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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


INDOMADA / P.C. Cast e Kristin Cast
INDOMADA / P.C. Cast e Kristin Cast

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O crá! crá! crá! de uma gralha idiota não me deixou dormir a noite inteira. (Bem, para ser mais precisa, o dia inteiro – é que, sabe, sou uma vampira novata e existe toda aquela história de trocar o dia pela noite.) Enfim, não preguei o olho na noite/dia passado. Mas, no momento, essa droga de noite em claro é a coisa mais fácil de encarar, porque a vida é um inferno quando a gente está de mal com os amigos. Eu sei bem. Eu sou Zoey Redbird, atualmente a incontestável Rainha da República dos Amigos “P” da Vida.
Persephone, a enorme égua cor de canela que considerava minha enquanto morasse na Morada da Noite, virou a cabeça e esfregou o focinho no meu rosto. Beijei seu focinho macio e voltei a esfregar seu pescoço. Escovar Persephone era algo que sempre me ajudava a pensar e a me sentir melhor. E eu, com certeza, precisava das duas coisas.
– Tudo bem, consegui evitar o Grande Confronto por dois dias, mas não dá mais para continuar assim – eu disse à égua. – Sim, eu sei que eles estão no refeitório agora, jantando juntos, superamiguinhos e me deixando totalmente de fora.
Persephone resfolegou e voltou a mastigar feno.
– É, eu sei que eles também estão sendo uns babacas. Claro que eu realmente menti para eles, mas na verdade foi mais uma omissão. Tudo bem que os deixei de fora de alguns assuntos. Mas foi basicamente pensando no bem deles mesmos – suspirei. Bom, foi para o bem deles que eu não havia dito que Stevie Rae tinha virado morta-viva. Minha história com Loren Blake, Poeta Vamp Laureado e professor da Morada da Noite, bem, isso foi mais pensando em mim mesma. Mas mesmo assim. Persephone levantou a orelha para me ouvir. – Eles estão me julgando demais.
Persephone resfolegou de novo. Suspirei novamente. Droga. Eu não aguentava mais ficar evitando o pessoal.

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Depois de dar mais uns tapinhas no lombo da doce égua, fui saindo lentamente da baia em direção à sala de equipamentos e guardei as escovas que havia usado nela por uma hora. Respirei fundo o cheiro de couro e de cavalo para que aquela mistura relaxante me acalmasse os nervos. Ao ver meu reflexo no vidro da janela da sala de equipamentos, automaticamente passei os dedos pelos meus cabelos negros, tentando deixá-los menos desgrenhados. Eu havia sido Marcada como vampira novata e me mudado para a Morada da Noite fazia pouco mais de dois meses, mas já dava para perceber que meus cabelos estavam mais grossos e mais compridos. E ganhar cabelos maravilhosos foi apenas uma das muitas mudanças que me aconteceram. Algumas dessas mudanças foram invisíveis – como o fato de eu ter afinidade com todos os cinco elementos. Já outras eram bem visíveis – como as peculiares tatuagens que me emolduravam o rosto com curvas intrincadas e exóticas, sendo que, diferentemente de qualquer vampiro novato ou adulto, o desenho em tom de safira se espalhava pelo pescoço e ombros abaixo, alcançando a espinha e, mais recentemente, a cintura, uma pequena novidade que só eu, minha gata Nala e nossa Deusa Nyx sabíamos. Como se eu tivesse mais alguém para mostrar.
– Bem, até dois dias atrás você tinha não apenas um, mas três namorados – eu disse, olhando para minha imagem no vidro com olhos pesados e um meio-sorriso cético. – Mas você deu um jeito nisso, não deu? Agora você não tem namorado nenhum, só que ninguém vai voltar a confiar em você de novo por pelo menos, sei lá, alguns zilhões de anos – tirando Aphrodite, que surtou geral e caiu fora dois dias atrás, achando que de repente tinha virado humana outra vez, e Stevie Rae, que foi atrás da surtada Aphrodite por se sentir culpada pela transformação de novata a humana quando tracei um círculo, o que a transformou de morta-viva sinistra em vampira esquisita de tatuagem vermelha. Mas ao menos ela voltara a ser a Stevie Rae de antes. – Seja como for – eu disse em voz alta –, você conseguiu ferrar com todo mundo que entrou em sua vida. Bom trabalho!
Meus lábios começaram a tremer e senti as lágrimas se formando nos olhos. Não. Ficar de olhos vermelhos não ia ajudar em nada. Tipo, na boa, se ajudasse em alguma coisa, meus amigos e eu já teríamos feito as pazes. O negócio era encará-los de frente e tentar dar um jeito na situação.
A noite de fim de dezembro estava fria e um pouquinho nebulosa. Ao longo da calçada, entre a área da estrebaria e da arena esportiva e o edifício principal da escola, os lampiões a gás cintilavam com pequenos halos de luz amarela, dando um toque de beleza antiga ao lugar. Na verdade, o campus inteiro da Morada da Noite era belíssimo e sempre me pareceu pertencer mais a uma lenda tipo Rei Arthur do que ao século XXI. Eu adoro isto aqui , procurei lembrar. É meu lar. É o meu lugar. Vou fazer as pazes com meus amigos e então tudo vai dar certo.
Eu estava mordendo o lábio, preocupada em descobrir exatamente como ia fazer as pazes com meus amigos, quando meu estresse mental foi interrompido por um barulho esquisito de asas batendo que tomou conta do ambiente ao meu redor. Algo naquele som me provocou um frio na espinha. Olhei para cima. Não havia nada acima de mim, a não ser o breu, o céu e os galhos secos dos enormes carvalhos que margeavam a calçada. Fiquei arrepiada e me senti a um passo da morte, e a noite antes suave e nebulosa ficou soturna e malévola.
Peraí! Soturna e malévola? Ora, que bobeira! O que ouvi provavelmente não era nada mais sinistro do que o vento soprando por entre as árvores. Nossa, eu estava ficando pirada.
Balançando a cabeça em autocensura, continuei caminhando, mas depois de dois passos a coisa aconteceu de novo. Ouvi o barulho esquisito de asas batendo acima de mim e senti na pele um sopro de ar forte e uns cinco graus mais frio. Automaticamente levantei a mão, imaginando morcegos, aranhas e todo tipo de coisas nojentas.
Meus dedos encontraram um vazio, mas um vazio glacial, e uma dor gelada me cortou a mão. Completamente surtada, dei um berro e apertei minha mão junto ao peito. Por um momento, fiquei sem saber o que fazer, e meu corpo se paralisou de medo. O bater de asas ficou mais alto, e o frio mais intenso, até que finalmente resolvi me mexer. Abaixei a cabeça e fiz a única coisa que podia. Corri até a porta mais próxima.
Depois de correr para dentro, bati a grossa porta de madeira e, arfando, fui espiar pela janelinha em forma de arco que havia no meio da porta. A noite se mexia e boiava debaixo dos meus olhos como se uma tinta preta tivesse sido jogada sobre uma página preta. Mas eu continuava sentindo aquele medo terrível e glacial. O que estava acontecendo? Quase sem perceber o que estava fazendo, sussurrei: – Fogo, eu o invoco. Preciso de seu calor.
O elemento respondeu imediatamente, aquecendo o ar ao meu redor como se eu estivesse perto de uma relaxante lareira. Ainda espiando pela janelinha, apertei as palmas das mãos contra a grossa madeira da porta. – Lá para fora – murmurei. – Mande seu calor lá para fora também – o elemento projetou seu calor através da porta e alcançou a noite do outro lado. Ouvi um chiado, que pareceu o som de calor emanando de gelo seco. A névoa se agitou, grossa e densa, me deixando tonta e um pouquinho enjoada, e o estranho breu começou a evaporar. Então, o calor dominou totalmente o frio e, tão de repente quanto começara, a noite ficou normal e tranquila de novo.
O que havia acabado de acontecer?
Minha mão dolorida desviou minha atenção da janela. Olhei para baixo. Havia manchas vermelhas nas costas da mão, como se algo com garras ou unhas tivesse me arranhado a pele. Esfreguei as marcas de aparência feroz, e minha pele doeu como se tivesse sido queimada a ferro.
Então me bateu uma sensação dura e esmagadora, e foi aí que meu sexto sentido me mostrou que a Deusa havia me avisado que eu não devia ficar lá sozinha. O frio que envenenara a noite – aquele não-sei-o-que fantasmagórico que me perseguiu e machucou minha mão – se transformou em mau presságio e, pela primeira vez em muito tempo, fiquei com medo de verdade, completamente apavorada. Não com medo por meus amigos. Nem por minha avó, nem pelo meu ex-
-namorado humano, nem mesmo pela minha mãe desnaturada. Estava com medo por mim mesma. Eu não estava simplesmente querendo a companhia de meus amigos; eu precisava deles.
Ainda esfregando a mão, forcei minhas pernas a se mexerem e não me restou a menor sombra de dúvida de que era melhor enfrentar a mágoa e a decepção dos meus amigos do que aquele troço escuro que me esperava em algum ponto escondido da noite.

Vacilei por um segundo e fiquei em frente à porta aberta da agitada “sala de jantar” (também conhecida como refeitório da escola), observando os outros garotos conversando à vontade e felizes uns com os outros. Quase me deixei abater pelo súbito desejo de ser apenas uma novata como outra qualquer e não ter nenhuma habilidade extraordinária nem as responsabilidades que vêm com essas habilidades. Por um segundo, quis tanto ser normal que tive dificuldade de respirar.
Então, senti em minha pele um vento suave que parecia aquecido por uma chama invisível. Senti o cheiro do oceano, apesar de não haver nem sombra de oceano perto de Tulsa, Oklahoma. Ouvi o canto dos pássaros e senti cheiro de grama recém-cortada. E meu espírito vibrou em silenciosa alegria ao reconhecer os poderosos dons concedidos pela Deusa, dons de afinidade com todos os cinco elementos: ar, fogo, água, terra e espírito.
Eu não era normal. Era diferente de todos os novatos e de todos os vampiros, e não era certo de minha parte desejar ser diferente. E parte da minha não normalidade me dizia que eu tinha que ir até lá e tentar fazer as pazes com meus amigos. Empinei as costas, olhei ao redor do recinto com olhos livres de autopiedade e encontrei sem dificuldade meu grupo especial sentado no lugar de sempre.
Respirei fundo e atravessei o refeitório rapidamente, acenando ou sorrindo brevemente para o pessoal que me dizia oi. Percebi que todos continuavam me cumprimentando com a mesma mistura de respeito e reverência de sempre, o que significava que meus amigos não andaram falando mal de mim para todo mundo. Também significava que Neferet ainda não havia declarado guerra contra mim. Ainda.
Peguei uma saladinha e um refrigerante de cola. Então, agarrando minha bandeja com tanta força que estava ficando com os dedos brancos, fui direto para nossa mesa e me sentei ao lado de Damien como antigamente.
Ninguém olhou para mim, mas a conversa espontânea morreu no mesmo instante, coisa que eu odiava demais. Tipo, o que pode ser mais horrível do que se aproximar de um grupo de supostos amigos e a conversa morrer de um jeito que não deixa dúvida de que eles estavam falando de você? Eca.
– Oi – eu disse, ao invés de sair correndo ou cair no choro como me deu vontade. Ninguém disse nada.
– Então, quais as novas? – perguntei a Damien, ciente de que meu amigo gay era naturalmente o ponto mais frágil da corrente do “dar-
-um-gelo-na-Zoey”.
Infelizmente, foram as gêmeas quem me responderam, e não Damien, que era gay e, portanto, mais sensível e educado.
– Merda nenhuma, não é gêmea? – Shaunee disse.
– Isso aí, gêmea, merda nenhuma. Porque a gente não pode ficar sabendo de merda nenhuma – Erin acrescentou. – Gêmea, sabia que somos totalmente não confiáveis?
– Só fiquei sabendo recentemente, gêmea. E você? – Shaunee perguntou.
– Também só fiquei sabendo recentemente – Erin completou.
Tudo bem, as gêmeas não são gêmeas de verdade. Shaunee Cole é uma americana de origem jamaicana e pele cor de caramelo que havia sido criada na Costa Leste. Erin Bates é uma linda loura nascida em Tulsa. As duas se conheceram depois de Marcadas, quando se mudaram no mesmo dia para a Morada da Noite. Elas se identificaram no mesmo instante – como se genética e geografia jamais tivessem existido. Elas literalmente terminam as frases uma da outra. E, naquele momento, estavam me encarando com seus olhares gêmeos de desconfiança.
Deus, aquelas duas me cansavam.
E também me irritavam. Não, eu não compartilhei meus segredos com elas. Sim, eu menti para elas. Mas tive de fazer isso. Bem, no geral, tive de fazer. E aquela hipocrisia gêmea estava me dando nos nervos.
– Obrigada pelo adorável comentário. E agora vou tentar perguntar a alguém que não precisa responder em uma versão estéreo da insuportável Blair de Gossip Girl – virei a cabeça e olhei diretamente para Damien, apesar de ouvir as gêmeas bufando, prontas para dizer algo de que eu esperava elas se arrependessem um dia. – Bem, o que eu realmente queria saber quando perguntei quais eram as novas é se vocês repararam em algo assustador, fantasmagórico, algum troço esquisito e esvoaçante ultimamente. Repararam?
Damien é um cara alto e muito bonitinho, dono de excelente estrutura óssea e de olhos castanhos que costumavam ser calorosos e expressivos, mas que naquele momento estavam desconfiados e bem frios.
– Um fantasma esvoaçante? – ele perguntou. – Desculpe, mas não faço ideia do que você está falando.
Senti um aperto no coração ao ouvir o tom estranho que ele usou para falar comigo, mas procurei me concentrar no fato de ele pelo menos ter me respondido.
– Quando eu estava saindo da estrebaria, algo meio que me atacou. Não consegui ver nada, mas era um troço frio que me deixou a maior mancha na mão – levantei a mão para mostrar, e a mancha não estava mais lá.
Que ótimo.
Shaunee e Erin bufaram ao mesmo tempo. Damien só fez uma cara muito, muito triste. Eu estava abrindo a boca para explicar que havia uma mancha minutos antes quando Jack veio correndo.
– Ah, oi! Desculpe pelo atraso, mas quando estava vestindo a camisa descobri uma mancha paquidérmica na frente. Dá para acreditar nisso? – Jack disse, enquanto corria com sua bandeja de comida para se sentar ao lado de Damien.
– Uma mancha? Não é naquela camisa Armani linda, azul, de mangas compridas, que te dei de Natal, é? – Damien perguntou, abrindo espaço para o namorado se sentar.
– Aimeudeus , não! Jamais derramaria nada nela. Adoro aquela camisa e... – suas palavras morreram quando ele olhou para mim. Ele engoliu em seco. – Ah, ahn. Oi, Zoey.
– Oi, Jack – respondi, sorrindo para ele. Jack e Damien estão juntos. Hello . Eles são gays . Meus amigos e eu, como qualquer pessoa que não seja bitolada nem moralista, não temos nenhum problema com isso.
– Eu não esperava ver você – Jack balbuciou. – Achei que você ainda estivesse... ahn... bem... – ele não conseguiu formular a frase, parecia desconfortável e estava ficando vermelho.
– Você achou que eu ainda estava me escondendo no meu quarto? – completei para ele.
Ele fez que sim.
– Não – respondi com firmeza. – Cansei disso.
– Nossa que meda – Erin começou, mas, antes que Shaunee pudesse continuar com o deboche de sempre, uma risada primitivamente sensual veio da porta atrás de nós. Então nos viramos para olhar e ficamos de queixo caído.
Aphrodite entrou no recinto, rindo e piscando os olhos para Darius, um dos mais jovens e mais gostosos guerreiros dos Filhos de Erebus que protegiam a Morada da Noite, e jogou os cabelos para trás em um gesto gracioso. Aquela garota sempre tinha sido do tipo multitarefa, mas fiquei passada de ver a cara dela, normal, controlada e totalmente tranquila. Apenas dois dias atrás ela estava quase morta, e depois ficou totalmente surtada ao ver que desaparecera de sua testa o desenho de lua crescente cor de safira que todos os novatos tinham e que significava que haviam sido Marcados para começar a Transformação através da qual virariam vampiros ou morreriam.
O que significava que ela, de alguma maneira, havia se transformado em humana novamente.

2
Tudo bem, pensei que ela tivesse voltado a ser humana, mas mesmo de onde eu estava dava para ver que a Marca de Aphrodite tinha voltado. Seus olhos azuis frios percorreram o refeitório, dispensando um olhar de desprezo ao pessoal que estava olhando para ela, antes de se voltar para Darius e pousar a mão no peito do enorme guerreiro.
– Foi muita gentileza sua me acompanhar até a sala de jantar. Você tem razão. Eu não devia ter passado dois dias fora. Com toda essa loucura que está acontecendo por aqui, é melhor ficar no campus , onde estamos protegidos. E, como você disse que vai ficar de guarda na porta do nosso dormitório, este é com certeza o lugar mais seguro e atraente para se ficar – ela praticamente ronronou para ele. Nossa, ela era muito baixo nível. Se eu não estivesse tão surpresa em vê-la, teria feito os ruídos de vômito apropriados. Bem altos e óbvios.
– E eu tenho que voltar ao meu posto lá fora. Boa noite, minha lady – Darius disse. Ele fez uma mesura muito rápida para ela, o que o fez parecer um daqueles cavaleiros românticos de antigamente, mas sem o cavalo e a armadura reluzente. – É um prazer servi-la – ele sorriu para Aphrodite mais uma vez antes de dar meia-volta com agilidade e sair do refeitório.
– E aposto que eu teria o maior prazer em servi-lo – Aphrodite disse com sua voz mais cachorra, assim que ele já estava longe e não podia mais ouvir. Então, ela se virou para os demais no recinto, que a olhavam perplexos. Levantou uma das sobrancelhas perfeitamente delineadas e lançou a todos o olhar antipático que era sua marca registrada.
– O que foi? Parece até que vocês nunca me viram mais linda antes. Que inferno, só fiquei dois dias fora. Vocês podiam ter melhor memória de curto prazo, hein? Lembram de mim? Sou a lindíssima devassa que vocês todos amam odiar – ao ver que ninguém disse nada, ela revirou os olhos. – Ah, não importa – ela se voltou para o bufê e começou a encher o prato enquanto o barulho normal do refeitório explodia novamente, com o pessoal fazendo sons pouco educados e voltando a comer sem muito interesse.
Para quem não sabia de nada, tenho certeza de que Aphrodite parecia a mesma esnobe de sempre. Mas eu vi como estava nervosa e tensa na verdade. Que inferno, eu entendia exatamente como ela se sentia. Eu havia acabado de passar pelo mesmo corredor polonês. Na verdade, eu estava no meio dele, e com ela.
– Achei que ela tivesse virado humana de novo – Damien disse baixinho para todos nós. – Mas a Marca dela voltou.
– Os caminhos de Nyx são misteriosos – eu disse, tentando soar sábia como uma Grande Sacerdotisa em treinamento.
– Tô achando que os caminhos de Nyx são outra coisa que começa com M, gêmea – Erin disse. – Adivinha o quê?
– Maior zona? – Shaunee respondeu.
– Exatamente – Erin confirmou.
– São duas palavras – Damien retrucou.
– Ah, não banque o professor – Shaunee lhe disse. – Além do mais, o que importa é que Aphrodite é uma megera, e nós bem que estávamos torcendo para que Nyx desse um bom chute nela depois que aquela Marca desaparecesse.
– Mais do que torcendo, gêmea – Erin concordou.
Todo mundo ficou olhando para Aphrodite. Eu tentei forçar a salada garganta abaixo. Taí, esta era a situação: Aphrodite costumava ser a novata mais popular, poderosa e arrogante da Morada da Noite. Mas, depois que se indispôs com Neferet, a Grande Sacerdotisa, fora totalmente banida e reduzida a nada mais do que a novata mais arrogante da Morada da Noite.
É claro que ela e eu acabamos, meio que acidentalmente, nos tornando amigas ou, no mínimo, aliadas – o que era esquisito (e era a minha cara). Não que quiséssemos que a massa soubesse disso. Mesmo assim, fiquei preocupada quando ela desapareceu, apesar de Stevie Rae ter ido atrás dela. Tipo, fazia dois dias que eu não tinha notícias delas.
Naturalmente, meus outros amigos – Damien, Jack e as gêmeas – a detestavam. Por isso, quando Aphrodite caminhou direto para nossa mesa e se sentou ao meu lado, dizer que eles ficaram chocados e nada satisfeitos seria minimizar de modo quase surreal o que realmente estava acontecendo – igual àquele cavaleiro do filme Indiana Jones que disse “ele escolhe mal” quando o vilão bebeu da taça errada e seu corpo se desintegrou.
– É falta de educação ficar encarando as pessoas, mesmo que seja alguém de beleza estonteante, como é o caso de moi – Aphrodite disse, antes de começar a comer a salada.
– Que diabo você está fazendo, Aphrodite? – Erin perguntou.
Aphrodite engoliu em seco e piscou os olhos com falsa inocência para Erin: – Comendo, retardada – ela disse, docilmente.
– Isto aqui é zona livre de cachorras – Shaunee disse, finalmente recuperando a capacidade de falar.
– É, está escrito na placa – Erin disse, apontando para a placa inexistente atrás do banco em que estavam sentadas.
– Odeio ser repetitiva, mas neste caso vou abrir uma exceção. Então, vou dizer outra vez: die dorkamese[1] gêmeas.
– É isso – Erin disse, mal conseguindo manter a voz baixa. – A gêmea e eu vamos arrancar essa droga de Marca da sua cara.
– É, quem sabe desta vez a gente apaga pra valer – Shaunee completou.
– Parem com isso – eu disse. Quando as gêmeas olharam para mim “p” da vida, senti um nó no estômago. Será que elas me odiavam tanto quanto parecia? Só de pensar nisso me doía o coração, mas empinei o queixo e olhei para elas. Se eu completasse a Transformação para vampira, um dia seria sua Grande Sacerdotisa, e isso significava que era melhor que elas me ouvissem. – Já passamos por isso antes. Aphrodite faz parte das Filhas das Trevas agora. Ela também faz parte do nosso círculo, pois tem afinidade com o elemento terra – hesitei, imaginando se ela ainda tinha a afinidade ou se a perdera ao passar de novata a humana, e depois, pelo jeito, à novata outra vez, mas a coisa era confusa demais, então não perdi tempo. – Vocês sabem que concordaram em aceitá-la e em não ficar com xingamentos nem agressões verbais.
As gêmeas não disseram nada, mas a voz de Damien, soando inesperadamente inexpressiva e fria, veio do outro lado.
– Nós concordamos com isso, mas não aceitamos ficar amigos dela.
– Eu não disse que queria ser sua amiga – Aphrodite respondeu.
– Digo o mesmo, cachorra! – as gêmeas disseram juntas.
– Não tô nem aí – Aphrodite disse, preparando-se para pegar sua bandeja e sair.
Quando abri a boca para dizer a Aphrodite que se sentasse e para mandar as gêmeas calarem a boca, um ruído bizarro veio ecoando pelo corredor e chegou às portas abertas do refeitório.
– Que diabo...? – comecei a dizer, sem formular a pergunta inteira, e um bando de, no mínimo, uma dúzia de gatos entrou correndo no refeitório, chiando e cuspindo como doidos.
Bem, na Morada da Noite os gatos estão por toda parte. Literalmente. Eles ficam seguindo o novato de sua escolha, dormem com a gente e, no caso de Nala, minha gata, reclamam um bocado também. Uma das primeiras coisas legais que aprendemos na aula de Sociologia Vamp é que faz muito tempo que os gatos são chegados aos vampiros. Ou seja, estávamos todos bem acostumados a ter gatos por toda parte. Mas eu jamais os vira se comportando de maneira tão insana.
O enorme gato cinza das gêmeas, chamado Beelzebub, pulou bem no meio delas. O paquidérmico gato, cujos pelos estavam tão arrepiados que haviam dobrado de tamanho, ficou olhando para a porta aberta da sala de jantar com os olhos cor de âmbar apertados de raiva.
– Beelzebub, baby , o que foi? – Erin tentou acalmá-lo.
Nala pulou no meu colo, pôs as patinhas brancas no meu ombro e deu um grunhido psicótico e assustador, também olhando para a porta e para o barulho caótico que ainda vinha do corredor.
– Ei – Jack disse. – Eu conheço esse som.
Então me ocorreu na mesma hora: – São latidos de cachorro
– eu disse.
Então entrou no refeitório algo mais parecido com um enorme urso amarelo do que com um cachorro. Atrás do urso-cão vinha um garoto, seguido por vários professores com expressões peculiarmente exauridas, inclusive Dragon Lankford, nosso instrutor de esgrima, e Lenobia, nossa instrutora de equitação, bem como pelos guerreiros Filhos de Erebus.
– Te peguei! – o garoto gritou quando alcançou o cachorro e agarrou sua coleira, dando uma derrapada e parando, não muito longe de
nós (reparei então que a coleira era de couro cor-de-rosa cercada
de pregos de prata), para então encurtar a rédea com habilidade. No momento em que se viu encoleirado, o cachorro parou de latir, soltou o traseiro redondo no chão e ficou olhando, arfante, para o garoto. – Isso, ótimo. Agora você vai se comportar – eu o ouvi murmurar para o cão, que parecia sorrir abertamente.
Apesar de cessados os latidos, os gatos no refeitório não paravam mesmo de surtar. A chiadeira ao nosso redor estava tão forte que lembrava o barulho de ar escapando de uma câmara de ar furada.
– Viu, James! Era isso que eu estava tentando lhe explicar – Dragon Lankford disse enquanto olhava de cenho franzido para o cachorro. – Este animal não vai dar certo na Morada da Noite.
– É Stark, não James – o garoto disse. – E, como eu estava tentando lhe explicar, a cadela tem que ficar comigo. É assim que é. Se me quiser, ela tem que vir junto.
Achei que aquele garoto tinha qualquer coisa de incomum. Não que ele estivesse sendo abertamente mal-educado nem desrespeitoso com Dragon, mas também não estava falando com o respeito, e às vezes puro medo, com que a grande maioria dos novatos recém-Marcados falava com os vampiros. Reparei na frente de sua camiseta vintage com estampa do Pink Floyd, sem nenhum emblema indicando a turma, de modo que eu não fazia ideia de qual ano ele estava cursando e há quanto tempo era Marcado.
– Stark – Lenobia estava dizendo, obviamente tentando argumentar com o garoto –, simplesmente não é possível integrar um cão a este campus . Você está vendo como os gatos estão angustiados.
– Eles se acostumam. Também se acostumaram na Morada da Noite de Chicago. Ela não é de ficar correndo atrás deles, mas aquele gato cinza realmente a provocou; ele não parava de chiar e de arranhá-la.
– Hum-hum – Damien sussurrou.
Nem precisei olhar, deu para sentir as gêmeas bufando como baiacus.
– Minha Deusa, que barulheira é esta? – Neferet entrou no salão, linda, poderosa e totalmente no controle da situação.
Vi que os olhos do garoto se arregalaram quando ele se deparou com sua beleza. Era tãããããão irritante ver que todo mundo ficava automaticamente de quatro só de olhar para nossa Grande Sacerdotisa, e minha adversária, Neferet.
– Neferet, perdoe-me a baderna – Dragon levou o pulso ao coração e fez uma respeitosa mesura para a Grande Sacerdotisa. – Este é meu mais recente novato. Ele acabou de chegar.
– Isso explica a presença do novato. Mas não a presença daquilo – Neferet apontou para o cão ofegante.
– Ela está comigo – o garoto disse. Quando Neferet lhe voltou seus olhos cor de musgo, o garoto reproduziu a saudação de Dragon. Quando terminou a mesura, fiquei totalmente perplexa ao vê-lo dirigir a Neferet um sorriso de canto de boca bem abusado. – Ela é o meu gato.
– É mesmo? – Neferet levantou uma das sobrancelhas castanho-
-avermelhadas. – O estranho é que ela mais parece um urso.
Ha! Então eu não estava mesmo exagerando na descrição.
– Bem, Sacerdotisa, ela é uma labradora, mas não é a primeira vez que a comparam com um urso. Suas patas são tão grandes quanto as patas de um urso. Dá só uma olhada.
Não acreditei quando o garoto deu as costas completamente para Neferet e disse à cadela: – Bate aqui, Duca – a cadela levantou a pata gigantesca obedientemente e bateu na mão de Stark. – Boa menina! – ele disse, afagando as orelhas moles do animal.
Tá, eu tive que reconhecer. O truque era bonitinho.
Ele se voltou novamente para Neferet.
– Mas, cadela ou ursa, ela e eu estamos juntos desde que fui Marcado quatro anos atrás, o que faz dela meu gato.
– Um labrador? – Neferet andou ao redor da cadela de modo teatral, observando-a. – Ela é grande demais.
– Bem, é, Duca sempre foi grandona, Sacerdotisa.
– Duca? É este o nome dela?
O garoto assentiu e sorriu e, apesar de ele ser um sexto-formando, fiquei novamente surpresa de ver a facilidade com que falava com um vamp adulto, especialmente em se tratando de uma poderosa Grande Sacerdotisa.
– É apelido de Duquesa.
Neferet olhou para a cadela e para o garoto e apertou os olhos:
– Qual é o seu nome, garoto?
– Stark – ele disse.
Será que só eu vi Neferet trincando o maxilar?
– James Stark? – Neferet perguntou.
– Deixei de usar meu primeiro nome faz uns meses. É só Stark – ele disse.
Ela o ignorou e voltou-se para Dragon: – Ele é o novato da Morada da Noite de Chicago cuja transferência estávamos aguardando?
– Sim, Sacerdotisa – Dragon confirmou.
Quando Neferet olhou novamente para Stark, vi seus lábios se abrirem em um sorriso calculado.
– Já ouvi falar muito de você, Stark. Nós dois teremos uma longa conversa muito em breve – ainda observando o novato, Neferet se dirigiu a
Dragon: – Providencie para que Stark tenha acesso vinte e quatro horas a todo e qualquer equipamento de arco e flecha que ele queira usar.
Notei uma leve contração no corpo de Stark. Sem dúvida Neferet também viu, pois seu sorriso se ampliou e ela disse: – É claro que já sabíamos de seu talento antes de você chegar, Stark. Você não deve parar de praticar só porque trocou de escola.
Pela primeira vez, Stark pareceu desconfortável. Na verdade, pareceu mais do que isso. Bastou ouvir falar em arco e flecha e sua expressão perdeu o ar gracioso e ganhou algo de sarcástico, malvado até.
– Quando eles me transferiram, eu lhes disse que havia parado de competir – Stark falou com uma voz controlada, e suas palavras mal chegaram à nossa mesa. – Mudar de escola não vai mudar a situação.
– Competir? Está falando daquelas competições banais de arco e flecha entre Moradas da Noite? – a risada de Neferet me deixou arrepiada. – Pouco me importa se você vai competir ou não. Lembre-se, eu sou porta-voz de Nyx aqui e estou dizendo que é importante você não desperdiçar o talento que a Deusa lhe deu. Nunca se sabe quando Nyx pode chamá-lo. E não. Neste caso não se trata de nenhum concurso idiota.
Senti o estômago revirar. Eu sabia que Neferet estava se referindo à sua guerra contra os humanos. Mas Stark, que não fazia a menor ideia disso, pareceu aliviado ao saber que não teria de competir de novo, e sua expressão voltou à mistura de indiferença e ousadia.
– Tudo bem. Não me importo de praticar, Sacerdotisa – ele disse.
– Neferet, o que deseja que façamos com o, ahn, cão? – Dragon perguntou.
Neferet parou por um breve instante; então se agachou graciosamente em frente à labradora amarela. As orelhas grandes do animal se empinaram para a frente. Ela levantou o focinho molhado e farejou com óbvia curiosidade quando Neferet lhe estendeu a mão. Do nosso lado, Beelzebub chiou ameaçadoramente. Nala rosnou no fundo da garganta. Neferet levantou o rosto e olhou para mim.
Tentei manter meu rosto inexpressivo, mas não sei se realmente consegui. Fazia dois dias que não via Neferet, desde que ela me seguira para fora do auditório após anunciar a guerra entre humanos e vampiros que queria começar em resposta à morte de Loren. Naturalmente, nós batemos boca. Ela era amante de Loren, e eu também. Mas isso era irrelevante. Loren não me amava. Neferet havia armado tudo entre mim e Loren, e eu sabia disso. Ela também sabia que eu sabia que Nyx não aprovava o que ela vinha fazendo.
Basicamente, ela magoara demais meus sentimentos e eu odiava Neferet quase tanto quanto a temia. Torci para que nada disso transparecesse em meu rosto quando nossa Grande Sacerdotisa se aproximou de nossa mesa. Com um gesto discreto de mão, ela fez Stark e sua cadela seguirem-na. O gato das gêmeas chiou alto de novo e saiu correndo. Eu acariciei Nala freneticamente, na esperança de que não perdesse a cabeça totalmente quando a cadela se aproximou. Neferet parou em frente à nossa mesa. Seus olhos passaram de mim para Aphrodite e pararam em Damien.
– Que bom que você está aqui, Damien. Gostaria que você mostrasse a Stark seu quarto e o ajudasse a se ambientar no campus .
– Será um prazer, Neferet – Damien disse logo, e seus olhos brilharam quando Neferet lhe deu um daqueles seus sorrisos de agradecimento de cem watts.
– Dragon o ajudará com os detalhes – ela disse. Então, seus olhos verdes se voltaram para mim. Eu me preparei. – E Zoey, este é Stark. Stark, esta é Zoey Redbird, a líder de nossas Filhas das Trevas.
Eu e ele nos cumprimentamos com um movimento de cabeça.
– Zoey, como você é nossa Grande Sacerdotisa em treinamento, deixarei o problema da cadela de Stark para você resolver. Confio que uma das muitas habilidades que Nyx lhe concedeu vá ajudá-la a acomodar Duquesa em nossa escola – seus olhos frios estavam fixos nos meus, e diziam algo bem diferente do que aquela voz adocicada e gentil dava a entender. Eles diziam “lembre-se de que quem manda aqui sou eu, e você não passa de uma garota”.
Quebrei o contato visual com ela e dei um sorriso tenso para Stark.
– Será um prazer ajudar sua cadela a se ambientar.
– Excelente – Neferet arrulhou. – Ah, Zoey, Damien, Shaunee e Erin – ela sorriu para meus amigos e meus amigos sorriram para ela como completos idiotas. Ela ignorou Aphrodite e Jack por completo. – Convoquei uma reunião extraordinária do Conselho para esta noite, às dez e meia – e olhou para seu relógio de platina cravejado de diamantes. – São quase dez horas agora, então vocês precisam acabar de comer, pois também quero que seus Monitores estejam lá.
– Estaremos! – eles gorjearam como passarinhos ridículos.
– Ah, Neferet, isso me lembra algo – eu disse, levantando a voz para que todos na sala ouvissem. – Aphrodite irá conosco. Como ela ganhou de Nyx a afinidade com a terra, todos nós concordamos que ela também seja Monitora Sênior – prendi a respiração, esperando que meus amigos não me contradissessem.
Felizmente, a não ser pelo grunhido que Nala soltou para Duquesa, ninguém disse nada.
– Como Aphrodite pode ser Monitora? Ela não é mais membro das Filhas das Trevas – a voz de Neferet ficara fria.
Irradiei inocência.
– Eu me esqueci de lhe contar? Sinto muito, Neferet! Deve ter sido por causa de todas as coisas terríveis que aconteceram recentemente. Aphrodite voltou para as Filhas das Trevas. Ela jurou a mim e a Nyx que respeitará nosso novo código de conduta e eu a aceitei de volta. Quer dizer, achei que você gostaria disso, de vê-la voltando para nossa Deusa.
– É verdade – Aphrodite soou peculiarmente subjugada. – Eu aceitei as novas regras. Quero consertar meus erros do passado.
Eu sabia que Neferet pareceria má e cruel se rejeitasse Aphrodite publicamente depois de ela deixar claro que estava disposta a mudar. E, para Neferet, aparências eram tudo.
A Grande Sacerdotisa sorriu para todos no recinto, sem olhar para Aphrodite nem para mim.
– Quanta generosidade de nossa Zoey aceitar Aphrodite de volta no seio das Filhas das Trevas, especialmente se considerarmos que ela será responsabilizada pela conduta de Aphrodite. Mas nossa Zoey não foge das grandes responsabilidades – Neferet olhou para mim e o ódio em seu olhar fez o ar parar na minha garganta. – Cuidado para não acabar asfixiada com tanta pressão, Zoey querida – então, como se tivesse ligado um botão, seu rosto se encheu de doçura e luz outra vez e ela sorriu para o garoto recém-chegado. – Bem-vindo à Morada da Noite, Stark.

3
– Bem, ahn, você está com fome? – perguntei a Stark após Neferet e os demais vamps saírem do refeitório.
– É, acho que tô – ele respondeu.
– Se você for rápido, pode comer com a gente e depois Damien pode lhe mostrar seu quarto antes de chegarmos à reunião do Conselho – eu disse.
– Acho sua cadela bonitinha – Jack disse, dando a volta em Damien para ver Duquesa melhor. – Quer dizer, ela é grande, mas é bonitinha mesmo assim. Ela não morde, morde?
– Só se você a morder primeiro – Stark disse.
– Ah, eca – Jack falou. – Eu ia ficar com pelo de cachorro na boca, que nojo.
– Stark, este é o Jack. Ele é namorado de Damien – resolvi fazer as apresentações e cortar pela raiz qualquer possível “Ah, não! Ele é bicha!” ou algo do tipo.
– Oi – Jack disse com um sorriso muito doce.
– Oi – Stark respondeu. Não foi um “oi” dos mais calorosos, mas ele não parecia ser homofóbico.
– E estas são Erin e Shaunee – apontei para cada uma delas. – Também conhecidas como gêmeas, o que passa a fazer sentido cinco minutos depois de conhecê-las.
– Oi, tudo bem? – Shaunee o cumprimentou, olhando para ele de um jeito bem óbvio.
– Digo o mesmo – Erin disse, lançando um olhar idêntico para ele.
– Esta é Aphrodite – eu a apresentei.
O sorriso ligeiramente sarcástico estava de volta.
– Quer dizer que você é a Deusa do Amor. Ouvi falar muito de você.
Aphrodite estava olhando para Stark com uma intensidade estranha, sem parecer exatamente que estava dando mole, mas, quando ele falou, automaticamente deu uma espetacular jogada de cabelo e disse: – Oi. Eu gosto de ser reconhecida.
Ele abriu mais o sorriso e deu uma risadinha, ficando ainda mais sarcástico.
– Seria difícil não reconhecê-la, o nome é bem óbvio.
O olhar intenso de Aphrodite se dissipou instantaneamente e foi substituído por sua muito mais conhecida expressão pública de desdém e esnobismo. Mas, antes que ela pudesse começar a criticar o garoto, Damien falou: – Stark, vou lhe mostrar onde estão as bandejas e tudo o mais – ele se levantou e parou em frente a Duquesa, parecendo um tanto confuso.
– Não se preocupe – Stark disse. – Ela vai ficar de boa. Contanto que nenhum gato faça besteira.
Ele olhou para Nala, que era o único gato que sobrara por perto de Duquesa. Ela não recomeçara a grunhir, mas estava encarapitada no meu colo, olhando sem piscar para a cadela, e dava para sentir a tensão em seu corpo.
– Nala será boazinha – eu disse, torcendo para que ela fosse mesmo. Na verdade, eu tinha zero controle sobre minha gata. Que inferno, quem realmente tinha algum controle sobre algum gato?
– Então, tudo bem – ele assentiu rapidamente com a cabeça e disse para a cadela: – Duquesa, quieta! – realmente, quando ele seguiu Damien até a fila principal, Duquesa ficou quieta.
– Sabe, cães são bem mais barulhentos que gatos – Jack disse, observando Duquesa como se ela fosse um experimento científico.
– É que eles ficam arfando demais – Erin disse.
– E são mais flatulentos do que os gatos, gêmea – Shaunee afirmou.
– Minha mãe tem uns poodles gigantescos, e são criaturas bem gasosas.
– Bem, isso tudo não foi nada divertido – Aphrodite disse. – Tô fora.
– Não quer ficar mais um pouco para dar mole para o novato? – Shaunee perguntou com uma voz supersimpática.
– É, parece que ele gostou tanto de você – Erin emendou docemente.
– Vou deixá-lo para vocês duas. Nada mais certo, já que ele gosta tanto de cachorro. Zoey, passe no meu quarto depois que terminar aí com a horda de nerds . Quero falar com você antes da reunião do Conselho – então, jogou o cabelo, lançou um olhar de desprezo para as gêmeas e saiu do refeitório.
– Ela não é tão má pessoa quanto finge ser – eu disse às gêmeas. Todos me olharam atônitos e eu dei de ombros.
– Bem, nós dizemos “por favor, dá um tempo” para esse jeito escroto dela – Erin disse.
– Aphrodite nos faz entender por que certas mulheres afogam seus bebês – Shaunee falou.
– Tentem dar uma chance a Aphrodite – pedi. – Comigo ela já não tem mais a mesma atitude nojenta de antes. Vocês vão ver. Ela pode ser legal às vezes.
As gêmeas não disseram nada por uns instantes, depois se entreolharam, balançaram a cabeça e reviraram os olhos ao mesmo tempo. Eu soltei outro suspiro.
– Vamos falar de uma coisa mais importante – Erin sugeriu.
– Sim, o novo gostosinho na área – Shaunee concordou.
– Você viu que bundinha? – Erin perguntou.
– Eu bem que queria que ele afrouxasse mais aquele jeans para eu poder ver o cofrinho – Shaunee disse.
– Gêmea, calça frouxa é ruim demais. É tão anos 90, aquele clichê de gangue de rua. Os gostosos deviam simplesmente dizer não à calça frouxa – Erin afirmou.
– Mesmo assim, eu queria ver a bundinha dele, gêmea – Shaunee disse. Então ela olhou para mim e sorriu. Foi uma versão contida de seu sorriso simpático de antigamente, mas pelo menos não tinha mais o sarcasmo com que ela vinha me tratando nos últimos dias. – E aí, o que você acha? Ele chega a ser gostoso tipo Christian Bale, ou é um gostosinho mais modesto, tipo Tobey Maguire?
Minha vontade foi cair em lágrimas e berrar Yes! Vocês estão voltando a falar comigo! Mas agi com bom senso e passei a analisar o garoto com as gêmeas.
Tá, elas tinham razão. Stark era bonitinho. Tinha estatura mediana, diferente do meu ex-namorado humano, Heath, que era zagueiro em um time de futebol americano, e também não era um super-homem de beleza e altura fora do comum como meu ex-namorado, Erik, que acabara de se Transformar em vampiro. Mas também não era baixinho. Na verdade, ele tinha mais ou menos a altura de Damien. Era magro, mas percebi os músculos debaixo da camiseta velha, e seus braços eram bem suculentos. Ele tinha cabelos bagunçados de um jeito lindinho, típico de garotos, e naquele tom de areia, entre castanho e louro. Seu rosto também não era nada mal; ele tinha um queixo forte, nariz reto, grandes olhos castanhos e belos lábios. Então, dissecado em partes separadas, Stark tinha um visual legal. Ao observá-lo, percebi que o que o tornava gostoso eram sua intensidade e autoconfiança. Seus gestos tinham um jeito intencional, com um toque de sarcasmo. Era como se ele ao mesmo tempo fizesse parte do mundo e não estivesse nem aí para ele.
E, sim, era estranho eu perceber isso tudo tão rápido.
– Acho que ele é bem bonitinho – eu disse.
– Aimeudeus ! Acabo de me lembrar quem ele é! – Jack arfou.
– Não diga – Shaunee disse.
– Ele é James Stark! – Jack afirmou.
– Não brinca – Erin reclamou, revirando os olhos. – Jack, disso nós já sabemos.
– Não, não, não. Você não entendeu. Ele é o James Stark, o melhor arqueiro do mundo! Não se lembra de ler sobre ele na Internet? Ele botou pra quebrar nos Jogos de Verão do ano passado. Galera, ele competiu com vamps adultos, com Filhos de Erebus, e derrotou todos. Ele é um astro... – Jack terminou com um suspiro sonhador.
– Putz! Dá na minha cara e me chama de monga, gêmea. Jack tem razão! – Erin disse.
– Sabia que tanta gostosura não era do tipo comum – Shaunee falou.
– Uau – suspirei.
– Gêmea, vou tentar gostar da cadela dele – Erin disse.
– Claro que vamos, gêmea – Shaunee respondeu.
Naturalmente, nós quatro estávamos olhando para Stark como retardados quando ele e Damien voltaram.
– Que foi? – ele disse, com a boca cheia de sanduíche. Ele olhou para nós, e depois para Duquesa. – Ela fez alguma coisa enquanto eu estava longe? Ela é chegada a lamber dedos dos pés.
– Eca, mas que... – Erin começou, mas calou a boca quando Shaunee a chutou por debaixo da mesa.
– Não, Duquesa foi uma perfeita lady enquanto você não estava
– Shaunee disse, dando um sorriso muito, muito simpático para Stark.
– Ótimo – Stark respondeu. Ao ver que continuávamos a olhar fixo para ele, Stark se mexeu na cadeira, pouco à vontade. Como se tivessem ensaiado, Duquesa se mexeu também, encostando-se à perna dele e olhando para o dono carinhosamente. Vi que ele relaxou enquanto automaticamente baixou a mão para lhe esfregar as orelhas.
– Eu me lembro de ouvir falar que você derrotou todos aqueles vamps no arco e flecha! – Jack não se conteve e acabou dizendo; e então fechou a boca e corou.
Stark não levantou os olhos do prato. Apenas deu de ombros:
– É, sou bom no arco e flecha.
– Você é aquele novato? – Damien perguntou, só agora se dando conta. – Você não é bom no arco e flecha! Você é espetacular no arco e flecha!
Stark levantou os olhos.
– Que seja. É só algo em que sou bom desde que fui Marcado – seus olhos passaram de Damien para mim. – Falando em novatos famosos, estou vendo que os rumores sobre suas Marcas adicionais eram verdade.
– Sim – como eu odiava esses primeiros encontros. Ficava muito sem graça quando conhecia alguém e só me viam como a super-novata, e não a Zoey de verdade.
Foi quando entendi. O que eu estava sentindo devia ser bem parecido com o que Stark estava sentindo.
Perguntei a primeira coisa que me veio à cabeça para mudar de assunto.
– Você gosta de cavalos?
– Cavalos? – lá estava o sorriso sarcástico outra vez.
– É, bem, você tem cara de quem gosta de animais – eu disse com a maior cara de pau, apontando para sua cadela com o queixo.
– É, acho que eu gosto de cavalos. Gosto de quase todos os animais. Menos de gatos.
– Menos de gatos! – Jack quase gritou.
Stark deu de ombros novamente.
– Nunca gostei muito deles. São muito geniosos para o meu gosto.
As gêmeas deram um riso curto e debochado.
– Os gatos são criaturas independentes – Damien começou. Senti o tom professoral em sua voz e percebi que minha missão de mudar o rumo do papo havia sido bem-sucedida. – Todos sabemos, é claro, que eles foram reverenciados em muitas culturas antigas do mundo, mas você sabia que eles também...
– Ahn, pessoal, desculpe interromper – eu disse, levantando-me e tomando cuidado para não deixar Nala cair nas costas de Duquesa. – Mas preciso ver o que Aphrodite quer antes da reunião do Conselho. Vejo vocês lá, tá?
– Tá.
– É.
– Tá, né!
Já era uma espécie de despedida.
Dei um sorriso simpático para Stark.
– Prazer em conhecê-lo. Se precisar de alguma coisa para Duquesa, é só me dizer. Tem uma Southern Ag[2] não muito longe daqui. Eles têm mais produtos para gatos, mas aposto que também têm para cães.
– Eu aviso se precisar – ele respondeu.
Então, enquanto Damien voltava à pregação sobre as maravilhas dos gatos, Stark piscou para mim discretamente e balançou a cabeça, dando a entender que gostara da minha nada sutil mudança de assunto. Pisquei para ele, e estava a meio caminho da porta que dava para fora quando me dei conta de que estava sorrindo feito boba ao invés de pensar no fato de que, da última vez que estive lá fora, algo parecia querer me atacar.
Eu estava em frente à enorme porta de carvalho como se fosse uma aluna de educação especial quando um grupo de guerreiros Filhos de Erebus desceram a escadaria que dava para a sala de jantar dos funcionários no segundo andar.
– Sacerdotisa – vários deles disseram ao me verem, e o grupo inteiro parou para me fazer respeitosas mesuras com rápidos acenos e punhos cerrados sobre os peitos musculosos. Correspondi nervosamente aos cumprimentos.
– Sacerdotisa, permita-me abrir a porta para você – disse um dos guerreiros mais velhos.
– Ah, ahn, obrigada – eu disse, e então tive uma súbita inspiração e acrescentei: – Eu estava pensando se um de vocês não poderia me acompanhar até o dormitório e quem sabe me dar uma lista dos nomes dos guerreiros que serão designados para guardar o dormitório das meninas. Achei que os caras iam se sentir mais à vontade se nós soubéssemos seus nomes.
– É muita consideração da sua parte, minha lady – disse o guerreiro mais velho, que ainda estava segurando a porta para mim. – Será um prazer lhe dar uma lista com os nomes.
Sorri e lhe agradeci. Ao longo do caminho para o dormitório das meninas, ele conversou de modo cortês sobre os guerreiros designados a fazer a guarda para nós enquanto eu balançava a cabeça, assentindo e fazendo os ruídos apropriados e procurando dar rápidas olhadas no tranquilo céu noturno.
Nada de ar gelado nem de barulho de asas batendo, mas eu continuava com a perturbadora sensação de estar sendo observada.

4
Eu mal havia tocado na maçaneta da minha porta quando ela se abriu e Aphrodite agarrou meu pulso.
– Dá para sentar seu rabinho aqui? Merda, você é mais lenta do que uma gorda de muletas, Zoey – ela me empurrou para dentro do quarto e bateu a porta firmemente.
– Eu não sou lenta, e você tem um monte de coisas para explicar – eu disse. – Como entrou aqui? Cadê Stevie Rae? Quando sua Marca voltou? O quê...? – minha saraivada de perguntas foi interrompida por uma batida alta e insistente na janela do quarto.
– Primeiro de tudo, você é uma debiloide. Isto aqui é a Morada da Noite, não é nenhuma escola pública de Tulsa. Ninguém tranca a porta aqui, então vim direto para o seu quarto. Segundo, Stevie Rae está logo ali – Aphrodite correu até a janela. Fiquei só olhando, enquanto ela abria as grossas cortinas e levantava as pesadas janelas de vidro. Aphrodite olhou para mim, irritada. – Hello ! Uma ajudazinha cairia bem.
Totalmente confusa, fui até a janela. Foi preciso nós duas juntas para abri-la. Fiquei olhando para o andar superior do antigo edifício de pedras que parecia mais um castelo do que um dormitório. A noite de dezembro ainda estava fria e sombria, e agora estava ameaçando chover. Avistei o muro sul em meio à escuridão e às árvores. Estremeci, mas novatos raramente sentiam frio, de modo que não era o clima que me fazia tremer. Foi por ver o muro sul, um lugar de poder e caos. Ao meu lado, Aphrodite suspirou e se debruçou para espiar pela janela.
– Pare de enrolar e entre aqui. Vão pegar você e, pior ainda, esta umidade vai acabar com o meu cabelo.
Ao ver a cabeça de Stevie Rae, quase fiz xixi nas calças.
– Oi, Z.! – ela disse, toda animada. – Se liga só na minha nova e supermaravilhosa agilidade ao escalar.
– Aimeudeus ! Entra logo aqui – Aphrodite pôs os braços para fora da janela, agarrou uma das mãos de Stevie Rae e a puxou. Como se tivesse virado um balão de gás, Stevie Rae pulou para dentro do quarto.
Aphrodite fechou rapidamente a janela e as cortinas. Fechei a boca, caída de perplexidade, mas continuei a olhar enquanto Stevie Rae se levantava, esfregando sua calça jeans Roper e nela enfiando de novo a barra da camisa de manga comprida.
– Stevie Rae – eu disse, enfim. – Você rastejou parede acima?
– Foi! – ela sorriu para mim, balançando a cabeça cheia de cachos louros curtos de um jeito que a fez parecer uma animadora de torcida. – Legal, não é? Parece que eu sou parte das pedras do edifício, e fico totalmente sem peso, e, bem, aqui estou – ela estendeu as mãos.
– Que nem o Drácula – eu disse, e senti que havia pensado alto quando Stevie Rae fechou a cara e perguntou: – O que é que nem o Drácula?
Soltei o corpo pesadamente ao pé da cama.
– Tipo o livro Drácula , aquele, antigo, do Bram Stoker – expliquei. – Jonathan Harker diz que vê Drácula rastejando pela lateral do castelo.
– Ah, é, eu sei fazer isso. Quando você disse “que nem Drácula”, achei que você estava dizendo que eu parecia o Drácula, com aquele jeito sinistro e pálido, com cabelo ruim e aquelas unhas enormes e nojentas. Não foi isso que você quis dizer, não é?
– Não, na verdade seu visual está ótimo – eu estava sendo totalmente sincera. Stevie Rae estava ótima, especialmente em comparação com seu visual (e o seu jeito e o seu cheiro) do mês passado. Agora ela parecia Stevie Rae outra vez, antes de o corpo da minha melhor amiga rejeitar a Transformação e ela morrer quase exatamente um mês atrás, para depois, sabe-se lá como, voltar do mundo dos mortos. Mas voltara diferente; algo havia se quebrado nela. Sua humanidade se perdera quase por completo, e não foi só com ela que aconteceu isso. Havia um monte de garotos mortos-vivos nojentos à espreita nos antigos túneis debaixo da estação de trem abandonada no centro de Tulsa. Stevie Rae quase se tornara um deles: ficou má, detestável e perigosa. A afinidade com o elemento terra que lhe fora concedida pela Deusa foi a única coisa que a ajudou a manter um pouco de sua personalidade, mas não o suficiente. Ela estava sumindo. Mas, com a ajuda de Aphrodite (que também ganhou a afinidade com o elemento terra), tracei um círculo e pedi a Nyx para curar Stevie Rae.
E a Deusa a curou, mas, durante o processo de cura, pareceu que Aphrodite tinha que morrer para salvar a condição humana de Stevie Rae. Felizmente não foi assim. Ao invés de morrer, a Marca de Aphrodite desaparecera, enquanto a de Stevie Rae ganhou cor e se expandiu miraculosamente, mostrando que ela havia completado sua Transformação em vampira. Para completar a confusão, as tatuagens de Stevie Rae não tinham a tradicional cor de safira, como as Marcas de todos os vamps adultos. A de Stevie Rae era vermelho-vivo, cor de sangue fresco.
– Ahn, hello . Terra chamando Zoey. Alguém aí? – a voz espertinha de Aphrodite interrompeu minha tagarelice mental. – É melhor ver o que há com sua melhor amiga. Ela está ficando zoada.
Pisquei os olhos. Apesar de estar olhando o tempo todo para Stevie Rae, eu não a estava vendo. Ela estava parada no meio do quarto – no que costumava ser nosso quarto até um mês antes, quando sua morte mudou tudo completamente para sempre –, olhando ao redor com olhos marejados.
– Ah, meu bem, desculpe – corri e dei um abraço em Stevie Rae. – Deve ser duro para você voltar aqui – senti que ela estava estranha e tensa em meus braços e me afastei um pouco para olhar para ela.
A expressão no seu rosto fez meu sangue congelar. A chorosa perplexidade dera lugar à raiva. Por um instante, imaginei por que sua raiva me pareceu familiar, pois Stevie Rae raramente se aborrecia. E então percebi o que estava acontecendo. Stevie Rae estava como antes de eu traçar o círculo e ela retomar sua humanidade. Dei um passo para trás.
– Stevie Rae? O que é?
– Cadê minhas coisas? – sua voz, bem como o rosto, eram pura cólera.
– Meu bem – eu disse gentilmente –, os vamps pegam as coisas do novato quando ele, ahn, morre.
Stevie Rae me fitou apertando os olhos.
– Eu não morri.
Aphrodite veio para o meu lado: – Ei, não desconte na gente. Os vamps acham que você morreu, lembra?
– Mas não se preocupe – eu disse rapidamente. – Eu os fiz me devolverem algumas das suas coisas. E sei onde está o resto. Posso pegar tudo se você quiser.
Assim, a animosidade se desfez e voltei a ver o rosto conhecido de minha melhor amiga.
– Até minha luminária em forma de bota de caubói?
– Até ela – eu disse, sorrindo. Que inferno, eu também ficaria surtada se alguém levasse as minhas coisas.
Aphrodite disse: – Pensei que a morte mudasse a falta de noção de estilo da pessoa. Mas não. A porra do seu mau gosto é imortal.
– Aphrodite – Stevie Rae disse com firmeza –, você realmente devia ser mais legalzinha.
– Pois eu não tô nem aí para você e sua visão Mary Poppins caipira da vida – Aphrodite respondeu.
– Mary Poppins era inglesa. Não podia ser caipira – Stevie Rae disse, presunçosamente.
Stevie Rae estava tão normal, tão como antigamente, que dei um gritinho de felicidade e a abracei de novo.
– Tô feliz pra caraca de te ver de novo! Agora você está bem mesmo, não está?
– Tô meio diferente, mas tô bem – Stevie Rae disse, me abraçando também.
Senti uma onda de alívio impressionante que me fez anular a parte do meio diferente . Acho que estava tão feliz em vê-la de volta ao normal que tive de guardar aquela informação dentro de mim por enquanto, e assim não precisaria pensar em algum problema que Stevie Rae ainda pudesse ter. Além do mais, lembrei-me de outra coisa.
– Peraí – eu disse de repente. – Como vocês entraram no campus e os guerreiros não surtaram?
– Zoey, você realmente precisa começar a prestar atenção no que acontece ao seu redor – Aphrodite disse. – Entrei pelo portão da frente. O alarme está desligado, o que acho que deve fazer sentido. Tipo, recebi a mesma ligação de notificação da escola avisando do fim das férias de inverno, e acho que todo mundo que estava fora do campus também recebeu. Neferet teve que suspender o encantamento, senão ia pirar com tantos alarmes por causa dos alunos voltando, para não falar dos zilhões de deliciosos Filhos de Erebus que estão invadindo isto aqui como presentes saborosos para nós.
– Você quer dizer que Neferet ia pirar mais ainda se os alarmes ficassem disparando?
– Sim, Neferet com certeza é doida varrida – Aphrodite disse, concordando completamente com Stevie Rae, para variar um pouco. – Enfim, o alarme não está acionado, nem mesmo para humanos.
– Ahn? Nem mesmo para humanos? Como sabe disso? – perguntei. Aphrodite suspirou e, com um movimento estranhamente lento, enxugou a testa com as costas da mão, e o contorno da lua crescente ficou borrado e parcialmente apagado.
Eu arfei, assustada.
– Ah, meu Deus, Aphrodite! Você é... – as palavras saíam da minha boca, mas eu me recusava a dizer.
– Humana – Aphrodite completou, com uma voz fria e indiferente.
– Como? Quer dizer, tem certeza?
– Tenho certeza. Muita certeza – ela respondeu.
– Ahn, Aphrodite, apesar de você ser humana, com certeza não é uma humana normal – Stevie Rae disse.
– Como assim? – perguntei.
Aphrodite deu de ombros.
– Tô me lixando.
Stevie Rae suspirou.
– Que bom que você virou humana, e não boneco de madeira, porque, com tanta mentira, seu nariz já teria crescido um quilômetro.
Aphrodite balançou a cabeça, revoltada.
– Lá vem você com sua filosofia de filmes da Sessão da Tarde. Não sei por que não morri e não fui pro inferno de uma vez. Pelo menos lá eu não seria bombardeada com filmes da Disney.
– Dá pra dizer o que está acontecendo? – pedi.
– É melhor falar logo para ela. Ela está quase falando palavrão – Aphrodite disse, venenosamente.
– Você é tão insuportável. Eu devia ter devorado você quando estava morta – Stevie Rae disse.
– Você devia ter devorado a caipira da sua mãe quando estava morta – Aphrodite disse, estufando o peito, pronta para partir para a briga. – Não admira que Zoey precise mudar de melhor amiga. Você é uma certinha “pé no saco”!
– Zoey não precisa trocar de melhor amiga! – Stevie Rae gritou, virando-se para dar um passo em direção a Aphrodite. Por um instante, pensei ter visto seus olhos azuis começarem a brilhar avermelhados, como na época em que ela era morta-viva e descontrolada.
Sentindo a cabeça a ponto de explodir, entrei no meio delas:
– Aphrodite, pare de implicar com Stevie Rae!
– Então é melhor você ficar de olho na sua amiga – Aphrodite caminhou até o espelho que havia sobre a pia, pegou um lenço de papel e começou a limpar o que restava do crescente borrado em sua testa. Percebi que, apesar do seu tom indiferente, suas mãos estavam trêmulas.
Virei para Stevie Rae, cujos olhos tinham voltado ao tom azul de sempre.
– Desculpe, Z. – ela disse, sorrindo como uma criança culpada. – Acho que fiquei nervosa depois de passar dois dias com Aphrodite.
Aphrodite resfolegou, e então olhei para ela.
– Não comece de novo – eu a repreendi.
– Tá, que seja – nossos olhos se encontraram no espelho, e eu quase tive certeza de ver medo no olhar de Aphrodite. Então, ela voltou a consertar o próprio rosto.
Sentindo-me totalmente confusa, tentei definir em que ponto a conversa tinha tomado aquele rumo estranho.
– Então, por que você está dizendo que Aphrodite não é normal? E não estou falando de seu jeito anormal de ser – acrescentei logo.
– Moleza – Stevie Rae disse. – Aphrodite ainda tem visões, e ter visões não é coisa de humanos normais – ela olhou para Aphrodite como quem diz “pronto”. – Vamos. Conte a Zoey.
Aphrodite virou-se do espelho e se sentou em um banquinho que eu deixava ali perto. Ela ignorou Stevie Rae e disse: – É, eu ainda tenho minhas visões. É de lascar. A única coisa que eu não gostava em ser novata é a única coisa que mantive agora que sou uma humana idiota de novo.
Olhei mais de perto para Aphrodite, enxergando através da fachada de gostosona que ela gostava de projetar. Ela estava pálida e com olheiras debaixo da maquiagem.
Sim, ela parecia mesmo uma garota que havia acabado de comer o pão que o diabo amassou, e isso podia ser devido a mais uma de suas visões. Não era à toa que ela estava com a macaca; fui muita lesada em não perceber antes.
– O que tinha na visão? – perguntei a ela.
Aphrodite me olhou nos olhos e cheguei até a pensar que fosse cair aquele muro de aço de arrogância que ela gostava de manter ao seu redor como proteção. Uma sombra terrível e espantosa atravessou seu belo rosto, e sua mão tremeu ao puxar uma mecha loura para atrás da orelha.
– Eu vi vampiros massacrando humanos e humanos matando vampiros em defesa própria. Vi um mundo repleto de violência, ódio e escuridão. E, na escuridão, vi criaturas tão horrorosas que nem sei dizer o que eram. Eu... Eu nem consegui continuar olhando para elas. Eu vi o fim de tudo – a voz de Aphrodite estava tão assombrada quanto seu rosto.
– Conte o resto – Stevie Rae pressionou, ao ver que Aphrodite parara de falar, e fiquei surpresa com a súbita gentileza em sua voz. – Conte a ela por que tudo isso acontecia.
Quando Aphrodite falou, senti suas palavras como se fossem cacos de vidro sendo enfiados em meu coração.
– Eu vi isso tudo acontecendo porque você estava morta, Zoey. Sua morte causava tudo isso.

5
– Ah, que inferno – eu disse, e então meus joelhos ameaçaram fraquejar e tive que me sentar na minha cama. Meus ouvidos começaram a apitar e foi difícil respirar.
– Você sabe que isso não quer dizer que vá acontecer com certeza – Stevie Rae disse, me dando um tapinha no ombro. – Tipo, Aphrodite viu sua avó morrer, e Heath e eu também. Bem, no meu caso seria morrer pela segunda vez. E nada disso aconteceu. Então, podemos evitar – ela olhou para Aphrodite. – Certo?
Aphrodite pareceu inquieta.
– Ah, que inferno – eu disse pela segunda vez. Então me forcei a falar, apesar de estar com a garganta quase travada de tanto medo. – Tem algo de diferente na visão que você teve sobre mim, não é?
– Talvez seja por eu ser humana – ela disse lentamente. – É a única visão que eu tive desde que voltei a ser humana, então é normal que pareça diferente das visões que tinha quando era novata.
– Mas? – insisti.
Ela deu de ombros e finalmente me olhou nos olhos.
– Mas pareceu diferente.
– Como assim?
– Bem, pareceu mais confuso, envolvia mais emoção, tudo mais misturado. E literalmente não entendi parte do que vi. Tipo, não reconheci as coisas horríveis que fervilhavam na escuridão.
– Fervilhavam? – estremeci. – Isso não soa nada bem.
– E não era bom mesmo. Eu vi sombras dentro de sombras na escuridão. Era como se fantasmas estivessem voltando à vida, mas o resultado era terrível demais para eu conseguir olhar.
– Você quer dizer nem humano nem vampiro?
– É isso aí.
Automaticamente, esfreguei minha mão, e um arrepio de medo me atravessou o corpo.
– Ah, inferno.
– Que foi? – Stevie Rae perguntou.
– Esta noite algo meio que me atacou quando eu estava voltando da estrebaria para o refeitório. Era uma espécie de sombra fria que vinha da escuridão.
– Coisa boa não pode ser – Stevie Rae retrucou.
– Você estava sozinha? – Aphrodite perguntou com uma voz dura como pedra.
– Sim – respondi.
– Taí, esse é o problema – Aphrodite disse.
– Por quê? Que mais você viu?
– Bem, você morria de várias maneiras, e eu nunca vi isso antes na vida.
– Ma-mais de uma maneira? – a coisa estava piorando cada vez mais.
– Talvez seja melhor esperar um pouco e ver se Aphrodite tem outra visão que esclareça melhor as coisas antes de conversarmos sobre o assunto – Stevie Rae disse, sentando-se ao meu lado na cama.
Não tirei os olhos dos de Aphrodite, e vi um reflexo do que já sabia.
– Quando ignoro as visões, elas se concretizam. Sempre – Aphrodite disse, de um jeito decisivo.
– Acho que parte de sua visão já deve estar se concretizando – retruquei. Meus lábios ficaram gelados e duros, e senti uma dor no estômago.
– Você não vai morrer! – Stevie Rae falou, com uma voz chorosa, parecendo arrasada... e lá estava de volta minha melhor amiga.
Dei o braço a Stevie Rae.
– Vamos, Aphrodite. Conte.
– Foi uma visão forte, cheia de imagens poderosas, mas totalmente confusas. Talvez por que eu estava sentindo e vendo tudo do seu ponto de vista – Aphrodite fez uma pausa, engolindo em seco. – Eu a vi morrer de duas maneiras. Uma, afogada. A água estava fria e escura. Ah, e fedorenta.
– Fedorenta? Como um daqueles lagos nojentos de Oklahoma? – perguntei, curiosa, apesar do horror de falar sobre minha própria morte.
Aphrodite balançou a cabeça.
– Não, tenho quase cem por cento de certeza que não era em Oklahoma. Tinha água demais para ser lá. É difícil explicar como posso ter tanta certeza, mas parecia grande e fundo demais para ser algo tipo um lago – Aphrodite parou para pensar. Então, arregalou os olhos. – Eu me lembro de outra coisa sobre a visão. Havia alguma coisa perto da água que parecia um palácio de verdade em uma ilha só dele, o que é sinal de bom gosto e fortuna herdada, provavelmente coisa de europeus, e não de algum novo-rico querendo exibir cultura sem ter berço.
– Você é insuportavelmente esnobe, Aphrodite – Stevie Rae disse.
– Obrigada – Aphrodite respondeu.
– Tá, então você me viu me afogando perto de um palácio de verdade em uma ilha de verdade, talvez na Europa. Você viu mais alguma coisa que pudesse ser de alguma ajuda? – perguntei.
– Bem, tirando o fato de você se sentir isolada... Tipo sozinha mesmo em ambas as visões, vi o rosto de um cara. Ele estava com você pouco antes de você morrer. Era alguém que eu nunca tinha visto antes. Pelo menos não antes de hoje.
– O quê? Quem?
– Eu vi o Stark.
– Ele me matou? – senti vontade de vomitar.
– Quem é Stark? – Stevie Rae perguntou, segurando minha mão.
– O garoto que acabou de ser transferido da Morada da Noite de Chicago – respondi. – Ele me matou? – repeti a pergunta a Aphrodite.
– Acho que não. Não olhei direito para ele, e estava escuro. Mas parecia que você se sentia segura ao lado dele, pelo menos até a última vez que você o viu – ela levantou a sobrancelha para mim. – Parece que você vai superar todo aquele problema de Erik/Heath/Loren.
– Sinto muito por tudo isso. Aphrodite me contou o que aconteceu – Stevie Rae disse.
Abri a boca para agradecer a Stevie Rae, e então me dei conta de que ela e Aphrodite não sabiam até que ponto ia o problema de Erik/Heath/Loren. Elas estiveram afastadas da escola e a mídia humana não disse nada sobre a morte de Loren Blake. Respirei fundo. Preferia ouvir mais sobre minhas mortes a tocar nesse assunto.
– Loren morreu – disse de uma vez.
– O quê?
– Como?
Olhei para Aphrodite.
– Faz dois dias. Foi igual à morte da professora Nolan. Deixaram Loren decapitado e crucificado em frente ao portão da escola com um bilhete citando algum versículo terrível da Bíblia, dizendo que ele era abominável, cravado em seu coração – falei muito rápido, querendo tirar logo o gosto daquelas palavras terríveis da minha boca.
– Ah, essa não! – Aphrodite ficou pálida como se estivesse nauseada e desabou sobre a antiga cama de Stevie Rae.
– Zoey, que horror – Stevie Rae disse. Senti o tom choroso da sua voz enquanto ela punha o braço no meu ombro. – Vocês eram que nem Romeu e Julieta.
– Não! – como as palavras escaparam mais rápido do que eu previa, voltei-me para Stevie Rae e sorri. – Não – repeti com uma voz mais razoável. – Ele nunca me amou. Loren me usou.
– Para te levar para a cama? Ah, Z., que droga – Stevie Rae disse.
– Infelizmente não foi isso, apesar de eu ter feito a besteira de ir para a cama com ele. Loren estava me usando por causa de Neferet. Foi ela quem mandou ele me procurar. Eles eram amantes – fiz uma careta ao me lembrar da cena de cortar o coração que presenciei entre Loren e Neferet. – Eles estavam rindo de mim. Dei meu coração e meu corpo a Loren, além de dar um pedaço da minha alma através da Carimbagem. E ele rindo de mim.
– Peraí. Volta um pouco. Você disse que Neferet mandou Loren procurá-la? – Aphrodite perguntou. – Por que ela faria isso se eles eram amantes?
– Neferet queria que eu ficasse sozinha – meu coração congelou quando as peças do quebra-cabeça começaram a se encaixar.
– Ahn? Isso não faz sentido. Por que Loren iria se fingir de seu namorado para fazer você ficar sozinha? – Stevie Rae perguntou.
– Simples – Aphrodite disse. – Zoey teve que ver Loren às escondidas, porque ele era professor e tal. Meu palpite é que ela não contou a nenhum membro da horda de nerds que estava sendo uma menina muito malcomportada com o professor Blake. Também acho que Neferet teve tudo a ver com Erik descobrir que Zoey estava dando para alguém que não era ele.
– Ahn, estou bem aqui. Não precisa falar de mim como se eu não estivesse no recinto.
Aphrodite resfolegou.
– Se meus palpites estiverem certos, eu diria que seu bom-senso não está presente no recinto.
– Seus palpites estão certos – admiti, relutante. – Neferet deu um jeito de Erik me flagrar com Loren.
– Droga! Não foi à toa que ele ficou tão revoltado – Aphrodite disse.
– O quê? Quando? – Stevie Rae perguntou.
Suspirei.
– Erik me pegou com Loren. Ele surtou. Então, descobri que Loren estava na verdade com Neferet e não dava a mínima para mim, apesar de termos nos Carimbado.
– Vocês se Carimbaram! Merda! – Aphrodite exclamou.
– Então, eu surtei – ignorei Aphrodite. A coisa em si já era péssima demais. Eu com certeza não queria entrar em detalhes. – Eu estava chorando quando Aphrodite, as gêmeas, Damien, Jack e...
– Ah, merda, e Erik. Foi quando encontramos você chorando debaixo da árvore – Aphrodite interrompeu.
Suspirei de novo, percebendo que não dava para ignorá-la.
– É. E Erik contou tudo sobre Loren e eu para todo mundo.
– De um jeito bem cruel – Aphrodite disse.
– Caraca – Stevie Rae exclamou. – Deve ter sido bem horrível mesmo para Aphrodite dizer que ele foi cruel.
– Pois é. Cruel o bastante para os amigos dela considerarem que ficar com Loren foi como um tapa na cara de todos eles. Depois que Erik acabou de soltar a bomba que Zoey era uma “cachorra”, foi a vez de explodir a bomba de que Zoey também andava escondendo de todos que Stevie Rae não havia morrido, e o resultado foi um bando de nerds furiosos que não confiam mais em Zoey.
– Ou seja, Zoey ficou sozinha, exatamente como Neferet planejara – completei, incomodada com a facilidade com que comecei a falar de mim mesma na terceira pessoa.
– Esta foi a segunda morte que vi para você – Aphrodite disse. – Você completamente sozinha. Sem sombra de garotos bonitos nem de sua horda de nerds . Seu isolamento é a imagem principal da segunda visão.
– E o que causa minha morte nessa visão?
– Bem, é aí que a coisa fica confusa de novo. Eu vejo Neferet a ameaçando, mas a visão fica toda bagunçada quando você é atacada. Sei que vai soar bizarro, mas na última hora vi uma coisa preta flutuando ao seu redor.
– Como um fantasma ou algo assim? – engoli em seco.
– Não. Não era nem isso. Se o cabelo de Neferet fosse preto, eu diria que era o cabelo dela cercando-a como se estivesse sendo soprado pelo vento, como se ela estivesse atrás de você. Você estava sozinha e muito, muito apavorada. Você tentava pedir ajuda, mas ninguém lhe respondia, e você ficou tão apavorada que parou de se mexer e de reagir. Ela, ou sei lá o quê era aquilo, dava a volta e, não sei como, cortava sua garganta com um troço escuro em forma de gancho. O negócio era muito afiado e cortava sua cabeça fora – Aphrodite estremeceu e acrescentou: – Caso você esteja se perguntando, saía muito sangue. Bastante.
– Que podreira, Aphrodite! Você precisava entrar em detalhes? – Stevie Rae perguntou, colocando seu braço em meu ombro.
– Não, tudo bem – eu disse, rapidamente. – Aphrodite tem que me dar todos os detalhes possíveis, como da vez em que ela teve as visões com a sua morte, a da minha avó e a de Heath. É o único jeito de conseguirmos mudar as coisas. Então, que mais você viu relacionado à minha segunda morte? – perguntei a Aphrodite.
– Só que você gritava socorro, mas nada acontecia. Todo mundo te ignorava – Aphrodite respondeu.
– Hoje fiquei com medo quando aquele treco saído de não sei que buraco da noite tentou me pegar. Fiquei com tanto medo que até parei, sem saber o que fazer – eu disse, estremecendo só de lembrar.
– Será que Neferet tem alguma relação com o que te aconteceu hoje? – Stevie Rae perguntou.
Dei de ombros.
– Sei lá. Eu não vi nada, só uma treva sinistra.
– Treva sinistra foi o que eu vi também. Por mais que deteste dizer isso, você tem que dar um jeito de fazer as pazes com a horda de nerds , porque ficar sem amigos não é bom – Aphrodite disse.
– Falar é fácil – respondi.
– Não sei por quê – Stevie Rae retrucou. – Basta dizer a verdade a eles sobre Neferet ter mandado Loren ficar com você, e explicar que não podia contar que eu tinha virado morta-viva porque Neferet seria capaz de... – as palavras de Stevie Rae foram sumindo à medida que ela se deu conta do que estava dizendo.
– Isso aí, perfeito. Conte a eles que Neferet é do mal e que é ela quem está por trás dessa história de garotos mortos-vivos, e na primeira vez que algum dos nerds chegar perto do campo sensorial de Neferet e ela captar seus pensamentos, a merda vai toda parar no ventilador. O que significa que a vaca maldita da Grande Sacerdotisa não só vai saber do que a gente sabe, como provavelmente vai pegar bem pesado com seus amiguinhos – Aphrodite fez uma pausa e bateu com a ponta do dedo no queixo. – Hum, pensando bem, até que a ideia não é de todo ruim...
– Ei! – Stevie Rae chamou. – Damien, as gêmeas e Jack já sabem de algo que vai colocá-los em maus lençóis com Neferet. Eles sabem de mim.
– Ah, que inferno – eu disse.
– Que merda – Aphrodite retrucou. – Eu me esqueci totalmente do detalhe que “Stevie Rae não morreu”. Por que será que Neferet ainda não leu os pensamentos de seus amiguinhos e surtou?
– Ela está muito ocupada declarando guerra – respondi. Ao ver Aphrodite e Stevie Rae me olhando com cara de quem não havia entendido nada, percebi que a notícia de Loren não era a única que elas não sabiam. – Quando Neferet ficou sabendo do assassinato de Loren, declarou guerra contra os humanos. Não abertamente, é claro. Ela quer uma guerra pesada, tipo terrorismo. Deus, ela é muito podre. Não sei como as pessoas não percebem.
– Bater geral nos humanos? Hum... Interessante. Acho que esse monte de Filhos de Erebus será nossa arma de destruição em massa – Aphrodite disse. – Hummmm, até que é um raio de esperança numa situação tão zoada.
– Como você pode ser tão indiferente a tudo isso? – Stevie Rae perguntou, furiosa, levantando-se da cama.
– Primeiro de tudo, não gosto muito dos humanos – Aphrodite levantou a mão para impedir Stevie Rae de começar o sermão. – Tá, eu sei. Eu sou humana agora. Quanto a isso, só posso dizer eca. Segundo, Zoey está viva e eu, bem, não estou muito preocupada com essa guerrinha assustadora.
– De que diabo você está falando, Aphrodite? – perguntei.
Ela revirou os olhos.
– Dá para acompanhar meu raciocínio? Hello ! Faz total sentido agora. Minha visão mostrava uma guerra entre humanos e vamps e uns troços monstruosos. Na verdade, você deve ter sido atacada por eles, que podem perfeitamente ser servos de Neferet sobre os quais não sabemos nada – ela fez uma pausa, parecendo temporariamente confusa, e então deu de ombros e prosseguiu. – Bem, não interessa. Tomara que a gente não precise descobrir o que são, porque a guerra só aconteceu depois de matarem você. Trágica e grotescamente, devo dizer. Enfim, acho que mantendo você viva, impedimos a guerra de acontecer.
Stevie Rae respirou longa e profundamente.
– Tem razão, Aphrodite – ela se voltou para mim. – Temos que mantê-la viva, Zoey. Não só porque gostamos mais de você do que de um pãozinho quente, mas porque você tem que salvar o mundo.
– Ah, que ótimo. Eu devo salvar o mundo? – não pude deixar de pensar “e eu costumava me estressar com Geometria”.
Ah, que inferno.

6
– É, você tem que salvar o mundo Z., mas vamos ficar do seu lado – Stevie Rae disse, voltando para o meu lado na cama.
– Não, toupeira. Eu vou estar do lado dela. Você tem que cair fora daqui até que a gente resolva como vamos falar de você e dos seus amigos fedorentos para o resto da horda de nerds – Aphrodite a repreendeu.
Stevie Rae fez cara feia para Aphrodite.
– Ahn? Amigos? – perguntei.
– Eles já sofreram muito, Aphrodite. E vou fazê-la entender que tomar banho e se enfeitar não são tão importantes quando a pessoa está morta. Ou morta-viva – Stevie Rae disse. – Além do mais, você sabe que eles agora estão melhores e que estão até usando as coisas que você comprou para eles.
– Peraí. De que amigos vocês estão... – e então minhas palavras morreram à medida que entendi de quem estavam falando. – Stevie Rae, não me diga que você continua se encontrando com aqueles garotos nojentos dos túneis.
– Você não entende, Zoey.
– Tradução: sim, Zoey, ainda estou me encontrando com os renegados nojentos dos túneis – Aphrodite disse, imitando o sotaque de Oklahoma de Stevie Rae.
– Pare com isso – eu disse a Aphrodite automaticamente antes de me voltar para Stevie Rae. – Não, eu não entendo. Então, me faça entender.
Stevie Rae respirou fundo.
– Bem, acho que isto aqui – ela apontou para suas tatuagens escarlates – significa que preciso ficar perto dos outros garotos com tatuagens vermelhas para que eu possa ajudá-los a passar pela Transformação também.
– Os outros garotos mortos-vivos também têm tatuagens vermelhas como as suas?
Ela deu de ombros e pareceu desconfortável.
– Bem, mais ou menos. Sou a única com a tatuagem completa, por isso acho que passei pela Transformação. Mas os contornos de lua crescente azul em suas testas agora ficaram vermelhos. Eles ainda são novatos. Eles só são, bem, um tipo diferente de novato.
Uau! Fiquei lá sentada, sem saber o que dizer, tentando assimilar as consequências do que Stevie Rae estava dizendo. Era completamente impressionante pensar que agora havia outro tipo de novatos, o que, é claro, significava que agora havia um novo tipo de vampiro adulto, e por um momento me animei. E se isso também quisesse dizer que todo mundo, que todos os Marcados, também passariam por algum tipo de Transformação, então os novatos não teriam que morrer! Pelo menos não permanentemente. Eles iam se transformar em novatos vermelhos. Seja lá o que isso fosse.
Então, me lembrei de como aqueles garotos tinham sido maus. Eles mataram adolescentes. De um jeito horrível. Tentaram matar Heath. Ele foi salvo graças a mim. Que inferno, eles teriam me matado se eu não tivesse usado minha afinidade com os cinco elementos para salvar nossa pele.
Também me lembrei do lampejo vermelho que vira antes nos olhos de Stevie Rae e a maldade que parecera tão deslocada em seu rosto, mas ao vê-la agindo normalmente não foi difícil me convencer de que eu estava imaginando coisas, ou pelo menos exagerando.
Mesmo assim, tirei essas ideias da cabeça e disse: – Mas, Stevie Rae, aqueles garotos eram do mal.
Aphrodite resfolegou.
– Eles ainda são do mal, e continuam morando em buracos nojentos. E, sim, eles continuam uns grossos.
– Eles não estão fora de controle como antes, mas também não se pode dizer que sejam normais – Stevie Rae justificou.
– Eles são uns rejeitados asquerosos, é isso o que eles são – Aphrodite disse. – Parecem uns órfãos ruivos.
– É, alguns deles têm problemas, e não são exatamente as pessoas mais populares do mundo, mas e daí?
– Só estou dizendo que seria mais fácil descobrir o que fazer com você se só tivéssemos de pensar em você.
– Nem sempre dá para escolher o jeito mais fácil. Não interessa o que teremos de fazer, ou o que eu vou ter de fazer. Mas não vou deixar Neferet usar aqueles garotos – Stevie Rae disse com firmeza.
E aquilo provocou um clique na minha mente. Estremeci de horror ao sentir que minha intuição estava certa.
– Ah, meu Deus! Foi por isso que Neferet fez o que fez para os garotos virarem mortos-vivos. Ela quer usá-los na guerra que declarou contra os humanos.
– Mas, Z., não morreu mais ninguém, e a professora Nolan e Loren foram assassinados faz poucos dias, de modo que Neferet acabou de declarar a guerra de guerrilha – Stevie Rae disse.
Eu não disse nada. Não consegui. O que estava pensando era terrível demais para falar em voz alta. Eu estava com medo de que as sílabas das palavras se transformassem em pequenos torpedos e, se eu juntasse as sílabas, elas se unissem para nos destruir a todos.
– O que é isso? – Aphrodite estava me observando com atenção exagerada.
– Nada – troquei as palavras em minha mente para que ficassem mais suportáveis. – É só que tudo isso me faz pensar que Neferet já vem torcendo há muito tempo para que surgisse uma razão para combater os humanos. Eu não ficaria nada surpresa se ela criasse garotos mortos-vivos para formar seu exército pessoal. Eu a vi com Elliott pouco depois de ele ter supostamente morrido. Foi revoltante ver o controle que ela exercia sobre ele – estremeci, lembrando-me com total clareza de
como Neferet dava ordens a Elliott, e de como ele se curvara diante dela, se coçando todo e pedindo sangue, e de quando ela fez um corte e ele chupou seu sangue daquele jeito nojento e sensual. Foi péssimo presenciar aquilo.
– É por isso que tenho que voltar para eles – Stevie Rae disse. – Eles precisam que eu tome conta deles e os ajude a se Transformar também. Quando Neferet descobrir a diferença nas Marcas deles, ainda vai tentar controlá-los e fazer com que se comportem de maneira, digamos, não muito legal. Acho que eles podem melhorar, como eu melhorei.
– E os que nunca foram legais? Você se lembra do tal de Elliott de quem a Zoey acabou de falar? Ele era um mané quando vivo e continua mané morto-vivo. E vai continuar mané se conseguir completar a Transformação em sei lá o quê vermelho – Aphrodite soltou um suspiro exagerado quando Stevie Rae lançou um olhar feio para ela. – O que estou querendo enfatizar é que eles não eram normais desde o início. Talvez não dê para aproveitar nada que venha deles.
– Aphrodite, não existe isso de ficar escolhendo quem deve e quem não deve ser salvo. Eu podia ser totalmente normal antes de morrer, mas agora não sou mais exatamente normal – Stevie Rae disse. – E eu era digna de ser salva.
– Nyx – eu disse, e ambas se viraram para mim com interrogações no rosto. – Nyx escolhe quem vale a pena salvar. Não sou eu, nem Stevie Rae, nem você, Aphrodite.
– Acho que me esqueci de Nyx – Aphrodite disse, virando o rosto para esconder a dor em seus olhos. – A Deusa não deve mesmo estar muito preocupada com uma garota humana.
– Não é verdade – eu disse. – A mão de Nyx ainda está em você, Aphrodite. A Deusa está agindo pra valer aqui. Se ela não se importasse com você, teria lhe tirado suas visões ao tirar sua Marca – ao falar, tive aquela sensação que me vinha quando tinha certeza absoluta do que estava dizendo. Aphrodite era um “pé no saco”, mas, por alguma razão ela era importante para nossa Deusa.
Aphrodite olhou nos meus olhos.
– Você acha ou você sabe?
– Eu sei – continuei olhando firme nos olhos dela.
– Jura? – ela perguntou.
– Juro.
– Bem, isso é tudo muito legal e tal, Aphrodite – Stevie Rae interrompeu –, mas você devia se lembrar que também não é exatamente normal.
– Mas sou atraente, tomo banho e não vivo enfiada em túneis asquerosos rosnando e mostrando os dentes para as visitas.
– O que leva a outro ponto. Por que vocês foram para os túneis? – perguntei a Aphrodite.
Ela revirou os olhos.
– Porque a senhorita K 95.5 FM[3] aqui resolveu me seguir.
– Bem, você surtou quando sua Marca desapareceu e, ao contrário de algumas pessoas, não sou uma megera com “M” maiúsculo. Além do mais, deve ter sido em parte culpa minha você perder sua Marca, por isso achei que devia ver se você estava bem – disse Stevie Rae.
– Você me mordeu, toupeira – Aphrodite reclamou. – É claro que foi culpa sua.
– Já pedi desculpas por isso.
– Ahn, pessoal, podemos nos concentrar no assunto?
– Tá bem. Eu fui para aqueles túneis idiotas porque a idiota da sua melhor amiga ia torrar se a luz do sol nos alcançasse.
– Mas como você conseguiu ficar sumida por dois dias?
Aphrodite pareceu desconfortável.
– Levei dois dias para decidir se voltava ou não. Além disso, tive que ajudar Stevie Rae a comprar umas coisas para levar para os malucos lá de baixo. Nem eu fui capaz de ir embora e deixá-los todos – ela fez uma pausa e estremeceu delicadamente para fazer efeito –, todos nojentos daquele jeito.
– Nós ainda não estamos muito acostumados a receber visitas – Stevie Rae disse.
– Você se refere às pessoas que gostaria de devorar, certo? – Aphrodite perguntou.
– Stevie Rae, você não pode deixar que eles fiquem comendo gente. Nem moradores de rua – acrescentei.
– Eu sei. Essa é outra razão para eu ter de voltar.
– Você vai ter de levar um serviço de limpeza e uma equipe de decoradores – Aphrodite murmurou. – Eu poderia lhe oferecer a ajuda dos empregados dos meus pais, mas sei lá se seus colegas não vão querer comê-los. Como diz minha mãe, é realmente difícil encontrar bons empregados ilegais.
– Não vou deixar os garotos continuarem a comer gente e vou ajeitar os túneis – Stevie Rae disse, na defensiva.
Lembrei-me de como eram sinistros aqueles túneis imundos.
– Stevie Rae, não dá para arrumar outro lugar para você e seus, ahn, novatos vermelhos ficarem?
– Não! – ela disse rapidamente, e então sorriu para mim em sinal de desculpas. – Sabe, acontece que ficar lá parece o melhor para mim e para eles. Precisamos ficar debaixo da terra – ela olhou para Aphrodite, que estava torcendo o nariz e fazendo cara de nojo.
– Sim, eu sei que não é normal, mas eu te disse que não sou normal!
– Ahn, Stevie Rae – a interrompi. – Concordo com você que não tem nada de errado em não ser normal. Tipo, olha para mim – passei a mão nas minhas muitas tatuagens, que não tinham nada de normal. – Sou a Rainha dos Anormais, mas talvez você possa explicar o que entende por não ser normal.
– Essa vai ser boa – Aphrodite disse.
– Tá, bem, eu ainda não sei tudo sobre mim mesma. Passei pela Transformação faz poucos dias, mas tenho algumas habilidades que acho que adultos vamps normais não têm.
– Tipo... – pressionei ao ver que ela ficou mordendo o lábio sem dizer mais nada.
– Tipo o lance de “me tornar parte das pedras” e escalar a parede do dormitório. Mas devo ser capaz de fazer isso por causa da minha afinidade com a terra.
Balancei a cabeça, pensando.
– Faz sentido. Eu descobri que posso invocar os elementos e mais ou menos desaparecer e virar névoa e vento e sei lá o quê.
Stevie Rae se iluminou.
– Ah, é! Eu me lembro de uma vez em que você ficou praticamente invisível.
– É. Então, pode ser que ter essa sua habilidade não seja tão anormal assim. Talvez todos os vamps com afinidades por um elemento possam fazer algo assim.
– Merda, ninguém merece! Vocês duas ficam com as habilidades maneiras. Eu fico com as visões “pé no saco” – Aphrodite reclamou.
– Talvez por você ser um “pé no saco” – Stevie Rae respondeu.
– Que mais? – perguntei antes que elas começassem a bater boca de novo.
– Eu queimo se pegar sol.
– Ainda? Tem certeza mesmo? – eu já sabia que o sol era um problema para ela desde quando era morta-viva.
– Ela tem certeza – Aphrodite disse. – Lembra-se, é por isso que tivemos que entrar naqueles túneis medonhos na primeira vez. O sol estava saindo. Nós estávamos no centro da cidade. Stevie Rae surtou.
– Eu sabia que algo ruim aconteceria se eu ficasse na superfície – Stevie Rae disse. – Então, não surtei de verdade, só estava muito preocupada.
– É, bem, você e eu teremos que discordar quanto ao seu humor oscilante. Pois eu digo que você surtou totalmente quando um raio de sol alcançou seu braço. Olha só, Z. – Aphrodite apontou para o braço direito de Stevie Rae.
Stevie Rae mostrou o braço a contragosto e levantou a manga da blusa. Tinha uma mancha vermelha na pele que ia do alto do antebraço até o cotovelo, como se ela tivesse se queimado feio ao sol.
– Não é tão ruim assim. Um pouco de protetor solar, óculos escuros e boné, e tudo bem – eu disse.
– Ahn, não – Aphrodite falou de novo. – Você tinha que ver antes de ela beber sangue. O braço dela estava bem feio e parecia um couro de animal. Beber o sangue fez o que era uma queimadura feia de terceiro grau virar uma desagradável queimadura de sol, mas sabe-se lá como ia ficar se seu corpo inteiro tivesse sido queimado.
– Stevie Rae, querida, quero deixar claro que não estou criticando, mas você não comeu nenhum mendigo nem nada assim depois que se queimou, não é?
Stevie Rae balançou a cabeça com tanta força que seus cachos sacudiram loucamente.
– Nada disso. No caminho para os túneis, dei uma pequena desviada e peguei um pouco de sangue emprestado no banco de sangue da Cruz Vermelha no centro da cidade.
– Pegar emprestado significa “devolver depois que terminar” – Aphrodite disse. – E, a não ser que você seja a primeira vampira a sofrer de bulimia, acho que não vai devolver o sangue – ela dirigiu um olhar presunçoso para Stevie Rae. – Ou seja, na verdade, você roubou. O que nos leva à nova habilidade de sua melhor amiga. Essa eu testemunhei. Mais de uma vez, na verdade. E, sim, foi perturbador. Ela é sinistra na hora de controlar as mentes dos humanos. Por favor, repare que eu disse sinistra.
– Acabou? – Stevie Rae perguntou.
– Provavelmente não, mas pode continuar – Aphrodite respondeu. Stevie Rae fez cara feia e continuou a me explicar: – Aphrodite tem razão. É como se eu pudesse entrar na mente das pessoas e fazer coisas.
– Coisas? – perguntei.
Stevie Rae deu de ombros.
– Coisas como fazer as pessoas se aproximarem de mim, ou se esquecerem que me viram. Não sei direito o que mais. Eu podia fazer essas coisas mais ou menos antes da Transformação, mas nada como o que consigo fazer agora, e não me sinto muito bem com esse negócio de controle mental. Parece, sei lá, uma coisa ruim.
Aphrodite resfolegou.
– Tá, que mais? Você ainda precisa ser convidada para entrar em uma casa? – e então respondi a mim mesma. – Peraí, isso deve ter mudado, porque eu não te convidei e você está aqui. Não que eu não fosse te convidar. Com certeza, teria convidado – acrescentei logo.
– Isso eu não sei. Fui direto para a Cruz Vermelha.
– Quer dizer que você entrou direto depois de manipular a mente daquela funcionária do laboratório, que acabou abrindo a porta para você – Aphrodite completou.
Stevie Rae corou.
– Eu não a machuquei nem nada, e ela vai se esquecer de tudo.
– Mas ela não a convidou para entrar? – perguntei.
– Não, mas o edifício da Cruz Vermelha é um lugar público, e a sensação foi diferente. Ah, e acho que você não precisaria me convidar para entrar aqui, Z. Eu morava aqui, esqueceu?
Sorri para ela.
– Eu me lembro.
– Se vocês duas derem as mãos e começarem a cantar Lean on Me vou ter que pedir licença para me retirar, senão vou começar a vomitar – Aphrodite resmungou.
– Dá para você usar um pouco do seu controle mental e fazer ela calar a boca de uma vez por todas? – perguntei.
– Não. Eu já tentei. Tem algo no cérebro dela que me impede de entrar.
– É minha inteligência superior – Aphrodite respondeu.
– É mais a sua superior capacidade de ser irritante – eu disse. – Vamos, Stevie Rae.
– Deixa eu ver, que mais... – ela pensou por uns instantes e disse: – Estou bem mais forte do que antes.
– Vamps adultos normais são fortes – respondi, e foi quando me lembrei de que ela teve de parar para beber sangue. – Então, você ainda precisa beber sangue.
– É, mas se não beber, não fico maluca como antes. Não gosto de ficar sem, mas, se ficar, não viro nenhuma monstra assassina.
– Mas ela não tem certeza disso – Aphrodite emendou.
– Odeio quando ela tem razão, mas ela tem – Stevie Rae disse. – Eu não sei muita coisa sobre o tipo de vampira em que me Transformei, e isso é bem assustador.
– Não se preocupe. Temos tempo de sobra para resolver isso.
Stevie Rae sorriu e deu de ombros. – Bem, vocês vão ter de descobrir sozinhas, porque eu tenho mesmo que ir embora – para minha grande surpresa, ela foi em direção à janela.
– Espera. Temos muitas coisas para conversar ainda. E, com o grande anúncio do fim das férias de inverno, haverá novatos e vamps por toda parte outra vez, sem falar dos Filhos de Erebus e em toda essa história de guerra contra os humanos. Assim fica difícil sair do campus , de modo que não sei quando vou poder te ver – eu estava começando a perder o fôlego na tentativa de enumerar os assuntos.
– Não se preocupe, Z. Ainda tenho aquele telefone que você me deu. Liga e eu venho aqui a qualquer momento.
– Quer dizer, a qualquer momento que não seja de dia – Aphrodite lembrou, me ajudando a abrir a janela para Stevie Rae.
– É, foi isso o que eu quis dizer – Stevie Rae olhou para Aphrodite. – Você sabe que pode vir comigo se não quiser ficar aqui fingindo.
Pisquei, surpresa, para minha melhor amiga. Ela não suportava Aphrodite, mas lá estava ela, oferecendo para Aphrodite um lugar para ficar e com um tom de voz amigável, exatamente como a Stevie Rae que eu conhecia e amava, e me senti péssima por ter me passado pela cabeça que ela pudesse agir como morta-viva inumana outra vez.
– Sério, pode vir comigo – Stevie Rae repetiu e, ao ver que Aphrodite não disse nada, ela acrescentou o que me pareceu muito estranho. – Eu sei o que é fingir. Nos túneis você não tem que fingir.
Achei que Aphrodite fosse olhar para ela com desprezo e dizer qualquer gracinha sobre os novatos vermelhos e a falta de higiene, mas o que ela disse na verdade me surpreendeu mais do que a oferta de Stevie Rae.
– Tenho que ficar aqui e fingir que ainda sou novata. Não vou deixar Zoey sozinha, e acho que o gayzinho e as gêmeas cafonas não estão muito amiguinhos dela agora. Mas obrigada, Stevie Rae.
Sorri para Aphrodite.
– Viu, você pode ser legal quando quer.
– Não estou sendo legal. Estou sendo prática. Um mundo cheio de guerra não tem graça nenhuma. Sabe, essa coisa toda de ficar suando e correndo e lutando e se matando. Não é uma situação nada propícia para manter os cabelos arrumados e as unhas feitas.
– Aphrodite – eu disse, cansada –, ser legal não é ruim.
– Diz a Rainha dos Anormais – ela satirizou.
– Ou seja, sua rainha, bonitinha – Stevie Rae disse. Então, ela me deu um abraço forte. – Tchau, Z. Até breve. Prometo.
Correspondi ao abraço, adorando ver que ela voltara a ter o corpo e o cheiro de antes.
– Tá, mas eu queria que você não tivesse que ir.
– Vai dar tudo certo. Você vai ver – então, ela saiu pela janela. Fiquei olhando enquanto ela rastejava pela parede do dormitório. Foi sinistro, ela parecia um besouro, seu corpo ondulou e praticamente desapareceu. Na verdade, se eu não soubesse que ela estava lá, jamais a teria visto.
– É igual a um daqueles lagartos que mudam de cor para se fundir ao ambiente – Aphrodite disse.
– Camaleões – eu disse. – É esse o nome deles.
– Tem certeza? Acho que lagartixa tem mais a ver com Stevie Rae.
Eu fiz cara feia para ela.
– Tenho certeza. Pare de ficar bancando a espertinha e me ajude a fechar a janela.
Com a janela e as cortinas fechadas de novo, dei um suspiro e balancei a cabeça. Mais para mim mesma do que para ela, eu disse: – E agora, o que vamos fazer?
Aphrodite começou a alisar a bolsinha chique que usava mais para enfeitar o ombro.
– Não sei quanto a você, mas vou usar este delineador ridículo para desenhar de novo minha Marca. Dá para acreditar que achei esta cor no Target?[4] – ela estremeceu. – Tipo, qual cafona usaria isto? Enfim, vamos resolver esse problema, depois vou para essa reunião ridícula que Neferet convocou.
– O que eu quis dizer foi o que vamos fazer quanto a esse negócio de vida e morte que está acontecendo?
– Não sei, porra! Não quero isso – ela apontou para sua Marca falsa. – Não quero nada disso. Só quero ser o que era antes de você aparecer aqui e esse inferno todo começar. Quero ser popular e poderosa e ficar com o cara mais gostoso da escola. Agora não sou mais nada disso e sou uma humana que tem visões assustadoras e não sei o que vou fazer quanto a nada disso.
Eu não disse nada por um instante, pensando no fato de ter sido por minha causa que Aphrodite perdera a popularidade, o poder e o namorado. Quando finalmente falei, me surpreendi ao dizer exatamente o que estava na minha mente.
– Você deve me odiar.
Ela me encarou longamente.
E odiava – ela disse, lentamente. – Mas agora odeio basicamente a mim mesma.
– Não se odeie – pedi.
– E por que diabo eu não deveria odiar a mim mesma? Todo mundo me odeia – suas palavras soaram incisivas e cruéis, mas seus olhos estavam cheios de lágrimas.
– Você se lembra daquela coisa detestável que me disse não faz muito tempo, quando achou que eu fosse perfeita?
Ela deu um sorrisinho.
– Você vai ter que me lembrar. Disse um monte de coisas detestáveis para você.
– Bem, dessa vez especificamente você falou que o poder muda as pessoas e as faz meter os pés pelas mãos.
– Ah, é. Agora estou me lembrando. Eu disse que o poder muda as pessoas, mas estava falando das pessoas ao seu redor.
– Bem, você tinha razão quanto a eles e quanto a mim, e agora eu entendo isso. Também entendo várias das besteiras que você fez – sorri e acrescentei: – Nem todas as besteiras que você fez, mas muitas delas. Porque agora fiz minha cota de besteiras, e acho que ainda não estourei essa cota, por mais deprimente que seja.
– Deprimente, mas verdade – ela disse. – Ah, aliás, já que estamos falando sobre como o poder muda as pessoas, você precisa se lembrar disso quando estiver lidando com Stevie Rae.
– O que quer dizer?
– Exatamente o que eu disse. Ela mudou.
– Explique melhor – pedi, sentindo o estômago revirar.
– Não finja que não sentiu nada esquisito nela – Aphrodite disse.
– Ela sofreu muito – justifiquei.
– Pois é exatamente o que estou dizendo. Ela sofreu muito, e mudou.
– Você nunca gostou de Stevie Rae, por isso não espero que de repente comece a se dar bem com ela, mas não vou ouvir você falando mal dela, principalmente depois que ela acabou de lhe oferecer um lugar para você não ter que ficar aqui fingindo ser o que não é – eu estava me esforçando para ficar bem “p” da vida, e não sabia se era porque Aphrodite estava dizendo algo detestável e errado, ou se porque o que ela estava dizendo era uma verdade que eu não queria encarar.
– Você já parou para pensar que talvez Stevie Rae quisesse que eu fosse com ela por não querer que eu passe muito tempo ao seu lado?
– Isso é besteira. Por que ela se importaria? Ela é minha melhor amiga, não é meu namorado.
– Porque ela sabe que estou ligada na cena que ela está armando, e que vou dizer a verdade sobre ela. A verdade é que ela não é o que era. Eu não sei exatamente o que ela é agora, e acho que ela também não sabe, mas com certeza não é mais exatamente a Stevie Rae boazinha de antes.
– Eu sei que ela não é mais exatamente como antes! – rebati. – Como poderia ser? Ela morreu, Aphrodite! Nos meus braços. Lembra-se? E sou amiga dela o bastante para não lhe dar as costas só porque ela realmente mudou após passar por uma séria mudança de vida.
Aphrodite ficou parada, olhando para mim longamente. Tão longamente que meu estômago começou a doer de novo. Finalmente, ela levantou um dos ombros.
– Então, tá. Acredite no que quiser acreditar. Espero que esteja certa.
– Eu estou certa e não quero mais falar nisso – decidi, sentindo-me estranhamente abalada.
– Então, tá – ela repetiu. – Parei de falar nisso.
– Ótimo. Então termine de desenhar sua Marca e vamos à reunião.
– Juntas?
– É.
– Você não liga de as pessoas saberem que a gente não se odeia? – ela perguntou.
– Bem, eu penso assim: as pessoas, especialmente meus amigos, vão pensar um monte de coisas nada legais sobre a possibilidade de eu e você termos, de repente, virado amigas.
Aphrodite arregalou os olhos.
– E assim suas cabecinhas pouco privilegiadas não vão parar para pensar em Stevie Rae.
– Meus amigos não têm cabecinhas pouco privilegiadas.
– Não interessa.
– Mas, sim, Damien e as gêmeas estarão ocupados em pensar besteiras sobre nós, e suas mentes estarão ocupadas, caso Neferet esteja ouvindo – confessei.
– Parece o começo de um plano – ela disse.
– Infelizmente, é tudo o que tenho para um plano.
– Bem, ao menos você sabe que não sabe que diabo vai fazer.
– Muito legal da sua parte ver o lado positivo das coisas.
– Estou sempre disposta a ajudar – Aphrodite gracejou.
Quando ela acabou de retocar a falsa Marca, fomos até a porta. Antes de abrir, olhei para ela.
– Ah, e eu também não te odeio – eu falei. – Na verdade, estou começando a gostar de você.
Aphrodite caprichou no olhar de desprezo e respondeu: – Não disse que você não sabe o que está fazendo?
Eu estava rindo quando abri a porta e dei de cara com Damien, Jack e as gêmeas.

7
– Queremos falar com você, Z. – Damien me chamou.
– E ficamos contentes de ver que ela está saindo – Shaunee disse, dando um olhar feio para Aphrodite.
– É, e cuidado para a porta não bater no seu rabinho magro quando você sair – Erin completou.
Percebi a dor que atravessou o rosto de Aphrodite.
– Tudo bem. Tô saindo – ela disse.
– Aphrodite, você não vai a parte alguma – tive de esperar as gêmeas pararem de fazer ruídos de incredulidade para continuar a falar. – Nyx está trabalhando fortemente na vida de Aphrodite. Vocês confiam no julgamento de Nyx? – perguntei, olhando bem para cada um de meus amigos.
– Sim, é claro que confiamos – Damien respondeu por todos.
– Então vocês vão ter que aceitar Aphrodite como um de nós – afirmei.
Houve uma longa pausa durante a qual as gêmeas, Jack e Damien trocaram olhares, e então Damien finalmente disse: – Creio que temos de admitir que Aphrodite é realmente especial para Nyx, mas a verdade é que nenhum de nós confia nela.
– Eu confio nela – falei. Tá, talvez eu não confiasse nela cem por cento, mas Nyx estava agindo nela.
– O que é irônico, porque nós estamos tendo problemas com você no quesito confiança – Shaunee disse.
– Vocês não dizem coisa com coisa, horda de nerds – Aphrodite interveio. – Primeiro vocês são todos “Ah, sim! Confiamos em Nyx!”, e depois vêm dizer que têm problema em confiar em Zoey. Zoey é “a” novata. Nunca ninguém, seja vamp ou novato, chegou a receber tantos dons de Nyx quanto ela. Se liguem, tá? – Aphrodite revirou os olhos.
– Aphrodite pode ter razão – Damien disse após o silêncio de perplexidade que se instalou.
– Não sacaneia! – Aphrodite soou sarcástica. – Aqui vai outra bomba para a horda de nerds : na minha última visão, Zoey era assassinada e o mundo entrava no mais completo caos por causa disso. E sabe de quem era a culpa da morte de sua suposta amiga? – ela fez uma pausa, arqueando as sobrancelhas para Damien e as gêmeas antes de responder à própria pergunta. – Vocês todos. Zoey morria porque vocês davam as costas a ela.
– Ela teve uma visão da sua morte? – Damien me perguntou. Seu rosto de repente ficou muito pálido.
– É. Na verdade, foram duas. Mas as visões eram bem confusas. Ela viu tudo do meu ponto de vista, o que foi meio desagradável. Enfim, só tenho que ficar longe da água e... – minhas palavras sumiram antes de eu dizer Neferet. Felizmente, Aphrodite me interrompeu.
– Ela tem que ficar longe da água e não pode ficar isolada – ela me socorreu. – O que significa que vocês têm que fazer as pazes. Mas esperem eu não estar olhando, porque tenho certeza de que vou ficar enjoada.
– Você pisou na bola com a gente, Z. – Shaunee disse, quase tão pálida quanto Damien.
– Mas não queremos que você morra – Erin terminou, parecendo igualmente arrasada.
– Eu ia morrer se você morresse – Jack disse, fungando, e então pegou a mão de Damien.
– Bem, então vocês vão ter de superar tudo e voltar a ser o mesmo bando de toupeirinhas amigas – Aphrodite falou.
– Desde quando você se importa se Zoey está viva ou morta? – Damien perguntou.
– Desde que trabalho para Nyx ao invés de para mim mesma. E Nyx se importa com Zoey; portanto, eu me importo com Zoey. E que bom que eu me importo. Vocês se diziam melhores amigos dela, mas bastou um segredinho e uns mal-entendidos idiotas para tirarem o corpo fora – Aphrodite olhou para mim e resfolegou. – Que inferno, Zoey, com amigos assim, ainda bem que não somos inimigas.
Damien tirou os olhos de Aphrodite e se voltou para mim, balançando a cabeça e parecendo mais magoado do que bravo.
– O que realmente me confunde nessa história toda é que me parece perfeitamente claro que você está contando a ela as coisas que não conta para nós.
– Ah, por favor, gayzinho . Não vá ter um ataque histérico e quebrar a unha só porque estou tomando seu lugar de toupeira ao lado de Zoey. É muito simples a razão pela qual ela me conta coisas. Os vamps não podem ler a minha mente.
Damien piscou os olhos, surpreso. Então, arregalando os olhos ao entender, olhou para mim. – Eles também não podem ler sua mente, não é?
– Não podem, não – respondi.
– Ah, merda! – Shaunee exclamou. – Quer dizer que você contar as coisas para a gente seria o mesmo que contar para todo mundo?
– Não pode ser tão fácil para os vamps ler as mentes dos novatos, Z. – Erin disse. – Se fosse assim, teria um monte de garotos encrencados o tempo todo.
– Peraí, eles fazem vista grossa para coisas do tipo novatos saindo escondidos do campus ou fazendo pegação – Damien disse lentamente, como se estivesse somando dois mais dois enquanto falava. – Os vamps não ligam de verdade para uma regrinha ou outra que seja quebrada, contanto que sejam coisas típicas de adolescentes, de modo que não “ouvem os pensamentos” ou seja lá como preferirem chamar essa coisa de invadir a mente alheia o tempo todo.
– Mas se eles acharem que algo mais sério está acontecendo e desconfiarem que um determinado grupo de novatos possa saber de alguma coisa... – completei.
– Eles concentram seus pensamentos naquele grupo de novatos – Damien concluiu por mim. – Você realmente não pode nos contar certas coisas.
– Droga! – Shaunee disse.
– Ruim demais – Erin completou.
– Demoraram a entender – Aphrodite falou.
Damien a ignorou.
– Isso tem algo a ver com Stevie Rae, não tem?
Eu fiz que sim com a cabeça.
– Aliás, falando nela – Shaunee disse.
– O que aconteceu com ela? – Erin perguntou.
– Não aconteceu merda nenhuma com ela – Aphrodite respondeu. – Ela me encontrou. Eu parei de surtar quando minha Marca voltou, e então voltei para cá.
– E ela foi aonde? – Damien perguntou.
– E eu tenho cara de babá? Como diabos vou saber aonde foi a caipira da sua amiga? Ela só disse que tinha que ir embora porque tinha problemas para resolver. Como se fosse grande novidade ela ter problemas.
– Você vai começar a ter problemas com a minha mão na sua cara se começar a falar merda de Stevie Rae – Shaunee ameaçou.
– Eu seguro a bundinha magra dela para você, gêmea – Erin a ajudou.
– Vocês duas usam o mesmo cérebro? – Aphrodite perguntou.
– Aimeudeus ! Chega! – berrei. – Eu posso morrer. Duas vezes. Um troço fantasmagórico gelado mexeu comigo hoje e agora estou me borrando de medo por causa disso. Não sei direito que porra está acontecendo com Stevie Rae, e Neferet convocou uma reunião do Conselho provavelmente para falar dos planos de guerra; uma guerra totalmente errada. E vocês não param com essas briguinhas! Vocês estão me dando dor de cabeça e me deixando puta da vida.
– É melhor vocês escutarem. Ela falou palavrão de verdade, e um quase palavrão num discurso tão breve. Ela está falando sério – Aphrodite alertou.
As gêmeas tiveram que prender o riso. Nossa. Por que tanto oba--oba? Só porque eu não gosto de falar palavrão?
– Tá bem. Vamos tentar ficar bem – Damien disse.
– Por Zoey – Jack completou, dando um sorriso doce para mim.
– Por Zoey – as gêmeas disseram juntas.
Senti um aperto no coração ao olhar para meus amigos. Eles estavam do meu lado. Acontecesse o que acontecesse, eles iam continuar me apoiando.
– Obrigada, galera – agradeci, segurando as lágrimas.
– Abraço grupal! – Jack surgiu.
– Ah, essa não – Aphrodite respondeu.
– Taí uma coisa com a qual concordamos com Aphrodite – Erin disse.
– É, temos de ir – Shaunee completou.
– Ah, Damien, nós também temos que ir. Você disse a Stark que íamos ajudá-lo a se instalar antes da reunião – Jack lembrou.
– Ah, é verdade – Damien respondeu. – Tchau, Z. Até daqui a pouco – ele e Jack saíram do meu quarto logo depois das gêmeas. Desceram o corredor dando tchau e logo começaram a falar sobre como Stark era gostoso, me deixando com Aphrodite.
– Então meus amigos não são tão ruins, hein? – eu disse.
Aphrodite voltou os olhos azuis frios para mim.
– Seus amigos são toupeiras – ela respondeu.
Sorri e dei uma trombada de ombro nela.
– Então você também é uma toupeira.
– Esse é o meu medo – ela exclamou. – Falando no inferno da minha vida, vamos ao meu quarto. Você precisa me ajudar com uma coisa antes de irmos à reunião do Conselho.
Dei de ombros.
– Por mim, tudo bem – na verdade, estava me sentindo muito bem. Meus amigos haviam voltado a falar comigo e parecia que todo mundo estava caminhando para se dar bem uns com os outros. – Ei – eu disse enquanto descíamos o corredor em direção ao quarto de Aphrodite. – Você reparou que as gêmeas disseram uma coisa legal antes de sair?
– As gêmeas são simbióticas, e torço para que alguém as leve muito em breve para serem submetidas a testes científicos.
– Esse seu jeito não ajuda em nada – eu disse.
– Podemos nos concentrar no que realmente importa?
– Tipo?
– Eu, é claro, e a ajuda que preciso de você – Aphrodite abriu a porta do quarto e entramos no que eu gostava de achar que era o palácio dela. Tipo, que coisa, parecia que o quarto tinha sido decorado de acordo com o Guia de Decoração da Gossip Girl , se é que existia algo do tipo. Mas, lamentavelmente, devia haver. (Não que eu não adore a Gossip Girl !)
– Aphrodite, alguém já lhe disse que talvez você tenha um distúrbio de personalidade?
– Vários médicos caríssimos. Nem ligo – Aphrodite atravessou o quarto e abriu a porta do armário pintado à mão (provavelmente, uma antiguidade que custava os olhos da cara) que ficava em frente a uma cama com cobertura talhada à mão (com certeza, uma antiguidade que custava os olhos da cara). Enquanto procurava com afinco, ela disse: – Ah, aliás, você tem que dar um jeito de o Conselho permitir que você e, tragicamente, eu, e, por mais que odeie dizer isso, sua horda de nerds , possamos sair do campus .
– Ahn?
Aphrodite suspirou e virou-se para me encarar.
– Dá para acompanhar meu raciocínio, por favor? Precisamos de trânsito livre para dar um jeito de resolver a porra do problema da Stevie Rae e seus amigos nojentos.
– Eu já disse que não vou deixar você ficar falando mal de Stevie Rae. Não tem nada de errado com ela.
– Há controvérsias. Mas, como no momento você se recusa a discutir esse assunto com lucidez, estou falando dos malucos com quem ela vive. E se você estiver certa e Neferet quiser usá-los contra os humanos? Não que eu goste muito dos humanos, mas com certeza não gosto de guerra. Por isso, acho que você precisa ficar ligada nessa possibilidade.
– Eu? Por que eu? E por que eu tenho que dar um jeito de conseguir permissão para sairmos e entrarmos da escola?
– Porque você é a novata poderosa. Sou apenas sua ajudante mais gata. Ah, e a horda de nerds é formada pelos seus servos toupeiras.
– Que ótimo – respondi.
– Ei, não se estresse. Você vai dar um jeito. Você sempre dá.
Pisquei os olhos, surpresa.
– Sua confiança em mim é chocante – e eu não estava brincando. Tipo, parecia mesmo que ela confiava que eu ia dar um jeito em tudo.
– Não devia ser – ela voltou a procurar algo no armário entulhado. – Sei melhor do que ninguém como você foi agraciada por Nyx. Que você é poderosa, blá-blá-blá e sei lá o quê. Então, você vai dar um jeito. Finalmente! Deus, queria que eles deixassem a gente ter empregados aqui. Nunca consigo achar nada quando sou obrigada a arrumar minhas coisas – Aphrodite pegou uma vela verde, que estava em um copinho lindo de vidro verde, e um isqueiro elegante.
– Você precisa da minha ajuda para descobrir alguma coisa relacionada a uma vela?
– Não, crânio. Às vezes eu realmente questiono as escolhas de Nyx – ela me deu o isqueiro de ouro. – Quero que você me ajude a ver se perdi minha afinidade com a terra.

8
Olhei para a vela verde e para Aphrodite. Ela estava pálida e seus lábios, tensos e apertados, sem cor.
– Você não tentou invocar a terra desde que perdeu a Marca? – perguntei gentilmente.
Ela balançou a cabeça e continuou com uma expressão de dor.
– Tá, bem, você tem razão. Eu posso te ajudar a descobrir isso. Acho que vou ter de traçar um círculo.
– Foi o que pensei – Aphrodite deu um suspiro fundo e estremecido. – Vamos resolver isso logo – ela foi até a parede em frente à cama. Ficou lá parada, segurando a vela – Aqui é o norte.
– Tudo bem – cheia de decisão, fiquei de frente para Aphrodite. Virando para o leste, fechei os olhos e me concentrei. – Ele nos enche os pulmões e nos dá vida. Eu invoco o ar para meu círculo – mesmo sem a vela amarela representando o elemento, e também sem Damien e sua afinidade com o ar, senti a resposta instantânea do elemento na forma de uma brisa suave me roçando o corpo.
Abri os olhos e virei à direita, no sentido horário, seguindo a direção sul do círculo, onde parei.
– Ele nos aquece e nos dá segurança. Eu invoco o fogo ao meu círculo – sorri quando o ar ao meu redor se aqueceu com o segundo elemento.
Seguindo à direita, parei no oeste.
– Ela nos banha e nos mata a sede. Eu invoco a água ao meu círculo – senti imediatamente o frescor de ondas invisíveis nas pernas. Sorrindo, parei em frente a Aphrodite.
– Pronta? – perguntei a ela.
Ela assentiu, fechou os olhos e levantou a vela verde que representava seu elemento.
– Ela nos sustenta e nos cerca. Eu invoco a terra ao meu círculo – acendi o isqueiro e levei a pequena chama para o pavio da vela.
– Ai, merda! – Aphrodite choramingou. Ela soltou a vela como se tivesse levado uma picada. A vela se espatifou aos seus pés no chão de madeira. Quando ela levantou os olhos do copinho verde em cacos e da vela quebrada, vi que estavam banhados em lágrimas. – Eu perdi – sua voz não passava de um sussurro e as lágrimas jorravam pelo seu rosto. – Nyx tomou meu dom. Eu sabia que ela ia fazer isso. Eu não era boa o bastante para ela me dar o dom de uma afinidade com algo tão incrível quanto o elemento terra.
– Não acredito que tenha sido isso o que aconteceu – eu disse.
– Mas você viu. Eu não sou mais o elemento terra. Nyx não vai mais me deixar representar o elemento – ela estava chorando.
– Não quis dizer que você ainda tenha afinidade com a terra. O que quis dizer é que não acho que Nyx tirou seu dom por você não merecer.
– Mas eu não mereço – Aphrodite estava arrasada.
– Simplesmente não acredito nisso. Olha, vou te mostrar uma coisa – recuei uns dois passos. Dessa vez, sem a vela de Aphrodite, eu disse: – Ela nos sustenta e nos cerca. Eu invoco a terra ao meu círculo – fui instantaneamente cercada pelos aromas e sons de uma nascente. Tentando ignorar o fato de que o que eu estava fazendo levava Aphrodite a chorar ainda mais, caminhei até o centro do meu círculo invisível e invoquei o último dos cinco elementos. – Ele é o que somos antes de nascermos, e é o que voltaremos a ser um dia. Eu invoco o espírito ao meu círculo – minha alma cantou dentro de mim quando fui preenchida pelo elemento final.
Agarrando-me firme ao poder que sempre me vinha quando eu invocava os elementos, levantei os braços sobre a cabeça. Empinei a cabeça e não vi o teto acima, mas sim imaginei a escuridão aveludada do céu noturno que a tudo abrangia. E rezei – não do jeito que minha mãe e seu marido, o padrastotário, rezam, cheios de falsa humildade e améns pomposos e sei lá o quê mais. Não deixava de ser eu mesma quando rezava. Eu conversava com a minha Deusa do mesmo jeito que falaria com minha avó ou minha melhor amiga.
Quero crer que Nyx aprecia minha honestidade.
– Nyx, deste local de poder que a senhora me concedeu, eu peço que ouça minha prece. Aphrodite já perdeu demais, e não acho que isso seja porque a senhora não liga mais para ela. Acho que tem mais alguma coisa acontecendo, e gostaria muito que a senhora mostrasse a ela que está do seu lado, aconteça o que acontecer.
Nada aconteceu. Respirei fundo e me concentrei de novo. Eu já tinha ouvido a voz de Nyx antes. Tipo, às vezes ela falava comigo. Às vezes eu sentia coisas. Pode ser de um jeito ou de outro, acrescentei em pensamento à minha pequena prece. Então, tentei me concentrar ainda mais. Fechei os olhos e fiz tanta força para ouvir alguma coisa que apertei os olhos e prendi a respiração. Na verdade, eu estava fazendo tanta força para ouvir que quase não escutei Aphrodite arfando de susto.
Abri os olhos e meu queixo caiu logo em seguida.
Entre mim e Aphrodite, havia uma imagem brilhante e prateada de uma linda mulher. Depois, quando Aphrodite e eu tentamos descrever uma para a outra a aparência exata dela, nos demos conta de que não nos lembrávamos de nenhum detalhe, exceto que ambas achamos que parecia um espírito de repente tornado visível – o que realmente não era uma grande descrição.
– Nyx! – exclamei.
A Deusa sorriu para mim, e achei que meu coração fosse pular do peito de tanta felicidade.
– Saudações, minha u-we-tsi-a-ge-hu-tsa – ela disse, usando a palavra Cherokee para “filha”, que minha avó usava muito. – Você agiu certo ao me chamar. Você devia seguir sua intuição com mais frequência, Zoey. Ela nunca vai guiá-la no sentido errado.
Então, ela se voltou para Aphrodite, que, soluçando, se ajoelhou diante da Deusa.
– Não chore, minha criança preciosa – Nyx levou sua mão etérea ao rosto de Aphrodite e, como um sonho tornado real, lhe fez um carinho.
– Perdão, Nyx! – ela chorou. – Fiz tantas besteiras, errei tanto. Sinto muito por tudo isso. Lamento mesmo. Não tiro sua razão em tirar minha Marca e minha afinidade com a terra. Sei que não mereço nada disso.
– Filha, você não me entendeu. Eu não tirei sua Marca. Foi a força da sua humanidade que a apagou, e também foi a força da sua humanidade que salvou Stevie Rae. Queira você ou não, você sempre será mais humana do que qualquer outra coisa, o que representa parte da razão pela qual eu a amo tanto. Mas não pense que você é só humana agora, minha filha. Você é mais do que isso, mas exatamente o que isso quer dizer, você terá de descobrir, e terá de escolher por si mesma – a Deusa pegou a mão de Aphrodite e a fez ficar de pé. – Quero que você entenda que a afinidade com a terra nunca foi sua, filha. Você apenas a guardou para Stevie Rae. Sabe, a terra não poderia realmente viver dentro dela antes de sua humanidade ser restaurada. Foi a você que eu confiei a guarda desse precioso dom, bem como a escolhi para ser o instrumento pelo qual Stevie Rae retomaria sua humanidade.
– Então, não foi um castigo? – Aphrodite perguntou.
– Não, filha. Eu não preciso castigá-la, você já se castiga o suficiente por si mesma – Nyx disse gentilmente.
– E a senhora não me odeia? – Aphrodite sussurrou.
Nyx deu um sorriso triste e radiante.
– Como eu já disse, eu amo você, Aphrodite. Sempre amarei.
Desta vez eu sabia que as lágrimas que escorriam pelo rosto de Aphrodite eram lágrimas de felicidade.
– Vocês duas têm um longo caminho pela frente. Em boa parte desse caminho, estarão juntas. Dependendo uma da outra. Escutem seus instintos. Confiem na voz interior dentro de cada uma – a Deusa se voltou para mim. – U-we-tsi-a-ge-hu-tsa , um grande perigo a aguarda.
– Eu sei. Você não pode querer essa guerra.
– E não quero, filha. Mas não é a esse perigo que estou me referindo.
– Mas, se a senhora não quer a guerra, por que simplesmente não acaba com ela? Neferet tem que ouvi-la! Ela tem que lhe obedecer! – eu disse, sem saber por que estava de repente me sentindo tão desvairada, especialmente com a Deusa me olhando com tanta serenidade.
Ao invés de me responder, Nyx fez uma pergunta.
– Você sabe qual é o maior dom que já concedi aos meus filhos?
Pensei bem, mas minha mente parecia um emaranhado de pensamentos desconexos e fragmentos de uma verdade.
A voz de Aphrodite soou forte e clara.
– Livre-arbítrio.
Nyx sorriu.
– Exatamente, filha. E, quando concedo um dom, jamais o tomo. O dom se torna a própria pessoa e, se eu me intrometesse e exigisse obediência, principalmente se retirasse afinidades, destruiria a pessoa.
– Mas talvez Neferet a escutasse se a senhora falasse com ela como está falando com a gente agora. Ela é sua Grande Sacerdotisa – eu disse. – Ela devia ouvi-la.
– É uma lástima, mas Neferet optou por não me dar mais ouvidos. É contra esse perigo que quero lhes advertir. A mente de Neferet está sendo guiada por outra voz, uma voz que lhe vem murmurando faz muito tempo. Eu tinha esperança de que o amor dela por mim sobrepujasse a outra voz, mas isso não aconteceu. Zoey, Aphrodite é sábia em relação a muitas coisas. Quando ela disse que o poder muda as pessoas, tinha razão. O poder sempre causa mudanças em quem o tem e naqueles que lhe são próximos, mas as pessoas que pensam que o poder corrompe sempre estão pensando de modo simplista demais.
Enquanto ela falava, notei que ondas de clarão começaram a tremular sobre o corpo de Nyx, como uma névoa beijada pela lua subindo de um campo, e sua imagem estava ficando cada vez mais difícil de ver.
– Espere! Não vá ainda – pedi. – Tenho tantas perguntas.
– A vida vai lhe mostrar as escolhas que você precisa fazer para conseguir as respostas – ela respondeu.
– Mas a senhora disse que Neferet está escutando outra voz. Isso quer dizer que ela não é mais sua Grande Sacerdotisa?
– Neferet abandonou o meu caminho e optou pelo caos – a imagem da Deusa oscilou. – Mas, lembre-se, o que eu lhe dei, jamais tomarei. Por isso, não subestime o poder de Neferet. O ódio que ela está tentando despertar é uma força poderosa.
– Isso me dá medo, Nyx. Eu... eu estou sempre fazendo besteira – gaguejei. – Principalmente nos últimos tempos.
A Deusa sorriu de novo.
– Sua imperfeição faz parte do seu poder. Busque força na terra e respostas nas histórias do povo de sua avó.
– Seria bem mais seguro se a senhora me dissesse o que eu preciso saber e o que devo fazer – eu disse.
– Assim como todos os meus filhos, você precisa descobrir o próprio caminho e, através dessa descoberta, decidirá o que todo filho da terra precisa decidir, ou seja: se vai escolher o caos ou o amor.
– Às vezes o caos e o amor parecem a mesma coisa – Aphrodite disse. Eu entendi que ela estava tentando demonstrar respeito, mas sua voz mostrava que estava irritada.
Nyx não pareceu se importar com o que ela falou. A Deusa simplesmente assentiu e disse: – Realmente, mas quando você olhar mais no fundo verá que, apesar de o caos e o amor serem ambos poderosos e sedutores, também são tão diferentes quanto o luar e a luz do sol. Lembre-se... Não estou nunca longe de seus corações, minhas preciosas filhas...
Após um clarão prateado final, a Deusa desapareceu.

9
– Que droga. O caos e o amor são a mesma coisa sem ser. Neferet ainda tem seus poderes, mas não dá mais ouvido a Nyx. Ah, e ela está tentando despertar algo perigoso. O que isso quer dizer? Seria um despertar abstrato, tipo “despertar” a raiva em forma da guerra contra os humanos, ou será que ela está literalmente tentando acordar algo horrível que poderia devorar todo mundo? Algo como aquele troço sinistro que roçou em mim horas antes, e sobre o qual nem tive a oportunidade de perguntar nada a ela. Droga dupla! – balbuciei, enquanto Aphrodite e eu saíamos correndo do dormitório das meninas. Infelizmente, pelo jeito íamos chegar atrasadas à reunião do Conselho.
– Não olhe para mim. Já tenho mistérios demais para resolver. Eu sou humana, mas sem ser? O que isso quer dizer? E como minha humanidade pode ser tão grande se eu nem gosto dos humanos? – Aphrodite suspirou e mexeu no cabelo. – Merda, meu cabelo está péssimo – ela olhou para mim. – Dá para ver que eu chorei?
– Pela zilhonésima vez, não. Sua aparência está boa.
– Merda. Eu sabia. Tô horrorosa.
– Aphrodite! Acabei de dizer que sua aparência está boa.
– É, mas boa aparência serve para a maioria das pessoas. Só que para mim é o mesmo que horrorosa.
– Então a nossa Deusa, a imortal Nyx, acaba de se manifestar e falar com a gente, e você só consegue pensar na sua aparência? – balancei a cabeça. Quanta futilidade, até mesmo em se tratando de Aphrodite.
– É, foi o máximo mesmo. Nyx é o máximo. Eu nunca disse o contrário. Então, o que é que está pegando exatamente?
– O que está pegando é que depois de receber a visita da Deusa você devia, sei lá, talvez se importar com algo mais importante do que seu cabelo, que já é perfeito – eu disse, completamente sem paciência. Era com essa garota que eu ia combater um ser maligno capaz de aniquilar o mundo? Nossa, os caminhos de Nyx realmente eram absoluta e totalmente misteriosos. Para dizer o mínimo.
– Nyx sabe exatamente como eu sou, e ela me ama assim mesmo. É assim que eu sou – ela fez um movimento ondulando a mão para cima e para baixo em frente ao próprio corpo. – Quer dizer que você acha mesmo que meu cabelo é perfeito?
– Tão perfeito quanto sua futilidade e sua postura “pé no saco” – eu disse.
– Ah, que ótimo. Bem, já me sinto melhor.
Fiz cara feia para ela, mas não disse mais nada enquanto subimos correndo a escada que dava na Sala de Reuniões, que ficava em frente à biblioteca. Nunca tinha entrado naquela sala antes, mas já tinha espiado do lado de fora várias vezes. Quando estava vazia, a porta raramente ficava fechada e, nos zilhões de vezes que fui e voltei da biblioteca, não resisti a espiar e fiquei de queixo caído com a linda mesa redonda que era o ponto principal da sala. Sério, eu até perguntei a Damien se aquela mesa redonda poderia ter sido a Mesa Redonda da época do Rei Arthur e Camelot. Ele disse que achava que não, mas não tinha certeza.
Hoje a Sala de Reuniões não estava vazia. Estava cheia de vamps, Filhos de Erebus e, naturalmente, os poucos novatos que faziam parte do Conselho. Felizmente, entramos no momento em que Darius estava fechando a porta e se posicionando, todo alto e musculoso, ao lado dela. Aphrodite deu um sorriso largo e provocante para ele, e eu tive que me conter para não soltar um suspiro ao ver os olhos dele brilharem. Ela tentou parar para falar com ele, mas a puxei pelo braço e praticamente a empurrei em direção às duas cadeiras vazias ao lado de Damien.
– Obrigada por guardar nossos lugares – sussurrei para ele.
– Sem problema – ele sussurrou também, dando aquele sorriso que já me era familiar. Aquilo me animou e me ajudou a aliviar parte do meu nervosismo.
Dei uma olhada ao redor da mesa. Aphrodite e eu nos sentamos à direita de Damien. Ao lado de Aphrodite estava Lenobia, nossa professora de equitação. Ela estava conversando com Dragon e Anastasia Lankford, que estavam ao lado dela. À esquerda de Damien estavam as gêmeas. Elas balançaram a cabeça com a sincronia de sempre e tentaram parecer indiferentes, mas percebi que estavam se sentindo tão deslocadas quanto eu. Eu sabia que o Conselho fora feito para os membros mais poderosos da escola, mas, além dos professores (muitos dos quais me pareciam familiares, mas que nunca vira lecionando e na verdade não fazia a menor ideia de quem eram), havia uma grande ostentação de poder por parte dos Filhos de Erebus, inclusive um sujeito pesado que se sentara perto da porta. Ele era a maior pessoa, seja humano ou vamp , que eu já tinha visto. Eu estava tentando não encará-lo e pensei em perguntar a Damien, o rei das regras, se os guerreiros realmente deviam ter permissão para comparecer a uma reunião do Conselho quando Aphrodite chegou mais perto e sussurrou: – Este é Ate, o Líder dos Filhos de Erebus. Darius me disse que ele vinha hoje. O que tem de grande tem de gostoso, não é?
Antes que pudesse responder que, para mim, ele era mais um grandão entre montes de grandões, a porta nos fundos da sala se abriu e Neferet entrou.
Percebi que havia algo errado antes mesmo de ver a mulher que entrou na sala depois dela. O rosto público de Neferet era sempre de uma implacável perfeição – ela era a própria calma, tranquilidade e autocontrole em pessoa. Mas esta Neferet estava abalada. Suas belas feições pareciam um tanto travadas, como se estivesse se esforçando muito para manter o autocontrole e esse esforço já estivesse no limite. Ela deu uns dois ou três passos à frente e foi para o lado para que pudéssemos ver a vampira que entrou atrás dela.
Foi imediata e gritante a perplexidade que tomou conta dos vamps ao vê-la. Os Filhos de Erebus foram os primeiros a se pôr aos pés dela, mas o Conselho fez o mesmo logo em seguida. Então, eu, Damien, as gêmeas e Aphrodite automaticamente copiamos o gesto respeitoso dos vamps e levamos o punho fechado ao coração e abaixamos a cabeça.
Tudo bem, admito que olhei para a nova vamp dos pés à cabeça. Ela era alta e magra. Sua pele era cor de madeira boa e bem polida e, como o mogno, era lisa e impecável, maculada apenas pela intrincada tatuagem cor de safira de sua Marca, que tinha o incrível formato da silhueta curvilínea da Deusa que todos os professores vamps traziam bordada no bolso do paletó. As figuras femininas eram espelhos mútuos com seus corpos que lhe desciam pela lateral do rosto. Ela levantou a parte interna dos braços, as mãos para cima, como se fossem abarcar a lua crescente no meio da testa. Seu cabelo era inacreditavelmente comprido. Batia bem abaixo da cintura, era como uma pesada cortina de seda preta. Ela tinha olhos negros, grandes e amendoados, nariz comprido e reto, lábios fartos e um porte de rainha com aquele queixo empinado e aquele olhar firme com o qual vasculhou a sala. Foi só quando aquele olhar se deteve brevemente sobre mim que senti sua força e me dei conta de que ela tinha algo que nunca vira antes em vamp nenhum: ela era velha. Não que fosse toda enrugada como uma velha humana. Aquela vampira parecia ter seus quarenta e poucos anos, o que era o mesmo que anciã para o padrão vamp . Mas não era por causa de rugas nem de pele amarrotada que ela parecia velha. Era um senso de idade e dignidade que lhe caía como uma joia caríssima que lhe adornava o corpo.
– Merry meet – ela tinha um sotaque que não identifiquei. Lembrava pouco algo do Oriente Médio, mas não era bem isso. Um tanto britânico, sem ser. Basicamente, o sotaque dava vida e profundidade à sua voz, que preencheu a sala inteira.
Todos respondemos automaticamente: “Merry meet” .
Então, ela sorriu, e a súbita semelhança entre ela e Nyx, que sorrira para mim momentos antes, me amoleceu os joelhos de um jeito perturbador, de modo que fiquei aliviada quando ela fez menção para que nos sentássemos.
– Ela me faz lembrar Nyx – Aphrodite sussurrou para mim.
Aliviada de ver que eu não estava imaginando coisas, assenti com a cabeça. Não havia tempo para mais nada porque Neferet recuperou a calma para poder falar.
– Eu fiquei, como posso ver que vocês também ficaram, surpresa e honrada pela rara e inesperada visita de Shekinah à nossa Morada da Noite.
Ouvi Damien respirar fundo e desenhei no ar para ele um grande ponto de interrogação. Como de costume no caso do Sr. Estudioso, ele tinha papel e lápis número dois de ponta bem feita à mão para poder, como era natural, fazer as anotações adequadas. Ele rapidamente escreveu umas palavras e discretamente inclinou o papel para eu poder ler: SHEKINAH = SUPREMA SACERDOTISA DE TODOS OS VAMPS .
Aimeudeus. Não era à toa que Neferet parecia surtada.
Shekinah continuou a sorrir serenamente e fez menção para que Neferet se sentasse. Neferet abaixou a cabeça em um gesto que com certeza devia parecer respeitoso, mas para mim o movimento pareceu duro, de um respeito forçado. Ela se sentou, ainda contida com aquela estranha rigidez. Shekinah continuou de pé e começou a falar: – Se esta fosse uma visita normal, é claro que eu teria anunciado minha vinda, permitindo assim que vocês se preparassem. Mas esta está longe de ser uma visita normal, o que vem a calhar, pois esta também está longe de ser uma reunião normal do Conselho. É bastante incomum admitir também os Filhos de Erebus, mas entendo que sua presença aqui é necessária em tempos tumultuados e perigosos como agora. Mas, mais incomum ainda, é a presença de novatos.
– Eles estão aqui porque...
Shekinah levantou a mão, instantaneamente cortando a explicação de Neferet.
Não sei o que me deixou mais surtada, se foi a poderosa e divina presença de Shekinah ou o fato de ela fazer Neferet calar a boca com tamanha facilidade.
Shekinah voltou os olhos escuros para as gêmeas, Damien, Aphrodite e, finalmente, eles pararam em mim.
– Você é Zoey Redbird – ela disse.
Limpei a garganta e tentei não ficar nervosa com o olhar dela.
– Sim, senhora.
– Então, esses quatro com você devem ser os novatos que foram agraciados com afinidades com o ar, fogo, água e terra.
– Sim, senhora, são eles – respondi.
Ela assentiu.
– Agora entendo por que vocês estão aqui – Shekinah balançou a cabeça e lançou um olhar penetrante para Neferet. – Você quer usar o poder deles.
Meus músculos se retesaram pelo corpo todo, e o mesmo aconteceu com Neferet, mas por razões distintas. Será que Shekinah sabia o que eu havia apenas começado a suspeitar, ou seja, que Neferet estava abusando de seu poder e instigando uma guerra entre humanos e vampiros?
Neferet falou de modo incisivo, abrindo mão de toda a falsa cordialidade.
– Quero usar todas as vantagens que a Deusa nos deu para manter a segurança de nosso povo – os demais vampiros do Conselho se mexeram desconfortavelmente nas cadeiras com a evidente falta de respeito de Neferet.
– Ah, e é exatamente por isso que estou aqui – completamente imperturbável pela atitude de Neferet, Shekinah voltou-se para os membros do Conselho. – Veio bastante a calhar eu estar fazendo uma visita pessoal e não divulgada à Morada da Noite de Chicago quando fiquei sabendo das tragédias que aconteceram aqui. Se eu estivesse em casa, em Veneza, as notícias teriam chegado a mim tarde demais para eu poder agir, e essas mortes não poderiam ter sido prevenidas.
– Prevenidas, Sacerdotisa? – Lenobia falou. Olhei para ela e vi que a cavaleira parecia bem mais à vontade do que Neferet. Seu tom de voz era calmo, apesar de inegavelmente respeitável.
– Lenobia, minha querida. É maravilhoso revê-la – Shekinah disse, amigavelmente.
– É sempre um prazer revê-la, Sacerdotisa – Lenobia baixou a cabeça e seus cabelos de um raro louro-prateado penderam como um delicado véu. – Mas, acho que falo em nome de todo o Conselho ao dizer que estamos confusos. Patricia Nolan e Loren Blake morreram. Se a senhora pretendia evitar suas mortes, é tarde demais.
– É tarde, mesmo – Shekinah respondeu. – E suas mortes me pesam no coração, mas ainda dá tempo de prevenir outras mortes – ela fez uma pausa e disse lenta e distintamente: – Não haverá guerra entre humanos e vampiros.
Neferet se levantou de um pulo, quase virando a cadeira.
– Não vai haver guerra? Então vamos deixar os assassinos impunes depois dos crimes hediondos que cometeram contra nós?
Foi mais possível sentir do que ver a tensão que tomou conta dos Filhos de Erebus, que espelharam o choque de Neferet.
– Você ligou para a polícia, Neferet? – a pergunta de Shekinah veio em tom suave, de bate-papo, mas senti seu poder me roçando a pele e mexendo com alguma coisa dentro de mim.
– Chamar a polícia dos humanos e pedir para eles pegarem os assassinos humanos para serem levados a um tribunal humano? Não, eu não fiz isso.
– E você tem tanta certeza que não vai conseguir justiça com esses humanos, que está disposta a começar uma guerra.
Neferet apertou os olhos e olhou para Shekinah com raiva, mas não respondeu nada. Durante aquele silêncio pesado, lembrei-me do detetive Marx, o guarda que me ajudou quando Heath foi capturado por aqueles sinistros garotos mortos-vivos. Ele foi incrível. Sabia que eu tinha inventado a história que Heath tinha sido levado por moradores de rua, os mesmos que teriam matado os outros dois garotos humanos, e mesmo assim confiou em mim quando eu disse que o perigo havia acabado, e limpou a minha barra. O detetive Marx me disse que sua irmã gêmea passara pela Transformação e que mesmo assim continuaram próximos, de modo que ele com certeza não odiava os vamps . Ele era detetive sênior de homicídios – eu sabia que faria tudo que pudesse para descobrir quem estava matando vampiros. E não era possível que ele fosse o único policial sincero e honesto de Tulsa.
– Zoey Redbird, o que você sabe sobre isso?
A pergunta de Shekinah foi um choque. Como se ela tivesse puxado alguma corda esquisita de dentro de mim que me fez falar, eu disse de uma vez: – Eu conheço um policial humano honesto.
Shekinah deu outra vez aquele seu sorriso parecido com o de Nyx, e meus nervos surtados se acalmaram um pouquinho.
– Acho que todos nós conhecemos, ou pelo menos eu pensei que todos nós conhecíamos, até ficar sabendo dessa declaração de guerra, sem ao menos dar aos humanos a chance de policiar seu próprio povo.
– A senhora não percebe que é simplesmente impossível? – os olhos verde-musgo de Neferet faiscaram. – Policiar o próprio povo, até parece!
– Foi o que eles fizeram muitas vezes ao longo de décadas. Você sabe disso, Neferet.
As palavras calmas de Shekinah contrastavam dramaticamente com a paixão e a raiva de Neferet.
– Eles a mataram e depois mataram Loren – a voz de Neferet foi quase um chiado.
Shekinah gentilmente tocou o braço de Neferet.
– Você era próxima demais deles. Não está pensando racionalmente.
Neferet repeliu o que Shekinah dissera.
– Eu sou a única que está pensando racionalmente! – ela rebateu. – Os humanos já passaram da hora de pagar por seus atos maléficos.
– Neferet, passou muito pouco tempo desde que aconteceram esses assassinatos e você sequer deu aos humanos a oportunidade de tentar punir os seus. Ao invés disso, instantaneamente determinou que são todos desonestos. Mas nem todos os humanos são desonestos, a despeito de sua história pessoal.
Quando Shekinah disse isso, lembrei-me de quando Neferet me disse que sua Marca fora sua salvação, pois seu pai abusara dela por anos a fio. Ela fora Marcada há quase cem anos. Loren fora assassinado dois dias atrás. A professora Nolan fora assassinada um dia antes dele. Era óbvio para mim que suas mortes não eram os únicos crimes hediondos aos quais Neferet se referia. Parecia que Shekinah chegara à mesma conclusão.
– Grande Sacerdotisa Neferet, concluo que é equivocado seu julgamento no que se refere a essas mortes. Seu amor por nossos falecidos irmão e irmã e seu desejo de pagar na mesma moeda lhe tiraram a razão. Sua declaração de guerra contra os humanos foi rejeitada pelo Conselho de Nyx.
– E pronto? – Neferet, que antes exalava uma raiva arrebatada, agora estava com cara de poucos amigos e expressão de aço. Eu estava megafeliz por Shekinah ser o alvo daquela raiva, pois Neferet era simplesmente apavorante.
– Se você estivesse pensando com clareza, entenderia que o Conselho de Nyx jamais toma decisões precipitadas. O Conselho avalia a situação cuidadosamente, apesar de nós não termos sido informados de sua declaração de guerra, como seria o correto – ela disse, enfaticamente. – Você sabe, minha irmã, que uma coisa dessa magnitude deveria ser primeiramente submetida ao Conselho de Nyx.
– Não havia tempo – Neferet rebateu.
– Sempre há tempo para a sabedoria! – os olhos de Shekinah cintilaram, e quase me encolhi na cadeira. Eu achava Neferet apavorante? Shekinah a fazia parecer uma menina malcriada. Então, ela fechou os olhos brevemente e respirou fundo, acalmando-se antes de continuar a falar com um tom suave e compreensivo. – Nem o Conselho de Nyx nem eu discutimos o fato de que os assassinatos de dois dos nossos é censurável, mas guerra está fora de questão. Temos vivido em paz com os humanos há mais de dois séculos. Não vamos romper essa paz por causa das ações obscenas de um grupo reduzido de fanáticos religiosos.
– Se ignorarmos o que está acontecendo aqui em Tulsa, voltaremos à Caça às Bruxas. Não se esqueça de que as atrocidades de Salem começaram com o que a senhora chama de grupo reduzido de fanáticos religiosos.
– Eu me lembro bem. Nasci menos de um século após esses dias de trevas. Somos mais poderosos agora do que éramos no século dezessete. E o mundo mudou, Neferet. A superstição foi substituída pela ciência. Os humanos são mais razoáveis agora.
– O que será preciso para a senhora e o onipotente Conselho de Nyx entenderem que não temos opção a não ser revidar?
– Isso iria reverter o pensamento do mundo, e rogo a Nyx que isso jamais aconteça – Shekinah disse solenemente.
Os olhos de Neferet percorreram a sala até encontrar o Líder dos Filhos de Erebus.
– Vocês, os Filhos, vão ficar aí sentados enquanto os humanos nos abatem um por um? – ela perguntou com a voz gelada, em tom de desafio.
– Eu vivo para proteger, e nenhum Filho de Erebus permitiria que fizessem mal a algum de seus protegidos. Nós protegeremos a senhora e a esta escola. Mas, Neferet, não desafiaremos a decisão do Conselho – Ate disse solenemente, em uma voz grave e profunda.
– Sacerdotisa, o que você deu a entender, que Ate deveria obedecer aos seus desejos e contrariar o Conselho, é injusto de sua parte – o tom de Shekinah já não era mais compreensivo. Seu olhar estava fixo em Neferet, e seus olhos apertados.
Neferet não disse nada por um longo momento, e então seu corpo estremeceu. Ela soltou os ombros e pareceu envelhecer diante dos meus olhos.
– Perdoe-me – ela disse baixinho. – Shekinah, a senhora tem razão. Eu estou me deixando levar pela emoção. Eu amava Patricia e Loren. Não estou pensando com clareza. Eu tenho que... eu preciso... por favor, com licença – ela finalmente se rendeu, e então, parecendo totalmente atormentada, saiu às pressas da Sala do Conselho.

10
Ninguém disse nada pelo que pareceu um tempo enorme, mas provavelmente foram apenas alguns segundos de tensão. Ver Neferet perder a linha daquele jeito foi bizarro e, apesar de eu saber que ela havia dado as costas a Nyx e que estava envolvida com coisas realmente terríveis, fiquei abalada de ver alguém tão poderosa cair de modo tão retumbante.
Será que ela tinha pirado? Seria isso? Será que a “escuridão” sobre a qual Nyx me advertira seria a escuridão no interior da mente louca de Neferet?
– Sua Grande Sacerdotisa passou por terríveis provações nos últimos dias – Shekinah estava dizendo. – Não estou justificando seu lapso de julgamento, mas entendo. O tempo, bem como as ações da polícia local, vão curar suas feridas – seus olhos se voltaram para o enorme guerreiro. – Ate, quero que conduza os detetives ao longo da investigação. Sei que boa parte das provas foram destruídas, mas talvez a ciência moderna ainda possa descobrir algo – Ate assentiu solenemente, e ela voltou seu olhar sombrio para mim. – Zoey, qual é o nome desse detetive humano honesto que você conhece?
– Kevin Marx – respondi.
– Entraremos em contato com ele – Ate disse.
Shekinah sorriu com aprovação. E continuou: – Quanto ao que faremos nós... – ela fez uma pausa, e seu sorriso angelical se abriu. – Sim, eu digo nós porque decidi ficar aqui, pelo menos até sua Neferet voltar a si.
Dei uma olhada rápida ao redor da mesa, tentando avaliar a reação dos professores ao inesperado anúncio de Shekinah. Vi expressões que iam do choque e leve surpresa ao mais evidente prazer. Acho que meu rosto devia ser um dos que transmitiam o maior prazer. Tipo, que loucura Neferet poderia fazer com a líder de todas as Sacerdotisas vamps aqui?
– Acho que é importante, e o Conselho de Nyx concorda comigo, que devemos continuar com a rotina da escola dentro da maior normalidade possível. O que significa que retomamos as aulas amanhã.
Vários professores pareceram desconfortáveis, mas foi Lenobia quem falou de novo.
– Sacerdotisa, estamos todos dispostos a recomeçar as aulas, mas estão faltando dois importantes instrutores.
– De fato, e essa é outra razão pela qual pretendo permanecer aqui, ao menos por um tempinho. Vou assumir as aulas de poesia de Loren Blake.
Nem precisei olhar para as gêmeas, que odiavam poesia, para saber que elas estavam fazendo cara feia. Eu estava na verdade tentando não rir quando as palavras seguintes de Shekinah me atravessaram.
– E tive a sorte de alcançar Erik Night no aeroporto. Eu sei que não é comum que um vampiro que acabou de passar pela Transformação já comece a lecionar, mas será temporário, e estamos realmente trabalhando sob circunstâncias extenuantes. Ademais, os novatos conhecem Erik. Ele fará uma boa transição para os alunos superarem a perda da professora Nolan.
Aimeudeus, Erik estava de volta e eu ia ser aluna dele. Eu não sabia se queria comemorar ou vomitar, então fiquei em silêncio e com enjoo no estômago.
– Quanto à barreira que Neferet ergueu ao redor da escola com um encantamento, será desativada. Apesar de eu concordar com as razões imediatas que a levaram a erguê-la, já que havia poucos Filhos de Erebus presentes e tinha acabado de acontecer um assassinato, essas ações emergenciais não são mais apropriadas. Isolar a escola seria o mesmo que declarar um cerco, e é exatamente isso que queremos evitar. E, naturalmente, estamos bem protegidos pelos Filhos de Erebus – ela olhou para Ate e balançou a cabeça, e ele retornou o gesto com uma mesura. – No geral, gostaria que suas vidas seguissem dentro da maior normalidade possível. Aqueles dentre vocês que tiverem laços com a comunidade humana, continuem a manter esse contato. Lembrem-se da lição que nossos ancestrais aprenderam com seu precioso sangue: medo e intolerância nascem do isolamento e da ignorância.
Tá, não sei que diabo me deu, mas de repente percebi que tinha uma ideia e, como se o meu braço fosse dotado de vontade própria, levantei-o como uma toupeira, como se estivéssemos no meio de uma aula e nós (quer dizer, eu e minha boca, menos o meu cérebro) tivéssemos acabado de chegar a uma resposta brilhante.
– Zoey, você tem algo a acrescentar? – Shekinah perguntou.
Ah, que inferno, não! É o que eu deveria ter dito. Mas da minha boca escapou: – Sacerdotisa, eu estava imaginando se o momento seria bom para implementar uma ideia que tive para as Filhas das Trevas se envolverem com algum serviço de caridade local.
– Prossiga. Estou intrigada, jovem.
Engoli em seco.
– Bem, pensei que as Filhas das Trevas poderiam entrar em contato com as pessoas que cuidam do Street Cats. É, ahn, um serviço de caridade que dá abrigo a gatos de rua e arruma casas para eles. Eu, bem, achei que seria uma boa maneira de me misturar com a comunidade humana – e terminei, meio sem graça.
Shekinah deu um sorriso luminoso.
– Um serviço de caridade para os gatos... nada mais perfeito! Sim, Zoey, acho sua ideia excelente. Amanhã você será dispensada das primeiras aulas para que possa começar a contatar as pessoas que trabalham no Street Cats.
– Sacerdotisa, eu preciso insistir para que a novata não ande pela comunidade sozinha – Ate disse rapidamente. – Não enquanto não soubermos exatamente quem é responsável pelos crimes contra o nosso povo.
– Mas os humanos não vão saber que somos novatas – Aphrodite disse.
Os olhos de todos se voltaram para ela, e percebi que ela empinou as costas e o queixo.
– E você, quem é? – Shekinah perguntou.
– Meu nome é Aphrodite, Sacerdotisa – ela respondeu.
Observei Shekinah atentamente, aguardando a reação que diria se ela ouvira os rumores que Neferet havia espalhado sobre Aphrodite – que Nyx lhe dera as costas e tinha tomado seus podres etc. etc., mas a expressão de curiosidade da Sacerdotisa não se alterou. Ela simplesmente disse: – Qual é a sua afinidade, Aphrodite?
Gelei. Droga! Ela não tinha mais afinidade nenhuma!
– A terra é o elemento que Nyx me deu – Aphrodite respondeu. – Mas o maior dom que a Deusa me deu é a habilidade de prever perigos através de visões.
Shekinah assentiu.
– Isso mesmo, já ouvi falar de suas visões, Aphrodite. Vamos lá, então. O que tem a dizer?
Senti um alívio profundo. Aphrodite se esquivara da pergunta sobre a afinidade e, graças ao tempo verbal que usara, não mentira.
– Eu estava pensando agora mesmo que os humanos não sabem quando saímos da escola, pois cobrimos nossas Marcas. As únicas pessoas que realmente saberiam que um bando de novatas estaria fazendo trabalho voluntário para ajudar o Street Cats seria o pessoal de lá, e quais são as chances de alguém do Street Cats estar envolvido nas mortes? – ela fez uma pausa e deu de ombros. – De modo que estaremos em segurança.
– Ela tem razão nesse ponto, Ate – Shekinah disse.
– Ainda acho que os novatos devem ser guardados por um guerreiro – Ate respondeu teimosamente.
– Isso chamaria a atenção para nós – Aphrodite ressaltou.
– Não se o guerreiro cobrir sua Marca também – Darius disse. Desta vez, todo mundo se virou para olhar para Darius, que ainda estava parado à porta como se fosse uma montanha atraente de músculos.
– E qual é o seu nome, guerreiro?
– Darius, Sacerdotisa – ele levou o punho fechado ao coração e fez uma mesura.
– Então, Darius, está dizendo que se dispõe a cobrir sua Marca? – Shekinah perguntou. Fiquei tão surpresa quanto ela pareceu estar. Os novatos tinham de cobrir as Marcas ao sair da escola, era uma regra da Morada da Noite. E fazia sentido. Sinceramente, os adolescentes podiam agir de maneira bem imbecil às vezes (especialmente adolescentes homens), e não seria nada bom para um bando de novatos ociosos (na maioria garotos) virar alvo de garotos humanos (ou, pior ainda, de tiras ou pais superprotetores). Mas, quando um novato passa pela Transformação e sua Marca fica completa e se expande, ele não vai querer, de forma alguma, cobri-la. Era questão de orgulho, de solidariedade e de ser adulto. Mas lá estava Darius, muito jovem e com pouco tempo de Marca, oferecendo-se para fazer algo que a maioria dos vamps , especialmente os vamps do sexo masculino, se negaria veementemente.
Darius fechou o punho sobre o coração de novo e saudou Shekinah.
– Sacerdotisa, eu posso cobrir minha Marca para acompanhar a novata e cuidar de sua segurança. Eu sou um Filho de Erebus e a proteção de meu povo é mais importante para mim do que um orgulho fora de hora.
Shekinah se voltou para Ate com um sorriso quase imperceptível nos lábios.
– O que me diz do pedido do guerreiro?
O vamp respondeu sem hesitar: – Eu digo que às vezes aprendemos muito com os mais jovens.
– Então está feito. Zoey, você vai se apresentar ao pessoal do Street Cats amanhã, mas quero que você escolha algum novato ou novata para ir com você. No momento, é melhor trabalhar em dupla. Darius, você lhes fará companhia com sua Marca disfarçada.
Todos lhe fizemos pequenas mesuras.
– E agora, se não têm mais nenhuma pergunta – ela fez uma pausa, e seus olhos se voltaram de Lenobia para Aphrodite, Darius e, finalmente, para mim – nem comentários, darei por encerrada esta reunião do Conselho. Vou promover um Ritual de Limpeza nos próximos dias. Senti o medo e o pesar impregnados nestas paredes ao chegar, e só a bênção de Nyx pode tirar este peso – vários dos membros do Conselho assentiram. – Zoey, antes de sair amanhã, gostaria que viesse me dizer quem vai acompanhá-la.
– Pode deixar – confirmei.
– Que todos abençoados sejam – ela disse, formalmente.
– Abençoados sejam – nós respondemos.
Shekinah sorriu de novo. Com um leve movimento de mão, ela chamou Lenobia e Ate e os três saíram da sala.
– Uau – Damien disse, parecendo totalmente inebriado e fascinado. – Shekinah! Isso foi totalmente inesperado, e ela estava mais esplendorosa do que eu imaginava. Tipo, eu queria dizer alguma coisa, mas fiquei completamente assarapantado.
Nós estávamos parados no corredor e Damien sussurrava entusiasmado enquanto os membros do Conselho e os guerreiros saíam da sala.
– Damien, desta vez não vamos zoar essa sua obsessão pentelha com palavras difíceis – Shaunee disse.
– É, porque para descrever Shekinah, só com palavras grandiosas e difíceis mesmo – Erin completou.
– Tchau – Aphrodite me disse após revirar os olhos para as gêmeas. – Vou procurar Darius para ver se dou uma assarapantada.
– Ahn? – perguntei.
– Esse não é o uso correto da palavra – Damien protestou.
– É, você estava pensando em outra palavra – Erin disse.
– Na verdade, você se confundiu; você vai procurar Darius para ver se vai dar – Shaunee falou.
– Mongas do Cérebro Compartilhado e Garoto-Dicionário, não tô nem aí para vocês – ela começou a seguir pelo corredor em direção a Darius. – Ah, e vou dizer uma coisa para vocês: não fiquem mordidinhos de ciúme quando Zoey disser que sou eu quem vai sair com ela amanhã – Aphrodite disse, olhando para mim de um jeito que deixou claro que havia uma razão bem específica para ela ter de ir comigo. Então, ela jogou o cabelo e saiu.
– Detesto ela – Erin afirmou.
– Digo o mesmo, gêmea – Shaunee retrucou.
Eu suspirei. Minha avó diria que eu estava dando um passo à frente e dois para trás nessa história de fazer meus amigos gostarem de Aphrodite. Eu diria que esse pessoal estava me dando uma baita dor de cabeça.
– Ela é um porre, mas meu palpite é que você vai chamá-la para acompanhá-la amanhã – Damien disse.
– É, seu palpite está certo – respondi com relutância. Eu realmente não queria aborrecer meus amigos de novo, mas, mesmo sem saber por que Aphrodite queria ir comigo, fazia total sentido. Talvez ela tivesse um plano para tirar Darius da jogada e encontrar Stevie Rae.
– Você podia ter nos contado antes essa história do poder psíquico – Damien disse quando começamos a sair do edifício principal e seguir em direção aos dormitórios.
– É, você deve ter razão, mas achei que, quanto menos eu falasse sobre o assunto, menor seria a possibilidade de vocês pensarem nele e nas razões pelas quais eu não estava mais contando nada para vocês – justifiquei.
– Agora faz sentido – Shaunee disse.
– É, agora nós entendemos – Erin emendou.
– Que bom que você não estava simplesmente escondendo as coisas da gente – Jack disse.
– Mas você podia ter contado sobre o babado de Loren – Erin opinou.
– Na verdade, quando passar seu luto e tudo mais, nós vamos querer saber dos detalhes de Loren – Shaunee falou.
Levantei as sobrancelhas ao me deparar com os olhares de curiosidade das duas.
– Podem esquecer – respondi.
Elas fecharam a cara.
– Respeitem a privacidade da garota – Damien ordenou. – A história com Loren foi muito traumática para ela, ainda mais com a Carimbagem e a perda da virgindade, além de Erik!
Damien interrompeu seu minissermão ao dizer Erik de um jeito estranho, como se tivesse engasgado. Abri a boca para perguntar qual era o problema, quando vi que ele estava de olhos arregalados e vidrados no ponto acima do meu ombro, e então ouvi atrás de mim o som inconfundível de uma porta lateral batendo. Sentindo um verdadeiro nó no estômago, dei meia-volta, bem como as gêmeas e Jack, e vi Erik adentrando a ala da escola pela qual acabáramos de passar e que, naturalmente, era onde ficava a sala das aulas de teatro.
– Oi, Damien, Jack – ele sorriu calorosamente para Jack, seu ex--companheiro de quarto, e vi que o garoto ficou quase tonto de prazer ao responder com um “oi” efusivo.
É claro que meu estômago começou a dar voltas dentro de mim, me fazendo lembrar de uma das razões pelas quais eu gostava tanto de Erik. Ele era popular e totalmente lindo de morrer, mas também era um cara bom de verdade.
– Shaunee, Erin – Erik continuou, acenando para elas com a cabeça. As gêmeas sorriram, olhando para ele com pestanas inquietas, e disseram oi em uníssono. Enfim, ele olhou para mim.
– Oi, Zoey – sua voz perdeu o tom tranquilo e simpático que havia usado com os outros. Mas não foi grosseiro. Na verdade, soou educado e calmo. Pensei que já era uma melhora, mas então me lembrei de como ele era bom ator.
– Oi – não consegui dizer mais nada. Eu não sou boa atriz e fiquei com medo de que minha voz soasse trêmula como estava meu coração.
– Acabamos de ser informados de que você vai nos dar aula de teatro – Damien disse.
– Pois é, fico meio sem graça, mas Shekinah pediu e não dá para negar para ela – ele respondeu.
– Acho que a professora Nolan ficaria feliz por você fazer isso – eu disse sem pensar.
Erik olhou para mim. Seus olhos azuis estavam absolutamente desprovidos de expressão, o que me deu uma sensação de algo totalmente errado. Aqueles mesmos olhos que já tinham me transmitido felicidade, paixão, calor e até um começo de amor. Depois, me transmitiram mágoa e raiva. E agora não me transmitiam nada. Como era possível?
– Você ganhou alguma nova afinidade? – seu tom não foi totalmente agressivo, mas ele falou de um jeito curto e frio. – Agora você fala com os mortos?
Senti meu rosto esquentar.
– Nã-não – gaguejei. – Eu só... bem, eu pensei que a professora Nolan iria gostar do fato de você assumir seus alunos.
Ele abriu a boca e vi algo maldoso em seus olhos, mas ao invés de falar ele olhou para o outro lado, onde só havia um breu. Sua mandíbula trincou e ele passou a mão nos cabelos grossos e negros num gesto que reconheci; ele sempre fazia isso quando se sentia confuso.
– Tomara que ela goste mesmo. Ela sempre foi minha professora favorita – ele finalmente disse sem olhar para mim.
– Erik, vamos voltar a dividir o quarto? – Jack perguntou, meio sem jeito com o silêncio cada vez mais desconfortável que havia se formado.
Erik soltou o ar dos pulmões longamente e então deu um sorriso simpático para Jack.
– Não, sinto muito. Eles me colocaram no edifício dos professores.
– Ah, claro. Eu me esqueço de que você já passou pela Transformação – Jack disse com uma risadinha nervosa.
– É, às vezes até eu me esqueço – Erik respondeu. – Na verdade, preciso ir para lá; tenho que abrir minhas caixas e preparar umas aulas. Depois nos vemos, pessoal – ele fez uma pausa e então olhou para mim. – Tchau, Zoey.
Tchau. Meus lábios se mexeram, mas não saiu nenhum som.
– Tchau, Erik! – todos disseram, e ele deu meia-volta e seguiu com passos rápidos em direção às dependências dos professores.

11
Meus amigos ficaram tagarelando sobre nada em particular enquanto caminhávamos de volta para os dormitórios. Todo mundo ignorou de propósito o fato de termos acabado de encontrar meu ex--namorado e de ter sido uma cena realmente esquisita e pesada. Pelo menos para mim, foi.
Odiava me sentir assim. Eu tinha feito Erik terminar comigo, mas sentia falta dele. Muita falta. E ainda gostava dele. Gostava muito. Claro que agora ele estava sendo escroto, mas me pegou na cama com outro homem – bem, com outro vampiro, na verdade. Como se fizesse diferença. Enfim, a questão é que causei essa confusão toda e era incrivelmente frustrante não poder consertar meu erro, pois eu ainda gostava de Erik.
– O que você acha dele, Z.?
– Dele? – Erik? Que inferno, eu o achava incrível e frustrante e... e então percebi que Damien não estava me perguntando sobre Erik quando ele franziu a testa e me olhou como quem diz “se liga”. – Ahn? – perguntei, inteligentíssima.
Damien suspirou.
– O garoto novo. Stark. O que você achou dele?
Dei de ombros.
– Ele pareceu legal.
– Legal e gostoso – Shaunee disse.
– Do jeitinho que a gente gosta – Erin completou.
– Você passou mais tempo com ele do que nós. O que achou dele? – perguntei a Damien, ignorando as gêmeas.
– Ele é legal. Mas parece distante. Acho que o fato de não poder dividir o quarto com ninguém por causa da Duquesa aumenta a distância. Cara, aquela cachorra é grande mesmo – Damien disse.
– Ele é novo, pessoal. Todos nós sabemos como é isso. Talvez o jeito de ele lidar com a situação seja esse, ser distante – retruquei.
– É estranho que um cara com tanto talento não queira usá-lo – Damien parecia confuso.
– Deve ter algo mais nessa história que a gente não sabe – eu disse, pensando no jeito tranquilo e seguro de Stark ao enfrentar os vamps por causa da cachorra e em como essa indiferença se transformou quando Neferet o fez pensar que queria que ele usasse seus talentos para competir. Ele ficou esquisito, talvez até com medo. – Às vezes, ser dotado de poderes incomuns dá medo – falei mais comigo mesma do que com Damien, mas ele sorriu para mim e esbarrou o ombro no meu.
– Acho que você entende de poderes incomuns – ele respondeu.
– Acho que sim – sorri para ele, tentando me animar e espantar o baixo-astral daquele encontro com Erik.
O celular de Shaunee fez um blip , anunciando a chegada de mensagem de texto, e ela abriu seu iPhone.
– Ôôôô, gêmea! É o gostooooso do Cole Clifton. Ele e T. J. querem saber se estamos a fim de assistir à maratona dos filmes Bourne no dormitório dos garotos – Shaunee estava animada.
– Gêmea, eu nasci para assistir a maratonas dos filmes Bourne – Erin respondeu.
Então as duas deram risinhos e fizeram barulhinhos eróticos, e todos nós reviramos os olhos.
– Ah, vocês também estão convidados – Shaunee disse para mim, Damien e Jack.
– Maravilha – Jack falou. – Eu nunca vi o último da série. Como era mesmo o nome?
– O Ultimato Bourne – Damien respondeu sem pestanejar.
– Isso mesmo – Jack pegou a mão dele. – Você sabe tudo sobre cinema! Conhece todos os filmes.
Damien corou.
– Bem, nem todos. Em geral, gosto dos clássicos. Da época em que os filmes tinham astros de verdade no elenco, como Gary Cooper, Jimmy Stewart e James Dean. Hoje em dia tem muitos atores que são... – ele parou de falar de repente.
– O que foi? – Jack perguntou.
– James Stark – ele respondeu.
– O que tem ele? – perguntei.
– James Stark é o nome do personagem de James Dean em Juventude Transviada. Sabia que aquele nome me soava familiar, mas pensei que fosse por ele ser tão famoso.
– Gêmea, você já viu esse filme? – Erin perguntou a Shaunee.
– Não, gêmea. Não vi, não.
– Ahn – resmunguei. Eu tinha visto o filme (com Damien, é claro) e me perguntei se Stark já tinha esse nome antes de ser Marcado. Ou se, como muitos garotos, adotou um novo nome ao começar vida nova como novato. Se fosse o caso, seria uma indicação bem interessante sobre sua personalidade.
– E então, você vem, Z.? – a voz de Damien penetrou em meu blá-blá-blá interno. Levantei os olhos e me deparei com quatro pares de olhos me encarando, questionadores.
– Aonde?
– Nossa mãe, Terra chamando Zoey! Você vem com a gente ao dormitório dos garotos para assistir à maratona Bourne ? – Erin perguntou.
Respondi automaticamente.
– Ah, tá. Não – sentia-me feliz por meus amigos não estarem mais de mal comigo, mas realmente não estava no clima para sair. Na verdade, sentia-me meio machucada e fora de mim. Em questão de poucos dias tinha sido Carimbada e perdera minha virgindade com um homem-vamp que não me amava, e depois ele fora horrivelmente assassinado. Eu magoara meus namorados. Os dois. A guerra havia quase começado e fora abortada. Mais ou menos. Minha melhor amiga não era mais morta-viva, mas não era normal, nem como novata nem como vampira, e os garotos com quem ela estava vivendo eram menos ainda. Mas eu não podia contar sobre os novatos vermelhos à maioria dos meus amigos (na verdade, para ninguém, exceto Aphrodite), pois era melhor que Neferet não soubesse que sabíamos. E agora Erik, um dos meus ex-namorados magoados, ia ser meu professor de teatro. Como se ele estar de volta à Morada da Noite não fosse um drama teatral por si só. – Não – repeti com mais firmeza. – Acho que vou dar uma olhada em Persephone – tá, eu sei que eu havia estado no estábulo faz pouco tempo, mas com certeza não seria nada mal mais uma dose de sua presença calorosa e tranquila.
– Tem certeza? – Damien perguntou. – Nós realmente gostaríamos que você viesse conosco.
Meus outros amigos assentiram e sorriram, desatando o último nó de medo que me congelava o estômago desde que haviam brigado comigo.
– Obrigada, pessoal. Mas realmente não estou no pique de sair esta noite – respondi.
– Tá – Erin concordou.
– Tranquilo – Shaunee confirmou.
– Até mais – Jack disse.
Pensei que Damien fosse me dar seu típico abraço de despedida, mas ele disse a Jack: – Vocês vão indo na frente, que eu os encontro depois. Vou caminhar com Z. até a estrebaria.
– Boa ideia – Jack disse. – Vou preparar pipoca para você.
Damien sorriu.
– Guarda um lugar para mim também?
Jack sorriu e deu um beijinho ligeiro nele.
– Sempre.
Então, as gêmeas e Jack seguiram para um lado, e Damien e eu seguimos na direção oposta. Tomara que isso não fosse um mau presságio sobre para onde nossas vidas estavam se direcionando.
– Você realmente não precisa me acompanhar até a estrebaria – eu disse. – Não é tão longe assim.
– Você não disse hoje que uma coisa a atacou e machucou sua mão quando estava caminhando da estrebaria para o refeitório?
Levantei as sobrancelhas.
– Achei que você não tinha acreditado em mim.
– Bem, digamos apenas que fui convencido pelas visões de Aphrodite. Por isso, quando terminar, se quiser pode ligar para o meu celular. Jack e eu vamos fingir que somos bofes e vamos acompanhar você na volta.
– Ah, peraí. Vocês não são afetados nem bichinhas.
– Bom, eu não sou, mas Jack é.
Nós rimos. Estava pensando em discutir com ele o assunto “Zoey precisa de guarda-costas” quando uma gralha começou a grasnar. Na verdade, agora que estava bem acordada e ouvindo bem, o grasnado mais pareceu um resmungo, mas era irritante mesmo assim.
Não, talvez irritante não fosse o termo certo para o som. Sinistro. Sinistro era exatamente o termo certo para o som.
– Você ouviu isso, não ouviu? – perguntei.
– O corvo? Ouvi.
– Corvo? Achei que fosse uma gralha.
– Não, acho que não. Se não me falha a memória, gralhas grasnam, mas o canto de um corvo parece mais o barulho de sapos resmungando – Damien fez uma pausa e o pássaro gralhou mais umas vezes. A ave parecia estar perto, e sua voz feia fez os pelos do meu braço se arrepiarem. – Sim, é um corvo, com certeza.
– Não tô gostando. E por que esse barulho todo? Estamos no inverno, não pode ser acasalamento, não é? Além do mais, é noite. Ele não devia estar dormindo? – espreitei na escuridão enquanto falava, mas não vi nenhum pássaro barulhento idiota, o que não era tão estranho. Tipo, eles são pretos, e era noite. Mas aquele corvo pareceu encher o céu ao meu redor, e havia alguma coisa naquele chamado abrasivo que fez meu corpo tremer.
– Eu realmente não sei muito sobre os hábitos do bicho – Damien fez uma pausa e me olhou cuidadosamente. – Por que isso está lhe incomodando tanto?
– Ouvi asas batendo antes, quando aquele sei lá o quê veio pra cima de mim. E a sensação foi sinistra. Você não achou?
– Não.
Suspirei e pensei que ele ia dizer que talvez eu precisasse desestressar e não me deixar levar pela imaginação, mas ele me surpreendeu ao dizer: – Mas você é mais intuitiva do que eu. Então, se você diz que tem alguma coisa errada com esse pássaro, acredito em você.
– Acredita? – estávamos na escada do estábulo, então parei e me virei para ele. Seu sorriso estava repleto de sua já conhecida cordialidade.
– É claro que acredito. Acredito em você, Zoey.
– Ainda? – perguntei.
– Ainda – ele disse com firmeza. – E estou bancando seu guarda--costas.
Então, do nada, o corvo parou de resmungar, e o clima sinistro que eu estava sentindo pareceu sumir também. Tive de limpar a garganta e piscar os olhos com força antes de conseguir dizer: – Obrigada, Damien.
Então, ouvi o miado da velha mal-humorada Nala – Miauff – e vi minha gatinha gorducha e alaranjada sair da escuridão trotando e indo se enroscar nas pernas de Damien.
– Oi menina – ele disse, coçando debaixo do queixo dela. – Parece que ela veio assumir a função de guarda-costas de Zoey.
– Opa, tô vendo que você arrumou uma assistente – respondi.
– Se você precisar de mim quando quiser voltar, é só me ligar. Eu realmente não me importo – ele confirmou, me apertando forte.
– Obrigada – agradeci novamente.
– Sem problema, Z. – ele sorriu para mim mais uma vez e então, cantarolando Seasons of Love , do musical Rent , foi andando pela calçada até desaparecer.
Eu ainda estava sorrindo quando abri a porta lateral que levava ao corredor que separava o centro esportivo da estrebaria. Já dava para sentir vindo da direita a mistura doce de cheiro de feno e de cavalo e, com o alívio de saber que meus amigos realmente não estavam mais bravos comigo, quase me senti começando a relaxar. Estresse! Nossa mãe! Eu realmente estava precisando fazer ioga ou sei lá o quê (provavelmente mais sei lá o quê do que ioga). Se eu continuasse com essa tensão toda, acabaria desenvolvendo uma úlcera. Ou, pior ainda, rugas.
Eu estava virando à minha direita e tocando com a mão a porta do estábulo quando ouvi um barulho esquisito, flapt, seguido de uma batida abafada, tump . Os ruídos vinham da esquerda. Olhei para o lado e vi que a porta do centro esportivo estava aberta. Os barulhos estranhos se repetiram, atiçando minha curiosidade e, como era típico em mim, ao invés de demonstrar bom-senso e entrar no estábulo, como era minha intenção, entrei no centro esportivo.
Tá, o centro esportivo é basicamente um campo de futebol coberto que não é campo de futebol , mas só o campo com uma pista ao redor. No interior, garotos jogam futebol e praticam corrida. (Eu realmente não sou fã de nenhum dos dois, mas sei, na teoria, como funciona o lugar.) O centro é coberto, para que os novatos não tenham problemas com o sol, e iluminado ao longo dos muros por lampiões de gás, cuja luz não incomoda. Nesta noite, a maioria deles estava apagada, de modo que foi o som do próximo flapt , e não minha visão, que me atraiu a atenção para o outro lado do centro esportivo.
Stark estava de costas para mim, segurando um arco e mirando o centro de um daqueles alvos redondos com vários círculos consecutivos de cores diferentes marcando diferentes áreas. O centro vermelho do alvo que ele mirava tinha sido atingido por uma flecha estranhamente gorda. Apertei os olhos, mas não consegui enxergar direito por causa da pouca luz e porque o alvo estava realmente bem longe de Stark, o que significava bem, bem longe de onde eu estava.
Nala soltou um grunhidozinho gutural e reparei que aquele volume louro ao lado de Stark era Duquesa, toda esparramada e aparentemente adormecida a seus pés.
– Grande cão de guarda que ela é – sussurrei para Nala.
Stark esfregou a testa com as costas da mão como se estivesse enxugando o suor do rosto e remexeu os ombros, soltando-os. Mesmo de longe, ele parecia confiante e seguro. Parecia bem mais intenso do que os demais caras da Morada da Noite. Que inferno, ele era mais intenso do que os adolescentes humanos em geral, e foi impossível não ficar intrigada. Eu estava lá, pensando qual cara seria tão gostoso quanto ele, quando ele pegou outra flecha da aljava a seus pés, virou de lado, levantou o arco e, com um movimento tão rápido que embaçou minha vista, soltou o ar e flapt!, soltou outra flecha, que foi direto para o meio do alvo distante, como se fosse uma bala. Tump!
Arfei baixinho de surpresa e entendi por que a flecha no meio do alvo parecia estranha de tão grande. Não era só uma. Era um monte de flechas superpostas. Cada uma que ele atirou havia atingido o mesmo ponto no alvo. Totalmente chocada, meus olhos se voltaram para Stark, que ainda estava na postura de arqueiro. Então, me dei conta do tipo de gostosura que melhor o definia: o tipo Bad Boy Gostoso .
Ah, oh. Até parece que eu precisava me interessar por um bad boy . Que inferno, eu estava legal de garotos. Totalmente. Quando comecei a dar meia-volta de fininho, sua voz me deteve.
– Eu sei que você está aí – Stark disse sem olhar para mim. Duquesa se levantou como se tivesse ouvido uma deixa, bocejou, caminhou para perto de mim balançando o rabo e fazendo um woof tipicamente canino. Nala se eriçou toda, mas não chiou nem rosnou, chegando até a deixar a labradora cheirá-la um pouquinho, mas espirrando logo em seguida na cara de Duquesa.
– Oi – eu disse para ambos enquanto esfregava as orelhas de Duquesa.
Stark se voltou para mim. Ele estava com aquele seu quase sorriso metidinho. Eu estava começando a entender que aquela expressão devia ser normal para ele. Notei que parecia mais pálido do que estava no jantar. Era duro ser novato no pedaço; a pessoa fica desgastada. Mesmo no caso de um bad boy gostoso.
– Eu estava indo para a estrebaria e ouvi algo aqui. Não quis lhe interromper.
Ele deu de ombros e começou a dizer alguma coisa, mas teve de parar e limpar a garganta como alguém que não falasse há muito tempo. Ele deu uma tossidinha e finalmente disse: – Sem problema. Na verdade, estou contente por você estar aqui. Assim não preciso ir atrás de você.
– Ah, você precisa de alguma coisa para Duquesa?
– Não, ela está bem. Trouxe um monte de coisas dela. Na verdade, queria conversar com você.
Não. Eu não estava nem um pouco louca de curiosidade nem lisonjeada por ele querer falar comigo. Com toda calma e total indiferença, eu disse: – E o que você quer?
Ao invés de responder, ele me fez uma pergunta.
– Essas suas Marcas especiais significam que você realmente tem afinidade com todos os cinco elementos?
– É – respondi, tentando não ranger os dentes. Eu realmente odiava que os recém-chegados me fizessem perguntas sobre minhas Marcas. A tendência era, das duas, uma: ou me reverenciavam como uma heroína, ou me tratavam como se eu fosse uma bomba prestes a explodir a qualquer instante. Seja como for, era muito desconfortável e nada lisonjeiro nem intrigante.
– Tinha uma Sacerdotisa na Morada da Noite de Chicago que tinha afinidade com o fogo. Ela podia tacar fogo nas coisas. Você sabe usar os cinco elementos assim?
– Eu não sei fazer a água ferver nem nada bizarro assim – evitei responder diretamente.
Ele franziu a testa e balançou a cabeça, esfregando a mão na testa outra vez. Tentei não reparar que ele estava suando de um jeito meio sexy .
– Não estou perguntando se você sabe distorcer os elementos. Eu só preciso saber se você é poderosa o bastante para controlá-los.
O que ele disse me fez parar de prestar atenção na carinha bonita dele.
– Bom, olha só. Eu sei que você é novo, mas isso realmente não é da sua conta.
– Ou seja, você é bem poderosa mesmo.
Olhei para ele com uma expressão zangada.
– Mais uma vez, não é da sua conta. Se você precisar de mim para algo que seja da sua conta, como me pedir coisas para sua cachorra, pode me procurar. Senão, tô fora.
– Espera – ele deu um passo em minha direção. – Pode parecer que estou sendo petulante, mas tenho uma boa razão para lhe perguntar isso.
Ele havia perdido seu semissorriso sarcástico e não estava me olhando daquele jeito curioso, tipo “vamos ver se a Zoey é esquisita mesmo”. Parecia mais um garoto bonitinho que precisava seriamente saber de alguma coisa.
– Tá bom. Sim. Sou bastante poderosa.
– E pode realmente controlar os elementos? Tipo, se algo ruim acontecer, você pode proteger a si mesma e às pessoas queridas?
– Tá, é isso – respondi. – Você está me ameaçando e aos meus amigos?
– Ah, merda, não! – ele disse rapidamente, levantando uma das mãos com a palma aberta, como quem se rende. É claro, foi difícil não reparar que ele ainda estava segurando o arco com o qual esteve atirando flechas bem no alvo. Ele viu meus olhos se voltarem para o arco e lentamente se abaixou para colocá-lo aos seus pés. – Não estou ameaçando ninguém. Só não sei me explicar direito. O negócio é o seguinte: quero que você saiba do meu dom.
Ele disse a palavra dom de um jeito tão desconfortável que levantei as sobrancelhas e repeti: – Dom?
– É assim que chamam, ou pelo menos é como as outras pessoas chamam. É por causa do meu dom que sou tão bom nisso – ele apontou com o queixo para o arco a seus pés.
Eu não disse nada, mas levantei as sobrancelhas e esperei (com impaciência) que ele continuasse.
– Meu dom é que eu não erro o alvo – ele disse finalmente.
– Não erra o alvo? E daí? O que isso tem a ver comigo ou com a minha afinidade com os elementos?
Ele balançou a cabeça de novo.
– Você não entende. Eu sempre vou acertar o alvo, mas isso não quer dizer que meu alvo seja sempre o que estou apontando.
– Você não está dizendo coisa com coisa, Stark.
– Eu sei, eu sei. Eu disse que não sou bom nisso – ele passou a mão nos cabelos, que ficou meio cheio, como um rabo de pato. – A melhor maneira de lhe dizer isso é dar um exemplo. Já ouviu falar do vampiro William Chidsey?
Balancei a cabeça.
– Não, mas isso não devia te surpreender. Faz poucos meses que fui Marcada. Não sou exatamente muito informada sobre política vamp .
– Will não tinha nada a ver com política. O negócio dele era arco e flecha. Ele foi, por quase duzentos anos, campeão incontestável do arco e flecha entre todos os vampiros.
– Ou seja, do mundo inteiro, porque os vamps são os melhores arqueiros que existem – eu disse.
– É – ele assentiu. – Enfim, Will foi o “bambambã” por quase dois séculos. Pelo menos até seis meses atrás.
Pensei por um instante.
– Seis meses atrás era verão. Foi quando eles fizeram a versão vamp das Olimpíadas, certo?
– É, eles chamam de Jogos de Verão.
– Tá, então esse Will era bom no arco e flecha. Você também, ao que parece. Você o conhece bem?
– Conhecia. Ele morreu. Mas, sim. Eu o conhecia muito bem – Stark fez uma pausa e então acrescentou: – Ele era meu mentor e meu melhor amigo.
– Ah, sinto muito – eu disse, sem jeito.
– Eu também. Fui eu quem o matou.

12
– Você disse que o matou? – eu estava certa de ter ouvido errado.
– É, foi o que eu disse. Eu fiz isso por causa do meu dom – a voz de Stark soou fria, como se não estivesse dizendo nada demais, mas seus olhos diziam outra coisa. A dor que havia neles era tão óbvia que tive que desviar o olhar. Duquesa foi para o lado de seu mestre e se sentou ao lado dele, como se aquela dor também lhe fosse óbvia, encostando-se e olhando-o com adoração, choramingando baixinho. Automaticamente, Stark se abaixou e fez carinho na cabeça macia do animal enquanto falava. – Aconteceu durante os Jogos de Verão. Foi logo antes das finais. Will e eu estávamos bem na liderança, era certo que as medalhas de ouro e prata viriam para nós – ele não olhou para mim enquanto falava. Ao invés disso, ficou olhando para o arco e acariciando a cabeça de Duquesa. Por mais estranho que parecesse, Nala foi para pertinho dele e começou a se esfregar na sua perna (a perna na qual Duquesa não estava recostada) e a ronronar como um cortador de grama. Stark continuou a falar. – Nós estávamos nos aquecendo em um lugar próprio para treinar. Eram áreas longas e finas separadas por divisórias de linho branco. Will estava à minha direita. Eu me lembro de puxar o arco e me concentrar como nunca na vida. Eu realmente queria vencer – ele fez outra pausa e balançou a cabeça. Sua boca se contorceu, como se ironizasse a si mesmo. – Isso era o mais importante para mim. A medalha de ouro. Então puxei o arco e pensei: “Custe o que custar, quero acertar a marca e derrotar Will”. Atirei a flecha, mirando o alvo com meus olhos, mas, na minha cabeça, me imaginei atingindo Will – Stark soltou a cabeça e deu um suspiro fundo como um vento de tempestade. – A flecha voou direto para o alvo em minha mente. Ela atingiu o coração de Will e o matou instantaneamente.
Senti minha cabeça balançar para a frente e para trás.
– Mas como isso pôde acontecer? Ele estava perto do alvo?
– Não, nada perto. Ele estava uns dez passos à minha direita. Estávamos separados apenas pela divisória de linho. Eu estava de frente quando apontei e atirei, mas não fez diferença. A flecha atravessou o peito dele – ele fez uma expressão de dor que mostrou como a memória do episódio ainda o abalava. – Foi tão rápido, tudo ficou meio embaçado. Então, vi o sangue dele manchando o linho branco que nos separava, e ele morreu.
– Mas, Stark, talvez não tenha sido você. Talvez tenha sido algum tipo de acaso mágico infeliz.
– Foi o que pensei no começo, ou pelo menos foi o que esperei. Então, resolvi testar meu dom.
Senti um nó no estômago.
– Você matou mais alguém?
– Não! Testei em coisas sem vida. Tipo um trem de carga que costumava passar pela escola todo dia mais ou menos na mesma hora. Sabe, um desses trens tipo antigos, com motor preto grande e um vagão vermelho de passageiros. Ainda tem muitos deles passando por Chicago. Imprimi uma foto do vagão de passageiros e coloquei em um alvo no terreno da escola. Pensei em atingir o vagão de passageiros e atirei.
– E? – perguntei, ao ver que ele não dizia nada.
– A flecha desapareceu. Mas só temporariamente. Eu a encontrei no dia seguinte quando estava esperando, perto da pista. Estava enfiada no verdadeiro vagão de passageiros.
– Caraca! – eu disse.
– Daí você vê – ele veio para perto de mim e parou bem perto. Seus olhos capturaram os meus com aquela sua intensidade típica. – É por isso que eu tinha que te contar sobre mim, e é por isso que precisava saber se você tem capacidade de proteger os seus.
Meu estômago, que já tinha dado um nó, começou a dar voltas.
– O que você vai fazer?
– Nada! – ele gritou, fazendo Duquesa choramingar de novo e Nala parar de se esfregar e ronronar para olhar para ele. Ele limpou a garganta e fez um óbvio esforço para se recompor. – Eu não quero fazer nada. Mas também não quis matar Will, e matei.
– Você não conhecia seus poderes na época, mas agora conhece.
– Eu suspeitava – ele disse baixinho.
– Ah – foi tudo que consegui dizer.
– É – ele disse, apertando os lábios com força antes de continuar. – Eu sabia que havia alguma coisa de estranho com meu dom. Eu devia ter ouvido meus instintos. Devia ter tomado mais cuidado. Mas não fiz nada disso, e Will está morto. Então, quero que você saiba a verdade sobre mim antes que eu faça besteira de novo.
– Peraí! Se entendi o que você está dizendo, só você pode saber para onde está realmente apontando, pois tudo acontece dentro da sua cabeça.
Ele deu um riso sarcástico.
– Você acha, né? Mas não é assim que funciona. Uma vez achei que fosse perfeitamente seguro praticar um pouco de tiro e fui para o parque perto da nossa Morada da Noite. Não tinha ninguém por perto para me distrair; eu fiz questão disso. Encontrei um grande carvalho velho e coloquei um alvo na frente do que concluí que fosse o meio da árvore.
Ele estava olhando para mim como se esperasse uma resposta, então fiz que sim com a cabeça.
– Você quer dizer tipo o meio do tronco?
– Exatamente! Foi para onde pensei que estava mirando, mais ou menos o meio da árvore. Mas você sabe como às vezes chamam o meio de uma árvore?
– Não, eu realmente não entendo muito de árvores – respondi de um jeito idiota.
– Eu também não entendia. E procurei saber depois. Os antigos vampiros, que tinham afinidade com a terra, chamavam o meio da árvore de coração. Eles acreditavam que às vezes os animais, ou mesmo as pessoas, podiam representar o coração de uma árvore específica. Então eu atirei, pensando em atingir o meio, ou o coração, da árvore – ele não disse mais nada, apenas ficou olhando para o arco a seus pés.
– Quem você matou? – perguntei baixinho. Sem realmente pensar, levantei a mão e a coloquei no ombro dele. Nem sei direito por que o toquei. Talvez fosse porque ele parecia precisar do toque de outra pessoa. E talvez fosse porque, apesar de admitir o perigo que representava, ele de alguma forma me atraía.
Ele cobriu minha mão com a dele e jogou os ombros para a frente.
– Uma coruja – ele respondeu, quebrando o clima. – Uma flecha atravessou o peito dela. Ela estava empoleirada em um galho interno do carvalho. Ela caiu no chão berrando.
– A coruja era o coração da árvore – sussurrei, tentando conter a insana vontade que me deu de tomá-lo nos braços e confortá-lo.
– É, e eu a matei – ele levantou os olhos para fitar os meus. Pensei nunca ter visto antes um olhar tão assombrado pelo arrependimento. Como os dois animais aos seus pés o consolavam e, pelo menos Nala, agiam de maneira mais intuitiva do que de costume, me ocorreu que Stark podia muito bem ter outros dons além de simplesmente acertar onde mirava, mas pensei bem e não disse nada. Ele nem estava precisando de mais dons para se preocupar, não é? Stark continuou falando. – Viu? Sou perigoso mesmo quando não tenho intenção de ser.
– Acho que entendo – respondi cuidadosamente, ainda tentando acalmá-lo com meu toque. – Talvez seja melhor você pendurar seu arco e flecha, ao menos até realmente saber dominar seu dom.
– É o que eu devia fazer. Eu sei. Mas, se eu não praticar, se parar de atirar e tentar esquecer tudo isso, vai ser como arrancar uma parte de mim. Eu sinto como se algo dentro de mim morresse – ele soltou a mão da minha e recuou, interrompendo o contato físico. – Você devia saber disso também, eu sou na verdade um covarde, pois não aguento esta dor.
– Não querer sentir dor não faz de você um covarde – eu disse rapidamente, seguindo a vozinha que sussurrou em minha mente. – Só faz de você um humano.
– Novatos não são humanos – ele respondeu.
– Na verdade, não estou muito certa disso. Eu acho que a melhor parte de todo mundo é a parte humana, sejam novatos ou vampiros.
– Você é sempre tão otimista?
Eu ri.
– Ah, que inferno, não!
Seu sorriso estava menos sarcástico e mais real desta vez.
– Você não me faz lembrar a Debbie Downer[5] , mas eu te conheço faz pouco tempo.
Sorri para ele.
– Eu não sou exatamente tão pessimista assim, ou ao menos não costumava ser – meu sorriso se desfez. – Acho que dá para dizer que ultimamente não ando muito animada.
– O que aconteceu recentemente?
Rapidamente balancei a cabeça: – Mais coisas do que posso contar em detalhes agora.
Ele me fitou nos olhos, e fiquei surpresa ao ver compreensão em seu olhar. Então, Stark me surpreendeu ainda mais ao se aproximar de mim outra vez e afastar uma mecha de cabelo do meu rosto.
– Sou bom ouvinte se você quiser falar. Às vezes é bom ouvir a opinião de alguém de fora.
– Você não preferia não ser uma pessoa de fora? – perguntei, tentando não me deixar abalar pela proximidade do seu corpo e por perceber como parecia fácil para ele ficar perto de mim e chegar direto ao meu coração.
Ele deu de ombros e seu sorriso ficou sarcástico de novo.
– É mais fácil assim. É uma das razões pelas quais não me aborreci por terem me transferido da minha Morada da Noite.
– Eu queria lhe perguntar sobre isso – fiz uma pausa. Fingindo precisar de espaço para andar de um lado para o outro, me afastei dele enquanto minha mente oscilava entre a atração que sentia por ele e a necessidade de responder às perguntas de um jeito que não o fizesse pensar em coisas que não devia pensar, principalmente perto de Neferet. – Você se importa se eu lhe perguntar algo sobre o fato de você vir para cá?
– Pode me perguntar qualquer coisa, Zoey.
Olhei para seus olhos castanhos e enxerguei mais do que as simples palavras que ele estava dizendo.
– Tudo bem... Eles o transferiram por causa do que aconteceu com Will?
– Acho que sim. Não tenho certeza. Todos os vamps da minha antiga escola disseram que a Grande Sacerdotisa daqui requisitou minha transferência para cá. Às vezes acontece, quando o novato tem algum dom especial que outras escolas querem ou precisam – ele deu uma risada sem graça. – Eu sei que a nossa Morada da Noite vem tentando roubar aquele ator de sucesso que vocês têm aqui, como é o nome dele? Erik Night?
– É, o nome dele é Erik Night. Ele não é mais novato. Já passou pela Transformação – eu realmente não queria pensar em Erik enquanto me sentia tão atraída por Stark.
– Ah, hum. Enfim, sua Morada não o liberou, e ele não queria ir. Minha Morada não fez questão de me fazer ficar. E eu não tinha nenhuma razão para ficar. Então, quando soube que me queriam em Tulsa, avisei que não iria competir de novo, de jeito nenhum. Mas, pelo jeito, não fez diferença, porque me quiseram mesmo assim, e aqui estou eu – o sarcasmo em sua expressão desapareceu e por um instante ele pareceu apenas doce e meio inseguro. – Estou começando a ficar realmente feliz por Tulsa me querer tanto.
– É – sorri, totalmente abalada pela conexão que estava sentindo com ele. – Também estou começando a ficar realmente feliz por Tulsa te querer – então minha mente captou tudo que ele dissera, e me veio uma terrível premonição. Tive de limpar a garganta antes de fazer a próxima pergunta. – Todos os vamps sabem como Will morreu?
Seus olhos faiscaram de dor outra vez, e fiquei triste por ter de perguntar.
– Provavelmente. Todos os vamps da minha antiga escola sabiam, e você sabe como eles são; é difícil guardar segredo entre eles.
– É, eu sei como eles são – disse baixinho.
– Ei, foi impressão minha ou rolou um clima estranho entre você e Neferet?
Pisquei os olhos, surpresa.
– Ahn, como assim?
– Senti uma tensão entre vocês duas. Tem alguma coisa que eu precise saber sobre ela?
– Ela é poderosa – respondi cuidadosamente.
– É, tô ligado. Toda Grande Sacerdotisa é poderosa.
Fiz uma pausa.
– Digamos que ela não é exatamente o que aparenta, e que você deve tomar cuidado com ela. E vamos parar por aqui até segunda ordem. Ah! Ela é extremamente intuitiva, praticamente médium.
– Bom saber. Vou tomar cuidado.
Decidi voltar rapidamente ao que ia fazer antes de encontrar esse garoto que, por um lado, parecia intenso e autoconfiante, mas, por outro, estava visivelmente vulnerável, e me fascinava total e completamente, me dando vontade de esquecer que eu havia cortado sexo da minha vida. Sexo?! Eu quis dizer garotos . Eu havia cortado os garotos da minha vida. E o sexo. Com eles. Ah, minha nossa.
– Melhor eu ir nessa. Tenho uma égua me esperando para ser escovada – disse sem pensar.
– Melhor não deixar um animal esperando. Eles podem ser bem mandões – ele sorriu, olhando para Duquesa, e esfregou suas orelhas. Quando comecei a me virar para ir embora, ele segurou meu pulso e deixou a mão deslizar até seus dedos se entrelaçarem nos meus. – Ei – ele disse baixinho. – Obrigado por não ficar bolada com o que eu disse.
Sorri para ele.
– Infelizmente, depois da semana que tive, seu dom esquisito fica quase normal.
– Infelizmente, é bom ouvir isso – e então ele levantou minha mão e a beijou. Assim. Como beijava as mãos das garotas todo dia. Eu não sabia o que dizer. Qual era o protocolo quando um cara beija sua mão? A gente agradece? Eu bem que queria beijá-lo também, e estava pensando em como não devia estar pensando essas coisas enquanto olhava fixo para dentro de seus olhos castanhos, quando ele disse: – Você vai contar para todo mundo sobre mim?
– Você quer que eu conte?
– Não, a não ser que você tenha que contar.
– Então não vou contar, a não ser que tenha – prometi.
– Obrigado, Zoey – ele agradeceu, apertou minha mão, sorriu e me soltou.
Fiquei lá parada por um instante, observando-o pegar seu arco e caminhar até onde estava a aljava com as flechas. Sem me olhar de novo, ele pegou uma flecha da aljava, mirou e atirou, e a flecha foi diretamente para o centro do alvo de novo. Sério, ele estava total e completamente misterioso e sexy , e eu estava caindo fora pra valer . Dei meia-volta e, dizendo a mim mesma que precisava dar um jeito nos meus hormônios, estava quase saindo pela porta quando o ouvi tossir pela primeira vez. Parei, imóvel, na esperança de que, se eu parasse por um instante, ele limparia a garganta como antes e então o próximo som que eu ouviria seria o de outra flecha atingindo o alvo.
Stark tossiu de novo. Dessa vez, ouvi o som molhado no fundo de sua garganta. E então o cheiro me atingiu – o belo e terrível cheiro de sangue fresco. Rangi os dentes de raiva do meu desejo nojento.
Eu não queria me virar. Queria sair correndo do edifício, chamar alguém para ajudá-lo e não voltar mais, nunca mais. Não queria testemunhar o que eu sabia que ia acontecer em seguida.
– Zoey! – meu nome saiu da sua boca repleto de líquido e de medo. Eu me forcei a dar meia-volta.
Stark já estava caído de joelhos. Percebi que estava vomitando sangue fresco na areia dourada e lisa do chão do centro esportivo. Duquesa começou a chorar de um modo terrível e, apesar de estar se engasgando em sangue, Stark levantou uma das mãos para fazer carinho na enorme cadela. Ele sussurrava com ela entre uma tosse e outra, dizendo que tudo ia ficar bem.
Corri para perto dele.
Ele caiu quando cheguei ao seu lado, e tudo que pude fazer foi puxá-lo para o meu colo. Arranquei a blusa de moletom dele, rasgando-a pelo meio, de modo que ele ficou deitado só de camiseta e calça jeans. Usei o moletom para limpar o sangue que jorrava de seus olhos, nariz e boca.
– Não! Não quero que isto aconteça agora – ele fez uma pausa, tossindo mais sangue do que eu conseguia enxugar. – Acabei de encontrar você, não quero partir tão cedo.
– Estou aqui. Você não está sozinho – tentei soar calma e tranquila, mas estava destruída por dentro. Por favor, não o levem embora! Por favor, salvem-no! , minha mente gritava.
– Ótimo – ele engasgou e tossiu de novo, fazendo jorrar um rio de sangue do nariz e da boca. – Que bom que é você. Se tiver de acontecer, fico feliz por você estar aqui comigo.
– Sssh – eu disse. – Vou pedir ajuda – fechei os olhos e fiz a primeira coisa que me veio à mente. Chamei Damien. Pensei no ar e no vento e nas doces brisas do verão, e de repente senti um vento quente e vacilante no rosto. – Traga Damien para cá com os outros para ajudar! – ordenei ao vento. Ele deu uma volta ao meu redor, como um tornado, e partiu.
– Zoey! – Stark chamou meu nome e tossiu de novo e de novo.
– Não fale. Guarde suas forças – pedi, segurando-o forte com um braço e alisando gentilmente seus cabelos molhados para trás do rosto ensopado com a outra mão.
– Você está chorando – ele disse. – Não chore.
– Eu... eu não consigo evitar – respondi.
– Eu devia ter beijado mais do que sua mão... mas agora não dá mais tempo – ele sussurrou entre uma respiração arfante e molhada e outra. – Agora é tarde demais.
Olhei nos seus olhos e me esqueci completamente do resto do mundo. Naquele momento, eu só sabia que estava segurando Stark em meus braços e que ia perdê-lo em breve, muito breve.
– Não é tarde demais – eu disse. Agachei-me e apertei meus lábios contra os dele. Os braços de Stark me envolveram, ainda com força para me abraçar. Minhas lágrimas se misturaram ao sangue dele e o beijo foi absolutamente maravilhoso e terrível, e acabou cedo demais.
Ele tirou os lábios dos meus, virou a cabeça e tossiu seu sangue vital no chão.
– Shhh – sibilei, com lágrimas escorrendo pelo rosto. Eu o abracei e murmurei: – Estou aqui. Estou com você.
Duquesa gemeu de tristeza e se deitou perto de seu mestre, olhando para seu rosto banhado em sangue com medo evidente.
– Zoey, ouça antes que eu vá embora.
– Tá, tá. Não se preocupe. Estou te ouvindo.
– Quero que você me prometa duas coisas – ele disse, sem forças. Depois tossiu e teve de se afastar de mim de novo. Segurei seus ombros e, quando ele se deitou em meus braços, estava tremendo e tão branco que estava quase transparente.
– Sim, o que você quiser – eu disse.
Ele tocou meu rosto com a mão ensanguentada.
– Prometa que nunca vai se esquecer de mim.
– Eu prometo – eu disse, virando meu rosto para se encaixar em sua mão. Ele tentou enxugar minhas lágrimas com o dedo trêmulo, o que me fez chorar ainda mais. – Não conseguiria me esquecer de você.
– E prometa que vai tomar conta de Duquesa.
– De um cão? Mas eu...
– Prometa! – sua voz de repente se encheu de força. – Não deixe que a mandem ficar com estranhos. Pelo menos ela lhe conhece e sabe que eu gosto de você.
– Tá bem! Sim, eu prometo. Não se preocupe – respondi.
Stark se dobrou sobre si mesmo após minha última promessa.
– Obrigado. Eu só queria que nós pudéssemos... – sua voz sumiu e ele fechou os olhos. Virou a cabeça no meu colo e abraçou minha cintura. Lágrimas vermelhas lavavam seu rosto silenciosamente, e ele ficou totalmente parado. A única parte dele que ainda se mexia era o peito, que oscilava quando tentava respirar com o sangue que lhe enchia os pulmões.
Então me lembrei, e senti que havia uma esperança. Mesmo se eu estivesse errada, Stark tinha de saber.
– Stark, me escute – ele não deu sinal de estar me ouvindo e eu sacudi seus ombros. – Stark!
Suas pálpebras se entreabriram.
– Está me ouvindo?
Stark assentiu com a cabeça de modo quase imperceptível. Seus lábios ensanguentados se levantaram em uma versão fantasmagórica de seu sorriso sarcástico e metido.
– Me beija de novo, Zoey – ele sussurrou.
– Você tem que me ouvir – abaixei a cabeça para falar em seu ouvido. – Isto pode não ser o fim para você. Nesta Morada da Noite, os novatos morrem e renascem para outro tipo de Transformação.
Ele abriu mais os olhos.
– Eu... não vou morrer?
– Não para valer. Os novatos mortos têm voltado. Minha melhor amiga voltou.
– Toma conta de Duquesa para mim. Se eu puder, vou voltar para ela e para você... – suas palavras saíram junto com um rio de sangue pela boca, nariz, olhos e orelhas.
Ele não conseguiu mais falar, e tudo que pude fazer foi segurá-lo em meus braços enquanto sua vida se esvaía. Quando ele estava dando seu último suspiro, Damien chegou ao centro esportivo, seguido por Dragon Lankford, Aphrodite e as gêmeas.

13
Aphrodite me alcançou primeiro. Ela me ajudou a ficar de pé enquanto o corpo morto de Stark escorregava pesadamente do meu colo.
– Tem sangue na sua boca – ela sussurrou, tirando um lenço de papel da bolsa e me dando.
Limpei os lábios e depois os olhos, e em seguida Damien correu para mim.
– Venha conosco. Vamos levá-la de volta ao dormitório para você trocar de roupa – ele passou para o meu lado, me segurando com firmeza pelo cotovelo com uma das mãos. Aphrodite estava do meu outro lado e também me segurou com força. As gêmeas estavam com os braços nas cinturas uma da outra, fazendo força para não chorar.
Alguns dos Filhos de Erebus haviam chegado com uma maca escura e um cobertor. Aphrodite e Damien estavam tentando me tirar de lá, mas resisti. Fiquei olhando, chorando em silêncio enquanto os guerreiros gentilmente pegavam o corpo ensopado de sangue de Stark e o colocavam na maca, para, depois, cobri-lo, inclusive o rosto, com um cobertor.
Foi quando Duquesa levantou o focinho para o céu e começou a uivar. O som foi horrível. Ela encheu aquela noite sanguinolenta de tristeza, solidão e perda. As gêmeas imediatamente caíram em lágrimas. Eu ouvi Aphrodite dizer: – Ah, Deusa, que coisa horrível.
Damien sussurrou: – Pobrezinha... – e também começou a chorar baixinho. Nala se agachou perto da cachorra e ficou olhando com olhos grandes e tristes, como se não soubesse bem o que fazer.
Eu também não sabia o que fazer. Sentia-me estranhamente entorpecida e, apesar de não conseguir parar de chorar, estava me preparando para me soltar dos meus amigos e me aproximar de Duquesa, para tentar extrair o possível do impossível, quando Jack entrou correndo no centro esportivo. Ele parou derrapando os pés. Estava boquiaberto, chocado. Levou uma das mãos ao pescoço e com a outra apertou a boca, tentando em vão controlar o próprio horror. Ele olhou para o corpo coberto na maca, para a areia ensanguentada, para a cachorra triste. Fungando, Damien apertou meu braço e então me soltou para ir para perto do namorado, quando Jack, ignorando tudo e todos, correu até Duquesa e caiu de joelhos na frente dela.
– Ah, minha linda! Estou de coração partido por sua causa! – ele disse ao animal.
Duquesa baixou o focinho e deu um olhar longo e firme para Jack. Eu não sabia que cães choravam, mas juro que vi Duquesa chorar. As lágrimas formavam trilhas escuras e molhadas que rolavam dos cantos dos seus olhos, escorrendo pela cara e pelo focinho.
Jack estava chorando também, mas sua voz soou doce e firme quando ele falou para Duquesa: – Se vier comigo, não vou deixar você ficar sozinha.
A enorme labradora loura se aproximou lentamente, parecendo ter envelhecido décadas nos últimos minutos, e apoiou a cabeça no ombro de Jack.
Através das minhas lágrimas, observei Dragon Lankford tocar as costas de Jack gentilmente.
– Leve-a para o seu quarto. Vou chamar o veterinário e pedir algo para ajudá-la a dormir. Fique junto dela; ela está sofrendo como um gato quando perde seu vampiro. Ela é uma menina leal – Dragon continuou, triste. – Essa perda vai ser muito dura para ela.
– Eu... eu vou ficar com ela – Jack disse, enxugando o rosto com uma das mãos e acariciando Duquesa com a outra. Então, Jack abraçou o pescoço da cachorra enquanto os guerreiros levavam o corpo de Stark do centro esportivo.
Neferet só apareceu quando eles estavam saindo. Ela estava corada e sem fôlego.
– Ah, não! Quem é?
– É o novato que acabou de chegar, James Stark – Dragon disse.
Neferet foi até a maca e levantou o cobertor. Todo mundo estava olhando para Stark, mas eu não conseguia olhar para seu rosto morto, então não tirei os olhos de Neferet. Fui a única pessoa que viu o clarão de triunfo e indisfarçável alegria que se irradiou de seu rosto. Então, ela respirou fundo e voltou a ser a Grande Sacerdotisa preocupada e entristecida pela perda de um novato.
Pensei que fosse vomitar.
– Leve-o para o necrotério. Vou cuidar de tudo – Neferet disse. Sem olhar para mim, rebateu: – Zoey, cuide da cachorra – e fez um gesto para os guerreiros continuarem, saindo com eles do centro esportivo.
Por um segundo não consegui falar. Sua falta de sentimentos e a morte de Stark acabaram comigo. Acho que havia uma pequena parte de mim que esperava que ela ainda fosse aquela mulher que acreditei que fosse quando a conheci – especialmente em um momento como este, no qual algo mais do que horrendo havia acabado de acontecer –, que ela fosse a mãe que me amaria pelo que eu era.
Fiquei olhando enquanto eles carregavam o corpo de Stark para fora e enxuguei meus olhos com as costas da mão. Havia gente que precisava de mim. Gente a quem prometi coisas. Estava na hora de encarar o fato de que Neferet era má; hora de parar de ser tão fraca.
Voltei-me para Damien.
– Fique perto de Jack esta noite. Ele precisa de sua ajuda mais do que eu.
– Você está bem? – ele perguntou.
– Eu cuido dela – Aphrodite disse.
– Nós também – as gêmeas disseram juntas.
Damien concordou, me abraçou com força e foi ficar com Jack. Ele se agachou perto do namorado e do cachorro e, com hesitação no início, depois com mais segurança e ternura, começou a acariciar Duquesa.
– Você está bem ensanguentada, sabia? – Aphrodite perguntou, tirando minha atenção da cena de cortar o coração que foi Damien e Jack tentando consolar a cachorra de Stark.
Olhei para mim mesma. Parei de sentir o cheiro de sangue após beijar Stark. Eu havia tirado o cheiro da minha mente para que a doçura do aroma não me enlouquecesse, e fiquei surpresa de ver que minhas roupas estavam escuras e pegajosas, ensopadas com o sangue dele.
– Preciso tirar estas roupas – eu disse, soando mais abalada do que gostaria. – Eu preciso de um banho.
– Vamos. Eu deixo você visitar o meu spa – Aphrodite falou.
– Spa ? – perguntei estupidamente, sem conseguir entender que diabo ela estava dizendo. Stark havia acabado de morrer em meus braços, e ela queria que eu fosse a um spa ?
– Você não sabia que fiz uma reforma no meu banheiro?
– Talvez Z. queira tomar banho em seu próprio quarto – Shaunee disse.
– É, talvez ela queira usar as coisas dela – Erin completou.
– É, bem, talvez ela não queira se lembrar de que na última vez em que foi tomar banho cheia de sangue, sozinha, em seu quarto, foi depois que sua melhor amiga morreu nos braços dela – Aphrodite disse, e acrescentou presunçosamente: – Além do mais, tenho absoluta certeza de que ela não tem um box de mármore com chuveiro Vichy em seu quarto, pois o meu é o único do campus .
– Chuveiro Vichy? – perguntei, me sentindo como se estivesse dentro de um pesadelo.
Shaunee suspirou.
– É como ter um pequeno pedaço do paraíso.
Erin deu um olhar de aprovação para Aphrodite.
– Você tem um no seu banheiro?
– Essa é uma das vantagens de ser podre de rica e muito, muito mimada – Aphrodite respondeu.
– Ahn, Z. – Erin disse lentamente, olhando para mim. – Talvez fosse bom você ir ao spa dela. Um chuveiro Vichy é excelente para aliviar o estresse.
Shaunee secou os olhos e fungou a última das lágrimas.
– E todas nós sabemos que você tem muito estresse acumulado esta noite.
– Tá, tudo bem. Eu vou tomar banho no quarto de Aphrodite – abri a porta de madeira e passei por Aphrodite e pelas gêmeas. Senti o beijo de Stark nos meus lábios no caminho para o dormitório, enquanto o surreal resmungo dos corvos enchia a noite.
O chuveiro Vichy consistia na verdade em quatro chuveiros gordos (dois no teto e dois nas laterais do box de mármore de Aphrodite) que soltavam zilhões de litros de água quente pelo meu corpo inteiro ao mesmo tempo. Fiquei parada e deixei que a água escorresse pelo meu corpo e lavasse de mim o sangue de Stark. Observei a água descendo vermelha, depois cor-de-rosa, até ficar limpa, e algo na ausência do sangue dele me fez cair no choro outra vez.
Parecia ridículo, pois eu tinha acabado de conhecer o garoto, mas senti a falta de Stark como se fosse um furo no meu coração. Como podia ser? Como eu podia sentir tanta falta dele se nem havia conhecido o garoto direito? Ou talvez eu o conhecesse – talvez fosse uma daquelas coisas que acontecem com as pessoas em um nível que extrapola o tempo e as regras sociais. Talvez o que aconteceu entre mim e Stark naqueles poucos minutos no centro esportivo tivesse sido o suficiente para que nossas almas se reconhecessem.
Almas gêmeas? Seria possível? Quando minha cabeça começou a doer de tanto chorar e minhas lágrimas finalmente secaram, saí do box, exausta. Aphrodite deixou um robe de banho enorme pendurado na porta, e eu o vesti antes de sair do enfeitado banheiro. As gêmeas já tinham ido embora, o que não me surpreendeu.
– Tome, beba isto – Aphrodite me deu uma taça de vinho tinto.
– Obrigada, mas não sou fã de álcool – agradeci, balançando a cabeça.
– Bebe logo. Não é só vinho.
– Ah... – peguei e provei cautelosamente, parecendo que estava segurando algo prestes a explodir. E explodiu – dentro do meu corpo. – Tem sangue nisto! – não havia acusação no meu jeito de falar. Ela sabia que eu já sabia o que ela queria dizer com “não é só vinho”.
– Vai ajudar você a se sentir melhor – Aphrodite disse. – E isto aqui também – ela apontou para a ponta da mesa ao lado do sofá-cama onde havia uma embalagem de isopor aberta com um cheeseburger grande e gorduroso do Goldie’s, uma porção enorme de batatas fritas e uma garrafa de refrigerante de cola cheio de açúcar e cafeína.
Engoli o resto do vinho “batizado” com sangue e, surpresa de perceber como estava esfomeada, comecei a devorar o hambúrguer.
– Como sabia que eu amo Goldie’s?
– Todo mundo ama os hambúrgueres do Goldie’s. Eles são terríveis para você, então imaginei que estivesse precisando de um.
– Obrigada – agradeci com a boca cheia.
Aphrodite fez cara feia para mim, delicadamente pegou uma batata frita do meu prato e se jogou em sua cama. Ela me deixou comer um pouquinho e então, com uma voz peculiarmente hesitante, perguntou: – Quer dizer que você o beijou antes de ele morrer?
Não consegui olhar para ela, e de repente o hambúrguer ficou com gosto de cartolina.
– É, eu o beijei.
– Você está bem?
– Não – respondi baixinho. – Alguma coisa aconteceu entre nós e... – minha voz foi sumindo, e não consegui encontrar as palavras.
– O que você vai fazer em relação a ele?
Olhei para ela.
– Ele morreu. Não tem nada... – parei. Como podia ter me esquecido? É claro que o fato de Stark estar morto não representava necessariamente o fim das coisas, não nesta Morada da Noite nos últimos tempos. E então me lembrei do resto. – Eu disse a ele... eu disse.
– Disse o quê?
– Que talvez não fosse o fim para ele. Antes de ele partir, eu lhe disse que ultimamente os novatos morriam e voltavam para passar por um tipo diferente de Transformação.
– O que significa que, se ele voltar mesmo, uma das primeiras coisas em que vai pensar será em você e no fato de você ter dito que a morte talvez não fosse o fim para ele. Tomara que Neferet não esteja por perto para ler os pensamentos dele.
Senti algo se revirar no meu estômago, em parte por esperança, em parte por medo.
– Bem, o que você teria feito? Teria deixado o garoto morrer em seus braços sem dizer nada?
Ela suspirou.
– Não sei. Provavelmente não. Você gosta dele, não gosta?
– Gosto sim. Não sei. Tipo, claro que ele é, ahn, quer dizer, era um cara gostoso. Mas ele me disse umas coisas antes de morrer e meio que rolou uma ligação entre a gente – tentei me lembrar precisamente de tudo que Stark havia me dito, mas estava tudo misturado com nosso beijo e com a cena dele sangrando até a morte em meus braços. Estremeci e tomei um bom gole de refrigerante.
– E o que você vai fazer em relação a ele? – ela insistiu.
– Aphrodite, não sei! O que você quer, que eu vá até o necrotério e peça aos Filhos de Erebus para entrar e ficar ao lado de Stark até ele de repente voltar à vida? – ao dizer isso, percebi que era exatamente o que queria poder fazer.
– Não é uma ideia das melhores – ela disse.
– A gente não sabe o que acontece, com que velocidade e nem se vai acontecer mesmo – fiz uma pausa, pensando. – Peraí, você disse que viu Stark em uma das visões sobre a minha morte, não foi?
– Foi.
– E o que havia no rosto dele? Uma lua crescente azul, uma crescente vermelha ou tatuagens vermelhas completas?
Ela hesitou.
– Não sei.
– Como não sabe? Você disse que o reconheceu de sua visão.
– Disse. Eu me lembro dos olhos dele e daquela boca gostosa.
– Não fale dele assim – rebati.
Ela na verdade parecia culpada.
– Desculpe, não foi por mal. Você ficou ligada mesmo nele, não é?
– É. Fiquei. Então, tente se lembrar de como ele estava na sua visão.
Ela mordeu o lábio.
– Não me lembro de nada direito. Só o vi de relance.
Meu coração estava batendo forte e minha cabeça estava tonta por causa da súbita onda de esperança que tomou conta de mim.
– Mas isso quer dizer que ele não morreu de verdade. Ou, pelo menos, não completamente. Ele estava na sua visão do futuro, então tem que voltar no futuro. Ele vai voltar!
– Não necessariamente – ela disse gentilmente. – Zoey, o futuro é flexível, está sempre mudando. Tipo, eu vi você morrer duas vezes. Uma vez sozinha, pois seus amigos estavam lhe dando gelo. Bem, agora você já tem seus Três Mosqueteiros debiloides de novo – ela fez uma pausa e continuou. – Desculpe. Eu sei que você já passou por todo tipo de merda esta noite. Não quis soar tão maldita. Mas o negócio é o seguinte. Como os nerds ... quer dizer, como seus amigos não estão mais te dando gelo, a história de Zoey morrendo na visão que tive já deve estar anulada. Viu, o futuro mudou. Quando tive a visão de Stark no futuro, ele ia estar vivo. Mas agora tudo pode ter mudado.
– Mas não necessariamente?
– Não necessariamente – ela concordou com cautela. – Mas não se anime. Sou apenas a Garota das Visões, não sou expert em coisas tipo novatos que voltam à vida.
– Então, precisamos de um expert nesta história de morto e morto-vivo – tentei não soar esperançosa demais, mas percebi pelo olhar estranho que Aphrodite me lançou que não estava conseguindo esconder muita coisa.
– É, bem... Odeio dizer isso, mas você tem razão. Você precisa falar com Stevie Rae.
– Vou voltar para o meu quarto, ligar para ela e combinar de a gente se encontrar no Street Cats amanhã. Você acha que consegue manter Darius ocupado enquanto converso com ela?
– Ah, por favor. Vou fazer mais do que mantê-lo ocupado. Ele vai ficar totalmente ocupado – Aphrodite ronronou as palavras.
– Eca. Então tá. Só não quero ver nem ouvir isso – embarcando em uma onda de otimismo, peguei meu refrigerante de cola.
– Quanto a isso, tudo bem. Ficarei feliz de manter sigilo.
– Eca, é o que eu digo outra vez – fui em direção à porta. – Ei, como você conseguiu se livrar das gêmeas esta noite? Será que amanhã vou ter que consertar algum estrago?
– Simples. Eu disse a elas que, se ficassem, nós faríamos a pedicure umas das outras e eu seria a primeira da fila.
– Ah, entendi por que elas deram no pé.
De repente, Aphrodite ficou séria.
– Zoey, tô falando sério. Não fique cheia de esperanças em relação a Stark. Você sabe que, mesmo se ele voltar, não vai ser mais o mesmo. Stevie Rae diz que os novatos vermelhos estão melhor agora, e estão, mas não são normais, nem ela é.
– Eu sei disso tudo, Aphrodite, mas ainda digo que Stevie Rae está bem.
– E eu ainda digo que vamos ter que discordar quanto a isso. Eu só quero que você tenha cuidado. Stark não...
– Não fale! – levantei a mão para interrompê-la. – Me deixa ter um pouquinho de esperança. Eu quero acreditar que ele ainda tem uma chance.
Aphrodite assentiu lentamente.
– Eu sei que é isso o que você quer, e é isso que me preocupa.
– Estou cansada demais para conversar sobre isso – respondi.
– Tá, eu entendo. Apenas pense no que eu disse – comecei a abrir a porta e ela acrescentou: – Você quer ficar aqui esta noite, para não ficar sozinha?
– Não, mas obrigada. Nem estou realmente sozinha em um dormitório cheio de novatas – coloquei a mão na maçaneta e olhei para Aphrodite. – Obrigada por cuidar de mim. Tô me sentindo melhor. Bem melhor.
Ela fez um gesto com a mão, como quem diz “deixa pra lá”, e pareceu sem graça. Então ela disse, mais ao seu estilo: – Não foi nada. Só não se esqueça de que me deve essa quando virar rainha.
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                                                    CONTINUA
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Stevie Rae não atendeu ao telefone. Caiu direto na secretária eletrônica. Não deixei recado. O que eu podia dizer? “Oi, Stevie Rae. É Zoey. Olha, esta noite um novato sangrou até a morte nos meus braços e quero saber o que vai acontecer agora. Ele vai voltar como monstro morto-vivo sugador de sangue ou vai só ficar meio estranho como você disse que seus novatos são, ou ele vai ficar morto mesmo? Eu queria saber porque, apesar de ter acabado de conhecer o garoto, gostava mesmo dele. Bom, então me liga!” Ahn, não. Assim não ia dar certo.
Eu me joguei na cama e comecei a sentir falta de Nala, quando sua portinhola de passagem abriu e minha gatinha resmungona fez miauff, atravessou o quarto, pulou na minha cama e se aninhou no meu peito, apertando a cara no meu pescoço e ronronando feito doida.
– Estou muito, muito feliz em ver você – acariciei as orelhas dela e beijei o pontinho branco no seu nariz. – Como Duquesa está? – ela piscou para mim, espirrou e então apertou a cabeça em mim e ronronou mais um pouco. Entendi que isso queria dizer que o cachorro estava sendo bem cuidado por Jack e Damien.
Sentindo-me melhor agora que Nala estava exercendo sobre mim seu poder ronronante, tentei mergulhar no livro que estava lendo, Ink Exchange , da minha escritora de livros sobre vampiros favorita do momento, Melissa Marr, mas nem as fadas sedutoras de suas histórias conseguiram segurar minha atenção.
No que eu estava pensando? Em Stark, é claro. Toquei meus lábios, ainda sentindo seu beijo. O que estava acontecendo comigo? Por que eu estava deixando Stark me afetar tanto? Tá, tudo bem. Ele morreu em meus braços e foi horrível, horrível mesmo. Mas havia algo mais acontecendo entre nós dois, ou pelo menos pensei que houvesse. Fechei os olhos e suspirei. Eu não precisava gostar de outro cara. Não havia superado o que eu tivera com Erik ou Heath.

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Tudo bem, na verdade não havia superado o que tivera com Loren.
Não, eu não amava Loren. O que eu não havia superado era a dor que ele me causara. Meu coração ainda estava doendo e não estava pronto ainda para ser ocupado por outro cara.
Lembrei-me de Stark pegando minha mão e entrelaçando os dedos nos meus, e da sensação de seus lábios na minha pele.
– Droga. Acho que se esqueceram de avisar ao meu coração que eu não estava pronta para outro cara – sussurrei.
E se Stark voltasse?
Pior: e se não voltasse?
Eu estava cansada de perder as pessoas. Uma lágrima escapou debaixo da minha pálpebra fechada e eu a enxuguei. Enrosquei-me de lado e apertei Nala junto ao meu rosto. Eu estava cansada. Foi um dia terrível. Amanhã não seria tão ruim assim. Amanhã eu ia falar com Stevie Rae e ela ia me ajudar a resolver o que fazer com Stark.
Mas não consegui dormir. Minha cabeça ficou dando voltas, concentrando-se nos erros que eu havia cometido e nas pessoas que havia magoado. Será que Stark morreu como castigo por eu ter magoado tanto Erik e Heath?
Não! Disse minha mente racional. Isso é ridículo! Nyx não faz essas coisas . Mas minha consciência culpada sussurrou coisas sinistras. Você não pode magoar as pessoas como fez com Erik e Heath e...

 

 

                                                                                                  

 

                                       

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