vindo e queria vê-lo.

—            Agora, já viu. Sente-se e fique calado, Niko. Nós temos muito o que dizer.

Vi Niko lançar um olhar rápido a Simon, depois do que perguntou:

Já disse a ele?

Não disse nada. Sente-se e fique calado.

Niko virou-se para obedecer, mas continuou a olhar para Simon. Nos olhos negros havia um brilho que podia ser interpretado como exaltação misturada com interesse, talvez malícia. Simon reagia com aquele ar de indiferença que eu já estava aprendendo a conhecer. Tirou a cigarreira e olhou para mim. Sacudi a cabeça.

—            Niko?

O rapaz estendeu a mão, mas parou no meio do caminho e lançou a Simon outro dos seus derramados sorrisos.

—            Não, muito obrigado, kyrie.

Olhou para o avô, dirigindo-se então para a grande cama e estendendo-se nela. Simon tirou do bolso o isqueiro e acendeu um cigarro demoradamente. Guardou então o isqueiro antes de voltar-se para Stéfanos.

Este se conservava imóvel e sem falar. O silêncio caiu pesadamente sobre a sala e o rapaz se movia inquietamente na cama, sem deixar um só momento de olhar para Simon. Ao meu lado, a mulher não se tinha movido, mas, no momento em que olhei para ela, vi-lhe os olhos se voltarem para mim e então se desviarem precipitadamente para o colo, como num êxtase de timidez. Compreendi então que ela estava observando furtiva­mente meu vestido e tive subitamente a certeza de que Stéfa­nos também era tímido.

Talvez Simon tivesse percebido isso também porque, em dado momento, começou a falar, dizendo:

—            Kyrie Stéfanos, é com muita satisfação que afinal o conheço e à mulher de sua casa. Meu pai e eu lhe escrevemos para agradecer o que fizeram por meu irmão, mas acontece que as cartas não podem dizer tudo. Meu pai já morreu, mas estou falando em nome dele também quando de novo lhe agradeço. Deve compreender que nem sempre é possível exprimir com palavras tudo o que se sente, tudo o que se gostaria de dizer, mas espero que compreenda o que meu pai sentia e o que eu sinto.

Simon virou então a cabeça para sorrir para a mulher. Esta não sorriu em retribuição. Julguei ouvir o que me pareceu um gemido, ao mesmo tempo que ela se movia na cadeira. Os lábios finos se moviam sem produzir som e os dedos se apertavam angustiadamente.

Stéfanos disse então, quase com rudeza:

Não tem nada que agradecer, kyrie. Não fizemos mais do que era de nosso dever.

Foi muito o que fizeram, disse Simon, delicadamen­te. Não podiam ter feito mais pelo seu próprio filho. Olhou de relance para a mulher. Não falarei muito sobre o caso, kyria, porque há recordações que não devem ser despertadas. E procurarei não fazer perguntas capazes de afligi-los. Mas eu não podia deixar de vir para agradecer-lhes por meu pai e por mim...e também para ver a casa onde meu irmão Michael encontrou amigos nos últimos dias de sua vida.

Parou e correu a vista lentamente em torno. Houve silên­cio de novo. Embaixo, os animais se moviam. Não havia qual­quer expressão particular no rosto de Simon, mas o rapaz vol­tou os olhos para o avô, como se estivesse impaciente. Entre­tanto, Stéfanos continuava calado.

Por fim, Simon disse:

—            Foi aqui então.

—            Foi aqui, sim, kyrie. Lá embaixo, atrás da manjedoura, há um buraco na parede. Ele se escondeu ali. Os sujos alemães não tiveram a idéia de olhar atrás dos sacos de palha e do estru­me. Quer que eu lhe mostre o lugar?

Simon sacudiu a cabeça.

Não. Já lhe disse que não quero lembrar-lhes esses tem­pos. E não pense que quero fazer-lhe muitas perguntas sobre o assunto, desde que nos contou quase tudo na carta que pediu ao papa que escrevesse. Disse que Michael foi ferido no ombro e veio procurar refúgio aqui...Depois, voltou para as montanhas.

Foi pouco antes do amanhecer no dia 2 de outubro, disse o velho. Pedimos que ficasse conosco porque ainda não estava bom e o inverno chega cedo às montanhas. Mas ele não quis. Ajudou-nos a enterrar meu filho Nikolaos e, depois, saiu. Apontou para o rapaz que estava muito atento na cama. Aquele ali e a irmã dele, Maria, que hoje é casada com Giorgios, negociante na aldeia, estavam fora nos campos com a mãe deles. Se não fosse isso, talvez também fossem mortos. Foi por causa deles que Kyrie Michael não quis ficar e foi para as mon­tanhas.

E alguns dias depois ele foi morto. Achou o corpo dele entre Arachova e Delfos e levou-o para ser enterrado.

Assim foi. O que achei no corpo dele dei três semanas depois a Perikles Grivas, que levou tudo a um inglês que ia partir de Galaxeidion à noite. Mas isso já sabe.

Sei, sim. E quero que me mostre o lugar onde ele foi morto, Stéfanos.

Houve um breve silêncio. O jovem Niko olhava para Simon sem pestanejar. Notei que ele tinha tirado um cigarro do bolso e o estava fumando.

O velho disse afinal com voz pesada:

— É claro que farei isso. Amanhã?

Se lhe for conveniente.

É conveniente para o senhor?

É muita gentileza sua.

O senhor é irmão de Michael.

—            Ele esteve aqui muito tempo, não foi? — perguntou Simon.

Ao meu lado, a mulher se moveu de repente e disse numa voz clara e suave:

Ele era meu filho. — Vi num assomo de tristeza que ha­via lágrimas nos olhos dela. — Ele devia ter ficado, — disse ela e repetiu quase desesperadamente: — Ele devia ter ficado!

Mas tinha de ir, — disse Simon. — Como podia fazer sua família correr de novo tanto perigo? Quando os alemães voltassem...

—            Não voltaram, — disse Niko da cama, em voz clara.

—            Não, — disse Simon, voltando-se para ele. — Não voltaram porque apanharam Michael nas montanhas. Mas, se não o tivessem apanhado, se ele ainda estivesse escondido aqui, po­deriam voltar à aldeia e então...

—            Mas não o apanharam, — disse o velho.

Simon voltou-se de súbito para ele. Stéfanos continuava tranqüilamente sentado no banco, com os joelhos abertos, as mãos juntas entre eles e o pesado corpo inclinado um pouco para a frente. Os seus olhos pareciam profundos abaixo das so­brancelhas brancas. Os dois homens se encararam e eu me agi­tei na cadeira. Era como se a cena se passasse em câmara lenta, silenciosa e incompreensível, mas carregada de emoções que irritavam desagradavelmente os nervos.

Simon perguntou pausadamente:

—            Que é que me está querendo dizer?

—            Quero dizer apenas que Michael não foi morto pelos alemães e, sim, por um grego, — respondeu Stéfanos.

—            Por um grego?

O velho fez um gesto que poderia ter vindo diretamente de Édipo Rei. Para mim, que continuava a não compreender senão que a fala dos dois homens tinha um acento de tragédia, o gesto me deu uma poderosa impressão de resignação e de ver­gonha.

—            Por um homem de Arachova, — disse ele.

Foi nesse momento que a luz entendeu de se apagar.

Os gregos estavam evidentemente habituados aos capri­chos de sua rede de eletricidade. Quase sem um minuto de de­mora, a velha acendeu um lampião e colocou-o em cima da mesa, no centro da sala. Era um lampião de aspecto horrível, de um metal barato, mas ardia com uma suave luz amarelada e o cheiro adocicado do azeite de oliveira. Pesadas sombras envolveram então o rosto de Stéfanos, que parecia mais do que nunca uma figura de tragédia. Niko estava deitado de bruços e observava tudo com os olhos vivos, como se se tratasse realmente de uma peça. Para ele, a morte de Michael e do pai deviam ser coisas tão remotas que só lhe interessavam como lembranças de um passado extinto.

Compreendo, — disse Simon. — Isso explica muitas coi­sas. E é claro que não sabem quem foi.

Sabemos, sim.

Simon arqueou as sobrancelhas e o velho sorriu triste­mente.

—            Não está compreendendo por que não matamos esse homem desde que chamávamos Michael de filho, não é mesmo, feyrie?

Niko disse então da cama numa voz tranqüila, em que havia um toque de malícia:

—            Não é assim que os ingleses costumam agir, Avô! Simon olhou para ele, mas falou em voz calma com Sté­fanos.

Não era exatamente isso. Estava apenas querendo saber o que aconteceu a esse homem. Ao que parece, ainda está vivo.

Vou explicar. Devo dizer primeiro que tudo que o nome do homem era Dragoumis, Angelos Dragoumis.

Ângelos?

O homem fez um sinal afirmativo.

—            Sim. Deve conhecê-lo. Mandei dizer na carta que o papa escreveu para mim que Michael tinha trabalhado com ele. Mas nunca lhe teria dito isso de Ângelos se não tivesse vindo até aqui. Agora que está aqui, essas coisas não podem mais ser escondidas. Tem o direito de saber.

Simon apagou cuidadosamente o cigarro na tampa de uma caixa de fósforos. O rosto ainda estava calmo e os olhos pareciam velados. Vi Niko rolar na cama e sorrir.

Ângelos era o chefe da tropa da ELAS com as quais Michael estava trabalhando, — disse Stéfanos. — Quando Michael saiu desta casa, tinha, segundo creio, a intenção de unir-se a eles. Tinham-se dispersado quando a grande operação de busca dos alemães começou nas colinas e muitos tinham ido para o norte, entre os quais Ângelos. Não sei o que foi que fez Ângelos voltar nessa direção, mas o certo é que ele procurou Michael no Parnaso e assassinou-o ali.

Por quê?

Não sei. Mas esses assassinatos eram muito comuns na­quele tempo. Pode ser que Michael e Ângelos tivessem alguma divergência a respeito da ação das tropas de Ângelos. Talvez Michael estivesse exercendo muita pressão sobre ele. Sabemos agora que Ângelos estava ansioso por guardar seus homens e seu material para uma batalha diferente... depois que os alemães tivessem saído da Grécia.

Vi Simon erguer vivamente interessado aqueles seus olhos cinza-claros.

Ângelos era um deles? Tem certeza?

Absoluta. Ângelos Dragoumis tinha ambições bem al­tas. Estava em Atenas logo depois que os alemães deixaram a Grécia e nós soubemos que participou ativamente do massacre de Kalamai. Pode ter certeza de que ele, durante todo o tempo, traiu os Aliados.

Teve um sorriso breve e continuou:

—            Não creio que Michael tivesse sabido disso. Não, a di­vergência entre eles foi outra. Pode ser apenas que dois homens como eles não pudessem jamais conviver e ficar de acordo. Ân­gelos era ruim, tinha coração mau... E Michael não podia gos­tar de trabalhar com um homem assim. Tinham divergido antes disso. Michael mesmo me disse. Ângelos era um homem arro­gante e tirânico e Michael... bem, Michael não podia aceitar imposições.

—            É verdade, — disse Simon, tirando outro cigarro. — Mas disse que ele foi assassinado. Ora, se dois homens têm uma divergência e entram em luta, isso não é assassinato, Stéfanos.

— Neste caso, foi. Houve uma luta, mas não foi honesta. Lembre-se de que Michael tinha sido ferido...

—            Ainda assim...

Foi atacado primeiro pelas costas, com uma pedra ou com uma coronha de fuzil. Havia uma grande marca e a pele estava dilacerada. Foi um milagre que a pancada não o tivesse matado ou, pelo menos, atordoado. Mas ele deve ter ouvido Ângelos atrás dele porque, apesar do golpe do traidor pelas costas e do ombro ferido, Michael se virou e houve luta. Michael estava muito marcado.

Compreendo, — disse Simon, acendendo o cigarro. — Como foi que Ângelos o matou? Sei que não estava usando uma arma de fogo. Foi à faca?

—            O pescoço dele foi quebrado.

O fósforo paroua um centímetro do cigarro. Os olhos cinzentos se fixaram nos do velho. Eu não podia ver a expressão deles de onde eu estava, mas vi Stéfanos fazer um sinal de as­sentimento, como Zeus poderia ter feito. Os olhos de Niko se apertaram de repente e brilharam por trás dos longos cílios. O fósforo fizera afinal contato.

—            Deve ter sido uma luta... — murmurou Simon.

—            Não deve ter sido fácil matá-lo, — disse o velho. — Mas com o ombro ferido e a pancada na cabeça...

Calou-se de repente. Não estava mais olhando para Simon. Parecia estar vendo alguma coisa além das paredes da sala, alguma coisa remota no tempo e no espaço.

Houve uma pausa. Por fim, Simon expeliu uma baforada do cigarro e disse:

—            E esse Ângelos... que foi feito dele?

—            Isso não lhe sei dizer. Ele não voltou naturalmente a Arachova. Falou-se que tinha ido para a Iugoslávia com muitos de sua laia, quando falhou o golpe que deram pelo poder. Nestes quatorze anos, ninguém falou mais dele e é provável que tenha morrido. Tinha apenas um parente, um primo chamado Dimí-trios Dragoumis, que também não teve mais notícias dele.

—            Um primo? Aqui?

Dragoumis mora agora em Itéia. Fez também parte da tropa de Ângelos, mas não era um chefe e...bem, algumas coisas é melhor esquecê-las. A voz do velho se tornou mais áspera. Mas as coisas que Ângelos fez contra seu próprio povo, estas não podem ser esquecidas. Ele esteve em Kalamai. Dizem que esteve também em Pirgos, onde centenas de gregos morreram, inclusive meu primo Panos, que já era um velho. As mãos nodosas se contorceram convulsivamente sobre os joe­lhos. E não estou falando apenas da política dele, Kyrie Si­mon, nem mesmo das coisas que acontecem na guerra. Ângelos era mau, Kyrie, era um homem que tinha prazer no mal. Gosta­va de ver dor. Preferia atacar crianças e velhas e se gabava, como Ares, de quantas matara pessoalmente. Era capaz de ar­rancar sorrindo os olhos de um homem ou de uma mulher. Sem­pre sorria. Era um homem mau que traiu Michael e o assassi­nou.

—            E se ele não foi visto por aqui depois que meu irmão morreu, como pode ter tanta certeza assim de que ele o assassinou?

Eu o vi, disse simplesmente o velho.

Você o viu?

—            Vi. Foi ele, sem dúvida alguma. Quando cheguei lá, ele me deu as costas e correu. Mas não pude persegui-lo. Comprenda, Michael ainda estava vivo.

Vi Simon encarar de novo o velho, que fez um solene sinal de assentimento.

—            Viveu ainda um minuto ou pouco mais. Mas isso foi bastante para me reter ao lado dele e deixar Ângelos fugir.

—            Ângelos não fez qualquer tentativa de atacá-lo?

—            Não, porque também ficou um bocado machucado, disse o velho pastor com evidente satisfação. Michael lutou muito, mesmo depois daquela pancada que o traidor lhe deu pelas costas na cabeça. Ângelos podia ter atirado em mim, mas encontrei depois o revólver dele embaixo de uma pedra, como se tivesse sido jogado durante a luta. A região estava cheia de alemães e ele devia ter esperado matar Michael sem fazer ba­rulho depois de tê-lo tonteado com a pancada, mas Michael teve ânimo bastante para resistir. Quando cheguei ao alto do penhasco e os vi abaixo de mim, Ângelos estava-se levantando. Olhou em torno à procura do revólver, mas meu cachorro o atacou e ele não pôde fazer nada senão fugir. Sem o revólver, nada poderia fazer. Levei então Michael para Delfos. Era o lu­gar mais próximo. Foi só.

—            Ele não disse nada?

Stéfanos hesitou e o olhar de Simon se tornou mais agudo. O velho sacudiu a cabeça.

—            Quase nada, kyrie. Se houvesse alguma coisa, ele teria dito na carta.

Mas falou?

Duas palavras apenas. "O Cocheiro".

As palavras eram O Eniochos e eram em grego clássico e não moderno. Eu as conhecia, justamente com os muitos visitantes de Delfos, porque se referiam à famosa estátua de bronze que está no Museu de Delfos. É a estátua de um jovem, o Cocheiro, revestido de um manto rigidamente pregueado, que ainda tem nas mãos as rédeas de seus cavalos desaparecidos. Olhei para Simon, duvidando de que numa conversa em que surgiam a cada momento os nomes "Ângelos" e "Michael", pu­desse haver lugar para o Cocheiro.

Simon parecia tão perplexo quanto eu.

—            O Cocheiro? Tem certeza?

—            Certeza absoluta não tenho. Eu tinha descido às car­reiras até ao sopé do penhasco e estava ofegante e muito aflito com o que tinha acontecido a Michael. Ele só viveu alguns instantes depois que eu cheguei ao lado dele, mas me reconhe­ceu e creio que foi isso o que me disse. É uma palavra antiga, mas é bastante conhecida porque é o nome da estátua que está no Museu de Delfos. Mas não sei por que Michael fez questão de me dizer isso, nem se foi isso de fato o que ele disse. Repito que lhe teria dito se tivesse certeza ou se fizesse algum sentido.

—            Por que não nos falou em Ângelos?

Tudo isso havia passado e Ângelos tinha desaparecido. Achei melhor deixar o pai de Michael pensar que ele tinha mor­rido em combate e não às mãos de um traidor. Além disso, sentíamos vergonha.

Tudo isso estava tão passado, — disse Simon, — que quando o irmão de Michael chej ou a Arachova para saber exa­tamente como o irmão tinha morrido, os homens de Arachova fugiram dele e o homem que hospedou Michael não lhe quis apertar a mão.

O velho sorriu.

Está bem, isso não passou. Restou a vergonha.

A vergonha não é sua.

É da Grécia.

Minha terra fez ultimamente algumas coisas para restabelecer o equilíbrio da Grécia, Stéfanos.

Política! — O velho fez um gesto bastante expressivo do que desejaria que fosse feito a todos os políticos, e Simon não pôde deixar de rir.

Como se isso fosse um sinal, a velha se levantou, afastou a cortina azul e trouxe um grande jarro de pedra. Colocou os copos em cima da mesa e começou a servir o vinho doce e escuro.

Vai beber conosco então? — perguntou o velho.

Com o maior prazer, — disse Simon.

A velha entregou-lhe um copo, depois a Stéfanos, a Niko e finalmente a mim. Não pegou um copo para si, mas continuou de pé a olhar-me, com uma espécie de tímido prazer. Provei o vinho. Tinha gosto de cerejas.

—            Muito bom, — disse eu, incertamente, em grego.

O rosto dela se abriu num amplo sorriso. Meneou a cabeça e repetiu, satisfeita:

—            Muito bom, muito bom.

Niko se virou para mim e perguntou num inglês com so­taque americano:

—            Fala grego, moça?

Não. Sei algumas palavras apenas. Niko olhou então para Simon.

E como é que fala grego tão bem?

—            Meu irmão Michael me ensinou quando eu era mais moço do que você. Depois disso, continuei a ler e a aprender. Eu sabia que teria de vir algum dia aqui.

Por que não veio antes?

A viagem é muito cara, Niko.

E agora está rico?

Vou-me arranjando.

Oriste?

Quero dizer apenas que tenho o suficiente.

Compreendo. E veio agora. Já sabe de Ângelos e de seu irmão. Que era que faria se eu lhe dissesse uma coisa a mais, kyrie?

Que é?

Ângelos ainda está vivo.

Que é que me está dizendo, Niko?

Ele tem sido visto perto de Delfos, na montanha.

Como assim? Recentemente?

Claro! — disse Niko, com o seu belo sorriso malicioso. — Mas talvez seja apenas um fantasma. Há fantasmas no Parnaso, kyrie, luzes que se movem e vozes que ecoam entre as pedras. Há gente que vê essas coisas. Eu, não. Nunca as vi. São os velhos deuses, não acha?

É possível, — disse Simon. — Mas é verdade mesmo, Niko? Ângelos foi visto?

Como é que eu vou saber? Foi Janis quem o viu e Janis não é muito certo da cabeça... Ângelos matou a mãe dele quando os andarlas queimaram a fazenda do pai. Desde então, Janis é meio maluco e tem visto Ângelos muitas vezes. Se há mesmo fantasmas, então ele ainda vagueia pelo Parnaso. Mas Dimítrios Dragoumis nada tem de fantasma. Tem feito muitas perguntas a seu respeito. Todos os homens aqui em Arachova sabem de sua vinda, conversam sobre isso e fazem conjeturas. Mas Dragoumis tem estado em Delfos e Arachova, fazendo muitas perguntas.

Como é ele?

É um pouco parecido com o primo. Não de rosto ou de espírito, mas — como direi? — de feitio de corpo... Pode ser que o senhor venha a se encontrar com Dragoumis. Mas não tenha medo dele. E não se preocupe com Ângelos, Kyrie Simon.

Acha que estou preocupado? — perguntou Simon, sorrindo.

Não, — disse Niko, francamente. — Mas ele está morto.

E se Janis tiver razão e ele não estiver morto?

—            Na minha opinião, — disse Niko quase insolentemente, éapenas um inglês, não é mesmo, Kyrie Simon?

—            E que é que tem isso?

Niko deu uma risada encantadora e rolou na cama. Stéfa-nos disse então zangadamente em grego:

— Comporte-se, Niko! Que foi que ele disse, Kyrie Simon?

—            Ele acha que eu não posso enfrentar Ângelos, — disse Simon displicentemente. — Segure, Niko, — disse ele, jogando um cigarro ao rapaz, que o aparou com um gesto gracioso. Ainda rindo, Simon voltou-se para Stéfanos. — Acredita mes­mo que Angelos tenha sido visto por aqui?

O velho pastor olhou para o neto.

—            Quer dizer que ele lhe foi contar essa história? Um boato sem importância partido de um idiota que viu Ângelos pelo menos uma dúzia de vezes desde o fim da guerra. E alemães também, uma porção de vezes. Não dê qualquer atenção a essas histórias sem pé nem cabeça.

—            E as luzes e as vozes no Parnaso são também histórias?

—            Se alguém subir ao Parnaso à noite, — disse Stéfanos, — poderá ver coisas estranhas, por que não? Os deuses ainda andam por lá e quem não pisar com cuidado a terra dos deuses é um insensato. — Tornou a olhar furiosamente para o neto e disse: — Niko, você aprendeu um bocado de bobagens em Atenas. E essa camisa é horrível!

Niko sentou-se na cama e protestou, ofendido:

—            Não é, não! É americana!

—            Ajuda à Grécia? — perguntou Simon, sorrindo. O velho deu uma gargalhada.

—            Ele não é mau rapaz, kyrie, ainda que a estada em Ate­nas o tenha estragado um pouco. Mas agora ele veio trabalhar em casa e eu vou fazer dele um homem. Mais vinho para Kyrie Simon.

Disse isso à mulher, que se apressou em encher de novo o copo de Simon.

—            Obrigado, — disse Simon e acrescentou num tom diferente: — É verdade que esse Dragoumis tem feito perguntas a meu respeito?

Sem dúvida alguma. Depois que se soube que o senhor ia chegar, ele fez muitas perguntas — quando ia chegar, o que vinha fazer, quanto tempo ia demorar, e assim por diante.

Mas por quê? Como se explica o interesse dele? Acha que ele teve alguma relação com a morte de Michael?

Não, não teve qualquer participação no fato. Foi o que apuramos depois da guerra, antes que ele voltasse. Do contrário, ele não teria tido coragem de voltar. Uma vez, há um ano, não, há um ano e meio, ele se encontrou comigo e perguntou o que havia acontecido e onde Michael fora morto. Mostrou-se decentemente envergonhado e falou bem de Michael. Mas eu não falo de meus filhos com todo o mundo. Neguei-me a falar. E ninguém mais sabia de toda a verdade, salvo o sacerdote em Delfos que já morreu e meu irmão Alkis, que depois morreu na guerra.

E agora eu.

E agora o senhor. Levá-lo-ei até lá amanhã e lhe mos­trarei o lugar. É seu direito.

Olhou muito sério para Simon e disse então:

—            Sabe que é muito parecido com Michael, Kyrie Simon? E sabe que Niko... é ainda mais maluco do que eu pensava?

 

Os oráculos estão mudos, / Nem voz, nem espantoso murmúrio / Correm ilusoriamente através do teto em arco. /Apolo de seu santuário / Não pode mais profetizar...

MILTON:Hino da Natividade

Simon não falou na viagem de volta para Delfos e eu me sentei em silêncio ao lado dele, tentando imaginar o que fora dito naquela conversa sombria e de aparência muito estranha. Nada que Stéfanos exóticamente homérico pudesse ter dito seria vulgar, enquanto que na beleza inteligente de Niko havia alguma coisa essencialmente grega, uma vivacidade tão evidente hoje, sob os acessórios americanizados baratos de sua espécie, quanto o era nas pinturas pretas e vermelhas dos vasos da idade clássica.

Quando, afinal, já perto de Delfos as árvores entrecruza­vam as copas por sobre a estrada escondendo as estrelas, Simon diminuiu a marcha do carro, entrou por um largo acostamento à margem e parou. Desligou o motor e um murmúrio de água corrente encheu imediatamente o ar. Apagou os faróis, e as ár­vores escuras se fecharam ainda mais em torno de nós. O cheiro dos pinheiros era fresco e intenso.

Simon me ofereceu um cigarro.

Escute, que foi que chegou a entender de nossa con­versa?

—            Quase nada, a não ser que falaram sobre Michael e de um chefe da ELAS chamado Ângelos. Compreendo agora por que não se incomoda com minha presença em seus assuntos particulares.

Esses assuntos tomaram um rumo bem estranho. Fiquei à espera.

Gostaria de contar-lhe tudo.

Por que não conta?

Ficamos então sentados no carro a fumar, enquanto ele me contava extensa e exatamente tudo o que se passara na casa do pastor. As minhas impressões visuais da cena recente eram tão vívidas que eu não tive qualquer dificuldade em, por assim dizer, suportar minhas imagens às dele e saber precisamente onde e quando os movimentos e os gestos se ajustavam às pa­lavras.

Quando ele acabou, fiquei calada pela razão muito simples de que não sabia o que poderia dizer. O instinto que me fize­ra parar aos pés da escada da ruazinha fora certo, pois aquelas águas eram fundas demais para mim. Se dantes eu me havia julgado inadequada a ponto de ter receio de uma breve discussão em torno de um carro alugado que poderia sentir naquele momento? Quem era eu para oferecer consolo ou sequer fazer comentários sobre o assassinato de um irmão? O crime podia ter sido cometido quatorze anos antes, mas há uma espécie de dolorosa surpresa ante a simples idéia de crime, ain­da, sem o conhecimento do fato, por mais tempo que se passe entre o ato e a descoberta do mesmo. Não conhecia tão bem Simon que pudesse dizer exatamente o que devia e, portanto, nada disse.

Ele também não fez qualquer comentário, limitando-se a contar-me a história naquela voz cheia de reservas que eu já estava começando a conhecer. Pensei por um momento que ele fosse dizer alguma coisa mais sobre a carta de Michael ou sobre o "achado" de que ele, Simon, havia dito que sabia... Mas ele nada disse. Jogou o cigarro pela janela do carro e pareceu que jogara também o caso, pois me disse, numa completa mudança de tom e de assunto:

—            Vamos dar um passeio pelas ruínas? Você ainda não as viu, e não é mau começar sob a luz das estrelas. Ou prefere esperar e vê-las pela primeira vez, sozinha?

—            Não, gostaria de ir.

Subimos o íngreme caminho por entre os pinheiros. Meus olhos já se haviam acostumado à escuridão e eu podia ao menos distinguir o caminho. Atravessamos o estreito regato cujo murmúrio tínhamos ouvido e demos por um caminho todo atapetado de agulhas de pinheiros.

Ao fim de algum tempo, fomos sair num espaço aberto onde blocos tombados faziam a marcha difícil e onde eu podia divisar a forma de paredes arruinadas.

Isto aqui é a praça do mercado romano, — disse Simon. — Havia lojas e tudo mais. Dentro dos padrões de Delfos, isso é coisa moderna, de modo que vamos passar adiante... Pronto. Isto aqui é o portão do recinto do templo. O caminho é íngreme, mas há uma calçada por entre as construções até o templo propriamente dito. Está vendo?

Muito bem. E acho tudo estupendo... mesmo à luz das estrelas.

Podia ver vagamente o caminho calçado que ziguezagueava por entre as paredes arruinadas dos tesouros e santuários. O recinto do templo parecia enorme sob aquela luz. Por toda a parte, à nossa frente, ao longo da encosta, abaixo entre os pinheiros que marcavam a estrada, acima até onde a vista alcançava à luz das estrelas, levantavam-se os muros derruídos, as colunas espectrais, os degraus, os pedestais e os altares do antigo santuário. Subimos lentamente a Via Sagrada. Identifiquei o pequeno edifício dórico onde outrora fora guardado o te­souro ateniense, a sombria pedra onde a sibila se sentara para profetizar a Guerra de Tróia, as esbeltas colunas do Pórtico dos Atenienses, a forma de um grande altar... Chegamos, por fim, ao próprio templo, um chão nu e despedaçado que subia , pela encosta, sustentado no espaço pelas espessas paredes que restavam e rodeado pelas seis grandes colunas que, mesmo na escuridão, erguiam-se majestosamente contra o céu pontilhado de estrelas.

Respirei fundo.

Ao meu lado, Simon disse em voz baixa:

Os deuses ainda andam por aqui e o homem que não pisa a terra dos deuses com cuidado é um insensato.

Os deuses ainda estão aqui, — murmurei. — Pode ser tolice minha, mas estão.

Três mil anos, — disse ele. — Guerras, traição, terre­motos, servidão, esquecimento. E os homens ainda reconhecem a presença dos deuses. Não, não é tolice sua. Acontece a todo o mundo que tem inteligência e imaginação. Estamos em Del­fos ... e não somos, nem de longe, os primeiros que ouvem as rodas dos carros.

É o único lugar em toda a Grécia em que as ouvi real­mente. Tentei imaginar coisa em outros lugares, sabe como é... Mas nada senti realmente, nem mesmo em Delfos. Há fantasmas em Micenas, mas não é a mesma coisa...

Pobres fantasmas humanos, — disse ele. — Mas aqui... Se um lugar foi, como Delfos, um centro de culto religioso durante dois mil anos talvez, alguma coisa permanece. Há alguma coisa que adere às pedras e impregna o próprio ar. O efeito é acentuado pela paisagem, que deve ser uma das mais magníficas do mundo. E isso é apenas o cenário para o lugar sagrado. Vamos entrar no templo.

Uma rampa levava ao chão do templo, que era calçado com grandes blocos de pedra, alguns deles quebrados e perigosos. Andamos cuidadosamente até à beira do recinto, entre as colu­nas. Abaixo de nós, descia a prumo o muro que restava. Vinha depois a encosta íngreme e os fantasmas dos santuários espar­sos. O vale distante era uma imensidade de escuridão, percorri­da pelos pequenos movimentos do vento noturno e pelo sussur­rar dos pinheiros e das oliveiras.

Ao lado de mim, a brasa do cigarro de Simon se avivava e esmaecia. Vi que ele tinha dado as costas para os espaços do vale. Estava encostado a uma coluna, olhando para a montanha que se elevava atrás do templo. Eu nada via senão os vul­tos espessos das árvores, entre as quais surgiam formas pálidas de pedra.

Que é que há lá em cima?

Foi aí que encontraram o Cocheiro.

A palavra me trouxe de volta ao presente com a emoção de um pequeno choque elétrico. Eu esquecera, no entusiasmo avassalador da descoberta de Delfos, que Simon tinha outras preocupações.

Hesitei. Afinal de contas, fora ele quem se desviara do caso para o campo neutro de Delfos. Disse então com um pouco de constrangimento:

—            Acha que Stéfanos tem razão? Isso faz qualquer senti­dopara você?

— Absolutamente nenhum, — disse ele jovialmente, afastando-se da coluna. — Por que não vem até ao atelier agora para conhecer Nigel e tomar um café ou um drinque?

— Bem, eu gostaria, mas não acha que já é tarde demais?

— Nesta terra, não. Tenho a impressão de que ninguém aqui vai para a cama, a não ser à tarde, depois do almoço. E, bem sabe, quando se está na Grécia, é preciso proceder como os gregos... Está cansada?

— Nem um pouco. Acho que já devia estar, mas não estou.

Ele riu.

—            Deve ser o ar, a luz ou simplesmente a embriaguez da vida na Hélade. Isso conta também. Quer ir então?

—            Adoraria ir.

Quando atravessava o chão do templo, com a mão dele a apoiar-me o braço, tive tempo de surpreender-me comigo mesma e desentir uma espécie de resignação. Lá me ia de novo... Daquela mesma maneira, me deixara levar por Philip. É verdade que desta vez era diferente. Não tratei, porém, de analisar em queconsistia exatamente a diferença.

Por que é que não descemos para a estrada e estamos seguindo este caminho? — perguntei.

Não é preciso descer. O atelier fica acima do templo na crista da montanha que se inclina para Delfos. É mais fácil ir através do resto do santuário.

—            E o carro?

—            Irei buscá-lo depois, quando a tiver levado para o hotel. Não élonge. Por aqui, e cuidado para não pisar em falso... Aquié mais fácil. Estes degraus levavam ao pequeno teatro. Aquilo ali foi construído por Alexandre depois de escapar de ummomento difícil numa caçada de leões... Aqui está o teatro. E pequeno em comparação com o de Atenas ou de Epidauro, masnão lhe parece uma jóia?

À luz das estrelas, o chão arruinado parecia liso e intacto. As arquibancadas semicirculares se erguiam, aparentemente novas e perfeitas, para a sua cortina de fundo de azevinho e ci­prestes. Aquela quebrada taça de mármore de teatro estava em silêncio, a não ser o leve ruído de um galho seco arrastado sobre os degraus pelo vento.

Eu disse então num impulso:

Creio que você não...Desculpe, é claro que não.

Que é que você crê que eu não faria?

Nada. Era uma tolice, dadas as circunstâncias.

As circunstâncias? Ora, não se preocupe com isso. Acho é que você gostaria de ouvir alguma coisa recitada aqui em grego, ainda que fosse apenas thalassca thalassa! Não é isso?

Se você continuar a ler assim os meus pensamentos, vai ser uma companhia bem desagradável.

Você devia treinar também para ler os pensamentos.

Não tenho vocação para isso.

Talvez seja essa a minha salvação.

Por quê? Que quer dizer com isso?

Ele riu.

Nada. Deixe para lá. Estou certo?

Está. E a vontade que tenho não é de ouvir apenas thalassa. Alguns versos, se pode lembrar-se de alguma coisa. Ouvi alguém recitar versos no teatro de Epidauro e tive a im­pressão de um verdadeiro milagre. Até um sussurro podia ser ouvido numa das filas mais altas das arquibancadas.

Acontece o mesmo aqui, disse ele, embora não seja tão estupendo como lá. Está bem, vou fazer-lhe a vontade. Procurava alguma coisa nos bolsos enquanto falava. Te­nho de achar meu isqueiro...Para ter a voz convenientemente transmitida, é preciso procurar o centro do palco. Está marcado por uma cruz nas lajes...

Quando ele tirou o isqueiro do bolso, ouvi o leve tilintar musical de metal contra pedra. Abaixei-me prontamente, seguindo a direção do som.

—            Caiu alguma coisa. Dinheiro, parece. Por aqui... Não foi muito longe. Quer iluminar aqui um instante?

Ele acendeu o isqueiro e curvou-se para o chão. Quase imediatamente percebi o brilho de uma moeda. Apanhei-a e passei-a para as mãos dele. A chama alaranjada do isqueiro caiu sobre o pequeno disco na palma de minha mão e eu disse:

—            Mas isto é ouro!

—            É, sim. Muito obrigado, — disse ele, guardando a moe­da no bolso. — Foi uma das lembranças de Michael que Stéfanos nos mandou. Eu lhe disse que ele nos mandou tudo o que foi encontrado no corpo de Michael. Havia três dessas libras de ouro.

Afastou-se de mim com o isqueiro aceso, à procura da mar­ca central. Poder-se-ia pensar que nada mais havia em seu espírito salvo a agradável tarefa de servir de guia a uma moça nas ruínas de Delfos.

Simon...

É aqui, — disse ele, levantando-se, com o isqueiro ainda aceso na mão. Não notou decerto como eu o olhava, pois me mostrou de novo o seu encantador sorriso. — Eu lhe disse que não se tratava mais de uma tragédia presente, não disse? Recomendei-lhe que não se preocupasse. Agora, venha aqui para o centro e ouça como sua voz é levada até à última fila de ar­quibancadas.

Dirigi-me para o lugar indicado.

Sei muito bem que você me disse isso. Mas acontece que nessa ocasião você não sabia que seu irmão Michael tinha sido assassinado. Isso não altera a situação?

Talvez. Está ouvindo o eco?

Estou, sim. Que coisa mais estranha! É como se o som estivesse voltando daqueles penhascos lá em cima, com alguma coisa tangível... Vai mesmo recitar alguma coisa em grego ou prefere desistir disso?

Creio que ele me interpretou mal deliberadamente.

—            Com essa falta de público, o melhor seria desistir. Mas que é que você quer ouvir?

—            O entendido em letras clássicas é você. Diga o que qui­ser. Mas espere um momento enquanto eu vou lá para cima.

Subi pelas arquibancadas e escolhi um lugar a dois terços da fila mais alta. O assento de mármore era supreendentemente confortável e a pedra ainda estava quente do calor do sol. O palco circular parecia bem pequeno lá embaixo. Eu mal podia divisar o vulto de Simon. A voz dele me chegou então daquele poço de escuridão e os versos gregos subiram, expandiram-se e ressoaram como um sopro de vento entre os altos picos. Uma frase, um nome se destacou da onda sonora, dando direções à música, como flechas: "Hades, Perséfone, Hermes..." Fechei os olhos e escutei.

Ele se calou. Houve uma pausa. O eco subiu pela escarpa, repercutiu como o murmúrio de um gongo e se desvaneceu. Então a voz de Simon se ergueu de novo, clara e firme, falando em inglês, traduzindo a música do grego:

 

"...Hades, Perséfone,

Hermes, mordomo da morte,

Raiva e Fúrias eternas,

Filhas dos deuses,

Que vedes todos os assassinos

E todos os ladrões espúrios, vinde!

Ficai ao meu lado, vingai

A morte de meu pai e trazei

Meu irmão para casa!"

 

Calou-se de novo. As palavras morreram no silêncio acima de mim e pareceu que o vento se movera logo na esteira do eco. Ouvi os galhos de azevinho farfalharem atrás de mim e depois, montanha acima, um espalhar de terra e seixos sob as patas de algum animal errante, talvez uma cabra, talvez um jumento. Tive a impressão de ouvir algum tinido metálico. De­pois, a noite voltou a ficar tranqüila. Levantei-me e comecei a descer a passagem entre as filas das arquibancadas.

A voz de Simon veio ao meu encontro, com um timbre cal­mo e perfeitamente clara.

Ouviu bem?

Maravilhosamente, disse eu, aproximando-me dele. Muito obrigada. Mas você não me disse que a tragédia es­tava terminada?

Pela primeira vez desde que o conhecia (cerca de sete ho­ras, menos de metade de um dia, seria possível?), ele me pa­receu desconcertado.

Que quer dizer com isso?

Os versos que escolheu foram bem apropriados à situa­ção, não acha?

Reconheceu-os?

São da Electra de Sófocles, não são?

—            São. — Houve uma pausa. Estava com a mão no bolso e, quando a tirou, ouvi um tilintar de moedas. Sacudiu-as distraidamente na mão e disse: — Então eu estava enganado. Nada acabou... pelo menos, até Stéfanos mostrar-nos o lugar ama­nhã e. ..

Refleti que Simon Lester parecia ter o hábito dos reis de falar de si mesmo na primeira pessoa do plural. Teria gostado de perguntar: "Mostrar-nos?" Mas não perguntei. Disse apenas:

E...

—            E eu encontrar o que Michael descobriu, aquilo por que foi assassinado, o ouro.

—            O ouro?

Sim. Já lhe disse que tinha a idéia de que foi isso que Michael descobriu. Pensei nisso logo que li as cartas dele e me lembrei das libras esterlinas de ouro que ele tinha consigo. Agora, depois do que Stéfanos nos disse, tenho certeza. Foi ouro que ele descobriu, o pequeno montão de ouro inglês de Ângelos, escondido à espera do raiar da Alvorada Vermelha.

Mas, Simon... — comecei a dizer, mais parei. Afinal de contas, ele conhecia Michael mais do que eu.

As moedas tilintaram de novo quando ele as guardou no bolso. Voltou-se para o lado do anfiteatro.

—            O caminho é por aqui. É melhor eu ir na frente, pois em muitos lugares os degraus estão quebrados.

Estendeu-me a mão e nós subimos juntos. No alto, ele parou e pareceu apanhar alguma coisa na escuridão. Ouvi um farfalhar de folhas e, pouco depois, ele me colocou nas mãos alguma coisa redonda, lisa e fria.

—            Pronto. É uma romã. Há uma árvore por trás da última fila de arquibancadas e eu, há muito, estou procurando um pre­texto para colher um dos seus frutos. Coma logo, Perséfone. De­pois disso, terá de ficar em Delfos.

O caminho nos levou afinal para um espaço acima das ár­vores onde podíamos ver melhor por onde pisávamos. Havia espaço bastante para caminharmos lado a lado. Simon conti­nuou a falar.

—            Creio que tenho razão, Camila. Acho que foi isso que Michael encontrou. Já suspeitava disso, mas agora que sei que ele foi assassinado por Ângelos, tenho certeza.

Eu disse então sem muita argúcia, mas seguindo a linha de meus pensamentos:

Mas Stéfanos disse que ele foi assassinado em conse­qüência de uma discussão. Ele e Ângelos...

Se Michael estivesse discutindo com um tipo como Ângelos, não iria absolutamente ficar de costas para ele. Muito me espanta que Stéfanos não tivesse pensado nisso por si mesmo...

Mas, se eles tinham uma velha rixa e Michael pensasse que tudo estivesse esquecido, mas Ângelos...

Podemos aplicar o mesmo raciocínio. Michael não iria confiantemente dar as costas a um homem que tivera — ou julgara ter — motivos para matá-lo.

—            Claro que não.

—            Mas recolha todos os fragmentos do caso e junte-os — disse Simon. — Que é que temos então? Já lhe disse que nós, os ingleses, estávamos remetendo armas e ouro durante a ocupação para uso dos andartes. Ângelos, como agora sabemos por intermédio de Stéfanos, estava trabalhando para um putsch comunista ao fim da ocupação da Grécia pelos alemães. Pode­mos, portanto, presumir que ele tivesse interesse em reservar armas e outros materiais para uso posterior. É apenas uma pre­sunção, mas quais são os fatos que temos? Ângelos, quando os seus homens se dispersaram para o norte a fim de evitar os alemães, veio para o sul, sozinho. Encontrou-se com Michael e matou-o. Foi interrompido antes que pudesse efetuar uma bus­ca no corpo, e em Michael encontraram-se libras de ouro e uma carta apressadamente escrita na qual ele indicava que descobri­ra alguma coisa.

—            De fato, mas...

Se Ângelos tinha um esconderijo de armas e de ouro, e Michael, oficial de ligação inglês, descobriu esse esconderijo, não havia motivo suficiente para Michael ser assassinado?

Sem dúvida. Quer dizer que Michael, encontrando-se com ele, interpelou-o sobre o assunto e... Oh, não, essa explicação não serve, não é mesmo? A objeção é a mesma... Ângelos não teria ensejo de atacá-lo pelas costas.

Não posso deixar de supor, — disse Simon, — que Ân­gelos soube de alguma coisa que lhe revelou que Michael tinha descoberto o esconderijo. Deve ser em alguma caverna. O Par­naso está cheio delas. Não podemos supor que Michael, depois de deixar a casa de Stéfanos, se tivesse refugiado na caverna, onde o ouro estava escondido? Pode ter passado alguns dias; lá até os alemães terem evacuado a área e então Ângelos, vol­tando às pressas para a sua arca do tesouro, teria visto o oficial inglês sair da caverna, da sua caverna.. . E se Michael não viu Ãngelos, como parece evidente, o grego esperou e tentou eliminá-lo sem demora ali mesmo. Isso quer dizer...

—            Isso quer dizer que, se você tem razão, o esconderijo era muito próximo do lugar onde Michael foi assassinado. ..

—            Exatamente. É o que vamos ver.

—            Se havia alguma coisa, já deve ter sido levada há muito tempo.

—            É bem provável.

Ãngelos voltou e levou tudo, quando não imediatamen­te, depois.

Se ele viveu para voltar. Três meses depois da morte de Michael, saiu de vez do país.

Eu disse então, tão calmamente quanto pude:

—            Foi mesmo? Quem sabe se Niko não tem alguma razão e se ele não está ainda vivo? E por aqui?

Simon riu.

—            Isso está nas mãos dos deuses, não é mesmo? Que é que acha? Devemos oferecer ouro a Apolo se ele trouxer Ân­gelos de volta a Delfos agora?

—            Egisto trazido para o punhal de Orestes?

Tentei falar com displicência, mas as palavras me pare­ciam levianas e vãs.

Por que não? Eu lhe disse a verdade quando externei a opinião de que a tragédia estava encerrada. Não me considero ressentido, nem dramático a respeito da morte de Michael, mes­mo depois do que soube esta noite. Mas a verdade é que foi assassinado e, se não estou enganado, por um motivo sórdido. Quanto ao papel de Orestes, não sinto a menor inclinação para a vingança, mas se me encontrasse com o assassino. . . gostaria muito de ter uma conversa com ele. Ou você tem a mesma opinião de Niko a respeito de minha capacidade?

Não, é claro que não. Mas esse Ângelos é um homem.. bem...

Perigoso? Não acha então que, se eu me encontrar com esse homem, devo ter um ajuste de contas com ele?

Olho por olho? disse eu. Pensei que não acreditávamos mais nisso.

Está muito enganada. Acreditamos, sim. O que aconte­ce é que na Inglaterra há uma máquina excelente, cara e im­pessoal que se encarrega de arrancar olho por olho por nossa conta, mas sem culpa pessoal e com o único trabalho de pa­garmos os impostos. Aqui é diferente. Ninguém faz esse traba­lho desagradável por nós. Temos de fazer tudo pessoalmente, sem ninguém saber, a não ser os abutres. E Apolo.

Isso que você está dizendo é imoral, Simon.

O direito natural também. A moral é um fenômeno so­cial, não sabia?

Não concordo.

Não? Pois mantenha-se firme na sua opinião, Camila. Este é o mais belo país do mundo e o mais difícil. Assim é em grande parte e você pode ver-se na contingência de aceitar os padrões de terra em vez dos seus. Acho até que há ocasiões em que... Bem, defenda a sua opinião. Riu e continuou: Para começar, não acredite numa só palavra do que eu digo. Na realidade, sou um cidadão normal e respeitador das leis e um professor muito solene e correto... Agora, chega dessa tragédia orestiana. Michael está morto há quatorze anos e Del­fos está aqui há três milênios. Deixemos, portanto, Delfos en­terrar os seus mortos. Por coincidência, lá está o cemitério ao lado do caminho, sob as árvores. E, lá adiante, está o atelier.

E sem outro olhar na direção do cemitério, ele me levou em passo acelerado por terreno plano para o atelier iluminado.

 

"A quem os deuses amam..."

Menandro

 

O atelier ficava num grande edifício retangular situado no morro atrás da aldeia de Delfos. Mais tarde, à luz do dia, eu iria vê-lo como uma grande e feia construção em forma de caixão, plantada num platô cortado na rocha viva, de tal modo que, enquanto das suas janelas de frente se descortinava uma vista magnífica do vale, as do fundo davam para um paredão de pedra que se elevava até à altura do segundo andar. Do lado do norte, ficavam as grandes portas da "frente", impressionan­tes concepções de vidro que nunca eram usadas. Os moradores saíam e entravam por uma portinha do lado leste, que se abria para o corredor que se estendia por todo o andar térreo.

Dentro, tudo era tão nu e funcional quanto possível. Corredores e escadas eram de mármore e se mostravam irrepreen­sivelmente limpos. No primeiro andar e à esquerda do corre­dor, ficavam os quartos dos artistas, voltados para o sul sobre o vale. Eram exatamente simples. Cada quarto continha apenas uma cama de ferro com cobertores e travesseiros, uma pia de água corrente com torneiras de água fria e quente, das quais só a fria funcionava permanentemente, uma mesa pequena e inevitavelmente desconjuntada e cabides para as roupas. Junto a cada quarto, havia um banheiro com piso de mármore e um chuveiro presumivelmente também com água fria apenas. De­fronte dos quartos, havia outras portas que nunca vi abertas, mas que imaginei que fossem dependências de serviço ou alo­jamentos para o zelador. Os artistas que ali residiam trabalha­vam no último andar onde a luz era melhor. Ali, uma série de salas do lado norte do corredor serviam de estúdios para os artistas e de depósito para o trabalho deles.

Mas de tudo isso eu me iria inteirar depois. Naquela noite, o edifício foi apenas um feio caixão oblongo plantado na pedra, com luz de uma lâmpada elétrica sem abajur a mostrar-nos a porta.

Mal havíamos chegado ao ressoante corredor, uma porta se abriu perto de nós e um homem moço saiu de lá como uma bala disparada. Agarrou o portal quando foi catapultado e se apoiou, quase como se precisasse disso para interromper a sua traje­tória. Disse numa voz muito exaltada:

—            Ah, Simon, eu ia...

Mas me viu e calou-se, ainda teatralmente agarrado ao portal.

Havia alguma coisa no seu processo de apresentação que lembrava Niko, mas a semelhança parava nisso. O moço — que eu supus que fosse Nigel — nada tinha da beleza ou da pro­messa de força de Niko e, por conseguinte, nada da segurança do outro. Não havia drama consciente em seus atos e, na ver­dade, parecia terrivelmente confuso, quase como se preferisse voltar para o seu quarto e trancar a porta. Era alto, magro e louro. A pele estava muito queimada de sol e os olhos, que eram daquele azul franzido que se costuma ver em marinheiros, avia­dores e homens habituados a olhar para as distâncias, pareciam haver recebido muito sol também. Tinha uma barbicha rala que o fazia parecer jovem e um pouco vulnerável e os cabelos ti­nham a cor e a contextura do feno seco. Tinha uma boca le­vemente sensual e as mãos fortes e feias do artista.

Alô, Nigel, — disse Simon. — Esta é Camila Haven, que está hospedada no Apollon. Trouxe-a para tomar um drin­que e ela está interessada em ver seus trabalhos. Você se incomoda?

 

Oh, não! De modo algum. Muito prazer, — disse Nigel, gaguejando um pouco. — Venham para meu quarto, então. To­maremos um drinque lá.

Quando ele ficou de lado para me deixar passar, um pouco mais agitado do que já estava, tive a idéia de que ele tinha estado bebendo sozinho no quarto. Havia um brilho estranho nos olhos dele e a impressão de que ele se estava contendo, no mesmo esforço para controlar-se com que se agarrara ao portal.

O quarto dele, basicamente tão desprovido de móveis quan­to o resto do edifício, estava desesperada mas um tanto simpaticamente desarrumado. Era como se a personalidade do ar­tista, muito mais rica do que à primeira vista parecia, se tivesse derramado sem saber pela pequena cela de aspecto mo­nástico. Aos pés da cama, uma mochila estava jogada no chão e o seu conteúdo se ostentava em confusão. Vi duas camisas tão vistosas quanto as de Niko mas de colorido mais respeitá­vel, um pedaço de corda, alguns lenços sujos que evidentemen­te eram usados para limpar pincéis, três laranjas e um exemplar dos poemas de Dylan Thomas. A toalha jogada sobre a borda da pia era tão brilhantemente amarela como uma margarida. O pijama amontoado em cima da cama era listrado de vinho e turquesa. E por toda parte nas paredes brancas e estaladas havia desenhos pregados ao acaso com percevejos. Eram de uma grande variedade de estilos, de tal modo que, correndo os olhos do forte para o delicado, dos desenhos a bico de pena às aquarelas que se encurvavam nas pontas secando, lembrei-me do que Simon me havia dito.

Mas não tive tempo senão de olhar porque o dono da casa, passando por mim, estava puxando a melhor cadeira que havia, que era de lona e cor de laranja.

—            Não se quer sentar? É o melhor que temos. E não tenha receio que está limpa.

Agradeci e sentei-me. Simon tinha ido até à janela e se sen­tou no peitoril, com uma perna pendurada. Nigel, ainda com o seu ar desconcertado, estava remexendo um pouco freneticamente nas garrafas que enchiam o box do banheiro. Saiu daí a alguns instantes com dois copos e uma grande garrafa de ouzo.

—            Gosta disto? — perguntou-me ansiosamente. Infelizmente, é só o que há.

Havia em Nigel alguma coisa que me desarmou e me fez cometer uma deliberada mentira.

—            Adoro, disse eu.

Esperei resignadamente enquanto ele servia uma dose reforçada e me entregava o copo, perguntando:

—            Gosta de um pouco de água?

Ora, ouzo é o absinto grego. É feito de anis e tem um gosto brando e, para o meu paladar, incrivelmente desagradá­vel. Eu o acho puro quase intragável. Por outro lado, quando se acrescenta bastante água para que ele melhore um pouco, a quantidade que se tem de ingerir ê bem maior.

Disse então corajosamente:

—            Faça o favor.

Nigel pegou uma garrafa de água acima da pia. Tornei a achar vivamente que os movimentos dele eram uma paródia dos de Niko. Eram rápidos, abruptos e angulosos, mas onde os de Niko tinham tido uma graça felina, os de Nigel eram canhestros e quase descoordenados. Pensei que era estranho um artista ser desajeitado, até que vi Nigel derramar água em meu copo e percebi que a mão dele estava tremendo. Isso era ainda mais estranho.

O líquido se toldou e enevoou e ficou inteiramente horrível como se fosse quinino. Quando agradeci e sorri para Nigel, ele me estava olhando com uma expressão de cachorrinho ansioso, que o fez parecer mais jovem do que nunca. Devia ter seus vinte e três anos, mas a barba dava-lhe um aspecto de dezenove anos. Sorri bravamente e levantei o copo.

Gia sou, Kyrie Nigel, disse eu. Desculpe, mas não sei seu nome todo.

Basta Nigel, disse ele, sem me ajudar mas com evi­dente prazer.

Enquanto bebia cautelosamente, olhei para Simon para sa­ber se ele estava bem a par dos meus sentimentos a respeito do ouzo. Fiz uma careta para ele e tomei outro gole, refletindo mais uma vez que Kyrie Simon Lester via demais as coisas. Dominei o tremor que me sacudiu o corpo quando a bebida desceu e vi então, fascinada, Nigel encher quase até às bordas o copo de Simon, pegar um copo para si, enchê-lo, dizer rapidamente "Gia sou" e beber a metade de um gole só.

—            Salve, amigo, disse Simon. Passou bem o dia? Nigel, engasgando-se um pouco com a bebida, conseguiu dizer:

Oh, sim! Muito bem. Obrigado.

Aonde é que foi?

O moço estendeu vagamente a mão, quase derrubando com isso a garrafa de ouzo, coisa que infelizmente não chegou a acontecer.

— Lá por cima.

— No recinto do templo?

—            Não. Pela montanha.

—            De novo pelo Parnaso? Seguiu os mesmos velhos caminhos para retratar ainda alguns pastores? — Virou-se para mim e explicou: — Nigel tem um contrato para uma série de desenhos de "tipos helénicos" — cabeças de camponeses e de velhas, jovens pastores e assim por diante. Algumas das coisas que já fez são realmente notáveis.

Nigel tomou ansiosamente a palavra.

É um trabalho que dá muita satisfação, não posso nem dizer quanta. Depara-se com um garoto que está guardando algumas cabras e começa-se a desenhá-lo. Dentro em pouco, percebe-se que já se viu aquele garoto uma dezena de vezes nos museus. Encontrei uma moça na semana passada em Anfissa que era puro estilo minuano, com cabelos ondulados e tudo. E claro que isso dificulta muito as coisas porque, por.mais que se faça, há sempre a impressão de que se está copiando a urna grega original.

Sei disso, — disse eu, rindo. — Encontrei hoje um Zeus e um Eros um pouco malicioso e mais uma dúzia de sátiros sortidos.

Stéfanos e Niko? — perguntou Simon.

Claro, — disse eu. — Nigel devia conhecê-los.

Quem são eles? — perguntou Nigel.

—            Stéfanos é um pastor de Arachova e parece saído diretamente de Homero. Niko é neto dele e ê simplesmente um rapaz muito bonito em estilo greco-americano. Mas se é apenas a cabeça que você quer, dificilmente poderá encontrar um modelo melhor.

Refleti, ao dizer isso, que Simon evidentemente nada dis­sera a Nigel de sua missão naquela noite a respeito de Michael. E não o fez naquele momento.

—            Pode ser que você ainda os conheça, Nigel, — disse ele. — Stéfanos costuma ficar entre Delfos e Arachova, perto daquele caminho por onde o levei ontem. Foi o mesmo que você seguiu hoje? Até onde?

Muito longe, disse Nigel vagamente e de novo pa­receu extremamente confuso. Acrescentou prontamente: Es­tava cansado de ficar nas imediações do templo e no vale. Queria caminhar. Cheguei acima das Cintilantes e continuei. Estava muito calor, mas lá em cima havia uma brisa bem re­frescante.

Não trabalhou hoje?

A pergunta de Simon não tinha a menor intenção, mas o rosto de Nigel ficou muito vermelho sob a sua pele queimada. Isso o fazia parecer cauteloso, mas calculei que se tratasse de simples timidez.

Não, disse ele secamente e levou o copo à boca.

Quer dizer que não encontrou pastores tocando a flau­ta de Pã? perguntei eu. No Parnaso? É de estranhar, Nigel.

Não, disse ele, rindo, e tanto pior para mim.

Não encontrou deuses? perguntei, pensando nas ruí­nas do templo que eu vira à luz das estrelas.

Mas a timidez dele se afirmou então por completo. Retor­quiu, quase agressivamente:

Não! Já disse que não fiz quase nada hoje! Estava ape­nas dando uma caminhada. De qualquer maneira, essas cabeças são apenas para mim um ganha-pão. Não vai gostar delas.

Bem, gostarei de ver alguns trabalhos seus, se você quiser dar-se ao trabalho de mostrá-los. Simon me disse que seu desenho é muito bom...

Ele me interrompeu numa voz tão rápida e rouca que me deu a impressão de uma pequena explosão de mau humor.

Bom? Simon não sabe o que está dizendo. Meus traba­lhos não são bons, embora me agradem.

Alguns deles são muito bons disse Simon, calma­mente.

Nigel fez uma careta para ele.

—            Nada disso! São muito açucarados, ao jeito de Ruskin. Não calcula o que os críticos podem dizer deles? Não prestam e você sabe muito bem disso.

São de primeira ordem e você sabe muito bem disso. Se você...

Se, se, se... — exclamou rudemente Nigel, batendo o copo na mesa. — A verdade é que não prestam.

Mas são o que você quer fazer, mas apontam o cami­nho que você quer tomar e isso é que interessa, não é mesmo? São de Nigel Barlow e são fora do comum.

Não prestam — disse Nigel, cada vez mais enérgico na sua afirmação.

Se quer dizer com isso que não pode ganhar a vida desde já com eles, estou de acordo. Mas ainda acho...

Que eu devo ser fiel a mim mesmo? — disse Nigel com uma voz estridente que podia ser exaltação, mas parecia revol­tada. — Pelo amor de Deus, não me venha com frases feitas! E, de qualquer maneira, isso não tem a menor importância. Nenhuma mesmo, está ouvindo?

Simon sorriu para ele. Acho que foi então que realmente vi pela primeira vez o que havia no fundo do temperamento calmo e aparentemente controlado de Simon. Compreendi que havia muita diferença entre o que ele de fato era e a mais ostensiva confiança que eu havia invejado. Simon se interessava. Era evi­dente que se interessava pelo que acontecesse àquele moço que conhecia casualmente e que era bem pouco simpático e doloro­samente rude. Era por isso que tinha voltado depois de quator­ze anos para saber o que havia acontecido a Michael. Não era uma tragédia presente e ele não era, afinal de contas, um Orestes. Mas se interessava — por causa do pai, de Stéfanos, da mulher. "A morte de qualquer homem me diminui porque estou integrado na humanidade". Era isso. Ele estava integrado na humanidade e, naquele momento, a humanidade significava Nigel. "É evidente", tinha dito ele, "que se está aqui para aju­dar". Creio que a maneira mais rápida de conhecer um homem ésaber o que ele considera evidente.

Ele largou o copo e entrelaçou os dedos em torno de um joelho.

—            Está bem. Polonius sai de cena. Você quer que lhe arranjemos um jeito de vender, Nigel?

Nigel disse, já então sem grosseria, mas ainda com um traço daquela ardente e um pouco mal-humorada impaciência:

Está falando num truque para fazer o público vir ver os meus trabalhos? Um golpe de publicidade para eu fazer uma exposição nos confins de Sheffield ou outro lugar assim? Dois desenhos vendidos e meu nome citado na imprensa local? É isso o que você tem em vista?

Bem, é preciso começar seja lá como for, Nigel. Não pode considerar isso parte de sua luta? E, pelo menos, isso po­deria livrá-lo da degradação final.

Qual é ela? — perguntei.

Ensinar.

Ah, compreendo o que você quer dizer, — disse eu.

—            Sei que você compreende. Nigel disse, aborrecido:

É muito fácil rir, mas eu seria um péssimo professor e detestaria ter de fazer isso. Seria terrível.

Um verdadeiro inferno, — disse Simon alegremente. — Temos de tomar providências para fazer o público aparecer para zombar e ficar para comprar. Tem de fazer acreditar que pinta os seus quadros debaixo da água ou ouvindo Mozart.

Nigel reagiu com um riso relutante e um tanto envergo­nhado.

—            Decida-se. Que é que vai ser? Art trouvé ou pedaços de ferro enferrujado retorcidos de qualquer maneira e com o título de "Mulher Apaixonada" ou "Cachorro Come Cachorro"?

 — Pode sempre, — disse eu, — atravessar a Grécia mon­tado num jumento e então escrever um livro ilustrado.

Nigel voltou-se para mim com o ar de quem mal havia escutado. Tornei a pensar que ele já havia bebido demais.

—            Como? Um jumento?

—            Sim, havia um holandês em Delfos esta noite que tinha acabado de chegar de Jannina. Tinha percorrido as montanhas como Stevenson, pintando durante a viagem. Creio que pintou muito nas aldeias e financiou mais ou menos a sua excursão com isso.

—            Ah, sim, conheço esse camarada. Está aqui agora.

—            É claro. Tinha-me esquecido. Simon me disse que ele viria dormir aqui esta noite. Viu os trabalhos dele?

Não. Estava tão cansado que nem pensou nisso. Jogou-se na cama mais ou menos às nove horas e acho que agora só uma bomba atômica seria capaz de acordá-lo. — Os olhos dele se fixavam em mim como se tivesse dificuldade em ver-me e em conversar. Disse então com voz pausada: — Ser fiel a si mesmo... saber que se pode fazer alguma coisa se o mundo der uma chance..., mas ter de lutar por isso passo a passo... — O olhar confuso se concentrou e se voltou para Simon. Simon...

Que é?

Você diz que alguma propaganda seria "parte da luta", porque, antes de mais nada, faria as pessoas pararem e olharem, não é? Mas, se o meu trabalho não prestar de fato, não haverá propaganda no mundo capaz de atrair ninguém. Mas, se prestar, não poderão deixar de dar-lhe atenção. O valor próprio do tra­balho é que tem importância. Essa é que é a verdade, não acha?

É possível. Mas no seu caso, acho que muito vai depen­der da propaganda, — disse Simon, sorrindo. — Tenho a impressão de que alguns bons artistas foram forçados a tomar um caminho que nunca aceitaram senão como uma maneira de cha­mar a atenção do público. Não quero citar nomes, mas você conhece alguns que estão nesse caso.

Nigel não sorriu. Parecia até então estar escutando, preferindo seguir o curso de seus pensamentos. Hesitou e então dis­se de repente:

—            Mas isso pode ser, no fundo, fidelidade a si mesmo, não pode? Afinal de contas, a pessoa deve obter aquilo que deseja e que lhe é necessário. Mas seguir diretamente o caminho que se acha que deve ser seguido, aconteça o que acontecer, é a ma­neira de trabalhar dos artistas, dos grandes artistas, não é mes­mo? Que é que você acha?

Eu disse então:

—            Não conheço de perto grandes artistas, mas sempre achei que o segredo da personalidade — note que não estou dizendo do "sucesso" — é seguir fixamente o seu caminho. Os grandes homens sabem para onde vão e nunca se desviam do seu objetivo. Sócrates com "a beleza e o bem". Alexandre com a helenização do mundo. E, num plano diferente, posso falar em Cristo.

Nigel olhou para Simon e exclamou numa voz estridente, quase de desafio:

—            Então? Então?

Pensei que havia em tudo aquilo alguma coisa que eu não compreendia. Tive a impressão de que Simon também não com­preendia e de que isso o preocupava.

Ele disse então compassadamente, mas a fitar Nigel com olhos bem vivos;

—            Você até certo ponto tem razão. Os grandes homens sabem para onde vão e chegam ao seu destino. Mas, se chegam lá é porque caminham sem cessar e sem medir esforços e não porque esmagam toda a oposição. Você pensa que Polonius foi um velho falador e chato. Foi você que falou nele e não eu. Não concordo com ele, mas faço-lhe a justiça de completai a citação: "Sê fiel à teu próprio eu... Não poderás assim ser fal­so a ninguém". Se ser fiel a si mesmo significa desprezar os direitos alheios, isso muito simplesmente não pode dar certo, não é? Ora, um homem realmente grande, Sócrates, por exem­plo, segue em linha reta um caminho por ele mesmo traçado. Sabe qual ê o objetivo e não se desvia dele, mas durante todo o tempo leva em conta o que e quem lhe possa surgir pelo cami­nho. Vê tudo como um plano em conjunto e sabe qual é o seu lugar no mesmo.

Citei então:

—            "Estou comprometido com a humanidade".

Exatamente.

Que é isso? — perguntou Nigel.

Uma citação de John Donne, um poeta que se tornou deão de St. Paul. A frase faz parte de uma das suas Devoções... "Ninguém é uma ilha, completo por si mesmo". Ele tem razão. No fundo, só o que importa é o lugar que ocupamos no conjunto.

Está bem, e o artista? — disse Nigel, quase com irrita­ção. — O artista é diferente, sabe muito bem disso. É dominado por uma espécie de força propulsora e, quando não sabe o que deve fazer de sua vida, pode muito bem morrer. Tem de romper a indiferença do mundo ou de ser destruído por ela. Não pode proceder de outra forma. Tem, portanto, razão de fazer seja o que for para realizar-se, desde que, ao fim de tudo, a sua arte tenha algum valor.

—            Seria a velha história de que o fhfi justifica os meios,                disse Simon. E isso não pode ser aceito como um princípio válido. Nunca!

Nigel deixou-se cair na sua cadeira.

Entendam bem que não estou pensando em coisas si­nistras como assassinatos ou crimes! Mas, se não houver outro jeito...

Que é que você pretende fazer, afinal de contas? perguntei. Roubar o jumento?

Virou-se para mim de maneira tão brusca que cheguei a pensar que fosse cair da cadeira. Deu então uma risada que me pareceu eivada de nervosismo.

Eu? Ir até Jannina e escrever um livro sobre isso? Eu? Nunca! Teria medo dos lobos!

Não há lobos, disse Simon com uma voz despreo­cupada, mas estava olhando Nigel atentamente e havia uma sombra de preocupação no rosto dele.

Tartarugas então! disse Nigel, pegando de novo a garrafa e olhando para mim. Quer mais um pouco de ouzo? Não? Simon? Chegue o copo. Sabe, Camila não me lembro deseu outro nome que havia tartarugas correndo pelas montanhas por aqui? Tartarugas selvagens? Imagine só um encon­tro com um desses bichos sozinho e longe de tudo mais!

Eu seria capaz de correr mais de um quilômetro, — disse eu.

Que é isso, Nigel? perguntou Simon do peitoril da janela.

Por um momento, fiquei sem saber o que ia acontecer. Nigel parou no meio de seus movimentos, com a garrafa na mão. Estava rígido. O rosto ficou mais vermelho e depois bran­co sob o queimado do sol. Os feios dedos espatulados se apertaram em torno da garrafa, como se fosse jogá-la. Por fim, tirou os olhos de Simon, colocou a garrafa em cima da mesa e disse numa voz curiosamente abafada:

—            Desculpem. Não me estou sentindo bem. Já estava um pouco alto quando vocês chegaram. Só isso.

Depois, voltou-se para mim com um dos seus curiosos movimentos rápidos que lembravam uma criança desajeitada.

—            Não sei o que vai pensar de mim. Deve julgar que sou um tipo muito sem-educação, mas muitas coisas me têm ener­vado um pouco. O que acontece é que eu sou temperamental. Como os grandes artistas.

Sorriu para mim um tanto constrangido e eu lhe retribuí o sorriso.

—            Está tudo muito bem, — disse eu. — Todos os grandes artistas têm de lutar asperamente para que o seu valor seja reconhecido. Contanto que o reconhecimento não venha depois da morte, é ainda mais doce quando é difícil e eu sei que você o conseguirá.

Ele estava de joelhos, puxando uma velha pasta de baixo da cama.

Vou-lhe mostrar meus desenhos, — disse ele. — Pode dizer se valem alguma coisa. Seja franca.

Mas minha opinião não tem grande valor. Para dizer a verdade, não entendo nada de pintura.

Veja, — disse ele, passando-me um dos desenhos. — Este é um daqueles de que Simon fala. — Este também. — Es­tava sentado no chão sobre os calcanhares e lançou a Simon um olhar que poderia ser quase de ódio. — Serei fiel a mim mesmo, Polonius. Pode ter certeza disso. Ainda que seja preci­so não ser fiel a mais ninguém. Não estou comprometido com a humanidade, como dizia o velho poeta de quem me falaram. Eu sou eu mesmo. Nigel Barlow. Algum dia, vocês saberão dis­so, vocês e os outros. Estão ouvindo?

Eu estou, — disse Simon, pacientemente. — Agora, va­mos ver o que você tem feito.

Nigel empurrou um desenho para ele e um punhado para mim.

—            Pronto. Talvez estes desenhos não provoquem um incêndio no Tâmisa, mas com um empurrão e um pouco de sorte serão suficientes para fazer meu nome... Não acham?

Enquanto olhava pira os desenhos sobre os meus joelhos, percebia o olhar fixo de Nigel. Apesar de todas as suas frases exaltadas, o olhar vulnerável reaparecia e na pergunta final a voz afirmativa se desfizera em ingênua ansiedade. Esperei com ridículo fervor que os desenhos fossem bons.

Eram. O toque de Nigel era seguro e forte, mas delicado. Cada linha era nítida e definida e quase alarmantemente eficaz.

Ele tinha conseguido sugerir não apenas a forma, mas também o volume e a contextura simplesmente pelo desenho e com um mínimo de complexidade. A técnica sugeria de algum modo a fanada elegância de uma gravura de flores francesas com o fir­me, delicado e, apesar disso, viril impacto de um desenho de Dürer. Alguns eram simples esboços, mas outros indicavam grande esforço de sua parte. Havia estudos rápidos dos edifícios arruinados parte de um arco quebrado, atrás do qual se elevavam os agudos ciprestes exclamatorios: a coluna de Apo­lo de pé, muito clara e definida; um delicioso desenho de três romãs num galho com folhas cintilantes e caídas. Havia várias oliveiras, formas belamente retorcidas com copas de nuvem prateada tangida pelo vento. Nos estudos de plantas e de flores, ele usava cor, em leves pinceladas de uma sutileza quase chi­nesa.

Levantei os olhos e vi-o olhando para mim com aquele ar de cachorrinho ansioso, sem mais o menor vestígio de belicosi-dade.

—            Mas são maravilhosos, Nigel! Disse a você que não entendia muito de pintura, mas posso-lhe garantir que há muitos anos não vejo uma coisa que me agrade tanto!

Levantei-me da cadeira e me sentei na cama, espalhando os desenhos em torno de mim para ver melhor. Apanhei um deles. Mostrava um tufo de ciclâmen que crescia numa pequena fenda na rocha nua. As diferenças de tessitura das pétalas, das folhas e da pedra estavam lindamente indicadas. Abaixo das flo­res, na mesma fenda, havia os restos de uma planta rochosa que eu me lembrava de ter visto em toda parte da Grécia. Estava morta e reduzida a pó seco, desmanchando-se contra a pedra. Acima dela, as flores aladas do ciclâmen pareciam puras, delicadas e fortes.

Por cima de meu ombro, Simon disse:

—            Este é magnífico, Nigel. Eu ainda não tinha visto.

—            Nem podia ver. Foi hoje que o fiz, disse Nigel com alguma rudeza, fazendo menção de tomar o desenho. Pareceu então lembrar-se, como eu me lembrara, de que tinha dito a Simon que não fizera coisa alguma naquele dia, porque desceu a mão e foi sentar-se no chão, meio desconsolado.

Como de costume, Simon não notou coisa alguma. Pegou o desenho e examinou-o.

Pretendia usar cor neste desenho? Por que mudou de idéia?

Apenas porque não encontrei água à mão, disse Nigel, tomando o desenho e guardando-o na pasta.

Posso ver os retratos? perguntei, com alguma precipitação.

—            É claro. Aqui estão eles. São o meu ganha-pão.

"Havia uma nota curiosa na voz dele e eu vi Simon olhá-lo de novo com surpresa.

Havia um grande maço de retratos, feitos num estilo inteiramente diferente. Era eficiente à sua maneira e a bela economia do desenho se afirmava mesmo na linha grossa, dramática, exa­gerada. O seu brilho de feitura se tornara ali uma coisa fácil, a hábil mistura de algumas afirmações fundamentais numa fór­mula. De certo modo também, os originais dos retratos eram fundamentais. O que Nigel estava fazendo, sem dúvida, era procurar "tipos" e fixá-los. Mas, conquanto alguns fossem vi­sivelmente pessoas vivas, outros poderiam muito bem ter sido abstrações de "tipos helénicos" bem conhecidos, tiradas de está­tuas ou de pinturas em vasos e até da imaginação. Havia uma cabeça excelente que poderia ter sido de Stéfanos, mas tinha um ar formal e acentuado como uma ilustração para uma série de mitos gregos. Um rosto de moça, dominado pelos olhos e com profundas sombras lançadas por um véu que poderia ter a le­genda: "Grécia, Porta do Oriente". Outro retrato mais identificável como tipo para mim e, portanto, talvez mais vivo era o de uma jovem mulher com um rosto como o de Juliette Greco, grandes olhos perdidos e uma boca amuada. Abaixo de­le, via-se o desenho de uma cabeça de homem, que parecia pura­mente formal, mas era estranhamente empolgante. A cabeça era redonda, implantada no pescoço vigoroso e coberta com anéis cerrados, que cresciam na parte baixa da testa, como os pelos de um touro. Os cabelos cresciam abundantemente por trás das orelhas, descendo quase até à linha do queixo, como se vêem nas pinturas de cerâmica da era heróica, e essas peças late­rais eram desenhadas formalmente, como os anéis rígidos de uma face esculpida. O lábio superior era curto, os lábios gros­sos e levemente esticados nos cantos, na espécie de sorriso de meia-lua que sempre se vê nas estátuas dos deuses arcaicos da Grécia.

Simon, disse eu, veja isto. É o verdadeiro "sor­riso arcaico". Quando a gente o encontra nas velhas estátuas de Hermes e Apolo, pensa-se que é irreal e grosseiro. Mas eu o tenho visto nos rostos dos homens aqui e ali na Grécia.

—            Isso é novo também? perguntou Simon.

—            Qual? Esse? Ê, sim. Nigel olhou para o alto, hesitou e, por fim, pareceu desistir de todas as suas dissimulações, fossem elas quais fossem. Fiz isso hoje. Tomou o desenho de minhas mãos e estudou-o por um momento. Talvez tenha razão. Ê muito formal. Desenhei em parte de memória e saiu muito parecido com uma pintura de vaso. Entretanto...

—            É a cabeça de Fórmis revivida, disse Simon. Nigel levantou os olhos.

—            É isso mesmo! Eu não sabia o que era que isso me recordava. Creio que desenhei pensando nela. Contudo, é um "tipo" para uma coleção e, como diz Camila, existe. Ela tem visto esse estranho sorriso fixo aqui e ali e eu também. Pensei que era interessante.

—            Que é a cabeça de Fórmis? perguntei. Simon disse:

—            É uma cabeça encontrada, se não estou enganado, em Olímpia e se acredita que seja do dramaturgo Fórmis. A cabeça ê barbada e esta não é, mas tem o mesmo rosto largo e os mesmos anéis cerrados de cabelos, bem como esse sorriso tí­pico.

Eu ri.

—            Oh! E ainda está andando por estas montanhas. Isso faz com que eu me sinta crua, nova e muito ocidental. E este rosto?

Eu apontava para a moça parecida com Juliette Greco. Simon riu.

—            Essa aí é absolutamente real e muito ocidental. Tra­ta-se da nossa única e verdadeira Danielle, não é, Nigel? Você certamente não pretende colocá-la entre os tipos helênicos, não émesmo?

Danielle? disse eu. O nome é bem francês e foi isso exatamente que ela me pareceu.

Nigel tinha tomado o desenho das mãos de Simon e esta­va tratando de guardá-lo também. Disse numa voz abafada:

Era secretária de um camarada ligado à Escola Fran­cesa.

Escola Francesa?

De arqueologia, — disse Simon. — É a Escola France­sa que tem o "direito", ou o nome que dêem a isso, de fazer escavações aqui em Delfos. Voltaram a trabalhar pouco no local — falou-se muito da caça a um tesouro perdido para o alto das montanhas. Você vai ver uma porção de poços de exploração que abriram dos dois lados da estrada, mas só encontraram objetos romanos.

Quer dizer, modernos?

Exatamente, — disse ele, sorrindo. — De qualquer modo, tiveram de levantar acampamento porque, segundo creio, o dinheiro acabou. Alguns dos homens que trabalhavam para eles ainda estão por aqui arrumando as coisas. Há caminhões e fer­ramentas que terão de ser levados. Mas os arqueólogos se fo­ram, o que é uma pena.

Vi Nigel lançar-lhe um olhar desconfiado e me lembrei de alguma coisa que Simon me dissera: "Ele está muito tempo aqui em Delfos e se ligou com uma moça que não era muito boa para ele".

Eu gostaria de tê-los visto trabalhar, — disse eu. — Imaginem só o alvoroço se encontrassem alguma coisa!

Essa espécie de alvoroço é a coisa mais rara que existe. Quase todo o tempo, em muitos e muitos anos, se gasta em transportar toneladas de terra a alguns metros de distância para passar tudo pela peneira e tornar a botar no mesmo lugar. Mas concordo que seria notável e não de todo impossível neste país. viu a gloriosa escultura do negro e do cavalo que os operários desenterraram há alguns anos quando estavam con­sertando os canos da Praça Omonia? Imagine pensar no que se poderia encontrar sempre que se cavasse um canteiro no jar­dim ou se abrisse com um arado a encosta de uma montanha. Afinalde contas, até o Cocheiro...

Parou e rodou o cigarro nos dedos como se estivesse admirando as espirais de fumaça azul que se enroscavam e ele­vavam dele.

Nigel levantou os olhos e murmurou:

—            O Cocheiro? — Ainda estava ajoelhado no chão, arrumando os desenhos na pasta. — O Cocheiro? — repetiu me­canicamente como se estivesse pensando em coisa inteiramente diferente.

—            Sim, — disse Simon, levando o cigarro aos lábios. — Só foi desenterrado em 1896, muito depois dos principais san­tuários e tesouros. Li há algum tempo a História da Escultura Grega, de Murray, e estranhei que o autor falasse de maneira tão superficial sobre Delfos até que compreendi que, quando ele escreveu o livro, em 1890, não se tinha encontrado nem a metade do que foi descoberto depois. Quem sabe o que ainda existe por aí nos cantos mais estranhos, debaixo das árvores?

Nigel estava sentado sobre os calcanhares a mexer sem muito cuidado com os desenhos. Se eles eram de fato o seu ganha-pão, como dizia, estava sendo marcadamente negligente.

Levantou os olhos e os desenhos lhe escapuliram das mãos.

—            Simon.

A voz era de novo estridente e ansiosa.

Sim?

Eu acho que...

Calou-se abruptamente e voltou a cabeça. A porta do edi­fício fora aberta e fechada com um estrondo. Passos rápidos se aproximaram pelo corredor.

Com surpresa para mim, Nigel ficou branco como uma fo­lha de papel. Tirou o resto dos desenhos de cima da cama, jogando-os no chão, e guardou apressadamente tudo na pasta.

A porta foi aberta sem a menor cerimônia.

Viu-se então uma moça que olhou para o quarto desarru­mado e repleto com uma expressão de cansado desgosto. Era a moça do retrato com o seu ar de Juliette Greco e tudo mais. Era também, pensei com redobrado interesse, a moça cujo jipe, nos arredores de Tebas, tinha intimidado o chofer do ônibus de maneira tão dominadora. Parecia, como daquela vez, completa­mente senhora da situação e um pouco aborrecida com isso.

Disse então, sem tirar o cigarro do canto da boca:

—            Alô, Simon, meu amor. Alô, Nigel. Está de joelhos, rezando diante de meu retrato? Bem, suas preces foram ouvidas. Voltei.


 

Uma jovem — Não virgem também, ao que parece — uma bagagem Jogada sobre mim como uma carga num barco, A fim de acabar com minha paz de espírito!

Sófocles: Mulheres de Tráquis

Danielle era de constituição franzina e de estatura me­diana, tendo aproveitado (ou piorado, conforme o ponto de vis­ta) ao máximo o seu corpo, metendo-o em blue jeans apertadas e num suéter muito justo de lã fina, que não deixava nada por adivinhar, salvo de que maneira ela conseguira seios da­quele feitio e naquela posição. Eram muito altos e muito pon­tudos, sendo a primeira coisa que se notava nela. A segunda era a sua expressão, muito semelhante ao ar de cansaço e aban­dono do desenho de Nigel. O rosto era oval e pálido. Os olhos, muito grandes e muito pretos, eram cuidadosamente sombrea­dos com uma mistura de castanho e verde que os fazia parece­rem imensos e cansados. Tinha longos cílios encurvados que captavam o fio de fumaça azul do cigarro que parecia fixado em seu lábio inferior. Usava um batom claro, que não combinava muito bem com o rosto pálido e os grandes olhos pretos. Os cabelos eram estreitos e lisos, mas deliberadamente desarrumados e com aquele corte meio maluco que dá a impressão de ter sido feito no escuro com uma tesoura de unhas. A sua expressão no momento era de desdém e de tédio. A idade podia ser qualquer entre dezessete e vinte e cinco anos. Tinha, porém, o ar de quem acreditava que todo o mundo a julgaria pelo me­nos com trinta anos.

Devo talvez dizer que os cílios eram muito longos, absolutamente naturais e muito belos. Isso é dito no caso de alguém julgar que há prevenção na descrição que fiz de Danielle. A única razão que eu podia ter para prevenção era a expressão no rosto de Nigel, surpreendido de joelhos no chão com as mãos desajeitadas cheias dos delicados desenhos, voltando-se para a porta e murmurando "Danielle." numa voz estrangulada que o denunciou imediata e cruelmente.

Nigel guardou de qualquer jeito os desenhos na pasta e levantou-se.

Depois do primeiro cumprimento, ela não tomou mais conhecimento dele. Também, depois de um olhar frio, ela não olhou mais para mim. Todas as suas atenções eram para Simon.

—            Alô, — disse ela de novo.

Não sei bem como ela conseguia tornar sexy esse curto dissílabo, mas a verdade é que conseguia.

—            Alô, — disse Simon, sem nada de sexy na voz.

Parecia também levemente divertido e um tanto cauteloso, o que me aborreceu. Não estou em condições de dizer por que e nem tentei naquela ocasião.

Nigel disse com voz rouca:

Que é que está fazendo aqui? Pensei que tinha partido de Delfos.

Parti, mas voltei. Não me vai convidar para entrar, Ni­gel querido?

É claro. Entre. É maravilhoso... quer dizer, eu não esperava a sua volta. Entre. Sente-se.

Ele correu e arrastou a melhor cadeira — a mesma de que eu me havia levantado — para ela. Mas ela passou por ele e se dirigiu para Simon, que estava de pé junto à janela. Aproximou-se muito dele e disse:

Vou dormir no atelier, Simon. Cansei-me do Tourist Hotel e, de qualquer maneira, não posso mais pegá-lo. Você não se importa de eu vir para cá, não é mesmo... Simon?

De modo algum, — disse ele, olhando então para mim. — É melhor fazer as apresentações. Camila, como você já deve ter adivinhado, esta é Danielle. Camila Haven. Danielle Lascaux. Eu lhe disse que Danielle trabalhou aqui durante algum tempo com a Escola Francesa. Era secretária de Hervé Clement. Você deve conhecê-lo de nome. Escreveu As Últimas Descobertas em Delfos.

—            Li o livro pouco antes de vir para cá. Muito prazer, — disse eu a Danielle.

Ela me olhou brevemente e me fez um cumprimento de cabeça apenas cortês. Virou-se então e, com o que pareceu uma graça consciente, sentou-se na cama no lado oposto àquele em que eu estava, dobrou sob o corpo as pernas bem feitas e recostou-se na cabeceira. Inclinou a cabeça e lançou um longo olhar a Simon entre as pálpebras semicerradas.

Falaram então a meu respeito? Nigel disse pressurosamente:

Foi seu retrato.. o que eu fiz.

Num dos seus gestos desgraciosos, ele apontou a mal-arrumada pasta que tinha ficado na cama perto de mim.

—            Ah, sim.

É muito bom, não acha? — disse eu. — Reconheci-a logo que entrou.

Hum-hum. Nigel é um rapaz muito hábil. Todos nós sabemos disso.

Ela deu a Nigel um sorriso que era uma sombra do que dera a Simon. Depois, estendeu displicentemente a mão e tirou dois ou três desenhos da pasta. Nigel teve um breve gesto rá­pido, como de involuntário protesto, mas, em seguida, foi sen­tar-se na cadeira de lona laranja, com as mãos pendentes entre os joelhos ossudos.

—            Sim, creio que o retrato é muito bom. Mas meus olhos são mesmo tão grandes assim, Nigel?

Ela estava folheando os desenhos: seu retrato, o que havía­mos chamado de "cabeça de Fórmis", com os anéis de cabelo cerrados e sorriso rígido, o ciclâmen e um desenho que eu ainda não tinha visto e que mostrava a cabeça e os ombros de um homem.

—            Flores? — disse Danielle. — Estão pagando a você para fazer isso, Nigel?... — Mas que é isto?

A voz dela tinha mudado tão abruptamente ao fazer a pergunta, que eu quase levei um susto. Vi Simon voltar a cabeça e Nigel quase dar um salto.

O quê? Ah, isso. É um camarada que eu vi hoje no Par­naso. Estávamos dizendo antes de você chegar que ele pa­recia...

Não, não! — Ela tinha nas mãos a cabeça de Fórmis e outro desenho. Largou o primeiro imediatamente e mostrou o outro. — Esse não. Este.

Havia na voz dela alguma coisa que indicava um esforço pára controlar-se e, com surpresa para mim, a mão lhe tremia. Mas, quando pedi licença e me inclinei para tomar o desenho delicadamente, ela o largou sem protesto. Olhei o desenho com interesse e, depois, com mais atenção. Mostrava a cabeça e o pescoço nu de um moço. O rosto era belo, mas sem a beleza vital e profundamente grega de Niko. A do homem retratado era remota, severa e um pouco triste. Não era absolutamente, na minha opinião, um tipo helénico, embora alguma coisa me pa­recesse estranhamente conhecida. Mas tive a impressão de que Nigel não o fizera para que figurasse na sua galeria. Era o úni­co retrato entre os que eu tinha visto no qual Nigel empregara o que eu podia chamar a sua "técnica de flores". Era o seu estilo pessoal. A feitura era delicada, segura e empolgantemen­te bela.

—            Mas, Nigel... — disse eu. — Veja isto, Simon!

Danielle deixou os outros desenhos caírem sobre a colcha. Pareceu perder o interesse, limitando-se a perguntar:

Fez tudo isso hoje?

Fiz, — disse Nigel e, antes que Simon tivesse tempo de lançar mais que um olhar ao desenho, apanhou efetivamente todos os desenhos e guardou-os na pasta, que jogou em baixo da cama. Estava com o rosto vermelho e parecia tão magoado quanto anteriormente.

Mas Danielle não insistiu no assunto. Recostou-se na cama e disse com o seu tom habitual, levemente entediado:

Pelo amor de Deus, Nigel, será que você não me vai oferecer um drinque?

Claro que sim.

Nigel mergulhou o corpo a fim de pegar a garrafa de ouzo, mas largou-a de novo de tal modo que ela se balançou e quase se derramou, e saiu correndo para ir lavar um copo na pia.

Tirei os óculos e fiz menção de levantar-me. Mas, nesse momento, olhei para Simon e tive a impressão de que ele sacu­dia levemente a cabeça. Tornei a sentar-me.

Ele olhou de novo para a moça.

Pensei que você se tivesse ido embora, Danielle. O pes­soal das escavações não arrumou as malas?

Ah, isso, sim. Chegamos a Atenas e realmente eu estava pensando em voltar à civilização, mas tive uma cena daquelas com Hervé e depois disso resolvi que era melhor voltar para Delfos e ficar com... — Sorriu de repente, mostrando os dentes muito brancos. Bem, resolvi voltar para Delfos. E aqui estou.

—            Quer dizer que foi despedida? perguntou Nigel.

—            Mais ou menos... — Olhou-o por um momento através da fumaça do cigarro e, então, voltou-se para mim. Simon deve ter-lhe contado a versão decente. Mas, na realidade, eu era amante de Hervé Clement.

—            Danielle!

—            Ora essa, Nigel! Não me venha dizer que você não sabia, disse ela, encolhendo impacientemente os ombros. Acrescentou, olhando para mim: A verdade é que ele estava ficando intolerável.

—            Sério? disse eu, polidamente.

Sério. Todos os homens se tomam intoleráveis, mais cedo ou mais tarde, não acha? Consegue tolerar os homens, Camila Haven?

De vez em quando, disse eu. Mas também só de vez em quando tolero as mulheres.

Esta a atingiu diretamente.

—            Detesto as mulheres em qualquer ocasião, disse ela, simplesmente. Mas Hervé estava mesmo no fim. Ainda que ele não tivesse abandonado as escavações aqui voltando para Atenas, eu teria de deixá-lo. Soprou uma longa nuvem de fumaça e voltou a cabeça para Simon. Voltei, portanto, mas terei que dormir aqui no atelier. Estou vivendo agora por conta própria, de modo que não tenho dinheiro para o Tourist ou para qualquer outro hotel...Sorriu lentamente, ainda olhan­do para Simon. Em vista disso, terei que dormir na dureza.

Não sei o que havia no seu tom de voz, mas de qualquer maneira ela conseguiu dar um jeito à última frase como se ela significasse dormir com um sádico, que não era outro senão Simon. Senti outro acesso de intensa irritação. Eu sabia que devia ter pena de Danielle ou, no mínimo, achar graça nela, mas não me era possível. Eu estava começando a suspeitar de que ela não tentava fingir uma maturidade patética. O seu pessimismo sentimental não era uma pose, mas uma realidade e um pouco terrível. E era terrível também o cansaço estampado em seus grandes olhos perdidos. Mas a pena que devia sentir dela sentia era de Nigel, que enxugava febrilmente o copo e dizia rapidamente:

—            É ótimo você estar de volta. Você sabe muito bem disso. E é claro que você tem de ficar no atelier. Nós todos ficamos satisfeitos e você ficaria muito bem aqui. Só estamos aqui agora eu, Simon e um pintor holandês. ..

—            Um pintou holandês?

—            Sim, — disse Simon, — um camarada de cerca de vinte anos que veio a pé de Jannina e está muito cansado.

Ela lhe lançou um olhar por entre os fabulosos cílios.

—            Oh, — murmurou, jogando o cigarro pelo meio da pia, onde ele começou a desfazer-se. — Quer-me dar outro cigarro, Simon?

Ele obedeceu.

Camila?

Não, muito obrigada.

Nigel passou por mim com um copo cheio de três quartos de ouzo puro.

—            Aqui está seu drinque, Danielle.

O rosto dele estava ansioso e concentrado. Poderia estar carregando o Santo Graal. Ela recebeu o copo e deu-lhe um radiante sorriso. Vi-o piscar os olhos e a vermelhidão aumentou nas faces queimadas de sol. Danielle levantou o copo para ele.

—            Gia sou, Nigel querido. Estou feliz de ter voltado... Mas não vai beber comigo?

Poderia ser um convite banal, mas não era. A expressão no rosto de Nigel foi de sincera beatitude. Pegou a garrafa e serviu dois dedos de bebida no copo vazio. Mas, quando se voltou para ela, Danielle bocejou, espreguiçou-se, girou a cabeça para trás no longo pescoço e estendeu a mão para Simon. Pas­sou os dedos de unhas muito compridas e vermelhas pela manga do paletó dele, dizendo na sua horrenda voz veludosa:

—            Mas você sabe que, na realidade, eu sou é a pequena de Simon. Não sou mesmo, Simon?

Eu devo ter dado um salto de alguns centímetros. Simon olhou para ela, através da fumaça do cigarro, e disse displicentemente:

—            É assim? Muito prazer em saber disso. Mas, neste caso, quer-me explicar por que alugou um carro para mim em Atenas hoje de manhã?

A mão de Danielle parou no mesmo instante e afastou-se da manga do paletó de Simon. O corpo frágil torceu-se na cama no primeiro movimento inconsciente que eu vira nela desde a sua chegada. Nada tinha de sexy. Era pura e simplemente assustado.

—            Que é que você está dizendo?

—            Estou falando do carro que você alugou em meu nome hoje de manhã, o carro que você devia ter ido pegar no Restaurante Alexandros.

Os olhos negros o encararam por um instante e então fugiram. Depois, disse com a voz calma de sempre:

—            Ah, sim. Como foi que você soube?

—            Minha cara Danielle, você o alugou para mim, não foi? E não o foi pegar. Naturalmente, o pessoal do Alexandros entrou em contato comigo.

—            É impossível! Como é que eles podiam saber?

—            Não tem importância como. Diga-me por quê. Ela encolheu os ombros e tomou um gole de ouzo.

Queria voltar para Delfos. Disse-lhe que aluguei um carro. Na Grécia, nunca se dá muita atenção a uma mulher e foi por isso que dei seu nome.

E disse que era uma questão de vida e morte?

Como? Não seja tolo. Nunca disse uma coisa dessas. Você está sendo muito dramático, Simon.

Talvez. Mas estamos num lugar dramático e isso passa para o sangue. Mas você alugou o carro.

Aluguei, sim.

E veio sem ele.

Vim.

Por quê?

Porque uma moça irrefletida chamada Camila Haven já havia tomado posse dele, pensei eu. Por que Simon não encerra­va o assunto? Eu não tinha a menor vontade de ver-me metida em complicações com Danielle Lascaux. E ela tinha todo o di­reito de ficar furiosa comigo se alugara aquele belo carro — fosse em que nome fosse — e depois tivera de tomar providên­cias para conseguir outro transporte quando não encontrara mais o carro. Apesar de tudo, ela teria de saber mais cedo ou mais tarde...

Por quê? — perguntou Simon.

Porque Hervé me ofereceu o jipe. Era mais conveniente.

—            Eu estava certa então, — disse eu. — Julguei tê-la reconhecido. Foi você quem passou por mim num jipe pouco antes de Tebas. Lembro-me muito bem porque você estava dirigindo na contramão.    

Ela bocejou, mostrando a língua entre os dentes. Nem olhou para mim.

—            É provável. Acho mais interessante dirigir assim.

—            Então você chegou aqui muito antes de Camila, — disse Simon. — Por onde foi que andou?

Ela disse, quase com irritação:

Que importância tem isso? Por aí.

Em Itéia? — perguntei.

Danielle levantou o corpo da cama, derramando um pouco de ouzo.

—            Que é que está dizendo?

Notei uma expressão de surpresa no rosto de Simon, mas logo depois a expressão foi dissimulada e desapareceu. Com alguma aceleração do sangue, pensei que ele estava interessado e que aquela informação tinha algum valor. Disse então:

—            Vi o jipe hoje à tardinha em Itéia. Estava parado ao lado de uma casa logo depois da aldeia, nos olivais. Não tinha compreendido até este minuto que era o mesmo, mas agora me lembro. Havia uma bonequinha pendurada no pára-brisa, onde os gregos em geral penduram os ícones. Lembro-me de ter notado isso quando você passou por mim em Tebas.

Ela não estava bebendo. A fumaça do seu cigarro perma­nente formava um véu que lhe escondia a expressão dos olhos.

Esta noite? Como pode ter tanta certeza? Não estava escuro?

Estava. Mas havia um homem com uma lanterna elétrica mexendo no motor e a luz incidiu sobre as lentejoulas da boneca. Depois, as luzes se acenderam na casa.

Oh! — Bebeu um grande gole de ouzo puro e isso não pareceu ter qualquer efeito sobre ela. — Bem, deve ter sido o mesmo jipe. Eu estava lá com... alguém que eu conheço.

Houve de novo aquele estranho tom de voz e o olhar para Simon. Nigel a estava olhando como um cachorro escorraçado. Creio que foi algum impulso surpreendente de piedade que a fez acrescentar: — Sempre vou a Itéia à tarde. Há se­manas que faço isso. Vou tomar banho de mar. Nigel sabe disso.

Nigel exclamou no mesmo instante, quase como se a última frase fosse um pedido de testemunho em favor dela:

É claro que eu sei. Mas... você foi mesmo lá hoje antes de passar por aqui?

Hum-hum, — resmungou ela com um sorriso breve. — Você estava fora, não estava?

Estava.

Foi o que eu pensei e, como trouxe um presente de Atenas para Elena, eu...

Elena? — perguntou prontamente Nigel.

Minha amiga em Itéia. Toma banho no mesmo lugar que eu e depois vou para casa com ela.

Oh! — disse Nigel.

Creio que ela o observou um segundo antes de voltar-se para mim.

E você, Camila Haven? Também foi até Itéia antes de vir para cá?

Não faz ainda uma hora que cheguei aqui. Sou apenas uma visita. Estou hospedada no Apollon.

Mas foi diretamente para Itéia.

As palavras eram ásperas e pareciam tanto uma acusação que me apressei em dizer:

Passei primeiro pelo hotel. Depois, fui a Itéia para ver se encontrava o homem que tinha alugado o carro.

O homem que tinha alugado o carro?

Sim, fui eu que trouxe o carro do Alexandros na Praça Omonia. Eu estava procurando o "Monsieur Simon", que, segundo me haviam dito, precisava dele.

Ah... compreendo. Foi você que trouxe meu carro para cá?

Sim, fui eu. Estava no Restaurante Alexandros quando o homem da garagem apareceu. Entregou-me as chaves e me disse que era urgente, pois "Monsieur Simon" precisava do carro em Delfos o mais depressa possível. Trocamos algumas palavras meio disparatadas e o homem se foi embora, deixando comigo as chaves, sem que eu tivesse a menor idéia de onde ficava a garagem. Eu não sabia o que devia fazer, mas como queria justamente vir até aqui e o homem tinha sido tão insis­tente dizendo que era "uma questão de vida e morte", eu...

Essa frase outra vez, disse Danielle.

Sim, essa frase outra vez, disse eu. Felizmente, isso não lhe causou muitas complicações. Deve ter chegado aqui muito antes de mim. Já lhe disse que passou por mim em Tebas.

E por que teve de ir até Itéia para encontrar Simon? perguntou ela com alguma aspereza.

—            Não foi nada disso. Encontrei-o com muita facilidade. Mas é claro que ele não sabia de nada sobre o carro, o que não ajudava muito. Fomos então procurar outro Simon, que era na realidade um tal Simônides que tem uma padaria perto do cinema.

Mas a padaria não fica nos olivais.

Claro que não. Fui olhar o Caminho dos Peregrinos.

O Caminho dos Peregrinos? perguntou Danielle, como se não soubesse de que se tratava.

Sim, você deve saber o que é o Caminho dos Peregrinos, Danielle.

—            Por quê?

—            Mas, minha cara, você trabalhou aqui como secretária de um arqueólogo.

—            Secretária não, amante.       

Nigel disse imediatamente por trás de mim:

—            Gostaria muito de que você não falasse assim.

Ela abriu a boca, dando a impressão de que ia dizer algu­ma coisa decisiva, mas desistiu e sorriu para o pintor.

Escute, Danielle, — disse eu, — sinto muito o que aconteceu com o carro. Pensei que estava agindo corretamente. Mas, ao que parece, fui um pouco apressada. Espero que não lhe esteja causando qualquer aborrecimento agora, porque...

Você o trouxe para cá. Pode ficar com ele.

Creio que é justo.

Ninguém lhe pediu que trouxesse o carro. Está com ele sob sua responsabilidade e espero que possa pagá-lo.

Virou o corpo para jogar a cinza do cigarro na pia. Errou e a cinza caiu no chão.

Houve um breve silêncio e eu perguntei cautelosamente:

Devo pagar a quem?

Que quer dizer com isso?

Exatamente o que eu disse.

A mim, é claro. Não lhe disseram que o depósito tinha sido pago?

Sim, disseram-me isso.

E então?

Levantei-me e peguei minha bolsa.

—            Só o que me surpreende um pouco é que você não tenha telefonado para a garagem depois de ter conseguido o jipe, a fim de cancelar o aluguel do carro. Se está tão sem dinheiro quanto diz, o depósito lhe teria dado um bom jeito. Na verdade, não sei por que você alugou o carro. O ônibus é muito mais barato. Naturalmente, vai-me entregar o recibo com o endereço da garagem?

Ela pareceu aborrecida e disse:

Amanhã. Não sei onde foi que o deixei.

Muito bem, — disse eu, voltando-me e sorrindo para Nigel. — Tenho mesmo de ir-me embora, Nigel, ou só irei para a cama com o dia clareando. Muito obrigada pelo drinque e por me ter mostrado os desenhos. Acho sinceramente que são mag­níficos. E aqueje último é verdadeiramente uma obra-prima

Não estou dizendo isso por dizer, mas porque é a pura verdade. Boa noite.

Simon levantou-se. Como eu me preparava para sair, ele fez menção de me acompanhar, mas Danielle saiu da cama num movimento rápido e se aproximou dele.

Simon, — disse ela, de novo com as garras no braço dele, — meu quarto é o último do corredor e o chuveiro está quebrado. Pinga o tempo todo e eu sei que assim não vou con­seguir dormir. Acha que pode consertá-lo para mim?

Não sei se entendo muito disso. De qualquer maneira, tenho de levar Camila até em casa. Depois...

Não há a menor necessidade de me levar até em casa, — disse eu com alguma secura. — Acho que não vou errar o caminho.

... depois, tenho de voltar para pegar o carro. Nós o deixamos abaixo do santuário.

Nigel abrira a porta para mim. Olhei para Simon, com Danielle agarrada ao braço dele.

—            Você na verdade não tem de se incomodar, Simon. O carro está sob minha responsabilidade... como Danielle teve a bondade de salientar.

Os olhos dele se volveram espantados para mim. Mordi os lábios e acrescentei:

—            Tudo está em ordem. Émuita bondade sua.

—            De modo algum. Se o carro foi alugado em meu nome, tenho também alguma responsabilidade, não acha, Danielle?

Ela me lançou por entre os cílios um olhar que era veneno puro. Depois, olhou para Simon e disse com uma voz cheia de mel:

Acho que não, mas se é assim que você pensa... Ve­nha depois consertar o chuveiro, sim? É uma coisa irritante.

Esta noite, não, — disse Simon. — Boa noite. Boa noite, Nigel, e muito obrigada. Até à vista.

Na descida para o hotel — que nos tomou cerca de quinze minutos e era muito íngreme e difícil — tratamos principalmente de não torcer o pé e de não falar em Danielle. Para mim, a primeira tarefa foi muito mais fácil.

À porta do hotel, Simon disse:

—            Camila.

Hem?

Volte a si. Ri e disse:

Está bem.

Garanto-lhe todo o direito ao sono mais tranqüilo deste mundo, está bem?

Perfeito.

Não se preocupe com o carro. Não disse nada lá na frente de... Mas, aqui entre nós, agora que ele está aqui, es­tou muito satisfeito com isso. Não pense mais, portanto, no caso.

Mas escute, — disse eu com muita clareza, — não vou permitir que você pague pela minha irreflexão.

Não vamos discutir sobre isso agora, — disse Simon calmamente. — Você já devia estar deitada. O dia foi muito exaustivo para você e o de amanhã provavelmente será ainda mais.

Pois eu provavelmente terei de partir amanhã.

Amanhã? Mesmo depois da garantia de um sono tran­qüilo?

Não é isso. É que pode não haver um quarto para mim no hotel.

É verdade. Tinha-me esquecido. Escute aqui, por que você não vai para o atelier? Você já o conhece. É simples, mas limpo e muito conveniente. E agora parece — os olhos cinzentos se apertaram nos cantos, — que você vai ter quem lhe sirva de chaperonm.

—            Vou pensar no caso, — disse eu, sem muito entusiasmo. Ele hesitou e então disse:

Tenho a esperança de que vá. E... por favor, não se vá embora amanhã. Gostaria tanto de que você me acompanhas­se amanhã.

Mas você vai subir o Parnaso em companhia de Sté-fanos?

Exatamente. E gostaria de que você fosse também. Vai?

Mas, Simon...

Vai?

É absurdo.

Sei disso, mas quero que você vá.

É um assunto particular seu. Só porque eu. . . o obri­guei a se envolver nos meus assuntos, isso não quer dizer que você deva pedir-me para imiscuir-me nos seus.

Não. Mas você vai?

Claro que vou.

Será uma caminhada longa, que vai durar o dia todo. Se o hotel disser que não tem um quarto para você, posso telefonar para Atenas a fim de que você se hospede no atelier?

Telefonar para Atenas por quê?

O edifício é de propriedade do Departamento de Belas-Artes da Universidade e você, como eu, não é artista credenciada. Terá de hospedar-se como estudante.

É claro. E Danielle?

Bem, talvez os arqueólogos também tenham direito, — disse ele, sorrindo. — E, se ela se serviu de meu nome para alugar um carro, pode muito bem ter-se servido do nome de Hervé para conseguir um quarto no atelier.

Também acho. Então, faça o favor de telefonar para Atenas por mim e eu me mudarei amanhã à noite. A que horas vamos partir amanhã?

Virei buscá-la às oito e meia, — disse ele com o seu súbito sorriso. — Boa noite, Camila. Muito obrigado.

Boa noite.

Quando ele já ia saindo, eu disse antes de me poder conter:

Não se esqueça de ir consertar a torneira!

Se há uma coisa que eu detesto é consertar torneiras, — disse Simon, delicadamente. — Boa noite.

 

"O que um personagem diz ou faz revela um certo objetivo moral e um bom elemento de caráter, desde que o objeti­vo assim revelado seja bom. Essa bondade é possível em todos  tipos  de  personagens,   mesmo   numa   mulher".

Aristóteles: A Arte da Poesia

 

Acordei cedo na manhã seguinte, tão cedo que, quando vi que não poderia com facilidade conciliar de novo o sono, resol­vi levantar-me e ver as ruínas por mim mesma antes que as aventuras do dia começassem. O pensamento me fez lembrar, com um pequeno sorriso amarelo, que eu ainda não pusera no correio a minha carta para Elizabeth. Quando estava pronta para sair do quarto, procurei a carta em minha bolsa, abri-a e acrescentei um pós-escrito apressado:

"Fui eu mesma que disse que nada me acontecia? Pois começou ontem. Se eu escapar com vida, escrever-lhe-ei para você ficar sabendo o que está perdendo.

Saudades, Camila"

O sol já estava alto e forte, embora pouco passasse das sete horas. Desci pela rua da aldeia a fim de pôr a carta no correio e, depois, tomei pelo caminho íngreme que sobe por entre ruas em terraços para a encosta da montanha no alto.

O caminho era uma extensão de degraus largos, fechada por muros brancos, nos quais o sol reverberava. A já ofuscan­te brancura era atenuada por toda a parte pela verdura; de todos os muros e tetos derramavam-se trepadeiras e fetos, os rosas e escarlates vivos dos gerânios e cascatas brilhantes de tagetes e margaridas. Aos meus pés, galinhas ciscavam e cacarejavam. De vez em quando, eu tinha de ficar de lado en­quanto um jumento ou um burro descia cuidadosamene pelos degraus, seguido por uma camponesa envolta em véus pretos, que sorria e me dava gentilmente bom dia.

Escada acima, acabei saindo da aldeia e cheguei à encos­ta da montanha, onde montões de destroços e pedras de meio-fio indicavam uma estrada em construção. Segui cautelosamen­te, por entre os olhares amistosos e curiosos dos trabalhado­res e, antes que soubesse que já estava tão longe, passei pela última casa da aldeia e me vi no flanco aberto da montanha, acima do atelier.

A subida fora puxada e o sol estava quente. O caminho passava por baixo de um breve paredão de pedra que lançava àquela hora matinal uma estreita sombra. Encontrei uma pedra plana num recesso da sombra e me sentei para descansar da escalada.

O caminho onde eu estava parecia uma continuação do que Simon e eu tínhamos seguido na noite anterior. Passava acima do atelier, depois descia para o bosque de pinheiros de que eu me lembrava e dali desaparecia numa descida mais ín­greme para o arruinado recinto do templo. Perto de onde eu estava, abaixo de mim e à direita do caminho, via-se o atelier, liso, quadrado e feio no seu platô escavado na pedra. Além dele, o vale das oliveiras tremia e cintilava até à imensa distância líquida da luz. Mais além, montanhas e mais montanhas e, depois, o mar.

Tive então a atenção atraída por um movimento perto do atelier.

Alguém, como eu, andava por ali àquela hora matinal. Ouvi o som dos passos que subiam o caminho áspero que vinha do platô. Vi-o então, um vulto esbelto e louro que carregava uma mochila e subia num passo rápido, mas com muito pouco barulho, em direção ao caminho onde eu estava sentada na sombra. Não tinha olhado para onde eu estava. Encaminhava-se para o bosque de pinheiros acima do santuário e já se ia afastando rapidamente de mim.

Chegou ao caminho. Estava a uns setenta metros de dis­tância de mim, perto da cerca que marcava o cemitério. Parou e voltou-se como para tomar fôlego e olhar a vista.

Eu já me ia levantar e chamá-lo quando alguma coisa na sua maneira de agir me chamou a atenção e eu fiquei imóvel. Ele dera dois passos rápidos para trás e de lado, chegando à sombra de um pinheiro. A sombra mosqueada envolveu-o e ocultou-o, maculado e invisível. Ficou ali parado e não parecia estar olhando para vista alguma. A cabeça estava curvada como se estivesse examinando o chão aos seus pés, mas compreen­di de repente que estava escutando alguma coisa. Não se mo­via. Não havia sons na bela manhã luminosa a não ser o tilin­tar do chocalho de uma cabra do outro lado do vale e o canto de um galo lá embaixo na aldeia. No atelier, não havia som, nem movimento.

Nigel levantou a cabeça e olhou em torno, com os mesmos movimentos cautelosos e furtivos. Era evidente que, fosse o que fosse que estava fazendo, não queria ser seguido e, lembrando-me de Danielle, não pude deixar de dar-lhe razão. Eu tam­bém não lhe queria interromper a escapada. Sorrindo comigo mesma, fiquei onde estava. Não me podia ver se eu não me movesse. Não me viu de fato, mas, virando-se de repente, dei­xou o caminho e seguiu montanha acima através dos pinhei­ros para alturas maiores onde ficava o antigo estádio e, além dele, a trilha que subia acima das Cintilantes e seguia para os mais altos recessos do Parnaso.

Esperei dois ou três minutos e, então, levantei-me e continuei. Dentro em breve, estava também à sombra dos pinhei­ros, tendo à minha direita a cerca arruinada e os matos secos que circundavam o cemitério.

Não sei bem o que me levou a fazer isso, salvo o fato de que, de algum modo, o caso de Michael Lester era meu tam­bém. Abri o portão enferrujado e caminhei por entre as pedras. Quando encontrei a que procurava, tive de olhar as letras aten­tamente para ter certeza de que era mesmo aquela.

MIXAA AHSTHP

Aquela cruz estrangeira, aquele epitáfio estrangeiro...e aos meus ouvidos a voz de Simon, reconhecendo-o ainda. "Meu irmão Michael". E, ainda mais além, ouvia os fantasmas de ou­tras vozes, de outros reconhecimentos: "A mulher de minha ca­sa, o primo de Angelos, o irmão de Michael"... "Ninguém é uma ilha, completo em si mesmo".

Fiquei ali no quente silêncio do começo da manhã e pen­sei em Simon. Estava comprometida a participar naquele dia da procura de Simon. Eu, também, havia respondido a um ape­lo. Ele ia ver o lugar onde Michael morrera e queria que eu fosse também.

E eu? Por que tinha dito que iria? Dissera na noite pas­sada que isso era um absurdo e era mesmo... Mas eu tinha a estranha impressão de que, independentemente da necessidade que Simon tinha de mim, havia para mim uma necessidade pessoal. Também eu tinha alguma coisa para encontrar.

Um pássaro, pequeno e colorido como uma folha que o vento leva, voou no quente silêncio. Virei-me e encaminhei-me para o portão por entre as sepulturas poeirentas.

Estava pensando não em Simon, mas em mim mesma. Não no eu, na identidade que eu tinha julgado tão necessário afir­mar quando devolvi o anel a Phil, mas na identidade que eu assumira tão ligeiramente na véspera e da qual parecia que não conseguiria mais livrar-me. Não Camila Haven, mas apenas "a pequena de Simon".

Transpus rapidamente o portão e desci pelo caminho até chegar acima das ruínas do santuário.

Já escrevi bastante sobre Delfos e posso dizer que escre­ver sobre Delfos não é fácil. O lugar domina o coração e os sentidos, esgotando-os. Só se precisa ali de olhos, ouvidos e um instinto de veneração.

Desci lentamente a ladeira sob o sol. Encontrei a romanzeira que viçava de uma fenda nos mármores do teatro. As fo­lhas verdes-claras pendiam. As frutas eram cor de fogo e lisas como bolas de vidro. Aqui estavam os degraus íngremes... e o palco do teatro de onde Simon tinha falado na noite anterior. Divisei a marca no centro, de onde a voz da pessoa era arre­messada contra o flanco da montanha. E então os degraus para o recinto... este deve ser o monumento de Alexandre... e este o pavimento do templo de Apolo.

As seis grandes colunas esguiam-se como fogo contra as imensas profundezas do vale.

Não se via vivalma. Atravessei o pavimento do templo e sentei-me na beira, apoiando as costas numa das colunas.

A pedra estava quente. Acima de minha cabeça, os capitéis esborcinados eram animados pelas asas das andorinhas. Bem embaixo, as oliveiras tremiam no vale. De longe, o Hélicon era azul, era prata, era cinza como as pombas de Afrodite. Por toda a parte, havia o canto dos pássaros porque Delfos é um santuário. Em algum lugar, na distância matinal, soa­vam chocalhos de carneiros...

Eram apenas oito horas quando me levantei e desci a Via Sagrada do templo até à beira do recinto, onde uma cerrada fila de pinheiros o protege da estrada que passa embaixo. Segui pelo caminho sob os pinheiros, descendo depois para o museu que fica numa curva da estrada. Eu já estava acor­dada havia tanto e já andara tanto que tive surpresa em encontrar as portas ainda fechadas. Havia um homem com uniforme de guia sentado sob as árvores do outro lado da estrada e eu atravessei para falar com ele.

O Museu? — disse ele em resposta à minha pergun­ta. — Só vai abrir às nove e meia. Mas gostaria de ter um guia para ver as ruínas?

Esta manhã, não — disse eu. — Já estive lá. Talvez amanhã, se eu ainda estiver em Delfos... Está sempre por aqui?

—            Sempre a estas horas.

Tinha um rosto moreno e quadrado e olhos surpreendentemente azuis. O aspecto era sofisticado e ele falava muito bom inglês.

—            Queria ver o Cocheiro, — disse eu.

Sem dúvida — disse ele, sorrindo com os dentes mui­to brancos. — Mas há outras coisas para ver aqui em Del­fos.

Eu sei disso, mas o Cocheiro não é a primeira coisa que todos procuram quando chegam ao Museu?

É claro. Se vier comigo amanhã, eu lhe mostrarei todo o Museu.

Gostaria muito. Mas escute aqui. .. Conhece o jovem artista inglês que vive no atelier? É magro e louro, com uma pequena barba.

Conheço, sim. Está aqui em Delfos há bastante tempo, não é?

— Creio que sim. Costuma ele vir muito ao Museu?

Sim, vem muitas vezes desenhar. Já viu alguns dos desenhos dele, kyria? São bons, muito bons mesmo.

Ele me mostrou alguns na noite passada, mas ne­nhum deles era de estátuas e antiguidades. Entretanto, acre­dito que ele pode fazer essas coisas muito bem. Desenhou alguma vez o Cocheiro?

É claro. Não lhe disse que é a primeira coisa que todos procuram no Museu? O Cocheiro é certamente a pièce de résistance de nosso pequeno museu.

—            Notou se ele... se o artista esteve aqui ontem?

O guia não se mostrava absolutamente surpreso com o estranho interrogatório. A experiência que tinha de turistas devia ter-lhe criado uma vasta tolerância. Abanou a cabeça.

Creio que não. Passei o dia inteiro aqui, mas ele pode ter aparecido enquanto eu estava lá em cima nas ruínas. A excursão demora uma hora e foi o único tempo em que es­tive ausente. Se quiser falar com ele, pode procurá-lo no atelier acima do lugar onde estão construindo a nova estrada.

Talvez eu vá procurá-lo. — Achei que já era tempo de encerrar aquele interrogatório particular. — Qual é a es­trada nova que estão construindo acima da aldeia? Para onde vai ela?

Para o estádio. Já viu o estádio?

Ainda não.

—            Fica acima do santuário. Muitos dos turistas que vêm a Delfos deixam de ver o estádio porque a subida é muito difícil. É muito belo... apenas a velha pista de corrida oval com as arquibancadas em torno, exatamente como era no tempo antigo. Além disso, há a vista... sempre a vista das oliveiras, do vale e do mar. Por isso, estão fazendo uma estrada para levar os carros e os ônibus até lá em cima.

Contive um baque no coração ao pensar em mais um templo belo e imponente invadido pelos carros e pelos ôni­bus e disse:

—            Ah, imagino que tudo que puder dar dinheiro à Gré­cia é uma boa coisa. É natural de Delfos, kyrie?

—            Não. Sou um homem de Tinos.

—            Oh, neste caso...suponho que não estava aqui du­rante a guerra.

Ele sorriu.

—            Não, estava ocupado. . .  muito ocupado em minha ilha.

Minha ilha. De novo. . . Um homem de Tinos.

Não podia então lembrar-se de Michael Lester. Era bem possível que nunca tivesse ouvido falar dele. De qualquer maneira contive-me não me devia deixar ir além mesmo do apelo de Simon pelo meu interesse. Disse apenas.

—            Muito bem.

Não havia certamente necessidade de guias em Del­fos naquela época, kyria. Ninguém estava pensando no san­tuário, no templo ou no Cocheiro! Pode-se dizer que é uma pena... Se os homens tivessem vindo até aqui, como vinham no tempo do Oráculo, quando Delfos era o centro do mundo, sem dúvida alguma resolveriam todas as suas disputas. O jeito sofisticado e então o súbito sorriso. Compreenda que é isso o que sempre digo quando estou com os turistas. É uma conversa muito eficiente. Falo na Liga Anfictiônica de Delfos, na Liga das Nações e na ONU. Dá muito resultado.

Acredito que dê. Podia acrescentar algumas infor­mações sobre as lutas entre Delfos e seus vizinhos, o saque da Crissa, os monumentos às vitórias atenienses sobre Espar­ta e às vitórias espartanas sobre Atenas, o monumento de Argoscolocado no ponto onde mais iria aborrecer os espar­tanos e...

Bem, só às vezes falo nessas coisas, disse ele, rindo. Pelo que vejo, precisarei de ter muito cuidado quando lhe mostrar o museu amanhã...

Não tenha receio. Li muito antes de vir para cá. É muito mais interessante quando a gente sabe o que aconteceu aqui. E vi muitas fotografias também. Por exemplo, o Co­cheiro ...

—            Que é que há com ele?

Eu estava com um guia na mão. Chamava-se Guia Con­ciso de Delfos e mostrava na capa uma reprodução fotográfi­ca da cabeça da famosa estátua. Mostrei-o.

Veja. Li muito sobre ele, mas não sei se realmente vou gostar do Cocheiro. Estes olhos... São incrustados de ônix e esmalte branco, não é mesmo? E há longos cílios de metal? Reconheço que essas coisas dão vida à estátua. Mas veja... Compreende o que eu quero dizer? — Indiquei a fo­tografia. — Esta testa estreita, este queixo duro. Não é, a ri­gor, um rosto belo, não acha? Mas todo o mundo diz que éuma maravilha.

Pois vai dizer a mesma coisa. Não há fotografia que dê uma impressão fiel. Acontece o mesmo com o grande Hermes de Olímpia. Nas fotografias, parece efeminado e o mármore é muito liso e brilhante como sabão. Mas a estátua mesmo é de tirar o fôlego.

Sei disso. Já a vi.

Prepare-se então para ver o Cocheiro. É uma das gran­des estátuas da Grécia. Sabe o que é que mais me impressiona sempre que o vejo e isso me acontece todos os dias?

Que é?

O fato de ser tão moço. Tanta gravidade, tanta gra­çae tanta mocidade. Pensava-se que ele fosse o dono da pa­relha — o vencedor da corrida — mas agora acham que era provavelmente o cocheiro de algum senhor que era o dono do carro.

Eu disse com hesitação:

—            Há, se não estou enganada, um trecho em Pausânias que fala sobre um carro de bronze com um "senhor do carro" nu que poderia ter tido um cocheiro, um jovem de boa família.

—            Creio que há esse trecho, sim. Mas é muito difícil que se refira ao nosso Cocheiro, kyria. Tudo indica que ele foi soterrado por um grande desmoronamento no ano 373 a.C. em conseqüência de um terremoto e, sem ser desenterrado, foi incorporado ao muro de sustentação construído para impedir que as pedras e a terra caíssem de novo sobre o templo. Co­mo vê, nosso Cocheiro tinha desaparecido alguns séculos an­tes de Pausânias chegar a Delfos.

—            Compreendo. Não sabia disso.

O guia acabou de enrolar um cigarro. Levou-o aos lá­bios e acendeu-o, espalhando alguns fiapos de fumo solto.

Dizem agora continuou ele que o Cocheiro fa­zia parte de um grupo da vitória levantado por um tal Gélon, vencedor de uma corrida de carros, mas quase qualquer coi­sa pode ser verdade. Tanta coisa foi perdida, destruída ou roubada através dos séculos que a verdade sobre nossas descobertas é simples conjetura. E Delfos sofreu muito, justamente por ser tão rica. Já se calculou que aqui houvesse seis mil monumentos...De qualquer maneira, é esse o número de inscrições que foram descobertas. O terremoto que quebrou e escondeu o Cocheiro foi um ato dos deuses, pois salvou-o das mãos dos ladrões. Os fócios depredaram o santuário mal se haviam passado vinte anos depois que ele foi enter­rado e é claro que nos últimos tempos inúmeros tesouros foram destruídos ou roubados.

Eu sei. Sila, Nero e o resto. Quantos bronzes se calcula que Nero tenha levado para Roma?

Quinhentos, disse ele, rindo de novo. Já vi que terei mesmo de tomar muito cuidado com o que eu disser amanhã.

Um súbito estrépito seguido de intensa algazarra em algum ponto atrás do Museu me sobressaltou.

Que é isso?

Nada. Um pequeno desacordo entre os trabalhadores.

Pequeno desacordo? Parece uma verdadeira guerra!

Creio que continuamos a ser uma raça belicosa. Há problemas hoje entre os trabalhadores. Ainda estão aqui homens da turma de escavações dos arqueólogos franceses. As escavações estão encerradas, mas os trabalhadores ficaram para recolher o material e tomar outras providências. Um burro parece que fugiu durante a noite e os homens da tur­ma deram por falta de algumas ferramentas e estão acusan­do de roubo os homens que trabalham na construção da es­trada do estádio. Vem daí o pequeno desacordo de que está ouvindo os ecos.

Algumas ferramentas e um burro? disse eu, escutan­do a confusão lá em cima durante alguns momentos. Pare­cia a batalha de El Alamein em som estereofónico. Bem, parece que eles nada sabem da Liga Anfictiônica e da Paz de Delfos.

—            Talvez não, disse ele, sorrindo.

E agora, tenho mesmo de ir. Mandarei dizer-lhe se posso vir amanhã. Estará aqui a esta hora?

Como sempre.

Tive uma profunda visão interior do que poderia ser a vida de alguém que estivesse sempre e serenamente na estrada de Delfos ao sol da manhã.

Procurarei estar aqui às oito, se puder mesmo vir. Se não aparecer...

Não tem importância. Se vier, eu a levarei com o maior prazer. Se não vier, não faz mal. Está hospedada no Apollon?

Estou.

É muito agradável, não é?

Delicioso. — Olhei para as portas fechadas do Mu­seu e disse: — Kyrie.. . já sei que não esteve aqui durante a guerra. Mas sabe o que foi que fizeram com as estátuas e demais objetos do Museu, o Cocheiro, por exemplo? Onde estava ele? Escondido?

De certo modo, sim. Foi levado para Atenas.

Ah, compreendo...

Atrás de mim, parou um carro. Simon sorriu para mim dentro dele e disse:

Bom dia.

Ah, Simon! Estou atrasada? E teve muito trabalho em me procurar?

Resposta negativa em ambos os casos. Eu é que che­guei cedo e soube no hotel que você tinha vindo para estes lados. Já tomou café?

Há muitas horas.

—            Palavra que não sei por que as pessoas costumam assumir esse ar de irritante superioridade quando tomam café antes das oito horas, — disse Simon, abrindo a por­ta do outro lado para mim. — Vamos então. Ou prefere di­rigir?

Não me dei ao trabalho de responder e fui sentar-me no carro ao lado dele.

Quando o carro fez a curva e ganhou velocidade no tre­cho em linha reta abaixo do templo, disse sem maiores pre­liminares:

—            O Cocheiro esteve em Atenas durante a guerra, presumivelmente escondido.

—            Devia estar mesmo, não acha? disse ele, sorrindo.

Afinal de contas, foi você que me meteu nisso, disse eu, como se me estivesse defendendo.

De fato. Uma pausa. Passou pelo templo hoje de manhã?

Passei.

—            Pensei que você ia fazer isso mesmo. Também te­nho andado lá por cima todas as manhãs por volta das seis horas.

E não foi hoje?

Não. Preferi deixar o campo livre para você.

—            Você é muito... — Não concluí a frase e ele não me perguntou o que era que eu ia dizer. Perguntei então, não de todo disparatadamente: Já perdeu a calma alguma vez, Simon?

—            Por que está perguntando isso?

—            Ora essa! Pensei que você fosse capaz de ler os pensamentos dos outros.

—            Bem, deixe ver... Ontem à noite?

Viu? Não precisou adivinhar muito. É claro. Nigel foi abominavelmente grosseiro com você. Não se incomodou com isso?

Não.

Por quê?

—            Não me incomodaria com coisa alguma que Nigel me fizesse, porque ele se está sentindo tremendamente infeliz. A vida não é fácil para ele e o pior de tudo é que se apai­xonou por aquela criatura que o traz numa verdadeira roda-viva. Mas ontem à noite...Fez uma pausa e eu vi de novo os olhos se contraírem em rugas de preocupação. On­tem à noite, havia alguma coisa errada, realmente errada. Não era a habitual mistura em Nigel de nervosismo, tempera­mento e talento frustrado. Não era também aquela camaradi­nha fazendo-o dançar na ponta de um arame farpado. Era alguma coisa a mais.

Não era o fato de que ele estivesse um pouco alto? Ele mesmo disse que estava.

Talvez. Mas isso é apenas parte do problema. Em ge­ral, ele não bebe muito, mas ontem à noite se excedeu, em­bora seja como você: também não gosta de ouzo. Não, era outra coisa e eu daria muito para saber o que era.

Ele não lhe disse nada depois que você voltou ao atelier? Tive a impressão de que ia dizer alguma coisa no momento em que Danielle chegou e interrompeu...

Tive também essa impressão. Mas não tornei a vê-lo. O quarto estava vazio quando voltei. Esperei um pouco, mas acabei indo para a cama. Não o ouvi entrar.

Com certeza estava consertando a torneira.

Pensei nisso também. Mas a porta de Danielle estava aberta e ela também não estava lá. Creio que foram dar um passeio ou tomar um drinque na aldeia. E Nigel já havia saído quando me levantei hoje.

Subiu a montanha. Eu o vi.

Você o viu?

Vi, sim. Por volta das sete horas. Passou pelo cemi­tério através dos pinheiros, como se fosse subir a montanha.

Estava sozinho?

Estava e dava a impressão de que queria mesmo ficar sozinho. Não falei com ele e não creio que me tenha visto.

Bem, vamos esperar que ele faça algum trabalho hoje e por si mesmo, seja qual for. Espero vê-lo esta noite. — Olhou para mim, sorrindo. — Fez mais alguma descober­ta esta manhã?

Só uma.

Qual foi?

Falamos sobre isso ontem à noite com Nigel. É uma coisa que nos ensinam desde a infância, mas que só agora vim a conscientizar.

— Que é?

—            Aquela frase de que ninguém é uma ilha.

—            Ah, sim.Ficou em silêncio um momento e então começou a citar, como se falasse consigo mesmo. — "Ninguém é uma ilha, completo por si mesmo; cada homem é um trecho do continente, uma parte do mar. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa ficará menor, como se se tratasse de um promontório ou de uma propriedade de teus amigos ou tua. A morte de qualquer homem me diminui porque estou comprometido com a humanidade. Por isso, não procures saber por quem os sinos dobram; dobram por ti..." É uma passagem magnífica, não é? Devíamos lembrar-nos mais dela.

Simon diminuiu a marcha do carro ao passarmos por um pequeno grupo de três jumentos que trotavam na poeira à beira da estrada. Uma velha estava montada de banda no da frente. Tinha uma roca na mão esquerda e o fuso na direita. Assim montada, fiava a lã branca incessantemente, sem olhar. Fez-nos uma saudação sorridente quando passamos.

—            Por que se lembrou da frase esta manhã? — per­guntou Simon.

Hesitei um pouco e então disse simplesmente:

Fiz uma visita à sepultura de Michael.

Compreendo.

Achei que ele compreendia mesmo e disse:

É este país cheio de confusões. Age sobre nós mental, física e moralmente, segundo suponho. O passado é tão vivo, o presente tão intenso e o futuro tão florescentemente iminente. A luz parece fazer ferver a vida dentro da gente com o dobro da intensidade que se verifica em qualquer outro lugar que eu conheço. Creio que foi por isso que os gregos conse­guiram fazer os milagres que fizeram e puderam permanecer fiéis a si mesmos através de vinte séculos de escravidão que teriam esmagado qualquer outro povo da Terra. Chega-se aqui pensando que se vai encontrar apenas uma porção de ruínas cercadas de mitos e de camponeses pitorescos e descobre-se...

Descobre-se o quê?

Nada. Estou dizendo tolices.

Mas são boas tolices. Continue. Que foi que você descobriu?

Que a sepultura de Michael Lester é tão emocionante e importante quanto o "túmulo de Agamemnon" em Micenas ou o Byron, de Venizelos ou de Alexandre. Ele e os homens como ele fazem parte do mesmo quadro. — Fiz uma pau­sa e acrescentei desesperadamente: — Como é que a Grécia age assim sobre nós?

—            Creio que o segredo disso está em que a Grécia per­tence a todos nós do Ocidente, — disse Simon. — Aprende­mos a pensar em termos gregos e a viver dentro dos princípios gregos. A Grécia nos deu quase tudo o que o nosso mundo tem que valha alguma coisa, a verdade, o pensamento direto, a liberdade e a beleza. É a nossa segunda língua, a nossa segunda linha de pensamento, a nossa segunda pátria. Todos nós temos o país onde nascemos e a Grécia.

Contornamos uma curva da estrada e, à nossa frente, o profundo vale se abriu para mostrar a grande beleza arredondada de uma montanha, verde-prata, vincada de azul e cinza.

Veja! — exclamou Simon. — Essa montanha à nossa frente. É o Helicón, o Helicón! E você ainda quer saber por que este país nos entra na massa do sangue?

Não quero mais. Já sei.

Não trocamos mais uma palavra até chegarmos a Arachova e encontrarmos Stéfanos e Niko à nossa espera no café da esquina.

Gosta de minhas meias? — perguntou Niko.

São magníficas, — disse eu sinceramente.

Eram na verdade uma coisa para ser admirada naquele cenário. Eram luminosas e de um tom espantoso de rosa shocfeing. Brilhavam entre as pedras esbranquiçadas e quentes do caminho de montanha como letreiros de gás neon contra um céu claro.

São luminosas, — explicou Niko.

Estou vendo. Onde as conseguiu?

Em Atenas. São a última moda em Nova York.

Você vai muito a Atenas?

Não. Fui trabalhar lá quando tinha quatorze anos. Trabalhei como boy no Acrópole Palace Hotel.

Foi lá que aprendeu inglês?

Um pouco. Aprendi também aqui na escola. É bom, não acha?

Muito bom. Por que não ficou em Atenas?

Aqui é melhor, — disse Niko, olhando para trás, para o caminho que estávamos subindo. Muito abaixo de nós, Arachova se havia reduzido a uma cascata de brinquedo de te­tos coloridos. Niko virou-se de novo para mim, como se esti­vesse perplexo. — Aqui não há nada. Não há dinheiro. Mas é melhor aqui. Arachova é minha aldeia. Acha que eu sou maluco? Sei que vem de Londres, onde há muito dinheiro. Talvez todos os gregos sejam um pouco sem-juízo. Mas acha que foi uma asneira minha deixar Atenas?

Há uma espécie de divina falta de juízo em todos os gregos que tenho conhecido, — disse eu, rindo. — Mas você não é sem-juízo. Niko. Isto aqui é certamente melhor, com dinheiro ou sem dinheiro. Nunca viva numa cidade, a não ser que seja absolutamente necessário. E não viva em Londres, Eu moro a muitos quilômetros de Londres numa aldeiazinha rural, exatamente como você.

Como Arachova?

A surpresa dele era enorme. Eu já havia descoberto que para todos os gregos a Inglaterra significa Londres e nada mais. Londres, a grande Londres de calçadas douradas e por­tões de jacinto.

Exatamente como Arachova não.

E é sua aldeia, como Arachova é a minha?

Não, Niko. Perdemos infelizmente essa maneira de sentir as coisas. Ainda está muito longe do lugar para onde vamos, do lugar onde Michael morreu?

.Disse isso em voz baixa, olhando para as costas de Si­mon, que caminhava em companhia de Stéfanos alguns pas­sos adiante de nós.

Ainda falta cerca de uma hora para chegarmos lá. Talvez mais. Fica mais perto de Delfos do que Arachova. É numa espécie de... um lugar cavado... Não sei o nome exa­to... — fez um gesto juntando as mãos em concha.

Uma gruta? É isso?

Mais ou menos. É um lugar onde as pedras caíram perto da base de um penhasco. Meu avô sabe o caminho. Dis­se-me que está para os lados do noroeste, isto é, afastado de Delfos e Arachova e olhando para Anfissa. Este caminho sobe pela face das montanhas. Depois, teremos de deixá-lo e subir para os penhascos onde está a gruta. Acho que há mui­tos e muitos anos houve uma estrada para animais, que não existe mais. A distância exata não sei. Nunca estive lá. Meu avô é que sabe o caminho. Está cansada?

Não. Estou sentindo um pouco de calor, mas não estou cansada.

As mulheres na Grécia — disse Niko, olhando-me pensativamente — são muito fortes.

Pensei nos cafés das aldeias com o seu complemento permanente de homens ociosos e disse:

—            Creio mesmo que elas têm de ser fortes.

Niko, talvez deliberadamente, não entendeu o que eu disse e murmurou:

—            Sim, as mulheres e os homens também. Os gregos são uma raça muito forte.

De certo modo, naquele momento, a beleza de Niko conseguia parecer muito forte de fato. O seu passo firme e o olhar que me lançou foram o convite mais franco possível para a espécie de sugestivo duelo verbal que os homens do Mediterrâneo parecem adorar. Mas eu também podia praticar o jogo de não entender o que ele queria dizer. Disse jovialmente:

Neste caso, se encontrarmos a sombra de Ângelos na montanha, eu me sentirei protegida ao seu lado, Niko.

Como assim? — perguntou Niko, sem compreender por um momento. — Ah, sim! É claro que estaria protegida comigo! Eu o mataria, sabe? Ele ajudou a matar Panos, filho de meu bisavô, e é claro que eu teria de matá-lo. Isso seria fácil porque ele é velho e eu sou moço.

Ele deve ter mais de quarenta anos. Qual é a sua idade, Niko?

—            Dezessete anos.

—            Sério? Pensei que fosse muito mais velho, — disse eu, mentindo.

Ele me concedeu um sorriso delicado.

—            Pensou mesmo? E qual é sua idade, bela miss?

—            Niko! Não sabe que é contra as regras perguntar a idade de uma mulher? Mas tenho vinte e cinco anos.

—            Tanto assim? Mas não parece ter vinte e cinco anos, sabe? disse ele, generosamente. É uma boa idade para se ter, não é? Olhe, essa subida aqui é um pouco difícil. Apóie-se em minha mão.

Dei uma risada.

—            Não sou tão velha assim, Niko. E não estou nem um pouco cansada. Estou é com calor.

O dia estava de fato muito quente. Enquanto subíamos firmemente no rumo do norte, o sol incidia sobre nós da direita, lançando sombras nítidas e duras como grafita na rocha branca.O caminho por onde seguíamos só com muito boa vontade poderia ser considerado um caminho. Não era muito íngreme, sendo aberto obliquamente no flanco da monta­nha, mas era muito acidentado e algumas das pedras eram bem agudas. Havia muito tínhamos deixado as árvores para trás, e a encosta, que não era mais pontilhada de pinheiros ou ciprestes, se estendia como uma grande asa de brancura incandescente do céu de um áspero azul até o leito seco de um rio no fundo, à nossa esquerda. Além do sinuoso leito do rio morto, a rocha subia de novo, dessa vez violentamen­te bloqueada pela sombra de cobalto. Bem no alto, tão alto que os olhos doíam de olhar, três aves planavam, circulavam lentamente e com as asas imóveis como brinquedos suspen­sos de fios invisíveis. Julguei ouvir-lhes os débeis e doces pios. Nada mais quebrava o silêncio, salvo o rumor de nos­sos passos e de nossa respiração ofegante.

O caminho subiu diretamente por entre o que pareciam paredões de pedras caídas e destroços e, então, parou, obliterado. Stéfanos, à frente, parou e voltou-se para falar com Simon, que vinha logo atrás. Disse alguma coisa, apontando para a barricada de pedras.

Parecia o resultado de um desmoronamento, uma grande torrente de terra vermelha e ocre que havia parado na ala escarpada da montanha. Estava espinhado de pedras quebradas e de grandes lajes brancas de calcário caído. Mais abaixo, es­palhava-se como o delta de um rio vermelho. Enormes blocos de pedra tinham caído também, como que jogados pelas mãos de um deus em cólera, preenchendo a estreita garganta do leito do rio.

Stéfanos tinha-se deslocado para o lado a fim de escalar com dificuldade a face escarpada da montanha ao lado do deslizamento.

É aqui que vamos deixar o caminho? perguntei.

Não, disse Simon. O caminho continua, mas está bloqueado por esse deslizamento. Se seguirmos Stéfanos um pouco, chegaremos a um ponto onde será mais fácil atravessar.

Deve ter sido uma tremenda tempestade, disse eu, olhando as torrentes de rocha à nossa frente e os gigantescos rochedos lá embaixo.

Tempestade, não. Terremoto, disse Simon, sorrin­do ao ver a expressão de meu rosto. A gente se esquece disso, não é? Já lhe disse que isto aqui é um país selvagem. Creio que esta área é particularmente sujeita a terremotos. É um verdadeiro milagre que algum dos templos e santuários ainda esteja com uma coluna em pé. Acha que pode subir?

Posso, sim, muito obrigada. Não me ajude, Simon. Tenho de manter o moral alto diante de Niko.

—            E o meu também, eu acho...Pronto. É aqui que va­mos atravessar. Parece bem estável, mas tenha cuidado.

Caminhamos vagarosamente por sobre os detritos do terremoto. Mais de cima, pude ver que toda uma parte da escarpa da montanha tinha sido cortada e arremessada. Tinha-se despedaçado em grandes pontas de lança brancas contra as quais os fragmentos menores estavam amontoados no banco da terra vermelho-escura. Passamos por essa rampa perigosa para o caminho que se havia desprendido dos destroços.

—            O gigante que faz tremer a terra deve ter-se virado no sono e não faz muito tempo, disse eu. Essas fendas na rocha parecem bem recentes.

Stéfanos devia ter compreendido em linhas gerais o que eu dizia. Estava esperando por nós no caminho e disse al­guma coisa a Simon.

—            Que foi que ele disse? perguntei.

—            Ele diz que houve dois ou três pequenos abalos sinto muito, mas este foi um pequeno abalo há cerca de doze anos. Um pouco mais adiante, a face da montanha se desagregou muito mais. Diz ele que só alguém que viesse diariamente a esta parte do Parnaso não se perderia, se deixasse o caminho. Diz também que o lugar para onde vamos mudou por completo desde o dia em que ele encontrou Michael lá. Era um espaço aberto na base de um penhasco baixo, mas hoje está transformado pelas pedras que caíram numa espé­cie de gruta.

Stéfanos fez um sinal de aprovação quando Simon aca­bou. Olhou-me de baixo de suas imponentes sobrancelhas brancas. Fez uma pergunta a Simon.

—            Está cansada? — perguntou-me Simon.

— Não, muito obrigada.

—            Não se vá esgotar no esforço de manter o bom nome da Inglaterra, sim?

—            Nada disso. Estou apenas sentindo calor.

Houve um vôo rápido de rosa shocking ao meu lado e Niko saltou dos destroços para o caminho com a agilidade de uma cabra. Tirou uma grande garrafa de água do bolso e desatarraxou a tampa.

—            Um pouco de água, miss.

Bebi agradecidamente. A garrafa cheirava a amoníaco assim como um bom jumento, mas a água era boa e ainda es­tava razoavelmente fria.

As camponesas gregas, — disse Niko, olhando-me com o seu límpido olhar, — podem viajar durante horas na região mais áspera sem comer, nem beber.

Os camelos também podem, — disse eu, tampando a garrafa e devolvendo-a a Niko. — Muito obrigada, Niko. Foi magnífico.

—            Foi um prazer para mim, bela miss.

Niko virou-se para Simon e estendeu-lhe a garrafa. O gesto e a atitude exprimiam a mais terna solicitude. Simon sacudiu a cabeça, sorrindo.

—            Muito bem, — disse Stéfanos, virando-se para reco­meçar a caminhada. Ele e Simon seguiram mais uma vez à frente, enquanto Niko e eu tomávamos posição à retaguarda.

Devia ser quase meio-dia quando nos aproximamos da gruta.

Deixamos o caminho algum ponto adiante do deslizamen­to e entramos, seguindo a esteira infalível de Stéfanos, por um deserto sem marcas, de pedras e terra seca. Às vezes, subíamos por um trecho de terra avermelhada cruelmente pontilhada de pedras ou caminhávamos com mais facilida­de pela borda serrilhada de pedra branca. O sol estava alto e o calor era intenso. O ar tremia com a reverberação, de modo que toda a vasta extensão de rocha parecia pulsar. Se não fosse o vento fresco que soprava constantemente àquela altura, teria sido insuportável.

Quando já estávamos a um terço da distância para a gruta e a maior parte da subida fora vencida, eu havia che­gado ao meu segundo fôlego e caminhava ainda muito bem. Parecia-me que não estava representando muito mal a mulher britânica.

As camponesas gregas, — disse Niko ao meu lado, — costumavam vir até aqui com grandes cargas de lenha, uvas e outras coisas.

Se você me disser mais alguma coisa sobre as cam­ponesas gregas, Niko, começarei a dar gritos e me deitarei aqui no chão para não mais dar um passo. Além disso, não acredito no que está dizendo.

De fato, não é verdade, — disse ele, sorrindo. — Eu a acho formidável.

Oh, Niko, é muito gentil de sua parte.

E muito bonita também. Quer uma maçã?

Tirou uma maçã do bolso e entregou-a em minhas mãos muito com o ar de Paris quando entregou o prêmio a Afrodite. O seu jeito de intensa e deslumbrada admiração já fora evidentemente experimentado em outras ocasiões e dera re­sultado.

Ainda dava. O meu moral subiu às nuvens. Ri, aceitei a maçã e agradeci-lhe. Criou-se então uma manobra de diver­são, pois nem ele, nem Stéfanos me permitiriam comer a maçã sem descascá-la. Niko queria descascá-la para mim, mas Stéfanos era quem tinha a faca e, assim, sendo gregos, tra­varam uma apaixonada discussão sobre o assunto, enquanto Simon descascava a maçã e a punha em minhas mãos.

À mais bela, — disse ele.

Não há muita concorrência, mas, apesar disso, muito obrigada.

Logo depois, chegamos ao nosso destino.


 

"Não haverá pegadas neste chão. Tudo isto é dura pedra..."

Eurípides:Electra

 

A gruta não ficava a grande altura. Arachova fica a ape­nas 900 metros acima do nível do mar e tínhamos subido ao todo uns duzentos e cinqüenta a trezentos metros desde que havíamos saído da aldeia. Estávamos ainda nos con­trafortes do vasto maciço do Parnaso, mas poderíamos estar perdidos a milhões de quilômetros de algum lugar. Desde que havíamos perdido a aldeia de vista, não víramos mais cria­turas vivas, à exceção dos lagartos e dos abutres que evo­luíam e gritavam docemente no ar ofuscante.

O lugar não era a rigor uma gruta. Era uma cavidade feita numa linha de penhascos baixos que se estendiam pelo alto de uma serra escarpada na extensão de dois quilômetros, como as crinas de um cavalo. De longe, o penhasco devia parecer liso e uniforme, mas de perto via-se que fora racha­do e aberto em baías e promontórios irregulares nos pontos em que meia centena de torrentes de inverno tinham escavado a sua descida a prumo pela encosta.

Aqui e ali, havia sinais de violência mais rápida e mais completa. Os terremotos tinham arrancado grandes pedaços, cavoucando a face de calcário e deixando cair os monstruosos destroços, de tal modo que por dezenas de metros abaixo dos penhascos, uma massa às vezes perigosa de pedras sol­tas sublinhava a encosta.

Quando nos aproximamos da beira desses destroços, Stéfanos virou-se para o lado e entrou por um breve desvio íngreme que nos levou acima do nível do alto do penhasco e fez com que nos aproximássemos numa longa linha oblíqua da beira dos destroços.

O velho parou então, apoiado em seu cajado, e ficou esperando por nós.

Simon chegou ao lado dele e olhou para baixo.

Foi aqui?

Foi aqui.

Poderia ter sido uma pedreira rasgada na face da pedra durante inúmeros e pacientes anos. Tinham bastado decerto cinco segundos de terremoto para abrir na penedia aquela cicatriz semicircular e lançar os destroços diante dela nas suas paredes ainda imponentes de rocha denteada. O resul­tado da ação do terremoto fora uma cavidade mais ou me­nos circular, uma espécie de cratera irregular de cerca de setenta metros de diâmetro, que era fechada ao norte pelo penhasco no qual estávamos e fechada quase completamen­te no resto da sua circunferência por vastas seções de pedras caídas.

O centro do chão da cratera estava limpo, mas as pa­redes circundantes estavam empilhadas, como em outros pon­tos, de terra vermelha e pedaços de pedra. Na primavera, o lugar devia ser belo, pois era abrigado e eu podia ver os restos mortos de plantas rasteiras e moitas onde as neves derretidas e, depois, a chuva tinham alimentado alguma vege­tação alpina. Abaixo de nós, pendurava-se a verdura de um pequeno zimbro e, bem junto de meus pés, a rocha sustenta­va duas cerradas moitas que pareciam azevinho, mas que ostentavam incoerentemente bolotas de carvalho com enormes copos tão espinhentos como ouriços do mar.

Para a direita, no lado oeste da gruta, ficava o que parecia a única saída. Era uma interrupção na parede de pe­dra, para a qual o chão liso da cratera se elevava numa rampa pedregosa. Da altura onde estávamos, julguei ver além e abaixo dessa "porta" o fantasma de um velho caminho que seguia para oeste até desaparecer em torno de um espigão de pedra.

Stéfanos percebeu a direção de meu olhar e disse:

—            Foi por ali que ele foi.

Falou naturalmente em grego e Simon traduziu para mim intermitentemente e mais corridamente depois. Entretanto, mais uma vez, reproduzirei diretamente as palavras do velho, tal como foram proferidas.

—            Foi por ali que ele foi. Pelo velho caminho que leva a Anfissa. Vai dar numa pedreira abandonada perto da estrada de Anfissa, por trás dos olivais.

Ficou em silêncio durante alguns momentos, olhando para a cavidade sob os nosso pés. Ninguém dizia coisa alguma. O sol nos batia na nuca e eu me senti de repente muito cansada.

O velho falou de novo com voz pausada, recordando.

—            Eu cheguei à cabeça do penhasco exatamente neste ponto. Compreendam que naquele tempo era diferente... Aqui onde nós estamos havia uma coluna de pedra como um dente de gato. Desapareceu no terremoto, mas era um ponto de referência que nem um ateniense deixaria de notar. E, abaixo do penhasco, não havia uma cavidade, como estão vendo agora, murada e com porta como uma fortaleza. Ha­via apenas o penhasco e, embaixo de nós, alguns rochedos e um espaço limpo de pedra. Foi ali que os vi, a Michael e Ângelos. E o lugar não está coberto. Eu o marquei e sei. — O cajado foi apontado. Quase no centro do chão de pedra lisa, um pequeno montão de pedras lançava uma breve som­bra tfiangular. — Coloquei aquelas pedras depois quando o terremoto alterou tudo além da possibilidade de reconheci­mento. — Houve outra pausa de silêncio e ele olhou de re­lance para mim. — Vamos descer agora... Quer pedir à moça que tenha muito cuidado, Kyrie Simon? O caminho é difícil e só serve para cabras, mas é o mais rápido.

Quando Simon me transmitiu a advertência, vi que ha­via de fato um caminho para a gruta. Deixava o alto do pe­nhasco logo ao lado do lugar onde estávamos, passava por entre as moitas de azevinho, por outras moitas e pelos restos poeirentos de espinheiros até o fundo da cavidade. Devia ter sido por ali que o cachorro descera para atacar Ângelos e, depois, o próprio Stéfanos descera e, por fim, correra para junto de Michael enquanto ele agonizava ao sol...

Tão alto ia o sol que quase todo o fundo da gruta estava sem sombras. Mas no ponto onde o caminho do penhasco ia desembocar, uma asa de rocha dava um agradável ângulo de sombra azulada. Parei ali e me sentei com as costas contra a pedra quente. Stéfanos continuou em frente sem parar e Simon seguiu-o. Niko estendeu-se ao meu lado no chão poeirento. Eu esperava que ele não falisse e foi o que aconteceu. Quebrou um galho de espinheiro seco e começou a de­senhar coisas no chão. Não estava dando muita atenção aos desenhos; não deixava de olhar intensamente para os outros homens.

Stéfanos guiou Simon através do chão da gruta e parou ao lado do pequeno monte de pedras. Apontou as pedras e falou rapidamente. Gesticulava tanto que eu quase podia ver, graças aos seus gestos, o moribundo estendido ali sob o sol escaldante, o pastor que chegava ao alto do penhasco onde uma coluna de pedra se erguia como um dente de gato, o cachorro descendo a correr o caminho difícil e o assassino fugindo pelo "portão" para o caminho que levava a Anfissa e ao mar...

Stéfanos voltou então com passo pesado para o lugar onde nós estávamos. Sentou-se ao meu lado com um suspi­ro, disse alguma coisa breve a Niko, que tirou do bolso um maço de cigarros amarfanhado e passou-o às mãos dele. Deu o fogo para o avô e, depois, me ofereceu um cigarro com o seu brilhante sorriso. Acendemos os cigarros em silêncio.

Simon ainda estava de pé no centro da gruta, mas não estava olhando para o monte de pedras onde o irmão tinha morrido. Tinha-se voltado e, com o seu frio olhar penetrante, estava examinando vagarosamente os lados da gruta... o paredão de rocha tombado que nos fechava... os grandes pedaços que tinham caído do penhasco e agora formavam as duas asas laterais da gruta, empilhados em vastas lajes e cunhas contra a velha parede sólida do penhasco... a curva de uma cavidade rasa exposta no segmento escavado da pe­nedia, uma cavidade que tinha sido profunda antes que a frente do penhasco tivesse caído e expusesse ao ar os seus recessos...

O cigarro que eu estava fumando era fraco e sem muita consistência, cheirando ligeiramente a cabras. Refleti que havia no belo Niko alguma coisa que se referia persistentemen­te a animais mais baixos, Meu cigarro estava meio fumado e o de Niko estava no fim quando a sombra de Simon apareceu diante de nós.

—            Vamos almoçar? — perguntou ele.

A leve tensão — causada por Stéfanos e não por Si­mon — se dissipou e nós conversamos durante o almoço como se estivéssemos fazendo um piquenique normal. Meu cansaço se dissolvia rapidamente, graças ao repouso na som­bra agradável e à sólida excelência da comida que havíamos comprado em Arachova. Tínhamos pães — um pouco secos da viagem na mochila de Niko — cortados em sanduíches com generosos pedaços de carne de carneiro; queijo em gros­sas fatias suculentas; um saco de azeitonas quentes como se tivessem saído do pé, mas que conservavam realmente o ca­lor de Niko; um ovo cozido e um bom pedaço de alguma espécie de bolo feito com cerejas frescas e um grande cacho de uvas, também quentes e levemente tocadas, mas que pa­reciam ambrosiais lá em cima.

Notei que Simon, enquanto comia, ainda corria os olhos em torno, interessando-se principalmente pela penedia recentemente despedaçada atrás de nós.

Isso foi feito pelo terremoto de que você falou, logo depois da guerra?

Exatamente — disse Stéfanos, comendo um pedaço de bolo. — Foi em 1946. Houve três ou quatro tremores na­quele ano. As aldeias não foram afetadas, mas houve grandes deslocamentos de pedras aqui em cima. E não foi só aqui neste lugar. Por toda a montanha, encontram-se lugares onde os tremores e, depois, o tempo tiraram pedaços inteiros da pedra. O que o terremoto começa, o gelo e a neve não precisam de muitos invernos para acabar. Há quatro ou cinco lu­gares como este onde muito pouco resta da face primitiva do penhasco. Só o caminho de cabras por onde nós descemos, está vendo? Ali não houve alteração, mas ao lado os ro­chedos estão empilhados até à altura de uma igreja arruinada. Lembra-se de que eu lhe disse, Kyrie Simon, que um homem que não estivesse sempre na montanha poderia perder os seus pontos de referência.

Por exemplo, a coluna que havia no alto do penhas­co, não?

—            Eu lhe falei nisso? Ah, sim, lembro-me de que falei. Não era muito alto, mas servia como ponto de referência muitos quilômetros em volta. Foi o que me guiou para Michael naquele dia. Ele me disse que sabia de uma gruta aqui, perto do Dente do Gato, na qual tencionava ficar até que a ofen­siva alemã estivesse terminada. Vim trazer-lhe comida com a intenção de convencê-lo a voltar para Arachova, onde seria mais fácil tratar do ferimento dele. Mas disso já falei.

Os olhos de Simon se voltaram para o alto da cavidade.

—            Uma gruta? Esta? Só poderia ter profundidade bas­tante antes que metade dela caísse.

Stéfanos encolheu os pesados ombros.

—            Não sei se foi esta ou não. Deve ter sido. Mas deve compreender que o penhasco é cheio de grutas... alguns pon­tos do Parnaso são como uma colmeia de abelhas onde todo um exército poderia esconder-se.

Simon tinha tirado os seus cigarros.

—            Quer, Camila? Creio que gostaria de dar uma olhada por aí, apesar de tudo. Cigarros? Pegue lá, Niko... — Levan­tou-se vagarosamente e olhou para o velho, que estava sen­tado à sombra. — E você levou Michael carregado daqui até Delfos?

Stéfanos sorriu.

Foi há quatorze anos e eu era bem moço. E o cami­nho para Delfos é muito mais curto do que aquele pelo qual viemos. É mais escarpado também porque Arachova é quase quatrocentos metros mais alta do que Delfos. É uma boa dianteira numa subida como esta e foi por isso que viemos hoje por Arachova.

Ainda acho que foi uma proeza excepcional. Vou agora esquadrinhar um pouco os arredores. Parece que há uma pequena abertura no fundo desta gruta. Você vem tam­bém ou vai ficar descansando?

Vou também.

Niko?

Torcendo o corpo ágil graciosamente, Niko se levantou, limpando a poeira das calças.

—            Vou, sim. Tenho muito boa vista. Se houver alguma coisa para ser vista, contem comigo. Posso enxergar no es­curo como um gato e, se houver uma gruta interna, eu o guiarei até lá, Kyrie Simon.

— Seguiremos suas meias, — disse Simon muito sério e Niko riu.

As meias brilharam através da gruta numa carreira e esmaeceram nas sombras dos recessos da caverna. Stéfanos se levantava lentamente. Simon olhou para mim e levantou as sobrancelhas.

Sacudi a cabeça e ele e Stéfanos me deixaram e seguiram mais lentamente na esteira das meias luminosas. Um baluar­te de sombras envolveu-os.

Acabei o cigarro e apaguei-o. Depois, continuei sentada, repousada e tranqüila, gozando a sombra e o silêncio, bem como a reverberação do calor além do meu canto de sombra. Os homens já não eram visíveis ou na gruta ou por trás das pilhas de compactos destroços. O silêncio era intenso e espesso como o calor. Eu fazia parte dele, imóvel como um lagarto na minha pedra.

Algum movimento, real ou imaginário, na ponta do ca­minho do penhasco me atraiu o olhar e eu me voltei para ver, pensando vagamente que Niko talvez tivesse encontrado algum caminho para voltar ao penhasco, enquanto eu estava ali sentada e quase dormindo. Mas nada havia ali a não ser o sol que martelava a rocha branca. As sombras, purpúreas, negras e vermelhas, pareciam tremer. Contra os violentos padrões de luz esombra, o verde das moitas de azevinho ea curva fresca do zimbro que se arqueavam no flanco do penhasco eram tão refrescantes quanto uma sombra. Lembrei-me de repente de que, quando tinha descido por entre eles, notara outras coisas verdes abaixo de nós nas quais mal re­parara na descida exausta pela face do penhasco.

Onde havia verdura devia haver água no mês de setem­bro... água fresca e fria, não a da tépida garrafa de Niko que tinha cheiro de cabras. Isso fez com que eu me levan­tasse ansiosamente. Uma sombra tornou a mover-se no alto do penhasco, mas eu nem dei atenção a isso. Meus olhos estavam fixos no canto abaixo do frágil arco de zimbro, onde, como uma miragem, se mostrava um retalho de vívida es­meralda. . .

Levantei-me e contornei a beira da gruta, escolhendo o caminho por entre os enormes blocos tombados. Escorreguei entre dois rochedos nos quais minhas roupas se prenderam, curvei a cabeça para passar sob uma projeção de calcário que parecia voar do penhasco... e cheguei à relva. A cor era tão admirável e tão bela depois das ofuscantes altera­ções operadas pelo sol e pela pedra que eu devo ter ficado ali, imóvel, olhando para ela durante mais de um minuto. Derramava-se numa profunda e vívida faixa de verdura farta­mente pontilhada do vermelho do ferro trazido pela água. Mas não havia água no momento. Podia haver alguma fonte ou talvez tudo dependesse dos aguaceiros intermitentes no alto dos picos. Talvez, como a neve no deserto, a relva bro­tasse com um aguaceiro e murchasse com o crepúsculo do dia seguinte... Estava ali uma pequena poça de água fria, um pensamento verde numa sombra verde, úmido ao tato e dando àquele canto da gruta uma frescura que a rocha à sombra não tinha tido.

Sentei-me no chão e espalmei as mãos na relva macia que me subiu entre os dedos. Entre a verdura, havia flores minúsculas, entre elas campânulas azuis em miniatura. Algumas viçavam na face mesma do penhasco e suas sementes, no decorrer da última década, tinham voado e criado raízes nos destroços caídos do terremoto. Só ali naquele canto úmi­do ainda estavam em flor, mas eu podia ver cachos esmaeci­dos de caules por toda a parte entre as pedras. Outras es­pécies alpinas tinham crescido também ali; havia uma planta com uma folha clara e penugenta e um fino talo seco de flor que se projetava como a língua de um beija-flor; um tufo de gavinhas que haviam secado em formas hexagonais de modo que pareciam pedaços quebrados de uma tela de arame; uma plantinha de azevinho que se enraizara tenazmente numa pequena fenda. Então, com outro choque de prazer, vi mais uma flor que ainda não tinha morrido com a falta de água. Numa greta logo acima do nível da vista, havia um pé de ciclâmen. As folhas, verde-azuis e com veios claros, eram sus­tentadas em curvas rigidamente formais nos caules vermelhos. As flores eram de um rosa suave e havia uma dúzia delas, que pareciam pousadas na pedra como um bando de borbole­tas. Abaixo das flores, na mesma greta, havia os restos de outra planta da rocha já morta, que se desfazia em pó com a seca. Acima dela, as flores do ciclâmen pareciam puras, delicadas e fortes...

Alguma coisa se agitava no fundo dos meus pensamen­tos. Olhei para o ciclâmen e achei que estava pensando no pintor holandês e no seu jumento cercados pelos rapazes sorridentes da aldeia e, sem saber porquê, pensei no que Nigel estaria fazendo naquele momento.

Voltamos pelo caminho mais curto.

Parecia que a busca na caverna não tinha dado qualquer resultado e era evidente que Simon não queria prender ainda por mais tempo Stéfanos e Niko fazendo uma investigação mais prolongada. Deixamos a gruta pela abertura do lado do oeste e descemos a escarpada encosta abaixo dos cascalhos.

Tínhamos quase chegado ao fundo do vale seco que fi­cava abaixo da crista da montanha, quando atingimos o cami­nho quase imperceptível que eu havia divisado do alto do penhasco. Até ele era terrivelmente difícil. Andamos cautelosamente por essa trilha cerca de cem metros ou pouco mais, quando então ela se bifurcou. O caminho da direita descia abruptamente, contornando quase imediatamente um espigão de rocha e desaparecendo. O da esquerda descia para Delfos. Seguimos por este e em pouco mais da metade do tempo que a viagem de ida tinha levado, vimos à nossa frente a borda do platô e, mais adiante, a abertura por onde o vale do Pleísto abre caminho para o mar.

Stéfanos parou e falou com Simon. Este se voltou para mim.

— Stéfanos voltou por aqui porque acha que você deve estar cansada. Este caminho levará você diretamente a Delfos. Vai sair acima do templo e você pode descer por trás das Cintilantes e, depois, através do estádio. A descida para o alto do penhasco é íngreme, mas não haverá perigo se você tiver cuidado. Descerei com você, se quiser, mas não poderá errar o caminho.

Devo ter parecido um pouco surpresa, pois ele acres­centou:

—            O carro está em Arachova, lembra-se? Estou pensan­do em voltar agora pelo alto, a fim de pegar o carro. Mas não há necessidade de você fazer toda essa caminhada.

Eu disse, agradecida:

Oh, Simon, aquele carro! Tinha-me esquecido por completo dele. Não vejo sinceramente por que você tem de assumir toda a responsabilidade pela minha irreflexão, mas devo confessar que estou muito contente com a sua disposi­ção nesse sentido. Não diga nada a Niko, mas estou come­çando a sentir uma vontade louca de chegar em casa.

Bem, você não demorará muito aqui e o caminho é todo de descida. Não... nada feito. Irei com você.

Eu nem por sonho deixaria você fazer isso,    sabendo que você depois teria de voltar a Arachova para pegar o carro. Não me posso perder daqui para Delfos e          prometo que terei cuidado no caminho da montanha.

Virei-me para apertar a mão de Stéfanos e agradecer-lhe. Depois, fiz o mesmo a Niko. Era típico de Stéfanos, pensei, passar o tempo todo sem tomar conhecimento de mi­nha presença e, então, desviar o grupo do seu caminho cerca de uma hora ou mais para que eu pudesse ir mais depressa para casa.

O velho me cumprimentou gravemente depois de aper­tar-me a mão e se afastou. Niko tomou-me a mão com um olhar todo derramado de seus belos olhos e disse:

Vou vê-la ainda, miss? Virá a Arachova?

Assim espero.

E irá ver os tapetes na loja de minha irmã? São ta­petes muito bons, de todas as cores. Trabalho local. Há tam­bém broches e vasos no melhor estilo grego. Serão baratos para a senhora. Direi a minha irmã que é minha amiga.

Ri e disse:

Se eu comprar tapetes e vasos, procurarei a loja de sua irmã, Niko. É uma promessa. E agora adeus e muito obrigada.

Adeus, miss. Muito obrigado, bela miss.

As meias luminosas dispararam pelo caminho, seguindo o velho Stéfanos.

Simon riu.

O avô seria capaz de tirar-lhe o couro se entendesse metade do que ele diz. Se existe alguma coisa como uma depravação inocente, é isso que Niko é. Um pouco de Atenas superposto a Arachova. É uma mistura fascinante, não acha?

Quando é bela como Niko, sim...Simon, é verdade que você não encontrou nada na caverna? Ou havia alguma coisa e você não quis falar nisso em presença dos outros? Não viu nada mesmo?

Nada. Havia uma pequena caverna interna, mas esta­va tão vazia quanto uma panela lavada...Conversaremos sobre isso depois. Não posso deixar que se distanciem muito de mim. Estarei no Apollon na hora do jantar e nos veremos então. Depois, irei instalá-la no atelier. Vai jantar comigo, não vai?

Vou, sim. Muito obrigada...

Cuide-se então. Até à hora do jantar.

E, levantando a mão num adeus, seguiu no encalço das meias luminosas.

Fiquei olhando-o durante alguns segundos, mas ele não olhou para trás.

Ocorreu-me então, com um pequeno assomo de surpresa, que àquela hora do dia anterior eu ainda não o conhecia.

Voltei-me e comecei a descer cuidadosamente para Delfos.


 

"Agarrem-na! Joguem-na do alto do Parnaso e fa­çam-na bater de penhasco em penhasco, para que as pedras lhe penteiem os deslumbrantes cabelos!"

Eurípides: ion

 

A tarde chegava ao fim e o sol estava bem à minha frente quando afinal cheguei ao alto de um dos grandes pe­nhascos que dominam o Santuário de Delfos. Muito abaixo de mim e à direita, ficava o templo, com seus monumentos e seus pórticos e sua Via Sagrada, tudo parecendo muito ní­tido e muito pequeno ao sol como os modelos em gesso que se vêem nos museus. As colunas de Apolo estavam curtas e finas como se fossem de brinquedo. Bem abaixo de mim, estava a cova da fonte de Castália. As árvores enchiam tudo como uma cascata escura. Já, além da aberta tomada pelas árvores, a rocha chamejante recebia o sol do fim da tarde como uma chama.

Afastei-me um pouco da borda e me sentei numa pedra. Ao lado, crescia um grupo de altos zimbros. Além dele e em torno havia a habitual extensão poeirenta de pedra quente. O caminho para o ejstádio seguia para a direita, depois dos arbustos, mas eu estava cansada e ali no alto uma brisa fres­ca do mar atenuava a fornalha ainda quente da tarde.

Fiquei sentada calmamente, com o queixo apoiado na mão, olhando pensativamente para os mármores do santuário, para as profundezas azuis e prateadas do vale, onde os fal­cões voavam abaixo do nível da visão, para o grande penhasco ao meu lado que ardia ao sol...Não, pensava eu, não podia ainda sair de Delfos. Ainda que tivesse de dormir no atelier perto da intolerável Danielle, a fim de economizar o que pudesse para pagar o carro, não podia partir. Devia haver um amanhã, outro e mais outro... Quantos dias me seriam necessários até que eu pudesse começar a aprender, a ver e a apreciar o que Delfos tinha para mostrar? Tinha de ficar. E minha decisão (apressei-me a afirmar a mim mesma) nada tinha que ver com Simon Lester e seus assuntos. Nada. Nada mesmo. Depois disso, comecei a pensar no que Simon iria decidir sobre o que faríamos no dia seguinte...

—            Que é que está fazendo aqui em cima?

A pergunta fora feita por alguém que estava bem atrás de mim. Voltei-me prontamente. Danielle tinha saído de trás dos zimbros. Estava com uma saia rodada escarlate e com uma blusa turquesa aberta no pescoço, muito aberta, aliás. O inevitável cigarro pendia-lhe do lábio inferior. A boca estava pintada com um batom rosa-claro contra a sua pele pálida. O esmalte das unhas naquele dia era também rosa-claro. Isso parecia estranho e até levemente impróprio nas magras mãos morenas.

—            Oh, alô! disse eu, amavelmente.

Se eu tinha de ser vizinha da moça naquela noite no atelier, não devia deixar que a irritação da noite anterior diante das maneiras rudes dela reaparecesse.

Mas Danielle não tinha tais escrúpulos. Era evidente que boas ou más maneiras não se enquadravam no seu es­quema de vida. Ela era simplesmente o que era e, se os outros não gostassem, o problema era deles. Repetiu na voz estri­dente de quem queria mesmo saber:

—            Que é que está fazendo aqui em cima? Respondi, procurando dar à voz uma leve entonação de surpresa:

—            Estou apreciando a vista. E você?

Ela se aproximou de mim. Caminhava como um modelo com os quadris projetados para a frente e os joelhos juntos. Ficou entre mim e a borda do penhasco numa das atitudes que se podem ver em desenhos de modas um quadril pro­jetado para a frente, os pés numa posição de sete-e-vinte, uma das mãos magras gesticulando com o cigarro. A qualquer momento, abriria a boca e deixaria a ponta da língua apa­recer.

É uma longa subida do santuário até aqui numa tarde quente, — disse ela.

Sem dúvida. Cansou-se demais ou veio apenas do ate­lier até aqui?

Ela me envolveu num olhar rebrilhante. Eu não conse­guia atinar com o interesse dela pelo que eu estava fazendo ali, mas era evidente que esse interesse existia. Era claro que eu não ia dizer a ela onde tínhamos estado. A peregrina-não era de Simon e de mais ninguém. Se ele me quisera levar também, o assunto era dele. Mas eu não ia dizer nada a Danielle.

Onde está Simon? — perguntou ela.

Não sei, — disse sem sentir. — Estava procurando-o?

Oh, não...

Com surpresa para mim, ela se aproximou ainda mais. Sentou-se a menos de dois metros de meus pés. Disse um nome feio em francês ao tocar com as ancas uma planta espinhosa. Acomodou-se depois graciosamente no chão poeirento e sorriu para mim.

Um cigarro?

Sim, muito obrigada, — disse eu sem refletir.

Ela me olhou durante algum tempo em silêncio enquan­to eu fumava e tentava não me aborrecer com o fato de que não podia levantar-me e deixá-la naquele momento, como tinha muita vontade de fazer. Na verdade, refleti, por que nos apegamos desesperadamente aos nossos tabus? Por que a educação que eu recebera não me permitia levantar-me — como Danielle certamente teria feito em meu lugar — dizer "Estou aborrecida, acho você uma vigaristazinha muito grossa e não gosto nada de você" e, em seguida, descer a montanha? Mas continuei sentada, procurando mostrar-me agradavelmente in­diferente e fumando o cigarro que ela me dera. Devo reconhecer que era um bom cigarro e, depois dos cigarros de Niko, sabiam a néctar e ambrosia. Não sabia por que ela me oferecera o galho de oliveira. "Tenho receio dos gregos, ainda quando trazem presentes..."

Você não almoçou no Apollon, disse ela.

Não. Almoçou lá?

Onde foi que almoçou?

Fui fazer um piquenique. Fora.

Com Simon?

Levantei as sobrancelhas e tentei mostrar minha fria sur­presa ante a pergunta. Não deu qualquer resultado.

Com Simon? repetiu ela.

Sim.

Eu o vi sair no carro.

Viu mesmo?

Ele pegou você em algum lugar?

Sim.

Para onde foram?

Para o sul.

Isso a conteve durante meio minuto. Disse então:

—            Por que não quer dizer para onde foram e o que foi que fizeram?

Olhei para ela um pouco indefesamente e perguntei:

Por que é que lhe devo dizer?

Por que é que não deve?

Porque não gosto de ser interrogada, disse eu. Ela mastigou isso, voltou para mim os grandes olhos cansados e perguntou:

—            Por quê? Você e Simon estiveram fazendo alguma coisa?

Dita por Danielle, a inocente pergunta só podia ter uma significação.

—            Meu Deus! exclamei explosivamente. Depois, come­cei a rir e disse: Não, Danielle. Não fizemos nada disso. Fomos de carro até Arachova e o deixamos lá. Voltamos en­tão pelas montanhas para Delfos. Fizemos um piquenique num lugar onde há uma bela vista do Parnaso. Vim depois para casa e Simon voltou para ir buscar o carro. Se você ficar aqui o tempo suficiente, poderá vê-lo passar de carro lá em­baixo. Se não o conhecer de vista, o carro que você alugou é grande e preto. A marca não sei, pois nunca entendi muito de carros. Chega? E muito obrigada pelo cigarro. E agora, vou-me embora.

Pisei com o pé o cigarro de que fumara dois terços e levantei-me.

Ela fez um pequeno movimento sem se levantar, como o de uma cobra. Sorriu para mim. O cigarro lhe caíra do lábio e estava fumegando no chão ao lado dela. Não fez menção alguma de apanhá-lo. Estava sorrindo e mostrava os belos dentes brancos com a língua entre eles. A língua era pálida como os lábios e as unhas.

—            Está aborrecida comigo, — disse ela.

Senti-me de repente muito velha com todo o peso de meus vinte e cinco anos.

Qual foi o motivo que a levou a imaginar uma coisa dessas, minha cara?

O que acontece é apenas que eu tenho ciúmes de Simon.

Eu queria desesperadamente fugir dali, mas essa abertu­ra dela dificilmente me dava uma boa deixa para a saída. Desvencilhei-me de todos os meus vinte e cinco anos de vida adulta de uma vez e disse com uma voz bem débil:

É mesmo?

Os homens — disse a cobra espojada na terra — são todos mais ou menos os mesmos. Mas há realmente alguma coisa em Simon. Creio que até você foi capaz de sentir isso, não? Em geral, meus amantes me aborrecem, mas eu quero Simon, quero de verdade.

É assim?

É assim mesmo. — A vozinha dela não tinha qualquer inflexão. — E eu lhe posso dizer exatamente o que é que há com Simon.

Não, não, Danielle! — disse eu, com veemência.

Você também o ama, não é?

Eu? Que absurdo! — Com horror para mim, fui enfá­tica demais. — Quase não o conheço! E, além disso, não é...

—            Que importância tem isso? Nunca precisei de mais de dois segundos para saber se quero ou não um homem.

— Escute, Danielle. Tenho mesmo de ir. Espero vê-la depois. Adeus.

—            Vai vê-lo de novo amanhã?

A pergunta foi feita displicentemente, mas não era de modo algum displicente. Alguma coisa me fez parar e olhá-la.

Ela não encarou meu olhar. Estava traçando uma linha na terra com a ponta côr-de-rosa do dedo.

—            Que é que ele vai fazer amanhã? — perguntou-me. Não havia, de fato, nada de displicente na pergunta.

—            Como é que eu posso saber? — disse eu tão friamente quanto me foi possível, mas pensando que na realidade eu sabia muito bem. Com certeza, Simon iria diretamente para a montanha, à procura da caverna hipotética de Michael. E era quase certo que não ia querer Danielle no rastro dele. Mas toda aquela embaraçosa conversa parecia indicar que ela esta­va justamente disposta a segui-lo.

Eü disse então no tom de quem está cedendo uma vanta­gem a um adversário tenaz.

Está bem. Vou-lhe dizer. Vou vê-lo, sim. Pretendemos passar o dia em Levadia. Há uma feira de cavalos com mui­tos ciganos e ele quer bater algumas fotografias.

Oh! — Ela estava olhando para o vale e apertava os olhas para resguardá-los do sol. Lançou-me então um de seus longos olhares e disse: — Que desperdício de tempo mais danado!

Embora já estivesse bastante habituada aos modos dela, não pude dominar o assomo de cólera que senti.

—            Quer dizer que ele não foi consertar a torneira ontem à noite? — perguntei.

Os belos cílios se agitaram e os olhos dela se estreita­ram sobre um olhar do mais absoluto veneno.

Você é muito atrevida, sabe disso?

Sou mesmo mal-educada, — disse eu. — Desculpe. E agora tenho de ir, senão não terei tempo de tomar um banho antes do jantar. Até logo. Sabe que eu me vou hospedar no atelier a partir desta noite?

Os olhos dela se arregalaram. Ainda havia desgosto neles e, então, aborrecimento, mas ambas as coisas foram curiosamente dominadas pelo que me pareceu cálculo.

—            Muito conveniente, não é? — disse Danielle, com a única significação que a frase podia ter para Danielle.

Vi então o olhar dela modificar-se mais uma vez. Passou por cima de meu ombro e eu vi surpresa no rosto dela e mais alguma coisa.

Virei-me rapidamente. Um homem tinha saído de trás dos zimbros. Era evidentemente um grego, moreno, de mala­res largos, com crespos cabelos encaracolados com um toque grisalho e uma sombra de bigode sobre uma boca ao mesmo tempo sensual e de lábios finos. Era de estatura mediana e de constituição robusta. Calculei que a idade devia andar por volta dos quarenta. Vestia um terno cinza listrado, um pouco surrado e uma camisa vermelho-escura com uma gravata de um vermelho mais vivo. Haveria um conflito chocante se as cores não estivessem inofensivamente desbotadas.

—            Como vai, Danielle? — disse ele em francês.

Era como se ele tivesse dito a ela categoricamente: "Tu­do está bem, calma". Vi o ar de surpresa dela desaparecer.

—            Alô. Como foi que descobriu que eu estava aqui?

Ora essa, pensei, vocês dois estavam juntos atrás dos zimbros e eu vim interrompê-los. Suprimi então o pensamento com a reflexão alarmada de que era esse o resultado do con­tato com Danielle. Bastavam cinco minutos com ela e já meio quilo de malícia contaminavam a imaginação.

Danielle disse com displicência — com demasiada dis­plicência — sem se levantar:

—            Essa é Camila Haven. Passou a tarde com Simon e vai dormir no atelier esta noite. — Disse-me então: — Dimítrios é guia.

O homem fez uma reverência e disse com um sorriso:

—            Enchanté.

—            Ele não fala inglês, — disse Danielle. — Você sabe francês?

—            Sim, — respondi e murmurei alguma frase polida.

Mademoiselle esteve no santuário hoje à tarde? — perguntou Dimítrios.

Não. Mas estive lá de manhã bem cedo.

Muito bem. E agora veio para o alto das Cintilantes a fim de ver o poente?

Ainda vai demorar muito a escurecer, não acha?

Talvez não tanto, — disse Dimítrios.

Vi Danielle virar a cabeça a fim de olhá-lo. A cabeça dela estava à altura de minhas coxas e eu não podia ver-lhe os olhos por trás da cortina dos cílios. Alguma coisa me su­biu pela espinha como um inseto de patas frias. Do mesmo modo que a mulher, o homem me dava arrepios.

Sujeitei-me de novo a uma vigorosa sacudidela mental.

Tenho de tomar um banho e de me arrumar para o jantar e...

Estas rochas — disse Dimítrios — são chamadas as Fedríades, as Cintilantes. Conto sempre à meus turistas a história das Cintilantes. Entre elas, corre a fonte de Castália, cuja água é a melhor de toda a Grécia. Já experimentou a água da fonte, mademoiselle?

Ainda não. Eu...

Ele se aproximou mais um passo. Eu estava entre ele e a borda do penhasco.

— Estão de guarda ao santuário como sentinelas, não lhe parece? E é isso exatamente o que são. Eram não apenas as protetoras do lugar sagrado, mas também o local das execuções. Havia pessoas executadas nestes penhascos por sacrilégio. Sabia disso, mademoiselle?

—            Não, mas...

Mais um passo. Sorria e o sorriso era muito encantador. Tinha uma voz agradável. Ao meu lado, no chão, vi Danielle levantar a cabeça e observar-me, a mim e não ao homem. Sorria para mim com a maior cordialidade, com os olhos fulgurantes e já sem nenhum cansaço. Recuei do homem um ou dois passos. Com isso, fiquei a cerca de um metro e meio da borda.

Dimítrios disse de repente:

—            Cuidado! Dei um salto e ele me segurou pelo bra­ço. Havia delicadeza no seu contato. — Não está aqui para ser executada por traição ao deus, mademoiselle.

Riu, Danielle sorriu e eu pensei de repente, quase desvairadamente: "Por que não posso puxar o braço e correr? Detesto a ambos e ambos me amedrontam, mas tenho de fi­car aqui porque não é gentil retirar-me enquanto o maldito homem estiver falando".

—            Sempre conto a meus turistas um caso particular, dizia ele. Houve uma vez um traidor que foi trazido até aqui para ser executado. Dois homens o trouxeram — exatamente a este ponto para jogá-lo do alto do penhasco. O homem olhou para baixo... Sim, o caminho é comprido, não é, mademoiselle? Bem, o homem disse aos dois: "Por fa­vor, não me joguem com o rosto para a frente, sim? Deixem-me cair de costas". É fácil compreender o que ele sentia, não é mesmo, mademoiselle?

Ainda me segurava o braço. Fiz força para livrar-me e a mão dele escorregou mansamente até ao meu cotovelo. Notei que as unhas estavam roídas quase até ao sabugo e que o po­legar estava cortado e incrustado de sangue seco. Comecei a desviar-me dele e a puxar o braço, mas a pressão dos dedos se tornou mais forte. A voz dele murmurou um tanto precipitadamente ao meu ouvido:

—            E então ele foi jogado, mademoiselle, e ao cair...

—            Largue-me, — disse eu, ofegantemente. Não gosto de alturas. Faça o favor de me largar.

Ele sorriu.

—            Ora, mademoiselle...

Danielle disse então com uma voz seca e fina:

—            São esses os seus turistas, Dimítrios?

O homem soltou uma breve exclamação contida. Largou-me o braço e se voltou.

Três pessoas, um homem e duas mulheres, vinham em passo lento pelo caminho de Arachova. As mulheres eram feias, gordas e de meia-idade. O homem era gordo, usava cal­ções caqui e tinha uma enorme máquina fotográfica com a correia passada pelo ombro suarento. Olharam para nós sem o menor sinal de curiosidade nos rostos afogueados e passaram como uma fila de bois, como anjos do céu.

Pulei da beira do penhasco do mesmo modo que a rolha salta de uma garrafa de bom champanha. Não me dei ao tra­balho de dizer coisa alguma a Dimítrios e nem sequer dei adeus a Danielle.

Desci pelo caminho atrás dos três turistas. Nem o grego, nem Danielle fizeram qualquer menção de seguir-me. Depois de algum tempo, diminuí o passo e procurei controlar meus pensamentos. Se Danielle e seu maldito amante eu não tinha a menor dúvida de que ele fosse amante dela ti­nham querido por algum motivo assustar-me, o êxito deles tinha sido completo. Eu me tinha sentido ao mesmo tempo apavorada e imprudente, o que era uma mistura diabólica. E se tudo não tivesse passado de um truque grosseiro e de uma manifestação de senso de humor deslocado? Era absur­do pensar que tinha sido alguma coisa mais que isso. Eu só havia imaginado coisa diferente porque passara um dia fisica­mente exaustivo. Eu antipatizava com Danielle sem fazer o menor segredo disso e ela quisera assustar-me e humilhar-me porque eu interrompera o seu sórdido encontro com o grego atrás dos zimbros. E talvez também por causa de Simon...

Cheguei ao estádio. A pista de corridas se estendia vazia e silenciosa no fundo das arquibancadas de mármore. Corri quase pela terra nua, transpus os portões de saída da pista e desci precipitadamente pelo caminho que levava ao san­tuário. Senti que o coração ainda batia desesperadamente dentro do peito e que a garganta estava contraída. O cami­nho mergulhou, desceu, curvou-se em torno de um poço de onde a água gotejava e desceu abruptamente para o caminho mais suave acima do teatro. Lá estavam os meus três turis­tas ainda no seu passo calmo, falando entre si alguma língua incompreensível que podia ser holandês. Havia também gente no teatro, gente sentada nos degraus, gente por toda a parte no templo de Apolo. Era perfeitamente seguro descansar ali sob as árvores e esperar que meu coração se acalmasse. Perfeitamente seguro...

O sol dourava de través as pedras, num tom amarelado de âmbar, numa onda suave de luz e de paz. Uma abelha vo­ou perto de mim.

A romãzeira estava à meu lado e os frutos resplande­ciam na fartura de luz. Lembrei-me do contato frio da romã em minha mão e de Simon a dizer-me: "Coma logo, Perséfone, pois assim não sairá mais de Delfos..."

Bem eu ia ficar, ia ficar...

Respirava de novo normalmente. Apolo, o curador, me havia feito sarar.

Desci calmamente os degraus, atravessei o círculo do teatro batido de sol, passei por entre os cheirosos pinheiros que orlavam o santuário e tomei a estrada principal rumo ao hotel.

Mesmo quando, preparando-me para o jantar, vi uma pinta de sangue seco em meu braço — o sangue do polegar ferido de Dimítrios — senti apenas um breve instante de desgosto. Tinha sido irrefletida, imaginosa e assustada. Apenas.

Mas senti uma curiosa relutância em descer para o jan­tar antes que Simon aparecesse e desejei, com espantoso fervor que não estivesse comprometida a ir dormir no atelier naquela noite.

 

"Deixando com um grito ressoante as alturas de Delfos".

Milton:Nativity Hymn

 

Devia ser perto das três horas da madrugada quando al­guma coisa me acordou. Meu quarto era o segundo a contar do fim do longo corredor, ao lado do de Danielle, e na ex­tremidade oposta à porta da rua, perto da qual ficavam os quartos dos dois homens. O pintor holandês tinha partido naquele dia, de modo que nós quatro éramos os únicos in­quilinos do atelier.

Durante algum tempo, eu tinha pairado naquele vago estado entre a vigília e o sono em que é difícil distinguir a realidade das névoas confusas do sonho. Alguma coisa me fizera acordar, mas eu não sabia se tinha sido algum barulho ou uma ocorrência qualquer do próprio sonho. Não havia ruído algum lá fora. O ar tranqüilo de Delfos nos envolvia. Encostei o rosto no travesseiro duro — os travesseiros gregos parecem sempre feitos de tijolos — e me preparei para mer­gulhar novamente no sono.

Do quarto ao lado, veio o som de um movimento e, em seguida, o ranger de uma cama — dois sons tão completamente normais e esperados que não poderiam provocar-me a atenção. Mas ouvi então mais alguma coisa que me fez abrir os olhos no escuro e levantar a cabeça do travesseiro, des­truindo a normalidade da noite. Alguém estava falando em voz muito baixa e era um homem.

Meu primeiro pensamento foi de aborrecimento por ter ouvido, logo seguido de irritação e de revolta. Se Danielle queria receber um amante no quarto, não havia motivo al­gum para que eu tivesse de ser supliciada sem poder dormir do outro lado de uma parede muito fina. Mexi-me na cama com muitos movimentos de cobertores e ranger de molas para que do outro lado soubessem como a parede era fina. Puxei então o lençol — fazia muito calor para usar cober­tor — até à cabeça e procurei não escutar os sussurros que continuavam no outro quarto.

Tinha perdido o sono de vez. Fiquei imóvel sob o lençol com os olhos abertos na escuridão e as mãos tampando os ouvidos com toda a força que me era possível. Isso não que­ria dizer que eu fosse especialmente pudica. Mas escutar à força os momentos mais íntimos de outras pessoas não é nada agradável. Depois, eu não queria participação, parcela ou sugestão dos momentos íntimos de Danielle, cujos momentos públicos já causavam confusão de sobra.

Fiquei pensando como o antipático Dimítrios conseguira entrar na casa. Embora ele só estivesse ali para ver Danielle, não me agradava a idéia de que tivesse trânsito livre na mesma casa em que eu estava. Talvez tivesse entrado pela janela e, sendo assim, mais cedo ou mais tarde, teria de sair pelo mesmo caminho. Sem dúvida, eu o ouviria pular da altura de três metros e meio que havia da janela para o chão de rocha do platô. Esperei, furiosa com Danielle por sujeitar-me àquilo, furiosa comigo mesma pelo meu interesse, furio­sa com Dimítrios por servir ao tremendo egotismo daquela mulher. Era uma experiência bestial.

Não sei quanto tempo decorreu até haver silêncio no quarto ao lado. Pareceu uma idade. Mas, por fim, tudo foi silêncio. Depois, ouvi de novo os sussurros e os movimentos furtivos de alguém pelo chão do quarto. Esperei o ruído da janela aberta e, depois, o barulho do salto. Mas isso não acon­teceu. Ouvi foi a porta abrir-se e os passos cautelosos pelo corredor e diante de minha porta.

Isso me fez sentar-me nervosamente na cama, com um baque no coração. Se Danielle queria deixar um homem en­trar no quarto dela e sair dele à vontade, que o fizesse. Mas não tinha o direito de deixar um homem como Dimítrios solto dentro da casa. Ter-lhe-ia ela dado a chave?

Foi então que me chegou do escuro outro pensamento, para pôr-me os nervos em polvorosa.

Talvez não se tratasse absolutamente de Dimítrios.

Talvez fosse Nigel.

Pulei da cama, calcei as chinelas e me meti às pressas no casaco leve de verão que me faz também às vezes de robe, antes que compreendesse exatamente o que estava fazendo. Atravessei o quarto correndo e abri de mansinho a porta pa­ra espiar pelo corredor.

Creio que meu procedimento não era cem por cento correto. Não tinha absolutamente nada com o fato de que Nigel tivesse ido ao quarto de Dânielle para fazer o que evi­dentemente desejava de todo o coração. Mas, ao pensar nele, tinha tido a lembrança nítida e perfeita da jovem ansiedade do rosto de Nigel, dos olhos vulneráveis, da boca fraca e da sua ridícula barbicha de garoto. E eu tinha visto os seus de­senhos, as suas visões de árvores, flores e pedras traduzidas com uma perícia impecável, mas destituída de paixão. Se Ni­gel podia ser também aquilo... Eu tinha de saber. Pode cha­mar-se isso de pura e vulgar curiosidade feminina, mas eu tinha de saber se a impossível Danielle o havia realmente anexado assim — se permitira a Nigel, a quem ela desprezava, o acesso ao seu santuário barato e conspurcado.

Creio que estava pensando incoerentemente que era pre­ciso encontrar um meio de impedi-la de arruinar Nigel e pen­sava, com ainda maior incoerência, em Simon. Simon tinha de saber de tudo no dia seguinte. Simon saberia o que fa­zer. ..

Saí do quarto sem fazer barulho. A porta da rua tinha a parte superior de vidro e além dela a escuridão da noite se acinzentava a caminho da madrugada. Foi contra os vi­dros que o vi.

Estava quase no fim do corredor diante de uma porta — a porta de Nigel — como se tivesse parado ali para esperar alguma coisa. Encolhi-me de encontro à parede, mas, ainda que ele olhasse para trás, não poderia ver-me devido à escuridão do meu lado do corredor. Fiquei imóvel, cosida ao mármore frio, sentido-me ao mesmo tempo humilhada, zangada e envergonhada, desejando não ter sabido, desejando estar ainda imersa nas profundezas do sono, desejando que ainda pudesse lembrar-me de Nigel pelos seus trabalhos e não, como naquele momento, por intermédio dos sujos murmúrios de Danielle... "Os homens são de qualquer maneira iguais... aborrecem-me... quero Simon..."

A silhueta na outra extremidade do corredor moveu-se afinal. Deu um passo à frente e pôs a mão na porta. Parou de novo, por um momento, com a cabeça baixa, como se escutasse.

Pensei que eu tivesse feito algum ruído e que ele me tivesse ouvido, porque eu podia ver que não era o grego. Era alto demais para ser ele. Não era Nigel também. Era Simon.

Se eu tivesse estado em condições de pensar, a pronta e completa rebelião de todos os nervos e músculos de meu corpo e de todas as gotas de sangue do meu cérebro me te­riam revelado a natureza de meus sentimentos em relação a Simon. Mas ainda não compreendera plenamente o que tinha visto, quando os acontecimentos da noite se precipitaram e com muito mais barulho.

Simon abriu a porta do quarto de Nigel. Vi-o estender a mão como à procura do interruptor de luz, mas, no mesmo instante, o foco de uma poderosa lanterna elétrica foi aceso na escuridão do quarto, caindo-lhe em cheio no rosto e no peito. Vi-o recuar, como se a luz fosse uma pancada nos olhos, mas a pausa foi momentânea, não passando da tensão antes da ação. Investiu impetuosamente na direção do facho de luz, com a velocidade de uma bola. Ouvi um impacto, um grito, o bater de pés no chão de pedra e então o inferno pa­recia desencadear-se dentro do quarto.

Desci às pressas pelo corredor e parei diante da porta. O quarto parecia um pandemônio de corpos que lutavam. À luz oscilante da lanterna, os dois homens pareciam enormes e suas sombras subiam e tremiam grotescamente pelo teto e pelas paredes. Simon era o mais alto e parecia estar levando uma vantagem momentânea. Tinha o pulso do outro numa das mãos e, com a outra, parecia estar tentando torcer o braço do adversário para que a lanterna lhe iluminasse o rosto. O facho de luz se balançava erráticamente, em vista da resistência do outro homem, e a luz descrevia arcos vio­lentos e quebrados através da escuridão. Em dado momento, incidiu sobre mim, à porta, e descreveu uma brilhante curva através de meus pés e da parte da camisola que aparecia por baixo do casaco. Alguém vociferou alguma coisa incom­preensível em grego. Em seguida, o homem conseguiu desven­cilhar o braço e, com um resmungo de esforço, fez descer a lanterna num violento golpe que visava a cabeça de Simon. Este desviou a cabeça, mas levou a pancada no ombro. Um músculo devia ter sido atingido, porque Simon afrouxou os dedos e o grego se desvencilhou.

Devia ter sido mesmo Dimítrios, afinal de contas. Vi o corpo robusto e os ombros largos à luz incerta antes que Simon o atacasse de novo, fazendo a lanterna voar longe e rolar para os pés da cama. A escuridão envolveu tudo. Não tive tempo de pensar em Dimítrios — porque ele tinha en­trado no quarto de Nigel, porque Simon o seguira ou até porque — e isso era o mais estranho de tudo — Nigel não aparecia, quando os dois homens, engalfinhados de novo, pas­saram rapidamente por mim e foram chocar-se contra a porta do banheiro. Ouviu-se o estalo da porta que se quebrava; em algum ponto, houve a explosão de vidros quebrados; uma das frágeis cadeiras foi ruidosamente derrubada; depois, as molas da cama rangeram enquanto os dois homens lutavam em cima "dela.

Fiquei de joelhos a meio metro da cama em confusão e tateei pelo chão à procura da lanterna. Eu a tinha ouvido rolar... não devia ter ido longe... objetos assim rolavam em semicírculo...ah! Encontrei-a e corri o dedo à procura do botão, com a esperança de que a lâmpada não se tivesse quebrado com a queda...

A lanterna era pesada e o botão era duro. A cama, que jogava como um navio colhido por uma tempestade, afastou-se meio metro da parede nas rodinhas dos pés e voltou com um ímpeto que devia ter feito cair o reboco. As molas estala­ram, distenderam-se e soltaram-se barulhentamente quando os homens escorregaram até à beira da cama e caíram no chão.

Um momento de arquejante silêncio e levantaram-se novamente. Houve uma pausa preenchida pelas respirações ofe­gantes. Levantei-me ainda labutando com a lanterna e, de repente, a coisa se acendeu em minhas mãos. Pela segunda vez naquela noite, a luz atingiu em cheio os olhos de Simon. E, dessa vez, o grego, vendo rapidamente a sua vantagem, atacou abaixo da luz. Simon caiu com um barulho que sacudiu o quarto. Vi-o bater na queda com a ponta do ombro na cama. A pancada devia tê-lo invalidado momentaneamente, mas o grego surpreendentemente não tornou a atacá-lo. Não se voltou também contra mim. Estava de costas para mim e a luz da lanterna iluminou-lhe por um instante os om­bros fortes de touro, os cabelos anelados... Nem olhou para trás. Ouvi uma voz ofegante dizer em francês:

—            Apague essa maldita lanterna, sim? Bati-lhe na cabeça com toda a minha força.

Errei. Justamente quando a lanterna ia descendo, alguma coisa o avisou. Não se voltou para a luz. Aproximou-se de costas, com um cotovelo dobrado que atingiu a lanterna, fazendo-a voar longe e depois me acertou bem no meio do peito com uma pancada fulminante que me fez cair cambaleando aos pés da cama. A lanterna foi jogada ao chão de novo e se apagou de vez. Quando eu ia caindo, vi ainda o grego dar um salto para a porta e Simon correr atrás dele. Mas na porta estava Danielle, inteiramente vestida, com olhos brilhantes e lábios entreabertos.

Afastou-se um pouco para deixar o homem passar. De­pois, com um movimento aparentemente lânguido, mas tão rápido como o bote de uma cobra, tomou a frente para tolher o ímpeto de Simon. Ouvi o outro homem descer o corredor rumo ao quarto dela e à janela aberta, enquanto Simon se chocava violentamente com o corpo dela. Ouvi-a gemer, quan­do o corpo foi duramente lançado de encontro ao portal.

Eu não podia ver senão os vagos esboços de movimentos à luz cinzenta do corredor, mas ela devia estar agarrada a ele, porque o ouvi dizer asperamente: "Largue-me!" Ela deu uma gargalhada. No outro lado do corredor, uma porta foi batida. Ouvi Simon dizer:

—            Não ouviu o que estou dizendo? Tire as mãos de cima de mim ou vai ficar machucada!

Èu nunca o tinha ouvido falar nem com a voz alterada. Naquele momento, compreendi com um pequeno choque que ele estava realmente zangado. Danielle não devia ter-se inquietado muito com isso, pois a ouvi murmurar com voz rouca:

— Continue que eu estou gostando...

Houve um segundo de congelado silêncio; depois, na penumbra, o grupo da porta explodiu em movimento. A moça foi jogada para o lado com uma violência que a fez perder o fôlego e dar um grito em que havia mais surpresa que outra coisa. Antes que ela se pudesse recuperar, Simon entrou de novo no quarto, correndo para a janela a fim de abri-la.

O ferrolho estava enferrujado e duro. Quando Simon conseguiu afinal abrir a janela, ouviu, como um eco do outro lado da casa, um ranger de dobradiças enferrujadas e o baque de um corpo pesado que caía no chão. Soaram passos que se foram afastando na escuridão.

Simon galgou o peitoril e o seu vulto escuro se destacou sobre o céu acinzentado. Mas, antes que ele pudesse saltar e sair em perseguição ao grego, Danielle correu para ele e pegou-o pelo braço.

—            Deixe-o, Simon.. . Que confusão, meu querido Simon! — Apesar da recente violência, ela ainda se agarrava a ele e falava com uma voz na qual, apesar dos subtons de sexo, havia uma nota de medo. — Não, Simon. Ele estava comigo. Não compreende? Comigo!

Vi a mão dele cair do peitoril da janela.

—            Como? Que é que está dizendo?

—            Ele estava no meu quarto. Só veio aqui para me ver. Eu disse então do chão perto da cama, onde ainda estava sentada:

—            É verdade. Eu os ouvi.

Ela riu, mas de certo modo a risada não tinha a habitual segurança dela. Simon afastou-a para o lado como se ela não existisse e deu um pequeno pulo para dentro do quarto.

—            Compreendo... De qualquer maneira, foi-se embo­ra... Camila! Você está bem?

—            Perfeitamente bem. Não há luz?

Acho que a lâmpada está queimada. Espere um pouco. — Tive a impressão de que estava procurando alguma coisa nos bolsos. — Que está fazendo aí? Aquele animal atingiu-a?

Sim, mas estou bem. Eu estava apenas... querendo sair da frente.

Levantei-me sem muita firmeza e me sentei na cama, enquanto Simon encontrava os fósforos e riscava um. Olhou-me à luz do mesmo. Sorri vacilantemente. Vi então que ele estava vestido apenas com calções cinzentos. À luz do fós­foro, vi o peito luzido de suor e um filete de sangue de um corte na base do pescoço, onde havia um profundo V de pele queimada de sol. A respiração estava um pouco mais rápida do que de costume — não muito, mas perceptivelmen­te mais rápida — e os olhos, ao menos dessa vez, não pare­ciam frios e divertidos. Mas o fósforo ardia firmemente na mão que não tremia. Perguntei ansiosamente:

E você?

Nada demais. A luta acabou empatada... o que foi sem dúvida uma pena.

Danielle perguntou arrogantemente:

Por que foi que lutou com ele?

Ele me atacou, minha cara. Que era que você queria que eu fizesse?

Tinha acendido outro fósforo e estava procurando a lâmpada.

—            Foi Dimítrios, não foi? — perguntei.

Simon me lançou um olhar de surpresa, ao mesmo tem­po que apanhava a lâmpada dentro da pia. Danielle voltou a cabeça, como que espantada, e então deu o seu sorriso de gata.

Reconheceu-o? Claro que foi ele.

Simon tinha arrastado uma das cadeiras e subiu nela para colocar a lâmpada no lugar. A luz brilhou, mostrando a desordem em que estava o pequeno quarto. Saltou da cadeira e olhou para mim:

Tem certeza?

Tenho. Mas onde está Nigel, Simon?

—            Não faço a menor idéia. Ainda não se deitou nessa cama hoje. Isso é evidente.

Embora a cama estivesse em desordem, a colcha da ca­ma ainda estava presa debaixo do colchão. Ninguém se dei­tara ali. Simon hesitou e então se voltou para Danielle. Ela estava de pé perto da porta, encostada à parede numa pose de indolente graça. Os olhos pareciam compridos e sonolen­tos por trás dos espessos cílios. Tinha tirado um cigarro do bolso e estava acendendo-o. Jogou depois o fósforo apagado no chão. Durante toda a operação, não tirara os olhos de Simon um só momento.

Ele disse então:

—            Diz que o homem estava com você. Como foi que ele entrou?

Deixei-o entrar.

Pela porta?

Não. Pela minha janela.

—            Espere aí, Danielle. Sua janela fica a três metros e meio do chão. Não me diga que emendou lençóis ou que fez uma corda com as tranças de seus cabelos para ele subir. Abriu a porta para ele ou ele tem uma chave?

Ela disse malcriadamente e com voz carregada de frieza:

—            Não sei muito bem o que é que você tem com isso, mas abri a porta para ele, sim.

— O que eu tenho com isso é o fato de que sua visita estava rondando pela casa, onde não tinha direito algum de estar. E há o pequeno detalhe de que ele avançou contra mim, com evidente vontade de me machucar ou de coisa pior. Que era que ele estava fazendo no quarto de Nigel?

—            Eu é que sei?

Ele acabou saltando de sua janela. Poderia ter feito assim desde o princípio. Por que não fez?

Era mais fácil e mais silencioso sair pela porta. A chave está na fechadura.

—            Que foi então que ele veio fazer aqui? Ela encolheu os ombros.

—            Devia tê-lo ouvido no corredor e se escondeu para não ser visto. Não sei.

—            Ele não podia saber que não havia ninguém no quarto.

—            Eu disse a ele que quase todos os quartos estavam vazios. Naturalmente, ele entrou pela primeira porta que en­controu, na previsão de que estivesse vazio. Agora, chega. Estou cansada disso, cansada do interrogatório, e vou-me deitar.

Espreguiçou-se, bocejou deliberada e graciosamente, co­mo uma gata, mostrando os belos dentes e a língua rosada e pálida. Voltou então a cabeça e pousou insolentemente em mim os olhos sonolentos. Simon tinha achado o resto de um maço amarrotado no bolso dos calções e tinha-me dado um cigarro. Curvou-se para mim a fim de acendê-lo. A respira­ção dele já estava bem igual. Se não fosse o pequeno feri­mento no lugar onde fora atingido pela lanterna e a camada de suor que se lhe secava na pele, ninguém seria capaz de supor que alguns minutos antes lutava pela vida na escuridão.

Danielle disse então:

—            E você, que é que está fazendo aqui, Camila?

Ouvi um barulho e vim ver o que era.

Ela sorriu.

E foi derrubada. Ele a machucou muito?

Espero que nem tanto quanto o machuquei.

Ela pareceu por um momento surpresa e isso me deu uma absurda satisfação.

Você o machucou? Como?

Acertei-o na nuca com a lanterna. Com força. Ela me lançou um olhar demorado e estranho.

—            Voce bateu nele? Não posso compreender como fez isso! Ele é meu amante e se eu quiser deixá-lo vir aqui...

Repliquei, indignada:

—            Ele estava fazendo o possível para matar Simon. Além disso, eu devia alguma coisa a ele.

—            Você? Devia alguma coisa a ele?

—            Sim, não se faça de inocente, Danielle. Não estava tão inocente assim hoje à tarde nas Cintilantes.

—            Ah... compreendo.

Deu um suspiro e Simon disse:

—            Que é que estão dizendo? Que foi que aconteceu?

—            Nada. Tudo foi imaginação de Camila. Ela pensa que Dimítrios. .. Não, é uma tolice tão grande que eu nem vou falar disso. Foi uma brincadeira. Agora, estou cansada de tudo isso. Vou dormir.

Deixou cair a ponta do cigarro no chão e voltou-se para a porta. Levantei-me.

—            Um minuto, — disse Simon delicadamente. — Por favor, Camila, não se vá ainda. Estamos esquecendo Nigel. Tem alguma idéia de onde ele pode estar, Danielle? Ele lhe disse alguma coisa ontem à noite?

Danielle respondeu, irritada:

—            Por que tenho de saber para onde foi aquele idiota? Não sei, nem quero saber. Pode até estar morto que não me interessa.

—            Creio que sei para onde ele foi, — disse eu. Simon estava passando o lenço no ferimento do pescoço.

Vi-o arquear as sobrancelhas.

—            Você parece saber de muita coisa esta noite.

Não é mesmo? — disse Danielle, que tinha parado na porta. A voz dela não era tranqüila, como a de Simon. — Está bem, diga-nos então.

É apenas uma conjetura. Simon, lembra-se da nossa conversa da outra noite sobre Nigel, os trabalhos dele, a necessidade de um truque de propaganda e o pintor holandês que veio a pé da Jannina e tudo mais?

Lembro-me. Está sugerindo que Nigel resolveu seguir o exemplo do holandês?

Bem, roubaram um burro nas escavações acima do santuário. Sei disso porque o guia me disse esta manhã... quer dizer, na manhã de ontem. E eu vi Nigel bem cedo nessa mesma manhã e ele estava procurando não ser visto...

Onde? — perguntou Danielle.

Perto daqui do atelier.

Para que lado ele foi?

Não sei. Parecia estar subindo o Parnaso, na direção do estádio.

Talvez você tenha razão, disse Simon. Bem, su­ponho que ninguém tem nada com o que Nigel fizer. Afinal de contas, estava meio inquieto e talvez seja bom para ele ausentar-se durante alguns dias. Foi molhar na torneira da pia o lenço manchado de sangue. Acho bom arrumar­mos logo o quarto e sairmos daqui. Há sangue na pia e o chão não está como devia estar. Vamos fazer um levantamen­to dos estragos e dar o jeito que pudermos.

Deixe comigo, disse eu. Vou limpar a pia. Mas, primeiro, deixe-me ver esse corte, sim? Danielle, quer fazer o favor de limpar o chão e apanhar os cacos do copo que se quebrou?

Ela desfechou um dos seus olhares carregados de raiva, coisa que, dessa vez, era plenamente justificada.

—            Isso não lhe tomará muito tempo, Camila. Estou can­sada. Você esquece que eu ainda não dormi esta noite e estou precisando muito de sono...

Bocejou, olhou-me ainda apertando os olhos e saiu, fe­chando a porta.

Segundos depois, do outro lado do corredor, ouvimos a batida da porta do quarto dela.

 

"A coragem é uma coisa que todos admiram. Pense então o que será para seu bom nome e para o meu fazer isso"

Sófocles:Ajax

 

Houve no quarto de Nigel a espécie de silêncio que em geral se considera carregado de expectativa. Mas, ao menos, refleti, não havia mais necessidade de conter o impulso de discutir Danielle...

- Meus olhos e os de Simon se encontraram no espelho.

—            Você queria mesmo livrar-se dela, não queria?

Lá está você de novo lendo os pensamentos. Mas, desta vez, acertou.

Por quê? — perguntei cuidadosamente. — Isto é, além das razões óbvias.

O interesse divertido que havia nos olhos dele desapare­ceu quando Simon se voltou para mim. O seu aspecto era grave, sombrio mesmo.

—            A verdade, Camila, é que não estou gostando do jeito que as coisas vão tomando.

—            Que jeito?

—            Ora, muita coisa está acontecendo. Alguns fatos po­dem ser destituídos de importância, outros podem ter muita significação. Danielle e esse homem, por exemplo... E Danielle e Nigel. Começo a ficar desconfiado.

Eu tinha razão então. Agora, vire-se aqui para a luze deixe-me ver esse ferimento... Você não quis que eu falasse em Nigel em presença dela?

Não.

O ferimento não é profundo, mas você vai ficar com a marca e terá alguma dificuldade em mover o ombro. Há algum antisséptico em seu quarto? Acha que ele foi para as montanhas?

Sim. Quer dizer, não. Não acredito que ele esteja fazendo alguma excursão, mas tenho antisséptico em meu quarto.

Não se esqueça então de aplicá-lo no ferimento. Está bem limpo e já parou de sangrar. — Afastei-me um pouco e olhei firmemente para ele. — Que é mesmo que Danielle e Nigel e esse grego dela podem ter conosco, isto é, com você?

Esse grego, esse amante de Danielle... você diz que o nome dele é Dimítrios?

Sim. Conheci-o ontem à tarde, quando voltava da gruta. Ele estava com ela acima das Cintilantes.

Ah, sim, as Cintilantes. Por falar nisso, que foi que aconteceu lá? Por que era que você "devia" alguma coisa a Dimítrios?

Bem, a rigor não foi nada. Ele foi desagradável de uma maneira, vamos dizer, untuosa e falou muito do tempo em que as pessoas eram jogadas do alto dos penhascos. Es­távamos perigosamente perto da borda e ele podia ver que eu não estava gostando disso, mas a coisa o divertia... e a Da­nielle também. Foi apenas um truque muito grosseiro para me ridicularizar e posso dizer que foi bem sucedido. Por fim, consegui fugir.

Escute, Camila, — disse Simon com a testa franzida, — não lhe ocorreu nada a respeito desse Dimitrios?

Não. Que era que me podia ocorrer? Não simpatizo com ele e acho que... Espere aí. Dimitrios!

Exatamente. Lembra-se agora? Ângelos tinha um pri­mo chamado Dimítrios Dragoumis, que tinha ido morar em Itéia. Em Itéia, percebeu?

E eu vi o jipe em Itéia... Danielle foi diretamente para lá quando chegou de Atenas! Se se trata do mesmo Di­mítrios, então Dimítrios Dragoumis é o amante de Danielle e foi a casa dele que eu vi. Ela estava visitando-o e não a qualquer amiga chamada "Elena" e aposto que ela estava lá quando passei pela casa, se o jipe pode servir de alguma indicação.

Tem certeza de que foi o mesmo jipe?

Absoluta. Já lhe disse que reconheci a boneca pen­durada no pára-brisa. Havia alguém mexendo no motor e não era Dimítrios, mas, apesar de tudo, tenho aimpressão de que estamos certos. É o mesmo Dimítrios. Isto pode explicar por que Danielle está tão interessada por você. Mas só em par­te...

Ele deixou passar essa farpa.

Muito bem, vamos supor então que estamos certos e examinar os fatos... Dimítrios Dragoumis é amante de Danielle. Quer haja alguma pessoa chamada Elena, quer não, a verdade é que Danielle tinha o hábito de passar as tardes per­to de Itéia, tomando banho de mar. Uma vez, ela me disse que havia descoberto uma pequena enseada escondida onde a água era limpa. Em Itéia mesmo, a água é muito suja. O que se pode supor é que ela se encontrava não com "Elena" mas com Dimítrios nesses banhos de mar e acabou em bom entendimento com ele. Talvez ele estivesse por lá pescando. Já lhe disse que ele é pescador e tem um caíque?

Ele me disse que era guia.

Sei perfeitamente que não há guia algum em Delfos com esse nome e se ele se deu ao trabalho de mentir... — Não terminou a frase e olhou para o cigarro com a testa franzida. — Bem, vamos continuar. Dimítrios, primo de Ân-gelos, mandou Danielle a Atenas para alugar um carro para ele... num caso de vida e morte. Em outras palavras, com muita pressa.

E daí?

Uma necessidade dispendiosa. E ele é um pescador. Para que havia de querer um carro?

Sentei-me de novo na cama.

—            Não sei. Continue.

Sem olhar, ele jogou na pia acinza do cigarro.

Danielle alugou o carro para ele, mas depois conse­guiu a oferta preferível de um jipe de seu amigo francês Hervé Clement. Não foi à garagem para cancelar o pedido... E lá não tinha dado o nome de Dragoumis. Daí decorreram todas as confusões em torno do "Monsieur Simon" e os es­forços perturbadores, mas bem-intencionados de Camila Haven. Mas os atos de Danielle sugerem alguma coisa, não acha?

Urgência e segredo?

Exatamente. E eu bem gostaria de saber o que há de tão urgente e secreto entre Danielle e Dimítrios, o primo de Ângelos.

Uma pausa. Um besouro entrou pela janela, bateu na parede com um barulho que pareceu quase um tiro de pis­tola e voou de novo para a escuridão.

E o carro? — perguntei, apegando-me ao que era a minha parte no mistério. — Por que o carro? Você diz que Dimítrios Dragoumis é um pescador. Para que iria precisar de alugar um carro em Atenas e dentro de tanto mistério?

É justamente isso, Camila. Ele é pescador e possui um barco. Agora, tem um jipe, que veio de Atenas e é con­servado fora de circulação aqui. Para mim, isso só significa uma coisa: transporte.

Urgência, segredo, transporte... Não, Simon. É um absurdo!

Por quê?

Estou vendo aonde você quer chegar.. . a razão pela qual o primo de Ângelos precisa desse transporte urgente e secreto. Você acha que Dimítrios encontrou o esconderijo de Ângelos ou o que Michael descobriu no Parnaso e que o jipe e o caíque se destinam ao transporte... oh!

Oh de quê?

O burro, Simon, o burro!

£ verdade. Não se pode levar um jipe ao alto do Par­naso. O burro foi roubado na noite em que eu fui falar com Stéfanos. Danielle trouxe o jipe nesse mesmo dia. Aposto o que você quiser como o caíque de Dimítrios estará em breve encostado e cuidadosamente escondido numa das mui­tas enseadas adiante de Anfissa.

Calma, Simon. Você ainda não saiu do terreno das hipóteses. Pode ter sido Nigel quem roubou o burro. Foi para algum lugar e nós falamos muito com ele sobre o pintor holandês e...

Teria sido muito mais simples para Nigel comprar o jumento do holandês, que o venderia por uma ninharia, do que roubar um burro das escavações. Não lhe faltava dinhei­ro e ele não tinha necessidade de agir com tanto segredo. Ao contrário, se ele foi mesmo fazer uma excursão dessa natureza, não podia ter-se esquecido de conseguir alguma publi­cidade.

É verdade. Apesar disso, pareceu-me muito cheio de segredo quando o vi na montanha ontem pela manhã.

Pode ser, mas ainda não creio que ele tenha roubado o burro. O animal desapareceu na noite de segunda-feira e, nessa ocasião, Nigel estava aqui. É claro que saiu depois para dar um passeio com Danielle, mas eu acho difícil...

Tem razão, Simon. Não foi Nigel. Lembrei-me de uma coisa agora. Quando estávamos no teatro e você decla­mava alguns versos, eu estava perto da última fila das ar­quibancadas e ouvi alguma coisa mover-se na encosta acima de mim. Sabe como é quando se ouve alguma coisa sem prestar atenção, sem registrá-la conscientemente e, depois, alguma coisa faz a gente lembrar-se? Foi o que aconteceu. Não dei a menor atenção ao ruído. Pensei que fosse o vento ou algum animal transviado, burro ou cabra. Mas me lembro agpra de que ouvi um ruído metálico, assim como da ferra­dura de um animal ou de um sapato ferrado.

Simon sorriu.

Os animais aqui não são ferrados. E os homens usam alpercatas com solas de corda quando estão na montanha. Se você ouviu movimento e ruído de metal, Camila, você ouviu foi o tilintar de uma brida. Talvez tenha ouvido o ato do roubo do burro. Devia ter sido nosso amigo Dimítrios levando o burro para as montanhas. Muito bem.

Mas, Simon, se ele estava acima do teatro quando você declamava, com toda a certeza nos ouviu, não acha?

Sem dúvida, embora eu não acredite que os versos de Electra lhe interessassem muito. Não deve conhecer nada do grego clássico.

Não foi só isso, — disse eu, procurando lembrar-me. — Falamos também sobre Michael e...

Mas falamos em inglês e ele não deve também saber inglês. Vamos esperar que não saiba.

Não sabe mesmo. Danielle me disse ontem e, no mo­mento, ela não tinha razão de mentir... Mas escute, Simon, você não pode estar certo a respeito da razão de tudo isso. Na verdade, é absurdo. Talvez Dimítrios esteja metido em alguma coisa escusa e Danielle também, talvez tivessem rou­bado o burro e alugassem o carro para transportar alguma coisa, mas não é possível que seja o "tesouro" de Michael.

Não é possível por quê?

Acho muito difícil que Dimítrios tivesse levado quator­ze anos à procura do material e só o fosse descobrir agora. Aceito que ele poderia levar mil anos procurando sem en­contrar coisa alguma, especialmente sem ter informações pre­cisas da parte de Ângelos. E este não as ia dar, pois devia ter a intenção de esperar até que as coisas se acalmassem e ele pudesse voltar da Iugoslávia. É possível que nada tenha dito a Dimítrios. Este pode ter apenas desconfiado de que Ângelos escondera alguma coisa, sem saber onde devia co­meçar a procurar. O que não posso aceitar é a presunção de que tenha encontrado o esconderijo de Ângelos agora, nesta semana, na mesma ocasião em que você está em Delfos. É muita coincidência e eu não acredito em coincidências.

Mas há mesmo coincidência?

Que quer dizer com isso?

Você está vendo os fatos pelo lado errado, Camila. Suponha que essas duas coisas tivessem acontecido ao mesmo tempo, o fato de minha presença aqui em Delfos e o fato da descoberta por Dimítrios do esconderijo de Ângelos no Parnaso. Você chama a isso coincidência. Eu chamo de relação de causa e efeito.

Como assim?

Quero dizer que os dois fatos se relacionam, mas não por mero acaso. Dimítrios descobriu o esconderijo não simplesmente enquanto eu estou aqui, mas precisamente porque eu estou aqui.

—            Acha então que ele nos seguiu até à gruta ontem?

—            Exatamente. Pode ter-nos descoberto quando subía­mos e ter ido espionar-nos.

Exclamei nervosamente:

Foi isso mesmo que aconteceu. Quando eu estava sentada na gruta enquanto você foi fazer um reconhecimento da outra caverna com os outros dois, julguei ter visto alguma coisa mover-se no alto do penhasco. Podia ter sido alguém à espreita.

Tem certeza disso?

Certeza não tenho. Mas pensei ter visto algum mo­vimento. Levantei-me, olhei, mas não vi nada. O sol me batia nos olhos.

Pode ter sido Dimítrios. E, depois, desceu e fingiu ter-se encontrado com Danielle no alto das Cintilantes. É bem possível.

Fiz uma injustiça a Danielle. Pensei que estivessem juntos e que eu os havia interrompido.

Dificilmente ele teria tempo de descer para lá antes de você. O caminho ê quase todo muito aberto e nós o poderíamos ter visto. — Pensou durante alguns momentos. — Bem, vamos examinar a seqüência dos fatos. Lembre-se de que Dimítrios tentou saber de Stéfanos — o único homem que sabia com certeza o lugar onde Michael tinha morrido — o que fosse possível a respeito da morte de Michael. Não soube de coisa alguma por intermédio de Stéfanos. Talvez tivesse tentado por sua conta encontrar o lugar. Talvez tivesse al­gumas vagas indicações do primo antes que este deixasse o país. Mas, mesmo com instruções precisas de Ângelos, ele poderia esquadrinhar a montanha durante todo esse tempo e não achar nada. Todas- as marcas, como a coluna do Dente de Gato, tinham desaparecido e qualquer coisa poderia ter fi­cado soterrada sob os destroços do terremoto durante qua­torze ou quatrocentos anos, sem ser descoberta. O próprio Ân­gelos, se ainda estivesse vivo, e voltasse para ver, estaria exatamente no mesmo caso.

Eu disse, um pouco precipitadamente:

—            Niko disse que havia espíritos na montanha... lu­zes ... lembra-se?

Niko disse muita coisa sem importância, mas neste caso pode ter dito a verdade. Dimítrios podia estar fazendo pesquisas. Vamos supor que tivesse procurado em vão todo esse tempo. Um dia, depois de muitos anos, soube que eu, o irmão de Michael Lester, vinha a Delfos. Talvez fosse a chance que ele esperava. Que haveria de mais provável se­não que Stéfanos fosse mostrar-me a mim, irmão de Michael, o lugar exato? Quando cheguei, Stéfanos estava ausente em Levadia, mas Dimítrios podia saber facilmente quando ele ia voltar. Já faz algum tempo que eu venho planejando esta visita. Dimítrios poderia ter sabido, tomando então as suas provi­dências. Vamos supor que estamos certos e que ele tivesse notado que Danielle ia quase todos os dias a Itéia de jipe para o banho de mar. O jipe era o meio de transporte de que ele precisava. Não podia comprar ou alugar um carro aqui. É muito conhecido e as pessoas começariam a fazer pergun­tas. Mas seria bem fácil travar conhecimento com Danielle e comprar-lhe o silêncio e a ajuda com a promessa de uma participação no resultado final. Restava conseguir um burro ou um jumento e Danielle foi novamente a solução. Sou capaz de apostar que foi ela que levou o burro. Trabalhou durante muitas semanas com os arqueólogos e sabia onde tudo era guardado... Alguma coisa?

Lembrei-me agora de que não foi só o burro. O guia me falou que roubaram também algumas ferramentas.

Foi mesmo? perguntou Simon, com os olhos bri­lhantes. Ora, muito bem. . . Faz sentido ou não faz? Ou acha que estou sendo precipitado nas minhas conclusões?

Um pouco. Mas vamos adiante. Alguns tijolos me parecem um pouco frágeis, mas talvez no fim a construção seja sólida. Vamos adiante.

Onde era que eu estava? Ah, sim. Dimítrios tinha tudo preparado para o dia em que Simon Lester chegasse e o levasse diretamente ao local onde Michael Lester morrera. Mas, nesse ponto, Dimítrios teve uma golpe de pouca sorte.

O patrão de Danielle saiu de Delfos e ela teve de ir também, levando o jipe.

Isso mesmo. Ela partiu no domingo, à força. Deve ter ido diretamente à garagem em Atenas, combinando pegar o carro no dia seguinte, logo que ela se livrasse de Monsieur Clement. Você sabe o que aconteceu em seguida, Camila. Ela errou, mas teve sorte de novo, conseguindo que Hervé a deixasse ficar com o jipe. E ela voltou. Levou o jipe para Itéia. Se ela estava acompanhada de Dimítrios ou não naquela noi­te não sabemos, mas é bem provável. O burro e algumas fer­ramentas foram roubadas do acampamento acima do santuá­rio et voilá.

E então disse eu tudo o que Dimítrios tinha a fazer era esperar e seguir-nos. Muito fácil.

Fácil demais. Eu devia ter pensado nisso depois do que Stéfanos me disse, mas confesso que não me ocorreu, antes de ver os estragos causados pelo terremoto, que al­guma coisa que Michael encontrara pudesse estar escondida ainda. Mas está. E agora, só resta a Dimítrios fazer as suas pesquisas naquele trecho relativamente pequeno e ele e Da-nielle vão ser felizes pelo resto da vida. Bem sei que, como você diz, alguns tijolos são bem frágeis, mas é preciso cons­truir com o material de que se dispõe. Temos certos fatos e devemos de um modo ou de outro adaptá-los ao conheci­mento de que esse tal Dimítrios está metido em alguma coisa escusa.

E, ainda mais, é primo de Ângelos. .. Compreendo, mas que foi que ele veio fazer aqui esta noite? Acha que só veio ver Danielle?

Ah! Foi isso que eu tinha em vista quando disse que não gostava do jeito que as coisas estavam tomando... O que" descobrimos, ou conjeturamos, se você prefere, pa­rece-me até agora correto, mas Nigel...Ele está envolvido de algum modo nisso e eu gostaria de saber como.

Está querendo dizer que Dimítrios veio falar com Nigel?

Não. Dimítrios veio aqui à procura de alguma coisa. E eu gostaria de saber o quê. E gostaria de saber também onde está Nigel.

Os desenhos desapareceram disse eu.

Quais? Ah, os das paredes. É verdade. Bem, quanto mais depressa soubermos o que desapareceu além disso, me­lhor. Começou a andar pelo quarto enquanto falava. Vamos ver se ele pretendeu...Não, Camila. Não se inco­mode. Continue sentada. Não há muito o que procurar num quarto pequeno como este, ainda que tenha sido revirado de pernas para o ar...

De qualquer maneira, Dimítrios não levou nada daqui, disse eu.

É o que parece. Pode-se dizer que quase não teve tempo. Ao menos, houve ponto satisfatório no caso desta noite.

Talvez Danielle tivesse dito a verdade. É possível que ele só tenha entrado aqui para esconder-se, quando ouviu os seus passos.

Nada disso, disse ele, olhando para dentro do ba­nheiro. Se assim fosse, não teria tido tempo de tirar a lâmpada do lugar. Fez isso logo que entrou no quarto e isso significa que tinha o que fazer aqui e que isso só ia durar dois ou três minutos e não queria correr o risco de ser sur­preendido e reconhecido. Devo tê-lo ouvido quase imediata­mente, pois estava acordado pensando em Nigel e onde ele poderia estar. Levantei-me logo que ouvi os movimentos. Não demorei muito para saltar da cama, vestir os calções e chegar à porta. Ele não tinha fechado bem a porta, para não fazer barulho decerto, e, quando vi a luz de uma lanterna, com­preendi que não era Nigel e entrei cautelosamente. Quando empurrei a porta, vi a luz da lanterna oscilar de um lado para outro do quarto, como se ele estivesse procurando al­guma coisa. E foi só isso, porque, no mesmo instante, ele me atacou.

Dei uma risada.

Foi isso também o que você disse a Danielle e tra­ta-se de uma refinada mentira, meu caro senhor. Eu estava olhando e você, logo que entrou, avançou para o camarada sem lhe dar tempo de soltar um suspiro.

Mas tive bons motivos para isso, disse ele, sorrin­do. Ele se voltou de repente quando me ouviu abrir a porta e puxou uma faca. Achei melhor não lhe dar oportuni­dade de usá-la. Portanto, do ponto de vista técnico, foi ele quem atacou.

Dei um longo suspiro.

—            Compreendo... Tem toda a razão quanto ao jeito das coisas. E só lhe posso dizer é que, para um membro de nossa estável e um pouco enfatuada profissão, suas reações são muito rápidas e, por assim dizer, decisivas.

Bem, isso se deve a dois árduos anos de serviço mili­tar e a tudo o que Michael me ensinou particularmente. Quando menos se espera, isso dá resultado. E, para dizer a verdade, fiquei satisfeita. Gosto de uma boa briga suja. Es­cute, Camila...

Hem?

Nada dele está mais aqui.

Nada? Não foi apenas o material de pintura?

Tudo, eu acho. A mochila, que ele costumava pen­durar ali. Creio que não usava aparelho de barba, mas a toalha desapareceu, bem como o sabonete e todas as roupas. Ao contrário de mim, ele era convencional mesmo num clima como este e dormia de pijama. Veja se está dobrado debaixo da colcha.

Acho que não. E não está mesmo.

Simon disse então, parecendo ao mesmo tempo perplexo e tranqüilizado:

Neste caso, ele pretendia mesmo ir-se embora. Que diabo! Poderia ter-me dito, poupando-me algumas horas sem dormir. Bem, pelo menos, não está sentado em algum recanto do Parnaso com uma torção de tornozelo, seja lá no que for quê estiver metido. Vou apenas verificar se não há mais na­da aqui...Ah, a faca do grego que eu tinha a idéia de que havia rolado para baixo da cama. E aquela barulheira toda que você ouviu foi causada apenas pelo que Nigel usava no lugar de uma cesta de papéis... Que confusão! Cascas de la­ranja, aparas de lápis e todos os esboços que ele jogou fora. Acho mesmo que vamos ter muito trabalho para arrumar isto, minha cara Camila.

Pelo amor de Deus, deixe isso comigo. — Levantei-me da cama e juntei um punhado de papéis, que joguei na lata de biscoitos que servia de cesta de papéis a Nigel. Vou cuidar disto aqui. Veja se a cadeira está intacta e ajeite a mesa. Acho que o único estrago mesmo ê o copo quebrado e é melhor deixarmos isso assim até amanhã de manhã quando então pegaremos uma vassoura e...Simon!

Ele estava ocupado em ajeitar os móveis. Voltou-se e perguntou:

Que é?

Estes papéis... não são esboços coisa nenhuma! São os desenhos prontos, os tipos helénicos de Nigel! — Folheei-os. — Aqui estão todos! A cabeça parecida com a de Stéfanos, a cabeça sorridente e parecida com uma estátua, e esta deve ser a moça minoana de que ele nos falou... e um jovem pastor. Todos eles! Sei que ele estava fazendo isso contra a vontade e queixando-se da vida, mas será que ele está em condições de jogar tudo fora assim, Simon? Mas que quer dizer isto?

Que foi? — perguntou Simon de pé a meu lado.

Este aqui, — disse eu, toda trêmula. — É a cabeça, aquela bela cabeça de um homem moço com um rosto estra­nho. Este ele rasgou; os outros não, só este. Rasgou-o de alto a baixo. — Olhei para os fragmentos em meu colo e disse tristemente: — Ele não devia ter feito isso. Era uma coisa tão bonita.

Simon tomou os pedaços de mim e examinou-os em si­lêncio durante alguns segundos.

—            Há mais alguma coisa aí? — perguntou afinal. — Os estudos de flores certamente, não?

—            Não. Apenas os "tipos", à exceção da bela cabeça. Ouvi Simon dar um suspiro que me pareceu de alívio e, quando ele falou, compreendi que tinha tido a mesma pon­tada de medo que eu sentira.

—            Creio então que não nos devemos preocupar muito com o que o fez partir. De qualquer maneira, não perdeu a cabeça. Levou tudo o que era bom. Exceto isto... — Abriu os dedos e deixou os fragmentos do desenho caírem no meu colo. — Ora, creio que não poderemos saber o que houve com o rapaz. Mas ficarei muito satisfeito quando souber...

—            O ciclâmen! — disse eu de repente.

Simon perguntou, parecendo subitamente muito desani­mado.

—            Como? Está aí também?

—            Não. Não está aqui. Não foi por isso que falei nele, mas porque me lembrei de uma coisa. Ontem, quando subi­mos à gruta, à gruta de Michael, vi um ciclâmen que crescia na rocha. Não compreendi na ocasião embora deva ter compreendido subconscientemente, porque sei que pensei em Nigel logo que olhei para a flor mas era a mesma planta do de­senho. Não fiz logo a associação. Mas agora, quando estávamos falando sobre os desenhos, me lembrei de tudo. Tenho certeza de que era a mesma planta. E isso quer dizer que Nigel esteve lá em cima na gruta, também. E, se Nigel des­cobriu a caverna de Ângelos, isso explicaria alguma das coisas que ele disse na noite de segunda-feira. Simon, Nigel esteve na gruta e, se quer mesmo saber, encontrou a caverna! E o tesouro de Ângelos ainda estava lá!

Neste caso, disse Simon, se Nigel encontrou al­guma coisa na gruta, isso aconteceu na segunda-feira. Foi o dia em que ele fez aquele desenho.

E ele disse que não tinha feito nada até que nós descobrimos que ele não dissera a verdade a respeito da cabeça de Fórmis e do ciclâmen.

E bem possível. Subi até aquelas imediações com ele no domingo. Pode ser que ele tivesse voltado sozinho e desse com o lugar. Seria um desses acasos muito pouco pro­váveis, mas não impossíveis. E agora, meu Deus, se ele en­controu mesmo?

Olhamos um para o outro e eu disse:

—            E ontem de manhã, eu o vi subindo a montanha de novo furtivamente. Simon, talvez fosse mesmo Nigel quem roubou o burro. Talvez estejamos enganados quanto a Daniel-le! Pode ser que Nigel é que esteja tentando transportar o material, seja ele qual for.

Simon disse então com voz áspera.

E se estiver? E se, a propósito disso, o caminho dele se tiver cruzado com o daquele maldito grego? Não se esque­ça de que Dimítrios também está envolvido no caso.

Talvez ele esteja trabalhando com aquele maldito gre­go disse eu.

—            Talvez.

—            Escute, Simon, não se preocupe. Uma coisa é eviden­te: ele foi porque quis. Levou tudo o que era dele e jogou fora tudo o que não queria. Seja o que for que estiver fazendo e ainda que os caminhos dele se tenham cruzado com os de Dimítrios, ele partiu deliberadamente. Pode ter-se en­volvido em alguma coisa ilegal e até imoral, mas assim pro­cedeu conscientemente e você não se pode arvorar em prote­tor dele até esse ponto, ouviu?

Acho que não, disse ele, sorrindo. Pelo menos, até que seja dia claro.

Escute, você hoje naturalmente vai até lá em cima.

Naturalmente. Pretendia ir de qualquer maneira e, ago­ra, parece que sou forçado a ir.

Olhou um momento para mim. A máscara impenetrável lhe descera de novo sobre o rosto. Não sei o que eu esperava que ele dissesse. Sei o que noventa por cento dos homens teriam dito Philip teria dito duas vezes.

Simon não disse nada disso. Limitou-se a murmurar:

—            Na hora em que eu for, irei chamá-la. Agora, acho bom ir dormir um pouco. Teremos de sair bem cedo.

Levantei-me e perguntei:

Vai levar Stéfanos e Niko?

Não. Em primeiro lugar, isso nos atrasaria muito e, depois, se houver alguma coisa que Nigel ou Dimítrios ou os dois não tenham já encontrado e removido, não quero testemunhas enquanto não souber o papel de Nigel em tudo isso e a quem cabe a propriedade. Se se tratar de armas e de ouro, estará criada uma questão política muito delicada nas presentes circunstâncias.

É verdade. Eu não havia pensado nisso.

Agora, vou levá-la até seu quarto.. . Por falar nisso, ainda não lhe agradeci a pancada que você deu na cabeça de Dimítrios por mim.

Escute, eu nem teria chegado perto dele se ele não tivesse pensado que eu era Danielle. E, de qualquer maneira, errei o golpe.

Apesar disso, o esforço foi meritório.

Abriu a porta e eu passei por ele, chegando ao frio corredor.

 

"Diga ao Imperador que a brilhante cidadela se des­moronou. Apolo não tem mais qualquer refúgio, nem loureiro oracular, nem fonte que fala. Até a torrente vocal parou de correr".

O Oráculo de Delfos ao Imperador Juliano.

 

Não podia passar muito das seis horas quando Simon me acordou. Respondi sonolenta à sua batida na porta dizen­do: "Entre!" quando me lembrei de que não estava mais no hotel e não era provável que fosse a camareira com uma xí­cara de chá. Quando voltei a cabeça ainda com os olhos meio turvos, para a porta, esta se abriu, mas Simon não entrou. Ouvi a voz dele.

Camila?

Hummm. . . Oh, Simon! Que é?

—            Pode levantar-se agora? Creio que está na hora de ir­mos andando. Tenho café pronto e, se quiser, venha tomá-lo logo que estiver vestida.

Está bem.

Certo.

A porta se fechou e eu pulei da cama, já bem acordada, e comecei a vestir-me rapidamente. Da minha janela, via o sol florescer sobre o cimo arredondado do Monte Círfis.

Ainda estava fresco dentro de meu quarto e isso me agradou muito. Já não me agradou tanto o jato gelado das torneiras — das duas — ou de qualquer maneira o banho em

Delfos. A água étão áspera como pedra-pomes e faz o mes­mo bem à pele...mas me acordou plenamente e me fez sen­tir com tal força a antecipação de novas aventuras que me apressei em ir até à porta de Simon e bater.

—            Entre.

Notei que não estava fazendo o menor esforço para falar baixo e ele deve ter percebido a estranheza em meu rosto logo que entrei, pois se apressou em dizer:

Danielle se mudou não faz uma hora.

Sério?

Segui-a até à estrada do alto. Não vi para onde ela foi na aldeia, mas vi um jipe tomar o caminho do norte.

Quer dizer que ela ia para Itéia ou talvez para Anfissa?

Sim. Café?

Ótimo. Simon, o cheiro deste café está celestial. Pão também? Você é muito eficiente.

Fui até à padaria depois que vi Danielle retirar-se. Aqui está o açúcar.

Obrigada. Para onde acha que ela foi?

Sei lá. E não adianta muito querer saber. Com cer­teza, foi pegar Dimítrios em Itéia, embora pareça estranho que, se o jipe estava em Delfos, ele não o tivesse tomado ontem à noite, quando saiu do atelier. Como se sente você hoje?       

Muito bem, obrigada. E você? Como vai o ombro? Tem certeza de que não sofreu mais nada?

Tenho. Que não estou sentindo dificuldade de movi­mentos. Estou pronto para tudo.

Estava sentado na cama com uma xícara de café numa das mãos e um pão na outra, parecendo, como sempre, tran­qüilo e à vontade.

E você? Pronta para a sua aventura?

Ri e disse:

—            Quase não posso acreditar que há dois dias escrevi a uma amiga dizendo que nada me acontecia na vida. Não foi Goethe que disse que devemos ter cuidado com o que pedimos aos deuses, pois eles podem atender-nos? Bem, eu queria aventura e não consegui outra coisa.

Ele não sorriu. Pareceu pensar por um minuto ou dois no que eu havia dito e murmurou, muito sério:

Eu não devia ter deixado você vir, sabe?

Não perguntei por quê. Tomei o meu café e vi o sol rodar uma fração de espaço para chegar ao peitoril da janela. Uma borboleta esvoaçou e foi pousar na faixa de pedra ilu­minada pelo sol. As asas se agitavam de leve e eram de um veludo preto pontilhado de ouro.

Simon disse então:

Não me interprete mal. Não creio que nós, particular­mente você, corramos qualquer perigo. Mas o dia não vai ser fácil, principalmente depois do que aconteceu durante o dia e a noite de ontem. O único perigo possível é um encontro inesperado com Dimítrios, que certamente está lá por cima, mas, se tivermos um pouco de cuidado, isso poderá ser evitado. Não creio que ele nos esteja esperando. Deve pensar que agora, depois que vi o lugar, o caso está encerrado para mim.

Bem, eu disse a Danielle que nós hoje íamos à feira em Levadia.

Foi mesmo? Ótimo. Quer dizer que ela mostrou algum interesse?

Sim, mostrou-se interessada. Perguntou-me aonde é que íamos hoje. Desde que eu não confiava basicamente nela, preguei-lhe uma mentira. Parece que foi bom. Dimítrios com certeza não está procurando por nós.

Excelente disse Simon. É claro que não há mo­tivo algum que o faça esperar pela minha ida de novo lá em cima. Ele não sabe que eu tenho conhecimento da existên­cia de algum "tesouro". Se Michael tivesse mandado infor­mações nesse sentido para casa, eu já deveria ter vindo há muito mais tempo, na opinião de Dimítrios. Quer um cigarro?

—            Sim, obrigada.

Inclinou-se para a frente com o isqueiro aceso para mim.

—            Não, disse ele, creio que Dimítrios interpreta­rá tudo isso como uma peregrinação para mim, e já termi­nada. Tanto melhor. Apesar disso, devemos ter muito cuidado. Com um pouco de sorte, veremos o que está acontecendo e onde Nigel entra em tudo isso. Depois, poderemos pensar em possíveis reforços. — Sorriu e levantou-se para pegar a sua mochila. — De qualquer maneira, não se preocupe. Em igualdade de condições, posso enfrentar nosso amigo Dimí-trios. E eu me nego a ter qualquer receio de Nigel. Ainda que ele se tenha envolvido em alguma coisa por dinheiro, não será capaz nem num milhão de anos de praticar violência com fins de lucro. Pelo menos, é essa minha opinião.

Concordo plenamente.

Além desses dois, há Danielle. Bem, eu não gostaria de dizer que posso enfrentar Danielle, mas com toda a cer­teza não tenho medo dela.

Podemos estar errados a respeito deles — disse eu. — Pode ser que não haja ninguém lá em cima, exceto Nigel.

É possível, — disse ele, arrumando a mochila: mais pão, algumas frutas, chocolates, água, um farnel espartano, mas sem dúvida apropriado, — é bem possível que estejamos enganados a respeito de Dimítrios e Danielle, mas de qualquer maneira, só estou preocupado com a "descoberta" de Michael na parte que se refere a Nigel. Você está conven­cida a respeito das flores do desenho?

Absolutamente convencida.

Bem, é ao menos uma coisa de que temos certeza num labirinto de conjeturas. Não sabemos realmente coisa alguma a respeito de Dimítrios e Danielle, mas sabemos que Nigel esteve na gruta ou nas suas imediações e que ficou muito exaltado por alguma coisa naquela mesma noite. E Dimítrios veio aqui para visitar, com algum objetivo, o quar­to de Nigel. Firmaremos o pé nesses fatos e deixaremos que o resto se desenvolva da melhor maneira possível. .. Está pronta?    

Estou.  

Então vamos.

O sol da manhã já estava bem quente sobre as nossas cabeças, mas as pedras ainda mostravam a frescura da noite. Depois do cemitério, o caminho era suficientemente largo para que andássemos lado a lado.

—            Só espero no dia de hoje, — disse Simon, — é que, se você está certa, encontremos Nigel e saibamos o que ele está fazendo. Se pudermos, meteremos um pouco de juízo na­quela cabeça louca antes que ele se afunde em alguma coisa da qual não possa mais sair. E, por falar nisso, este é o caminho para o estádio. Se for possível, espero também en­contrar a caverna.

Ele havia parado num ponto onde o caminho se estrei­tava e ficou esperando que eu passasse à frente. Parei tam­bém e olhei diretamente para ele.

—            Diga-me uma coisa. Por que deixou que eu viesse?

Pela segunda vez desde que eu o conhecia, ele pare­ceu desorientado. Hesitou, como se estivesse à procura das palavras certas.

Acrescentei então:

—            É compreensível que não quisesse a companhia de Stéfanos e Niko. Mas faria a jornada mais depressa e muito melhor sozinho, Kyrie Lester, e sabe muito bem disso. Sabe também que, se encontrar Dimítrios, poderá haver uma re­frega muito desagradável. Por que não me deixa em casa tratando de meu tricô?

Um galho de pinheiro lançava uma barra de sombra so­bre o rosto dele, mas tive a impressão de notar um sorriso que se estendeu aos olhos cinzentos.

Sabe das razões muito bem, Kyria Haven.

Razões?

Sim.

— Bem, sei a primeira. Eu estava muito ansiosa por aventura e agora tenho de aceitar o que aparece e quatro olhos são melhores do que dois se quisermos encontrar Nigel e a caverna, não é isso?

—            Exatamente não. Tive a idéia de que você estava procurando febrilmente alguma coisa por conta própria.

Voltei-me abruptamente e tomei o estreito caminho entre os pinheiros. Ao fim de algum tempo, disse:

—            Talvez eu esteja. — E, depois de uma pausa: — Você vê demais, não vê?

—            E você sabe qual é a segunda razão.

Havia sombra sob os pinheiros, mas senti as faces em fogo. Murmurei "Oh?" e me senti furiosa comigo mesma por­que a sílaba parecia um convite a uma resposta. Acrescentei apressadamente:

É claro que lhe posso mostrar onde está o ciclâmen.

É claro — disse Simon, afavelmente.

Tínhamos chegado ao estádio. Atravessamos as sombras do portão de saída e deixamos a sombra das árvores. Atrás de nós, nos carvalhos e nos ciprestes, os pássaros esvoaça­vam e cantavam. Os chilreios ecoavam nos penhascos de calcário.

Atravessamos em silêncio o recinto do estádio e tomamos o escarpado caminho que levava às alturas rochosas do Par­naso.

Não vimos pessoa alguma no caminho para a gruta.

O caminho era na sua maior parte fácil de seguir e, exceto um trecho descampado logo depois do topo das Cinti­lantes, se torcia por entre vales rochosos que teriam ofere­cido proteção de sombra em caso de alarma. Mas o quente deserto de pedras quebradas parecia tão vazio quanto na véspera. Viajávamos em breves arrancadas, andando muito depressa, mas com pausas freqüentes à sombra para reco­brar o fôlego e observar os arredores à procura de sinais de movimento.

Afinal, quando subíamos pelo leito seco de um rio, olhei para cima à direita e vi a linha de penhascos que cercavam a gruta. Simon, que ia à frente, parou e voltou-se para mim.

—            Acho que devemos esperar aqui e comer. Ali está um bom lugar à sombra entre aqueles dois rochedos. Não podere­mos ser vistos e teremos uma boa visão do vale e daqueles penhascos. Gostaria de ter certeza de que não há mais ninguém por aqui antes de efetuarmos a nossa subida.

Sentei-me gratamente no lugar que ele indicou e Simon tirou o farnel da mochila. Os pães já não estavam tão gos­tosos quanto me haviam parecido na fresca da manhã, mas, quando comi, comecei a sentir-me melhor. A água morna era uma bênção e as frutas, uma delícia...

Deixei Simon exercer a vigilância. Depois de ter comido, recostei-me no rochedo com os olhos semicerrados para protegê-los do sol e Simon acendeu um cigarro para mim. Não mostrava sinais de pressa, de impaciência ou, sequer, de curiosidade. Fumamos em silêncio e eu via seus olhos percorrerem tranqüilamente os arredores, até à gruta, pelos pe­nhascos, através do cascalho, voltando à gruta.

Houve um movimento bem na borda do meu campo de visão.

Virei a cabeça rapidamente, com os olhos bem abertos. Nada vi. Mas tinha havido um movimento. Disso eu tinha certeza. Já ia tocar no braço de Simon quando percebi de novo o movimento. Era como se uma das pedras do cascalho se movesse... uma cabra. Era apenas uma cabra. Quando avançou, tomando forma contra o fundo de destroços de pedras, vi outras, duas ou três, que se moviam por algum velho caminho delas. Pensei que talvez houvesse um pastor junto com elas e que aquelas se haviam afastado do rebanho, quan­do julguei ouvir, ao longe, no alto do penhasco, o som de uma frauta. Quando procurei escutar mais atentamente para perceber as notas, não ouvi mais nada e cheguei à conclusão de que fora mera fantasia. O débil som interrompido tinha sido puramente pastoral, uma reminiscência dos mitos da Arcádia, farta de ninfas, pastores, frautas e vales verdes. Mas aquilo era o Parnaso, casa de deuses mais terríveis.

Descontraí-me de novo e olhei o fumo do meu cigarre que se espiralava ao sol. Lembro-me de que não pensei absolutamente nos fatos do dia. Pensei no Parnaso, nos deuses que ali tinham vivido e em Simon...

Olhei-o disfarçadamente. Estava olhando quase sonhadoramente para os penhascos. Parecia tão tenso e vigilante co­mo, um jogador de cricket numa posição e numa hora decisi­vas. Percebeu que eu o olhava e sorriu, movendo a mão va­gamente para bater a cinza do cigarro.

Em que estava pensando? — perguntei.

Se havia alguém com aquelas cabras. Acho que não.

Julguei ter havido o som de uma frauta ao longe, mas espero que tenha sido imaginação minha. Ouviu alguma coisa?

Não, mas é possível. Não me parece que aquelas três cabras estivessem por aqui sozinhas. Você deve ter muito bom ouvido. Não escutei nada.

Apagou o cigarro e levantou-se, estendendo a mão para ajudar-me.

—            Vamos subir agora. Acho que não fomos observados, mas não quero atravessar aquele grande espaço aberto até o "portão" da gruta. Se nós o contornarmos e subirmos por aquela ravina, penso que poderemos dar a volta sem correr o risco de que nos vejam e iremos sair no alto do penhasco, onde estivemos ontem. Infelizmente, a subida será um pouco puxada. Está cansada?

—            Nem um pingo. Ele riu.

—            Mantendo o nome da mulher britânica, hem? Vamos. E fique abaixada. Aqui é que começa a verdadeira caçada.

Simon estava deitado acima da gruta, olhando para baixo. Eu estava toda encolhida atrás dele, a pequena distância da borda do penhasco, esperando um sinal dele.

Muito tempo pareceu passar-se antes que ele se movesse. Por fim, virou a cabeça e levantou a mão num lento movi­mento cauteloso, que era por si só uma advertência.

Contra a minha vontade, senti a tensão retesar-me os nervos como arames frios que me tocavam a pele. Arrastei-me até ficar deitada ao lado de Simon. Eu estava resguardada por um dos azevinheiros baixos. Levantei pouco a pouco a cabeça até que os olhos ficaram acima do nível da borda. Olhei para a gruta. Não havia lá ninguém.

Quando o olhei, com surpresa e uma pergunta estampa­da no rosto, Simon me disse ao ouvido:

—            Dimítrios está aqui.

Senti de novo um baque covarde no coração. Todas as veias do meu corpo se contraíram a tal ponto que os músculos deixaram de obedecer-me. Descobri que escondera de novo a cabeça por trás da árvore, enquanto a face descansava em minha mão na terra quente. A mão estava fria.

Simon falou outra vez ao meu ouvido:

—            Desapareceu agora abaixo de nós. Vi-o abaixar-se sob aquela pedra no centro. Não foi por ali que você andou ontem?

Fiz um sinal afirmativo, pigarreei e consegui dizer de modo audível:

—            Que era que ele estava fazendo?

—            Não sei. Parecia estar esperando alguém ou alguma coisa. Nigel, talvez, ou. . .

Calou-se e pareceu coser-se ainda mais com o chão. Imi­tei-o. Mas a árvore me escondia e olhei para baixo.

Vi então Dimítrios. Saiu de algum lugar abaixo de nós, curvando a cabeça quando passou sob a projeção de pedra que parecia escorar o penhasco. Estava fumando e estreitava os olhos ante a intensa claridade do sol. Caminhou cuidadosamente pelo chão rochoso da gruta em direção à abertura do lado norte. Parava de vez em quando e inclinava a cabeça como se estivesse escutando.

Chegou à entrada da gruta e parou ali, olhando para os lados de Anfissa. Houve um momento em que voltou a ca­beça para o outro lado, o lado de Delfos, de onde tínhamos vindo. Voltou então para a gruta. Jogou fora o cigarro e acen­deu outro. Notei suor em seu rosto moreno e um pó amarela­do em suas roupas. Não estava de terno escuro como na véspera. Usava calças de brim azul desbotadas e uma camisa caqui com um lenço vermelho amarrado ao pescoço.

Depois de acender o cigarro, jogou fora o fósforo e cor­reu os olhos em torno durante alguns momentos, como se estivesse indeciso. Deu alguns passos para dentro da gruta e eu pensei que ia voltar para o canto onde estava o ciclâmen, mas parou de repente, como se estivesse cansado de esperar, rodou nos calcanhares e saiu da gruta, caminhando rapida­mente, como se tivesse tomado uma decisão.

Simon disse-me ao ouvido:

— Foi encontrar-se com Nigel ou Danielle, não acha? Vamos esperar um ou dois minutos.

Esperamos cinco. Pareceram minutos bem longos. Não havia na manhã quente outro som além de nossa respiração. O sol batia em cheio sobre nós, que estávamos deitados na terra nua. Fiquei satisfeita quando Simon afinal se moveu.

Levantamo-nos rapidamente e descemos o tortuoso cami­nho como cabritos monteses. Corremos quase pelo chão da gruta e nos escondemos por trás do rochedo caído no canto.

Lá estava o trecho de verdura, as campânulas azuis, os traços amáveis da chuva da montanha. Mas havia uma di­ferença.

É este o lugar? — perguntou Simon.

É, sim, mas...

Prendi a respiração e passei por ele para ficar olhando para o penhasco.

O ciclâmen tinha desaparecido. A fenda na rocha onde se prendera passara a ser uma fissura negra. A fenda tinha sido alargada, rachada e escancarada por meio de pressão exercida na pedra erodida pelo tempo. Eram visíveis as mar­cas brancas nos pontos em que se tinham usado barras de ferro como alavancas.

Uma laje, com as mesmas marcas, estava aos nossos pés tendo caído recentemetne e esmagado a relva fresca. Na vés­pera, a laje estivera encostada à face da rocha, escondendo de qualquer olhar distraído o que estava atrás. Via-se agora uma abertura na face da rocha de cerca de dois metros de altura por meio metro de largura. Era uma abertura estreita que subia em ângulos. Dentro, havia escuridão. Era a caver­na, a caverna de Michael.

Senti a garganta seca e disse com voz rouca:

—            Essa laje estava ontem encostada à rocha. Lembro-me de que havia uma fenda muito estreita atrás dela. Não parecia entrada para coisa alguma e não era outra coisa.

Simon fez um sinal de assentimento, mas não estava olhando para mim, nem para a entrada da caverna. Corria os olhos pelo alto do penhasco, pelas paredes da gruta, pelos arredores.

Não havia movimento, nem som.

Havia na relva um montão de excremento de burro, que não estava ali na véspera. Apontei-o em silêncio e Simon disse:

—            Estávamos certos então. Vamos entrar.. . Espere aqui um momento. E fique com esses seus ouvidos bem abertos. Não vou demorar.

Simon desapareceu na escuridão da abertura e eu fiquei esperando. Ouvi de novo o leve fio de música, o eco fantasmal de uma frauta. Naquele momento, o som não me lembra­va mais a Arcádia e o benigno deus dos rebanhos. Senti um arrepio correr-me pela pele.

Desapareceu. Talvez fosse outra vez imaginação minha. Entrelacei as mãos à minha frente e me obriguei a esperar sem qualquer movimento.

Simon apareceu na escuridão da abertura, como um fan­tasma, a chamar-me. Quase corri para dentro da fria escuri­dão da caverna.

Depois da claridade do dia, tudo estava negro como piche. Era como se eu estivesse envolta numa pesada cortina de veludo negro. Parei, inteiramente ofuscada. Senti o braço de Simon em torno de mim, guiando-me para longe da luz da entrada até que ele acendeu uma lanterna. A luz pareceu fraca e vacilante depois da claridade do dia, mas permitiu-nos ver.

Estávamos numa passagem larga que descia numa ram­pa suave por uns cinco ou seis metros e então virava abruptamente para a esquerda. A entrada primitiva devia ter sido bem larga, mas fora bloqueada por sucessivas quedas de pe­dras, deixando apenas a estreita fenda pela qual tínhamos entrado. A própria passagem era limpa e fresca.

—            A encosta se torna mais íngreme depois disse Si­mon. Há outra curva para a direita e então vem a caver­na... Por aqui. Que lugar, hem?

Era de fato notável. A caverna principal era natural e grande, do tamanho da nave de uma catedral, com um alto teto curvo que desaparecia na escuridão e paredes cheias de socavões e gretas nas quais se perdia a luz débil da lanterna. Estalactites e estalagmites formavam enormes colunas estra­nhas. Havia pedras caídas por ali também. Em alguns dos re­cantos mais sombrios havia rochedos e massas de pedra que pareciam à luz furtiva os túmulos que se vêem entre as co­lunas de uma catedral. Em algum canto, havia um gotejar quase inaudível de água. Era um local magnífico, imponente mesmo, mas era uma ruína. Havia poeira e destroços por toda a parte, parecendo em alguns pontos recente e, em ou­tros, uma lenta acumulação de séculos.

Simon moveu a lanterna, procurando, verificando. Disse, afinal:

—            Ali.

Falou em voz baixa, quase indiferente, mas eu já o estava conhecendo. Meu coração deu o seu habitual salto de emoção. A luz da lanterna focalizava alguma coisa no seu círculo, que parecia ter-se concentrado e clareado...Havia uma pilha de destroços ao lado de uma coluna à esquerda da boca da caverna. Pareceu-me a princípio que não havia dife­rença alguma entre aquele e outros montões de destroços, mas, de repente, vi entre as formas das pedras quebradas formas regulares... a aresta de um cubo... o contorno em­poeirado de uma caixa... E, ao lado, o brilho baço de ob­jetos metálicos, uma barra de ferro e uma pá. A luz da lanterna se deslocou.

—            Está vendo? Já levaram alguma coisa. Olhe as mar­cas dos objetos arrastados sobre a poeira.

A luz da lanterna deu a volta pelo resto da grande caverna. Nada. Fosse outra a ocasião, eu teria manifestado a minha admiração pelos fantásticos pingentes de pedra, os arcos, as câmaras sombrias que a caverna continha. Mas o meu interesse, do mesmo modo que a luz da lanterna, se concentrava naquele montão de destroços e no que havia debaixo dele.

Simon fez uma pausa, inclinando a cabeça. Não havia som além do lento gotejar da água. Aproximou-se juntamente comigo e examinou o canto exposto da caixa, sem tocá-la.

—            Lá está a marca do governo. Não é ouro, Camila. São armas.

—            Armas?

—            Sim. Pequenas e úteis metralhadoras portáteis. — Levantou o corpo e apagou a lanterna por um momento. Na densa escuridão, sua voz era suave e séria. — Há neste momento um excelente mercado para essa espécie de coisas em vários pontos do Mediterrâneo. Ora, bem.

Não acredito que Nigel seja capaz de fazer isso.

Pensando bem, nem eu. . .

Tornou a acender a lanterna e se moveu em torno dos destroços, explorando mais a escuridão por trás de uma grande estalagmite.

—            Simon, essa coisas foram deixadas aqui durante a guerra?

—            Sim, isso eu já lhe disse. Armas e ouro em profusão. — Mas isso foi em 1942, não foi? Já deve estar tudo estragado.

Ouvi-o rir.

Você fala como se armas fossem peixe. É claro que não se estragam. Estão embaladas em graxas. Sairão daqui como se fossem novas... Ah...

Que é? — perguntei, dando à voz contra a minha vontade um tom estridente.

Munição. Caixotes e mais caixotes. Mas vai haver necessidade de um bocado de tempo para levar isso tudo. E...

A voz dele silenciou de repente e eu perguntei:

—            Que foi, Simon?

—            O ouro, — respondeu ele, sem a menor inflexão. Caminhei à frente tão depressa que tropecei numa ramificação da estalagmite e quase caí.

Onde?

Tenha calma. É isso então que a descoberta de um tesouro faz a você?

Ali.

A luz da lanterna parou sobre a pilha de pedras quebra­das. Entre o pó e os destroços apareciam os cantos de duas pequenas caixas. Eram de metal, mas o canto de uma tinha sido despedaçado e pela abertura via-se o brilho inconfundível do ouro.

Foi isso que Michael descobriu, Camila. E foi por isso que o assassinaram. Mas ainda não compreendo... Parou e as suas sobrancelhas se juntaram, mas, ao fim de um momen­to, prosseguiu com a voz calma de sempre. — Bem, isso pro­va que até agora estamos certos. Duas caixas e pode haver mais debaixo desse cascalho.

São muito pequenas, não são?

Mas cada uma delas seria trabalho para um homem. Sabia que o ouro é quase duas vezes mais pesado que o chum­bo? Eles vão ter um bocado de trabalho para levar o que conseguiram aqui.

Eles?

Sim, Camila. Acho que você tinha razão em relação a Nigel. Acho que ele estava a caminho daqui ontem de manhã e que era ele que estava trabalhando aqui enquanto Dimítrios estava em Delfos.

Mas ainda não sabemos se os dois estão trabalhando juntos, — disse eu, apreensivamente. — Se Dimítrios chegou aqui ontem à noite ou hoje bem cedo e encontrou Nigel aqui, pode tê-lo atacado, como fez com você. . .

Ele abanou a cabeça.

—            Não. Pense bem. Deve haver duas pessoas empenha­das nisso. Olhe de novo para esse material. Veja como tudo está soterrado. Ângelos jogou com certeza um pouco de terra e de pedrinhas miúdas sobre tudo para esconder, mas nunca poderia ter colocado tantas pedras. Estas caíram em conseqüência de um tremor de terra, provavelmente o mesmo que fechou a caverna e despedaçou o penhasco acima de nós. Remover tudo isso é um trabalho duro e Dimítrios não tem tido tempo de fazer tudo sozinho.

—            Quer dizer?

—            Pense bem. Deve haver dois homens empenhados nes­se serviço, Camila. Se Nigel descobriu a caverna, esta ainda não estava aberta ontem, pelo menos o suficiente para que essas caixas fossem levadas. Se Nigel mostrou-a a Dimítrios ou se Dimítrios a encontrou por si mesmo logo que deixamos a gruta ontem, ele não poderia ter tempo sozinho de fazer tudo isso. Lembre-se de que ele nos seguiu diretamente quase até Delfos. Não teria tido tempo de tirar as ferramen­tas do lugar onde as escondeu e de mover aquela laje. E ainda que ele tivesse voltado para fazer isso depois, estava de novo em Delfos no meio da noite.

—            E Danielle?

—            Ela não poderia ter vindo até aqui e voltado entre a hora em que você a viu no alto das Cintilantes e a hora em que se foi deitar, ontem â noite. Além do mais, ela não teria força física suficiente para fazer um serviço desses.

Parou por um momento, como se estivesse escutando, e continuou.

—            E veja a situação neste momento. Nós sabemos que Danielle foi para o norte com o jipe. Ela não teria tempo de vir da estrada de Anfissa para cá. Dimítrios está espe­rando alguém, mas não é Danielle. O burro esteve aqui e já se foi. Minha hipótese é que Dimítrios está esperando quem levou o burro carregado para encontrar-se com o jipe, isto é, Nigel.

A lanterna brilhou de novo por um momento sobre o ouro. Simon disse:

—            Lembra-se de Stéfanos ter dito que o velho caminho leva a uma pedreira abandonada perto da estrada de Anfissa? Parece o lugar indicado para o jipe ser escondido enquan­to o material é transportado através da montanha no lombo do burro. Devem ter começado pelas armas. Imagino que vão depositar tudo perto da estrada até que o possam levar de vez. E, se tiverem mesmo um pouco de juízo, deixarão o ouro em segurança aqui até o último momento... Ouviu alguma coisa?

Ficamos em silêncio com a luz apagada.

—            Não, — disse eu e acrescentei em voz baixa: — Sabe de uma coisa? Não confio em Dimítrios.

Ouvi um riso contido na escuridão.

—            O grande pensamento do dia. Camila, minha querida, você me surpreende.

Ele me surpreendera também, mas tive esperança de que minha voz não o demonstrasse. Disse então:

Estava pensando em Nigel. Ainda que estejam traba­lhando juntos agora, é apenas porque Nigel achou o material primeiro e Dimítrios precisa de ajuda para a remoção. Depois que o trabalho estiver terminado...

Sei disso. Mas estamos aqui agora, de modo que te­remos de cuidar disso.

Mas, Simon, — até para mim o meu sussurro me pa­recia débil e terrivelmente incerto, — que é que vamos fazer?

Esperar. Que podemos fazer senão isso? Não sabe­mos ainda em que pé andam as coisas, mas em breve sabe­remos.

Ligou de novo a lanterna e a luz percorreu a caverna.

—            Há muitos esconderijos aqui e nós os ouviremos com tempo suficiente. Nós não, você. Se Nigel vier sozinho, tanto melhor. Mas se for Dimítrios que voltar.. .

Ele riu para mim, mas havia no seu sorriso uma nota que não era nada tranquilizadora. Disse eu, então, acusadora­mente:

Você está querendo que ele volte!

Que tem isso? Pelo amor de Deus, Camila, será que você não compreende? Quero que ele volte mesmo. Tenho de ajustar contas com ele por você, por mim e ainda preciso resolver o caso daquele jovem idiota...Será melhor que Dimítrios apareça, compreende?

—            Compreender, compreendo. ..

Ele estendeu por um momento a mão para tocar-me de leve o rosto como uma asa de borboleta.

Não se assuste, minha cara. Não vou deixar que ele me mate para abandoná-la aos lobos. Não tenho a menor intenção de lutar com limpeza. . . e eu também sei atacar por baixo do facho de luz de uma lanterna.

Ele pode estar armado, disse eu, com uma voz que eu esperava que fosse firme.

Tenho quase certeza de que não está. Não havia lugar para uma pistola naquelas calças dele.

—            Mas pode estar com outra faca.

—            É provável. E eu estou com a dele. Estamos também nesse ponto em igualdade de condições.

—            Simon!

Ouvi-o rir enquanto se afastava.

—            Pobre Camila.. . Agora, meio minuto. Fique onde es­tá que eu já volto.

Saiu da caverna, acendendo a lanterna de vez em quando. A luz diminuiu e desapareceu na curva da passagem. Ficou ausente cerca de dois minutos. Fiquei no mesmo lugar, com o ouro a meus pés e uma das mãos no bolso, apertando nervosamente a lanterna do grego que eu apanhara no quarto de Nigel na noite anterior, tendo verificado que ainda estava em condições de ser usada. Por fim, a luz da lanterna dançou nas paredes da passagem e Simon ficou de novo a meu lado.

—            Não há o menor sinal de qualquer deles, de modo que eu acho que podemos examinar melhor o que temos por aqui.

—            Quer alguma ajuda?

—            Não, muito obrigado. Faça um reconhecimento por aí e veja se pode encontrar algum lugar para nos escondermos, quando ele chegar.

Já estava em ação, abaixado junto aos destroços, tocan­do cuidadosamente nas superfícies cobertas de poeira.

Deixei-o nessa tarefa, exatamente como o irmão deveria ter feito quatorze anos antes, depois da mesma descoberta. Virei um instante para ele a luz de minha lanterna antes de afastar-me. Lá estava ele, muito sério, com as mãos em ação. Michael Lester descobrindo provas da traição aos Aliados. Senti um breve arrepio. Não havia quem acreditasse em fantasmas? E o fantasma de Ângelos, que sorria enquanto mata­va? Niko tinha dito: "Se existem fantasmas, então ele ainda anda pelo Parnaso..."

A caverna era bem maior do que eu havia pensado. Pas­sei por entre estalagmites tão grandes quanto as colunas de Apolo em Delfos e entrei numa câmara tão extensa quanto uma capela particular. Simon e eu poderíamos esconder-nos onde bem quiséssemos, quando Dimítrios chegasse. . .

A luz da lanterna era incerta em minha mão. O facho tocou as paredes, as pedras caídas que bloqueavam a câmara, e desapareceu no vazio entre os recessos escuros. Mas, quan­do já me ia voltando, brilhou momentaneamente sobre alguma coisa líquida e em movimento. Parei. Ouvi de novo e com maior clareza o gotejar de água. Caminhei à frente, com a lanterna acesa. O chão subia um pouco e havia nele uma faixa de umidade que a luz da lanterna acusava. Eu sentia no ar uma frescura que dominava os cheiros de mofo na ca­verna. O barulho da água era mais próximo e mais claro. De­via haver alguma fonte na caverna, talvez a mesma fonte que dava frescor e viço à relva e às flores lá fora. Avan­cei com mais rapidez, voltando a luz para a rocha em an­siosa procura. Havia a habitual pilha de pedras quebradas contra a parede dos fundos da caverna; havia a parede, cheia de manchas de umidade e de gretas negras e havia uma esta-lagmite quebrada, apoiada numa laje encostada em ângulo à parede...

A laje não me pareceu estranha. Só levei alguns segun­dos para compreender por quê. Tinha a mesma forma e esta­va inclinada do mesmo jeito que a laje que na véspera fechara a entrada da caverna e estava naquele momento jogada sobre a relva do lado de fora.

Aproximei-me lentamente, sabendo o que iria encontrar. Quando parei diante dela, ouvi perfeitamente o barulho da água. Senti então a pele arrepiar-se-me nos braços e nas costas.

O barulho da água era acompanhado de outro som, que eu já ouvira duas vezes naquele dia sem acreditar nele, como não acreditava naquele momento. O som de uma frauta, a frauta de Pã... Tocou um delicado derrame de notas; outro; mais outro. Silêncio e, então, o gotejar da água.

E o som vinha de trás da laje inclinada.

Com os cabelos dos braços em pé, curvei-me para olhar atrás da laje. Havia uma abertura estreita, talvez de vinte centímetros de largura, mas era, ainda assim, uma aber­tura. E não dava para a escuridão, como a outra boca da caverna. Além dela, a escuridão diminuía.

Creio que havia esquecido Dimítrios. Disse baixinho, e até para mim os ecos de minha voz pareceram estranhos:

— Há um caminho por aqui e eu vou ver.

Não sei se Simon ouviu e respondeu. Procurei passar pela estreita abertura. A rocha me arranhou, prendeu-se à minha roupa, mas passei. Estava numa passagem larga que su­bia numa curva suave. O chão era liso. Em torno de mim, a escuridão era menor e as paredes da galeria tomaram forma mais clara à luz da lanterna. À minha frente, a passagem se curvava mais fortemente e, além da curva, a luz estava mais forte. O pingo de água era bem alto e nítido.

Ouvi então de novo o som que estava procurando acima do gotejar da água. O breve compasso musical, fantastica­mente dasafinado...

Passei pela curva. À frente, estava a luz, com o arco da galeria servindo de moldura a uma rutilância onde se movia a verdura. Havia relva e os galhos de uma árvore que veda­vam a luz à boca do túnel.

Quase corri pelo resto do caminho. Abaixei-me sob um arco e fui sair, batendo os olhos, num pequeno vale.

Não era uma saída. Era um pequeno espaço fechado, como um poço. Séculos antes, aquilo tinha sido uma caverna circular, na qual ia dar a galeria, mas o teto havia caído, dei­xando entrar o sol e as sementes de relva e trepadeiras, alimen­tadas pela fonte. Assim, aquele pequeno poço de luz era co­berto pelo verde agitado pelo vento de uma árvore delicada.

A música tinha parado. O único som era o gotejar da fonte e o sussurrar das folhas. Mas não tive tempo de pensar em Pã e na sua música. O próprio Apolo estava ali. Estava a cerca de três metros de mim quando saí do túnel. Estava nu e tinha um arco na mão. Olhava por sobre a minha cabeça como vinha fazendo havia dois mil anos.

Ouvi Simon aproximar-se pelo túnel às minhas costas. Afastei-me para o lado. Ele chegou rapidamente do arco es­curo para a luz mosqueada. Dizia: "Camila, eu..." mas a voz lhe morreu na garganta. Parou logo atrás de mim.

Um golpe de vento moveu a cortina de folhas. A luz cintilou no arco e escorreu pelo bronze do pescoço e do rosto. Uma flecha de ouro quebrada estava caída no chão aos pés da estátua.

Depois de um tempo considerável, murmurei com voz trêmula:

— Foi... foi isso que Nigel encontrou. Ele esteve aqui. Veja.

Apanhei o pequeno vaso de água que estava aos meus pés no musgo molhado.

 

"Apolo não se mostra a todos, mas só a quem é bom. Só o vê quem é grande. Quem o vê não é um homem pequeno. Nós te veremos, a ti que feres longe, e nunca mais seremos pequenos!"

Calímaco, 2,9.

 

—            Sim, disse Simon com o vaso nas mãos. — Isto aqui é da caixa de pintura de Nigel. Pode ser que ele tenha ouvido o barulho da água quando desenhava o ciclâmen lá fora e que, assim, tivesse entrado na caverna e chegasse até aqui. . . para encontrar isto!

Os olhos dele, como os meus, estavam fixos na estátua. O rosto era de um deus; remoto, seguro, sereno, mas jovem e com uma espécie de ardor por trás da fronte lisa.

É o rosto do desenho, não é? disse eu. O belo desenho que ele rasgou? Eu disse que parecia uma estátua. Lembra-se de como ele a arrebatou de minha mão?

Mas isso aconteceu quando Danielle estava presente disse Simon. Mas, antes disso, como lhe disse, ele pa­recia prestes a me dizer alguma coisa, mas se calou abrupta­mente logo que Danielle chegou.

Neste caso, ela não podia ter reconhecido a estátua ao ver o desenho. Ele só descobriu a caverna naquele dia e é evidente que não ia dizer nada a ela!

E sem dúvida tinha toda a razão. Armas e ouro são uma coisa. De certo modo, essa espécie de tesouro é bastante legítima para criminosos ávidos como Dimítrios, e se o rapaz pensou que poderia obter algum lucro com a venda de uma partida de armamentos, o problema é dele. Mas isto... — Abaixou-se a apanhou com muito cuidado a flecha de ouro. Na relva esbranquiçada ficou a marca da mesma. — £ como eu pensava. Não tocaram em nada. Ninguém pode dizer que nosso amigo Dimítrios fosse afastar as patas de um pedaço de ouro solto. Não, o rapaz guardou silêncio e há bastante na outra caverna para manter por lá o interesse de Dimítrios. Graças a Deus, teve uma consciência de artista. Mas penso que, quanto mais cedo eu puser as mãos em Nigel, melhor.

Você... você acha que Dimítrios é capaz de fazer explorações na caverna como eu fiz e encontrar isto?

Ele riu baixinho.

Creio que não há esse perigo. Em primeiro lugar, es­tará ocupado demais; depois, com aquele corpo, ainda que estivesse morrendo de sede, não passaria por aquela abertura.

Acho que não. Mas como a estátua veio parar aqui? Não me parece possível pensar com clareza em coisa alguma neste momento. Estou atordoada como se tivesse levado uma pancada na cabeça.

É compreensível. Não admira que Nigel parecesse "alto" naquela noite. Devia estar fora de si de tanta ansieda­de. E não é de admirar que Michael... Bem, isso não in­teressa agora. Duvido de que algum dia se chegue a saber com certeza como o Apolo veio parar aqui, mas podemos fazer conjeturas até certo ponto válidas. Você sabe que o santuário de Delfos, quando deixou de poder proteger-se e à sua vasta riqueza, foi repetidamente saqueado. Não sabe­mos onde foi parar uma fração das estátuas roubadas. As de metal é que foram levadas, as de ouro em primeiro lugar, é claro. Depois, as de bronze para delas se fazerem armas. Esta, que é de bronze com ouro, devia ser uma das mais pre­ciosas, além de ser certamente uma das mais belas. É de su­por que algum sacerdote ou alguns fiéis tenham resolvido salvá-la e a trouxeram para cá, a fim de esperar que o perigo passasse.

Mas por que aqui? E como?

Havia um caminho que passava por aqui. A gente do lugar ainda lhe chama o "velho caminho" e, na Grécia, só Deus sabe a que períodos de tempo pode aplicar-se a designa­ção de "velho". Passamos por um pequeno trecho dele e acho que deve ter sido uma estrada bem ampla pela qual podiam passar até liteiras com animais. O plano deve ter sido guar­dar a estátua aqui até as coisas melhorarem ou até estabele­cer-se aqui nas montanhas um pequeno santuário secreto. Se quisessem apenas esconder a estátua, poderiam enterrá-la, mas repare que a colocaram, não foi? E, com o instinto dos gregos pelo dramático, puseram-na ao fim de um túnel sombrio, mas banhada de luz e com todos os seus atributos em torno. . . Ficou impressionada com alguma coisa em relação à caverna, Camila?

Quer dizer a sua semelhança com uma catedral... ou um templo?

Exatamente. É uma característica comum nas grandes cavernas com estalactites e tudo mais, mas, nem por isso, menos impressionante. Os sacerdotes que trataram no seu fana­tismo de salvar esta estátua deviam conhecer esta caverna desde muito tempo. Não foi só isso. ..Havia também este santuário interior, cheio de luz e uma perfeita "cidadela brilhante" para o deus. Agora, olhe para aquela trepadeira, Ca­mila, e para aquela árvore.

Olhei para ele sem compreender.

A trepadeira? Bem, é uma trepadeira silvestre, não é? E a árvore é um loureiro.

Sim, o loureiro de Apolo.

Mas, Simon, depois de dois mil anos. ..

As árvores vivem muito e, quando morrem, deixam rebentos. E as trepadeiras crescem à vontade, sem exigir cuidados especiais. A árvore e a trepadeira foram plantadas, Camila. Repare que o Apolo está bem sob a beira da proje­ção rochosa e que a trepadeira e a folhagem da árvore for­mam uma boa cortina. Não sei se poderá chegar ao alto do poço e olhar para baixo, mas, se fizer isso, nada verá. . . E ainda há a fonte. Penso que isto aqui era uma caverna sa­grada com uma fonte sagrada e que nada seria mais natural que o sacerdote, que se mostrou tão pressuroso em salvar o deus, morasse aqui mesmo. Se examinarmos bem, descobrire­mos que as entradas, tanto para a caverna externa quanto para a interna, foram artificialmente bloquedas...

Foram mesmo. A laje que Dimítrios removeu era igual à que fechava este túnel interior.

E então, só Deus sabe depois de quantos anos os terremotos reabriram as portas. . . para Ângelos. E para Michael.

Michael! exclamei, sentindo-me quase culpada. Eu havia esquecido Michael. É claro. A carta, "brilhante cida­dela". Oh, Simon!

Ele teve um breve sorriso e fez a citação com voz pau­sada:

"Digam ao Imperador que a brilhante cidadela foi ar­rasada. Apolo não tem mais abrigo, nem loureiro oracular ou fonte que fala. Até a torrente vocal deixou de correr". Bem, Michael provou que o Oráculo Deifico estava errado. Era esse o sentido da carta.

Sabe, Simon, eu nunca disse nada, mas pensava que seu irmão não teria escrito como escreveu se se tratasse de um esconderijo de armas ou mesmo de ouro. Neste caso, o que tinha de fazer era encaminhar tudo às autoridades, não acha?

—            Eu sei. Também pensei nisso. Mas nunca imaginei na­da de semelhante a isto. A voz dele não mudou, mas tive a impressão de imensa exaltação. Meu Deus! Como é passível!

Estávamos lado a lado olhando a estátua. Creio que foi a coisa mais bela que já vi. As sombras se estendiam sobre o bronze em flor do corpo. Os olhos se voltavam para algu­ma distância remota, além e acima de nossas cabeças, como os olhos dos leões. Pareciam curiosamente vivos, cuidadosa­mente incrustados com esmalte e alguma pedra escura, de modo que as pupilas negras pareciam piscar e brilhar com o movimento da luz e da sombra. Eu só sabia de outra estátua que tivesse olhos assim.

Simon fez eco a meus pensamentos, dizendo:

O Cocheiro.

Também acha? Serão do mesmo autor?

Nada sei a esse respeito, mas é o que parece.

Michael também pensou no Cocheiro, disse eu.

E Nigel também, se está lembrada...Foi quando estávamos falando sobre o Cocheiro que Nigel pareceu de repente decidido a me contar alguma coisa. Pode ter sido tam­bém porque estávamos falando de um modo geral na descober­ta de estátuas. Mas recordo-me de alguma tensão quando se falou no Cocheiro.

Não são apenas os olhos, disse eu, mas a im­pressão geral de força aliada à graça...Escute, Simon, por que não seria o Apolo não apenas do mesmo autor, mas do mesmo grupo? Deve ser simples conjetura a história de que o Cocheiro fazia parte de um grupo de vitória de algum potentado. Se havia seis mil estátuas ali, não podia haver um grupo de Apolo num carro dirigido pelo Cocheiro no próprio santuário?

Não há motivo algum em contrário disse Simon.

Por que está sorrindo? Não posso ficar interessada? E não tenho direito a formular uma hipótese? Parece que...

Calma, Camila. Uma hipótese é tão válida quanto qual­quer outra, e a sua tem o mérito de ser interessante e de ser a primeira. Não, eu estava rindo de alguma coisa bem diferen­te, Dimítrios.

Oh! exclamei com a sensação de quem sai do sol quente para cair na água fria. — Tinha-me esquecido quase por completo dele.

Eu também gostaria de me esquecer disse Simon sem tirar os olhos de cima da estátua. Mas acho que devemos tratar daquele outro assunto antes de voltarmos a este.

Que é que vamos fazer em relação à estátua, Simon?

Vamos deixá-la aqui nesta brilhante cidadela e voltar à terra das sombras, minha cara. Sabemos agora o que foi que Michael encontrou e sabemos também por que ele foi assassinado. Creio que esse capítulo está encerrado com a morte de Ãngelos. Nigel descobriu também a brilhante cidadela e confesso que'desejo fortemente que nem Dimítrios, nem Danielle saibam disso.

Só tocarão nisso se não me for possível fazer nada! disse eu, veementemente.

É melhor então voltarmos para a caverna e continu­armos de vigia, Camila...

Sim?

Ele ficou por um momento olhando para mim. O ar de reserva estava de novo presente, mas havia alguma expressão no fundo dos olhos frios que me fez imaginar o queestava para vir. Mas ele se limitou a dizer, desconcertantemente:

—            Eu não devia ter deixado você vir.       

Eu nada disse.

—            Está com medo, Camila?

Continuei calada. Não estava olhando para ele. Admira­va-me um pouco de não me importar que ele soubesse. De repente, ele se aproximou muito de mim e pegou-me delica­damente no queixo para me fazer olhar para ele.

Sabe por que foi que a trouxe, não sabe?

Sei.

E eu estava certo.

Sim, eu sei.

—            Você se subestima tanto, Camila. Você não vai mais ficar em segundo lugar. Compreende?

—            Compreendo.

Ele hesitou um pouco e então disse:

—            Você fez uma grande descoberta ontem: "Ninguém é uma ilha". Isso é mais verdadeiro do que você pensa. Não se mortifique porque há coisas que você não pode fazer e não pode enfrentar sozinha. Ninguém pode. Você parece pen­sar que devia poder enfrentar qualquer coisa que apareça, como eu ou alguém como eu. Éum absurdo. Já é tempo de você deixar de se depreciar por não ser alguma coisa que não é da sua natureza ser. Você está muito bem como é, Camila. Acredite em mim.

Não tive confiança em mim mesma para responder logo. Ao fim de alguns segundos, murmurei:

—            Só peço aos deuses é que um dia possa ver você também livre disso... dessa sua suficiência calma... para cair no plano dos mortais simples como eu! No dia em que isso acontecer, eu mesma farei um sacrifício a Apolo!

Ele sorriu.

Olhe que um dia posso cobrar-lhe essa promessa. Mas, enquanto isso, pode ter certeza de que não será o ami­go Dimítrios quem me fará mudar. Vou voltar agora para ver se ele está por aí... ou Nigel. Quer esperar aqui?

Não. Irei com você. Quero saber o que está aconte­cendo.

Tocou-me novamente o rosto de leve com a mão.

Faça o favor então de não se assustar. Não deixarei Dimítrios aproximar-se de você.

Está bem. Que é que eu devo fazer?

Por enquanto, nada. Esconda-se e faça o que lhe for mandado antes que mandem.

Que pode haver de mais simples? Muito bem.

E agora vamos voltar.

A estátua de Apolo olhava serenamente acima de nossas cabeças quando nos voltamos e deixamos a luz do sol.

A caverna ainda estava vazia. Esperamos resguardados pela estreita abertura, escutando e, então, Simon passou por ela sem acender a lanterna. Um ou dois minutos depois, ouvi-o dizer baixinho:

—            Tudo certo. Pode passar.

Atravessei a estreita abertura. A luz da lanterna de Si­mon me iluminou o caminho e então se voltou para a laje inclinada.

—            Está vendo? São marcas de ferramentas. A laje foi cortada para adaptar-se à abertura. E aquela fenda lá em cima... foi ali que a rocha mudou de lugar no tremor que abriu de novo a caverna para você, para mim... e para Michael.

Passei o dedo de leve por uma das marcas.

—            Dois mil anos... Oh, Simon, se pudéssemos saber... Parei de repente.

—            Hum? — A luz da lanterna ainda se estava movendo sobre as velhas marcas de ferramentas. Simon parecia ab­sorto.

Consegui sussurrar com bastante calma:

—            Ele está de volta. Estou ouvindo.

A lanterna foi apagada e houve um momento de respi­ração contida.

—            Volte pela abertura, Camila, até vermos o que é que há. Espero que seja Nigel.

Quando acabou de falar em voz apenas perceptível, senti a mão dele em meu braço. Obedeci e passei pela estreita abertura para esperar, com o coração a bater precipitadamente, encostada à rocha, do outro lado da laje. Sentia-o per­to, colado à beira da fenda.

Os passos se aproximaram, hesitaram à porta da caver­na e por fim entraram. Os sons eram ao mesmo tempo amor­tecidos pela poeira do chão e ampliados pelos ecos da caver­na. Vieram então outros sons: as pancadas surdas de uma pá contra o montão de destroços; o tinido quando a pá encon­trou uma superfície de pedra e, depois, de metal; uma excla­mação em grego e, então, estalos de madeira e um baque; um som de coisa arrastada... Ele tinha desprendido uma caixa e a estava arrastando para a boca da caverna, de onde seria mais fácil transportá-la.

Senti o corpo de Simon ao meu lado cheio de tensão como o de um corredor à espera do tiro de partida. Passou o braço por mim, mantendo-me imóvel. Era como uma barra de aço. Não sabia se ele ia atacar Dimítrios naquele momento, irrompendo da escuridão...

Mas não se moveu, salvo para mudar levemente a po­sição dos ombros e da cabeça para que eu pudesse ver além da borda da laje. Ficou assim, imóvel como uma rocha, pelo que me pareceu uma eternidade. Senti-lhe o pulso batendo na curva do braço. Estava em ritmo absolutamente normal. O meu, mais embaixo, se precipitava como um motor que ra­teasse.

O braço atenuou a pressão. Senti-o voltar a cabeça e di­zer num fio de sussurro:

Saiu de novo. Ouviu o passo de um burro?

Creio que não.

Fique aqui que eu já volto.

Uma rápida pressão em torno de mim e ele afastou o bra­ço. Ouvi um movimento a meu lado, o roçar de pano na rocha e ele se foi. A fenda parecia fria e úmida. Agitei os ombros com o súbito frio e encolhi os braços, esperando, escutando. O eco de minhas pulsações covardes parecia en­cher a caverna...

Ouvi os passos dele na poeira antes que ele chegasse de novo à abertura e passasse por ela. Estava mais quente com a presença dele. Curvou a cabeça e disse baixinho:

—            Deixou a caixa perto da entrada e saiu de novo. Pa­rece inquieto. Com certeza está pensando que aconteceu alguma coisa a quem vem com o burro. Acho melhor eu ir segui-lo.

Ele não me estava tocando, de modo que não sentiu o baque em meu coração. Ouviu-me apenas dizer com muita calma:

É. ..

É provável que tivesse acontecido alguma coisa para atrasar Nigel e eu gostaria de saber o que foi. Quero saber também o caminho que estão seguindo. Vou seguir Dimítrios para saber até onde ele vai e, se houver alguma chance, me entenderei com ele.

Quer dizer que vai matá-lo?

Não, nada disso. Mas gostaria de pô-lo fora de ação enquanto resolvemos este caso à nossa maneira...Agora, tenho de ir, senão vou perdê-lo de vista...

Eu não tinha percebido que levara a mão até o peito da camisa dele. A mão dele cobriu a minha, quente e tranquili­zadora. Disse então, sem poder afastar o tremor de minha voz:

Tenha cuidado, Simon.

Fique descansada. Não se preocupe... Nada me vai acontecer, nem a você. Fique aqui, que está bem protegida, nesta parte da caverna. Além disso, prometo que não perderei Dimítrios de vista. Certo?

C...certo.

Passou o outro braço pelos meus ombros e por um mo­mento me abraçou. Poderia ter sido um gesto de conforto e segurança, apenas...Mas tive a impressão de que os lábios dele me roçaram os cabelos.

Pela segunda vez, afastou o braço de meu ombro e saiu tão rápido e leve como um fantasma. Acendeu a lanterna dessa vez e eu vi a sombra voltar gigantesca à abertura.

Forcei o corpo para ver até onde me fosse possível dentro da caverna. O pequeno círculo de luz dançou afastando-se através dos espaços levemente ressoantes da escuridão. As colunas, projeções e massas de pedras lançavam sombras enormes que deslizavam na escuridão da abóbada. Simon, que se movia rapidamente como se fosse também uma sombra, foi sumindo na escuridão e desapareceu no túnel externo. Uma sombra ainda vacilou um instante sobre a rocha. Depois, tudo foi escuridão.

Eu tinha as mãos espalmadas na laje pelo lado de dentro. As trevas me faziam doer os olhos. Fazia frio de novo. Tive de exercer toda minha força de vontade para não sair cor­rendo através da caverna para a luz bendita do sol.

Afinal, encaminhei-me desoladamente para a clara solidão do santuário de Apolo.

Não sei quanto tempo esperei ali. A princípio, sentei-me bem quieta num canto onde o sol caía diretamente, contem­plando a estátua de Apolo e tentando afastar do espírito qualquer preocupação com o que estivesse ocorrendo lá fora.

Mas, ao fim de certo tempo, a própria beleza e a tran­qüilidade do lugar acabaram por oprimir-me. Não pude mais ficar sentada e, levantando-me, apanhei o vaso de Nigel e le­vei-o para a fonte. Sob o pequeno filete de água, lavei-o cuidadosamente e bebi água. Procurei na mochila de Simon o que restava de comida e comi a metade. Depois bebi mais qm pouco de água. Percorri então o pequeno vale, exa­minando mais detidamente a estátua e olhando, sem tocá-los, os fragmentos de ouro espalhados pelo chão. Olhei atenta­mente as folhas...

Quando bebi água pela terceira vez na fonte, percebi que o medo tinha sido sucedido por uma espécie de impacien­te irritação. A luz do sol e a paz tinham agido bem demais sobre mim. Eu estava à beira de um acesso de nervos. Olhava de instante a instante para o relógio num gesto automático que me irritava ainda mais, principalmente porque eu não fazia a menor idéia da hora em que Simon me deixara. Não saía de perto da boca do túnel, apertando convulsamente minha lanterna...

Afinal de contas, dizia a mim mesma, eu estava em ab­soluta segurança. Simon estava com Dimítrios e eu não ti­nha o menor medo de Nigel. Mas eu queria ter alguma coi­sa para fazer, queria saber o que estava acontecendo e queria a presença de Simon...

Andei cautelosamente pelo túnel, voltei à escuridão, he­sitei um pouco junto à laje e passei para a caverna principal.

Usei dessa vez minha lanterna. Um último e absurdo receio me fez dirigir o facho de luz por toda a extensão da caverna, quase como se eu esperasse descobrir que, apesar de tudo, Dimítrios ainda estava ali. Mas não havia ninguém, nem o menor motivo de receio. Se ele voltasse, eu o ouviria e teria tempo de sobra de voltar para o santuário. Além dis­so, Simon o acompanhava e, se Dimítrios voltasse, eu poderia ter certeza de que Simon voltaria com ele.

A lanterna estava já firme em minha mão. Atravessei o arco do túnel exterior e apaguei a lanterna. Segui cautelo­samente, encostada à parede da passagem, até que, depois da primeira curva, a escuridão se atenuou e eu pude ver por onde ia.

Não havia caixa perto da entrada. Dimítrios devia ter tratado de carregá-la. Tanto melhor, pensei vagamente. Com certeza, resolvera carregá-la até ao jipe e isso o faria atra­sar-se e tornaria mais fácil para Simon a tarefa de segui-lo.

Esgueirei-me até poder olhar para a gruta.

Senti também um toque de surpresa ao vê-la na mesma, ofuscantemente iluminada, calma e deserta. ..

A claridade doía nos olhos. Sentia o cheiro do pó, dos excrementos do burro e de alguma planta aromática que se esfarelou toda quando apoiei a mão na rocha ao meu lado. Não havia som algum. Nada se movia. Até o ar quente pare­cia pairar imóvel.

Hesitei. A tentação de sair da caverna era muito forte. Poderia subir o penhasco e refugiar-me em algum ponto da montanha onde, ao mesmo tempo, ficaria em liberdade e es­condida, sendo ainda capaz de ver, o que era da maior im­portância, qualquer movimento que se verificasse perto da gruta. Mas Simon tinha de saber onde me poderia encontrar e me dissera que ficasse no santuário. Tinha, portanto, de ficar.

Voltei então para a caverna.

Lembro-me de que fiquei por ali durante alguns minutos, correndo os olhos em torno de mim. Estava tentando reconstituir o local como deveria ter sido antes que o terremoto soltasse as pedras que bloqueavam os corredores e recessos entre as colunas. Era bem possível que tivesse sido uma ca­verna sagrada. Apolo tinha sido para ali levado por mãos apressadas e reverentes. Ali, sacrifícios e outros atos de culto deviam ter sido praticados antes que o lugar sagrado fosse fechado para ficar oculto durante dois mil anos de silêncio.

O facho de minha lanterna se amorteceu de súbito para logo depois recuperar o brilho. Mas essa advertência me fez entrar em ação. Com apenas um breve olhar para a entrada e uma pausa de alguns segundos para escutar quaisquer pos­síveis sons da volta de Dimítrios, iniciei uma cuidadosa explo­ração da caverna.

Não sei bem o que estava procurando. Não estava de­certo conscientemente esperando encontrar outro tesouro — quer se tratasse de alguma coisa da espécie que Ângelos es­condera, quer de alguma relíquia do culto de Apolo. Mas dentro em pouco descobri sinais de outro esconderijo. Numa profunda reentrância entre duas colunas, na borda da caver­na, perto da pilha de caixas, uma pilha de destroços tinha vestígios de ter sido recentemente movida.

Aproximei-me e abaixei-me, dirigindo o facho de luz so­bre os fragmentos.

Nada via capaz de sugerir caixas ou outros artigos ocul­tos ali, mas havia claramente na poeira a meus pés a marca de um sapato com sola de corda e mais as marcas de algu­ma coisa arrastada.

Cheguei mais perto. A luz passou por sobre a pilha de destroços, encontrou alguma coisa e parou. A lanterna tre­meu em minhas mãos e a luz se fixou então no que estava além do montão de pedras e de terra.

O assassino não se dera sequer ao trabalho de enterrar Nigel. O corpo fora arrastado para aquele escasso esconderi­jo e estava, rígido, horrível e indescritivelmente grotesco, entre o montão de destroços e a parede da caverna.

No momento de paralisia, antes que a lanterna me caís­se da mão entorpecida e deixasse cair sobre tudo de novo a escuridão misericordiosa, vi o que tinha acontecido a Nigel. Pode ver-se muita coisa numa fração de segundo de terror e de choque. O quadro registrado pelo cérebro é então completo, assegurando a substância de um milhão de pesadelos fu­turos. Nada se perde; todos os detalhes pavorosos se gravam para voltar, repetir-se, reproduzir-se sem cessar.

Nigel tinha sido amarrado. Não havia mais a corda — sem dúvida, o assassino precisava dela — mas os pulsos es­tavam em carne viva, mostrando que ele havia lutado para soltar-se. Fora amarrado e torturado. Naquele olhar de relan­ce, eu tinha visto que a camisa verde enxovalhada se rasgara num dos ombros até embaixo e, no braço, havia uma série de marcas cuja horrível regularidade só podia significar uma coisa. Tinham-no queimado deliberadamente quatro ou cinco vezes. Outras coisas vi que, na hora, nada significaram para mim, mas que, nas recordações angustiadas daquele segun­do de pavor, vi e reconheci dezenas de vezes. Não pretendo descrevê-las. Basta dizer que Nigel tinha morrido sob grande sofrimento. Os olhos estavam abertos e ainda me lembro de como brilhavam sob a luz da lanterna. E os dentes estavam cerrados sobre um fragmento que parecia pele... O polegar ferido de Dimítrios... a suja mão assassina que me havia agarrado o braço no alto do penhasco.

Foi nesse momento de compreensão que a lanterna caiu e a escuridão desabou sobre tudo. Não sei bem o que acon­teceu depois. Lembro-me, num momento, da visão à luz da lanterna, vívida, terrível, completa e, no momento seguinte, havia as trevas e a rocha fria. Esmagava-me, dilacerava-me as roupas, fazia-me tropeçar na desesperada carreira, mas era macia para meu corpo tombado e massacrado...

Eu estava deitada aos pés da estátua de Apolo na relva úmida. Os cabelos, as mãos e a frente de meu vestido estavam molhados. Alguma coisa me fazia doer a mão apoiada fortemente na relva. Era a ponta quebrada da flecha de ouro. Sentei-me olhando para ela muito antes de vê-la.

Pensava atropelada e confusamente. Dimítrios matara Nigel no dia anterior. Enquanto nós estávamos na gruta, sob o sol radioso, Nigel estava na caverna com seu assassino, amarrado e torturado e... Não, estava errado. Nigel não tinha sido amordaçado. Gritaria naturalmente e nós o tería­mos ouvido. Não, estava morto antes de chegarmos à gruta e, depois, Dimítrios descera até Delfos para dar uma busca no quarto dele...

Olhei para o fragmento de ouro belamente trabalhado que tinha na mão e procurei pensar... Mas tudo o que me ocorreu foi que Nigel, o pobre, confuso e ansioso Nigel, que era tão bom artista, tinha sido assassinado por Dimítrios...

Dimítrios! Dessa vez, o pensamento me veio à cabeça com absoluta clareza. Penetrou-me o cérebro com mais agude­za do que a flecha que me espetava a carne. Levantei-me e a flecha de ouro rolou, esquecida, pela relva. Dimítrios, a quem Simon e eu tínhamos tratado com desdém como a alguém que era fácil de enfrentar, estava na montanha e Simon o seguia, à espera de uma oportunidade de atacá-lo, sem saber que o grego era um assassino tão baixo e tão cruel quanto o fora seu primo Ângelos...

Tinha esquecido momentaneamente o pobre Nigel. Corri para o túnel do santuário sem pensar no que podia haver na caverna.

A escuridão caiu sobre mim como uma rede envolvente. Dobrei a primeira curva do túnel e tive de parar a carreira. Segui tateando pela parede com as mãos trêmulas e a escorregar na rocha fria.

Cheguei à laje. Comprimi o corpo na estreita abertura, tentando enxergar alguma coisa dentro da caverna. Mas não podia ver coisa alguma. A escuridão fervia ainda diante de meus olhos arregalados em formas e tiras de um milhão de cores agitadas. Sem a lanterna e assim ofuscada com a passagem rápida da luz para as trevas, não me seria possível atravessar a caverna. Fechei os olhos e esperei que a fervilhante escuridão se atenuasse. A laje estava fria e úmida sob minhas mãos espalmadas.

Ouvi-o então.

Pensei a princípio que fosse o bater de meus pulsos agi­tados de encontro à rocha, mas percebi depois o leve pisar de solas de corda.

Fiquei onde estava, colada e imobilizada junto à rocha, e abri os olhos.

Já podia ver. Havia luz em movimento na caverna. Era uma luz bem forte. Não podia ser Simon, pois a luz da lan­terna dele estava começando a falhar como a da minha e, de qualquer maneira, os passo não eram dele. Mas, pelo me­nos, onde Dimítrios estivesse, Simon deveria estar. E a julgar pela confiança sem pressa com que o grego entrava na ca­verna, ele não tinha conhecimento ainda da presença de Simon.

No momento em que esse pensamento me ocorreu, ouvi um leve ruído do lado de fora da caverna. Olhei, cheia de apreensão, para o grego. Ele estava atrás da luz e eu não podia vê-lo, mas o facho de luz em movimento não se dete­ve. Não tinha ouvido. O som se repetiu e só então percebi de que se tratava. Era o tilintar de metal de uma brida. Dimítrios tinha levado o burro.

O grego se afastou de meu reduzido campo de visão. Esperei até ouvir o som da pá sobre uma caixa, o deslocamen­to de pedras e os resmungos e respiração ofegante do esfor­ço feito. Avancei lentamente para a borda da laje e olhei em torno, um centímetro de cada vez.

A lanterna estava colocada numa pequena reentrância acima dele, de modo que o foco de luz se dirigia para o montão de pedras sobre o qual se inclinava o seu corpo robusto. Estava de costas para mim. Tinha colocado o paletó no chão ao lado dele e, sob a camisa azul, via-se o volume e o movimento dos músculos enquanto ele procurava retirar uma das caixas meio soterradas. Por fim, arrastou a caixa, levantando-a nos braços. Eu não havia percebido até então como ele devia ser imensamente forte. Carregou a caixa len­tamente para a boca da caverna e desapareceu de minhas vistas, seguindo pelo túnel. Ouvi-o deixá-la ali e voltar. Ain­da no seu passo sem pressa, saiu da boca do túnel sob a luz forte da lanterna que iluminava a caverna.

Pela segunda vez em poucos minutos, senti uma baque no coração.

Não era Dimítrios. Não era ninguém que eu já tivesse visto.

Mas, mesmo nesse momento de choque e confusão, per­cebi que estava errada. Já o tinha visto e mais de uma vez. Naquele instante, na escuridão estranhamente iluminada, com a cabeça forte, os espessos anéis de cabelos rígidos como os de um touro e encrespando-se para os malares morenos até à boca sorridente e de lábios grossos, reconheci-o. Era a cabe­ça de Fórmis do desenho de Nigel. Era o rosto como o de uma estátua arcaica e o sorriso de lábios apertados e torci­dos nos cantos. E mais... fora aquele o homem que eu vira mexendo no motor do jipe do lado de fora da casa de Dimí­trios. Devia ter sido aquele rosto e não o Apolo (que ela certamente nunca vira) que Danielle tinha reconhecido entre os desenhos de Nigel...

Mas, antes que eu pudesse pensar mais nisso, duas outras lembranças surgiram, como faíscas na palha seca do medo... Nigel dissera a Danielle: "É um camarada que vi hoje no Parnaso"... E Simon me traduzira no escuro alguma coisa que Stéfanos lhe tinha dito: "É capaz de matar sem deixar de sorrir. Sempre aquele sorriso..."

Era Angelos, Ângelos! E só Deus sabia onde estava Dimítrios. E Simon estava com ele.

Ângelos voltou à pilha de destroços. A luz da lanterna escorria sobre a pele grossa, reluzente de suor. O sorriso não se alterava. Devia estar sorrindo quando matara Nigel com a ajuda de Dimítrios. Sem dúvida, sorriria quando Si­mon, depois de livrar-se de Dimítrios, voltasse despreocupadamente à caverna, a fim de procurar-me...

Ângelos ergueu o corpo robusto e ficou imóvel, como se estivesse escutando. Voltou a cabeça. Havia sons do lado de fora, não mais de metal, mas dos passos de alguém que viesse correndo para a caverna.

Lembro-me de ter pensado que, se eu gritasse, isso avi­saria Simon, mas avisaria Ângelos também. Ele estava espe­rando Dimítrios e não fazia idéia de que eu e Simon estivés­semos ali. Não fizera o menor movimento para apagar a lanterna ou mudá-la de lugar. Mas, por outro lado, se Simon tivesse afastado Dimítrios de cena, estaria também despre­venido...

Os passos se aproximaram. Chegaram ao túnel. Ângelos levou a mão ao bolso. Prendi a respiração.

Com uma carreira rápida e a respiração ofegante, Da­nielle entrou na caverna.

 

"Há justiça no céu E fogo na mão do deus. Tudo será ajustado no fim".

Sófocles:Electra

 

O homem se descontraiu, mas havia irritação em sua voz estridente.

—            Que diabo veio você fazer aqui?

Ela havia parado na orla do círculo de luz da lanterna. Parecia-me ao mesmo tempo mais moça e muito mais bela. Tinha uma blusa turquesa e uma saia de algodão escarlate. A pressa tinha-lhe afogueado o rosto e entrecortado a respiração, fazendo-a parecer mais normal e menos controlada. Não tinha olhado para Ângelos. Tinha os olhos voltados para as caixas que ainda restavam.

Então é isso! — exclamou ela, falando, como ele, em francês.

É isso, sim! — disse ele, olhando-a sem simpatia. — Disse-lhe na noite passada que tínhamos descoberto o escon­derijo, lembra-se? Mas por que não obedeceu às minhas or­dens e não ficou fora de circulação até que eu mandasse chamá-la?

Ela avançara lentamente enquanto ele falava, sempre com os olhos fitos nas caixas aos pés dele. Olhou para ele então com o seu sorriso provocante de gamine.

Queria ver por mim mesma o que estava acontecendo. E não se zangue. .. ninguém me viu vir para cá.

Viu Dimítrios no caminho?

Ela sacudiu a cabeça. Estava inclinada sobre a pilha, tocando com o pé a caixa quebrada que mostrava um brilho de ouro. Vi o busto dela arfar de excitação.

Nem sinal dele? — perguntou Ângelos.

Não.

Ele praguejou e bateu com a pá zangadamente nas pe­dras.

Onde é que aquele camarada pode estar? Vim pelo caminho alto — é mais curto quando se conhece... e se você também não o viu...

Vim pelo caminho alto também, — disse ela, sorrin­do de novo e batendo os belos cílios. — Como acha que acer­tei o caminho até aqui? Esperei num lugar onde julguei que você ia aparecer e então segui-o. ..

Sabida, hem? Mas isso quer dizer que ele foi-me pro­curar pelo outro caminho. Que homem! Nervoso como um caroço de feijão numa frigideira e mais imprestável. E você... você devia ter ficado onde eu mandei até que eu fosse bus­cá-la. Disse claramente que não a queria por aqui.

Talvez eu não confiasse em você, Ângelos, — disse ela, rindo. — Talvez você nunca aparecesse para me buscar.

Talvez. . .

Bem, eu queria ver isto — disse ela, quase infantilmen­te —e, além disso, não queria passar o dia todo lá. Aquele jipe é pura dinamite.

Por quê? O material não está nele.

Não, mas. ..

Você o guardou no lugar onde eu mandei?

Claro que sim. Escute, Ângelos, por que faz isso em plena luz do dia? Está maluco?

Eu sei o que estou fazendo. As noites agora não são de lua e andar por aqui com um burro na escuridão é suicídio. Não há uma só pessoa entre este lugar e o ponto onde estou depositando o material. Poderemos transportar tudo de lá para o jipe em questão de duas horas depois do escurecer. — Acrescentou com uma espécie de pesada ironia. — Con­tanto, é claro, que você faça o que eu mandar e que aquele idiota de meu primo chegue a tempo de me ajudar com este trabalho pesado!

Ela riu. A sua respiração já se normalizara e, com isso, voltara a sua marca especial de encanto e sedução. Lançou-lhe um de seus longos olhares e disse:

E eu não posso ajudá-lo no lugar dele? Não me vai mandar embora? Tem coragem de dizer, Ângelos, que não está contente de me ver?

Aproximou-se dele enquanto falava e Ângelos passou o braço pelo corpo dela e beijou-a de uma maneira que foi ao mesmo tempo superficial e obscena. Vi-a colar o corpo esbelto ao dele e levantar as mãos para os espessos anéis que se derramavam pela nuca do homem.

Recuei um pouco da laje, fechando os olhos momentaneamente ante essa nova descoberta. Ângelos era amante dela. Através de um torvelinho de medo e confusão, os fatos se torciam e reajustavam numa ordem diferente.

Fora Ângelos e não Dimítrios quem tinha feito conheci­mento com Danielle naquelas longas tardes em Itéia. Ele fize­ra isso deliberadamente, não só para atenuar o tédio da ina­ção, mas também porque ela podia usar o jipe, evitando as­sim a curiosidade ou os comentários que suscitaria comprar ou alugar outro meio de transporte.

Por isso mesmo, tinha sido Ângelos e não Dimítrios quem estivera no atelier na noite passada. Lembrava-me, com mui­ta clareza, de que a pessoa que estendera a mão para pegar a lanterna no quarto de Nigel não tinha qualquer ferimento no polegar. E lembrei-me também do sorriso pronto de Daniel­le quando identifiquei o amante dela como Dimítrios...

Ângelos a empurrou para o lado sem muita delicadeza.

—' Você sabe muito bem que devia ter ficado longe da­qui. Não há lugar nas empresas em que me meto para quem tenha nervos de criança.

Ela estava acendendo um cigarro e disse quase com ir­ritação:

Não foi nada de nervosismo; foi apenas curiosidade e o direito que eu tenho de saber o que está acontecendo. Tem coragem de falar em nervos de criança depois de tudo o que tenho feito por você? Não teria conseguido o jipe se não fosse eu e quem foi que lhe arranjou o burro na noite de segunda-feira? E tenho espionado o inglês e aquela danada moça que ele reboca e tudo o que você faz é aparecer imprevistamente ontem à noite, passar meia hora comigo e me dizer que nada mais tem importância, que o dia é hoje e que eu tinha de levar o jipe para a pedreira apenas! Esperava mesmo que tudo fosse ficar nisso? Podia ter-me jogado numa situação bem embaraçosa na noite passada e nem me disse uma pa­lavra!

—            Que quer dizer com isso?

Ele estava trabalhando de novo, levantando com uma barra de ferro uma pesada pedra que cobria duas caixas. A terra e as pequenas pedras deslocadas rolaram para o chão. Ele quase não a parecia escutar.

—            Você sabe muito bem o que eu quero dizer! retor­quiu Danielle. Quando chegou ao meu quarto ontem à noite, disse que não tinha visto Nigel e...

—            Quem é Nigel?

—            O artista inglês. Eu lhe disse. Na noite de segunda-feira, ele estava fazendo insinuações sobre a possibilidade de ser rico e famoso e estava bêbado. Depois que os outros saí­ram, dei-lhe mais uns copos de ouzo e levei-o para dar um passeio... Contei-lhe isso ou não?

Estava olhando o homem através da fumaça do cigarro e o seu tom era de provocação. Ele não levantou os olhos e quase não parecia tomar conhecimento dela.

Era evidente da conversa dele que ele tinha encontra­do alguma coisa aqui na montanha. Você disse que ia esperar por ele ontem, para saber o que ele havia encontrado e onde...

E daí? Não precisamos disso. Seus amigos ingleses apareceram e nos mostraram o caminho.

—            Mostraram também a caverna?

Ele teve um riso breve.

Não! Se eles tivessem encontrado a caverna ontem, não poderíamos mais chegar perto dela. Estaria ocupada por um pelotão de soldados do exército!

Não foi isso que eu quis dizer. É claro que não encontraram a caverna, pois do contrário não estariam hoje passeando inofensivamente em Levadia. Mas você a achou com muita rapidez, não foi? Dimítrios me disse no alto das Cintilantes que você encontrara o local e já estava trabalhando nele enquanto ele descera para tomar algumas providências.

Ele tinha deixado de lado a barra de ferro e estava re­tirando com a pá parte dos destroços. Disse então sem levan­tar a vista:

Quando Stéfanos mostrou-lhes o lugar onde quebrei o pescoço de Michael, fiquei sabendo onde era a caverna. Tu­do estava mudado, mas eu sabia que a fenda devia abrir-se para a caverna. Pensei que não pudesse chegar lá do jeito que as coisas estavam, mas depois que mandei Dimítrios descer, comecei a trabalhar e abri a caverna.

Eu sei. Você me disse tudo isso na noite passada. Ela não estava, como costumava, deixando o cigarro pender-lhe dos lábios enquanto falava. Fumava com movimentos brus­cos e repetidos, que lhe denunciavam o mau estado dos ner­vos. Disse então, com o ar de quem está fazendo uma acusação:

—            Mas você nunca me falou em Nigel!

Ele levantou o corpo do trabalho que estava fazendo e olhou para ela, com a cabeça levada â frente como a de um touro e com um aspecto ao mesmo tempo ameaçador e caute­loso.

—            Escute aqui, que quer dizer tudo isso? Por que diabo tinha eu de falar em Nigel?

Você, quando me deixou na noite passada, foi para o quarto de Nigel. Por quê?

É muito simples. Você me disse que ele tinha feito um desenho meu que parecia uma fotografia. Eu queria des­truir esse desenho.

Mas ele havia partido. Arrumou tudo o que era dele e foi-se embora. Você sabia disso porque eu lhe disse. Eu já tinha estado lá naquela noite para procurar o desenho e não encontrei mais nada. Tinha levado o desenho com ele.

—            Não disse Ângelos. Não levou.

—            Como assim? Você nunca o viu. Como é que sabe o que ele levou ou não levou?

Ela se calou. Vi seus olhos se arregalarem ao encontra­rem os olhos de Ângelos. Abriu os lábios e o cigarro caiu ao chão e ficou ali fumegando sem que ela tomasse conheci­mento disso. Ele estava apoiado na pá e olhava para ela. O rosto grande e os braços cabeludos reluziam de suor.

—            Então? — perguntou ele.

Ela afinal falou com uma voz despida de suas habituais afetações. Era uma voz clara e fina, como a de uma menina.

Você o viu? Ontem? Ele lhe disse onde ficava a ca­verna?

Nós o vimos, sim. Mas não nos contou nada. Disse-lhe a verdade a esse respeito.

Então... então.. por que mentiu sobre o fato de tê-lo visto?

O sorriso aumentou e os lábios grossos se separaram.

—            Sabe por quê, não sabe?

Houve uma longa pausa. Vi a língua rosada sair uma vez, ligeira como a de um lagarto, para molhar os lábios pintados.

—            Você.. . matou Nigel?

Não houve resposta. Ele não se moveu. Vi os músculos da garganta de Danielle se moverem. Não havia no rosto dela nem horror, nem pesar, nem medo. O rosto estava vazio de expressão, enquanto ela continuava com os olhos entrea­bertos e os olhos fixos nele. Mas a sua respiração era mais apressada.

Compreendo. . . Você não me disse.

Não, não lhe disse. Não queria assustá-la.

Mas. .. ainda não compreendo. Ele não sabia da ca­verna? Eu não tinha razão?

Ele sabia, sem dúvida alguma. Mas não nos disse. Bem que tentamos, mas ele não foi capaz de dizer nada que fizesse sentido.

Ela fez de novo um movimento nervoso de deglutição. Não tirava os olhos de Ângelos. Pareceria uma figura de cera se não fossem os olhos e os músculos convulsivos da gar­ganta.

—            Era... era preciso matá-lo?

Ele encolheu os pesados ombros.

—            Por assim dizer, não fomos nós que o matamos. O maldito efeminado é que morreu em nossas mãos. — A ca­beça descambou um pouco e o sorriso pareceu acentuar-se. — E então? Ficou assustada? Vai dar gritos e fugir?

Ela afinal se moveu. Aproximou-se de novo dele e levou as mãos ao peito da camisa do homem.

—            Estou com jeito de quem vai fugir, Ângelos mou? Poderia eu ser do tipo que você quer ao seu lado, se tivesse nervos de criança a esse ponto? — Passou as mãos pelos ombros dele e acariciou-lhe a nuca, colando mais o corpo. — Sei de tudo a seu respeito, Ângelos Dragoumis... Não pense que eu não sei... Ainda contam algumas histórias sobre você aqui em Delfos.. .

Ele deu uma risada e disse:

—            Você me surpreende.

Ela lhe puxou a cabeça e disse, com a boca junto à dele:

—            É mesmo? Será uma surpresa para você saber que é por isso que estou aqui, que é por isso que eu gosto de você?

Ele a beijou, dessa vez demoradamente, e em seguida afastou-a.

—            Não, não me surpreendo. Tenho conhecido outras mulheres como você.

Ainda estava com a pá na mão e voltou ao trabalho. Danielle perguntou, olhando-lhe um tanto contrafeita as lar­gas costas:

Onde está ele?

Bem perto.

Vi-a correr os olhos rapidamente pelos cantos sombrios da caverna. Encolheu os ombros então e tirou outro cigarro do bolso.

Acho que me pode dizer o que foi que aconteceu.

Está bem. Só quero é que não me atrapalhe. Assim, está bem. .. Ora, esperamos o rapaz no caminho de Delfos, mas ele não apareceu. Devia ter saído bem cedo e tomado outro caminho, pois só o fomos ver quando ele já estava bem à nossa frente e quase chegando ao alto dos penhascos. Aproximamo-nos tanto quanto era possível sem que ele nos visse, mas quando chegamos àquela ravina que fica a leste daqui, ele desapareceu. Fomos até à linha dos penhascos e nos separamos, depois do que ficamos esperando. Ao fim de algum tempo, nós o vimos. Saía da gruta, bem fresco e sossegado. Descemos então o penhasco e o agarramos.

Por que fizeram isso? Os dois ingleses iam chegar e uma vez que você tivesse visto o lugar onde Michael mor­reu. . .

Ora, achamos que mais valia um pássaro na mão disse Ângelos, alargando o seu sorriso. Talvez Stéfanos não se pudesse lembrar do lugar exato e era evidente que o artista seu amiguinho tinha acabado de sair de algum es­conderijo. Além disso, ele tinha feito o tal desenho meu e me conhecia.

Danielle acendeu outro cigarro. Podia ver-se que a cha­ma do fósforo não estava muito firme. Os olhos dela estavam grandes e brilhantes acima dela.

—            Que foi que vocês fizeram?

—            Tentamos a princípio amedrontá-lo para fazê-lo falar, mas não deu resultado. Para dizer a verdade, comecei a pen­sar que você tinha errado e que ele não havia descoberto coisa alguma. Só então ele começou a falar sobre alguma coisa de "valor incalculável" numa caverna e que nem por sonho ele nos deixaria tocar as mãos nessa tal coisa. Foi então que começamos a agir de fato.. .

Levantou o corpo e pegou um cigarro. Colocou-o na boca e curvou-se para a frente a fim de que ela lhe desse fogo.

Pensei que iria ver para sempre aquele sorriso em meus pesadelos.

—            Mas, ainda assim, não disse nada que fizesse senti­do continuou Ângelos. Falava sobre água, sobre algu­mas flores...O desprezo com que ele falava no seu fran­cês carregado fazia as palavras parecerem obscenas. Meu inglês é regular, mas não consegui pegar todas as palavras. No fim, tenho certeza de que ele falou em ouro, mas, justa­mente quando estávamos chegando a esse ponto, ele morreu em nossas mãos. A verdade é que mal havíamos começado. Ele devia ter o coração bem fraco.

—            Que aconteceu então?

—            No momento em que tínhamos acabado com ele, vimos Stéfanos e o garoto de Arachova que chegavam com os dois ingleses. Jogamos o corpo atrás de algumas pedras e ficamos observando até que o velho os levou à gruta e mostrou-lhes o lugar. Este estava completamente alterado. Eu poderia procurar em vão durante mil anos, quanto mais em dois. Logo que eles se foram, desci para a gruta e comecei a procurar. Foi fácil demais. Seu amiguinho Nigel nos ajudou afinal de contas com as suas conversas malucas. Só num lugar havia relva e flores e era mais ou menos onde eu esperava que estivesse a caverna, se Stéfanos estava certo. Vimos logo onde era a entrada. Entrar na caverna era outra coisa, mas com o rapaz morto em nossas mãos, tínhamos de tomar pro­vidências para que não houvesse investigações até nos irmos embora sem deixar vestígios. Por isso, continuei com o tra­balho sozinho depois de ter mandado Dimítrios descer para falar com você, de acordo com o que fora combinado. Reco-mandei-lhe que não lhe dissesse nada sobre Nigel, mas entras­se cuidadosamente no atelier e levasse tudo do quarto dele, como se o rapaz tivesse arrumado o que era dele e partisse Ele assim fez e tudo o que era do rapaz está no jipe, por baixo dos sacos. Dimítrios trouxe uma grande pasta com desenhos, mas como um idiota que é, estava com muita pressa e não verificou se o desenho de meu retrato estava lá ou não... Pode ser que isso não tenha a menor importância, mas são detalhes assim que às vezes põem tudo a perder.. . Afinal de contas, estou oficialmente morto e quero continuar assim, sem dar margem a boatos,

—            Achou o desenho?

Não, não tive tempo. Havia muitos paoéis com o lixo, numa lata, no quarto. Dimítrios achou que não valia a pena incomodar-se com isso. Mas na realidade é onde estão os desenhos e ninguém está dando qualquer atenção a eles. Naturalmente, pensam que ele jogou fora o que não queria e foi-se embora.

É verdade. Os dois ingleses pensam que ele saiu em excursão pelas montanhas, levando o burro.

Ah! Então é isso que pensam! — exclamou Ângelos, todo satisfeito.

Tinha tirado as pedras de cima das caixas e inclinou-se para afastar uma delas. Danielle observou o jogo dos gran­des músculos em silêncio durante alguns minutos. Disse por fim:

Onde está ele?

Ele quem?

Nigel, é claro! Será que você o abandonou aos abu­tres?

Claro que não! Isso nos teria denunciado quase sem demora.

Pela primeira vez, via uma emoção forte em Danielle. Foi como se uma mola se distendesse.

Ele está aqui?

Ali daquele lado.

Ângelos apontou. Depois, arrastou um pouco a caixa, levantou-a nos braços e levou-a para a entrada da caverna. A lanterna ainda brilhava firmemente do alto da coluna. Danielle ficou parada por um momento, olhando para o canto sombrio onde estava o corpo de Nigel. Depois, como se fizes­se um grande esforço, pegou a lanterna e se dirigiu para o montão de destroços que escondia o corpo. O facho de luz indicou sobre o que estava, graças a Deus, fora de meu cam­po de visão.

Foi nesse momento que me lembrei da minha lanterna que deixara cair perto do corpo de Nigel. Se ela a visse... se percebesse o brilho da lanterna no chão. ..

Ângelos estava de volta. Disse irritadamente:

— Não há ainda sinal dele. Parece ter levado uma das caixas menores pelo caminho baixo. Do contrário, já o tería­mos visto.

Olhou então e viu onde ela estava. O rosto pesado não mudou de expressão, mas alguma coisa nos olhos dele fez meu sangue correr mais depressa.

—            Então?

—            Vai deixá-lo aqui? — perguntou ela.

—            Que é que você ouer oue eu faça? Quer que o leve de jipe para a baía de Galaxeidion?

Ela não tomou conhecimento da ironia.

—            Não o vai enterrar?

—            Não há tempo, minha filha. Já tenho demais o que fazer removendo metade do Parnaso de cima das caixas. Se quiser, você pode jogar um pouco de terra em cima dele, mas isso pouca importância tem. É um trabalhinho para você fa­zer enquanto eu carrego o burro.

Ela se encaminhou prontamente para o centro da ca­verna.

—            Não vou ficar aqui. Ele riu.

Como quiser. Pensei que não tivesse esses escrúpulos, ma poule!

E não tenho mesmo. Mas não vê que não podemos deixá-lo aqui? É evidente que outras pessoas já trabalharam aqui e se alguém vier, não poderá deixar de vê-lo. ..

Quem é que pode vir aqui?

Ela hesitou.

O tal inglês, Simon. ..

Que é que há com ele? Você não me disse que ele foi passar o dia em Levadia?

Eu sei, mas estava pensando numa coisa que aconte­ceu no teatro, na noite de segunda-feira.

No teatro, na noite de segunda-feira... Encostei-me à pedra, tentando lembrar-me, por entre as névoas da tensão e do medo. . . Os sons que eu tinha ouvido quando estava ali sentada, o leve tilintar de metal. . . Tinha sido mesmo Danielle, que levava o burro roubado. Simon e eu tínhamos falado ali no teatro... Não fora apenas a passagem da Elec­tra que aquela admirável acústica tinha transmitido a Danielle acima de nós, no escuro. E Danielle entendia inglês. . . Que tínhamos dito? Que era mesmo que tínhamos dito?

Fosse o que fosse, ela já o havia comunicado a ele. Ângelos riu.

—            Ah, isso. . . Não é nenhuma novidade. É claro que ele sabe que Michael foi assassinado. Pensou que Stéfanos não iria dizer isso a ele? Que importância tem isso? Ninguém sabe qual foi o motivo.

—            Mas se ele desconfiasse de que você ainda está vivo...

—            Ele? — Na sua espessa voz, não havia senão despre­zo. — De qualquer maneira, como poderia ele desconfiar de alguma coisa? Nigel está morto e ninguém vai reconhecer mais aquele desenho.

—            Há o ouro — disse Danielle.

A escuridão ferveu em torno de mim. Tão claramente quanto se ele estivesse a meu lado, ouvi de novo a voz de Simon: "Não estará terminado... enquanto eu não encontrar o que Michael encontrou... o ouro".

—            Ouro, ouro. .. Você vê ouro em toda a parte, não é, ma pouíe? — Tornou a rir. Por algum motivo, estava mais animado. — Você não viu direito se era ouro. Ela apanhou alguma coisa que você viu brilhar e sua imaginação fez o resto.

—            Era ouro, sim. Eu a vi olhar para ele.

A escuridão clareou pouco a pouco. Vi uma cena, não aquela de que estávamos falando, mas depois. Simon, vindo da marca do centro, pouco antes de falar... Ela não tinha ouvido. Graças aos deuses do lugar, ela não tinha ouvido.

Angelos se afastara e estava levantando outra caixa da pilha.

Pronto. Isso é o máximo que o burro pode levar de uma vez... Agora, deixe de pensar nessas tolices durante cin­co minutos e venha-me ajudar um pouco. Ele não encontrou o ouro, esse é que é o fato. Não tem motivo algum para voltar aqui. Já esteve aqui e viu tudo o aue era possível. Que viria fazer aqui? Trazer flores para Michael? — Teve um riso desagradável e acrescentou: — Palavra que eu quase gostaria de que ele fizesse isso... Devo-lhe alguma coisa afi­nal dê contas!

E ela? — disse Danielle com uma espécie de despeito. — Ela bateu em você.

Foi mesmo! — disse Ângelos alegremente. — Acho que vamos esperar até Dimítrios chegar. Agora, não pode demorar muito. — Parou e correu os olhos pela caverna. — É estranho voltar aqui... Parece que tudo está na mesma. Estas co­lunas, aquele pedaço de rocha que parece uma cabeça de leão no pingo de água constante. Nunca descobri onde fica essa fonte.. Está ouvindo?

E Nigel? — disse ela com impaciência. — Tem de tomar alguma providência sobre o corpo.. . Não compreende?

Talvez você tenha razão. — A voz dele era quase displicente. Era evidente que Nigel deixara havia muito de ter qualquer importância para ele. — Na realidade, pode pres­tar-nos melhor serviço morto do que quando estava vivo. Pode cair pelo penhasco junto com o jipe. Sim, dentro do mar. E tudo estará resolvido. . .

A voz de Danielle o fez parar quando ele se movia. Havia nela uma nota que eu não conhecia.

O jipe? Pelo penhasco abaixo? Não sabia que você pretendia fazer isso.

Você não pode saber todos os planos que eu faço, minha cara senhora, — disse ele. Deu-lhe as costas enquan­to falava e eu não pude ver-lhe o rosto. Mas vi o rosto dela. Parecia mais magro e mais comprido, como o de um garoto amedrontado. Ângelos continuou: — Que é que há? Temos de nos desembaraçar mesmo do jipe e se ele for encontrado no mar com o corpo do rapaz, ainda será melhor.

Ela disse, quase num sussurro:

Mas o jipe é meu. Todos sabem que fui eu quem o trouxe de Atenas.

E que é que tem isso? Todos pensarão que você estava também dentro dele e pronto!

Ela continuou parada a olhar para ele. Parecia quase uma menina com a blusa turquesa e a saia escarlate. Ângelos se encaminhou para ela e Danielle teve de inclinar a cabeça para trás a fim de continuar a olhar para ele. Ele disse com uma nota de impaciência e mais alguma coisa:

Que é que há agora? Está com medo?

Não. Mas estou pensando. . .

Pensando em quê?

Que era que você ia fazer com o jipe se. . . se não tivesse Nigel para rolar pelo penhasco dentro dele?

A mesma coisa, é claro. Pensariam que você estava dentro do jipe e tinha sido. ..

Calou-se abruptamente. Ouvi-o então rir. Estendeu a grande mão e correu-a pelo braço nu de Danielle. A mão pa­recia bem escura contra a pele morena dela.

—            Ora, ora, ora... Minha linda, achou mesmo que eu ia fazer uma coisa dessa com você?

Ela não se moveu. O braço magro pendia-lhe inerte ao lado. A cabeça dela estava inclinada para trás e os grandes olhos esquadrinhavam o rosto do homem, enquanto ela mur­murava no seu fio de voz:

—            Você disse que ele poderia rolar do penhasco dentro do jipe. .. como se tivesse planejado esse fim para mais al­guém, como se...

Ele tinha passado o braço pelo carpo dela e a puxava. Danielle cedeu à pressão sem resistir. A voz dele se tornou mais forte.

E você pensou que eu tivesse planejado isso para você? Para você, minha pequena Danielle. . .

Para quem foi então?

Ele não respondeu. Vi os olhos dela se estreitarem e logo depois despedirem chispas.

—            Dimítrios? perguntou ela.

Ãngelos tampou-lhe com a mão enorme a boca e o corpo dele foi sacudido como pelo riso.

Silêncio, maluquinha! As montanhas na Grécia têm ouvidos.

Mas, Ângelos mou...

E daí? Pensei que você me conhecesse melhor, minha querida. Não compreende? Precisei da ajuda dele, de seu barco e tudo mais, mas acha que ele merece mesmo a metade da minha fortuna? Tudo isso aí é meu. Esperei quatorze anos por essa riqueza e agora que a tenho, acha mesmo que vou dividi-la com alguém?

E eu?

Ele puxou para si o corpo que se abandonava. Teve um riso profundo que vinha do fundo da garganta.

—            Com você, não é dividir. Você e eu, ma poule, somos uma só pessoa...Com a mão livre, suspendeu-lhe o quei­xo até que a boca ficasse à altura de sua boca. E ainda preciso de você. Será que ainda não está convencida disso?

Beijou-a então avidamente e eu vi o corpo de Danielle retesar-se como se ela fosse resistir. Mas logo se descontraiu e os braços dela enlaçaram o pescoço do grego. Ouvi-o rir contra os lábios dela e então ele disse com voz rouca:

—            Ali...Depressa!

Fechei os olhos. Virei a cabeça para o lado, de modo que minha face, como minhas mãos, se comprimiu de encon­tro à rocha fria. O cheiro era fresco, assim como de chuva. Lembro-me de que encontrei sob a mão esquerda um pequeno botão de pedra que tinha a forma de uma concha de molusco.. .

Não quero escrever sobre o que aconteceu em seguida, mas, para fazer justiça a mim mesma, creio que devo fazê-lo. Quando fechei os olhos, o homem a beijava e começava a tirar-lhe as roupas. Ela estava abraçada a ele, com o corpo a entregar-se e as mãos a baixarem-lhe ansiosamente a cabe­ça para beijá-lo. Depois, quando não pude mais ver, ouvi Ãngelos falar em breves frases entrecortadas que não pude nem tentei perceber, numa mistura de grego e do seu fran­cês carregado. Ouvi-o dar um pontapé numa pedra enquanto a fazia cair sobre o chão da caverna perto da pilha de destroços... perto do corpo de Nigel. ..

Só ouvi um som dela e foi quase um suspiro, quase um gemido de prazer. Posso jurar que foi de prazer.

Eu estava trêmula e coberta de suor, sentindo tanto calor como se a fria caverna fosse um forno. A pedra em feitio de concha se me quebrara entre os dedos. Ainda segu­rava um fragmento no dedo encurvado e o mesmo se cravava dolorosamente na carne.

Não sei quanto tempo decorreu até que eu percebesse que a caverna estava em silêncio, salvo pela minha respira­ção arquejante.

Ouvi então Ângelos levantar-se. A respiração dele era profunda e regular. Não disse coisa alguma e não o ouvi afastar-se. Não havia som algum da parte de Danielle.

Abri os olhos de novo e vi-os à fraca luz da lanterna. Ele estava de pé junto à pilha de destroços e olhava sorrindo para Danielle. Esta estava deitada no chão e olhava ainda para ele. Eu podia ver-lhe o brilho dos olhos. O suor no rosto dele fazia as faces carnudas reluzirem. Estava parado, olhan­do sorridente para a mulher estendida à seu pés que o olhava, com a saia escarlate jogada no chão ao lado dela.

Pensei, com desvairada incoerência, que ela não parecia muito à vontade. Ocorreu-me então o súbito pensamento de que estava morta.

Por fim, Ângelos se inclinou, pegou o corpo pelos ombros e arrastou-o pelo chão para ir jogá-lo atrás dos destroços, ao lado de Nigel.

E assim é que Danielle Lascaux foi assassinada a vinte metros de mim, sem que eu tivesse levantado um dedo para socorrê-la.

 

"Vá enquanto ainda é possível, é o meu conselho..."

Sófocles:  Filoctetes

 

Graças à Providência, não perdi os sentidos, nem saí correndo desvairadamente para a luz da lanterna. Mas a es­treita fenda me sustentou o corpo, e o espírito (creio que atordoado pela repetição dos choques) parecia tomar cons­ciência com muita lentidão do que havia acontecido.

Era como se uma espécie de censura mental tivesse corri­do uma cortina de gaze entre mim e o que acontecera dentro da caverna, a tal ponto que me pareceu ver de muito longe o assassino mover-se na sua tarefa macabra, tão separado de mim como um personagem de ficção a mover-se num pal­co iluminado. Eu era invisível, inaudível, impotente, como se sonhasse. Com a luz voltaria a normalidade e o pesadelo desapareceria.

Olhei-o, ainda dentro do meu estranho transe de calma. Creio que se ele se voltasse na minha direção, eu dificilmen­te teria ânimo para recuar, mas ele não fez nada disso. Jogou o corpo de Danielle no pó ao lado de Nigel e ficou por um momento a olhá-los, enquanto batia as mãos para fazer cair a poeira. Pensei por um momento que ele fosse, afinal de contas, cobrir de terra os dois corpos. Mas logo pensei que Danielle tinha tido razão no inútil faiscar do seu instinto de conservação. O plano de fazer o corpo de Nigel rolar para o mar dentro do jipe era um pouco falho. Danielle é que havia levado o jipe. Era o corpo de Danielle que tinha de ser encontrado entre os destroços do jipe... Tinha sido esse o plano dele desde o início. Via isso agora com muita clareza. Não acreditava nem por um momento que ele pretendesse matar seu primo Dimítrios, mas, ainda que assim não fosse, ele certamente nunca tivera a idéia de dividir nada com Da­nielle. O que ela tinha para dar era muito fácil de encontrar em qualquer lugar. O que era também certo é que ele não tinha querido matá-la ali. Devia ter pretendido poupar o trans­porte do corpo dela matando-a quando todo o trabalho esti­vesse terminado, mas as perguntas assustadas dela tinham ultrapassado um pouco os limites da segurança. Fora melhor matá-la logo e deixar para a noite o trabalho extra do trans­porte do corpo.

Voltou à coluna onde a lanterna estava de novo colocada. Eu o olhava ainda como se fosse um ator numa peça, um mau ator. Não havia qualquer expressão no rosto dele; nem horror, nem ansiedade e nem sequer interesse. Em dado mo­mento, estendeu a mão para a lanterna e apagou-a. A escuri­dão desceu como uma tampa sobre uma caixa estreita. Pare­ceu-me que estava escutando. Ouvi-lhe a respiração calma. Não havia som algum do lado de fora.

Ao fim de algum tempo, tornou a acender a lanterna e saiu da caverna. A brida tilintou com o movimento do burro, mas me pareceu que ele não havia desamarrado o animal. Ouvi-o mover-se, mas seus passos não foram acompanhados pelas pisadas mais pesadas do burro. Resolvera decerto fazer um reconhecimento na gruta, antes de sair com o animal. . .

Os passos se afastaram firmemente até que não pude mais ouvi-los. Esperei, fazendo o possível para apurar os ouvidos. Nada senão o leve movimento do pó dentro da caver­na e as batidas dos cascos do burro no seu canto. Ele devia ter deixado a gruta, talvez para ver se avistava Dimítrios.

Uma coisa era certa: Ângelos não fazia idéia de que Simon sentisse ainda alguma curiosidade pela gruta. Sentia-se tão a salvo de ser descoberto naquele recanto do Parnaso como se estivesse nas montanhas da Lua.

E Simon? Simon também. ..

Saí de trás da laje e atravessei correndo a caverna às escuras. Não havia luz, mas não me lembro de que tivesse precisado dela. Meu corpo agia por si mesmo como o de um sonâmbulo, fazendo-me evitar por instinto todos os obs­táculos. Meu cérebro também... Eu não tinha plano consci­ente, nem mesmo qualquer pensamento coerente, mas, em algum nível profundo, eu sabia que me era imperioso sair da caverna e ir ao encontro de Simon... Havia alguma coisa sobre a volta de Dimítrios e de Simon...alguma coisa sobre a necessidade de avisar Simon que não era apenas com um patife insignificante que ele tinha de lidar mas com dois assas­sinos . .. era preciso dizer alguma coisa importante a Simon... e mais importante" que tudo, eu tinha de sair da escuridão, daquela asfixiante gaiola de pedra para a luz bendita...

O sol me atingiu como um machado de luz. Levei a mão aos olhos, como se tivesse recebido uma pancada de verdade. Senti-me ofuscada, nadando num mar de claridade. Tateei com a outra mão à minha frente e encontrei alguma coisa quente e mole que se movia. Recuei com uma pequena exclamação de pavor e, no mesmo instante, compreendi que se tratava do burro, amarrado no estreito canto diante da caverna. Tinha o focinho enterrado na relva e mal parou, rolan­do o olho para mim e continuando a pastar. O quente cheiro de amoníaco do pelo evocou uma lembrança momentânea e indiferente de Niko. Passei por ele, abaixei-me sob a proje­ção de pedra e corri para a gruta.

Não havia sinal de Ângelos. Voltei-me e corri para a en­trada do caminho do penhasco.

O calor no fundo da gruta era palpável. Senti o suor correr-me pelo corpo logo que deixei a sombra. O ar pesava sobre mim enquanto eu corria. Os pulmões recebiam-no com esforço e a poeira me queimava a garganta. A gruta era um poço de calor em que nada se movia a não ser eu, e atraves­sei-a cegamente, tangida pelo chicote do medo.. .

Cheguei ao pé do penhasco. Imaginei que Ângelos tinha saído para ir ao encontro do primo, devendo ter saído pelo portão e não pelo penhasco. Mas nem esse era um pensamen­to consciente. Só sabia era que eu tinha de subir, para longe das paredes asfixiantes da rocha, rumo às extensões abertas do alto do penhasco.

O sol da tarde batia de chapa sobre o caminho do pe­nhasco. A brancura da pedra calcária feria os olhos. Ao es­calar o caminho escarpado, senti a pedra queimar-me as so­las dos sapatos como metal quente. Quando apoiei por um momento a mão na rocha, senti-a escaldar.

Subi tão depressa quanto pude, procurando não fazer ruído. A terra crepitava-me sob os pés como se fosse areia. Uma pedrinha rolou e caiu lá embaixo com um estalo como de um tiro de pistola. Minha respiração era tão alta no ar parado como se eu estivesse soluçando.

Estava um pouco aquém da metade do caminho quando o ouvi voltar.

Parei imediatamente, imobilizada sobre a pedra nua e a ela agarrada como um lagarto. A pedra me queimava por cima do vestido leve. Logo que ele chegasse ao portão, iria ver-me. Eu não poderia chegar ao alto a tempo. Se houves­se algum lugar onde eu me pudesse esconder..

Não havia esconderijo possível. Um simples ziguezague do caminho de cabras, alguns degraus naturais de rocha aber­tos ao sol, uma cornija em que havia um breve emaranhado de vegetação pardacenta...

Sem me incomodar mais com o barulho, subi pelos de­graus de rocha, passei do caminho para a cornija e me arro­jei para trás do escasso abrigo das moitas mortas.

Havia apenas um pequeno azevinheiro brilhantemente verde, numa massa de moitas de cerca de trinta centímetros de altura como um emaranhado de arames enferrujados. As plantas arranhavam um pouco, mas quando me arrastei mais perto, do seu abrigo, elas se esmagaram sob minhas mãos desesperadas. Lembro-me de que isso me pareceu uma parte natural do pesadelo e que a barreira entre mim e o crime cairia ao meu contato.

Afastei-me das moitas mortas e comprimi o corpo contra o pó da cornija, como se, ao jeito de uma toupeira, eu pu­desse meter-me pela terra adentro e salvar-me. Encostei o rosto na poeira quente e fiquei imóvel. Acima de mim, uma projeção de pedra permitia uma breve sombra, mas o lugar onde eu estava era exposto ao sol. Podia sentir-lhe o peso cruel nas costas e nas mãos, mas eu pouco me importava com isso. Através das moitas, observava a gruta abaixo de mim.

Ãngelos saiu do portão e desceu rapidamente a rampa, atravessando a gruta. Não olhou para cima, mas se dirigiu imediatamente para a caverna, desaparecendo de vista no canto.

Esperei, com o corpo comprimido sobre   terra quente.

Estava a ponto de mover-me quando tornei a vê-lo. Ângelos saiu para a luz do sol, movendo-se com muito cuidado, como se procurasse alguma coisa. Tinha trazido o paletó da caverna e o levava no braço. Segurava na outra mão alguma coisa que brilhava à luz do sol. Era a lanterna que eu tinha deixado cair ao lado do corpo de Nigel.

As sobrancelhas pretas se arqueavam sobre os olhos. O sorriso não lhe saía dos lábios grossos. Parou no centro da gruta, com a lanterna na mão.

Eu continuava imóvel. Invisível, o burro se movia inquietamente e o metal da brida tilintava.

Ângelos levantou a cabeça e lançou um longo olhar em torno da gruta. Olhou para o penhasco e o seu olhar passou por mim sem se deter. Depois, encolheu por um momento os ombros e guardou a lanterna num bolso do casaco. Vi-o meter a mão no outro bolso e tirar uma pistola. Balançou-a por um momento na mão, pensativamente, e então voltou-se para a caverna.

Firmei ainda mais as mãos. Não havia dúvida de que ele reconhecera a lanterna. Ia voltar à caverna para procurar quem a deixara cair. E, dessa vez, eu não pretendia esperar até que ele saísse de novo. Não ficaria para ser derrubada com uma bala, como um lagarto de uma pedra.

Senti os músculos retesarem-se como arames. Ele estava atravessando o chão da gruta e em breve desapareceria de vista.

Alguma coisa me caiu na mão provocando uma ponta de dor que quase me fez gritar. Uma pedra. Em seguida, uma chuva de terra e pequenas pedras se deslocou acima de mim e desceu batendo na face de rocha como uma carga de chumbo.

Angelos parou imediatamente, voltou-se e olhou para cima, diretamente para mim.

Não me movi. Não acreditava que ele me pudesse ver do lugar onde estava. Mas meu coração foi acometido de outro e maior medo, quando ouvi os sons que se aproximavam no alto do penhasco. Dimítrios, ainda incólume, e Simon, ainda no encalço dele? Ou era Simon sozinho, que me vinha comunicar, todo satisfeito, que se tinha feito justiça com o "intruso da noite passada"? Qualquer esperança que eu pudesse ter de que Dimítrios se tivesse visto forçado a revelar a Simon a presença de Ângelos se dissipou diante daqueles passos que se aproximavam sem qualquer cautela.

Vi Ângelos aprumar o corpo e desaparecer imediatamente atrás das pedras.

Os sons se aproximaram. Voltei a cabeça até que, revi­rando os olhos nas órbitas, pude ver o alto do penhasco. Se fosse Simon, eu teria de gritar para avisá-lo... Cheguei a abrir a boca para gritar, passando a língua pelos lábios resse­quidos. Então, alguma coisa se moveu de repente contra o céu na borda do penhasco e eu vi o que era.

Uma cabra. Outra. Três grandes cabras pretas, de olhos amarelos e orelhas levantadas, pastavam pacificamente a rel­va seca do alto do penhasco. Viraram na borda e passaram lentamente acima de mim, desenhadas contra o azul do céu trans­lúcido. Nesse momento, julguei ouvir de novo o distante e doce compasso da frauta pastoril. O som caía no calor como o gotejar fresco da fonte de Apolo.

O alívio foi entontecedor. A rocha ferveu sob a luz deslumbrante. Fechei os olhos e encostei o rosto ao mato seco. Alguma coisa tinha um cheiro doce e aromático, despertando a lembrança de jardins ingleses e de abelhas entre tomilhos...

Não sei quanto tempo passou até eu compreender que não havia som algum dentro da tarde.

Quando olhei de novo, Ângelos tinha saído do seu esconderijo e estava no mesmo ponto que já ocupara anteriormente, o centro da gruta. Estava imóvel e olhava para cima, não para mim, mas para a borda do penhasco, onde tinham estado as cabras. Segui-lhe vagarosamente a direção do olhar. Sentia no rosto o calor da pedra quente.

As cabras ainda estavam lá. Estavam também paradas, lado a lado, na borda do penhasco. Olhavam para baixo, com as orelhas apontadas para a frente e os olhos atentos e curio­sos... seis olhos de sátiros que olhavam fixamente para mim, doze metros abaixo.

Ângelos deixou o casaco num rochedo ao lado dele e se dirigiu para a base do penhasco.

Com o seu movimento, ouvi a queda de terra e de pedras provocada pelas cabras que fugiam. Senti o coração bater mais depressa, mas não me movi. Não sei dizer se foi a força do instinto que me imobilizou ali como um animal es­condido ou se foi o medo que me gelou o sangue nas veias e me tirou qualquer possibilidade de movimento. Seja como for, continuei deitada e imóvel durante os poucos momentos decisivos em que o grego atravessou a gruta e subiu o caminho de cabras do penhasco para onde eu estava. Depois, pareceu-me que ele estava quase a me alcançar e que era tarde de­mais para fugir. Lembrei-me da pistola e fiquei deitada ali na terra quente, com medo até de respirar.

Eu estava de certo modo abrigada em relação a quem estivesse embaixo e, de cima, a projeção de pedra me dava alguma proteção. O caminho fazia uma curva pronunciada para contornar a extremidade da cornija onde eu estava. Seria possível — seria certamente possível? — que ele passasse por ali às pressas e não olhasse para o lado e me visse? Meu vestido era de algodão claro, já então bem coberto de pó. Era possível que ele não me visse contra a rocha faiscante e o chão de terra vermelha cheio de pedrinhas.

Estava pouco abaixo de mim. Parou. A cabeça dele esta­va alguns centímetros abaixo do nível de minha cornija. Eu não podia olhar, nem me atrevia a isso, mas ouvi os passos cessarem e, depois, a respiração dele logo abaixo de mim. Minha respiração mal agitava o pó sob minha boca.

Ficou alguns segundos parado e então recomeçou a mo­ver-se. Mas os passos não subiram pelo caminho. Moveram-se cuidadosamente para a esquerda, abaixo de minha cornija.

Através da escassa barreira das plantas mortas, eu via o alto de sua cabeça. Estava virada para o lado e era evidente que havia deixado o caminho. Eu ouvia pedrinhas soltas se desprenderem e rolarem pela rocha, juntamente com o farfalhar das plantas secas em que ele pisava. Seguia muito cau­telosamente, fazendo paradas quase a cada passo.

Eu tinha de saber o que ele estava fazendo. Movi um pouco a cabeça e vi-o melhor.

Havia uma cornija abaixo da minha, com algumas plan­tas esparsas e muitas pedras soltas. Eu a tinha visto no breve segundo desesperado em que procurara abrigo. Não poderia esconder senão uma criança. Mas ele a esquadrinhava, de pistola em punho, olhando para tudo metodicamente como um cachorro.

Deixou-a então e voltou cuidadosamente para o cami­nho. Parou ali de novo por um instante e eu cheguei a pen­sar que se ia dar por satisfeito e descer para a gruta, pen­sando talvez que as cabras tivessem visto alguma cobra. .. Mas continuou a subir, vencendo o breve trecho que o sepa­rava de mim.

Não sentia mais nem medo naquele momento. Era como se o medo tivesse subido a tal ponto que acabara por anular-se, como uma luz que brilha intensamente antes de apagar-se. Eu estava de volta ao teatro mal iluminado e remoto da irrealidade. Não era a mim que estava acontecendo aquilo.

Suponho que ninguém, no fundo do coração, acredita na própria morte. Volumes de filosofia têm sido escritos com base exclusivamente nessa crença. E tenho certeza de que ninguém jamais acredita que uma coisa ignóbil como um assassinato vá dar cabo de sua vida. Alguma coisa vai fazê-lo parar. Isso não pode acontecer. Aos outros talvez, mas não a mim.

Continuei estendida, quase calma, abandonada ao desti­no e às circunstâncias, sobre a terra quente, e Ângelos subiu rapidamente o caminho para onde eu estava. Dentro de um momento, iria chegar à ponta de minha cornija. Poderia ver­me diretamente ou poderia entrar pela cornija, batendo as moitas até tirar-me, aterrada e empoeirada, de meu esconderijo. Não poderia deixar de dar comigo...

Já li em algum lugar que, quando uma pessoa é procura­da por quem quer matá-la, um dos maiores perigos a que es­tá sujeita é a ânsia quase desesperada de entregar-se e aca­bar logo com aquela agonia. Eu nunca tinha acreditado nisso e pensava que a pessoa devia correr impelida pelo medo até cair exausta como uma lebre perseguida. Mas é verdade. Po­de ser que alguma coisa me proibisse de deixar aquele homem encontrar-me prostrada, suja e apavorada aos seus pês. Pode ter sido apenas o terrível instinto cego dos que são caçados. Mas o impulso se manifestou e eu não tentei resistir-lhe.

Levantei-me e comecei a sacudir a terra de meu vestido.

Não olhei para ele. Tinha parado imediatamente ao ver­me. Estava de pé exatamente no ponto em que minha cornija deixava o caminho. Para sair dela, eu teria de passar por ele.

Caminhei através das moitas e das pedras como se esti­vesse sob um ataque de sonambulismo. Não encarei os olhos dele, prestando atenção ao lugar onde pisava. Moveu-se um pouco para o lado e eu passei por ele. Desci lentamente pelo caminho até ao fundo da gruta. Ele veio logo atrás de mim.

Quando cheguei a terreno plano, escorreguei e quase caí. Ele me pegou pelo braço por trás e toda minha carne pareceu recuar e contrair-se ao seu contato. Parei.

Apertou-me o braço e com uma torção fez com que me virasse de frente para ele. Pensei que, se ele continuasse a me segurar, eu começaria a dar gritos, mas ele me largou e eu fiquei em silêncio. Sabia que, se tentasse gritar, seria morta imediatamente. Mas recuei um passo dele até sentir uma pedra tocar-me as pernas. Sem a menor intenção disso, sen­tei-me no chão. Não podia mais manter-me de pé. Espalmei as mãos na superfície quente da pedra e olhei para Ângelos.

Ele estava talvez a um metro e meio de mim, com as pernas um pouco abertas, uma das mãos metida negligentemente no cinto das calças e com a outra mão, que empunhava a pistola, pendente ao lado do corpo. A cabeça estava esticada ligeiramente para a frente, como a de um touro quando vai arremeter. O rosto pesado era apavorante com o seu sorriso curvo e de lábios apertados, o arco perfeito das sobrancelhas negras e os olhos cruéis que pareciam de um sólido e opaco negro, sem pupilas e sem luz que viesse de dentro. As nari­nas grossas estavam levantadas e ele respirava depressa. Os anéis de touro da testa estavam úmidos e colados de suor.

Ele me havia evidentemente reconhecido. Vi isso quando o olhar dele se fixou em mim. Devia ter-me visto distinta­mente na noite anterior à luz da lanterna.

—            É então minha amiguinha do atelier, não é? — disse ele, falando no espesso francês gutural que havia empregado com Danielle.

Tentei dizer alguma coisa, mas não consegui articular som algum. Quando tossi, vi o sorriso aumentar. A voz me voltou e eu disse:

—            Espero tê-lo machucado.

—            Esse caso dentro em pouco estará resolvido, — disse Ângelos quase amavelmente. — Onde está o inglês?

—            Não sei.

Ele teve um pequeno movimento em minha direção e eu recuei contra o rochedo. A expressão dele não mudou, mas disse:

—            Não seja tola. Você não podia ter vindo até aqui so­zinha. Onde está ele?

Respondi com voz rouca:

—            Eu. .. nós estávamos sentados lá em cima quando vi­mos um homem passar... um tal Dimítrios. Ele é guia... não sei se o conhece. Simon, meu amigo... foi falar com ele. Ele... ele pensou que foi ele quem esteve ontem à noite no atelier e eu acho... acho que queria saber o que o homem tinha ido procurar.

Essa versão estava tão perto da verdade que eu esperei que ele pudesse ficar satisfeito com ela no que se referia a Simon. Mas isso de nada me serviria. Nem isso, nem nada.

—            E esteve todo esse tempo no alto do penhasco?

—            Eu? Não. Andei um pouco pela montanha e então pensei que ele podia estar de volta e. ..

E não esteve na caverna?

Caverna?

Foi o que eu disse. A caverna.

O sol estava frio. A pedra estava fria. Creio que até então eu me havia agarrado a um fio de esperança, mas naquele momento não tive mais dúvidas. Eu ia morrer. O que eu tinha visto ou deixara de ver — o burro, a caverna, o tesouro, Nigel, Danielle — nada disso me ajudaria de modo algum a fingir-me de inocente. Nada disso importava em comparação com o fato de que eu tinha visto Ângelos.

Ele deu dois passos até o lugar onde deixara o casaco. Tirou dele a lanterna e perguntou.

Foi você que deixou isso lá, não foi?

Foi.

Um brilho de surpresa em seus olhos negros mostrou que ele esperava que eu negasse. Murmurei então:

—            Deixei-a cair quando vi o corpo de Nigel. E estava na caverna ainda há pouco quando você matou Danielle.

Ele teve um súbito movimento involuntário e o sol brilhou no metal da lanterna. Ao menos, eu havia conseguido despertar-lhe o interesse. Se eu pudesse fazê-lo falar... se pudesse continuar viva por mais alguns minutos... talvez o milagre acontecesse e eu não morresse. Não era verdade que os assassinos eram pretensiosos e gostavam de falar de seus crimes? Mas em Ângelos o crime devia ser uma coisa tão habitual que já não tinha interesse para ele cometê-lo, quanto mais discuti-lo... Mas era sádico também. Talvez quisesse amedrontar-me antes de matar-me...

Disse então, agarrando-me à pedra:

— Por que torturou Nigel? E você queria mesmo matar Danielle?

Mas não deu resultado. Ele tornou a guardar a lanterna em cima do casaco e correu rapidamente o olhar pelos pe­nhascos circundantes. Depois, colocou a pistola ao lado da lanterna e voltou-se para mim.

Consegui mover-me então, mas o impulso de minhas mãos que me afastou da pedra quente me fez avançar um passo na direção dele. Quando rodei o corpo para correr, ele me pe­gou pelas costas e me puxou com tanta facilidade quanto se eu fosse uma boneca de pano. Creio que lutei com ele. Não me lembro de nada senão de um pânico cego, do contato repulsivo de suas mãos, do cheiro azedo de seu suor e de sua espantosa força que me prendia tão sem esforço entre as mãos como se eu fosse um inseto capturado. Uma das mãos se fechou com força na minha boca, esmagando-me os lábios contra os dentes, mas a mão estava escorregadia de suor. Escorregou e eu consegui livrar a cabeça, ao mesmo tempo que lhe acertava um pontapé na canela. Paguei caro essa peque­na vantagem porque, quando torci o corpo numa vã tentativa de fugir, ele mergulhou para me agarrar e silenciar-me, mas pisou numa pedra solta que rolou sob o pé dele e nós caímos juntos.

Se eu tivesse caído por baixo, ter-me-ia provavelmente machucado gravemente ou perderia talvez os sentidos por­que ele era um homem bem pesado. Mas caiu de lado, arrastando-me com ele. Ainda assim, a força brutal com que me agarrava não se atenuou. No momento em que atingimos o chão, ele se moveu com a rapidez de um relâmpago, pas­sando pelo meu corpo num movimento rápido e prendendo-me no chão sob ele.

Mudou então de posição. Passou para as minhas costas, com meu braço esquerdo torcido sob mim, de modo que nosso duplo peso o mantinha ali, quebrando-o quase. Meu pulso direito estava agarrado por ele, plantado contra a rocha ao meu lado. A outra mão dele se aproximou de minha garganta. O pesado corpo me prendia. Não podia mover-me, mas, desesperada de terror, comecei a gritar e a debater-me inutilmen­te embaixo dele. Jogava a cabeça de um lado para outro, tentando evitar a mão que me subia pelo pescoço para es­trangular-me. Gritei de novo. Ele murmurou alguma praga em grego e me bateu com força na boca. Bati com a cabeça na pedra e, então, a mão me agarrou o pescoço, moveu-se um pouco e apertou...

Eu ainda estava viva. Era anos depois, a escuridão fervilhante havia clareado e eu ainda estava viva. Ainda estava deitada de costas no chão quente e, acima de mim, o céu se arqueava numa grande abobada azul luminosa e vibrante. O corpo de Ângelos ainda pesava sobre mim. Eu sentia a ondulação de sua respiração pesada; o cheiro do seu suor era horrivelmente azedo; a mão era úmida e suja por sobre minha boca. A outra mão ainda estava em meu pescoço, mas sem exercer pressão e, por fim, afastou-se.

Ângelos não se levantou. Continuou ali imóvel, com os músculos rígidos, com os olhos voltados para a entrada da gruta. Em seguida, a mão dele escorregou de meu rosto e se apoiou na pedra ao lado de minha cabeça, pronto para levantar-se. Lembro-me de que a mão dele se apoiou nos meus cabelos soltos, que foram repuxados quando ele fez força para levantar-se. Essa leve dor me serviu de estímulo. Fez-me voltar à consciência. Deixei de piscar os olhos para o azul vibrante do céu e consegui mover um pouco a cabeça a fim de olhar para onde Ângelos estava olhando.

Olhava diretamente para o sol. A princípio, nada pude ver na claridade à boca da gruta. Foi então que o vi.

Soube imediatamente quem era, embora fosse apenas uma sombra na claridade. Mas, ainda assim, senti um arrepio de frio correr-me pela medula dos ossos, quando senti o cora­ção bater com mais força no corpo dele e ouvi-o dizer, com sua voz grossa:

Michael?

 

"Aqui estou

Saído da purificação de Apolo... dívida de sangue".

Eurípides:Electra

 

Compreensão, choque, reconhecimento — tudo isso deve ter levado apenas alguns segundos, mas pareceu uma eterni­dade.

Num momento, Simon foi silhuetado contra a claridade do portão; no momento seguinte, Ãngelos se afastara de mim e estava de pé com a agilidade de um dançarino. Devia ter esquecido que deixara a pistola de lado, porque levou a mão automaticamente ao quadril no instante em que Simon, descendo pela rampa com a velocidade de um esquiador, parou a cinco metros dele levantando uma nuvem de poeira e pedrinhas.

Ângelos estava de pé junto de mim, com a mão ainda no quadril, a observá-lo.

Simon se conservava imóvel no lugar onde havia parado. Eu não podia ver-lhe a expressão, mas via a de Ângelos e o medo se infiltrou de novo pelo meu sangue, tão dolorosamen­te quanto o calor depois do enregelamento. Agitei-me no chão etentei dizer alguma coisa para informar a Simon quem eo que ele era, mas senti a garganta dolorida, e a luz brilhante flutuou atordoantemente em torno de mim enão pude emitir qualquer som. Ângelos deve ter sentido o meu movimento a seus pés, mas não me deu atenção. Simon tam­bém não olhou para mim. Os dois homens se encaravam, cautelosamente e lentos como dois cães que rodam antes de uma luta.

Esperei que Simon investisse contra ele, como fizera na noite anterior. Não notei como a sua respiração era ofegante e como ele estava lutando para controlar o coração e os pul­mões depois da sua corrida desesperada para acudir ao meu grito de terror. Eu também não compreendia que ele ainda pensava que o grego podia estar armado e que eu estava num ponto em que uma faca ou uma pistola poderia atingir-me segundos antes que Simon pudesse aproximar-se... Eu não estava em condições de compreender nada disso. Só sabia era que Simon não se movia e pensei de repente, com um sentimento arrasador, que ele talvez estivesse com medo. Foi então que ele deu dois passos muito lentamente à frente e, desde que ele não estava mais entre o sol e mim, pude ver-lhe o rosto. O sentimento arrasador desapareceu e eu dei­xei de ter medo. Com o medo, a tensão se afastou de meu corpo e eu me senti descontrair e comecei a tremer. As con­tusões que o grego me infligira principiaram a doer. Virei-me de lado e procurei afastar-me um pouco dele. Não poderia levantar-me, mas me arrastei alguns centímetros para agachar-me, trêmula e ainda ofegante, contra a base dó rochedo onde estivera sentada.

Ângelos não me deu atenção. Tinha tratado de mim e me deixara de lado, para enfrentar Simon. Eu podia ficar para depois.

Simon disse com muita calma:

Se não me engano, você é Ângelos.

Ele mesmo. E você é o irmão mais moço de Michael?

Ele mesmo.

O grego disse num tom em que havia satisfação e des­prezo.

—            Seja bem-vindo.

Os lábios de Simon se estreitaram.

—            Duvido um pouco disso. Aliás, Ângelos, creio que já nos encontramos.

—            Ontem à noite.

—            É verdade, — disse Simon. Olhou-o durante alguns segundos em silêncio. A voz dele era direta e sem inflexão. Conhecendo-o como já conhecia, senti o coração apertar-se. Simon acrescentou: — Gostaria de ter sabido ontem à noite.

Virei a cabeça dolorosamente e consegui dizer:

—            Ele matou Nigel. . . e Danielle.

Só alguns segundos depois foi que compreendi que não havia emitido som algum.

—            Você matou meu irmão Michael.

Simon não tinha nem olhado para mim. Estava já res­pirando normalmente, sem qualquer expressão no rosto, mas com aquele seu olhar calmo e vigilante.

Eu sabia o que queria dizer aquele olhar. Assim mes­mo, devia ter sido Michael quando enfrentara Ângelos ali mesmo tantos anos antes. O céu devia ser igual e aquelas mesmas pedras indiferentes tinham lançado o mesmo calor reverberante. O tempo retrocedera. Ângelos enfrentava de novo Michael e, dessa vez, as chances eram favoráveis a Michael.

Ângelos parecia não pensar assim. Riu e disse:

—            Sim, matei Michael. E vou matar você, irmãozinho. Em sua terra, não ensinam os homens a ser homens. Aqui é diferente.

Simon se moveu então, muito lentamente. Um passo à frente. Outro.

Como foi que você matou meu irmão, Ângelos?

Quebrei-lhe o pescoço.

Notei com surpresa que o grego estava cedendo terreno. Tinha baixado a cabeça à suà maneira característica. Via perfeitamente a contração dos olhos pretos contra a luz. Vi-o piscar os olhos rapidamente uma ou duas vezes e mover a cabeça como faz um touro quando os chifres o incomodam. Deu então um passo vagaroso para trás, descambando um pouco para o lado...

Pensei por um momento que ele estava tentando tirar Simon fora da linha entre ele e o sol e fiquei sem saber por que ele deixava o outro ganhar tempo assim quando, como um clarão em noite escura, tive a compreensão exata do que ele estava fazendo. Lembrei-me da pistola, que estava escon­dida de Simon sobre o casaco de Ângelos no chão.

Consegui mover-me. Era como levantar um colchão cheio de barro erguer meu corpo do chão, mas rolei o corpo, tomei impulso com os pés num movimento convulsivo como um pei­xe e agarrei a manga do casaco no momento exato em que Ângelos dava um pulo súbito para o lado e se inclinava para apanhar a pistola.

A manga estava em minha mão e eu puxei-a com toda a minha força. O casaco pegou numa ponta de pedra, ras­gou-se e veio com um arranco. A lanterna voou como um fo­guete e foi bater numa pedra ao lado de minha cabeça. A pistola voou longe também, bateu num montão de pedras a três metros de distância e desapareceu. Chegou a bater na mão do grego quando ele tentava agarrá-la. Ele rodou o cor­po proferindo uma praga, deu-me um pontapé e correu para o montão de pedras quando Simon o atacou impetuosamente.

Simon desfechou o golpe. O braço do grego, ainda que ele tivesse caído sobre a pedra, conseguiu bloquear a cutelada lateral no pescoço que se seguiu e respondeu no mesmo movimento com uma tremenda cotovelada que atingiu Simon na parte inferior do estômago. Vi a dor explodir através dele como uma bala e quando ele recuou do grego, usando a ro­cha para tomar impulso, Ângelos investiu num mergulho com todo o seu peso. A boca de Simon desapareceu numa man­cha de sangue. A cabeça se curvou para trás em conseqüên­cia de outro golpe que deu a impressão de haver-lhe quebra­do o pescoço e ele caiu. Mas, quando caiu, trançou a perna pelo joelho de Ângelos e, aproveitando o próprio ímpeto do adversário, fê-lo cair sobre ele. Antes que o grego tivesse batido no chão, Simon tinha rolado para o lado e ficou por cima dele. Vi o grego dar um pontapé e errar. Tentou então dar uma cutelada com a quina da mão no pescoço de Simon, mas este desviou a cabeça e atingiu-o na garganta. Depois, os dois se engalfinharam e rolaram pelo chão, levantando a poeira em torno deles.

Eu não podia ver... nem compreender... Ângelos es­tava caído de costas e Simon parecia estar em cima dele e tentava torcer-lhe o braço para trás como Ângelos tinha feito comigo. O grego golpeava-lhe repetidamente o rosto. Os mur­ros curtos não tinham muita força, mas o sangue corria da boca de Simon. De repente, o punho se abriu, os dedos se torceram em garras e a mão voltou ao rosto de Simon, com o grande polegar espatulado subindo para vazar o olho...

Eu tinha conseguido levantar-me, apoiada no rochedo ao meu lado. Convenci-me de que Simon não podia vencer afinal de contas. Era mais moço e sabia lutar, mas Ângelos tinha o peso e toda sua terrível experiência. Se eu pudesse ajudar... fosse lá como fosse...

Inclinei-me sentindo tudo rodar e apanhei uma pedra, sustentando-a em mãos que tremiam como folhas secas. Eu poderia bater no homem como na noite passada...se eu pudesse achar uma arma...talvez a lanterna...

A pistola.

Larguei a pedra e corri, com breves respirações soluçan­tes, para o montão de pedras onde a pistola fora cair. Com toda a certeza, a pistola tinha caído aqui, desaparecendo en­tão. Nem sinal.. . Aqui então? Não, aqui.. . meu Deus, aqui...

Um arranhão branco na pedra calcária havia marcado a passagem da pistola... Meti a mão trêmula entre as pedras. Estas me arranharam a pele e eu senti dor, mas não dei importância a isso. Empurrei o braço para baixo tanto quanto me era possível. Toquei com os dedos esticados em alguma coisa fria e lisa...Metal.. . Mas não podia segurá-la. O máximo que conseguia era fazer os dedos escorregarem por ela. Os lábios me tremiam e sentiam o gosto salgado das lágrimas. Debrucei-me sobre as pedras e tentei descer mais a mão pela estreita abertura. As pedras cruéis me esfolavam a pele e eu sentia o sangue correr pelo pulso. Os dedos escorregaram, fecharam-se, seguraram. Eu tinha a pistola. Ten­tei puxá-la, mas não consegui fazer passar por entre as pedras a mão fechada sobre a coronha. Fiz força desesperadamente até que a dor na mão me fez chorar sem que eu pudesse puxar a pistola...

Simon tinha conseguido afastar-se do polegar que ia va­zar-lhe o olho. O grego torceu o corpo violentamente para o lado no momento em que a pressão do outro diminuiu e conseguiu livrar-se. Com uma agilidade incrível para um homem de seu tamanho, rolou para o lado e retesou o corpo para levantar-se. Vi que tinha na mão, como eu, uma pedra terrivelmente pontuda. Mas Simon foi tão ligeiro quanto ele. O mesmo movimento que o arremessou para trás e o livrou das garras do grego fê-lo levantar-se. Viu a pedra na mão do adversário. Saltou no mesmo instante e pisou com o pé a mão do outro. A pedra estava por baixo e eu ouvi Ângelos dar um grito horrível ao sentir a mão esmagada de encontro a ela. Mas virou o corpo e desfechou o pé com uma força que parecia tremenda na virilha de Simon. Este pressentiu o golpe e procurou desviar-se. O pé lhe roçou pela parte in­terna da coxa. Ao mesmo tempo, agarrou o pé pelo tornozelo e com um puxão e uma torção fez o grego cair de novo de lado como um touro abatido. Caiu outra vez sobre ele dentro de uma nuvem de poeira. Outro golpe, num som pavoroso de osso e carne a quebrarem-se juntos e, então, Ângelos ficou por cima, a vibrar o punho como se fosse um martelo...

Abri a mão e larguei a pistola. Abaixei-me até à base do montão de pedras e comecei, com os dedos trêmulos e inúteis, a tentar a remoção das pesadas pedras. Ouvia às mi­nhas costas o barulho da luta, o baque e o escorregar dos corpos pelo chão, as respirações entrecortadas e, então, um súbito e agudo grito de dor. Pensei que tinha sido Simon.

A pedra que estava sob minhas mãos cedeu. Joguei-a para o lado e concentrei-me em outra. E mais outra. Depois, um montão de terra seca e de pedrinhas.

Vi então o brilho azul-escuro da pistola.

Joguei para o lado a última pedra e meti a mão. O cano estava voltado para mim. Agarrei a pistola e puxei-a para fora. Nem pensei no perigo que era segurá-la daquele jeito. Tirei-a do meio das pedras e voltei-me, segurando-a nas mãos incertas. Lembro-me de que foi uma surpresa para mim verificar como era pesada...

Nunca havia tocado numa pistola em toda minha vida. Mas, sem dúvida, era tudo muito fácil. Bastava apontar o cano e puxar o gatilho. Disso eu sabia. Tinha era de chegar bem perto... Era preciso também que os dois se separassem um momento e me deixassem ver alguma coisa dentro daque­la poeira... Bastava apontar o cano e puxar o gatilho e Ân­gelos estaria morto, varrido da vida numa fração de segundo. Não me ocorreu que seria, de qualquer maneira, uma coisa errada e muito grave. Dei alguns passos vacilantes em dire­ção aos dois corpos que lutavam no chão...

Era esquisito como eu tinha dificuldade em andar. O chão me fugia dos pés, a terra me retardava os passos, a pis­tola era muito pesada e o céu estava muito luminoso mas, apesar disso, eu não estava enxergando bem...

Os corpos presos um ao outro no chão moviam-se en­quanto o homem que estava embaixo fazia um esforço que parecia titânico. Os dois homens estavam cobertos de poeira. Eu não podia ver quem era que estava deitado por baixo, com o braço torcido naquela tremenda chave para as costas... nem quem era que estava em cima, todo empenhado num esforço decisivo... Se, ao menos, se separassem um instan­te e eu pudesse ver qual deles era Ângelos...

O homem de cima estava firmemente plantado sobre o outro, sustentando com uma das mãos o pulso do braço tor­cido e, com a outra, cingia o pescoço do homem deitado. Enquanto eu olhava, a pressão sobre o pescoço aumentou...

A cabeça do homem prostrado se curvou dolorosamente-para trás. A terra vermelha cobria os anéis pretos dos cabe­los. O rosto largo e cruel estava também manchado de ver­melho, como uma figura arcaica esculpida num esgar em arenito vermelho. Era Ângelos que estava estendido no chão, com a respiração a sair entrecortada dos lábios sorridentes e fazendo esforços cada vez mais fracos para livrar-se de Simon.

Fiquei ali, com a pistola na mão, com o propósito pro­pulsor quebrado dentro de mim, contemplando como num sonho os dois corpos que arquejavam, com as respirações confundidas, no chão aos meus pés.

Um músculo se contraiu nos ombros de Simon. A cabeça do grego se curvou mais um pouco para trás. O sorriso pas­sara a ser um ríctus fixo e horrível. O corpo fez um último e desesperado esforço para livrar-se do adversário, guinando para o lado sobre o chão. Mas a pressão de Simon não se atenuou. No momento em que os dois corpos, ainda engalfinha­dos, deslizaram pelo chão até chegar perto das pedras que assinalavam o lugar onde Michael fora assassinado, vi Si­mon retirar o braço e ouvi a respiração de Ângelos subir-lhe pela garganta numa espécie de silvo, que parou de repente...

Compreendi então que Simon não precisava mais de mim, nem da pistola. Afastei-me e fui sentar-me no rochedo. Encostei-me cansadamente à rocha quente e fechei os olhos.

Ao fim de algum tempo, houve silêncio.

Ângelos estava estendido e imóvel com o rosto no chão, perto das pedras de Michael. Simon levantou-se muito len­tamente. Durante um momento, ficou de pé, olhando para o chão. O rosto estava imundo de terra e de sangue e marcado pela fadiga. Tentou limpar o sangue do rosto com as costas das mãos. Mas as mãos estavam também ensangüentadas.

Virou-se então e pela primeira vez olhou para mim. Quis falar, mas teve antes de passar a língua pelos lábios secos. Respondi prontamente ao seu olhar.

Estou muito bem, Simon. Ele... ele não me machu­cou. — A voz me havia voltado, rouca e sem muita firmeza. Mas nada havia para dizer. Sussurrei: — Há uma corda no burro que está perto da caverna.

Corda? — A voz dele também não era a mesma e me chegava com muita lentidão. — Para quê?

—            Para ele, é claro. Quando ele voltar a si...

Minha cara Camila — disse Simon. Então, vendo a expressão de meu rosto, exclamou, irritado: — Que era que você queria que eu fizesse?

Não sei. Éclaro que você tinha de matá-lo. Éape­nas ... é claro que você o matou.

A boca de Simon se torceu. Não era bem um sorriso, mas ele parecia mesmo, naquele momento, estar bem dife­rente. Era um estranho que estava ali diante de mim ao sol escaldante, com uma voz estranha e com alguma coisa desaparecida daquele rosto de que eu me lembrava tanto. Estava ali em silêncio olhando para as mãos e ainda me lembro de como estavam ensangüentadas.

A náusea desaparecera e o mundo se firmava. Disse en­tão quase em desespero, impelida pela vergonha:

— Perdoe-me, Simon. Acho que ainda não posso pensar direito. É evidente que você tinha de fazer o que fez. Mas chegarmos a esse ponto... Mas você teve razão. Há momentos. .. em que é preciso aceitar coisas assim... Foi uma atitude muito errada a minha.

Ele sorriu, com um traço de bom humor surgindo através do seu cansaço.

—            Nada disso. Você também está certa. Mas... que é exatamente que você pretende fazer com isso?

—            Com quê? — murmurei e, seguindo o olhar dele de­parei com a pistola em minha mão.

Ele se aproximou e me tirou delicadamente a pistola da mão. Os dedos ensangüentados evitaram tocar-me. Tremiam um pouco. Ele colocou a pistola cuidadosamente de lado e disse:

—            Acho mais seguro deixá-la ali.

Silêncio. Ficou de pé ao meu lado, ainda com aquele olhar de estranho.

—            Camila.

Olhei para ele.

Se você não tivesse jogado a pistola longe, eu esta­ria morto, — disse ele.

E eu também. Mas você chegou.        

É claro, querida. Mas se ele tivesse apanhado aquela pistola... — Houve uma breve pausa, tão breve que não pareceu que o que ele fosse dizer tivesse alguma importância. — Você teria atirado nele, Camila?

De repente, comecei a tremer descontroladamente. Disse então com uma espécie de violência:

—            Sim, sim, ia atirar, sim... mas você o matou antes... Comecei então a chorar, desconsoladamente. Procurei às cegas e segurei as mãos dele, ensangüentadas ou não.

Simon estava sentado ao meu lado no rochedo, com o braço passado pelo meu corpo. Não me lembro do que ele dis­se. Creio que, durante parte do tempo, ele praguejou baixi­nho e isso me pareceu tão estranho nele que não pude conter alguns acessos de riso por entre os meus soluços.

Consegui dizer:

—            Desculpe. Estou muito bem. Não é nervosismo. Deve ser reação ou coisa parecida.

Ele disse com uma violência ainda mais chocante, pois era a primeira vez que eu a via nele:

Não vai ser fácil eu me perdoar por ter envolvido você nisso! Se eu fizesse qualquer idéia...

Não foi você que me envolveu. Eu mesma é que quis e tive de aceitar o que veio! Não foi culpa sua que as coisas tivessem acontecido como aconteceram. Um homem faz o que tem de fazer e, desde que você se sentia assim a respeito de Michael, fez o que devia fazer e pronto!

—            A respeito de Michael?

Sim, você disse que a tragédia estava encerrada, mas desde que soube que Ângelos ainda vivia. . .

Minha cara, acha mesmo que foi para vingar a morte de Michael que eu o matei?

—            E não foi? Mas você disse a Ângelos. . .

—            Estava falando a linguagem que ele compreenderia. Afinal de contas, isto aqui ainda é o país de Orestes. Bem, reconheço que foi em parte a lembrança de Michael que me moveu quando me vi aqui diante dele. Tive ímpetos de matá-lo quando soube que ele estava vivo, antes mesmo que Dimítrios me dissesse o resto.

—            Dimítrios? Ele lhe contou então?

Houve necessidade de um pouco de persuasão. Niko apareceu na hora e me ajudou. — Uma pausa. — Ele me disse o que os dois tinham feito com Nigel.

Você sabe então... — O suspiro que dei era quase exclusivamente de alívio. Lembrei-me do olhar de Simon e da determinação com que ele matara Ângelos. — Compreendo...

—            E, por fim, — disse ele, — havia você.

Eu nada disse. Tinha os olhos em dois. .. não, três pon­tos negros que circulavam bem no alto acima da gruta. Si­mon estava sentado ao meu lado sem se mover, olhando para o chão. Pareceu-me de repente completamente exausto. Se não fosse a evidência estendida ao lado das pedras, quase se poderia pensar que o vencido fora ele e não Ângelos. "A morte de qualquer homem me diminui..." Pensei em Nigel, atirado grotescamente por trás da pilha de destroços.

O silêncio se estirou. Longe, na montanha, julguei ouvir alguma coisa, um rolar de pedras, um grito. Simon não se moveu.

—            Fale-me de Ângelos, — disse eu. — Por que foi que esperou tanto tempo para voltar?

—            Já tinha estado aqui antes. Estávamos certos em nossas conjeturas sobre a procura do ouro — as luzes, as vozes, as perguntas de Dimítrios — mas estávamos errados quanto ao nome do homem que procurava. Não era Dimítrios.

Ele a princípio nada sabia do esconderijo. Quando Angelos saiu da Grécia para a Iugoslávia em fins de 1944, pretendia voltar o mais depressa possível. Mas matou um homem, des­sa vez por motivos políticos, na Iugoslávia e foi condenado à prisão. Foi posto em liberdade há dois anos e voltou secretamente para procurar o primo. Contou-lhe o segredo, por­que precisava de um lugar onde se escondesse e de um agen­te que o ajudasse. Procuraram o esconderijo, como calcula­mos, mas não conseguiram encontrá-lo. Dimítrios fez tudo o que era possível para obter informações de Stéfanos sem resultado e os dois primos devem ter pesquisado desesperada­mente toda a zona do terremoto com intervalos através da primavera e do verão. Por fim, desistiram provisoriamente e Ângelos foi viver na Itália. Imagino que pretendia voltar na primavera deste ano, logo que as neves se derretessem. Já então, eu havia escrito a Stéfanos e começaram a circular rumores de minha próxima chegada a Delfos. Ele resolveu esperar e deixar que nós lhe mostrássemos o lugar. É só. Olhou então para mim e disse:

E que foi que lhe aconteceu? Por que saiu da caverna? Sem dúvida, ele não descobriu você dentro do santuário?

Não. — Disse-lhe então tudo o que me havia aconteci­do desde que ele me deixara para seguir Dimítrios. Descobri que podia contar tudo com toda a calma, com aquele estranho alheamento que eu sentira na caverna, como se fosse tudo uma peça de teatro, como se aquelas coisas tivessem acontecido não comigo, mas fizessem parte de alguma história que eu tinha lido. Mas me lembro de que me fazia bem sentir o braço de Simon passado pelos meus ombros e o calor do sol.

Ele escutou em silêncio e, quando terminei, passou ainda alguns minutos sem falar. Disse por fim:

—            Parece que tenho mais motivos de me perdoar além de ter envolvido você em tudo isso. — Pela primeira vez, voltou os olhos para as pedras junto às quais estava o corpo. Eram, como eu me lembrava deles, vigilantes, impassíveis e frios. — Toda uma lista... Michael, Nigel e a pequena e frívola Danielle... E quase você... Quase havia mesmo ne­cessidade de um Orestes, não acha? Duvido muito de que as Fúrias me persigam muito pelo que fiz hoje, Camila.

—            Não, Simon. Creio que não.

Houve um grito no portão atrás de nós. Com um rolar de pedras, Niko apareceu na gruta e correu para nós.

Bela miss! Kyrie Simon! Tudo resolvido! Estou aqui!

Parou à nossa frente. Olhou-nos espantado o meu ves­tido sujo e dilacerado, as contusões, os pulsos e as mãos esfoladas e Simon todo coberto de sangue e terra, com as marcas da luta por todo o corpo.

—            Santa Mãe de Deus! Ângelos estava então aqui? Fu­giu?

Percebeu de repente o corpo estendido no chão. Teve um sobressalto e olhou para Simon. Olhou depois para mim como se fosse falar, mas continuou calado e se aproximou —, aparentemente com relutância do lugar onde Ângelos estava.

Houve um som de passos pesados no portão da gruta e Stéfanos apareceu. Parou ali um instante, como Simon tinha feito, descendo depois a rampa deliberadamente para onde nós estávamos. Simon levantou-se com alguma dificuldade. O velho parou ao meu lado. Voltou os olhos também para Ângelos. Depois, olhou para Simon. Não falou, mas fez um lento e solene sinal de assentimento. Em seguida, sorriu. Creio que ia falar comigo então, mas Niko se levantara e chegou correndo. Uma torrente de grego se derramou com o endereço de Simon, que respondeu e afinal pareceu contar-lhe toda a história. Ouvi várias vezes o nome de "Michael" e também "o inglês", a "moça francesa" e a palavra speleos, que interpretei como "caverna", Mas me senti de repente por demais cansada para prestar qualquer atenção. Recostei-me numa faixa de sombra e esperei, enquanto os três falavam. Por fim, com uma palavra de Simon, ele e Stéfanos me deixaram e foram para a caverna.

—            Não se está sentindo bem, bela miss? perguntou ansiosamente Niko. Aquele...aquele búlgaro lhe fez alguma coisa?

Chamar alguém de "búlgaro" é o pior insulto em que um grego pode pensar e o repertório de insultos deles é bem extenso.

—            Não, Niko disse eu. Estou apenas um pouco aba­lada. Sorri para ele e acrescentei: Seria bom que você estivesse aqui.

—            E eu bem que gostaria disso! — O rápido olhar que Niko lançou às pedras não era talvez tão entusiástico quan­to a sua voz, mas era evidente que um simples assassinato não seria suficiente para fazê-lo desanimar. Voltou-se para mim e com o seu olhar de deslumbrada admiração. — Eu o teria enfrentado e não pelo que ele fez ao primo de meu avô Panos, mas por sua causa, bela miss! Embora Kyrie Simon se tenha saído muito bem, não acha?

—            Para um inglês... — murmurei.

—            De fato, foi uma grande coisa para um inglês — dis­se ele, surpreendendo meu olhar e rindo sem o menor constrangimento. — Mas eu o ajudei também com Dimítrios Dragoumis, eu mesmo, Niko.

—            Ele me disse. Que foi que você fez com o homem? Os olhos se lhe arregalaram e ele pareceu chocado.

Isso não lhe posso dizer. É uma senhora e eu... — Fez brilhar de novo o seu sorriso arrasador. — Bem, de­pois eu posso falar, isto é, o que aconteceu depois. Levei-o para a estrada, mas não até Delfos, pois eu queria voltar e ajudar Kyrie Simon, compreende? Encontrei um caminhão e expliquei tudo aos homens, que o levaram para Delfos a fim de entregá-lo à polícia. A polícia vem aí. E eu vou esperá-la para guiá-la até aqui. E assim.

E assim... — disse eu cansadamente. Parecia um comentário adequado aos acontecimentos do dia.

Além da minha faixa de sombra, o sol parecia fortíssimo. Niko estava com uma camisa de azul-elétrico vivo, com um padrão de losangos escarlates. O efeito era deslumbrador. Ele parecia brilhar.

Ouvi-o dizer amavelmente:

—            Está cansada e sem vontade de falar, não é? Os ou­tros dois podem estar precisando de mim, sim? Já vou.

Pareceu decorrer muito tempo antes que os três saíssem da caverna para a luz do sol.

Niko vinha à frente, puxando o burro. Parecia mais cala­do e um pouco pálido. Não se aproximou de novo de mim, mas montou no lombo do burro, incitou-o com os pés a um movimento relutante e, dando-me adeus, afastou-se da gruta.

Stéfanos e Simon ficaram conversando alguns minutos mais. Stéfanos parecia sombrio. Vi-o assentir a alguma coisa que Simon dissera e fazer depois um gesto, apontando para o céu onde os três pontos negros ainda circulavam. Depois, encaminhou-se lentamente para um trecho de sombra perto do corpo. Sentou-se ali e acomodou-se, como para esperar, inclinando-se para a frente, com a cabeça apoiada nas mãos entrelaçadas sobre o cajado. Fechou os olhos. Pareceu de repente muito velho, com aquela cabeça homérica e os olhos fechados, tão velho quanto o próprio tempo.

Era um quadro que eu nunca mais iria esquecer, aquela ilustração final da tragédia. Ali estava o arco luminoso do céu azul, o corpo que as Fúrias tinham caçado e imolado no mesmo lugar onde derramara sangue e o velho pastor, barbado como Zeus, cochilando à sombra. No alto do penhasco, as cabras pretas olhavam.

De algum ponto, não muito distante, veio o pequeno compasso de música. Era o som da frauta de Pã que me levara ao poço e ao Apolo da fonte sagrada. Ouvindo o som, as cabras levantaram a cabeça e se afastaram, destacando-se contra o céu, como um friso ático em lenta procissão.

A sombra de Simon se projetou à minha frente.

—            Niko foi ao encontro da polícia para guiá-la até aqui. Queria escoltar você até Delfos, mas eu disse que você ainda não estava em condições de fazer a vjagem. Nós dois ainda temos alguma coisa que fazer, não temos?

Mal ouvi a pergunta e disse apreensivamente:

—            A polícia?

—            Não se preocupe. Não haverá problemas para mim. Além de tudo o que ele fez, e não foi pouco, ainda tentou contra sua vida. Sorriu. E agora, vamos? O velho Sté­fanos parece estar dormindo e não ficará inquieto sem saber aonde fomos.

—            Não falou a ele e a Niko do santuário?

—            Não. A questão do que fazer com as armas e o ouro já não é mais conosco, felizmente, mas ainda temos de tratar da outra questão. Sabe qual é a resposta?

Olhei para ele com um ar de indagação e talvez de dú­vida. Ele fez então um sinal afirmativo e eu disse lentamente:

—            Acho que sim.

Ele sorriu e me estendeu a mão.

Entramos na caverna em silêncio. A lanterna de Simon estava com as pilhas quase esgotadas, mas ainda mostrava o caminho. Mas não tinha força bastante para iluminar os recantos sombrios. Parou pouco antes da entrada e apanhou alguma coisa que estava perto da pilha de destroços onde tinham estado as caixas. Era uma das barras de ferro de Ângelos. Segui a luz misericordiosamente fraca até à laje que barrava o caminho.

A luz brilhou nas velhas marcas de ferramentas na pedra.

—            A laje deve deslizar com muita facilidade, — disse Simon. — Bastarão uns dez centímetros para bloquear a en­trada. Vamos deixar a barra aqui por enquanto. Até voltar­mos.

Passamos pela abertura pela última vez e seguimos pelo túnel que levava à brilhante cidadela.

Apolo tinha ficado ali sem movimento nem mudança ha­via dois mil anos. Parecia um milagre que naquela última hora ainda estivesse intacto e inalterado. O sol tinha descam­bado mais para oeste e a luz caía mais obliquamente por entre as folhas. Era só.

Ajoelhamo-nos aos pés da estátua e bebemos a água da fonte. Colhi a água nas mãos em concha e joguei a água no rosto e no pescoço. Coloquei depois os pulsos sob a água fresca. Senti arderem as contusões e a pele esfolada dos pul­sos, o que assinalou a volta de meu corpo dos confins de entorpecimento em que andara sumido. Sentei-me, sacudindo das mãos as gotas de água.

Notei então que a marca desaparecera de meu dedo anu­lar. Não se via mais o círculo branco deixado pela aliança de Philip.

Fiquei olhando para as minhas mãos. Simon inclinou-se para a frente e colocou alguma coisa que brilhava como ouro no plinto de pedra aos pés da estátua. Olhou para mim e sorriu um tanto desconcertado.

—            Ouro para Apolo. Pedi-lhe que trouxesse Ângelos de volta e fui atendido, ainda que ele tivesse feito isso com a clássica duplicidade deifica, com a qual é preciso sempre con­tar. Entretanto, foi um voto e aí está. Lembra-se?

—            Lembro-me.

Se não me engano, você também fez um voto neste mesmo santuário.

De fato. Terá de dividir comigo sua moeda, Simon. Nada tenho para dar.

Dividiremos então disse ele naquela voz calma e igual. Os olhos cinzentos se fixaram nos meus por um mo­mento. Depois, olhei para outro canto quase ao acaso e apa­nhei o pequeno vaso de água de Nigel.

—            Vamos deixar isto aqui também, sim?

Vi alguma coisa brilhar na relva, logo abaixo da borda do plinto de pedra. Afastei as longas hastes e apanhei outra moeda de ouro.

—            Veja, Simon!

Que é isso ? Um talento? Não me diga que Apolo fornece as suas próprias oferendas...

Não, é uma libra esterlina. Isso quer dizer que Nigel encontrou o ouro além da estátua. Deve ter deixado isto aqui.

—            Deve, não é?

Ora, quem poderia ser...murmurei e me calei de súbito ao ver-lhe o rosto.

Sim, disse Simon. Sem dúvida, Michael fez tam­bém um veto.

Tomou-me a moeda da mão e depositou-a ao lado do vaso de água aos pés do deus.

 

                                                                                            Mary Stewart  

 

                      

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