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Capítulo 18
Na noite seguinte, Jack abriu a porta da frente para Gray Bennett. Era óbvio que o amigo não estava feliz.
- Onde você se enfiou? Não me ligou de volta e... Deus, o que aconteceu com você?
- Acidente de carro.
Ele conduziu Gray ao escritório e fechou a porta.
Jack lentamente se acomodou na cadeira, pensando que queria muito voltar a se mover com liberdade. Os machucados sumiriam logo, mas o maldito braço ainda encheria o saco por um mês e meio.
- Meu Deus – Gray o examinou por um minuto e então tirou o casaco e o jogou no sofá. – Você está bem?
- Sim, só meio batido.
- Bem, fico feliz que não tenha sido pior. Mesmo assim você deveria ter me ligado de volta. O que você está fazendo começou a ganhar vida própria e você precisa se manter atualizado, para seu próprio bem.
- Eu sei – mas apaixonar-se fazia um homem pensar em outras coisas além de política. – Agora sente-se e me diga o que preciso saber.
Gray sentou em uma poltrona e cruzou as pernas. Então, começou a bater o pé no chão.
- Preciso me preocupar com alguma coisa? – Jack perguntou calmamente.
- Recebi uma ligação de Nova York e tive que vir conversar pessoalmente. Há um boato de que você e Blair terminaram o noivado. Quer me contar o que está acontecendo?
O telefone ao lado de Jack começou a tocar e ele o silenciou.
- Terminamos. Eu terminei, na verdade. Eu tinha cometido um erro terrível e, como a maioria dos lapsos de julgamento, não percebi até que alguém saísse ferido. Sinto muito pelo que aconteceu, mas terminar tudo foi a decisão certa.
O pé de Gray parou.
- Sou antes de tudo seu amigo, então tenho que perguntar: como você está?
- Bem. Mas me sinto um merda por ter feito Blair passar por tudo isso.
- Bem, sinto muito que não deu certo. Ela é uma ótima mulher – houve uma pausa. – Agora, como sou também seu consultor político, precisamos falar de negócios.
- Diga.
Jack puxou a tipoia e reposicionou o braço quebrado em cima do peito, tentando aliviar a tensão no ombro. Já era tempo de ter uma reunião com Gray, e ele estava preparado a passar uma hora ou duas com o amigo, se necessário.
- Falaremos sobre as consequências do término do noivado daqui a pouco. Primeiro, a eleição. Está chegando a hora de decidir. Os boatos estão crescendo, embora ainda falte um ano para a abertura das urnas. Quero saber, sinceramente, o que você tem em mente. Vai se candidatar?
- A não ser que alguma coisa drástica aconteça, sim.
- Bom. A partir desta semana, vou procurar discretamente por um diretor de campanha. Conheço uns bons, e se dermos sorte ainda não estarão ocupados. Isso é outro motivo pelo qual é importante decidir agora.
Gray juntou a ponta dos dedos e observou Jack.
– Agora, sobre Blair. Fico feliz por não ter anunciado o noivado, mas, se teve que terminar um relacionamento tão perto de uma eleição, é bom que tenha sido com ela. É uma mulher de integridade, então podemos supor que não aparecerá de surpresa com um livro de revelações sobre você.
Jack inclinou a cabeça.
- Blair nunca faria nada assim. Não temos nada com que nos preocupar.
- Da parte dela, talvez – Gray se levantou e começou a andar pelo escritório. – Acho que precisamos fazer certo controle de danos mesmo assim. Outras pessoas sabem que você a pediu em casamento. Se vazasse a notícia que você terminou o noivado por causa de outra mulher...
- Quem disse algo sobre outra mulher?
O amigo o olhou secamente.
- Nem tente me enganar.
- Não estou negando. Só quero saber sua fonte.
- Karl Graves.
Jack contraiu os lábios.
- Então todo mundo em Manhattan sabe?
- Acho que não. Conheço Karl há algum tempo e ele ligou porque estava preocupado com Blair e queria saber o que tinha acontecido entre vocês – Gray colocou as mãos sobre a escrivaninha e se inclinou. – Mas você não quer esse tipo de atitude de playboy nos jornais, e é isso que importa. Acho que, por enquanto, é melhor que eu seja seu representante de imprensa. Melhor eu responder às questões, supondo que haja alguma. Isso vai lhe dar alguma proteção.
- Certo.
Jack olhou para fora da janela.
- Olhe, não quero que se preocupe. Posso lidar com o que quer que aconteça. Meu trabalho é garantir que as pessoas o levem a sério, e estarei preparado.
Jack abanou a cabeça, pensando em todas as manchetes sobre si ao longo dos anos. Um noivado rompido se adequava perfeitamente ao padrão.
- Gray, acha que sou louco por concorrer?
- Não. Mas você tem algumas desvantagens para superar – o amigo se endireitou. – Nunca teve um cargo público, o que é um argumento contra você. É bem-sucedido nos negócios, e Deus sabe que o nome da família trabalha em seu favor, mas será julgado por aqueles anos de bad boy. O bom é que, enquanto você esteve com Blair, só apareceu nos jornais por bons motivos. Só estou preocupado agora, porque não quero que essa história com ela comece uma avalanche antes de você revelar suas propostas. Quanto mais os eleitores souberem sobre você antes de ser lembrados do seu passado, melhor. O que é mais um motivo para fazer o anúncio logo.
- Você mencionou controle de danos. Quer que eu fale com Blair?
- Não, não estou preocupado com ela – houve uma pausa. – Quero que fale com Callie.
Jack franziu o cenho.
- Sobre o quê?
- Foi ela que o fez mudar de ideia sobre o noivado, não foi?
Quando ele assentiu, Gray disse:
- Planeja ficar com ela por muito tempo? Ou é só uma distração temporária?
- Que merda de pergunta é essa?
- Uma bem importante. E mais tarde podemos falar sobre por que quis me arranjar para a mulher se estava tão interessado nela.
Jack se levantou e foi ao bar.
- Quer um pouco de bourbon?
- Bradford’s?
- Tem outro tipo?
Jack deu a bebida a Gray e se sentou.
- Callie é muito mais que um caso. Estou apaixonado por ela.
O copo de Gray parou a meio caminho da boca.
- Meu Deus. Você está falando sério.
- Muito! Ela é tudo pelo que eu não estava procurando e exatamente quem eu quero.
Gray abanou a cabeça tristemente.
- Estou feliz por você. Muito feliz. Se pareço surpreso...
Jack riu.
- É inteiramente compreensível. E lembre-se, se pode acontecer comigo, pode acontecer...
- Não termine essa frase – Gray tomou um gole longo da bebida e cerrou os dentes. – De volta ao que interessa. Vou supor que Callie será um fator na eleição ano que vem. Ela precisa saber no que está se metendo, se ficar com você. Vai ser arrastada para o meio da briga, e é justo que esteja preparada.
Jack assentiu, mesmo odiando a verdade. A última coisa que queria era submeter Callie à avalanche da mídia, mas não podia ignorar o inevitável.
- Falarei com ela.
- E seria útil saber um pouco sobre o passado dela.
- Fácil.
Ele deu de ombros e recitou o currículo de Callie.
- E a família dela?
- Ela não fala muito sobre eles.
- Descubra por quê.
- Gray, não vou brincar de detetive particular com minha... - ele não sabia como terminar a frase. Amante? Namorada? Pareciam palavras tão fracas quando pensava no que sentia ao lado dela!
Enquanto ele lutava, o amigo disse suavemente:
- Precisamos saber.
Jack xingou baixinho, e Gray balançou a cabeça.
- Isso é só o começo. Pensou de verdade sobre o que a eleição vai fazer com sua vida? Tem certeza de que está pronto para o escrutínio?
- Quero ganhar – Jack tomou um gole. – Farei o que for necessário para conseguir. Mas não quero que Callie seja arrastada para esse jogo sujo. Estou disposto a aguentar os golpes, mas não aceitarei que ninguém a ataque.
Gray hesitou.
- Bem, talvez você deva considerar mais um pouco em que está se metendo. Sabe que eu nunca pensaria mal de você se desistisse. Pode fazer isso em qualquer momento antes de anunciar oficialmente a candidatura.
Houve uma batida na porta.
- Entre – Jack disse.
Callie enfiou a cabeça para dentro.
- Gray! Não sabia que viria. Vai ficar pro jantar?
Gray deu um sorriso fácil, terminou a bebida e colocou o copo na mesa.
- Não, estava de saída – ele apanhou o casaco. – Falo com você depois, Jack?
Jack assentiu, olhando para Callie.
Quando estavam sozinhos, ela franziu a testa.
- Por que está me olhando desse jeito?
Porque estou preparado para matar qualquer um que tente ir atrás de você, ele pensou.
- Jack?
Ele estendeu o braço bom.
- Desculpe. Venha aqui para eu te beijar.
Ela fechou a porta e atravessou o cômodo. Enquanto a via, Jack sentiu o sangue pulsar nas veias e olhou fixamente para sua boca. Ele não conseguia acreditar que sua atração estivesse ainda fresca depois de ficarem juntos tantas vezes. Que ele pudesse querer tanto alguém, mesmo quando já a tivera, era uma novidade.
É o amor, Jack pensou.
Ele a colocou no colo e passou uma mão sobre a perna dela.
- Sabe de uma coisa?
- O quê?
- Você é linda.
Ele pressionou a boca contra a dela.
Enquanto ela se ajeitava sobre seu colo, Jack pensou sobre o que Gray dissera. Ele considerara as consequências de concorrer? Butch Callahan não desistiria sem uma briga séria, e todos os outros candidatos queriam vencer tanto quanto Jack.
O que significava que as luvas seriam retiradas. E seria um vale-tudo.
A questão era: o quanto ele queria ganhar? E o quanto estava disposto a sacrificar para garantir que isso acontecesse?
- Jack?
- Hmmm?
- Você sai de férias de vez em quando?
Ele afastou o cabelo de Callie e beijou seu ponto preferido no pescoço dela, atrás da orelha.
- O que tem em mente?
- Talvez depois das festas pudéssemos ir ao Norte do estado. Só pelo fim de semana. Não ficaríamos longe por tanto...
Ele a interrompeu com um beijo demorado.
- Vamos tirar uma semana.
O sorriso que ela deu fez Jack pensar que não seria má ideia ficar longe por mais tempo ainda.
Mais tarde, naquela semana, eles estavam na cama e Callie estava prestes a cair no sono quando ele disse:
- Quero perguntar uma coisa.
- O quê?
- Por que esperou tanto para tran... fazer amor com alguém?
Por um momento, ela não soube como responder. Diria a verdade, é claro, mas era difícil encontrar as palavras certas.
- Bom, além de ser introvertida, eu tive que trabalhar pra me sustentar durante a faculdade, então parecia que todo minuto do dia tinha algo pendente pra fazer. Quando me formei, minha mãe ficou doente e piorou rápido. Tinha esclerose múltipla, e quanto mais debilitada ficava, mais precisava de mim. Não tínhamos dinheiro para contratar uma enfermeira em tempo integral – ela deu de ombros. – É preciso tempo e energia para ter relacionamentos, e eu não tinha nenhum dos dois
Pelo desagrado na voz de Jack, ela sabia que ele estava franzindo a testa.
- Não deveria ter precisado lidar sozinha com a doença da sua mãe. E seu pai, onde estava?
- Era, ah... uma situação complicada.
Jack apoiou a cabeça na mão e deixou o gesso entre eles. Na penumbra, ela podia ver que ele a olhava com aquela intensidade característica.
- Então lidou com tudo sozinha?
- Não tive escolha – ela disse. – Lidei como pude, e às vezes não muito bem. Havia noites em que eu não conseguia suportar a pressão e teria feito qualquer coisa para sair de perto da minha mãe. Odeio lembrar de algumas coisas que senti. Ela não escolheu ficar doente, sofrer, murchar na própria pele até morrer. Mas eu me sentia tão... presa. Não queria deixá-la porque temia que algo acontecesse, mas às vezes só queria sair da casa. Eu poderia ter sido melhor. Poderia...
- Você ficou – ele retrucou. – É isso que conta.
Callie soltou a respiração em um suspiro.
- Queria refazer tanta coisa.
- Acho que está sendo dura demais consigo mesma – Jack pressionou os lábios de leve nos dela. – E não sei como seu pai pôde não fazer nada.
- Sinceramente, era mais fácil se ele não se envolvesse. As coisas às vezes ficavam bagunçadas quando ele estava por perto.
- Como ele era?
Ela olhou para o teto, pensando que provavelmente não havia problema em revelar alguns detalhes.
- Era... maior que a vida. Quando eu estava perto dele, sempre me sentia na presença de alguém grande. Era um homem alto, quase tanto quanto você, e eu me sentia minúscula. Insignificante.
- Vocês eram próximos?
- Nem um pouco. Ele era confiante, seguro de si, mas quando tentava falar comigo ficava encabulado. Acho que me evitava porque não gostava de como se sentia quando estava comigo. Pessoas poderosas tendem a ficar confortáveis só quando estão no controle de suas emoções.
- Que jeito para um pai se comportar! – Jack murmurou. – O que ele fazia da vida?
Ela o olhou nos olhos e começou a pensar em como mudar de assunto.
- Era um homem de negócios. Mas não sei muito sobre isso.
- Ele viajava muito? A trabalho?
- Acho que sim.
- Que tipo de negócios ele fazia?
Ela não respondeu, e Jack franziu a testa.
– Está escondendo bastante coisa, não é?
Callie continuou em silêncio, e ele a encarou por um longo momento.
- Vamos falar sobre outra coisa – ela sugeriu baixinho.
- Certo.
Ela ficou aliviada, até que ele disse:
- Por que não quer me falar sobre seu pai?
Callie se sentiu irritada.
- Só não quero, tudo bem?
- Não confia em mim?
- O que você quer dizer com isso?
- Se você precisa perguntar, acho que sei a resposta.
Ele se virou, deitando de costas.
- Simplesmente não estou interessada em falar sobre ele.
Jack virou a cabeça.
- Mas talvez eu queira saber.
Callie se sentou e abraçou os joelhos.
- Por quê? Está no passado. Ele morreu e eu superei quaisquer problemas que tivesse com ele. Não é mais um problema.
Houve uma longa pausa.
- Callie, precisamos conversar.
O tom dele era sério e ela sentiu-se encolher.
- Sobre o quê?
- Nós. O futuro.
Ela o olhou. Jack tinha ajeitado a cabeça na palma da mão boa e o peito nu estava só parcialmente coberto.
- No que está pensando? – ela perguntou, esperando poder suportar a resposta. Na noite do acidente, ele dissera que a amava, mas eles não tinham conversado sobre o que fariam depois que ela terminasse o retrato.
- Já considerou morar em Boston? – ele perguntou. – Poderia trabalhar daqui tanto quanto em Nova York.
O sorriso dela retornou.
- Verdade.
- E poderíamos nos ver bastante.
Ela se sentiu relaxar.
- Eu gostaria disso, Jack. De verdade.
Ele a puxou para baixo.
- Eu também – disse, contra a boca dela.
Beijou-a uma vez, e então parou.
- Sobre a eleição – ele alisou o cabelo dela para trás –, se eu decidir concorrer, vai ser difícil. Se estiver ao meu lado, precisará estar preparada.
- Para me abaixar se jogarem tomates em você?
- Bem, sim – ele riu baixinho. – Mas estava pensando mais sobre a imprensa. Você precisa estar preparada quando eles investigarem a sua vida.
Callie sentiu uma onda de terror frio que cancelou seu alívio momentâneo.
- O que quer dizer?
- A mídia e meus oponentes vão escrutinar tudo sobre mim. Meu passado, nosso relacionamento, suas origens, tudo vai ser examinado de perto.
Ela se endireitou em um instante, tentando imaginar o que aconteceria se alguém investigasse sua vida. O segredo do pai, que ela protegera por tanto tempo, seria um escândalo perfeito para os repórteres, se descobrissem. Ela já podia imaginar a cobertura.
E havia Grace para considerar. Callie prometera que nunca a trairia e, embora não fosse entregar a meia-irmã de propósito, o resultado seria o mesmo. O mundo inteiro saberia os detalhes da infidelidade do pai e Grace seria o alvo de mais ataques da mídia.
Jack se sentou, obviamente notando a preocupação dela.
- Será pior comigo, é claro, e Gray e eu cuidaremos de você.
Ela o examinou.
- Você disse se você concorresse. Há alguma chance de não concorrer?
Ele pareceu surpreso.
- Por que não me diz com o que está preocupada?
Ela considerou explicar tudo para ele e sentiu um nó na garganta. Provavelmente era melhor ficar quieta. A história não era só dela. Jack e Grace podiam ser amigos, mas quão próximos eram? Ela não quebraria a promessa de nunca falar com ninguém sobre o passado.
- Só não quero a imprensa na minha vida – ela disse. – Só isso.
Jack franziu a testa, os olhos brilhando.
- O que exatamente está escondendo?
Ela desviou o olhar.
- Conte-me, Callie.
- Não posso.
Houve uma pausa demorada e tensa.
- Por que não?
Como ela permaneceu em silêncio, Jack saiu da cama e começou a colocar a calça.
- Onde está indo? – ela perguntou.
- Não sei o que aconteceu no seu passado, mas é difícil imaginar que tipo de coisa você não poderia compartilhar comigo.
- Jack, não faça isso! – ela estendeu a mão, mas ele a rejeitou e colocou a camisa com movimentos rápidos. – Não sei por que importa tanto. Ainda não decidiu concorrer, não é?
Ele lhe deu um olhar duro.
- O que me preocupa é o quão pouco você confia em mim.
- Mas eu confio em você.
- Então me conte!
Quando ela continuou quieta, ele desviou o olhar.
- Meu Deus! – ele murmurou, enfiando os pés em chinelos. – Achei que, com você, eu nunca precisaria me preocupar com honestidade. Não acredito que está agindo desse jeito.
“Agindo desse jeito?”. Como se ela tivesse escolhido ser filha de um pai que ficara horrorizado com sua mera existência!
Uma onda de raiva defensiva impeliu Callie para fora da cama e ela enrolou o corpo em um cobertor.
- O que está realmente acontecendo, Jack? Está preocupado com nós dois? Ou que o meu passado possa influenciar seu sucesso nas urnas?
Ele parou.
- Vou tentar esquecer que você disse isso.
Ela fechou os olhos, imediatamente desejando retirar as palavras.
- Sinto muito.
- É, eu também – ele disse, indo para a porta.
- Jack, espere.
- Não quero conversar agora, se me dá licença.
Depois que ele saiu, Callie sentou-se na cama e fechou os olhos, sentindo o coração bater com força.
A necessidade de manter o segredo fora inculcada nela por tanto tempo que Callie não conseguia falar sobre ele com qualquer pessoa. Nem mesmo Jack.
Como ela tinha sido bem treinada! E desde cedo.
Ela se lembrava de ter onze anos e estar na Grand Central Station com a mãe. Enquanto esperavam o trem, Callie vira um homem de negócios lustrando os sapatos. O homem tinha um jornal na frente do rosto, mas ela percebera que era alguém como seu pai porque vestia o mesmo tipo de roupa.
Ela ficara observando o homem, perguntando-se como seria limpar os sapatos enquanto estavam nos pés, quando ele virara o jornal e ela vira uma foto do seu pai. Animada pela imagem, fora até lá e orgulhosamente começara a explicar ao homem de quem era filha.
A mãe a tinha puxado com força, se desculpando e sorrindo.
- Ela acha que todo homem de gravata é o pai.
- Não acho, não.
- Me perdoe.
O homem tinha assentido e voltado a ler, mas, enquanto Callie era arrastada para longe, viu que ele tinha abaixado o canto do jornal e lhes dava um olhar pensativo. A mãe havia notado e feito o máximo para bloquear a visão dele, levando Callie a um canto.
Ela estava obviamente perturbada.
- Você não pode fazer coisas assim. Lembra como eu disse que seu pai é um segredo? Um segredo entre nós três?
Claro que Callie se lembrava, mas estava cansada de ficar calada. O pai dela era o único que tinha que ficar escondido.
- Só estava contando para um desconhecido!
- Mas se você conta um segredo, o que acontece? – a mãe tinha perguntado.
- Você não tem mais que mantê-lo – ela retrucara, colocando as mãos no quadril.
- Não. Não, Callie, olhe pra mim. Se compartilha um segredo, o que acontece? Você perde algo especial.
Callie começou a abanar a cabeça. Estava cansada do sermão, de manter o segredo estúpido. Além disso, não era como se estivesse ganhando alguma coisa por ser uma boa menina. Não importava se ela seguia ou não as regras do pai, ele ainda não a olhava nos olhos quando vinha visitá-las.
- Callie, estou falando sério.
Naquele momento, ela não tinha se importado com quão brava a mãe estava.
- E daí? Se eu contar para as pessoas sobre o papai, vou perdê-lo? Quem se importa?
A mãe tinha apertado os ombros dela e se aproximado tanto que o nariz delas quase se tocaram.
- Se contar, nós duas vamos perdê-lo.
Olhando o rosto pálido da mãe, Callie sentira a luta se esvair dela.
De volta ao presente, ouviu o som de Artie caçando marmotas em sonho. Ela olhou para o lado da cama, vendo as patas dele estremecerem e ouvindo um resmungo profundo sair da sua garganta.
Como gostaria de ter outra história para contar! Mas não tinha.
E quebrar com todos aqueles anos de educação cuidadosa não era algo que podia fazer com facilidade. Depois de uma vida mantendo o segredo, parecia errado contar, mesmo que para Jack.
Se ela pudesse contar para alguém, certamente seria ele.
Mas e a eleição? A imprensa? Não era certeza que um repórter descobriria o que ela estava escondendo. Mas considerando o que havia a perder – no caso, a paz de espírito e a segurança de Grace – ela realmente estava disposta a arriscar que alguém descobrisse a verdade?
Artie estremeceu e soltou algo parecido com um latido.
- Acorde – ela murmurou, abaixando a mão e acariciando o cachorro. – Acorde, vamos!
Os olhos do cão se entreabriram e ele pareceu agradecido quando a viu. Talvez as marmotas estivessem perseguindo-o dessa vez.
De repente, Callie sentiu que sabia como era ser perseguida. Tentara superar o legado dúbio do pai por algum tempo, mas, droga, a história vinha se provando inescapável.
Ela acariciou a cabeça de Artie até ele cair no sono outra vez, então colocou um travesseiro contra a cabeceira e se encostou. Enquanto olhava o Caravaggio acima da lareira, deixou o debate entre o passado e o presente preencher as horas escuras e silenciosas.
Capítulo 19
Na manhã seguinte, Callie colocou uma coleira em Artie e saiu cedinho para dar uma volta com ele. Quando voltaram a Buona Fortuna, o cão estava exausto. Ao contrário dela, ele não precisava caminhar para se distrair da ansiedade e da inquietação, dois grandes energéticos ao lado da cafeína e de combustível de foguete.
Eles caminharam ao lado da estrada por quilômetros, até Weston, a cidade vizinha. Finalmente, Callie se forçou a voltar. Por mais nervosa que estivesse, andar até a fronteira de New Hampshire não faria nada além de desgastar seus tênis de caminhada. Além disso, Artie começava a ficar ofegante.
Quando se aproximaram da casa, as portas da garagem estavam abertas e o Jaguar da sra. Walker não estava lá dentro, o que significava que Jack tinha saído. Ele começara a usar o carro da mãe porque era automático, e ele não conseguia mudar de marcha com o braço engessado. Olhando a vaga vazia, Callie ficou decepcionada por ter perdido uma oportunidade de tentar se desculpar outra vez.
Depois de levar o cachorro à cozinha, disse bom dia a Thomas e voltou à garagem. Acabara de ligar as luzes e se sentar quando ouviu passos nas escadas. Virou-se e ficou surpresa ao ver Jack.
Seus olhos se encontraram, mas ele não sorriu.
– Achei que você tinha saído – ela disse, abaixando a vareta que estava prestes a enrolar com algodão.
– Vou trabalhar em casa hoje. – Ele atravessou o cômodo até uma janela, a mão no bolso da calça jeans, um suéter grosso destacando a cor preta do cabelo. A fraca luz do sol caiu sobre seu rosto enquanto ele examinava o céu.
– Sobre ontem à noite – ela começou –, quero me desculpar. Estava frustrada e brava...
– E sincera, talvez? – ele a olhou por sobre o ombro.
– Jack...
– Preciso deixar algo claro.
– Certo – ela disse, colocando as mãos nos joelhos e se inclinando para a frente para aliviar a tensão nos ombros.
– Eu disse que queria mais desse relacionamento do que sexo e um pouco de afeto. Sou ganancioso por natureza e não vou aceitar nada menos que o melhor. Nunca aceito. Quero você por inteiro, Callie. Não só as partes bonitas – ele a encarou. – Quero saber sobre seu passado, porque faz parte de você. Não porque estou preocupado sobre como isso vai me afetar.
– Acredito em você.
– Então converse comigo.
Ela começou a abanar a cabeça.
– Não é tão simples.
– Você diz que me ama, mas como pode me amar se não confia em mim o bastante para compartilhar sua vida comigo? Está achando que minha opinião sobre você mudará? Porque nada fará isso. Nada que você possa dizer me fará desistir de você.
Ela abaixou os olhos para as mãos e se perguntou se não estava realmente preocupada com isso. De fato achava que ele fugiria só porque ela era filha ilegítima? Claro que não.
A voz de Jack ficou mais dura.
– Vou dizer uma coisa, no entanto. Esse silêncio pode me afastar.
Callie o olhou, procurando em seu rosto a coragem que precisava encontrar em si mesma. Ela respirou fundo.
É Jack, ela disse a si mesma. É Jack. É Jack. É...
Sentindo como se pulasse em um buraco negro, ela disse de repente:
– Meus pais nunca foram casados.
A expressão dele mudou imediatamente. Era como se tivesse relaxado e se entristecido ao mesmo tempo.
– Meu pai era casado com outra mulher. Ele tinha uma família, toda uma vida, longe da minha mãe e de mim, e nós éramos a parte menor. Ele nunca me reconheceu de nenhum modo formal; seu nome nem está na minha certidão de nascimento.
Jack se aproximou e pôs a mão forte no ombro dela.
– Sinto muito.
– Eu... cresci sabendo que era a segunda escolha. Que ele amava minha mãe só o bastante para nunca deixá-la livre – ela se inclinou para Jack, descansando a cabeça no seu quadril. Ele deu um murmúrio baixinho, um incentivo para ela continuar falando misturado com a compaixão que estava obviamente sentindo. – Assisti o funeral dele de uma fileira de bétulas, a uns quarenta metros do túmulo. Só fiquei sabendo da cerimônia porque seguia minha meia-irmã sem que ela soubesse.
Ele afastou o cabelo dela do rosto.
– Eu... é difícil pra mim falar sobre isso porque nunca contei a ninguém antes. Fui ensinada a ficar quieta. Era o único jeito de mantê-lo em nossas vidas – ela tentou sorrir mas não conseguiu. – Velhos hábitos, sabe como é.
– Fico feliz que me contou.
Pondo os braços ao redor da cintura de Jack, ela murmurou:
– Eu também.
A mão dele esfregou círculos nas suas costas.
Callie inclinou a cabeça para encarar seus olhos.
– Não sei o que pensei que aconteceria se contasse a alguém. Contei pra você. Não é como se minha cabeça tivesse explodido. Acho que pensei que isso aconteceria – ela tentou rir, mas a tristeza ficou aparente. – Foi difícil quando eu estava crescendo. As outras meninas falavam dos pais com tanta... propriedade. Meu pai fez isso, meu pai fez aquilo. Eu tinha um pai. Depois de muito tempo esperando que ele se transformasse em quem eu queria que fosse, percebi que aquele pronome possessivo nunca soaria certo. Falar dele como “meu pai” era como criar alguém que não existia.
Jack tomou a mão dela e a levantou da cadeira.
– Venha aqui. Quero segurar você um pouquinho.
Era o que ela queria também.
Eles sentaram no sofá, e ele a puxou para o colo.
– Sabe que o mau julgamento do seu pai não foi culpa sua, não é?
– Eu sei.
– Você merecia muito mais do que isso.
Ela nunca pensara muito sobre a questão. Quando criança, tinha se preocupado demais em agradar. Quando adulta, se ocupara em tentar esquecer.
– Então estou perdoada? – ela disse contra o ombro dele.
– Claro.
– Não quero perder você.
– Não vou a lugar nenhum.
A mão dele acariciou o pescoço dela.
– Queria ter falado, mas...
Ele a silenciou com um beijo suave.
– Não se preocupe. Entendo completamente. E sobre a eleição, não quero que fique ansiosa. Isso não será um problema.
Ela se afastou.
– Como assim?
– A imprensa só se importaria se seu pai fosse conhecido. Podemos proteger você facilmente e dizer que não há nada digno de noticiar no seu passado.
– Não posso estar ouvindo direito – ela murmurou, não acreditando.
– Callie, não estou menosprezando o efeito que isso teve em você – ele disse. – De modo algum.
Ela começou a abanar a cabeça. Tinham voltado à estaca zero.
– Você não entende. Não quero responder às perguntas de ninguém, muito menos de jornalistas.
– Mas não precisa se preocupar. Vai ficar tudo bem. A mídia não vai se importar.
Callie apertou os ombros dele.
– Vai, sim.
Os olhos de Jack se estreitaram.
– Quem exatamente era seu pai?
Ela abaixou as mãos. Não podia ir tão longe, mesmo com Jack.
– Não basta saber o que aconteceu?
– Pelo visto, não. Quem era ele, Callie?
Ela se levantou e atravessou o cômodo.
– Você está me afastando de novo – ele disse, o tom sombrio.
– Pare de me pressionar!
– Callie – a voz dele era ríspida –, se estou pressionando você, é porque só tenho metade da história. Está deixando a parte mais importante de fora.
Ela se voltou.
– Pensei que a parte mais importante fosse eu!
– Não foi isso que eu quis dizer.
– Foi, Jack. Foi, sim. Está tentando me adequar aos seus planos.
– Porque quero você na minha vida – ele disse, jogando as mãos para o alto.
– Nas suas condições.
– Não diga isso, Callie. Estou tentando fazer isso funcionar e você está criando obstáculos. Algo que me parece um tanto arbitrário, devo dizer, a não ser que esteja disposta a me contar a história toda.
– Não pode só confiar em mim? – ela sussurrou.
Ele pôs a mão no peito.
– Por que você não confia em mim?
Ela desviou o olhar, e ele xingou.
– Então o que está dizendo? Que se eu me candidatar, estamos terminados?
Ela fechou os olhos. Era isso que eles estavam fazendo?
– Não sei, Jack. Não sei.
Callie não o viu pelo resto do dia, e ele não apareceu no seu quarto à noite. Ela imaginou que Jack estivesse se acalmando e lhe dando uma oportunidade de fazer o mesmo. Mas quando dois dias se passaram sem mais do que encontros rápidos na cozinha ou corredor, soube que Jack a estava evitando.
Abaixou a vareta enrolada em algodão com a qual estava trabalhando e verificou o relógio. Já era noite, e Jack ainda não tinha voltado do escritório. Ele passara a voltar para casa bem tarde e desaparecia no estúdio assim que entrava pela porta dos fundos, mesmo que fossem nove ou dez horas. Callie continuou torcendo para que ele subisse ao seu quarto, mas toda manhã acordava sozinha.
Na noite anterior, não tinha aguentado mais. Sentara na cozinha, distraidamente, fazendo palavras cruzadas e preparada para esperar até a aurora. Quando ele enfim entrara, ela o seguira no corredor, tentando fazê-lo falar sobre alguma coisa, qualquer coisa. Ele ficara em silêncio, mas pelo menos fizera contato visual enquanto se servia de um bourbon.
Ela estivera prestes a desviar o assunto para eles quando ele se sentou e começou a folhear as pilhas de documentos que haviam surgido na escrivaninha. Quando ela perguntou o que estava fazendo, ele lhe dera uma resposta seca, algo sobre o negócio da companhia do sangue em que ele estivera trabalhando.
Callie se demorara na porta, querendo que ele a olhasse outra vez, mas Jack ficara perdido em seus papéis. A julgar pela testa franzida e pelo foco determinado, ele claramente não estava disposto a ser interrompido por qualquer coisa. Ou qualquer pessoa.
Quando ele parecia já ter esquecido que estava lá, ela foi embora, à beira de lágrimas.
Callie fechou o pote de solvente e desligou as luzes, sabendo que tinha à frente outro jantar solitário. Mais uma noite se virando de um lado para o outro na cama vazia. Outra manhã com a promessa de um dia que, na melhor das hipóteses, se arrastaria.
Ela não podia continuar assim. Aquela noite não seria sutil. Exigiria que eles conversassem. Ela podia ter dificuldade em se abrir com Jack, mas ele a estava ignorando completamente.
Ela voltou à casa, e preparava algo para comer na cozinha quando a porta dos fundos foi aberta e um homem alto entrou.
Era Jack. Ela estreitou os olhos. Bom, não. O cabelo longo e a jaqueta de couro gasta não tinham nada a ver com o homem que amava, mas todo o resto era igual.
– Olá – ele disse em um tom baixo e apreciativo. – Quem é você?
Ela olhou para as janelas atrás dele e viu um Saab estacionado torto entre as lâmpadas da entrada.
– Sou Callie. Você deve ser...
– Nate – ele ofereceu a mão. – Irmão de Jack. Ele está por aqui?
Quando apertaram as mãos, ela pensou que havia algo instantaneamente simpático nele. Talvez o sorriso despreocupado. Ou talvez fosse o fato de estar olhando para um par de olhos castanhos familiares, sem ver frieza neles.
– Ele deve chegar a qualquer minuto.
– Trabalhando até altas horas, como sempre. Preciso achar um jeito de fazê-lo relaxar – Nate inclinou a cabeça e a examinou seriamente. – Você é a nova...?
A questão pairou entre eles e ela forçou-se a sorrir, tentando manter as emoções sob controle.
– Bem, depende do substantivo que iria usar. Funcionária serve. Estou trabalhando num retrato.
– Ah, sim, o Copley.
Ela assentiu e ele sorriu.
– E há quanto tempo está com meu irmão?
Nate cortou os balbucios dela, balançando a cabeça.
– Não se dê ao trabalho de negar. Está usando uma das camisas dele embaixo do suéter. Dá pra ver o monograma no punho.
Ela abaixou os olhos e soube que tinha sido pega. Vestira a camisa de manhã, pensando que ninguém notaria se ela a cobrisse. Jack deixara a peça em seu quarto antes das coisas ficarem ruins, e ela a colocara porque era o mais próximo que parecia conseguir chegar dele.
– Sem ofensas – Nate disse –, mas você não parece ser o tipo de Jack. O que é ótimo, na verdade.
Ela estava balançando a cabeça e sorrindo quando o Jaguar da sra. Walker entrou na garagem. Callie ficou tensa e tentou fingir indiferença enquanto via Jack andar até a casa. Quando ele entrou na cozinha, parecia exausto, mas sorriu assim que viu o irmão.
Os dois se abraçaram, um batendo nas costas do outro. Jack deu um aceno para ela e então se focou no irmão.
– É bom ter você em casa, Nate.
– Fico feliz por estar de volta. Pelo visto, se meteu em confusões – ele indicou o gesso.
– Ah, nem dói mais. E é uma arma excelente. Ameacei um advogado imobiliário com ele hoje. Já comeu?
– Um cachorro quente e um pacote de alcaçuz desde Rhode Island.
Jack revirou os olhos.
– Pensei que era um gourmand!
– Tenho que manter os níveis de nitrato altos e Twizzlers são um substituto aceitável para sorbet quando se precisa limpar o palato na estrada. Thomas está por aqui?
Quando Jack acenou para o teto, Nate gritou para cima:
– Ei, cadê o cozinheiro desse lugar?
Thomas desceu depressa as escadas e Callie encontrou os olhos de Jack.
Estava determinada a fazê-lo falar aquela noite. Já estava cansada do silêncio.
Enquanto Nate e Thomas conversavam na cozinha e Callie comia, Jack colocou um par de shorts de corrida e uma camiseta velha e desceu para o porão. Ele instalara uma academia lá dez anos antes, quando sua agenda começou a ficar realmente agitada. Exercitava-se com regularidade de manhã e às vezes à noite, em especial quando tinha muita coisa na cabeça.
E com certeza tinha agora. As coisas iam mal na vida pessoal e profissional e a tempestade de desastres o fazia sentir que estava perdendo o controle das coisas.
O que não era algo que ele tolerava, mesmo nas melhores circunstâncias.
Da série de problemas que tinha, seu afastamento de Callie o incomodava mais que tudo. Ele não esperara que ela tivesse algo a esconder ou que haveria problemas entre eles quanto à eleição. Tinha pensado que a parte difícil havia acabado. Ele a amava, ela o amava, e mesmo que ele ainda hesitasse em pensar em casamento, estava fazendo planos para o futuro com ela em mente.
Entretanto, agora tudo estava uma bagunça. Ele queria conversar com Callie, mas suas emoções estavam tão descontroladas quanto seu temperamento. Um minuto estava tão irritado que queria desistir do relacionamento, dali a pouco, precisava se controlar para não bater na porta dela e implorar para segurá-la nos braços. Sabia que a primeira opção não era o que queria. Só pensava aquilo porque estava frustrado e...
Machucado, era a palavra. O fato de que Callie não confiava nele para cuidar dela, para manter seu segredo, doía demais.
Considerando o futuro, ele precisava imaginar que eles terminariam se ele se candidatasse. A não ser que a mantivesse em segredo, o que seria não só desrespeitoso como também impraticável. Então, não parecia haver outra alternativa. Deus sabia que ele vinha buscando algum tipo de solução há dias.
Subiu na esteira, escolheu uma velocidade alta e correu até ficar esgotado. Quarenta e cinco minutos e nove quilômetros depois, estava coberto de suor, suas coxas queimavam, e os ombros gritavam por ter de aguentar o peso do gesso. Ele aumentou um pouco mais a potência e fez o último quilômetro a uma velocidade de perder o fôlego.
Quando saiu da esteira, tomou meio litro de água e sentou-se em um banco. Encostou a cabeça na parede e sentiu o suor escorrer, torcendo para que a exaustão física lhe desse um pouco de claridade mental.
Manter a cabeça fria estava sendo difícil ultimamente. Graças aos seus sentimentos por Callie e à situação deles, Jack estava encarando as coisas de modo muito estranho. Era como se não pudesse desligar mais seus sentimentos sobre qualquer coisa, e a objetividade irrestrita pela qual era conhecido lhe escapava.
Em um estágio anterior da vida, teria pensado que estava perdendo sua vantagem competitiva.
Pela primeira vez na vida profissional, estava indeciso sobre a ação apropriada em um negócio quando todos os indicadores financeiros eram claros. Era a maldita empresa de processamento de sangue. A tecnologia que os irmãos McKay tinham patenteado de fato poderia melhorar a entrega de plasma em todo o mundo, ajudando milhares, talvez milhões de pessoas. Mas os dois inventores tinham diluído seriamente a empresa ao distribuir ações para quase todos os membros da família.
Os McKay precisavam de um grande afluxo de dinheiro para ser bem-sucedidos, mas se Jack colocasse dinheiro em uma empresa com tantos acionistas, seria melhor enterrá-lo no jardim, porque não receberia retorno algum. Havia dedos demais na mesma torta.
Ele sabia que nenhum outro investidor chegaria perto deles pelo mesmo motivo, mas o apoio de entidades sem fins lucrativos e fundos governamentais só os levariam até certo ponto. Para ser bem-sucedidos, os irmãos precisavam do tipo de dinheiro que só um Fundo Walker poderia fornecer.
Seis meses atrás, a solução teria sido óbvia para ele. Não precisaria nem pensar. Simplesmente rejeitaria o negócio e encontraria outro que lhe desse os retornos que queria. Agora, porém, estava dividido.
Mas talvez não fosse só Callie que o fizesse pensar diferente. A filha doente do funcionário da gerência tinha piorado. A menina estava recebendo cuidados em casa agora e Jack ocasionalmente passava lá à noite, antes de voltar para Buona Fortuna.
Entre ver aquela família sofrendo, lidar com o dilema dos irmãos do sangue, tentar decidir sobre a candidatura a governador mesmo se isso destruísse seu relacionamento com Callie, Jack sentia que explodiria.
Merda, voltara até a ranger os dentes à noite. Um dos molares tinha começado a doer e ele reconheceu o sinal. Dois anos atrás, quando tinha brigado por causa de uma firma de bioengenharia e quase perdera tudo, moera tanto o dente que fora forçado a colocar duas obturações do lado esquerdo.
Jack abriu a boca e cutucou o dente, sentindo-o responder à investigação com uma pontada de dor na mandíbula.
Deus. A última coisa de que precisava agora era uma visita ao dentista!
– Ei, mano! – Nate disse, enfiando a cabeça sob a entrada baixa. – Como você está?
Jack limpou o rosto com a camisa, deu de ombros e mentiu.
– Tudo bem. E você? A que devo a visita? Thomas te chamou para ajudar na festa?
– Thomas me chamou, é verdade – Nate sentou ao lado dele no banco –, para falar sobre você.
Jack franziu o cenho.
– Ah, é?
– Ele está um pouco preocupado.
– Com o quê? – Jack tomou um longo gole de água, sentindo vontade de simplesmente sair dali.
– Diz que você está se matando de trabalhar.
Jack abaixou a garrafa.
– E isso é novidade?
Nate deu de ombros, mas estava obviamente escolhendo as próximas palavras.
– Disse que você terminou o noivado. Teve um acidente de carro. Não dorme no seu quarto há dias, porque fica no escritório até de manhã. O que está acontecendo?
Jack olhou para a esteira, imaginando se suas pernas aguentariam mais alguns quilômetros.
– Fale comigo, Jack. Ou vou ter que dar uma de irmão mais velho e tirar as respostas de você.
Jack finalmente o olhou.
– Estou apaixonado.
Nate sorriu devagar.
– Sério? Pela ruiva?
Ele assentiu.
– Muito bom, mano.
Jack se alongou e jogou a garrafa de água vazia através da academia. Ela bateu na borda da lixeira e por um momento ele achou que iria entrar. Quando a garrafa rolou e caiu no chão, ele viu as gotas cintilando dentro do plástico.
– Não sei se as coisas vão dar certo. Atingimos um impasse – ele limpou a garganta. – Quero ficar com ela. Mas talvez tenha que mudar o curso da minha vida para mantê-la.
– Que merda.
– É mesmo.
Jack levantou e foi até a garrafa. Jogou-a no lixo e olhou para o irmão.
– Quero me candidatar para governador.
– Ouvi dizer. Acho que seria muito bom, por sinal.
– Eu também – ele passou uma mão pelo cabelo, sentindo o suor. – Quando pensei nisso pela primeira vez, anos atrás, era mais para irritar o pai. Pensei que ele ficaria louco da vida. Minhas ambições saindo de controle e tudo o mais. Mas quando contei para ele, ficou encantado.
– E você não perdeu o interesse?
– Nem um pouco. Foi aí que soube que realmente queria isso. Planejo concorrer há anos. Construí uma base de apoio. Apertei muitas mãos. Quero ganhar.
– Mas ela não quer ser a esposa de um político?
– Não chegamos tão longe. Ela não quer passar pela eleição... que vai ficar feia.
Jack foi ao banco e pegou a tipoia que tirara antes de correr. Colocou-a de volta ao redor do pescoço. Enquanto ajeitava o gesso nela, disse:
– Já esteve com alguém que fez você sentir como... como se Deus existisse?
– Não.
– É, bem, eu também não. Até ela. Deixá-la sair da minha vida parece errado.
– Parece que você já se decidiu.
Meu Deus, será?
Ele pensou por um minuto e percebeu que sim, havia tomado sua decisão.
Por Callie, desistiria de tudo. Mesmo da maldita mansão de governador. Para ter um amor de verdade com ela, Jack desistiria do seu sonho.
Para viver outro.
Ele expirou com força quando a solução se tornou clara, pelo menos da sua parte.
Desistiria de suas aspirações políticas por Callie, não tinha dúvidas. Mas isso era só metade do problema. Se entraria num compromisso como aquele, ela teria de ser completamente honesta. Ele precisaria saber de tudo.
Ele olhou para o irmão.
– Obrigado, Nate. Ajudou bastante.
Nate pareceu um pouco confuso, mas bateu as mãos nos joelhos e se levantou.
– Fico feliz. Mesmo que só tenha ouvido.
Eles foram até a porta.
– Então, por quanto tempo vai ficar? – Jack perguntou.
– Pensei em ficar para a festa e depois ir a Montreal para ver Spike e Louie.
Jack apagou as luzes e subiu as escadas.
– E aqueles dois loucos estão bem?
– Ainda fora de controle. Então claro que estou considerando virar sócio deles. Estamos pensando em abrir um restaurante juntos.
– O primeiro passo para se estabelecer de vez?
– Nem um pouco. Só estou comprando um lugar, irmão – Nate deu de ombros. – De qualquer jeito, tenho um pouco de dinheiro guardado.
– É mesmo?
– Não pareça tão surpreso. Não é dinheiro como o seu, mas é suficiente para começar.
Jack parou quando eles emergiram no corredor.
– Olha, se encontrar um lugar, me diga. Ficarei feliz em dar...
– Nem comece. Já tem sua cota de dependentes, e não quero ser seu projeto de caridade.
Jack hesitou, lembrando que Callie lhe dissera as mesmas palavras no Plaza. Parecia uma vida atrás.
– Bem, me mantenha em mente se quiser um empréstimo.
– Pode deixar, mano – Nate sorriu. – Mas espere sentado.
Callie abriu a porta do quarto e espiou o corredor. O único som que ouvia era Artie lambendo os beiços depois de um bocejar e se acomodar no chão.
Ela rapidamente atravessou o corredor e bateu na porta de Jack. Não houve resposta.
– Procurando por ele?
Ela se virou. Nate caminhava até ela, um livro na mão e um sorriso no rosto.
– Ah... sim.
– Ele está no escritório. – O homem parou e sussurrou: – Não se preocupe, sou discreto. Ah, e evite o terceiro degrau de baixo pra cima, ele range se pisar com força.
Ele deu uma piscadela e foi para o próprio quarto.
Movendo-se depressa, Callie desceu as escadas, cuidadosamente evitando o degrau sobre o qual Nate a avisara.
Quando chegou ao escritório de Jack, a porta estava aberta. Ele estava sentado em um foco de luz, encarando a janela atrás da mesa. A mão estava no telefone, que ele parecia ter acabado de desligar.
Ele inclinou a cabeça, como se estivesse vendo o reflexo de Callie na janela. Quando o silêncio se prolongou, ela disse:
– Precisamos conversar.
– Agora? – a voz dele era tão baixa que mal dava para ouvir.
Ela limpou a garganta.
– Sim.
Houve uma longa pausa e, então, ele disse:
– Certo.
Callie franziu a testa e percebeu que algo estava muito errado.
– Jack? O que aconteceu?
Ele virou a cadeira devagar e a encarou. Seu rosto estava congelado, a boca apertada em uma linha fina.
– Ela morreu hoje à tarde.
Quem? Callie se perguntou.
Ah, não. A menina.
– Ah, Jack...
A voz dele estava inteiramente desprovida de emoção, como se estivesse se controlando com aquela vontade de ferro pela qual era conhecido.
– O enterro será amanhã à tarde, na tradição judaica. Estarei lá, é claro, e decidi fechar o escritório. Todo mundo vai. E a família passará a próxima semana em luto Shivá.
Sem uma palavra, Callie contornou a mesa, esperando poder abraçá-lo. Quando se encostou nele, Callie o sentiu tremer.
Ele respirou fundo.
– Tenho visitado ela e a família à noite. É por isso que volto tão tarde. Eles contrataram uma enfermeira incrível da clínica. O tratamento era muito bom. – Ela sentiu o peito dele erguer-se de novo. – Vou fazer uma doação à clínica no nome dela. Vai ser... – ele limpou a garganta. – Vai ser a primeira doação de caridade que faço.
Callie o segurou com força, desejando poder fazer mais. Quando finalmente levantou a cabeça, Jack a olhou.
– Sei que precisamos conversar sobre algumas coisas. Mas fica comigo hoje? – ele perguntou.
Quando ela concordou, ele tomou sua mão e se ergueu.
Capítulo 20
Logo cedo na manhã seguinte, Callie sentou-se no seu banco e abriu um dos potes de solvente. Depois de ajustar a máscara respiratória, enfiou uma vareta com algodão no isopropanol e cuidadosamente passou a solução sobre a superfície da pintura. Ela estava bem no centro do retrato agora, na borda do espelho, depois de trabalhar horas incontáveis enquanto ela e Jack estavam afastados. Não havia muito mais a limpar.
Ela ergueu os olhos. Lá fora, o sol brilhava no céu limpo de New England.
Ela não conseguia parar de pensar sobre a noite anterior. Eles tinham feito amor e Jack a abraçara por muito tempo. Não tinham conversado muito, mas fora o bastante estar com ele, diminuir a distância entre eles mesmo que só fisicamente. E ela ficara aliviada por Jack permitir sua companhia em um momento vulnerável, e por ter tido a oportunidade de consolá-lo.
De manhã, ao sair do quarto, ele lhe prometera que conversariam à noite.
Ela esperava que fosse dizer que não concorreria à eleição e que tudo voltaria a ser como era. No fundo, ambas as coisas eram improváveis e Callie tentou, mais uma vez, considerar as consequências se ele de fato se candidatasse.
O resultado não foi melhor do que todas as outras vezes em que ela tinha pensado sobre a situação. Jack tinha razão; se o pai dela tivesse sido uma pessoa qualquer, os jornais não teriam motivo para perseguir a história. Infelizmente, a infidelidade de Cornelius Woodward Hall seria um escândalo.
Se Jack concorresse, ela teria que sair da vida dele. Era o único jeito de evitar que o passado viesse à tona. Mas a ideia de que não ficaria em Boston, ao lado dele, era intolerável. Sempre que se imaginava voltando a Nova York para nunca mais o ver, seu coração se partia.
Callie respirou fundo, olhou para a pintura e, então, pulou em pânico, derrubando o banco. Mal ouviu o barulho dele atingindo o chão ou o uivo assustado de Artie, que se afastou dela.
- Não, não, não!
Ela jogou a vareta e pegou um pano, embora fosse improvável que pudesse desfazer aquilo.
Olhando horrorizada para a pintura, não acreditava no que fizera: um buraco bem no meio do verniz e na camada de tinta. Ela se inclinou mais um pouco, esperando que a maior proximidade revelasse que se tratava apenas de um dano superficial. Mas não. Sobre a superfície do espelho, em uma área de uns seis centímetros quadrados, a pintura original de Copley fora corroída.
Callie xingou, olhando para o pote. Por engano, escolhera seu solvente mais forte e tinha agravado o erro deixando o algodão parado enquanto olhava para fora. A substância teve tempo de se infiltrar, espalhando-se para os lados e afetando uma área maior do que apenas a parte em que estivera o algodão.
Uma onda de calor passou pelo seu corpo, trazendo suor às palmas, axilas e testa.
Tinha arruinado uma grande obra de arte. Nunca trabalharia de novo. Jack a mataria.
E tudo porque tinha se distraído.
De todos os erros estúpidos, de principiante...
Mas não era hora de se recriminar. Haveria muito tempo para isso enquanto esperasse na fila do seguro-desemprego.
Ela precisava se focar, considerar a situação e as soluções. E, então, ligaria para Gerard Beauvais.
Callie pairou sobre a pintura, os olhos se movendo desesperadamente da área danificada para todo o trabalho que realizara tão bem.
Não. Ela precisava ligar para Beauvais naquele instante.
Callie pegou o cartão dele na caixa de ferramentas e discou o número do verso, torcendo para que sua voz funcionasse se ele atendesse. E do que ela não rompesse em lágrimas. Parecer fraca, além de incompetente, seria o toque final em um pesadelo completo.
A ligação caiu no correio de voz e Callie deixou uma mensagem, pedindo que ele retornasse assim que possível.
Depois de respirar fundo algumas vezes, e determinada a não se imaginar sem carreira e entregando pizzas para sobreviver, ela se inclinou sobre a pintura outra vez. O apetite do solvente não tinha diminuído. A parte danificada estava aumentando.
Era como assistir uma onda maléfica.
E o caminho de destruição estava apagando, além da tinta, seu futuro profissional.
Ela apoiou a cabeça nas mãos e disse a si mesma que a oficina de Beauvais poderia repintar o espelho, assim como fizera no Fra Filippo Lippi. Eles refariam os tons e pinceladas com tanta precisão que seria praticamente impossível perceber que algo dera errado.
O que não é um grande conforto, ela pensou. Mesmo que o dano fosse escondido magistralmente, ela ainda tinha diminuído de forma irrevogável o valor da pintura.
De repente, Callie franziu a testa. Piscando algumas vezes, disse a si mesma que estava vendo coisas.
Não podia ser.
Inclinou-se tanto que sentiu o calor da reação química e seus olhos queimaram.
Do meio daquela bagunça, uma forma estava emergindo. Sob as camadas derretidas de tinta, ela podia ver o contorno de... um rosto!
Esfregou os olhos.
Definitivamente, um padrão estava aparecendo. Atrás dos tons pálidos da superfície do espelho, parecia haver... a forma de um rosto.
Seu coração bateu por outro motivo além de suicídio profissional.
Quando o telefone tocou ao seu lado, ela agarrou o receptor, esperando atender antes que outra pessoa na casa o fizesse.
A voz educada de Gerard Beauvais foi o som mais lindo que ela já tinha ouvido.
– Ah, meu Deus, eu estraguei tudo! – ela começou, as palavras se misturando como a tinta derretida. – Estava trabalhando no espelho e usei um solvente forte demais e derreti parte da camada de tinta e...
– Certo, certo, chérie. Calma.
De algum modo, a calma na voz de Beauvais chegou ao seu ouvido e ela se obrigou a parar de balbuciar.
– Agora – ele disse, quando ela se controlou –, me diga exatamente o que aconteceu, do começo ao fim. E qual a composição química do seu solvente.
Depois que terminou de explicar, ela sentiu um nó na garganta enquanto esperava a resposta dele.
– Preciso saber – ele disse em voz baixa –, o que estava embaixo do espelho?
– Uma figura escura, na verdade – a voz dela reduziu-se a um sussurro. – Na forma de uma cabeça.
Beauvais deu uma risada tensa.
– Bem, talvez seu erro tenha sido fortuito. A camada de tinta aí reagiu de modo diferente ao solvente do que outras partes do retrato?
– Bem, não queimei nenhuma outra parte, graças a Deus, então é difícil dizer. Mas acho que não. Saiu facilmente, mas isso pode ser explicado pela maior força do solvente.
Beauvais ficou em silêncio por um momento.
– Preciso analisar a situação pessoalmente. Mas não mova a pintura. Vou até aí amanhã. Minha família está aqui agora e não posso sair. Enquanto isso, não diga nada para Jack ou para a mãe dele. Não acho que deva falar com eles até termos um plano para remediar a situação. Não há porque chateá-los, se podemos evitar.
Callie soltou o ar e estremeceu.
– Me sinto péssima. Jack vai me demitir. Nunca mais vou...
Beauvais riu.
– Jack não vai demiti-la. E você vai trabalhar de novo, acredite. A ciência da restauração é administrada por mãos humanas e todos cometemos erros. Não há nada que não possamos consertar juntos, mas não sejamos apressados. Ligo para você amanhã e decidiremos o que fazer.
– Como posso agradecê-lo?
– Isso, minha querida, é simples.
Ela deu uma risada abafada, achando difícil imaginar o que poderia oferecer a ele.
– Você, Callie Burke, vai fazer a mesma coisa para alguém quando tiver uma carreira de sucesso e um colega mais jovem tiver um problema. Vinte e cinco anos atrás, eu estava trabalhando num Ticiano e derrubei aguarrás num canto da pintura. – Quando a ouviu ofegar, Beauvais riu com gosto. – Foi terrível. Depois de uma ida à salle de bains, onde revisitei meu almoço de maneira bastante desagradável, voltei, disse ao meu mentor o que tinha feito e nós dois cuidamos do problema. A pintura está pendurada na Galeria Uffizi até hoje, e toda vez que vou ao museu, faço questão de olhar para aquela tela. Ainda enxergo a faixa que tivemos que repintar. São poucos os que conseguem, mas sempre me lembra do meu erro. Vou dizer uma coisa: na nossa área de trabalho, egos são muito mais danosos que erros. Então, quando alguém ligar para você daqui a anos, lembre-se dessa experiência e faça a coisa certa. Ajude, sem julgar.
– Sinto-me tão envergonhada – ela sussurrou – por ter ligado pra você com algo assim.
– Isso é bom. Seus próprios arrependimentos causarão mais dor que as palavras duras de outra pessoa. Todos passamos por isso, chérie. Só certifique-se de que seja apenas uma vez.
Quando Callie desligou, enxugou os olhos e olhou para Artie, que se aproximara para oferecer seus pêsames. Ele abanou o rabo devagar e encostou a cabeça na perna dela.
A sensação de fracasso lutava dentro dela com o alívio por Beauvais estar disposto a ajudar, e ela precisou de um tempo até conseguir voltar à casa e encarar alguém. Não dizer nada a Jack a deixou desconfortável, mas confiava em Beauvais e sabia que ele estava certo. Seria bem mais fácil apresentar o problema se a solução fosse oferecida junto.
Assim que abriu a porta dos fundos, Callie foi envolvida por aromas de comida. Era como ser abraçada.
– Chama isso de massa? – Thomas estava dizendo a Nate enquanto gesticulava com uma colher de pau. – Parece algo para colar papel de parede!
Nate sorriu enquanto continuava sovando a massa no balcão.
– Por que não mexe aquelas cebolas, velho? Antes que tenham que ser tiradas da panela com um martelo.
– Ei, Callie! – Thomas sorriu. – Bem-vinda ao meu pesadelo. Dois chefs, uma cozinha.
Ela se sentiu tão agradecida pela amizade descomplicada deles que seus olhos lacrimejaram. Então Callie soube que estava vulnerável. Se fosse esperta, subiria ao seu quarto e ficaria lá. Não era uma boa hora para ficar perto de outras pessoas. Especialmente as simpáticas.
Quando a campainha tocou, ela se ofereceu para abrir a porta e soltou um grito de alegria ao ver Grace e o guarda-costas.
Ela abraçou a meia-irmã.
– Estou tão feliz por ver você!
O abraço que recebeu de volta foi igualmente forte.
Quando se separaram, Grace indicou o homem imponente atrás dela.
– Lembra do Ross?
Callie sorriu e sentiu a mão ser tomada em um aperto firme.
– É bom vê-lo outra vez – ela disse, erguendo os olhos para o rosto severo de Ross. O sorriso que ele lhe deu o fez parecer quase acessível, apesar da jaqueta de couro preta e dos olhos semicerrados.
Ela guiou o par para dentro da casa.
– Entrem, está frio aí fora.
Ross se abaixou e pegou algumas malas de couro como se não pesassem nada.
– Onde está Jack? – Grace perguntou, tirando o casaco.
– Acho que ainda não chegou. Mas Nate está aqui.
– Só pode ser brincadeira!
Enquanto Callie abanava a cabeça, Nate apareceu em pessoa, limpando as mãos em um pano de prato.
– Gracie!
Grace riu e correu para abraçá-lo.
– É bom ver você, sumido!
– Você também. Quem é esse? – Nate olhou para o outro homem.
– Meu noivo, Ross Smith.
Callie ofegou em surpresa.
– Parabéns!
– Obrigada. Aconteceu ontem à noite. Não poderíamos estar mais felizes.
Grace e Ross se sentaram na cozinha e tomaram uma bebida enquanto Thomas e Nate cozinhavam, e Callie sentiu que as risadas altas e piadas intensas eram mais do que ela podia suportar.
Dando uma desculpa, foi para seu quarto, prometendo voltar quando o jantar estivesse na mesa.
Jack estacionou o Jaguar da mãe, desligou o carro e encarou a parede da garagem. De repente sentia-se exausto, mas não queria fechar os olhos, porque só veria cenas da sinagoga e do cemitério. Não conseguia tirar da cabeça a imagem do pequeno caixão, não importava em quantas coisas práticas tentasse pensar para se distrair.
Quando finalmente foi até a casa, viu Grace e o irmão através da janela, rindo enquanto ele jogava molho na salada e ela mexia. De pé na escuridão completa, olhando para as duas pessoas que mais amava no mundo, ficou agradecido por estar em casa. Agradecido por seus entes queridos não terem sofrido como a família daquela menina. Como ela havia sofrido.
Jack abriu a porta e franziu a testa quando não viu Callie.
– Aí está ele! – Grace exclamou, correndo até ele. Ela parou de repente quando viu o gesso. – Fiquei sabendo do acidente. Fico feliz que esteja bem!
– E melhor agora que você está aqui.
Ele lhe deu um abraço rápido, mas quando se afastou, ela continuou segurando o braço bom.
– Ei, como está de verdade? – ela sussurrou, dando-lhe um olhar astuto. – Também ouvi sobre você e Blair. Sinto muito.
– Obrigado – Jack sorriu e fez um aceno ao homem grande e silencioso no canto. – John Smith, certo?
– O nome do meu noivo é Ross – Grace interviu.
Jack ergueu uma sobrancelha com a mudança de nome e a novidade.
– Bom, parabéns – ele disse sinceramente. Enquanto apertava a mão do noivo da amiga, aprovou o modo como Smith colocou o braço ao redor de Grace e a trouxe para perto de si.
– Ei, mano, vá chamar Callie – Nate disse do fogão. – O jantar vai estar na mesa daqui a dez minutos. Ela subiu pro quarto.
Jack pôs a maleta no chão e subiu. Quando bateu na porta, Callie respondeu baixinho.
Ele entrou e a encontrou sentada na cama grande, um travesseiro no colo. Ela sorriu.
– Estava torcendo pra ser você.
Ele fechou a porta, uma onda de risos subindo da cozinha.
– Não a culpo por querer um pouco de paz. Está bem animado lá embaixo.
Ele se sentou ao lado dela. A mão de Callie sobre a sua era como um bálsamo.
– Como foi lá?
– A cerimônia foi bonita e incrivelmente triste. Depois fui à clínica e dei um cheque para eles.
– Devem ter ficado agradecidos.
– Ficaram.
Ele colocou a mão dela sobre sua perna e começou a alisar a palma.
Callie abriu a boca, mas ele a interrompeu.
– Falei com Gray – ele podia sentir a tensão nos dedos dela. – Chegou a hora de eu declarar meus planos para a eleição.
– O que você vai fazer? – ela perguntou.
Ele a encarou, como se isso pudesse ajudá-la a entender o que tinha a dizer.
– Sabe, quando fui à clínica hoje, lembrei exatamente por que queria me candidatar – ele abanou a cabeça. – Não estou dizendo que tive uma experiência mística. Na verdade, foi algo muito prático. Acabei indo ao escritório do diretor executivo e examinando umas planilhas de ganhos e perdas. Quando vi os números, soube onde eles podem melhorar as operações para ganhar mais dinheiro. Soube o que precisava mudar. Entendi como eu poderia ajudar.
Ela o ouviu com uma intensidade silenciosa, mas seus olhos estavam tristes.
– Minha visão para o estado está começando a tomar forma, Callie. Minha cabeça está girando com maneiras de balancear os gastos e aumentar os lucros. Sei onde as coisas precisam mudar. Não vou conseguir fazer tudo que quero, não vou poder financiar todo programa nem salvar todo centro ou abrigo. Mas posso tentar ajudar alguns deles. E quero tentar. Isso é importante para mim – seus olhos desceram às mãos deles e ele entrelaçou os dedos com os de Callie. – Quero entrar na briga porque é o único jeito de chegar aonde quero... e fazer a diferença.
– Fico feliz por você – ela disse, embora parecesse arrasada. – De verdade.
– E falei com Gray sobre nossa situação.
– Contou tudo pra ele? – ela perguntou, claramente horrorizada.
– Precisava da perspectiva dele.
– Mas o que eu disse pra você era particular! Entre você e eu – ela tirou o cabelo da frente do rosto, impaciente. Ansiosa, ele pensou.
– Ele não vai dizer nada.
– Não interessa. Eu não esperava que fosse contar para ele. Ou para qualquer outra pessoa.
Jack franziu a testa, frustrado.
– Quem você está protegendo? – quando ela não respondeu, ele apertou sua mão. – Quem? Conte-me.
– A única família que tenho – ela disse urgentemente. – E não me sinto nem um pouco confortável em ter conversas particulares espalhadas em todo o planeta.
– Gray não é um desconhecido.
– Talvez não pra você.
Jack se controlou, tentando superar a resistência dela. Escolheu as palavras com cuidado.
– Também disse a Gray que talvez eu não concorresse.
Ela arregalou os olhos em choque.
– Disse?!
Ele assentiu devagar.
– Mesmo querendo ser governador, desistiria da eleição num instante. Por você.
Callie hesitou, como se não conseguisse acreditar naquilo, e então jogou os braços ao redor do pescoço dele.
– Ah, Jack...
Ele a afastou.
– Eu desistiria de qualquer coisa por você, mesmo uma chance de liderar o estado. Mas não irei fazê-lo a menos que saiba de toda a verdade. Não abandonarei essa meta para a qual estou me preparando há anos, se você não for honesta comigo. Um relacionamento só com parte de você não vale o sacrifício.
Ela fechou os olhos e abaixou as mãos.
– Entendo perfeitamente. Só preciso de um pouco de tempo. Preciso... falar com uma pessoa.
– Meu comitê exploratório se encontrará em segredo no meu escritório essa semana. Quero poder dar uma resposta definitiva a eles sábado à tarde – Jack se levantou, não muito incentivado pelo fato de ela não o encarar nos olhos. – Fale com quem precisar e me diga o que decidir. Mas vou dizer uma coisa: se não confia em mim, não posso ficar com você. Por mais que a ame.
Ela assentiu sem erguer a cabeça.
Jack hesitou.
– Nate pediu para avisar que o jantar está pronto. Quer descer?
– Diga que eu estava dormindo.
Quando fechou a porta atrás de si, ele estava exausto.
Sem querer falar com ninguém, vestiu shorts de corrida, deu uma desculpa às pessoas na cozinha e foi à academia.
Capítulo 21
No dia seguinte, a chegada de Gerard Beauvais foi a única coisa que motivou Callie a subir para o ateliê. Enquanto olhava para o ancestral de Jack, analisando e reanalisando o estrago feito, ficou convencida de que nada em sua vida jamais daria certo de novo.
E não estava ansiosa para conversar com Grace.
Contudo, parecia ser sua única escolha. Grace tinha o direito de saber o que estava acontecendo com Jack e o que ele mesmo queria saber.
Callie teria gostado de se livrar daquela conversa o quanto antes. Mas quando descera à cozinha de manhã, determinada a ter uns momentos a sós com a meia-irmã, descobrira que Grace e Ross ficariam fora o dia todo em uma turnê de coleções particulares de arte norte-americana. Como a festa seria naquela noite, Callie precisaria falar com Grace assim que chegasse.
Para passar o tempo antes de Beauvais chegar, Callie decidiu examinar a última caixa de documentos, mas logo se viu indo de uma janela a outra, como se uma delas pudesse, contra todas as possibilidades, lhe fornecer uma visão que lhe desse alguma paz de espírito.
Às nove em ponto, Beauvais subiu as escadas.
– Graças a Deus – ela suspirou.
Eles mal se cumprimentaram e já se inclinaram sobre a pintura para discutir as opções. Finalmente, Gerard tirou os óculos de leitura, mordeu uma das ponteiras, e encarou Callie com seus olhinhos brilhantes.
– Tem que sair. A camada superior de tinta do espelho terá que ser completamente removida.
Callie se sentou. A conclusão não a surpreendeu, mas a atingiu como um soco mesmo assim.
– Certo.
– Pelo menos vamos descobrir o que há embaixo – Beauvais sorriu. – Que é algo que quero saber há bastante tempo.
– Você viu a imperfeição na superfície do espelho quando examinou o quadro para os Blankenbakers, não viu?
Ele assentiu.
– Aconselhei-os a restaurar o retrato e eles prometeram fazer isso. Infelizmente, não fizeram.
Callie olhou para o Copley.
– Tenho que contar para Jack.
– Me contar o quê?
Ela o olhou no ateliê, surpresa. Jack tinha uma expressão calma enquanto se aproximava. Ele estava usando um terno, a manga do casaco solta ao lado do braço engessado.
– Então aquele era o seu carro, Gerard – ele disse. – Estava me perguntando por que havia um Audi prata na entrada. Como está?
Os dois apertaram as mãos.
– O que traz você a Wellesley? – seu tom era mais exigente que curioso.
Callie olhou para Beauvais, que inclinou a cabeça para ela de leve.
– Cometi um erro – ela disse de uma vez.
Os olhos de Jack se estreitaram e, então, passaram para a pintura.
– Que tipo de erro?
Ela explicou rapidamente e apontou a área no retrato. A expressão de Jack não revelou nada enquanto ele estudava os danos.
– E o que vocês propõem que seja feito?
– Decidimos que remover a camada superior de tinta é a melhor saída. Faremos outra análise depois, mas provavelmente precisaremos repintar.
– Como isso afeta o valor da pintura?
Jack dirigiu a questão a Beauvais e o homem inclinou a cabeça, com a haste dos óculos entre os dentes.
– Depende do que for revelado – Jack franziu a testa, e o restaurador explicou: – Há uma imagem bastante curiosa sob a tinta.
Jack inclinou o rosto para a tela.
– Aquela forma escura pode ser alguma coisa?
– Sim.
– E se não for? – ele quis saber.
Beauvais limpou a garganta.
– Depois da restauração, não acho que teremos uma queda grave no valor. É uma pintura tão importante que a desvalorização será relativamente pequena comparada com o valor total.
– Quão pequena?
– Eu diria de cem a duzentos mil dólares.
Callie sentiu o chão sob os pés balançar. Se Jack exigisse uma restituição, seria o fim da poupança que ela planejava fazer depois que o projeto terminasse. A maioria dos restauradores fazia um seguro, mas ela não tinha tomado essa precaução. Nem teria como bancar um seguro até que Jack a pagasse, de todo modo.
– Quanto tempo levará até vocês saberem o que há embaixo? – Jack perguntou a ela.
– Umas duas horas.
– Volto depois, então. Obrigado por vir – Jack disse, estendendo a mão a Beauvais. – Callie, conversamos depois.
Só depois que Jack saiu, ela percebeu que ele mal olhara para ela. Perdida em pensamentos, ficou surpresa quando Beauvais tirou seu casaco de tweed.
– Vamos começar? – ele perguntou animado, olhando as ferramentas.
Beauvais foi embora quatro horas depois. Tinha oferecido ficar até que Jack voltasse para ver a pintura, mas Callie recusara. O projeto era dela e ela precisava falar com o dono sobre o futuro da obra.
Callie olhou para o trabalho que realizara com Beauvais. A revelação era extraordinária.
Na superfície plana do espelho, havia um retrato em miniatura de uma mulher de cabelos escuros. Callie e Beauvais tinham concordado que a pintura da mulher também era de Copley. Primeiro, porque as pinceladas estavam obviamente no estilo do mestre. Segundo porque, depois que retiraram a primeira camada de tinta, ficou claro que a camada inferior era composta exatamente dos mesmos elementos que o resto do retrato.
Também era interessante que a tinta que derretera, sob o microscópio, possuía a mesma composição e idade do resto da obra. Uma inferência razoável, portanto, era que Copley tinha pintado a imagem e, então, alguém, talvez ele mesmo, a cobrira, contemporaneamente.
Beauvais tinha ficado encantado com a descoberta.
Callie estava fascinada, porque sabia sobre as cartas e estava tentada a encontrar uma conexão entre a mulher misteriosa e o caso que ficara implícito na correspondência antiga. A data do retrato era 1775, então poderia ter sido pintado enquanto Nathaniel estabelecia um romance com a linda sra. Rowe, porque a batalha de Concord fora em setembro daquele ano. Para estabelecer que a mulher era de fato a esposa do general, bastava comparar a representação dela no espelho com outro retrato seu.
Quanto ao resto do projeto de restauração, Jack precisava ver o rosto da mulher e considerar se queria a imagem do espelho coberta de novo. Talvez ele decidisse preservar a reputação impecável de seu ancestral, e Callie o apoiaria. A vontade de esconder o passado imoral da família era algo que ela conhecia bem. Considerando sua própria dedicação e os sacrifícios que fizera para proteger o pai, ela não poderia julgar Jack por fazer uma escolha semelhante.
Enquanto esperava, ela olhou pela janela. Caminhões e vans tinham estacionado nos fundos da casa o dia inteiro, entregando comida para a festa. Ela tinha imaginado que muitas pessoas viriam, mas parecia que suprimentos suficientes para alimentar um exército estavam entrando na cozinha de Thomas.
Depois de olhar o relógio, Callie decidiu trabalhar na segunda caixa de documentos. Tinha terminado metade da caixa. Se queria separar todos os papéis antes de ir embora, precisava fazer isso logo, porque estava quase concluindo o retrato.
Era difícil acreditar, mas uma pequena parte da mão de Nathaniel era tudo o que faltava limpar. Dependendo do que Jack decidisse fazer com o rosto da mulher, Callie poderia terminar o trabalho em um dia ou dois. Se não houvesse repintura a fazer, o passo final da restauração seria apenas a aplicação de uma camada fresca de verniz, o que não levaria muito tempo.
Sentada no sofá, começou a separar metodicamente, página a página, os documentos restantes. Estava lendo uma carta de crédito de 1929 quando Jack e Grace apareceram no topo das escadas. Ela soltou o papel e se levantou.
– Então, o que temos? – Jack perguntou depressa.
Ainda estava de terno, mas tirara a jaqueta e a gravata. A camisa rosa pálido que estava usando fazia o cabelo e os olhos parecerem especialmente dramáticos.
– Veja por si mesmo – ela disse baixinho, indicando a pintura.
Quando olharam o retrato, Grace exclamou:
– Meu Deus! É um rosto de mulher!
Callie examinou a reação de Jack. Suas sobrancelhas se franziram enquanto ele estudava a tela, não dava para dizer se estava chateado ou intrigado.
– Bem, é um tanto surpreendente, não é? – ele disse de modo casual. Então, olhou para ela. – E lança um pouco de luz sobre aquelas cartas.
– Cartas? – Grace perguntou. – Há outra além daquela de que você me falou?
Callie assentiu e Jack explicou.
– Encontrei uma com um tom parecido uns anos atrás, e se forem mesmo um par, parece que Nathaniel pode ter se envolvido ou pelo menos tido um interesse romântico na esposa do general Rowe.
Ele olhou de novo para a pintura.
– O que vai fazer? – Callie perguntou. – Quer repintar o espelho?
Houve uma longa pausa.
– Mesmo que seja a esposa do general, acho que não – quando ela o olhou com surpresa, ele deu de ombros. – Quaisquer que sejam as implicações, creio que o retrato não seria autêntico sem ela.
Grace franziu a testa.
– Aquelas cartas... tem certeza de que eram dele e da esposa do general?
– Você pode ler depois – ele disse –, mas os indícios sugerem que sim.
– E você acha que era por essa mulher – Grace apontou para o retrato – que ele estava apaixonado? Sarah Rowe?
Callie interveio.
– A esposa do general era uma conhecida de Copley, não era? Quer dizer, há notas nos diários de Copley dizendo que ela visitava seu ateliê com frequência antes de ele ir para Londres, porque ela pintava um pouco também. Nathaniel encomendou o retrato. Não é inconcebível que quisesse ter o rosto da amante ali, mas, como era um amor clandestino, tenha pedido para Copley cobrir o espelho. Uma prova secreta de seus sentimentos, talvez. Bem romântico, na verdade. E a data está certa, 1775.
Grace riu suavemente.
– É uma boa teoria e, sem dúvida, tem seus méritos. Só há um problema: a esposa do general era loira.
Tanto Callie como Jack se viraram para Grace.
– Como sabe? – ele indagou.
– Sei um pouco de História Americana – Grace respondeu com um sorriso seco. – Há poucos retratos da esposa do general. Talvez dois, no máximo, um dos quais é uma miniatura que está na Hall Foundation. Não há dúvida que ela era loira.
– Então, quem é essa? – Jack perguntou.
– Tem certeza de que as cartas se referem ao general?
Quando Jack assentiu, Grace disse:
– Então pode ser a filha dele, Anne. Era morena, como o pai.
– Sério?
Grace olhou para o teto, batendo no chão com o salto do sapato.
– Deixa eu ver se consigo fazer as contas. O retrato foi pintado em 1775. Anne teria uns dezesseis anos, e Nathaniel Walker, uns vinte. Parece meio jovem para um caso, mas na época muitas garotas se casavam na adolescência – ela olhou para Jack. – As anotações do general Rowe sugerem que era protetor em relação à filha. Ele queria que Anne adotasse uma vida espiritual, e penso que pode até ter insistido para que ela se juntasse a uma ordem religiosa. Posso ver por quê, se ela estava realmente se apaixonando por Nathaniel, gostaria de esconder isso do pai. Pelo menos até que houvesse um noivado e fosse tarde demais para rompê-lo. – Os olhos de Grace passaram para o rosto de Nathaniel. – Mas Anne morreu no outono de 1775, se me lembro corretamente. De tifo. Uma tragédia... o pai nunca se recuperou.
Todos olharam para a pintura.
– Talvez – Callie disse baixinho – Nathaniel achasse difícil demais olhar para a imagem dela, então pediu que fosse coberta.
– Explicaria bastante coisa – Grace disse. – Especialmente por que Nathaniel demorou tanto para se casar. Só vinte anos depois, ele finalmente se casou com Jane Hatte.
– Meu Deus – Jack murmurou. – Que história!
Grace pôs a mão no braço dele.
– Mas você deveria mostrar aquelas cartas a outras pessoas. Só temos uma teoria por enquanto.
– Mas sinto que estamos certos – ele disse em voz baixa.
Grace consultou o relógio e sorriu.
– Bem, a não ser que tenhamos outros mistérios a resolver, é melhor eu me trocar. A festa começa em uma hora, certo?
Jack assentiu e lhe deu um beijo no rosto.
– Obrigado, Grace.
– Sem problemas. Só lembre-se de atender o telefone a próxima vez que eu ligar precisando de conselhos de investimento.
– Fechado.
Depois que Grace saiu, Jack voltou a olhar o retrato.
– Você fez um trabalho incrível!
Callie soltou uma risada desconfortável.
– É gentil da sua parte, considerando o erro que cometi.
– Mas transformou a pintura. Ele está tão vivo agora! Antes, parecia soturno, mas agora o vejo de outro modo. Parece mais jovem, mais vibrante. Fez um ótimo trabalho.
– Só revelei o que Copley pintou.
Ela foi até Jack, sentindo o aroma da sua loção pós-barba. Apenas o cheiro já a fazia sofrer.
– Olha, se o valor da pintura diminuir, vou completar o que falta pra você.
– Completar o que me falta – a risada dele foi curta. – Escolha interessante de palavras, considerando que recentemente concluí que uma conta bancária cheia não me satisfaz como costumava.
Seus olhos estavam tão escuros que era como se não houvesse nenhuma cor neles.
– Esqueça o problema com a pintura e fique com seu pagamento – ele indicou o retrato. – Agora só falta colocar uma nova camada de verniz, certo?
Ela confirmou.
– E então terá terminado.
– Sim – um desejo forte apertou no peito de Callie. – Jack, realmente quero ficar em Boston depois que terminar o trabalho.
Ela esperou uma resposta, mas ele só se virou.
– Vejo você na festa – disse.
Capítulo 22
Depois das seis, um fluxo constante de carros começou a chegar a Buona Fortuna. Da janela do quarto, Callie os viu imbicar na entrada iluminada, desaparecer sob o pórtico e então ser estacionados por atendentes uniformizados. Eram uma frota de luxo; cada modelo e marca custava os olhos da cara. Até achou ter visto um ou dois Bentleys.
Todos aqueles carros chiques não a inspiravam a se juntar à festa. Ela supôs que as pessoas saindo deles eram tão glamorosas quanto sua escolha de veículo. Como ela já evitava multidões de modo geral, ser jogada no meio de especuladores corporativos e rainhas de beleza era como estar no segundo círculo do inferno, e Callie considerou a possibilidade de se esconder no quarto. Era covardia, é claro, mas ela tinha quase certeza de que ali teria uma noite melhor.
Além disso, não estava se sentindo festiva. Quando saíra da garagem, tinha procurado por Grace. A porta da meia-irmã, no entanto, estivera fechada, e a risada masculina escapando dos painéis não a encorajou a bater. Callie voltara então ao seu quarto parar se trocar, decidindo falar com Grace assim que a festa terminasse.
Ela olhou para a saia preta que vestira, a mesma que havia usado para jantar com Gray. Duas vezes.
A saia que Jack tinha tirado do seu corpo na primeira noite em que fizeram amor.
Pensou em queimar a peça só para fugir das lembranças.
Houve uma batida na porta e então Grace enfiou a cabeça dentro do quarto.
- Tudo certo? Ross e eu estamos prontos.
Callie se levantou, alisou a saia e enfiou os pés em sapatos de salto.
– Você está linda – ela disse a Grace, sorrindo.
A meia-irmã usava um vestido vermelho-escuro apertado que caía dos seus ombros pálidos. Com o cabelo loiro caindo pelas costas, era quase linda demais para ser real.
– Bem, obrigada. Você também. Esse corte simples fica bem em você – Grace foi à janela e olhou os carros. – Eu costumava vir às festas de Jack religiosamente, mas nos últimos anos tive que recusar os convites. Há tantos amigos com quem preciso conversar! E gostaria de apresentá-la a alguns solteiros, se não se importa.
Ah, não. Isso não.
Grace se virou, mas o sorriso no rosto se desfez quando a viu.
– Callie? O que foi? Você não parece bem.
Engraçado. Ela não se sentia bem.
– Não é nada. Mas preciso falar com você.
As sobrancelhas perfeitas de Grace se ergueram com preocupação.
– Está tudo bem?
– Não, não está. Depois que sobrevivermos a essa noite, podemos falar a sós?
– É claro – Grace olhou para Ross, que esperava no corredor. – Quer conversar agora?
– Acho que mais tarde é melhor. – Ela não queria a pressão de afastar Grace da festa e não tinha ideia de quanto tempo duraria a conversa. – Só prometa que nos falaremos até o fim da noite.
Descendo as escadas atrás de Grace e Ross, Callie sentia como se usasse sapatos de concreto. Ou talvez roupas com costuras de chumbo. O corpo estava impossivelmente pesado e ela agarrou o corrimão enquanto se aproximava do amontoado de pessoas na entrada. Havia uma aglomeração de convidados dando os casacos a funcionários uniformizados. O saguão estava cheio dos sons da festa e o excesso de conversas e risadas fez Callie estremecer, seus sentidos sobrecarregados. Havia barulho, luz e perfumes demais competindo pelo mesmo espaço.
Enquanto Grace era abraçada por uma mulher, Callie entrou na sala de estar e soube imediatamente que fizera a escolha errada. Estava perdida em um mar de pessoas. Devia haver uma centena lá e mais continuavam a entrar, vindos do saguão. Movendo-se pela multidão, foi até um dos bares que foram montados ali e pediu uma taça de vinho, não porque estava com sede mas porque sentia que precisava fazer alguma coisa.
Ela acabara de aceitar um Chardonnay quando uma mulher usando um vestido dourado dramático entrou na sua frente e disse rispidamente:
– Ah, que bom! E meu marido quer um Martini.
A mulher tomou a taça da mão de Callie e se virou para o homem com quem estivera falando.
Pra mim chega, pensou Callie.
Mas antes de sair, cutucou o ombro da morena.
A mulher se virou e sorriu para o homem ao seu lado.
– Querido, sua bebida está aqui.
– Não – Callie disse educadamente, pegando a taça de volta. – E essa é minha. Se quer ser servida, peça a um dos homens de uniforme andando por aí com bandejas. Ou pode ficar na fila do bar.
A mulher ficou vermelha de indignação e Callie se afastou, deixando a taça em uma mesa lateral a caminho das escadas. No entanto, a aglomeração na entrada havia piorado, e ela decidiu ir para os fundos da casa. Atravessava a sala de jantar, que estava cheia de pratos com comidas maravilhosas, quando viu Jack em um canto. Ele ouvia alguém atentamente, as costas viradas para ela.
Callie parou, se esquecendo das pessoas que esbarravam nela.
Jack usava um smoking e o traje formal lhe caía bem. A jaqueta se alongava sobre os ombros amplos e o branco do colarinho contrastava com seu cabelo escuro.
Ele se virou para apertar a mão de um homem e ela viu que estivera conversando com uma mulher. Como muitas mulheres lá, a loira de cabelos compridos usava um vestido recém-saído das passarelas e tinha completado o visual com joias caras. Jack se virou para ela quando terminou de falar com o homem e a mulher disse algo em seu ouvido, um sorriso nos lábios enquanto passava a mão sobre seu peito. Jack riu e deu um passo definitivo para trás.
Podia ser algo inocente – provavelmente tinha sido, pelo menos da parte de Jack – mas, naquele momento, Callie não estava inclinada a permanecer ali. Sua cabeça girava com o barulho e as pessoas e tantas coisas mais. Se ela não saísse da festa, desabaria e faria algo ridículo, como dar uma cotovelada naquela mulher. Assim que pôde, fugiu para a cozinha e saiu pelos fundos.
A noite estava fria e ela ficou agradecida porque o ar gelado ajudou a diminuir o zumbido nos ouvidos. Abraçando-se, atravessou a entrada da casa e subiu ao ateliê. Não suportaria voltar para a casa até que a festa acabasse. Ela não fazia parte do mundo de Jack e não conseguiria fingir. Não aquela noite.
Ela foi ao sofá e sentou com o resto dos documentos. Um por um, apanhou pedaços de papel da caixa, em busca da verdade sobre Nathaniel.
Jack viu Gray através da multidão na sala de jantar e pediu licença de uma conversa sobre fundos rodoviários. Havia muitas pessoas querendo discutir problemas sobre o estado. Era evidente que boatos sobre a candidatura dele haviam se espalhado.
Acenando, ele atraiu a atenção de Gray e gesticulou para o amigo se aproximar.
– Que bom que veio – Jack disse quando eles se encontraram em frente a uma bandeja de salmão escalfado.
– Acabei de falar com o senador McBride. Acho que você ficará contente – Gray ergueu a taça para um congressista que acabara de entrar. – Os relatórios preliminares do comitê exploratório são altamente favoráveis. Você saberá de tudo amanhã, mas já temos alguns patrocinadores de peso e o reconhecimento do seu nome está explodindo. Temos força, Jack.
– Isso é ótimo – ele disse, para o bem do amigo.
– É mais que ótimo. E ouvi umas notícias interessantes. Sabia que Butch Callahan ameaçou fisicamente sua diretora adjunta, quando ela não o apoiou naqueles prêmios de construção ano passado? Sabe, os que foram metade para a família dele?
– Meu Deus! Não sabia disso.
– É, ninguém mais sabe.
– Gray, como descobre essas coisas?
– Você não quer saber. Enfim, isso significa que teremos de barganhar com...
– Depois – Jack indicou a mãe, que tinha acabado de entrar na sala e os observava com uma expressão determinada.
Mercedes estendeu os braços ao se aproximar.
– Gray, querido, como está?
– Senhora Walker, está encantadora!
Enquanto a mãe aceitava o beijo que Gray lhe dava no rosto, Jack a analisou objetivamente. Ficava bem no vestido azul-escuro e ele notou o colar de diamantes e safiras, presente de casamento que ela recebera dos avós de Jack. Uma das poucas peças no cofre dela de que ele teoricamente não era dono.
– Agora, Gray, sei que você e Jack têm tramado muito ultimamente. Quero que saiba que aprovo por completo – Gray murmurou alguma coisa vaga e ela tomou o braço dele. – Nem posso dizer quantas pessoas aqui estão preparadas para votar em meu filho. Eles vão apostar corrida até as urnas!
Enquanto Gray fazia a dança social com a mãe, Jack perscrutava a sala. Procurara por Callie a noite toda, mas ela não estava em lugar algum. Ou talvez o evitasse de propósito. Afinal, o prazo que Jack lhe dera era amanhã. Talvez não quisesse falar com ele até lá.
– Jack? – a mãe perguntou.
– O quê?
Mercedes soltou sua risada social, aquela que soava como sinos de vento e que passou pelo pequeno grupo que se reunira ao seu redor.
– Não é a cara do meu filho? Sempre perdido em pensamentos. Jack tem tanta coisa em que pensar... Agora, se nos dão licença, meu filho e eu precisamos de um momento a sós.
– Precisamos? – ele perguntou.
Ela estava sorrindo e acenando enquanto agarrava seu braço bom e o arrastava à despensa. Fechou a porta e lhe deu um olhar furioso.
– O que aconteceu com a pintura?!
Embora soubesse exatamente do que ela estava falando, ele murmurou:
– Pode ser mais específica?
– Ela a destruiu!
– E de quem você ouviu isso?
– Gerard me contou tudo.
– Então tenho certeza de que não usou essas palavras.
Mercedes endireitou os ombros e começou sua ladainha costumeira.
– Jackson, não entendo o que essa mulher fez com você. Ela entra na sua casa, destrói seu relacionamento com Blair, e comete danos incalculáveis àquela obra de arte inestimável... e você a defende?
– Mãe, relaxa. Grace e eu vimos a pintura com Callie hoje à tarde. Está tudo bem.
Isso fez Mercedes hesitar.
– Grace viu a devastação?
Ele crispou os lábios.
– Pela última vez, a pintura não está arruinada.
– E o rosto? De quem é?
– Temos uma teoria, e se estiver correta, o valor da pintura provavelmente subirá.
Os olhos da mãe se estreitaram.
– Ah.
Ele ergueu uma sobrancelha e esperou para ver se ela encontraria outro modo de exagerar a seriedade da situação.
Em vez disso, ela o atingiu de um ângulo novo.
– E a festa no Museu? – ela perguntou. – Pensei que faríamos uma recepção quando a pintura fosse exposta ao lado do Paul Revere. Já comecei a convidar pessoas, mas Gerard diz que você está sendo evasivo.
– Se houver uma recepção, será aqui. Não importa o quão bom meu ancestral ficaria ao lado do Revere, a pintura voltará ao lugar a que pertence: o espaço acima da minha lareira.
– Mas seu pai está lá!
Como se o homem em pessoa, não um retrato dele, estivesse pendurado na parede.
– Vou mudar aquele quadro de lugar.
A mãe o olhou como se ele tivesse dito uma blasfêmia, e Jack verificou o relógio. Sete horas na Costa Oeste. Perfeito, ele pensou.
– Se me dá licença, tenho negócios para resolver.
Ele sabia que era o único jeito de a mãe deixá-lo ir. Ela perdoaria qualquer coisa que tivesse a ver com o Fundo Walker. Mercedes sempre mantinha os olhos no prêmio. E o prêmio vinha quase sempre em cédulas.
Mas ela agarrou o braço de Jack em um aperto forte.
– Estou muito preocupada com você.
– Não sei por quê. O gesso vai ser tirado em umas duas semanas.
– Não brinque! – Os olhos dela faiscaram. – Não sei mais no que está pensando, Jackson. Mas me recuso a deixá-lo esquecer do que importa.
– Que sorte a minha – ele disse, abrindo a porta.
Atravessando com rapidez a festa, Jack se fechou no escritório, apanhou um cartão da escrivaninha, e discou o número nele.
A voz do outro lado da linha foi ríspida.
– Alô? – houve um som abafado. – Não, não, querida, papai está no telefone.
Uma criança começou a chorar.
– Bryan McKay? – Jack perguntou.
– Sim – houve um suspiro profundo. – Olha, não aceito ligações de telemarketing...
– É Jack Walker.
Silêncio total. Então:
– Ah, meu Deus. Ah, olá, como conseguiu meu número de casa? Quero dizer, deve conhecer pessoas que... ah, meu Deus. O que posso fazer por você?
– Respire fundo primeiro.
Jack riu quando o doutor realmente fez aquilo.
– Dr. McKay, vou investir na sua companhia. Financiarei toda a sua operação pelos próximos três anos, cobrindo até o custo das lâmpadas e das vassouras.
Houve outro silêncio e então:
– Ah-meu-d-Deus. Ah-meu-Deus!
Jack sorriu, sentindo-se bem com sua decisão.
– Mas precisamos combinar alguns detalhes – ele disse depressa. – Não estou apenas investindo, vou ajudá-los a ser bem-sucedidos. Sua família e eu seremos sócios.
Callie enfiou a mão na caixa, pegou um pedaço de papel e sentiu-o escapar dos dedos. A página deslizou sob o sofá e ela xingou baixinho enquanto se agachava, levantava a cobertura do sofá e enfiava a mão na escuridão.
Quando sentiu a folha, sentou-se e tirou a poeira da página escurecida e rasgada.
Perdeu o fôlego ao notar sua cor marrom escura. Era velha, muito velha. Cuidadosamente segurando os dois lados da folha, ela mal conseguia entender as palavras, de tão esvanecida que estava a tinta.
Ela se inclinou para a luz e tentou ler a caligrafia inclinada.
Querido Nathaniel,
É com grande pesar que devo lhe informar o falecimento da minha amada filha Anne. Ela foi tomada pelas mãos gentis do Senhor no dia 15 de setembro. Minha dor é infinita, afligindo-me tanto à noite como sob a luz do sol. Nos pertences dela, encontrei suas cartas e as devolvo para seus cuidados como questão de discrição. Tivesse sabido dos seus sentimentos por ela e dos dela por você, teria ficado contente com a ideia de um casamento. Amava-a mais que tudo na Terra, mas teria permitido que entrasse em sua casa porque sei que tipo de homem é. É uma dor dupla no meu coração que tenha chegado tão perto de chamá-lo de filho. Nosso anjo está com os outros.
Seu,
J. J. Rowe
Callie ergueu os olhos. Sobre a borda rasgada do papel, viu o retrato.
Ela releu a carta e foi até a pintura. Passou os dedos de leve sobre a bochecha de Nathaniel e então viu o reflexo da garota que ele tinha amado e perdido.
Quinze de setembro.
A batalha de Concord acontecera no começo de setembro. O que queria dizer que o encontro noturno entre Nathaniel e Anne teria acontecido meras semanas antes da sua morte. Temendo a reação do pai, Anne perdera a última chance de ver o homem que amava, mas sem motivo. Se a carta do general realmente refletia seus sentimentos, ele teria aprovado a união.
Callie olhou nos olhos de Nathaniel, balançando a cabeça tristemente e pensando no que ele tinha perdido. No que poderia ter tido.
Meu Deus! Perder tanto por um medo que, no final, era infundado!
Anne ainda teria morrido, provavelmente, mas quem sabe o que poderia ter acontecido no encontro? Um pedido de casamento? Talvez Nathaniel a tivesse levado consigo de algum modo e ela não tivesse contraído tifo na cidade.
Callie imaginou os arrependimentos que Anne teria sentido. Quando a garota ficou doente, teria sido tarde demais para informar Nathaniel, então seu destino foi nunca se despedir dele. Seu pai e seu amado estavam lutando longe de Boston. Mesmo que ela enviasse alguém atrás de Nathaniel, era duvidoso que tivesse conseguido atingi-lo a tempo, dadas as limitações de comunicação da época e a confusão da batalha. Era difícil não imaginar a garota doente desejando ver o homem que tanto amava.
Callie soltou a carta e foi até as janelas que davam para Buona Fortuna. A mansão estava maravilhosa em sua glória iluminada. Para uma casa que parecia sombria à luz do dia, à noite, com luzes em todos os quartos, era deslumbrante.
E a festa estava a todo vapor. Através das janelas do primeiro andar, ela podia ver silhuetas passando enquanto pessoas em roupas de festa socializavam.
Jack está em algum lugar entre eles, ela pensou. E lá estava ela, outra vez, olhando de fora.
Lembrando-se da noite em que ficara fora da mansão do pai com a mãe, observando pessoas que eram amigos dele e desconhecidos dela, Callie percebeu que sua vida voltara ao mesmo ponto.
A diferença era que agora ela escolhera não entrar. Não havia nada que a segurasse, nada a mantinha longe da vida de Jack a não ser ela mesma.
Ela imaginou Anne outra vez, em seu leito de morte.
E com uma claridade súbita e nauseante, Callie reviveu os últimos momentos entre seus pais. Viu a mãe, fraca, incapaz de falar, somente os olhos se movendo. Viu o pai, inclinado sobre ela, o rosto contorcido em uma angústia genuína. As palavras que ele dissera voltaram a Callie e trouxeram de novo a dor súbita e aguda. Uma dor imutável.
Enquanto relembrava o que o pai havia dito, percebeu que não era só Grace que ela estava protegendo ao manter o passado afastado da sua vida. Ela mesma se escondia da pior verdade de todas. Era como se, ao evitar o nome do pai, o que tinha acontecido, especialmente no fim, não tivesse sido real.
Mas aconteceu. Foi real.
E Callie sabia, com total convicção, que se não pudesse reconhecer o passado abertamente, perderia sua única chance de ter tudo que sempre quis. Um homem que a amava. Uma família. Um lugar ao qual ela pertencia.
Alguém que era dela.
Ela sabia o que tinha de fazer.
Apanhou a carta e, segurando-a com cuidado, se dirigiu para a casa.
Capítulo 23
Quando Jack saiu do escritório, meia hora depois, ficou surpreso por como se sentia, considerando que estava jogando 100 milhões de dólares em um negócio que, na melhor das hipóteses, não lhe daria prejuízos. Mas parte da sua satisfação era a reação de Bryan McKay. O doutor estava felicíssimo, e tão entusiasmado que ainda estava gaguejando quando eles desligaram.
Se Jack não conseguia fazer as coisas darem certo para si mesmo, podia muito bem ser a fada madrinha de outras pessoas. Só faltava uma varinha e um tutu.
Isso sim seria um bom anúncio de campanha.
– Jack! Como está? – o CEO de uma das maiores empresas de seguro do estado estava vindo até ele. – Queria falar com você sobre seguro de vida.
– Sou todo ouvidos.
Ele e o homem conversaram um pouco até que a mãe de Jack apareceu no corredor. Nate estava com ela, usando sua roupa branca de chef e parecendo ansioso para voltar à cozinha.
– Está na hora – ela disse.
Tomando a mão dos filhos, Mercedes os levou à sala de estar até a frente da lareira, bem embaixo do retrato de Nathaniel VI. Caiu um silêncio na festa e as pessoas começaram a se aproximar para ouvi-la.
Olhando a multidão, Jack avistou Gray encostado contra uma coluna do outro lado da sala, os braços cruzados e os olhos estreitados para Mercedes.
– Posso ter a atenção de vocês por um minuto? – ela começou.
Jack torceu para o discurso ser rápido este ano. Em toda festa, Mercedes fazia uma homenagem ao pai dele, numa litania de elogios que eram quase um culto fúnebre. Ela parecia determinada a manter viva a lenda de Nathaniel VI. Quando Jack estava se sentindo caridoso em relação à mãe, tentava ver amor no gesto, mas nunca tinha se convencido totalmente de que as motivações dela eram puras. Suspeitava que Mercedes só queria lembrar a todos com quem fora casada.
Mas que mal há nisso? ele pensou, olhando para o irmão sobre o penteado chignon dela. Nate parecia tão desconfortável quanto ele.
– Meu marido...
Jack ouviu as palavras distraidamente e olhou a sala, prestando atenção só quando viu Callie e Grace entrando do saguão. Estavam subindo as escadas, até que pararam para ouvir o discurso.
Ele olhou através da aglomeração de pessoas. Só tinha olhos para Callie.
No meio da multidão de mulheres altas e homens de smoking, ela estava vestida de modo simples, em um conjunto preto e branco que ele já vira antes. Seu cabelo caía sobre os ombros em uma gloriosa onda ruiva, e ao contrário de tantas das mulheres ali, a maquiagem era suave, natural.
Para ele, era de longe a mulher mais linda da festa.
Ao pé das escadas, viu dois homens a olhando e conversando. Um deu de ombros, como que para indicar que não sabia quem era, e então ambos encararam-na sobre os ombros.
A apreciação curiosa e intensa na expressão deles fez Jack fechar a mão em punho. Queria atravessar a sala e chutá-los para fora da casa, mesmo que um deles fosse seu parceiro de squash, e o outro ele conhecesse desde o jardim de infância.
Callie não pareceu notar, no entanto. Ela observava algo em sua mão, e quando finalmente ergueu a cabeça, os olhos deles se encontraram. Desejo passou pelo corpo de Jack e ele precisou se controlar para não dar um passo na direção dela.
Com um sorriso suave, Callie ergueu um pedaço de papel rasgado e o acenou lentamente no ar.
Será que tinha encontrado a resposta?
A voz de Mercedes interrompeu seus pensamentos.
– E temos meu filho, Jackson. Como sabem, ele deixou o pai e eu muito orgulhosos com tudo que realizou, e está prestes a embarcar em um novo desafio. Estou simplesmente encantada em anunciar que Jackson vai concorrer a governador do nosso estado em novembro!
Jack se virou depressa. Uma onda de aplausos se ergueu no ar, e ele encarou a mãe, incrédulo.
– O que você fez? – ele disse entredentes.
Mas ela estava ocupada demais absorvendo a adulação para ouvi-lo.
Freneticamente, ele olhou na direção das escadas, mas não conseguia ver através das mãos levantadas. Merda. Só podia imaginar o que estava passando pela cabeça de Callie.
– Discurso! Discurso! Discurso!
Sabendo que não conseguiria escapar até dizer alguma coisa, ergueu as mãos e acalmou os convidados.
– Ainda não tenho nada a declarar formalmente – gritos de apoio abafaram sua voz. – Mas agradeço o voto de confiança de todos.
Quando os aplausos começaram de novo, ele encontrou os olhos de Gray. O amigo abanava a cabeça, sabendo exatamente o que aconteceria em seguida. Mercedes tinha anunciado sua candidatura às trezentas pessoas mais influentes de Massachusetts. E quase todas tinham um celular no bolso. A notícia estaria no Globe e no Herald na manhã seguinte.
Quando o fervor começou a diminuir, a mãe se virou para ele, toda sorrisos, e exclamou:
– Não é fabuloso? Eles amam você!
Jack se aproximou dela, de modo que mais ninguém o ouvisse.
– Mãe, você vai se arrepender disso.
Ela recuou, surpresa, mas ele já estava se afastando. Tinha que encontrar Callie.
Ela desaparecera; provavelmente fora para o quarto.
Jack estava a caminho das escadas, se esquivando de apertos de mão, quando Gray apareceu na sua frente.
– Precisamos lidar com isso. Agora.
Antes que ele pudesse responder, Gray disse:
– Você sabia que ela iria fazer isso?
– Claro que não!
O celular de Gray tocou e ele franziu o cenho quando viu o número.
– Precisamos fazer uma reunião com o partido e preparar uma declaração à imprensa. Então vamos ter que falar com todos os membros do comitê exploratório, incluindo os que não estão aqui. Irritar as pessoas que estão ajudando você é a última coisa que deve fazer agora. Nenhuma delas esperava esse anúncio.
Bem-vindo ao clube, Jack pensou.
Ele estava irado. Tinha de lidar com essa situação agora porque a mãe não sabia se comportar, e tudo o que queria era encontrar Callie.
Quando a mãe de Jack fez o anúncio e a multidão foi à loucura, Callie fechou os olhos.
– Não acredito! – Grace exclamou. – Que emocionante!
Callie forçou um sorriso.
– Sim. Ele realmente quer concorrer.
Tanto que nem tinha esperado a resposta dela.
No canto, ele viu Gray com um celular no ouvido.
Tinha de dar crédito a Jack e ao amigo. Fazer a sra. Walker anunciar a candidatura na frente do retrato do pai de Jack era uma manobra brilhante. Um ato de espontaneidade perfeito em um cenário que enfatizava a história da família e seu serviço ao estado e ao país. E anunciar em uma festa particular, sem a imprensa, era ideal. A notícia estava se espalhando rápido – os celulares já estavam nas mãos de todos. Os repórteres seriam obrigados a procurar Jack para mais detalhes, dando-lhe a oportunidade de conceder entrevistas como uma forma de favor. Como estratégia de marketing, era magnífica.
Ele tinha arranjado a situação a seu favor maravilhosamente.
Enquanto Jack erguia as mãos e sorria, assumindo uma pose típica de político, ela desviou o olhar. Não tinha interesse no que ele iria dizer.
Não conseguia acreditar que ele não tinha esperado. Ele prometera que não faria nada até amanhã, mas agora estava tudo acabado. Ele concorreria. E ela estava fora da vida dele.
Distraída, ela ouviu os convidados ficarem em silêncio obedientemente, a voz grave de Jack e então uma erupção de aplausos e gritos.
– Callie? – Grace gritou sobre o tumulto.
Ela voltou à realidade.
– Sim?
– Quer subir para conversarmos?
Agora não, ela pensou. Pelo menos não para a conversa que ela pensou que teria.
– Só quero mostrar o que encontrei – ela respondeu.
– Encontrou outra carta?
– A carta, na verdade.
Callie seguiu Grace até o quarto da meia-irmã.
Lá, sentou-se em uma chaise longue no canto. Tirando os sapatos, dobrou as pernas sob o corpo enquanto Grace tomava a carta e a lia sob a luz de um abajur.
Ela estivera tão preparada para dar aquele passo. Para dizer tudo a Jack e implorar a ele que encontrasse um jeito de ficarem juntos. E decidira fazer aquilo mesmo se Grace ficasse desconfortável com a revelação de seu passado a Jack. Não importava. Ela contaria a verdade de qualquer jeito e escolheria Jack acima de tudo que protegera a vida toda. Acima da pouca família que tinha.
Só que demorara demais. Ou talvez ele não tivesse falado sério sobre não concorrer.
– Isso é extraordinário – Grace ergueu os olhos. – Estávamos certas!
Callie olhou para o papel.
– Você estava certa.
– Mostrou isso para Jack?
Ela abanou a cabeça.
– Vou esperar até amanhã. Ele tem mais o que fazer agora.
– Isso é verdade – Grace pôs a carta em uma mesa lateral. – Quanto trabalho ainda tem a fazer no retrato?
– Terminei a limpeza hoje à tarde. Só preciso aplicar a camada nova de verniz e o projeto acaba.
Grace sentou-se ao pé da chaise longue e começou a mexer nos diamantes que usava nas orelhas.
– E depois?
Callie riu baixinho.
– E depois volto para Nova York.
Naquele momento, a porta se abriu e Ross entrou. Estava arrancando a gravata-borboleta como se a odiasse, e parou quando viu Callie.
– Estou interrompendo alguma coisa?
Callie se levantou e pegou a carta.
– Nem um pouco. É melhor eu ir, está tarde. Que horas vocês saem amanhã?
Grace a seguiu até a porta.
– Logo depois do café da manhã.
– Vejo você de manhã, então. Boa noite, Grace. Ross.
Atravessando o corredor, ela pensou que na manhã seguinte mostraria a carta a Jack, colocaria o verniz na pintura, e então estaria tudo acabado.
Ficou surpresa ao perceber que estava ansiosa para voltar ao seu apartamento. Por mais modesto que fosse, tudo lá pertencia a ela. Callie não sabia exatamente em que trabalharia, mas pensou que cedo ou tarde resolveria o problema.
Depois que entrou no quarto, hesitou. Então, lentamente trancou a porta.
Ela suspeitava que Jack viria até ela e não tinha a energia para lidar com ele aquela noite. Só queria paz.
E nunca a encontraria, com Jack Walker em sua vida.
Capítulo 24
Eram duas da manhã quando Jack finalmente pôde sair do escritório. Membros do comitê exploratório e Gray haviam transformado o cômodo em uma central de comando e passaram horas pendurados em todas as linhas de telefone disponíveis. Receberam ligações de repórteres, legisladores e contatos comerciais. Ele dera oito entrevistas à imprensa antes da meia-noite.
E não era como se tivesse muito a dizer.
Apesar do consenso majoritário no escritório, Jack tinha mantido firmemente uma posição descomprometida. Até Gray discordara, convencido de que era uma boa ideia capitalizar o momento.
Mas Jack se recusava a oficializar a candidatura antes de falar com Callie. Mesmo que fosse difícil, não era tarde demais para desistir e ele tinha esperança de que ela ainda o aceitaria. Por menor que fosse essa esperança.
Depois de agradecer Gray e os dois conselheiros que ainda estavam no escritório, ele foi atrás dela.
Atravessando o corredor, pensou que deveria ter suspeitado de que a mãe faria algo do tipo. Uma mulher que podia mudar totalmente sua identidade e abandonar mãe, pai, irmãos e irmãs sem olhar para trás era capaz de qualquer coisa, se quisesse.
E ela deixara muito claro seu desejo de que ele fosse governador.
A primeira coisa que faria na manhã seguinte era dar um jeito na mãe.
Jack parou em frente à porta de Callie e se preparou para o que quer que fosse acontecer. Ele bateu e, quando não houve resposta, tentou abrir. A maçaneta não virou.
Sem entender o problema, ele balançou a maçaneta, xingando.
E então a soltou.
Não conseguia acreditar. Ela o trancara para fora.
Pronto a esmurrar a porta até derrubá-la, ergueu o punho e se inclinou para a frente, e então parou.
Abaixou a mão. Agachou-se. Encarou a porta.
Callie não apenas não confiava nele, claramente também não tinha nenhuma fé nele. Sequer permitira que ele explicasse que o anúncio da mãe fora precipitado, inesperado e errado.
De repente, Jack ficou sem fôlego. Com uma mão instável, desamarrou a gravata-borboleta e afrouxou o colarinho. Abrindo a boca, encheu os pulmões de ar.
Então é assim que acaba, ele pensou.
Que fim apropriado, com ele trancado para fora do quarto dela.
Jack pôs a mão contra a porta.
Ele não soube por quanto tempo ficou ali, mas por fim percebeu que precisava encarar a realidade.
Não importava o que dissesse, Callie não o amava o suficiente. Fizera a sua escolha. Não o queria na sua vida.
Era o fim.
Jack tirou a mão da porta e se afastou. Não sabia para onde estava indo nem por quê. A única coisa que sabia era que, quando o sol nascesse, não queria estar de pé em frente ao quarto trancado de Callie.
Quando desceu as escadas, garçons ainda rodavam pela casa. Os homens e mulheres carregavam bandejas com taças sujas para a cozinha e tiravam os restos de comida da sala de jantar. Ele percebeu que não se despedira dos hóspedes.
Provavelmente foi melhor assim, ele pensou, indo para o escritório. Não teria aguentado todos os parabéns pela candidatura.
Gray estava sozinho no cômodo, guardando papéis.
– Que noite, hein – o amigo murmurou.
Você não tem ideia, ele pensou.
Ele encarou Gray por um minuto e então falou rispidamente:
– Amanhã de manhã quero os membros do comitê no meu escritório na cidade logo cedo.
– Tudo bem, mas não deve levar mais que umas duas horas para ouvir os relatórios...
– Diga a eles que vai levar o dia todo. Temos uma campanha para lançar.
Gray ergueu os olhos da pasta que estava segurando.
– Do que você está falando? Achei que ainda estava decidindo. Dissemos a todo mundo que você ainda estava decidindo.
– Já decidi.
– Jesus Cristo, Jack! – Gray jogou a pasta na mesa. – Perdemos uma oportunidade ótima hoje!
Jack deu passos rápidos até a mesa.
– Não preciso disso hoje, tá bom? Faça seu trabalho, ligue para aquelas pessoas, e vamos começar essa campanha.
Ele se sentou e esperou Gray se controlar.
– Se importa se eu perguntar o que inspirou a mudança? – a voz do amigo estava calma agora.
Mas Jack não tinha nenhuma intenção de expor sua dor.
Porque seus sentimentos não eram problema de mais ninguém.
– Não tenho mais nada a perder.
Jack ainda estava sentado na escrivaninha quando o sol nasceu. Quando os primeiros raios da aurora caíram sobre o jardim, mexeu-se na cadeira e mudou o gesso de posição. Sentia uma dor constante no ombro, mas era a dor no peito que comandava sua atenção. Pensou que era ou angina ou um coração partido, e era difícil decidir o que seria pior.
Embora essa dor provavelmente se devesse ao fato de ele estar sozinho, assistindo a um lindo nascer do sol, e sentindo-se pateticamente melodramático.
– Bom dia, governador.
Jack avistou Nate na porta. Sorriu, mesmo se sentindo meio morto.
– Não seja apressado com esse título. Falta um longo caminho até a linha de chegada.
– E por acaso você já perdeu alguma coisa?
Jack não conseguiu continuar a brincadeira.
– Me surpreende que esteja de pé tão cedo, considerando tudo o que você e Thomas fizeram ontem à noite. A comida estava fantástica.
Reparando na mochila no ombro de Nate, Jack perguntou:
– Está de partida?
– Sim, quero estar no Canadá antes do anoitecer. Spike, Louie e eu temos hora marcada para ver um restaurante que está à venda.
– Sabe, eu estava falando sério quando ofereci dinheiro. Mesmo que você insista que seja um empréstimo.
– Obrigado.
Jack se levantou, afrouxando a tensão nas costas.
– Quando nos veremos de novo?
– No Natal.
– Bom.
Eles saíram juntos, indo para a cozinha, e Jack fez um desvio para pegar o Globe na entrada. Quando abriu o jornal, viu uma foto de si mesmo abaixo da dobra na primeira página. O artigo citava que Jack ainda estava se decidindo, mas o repórter especulava que era uma questão de tempo até que um anúncio oficial de sua candidatura fosse lançado.
O editor do cara vai ficar feliz, Jack pensou. A campanha Walker provavelmente anunciaria algo até o final da semana.
– Então vai mesmo concorrer – Nate disse por sobre o ombro.
– Vou.
Enquanto entravam na cozinha, ele passou os olhos sobre o artigo. A resposta de Butch Callahan era o que eles estavam esperando: “minimamente civil”.
Jack jogou o jornal na mesa.
E a batalha começa, pensou.
– Vai tomar café? – perguntou a Nate.
– Não. Como algo na estrada.
Jack acompanhou o irmão até o velho Saab que Nate dirigia desde que se formara em Harvard.
– Espero que essa coisa não pare no meio do caminho.
– Eu também – Nate jogou a mala no carro e entrou. Com umas cuspidas e um ronco, o motor acordou e Nate se inclinou através da janela. – Cuide-se e lembre-se, meu celular tem correio de voz, então sempre pode me encontrar. Ligue se precisar conversar.
– Pode deixar, mano.
Jack acenou enquanto Nate se afastava.
Antes de entrar de novo na casa, olhou para a garagem e se perguntou se algum dia seria capaz de olhar para lá e não pensar em Callie.
Rapidamente, imaginou cenários possíveis: o que teria acontecido se a mãe não tivesse feito o anúncio surpresa, ou se Callie lhe desse a chance de se explicar. Ou se ela tivesse confiado nele, para começo de conversa.
Mas então refreou os pensamentos e voltou ao escritório. Sabia que tinha muito trabalho a fazer.
Sentou-se à escrivaninha e ligou para um agente imobiliário que conhecia. Deixou uma mensagem autorizando uma oferta a preço integral, em dinheiro vivo, para comprar um apartamento no hotel Four Seasons. Sabia que havia um disponível, pois vira uma oferta no jornal na semana anterior. A próxima ligação foi para uma empresa de mudança. Se os advogados agissem rápido, ele imaginou que podia fechar o negócio em até duas semanas, e queria se certificar de que o serviço de mudança estaria a postos.
Estava desligando o telefone quando a mãe se materializou na porta em um vestido de seda claro que caía até o chão, e com o cabelo frouxamente preso em um coque, parecia jovem, mesmo na sua idade.
– Falando do diabo...
O sorriso da mãe era conciliatório, mas os olhos revelavam certa satisfação. Ela sabia exatamente o que tinha feito. Mas por que ele estava surpreso? Ela era uma mulher muito esperta.
– Jack, querido, não tive a chance de dizer boa noite depois da festa – ela entrou no escritório. – Queria agradecer por tudo que você fez para que a noite fosse um sucesso.
– Diga, mãe – ele disse, mexendo distraidamente em alguns papéis: – Quando está pensando em ir a Palm Beach para a temporada?
– Depois de amanhã.
– Talvez prefira adiar por uma semana.
– Não está com pressa de se livrar de mim? Que mudança agradável! – ela censurou, o sorriso se tornando mais genuíno.
– Só pensei que vai precisar de tempo extra para se adaptar.
Ela lhe deu um olhar curioso.
– Adaptar-me a quê?
– Você vai sair desta casa.
Mercedes pareceu parar de respirar.
– O que disse?!
– Estou comprando um apartamento pra você no Four Seasons. Então imagino que queira estar lá para orientar a mudança quando colocarem as coisas na sua casa nova. A não ser que queira que um decorador faça isso.
A mãe ficou pálida.
– Meu Deus, Jack, o que você fez?
– Estou cortando o cordão umbilical.
Mercedes foi até o sofá e se sentou. Pareceu desabar, de repente pequena demais, envolta em toda aquela seda luxuosa.
– Você não pode fazer isso. Não pode me mandar embora. Eu moro aqui. Não posso deixar Buona Fortuna para viver num hotel.
– Não estou mandando você para um motel de estrada, pelo amor de Deus. É o Four Seasons.
– Mas esta é a nossa casa!
Ele se levantou.
– Vamos esclarecer uma coisa. Esta é a minha casa. E você vai sair dela. Fim de história.
O lábio da mãe tremeu.
– Jack, não faça isso.
– Sinceramente, me arrependo de não ter feito antes. Agora – ele disse rispidamente – vou para a cidade e duvido que chegue para o jantar.
Quando ele passou ao seu lado, Mercedes agarrou sua mão. Ele notou, sem compaixão, as lágrimas nos olhos dela.
– Mas por quê? – ela perguntou.
Ele a encarou por um longo momento.
– Você sabe exatamente por quê. Tem ideia do que fez comigo ontem à noite?
– Só queria ajudar – ela sussurrou energicamente. – E Jack, você precisa de mim.
– Talvez se você se comportasse menos como uma inimiga. Mas desse jeito, não. Não preciso.
Callie entrou na cozinha e imediatamente desejou ter ficado no quarto um pouco mais.
A mãe de Jack estava chorando e Thomas olhava a mulher como se fosse precisar segurá-la caso ela desmaiasse.
– Ele não pode fazer isso! – a sra. Walker gritou. – Você precisa falar com ele. Faça-o entender que eu não posso ir embora. Ele ouve você.
– Não sei se... – Thomas parou de falar quando percebeu que não estavam sozinhos.
A sra. Walker se virou. Assim que viu Callie, tentou se controlar, erguendo o queixo e levando um lenço ao nariz. Movendo-se com paciência nobre, enxugou os olhos rapidamente e, quando falou, a voz tremeu só um pouco.
– Gostaria do meu café na cama hoje, Thomas. Peça a Elsie para trazê-lo quando ela chegar.
E então a sra. Walker passou por ela como se não tivesse estado histérica um momento antes.
Callie olhou de volta para Thomas. Ele estava encostado contra o fogão e balançava a cabeça.
– Eu devia ter imaginado – ele murmurou.
– O que aconteceu?
O homem ergueu os olhos.
– Jack expulsou a mãe de casa.
– O quê?!
– Expulsou a própria mãe. Embora eu entenda por que ele ache que ela mereça.
– Mas, por quê... – Callie sentiu-se empalidecer.
O anúncio da noite anterior.
– Thomas, preciso saber. Por quê? – ela perguntou, mesmo que já suspeitasse da resposta e estivesse horrorizada pelas implicações.
– O discurso que ela deu. Pelo visto, Jack não estava pronto a anunciar nada.
– Ah, não – ela sussurrou.
– A sra. Walker disse que tentou se desculpar, mas que ele nem quis saber. Sinceramente, não sei qual é o problema. E daí que ela se adiantou um pouco? A não ser que ele não fosse concorrer, no fim das contas, não há problema.
Uma onda de náusea passou por Callie quando ela percebeu o erro que cometera. Tinha de encontrá-lo e se explicar – mas talvez já fosse tarde. A candidatura já fora anunciada. Ele não podia voltar atrás agora, podia? Ou talvez...
– Me dá licença? – ela não esperou uma resposta antes de sair.
Correu ao escritório de Jack, e quando o encontrou vazio, subiu as escadas e bateu no quarto dele. A porta estava aberta, mas ele não estava lá também.
Ela disse a si mesma que o comitê exploratório não se reuniria até a tarde. Ela teria tempo de encontrá-lo antes que ele saísse. Mas onde ele estava?
Ela foi brevemente atrasada no corredor quando Grace e Ross saíram do quarto com as malas.
– Grace! Preciso falar com você.
Os olhos da meia-irmã se arregalaram.
– Claro. Onde quer...
Callie puxou a mulher para dentro do seu quarto e fechou a porta.
– Não tenho muito tempo, mas preciso... Estou apaixonada por Jack e cometi um erro terrível. Um erro horrível, medonho...
– Você está apaixonada por Jack!
– Sim, e imaginando que não tenha estragado tudo, preciso que você entenda algo. Contei a ele um pouco sobre meu passado, mas ele não sabe da história toda porque eu não podia dizer toda a verdade sem expor você. Agora ele acha que não o amo e não confio nele.
Os olhos de Grace se arregalaram ainda mais.
Callie respirou fundo antes que perdesse a voz.
– Você precisa entender. Tenho que contar tudo pra ele, mesmo que você não queira. Se não contar, não teremos nenhum futuro juntos. E não posso deixar que isso aconteça.
Ela esperou uma resposta, mas não houve nenhuma. Grace parecia totalmente congelada.
– Desculpe – Callie disse, apanhando a mão dela. – Sei que prometi. Mas não posso mais esconder isso dele. Não quando tenho tanto a perder ficando em silêncio.
Ela ouviu um clique e olhou para baixo. Grace tinha começado a mexer no relógio, abrindo e fechando o trinco. Quando ela se levantou e atravessou o quarto, Callie segurou a respiração. Não estava preparada para ficar em silêncio, mas não queria machucar Grace.
– Eu... sinto muito, Grace. De verdade. Nunca esperei...
Grace se virou e a congelou com um olhar firme.
– Não peça desculpas. Nunca peça desculpas. Isso tudo é culpa do nosso pai. Não sua.
Houve um silêncio demorado. Callie viu o rosto da meia-irmã ficar cada vez mais sombrio. A profundidade da raiva de Grace a surpreendeu.
E então Grace foi até ela, pegou suas mãos e disse:
– Conte para Jack. Conte tudo pra ele.
Callie piscou.
– Tudo? E você vai ficar...
– Ficarei perfeitamente bem.
Callie sentiu-se imensamente agradecida, mas a sensação passou quando se lembrou de que ainda não sabia onde estava Jack.
Nem se ele a ouviria. Sua única esperança era de que, caso ela se desculpasse o bastante, ele a perdoaria. Talvez.
Mas onde estava ele?
Ela pensou sobre a comoção na noite anterior. Podia apostar que ele se encontrara com o comitê exploratório mais cedo. Considerando tudo que havia acontecido, Jack provavelmente adiantara a reunião. Ele e os conselheiros teriam muito o que discutir.
– Ele já deve ter saído! – ela olhou para Grace. – Você vai voltar pra cidade agora?
Grace assentiu.
– Me dá uma carona até o escritório dele?
– Claro, sei onde é.
Callie abriu a porta, e ela e Grace agarraram Ross e saíram correndo com ele. Logo depois de confirmar com Thomas que Jack fora ao escritório, entraram em um Ford Explorer preto, com Ross na direção.
Eles entraram na Mass Pike e estavam no caminho de Boston quando Grace olhou para o banco de trás, franzindo a testa.
– E o que acontecerá quando você contar pra ele?
– Não faço ideia. Espero que ele me perdoe – Callie sorriu fracamente. – Pode ser tarde demais, de qualquer jeito. Mas tenho que tentar.
– Mas se não for tarde demais, o que acontece?
Amor, família, e tudo o mais, ela pensou, não tendo coragem de colocar tanto otimismo em palavras. Mas o seu “felizes para sempre” provavelmente não era o que estava preocupando Grace.
– Quer dizer sobre a candidatura? – Callie disse. – Não se preocupe. Ele disse que, se eu contasse a verdade, desistiria da eleição.
Grace a considerou, pensativa.
– Realmente quer que ele desista de tudo isso? Você mesma disse o quanto ele quer concorrer.
Parecia prematuro discutir o futuro deles enquanto Jack ainda estava tão magoado com ela. Mas Callie respondeu mesmo assim.
– Claro que não quero que ele desista. Odeio pensar no que estaria abandonando e tenho medo de que depois fique ressentido. Mas não temos escolha.
– Temos, sim.
Callie a olhou, sem acreditar no que Grace estava sugerindo. Talvez só não tivesse entendido.
– Mas, Grace – ela explicou pacientemente –, se eu estiver com Jack e ele concorrer, meu passado, o nosso passado, virá à tona. Algum repórter juntará as peças e revelará tudo. Acha que os livros de revelações estão ruins agora? Espere até ver nossas manchetes!
Grace a considerou seriamente. E então disse a coisa mais inesperada.
– Talvez. Mas não estou mais a fim de manter o segredo do nosso pai. Você está?
Callie estava pasma. Ela estava disposta a superar qualquer coisa para estar com Jack, até a exposição à imprensa. Mas Grace? Por que se colocaria naquela posição? Ela não tinha nada a ganhar e tudo a perder.
Callie balançou a cabeça.
– Mas as consequências pra você, pra sua mãe... seriam tremendas. Não posso imaginar tudo com que teriam que lidar.
Grace olhou para Ross, encontrando os olhos do noivo. E, então, se voltou para ela outra vez.
– Em outro momento da minha vida, talvez não conseguisse lidar com tudo isso. Mas eu mudei e as circunstâncias também. Com o sucesso do baile desse ano, minha posição na Hall Foundation está segura. Tenho um homem que me ama e que não tem medo de nada.
Ross apertou a mão dela.
– E tenho você, Callie – Grace hesitou. – Nosso pai traiu a nós duas e não posso brigar com ele por isso, uma vez que ele mentiu pra mim até a morte. Não tenho vontade de protegê-lo, não considerando como isso afetará sua vida e a de Jack. Deixe que fique tudo às claras. Deixe toda essa história maldita ser revelada. Passaremos pela tempestade juntas e quando sairmos do outro lado, estaremos livres.
– Faria isso por mim? – Callie sussurrou.
Os olhos verdes de Grace brilhavam com determinação.
– Por você, sim. Não tenho nada a esconder. Tenho orgulho de ter você como irmã.
Callie levou as mãos à boca, fechando os olhos com força. A possibilidade de um reconhecimento daqueles, de um apoio como aquele, nunca lhe ocorrera.
Ela sentiu a mão de Grace alisar seu cabelo, mas não conseguia encarar ninguém no momento.
– Somos família, Callie. E famílias ficam juntas.
Família.
Quando Callie finalmente falou, estava rouca.
– Ele tinha tanta vergonha de mim. Mal podia me olhar a maior parte do tempo. Quando estava vivo, eu morria de medo que a verdade escapasse e ele se afastasse ainda mais. E depois que nos conhecemos, fiquei com medo de perder você.
A voz de Grace estava forte.
– Isso não acontecerá. Não vou a lugar nenhum.
Callie lentamente abriu os olhos e viu as lágrimas da irmã através das suas próprias.
– Ouça, Callie. Não vamos mais deixar nosso pai nos controlar do túmulo. O tempo de esconder a verdade já passou.
Capítulo 25
Jack estacionou no One Financial Center e subiu de elevador até os escritórios do Fundo Walker. Enquanto uma campainha eletrônica marcava a passagem dos andares, ele pensou que tinha tanto interesse em sua candidatura quanto em qualquer outro aspecto da vida. Havia telefonemas para fazer, documentos a ser revisados, o negócio com os McKay para finalizar – e ele não poderia se importar menos com tudo aquilo.
Estava destruído e não era porque passara a noite inteira em claro.
Quando finalmente se afastara da porta trancada de Callie, achou que estava dando o primeiro passo para aceitar uma vida sem ela, e se convenceu de que eventualmente voltaria ao normal. Mas indo para a cidade, percebeu que não havia considerado o comprimento da estrada à sua frente. Não iria esquecê-la em uma noite, ou em um dia. Ou um mês. E suspeitava que isso levaria um bom tempo.
Talvez para sempre.
O que é ridículo, ele disse a si mesmo. Não havia “para sempre” nesse tipo de coisa. Havia cinco – não, quatro – estágios da dor, não era? E ele parecia ter passado direto pela negação, já que se sentia terrível. Mais três e talvez se sentisse decente outra vez.
As portas do elevador se abriram e ele foi direto à recepcionista do fim de semana.
- Algumas visitas vão chegar para mim. Uma lista de nomes deve ter sido deixada para você. Pode por favor enviá-los à grande sala de conferências?
- Claro, sr. Walker. E arranjei o café da manhã pra vocês também.
- Bem pensado, Latasha. Obrigado. Almoçaremos aqui também.
Ele atravessou o corredor e acenou para alguns de seus funcionários que estavam sentados em suas mesas, trabalhando de suéter e calças cáqui. Chegou na sala de conferências e abriu as portas duplas. Por motivos de confidencialidade, as únicas janelas no cômodo davam para fora do prédio, e ele foi até elas.
Tentou imaginar como se sentiria dali a um ano. Ainda estaria pensando em Callie?
Gray foi o próximo a chegar e, então, um por um, os membros do comitê começaram a entrar.
Quando todos estavam sentados à mesa polida, Gray se inclinou e sussurrou:
- Vai fazer o anúncio primeiro?
Jack olhou para o grupo reunido. Os homens e mulheres na sala pertenciam a todos os setores da vida política de Massachusetts e havia dois com contatos de nível nacional para ajudá-lo a planejar a longo prazo. Era uma equipe poderosa e inteiramente capaz de levá-lo aonde ele queria.
Engraçado como ele estivera preparado a desistir de tudo e nunca olhar para trás.
- Jack? – Gray insistiu. – Está pronto?
Ele assentiu, forçando-se a continuar com a vida.
Estava se levantando quando ouviu vozes no corredor e a porta abriu.
- Com licença, a senhorita não faz parte desta reunião! – Latasha exclamou.
Jack ia perguntar o que estava acontecendo quando Callie entrou na sala. Ela congelou quando todos os olhares se voltaram para nela.
Estranhamente, o primeiro pensamento de Jack era que o cabelo dela estava solto, do jeito que ele gostava. E então fez um favor a si mesmo e se lembrou de que o modo como Callie usava o cabelo não era mais problema dele.
Embora o lugar onde ela estava importasse, se fosse propriedade dele.
- Esta é uma reunião particular – ele disse, tentando não a encarar. Não queria ver aquele tom especial de azul de novo.
- Vou chamar o segurança – Latasha murmurou, estendendo a mão para um telefone.
- Não será necessário. Tenho certeza de que a srta. Burke já está indo embora.
- Não estou, na verdade.
Ele levantou uma sobrancelha, sem pressa de acomodar-se ao desejo dela. Mas quando Callie pôs as mãos nos quadris, Jack sentiu que ela não sairia a não ser que fosse arrastada ou tivesse a chance de dizer o que viera dizer.
Jack deu de ombros. Não mandaria um guarda arrastá-la para fora. E não havia motivo para brigarem na frente de três juízes, um senador, o presidente da Câmara de Deputados, um promotor, quatro CEOs e um clérigo.
Embora talvez o padre Linehan fosse um bom árbitro.
- Senhoras e senhores, podem me dar licença por um segundo?
Gray lhe lançou um olhar divertido enquanto saía da sala com o resto dos membros do comitê.
Quando estavam sozinhos, Callie juntou as mãos e respirou fundo.
- Então – Jack disse –, o que foi?
- Desculpe interromper, mas é importante. Preciso falar com você.
- Quer se sentar?
Ela abanou a cabeça.
- Jack, cometi um erro terrível ontem à noite. Sinto muito. Devia ter adivinhado que você manteria sua palavra. Sempre fez isso. Eu tirei a conclusão errada sobre aquele anúncio.
Ele se sentou e a olhou através da mesa comprida. Se ela achava que isso era o que mais o incomodava, Jack não iria corrigi-la. Já tentara aproximar-se dela o suficiente. Agora, estava mais preocupado em superá-la.
- Obrigado – ele olhou para o relógio.
- Eu não estava pensando direito. Estive tão dividida!
Ele assentiu, mas ficou quieto, não tendo muito a dizer.
Houve um momento de silêncio.
- Se é só isso... – ele se levantou, ciente de que se sentia decepcionado.
Ele tinha esperado o quê? Que idiota!
- Jack, não vim aqui para dizer que te amo e que espero perdão.
- Que bom.
- Porque dizer que te amo não seria suficiente.
Ele se focou no rosto de Callie. Podia ver que ela tinha dificuldade em escolher as palavras.
Ela limpou a garganta.
- Um pouco antes de minha mãe morrer, meu pai veio ao apartamento. Trouxe uma dúzia de rosas com ele. No momento em que vi seu rosto, sabia que ele vinha se despedir. Ela estava piorando. Ele sabia que era hora.
Jack lentamente se sentou. Suspeitava que agora ela contaria tudo.
- Eu estava ao lado, mas sabia que queriam ficar sozinhos. Fui para a sala, mas o apartamento era tão pequeno que dava para ouvir. Mesmo quando falavam baixo – ela o encarou. – Ouvi meu pai dizer que teria se casado com ela. Que teria deixado a esposa e casado com ela. Se não... se não fosse por mim.
Ela respirou fundo e estremeceu.
- Ele... disse para ela que era impossível, comigo por perto. Não podia se casar com uma mulher que já tinha uma filha de vinte e tantos anos, parecida com ele. Sua indiscrição teria sido óbvia. Fui eu – ela bateu no peito – quem ele culpou por mantê-los separados. Eu.
Jack se ergueu e contornou a mesa, não conseguindo suportar o tom da voz dela. Queria tomá-la nos braços, mas ela começou a andar de um lado para o outro.
- Depois que ele saiu, voltei pra minha mãe. Ela me olhou e eu sabia que ele não era o único que se arrependia do meu nascimento. Quer dizer, tinha sido o sonho dela. Ser a esposa dele. Eu odiei os dois naquele dia. Odiei os dois pelo que tinham feito um com o outro, e comigo.
Ela parou e o encarou.
- Há vários motivos para eu não ter contado a você o que aconteceu. Um deles era nobre, porque eu queria proteger minha meia-irmã. Mas o verdadeiro motivo era... - ela endireitou os ombros, quebrando o coração de Jack ao tentar ser forte. – O verdadeiro motivo era eu mesma.
Ela tirou um fio de cabelo do rosto. Ou talvez fosse uma lágrima.
- Não queria reviver nada daquilo e tinha me convencido de que, com os dois mortos, nunca teria que fazer isso. Contar a história pra você já foi difícil. Mas contar quem ele era traria tudo de volta. Mal consegui aguentar essas coisas quando aconteceram. Não achei que poderia...
A voz dela falhou.
- Callie – Jack foi até ela e ficou aliviado quando ela se deixou abraçar. Queria fazer mais alguma coisa para ajudar a reduzir a dor, mas sentia-se impotente.
O que quer que tivesse esperado, a verdade era mais difícil do que ele imaginava.
Ele ouviu uma fungada e, então, ela recuou rapidamente, ergueu a cabeça, e o encarou. Sua voz estava firme.
- Então não vim aqui para dizer que te amo. Vim aqui dizer que o nome do meu pai é – ela respirou fundo – Cornelius Woodward Hall.
Jack sentiu uma pontada no peito, convencido por um momento de que não podia ter escutado bem.
Ela limpou a garganta de novo e repetiu:
- Meu pai era Cornelius Woodward Hall.
Como se estivesse se acostumando a dizer as palavras em voz alta.
- Meu Deus! – Jack examinou o rosto dela e seu cabelo ruivo. Não tinha notado a semelhança antes, mas tendo conhecido bem o homem, podia percebê-la agora.
- Grace é minha meia-irmã. Até onde sei, eu e ela somos as únicas que sabem a verdade. Bem, e o noivo dela também – ela soltou um suspiro. – É a única família que eu tenho, na verdade. Eu estava com medo... não sei. Imaginei que ela ficaria magoada se eu contasse pra você, mesmo que seja amigo dela. Isso sempre foi um segredo, Jack. Meu pai nunca quis que nada fosse dito sobre mim. Só me aproximei de Grace depois que ele morreu porque estava desesperada. Sozinha.
A cabeça de Jack estava girando. Ele conhecera e respeitara Hall, mas aquilo ia pelos ares agora que sabia tudo o que Callie havia sofrido.
- Como ele pôde fazer uma coisa dessas?
- Decidi parar de me fazer essa pergunta.
Jack a puxou contra si de novo, pensando que nunca, nunca a deixaria partir.
Lembrou-se de Hall, passeando no Congress Club em Nova York, todo sorrisos com a esposa e a filha. O homem sempre falara sobre a importância da família com tanta convicção. E fora tudo uma mentira. Tudo!
Aquele filho da puta.
Jack tinha vontade de chutar a lápide do homem.
Callie falou contra seu peito.
- Ontem à noite, finalmente percebi que Grace não era a única que eu estava protegendo. E decidi contar tudo pra você. Mas então sua mãe fez o anúncio e eu perdi a noção de... tudo. De quem você é, do que tinha me prometido. Gostaria de poder voltar e destrancar aquela porta, Jack. De verdade.
- Tudo bem.
O perdão, ele pensou, é tão fácil. Tão simples. Tão completo.
- Hoje de manhã, quando descobri que você tinha expulsado sua mãe de casa, percebi que eu tinha entendido a situação de forma completamente errada. E então falei com Grace – ela se afastou dele. – Mas, quero que fique claro, não pedi a permissão dela para contar a você a verdade. Expliquei que contaria tudo, porque precisava fazer isso ou perderia o homem que amo. E nada é mais importante que isso.
Ele gentilmente tomou o rosto dela nas mãos. Quando seus lábios se encontraram, Jack teria feito qualquer coisa para vingá-la, mas o momento já tinha passado. Agora, só podia protegê-la. O que significava que a candidatura estava cancelada.
Callie estava absolutamente certa. Um repórter descobriria sobre Hall e a história seria um escândalo que roubaria dela a privacidade que tanto desejava.
Ela respirou fundo.
- E não consigo parar de pensar em Anne.
Jack franziu a testa.
- Anne?
- Ontem à noite encontrei uma carta do general Rowe para Nathaniel. Estávamos certos. Era Anne no espelho. E o pai dela teria apoiado um casamento entre eles, no fim das contas – ela abanou a cabeça. – Anne perdeu a última chance de se despedir do homem que amava. Ontem eu estava determinada a não deixar isso acontecer com a gente, mas depois pensei que tudo tinha mudado. Pensei que era o fim.
Ele encostou a cabeça no ombro dela, e pensou que tinham sorte. Sorte por terem se encontrado e por terem superado os obstáculos, mesmo que tivesse doído.
Quase perdemos tudo, ele pensou, e então riu.
- Você chegou em um ótimo momento – ele disse. – Eu estava prestes a anunciar minha candidatura formalmente, mas é claro que não...
- Não. Não desista!
Ele se afastou.
- Mas como posso concorrer agora?
- Não vou mais me esconder. Nem Grace nem eu queremos continuar protegendo nosso pai. Se você não achar que vou prejudicar demais as suas chances, quero estar ao seu lado quando concorrer. Nós não queremos sacrificar qualquer coisa por aquele homem. Ele não merecia quando estava vivo, e agora... me recuso a pensar que tudo isso importa.
- Callie, tem certeza de quer isso? Não será fácil.
- Não há nada que eu não faria por você. Só gostaria de não ser um risco tão grande.
Jack a encarou, sem acreditar.
- Você não é um risco para mim. Além disso, os eleitores vão ter que me escolher por acreditar na minha visão para o estado. Deus sabe que tenho escândalos próprios suficientes. Se minha plataforma e minhas convicções não forem suficientes para que esqueçam meu passado, não vai importar quem era seu pai ou o que ele fez.
Houve uma pausa e Callie sorriu para ele.
- Então, vai concorrer? Porque acho que seria um governador fantástico.
Jack não conseguia acreditar em como ela o estava olhando. Tão firme, tão segura, e ele sentia que ela sabia no que estava se envolvendo.
- Está certo, eu vou concorrer.
No saguão, Gray Bennet se virou quando o promotor público de Suffolk County o cutucou no ombro.
- Olha, Bennett, tenho um jogo de futebol do meu filho hoje à tarde e estamos perdendo tempo aqui fora. Quanto tempo você acha que ele ainda vai ficar lá dentro?
Gray abriu a porta da sala de conferências. Viu Callie e Jack se beijando e a fechou com um sorriso.
- Acho que pode demorar um pouquinho. Quer que eu ligue?
O homem sorriu devagar e então deu um aceno.
- Boa ideia. Na verdade, se aquela ruiva quisesse me ver, eu acharia um tempinho também.
Epílogo
- Mon Dieu! Callie, olha a hora! – a voz de Gerard Beauvais cortou o silêncio do laboratório de restauração. – Vai se atrasar!
Callie olhou para o relógio e pulou da cadeira.
- Ah, de novo não! Perdi totalmente a noção do...
Ela começou a fechar tampas e guardar pincéis rapidamente.
- Deixe que eu faço isso – Gerard disse, afastando-a. – Você tem que ir.
Ela apanhou o casaco e a mochila. Quando estava na porta, falou com Gerard por sobre o ombro.
- Sobre o Tintoretto, precisamos...
- Falamos sobre isso amanhã! Vá!
Ela correu para as escadas e saiu voando pela porta dos fundos do Museu de Belas-Artes. Pegou as chaves e foi até uma perua Volvo prata.
Quando estava passando pela Huntington Avenue, ligou o rádio.
- Com a contagem dos votos fechando agora, teremos o resultado da eleição deste ano em alguns minutos. A acirrada corrida para governador entre Jack Walker e o atual governador Butch Callahan...
Ela desligou a coisa, não conseguia aguentar a tensão.
Depois de entrar na cidade e passar por alguns sinais amarelos, tentou prestar atenção na estrada. Não queria, em uma noite como aquela, bater o primeiro e único carro que já comprara para si mesma.
Oito minutos depois, chegou à frente de um prédio comercial perto de Chinatown. Deu a volta no quarteirão procurando uma vaga e acabou estacionando o Volvo nos fundos ao lado de uma lixeira, esperando que o carro não fosse rebocado.
Entrou correndo no prédio e ouviu uma aglomeração animada no saguão. Foi direto para uma placa em que se lia “Jack Walker para governador”. Abriu a porta sob ela e bateu contra uma parede de pessoas.
A sala era grande, mas estava apinhada. No fundo, ela podia ver o palco que tinham construído. Havia uma enorme TV passando as notícias locais e um pódio com microfone. Ao lado da plataforma, havia várias mesas com pessoas se movimentando furiosamente. Ela viu Gray sem a jaqueta do terno e com as mangas arregaçadas, tampando uma orelha enquanto tentava falar no celular. Ao seu lado, estava Cookie Sanchez, a diretora da campanha.
Perto de toda aquela ação, ela viu Nate, Thomas e a sra. Walker. Estavam em pé, afastados da multidão. Thomas parecia um pouco impressionado e a sra. Walker apalpava as luvas nervosamente. Nate sorria, como se não tivesse dúvidas de qual seria o resultado.
E, então, ela viu Jack. Ficou sem ar, como sempre ficava quando entrava em uma sala e o avistava. Ela se encheu de orgulho por tudo que ele fizera no ano anterior, pelo modo como se portara, por tudo em que acreditava, e por como ele ficara ao seu lado quando a história sobre o pai fora revelada. Aquele fora um ano exaustivo para Jack, cheio de viagens por Massachusetts, encontros com milhares de pessoas, definições e redefinições da sua visão para o estado. E durante tudo aquilo, ela tivera seu amor e apoio incondicionais. Mesmo cinco minutos antes do debate final, na semana passada, ele estivera segurando sua mão e a olhando como se não houvesse mais nada acontecendo em sua vida.
Ele estava examinando a sala quando Gray o agarrou, encarou-o intensamente e sussurrou algo no seu ouvido. Jack pareceu momentaneamente chocado.
E, então, o repórter disse:
- E agora é oficial. Jack Walker venceu a eleição para governador por uma pequena margem de...
Callie gritou de alegria enquanto a sala explodia ao seu redor. As pessoas soltavam gritos de vitória e todos começaram a se abraçar. Ela perdeu Jack na confusão, mas só podia imaginar como ele se sentia.
Ele tinha ganhado. Tinha conseguido.
Balões azuis e brancos começaram a cair do teto e ela se apoiou na parede, com um sorriso tão largo que seus lábios começaram a doer. Uma música começou a sair dos alto-falantes, e, então, Gray e Cookie empurraram Jack para o palco. Ele parecia estar lutando com eles e virando o pescoço enquanto flashes de câmeras o atingiam de todos os cantos.
Quando Jack ficou à vista de todos, a sala ficou em completo silêncio. Todo mundo queria ouvir as primeiras palavras do governador.
Quando ele se aproximou do microfone, alguém gritou:
- O que tem a dizer, governador?
Jack sorriu.
- Alguém viu minha esposa?
Houve risadas e as pessoas começaram a procurá-la.
- Ela está aqui! – um homem ao lado de Callie disse, apontando sobre a cabeça dela.
A multidão lhe abriu passagem, e assim que ela começou a andar até o palco, Jack pulou da plataforma e foi até ela, chutando vários balões no caminho.
Eles se encontraram no meio da sala e ele pôs os braços ao seu redor, recebendo a aprovação entusiasmada da plateia.
- Não teria conseguido sem você – ele disse no ouvido dela.
- Estou tão orgulhosa. Sabia que você conseguiria! E desculpe pelo atraso, eu...
- Esqueceu de olhar o relógio? – ele terminou, indulgente.
Ela assentiu, tentando não chorar de tanta alegria.
As pessoas ainda estavam aplaudindo quando ele lhe deu um beijo apaixonado.
O resto da noite passou em um borrão frenético. Houve uma festa logo depois do resultado da eleição, mas Jack e Gray passaram a maior parte do tempo falando com a imprensa. Já eram duas da manhã quando Callie e Jack voltaram para Buona Fortuna.
Quando entraram no Quarto Vermelho, Jack abanou a cabeça.
– Acho que todo mundo vai ter que me chamar de governador agora – ele disse, como se ainda estivesse chocado.
Callie se aproximou dele. Jack estava sorrindo daquele jeito ligeiramente torto que reservava para ela.
- Bem, governador, tenho outro título pra você – ela colocou a mão dele sobre sua barriga. – O que acha de “papai”?
Jack congelou e então quase caiu pra trás.
- Callie?
- Sim – ela riu baixinho quando ele pareceu derreter na frente dela. Encanto, amor e alegria passaram pelas feições sérias dele.
Quando ele tomou seu rosto gentilmente e a beijou, Callie perguntou:
- Se for uma menina, podemos chamá-la de Anne?
J. R. Ward
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