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Inés Suárez - (1507-1580) Espanhola, nascida em Plasencia, viajou para o Novo Mundo em 1537, onde participou na conquista do Chile e na fundação da cidade de Santiago. Teve grande influência política e poder económico. As façanhas de Inés Suárez, referidas pelos cronistas da sua época, foram quase esquecidas pelos historiadores durante mais de 400 anos. Nestas páginas, narro os acontecimentos tal como foram documentados. Limitei-me a interligá-los através de um exercício mínimo de imaginação. Esta é uma obra de intuição, mas qualquer semelhança com acontecimentos e personagens da conquista do Chile não é casual. Do mesmo modo, tomei a liberdade de modernizar o castelhano do século XVI para evitar o pânico entre os meus possíveis leitores.
Crónicas de dona Inés Suárez, entregues à Igreja dos Dominicanos para sua conservação e resguardo pela sua filha, dona Isabel de Quiroga, no mês de Dezembro do ano de Nosso Senhor de 1580. Santiago da Nova Extremadura. Reino do Chile.
MEU NOME É INÉS SUÁREZ, habitante da leal cidade de Santiago de Nova Extremadura, no Reino do Chile, neste ano de Nosso Senhor de 1580. Não tenho certeza da data exacta do meu nascimento, mas a minha mãe assegura que nasci depois da grande fome e do tremendo surto de peste que assolou a Espanha logo após a morte de Filipe, o Belo. Não creio que tenha sido a morte do rei a provocar a peste, como aliás dizia o povo ao ver passar o cortejo fúnebre que deixou no ar, durante dias, um aroma a amêndoas amargas, mas nunca se sabe. A rainha Joana, ainda uma jovem e bela mulher, percorreu Castela durante mais de dois anos, transportando o esquife de um lado para o outro, abrindo-o de vez em quando para beijar os lábios do marido, na vã esperança de que pudesse ressuscitar. Apesar dos unguentos do embalsamador, o Belo fedia. Quando eu vim ao mundo, já a infeliz rainha, louca de todo, estava recolhida no palácio de Tordesilhas com o cadáver do seu consorte; o que significa que tenho, pelo menos, setenta Invernos às costas e que hei-de morrer antes do Natal. Podia dizer-vos que, nas margens do rio Jerte, uma cigana adivinhou a data da minha morte, mas essa seria uma daquelas mentiras que se costumam espetar nos livros e, que por estarem impressas, parecem verdadeiras. A cigana só me augurou uma vida longa, que é o que sempre nos dizem em troco de uma moeda. O que me anuncia a proximidade do fim é o meu coração desordenado. Sempre soube que havia de morrer velha, em paz e na minha cama, como morrem todas as mulheres da minha família; por isso não vacilei quando precisei de enfrentar o perigo, já que ninguém se vai deste mundo antes da sua hora. «Tu vais morrer de velhinha, de nada mais, senoray», tranquilizava-me Catalina, no seu castelhano afável do Peru, quando o persistente galope de cavalos me enchia o peito e me deitava ao chão. Já me esqueci do nome quíchua de Catalina e também já é demasiado tarde para lho perguntar - enterrei-a no pátio de minha casa há muitos anos -, embora tenha plena confiança na precisão e veracidade das suas profecias. Catalina começou a servir-me na antiga cidade de Cuzco, verdadeira jóia dos Incas, na época de Francisco Pizarro, aquele bastardo corajoso que, dizem as más-línguas, guardava porcos em Espanha e acabou transformado em Marquês Governador do Peru, cansado da sua ambição e de múltiplas traições. São assim as leis deste novo mundo das índias, onde as leis tradicionais nada podem e tudo é possível: santos e pecadores, brancos, negros, pardos, índios, mestiços, nobres e lavradores. Qualquer um pode andar por aí a arrastar correntes, ser marcado com ferros em brasa e, no dia seguinte, num golpe de sorte, ver a sua vida mudada num ápice. Vivi mais de quarenta anos no Novo Mundo e ainda não me habituei a esta desordem, ainda que também eu tenha beneficiado dela; se tivesse ficado na minha terra natal, hoje seria uma idosa pobre e cega de tanto bordar à luz das candeias. Lá seria a Inés, costureira da rua do Aqueduto. Aqui, sou dona Inés Suárez, senhora de grande importância, viúva do Excelentíssimo Governador don Rodrigo de Quiroga, conquistadora e fundadora do Reino do Chile.
Como disse, tenho pelo menos setenta anos, bem vividos, mas a minha alma e o meu coração, ainda agarrados aos resquícios da juventude, perguntam-se o que diabo terá acontecido com o corpo. Ao ver-me no espelho de prata, o primeiro presente que Rodrigo me ofereceu quando nos casámos, não reconheço aquela avó de cabelos brancos que o espelho me devolve. Quem é esta que se faz passar pela verdadeira Inés? Examino-a de perto, com a esperança de poder encontrar, bem no fundo do espelho, aquela menina de tranças e joelhos esfolados que já fui um dia, a jovem que fugia pelos pomares para fazer amor às escondidas, ou a mulher madura e apaixonada que dormia abraçada a Rodrigo de Quiroga. Tenho a certeza de que, algures, estão ali escondidas, mas não as consigo ver. Já não consigo montar a minha égua, não uso cota de malha nem espada, não por falta de vontade, que vontade sempre tive de sobra, mas porque o corpo me trai. Faltam-me as forças, doem-me as articulações, tenho os ossos gelados e a vista nublada. Se não usasse os óculos, que mandei vir do Peru, nem sequer conseguiria escrever estas páginas. Quis acompanhar Rodrigo - que Deus o tenha em seu Santo Descanso - na sua última batalha contra os índios mapuche, mas ele não me quis levar. «Estás muito velha para isso, Inés», disse a rir. «Estou tão velha como tu», respondi-lhe, apesar de não ser verdade, já que Rodrigo era uns anos mais novo que eu. Ambos acreditávamos que não nos veríamos mais, mas despedimo-nos sem lágrimas, certos de que nos encontraríamos na outra vida. Há muito tempo que sabia que Rodrigo tinha os dias contados, apesar do seu esforço para me esconder os factos. Nunca o ouvi queixar-se, aguentava as dores com os dentes cerrados e só o suor que lhe escorria pela testa o denunciava. Partiu febril, rumo ao Sul, pálido, com uma chaga coberta de pus numa perna que nenhum dos meus remédios e orações conseguiu curar; partiu para cumprir o seu desejo de morrer como um soldado no alvoroço do combate e não como um velho prostrado entre os lençóis do seu leito. Eu queria estar com ele para, nos momentos finais, lhe segurar na cabeça e agradecer o amor que me dedicou durante as nossas longas vidas. «Olha, Inés - disse-me, mostrando os nossos campos, que se estendem até ao sopé da cordilheira. - Deus colocou tudo isto, mais as centenas de almas dos índios que aqui trabalham, ao nosso encargo. Tal como eu tenho por obrigação combater os selvagens em Araucanía, é tua obrigação proteger a fazenda e esta gente.»
A verdadeira razão pela qual decidiu partir sozinho é que não queria deixar-me assistir ao triste espectáculo da sua doença, já que preferia ser recordado a montar a cavalo, comandando os seus corajosos homens, combatendo na região sagrada a sul do rio Bío-Bío, onde as ferozes hostes mapuche se preparavam então para a guerra. Estava no seu pleno direito de capitão, por isso aceitei as suas ordens como a esposa submissa que nunca fui. Levaram-no até ao campo de batalha numa maca e, uma vez lá chegado o seu genro, Martin Ruiz de Gamboa, amarrou-o ao cavalo, tal como fizeram com El Cid, o Campeador, para assustar o inimigo com a sua presença. Lançou-se para a frente dos seus homens como um perfeito demente, desafiando o perigo e com o meu nome nos lábios, só que não encontrou a tão desejada morte. Trouxeram-mo de volta muito doente, num catre improvisado; o veneno do tumor já tinha invadido o seu corpo. Qualquer outro homem já teria morrido há muito, devido aos malefícios que a doença lhe provocara e ao cansaço da guerra, mas Rodrigo era forte. «Amei-te desde o primeiro momento em que te vi e vou amar-te para sempre, Inés», disse-me, no meio da sua agonia, acrescentando que queria ser enterrado sem grande alarido e que devíamos mandar rezar trinta missas pelo descanso da sua alma. Vi a Morte, um pouco desfocada, tal como vejo as letras desta folha, mas inconfundível. Então chamei-te, Isabel, para que me ajudasses a vesti-lo, uma vez que Rodrigo era demasiado orgulhoso para mostrar os destroços da sua doença às criadas. Só a ti, sua filha, e a mim, nos permitiu colocar-lhe a armadura completa e as botas de rebites. Depois, sentámo-lo no seu cadeirão favorito, com o elmo e a espada sobre os joelhos, para que pudesse receber os últimos sacramentos e partir com dignidade, tal como tinha vivido. A Morte, que não tinha saído do seu lado e aguardava discretamente que acabássemos de o preparar, envolveu-o então nos seus braços maternais e fez-me sinal para que me aproximasse e sentisse o último suspiro do meu marido. Inclinei-me sobre o seu corpo e dei-lhe um beijo na boca, um beijo de amante. Morreu nesta casa, nos meus braços, numa tarde quente de Verão.
Não pude cumprir as instruções de Rodrigo para que o seu funeral fosse discreto, porque era o homem mais querido e respeitado do Chile. A cidade de Santiago mobilizou-se inteira para chorar a sua morte e, de outras cidades do reino, chegaram incontáveis manifestações de pesar. Anos antes, o povo tinha saído para as ruas para celebrar a sua nomeação como governador com chuvas de flores e salvas de mosquete. Foi sepultado com as honras que merecia na Igreja de Nossa Senhora das Mercês, que ele e eu mandáramos erigir para glorificar a Virgem Santíssima e onde em breve repousarão também os meus ossos. Deixei dinheiro suficiente à igreja para que uma vez por semana, durante
trezentos anos, rezem uma missa pelo descanso da alma do nobre fidalgo don Rodrigo de Quiroga, bravo soldado de Espanha, alcaide, Adelantado1 e duas vezes Governador do Reino do Chile, Cavaleiro da Ordem de Santiago, meu marido. Estes meses sem ele foram uma eternidade.
Não devo antecipar-me, pois, se narrar os feitos que recheiam a minha vida sem qualquer rigor nem ordem, corro o risco de me perder pelo caminho; uma crónica deve seguir a ordem natural dos acontecimentos, mesmo que a memória seja uma perfeita barafunda sem lógica. Escrevo de noite, sobre a mesa de trabalho de Rodrigo, enrolada na sua manta de alpaca. A guardar-me o quarto está Baltasar, bisneto do cão que viajou comigo até ao Chile e me acompanhou durante catorze anos. O primeiro Baltasar morreu em 1553, o mesmo ano em que mataram Valdivia, mas deixou-me os seus descendentes, todos enormes, de patas desajeitadas e pêlo rijo. Esta casa é fria, apesar das carpetes, cortinas, tapeçarias e braseiros que os criados mantêm cheios de carvão incandescente. Queixas-te muitas vezes, Isabel, que não se consegue respirar de tanto calor; deve ser porque o frio não está verdadeiramente no ar, mas dentro de mim. Consigo anotar as minhas memórias e pensamentos com tinta e papel graças ao clérigo Gonzalez de Marmolejo, que se deu ao trabalho, entre os seus múltiplos esforços para evangelizar selvagens e consolar cristãos, de me ensinar a ler. Na altura, era apenas um capelão, mas chegou a ser o primeiro bispo do Chile e também o homem mais rico deste reino, como contarei mais adiante. Morreu sem levar nada para a cova, mas deixou um rasto de boas acções que lhe valeram o amor da população. Ao fim e ao cabo, só se tem verdadeiramente aquilo que se deu, como dizia Rodrigo, o mais generoso dos homens.
Comecemos pelo princípio, pelas minhas primeiras memórias. Nasci em Plasencia, no Norte da Extremadura, cidade fronteiriça, guerreira e religiosa. A casa do meu avô, onde cresci, ficava a um passo
Designação arcaica utilizada pelos Conquistadores espanhóis durante os séculos XVI e XVII para a categoria de governador ou responsável máximo de uma província, cuja responsabilidade seria, entre outras, agir como representante da Coroa espanhola junto das colónias. (N. da T.)
da catedral, a que carinhosamente chamavam de La Vieja, uma vez que datava apenas do século XIV. Cresci à sombra da sua torre invulgar coberta de escamas trabalhadas. Nunca mais vi a ampla muralha que protege a cidade, a esplanada da Plaza Mayor, as suas ruelas sombrias, os palacetes de pedra e as galerias de arcos, nem o pequeno solar do meu avô onde ainda vivem os netos da minha irmã mais velha. O meu avô, um artesão que trabalhava o ébano, pertencia à Confraria de Vera Cruz, uma honra muito superior à sua condição social. Sedeada no convento mais antigo da cidade, essa confraria encabeça as procissões da Semana Santa. Vestido com o hábito roxo, cinto amarelo e luvas brancas, era um dos que levavam a Santa Cruz. Na sua túnica havia manchas de sangue, sangue dos chicotes com que se flagelava para partilhar do sofrimento de Cristo a caminho do Gólgota. Na Semana Santa fechavam-se as portadas das janelas, para impedir que o sol entrasse, as pessoas jejuavam e falavam em sussurros; a vida reduzia-se a rezas, suspiros, confissões e sacrifícios. Numa Sexta-Feira Santa, a minha irmã Asuncion, que na altura tinha onze anos, amanheceu com os estigmas de Cristo, umas horríveis chagas abertas nas palmas das mãos, e os olhos completamente brancos, voltados para o céu. A minha mãe trouxe-a de volta a este mundo dando-lhe um par de estalos e curou-a com emplastros de teia de aranha nas mãos e um severo regime de tisanas de camomila. Asuncion ficou fechada em casa até que as feridas cicatrizaram e a minha mãe proibiu-nos de tocar naquele assunto, porque não queria que passeassem a filha de igreja em igreja como se fosse um fenómeno daqueles que se mostram nas feiras. A minha irmã não era a única estigmatizada da região, já que todos os anos, durante a Semana Santa, uma menina padecia de mal semelhante, levitava, exalava fragrância de rosas ou cresciam-lhe asas, convertendo-se, de imediato, em objecto da adoração dos crentes. Que me lembre, todas elas acabaram por entrar para um convento, menos Asuncion, que, graças à precaução da minha mãe e ao silêncio da família, lá conseguiu recompor-se do dito milagre sem consequências; casou-se e teve vários filhos, entre eles a minha sobrinha Constanza, que aparece mais à frente neste relato.
Recordo as procissões, porque foi numa delas que conheci Juan, aquele que viria a ser o meu primeiro marido. Estávamos no ano de 1526, ano em que se casou o nosso Imperador Carlos V com a sua bela prima, Isabel de Portugal, a quem viria a amar a vida inteira, e ano em que Solimão, o Magnífico, marchou com as suas tropas turcas pela Europa fora, ameaçando a Cristandade. Toda a gente andava aterrorizada com os rumores da crueldade dos muçulmanos, e a nós já nos parecia ouvir as hordas demoníacas do outro lado dos muros de Plasencia. Nesse ano, o fervor religioso, aguçado pelo medo, atingiu proporções de verdadeira demência. Eu ia na procissão, caminhando atrás da minha família como se fosse uma sonâmbula, cheia de tonturas por causa do jejum, do cheiro das velas, do cheiro a sangue e incenso, do clamor das orações e dos gemidos dos sacrificados. De imediato, distingui logo Juan no meio de encapuzados e penitentes. Era impossível não o ver, era um palmo mais alto que toda a gente e a sua cabeça destacava-se das restantes pessoas que compunham a multidão. Tinha costas de guerreiro, o cabelo aos caracóis escuros, nariz romano e olhos de gato, que me devolveram o olhar com curiosidade. «Quem é aquele?» perguntei à minha mãe, mas como resposta só recebi uma cotovelada e uma ordem peremptória para baixar os olhos. Eu não tinha namorado, porque o meu avô tinha decidido que eu havia de ficar solteira para cuidar dele na sua velhice, uma espécie de penitência por ter nascido mulher, em vez do neto varão que ele desejava. Como não tinha posses para dar dois dotes, determinou que Asuncion tinha mais probabilidades de fazer uma aliança conveniente, já que tinha aquela beleza pálida e opulenta, de que os homens tanto gostam, e era obediente; ao contrário de mim, que era só osso e músculo e, além disso, teimosa como uma mula. Saía à minha mãe e à minha defunta avó, que não eram exactamente uns modelos de doçura. Na altura, diziam que os meus melhores atributos eram os olhos sombrios e a cabeleira de poldra, mas isso podia dizer-se de metade das raparigas de Espanha. Era bastante hábil nos lavores e não havia, em toda Plasencia e arredores, ninguém que cosesse ou bordasse com tanta profusão como eu. Graças a esse trabalho, ajudei ao sustento da família desde os oito anos de idade, ao mesmo tempo que poupava para o dote que sabia que o meu avô não me daria; tinha decidido que ia ter um marido, porque preferia o destino de lidar com filhos ao futuro que me esperava com o rezingão do meu avô. Naquele dia da Semana Santa, em vez de obedecer à minha mãe, afastei a mantilha da cara e sorri ao desconhecido. Começaram assim os meus amores com Juan, natural de Malaga. No início, o meu avô opôs-se ao namoro e a vida na nossa casa transformou-se num verdadeiro manicómio; voavam insultos e pratos, as portas de tanto bater deram cabo de uma parede e, se não fosse a minha mãe, que se punha no meio das brigas, eu e o meu avô ter-nos-íamos aniquilado. Dei-lhe tanta luta que acabou por ceder, cansado. Não sei o que Juan viu em mim, mas não me importa, pois o facto é que, pouco depois de nos conhecermos, decidimos que nos casaríamos no prazo de um ano, o tempo necessário para que ele encontrasse trabalho e eu pudesse aumentar o meu escasso dote.
Juan era um daqueles homens bonitos e alegres a quem ao princípio nenhuma mulher resiste, mas que com o tempo deseja que outra tivesse levado, porque são homens que causam demasiado sofrimento. Não se esforçava por ser sedutor, assim como não se esforçava por nenhuma outra coisa, simplesmente porque bastava a sua presença e beleza refinada para excitar as mulheres à sua volta; vivia à custa delas desde os catorze anos, idade em que começou a explorar os seus encantos. Rindo-se, dizia que já tinha perdido a conta às mulheres que tinham posto os cornos aos maridos por culpa sua e às ocasiões em que escapara, ainda ensaboado, de um marido ciumento. «Mas tudo isso acabou, agora que estou contigo, tu és a minha vida», acrescentava para me tranquilizar, enquanto espiava a minha irmã pelo canto do olho. A sua elegância e simpatia também conquistavam o apreço dos homens, bebia e jogava bem; e tinha um repertório infinito de histórias atrevidas e planos fantásticos para fazer dinheiro fácil. Cedo compreendi que a sua mente estava fixa no horizonte e no amanhã, sempre eternamente insatisfeita. Tal como tantos outros homens daquela época, alimentava-se de histórias fabulosas sobre o Novo Mundo, onde os maiores tesouros e honras estavam ao alcance dos corajosos que se dispunham a correr
riscos. Achava que estava destinado a grandes façanhas, como Cristóvão Colombo, que se lançou ao mar armado apenas com a sua coragem e acabou por encontrar a outra metade do mundo, ou como Hernán Cortês, que obteve a mais preciosa pérola do império espanhol, o México.
- Dizem que nesse lado do mundo já está tudo descoberto argumentava eu com esperança de o poder dissuadir.
- És tão ignorante, mulher! O que falta conquistar é muito mais do que já foi conquistado até agora. A sul do Panamá é tudo terra virgem e contém mais riquezas do que todo o império de Solimão.
Os seus planos horrorizavam-me, porque significavam que teríamos de nos separar. Além disso, tinha ouvido da boca do meu avô, que por sua vez tinha ouvido comentários na taberna, que os Astecas no México faziam sacrifícios humanos. Faziam filas de mais de cinco quilómetros de comprimento, milhares e milhares de cativos desgraçados esperavam pela sua vez de subir pelos degraus dos templos, onde os sacerdotes - espantalhos desgrenhados, cobertos de crostas de sangue seco e escorrendo sangue fresco - lhes arrancavam o coração com facas de obsidiana. Os corpos rolavam pelos degraus e amontoavam-se no chão; pilhas de carne em decomposição. A cidade situava-se no meio de um lago de sangue; as aves de rapina, fartas de carne humana, eram tão pesadas que nem podiam voar e as ratazanas carnívoras eram do tamanho de cães pastores. Não havia um único espanhol que desconhecesse estes factos, mas isso não amedrontava Juan.
Enquanto eu bordava e cosia desde o nascer ao pôr do Sol, para poupar para o casamento, Juan passava os dias nas tabernas e praças seduzindo tanto donzelas como meretrizes, entretendo os vizinhos e sonhando em embarcar para as índias, único destino possível para um homem da sua envergadura, como costumava dizer. Por vezes, desaparecia durante semanas, meses até, e quando regressava não dava explicações. Onde ia? Nunca me disse, mas como falava tanto em cruzar os mares, as pessoas gozavam com ele e a mim chamavam-me «a noiva das índias». Aguentei a sua conduta errante durante mais tempo do que o recomendável, porque tinha a razão toldada e o corpo em pulgas, como sempre me acontece quando amo um homem. Juan fazia-me rir, divertia-me com as suas canções e versos malandros, amaciava-me com beijos. Bastava que me tocasse para transformar os meus lamentos em suspiros e a minha raiva em desejo. Quão complacente é o amor que tudo perdoa! Nunca me esqueci da primeira vez que fizemos amor, escondidos no meio dos arbustos de um bosque. Estávamos no Verão e a terra palpitava, quente, fértil, com cheiro a louro. Saímos de Plasencia separados, para não dar azo às más-línguas, e descemos o monte, deixando para trás a cidade amuralhada. Encontrámo-nos no rio e corremos de mão dada até ao arvoredo, onde procurámos um lugar afastado da estrada. Juan reuniu umas folhas para fazer uma cama, despiu o gibão, para que me sentasse em cima dele, e sem pressa alguma conduziu-me pelos meandros do prazer. Tínhamos levado azeitonas, pão e uma garrafa de vinho, que eu tinha roubado ao meu avô e que bebemos em sorvos travessos da boca um do outro. Beijos, vinho, riso, o calor que a terra emanava e nós, apaixonados. Tirou-me a blusa e a roupa interior e lambeu-me os seios; disse que eram como alperces, maduros e doces, ainda que para mim se parecessem mais com ameixas verdes. Continuou a explorar o meu corpo com a língua até que julguei morrer de prazer e amor. Lembro-me de que se deitou de costas e me fez montá-lo, nua, molhada de suor e desejo, porque queria que fosse eu a impor o ritmo da nossa dança. E assim, devagar e como se estivéssemos a brincar, sem medo nem dor, perdi a minha virgindade. Num momento de êxtase, levantei os olhos para a abóbada verde do bosque e para o ardente céu de Verão e gritei a plenos pulmões da mais pura e simples alegria.
Quando Juan se ausentava, arrefecia-me a paixão, embora toda eu fervilhasse de raiva, e decidia expulsá-lo da minha vida; mas bastava reaparecer com uma desculpa esfarrapada e as suas mãos de bom amante para me conquistar de imediato. E assim recomeçava outro ciclo idêntico, todo ele feito de sedução, promessas, entrega, a felicidade do amor e o sofrimento de uma nova separação. O primeiro ano passou sem que marcássemos a data do casamento, o segundo e o terceiro também. Por essa altura, a minha reputação não era das melhores, porque as pessoas diziam que fazíamos indecências atrás das portas. Era verdade, mas ninguém tinha provas disso, pois éramos muito prudentes. A mesma cigana que me augurou uma vida longa, vendeu-me o segredo para não engravidar: introduzir uma esponja embebida em vinagre. Estava consciente, pelos conselhos que me davam a minha irmã Asuncion e as minhas amigas, que a melhor forma de dominar um homem era negar-lhe os favores, mas nem uma santa mártir seria capaz de fazer isso com Juan de Malaga. Era eu quem procurava ocasiões para estar sozinha com ele, para podermos fazer amor em qualquer sítio, não só atrás das portas. Ele tinha a habilidade extraordinária, que nunca encontrei noutro homem, de me fazer feliz em qualquer posição e em poucos minutos. Importava-se mais com o meu prazer do que com o seu. Memorizou o mapa do meu corpo e ensinou-mo para que pudesse desfrutar sozinha. «És tão bela, mulher», dizia-me repetidamente. Eu não partilhava da sua opinião lisonjeira, mas tinha um tremendo orgulho em ser objecto de desejo do homem mais macho de toda a Extremadura. Se o meu avô soubesse que o fazíamos como os coelhos, até nos cantos mais escuros da igreja, tinha-nos matado aos dois; era extremamente zeloso com o que dizia respeito à sua honra. Grande parte dessa honra dependia da virtude das mulheres da família; por isso, quando os primeiros murmúrios lhe chegaram às orelhas peludas, encolerizou-se e ameaçou atirar comigo para o inferno à paulada. «Uma mancha na honra, disse, só se pode lavar com sangue.» A minha mãe colocou-se entre nós com os braços erguidos e aquele seu olhar capaz de deter um touro em plena corrida, para lhe fazer ver que, da minha parte, havia o maior desejo de casar, só faltando convencer Juan. Foi então que o meu avô se valeu dos seus amigos da Confraria de Vera Cruz, todos homens influentes de Plasencia, para vergar finalmente o meu relutante noivo, que já se estava a fazer rogado de mais.
Casámo-nos numa luminosa terça-feira de Setembro, dia de mercado na Plaza Mayor, quando o aroma das flores, frutos e verduras frescas impregnava a cidade. Depois do casamento, Juan levou-me a Malaga, onde nos instalámos num quarto alugado, com janelas para a rua, que procurei embelezar com umas cortinas de renda de bilros, e móveis feitos pelo meu avô na sua oficina. Juan assumiu o seu papel de marido com nada mais do que a sua fantasiosa ambição, mas com todo o entusiasmo de um potro, embora já nos conhecêssemos tão bem como um casal antigo. Havia dias em que as horas voavam enquanto fazíamos amor e nem sequer chegávamos a vestir-nos; até comíamos na cama. Apesar da paixão desmesurada que sentia, cedo me apercebi, do ponto de vista da conveniência, que aquele casamento era um erro. Verdade seja dita, Juan não me reservou nenhuma surpresa, pois já tinha mostrado o seu verdadeiro carácter anos antes, mas uma coisa era ver as suas falhas de uma certa distância e outra era ter de conviver com elas.
Que me lembre, a única virtude que o meu marido possuía era o seu instinto para me manter satisfeita na cama e o seu aspecto de toureiro, que não me cansava de admirar.
- Este homem não te serve de muito - avisou a minha mãe por ocasião de uma visita.
- Desde que me dê filhos, o resto não me importa.
- E quem é que vai sustentar as crianças? - insistiu.
- Eu, que para isso tenho agulha e linha - respondi-lhe em tom de desafio.
Estava habituada a trabalhar de sol a sol e não faltavam clientes para os meus trabalhos de costura e bordados. Além disso, fazia empadas, recheadas de carne e cebola, que cozinhava nos fornos públicos do moinho e vendia ao amanhecer na Plaza Mayor. De tantas fazer, descobri a proporção exacta de gordura e farinha para obter uma massa firme, flexível e fina. As minhas empadas - ou empanadas - tornaram-se tão populares que, em pouco tempo, já ganhava mais dinheiro a cozinhar do que a costurar.
A minha mãe ofereceu-me uma estatueta de madeira de Nossa Senhora do Socorro, supostamente muito milagrosa, para que me abençoasse o ventre, mas o mais certo era a Virgem ter outros assuntos mais importantes entre mãos, uma vez que não prestou atenção às minhas súplicas. Há já um bom par de anos que não usava a esponja com vinagre mas, de filhos, nada. A paixão que eu e Juan partilhávamos foi-se transformando num desgosto sentido por ambos. À medida que lhe exigia mais e perdoava menos, Juan começou a afastar-se de mim.
Perto do fim, eu já mal lhe falava e ele, quando o fazia, era aos gritos, mas nunca se atreveu a bater-me, porque a única vez que me levantou a mão dei-lhe com uma frigideira de ferro na cabeça, tal como havia feito a minha avó com o meu avô e, anos mais tarde, a minha mãe com o meu pai. Dizem que o meu pai nos abandonou por ter levado com a frigideira, mas o certo é que nunca mais o vimos. Pelo menos neste aspecto a minha família era diferente das restantes: os homens não batiam nas mulheres, só nos filhos. A pancada que dei ao Juan foi quase insignificante, mas o ferro estava quente e deixou-lhe uma marca na testa. Para um homem tão vaidoso como ele, ficar com uma queimadura minúscula foi uma tragédia, mas pelo menos aprendeu a respeitar-me. A pancada acabou de vez com as suas ameaças, mas admito que não contribuiu em nada para melhorar a nossa relação; cada vez que palpava a cicatriz, os seus olhos adquiriam um brilho assassino. Castigou-me, negando-me o prazer que antes me dava com generosidade. A minha vida mudou, as semanas e meses arrastavam-se como se fosse uma condenada a remar nas galés reais, numa sucessão de trabalho e mais trabalho, sempre preocupada com a minha esterilidade e pobreza. Os caprichos e as dívidas do meu marido converteram-se numa carga pesada, que eu assumia para evitar a vergonha de enfrentar os seus credores. Acabaram-se as longas noites de beijos e as manhãs preguiçosas passadas entre lençóis; os nossos encontros eram cada vez mais raros, e quando existiam eram breves e brutais, como violações. Só os aguentei porque tinha esperança de engravidar. Hoje, ao abrigo da serenidade que a velhice nos confere, compreendo que a verdadeira bênção da Virgem foi negar-me a maternidade, permitindo-me assim levar a cabo o destino excepcional que me aguardava. Se tivesse filhos acabaria presa, como sempre acontece com as fêmeas; com filhos, teria sido abandonada por Juan de Malaga, condenada a costurar e cozinhar empadas; com filhos não teria podido conquistar este reino do Chile.
O meu marido continuava a aperaltar-se como um pavão e a gastar dinheiro como um fidalgo, certo que eu faria o impossível para pagar as suas dívidas. Bebia de mais e visitava a rua das meretrizes, onde se perdia durante dias, até que eu pagasse a uns brutamontes para o irem buscar. Traziam-mo coberto de piolhos, exausto e cheio de vergonha. Eu tirava-lhe os piolhos e alimentava-lhe a vergonha. Deixei de admirar o seu torso e o seu perfil de estátua e comecei a invejar a minha irmã Asuncion, casada com um homem que mais parecia um javali, mas bom trabalhador e bom pai de família. Juan aborrecia-se, e eu desesperava, por isso quando se decidiu finalmente a partir para as índias, à procura do El Dorado, uma cidade toda feita de ouro puro onde as crianças brincavam com topázios e esmeraldas, nem tentei impedi-lo. Algumas semanas mais tarde, partiu sem se despedir de mim, de um dia para o outro, com uma trouxa de roupa e os meus últimos tostões, que roubou do esconderijo detrás do fogão.
Juan tinha-me contagiado com os seus sonhos, apesar de nunca ter visto com os meus olhos nenhum aventureiro que tivesse regressado das índias rico; vinham, muito pelo contrário, miseráveis, doentes e loucos. Os que faziam fortuna acabavam por perder tudo e os donos das grandes fazendas, como então se dizia que por lá havia, não as podiam trazer com eles. Mesmo assim, estas e outras razões esfumavam-se perante a pujante atracção que o Novo Mundo exercia. Bem vistas as coisas, não desfilavam, nas ruas de Madrid, carruagens repletas de barras de ouro indiano? Porém, eu não era como o Juan, que acreditava que havia, de facto, uma cidade toda feita de ouro, com águas encantadas que nos concederiam a juventude eterna, ou nas amazonas que se divertiam com os homens e os mandavam embora carregados de jóias, mas suspeitava que naquela terra havia um bem ainda mais precioso do que tudo o resto: a liberdade. Nas índias, cada um era dono de si mesmo, ninguém se curvava perante ninguém, todos podiam cometer erros e recomeçar, ser outra pessoa, viver uma outra vida. Lá ninguém arrastava a desonra por muito tempo e até os mais humildes podiam tornar-se grandiosos. «Em cima da minha cabeça só o meu chapéu de plumas», dizia Juan. Como podia censurar essa aventura ao meu marido se até eu, caso fosse homem, a teria empreendido?
Quando Juan se foi embora, voltei para Plasencia e fui viver com a família da minha irmã e com a minha mãe, porque por aquela altura já o meu avô tinha morrido. Tinha-me transformado em mais uma «viúva das índias», como tantas outras mulheres na Extremadura. De acordo com os costumes da época, supostamente devia vestir-me de luto, com um véu a tapar-me o rosto, renunciar à vida social e submeter-me à vigilância da minha família, do meu confessor e das autoridades. Oração, trabalho e solidão, era só o que o futuro me reservava, mas nunca tive feitio de mártir. Se era certo que os conquistadores das índias sofriam, muito mais sofriam as suas esposas que ficavam em Espanha. Preparei-me para escapar ao controlo da minha irmã e do marido, que me tinham quase tanto medo como tinham à minha mãe, e só para não me enfrentarem abstinham-se de indagar sobre a minha vida privada; bastava-lhes era que não desse um escândalo. Continuei a atender os clientes que precisavam dos meus serviços de costura, continuei a vender as empadas na Plaza Mayor e até me dava ao luxo de assistir às festas populares. Também ia ao hospital ajudar as freiras a tratar dos doentes e das vítimas da peste e das facadas, porque desde muito jovem que me interessava o ofício de curar; não sabia que um dia, mais tarde, essa vocação ser-me-ia indispensável, assim como o talento para cozinhar e encontrar água. Herdei da minha mãe o talento de localizar lençóis de água subterrâneos. Calhava-nos muitas vezes a tarefa de acompanhar um labrego qualquer - e às vezes um senhor - aos campos, para lhes indicar onde deviam abrir o poço. E fácil, segura-se com delicadeza um ramo fino de uma árvore saudável e vai-se caminhando lentamente pelo terreno fora até que o ramo, ao sentir a presença da água, se inclina em direcção ao chão. Então, é ali que se deve cavar o poço. As pessoas diziam que eu e a minha mãe podíamos enriquecer à conta desse talento, porque na Extremadura quem tem um poço tem um tesouro, mas nós fazíamo-lo sempre de graça, porque se cobrássemos por um favor desses perderíamos o dom. Este talento ainda havia de me servir um dia para salvar um exército inteiro.
Durante vários anos recebi muito poucas notícias do meu marido, exceptuando três breves mensagens provenientes da Venezuela, que o padre me leu e ajudou a responder. Juan dizia que estava a passar por muitos trabalhos e perigos, que ali iam parar os homens mais dissolutos, que era necessário andar sempre armado, bem preparado e sempre a espreitar por cima do ombro. Dizia que havia muito ouro, apesar de ainda não ter visto nenhum, e que regressaria rico, construir-me-ia um palácio e dar-me-ia uma vida digna de duquesa. Entretanto, os meus dias iam passando muito lentamente, enfadonhos e com muita pobreza, porque gastava apenas o suficiente para sobreviver e guardava todo o resto num buraco que tinha no chão. Sem dizer nada a ninguém, pois queria evitar mexericos, decidi-me a seguir Juan na sua aventura, custasse o que custasse, não por amor, porque já não o sentia, nem por lealdade, que ele não merecia, mas porque sonhava ser livre. No Novo Mundo, onde ninguém me conhecia, podia ser dona de mim mesma. Uma fogueira de impaciência queimava-me lentamente o corpo. As minhas noites eram um inferno, dava voltas e mais voltas na cama, recordando as felizes ocasiões em que fazia amor com Juan, na época em que nos desejávamos. Ficava cheia de calor em pleno Inverno, vivia zangada comigo própria e com o resto do mundo por ter nascido mulher e estar condenada à prisão dos costumes. Bebia tisanas para dormir, como me aconselhavam as freiras do hospital, só que em mim não surtiam qualquer efeito. Tentava rezar, como me mandava o padre, mas era incapaz de acabar um Pai-nosso sem me perder em pensamentos confusos, porque o Diabo, que se mete em tudo, se metia também comigo. «Precisas de um homem, Inés. Tudo se pode fazer com discrição...» dizia a minha mãe, sempre prática. Para uma mulher na minha situação era fácil conseguir um homem; até o meu confessor, um frade malcheiroso e lascivo, queria que pecássemos juntos no seu confessionário poeirento, em troca de umas quantas indulgências para atenuar a minha pena no purgatório. Nunca cedi; era um velho maldito. Se tivesse querido, homens não me faltavam; ainda tive alguns, quando o aguilhão do demónio me atormentava além do suportável, mas eram meros encontros por necessidade, sem qualquer futuro. Estava atada ao fantasma de Juan e presa na solidão. Na realidade, não era propriamente viúva, mas não podia voltar a casar-me, sendo o meu papel esperar, apenas esperar. Não seria então preferível enfrentar os perigos do mar e das terras bárbaras, em vez de envelhecer e morrer sem na verdade ter vivido?
Depois de pedir durante anos, consegui obter, finalmente, a licença real para embarcar rumo às índias. A Coroa protegia os vínculos matrimoniais e procurava reunir as famílias, para povoar o Novo Mundo com lares legítimos e cristãos, mas não tinha pressa nenhuma em tomar decisões; em Espanha é tudo muito lento, como aliás bem sabemos. Só davam licença às mulheres casadas para se reunirem aos seus maridos se estas fossem acompanhadas por algum familiar ou uma pessoa de respeito. No meu caso foi Constanza, a minha sobrinha de quinze anos, filha da minha irmã Asuncion, uma rapariga tímida, com vocação religiosa, que escolhi por ser a mais saudável da família. O Novo Mundo não é para gente delicada. Não lhe pedimos opinião mas, a avaliar pela birra que fez, suponho que a viagem foi tudo menos do seu agrado. Os pais entregaram-ma com a promessa, redigida e selada por um escrivão, de que, uma vez me tivesse reunido com o meu marido, a mandaria de volta para Espanha e lhe daria um dote para que pudesse entrar no convento, promessa que não pude cumprir, não por falta de honra da minha parte, mas sim da parte de Constanza, como se verá mais à frente. Para conseguir os meus papéis de embarque, duas testemunhas tiveram de interceder por mim para garantir que não fazia parte das pessoas proibidas, não era moura nem judia, mas sim uma antiga cristã convicta. Ameacei o padre dizendo-lhe que denunciaria a sua concupiscência ao Tribunal Eclesiástico e consegui que testemunhasse por escrito que eu era uma pessoa de grande qualidade moral. Com as minhas poupanças comprei os bens necessários para a travessia, uma lista demasiado extensa para que a detalhe aqui, embora me lembre exactamente do seu conteúdo. Basta dizer que levava alimentos para três meses, incluindo uma gaiola com galinhas, roupa e acessórios de casa para me estabelecer nas índias.
Pedro de Valdivia cresceu num casarão de pedra em Castuera, solar de fidalgos pobres, mais ou menos a três dias de caminho a sul de Plasencia. Tenho pena que não nos tenhamos conhecido quando éramos jovens, quando ele um garboso alferes de passagem pela minha cidade, ao regressar de uma das suas muitas campanhas militares. É possível que tenhamos andado no mesmo dia pelas mesmas ruas tortuosas, ele já um homem, com a espada à cintura e com o vistoso uniforme dos cavaleiros do Rei, e eu ainda uma miúda de tranças claras, como as usava na altura, ainda que tenham escurecido entretanto. Talvez nos tenhamos cruzado na igreja, quiçá a sua mão possa ter roçado na minha na pia de água benta e os nossos olhares se tenham cruzado, sem nos reconhecermos mutuamente. Nem aquele soldado endurecido, curtido pelas durezas do mundo, nem eu, uma menina costureira, jamais poderíamos adivinhar aquilo que o destino nos reservava.
Pedro era oriundo de uma família de militares sem fortuna, mas de grande nobreza, cujas proezas recuavam até aos tempos anteriores a Cristo, quando os seus antepassados lutaram contra o exército romano, continuaram a lutar durante setecentos anos de pelejas contra os Sarracenos e, da família, saíam ainda varões de enorme valentia para combater nas eternas guerras entre os monarcas do mundo cristão. Os seus antepassados tinham descido das montanhas para se instalarem na Extremadura. Pedro cresceu a ouvir a sua mãe a contar as façanhas dos sete irmãos do Valle de Ibia, os Valdivia, que enfrentaram um monstro pavoroso numa batalha cruel. De acordo com o relato da matrona inspirada, não se tratava de um dragão comum - corpo de lagarto, asas de morcego e duas ou três cabeças de serpente -, como o de São Jorge, mas sim de uma besta dez vezes maior e mais feroz, já com muitos séculos de vida, que encarnava a maldade de todos os inimigos de Espanha, desde os Romanos aos Árabes e até mesmo aos malvados dos Franceses, que em tempos recentes se tinham atrevido a disputar o direito ao trono do nosso soberano. - «Imagina lá filho, nós a falar francês!» - intercalava habitualmente a senhora no seu relato. Um a um, os irmãos Valdivia foram caindo, chamuscados pelas labaredas que o monstro cuspia ou dilacerados pelas suas garras de tigre. Quando seis dos irmãos tinham perecido e a batalha estava perdida, o irmão mais novo, que ainda estava de pé, cortou um ramo bastante grosso de uma árvore, afiou ambas as extremidades e introduziu-a na boca da besta. O dragão começou a contorcer-se de dor, dando golpes com a
cauda com uma força tal que a nuvem de pó levantada viajou pelo ar até África. Então, o herói pegou na espada com ambas as mãos e cravou-a no coração do monstro, libertando a Espanha. Era precisamente desse jovem, o mais bravo dos bravos, que Pedro descendia por linha materna e, para o provar, bastavam dois trofeus: a espada, que permanecia ainda na família, e o escudo de armas, ilustrado por duas serpentes que mordiam o tronco de uma árvore no meio de um campo de ouro. O lema da família era: A morte, quando menos temida, dá mais vida. Com uns antepassados deste gabarito, não admira que Pedro obedecesse, desde a mais tenra idade, ao chamamento das armas. A sua mãe gastou o que lhe restava do dote para o apetrechar para a dita empresa: cota de malha e armadura completa, armas de cavaleiro, um escudeiro e dois cavalos. A lendária espada dos Valdivia não era mais do que um ferro oxidado, pesada como chumbo, que apenas possuía um valor decorativo e histórico; por isso, comprou-lhe também uma espada do melhor aço de Toledo, flexível e leve. Com ela, Pedro lutaria nos exércitos espanhóis, sob o estandarte de Carlos V, conquistaria o reino mais remoto do Novo Mundo e, junto dela, já partida e ensanguentada, viria a morrer.
O jovem Pedro de Valdivia, criado entre livros e os cuidados de sua mãe, partiu para a guerra com o entusiasmo de quem só tinha visto abater porcos na praça pública por um matador, espectáculo brutal a que o povo inteiro gostava de assistir. A inocência durou tanto como o resplandecente estandarte com o escudo da sua família, que ficou feito em farrapos logo na primeira batalha.
Nas tropas espanholas ia outro fidalgo atrevido, Francisco de Aguirre, que se transformou de imediato no melhor amigo de Pedro. Francisco era tão fanfarrão e espampanante como Pedro era calmo, mas ambos gozavam de igual fama de guerreiros valentes e valorosos. A família Aguirre era de origem basca, mas tinham-se mudado para Talavera de la Reina, perto de Toledo. Desde muito novo, o jovem Francisco deu mostras de uma audácia suicida; procurava o perigo porque se sentia protegido pela cruz de ouro que levava ao peito, oferta de sua mãe. Pendurado no mesmo cordão usava um relicário com uma mecha de cabelo castanho, pertencente à bela rapariga que amava desde pequeno, um amor proibido porque eram primos direitos. Francisco tinha jurado permanecer celibatário, uma vez que não podia casar-se com a prima, mas isso não o impedia de usufruir dos favores de todas as fêmeas que se colocavam ao alcance do seu temperamento fogoso. Alto, bonito, de riso franco e uma voz de tenor, perfeita para animar tabernas e enamorar mulheres, ninguém conseguia resistir-lhe. Pedro avisava-o muitas vezes para que tivesse cuidado, porque o mal francês1 não escolhe mouros, judeus ou cristãos, mas Francisco confiava na cruz da mãe que, tal como já se tinha revelado uma protecção infalível na guerra, muito provavelmente continuaria a ser sua protectora em relação às consequências da luxúria. Aguirre, amável e galante em sociedade, transformava-se numa fera quando estava no campo de batalha, ao contrário de Valdivia, que se mostrava sereno e um perfeito cavalheiro, mesmo quando se encontrava perante os mais gélidos perigos. Ambos sabiam ler e escrever, tinham estudado e eram mais cultos do que a maioria dos fidalgos. Pedro tinha recebido uma instrução esmerada de um sacerdote com quem convivera durante a sua juventude, que era tio da sua mãe, e circulava até o boato de que, na realidade, o sacerdote era o pai dele, apesar de este nunca se ter atrevido a perguntar-lho directamente. Achava que seria um insulto à honra da sua mãe. Além disso, Aguirre e Valdivia tinham em comum o facto de terem nascido no ano de 1500, ano em que nasceu o Sacrossanto Imperador Carlos V, rei de Espanha, Alemanha, Áustria, Flandres, índias Ocidentais, parte de África e mais meio mundo. Os jovens não eram supersticiosos, mas vangloriavam-se por estarem unidos ao rei pela mesma estrela; logo, estariam também eles destinados a façanhas militares semelhantes. Acreditavam ainda que nesta vida não havia melhor propósito do que ser um soldado ao serviço de tão valoroso líder; admiravam a estatura titânica do Rei, a sua coragem indomável, a sua habilidade de cavaleiro e espadachim, o seu talento para a estratégia de guerra e a sua faceta de homem estudioso da paz. Pedro e Francisco agradeciam
Sífilis. (N. da T.)
o facto de terem nascido católicos, facto que garantia a salvação da alma, e espanhóis, ou seja, superiores aos restantes mortais. Eram fidalgos de Espanha, soberana do mundo, nação grandiosa em largura e comprimento, mais poderosa do que o antigo império romano, escolhida por Deus para descobrir, conquistar, cristianizar, fundar e povoar os recantos mais remotos da Terra. Tinham a idade de vinte anos quando partiram para combater na Flandres e, logo de seguida, nas campanhas de Itália, onde aprenderam que em tempos de guerra a crueldade é uma virtude e, uma vez que a morte é a companheira inseparável dos soldados, mais vale ter a alma preparada.
Os dois oficiais lutavam sob o comando de um soldado extraordinário, o Marquês de Pescara, cuja aparência algo efeminada podia ser enganadora, porque debaixo da armadura de ouro e dos atavios de seda bordados com pérolas com que se apresentava no campo de batalha, estava um génio militar excepcional, como aliás demonstrou mais de mil e uma vezes. Em 1524, durante a guerra entre França e Espanha pela posse do território italiano, o Marquês e dois mil dos seus melhores soldados espanhóis desapareceram de forma misteriosa, engolidos por uma neblina invernosa. Correram rumores de que teriam desertado e circulavam por todo o lado canções a escarnecer dos soldados, acusando-os de traição e cobardia, enquanto eles, escondidos num castelo, se preparavam com o maior sigilo. Estávamos no mês de Novembro e o frio congelava a alma dos desgraçados soldados acampados no pátio do castelo. Não entendiam por que motivo estavam ali, entumecidos e ansiosos, em vez de andarem a combater contra os Franceses. O Marquês de Pescara não demonstrava ter qualquer pressa, esperando pelo momento oportuno com a paciência de um caçador. Quando já tinham passado várias semanas, deu sinal aos seus homens para se prepararem para a acção. Pedro de Valdivia ordenou aos homens do seu batalhão que vestissem as armaduras sobre os camiseiros de lã, tarefa difícil de cumprir porque, ao tocar no gélido material, os homens ficavam com os dedos colados, e deu-lhes lençóis brancos para se cobrirem. Assim, como se fossem espectros brancos, desfilaram num silêncio absoluto, a tiritar de frio, durante toda a noite, até que, ao amanhecer, chegaram às proximidades da fortaleza inimiga. Os vigias das torres repararam num estranho movimento na neve, mas pensaram que se tratava das sombras das árvores, agitadas pelo vento. Só viram os espanhóis que se arrastavam em ondas brancas sobre o solo branco precisamente no instante anterior ao ataque surpresa que, entretanto, os fulminou. Essa vitória retumbante transformou o Marquês de Pescara no militar mais famoso do seu tempo.
Um ano mais tarde, Valdivia e Aguirre participaram na batalha de Pavia, a formosa cidade das cem torres, no qual os Franceses saíram mais uma vez derrotados. O Rei de França, que lutava desesperado, foi feito prisioneiro por um dos soldados da companhia de Pedro de Valdivia, que o derrubou do cavalo sem saber de quem se tratava, e por pouco não lhe cortou o pescoço. A oportuna intervenção de Valdivia impediu que o rei fosse morto, alterando assim o percurso da história. Jazendo no campo de batalha encontravam-se mais de dez mil mortos; durante semanas, o ar esteve infestado de moscas e o solo de ratazanas. Dizem que ainda hoje os repolhos e as couves-flor da região nascem com ossos no meio das folhas. Valdivia percebeu que, pela primeira vez, a responsável pela vitória não tinha sido a cavalaria, mas sim duas novas armas: os mosquetes, difíceis de carregar, mas de longo alcance, e os canhões de bronze, mais leves e facilmente transportáveis que os de ferro forjado. Outro elemento decisivo foi a participação de milhares de mercenários, suíços e lansquenetes alemães, famosos pela sua brutalidade, mas que Valdivia desprezava, porque para ele, a guerra, como tudo o resto, era uma questão de honra. O combate em Pavia levou-o a meditar sobre a importância da estratégia e das armas modernas: já não bastava a coragem demente de homens como Francisco de Aguirre, a guerra era uma ciência que exigia estudo e lógica.
Depois da batalha em Pavia, esgotado e a coxear por causa de um golpe de lança na anca, que lhe curaram com azeite a ferver, mas que se abria ao menor esforço, Pedro de Valdivia regressou a casa, a Castuera. Estava em idade de se casar, perpetuar o apelido da família e tomar conta das terras, ermas de tanto tempo de ausência e descuido, como a sua mãe não se cansava de repetir. O ideal seria encontrar uma noiva com um dote considerável, já que a empobrecida fazenda dos Valdivia precisava de dinheiro para recuperar. Havia várias candidatas escolhidas pela família e pelo padre, todas de bom-nome e fortuna, as quais ele viria a conhecer enquanto convalescia da ferida. Mas os planos da família não surtiram o resultado esperado. Pedro viu Marina Ortiz de Gaete no único sítio em que a podia encontrar em público: à saída da missa. Marina tinha treze anos e ainda a vestiam com as saias rodadas armadas com crinolinas próprias da infância. Ia acompanhada pela ama e por uma escrava, que segurava um guarda-sol sobre a sua cabeça, ainda que o dia estivesse nublado; jamais um raio de sol tinha tocado naquela translúcida pele da pálida rapariga. Tinha um rosto angelical, o cabelo louro e luminoso, o andar vacilante de quem carrega com demasiados saiotes e um ar de inocência tal que logo fez Pedro esquecer o desejo de melhorar as condições da fazenda. Não sendo homem para cálculos mesquinhos, foi seduzido de imediato pela beleza e virtude da jovem Marina. Mal descobriu que não estava comprometida, começou a cortejá-la, apesar de a jovem não ter muito dinheiro nem o dote correspondente aos seus encantos. A família Ortiz de Gaete também desejava para a sua filha uma união com benefícios económicos, mas não pôde recusar um cavalheiro de tão ilustre estirpe e comprovada valentia como Pedro de Valdivia, por isso a única condição que impôs foi que a boda se realizasse apenas quando Marina cumprisse catorze anos. Entretanto, Marina deixou-se mimar pelo seu pretendente com a timidez de um coelho, ainda que tenha esquecido essa mesma timidez quando lhe disse que também contava os dias para o tão esperado acontecimento. Pedro estava no apogeu da sua virilidade, era bem constituído, tinha o peito forte e o corpo bem proporcionado, aspecto nobre, nariz proeminente, queixo autoritário e olhos azuis, bastante expressivos. Já naquela altura usava o cabelo puxado para trás, preso num rabo-de-cavalo curto, cara escanhoada, bigode engomado e a barbicha estreita que sempre o caracterizou durante toda a vida. Vestia-se com elegância, empregava gestos confiantes, falava pausadamente e impunha respeito, mas também sabia ser galante e meigo. Marina perguntava-se, admirada, por que teria reparado nela um homem de tamanho orgulho e valentia. Casaram-se no ano seguinte, quando a menina começou a menstruar, e instalaram-se no modesto solar dos Valdivia.
Marina assumiu a sua condição de casada com a melhor das intenções, mas ainda era demasiado jovem e aquele marido de temperamento sóbrio e estudioso assustava-a. Não tinham nada sobre o que falar. Ela aceitava, perturbada, os livros que ele sugeria, sem se atrever sequer a confessar-lhe que só sabia ler um par de frases e assinar o seu nome com um traço hesitante. Tinha vivido sempre protegida do mundo exterior e desejava continuar assim; os discursos do seu marido sobre política ou geografia aterrorizavam-na. Preferia rezar e bordar as requintadas batinas para o padre. Não tinha experiência para tomar conta da casa e os criados não respeitavam as suas ordens, dadas com voz de criança, de modo que foi a sua sogra que continuou a ocupar-se de tais tarefas, enquanto ela continuava a ser tratada como a criança que ainda era. Decidiu-se, então, a aprender a realizar as fastidiosas tarefas domésticas, ajudada pelas mulheres mais velhas da família, mas não tinha ninguém com quem falar sobre o outro aspecto da vida matrimonial, muito mais importante do que aprender a pôr a mesa ou a fazer contas.
Enquanto a relação com Pedro consistiu em visitas vigiadas pela ama e mensagens gentis, Marina foi feliz, mas o entusiasmo esfumou-se quando se meteu na cama com o seu marido. Ignorava por completo o que ia acontecer na primeira noite de casada; ninguém a tinha preparado para a deplorável surpresa com que se deparou. No seu enxoval tinha várias camisas de algodão, largas e compridas até aos tornozelos e apertadas no pescoço e nos punhos com fitas de seda, com um buraco em forma de cruz na parte da frente. Nunca se lembrou de perguntar para que servia aquele buraco e também ninguém lhe explicou que por ali teria contacto com as partes mais íntimas do seu marido. Nunca tinha visto um homem nu e achava que as diferenças entre os homens e as mulheres consistiam unicamente nos pêlos que eles tinham na cara e no tom de voz. Quando, na escuridão, sentiu o hálito de Pedro e as suas enormes mãos a tactear por entre as pregas da camisa de dormir, em busca do buraco bordado primorosamente, deu-lhe um coice como se fosse uma mula e saiu aos gritos pelo corredor do casarão de pedra. Apesar das boas intenções, Pedro não era um amante cuidadoso e a sua experiência limitava-se a relações ocasionais com mulheres de virtude negociável, pelo que entendeu que precisaria de muita paciência. A sua esposa era ainda uma menina e o seu corpo ainda estava a desenvolver-se, não valia a pena forçá-la. Tentou iniciá-la aos poucos, mas a inocência de Marina, que tanto o tinha cativado no início, revelou-se um obstáculo impossível de ultrapassar. Para Pedro, as noites eram uma frustração, para Marina um tormento, e nenhum dos dois se atrevia a falar do assunto à luz do dia. Pedro voltou-se para os seus estudos e para as terras e lavradores, enquanto queimava energias na prática da esgrima e da equitação. No fundo, estava a preparar-se e a despedir-se. Quando o chamamento da aventura se tornou irresistível, alistou-se novamente debaixo dos estandartes de Carlos V, com o sonho secreto de alcançar a glória militar do Marquês de Pescara.
Em Fevereiro de 1527, as tropas espanholas achavam-se em frente às muralhas de Roma, sob as ordens do condestável de Bourbon. Os espanhóis, seguidos por quinze companhias de ferozes mercenários suíços e alemães, aguardavam uma oportunidade de entrar na cidade dos Césares e, assim, ressarcir-se de muitos meses sem receber o soldo. Tratava-se de uma horda de soldados esfomeados e insubordinados, dispostos a esvaziar os tesouros de Roma e do Vaticano. Mas nem todos eram mercenários e velhacos; entre as tropas espanholas ia um par de corajosos oficiais, Pedro de Valdivia e Francisco de Aguirre, que se tinham reencontrado depois de dois anos de afastamento. Abraçaram-se como irmãos e partilharam as novidades da vida de cada um. Valdivia exibiu um medalhão com um retrato em miniatura do rosto de Marina pintado por um português, judeu confesso que tinha conseguido enganar a Inquisição.
- Ainda não tivemos filhos, porque Marina é muito jovem, mas se Deus quiser, há-de haver muito tempo para isso - comentou Pedro.
- Se não nos matarem antes, queres tu dizer! - exclamou o amigo. Francisco confessou, por sua vez, que continuava a partilhar um amor platónico e muitos segredos com a sua prima, que já tinha ameaçado o pai de que entraria para um convento se este a forçasse a casar-se com outro homem. Valdivia disse-lhe que aquela ideia não era de todo disparatada, já que, para muitas mulheres nobres, o convento, para onde ingressavam com um séquito completo de criadas, dinheiro próprio e todos os luxos a que estavam habituadas, era preferível a um casamento imposto pela família.
- No caso da minha prima seria um lamentável desperdício, meu caro amigo. Uma jovem tão bonita e cheia de saúde, criada para o amor e para a maternidade, não se deve amortalhar em vida por baixo de um hábito. Mas numa coisa tens razão, prefiro vê-la convertida em freira do que casada com outro. Nunca o permitiria, teríamos de acabar com a vida, juntos - assegurou Francisco, de forma enfática.
- E condenarem-se ambos ao fogo do inferno? Tenho a certeza de que a tua prima optará por ir para o convento. E tu? Que planos tens para o futuro? - perguntou Valdivia.
- Quero continuar a combater, enquanto puder, e visitar a minha prima na sua cela de monja pela calada da noite. - Riu-se Francisco, tocando na cruz e no relicário que levava ao peito.
Roma estava mal protegida pelo Papa Clemente VII, homem com maiores aptidões para enredos políticos do que para estratégias de guerra. Mal as hostes inimigas se aproximaram das portas da cidade, no meio de uma densa neblina, o Pontífice fugiu do Vaticano por um túnel secreto, para o castelo de Sant’Angelo, protegido por canhões. Consigo levou três mil pessoas, entre as quais o célebre escultor e ourives, Benvenuto Cellini, tão conhecido pelo seu insigne talento artístico como pelo seu mau carácter; o Papa delegou nele as decisões militares, simplesmente porque deduziu que se até ele estremecia perante o artista, não havia razão para que os exércitos do condestável de Bourbon não estremecessem também.
No primeiro assalto a Roma, o condestável levou um tiro fatal de mosquete que o atingiu num olho. Mais tarde, Benvenuto Cellini eabar-se-ia de que fora ele a disparar a bala que matou o infante, ainda que, na verdade, nunca tivesse estado sequer perto dele. Mas quem se atreveria a contradizê-lo? Antes que os capitães conseguissem impor a ordem, as tropas, descontroladas, lançaram-se a ferro e fogo contra a indefesa cidade e tomaram-na numa questão de horas. Durante os primeiros oito dias, os massacres foram tão cruéis que o sangue jorrava pelas ruas e coagulava entre as pedras milenares. Mais de quarenta e cinco mil pessoas fugiram da cidade e o resto da aterrorizada população sumiu-se no fogo do inferno. Os vorazes invasores queimaram igrejas, conventos, hospitais, palácios e casas particulares. Mataram a torto e a direito, incluindo os loucos e doentes dos hospícios e os animais domésticos; torturaram os homens para os obrigar a entregar o que pudessem ter escondido; violaram quantas mulheres e meninas puderam encontrar; assassinaram desde os bebés de peito até aos anciãos. O saque, como se fosse uma interminável orgia, continuou durante semanas. Os soldados, bêbados de sangue e de álcool, arrastavam pelas ruas as obras de arte destruídas e as relíquias religiosas, decapitavam de igual modo pessoas e estátuas, roubavam tudo o que cabia nas suas bolsas e reduziam o resto a pó. Os famosos frescos da Capela Sistina salvaram-se porque foi ali que velaram o corpo do condestável de Bourbon. No rio Tibre flutuavam milhares de cadáveres e o ar estava saturado com o fétido cheiro a carne em decomposição. Cães e corvos devoravam os corpos lançados para todo o lado; mais tarde, chegaram as suas fiéis companheiras da guerra, a fome e a peste, que logo atacaram de igual modo os desgraçados Romanos e os seus agressores.
Durante esses dias aziagos, Pedro de Valdivia percorria Roma com a espada na mão, furioso, procurando inutilmente evitar a pilhagem e a matança e impor alguma ordem entre a soldadesca, mas os quinze mil soldados estrangeiros não o reconheciam como chefe e estavam dispostos a eliminar quem se atravessasse no seu caminho. Um dia, Valdivia deu consigo em frente a um convento quando este estava a ser atacado por uma dúzia de mercenários alemães. As freiras, sabendo que nenhuma mulher escapava às violações, tinham-se reunido no pátio formando um círculo em redor de uma cruz, no centro do qual estavam as jovens noviças, imóveis, de mãos dadas e cabeça baixa, a rezar num suave murmúrio. Vistas de longe pareciam pombas. Pediam ao Senhor que impedisse que fossem conspurcadas, que tivesse piedade delas enviando-lhes uma morte rápida.
- Para trás! Quem se atrever a cruzar este umbral, terá de se ver comigo! - rugiu Pedro de Valdivia, brandindo a sua espada com a mão direita e um pequeno sabre com a mão esquerda.
Alguns soldados pararam, surpreendidos, calculando se valeria, de facto, a pena enfrentar aquele imponente e determinado oficial espanhol, ou se seria mais conveniente passar à casa seguinte, mas outros lançaram-se em tropel ao ataque. A seu favor, Valdivia tinha o facto de ser o único soldado sóbrio e com quatro estocadas certeiras colocou fora de combate outros tantos alemães, mas nessa altura os demais soldados do grupo já se tinham recomposto da surpresa inicial e também se lançaram a ele. Apesar de terem a mente toldada pelo álcool, os alemães eram guerreiros tão formidáveis como Valdivia e não tardou muito que o cercassem completamente. Se, por um golpe de sorte, Francisco de Aguirre não tivesse aparecido a seu lado, aquele teria sido muito provavelmente o último dia de vida do oficial da Extremadura.
- A mim, seus teutões filhos-da-puta! - gritava o basco tremendo, vermelho de raiva, enorme, brandindo a espada como se fosse um garrote.
A confusão atraiu a atenção de outros espanhóis que por ali passavam e que depararam com os seus compatriotas em grande perigo. Em menos de um quarto de hora, armou-se uma verdadeira batalha campal em frente ao convento. Meia hora mais tarde, os assaltantes bateram em retirada, deixando vários deles a esvair-se em sangue no meio da rua, e só então os oficiais puderam trancar as portas do convento. A Madre Superiora pediu às freiras mais corajosas que recolhessem as que tinham desmaiado e se colocassem às ordens de Francisco de Aguirre, que se tinha oferecido para organizar a defesa do convento, fortificando os muros.
Ninguém está seguro em Roma. Por agora, os mercenários retiraram-se, mas não há dúvida de que regressarão e mais vale estarem preparadas - avisou-as Aguirre.
- Vou arranjar uns mosquetes e Francisco ensinar-vos-á a usá-los decidiu Valdivia, a quem não escapou o brilho picaresco do olhar do amigo ao imaginar-se sozinho com uma boa vintena de noviças virgens e um punhado de freiras maduras, mas gratas e ainda apetecíveis.
Sessenta dias depois, terminou finalmente o horroroso saque de Roma, que pôs fim a uma época - o papado renascentista em Itália e ficaria para a história como uma mancha infame na vida do nosso Imperador Carlos V, embora este sempre se tivesse encontrado demasiado afastado do local.
Sua Santidade, o Papa, pôde abandonar o seu refúgio no castelo de Sant’Angelo, mas foi feito prisioneiro e recebeu maus-tratos da parte dos presos comuns, que inclusivamente lhe roubaram o anel pontifical e lhe deram um chuto no traseiro que o atirou de bruços para o chão, por entre as gargalhadas dos soldados.
Podiam apontar-se muitos defeitos a Benvenuto Cellini, mas não era homem de esquecer os favores que lhe prestavam; por isso, quando a Madre Superiora do convento o visitou para lhe dar conta de como um jovem oficial espanhol tinha salvo a sua congregação e tinha permanecido durante semanas no edifício para as defender, Cellini quis conhecer o dito benfeitor. Horas depois, a freira acompanhou Francisco de Aguirre ao palácio. Cellini recebeu-o num dos salões do Vaticano, entre escombros e móveis estragados deixados pelos assaltantes. Os dois homens trocaram breves cortesias.
- Dizei-me, senhor, o que desejais em troca da vossa corajosa intervenção? - perguntou abruptamente Cellini, que não era homem de rodeios.
Vermelho de raiva, Aguirre levou a mão instintivamente ao punho da espada.
- Insultais-me! - exclamou.
A Madre Superiora colocou-se entre eles e, com o peso da sua autoridade, afastou-os com um gesto altivo, pois não havia tempo para fanfarronices. Pertencia à família do condottiere genovês Andrea Doria, era uma mulher de posses e linhagem, habituada a mandar.
- Basta! Rogo-vos que perdoeis esta ofensa involuntária, don Francisco de Aguirre. Vivemos tempos difíceis, já correu muito sangue, já se cometeram pecados espantosos, por isso não é de estranhar que até os bons modos sejam relegados para segundo plano. O senhor Cellini sabe que Vossa Mercê não defendesteis o nosso convento por interesse, mas sim pela honradez do vosso coração. A última coisa que o senhor Cellini pretende é ofender-vos. Seria um privilégio para nós que o senhor aceitasse um sinal do nosso apreço e gratidão...
A Madre Superiora fez um gesto ao escultor para que aguardasse e levou Aguirre por uma manga até ao outro lado do salão. Cellini ouviu-os cochichar durante muito tempo. Quando a sua escassa paciência estava prestes a esgotar-se, os dois regressaram e a Madre expôs o pedido do jovem oficial, enquanto este, com os olhos fixos nas biqueiras das botas, transpirava.
E foi assim que Benvenuto Cellini obteve autorização do Papa Clemente VII, antes que este fosse conduzido para o desterro, para que Francisco de Aguirre se pudesse casar com a sua prima direita. O jovem basco correu alvoroçado até ao amigo Pedro de Valdivia para lhe contar o que tinha acontecido. Tinha os olhos húmidos e a sua voz de gigante tremia, mal conseguindo acreditar em semelhante prodígio.
- Não sei se esta é uma boa notícia, Francisco. Tu coleccionas conquistas como o nosso Sagrado Imperador colecciona relógios. Não te imagino convertido em marido - observou Valdivia.
- A minha prima é a única mulher que jamais amei! As outras são seres sem rosto, só existem por um momento para satisfazer o apetite que o Diabo colocou dentro de mim.
- O Diabo coloca dentro de nós inúmeros e muito variados apetites, mas Deus dá-nos a clareza moral para os controlarmos. É isso que nos diferencia dos animais.
- És soldado há tantos anos, Pedro, e ainda acreditas que somos diferentes dos animais... - brincou Aguirre.
- Não tenhas dúvidas. O destino do homem é conseguir elevar-se para além da bestialidade, conduzir a vida de acordo com os ideais mais nobres e salvar a sua alma.
- Às vezes assustas-me, Pedro, falas como um frade. Se não conhecesse a tua virilidade como conheço, diria que te falta aquele instinto primordial que anima os machos.
- Não careço desse instinto, podes ter certeza, mas não permito que isso determine a minha conduta.
- Não sou tão nobre como tu, mas o amor casto e puro que sinto pela minha prima é a minha redenção.
- Agora que te vais casar com essa jovem idealizada, tens um problema muito sério pela frente. Como vais tu conciliar os teus hábitos libidinosos com esse amor? - perguntou Pedro, com um sorriso trocista.
- Não vou ter qualquer problema, Pedro. Com beijos, retirarei a minha prima do altar de santa em que a coloquei e amá-la-ei com uma paixão imensa - respondeu Aguirre, cheio de vontade de rir.
- E a fidelidade?
- A minha prima há-de certificar-se de que a fidelidade não falte no nosso casamento, mas eu não posso renunciar às mulheres, da mesma forma que não posso renunciar ao vinho e à espada.
Francisco de Aguirre viajou apressado até Espanha para se casar antes que o indeciso Pontífice mudasse de ideias. O facto é que Francisco conseguiu aliar o sentimento platónico que nutria pela prima à sua indomável sensualidade, ao que ela respondeu sem a mínima sombra de timidez, porque o ardor deste casal chegou a ser lendário. Dizem que os vizinhos se juntavam na rua, em frente à casa dos Aguirre, para se deliciarem com o escândalo que causavam e para fazer apostas sobre o número de assaltos amorosos que haveria naquela noite.
Depois de muita guerra, sangue, pólvora e lodo, Pedro de Valdivia também regressou à sua terra natal, precedido pela fama das suas campanhas militares; com experiência adquirida à custa de muito esforço e uma bolsa de ouro que pretendia usar para reerguer o seu património empobrecido. Marina esperava-o transformada numa mulher. Já não tinha os tiques de menina mimada; tinha agora dezassete anos e a sua beleza, etérea e serena, era um convite à contemplação, como se fosse uma obra de arte. Tinha um ar distante de sonâmbula, como se pressentisse que a sua vida seria uma eterna espera. Na primeira noite que passaram juntos, ambos repetiram, como autómatos, os mesmos gestos e silêncios de antes. Na escuridão do quarto, os seus corpos uniram-se sem alegria; ele tinha medo de a assustar, ela tinha medo de pecar; ele desejava cortejá-la, ela desejava que amanhecesse. Durante o dia, cada um assumia o papel que lhe competia, conviviam no mesmo espaço sem se tocarem. Marina acolheu o marido com um carinho ansioso e solícito que, em vez de lhe agradar, o incomodava. Não precisava de tanta atenção, mas de alguma paixão; no entanto, não se atrevia a pedir-lha, porque supunha que a paixão não era própria de uma mulher decente e religiosa como ela. Sentia-se vigiado por Marina, preso nos laços invisíveis de um sentimento ao qual não sabia corresponder. Não gostava do olhar suplicante com que o seguia pela casa, da sua tristeza muda ao despedir-se dele, nem da expressão de recriminação velada com que o recebia após uma breve ausência. Marina parecia-lhe intocável e só conseguia deleitar-se observando-a a uma certa distância, enquanto ela bordava, absorta nos seus pensamentos e orações, iluminada como uma santa de catedral pela luz dourada de uma janela. Para Pedro, os encontros atrás das pesadas e poeirentas cortinas do leito conjugal, que já tinham servido a três gerações de Valdivias, perderam o encanto, simplesmente porque ela se negou a trocar a camisa de dormir com o buraco em forma de cruz por uma roupa menos assustadora. Pedro sugeriu-lhe que falasse com outras mulheres, mas Marina não podia falar desse assunto com ninguém. Depois de cada relação, ficava horas a rezar ajoelhada no chão de pedra daquela casa enorme varrida por correntes de ar, imóvel, humilhada por não ser capaz de satisfazer o seu marido. Contudo, secretamente, ficava feliz, porque esse sentimento a distinguia das mulheres da vida e a aproximava da santidade. Pedro já lhe tinha explicado que entre marido e mulher o pecado da lascívia não existe, já que o propósito da cópula é a concepção de filhos, mas Marina não conseguia evitar o arrepio que lhe percorria a espinha cada vez que ele lhe tocava. O temor que o seu confessor lhe incutira pelo inferno e o pudor que se deve ter em relação ao próprio corpo era fortíssimo. Nos anos em que conviveu com ela, Pedro só tinha visto a cara, as mãos e, ocasionalmente, os pés da mulher. Sentia-se tentado a arrancar-lhe a camisa de dormir à força, mas o terror que se reflectia nas pupilas de Marina quando ele se aproximava, logo o desencorajava. Este terror contrastava com o olhar terno que tinha durante o dia, quando ambos estavam vestidos. Marina não tomava a iniciativa no amor, nem em qualquer outro aspecto da sua vida comum, nem sequer mudava de expressão ou humor, era uma ovelha sossegada. Pedro sentia-se irritado com tanta submissão, apesar de considerar que era uma característica tipicamente feminina. Não entendia os seus próprios sentimentos. Quando casou com ela, ainda ela era uma menina, desejou mantê-la no estado de inocência e pureza que tanto o tinha seduzido, mas agora só desejava que se revoltasse e o desafiasse.
Valdivia tinha chegado a capitão muito rapidamente, devido à sua valentia excepcional e à enorme capacidade de liderança que possuía, mas, apesar da sua brilhante carreira, não estava orgulhoso do seu passado. Depois do saque de Roma, era atormentado por pesadelos recorrentes nos quais aparecia uma jovem mãe, abraçada aos seus filhos, disposta a saltar de uma ponte para um rio de sangue. Conhecia os limites da abjecção humana e o fundo negro da alma, sabia que os homens expostos à brutalidade da guerra são capazes de levar a cabo acções terríveis e ele não se sentia diferente dos demais. Quando se confessava, era sempre absolvido pelo padre, que apenas lhe atribuía penas mínimas, porque os pecados cometidos em nome de Espanha e da Igreja não podiam ser considerados pecados. Não obedecia ele a ordens superiores? E não era o inimigo merecedor de uma sorte tão vil? Ego te absolvo ab omnibus censuris, etpeccatis, in nomine Patri, et Filii, et Spiritui Sancti, Amen. Para quem já sentiu a exaltação de matar não há escapatória nem absolvição, pensava Pedro. O vício secreto de todos os soldados, inclusivamente de Pedro, era o gosto que se ganhava pela violência, caso contrário seria quase impossível fazer a guerra. A rude camaradagem das casernas, o coro de rugidos viscerais com que os homens se lançavam unidos nas batalhas, a indiferença comum perante a dor e o medo, faziam-no sentir-se vivo. Aquele prazer feroz de trespassar um corpo com a espada, o satânico poder de retirar a vida a outro homem e o fascínio pelo sangue derramado eram vícios demasiado poderosos. Um soldado começa a matar por dever e acaba fazendo-o por hábito. Nada se lhe podia comparar. Mesmo para ele, que era temente a Deus e se orgulhava de ser capaz de controlar as suas paixões, o instinto de matar, uma vez libertado, era mais forte que o instinto de viver. Comer, fornicar e matar, segundo o seu amigo Francisco de Aguirre, era a isso que se resumia o homem. A única salvação da sua alma era evitar a tentação da espada. De joelhos, diante do altar-mor da catedral, jurou dedicar o resto da sua existência a fazer o bem, servir a Igreja e a Espanha, não cometer excessos e reger a sua vida por princípios morais severos. Já tinha estado às portas da morte por várias ocasiões e Deus tinha-o poupado para que pudesse expurgar as suas culpas. Pousou a sua espada de Toledo junto à espada do seu antepassado e decidiu ganhar juízo.
O capitão converteu-se, então, num cidadão aprazível, preocupado com assuntos plebeus, o gado e as colheitas, as secas e as geadas, as conspirações e as invejas do povo. Leituras, jogos de cartas, missas e mais missas. Como era um estudioso da lei escrita e do direito, as pessoas consultavam-no sobre assuntos legais e até as autoridades judiciais se inclinavam a seguir os seus conselhos. O seu maior prazer eram os livros, sobretudo as crónicas de viagens e os mapas, que estudava detalhadamente. Tinha aprendido de memória o poema de El Cid, o Campeador, adorado as crónicas fantásticas de Solino e as viagens imaginárias de John Mandeville, mas a leitura que realmente preferia eram as notícias do Novo Mundo que se publicavam em Espanha. As proezas de Cristóvão Colombo, Fernão de Magalhães, Américo Vespúcio, Hernán Cortês e tantos outros que o mantinham acordado de noite; com os olhos cravados no baldaquino de brocado da cama, sonhava acordado em descobrir longínquos recantos do planeta, conquistá-los, fundar cidades, levar a Cruz da glória de Deus para terras bárbaras, gravar o seu nome a ferro e fogo na História. Entretanto, a sua esposa ia bordando batinas com fio de ouro e rezando um terço atrás do outro numa ladainha interminável. Apesar de Pedro se aventurar várias vezes por semana através da humilhante abertura da camisa de dormir de Marina, os desejados filhos tardavam em chegar. E assim se passaram os anos, entediados e lentos, na letargia do Verão e no recolhimento do Inverno. Dureza extrema, Extremadura.
Certo dia, vários anos mais tarde, quando Pedro de Valdivia já se tinha resignado a envelhecer sem glória junto da sua mulher e na silenciosa casa de Castuera, eis que chega de visita um viajante que estava de passagem, com uma carta de Francisco de Aguirre. Chamava-se Jerónimo de Alderete e era oriundo de Olmedo. Tinha um rosto agradável, cabelo farto e ondulado cor de mel, bigode turco com as pontas engomadas para cima e os olhos incandescentes de um sonhador. Valdivia recebeu-o com a hospitalidade característica de um bom espanhol, oferecendo-lhe a sua casa, que carecia de luxos mas sempre era mais confortável e segura do que as hospedarias de então. Estávamos no Inverno e Marina tinha mandado acender a lareira da sala principal, mas os troncos de madeira ardente não conseguiam dissipar as correntes de ar nem as sombras. Era naquela sala espartana, quase desprovida de móveis e adornos, que decorria a vida do casal; era ali que ele lia e ela se ocupava com a agulha, ali comiam e era ali também que se encontrava, encostado a uma parede, o altar com dois genuflexórios à frente, onde ambos rezavam. Marina serviu aos homens um vinho áspero, feito em casa, salsichão, queijo e pão, retirando-se logo de seguida para bordar à luz de um candelabro, enquanto os homens falavam.
Jerónimo de Alderete tinha por missão recrutar homens para a campanha das índias e, então, para os tentar, exibia nas tabernas e praças um grosso colar de contas de ouro lavrado, unidas com um firme fio de prata. A carta que Francisco de Aguirre enviava para o seu amigo Pedro falava sobre o Novo Mundo. Exultante, Alderete falou ao seu anfitrião das fabulosas possibilidades que o dito continente oferecia, e que andavam na boca de toda a gente. Disse que já não havia lugar para as mais nobres façanhas naquela Europa, corrupta, envelhecida, dilacerada por conspirações políticas, intrigas cortesãs e prédicas de hereges, como os luteranos, que dividiam a Cristandade. O futuro estava do outro lado do oceano, assegurou. Havia muito trabalho a fazer nas índias ou América, nome esse dado a essas terras por um certo cartógrafo alemão em honra de Américo Vespúcio, um navegante florentino vaidoso que nem sequer teve o mérito de as descobrir, ao contrário de Cristóvão Colombo. Na opinião de Alderete deviam tê-las chamado de Cristovanas ou Colômbicas. Mas enfim, o que estava feito, feito estava, e também não era esse o motivo da sua visita, acrescentou. O que mais fazia falta no Novo Mundo eram fidalgos de coração indómito, com a espada numa mão e a cruz na outra, dispostos a descobrir e conquistar. Era absolutamente impossível imaginar a vastidão de tais lugares, o verde infinito das suas selvas, a abundância dos seus rios cristalinos, a profundidade dos seus lagos de águas mansas, a opulência das suas minas de ouro e prata. Sonhar, não tanto com tesouros, mas com a glória, viver uma vida completa, lutar contra os selvagens, cumprir um destino superior e, com a graça de Deus, fundar uma dinastia. Era possível alcançar tudo isso e muito mais para além das novas fronteiras do império, disse, onde havia aves de plumagem adornada com jóias e mulheres da cor do mel, que andavam nuas e eram complacentes, «perdoai-me, dona Marina, é uma forma de falar...», acrescentou. Na língua castelhana não havia palavras suficientes para descrever a abundância do que crescia naquelas terras: pérolas do tamanho de ovos de codorniz, ouro que caía das árvores e tanta terra e índios disponíveis, que qualquer soldado podia converter-se em senhor de uma fazenda do tamanho de uma província espanhola. E o mais importante, afiançou, era que os numerosos povos aguardavam pela palavra do Deus Único e Verdadeiro e pela bondade da nobre civilização castelhana. Acrescentou ainda que o amigo que tinham em comum, Francisco de Aguirre, também desejava embarcar e a sua sede de aventura era tal que estava disposto a deixar a sua esposa amantíssima e os cinco filhos que ela lhe tinha dado ao longo destes anos.
- Acreditais que na Terra Nova ainda há oportunidades para homens como nós? - perguntou Valdivia. -Já passaram quarenta anos desde a chegada de Colombo e vinte e seis desde que Cortês conquistou o México...
- E passaram também vinte e seis anos desde que Fernão de Magalhães iniciou a sua viagem à volta do mundo. Como podeis ver a Terra está em expansão, as oportunidades são infinitas. Não é só o Novo Mundo que está aberto à exploração, também estão a África, a índia, as ilhas Filipinas e muito, muito mais - insistiu o jovem Alderete.
Repetiu-lhe o que já se ouvia um pouco por toda a Espanha: a conquista do Peru e do seu faustoso tesouro. Uns anos antes, dois soldados desconhecidos, Francisco Pizarro e Diego de Almagro, associaram-se na empresa de chegar ao Peru. Desafiando perigos homéricos por terra e mar, realizaram duas viagens: partiram do Panamá em navios e avançaram pela despedaçada costa do Pacífico às cegas, sem mapas, rumo ao Sul, sempre o mesmo Sul. Guiavam-se através dos rumores dos índios de diversas tribos, que se referiam a um lugar onde os utensílios de cozinha e lavoura tinham esmeraldas incrustadas, onde nos rios corria um caudal de prata, onde as folhas das árvores e os escaravelhos eram de ouro vivo. Como não sabiam por onde andavam, paravam muitas vezes para desembarcar e explorar tais regiões, nunca antes pisadas por europeus. Muitos castelhanos morreram pelo caminho, e muitos outros sobreviveram alimentando-se de cobras e vermes. Na terceira viagem, na qual participou Diego de Almagro, que tinha andado a recrutar soldados e a arranjar financiamento para fazer zarpar outro navio, Pizarro e os seus homens alcançaram finalmente o território dos Incas. Sonâmbulos de cansaço e suor, extraviados de mar e céu, os espanhóis desceram dos seus navios maltratados numa terra benigna de vales férteis e montanhas majestosas, muito diferente da selva envenenada do Norte. Eram sessenta e dois cavaleiros andrajosos e cento e seis exaustos soldados a pé. Começaram a andar com cautela com as suas pesadas armaduras, levando uma cruz na frente, os mosquetes carregados e as espadas desembainhadas. Um povo da cor da madeira foi ao encontro deles, iam vestidos de finos tecidos coloridos e falavam numa língua de doces vogais, mostrando-se assustados, porque nunca tinham visto nada parecido com aqueles seres barbudos, metade besta metade homem. Ambas as partes devem ter ficado surpreendidas, uma vez que os navegantes jamais imaginaram encontrar uma civilização como aquela. Ficaram perplexos perante as obras de engenharia e arquitectura, os tecidos e as jóias. O Inça Atahualpa, soberano daquele império, encontrava-se então numas termas de águas medicinais, onde estava acampado com um luxo apenas comparável ao de Solimão, o Magnifico, e tinha como companhia milhares de cortesãos. Um dos capitães de Pizarro foi até lá para o convidar a conferenciar com ele. O Inca recebeu-o, juntamente com o seu faustoso séquito, numa tenda branca, rodeada de flores e árvores de frutos plantadas em vasos de materiais preciosos, entre piscinas de água quente, onde brincavam centenas de princesas e magotes de crianças. Estava escondido atrás de uma cortina, porque ninguém podia olhá-lo cara a cara, mas a curiosidade foi mais forte do que o protocolo e Atahualpa quis afastar a cortina para observar de perto o estrangeiro barbudo. O capitão encontrou-se em frente a um monarca ainda jovem e de feições agradáveis, sentado num trono de ouro maciço, debaixo de um dossel de penas de papagaio. Não obstante as estranhas circunstâncias, uma centelha de simpatia recíproca brotou entre o soldado espanhol e o nobre quícbua. Atahualpa ofereceu ao pequeno grupo de visitantes um banquete servido em louça de ouro e prata incrustada de ametistas e esmeraldas. O capitão transmitiu o convite de Pizarro ao Inca, mas sentia-se angustiado porque sabia que, de acordo com a estratégia habitual dos conquistadores, se tratava de uma artimanha para o fazer prisioneiro. Bastaram-lhe poucas horas para aprender a respeitar aqueles indígenas; pelo contrário, de selvagens não tinham nada, eram até mais civilizados do que muitos povos europeus. Confirmou, admirado, que os Incastinham conhecimentos avançados de astronomia e tinham mesmo elaborado um calendário solar, além de que tinham um registo dos milhões de habitantes do seu extenso império, que controlavam com uma organização social e militar verdadeiramente impecável. No entanto, não tinham desenvolvido a escrita, as suas armas eram rudimentares, não usavam a roda nem tinham animais de carga ou de montar, só umas delicadas ovelhas de patas altas com olhos enamorados, os lamas. Adoravam o Sol, que só exigia sacrifícios humanos em ocasiões trágicas, como uma doença do Inca ou algum revés na guerra, sendo então necessário aplacá-lo através de uma oferenda de virgens ou crianças. Enganados pelas falsas promessas de amizade, o Inca e a sua extensa corte chegaram desarmados à cidade de Cajamarca, onde Pizarro tinha preparado uma cilada. O soberano viajava num palanquim de ouro transportado em andas pelos seus ministros; seguia-o o seu harém de formosas donzelas. Os espanhóis, depois de matar os milhares de cortesãos que se puseram na frente de Atahualpa para o proteger com os seus corpos, tomaram o soberano como prisioneiro.
- Não se fala de outra coisa que não seja o tesouro do Peru. A notícia é como uma febre, contagiou meia Espanha. Dizei-me, é verdade o que se diz? - perguntou Valdivia.
- Certamente, embora pareça inacreditável. Em troca pela sua liberdade, o Inca ofereceu a Pizarro o conteúdo em ouro de um aposento com cerca de 22 pés de comprimento por 17 de largura e 9 de altura.
- Mas é uma soma impossível!
- é o maior resgate da história. Foi pago sob a forma de jóias, estátuas e taças, mas foi tudo derretido para ser convertido em barras de ouro com o selo real espanhol. De nada serviu a Atahualpa entregar semelhante fortuna, que os seus súbditos foram trazendo dos lugares mais longínquos do império como se fossem diligentes formigas; Pizarro, depois de o ter feito prisioneiro durante nove meses, condenou-o a morrer queimado. No último instante, mudou a sentença para uma morte mais branda, o garrote vil, se o Inca concordasse em ser baptizado - explicou Alderete. Acrescentou que Pizarro pensava ter boas razões para o fazer, já que supostamente o cativo tinha instigado uma sublevação a partir da sua cela. De acordo com os espiões, havia dois mil quíchuas provenientes de Quito e trinta mil do Caribe, que comiam carne humana, preparados para avançar sobre os conquistadores espanhóis em Cajamarca, só que a morte do Inca obrigou-os a desistir. Soube-se mais tarde que tal exército nunca existiu.
- De qualquer forma, é difícil explicar como um punhado de espanhóis conseguiu derrotar a refinada civilização que descreveis. Estamos a falar de um território maior que a Europa - disse Pedro de Valdivia.
- Era um império muito vasto, mas frágil e jovem. Quando Pizarro lá chegou, tinha apenas um século de existência. Além disso, os Incassão um povo ocioso, nada puderam fazer contra a nossa coragem, armas e cavalos.
- Suponho que Pizarro se tenha aliado aos inimigos do Inca, como fez Hernán Cortês no México.
- Assim foi. Atahualpa e o seu irmão Huáscar mantinham uma guerra fratricida e Pizarro e Almagro, que chegou ao Peru um pouco depois para os derrotar, valeram-se disso.
Alderete explicou ainda que no império do Peru nem uma folha se movia sem o conhecimento das autoridades, já que todos eram servos. Com uma parte do tributo que os súbditos pagavam, o Inca alimentava e protegia órfãos, viúvas, doentes e anciãos e guardava reservas para os tempos menos afortunados. Mas apesar destas medidas razoáveis, inexistentes em Espanha, o povo odiava o soberano e a sua corte, porque vivia submetido à servidão das castas dos militares e dos religiosos, os orejones. Segundo disse, para o povo era exactamente a mesma coisa estar sob o domínio dos Incasou dos Espanhóis; por isso não opuseram grande resistência aos invasores. De qualquer forma, a morte de Atahualpa deu a vitória a Pizarro; ao privar o império da cabeça que o unia, este pura e simplesmente se desmoronou.
- Esses dois homens, Pizarro e Almagro, uns bastardos sem educação nem fortuna, são o melhor exemplo do que se pode alcançar no Novo Mundo. Não só ficaram riquíssimos, como foram cobertos de honras e títulos pelo nosso Imperador - acrescentou Alderete.
- Só se fala de fama e riqueza, só se fala das campanhas que tiveram êxito: ouro, pérolas, esmeraldas, terras e povos submetidos, nunca ninguém fala dos perigos - argumentou Valdivia.
- Tens razão. E os perigos são infinitos. Para conquistar esses solos virgens, precisamos de homens de muita coragem.
Valdivia corou. Duvidaria por acaso aquele jovem da sua coragem? Mas logo de seguida admitiu que, se assim fosse, estaria no seu pleno direito. Até ele mesmo duvidava; há muito tempo que não punha à prova a sua própria coragem. O mundo mudava a passos largos. Tinha tido a sorte de nascer numa época esplêndida, durante a qual se revelavam finalmente os mistérios do Universo: não só se descobriu que a Terra era redonda como também havia quem sugerisse que afinal esta rodava em torno do Sol e não o contrário. E o que fazia ele enquanto tudo isso acontecia? Contava ovelhas e cabras, apanhava bolotas e azeitonas. Uma vez mais, Valdivia teve consciência do tédio que o envolvia. Estava farto de gado e lavradios, de jogar cartas com os vizinhos, de missas e rosários, de reler os mesmos livros - quase todos proibidos pela Inquisição - e de vários anos de encontros forçados e estéreis com a sua mulher. O destino, encarnado na pele deste jovem de entusiasmo refulgente, batia-lhe mais uma vez à porta, tal como tinha acontecido nos tempos da Lombardia, Flandres, Pavia, Milão e Roma.
- Quando partis para as índias, Jerónimo?
- Se Deus me permitir, ainda este ano.
- Podeis contar comigo - disse Pedro de Valdivia num sussurro, para que Marina não o ouvisse. Tinha os olhos postos na sua espada de Toledo, que estava pendurada em cima da lareira.
Em 1537 despedi-me da minha família, que não voltaria a ver, e viajei com a minha sobrinha Constanza até à formosa cidade de Sevilha, perfumada de flor de laranjeira e jasmim, e dali, navegando pelas águas calmas do Guadalquivir, chegámos ao movimentado porto de Cádis, com as suas ruelas empedradas e cúpulas mouriscas. Embarcámos no navio do mestre Manuel Martin, de três mastros e duzentas e quarenta toneladas, lento, pesado, mas seguro. Uma fila de homens transportou a carga para bordo: barris de água, cerveja, vinho e azeite, sacos de farinha, carne seca, aves vivas, uma vaca e dois porcos para consumir durante a viagem, além de vários cavalos, animal que no Novo Mundo se vendia ao preço do ouro. Certifiquei-me de que os meus pertences fossem bem amarrados e armazenados no espaço que o mestre Manuel Martin me destinou. A primeira coisa que fiz quando me instalei na nossa pequena cabina foi instalar um altar em honra da Nossa Senhora do Socorro.
- Tendes muita coragem em fazer esta viagem, dona Inés. O vosso marido está à vossa espera onde? - quis saber Manuel Martin.
- Para dizer a verdade não sei, mestre.
- Como? Não está à vossa espera em Nova Granada?
- A última carta que me enviou veio de um lugar que chamam Coro, na Venezuela, mas isso já foi há muito tempo e pode ser que já lá não esteja.
- As índias são um território mais vasto do que todo o restante mundo conhecido. Não vos será fácil encontrar o vosso marido.
- Hei-de procurá-lo até o encontrar.
- De que forma, minha senhora?
- Da forma habitual, perguntando.
- Então desejo-vos sorte. Esta é a primeira vez que viajo com mulheres. Rogo-vos, a vós e à vossa sobrinha, que sejais prudentes - acrescentou o mestre.
- O que quereis dizer com isso?
- Sois ambas jovens e atraentes. Adivinhais, sem dúvida, a que me refiro. Passada uma semana no mar, a tripulação começa a sentir falta das mulheres e, havendo duas a bordo, a tentação será muito forte. Além disso, os marinheiros acreditam que a presença feminina atrai tempestades e outras desgraças. Pelo vosso bem e pela minha tranquilidade, prefiriria que não tivésseis contacto com os meus homens.
O mestre era um galego baixo, de costas largas e pernas curtas, com um nariz proeminente, olhitos de rato e pele curtida, como couro, pelo sal e vento das travessias marítimas. Tinha começado a servir como grumete aos treze anos e contavam-se pelos dedos de uma mão os anos que tinha passado em terra firme. O seu aspecto tosco contrastava com a gentileza dos seus modos e a bondade da sua alma, aliás como seria evidente mais tarde, quando veio em meu auxílio num momento de grande necessidade.
É uma pena que, na altura, eu não soubesse escrever, porque teria começado a tomar notas. Apesar de ainda não suspeitar que a minha vida seria merecedora de uma crónica como esta, aquela viagem merecia ser registada detalhadamente, já que muito poucas pessoas tinham cruzado a salgada extensão do oceano, águas de chumbo, fervilhando de vida secreta, pura abundância e terror, misto de espuma, vento e solidão. Neste relato, escrito muitos anos depois de ter feito a travessia, é meu desejo ser o mais fiel possível à verdade, mas a memória é sempre caprichosa, fruto do que se viveu, desejou e fantasiou. A linha que separa a realidade da imaginação é muito ténue e, na minha idade, já não interessa muito, porque tudo é subjectivo. A memória também está tingida pela vaidade. Neste preciso momento em que a Morte está sentada numa cadeira junto à minha mesa, à espera, ainda sou avassalada pela vaidade, não só para pintar as faces de carmim quando recebo visitas, mas também para escrever a minha história. Haverá alguma coisa mais pretensiosa do que uma autobiografia?
Eu nunca tinha visto o oceano: achava que era como um rio muito largo, mas nunca imaginei que não se conseguisse ver a outra margem. Abstive-me de fazer comentários, para não denunciar a minha ignorância e o medo, que logo me gelou os ossos quando o navio zarpou para as águas abertas e começou a balançar. Éramos sete passageiros e todos, menos Constanza, que tinha um estômago muito forte, enjoámos. A minha indisposição foi tal que no segundo dia supliquei ao mestre Martin que me desse um bote a remos para eu voltar para Espanha. Deu uma gargalhada e obrigou-me a tomar um gole de rum, que teve a virtude de me transportar até outro mundo durante trinta horas, ao fim das quais ressuscitei, abatida e esverdeada; só então consegui beber um caldo que a minha gentil sobrinha me deu em pequenas colheradas. Tínhamos deixado para trás a terra firme e navegávamos por entre águas sombrias, debaixo de um céu infinito, completamente desamparados. Não conseguia entender como o piloto se orientava naquela paisagem sempre igual, guiando-se pelo seu astrolábio e pelas estrelas do firmamento. Assegurou-me que podia estar tranquila, pois já tinha feito esta viagem muitas vezes e a rota era bem conhecida por Espanhóis e Portugueses, que já a percorriam há décadas. As cartas de navegação já não eram segredos bem guardados, até os malditos ingleses tinham acesso a elas. Já com as cartas do estreito de Magalhães ou da costa do Pacífico a história era outra, elucidou-me; os navegadores guardavam-nas com as suas próprias vidas, pois eram mais valiosas do que qualquer tesouro do Novo Mundo.
Nunca me habituei ao movimento das ondas, ao estalar das tábuas, ao ranger dos ferros, ao golpear incessante das velas fustigadas pelo vento. Mal conseguia dormir de noite. De dia, sentia-me atormentada com a falta de espaço e, sobretudo, com os olhos de cães esfomeados com que os homens me encaravam. Tinha de conquistar a minha vez para usar o fogão e colocar a nossa panela, da mesma forma que conquistava a minha vez de ir à latrina, um caixote com um orifício sobre o oceano. Contrariamente a mim, Constanza nunca se queixava e até parecia andar satisfeita. Um mês depois de termos começado a viagem, os alimentos começaram a escassear e a água, já infecta, teve de ser racionada. Mudei a gaiola das galinhas para o nosso camarote, porque me roubavam os ovos, e levava-as a apanhar ar duas vezes por dia, atadas por uma pata com um cordel.
A certa altura tive de usar a minha frigideira para me defender de um marinheiro mais ousado, um tal de Sebastian Romero, cujo nome não esqueci, porque sei que nos encontraremos no purgatório. Na promiscuidade daquele barco, este homem, a pretexto do movimento das ondas, aproveitava a mais pequena oportunidade para se atirar para cima de mim. Avisei-o várias vezes para me deixar em paz, mas isso ainda o excitava mais. Uma noite, surpreendeu-me, sozinha, no reduzido espaço sob a ponte destinado à cozinha. Antes que conseguisse deitar-me a unha, senti o seu hálito fétido na nuca e, sem pensar duas vezes, dei meia volta e bati-lhe com a frigideira na cabeça, tal como anos antes tinha feito ao pobre Juan de Malaga, quando este me tentou bater. Sebastian Romero tinha o crânio mais mole que Juan e caiu desamparado no chão, onde permaneceu adormecido durante vários minutos, enquanto eu fui buscar uns trapos para lhe tapar a ferida. Não derramou tanto sangue como seria de esperar, ainda que, depois, lhe tenha inchado a cara e ficado da cor da beringela. Ajudei-o a pôr-se de pé e, como a nenhum dos dois convinha que se soubesse a verdade, concordámos em dizer que ele tinha batido contra uma viga.
Entre os passageiros da embarcação ia um cronista e desenhador, Daniel Belalcázar, enviado da Coroa com a missão de traçar mapas e deixar testemunho das suas observações. Era um homem de trinta e tantos anos, delgado e forte, de rosto anguloso e pele cor de azeitona, como um andaluz. Andava de proa a popa, para a frente e para trás durante horas a fio, para exercitar os músculos, penteava-se com uma trança curta e tinha uma argola de ouro na orelha esquerda. A única vez em que um membro da tripulação o gozou, deitou-o ao chão com um murro no nariz e nunca mais se meteram com ele. Belalcázar, que viajava desde muito jovem e conhecia as costas mais remotas da África e da Ásia, contou-nos que, em determinada ocasião, fora feito prisioneiro pelo Barbarroxa, o temível pirata turco, e vendido como escravo na Argélia, de onde conseguiu escapar ao fim de dois anos, depois de muito sofrimento. Andava sempre com um caderno grosso debaixo do braço, envolto numa tela encerada, onde escrevia os seus pensamentos com uma letra minúscula, do tamanho de uma formiga. Entretinha-se a desenhar os marinheiros nas suas tarefas e, em especial, a desenhar a minha sobrinha. Como se preparava para ir para o convento, Constanza vestia-se como uma noviça, com um hábito de tecido grosseiro que ela própria tinha costurado, e cobria a cabeça com um triângulo do mesmo tecido, que não lhe deixava um único cabelo à vista, lhe tapava metade da testa e apertava por baixo do queixo. No entanto, aquele traje horroroso não conseguia esconder o seu porte altivo nem os seus olhos esplêndidos, negros e brilhantes, como duas azeitonas. Primeiro, Belalcázar conseguiu que Constanza posasse para ele, logo depois que desfizesse o penteado que usava, próprio de uma velha, e deixasse a brisa agitar-lhe os caracóis negros. Digam lá o que disserem os documentos com selos oficiais sobre a pureza de sangue da nossa família, desconfio que nas nossas veias corre uma boa parte de sangue sarraceno. Sem o hábito, Constanza parecia uma daquelas odaliscas das tapeçarias otomanas.
Chegou um dia em que começámos a passar fome. Lembrei-me então das empanadas e consegui convencer o cozinheiro, um negro do Norte de África com o rosto marcado por cicatrizes, a dar-me farinha, gordura e um pouco de carne seca, que coloquei de molho em água do mar antes de ser cozinhada. Das minhas próprias reservas cedi azeitonas, passas, ovos cozidos picados aos bocadinhos, para renderem mais, e cominhos, uma especiaria barata que dá um sabor bastante peculiar aos guisados. Daria tudo para ter algumas cebolas, daquelas que abundam em Plasencia, mas não havia nenhuma na adega. Cozinhei o recheio, bati a massa e preparei umas empanadas frias, porque não tínhamos forno. Fizeram tanto sucesso que, a partir desse dia, todos contribuíam com alguma coisa para o recheio. Fiz empanadas de lentilhas, grão-de-bico, peixe, galinha, salsichão, queijo, polvo e tubarão, e assim ganhei a consideração dos marinheiros e dos passageiros. O respeito, obtive-o depois de uma tempestade, cauterizando feridas e compondo ossos partidos a um par de marinheiros, conforme tinha aprendido a fazer no hospital das freiras em Plasencia. Esse foi o único incidente digno de relato, além de termos conseguido escapar dos corsários franceses que assaltavam barcos espanhóis. Se nos apanhassem - como explicou o mestre Manuel Martin -, iríamos sofrer um terrível destino, porque estavam muito bem armados. Ao saber do perigo que se podia abater sobre nós, eu e a minha sobrinha caímos de joelhos em frente da imagem de Nossa Senhora do Socorro, rezando com fervor para que nos salvasse e ela concedeu-nos o milagre, fazendo aparecer uma neblina tão densa que os franceses nos perderam de vista. Daniel Belalcázar disse que a neblina já lá estava antes de começarmos a rezar; o timoneiro só teve de se dirigir na sua direcção.
Este Belalcázar era um homem de pouca fé, mas muito entendido noutras coisas. À tarde, costumava deleitar-nos com os relatos das suas viagens e com a descrição daquilo que encontraríamos no Novo Mundo. «Nada de ciclopes, gigantes ou homens com quatro braços e cabeça de cão, mas encontrareis certamente seres primitivos e malvados, especialmente entre os castelhanos», dizia em tom de brincadeira. Assegurou-nos que os habitantes do Novo Mundo não eram todos selvagens; os Astecas, Incase Maias eram mais refinados que nós, pelo menos tomavam banho e não andavam sempre cobertos de piolhos.
- Cobiça, apenas cobiça - acrescentou. - No dia em que os Espanhóis pisaram o Novo Mundo começou o fim dessas culturas. De início, receberam-nos bem. A sua curiosidade superou a prudência. Como perceberam que os estranhos barbudos vindos do mar gostavam de ouro, esse metal mole e inútil que a eles lhes sobra, ofereceram-no a mãos-cheias. No entanto, não tardou muito que o nosso apetite insaciável e orgulho brutal os ofendessem. E como não havia de ofender! Os nossos soldados abusam das suas mulheres, entram nas suas casas e tomam sem pedir licença o que lhes dá na real gana e o primeiro que tente fazer-lhes frente, é logo derrubado à pancada. Proclamam que a terra, onde mal acabaram de chegar, pertence a um soberano que vive do outro lado do mar e depois querem que os nativos adorem uns paus em forma de cruz.
- Que ninguém vos oiça falar assim, senhor Belalcázar! Ainda vos acusam de trair o Imperador e de ser herege - avisei-o.
- Não digo senão a verdade. Havereis de ver por vós própria, que os conquistadores não têm vergonha nenhuma: chegam como mendigos, comportam-se como ladrões e crêem-se uns senhores.
Aqueles três meses de travessia foram tão longos como três anos, mas serviram para que pudesse saborear a liberdade. Não havia família - a não ser a tímida Constanza -, nem vizinhos nem frades a observar-me; não tinha de prestar contas a ninguém. Livrei-me dos vestidos negros de viúva e dos espartilhos que me aprisionavam a carne. Daniel Belalcázar, por sua vez, conseguiu convencer Constanza a largar o hábito e a vestir as minhas saias.
Os dias pareciam intermináveis, e as noites ainda mais. A sujidade, a falta de espaço, a escassa e péssima comida, o mau humor dos homens, tudo contribuía para o martírio que foi aquela travessia, mas pelo menos não fomos atormentados por serpentes marinhas capazes de engolir um barco inteiro, monstros, tritões e sereias que enlouquecem os marinheiros, almas de náufragos, barcos-fantasma e fogos-fátuos. A tripulação alertou-nos para estes e outros perigos que habitavam os mares, mas Belalcázar assegurou-nos de que nunca tinha visto nenhum deles.
Num sábado de Agosto chegámos, por fim, a terra firme. A água do oceano, antes negra e profunda, transformou-se em água azul-celeste e cristalina. O bote conduziu-nos até uma praia de areias ondulantes acariciadas por ondas mansas. Os tripulantes ofereceram-se para nos carregar, mas Constanza e eu levantámos um pouco as saias e atravessámos as águas; preferimos mostrar as pernas do que ir aos ombros dos homens como se fôssemos sacos de farinha. Nunca imaginei que o mar fosse morno; visto do barco parecia muito frio.
A aldeia consistia numas cabanas de cana brava com tectos de folhas de palmeira; a única rua que existia era um lodaçal e não havia igreja; apenas uma cruz de pau sobre um promontório indicava a casa de Deus. Os escassos habitantes daquela povoação perdida eram uma mescla de marinheiros de passagem, negros e pardos, para além dos índios, os quais eu via pela primeira vez, uma pobre gente que andava quase despida, miserável. Fomos envolvidos por uma natureza densa, verde, quente. A imensa humidade empapava até os nossos pensamentos e o sol abatia-se implacavelmente sobre nós. A roupa tornou-se insuportável e tirámos os colarinhos, os punhos, as meias e os sapatos.
Depressa descobri que Juan de Malaga não estava naquele local. O único que se lembrava dele era o Padre Gregorio, um infeliz frade dominicano, doente com malária e convertido num velho precoce, já que só tinha quarenta anos e parecia ter setenta. Já andava há duas décadas na selva com a missão de ensinar e propagar a fé em Cristo e, nas suas andanças, tinha-se cruzado um par de vezes com o meu marido. Confirmou-me que, tal como tantos espanhóis alucinados, Juan procurava a mítica cidade de ouro.
- Alto, bonito, amigo de apostas e vinho, simpático - disse. Não podia ser outro.
- O El Dorado é uma invenção dos índios para se livrarem dos estrangeiros, porque quando vão atrás do ouro acabam por morrer acrescentou o frade.
O Padre Gregorio cedeu-nos, a mim e a Constanza, a sua cabana, onde pudemos descansar, enquanto os marinheiros se embebedavam com um licor de palma bastante forte e arrastavam as índias, contra a sua vontade, para a mata espessa que circundava a aldeia. Apesar dos tubarões, que tinham seguido o barco durante dias, Daniel Belalcázar banhou-se no mar límpido durante horas. Quando tirou a camisa, reparámos que tinha as costas repletas de cicatrizes de chicote, mas como ele não deu explicações, também ninguém se atreveu a pedir-lhas. Durante a viagem, verificámos que aquele homem tinha a mania de se lavar, pelos vistos conhecia outros povos que o faziam. Ainda quis que Constanza entrasse no mar com ele, vestida e tudo, mas eu não permiti; tinha prometido aos seus pais que a devolveria inteira e não mordida por um tubarão.
Quando o Sol se pôs, os índios acenderam fogueiras com lenha verde para afastar os mosquitos que se abateram sobre a povoação. O fumo cegava-nos e mal nos deixava respirar, mas a alternativa era pior, porque, mal nos afastávamos do fogo, a nuvem de bichos caía outra vez em cima de nós. O jantar foi carne de anta, um animal parecido com o porco, e uma papa branca, a que chamam mandioca; eram sabores estranhos, mas depois de três meses de peixe e empanadas aquela ceia pareceu-nos digna de um príncipe. Provei também pela primeira vez uma bebida espumosa de cacau, um pouco amarga apesar das especiarias com que a tinham temperado. Segundo o Padre Gregorio, os Astecas e outros índios americanos usavam as sementes do cacau tal como nós usamos as moedas, de tal modo elas são valiosas para eles.
A tarde passou-se ao som das aventuras do religioso, que se tinha embrenhado várias vezes na selva para converter almas. Admitiu que, durante a sua juventude, também ele tinha perseguido o terrível sonho do El Dorado. Tinha navegado pelo rio Orinoco, por vezes plácido como uma lagoa, noutros trechos turbulento e indignado. Contou-nos das inúmeras cascatas que nascem das nuvens e rebentam no solo em arco-iris de espuma, de túneis verdes por entre o bosque, onde o crepúsculo é eterno e a luz do dia mal toca na vegetação. Disse que por ali cresciam flores carnívoras com cheiro a cadáveres e outras delicadas e perfumadas, mas muito venenosas; falou-nos também de aves com plumagens exuberantes e de povoações de macacos com rostos humanos que espiavam os intrusos ao abrigo da folhagem densa.
- Para nós que viemos da Extremadura, sóbria e seca, de pedra e pó, é impossível imaginar um paraíso como esse - comentei.
- E um paraíso só de aparência, dona Inés. Nesse mundo quente, pantanoso e voraz, infestado de répteis e insectos venenosos, tudo se corrompe rapidamente, principalmente a alma. A selva transforma os homens em rufias e assassinos.
- Os que se aventuram pela selva só por cobiça já estão mais do que corrompidos, Padre. A selva só evidencia aquilo que os homens já são - replicou Daniel Belalcázar, enquanto anotava febrilmente as palavras do frade no seu caderno porque a sua intenção era seguir a rota do Orinoco.
Na primeira noite que passámos em terra firme, o mestre Manuel Martin e alguns marinheiros foram dormir ao barco para tomar conta da carga; isso foi o que disseram, mas acho que a verdade é que tinham medo das serpentes e dos bichos da selva. Os restantes, incluindo eu e a minha sobrinha, fartos da clausura dos minúsculos camarotes, preferiram acomodar-se na aldeia. Extenuada, Constanza depressa adormeceu na rede que nos deram, protegida por um mosquiteiro de tela imundo, enquanto eu me preparei para várias horas de insónia. A noite ali era muito negra, estava povoada por presenças misteriosas, era ruidosa, aromática e temível. Sentia-me rodeada das criaturas que o Padre Gregorio tinha descrito: insectos enormes, víboras que matam à distância, feras desconhecidas. Contudo, mais ainda do que estes perigos naturais, inquietava-me a maldade dos homens embriagados. Não conseguia fechar os olhos.
Passaram duas ou três longas horas e, quando já começava a dormitar, ouvi alguma coisa, ou alguém, a rondar a cabana. A minha primeira suspeita foi que se tratava de um animal, mas lembrei-me logo de seguida que Sebastian Romero tinha ficado em terra e deduzi que, longe da autoridade do mestre Manuel Martin, o homem podia ser perigoso. Não me enganei. Se eu estivesse a dormir talvez Romero tivesse conseguido levar a cabo os seus intentos mas, para sua desgraça, eu estava à sua espera com uma adaga mourisca, pequena e afiada como uma agulha, que tinha comprado em Cádis. A única luz no interior da cabana vinha do reflexo das brasas que esmoreciam na fogueira onde se tinha assado a anta. Um buraco sem porta separava-nos do exterior e os meus olhos já se tinham habituado à penumbra. Romero entrou de gatas, farejando como um cão, e aproximou-se da rede onde eu devia estar deitada com Constanza. Ainda esticou a mão para afastar o mosquiteiro, mas parou petrificado quando sentiu a ponta da minha adaga no pescoço, mesmo atrás da orelha.
- Vejo que não aprendes, pulha - disse-lhe, sem levantar a voz, para não alertar ninguém.
- Que o Diabo te leve, rameira! Brincaste comigo durante três meses e agora finges que não queres o mesmo que eu - resmungou, furioso.
Constanza acordou assustada e os seus gritos atraíram o Padre Gregorio, Daniel Belalcázar e outros que dormiam ali perto. Alguém acendeu uma tocha e, entre todos, tiraram à força o homem da nossa cabana. O Padre Gregorio ordenou que o amarrassem a uma árvore até que lhe passasse a demência do álcool de palma, e ali ficou a gritar ameaças e maldições durante um bom bocado, até que, quando chegou o amanhecer, caiu finalmente vencido pela fadiga e as restantes pessoas conseguiram dormir.
Uns dias mais tarde, depois de carregar água fresca, frutos tropicais e carne salgada, o barco do mestre Manuel Martin conduziu-nos ao porto de Cartagena, que já naquela altura era de uma importância fundamental, porque era ali que se embarcavam os tesouros do Novo Mundo rumo a Espanha. As águas do mar das Caraíbas eram azuis e límpidas como as piscinas dos palácios dos Mouros. O ar tinha um aroma intoxicante a flores, frutos e suor. A muralha, construída com pedras fixadas com uma mistura de cal e sangue de touro, brilhava debaixo de um sol implacável. Centenas de indígenas, nus e presos por correntes, arrastavam pedras enormes, incitados pelas chicotadas dos capatazes. Essa enorme muralha e uma fortaleza protegiam a frota espanhola dos piratas e outros inimigos do Império. No mar, ancoradas na baía, balouçavam várias embarcações, algumas de guerra, outras de mercadorias e até um barco negreiro, que transportava a sua carga desde África para ser arrematada nas feiras de escravos. Distinguia-se dos outros pelo cheiro a miséria humana e maldade que dele emanava. Comparada com qualquer uma das velhas cidades de Espanha, Cartagena ainda era uma aldeia, mas já tinha uma igreja, ruas bem traçadas, casas caiadas, sólidos edifícios para o governo, adegas, mercados e tabernas. A fortaleza, ainda em construção, começava no alto de uma colina, com os canhões já instalados e a apontar para a baía. A população era bastante variada e as mulheres, de roupas decotadas e atrevidas, pareceram-me belas, principalmente as mulatas. Decidi ficar por ali durante um tempo, porque soube que o meu marido lá tinha estado há pouco mais de um ano. Descobri que, num armazém, tinham uma trouxa de roupa, que entretanto Juan tinha deixado como caução, com a promessa de que, quando voltasse, pagaria a sua dívida.
A única hospedaria de Cartagena não aceitava mulheres sozinhas, mas o mestre Manuel Martin, que conhecia muita gente, lá conseguiu que nos alugassem um quarto. Era uma divisão bastante ampla, ainda que quase vazia, com uma porta que dava para a rua e uma janela estreita, apenas com uma cama, uma mesa e um banco como mobiliário, onde eu e a minha sobrinha arrumámos as nossas tralhas. Comecei de imediato a oferecer os meus serviços como costureira e à procura de um forno onde pudesse fazer empanadas, porque as minhas poupanças estavam a desaparecer mais depressa do que tinha previsto.
Mal tínhamos acabado de nos instalar quando Daniel Belalcázar nos veio fazer uma visita. O quarto estava atafulhado de volumes, por isso teve de se sentar na cama, com o chapéu na mão. Só tínhamos água para lhe oferecer e ele bebeu dois copos seguidos; estava a suar. Passou um grande bocado em silêncio, observando o solo de terra batida com uma atenção excessiva, enquanto nós esperávamos, tão desconfortáveis como ele.
- Senora Inés, venho pedir-vos, com o maior respeito, a mão da vossa sobrinha em casamento - disse, por fim.
Fiquei aturdida com a surpresa. Nunca tinha visto entre eles nenhum indício de romance e, por instantes, pensei que o calor tinha transtornado de vez Belalcázar, mas a expressão apalermada de Constanza obrigou-me a reconsiderar.
- A menina tem quinze anos! - exclamei espantada.
- Aqui as raparigas casam-se novas, senhora.
- Constanza não tem dote.
- Isso não importa. Nunca aprovei esse costume e, mesmo que Constanza tivesse um dote de rainha, nunca o aceitaria.
- A minha sobrinha quer ser freira!
- Queria, senhora, mas já não quer - murmurou Belalcázar, enquanto Constanza confirmava a afirmação em voz alta e determinada.
Fiz-lhes ver que não tinha autoridade para a deixar casar e ainda menos com um aventureiro desconhecido, um homem sem residência fixa, que passava a vida a anotar maluquices num caderno e que tinha o dobro da sua idade. Como pensava ele sustentá-la? Achava, por acaso, que ela o seguiria pelo Orinoco fora, enquanto ele ia pintando canibais? Constanza interrompeu-me para me anunciar, corada de vergonha, que já era tarde de mais para me opor ao casamento, porque, na realidade, já estavam casados aos olhos de Deus, ainda que não o estivessem segundo as leis humanas. Foi então’ que me inteirei de que, enquanto eu fazia empanadas no barco durante a noite, eles faziam o que lhes dava na real gana no camarote de Belalcázar. Levantei a mão para dar a Constanza um belo par de bofetadas, mas ele segurou-me o braço. No dia seguinte casaram-se na igreja de Cartagena, com o mestre Manuel Martin e eu própria como testemunhas. Instalaram-se na hospedaria e começaram a fazer os preparativos para viajar até à selva, tal como eu temia.
Durante a primeira noite que passei sozinha no quarto alugado aconteceu uma desgraça que talvez pudesse ter evitado, se tivesse sido mais cautelosa. Ainda que não pudesse dar-me a esse luxo, porque as velas eram muito caras, mantinha uma acesa durante grande parte da noite, com medo das baratas, que saem na escuridão. Estava deitada na cama, coberta apenas por uma camisa fina, sufocada com o calor e sem conseguir dormir, pensando na minha sobrinha, quando um golpe contra a minha porta me assustou. Havia uma tranca, que se colocava por dentro, mas tinha-me esquecido de a colocar. Uma segunda pancada fez saltar a aldraba e Sebastian Romero apareceu no umbral da porta. Consegui levantar-me, mas o homem deu-me um empurrão e deitou-me novamente na cama, debruçando-se de imediato sobre mim, enquanto me insultava. Comecei a debater-me aos pontapés, arranhando-o, mas Romero desferiu um golpe violento, que me deixou aturdida e sem conseguir respirar nem ver por breves momentos. Quando recuperei os sentidos já ele me tinha imobilizado e estava deitado em cima de mim, esmagando-me com o seu peso, salpicando-me de saliva e resmungando grosserias. Senti o seu hálito asqueroso, os seus dedos fortes incrustados na minha carne, os seus joelhos tentando abrir-me as pernas, a dureza do seu sexo contra o meu ventre. A dor do golpe e o pânico toldaram-me o entendimento. Gritei, mas tapou-me a boca com a mão, tirando-me o ar, enquanto com a outra mão lutava com a minha camisa e com as suas calças, tarefa nada fácil, porque sou forte e me retorcia como uma enguia. Para me acalmar, deu-me uma tremenda bofetada na cara e, logo de seguida, utilizou ambas as mãos para me rasgar a roupa; foi então que compreendi que não ia conseguir livrar-me dele através da força. Durante um momento considerei a ideia de me submeter, com a esperança de que a humilhação fosse breve, mas a ira estava a cegar-me por completo e não tinha certeza de que depois me deixasse em paz; podia matar-me para que não o denunciasse. Tinha a boca cheia de sangue, mas consegui pedir-lhe para não me maltratar, já que podíamos gozar os dois, que não havia pressas, estando disposta a fazer o que lhe desse prazer. Não me recordo muito bem dos detalhes daquela noite, acho que lhe acariciei a cabeça murmurando uma ladainha de obscenidades aprendidas na cama com Juan de Malaga, algo que terá acalmado um pouco a sua violência, porque me soltou e se pôs de pé para tirar as calças, que ainda estavam enroladas à volta dos joelhos. Tacteando por debaixo da almofada, encontrei a minha adaga, que tinha sempre por perto, e empunhei-a firmemente com a mão direita, mantendo-a escondida encostada ao meu corpo. Quando Romero se deitou novamente em cima de mim, deixei-o acomodar-se, prendi-lhe a cintura com ambas as pernas e rodeei-lhe o pescoço com o braço esquerdo. Ele soltou um grunhido de satisfação, pensando que eu tinha acabado por ceder e que ia colaborar, e dispôs-se a aproveitar a sua vantagem. Entretanto, usei as minhas pernas para o imobilizar, cruzando os pés por cima dos seus rins. Levantei a adaga, segurei-a com ambas as mãos, calculei o sítio certo para lhe infligir mais danos e apertei-o com todas as minhas forças num abraço mortal, cravando a adaga até ao punho. Não é fácil enterrar uma faca nas costas fortes de um homem naquela posição, mas confesso que o terror me ajudou. Era a vida dele ou a minha. Temi ter errado, porque, por um momento, Sebastian Romero não teve reacção, como se não tivesse sentido a lâmina a enterrar-se, mas logo de seguida soltou um grito visceral e rodou até cair no chão entre as bagagens amontoadas. Tentou pôr-se de pé, mas ficou de joelhos, com uma expressão de surpresa, que, de imediato, se tornou numa expressão de horror. Levou as mãos atrás das costas numa tentativa de retirar o punhal. De facto, tudo aquilo que aprendi sobre o corpo humano enquanto curava feridas no hospital das freiras acabou por ser a minha salvação, porque o golpe foi letal. O homem continuava a contorcer-se e eu, sentada na cama, observava-o, tão espantada como ele, mas disposta a saltar-lhe em cima para lhe tapar a boca como pudesse se começasse a gritar. Não gritou, apenas um gargarejo sinistro escapou-se-lhe pelos lábios por entre golfadas de espuma rosada. Ao fim de um momento, que me pareceu eterno, começou a estremecer como se estivesse possuído, vomitou sangue e, logo depois, caiu no chão. Esperei um bom bocado, até que os meus nervos se acalmassem e conseguisse finalmente pensar; depois assegurei-me de que já não voltaria a mexer-se. À luz ténue da vela, reparei que o sangue estava a ser absorvido pela terra do chão.
Esperei o resto da noite junto ao corpo de Sebastian Romero, primeiro rezando à Virgem que me perdoasse aquele crime tão grave e depois a planear uma maneira de não ser obrigada a pagar pelas consequências desse meu acto. Não conhecia as leis daquela terra, mas se fossem iguais às de Plasencia, o mais certo era eu ir parar ao fundo dos calabouços até que se conseguisse provar que tinha agido em legítima defesa, tarefa árdua, diga-se, porque os magistrados desconfiam sempre das mulheres. Não tinha ilusões, os vícios e pecados dos homens são sempre culpa nossa. O que pensaria a justiça de uma mulher jovem e solitária? Diriam que tinha convidado o marinheiro inocente e que o tinha assassinado para lhe roubar os seus pertences. Ao amanhecer, cobri o corpo com uma manta, vesti-me e dirigi-me ao porto, onde ainda estava ancorado o barco do mestre Manuel Martin. O mestre ouviu a minha história até ao fim, sem me interromper, mastigando o seu tabaco e coçando a cabeça.
- Parece que vou ter de tomar conta deste assunto, dona Inés decidiu, mal acabei de falar.
Dirigiu-se à minha modesta casa com um marinheiro da sua confiança e, entre ambos, levaram o corpo de Romero envolto num pedaço de vela do barco. Nunca soube o que fizeram com ele; imagino que o tenham lançado ao mar atado a uma pedra, onde os peixes devem ter dado conta dos seus restos. Manuel Martin sugeriu-me que deixasse Cartagena o quanto antes, porque um segredo destes não se podia esconder para sempre, e foi assim que, alguns dias depois, me despedi da minha sobrinha e do marido e parti com os restantes viajantes para a cidade do Panamá. Vários índios levavam as nossas bagagens e guiavam-nos pelas montanhas, bosques e rios.
O istmo do Panamá é uma faixa estreita de terra que separa o nosso oceano europeu do mar do Sul, que também chamam de Pacífico. Tem menos de vinte léguas de largura, mas as montanhas são abruptas, a selva demasiado densa, as águas insalubres, os pântanos putrefactos e o ar está infestado de febre e pestilência. Há índios hostis, lagartos e serpentes de terra e de rio, mas a paisagem é magnífica e as aves belíssimas. Durante o caminho, fomos acompanhados pela algaraviada dos macacos, uns bichos curiosos e atrevidos, que nos saltavam em cima para nos roubarem as provisões. A selva era de um verde profundo, sombrio, ameaçador. Os meus companheiros de viagem levavam as armas na mão e não perdiam os índios de vista, porque nos podiam trair ao mínimo descuido, tal como nos tinha advertido o Padre Gregorio, que nos avisou também contra os jacarés, que arrastavam as suas vítimas para o fundo dos rios; as formigas vermelhas, que chegam aos milhares e se introduzem pelos orifícios do corpo, corroendo e devorando-o por dentro numa questão de minutos e ainda contra os sapos, que nos deixam cegos com o veneno da sua saliva. Tentei não pensar em nada disto, senão o terror deixar-me-ia paralisada. Tal como dizia Daniel Belalcázar, não vale a pena sofrer por antecipação com as desgraças que, provavelmente, nunca ocorrerão. Fizemos a primeira parte da travessia num barco a remos impulsionado por oito nativos. Fiquei feliz por não ter a minha sobrinha comigo, porque os remadores iam nus e a verdade é que, apesar da paisagem ser linda, os olhos iam-me sempre parar onde não deviam. A última parte do caminho percorremo-la em mulas. Do último cume, avistámos ao longe o mar de cor turquesa e os contornos esborratados da cidade do Panamá, sufocada num vácuo quente.
PEDRO DE VALDIVIA tinha trinta e cinco anos quando chegou com Jerónimo de Alderete à Venezuela, a pequena Veneza, como lhe chamaram ironicamente os primeiros exploradores ao ver os seus pântanos, canais e cabanas construídas sob estacas submersas. Tinha deixado a delicada Marina Ortiz Gaete com a promessa de que voltaria rico ou que lhe enviaria tanto quanto pudesse, logo que possível - magro consolo para a jovem abandonada -, pois tinha gasto tudo o que tinha, endividando-se ainda mais para financiar aquela viagem. Tal como qualquer outra pessoa que se aventurava no Novo Mundo, colocou os seus bens, a sua honra e a sua vida ao serviço daquela empresa, ainda que as terras conquistadas e um quinto das riquezas - viessem a pertencer, se as houvesse - sempre à Coroa de Espanha. Conforme dizia Belalcázar, com o beneplácito régio a aventura chamava-se conquista; sem ele tratava-se de um assalto à mão armada.
As praias do Caribe, com as suas águas e areias opalinas e as suas elegantes palmeiras, receberam os viajantes com uma tranquilidade enganosa, porque mal se embrenharam na folhagem viram-se envoltos numa selva de pesadelo. Tinham de abrir caminho cortando a vegetação à machadada, aturdidos pela humidade e pelo calor, fustigados sem tréguas pelos mosquitos e animais desconhecidos. Avançavam pelo solo pantanoso, onde se enterravam até às coxas numa matéria mole e putrefacta, pesados, entorpecidos, cobertos de sanguessugas asquerosas que lhes sorviam o sangue. Nem sequer podiam tirar as armaduras com medo das flechas envenenadas dos índios, que os seguiam silenciosos e invisíveis por entre a vegetação.
- Não podemos cair vivos nas mãos dos selvagens! - avisou-os Alderete e recordou-lhes a forma como o conquistador Pizarro, na sua primeira expedição ao Sul do continente, tinha entrado com um grupo de homens numa aldeia deserta, onde ainda ardiam fogueiras. Os espanhóis, esfomeados, destaparam os caldeirões e testemunharam os ingredientes da sopa: cabeças, mãos, pés e vísceras humanas.
- Isso aconteceu no Oeste, quando Pizarro andava à procura do Peru - esclareceu Pedro de Valdivia, que se achava bem informado sobre descobrimentos e conquistas.
- Os índios deste lado das Caraíbas também são antropófagos insistiu Jerónimo.
Era impossível alguém orientar-se no verde absoluto daquele mundo primitivo, anterior ao Génesis, um verdadeiro labirinto circular infinito, sem tempo nem história. Bastava afastarem-se uns passos das margens dos rios para serem, de imediato, tragados pela selva para sempre, tal como aconteceu a um dos homens, que se meteu pelo meio dos fetos a gritar pela mãe, louco de angústia e medo. Avançavam em silêncio, atormentados por uma solidão de abismo profundo, uma angústia sideral, e calados. A água estava infestada de piranhas que, ao cheirar sangue, se atiravam em massa e acabavam com um cristão em poucos minutos; apenas os ossos brancos e limpos demonstravam que alguma vez existiu. Nessa natureza luxuriante não havia nada para comer. Por vezes, lá conseguiam caçar um macaco, que comiam cru, repugnados pelo seu aspecto humano e cheiro fétido, uma vez que, na eterna humidade do bosque, era extremamente difícil fazer fogo. Ficaram doentes por provar uns frutos desconhecidos e durante dias não puderam continuar a viagem, derrotados pelos vómitos e diarreias implacáveis. Ficavam com a barriga inchada, caíam-lhes os dentes, contorciam-se de febre. Um deles morreu a deitar sangue pelos olhos, o outro foi engolido por um lodaçal e um terceiro ainda foi triturado por uma anaconda, uma serpente de água monstruosa, tão grossa como a perna de um homem e tão comprida como cinco lanças alinhadas. O ar era todo ele um vapor quente, pútrido, doentio, como hálito de dragão. «Isto é o reino de Satanás», diziam os soldados, e devia ser mesmo, porque os ânimos se desmoronavam e os homens discutiam a todo o momento. Os chefes viam-se aflitos para manter alguma disciplina e obrigar os seus homens a continuar a marcha. Um só sonho os fazia avançar: o El Dorado.
À medida que avançavam penosamente, a fé de Pedro de Valdivia nesta empresa diminuía e, em proporção, o seu desgosto aumentava. Não era bem isto que tinha sonhado no seu aborrecido solar da Extremadura. Tinha partido disposto a enfrentar bárbaros em batalhas heróicas e a conquistar regiões remotas para a glória de Deus e do Rei, mas nunca imaginou que usaria a sua espada, a tal espada vitoriosa da Flandres e Itália, para lutar contra a natureza. Repugnava-lhe a cobiça e a crueldade dos seus companheiros, nada havendo de honroso ou idealista naquela massa brutal de soldados. Exceptuando Jerónimo de Alderete, que já tinha dado provas da sua nobreza, os seus companheiros eram rufias da pior espécie, gente traidora e provocadora. O capitão que estava à frente da expedição, que não tardou a merecer o ódio de Valdivia, era um verdadeiro bandido: roubava, traficava os índios como escravos e não pagava o quinto correspondente à Coroa. «Para onde vamos tão danados e desesperados se, ao fim e ao cabo, ninguém pode levar o ouro para a cova?», pensava Valdivia, mas continuava a andar, impossível que era retroceder. A disparatada aventura durou alguns meses, até que, finalmente, Pedro de Valdivia e Jerónimo de Alderete conseguiram separar-se do nefasto grupo e embarcar para a cidade de Santo Domingo, na ilha de La Espanola, onde puderam recompor-se dos efeitos nefastos da viagem. Pedro aproveitou para mandar algum dinheiro que tinha economizado a Marina, como aliás faria sempre, até à sua morte.
Nessa altura, chegou à ilha a notícia de que Fernando Pizarro precisava de reforços no Peru. O seu parceiro de conquista, Diego de Almagro, tinha partido para o extremo sul do continente com a ideia de submeter as terras bárbaras do Chile. Os dois homens tinham temperamentos opostos: o primeiro era sombrio, desconfiado e invejoso, ainda que muito valente, e o segundo era franco, leal e tão generoso que só queria fazer fortuna para a poder repartir. Era inevitável que homens tão diferentes, mas de igual ambição, acabassem por se tornar inimigos, apesar de terem jurado fidelidade, comungado no mesmo altar e partilhado a mesma hóstia partida em duas. O império inca tornou-se pequeno de mais para os dois. Pizarro, convertido em Marquês Governador e Cavaleiro da Ordem de Santiago, ficou no Peru, apoiado pelos seus temíveis irmãos, enquanto Almagro se dirigiu, em 1535, com um exército de quinhentos castelhanos, dez mil índios yanaconas e o título de Adelantado, para o Chile, a região ainda inexplorada, cujo nome quer dizer «onde acaba a terra» na língua aymará. Para financiar a viagem, gastou do seu dinheiro mais do que o Inça Atahualpa pagara pelo resgate.
Mal Diego de Almagro partiu para o Chile com os seus homens, Pizarro teve de enfrentar uma insurreição geral. Divididas as forças dos viracochas, nome dado aos Espanhóis, os nativos do Peru pegaram nas armas para lutar contra os invasores. Sem uma ajuda rápida, a conquista do império inca estava em perigo, assim como as vidas dos espanhóis, obrigados a bater-se contra forças muito superiores. O grito de socorro chegou à ilha de La Espanola, onde Valdivia decidiu, sem vacilar, partir para ajudar no Peru.
Só o nome desse território, Peru, fazia Pedro de Valdivia pensar nas riquezas inimagináveis e na refinada civilização que o seu amigo Alderete descrevia com tanta eloquência. E realmente admirável, pensava ele, ao ouvir as coisas que se contavam, apesar de saber que nem tudo era digno de elogio. Sabia que os Incaseram cruéis, que controlavam ferozmente o seu povo. Depois de uma batalha, se os vencidos não aceitassem incorporar-se por completo no Império, não deixavam ninguém vivo e, perante o menor sinal de descontentamento, transladavam aldeias inteiras para muitas léguas de distância. Aplicavam os piores suplícios aos seus inimigos, incluindo às mulheres e crianças. O Inca, que casava com as suas próprias irmãs para garantir a pureza do sangue real, encarnava a divindade, a alma do Império, o passado, o presente e o futuro. Dizia-se que Atahualpa tinha milhares de donzelas no seu harém e uma multidão incalculável de escravos, que se divertia a torturar os prisioneiros e que degolava os seus ministros com as próprias mãos. O povo, sem rosto e sem voz, vivia subjugado; o seu destino era trabalhar desde a infância até à morte em benefício dos ore/ones - cortesãos, sacerdotes e militares - que viviam num verdadeiro fausto babilónico, enquanto os homens comuns e as suas famílias sobreviviam apenas com aquilo que cultivavam num terreno que lhes tinha sido atribuído mas que não lhes pertencia. Os Espanhóis contam que, ainda que os Incasa tenham proibido, muitos índios praticavam a sodomia, algo que em Espanha se paga com a morte. Boa prova da luxúria dessa gente eram as cerâmicas eróticas, que os aventureiros mostravam nas tabernas para regozijo dos paroquianos, que não suspeitavam que fosse possível foliar de tantas maneiras. Afirmavam que as mães tiravam a virgindade às suas filhas com os dedos, antes de as entregarem aos homens.
Valdivia não achava de todo repudiável aspirar à fortuna que poderia encontrar no Peru, embora não fosse essa a sua motivação, mas antes a obrigação de lutar junto dos seus e alcançar a glória, que até então se tinha mostrado fugidia. Era isso que o distinguia dos restantes participantes daquela expedição de socorro, que iam deslumbrados pelo brilho do ouro. Assim mo assegurou inúmeras vezes, e eu acredito, porque essa conduta era consequente com as restantes decisões que tomou ao longo da sua vida. Impulsionado pelo seu idealismo, abandonou, anos mais tarde, a riqueza e a segurança que por fim obtivera, para tentar conquistar o Chile, empresa na qual Diego de Almagro fracassara. Glória, ainda e sempre a glória, foi esse o único norte do seu destino. Ninguém amou Pedro mais do que eu, ninguém o conheceu melhor do que eu, por isso posso falar das suas virtudes, da mesma forma como, mais à frente, falarei dos seus defeitos, que não eram leves. é certo que me traiu e que foi um cobarde comigo, mas até os homens mais íntegros e valentes nos decepcionam, a nós, mulheres. E, verdade seja dita, posso assegurar-vos que Pedro de Valdivia foi um dos homens mais íntegros e corajosos de entre todos os que vieram para o Novo Mundo.
Valdivia dirigiu-se para o Panamá por terra, embarcando em 1537 juntamente com quatrocentos soldados, rumo ao Peru. A viagem demorou um par de meses e, quando chegou ao seu destino, a sublevação dos índios já tinha sido sufocada pela oportuna intervenção de Diego de Almagro, que tinha regressado a tempo do Chile para congregar forças com Francisco Pizarro. Almagro atravessara os cumes mais gelados na sua demanda rumo ao Sul, sobrevivera aos sofrimentos mais incríveis e regressara pelo deserto mais quente do planeta, completamente arruinado. A sua expedição ao Chile chegou até ao rio Bío-Bío, esse mesmo curso fluvial de onde os Incastinham retrocedido setenta anos antes, quando tentaram, em vão, apoderar-se dos territórios dos índios do Sul, os mapuche. Também os Incas, tal como Almagro e os seus homens, foram detidos por aquele povo guerreiro.
Mapu-ché, a gente da terra, era a forma como se autodesignavam, isto apesar de agora serem chamados de araucanos, nome mais sonoro, atribuído pelo poeta Alonso de Ercilla y Zúniga, embora não faça a mínima ideia de onde o desencantou, porventura em Arauco, uma terra do Sul. Pretendo continuar a chamá-los de mapucbe - a palavra não tem plural em castelhano - até morrer, porque é assim que se chamam a eles mesmos. Não me parece justo mudar-lhes o nome só para facilitar a rima: araucano, castelhano, Hermano, Cristiano e outras coisas parecidas durante trezentas páginas. Alonso era um ranhoso intrometido de Madrid quando os primeiros espanhóis lutaram para conquistar este solo; daí que tenha chegado um pouco atrasado à conquista do Chile, embora os seus versos relatem a epopeia desde os tempos mais remotos. Quando os esforçados fundadores do Chile não forem mais do que um punhado de ossos reduzidos a pó, ainda seremos recordados através da obra desse jovem, que nem sempre é fiel aos feitos, refira-se, já que o seu maior desejo é fazer rimar os versos, mesmo que para isso sacrifique a verdade. Além disso, não nos retrata da melhor maneira e receio mesmo que muitos dos seus admiradores tenham uma ideia algo deturpada do que foi a guerra da Araucanía. O poeta acusa os Espanhóis de serem cruéis e desmedidamente ambiciosos, enquanto exalta os mapucbe, atribuindo-lhes bravura, nobreza, cavalheirismo, sentido de justiça e até ternura para com as suas mulheres. Creio conhecer os mapuche melhor que Alonso, porque há quarenta anos que defendo o que fundámos no Chile, enquanto ele só aqui esteve um par de meses. Admiro os mapuche pela sua coragem e o seu amor exaltado pela terra, mas posso afirmar que não são propriamente uns doces de pessoas e que não sentem qualquer tipo de compaixão. O amor romântico que Alonso tanto exalta não é muito comum entre eles. Cada homem tem várias mulheres, as quais trata como se só servissem para trabalhar e procriar; pelo menos é o que consta entre as espanholas que foram raptadas. As humilhações que sofrem no cativeiro são de tal forma que algumas destas pobres mulheres, envergonhadas, preferem muitas vezes não voltar para as suas famílias. Admito também que os espanhóis nem por isso tratarão melhor as índias destinadas a servi-los e a dar-lhes prazer. Noutros aspectos, os mapuche estão em vantagem sobre nós, já que, por exemplo, não conhecem a cobiça. Ouro, terras, títulos, honrarias, nada disso lhes interessa; o seu tecto é o céu e o seu leito é o musgo, andam livremente pelos bosques, com o vento a acariciar-lhes o cabelo, galopando na garupa dos cavalos que nos roubaram. Outra virtude que lhes encontro é o cumprimento da palavra dada. Não são eles que desrespeitam os pactos estabelecidos, mas nós. Em tempos de guerra atacam de surpresa, mas não à traição, e em tempos de paz respeitam os acordos. Antes da nossa chegada, não conheciam a tortura e respeitavam os seus prisioneiros de guerra. O pior castigo para eles é o exílio, a expulsão da família ou da tribo, algo que é ainda mais temido do que a morte. Os crimes graves pagam-se com uma execução rápida. O condenado cava a sua própria sepultura, onde deita paus e pedras enquanto nomeia os seres que quer que o acompanhem até ao outro mundo, após o que recebe uma pancada mortal na cabeça.
Espantam-me o poder desses versos de Alonso, que inventam a História, desafiam e vencem o esquecimento. As palavras sem rima, como as minhas, não têm a autoridade da poesia, mas de qualquer forma tenho o dever de relatar a minha versão dos acontecimentos para deixar memória daquilo que nós, mulheres, passámos no Chile, o que normalmente escapa aos cronistas, por muito hábeis que sejam. Pelo menos tu, Isabel, deves conhecer toda a verdade, porque és minha filha de coração, ainda que não o sejas de sangue. Suponho que venham a colocar estátuas da minha pessoa nas praças, e haverá, por certo, ruas e cidades com o meu nome, tal como as haverá também com o nome de Pedro de Valdivia e outros conquistadores, mas as centenas de mulheres que tanto se esforçaram por fundar as cidades, enquanto os seus maridos lutavam, serão, quase de certeza, esquecidas. Já me distraí. Voltemos, então, ao que estava a contar, porque o tempo não me sobra, tenho o coração cansado.
Diego de Almagro abandonou a conquista do Chile, forçado pela resistência invencível dos mapuche, pelas pressões dos seus soldados
- desencantados pela escassez de ouro - e pelas más notícias sobre a rebelião dos índios no Peru. Regressou para ajudar Francisco Pizarro a debelar a insurreição e, juntos, conseguiram derrotar definitivamente as hostes inimigas. O império dos Incas, assolado pela fome, violência e desordem da guerra, capitulou. No entanto, em vez de agradecer a intervenção de Almagro, Francisco Pizarro e os seus irmãos voltaram-se contra ele para lhe retirar Cuzco, cidade que lhe pertencia de acordo com a partilha territorial feita pelo imperador Carlos V. A ambição dos Pizarro não se satisfazia com a possessão das terras imensas e das incalculáveis riquezas que já lhes pertenciam; queriam mais, queriam tudo.
Francisco Pizarro e Diego de Almagro acabaram por pegar nas armas e defrontar-se numa curta batalha em Abancay, que culminou com a derrota do primeiro. Almagro, sempre magnânimo, tratou os seus prisioneiros com uma clemência invulgar, inclusivamente os irmãos Pizarro, seus inimigos implacáveis. Admirados com a sua atitude, muitos soldados vencidos passaram-se para as suas fileiras, enquanto os seus leais capitães lhe rogavam que executasse os Pizarro e aproveitasse a oportunidade para se apoderar do Peru. Almagro não ouviu os conselhos e optou por se reconciliar com o companheiro ingrato que tanto o injuriara.
Pedro de Valdivia chegou à Cidad de los Reyes nessa época e colocou-se ao serviço de quem o tinha convocado, Francisco Pizarro. Respeitador da legalidade, não questionou a autoridade nem as intenções do Governador; este era o representante de Carlos V, e isso bastava-lhe. Contudo, a última coisa que Valdivia queria fazer era participar numa guerra civil. Tinha viajado até ali para combater os índios insurrectos e nunca pensou ter de o fazer contra outros espanhóis. Disponibilizou-se para servir de intermediário entre Pizarro e Almagro para que chegassem a uma solução pacífica e, a determinada altura, chegou mesmo a pensar que estava perto de alcançar o seu objectivo. Não conhecia Pizarro, que dizia uma coisa pela frente e por trás planeava outra. Enquanto o Governador ganhava tempo com os seus discursos de amizade, às escondidas ia preparando o seu plano para acabar com Almagro, sempre com a ideia fixa de ser o único Governador e apoderar-se também de Cuzco. Pizarro tinha inveja dos méritos de Almagro, do seu eterno optimismo e, sobretudo, da lealdade que os soldados tinham para com ele, porque ele, Pizarro, sabia que era detestado.
Depois de mais de um ano de escaramuças, convenções violadas e traições, as forças de ambos os rivais enfrentaram-se em Las Salinas, perto de Cuzco. Francisco Pizarro não encabeçou o seu exército, mas colocou-o sob o comando de Pedro de Valdivia, cujos méritos militares eram conhecidos de todos. Nomeou-o seu mestre-de-campo, porque tinha lutado sob as ordens do Marquês de Pescara, em Itália, e tinha experiência em bater-se contra europeus, porque uma coisa era enfrentar índios mal armados e anárquicos e outra, bem diferente, era fazê-lo com soldados espanhóis fortemente disciplinados. O seu irmão, Hernando Pizarro, odiado pela sua crueldade e arrogância, assistiu à batalha em sua representação. Quero que isto fique bem claro, para que não se possa culpar Pedro de Valdivia das atrocidades cometidas naqueles dias, das quais tive provas contundentes porque tive de atender os infelizes cujas chagas ainda não tinham sarado meses depois da batalha. Os pizarristas tinham canhões e mais duzentos homens do que Almagro; estavam muito bem armados, tinham mosquetes novos e umas balas mortíferas, como bolas de ferro que ao abrir-se se fragmentavam em várias lâminas afiadas. Tinham a moral elevada e estavam bem descansados, enquanto os seus adversários vinham das grandes penúrias do Chile e da árdua tarefa de sufocar a sublevação dos índios do Peru. Diego de Almagro estava muito doente e também não participou na batalha.
Os dois exércitos encontraram-se no vale de Las Salinas, num amanhecer rosado, enquanto milhares de índios quíchuas observavam das colinas o divertido espectáculo dos viracocbas a matarem-se uns aos outros como se fossem cães raivosos. Não entendiam as cerimónias nem as razões que moviam aqueles guerreiros barbudos. Primeiro, formavam filas ordenadas, envergando as suas armaduras polidas e os cavalos garbosos; depois punham um joelho no chão, enquanto outros viracochas, vestidos de negro, faziam magia com cruzes e cálices. Comiam um bocadinho de pão, benziam-se, recebiam bênçãos, saudavam-se à distância e quando já andavam naquela dança há quase duas horas, preparavam-se para se matarem uns aos outros. Faziam isto com método e fúria. Lutavam corpo a corpo durante horas a fio, dando os mesmos gritos: «Viva o Rei e Espanha!», «A eles, por Santiago!» No meio da confusão e do pó que os cascos das bestas e as botas dos homens levantavam, não se sabia quem era quem, porque os uniformes se tinham tingido todos da cor da argila. Entretanto, os índios aplaudiam, faziam apostas, saboreavam as merendas de milho assado e carne salgada, mascavam coca, bebiam chicha, acaloravam-se e cansavam-se, porque a renhida batalha durava demasiado tempo.
No final do dia, os pizarristas saíram vencedores graças à perícia militar do mestre-de-campo, Pedro de Valdivia, o herói do dia, mas foi Hernando Pizarro quem deu a última ordem: «Degolem-nos!» Os seus soldados, animados por um ódio novo, que mais tarde não saberiam explicar, e que os cronistas não podiam corrigir, encarniçaram-se num banho de sangue contra centenas de compatriotas, muitos dos quais tinham sido seus irmãos na aventura da conquista do Peru. Voltaram à carga sobre os soldados feridos do exército de Almagro e entraram a ferro e fogo em Cuzco, onde violaram as mulheres, espanholas, índias e negras, e roubaram e destruíram até estarem saciados. Atacaram os vencidos com tanta selvajaria como os Incas, o que quer dizer bastante, porque estes nunca foram meigos, bastando, para tal, recordar que entre as torturas habituais que infligiam aos derrotados contam-se as práticas de pendurar os condenados pelos pés com as tripas enroladas à volta do pescoço, ou tirar-lhes os olhos e, enquanto ainda estavam vivos, fazer tambores com a sua pele. Naquela ocasião, porém, os espanhóis não chegaram a tanto, porque andavam angustiados, segundo me contaram alguns sobreviventes. Vários soldados de Almagro, que não tinham perecido de imediato às mãos dos seus compatriotas acabaram aniquilados pelos índios, que desceram do monte no final da batalha, dando gritos de contentamento, porque pela primeira vez as vítimas não eram eles. Celebraram humilhando os cadáveres; fizeram-nos em picado com as suas facas e à pedrada. Para Valdivia, que desde os vinte anos lutara em muitas frentes e contra diversos inimigos, aquele foi um dos momentos mais humilhantes da sua vida militar. Foram muitas as vezes em que acordou nos meus braços aos gritos, atormentado por pesadelos em que lhe apareciam os companheiros degolados, tal como acontecera depois do saque de Roma, em que as mães se suicidavam com os filhos nos braços só para escapar aos soldados.
Diego de Almagro, de sessenta e um anos e bastante debilitado pela doença e pela campanha do Chile, foi feito prisioneiro, humilhado e sujeito a um julgamento que durou dois meses, no qual não teve oportunidade para se defender. Quando soube que tinha sido condenado à morte, pediu que o mestre-de-campo inimigo, Pedro de Valdivia, fosse testemunha das suas últimas vontades; não encontrou mais ninguém digno da sua confiança. Diego de Almagro ainda era um homem bonito, apesar das marcas danosas da sífilis e das batalhas travadas. Usava uma pala negra num dos olhos, que tinha perdido num encontro com selvagens antes de descobrir o Peru. Nessa ocasião, e com as próprias mãos, arrancou com um puxão a seta, com o olho espetado junto e tudo, continuando a lutar. Um machado de pedra cortou-lhe os três dedos da mão direita e então, empunhando a espada com a mão esquerda, cego e coberto de sangue, permaneceu em combate, batendo-se, até finalmente ser socorrido pelos seus companheiros. Mais tarde, cauterizaram-lhe a ferida com um ferro em brasa e azeite a ferver, o que lhe deformou a cara, mas não destruiu a sua expressão amável e a gargalhada franca e atraente.
- Que acabem com ele na praça, em frente a toda a povoação! Merece um castigo exemplar! - ordenou Hernando Pizarro.
- Não participarei em semelhante coisa, Excelência. Os soldados não aceitarão tal castigo. Já foi suficientemente duro lutar contra irmãos, por isso não deitemos sal na ferida. Poderia gerar uma revolta nas tropas - aconselhou-o Valdivia.
- Almagro nasceu vilão; que morra como tal - respondeu Hernando Pizarro.
Pedro de Valdivia absteve-se de lhe recordar que os Pizarro não tinham propriamente melhor berço do que Diego de Almagro. Francisco Pizarro também era filho ilegítimo, não recebeu educação e tinha sido abandonado pela mãe. Eram ambos uns miseráveis sem ter onde cair mortos quando um afortunado revés do destino os colocou no Peru, transformando-os em homens mais ricos do que o Rei Salomão.
- Don Diego de Almagro ostenta os títulos de Adelantado e Governador de Nova Toledo. Que explicação será dada ao nosso Imperador? insistiu Valdivia. - Repito-vos, com todo o respeito, Excelência, que não convém provocar os soldados, cujos ânimos já estão bastante exaltados. Diego de Almagro é um militar sem mácula.
- Voltou do Chile derrotado por um bando de selvagens nus! exclamou Hernando Pizarro.
- Não, Excelência, voltou do Chile para socorrer o irmão de Vossa Mercê, o senhor Marquês Governador.
Hernando Pizarro compreendeu que o mestre-de-campo tinha razão, mas não fazia parte do seu feitio retractar-se e muito menos perdoar um inimigo. Por isso, ordenou que Almagro fosse degolado na praça de Cuzco.
Nos dias anteriores à execução, Valdivia encontrou-se várias vezes a sós com Almagro naquela cela lúgubre e imunda que foi a última morada do Adelantado. Admirava-o pelas suas façanhas enquanto soldado e pela sua fama de homem generoso, apesar de conhecer alguns dos seus erros e fraquezas. No cativeiro, Almagro contou-lhe o que tinha vivido no Chile durante os dezoito meses da sua peregrinação, semeando na imaginação de Valdivia o projecto da conquista do território que ele não tinha conseguido concretizar. Descreveu-lhe a viagem espantosa que fizera pelas serras altas, vigiadas pelos condores, que voavam lentamente aos círculos por cima das suas cabeças à espera do primeiro que tombasse por terra para lhe limparem os ossos. O frio matou mais de dois mil índios auxiliares - os chamados yanaconas duzentos negros, cerca de cinquenta espanhóis e inúmeros cavalos e cães. Até os piolhos desapareciam, e as pulgas caíam das roupas como se fossem pequenas sementes. Ali nada crescia, nem mesmo um líquen, apenas pedra, vento, gelo e solidão.
- O desespero era tanto, don Pedro, que mastigávamos a carne crua e congelada dos animais e bebíamos a urina dos cavalos. De dia, forçávamo-nos a andar, para evitar que a neve nos cobrisse e nos paralisasse de medo. De noite, dormíamos abraçados aos animais. A cada amanhecer, contávamos os índios que tinham morrido durante a noite e rezávamos rapidamente um pai-nosso pelas suas almas, porque não havia tempo para mais. Os corpos ficavam onde caíam, como monólitos de gelo assinalando o caminho para os viajantes extraviados que, de futuro, passassem por aquelas bandas.
Acrescentou ainda que até as próprias armaduras dos castelhanos congelavam, enclausurando-os, e que, ao tirar as botas e as luvas, os dedos se desprendiam do corpo sem qualquer dor. Dado que nem um louco aceitaria voltar pelo mesmo caminho, explicou-lhe, preferiu enfrentar o deserto; não imaginava que seria igualmente terrível. «Quanto esforço e padecimento custa o dever cristão da conquista!», pensava Valdivia.
- Durante o dia, o calor do deserto é como uma fogueira e a luz é tão intensa que enlouquece homens e cavalos, fazendo-os ver árvores e charcos de água doce - contou o Adelantado. - Mal o Sol se põe, a temperatura baixa subitamente e começa a cair a camancbaca, um orvalho tão gelado como as neves profundas que nos atormentavam nos cumes da serra. Levávamos bastante água em barris e odres de couro, mas rapidamente começou a escassear. A sede matou muitos índios e aviltou os espanhóis.
- Na verdade, parece uma viagem ao inferno, don Diego - comentou Valdivia.
- E foi, don Pedro, mas asseguro-vos que, se ainda tivesse tempo, voltaria a fazê-la.
- Mas porquê, se são tão espantosos os obstáculos e tão pobre a recompensa?
- Porque uma vez vencida a cordilheira e o deserto que separam o Chile do resto da terra conhecida, encontram-se colinas suaves, bosques aromáticos, vales férteis, rios copiosos e um clima tão ameno como não se encontra em Espanha, nem em nenhuma outra parte do mundo. O Chile é um paraíso, don Pedro. É lá que devemos fundar as nossas cidades e prosperar.
- E o que pensa Vossa Mercê dos índios do Chile?
- De princípio, encontrámos uns selvagens amistosos, que se chamam promaucaes e são de uma raça semelhante aos mapuche, mas de outras tribos. Depressa se voltaram contra nós. São uma mistura dos índios do Peru e do Equador, súbditos dos Incas, cujo domínio só chegou até ao rio Bío-Bío. Conseguimos entender-nos com alguns chefes curacas, ou chefes incas, mas não conseguimos continuar para sul, porque é lá que estão os mapuche, e esses sim são muito belicosos. Devo dizer-vos, don Pedro, que em nenhuma das minhas arriscadas expedições e batalhas encontrei inimigos tão formidáveis como aqueles bárbaros armados de paus e pedras.
- Devem ser, Adelantado, para conseguirem deter-vos e às vossas tão famosas tropas...
- Os mapuche só sabem de guerra e de liberdade. Não têm rei nem entendem as hierarquias, só obedecem aos seus toquis durante o tempo de batalha. Liberdade, liberdade, só a liberdade. Isso é o mais importante para eles e é por isso que não os conseguimos submeter, assim como não o conseguiram os Incas. As mulheres é que fazem o trabalho todo, enquanto os homens não fazem outra coisa que não seja prepararem-se para a guerra.
A sentença de Diego de Almagro cumpriu-se numa manhã de Inverno corria o ano de 1538. À última hora, Pizarro mudou a sentença, temendo aquilo que os soldados fariam se o degolasse em praça pública, tal como tinha ordenado. Por isso, foi executado na sua cela. O carrasco aplicou-lhe o castigo do garrote vil, estrangulando-o lentamente com uma corda, e logo de seguida o seu corpo foi levado para a praça de Cuzco, onde foi decapitado, embora também não se tenham atrevido a expor a sua cabeça num gancho de talhante, conforme estava planeado. Naquela altura, Hernando Pizarro começava a dar-se conta da magnitude das suas acções e a questionar-se qual seria a reacção do Imperador Carlos V. Decidiu dar um enterro digno a Diego de Almagro e desfilou, vestido de luto rigoroso, à cabeça do cortejo fúnebre. Anos mais tarde, todos os irmãos Pizarro viriam a pagar pelos seus crimes, mas isso é outra história.
Tive necessidade de narrar detalhadamente estes acontecimentos porque são importantes para explicar a determinação de Pedro de Valdivia em sair do Peru, país dilacerado pela insídia e corrupção, e conquistar o território do Chile, tarefa que partilhou comigo.
A batalha de Las Salinas e a morte de Diego de Almagro ocorreram alguns meses antes da minha viagem para Cuzco. Naquela altura, encontrava-me no Panamá, onde várias pessoas me disseram que tinham visto Juan de Malaga, à espera de notícias do meu marido. Era no porto que tínhamos oportunidade de encontrar as pessoas que chegavam e partiam rumo a Espanha. Por ali passavam imensos viajantes, soldados, funcionários da Coroa, cronistas, frades, cientistas, aventureiros e bandidos, todos eles se misturando no mesmo bafo dos trópicos. Através deles eu enviava mensagens para os quatro cantos do mundo, mas o tempo arrastava-se sem uma resposta do meu marido. Entretanto, fui ganhando a vida com os ofícios que conhecia: costurar, cozinhar, tratar ossos e curar feridas. Nada podia fazer para ajudar quem sofria de peste, das febres que transformavam o sangue em melaço, do mal francês e das picadas de bichos venenosos, que abundavam por aqueles lados e que não tinham qualquer remédio. Tenho a mesma saúde de ferro que tinham a minha mãe e a minha avó e consegui viver nos trópicos sem adoecer. Mais tarde, no Chile, sobrevivi sem problemas à travessia do deserto, quente como uma fogueira, aos dilúvios infernais, cujas gripes subsequentes matavam os homens mais robustos, e as epidemias de tifo e varíola, durante as quais tive de tratar as vítimas e enterrar os cadáveres fétidos.
Um dia, ao falar com a tripulação de um veleiro atracado no porto, descobri que Juan tinha embarcado rumo ao Peru já há algum tempo, como fizeram outros espanhóis ao ouvir falar das riquezas descobertas por Pizarro e Almagro. Então, juntei os meus pertences, peguei nas minhas poupanças e consegui embarcar em direcção ao Sul com um grupo de frades dominicanos, porque não consegui autorização para embarcar sozinha. Imagino que os frades pertencessem à Inquisição, mas nunca lhes perguntei nada, porque já na altura só a palavra me aterrorizava e ainda hoje me aterroriza. Nunca esquecerei uma queima de hereges que fizeram em Plasencia tinha eu uns oito ou nove anos. Voltei a usar os meus vestidos pretos e assumi o papel de esposa inconsolável, para que me ajudassem a chegar ao Peru. Os frades ficavam maravilhados com a minha fidelidade conjugal, que me fazia atravessar o mundo atrás do meu marido, que não me tinha chamado para o seu lado e cujo paradeiro desconhecia por completo. O motivo da minha busca não era a fidelidade, mas sim o desejo de sair daquele estado de incerteza no qual Juan me havia deixado. Há muitos anos que já não o amava, mal me lembrava do seu rosto e receava não o reconhecer quando o visse. Por outro lado, também não queria ficar no Panamá, exposta aos apetites da soldadesca e ao clima insalubre.
A travessia de barco demorou mais ou menos sete semanas, ziguezagueando no oceano ao sabor dos caprichos do vento. Naquela altura, havia dezenas de barcos espanhóis a percorrer a rota de ida e volta para o Peru, mas as valiosas cartas de navegação ainda eram um segredo de estado. Como não estavam completas, em cada viagem os pilotos tinham o dever de anotar as suas observações, desde a cor da água e as nuvens, até à mais pequena novidade observada no contorno da costa, quando esta se podia ver; era assim que se ajustavam as cartas, que depois serviriam para guiar outros navegantes. Apanhámos o mar agitado, neblina, tempestades, rixas entre os tripulantes e outros inconvenientes, que me abstenho de relatar para não me alargar demasiado. Basta dizer que os frades rezavam missa todas as manhãs e nos faziam rezar o terço à tarde para acalmar o oceano e os ânimos mais truculentos da tripulação. Todas as viagens são perigosas. Horrorizava-me viajar à mercê daquela água imensa numa embarcação frágil, desafiando Deus e a natureza, afastada de todo o socorro humano. Prefiro ver-me rodeada de índios selvagens, como aliás já estive tantas vezes, do que voltar a entrar num barco, razão pela qual jamais pensei regressar a Espanha, nem mesmo nos tempos em que as ameaças dos indígenas nos obrigaram a evacuar cidades inteiras e a fugir como ratos. Sempre soube que os meus ossos repousariam definitivamente em terras das índias.
No mar alto voltei a ser incomodada pelo assédio dos homens, apesar da vigilância apertada dos frades. Sentia-os a rondar-me como uma matilha de cães. Será que eu emanava o odor de uma fêmea no cio? Na intimidade do meu camarote, lavava-me com água do mar, assustada com esse poder que não desejava, porque se podia voltar contra mim. Sonhava com lobos ofegantes, com as suas línguas penduradas e os caninos ensanguentados, dispostos a saltar-me em cima, todos ao mesmo tempo. Às vezes, os lobos tinham o rosto de Sebastian Romero. Passava as noites acordada, fechada na minha cabina, costurando, rezando, sem me atrever a sair para apanhar um pouco do ar fresco da noite, para acalmar os nervos, porque tinha medo da constante presença masculina na escuridão. É certo que tinha medo dessa ameaça constante, mas o facto é que também me sentia atraída e fascinada. O desejo era um terrível abismo que se abria mesmo à frente dos meus pés, e que me convidava a dar um salto e a perder-me nas suas profundezas. Conhecia a alegria e o tormento da paixão porque os tinha vivido com Juan de Malaga nos primeiros anos da nossa união. O meu marido tinha muitos defeitos, mas não posso negar que era um amante insaciável e divertido, por isso o perdoei tantas vezes. Mesmo quando já não restava nenhum amor ou respeito por ele, continuava a desejá-lo. Para me proteger da tentação do amor, dizia para mim própria que nunca encontraria outro homem capaz de me dar tanto prazer como Juan. Sabia que devia ter cuidado para não apanhar as doenças que afectam os homens; já tinha visto os seus efeitos e, por muito saudável que fosse, tinha-lhes tanto medo como ao Diabo, porque o mínimo contacto com o mal francês podia infectar-nos. Além disso, podia engravidar, porque as esponjas de vinagre não são completamente seguras, e tinha rezado tanto à Virgem para que me desse um filho, que ela ainda era capaz de me fazer o favor numa altura menos própria. Os milagres são muitas vezes inoportunos.
Estas boas razões fizeram-me manter uma castidade forçada durante anos, ao longo dos quais o meu coração aprendeu a viver sufocado, embora o meu corpo nunca tivesse deixado de reclamar. Neste Novo Mundo o ar é quente, propício à sensualidade, tudo é mais intenso, as cores, os aromas, os sabores; até as flores, com as suas fragrâncias terríveis, e os frutos, tépidos e pegajosos, incitam à lascívia. Em Cartagena, e depois no Panamá, duvidava dos princípios pelos quais me regia em Espanha. Estava a desperdiçar a juventude, a gastar a vida... quem é que se interessava com a minha virtude? Quem me julgava? Concluí que Deus devia ser mais condescendente nas índias do que na Extremadura. Se perdoava os crimes cometidos em seu nome contra milhares de indígenas, certamente perdoaria as debilidades de uma pobre mulher.
Fiquei muito feliz quando chegámos sãos e salvos ao porto de Callao e pude abandonar o barco, onde começava já a enlouquecer. Não há nada mais opressivo do que a prisão de um barco na imensidão das águas negras do oceano, sem fundo nem limite. «Porto» é, na verdade, uma palavra demasiado ambiciosa para descrever Callao naquele tempo.
Dizem que agora é o porto mais importante do Pacífico, de onde saem os incalculáveis tesouros rumo a Espanha, mas naquela altura era um mísero molhe. De Callao fui com os frades até à Cidad de los Reyes, que agora chamam Lima, um nome bastante menos gracioso. Como gosto mais do primeiro, continuarei a chamar-lhe assim. A cidade, recém-fundada por Francisco Pizarro num vale imenso, pareceu-me eternamente nublada; filtrada pelo ar húmido, a luz do sol dava-lhe um aspecto etéreo, como os desenhos esborratados de Daniel Belalcázar. Fiz por ali as perguntas necessárias e, em poucos dias, encontrei um soldado que conhecia Juan de Malaga.
- Chegásteis tarde, senhora - disse-me. - O vosso marido morreu na batalha de Las Salinas.
- Juan não era soldado - esclareci-o.
- Aqui não há outro ofício, até os frades empunham a espada.
O homem tinha mau aspecto, uma barba desgrenhada que lhe cobria metade do peito, a roupa esfarrapada e imunda, a boca sem dentes e os modos de um bêbado. Jurou-me que tinha sido amigo do meu marido, mas não acreditei nele, primeiro porque me disse que Juan era soldado da infantaria, endividado por causa do jogo e debilitado pelo vício das mulheres e vinho, e depois começou a divagar acerca de um penacho de plumas e uma capa de brocado. Para completar o meu assombro, atirou-se para cima de mim com a intenção de me abraçar e, quando o afastei, ofereceu-se para comprar os meus favores com moedas de ouro.
Já que tinha chegado tão longe, desde a Extremadura até aos antigos domínios de Atahualpa, decidi que podia perfeitamente fazer um último esforço e integrar uma caravana que transportava mantimentos e uma manada de lamas e alpacas até Cuzco. Éramos acompanhados por um grupo de soldados sob o comando de um tal alferes Núnez, solteiro, bonito, jactante, e pelos vistos, habituado a satisfazer os seus caprichos. Na caravana iam também dois frades, um escriba, um magistrado e um médico alemão, além dos soldados, todos a cavalo, de mula ou transportados em liteiras pelos índios. Eu era a única espanhola, mas havia algumas índias quíchuas, que com os seus filhos acompanhavam a interminável fila de carregadores, levando vitualhas para os seus maridos. As roupas de lã de cores brilhantes davam-lhes um ar alegre, mas na verdade tinham a expressão rude e rancorosa das gentes subjugadas. Eram de estatura baixa, maçãs do rosto altas, olhos pequenos e alongados, e dentes negros das folhas de coca que mastigavam para lhes dar ânimo. As crianças pareciam-me encantadoras, e algumas mulheres atraentes, mas nunca sorriam. Seguiram-nos durante muitas léguas, até que receberam ordem de Nunez para voltarem para as suas casas; então, uma a uma, levando os filhos pela mão, foram-se todas embora. Os homens que transportavam as bagagens às costas eram muito fortes e, apesar de irem descalços e carregados como mulas, resistiam melhor aos caprichos do clima e à fadiga da viagem do que todos nós, que íamos a cavalo. Conseguiam andar horas e horas a fio sem perder o ritmo, naquele seu passinho certo, calados e ausentes, como se andassem a sonhar acordados. Falavam um castelhano rudimentar, lamuriento, cantado e sempre em tom de interrogação. Só se alteravam com os latidos dos dois cães do alferes Núnez, dois mastins treinados para matar.
Núnez começou a importunar-me no primeiro dia de viagem e já não me deixou em paz. Procurei mantê-lo à distância com prudência, recordando-lhe a minha condição de mulher casada, porque não me convinha criar inimizades com ele, mas, à medida que avançávamos, o seu atrevimento aumentava. Fazia alarde da sua condição de fidalgo, o que me custava a crer, dado o seu comportamento. Fizera alguma fortuna e mantinha trinta índias como suas concubinas, distribuídas entre a Cidad de los Reys e Cuzco, «todas muito obedientes», como gostava de as descrever. Na sua terra natal em Espanha tal feito seria um escândalo, mas aqui no Novo Mundo, onde os espanhóis tomam as índias e negras a seu bel-prazer, era normal. A maior parte dos soldados abandona as mulheres depois de abusar delas, mas alguns mantêm-nas ao seu serviço, ainda que, poucas vezes, se preocupem com os filhos que nascem dessas mães abusadas. E assim vão povoando esta terra de mestiços ressentidos. Núnez assegurou-me de que se desfazia das amantes quando eu aceitasse a sua proposta, coisa que não tinha a menor dúvida que eu faria mal confirmasse a morte do meu marido, que segundo ele era mais do que certa. Quanto aos defeitos, aquele alferes orgulhoso era demasiado parecido com Juan de Malaga, mas não tinha nenhuma das suas virtudes para que pudesse amá-lo. Não sou pessoa de tropeçar duas vezes na mesma pedra.
Naquela época, contavam-se pelos dedos as mulheres espanholas que estavam no Peru e nunca soube de nenhuma que tivesse chegado sozinha, como eu. Eram esposas ou filhas de soldados que viajavam por insistência da Coroa, empenhada em reunir as famílias e criar uma sociedade legítima e decente nas colónias. Essas mulheres viviam enclausuradas em casa, solitárias e aborrecidas, mas rodeadas de luxos, porque tinham dezenas de índias para lhes satisfazer todos os caprichos. Contaram-me que as damas espanholas do Peru nem sequer limpavam o traseiro, já que as criadas se encarregavam de o fazer por elas. Pouco habituados a ver uma espanhola sem acompanhante, os homens da caravana esmeraram-se em tratar-me com grande consideração, como se eu fosse uma pessoa de alta classe e fina estirpe, e não a pobre costureira que, na verdade, era. Nessa longa e lenta viagem até Cuzco atenderam às minhas necessidades, partilharam a sua comida comigo, emprestaram-me as suas tendas e montadas, ofereceram-me botas e uma manta de vicunha, o tecido mais fino do mundo. Em troca, apenas me pediam para lhes cantar canções ou para lhes falar de Espanha, quando acampávamos ao fim da tarde ou quando a nostalgia lhes pesava no coração. Foi graças à ajuda deles que me consegui arranjar, porque por aqueles lados as coisas custavam cem vezes mais do que em Espanha e depressa fiquei sem um maravedi. A abundância de ouro no Peru era tanta que a prata não tinha valor, e a falta de coisas essenciais, como ferraduras para os cavalos ou tinta para escrever, era tal que os preços eram exorbitantes. Arranquei um dente podre a um dos viajantes com um só puxão - aliás um assunto rápido e fácil de resolver, bastando para tal uma invocação a Santa Apolónia e uma tenaz - e ele pagou-me com uma esmeralda digna de um bispo. Está engastada na coroa de Nossa Senhora do Socorro, e agora vale mais do que valia naquela altura, porque no Chile não abundam as pedras preciosas.
Ao fim de vários dias de caminhada pelos caminhos do Inca, cruzando planícies e montanhas, atravessando precipícios por pontes instáveis feitas de cordas vegetais e transpondo ribeiros e charcos de sal, subindo e subindo, chegámos ao fim da viagem. O alferes Núnez, do alto do seu cavalo, indicou-me Cuzco com a sua lança.
Nunca vi nada como a magnífica cidade de Cuzco, centro do império inca, lugar sagrado onde os homens falam com os deuses. Talvez Madrid, Roma, ou outras cidades dos Mouros, com fama de serem esplêndidas, se possam comparar a Cuzco, mas essas eu não conheço. Apesar dos destroços da guerra e do vandalismo que tinha sofrido, Cuzco era uma jóia branca e resplandecente sob um céu de cor púrpura. Fiquei literalmente sem ar e, durante vários dias, andei sufocada, não devido à altura e ao ar rarefeito, como me tinham avisado, mas devido à beleza esmagadora dos seus templos, fortalezas e edifícios. Dizem que quando os primeiros espanhóis chegaram, havia palácios laminados a ouro, mas agora só se vêem muros despidos. No lado norte da cidade, ergue-se uma construção espectacular, Sacsayhuamán, a fortaleza sagrada, com as suas três fileiras de muralhas em ziguezague, o Templo do Sol, com o seu labirinto de ruas, torreões, calçadas, escadas, terraços, caves, e quartos, onde viviam com largueza cinquenta ou sessenta mil pessoas. O seu nome significa «falcão satisfeito» e é como um falcão que vigia a cidade. Foi construída com uns blocos monumentais de pedra talhada e edificada sem argamassa, mas a sua perfeição é tanta que não cabe uma lâmina fina entre as juntas. Como conseguiram cortar aqueles enormes blocos de pedra sem ferramentas de metal? Como é que as transportaram sem rodas nem cavalos durante léguas? Questionava-me também como teria sido possível um punhado de soldados espanhóis conquistar, em tão pouco tempo, um império capaz de erigir semelhante maravilha. Por muito que atiçassem as guerras entre os Incase que contassem com a ajuda de milhares de yanaconas dispostos a servi-los e a lutar por eles, ainda hoje a epopeia me parece absolutamente inexplicável. «Além da pólvora e do ferro, temos Deus do nosso lado»,
diziam os castelhanos, gratos pelo facto de os nativos se defenderem com armas de pedra. «Quando nos viram chegar pelo mar com grandes casas com asas, pensaram que éramos deuses», acrescentavam, mas eu acho que essa ideia deveras conveniente foi difundida por eles mesmos, acabando por convencer os índios e os próprios espanhóis.
Andei pelas ruas de Cuzco enlevada, esquadrinhando por entre a multidão. Os seus rostos cor de cobre nunca sorriam nem me olhavam nos olhos. Tentava imaginar as suas vidas antes de nós chegarmos, quando por estas mesmas ruas famílias inteiras passeavam vestidas com os seus vistosos e coloridos trajes, sacerdotes com o peito forrado a ouro, o Inca coberto de jóias e transportado na sua liteira de ouro decorada com penas de aves fabulosas, acompanhado pelos seus músicos, guerreiros corajosos e pelo seu interminável séquito de esposas e virgens do Sol. Essa complexa cultura continuava praticamente intacta, apesar da presença dos conquistadores, mas era menos visível. O Inca tinha sido colocado no seu trono e era mantido como prisioneiro de luxo por Francisco Pizarro; nunca o vi, porque não tive acesso à sua corte sequestrada. O povo andava pelas ruas, em grande número e em silêncio. Por cada barbudo, havia centenas de indígenas imberbes. Os espanhóis, altivos e ruidosos, existiam numa outra dimensão, como se os nativos fossem invisíveis, meras sombras nas estreitas ruelas de pedra. Os indígenas cediam passagem aos estrangeiros, que os tinham derrotado, mas mantinham os seus costumes, crenças e hierarquias, com a esperança de que, a custo de muita paciência e tempo, se conseguissem livrar dos barbudos. Mal podiam adivinhar que estes acabariam por ficar ali para sempre.
Naquela altura, a violência fratricida que tinha dividido os espanhóis nos tempos de Diego de Almagro, já tinha acalmado. Em Cuzco, a vida recomeçava lentamente, com passos cuidadosos, porque existia imenso rancor acumulado e os ânimos exaltavam-se com extrema facilidade. Os soldados ainda estavam furiosos devido à desapiedada guerra civil, o país estava empobrecido e desordenado, e os índios eram sujeitos a trabalhos forçados. O nosso Imperador Carlos V tinha ordenado nas suas cédulas reais que os nativos fossem tratados com respeito, evangelizados e civilizados pela bondade e as boas acções, mas esta não era a realidade. O Rei, que nunca tinha pisado o Novo Mundo, ditava as suas sensatas leis nos escuros salões de palácios muito antigos, a milhares de léguas de distância dos povos que pretendia governar, sem ter em conta a perpétua cobiça humana. Eram poucos os espanhóis que respeitavam estas ordens, e Francisco Pizarro, o Marquês Governador, não era certamente um deles. Até o mais miserável dos castelhanos tinha os seus índios de serviço e os encarregados abastados tinham-nos às centenas, já que a terra ou as minas nada valiam se não houvesse braços para nelas trabalhar. Os índios obedeciam debaixo dos chicotes dos capatazes, ainda que alguns preferissem dar uma morte misericordiosa à sua família e suicidarem-se logo de seguida.
Falando com os soldados, consegui juntar os pedaços da história de Juan e tive a certeza da sua morte. O meu marido tinha chegado ao Peru, depois de esgotar as suas forças à procura do El Dorado nas quentes florestas do Norte, e alistara-se no exército de Francisco Pizarro. Não tinha estofo para soldado, mas lá se arranjou para conseguir sobreviver aos confrontos com os índios. Conseguiu arranjar algum ouro, uma vez que este metal existia em abundância, mas perdeu-o uma e outra vez ao jogo. Devia dinheiro a vários dos seus camaradas e uma soma importante a Hernando Pizarro, irmão do Governador. Esta dívida converteu-o em seu lacaio e, a seu mando, cometeu diversas atrocidades.
O meu marido combateu ao lado das tropas vitoriosas na batalha de Las Salinas, cabendo-lhe, então, uma estranha missão, por sinal a última da sua vida. Hernando Pizarro ordenou-lhe que trocasse de uniforme com ele; assim, enquanto Juan envergava o traje de veludo laranja, a fina armadura, o elmo de prata coroado com um penacho branco e a capa adamascada que caracterizavam Pizarro, este último misturava-se entre a infantaria vestido de soldado raso. E possível que Hernando Pizarro tivesse escolhido o meu marido devido à sua altura: Juan era do seu tamanho. Supôs que os seus inimigos o procurariam durante a batalha, o que, de facto, aconteceu. A indumentária extravagante atraiu os capitães de Almagro, que a golpes de espada lá conseguiram chegar perto do insignificante Juan de Malaga, confundindo-o com o irmão do Governador e acabando por matá-lo. Hernando Pizarro salvou-se, mas o seu nome ficou para sempre manchado com a fama de cobarde. As suas anteriores proezas militares foram apagadas de uma só penada e nada lhe conseguiu devolver o prestígio perdido; a vergonha daquele ardil manchou os espanhóis, amigos e inimigos, que nunca lhe perdoaram.
Urdiu-se uma poderosa conspiração de silêncio para proteger Pizarro, a quem todos temiam, mas o facto é que a vilania cometida na batalha circulava em voz baixa nas tabernas e corredores. Todos souberam do sucedido e todos o comentaram, e foi assim que consegui averiguar os detalhes daquela história, apesar de nunca ter encontrado os restos mortais do meu marido. Desde essa altura que sou atormentada pela suspeita de que Juan não terá recebido os sacramentos cristãos na hora da morte, e que a sua alma andará perdida, à procura de descanso. Juan de Malaga seguiu-me durante a longa viagem ao Chile, acompanhou-me na fundação de Santiago, segurou no meu braço quando tive de fazer justiça com os caciques, e gozou comigo quando chorei de raiva e amor por Valdivia. E ainda hoje, volvidos mais de quarenta anos, aparece-me de vez em quando, ainda que agora me falhe a vista e o confunda com outros fantasmas do passado. A minha casa de Santiago é grande, ocupa um quarteirão inteiro, incluindo pátios, cavalariças e uma horta; as suas paredes são de adobe, muito grossas, e os tectos, altos, com vigas de carvalho. Tem muitos recantos onde se podem facilmente instalar as almas errantes, demónios ou a própria Morte, que não é nenhum espantalho encapuzado de órbitas vazias, como nos dizem os frades para nos assustar, mas uma mulher grande, roliça, de peito opulento e braços acolhedores, um anjo maternal. Perco-me nesta mansão. Há meses que não durmo, faz-me falta a mão quente de Rodrigo sobre o meu ventre. À noite, quando os criados se retiram e só ficam os guardas na rua e as criadas de turno, que se mantém acordadas não vá eu precisar delas, percorro a casa com uma vela na mão, examino os grandes quartos de paredes caiadas e tectos azuis, endireito os quadros e as flores dos jarrões, e contemplo os pássaros nas gaiolas. Na verdade, ando à caça da Morte. Ocasiões houve em que estive tão perto dela que consegui sentir o seu cheiro a roupa lavada, mas ela é brincalhona e astuta, não a consigo cercar, escapa-se-me e esconde-se entre a multidão de espíritos que habitam esta casa. Entre eles está o pobre Juan, que me seguiu até aos confins da terra, com o seu chocalhar de ossos insepultos e os seus andrajos de brocado ensanguentado.
Em Cuzco, todos os rastos do meu marido desapareceram. Não tenho dúvidas de que o seu corpo, vestido com o principesco uniforme de Hernando Pizarro, foi o primeiro em que os soldados vitoriosos pegaram no final da batalha, antes que os índios descessem dos montes para profanarem sem compaixão os despojos dos vencidos. Ficaram certamente surpreendidos ao verificar que, por debaixo do elmo e armadura, não estava o seu dono, mas sim um soldado anónimo, e suponho que terão obedecido, contrariados, à ordem de dissimular a ocorrência, porque um espanhol perdoa tudo menos a cobardia e, de qualquer das formas, tê-lo-ão feito tão bem que conseguiram apagar por completo os vestígios da passagem do meu marido por esta vida.
Quando se soube que a viúva de Juan de Malaga andava a fazer perguntas, o próprio Marquês Governador, Francisco Pizarro, quis conhecer-me. Tinha mandado construir um palácio na Cidad de los Reyes, e era dali que dominava o império, com fausto, perfídia e pulso firme, mas naquele momento estava em Cuzco de visita. Recebeu-me num salão decorado com tapetes da melhor lã peruana e móveis esculpidos. O tampo da mesa principal, os encostos das cadeiras, os copos, os candelabros e as cuspideiras eram de prata maciça. No Peru havia mais prata que ferro. Vários cortesãos, apinhados nos recantos do salão, sombrios como abutres, cochichavam e remexiam em papéis, dando-se ares de grande importância. Pizarro estava vestido de veludo preto, gibão justo com mangas afuniladas, gola branca, uma grossa corrente de ouro ao pescoço, fivelas também de ouro nos sapatos, e uma capa de marta sobre os ombros. Era um homem nos seus sessenta e poucos anos, altivo, de pele esverdeada, barba grisalha, olhos encovados de tanto olhar desconfiado para as pessoas, e uma desagradável voz de falsete. Deu-me uns pêsames breves pela morte do meu marido, sem nunca mencionar o seu nome, e de seguida, num gesto inesperado, entregou-me uma bolsa de dinheiro para que conseguisse sobreviver «até poder embarcar para Espanha», como me comunicou. Nesse mesmo instante tomei uma decisão impulsiva, da qual nunca me arrependi.
- Com todo o respeito, Excelência, não penso regressar a Espanha anunciei.
Uma sombra terrível cruzou fugazmente o semblante do Marquês Governador. Aproximou-se da janela e, durante algum tempo, ficou a contemplar a cidade que se estendia a seus pés. Pensei que se tinha esquecido de mim e comecei a retroceder até à porta, mas rapidamente, sem se virar, voltou a dirigir-me a palavra.
- Como me dissésteis que vos chamáveis, senhora?
- Inés Suárez, para vos servir, senhor Marquês Governador.
- E como pensais ganhar a vida?
- Com honestidade, Excelência.
- E com discrição, espero. A discrição é muito apreciada nesta terra,- especialmente nas mulheres. O município facilitar-vos-á uma casa. Bons-dias e boa sorte.
E foi tudo. Então, compreendi que se queria ficar em Cuzco, mais valia deixar de fazer perguntas. Juan de Malaga estava morto e eu estava livre. Posso afirmar com toda a certeza que foi nesse dia que a minha vida começou; os anos anteriores foram apenas um treino para o que havia de vir. Peço-te que tenhas um pouco de paciência, Isabel, e verás que este desordenado relato depressa chegará ao ponto em que o meu destino se cruza com o de Pedro de Valdivia, dando assim início à epopeia que desejo contar-te. Antes disso, a minha existência foi a de uma insignificante modista de Plasencia, igual à de centenas de trabalhadoras que vieram antes de mim e que hão-de continuar a vir. Com Pedro de Valdivia vivi um amor digno de uma lenda, e com ele conquistei um reino. Apesar de ter adorado Rodrigo de Quiroga, teu pai, e de ter vivido com ele durante trinta anos, a minha vida só vale a pena ser contada porque participei na conquista do Chile, junto de Pedro de Valdivia.
Instalei-me em Cuzco, na casa que o município me atribuiu por ordens do Marquês Governador. Era modesta, mas decente, com três quartos e um pátio, bem situada no centro da cidade e sempre com um suave perfume de madressilva que trepava pelas paredes. Deram -me também três índias de serviço, duas jovens e uma de mais idade que tinha adoptado o nome cristão de Catalina e que viria a ser a minha maior amiga. Decidi-me a exercer o meu ofício de costureira, muito apreciado pelos espanhóis, que se viam gregos para fazer durar a pouca roupa trazida de Espanha. Também tratava dos soldados feridos ou mal curados das guerras anteriores, na sua maioria combatentes de Las Salinas. O médico alemão que viajara comigo na caravana desde a Cidad de los Reys até Cuzco chamava-me muitas vezes para o ajudar a tratar dos casos mais graves, e eu comparecia com Catalina, porque ela sabia muito de remédios e encantamentos. Entre o médico e Catalina existia uma certa rivalidade que nem sempre beneficiava os pobres dos doentes. Ela não estava propriamente interessada em saber os quatro tipos de humor que determinam o estado de saúde do corpo e ele, por seu turno, desdenhava da feitiçaria, apesar de, por vezes, ser um método realmente eficiente. O pior aspecto do meu trabalho com eles eram as amputações, que sempre me repugnaram, mas que tinham de ser feitas, porque se a carne começava a apodrecer não havia outra forma de salvar o ferido. De qualquer maneira, eram poucos os que sobreviviam àquela operação.
Da vida que Catalina levava antes da chegada dos espanhóis ao Peru nada sei; nunca falava do seu passado, era desconfiada e misteriosa. De estatura baixa, quadrada, cor de avelã, com duas tranças grossas atadas nas costas com lãs coloridas, olhos cor de carvão e cheiro a fumo, esta Catalina podia estar em vários sítios ao mesmo tempo e desaparecer com um suspiro. Aprendeu a falar castelhano, adaptou-se aos nossos costumes, parecia satisfeita por viver comigo, e mais tarde, um par de anos depois, insistiu mesmo em acompanhar-me até ao Chile. «Eu querer ir contigo, pois, senoray», suplicou-me na sua fala cantada. Aceitara ser baptizada para não ter problemas, mas nunca abandonou as suas crenças; da mesma forma como rezava o terço e acendia velas a Nossa Senhora do Socorro, recitava evocações ao Sol. Esta sábia e leal companheira ensinou-me tudo sobre o uso das plantas medicinais e os métodos curativos do Peru, tão diferentes dos espanhóis. A boa mulher afirmava que as doenças provêm de espíritos travessos e demónios que se introduzem pelos orifícios do corpo e se alojam no ventre. Tinha trabalhado com médicos incas, os quais, para aliviar dores de cabeça e demências, faziam buracos no crânio dos seus pacientes, procedimento este que fascinava o médico alemão, mas a que nenhum espanhol se quis submeter. Catalina sabia sangrar os doentes tão bem como o melhor dos cirurgiões e era perita em purgas para aliviar as cólicas e o torpor do corpo, mas ria-se da farmacopeia do alemão. «Com isso os vais matando, pois, tatay», dizia-lhe, sorrindo com os dentes negros de coca, até que ele acabou por duvidar dos próprios remédios, que tinha trazido com tanto esforço do seu país. Catalina conhecia venenos poderosos, poções afrodisíacas, ervas que davam uma energia inesgotável, e outras que induziam ao sono, detinham grandes sangrias ou atenuavam as dores. Era mágica, podia falar com os mortos e adivinhar o futuro; por vezes, bebia uma mistura de plantas que a enviava para outro mundo, onde recebia conselhos dos anjos. Ela não lhes chamava anjos, mas descrevia-os como seres transparentes, alados e capazes de fulminar uma pessoa com o fogo do seu olhar; por isso, não podem ser senão anjos. Não mencionávamos estes assuntos em frente a terceiros, porque nos teriam acusado imediatamente de bruxaria e de fazer pactos com o Diabo. Não é muito divertido ir parar a uma masmorra da Inquisição; muitos foram os desgraçados que acabaram por morrer queimados, apesar de saberem muito menos do que nós. Como é natural, nem sempre os conjuros de Catalina surtiam o resultado esperado. Uma vez, tentou afastar lá de casa a alma de Juan de Malaga, que nos incomodava imenso, mas só conseguiu que várias galinhas morressem nessa mesma noite e que, no dia seguinte, aparecesse um lama com duas cabeças no centro de Cuzco. O pobre animal só serviu para agravar a discórdia entre índios e castelhanos, porque os primeiros achavam que era a reencarnação do imortal Inça Atahualpa, enquanto os segundos trataram logo de despachá-lo com um golpe de lança para provar que, de imortal, tinha muito pouco. Armou-se uma confusão tal que vários índios foram mortos e um espanhol ficou ferido. Catalina viveu comigo muitos anos, cuidou da minha saúde, preveniu-me de certos perigos e guiou-me quando tive de tomar decisões importantes. A única promessa que não cumpriu foi a de que me acompanharia durante a velhice, porque morreu antes de mim.
Às duas índias mais jovens que o município me atribuiu, ensinei eu a arte de cerzir, lavar e passar roupa, como se fazia em Plasencia, serviço esse que, naquela altura, era muito apreciado em Cuzco. Mandei construir um forno de barro no pátio e então, juntamente com Catalina, dediquei-me a fazer empanadas. Dado que a farinha de trigo era muito cara, aprendemos a fazer as empanadas com farinha de milho. Nem chegavam a arrefecer, pois logo que as tirávamos do forno, o seu cheiro chegava ao bairro inteiro e os clientes apareciam aos magotes. Deixávamos sempre algumas para os mendigos e indigentes, que se alimentavam graças à caridade pública. Aquele aroma a carne, cebola frita, cominhos e massa cozida entranhou-se de tal forma na minha pele que ainda hoje o tenho. Acho que vou morrer a cheirar a empanada.
Conseguia sustentar a minha casa, mas naquela cidade, tão cara e corrupta, uma viúva tinha muitas dificuldades em sair da pobreza. Podia ter casado, já que homens solitários e desesperados não faltavam, alguns deles até bastante atraentes, mas Catalina sempre me advertiu contra eles. Tinha por hábito ler-me a sorte com as suas contas e conchas de adivinhar e anunciava-me sempre a mesma coisa: eu ia viver muito tempo e chegaria mesmo a ser rainha, mas o meu futuro dependia do homem que aparecia nas suas visões. Segundo ela, não era nenhum dos que me vinham bater à porta ou que me assediavam na rua. «Paciência, mamitay, já está chegando o teu viracocha», prometia-me.
Entre os meus pretendentes, contava-se o empertigado alferes Núnez, que não renunciava à sua vontade de me deitar a unha, como o próprio dizia com pouca delicadeza. Não entendia por que é que eu recusava as suas investidas, já que a minha desculpa anterior deixara de ter qualquer validade. Havia sido demonstrado que eu era viúva, como ele próprio me tinha assegurado desde o início. Imaginava que as minhas recusas eram uma forma de sedução e quanto menos interesse eu demonstrava, mais ele se esmerava. Tive de o proibir de entrar de rompante em minha casa com os cães, porque as minhas criadas ficavam aterrorizadas. Ao cheirar as raparigas, os animais, treinados para maltratar os índios, começavam logo a lutar contra as correntes que os prendiam, grunhiam e ladravam, com os caninos à mostra. Nada divertia tanto o alferes como atiçar as suas feras contra os índios, por isso não ouvia as minhas súplicas e continuava a invadir a minha casa, com os seus cães, tal como fazia noutros locais. Um dia, os dois animais acordaram com o focinho cheio de espuma verde e poucas horas depois estavam tesos como um carapau. O dono, indignado, ameaçou matar quem lhe tinha envenenado os cães, mas o médico alemão lá o conseguiu convencer de que os bichos tinham morrido de peste e que, para evitar contágios, os devia queimar imediatamente. Assim fez, certamente com medo que o primeiro a cair doente fosse ele.
As visitas do alferes tornaram-se cada vez mais frequentes, e como também me incomodava na rua, fez-me a vida num inferno. «Este branco não entende com palavras, pois, senoray. Eu bem digo que pode ir morrendo como os cães dele», anunciou-me Catalina. Preferi não averiguar o que queria dizer. Em certa ocasião, Núnez chegou, como sempre, com o seu cheiro a macho e os seus presentes, que eu não desejava, enchendo a minha casa com a sua presença ruidosa.
- Porque me atormentais, formosa Inés? - perguntou-me, pela centésima vez, segurando-me pela cintura.
- Não me incomodeis, senhor. Não vos dei autorização para que me trateis com familiaridade - respondi, libertando-me das suas garras.
- Muito bem, distinta Inés, então quando nos casamos?
- Nunca. Aqui tendes as vossas camisas e as calças, remendadas e limpas. Procurai outra lavadeira, que não vos quero mais em minha casa. Adeus. - E empurrei-o pela porta fora.
- Adeus, dizeis, Inés? Não me conheceis, mulher! A mim ninguém me insulta, e muito menos uma rameira! - gritou-me do meio da rua.
Estávamos naquela suave hora do entardecer, quando se juntavam os paroquianos à espera da última fornada de empanadas, mas nem sequer tive ânimo para os atender; tremia de fúria e vergonha. Limitei-me a distribuir algumas empanadas pelos pobres, para que não ficassem sem comer, e fechei a porta, que normalmente mantinha aberta até cair o frio da noite.
- Maldito seja, pois, mamitay, mas não te preocupes. Este Núnez ainda há-de trazer boa sorte - consolou-me Catalina.
- Só me pode trazer desgraça, Catalina! Um homem fanfarrão e despeitado é sempre perigoso.
Catalina tinha razão. Graças ao maldito alferes, que se instalou numa taberna a beber e a gabar-se do que pensava fazer comigo, conheci nessa noite o homem da minha vida, aquele que Catalina não se cansava de me anunciar.
A taberna, uma sala de tecto baixo, com alguns respiros diminutos, por onde mal entrava o ar, era dirigida por um andaluz de bom coração, que dava crédito aos soldados com poucos recursos. Por isso, e porque tinha um par de negros a tocar instrumentos de cordas e tambores, o local era bastante popular. Afastado, e contrastando com o bulício alegre dos clientes, estava um homem que bebia sozinho num canto. Estava sentado numa banqueta em frente a uma mesa, onde tinha estendido, preso pela garrafa de vinho, um pedaço de papel amarelecido. Era Pedro de Valdivia, mestre-de-campo do Governador Francisco Pizarro e herói da batalha de Las Salinas, então convertido num dos comendadores mais ricos do Peru. Como pagamento pelos serviços prestados, Pizarro tinha-lhe atribuído, a título vitalício, uma mina de prata em Porco, uma fazenda no vale de La Canela, por sinal muito
fértil e produtiva, e centenas de índios como mão-de-obra. E que fazia o famoso Valdivia? Não estava a calcular as arrobas de prata extraídas nem o número de lamas ou sacos de milho que possuía, mas estudava um mapa desenhado à pressa por Diego de Almagro na prisão, antes de ser executado. Vivia atormentado com a ideia fixa de triunfar onde o Adelantado Almagro tinha falhado, nesse misterioso território a sul do hemisfério. Ainda faltava conquistar e povoar aquela parte da terra, o último lugar virgem onde um militar poderia alcançar a glória. Não queria permanecer na sombra de Pizarro, envelhecendo confortavelmente no Peru. Também não queria regressar a Espanha, por muito rico e respeitado que fosse. A ideia de se reunir com Marina não o atraía nem um pouco, apesar de a mulher o aguardar com extrema fidelidade há anos e não se cansar de lhe pedir nas suas cartas, repletas de bênçãos e recriminações, que voltasse para casa. Espanha pertencia ao passado. Chile era o futuro. O mapa mostrava os caminhos percorridos por Almagro na sua expedição e os pontos mais difíceis da viagem: a serra, o deserto e as zonas onde se concentrava o inimigo. «Para sul do rio Bío-Bío não se pode passar, os mapuche impedem-no», repetira Almagro vezes sem conta. Aquelas palavras perseguiam Valdivia, estimulando-o. «Eu teria passado», pensava, apesar de nunca ter duvidado do valor do Adelantado.
Estava mergulhado nesses pensamentos, quando distinguiu um vozeirão de bêbado, ecoando pelo meio da ruidosa taberna e, sem querer, começou a prestar atenção. Falava de alguém a quem iria dar uma merecida lição, uma tal de Inés, uma mulher convencida que se atrevia a desafiar um honesto alferes do cristianíssimo Imperador Carlos V. O nome não lhe soou estranho e depressa deduziu que se tratava da jovem viúva que lavava e remendava roupa na rua do Templo das Virgens. Ele não tinha recorrido aos seus serviços - era para isso que serviam as índias que trabalhavam em sua casa -, mas já a tinha visto algumas vezes na rua e na igreja e reparara nela, precisamente porque era uma das poucas espanholas em Cuzco e, inclusive, já se tinha perguntado quanto tempo uma mulher como ela ficaria sozinha. Numa ou duas ocasiões, chegou a segui-la à distância durante algum tempo, só para poder observar o movimento das suas ancas - caminhava com passos firmes de cigana - e os reflexos do sol no seu cabelo cor de cobre. Pareceu-lhe que ela irradiava segurança e força de carácter, condições que ele exigia aos seus capitães mas que nunca apreciou numa mulher. Até essa altura só se tinha sentido atraído por raparigas doces e frágeis, que nele despertavam um instinto protector, razão pela qual se tinha casado com Marina. Esta Inés não tinha nada de vulnerável ou inocente, era muito mais intimidante, pura energia, como se fosse um ciclone contido; contudo, foi isso que mais lhe chamou a atenção nela. Pelo menos, foi o que me contou mais tarde.
Pelos fragmentos das frases que lhe chegavam aos ouvidos, abafados pelo ruído da taberna, Valdivia conseguiu perceber o plano do alferes bêbado, que aos gritos pedia um par de voluntários para sequestrar a mulher durante a noite para a prender na sua casa. Um coro de gargalhadas e piadas obscenas foi tudo o que recebeu em resposta ao seu pedido, porque ninguém se ofereceu para o ajudar, já que não só era uma acção cobarde, como também perigosa. Uma coisa era violar durante a guerra e abusar das índias, que nada valiam, outra era agredir uma viúva espanhola que tinha sido recebida pelo Governador em pessoa. Mais valia tirar isso da cabeça, avisaram-no os companheiros, mas Núnez afirmou que não lhe faltariam braços para levar a cabo o seu plano.
Pedro de Valdivia não o perdeu de vista e, meia hora mais tarde, seguiu-o pela rua fora. O homem saiu a tartamudear, sem se aperceber de que estava a ser seguido. Parou durante um instante em frente à minha porta, calculando se podia tratar do assunto sozinho, mas decidiu não correr o risco; por muito que o álcool lhe tolhesse os sentidos, sabia que o seu nome e a sua carreira militar estavam em jogo. Valdivia viu-o afastar-se e ficou de guarda numa esquina, escondido na sombra. Não foi preciso esperar muito, já que, logo depois, apareceram dois índios sub-reptícios que começaram a rondar a casa, tacteando a porta e os postigos das janelas que davam para a rua. Quando verificaram que estavam trancadas por dentro, decidiram trepar pelo muro de pedra, que só tinha uns cinco pés de altura, que protegia a vivenda pelas traseiras. Em poucos minutos, saltaram para o lado de dentro do pátio, mas tiveram tão má sorte que derrubaram e partiram uma tina de barro. Tenho o sono muito leve e acordei com o barulho. Por momentos, Pedro deixou-os continuar, para ver até onde iam, e logo de seguida subiu o muro atrás deles. Entretanto, eu já tinha acendido uma lamparina e tinha pegado na faca grande de picar carne para as empanadas. Estava disposta a usá-la, mas rezava para não ter de o fazer, porque ainda me lembrava de Sebastian Romero e seria uma pena ter outro cadáver a pesar-me na consciência. Saí para o pátio, seguida de perto por Catalina. Perdemos o melhor do espectáculo, porque um cavalheiro já tinha encurralado os assaltantes e preparava-se para os atar com a mesma corda que traziam para me prender. Aconteceu tudo muito depressa, sem grande esforço da parte de Valdivia, que parecia mais divertido que zangado, como se fosse uma mera travessura de miúdos.
A situação acabou por ser bastante caricata: eu despenteada e em camisa de dormir; Catalina a rogar pragas em quíchua, um par de índios a tiritar de terror, e um fidalgo vestido com um gibão de veludo, calções de seda e botas de couro de cano alto, de espada na mão, varrendo o pátio com a pluma do chapéu para me cumprimentar. Desatámos os dois a rir.
- Estes infelizes não voltarão a incomodar-vos mais, senhora disse, galante.
- Não são eles que me preocupam, cavalheiro, mas quem os mandou.
- Esse também não há-de incomodá-la mais, porque amanhã vai ter de se ver comigo.
- Sabeis quem ele é?
- Tenho uma boa ideia, mas, se me enganar, torturo estes dois até me dizerem quem os mandou.
Perante estas palavras, os índios atiraram-se para o chão beijando as botas do cavalheiro e implorando pelas suas vidas, ao mesmo tempo que diziam o nome de Núnez. Catalina opinou que devíamos cortar-lhes o pescoço imediatamente e Valdivia concordou, mas eu coloquei-me entre a sua espada e aqueles dois infelizes.
- Não senhor, peço-vos. Não quero mortos no meu pátio, sujam tudo e trazem azar.
Valdivia riu-se novamente, abriu o portão e mandou-os embora com um pontapé no traseiro, depois de os avisar que deviam abandonar Cuzco nessa mesma noite, caso contrário sofreriam as consequências.
- Acho que o alferes Núnez não será tão magnânimo como vós, cavalheiro. Não vai descansar sem correr céu e terra à procura destes homens, pois sabem demasiado e não lhe convém que falem - disse.
- Acreditai em mim, senhora, tenho autoridade para mandar esse Núnez apodrecer para a selva dos Chunchos e asseguro-vos que o farei respondeu-me.
Foi então que o reconheci. Era o mestre-de-campo, herói de muitas guerras, um dos homens mais ricos e poderosos do Peru. Já o tinha visto algumas vezes, sempre de longe, admirando o seu cavalo árabe e a sua autoridade natural.
Foi nessa noite que as nossas vidas, a minha e a de Pedro de Valdivia, se definiram. Há anos que andávamos em círculos, procurando um pelo outro às cegas, até que nos encontrámos finalmente no pátio daquela casinha da rua do Templo das Virgens. Agradecida, convidei-o a entrar na minha modesta sala, enquanto Catalina foi buscar um copo de vinho, que nunca faltava na minha casa, para lhe dar as boas-vindas. Antes de desaparecer, como era seu hábito, Catalina fez-me um sinal às escondidas do meu hóspede e fiquei a saber que era ele o homem que tinha visto nas suas conchas de adivinhar. Surpreendida, porque nunca pensei que o destino me reservasse alguém tão importante como Valdivia, comecei a estudá-lo da cabeça aos pés, à luz dourada da lamparina. Gostei do que vi: olhos azuis como o céu da Extremadura, feições viris, rosto aberto, ainda que severo, robusto, porte de guerreiro, mãos endurecidas pela espada mas de dedos compridos e elegantes. Um homem inteiro, como ele estava, era, sem dúvida, um luxo nas índias, onde havia tantos homens marcados por cicatrizes horrendas, sem olhos, narizes ou membros. E ele, o que viu? Uma mulher magra, de estatura média, com o cabelo solto e despenteado, olhos castanhos, sobrancelhas grossas, descalça, vestida apenas com uma camisa de dormir de tecido vulgar. Mudos, olhámo-nos durante uma eternidade, sem conseguir desviar os olhos um do outro. Apesar de a noite estar fria, a minha pele queimava e sentia um fio de suor a escorrer-me pelas costas. Sei que ele estava a passar pela mesma tormenta, porque o ar da sala começou a ficar pesado. Catalina surgiu do nada com o vinho, mas, ao perceber o que se estava a passar, desapareceu para nos deixar a sós.
Pedro viria a confessar-me, mais tarde, que naquela noite não tomou iniciativa de fazer amor comigo, porque precisava de tempo para se acalmar e pensar. «Quando te vi, senti medo pela primeira vez na minha vida», dir-me-ia muito depois. Não era homem para se amancebar ou ter concubinas, não se lhe conheciam amantes e nunca teve relações com índias, embora eu suponha que as deve ter tido com mulheres de vida fácil. À sua maneira, sempre tinha sido fiel a Marina Ortiz de Gaete, com quem estava em falta, porque a seduziu aos treze anos, não a fez feliz e, ainda por cima, acabou por abandoná-la para se lançar na aventura das índias. Perante Deus, sentia-se responsável por ela. Só que eu era livre e ainda que Pedro tivesse meia dúzia de esposas, tê-lo-ia amado da mesma maneira, tão inevitável que era. Ele tinha quase quarenta anos, eu à volta dos trinta, e como nenhum dos dois podia perder tempo, decidi deixar as coisas seguirem o seu rumo.
Como é que nos abraçámos tão depressa? Quem deu o primeiro passo? Quem procurou os lábios do outro para o primeiro beijo? Seguramente eu. Mal consegui encontrar voz para quebrar o silêncio carregado de intenções em que nos olhávamos, anunciei-lhe sem rodeios que há muito tempo que estava à espera dele, porque já o tinha visto em sonhos e nas contas de adivinhar, que estava disposta a amá-lo para sempre e outras promessas que tais, sem reservas nem pudor. Pedro retrocedeu, rígido, pálido, até bater com as costas na parede. Que tipo de mulher fala assim com um desconhecido? Contudo, não pensou que eu tinha perdido o juízo ou que fosse uma rameira à solta em Cuzco, porque também ele sentia nos ossos e nas profundezas da sua alma a certeza de que tínhamos nascido para nos amarmos. Soltou um suspiro, quase um soluço, e murmurou o meu nome com a voz entrecortada. «Também toda a vida esperei por ti», acho que foi isso que me disse. Ou talvez não tenha dito. Tenho para mim a ideia de que, ao longo da vida, vamos embelezando algumas lembranças e tentando esquecer outras. Tenho certeza, isso sim, de que naquela mesma noite nos amámos, e que desde o primeiro abraço fomos consumidos pelo mesmo ardor.
Pedro de Valdivia tornara-se homem por entre o estrépito da guerra, nada sabia de amor, mas estava pronto para o receber quando este lhe bateu à porta. Ergueu-me nos seus braços e levou-me para a minha cama com apenas quatro largos passos; caímos em cima da cama, ele por cima de mim, beijando-me, mordendo-me, enquanto aos repelões tentava tirar o casaco, as calças, as botas, as meias, desesperado, com a habilidade de um miúdo. Deixei-o fazer o que quis, para que se desembaraçasse; há quanto tempo não estaria com uma mulher? Apertei-o contra o meu peito, sentindo o bater do seu coração, o seu calor animal, o seu odor a homem. Pedro tinha muito que aprender, mas não havia qualquer pressa, tínhamos o resto das nossas vidas e eu era uma boa professora, algo que, pelo menos, eu podia agradecer a Juan de Malaga. Quando Pedro percebeu que na cama mandava eu, e que não havia nenhuma desonra nisso, dispôs-se alegremente a obedecer-me. Isto demorou algum tempo, sensivelmente umas quatro ou cinco horas, porque ele achava que a fêmea se devia submeter ao macho dominador, quanto mais não seja porque era assim que tinha visto entre os animais e aprendido como soldado, mas confesso que não foi em vão que Juan de Malaga passou tantos anos ensinando-me a conhecer o meu corpo e o dos homens. Não digo que sejam todos iguais, mas são bastante parecidos, pelo que qualquer mulher que tenha um mínimo de intuição pode satisfazê-los perfeitamente. Mas o contrário já não se verifica; poucos são os homens que sabem satisfazer uma mulher e menos ainda os que estão interessados em fazê-lo.
Pedro teve a inteligência de deixar a espada do lado de fora do quarto e render-se a mim. Os detalhes dessa primeira noite não são relevantes, bastando para tal dizer que, pela primeira vez, ambos descobrimos o verdadeiro amor, porque até então não tínhamos experimentado a perfeita fusão do corpo e da alma. A minha relação com Juan foi carnal, e a dele com Marina espiritual; a nossa acabou por ser completa.
Valdivia permaneceu fechado em minha casa durante dois dias. Durante esse tempo, ninguém abriu os postigos, ninguém fez empanadas, as índias andavam caladas e nas pontas dos pés, e Catalina encarregou-as de alimentar os mendigos com sopa de milho. A fiel mulher trazia-nos vinho e comida à cama; preparou também uma tina com água quente para que nos lavássemos, costume peruano que me tinha transmitido. Como qualquer espanhol, Pedro achava que tomar banho era perigoso, tornava os pulmões mais débeis e o sangue mais líquido, mas assegurei-o de que os habitantes do Peru tomavam banho todos os dias e que ninguém tinha os pulmões fracos nem o sangue aguado. Aqueles dois dias acabaram tão depressa como um suspiro, passados que foram a falar do nosso passado e a amar-nos num turbilhão tórrido, numa entrega que nunca era suficiente, num desejo demente de nos fundirmos um no outro, morrer e morrer outra vez, «Ai Pedro!» «Ai Inés!» Juntos nos perdíamos e juntos ficávamos de braços e pernas entrelaçados, exaustos, banhados no mesmo suor, sussurrando. E, por entre os lençóis molhados, o desejo renascia rapidamente ainda com mais intensidade; cheiro a homem - ferro, vinho e cavalo -, cheiro a mulher - cozinha, fumo e mar -, fragrância fundida de ambos, única e inesquecível, hálito da selva, seiva espessa. Aprendemos a elevar-nos até ao céu e a gemer juntos, feridos pela mesma chicotada que nos deixava à beira da morte, de onde, por fim, submergíamos numa letargia profunda. Acordávamos uma e outra vez prontos para reinventar o amor, até que a alvorada do terceiro dia chegou com o cantar dos galos e o cheiro a pão. Então, Pedro, transformado, pediu que lhe trouxessem a roupa e a espada.
Ah! Que tenaz é a memória! A minha não me deixa em paz, enche-me a mente de imagens, palavras, dor e amor. Sinto que revivo uma e outra vez o que já vivi. O esforço de escrever este relato não está em recordar, mas antes no lento exercício de o transpor para o papel. A minha caligrafia nunca foi grande coisa, apesar dos esforços de Gonzalez de Marmolejo, mas agora está praticamente ilegível. Sinto uma certa urgência, porque as semanas voam e ainda tenho muito para contar. Canso-me. A pena rasga o papel e nele caem salpicos de tinta; em resumo, trata-se de uma tarefa árdua. Mas porque insisto tanto nela? Todos os que me conhecem a fundo estão mortos, só tu, Isabel, tens uma ideia de quem sou, mas essa tua ideia está desvirtuada pelo carinho e pela dívida que acreditas ter para comigo. Não me deves nada, já to disse várias vezes; sou eu quem está em dívida para contigo, porque tu vieste satisfazer a minha necessidade mais profunda, ser mãe. És minha amiga e confidente, a única pessoa que conhece os meus segredos, inclusive alguns que, por pudor, não partilhei com o teu pai. Damo-nos bem, tu e eu, tens um bom sentido de humor e rimo-nos juntas, com aquele riso das mulheres, que nasce da cumplicidade. Fico agradecida que te tenhas instalado nesta casa com os teus filhos, apesar de a tua casa ser apenas a uns quarteirões de distância. Argumentas que precisas de companhia enquanto o teu marido está na guerra, como antes andava o meu, mas não acredito em ti. A verdade é que tens medo que eu morra sozinha neste casarão de viúva, que daqui a nada será teu, da mesma forma que já te pertencem todos os meus bens terrenos. Conforta-me a ideia de te ver convertida numa mulher muito rica; assim, posso partir em paz para o outro mundo, já que cumpri cabalmente a promessa, feita ao teu pai, de te proteger, quando ele te trouxe para a minha casa. Nessa altura, eu ainda era a amante de Pedro de Valdivia, mas isso não me impediu de te receber de braços abertos. Naquela época, a cidade de Santiago já se tinha recomposto dos danos causados pela primeira onda de ataques índios, começávamos já a prosperar e tínhamos, de facto, algumas pretensões, ainda que a cidade não fosse realmente uma cidade, mas uma pequena vila. Devido aos seus méritos e carácter irrepreensível, Rodrigo de Quiroga convertera-se no capitão favorito de Pedro e no meu melhor amigo. Eu sabia que ele estava apaixonado por mim, uma mulher sabe sempre estas coisas, ainda que nunca tenha deixado escapar um gesto ou uma palavra que o denunciasse. Rodrigo seria incapaz de o admitir, nem mesmo no mais profundo recanto do seu coração, por lealdade a Valdivia, seu chefe e amigo. Suponho que eu também gostava dele - podemos amar dois homens ao mesmo tempo -, mas preferi guardar esse sentimento para não arriscar a honra e a vida de Rodrigo. No entanto, ainda não é tempo de falar desta parte da minha vida, fica para depois.
Há coisas que não tive oportunidade de te contar, por estar demasiado ocupada com questões quotidianas, e, se não as escrever, levo-as para a cova. Apesar de querer ser exacta, omiti bastantes detalhes. Tentei seleccionar apenas o essencial, mas estou certa de que não atraiçoei a verdade. Esta é a minha história e a de um homem, don Pedro de Valdivia, cujas proezas heróicas foram anotadas com rigor pelos cronistas e perdurarão nas suas páginas até ao final dos tempos; porém, só eu sei aquilo que a história jamais poderá averiguar: aquilo que temia e a forma como amou.
A relação com Pedro de Valdivia transtornou-me por completo. Não podia viver sem ele, um dia sem o ver e já ficava com febre, uma noite sem estar nos seus braços era um tormento. No início, mais do que amor foi uma paixão cega, desenfreada, que por sorte era partilhada e correspondida, caso contrário eu teria perdido a cabeça. Mais tarde, quando fomos superando os obstáculos do destino, a paixão deu lugar ao amor. Admirava-o tanto quanto o desejava, a sua coragem e idealismo seduziam-me. Valdivia exercia a sua autoridade sem espalhafato, fazia-se obedecer meramente pela sua presença, tinha uma personalidade imponente, irresistível, mas na intimidade transformava-se. Na cama era meu, entregou-se a mim sem qualquer tipo de reservas, como um jovem se entrega ao seu primeiro amor. Estava habituado à dureza da guerra, era impaciente e inquieto, mas, no entanto, éramos capazes de passar dias inteiros sem fazer nada, dedicados apenas a conhecer-nos um ao outro, contando os detalhes dos nossos destinos com verdadeira urgência, como se o mundo fosse acabar em menos de uma semana. Eu contava os dias e as horas que passávamos juntos, já que eram o meu tesouro. Pedro contava as vezes que fazíamos amor e os beijos que dávamos. Surpreende-me que nenhum dos dois se tenha sentido assustado com essa paixão que hoje, vista à distância, com desamor e com o peso dos anos, me parece opressiva.
Pedro passava as noites na minha casa, salvo quando precisava de viajar até à Ciudad de los Reyes ou visitar as suas propriedades em Porco e La Canela, alturas em que me levava com ele. Gostava de o ver a cavalo - com o seu ar marcial - e a exercer o seu dom de liderança entre os seus subalternos e camaradas de armas. Sabia muitas coisas de
que eu nem suspeitava, comentava comigo as suas leituras e juntos partilhávamos as suas opiniões. Era maravilhoso comigo, oferecia-me vestidos sumptuosos, tecidos, jóias e moedas de ouro. No início, a sua generosidade aborrecia-me, porque me parecia uma tentativa de pagar o meu carinho, mas depois habituei-me a ela. Comecei a poupar, com a ideia de ter alguma segurança no futuro. «Nunca se sabe o que pode acontecer», dizia sempre a minha mãe, que me ensinou a esconder dinheiro. Além disso, verifiquei que Pedro não era um bom administrador e que não se interessava o suficiente pelos seus bens; como todo o fidalgo espanhol, achava-se superior ao trabalho e ao vil metal, que podia gastar como um duque mas que não sabia como se ganhava. As terras e minas recebidas de Pizarro foram um golpe de sorte que acolheu com o mesmo desprendimento com que estava disposto a perdê-las. Uma vez, atrevi-me a dizer-lhe isso, porque como, desde miúda, fui obrigada a ganhar a vida, faz-me impressão o esbanjamento, mas Pedro calou-me com um beijo. «O ouro é para gastar e a mim, graças a Deus, ele sobra-me», respondeu-me. A resposta não me tranquilizou, antes pelo contrário.
Valdivia tratava os índios que trabalhavam para ele com mais consideração do que os restantes espanhóis, mas sempre com grande rigor.
Tinha estabelecido turnos de trabalho, alimentava-os bem e obrigava os capatazes a serem comedidos nos castigos, enquanto que noutras minas e fazendas obrigavam toda a gente a trabalhar, até mesmo as mulheres e as crianças.
- Não é o meu caso, Inés. Eu respeito as leis de Espanha até onde é possível - respondeu, altivo, quando comentei o facto.
- Quem decide até onde é possível?
- A moral cristã e a sensatez. Da mesma forma que não se deve cansar demasiado os cavalos, também não se deve abusar dos índios. Sem eles, as terras e as minas não valem nada. Quem me dera poder conviver com eles em harmonia, mas não conseguimos submetê-los sem recorrer à força.
- Duvido que a submissão os beneficie, Pedro.
- Duvidas dos benefícios do cristianismo e da civilização? - contrapôs.
- Por vezes, as mães deixam os recém-nascidos morrer à fome para não se afeiçoarem a eles, pois sabem que lhos tirarão para os escravizar. Não achas que estavam melhor antes de chegarmos?
- Não, Inés. Quando estavam sob domínio do Inca padeciam mais do que agora. Temos de olhar em direcção ao futuro. Já cá estamos e por aqui vamos ficar. Um dia, haverá uma nova raça nesta terra, uma mistura de espanhóis e índios, todos cristãos, unidos pela nossa língua castelhana e pela lei. Só então haverá paz e prosperidade.
Pedro acreditava nisso, mas morreu sem o ver acontecer, tal como eu morrerei antes que este sonho se cumpra, porque estamos em finais de 1580 e os índios ainda nos odeiam.
Os habitantes de Cuzco habituaram-se rapidamente a ver-nos como um casal, embora imagine que, nas nossas costas, circulassem comentários maliciosos. Em Espanha, teria sido tratada como uma devassa, mas no Peru ninguém me faltava ao respeito, pelo menos não à minha frente, porque era o mesmo que faltar ao respeito a Pedro de Valdivia. Sabia-se que ele tinha uma esposa na Extremadura, mas isso não era novidade nenhuma, já que essa era a situação em que se encontravam metade dos espanhóis, cujas esposas legítimas seriam apenas meras recordações nebulosas; no Novo Mundo, precisavam de amor imediato ou de um substituto. Além disso, os homens em Espanha também tinham as suas amantes; o Império estava semeado de bastardos e, por seu turno, muitos conquistadores eram também filhos ilegítimos. Pedro falou-me dos seus remorsos uma ou duas vezes, não por ter deixado de amar Marina, mas porque estava impedido de se casar comigo. Com efeito, disse-me que eu podia casar-me com qualquer um daqueles homens que antes me cortejavam e que agora nem se atreviam a olhar para mim. Mesmo assim, nunca deixei de sonhar. Sabia, desde o princípio, que Pedro e eu jamais nos poderíamos casar, a não ser que Marina morresse, o que nenhum dos dois desejava, razão pela qual arranquei a esperança do coração e decidi-me a celebrar o amor e a cumplicidade que partilhávamos, sem pensar no futuro, sem ciúmes, vergonha ou pecado. Éramos amantes e amigos. Costumávamos discutir aos gritos, porque nenhum dos dois tinha um temperamento manso, mas não era isso que conseguia separar-nos. «Doravante, estarei sempre a olhar por ti, Pedro, por isso podes concentrar-te em travar as tuas batalhas», disse-lhe, na nossa segunda noite de amor, e a verdade é que ele levou as minhas palavras à letra e nunca o esqueceu. Eu aprendi a ultrapassar aquele mutismo teimoso que tomava conta de mim quando me zangava. A primeira vez que decidi castigá-lo com o silêncio, Pedro agarrou-me a cara entre as mãos, cravou os seus olhos azuis nos meus e obrigou-me a confessar o que me aborrecia. «Não sou adivinho, Inés. Podemos simplificar as coisas se me disseres o que queres de mim», insistiu. Do mesmo modo, eu ia ao seu encontro quando a impaciência e a soberba o dominavam, ou quando uma decisão sua me parecia pouco acertada. Éramos parecidos, ambos fortes, mandões e ambiciosos; ele queria fundar um reino e eu queria acompanhá-lo. O que ele sentia, eu sentia também, foi assim que partilhámos a mesma ilusão.
No início, limitava-me a escutar em silêncio quando ele mencionava o Chile. Não sabia de que falava, mas escondi a minha ignorância. Informei-me com os meus clientes, os soldados que me traziam a roupa para lavar ou que vinham comprar empanadas e foi assim que soube do fracasso da expedição de Diego de Almagro. Os homens que conseguiram sobreviver a essa aventura e à batalha de Las Salinas não tinham um tostão no bolso, andavam com a roupa aos farrapos e apareciam, muitas vezes às escondidas, à porta do pátio para receber um pouco de comida gratuita; por tudo isto, chamavam-lhes os «mendigos chilenos». Nunca se colocavam na mesma fila dos pedintes indígenas, ainda que fossem tão pobres como eles, sobretudo porque, lá no fundo, tinham um certo orgulho em pertencerem a essa casta de mendigos, significando que eram homens valentes, audazes, esforçados e altivos. Segundo a descrição feita por esses homens, o Chile era uma terra maldita, mas imaginei que Pedro de Valdivia teria boas razões para querer ir até lá. Ao ouvi-lo, fui ficando cada vez mais entusiasmada com a ideia.
- Ainda que me custe a vida, tentarei conquistar o Chile - confessou-me.
- E eu vou contigo.
- Não é uma tarefa para mulheres. Não posso sujeitar-te aos perigos de uma aventura como essa, Inés, mas também não desejo separar-me de ti.
- Nem vale a pena pensares nisso! Ou vamos juntos ou não vais a lado nenhum - respondi-lhe.
Mudámo-nos para a Cidad de los Reyes, cidade fundada sobre um cemitério inca, para que Pedro obtivesse autorização de Francisco Pizarro para viajar para o Chile. Não podíamos ficar hospedados na mesma casa - apesar de passarmos as noites juntos - para não alimentar as más-línguas e não melindrar os frades, que se metem em tudo, embora eles próprios não sejam modelos de virtude para ninguém. Raras foram as vezes em que vi o Sol enquanto estive na Cidad de los Reyes, pois o céu estava sempre enevoado; também não chovia, mas o orvalho que havia no ar colava-se ao cabelo e cobria tudo com uma fina patina esverdeada. Segundo Catalina, que nos acompanhou, à noite, as múmias dos Incas, enterradas debaixo das casas, passeavam-se pelas ruas, mas a verdade é que eu nunca as vi.
Enquanto eu averiguava o que era necessário para uma empresa tão complicada como atravessar mil léguas, fundar cidades e pacificar índios, Pedro perdia dias inteiros no palácio do Marquês Governador, participando em tertúlias sociais e conluios políticos que o entediavam de morte. As efusivas mostras de respeito e amizade que Pizarro dedicava a Valdivia deixavam os outros militares e comendadores roídos de inveja. Já naquela altura, no início da sua fundação, a cidade estava mergulhada na malha de tramas e enredos que hoje a caracteriza. A corte era um ninho de intrigas e tudo tinha o seu preço, até a honra. Os mais ambiciosos e bajuladores desfaziam-se em mesuras para cair nas boas graças do Marquês Governador, o único que tinha poder para conceder favores. No Peru havia tesouros incalculáveis, mas não chegavam para tantos pedinchões. Pizarro não entendia por que estava Valdivia disposto a devolver-lhe a mina e a fazenda só para repetir o erro que tão caro tinha custado a Diego de Almagro, enquanto os demais procuravam agarrar com tanta sofreguidão tudo o que vinha do Governador.
- Por que vos quereis lançar nessa aventura do Chile, essa terra tão desventurada, don Pedro?
- perguntou-lhe, uma vez mais.
- Para deixar fama e memória de mim, Excelência - respondia Valdivia.
E, na verdade, era essa a única razão. A viagem para o Chile era como atravessar o inferno, os índios eram indómitos e não havia ouro em abundância, como no Peru, mas todos aqueles inconvenientes não eram mais do que vantagens para Valdivia. Sentia-se atraído pelos desafios da viagem, pela perspectiva de lutar contra inimigos ferozes e, ainda que não o tivesse dito em frente a Pizarro, gostava da pobreza do Chile, como várias vezes me explicou. Estava convencido de que o ouro corrompe e vicia. O ouro dividia os espanhóis no Peru, atiçava a maldade e a cobiça, alimentava as conspirações, debilitava os costumes e era a perdição das almas. Na sua imaginação, o Chile era o local ideal, bem longe dos cortesãos da Cidad de los Reyes, para fundar uma sociedade justa baseada no trabalho árduo e na lavoura da terra, sem a riqueza fácil das minas e o recurso à escravatura. No Chile, até a religião seria simples, porque ele - que tinha lido Erasmo - se ocuparia pessoalmente de atrair sacerdotes bondosos, verdadeiros servidores de Deus, e não um punhado de frades corruptos e odiosos. Os descendentes dos fundadores seriam chilenos sóbrios, honestos, esforçados e cumpridores da lei. Entre eles, não haveria aristocratas, os quais tanto detestava, porque defendia que o único título válido não é aquele que se herda, mas sim o que se ganha devido aos méritos de uma existência digna e uma alma nobre. Eu passava horas a ouvi-lo falar assim, com os olhos húmidos e o coração aturdido de emoção, sonhando com aquela nação utópica que fundaríamos juntos.
Ao fim de algumas semanas passeando pelos salões do palácio, Pedro começou a perder a paciência; estava convencido de que Pizarro nunca lhe daria a autorização, mas eu tinha a certeza de que a obteria. A demora já era habitual no Marquês, pouco amigo de fazer as coisas no seu tempo certo; fingia ter imensas preocupações em relação aos perigos que o «seu amigo» teria de enfrentar no Chile, mas na verdade até lhe convinha que Valdivia fosse para bem longe dali, para não ter oportunidade de conspirar contra ele nem lhe fazer sombra com o seu prestígio. As despesas, riscos e padecimentos eram por conta de Valdivia, enquanto a terra conquistada ficaria sob a alçada do Governador do Peru; ele não tinha nada a perder com aquele projecto ousado, já que não ia investir um único tostão nele.
- O Chile ainda está por conquistar e evangelizar, senhor Marquês Governador, dever que nós, súbditos de sua Majestade Imperial, não podemos descurar - argumentou Valdivia.
- Duvido que encontreis homens dispostos a acompanhar-vos, don Pedro.
- Entre os Espanhóis nunca faltaram bravos varões e bons guerreiros, Excelência. Quando se souber desta expedição ao Chile, não vão faltar braços armados.
Uma vez que a questão do financiamento ficou resolvida à partida, ou seja, que Valdivia arcaria com todos os gastos, o Marquês Governador lá deu a sua autorização com aparente falta de entusiasmo, aproveitando para recuperar rapidamente a rica mina de prata e a fazenda, recém-atribuídas ao valente mestre-de-campo. Este não se importou nem um pouco. Conseguira assegurar o bem-estar de Marina em Espanha e não lhe interessava possuir qualquer fortuna pessoal. Tinha nove mil pesos de ouro e os documentos necessários para a empresa.
- Falta uma autorização - lembrei-lhe.
- Qual?
- A minha. Sem ela não posso acompanhar-te.
Então, Pedro explicou ao Marquês, de forma um pouco exagerada, a minha experiência em tratar de doentes e feridos, assim como os meus conhecimentos de costura e cozinha, indispensáveis para uma viagem como aquela, mas viu-se envolvido novamente em intrigas palacianas e objecções morais. Tanto insisti que Pedro acabou por conseguir que Pizarro me recebesse. Não quis que ele me acompanhasse, porque há coisas que uma mulher pode fazer melhor sozinha.
Apresentei-me no palácio à hora marcada, mas tive de esperar horas numa sala cheia de gente que ali estava para pedir favores, tal como eu. O local encontrava-se repleto de adornos e profusamente iluminado por filas de lamparinas em candelabros de prata; o dia estava mais cinzento que o habitual e pelas janelas entrava muito pouca luz natural. Ao saber que vinha recomendada por Pedro de Valdivia, os lacaios ofereceram-me uma cadeira, enquanto os demais requerentes esperavam de pé; alguns já por ali andavam há meses, todos os dias, ostentando já um certo ar cinzento de resignação. Aguardei sossegada, sem me incomodar com os olhares de soslaio que algumas pessoas me lançavam, pessoas que, sem dúvida, conheciam a minha relação com Valdivia e que deviam questionar-se como uma insignificante costureira, uma mulher amancebada, se atrevia a pedir uma audiência ao Governador. Por volta do meio-dia, apareceu um secretário que anunciou o meu nome. Segui-o até um salão imponente, decorado com um luxo exagerado - cortinas, escudos, pendões, ouro e prata -, chocante para o sóbrio temperamento espanhol, sobretudo para um espanhol da Extremadura. O Marquês Governador estava protegido por guardas de penachos na cabeça, enquanto mais de uma dúzia de escribas, secretários, leigos, bacharéis e frades se ocupavam com livrecos e documentos, que ele não podia ler, ao mesmo tempo que vários serventes indígenas de librés, embora descalços, serviam vinho, frutos e bolos feitos pelas freiras. Instalado no seu cadeirão de felpo e prata, colocado em cima de um estrado, Francisco Pizarro concedeu-me a honra de me reconhecer e mencionar a nossa entrevista anterior. Para esta ocasião decidira fazer um vestido de viúva, e ia de preto, com uma mantilha e uma touca que me escondia os cabelos. Duvido que o astuto Marquês se deixasse enganar pelo meu aspecto; sabia muito bem por que é que Valdivia me queria levar para o Chile.
- Em que posso servir-vos, senhora? - perguntou-me, com uma voz desafinada.
- Sou eu quem deseja servir-vos a vós e a Espanha, Excelência respondi-lhe, com uma humildade que estava longe de sentir e, de seguida, mostrei-lhe o tal mapa amarelecido de Diego de Almagro, que Valdivia guardava sempre junto ao peito. Indiquei-lhe a rota do deserto, que seria a seguida pela expedição e contei-lhe que herdei da minha mãe o dom de encontrar água.
Francisco Pizarro ficou a olhar para mim perplexo, como se eu o estivesse a ludibriar. Acho que nunca tinha ouvido falar de algo semelhante, apesar de ser um dom bastante comum.
- Estais a dizer-me que podeis encontrar água no deserto, senhora?
- Sim, Excelência.
- Estamos a falar do deserto mais árido do mundo!
- Pelo que dizem alguns soldados que foram na expedição anterior, crescem por lá alguns pastos e matagais, Excelência. Isso significa que há água, ainda que esteja certamente a um nível mais profundo. Se houver, eu posso encontrá-la.
Por essa altura, já toda a actividade na sala de audiências tinha cessado e os presentes, incluindo os criados índios, seguiam, boquiabertos, a nossa conversa.
- Permiti-me demonstrar-vos o que digo, senhor Marquês Governador. Posso ir com algumas testemunhas ao sítio mais ermo que Vossa Excelência indique e, com uma simples vara, mostrar-vos-ei que posso encontrar água.
- Não será necessário, senhora. Acredito em vós - disse Pizarro, depois de uma longa pausa.
Apressou-se a ditar ordens para que me fosse concedida a autorização requisitada e, além disso, ofereceu-me uma luxuosa tenda de campanha, como sinal da sua amizade, «para aliviar os sacrifícios da viagem», como manifestou. Em vez de seguir o secretário, que havia de conduzir-me à porta de saída, fiquei junto a um dos escriturários à espera do meu documento, que de outra forma teria demorado meses a ser emitido. Meia hora mais tarde, Pizarro colocou-lhe o seu selo e deu-mo com um sorriso trocista. Só me faltava a autorização da Igreja.
Pedro e eu regressámos a Cuzco para organizar a expedição, tarefa nada fácil porque, além dos gastos, havia o problema dos poucos soldados que queriam ir connosco. A ideia de que sobrariam braços bem armados, como tantas vezes Valdivia anunciara, acabou por se revelar uma verdadeira ironia. Aqueles que, anos antes, tinham participado na expedição com Diego de Almagro, vinham agora contar horrores daquela terra a que chamavam «sepultura de espanhóis» e que, segundo asseguravam, era tão miserável que não chegaria para alimentar nem trinta colonos. Os «mendigos chilenos» tinham regressado sem nada e viviam da caridade alheia, prova suficiente de que o Chile só tinha sofrimento para oferecer. Isso desanimava até os mais corajosos, mas Valdivia conseguia ser extremamente eloquente quando assegurava que, uma vez ultrapassados os obstáculos do caminho, chegaríamos a uma terra fértil e benigna, que nos traria felicidade e onde poderíamos prosperar. «E o ouro?», perguntavam os homens. Também havia ouro, afiançava Pedro, era uma questão de o procurar. Os únicos voluntários tinham tão pouco dinheiro, que Valdivia ainda lhes emprestou algum para comprarem armas e cavalos, exactamente como Almagro tinha feito com os seus soldados, mesmo sabendo que nunca recuperaria o empréstimo. Dado que os nove mil pesos se revelaram insuficientes para adquirir o indispensável, Valdivia conseguiu que um comerciante sem escrúpulos o financiasse, a troco de cinquenta por cento de tudo o que obtivesse na conquista.
Fui confessar-me ao bispo de Cuzco, a quem procurei agradar previamente com toalhas bordadas para a sacristia, já que também precisava da sua autorização para viajar. Como tinha em meu poder o documento de Pizarro, ia mais ou menos tranquila, mas nunca se sabe como reagem os frades e os bispos ainda menos. Durante a confissão, não tive outro remédio senão expor a verdade nua e crua da minha situação amorosa.
- O adultério é um pecado mortal - relembrou-me o bispo.
- Eu sou viúva, Eminência. Sou culpada de fornicação, que é um pecado horroroso, mas não de adultério, que é bem pior.
- Sem arrependimento e sem o firme propósito de não tornar a pecar, como pretendeis que vos absolva?
- Tal como o fazei a todos os castelhanos que estão no Peru, Eminência, que de outra forma iriam parar todos ao inferno.
Deu-me a absolvição e a autorização. Em troca, prometi-lhe que construiria uma igreja dedicada a Nossa Senhora do Socorro mal chegasse ao Chile, apesar de ele preferir Nossa Senhora das Mercês, que é exactamente a mesma coisa, só muda o nome. Aliás, não sei por que é que ainda me dava ao trabalho de discutir com o bispo.
Entretanto, Pedro ocupava-se de recrutar os soldados, conseguir os yanaconas ou índios auxiliares necessários, comprar armas, munições, tendas e cavalos. Eu tomei a meu cargo outras coisas de menor importância, que raramente ocupam as cabeças dos grandes homens, como comida, ferramentas de lavoura, utensílios para cozinha, lamas, vacas, mulas, porcos, galinhas, sementes, mantas, tecidos, lãs e muito mais. As despesas eram muitas e tive de investir as minhas poupanças e vender as minhas jóias, que de qualquer modo não usava, guardadas que estavam para uma emergência, sobretudo tendo em conta que, a meu ver, não havia emergência maior do que a conquista do Chile. Além disso, confesso que nunca gostei de adornos e muito menos tão vistosos como os que Pedro me oferecia. As poucas vezes que os usei, pareceu-me sempre ver a minha mãe de sobrolho franzido, relembrando-me que não convém chamar a atenção nem provocar a inveja.
O médico alemão deu-me um bauzinho com bisturis, pincas, outros instrumentos de cirurgia e medicamentos: azougue, carbonato de chumbo fino, mercúrio doce, jalapa em pó, sal branco, cremor tártaro, sal de Saturno, basílica, antimónio cru, sangue-de-drago, pedra-infernal, bolo arménio, terra japonesa e éter. Catalina deu uma vista de olhos aos frascos e encolheu os ombros com desprezo. Levava nas suas bolsas o herbário indígena, que foi enriquecendo pelo caminho com plantas curativas chilenas. Insistiu também que levássemos a tina da madeira para o banho, porque nada a incomodava mais do que a asquerosidade dos viracochas e estava convencida de que a maior parte das doenças eram causadas pela sujidade.
Andava assim atarefada quando um homem maduro e simplório, com cara de menino, e que se apresentou como Don Benito, me veio bater à porta. Era um dos homens de Almagro, curtido por muitos anos de vida militar, o único que regressou apaixonado pelo Chile, embora não se atrevesse a dizê-lo em público, para que não achassem que tinha enlouquecido. Era tão andrajoso como os restantes «chilenos», mas tinha, no entanto, a dignidade de um soldado e não vinha pedir dinheiro emprestado nem impor condições, vinha sim oferecer-se para nos acompanhar e disponibilizar a sua ajuda. Partilhava do mesmo ideal de Valdivia, segundo o qual seria possível fundar uma sociedade justa e sã no Chile.
- Essa terra tem mil léguas de norte a sul e é banhada a oeste pelo oceano, enquanto a este há uma serra tão majestosa como nunca se viu em toda a Espanha, minha senhora - disse-me.
Don Benito contou-nos detalhes da desastrosa viagem de Diego de Almagro. Disse que o Adelantado permitiu que os seus homens cometessem atrocidades indignas de um cristão. Levaram de Cuzco milhares de índios presos por correntes e cordas ao pescoço, só para impedir que fugissem. Aos que morriam, limitavam-se a cortar-lhes a cabeça, para não terem o trabalho de desatar a fileira de cativos ou parar a marcha, que se arrastava pela serra. Quando lhes faltavam índios para os servir, caíam que nem demónios sobre povos indefesos, acorrentavam os homens, violavam e raptavam as mulheres, matavam ou abandonavam as crianças e, depois de roubar o alimento e os animais domésticos, queimavam as casas e as sementeiras. Obrigavam os índios a carregar mais peso do que era humanamente possível, chegando mesmo ao ponto de levar aos ombros os potros recém-nascidos e as liteiras e macas em que se faziam transportar só para não cansar os cavalos. No deserto, eram vários os viracochas que levavam junto deles uma índia que tivesse parido recentemente, para lhe poderem beber o leite dos seios, à falta de outro líquido, enquanto os bebés eram abandonados à morte nas areias escaldantes. Os negros açoitavam até à morte aqueles que se rendiam de cansaço, e a fome entre os infelizes indígenas era tanta que chegaram a comer os cadáveres dos seus companheiros. O espanhol que fosse cruel e matasse mais índios era considerado um bom exemplo a seguir, enquanto aquele que não o fizesse era visto como um cobarde. Valdivia lamentou tais acções, na certeza de que tê-las-ia evitado, mas entendia ser essa a desordem da guerra, tal como percebeu depois de presenciar o saque de Roma. Dor e mais dor, sangue pelo caminho, sangue das vítimas, sangue que vicia os opressores.
Don Benito conhecia as agruras da viagem porque já tinha passado por elas, e relatou-nos a travessia do deserto de Atacama, caminho que tomaram para regressar ao Peru. Essa era a rota escolhida por nós para chegar ao Chile, ao contrário do que aconteceu com Almagro.
- Não devemos pensar apenas nas necessidades dos soldados, senhora. Também nos devemos preocupar com o bem-estar dos índios, precisam de abrigo, alimentos e água. Sem eles, não iremos longe relembrou-me.
Embora esse facto estivesse bem presente na minha mente, a verdade é que arranjar provisões para mil yanaconas com o dinheiro que tinha disponível era uma tarefa digna de um mago.
Entre os escassos soldados que nos acompanhavam até ao Chile estava Juan Gomez, um jovem oficial charmoso e valente, sobrinho do defunto Diego de Almagro. Certo dia, apareceu em minha casa com o chapéu de veludo na mão, muito embaraçado, e confessou-me a sua relação amorosa com uma princesa inca, baptizada com o nome de Cecilia.
- Amamo-nos muito, senora Inés, não podemos viver separados. Cecilia quer vir comigo para o Chile - disse-me.
- Então que venha!
- Não creio que don Pedro de Valdivia o permita, porque Cecilia está grávida - balbuciou o jovem.
Era um problema sério. De facto, Pedro tinha sido bastante claro na sua decisão de não levar mulheres naquela condição numa viagem de tamanha magnitude, precisamente porque era um pesado fardo, mas, ao ver a angústia de Juan Gómez, senti-me obrigada a ajudá-lo.
- De quantos meses está? - perguntei.
- Mais ou menos três ou quatro.
- Sabeis o risco que isto constitui para ela, não sabeis?
- Cecilia é muito forte, terá todas as comodidades necessárias e eu também a ajudarei, dona Inés.
- Uma princesa mimada e o seu séquito acabam por ser uma tremenda perturbação.
- Cecilia não será perturbação para ninguém. Garanto-vos que nem vão dar por ela na caravana.
- Está bem, don Juan, mas por agora não faleis disto a ninguém. Verei como e quando o poderei anunciar ao capitão-general Valdivia. Preparai-vos para partir dentro de pouco tempo.
Grato, Juan Gómez ofereceu-me um cachorro de pêlo preto, áspero e tão rijo como o de um porco, que logo se converteu na minha sombra. Chamei-o de Baltasar, porque estávamos a 6 de Janeiro, Dia de Reis. Esse animal foi o primeiro de uma série de cães iguais, todos seus descendentes, que me acompanharam durante mais de quarenta anos. Dois dias mais tarde, a princesa inca veio visitar-me. Chegou numa liteira carregada por quatro homens e seguida de outras quatro criadas carregadas de presentes. Nunca tinha visto de perto um membro da corte do Inca; depressa concluí que as princesas de Espanha ficariam verdes de inveja perante Cecilia. Era muito jovem e bela, com feições delicadas, quase infantis, de baixa estatura e delgada, mas o seu aspecto era imponente, porque possuía a altivez natural de quem nasceu num berço de ouro e está habituada a ser servida. Vestia à moda da corte inca, com simplicidade e elegância. Tinha a cabeça descoberta e o cabelo solto, como um manto negro, liso e reluzente, que lhe cobria as costas até à cintura. Anunciou-me que a sua família estava disposta a contribuir com as provisões dos yanaconas, desde que não os levássemos acorrentados. Assim tinha feito Almagro, com a desculpa de que juntava o útil ao agradável: ou seja, evitava que os índios escapassem e, ao mesmo tempo, transportava ferro. Foram mais os infelizes que morreram devido ao peso das correntes do que devido aos rigores do clima. Expliquei-lhe que Valdivia não pensava fazer semelhante coisa, mas Cecilia relembrou-me que os viracochas costumavam tratar os indígenas pior do que os animais. Estaria eu em posição de responder por Valdivia e pela conduta dos restantes soldados, perguntou-me. Não, não estava, mas prometi-lhe que me manteria vigilante e felicitei-a pelos seus sentimentos de compaixão, já que os nobres incasraras vezes tinham o seu povo em tão alta consideração. Olhou para mim com uma expressão estranha.
- A morte e os suplícios são coisas normais, correntes não. São humilhantes - esclareceu-me, no bom castelhano que aprendera com o seu amante.
Cecilia chamava a atenção pela sua beleza, pelas roupas do mais fino tecido peruano e pelo seu inconfundível porte real, mas procurou ocultar tudo isso para passar despercebida durante as primeiras cinquenta léguas de viagem, até que encontrei o momento adequado para falar com Pedro, que a princípio reagiu com fúria, como aliás já se esperaria, quando uma ordem sua era ignorada.
- Se eu estivesse na situação de Cecilia, teria ficado para trás... suspirei.
- E por acaso estás? - perguntou, esperançado, porque sempre quis ter um filho.
- Não, infelizmente, mas Cecilia está e não é a única. A cada noite que passa, os teus soldados engravidam mais algumas índias auxiliares e já temos pelo menos uma dúzia com o ventre cheio.
Cecilia resistiu à travessia do deserto, ora montada na sua mula, ora transportada de liteira pelos seus servidores, e o seu filho foi o primeiro bebé a nascer no Chile. Juan Gomez pagou-nos com uma lealdade incondicional, que ainda nos viria a ser muito útil nos meses e anos vindouros.
Quando tudo já estava preparado para empreendermos a viagem com o punhado de soldados que nos quiseram acompanhar, surgiu um inconveniente inesperado. Um cortesão, antigo secretário de Pizarro, chegou de Espanha com uma autorização do Rei para a conquista dos territórios a sul do Peru, desde Atacama até ao estreito de Magalhães. Este Sancho de Ia Hoz era homem de modos delicados e falinhas mansas, mas falso e vil de coração. Esse sim, andava todo aperaltado, vestia-se com peitilhos de renda e borrifava-se com perfume. Nas suas costas, os homens riam-se dele, mas não tardou muito até que o começassem a imitar. Chegou a ser mais perigoso para a expedição do que as inclemências do deserto e o ódio dos índios; não merece sequer que o seu nome conste desta crónica, mas não pude evitar falar dele, uma vez que aparecera um pouco mais tarde e, se tivesse conseguido os seus intentos, Pedro de Valdivia e eu não teríamos cumprido os nossos destinos. Com a sua chegada, havia dois homens para a mesma empresa e, durante algumas semanas, parecia que não seríamos capazes de resolver a questão, mas, ao fim de muitas discussões e demoras, o Marquês Governador Francisco Pizarro decidiu que ambos deveriam tentar a conquista do Chile na qualidade de sócios: Valdivia iria por terra, De Ia Hoz por mar, e encontrar-se-iam em Atacama. «Tu vais tendo muito cuidado com este Sancho, pois, mamitay», advertiu-me Catalina, quando soube do ocorrido. O facto é que, embora nunca o tivesse visto, descobriu tudo através das suas contas de adivinhar.
Partimos finalmente numa manhã quente de Janeiro de 1540. Francisco Pizarro veio da Cidad de los Reyes, com vários oficiais, para se despedir de Valdivia, trazendo como presente alguns cavalos, seu único contributo para a expedição. O eco dos sinos das igrejas, que começaram a repicar desde a alvorada, afastaram os pássaros dos céus e os animais da terra. O bispo disse uma missa cantada, a que todos assistimos, impingiu-nos um sermão sobre a fé e o dever de levar a cruz aos extremos da Terra; logo depois, saiu da Praça para benzer os mil yanaconas que aguardavam junto dos nossos pertences e dos animais. Cada grupo de índios recebia ordens de um curaca, ou chefe, que por sua vez obedecia aos capatazes negros e estes aos barbudos viracocbas. Não acredito que os índios apreciassem a bênção do bispo, mas talvez tenham sentido que o sol radioso que brilhava naquele dia fosse um bom augúrio. Eram, na sua grande maioria, homens jovens, além de algumas abnegadas esposas dispostas a segui-los, apesar de saberem que não voltariam a ver os seus filhos, que ficavam para trás em Cuzco. Claro, vinham também as amantes dos soldados, cujo número aumentou durante a viagem graças às raparigas cativas das aldeias arrasadas.
Don Benito comentou comigo as diferenças entre a primeira expedição e a segunda. Almagro partiu à frente de quinhentos soldados com armaduras polidas, com bandeiras e estandartes flamejantes, cantando a plenos pulmões, e vários frades com grandes cruzes, além dos milhares e milhares de yanaconas carregados de bagagens, manadas de cavalos e outros animais, todos avançando ao som das trompetas e tambores. Em comparação, nós compúnhamos um grupo muito mais patético, apenas onze soldados, além de Pedro de Valdivia e eu, que estava também disposta a empunhar uma espada se fosse preciso.
- Não importa que sejamos poucos, senora minha, porque havemos de compensar o parco número com coragem e ânimo. Com a graça de Deus, pelo caminho hão-de juntar-se a nós outros valentes - assegurou-me Don Benito.
Pedro de Valdivia cavalgava à frente, seguido por Juan Gomez, nomeado oficial, Don Benito e outros soldados. Estava esplendidamente vestido com a sua armadura, com o elmo emplumado, armas vistosas e luzidias, montado no Sultán, o seu valioso corcel árabe. Mais atrás, seguia eu e Catalina, também a cavalo. No arção da minha montada ia a Nossa Senhora do Socorro, enquanto Catalina levava Baltasar ao colo, porque queríamos que se habituasse ao cheiro dos índios. Queríamos treiná-lo para ser um cão de guarda, e não assassino. Cecilia ia acompanhada por um séquito de índias ao seu serviço, dissimuladas por entre as amantes dos soldados. Depois, vinha a fila interminável de animados carregadores, muitos deles a chorar, porque iam obrigados e se tinham despedido das suas famílias. Os capatazes negros flanqueavam a larga faixa serpenteante de índios. Por serem muito cruéis, eram mais temidos do que os viracochas, mas Valdivia tinha dado instruções precisas de que só ele podia autorizar os castigos e tormentos maiores; os capatazes deviam limitar-se ao chicote e utilizá-lo com prudência. Esta ordem acabou por se diluir pelo caminho e, em breve, só eu me recordaria dela. Ao som dos sinos, que ainda repicavam nas igrejas, somavam-se os gritos de despedida, o resfolegar dos cavalos, o barulho dos arreios, o queixume dos yanaconas e o barulho surdo dos seus pés descalços a bater na terra.
Para trás ficou Cuzco, coroada pela fortaleza sagrada de Sacsayhuamán, sob um céu azul. Ao sair da cidade, mesmo debaixo dos olhos do Governador, do seu séquito, do bispo e da povoação da cidade que se despedia de nós, Pedro chamou-me para o seu lado com uma voz clara e destemida.
- Junte-se a mim, dona Inés Suárez! - exclamou, e quando passei à frente dos seus soldados e oficiais, colocando o meu cavalo ao lado do seu, acrescentou em voz baixa: - Vamos para o Chile, Inés da minha alma...
NOSSA ANIMADA CARAVANA tomou o caminho para o Chile seguindo pela rota do deserto, que Diego de Almagro tinha tomado no seu regresso, segundo o quebradiço pedaço de papel com o desenho do mapa, que ele tinha traçado e oferecido a Pedro de Valdivia. Enquanto os nossos escassos soldados e os mil índios auxiliares subiam e desciam montes, atravessavam vales e rios em direcção ao Sul, como um lento bicho-da-seda, a notícia de que estávamos a caminho foi mais lesta t as tribos chilenas esperavam-nos com as armas prontas. Os Incas utilizavam mensageiros velozes, os chasquis, que percorriam os desfiladeiros ocultos por entre a serra, através de um sistema de comunicações em rede, atravessando o império desde o extremo norte até ao rio Bío-Bío no Chile. Foi assim que os índios chilenos ficaram a saber da nossa expedição mal saímos de Cuzco e, por isso, quando chegámos ao seu território, vários meses depois, já estavam preparados para nos fazer frente. Sabiam que os viracochas há algum tempo que controlavam o Peru, que o Inça Atahualpa tinha sido executado e que em seu lugar reinava, como uma marioneta, o seu irmão Paullo. Este príncipe tinha entregue o seu povo para servir os estrangeiros e passava a vida numa jaula dourada, o seu palácio, perdido nos prazeres da luxúria e crueldade. Sabiam também que, no Peru, se preparava, na sombra, uma vasta insurreição indígena, dirigida por um outro membro da família real, o fugitivo Inça Manco, que tinha jurado expulsar os estrangeiros. Entretanto, tinham ouvido dizer que os viracochas eram ferozes, diligentes, persistentes, insaciáveis e, a mais inacreditável de todas as coisas alguma vez ouvidas, que não respeitavam a palavra dada. Como conseguiam viver com essa vergonha? Era um mistério. Os índios chilenos chamavam-nos huincas, o que, na sua língua, o mapudungu, quer dizer gente mentirosa, ladrões de terra. Tive de aprender a falar esta língua porque é a que se fala em todo o Chile, de norte a sul. Os mapuche compensam a ausência de escrita com uma memória indestrutível; a história da criação, as suas leis, tradições e o passado dos seus heróis estão registados nos seus relatos em mapudungu, que transitam, intactos, de geração em geração, desde o começo dos tempos. O jovem Alonso de Ercilla y Zúniga, que já mencionei, traduziu alguns, para se inspirar enquanto compunha La Araucana. Parece que esse poema foi publicado e circula na corte de Madrid, mas eu só tenho os versos rabiscados que Alonso me deixou, depois de o ter ajudado a passá-los a limpo. Se a memória não me falha, assim descreve ele o Chile e os mapuche, ou araucanos, nas suas oitavas reais:
Chile, fértil província assinalada
Na região antárctica famosa,
Por longínquas nações respeitada
Forte, importante e poderosa;
A gente que produz é tão briosa,
Tão altiva, galharda e belicosa,
Que por rei nenhum foi regida
Nem por domínio estrangeiro subjugada.
E claro que Alonso exagera, mas os poetas têm permissão para tal; caso contrário, os versos não teriam o vigor necessário. O Chile não é assim tão importante e poderoso, nem as suas gentes são tão briosas e galhardas, mas concordo que os mapuche são altivos e belicosos, e que nunca foram regidos por nenhum rei, nem submetidos pelos estrangeiros. Desprezam a dor; podem sofrer suplícios horríveis sem um único queixume, não porque sejam menos sensíveis ao sofrimento do que nós mas porque são valentes. Não existem guerreiros melhores do que outros e é uma honra perder a vida numa batalha. Nunca conseguiram
vencer-nos, mas também nunca os conseguimos submeter, ainda que muitos continuem a morrer na vã tentativa de alcançar esse propósito. Acredito que a guerra contra os índios vai continuar por muitos séculos, uma vez que serve para os espanhóis arranjarem servos. Escravos, seria a palavra mais adequada. Não são só os prisioneiros de guerra que acabam nas malhas da escravatura, também os índios livres, que os espanhóis caçam com laço, e vendem a duzentos pesos por mulher grávida e cem pesos por varão adulto ou criança saudável. O comércio ilegal desta gente não se limita ao Chile, chega mesmo até à Cidad de los Reyes e está infiltrado em todo o lado, e nele estão envolvidos desde os encarregados e capatazes das minas, até aos capitães dos barcos. Assim acabaremos por exterminar os nativos desta terra, como temia Valdivia, porque muitos deles preferem morrer livres do que viver escravizados. Se qualquer um de nós, Espanhóis, tivesse de fazer esta escolha, creio que também não lhe restariam dúvidas. A Valdivia indignava-o a estupidez de quem abusava deste modo dos povos do Novo Mundo, despovoando-o. Sem indígenas, dizia, esta terra não vale nada. Morreu sem ver o fim da carnificina, que já dura há quarenta anos. Continuam a chegar espanhóis e a nascer mestiços, mas os mapuche estão a desaparecer, exterminados pela guerra, pela escravatura e pelas doenças dos espanhóis, às quais não resistem. Tenho medo dos mapuche por tudo o que já nos fizeram passar; aborrece-me que tenham recusado aceitar a palavra de Cristo e resistido às nossas tentativas de os civilizar; nunca lhes perdoarei a maneira feroz como mataram Pedro de Valdivia, ainda que não tenham feito mais do que pagar-lhe na mesma moeda, porque ele também tinha cometido muitas crueldades e abusos contra o seu povo. Quem com ferros mata, com ferros morre, diz-se em Espanha. Mas também os respeito e admiro, não posso negá-lo. Somos ambos dignos inimigos, espanhóis e mapuche, igualmente valentes, brutais e determinados a viver no Chile. Eles chegaram cá antes de nós e, por isso, têm mais direito à terra, mas nunca poderão expulsar-nos e, pelos vistos, também não vamos poder conviver em paz.
Mas de onde vieram estes mapuche^ Dizem que se parecem com certos povos da Ásia. Se foi ali que surgiram, não sei explicar como cruzaram mares tão tumultuosos e terras tão extensas até cá chegarem. São selvagens, não conhecem a arte e a escrita, não constróem cidades nem templos, não têm castas, classes nem sacerdotes, apenas capitães de guerra, os seus toquis. Andam de um lado para o outro, livres e despidos, com as suas muitas esposas e filhos, que lutam a seu lado nas batalhas. Não fazem sacrifícios humanos, como outros índios da América, e não adoram ídolos. Crêem em um só deus, não no nosso Deus, mas sim noutro que chamam de Ngenechén.
Enquanto acampávamos em Tarapacá, local onde Pedro esperava pelos reforços e onde nos recompúnhamos da cansativa viagem, os índios chilenos organizavam-se para nos dificultar ao máximo a travessia. Geralmente, nunca surgiam pela frente, cara a cara, mas rondavam-nos e atacavam-nos pelas costas. Assim, mantive-me sempre ocupada com os feridos, principalmente com os yanaconas, que lutavam sem cavalos nem armaduras. Carne para canhão, era como lhes chamavam. Os cronistas esquecem-se sempre de os mencionar, mas sem essas moles silenciosas de índios amigos, que acompanhavam os espanhóis nas suas empresas e guerras, a conquista do Novo Mundo teria sido impossível.
Entre Cuzco e Tarapacá tinham-se juntado a nós cerca de vinte soldados espanhóis e Pedro estava convencido de que outros mais acorreriam quando começasse a correr a notícia de que a expedição já estava em marcha, embora também tivéssemos perdido cinco homens, cifra elevada se considerarmos o número reduzido da expedição inicial. Um foi gravemente ferido por uma flecha envenenada e, como não o consegui curar, Pedro enviou-o de volta a Cuzco, acompanhado pelo seu irmão, dois soldados e vários yanaconas. Alguns dias mais tarde, o mestre-de-campo acordou todo alvoraçado, porque tinha sonhado com a esposa, que o esperava em Espanha, e porque, finalmente, deixara de sentir a dor aguda que lhe atravessava o peito há mais de uma semana. Servi-lhe uma tigela de farinha torrada com água e mel, que comeu com parcimónia, como se fosse o mais requintado manjar. «A senhora hoje
está mais bela que nunca, dona Inés», disse-me, com a sua gentileza habitual e, logo de seguida, ficou com os olhos vítreos e caiu morto aos meus pés. Depois de lhe darmos um funeral cristão, aconselhei Pedro que nomeasse Don Benito para o seu lugar, uma vez que o velho conhecia a rota e tinha experiência em organizar acampamentos e manter a disciplina.
Tínhamos perdido alguns soldados, mas, pouco a pouco, e como sombras andrajosas, outros iam chegando, que andavam perdidos por entre campos e serras, homens de Almagro, derrotados e sem amigos no império de Pizarro. Há anos que viviam de caridade, nada tendo a perder com a aventura do Chile.
Acampámos em Tarapacá durante várias semanas, para que os índios e animais tivessem tempo de ganhar peso antes de empreendermos a travessia do deserto, que segundo Don Benito, seria a pior parte da viagem. Explicou-nos que a primeira parte era bastante dura, mas que a segunda, chamada de Despoblado, era muito pior. Entretanto, Pedro de Valdivia percorria léguas a cavalo perscrutando o horizonte à procura de novos voluntários. Supostamente, também Sancho de la Hoz deveria juntar-se a nós trazendo por mar os soldados e apetrechos prometidos, embora o nosso empertigado sócio não desse sinais de vida.
Enquanto eu mandava tecer mais mantas e preparava carne seca, cereais e outros alimentos não perecíveis, Don Benito fazia trabalhar os negros nas forjas de sol a sol, para nos abastecermos de munições, ferraduras e lanças. Também organizou algumas surtidas de grupos de soldados para descobrir os alimentos que os índios enterravam antes de abandonar as suas aldeias. Instalámos o acampamento no local mais apropriado e seguro, onde havia sombra, água e colinas para colocar os vigias. A única tenda decente era a que Pizarro me tinha oferecido, espaçosa, com dois quartos, feita de tela encerada e suportada por firmes andaimes de madeira, tão confortável como uma casa. O resto dos soldados arranjava-se como podia, com umas telas remendadas que mal os protegiam do clima. Alguns nem isso tinham, dormindo ao lado dos cavalos. O acampamento dos índios auxiliares estava afastado do nosso e era permanentemente vigiado, para evitar que fugissem.
A noite, acendiam centenas de pequenas fogueiras, onde cozinhavam os seus alimentos e a brisa trazia-nos o som lúgubre dos seus instrumentos musicais, que tinham o poder de entristecer homens e animais.
Estávamos instalados perto de um par de aldeias abandonadas, onde, por muito que procurássemos, não conseguimos encontrar comida. Aí descobrimos que os índios tinham o costume de conviver amistosamente com os seus parentes falecidos, sendo que os vivos se alojavam numa divisão das cabanas, enquanto os mortos ficavam na outra. Em cada casa, havia um quarto com múmias bastante bem preservadas, com cheiro a musgo, obscuras; avós, mulheres, crianças, cada uma acompanhada dos seus objectos pessoais, mas sem jóias. Pelo contrário, se fosse no Peru, teriam sepulturas a abarrotar de objectos preciosos, incluindo estátuas de ouro maciço. «Até os mortos do Chile são uns miseráveis, não há uma única peça de ouro», maldiziam os soldados. Para se desforrarem, ataram as múmias com cordas e arrastaram-nas a galope, até que as mortalhas se rasgaram e os ossos se espalharam pelo solo. Celebraram a façanha com gargalhadas sonoras, enquanto no acampamento dos yanaconas o espanto era generalizado. Depois de o Sol se pôr, começou a circular entre eles o rumor de que os ossos profanados se estavam a começar a juntar e que, antes do amanhecer, os esqueletos cairiam sobre nós como um exército do mundo dos mortos. Aterrorizados, os negros repetiram essa fábula, que chegou aos ouvidos dos espanhóis. E foi então que esses vândalos invencíveis, que não tinham medo de nada, começaram a chorar como se fossem bebés de peito. Por volta da meia-noite, a choradeira entre os soldados era tanta que Pedro de Valdivia teve de lhes fazer recordar que eram soldados de Espanha, os mais vigorosos e mais bem treinados do mundo e não um monte de carpideiras ignorantes. Eu cá não consegui dormir durante várias noites, passando-as a rezar, porque a verdade é que os esqueletos nos andavam a rondar, e quem disser o contrário é porque não esteve lá.
Imensamente descontentes, os soldados perguntavam-se por que diabo estavam acampados há tanto tempo naquele lugar maldito, por que não continuávamos em direcção ao Chile, tal como estava planeado, ou então por que não regressávamos a Cuzco, o que seria mais sensato.
Quando Valdivia já começava a perder as esperanças de acolher reforços, eis que chegou subitamente um destacamento de oitenta homens, entre os quais alguns capitães, que eu não conhecia, mas de quem Pedro já me tinha falado, porque eram bem-afamados, como Francisco de Villagra e Alonso de Monroy. O primeiro era louro, corado, robusto, com um trejeito levemente trocista nos lábios e gestos abruptos. Achei-o sempre um homem bastante desagradável, porque tratava os índios muito mal, era avarento e inimigo dos pobres, mas aprendi a respeitá-lo pela sua coragem e lealdade. Monroy, nascido em Salamanca e descendente de uma família nobre, era exactamente o contrário, fino, charmoso e generoso. Tornámo-nos imediatamente amigos. Com eles, vinha Jerónimo de Alderete, o antigo camarada de armas de Valdivia, que anos antes o tinha aliciado com a viagem ao Novo Mundo. Villagra convencera-os de que o melhor a fazer era unirem-se a Valdivia; «Mais vale servir Sua Majestade, do que ficar em terras onde o demónio anda à solta,» disse-lhes, referindo-se a Pizarro, que tanto desprezava. Juntamente com eles, veio também um capelão andaluz, homem de uns cinquenta anos, Gonzalez de Marmolejo, que viria a ser o meu mentor, como já vos disse. Este religioso deu mostras de imensa bondade ao longo da sua longa vida, mas acho que devia ter sido soldado e não padre, porque gostava demasiado de aventura, da riqueza e de mulheres.
Estes homens tinham estado durante meses na terrível selva dos Chunchos, a leste do Peru. A expedição partira com trezentos espanhóis, mas morreram dois em cada três e os restantes não eram mais do que meras sombras famintas, dilaceradas pelas doenças tropicais. Dos dois mil índios que os acompanhavam nem um sobreviveu. Entre os que ali deixaram os seus ossos, contava-se o infeliz alferes Núfíez, que Valdivia condenara a apodrecer em Chunchos, tal como prometeu que faria quando me tentou raptar em Cuzco. Ninguém me soube dizer exactamente como tinha morrido, tudo indicando que terá simplesmente desaparecido na selva, sem deixar rasto. Espero que tenha morrido como um cristão e não na boca de canibais. As penúrias que Pedro de Valdivia e Jerónimo de Alderete tinham, anos antes, suportado nas selvas venezuelanas eram simples brincadeiras de crianças quando comparadas com aquilo que estes homens sofreram em Chuncho, debaixo de quentes chuvas torrenciais e nuvens de mosquitos, atolados em pântanos, doentes, esfomeados e perseguidos por selvagens, que chegavam a comer-se uns aos outros quando não conseguiam apanhar um castelhano.
Antes de continuar devo, porém, apresentar de forma especial o homem que comandava este destacamento. Era um homem alto e muito bonito, de testa alta, nariz aquilino e olhos castanhos, grandes e límpidos, como os de um cavalo. Tinha as pálpebras pesadas e um olhar distante, um pouco sonolento, que lhe suavizava o rosto. Só pude verdadeiramente apreciar tudo isto no segundo dia, depois de ele tirar a crosta de sujidade que o cobria e de cortar o cabelo e a barba, que lhe davam um ar de náufrago. Embora mais novo do que o resto dos afamados militares, tinha sido escolhido por eles para capitão dos capitães pela sua coragem e inteligência. O seu nome era Rodrigo de Quiroga. Nove anos depois seria o meu marido.
Tomei a meu cargo a tarefa de devolver a saúde e a força aos soldados de Chunchos, ajudada por Catalina e várias índias que tinha a meu serviço e a quem tinha ensinado o ofício de curar. Como disse Don Benito, aquelas pobres almas tinham acabado de sair do inferno húmido e emaranhado da selva e depressa entrariam no inferno seco e nu do deserto. Só para os lavar, limpar-lhes as feridas, tirar-lhes os piolhos e cortar-lhes o cabelo e as unhas, foram necessários vários dias. Alguns estavam tão debilitados que as índias tiveram de lhes dar da papa dos bebés em pequenas colheradas. Catalina disse-me ao ouvido qual era o remédio dos Incaspara casos extremos e, sem lhes dizer em que consistia, para não os agoniar, dêmo-lo aos mais necessitados. Pela calada da noite, silenciosamente, Catalina sangrava as lamas com um golpe no pescoço. Depois, misturávamos o sangue fresco com leite e um pouco de urina e dávamos aquele preparado a beber aos doentes; recompuseram-se rapidamente e duas semanas depois já estavam em condições de prosseguir viagem.
Os yanaconas prepararam-se para o sofrimento que os aguardava; não conheciam o terreno, mas tinham ouvido falar do terrível deserto. Cada um levava ao pescoço um odre com água, feito da pele das patas de animais, lamas, guanacos ou alpacas, à qual arrancavam a pele inteira e voltavam do avesso, como uma meia, deixando os pêlos do lado de dentro. Outros usavam bexigas ou pele de lobo-marinho. À água, juntavam depois uns grãos de milho tostados, para disfarçar o cheiro. Don Benito organizou o transporte de água em maior escala, utilizando os barris que conseguiu fabricar e também odres de pele, como os índios. Sabíamos que, provavelmente, não chegaria para toda a gente, mas não podíamos sobrecarregar mais os homens e os lamas. Para cúmulo, os índios chilenos da região não só tinham escondido os alimentos, como também envenenado os poços, tal como viemos a saber por intermédio de um chasqut do Inça Manco, depois de o torturarmos. Don Benito descobriu-o escondido por entre os nossos índios auxiliares e pediu autorização a Valdivia para o interrogar. Os negros queimaram-no em fogo lento. Como não tenho estômago para presenciar suplícios, retirei-me para o sítio mais afastado possível, mas os gritos horrendos do infeliz, acompanhados pelos uivos de terror dos yanaconas, ouviam-se a uma légua de distância. Para se escapar da tortura, o mensageiro admitiu que já vinha desde o Peru com instruções específicas para que os indígenas do Chile impedissem o avanço dos viracocbas. Por isso, os índios se escondiam nos montes, com os animais que conseguiam levar, depois de enterrarem os alimentos e queimarem as sementeiras. Acrescentou ainda que não era o único mensageiro, centenas de chaquis rumavam ao Sul, por caminhos secretos, com as mesmas instruções do Inça Manco. Depois de ter confessado tudo, queimaram-no na fogueira, para servir de aviso. Repreendi Valdivia por permitir tamanha crueldade, mas ele mandou-me calar, indignado. «Don Benito sabe o que faz. Avisei-te, antes de sairmos, que esta empresa não era para gente melindrosa. Agora já é tarde para voltar para trás», respondeu-me.
Que longo e árduo o caminho do deserto! Que lenta e fatigante caminhada! Que solidão tão quente! Os dias eram imensamente longos, todos iguais, numa secura infinita, uma paisagem erma de terras ásperas e pedras duras, com cheiro a pó queimado e cinza de espinheiros, e pintada de tantas cores como que incendiada pela mão de Deus. Segundo Don Benito, essas cores pertenciam a minerais escondidos mas, por ironia do destino, nenhum era ouro ou prata. Pedro e eu caminhávamos horas e horas a fio, levando os nossos cavalos pelos bridões, para não os cansarmos. Falávamos pouco, porque tínhamos a garganta a arder e os lábios ressequidos, mas estávamos juntos e cada passo nos unia mais, conduzindo-nos pela terra fora, em direcção ao sonho que tínhamos sonhado juntos e que tantos sacrifícios exigia: o Chile. Eu protegia-me com um chapéu de aba larga e um pano sobre a cara, com dois buracos para os olhos, e outros trapos enrolados à volta das mãos, porque não tinha luvas e o sol dava-me cabo da pele. Os soldados não aguentavam as armaduras quentes e arrastavam-nas pelo chão. A longa fila de índios avançava devagar, em silêncio, mal vigiada pelos negros cabisbaixos, tão desanimados que nem levantavam os chicotes. Para os carregadores, o caminho era mil vezes pior do que para nós; estavam habituados a trabalhar muito e a comer pouco, a subir e descer montes, impulsionados pela energia misteriosa das folhas de coca, mas não suportavam a sede. O nosso desespero aumentava à medida que os dias se passavam sem conseguirmos encontrar um poço salubre, pois os únicos que encontráramos tinham sido contaminados com cadáveres de animais pelos ardilosos índios chilenos. Alguns yanaconas beberam da água putrefacta e morreram retorcendo-se, como se tivessem as vísceras a arder.
Quando pensávamos ter alcançado o limite das nossas forças, a cor das montanhas e do céu mudou. O ar parou de correr, o céu tornou-se branco e desapareceu toda e qualquer forma de vida, desde as urzes às aves solitárias, que antes se viam: acabáramos de entrar no temível Despoblado. Iniciávamos a marcha mal surgiam os primeiros raios de sol, porque mais tarde o sol e o calor já não nos permitiam avançar. Pedro decidira que quanto mais rápida fosse a viagem, menos vidas perderíamos, ainda que cada passo exigisse um esforço desmedido. Descansávamos nas horas de maior calor, deitados sobre aquele mar de areia calcinada, com um sol de chumbo a abater-se sobre nós, num ambiente de morte. Recomeçávamos a andar por volta das cinco da tarde, até cair a noite e já não se ver nada na escuridão. Era uma paisagem áspera de uma crueldade imensa. Nem sequer tínhamos ânimo para armar as tendas e organizar os acampamentos, já que serviriam apenas por umas escassas horas. Não havia o perigo de sermos atacados por inimigos, porque ninguém vivia ou se aventurava por aquelas terras solitárias. Durante a noite, a temperatura mudava drasticamente, e do calor abrasador do dia, passávamos para temperaturas glaciais. Cada um deitava-se onde podia, a tiritar de frio, sem fazer caso das instruções de Don Benito, o único que insistia em manter a disciplina. Abraçados entre os nossos cavalos, Pedro e eu procurávamos partilhar o calor. Estávamos imensamente cansados. Não nos lembramos sequer de termos feito amor durante aquelas semanas de viagem. A abstinência deu-nos oportunidade de conhecer as nossas fraquezas e cultivar uma ternura que antes vivia sufocada pela paixão. O mais admirável naquele homem é que jamais duvidou da sua missão: povoar o Chile com castelhanos e evangelizar os índios. Nunca acreditou que morreríamos assados no deserto, como diziam os demais; nada lhe tolheu a vontade.
Não obstante o severo racionamento imposto por Don Benito, chegou um dia em que a água se acabou. Nessa altura, ficámos doentes de sede, tínhamos a garganta arranhada pela areia, a língua inchada, os lábios em chagas. Depressa começámos logo a ouvir o ruído de uma cascata ou a ver lagoas cristalinas rodeadas de fetos. Os capitães tinham que reter os homens à força para que não morressem arrastando-se pela areia atrás de uma miragem. Vários soldados bebiam a própria urina e a dos cavalos, que era escassa e muito escura; outros, enlouquecidos, atiravam-se aos yanaconas para roubarem as últimas gotas de água dos seus odres feitos de patas de animal. Se Valdivia não tivesse imposto a ordem com castigos exemplares, acredito que tinham começado a matar índios para lhes chupar o sangue. Nessa noite, Juan de Malaga veio novamente visitar-me, iluminado pela luz clara da Lua. Disse a Pedro que Juan estava ali, naquele momento, mas como ele não o conseguia ver, achou que eu estava a alucinar. O meu marido apresentava-se muito mal vestido, os seus andrajos estavam cobertos de sangue seco e pó sideral, e tinha uma expressão desesperada, como se também os seus pobres ossos padecessem de sede.
No dia seguinte, quando já nos achávamos perdidos e sem salvação, um estranho réptil passou a correr por entre os meus pés. Durante muitos dias, não tínhamos visto qualquer forma de vida para além da nossa, nem sequer as urzes que abundavam noutras partes do deserto. Talvez fosse uma salamandra, esse lagarto que vive no fogo. Concluí, então, que por muito diabólico que fosse o animaleco, de vez em quando também devia precisar de um gole de água. «Agora é entre nós as duas, Virgencita, implorei, dirigindo-me, então, à Nossa Senhora do Socorro. Depois, saquei do ramo de árvore que levava na minha bagagem e comecei a rezar. Era por volta do meio-dia, a hora em que a multidão de gente e os animais sedentos descansavam. Chamei Catalina, para que me acompanhasse, e as duas começámos a andar devagar, protegidas por uma sombrinha, eu com a Ave-Maria nos lábios e ela com as suas orações em quíchua. Caminhámos durante um bom bocado, talvez uma hora, em círculos cada vez maiores, cobrindo cada vez mais terreno à nossa volta. Don Benito achou que a sede me tinha feito perder o juízo e, esgotado como estava, pediu a um capitão mais novo e forte, Rodrigo de Quiroga, que me fosse buscar.
- Por amor de Deus, senhora! - suplicou-me o oficial com a pouca voz que lhe restava. - Vinde descansar. Far-vos-emos sombra com uma tela...
- Capitão, peça a Don Benito que me mande gente com pás e picaretas - interrompi-o.
- Pás e picaretas? - repetiu, atónito.
- E dizei-lhe que me mande, por favor, umas tinas e vários soldados armados.
Rodrigo de Quiroga partiu para avisar Don Benito que eu estava muito pior do que se supunha, mas Valdivia ouviu-o e, cheio de esperança, ordenou que o mestre-de-campo levasse o que eu tinha pedido. Pouco tempo depois, já havia seis índios a cavar um poço. Os índios não resistem à sede tão bem como nós e mal tinham força para erguer as picaretas e as pás, mas como o terreno era macio, lá conseguiram escavar um buraco de vara e meia de profundidade. No fundo, a areia estava escura. Subitamente, um dos índios deu um grito rouco e reparámos que se começava a juntar água, inicialmente sob a forma de uma ligeira humidade, como se fosse o suor da terra, mas ao cabo de dois ou três minutos havia já um pequeno charco. Pedro, que não tinha saído do meu lado, mandou os soldados defender o poço com as suas vidas, porque temeu, e com razão, o assalto feroz de um milhar de homens desesperados por umas gotas de água. Assegurei-lhe que chegaria para todos, desde que bebêssemos ordenadamente. E assim foi. Don Benito passou o resto do dia distribuindo uma taça de água por cabeça, enquanto Rodrigo de Quiroga passou a noite com vários soldados a dar de beber aos animais e enchendo os barris e os odres dos índios. A água surgia com ímpeto; era turva e tinha um sabor metálico, mas para nós parecia tão fresca como a água das fontes de Sevilha. As pessoas acharam que tinha ocorrido um milagre e logo chamaram ao poço «A Fonte da Virgem», em honra da Nossa Senhora do Socorro. Montámos o acampamento e ficámos naquele local durante três dias, a matar a sede, e quando continuámos a nossa caminhada, ainda corria um ténue fio de água sobre a superfície calcinada do deserto.
- Este milagre não é da Virgem, é teu, Inés - disse-me Pedro, deveras impressionado. - Graças a ti, atravessaremos este deserto sãos e salvos.
- Só consigo encontrar água onde a há, não a posso fazer brotar, Pedro. Não sei se haverá outra fonte mais à frente e, de qualquer maneira, se houver, não será tão abundante.
Valdivia ordenou que me adiantasse meio-dia, para ir tacteando o terreno em busca de água, protegida por um destacamento de soldados, com quarenta índios auxiliares e vinte lamas para transportar as tinas. O resto das pessoas seguiam em grupos, separados por várias horas, para que não se atropelassem na hora de beber, caso encontrássemos poços. Don Benito nomeou Rodrigo de Quiroga como chefe do grupo que me acompanhava, devido ao facto de, em pouco tempo, o jovem capitão ter conquistado a sua total confiança. Além disso, era quem tinha a melhor visão, já que os seus grandes olhos castanhos conseguiam ver até o que não existia. Se houvesse algum perigo no alucinante horizonte do deserto, ele tê-lo-ia visto antes de qualquer outra pessoa, mas felizmente nada de grave aconteceu. Encontrei várias fontes de água, nenhuma tão abundante como a primeira, mas com água suficiente para podermos sobreviver durante a travessia do Despoblado. Até que, certo dia, a cor do solo mudou novamente e passaram dois pássaros a voar.
Quando acabámos a travessia do deserto, fiz as contas e reparei que já tínhamos saído de Cuzco há quase cinco meses. Valdivia decidiu montar acampamento e esperar, porque tinha notícias indicando que o seu amigo do peito, Francisco de Aguirre, se podia juntar a ele naquela região. À distância, e sem se aproximarem, índios hostis espiavam-nos. Mais uma vez, pude instalar-me na elegante tenda que Pizarro me oferecera. Cobri o solo de mantas peruanas e coxins, tirei as louças dos baús, para não ter de continuar a comer em malgas de madeira, e mandei construir um forno de barro para cozinhar como deve ser, já que andávamos há vários meses a comer cereais e carne seca. Na maior divisão da tenda, que Valdivia usava como quartel-general e sala de audiências e tribunal, coloquei a sua poltrona e uns tamboretes de madeira para os visitantes, que chegavam inesperadamente a qualquer hora. Catalina passava o dia a percorrer o acampamento, como uma sombra sigilosa, para me trazer notícias. Nada do que acontecia entre os yanaconas e os espanhóis me passava despercebido. Era frequente os capitães virem jantar com Valdivia e terem a desagradável surpresa de me ver sentada à mesa com eles, porque este me convidava. É bem possível até que muitos deles nunca tenham comido à mesma mesa com uma mulher, simplesmente porque, em Espanha, isso não acontece, mas aqui os costumes são mais flexíveis. Iluminávamo-nos com lamparinas e candeeiros de azeite e aquecíamo-nos com dois grandes braseiros peruanos, porque de noite faz imenso frio. Gonzalez de Marmolejo, que além de padre era bacharel, explicou-nos que, por aquelas bandas, as estações do ano estão invertidas, ou seja, quando é Inverno em Espanha é Verão no Chile e vice-versa, mas ninguém o entendeu e continuámos a pensar que no Novo Mundo as leis da natureza estavam todas trocadas. Na outra parte da tenda, Pedro e eu tínhamos a nossa cama, um escritório, o meu altar, os nossos baús e a tina para o banho, que há muito tempo não era usada. Pedro já não tinha tanto medo do banho e, de vez em quando, lá aceitava meter-se na tina para eu o ensaboar, embora preferisse lavar-se aos bocados com um pano molhado. Foram dias muito bons, em que voltámos a ser os apaixonados que éramos quando saímos de Cuzco. Antes de fazermos amor, gostava de me ler em voz alta os seus livros favoritos. Ele não sabia, porque eu queria que fosse surpresa, mas o clérigo Gonzalez de Marmolejo estava a ensinar-me a ler e escrever.
Alguns dias depois, Pedro partiu com alguns dos seus homens para percorrer a região à procura de Francisco de Aguirre e ver se conseguia falar com os índios. Era o único que achava que nos poderíamos entender com eles. Aproveitei a sua ausência para tomar um banho e lavar o cabelo com quillay, a casca de uma árvore chilena que mata os piolhos e mantém o cabelo sedoso e sem cabelos brancos até à sepultura. Comigo não resultou, porque sempre o usei e tenho a cabeça completamente branca; bem, pelo menos não estou meio careca, como tantas pessoas da minha idade. De tanto caminhar e cavalgar, doíam-me as costas e uma das minhas índias deu-me uma massagem com um bálsamo de peumo, preparado por Catalina. Deitei-me bastante aliviada, com Baltasar a meus pés. O cão tinha dez meses e ainda era muito brincalhão, mas tinha um bom tamanho e já se lhe adivinhava o seu carácter de guardião. Pela primeira vez, não fui atormentada pela insónia e adormeci de imediato.
Já passava da meia-noite quando acordei com uns grunhidos surdos de Baltasar. Sentei-me na cama, tacteando com uma mão na escuridão à procura de um xaile para me cobrir, enquanto, com a outra, segurava Baltasar. Foi então que senti um ruído abafado vindo da outra divisão e não tive dúvidas de que havia alguém na tenda. Primeiro, pensei que Pedro tinha voltado, porque os soldados que guardavam a porta não teriam deixado passar mais ninguém, mas a atitude do cão deixou-me alerta. Não havia tempo para acender uma vela.
- Quem está aí? - gritei assustada.
Seguiu-se uma pausa tensa e, logo depois, alguém chamou por Pedro de Valdivia.
- Não está aqui. Quem o procura? - perguntei, agora com a voz irada.
- Desculpai, senhora, sou Sancho de Ia Hoz, leal servidor do capitão-general. Demorei muito tempo até chegar aqui e desejo saudá-lo.
- Sancho de Ia Hoz? Como vos atreveis, cavalheiro, a entrar na minha tenda a meio da noite! - exclamei.
Naquela altura, Baltasar ladrava com raiva, alertando os guardas. Em poucos minutos, logo acudiram Don Benito, Quiroga, Juan Gomez e outros com luzes e sabres desembainhados, prontos para tirar do meu quarto não só o insolente De Ia Hoz, mas também os quatro homens que o acompanhavam. A primeira reacção dos meus protectores foi prendê-los de imediato, mas convenci-os de que se tratava apenas de um mal-entendido. Roguei-lhes que se retirassem e ordenei a Catalina que preparasse alguma coisa para os recém-chegados comerem, enquanto me vestia à pressa. Servi-lhes vinho com as minhas próprias mãos e servi-lhes a ceia com hospitalidade, demasiado atenta ao que me queriam contar acerca das penúrias da sua viagem.
Entre um copo e outro, saí da tenda para pedir a Don Benito que mandasse, de imediato, um mensageiro a Pedro de Valdivia. A situação era muito delicada, porque De Ia Hoz tinha vários partidários entre a gente descontente e fraca da nossa expedição. Alguns soldados acusavam Valdivia de ter usurpado a conquista do Chile ao enviado da Coroa, já que as cédulas reais de Sancho de Ia Hoz tinham mais autoridade do que a autorização dada por Pizarro. No entanto, De Ia Hoz não tinha apoio económico, tinha delapidado em Espanha a parte que lhe tocara do resgate de Atahualpa, não conseguira arranjar dinheiro, navios ou soldados para a sua empresa e a sua palavra valia tão pouco que tinha estado preso no Peru por dívidas e calotes. Suspeitei que pretendia desenvencilhar-se de Valdivia, apoderar-se da expedição e prosseguir sozinho a conquista do Chile.
Decidi tratar os cinco visitantes com a máxima consideração, para que ganhassem confiança e baixassem a guarda até Pedro chegar. Em primeiro lugar, atafulhei-os de comida e deitei na garrafa de vinho dormideira suficiente para derrubar um boi, porque não queria escândalos no acampamento; a última coisa que nos convinha era ter a gente dividida em dois bandos, como aliás podia acontecer se De Ia Hoz começasse a levantar dúvidas sobre a legitimidade de Valdivia. Ao ver-me com tais amabilidades, os cinco desalmados ter-se-ão rido bastante nas minhas costas, satisfeitos por terem conseguido enganar com a sua desenvoltura uma pobre e estúpida mulher, mas em menos de uma hora estavam tão bêbados e drogados, que não opuseram a menor resistência quando Don Benito e os guardas os vieram buscar. Ao revistá-los, descobriram que cada um deles tinha um punhal encastoado em prata lavrada, todos iguais, e então não restaram dúvidas de que se tratava de uma conspiração encenada para assassinar Valdivia. Os punhais idênticos só podia ser ideia do cobarde De Ia Hoz, que assim conseguia repartir por cinco a responsabilidade do crime. Os nossos capitães queriam fazer justiça ali mesmo, com as suas próprias mãos, mas fiz-lhes ver que uma decisão tão grave só podia ser tomada por Pedro de Valdivia. Foi preciso muita astúcia e firmeza para impedir que Don Benito pregasse De Ia Hoz à primeira árvore que lhe aparecesse à frente.
Três dias depois Pedro regressou, já informado da conspiração. No entanto, a notícia não lhe tinha esmorecido o ânimo, porque tinha encontrado o seu amigo Francisco de Aguirre, que já o esperava há várias semanas e, além disso, tinha quinze homens a cavalo, dez mosquetes, muitos índios e alimentos suficientes para vários dias. Se bem me lembro, com eles, o nosso contingente aumentou para cento e trinta e tal soldados; e esse milagre era bem maior do que a Fonte da Virgem.
Antes de discutir com os seus capitães sobre o assunto Sancho de la Hoz, Pedro reuniu-se comigo para ouvir a minha versão do ocorrido. Dizia-se, muitas vezes, que eu tinha enfeitiçado Pedro com os meus encantamentos de bruxa e poções afrodisíacas, que o enlouquecia na cama com aberrações de turca, que lhe absorvia a potência, lhe anulava a vontade, enfim, fazia o que queria dele. Nada podia estar mais longe da verdade. Pedro era teimoso e sabia muito bem o que queria; ninguém era capaz de o fazer mudar de ideias por artes de magia ou sedução, só com argumentos válidos. Não era homem para pedir conselhos abertamente, e muito menos a uma mulher, mas na nossa intimidade deixava-se ficar calado, passeando-se pelo quarto, até que eu decidia oferecer-lhe a minha opinião. Procurava fazê-lo de forma vaga, para que acabasse por achar que a decisão era sua. Este sistema sempre funcionou muito bem. Um homem faz o que pode, uma mulher faz o que o homem não pode fazer. Não me parecia acertado julgar Sancho de la Hoz, como sem dúvida merecia, porque estava protegido pelas cédulas reais e tinha muitos parentes com ligações à corte de Madrid, que podiam acusar Valdivia de insurreição. O meu dever era evitar que o meu amante acabasse na mesa de tortura ou no patíbulo.
- O que se faz com um traidor destes? - resmungou Pedro, enquanto se passeava como um galo de luta.
- Sempre me disseste que é conveniente ter os inimigos por perto, onde se possam vigiar...
Em vez de julgar de imediato os acusados, Pedro de Valdivia decidiu esperar algum tempo e averiguar como estavam os ânimos dos soldados, recolher provas da conspiração e desmascarar os cúmplices ocultos entre os nossos homens. Surpreendentemente, deu ordens a Don Benito para levantar o acampamento e rumar para sul, levando os prisioneiros acorrentados e todos mortos de medo, todos menos o néscio Sancho de la Hoz, que se achava superior à justiça e que, apesar dos ferros, continuava a aprumar-se, dedicando-se a conquistar adeptos para a sua causa. Exigiu uma índia de serviço na prisão, para lhe engomar a gola e as calças, eriçar-lhe o cabelo, borrifá-lo de perfume e polir-lhe as unhas. Os homens não receberam bem a notícia da partida, porque estavam confortáveis naquele lugar, que era fresco, havia água e árvores. Don Benito recordou-lhes aos gritos que as decisões do chefe não se questionavam. E bem ou mal, bem vistas as coisas, Valdivia já os tinha conduzido até ali com o mínimo de inconvenientes; a travessia do deserto fora um êxito, já que só tínhamos perdido três soldados, seis cavalos e três lamas. Ninguém contou os yanaconas que faltavam, mas segundo Catalina eram para aí uns trinta ou quarenta.
Quando conheci Francisco de Aguirre, senti imediatamente que podia confiar nele, apesar do seu aspecto intimidante. Com o tempo, aprendi a temer a sua crueldade. Era um homenzarrão exagerado, amigo do barulho, alto e robusto, de gargalhada fácil. Bebia e comia por três e, segundo me contou Pedro, era capaz de engravidar dez índias numa noite e dez na noite seguinte. Já passaram muitos anos e agora Aguirre é um ancião sem escrúpulos de consciência nem rancores, ainda está lúcido e são, apesar de ter passado muitos anos nos calabouços pestilentos da Inquisição e do Rei. Vive bem graças a uma porção de terra que lhe cedeu o meu defunto marido. Seria difícil encontrar duas pessoas mais diferentes do que o meu Rodrigo, bondoso e nobre, e esse Francisco de Aguirre, tão desenfreado, mas o facto é que ambos gostavam muito um do outro, como bons soldados na guerra e amigos na paz. Rodrigo não podia permitir que o seu companheiro de peripécias acabasse os dias como um mendigo devido à ingratidão da Coroa e da Igreja, por isso protegeu-o até que a morte o levou. Aguirre, que não tem um único centímetro de corpo sem cicatrizes, passa os seus últimos dias na sua fazenda, a ver o milho crescer, juntamente com a sua mulher, que por amor veio de Espanha, os seus filhos e netos. Aos oitenta anos não está derrotado e continua a imaginar aventuras e a cantar as canções maliciosas da sua juventude. Além dos cinco filhos legítimos, arranjou, que se conheçam, mais de cem bastardos, e devem haver mais umas centenas que ninguém se deu ao trabalho de contabilizar. Na sua ideia, a melhor maneira de servir Sua Majestade nas índias era povoando-as de mestiços; chegou a sugerir que a solução para o problema indígena passava por matar todos os varões com mais de doze anos, raptar as crianças e violar as mulheres com paciência e método. Pedro achava que o seu amigo estava a brincar quando dizia isto, mas eu sei que falava a sério. Apesar do seu desaforado afã de fornicação, onde o único amor da sua vida foi a sua prima direita, com quem se casou graças a uma autorização especial do Papa, como me parece que já contei. Tem paciência comigo, Isabel: aos setenta anos tenho tendência para me repetir.
Andámos durante vários dias e chegámos ao vale de Copiapó, onde começava o território de governação correspondente a Pedro de Valdivia. Um grito de júbilo escapou do peito dos espanhóis: tínhamos chegado. Pedro de Valdivia reuniu as gentes, rodeou-se dos seus capitães, chamou-me para seu lado e, com grande solenidade, espetou o estandarte de Espanha, tomando posse. Deu-lhe o nome de «Nova Extremadura», porque era naquela região que ele tinha nascido, tal como Pizarro, a maior parte dos fidalgos da expedição e eu própria. De seguida, o capelão Gonzalez de Marmolejo armou um altar com o seu crucifixo, o cálice de ouro - o único ouro que tínhamos visto durante meses - e a pequena estatueta da Nossa Senhora do Socorro, convertida em nossa Santa Padroeira pela ajuda que nos dera no deserto. O clérigo rezou uma emotiva missa de acção de graças e todos comungámos, de alma engrandecida.
O vale era habitado por povos misturados, submetidos ao regime do Inca, mas que por viverem tão afastados do Peru não sentiam a sua influência de forma opressiva. Os seus curucas vieram receber-nos com modestas oferendas de comida e discursos de boas-vindas, que os lenguas traduziam, mas via-se que não estavam tranquilos com a nossa presença. As casas eram de barro e palha, mais sólidas e melhor ordenadas do que as que tínhamos visto antes. Também entre esta gente havia o costume de conviver com os antepassados mortos, só que, desta vez, os soldados não se arriscaram a profanar as múmias. Descobrimos algumas aldeias recém-abandonadas, pertencentes a índios hostis comandados pelo cacique Michimalonko.
Don Benito mandou instalar o acampamento num sítio resguardado, porque temia que os nativos se tornassem mais belicosos quando percebessem que não planeávamos regressar ao Peru, como tinha acontecido com a expedição de Almagro, seis anos antes. Não obstante a escassez de alimentos, Valdivia proibiu que se saqueassem as aldeias habitadas e se incomodassem os nativos, para ver se conseguíamos fazer deles nossos aliados. Don Benito tinha capturado outros mensageiros, que, ao ser interrogados, repetiram o que já sabíamos: o Inca tinha ordenado ao povo que fugisse com as suas famílias para os montes, destruindo ou ocultando os alimentos, coisa que a maior parte dos indígenas fez. Don Benito concluiu, por conseguinte, que os Chilenos - como chamava aos habitantes do Chile sem fazer qualquer distinção entre as tribos - tinham certamente escondido a comida na areia, onde era mais fácil cavar. Mandou todos os soldados, menos os que estavam de guarda, percorrer aquela zona, espetando espadas e lanças no solo até encontrar os alimentos enterrados, conseguindo, dessa forma, obter milho, batatas, feijões e até umas abóboras com chicha fermentada, que eu própria confisquei, porque era boa para ajudar os feridos a suportar as dores das cauterizações.
Mal o acampamento ficou pronto, Don Benito mandou construir uma forca e Pedro de Valdivia anunciou que, no dia seguinte, se procederia ao julgamento de Sancho de la Hoz e dos outros prisioneiros. Os capitães de sua confiança reuniram-se na nossa tenda, em redor da mesa, cada um na sua banqueta de madeira e o chefe na sua poltrona. Perante o assombro geral dos presentes, Valdivia mandou chamar-me e indicou-me uma cadeira ao seu lado. Senti-me um pouco inibida pelos olhares incrédulos dos capitães, que jamais tinham visto uma mulher num conselho de guerra. «Ela salvou-nos da sede no deserto e da conspiração destes traidores, por isso merece mais do que ninguém participar desta reunião», disse Valdivia, e ninguém se atreveu a contradizê-lo. Juan Gomez, que estava muito nervoso porque Cecilia estava a dar à luz nesse momento, colocou os cinco punhais idênticos em cima da mesa, explicou o que tinha averiguado sobre o atentado e nomeou os soldados cuja lealdade era duvidosa, sobretudo um tal Ruiz, que tinha deixado entrar os conspiradores no acampamento e distraído os vigias da nossa tenda. Os capitães discutiram demoradamente o risco de executar De la Hoz e, no fim, prevaleceu a opinião de Rodrigo de Quiroga, que coincidia com a minha. Eu tratei de estar de boca bem fechada, para que não me acusassem de ser uma mulher-macho que dominava Valdivia. Verifiquei se o vinho estava a ser servido, prestei atenção e assenti mansamente quando Quiroga falou. Valdivia já tinha tomado a sua decisão, mas estava à espera que outro a propusesse, para não parecer acobardado pelas cédulas reais de Sancho de la Hoz.
Tal como estava anunciado, o julgamento teve lugar no dia seguinte na tenda dos prisioneiros. Valdivia foi o único juiz, auxiliado por Rodrigo de Quiroga e outro militar, que actuou como secretário e ministro de fé. Desta vez não assisti, mas não me custou nada averiguar exactamente a versão completa dos acontecimentos. Colocaram guardas armados em redor da tenda, para conter os curiosos, e puseram uma mesa, atrás da qual se sentaram os capitães, flanqueados por dois escravos negros, especialistas em aplicar suplícios e fazer justiça. O ministro de fé abriu os seus livrecos e preparou a pena e o tinteiro, enquanto Rodrigo de Quiroga alinhava os cinco punhais em cima da mesa. Tinham igualmente levado um dos meus braseiros peruanos repleto de brasas incandescentes, não tanto para aquecer o ambiente, mas para aterrorizar os prisioneiros, conscientes de que a tortura faz parte de qualquer julgamento deste tipo; o fogo usa-se mais com índios do que com fidalgos, mas ninguém estava certo daquilo que Valdivia tinha em mente. De pé, em frente à mesa e carregados de correntes, os acusados, ouviram durante mais de uma hora, as acusações que lhes eram imputadas. Não tiveram a menor dúvida de que «o usurpador», como chamavam a Valdivia, conhecia até ao mais ínfimo detalhe a conspiração que tinha sido urdida contra ele, incluindo a lista completa dos partidários de Sancho de la Hoz infiltrados na nossa expedição. Não havia alegações possíveis. Ao sermão de Valdivia, seguiu-se um longo silêncio, enquanto o secretário acabava de anotar no seu livro o que fora dito.
- Têm alguma coisa a dizer? - perguntou, por fim, Rodrigo de Quiroga.
Foi então que Sancho de la Hoz perdeu o seu habitual aprumo e caiu de joelhos no chão, dizendo que confessava tudo aquilo de que o acusavam, menos o propósito de assassinar o general, a quem os cinco respeitavam e por quem dariam as suas vidas. A história dos punhais era uma brincadeira, bastava examiná-los para perceber imediatamente que não eram armas a sério. Os restantes seguiram-lhe o exemplo, suplicando que os perdoasse e jurando fidelidade eterna. Valdivia mandou-os calar. Seguiu-se outro momento de silêncio insuportável, até que o chefe se pôs de pé para ditar a sentença, que a mim me pareceu injusta, mas que não me atrevi a comentar, mais tarde, com ele, porque supus que teria boas razões para fazer o que fez.
Três dos conspiradores foram condenados ao desterro: teriam de regressar a pé até ao Peru, pelo deserto, com um punhado de índios auxiliares e um lama. Outro foi posto em liberdade sem nenhuma explicação. Sancho de la Hoz assinou uma escritura - a primeira do Chile - que anulava a sociedade com Valdivia e permaneceu acorrentado e preso, sem sentença imediata, acabando por ficar no limbo da incerteza. O mais estranho é que, nessa noite, Valdivia mandou executar Ruiz, o soldado que tinha sido cúmplice, mas que não fazia parte dos cinco que entraram na nossa tenda com os famosos punhais. O próprio Don Benito vigiou os negros que o enforcaram e o esquartejaram logo de seguida. A cabeça e as quatro partes do seu corpo, desfeitas à machadada, foram expostas em ganchos de carniceiro em vários pontos do acampamento, para recordar aos indecisos como se pagava pela deslealdade a Valdivia. Ao terceiro dia, o cheiro era tão repugnante e as moscas eram tantas que tiveram de queimar os restos.
O parto de Cecília, a princesa inca, foi longo e difícil, porque a criatura estava voltada ao contrário no seu ventre. As comadres dizem que se uma criança sobreviver a este tipo de nascimento, será certamente um homem afortunado. Catalina tirou-o da mãe aos puxões e o bebé saiu roxo, embora saudável e chorão. Foi um bom augúrio que o primeiro mestiço chileno tenha nascido de pés.
Catalina aguardava por Juan Gomez à porta da nossa tenda, enquanto os capitães iam deliberando sobre a sorte dos conspiradores.
Aquele homem, que tinha passado por mais provações do que qualquer um dos demais valentes durante a travessia do deserto, cedendo a sua ração de água à mulher, andando a pé, para lhe dar o cavalo quando a sua mula estava magoada e, para além disso, oferecendo o seu peito para a proteger dos ataques dos índios, começou a chorar quando Catalina lhe colocou o filho nos braços.
- Vai chamar-se Pedro, em honra do nosso governador - anunciou Gómez, por entre soluços.
Todos celebraram a decisão, menos Pedro de Valdivia.
- Não sou governador, apenas tenente-governador, representante do Marquês Pizarro e de Sua Majestade - recordou-nos, secamente.
- Já estamos no território que lhe competia conquistar, capitão-general, e este vale é bastante bom. Por que não fundamos aqui a cidade? - sugeriu Gómez.
- Boa ideia. Pedrito Gómez será a primeira criança baptizada na cidade - corroborou Jerónimo de Alderete, que ainda não se tinha recomposto totalmente das febres da selva, agoniado que estava ante a perspectiva de ter de continuar a andar.
Mas eu sabia que Pedro queria ir para sul, o mais para sul possível, para se afastar do Peru. A sua ideia era estabelecer a primeira cidade onde não chegassem os compridos braços do Marquês Governador, a Inquisição, os caga-tintas e os come-merda, como chamava, em privado, aos mesquinhos funcionários da Coroa, que estavam de garras afiadas só para dar cabo do Novo Mundo.
- Não, senhores. Continuaremos até ao vale do Mapucho. Segundo Don Benito, que ali esteve com Diego de Almagro, esse é o local ideal para estabelecermos a nossa colónia.
- A quantas léguas de distância fica esse vale? - insistiu Alderete.
- Muitas, mas não tantas como as que já percorremos - explicou Don Benito.
Primeiro, tratámos Cecilia com infusões de folhas de buella, até que expulsou os restos do parto, que estavam retidos, e logo de seguida tratámos de parar a hemorragia com um licor preparado com raízes de oreja de zorro, receita chilena que Catalina tinha acabado de aprender e que acabou por surtir um resultado imediato. Enquanto os nossos soldados enfrentavam os índios em várias escaramuças, Catalina saía tranquilamente do acampamento para se juntar às índias chilenas e trocar remédios. Não sei como conseguia passar pelos vigias sem ser vista e confraternizar com o inimigo sem que lhe rebentassem o crânio com uma marretada. O pior foi que, por ter ingerido tantas ervas curativas, Cecilia ficou sem leite, de maneira que o pequeno Pedro Gómez passou a ser criado com leite de lama. Se tivesse nascido uns meses mais tarde, tinha contado com várias amas-de-leite, porque havia muitas índias prenhas. O leite de lama deu-lhe uma especial doçura, que acabaria por constituir um grave impedimento no futuro, simplesmente porque lhe calhou em sorte viver e lutar no Chile, que não é o lugar ideal para homens de coração demasiado terno.
E, já agora, devo referir-me a outro episódio que não terá muito interesse, salvo para um pobre soldado de apelido Escobar, mas que serve para mostrar o carácter de Pedro de Valdivia. O meu amante era um homem generoso, de ideias magníficas, sólidos princípios católicos e uma coragem a toda a prova - tudo boas razões para ser admirado -, mas também tinha os seus defeitos, alguns bastante graves. O pior deles foi, seguramente, a sua ambição desmedida pela fama, que acabou por lhe custar a vida, a ele e a muitos outros; mas, para mim, o mais difícil de ultrapassar foram os seus ciúmes. Sabia que eu seria incapaz de o trair, primeiro, porque não fazia parte da minha natureza e depois porque o amava demasiado. Mas então, por que duvidava de mim? Ou, se calhar, talvez duvidasse de si mesmo.
Os soldados tinham quantas índias queriam, umas à força, outras mais complacentes, mas do que mais sentiam falta era das palavras de amor sussurradas em castelhano. Os homens só desejam aquilo que não têm. Eu era a única espanhola da expedição, a amante do chefe, visível, presente, intocável e, por isso, cobiçada. Questionei-me muitas vezes se teria sido responsável pelas acções de Sebastian Romero, do alferes Núnez ou deste rapaz, Escobar. Não encontro outra falha em mim que não seja a minha própria condição de mulher, embora só isso já pareça ser crime suficiente. A nós, culpam-nos sempre pela luxúria dos homens, mas não será que o pecado está em quem o comete? Por que hei-de pagar eu pelos erros dos outros?
Comecei a viagem vestida como costumava andar em Plasencia
- saiotes, espartilho, camisa, saias, touca, xaile, meias -, mas rapidamente tive necessidade de me adaptar às circunstâncias. É impossível cavalgar mil léguas de lado, montando como as senhoras sem dar cabo das costas; por isso, tive de montar como os homens. Arranjei umas calças de homem e umas botas, tirei o espartilho de barbas de baleia, que não há quem aguente, desfiz-me rapidamente da touca e entrancei o cabelo, como fazem as índias, porque me pesava imenso na nuca, mas nunca andei decotada nem permiti qualquer tipo de familiaridades com os soldados. Nos encontros com os índios hostis, colocava um elmo, uma couraça leve de couro e protecções para as pernas, que Pedro mandou fazer de propósito para mim; caso contrário, teria sucumbido às flechas logo na primeira parte do percurso. Se isto incendiou o desejo de Escobar e de outros soldados da expedição, então não entendo como funciona a mente masculina. Fartei-me de ouvir Francisco de Aguirre dizer que os humanos só pensam em comer, fornicar e matar, aliás, uma das suas frases favoritas, embora não seja inteiramente verdade, porque os humanos também pensam em poder. Recuso-me a dar razão a Aguirre, não obstante as muitas debilidades que encontrei nos homens. Nem todos são iguais.
Os nossos soldados falavam muito de mulheres, em especial quando tínhamos de acampar durante vários dias e não havia nada para fazer, além de cumprir com os seus turnos de guarda e esperar. Trocavam impressões sobre as índias, vangloriavam-se das suas proezas - violações - e comentavam com inveja as façanhas do mítico Aguirre. Infelizmente, o meu nome aparecia frequentemente nessas conversas, diziam que era uma fêmea insaciável, que montava como os homens para me excitar com o cavalo e que, debaixo das saias, usava ceroulas. Este último detalhe era verdade, já que não podia montar como um homem com
as coxas nuas.
O soldadito mais novo da expedição, um rapaz chamado Escobar, de apenas dezoito anos, e que tinha chegado ao Peru como grumete, ainda criança, escandalizava-se com tais comentários. Ainda não estava manchado pela violência da guerra e tinha uma ideia romântica acerca da minha pessoa. Estava na idade em que nos entregamos ao amor. Meteu na cabeça que eu era um anjo arrastado pelos apetites perversos de Valdivia, que me obrigava a servi-lo na cama como se fosse uma qualquer. Soube disto por intermédio das criadas índias, que sempre me informaram de tudo o que se passava à minha volta. Para elas, não há segredos, porque os homens não têm cuidado com o que dizem à sua frente, tal como também não se coíbem de o fazer quando estão perto dos cavalos ou dos cães. Acham que não entendemos o que dizem. Observei, dissimulada, a conduta do rapaz e confirmei que me rondava. Com a desculpa de ensinar truques a Baltasar, que raramente saía do meu lado, ou para que lhe mudasse a ligadura de um braço ferido, ou ainda que o ensinasse a fazer papas de milho, porque as suas índias eram umas inúteis, o facto é que Escobar fazia de tudo para estar perto de mim.
Pedro de Valdivia considerava Escobar pouco mais do que um miúdo, e não creio que se preocupasse muito com ele antes de começarem a surgir as primeiras piadas vindas dos soldados. Mal se aperceberam de que o interesse do rapaz por mim era mais romântico do que sexual, nunca mais o deixaram em paz, provocando-o até lhe arrancarem lágrimas de humilhação. Era inevitável que, mais tarde ou mais cedo, as piadas chegassem aos ouvidos de Valdivia, que começou por me fazer perguntas desconfiadas, para, de seguida, me começar a espiar e a montar armadilhas. Enviava Escobar para me ajudar em trabalhos que, normalmente, eram da competência das índias e este, em vez de rejeitar a ordem, como teria feito qualquer outro soldado, corria a fazer-lhe a vontade. Por diversas ocasiões, encontrei Escobar na minha tenda, porque Pedro o mandava buscar qualquer coisa quando sabia que eu estava sozinha. Acho que devia tê-lo enfrentado desde o início, mas não me atrevi a tal, porque os ciúmes transformavam-no num monstro e, dessa forma, poderia imaginar que eu tinha mesmo motivos ocultos para proteger Escobar.
Este jogo satânico, que começou pouco depois da nossa saída de Tarapacá, foi esquecido durante a espantosa travessia do deserto, onde ninguém tinha ânimo para disparates, mas logo voltou a lume, ainda com mais intensidade, no calmo vale de Copiapó. A ferida ligeira que Escobar tinha num braço infectou, apesar de ter sido queimada, por isso tinha de a tratar e mudar a ligadura com frequência. Cheguei a temer que fosse necessária uma intervenção mais drástica, mas Catalina fez-me ver que a carne não cheirava mal e que o rapaz não tinha febre. «Ele anda a coçar-se, pois, senoray, não vês?» insinuou. Recusei-me a acreditar que Escobar mexesse propositadamente na ferida com o pretexto de o tratar, mas percebi que chegara o momento de falar com ele.
Era a hora do anoitecer, quando a música começava a soar no acampamento: as violas e flautas dos soldados, os tristes pífaros dos índios, os tambores africanos dos capatazes. Junto a uma das fogueiras, a voz quente de tenor de Francisco de Aguirre entoava uma canção picaresca. No ar, flutuava o cheiro delicioso da única comida do dia, carne assada, milho e tortilhas no braseiro. Catalina tinha desaparecido, como aliás acontecia frequentemente à noite, e eu estava na minha tenda com Escobar, a quem acabara de limpar a ferida, acompanhados por Baltasar, que entretanto se tinha afeiçoado ao rapaz.
- Se isto não melhorar rapidamente, receio que teremos de amputar o braço - disse-lhe, subitamente.
- Um soldado maneta não serve de nada, dona Inés - murmurou, lívido de medo.
- Um soldado morto vale ainda menos.
Ofereci-lhe um copo de chicha de cacto para o ajudar a recuperar do susto e para eu própria ganhar algum tempo, porque não sabia como abordar o tema. Por fim, acabei por me decidir pela franqueza.
- Já percebi que me procurais, Escobar, e como isso pode ser bastante inconveniente para os dois, de agora em diante será Catalina quem vos fará os curativos.
E então, como se estivesse à espera que alguém lhe abrisse a porta do coração, Escobar soltou um chorrilho de confissões misturadas com declarações e promessas de amor. Recordei-lhe com quem estava a falar, mas nem sequer me deixou continuar. Abraçou-me com tanta força e tão pouca sorte, que ao chegar-me para trás, tropecei em Baltasar e caí no chão de costas, com Escobar em cima de mim. Se tivesse sido qualquer outro a agarrar-me daquela maneira, Baltasar tê-lo-ia atacado de imediato, mas como conhecia bem o jovem, achou que era um jogo e, em vez de o agredir, saltava à nossa volta, ladrando todo contente. Sou forte e não tive dúvidas de que podia defender-me, por isso não gritei. Tendo em conta que apenas uma tela encerada nos separava das pessoas lá fora, não podia fazer escândalo. Com o braço ferido, ele mantinha-me apertada contra o seu peito, enquanto com a outra mão me segurava a nuca e os seus beijos, molhados de saliva e lágrimas, escorriam pelo meu colo e cara. Ainda cheguei a chamar pela Nossa Senhora do Socorro, preparando-me para lhe dar uma valente joelhada na virilha, só que era tarde de mais, porque, nesse instante preciso, irrompeu Pedro de espada em punho. Tinha estado o tempo todo no outro quarto da barraca a espiar-nos.
- Nãoo! - gritei, horrorizada, quando o vi disposto a trespassar com a espada o infeliz soldadito.
Com um impulso brutal, consegui voltar-me, para cobrir Escobar, que ficou debaixo de mim. Procurei protegê-lo da espada e do cão, que já tinha assumido o seu papel de guardião, tentando mordê-lo.
Não houve julgamento nem explicações. Pedro de Valdivia mandou simplesmente chamar Don Benito e ordenou-lhe que enforcasse o soldado Escobar na manhã seguinte, depois da missa, perante o acampamento em formatura. Don Benito levou o vacilante rapaz por um braço e deixou-o numa das tendas sob vigia, mas sem correntes. Escobar estava feito num farrapo, não com medo de morrer, mas pela dor que inundava o seu coração destroçado. Pedro de Valdivia dirigiu-se para a tenda de Francisco de Aguirre, onde ficou a jogar às cartas com os outros capitães e só regressou ao amanhecer. Não me deixou falar com ele e, se o tivesse feito, creio que pela primeira vez não teria encontrado forma de o fazer mudar de opinião. Estava possuído pelos ciúmes.
Entretanto, o capelão Gonzalez de Marmolejo tentava consolar-me, dizendo que o sucedido não era culpa minha, mas sim de Escobar, por desejar a mulher do próximo, ou alguma outra palermice do género.
- Espero que não ireis ficar de braços cruzados, Padre. Deve tentar convencer Pedro de que está a cometer uma grave injustiça - exigi.
- O capitão general deve manter a ordem entre a sua própria gente, filha, não pode permitir este tipo de ofensas.
- Pedro permite que os seus homens violem e maltratem as mulheres dos outros, mas ai de quem tocar na sua!
-Já não pode voltar com a palavra atrás. Uma ordem é uma ordem.
- E claro que pode voltar com a palavra atrás! A falta deste jovem não merece a forca e vós sabei-lo tão bem como eu. Vá falar com ele!
- Vou, dona Inés, mas digo-vos já que ele não vai mudar de opinião.
- Podeis ameaçá-lo com a excomunhão...
- Essa ameaça não se faz assim de forma tão ligeira! - exclamou o padre, horrorizado.
- Em contrapartida, Pedro pode facilmente carregar com mais uma morte na consciência, não é? - respondi.
- Dona Inés, falta-vos a humildade. Isto não está nas vossas mãos, está nas mãos de Deus.
Gonzalez de Marmolejo foi falar com Valdivia. Fê-lo em frente aos capitães que com ele jogavam às cartas, porque pensou que estes o ajudariam a convencer Pedro a perdoar Escobar. Não podia estar mais enganado. Valdivia não podia dar o braço a torcer em frente aos seus camaradas, que além do mais lhe davam razão; se estivessem no seu lugar, teriam feito o mesmo.
Então, fui à tenda de Juan Gómez e de Cecilia, com a desculpa de ver o recém-nascido. A princesa inca estava mais bela do que nunca, deitada sobre um colchão macio, a descansar, rodeada das suas servas. Uma índia massajava-lhe os pés, outra penteava-lhe o cabelo negro e uma terceira espremia um tecido embebido em leite de lama para a boca do bebé. Juan Gómez, embevecido, observava a cena como se estivesse perante o Menino Jesus na manjedoura. Senti uma ponta de inveja: teria dado a vida para estar no lugar de Cecilia. Depois de felicitar a jovem mãe e dar um beijo no pequenito, agarrei o pai pelo ombro e levei-o para a rua. Contei-lhe o que tinha acontecido e pedi-lhe ajuda.
- O senhor é o nosso oficial, don Juan, faça alguma coisa, por favor - roguei-lhe.
- Não posso contrariar uma ordem de don Pedro de Valdivia respondeu-me, com os olhos esbugalhados.
- Tenho até vergonha de lhe recordar isto, mas o senhor deve-me um favor, don Juan...
- Senhora, por acaso, está a pedir-me isto porque tem algum interesse particular no soldado Escobar? - perguntou-me.
- Como se atreve! Faria a mesma coisa por qualquer homem deste acampamento. Não posso permitir que don Pedro cometa este pecado. E não me digais que se trata de uma questão de disciplina militar, ambos sabemos que é por puro ciúme.
- O que sugere?
- Isto está nas mãos de Deus, como diz o capelão. Que vos parece se dermos uma ajudinha à mão divina?
No dia seguinte, depois da missa, Don Benito convocou toda a gente à praça central do acampamento, onde ainda estava a forca que tinha servido para o desgraçado Ruiz, com a corda preparada. Decidi assistir pela primeira vez, porque até então tinha feito de tudo para não presenciar torturas ou execuções, bastando-me, para tal, a violência das batalhas e o sofrimento dos feridos e doentes, que tinha de curar. Levei a Nossa Senhora do Socorro nos braços, para que todos a pudessem ver. Os capitães colocaram-se na primeira fila formando um quadrilátero, seguidos dos soldados e, mais atrás, dos capatazes e da multidão deyanaconas, índios de serviço e índias. O capelão tinha passado a noite toda a rezar, depois do fracasso da sua conversa com Valdivia. Tinha a pele esverdeada e olheiras roxas, como acontecia sempre que se autoflagelava, ainda que, segundo as índias, que sabiam muito bem o que eram chicotadas de verdade, os seus chicotes só fizessem cócegas.
Um meirinho e o rufo dos tambores anunciaram a execução. Juan Gómez, na sua qualidade de oficial, anunciou que o soldado Escobar tinha cometido um grave acto de indisciplina, tinha entrado na tenda do capitão-general com segundas intenções e atentado contra a sua honra. Não eram necessárias mais explicações e ninguém tinha dúvidas de que o rapaz pagaria com a vida o seu amor de cachorro. Os dois negros encarregues das execuções escoltaram o réu até à praça. Escobar não ia acorrentado, caminhando direito como uma lança, tranquilo, com o olhar fixo em frente, como se estivesse a sonhar. Pedira que o deixassem lavar-se, fazer a barba e vestir uma roupa limpa. Colocou-se de joelhos e o capelão deu-lhe a extrema-unção, benzeu-o e deu-lhe a Santa Cruz para beijar. Os negros conduziram-no ao patíbulo, ataram-lhe as mãos nas costas e os tornozelos, e depois colocaram a corda à volta do seu pescoço. Escobar não permitiu que lhe colocassem um capuz, pois acho que queria morrer a olhar para mim, para desafiar Pedro de Valdivia. Aguentei o seu olhar, tentando consolá-lo.
Ao segundo toque de tambores, os negros tiraram o suporte debaixo dos pés do réu e este ficou a pairar no ar. Reinava um silêncio de morte em todo o acampamento, onde só se ouviam os tambores. Durante um tempo, que pareceu uma eternidade, o corpo de Escobar balançou-se na forca, enquanto eu rezava fervorosamente, desesperada, apertando a estatueta da Virgem contra o peito. E foi então que sucedeu o milagre: a corda partiu-se subitamente e o rapaz caiu desamparado no chão, onde ficou estendido, como se estivesse morto. Muita gente deixou escapar um longo grito de surpresa. Pedro de Valdivia deu três passos à frente, branco como a cal, sem poder acreditar no que tinha acontecido. Antes mesmo de ter tempo de dar alguma ordem aos verdugos, o capelão deu um passo em frente, com a Santa Cruz ao alto, tão perplexo como os demais.
- É o julgamento de Deus! É o julgamento de Deus! - gritava.
Como uma onda, ouvi primeiro um murmúrio e, logo depois, uma algazarra frenética por entre os índios, que contrastava com a rigidez dos soldados espanhóis, até que um deles se benzeu e ajoelhou-se no chão. Seguiu-se outro soldado, e mais um, e outro, até que todos, menos Pedro de Valdivia, estávamos ajoelhados. O julgamento de Deus...
O oficial Juan Gomez empurrou um dos verdugos para o lado e ele mesmo tirou a corda do pescoço de Escobar, cortou-lhe as amarras dos pulsos e dos tornozelos e ajudou-o a pôr-se de pé. Só eu reparei que entregou a corda do patíbulo a um índio, que a levou de imediato, antes que alguém se lembrasse de a examinar ao pormenor. Juan Gomez já não me devia qualquer favor.
Escobar não foi posto em liberdade. A sua sentença foi comutada para o desterro, condenado a voltar ao Peru, desonrado, com um yanacona como única companhia e a pé. Caso conseguisse escapar aos índios hostis do vale, acabaria por perecer de sede no deserto e o seu corpo, ressequido e dissecado como o das múmias, ficaria sem sepultura. Ou seja, teria sido mais misericordioso deixá-lo morrer pela forca. Uma hora depois, abandonou o acampamento com a mesma calma e dignidade com que se dirigira ao patíbulo. Os soldados que antes troçaram dele até o enlouquecer, formaram duas filas, em sinal de respeito, por onde Escobar passou, lentamente, despedindo-se com o olhar, sem uma palavra. Muitos tinham lágrimas nos olhos, arrependidos e envergonhados. Um entregou-lhe a sua espada, outro um machado pequeno, enquanto um terceiro transportava um lama carregado com algumas bagagens e odres de água. Eu observava a cena à distância, lutando contra a animosidade que sentia em relação a Valdivia, tão feroz que me sufocava. Quando o rapaz já tinha abandonado o acampamento, fui a correr ao seu encontro, desmontei e dei-lhe o meu único tesouro, o meu cavalo.
Permanecemos sete semanas no vale, onde chegaram mais vinte espanhóis, entre eles dois frades e um tal Chinchilla, homem sedicioso e vil, que desde o início conspirara com Sancho de la Hoz para assassinar Valdivia. Entretanto, tinham tirado as grilhetas a De Ia Hoz, que circulava livre pelo acampamento, aprumado e bem cheiroso, disposto a vingar-se do capitão-general, embora bem vigiado por Juan Gomez. Dos cento e cinquenta homens que agora formavam a expedição, apenas nove não eram fidalgos, filhos da nobreza rural ou empobrecida, mas, mesmo assim, estes nove eram tão afidalgados como o melhor dos melhores. Segundo Valdivia, isso não queria dizer nada, porque o que mais há em Espanha são fidalgos, mas eu acho que, lá no fundo, estes fundadores deixaram as suas presunções como legado ao Reino do Chile. Ao sangue altivo dos Espanhóis, juntou-se o sangue indómito da raça mapuche e, desta mistura, resultou um povo dono de um orgulho demente.
Depois da expulsão do jovem Escobar, o acampamento demorou alguns dias a voltar à normalidade. As pessoas andavam revoltadas e sentia-se a fúria no ar. Aos olhos dos soldados, a culpa tinha sido minha; eu é que tentara o pobre rapaz, exasperando-o e entregando-o à morte. Eu, a concubina impudica. Pedro de Valdivia só cumprira com o dever de defender a sua honra. Durante muito tempo, senti o rancor desses homens como uma queimadura na pele, da mesma forma como antes tinha sentido a sua lascívia. Catalina aconselhou-me a permanecer na minha tenda até os ânimos arrefecerem, mas havia muito trabalho a fazer com os preparativos da viagem e não tive outro remédio senão enfrentar a maledicência.
Pedro andava ocupado com a incorporação dos novos soldados e com os rumores de traição que circulavam, mas mesmo assim arranjou tempo para expurgar em mim a sua ira. Se compreendeu os excessos cometidos na sua obsessão em vingar-se de Escobar, a verdade é que nunca o admitiu. A culpa e os ciúmes incendiaram-lhe o desejo e queria possuir-me a todo o momento, até a meio do dia. Interrompia os seus deveres e conferências com os outros capitães para me arrastar até à tenda, à frente de todo o acampamento, de tal modo que toda a gente sabia o que se passava. Valdivia não se importava, fazia-o de propósito para estabelecer a sua autoridade, para me humilhar e para desafiar os coscuvilheiros. Nunca, até então, tínhamos feito amor com tanta violência, deixava-me dorida e esperava que eu gostasse. Queria que gemesse de dor, uma vez que já não gemia de prazer. Foi esse o meu castigo, sofrer o que sofre uma rameira, tal como o castigo de Escobar foi perecer no deserto. Aguentei os maus-tratos até onde me foi possível, pensando que, a certa altura, a soberba de Pedro havia de arrefecer, mas ao fim de uma semana fiquei sem paciência e, em vez de lhe obedecer quando quis fazer amor comigo como os cães, dei-lhe uma Sonora bofetada na cara. Não sei como aconteceu, mas a minha mão soltou-se pura e simplesmente. A surpresa deixou-nos paralisados durante longos instantes e, logo a seguir, quebrou-se o bruxedo em que estávamos presos. Pedro abraçou-me, arrependido, e eu fiquei toda a tremer, tão contrita como ele.
- O que fui fazer! A que ponto chegámos, meu amor? Perdoa-me Inés, vamos esquecer isto, por favor... - murmurou.
E assim ficámos abraçados, com a alma em farrapos, murmurando explicações e perdoando-nos, até que adormecemos esgotados, sem fazer amor. A partir daquele momento, começámos a recuperar o amor perdido. Pedro voltou a cortejar-me com a paixão e ternura dos primeiros tempos. Dávamos passeios curtos, sempre acompanhados de guardas, porque a qualquer momento os índios hostis podiam cair-nos em cima. Comíamos sozinhos na tenda, lia-me os seus livros à noite e passava horas a acariciar-me para me dar o prazer que antes me tinha negado. Estava tão ansioso por ter um filho como eu, mas eu não ficava prenha, apesar dos rosários da Virgem e dos xaropes que Catalina preparava. Sou estéril, não tive filhos com nenhum dos homens que amei, Juan, Pedro e Rodrigo, nem com aqueles com quem gozei encontros breves e secretos; mas acho que Pedro também era, porque nunca teve filhos com Marina nem com outras mulheres. «Deixar fama e memória de
mim», foi a sua razão para conquistar o Chile. Talvez desta forma tenha substituído a dinastia que não conseguiu formar. Deixou o seu apelido na História, já que não o pôde deixar aos seus descendentes.
Pedro teve a precaução e a paciência para me ensinar a usar a espada. Ofereceu-me também outro cavalo, para substituir aquele que tinha dado a Escobar, e encarregou o seu melhor cavaleiro de o treinar. Um cavalo de guerra deve obedecer por instinto ao soldado, que vai ocupado com as armas. «Nunca se sabe o que pode acontecer, Inés. Já que tiveste coragem para me acompanhar, deves estar preparada para te defenderes como qualquer um dos meus homens», avisou-me. Foi uma medida prudente. Se esperávamos descansar em Copiapó, depressa nos desenganámos, porque os índios nos atacavam sempre que abrandávamos a vigilância.
- Mandaremos emissários para lhes explicar que viemos em paz anunciou Valdivia aos seus principais capitães.
- Não é boa ideia - opinou Don Benito -, porque não há dúvida de que ainda se lembram do que aconteceu há seis anos.
- Do que falais, mestre?
- Quando vim com Don Diego de Almagro, os índios chilenos deram-nos não só mostras de amizade, mas também o ouro correspondente ao resgate do Inca, uma vez que sabiam que este tinha sido derrotado. Insatisfeito e desconfiado, o Adelantado convocou-os para uma reunião com promessas amáveis e, mal ganhou a sua confiança, deu-nos ordens para atacar. Muitos morreram na batalha, mas aprisionámos trinta caciques, atámo-los a umas estacas e queimámo-los vivos explicou o mestre-de-campo.
- Por que fizeram isso? Não era preferível a paz? - perguntou Valdivia, indignado.
- Se Almagro não o tivesse feito antes, teriam sido os índios a fazê-lo aos Espanhóis mais tarde - interrompeu Francisco de Aguirre.
O que os indígenas chilenos mais cobiçavam eram os nossos cavalos e o que mais temiam eram os cães, por isso Don Benito decidiu colocar os primeiros nos currais, vigiados pelos segundos. As hostes chilenas eram comandadas por três caciques, que, por sua vez, estavam sob as ordens do poderoso Michimalonko. Era um velho astuto, e como sabia que não tinham força para entrar a ferro e fogo no acampamento dos huincas, optou por nos cansar. Os seus guerreiros silenciosos roubavam lamas e cavalos, destruíam os víveres, raptavam as nossas índias, atacavam os grupos de soldados que partiam em busca de comida ou água. Foi assim que mataram um soldado e vários dos nossos yanaconas, que tinham aprendido a combater por necessidade, senão morreriam.
A Primavera despontou no vale e nas colinas, que se cobriram de flores, o ar tornou-se morno e as índias, lamas e éguas começaram a parir. Não há animal mais amoroso do que a cria de uma lama. O ânimo do acampamento melhorou com os recém-nascidos, que trouxeram uma nota de alegria aos muito fustigados espanhóis e aos yanaconas humilhados. Os rios, outrora turvos no Inverno, tornaram-se cristalinos e caudalosos devido ao degelo da neve das montanhas. Havia abundância de pasto para os animais, caça, vegetais e frutos para os homens. O ar de optimismo trazido pela Primavera fez-nos descurar a vigilância e, então, quando menos esperávamos, duzentos yanaconas desertaram, seguidos de mais quatrocentos. Desapareceram pura e simplesmente no ar, como se fossem feitos de fumo, e por muitas chicotadas, ordenadas pelo inclemente Don Benito, que se aplicassem aos capatazes, pelo seu descuido, e aos índios, pela sua cumplicidade, ninguém soube dizer como tinham escapado nem para onde tinham ido. Uma coisa era evidente: não podiam ir muito longe sem a ajuda dos índios chilenos que nos rodeavam, caso contrário teriam sido aniquilados. Don Benito triplicou a guarda e manteve os yanaconas amarrados de dia e de noite. Os capatazes rondavam sem descanso o seu acampamento com chicotes e cães.
Valdivia esperou que os potros e os lamas bebés ficassem com as pernas mais firmes para dar ordem para continuarmos rumo ao Sul, em direcção ao lugar paradisíaco tão anunciado por Don Benito, o vale do Mapocho. Sabíamos que Mapocho e mapuche significavam praticamente o mesmo; ou seja, teríamos de enfrentar os selvagens que tinham feito recuar os quinhentos soldados e pelo menos oito mil índios auxiliares de Almagro. Nós contávamos com cento e cinquenta soldados e menos de quatrocentos yanaconas renitentes.
Verificámos que o Chile tem a forma delgada e comprida de uma espada. É feito de um rosário de vales que se estendem por entre montanhas e vulcões, cruzados por copiosos rios. A sua costa é abrupta, de ondas terríveis e águas frias, os seus bosques são densos e aromáticos; os seus montes infinitos. Ouvíamos com frequência um suspiro telúrico e sentíamos o solo a mover-se, mas com o tempo habituámo-nos aos tremores. «Era assim que eu imaginava o Chile, Inés», confessou-me Pedro, com a voz embargada de emoção perante a virginal beleza da paisagem.
Mas nem tudo era contemplação na natureza e, como tal, exigia de nós imenso esforço, porque os índios de Michimalonko seguiam-nos sem trégua, provocando-nos constantemente. Só conseguíamos descansar em turnos curtos, porque, se nos descuidássemos, caíam-nos logo em cima. Os lamas são animais delicados que não suportam muito peso sem partir as costas, por isso tínhamos de obrigar os yanaconas a levar as cargas daqueles que tinham desertado. Ainda que só conservássemos o que era realmente indispensável - deixando para trás vários baús cheios com os meus elegantes vestidos, que no Chile não me faziam falta nenhuma -, os índios iam vergados com o peso e, além disso, amarrados, para não fugirem, o que tornava a nossa marcha muito lenta e penosa. Os soldados perderam a confiança nas índias de serviço, que se revelaram menos submissas e lerdas do que eles supunham. Continuavam a deitar-se com elas, mas não se atreviam a dormir na sua presença e alguns acreditavam mesmo que os estariam a envenenar pouco a pouco. No entanto, não era o veneno que lhes corroía a alma e lhes derrotava os ossos, mas sim o cansaço. Vários homens maltratavam as índias só para descarregar a sua própria inquietação; Valdivia ameaçou então que lhas retirava, coisa que chegou a fazer em duas ou três ocasiões. Os soldados rebelaram-se, simplesmente porque não podiam permitir que ninguém, nem sequer o chefe, se metesse entre eles e as suas amantes, mas, mesmo assim, Pedro impôs-se, como, aliás, sempre fazia. Devemos dar o exemplo, dizia. Não permitia que os espanhóis se comportassem pior do que os bárbaros. Passado muito tempo, as tropas lá começaram a obedecer, de má vontade e não totalmente. Catalina contou-me que continuavam a bater às mulheres, mas não na cara, onde as marcas são visíveis.
À medida que os índios do Chile se tornavam mais atrevidos, questionávamo-nos o que seria do infeliz do Escobar. Supúnhamos que já tivesse morrido de alguma maneira lenta e atroz, mas ninguém se atrevia a dizer o seu nome para não convocar a má sorte. Se nos esquecêssemos do seu nome e do seu rosto, talvez se transformasse num ser transparente, como a brisa e, assim, talvez pudesse passar pelos seus inimigos sem ser visto.
Andávamos a passo de caracol, porque os yanaconas não podiam com o peso e havia muitos potros e outros animais jovens. Rodrigo de Quiroga ia sempre à frente, porque tinha bons olhos para ver ao longe e muita coragem, que nunca fraquejava. Cuidando da retaguarda seguiam Villagra, que Pedro de Valdivia nomeara seu segundo-capitão, e Aguirre, sempre impaciente por se envolver em mais uma escaramuça com os índios. Gostava tanto de brigas como de mulheres.
- Os índios vêm aí! - avisou, um dia, um mensageiro enviado por Quiroga da frente da companhia.
Valdivia instalou-me, juntamente com as mulheres, as crianças e os animais, num sítio mais ou menos protegido por rochas e árvores, e logo a seguir organizou os seus homens para a batalha, mas não como os terços de Espanha, com três infantes por cada cavaleiro, porque aqui quase todos os soldados eram de cavalaria. Quando digo que os nossos iam montados, pode parecer que constituíam um esquadrão formidável de cento e cinquenta cavaleiros capazes de vencer dez mil atacantes, mas a verdade é que os animais eram só pele e osso devido às fadigas da viagem e os cavaleiros tinham a roupa rota, as armaduras mal ajustadas, os elmos amassados e as armas oxidadas. Eram valentes, mas desordenados e arrogantes; cada um ansiava ganhar a sua própria glória. «Porque custa tanto aos castelhanos ser só mais um do conjunto? Todos querem ser generais!» lamentava-se, muitas vezes, Valdivia. Além disso, o número de yanaconas tinha diminuído tanto e estavam tão esgotados e rancorosos pelos maus-tratos recebidos, que não nos davam grande ajuda, só lutavam porque a alternativa era morrer.
À frente, ia Pedro de Valdivia, sempre em primeiro lugar, apesar de os seus capitães lhe pedirem que tivesse cuidado, porque sem ele estaríamos perdidos. Ao grito de «Por Santiago, vamo-nos a eles!» com que os castelhanos, durante séculos, invocavam o apóstolo para os ajudar a combater os Mouros, Pedro colocou-se à dianteira, enquanto os seus arcabuzeiros, de joelho em terra e com as armas preparadas, apontavam para a frente. Valdivia sabia que os chilenos se lançavam para a luta de peito descoberto, sem escudos ou outra protecção, indiferentes à morte. Não temem os mosquetes, porque fazem mais barulho do que outra coisa, e só se detêm perante os cães, que no furor do combate os comem vivos. Enfrentam em massa o aço dos espanhóis, que lhes causa muitos estragos, à medida que as suas armas de pedra embatem contra o metal das armaduras. Do alto das suas cavalgaduras, os huincassão invencíveis, mas, se conseguirem desmontá-los, aniquilam-nos.
Mal tínhamos acabado de nos agrupar, quando ouvimos o alarido insuportável que anuncia a chegada dos índios, uma gritaria pavorosa que os enaltece até à demência e que paralisa de terror os seus inimigos, mas que, no nosso caso, acaba por ter o efeito contrário: enche-nos de raiva. O destacamento de Rodrigo de Quiroga conseguiu reunir-se com o de Valdivia momentos antes de a onda inimiga se desprender dos montes. Eram milhares e milhares de índios. Corriam quase nus, com arcos e flechas, lanças e garrotes, ululando, exultantes de antecipação feroz. A descarga dos arcabuzes embateu nas primeiras filas, mas não conseguiu detê-los nem tão-pouco deter o seu percurso. Em poucos minutos, já conseguíamos ver as suas caras pintadas e, rapidamente, começou a luta corpo a corpo. As lanças dos nossos atravessavam os corpos cor de argila, as espadas decepavam cabeças e membros, os cascos dos cavalos esmagavam os que caíam no chão. Se conseguiam aproximar-se, os índios aturdiam o cavalo com uma pancada de maço e, mal o animal dobrava as patas, vinte mãos apanhavam o cavaleiro e arrastavam-no até ao chão. Os elmos e couraças protegiam os soldados durante breves instantes e, por vezes, isso bastava para que um companheiro tivesse tempo de intervir. As flechas, inúteis contra as cotas de malha e armaduras, eram muito eficientes nas partes desprotegidas do corpo dos soldados. No meio da confusão e torvelinho da luta, os nossos feridos continuavam a lutar sem sentir dor e sem se darem conta de que se esvaíam em sangue, e quando, finalmente, caíam, alguém os resgatava e mos trazia arrastados.
Eu tinha organizado o meu diminuto hospital, juntamente com as minhas índias e protegida por alguns yanaconas leais, interessados em defender as mulheres e as crianças da sua raça, e por escravos negros, que temiam cair nas mãos dos indígenas inimigos porque o mais certo era serem degolados para averiguar se, de facto, a sua cor da pele era pintada, como sabiam que tinha acontecido noutros lugares. Improvisávamos ligaduras com os panos disponíveis, aplicávamos torniquetes para deter as hemorragias, cauterizávamos feridas rapidamente com carvões em brasa e, mal os homens se podiam voltar a pôr de pé, dávamos-lhes um gole de água ou vinho, devolvíamos-lhes as armas e enviávamo-los de novo para a batalha. «Virgencita, protege o Pedro», murmurava, quando a horrível tarefa de tratar dos feridos me dava um pouco de descanso. A brisa trazia-nos o odor a pólvora e cavalo, que se misturava com o cheiro do sangue e da carne chamuscada. Os moribundos pediam para se confessarem, mas o capelão e os outros frades estavam no campo de batalha; por isso, eu fazia-lhes o sinal da cruz na testa e dava-lhes a absolvição, para que morressem em paz. O capelão explicara-me que, à falta de um sacerdote, qualquer cristão podia baptizar e dar a extrema-unção em casos de emergência, embora ele próprio não tivesse bem a certeza se uma mulher cristã também o poderia fazer. Aos gritos de dor e morte, ao berreiro dos índios, aos relinchos dos cavalos e às explosões de pólvora, somava-se o pranto aterrorizado das mulheres, muitas delas com crianças atadas às costas. Habituada a ser servida pelas suas criadas como a princesa que era, Cecilia lá decidiu, por fim, descer ao mundo dos mortais e trabalhava lado a lado comigo e com Catalina. Esta mulher, pequena e tão graciosa, acabou por se revelar muito mais forte do que parecia. A sua túnica de fina lã estava empapada em sangue alheio.
Houve um momento em que vários inimigos se conseguiram aproximar do sítio onde tratávamos os feridos. Mal senti um grito mais intenso e próximo, levantei os olhos da flecha que estava a tentar extrair do pulso de Don Benito, enquanto outras mulheres o seguravam, e encontrei-me cara a cara com vários selvagens, que vinham para cima de nós com as mocas e os machados erguidos, obrigando a nossa já débil barreira de yanaconas e escravos negros a retroceder. Sem pensar, peguei na espada que Pedro me tinha ensinado a usar, e dispus-me a defender o nosso reduzido espaço. À frente dos assaltantes, vinha um homem mais velho, toscamente pintado e adornado com plumas. Uma cicatriz antiga atravessava-lhe um lado da face, desde a sobrancelha até à boca. Consegui registar estes detalhes em menos de um segundo, porque tudo sucedeu muito rapidamente. Recordo que nos enfrentámos, ele com uma lança e eu com a espada, coisa que aliás tinha de levantar com as duas mãos, e ambos assumimos uma postura idêntica, gritando de fúria com esse alarido terrível da guerra, olhando-nos com a mesma ferocidade. Então, subitamente, o velho fez um sinal e os seus companheiros pararam. Não posso jurar, mas creio ter visto um ligeiro sorriso no seu rosto cor de terra, ao que ele deu meia volta e afastou-se com a agilidade de um garoto, no preciso momento em que Rodrigo de Quiroga nos acudia debruçado sobre o seu cavalo e se lançava sobre os nossos agressores. O velho era o cacique Michimalonko.
- Por que não me atacou? - perguntei a Quiroga, muito mais tarde.
- Porque não podia sofrer a vergonha de se bater com uma mulher - explicou-me.
- Teria feito a mesma coisa, capitão?
- Claro - respondeu sem vacilar.
A luta demorou um par de horas e foi de uma intensidade tal que o tempo voou, porque não houve sequer tempo para pensar. De repente, quando já tinham o terreno quase ganho, os indígenas dispersaram, perdendo-se nos mesmos montes por onde tinham aparecido; deixaram os seus feridos e mortos para trás, mas levaram os cavalos que nos conseguiram roubar. A Nossa Senhora do Socorro tinha-nos salvo uma vez mais. O campo ficou coberto de corpos e foi mesmo necessário acorrentar os cães, empanturrados de sangue, para que não comessem os nossos feridos. Os negros circularam por entre os caídos, certificando-se de que os chilenos estavam mortos e trazendo-me os nossos. Preparei-me para o que estava para vir: durante horas, o vale estremeceu com os queixumes dos homens que tínhamos de curar. Catalina e eu não tínhamos mãos a medir para arrancar flechas e fazer cauterizações, tarefa bastante ingrata. Dizem que uma pessoa se habitua a tudo, mas não sei se é verdade, pois nunca me habituei àqueles gritos espantosos. Mesmo agora na minha velhice, depois de ter fundado o primeiro hospital do Chile e de levar uma vida inteira a trabalhar como enfermeira, ainda oiço os lamentos da guerra. Se ao menos fosse possível coser as feridas com agulha e linha, como se faz com o tecido, as curas seriam bem mais suportáveis, apesar de só o fogo impedir a hemorragia e a gangrena.
Pedro de Valdivia tinha várias chagas ligeiras e algumas feridas, mas não quis que o curasse. Reuniu, de imediato, os seus capitães para fazer contas aos homens perdidos.
- Quantos mortos e feridos? - perguntou.
- Don Benito sofreu um ferimento muito feio. Temos um soldado morto, treze feridos e um ferido grave. Calculo que nos tenham roubado mais de vinte cavalos e matado vários yanaconas - anunciou Francisco de Aguirre, que não tinha muito jeito para a aritmética.
- Há quatro negros e sessenta e três yanaconas feridos, vários com gravidade - corrigi. - Morreram trinta e dois índios e um negro. Creio que dois homens não passarão desta noite. Temos de transportar os feridos a cavalo, não os podemos deixar para trás. Os que estão em estado mais grave, têm de ser transportados em macas.
- Montaremos acampamento por uns dias. Capitão Quiroga, por agora, tomareis o lugar de Don Benito como mestre-de-campo - ordenou Valdivia. - Capitão Villagra, fazei um cálculo dos selvagens que tombaram no campo de batalha. Ficareis responsável pela segurança, pois penso que o inimigo voltará muito antes do que imaginamos. Capelão, encarregai-vos dos enterros e das missas. Partiremos assim que dona Inés ache possível.
Apesar das precauções de Villagra, o acampamento encontrava-se muito vulnerável, porque estava situado num vale desprotegido. Os índios chilenos ocupavam os montes, mas não deram sinais de vida durante os dois dias em que permanecemos no local. Don Benito explicou-nos que, depois de cada batalha, se embebedavam até perderem os sentidos e só voltavam a atacar quando se recompunham, vários dias mais tarde. Ainda bem. Espero que nunca lhes falte chicha.
NA MACA IMPROVISADA em que o transportávamos, Don Benito reconheceu, ao longe, o monte Huelén, onde ele mesmo tinha colocado uma cruz durante a sua anterior viagem com Diego de Almagro.
- Ali! Aquele é o jardim do Éden pelo qual ansiei durante tantos anos! - gritava o velho, ardendo de febre, por causa da flecha que o ferira, e que nem as ervas e feitiçarias de Catalina nem as orações do capelão conseguiram curar.
Tínhamos descido sobre um vale muito suave, repleto de carvalhos e outras árvores desconhecidas em Espanha, quillayes, peumos, maitenes, migues e canelos. Estávamos em pleno Verão, mas as altíssimas montanhas que víamos no horizonte estavam coroadas de neve. O vale era rodeado de montes e mais montes, dourados e suaves. Para Pedro, bastou um simples olhar para perceber logo que Don Benito tinha razão: um céu azul intenso, o ar luminoso, um bosque exuberante e uma terra fecunda, banhada por riachos e um rio copioso, o Mapocho; este era o sítio determinado por Deus para fazer nascer a nossa primeira povoação, porque, além da beleza e brandura, se ajustava perfeitamente aos sábios regulamentos ditados pelo Imperador Carlos V para a fundação das cidades nas índias: «Não deverão ser escolhidos sítios muito altos para povoar, porque serão fustigados pelos ventos e porque são de difícil acesso, nem lugares muito baixos, porque costumam ser doentios; fundam-se as povoações em sítios de altitude mediana que gozem dos ventos do norte e do meio-dia; e se tiverem de ter serras ou encostas, que sejam do lado nascente e poente; e no caso de se edificar na margem de um rio, disponha-se a povoação para que a luz do sol banhe primeiro o povoamento e depois a água.» Pelos vistos, os nativos daquele lugar estavam de pleno acordo com Carlos V, porque havia uma população numerosa, tínhamos visto várias aldeias, muitas plantações, canais de rega, açudes e caminhos. Não éramos os primeiros a descobrir as vantagens daquele vale.
Os capitães Villagra e Aguirre adiantaram-se com um destacamento para auscultar a reacção dos indígenas, enquanto os restantes viajantes esperavam bem resguardados. Regressaram com a agradável notícia de que os índios, apesar de desconfiados, não tinham dado mostras de hostilidade. Averiguaram ainda que também ali tinha chegado o império do Inca e que o seu representante, o curaca Vitacura, que controlava a zona, estava disposto a cooperar connosco, segundo nos tinha assegurado, porque sabia que os barbudos viracochas mandavam no Peru. «Não confiem neles, são traidores e belicosos», insistiu Don Benito, mas a decisão de nos estabelecermos no vale já estava tomada, ainda que tivéssemos de submeter os nativos à força. O facto de ali terem instalado as suas casas e sementeiras durante gerações, era um incentivo para os briosos conquistadores: significava que a terra e o clima eram aprazíveis. Villagra fez um cálculo por alto, traçando uma estimativa entre os rancheiros que podíamos ver e os que podíamos adivinhar, e chegou à soma de cerca de dez mil colonos, sobretudo mulheres e crianças. Não era motivo de preocupação, disse, a não ser que as hostes de Michimalonko se nos apresentassem de novo pela frente. O que terão sentido aqueles habitantes quando nos viram chegar e, mais tarde, quando se aperceberam de que pretendíamos ficar por ali? Treze meses depois de ter partido de Cuzco, em Fevereiro de 1541, Valdivia plantava o estandarte de Castela aos pés do monte Huelén, que baptizou de Santa Luzia, porque era o dia dessa mártir, e tomou posse em nome de Sua Majestade. Dispôs-se a fundar naquele local a cidade de Santiago de Nova Extremadura. Depois de se assistir à missa e comungar, procedeu-se ao antigo ritual latino de demarcar o perímetro de cidade. Como não tínhamos uma junta de bois e um arado, fizemo-lo com cavalos. Caminhámos em procissão lenta, levando à frente a imagem da Virgem. Valdivia estava tão comovido, que as lágrimas lhe escorriam pela cara abaixo, mas não era o único, já que metade daqueles bravos soldados chorava.
Duas semanas mais tarde, o nosso arquitecto, um zarolho chamado Gamboa, desenhou o traçado clássico da cidade. Primeiro, desenhou a praça principal e o local da árvore da justiça ou patíbulo. Partindo daquele ponto, de régua e cordel na mão, desenhou em linha recta as ruas paralelas e perpendiculares, divididas em quadras de cento e trinta e oito varas, formando oitenta quarteirões, cada um com quatro lotes. As primeiras estacas que se colocaram foram as da igreja no local mais distinto da praça. «Um dia, esta modesta capela será uma catedral», prometeu o frade Gonzalez de Marmolejo, com a voz tolhida de emoção. Pedro reservou para nós o quarteirão do lado norte da praça e distribuiu os demais lotes de acordo com a categoria e lealdade dos seus capitães e soldados. Com os nossos yanaconas e alguns índios do vale, que entretanto se tinham apresentado de livre e espontânea vontade, começámos a construir as casas de madeira, adobe e tectos de palha (até à altura em que, por fim, pudemos fazer telhas) com muros grossos e janelas e portas estreitas, para nos defendermos em caso de ataque e também para manter a temperatura agradável. Conseguíamos ver que o Verão era quente, seco e saudável. Disseram-nos que o Inverno seria frio e chuvoso. O tal zarolho Gamboa e os seus ajudantes traçaram as ruas, enquanto outros dirigiam os grupos de trabalhadores para as construções. As forjas ardiam sem cessar produzindo pregos, dobradiças, fechaduras, rebites e esquadrias; o barulho dos martelos e serras só parava à noite, à hora da missa. O odor a madeira recém-cortada impregnava o ar. Aguirre, Villagra, Alderete e Quiroga reorganizaram o nosso destacamento militar já de si bastante maltrapilho e tão desgastado pela longa viagem. Valdivia e o aguerrido capitão Monroy, que se gabava de ter uma certa habilidade diplomática, tentaram falar com os nativos. A mim, coube-me a atarefa de repor a saúde dos doentes e feridos e fazer aquilo que mais me agrada: fundar. Nunca o tinha feito, mas mal espetámos a primeira estaca na praça, descobri a minha verdadeira vocação e não mais a atraiçoei; desde então, tenho criado hospitais, igrejas, conventos, ermidas, santuários, povoações inteiras e, se a vida me chegasse, ainda fundaria um orfanato, que tanta falta faz em Santiago, porque é simplesmente vergonhoso o número de crianças miseráveis que vivem nas ruas, aliás como também havia na Extremadura. Esta terra é fecunda e os seus frutos deviam chegar para todos. Assumi com porfia e obstinação o trabalho de fundar, que no Novo Mundo é responsabilidade das mulheres. Os homens só constróem povoações temporárias para nos deixarem lá com os filhos, enquanto continuam a sua incessante guerra contra os indígenas. Foram precisas quatro décadas de mortos, sacrifícios, tenacidade e trabalho para que Santiago alcançasse a pujança que tem hoje. Não me esqueci dos tempos em que era apenas um lugarejo, que defendíamos com unhas e dentes. Pus as mulheres e os cinquenta yanaconas que Rodrigo de Quiroga me cedeu a produzir mesas, cadeiras, camas, colchões, fornos, teares, louças de barro cozido, utensílios de cozinha, currais, galinheiros, roupas, toalhas, mantas e todas as coisas indispensáveis para uma vida civilizada. Com o objectivo de poupar esforços e mantimentos, estabeleci inicialmente um sistema para que ninguém ficasse sem comer. Cozinhava-se uma vez por dia e serviam-se as malgas de comida em grandes mesas colocadas na praça principal, que Pedro chamou de Praça de Armas, ainda que não tivéssemos um único canhão para a defender. Nós, as mulheres, fazíamos empanadas, feijões, batatas, guisados de milho e caçarolas com as aves e lebres que os índios conseguiam caçar. As vezes, arranjávamos peixe e marisco trazidos da costa pelos indígenas do vale, mas cheiravam mal. Cada um contribuía para a mesa com o que podia, tal como, anos antes, acontecera no navio do então mestre Manuel Martin. Este sistema comunitário teve também a vantagem de unir as pessoas e calar os descontentes, pelo menos por uns tempos. Dedicávamos grande cuidado aos animais domésticos; só sacrificávamos uma ave em ocasiões muito especiais, uma vez que o meu plano era encher os currais no espaço de um ano. Os porcos, galinhas, gansos e lamas eram tão importantes quanto os cavalos e certamente muito mais importantes do que os cães. Durante a viagem, os animais tinham sofrido tanto quanto os homens; por isso, cada ovo e cada cria eram um imenso motivo de celebração. Fiz viveiros para plantar, durante a Primavera, trigo, vegetais, frutos e até flores, nas granjas atribuídas pelo arquitecto Gamboa, porque não se pode viver sem flores; eram o único luxo da nossa rude existência. Tratei de imitar as sementeiras dos índios do vale, bem como o seu método de irrigação, em vez de reproduzir o que tinha visto nos pomares de Plasencia, porque não tinha dúvidas de que eles conheciam melhor o terreno.
Não falei ainda do milho, ou trigo indiano, sem o qual não teríamos sobrevivido. Este cereal semeava-se sem limpar nem arar o solo, bastando desbastar os ramos das árvores vizinhas para que o sol o banhasse livremente. Faziam-se ligeiros sulcos na terra com uma pedra afiada, no caso de não haver enxadas, deitavam-se as sementes e estas cresciam sozinhas. As maçarocas maduras podiam ficar nas plantas durante semanas sem apodrecer, soltavam-se dos talos sem os partir, e não havia necessidade de trilhar nem aventar. Era tão fácil cultivá-lo e tão abundante a sua produção, que os índios de todo o Novo Mundo - e os castelhanos também - se alimentavam de milho.
Valdivia e Monroy regressaram exultantes com a notícia de que as suas investidas diplomáticas tinham sido bem sucedidas: Vitacura viria visitar-nos. Don Benito avisou que tinha sido precisamente esse curaca que atraiçoara Almagro e que, por isso, convinha estarmos preparados para alguma malvadez da sua parte, algo que, mesmo assim, não fez esmorecer os ânimos das gentes. Estávamos fartos de lutar. Os homens começaram a puxar o lustro aos elmos e armaduras, decorámos a praça com estandartes, distribuímos os cavalos, que tanto impressionavam os índios, em círculo e preparámos música com os instrumentos que tínhamos disponíveis. Como precaução, Valdivia mandou carregar os mosquetes e colocou Quiroga com um grupo de soldados escondidos e prontos a actuar em caso de emergência. Vitacura apresentou-se com três horas de atraso, de acordo com o protocolo dos Incas, como nos explicou Cecilia. Ia adornado com plumas coloridas, levava um pequeno machado de prata na mão, símbolo do seu poder, e estava rodeado da família e várias personalidades da sua corte, ao estilo dos nobres peruanos. Vinham sem armas. Fez um discurso eterno e muito emaranhado em quícbua, enquanto os lenguas se viam em apuros para conseguir traduzir ambos os idiomas. O curaca trazia como presente umas pepitas de ouro, que segundo ele vinham do Peru, pequenos objectos de prata e umas mantas de lã de alpaca; isto para além do facto de ter oferecido também um certo número de homens para nos ajudar a levantar a cidade. Em troca, o nosso capitão-general deu-lhe umas missangas trazidas de Espanha e alguns chapéus, objectos muito apreciados pelos quíchuas. Mandei servir comida abundante e bem regada com chicha de cacto e muday, um licor forte de milho fermentado.
- Há ouro na região? - perguntou Alonso de Monroy, falando em nome dos restantes homens, que não estavam interessados noutra coisa.
- Ouro não há, mas nos montes há uma mina de prata - respondeu Vitacura.
A notícia deixou os soldados muito entusiasmados, mas ensombrou o espírito de Valdivia. Naquela noite, enquanto os demais faziam planos com a prata que ainda não tinham, Pedro lamentava-se. Estávamos na nossa porção de terra, instalados na tenda de Pizarro - ainda não tínhamos levantado os muros e o tecto da casa -, banhando-nos na tina de água fria para nos refrescarmos do calor abafado do dia.
- Que pena aquela história da prata, Inés! Preferia que o Chile fosse tão miserável quanto se dizia. Vim para fundar um povoado trabalhador e de bons princípios. Não quero que se corrompa com riqueza fácil.
- Ainda nem sabemos se a mina existe, Pedro.
- Espero que não, mas de qualquer maneira vai ser impossível impedir que os homens partam à sua procura.
E assim foi. No dia seguinte, já se tinham organizado vários grupos de soldados para explorar a região à procura da maldita mina. E era mesmo isso que os nossos inimigos queriam: que nos separássemos em pequenos grupos.
O capitão-general formou o primeiro Cabido, nomeando alcaides os seus companheiros mais fiéis e dispôs-se a repartir a terra por sessenta parcelas por entre os homens mais valiosos da expedição, com os índios necessários para as trabalhar. Pareceu-me precipitado repartir terra e comendas que ainda não tínhamos, sobretudo sem conhecer a verdadeira extensão e riqueza do Chile, mas é sempre assim: espeta-se uma bandeira, toma-se posse com papel e tinta e só depois vem o velho problema de converter a terra em bens, o que implica, necessariamente, despojar os indígenas, para além de os obrigar a trabalhar para os novos donos. Contudo, senti-me muito honrada, porque Pedro teve por mim a mesma consideração que teve pelos seus melhores capitães e outorgou-me a maior porção de terra, com os respectivos trabalhadores correspondentes, argumentando que eu tinha enfrentado tantos perigos como o mais corajoso dos seus soldados, salvo a expedição por diversas ocasiões e que, se aqueles trabalhos eram árduos para um homem, mais árduos eram para uma mulher frágil. De frágil não tenho nada, claro, mas ninguém contestou em voz alta a sua decisão. No entanto, Sancho de la Hoz serviu-se disto para atiçar o fogo do rancor entre os revoltosos. Pensei que se algum dia aquelas fazendas se tornassem realidade, eu, uma modesta estremenha, seria um dos proprietários mais ricos do Chile. Como ficaria contente a minha mãe!
Nos meses seguintes, a cidade ergueu-se do solo como se fosse um milagre. No fim do Verão, já havia muitas casas com bom aspecto, tínhamos plantado fileiras de árvores para ter sombra e pássaros nas ruas, as pessoas começavam a colher as primeiras verduras das suas hortas, os animais pareciam sãos e conseguíramos armazenar algumas provisões para o Inverno. Esta prosperidade irritava os índios do vale, porque era a prova cabal de que não estávamos ali de passagem. Supunham, e com razão, que mais incasestariam para chegar, para lhes arrebatar as terras e convertê-los em servos. Enquanto nós nos preparávamos para ficar, eles preparavam-se para nos expulsar. Mantinham-se invisíveis, mas começámos a ouvir o chamamento lúgubre da trutruca e dospilloz, uma flauta que fazem com os ossos das pernas dos seus inimigos. Os guerreiros tentavam evitar-nos; perto de Santiago só havia velhos, mulheres e crianças, mas de qualquer maneira mantínhamo-nos alerta. Segundo Don Benito, o único propósito da visita de Vitacura foi avaliar a nossa capacidade militar e era quase certo que o curuca não terá ficado impressionado, apesar da encenação teatral que fizemos na ocasião. Ter-se-á contorcido de tanto rir ao comparar o nosso escasso contingente com os milhares de chilenos que espiavam nos bosques limítrofes. Ele era quíchua do Peru, representante dos Incas, e não pensava envolver-se na escaramuça entre huincase índios do Chile. Calculou que se a guerra deflagrasse, ele podia sair a ganhar. Na água revolta, pesca o pescador, como se dizia em Plasencia.
Valendo-nos de sinais e palavras em quíchua, Catalina e eu costumávamos sair para negociar nos arredores. Assim, conseguimos aves e guanacos, uns animais parecidos com os lamas que dão uma lã muito boa, em troca de bugigangas tiradas do fundo dos meus baús, ou dos nossos serviços de enfermeiras. Tínhamos boa mão para compor ossos partidos, cauterizar feridas e fazer partos, e foi isso que nos ajudou. Nas aldeias dos indígenas, conheci duas machts ou curandeiras, que trocaram ervas e encantamentos com Catalina e nos ensinaram as propriedades de algumas plantas chilenas, que eram bem diferentes das do Peru.
Os restantes «médicos» do vale eram feiticeiros, que extraíam vermes da barriga dos doentes com grande alarido; ofereciam pequenos sacrifícios e aterrorizavam as gentes com as suas pantominas, método que, por vezes, dava um excelente resultado, como eu mesma pude comprovar. Catalina, que tinha trabalhado em Cuzco com um destes camascas, «operou» Don Benito, quando todos os restantes recursos falharam. Com muita discrição, ajudadas por um par de índias silenciosas do séquito de Cecilia, levámos o velho para o bosque, onde Catalina conduziu a cerimónia. Atordoou-o com uma poção de ervas, sufocou-o com fumo e começou a massajar a ferida na coxa, que não tinha cicatrizado bem. Durante o resto da sua vida, Don Benito haveria de contar, para quem quisesse ouvir, a forma como viu sair, com os próprios olhos, as lagartixas e cobras que lhe estavam a envenenar a perna, e como, depois disto, a perna sarou completamente. Ficou coxo, é certo, mas não morreu de gangrena, como temíamos. Porém, não me pareceu necessário explicar-lhe que Catalina levava os répteis mortos escondidos nas mangas. «Se com magia se vai curando, continua magicando», disse Cecilia.
Esta princesa, que servia de ponte entre a cultura quíchua e a nossa, estabeleceu uma rede de informação valendo-se das suas servas. Foi, inclusivamente, visitar o curaca Vitacura, que caiu de joelhos e bateu com a testa no chão quando soube que ela era a irmã mais nova do Inca Atahualpa. Cecilia averiguou que, no Peru, as coisas estavam mal, havendo até rumores de que Pizarro teria morrido. Apressei-me a contar a Pedro, com o maior secretismo.
- Como sabes se é verdade, Inés?
- É o que dizem os chasquis. Não posso assegurar que seja verdade, mas convém tomar precauções, não achas?
- Por sorte, estamos muito longe do Peru.
- Sim, mas se Pizarro morrer, o que acontece com o teu título? Tu és o seu tenente-governador.
- Se Pizarro morrer, tenho certeza de que Sancho de la Hoz e outros voltarão a contestar a minha legitimidade.
- Mas se fosses governador não era assim, pois não? - sugeri.
- Mas não sou, Inés.
A ideia ficou suspensa no ar, uma vez que Pedro sabia muito bem que eu não ficaria impávida e serena. Aproveitei a minha amizade com Rodrigo de Quiroga e Juan Gómez, para difundir a ideia de que Valdivia devia ser nomeado governador. Em poucos dias, tal como calculava, já não se falava de outra coisa em Santiago. Nessa altura, começaram a cair as primeiras chuvas de Inverno, o caudal do Mapocho subiu, as águas galgaram as margens e a cidade recém-nascida ficou transformada num lamaçal, mas isso não impediu que o Cabido se reunisse, com grande solenidade, numa das cabanas. O lodo chegava aos tornozelos dos capitães que se juntaram para nomear Valdivia governador. Quando vieram a nossa casa anunciar a decisão, ele pareceu ficar tão surpreendido, que até me assustei. Talvez me tivesse excedido na minha vontade de lhe ler o pensamento.
- Emociona-me a confiança que depositais em mim, mas esta resolução é precipitada. Não temos certeza da morte do Marquês Pizarro, a quem eu tanto devo. Não posso passar de maneira nenhuma por cima da sua autoridade. Lamento, meus bons amigos, mas não posso aceitar a honra que me concedeis.
Mal os capitães se foram embora, Pedro explicou-me que aquela era uma manobra astuta de se proteger, pois no futuro podiam acusá-lo de atraiçoar o Marquês, embora estivesse certo de que os seus amigos voltariam à carga. De facto, os membros do Cabido regressaram com uma petição escrita e assinada por todos os habitantes de Santiago. Alegaram que estávamos muito afastados do Peru e mais ainda de Espanha, sem comunicações, isolados no fim do mundo, e por isso suplicavam a Valdivia que fosse nosso governador. Estivesse Pizarro morto ou vivo, queriam que Pedro ocupasse o cargo. Insistiram três vezes, até que soprei ao ouvido de Pedro para parar de se fazer rogado de uma vez por todas, porque os seus amigos podiam fartar-se e acabar por nomear outro; havia vários capitães honrados que ficariam felizes por ocupar tal cargo, tal como me constou pelos mexericos das índias. Então, dignou-se a aceitar: já que todos insistiam, ele não podia opor-se, a voz do povo era a voz de Deus, acatava assim humildemente a vontade geral para servir melhor a Sua Majestade, e por aí fora. Redigiu-se o documento necessário, que o punha a salvo de qualquer acusação futura, e foi assim que Pedro se viu nomeado primeiro governador do Chile, por decisão popular e não por cédula real. Valdivia nomeou Monroy seu tenente-governador e eu passei a ser a Governadora, assim mesmo com maiúscula, porque é o cargo que o povo me deu durante quarenta anos. Em termos práticos, mais do que uma honra, esta foi uma grande responsabilidade. Converti-me na mãe da nossa pequena povoação, tinha o dever de zelar pelo bem-estar de cada um dos seus habitantes, desde Pedro de Valdivia até à última galinha do galinheiro. Para mim não havia descanso, vivia presa aos mais pequenos detalhes quotidianos: comida, roupa, sementeiras, animais. Por sorte, nunca precisei de mais de três ou quatro horas de sono por noite, de modo que tinha mais tempo que os outros para fazer o meu trabalho. Decidi-me a conhecer cada soldado e yanacona pelo nome próprio e fiz-lhes saber que a minha porta estaria sempre aberta para os receber e escutar as suas queixas.
Fiz com que não houvesse castigos injustos nem desproporcionados, especialmente em relação aos índios; Pedro confiava no meu bom discernimento e, regra geral, ouvia-me antes de proferir uma sentença. Acho que, por aquela altura, a maioria dos soldados já me tinha perdoado o trágico episódio de Escobar e aprendera a respeitar-me, porque eu tinha curado muitas das suas feridas e febres, tinha-os alimentado na mesa comum e ajudado a arranjar as casas de cada um.
A notícia de que Pizarro tinha morrido não era certa, mas acabou por ser profética. Naquela altura, o Peru estava em paz, mas o que é certo é que, um mês mais tarde, um grupo de «mendigos chilenos», ou seja, antigos soldados da expedição de Almagro, irromperam pelo palácio do Marquês Governador e mataram-no à facada. Um par de criados acudiu em sua defesa, enquanto os cortesãos e sentinelas escapavam pelas varandas. A população da Cidad de los Reyes não lamentou o sucedido, já estava pelos cabelos com os excessos dos irmãos Pizarro e, em menos de duas horas, o Marquês Governador foi substituído pelo filho de Diego de Almagro, um rapaz inexperiente, que no dia anterior não tinha um maravedi para comer e que, da noite para o dia, se viu transformado no dono de um império fabuloso. Quando a notícia se confirmou no Chile, meses mais tarde, já Valdivia tinha o seu cargo de Governador assegurado.
- Tu deves ser bruxa, Inés... - murmurou Pedro, assustado, quando soube do ocorrido.
A hostilidade dos índios do vale foi evidente durante o Inverno. Pedro ordenou que ninguém abandonasse a cidade sem um motivo válido e sem protecção. As minhas visitas às machis e aos mercados acabaram, mas acho que Catalina continuou a manter contacto com as aldeias, porque as suas secretas desaparições nocturnas continuaram. Cecilia descobriu que Michimalonko se estava a preparar para nos atacar e que, para incentivar os seus guerreiros, lhes tinha oferecido os cavalos e as mulheres de Santiago. As suas hostes iam aumentando e já havia seis toquis com as suas gentes acampados num dos seus fortes, ou pucara, aguardando o momento propício para começar a guerra.
Valdivia ouviu os pormenores da boca de Cecilia, conferenciou com os seus capitães e decidiu tomar a iniciativa. Deixou a maioria dos seus soldados a proteger Santiago e partiu com Alderete, Quiroga e um destacamento dos seus melhores soldados para enfrentar Michimalonko no seu próprio terreno. A pucara era uma construção de barro, pedra e madeira, rodeada de uma paliçada de troncos, que dava a impressão de ter sido levantada à pressa, como protecção temporária. Além disso, estava localizada num ponto vulnerável e mal defendida, de modo que os soldados espanhóis não tiveram grande dificuldade em aproximar-se de noite e atear-lhe fogo. Esperaram do lado de fora que os guerreiros fossem saindo, intoxicados pelo fumo, e massacraram um número impressionante de índios. A derrota dos indígenas foi rápida e os nossos capturaram vários caciques, entre os quais Michimalonko. Vimo-los chegar a pé, atados às montadas dos capitães que os arrastavam; feridos e ofendidos, mas altivos. Corriam ao lado dos cavalos sem dar mostras de temor ou cansaço. Eram homens de estatura baixa, mas bem constituídos, de pés e mãos delicadas, de membros e costas robustos e de peito erguido. Usavam o cabelo negro comprido ou entrançado com tiras coloridas e os rostos pintados de amarelo e azul. Fiquei a saber que o toqui Michimalonko tinha mais de setenta anos, mas era difícil de acreditar, porque tinha os dentes todos e era ágil como um garoto. Os mapuche que não morrem em acidentes ou na guerra, podem viver em excelentes condições até aos cem anos ou mais. São muito fortes, corajosos e atrevidos, e estão habituados a resistir aos frios mortais, bem como à fome e ao calor. O Governador ordenou que se deixassem os toquis acorrentados na cabana destinada à prisão; os seus capitães planeavam torturá-los para descobrir se havia minas de ouro na região, não fosse o curaca Vitacura ter mentido.
- Cecília diz que é inútil torturar os mapuche, jamais falarão. Os Incastentaram fazê-lo muitas vezes, mas nem as mulheres e crianças quebram durante esse tormento - expliquei a Pedro nessa noite, enquanto lhe tirava a armadura e a roupa, impregnada de sangue seco.
- Então os toquis só nos servirão como reféns.
- Disseram-me que Michimalonko é muito orgulhoso.
- Não lhe serve de grande coisa, agora que está acorrentado respondeu-me.
- Se não falar à força, talvez o faça por vaidade. Já sabes como são alguns homens... - sugeri.
No dia seguinte, Pedro decidiu interrogar o toqui Michimalonko de uma maneira tão pouco usual, que nenhum dos seus capitães entendeu que diabo pretendia. Começou por ordenar que lhe tirassem as amarras e o levassem para uma casa separada, longe dos outros cativos, onde as três mais belas índias a meu serviço o lavaram e vestiram, com uma roupa limpa e de boa qualidade, e lhe serviram comida abundante e tanto muday quanto o que quis beber. Valdivia mandou uma guarda de honra escoltá-lo e recebeu-o no embandeirado escritório do Cabido, rodeado dos seus capitães com armaduras reluzentes e penachos de finas cores. Eu própria assisti com o meu vestido de veludo ametista, o único que tinha, já que os outros foram ficando pelos caminhos do norte. Michimalonko olhou-me como se me estivesse a avaliar, e não sei se reconheceu a «sargentona» que o enfrentara de espada na mão. Tinham colocado duas cadeiras iguais, uma para Valdivia e outra para o toqui. Tínhamos um lengua, mas sabíamos que o mapudungu não se pode traduzir, porque é um idioma poético que se vai criando à medida que se fala, no qual as palavras mudam, fluem, juntam-se, separam-se, como se fossem puro movimento, por isso também não se pode escrever. Se alguém o tentar traduzir palavra por palavra, não se entende absolutamente nada. Quando muito, o lengua conseguia transmitir-nos uma ideia geral. Com o maior respeito e solenidade, Valdivia manifestou a sua admiração pela coragem de Michimalonko e dos seus guerreiros. O toqui respondeu com finezas semelhantes e assim, de salamaleque em salamaleque, Valdivia foi conduzindo o toqui pelos caminhos da negociação, enquanto os seus capitães observavam a cena perplexos. O velho estava orgulhoso por discutir mano a mano com aquele poderoso inimigo, um dos barbudos que tinha, nada mais, nada menos, derrotado o império do Inca. Depressa começou a gabar-se da sua posição, da linhagem, das tradições, do número das suas hostes e mulheres, que eram mais de vinte, embora ainda houvesse espaço na sua casa para mais algumas, inclusivamente para alguma chinura espanhola. Valdivia contou-lhe que Atahualpa tinha enchido uma sala de ouro até ao tecto para pagar o seu resgate; quanto mais valioso o prisioneiro, mais alto o resgate, acrescentou. Michimalonko ficou pensativo durante um momento, sem que ninguém o interrompesse, questionando-se, suponho eu, por que gostavam tanto os huincasdaquele metal, que a eles só lhes trazia problemas; durante anos, tiveram que o oferecer ao Inca como tributo. Sendo assim, no entanto, se tivesse algum, podia dar-lhe bom uso: pagar o seu próprio resgate. Se Atahualpa encheu uma sala de ouro, ele não podia ficar-lhe atrás. Então, pôs-se de pé, direito como uma torre, bateu com os punhos no peito e anunciou com voz firme que, em troca da sua liberdade, estava disposto a dar aos huincas a única mina existente na região, uns garimpes onde havia ouro chamados Marga-Marga, e ainda ofereceu mil e quinhentas pessoas para trabalhar nesses locais.
Ouro! O regozijo espalhou-se pela cidade, como se, finalmente, a aventura da conquista do Chile fizesse algum sentido para os homens. Pedro de Valdivia partiu com um destacamento bem armado, levando Michimalonko a seu lado num alazão formoso, que lhe deu de presente. Chovia a cântaros, iam ensopados e a tiritar, mas com os ânimos elevados. Enquanto em Santiago se escutavam os gritos de fúria dos toquts traídos por Michimalonko, que ainda permaneciam acorrentados aos postes. As trutucas - flautas feitas de canas compridas - respondiam do bosque às maldições em mapudungu dos chefes.
O vaidoso Michimalonko guiou os huincaspelos montes acima até à desembocadura de um rio perto da costa, a trinta léguas de Santiago, e dali até um rio onde se situavam os garimpos, que a sua gente tinha explorado durante muitos anos para satisfazer a cobiça do Inca. De acordo com o negociado, colocou à disposição de Valdivia mil e quinhentas almas, mais de metade das quais mulheres, mas nada havia a reclamar em contrário, porque entre os indígenas chilenos são elas que trabalham, já que os homens só fazem discursos e desempenham tarefas que exigem músculos, como guerrear, nadar e jogar à bola. Os homens que Michimalonko escolheu eram muito preguiçosos, sobretudo porque não lhes parecia uma tarefa de guerreiro passar o dia dentro de água a lavar areia com uma canastra, embora Valdivia achasse que os negros os tornariam mais complacentes, nem que fosse à chicotada. Já estou há muitos anos no Chile e sei que é inútil tentar escravizar os mapuche, ou morrem ou fogem. Não são vassalos, não entendem o conceito de trabalho, e muito menos entendem ainda as razões que os levariam a lavar ouro no rio para entregar aos huincas. Vivem da pesca, da caça, de alguns frutos, como o pinhão, as sementeiras e animais domésticos. Só possuem o que podem levar consigo. Por isso, que razões teriam para se deixarem submeter aos chicotes dos capatazes? O medo? Não sabem o que isso é. Apreciam, antes de mais, a valentia, e depois a reciprocidade, dás-me tu, dou-te eu, com justiça. Não têm calabouços, oficiais de justiça, nem outras leis que não sejam as naturais; o castigo também é natural, ou seja, quem faz alguma coisa má, arrisca-se a que lhe aconteça o mesmo. A natureza é assim e não pode ser diferente com os humanos. Há quarenta anos que andam em guerra connosco e já aprenderam a torturar, roubar, mentir e armar ratoeiras, mas também já me contaram que, entre eles, convivem em paz. As mulheres mantêm uma rede de relações que une os clãs, mesmo aqueles que vivem separados por centenas de léguas. Antes da guerra, visitavam-se bastante e como as viagens são muito longas, cada encontro durava semanas e servia para fortalecer os laços e a língua mapudungu, contando histórias, dançando, bebendo e combinando novos casamentos. Uma vez por ano, as tribos juntavam-se a céu aberto para um Nguillatún, invocação ao Senhor da Gente, Ngenechén, e para honrar a Terra, deusa da abundância, fecunda e fiel, mãe do povo mapuche. Consideram uma falta de respeito incomodar Deus todos os domingos, como nós fazemos; uma vez por ano é mais do que suficiente. Os seus toquts têm uma autoridade relativa, porque não há quaisquer obrigações para lhes obedecer e as suas responsabilidades são maiores do que os privilégios. Assim descreve Alonso de Ercilla y Zúniga a maneira como são eleitos:
Não é a qualidade nem a herança Nem a terra, nem o valor do berço, Mas a virtude do braço e a excelência, Que torna os homens eleitos, E ela que ilustra, habilita, aperfeiçoa, E aquilata o valor da pessoa.
Quando chegámos ao Chile nada sabíamos dos mapuche, pensando que seria fácil submetê-los, como fizemos com povos mais civilizados, os Astecas e os Incas. Demorámos muitos anos a compreender quão errados estávamos. Não se vislumbra o fim desta guerra, porque quando torturamos um toqui logo aparece outro, e quando exterminamos uma tribo inteira, outra sai do bosque e toma o seu lugar. Nós queremos fundar cidades e prosperar, viver com decência e descanso, enquanto eles só querem a liberdade.
Pedro esteve ausente várias semanas, porque além de organizar o trabalho da mina, decidiu iniciar a construção de um bergantim para estabelecer comunicação com o Peru; não podíamos continuar isolados no cu de Judas sem outra companhia que não os selvagens de cueiros, como dizia Francisco de Aguirre com a sua habitual franqueza. Encontrou uma baía bastante propícia, chamada Concón, com uma praia ampla de areias claras, rodeada de bosques de madeira sã e resistente à água. Ali instalou o único dos seus homens que tinha uma vaga noção marítima, apoiado por um punhado de soldados, vários capatazes, índios auxiliares e outros que Michimalonko facultara.
- Tem alguma planta para o barco, senhor Governador? - perguntou o suposto perito.
- Não pretendereis dizer-me que precisais de uma planta para uma coisa tão simples! - desafiou-o Valdivia.
- Nunca construí nenhum barco, Excelência.
- Então rezai para que não se afunde, caro amigo, porque ireis na primeira viagem - despediu-se o Governador, muito satisfeito com o seu projecto.
Pela primeira vez, sentia-se entusiasmado com a ideia do ouro, imaginando a cara das pessoas no Peru quando soubessem que o Chile não era tão miserável como se dizia. Mandaria uma amostra de ouro no seu próprio barco, o que, por certo, causaria sensação, atrairia mais colonos e Santiago seria a primeira de muitas cidades prósperas e bem povoadas. Como tinha prometido, deixou Michimalonko em liberdade e despediu-se dele com os maiores sinais de respeito. O índio foi-se embora a galope no seu novo cavalo, disfarçando um sorriso.
Numa das suas excursões evangelizadoras, que até ao momento não tinham dado o menor resultado, porque os nativos do vale manifestaram uma indiferença espantosa em relação às vantagens do cristianismo, o capelão Gonzalez de Marmolejo voltou com um miúdo. Encontrara-o a vaguear na margem do Mapocho, fraco, coberto de sujidade e crostas de sangue. Em vez de fugir a correr, como faziam todos os índios quando o viam a aproximar-se com a sua sotaina sebenta e a cruz ao alto, o menino começou a segui-lo como um cachorro, sem dizer uma palavra, com os olhos ardentes, atentos a cada movimento do frade. «Vai-te embora, garoto! Xô!» afugentava-o o capelão, ameaçando que lhe dava uma cacetada com a cruz. Mas não adiantou de nada, e o miúdo seguiu-o até Santiago. À falta de melhor solução, trouxe-o para minha casa.
- O que quer que faça com ele, Padre? Não tenho tempo para criar gaiatos - disse-lhe, porque a última coisa de que eu precisava era ganhar afeição por um filho do inimigo.
- A tua casa é a melhor da cidade, Inés. Aqui este pobrezinho fica bem.
-Mas!...
- O que dizem os mandamentos da lei de Deus, Inés? Devemos alimentar o faminto e vestir o desnudo - interrompeu-me.
- Não me lembro desse mandamento, mas se o senhor o diz...
- Põe-no a trabalhar com os porcos e com as galinhas, é muito dócil.
Pensei que ele também o podia criar, até porque tinha casa e mulher para isso, e quem sabe, transformá-lo em sacristão, mas não me pude negar a tal, porque devia muitos favores àquele capelão; bem ou mal, estava a ensinar-me a ler e escrever. Já conseguia ler sem ajuda um dos três livros de Pedro, Amadis, de amores e aventuras. Ainda não me atrevia a ler os outros dois, o El Cantar dei Mio C id, que só falava de batalhas, e Ercbiridion Militis Cbriistiani, de Erasmo, um manual para soldados, que não me interessava para nada. O capelão tinha vários outros livros, que certamente também eram proibidos pela Inquisição e que eu, um dia, esperava ler. De maneira que o catraio ficou connosco. Catalina lavou-o e vimos que o que o cobria não era sangue seco, mas sim argila e barro; sem contar com uns arranhões e feridas, estava incólume. Andava na casa dos onze ou doze anos, era magro, com as costelas visíveis debaixo da pele, mas forte, e tinha a cabeça coroada por uma mata de cabelo preto, teso de tanta sujidade. Chegou quase nu. Atacou-nos às mordidelas quando tentámos tirar-lhe um amuleto que trazia ao pescoço preso com uma tira de pele. Esqueci-me rapidamente dele, porque andava muito atarefada com os labores de fundar uma povoação, mas dois dias depois Catalina relembrou-me da sua existência. Disse que não tinha saído do curral onde o deixáramos e que também não tinha comido nada.
- O que vamos fazer com ele, mamitay?
- Que vá para junto dos seus, é o melhor.
Fui vê-lo e encontrei-o sentado no pátio, imóvel, como se fosse feito de madeira, com os olhos negros fixos nos montes. Tinha atirado para longe a manta que lhe déramos e parecia gostar do frio e dos chuviscos do Inverno. Expliquei-lhe por sinais que podia ir embora, mas
nem se mexeu.
- Não está querendo ir-se, pois. Está querendo ficar, nada mais suspirou Catalina.
- Então que fique.
- E quem vai estar vigiando o selvagem, pois senoray? Ladrões e fracos são estes mapuche.
- É apenas uma criança, Catalina. Já se vai embora, não tem nada para fazer aqui.
Ofereci uma tortilha de milho ao menino e ele não teve reacção alguma, mas quando me aproximei com uma cabaça de água, segurou-a com ambas as mãos e bebeu avidamente o conteúdo, como se fosse um lobo. Ao contrário do que eu previra, ficou connosco. Vestimo-lo com um poncho e calças de adulto apertadas na cintura, enquanto lhe fazíamos roupa para o seu tamanho, ao mesmo tempo que aproveitávamos para lhe cortar o cabelo e tirar os piolhos. No dia seguinte, comeu com um apetite voraz e depressa saiu do curral e começou a deambular pela casa e depois pela cidade, como uma alma perdida. Interessava-se mais pelos animais do que pelas pessoas, e aqueles também reagiam bem com ele; os cavalos comiam da sua mão, e até os cães mais bravos, treinados para atacar os índios, abanavam o rabo quando o viam. De princípio, afugentavam-no de todo o lado, ninguém queria um indiozito tão estranho debaixo do seu tecto, nem mesmo o capelão, que tantos sermões me dava sobre os deveres cristãos, mas depressa se habituaram com a sua presença e o menino acabou por se tornar invisível, entrando e saindo das casas, sempre silencioso e atento. As índias de serviço davam-lhe guloseimas e até Catalina acabou por aceitar o menino, ainda que a contra gosto.
Entretanto, Pedro voltou para casa, cansado e dorido da longa cavalgada, mas bastante satisfeito, porque trazia as primeiras mostras de ouro, pepitas de bom tamanho tiradas do rio. Antes de se reunir com os seus oficiais, pegou-me pela cintura e levou-me para a cama. «Tu és a minha alma, Inés», suspirou, beijando-me. Cheirava a cavalo e suor, e nunca me tinha parecido tão atraente, tão forte, tão meu. Confessou que tivera saudades minhas, que cada vez lhe custava mais afastar-se de mim, mesmo que fosse por poucos dias, e que quando estávamos separados tinha pesadelos, premonições, medo de não me voltar a ver. Despi-o como se fosse um menino, lavei-o com um pano molhado, beijei cada uma das suas cicatrizes, desde a grossa ferradura que tinha nos quadris às centenas de marcas da guerra que lhe cruzavam braços e pernas, até à pequena estrela que tinha na testa, resultado de uma queda quando criança. Fizemos amor com uma ternura lenta e renovada, como se fôssemos um casal de idosos. Pedro estava tão cansado devido ao esforço das últimas semanas, que se deixou guiar por mim com uma mansidão de virgem. Montada sobre ele, amando-o lentamente, para que gozasse sem pressas, admirei o seu rosto nobre à luz da lamparina, a testa alta, o nariz proeminente, os lábios femininos. Tinha os olhos fechados e um sorriso plácido no rosto, em estado de absoluta entrega, parecendo jovem e vulnerável, bem diferente do homem aguerrido e ambicioso que tinha partido à frente dos seus soldados umas semanas antes. A certa altura, durante a noite, pareceu-me ver a silhueta do menino mapuche a um canto do quarto, mas pode ter sido apenas uma sombra.
No dia seguinte, quando voltou da reunião do Cabido, Pedro perguntou-me quem era o pequeno selvagem. Expliquei-lhe que o capelão mo tinha entregue e que supúnhamos que fosse órfão. Pedro chamou-o, examinou-o da cabeça aos pés e gostou dele, quiçá recordando-se de si próprio quando tinha a mesma idade, com a mesma pose altiva e intensa. Apercebeu-se de que o menino não falava castelhano e mandou chamar um lengua.
- Diz-lhe que pode ficar connosco, desde que se converta ao cristianismo. Vai chamar-se Felipe. Gosto desse nome, se tivesse um filho seria esse o seu nome. Concordas? - anunciou Valdivia.
O menino assentiu. Pedro acrescentou que se fosse apanhado a roubar, o mandaria chicotear e depois o expulsaria da cidade; podia agradecer à sua sorte, pois se fosse com qualquer outro vizinho, certamente ficaria sem a mão direita. Entendido? Ele assentiu novamente, mudo, com uma expressão mais irónica do que assustada. Pedi ao lengua que lhe propusesse um trato: se ele me ensinasse a sua língua, eu ensinava-lhe castelhano. A proposta não lhe interessou nem um pouco. Então, Pedro fez-lhe outra oferta: se me ensinasse mapudungu podia tratar dos cavalos. A cara do miúdo iluminou-se imediatamente e, desde esse momento, demonstrou uma adoração profunda por Pedro, a quem
chamava Taita. A mim tratava-me formalmente por chinura, senhora, suponho eu. E ficámos assim. Felipe revelou-se um bom professor e eu uma aluna com sorte, porque graças a ele tornei-me na única httinca capaz de me entender directamente com os mapuche, se bem que demorou quase um ano. Disse «entender-me com os mapuche», mas é pura fantasia, já que nunca nos conseguimos entender, pois há demasiados rancores acumulados.
Ainda íamos a meio do Inverno quando chegaram, num galope desenfreado, dois dos soldados que Pedro tinha deixado em Marga-Marga. Vinham exaustos, feridos, ensopados de chuva e sangue, com as cavalgaduras quase a rebentar, para nos comunicar que os índios de Michimalonko se tinham ido embora e que tinham assassinado muitos yanaconas, negros e quase todos os soldados espanhóis; só eles tinham conseguido escapar com vida. Do ouro que tinham recolhido, não ficou nem uma pepita. Na praia de Concón também tinham morto a nossa gente; os corpos despedaçados jaziam espalhados pela areia e o barco em construção estava reduzido a um monte de paus queimados. No total, perdêramos vinte e três soldados e um número indeterminado de yanaconas.
- Maldito Michimalonko, índio de merda! Quando o apanhar, empalo-o vivo! - rugiu Pedro de Valdivia.
Mal tinha conseguido digerir o impacto desta notícia, quando Villagra e Aguirre chegaram para confirmar o que as espias de Cecilia já tinham advertido semanas antes: estavam a chegar milhares de indígenas ao vale. Vinham em grupos pequenos de homens armados e pintados para a guerra. Escondiam-se nos bosques, nos montes, debaixo da terra e mesmo nas nuvens. Pedro decidiu que, como sempre, a melhor defesa era o ataque, escolheu quarenta dos seus mais corajosos soldados e partiu apressado na manhã do dia seguinte para dar o devido troco em Marga-Marga e Concón.
Ficámos em Santiago com uma profunda sensação de desamparo. As palavras de Francisco de Aguirre definiam perfeitamente a nossa situação: estávamos no cu de Judas, rodeados de selvagens em cueiros.
Não havia ouro nem barco, o desastre era total. O capelão Gonzalez de Marmolejo reuniu o povo na missa e deu-nos um sermão exaltado sobre a fé e a coragem, mas não conseguiu levantar a moral daquela tão assustada povoação. Sancho de Ia Hoz aproveitou a agitação para culpar Valdivia de todos os nossos sofrimentos e, dessa forma, conseguiu aumentar para cinco o número de adeptos para a sua causa, entre eles o infeliz Chinchilla, um dos vinte que se juntaram à expedição em Copiapó. Nunca gostei daquele homem, por ser cobarde e traiçoeiro, mas nunca imaginei que, para além disso, fosse também fraco de ideias. A ideia não era original - assassinar Valdivia - mas, desta vez, os conspiradores não tinham os cinco punhais iguais, que estavam bem guardados no fundo de um dos meus baús. Tão confiante estava Chinchilla na genialidade do plano elaborado, que bebeu uns copos a mais, vestiu-se de palhaço, com umas campainhas e guizos, e saiu para a praça a fazer graçolas e a imitar o Governador. E claro que Juan Gómez o prendeu de imediato e mal lhe mostrou uns torniquetes e lhe explicou em que parte do corpo lhos aplicaria, Chinchilla urinou-se de medo e acusou os companheiros de conspiração.
Pedro de Valdivia regressou mais preocupado que nunca, porque os seus quarenta homens não eram nem de perto, nem de longe, suficientes para enfrentar o inesperado número de guerreiros que tinham chegado ao vale. Conseguiu resgatar os pobres yanaconas que tinham sobrevivido à matança de Marga-Marga e Concón, escondidos na vegetação, desfalecendo de fome, frio e medo. Enfrentou um grupo de inimigos que, por sorte (coisa que até então não lhe tinha faltado), conseguiu derrotar e fez prisioneiros três caciques, que trouxe para Santiago. Com estes, eram sete os reféns que tínhamos em nosso poder.
Para que uma povoação progrida e seja encarada como tal, são necessários nascimentos e mortes, mas pelos vistos, nas povoações espanholas, são também essenciais as execuções. As primeiras em Santiago tiveram lugar nessa mesma semana, depois de um breve julgamento - desta vez com tortura - no qual os conspiradores foram condenados à morte imediata. Chinchilla e outros dois foram enforcados e os seus corpos expostos ao vento e aos enormes abutres chilenos durante vários dias, no cume do monte de Santa Luzia. Um quarto conspirador, que se fez valer dos seus títulos de nobre para não morrer na forca como um vilão, foi decapitado na prisão. Perante a surpresa geral, Valdivia perdoou novamente a Sancho de la Hoz, o principal instigador da revolta. Desta vez, opus-me em privado a esta decisão, primeiro porque já não existiam cédulas reais, depois porque De la Hoz tinha assinado um documento renunciando à conquista do Chile e, por último, porque Pedro era o seu governador legítimo. Aquele fanfarrão já nos tinha causado incómodos suficientes. Nunca saberei porque lhe salvou a cabeça uma vez mais. Pedro recusou-se a dar-me explicações e, de facto, tendo em conta aquela situação, eu já sabia que era melhor não insistir com um homem como ele. Aquele ano de adversidades azedara-lhe o carácter e perdia o controlo com facilidade. Tive de me calar.
Na mais esplêndida natureza do mundo, no âmago profundo da selva fria do Sul do Chile, no silêncio das raízes, cortiças e ramagens perfumadas, perante a presença altiva dos vulcões e cumes da cordilheira, junto a lagos cor de esmeralda e rios espumosos de neve derretida, reuniram-se as tribos mapuche numa cerimónia especial, um conclave de anciãos, cabeças de linhagem, toquis, loncos, macbis, guerreiros, mulheres e crianças.
As tribos foram chegando a pouco e pouco à clareira do bosque, um anfiteatro imenso no alto de uma colina, que os homens delimitaram com ramos de araucária e canelo, árvores sagradas. Algumas famílias tinham viajado durante semanas debaixo de chuva para comparecer ao encontro. Os grupos que chegaram mais cedo ergueram as suas ruças ou cabanas, de tal forma mimetizadas com a natureza que mesmo a poucas varas de distância não se conseguiam ver. Os que chegaram mais tarde improvisaram ramagens, tectos de folhas, e estenderam as suas mantas de lã. À noite, prepararam comida para trocar uns com os outros, beberam chicha e muday, mas com moderação, para não se cansarem. Visitaram-se para pôr as notícias em dia com compridas narrações em tom poético e solene, repetindo as histórias dos seus clãs memorizadas de geração em geração. Falar e falar, isso era o mais importante. Mantinham uma fogueira acesa em frente a cada cabana e o fumo diluía-se na neblina, que se desprendia da terra ao amanhecer. As pequenas fogueiras ardiam na névoa, iluminando a paisagem láctea da alvorada. Os jovens voltaram do rio, onde tinham ido nadar nas águas geladas, e pintaram as caras e os corpos com as cores tradicionais, azul e amarelo. Os caciques colocaram os seus mantos de lã bordada, celestes, negros, brancos, colocaram ao peito as toquicuras, machados de pedra, símbolo do seu poder, coroaram-se com plumas de garça, ema e condor, enquanto as machis queimavam ervas aromáticas e preparavam o rewe, escada espiritual para falar com Ngenechén.
- Oferecemos-te um trago de muday, esse é o nosso costume, para alimentar o espírito da Terra, que nos segue. Ngenechén fez o muday, fez a Terra, fez o canelo, fez o cabrito e o condor.
As mulheres entrançaram o cabelo com lãs coloridas, azul para as solteiras, vermelho para as casadas, adornaram-se com os seus mantos mais finos e as suas jóias de prata, enquanto as crianças, também vestidas para a festa, caladas e sérias, se sentaram em semicírculo. Os homens formaram-se como um só corpo de madeira, soberbos, puro músculo; as cabeleiras negras presas por anéis de tecido, empunhando as armas nas mãos.
A cerimónia começou com os primeiros raios de sol. Os guerreiros correram pelo anfiteatro dando gritos e brandindo as suas armas, enquanto os instrumentos musicais tocavam, para espantar as forças do mal. As machis sacrificaram vários guanacos, depois de lhes pedir autorização para oferecer as suas vidas ao Senhor Deus. Verteram um pouco de sangue no solo, arrancaram os corações, defumaram-nos com tabaco e partiram-nos aos pedaços, que repartiram entre os toquis e loncos; era assim que comungavam com a Terra.
- Senhor Ngenechén, este é o sangue puro dos animais, o teu sangue, sangue que nos dás para que tenhamos vida e nos possamos mover, Deus Pai, por isso com este sangue te rogamos que nos abençoes.
As mulheres começaram um canto melancólico e profundo, enquanto os homens foram para o centro do anfiteatro e começaram a dançar, lentos e pesados, batendo com os pés descalços no solo ao som de cultrunes e tmtrucas.
- E a ti, Mãe das Gentes, te saudamos. A Terra e as gentes são inseparáveis. Tudo o que acontece à Terra, acontece também às gentes. Mãe, rogamos-te que nos dês o pinhão que nos sustenta, rogamos-te que não nos mandes chuva, porque as sementes e a lã apodrecem, e que, por favor, não faças tremer os solos nem cuspir os vulcões, porque o gado foge e as crianças assustam-se.
As mulheres saíram também para a roda e dançaram com os homens, agitando os braços, cabeças e mantas, como se fossem grandes pássaros. Depressa começaram a sentir o efeito hipnótico dos cultrunes, trutrucas e flautas, do bater ritmado dos pés na terra húmida, da energia poderosa da dança e, um a um, começaram a uivar de uma forma visceral, que depressa se transformou num grito imenso - «Ooooooooom, Oooooooom» - que ecoou nos montes, movendo o espírito. Era impossível escapar ao feitiço magnético daquele imenso «Oooooooooom».
- Nós te pedimos Senhor Deus, nesta terra nossa, que se te apraz nos ajudes em todos os momentos e, em concreto, neste por que passamos agora, pedimos-te directamente que nos oiças. Nós te pedimos, Senhor Deus, que não nos deixes sós, que não permitas que andemos a tactear na escuridão, que dês muita força aos nossos braços para defender a terra dos nossos avós.
A música e a dança pararam. Os raios do sol da manhã filtraram-se por entre as nuvens, tingindo a neblina com um pó dourado. O toqui mais antigo, com uma pele de puma sobre os ombros, adiantou-se, preparando-se para ser o primeiro a falar. Tinha viajado durante uma lua inteira para estar ali presente em representação da sua tribo. Não tinha pressa. Começou pelo mais remoto, pela história da Criação, de como a cobra Cai-Cai inquietava o mar e como as ondas ameaçavam engolir os mapuche, até que a cobra Treng-Treng os salvou, levando-os para os montes mais altos, que fez crescer e crescer. E a chuva caía com tanta abundância que aqueles que não conseguiram subir aos montes, acabaram por morrer no dilúvio. E depois, as águas baixaram e os homens e as mulheres ocuparam os vales e bosques, sem esquecer que as árvores, as plantas e os animais são seus irmãos e precisam de ser cuidados; por isso, de cada vez que se cortam ramos para fazer um tecto, deve agradecer-se, e quando se mata um animal para comer, deve pedir-se perdão, e nunca se deve matar por matar. E os mapuche viveram livres nesta terra santa, e quando chegaram os incas do Peru, juntaram-se para se defenderem e venceram-nos, não os deixando cruzar o Bío-Bío, que é a mãe de todos os rios, mas as suas águas tingiram-se de sangue e a Lua surgiu vermelha no céu. E passou um tempo e surgiram os huincaspelos mesmos caminhos dos Incas. Eram muitos e bastante hediondos, cheiravam-se a dois dias de distância, e muito ladrões, não tinham pátria nem terra, tomavam tudo o que não era seu, as mulheres também, e pretendiam que os mapuche e outras tribos fossem seus escravos. E os guerreiros enfrentaram-nos, mas muitos morreram, porque as suas flechas e lanças não atravessavam os vestidos de metal dos huincas e, pelo contrário, estes podiam matar de longe com puro ruído e com os seus cães. Mesmo assim, enfrentaram-nos. Por serem muito cobardes, os huincas foram-se embora. E passaram vários Verões e vários Invernos e chegaram outros huincas e estes, disse o velho toqui, querem cá ficar, estão a cortar árvores, a levantar as suas ruças, a semear o seu milho e a emprenhar as nossas mulheres; por isso, nascem crianças que não são huincas nem gente da terra.
- E pelo que conta o nosso espião, pretendem apoderar-se da terra inteira, desde os vulcões até ao mar, desde o deserto até onde termina o mundo, e querem fundar muitas povoações. São cruéis e o seu toqui, Valdivia, muito astuto. E eu digo que os mapuche nunca tiveram inimigos tão poderosos como os barbudos que vieram de longe. Agora são só uma tribo pequena, mas outros mais virão, porque têm daquelas casas com asas que voam sobre o mar. E agora peço às gentes que digam o que devemos fazer.
Um outro toqui deu um passo em frente, brandiu as suas armas, dando saltos, e lançou um longo grito de ira, para logo anunciar, de seguida, que estava preparado para atacar os huincas, matá-los, devorar-lhes o coração para assimilar o seu poder, queimar as suas ruças e tirar-lhes as mulheres, não havia outra solução, morte a todos. Quando acabou de falar, um terceiro toqui ocupou o centro do anfiteatro para explicar que toda a nação mapuche se devia unir contra aquele inimigo e escolher um toqui de entre os toquis, um nidoltoqui, para a guerra.
- Senhor Deus Ngenechén, humildemente te pedimos que nos ajudes a vencer os huincas, a cansá-los, incomodá-los, não os deixando comer nem dormir, meter-lhes medo, espiá-los, enganá-los, tirar-lhes as armas, desfazer-lhes o crânio com as nossas maças, isso te pedimos, Senhor Deus.
O primeiro toqui tomou de novo a palavra para dizer que não deviam apressar-se, tinham de combater com paciência, pois os huincaseram como a erva daninha, que quando se corta, volta a nascer com mais força; esta guerra seria uma guerra deles, dos seus filhos e dos filhos dos seus filhos. Até ao fim da guerra, seria derramado muito sangue, mapuche e huinca. Os guerreiros levantaram as suas lanças e um longo coro de gritos de aprovação saiu dos seus peitos. «Guerra! Guerra!» Nesse mesmo instante, os chuviscos pararam, as nuvens afastaram-se e um condor magnífico voou lentamente naquele pedaço de céu aberto.
No início de Setembro, percebemos que o nosso primeiro Inverno no Chile estava a terminar. O clima melhorou e as árvores jovens que tínhamos transplantado do bosque para as ruas encheram-se de rebentos. Aqueles meses foram árduos, não só devido à hostilidade dos índios e às conspirações de Sancho de Ia Hoz, mas também devido à sensação de solidão que nos atormentava frequentemente. Questionávamo-nos sobre o que estaria a acontecer no resto do mundo, se havia conquistas espanholas noutros territórios, novos inventos, o que seria do nosso Sacro Imperador, que segundo as últimas notícias, entretanto chegadas ao Peru um bom par de anos antes, estava meio louco. A demência corria nas veias da sua família, bastando para tal relembrar a sua desditosa mãe, a louca de Tordesilhas. De Maio a finais de Agosto, os dias tinham sido muito curtos, anoitecia por volta das cinco horas e as noites eram uma eternidade. Aproveitávamos até ao último raio de luz natural para trabalhar, e depois tínhamos de recolher para dentro de uma divisão da casa - amos, índios, cães e até as aves da capoeira - com uma ou duas lamparinas e um braseiro. Cada um procurava entreter-se para passar as horas da tarde. O capelão iniciou um coro entre os yanaconas para lhes reforçar a fé por força dos cânticos. Aguirre divertia-nos com as suas histórias disparatadas de mulherengo e atrevidas rimas de soldados. Rodrigo de Quiroga, que a princípio parecia muito tímido e calado, ganhou ânimo e revelou-se um inspirado contador de histórias. Tínhamos muito poucos livros e já os sabíamos todos de cor, mas Quiroga conseguira tirar as personagens de uma história, colocá-las noutra e o resultado era uma variedade infindável de argumentos. Todos os livros da colónia, menos dois, estavam na lista negra da Inquisição e, como as versões de Quiroga eram bastante mais audazes do que os livros originais, os seus contos eram considerados um prazer pecaminoso e, por isso mesmo, bastante solicitados. Também jogávamos às cartas, vício de que padeciam todos os espanhóis, em especial o nosso Governador, que tinha muita sorte. Não jogávamos a dinheiro, para evitar confusões, não dar mau exemplo aos criados e esconder a nossa pobreza. Tocávamos viola, recitávamos poesia, conversávamos com muita alegria. Os homens recordavam as suas batalhas e aventuras, imortalizadas pelos seus contendores. Um pedido recorrente era que Pedro relatasse as proezas do Marquês de Pescara; soldados e criados não se cansavam de recordar a astúcia do Marquês, quando cobriu as suas tropas com lençóis brancos para passarem despercebidos na neve.
Os capitães reuniam-se - também em nossa casa - para discutir as leis da colónia, assunto fundamental para o Governador. Pedro desejava que a sociedade chilena se baseasse na legalidade e no espírito de serviço dos seus dirigentes; insistia que ninguém devia receber dinheiro por desempenhar um cargo público e muito menos ele, posto que servir era uma obrigação e uma honra. Rodrigo de Quiroga apoiava completamente esta ideia, mas os dois eram os únicos imbuídos de tão dignos ideais. Graças às terras e comendas que se repartiram por entre os soldados mais determinados na conquista, havia mais do que o suficiente para um futuro próspero, dizia Valdivia, ainda que, por enquanto, fossem só meros sonhos, e quem mais bens possuísse, mais deveres teria para com o seu povo.
Os soldados aborreciam-se, porque, além de praticar com as suas armas, dormir com as amantes e lutar quando era preciso, não havia muito para fazer. O trabalho de construir a cidade, semear e cuidar dos animais estava nas mãos das mulheres e dos yanaconas. A mim, faltava-me tempo para cumprir com todas as minhas obrigações: a lide de casa e da colónia, cuidar dos doentes, das plantações e dos currais, aprender a ler com o frade Gonzalez de Marmolejo e a falar mapudungu com Felipe.
A brisa perfumada da Primavera trouxe-nos uma onda de optimismo; para trás, ficaram os horrores que as hostes de Michimalonko tinham provocado. Sentíamo-nos mais fortes, apesar de, depois da chacina em Marga-Marga e Concón, e do julgamento dos quatro traidores, o nosso número estar reduzido a cento e vinte soldados. Santiago saiu quase intacta do lodo e da ventania do Inverno, quando tivemos que tirar a água com baldes; as casas resistiram ao dilúvio e as pessoas tinham saúde. Mesmo os nossos índios, que morriam de constipações comuns, atravessaram os temporais sem grandes problemas. Arámos as hortas e plantámos os rebentos, que eu tão cuidadosamente tinha protegido das geadas. Os animais já tinham acasalado e preparávamos agora os currais para os leitões, os potros e os lamas que haviam de nascer. Decidimos que mal se limpasse o lodo seco, faríamos os regueiros necessários e até planeávamos construir uma ponte sobre o rio Mapocho, para unir a cidade com as fazendas que, um dia, haveria nos arredores, mas antes era preciso acabar de construir a igreja. A casa de Francisco de Aguirre já tinha dois andares e continuava a crescer; brincávamos com ele, porque tinha mais índias e pretensões do que o resto dos homens todos juntos e, pelos vistos, queria que a sua casa fosse mais alta do que a igreja. «O basco acha-se superior a Deus», gracejavam os soldados. As mulheres da minha casa tinham passado o Inverno a costurar e a ensinar a outras os labores domésticos. A moral dos castelhanos, sempre extremamente vaidosos, elevou-se ao verem as suas camisas novas, as calças remendadas e os coletes cerzidos. Por momentos, até Sancho de la hoz deixou de conspirar a partir da sua cela. O Governador anunciou que, depressa, se retomaria a construção do bergantim, reactivando a exploração dos garimpos e a procura da mina de prata referida pelo curaca Vitacura, que, até então, parecia escapar-se por entre os nossos dedos.
O optimismo primaveril não durou muito, porque nos primeiros dias de Setembro, o menino índio, Felipe, chegou com a notícia de que continuavam a chegar guerreiros inimigos ao vale e que se estava a juntar um exército. Cecilia mandou as suas servas averiguar e estas confirmaram o que Felipe parecia saber por pura clarividência, acrescentando ainda que havia cerca de quinhentos índios acampados a umas quinze ou vinte léguas de Santiago. Valdivia reuniu os seus capitães mais fiéis e decidiu mais uma vez dar luta ao inimigo, antes que este tivesse tempo para se organizar.
- Não vás, Pedro. Tenho um mau pressentimento - pedi-lhe.
- Tens sempre maus pressentimentos nestes casos, Inés - respondeu-me, naquele tom de pai complacente que eu detestava. - Estamos habituados a combater contra um número cem vezes superior, quinhentos selvagens até nos dão vontade de rir.
- Pode haver mais escondidos noutros sítios.
- Com a graça de Deus aguentaremos com eles todos, não te preocupes.
Parecia-me imprudente dividir as nossas forças, que já eram bastante diminutas, mas quem era eu para objectar contra a estratégia de um soldado experiente como ele? Cada vez que o tentava dissuadir de uma decisão militar, porque o senso comum assim me ditava, ficava furioso comigo e acabávamos sempre chateados. Não estive de acordo com ele nesta ocasião, da mesma forma que não estive a seu lado quando lhe deu a febre de fundar cidades que não podíamos povoar nem defender. Foi essa teimosia que o conduziu à morte. «As mulheres não sabem pensar em grande, não imaginam o futuro, carecem do sentido de História, só se ocupam com os assuntos domésticos e com o presente», disse-me uma vez, a propósito disto, mas teve de se retractar quando lhe recitei a lista dos contributos que eu e as restantes mulheres déramos à tarefa de conquistar e fundar.
Pedro deixou a cidade protegida por cinquenta soldados e cem yanaconas sob os comandos dos seus melhores capitães, Monroy, Villagra, Aguirre e Quiroga. O destacamento, composto por pouco mais de cem soldados e o resto dos índios, saiu de Santiago ao amanhecer, ao som de trompetas, com estandartes, disparos de mosquetes e o maior alarido possível, para dar a impressão de que eram mais. Do terraço da casa de Aguirre, convertido em torre de vigia, observámo-los enquanto se afastavam. Estava um dia claro e as montanhas cobertas de neve que rodeavam o vale pareciam imensas e muito próximas. Ao meu lado estava Rodrigo de Quiroga, tentando esconder a sua inquietude, que era tão grande como a minha.
- Não deviam ir, don Rodrigo. Santiago fica indefesa.
- O Governador sabe o que faz, dona Inés - respondeu-me, com pouca convicção. - É preferível ir ao encontro do inimigo, para ele ficar a saber que não o tememos.
Este jovem capitão era, na minha opinião, o melhor homem da nossa colónia, depois de Pedro, é claro, indiscutivelmente valente como ninguém, com experiência de guerra, discreto e abnegado no seu sofrimento silencioso, leal e desinteressado; além disso, tinha a rara virtude de inspirar confiança a toda a gente. Estava a construir a sua casa num local perto da nossa, mas estivera tão ocupado a lutar nas sucessivas escaramuças contra os índios chilenos, que a sua vivenda consistia somente de uns quantos pilares, um par de paredes, umas lonas e um tecto de palha. A sua casa era tão pouco acolhedora, que passava a maior parte do tempo na nossa, já que a casa do Governador, sendo a mais ampla e cómoda da cidade, se tinha convertido em centro de reuniões. Suponho que a minha preocupação para que nunca faltasse comida e bebida era fundamental para o nosso êxito social. Rodrigo era o único dos soldados que não dispunha de um harém de concubinas e que não
Andava à caça das índias alheias para as engravidar. A sua companheira era Eulalia, uma das servas de Cecilia, uma jovem quícbua muito bela, nascida no palácio de Atahualpa, que tinha a mesma postura e dignidade da sua ama, a jovem princesa inça. Eulalia apaixonou-se por Rodrigo desde o primeiro momento em que este se juntou à nossa expedição. Viu-o chegar imundo, doente, peludo e andrajoso como os restantes fantasmas sobreviventes de los Chunchos, mas foi capaz de o apreciar com um só olhar, mesmo antes de lhe cortarem o cabelo e de lhe darem banho. Não ficou quieta. Com infinita astúcia e paciência, seduziu Rodrigo e, de seguida, veio falar comigo para me contar as suas angústias. Intercedi perante Cecilia para que deixasse Eulalia servir Rodrigo, com o argumento de que ela tinha muitas criadas e o pobre homem estava em pele e osso e, para além disso, sozinho, correndo riscos de morrer se não o ajudassem. Cecilia era demasiado esperta para se deixar levar por tais argumentos, mas comoveu-se com a ideia do amor e deixou ir a sua serva, e foi assim que Eulalia acabou por ir viver com Quiroga. Tinham uma relação delicada; ele tratava-a com uma cortesia paternal e respeitosa, inusitada entre um soldado e a sua amante, e ela atendia aos seus menores desejos com rapidez e descrição. Parecia submissa, mas eu sabia, através de Catalina, que era apaixonada e ciumenta. Enquanto, do terraço, observávamos juntos mais de metade das nossas tropas a afastarem-se da cidade, perguntei-me como seria Rodrigo na intimidade, se por acaso satisfazia Eulalia. Conhecia o seu corpo, magro, mas muito forte, porque tinha tratado dele quando chegou doente de los Chunchos e quando foi ferido durante os encontros com os índios. Não o tinha visto completamente despido, mas segundo Catalina: «Devias ver o seu pirilau, pois, senoray.» As mulheres de serviço, a quem nada escapa, asseguravam que era muito bem dotado, ao contrário de Aguirre, que apesar de toda a sua vaidade... bem, isso não importa. Lembro-me de que o meu coração bateu com força ao pensar nas coisas que tinha ouvido dizer sobre Rodrigo e corei tão violentamente que ele notou.
- Passa-se alguma coisa, dona Inés? - perguntou-me.
Despedi-me apressadamente, perturbada, e desci para começar as minhas tarefas diárias, enquanto ele iniciava as suas.
Dois dias mais tarde, na noite de 11 de Setembro de 1541, data que jamais esquecerei, as hostes de Michimalonko e os seus aliados atacaram Santiago. Como sempre acontece quando Pedro estava ausente, não conseguia dormir. Como passava frequentemente a noite em branco, nem sequer me tentei deitar e fiquei a coser até tarde, depois de mandar o resto das pessoas para a cama. Felipe também sofria de insónias, como eu. Encontrava muitas vezes o miúdo nos meus passeios nocturnos pela casa; estava sempre num sítio inesperado, imóvel e calado, com os olhos abertos na escuridão. Tinha sido totalmente inútil arranjar-lhe um colchão de palha ou um local fixo para dormir, pois deitava-se em qualquer lado, sem sequer se tapar com uma manta. Naquela hora incerta, um pouco antes do amanhecer, senti redobrar essa mesma inquietude que me embrulhava o estômago desde que Pedro tinha partido. Passara boa parte da noite a rezar, não por excesso de fé, mas por medo. Falar directamente com a Virgem traz-me sempre tranquilidade, mas naquela longa noite, nem ela conseguiu apaziguar as premonições nefastas que me atormentavam. Coloquei um xaile sobre os ombros e fiz o meu percurso habitual acompanhada por Baltasar, que tinha o hábito de me seguir como uma sombra, colado aos meus tornozelos. A casa estava calma. Não encontrei Felipe, mas não me preocupei, pois devia estar a dormir com os cavalos. Fui à praça e reparei na luz ténue de uma tocha pendurada no tecto da casa de Aguirre, onde tinham colocado um soldado de vigia. Pensando que o pobre homem devia estar a cair de cansaço depois de tantas horas de vigia solitária, aqueci uma malga de caldo e levei-lha.
- Obrigado, dona Inés. Não descansais?
- Não sou pessoa de dormir muito. Há novidades?
- Não. Foi uma noite tranquila. Como vê, a Lua ilumina um pouco a escuridão.
- O que são aquelas manchas escuras ali à frente, ao pé do rio?
- Sombras. Já há algum tempo que dei por elas.
Fiquei a observar durante um momento e concluí que era uma visão deveras estranha, como se uma grande onda negra saísse do rio para se juntar a outra que vinha do vale.
- Aquelas supostas sombras não são normais, meu jovem. Acho que devemos avisar o capitão Quiroga, que tem muito boa vista...
- Não posso abandonar o meu posto, senhora.
- Eu vou avisá-lo.
Desci aos saltos, seguida pelo cão, e corri para casa de Rodrigo de Quiroga, no outro extremo da praça, despertei o índio de guarda, que estava a dormir atravessado no umbral daquilo que, um dia, seria uma porta, e ordenei-lhe que chamasse imediatamente o capitão. Dois minutos depois apareceu Rodrigo, ainda meio despido, mas com as botas calçadas e a espada na mão. Acompanhou-me rapidamente através da praça e subiu comigo ao terraço de Aguirre.
- Não há dúvida, dona Inés, aquelas sombras são massas de gente que avançam na nossa direcção. Era capaz de jurar que são índios cobertos com mantas negras.
- Mas o que diz! - exclamei, incrédula, pensando no Marquês de Pescara e nos seus lençóis brancos.
Rodrigo de Quiroga deu o sinal de alarme e, em menos de vinte minutos, os cinquenta soldados, que por aqueles dias estavam sempre preparados, juntaram-se na praça, cada um com as suas armaduras e elmos trajados, as armas a postos. Monroy organizou a cavalaria - só tínhamos trinta e dois cavalos - e dividiu-a em dois pequenos destacamentos, um sob o seu comando e outro sob o comando de Aguirre, ambos decididos a enfrentar o inimigo no exterior, antes que conseguissem entrar na cidade. Villagra e Quiroga, juntamente com os arcabuzeiros e vários índios, ficaram responsáveis pela defesa interna, enquanto o capelão, as mulheres e eu devíamos abastecer e tratar os defensores. Por sugestão minha, Juan Gomez levou Cecilia, as duas melhores amas-de-leite índias e as crianças de peito da colónia para a adega da nossa casa, que tínhamos escavado debaixo de terra com o intuito de armazenar víveres e vinho. Entregou à sua mulher a estatueta de Nossa Senhora do Socorro, despediu-se dela com um longo beijo na boca, abençoou o filho, fechou a cova com umas tábuas e disfarçou a entrada com montes de terra. Não encontrou outra forma de os proteger senão sepultando-os com vida.
Amanhecia o dia 11 de Setembro. O céu estava limpo e o tímido sol da Primavera iluminava os contornos da cidade no preciso momento em que o alarido monstruoso e a gritaria de milhares de indígenas desabaram em tropel sobre nós. Percebemos que tínhamos sido enganados, e que os selvagens eram bem mais astutos do que pensávamos. A partida de quinhentos inimigos, que supostamente formariam o contingente que ameaçava Santiago, era apenas uma estratégia para atrair Valdivia e grande parte das nossas tropas, enquanto milhares e milhares de índios, escondidos no bosque, aproveitavam as sombras da noite para se aproximarem cobertos por mantas negras.
Sancho de Ia Hoz, que há meses estava preso numa cela, desatou a gritar que o soltassem e lhe dessem uma espada para lutar. Monroy lá calculou que necessitaria desesperadamente de todos os braços que pudesse arranjar, inclusive de um traidor, e mandou tirar-lhe os grilhões. Devo, no entanto, deixar registado que, naquele dia, o cortesão se bateu com a mesma fereza que os demais heróicos capitães.
- Tens ideia de quantos índios nos atacam, Francisco? - perguntou Monroy a Aguirre.
- Nada que nos assuste, Alonso! Aí uns oito ou dez mil...
Os dois grupos de cavalaria saíram a galope para enfrentar os primeiros atacantes, qual centauros furiosos, decepando cabeças e membros de um só golpe, e rebentado os peitos às patadas dos cavalos. Porém, menos de uma hora depois, tiveram de retroceder. Entretanto, milhares de outros índios corriam já pelas ruas de Santiago aos gritos. Alguns yanaconas e mulheres, treinados por Quiroga com meses de antecipação, carregavam os mosquetes para que os soldados os pudessem disparar, mas o processo era longo e enfadonho; e tínhamos o inimigo em cima de nós. As mães das criaturas que Cecilia tinha escondidas na cova revelaram-se mais valentes do que muitos soldados experientes, porque lutavam pela vida dos seus filhos. Uma chuva de setas incendiárias caiu sobre os tectos de palha das casas que, apesar de ainda estarem húmidos das chuvas de Agosto, começaram a arder. Percebi que devíamos deixar os homens com os seus mosquetes, enquanto nós, as mulheres, tratávamos de apagar o fogo. Fizemos filas para passar os baldes de água, mas depressa percebemos que era uma tarefa inútil, pois continuavam a cair flechas de todo o lado e não podíamos gastar a água disponível no incêndio, já que, em breve, os soldados precisariam desesperadamente dela. Abandonámos as casas da periferia e fomos agrupar-nos na Praça de Armas.
Por aquela altura, já estavam a chegar os primeiros feridos, alguns soldados e vários yanaconas. Catalina, as minhas mulheres e eu conseguíramos organizar-nos com o habitual, panos, carvões, água e azeite a ferver, vinho para desinfectar e muday para ajudar a suportar a dor. Outras mulheres estavam a preparar panelas de sopa, cabaças com água t tortilhas de milho, porque a batalha ia durar muito tempo. O fumo da palha a arder cobriu a cidade, mal podíamos respirar e ardiam-nos os olhos. Os homens chegavam a sangrar e nós tratávamos-lhes as feridas visíveis - não havia tempo para tirar as armaduras -, dávamos-lhes uma malga de água ou caldo e, mal se conseguiam por em pé, partiam logo para a batalha. Não sei quantas vezes a cavalaria enfrentou os atacantes, mas chegou um momento em que Monroy decidiu que era impossível defender a cidade inteira, que ardia nas quatro frentes, porque os índios já a ocupavam quase inteiramente. Conferenciou brevemente com Aguirre e ambos concordaram retirar-se com os seus cavalos e dispor todas as nossas forças na praça, onde se instalara o velho Don Benito num tamborete. A sua ferida tinha cicatrizado graças às feitiçarias de Catalina, mas estava bastante débil e não conseguia manter-se de pé por muito tempo. Tinha dois mosquetes e um yanacona que o ajudava a carregar as armas e, durante todo o santo dia, causou imensas baixas entre os inimigos a partir do seu assento de inválido. Tanto disparou, que ficou com as palmas das mãos queimadas sob a acção das armas em brasa.
Enquanto eu andava atarefada com os feridos dentro de casa, um grupo de assaltantes conseguiu trepar o muro de adobe do meu pátio. Quando Catalina deu o alarme, balindo como um bezerro, fui ver o que era, mas não cheguei longe, porque os inimigos estavam tão perto, que lhes podia perfeitamente ter contado os dentes naqueles rostos pintalgados e ferozes. Rodrigo de Quiroga e o cura Gonzalez de Marmolejo, que entretanto tinha colocado um colete e empunhava uma espada, acudiram rapidamente para os afastar, já que era fundamental defender a minha casa, onde tínhamos os feridos e as crianças, refugiadas na adega com Cecilia. Uns quantos índios enfrentavam Quiroga e Marmolejo, enquanto outros queimavam as sementeiras e matavam os meus animais domésticos. Foi precisamente isso que me fez perder o juízo de vez, pois tinha cuidado de cada um daqueles animais como se fossem os filhos que nunca tive. Com um rugido, que se me escapou das entranhas, saí ao encontro dos indígenas, ainda que não levasse a armadura que Pedro me tinha oferecido, porque não podia atender os feridos imobilizada entre aqueles ferros. Acho que levava o meu cabelo eriçado, espumava de raiva e lançava maldições e perdigotos para todo lado, como uma bruxa; devia ter mesmo um aspecto bastante ameaçador, porque até os selvagens se detiveram por um momento, para logo de seguida retrocederem alguns passos, surpreendidos. Não sei por que não me mataram ali mesmo com uma pancada na cabeça. Disseram-me que Michimalonko lhes tinha dado ordens para não me atacarem, porque me queria para ele, mas isso são histórias que as pessoas inventam depois, para explicar o inexplicável. Nesse mesmo instante, aproximaram-se respectivamente Rodrigo de Quiroga, brandindo a sua espada como um molinete por cima da cabeça, e gritando que me pusesse a salvo, e o meu cão, Baltasar, que grunhia e ladrava com o focinho recolhido e os caninos de fora, parecendo a fera que, em circunstâncias normais, não era. Os assaltantes saíram disparados, seguidos pelo mastim, e eu fiquei no meio da minha horta em chamas e dos cadáveres dos meus animais, completamente desolada. Rodrigo segurou-me por um braço, obrigando-me a segui-lo, quando vimos um galo com as penas chamuscadas que tentava pôr-se de pé. Sem pensar, levantei as saias e coloquei-o no regaço em forma de bolsa. Um pouco mais à frente estava um par de galinhas atordoadas pelo fumo, que não me custou nada apanhar e colocar junto ao galo. Catalina apareceu, em seguida, para me amparar e, ao compreender o que fazia, ajudou-me. Entre as duas, conseguimos salvar aquelas aves, um casal de porcos e duas tigelas de trigo, e nada mais, após o que decidimos colocá-los a salvo. Naquela altura, Rodrigo e o capelão já estavam de volta à praça, batendo-se juntamente com os demais.
Catalina, várias índias e eu atendíamos os feridos que chegavam em número alarmante ao improvisado hospital em que se tinha transformado a minha casa. Eulalia chegou a amparar um soldado de infantaria coberto de sangue dos pés à cabeça. «Meus Deus, este não tem salvação possível», pensei, só que, ao tirar-lhe o elmo, reparámos que tinha um corte profundo na testa, mas o osso não estava partido, apenas inchado. Catalina e as outras mulheres cauterizaram-lhe a ferida, lavaram-lhe a cara e deram-lhe água para beber, mas não conseguiram que descansasse um pouco. Aturdido e meio cego, porque as pálpebras lhe tinham inchado bastante, saiu aos tropeções para a praça. Entretanto, eu tentava tirar uma flecha do pescoço de outro soldado, um tal de López, que sempre me tinha presenteado com um desdém mal dissimulado, sobretudo depois da tragédia de Escobar. O infeliz estava lívido e a flecha tão enterrada que não conseguia tirá-la sem aumentar a ferida. Estava precisamente a tentar calcular se podia correr o risco, quando o pobre homem começou a tremer em espasmos brutais. Apercebi-me de que nada podia fazer por ele e chamei o capelão, que logo apareceu rapidamente para lhe ministrar os últimos sacramentos. Deitados no chão da sala, havia muitos feridos que não estavam em condições de voltar a lutar; deviam ser pelo menos vinte, na sua maioria yanaconas. Os panos acabaram e, então, Catalina pôs-se a rasgar os lençóis, que tínhamos bordado com tanto primor nas frias e ociosas noites de Inverno, depois começámos a cortar as saias às tiras e, por último, o meu elegante vestido. Sancho de Ia Hoz entrou, carregando outro soldado desmaiado, que colocou aos meus pés. O traidor e eu trocámos um breve olhar e creio mesmo que, com ele, nos perdoámos pelos agravos do passado. Ao coro de alaridos dos homens cauterizados sob a acção dos ferros e carvões em brasa, somavam-se agora os relinchos dos cavalos, porque, naquele mesmo sítio, o ferreiro ia tratando como podia das bestas feridas. No solo de terra batida, misturava-se o sangue cristão com o sangue dos animais.
Aguirre apareceu à porta sem desmontar do seu corcel, ensanguentado da cabeça aos estribos, anunciando que tinha mandado evacuar todas as casas, menos as que ficavam ao redor da praça, onde nos esforçaríamos por defender até ao último suspiro.
- Descei do cavalo, capitão, para que vos trate das feridas! - ainda lhe pedi.
- Não tenho um único arranhão, dona Inés! Levai água aos homens da praça! - gritou-me com um regozijo feroz e foi-se embora, debruçado sobre o seu cavalo, que também sangrava de um flanco.
Ordenei a várias mulheres que levassem água e tortilhas aos soldados, que lutavam sem tréguas desde o amanhecer, enquanto Catalina e eu despojávamos o cadáver de López da sua armadura, e então, tal como estavam, ensopadas em sangue, vesti a cota de malha e a couraça. Peguei na espada de López, porque não sabia da minha, e saí para a praça. O Sol tinha passado o seu zénite há já algum tempo, deviam ser mais ou menos três ou quatro da tarde e, pelos meus cálculos, estaríamos a lutar há mais de dez horas. Olhei em redor da praça e apercebi-me de que Santiago ardia irremediavelmente, sem dó nem piedade, e que o trabalho de meses estava perdido. Era o fim do nosso sonho de colonizar o vale. Entretanto, Monroy e Villagra tinham retrocedido, juntamente com os soldados que ainda sobreviviam e lutavam a cavalo dentro da praça, defendida ombro a ombro pela nossa gente e atacada pelos quatro cantos. Ainda estavam de pé uma parte da igreja e a casa de Aguirre, onde mantínhamos os sete caciques cativos. Don Benito, negro de pólvora e fuligem, disparava do seu tamborete com método, apontando com cuidado antes de apertar o gatilho, como se estivesse a caçar codornizes. O yanacona que antes lhe carregava as armas jazia imóvel a seus pés e, no seu lugar, estava agora Eulalia. Compreendi que a jovem estivera na praça o tempo todo para não perder o seu amado Rodrigo de vista.
Por cima da barulheira da pólvora, relinchos, gritos e bramidos da batalha, ouvi claramente as vozes dos sete caciques incitando as suas gentes com gritos exaltados. Não sei o que me passou pela cabeça. Já pensei muitas vezes nesse fatídico 11 de Setembro e tentei entender o sucedido, mas creio que ninguém pode descrever com exactidão o que aconteceu, pois cada pessoa tem uma versão diferente, de acordo com o que viveu. A fumarada era densa, a confusão tremenda, o ruído ensurdecedor. Estávamos transtornados, lutando para salvar as nossas vidas, loucos de sangue e violência. Não consigo recordar detalhadamente as minhas acções daquele dia e tenho de acreditar no que os outros me contam. Lembro-me, isso sim, de que em nenhum momento tive medo, porque a ira enchia-me o peito por completo.
Olhei para a cela, de onde vinham os gritos dos cativos e, apesar do fumo dos incêndios, distingui com absoluta nitidez o meu marido, Juan de Malaga, que me perseguia desde Cuzco, apoiado na porta, encarando-me com os seus olhos lastimosos de espírito errante. Fez-me um gesto com a mão, como se me chamasse. Abri caminho por entre cavalos e soldados, avaliando o desastre com uma parte do cérebro e obedecendo com a outra à ordem muda do meu defunto marido. A cela não era mais do que um quarto improvisado no primeiro andar da casa de Aguirre e a porta consistia numas quantas tábuas com uma tranca por fora, vigiada por dois jovens sentinelas com instruções de defender os cativos com as próprias vidas, uma vez que representavam a nossa única hipótese de negociar com o inimigo. Nem parei para lhes pedir licença, empurrei-os pura e simplesmente para o lado e, só com uma mão, ajudada por Juan de Malaga, levantei a pesada tranca. Os guardas seguiram-me para dentro da cela, sem se atreverem a fazer-me frente e sem suspeitar das minhas intenções. A luz e o fumo entravam pelas frestas, sufocando o ar, e um pó vermelho levantava-se do solo, de maneira que a cena não era nítida, mas lá consegui ver os sete prisioneiros acorrentados a grossos postes, debatendo-se como demónios até onde os ferros permitiam e gritando a plenos pulmões para chamar os seus. Quando me viram entrar com o fantasma ensanguentado de Juan de Malaga, calaram-se.
- Matai-os a todos! - ordenei aos guardas, num tom de voz impossível de reconhecer.
Tanto os presos como os guardas ficaram pasmados.
- Quer que os matemos, senhora? São os reféns do Governador!
- Matai-os, já disse!
- Como quereis que os matemos? - perguntou um dos soldados, espantado. :
-Assim!
E então, hasteei a pesada espada com as duas mãos e descarreguei-a com força e ódio sobre o cacique que estava mais perto de mim, cortando-lhe o pescoço de um só golpe. O impulso do golpe atirou-me para o chão, onde um jorro de sangue me acertou na cara, enquanto a cabeça do cacique rolava aos meus pés. Não me recordo bem do rosto dele. Mais tarde, um dos guardas assegurou que, depois disto, decapitei de igual forma os outros seis prisioneiros, mas o segundo diz que não foi assim, que foram eles que terminaram a tarefa. Não importa. O facto é que, poucos minutos depois, havia sete cabeças por terra. Que Deus me perdoe. Agarrei numa pelos cabelos, saí para a praça dando passos de gigante, subi aos sacos de areia que constituíam a nossa barricada e lancei o meu horrendo trofeu para o ar com uma força descomunal e um grito pavoroso de triunfo, que subiu das entranhas da terra, atravessou o meu corpo inteiro e escapou de dentro de mim, vibrando do meu peito como um trovão. A cabeça voou, deu várias voltas no ar e aterrou no meio dos índios. Não esperei para ver o efeito, regressei à cela, peguei noutras duas cabeças e lancei-as no lado oposto da praça. Parece-me que os guardas me trouxeram as outras quatro, mas também não tenho certeza, talvez eu mesma as tivesse ido buscar. Só sei que não me faltaram as forças para as lançar todas pelo ar. Antes de lançar a última, uma estranha quietude caiu sobre a praça, o tempo parou, o fumo desapareceu e reparámos que os índios, mudos, apavorados, começavam a retroceder, um, dois, três passos e, pouco depois, corriam em fila, aos empurrões, retirando-se das ruas que já tinham tomado.
Passou-se um tempo infinito, ou talvez um instante apenas. Uma imensa agonia apoderou-se de mim, de rompante, e os meus ossos desfizeram-se, de repente, em espuma, e só então despertei do pesadelo e me apercebi do horror cometido. Vi-me como me viam as pessoas que me rodeavam: um demónio desgrenhado, coberto de sangue, já sem voz de tanto gritar. Os joelhos falharam-me, senti um braço a rodear-me a cintura e Rodrigo de Quiroga levantou-me em desequilíbrio, apertou-me contra a sua armadura e conduziu-me através da praça que estava mergulhada no mais profundo estado de assombro e estupefacção.
Santiago da Nova Extremadura salvou-se, ainda que não fosse mais do que um monte de paus queimados e entulho. Da igreja restavam apenas uns pilares; da minha casa quatro paredes chamuscadas; a de Aguirre estava mais ou menos inteira, e tudo o resto era cinza. Tínhamos perdido quatro soldados e os restantes estavam feridos, vários com gravidade. Metade dos yanaconas morreram no combate e outros cinco faleceram nos dias seguintes de infecções e hemorragias. As mulheres e crianças saíram incólumes porque os atacantes não descobriram a cova de Cecilia. Não contei os cavalos nem os cães, mas dos animais domésticos, só restava o galo, duas galinhas e um casal de porcos, que tinha conseguido salvar com Catalina. Ficámos com poucas sementes, apenas quatro punhados de trigo.
Rodrigo de Quiroga, assim como os demais, achou que eu tinha enlouquecido de vez durante a batalha. Levou-me em braços até às ruínas da minha casa, onde ainda funcionava a enfermaria improvisada, e deitou-me com cuidado no chão. Tinha uma expressão de tristeza e infinito cansaço quando se despediu de mim com um leve beijo na testa e voltou para a praça. Catalina e outra mulher tiraram-me a couraça, a cota de malha e o vestido ensopado em sangue à procura das
feridas que não tinha. Lavaram-me como puderam com água e um punhado de crinas de cavalo para fazer de esponja, porque já não tínhamos panos, e obrigaram-me a beber meia taça de licor. Vomitei um líquido roxo, como se também tivesse bebido sangue alheio.
O estrondo de muitas horas de batalha foi substituído por um silêncio espectral. Os homens não podiam mover-se, caíram onde estavam e ali ficaram, ensanguentados, cobertos de fuligem, pó e cinza, até que as mulheres saíram para lhes dar água, tirar-lhes as armaduras e ajudá-los a levantar-se. O capelão percorreu a praça para fazer o sinal da cruz sobre a testa dos mortos e fechar-lhes os olhos, depois pegou nos feridos ao ombro e, um a um, levou-os para a enfermaria. O nobre cavalo de Francisco de Aguirre, fatalmente ferido, manteve-se de pé nas suas patas trémulas por pura determinação, até que várias mulheres conseguiram fazer descer o animal, que só então baixou a cerviz e morreu, antes de chegar ao chão. Aguirre tinha várias feridas superficiais e estava tão rígido e paralisado que não conseguiram tirar-lhe a armadura e as armas, tendo sido necessário deixá-lo num canto, durante mais de meia hora, para que conseguisse recuperar o movimento. Depois, com uma serra, o ferreiro cortou a lança de ambos os lados para lha podermos tirar da mão apertada e, entre várias mulheres, conseguimos despi-lo, tarefa difícil, porque era enorme e estava teso como uma estátua de bronze. Monroy e Villagra, em melhores condições que os restantes capitães e excitados pela luta, tiveram a ideia peregrina de, juntamente com alguns soldados, perseguir os indígenas que fugiam desordenadamente, mas não encontraram um único cavalo que conseguisse dar um passo, nem um só homem que não estivesse ferido.
Juan Gomez tinha lutado como um leão, pensando durante todo o dia em Cecilia e no seu filho, sepultados na minha casa, e mal a batalha acabou, correu para abrir a cova. Desesperado, tirou a terra com as mãos, porque não conseguiu encontrar uma pá, já que os atacantes as tinham levado todas. Arrancou as tábuas aos puxões, abriu a tumba e debruçou-se para um buraco negro e silencioso.
- Cecilia! Cecilia! - gritou, aterrado.
E então, a voz clara da mulher respondeu do fundo do buraco:
- Até que enfim vieste, Juan, já estava a começar a aborrecer-me. As três mulheres e as crianças tinham sobrevivido mais de doze
horas debaixo de terra, numa escuridão total, com muito pouco ar, sem água e sem saber o que estava a acontecer lá fora. Cecilia tinha atribuído às amas-de-leite a tarefa de alimentar as crianças por turnos durante o dia inteiro, enquanto ela, de machado na mão, se preparava para as defender. Por obra e graça de Nossa Senhora do Socorro, a caverna não se encheu de fumo, ou talvez tenha sido devido às pazadas de terra que Juan Gomez lhe colocou em cima para dissimular a entrada.
Monroy e Villagra decidiram mandar, nessa mesma noite, um mensageiro para dar a notícia do desastre a Pedro de Valdivia, mas Cecilia, que tinha emergido do refúgio subterrâneo tão digna e formosa como sempre, opinou que nenhum mensageiro sairia com vida de semelhante missão, já que o vale era um formigueiro de índios hostis. Os capitães, pouco habituados a dar ouvidos a vozes femininas, ignoraram-na.
- Peço a vossas mercês que escuteis o que diz a minha mulher. A sua rede de informações sempre nos foi muito útil - interveio Juan Gómez.
- O que propondes, dona Cecilia? - perguntou Rodrigo de Quiroga, a quem tínhamos cauterizado duas feridas e estava bastante abatido devido ao cansaço e à perda de sangue.
- Um homem nunca conseguirá cruzar as linhas inimigas...
- Sugere que mandemos um pombo-correio? - interrompeu Villagra, com ironia.
- Mulheres. Não uma, mas várias. Conheço muitas mulheres quíchuas no vale, elas transmitirão a notícia de boca em boca até chegar ao Governador, mais depressa do que cem pombas a voar - assegurou a princesa inca.
Como não havia muito tempo para grandes discussões, decidiram enviar a mensagem por duas vias, a que oferecia Cecilia e por um yanacona, ágil como uma lebre, que tentaria cruzar o vale de noite e alcançar Valdivia. Lamento dizer que esse fiel servidor foi surpreendido ao amanhecer e morto de uma assentada. É melhor não pensar na sorte que teria tido se fosse parar com vida às mãos de Michimalonko.
O cacique devia estar enfurecido com o fracasso das suas hostes; na verdade, era-lhe praticamente impossível explicar aos indómitos mapuche do Sul a forma como um punhado de barbudos tinha enfrentado oito mil dos seus guerreiros. E muito mais difícil ainda seria mencionar uma certa bruxa que lançava cabeças de caciques ao ar como se fossem melões. Chamar-lhe-iam cobarde, a pior coisa que se pode chamar a um guerreiro, e o seu nome não faria parte da épica tradição oral das tribos, remetido para o domínio das anedotas maliciosas. O sistema de Cecilia, contudo, foi capaz de fazer chegar a mensagem ao Governador no prazo de vinte e seis horas. A notícia voou de um casario ao outro através do longo e amplo vale, atravessou montes e bosques e alcançou Valdivia, que andava de um lado para o outro com os seus homens, procurando em vão por Michimalonko, sem saber que tinha sido enganado.
Depois de percorrer as ruínas de Santiago e de entregar a Monroy o cálculo das perdas, Rodrigo de Quiroga veio visitar-me. Em vez do basilisco demente que tinha depositado na enfermaria pouco antes, encontrou-me mais ou menos limpa e tão lúcida como antes, socorrendo os inúmeros feridos.
- Dona Inés... graças ao Santíssimo... - murmurou, quase a chorar de cansaço.
- Tirai a armadura, don Rodrigo, para o podermos tratar - repliquei.
- Pensei que... Meu Deus! Salvastes a cidade, dona Inés. Pusestes os selvagens a correr daqui para fora...
- Não digais isso, porque é injusto para com estes homens, que lutaram corajosamente, e para com as mulheres que os ajudaram.
- As cabeças... dizem que, ao cair, as cabeças ficaram todas a olhar para os índios e estes acreditaram que era um mau augúrio, por isso retrocederam.
- Não sei do que me estais a falar, don Rodrigo. Estais muito confuso. Catalina! Ajuda-o a tirar a armadura, mulher!
Durante aquelas horas, tive oportunidade de reflectir nas minhas acções. Trabalhei sem descanso e sem parar para respirar durante a primeira noite e a manhã seguinte, tratando dos feridos e tentando salvar o que fosse possível das casas queimadas, mas uma parte da minha mente mantinha um diálogo constante com Pedro e com a Virgem, pedindo-lhe que intercedesse a meu favor pelos crimes cometidos. Preferia não imaginar a reacção de Pedro ao ver a destruição de Santiago e saber que já não contava com os seus sete reféns, deixados que estávamos à mercê dos selvagens sem nada para negociar com eles. Como lhe poderia explicar o que tinha feito, se nem mesmo eu o entendia? Dizer-lhe que tinha enlouquecido e que nem sequer me lembrava bem do que acontecera, era uma desculpa absurda; além disso, estava envergonhada pelo espectáculo grotesco que tinha dado em frente aos seus capitães e soldados. Finalmente, por volta das duas da tarde do dia 12 de Setembro, o cansaço derrotou-me e consegui dormir durante algumas horas no chão, junto de Baltasar, que tinha voltado, arrastando-se ao amanhecer, com as goelas ensanguentadas e uma pata partida. Os três dias seguintes voaram-me por entre os dedos, trabalhando com os demais para limpar os escombros, apagar incêndios e fortalecer a praça, único sítio onde nos podíamos defender de outro ataque, que supúnhamos iminente. Além disso, Catalina e eu escavávamos os sulcos queimados e as cinzas das hortas em busca de qualquer bem comestível com que pudéssemos fazer sopa. Uma vez que acabámos com o cavalo de Aguirre, ficámos com muito pouco que comer; voltáramos aos tempos da panela comum, só que então a sopa consistia de água com ervas e alguns tubérculos que conseguíamos desenterrar.
Pedro voltou ao quarto dia com um destacamento de catorze soldados da cavalaria, enquanto a infantaria os tentava seguir o mais depressa que podia. Montado no Sultán, o Governador entrou nas ruínas daquilo a que antes chamávamos de cidade, e calculou com um único olhar a magnitude do descalabro. Atravessou as ruas, onde ainda se levantavam débeis colunas de fumo assinalando as antigas casas, entrou na praça e encontrou a escassa população em andrajos, esfomeada, assustada, os feridos deitados no chão com as ligaduras sujas, e os seus capitães, tão esfarrapados como o mais humilde dos yanaconas, a socorrer as pessoas. Um sentinela tocou a corneta e, com um esforço brutal, os que podiam pôr-se de pé, colocaram-se em formação para saudar o capitão-general. Eu fiquei atrás, meio escondida por umas lonas; dali vi Pedro e a minha alma deu um pinote de amor, tristeza e fadiga. Pedro desmontou no centro da praça e, antes de abraçar os seus amigos, percorreu a devastação com os olhos, pálido, à minha procura. Dei um passo em frente, para lhe mostrar que ainda estava viva; os nossos olhos encontraram-se e, então, a sua expressão e cor mudaram. Com aquela voz de razão e autoridade a que ninguém resistia, dirigiu-se aos soldados para honrar o valor e a coragem de cada um, sobretudo dos que tinham morrido a combater, e dar graças ao apóstolo Santiago por ter salvo o resto da população. A cidade não interessava nada, porque havia braços e corações fortes para a voltar a construir a partir das cinzas. Devíamos começar de novo, disse, mas isso não podia ser motivo de desalento e sim de entusiasmo para os vigorosos espanhóis, que jamais se davam por vencidos, e também para os leais yanaconas. «Por Santiago e por Espanha!» exclamou, levantando a espada. «Por Santiago e por Espanha!», responderam numa única e disciplinada voz os seus homens, embora, no seu grito, houvesse um profundo desalento.
Naquela noite, deitados sobre a terra dura, sem outro abrigo além de uma manta imunda, e com um pedaço de lua pendurada sobre as nossas cabeças, chorei de fadiga nos braços de Pedro. Ele já tinha ouvido vários relatos sobre a batalha e sobre o meu papel nela, mas, ao contrário do que temia, estava orgulhoso de mim, tal como, segundo me disse, estava igualmente orgulhoso de cada soldado de Santiago, que sem mim teria perecido. As versões que lhe tinham contado eram exageradas, disso não tenho dúvidas, mas foi assim que se foi enraizando a lenda de que eu tinha salvo a cidade. «E verdade que decapitaste os sete caciques?» perguntou-me Pedro, assim que nos encontrámos a sós. «Não sei», respondi-lhe honestamente. Pedro nunca me tinha visto chorar, não sou mulher de chorar por tudo e por nada, mas, naquela primeira ocasião, não tentou consolar-me, preferindo acariciar-me apenas com aquela ternura distraída que, àsvezes, tinha para comigo. O seu perfil parecia de pedra, a boca dura, o olhar fixo no céu.
- Tenho tanto medo, Pedro - solucei.
- De morrer?
- De tudo, menos de morrer, porque ainda me faltam muitos anos até ser velha.
Riu-se secamente da piada que costumávamos partilhar: a saber, que eu enterraria vários maridos e que seria sempre uma viúva apetecível.
- Tenho a certeza de que os homens querem regressar ao Peru, ainda que nenhum deles se tenha atrevido a dizê-lo, para não parecer cobarde. Sentem-se derrotados.
- E tu, o que queres, Pedro?
- Fundar o Chile contigo - respondeu, sem pensar duas vezes.
- Então é isso que vamos fazer.
- E é isso que vamos fazer, Inés da minha alma...
A minha memória do passado remoto é bastante intensa e seria capaz de relatar, passo a passo, tudo o que aconteceu nos primeiros vinte ou trinta anos da nossa colónia no Chile, mas não tenho tempo, porque a Morte, essa mãe bondosa, chama-me e eu quero segui-la, para finalmente descansar nos braços de Rodrigo. Estou rodeada pelos fantasmas do passado. Juan de Malaga, Pedro de Valdivia, Catalina, Sebastian Romero, a minha mãe, a minha avó, enterradas em Plasencia, e muitos outros, adquirem contornos cada vez mais nítidos e ouço as suas vozes sussurrando nos corredores da minha casa. Os sete caciques degolados devem estar bem instalados no céu, ou no inferno, porque nunca me vieram atormentar. Não estou demente, como ficam habitualmente os anciãos, ainda sou forte e tenho a cabeça bem assente nos ombros, mas já estou com um pé na outra vida e, por isso, observo e escuto aquilo que aos outros passa despercebido. Sei que ficas inquieta, Isabel, quando falo assim, dizes-me que reze, que isso acalma a alma. A minha alma está calma, não temo a morte, não a temi na altura em que era razoável fazê-lo e muito menos a temo agora, quando já vivi de mais. Tu és a única pessoa que me prende a este mundo; confesso-te que não tenho curiosidade nenhuma em ver crescer e sofrer os meus netos, prefiro ficar com a recordação das gargalhadas da sua infância. Rezo por hábito, não como remédio para a angústia. A fé nunca me faltou, mas a minha relação com Deus foi mudando com os anos. Às vezes, sem pensar, chamo-lhe Ngenechén e confunde a Virgem do Socorro com a Santa Mãe da Terra dos mapucbe, mas não sou menos católica do que era antes - Deus me livre! -, acontece apenas que o cristianismo está um pouco coçado, como acontece com a roupa de lã ao fim de muito uso. Tenho poucas semanas de vida, sei-o porque, de vez em quando, o meu coração esquece-se de bater, tenho tonturas, caio e não tenho apetite. Não é verdade que pretenda matar-me de inanição, só para te aborrecer, como me acusas, filha, mas a comida sabe a areia e não me passa na garganta, e é por isso que me alimento com pequenos sorvos de leite. Estou mais magra, pareço um esqueleto coberto de pele, como nos tempos da fome, só que, nessa altura, ainda era jovem. Uma velha fraca e débil é uma imagem patética, tenho umas olheiras enormes e até uma leve brisa me consegue derrubar. Acho que, a qualquer momento, posso levantar voo. Tenho de abreviar este relato; caso contrário, acabarei por ficar com mortos a mais no meu tinteiro. Mortos, quase todos os meus amores estão mortos, é esse o preço de viver tantos anos.
DEPOIS DE DESTRUIÇÃO DE SANTIAGO, reuniu-se o Cabido para decidir o futuro da nossa pequena colónia, ameaçada de extinção, mas antes que a ideia de regressar a Cuzco, como defendia a maioria, vingasse, Pedro de Valdivia impôs a sua autoridade e um chorrilho de promessas difíceis de cumprir para conseguir que ficássemos. A primeira coisa a fazer, decidiu, seria pedir auxílio ao Peru e, logo depois, era necessário fortificar Santiago com um muro capaz de desencorajar os inimigos, como havia nas cidades europeias. Do resto, trataríamos quando houvesse tempo, mas devíamos ter fé no futuro, pois havia ouro, prata, porções de terra e grupos de índios para as trabalhar, assegurou, índios? Não sei em quais estaria a pensar, porque os Chilenos não tinham dado grandes mostras de obediência.
Pedro ordenou a Rodrigo de Quiroga que juntasse todo o ouro disponível, desde as escassas moedas que os soldados tinham amealhado durante toda a vida até ao único cálice da igreja e o pouco que tinha sido extraído de Marga-Marga. Deu-o ao ferreiro, que o fundiu e com ele forjou os apetrechos necessários para um cavaleiro, os freios das rédeas e os estribos do cavalo, esporas e guarnições para a espada. O valente capitão Alonso de Monroy, assim ataviado de ouro maciço, para impressionar e atrair colonos para o Chile, foi enviado pelo deserto para o Peru, tendo por companhia cinco soldados e os únicos seis cavalos que não estavam feridos nem demasiado fracos. O capelão Gonzalez de Marmolejo deu-lhes a sua bênção, a população escoltou-os durante algum tempo e, depois, despedimo-nos deles com pesar, porque não sabíamos se os voltaríamos a ver.
Começavam ali os nossos anos de grande miséria, dos quais preferia não me lembrar, tal como também preferiria não me lembrar da morte de Pedro de Valdivia, mas o facto é que não podemos mandar nas memórias nem nos pesadelos. Um terço dos soldados fazia turnos de vigia durante o dia e de noite, enquanto os demais, transformados em lavradores e pedreiros, semeavam as terras, reconstruíam as casas e levantavam o muro para proteger a cidade. Nós, mulheres, trabalhávamos lado a lado com os soldados e yanaconas. Tínhamos muito pouca roupa, porque a maior parte tinha sido destruída nos incêndios; os homens andavam com um pedaço de tecido a tapar-lhes o rabo, como os selvagens, e as mulheres, esquecendo o pudor, de camisa de noite. Aqueles Invernos foram extremamente duros e todos adoeceram, menos Catalina e eu, que tínhamos couro de mula, como dizia Gonzalez de Marmolejo, admirado. Também não havia comida, salvo os pastos naturais do vale, pinhões, frutos amargos e raízes, que faziam parte, por igual, da dieta de humanos, dos cavalos e dos animais de curral. Os punhados de sementes que consegui salvar do incêndio foram semeados e, no ano seguinte, obtivemos vários molhos de trigo, que por sua vez também se plantaram, de modo que só no terceiro ano é que conseguimos provar um pedaço de pão. Pão, o alimento da alma, que tanta falta nos fazia! Quando já não tínhamos nada de interessante para trocar, o curaca Vitacura, virou-nos as costas e acabaram-se as bolsas de milho e feijões, que antes conseguíamos com facilidade. Os soldados faziam excursões às aldeias para roubar grãos, aves, mantas, tudo o que pudessem encontrar, como bandidos. Suponho que aos quíchuas de Vitacura não lhes faltava o essencial, mas os índios chilenos destruíam as suas próprias sementeiras, decididos a morrer de inanição, se assim conseguissem acabar connosco. Angustiados pela fome, os habitantes das aldeias dispersaram para sul. O vale, antes efervescente de actividade, ficou despovoado de famílias, mas não de guerreiros. Michimalonko e as suas hostes nunca deixaram de nos importunar, sempre prontos para atacar com a rapidez de um relâmpago e desaparecer logo de seguida no bosque. Queimavam-nos as sementeiras, matavam-nos os animais, assaltavam-nos se andávamos sem protecção armada, de maneira que acabávamos por estar presos dentro dos muros de Santiago. Não sei como Michimalonko alimentava os seus homens, porque os índios já não semeavam. «Comem muito pouco, podem passar meses só com grãos e pinhões», informava-me Felipe, o menino mapuche, acrescentando que os guerreiros levavam uma bolsa ao pescoço com grãos tostados e que, só com isso, podiam viver uma semana.
Com a sua habitual tenacidade e optimismo, que nunca esmoreciam, o Governador obrigava o povo, esgotado e doente, a lavrar a terra, fazer adobes, construir o muro fortificado e o fosso em redor da cidade, treinar para a guerra e mil e uma ocupações diversas, porque afirmava que o ócio desmoraliza mais do que a fome. E tinha razão. Ninguém teria sobrevivido àquele desalento se tivesse tempo para pensar na sua sorte, mas não havia tempo, pois trabalhávamos desde o amanhecer até pela noite dentro. E, se sobrassem horas, então rezávamos, que nunca é de mais. Tijolo a tijolo, uma muralha enorme foi crescendo à volta de Santiago, tábua a tábua surgiram as casas e a igreja. Ponto a ponto, eu e as mulheres cerzíamos os andrajos, que não se lavavam, para não se desfazerem na água. Só usávamos roupa mais ou menos decente em ocasiões especiais, que também as havia, já que nem tudo era tristeza: celebrávamos as festas religiosas, casamentos e, às vezes, um baptismo. Dava pena ver os rostos emagrecidos da povoação, as órbitas fundas, as mãos convertidas em garras, o desalento. Emagreci tanto que, quando estava deitada de costas na cama, os ossos das ancas, costelas e clavículas ficavam espetados e conseguia apalpar os meus órgãos internos debaixo da pele. Endureci por fora, o meu corpo secou, mas fiquei com o coração mais macio. Sentia um amor de mãe por aquela gente tão infeliz, sonhando que tinha os peitos cheios de leite para os alimentar a todos. Chegou um dia em que me esqueci da fome, e habituei-me a viver com aquela sensação de vazio e leveza que, às vezes, me fazia alucinar. Não via porcos assados com uma maçã na boca e uma cenoura no rabo, como acontecia a certos soldados, que não falavam noutra coisa, mas antes paisagens desfocadas pela neblina, onde os mortos passeavam. Lembrei-me de disfarçar a miséria esmerando-me na limpeza, uma vez que tínhamos água em abundância. Encetei uma luta contra os piolhos, pulgas e sujidade, mas o resultado foi que os ratos, baratas e restante bicharia que servia para a sopa, começou a desaparecer, razão pela qual deixámos de nos ensaboar e esfregar.
A fome é uma coisa estranha, acaba com a energia, torna as pessoas lentas e tristes, mas esvazia a mente e aguça a luxúria. Os homens, patéticos esqueletos quase nus, continuavam a perseguir as mulheres e elas, esfomeadas, ficavam prenhas. No meio da fome nasceram algumas crianças na colónia, se bem que algumas não sobreviveram. Das crianças que tínhamos ao princípio, várias morreram naqueles dois Invernos e as restantes tinham os ossos a furar a pele, os ventres inchados e olhos de velhos. Preparar a magra sopa comum para espanhóis e índios chegou a ser um desafio mais penoso do que os ataques inesperados de Michimalonko. Fervíamos água em grandes caldeirões e juntávamos as ervas disponíveis no vale - alecrim, louro, boldo, maitén e acrescentávamos o que houvesse: uns punhados de milho e feijões das reservas, que iam diminuindo rapidamente, algumas batatas ou tubérculos do bosque e pasto de qualquer tipo, raízes, ratos, lagartixas, grilos, gusanos. Por ordem de Juan Gomez, o oficial encarregado da nossa diminuta cidade, eu tinha dois guardas armados de dia e de noite, para evitar que roubassem o pouco que tínhamos na adega e na cozinha, mas mesmo assim desapareciam punhados de milho e batatas. Ficava calada perante estas acções lastimáveis, porque Gómez tinha sido obrigado a castigar os criados, o que só piorou a situação. Havia tanto sofrimento que não aguentávamos mais. Enganávamos o estômago com tisanas de menta, tília e cidreira. Se morriam animais domésticos, o cadáver era completamente utilizado; com a pele fazíamos cobertas, a gordura usava-se nas lamparinas, fazíamos fumados com a carne, as vísceras eram para os guisados e os cascos para ferramentas. Os ossos serviam para dar sabor à sopa e ferviam-se uma e outra vez, até que se dissolviam no caldo, como cinza. Fervíamos pedaços de couro seco para as crianças poderem chupar e enganar a fome. Os cachorros que nasceram nesse ano morreram mal foram desmamados, porque não podíamos alimentar mais cães, mas fizemos os possíveis para manter os mais velhos vivos, uma vez que eram a primeira linha de ataque contra os indígenas, razão pela qual o meu fiel Baltasar conseguiu salvar-se.
Felipe tinha uma pontaria natural, onde colocava o olho colocava a flecha, e estava sempre disposto a sair para caçar. O ferreiro fez-lhe flechas com pontas de ferro, mais eficientes do que as suas pedras afiadas e o rapaz regressava das suas excursões com lebres e pássaros e, às vezes, até trazia um gato da montanha. Era o único que se atrevia a sair sozinho pelos arredores de Santiago, disfarçado pelo bosque, invisível para o inimigo; os soldados andavam em grupos e, por isso, não conseguiam caçar nem um elefante, mesmo que os houvesse no Novo Mundo. Mesmo assim, desafiando o perigo, Felipe trazia braçadas de pasto para os animais e era graças a ele que os cavalos se mantinham de pé, ainda que fracos.
Tenho vergonha de contar isto, mas suspeito que, em certas ocasiões, chegou a haver canibalismo entre os yanaconas e também entre alguns dos nossos homens desesperados, da mesma forma como, treze anos depois, houve entre os mapuche, quando a fome se estendeu ao resto do território chileno. Os Espanhóis serviram-se desse argumento para justificar a necessidade de os submeter, civilizar e cristianizar, já que não existia maior prova de barbárie que o canibalismo; só que os mapuche nunca o tinham praticado antes da nossa chegada. Em certos casos, muito raros, devoravam o coração dos inimigos para adquirir o seu poder, embora fosse um ritual e não um costume. A guerra da Araucanía causou muita fome. Ninguém conseguia cultivar o solo, porque a primeira coisa que índios e espanhóis faziam era queimar as sementeiras e matar o gado do inimigo; depois, veio uma seca e o cbivalongo, ou tifo, que causou uma mortandade terrível. Para maior castigo, ainda houve uma praga de rãs que infestaram o solo com a sua baba pestilenta. Naquela época terrível, os espanhóis, que eram poucos, alimentavam-se com o que conseguiam arrebatar aos mapuche, mas estes, que eram aos milhares, vagueavam enfraquecidos pelos campos ermos. A falta de alimento obrigou-os a comer a carne dos seus semelhantes. Deus há-de com certeza ter em conta que aquela pobre gente não o fez por pecado, mas por necessidade. Um cronista, que participou nas campanhas do Sul em 1555, escreveu que os índios compravam quartos de homem, como quem compra quartos de lama. Fome... quem nunca passou por ela não tem direito de fazer julgamentos de valor. Rodrigo de Quiroga contou-me que, no inferno escaldante da selva de los Chunchos, os índios devoravam os seus próprios companheiros. Só não me disse se a necessidade obrigou os Espanhóis a cometer idêntico pecado. No entanto, Catalina assegurou-me que os viracochas não são diferentes dos restantes mortais, sendo que alguns desenterravam os mortos para lhes assar os músculos e iam caçar índios com o mesmo propósito. Quando falei disto a Pedro, mandou-me calar, tremendo de indignação, porque lhe parecia impossível um cristão cometer semelhante infâmia; então, tive de recordar-lhe que graças a mim comia um pouco melhor que os restantes membros da colónia, por isso quem devia calar-se era ele. Bastava ver a alegria demente de quem conseguia caçar um rato na ribeira do Mapocho, para entender que o canibalismo podia perfeitamente acontecer.
Felipe, ou Felipillo, como chamavam ao jovem mapuche, converteu-se na sombra de Pedro e chegou a ser uma figura familiar na cidade, mascote dos soldados, que se divertiam com a maneira como ele imitava os modos e a voz do Governador, não por brincadeira, mas porque o admirava. Pedro fingia não reparar, mas sei que lhe agradava a atenção silenciosa do miúdo e a sua prontidão para o servir: polia a sua armadura com areia, afiava a espada, se encontrasse um pouco de gordura ensebava as correias, e, sobretudo, cuidava de Sultán como se fosse um ser humano. Pedro tratava-o com a mesma indiferença jovial com que se trata um cão fiel; nem precisava de falar, Felipe adivinhava os desejos de Taita. Pedro ordenou a um soldado que ensinasse o menino a utilizar o mosquete «para que possa defender as mulheres da casa na minha ausência», como disse, o que muito me ofendeu, porque era sempre eu a defender não só as mulheres, mas também os varões. Felipe era um rapaz observador e silencioso, capaz de passar horas seguidas imóvel, como um monge ancião. «E fraco, como todos os da sua raça», diziam dele. Com o pretexto das aulas de mapudungu - uma imposição quase intolerável para ele, porque me desprezava por ser mulher -, descobri uma boa parte do que sei hoje sobre os mapuche. Para eles quem provê é a Santa Terra, as pessoas ficam com o necessário e agradecem, não exigem mais e não acumulam; o trabalho é incompreensível, uma vez que não há futuro. Para que serve o ouro? A terra não é de ninguém, o mar não é de ninguém; a simples ideia de os possuir ou dividir produzia ataques de riso ao normalmente soturno Felipe. As pessoas também não pertencem umas às outras. Como podem os buincascomprar e vender gente que não é sua? Por vezes, o menino passava dois ou três dias mudo, esquivo, sem comer, e quando lhe perguntava o que tinha, a resposta era sempre a mesma: «Há dias alegres e dias tristes. Cada um é dono do seu silêncio.» Dava-se mal com Catalina, que desconfiava dele, mas contavam os sonhos um ao outro, porque ambos acreditavam que a porta entre as duas metades da vida, a nocturna e a diurna, estava sempre aberta e que era através dos sonhos que a divindade comunicava com eles. Ignorar os sonhos provoca grandes desgraças, asseguravam. Felipe nunca permitiu que Catalina lhe lesse o futuro com as suas contas e conchas de adivinhar, pois tinha um terror supersticioso por estas coisas, da mesma forma que se negava a provar as suas ervas medicinais.
Os criados estavam proibidos de montar os cavalos sob pena de serem castigados, mas, com Felipe, abriu-se uma excepção, porque era ele que os alimentava e era capaz de os domar sem violência, falando-lhes ao ouvido em mapudungu. Aprendeu a cavalgar como um cigano e as suas proezas causavam sensação naquela aldeia triste. Colava-se à besta até fazer parte dela, entrava no seu ritmo, sem nunca a forçar. Não usava cela nem esporas, conduzia o animal com uma leve pressão dos joelhos e levava as rédeas na boca, ficando, assim, com as mãos livres para o arco e flecha. Conseguia montar com o cavalo em andamento, pôr-se de pé, dar a volta sobre o lombo e ficar virado para a cauda ou agarrar-se com os braços e as pernas, galopando colado ao ventre do animal. Os homens juntavam-se à sua volta e, por muito que tentassem, nenhum conseguia imitá-lo. Às vezes, perdia-se durante vários dias nas suas excursões de caça e quando já o dávamos por morto às mãos de Michimalonko, regressava são e salvo, com uma réstia de pássaros ao ombro para enriquecer a nossa desenxabida sopa. Valdivia inquietava-se quando desaparecia; chegou a ameaçá-lo várias vezes que o chicoteava se voltasse a desaparecer, ameaça que nunca cumpriu, porque dependíamos do produto das suas caçadas. No centro da praça, estava o tronco ensanguentado onde se aplicavam os castigos, mas Felipe parecia não ter medo nenhum dele. Era já um adolescente delgado, alto para um homem da sua raça, todo ele osso e músculo, de expressão inteligente e olhos sagazes. Era capaz de carregar mais peso às costas do que qualquer outro homem e cultivava um desprezo absoluto pela dor e pela morte. Os soldados admiravam o seu estoicismo e alguns, para se entreterem, punham-no mesmo à prova. Tive de proibir que o desafiassem a pegar em carvões incandescentes com as mãos nuas, ou que se espetasse com espinhas untadas de pimenta. De Verão e de Inverno, banhava-se durante horas nas águas sempre frias do Mapocho. Explicou-nos que a água gelada fortalece o coração; por isso, as mães mapuche mergulham os filhos na água assim que nascem. Os espanhóis, que fogem do banho como o diabo da cruz, instalavam-se no alto da muralha para o observarem a nadar e faziam apostas sobre a sua resistência. Por vezes, submergia nas águas revoltas do rio durante vários pai-nossos e quando os mirones começavam a pagar as apostas aos ganhadores, Felipe aparecia incólume.
O pior desses anos foi o desamparo e a solidão. Esperávamos por auxílio sem saber se, algum dia chegaria, tudo dependendo do sucesso da viagem do capitão Monroy. Nem sequer a rede infalível de espias de Cecilia nos conseguiu dar notícias dele e dos cinco bravos que o acompanhavam, mas não tínhamos grandes ilusões. Teria sido um milagre se aquele punhado de homens tivesse conseguido passar por entre os índios hostis, atravessado o deserto e chegado ao seu destino. Pedro dizia-me, na intimidade das nossas conversas na cama, que o verdadeiro milagre seria Monroy conseguir ajuda no Peru, onde ninguém estava disposto a investir dinheiro na conquista do Chile. Os arreios de ouro do seu cavalo podiam impressionar os curiosos, mas não os políticos e os comerciantes. O nosso mundo estava reduzido a uns quantos quarteirões dentro de uma muralha de adobe, às mesmas caras estragadas, aos dias sem notícias, à eterna rotina, às esporádicas saídas da cavalaria em busca de comida ou a tentar repelir um grupo de índios atrevidos, aos rosários, procissões e enterros. Até as missas foram reduzidas ao mínimo, porque só já tínhamos meia garrafa de vinho para consagrar e seria um sacrilégio usar chicha. O que não faltava era água, porque quando os índios nos impediam de ir ao rio ou atacavam os nossos canais de rega com pedras, fazíamos poços. Não era necessário o meu talento para encontrar água, havia água em abundância onde quer que cavássemos. Como não tínhamos papel para anotar as actas do Cabido e as sentenças judiciais, usávamos tiras de couro, mas, ao menor descuido, os cães esfomeados comiam-nas, de maneira que há poucos registos oficiais das penúrias passadas durante aqueles anos. Os dias sucediam-se e nós só podíamos esperar e esperar. Esperávamos pelos índios com as armas na mão, esperávamos que um rato caísse nas ratoeiras, esperávamos por notícias de Monroy. Estávamos cativos dentro da cidade, rodeados de inimigos, meio mortos de fome, mas ainda assim havia um certo orgulho na desgraça e na pobreza. Nas festividades, os soldados colocavam as suas armaduras completas sobre o corpo despido ou protegido por pedaços de pele de coelho ou ratazana, porque não tinham roupa para vestir por baixo, embora as mantivessem sempre reluzentes como prata. A única sotaina que Gonzalez de Marmolejo tinha estava tesa de sujidade e de tanto ser cerzida, mas para a missa, o frade colocava aos ombros um pedaço de um manto de brocado que se tinha conseguido salvar do incêndio. Eu, Cecilia e as outras mulheres dos capitães, não tínhamos saias decentes para vestir, mas passávamos horas a pentear o cabelo e pintávamos os lábios de cor-de-rosa com o fruto amargo de um arbusto que, segundo Catalina, era venenoso. Nenhuma mulher morreu por causa disso, mas a verdade é que nos dava uma diarreia terrível. Referíamo-nos à nossa miséria sempre em tom trocista, simplesmente porque queixarmo-nos a sério seria uma atitude própria de cobardes. Os yanaconas não entendiam esta forma de humor, tão espanhola, e andavam abatidos como cães a sonhar com o regresso ao Peru. Algumas mulheres indígenas fugiram para se entregarem aos mapuche, com quem, pelo menos, não passariam fome, e nenhuma regressou. Para evitar que outras lhes seguissem os passos, fizemos circular o rumor de que as tinham comido, muito embora Felipe afirmasse que os mapuche estão sempre dispostos a acrescentar mais uma esposa à família.
- O que lhes acontece quando o marido morre? - perguntei-lhe em mapudungu, pensando na mortandade de guerreiros que as batalhas provocavam.
- Faz-se o que se deve fazer: o filho mais velho herda-as a todas, menos à sua mãe - respondeu-me.
- E tu, pirralho, ainda não te queres casar? - sugeri, em tom de brincadeira.
- Ainda não chegou o momento de roubar uma mulher - respondeu-me, muito sério.
Segundo me explicou, na tradição mapuche o noivo, com a ajuda dos seus irmãos e amigos, rouba a mulher com quem deseja casar. Por vezes, o grupo de rapazolas entra com violência na casa da rapariga, amarra os pais e leva-a à força, mas depois resolve-se a situação, sempre que a noiva esteja de acordo, quando o pretendente paga a soma correspondente em animais e outros bens aos futuros sogros. É, assim, formalizada a união. Um homem pode ter várias esposas, mas deve dar os mesmos bens a todas e tratá-las de igual forma. Muitas vezes, casa-se com duas ou mais irmãs, só para não as separar. Gonzalez de Marmolejo, que habitualmente assistia às minhas lições de mapudungu, explicou a Felipe que aquela lascívia desenfreada era prova mais que evidente da presença do demónio entre os mapucbe, e que sem as águas sagradas do baptismo acabariam por arder no fogo do inferno. O rapaz perguntou-lhe se o demónio também estava entre os espanhóis, que tomavam uma dúzia de índias sem sequer retribuir com lamas e guanacos aos pais, como aliás é de tradição, além de lhes baterem, não lhes darem igual tratamento e as trocarem por outras quando lhes apetecia. Talvez os espanhóis e os mapuche se encontrassem no inferno, onde continuariam a matar-se por toda a eternidade, sugeriu. Eu tive de sair à pressa e aos tropeções da sala para não desatar a rir nas veneráveis barbas do clérigo.
Pedro e eu éramos feitos para o trabalho, não para a preguiça. O desafio de sobreviver mais um dia e manter a moral da colónia elevada enchia-nos de energia. Só quando estávamos sós nos permitíamos desanimar, coisa que não durava muito tempo, já que, depressa, brincávamos com a nossa situação. «Prefiro estar aqui contigo a mastigar ratos, do que estar vestida de brocados na corte de Madrid», dizia-lhe eu. «Diz antes que preferes ser Governadora aqui do que rendeira de Plasencia», respondia-me. E caíamos abraçados sobre a cama, rindo como crianças. Nunca fomos tão unidos, nem fizemos amor com tanta paixão e sabedoria como naquela época. Quando penso em Pedro, são estes os momentos que mais acarinho e guardo como um tesouro; é assim que o quero recordar, como era aos quarenta e tantos anos, debilitado pela fome, mas de ânimo forte e decidido, cheio de ilusões. Podia acrescentar que quero recordá-lo apaixonado, mas tal seria uma redundância, porque sempre esteve apaixonado por mim, mesmo quando nos separámos. Sei que morreu a pensar em mim. No ano da sua morte, 1553, eu estava em Santiago e ele pelejando em Tucapel, a muitas léguas de distância dali, mas senti tão claramente o momento em que Pedro agonizava e morria, que quando me trouxeram a notícia, várias semanas mais tarde, não derramei uma única lágrima. Já as tinha vertido todas.
Em meados de Dezembro, dois anos depois da partida do capitão Monroy na sua arriscada missão, quando nos encontrávamos a preparar uma modesta celebração natalícia com cânticos e uma manjedoura improvisada, chegou às portas de Santiago um homem esgotado e coberto de pó, que por pouco não foi impedido de entrar, porque os vigias não o reconheceram. Era um dos nossos yanaconas, que já corria há dois dias e que se tinha esforçado imenso para chegar à cidade, deslizando sem ser detectado pelo bosque pejado de indígenas inimigos. Pertencia a um pequeno grupo que Pedro deixara numa praia com a esperança de que chegassem alguns reforços do Peru. Tinham várias fogueiras dispostas em cima de um promontório, prontas para serem acesas caso vislumbrassem algum barco. Por fim, os vigias, que perscrutavam o horizonte há uma eternidade, viram uma vela no mar e, eufóricos, fizeram os sinais devidos. O barco, capitaneado por um antigo amigo de Pedro de Valdivia, trazia a tão esperada ajuda.
- Que leves gente e cavalos para ir trazendo a carga, pois, tatay. Só isso manda dizer o viracocba do barco - disse o ofegante índio, extenuado.
Pedro de Valdivia saiu a galope com vários capitães rumo à praia. E difícil descrever o alvoroço que se apoderou da cidade. O alívio era tanto que aqueles endurecidos soldados choravam, e a antecipação era tanta, que ninguém ligou quando o cura nos chamou para uma missa de acção de graças. A povoação inteira estava debruçada sobre o muro, olhando para o caminho, embora soubesse que os visitantes ainda demorariam alguns dias a chegar a Santiago.
Uma expressão de horror tomou posse dos rostos dos navegantes quando viram aparecer Valdivia e os seus soldados na praia e, mais tarde, quando chegaram à cidade e foram recebidos pelo povo. Isso deu-nos uma ideia aproximada da magnitude da nossa miséria. Já nos tínhamos habituado ao nosso aspecto cadavérico, aos farrapos e à sujidade, mas, ao perceber que inspirávamos pena, sentimos uma profunda vergonha. Apesar de nos apresentarmos o mais aprumados possível e de Santiago estar, pelo menos aos nossos olhos, esplêndida àquela luz radiosa de Verão, os nossos hóspedes ficaram com a mais lamentável das impressões e, inclusive, tentaram mesmo oferecer roupa a Valdivia e aos restantes capitães, não havendo pior ofensa para um espanhol do que receber caridade. O que não pudemos pagar ficou anotado como dívida e o próprio Valdivia comprometeu-se pessoalmente dando o seu aval relativamente aos demais bens, porque não tínhamos ouro. Os comerciantes que tinham contratado o barco no Peru mostraram-se satisfeitos, porque conseguiram triplicar o investimento e ficaram com a certeza de que a dívida seria cobrada; a palavra de Valdivia parecia-lhes garantia mais do que suficiente. Entre eles, vinha o mesmo comerciante que emprestara dinheiro a Pedro, em Cuzco, a um juro altíssimo, para financiar a expedição. Vinha cobrar o que era seu, acrescido de juros, mas foi obrigado a fazer um acordo justo, porque depois de ver o estado da nossa colónia, compreendeu que, de outro modo, não recuperaria nada. Da carga do barco, Pedro comprou-me três camisas de linho e uma de fina cambraia, saias para uso diário e algumas de seda, botas de trabalho e calçado feminino, sabão, creme de flor de laranjeira para a cara e um frasco de perfume, luxos que pensei que jamais voltaria a ver.
O barco tinha sido enviado pelo capitão Monroy. Enquanto nós suportávamos as adversidades em Santiago, ele e os cinco companheiros conseguiram chegar a Copiapó, onde caíram nas mãos dos índios. Quatro soldados foram aniquilados de imediato, mas Monroy, montado no seu alazão de ouro, e outro homem, sobreviveram devido a um insólito golpe de sorte; foram salvos por um soldado espanhol, entretanto fugido da justiça peruana, que vivia no Chile há muitos anos. O homem tinha perdido as duas orelhas por ser considerado ladrão e, envergonhado, fugia de qualquer contacto com os homens da sua raça, refugiando-se junto dos indígenas. O castigo para o roubo é a amputação de uma mão, costume que se instalou em Espanha desde o tempo dos Mouros, mas, no caso de um soldado, é preferível cortar-se o nariz ou as orelhas, para que o acusado não fique inutilizado para a guerra. O «desorelhado» lá conseguiu intervir junto dos índios para que não matassem o capitão e o seu acompanhante, pois supôs que o primeiro seria muito rico, a julgar pelo ouro que levava em cima. Monroy era um homem bastante simpático e tinha o dom da palavra; caiu de tal forma nas boas graças dos índios que não o trataram como um prisioneiro, mas como um amigo. Ao fim de três meses de agradável cativeiro, o capitão e o outro espanhol conseguiram escapar a cavalo, mas já sem os arreios imperiais, é claro. Dizem que, durante esses meses, Monroy se apaixonou pela filha do cacique e que a deixou prenha, mas é provável que seja apenas o capitão a vangloriar-se, ou então um mito popular, desses que sempre surgem entre os Espanhóis. O facto é que Monroy chegou ao Peru e conseguiu reforços, entusiasmou vários comerciantes, mandou o barco até ao Chile e decidiu vir, ele mesmo, por terra com mais setenta soldados, acabando por chegar alguns meses depois. Este Alonso de Monroy, galante, leal e de grande coragem, morreu no Peru um par de anos mais tarde em circunstâncias misteriosas. Uns dizem que foi envenenado, outros que morreu de peste ou de picada de aranha, e não falta quem acredite que ainda está vivo em Espanha, para onde regressou discretamente, cansado de guerras.
O barco trouxe-nos soldados, alimentos, vinho, armas, munições, vestidos, utensílios e animais domésticos, ou seja, todos os tesouros com que sonhávamos. O mais importante foi o contacto com o mundo civilizado e a certeza de que já não estávamos sós no canto mais isolado do planeta. Vieram também aumentar a nossa colónia cinco mulheres espanholas, esposas ou parentes de soldados. Pela primeira vez, desde que tinha saído de Cuzco, pude comparar-me com outras mulheres da minha raça e verificar o quanto tinha mudado. Decidi deixar as botas e roupas de homem, desfazer as tranças e pentear-me de modo mais elegante, untar a cara com o creme que Pedro me tinha oferecido, enfim, cultivar a graciosidade feminina que tinha descartado anos antes. O optimismo voltou a encher os corações da nossa gente e sentíamo-nos capazes de enfrentar Michimalonko e até o próprio Diabo, caso aparecessem em Santiago. Por certo, o astuto cacique terá percebido esta mudança, porque não voltou a atacar a cidade, apesar de ter sido necessário enfrentá-lo várias vezes nos arredores e persegui-lo até às suas pukaras. Em cada um desses encontros, a mortandade de índios era de tal forma que nos questionávamos de onde surgiriam tantos indígenas.
Valdivia fez valer as doações que tinha atribuído a mim e a alguns capitães. Mandou emissários para pedir aos índios pacíficos que regressassem ao vale, onde sempre tinham vivido até à nossa chegada, e prometeu-lhes segurança, terra e comida em troca de ajuda, porque as fazendas sem almas não passavam de terra inútil. Muitos desses índios, que tinham fugido com medo da guerra e dos saques dos barbudos, voltaram. Graças a eles, começámos a prosperar. O Governador também convenceu o curaca Vitacura a ceder-nos alguns índios qutcbuas, mais eficazes para o trabalho pesado do que os chilenos e, graças aos novos yanaconas, pôde explorar a mina de Marga-Marga e outras de que teve notícia. Não havia trabalho mais sacrificado do que o das minas. Vi centenas de homens e mulheres, algumas grávidas, outras com as crianças às costas, submersos em água fria até à cintura, lavando areia para encontrar ouro, desde o amanhecer até ao pôr do Sol, expostos às doenças, ao chicote dos capatazes e aos abusos dos soldados.
Hoje, pela primeira vez na minha extensa vida, falharam-me as pernas ao sair da cama. É estranho verificar que o corpo se acaba, enquanto a mente continua a inventar projectos. Com a ajuda das criadas, vesti-me para ir à missa, como faço todos os dias, pois gosto de saudar a Nossa Senhora do Socorro, agora dona da sua própria igreja e de uma coroa de ouro com esmeraldas; fomos amigas durante muito tempo. Tento ir sempre à primeira missa da manhã, a missa dos pobres e dos soldados, porque a essa hora a luz que entra na igreja parece vir directamente do céu. O sol da manhã entra pelas janelas altas e os seus raios resplandecentes trespassam a nave principal como lanças, iluminando os santos nos seus nichos e, por vezes, também os espíritos que me rondam, escondidos atrás dos pilares. E uma hora tranquila, propícia à oração. Não há nada mais misterioso como o momento em que o pão e o vinho se transformam no corpo e sangue de Jesus Cristo. Assisti a esse milagre milhares de vezes ao longo da minha vida, mas ainda me surpreende e comove como no dia da minha primeira comunhão. Não consigo evitar, mas choro sempre que vou receber a hóstia. Enquanto me puder mexer, continuarei a ir à igreja e não deixarei de cumprir com as minhas obrigações: o hospital, os pobres, o convento das Agostinas, a construção das ermidas, a administração das minhas terras e esta crónica, que talvez já vá demasiado longa.
Ainda não me sinto derrotada pela idade, mas admito que me deixou mais entorpecida e esquecida, e já não sou capaz de fazer bem o que antes fazia sem pensar duas vezes, como se as horas não me rendessem. No entanto, não abandonei a velha disciplina de me lavar e vestir com esmero; pretendo continuar a ser vaidosa até ao fim, para que, quando nos encontrarmos do outro lado, Rodrigo me ache asseada e elegante. Setenta anos não me parece uma idade assim tão exagerada...
Se o meu coração aguentasse, ainda podia viver mais dez anos, e, nesse caso, era capaz de me casar de novo, porque para continuar a viver é preciso haver amor. Tenho a certeza de que Rodrigo entenderia, da mesma forma que eu entendia se fosse ao contrário. Se ele estivesse comigo, gozaríamos juntos até ao fim das nossas existências, devagar e sem agitações. Rodrigo temia o momento em que já não pudéssemos fazer amor. Acho que tinha mais medo de fazer má figura, do que de qualquer outra coisa, pois os homens atribuem um enorme orgulho aos assuntos dessa natureza; mas há muitas maneiras de se amar e eu teria certamente encontrado uma para, mesmo depois de velhos, continuarmos a excitar-nos como nos bons velhos tempos. Tenho saudades das suas mãos, do seu cheiro, das costas largas, do seu cabelo suave na nuca, do roçar da sua barba, de sentir a sua respiração nas minhas orelhas quando estávamos juntos na escuridão. Tenho tanta necessidade de o abraçar, de fazer amor com ele, que por vezes não consigo conter um grito afogado. Onde estás Rodrigo? Fazes-me tanta falta!
Hoje de manhã arranjei-me e saí para a rua, apesar do cansaço que sinto nos ossos e no coração, porque é quarta-feira e tenho de ir ver Marina Ortiz de Gaete. Os criados levam-me em braços numa cadeira, porque vive perto de mim e não vale a pena tirar a carruagem; a ostentação é muito mal vista neste reino e receio que a carruagem que Rodrigo me ofereceu seja demasiado vistosa. Marina é alguns anos mais nova do que eu, mas, comparada com ela, sinto-me uma criança; está transformada numa beata escrupulosa e feia, que Deus me perdoe a má-língua. «Ponde uma sentinela nos vossos lábios, mãe», aconselhas-me tu, Isabel, a rir, quando me ponho a falar assim, embora eu saiba que te divertes com os meus disparates, filha; para além do facto de que já ganhei o direito de dizer aquilo que os outros ainda não se atrevem a dizer. As rugas e os melindres de Marina dão-me uma certa satisfação, mas luto contra este sentimento mesquinho, porque não quero prolongar a minha passagem pelo purgatório. Nunca gostei de gente afectada e débil de carácter, como Marina. Dá-me pena, porque até os parentes que trouxe consigo, e que agora são prósperos habitants de Santiago, se esqueceram dela. Não os culpo demasiado, porque esta boa senhora é muito aborrecida. Pelo menos, não vive na pobreza, tem uma viuvez digna, embora isso não compense a sua má sorte de esposa abandonada. Esta infeliz mulher deve sentir-se imensamente só, pois aguarda sempre a minha visita com imensa ansiedade e, se me atraso um pouco, encontro-a logo a choramingar. Bebemos chávenas de chocolate, enquanto eu disfarço os bocejos, e falamos da única coisa que temos em comum: Pedro de Valdivia.
Marina vive no Chile há vinte e cinco anos. Chegou por volta de 1554, disposta a assumir o seu papel de esposa do Governador, com uma corte de familiares e aduladores decididos a desfrutar da riqueza e poder de Pedro de Valdivia, a quem o rei tinha atribuído o título de Marquês da Ordem de Santiago. Mas Marina deparou-se com a surpresa de que era viúva. O seu marido morrera uns meses antes às mãos dos mapucke, sem nunca ter chegado a saber das honras que lhe tinham sido concedidas pelo rei. Para cúmulo, o tesouro de Valdivia, que tanto falatório tinha causado, acabou por ser só fogo de vista. Tinham acusado o Governador de se enriquecer desmesuradamente, de ficar com as terras mais extensas e férteis, de explorar um terço dos índios em seu proveito próprio, mas, no final, acabou por se revelar mais pobre do que qualquer um dos seus capitães e teve mesmo de vender a sua casa na Praça de Armas para pagar as dívidas. O Cabido não teve a decência de atribuir uma pensão a Marina Ortiz de Gaete, esposa legítima do conquistador do Chile, ingratidão muito frequente por estes lados e que até tem um nome: «o soldo do Chile». Tive de lhe comprar uma casa e arcar com as suas despesas, para evitar que o fantasma de Pedro me puxasse as orelhas. Ainda bem que posso dar-me a certos gostos, como fundar instituições, assegurar um nicho na igreja para ser sepultada, manter uma multidão de parentes, deixar a minha filha bem de vida e estender a mão à esposa do meu antigo amante. Que importa se alguma vez fomos rivais?
Acabo de perceber que já escrevi muitas folhas e ainda não expliquei por que motivo este território longínquo é o único reino da América.
O Sacro Imperador Carlos V pretendia casar o seu filho Filipe com Maria Stuart, rainha de Inglaterra. Em que ano foi? Penso que terá sido na mesma época em que morreu Pedro. O jovem precisava do título de rei para poder casar e, como o seu pai ainda não pensava abdicar em seu benefício, decidiram que o Chile seria um reino e Filipe o seu soberano, o que não melhorou a nossa sorte, mas nos deu um certo prestígio.
No mesmo barco em que chegou Marina - que, na altura, tinha quarenta e dois anos e era de estatura baixa, mas bonita, com aquela beleza deslavada própria das morenas maduras - vinham também Daniel de Belalcázar e a minha sobrinha Constança, de quem me tinha despedido em Cartagena no ano de 1538. Pensei que não voltaria mais a ver a minha sobrinha, que em vez de ter ido para freira se tinha casado, aos quinze anos, com o cronista que a seduzira durante a nossa viagem de barco. Ficámos mutuamente surpreendidos, porque eu pensava que tinham sido tragados pela selva, enquanto eles jamais imaginavam que eu acabaria por fundar um reino. Ficaram quase dois anos no Chile, estudando a história e os costumes mapucbe, de longe, é claro, porque não era boa ideia meterem-se no meio deles, para além de que a guerra estava no seu apogeu. Belalcázar dizia que os mapuche se pareciam muito com uns asiáticos que tinha visto nas suas viagens. Considerava-os grandes guerreiros e não disfarçava a sua admiração por eles, tal como aconteceu ao poeta que escreveu a epopeia sobre a Araucanía. Já falei dele ou não? E provável que não tenha falado, só que já é um pouco tarde para ocupar-me dele. Chamava-se Ercilla. Quando percebeu que nunca poderiam aproximar-se dos mapuche para os desenhar e falar com eles, o casal Belalcázar decidiu continuar a sua peregrinação pelo mundo. Eram companheiros perfeitos e inseparáveis para as empresas científicas, ambos padeciam da mesma curiosidade insaciável e do mesmo desprezo olímpico pelos perigos que as suas mais disparatadas expedições levantavam.
Daniel de Belalcázar deu-me a ideia de fundar um estabelecimento de ensino, porque achou o cúmulo que, no Chile, enchêssemos o peito de vaidade, afirmando que éramos uma colónia civilizada quando, no entanto, se podiam contar pelos dedos de uma mão as pessoas que sabiam ler. Levei a proposta até Gonzalez de Marmolejo e ambos lutámos durante muitos anos para criar escolas, só que ninguém se interessou pelo projecto. Que gente tão estúpida! Têm medo que o povo aprenda a ler e, com isso, crie o vício de pensar e depois, então, num piscar de olhos, se revolte contra a Coroa.
Como já te disse, hoje não foi um bom dia para mim. Em vez de me concentrar no relato da minha vida, pus-me a divagar. Cada dia que passa me custa mais concentrar-me no que, de facto, aconteceu, porque me distraio muito; nesta casa há um grande burburinho, embora digas que é a mais tranquila de Santiago.
- São ideias vossas, mãe. Aqui não há burburinho nenhum, muito pelo contrário, só se ouvem as almas penadas - disseste-me, ontem à noite.
- E exactamente a isso que me refiro, Isabel.
Es como o teu pai, prática e razoável, por isso não sentes a multidão de gente que se passeia sem autorização pela minha casa. Com a idade, o véu que separa este mundo do outro fica mais fino, e começo agora a ver o invisível. Penso que, quando eu morrer, renovarás este ambiente, oferecerás os meus móveis velhos e pintarás as paredes com mais uma demão de cal, mas lembra-te que me prometeste que guardavas estas páginas, escritas para ti e para os teus descendentes. Se preferires, podes entregá-las aos padres dominicanos ou da ordem das Mercês, que me devem alguns favores. Lembra-te também que deixarei um fundo em dinheiro para manter Marina Ortiz de Gaete até ao último dia da sua vida e para dar de comer aos pobres, que estão habituados a receber o seu prato diário à porta desta casa. Acho que já te disse tudo isto, perdoa se me repito. Tenho certeza de que cumprirás as minhas disposições, Isabel, porque também nisso saíste ao teu pai: tens um coração puro e a tua palavra é sagrada.
A sorte da nossa colónia mudou assim que estabelecemos contacto com o Peru e as provisões, bem como a gente para povoar a terra, começaram a chegar. Graças aos galeões que iam e vinham, podíamos encomendar o indispensável para começar a prosperar. Valdivia comprou ferro, munições e canhões, eu encomendei árvores e sementes de Espanha, que se dão muito bem neste clima chileno, para além de ovelhas, cabras e gado. Por erro, trouxeram-me oito vacas e doze touros, quando um bastava. Aguirre quis aproveitar o mal-entendido para inaugurar a primeira praça de touros, mas os animais vinham agoniados da viagem marítima e não serviam para dar cornadas. Não se perderam, porém, pois dez deles foram convertidos em juntas usadas para a lavoura e transporte. Os outros dois serviram para cobrir as vacas, pelo que, agora, já há gado em abundância, desde os pastos de Copiapó até ao vale do Mapocho. Construímos um moinho e fornos públicos, tínhamos uma pedreira e serração, estabelecemos locais para construir telhas e tijolos, formámos oficinas de curtição de peles, olaria, vime, velas, arreios e móveis. Havia dois alfaiates, quatro escrivães, um médico - que, infelizmente, não nos servia de muito - e um veterinário óptimo. Ao ritmo acelerado a que a cidade crescia, depressa o vale ficaria despojado de árvores, tal era a pujança da nossa construção. Não posso dizer que a vida fosse fácil, mas não voltou a faltar alimento e até os yanaconas engordaram, tornando-se mais relaxados. Não tivemos problemas de maior, excepto a praga de ratazanas, supostamente provocada pelas macbis, com as suas falsas artes para atormentar os cristãos. As ratazanas comiam tudo, menos o metal, e não conseguíamos defender as sementeiras, as casas ou as roupas. Cecilia ofereceu-nos a solução utilizada no Peru: tinas com água até meio. À noite, colocávamos várias em cada casa e, de manhã, eram mais de quinhentas as ratazanas afogadas, mas mesmo assim a praga só acabou quando Cecilia conseguiu que um feiticeiro quíchua desfizesse o encantamento das machis chilenas.
Valdivia rogava aos seus soldados que mandassem trazer as suas esposas de Espanha, como ordenava o Rei, e alguns, de facto, fizeram-no, embora, na sua grande maioria, preferissem viver amantizados com as índias jovens do que com uma espanhola madura. Na nossa colónia, havia cada vez mais crianças mestiças, que ignoravam quem era o seu pai. As espanholas que se reuniram aos maridos tinham o dever de fazer vista grossa e aceitar essa situação, que no fundo, não era muito diferente do que se vivia em Espanha; no Chile continua a existir o costume de manter uma casa grande, onde vivem a esposa e os filhos legítimos, e outras casas «pequenas» onde vivem as amantes e os bastardos. Devo ser a única que nunca tolerou esse tipo de coisas ao marido, ainda que, nas minhas costas, se possam ter passado coisas que desconheço.
A cidade de Santiago foi declarada capital do reino. Havia mais gente e mais segurança; enquanto os índios de Michimalonko se mantinham afastados. Isso permitia-nos, entre outras coisas, organizar passeios, almoços campestres e sessões de caça nas ribeiras do Mapocho, que antes eram terras proibidas. Designámos alguns dias de festa para honrar os santos e outros para nos divertirmos com música, e neles participavam, de igual modo, espanhóis, índios, negros e mestiços. Havia lutas de galos, corridas de cães, jogos da boccia e futebol. Pedro de Valdivia, um jogador entusiasta, continuou a organizar jogos de cartas na nossa casa, só que então apostava-se a ilusões. Ninguém tinha um maravedi, mas as dívidas anotavam-se num caderno com a meticulosidade de um agiota, mesmo sabendo que jamais seriam cobradas.
Uma vez que se estabeleceu o correio entre o Peru e Espanha, podíamos mandar e receber cartas, que apenas demoravam um ou dois anos a chegar ao seu destino. Pedro começou a escrever longas missivas ao Imperador Carlos V, contando-lhe tudo acerca do Chile, das necessidades por que passávamos, dos seus gastos e dívidas, da sua forma de fazer justiça, de como, com grande pena sua, muitos índios morriam e assim faltavam almas para o trabalho das minas e campos. De vez em quando, pedia-lhe favores, pois faz parte do dever dos soberanos concedê-los, embora as suas justas exigências ficassem sem resposta. Queria soldados, gente, barcos, a confirmação da sua autoridade e o reconhecimento dos seus feitos. Lia-me as cartas com o seu vozeirão autoritário, passeando-se pela sala, de peito inchado, transbordando vaidade, sem que eu nada dissesse a propósito; aliás, como me atreveria eu a opinar sobre a sua correspondência com o monarca mais poderoso da Terra, o santíssimo e invicto César, conforme lhe chamava Valdivia. Mas começava a reparar que o meu amante tinha mudado, como se o poder lhe tivesse subido à cabeça, agora transformado num homem soberbo. Nas cartas, referia-se a fabulosas minas de ouro, mais fantasia do que realidade. Era o apelo do ouro, como se de um engodo se tratasse, para chamar mais espanhóis para o povoamento do Chile, porque lá no fundo, só ele e Rodrigo de Quiroga sabiam que a verdadeira riqueza daquele reino não era o ouro e a prata, mas sim o seu clima benigno e a terra fecunda, que nos convida a ficar; no entanto, os restantes colonos ainda alimentavam a ideia de enriquecer e voltar para Espanha.
Para assegurar o trânsito mais expedito para o Peru, Valdivia mandou fundar uma cidade a norte, La Serena, e um porto perto de Santiago, Valparaiso, acabando, depois, por virar a sua atenção para o rio Bío-Bío com o intuito de domar os mapuche. Felipe explicou-me que aquele rio é sagrado, porque ordena o fluxo natural das águas, a sua frescura tranquiliza a ira dos vulcões e, nas suas margens, crescem desde as árvores mais frondosas, até aos mais secretos cogumelos, invisíveis, transparentes. De acordo com os documentos que Pizarro tinha dado a Valdivia, a sua governação ia até ao estreito de Magalhães, mas ninguém sabia ao certo a que distância ficava o tal famoso canal que unia o oceano do Oriente com o do Ocidente. Por esses dias, chegou um barco enviado pelo Peru comandado por um jovem capitão italiano de nome Pastene, a quem Valdivia deu o sonante título de almirante e ordenou que explorasse o Sul. Navegando ao longo da costa, Pastene vislumbrou paisagens magníficas de bosques profundos, arquipélagos e glaciares, mas não encontrou o estreito, que pelos vistos ainda ficava mais para sul. Entretanto, as notícias que chegavam do Peru eram desastrosas; pois acabavam de sair de uma guerra civil e já tinham caído noutra. Gonzalo Pizarro, um dos irmãos do falecido Marquês, tomara o poder numa rebelião declarada contra o nosso Rei, e a corrupção, as traições, os preconceitos e a usurpação de poder eram de tal ordem, que, por fim, o imperador Carlos V decidiu mandar La Gasca, um frade obstinado, impor a ordem e a lei. Não pretendo gastar tinta para descrever as confusões por que passava a Ciudad de los Reyes naquela altura, porque nem eu as entendo, mas menciono apenas La Gasca, porque aquele clérigo, com a cara cheia de cicatrizes de varíola, acabou por tomar uma decisão que havia de mudar o meu destino.
Pedro fervilhava de impaciência, não só porque queria conquistar mais território chileno, que os mapuche defendiam com a própria vida, mas também porque queria participar nos acontecimentos do Peru e estar em contacto com a civilização. Há oito anos que estava afastado dos centros de poder e, lá no fundo, secretamente, desejava viajar para norte para se reencontrar com outros militares, fazer negócios, compras, fazer alarde da conquista do Chile e colocar a sua espada ao serviço do Rei contra o insubordinado Gonzalo Pizarro. Estaria cansado de mim? Talvez, mas na altura não suspeitei de nada, pois sentia-me segura do seu amor, que para mim era tão natural como a chuva. Quando me apercebi que andava inquieto, logo supus que estaria ligeiramente enfastiado com a vida sedentária, já que a excitação dos primeiros tempos em Santiago, que nos obrigava a segurar na espada de noite e dia, dera lugar a uma existência bastante mais ociosa e cómoda.
- Precisamos de soldados para a guerra no Sul e de famílias para povoar o resto do território, mas o Peru ignora os meus emissários disse-me Pedro, uma noite, ocultando as suas verdadeiras razões.
- E, por acaso, pretendes ir tu próprio? Aviso-te já que, se te ausentas por um só dia de Santiago, vai ser o descalabro. Já sabes o que anda a fazer o teu amigo De Ia Hoz - disse por dizer, pois, sem eu saber, ele já tinha tomado a sua decisão.
- Deixarei Villagra no meu lugar, ele tem o pulso forte.
- Como pensas aliciar as pessoas do Peru para virem para o Chile? Nem todos são idealistas como tu, Pedro. Os homens vão para onde há riqueza, e não apenas glória.
- Encontrarei uma forma de o fazer.
A ideia foi sua, e eu não nada tive a ver com ela. Pedro anunciou com pompa e circunstância que enviaria o barco de Pastene ao Peru e que todos aqueles que desejassem partir e levar o seu ouro, podiam fazê-lo. Isto causou um entusiasmo delirante, não se falando de outra coisa em Santiago durante semanas. Ir embora! Regressar a Espanha com dinheiro! Era esse o sonho de todos os homens que saíam do velho continente rumo às índias: regressar rico. No entanto, quando chegou o momento de inscrever os viajantes, só dezasseis colonos decidiram aproveitar a oportunidade, venderam as suas propriedades ao desbarato, embalaram os seus pertences, juntaram o seu ouro e dispuseram-se a partir. Entre os viajantes que seguiam na caravana em direcção ao porto ia o meu mentor, Gonzalez de Marmolejo, que já tinha mais de sessenta anos e de quem continuo a desconhecer por que obra e graça do Espírito Santo conseguira enriquecer ao serviço de Deus. A senhora Díaz, uma «dama» espanhola que tinha chegado um par de anos antes, também ia num dos barcos. De dama pouco tinha, pois todos sabíamos que era um homem vestido de mulher. «Bolitas e pirilau tem a dona entre as pernas, pois», contou-me Catalina. «As coisas de que tu te lembras! Por que há-de um homem vestir-se de mulher?» perguntei-lhe. «Para o que há-de ser, senoray, para ir tirando dinheiro aos outros homens, nada mais...» explicou-me. Mas chega de palermices. No dia estipulado, os viajantes embarcaram e acomodaram os seus baús fechados a cadeado nas cabinas que lhes foram atribuídas, com o ouro bem guardado lá dentro. Entretanto, Valdivia e os outros capitães apareceram na praia, seguidos de numerosos criados, para lhes oferecer uma refeição de despedida composta de deliciosos peixes e mariscos acabados de pescar, regados com vinhos da adega do Governador. Colocaram toldos de lona sobre a areia, almoçaram como príncipes e emocionaram-se um pouco com os emotivos discursos, sobretudo a dama do pirilau, que era muito sentimental e melindrosa. Valdivia insistiu que os colonos deixassem registada a quantidade de ouro que levavam, para evitar problemas posteriores, uma medida sábia que contou com a aprovação geral. Enquanto o secretário anotava cuidadosamente no seu livro as cifras que os viajantes lhes ditavam, Valdivia subiu para o único bote disponível e cinco vigorosos marinheiros conduziram-no ao barco, onde vários dos seus mais leais capitães já o esperavam, com a intenção de, juntos, se colocarem ao serviço da causa do Rei no Peru. Ao perceberem o engodo, os incautos colonos desataram a vociferar de frustração e alguns lançaram-se mesmo ao mar, nadando na tentativa de perseguir o bote. Apesar de tudo, o único que o logrou alcançar, acabou, mesmo assim, por levar um golpe de remo tal que quase lhe arrancou a cabeça. Posso bem imaginar a desolação dos ludibriados ao ver o barco enfunar as velas e tomar a rota para norte, transportando os seus bens terrenos.
Ao robusto capitão Villagra, que não perdeu tempo com contemplações, coube a tarefa de substituir Valdivia na qualidade de tenente-governador e enfrentar os colonos furibundos na praia. O seu aspecto possante, a cara morena plantada entre os ombros, os seus modos austeros e a mão no punho da espada impuseram a ordem. Explicou-lhes que Valdivia partira para o Peru para defender o Rei, seu senhor, e procurar reforços para a colónia do Chile, razão pela qual tinha sido obrigado a fazer o que fez, apesar da promessa de devolver até ao último tostão com a sua quota-parte correspondente da mina de Marga-Marga. «Quem gostar, muito bem, quem não gostar, terá de se ver comigo», concluiu. Depois disto, ninguém ficou tranquilizado com estas palavras.
Lá no fundo, consegui entender as razões de Pedro, que viu naquele ardil, tão impróprio do seu carácter recto, a única solução para o problema do Chile. Colocou na balança o mal que estava a fazer àqueles dezasseis inocentes e a necessidade de impulsionar a conquista e trazer benefícios para milhares de pessoas, sendo que, no final, este último argumento acabou por pesar mais. Se me tivesse consultado, certamente apoiaria a sua decisão, embora tivesse feito as coisas de modo mais elegante - e, além disso, tinha ido com ele -, mas Pedro só partilhou o seu segredo com três capitães. Terá pensado que eu lhe arruinaria o plano com demasiado falatório? Não, porque nos dez anos em que vivemos juntos eu sempre demonstrara grande discrição e ferocidade na defesa da sua vida e dos seus interesses. Acredito, isso sim, que tenha receado que eu o tentasse impedir. E, com efeito, foi-se embora, levando o mínimo indispensável, pois se tivesse feito as malas como devia ser, eu certamente teria adivinhado os seus propósitos. Partiu sem se despedir de mim, da mesma forma que, muitos anos antes, também Juan de Malaga tinha partido.
A armadilha de Valdivia, porque não foi outra coisa, por muito nobre que fosse a sua intenção, acabou por ser um presente dos céus para Sancho de Ia Hoz, que agora tinha um crime concreto para lhe imputar: tinha enganado a gente, roubado o fruto de anos de trabalho e penúrias aos seus próprios soldados. Merecia morrer.
Quando soube que Pedro se tinha ido embora, senti-me muito mais traída do que os colonos enganados. Perdi o controlo dos meus nervos pela primeira e última vez na vida. Durante um dia inteiro, parti tudo o que estava ao meu alcance e gritei de raiva, que agora é que iam ver quem eu era, Inés Suárez, pois a mim ninguém me deixa abandonada como um trapo velho, eu que era a verdadeira governadora do Chile e, além disso, todos sabem o quanto me devem, e o que seria desta cidade de merda sem mim, que cavei canais com as minhas próprias mãos, curei quantos doentes e feridos me apareceram pela frente, eu que semeei, costurei e cozinhei, para que não morressem de fome e, como se não bastasse, ainda por cima, peguei nas armas como o melhor dos soldados; Pedro devia-me a vida, a mim que o amei, servi e lhe dei prazer, e ninguém o conhecia melhor do que eu, nem lhe aguentaria as manias como eu, e tudo o mais, patati-patatá; e assim continuei com a cantilena, até que Catalina e outras mulheres me ataram à cama e foram pedir socorro. E assim fiquei a debater-me contra as ligaduras, possuída pelo demónio, com Juan de Malaga instalado aos pés da minha cama a gozar comigo. Passado pouco tempo, apareceu Gonzalez de Marmolejo, bastante deprimido, porque era o mais velho dos enganados e achava que não tinha tempo para recuperar o que tinha perdido. Na verdade, não só recuperou os seus bens com juros, como quando morreu, anos mais tarde, era o homem mais rico do Chile. Como conseguiu? Mistério. Penso que, em parte, fui eu que o ajudei, porque nos associámos na criação de cavalos, uma ideia que me tinha surgido no início da nossa viagem para o Chile. O clérigo chegou a minha casa disposto a tentar exorcizar-me mas, quando compreendeu que o meu mal era apenas indignação de amante despeitada, limitou-se a salpicar-me com água benta e a rezar umas Ave-marias, tratamento que devolveu o juízo.
No dia seguinte, recebi a visita de Cecilia que, naquela altura, já tinha vários filhos, embora nem a maternidade nem os anos tivessem conseguido causar mossa no seu extraordinário porte real e no seu rosto liso de princesa inca. Graças ao seu talento para a espionagem e à sua condição de esposa do oficial Juan Gomez, Cecilia sabia tudo o que se passava para lá das portas das casas da colónia, incluindo o meu recente ataque de fúria. Encontrou-me na cama, ainda esgotada pelos excessos do dia anterior.
- Pedro vai pagar-me por isto, Cecilia! - anunciei-lhe, assim que entrou.
- Trago-te boas notícias, Inés. Não terás de te vingar dele, outros fá-lo-ão por ti - disse-me.
- O que dizes?
- Os descontentes, que são muitos em Santiago, planeiam acusar Valdivia perante a Audiência Real no Peru. Se não perder a cabeça no patíbulo, pelo menos passará o resto da vida no calabouço. Vê bem a sorte que tens!
- Isso é ideia de Sancho de Ia Hoz! - exclamei, saltando da cama para me vestir à pressa.
- Como irias tu imaginar que este néscio acabaria por te fazer um favor tão grande? De Ia Hoz fez circular uma carta pedindo que Valdivia seja destituído e muitos colonos já a assinaram. A maior parte das pessoas quer ver-se livre dele e nomear De Ia Hoz governador - comunicou-me Cecilia.
- Esse fantoche não se dá por vencido! - murmurei, enquanto apertava os botins.
Alguns meses antes, aquele malvado cortesão tentara assassinar Valdivia. Tal como todas as investidas que planeava, esta última também era bastante pitoresca: fingiu que estava muito doente, meteu-se na cama, anunciou que agonizava e queria despedir-se dos seus amigos e inimigos, inclusive do Governador. Escondeu um dos seus seguidores por detrás de uma cortina, armado com uma adaga, para apunhalar Valdivia pelas costas quando este se inclinasse sobre a cama para ouvir os murmúrios do suposto moribundo. Estes detalhes ridículos e o facto de se gabar constantemente deles colocavam De Ia Hoz em desvantagem, porque eu acabava sempre por tomar conhecimento das suas tramóias sem grande esforço. Na ocasião, adverti novamente Pedro do perigo que corria; de início, riu-se à gargalhada e negou-se a acreditar em mim, mas depois aceitou investigar o assunto a fundo. O resultado deu como comprovada a culpa de Sancho de Ia Hoz, que foi condenado à forca, pela segunda ou terceira vez, já lhe perdi a conta. No entanto, à última hora, Pedro perdoou-lhe a pena, para não fugir à regra.
Acabei de me vestir, despedi-me de Cecilia e, com uma desculpa esfarrapada, corri para falar com o capitão Villagra, para lhe repetir as palavras da princesa inca e assegurar-lhe que, se Sancho de Ia Hoz fosse bem sucedido, os primeiros a perder a cabeça seriam ele próprio e os restantes homens fiéis a Pedro.
- Tem provas do que diz, dona Inés? - quis saber Villagra, vermelho de ira.
- Não, só ouvi rumores, don Francisco.
- Para mim basta.
E, sem mais delongas, prendeu o conspirador e mandou-o decapitar de uma só machadada nessa mesma tarde, sem lhe dar sequer tempo para se confessar. Depois, ordenou que se passeasse a cabeça pela cidade, presa pelos cabelos, antes de a cravar num poste para servir de aviso aos restantes suspeitos, como era habitual nestes casos. Quantas cabeças vi expostas daquela forma em toda a minha vida? E impossível contá-las todas. Villagra absteve-se de investir contra o resto dos golpistas, que se esconderam em casa como ratazanas, provavelmente porque teria de prender a povoação inteira, tal era o mal-estar contra Valdivia que reinava em Santiago. Assim sendo, este capitão eliminou numa noite só o gérmen de uma guerra civil e livrou-nos do verme execrável que era Sancho de Ia Hoz. E já não era sem tempo.
Pedro de Valdivia demorou uns meses a chegar a Callao, porque parou em vários locais do Norte à espera de notícias de Santiago; precisava de saber se Villagra tinha controlado a situação e lhe protegia
as costas. Sabia da rebelião de Sancho de Ia Hoz, porque um mensageiro o tinha alcançado com a má notícia, mas não queria ser o responsável directo pela sua morte, já que isso lhe podia trazer problemas com a justiça. Agradava-lhe sobremaneira que o seu tenente tivesse resolvido a questão ao seu jeito, ainda que tenha demonstrado surpresa e desagrado perante o ocorrido, pois sabia bem que o seu inimigo tinha bons contactos na corte de Carlos V.
Para me pedir perdão, Pedro mandou um veloz cavaleiro trazer-me, de La Serena, uma carta de amor e um extravagante anel de ouro. Rasguei a carta em mil pedaços e dei o anel a Catalina, com a condição de que o fizesse desaparecer da minha vista, porque me deixava o sangue a ferver.
A caminho do Norte, o Governador reuniu um grupo de dez selectos capitães, que aperaltou com armaduras, armas e cavalos, valendo-se do ouro dos colonos enganados, e com eles partiu para se colocar debaixo dos estandartes do clérigo La Gasca, legítimo representante do Rei no Peru. Para se encontrarem com o exército de La Gasca, os fidalgos tiveram de trepar os cumes gelados dos Andes, forçando imenso os cavalos, que caíam vencidos pela falta de ar, enquanto o mal das alturas rebentava os ouvidos dos homens, fazendo-os sangrar pelos vários orifícios do corpo. Sabiam que La Gasca, que não tinha qualquer experiência militar, embora fosse um homem de coragem e força exemplares, iria enfrentar um exército formidável comandado por um general experiente e intrépido. Podia-se acusar Gonzalo Pizarro de qualquer coisa, menos de cobardia. As tropas de La Gasca, enfermas devido ao esforço da viagem através da cordilheira, paralisadas de frio e aterradas ante a superioridade do inimigo, receberam Valdivia e os seus dez capitães como se fossem anjos vingadores. Para La Gasca, aqueles fidalgos, chegados milagrosamente para os socorrer, revelaram-se fundamentais. Abraçou-os, agradecido, e entregou o comando a Pedro de Valdivia, o mítico conquistador do Chile, então nomeado mestre-de-campo. As tropas recuperaram, de imediato, a confiança, porque com aquele general à frente, a vitória estava garantida. Valdivia começou por assegurar o ânimo elevado dos soldados com palavras de justiça, resultado de muitos anos passados a lidar com os seus subordinados, e logo depois começou a avaliar as suas forças e armas. Ao compreender que tinha pela frente uma tarefa deveras exigente, sentiu-se rejuvenescer; os seus capitães não o viam tão entusiasmado desde os tempos da fundação de Santiago.
Para se aproximar de Cuzco, onde devia enfrentar o exército do rebelde Gonzalo Pizarro, Valdivia utilizou os caminhos estreitos dos Incas, talhados nas margens dos precipícios. Avançava com as suas tropas como se fosse uma fila de insectos por entre a presença maciça das montanhas violeta: rochas, gelo, cumes perdidos nas nuvens, vento e condores. Por vezes, das fendas, surgiam raízes petrificadas onde os homens aproveitavam para descansar um pouco das agruras da terrível subida. As patas das bestas resvalavam nas falésias e os soldados, unidos por cordas, tinham de as segurar pelas crinas para evitar que caíssem nos mais profundos abismos. A paisagem era de uma beleza constrangedora e intimidante, num mundo que se revelava ser composto de luz resplandecente e sombras siderais. O vento e o granizo tinham esculpido demónios nos contrafortes da montanha; o gelo preso nas fendas das rochas brilhava com as cores da aurora. De manhã, o sol surgia distante e frio, pintando os cumes com traços laranja e vermelhos; à tarde, a luz desaparecia tão subitamente como tinha surgido, mergulhando a cordilheira no mais completo negrume. As noites eram intermináveis e, como ninguém se podia mexer na escuridão, homens e animais recolhiam-se, tiritando, pendurados nas ribas dos precipícios.
Para aliviar o mal das alturas e dar energia aos soldados esgotados, Valdivia obrigou-os a mastigar folhas de coca, como faziam os quíchuas desde tempos imemoriais. Quando soube que Gonzalo Pizarro mandara cortar as pontes para evitar que cruzassem os rios e precipícios, mandou os yanaconas tecerem cordas com as fibras vegetais da região, tarefa que realizavam com uma rapidez prodigiosa. Juntamente com um grupo de corajosos, e aproveitando a neblina da serra, adiantou-se, sem ser detectado, até uma das passagens cortadas por Pizarro, onde ordenou aos índios que entrançassem as cordas em grupos de seis, à moda tradicional dos quíchuas, e com elas fizessem pontes de tiras.
Um dia depois, chegou La Gasca com o grosso do exército, tendo encontrado o problema resolvido. E foi assim que conseguiram transportar para o outro lado quase mil soldados, cinquenta cavaleiros, inúmeros yanaconas e armamento pesado, balançando-se nas cordas sobre o pavoroso precipício, por entre os uivos do vento. Depois, Valdivia obrigou os já esgotados soldados a trepar duas léguas de montanha abrupta, com os apetrechos às costas e carregando os canhões, até ao sítio que tinha escolhido para desafiar Gonzalo Pizarro. Quando acabou de colocar o armamento em vários pontos estratégicos dos montes, decidiu dar aos homens um par de dias para retemperar forças, enquanto ele, imitando o seu mestre, o Marquês de Pescara, revia pessoalmente a colocação da artilharia e dos mosquetes, falava com cada soldado para lhe dar instruções e preparava o plano da batalha. Até parece que o estou a ver montado no seu cavalo, com a armadura nova, enérgico, impaciente, calculando antecipadamente os movimentos do inimigo, dispondo as peças em termos ofensivos, como o bom jogador de xadrez que era. Já não era um jovem, tinha quarenta e oito anos, estava um pouco mais gordo e a antiga ferida na anca incomodava-o sobremaneira, mas ainda se conseguia aguentar a cavalo durante dois dias e duas noites sem descansar, e só eu sei como, nesses momentos, se sentia verdadeiramente invencível. Estava tão certo da vitória que prometeu a La Gasca que perderiam menos de trinta homens na batalha, e cumpriu a sua palavra.
Mal o primeiro bombardeio de canhões ressoou pelos montes, as tropas de Pizarro compreenderam que estavam perante um general formidável. Muitos soldados, incomodados com o facto de se baterem contra o Rei, abandonaram as fileiras de Gonzalo Pizarro para se unirem às de La Gasca. Conta-se que o próprio mestre-de-campo de Pizarro, um velho astuto com muitos anos de experiência militar, adivinhou de imediato com quem teriam de lutar. «Só há um general no Novo Mundo capaz de uma estratégia destas: don Pedro de Valdivia, conquistador do Chile», terá afirmado. O seu inimigo não defraudou as expectativas e tão pouco lhe deu trégua. Depois de várias horas de luta e de incontáveis baixas, Gonzalo Pizarro acabou por se render e entregar a sua espada a Valdivia. Dias mais tarde foi decapitado em Cuzco juntamente com o seu velho mestre-de-campo.
La Gasca, que tinha cumprido a promessa de acabar com a insurreição e devolver o Peru a Carlos V, tinha agora de assumir o cargo do deposto Gonzalo Pizarro, com o imenso poder que isso implicava. Devia o seu triunfo ao vigoroso capitão Valdivia e, por isso, premiou-o, confirmando o título de governador do Chile, dado pelos habitantes de Santiago, mas que, até àquele momento, ainda não tinha sido ratificado pela Coroa. Além disso, autorizou-o a recrutar soldados e a levá-los até ao Chile, desde que não fossem rebeldes apoiantes de Pizarro ou índios peruanos.
Será que Pedro se lembrava de mim quando andava triunfante pelas ruas de Cuzco? Ou andaria demasiado absorvido no seu orgulho, pensando apenas em si mesmo? Questionei-me uma centena de vezes por que motivo não me levara com ele naquela viagem. Se o tivesse feito, o nosso destino teria sido bastante diferente. Ia numa missão militar, é certo, mas eu sempre fui a sua companheira, na guerra e na paz. Será que tinha vergonha de mim? Amancebada, amante, concubina. No Chile, era dona Inés Suárez, a Governadora, e ninguém se lembrava que não éramos legalmente casados. Eu própria me esquecia disso com frequência. As mulheres em Cuzco e, mais tarde, na Ciudad de los Reyes, devem ter assediado Pedro, herói absoluto da guerra civil, amo e senhor do Chile, supostamente rico e ainda bastante atraente; qualquer uma se sentiria honrada por andar de braço dado com ele. Além disso, já circulava no ar o rumor de que La Gasca, homem de uma rigidez fanática, seria vítima de assassinato e que Pedro de Valdivia seria nomeado para o seu lugar, embora ninguém se atrevesse a dizer-lhe isto directamente, porque para ele teria sido um insulto. A espada dos Valdivia sempre tinha servido o Rei com lealdade durante toda a sua vida e jamais se viraria contra ele, para além do facto de que La Gasca representava o Rei.
Na minha idade, já não vale a pena tecer conjecturas sobre as mulheres que Pedro teve no Peru, sobretudo porque não tenho a consciência completamente tranquila: foi nessa altura que começou a minha amizade amorosa com Rodrigo de Quiroga. Devo esclarecer, no entanto, que ele nunca tomou qualquer iniciativa nem deu quaisquer mostras de adivinhar os meus vagos desejos. Eu sabia que ele jamais trairia o seu amigo Pedro de Valdivia, por isso procurei resguardar-me, tanto quanto ele, da simpatia mútua que sentíamos um pelo outro. Ter-me-ei virado para Quiroga por despeito? Para me vingar do abandono de Valdivia? Sinceramente, não sei, mas o facto é que Rodrigo e eu nos amámos como namorados castos, com um sentimento profundo e desesperançado, que nunca exprimimos por palavras, apenas por gestos e olhares. Da minha parte, não sentia a mesma paixão ardente que antes sentira com Juan de Malaga e Pedro de Valdivia, mas um desejo discreto de estar perto de Rodrigo, de partilhar a sua vida, de cuidar dele. Santiago era uma cidade pequena, onde era praticamente impossível manter um segredo, mas, tendo em conta o prestígio intocável de Rodrigo, nunca circularam rumores sobre nós, apesar de nos encontrarmos diariamente quando ele não andava a lutar. Pretextos não faltavam, porque ele ajudava-me nos meus projectos para construir a igreja, as ermidas, o cemitério e o hospital, enquanto eu me disponibilizara para criar a sua filha.
Não te lembras, Isabel, porque tinhas apenas três anos. Eulalia, a tua mãe, que te amou muito, a ti e ao teu pai, morreu nesse mesmo ano durante a epidemia de tifo. O teu pai trouxe-te pela mão até minha casa e disse-me: «Cuide-me dela por uns dias, peço-lhe, dona Inês, que tenho de ir dar conta de uns selvagens, mas em breve estarei de regresso...» Eras uma menina calada e intensa, tinhas cara de lama, os mesmos olhos doces e pestanudos, a mesma expressão de curiosidade e o cabelo apanhado em dois totós, como as orelhas desse animal. Da tua mãe quíchua herdaste a pele da cor do caramelo e do teu pai as feições aristocratas, numa mescla perfeita. Adorei-te logo, desde que o momento em que cruzaste o umbral da minha porta, abraçada a um cavalito de madeira esculpido por Rodrigo. Nunca te devolvi ao teu pai e, graças às mais diversas desculpas, mantive-te sempre a meu lado, até que Rodrigo e eu nos casámos e foste então legalmente minha. Criticavam-me muito porque te mimava e te tratava como um adulto, dizendo que estava a criar um monstro; por isso, agora, podes bem imaginar a decepção das más-línguas ao ver o resultado.
Naqueles nove anos da nossa colónia no Chile, traváramos várias batalhas campais e inúmeras escaramuças com os índios chilenos, mas conseguimos não só estabelecer-nos, como também fundar novas cidades. Embora pensássemos estar seguros, a verdade é que, na realidade, os indígenas chilenos jamais aceitaram a nossa presença na sua terra, como, aliás, viríamos a verificar nos anos seguintes. Os índios de Michimalonko, a norte, preparavam-se há vários anos para um levantamento maciço, mas não se atreviam a atacar Santiago como tinham feito em 1541, optando, desta vez, por atacar as pequenas povoações do Norte, onde os colonos espanhóis se encontravam quase indefesos.
No Verão de 1549, Don Benito morreu de um mal de estômago, por comer ostras estragadas. Era muito querido por todos nós e considerávamo-lo o patriarca da cidade. Tínhamos chegado ao vale do Mapocho impulsionados pela ilusão desse velho soldado, que comparava o Chile ao jardim do Éden. Comigo, foi sempre de uma lealdade e galanteria exemplares e, por isso mesmo, desesperei-me por não o conseguir ajudar. Morreu nos meus braços, contorcendo-se de dor, envenenado até à medula. Estávamos no meio do funeral, ao qual assistiram todos os habitantes de Santiago, quando apareceram dois soldados em farrapos, caindo de fadiga, um deles ferido. Vinham de La Serena, viajando de noite e escondendo-se de dia para evitar os índios. Contaram que, uma noite, o único vigia da pequena cidade de La Serena, recém-fundada, praticamente não conseguiu dar o alarme antes que uma massa de índios furibundos se abatesse sobre a povoação. Os assaltantes torturaram homens e mulheres até à morte, despedaçaram as crianças atirando-as contra as rochas e reduziram as casas a cinzas. Na confusão, os dois soldados conseguiram escapar e, com extrema dificuldade, trazer a horrenda notícia para Santiago. Asseguraram-nos de que se tratava de uma sublevação geral e que as tribos estavam em pé de guerra, prontas para destruir todas as povoações espanholas.
De tal forma o terror se apoderou da cidade de Santiago, que imaginávamos já as hordas de selvagens saltando o fosso, trepando a muralha e caindo sobre nós como a ira do Diabo. Estávamos novamente com as nossas forças divididas, porque parte dos soldados tinha sido destacada para as povoações do Norte, Pedro de Valdivia estava ausente com vários capitães e os tão prometidos reforços não chegavam. Era impossível proteger as minas e as fazendas, que ficaram abandonadas, enquanto as pessoas se refugiavam em Santiago. As mulheres, desesperadas, instalaram-se na igreja a rezar de dia e de noite, enquanto os homens, incluindo os anciãos e os doentes, se dispuseram a defender a cidade.
O Cabido, reunido em plenário, decidiu que Villagra devia partir com sessenta homens para enfrentar os índios do Norte, antes que estes se organizassem para atacar Santiago. Aguirre ficou incumbido da defesa da capital e Juan Gomez foi intimado a empregar os meios necessários para obter informações sobre a guerra, o que, em poucas palavras, queria dizer o seguinte: torturar os suspeitos. Os gritos de dor dos índios torturados punham-nos os nervos em franja. Eram inúteis as minhas súplicas de compaixão e o argumento de que, mediante a tortura, jamais se obteria a verdade, porque a vítima acabava por confessar apenas o que o seu carrasco queria ouvir. Era tanto o ódio, o medo e o desejo de vingança, que ao saber-se das excursões punitivas de Villagra, cuja sanha era comparável à dos bárbaros, o povo rejubilava. Graças aos seus métodos ferozes, conseguiu sufocar a insurreição, desmembrar as hostes indígenas em menos de três meses e evitar que Santiago fosse atacada. Impôs um acordo de paz aos caciques, mas ninguém esperava que as tréguas durassem muito; a nossa única esperança era o rápido regresso do Governador e dos seus capitães, trazendo mais soldados do Peru.
Meses depois da campanha militar de Villagra, o Cabido enviou Francisco de Aguirre ao Norte, com a missão de reconstruir as cidades devastadas pelos índios e conseguir aliados, só que o capitão basco aproveitou a oportunidade para dar rédea solta ao seu impulsivo e cruel temperamento. Caía sobre as aldeias indígenas sem misericórdia, capturava todos os homens, desde os meninos até aos anciãos, fechava-os em barracões de madeira e queimava-os vivos. Desta forma, esteve prestes a exterminar a população indígena e, segundo o próprio contava a rir, de seguida, ainda teve de engravidar as viúvas para repovoar. E coíbo-me de dar mais detalhes, porque temo que estas páginas sejam já mais truculentas do que aquilo que uma alma cristã pode tolerar. No Novo Mundo, ninguém tinha grandes pruridos na hora de ser violento. Mas que digo eu? Violência como a que praticava Aguirre existe de igual forma em todo o mundo e em todas as épocas. Nada muda, e nós, seres humanos, repetimos os mesmos pecados uma e outra vez, eternamente. Isto acontecia nas índias, enquanto, em Espanha, Carlos V promulgava as Leis Novas, nas quais confirmava que os índios eram súbditos da Coroa e advertia os proprietários para o facto de não os poderem obrigar a trabalhar nem aplicar-lhes castigos físicos, devendo antes contratá-los por escrito e pagar-lhes em dinheiro vivo. Mais ainda, os conquistadores deviam abordar os indígenas de modo pacífico, pedindo-lhes, com palavras gentis, que aceitassem Deus e o Rei dos cristãos, que oferecessem a sua terra e se colocassem às ordens dos seus novos amos. Como tantas outras leis bem-intencionadas, também estas acabaram por ficar pela tinta e papel. «O nosso soberano deve estar pior da cabeça do que supúnhamos, se pensa que isto é possível», comentou Aguirre a este respeito. E tinha razão. O que fizeram as gentes de Espanha quando os estrangeiros chegaram para lhes impor os seus costumes e a sua religião? Combateram-nos até à morte, é claro.
Entretanto, Pedro conseguiu reunir um número considerável de soldados no Peru e empreendeu o caminho de regresso por terra, seguindo a já conhecida rota do deserto de Atacama. Quando a viagem já levava algumas semanas, um mensageiro de La Gasca alcançou-o a galope e ordenou-lhe que voltasse à Ciudad de los Reyes, onde havia um volumoso conjunto de acusações contra ele. Valdivia deixou as tropas sob o comando dos seus capitães e deu meia volta para enfrentar a justiça. De nada lhe serviu a ajuda prestada ao Rei e a La Gasca para derrotar Gonzalo Pizarro e devolver a paz ao Peru, porque foi julgado de igual modo.
Além dos inimigos invejosos que Valdivia arranjou no Peru, havia outros detractores, que tinham viajado para o Chile com o propósito de o destruir. Os crimes contra si eram mais de cinquenta, mas só me lembro dos mais importantes e dos que me dizem respeito. Acusaram-no de se auto-intitular governador sem a autorização de Francisco Pizarro, que só lhe dera o título de tenente-governador, e de ordenar a morte de Sancho de Ia Hoz e de outros espanhóis inocentes, como fora o caso do jovem Escobar, condenado por ciúmes; afirmaram que Pedro tinha roubado dinheiro aos colonos, mas não esclareceram que já tinha pago a dívida praticamente toda com o produto da mina de Marga-Marga, tal como havia prometido. Disseram que se tinha apoderado das melhores terras e de milhares de índios, sem mencionar que arcava com as mais diversas despesas na colónia, financiava os soldados, emprestava dinheiro sem juros e, feitas as contas, agia como tesoureiro do Chile usando o dinheiro do seu próprio bolso, porque nunca foi avarento nem interesseiro; acrescentaram que tinha outorgado riquezas em demasia a uma tal de Inés Suárez, com quem vivia num escandaloso concubinato. O que mais indignação me causou, quando mais tarde me inteirei desses detalhes, foi que os vilões afirmavam que eu manipulava Pedro a meu bel-prazer e que, para alguém obter alguma coisa do Governador, era necessário pagar uma comissão à sua amante. Passei por imensas dificuldades durante a conquista do Chile e dediquei a minha vida à fundação deste reino. E escusado compor uma lista com tudo o que fiz com o meu próprio esforço, porque está tudo devidamente registado nos arquivos do Cabido e quem duvidar pode consultá-los à vontade. É verdade que Pedro me honrou com terras e comendas valiosas, o que provocou rancor em pessoas mesquinhas e de memória curta, mas não é verdade que as ganhei na cama. A minha fortuna aumentou porque sempre a administrei com o mesmo bom-senso de camponesa que herdei da minha mãe, que descanse em paz.
«Que saia menos do que entra», era a sua filosofia a respeito do dinheiro, fórmula esta que raramente falha. Como fidalgos espanhóis que eram, Pedro e Rodrigo nunca se ocuparam da gestão dos seus bens e negócios; Pedro morreu pobre, Rodrigo viveu rico graças a mim.
Apesar de simpatizar com o acusado, a quem tanto devia, La Gasca prosseguiu com o julgamento até às últimas consequências. No Peru, não se falava de outra coisa e o meu nome andava na boca de toda a gente: diziam que era bruxa, que usava poções para enlouquecer os homens, que em Espanha e Cartagena tinha sido meretriz, que me mantinha saudável porque bebia o sangue de recém-nascidos e outros horrores que tenho vergonha de repetir. Pedro provou a sua inocência, desenvencilhando-se das acusações uma a uma e, no fim de tudo, a única que saiu a perder fui eu. La Gasca ratificou mais uma vez a sua nomeação de governador, os seus títulos e honraria, exigindo-lhe apenas que pagasse as suas dívidas num prazo prudente; mas, no que a mim diz respeito, este clérigo - que merece arder no fogo do inferno - foi duríssimo. Ordenou ao Governador que me despojasse dos meus bens e os repartisse pelos capitães, que se separasse de mim de imediato e me enviasse para o Peru ou para Espanha, onde teria oportunidade de expiar os meus pecados num convento.
Pedro esteve ausente durante um ano e meio e regressou do Peru com duzentos soldados, oitenta dos quais chegaram com ele de barco e os restantes por terra. Quando soube que estava a caminho, assolou-me tamanha febre de actividade que quase enlouqueceu os criados. Pus toda a gente a pintar a casa, a lavar cortinas, a plantar flores nos canteiros, a preparar as guloseimas de que ele tanto gostava, a tecer mantas e a fazer lençóis novos. Estávamos no Verão e, nas hortas dos arredores de Santiago, já produzíamos os frutos e verduras de Espanha, embora ainda mais saborosos. Juntamente com Catalina, dediquei-me a preparar as compotas e sobremesas predilectas de Pedro. Pela primeira vez em muitos anos, preocupei-me com o meu aspecto, chegando mesmo a costurar camisas primorosas e saias para o receber como uma noiva. Tinha mais ou menos quarenta anos, mas ainda me sentia jovem e atraente, talvez porque o meu corpo não tinha mudado, como acontece às mulheres sem filhos, e porque me via reflectida nos olhos tímidos de Rodrigo de Quiroga, embora temesse que Pedro reparasse nas finas rugas à volta dos olhos, nas veias das pernas e nas mãos calejadas pelo trabalho. Decidi abster-me de censurá-lo: o que está feito, feito está; queria reconciliar-me com ele, voltar aos tempos em que fôramos amantes dignos das lendas. Tínhamos uma longa história juntos, dez anos de luta e paixão, que não podiam deitar-se fora. Tirei Rodrigo de Quiroga da cabeça, uma fantasia inútil e perigosa, e fui visitar Cecilia para averiguar os seus segredos de beleza, que tanto falatório provocavam em Santiago, porque esta mulher era uma verdadeira maravilha, já que, ao contrário do resto do mundo, parecia rejuvenescer com os anos. A casa de Juan e Cecilia era muito mais pequena e modesta do que a nossa, mas estava decorada de forma magnífica com móveis e adornos peruanos, incluindo alguns vindos do antigo palácio de Atahualpa. O chão estava coberto com várias camadas de tapetes de lã de lama, de cores diversas e motivos incas, e quando os pisávamos, os pés pareciam afundar-se no solo. O interior da casa cheirava a canela e chocolate, que ela conseguia obter, enquanto os demais se conformavam com mate e ervas locais. Durante a sua infância no palácio de Atahualpa, habituou-se de tal forma àquela bebida, que nos tempos de grande provação, quando todos padecíamos de fome, ela não chorava por um pedaço de pão, mas sim pelo desejo de beber chocolate. Antes de os Espanhóis chegarem ao Novo Mundo, o chocolate estava reservado aos membros da realeza, aos sacerdotes e aos militares das classes superiores, mas nós adoptámo-lo rapidamente. Sentámo-nos em almofadões e as suas criadas serviram-nos aquela perfumada bebida em chávenas de prata lavrada por artífices qutchuas. Cecilia, que em público se vestia como uma espanhola, dentro de casa usava as roupas da corte do Inca, bem mais cómodas: saia direita até aos tornozelos e túnica bordada, presa na cintura com uma faixa tecida de cores brilhantes. Andava descalça e não pude evitar comparar os seus pés perfeitos de princesa com os meus de camponesa tosca. Usava o cabelo solto e o seu único adorno eram uns pesados brincos de ouro, herança da sua família, trazidos do Chile pelos mesmos caminhos misteriosos pelos quais tinham vindo os móveis.
- Se Pedro repara nas tuas rugas é porque já não te quer e nada do que faças o vai fazer mudar de sentimentos - avisou-me, quando lhe contei das minhas inseguranças.
Não sei se as suas palavras foram proféticas ou se ela, que conhecia até os segredos mais bem guardados, já sabia aquilo que eu ignorava. Para me agradar, partilhou os seus cremes, loções e perfumes comigo, produtos que apliquei durante vários dias, enquanto esperava impacientemente a chegada do meu amante. No entanto, passou-se uma semana, e depois outra, e mais uma ainda, sem que Valdivia aparecesse em Santiago. Estava instalado no barco ancorado frente à enseada de Concón e governava por meio de mensageiros, mas nenhuma das suas mensagens era dirigida a mim. Não conseguia entender o que se passava e debatia-me perante a incerteza, a ira e a esperança, aterrorizada com a ideia de que talvez tivesse deixado de me amar e, como tal, totalmente dependente dos mais pequenos sinais positivos. Pedi a Catalina que me lesse a sina mas, pela primeira vez, esta não conseguiu descobrir nada nas conchas, ou talvez não me quisesse dizer o que vira. Os dias e as semanas passavam sem notícias de Pedro; deixei de comer e quase não dormia. Durante o dia, trabalhava até não poder mais e durante as noites vagueava pelos salões e galerias da casa como se fosse um touro bravo, fazendo faíscas no solo com a minha sapateada impaciente. Não chorava, porque na realidade não sentia tristeza, mas fúria, e não rezava, porque me pareceu que Nossa Senhora do Socorro não entenderia o meu problema. Mais de um milhar de vezes, senti-me tentada a visitar Pedro no barco, para ver de uma vez por todas o que pretendia - eram só dois dias a cavalo -, mas não me atrevi a tal, porque o instinto me advertiu que, naquelas circunstâncias, não o devia desafiar. Suponho que pressenti a minha desgraça, mas nunca a verbalizei, por orgulho. Não quis que ninguém me visse humilhada e ainda menos Rodrigo de Quiroga, que por sorte não me fez perguntas.
Finalmente, numa tarde de muito calor, apresentou-se em minha casa o clérigo Gonzalez de Marmolejo com um ar extenuado; tinha ido e voltado de Valparaiso em cinco dias e tinha o rabo dorido da cavalgada. Recebi-o com uma garrafa do meu melhor vinho, ansiosa, porque sabia que trazia notícias. Pedro já vinha a caminho? Tinha mandado chamar-me? Marmolejo não me deixou continuar a fazer perguntas, entregou-me uma carta lacrada e, cabisbaixo, foi para debaixo da buganvília do passadiço beber o seu vinho, enquanto eu a lia. Em poucas palavras e muito precisas, Pedro comunicava-me a decisão de La Gasca, reiterava a admiração e respeito que tinha por mim, sem, no entanto, mencionar o amor, e pedia-me que escutasse atentamente o que dizia Gonzalez de Marmolejo. O herói das campanhas da Flandres e Itália, das revoltas do Peru e da conquista do Chile, o militar mais valente e famoso do Novo Mundo, não se atrevia a enfrentar-me e, por isso, estava escondido num barco há dois meses. O que lhe acontecera? É-me impossível imaginar as razões que teve para fugir de mim. Talvez eu me tivesse transformado numa bruxa dominante, numa «mulher-macho»; talvez tenha depositado demasiada confiança na firmeza do nosso amor, já que nunca me questionei se Pedro me amava como eu o amava a ele, assumindo simplesmente que isso seria uma verdade inquestionável. Não, decidi, por fim. A culpa não era minha. Não tinha sido eu que tinha mudado, mas sim ele. Ao sentir que envelhecia, assustou-se e quis voltar a ser o militar heróico e o amante jovial que fora anos antes. Eu já o conhecia bem de mais, e de facto, a meu lado, ele já não se podia reinventar nem recomeçar tudo de novo. Perante mim, ser-lhe-ia impossível ocultar as suas debilidades ou a sua idade, e, como não me conseguia enganar, deixou-me.
- Lede isto, por favor, Padre, e dizei-me o que significa - disse, estendendo a carta ao clérigo.
- Eu conheço o seu conteúdo, filha. O Governador concedeu-me a honra de confiar em mim e pedir-me conselhos.
- Então, esta maldade é obra vossa?
- Não, dona Inés. São ordens de La Gasca, autoridade máxima do Rei e da Igreja nesta parte do mundo. Tenho aqui os papéis, podes vê-los tu mesma. O teu adultério com Pedro é motivo de escândalo.
- Agora que já não precisam de mim, o meu amor por Pedro é um escândalo, mas quando encontrei água no deserto, curei doentes, enterrei mortos e salvei Santiago dos índios, era uma santa.
- Eu sei o que sentes, minha filha...
- Não, Padre, não fazeis ideia de como me sinto. É de uma ironia satânica que só a concubina seja culpabilizada, sendo ela livre e ele casado. Não me surpreende a baixeza de La Gasca, frade, por muito vil que seja, mas sim a cobardia de Pedro.
- Ele não teve alternativa, Inés.
- Para um homem bem-nascido, há sempre alternativa, quando se trata de defender a honra. Aviso-vos, Padre, de que não me vou embora do Chile, porque fui eu que o conquistei e fundei.
- Cuidado com a soberba, Inés! Presumo que não queiras que a Inquisição venha resolver este assunto à sua maneira.
- Ameaçais-me? - perguntei-lhe, com o estremecimento que o nome da Inquisição sempre provocou em mim.
- Longe de mim ameaçar-te, filha. O Governador encarregou-me de te propor uma solução para que possas ficar no Chile.
- Qual?
- Podias casar-te... - lá conseguiu dizer o religioso, pigarreando e contorcendo-se na cadeira. - Ê a única forma de permaneceres no Chile. Não faltarão homens desejosos de desposar uma mulher com os teus méritos e um dote como o teu. Registando os teus bens no nome do teu marido, não tos poderão tirar.
Durante um bom pedaço de tempo, nem consegui falar. Custava-me a crer que me estivessem a apresentar aquela solução tão rebuscada, a última de que me tinha lembrado.
- O Governador quer ajudar-te, mesmo que, para isso, tenha de abdicar de ti. Não vês que é um acto desinteressado, uma prova de amor e gratidão? - acrescentou o clérigo.
Abanava-se, nervoso, afugentando as moscas do Verão, enquanto eu dava grandes passos pela galeria, procurando acalmar-me. Aquela ideia não era fruto de uma inspiração súbita, pois já tinha sido sugerida por Pedro de Valdivia a La Gasca no Peru e por este aprovada, ou seja, decidiram a minha vida nas minhas costas. A traição de Pedro pareceu-me gravíssima e uma onda de ódio varreu-me dos pés à cabeça, como se fosse água suja, deixando-me na boca um sabor amargo. Naquele momento, desejava matar o frade com as minhas próprias mãos e tive de fazer um esforço enorme para perceber que ele era somente o mensageiro; quem merecia a minha vingança era Pedro e não aquele pobre ancião que suava de medo por debaixo da sotaina. Subitamente, senti uma pontada no peito, que me cortou a respiração e me fez cambalear. O coração disparou num tal galope que nunca antes tinha sentido. O sangue subiu-me à cara, as pernas fraquejaram e fiquei às escuras. Consegui aproximar-me de uma cadeira; caso contrário, teria caído para o chão. O desmaio durou apenas uns breves instantes, depressa recuperei os sentidos e dei por mim com a cabeça apoiada nos joelhos. Esperei naquela posição até que as batidas do meu coração se acalmassem e conseguisse retomar o ritmo da respiração. Imputei aquele breve desmaio à ira e ao calor, não suspeitando sequer que o meu coração se tinha despedaçado e que teria de viver mais trinta anos com aquela ferida.
- Imagino que Pedro, que tanto me quer ajudar, também se deu ao trabalho de escolher um marido para mim, verdade? - perguntei a Marmolejo, quando consegui falar.
- O Governador tem um par de nomes em mente...
- Pois dizei a Pedro que aceito o trato, mas que serei eu mesma a escolher o meu futuro marido, porque pretendo casar-me por amor e ser muito feliz.
- Inés, volto a avisar-te de que a soberba é um pecado mortal.
- Dizei-me uma coisa, Padre. É verdade que Pedro trouxe duas amantes com ele?
Gonzalez de Marmolejo não respondeu, confirmando com o seu silêncio os boatos que me tinham chegado aos ouvidos. Pedro tinha trocado uma mulher de quarenta por duas de vinte. Eram duas espanholas, Maria de Encio, e a sua misteriosa criada, Juana Jimenez, que também partilhava a cama de Pedro e, segundo diziam, controlava os dois com as suas artes de feitiçaria. Feitiçaria? Já tinham dito o mesmo de mim. Por vezes, basta limpar o suor da testa de um homem cansado, para que ele venha logo comer da mão que o acaricia. Não é necessário ser-se bruxa para conseguir isso. Ser leal e alegre, saber ouvir - ou, pelo menos, fingir que se ouve -, cozinhar bem, vigiá-lo sem que dê por isso para evitar que faça asneiras, ter prazer e dar-lhe prazer em cada encontro e outras tantas coisas muito simples são a verdadeira receita. Podia resumi-lo em duas frases: mão de ferro, luva de seda. Lembro-me de que, quando Pedro me falou da camisa de dormir com o buraco que Marina, a sua esposa, usava, fiz a mim mesma a promessa secreta de que nunca ocultaria o meu corpo ao homem que partilhasse a minha cama. Mantive essa decisão e fi-lo com total ausência de vergonha até ao último dia em que estive com Rodrigo, porque ele nunca notou que as carnes já estavam descaídas, tal como acontece com qualquer mulher de idade. Os homens que me calharam em sorte foram homens simples: eu agia como se fosse bela e eles acreditaram. Agora, estou sozinha e não tenho ninguém para fazer feliz no amor, mas posso afiançar que, enquanto esteve comigo, Pedro foi feliz, tal como o próprio Rodrigo, mesmo quando a sua doença já não lhe permitia tomar a iniciativa. Desculpa, Isabel, sei que vais ler estas páginas um pouco emocionada, mas é conveniente que aprendas. Não faças caso dos padres, que disto não sabem nada.
Santiago era já uma cidade de quinhentos habitantes, mas os mexericos circulavam tão depressa como numa aldeia; por isso, decidi não perder tempo com paninhos quentes. O coração continuou a saltar-me do peito durante vários dias, depois da conversa que tive com o clérigo. Catalina preparou-me água de cochayuyo, umas algas marítimas secas, que colocava a demolhar durante a noite. Há trinta anos que bebo
este líquido viscoso todos os dias ao despertar, já me habituei ao seu sabor repugnante, e estou viva graças a ele. Naquele domingo, vesti a minha melhor roupa, peguei-te pela mão, Isabel, porque já vivias comigo há alguns meses, e cruzei a praça em direcção à casa de Rodrigo de Quiroga, precisamente na hora em que todos saíam da missa, para que toda a gente me visse. Catalina ia connosco, tapada com o seu manto negro e murmurando encantamentos em quíchua, mais eficientes para estes casos do que as rezas cristãs, e Baltasar acompanhava-nos no seu trote de cão velho. Um índio abriu-me a porta e conduziu-me à sala, enquanto os meus acompanhantes ficavam no pátio poeirento e cheio de caganitas de galinha. Olhei em volta e percebi que tinha muito trabalho pela frente para converter aquele casebre militar, despido e feio, num local habitável. Imaginei que Rodrigo nem sequer teria uma cama decente e provavelmente dormiria num catre de soldado; e, de facto, por algum motivo te tinhas habituado tão rapidamente às comodidades da minha casa. Seria necessário substituir os móveis toscos de pau e sola, pintar, comprar o material necessário para revestir as paredes e o chão, construir galerias de sombra e sol, plantar árvores e flores, instalar fontes no pátio, trocar a palha do telhado por telhas, enfim, tinha ocupação para vários anos. Gosto de ter projectos. Momentos depois, Rodrigo entrou, surpreendido, porque nunca o tinha visitado em sua casa. Tinha tirado o casaco de domingo e vestia apenas calças e uma camisa branca de mangas largas, aberta no peito. Pareceu-me muito jovem e senti-me tentada a sair a correr pelo sítio por onde tinha entrado. Quantos anos seria aquele homem mais novo do que eu?
- Bom dia, dona Inés. Aconteceu alguma coisa? Como está Isabel?
- Venho propor-vos que se case comigo, don Rodrigo. Que vos parece? - disse-lhe, de um fôlego só, porque a circunstância não se prestava a rodeios.
Devo dizer, e fazendo justiça a Quiroga, que ele encarou a minha proposta com uma ligeireza quase cómica. O seu rosto iluminou-se, levantou os braços para o céu e deu um longo grito de índio, inespe- rado para um homem da sua compostura. Certamente já tinha ouvido os rumores do sucedido no Peru com La Gasca e da estranha solução do Governador, pois todos os capitães comentavam o assunto, sobretudo os solteiros. Talvez suspeitasse que seria o eleito, mas era demasiado modesto para ter certezas. Quis explicar-lhe os termos do acordo, mas não me deixou falar, tomando-me nos seus braços com tanta urgência, que me levantou do chão, e sem mais explicações, tapou-me a boca com a sua. Só então me dei conta de que também eu tinha esperado por aquele momento durante quase um ano. Agarrei-me com ambas as mãos à sua camisa e devolvi-lhe o beijo com uma paixão há muito adormecida ou enganada, uma paixão que tinha reservado para Pedro de Valdivia e que clamava por ser vivida antes que a juventude me fugisse. Senti a certeza do seu desejo, as suas mãos na minha cintura, na nuca, no cabelo, os seus lábios na minha cara e pescoço, o seu cheiro de homem jovem, a sua voz murmurando o meu nome, e senti-me plenamente feliz. Como pude passar, em apenas um minuto, da dor de ter sido abandonada para a felicidade de me sentir amada? Naquele tempo, eu devia ser mesmo muito cabeça-de-vento... Naquele instante, jurei a mim mesma que seria fiel a Rodrigo até ao dia da minha morte, e não só cumpri o juramento à letra, como o amei durante trinta anos, cada dia sempre mais. Foi muito fácil amá-lo. Rodrigo sempre foi um homem admirável, algo em que todos estavam de acordo, mas mesmo os melhores homens costumam ter grandes defeitos que só se manifestam na intimidade. Tal não era o caso daquele nobre fidalgo, soldado, amigo e marido. Longe de tentar fazer com que me esquecesse de Pedro de Valdivia, de quem gostava e respeitava, chegando mesmo a ajudar-me a preservar a sua memória para que o Chile, tão ingrato, o pudesse honrar como ele merece, propôs a si próprio a tarefa de fazer com que eu me apaixonasse por ele, algo que, efectivamente, conseguiu.
Quando, finalmente, conseguimos separar-nos daquele abraço e recuperar a respiração, saí para dar uma ordem a Catalina, enquanto Rodrigo saudava a filha. Meia hora mais tarde, uma fileira de índios
transportava os meus baús, o genuflexório e a estatueta de Nossa Senhora do Socorro para a casa de Rodrigo de Quiroga, enquanto os habitantes de Santiago, que tinham ficado à espera na Praça de Armas depois da missa, aplaudiam. Precisei de duas semanas para preparar a boda, porque não queria casar-me discretamente, mas com pompa e circunstância. Era impossível decorar a casa de Rodrigo em tão pouco tempo, mas concentrámo-nos em transplantar árvores e arbustos para o pátio, preparar arcos de flores e colocar toldos e mesas compridas para o banquete. O padre Gonzalez de Marmolejo casou-nos naquilo que hoje é a catedral, embora, na altura, fosse apenas uma igreja em construção, perante uma numerosa assistência, constituída por brancos, negros, índios e mestiços. Lá conseguimos arranjar um virginal vestido branco de Cecilia, porque não houve tempo para encomendar tecido para um novo. «Casa-te de branco, Inés, porque don Rodrigo merece ser o teu primeiro amor», opinou Cecilia, e com razão. O casamento teve missa cantada e depois oferecemos uma merenda com os pratos da minha especialidade, empanadas, caçarola de aves, bolos de milho, batatas recheadas, feijões com pimento, borrego e cabrito assado, verduras da minha horta, isto para além das várias sobremesas que tinha pensado confeccionar para a chegada de Pedro de Valdivia. O festim foi devidamente regado com os vinhos que tirei, sem qualquer peso na consciência, da adega do Governador, que também era minha. As portas da casa de Rodrigo mantiveram-se abertas durante todo o dia, e quem quis comer e celebrar connosco foi bem-vindo. Entre a multidão, corriam dezenas de crianças, mestiças e índias, ao mesmo tempo que, sentados em cadeiras dispostas em semicírculo, encontravam-se os anciãos da colónia. Catalina calculou que, nesse dia, terão desfilado trezentas pessoas pela casa, mas nunca foi muito boa a somar, e é provável que tenha sido mais. No dia seguinte, Rodrigo e eu partimos contigo, Isabel, acompanhados por um séquito de yanaconas para passar umas semanas de amor na minha fazenda. Connosco iam também vários
soldados, para nos proteger dos índios chilenos, que tinham por hábito atacar os viajantes incautos. Catalina e as minhas fiéis criadas trazidas de Cuzco ficaram encarregues de preparar o melhor possível a vivenda de Rodrigo, enquanto o resto da criadagem permaneceu no mesmo sítio de sempre. Só então Valdivia se atreveu a desembarcar com as suas duas amantes e regressar para a sua casa em Santiago, que encontrou limpa, arrumada e bem abastecida, sem o mínimo sinal da minha passagem por lá.
NOTA-SE QUE A MINHA LETRA mudou nesta última parte do meu relato. Durante os primeiros meses, escrevi com a minha própria mão, mas agora canso-me muito e prefiro ditar-te; a minha caligrafia parece um monte de garatujes, mas a tua, Isabel, é fina e elegante. Gostas da tinta cor de óxido, uma novidade vinda de Espanha que me custa muito a ler, mas, já que fazes o favor de me ajudar, não posso impor-te o meu tinteiro negro. Avançaríamos mais rapidamente se não me bombardeasses com tantas perguntas, filha. Divirto-me a ouvir-te. Falas no castelhano cantado e corrido do Chile; Rodrigo e eu não conseguimos incutir-te os «j» duros e os «z» castiços. Era assim que falava Gonzalez de Marmolejo, que era sevilhano. Morreu há muito tempo, recordas-te dele? Gostava de ti como se fosses sua neta, o pobre velho. Naquela época, admitia ter setenta e sete anos, embora parecesse tal qual um patriarca bíblico centenário, com a barba branca e a tendência para anunciar o Apocalipse, que lhe surgiu nos últimos dias de vida. Porém, a fixação com o fim do mundo não o impediu de se ocupar dos assuntos materiais, pois tinha uma inspiração divina para fazer dinheiro. Entre os seus esplêndidos negócios estava a criação de cavalos que tinha em sociedade comigo. Experimentámos cruzar raças e obtivemos animais fortes, elegantes e dóceis, os famosos «potros chilenos», que agora são conhecidos em todo o continente, porque são tão nobres como os corcéis árabes e ainda mais resistentes. O bispo faleceu no mesmo ano em que morreu a minha boa Catalina; quanto a ele, padeceu do mal dos pulmões, que nenhuma planta medicinal conseguiu curar, enquanto ela foi atingida por uma telha que caiu do céu com um tremor de terra e lhe acertou na nuca. Foi um golpe tão certeiro que nem chegou a dar-se conta do abalo. Também nessa época morreu Villagra, tão assustado com os seus pecados que se vestia com o hábito de São Francisco. Foi governador do Chile durante algum tempo e será sempre recordado como um dos mais pujantes e arrojados militares, embora ninguém gostasse dele, porque era avarento. A avareza é um defeito que repugna os Espanhóis, sempre tão generosos.
Não há tempo para detalhes, filha, porque se nos demoramos isto pode ficar incompleto e ninguém gosta de ler centenas de páginas e acabar-se a história sem um final claro. Qual é o final desta história? Presumo que seja a minha morte, porque, enquanto ainda conseguir respirar, terei recordações para encher várias páginas, muito havendo ainda para contar numa vida como a minha. Devia ter começado estas memórias há mais tempo, mas estava ocupada; erigir e dar prosperidade a uma cidade dá muito trabalho. Só me propus a escrever quando Rodrigo morreu e a tristeza me tirou a vontade de fazer outras coisas, que antes me pareciam urgentes. Sem ele, passo as noites quase inteiras acordada e a insónia acaba por ser muito conveniente para a escrita. Pergunto-me onde está o meu marido, se por acaso espera por mim em algum sítio, ou se está aqui mesmo, nesta casa, espiando-me nas sombras, cuidando de mim discretamente, como sempre fez em vida. Como será morrer? O que há do outro lado? Será só noite e silêncio? Ocorre-me que morrer é partir como uma flecha na escuridão em direcção ao firmamento, um espaço infinito, onde, um por um, terei de procurar os meus entes queridos. Assusta-me que agora, quando penso tanto na morte, ainda tenha urgência para realizar projectos e satisfazer ambições. Deve ser puro orgulho: deixar fama e memória de mim, como dizia Pedro. Suspeito que nesta vida não vamos a lado nenhum, e muito menos depressa, caminhando sozinhos, dando um passo de cada vez, em direcção à morte. Mas adiante, continuemos a história até que os meus dias se acabem, pois material tenho eu de sobra.
Depois de me casar com Rodrigo, decidi evitar Pedro, pelo menos no início, até que me passasse aquela animosidade que acabou por tomar o lugar do amor que lhe tive durante dez anos. Detestava-o tanto como antes o amara; desejava feri-lo como antes o defendera. Aos meus olhos, os seus defeitos aumentaram, e já não me parecia nobre, mas antes ambicioso e vaidoso; antes era robusto, astuto e severo, agora era gordo, falso e cruel. Só desabafei com Catalina, porque aquela raiva contra o meu antigo amante me envergonhava sobremaneira. Consegui escondê-la de Rodrigo, cuja rectidão o impedia de entender a carga feroz dos meus maus sentimentos. Como ele era incapaz de qualquer baixaria, não a imaginava nos outros. Se achou estranho que eu evitasse aparecer em Santiago quando Pedro estava na cidade, a verdade é que nada me disse. Dediquei-me a melhorar as nossas casas de campo e prolonguei as minhas estadas tanto quanto pude, com o pretexto das sementeiras, do cultivo de rosas, da criação de cavalos e mulas, ainda que, no fundo, me aborrecesse e tivesse muitas saudades do meu trabalho no hospital. Rodrigo viajava entre a cidade e o campo todas as semanas, dando cabo dos rins de tanto galopar, só para ver a filha e a mulher. O ar puro, o trabalho físico, a tua companhia, Isabel, e uma ninhada de cachorrinhos, filhos do velho Baltasar, ajudaram-me. Nessa época, rezava muito, levava a Nossa Senhora do Socorro para o jardim, instalávamo-nos debaixo de uma árvore e eu contava-lhe as minhas angústias. Ela fez-me ver que o coração é como uma caixa, se estiver ocupado com porcarias, falta espaço para as outras coisas. Não podia amar Rodrigo e a sua filha se tivesse o coração cheio de amargura, avisou-me a Virgem. Segundo Catalina, o rancor torna a pele amarela e produz mau odor, por isso dava-me tisanas de limpeza para beber. Com rezas e tisanas, curei-me do rancor contra Pedro no prazo de dois meses. Certa noite, sonhei que me cresciam umas garras de condor, que me debruçava sobre ele e lhe arrancava os olhos. Foi um sonho extraordinário, muito real e, quando acordei, estava vingada. Ao amanhecer, saí da cama e verifiquei que já não sentia aquela dor nos ombros e no pescoço que me atormentava há semanas; o peso inútil do ódio tinha desaparecido. Escutei os ruídos da alvorada: os galos, os cães, a vassoura de ramos do jardineiro a varrer o terraço, as vozes das criadas. Era uma manhã morna e cristalina. Saí para o pátio e a brisa acariciou-me a pele por debaixo da camisa de dormir. Pensei em Rodrigo, e a necessidade que tinha de fazer amor com ele fez-me estremecer, tal como acontecia na minha juventude, quando escapava dos pomares de Plasencia para me deitar com Juan de Malaga. Bocejei profundamente, espreguicei-me como um gato, de cara virada para o sol e, logo depois, mandei preparar os cavalos para regressar a Santiago nesse mesmo dia, sem mais bagagem além da roupa e das armas. Rodrigo não nos deixava sair de casa sem protecção, por temor aos bandos de índios que rondavam o vale, mas, mesmo assim, partimos. Tivemos sorte e, sem percalços, conseguimos chegar a Santiago ao anoitecer. Os sentinelas da cidade deram o sinal de alarme quando, das suas atalaias, viram o pó que levantavam os cavalos. Rodrigo foi logo receber-me assustado, temendo uma desgraça, mas saltei-lhe para o pescoço, beijei-o na boca e levei-o pela mão até à cama. O nosso amor começou verdadeiramente nessa noite, o que fizemos antes foi apenas um treino. Nos meses seguintes, aprendemos a conhecer-nos e a proporcionar prazer um ao outro. O meu amor por ele era diferente do desejo que senti por Juan de Malaga e da paixão que nutri por Pedro de Valdivia, era um sentimento maduro e alegre, sem conflitos, que com o passar do tempo se tornou mais intenso, até que não pude mais viver sem ele. As minhas viagens solitárias ao campo terminaram ali, e só nos separávamos quando a urgência da guerra reclamava a presença de Rodrigo. Aquele homem, tão sério perante o mundo, era meigo e brincalhão em privado; e mimava-nos tanto, como se fôssemos as suas duas rainhas, lembras-te? E assim se cumpriu a profecia de Catalina, a tal que dizia que eu seria rainha. Nos trinta anos em que vivemos juntos, Rodrigo nunca perdeu a boa disposição quando estava em casa, por muito graves que fossem as pressões externas. Partilhava comigo os assuntos da guerra, do governo e da política, os seus medos e pesares, sem que nada afectasse a nossa relação. Tinha confiança no meu julgamento, pedia a minha opinião, ouvia os meus conselhos. Com ele, não era necessário andar com rodeios para evitar que se ofendesse, como acontecia com Valdivia e, em geral, com quase todos os homens, que são normalmente muito susceptíveis em relação à sua autoridade.
Penso que não queres que me refira a este assunto, mas não o posso omitir, porque é um aspecto do teu pai que deves conhecer. Antes de estar comigo, Rodrigo achava que a juventude e o vigor físico eram suficientes na hora de fazer amor, erro esse muito comum. Fiquei surpreendida quando fomos para a cama pela primeira vez, pois Rodrigo comportava-se como se fosse um rapaz de quinze anos. Atribuí-o ao facto de ter esperado por mim durante muito tempo, amando-me em silêncio e sem esperanças durante nove anos, como me confessou, só que a sua falta de jeito não deu sinais de diminuir nas noites seguintes. Pelos vistos, Eulalia, a tua mãe, que o amava zelosamente, nada lhe ensinou; a tarefa de o educar recaiu sobre mim, e uma vez livre do rancor por Valdivia, assumi-a com muito gosto, como aliás podes imaginar. Já o tinha feito com Pedro de Valdivia, anos antes, quando nos conhecemos em Cuzco. A minha experiência em matéria de capitães espanhóis é limitada, mas posso dizer-te que os que me calharam eram muito pouco sabidos nas artes do amor, ainda que tivessem grande vontade de aprender. Não te rias, filha, que é verdade. Pelo sim pelo não, aproveito para te contar estas coisas. Não sei como são as tuas relações íntimas com o teu marido, mas se tens queixas, aconselho-te que fales comigo sobre o tema, porque depois da minha morte não terás com quem o fazer. Os homens, como os cães e os cavalos, têm de ser domesticados, mas poucas são as mulheres capazes de o fazer, porque elas próprias pouco sabem, nem tiveram um professor como Juan de Malaga. Além disso, a maior parte tem grandes escrúpulos, bastando, para tal, lembrares-te da camisa de dormir com o buraco de Marina Ortiz de Gaete. E assim se multiplica a ignorância, que consegue acabar com os amores mais bem-intencionados.
Mal tinha regressado a Santiago e começado a cultivar o prazer e o bendito amor com Rodrigo, quando, um dia, a cidade acordou com a corneta de alarme de um dos sentinelas. Tinham encontrado uma cabeça de cavalo espetada no mesmo pau onde, ao longo dos anos, tantas cabeças humanas tinham sido expostas. Ao examiná-la mais de perto, verifícou-se que era a cabeça de Sultán, o cavalo favorito do Governador. De repente, um grito de terror ficou sufocado no peito de todos. Entretanto, tinha sido instituída uma hora de recolher em Santiago para evitar roubos; nenhum índio, negro ou mestiço podia circular de noite, sob pena de ser castigado com cem chicotadas, em tronco nu, no tronco da praça, a mesma pena que se aplicava se fizessem festas sem autorização, se se embebedassem ou jogassem a dinheiro, vícios reservados aos seus amos. Assim sendo, o toque a recolher ilibava toda a população mestiça e indígena da cidade, mas ninguém imaginava que um espanhol fosse culpado de semelhante aberração. Valdivia ordenou a Juan Gomez que torturasse quem fosse necessário para descobrir o autor de semelhante ultraje.
Ainda que me tivesse curado do ódio por Pedro de Valdivia, preferia vê-lo o menos possível. De qualquer maneira, encontrávamo-nos com frequência, já que o centro de Santiago não é grande e vivíamos perto um do outro, embora não participássemos nos mesmos eventos sociais. Os amigos tinham o cuidado de não nos convidar para a mesma ocasião. Quando nos víamos na rua ou na igreja, cumprimentávamo-nos com um discreto aceno de cabeça, nada mais. No entanto, a sua relação com Rodrigo não mudou; Pedro continuou a depositar nele a sua confiança, ao que Rodrigo retribuía com lealdade e afecto. Claro que eu era o alvo de comentários maliciosos.
- Por que será esta gente tão mesquinha e coscuvilheira, Inés? perguntava-me Cecilia.
- Incomoda-os que, em vez de ter assumido o papel de amante abandonada, me tenha transformado em esposa feliz. Regozijam ao ver as mulheres fortes, como eu e tu, humilhadas. Não nos perdoam que triunfemos, quando outros fracassam - expliquei-lhe.
- Não mereço que me compares contigo, Inés. Não tenho a tua força - riu-se Cecilia.
- A força é uma virtude muito apreciada num varão, mas no nosso sexo é considerada um defeito. As mulheres fortes põem em risco o
desequilíbrio do mundo, que só favorece os homens; por isso, todos se empenham tanto em vexá-las e destruí-las. Mas eu sou como as baratas: matas uma e há sempre mais umas quantas a sair pelos cantos da casa - disse-lhe.
No que a Maria de Encio dizia respeito, lembro-me que nenhum dos cidadãos mais proeminentes a recebia, apesar de ser espanhola e a amante do Governador. Limitavam-se a tratá-la como uma governanta. Quanto à outra, Juana Jimenez, era alvo das piadas do povo, segundo as quais constava, nas suas costas, que a sua senhora a tinha treinado para fazer na cama as piruetas que ela não tinha coragem para fazer. Se isso é verdade, questiono-me em que vícios terão enredado Pedro, que era um homem de sensualidade saudável e directa, que nunca se interessou pelas curiosidades que recheavam os livritos franceses de Francisco de Aguirre, excepto na época do pobre soldado Escobar, quando quis aturdir/expiar a sua culpa rebaixando-me à condição de rameira. E, já agora, devo dizer que Escobar não chegou ao Peru, mas também não morreu de sede no deserto, como supúnhamos. Muitos anos depois, soube que o jovem yanacona que o acompanhava o conduziu por caminhos secretos até à aldeia dos seus pais, escondida entre os picos da serra, onde ambos vivem até hoje. Antes de partir para o desterro, Escobar prometeu a Gonzalez de Marmolejo que se chegasse com vida ao Peru abraçaria o sacerdócio, porque não havia dúvida de que Deus o tinha escolhido, já que o salvara primeiro da forca e depois do deserto. Não cumpriu a promessa e, pelo contrário, teve várias mulheres quíchuas e filhos mestiços, propagando assim a santa fé à sua própria maneira. Voltando às amantes que Valdivia trouxe de Cuzco, soube por Catalina que lhe preparavam infusões de yerba dei clavo. Talvez Pedro tivesse medo de perder a virilidade, que para ele era tão importante quanto a sua coragem para combater, por isso bebia poções e dispunha de duas mulheres para o estimular. O seu vigor ainda não tinha diminuído, não estava velho, mas já lhe falhava a saúde e doíam-lhe as feridas antigas. O destino dessas duas mulheres foi precário e aventureiro. Depois da morte de Valdivia, Juana Jimenez desapareceu e consta que os mapuche a raptaram numa emboscada no Sul. Maria de Encio tornou-se numa pessoa de má índole e dedicou-se a torturar as suas índias; diz-se que os ossos das desgraçadas estão enterrados na casa, que agora pertence ao Cabido da cidade, e que à noite se ouvem os seus gemidos, mas essa é outra história que não vou contar.
Mantive-me longe de Maria e Juana. Longe de mim dirigir-lhes a palavra, só que Pedro caiu do cavalo e partiu uma perna, e elas chamaram-me, porque ninguém sabia mais desses assuntos do que eu. Entrei pela primeira vez na casa que fora minha, erguida com as minhas próprias mãos, e não a reconheci, apesar de os mesmos móveis estarem precisamente nos mesmos sítios. Juana, uma galega de baixa estatura, mas bem proporcionada e de feições agradáveis, saudou-me com uma reverência de criada e conduziu-me até ao quarto que antes partilhara com Pedro. Lá estava Maria a choramingar, enquanto colocava panos molhados na testa do ferido, que jazia mais morto que vivo. De pronto, atirou-se a mim para me beijar as mãos, soluçando de agradecimento e susto - se Pedro morresse, a sua sorte seria bastante dúbia -, mas afastei-a com delicadeza, para não a ofender, e aproximei-me da cama. Ao afastar o lençol e ver a perna partida em dois locais, pensei que o mais indicado seria amputá-la por cima do joelho, antes que gangrenasse, mas confesso que a dita operação sempre me afligiu e achei-me incapaz de a praticar naquele corpo que tanto tinha amado.
Entreguei-me à Virgem e dispus-me a remediar o dano o melhor que pudesse, ajudada pelo veterinário e pelo ferreiro, já que o médico se tinha revelado um bêbado inútil. Era uma daquelas desgraçadas fracturas que são muito difíceis de tratar. Tentei colocar cada osso no seu sítio, tacteando mais ou menos às cegas, e só por milagre ficou mais ou menos bem. Catalina adormecia o paciente com os seus pós mágicos dissolvidos em licor, mas mesmo a dormir Pedro gritava; eram necessários vários homens para o segurar durante cada procedimento curativo. Fiz o trabalho sem malícia nem rancor, procurando causar-lhe o menor sofrimento possível, ainda que isso fosse bastante difícil. Para dizer a verdade, nem me lembrei da sua ingratidão. Tantas foram as vezes em que Pedro sentiu que morria de dores, que ditou o seu testamento a Gonzalez de Marmolejo, selou-o e mandou-o guardar fechado por três cadeados no escritório do Cabido. Quando o abriram, depois da sua morte, estipulava que Rodrigo de Quiroga devia substituí-lo como governador. Reconheço que as duas amantes espanholas trataram de Pedro com esmero e, em parte, foi devido aos cuidados das duas que pôde voltar a caminhar, ainda que ficasse a coxear para o resto da vida.
Não foi necessário que Juan Gomez torturasse ninguém para se descobrir quem tinha sido o culpado do crime contra Sultán, porque bastou meia hora para ficarmos a saber que tinha sido Felipe. De princípio, não pude acreditar, porque o jovem mapuche adorava o animal. Numa ocasião em que Sultán tinha sido ferido pelos índios em Marga-Marga, Felipe velou-o durante semanas, dormia com ele, dava-lhe de comer à mão, limpava-o e fazia-lhe os curativos, até que o cavalo recuperou. Era tanto o afecto existente entre os dois que Pedro tinha ciúmes, mas ninguém cuidava de Sultán melhor do que Felipe; por isso, preferia não interferir. A habilidade do jovem mapuche com os cavalos era lendária e Valdivia tinha em mente nomeá-lo para ser responsável pelas éguas, ofício muito respeitado na colónia, onde a criação de cavalos era fundamental. Felipe matou o seu nobre amigo cortando-lhe a veia grossa do pescoço, para que não sofresse, e depois decapitou-o com um machado. Desrespeitando o recolher, e aproveitando a escuridão, colocou a cabeça na praça e fugiu da cidade. Deixou a sua roupa e os escassos bens que possuía numa trouxa na cavalariça ensanguentada. Partiu nu, com o mesmo amuleto ao pescoço com que tinha chegado anos antes. Imagino-o a correr descalço sobre a terra macia, inspirando a plenos pulmões as fragrâncias secretas do bosque, louro quillay, alecrim, atravessando charcos e ribeiros cristalinos, cruzando a nado as águas geladas dos rios, com o céu infinito sobre a sua cabeça, livre, por fim. Por que cometeu aquele acto bárbaro com o animal que tanto amava? A explicação sibilina de Catalina, que nunca gostou dele, foi certeira: «Não vês que o mapuche está indo com os seus, pois, mamitay?»
Imagino que Pedro de Valdivia terá explodido de ira perante o sucedido, jurando dar o castigo mais horrível ao seu moço de estrebaria favorito, mas foi obrigado a adiar a vingança, porque tinha assuntos mais sérios entre mãos. Acabava de conseguir estabelecer uma aliança com o seu principal inimigo, o cacique Michimalonko, e estava a organizar uma grande campanha ao sul do país para subjugar os mapuche. O velho cacique, por quem os anos não passavam, compreendera finalmente a conveniência de se aliar com os huincas, já que tinha sido incapaz de os derrotar. Os massacres de Aguirre deixaram-no praticamente desprovido de homens para lutar; no Norte, restavam apenas as mulheres e crianças, metade das quais eram mestiças. Entre morrer e lutar contra os mapuche do Sul, com quem tinha tido problemas nos últimos tempos, uma vez que não conseguira cumprir a promessa de destruir os espanhóis, Michimalonko optou pela segunda hipótese, ou seja, pelo menos, assim, salvava a sua dignidade e não tinha de forçar os seus guerreiros a lavrar a terra e a extrair ouro para os huincas.
No entanto, eu não conseguia tirar Felipe da cabeça. A morte de Sultán pareceu-me um acto simbólico, dado que, com aqueles golpes de machado estava, na verdade, a assassinar o Governador, de forma irremediável e sem qualquer hipótese de retorno, rompendo para sempre os laços que criara connosco e, ao mesmo tempo, levando com ele as informações que tinha recolhido durante os anos da sua inteligente infiltração. Recordei, então, o primeiro ataque indígena à cidade recém-criada de Santiago, na Primavera de 1541, e julguei entender, por fim, o papel chave de Felipe nas nossas vidas. Naquela ocasião, os índios cobriram-se de lençóis negros para avançar na escuridão sem serem vistos pelos vigias, da mesma forma que as tropas do Marquês de Pescara tinham feito na Europa com lençóis brancos sobre a neve. Felipe ouviu Pedro contar essa história por diversas ocasiões e transmitiu a ideia aos toquis. As suas frequentes ausências não eram casuais e correspondiam a uma feroz determinação, quase impossível de imaginar no menino que era então. Podia sair da cidade para caçar, sem ser incomodado pelas hostes sanguinárias que nos mantinham sitiados, porque era um deles. As suas excursões de caça serviam de pretexto para se reunir com os seus e contar-lhes tudo o que sabia sobre nós.
Foi ele que chegou com a notícia de que a gente de Michimalonko estava concentrada perto de Santiago, foi ele que ajudou a preparar a emboscada para afastar Valdivia e metade dos nossos homens, foi ele que avisou os índios do momento indicado para nos atacarem. Onde estava aquele pirralho durante o ataque a Santiago? Na confusão que foi aquele dia terrível, até nos esquecemos dele. Escondeu-se ou ajudou os nossos inimigos, e talvez mesmo tenha contribuído para atear os incêndios; não sei. Durante anos, Felipe dedicou-se a estudar os cavalos, a domá-los e a criá-los; ouvia com atenção os relatos dos soldados e aprendia tudo sobre estratégia militar; sabia usar as nossas armas, desde a espada ao mosquete e ao canhão; conhecia as nossas forças e fraquezas. Achávamos que admirava Valdivia, o seu Taita, que servia melhor do que ninguém, mas na realidade espiava-o, enquanto, dentro de si, cultivava o seu rancor contra os invasores da sua terra. Algum tempo depois, soubemos que era filho de um toqui, o último de uma longa família de chefes, tão orgulhoso da sua linhagem de guerreiros como Valdivia. Imagino o terrível ódio que inundava e obscurecia o coração de Felipe. E agora este mapuche de dezoito anos, forte e esbelto como um junco, corria nu e veloz em direcção aos bosques húmidos do Sul, onde as tribos o esperavam.
O seu verdadeiro nome era Lautaro e chegou a ser o toqui mais famoso da Araucanía, um demónio temido pelos Espanhóis, herói para os mapuche, príncipe da epopeia guerreira. Sob o seu comando, as hostes, outrora desorganizadas de índios, organizaram-se, como os melhores exércitos da Europa, em esquadrões, infantaria e cavalaria. Para derrubar os cavalos sem os matar - eram tão valiosos para eles, como para nós -, utilizou as boleadeiras, duas pedras atadas aos extremos de uma corda, que se enrolavam às patas e faziam tombar o animal, ou ao pescoço do cavaleiro para o obrigar a desmontar. Mandou os seus homens roubar cavalos e dedicou-se a criá-los e a domesticá-los, tal como fez com os cães. Treinou os índios para montarem como os melhores cavaleiros do mundo, tal como ele próprio, de tal maneira que a cavalaria mapuche chegou a ser invencível. Trocou os antigos garrotes, pesados e de difícil manuseamento, por mocas mais pequenas e muito mais eficazes. Em cada batalha travada, apoderava-se das armas do adversário para as usar e copiar. Estabeleceu um sistema de comunicação tão eficiente, que até o último guerreiro conseguia receber as ordens do seu toqui num instante, e impôs uma disciplina férrea, só comparável à disciplina dos célebres terços violentos espanhóis. Converteu as mulheres em guerreiras ferozes e transformou as crianças em transportadoras de víveres, apetrechos e mensagens. Conhecia o terreno e preferia o bosque para ocultar os seus exércitos, mas, quando foi necessário, levantou pukaras em sítios inacessíveis, onde preparava a sua gente, enquanto as espias o informavam de cada passo do inimigo, para que se pudesse adiantar. Contudo, não conseguiu mudar o mau hábito de os seus guerreiros se embriagarem de chicha e muday até não poderem mais depois de cada vitória. Se o tivesse conseguido, os mapuche teriam exterminado o nosso exército no Sul. Trinta anos depois, o espírito de Lautaro ainda comanda as suas hostes e o seu nome será falado durante muitos séculos, impossível de vencer.
Só descobrimos a epopeia de Lautaro um pouco mais tarde, quando Pedro de Valdivia partiu para a Aracaunía para fundar novas cidades, sempre perseguindo o sonho de estender a conquista até ao estreito de Magalhães. «Se Francisco Pizarro conquistou o Peru com cento e poucos soldados, que se bateram contra trinta e cinco mil homens do exército de Atahualpa, será uma vergonha que uns selvagens chilenos nos consigam deter», anunciou, perante a reunião do Cabido. Com ele tinha duzentos soldados bem apetrechados, quatro capitães, entre os quais o valente Jerónimo de Alderete, centenas àeyanaconas carregando as bagagens e, além disso, Michimalonko acompanhava-o no corcel que lhe fora oferecido, comandando as suas indisciplinadas, mas corajosas tropas. Os cavaleiros iam de armadura completa; os infantes de couraça e escudo, e até os yanaconas levavam elmos para proteger a cabeça das formidáveis bordoadas dos mapuche. O único elemento que destoava da soberba demonstração militar era Valdivia, que se fazia transportar num palanquim, como uma cortesã, porque a dor da perna fracturada, que ainda não estava bem curada, o impedia de montar. Antes de partir, enviou o temível Francisco de Aguirre para reconstruir La Serena e fundar outras cidades no Norte, quase despovoado devido às campanhas de extermínio que o próprio Aguirre tinha levado a cabo e à retirada em massa das gentes de Michimalonko. Rodrigo de Quiroga, o único capitão obedecido e respeitado por unanimidade, foi nomeado seu representante em Santiago. Assim, por causa das voltas inesperadas que a vida dá, voltei a ser a Governadora, cargo que sempre exerci por direito próprio, mesmo que esse título nem sempre tenha sido legitimamente meu.
Lautaro foge de Santiago na noite mais escura do Verão, sem ser visto pelas sentinelas e sem alertar os cães, que o conhecem. Corre pela ribeira do Mapocho, escondido pela vegetação de canas e fetos. Não usa a ponte de cordas dos huincas, atira-se às águas negras e nada, com um grito de felicidade sufocado no peito. A água fria lava-o por dentro e por fora, deixando-o limpo do odor dos huincas. Com grandes braçadas, cruza o rio e emerge na outra margem recém-nascido. Inche Lautaro Sou Lautaro!, grita. Espera, imóvel, na orla do rio, enquanto o ar morno faz evaporar a humidade do seu corpo. Ouve o grasnar de um chon-chón, espírito com corpo de pássaro e rosto de homem, e responde com um apelo similar, sentindo-se então muito próximo da presença da sua guia, Guacolda. Tem de fazer um esforço para a ver, ainda que os seus olhos estejam habituados à escuridão, porque ela tem o dom do vento, é invisível, pode passar por entre as fileiras inimigas, os homens não a avistam, os cães não a cheiram. Guacolda, cinco anos mais velha que ele, é a sua noiva. Conhece-a desde a infância e sabe que lhe pertence, tal como ela lhe pertence a ele. Encontrava-se com ela sempre que escapava da cidade dos buincaspara partilhar informações com o seu povo. Ela era o seu contacto, a mensageira veloz. Foi ela quem o conduziu à cidade dos invasores, quando era apenas um miúdo de onze anos, com instruções claras para se dissimular e vigiar; ela que o observou, a uma curta distância, colando-se ao frade vestido de negro e seguindo-o. No último encontro, Guacolda indicou-lhe que devia fugir durante a próxima noite sem lua, porque o seu tempo com o inimigo já tinha acabado, já sabiam tudo o que precisavam e a sua gente esperava-o. Ao vê-lo chegar naquela noite, sem roupa de buinca, nu, Guacolda saúda-o, mart mari, e beija-o na boca pela primeira vez, lambe-lhe a cara, toca-lhe como uma mulher para estabelecer o seu direito sobre ele. Mart mari, responde Lautaro, que sabe que chegou a hora do amor, e que, em breve, poderá roubar Guacolda da sua ruka, carregá-la às costas e fugir com ela, como é de preceito. Assim o anuncia e ela sorri, depois leva-o ligeira para sul, sempre para sul. O amuleto que Lautaro jamais tira do pescoço é de Guacolda.
Alguns dias depois, ambos os jovens chegam ao seu destino. O pai de Lautaro, um cacique muito respeitado, apresenta-o aos restantes toquis, para que ouçam o que o seu filho tem a dizer.
- O inimigo vem a caminho, são os mesmos huincas que venceram os irmãos do Norte - explica Lautaro. - Aproximam-se do Bío-Bío, o rio sagrado, com os seus yanaconas, cavalos e cães. Com eles vem Michimalonko, o traidor, e traz o resto do seu exército de cobardes para lutar contra os irmãos do Sul. Morte a Michimalonko! Morte aos huincas
Lautaro fala durante dias, conta que os mosquetes são puro ruído e vento, e que devem ter mais medo das espadas, lanças, machados e cães; os capitães usam cotas de malha, que nem as flechas nem as lanças de madeira conseguem penetrar; com eles há que usar mocas para os atordoar, e desmontá-los com laços; uma vez no solo, estão perdidos, sendo fácil arrastá-los e despedaçá-los, porque debaixo do aço são homens de
carne e osso.
- Cuidado! São homens sem medo. A infantaria só está protegida no peito e na cabeça, pelo que o melhor é usar flechas. Cuidado! Estes também não têm medo. É necessário envenenar as flechas para que os feridos não voltem a combater. Os cavalos são vitais, devem apanhar-se vivos, principalmente as éguas, para fazer criação. Será necessário enviar crianças durante a noite até às proximidades dos acampamentos huincas para atirar carne envenenada aos cães, que estão sempre esfomeados.
Montaremos armadilhas. Cavaremos buracos profundos, que serão depois tapados com folhagem para que, ao cair, os cavalos sejam espetados pelos paus cravados no fundo. A vantagem dos mapuche é o número, a velocidade e o conhecimento do bosque - diz Lautaro. - Os huincasnão são invencíveis, dormem mais do que os mapuche, comem e bebem em demasia, e precisam de carregadores porque não querem carregar o peso dos seus apetrechos. Vamos incomodá-los sem tréguas, seremos como vespas e moscas - ordena -, primeiro cansamo-los, depois matamo-los. Os huincassão pessoas, morrem como os mapuche, mas comportam-se como demónios. No Norte, queimaram vivas tribos inteiras. Querem que aceitemos o seu deus pregado numa cruz, deus da morte, que nos submetamos ao seu rei, que não vive aqui e que não conhecemos, querem ocupar a nossa terra e fazer de nós seus escravos. Porquê, pergunto-vos eu? Por nada, irmãos. Eles não apreciam a liberdade. Não entendem o orgulho, são obedientes, põem-se de joelhos no chão e baixam a cabeça. Não sabem nada de justiça ou retribuição. Os huincassão loucos, mas são loucos malévolos. E eu digo-vos, irmãos, que nunca seremos seus prisioneiros, e morreremos lutando. Mataremos os homens, mas capturaremos as mulheres e as crianças com vida. Elas serão as nossas chinuras e, se quiserem, trocaremos as crianças por cavalos. É justo. Seremos silenciosos e rápidos, como peixes, e nunca saberão que estamos perto; então, cairemos em cima deles quando menos esperarem. Seremos caçadores pacientes. Esta luta será longa. Que se preparem as nossas gentes.
Enquanto o jovem general Lautaro organiza a estratégia durante o dia e se esconde durante a noite, na selva, para fazer amor em segredo com Guacolda, as tribos escolhem os seus chefes de guerra, que estarão sob o comando dos esquadrões, que por sua vez, estarão sob as ordens do niãoltoqui, o toqui dos toquis, Lautaro. O ar da tarde é quente na clareira do bosque, mas mal caia a noite fará frio. Os torneios começaram com várias semanas de antecipação, e os candidatos já competiram, eliminando-se um a um. Só os mais fortes e resistentes, e de maior coragem e valentia, podem aspirar ao título de toqui de guerra. Um dos mais robustos salta para a roda. Apresenta-se, Inche Caupolicán! Está nu, com excepção de um curto avental que lhe cobre o sexo, mas leva as fitas da sua categoria enroladas à volta dos braços e da testa. Dois rapagões aproximam-se do tronco de pellín que já tinham preparado e levantam-no com esforço, um de cada lado. Exibem-no, para que a concorrência o aprecie e calcule o seu peso e, logo de seguida, colocam-no com cuidado nas costas firmes de Caupolicán. A cintura e os joelhos do homem vergam-se ao receber a tremenda carga e, por um momento, parece que cairá esmagado, mas endireita-se de imediato. Retesam-se os músculos do corpo, a pele brilha de suor, as veias do pescoço incham, quase a rebentar. Uma exclamação sufocada escapa do círculo de espectadores quando, lentamente, Caupolicán começa a andar com pequenos passos, medindo a força que tem de despender para que esta lhe dure as horas necessárias. Tem de vencer outros adversários tão fortes quanto ele. A sua única vantagem é a feroz determinação de vencer, nem que isso lhe custe a vida. Pretende dirigir o seu povo no combate, deseja que o seu nome seja recordado, quer ter filhos com Fresia, a jovem que escolheu, e que estes perpetuem o seu sangue com orgulho. Ajeita o tronco apoiado na nuca, escorado pelos ombros e braços. A cortiça áspera rasga-lhe a pele e uns finos fios de sangue começam a escorrer pelas suas costas largas. Respira fundo e absorve o aroma intenso do bosque, sentindo o alívio da brisa e do orvalho. Os olhos negros de Fresia, que se vencer a prova será sua mulher, cravam-se nos seus, sem sombra de compaixão, mas apaixonados. Nesse olhar, exige-lhe que triunfe: deseja-o, mas só se casará com o melhor. No cabelo traz uma copihue, a flor vermelha dos bosques, que cresce no ar, gota de sangue da Mãe Terra, presente de Caupolicán, que trepou à árvore mais alta para a colher.
O guerreiro caminha em círculos com o peso do mundo aos ombros e diz: «Nós somos o sonho da terra, ela sonha connosco. Também nas estrelas há seres sonhados que têm as suas próprias maravilhas. Nós somos sonhos dentro de outros sonhos. Estamos casados com a natureza. Saudamos a Santa Terra, nossa mãe, a quem cantamos na lingual das araucárias e da canela, das cerejas e dos condores. Que venham os ventos floridos trazer a voz dos antepassados para que endureça o nosso olhar. Que o valor dos toquis antigos navegue no nosso sangue. Os anciãos dizem que esta é a hora do machado. Os avós dos nossos avós vigiam-nos e seguram o nosso braço. É a hora do combate. Havemos de morrer. A vida e a morte são a mesma coisa...» A voz pausada do guerreiro fala e fala durante horas numa ladainha incansável, enquanto o tronco balanceia nos seus ombros. Invoca os espíritos da natureza para que defendam a sua terra, as suas grandes águas e as auroras. Invoca os antepassados para que convertam os braços dos homens em lanças. Invoca os punias do monte para que emprestem a sua força e valentia às mulheres. Os espectadores cansam-se, molham-se com a chuva miudinha da noite, alguns acendem pequenas fogueiras para se iluminarem, mascam grãos de milho tostado, outros dormem ou vão embora, mas acabam por voltar, admirados. A velha machi salpica Caupolicán com um ramo da canela untado em sangue de sacrifício para lhe dar integridade e consistência. Tem medo, a mulher, porque na noite anterior apareceram-lhe em sonhos, a cobra-raposa, mru-filú, e a serpente-galo, para lhe dizer que o sangue derramado na guerra será tão copioso, que tingirá de vermelho o Bío-Bío até ao final dos tempos. Fresia aproxima uma cabaça com água dos lábios ressequidos de Caupolicán. Ele vê as mãos duras da amada no seu peito, apalpando-lhe os músculos de pedra, mas não as sente, tal como também não sente a dor nem o cansaço. Continua a falar em transe, continua a andar adormecido. Assim se passam as horas, a noite inteira, assim amanhece o dia, assim a luz se cola às folhas das árvores altas. O guerreiro flutua na neblina fria que se desprende do solo, os primeiros raios de ouro banham o seu corpo e ele continua com os passos de bailarino, as costas vermelhas de tanto sangue, o discurso fluido. «Estamos no bualán, o tempo sagrado dos frutos, quando a Mãe Santa nos dá alimento, o tempo do pinhão e das crias dos animais e das mulheres, filhos e filhas de Ngenechén. Antes do tempo de descanso, o tempo do frio e do sonho da Mãe Terra, virão os buincas.»
A notícia correu pelos montes e, entretanto, vão chegando guerreiros de outras tribos e a clareira do bosque enche-se de gente. O círculo onde Caupolicán caminha torna-se mais pequeno. Agora dão-lhe vivas e, de novo, a macei salpica-o com sangue fresco, enquanto Fresia e outras mulheres lavam-lhe o corpo com peles de coelho molhadas, dão-lhe água, introduzem um pouco de comida mastigada na boca, para que coma sem interromper o seu discurso poético. Os velhos toquis inclinam-se com reverência perante o guerreiro, pois nunca viram nada igual. O sol aquece a terra e dispersa a neblina, o ar enche-se de borboletas transparentes. Por cima da copa das árvores, recorta-se contra o céu a figura imponente do vulcão com a sua eterna coluna de fumo. «Mais água para o guerreiro», ordena a macht. Caupolicán, que há muito ganhou a contenda, mas não pousa o tronco, continua a andar e falar. O Sol chega ao seu zénite e começa a descer até que desaparece por entre as árvores, sem que o guerreiro se detenha. Entretanto, já milhares de mapuche chegaram e a multidão ocupa a clareira e o bosque inteiro, outros chegam dos montes, soam trutrucas e cultrunes a anunciar a façanha aos quatro ventos. Os olhos de Fresia já não se afastam dos de Caupolicán, sustêm-no, guiam-no.
Finalmente, ao cair da noite, o guerreiro toma impulso e ergue o tronco bem acima da cabeça, mantém-no assim por instantes e depois atira-o para longe. Lautaro já tem o seu lugar-tenente. Oooooooooooom! Oooooooooooooom! O grito imenso percorre o bosque, ecoa entre os montes, viaja por toda a Araucanía e chega aos ouvidos dos huincas, a muitas léguas de distância. Ooooooooooooom!
Valdivia demorou quase um mês a chegar ao território mapuche e, nesse tempo, conseguiu recompor-se o suficiente para poder montar, embora com dificuldade, durante alguns instantes. Mal instalaram o acampamento, começaram os ataques diários do inimigo. Os mapucbe atravessavam a nado os mesmos rios que bloqueavam o caminho aos espanhóis, incapazes de os cruzar sem embarcações devido ao peso das armas e apetrechos. Enquanto alguns enfrentavam, desarmados, os cães, sabendo que seriam devorados vivos, embora dispostos a cumprir a sua missão de os deter, os restantes avançavam contra os espanhóis. Deixavam dezenas de mortos, levavam os feridos que se conseguiam aguentar de pé e desapareciam no bosque antes que os soldados conseguissem organizar-se para os seguir. Valdivia deu ordem para que metade do seu reduzido exército montasse guarda, enquanto a outra metade descansava, em turnos de seis horas. Apesar das constantes guerrilhas, o Governador continuou a lutar, vencendo cada escaramuça. Entrou cada vez mais profundamente na Araucanía sem encontrar grandes quantidades de indígenas, apenas grupos dispersos, cujos ataques repentinos e fulminantes cansavam os seus soldados, mas não os detinham, habituados que estavam a enfrentar inimigos cem vezes mais numerosos. O único que não estava tranquilo era Michimalonko, que sabia muito bem quem teria de enfrentar brevemente.
E assim foi. A primeira grande batalha com os mapuche aconteceu em Janeiro de 1550, quando os huincasalcançaram a ribeira do Bío-Bío, linha que demarcava o seu território inviolável. Os espanhóis acamparam na margem de um lago, num sítio bem resguardado, de modo que as traseiras do acampamento estavam protegidas pelas águas geladas e cristalinas. Não contaram que os inimigos chegassem pela água, rápidos e silenciosos, como lobos-do-mar. Os vigias nada viram e a noite parecia tranquila, até que, subitamente, se ouviu um barulho de chicotes, gritos, flautas e tambores, e a terra estremeceu com o golpe dos pés descalços de milhares e milhares de guerreiros, os homens de Lautaro. A cavalaria espanhola, que se mantinha sempre preparada, correu ao seu encontro, mas os indígenas não se amedrontaram, como antes sucedia, perante o ímpeto dos animais e, em vez disso, formaram uma muralha de lanças em riste. Os cavalos assustaram-se e os cavaleiros tiveram de se retirar, enquanto os soldados de infantaria lançavam a sua primeira carga. Lautaro avisara os seus homens que a tarefa de recarregar as armas de fogo demorava alguns minutos, durante os quais os soldados estavam indefesos; dando-lhes tempo para atacar. Desconcertado perante a absoluta ausência de medo dos mapuche, que combatiam corpo a corpo contra os soldados protegidos por armaduras.
Valdivia organizou as suas tropas como fizera em Itália, esquadrões compactos protegidos por couraças, munidos de lanças e espadas, enquanto na retaguarda Michimalonko atacava com as suas hostes. O feroz combate durou até à noite e terminou com a retirada das tropas de Lautaro, que não debandaram em fuga precipitada, mas recuaram ordeiramente ao sinal dos cultrunes.
- Nunca no Novo Mundo se viu guerreiros iguais a estes - opinou Jerónimo de Alderete, extenuado.
- Nunca na minha vida tive inimigos tão ferozes. Há mais de trinta anos que sirvo Sua Majestade e já lutei contra muitas nações, mas nunca vi gente com tanto afinco para a luta - acrescentou Valdivia.
- O que fazemos agora?
- Fundaremos uma cidade neste local. Tem todas as vantagens: uma baía sã, um rio largo, madeira, pescaria.
- E milhares de selvagens também - acrescentou Alderete.
- Primeiro, construímos um forte. Mandaremos toda a gente, menos os feridos e os vigias, cortar árvores, construir barracões e uma muralha com fosso, como manda o figurino. Veremos se estes bárbaros se atrevem a enfrentar-nos novamente.
É claro que se atreveram. Mal os espanhóis acabaram de construir a muralha, Lautaro apresentou-se com um exército tão grande, que os aterrorizados sentinelas calcularam que fossem uns cem mil homens. «Não são nem metade e nós podemos com eles. Espanha, Santiago, e avante!», incentivou Valdivia, dirigindo-se aos seus homens; estava impressionado com a audácia e atitude do inimigo, mais do que com o número de guerreiros. Os mapuche marchavam com uma disciplina impressionante, em quatro divisões, cada uma comandada pelo seu toqui de guerra. A barulheira infernal com que assustavam o inimigo surgia agora reforçada pelo som das flautas feitas a partir dos ossos dos espanhóis caídos na batalha anterior.
- Não poderão atravessar o fosso e a muralha. Vamos detê-los com os mosquetes - sugeriu Alderete.
- Se nos encerramos no forte, poderiam sitiar-nos e matar-nos de fome - explicou Valdivia.
- Sitiar-nos? Não creio que se lembrem de tal, pois não é táctica que os selvagens conheçam.
- Temo que tenham aprendido bastante connosco. Devemos ir ao seu encontro.
- São demasiados, não podemos enfrentá-los.
- Podemos, com a graça de Deus - respondeu Valdivia.
Ordenou que Jerónimo de Alderete saísse com cinquenta cavaleiros para enfrentar o primeiro esquadrão mapuche, que avançava a passo firme em direcção à porta, apesar de a primeira descarga de mosquetes ter deixado muitos deles no chão. O capitão e os seus soldados dispuseram-se a obedecer ao Governador sem pestanejar, embora estivessem convencidos de que iam em direcção à morte certa. Valdivia despediu-se do seu amigo com um abraço emocionado. Conheciam-se há muitos anos e tinham sobrevivido juntos a inúmeros perigos.
Não há dúvida de que os milagres existem. Nesse dia, aconteceu um milagre, não havendo outra explicação para tal, como aliás repetirão, durante muitos séculos, os descendentes dos espanhóis que presenciaram os acontecimentos, e como seguramente repetirão os mapuche nas gerações vindouras.
Jerónimo de Alderete encabeçou a formação dos seus cinquenta cavaleiros e, a um sinal seu, as portas da muralha abriram-se de par em par. O monstruoso alarido dos indígenas recebeu a cavalaria, que logo saiu a galope. Em poucos minutos, uma massa imensa de guerreiros rodeou os espanhóis e Alderete compreendeu, naquele mesmo instante, que continuar seria um acto suicida. Ordenou aos seus homens que se reagrupassem, mas as boleadeiras mandadas por Lautaro enredavam-se nas patas dos animais, impedindo-os de se moverem. Da muralha, os soldados mandaram uma segunda salva de tiros, que não conseguiu travar o avanço dos assaltantes. Valdivia dispôs-se a sair para reforçar a cavalaria, ainda que isso significasse deixar o forte indefeso perante as outras três divisões indígenas que os cercavam, porque não podia permitir que acabassem com cinquenta dos seus homens sem lhes prestar auxílio. Pela primeira vez na sua carreira militar, receou ter cometido um erro táctico irreparável. O herói do Peru, que anos antes tinha derrotado o exército de Gonzalo Pizarro, estava confuso perante aqueles selvagens. A gritaria era horrorosa, não se ouviam as ordens e, no meio da confusão, um dos cavaleiros espanhóis caiu morto por um tiro de mosquete que foi dado por engano. Subitamente, quando os mapucbe do primeiro esquadrão já tinham o terreno praticamente ganho, começaram a retroceder em tropel, seguidos, quase de imediato, pelas outras três divisões. Em poucos minutos, os atacantes abandonaram o campo e fugiram para os bosques como se fossem lebres.
Surpreendidos, os espanhóis não souberam o que diabo acontecera e temeram que fosse uma nova táctica do inimigo, já que não encontravam outra explicação para uma retirada tão repentina, que deu por terminada uma batalha que ainda mal começara. Valdivia fez aquilo que a sua experiência de soldado ditava: mandou persegui-los. Assim o descreveu ao Rei, numa das suas cartas: «Mal tinham chegado os soldados a cavalo, quando os índios nos viraram as costas, seguidos pelos outros três esquadrões. Matámos entre mil e quinhentos a dois mil índios, ferimos outros tantos e prendemos alguns.»
Quem esteve presente, assegura que o milagre foi visível para todos, e que uma figura angélica, brilhante como um relâmpago, desceu sobre o campo, iluminando o dia com uma luz sobrenatural. Cavalgando no seu corcel branco, uns pensaram reconhecer o próprio apóstolo Santiago em pessoa, o qual, enfrentando os selvagens, lhes deu um eloquente sermão e os mandou renderem-se aos cristãos. Outros viram a figura de Nossa Senhora do Socorro, uma dama formosíssima vestida de ouro e prata, flutuando nas alturas. Os índios prisioneiros confessaram ter visto uma fumarada que traçou um amplo arco no firmamento e explodiu com estrondo, deixando no ar uma cauda de estrelas. Nos anos posteriores, os bacharéis compuseram outras versões, dizendo que foi um corpo celestial, qualquer coisa como uma enorme rocha que se desprendeu do Sol e caiu sobre a Terra. Nunca vi nenhum desses bólides, mas fico contente que tenham a forma de apóstolo ou de virgem e que aquele, em concreto, tenha caído mesmo na hora e local apropriados para favorecer os espanhóis. Milagre ou bólide, não sei, mas o facto é que os índios fugiram espavoridos e os cristãos apoderaram-se do campo, celebrando uma vitória muito pouco merecida.
De acordo com as notícias que chegaram a Santiago, Valdivia fez cerca de trezentos prisioneiros - ainda que ele, ante o Rei, tenha admitido apenas duzentos - e mandou castigá-los: cortaram-lhes a mão direita com o machado, e o nariz à faca. Enquanto alguns soldados forçavam os prisioneiros a colocar o braço sobre um cepo, para que os verdugos fizessem descer a lâmina do machado, outros cauterizavam os pulsos mergulhando-os em sebo a ferver; assim, as vítimas não se esvaíam em sangue e podiam regressar à sua tribo exibindo o referido castigo. Um pouco mais à frente, um terceiro grupo mutilava a cara dos desgraçados mapucbe. Encheram-se canastras de mãos e narizes e o sangue empapava a terra. Na sua carta ao Rei, Valdivia escreveu que, depois de ser feita justiça, reuniu os cativos e decidiu dirigir-lhes a palavra, porque entre eles estavam alguns caciques e índios proeminentes. Declarou que «fazia aquilo porque os tinha mandado chamar muitas vezes com propostas de paz a que eles não responderam». De maneira que os torturados tiveram de suportar mais um sermão em castelhano. Os que ainda conseguiam manter-se de pé, acabaram por fugir aos tropeções em direcção ao bosque, para mostrar os punhos amputados aos seus companheiros. Muitos dos amputados desmaiavam, mas depressa vinham a si, levantavam-se e iam embora, igualmente cheios de ódio, sem dar aos seus carrascos o prazer de os ver a suplicar ou a gemer de dor. Quando os verdugos já não conseguiam levantar os machados nem mover as facas, de tanto cansaço e náusea, tiveram de ser substituídos pelos soldados. Atiraram ao rio as canastras cheias de mãos e narizes, que foram a flutuar até ao mar, levados pela corrente ensanguentada.
Ao saber do ocorrido, perguntei a Rodrigo qual havia sido o propósito daquela carnificina, que a meu ver traria consequências terríveis, porque depois de uma acção daquelas, não podíamos esperar propriamente misericórdia por parte dos mapuche, mas sim a pior vingança jamais imaginável. Rodrigo explicou-me que, às vezes, estas acções são necessárias para atemorizar o inimigo.
- Também terias feito algo semelhante? - quis saber.
- Acho que não, Inés, mas eu não estava lá, por isso não posso julgar as decisões do capitão-general.
- Ao longo de dez anos, estive ao lado de Pedro durante bons e maus momentos, Rodrigo, e isto não condiz com a pessoa que conheci. Pedro mudou muito e, deixa-me que te diga, fico feliz que já não faça parte da minha vida.
- A guerra é a guerra. Peço a Deus que acabe depressa para podermos fundar esta nação em paz.
- Se a guerra é a guerra, então também podemos justificar as matanças de Francisco de Aguirre no Norte - disse-lhe.
Depois daquele massacre selvático, Valdivia mandou recolher a comida e os animais que conseguiu confiscar aos índios e levou-os para o forte. Enviou mensageiros a todas as cidades anunciando que, em menos de quatro meses, e com a ajuda do apóstolo Santiago e de Nossa Senhora, conseguira arranjar uma maneira ardilosa de impor a paz naquela terra. Pareceu-me que se estava a precipitar em cantar vitória.
Nos três anos de vida que lhe restaram, vi Pedro de Valdivia muito poucas vezes e só fui tendo notícias suas por intermédio de terceiros. Enquanto Rodrigo e eu prosperávamos quase sem nos darmos conta, porque onde púnhamos a vista crescia o gado, multiplicavam-se as sementeiras e surgia ouro das pedras, o Governador dedicou-se a construir fortes e a fundar cidades a sul. Primeiro, espetavam a cruz e o estandarte, se houvesse padre, dizia-se uma missa, logo depois erguia-se a árvore da justiça, o patíbulo e começavam a cortar árvores para construir a muralha defensiva e as casas. O mais difícil era conseguir povoadores, mas pouco a pouco iam chegando soldados e famílias. Assim surgiram, entre outras, Concepción, La Imperial e Villarrica, esta última perto das minas descobertas num dos afluentes do Bío-Bío. As minas produziam tanto que, para efeitos comerciais, só circulava o ouro em pó, até mesmo para comprar pão, carne, fruta, hortaliças e tudo o resto; não havia outra moeda senão o ouro. Mercadores, taberneiros e vendedores andavam carregados de pesos e balanças para comprar e vender. Assim se concretizou o sonho dos conquistadores e ninguém se atreveu a chamar novamente ao Chile «país de mendigos», nem «sepultura de espanhóis». Foi igualmente fundada a cidade de Valdivia, assim chamada por insistência dos capitães, e não por vaidade do Governador. O seu escudo de armas descreve-a na perfeição: «um rio e uma cidade de prata». Os soldados estavam convencidos de que, pelos despenhadeiros tortuosos da cordilheira, existiria a tão afamada Cidade dos Césares, inteiramente feita de ouro e pedras preciosas, defendida por belas amazonas, ou seja, o mesmo mito do El Dorado, mas Pedro de Valdivia, que era um homem prático, nem sequer perdeu tempo nem gente à sua procura.
O Chile recebia numerosos reforços militares por terra e por mar, mas eram sempre insuficientes para ocupar aquele vasto território da costa, bosque e montanha. Para cair nas boas graças dos soldados, o Governador distribuía terras e índios com a sua habitual generosidade, mas não passavam de presentes apalavrados, meras intenções poéticas, já que as terras eram virgens e os nativos indómitos. Só com o recurso à força bruta se conseguia forçar os mapuche a trabalhar. A perna de Pedro, entretanto, sarara, ainda que lhe doesse constantemente, mas já podia montar a cavalo. Percorria sem descanso a imensidão dos territórios do Sul com o seu pequeno exército, embrenhando-se nos bosques húmidos e sombrios, debaixo da alta cúpula verde entretecida pelas árvores mais nobres e coroada pelas soberbas araucárias, que se perfilavam contra o céu na sua sólida geometria. As patas dos cavalos pisavam um colchão aromático de húmus, enquanto os cavaleiros abriam caminho com as suas espadas pela densa selva de fetos, por vezes impenetrável. Atravessavam ribeiros de águas frias, onde até os pássaros corriam o risco de ficar congelados mal pousassem nas suas margens, as mesmas águas onde as mães mapuche mergulhavam os filhos recém-nascidos. Os lagos eram espelhos primevos do azul intenso do céu, tão calmos, que se podiam contar as pedras do fundo. As aranhas
Pinheiros-do-paraná. (N. da T.)
teciam as suas teias, fios de pérolas de orvalho, entre os ramos dos carvalhos, murtas e avelaneiras. As aves do bosque cantavam em uníssono, diuca, chincol, jilguero, torcaza, tordo, zorzal, e até mesmo o pica-pau, marcando o ritmo com o seu infatigável toc-toc-toc. À passagem dos cavaleiros, levantavam-se nuvens de borboletas e os veados, curiosos, aproximavam-se para os saudar. A luz era filtrada por entre as folhas e desenhava sombras na paisagem; a neblina elevava-se do solo tépido, envolvendo o mundo num halo de mistério. Chuva, muita chuva, rios, lagos, cascatas de águas brancas e espumosas, um universo líquido. E, sempre em pano de fundo, as montanhas cobertas de neve, os vulcões fumegantes, as nuvens viajantes. No Outono, a paisagem era de ouro e sangue, enriquecida, magnífica. A alma de Pedro de Valdivia evadia-se e perdia-se, enredada por entre os esbeltos troncos vestidos de musgo, puro veludo. O Jardim do Éden, a terra prometida, o paraíso. Mudo, com a cara lavada em lágrimas, o conquistador conquistado continuava a descobrir o lugar onde a terra acaba, o Chile.
Numa ocasião, seguia com os seus soldados por um bosque de avelaneiras, quando começaram a cair pedaços de ouro das copas das árvores. Incrédulos perante tal prodígio, os soldados depressa desmontaram e debruçaram-se sobre os penhascos amarelos, enquanto Valdivia, tão espantado como os seus homens, tentava impor a ordem. Estavam entretidos a disputar o ouro quando foram rodeados por cem arqueiros mapuche. Lautaro ensinara-os a atirar para os pontos mais vulneráveis do corpo, onde os espanhóis não contavam com a protecção do ferro. Em menos de dez minutos, o bosque ficou semeado de mortos e feridos. Antes que os sobreviventes pudessem reagir, os indígenas desapareceram com o mesmo silêncio com que tinham aparecido momentos antes. Mais tarde, veio a verificar-se que o chamariz não era mais do que um monte de pedras do rio cobertas com uma fina película de ouro.
Umas semanas mais tarde, outro destacamento de espanhóis, que percorria a região, ouviu vozes femininas. Avançaram a trote, afastaram os fetos e depararam-se com uma cena encantadora: um grupo de raparigas banhava-se no rio, com coroas de flores na cabeça e sem mais nada a cobrir-lhes o corpo além das longas cabeleiras negras. As míticas ondinas continuaram o banho sem dar mostras de temor quando os soldados esporearam os cavalos para atravessar as águas dando gritos de antecipação. Não foram longe os barbudos lascivos, porque o leito do rio era um pântano, onde os cavalos se enterraram até aos flancos. Os homens desmontaram com a intenção de resgatar os animais até terra firme, mas estavam presos nas pesadas armaduras e começaram também a afundar-se no lodo. Foi então que apareceram novamente os implacáveis arqueiros de Lautaro, que os crivaram de setas, enquanto as nuas beldades mapuche celebravam a carnificina noutra ribeira.
Valdivia apercebeu-se, desde muito cedo, que estava perante um general tão astuto quanto ele, alguém que conhecia as fraquezas dos espanhóis, mas não se preocupou em demasia. Estava certo do seu triunfo. Os mapuche, por muito aguerridos e ladinos que fossem, não se podiam comparar com o poderio militar dos seus experientes capitães e soldados. Era apenas uma questão de tempo, dizia, até a Araucanía ser sua. Não tardou em averiguar o nome que andava na boca de toda a gente, Lautaro, o toqui que se atrevia a desafiar os espanhóis. Lautaro. Nunca lhe ocorreu que podia ser Felipe, o seu antigo moço de estrebaria, algo que só viria a descobrir no dia da sua morte. Valdivia detinha-se nos casarios isolados dos colonos, discursando com o seu optimismo invencível. A acompanhá-lo tinha Juana Jimenez, tal como antes eu própria o acompanhara, enquanto Maria de Encio engolia o seu despeito em Santiago. O Governador escrevia cartas ao Rei para lhe reiterar que os selvagens tinham compreendido a necessidade de acatar os desígnios de Sua Majestade e as bondades do cristianismo e que ele tinha domado uma terra belíssima, fértil e aprazível, onde a única coisa que fazia falta eram espanhóis e cavalos. Entre um parágrafo e outro, solicitava novas benesses, que o Imperador não atendia.
Pastene, almirante de uma frota composta por dois barcos velhos, continuava a explorar a costa de norte a sul e vice-versa, lutando contra correntes invisíveis, ondas negras aterradoras, ventos orgulhosos que lhe rasgavam as velas, procurando, em vão, a passagem entre os dois oceanos. Seria outro capitão que daria com o estreito de Magalhães em
Outros capitães, como Villagra e Alderete, iam e vinham, galopavam pelos vales, subiam as cordilheiras, mergulhavam nos bosques, navegavam nos lagos e, dessa forma, plantavam a sua presença possante naquela região encantada. Tinham regularmente breves rixas com bandos de índios, mas Lautaro coibia-se de mostrar a sua verdadeira força, enquanto se ia preparando com infinita cautela nos locais mais recônditos da Araucanía. Michimalonko fora morto num dos encontros com Lautaro e alguns dos seus guerreiros aliaram-se aos irmãos de raça, os mapuche, embora Valdivia tenha conseguido conservar um bom número deles. O Governador insistia continuar a conquista rumo ao Sul, mas quanto mais território conquistava, menos podia controlar. Era obrigado a deixar soldados em cada cidade para proteger os colonos e, ao mesmo tempo, nomear outros para explorar, castigar os indígenas e roubar gado e alimento. O exército estava dividido em pequenos grupos, que eram obrigados a permanecer isolados e incomunicáveis durante meses.
Durante o rigoroso Inverno, os conquistadores refugiavam-se nas pequenas aldeias dos colonos, a que chamavam de cidades, porque era muito difícil mobilizarem-se com as suas pesadas provisões naquele solo pantanoso, debaixo de uma chuva inclemente e da geada do amanhecer, suportando o vento e a neve, que quebrava os ossos. De Maio a Setembro, a terra repousava, tudo parava, e só a água transbordante dos rios, o golpear da chuva e as tempestades de trovões e relâmpagos interrompiam o sonho de Inverno. Nessa época de repouso e escuridão precoce, Valdivia sentia-se permanentemente rodeado por demónios e a alma ofuscava-se-lhe por entre premonições e arrependimentos. Quando não estava montado no dorso de um cavalo, com a espada à cintura, a alma ensombrava-se e começava a ficar convencido de que o azar o perseguia. Em Santiago, corriam os rumores de que o Governador tinha mudado bastante, que estava precocemente envelhecido e que os seus homens já não depositavam nele a mesma confiança cega de outros tempos. Segundo Cecilia, a estrela de Pedro elevou-se quando me conheceu e começou a decair quando se separou de mim, teoria aterradora esta, porque não desejo arcar com a responsabilidade dos seus êxitos nem com a culpa dos seus fracassos. Cada um é dono do seu próprio destino. Valdivia passava aqueles meses frios dentro de casa, coberto com ponchos de lã, aquecendo-se ao braseiro e escrevendo cartas ao Rei. Juana Jimenez servia-lhe mate, uma infusão de erva amarga que o ajudava a suportar a dor das feridas antigas.
Entretanto, os guerreiros de Lautaro, invisíveis, observavam os huincaspor entre a espessa vegetação, como lhes tinha ordenado o nidoltoqui.
Em 1552, Pedro de Valdivia viajou até Santiago. Não sabia que seria a sua última visita, embora desconfiasse de tal, porque voltara a ser atormentado por sonhos negros. Como antes, sonhava com massacres e acordava a tremer nos braços de Juana. Como sei? Porque se medicava com cortiça de latué para espantar os pesadelos. Neste país, sabe-se tudo. Ao chegar, encontrou uma cidade engalanada para o receber, próspera e bem organizada, porque Rodrigo de Quiroga o tinha substituído com sabedoria. A nossa vida tinha melhorado nesse par de anos. A casa de Rodrigo na Praça de Armas foi remobilada sob a minha direcção, até ficar convertida numa mansão digna de um Tenente-Governador. Como tinha genica para dar e vender, mandei construir outra residência uns quarteirões mais à frente, com a ideia de ta oferecer, Isabel, quando te casasses. Além disso, tínhamos casas muito confortáveis nas nossas fazendas no campo; gosto delas amplas, de tectos altos, com varandins e pomares, plantas medicinais e flores. No terceiro pátio, costumo colocar os animais domésticos bem resguardados, para que não os roubem. Procuro também arranjar quartos decentes para os criados; dá-me nojo ver como outros colonos hospedam melhor os cavalos que as pessoas. Como não me esqueci das minhas origens humildes, entendo-me bem e sem problemas com a criadagem, que sempre me foi extremamente leal. São eles a minha família. Naqueles anos, Catalina, ainda sã e forte, tratava de todos os assuntos domésticos, mas eu continuava a manter os olhos bem abertos para que não fossem cometidos abusos contra os criados. Faltava-me tempo para cumprir com todas as minhas tarefas. Dedicava-me a diversos negócios, construções e ainda ajudava Rodrigo nos assuntos do governo, além da caridade, que nunca é suficiente. A fila de índios pobres, que comiam todos os dias na nossa cozinha, dava voltas à Praça de Armas, e Catalina queixava-se tanto da invasão e sujidade, que decidi inaugurar uma cantina noutra rua da cidade. Num barco vindo do Panamá, chegou dona Flor, uma negra senegalesa, cozinheira magnífica, que se encarregou desse projecto. Sabes a quem me refiro, Isabel, é a mesma senhora que conheces. Chegou ao Chile descalça, hoje veste-se de brocados e vive numa mansão que faz inveja às damas mais conspícuas de Santiago. Os seus cozinhados eram tão bons que os grandes senhores começaram a queixar-se que os índios comiam melhor do que eles; então dona Flor lembrou-se de que podíamos financiar a sopa dos pobres vendendo comida fina aos ricos e, ainda por cima, ganhar algum dinheiro com isso. Foi desta forma que enriqueceu, e ainda bem para ela, mas o meu problema continuou por resolver, porque, mal se apanhou com os bolsos cheios de ouro, esqueceu-se dos mendigos, que voltaram a fazer filas de espera à porta da minha casa. E ainda hoje é assim.
Ao saber-se que Valdivia vinha a caminho de Santiago, notei que Rodrigo andava preocupado, pois não sabia como lidar com a situação sem ofender ninguém; estava dividido entre o seu cargo oficial, a sua lealdade para com o amigo e o desejo de me proteger. Há mais de dois anos que não víamos o meu antigo amante, e a sua ausência era bastante confortável para nós. Com a sua chegada, eu deixaria de ser a Governadora, e cheguei mesmo a questionar-me, divertida, se Maria de Encio estaria à altura das circunstâncias. Custava-me imenso imaginá-la no meu lugar.
- Sei o que estás a pensar, Rodrigo. Fica descansado que não haverá problemas com Pedro - disse-lhe.
- Talvez fosse melhor ires para o campo com Isabel...
- Não vou fugir, Rodrigo. Esta também é a minha cidade. Abster-me-ei de participar nos assuntos do governo enquanto ele cá estiver, mas continuarei com o resto da minha vida tal como dantes. Tenho a certeza de que posso ver Pedro sem que me tremam os joelhos - disse a rir.
- É inevitável que acabes por te cruzar frequentemente com ele.
- E não é só isso, Rodrigo. Temos de lhe oferecer um banquete.
- Um banquete?
- Claro, somos a segunda autoridade do Chile e é nosso dever acolhê-lo. Convidaremos também a sua Maria de Encio e, se quiser, até a outra pode vir. Como é que se chama a galega?
Rodrigo ficou a olhar para mim com aquela expressão desconfiada que as minhas iniciativas habitualmente lhe suscitavam, mas dei-lhe um beijo breve na testa e assegurei-lhe de que não haveria escândalo de natureza alguma. Na verdade, já tinha mandado várias mulheres costurar toalhas, enquanto dona Flor, especialmente contratada para a ocasião, ia reunindo os ingredientes para confeccionar a comida, sobretudo as sobremesas favoritas do Governador. Os barcos traziam melaço e açúcar, produtos que, se em Espanha já eram caros, no Chile atingiam preços exorbitantes e, como nem todos os doces se podem fazer com mel, não tive outro remédio senão resignar-me e pagar o que me pediam. Queria impressionar os convidados com uma variedade de pratos nunca antes vista na nossa capital. «Mas mais vale ires pensando no que vais vestir, pois, senoray», lembrou-me Catalina. Pedi-lhe que me engomasse um elegante vestido de seda matizada de um tom acobreado, recém-chegado de Espanha, que acentuava a cor dos meus cabelos... Quanto a isto, Isabel, nem preciso de te dizer que mantinha a minha cor de cabelo com hena, como fazem as mouras e as ciganas, porque já o sabes. O vestido ficava-me um pouco apertado, é certo, já que a vida prazenteira e o amor de Rodrigo me tinham alimentado a alma e o corpo, mas, de qualquer maneira, ia mais bem vestida do que Maria de Encio, que se vestia como uma meretriz, ou que a convencida da sua criada, que nem sequer se podia comparar a mim. Não te rias, filha. Sei que este comentário parece um pouco mesquinho da minha parte, mas é a verdade: aquelas mulheres eram muito ordinárias.
Pedro de Valdivia fez a sua entrada triunfal em Santiago debaixo de arcos de ramos e flores, ovacionado pelo Cabido e pela povoação em massa. Rodrigo de Quiroga, os seus capitães e soldados, com as armaduras polidas e elmos de penacho, alinharam-se em formatura na Praça de Armas. A porta da casa que antes fora minha, Maria de Encio aguardava o seu amo retorcendo-se com risinhos, gestos afectados e salamaleques. Mas que mulher tão odiosa! Eu abstive-me de aparecer, e limitei-me a observar o espectáculo de longe, espreitando por uma janela. Pareceu-me que os anos tinham caído subitamente em cima de Pedro, estava mais pesado e movia-se com solenidade, não sei se por arrogância, gordura ou cansaço da viagem.
Naquela noite, o Governador descansou nos braços das suas duas amantes, penso eu, e no dia seguinte começou a trabalhar com o afinco que lhe era tão característico. Recebeu o relatório completo e detalhado do estado da colónia e da cidade por parte de Rodrigo, reviu as contas do tesouro, escutou as reclamações do Cabido, atendeu um por um os habitantes que se apresentavam com petições ou em busca de justiça. Transformara-se num homem pomposo, impaciente, altivo e tirânico, e não suportava a menor contradição sem logo rebentar em ameaças. Já não pedia conselhos nem partilhava as suas decisões, agia como um soberano. Andava na guerra há demasiado tempo, habituado que estava a fazer-se obedecer pelas tropas sem quaisquer reservas. Ao que parece, era também assim que tratava os seus capitães e amigos, mas foi amável com Rodrigo de Quiroga; deve ter adivinhado que este não suportaria faltas de respeito. Segundo Cecilia, a quem nada escapava, as suas concubinas e a criadagem tinham-lhe um medo de morte, porque era nelas que Valdivia descarregava as suas frustrações, desde a dor nos ossos, até ao silêncio obstinado do Rei, que insistia em não responder às suas cartas.
O banquete em honra ao Governador foi um dos mais espectaculares que ofereci na minha vida já tão longa. Confesso que só a elaboração da lista dos convidados foi uma tarefa árdua, até porque não podíamos convidar os quinhentos colonos da capital e as suas respectivas famílias. Muita gente importante ficou à espera de receber o convite. Santiago fervilhava de comentários e zunzuns, todos queriam estar presentes na festa, todos os dias chegavam a minha casa imensos presentes inesperados e profusas mensagens de amizade de pessoas que ainda no dia anterior mal olhavam para mim, mas fomos obrigados a reduzir a lista aos antigos capitães que chegaram connosco ao Chile, em 1540, aos funcionários reais e do Cabido. Trouxemos índios auxiliares das fazendas e vestimo-los com uniformes impecáveis, mas não os conseguimos calçar, já que não suportavam os sapatos. Acendemos centenas de lamparinas, candeeiros de sebo e tochas de resina de pinheiro, que perfumavam o ambiente. A casa estava esplêndida, cheia de flores, grandes fontes com fruta da época e gaiolas de pássaros. Servimos vinho peruano de boa cepa, e ainda outro chileno, que Rodrigo e eu começámos a produzir. Sentámos os trinta convidados na mesa principal e mais cem noutras salas e no pátio. Decidi que, naquela noite, as mulheres se sentariam à mesa com os homens, como aliás tinha ouvido dizer que se faz em França, em vez de se sentarem em coxins no chão, como se faz em Espanha. Matámos leitões e borregos, para oferecer uma grande variedade de pratos, além das aves recheadas e peixe da costa, que trouxemos para Santiago vivo em tinas cheias de água do mar. Havia uma mesa só para as sobremesas, tortas, folhados, merengues, gemas queimadas, doce de leite e fruta. A suave brisa levava à cidade os odores do banquete, alho, carne assada, caramelo. Os convidados compareceram com as suas melhores roupas, tão raras eram as oportunidades que tínhamos para vestir os luxuosos fatos guardados no fundo dos baús. Sem dúvida que a mulher mais bonita da festa era Cecilia, que trazia um vestido azul apertado por um cinturão de ouro e, como adorno, usava as suas jóias de princesa inca. Com ela, trouxe um negrito, que se instalou atrás da sua cadeira a refrescá-la com um leque de plumas, pormenor finíssimo que nos deixou a todos, gente rude, atónitos. Valdivia apareceu com Maria de Encio que, devo reconhecer, até nem vinha mal vestida, mas não trouxe a outra, porque apresentar-se com duas concubinas teria sido uma bofetada na cara da nossa pequena mas orgulhosa cidade. Beijou-me a mão e lisonjeou-me com as galanterias próprias destas ocasiões. Pareceu-me ver nos seus olhos um misto de tristeza e ciúmes, mas podem ser só ideias minhas. Quando nos sentámos à mesa, ergueu o copo para brindar a Rodrigo e a mim, seus anfitriões, e fez um discurso sentido, comparando a dura época da fome em Santiago, apenas há dez anos atrás, com a abundância actual.
- Neste banquete imperial, bela dona Inés, só falta uma coisa... concluiu, com o copo no ar e os olhos húmidos.
- Não diga mais nada, Vossa Mercê - respondi.
Nesse preciso momento entraste tu, Isabel, vestida de organdi e coroada com fitas e flores, com uma bandeja de prata, coberta com um guardanapo de linho, que continha uma empanada para o Governador. A ocorrência foi saudada com um aplauso geral, porque todos se recordavam dos tempos das vacas magras, quando tínhamos de fazer empanadas com o que conseguíamos arranjar, incluindo lagartixas.
Depois do jantar houve baile, mas Valdivia, que fora sempre um bailarino ágil, com bom ouvido e uma graça natural, não participou, desculpando-se com dores nos ossos. Quando os convidados se foram embora e os criados acabaram de repartir os restos pelos pobres, que entretanto vieram ouvir a festa à Praça de Armas, e depois de fecharmos a casa e apagarmos as lamparinas, Rodrigo e eu caímos exaustos na cama. Apoiei a cabeça no seu peito, como sempre fazia todas as noites, e dormi um sono sem sonhos durante seis horas, o que para mim, sempre tão atormentada pelas insónias, parece uma eternidade.
O Governador permaneceu em Santiago durante três meses. Ao longo desse tempo, tomou uma decisão na qual tinha certamente ponderado bastante: mandou Jerónimo de Alderete a Espanha entregar ao Rei sessenta mil pesos em ouro, o quinto correspondente à Coroa, soma ridícula, sobretudo quando comparada com os galeões carregados desse metal que saíam do Peru. Levava cartas para o monarca com várias petições, entre as quais que lhe outorgasse o título de Marquês e a Ordem de Santiago. Também nesse aspecto Valdivia tinha mudado, pois já não era o homem que fazia gala em desprezar títulos e honras. Além disso, solicitava autorização para tomar a seu cargo dois mil escravos negros sem pagar imposto; ele, que sempre fora contra a escravatura. A segunda parte da missão de Alderete consistia em visitar Marina Ortiz de Gaete, que ainda vivia no modesto solar de Castuera, dar-lhe dinheiro e convidá-la a vir para o Chile ocupar o cargo de governadora junto do seu marido, que não via há dezassete anos. Adorava saber como terão recebido Maria e Juana esta notícia. Lamento que Jerónimo de Alderete não tenha tido a oportunidade de trazer a resposta positiva do Rei. A sua ausência durou quase três anos, tanto quanto me recordo, devido às demoras da navegação pelo oceano e porque o Imperador não era homem de grandes pressas. No seu regresso, quando cruzava o istmo do Panamá, o capitão apanhou uma doença tropical, que o despachou para o outro mundo. Era um excelente soldado e um bom e leal amigo este Jerónimo de Alderete, e espero que a História lhe reserve o lugar que merece. Entretanto, Pedro de Valdivia acabou por morrer sem ter conhecimento que, finalmente, tinha obtido as benesses tão desejadas.
Ao receber o convite do seu marido para viajar para este reino, que ela imaginava ser parecido com Veneza, vá-se lá saber porquê, bem como os sete mil e quinhentos pesos em ouro para as despesas, Marina Ortiz de Gaete comprou um trono dourado, um enxoval imperial e fez-se acompanhar por um séquito impressionante, que incluía alguns membros da sua família. A pobre mulher chegou ao Chile já viúva; aqui descobriu que Pedro a tinha deixado arruinada e, para cúmulo, em menos de seis meses todos os seus sobrinhos, que tanto adorava, morreram na guerra contra os índios. Não me restava outra coisa senão compadecer-me da sua dor.
Durante o tempo em que Pedro de Valdivia esteve em Santiago, vimo-nos poucas vezes e apenas em reuniões sociais, rodeados de outras pessoas, que nos observavam com malícia, esperando surpreender-nos num gesto de intimidade ou tentando adivinhar os nossos sentimentos. Nesta cidade, não se podia dar um passo sem se ser observada pelas frinchas das janelas e logo criticada. Mas por que falo no passado? Estamos no ano de 1580 e as pessoas continuam igualmente umas más-línguas bisbilhoteiras. Depois de ter partilhado com Pedro os anos mais intensos da minha juventude, sentia agora um estranho distanciamento quando estava na sua presença, parecendo-me que o homem que tinha amado com uma paixão desesperada era outro. Pouco antes de Pedro anunciar o seu regresso ao Sul, onde pensava visitar as novas cidades e continuar à procura do tão esquivo estreito de Magalhães, Gonzalez de Marmolejo veio visitar-me.
- Queria contar-te, minha filha, que o Governador solicitou ao Rei que eu seja nomeado bispo do Chile - disse-me.
- Isso já toda a gente sabe em Santiago, Padre. Dizei-me ao que realmente viestes.
- És tão atrevida, Inés! - riu-se o clérigo.
- Vamos, desembuchai, Padre.
- O Governador deseja falar contigo em privado, filha, e como é lógico não pode ser na tua casa, nem na casa dele, nem num local público. Devem ser salvaguardadas as aparências. Ofereci-lhe a minha casa para que se possam encontrar...
- Rodrigo sabe disto?
- O Governador acha que não vale a pena aborrecer o teu marido com uma trivialidade destas, Inés.
Fiquei desconfiada do mensageiro, do recado e do segredo; por isso, nesse mesmo dia, para evitar problemas, contei tudo a Rodrigo, que, para meu espanto, já sabia, porque Valdivia lhe tinha pedido autorização para se encontrar a sós comigo. Então, por que motivo tinha sugerido que escondesse do meu marido o seu convite? E por que Rodrigo não me tinha dito nada? Suponho que o primeiro queria pôr-me à prova, mas não creio que fosse essa a intenção do segundo; Rodrigo era incapaz de tais manobras.
- Sabes por que quer Pedro encontrar-se comigo? - perguntei ao meu marido.
- Quer explicar-te porque agiu daquela forma, Inés.
- Já passaram mais de três anos! E agora é que vem com explicações? Parece-me muito estranho.
- Se não quiseres falar com ele, eu próprio o informarei directamente.
- Não te aborrece que me encontre a sós com ele?
- Tenho plena confiança em ti, Inés. Jamais te ofenderia com ciúmes.
- Tu nem pareces espanhol, Rodrigo. Deves ter sangue de holandês nas veias.
No dia seguinte, fui a casa de Gonzalez de Marmolejo, a maior e mais luxuosa do Chile depois da minha. A fortuna do clérigo era, sem dúvida, de origem milagrosa. Fui recebida pela sua governanta qutchua, uma mulher muito sábia, conhecedora de plantas medicinais e tão minha amiga que nem precisava de disfarçar que, desde há muitos anos, fazia vida marital com o futuro bispo. Atravessámos vários salões, comunicados entre si por portas duplas talhadas por mãos de artesão, que o clérigo tinha mandado vir especialmente do Peru, e chegámos a uma divisão pequena, onde tinha o escritório e a maior parte dos seus livros. O Governador, vestido a preceito com um gibão vermelho escuro de mangas aos machos, calças esverdeadas e chapéu de seda negra com uma pluma elegante, avançou para me saudar. A governanta retirou-se discretamente e fechou a porta. Então, ao encontrar-me a sós com Pedro, senti o sangue a aflorar-me às têmporas, latejando, e o coração a bater descompassado, e pensei que não seria capaz de suster o olhar daqueles olhos azuis, cujas pálpebras tantas vezes beijara enquanto ele dormia. Por muito que Pedro tivesse mudado, momentos houve em que ele foi o amante que eu segui até ao fim do mundo. Colocou-me as mãos nos ombros e virou-me na direcção da janela, para me observar à luz do dia.
- Es tão bela, Inés! Como é possível que, para ti, o tempo não passe? - suspirou, comovido.
- Estás a precisar de lentes para ver - disse-lhe, dando um passo atrás para me libertar das suas mãos.
- Diz-me que és feliz. E muito importante para mim que sejas feliz.
- Porquê? Tens a consciência pesada, por acaso?
Sorri, ele também sorriu e ambos respirámos aliviados, pois tínhamos conseguido quebrar o gelo. Contou-me ao pormenor o julgamento a que foi sujeito no Peru e a condenação de La Gasca; a ideia de me casar com outro ocorreu-lhe como a única forma de me salvar do desterro e da pobreza.
- Ao propor essa solução a La Gasca, cravei uma adaga no meu peito, Inés, e a verdade é que ainda sangro. Sempre te amei, és a única mulher da minha vida, as outras não contam. Saber que estás casada com outro causa-me uma dor atroz.
- Sempre foste muito ciumento.
- Não troces de mim, Inés. Sofro por não te ter comigo, mas fico contente que sejas rica e que tenhas casado com o melhor fidalgo deste reino.
- Naquela altura, quando mandaste Gonzalez de Marmolejo comunicar-me a tua decisão, ele insinuou que tinhas escolhido alguém para mim. Era Rodrigo?
- Conheço-te demasiado bem para saber que não te consigo impor nada, e muito menos um marido - respondeu-me, evasivo.
- Então, para que fiques tranquilo, devo dizer-te que a solução que me propuseste foi excelente. Sou feliz com Rodrigo e amo-o muito.
- Mais do que a mim?
- Já não te amo com esse tipo de amor, Pedro.
- Tens certeza disso, Inés da minha alma?
Voltou a segurar-me pelos ombros e puxou-me para si, procurando os meus lábios. Senti as cócegas da sua barba ruiva e o calor da sua respiração, voltei a cara para o lado e empurrei-o suavemente.
- O que mais apreciavas em mim, Pedro, era a lealdade. Ainda a conservo comigo, mas agora devo-a a Rodrigo - disse-lhe, com tristeza, porque pressenti que, naquele preciso momento, nos estávamos a despedir para sempre.
Pedro de Valdivia voltou a partir para continuar a conquista e reforçar as sete cidades e os fortes recém-fundados. Foram descobertas várias minas com ricos filões, que atraíram novos colonos, incluindo alguns habitantes de Santiago, que optaram por deixar as suas fazendas férteis no vale do Mapocho, e partir com as suas famílias para os misteriosos bosques do Sul, atraídos pela possibilidade de encontrar ouro e prata. Havia vinte mil índios a trabalhar nas minas e a produção era já quase tão boa como a do Peru. Entre os colonos que se foram embora, ia o oficial Juan Gõmez, mas Cecilia e os seus filhos não o acompanharam. «Eu fico em Santiago. Se queres afundar-te naqueles pântanos, vais sozinho», disse-lhe Cecilia, sem imaginar que as suas palavras seriam proféticas.
Ao despedir-se de Valdivia, Rodrigo de Quiroga aconselhou-o a não querer mais do que aquilo que podia controlar. Alguns fortes contavam apenas com um punhado de soldados e várias cidades estavam desprotegidas.
- Não há perigo, Rodrigo, os índios têm-nos dado muito poucos problemas. O território está conquistado.
- Parece-me estranho que os mapuche, cuja fama nos chegou até ao Peru, antes mesmo de empreendermos a conquista do Chile, não nos tenham combatido como esperávamos.
- Compreenderam que somos um inimigo demasiado poderoso para eles e dispersaram - explicou-lhe Valdivia.
- Se assim for, ainda bem, mas não te descuides.
Abraçaram-se efusivamente e Valdivia partiu sem se preocupar com as advertências de Quiroga. Durante vários meses, não tivemos notícias directas dele, mas chegaram-nos rumores de que fazia vida de turco, deitado entre os almofadões e engordando na sua casa de Concepción, a que chamava de «palácio de Inverno». Diziam que Juana Jimenez escondia o ouro das minas, que chegava em grandes quantidades, só para não ter de o partilhar nem declarar ao Rei. Acrescentavam, invejosos, que era tanto o ouro acumulado e ainda havia tanto por extrair nas minas de Quilacoya, que Valdivia era mais rico do que Carlos V. E é assim que esta gente se precipita em julgar o próximo. Recordo-te, Isabel, que quando morreu, Valdivia não deixou um único maravedi. A menos que Juana Jimenez, em vez de ter sido raptada pelos índios, como se crê, tenha conseguido roubar essa fortuna e fugir para parte incerta, a verdade é que o tesouro de Valdivia nunca existiu.
Tucapel era um dos fortes destinados a desencorajar os indígenas e proteger as minas de ouro e prata, ainda que só contasse com uma dúzia de soldados, que passavam os dias a vigiar a selva, entediados. O capitão que comandava o forte suspeitava que os mapucbe andavam a tramar alguma, apesar de manter com eles uma relação pacífica; uma ou duas vezes por semana, os índios traziam provisões ao forte; eram sempre os mesmos e os soldados, que já os conheciam, trocavam sinais amistosos com eles. No entanto, algo na atitude dos índios chamou a atenção do capitão, obrigando-o a capturar alguns deles que, depois de submetidos a tortura, revelaram que se estava a preparar uma enorme sublevação das tribos. Eu podia jurar que os índios só confessaram aquilo que Lautaro queria que os huincas soubessem, porque os mapucbe nunca vergaram perante a tortura. O capitão mandou pedir reforços, mas Pedro de Valdivia deu tão pouca importância a esta informação, que só mandou cinco soldados a cavalo para Tucapel.
Corria a Primavera de 1553 nos bosques aromáticos da Araucanía. O ar era quente e, à passagem dos cinco soldados, levantavam-se nuvens de insectos translúcidos e aves ruidosas. Subitamente, uma gritaria infernal interrompeu a idílica paz da paisagem e os espanhóis viram-se imediatamente rodeados por uma massa de assaltantes. Três deles caíram trespassados por lanças, mas dois conseguiram dar meia volta e galopar desesperadamente a mata-cavalo até ao forte mais próximo e pedir socorro.
Entretanto, os mesmos indígenas que, habitualmente, levavam as vitualhas, saudando os espanhóis com o ar mais submisso do mundo, apresentaram-se aos portões de Tucapel, como se não soubessem do suplício dos seus companheiros. Os soldados abriram as portas do forte e deixaram-nos entrar com as suas cargas. Uma vez chegados ao pátio, os mapuche abriram os sacos, tiraram as armas que traziam escondidas e avançaram sobre os soldados. Estes conseguiram recompor-se da surpresa e voar em busca das suas espadas e couraças para se defenderem. Nos minutos seguintes, ocorreu um verdadeiro massacre de mapuche e muitos foram feitos prisioneiros, só que o estratagema deu resultado, porque enquanto os espanhóis estavam ocupados com os índios que estavam dentro do forte, milhares de outros indígenas aproveitaram para rodear o forte. O capitão saiu com oito dos seus homens a cavalo para os enfrentar, decisão superiormente gloriosa, mas inútil, porque o inimigo era demasiado numeroso. Depois de uma luta heróica, os soldados que ainda estavam vivos retrocederam para o forte, onde a desigual batalha continuou durante o resto do dia, até que, finalmente, ao cair da noite, os atacantes se retiraram. No forte de Tucapel ficaram seis soldados, os únicos espanhóis sobreviventes, muitos yanaconas, para além dos índios capturados. O capitão tomou uma medida desesperada para espantar os mapucbe que aguardavam o amanhecer para voltar à carga. Tinha ouvido contar a lenda de como eu salvara a cidade de Santiago lançando as cabeças dos caciques às hostes indígenas e decidiu copiar a ideia. Mandou degolar os cativos e apressou-se a mandar as cabeças por cima da muralha. Um longo rugido, como uma terrível onda no mar revolto, acolheu o gesto.
Durante as horas seguintes, o cerco mapucbe ao forte foi engrossando, até que os seis espanhóis perceberam que a sua única salvação era tentar atravessar a cavalo as fileiras inimigas ao abrigo da noite e, assim, poder chegar ao forte mais próximo, em Purén. Isso significava abandonar os yanaconas à sua sorte, uma vez que não tinham cavalos. Não sei como os espanhóis conseguiram cumprir o seu audaz objectivo, porque o bosque estava infestado de indígenas, que tinham vindo de longe, chamados por Lautaro para a grande insurreição. Talvez os tivessem deixado passar com alguma intenção. De qualquer forma, à primeira luz da manhã, os índios, que tinham esperado a noite toda nos arredores, irromperam pelo forte abandonado de Tucapel e depararam-se com os restos mortais dos seus companheiros no pátio ensanguentado. Os infelizes yanaconas que ainda permaneciam no forte foram massacrados.
A notícia do primeiro ataque vitorioso chegou rapidamente aos ouvidos de Lautaro, graças ao sistema de comunicação que o mesmo tinha criado. O jovem nidoltoqui acabava de oficializar a sua união com Guacolda, depois de pagar o dote correspondente. Não participou na imensa bebedeira de celebração porque não era amigo do álcool e estava demasiado ocupado a planear a segunda fase da campanha. O seu objectivo era Pedro de Valdivia.
Juan Gómez, que tinha chegado ao Sul há uma semana, nem teve tempo de se preocupar com o ouro, que o levara a separar-se da sua família, porque recebeu o pedido de socorro do forte de Purén, onde os seis soldados sobreviventes de Tucapel se uniram aos onze que já lá estavam. Como qualquer oficial, tinha a obrigação de acudir à guerra quando era chamado e, por isso, não hesitou em fazê-lo. Gómez galopou até Purén e colocou-se à frente do pequeno destacamento. Depois de ouvir os detalhes do que tinha sucedido em Tucapel, não teve dúvidas de que não se tratava de uma escaramuça, como tantas outras no passado, mas de um levantamento maciço das tribos do Sul. Preparou-se para resistir o melhor possível, mas não havia muito a fazer com os escassos meios de que dispunha em Purén.
Dias depois, ao amanhecer, ouviram o habitual alarido e os sentinelas avistaram, no sopé da colina, um destacamento mapuche, que os ameaçava aos gritos, embora aguardando imóvel. Juan Gómez calculou que havia uns quinhentos inimigos para cada um dos seus homens, mas ele tinha a vantagem das armas, dos cavalos e da disciplina, que tanta fama conferia aos soldados espanhóis. Tinha grande experiência em lutar contra índios e sabia que era melhor enfrentá-los em campo aberto, onde a cavalaria conseguia manobrar à vontade e os soldados de infantaria podiam destacar-se mais. Por isso, decidiu sair e enfrentar o inimigo com o que tinha ao seu alcance: dezassete soldados a cavalo, quatro soldados armados e cerca de duzentos yanaconas.
As portas do forte abriram-se e o destacamento saiu encabeçado por Juan Gómez. Ao seu sinal, lançaram-se pelo monte abaixo num galope desenfreado, brandindo as suas temíveis espadas, mas foram apanhados de surpresa, porque, desta vez, os indígenas não correram em debandada, mas esperavam por eles em formatura. Já não se apresentavam despidos, levavam o peito protegido por uma couraça e, na cabeça, um capuz de pele de foca, tão resistente como as armaduras espanholas. Empunhavam lanças de três varas de comprimento, que apontavam ao peito dos animais, e pesadas mocas de punho curto, mais facilmente manejáveis do que os garrotes de outrora. Não se mexerem do sítio onde estavam e receberam de frente o impacto da cavalaria, que se espetou nas lanças. Vários cavalos ficaram a agonizar, mas os soldados recompuseram-se rapidamente. Apesar da espantosa mortandade produzida pelos ferros espanhóis, os mapuche não desanimaram.
Uma hora depois, ouviu-se o tam-tam inconfundível dos cultrunes e a massa indígena parou e retrocedeu, perdendo-se no bosque e deixando o campo semeado de mortos e feridos. O alívio dos espanhóis durou escassos minutos, porque logo outro milhar de guerreiros de reserva substituiu os que se tinham retirado. Os soldados não tiveram outra alternativa senão continuar a lutar. De hora a hora, os mapuche repetiram a mesma estratégia: os tambores soavam, desapareciam as hostes cansadas e entravam na batalha novas hostes frescas, enquanto os espanhóis se esgotavam. Juan Gómez compreendeu que era impossível opor-se a esta hábil manobra com o número reduzido de soldados que tinha. Os mapuche, divididos em quatro esquadrões, revezavam-se, de tal forma que, enquanto um grupo lutava, os outros três esperavam, descansando. Gómez foi obrigado a dar ordens de retirada para o forte, porque os seus homens, quase todos feridos, precisavam de comida e água.
Nas horas seguintes, trataram o melhor possível dos feridos e comeram. Ao entardecer, Juan Gomez considerou que deviam tentar mais um ataque, para não dar ao inimigo oportunidade de se recompor durante a noite. Vários dos homens feridos declararam que preferiam morrer a lutar; sabiam que se os índios entrassem no forte a morte seria inevitável e sem qualquer glória. Desta vez, Gómez comandava apenas uma dúzia de cavaleiros e meia dúzia de soldados a pé, mas isso não o amedrontou. Fez formar a sua gente e incentivou-os com palavras corajosas, encomendou-se a Deus e ao apóstolo de Espanha e, de seguida, ordenou que começasse o ataque.
O choque dos ferros e das mocas durou menos de meia hora, já que os mapuche pareciam desanimados, lutando sem a ferocidade da manhã de tal forma que, antes mesmo do esperado, bateram em retirada quando os cultrunes soaram. Gómez esperou que a segunda horda aparecesse, como tinha ocorrido de manhã, mas tal não aconteceu, pelo que, confuso, mandou os seus homens regressar ao forte. Não tinha perdido nenhum dos seus homens. Durante essa noite e todo o dia seguinte, os espanhóis esperaram pelo ataque inimigo, sem dormir, enfiados nas armaduras e empunhando as armas, mas como este não deu sinal de vida, convenceram-se, por fim, de que já não voltariam e então, de joelhos no pátio, deram graças ao apóstolo por tão estranha vitória. Tinham-nos derrotado sem saber como. Juan Gomes achou que não podiam permanecer isolados dentro do forte, esperando aflitos pela horrível gritaria que anunciava o regresso dos mapuche. A melhor alternativa era aproveitar a noite, durante a qual os indígenas raramente atacavam, por temor aos espíritos malignos, para enviar um par de velozes emissários a Pedro de Valdivia, anunciando o inexplicável triunfo, mas avisando-o de que estavam perante uma rebelião total das tribos e que, se não acabassem com ela de imediato, podiam perder todo o território a sul do Bío-Bío. Os emissários galoparam o mais depressa que a vegetação e a escuridão permitiam, com medo que os índios lhes caíssem em cima a qualquer momento, coisa que não aconteceu.
conseguiram viajar sem percalços e chegar ao seu destino ao amanhecer. Ficaram com a ideia de que, durante o seu trajecto, os mapuche os vigiavam escondidos por entre os fetos, mas, como não os atacaram, atribuíram a impressão aos nervos exaltados. Mal podiam imaginar que Lautaro queria precisamente que Valdivia recebesse a mensagem, e que só por isso os deixara passar, tal como fez com os mensageiros que transportavam a resposta do Governador, pedindo a Gómez que se reunisse com ele nas ruínas do forte de Tucapel no dia de Natal. O nidoltoqui tinha tudo cuidadosamente planeado, e então, quando soube, pelos diversos espiões que tinha em todo o lado, qual o conteúdo da mensagem sorriu, satisfeito; já tinha Valdivia exactamente onde queria. Mandou um esquadrão sitiar o forte de Purén, para aprisionar Juan Gómez e impedir que ele cumprisse as instruções recebidas, enquanto ele acabava de armar a cilada para o Taita em Tucapel.
Valdivia tinha passado os preguiçosos meses de Inverno em Concepción, vendo a chuva a cair e, entretido, a jogar às cartas, bem cuidado por Juana Jimenez. Tinha cinquenta e três anos, mas o coxear e o peso excessivo tinham-no envelhecido precocemente. Era hábil com as cartas e tinha sorte ao jogo, pois ganhava quase sempre. Os mais invejosos asseguravam que, ao ouro das minas, somava-se ainda o que arrebatava aos outros jogadores, e todo o conjunto ia parar aos misteriosos baús de Juana, que até ao dia de hoje ainda não foram encontrados. O desabrochar da Primavera já se anunciava nos rebentos e pássaros, quando lhe chegaram notícias confusas sobre uma sublevação indígena, que lhe pareceram um tanto ou quanto exageradas. Mais para cumprir com o seu dever do que por convicção, juntou cerca de cinquenta soldados e partiu, contrariado, para se reunir com Juan Gómez em Tucapel, disposto a acabar com os atrevidos mapuche, como tinha feito antes.
Fez a viagem de quinze léguas com a sua meia centena de cavaleiros e mil e quinhentos yanaconas num passo lento, pois tinham de acompanhar o ritmo dos carregadores. Pouco tempo depois de começarem a andar, a preguiça com que tinha começado a caminhada esfumou-se, de imediato, porque o seu instinto de soldado o avisou do perigo. Sentia-se observado por olhos ocultos na vegetação. Há mais de um ano que pensava na sua própria morte e teve o pressentimento de que podia acontecer brevemente, a qualquer momento, mas não quis inquietar os seus homens com a suspeita de que estavam a ser observados. Por precaução, mandou para a frente um grupo de cinco soldados para que tacteassem a rota e continuou a cavalgar devagar, enquanto procurava acalmar os nervos com a brisa morna e o intenso aroma dos pinheiros. Dado que, ao fim de duas horas, os cinco soldados não voltaram, a sua premonição foi tomando contornos cada vez mais reais. Uma légua mais à frente, um cavaleiro apontou, com uma exclamação de horror, para uma coisa que estava pendurada no ramo de uma árvore. Era um braço, ainda dentro da manga do jibão. Valdivia ordenou que prosseguissem com as armas prontas. Umas varas mais à frente viram uma perna com a bota calçada, também suspensa de uma árvore, e mais adiante outros trofeus, pernas, braços e cabeças, frutos sangrentos do bosque. «Vamos vingá-los!» gritavam os soldados furiosos, dispostos a lançar-se a galope à procura dos assassinos, mas Valdivia obrigou-os a refrear os seus impulsos. O pior que podiam fazer era separar-se, pois tinham de permanecer juntos até Tucapel, decidiu.
O forte ficava no cimo de uma colina despida, porque os espanhóis tinham cortado as árvores para o construir, muito embora o sopé do monte estivesse rodeado de vegetação. Lá de cima via-se um rio copioso. A cavalaria subiu a colina e chegou em primeiro lugar às ruínas envoltas em fumo, seguida pelas lentas filas de yanaconas com o resto dos apetrechos. De acordo com as instruções recebidas de Lautaro, os mapuche esperaram até que o último homem entrasse no forte para se fazerem anunciar com o som horripilante das flautas feitas de ossos humanos.
O Governador, que mal teve tempo para desmontar do cavalo, subiu aos troncos queimados da muralha e viu os guerreiros formados em esquadrões compactos, protegidos por escudos e com as lanças na terra. Os toquis de guerra estavam posicionados à frente, protegidos por uma guarda formada pelos seus melhores homens. Assombrado, pensou que aqueles bárbaros tinham descoberto por instinto a forma de lutar dos antigos exércitos romanos, a mesma que utilizavam os terços espanhóis. O cabecilha não podia ser outro senão aquele toqui de quem tinha ouvido falar durante todo o Inverno: Lautaro. Sentiu-se sacudido por uma onda de raiva e deu conta de que tinha o corpo todo encharcado em suor. «Esse maldito terá a mais atroz das mortes!» exclamou.
Uma morte atroz. Há tantas no nosso reino, que nos pesarão para sempre na consciência. Tenho de fazer uma pausa para esclarecer que Valdivia não pôde cumprir a sua ameaça contra Lautaro, que viria a morrer, uns anos depois, lutando ao lado de Guacolda. Em pouco tempo, este génio militar semeou o pânico entre as cidades espanholas do Sul, que tiveram de ser evacuadas, e conseguiu chegar com as suas hostes até bem perto de Santiago. Naquela altura, a população mapuche estava dizimada pela fome e pela peste, mas Lautaro continuava a lutar com um pequeno exército, muito disciplinado, que incluía mulheres e crianças. Dirigiu a guerra com uma astúcia magistral e soberba coragem durante muito poucos anos, mas foi o suficiente para inflamar a insurreição mapuche que ainda perdura nos dias de hoje. Pelo que me dizia Rodrigo de Quiroga, muito poucos generais da história universal podem ser comparados a este jovem, que transformou um monte de tribos despidas no mais temível exército da América. Depois da sua morte, foi substituído pelo toqui Caupolicán, tão corajoso como ele mas menos sagaz, que acabou por ser feito prisioneiro e condenado a morrer empalado. Diz-se quando o viu arrastado por correntes, a sua mulher, Fresia, lhe lançou o filho de poucos meses para os pés e exclamou que não queria amamentar o descendente de um vencido, mas esta história parece-me mais outra lenda da guerra, como a da Virgem que apareceu no céu durante uma batalha. Caupolicán aguentou sem um queixume o espantoso suplício de ter um pau afiado a atravessar-lhe lentamente as entranhas, como relata nos seus versos o jovem Zurita. Ou era Zúniga? Só Deus sabe como me esqueço dos nomes e quantos erros haverá neste relato. Felizmente, eu não estava presente quando torturaram Caupolicán, tal como nunca estive quando aplicavam o frequente castigo da «desgovernação», que consistia em cortar de uma machadada só metade do pé direito dos indígenas rebeldes. Porém, esta punição não era coisa que os demovia já que, mesmo coxos, continuavam a lutar. E quando cortaram as mãos a outro cacique, de nome Galvarino, este conseguiu que lhe amarrassem as armas aos pulsos só para regressar ao campo de batalha. Depois destes horrores, não podemos esperar clemência da parte dos indígenas. A crueldade dá origem a mais crueldade, como num ciclo eterno.
Valdivia dividiu a sua gente em grupos, liderados pelos soldados a cavalo e seguidos pelos yanaconas, e mandou-os descer a colina. Não pôde mandar a cavalaria a galope, como era usual, porque percebeu que esta se espetaria nas lanças dos mapuche, que, pelos vistos, tinham aprendido as tácticas europeias. Antes tinha de conseguir desarmar os lanceiros. No primeiro embate, os espanhóis e os yanaconas ganharam vantagem e, passados alguns instantes de luta intensa e impiedosa, mas breve, os mapuche retiraram-se em direcção ao rio. Um alarido de triunfo celebrou a sua retirada e Valdivia ordenou que as tropas regressassem ao forte. Os seus soldados estavam certos da vitória, mas ele sentia-se bastante inquieto, porque os mapuche tinham agido impecavelmente. Do cimo da colina, viu-os a lavar as feridas no rio e a beber água, alívio que os seus homens não tinham. Nesse momento, ouviu-se uma grande gritaria e, do bosque, emergiram novas tropas indígenas, frescas e disciplinadas, tal como tinha acontecido em Purén com o grupo de Juan Gómez, coisa que Valdivia ignorava. Pela primeira vez, o capitão-general apercebeu-se da gravidade da situação; ele que, até àquele preciso momento, se considerava amo e senhor da Araucanía.
Durante o resto do dia, a batalha continuou nos mesmos moldes. Os espanhóis, feridos, sequiosos e esgotados, enfrentavam em cada ronda uma hoste mapuche descansada e bem alimentada, enquanto os que tinham acabado de lutar se refrescavam no rio. As horas passavam, os espanhóis e os yanaconas iam caindo e os tão esperados reforços de Juan Gómez não chegavam.
Não há ninguém no Chile que não conheça os terríveis acontecimentos daquele trágico Natal de 1553, mas há várias versões e quero aqui contar o que ouvi dos lábios de Cecilia. Enquanto Valdivia e as suas reduzidas tropas se defendiam com dificuldade em Tucapel, Juan Gómez estava retido em Purén, onde os mapuche o mantiveram sitiado durante três dias, sem dar qualquer sinal de vida. Passou-se a manhã e parte da tarde numa espera ansiosa, até que, finalmente, Gómez não aguentou mais e saiu com um grupo para revistar o bosque. Nada. Não se via um único índio. Foi então que suspeitou que o cerco ao forte tinha sido um estratagema para os distrair e impedir que se reunissem com Pedro de Valdivia, como este tinha ordenado. Assim, enquanto eles se entregavam à ociosidade em Purén, o Governador aguardava-os em Tucapel e, caso já tivesse sido atacado, o que era o mais provável, a sua situação devia ser desesperada. Sem vacilar, Juan Gómez ordenou aos catorze homens saudáveis que ainda lhe restavam que montassem os melhores cavalos e o seguissem imediatamente até Tucapel.
Cavalgaram durante toda a noite e, na manhã do dia seguinte, encontraram-se nas imediações do forte. Conseguiam ver a colina, o fumo do incêndio e grupos dispersos de mapuche, bêbados da guerra e do muday, brandindo cabeças e membros humanos, os restos mortais dos espanhóis e yanaconas derrotados no dia anterior. Horrorizados, os catorze homens entenderam que estavam rodeados e teriam a mesma sorte dos homens de Valdivia, só que os indígenas intoxicados estavam a celebrar a vitória e não os enfrentaram. Os espanhóis esporearam as suas já muito exaustas montadas e subiram pela colina, abrindo caminho com as espadas por entre os escassos bêbados que se puseram à sua frente. O forte estava reduzido a um monte fumegante de escombros. Procuraram Pedro de Valdivia por entre os cadáveres e corpos mutilados, mas não o encontraram. Uma tina de água suja permitiu-lhes saciar a sede a homens e cavalos, mas não tiveram tempo para mais nada, porque, naquele mesmo instante, começavam a subir pela ladeira milhares e milhares de indígenas. Não eram os bêbados que tinham visto antes, mas estes tinham saído das copas das árvores, sóbrios e ordeiros. Os espanhóis, que não se podiam defender no forte em ruínas, onde tinham ficado presos, voltaram a montar as sofridas criaturas e lançaram-se pelo monte abaixo, dispostos a abrir caminho por entre os índios. Num ápice, viram-se rodeados por mapuche e começou uma luta sem trégua que duraria o resto do dia. É difícil acreditar que os homens e animais, que tinham galopado desde Purén durante a noite inteira, resistissem hora após hora de combate durante aquele fatídico dia, mas eu já vi os espanhóis a lutar e lutei a seu lado, pelo que sei do que somos capazes. Finalmente, os soldados de Gómez conseguiram agrupar-se e fugir, seguidos de perto pelas hostes de Lautaro. Os cavalos não aguentavam mais e o bosque estava pejado de troncos caídos e outros obstáculos que impediam as bestas de correr, mas não incomodavam os índios, que surgiam por entre as árvores e interceptavam os cavaleiros.
Estes catorze cavaleiros, os mais bravos de entre os bravos, decidiram, então, sacrificar-se um a um para deter o inimigo, enquanto os seus companheiros tentavam avançar. Não discutiram, não tiraram à sorte, ninguém lhes ordenou que o fizessem. O primeiro despediu-se dos demais, parou o seu cavalo e voltou-se para enfrentar os perseguidores. Lutou, soltando centelhas com a sua espada, decidido a combater até ao último suspiro, porque se fosse feito prisioneiro teria uma sorte mil vezes pior. Em poucos minutos, cem mãos derrubaram-no do cavalo e atacaram-no com as mesmas espadas e facas que tinham tirado aos espanhóis vencidos de Valdivia.
Os escassos minutos que aquele herói ofereceu aos seus amigos, foram suficientes para que se adiantassem um pouco, mas depressa foram alcançados pelos mapuche. Um segundo soldado decidiu imolar-se, também gritou um último adeus e deteve-se de frente para a massa de índios, ávidos de sangue. Logo de seguida, um terceiro teve a mesma sorte. E, assim, caíram seis soldados. Os oito restantes, alguns deles feridos, continuaram a corrida desesperada até chegar a um desfiladeiro, onde outro teve de se sacrificar para que os demais passassem. Também aquele foi despachado em poucos minutos pelos índios. Foi então que o cavalo de Juan Gómez, exausto e a sangrar de várias feridas no dorso causadas por flechas, caiu de bruços no solo. A noite já tinha caído sobre o bosque e era quase impossível avançar.
- Monte na minha garupa, capitão! - ofereceu-lhe um dos soldados.
- Não! Continuem e não vos atraseis por minha causa! - ordenou-lhes Gómez, sabendo que estava ferido e calculando que o cavalo não aguentaria com o peso de dois homens.
Os soldados tiveram de lhe obedecer e continuar em frente, tacteando na obscuridade, perdidos, enquanto ele se embrenhava cada vez mais na vegetação. Depois de muitas horas absolutamente terríveis, os seis sobreviventes conseguiram chegar ao forte de Purén e avisar os seus camaradas antes de desfalecerem de cansaço. Ali, aguardaram apenas o tempo necessário para estancar o sangue das feridas e dar um pouco de descanso aos cavalos, antes de empreenderem uma marcha forçada até La Imperial, que naquela altura era uma simples aldeia. Os yanaconas carregavam em macas os feridos que tinham hipótese de sobreviver, mas os moribundos tiveram um fim rápido e honroso, para que os mapuche não os encontrassem vivos.
Entretanto, Juan Gómez caminhava enterrando os pés, porque as chuvas do Inverno recente tinham convertido a zona num lamaçal espesso. Apesar de sangrar de vários golpes, extenuado, com sede e sem comer há dois dias, não se entregou à morte. A visibilidade era quase nula, sendo obrigado a avançar lenta e penosamente, tacteando entre as árvores e o matagal. Não podia esperar pelo amanhecer, a noite era a sua única aliada. Escutou claramente os gritos de triunfo dos mapuche quando encontraram o seu cavalo caído e rezou para que o pobre animal, que o tinha acompanhado em tantas batalhas, estivesse morto. Os índios tinham por hábito torturar os animais feridos para se vingarem dos donos. O cheiro a fumo indicou-lhe que os seus perseguidores tinham acendido tochas e procuravam-no por entre a vegetação, certos de que o cavaleiro não podia estar longe. Tirou a armadura e a roupa e enterrou-as na lama e depois, nu, escondeu-se na lama. Os mapuche estavam muito perto, pois conseguia ouvir as suas vozes e ver a luz das tochas.
Neste ponto preciso da narração, Cecilia, cujo macabro sentido de humor parece espanhol, contorcia-se às gargalhadas ao relatar-me o sucedido naquela espantosa noite. «O meu marido acabou enterrado na lama, tal como o avisei que ia acontecer», dizia a princesa. Com a sua espada, Juan Gomez cortou uma cana e, em seguida, submergiu completamente naquele putrefacto lodaçal. Não sei quantas horas esteve enterrado na lama, nu, com as fendas abertas, encomendando a sua alma a Deus e pensando nos seus filhos e em Cecilia, aquela bela mulher que tinha deixado o seu palácio para o seguir até ao fim do mundo. Os mapuche passaram várias vezes ao seu lado, sem imaginar que o homem que procuravam estava enterrado na lama, abraçado à sua espada, mal conseguindo respirar pelo orifício de uma cana.
A meio da manhã seguinte, os homens que marchavam em direcção a La Imperial, viram um ser fantasmagórico, coberto de sangue e barro, que se arrastava por entre a densa vegetação. Ao ver a espada, que nunca tinha largado, reconheceram logo Juan Gomez, o capitão dos famosos catorze.
Pela primeira vez desde a morte de Rodrigo, ontem à noite consegui descansar durante várias horas. No sono leve do amanhecer senti um peso no peito que me apertava o coração e não me deixava respirar, mas não senti angústia, antes um grande sossego e felicidade, porque compreendi que era o braço de Rodrigo, que dormia a meu lado, como nos bons velhos tempos. Permaneci imóvel, com os olhos fechados, agradecida por sentir aquele doce peso. Queria perguntar ao meu marido se, finalmente, tinha vindo buscar-me, dizer-lhe que me tinha feito muito feliz durante os trinta anos que partilhámos e que só lamentei as suas longas ausências de guerreiro. Mas tive medo de que, ao falar, ele desaparecesse; nestes meses de solidão, verifiquei que os espíritos são muito tímidos. Com a primeira luz da manhã, que entrou pelas frinchas dos postigos, Rodrigo saiu do meu lado, deixando a impressão do seu braço sobre mim e o seu cheiro na almofada. Quando as criadas chegaram, já não havia sinais da sua presença no meu quarto. Apesar da felicidade que aquela noite de amor me proporcionou, parece que acordei com má cara, porque as mulheres foram chamar-te, Isabel. Não estou doente, filha, não me dói nada, sinto-me melhor do que nunca, por isso não olhes para mim com essa cara de funeral; mas vou ficar deitada durante mais um bocadinho, porque tenho frio. Se não te importas, gostaria de aproveitar para te ditar mais um pouco.
Como sabes, Juan Gomes saiu com vida daquela provação, ainda que tivesse demorado meses até curar as feridas infectadas. Abandonou a ideia do ouro, regressou a Santiago e, no entanto, ainda vive com a sua esplêndida mulher, que já deve ter uns sessenta anos, embora esteja igual ao que era quando tinha trinta, sem rugas nem cabelos brancos, não sei se por milagre ou feitiçaria. Aquele Dezembro fatídico foi o início da insurreição dos mapucbe, uma guerra sem tréguas que não terminou nestes últimos quarenta anos, nem tem data para acabar, porque enquanto houver um só índio e um espanhol vivos, o sangue há-de correr. Devia odiá-los, Isabel, mas não sou capaz. São meus inimigos, mas admiro-os; se estivesse no lugar deles, também eu morreria a lutar pela minha terra, tal como eles morrem.
Há vários dias que ando a evitar falar do fim de Pedro de Valdivia. Procurei não pensar nisso durante vinte e sete anos, mas suponho que chegou a hora de o fazer. Queria acreditar na versão menos cruel, segundo a qual Pedro se bateu até ser derrubado por uma bordoada na cabeça, mas Cecilia ajudou-me a descobrir a verdade. Apenas um yanacona conseguiu escapar do desastre de Tucapel para contar o que tinha acontecido naquele Natal, embora não soubesse nada da sorte do Governador. Dois meses mais tarde, Cecilia veio ver-me e disse-me que havia uma rapariga mapuche, recém-chegada da Araucanía, a servir na sua casa. Cecilia sabia que a índia, que não falava uma única palavra de castelhano, fora encontrada perto de Tucapel. Mais uma vez, o mapudungu aprendido com Felipe - agora Lautaro - foi bastante útil. Cecilia trouxe-me a rapariga e pude falar com ela. Era uma jovem de uns dezoito anos, baixa, de feições delicadas, com umas costas fortes. Como não entendia o nosso idioma, parecia meio lerda, mas quando lhe comecei a falar em mapudungu, percebi que era muito despachada. Isto foi o que pude apurar do relato do yanacona que sobreviveu em Tucapel e do que aquela mapuche, que tinha estado presente na execução de Pedro de Valdivia, me contou.
O Governador encontrava-se nas ruínas do forte, lutando desesperado com um punhado de valentes contra milhares de mapuche, que se renovavam em frescos esquadrões, enquanto eles não podiam dar descanso às suas espadas. Passou-se um dia inteiro de lutas. Ao entardecer, Valdivia perdeu a esperança de que Juan Gomez acudisse com os seus reforços. Os seus homens estavam exaustos, os cavalos sangravam tanto quanto os soldados e, pela colina acima, continuavam a subir obstinadamente novos destacamentos inimigos.
- Senhores, que faremos? - perguntou Valdivia aos nove homens que continuavam de pé.
- Que quer vossa mercê que façamos, a não ser continuar a lutar até morrer? - respondeu um dos soldados.
- Então, façamo-lo com honra, senhores!
E os dez resistentes espanhóis, seguidos pelos yanaconas que ainda estavam de pé, lançaram-se à luta para morrer honradamente, com as espadas ao alto e o nome do apóstolo Santiago nos lábios. Em poucos minutos, oito soldados foram arrancados dos seus cavalos por boleadeiras e laços, arrastados pelo chão e massacrados por centenas de mapuche. Só Pedro de Valdivia, um frade e um fiel yanacona, conseguiram romper o cerco e fugir pelo único caminho aberto entre os índios, já que todos os outros estavam bloqueados pelo inimigo. Escondido no forte, havia outro yanacona, que aguentou a fumarada do incêndio debaixo de um monte de escombros e conseguiu escapar com vida dois dias depois, quando os mapuche já se tinham retirado. O caminho aberto para Valdivia tinha sido habilmente planeado por Lautaro. Era um beco sem saída que, através do bosque escuro, conduzia a um lodaçal, onde as patas dos cavalos se afundaram, exactamente como Lautaro tinha calculado. Os fugitivos não podiam retroceder, porque tinham o inimigo no seu encalço. Durante a tarde, centenas de índios começaram a sair dos matagais, enquanto eles se afundavam irremediavelmente naquele lodo pútrido, que exalava um hálito sulfuroso a inferno. Antes que o pântano os tragasse, foram resgatados pelos mapuche, porque não era esse o fim que lhes estava planeado.
Ao ver-se encurralado, Valdivia quis negociar a sua libertação com o inimigo, prometendo que abandonava as cidades fundadas a sul, que os espanhóis se iriam embora de vez da Araucanía e que, além disso, lhes daria ovelhas e outros bens. O yanacona começou a traduzir o que Pedro dizia, mas antes mesmo de acabar, os índios caíram-lhe em cima e mataram-no. Tinham aprendido a desprezar as promessas dos huincas. Ao frade, que tinha formado uma cruz com dois paus e se preparava para dar a extrema-unção ao yanacona, como tinha feito um pouco antes com o Governador, destroçaram-lhe o crânio com uma só cacetada. E foi então que começou o martírio de Pedro de Valdivia, o mais odiado dos inimigos, a encarnação de todos os abusos e crueldades infligidas ao povo mapuche. Não se tinham esquecido dos milhares de mortos, dos homens queimados, das mulheres violadas, das crianças esventradas, das centenas de mãos que o rio levou, dos pés e narizes mutilados, dos chicotes, das correntes e dos cães.
Obrigaram o cativo a presenciar a tortura dos yanaconas sobreviventes de Tucapel e a profanação dos cadáveres dos espanhóis. Arrastaram-no pelo cabelo, nu, até ao local onde Lautaro o esperava. No trajecto, as pedras e caules afiados do bosque rasgaram-lhe a pele e, quando o depositaram aos pés do nidoltoqui, era um farrapo coberto de lama e sangue. Lautaro ordenou que lhe dessem de beber, para o acordar do desmaio, e que o atassem a um poste. Simbolicamente, partiu a espada de Toledo, companheira inseparável de Pedro de Valdivia, em duas partes e atirou-as para o chão, aos pés do prisioneiro. Assim que este se recompôs o suficiente para abrir os olhos e dar-se conta do sítio onde estava, encontrou-se frente a frente com o seu antigo criado. - Felipe! exclamou, esperançado, porque pelo menos sempre era uma cara conhecida e podia falar com ele em castelhano. Lautaro fixou-o, com um desprezo infinito. - Não me reconheces, Felipe? Sou o Taita -, insistiu o cativo.
Lautaro cuspiu-lhe na cara. Tinha esperado por aquele momento durante vinte e dois anos.
A uma ordem do nidoltoqui, os mapuche, em êxtase, desfilaram perante Pedro de Valdivia com afiadas conchas de amêijoa, e com elas tiraram-lhe pedaços de carne do seu corpo. Fizeram uma fogueira e, com as mesmas conchas, arrancaram-lhe os músculos dos braços e das pernas, assaram-nos e comeram-nos à sua frente. Esta orgia macabra durou três noites e dois dias, sem que a mãe Morte socorresse o infeliz cativo. Finalmente, ao amanhecer do terceiro dia, e vendo que Valdivia estava prestes a morrer, Lautaro verteu-lhe ouro derretido na boca, para que se fartasse do metal que tanto amava e que tanto sofrimento causara aos índios nas minas.
Ai, que dor, que dor! Estas recordações são lanças que se cravam aqui, bem no meio do meu peito. Que horas são, filha? Porque estamos às escuras? As horas devem ter retrocedido, e deve ser de novo alvorada. Acho que o amanhecer será eterno...
Os restos mortais de Pedro de Valdivia nunca foram encontrados. Dizem que os mapuche devoraram o seu corpo inteiro num ritual improvisado, que fizeram flautas com os seus ossos e que o seu crânio serve até hoje como recipiente para o muday dos toquis. Perguntas-me, filha, porque me agarro à terrível versão da criada de Cecilia, em vez da outra, mais misericordiosa, segundo a qual Valdivia foi executado com uma pancada desferida na cabeça, como escreveu o poeta e como era costume dos índios do Sul. Vou dizer-te porquê. Durante aqueles três dias aziagos de Dezembro de 1553, estive muito doente. Foi como se a minha alma soubesse o que a minha mente ainda desconhecia. À frente dos meus olhos, desfilavam imagens horrendas, como um pesadelo do qual não conseguia acordar. Parecia-me ver dentro da minha casa os cestos cheios de mãos e narizes amputados, no meu pátio, os índios carregados de correntes e outros, empalados, o ar cheirava-me a carne humana queimada e a brisa da noite trazia-me os estalos dos chicotes. Esta conquista fez-se à custa de muito sofrimento... Ninguém pode perdoar tanta crueldade e, muito menos, os mapuche, que jamais esquecem as ofensas, assim como não esquecem os favores recebidos. Atormentavam-me as recordações, como se estivesse possuída pelo demónio. Já sabes, Isabel, que, excepto alguns sobressaltos do coração, sempre fui uma mulher sã, com a graça de Deus, por isso não tenho outra explicação para a doença que me atacou naqueles dias. Enquanto Pedro suportava o seu fim horrendo, a minha alma acompanhava-o à distância, chorava por ele e por todas as vítimas de todos aqueles anos. Caí prostrada com vómitos tão intensos e febres tão ardentes, que chegaram a temer pela minha vida. No meu delírio, ouvia claramente os gritos de Pedro de Valdivia e a sua voz a despedir-se de mim pela última vez: «Adeus, Inés da minha alma...»
Isabel Allende
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