O luxo e a ostentação da alta sociedade de Quebec, desde a posse do governador Frontenac, na segunda metade do século XVII, fizeram da corte da Nova França uma miniatura pitoresca de Versalhes. Com a diferença de que na América vivia-se mais intensamente.
No Novo Mundo, os vastos projetos de conquistas e as lutas contra os indígenas e os ingleses ampliavam os limites do prazer e atiçavam as paixões mais fulminantes. Nessa terra nova, fértil de imprevistos, onde o perigo era parte do cotidiano, as pessoas, inseiguras quanto ao dia de amanhã, queriam aproveitar o momento e se lançavam na vertigem da vida mundana, numa verdadeira febre de gozar a vida.
A história do Canadá é repleta de figuras amorosas e aventureiras. Em Quebec, onde se recriaram os costumes parisienses dos salões musicais e literários, o jogo e as festas, a que compareciam as elegantes senhoras da sociedade, ajudavam a suportar o longo e entediante inverno de quase nove meses.
Nessa atmosfera de festas e prazeres, Angélica e o marido, o Conde Joffrey de Peyrac, vão esperar o veredicto de Luís XIV sobre seu futuro no reino.
"A mulher, bela e sedutora, saiu das águas", diz a vidente. "É a sequaz de Lúcifer, a Diaba da Acádia!'"
No terraço do Castelo Saint-Louis, na parte alta de Quebec, onde a galante e aventureira corte canadense comemorava a festa da Epifania, Angélica emocionou-se ante a beleza iluminada da paisagem noturna da capital da Nova França. Sob a suavidade do luar, odesenho irregular dos telhados e das chaminés em diferentes alturas, o contorno gelado dos montes longínquos e o vasto desenrolar da planície do rio Saint-Laurent compunham um cenário inesquecível.
De surpresa, o Conde Joffrev de Peyrac, seu marido, vindo por trás, rodeou-lne a cintura com o braço forte e sua voz lhe chegou por entre as explosões dos fogos de artifício. Nas casinhas lá embaixo, como num presépio coberto de neve, cada habitante acendera uma vela atrás da janela. E foi como se a cidade, sob o céu resplandecente, tivesse belos olhos claros e cintilantes por trás dos vidros avermelhados e amarelo-mel.
Angélica sentiu-se imediatamente transportada para aquele paraíso de segurança e felicidade que a simples presença do marido íne criava ao redor. As dificuldades esvaneceram-se: a iminência do veredicto do rei, a trama dos conspiradores e maledicentes.
Restava apenas a certeza da cumplicidade de ambos, marido e mulher apaixonados, unidos por um amor indestrutível...
Durante o longo inverno canadense, que retinha a todos como prisioneiros dos gelos e impedia o tráfego de navios com a Europa, Angélica e o marido, o Conde Joffrey de Peyrac, mais os filhos, Florimond, Cantor e Honorina, aguardariam em Quebec, capital da Nova França, pela chegada, após o degelo de primavera, dos despachos de Luís XIV com o ansiado veredicto sobre seu futuro no reino. Ao desembarcarem no porto de Quebec de sua imponente frota de cinco navios, fazia quase vinte anos que não pisavam em solo francês. Acompanhados por numerosa comitiva - que incluía personalidades como o Sr. João Carlon, intendente da Nova França; o Marquês de Ville-dAvray, governador da Acádia; e o Conde Nicolau de Bardagne, emissário pessoal do rei -, foram recebidos pelo próprio governador da Nova França, Sr. de Frontenac, com um te-déum rezado pelo bispo da colónia, Monsenhor de Lavai. Nem mesmo o susto de um incidente provocado pela impetuosa Sabina de Castel-Morgeat, esposa do governador militar da capital, ofuscou o brilho da chegada. Enquanto o fatídico Padre Sebastião d'Orgeval, o jesuíta inimigo, mesmo misteriosamente ausente, era motivo de apreensão, não foi sem surpresa e emoção que Angélica reencontrou personagens queridos, como o Conde de Loménie-Chambord, o grande chefe abenaki Piksarett e a Polaca, antiga companheira de aventuras. Após as apresentações à corte canadense, o Conde de Peyrac e seus homens instalaram-se no solar de Montigny (originalmente destinado à desaparecida Duquesa de Maudribourg), enquanto Angélica hospedava-se numa residência vizinha, cedida por Ville-dAvray, com Honorina e sua própria comitiva: Iolanda, jovem acadiana sua camareira; Suzana, a fazendeira-governanta; Ademar, o divertido desertor; o velho Elói Macollet; e os meninos que tomara a seus cuidados: Querubim, filho natural de Ville-dAvray; o negrinho Timóteo; e o jovem sueco Abbal Neals. Enquanto o inverno dava os primeiros sinais, Angélica travava relações com os vizinhos mais próximos: Eustáquio Banistère com a estranha mulher e os filhos de costumes esquisitos; a pertinaz observadora Srta. D'Houredanne com sua criada inglesa Jessy; e o Sr. de Chambly-Montauban com seu cão feroz. A providência mais urgente era a entrevista com Madre Madalena da Cruz, no Convento das Ursulinas, para desfazer os boatos que identificavam o Conde de Peyrac como usurpador da Acádia e a ela mesma, Angélica, com a Diaba da Acádia, sequaz do Demónio...
O CONVENTO DAS URSULINAS
CAPÍTULO I
Entrevista com Madre Madalena da Cruz - A primeira tempestade de neve
O vento estava violento, e Angélica, seguindo pelas ruas rumo ao convento das ursulinas, onde ia encontrar-se com a Madre Madalena, era obrigada, a encolher-se e agarrar-se às dobras do manto, enfunado como uma vela. No entanto, ao erguer os olhos, o céu revelr.va-se de uma estranha pureza, limpo, quase sem vestígio de nuvens. Só que não transmitia serenidade, pois adivinhava-se que na distância do espaço, em alturas incomensuráveis, perpetravam-se cataclismos gelados. O firmamento, em sua cristalina limpidez com laivos de ouro, falava de desertos proibidos ao homem, de um inferno inconcebível e pior, talvez, do que o descrito pelos teólogos: o inferno do frio.
Angélica andava rápido, como que de acordo com aquele anúncio de fenómenos devastadores cujos primeiros sinais começavam a esvaziar as ruas. Enquanto se apressava, levada pelo vento e por uma febre interior que subjugava a inquietação, dizia consigo mesma que não haveria uma única acusação de Madre Madalena que ela não se sentisse forte o suficiente para reduzir a farrapos.
A convocação lhe fora levada por um clérigo do bispado. Monsenhor de I aval mandava avisá-la de que entrara em contato com as ursulinas assim que terminara a novena de penitência. As religiosas lhe haviam comunicado que receberiam de bom grado a Sra. de Peyrac naquele dia, à hora que melhor lhe conviesse, de preferência depois das vésperas e antes do ofício do anoitecer.
Angélica estava em casa naquele dia, a fim de iniciar Suzana em alguns trabalhos, como dar brilho aos cobres, polir os esta-nhos, lustrar os móveis frágeis.
Mesmo que a ursulina a acusasse formalmente, entrasse em crise e caísse desmaiada no chão, ela conservaria o sangue-frio, o que seria a melhor resposta a todas essas comédias.
Examinou os próprios traços no espelho, esttidou o rosto que ia submeter ao exame da visionária, os olhos verdes um tanto brilhantes, e afofou a gola de renda. Depois, movida por um impulso, escolheu dois brincos, duas bolinhas de ouro unidas por algumas pérolas, que fixou às orelhas.
Não queria apresentar-se nem humilde nem provocante. Somente com o seu próprio rosto. De mulher. De grande dama.
Sobre sua penteadeira havia um estojo^ contendo cosméticos e adornos. Passou um pouco de carmim nas faces e nos lábios.
Durante todo o tempo que permaneceu diante do espelho, Su-zana, a jovem canadense, manteve-se em pé a alguns passos, sem desviar os olhos muito negros daquele rosto onde transparecia um debate interior.
Quando a Sra. de Peyrac se virou, logo lhe estendeu o manto e ajudou-a a vesti-lo e a puxar bem o capuz.
Angélica saíra apressada, sem aguardar pelo clérigo enviado pelo bispado. Monsenhor de Lavai estaria presente à entrevista? Gostaria que não, preferia estar sozinha diante da religiosa.
Evitou a Place de la Cathédrale e cortou por um caminho de terra que passava diante do moinho dos jesuítas. As pás do moinho giravam com uma velocidade louca. Angélica desembocou na Place d'Armes, em cuja outra, extremidade se erguiam o Castelo Saint-Louis e as muralhas de seu pátio de guarda. O vento tornava-se açoitante e turbilhonante.
Angélica viu soldados correndo e chamando uns aos outros. Voltando-se, por pouco não soltou um grito. Uma nuvem violácea, enorme, subia do horizonte com uma inacreditável rapidez. • Já se estendia sobre as encostas brancas de Beaupré, da ilha de Orléans e do Saint-Laurent congelado. Parecia o esquadrão do deus das trevas, lançado em assédio à terra.
Mas depois de dobrar a esquina do prebostado, tudo mudou. Era como se ela houvesse sonhado. O vento diminuiu e, na orla daquele primeiro caminho aberto na floresta canadense e que continuava sendo chamado de Grande Allée, embora já não fosse uma grande aléia, mas uma larga rua ladeada de casas, descobria-se o oeste, brilhando com um sol suave, cujos raios pálidos faziam cintilar a ardósia molhada dos telhados.
Quando se aproximava do convento das ursulinas, a silhueta de um jesuíta se destacou da sombra dos muros e veio a seu encontro. Angélica reconheceu o religioso que lhe chamara a atenção, no dia do te-déum, pelas mãos mutiladas e pela expressão de inocência altiva.
- Sou c Padre Jorras - apresentou-se ele -, capelão das ursulinas e confessor da Madre Madalena da Cruz, que quis encontrá-la hoje, senhora.
Era evidente que ele estaria presente ao encontro. O jesuíta trocou algumas palavras de saudação com o seminarista que finalmente os alcançava. Ela entendeu que também, a pedido do bispo, assistiria à entrevista, a que aqueles eclesiásticos corteses e prudentes não chamavam confronto. O nome dele esclareceu-lhe os motivos do bispo para mandá-lo acompanhá-la. Chamava-se Di-dace Morillot. Não era um seminarista, mas o jovem sacerdote que o monsenhor designara como futuro exorcista da diocese.
O encontro com a Madre Madalena haveria de oferecer-lhe uma ocasião para fazer sua estreia naquele duvidoso caso de demono-logia. Didace Morillot explicava:
- O monsenhor me pediu que estivesse presente a fim de poder transmitir-lhe um relato preciso das perguntas e respostas trocadas. Estou encarregado de redigir o processo - acrescentou, mostrando um alforje que devia conter papéis e penas.
Pensar naquelas duas testemunhas que lhe eram inipostas começava a deixar Angélica inquieta.
— O que estamos esperando? - perguntou.
— O Reverendo Padre de Maubeuge.
O superior dos jesuítas acabava de surgir na esquina do pre-bostado, segurando o chapéu de aba larga. Como o vento se acalmasse de súbito, os mantos se recompusessem em suas pregas hieráticas e os chapéus já não corressem o risco de voar, todos puderam cumprimentar-se com a dignidade requerida.
Ao ver-se rodeada de sotainas pretas, Angélica começou a temer que na próxima etapa o Padre d'Orgeval lhe aparecesse pela frente, como que saído de uma caixa. Embora não acreditasse nisso, não parava de se preparar para essa possibilidade, desde que chegara. Lamentou não haver pedido a Joffrey que a acompanhasse, pois afinal de contas o Padre d'Orgeval era adversário comum a ambos. Brandira a espada e levantara o estandarte contra Joffrey de Peyrac, considerado por ele um usurpador na Acádia, antes mesmo de atacá-la e denunciá-la como sequaz do Diabo.
Apesar de suas resoluções, foi tomada de angústia ao erguer os olhos para os altos muros de pedra cinzenta do convento.
Em Quebec, porém, não havia nada que pudesse ser inteiramente solene ou trágico, devido à intervenção dos índios, que, bisbilhoteiros, pândegos, importunos, importantes, se envolviam em absolutamente tudo.
-No momento em que o Padre de Maubeuge se preparava para levantar a aldrava de bronze do grande portão, viu-se chegar pela Grande Allée um chefe algonquino da tribo dos montanheses, acompanhado da filhinha. Vinha entregar a criança às ursulinas, para que dela fizessem uma cristã consumada. O Sr. Luís Jolliet, que lhe conhecia o idioma, acompanhava-o para servir de intérprete.
O sr. Jolliet apresentou o sagamore, título atribuído ao chefe da tribo, que se chamava Mistaguche. A indiazinha tinha cinco anos. Batizada no fundo das florestas por um missionário itinerante, atendia pelo belo nome de Jacqueline. O pai, gigante tatuado, de arco e aljava ao ombro, trazia-a pela mão, esquilinho de coração palpitante, com grandes olhos negros. Uma faixa bordada de pérolas e pêlos de porco-espinho retinha-lhe a cabeleira eriçada, copiosamente untada de gordura de urso. Os mesmos desenhos, como as selvagens gostavam de executar, ornavam a barra de sua túnica de pele acamurçada; dos mocassins franjados saíam-lhe os frágeis tornozelos.
Depois, pela mesma Grande Allée, chegou também um cavaleiro. O Sr. de Loménie-Chambord apeou e veio na direção deles. Não vinha por acaso. Pedira aos jesuítas que o avisassem do dia em que a Sra. de Peyrac fosse ao convento das ursulinas.
- Fui eu o enviado a Wapassu para esclarecer os termos da predicação e julgar o crédito que devíamos atribuir-lhe. Quero estar perto de você hoje - disse-lhe.
Prendeu a rédea do cavalo a uma das argolas fixas ao muro. Ela chamou-o de parte.
- Você veio para me ajudar?
O Cavaleiro de Malta sorriu.
- Não! Você não precisa de ajuda, minha cara amiga... Mas vim porque você talvez necessite de amizade... Entremos.
No grosso batente, uma porta estava aberta. O grupo entrou e desceu alguns degraus de pedra, que levavam a um vestíbulo lajeado. Encontraram ali alguém com que não esperavam topar: o intendente Carlon, que tinha o costume de visitar às vezes uma das freiras, com quem, mesmo quando se encontrava em Que-bec, trocava uma assídua correspondência. Houve nova troca de amabilidades e saudações.
Por uma abertura gradeada à esquerda, a voz de uma invisível irmã perguntou o nome das religiosas a quem queriam ver. Depois, outra porta manobrada do interior por um cordel introduziu-os num parlatório de soalho de madeira bem encerada.
Vieram buscar o Sr. Carlon para conduzi-lo a um parlatório mais exíguo, onde, sentado diante da parede gradeada, ele poderia conversar com sua piedosa egéria sobre os fins últimos da alma.
A Madre Madalena fora avisada, mas primeiro era preciso atenderem o índio e sua filha; o que atrasaria um pouco a entrevista.
O grande chefe estava impressionado com a decoração nova e bizarra para ele. Olhava à volta e tinha gestos tímidos e um sorriso aliciador, enternecedor para sua compleição. Os montanheses espalhavam-se dos arredores de Saguenay até os limites do Labrador. Mistaguche fizera uma longa viagem para chegar a esse convento dos brancos. Admirativo, examinava os quadros suspensos às paredes, representando corações atravessados por adagas, coroados de espinhos e encimados de chamas ardentes.
A direita da porta havia uma pia de água benta, de louça, em que cada um deles, ao entrar, umedecera os dedos antes de se persignar.
Nas profundezas do convento, um sino tilintava. Entrou uma jovem religiosa, uma noviça, que tinha direito de semiclausura a fim de poder receber à porta as alunas. Extasiou-se de ternura ao ver a criança, abriu os braços para ela e estreitou-a contra o coração. Falou-lhe em língua indígena, de raiz huroniana, que a pequena montanhesa não entendia bem, mas que lhe era familiar. A noviça cobria de beijos e carícias as pequenas faces ebúrneas, sombreadas de gordura, afagando-a e embalando-a a fim de serenar-lhé o temor. Mostrou-lhe uma ameixa cristalizada, depois uma bola vermelha.
A ardente dileção que impelira a jovem de família nobre a atravessar os mares para a salvação dos pobres selvagens irradiava-se-lhe no rosto e se exprimia no arrebatamento que poderia ser o de uma mãe reencontrando a filha.
Garantiu ao pai de Jacqueline que a pequena seria objeto de todos os cuidados das madres, seria muito amada por elas, não lhe tirariam o amuleto que ela trazia ao pescoço para protegê-la dos maus espíritos, e tampouco esqueceriam de untá-la todos os dias com gordura, para protegê-la do frio no inverno e dos mosquitos no verão - piedosas mentiras, talvez no que concernia às últimas afirmativas. Em todo caso, Jacqueline não seria privada de nada e comeria todos os dias à saciedade, assegurava a noviça.
O Sr. Jolliet traduzia.
A noviça retirou-se, levando a criança aninhada no colo, sempre falando e cantarolando para distraí-la da separação do pai. Este, uma cabeça mais alto do que todo mundo, voltou-se para os presentes, pronunciando um pequeno discurso que devia ser cortês. Ajoelhando-se, tirou do alforje duas peles de lontra e outras de raposas. Pondo tudo isso no chão, pediu aguardente. O rosto dos jesuítas se fez severo, e Luís Jolliet repreendeu o selvagem.
- São incorrigíveis - disse o Conde de Loménie. - No ano passado os sagamores montanheses vieram numa delegação a Quebec pedir que se abolisse o comércio do álcool que os torna assassinos, a ponto de matarem suas próprias mulheres e crianças no delírio da embriaguez. Mas, vejam, este já se esqueceu das queixas e juramentos que fez...
O sagamore voltou-se para Angélica e repetiu o pedido com gestos. Um quarto de quartilho, parecia implorar, medindo a quantidade com o polegar e o Indicador.
- Ele sabe que não lhe daremos nada. Tenta a sorte com você, que é recém-chegada a Quebec.
Estranhamente, a claridade do dia diminuía. Com a chegada da nuvem escura, a penumbra se adensava, e só se distinguiam rostos e mãos, esbranquiçados. Luís Jolliet saiu, dizendo que ia pedir velas. O montanhês pousou suavemente arco, aljava e escudo de casca de árvore a um canto. Não perdia a esperança de acabar conseguindo uma pequena dose de álcool em troca das peles e da filha, que dera de presente às santíssimas madres.
Das profundezas do convento, o sino continuava chamando em toques breves e irregulares.
O intérprete retornou com dois candelabros de prata, cada um com três velas. Queria despedir-se, levando o selvagem consigo. Mas Mistaguche depositara suas esperanças em Angélica, tentando desarmá-la com uma mímica destinada a diverti-la e inspirar-lhe piedade. Ela não se deixou engodar, conhecendo a ilimitada astúcia dos indígenas e o que o ameno sorriso deles escondia de obstinação e esperteza quando se tratava de conseguir aguardente.
O Sr. Jolliet acabou indo embora, pois tinha um ensaio no seminário com o coral dos aluninhos, para preparar os cânticos de Natal.
O sagamore foi sentar-se no chão, sob o grande crucifixo, encostado à parede. Mexia-se tanto quanto uma estátua, e esperava. A claridade do dia fazia-se intensa de novo. Um raio de sol pareceu escapar de entre as nuvens. Os dois jesuítas e o padre conversavam a um canto do aposento.
Angélica estava impaciente demais para tomar lugar num dos assentos dispostos ao longo das paredes do parlatório. Ia e vinha, examinando os quadros.
A porta entreabriu-se, e o perfil de doninha de Piksarett se insinuou. Sorria, exibindo todos os dentes de roedor, encantado por surpreendê-la. Depois de examinar os arredores e farejar na direção do montanhês com ar de desagrado, entrou de todo, cobriu-se de água benta e de sinais-da-cruz.
— Salve, sagamore. Por que veio? - perguntou Angélica.
— É preciso andar depressa - respondeu Piksarett, enigmático.
Mas, com a mesma devoção de Mistaguche há pouco, foi depor as armas, ou seja, seu mosquete de honra de cano longo, num canto, e depois tirou a pele de urso negro. Nu, sem outra vestimenta senão a tanga de pele, e suas medalhas e rosário ao pescoço, parecia mais desengonçado do que nunca, com suas pernas compridas e finas de cegonha.
Puxou do cachimbo à cintura, encheu-o com um fumo preto, bateu a pederneira e, depois de tirar algumas baforadas voluptuosas, foi trocar o fornilho do cachimbo com o do montanhês, que se apressara a imitá-lo. Fumaram assim, um o cachimbo do outro, sinal de paz. Piksarett, o abenaki, o narrangassett, filho das belas e altas florestas do sul, desprezava profundamente aqueles povos do norte, que rondam por entre árvores enfezadas. Mas as regras da hospitalidade indígena e da caridade cristã obrigavam-no a mostrar-se polido. Como não se tratava de um inimigo de Deus... Depois de cumprir o dever, instalou-se sobre a pele de urso, do outro lado da porta, com as pernas cruzadas.
Estava ficando cada vez mais escuro, com clarões dourados e fuliginosos a pousar sobre objetos e móveis e a fazer brilhar o soalho.
Angélica, a quem a chegada do Grande Batizado distrairá de sua expectativa, pôs-se novamente a andar de um lado para outro no parlatório.
— Por que você se agita como um lobo magro na armadilha? - perguntou Piksarett, que a seguia com os olhos, irónico.
— Porque me impaciento. Queria já ter acabado com isto. Você mesmo disse que era preciso andar depressa...
— A quem está esperando?
— A Madre Madalena.
— Ela está ali.
Angélica teve um sobressalto. Há quanto tempo uma cortina correra sobre a grade de madeira de uma cela, permitindo à religiosa que se encontrava atrás dela observar, sem ser notada, aquela que lhe tinham anunciado como Angélica de Peyrac, a Dama do Lago de Prata?
Angélica admirou-se de não ter sentido sobre si o peso daquele olhar cominatório. Ao se aproximar, julgou-se outra vez vítima de um equívoco, tão inofensiva era, para uma visionária, a aparência da pequena ursulina atrás da grade.
A Madre Madalena tinha a fisionomia de uma criança a que o véu branco a apertar-lhe o rosto dava certo ar de boneca. Os jejuns, que fazia habitualmente, ao que se dizia, não pareciam haver-lhe afetado a boa saúde. No entanto, havia dias em que se nutria somente de uma hóstia. Jinha a tez alva, mas não pálida. Exibia a carnação leitosa e luminosa que têm as pessoas que raramente se expõem ao sol. Flores da sombra. Usava óculos redondos, com aro de metal, e não fosse por isso poder-se-ia comparar aquele rosto ao das virgens flamengas pintadas por Rubens, cuja beleza refinada e encantadora e tez de porcelana conduziam tão bem ao culto da rainha dos céus.
No fundo da cela, perto de uma mesa onde ardia uma lâmpada a óleo, distinguia-se a silhueta de outra monja, em pé, certamente a superiora, com capa de couro e véu preto, de mãos postas nas mangas largas e que durante toda a entrevista não se moveu da pose hierática.
Angélica aproximou-se a um passo da grade quadriculada, atrás da qual sentia sobre si o olhar da Madre Madalena.
— E então? - indagou. - Sou eu a Diaba? Inesperadamente, a jovem irmã caiu na risada.
— Não! - exclamou. - E você bem sabe disso!
Os cavalheiros, então, aproximaram as cadeiras e dispuseram-nas diante da grade da cela.
Angélica sentou-se no meio, diante da Madre Madalena, com o Padre Jorras à direita e o Padre de Maubeuge à esquerda. Lo-ménie insulou-se um pouco afastado. O Padre Morillot sentou-se num tamborete e colocou sobre os joelhos seu material de escriba. No alto de uma página, traçou uma cruz, seguida das letras invocadoras - J.M.J. - e dos nomes dos presentes.
O relato da entrevista, que ele redigiu com o intuito de conservar as "minutas" para os arquivos do bispado e os dos jesuítas, começa com estas palavras:
"A primeira tomou a palavra, a dita Sra. de Peyrac, compare-cente, e perguntou, dirigindo-se à nossa irmã ursulina, Madre Madalena da Cruz:
Pergunta: - E então? Sou a Diaba?
Resposta: - Não! E você bem sabe disso!"
A jovem religiosa respondera em voz suave. Parecia espantada e, à medida que observava Angélica, feliz e mesmo fascinada. Afinal, extremamente aliviada. Angélica não se sentia menos aliviada. Assim, desde os primeiros instantes, o caso estava acertado. Infelizmente, porém, nem uma nem outra estavam desobrigadas.
O Padre de Maubeuge assumiu a sequência do que o Padre Morillot, em íeu registro, designou pelo termo, pouco ameno, de interrogatório.
Com sua voz uniforme, um tanto abafada, ele propôs que os fatos fossem lembrados, de início, em ordem cronológica. Mencionou a época em que a religiosa ali presente comunicara à sua superiora a aparição que a visitara, o que remontava a quase dois anos. Depois, a data em que ela "novamente fizera o relato a seu confessor, seguida das diferentes datas em que ela fora ouvida por diversos areópagos, de que participaram o bispo, o Padre d'Or-geval, o superior do seminário, Sr. de Bernières, e ele, superior .dos jesuíta.;.
Fez questão de ler a descrição da visão. E mais uma vez Angélica teve que ouvir aquele texto, que na primeira vez lhe parecera aberrante, depois insultante, quando soubera que insistiam em reconhecer Gouldsboro na paisagem descrita e a ela, no súcubo entrevisto. Desta vez ouviu a leitura com a indiferença do hábito.
"Eu estava à beira-mar. As árvores avançavam até a praia... A areia tinha um reflexo rosado... A esquerda erguia-se um forte de madeira, com uma alta paliçada e um torreão, onde tremulava uma bandeira... Por toda parte, na baía, havia ilhas em grande número, como monstros de cócoras... No fundo da praia, sob a falésia, casas de madeira clara. Na enseada, dois navios ancorados, balançando... Do outro lado da praia, a alguma distância, depois de se atravessar cerca de uma ou duas milhas, havia outro amontoado de cabanas, rodeadas de rosas... Eu ouvia gaivotas e cormorões gritando...
"De repente, ergueu-se das águas uma mulher de grande beleza, e eu soube que era um demónio feminino. Ficou suspensa acima da água, na qual seu corpo se refletia, e olhá-la era insuportável para mim, pois era uma mulher... e eu via nela o símbolo de minha condição de pecadora. De súbito, do fundo do horizonte, um ser no qual acreditei reconhecer um demónio alado avançou a galope rápido, e notei que era um unicórnio, cujo longo chifre cintilava ao sol poente como um cristal. A Diaba o montou e atirou-se pelo espaço.
"Então, vi a Acádia, como se fosse uma imensa planície que eu contemplasse do alto do céu. Sabia que era a Acádia. Demónios a seguravam pelos quatro cantos, como uma coberta, e a sacudiam violentamente. A Diaba a percorreu voando e ateou-lhe fogo... Durante todo o tempo desta visão, lembro que eu tinha a sensação de que havia como que no canto do cenário um demónio negro e careteiro, que parecia velar pela criatura cintilante e diabólica. Às vezes, vinha-me o medo terrível de que fos-vse o próprio Lúcifer.
"Eu olhava e me desesperava, porque via que se tratava de uma catástrofe para o caro país que havíamos tomado sob nossa pro-teção, quando tudo pareceu acalmar-se. Outra mulher passou pelo céu. Eu não saberia se era a Virgem Maria ou alguma santa pro-tetora de nossas comunidades. Mas a aparição dela pareceu acalmar a Diaba, que recuava, assustada... E vi sair de uma moita uma espécie de monstro peludo que se atirou em cima dela e a fez em pedaços, enquanto um jovem arcanjo com uma espada brilhante se alçava às nuvens..."
Terminada a leitura do relato da visão, o interrogatório reiniciou-se e prosseguiu redigido pelo Padre Morillot, exorcista, cuja pena ativa ia arranhando as folhas.
O Padre de Maubeuge começou mencionando à religiosa que inúmeras vezes ela frisara que na sua visão não pudera ver o rosto da Diaba, que estava contra o sol, enquanto seu corpo nu elevando-se da água estava como que iluminado. Como podia afirmar, então, ao ver a Sra. de Peyrac, que se apresentava a ela vestida, só podendo identificar-se pelo rosto, que não podia tratar-se da aparição?
A pergunta era embaraçosa, de fato, e sob mais de um ponto de vista.
A questão da nudez parecia que sempre preocupara muito os eclesiásticos ou pessoas importantes designados para examinar a autenticidade e o significado da visão.
Iam pedir a Angélica que se despisse, como Suzana no banho?
Uma intempestiva alegria obrigou-a a morder os lábios, e sub-repticiamente ela deu uma olhada na direção do Cavaleiro de Lo-ménie. Adivinharia ele os pensamentos irreverentes que lhe ocorriam?
No entanto, depois de parecer desconcertada com a argúcia, a Madre Madalena meneava a cabeça.
- Que importância tem isso! Não é ela - declarou com sua
vidade, mas num tom que não admitia réplica.
"Pergunta do Padre de Maubeuge à dita religiosa:
- Então a senhora mantém os termos de sua declaração? Con
tinua segura de haver visto os detalhes previamente citados?
Resposta: - Sim.
Pergunta; - Depois de conversar com sua madre superiora, não foi levada a acrescentar um óu outro pormenor que lhe tenha sido sugerido a fim de ajudar a interpretação?
Resposta: - Não.
Pergunta: - Durante sua conversa com o Padre Jorras?
Resposta, - Não.
Pergunta: - Durante suas conversas com o Padre d'Orgeval?
Resposta: - Não! Não! - exclamou a religiosa, com energia. - Não acrescentei nada, não omiti nada. Naquela noite, vi aquela paisagem tão nitidamente quanto se a visse num quadro pintado pelo Irmão Lucas. O que me agradava era que a areia das praias era rosada, e nunca vi areia dessa cor.
Pergunta: - Reconheceu o estabelecimento de Gouldsboro?
Resposta: - Não conheço o estabelecimento de Gouldsboro. Ignoro onde fica.
Pergunta: - Tem certeza de que não pronunciou o nome Gouldsboro?-
Resposta: - Tenho certeza.
Pergunta: - Que nome pronunciou, então?
Resposta: - Falei da Acádia. A única coisa de que eu tinha certeza era que aquele lugar ficava na Acádia e que a Acádia estava ameaçada."
O Padre de Maubeuge voltou-se para Angélica. A luz da lamparina a óleo, naquela penumbra que se acentuava, o rosto dele parecia-se cada vez mais com o de um velho sábio chinês.
— E quanto à senhora, a descrição dessa paisagem parece-lhe referir-se a seu estabelecimento de Gouldsboro, que lhe é familiar?
— Para falar a verdade, poderia ser qualquer estabelecimento da baía Francesa - respondeu ela em tom neutro.
— Mas não poderia ser Gouldsboro?
— Poderia ser - admitiu ela -, como poderia não ser.
— Não há algum detalhe nessa descrição que a tenha convencido de que se trata de fato de seu estabelecimento, de que só poderia tratar-se de Gouldsboro?
Nesse momento, Angélica cruzou seu olhar com o da pequena religiosa, cravado nela.
"Eu disse a verdade", gritava aquele olhar. "Você também deve dizer a verdade."
E de súbito ela entendeu o que se encontrava em debate no centro daquela discussão minuciosa. Compreendeu o que estava em jogo, alvo do jesuíta e dos outros eclesiásticos ao introduzirem a ela e a Madre Madalena por aqueles sombrios labirintos.
Estava em jogo a verdade.
Os jesuítas não eram inquisidores. A ordem deles sempre se recusara a revezar-se com os dominicanos no sinistro tribunal. Não estavam ali, como nos tempos medonhos da Inquisição, para obter abjurações por meio de declarações falsas ou falsos testemunhos, nem para confundir hereges ou feiticeiras, antecipadamente prometidos por eles à fogueira. Encontravam-se ali para que a verdade viesse à tona.
Precisavam decidir-se acerca da veracidade dos fenómenos su-pranormais que eram submetidos a seu julgamento, e se se mostravam intransigentes, era na busca dos exames que empreendiam à luz prudente de seus profundos conhecimentos esotéricos.
Angélica lembrou que o grande exorcista de Paris que examinara Joffrey no momento de ser acusado de feitiçaria era um jesuíta. E que fora assassinado, para não poder depor, durante o processo, pela inocência do conde, reconhecida por ele.
E seu irmão, Raimundo, jesuíta também, fizera tudo o que lhe estivera ao alcance para salvar Joffrey da fogueira.
Tudo isso lhe passou pela cabeça em alguns segundos, enquanto seus olhos iam da grave fisionomia dos religiosos à expressão angustiada da jovem freira por trás da grade.
"Diga a verdade", suplicavam os olhos desta última.
Calar-se, deixar voluntariamente na indefinição certezas que permitiriam ao jesuíta e ao exorcista decidir sobre o caso seria condenar a Madre Madalena. Já deviam tê-la interrogado e importunado com frequência. Acabariam por tratá-la de simuladora, histérica, criando invencionices para atrair atenção indevida.
Ora, Angélica podia negar Ambrosina? Agora tinha pela frente aquela inocente que, por um desses mistérios ainda mal explicados, fora a primeira a "vê-la" e, tremendo, anunciá-la.
Angélica podia negar as cenas dementes, as crises horríveis de que fora testemunha nas praias ardentes do golfo de Saint-Laurent, onde, no calor do verão e em meio a um odor nauseabundo, secava o bacalhau dos pescadores bretões?
Podia negar o unicórnio de madeira dourado, naufragado nas areias rosadas da margem de Gouldsboro, e o seu chifre de nácar, cintilando ao sol "como cristal"?
Cedeu.
- Sim, é verdade , têm razão. Houve uma época, em Gouldsboro, em que tudo era exatamente como na visão. As casas de madeira clara, sob a falésia, e que ainda não tinham sido construídas quando a predição foi feita... Os dois navios no porto... Era tudo igual, e devo reconhecer que a imagem é exata e que a Madre Madalena não podia tê-la composto por antecipação. Mas isso não quer dizer que, porque eu vivia lá e me encontrava lá naquele momento, eu seja necessariamente o espirito diabólico que...
O Padre de Maubeuge a interrompeu com um gesto seco e sem apelação, que significava que lhe estavam pedindo informações mais amplas, ou mesmo sua opinião sobre a questão...
Mas, a partir dessa declaração, o interrogatório tomou a forma de um trabalho de colaboração eficaz, que Angélica aceitou por espírito de lealdade para com a Madre Madalena.
"Pergunta: - Em que época situa esse tempo em que a paisagem da visão se concretizou com exatidão a seus olhos?
Resposta: - No começo do verão que acaba de terminar.
Pergunta: - Foi testemunha, nessa mesma época, de fenómenos demoníacos que tenham ocorrido naquele lugar?
A dita Sra. de Peyrac respondeu que não está habilitada a julgar para responder a essa pergunta, não se considera apta a diferenciar os fenómenos demoníacos de qualquer outro mau acontecimento que possa ocorrer."
A isso o Padre de Maubeuge retrucou, com um fino sorriso, que ele, pelo contrário, estava convencido de que ela possuía certos dons que lhe permitiam enxergar o que não se vê e dos quais lhe haviam prestado testemunho pessoas versadas nessa ciência e dignas de confiança, a saber, o Padre Massérat, o Padre de Ver-non, numa carta que lhe enviara antes de morrer, o Padre Jean-rousse também, um dos jesuítas da Acádia...
A essa enumeração Angélica se viu encurralada, cercada por Togas Negras como uma gazela acuada. Eles acabariam sabendo tudo sobre ela e Ambrosina, se é que já não sabiam.
Admitiu que, de fato, naquele época tinham ocorrido acontecimentos em Gouldsboro a que se podia qualificar de "demoníacos", mas logo se calou e decidiu que não deixaria que lhe arrancassem mais nada. Não, não falaria nunca de Ambrosina, a Diaba encarnada - vira-a demasiado, e de demasiado perto -, não falaria dos crimes dela, nem de sua morte... Há coisas sobre as quais é preferível calar, depois de terem sido vividas e encerradas. Não serve para nada registrá-las na pedra ou no papel. Assim observara Ville-d'Avray, em sua sabedoria epicurista. Já fazia muito tempo que as areias das praias da Acádia não guardavam mais vestígio algum daquilo tudo. Angélica achou então que já dissera o bastante para dar razão à Madre Madalena e até ao Padre d'Orgeval, que "designara" Gouldsboro. Não iria adiante. O Padre de Maubeuge leu-lhe a resolução no rosto e não insistiu. Dirigindo-se à Madre Madalena, perguntou, mas num tom que fazia entender que se tratava de uma pergunta anexa:
— Irmã, a senhora falou recentemente a sua superiora de outro sonho em que o Padre de Bréboeuf lhe teria aparecido, pedindo lhe que rezasse pela conversão de um feiticeiro. Existe relação entre essa nova mensagem que recebeu do Além e os fatos mais antigos que nos ocupam, concernentes a Gouldsboro, à Sra. de Peyrac e a seu esposo?
— Não! Não! - disse a Madre Madalena com convicção. - Esse sonho me foi dado na noite em que eles chegaram, mas não foram eles a causa do sonho. O Padre de Bréboeuf me avisou que um feiticeiro seria solicitado a cometer um sacrilégio e que era preciso fazer de tudo para impedir essa infâmia. Atirei-me aos pés de meu leito e rezei durante horas...
"Pobre Madre Madalena!", pensou Angélica. Os dias dela, sobretudo as noites, não lhe pareciam corresponder à imagem calma e seráfica que Angélica fazia da vida de uma monja enclausurada.
O Padre de Maubeuge indagou:
— Portanto, não se trata do feiticeiro da visão?
— Que feiticeiro? - replicou a religiosa, perturbada.
— Aquela personagem sombria que se encontrava por trás da mulher diabólica e que a senhora temia fosse Satã.
— Não! Não, não era Satã, eu me retifiquei depois...
— De fato. Então era um feiticeiro?
— Não, não era um feiticeiro.
— Quem era então?
— Um homem negro - murmurou ela com voz trémula.
— Pensa que possa tratar-se do Sr. de Peyrac?
Angélica soltou um leve grito de protesto, a que respondeu em eco um gritinho igual da Madre Madalena.
O padre de Maubeuge não pareceu impressionado com essas reações de mulheres demasiado sensíveis e repetiu a pergunta.
— Não conheço o Sr. de Peyrac - disse a freirinha, com ar infeliz.
— Deseja que ele seja trazido à sua presença?
— Não, não vale a pena, é inútil incomodar esse grão-senhor. Não é ele.
— De que certeza a senhora extraiu a convicção de que não é ele?
E como ela não respondesse:
— Isso quer dizer, irmã, que a senhora sabe quem é o homem negro?
— Pode dizer o nome dele, irmã?
— Não! Não! Não posso - gritou a Madre Madalena, mergulhando o rosto torturado entre as mãos.
— Deixe a pobre criatura em paz! - interveio Angélica. - Ela já não sofreu o suficiente com todas essas histórias, assim como nós? Qual é a finalidade dessas exatidões que exige dela, meu padre? Por que precisar, denunciar, definir tudo? Por que somente não separar o que pode fazer mal, enganar na natureza dos seres? Todos os testemunhos de destruição, de fraqueza, de derrota devem ser necessariamente inscritos? A tempestade foi feita para passar. Se a retivéssemos à força sobre nossa costa, ela devastaria tudo. Seria um gesto insensato. Acreditem-me, meus padres, há coisas que é melhor não reter, ou se corre o risco de que elas nos destruam. É preciso deixá-las passar, como o vento.... Mas o que é isso? - assustou-se Angélica, malgrado seu, quando um daqueles estrondos surdos, como de um longínquo canhão, que por vezes despertavam os ecos do convento e que não tinham parado de acompanhar-lhes a conversa, rebentou com mais violência.
— É a tempestade aproximando-se - respondeu o Padre de Maubeuge. - O vento que passa... O que dizia, senhora?
— Que nem sempre se ganha querendo encarnar o espírito do mal, com nomes, com sinais que permanecerão, dando-lhe poder...
Ela se arrepiou, lembrando-se da letra no bilhetinho encontrado no casaco do homem morto por Piksarett: "Se se comportar, virei esta noite". A simples vista da letra lhe eriçara os cabelos da nuca. A letra de Ambrosina...
- A pena às vezes pode transmitir veneno - disse ela.
Para sua grande surpresa, e quando já se preparava para enfrentar
as consequências de sua intervenção e responder a novas indagações, o Padre de Maubeuge fez um daqueles pequenos sinais de cabeça à chinesa, que eram sua forma de cortesia, e sem mais insistir levantou-se, imitado pelo Padre Jorras e pelo Padre Morillot.
— Devo concluir com estas últimas palavras? - perguntou Morillot.
— Quais?
— "A pena às vezes pode transmitir veneno" - releu o jovem clérigo gravemente.
Os lábios do superior dos jesuítas abriram-se num sorriso.
— Isso me parece perfeito - aprovou. E havia em seus traços uma exprecsão de humor e satisfação.
— Devo reler a redação? - inquiriu o Padre Morillot.
- Não, porque a tempestade está próxima. Vamos assinar.
A pena passou de mão em mão. O manuscrito foi colocado
numa gaveta que a Madre Madalena empurrava para fora e que ela puxou para trás da grade, para assiná-lo também.
Em seguida, o Padre Morillot pegou o documento e guardou-o no saco de pele.
- Irmã, voltarei par.a vê-la - gritou Angélica, antes que a cor
tina preta caísse do outro lado da grade, ocultando-lhe a Madre
Madalena.
Fora obrigada a gritar por causa do barulho do vento, que sacudia as portas e que só aumentava.
- Sim, volte, cara senhora - respondeu a voz suave por trás
da cortina. - Nós a levaremos a visitar nossos sete altares.
Piksarett e o chefe montanhês se aproximaram. Tinham-nos esquecido na tensão da hora precedente. O Conde de Loménie tomou o braço de Angélica sob o seu.
- Vou acompanhá-la, senhora.
Agora que tudo terminara, Angélica via uma aparência amável em todos.
— Confesso-lhe, meu padre,.que me sinto lavada como que pela água lustral de um novo batismo.
— A senhora não tinha nada a temer - respondeu o Padre de Maubeuge. - Esta confrontação, conforme pôde observar por si mesma, "isava somente a expor à luz o que nós todos já sabíamos.
Entretanto, apesar da urgência que tinham todos de retornar aos respectivos domicílios, o Padre de Maubeuge ainda lhes reservava um comunicado importante. Voltou-se para o Conde de Loménie.
- Dirijo-me a você, Cavaleiro de Malta, porque sei da amizade de longa data que o une ao Padre Sebastião d'Orgeval. Também sei das perguntas que fazia a si mesmo sobre o destino dele e das inquietações que sente com isso. Até hoje eu não podia falar, antes que a questão que acabamos de tratar fosse esclarecida à luz do Santo Espírito. Fico feliz em poder tranquilizá-lo agora sobre o destino de seu amigo, e autorizo-o, meu irmão, caso nossos concidadães o procurem para informar-se a respeito, a revelar-lhes as decisões tomadas em comum acordo por nós e pelo Padre d'Orgeval: Você não ignora que nossas missões na terra dos iroqueses, cujos territórios se estendem dos confins do grande salto do Niágara aos dos lago denominado Toronto, e abandonadas há muito tempo, desde o grande massacre dos huronianos e de nossos missionários, perpetrados pelos iroqueses das Cinco Nações, estavam se reerguendo das cinzas. - Depois de uma pausa, o padre continuou: - Há anos os catecúmenos, os batizados pertencentes a essas nações aparentadas aos iroqueses, reclamavam, cada vez com mais ardor, o retorno dps Togas Negras para conservá-los na fé do batismo que receberam. Julguei chegado o momento de enviar para aqueles locais deserdados o mais capaz, o mais influente, o mais corajoso de nossos missionários: nomeei Sebastião d'Orgeval. Não foi ele, quase sozinho, que praticamente converteu todos os imensos territórios da Acádia ocidental e cuidou, pelas armas, da manutenção das fronteiras com os hereges da Nova Inglaterra? Entre os iroqueses ele saberá sustentar e defender aqueles povos abandonados e o tempo todo ameaçados de extermínio pelos seus irmãos que permaneceram pagãos. Tudo o designava, pois se ele aprendeu facilmente inúmeros dialetos abenakis, também fala corretamente o huroniano-iroquês. Pôs-se a caminho, então, quando sua frota chegava a Quebec, senhora. Foi por isso que a senhora e seu esposo não o encontraram aqui. Ele próprio entendia que era melhor assim. Não vai parar em Trois-Rivières nem em Ville-Marie. Caso não consiga alcançar os limites da terra dos iroqueses antes das grandes tempestades de neve que lhe interditam o acesso, ele passará o inverno no forte de Cataraqui, no lago Frontenac.
O superior falava na sua voz pausada, e a ventania orquestrava com uma força cada vez mais violenta o relato tranquilo. Angélica sentia os nervos abalados.
- Como vêem, nada há de misterioso nessa decisão. Simplesmente, era preferível esperar que as paixões se assentassem antes de suscitar em nossa cidade, dada ao exagero e à tagarelice, os comentários a respeito de uma decisão que o Padre d'Orgeval tomou com toda a lucidez. Ele se afastou consciente de seguir da melhor maneira possível o caminho designado pelo seu Mestre, Nosso Senhor Jesus Cristo, de quem ele pontinua sendo um soldado cegamente submisso pelos próprios votos.
No mesmo instante um ruído terrível começou a crescer lá fora, como se pela floresta chegassem cem carros de guerra enlouquecidos: galopes, esquadrões, choques das rodas de madeira contra o calçamento, um exército demente pareceu desfilar diante do convento, soltando rugidos sem fim. Soava como carretas de canhões rolando, puxadas por cavalos em disparada, fazendo ecoar as abóbadas e estalar as portas.
Angélica imaginou-se presa de uma alucinação.
- Mas o que é isso? - exclamou, agarrando-se, nervosa, ao braço de Loménie.
- A tempestade! - responderam eles, sem parecer perturbados.
Piksarett estava tornando a vestir a pele de urso.
A porta abriu-se com estrondo, e o intendente Carlon entrou, empurrado pela força da corrente de ar. Atrás dele recortava-se a silhueta de uma irmã leiga, segurando um castiçal, e a de um velho, que trazia uma tocha. Os uivos do vento irromperam na sala como um ser enlouquecido, girando em todos os sentidos, e ensurdeceram-nos.
— Isso não é nada - gritou o Sr. Carlon -, é só uma tempes-tadezinha. Poderemos voltar para casa a tempo. Mas é preciso que a acompanhemos, senhora, e temos que sair logo.
— Deixem seus cavalos na cavalariça, senhores - aconselhou a irmã leiga. - A neve já está demasiado alta, eles cairiam...
Na entrada, que no entanto estava fechada, tiveram que caminhar arqueados. Ventos turbulentos passavam por todos os interstícios, silvando como víboras, cuspindo jatos de um vapor fustigante e frio. Cristais de neve infiltravam-se sob os plintos. As portas eram sacudidas como que por um punho demente. A irmão leiga fez questão de passar uma faixa de lã sob o queixo de Angélica, a fim de prender melhor o capuz do manto.
A poterna aberta revelou, pelo seu grande retângulo, um mundo cinzento, fervilhante, dilacerado, devastado por riscos horizontais. As rajadas passavam, arrastando uma neve fina, poeirenta, que mal se via, mas que se amontoava no chão com a rapidez de água a encher um reservatório.
A vela da irmã leiga se apagou. A tocha do velho criado crepitou e extinguiu-se assim que ele pôs o pé do lado de fora. Foi buscar os cavalos, que já tinham neve até os jarretes, e levou-os na direção do pórtico do pátio do convento. Curiosamente, no seio da tempestade, o ruído parecia menos assustador do que no interior do convento. Sem dúvida porque ele se amplificava, a ponto de tornar inconsciente ao barulho os que na tempestade mergulhavam...
Já aos primeiros passos eles se viram absortos principalmente na luta contra a força da ventania. Era como se estivessem lidando com um Hércules arquejante e invisível, que se opusesse com selvageria ao avanço do grupo. Na rua não se via mais nada, construções, ruas, nem caminhos.
Agarrada aos companheiros, que a estreitavam e amparavam com os braços, Angélica avançava, confiando no conhecimento que eles tinham da própria cidade e das tempestades do norte. Não se lembrava de haver enfrentado tormentas assim em Wa-passu. E verdade que, quando o tempo estava mau, ficava-se em casa. Nunca antes a fúria do Setentrião lhe parecera tão selvagem.
Iam todos quase deitados para a frente. O vento era uma foice, uma lâmina, que lhes retalhava pernas e rostos. De vez em quando tudo se acalmava. E a neve de repente despencava em cataratas penugentas e diluvianas, dando a impressão de que sepultaria a todos num minuto. Tinham que se sacudir para se libertarem dela. Numa esquina, o tornado os pegou pela garganta, sacudindo, derrubando; em outra, o chão se esquivou.
Caíram numa vala. Foi preciso que os dois índios que os tinham seguido os ajudassem a sair. Apertados e escorados um no outro, amontoaram-se como uma bola para discutir o caminho a tomar. Foi um conciliábulo de surdos. Assim pareceu a Angélica, pelo menos; seus companheiros, porém, davam a impressão de entender-se por meias palavras e até sem palavras, por meio de uma mímica já experimentada. Os gestos significavam: "Acabamos de passar diante da Capelinha de Sainte-Foy... Vamos cortar por cima... Chegaremos pelo pátio dos Banistère e desceremos para a casa".
Havia uma luz que dançava à frente deles. Um sulco na pelúcia imaculada da neve os precedia. Era um homem que avançava, com uma lanterna e uma pá ao ombro - um criado dos jesuítas, que se dirigia ao moinho para travar-lhe as asas. Com alguns sinais, ofereceu ajuda assim que executasse sua tarefa. Ia abrir-lhes caminho com a pá. Subiu o talude, provocando avalanchas. Acima deles, os rangidos e o tique-taque do moinho invisível somavam-se às rajadas furiosas da tempestade como os pios de um pássaro gigante.
O mecanismo parou, e os estalidos frenéticos serenaram. O homem voltou. Graças à sua pá e à sua lanterna de chifre, o resto do trajeto completou-se sem maiores dificuldades. E eles chegaram pelo pátio do vizinho, transformado em cratera branca.
Uma bola escura bufava e se debatia ao pé da árvore.
- É o cão - disse Loménie.
"Pobre animal!", quis dizer Angélica, mas tinha o queixo gelado, tão duro quanto um tamanco de madeira.
Um pouco adiante ela teve a impressão de que realmente caía no fundo de um poço, e viu-se com neve até a cintura. Mas chegara ao pátio da casa de Ville-d'Avray, a casa "dela", cuja porta se escancarava revelando rostos, risos e gritos felizes.
Apareceu o farol da lareira.
- Mamãe! Mamãe!
As crianças chamavam, enlevadas. Iolanda, Ademar, o velho Elói, Cantor.
- Mãe, eu ia sair ao seu encontro!
O Senhor Gato, prudentemente enroscado sob o anteparo da lareira, pareceu satisfeito de vê-la cruzar a soleira da porta.
Cláudio de Loménie e João Carlon não quiseram entrar. Não havia motivo de cuidados, disseram. Ainda não se tratava de uma grande tempestade, daquelas "de verdade", que mantêm a pessoa encerrada durante três dias onde quer que a surpreendam.
Transformados péla magia da neve e do vendaval em companheiros de farra, o Cavaleiro de Malta e o grave intendente da Nova França partiram cambaleando, agarrados um ao outro.
CAPÍTULO II
Ronda doméstica sob o temporal - Longa noite de amor e confidências
Era noite e ela estava sentada diante da lareira, onde o fogo crepitava, alimentado por meio tronco de árvore pousado sobre os cães de chaminé.
Segurava o gato contra ò ombro, porque aquela cálida presença animal a ajudava a refletir, como uma testemunha que, pela interrogação contida em suas pupilas atentas, a impelisse a ir até o fundo de seus raciocínios.
"Agora tenho certeza. Sei quem é o aliado secreto de Joffrey. Você já sabia, Senhor Gato... Sempre soube, claro. Eu poderia ter adivinhado desde o primeiro instante. Era uma questão de lógica..."
Aguardava Joffrey.
A tempestade continuava desenfreada, criando como que um oceano intransponível entre uma morada e outra, mas Angélica esperava que Joffrey aproveitasse a menor calmaria para vencer a distância que separava o solar de Montigny da casa de Ville-d'Avray. A menos que se encontrasse em Sillery naquela noite, ou à beira do Saint-Charles, naqueles lugares onde começara a erguer seus fortins para "cercar a cidade". Angélica deu um sorrisinho de bem-informada, para si mesma e para o gato.
Esperava-o assim mesmo, alegrando-se antecipadamente com a tempestade que os encerraria a ambos entre aquelas paredes, momento que ela aproveitaria para fazê-lo "confessar".
Mandara todo mundo ir se dfeitar, dizendo que tomaria conta do fogo.
"Ele confessará, terá que confessar."
Na penumbra, a luzinha do círio da Candelária, que Suzana acendera antes de regressar à sua fazenda, lembrava que Deus vela pelos homens entregues aos arrebatamentos das intempéries.
Era costume acender um círio em cada casa durante as tempestades. Suzana, que pensava em tudo, pressentira a tormenta. Encontram tempo de correr até a igreja para buscar um círio e até pedir que o benzessem, para que o lar da Sra. de Peyrac ficasse protegido.
Não era o círio bento na-Candelária e reservado a esse fim, mas era melhor do que nada. Suzana também se lembrara de levar vitualhas ao velho Loubette, o mendigo. Depois, batendo-se contra as primeiras rajadas, voltara para a fazenda, para acender, entre os seus, seu próprio círio bento.
Lá fora a borrasca continuava. Suas ondas e a sua espuma es-corchante sacudiam as paredes com uma fúria inesgotável. Dir-se-ia que contornava as casas como se fossem rochas, tentando cobri-las e afundá-las. Chocava-se contra portas e janelas com uma raiva assustadora. Assobiando ao rés-do-chão ou encarniçando-se mais acima, contra as chaminés quadradas, engolfando-se pela garganta das ruas com um furor delirante, turbilhonando no coração das praças antes de se lançar contra o paredão das casas, dobrando as árvores, varrendo, crepitando, martelando, o tornado enlaçava a cidade.
Mas as casas de Quebec resistiriam ao inimigo do género humano, o cruel vento de nordeste. Construídas sobre profundas cavernas naturais ou ancoradas em sapatas de argamassa, eram desenraizáveis. Só um incêndio podia levar a melhor sobre elas.
Em Wapassu, forte de madeira bem enfiado sob a neve, quase sob a terra, os furacões não tinham dado a Angélica tamanha sensação de duelo e de combate encarniçado, de estar em jogo a sobrevivendo contra uma natureza brutal e sem mercê. Aqui o pólo não ficava longe.
A noite, no interior da casa, todos se haviam mostrado muito dispostos. Com uma ponta de excitação. Tinham comido com apetite. Tinham ido deitar-se depois de passar os esquentadores de cobre nos lençóis, coisa mais formal do que necessária, pois lareiras e aquecedor funcionavam a toda e na verdade fazia muito calor ali dentro.
Depois que todos adormeceram ou se retiraram para um canto, Angélica se comprouvera em dar uma volta pela casa tão aconchegante.
Enquanto fazia a ronda, sempre seguida pelo gato, recordava-se da entrevista com a Madre Madalena. O veredicto que a inocentava aliviava-lhe a alma, mas sua importância já se esfumava atrás da revelação que se seguira, referente ao Padre d'Orgeval, que deixara a cidade para rumar para as missões iroquesas. Quando o Padre de Maubeuge falara, ela vira Loménie estremecer e uma expressão de terror marcar-lhe as feições. Disso ela podia concluir que o padre d'Orgeval não deixara a cidade espontaneamente. Fora forçado a partir para a terra dos iroqueses. Assim se explicava a frase acusadora do Padre de Guerande: "Por sua culpa ele vai morrer..."
Sem ruído, atravessou a casa, da cozinha à sala, depois, do sa-lãozinho à biblioteca. A casa de Ville-d'Avray era cheia de tesouros, como a caverna de Ali Babá.
Angélica foi entreabrir a porta do quarto onde dormiam Ho-norina e Querubim sob á guarda de Iolanda, e a do quarto onde Marcelino e Timóteo repousavam num mesmo leito.
Num nicho atrás da cozinha, onde se guardavam panelas e utensílios, Piksarett e o montanhês se haviam instalado por aquela noite. No dia seguinte ou mais tarde, o montanhês, de raquetes nos pés, retornaria a seu fiorde do Saguenay, cujas altas falésias se agarram às nuvens.
Ele bebericava seu quartilho de álcool, finalmente conseguido, enquanto Piksarett, entre duas baforadas de tabaco, o repreendia pela sua degenerescência de beberrão. Não dava para vê-los. Só se lhes ouvia o murmúrio no escuro, e a fumaça dos cachimbos exalava-se por entre as tábuas como um nevoeiro.
Angélica desceu até a despensa. Respirou o odor das frutas sobre as pranchas: maçãs, peras, nozes diversas; o odor dos barris de sidra e vinho, o dos legumes sobre a terra fresca, das réstias de cebola e alho, trançadas como uma cabeleira de princesa florentina.
O odor de uma casa bem-arrumada, bem-amada.
Nos porões, o suave olhar das ovelhas voltou-se para ela. Deitadas no feno, com poses de carneiros de presépio, enfrentavam a noite, tranquilas e serenas no seu abrigo tépido. A cabra, em pé, mascava, atrevida e feliz.
Ao subir, Angélica se deteve perto do quarto de Cantor. Ele dormia, e desde que ele era bem pequeno ela gostava de sentar-se na borda de sua cama e contemplá-lo no sono.
Como outrora, enquanto o olhava pensava: "Maravilhoso Cantorzinho!"
Tinha vontade de tocar com a ponta do dedo suas delicadas sobrancelhas, seu lábio de adolescente onde se desenhava uma penugem loura. Cantor, tão belo, e seu glutão, de ricto aterrorizante.
Um dia ela voltaria para ver a Madre Madalena e lhe perguntaria que rosto tinha o arcanjo, como era o monstro peludo... Por ora, no entanto, o caso da Diaba estava encerrado.
Foi então que ela voltou para sentar-se diante da lareira, com o gato contra o ombro.
Pensativa, evocava o dia em que entrara num grande aposento cheio de instrumentos científicos.
O Padre de Maubeuge, superior dos jesuítas no Canadá, e o Conde de Peyrac se debruçavam juntos sobre as páginas de um pesado volume colocado sobre um leitoril.
O riso mundano daquela tola Berengária havia embaralhado o vislumbre que lhe atravessara o espírito, a impressão de que se mantinham um perto do outro como se se conhecessem há muito tempo.
Devia supor que o Padre de Maubeuge e Joffrey de Peyrac já se haviam encontrado antes?
No tempo em que Joffrey, jovem, percorria os mares asiáticos ou, mais tarde, na Europa ou no Mediterrâneo, em Palermo ou em Cândia? No Egito ou na Pérsia?
Os jesuítas estavam por toda parte, cruzando as rotas de todos os aventureiros do mundo. E o encontro deles estaria prolongando-se agora, no Canadá?
Nesse caso, tudo se tornara lógico, até o súbito e incompreensível desaparecimento do Padre d'Orgeval. Ele fora atingido no momento em que triunfava... E quem podia atingi-lo? Somente quem tinha poder sobre ele. Somente o Padre de Maubeuge, superior da comunidade dos jesuítas no Canadá, seu superior, tinha o poder de fazer um Sebastião d'Orgeval abaixar a cabeça, pois ao Padre de Maubeuge o intratável missionário devia obediência. Somente ele podia obrigá-lo. Dar-lhe uma ordem a que ele não podia esquivar-se. Entre os jesuítas, mais do que em outras ordens, a disciplina é intransigente... É um exército. O chefe da ordem, em Roma, não usa até o título de general?
Angélica achou-se capaz de imaginar a cena sem dificuldade.
No claro-escuro de uma cela de paredes brancas, sobre as quais se destaca o austero crucifixo dos jesuítas, entrou o missionário com a cruz marcada por um rubi, símbolo do sangue derramado pela glória de Deus.
Quem mandou chamá-lo tem o olhar enigmático de um oriental. Entre eles são poucas as afinidades e conformidade profundas.
"De joelhos, meu filho! Amanhã você partirá de Quebec e tomará o rumo das missões iroquesas..."
Atado pelo seu voto, o jesuíta D'Orgeval tem que obedecer sem demora, sem um murmúrio. Impotente diante do brusco decreto que o obriga a deixar a cidade, teve que afastar-se para os espaços áridos... onde a morte o espera, talvez.
Quanto mais refletia, mais certa ficava Angélica de que as coisas deviam ter acontecido assim.
Dois dias antes da chegada da frota de Peyrac, o Padre de Mau-beuge dera a seu subordinado excessivamente poderoso a ordem de distanciar-se. E dera essa ordem porque era ele o aliado secreto de Joffrey de Peyrac em Quebec.
Dominando os ruídos da tempestade, ouviu-se um alvoroço vindo do pátio, e a porta foi sacudida por batidas surdas.
- Eu não podia passar nossa primeira tempestade em Quebec longe de minha dama - disse Joffrey, quando, ajudada por Macoílet, que saíra do seu banco-ataúde, ela conseguiu puxar a porta já bloqueada pela neve.
A porta estalou como se se arrancasse aos gonzos, uma tromba de neve precipitou-se para dentro e, com ela, o Conde de Peyrac e seu escudeiro, Yann Le Couénnec. Apoiaram as raquetes na parede. Vencer os poucos metros que separavam o solar da casinha fora uma expedição arriscada.
A neve escorria e caía profundamente das roupas deles. Precisaram arquear-se para fechar a porta. A barra de madeira foi colocada de través contra ela.
Yann Le Couénnec dormiria no primeiro sótão, onde ficavam as "cabanas", uma espécie de leito fechado por cortinas que protegiam das correntes de ar.
Elói Macoílet atirou nova braçada de giestas ao fogo, colocou umas achas enormes, e disse que assumia o turno de guarda junto à lareira, como em Wapassu.
Ao redor da casa, defendida contra qualquer intrusão, os grandes uivos do vento amplificavam-se.
No quarto com o grande leito, estava agradável.
"Ele confessará suas traiçoeirices", pensava Angélica, olhando Joffrey de Peyrac, "mas não já", retificou, envolta no brilho do sorriso dele, que se inclinava para ela e que lhe representava toda a felicidade do mundo.
A noite seria longa, tão longa quanto a tempestade. E quando esta serenasse, eles despertariam num silêncio de veludo branco.
Enlaçaram-se e abraçaram-se com júbilo.
Longa noite de amor, longa como uma vida, que parece concluir tudo porque parece tudo resumir, que se atravessa como um fim, quando ela traz em si todo o começo, mas que é sentida assim, porque tudo o que foi antes e poderá ser depois fica abolido. Tudo perdeu a importância das coisas da vida: glória, perigos, riquezas, ambição, inveja, temores, medo da miséria e medo do aviltamento, ascensão ou queda, peso da subsistência da doença e da morte.
O corpo é glorioso, a alma, livre. O coração bate.
Tudo desapareceu e "o alhures" nos acolhe no santuário secreto do amor.
Naquela noite o alhures deles era um quarto estreito rodeado pela tempestade num lugar selvagem como a maldição, numa cidade mais frágil do que um broto saído de uma semente perdida e prestes a ser arrancada de seu rochedo por um vento apocalíptico.
O universo para onde foram transportados encerrava-se no círculo de seus braços, e o fogo do centro do mundo ardia entre eles.
Sem tirar a roupa, ficaram um longo tempo em pé naquele quarto escuro onde bruxuleava a luz de uma lamparina, apenas o necessário para ofuscar os olhos de um com o brilho dos olhos do outro, nos quais aquele reflexo tremulava como uma estrela, uma centelha, quando as pálpebras cerradas sob o peso da felicidade se abriam como em sonho. E o rosto inclinado ou oferecido barrava-lhes o horizonte, como única aparição no claro-escuro a reter e a seduzir-lhes os pensamentos ou os sentidos.
Abraçavam-se e estreitavam-se em silêncio.
Afinal o frio cortante os trouxe de volta à realidade e a febre do desejo os atirou sob as cobertas, nus e rindo na grande cama, com as cortinas bem puxadas sobre o escuro e a tepidez de seu refúgio. Os corpos se procuravam, prontos a se encontrar, a se deixar invadir novamente pelo inefável. Esse apelo existia entre eles. Um dom contra o qual nada se pode fazer. Não se renega a atração mútua e sempre surpreendente de uma carne por outra. Ela abre as comportas à volúpia. Sempre existira entre eles, varrera as .cóleras e rancores da separação.
"È nos braços dele que me sinto melhor", pensava ela. "Dentre todos os meus amantes, é você o inesquecível!... E isso há de durar tanto quanto nossa vida... Enquanto nossas mãos vivas puderem estender-se uma para a outra e tocar-se. E fiossos olhos e lábios puderem encontrar-se. E por isso que somos livres. Porque somos ligados pelo único vínculo que não pudemos desatar: a atração. Aonde quer que um vá, leva a marca do outro consigo."
E a partir desse sortilégio da carne que os retinha, eles se reencontravam sempre, reencontravam o caminho de seus espíritos diferentes, opostos, homem-mulher, mas também assemelhados por uma mesma concepção que tinham da vida e que não haviam deixado de reconhecer um no outro desde o primeiro encontro, em Toulouse.
Amavam o amor, amavam a vida, o risco, não temiam a cólera de Deus, amavam a harmonia e a criação, lutavam para vê-las triunfar na terra, ainda que apenas vivendo plenamente, sem inquietações durante uma noite de tempestade, a felicidade de se amarem loucamente.
Aqueles uivos e roncos exteriores, que aboliam todos os pequenos ruídos da existência cotidiana, até os da cama, aquelas sacudidas que às vezes pareciam atingir com ímpeto e fúria as portas do encantamento deles, somavam-se à sensação de que tudo o que não era eles se apagava. E para cada um, o outro, seu bem-estar e seu prazer, sua alegria traduzida em palavras breves, gestos de ternura, suspiros.
Felicidade dada, recebida, liberdade de ser, de existir e de sabê-lo, olvido de tudo porque Ela está ali, porque Ele está ali. Uma hora de amor roubada ao tempo, à noite, ao terror, ao mal. Um direito, mas sempre miraculoso.
Entre seus enlevos amorosos, essas imagens atravessavam Angélica, esvoaçando.
E, como de hábito, era como se nunca tivesse sido tão feliz quanto daquela vez. Dizia consigo que os lábios de Joffrey nunca tinham sido tão doces, as mãos dele tão acariciantes, seu abraço tão vigoroso.
Que ele nunca fora tão moreno, tão forte, duro, terno, que seus dentes nunca lhe tinham parecido tão brancos no sorriso de fauno, o rosto marcado de cicatrizes tão terrível e fascinante, o olhar tão zombeteiro, que ela nunca se sentira tão perturbada pelo odor da sua cabeleira espessa e escura, marcada de prata contra seu bronzeado, ou pelo calor da lisa pele dele sobre os músculos duros, pele que às vezes, por ser morena, lhe parecia queimar ao toque.
Ela lhe amava as ousadias, que traduziam a fome que sentia por ela, uma espécie de avidez fervorosa que sempre fora o sinal dele.
Ele se entregava ao amor, já sem admitir que, para outra ciência, se pudessem impor limites às invenções do desejo quando este inspirava a ambos. Ali, como em toda parte, ele permanecia o mesmo, em busca da vida. Por trás dos suspiros e confissões que provocava, era a ela que ele procurava, sua amada, objeto mais precioso e inapreensível do que a chama dos metais desconhecidos revelados ao paciente alquimista.
Mas ela também gostava do egoísmo com que ele vivia a própria satisfação. O amor era um gozo terrestre ao qual ele devia atenção. Mergulhava na aventura com todas as forças reunidas de seu corpo e de seu espírito. Esse comportamento era ele! Engajado em todas as coisas. O amor transformava-se em seu domínio. Estava presente ali e às vezes a sós consigo mesmo, numa plenitude de sensações eróticas e de felicidade intensa que o ocupavam inteiro e o tornavam vibrante e alegre, ou sombrio e distante, mas, mais do que nunca, hábil e fogoso, arrastado e subjugado por ela, que, no entanto, desaparecia aos olhos dele. Joffrey ficava sozinho com o amor. E então, diante da liberdade dele, é que ela se descobria livre também. Livre para soltar as amarras, obedecer ao langor ou à loucura, levada às estrelas ao mesmo tempo pela presença e pela ausência dele. Presença que lhe esbraseava o corpo, ausência que o libertava.
As mãos de Joffrey, suas carícias, o hálito, a posse, as manifestações múltiplas, delicadas ou apaixonadas, da adoração dele tinham feito aquele corpo existir. Havia momentos em que ficava como que despossuída desse corpo, a tal ponto ele se lhe apoderava. Depois, devolvia-lho, aprofundando-se na sua viagem interior. E ela se reencontrava como que ampliada, nova e desconhecida a si mesma. Sentia seu invólucro carnal investido de uma desmesurada potência que lhe surgia numa claridade exaltante.
Ela escapara à fraqueza daquele corpo de mulher, menos seguro do que o do homem, corpo perturbado por ser ao mesmo tempo tão cobiçado e tão rejeitado, adorado e amaldiçoado. Re-descobria o verdadeiro poder daquele corpo de mulher, suave e irradiante, o dos primeiros dias, poder de Eva, acrescentando ao do mundo já criado suas diferenças e transcendências assim como a luz surge de uma lâmpada através do alabastro, suas formas mais redondas, seus cabelos mais macios, suas faces mais lisas, seus seios inflados, primeiro símbolo de abundância, seu ventre macio, primeiro símbolo de fecundidade, seu sexo misterioso, representado na primeira jóia moldada pelo homem - um seixo cortado por um sulco, amuleto protetor.
Ela era livre e senhora de um poder eterno.
Acompanhando-o naquele silêncio tumultuado, ela adotava-lhe o impulso, deixava-se levar naquele vento de liberdade e de glória que a tragava e a fazia rodopiar no solitário e maravilhoso delírio do êxtase.
Numa semiletargia, Angélica meditava sobre os efeitos afrodisíacos da tempestade, cujo desencadeamento só tivera como resultado prolongar a noite e suas delícias para além das horas do amanhecer.
Não haveria luz da aurora para tirá-los daquelas magníficas alternâncias de sono bem-aventurado e abraços exultantes nos quais Angélica teve a impressão de ver-se anunciar uma era abençoada de preguiça e despreocupação, como é necessário saborear às vezes e que se sonha conhecer um dia, frequentemente em vão.
Numa semiletargia, pressentia que a quietude de sua alma nunca mais seria abalada. Essa quietude repousava, para além das horas preciosas em que seu ser entorpecido ainda se envolvia, na absolvição que, na véspera, uma pequena ursulina lhe dera, inocentando-a diante do mundo, e na certeza que adquirira de que o Padre de Maubeuge era o "espião" de Joffrey.
De início, indagou-se se não seria uma ideia louca. Depois, em fiapos trazidos pelos grandes uivos da tempestade, voltaram-lhe à memória os detalhes da cena da véspera, que parecia muito distante.
Estava convencida: ele confessaria.
Olhou-o dormir. Sabendo que ele acordava prontamente, como todo homem habituado ao perigo, continha-se para não pousar um indicador acariciante naquelas sobrancelhas negras, sobre as cicatrizes da face e da têmpora.
Por que ele era tão sigiloso, já que os dois se entendiam tão bem?
Joffrey abriu os olhos, ergueu-se e, depois de acender a vela na cabeceira da cama, voltou-se para ela, apoiado a um cotovelo, interrogando-a com o olhar:
— No que está pensando? Ou em quem?
— No Padre de Maubeuge.
— O que vem fazer esse honorável jesuíta em nosso leito impudico?
— Ele me intriga.
Contou-lhe a entrevista, passando rapidamente sobre as modalidades do interrogatório para chegar à última declaração do superior dos jesuítas. Por trás da decisão de despachar o Padre d'Orgeval para as missões iroquesas, ela vira um sinal de aliança, depois de cumplicidade com ele, Joffrey, Conde de Peyrac. Uma cumplicidade que não se explicava. Ele não era de origem gascã e era um homem da Igreja, e os meridionais, a que Joffrey pertencia, não eram dados a manter logo de saída relações excelentes com tudo o que pudesse lembrar-lhes os rigores da Inquisição. Ainda assim, quando ela entrara pela primeira vez na biblioteca do mosteiro dos jesuítas, sentira que havia entre o conde aquitâ-nio e o jesuíta picardo, mestiço de chinês, um entendimento profundo e indefectível.
- Então, perguntei a mim mesma: que cumplicidade será essa? O que poderia aproximá-lo tão espontaneamente de uma personalidade de quem, à primeira vista, tudo parecia afastar?
Ele a ouvira, de início impassível. Mas acabou sorrindo, e ela compreendeu que tinha adivinhado. Ele seria obrigado a confessar-lhe que o Padre de Maubeuge era mesmo o cúmplice desconhecido que o ajudara a preparar sua vinda e sua chegada a Quebec.
No entanto, a forma que ele deu a essa confissão pegou-a de surpresa e a deixou desconcertada.
- O que nos aproxima? Ora, digamos que isso se parece muito ao que a aproxima da Sra. Gonfarel, uma senhora muito amável, não nego, mas de quem, no entanto, tudo pareceria distanciá-la... à primeira vista... não houvesse entre ambas esses laços do passado que nada pode romper, nem o tempo nem as separações, isso a que chamam laços de uma antiga amizade...
De imediato, Angélica ficou pasmada, ao ouvir naquele discurso o nome de Janine Gonfarel, a Polaca. Depois entendeu: também ele adivinhara seu segredo.
Pôs-se a rir e atirou os braços à volta do pescoço dele.
- Oh," Sr. de Peyrac! Sr. de Peyrac! Eu o detesto! Sempre levará a melhor sobre mim!
Escondia a testa contra o ombro dele. Mas, quando levantou a cabeça, ele viu que ela estava com os olhos marejados de lágrimas. Tomou-a nos braços.
- Guarde seu segredo - disse. - Eu lhe contarei o meu.
No dia seguinte, continuava fora de questão botar o nariz fora de casa, e eles passaram uma parte do longo dia sentados lado a lado, no salãozinho, apoiados às almofadas do canapé e no calor do belo aquecedor de louça, que enfrentava à maravilha seu primeiro inverno canadense. Sem dizerem nada, ambos se sentiam felizes pela trégua que lhes permitia conversar tranquilamente.
Por entre a tempestade que sacudia as muralhas em torno deles, falavam a meia voz.
- Conheci o Padre de Maubeuge há muito tempo, quando eu era muito jovem e percorria o mundo, nas, pegadas de Marco Polo. Minha mãe ainda vivia e regia nossos domínios tolosanos, e eu, seu herdeiro, podia entregar-me à conquista da terra, ávido por ver e conhecer tudo a fim de compensar minha infância doentia. Fui até a China. O Padre de Maubeuge acabava de chegar lá como assistente dos reverendos padres jesuítas que o grão-mogol convidara para que ajudassem na construção do observatório astronómico de Pequim. Apesar de sua juventude, seu grande valor científico e seu dom para as línguas - ele já sabia chinês ao chegar - tinham-no feito designar para o posto... Os jesuítas, segundo seu método, viviam à chinesa, vestidos como os mandarins cuja vida compartilhavam, penetrando no país e na sua mentalidade por uma adaptação interior que aos poucos os identificava àqueles a quem tinham ido pregar e converter à religião de Cristo. Na primeira vez em que me dirigi a ele, numa rua poeirenta de Pequim, estava no alto de um palanquim, com um gorro quadrado vermelho e uma túnica branca bordada de dragões de ouro. Tinha as unhas num comprimento desmedido, com protetores de ouro. Dirigi-lhe com dificuldade algumas palavras em chinês, e fiquei surpreso de ouvi-lo rir e me responder em francês. - Depois de uma breve pausa, o conde continuou: - Desse primeiro encontro nasceu uma amizade, mantida por uma correspondência seguida, mesmo quando regressei a Toulouse. Por longos anos não paramos de nos manter informados sobre nossos trabalhos científicos. Depois houve o terrível golpe de foice do papa, que não podia suportar que a ortodoxia dos dogmas católicos se alterasse em contato com a religião de Buda e deslizasse, graças aos jesuítas, para uma adaptação extremo-oriental. A Companhia de Jesus não era justamente um exército fundado para a defesa da Igreja católica, apostólica e romana, ameaçada pelas heresias? O voto de obediência ao papa regia todo o edifício, pois esse exército se pusera à disposição do sucessor de São Pedro, representante de Cristo no mundo. O papa, então, chamou de volta os jesuítas da China e dispersou-os aos quatro ventos.
— Foi uma desgraça.
— Foi principalmente o fim de um grande sonho jesuítico que quase teve êxito, o de ganhar a China para o cristianismo.
— O Padre de Maubeuge ficou muito afetado?
— Os jesuítas são filósofos - disse Peyrac com um sorriso. - A vontade de Deus em primeiro lugar, representada pela obediência a seus votos.
Mais ou menos na mesma época o Conde de Peyrac vivia na França sua própria catástrofe: condenado por feitiçaria. Um desabamento, uma dispersão também.
Foi só mais tarde, quando navegava pelo Mediterrâneo sob o nome de Rescator, que ouviu falar novamente do Padre de Maubeuge pelos jesuítas de Palermo, na Sicília, e soube que ele fora enviado como superior dos jesuítas ao Canadá, uma nomeação que não enganava ninguém acerca do afastamento do brilhante mandarim e sábio astrólogo de Pequim.
Quando o Conde de Peyrac chegara à América, enviara-lhe uma mensagem secreta. A correspondência não pudera ser frequente, mas bastara para que eles retomassem contato e soubessem que um não esquecera o outro e que conservavam a confiança mútua.
Para ser eficaz, essa aliança devia permanecer insuspeitada.
- Ao me aproximar de Quebec, eu ignorava o que ele faria e de que modo me ajudaria. Mas tinha certeza de que ele faria todo o possível para apoiar nossa política. Devemos a ele o afastamento do Padre d'Õrgeval, que, parece-me, acabou conside-rando-se como o verdadeiro superior dos jesuítas no Canadá.
De seu lado, Angélica não ocultou que a amizade com Janíne Gonfarel também era antiga, visto que datava da época que se seguira à.separação do casal, depois da condenação dele.
Mas, como não fornecesse detalhes mais amplos, ele não insistiu.
Disse somente que não deixara de intrigar-se com uma declaração de amizade tão estreita e rápida entre a taberneira e Angélica, cujo entendimento quase fraterno e cúmplice, desde o primeiro contato, não pudera escapar-lhe ao olho perspicaz.
— Isso prova que ela e eu não possuímos o mesmo poder de dissimulação que você e seu jesuíta.
— Somos sensíveis a tudo o que concerne ao ser a quem se adora - disse Peyrac.
— Mas eu acho que o adoro! Reconheço, porém, que levei mais tempo do que você para descobrir os laços que o uniam àquele chinês impassível.
Estavam ambos rindo.
"Meu Deus, como o amo!", repetia ela consigo.
E ainda se maravilhava de vê-lo sentado tão perto dela, de poder ouvi-lo falar de sua vida, de sentir-lhe os movimentos do corpo contra o seu e de cruzar a chama de seu olhar sobre ela, dedicando-lhe uma rápida confissão de entendimento amoroso.
O dia passou suavemente, acompanhado pela tempestade feroz, pelo alegre crepitar das chamas, e foi substituído, impercep-tivelmente, por outra noite, sem que eles se dessem conta disso exceto pelas discretas batidas dos relógios e seus carrilhõezinhos que ritmavam as horas.
CAPITULO III
Os mártires da nova terra - Encontro com .o Conde de Loménie-Chambord
A tempestade durou dois dias e três noites. Não era nada, afirmava Elói Macollet, que se promovera a guardião dos fogos, dia e noite, mantendo o da lareira, alimentando o fogão, o forno onde se coziam pães e bolos, e o único a sair de casa para ir ao depósito de lenha.
Tiveram que conservar as janelas fechadas. Ouvia-se a saraivada dos cristais de neve contra elas com uma violência enfurecida. O vento de nordeste, o grande devastador demente, passava à volta com um silvo contínuo, que se imobilizava em certos momentos, transformava-se numa súbita borrasca e lançava-se de punhos erguidos contra as paredes, sacudindo-as numa sucessão de explosões surdas. Depois o silvo contínuo reiniciava-se.
Angélica e o marido conversaram longamente, sentados nas confortáveis poltronas do pequeno salão onde Ville-d'Avray havia disposto seus móveis e bibelôs mais preciosos. O Senhor Gato compartilhava-lhes da intimidade, apreciando o macio das sedas adamascadas. Daquele aposento avistava-se a perspectiva iluminada da sala grande, com as crianças, os índios Piksarett e Mista-guche, amigos e criados, agrupados diante da lareira ou em torno da mesa, ocupados em comer, rir e tagarelar. Cantor jogava gamão com Ademar. Ao anoitecer, pegaria o violão.
Às vezes, o sopro do vento encontrava uma fissura por onde se insinuar e fazer vacilar as chamas das lâmpadas e candeias.
Em contraste com a inclemência gelada que se sentia no exterior, a água fresca que se extraía do poço interno, perto da chaminé, apresentava-se como uma amiga, quando escorria, luzidia e viva, para dentro do caldeirão.
Sob os telhados de ripas ou ardósia, a vida cotidiana da cidade prosseguia, ao abrigo das paredces grossas, no halo protetor do círio da Candelária aceso.
Sem dúvida, no convento das ursulinas as pequenas internas continuavam a puxar a agulha sobre seus bordados cintilantes. Na Santa Casa, a freira responsável pela botica preparava seus xaropes de capilária. Na Cidade Baixa, Janine Gonfarel devia reinar sobre a assembleia folgazã de seus clientes, encantados de terem sido surpreendidos - pela tempestade num albergue tão caloroso. E os púcaros desfilavam sob as vigas enfumaçadas, enquanto o espeto bem-provido de pedaços de carne girava ao fogo.
Mas o bom coração de Honorina inquietava-se còm o cão dos Banistère, acorrentado à sua árvore.
Para reconfortá-la, Elói Macollet garantiu-lhe que aquela espécie de cão possuía, instintivamente, a resistência necessária para hibernar sob a neve. Abria com o bafo uma caverna protetora, cuja saída seria encontrada quando a tempestade amainasse e o sol reaparecesse. Conservava no seu atavismo a resistência dos cães do Grande Norte dos índios esquimós, que suportavam as mais baixas temperaturas. Mas os cães dos esquimós eram inteligentes. Os dos índios das florestas haviam degenerado, e o bastardo nascido do cruzamento com os congéneres europeus valia menos ainda. Era um cão imbecil. "Não late... não serve para nada... Nem para a caça, nem para defender a casa..." É um cão, um cão que se tem, mais nada, que não saberia encontrar sozinho o caminho de volta para casa. Só tem uma utilidade numa residência: sente o começo de um incêndio. Basta que uma fagulha escape, que uma vela esquecida comece a queimar um pedaço de pano, e ei-lo que se põe aos pulos como um louco. Não é que comece a latir ou que indique o lugar, mas sente o incendo. Fica com medo. Quer destruir-se. Atira-se contra as paredes, contra as portas. Quando se vê ou ouve o cão imbecil dando pulos, é tratar de correr pela casa, à procura do fogo.
- Mas é um cão preciosíssimo! - observou Angélica. - Se tivéssemos um em Wapassu, teríamos ficado menos ansiosos e com menos medo de dormir à noite, temendo um incêndio, quando estávamos todos doentes e tão cansados no final do inverno...
Seu pensamento retornou a Wapassu. E, como naquele inverno, as histórias do velho Macollet, viajante impenitente, acompanharam os uivos do vento.
No terceiro dia, em meio ao silêncio, abriram-se as janelas. Os olhos deram com um caos imaculado. Cercas, ruas e árvores tinham sido apagadas; apenas os telhados emergiam de dunas e colinas de neve.
Acima de todo esse branco, um azul de céu estival nascia lentamente de uma bruma impalpável.
Quebec se mostrou encapuzada de veludo, com os campanários salientando-se dos telhados arredondados. Macia, suavizada nos seus contornos, ela se assemelhava a um imenso incensório, rendendo graças a Deus pelos múltiplos filetes de fumaça que saíam das chaminés e subiam direto para o céu, tornando-se acobreados e dourados quando passavam contra o sol.
O cão do Sr. de Chambly-Montauban, brincando como um lobo-marinho no fundo das ondas, foi o primeiro sinal de retorno à vida naquele bairro da Cidade Alta. Um sulco de fagulhas, de cristais poeirentos, assinalou a passagem do glutão, que se lançava rumo à casa onde estavam Angélica e Cantor. E o mundo readquiriu vida com um fascinante bailado entre o cão de fila delirante e o glutão brincalhão.
As crianças saíram, dando gritos de alegria. Rolando na neve poeirenta, juntaram-se à sarabanda dos dois animais. O cão foi o primeiro a sumir.
O guarda-fogo de Eustáquio Banistère ressoou no ar cristalino.
A Srta. d'Houredanne, enterrada na penumbra de sua morada, percebeu todos esses ruídos, mas não conseguiu ver nada. A criada dela, embrulhada em xales, saiu pela lucarna da mansarda com uma enxada e começou a desentulhar a frente da janela. Era a tarefa mais urgente. A porta viria a seguir.
De uma saraivada de salpicos, como da escuma do mar, surgiu o cão imbecil e sua corrente. Subiu a um barril emborcado e cravou os olhos na direção da casa de Ville-d'Avray, assim como um afogado olha para um navio.
A vida recomeçava.
Os índios do pequeno acampamento abriram uma saída, surgindo um a um como toupeiras das wigwams de casca de árvore, cujo formato de cogumelo mal se adivinhava sob o leque do olmo sepultado até os galhos.
Durante a tempestade, uma das índias dera à luz uma criança. Veio até a casa de Ville-d'Avray pedir pão branco e um pouco de aguardente para si, e panos para o recém-nascido.
Trazia-o às costas, devidamente amarrado sobre uma plaquinha de madeira pintada de cores vivas, todo envolto da cabeça aos pés em faixas vermelhas ou violeta bordadas com pérolas e pêlos de porco-espinho. Parecia um casulo multicolorido, de onde mal lhe aparecia a carinha redonda, cor de acaju. Dormia pacatamente.
O Sr. de Bardagne mandou escavar um fosso que, saindo de sua casa, o conduzisse pelo caminho mais curto até a casa da Sra. de Peyrac. Veio logo atrás dos cavadores. Muito inquieto, queria vê-la, saber da saúde dela. Não se pôde ignorar sua solicitude e receberam-no para o jantar. Durante toda a tempestade, jogara cartas com o Sr. de Chambly-Montauban.
Angélica viu Honorina, que, enterrada até a cintura na neve, conversava com a criada inglesa que desobstruía a frente da porta num enérgico redemoinho de pá e vassoura.
A menina sabia algumas palavras de inglês e se desembaraçava muito bem.
— O que você quer de Jessy? - indagou Angélica.
— Quero ver a senhora na cama. Ela disse que quando as neves chegassem ela nos leria a história de uma princesa.
O Natal seria comemorado numa cidade de valas brancas.
Duas notícias correram pela cidade ao mesmo tempo.
A Madre Madalena se avistara com a Sra. de Peyrac e dirimira, sem contestação, a dúvida que pairava sobre esta última. Todo mundo ficou muito satisfeito.
Por outro lado, não foi sem emoção que se recebeu a confirmação de que o Padre d'Orgeval partira para a terra dos iroqueses.
A Sra. de Castel-Morgeat dava um tom dramático aos comentários. Sem dissimular o próprio desespero, lembrou que se deixava consumar uma injustiça criminosa. O Padre d'Orgeval já fora prisioneiro dos iroqueses uma vez, e torturado. Se o capturassem de novo, não lhe concederiam clemência.
- Teremos um novo Bréboeuf - dizia Monsenhor de Laval, com uma aparente ponta de satisfação na voz.
Para recordar aos fiéis à sombra de que grandes mártires se edificava o país do Canadá, ele leu do púlpito o testemunho escrito por Cristóvão Magnault, canadense, a primeira pessoa a ver o corpo do eminente jesuíta, testemunho de um suplício que continua sendo um dos mais atrozes nos anais dos martirológicos cristãos.
"Chegando à missão de Saint-Ignace, de onde os iroqueses se haviam retirado, encontrei o corpo dos mártires.
"O Padre de Bréboeuf tinha as pernas, coxas e braços descarnados até os ossos. Tinham-lhe cortado os músculos aos pedaços, para assar e comer.
"Vi e toquei grandes bolhas que ele tinha em vários pontos do corpo, resultantes da água fervente que àqueles bárbaros lhe tinham derramado em cima, fazendo troça do santo batismo.
"Vi e toquei a chaga de um cinturão de casca de árvore, cheio de pez e resina, que lhe queimou o corpo todo.
"Vi e toquei as queimaduras do colar de machados em brasa, que lhe puseram sobre os ombros e o estômago.
"Vi e toquei-lhe os dois lábios, que lhe haviam cortado porque ele falava sempre em Deus, enquanto o faziam sofrer.
"Vi e toquei todos os pontos de seu corpo que haviam recebido mais de duzentas bastonadas.
"Vi e toquei o alto de sua cabeça esfolada, sobre a qual derramaram areia ardente, sempre fazendo troça do santo batismo.
"Vi e toquei-lhe as chagas do nariz cortado, da língua cortada.
"Vi e toquei-lhe a boca, que lhe tinham fendido até as orelhas, e vi a chaga em sua garganta, causada pelo ferro em brasa que lhe tinham cravado.
"Vi e toquei-lhe as órbitas de onde haviam arrancado os olhos e em que enfiaram carvões ardentes.
"Vi e toquei a abertura que o chefe daqueles bárbaros lhe fez para arrancar-lhe e comer o coração, enquanto outros bebiam o sangue que jorrava do orifício.
"Enfim, vi e toquei todas as chagas do corpo dele, conforme os selvagens nos haviam anunciado..."
Em seguida o bispo lembrou a odisseia dos huronianos e dos poucos franceses que, apesar de mil perigos, tinham trazido o corpo do mártir à missão de Sainte-Marie-du-Sault, e a cabeça até Quebec.
"...trouxe a cabeça dele até Quebec, segurando-a com as duas mãos contra o peito ao longo da viagem, como uma criancinha preciosa..."
Nesse momento, a cabeça do Padre de Bréboeuf se encontrava em poder das freiras da Santa Casa, num relicário de cobre e prata à sua imagem e pousado sobre um pedestal octogonal de ébano. Era venerado todos os dias.
Depois dessa leitura impressionante, Angélica quis conversar com o Conde de Loménie-Chambord, amigo do Padre d'Orge-val. Sabia que ele morava na Cidade Alta. Informou-se sobre a casa dele. Não tornara a vê-lo depois da noite da tempestade e da importante entrevista com a Madre Madalena, a que ele presenciara.
Vivia para o lado do prebostado, ocupando um quarto modesto que seu amigo D'Arreboust lhe colocara à disposição. O dono da casa partira para Montreal, de modo que o Sr. de Loménie poderia ter-se instalado um pouco melhor, utilizando o salão e a biblioteca do amigo ausente. No entanto, contentava-se com o quartinho como se fosse uma cela monástica, e só aceitava o auxílio de um criado para cuidar do quarto e da sua roupa. Quando não era convidado por amigos, ia fazer as refeições nas cercanias da Place d'Armes, na pequena tasca de um gascào, antigo soldado do regimento de Carignan-Salière e a quem chamavam de Levantino, porque estivera preso pelos turcos. Era o único local da cidade onde os veteranos do Mediterrâneo podiam ir às vezes para tomar um café turco, bebida muito mal considerada e que a maioria das pessoas tratava como remédio.
Ele levou Angélica até lá.
Desciam-se alguns degraus. O local era bem escuro, pois as janelas de vidro grosso e esverdeado, reforçado de chumbo, davam para a Place d'Armes, e a única luz que deixavam entrar era o reflexo da neve. A penumbra e o bom aroma de café reconfortaram Angélica.
- Não nos revimos desde o outro dia. Houve a tempestade. Ora, a Sra. de Castel-Morgeat continua levantando a opinião pública contra mim. Continuam dizendo que o Padre d'Orgeval corre grandes perigos e que sou eu a responsável por isso. Mas eu gostaria de saber, Sr. de Loménie, se de algum modo me considera culpada. Se for esse o caso, será muito doloroso para mim... De que sou culpada?
O cavaleiro pousou uma mão sobre a dela. Encarou-a com brandura e meneou a cabeça.
- Só foi culpada de ser mulher e, aos olhos dele, demasiado atraente. Você mesma o disse: ele a viu saindo da água. Jamais a perdoará isso - acrescentou, hesitante. - Pois talvez naquele instante ele tenha tido a revelação das fraquezas que poderiam abalar-lhe para sempre as defesas e mesmo a fé...
— Abalar a fé de um jesuíta? Meu caro amigo, seu pessimismo o desnorteia. Existem certas opções que são irreversíveis.
— Infelizmente não com ele - suspirou Loménie. - Conheço-o desde os tempos de colégio. Sempre houve nele um medo, eu diria quase um ódio... O medo, o ódio à mulher... Ignoro por quê... Mas pode ser que o encontro com você lhe tenha revelado certas coisas. Por exemplo, que, se ele se voltou para a condição de eclesiástico e se quis ingressar na ordem dos jesuítas, foi para se proteger do mal. Queria pôr-se ao abrigo da mulher. A mulher enquanto personagem temível, entidade monstruosa encarnada, vinda para corromper o homem, a Lilith dos cabalistas, a mulher do Mal, o súcubo ainda mais apto a destruir o ser humano, por ser mais sorrateiro do que o incubo, o demónio masculino.
Angélica ouvia-o, empalidecendo. Compreendia que Loménie-Chambord ignorava a existência, na vida de Sebastião d'Orge-val, daquela criatura infernal, Ambrosina, que estivera envolvida na mais tenra infância dele. "Como um demónio, colado aos passos dele", pensou. Mas ele se aproximava da verdade. Por intermédio de Loménie, desenhava-se o perfil da criança homicida, sempre na fronteira do Bem e do Mal, e que a vida inteira lutaria para determinar-lhes os limites. Isso combinava com os gritos do delírio da Diaba.
"Oh, a minha bela infância! Ele, Sebastião e o seu olho azul e as mãos cheias de sangue. Ele e Zalil gotejando de sangue humano... Éramos três crianças malditas entre as mãos de Satã! Nunca houve crianças tão fortes quanto nós... lá no Dauphiné... Éramos habitados pelo fogo, por mil espíritos ardentes. Por que ele nos traiu? Por que ingressou- nesse exército de homens negros, com a cruz sobre o coração?
Angélica segurou a mão de Loménie-Chambord.
— Mas não sou eu, Cláudio! Eu não sou Lilith!
— Eu sei.
— Você ouviu a Madre Madalena outro dia?
— Eu não precisava ouvi-la para ser convencido.
Disse isso com uma ternura persuasiva, esforçando-se por acalmá-la.
— Assim que a vi em Katarunk, soube que as prevenções que tinham contra você eram estúpidas. Não lembra que nossa simpatia foi espontânea?
— É verdade.
Quis dizer: "Sempre gostei de você." Mas achando que a declaração era um pouco abrupta demais, disse:
- Gostei de você assim que o vi, Sr. de Loménie-Chambord.
O que -não era muito diferente. As palavras traíam as intenções de ambos de aquartelarem-se na simples amizade, e riram os dois.
Ela quis aliviar o sofrimento injusto que era causado a ele. Disse, para reconfortá-lo:
- Já que ele é tão forte, há de resistir a Utakê, o chefe dos iroqueses.
- Utakê também é muito forte e é seu aliado.
A dúvida o dominava.
Mas poderia ela dizer-lhe que "o homem negro" entrevisto por trás da Diaba era o Padre d'Orgeval, que a Madre Madalena sabia disso, e que o Padre de Maubeuge também sabia?
A decisão do superior dos jesuítas libertara a cidade de um mau fado.
CAPITULO IV
O tormento solitário do Padre d'Orgeval
Um homem se distancia pelo deserto gelado. Iniciam-se as quatro semanas do Advento.
O Natal aproxima-se.
Natal! Natal!
E enquanto repicam os sinos e o sopro da vida escapa de todas as chaminés, como de um incensório, e os eflúvios dos festins se misturam aos do incenso e dos círios acesos, subindo ao céu gelado para lembrar ao Criador que os homens estão ali, naquele deserto desumano, um homem, atado pelo voto de obediência, afasta-se de todo recurso, um Toga Negra se separa, a pesadas passadas em raquetes, do seio dos amigos, da estima dos seus e do santuário de suas obras e trabalhos.
E nele mesmo o deserto gelado substituiu todas as chamas de vida.
Ele é somente destruição.
O sopro imaculado da tempestade traçou à sua volta uma paisagem de morte. Caminha, guiado pelo conhecimento que tem da região, mas tão ansioso e atento como se penetrasse pela primeira vez em terra estranha. Tudo ao redor dele se transformou em inimigo. Pois despojaram-no de tudo. E essa sensação se torna tão pesada, que ele precisa parar.
Grita numa voz desesperada para o céu:
- Meu Pai! Por que me abandonou?
E a floresta, branca prisão de mil ramos erguidos em feixes, em grades cinzentas, azuladas, rosadas, sobre os quais se destacam os candelabros torturados das finas bétulas gredosas, repete o eco de seu grito ao infinito.
A névoa está sob os picos, vaporosa como um ninho de plumas, pousada sobre as cristas longilíneas dos Apalaches e escoando insensivelmente para os vales. O gelo solidifica o hálito dele. Grita de novo:
- Se é a Verdade, por que me abandonou?
Amarraram-no ao poste de tortura.
Parece-lhe que o machado incandescente, vermelho como rubi, aproxima-se de sua carne, e ele entrevê atrás de seu brilho branco o rosto de Utakê, o chefe mohawk que o odeia!
O caras crianças indígenas, abenakis fervorosos! Piksarett e o seu sublime ardor de neófito, a destruir os inimigos de Deus; Utakê, prometido a um destino de grande chefe. Hatskon-Ontsi foi o nome que lhe deram, e pela primeira vez ele sente nesse nome uma ressonância diferente, que o condena. Hatskon-Ontsi: O Homem Negro.
Tudo sempre foi negro à sua volta, e é com dificuldade que se lembra de que viveu longos anos à luz da paz de um coração consagrado à sua tarefa. O pensamento retorna-lhe à infância tenebrosa. Aquelas noites negras no Dauphiné, atravessadas pelo clarão das tochas carregadas pelos cavaleiros, varadas pelos gritos dos huguenotes massacrados, das mulheres violadas... A satisfação pelo sangue derramado... O sangue que redime. A vermelhidão dos incêndios, das aldeias que ardem, do fogo ateado aos telhados de choupo, o fogo que purifica.
A influência do pai, gigante forte e justo, que lhe ensina, enquanto cavalgam pela noite para ir levar a justiça de Deus ao seio das aldeias que aderiram à abjeta doutrina da Reforma.
Negros os vales onde ele encontra, para sombrios jogos que envolvem feitiçaria e demónios, Ambrosina, a menina de olhos dourados do castelo vizinho. Comenta-se que a castelã, mãe dela, teve a criança com seu capelão. Zalil, irmão colaço de Ambrosina, participa dos inquietantes folguedos.
Mais tarde, nela, Ambrosina, que se tornara Sra. de Maudri-bourg, o que ele amou foi a penitente que levou a seu confessionário. Pelo seu elevado cargo de confessor, pôde humilhar, aviltar a criatura má, e enquanto ela acreditava que podia seduzi-lo, como outrora, como continuava a fazer com Zalil, com todos os outros homens e até com as mulheres, era ele que a dominava.
A beleza das mulheres pervertidas que lhe rodearam a infância. A pior, pior do que a menininha, a mãe de Ambrosina, a maga soberba, alta, cintilante, que o procurava quando ele era adolescente. Fugiu para a casa dos homens consagrados. Mas também lá, até naquele asilo dos colégios, a mulher reaparecia, estendendo-lhe os braços. Belas benfeitoras, tentadas pelos encantos dos jovens.
O combate contra a carne, ele o travara vitoriosamente. Penitência, disciplina, mortificação. Seu corpo tornou-se um instrumento dócil, insensível ao frio, ao calor, à fadiga, à concupiscência, até o dia em que a miragem inesquecida despertou. Pela força de Deus, conseguiu dominar tudo: seus terrores, a carne, os seres, inclusive o mais fugidio, o mais hábil, que jamais conseguiu retê-lo em suas malhas, a filha da maga e do padre maldito... E os mesmos rostos voltam e giram, como que nascidos do inferno gelado.
Ele conhecia Ambrosina, domava-a como a uma fera selvagem. É estranho que nunca a tenha temido, conhecendo a profundidade de sua malignidade e a amplidão de seus vícios. Sempre sentiu que ambos eram criaturas de forças opostas, mas de igual intensidade. Magia branca e magia negra.
Aquela que se interpôs entre eles não. pertence a uma nem a outra. Elevou-se sozinha e luminosa, como ele a vira, saindo das águas do lago, por entre o vermelho das árvores outonais.
Teria ele pressentido que aquela magia tinha outro nome, que ultrapassava a força da magia deles... Amor? Também é uma... força mágica, então? Ele se decidira pela guerra com rigor ainda maior, pois não há nada de mais criminoso do que destruir uma ordem estabelecida, fazer surgir a entidade da dúvida...
Lançara uma mulher contra a outra. Apenas o mal pode vencer o mal. Do confronto, nenhuma delas poderia sair vitoriosa, pensava ele. Haveriam de causar-se ferimentos mortais, pois nenhuma delas era pura. Destruir-se-iam. A beleza com que mascaravam sua vileza de alma não lhes serviria para nada. Arquejantes, ofereceriam o espetáculo de sua derrota, revelariam finalmente cada uma a sua verdade, mesquinha, egoísta e cruel. Mas um vago aviso lhe comunicara que era tarde demais e que Ambrosina fora vencida. Acontecera alguma coisa que lhe destruíra os planos. Ele retornara a Quebec, para ser informado de que "eles" estavam chegando, o homem e a mulher, sempre unidos. Entrara em combate por meio de prédica e adjuração.
Foi ao penetrar na cela branca onde o Padre de Maubeuge o aguardava que soubera que, mais uma vez, sua vida seria abalada e que ele lutara em vão para escapar ao império da Noite. E o que o tortura com uma humilhação sem igual é que o clarividente Maubeuge pôs o dedo na sua fraqueza oculta.
"Você pecou contra a obra de Deus. Pecou contra a Mulher... Por espírito de orgulho e de dominação... Por espírito de vingança... Contra a Mulher..."
A Mulher... a praga inextirpável que seu pai lhe indicava. Sempre! Sempre-! Entre ele e a vida... ele e a serenidade... ele e Deus!
Reflete por um instante e se acalma. Pois talvez ainda reste uma última oportunidade de iluminar os espíritos: que Pacífico Jus-serant, seu auxiliar, que ele despachou para o sul, para esperar na margem do Penobscot um navio da França, retorne com a correspondência que ele solicitara para aniquilar de vez as pretensões territoriais de Joffrey de Peyrac. Mas não será tarde demais, caso os espíritos ofuscados se recusem a deixar-se atemorizar?
Tarde demais, em todo caso, para ele, Sebastião d'Orgeval, que avança rumo às terras dos iroqueses.
A solidão que o cerca prenuncia a solidão de sua morte e de seu martírio.
Enquanto isso, em Quebec, a mulher que ele viu alçar-se das águas, e o homem conquistador que se mantém junto dela, que a ama, que proclama isso e que, na intimidade da alcova, toma-a nos braços, desdenham-no ambos.
O ódio corre pelo sangue do viajante, fá-lo rilhar os dentes e recorda-lhe os gozos impuros que ele sentia»outrora, investindo contra os hereges com sua adaga justiceira.
"Que ela morra! Que ela morra também!"
Cristais de gelo eriçam-lhe a barba. O inverno o cobre como o fio gelado e cortante de uma espada. Daria todo o ouro do mundo para distinguir um perfume de fogo de lenha, de fumaça, que traísse uma presença humana. Mas o medo ao iroquês já o dominou. Dentro das luvas grossas, sente os próprios dedos mutilados, enfermos.
Pensa: "Duas vezes, não! Duas vezes, não!"
O medo ao iroquês o submerge, junto com o pavor do martírio. Com horror, pensa que foi por causa deia, aa mulher avistada num dia de outono, que ele perdeu a força.
"Que ela morra! Que morra!", repete consigo.
Sente-se devastado por um ódio ardente. Pois por essa falha aberta escoa-se sua força, diluem-se seus poderes.
O terror do suplício iminente o invade. A lembrança dos sofrimentos que já suportou o persegue. Horrorizado, suplica:
— Duas vezes, não! Duas vezes, não!
CAPITULO V
Entre os meninos fugidos do seminário, Angélica encontra seu confessor
Em Quebec, as solenidades religiosas sucediam-se ininterruptamente.
Na primeira terça-feira de dezembro, a missa anual dos jesuítas, instituída pela Companhia dos Cem Associados, em decorrência de um voto.
A 3 de dezembro, São Francisco Xavier, segundo padroeiro do país.
No dia 6, São Nicolau.
No sábado de Têmporas, os ofícios revestiram-se de uma sun-tuosidade particular, pois era o dia reservado às ordenações.
Durante todo o período do Advento, não se viram mais meninos canadenses pelas praças a jogar hóquei ou a patinar pelos espaços gelados ou a travar batalhas com bolas de neve.
Todos os meninos de Quebec, requisitados para o serviço do Altíssimo, passavam o tempo a pôr e tirar sotainas vermelhas, pretas ou violetas e sobrepelizes de renda, acendendo e apagando círios, enchendo e balançando incensórios, a cortar pão bento dentro de cestas, para distribuí-lo na missa.
Ensaiavam-se os cânticos de Natal.
Chamada incessantemente ao pé dos altares, nem por isso a população deixava de azafamar-se para preparar a vigília, que se seguiria às três missas caladas, na catedral, à meia-noite.
Natal era uma festa de família. Ainda assim, haveria muitos amigos e parentes a convidai".
Numa manhã pouco antesdo Natal, um padre do seminário das missões estrangeiras foi buscar o jovem sueco Abbal Neals. Os jesuítas, que sabiam que o menino fora adotado pelo Padre de Vernon, morto na Acádia, queriam recebê-lo entre os seus jovens internos.
Angélica ajudou Iolanda a dobrar numa pequena arca de couro curtido as roupas da criança e seu traje de pajem, que ele desejava levar consigo. Mas o padre o dispensou, pois aquilo não seria necessário no seminário. Todas as crianças eram devidamente vestidas e calçadas ali.
Abbal Neals deixou docilmente a casa da Rue de la Closerie, apesar dos gritos desesperados de Honorina e de Querubim, que se lhe agarraram à roupa na soleira da porta.
De sua janela, a Srta. d'Houredanne notou o pequeno drama.
Angélica beijou o menino, murmurando-lhe em inglês palavras de encorajamento. Ele parecia indiferente.
Voltou naquela mesma noite, vestindo a calça de lã e cânhamo, a camisa velha, e com a flauta de Pã embaixo do braço. Entrou e foi ocupar seu lugar no canto da lareira, como se nada tivesse acontecido.
Pouco depois chegou um seminarista esbaforido, à procura dele. Repreendeu o garoto, que concordou em acompanhá-lo.
Retorno;! na noite seguinte, mas desta vez na companhia do menino Marcelino, o sobrinho de Romano de L'Aubignière, que fora criado entre os iroqueses.
Naquela noite a escuridão já era profunda, e nevava copiosamente.
- Crianças, o que farei de vocês? - indagou Angélica, olhando-os sentados lado a lado sobre a pedra da lareira, em companhia de Timóteo, o negrinho, que no seu capote vermelho completava aquela imagem de infância errante.
Apesar da neve, que continuava caindo e novamente tornara as ruas intransitáveis, o seminário enviou um rapazinho de de-zesseis anos, chamado Emanuel-Labour. Angélica o conhecia de vista, porque toda manhã o via acompanhar os meninos do seminário atravessando a Place de la Cathédrale em direção ao mosteiro dos jesuítas. De origem normanda, era louro e tinha um rosto afável, sempre sorridente. Destinava-se ao sacerdócio e pagava os próprios estudos cuidando das crianças.
Entre os oito e os dez anos de idade, fora prisioneiro dos iroqueses. Assim, entendia a rebelião de Marcelino, criança selvagem que sofria por se ver trancada.
Encontrou seu pupilo sentado sob a cornija da lareira, com um livro sobre os joelhos, e lendo em voz alta A paixão dos mártires de Túnis: São Saturnino, Santa Perpétua e Santa Felicidade.
Não só falava e lia, como lia em latim.
- Esse malandrinho enganou todo mundo - disse Elói Macollet. - Aqueles senhores do seminário não podem com um rebento de iroquês como esse lourinho.
Nisso bateram de novo na porta, e era outro homem de neve petrificando-se em suas raquetes: Romano de L'Aubignière, forçado pelos deveres familiares e por insistência dos eclesiásticos, vinha buscar o sobrinho.
Na manhã seguinte, na esteira de três homens enérgicos que removiam a neve com pazadas vigorosas, Angélica, acompanhada de Romano de L'Aubignière, Marcelino e Abbal Neals, dirigiu-se ao mosteiro dos jesuítas, aonde tinham sido convocados.
Não retornara à austera morada desde a sua movimentada intrusão provocada pelo urso Willoagby. Voltava como amiga.
Diante do Sr. de Maubeuge, ela já não tinha prevenções.
O Sr. de Loménie-Chambord estava presente. O Padre de Maubeuge, falando do pequeno sueco, expôs o dilema. Tudo fazia crer que o Padre de Vernon, ao recolhê-lo, lhe administrara o batismo católico, mas, na dúvida, ele resolvera proceder a uma cerimónia de renovação dos ritos, durante a qual o menino ganharia um nome cristão. O Cavaleiro de Loménie se oferecia como padrinho. Caso a Sra. de Peyrac aceitasse ser madrinha, contaria com a possibilidade de velar pelo pequeno exilado e intervir nos atos importantes da vida dele. O menino já a considerava como mãe. Se deixasse de acreditar-se abandonado, concordaria com mais disposição em ser encerrado nas salas de aula e formar-se para tornar-se um piedoso servidor de Deus. O Padre de Vernon certamente lhes inspirara esse compromisso, e eles tinham a certeza de que estavam atendendo a seus desejos.
Quanto ao jovem Marcelino, como a Sra. de Peyrac anunciara que o receberia em casa de bom grado com seus filhos, ele poderia, durante o inverno, ir dormir na casa dela, como os outros alunos cujos pais moravam na cidade. Assim não teria a impressão de viver entre quatro paredes, de onde não saía nunca. No final de maio, um grande barco de vela quadrada levava todos os jovens internos do seminário para Saint-Joachim, na costa de Beaupré, onde o bispo possuía uma casa de verão, chamada Grande Ouinta, rodeada de estábulos e cavalariças onde se criavam animais.
Até o outono as crianças viveriam ao ar livre, passeando, dedicando-se a trabalhos agrícolas e também a diferentes aprendizados, entre os quais a escultura e a pintura, de que o velho Le Basseur e seus filhos se encarregavam toda semana, e também serralhem e ferraria, um pouco de marcenaria, de carpintaria. Era uma verdadeira escola de belas-artes que o bispo fundara ali, e era com a maior impaciência que os alunos aguardavam pela partida para a Grande Quinta, ao pé do cabo Tourmente.
Voltando-se para Neals e Marcelino, já que se comprovara que ambos entendiam francês, o Padre de Maubeuge lhes dirigiu uma pequena admoestação. Colocou-os a par das decisões que tomara a seu respeito, demonstrou-lhes com que cuidado se preocupavam com eles, descreveu-lhes os belos dias no cabo Tourmente, quando poderiam brincar à vontade, e pediu-lhes que enquanto isso fossem estudiosos e obedientes.
Os meninos retiraram-se com Loménie e L'Aubignière, visto que o superior dos jesuítas desejava trocar algumas palavras em particular com a Sra. de Peyrac.
Sozinha com ele, Angélica indagou consigo mesma se ele faria alusão ao passado de amizade que o ligava ao Conde de Peyrac.
Mas demonstrações desse género não compõem o caráter jesuítico, que prefere consagrar seus esforços a palavras eficazes, com vistas à salvação das almas.
- Nesta época de Natal, somos solicitados a nos aproximar com frequência da Santa Mesa - disse ele. - Deseja, senhora, que eu lhe conceda uma absolvição geral, para lhe permitir participar dos ofícios com toda a serenidade de espírito?
De início surpresa com o oferecimento, Angélica logo aceitou, agradecendo.
Ajoelhou-se e recitou o ato de contrição, enquanto o Padre de Maubeuge, depois de cobrir-se com a estola, traçava acima dela o sinal-da-cruz, absolvendo-a dos pecados passados, presentes e futuros. Is?o até o início da Quaresma, precisou ele.
Angélica sentiu-se grata ao Padre de Maubeuge por lhe permitir ficar em paz com a própria consciência sem embaraços.
Se só existissem homens como aquele, a China inteira, na sua elevada mística, teria reconhecido o Cristo e sua mensagem de tolerância e amor, de inteligência e de premonição superior.
— Meu padre - pediu-lhe ela -, o monsenhor me recomendou que encontrasse um confessor. Eu gostaria de poder dizer-Ihe que sou sua penitente.
— Informe monsenhor disso, senhora - respondeu o superior dos jesuítas com sua pequena saudação à chinesa. - Estou à sua disposição.
CAPITULO VI
A noite de Natal traz de volta um antigo amante
E o Natal chegou. Seu crepúsculo de púrpura mergulhou nas sombras azuis e geladas, enquanto, sobre o rochedo, acendiam-se luzinhas atrás de cada janela e terminava-se de pregar acima das portas galhos de abeto entrecruzados em forma de estrela.
Os vapores, brumas e fumaças que pairavam pelas ruas arrastavam consigo as promessas da noite de vigília natalina.
Dez horas da noite. As famílias se puseram a caminho da igreja, levando na ponta de um bastão ou na mão lanternas de chifre ou de ferro negro com furos, ou panelas de barro, lamparinas a óleo protegidas por uma tampa de cobre. Era mais por tradição do que para iluminar o percurso. Aquela noite de inverno canadense cintilava como uma armadura. O disco prateado da lua e a neve imaculada trocavam reflexos para criar uma luz sideral sob a qual todas as sombras dos telhados, das lucarnas, saliências de muros, ângulos de chaminés recortavam-se em linhas agudas, "cavalos-de-frisa" de um preto intenso.
Vindos da catedral, com os vitrais iluminados, os acordes dos órgãos escapavam abafados e distantes, e mais pareciam nascidos dos grandes espaços silenciosos e desejosos de unir-se aos homens em sua alegria.
Os fiéis alçavam os olhos para o céu vibrante e misterioso e imaginavam ver surgir dele os anjos luminosos entoando em sua voz seráfica: Glo-o-oo-ria in excelsis Deo...
A cidade inteira estava na rua, bem como grande parte das aldeias vizinhas ou das concessões isoladas ao longo do rio.
Em trenós, calçados de raquetes ou a pé, pelos caminhos enrijecidos, vinham grupos das paróquias distantes de Bourg-Royal, Sainte-Foy-de-Charlesbourg. Saíam das matas e chegavam pela Grande Allée, pelo caminho de Saint-Jean ou pelo de Saint-Louis.
Vinham acompanhados de músicos que traziam sanfonas, gaitas de foles, bombardas bretãs, e que começavam a tocar assim que entravam na cidade. Das paróquias da costa de Beaupré, da ponta de Levis ou da ilha de Orléans chegavam trenós seguindo as balizas do rio. Havia um serviço previsto nas igrejinhas de Château-Richer ou de Saint-Joachim, onde alguns padres iriam oficiar, mas ouvir a missa de Natal na Notre-Dame de Quebec, celebrada com toda a pompa episcopal, era uma festa de que somente as grandes tempestades poderiam desviar os fervorosos moradores da colónia do Saint-Laurent.
Nessa ocasião, os habitantes da ilha de Orléans apareciam. Habitualmente tinham pouco contato com o "continente". Diziam que eram muito insociáveis, pois não gostavam de sair da sua ilha ou mesmo de casa, vivendo em tribo familiar em suas sólidas granjas quadradas, construídas a meia encosta, ou em seus solares senhoriais, ocultos nas matas que coroavam os cumes da grande baleia rochosa, encalhada no cruzamento das águas. Sua ilha servia-lhes de reino. Tinham a reputação de ser feiticeiros. Porque se comunicavam entre si, de um canto da ilha a outro, por meio de sinais de fumaça indígenas, e porque nas noites de verão viam-se dançar na praia as luzes de fogos-fátuos. Vieram, representados sobretudo por uma Sra. Eleonora de Saint-Damien, uma fidalga que estava no quarto marido. Belíssima, com grandes olhos negros, correu o boato de que era da Aquitânia, e os gascões que ainda não a conheciam acorreram para saudá-la, entre eles o Conde de Peyrac, que lhe foi apresentado pelo Sr. de Frontenac. Havia como que uma afirmação do espírito das províncias naquela noite de Natal. Talvez porque muitas das mulheres tivessem vestido para a cerimónia seus trajes regionais, o que tinham de mais belo - vestidos, blusas, mantos, aventais, broches -, com que elas mesmas ou suas mães se tinham casado na igreja da aldeia na França e que tinham trazido para o Novo Mundo, bem dobrados numa arca. Suzana trazia aos ombros de jovem canadense nascida na terra uma capa de tecido vermelho, espessa como um escudo, que desde a Idade Média era o presente tradicional que os camponeses franceses davam à noiva e pelo qual frequentemente se arruinavam. O marido dela, emigrado da Sarthe, de onde partira como jovem celibatário, trouxera consigo, para a futura esposa, o belo traje antigo que as mulheres da família passavam ao filho mais velho há gerações.
Espontaneamente, as pessoas se agrupavam por "regiões", reconhecendo-se pelo patoá, pelo sotaque. Os aquitânios, os normandos, os bretões, a gente do Perche; os das margens da Ven-dée, do Aunis, do Saintonge, comunidades marítimas vivazes e irmãs que tinham fornecido muitos imigrantes; pequenos círculos de gente da Champagne; e também os parisienses, de natureza bem diferente, mas todos aproximados pela grande cidade de Paris, à sombra da qual tinham nascido.
Os Cavaleiros de Malta, de que havia quatro ou cinco em Que-bec, reuniam à sua volta os militares e ex-soldados, que haviam combatido no Mediterrâneo. Depois da terceira missa, iriam todos tomar café turco na tasca do Levantino.
As grandes famílias originárias dos primeiros colonizadores do Canadá, muitos dos quais ainda viviam, ocuparam seus bancos com uma autoridade patriarcal.
Foi assim que a sociedade de Quebec se dispôs naquela noite diante do altar-mor e de um grande armário' com painéis ilustrados com paisagens ingénuas, que encerrava o presépio. Anjos de cera em túnicas de cetim, com amplas perucas cacheadas, planavam na extremidade de um cordel acima do Menino Jesus no seu berço de palha, da Santa Virgem e de São José, magnificamente vestidos. Seis dias mais tarde, os Reis Magos seriam colocados ali. O burro e o boi eram esculpidos em madeira e pintados um de cinza, o outro de marrom-avermelhado, obra do marceneiro Le Basseur e do Irmão Lucas, pintor.
Dois violinos e uma flauta da Alemanha tocavam árias de minueto perto do presépio, quando se calava o acompanhamento dos órgãos e corais.
A meia-noite, a bela voz do arauto municipal elevou-se para cantar: Nasceu o menino divino, toquem oboé, ressoem gaitas..., e foi mais apreciado do que quando proclamava seus "regulamentos", empoleirado em sua barrica.
As três missas transcorreram com toda a solenidade esperada.
No entanto, em várias ocasiões viram-se os oficiantes ir aquecer os dedos no pequeno braseiro de prata, em forma de incensório, contendo duas ou três brasas e que estava pousado numa das extremidades do altar.
O frio era intenso, mas o fervor remediou isso.
Para a missa da meia-noite, a Srta. d'Houredanne se fizera conduzir de cadeirinha. A Sra. de Mercourville enviara-lhe a sua, junto com os criados. Permaneceu na cadeirinha, que foi colocada à esquerda, diante da estátua de São José. Era alvo de inveja, porque tinha ali um jarro de água fervendo e estava bem protegida do frio glacial da igreja, contra o qual lutavam em vão alguns aquecedores e as chamas dos círios acesos. A sombria igreja estava iluminada como se fosse pleno dia. A Srta. d'Houredanne não perdeu um nadinha do espetáculo, viu todo mundo. Recolhia material para o ano inteiro.
Dada a última bênção, os fiéis, gelados, moídos de cansaço e ávidos por se verem em suas casas aquecidas, diante das mesas fartas, lançaram-se em massa para a saída. Num instante, tornou-se impossível avançar pelo átrio.
Para além da balbúrdia, ouviam-se cavalos relinchar, à espera junto dos trenós na praça.
Angélica perdeu de vista seu séquito. Honorina e Querubim, levados por Iolanda e Ademar, já tinham descido os degraus diante do pórtico e deviam estar encaminhando-se para casa.
Quando o clero saiu por sua vez, depois de se desembaraçar das vestes sacerdotais nas sacristias, Angélica foi empurrada para uma porta lateral.
O bispo queria misturar-se à multidão antes de retornar ao seminário.
Apoiada ao batente da porta, Angélica "armou-se de paciência, divertindo-se em reconhecer à luz das tochas e lanternas os rostos de pessoas conhecidas, vermelhas e muito agasalhadas, que se interpelavam alegremente.
Foi então que sentiu um braço passar-lhe à volta da cintura e estreitá-la. Alguma coisa na insolência do abraço lhe foi desagradável. Levantou os olhos, pronta a castigar o insolente. E reconheceu, cravado nela, o olhar azul do Duque de Vivonne.
- Será que finalmente me concederá a graça de reconhecer-me, bela deusa do Mediterrâneo?
Ele a dominava, inclinando-se para ela com um sorriso entre sedutor e sarcástico.
Aproveitara-se do tumulto da noite, da multidão impelida pelo frio e atraída por outras distraçôes, para abordá-la, coisa que não ousara fazer abertamente até então.
Como ela se mantivesse calada, ele insistiu:
— Pois você me reconheceu, eu sei. O contrário me feriria terrivelmente.
Angélica censurou-se por ter ficado sem voz e sem reação. Os gritos e risos em torno deles encobriam as palavras murmuradas pelo duque.
— Você parece ter medo de mim - disse ele. - Está tremendo.
— Você me surpreendeu.
— Seria de emoção?
— Você é bem forte, meu caro senhor.
— E você, bem esquecida. Não tem recordações dos agradabilíssimos embates que conhecemos juntos no Mediterrâneo?
— Vagamente!
— Então seria ingrata? Recebi-a a bordo de minha galera, cedendo a seu capricho, e isso me custou bem caro junto ao rei. Sem a intervenção de Atenaís, eu não me haveria refeito desse descuido. Sua Majestade me reteve mais de uma hora em seu gabinete, dirigindo-me censuras atrozes por haver favorecido sua evasão.
— Bem feito para você.
Mas uma súbita emoção dominara Angélica. Por trás daquele belo rosto um pouco balofo mas familiar, sobre o qual deslizava o reflexo das tochas, era Versalhes, era o rei que ela acabava de ver transparecer, próximos a ponto de lhe dar a impressão de que podia tocá-los, ouvi-los, e de que, ao se virar, avistaria, em vez da pracinha assimétrica, atulhada de trenós, as aléias dos jardins reais, por onde corriam os carregadores de luzes, anunciando a chegada do rei e de seu cortejo principesco.
Teria o duque surpreendido o frémito que ela não conseguiu reter? Estreitou-a com mais força, e ela pôde constatar que o belo almirante não perdera nada de seu vigor.
A pressão da multidão os empurrava contra o pórtico, e Angélica sentia os ângulos do pilar de pedra que lhe machucavam o ombro do outro lado. Não parava de sair gente...
— Quanto me pagaria por uma informação valiosa que lhe trago da corte? Um beijo?
— Senhor, o pedido e o local são inconvenientes...
— Passo-lhe a informação assim mesmo.
Inclinou-se sobre a orelha dela, a fim de ter pretexto de quase roçar-lhe a face com os lábios.
- O rei ainda não está curado da Sra. du Plessis-Bellière...
Manteve um pequeno silêncio, durante o qual permaneceu inclinado sobre ela, como se lhe aspirasse o perfume.
Mas Angélica permaneceu impassível. Bem gostaria de que ele parasse de apertá-la com tanta força. O contato da mão dele, enluvada em couro, contra sua cintura lhe desagradava. Talvez fossem os comentários da Srta. d'Houredanne acerca do mal-napolitano que a influenciavam, mas estava com arrepios.
A multidão começava a dispersar-se, famílias e amigos se reencontravam, convidavam-se. Os trenós arrancavam.
Angélica tentou soltar-se.
- Senhor duque, tenha a gentileza de me deixar p"artir. A pressa
já é grande.
Ele se anuviou.
- Decididamente você está gelada comigo. Será que é boa po
lítica de sua parte?
Uma ameaça rosnava por trás de seu tom aborrecido.
— Eu poderia ajudá-la...
— No quê?
O Duque de La Ferté fez um gesto com o queixo na direção de Joffrey de Peyrac.
— Era esse aí que você já tentava alcançar no Mediterrâneo? Confesso que lhe reconheci a audácia ao vê-lo desembarcar aqui, de estandarte ao vento. Não teme vir atirar-se na armadilha onde são inúmeros os pretextos para prendê-lo. A menos que seu passado continue ignorado.
— Que passado?
— De pirataria! Ele disparou contra as galeras do rei. Eu poderia, ou não, dar testemunho disso diante de Sua Majestade.
— E o que exige em troca de seu amável silêncio?
— O prazer de encontrá-la às vezes em Quebec, sem que fuja de mim como de um pestilento... por motivos que me escapam... Afinal de contas, agradamos um ao outro um dia... Não posso dizer-lhe como sua suntuosa aparição no outro dia me pareceu um sinal favorável do céu... E tudo tão entediante nesta província!
— Em todo caso, você preferiu esta província à Bastilha.
— A Bastilha? - sobressaltou-se ele, arregalando os olhos. - Que ideia é essa?
— Um banimento para o Canadá às vezes vale por decreto de prisão, e seu desejo de permanecer incógnito me fez...
— Mas não quero ser importunado! - exclamou ele. - Isso não passa de um eclipse provisório - admitiu, após um instante de reflexão. - Pois bem, sim, tive alguns aborrecimentos devidos à malevolência dos invejosos. O secretário da Mão tinha ciúme de mim por causa de uma amante que lhe roubei. Ele deu parte de um mau uso do sinete real, coisa sem grande maldade na qual tive a fraqueza de me envolver. O ministro,-furioso, queria me denunciar, embora eu seja grão-almirante, e reunir os autos do processo. Melhor, então, dar-lhe algum trabalho para fazer isso, esquivando-me às suas perguntas e convocações. Hão de me procurar, e eu estarei com o grão-turco, em Argel, que sei eu? As coisas vão se arrastar. Para justificar minha ausência, consegui de Colbert que me incumbisse de uma investigação secreta no Canadá, acerca das possibilidades de colocar novamente a defesa da colónia a cargo da Marinha. Na primavera, poderei voltar.
— O ministro já estará menos furioso?
— Não, mas talvez tenha esquecido... ou esteja morto. Caiu na risada.
- Eu imaginava - disse Angélica - que você fosse suspeito de tentar envenenar o rei.
O duque mudou de cor, e os olhos lhe saltaram das órbitas.
— O que está dizendo? - perguntou, sufocado. - Está louca! Onde ouviu esses boatos?
— Senhor, está impedindo-me de respirar.
- Gostaria de impedi-la de respirar completamente.
Mas soltou-a, e ela se viu livre afinal.
— Como ousa exprimir tal suspeita... Eu, que sou dedicado ao rei... eu, cuja irmã...
— Eu só disse isso para que me soltasse - troçou ela, com ar matreiro. - Por que toda essa fúria? Haveria algo de verdade em minha brincadeira?
— Não. Mas... mas você é inconsciente!... Com palavras assim, lançadas a esmo, poderia causar-me um dano considerável.
— Não mais considerável do que aquele com que me ameaçava há pouco.
Ele a encarou, novamente sufocado. Depois se afastou, com um riso forçado mas incrédulo. Sua auto-suficiência de cortesão ainda não tivera tempo de ser abalada por aqueles primeiros meses de estada no Canadá. Continuava a sentir-se em posição demasiado elevada para recear fosse quem fosse, principalmente as mulheres, que sempre se mostravam felicíssimas por lhe atrair as boas graças.
— Você não mudou - disse, num tom que ele tencionava lisonjeiro e admirativo.
— Deveria ter mudado?
Ela o deixava paralisado. No entanto, para sua grande surpresa, quando, numa voz apesar de tudo fraquejante, rogou-lhe que tivesse a graça de concordar em revê-lo num local mais propício à conversa, e propôs o albergue do Sol Levante, no fim da rua, na manhã seguinte, ela aceitou.
Angélica alcançou os seus, que se afastavam." Levantando os olhos, contemplou a inacreditável limpidez da noite gelada.
Meninos de coro, com um capote atirado sobre as sotainas vermelhas, passavam correndo com cestos nos quais tinham recolhido os restos dos pedaços de pão bento que foram distribuídos na missa.
- Nasceu o menino divino... - continuavam a cantar os garotinhos do seminário, retornando ao grande prédio junto da catedral, em cujos refeitórios os aguardava uma ceia inusitada. Um banquete, para dizer tudo.
Atrás da grade de ferro forjado, no fundo do pátio, as grandes construções do seminário deixavam entrever o alinhamento de suas janelas iluminadas em cada andar.
As chamas das velas iam e vinham por trás das janelas do térreo, levadas pelos clérigos e pelos criados, e adivinhava-se a bela exposição de longas mesas com toalhas brancas, os pratos, escudelas e taças de estanho dispostos para cada criança e, a intervalos, no centro da toalha, grandes ramos de flores de papel, que as freiras da Santa Casa haviam confeccionado a fim de alegrar os corações.
Havia também, para a sobremesa, grandes tigelas de creme azedo, adoçado com açúcar mascavo, que as crianças adoravam. Uma grande quantidade de biscoitos e tortas de framboesa. Os frutos, recolhidos no fim do verão nos jardins do seminário, que os produziam abundantemente, eram conservados na geleira subterrânea. Ressuscitados do gelo, perfumavam a ceia de Natal.
O bispo presidiria ao banquete, feliz e sorridente, entre os senhores do capítulo.
O Sr. de Frontenac convidara os "poderosos" ao Castelo Saint-Louis, para se reconfortarem com um vinho quente, energicamente temperado com cravo e canela, acompanhado de patês, nozes, maçãs e carnes frias.
Em cada lar havia ao fogo, ou sobre a grande mesa, sua sopa, seu chouriço, seus presuntos e suas tortas de carne ou de geléia.
Angélica não pudera falar com os amigos. Tinha visto a Polaca, que lhe fazia sinais, mas que já se fora-agora. Com certeza estaria muito aborrecida no dia seguinte.
O encontro com Vivonne lhe estragara a noite de Natal. Mas logo se recobrou. Bom! Acontecera! E como estava escrito desde o começo que aquele encontro seria inevitável, era melhor que ela se felicitasse por haver cruzado o fogo do primeiro confronto. Haviam-se separado em pé de igualdade.
Os receios que tinha em relação a ele não eram os que ele supunha. A única coisa que temia era que Joffrey se aborrecesse com aquela antiga aventura, caso viesse a ficar sabendo pelas declarações que o gentil-homem fazia, embriagado. Pensando bem, era melhor ignorar esse género de preocupação. O inverno seria longo, se se ficasse o tempo todo na expectativa e apreensão de ver intrigas correndo. Sempre haveria tempo para enfrentar, para se explicar, para mentir ou rir.
O passado, aquele passado, tinha pouquíssima importância agora.
Em compensação, por trás da presença do Duque de Vivonne estavam a corte, o rei, que ganhavam vida e presença. A corte, onde se jogava o destino deles; o rei, que decidia acerca de tudo. O rei, após a revolta dela; o rei, a quem Desgrez já devia ter comunicado sua presença no Canadá.
Vivonne em Quebec não era perigoso. O exílio momentâneo lhe roera as garras. Houve um dia em que ela fizera a orgulhosa Atenaís abaixar a cabeça, vira-a rasgar o lenço com os dentes e derramar lágrimas de raiva. Não seria o irmão dela que intimidaria Angélica.
Pelo contrário. Parecia-lhe útil respirar os ares da corte por intermédio dele... Seria um modo de preparar um retorno eventual, inimaginável talvez, mas quem sabe?
CAPÍTULO VII
Entre cortesãos devassos
Antonino Boisvite ficou impressionado ao vê-la finalmente entrar em seu estabelecimento. Não gostava de saber que ela honrava quase diariamente com sua presença o Ao Navio de França, na Cidade Baixa, enquanto o Sol Levante, na Cidade Alta, na rua dela mesmo, ainda não a recebera. Angélica encontrou o Sr. de La Ferté na companhia de três outros homens, e entendeu as reticências da Srta. d'Houredanne em relação a eles. Vivonne os trouxera para pô-los face a face com ela. Compunham sua corte em Quebec, antigos companheiros de devassidão, se não de coisa pior, a quem um exílio e um perigo comuns aproximavam ainda mais, unidos entre si pelo interesse, pelo temor, por um modo de encarar a existência segundo um.código cuja chave eles conheciam.
Angélica quase se esquecera daquela espécie de gente. Sentou-se na companhia deles, pensando que se sentiria mais à vontade no acampamento dos índios. Os olhos de peixe morto do velho maquilado, os modos ao mesmo tempo cautelosos e desconfiados do Barão de Bessart, a agitação e o olhar demasiado brilhante do tal Martim d'Argenteuil pareceram-lhe pertencer a uma comédia artificial. Misturado a toda a gente da corte, aquilo devia ter um ar muito animado. Ali em Quebec, isolado, era somente inquietante.
Eles pronunciavam cumprimentos e frases ocas cuja recordação ela perdera. Mas logo reencontrou o reflexo das respostas venenosas, atiradas com um sorriso encantador.
— Espero que não tenha gravado demais o que lhe contei acerca do secretário da Mão - disse Vivonne.
— Apenas o necessário.
— Não tem importância, contanto que saiba manter sigilo e não o utilize.
- Junto a quem?
Ele não conseguia deixar de empregar a linguagem da intriga. E sob o céu do Canadá, numa cidadezinha imobilizada pelo inverno, isso tinha algo de ridículo.
- Sr. de La Ferté, somos todos prisioneiros dos gelos.
A mulher do taberneiro viera servir água fresca, tirada do poço interno. Era costume dar-se primeiro um copo de água ao hóspede, uso herdado dos índios, talvez, mas requerido pelo clima muito seco, que mantinha na língua um travo de febre.
Beber era um reconforto.
Em seguida, pediram aguardente de ameixa.
Angélica elogiou as luvas vermelhas de Mastim d'Argenteuil.
O rapaz exibiu as falanges, envaidecido, e falou de seus talentos no jogo da péla e do afeto do rei por ele. As luvas eram de pele de pássaro. O Sr. Gualberto de La Melloise lhe recomendara o esquimó do feiticeiro da Cidade Baixa,.que era hábil nessa arte.
— Mas o feiticeiro não vale nada - disse p Sr. de Saint-Edme.
— Pediu lhe venenos, como em Paris? -r indagou Angélica. Era de bom gosto exclamar:
- Mas hoje em dia já ninguém envenena ninguém em Paris!
O que se utiliza são conjurações e sortilégios.
Martim d'Argenteuil, que parecia o mais desorientado com o exílio no Canadá, reanimou-se quando viu Angélica prestar-lhe atenção.
Confessou que se entediava em Quebec. Ardia de impaciência. Tinha melancolias. Encontrara alguns jovens para jogar péla, e o Sr. de Ville-d'Avray acabava de colocar-lhes à disposição um de seu? entrepostos, onde poderiam erguer um frontão de tábuas.
- Mas sou forte demais para eles. Somente o rei era digno de ser meu parceiro...
Preferia a alquimia. Mas o que mais o obcecava era a lembrança de Maria Madalena de Brinvilliers. Assim, quando Angélica mencionou o bairro do Marais, porque era ali que ficava a sua Mansão de Beautreillis, ele indagou, febril:
— Você deve ter sido vizinha da Marquesa de Brinvilliers, então.
— Sim, de fato... Em todo caso, eis aí uma pessoa que, tenho certeza, lidava com veneno. Envenenou doentes na Santa Casa. Sei disso de fonte segura. Puseram-se os três a rir, levantando os olhos para o céu.
— Todo mundo sabe disso hoje em dia, e muito mais. Você está atrasada, minha cara! Ela acaba de ser executada. Tiveram que ler-lhe a confissão em latim, tão odiosos eram seus crimes.
— O confejssor que a acompanhou ao cadafalso disse que era uma santa -protestou o mestre da péla do rei.
Aquele processo recentíssimo agitava os espíritos. Se Angélica prestara atenção, certamente já lhe ouvira os ecos em Quebec. Pois a notícia da execução da Sra. de Brinvilliers" só chegara, em detalhes, com os navios do verão.
"O mundo é dpminado por alguns seres", dizia Ambrosina, a Diaba. "Os outros não passam de comparsas, de poeira..."
Angélica olhoujpara a janela.
Como de todas as casas da Cidade Alta, tinha-se da taberna Sol Levante uma vista admirável, que alcançava longe naquelas belas manhãs azuis e ibrancas, as cores da Virgem.
A uma mesa vizinha, três casais de certa idade conversavam com veemência e alegria. Era gente robusta, de tez viva, vestida confortavelmente, )que ria muito, de dentes à mostra. Pareciam irmãos e irmãs de famílias numerosas que se reencontram.
Um dia tinham chegado ao país com uma mão à frente e outra atrás, filhos de camponeses arruinados, de trabalhadores miseráveis, e de artesãos falidos, mas quando lhes concederam o direito de caça e pesca, velho privilégio dos nobres, transformaram-nos em senhores, e hoje eles eram senhores.
O Duque de Vívonne, que pedira a Martim d'Argenteuil que se calasse na sua evocação da Marquesa de Brinvilliers e que bebesse menos, percebeu que Angélica estava distraída, o que lhe deu um azedume desproporcional. Tornou-se agressivo, zombeteiro.
- Decididamente, quanto mais a vejo, mais entendo que Atenaís se enganou redondamente ao se preocupar com você e deinda se preocupar. Hei de informá-la assim que puder. Não vejo por que ela arriou o pavilhão diante de você, mesmo a distância, mesmo que você tenha desaparecido. Ela fazia grandes ideias acerca de sua habilidade, quando entendo que foi só a sorte que jogou em seu favor. A sorte que sorri aos inocentes... Pois na verdade é um milagre que, ingénua e simplória como você é no final das contas, ainda esteja viva hoje, mesmo no Canadá, aonde não deveria ter chegado nunca... Minha irmã é cem vezes mais forte do que você. Não pode imaginar a que ponto. Ah, ah, ah! Mandou preparar-lhe uma camisola! Ah, ah, ah! Quando penso nisso...
Ele se enfurecia de ver que ela só ouvia com um ouvido, e que prestava atenção às pessoas da mesa vizinha, que falavam de guisado de pés de porco e de pernil de alce.
- Ah, ah, ah! Teriam rido um bocado em Versalhes, descrevendo a morte ignominiosa da Sra. du Plessis-Bellière, morta das sequelas de uma doença venérea! Ah, ah, ah!... Ninguém duvidaria... porque usara uma camisola...
Angélica voltou-se para ele.
- Acha que eu ignorava isso?
Cravou os olhos verdes nos dele. Debruçando-se um pouco sobre a mesa, disse a meia voz:
— Faz alguns anos que essa camisola está entre as mãos do Sr. de La Reynie, chefe de polícia do reino. Ele mandou examiná-la: sabão preto e arsénico. Uma prova esmagadora dos métodos criminosos que se perpetuam em Versalhes. Ele sabe a que uso a camisola se destinava. A minha morte... Numa carta lacrada que lhe entreguei, informo-lhe os nomes de todos os que trabalharam nessa.obra magistral, e principalmente o nome daquela que foi a instigadora de tudo. Um nome que ele estava ardendo de curiosidade por saber e de que já desconfiava. Mas ele só devia abrir a carta na eventualidade de me acontecer alguma infelicidade ou se eu mesma, em pessoa ou por carta com minha assinatura, lhe pedisse que o fizesse.
— E... ele a abriu?
Vivonne estava pálido. Angélica teve uma hesitação imperceptível.
— Não... Ainda não.
— Querem chouriço?
Era Antonino Boisvite que intervinha. Plantado diante da mesa, apresentava um prato sobre o qual estava enrolado um magnífico cordão de chouriço negro tostadinho, acompanhado de creme de abóbora e de maçã.
O taberneiro não aprovava que se viesse sentar-se em seu santuário para acertar querelas sinistras. Principalmente na época de festas e no dia solene em que, pela primeira vez, a célebre Sra. de Peyrac, que ele, emocionado, via passar todas as manhãs pela sua casa, lhe atravessava a soleira da porta. Lamentava que ela tivesse vindo na companhia daqueles "cortesãos", com cujas maneiras ele não se habituava, e preocupava-se com ela por um colóquio que não parecia amável.
- Senhora e vocês, senhores, é Natal. Têm que provar o chouriço que eu mesmo preparei em minha adega, misturando ao sangue ervas perfumadas de-salva e tomilho, alguns grãos de pimenta moída, e pedacinhos do mais branco toucinho. Dourei-o em cebola...
Brutalmente, com as costas da mão, pouco faltou para que Vivonne lhe atirasse o prato no chão. Mas Boisvite, de braços levantados porque antevia isso, pôs-se fora de alcance em tempo.
Angélica dirigiu seu mais gracioso sorriso ao estalajadeiro.
- Como é amável, Sr. Boisvite! Seu chouriço cheira deliciosamente. Aceito um pedaço com todo o prazer.
O taberneiro se desvelou: correu a procurar seu mais belo prato de estanho e bronze e trouxe também um copo de aguardente de maçã, bebida que acompanha obrigatoriamente o chouriço negro.
Não insistiu com os "cortesãos", que evidentemente não estavam com apetite. O Sr. de La Ferté continuava pálido, e os de mais não tinham boa cara.
"Hum! Não, ela não é tão tola!", pensava o duque, inquieto. "Compreendo os receios e a raiva de Atenaís..."
A frente dele, Angélica servia-se do chouriço com um prazer evidente. A mistura de aguardente de ameixa com aguardente de maçã fazia-a encarar os acontecimentos com leveza.
- Eu mesma levei aquela camisola ao Sr. de La Reynie - explicou entre dois bocados. - Segurando-a com todas as precauções necessárias, é claro.
Perguntava a si mesma se, ao se exprimir assim, não estaria sendo imprudente. Depois, olhando para a grande paisagem imóvel, concluiu que não valia a pena ter vindo tão longe para continuar a tremer diante de fantoches, eles próprios comprometidos até o pescoço. Era melhor que soubessem que ela possuía armas contra eles. Isso talvez os levasse a não se considerarem os mais fortes, protegidos pela impunidade.
Enquanto refletia, sempre comendo com apetite, o velho Conde de Saint-Edme não despregava os olhos dela, e os cantos de sua boca pintada caíam numa careta de amargura. Começava a achar que era muito possível, de fato, que tivesse sido aquela mulher quem matara Varange. E lembrava as palavras do Velhaco Vermelho: "Não a ataquem".
Angélica, de seu lado, pensava em Versalhes. Era a única coisa, deu-se conta, que lhe seduzia o coração naquelas recordações pouco afáveis. Por entre as palavras deles, ali, rondavam o ar de Versalhes e sua beleza, como um sonho fluido, fascinante, que adquiria um brilho poético ao ser evocado de tão longe e sob aqueles céus... Não podia deixar de lembrar-se do rei, magnificamente vestido entre suas damas e detendo-se no topo da escada do tanque de Latone...
- Mas - disse de repente - poderia informar-me, Sr. de... La Ferté. Ouvi-o repetir desafiadoramente que sua cara irmã não tinha rival alguma no coração do rei. No entanto, depois que cheguei a Quebec, ouvi um nome pronunciado em várias oca
siões, e por pessoas diferentes. Que seria o nome de um novo astro ascendente no horizonte de Versalhes: a Marquesa de Maintenon. Quem é essa dama e qual é sua ligação com o rei? Poderia satisfazer-rr.e a curiosidade e dizer-me o que pensar dessas afirmações?
Vivonne recobrou as cores e caiu na gargalhada como um louco.
- Oh, que piada!
Viu-a intrigada e sentiu uma satisfação absurda por lhe haver despertado o interesse.
"A curiosidade das mulheres", pensou ele, "é um dos pontos vulneráveis da defesa delas. Uma coquete concederá muito em troca de uma pequena informação inédita, e é mais fácil seduzi-las com intrigas mundanas do que com belos discursos."
— A Marquesa de Maintenon! Oh, mas é engraçado demais!
— Por quê? Quem é ela, afinal?
— Mas você a conhece!
— É mesmo? Não me lembro.
— É uma de suas antigas amigas, de Atenaís e sua. É originária de nossa província do Poitou.
Precisou enxugar os olhos, tanto rira. Depois explicou que se tratava de Francisca d'Aubigné, comumente chamada de "viúva Scarron", uma pobre coitada. Em consideração pela antiga amizade que as unia, a Sra. de Montespan lhe confiara a educação dos bastardos que tivera com o rei, o que não fora uma sinecura para a pobre mulher, pois o nascimento daquelas crianças devia ser mantido em segredo e durante vários anos ela levara uma existência de conspiradora.
Angélica ficou boquiaberta. A viúva Scarron! A eterna pedinte, que todo dia apresentava petições ao rei, a fim de obter alguns subsídios. Aquele emprego de governanta fora um feliz achado para ela.
— E você diz que hoje ela é marquesa? Marquesa de Maintenon?
— O rei lhe fez presente da renda com o título, a terra de Maintenon, nos arredores de Versalhes. Sua Majestade quis recompensar Francisca Scarron pela sua dedicação às crianças, de" quem ele gosta muito, e pela discrição de que ela deu prova. Hoje ele acabou com as intrigas do insuportável Montespan, o marido de Ate-naís. Pôde reconhecer seus bastardos e nomeá-los príncipes reais. Mas daí a pensar que ele faria dessa viúva santarrona e carola sua amante... - Vivonne caiu na risada novamente. - Não, certamente que não! Atenaís jamais a considerará uma possível rival no coração do rei.
— Tanto melhor para Francisca. Isso lhe poupará um "caldinho das onze horas", preparado pela alva mãò de nossa cara Atenaís...
CAPITULO VIII
Vivonne e seus sequazes, dispostos a impedir Angélica
De volta a casa, o Duque de Vivonne teve uma violenta altercação com seus esbirros.
Num estado de grande excitação, começara a dizer-lhes que via naquele reencontro inesperado a maior sorte de sua vida. Se levasse a Sra. du Plessis-Bellière de volta ao rei, sua fortuna estaria feita e sua posição, inabalável para sempre.
— Você me surpreende - observou o Barão de Bessart. - Levaria ao rei uma rival de sua irmã, a Sra. de Montespan? Ela já não tem bastante a fazer para afastar as que se apresentam sozinhas, sem que seu próprio irmão se interponha? Quer a ruína dela, então?
— Você não entende nada. Trata-se de contentar um capricho do rei. Por outro lado, esta mulher, no exílio, aspira a retornar à corte, a obter-lhe o perdão. Ajudada por mim, poderá pelo menos chegar a Versalhes sem riscos. Afinal de contas, sou o almirante da frota. Uma coisa é certa: o rei me ficará agradecido.
— O rei, talvez, mas não ela - disse Saint-Edme, na sua voz áspera. - Julguei-a melhor do que você. Ela não é do tipo que sacrifica o próprio interesse à gratidão. Utilizá-lo-á e o atirará ao mar, assim que lhe tenha servido e a aborreça.
— De quem você está falando?
— Dessa Sra. de Peyrac ou du.Plessis-Bellière. Você se deixou engodar pelos olhos verdes dela e pelos seus ares inocentes.
— Claro que não! Você está imaginando coisas. É uma jovem ingénua, que fala a torto e a direito, como todas as mulheres.
— E essa história da camisola?
— É verdade. Mas a mentira é ela pretender que a entregou a La Reynie junto com uma carta... Seria pensar demais para esses cerebrozinhos. Inventou isso na hora, para me enfurecer. Se fosse esperta, não teria revelado assim as próprias baterias. Não! É só uma mulher bonita, muito ambiciosa. Gosta do amor, de adornos, homenagens, gosta de brilhar, fazer as rivais empalidecerem de inveja. É como todas as mulheres, e o rei é louco por ela. Eis o ponto importante.
Entrou um criado para colocar achas na lareira.
O Barão de Bessart dirigiu-lhe um sinal imperceptível e, depois de executar a tarefa, o homem, ao invés de retirar-se, sentou-se a um canto. O barão o empregava de vez em quando para tarefas mais baixas, dessas que sujam as mãos. TinHa um ar de carregador e uma face brutal, mas como não era tolo, Bessart não temia que ele se informasse acerca de uma situação em discussão, que um dia poderia requerer os serviços dele. As vezes tinha ideias, boas ideias até. Se precisassem ter trazido apenas um auxiliar para o Canadá, teria sido aquele.
— Ela parece ter adquirido uma fraqueza - continuava Vivon-ne: - querer reclamar justiça para seu incómodo marido. Será obtida.
— E depois, todo mundo sabe o que se deve fazer com um marido incómodo - casquinou Martim d'Argenteuil.
— Não. Este não é do tipo que se deixa surpreender facilmente. É uma raposa dos mares.
— E você o conhece bem?
- Sim, conheço! Conheço a ambos! Ele não perde por esperar!
Retomou fôlego.
- Bebida! Bebida! Que país! Quanto mais frio faz, mais sede se tem!
Sussurrou, rápido:
- Ingénua, não. Mas menos hábil do que ela pode fazer crer, com aquele topete infernal. E verdade que, se a gente vira e revira sobre as vantagens ou desvantagens que se podem usufruir do contato com ela, podemos surpreender-nos... Eu, de minha parte, devo-lhe uma desgraça régia, com aquele caso de Marselha, mas sei de outros que deveram a ela banimento e morte, mas também...
"Que o tempo tornou ainda mais venenosos e torturantes", pensou Vivonne.
- Ela pratica feitiçaria? - indagou Saint-Edme.
— Não tenho ideia - disse o duque, depois de ir e vir no aposento, como urna fera.
As testemunhas da agitação dele não tinham boa cara. Calaram-se todos. Dependiam da fortuna do duque, mas mais ainda da de Atenaís de Montespan, sua irmã. Ele só tinha poder porque era irmão da amante do rei, tio dos filhos do soberano, os bastardinhos que a Sra. de Maintenon criava, mas que o rei reconhecera, nomeando-os príncipes reais. E agora que a governanta também se fazia notar, a posição estava mais assegurada do que nunca.
- O senhor duque deve jogar inteiramente do lado de sua irmã, e somente dela. O rei não a deixará nunca. Está ligado a ela pelos sentidos, pelas recordações e pelos filhos. E depois, é muito graciosa e ele nunca se entedia com ela. É um trunfo. Somente ela pode salvar-nos. E está empenhada nisso, pois salva-se conosco. Lembre da habilidade com que ludibriou o rei sobre os motivos de sua partida. Uma pequena malversação sem gravidade. Mas ele entendeu que, para o renome dos Rochechouart, para não ser importunado com aquelas insuportáveis intrigas com que os magistrados não receiam perturbar-lhe inutilmente a tranquilidade, que um desaparecimentozinho temporário de sua pessoa seria bem-vindo... seria a melhor maneira de ajeitar este caso. O essencial é que ele soube e não se surpreendeu. O que foi que ela não disse? O que foi que não obteve? A ponto de podermos deixar o solo da França em .tempo... Quando embarcamos, os policiais vinham em nosso encalço... Não, monseigneur, não projete nada que ameace a posição dela, coisa que nada pode fazê-la perder. Está se enganando acerca do poder dessa mulher, essa Sra. de Peyrac ou du Plessis-Bellière, acerca do grave contencioso que pesa sobre ela.
Soou o toque da alvorada, e veio flutuando das alturas dó Castelo Saint-Louis até eles. O cheiro de guisado, de fritura, de ensopado de repolho, de sopa de cebola, cevada ou legumes, a que se somava o odor do milho cozido dos selvagens, era tão intenso pelas ruas r,a hora das refeições, que se infiltrava para dentro das moradas mais bem fechadas.
— Vamos comer - disse Vivonne. - Em que bodega?
— Dizem que a mesa no solar de Montigny é excelente. Você deveria fazer-se convidar pelo Sr. de Peyrac.
— O que você teme dele? Que o reconheça? Não afirmou que, embora tenham combatido no Mediterrâneo, jamais se encontraram face a face? Depois, ele já não é o Rescator.
— E eu já não sou o almirante das galeras... até segunda ordem. Mas por enquanto não sou mais nada. Nada. E eles são, talvez, até mais fortes do que eu.
— Há pouco você nos dizia que essa mulher é inofensiva.
— Não sei... Não sei mais. Você, que é adivinho - disse, dirigindo-se a Saint-Edme -, pode dizer-me quem ela é?
— O feiticeiro da Cidade Baixa diz que foi ela que matou Varange.
— Ela! - exclamou Vivonne, arregalando os olhos, que eram azulíssimos mas um pouco globulosos, o que os tornava salientes na surpresa ou na cólera. - Onde é que ele foi buscar tamanha tolice? Ela não faria mal a uma mosca!
— Não é o que você dizia há pouco... Em todo caso, ele, o Velhaco Vermelho, foi categórico, e parecia considerá-la em alta conta.
— Quem o informou?
— Deve ter lido isso nos seus alfarrábios ou no seu óleo de baleia ou numa visão telepática. Recomendou que nem se pronunciasse o nome dessa mulher.
— Ora! Você mesmo me disse que os feiticeiros canadenses não valiam nada.
— Esse seria interessante, se não fosse tão cabeçudo. É por causa dela que se recusa a falar. Assim, duque, pode ver que o halo de sombra e luz que cerca essa pessoa deve deixá-lo desconfiado. Mas certamente prefere deixar-se levar pelos olhos verdes e pelos seus ares de inocência.
Vivonne deu de ombros. Por que se fora estorvar com aquele velho tão vil? Mas ele se entendera com seu amigo, o Conde de Varange, para organizar a retirada deles para o Canadá e preparar uma existência confortável na colónia. Além disso, era preciso admitir que, graças às sessões de magia dele, podia-se aprender um bocado de segredinhos úteis.
- Está se alarmando em vão -r- disse. - A verdade está entre as duas coisas. Ela não é tão tenebrosa quanto você sugere, mas reconheço que essa mulher é cheia de surpresas. Em todo caso, tenho-a bem sob controle, pois sei muita coisa a seu respeito que poderia prejudicá-la, mesmo aqui.
- Infelizmente, parece que ela também sabe muito sobre você - replicaram eles.
Perturbado e sem conseguir irritar-se de fato, Vivonne procurava na memória os detalhes de sua breve aventura com Angélica. Ele estava em Marselha na ocasião, muito ocupado com a partida da frota real, e depois, de repente, nada mais tinha importância senão aquela mulher. Sabia que ela estava disposta a fazer qualquer coisa para embarcar e escapar ao policial que a procurava pela cidade. Ainda assim, porém, como paga pelos seus serviços, ela lhe dera noites magníficas. Ele a escondera na galera real.
D'Argenteuil, saindo de seu abatimento, pensou que afinal de contas aquilo não tinha nada de façanha, pois, agora que refletia melhor, tinha certeza de que aquele Desgrez, hoje célebre, deixara-a fugir voluntariamente.
— Em compensação - continuou o duque -, é possível que ela seja perigosa, por se relacionar demasiado com a polícia. Mas no momento ela está longe de seus amigos de Paris.
— Essa história de La Reynie seria verdadeira, então?
— Sim, receio que sim. Mas o mais importante é que ela foi amante desse Francisco Desgrez, cujo renome cresce cada vez mais.
— Desgrez! - bradou Martim d'Argenteuil. - Foi o oficial que prendeu Maria Madalena de Brinvilliers! Agiu com uma perfídia maquiavélica. Apresentou-se disfarçado de padre no convento de liège, onde ela estava escondida. Para ele, nada é sacrilégio, e fingiu-se de apaixonado. Encerrada há cinco anos entre aquelas mulheres, como poderia ela resistir-lhe, ela, cujo corpo ardia de desejo incessantemente? Ele lhe inspirou uma confissão, esmagadora para ela, e convenceu-a a fugir com ele. Assim que ela cruzou a muralha do convento, ele a prendeu... E você diz que essa mulher tem ligações com essa personagem odiosa? Talvez tenha sido ela quem a vendeu...
— Ah, pare de falar nessa história feia! É fato sabido que as mulheres se deixam apanhar porque permitem que o coração passe à frente doc seus interesses... O coração - murmurou Vivonne, pensativo.
Voltou-lhe as costas, despeitado. Atrás dele, Saint-Edme e Bes-sart trocaram um olhar. Estavam acostumados com aquela mímica com que pediam o palpite um do outro, punham-se de acordo ou exprimiam em silêncio opiniões divergentes.
Desta vez deram o mesmo sorriso de cumplicidade. O Sr. de Vivonne só faria o que lhe desse na telha, mas eles, de sua parte, não se tinham enganado acerca do perigo. Não havia nada de urgente; no entanto, seria preciso não perder tempo e pôr tudo em ação para minimizar a influência daquela mulher e impedi-la, a qualquer preço, de retornar à França para desafiar a Sra. de Montespan é talvez ganhar a partida contra ela.
O BAILE DE EPIFANIA
CAPITULO IX
A popularidade dos Condes de Peyrac - Angélica enfrenta Sabina de Castel-Morgeat
Quanto a Vivonne, enganava-se se imaginava que, porque tinham feito amor numa galera, podia permitir-se intimidades com ela. O problema com ele é que, dependendo de seu estado de sobriedade, sua disposição era mostrar-se atrevido e jactancioso ou, pelo contrário, manter uma relação aceitável e desejosa de não chamar atenção.
Nicolau de Bardagne declarava-se muito satisfeito com a mudança para a casa do grande inspetor viário. Não podia ir a parte alguma da cidade sem passar diante da casa de Ville-d'Avray, e utilizava qualquer pretexto para esperar Angélica e acompanhá-la até a cidade.
- Rogo-lhe - disse-lhe ela um dia -, não fique assim plantado de sentinela diante de minha casa. Isso me embaraça e vai provocar comentários.
-- Mas não é direito meu passear por este bairro, onde agora também moro? Além do mais, não creio que me mostre mais assíduo do que esse índio, que diariamente, várias vezes por dia, rodeia sua casa, entra sem se dar ao trabalho de anunciar-se, senta-se à sua soleira para fumar e lhe faz discursos assim que a vê. Não vejo por que você me recusaria o que concede a esse selvagem.
- Mas, justamente... Você não é um selvagem, meu pobre amigo!
Desistiu de fazê-lo dar ouvidos à razão e aquiesceu em que a acompanhasse às compras.
No alfaiate capelista da Place Royale, encontraram Elói Macollet, que experimentava um casaco de seda violeta sobre aquele longo colete florido de que ele tanto gostava.
- Prometi à Madre Bourgeoys que visitaria meu filho e minha nora no Ano-Novo - disse a Angélica.
Era virtude da parte dele, pois o velho explorador de bosques não se entendia com o casal. O filho, alegava ele, dava-lhe vergonha. Sempre fora um rapaz gordo, molenga e covarde, o que bem se podia considerar como sinal de má sorte, pois a espécie era rara no Canadá. Tinha mesmo que acontecer a Macollet ter um garoto que não ansiasse por sair pelas matas desde o momento em que aprendeu a andar, e que tivesse medo de ser escalpelado pelos iroqueses a ponto de ter pesadelos com isso. "A minha cabeça escalpelada lhe dava medo!... E agora?... Ou se é do Canadá ou não se é!..."
E verdade que Elói Macollet fora daquela geração de celibatários empedernidos, que se casaram à força, sob pena de multa, excomunhão e algumas outras sanções. Fora o tempo de desposar uma Moça do Rei, despachada junto com outras cem pelos cuidados do Sr. Colbert, fazer-lhe um filho, pois teria sido perseguido e punido, caso ela desse queixa de que o casamento não se consumara, e que ele desaparecera por vários anos para o lado dos Grandes Lagos, deixando a jovem imigrante que se virasse sozinha com um menino para criar e uma fazenda plantada no meio de dois acres de largura e vinte de fundos, na costa de Lau-zon, margem sul do Saint-Laurent, atrás da ponta de Levis. Embora retornasse uma vez ou outra, mulher e filho continuaram sendo completos estranhos para ele.
A mulher morrera um dia, não sem antes ter tido tempo de casar o filho único.
Foi então que as coisas começaram a desandar para o alegre Macollet. Depois do grave ferimento de guerra nos arredores de Montreal, de que os cuidados da Madre Bourgeoys o haviam salvado na última hora, ele teve que regressar para a casa do filho, e a nora, Sidónia, revelou-se uma harpia e lhe tornou a vida um inferno. Não sabia o que inventar para lhe perturbar a existência e impedi-lo de voltar para a mata, a ponto de conseguir que lhe tirassem a licença de comerciar, porque levara aguardente para os selvagens. Ele acabou recuperando a liberdade, mas estava fora da lei, e foi a caução de Peyrac, encontrado em Tadoussac, que lhe permitiu entrar na cidade sem riscos.
Dava prova de boa índole ao fazer esse gesto de amizade por aquele casal pouco filial.
— E depois - disse ele a Angélica -, a vizinha deles é uma viúva que me agrada bastante, e fiquei sabendo que ela não se casou de novo. Aproveitarei para levar-lhe meus bons votos.
- Não sei se isso estava incluído nas recomendações da Madre Bourgcoys - comentou ela.
Riram. Zombava-se com frequência do vigor do velho Macol-let, que tinha muito sucesso junto às damas.
Deixaram-no lá, a cuidar da elegância.
No estabelecimento da mulher a quem chamavam de Rendeira, havia muito movimento. Era dela que se compravam colarinhos, golas, punhos, adornos. O Sr. de Bardagne fez um muxoxo e criticou aquele gosto pelas rendas, não por espírito de austeridade, mas porque, dizia ele, a moda em Paris se simplificava. Aquela extravagância de rendas ao pescoço, aos punhos, à cintura, aos joelhos cheirava a burguesia de província.
As palavras do gentil-homem intimidaram os fregueses, que o ouviram com consideração. Alguns puristas, que se gabavam de viver atualizadíssimos com Paris, contiveram o apetite por rendas, não sem uma ponta de receio de parecerem mesquinhos e sem dinheiro aos olhos dos compatriotas. Os demais continuaram a comprar "rendas e pontos de Veneza" a braçadas.
Por causa da festa, mandavam-se coifas, colarinhos e rendas para passar e engomar no convento das ursulinas.
Bardagne, embora sua chegada pessoal tivesse carecido de impacto, eclipsada que foi pela do Sr. e Sra. de Peyrac, agradava às pessoas. Tinha boa presença, desembaraço e bom humor.
Ville-d'Avray recuperara a alegria. Banistère já não se manifestava. Le Basseur estava se arrastando com os autos do processo. Era a época de feriados e meios feriados, durante a qual era impossível dar parte de uma queixa, exigir um pagamento ou efe-tuar um depósito, o que estabelecia uma trégua bem-vinda aos processos de dinheiro e litígio.
Honorina e Querubim esforçavam-se por levar alguma comida ao pobre cão acorrentado sob a árvore, mas os quatro patife-zinhos de Banistère roubavam a metade.
Na noite de Natal, Angélica quisera mandar um bolo de reconciliação a seus irascíveis vizinhos, mas foi o mesmo que tentar aproximar-se de um covil de lobos. Apesar da noite santa, Banistère ameaçou que abateria qualquer pessoa que chegasse perto de sua palhoça.
Seus filhos, os monstrinhos, metidos em capotes marrons e cinzentos, continuavam a causar estragos esporadicamente, despen-cando pela Rue de la Closerie na sua caixa montada sobre rodinhas e derrubando todo mundo ao passar.
- São intratáveis; Mas há disso em todas as cidades - comentava Suzana, uma filosofia da vida citadina que ela devia ter herdado de algum antepassado parisiense.
Durante esse período, Angélica foi todos os dias à casa da Srta. d'Houredanne. A ida à catedral deixara a velha senhorita completamente esgotada. Tinha "tonteiras", dizia, e lamentava a humanidade por viver comumente em tamanha agitação. Além do mais, a criada a abandonava, passando os dias na mansarda a ler uma Bíblia em inglês que conseguira salvar no bolso, no momento em que fora capturada pelos abenakis.
Jessy era uma puritana dos arredores de Boston, em Massachu-setts, cidade a cujos limites, seis anos antes, os canadenses tinham empreendido uma incursão exterminadora. Apegava-se firmemente à sua religião herética, e a família de Montreal que a comprara aos abenakis perdera o ânimo de insistir em que se convertesse. A ponto de mandá-la de volta para os selvagens, o amo francês apiedara-se dela e tivera a ideia de despachá-la para Quebec, para a casa da Srta. d'Houredanne.
Ele sabia que a senhorita não ostentava um proselitismo exagerado. Haveria de adaptar-se sem grandes emoções a uma criada que se recusava a ser batizada como católica e à qual não precisaria pagar nada, visto que se tratava de uma cativa. Ora, todo ano eram todos tomados de profunda surpresa ao ver Jessy, a herege, também se preparar com fervor para festejar o Natal. Era dificílimo admitir que ela celebrava o nascimento do mesmo Menino Jesus, cuja efígie de cera rosada seria deitada sobre palha, no presépio da catedral. Assim, durante todo esse período messiânico, tinha-se a tendência de encarar Jessy, a inglesa, como uma seqúestradora de crianças e, pior ainda, de criança divina.
Na manhã do dia de Ano-Novo, gritou-se. "Viva o rei!" pela cidade, e todos os mosqueteiros responderam com salvas de tiros.
Era costume esposos e amigos trocarem presentes.
Angélica encontrou na alcova, na cabeceira do grande leito, um aquecedor de louça holandesa, imitação de porcelana chinesa, decorado com frutas, flores e romãs, em tons de azul e laranja. No interior colocava-se uma grossa vela chata, que, funcionando como lamparina, também aquecia bebidas como rum ou vinho, que seria bem agradável tomar a dois antes de dormir ou antes de levantar-se, nas manhãs frias. A taça com duas alças e tampa, que acompanhava o aquecedor, era de cobre trabalhado em relevo com motivos florais.
Suzana trouxe um presunto que fora defumado no vapor do xarope de bordo. Trouxe os filhos também: Palômio, João Luís, Maria Clarissa e um pequenino de nome sonoro, Henrique Augusto.
Entre o dia de Ano-Novo e a Epifania, a semana foi ocupada sobretudo com a febre que tomou conta de todos os que tinham sido convidados e compareceriam ao grande baile de Reis, que se realizaria um dia depois da festa litúrgica.
O bispo franzia o cenho.
O Conde de Peyrac e esposa foram pessoalmente ao grande seminário levar o convite ao monsenhor. A presença dele garantiria a moderação dos prazeres, afirmaram. O bispo aceitou.
A Polaca, ou melhor, a Sra. Gonfarel, estalajadeira do próspero Ao Navio de França, recusou categoricamente. Nada conseguiu demovê-la: nem a insistência de Angélica nem a visita pessoal que Joffrey de Peyrac lhe fez. O grão-senhor e a viçosa matrona entenderam-se muito bem, mas a Polaca permaneceu irredutível.
— Não é meu lugar - dizia ela.
— Seu lugar em Quebec é em toda parte, e você bem sabe disso - dizia-lhe Angélica.
Mas a antiga heroína do Pátio dos Milagres balançava a cabeça. O lugar dela era em Paris, do outro lado do Sena, com os pés descalços na lama, na velha Torre de Nesle em ruínas, onde se refugiavam os bandidos e os ratos, e não em frente, no Louvre.
Resistiu a todas as súplicas.
Um fenómeno que ninguém notou, exceto a Srta. d'Houre-danne, que estava ali para notar os imponderáveis invisíveis e outros olhos que não os seus, desenvolvia-se ingenuamente entre a sociedade de Quebec. E tanto mais patente pelo fato de o Canadá não estar nada habituado a isso, visto que sua gente era de natureza desconfiada, crítica, e pouco dada a se entusiasmar com o vizinho.
Alastrou-se como uma espécie de gosto por se fazer notar pelo Sr. Conde de Peyrac e, em escala menor, mas também com muito prazer, pela Sra. de Peyrac. Atrair um sorriso de um, uma palavra da outra bastava para encantar, como a crianças, as pessoas mais sensatas.
Entre as senhoras, havia uma rivalidade para saber qual delas poderia relatar uma troca de palavras com o Conde de Peyrac ao acaso do dia, e a menor consideração da parte dele dava azo a minuciosas discussões. Por que ele rira com a Sra. Le Bachoys e não com a Sra. de Beaumont? Por que se demorara com a Sra. de Mercourville, enquanto tratava com superficialidade a bonita Berengária Amada, que se dava a tanto trabalho para fazer-se notar? E enfim, por que visitava com um aparato de embaixador a Sra. Gonfarel, do Ao Navio de França, quando tantas mulheres distintas estavam prontas a abrir-lhe a intimidade de seus sa-lõezinhos?
A coisa adquiria proporções que faziam pensar nos momentos de tensão que reinavam em Versalhes, entre os cortesãos, quando o rei concedia um "tamborete" a uma das senhoras, que dali em diante teria a honra insigne de sentar-se entre as eleitas diante dele, enquanto outras permaneceriam em pé. Ou o famoso "para" inscrito acima da porta dos alojamentos destinados aos convidados do rei, quando a corte se instalava em Versalhes. Toda a diferença estava nesse "para". "Para o Sr. Marquês de..." punha em transe o mais entediado dos gentis-homens quando era beneficiado com o privilégio. Ser notado! Notado pelo rei! Pelo príncipe!
Os peruqueiros eram medíocres. Não havia um génio entre eles, capaz como o Sr. Binet, peruqueiro do rei, de compor para as senhoras penteados graciosos e novos. Binet era e continuaria sendo por muito tempo o único grande artista capilar. Em Que-bec, como em outros lugares, as senhoras ajudavam-se mutuamente, e sempre se achava entre elas, ou entre suas aias, uma artista de mãos hábeis que, chegado o grande dia, seria disputada por todo mundo. Delfina e Henriqueta, que tinham penteado Angélica no dia de sua entrada em Quebec, foram muito solicitadas. Restava-lhes pelo menos alguma coisa de positivo do tempo que haviam passado junto de Ambrosina. Mas a pessoa mais reputada na matéria revelou-se ser Berengária Amada Tardieu de La Vaudière. Como gostava de ser apreciada e de tornar-se indispensável, teve uma verdadeira lista de "clientes" para o baile, que, no dia fatídico, se sucederiam entre suas mãos desde o alvorecer. Quis começar por Angélica, e chegou logo pelas matinas, com ferros e aquecedores, fitas e varetas para enrolar os cachos, e todo um sortimento de pentes, escovas e grampos.
— Meu Deus, como a invejo por ser tão bela! - suspirava ela, rodopiando, retocando com um dedo hábil e inspirado, havia que reconhecer, uma mecha aqui, um frisado acolá. - Como a invejo também por ter um marido tão sedutor! Que homem magnífico!
— Fique certa de que compartilho sua opinião e fico muito contente de ouvir-lhe emiti-la. Mas, minha cara, parece-me que, no que se refere a marido, você não tem nada a invejar. O Sr. de La Vaudière é com certeza o homem mais bonito da cidade.
— Ele? - perguntou Berengária, com ar de dúvida e como se pela primeira vez se desse conta da beleza evidente de seu jovem marido. - Pois saiba que eu o trocaria de boa vontade pelo seu.
Seria ingenuidade ou esperteza da parte 'da jovem, quando se dirigia sem carruagem ao solar de Montigny, ao anoitecer, para depois ser acompanhada por Joffrey, e seria realmente o acaso que a levava todos os dias às casas que ele frequentava ou que a colocava em seu caminho, nas ruas que ele percorria? Verdade que a cidade era muito pequena, muito amontoada sobre si mesma.
Até então ela evitara a casa de Ville-d'Avray, e Angélica não a convidara.
Fora necessária aquela circunstância de festa para que elas se reunissem, e se Angélica estava satisfeita por se ver bem-penteada, não tinha a certeza de que Berengária viera sem segunda intenção. Aparentemente, era tocante a admiração que ela professava pelo casal Peyrac. Angélica, contudo, preferiria que ela fosse menos interessada e mais comedida em seus enlevos em relação ao conde.
Angélica, de sua parte, seria insensível à atenção por vezes cheia de devoção, de admiração, que se teria à sua volta e que era o clima natural a eles ambos? Pois não tinham nascido para caminhar na multidão, mas para serem olhados, seguidos.
Os neofranceses tinham o coração quente. Tratava-se de uma similitude de sentimentos que Angélica e Joffrey de Peyrac podiam compartilhar com eles. Tendo regressado de mil acasos cruéis, gostavam de agradar e de ser amados, e não desdenhavam as ocasiões que surgiam para isso.
Naquele começo de ano, poder-se-ia dizer que eles tinham amigos demais. E Angélica começava a lamentar não poder cultivá-los todos.
Se, na aparência, os inimigos se haviam desarmado, isso não queria dizer que haviam todos capitulado. A Sra. de Castel-Morgeat continuava a mostrar-se abertamente hostil. Mas era uma adversária de quem Angélica sentia pena. Ela não era amada. As canadenses de cepa censuravam-na por se imiscuir nos assuntos da colónia, de que não entendia nada, apesar de vários anos de estada ali. Havia nela uma espécie de canhestrice inata, que a fazia agir estouvadamente. Ora, o Sr. de Castel-Morgeat não era santo. Consolava-se, então, mostrando-se um dos clientes mais assíduos dos gabinetes galantes e discretos que a Sra. Gonfarel mantinha nos fundos de seu estabelecimento, um verdadeiro ca-ravançará e em cujos dédalos a polícia e os devotos teriam alguma dificuldade em ir meter o nariz. Os comentários públicos desculpavam o Sr. de Castel-Morgeat, tamanha era a reprovação que a atitude de sua esposa inspirava.
O exagero com que defendera seu confessor, o Padre d'Orge-val, a ridicularizara. Na verdade, não se lhe conhecia senão um único apego verdadeiro: o belo Ana-Francisco. E também nisso ela era infeliz. O regresso da floresta do jpvem aventureiro, que ela tanto esperara, fora acompanhado de peripécias desastrosas pelas quais o rapazola a responsabilizava. O cúmulo da amargura era que, tornando-se amigo de Florimond de Peyrac durante a viagem, agora estava hospedado com este no solar de Montigny, onde os dois valorosos exploradores, encorajados pelo Conde de Peyrac, trabalhavam em companhia do Sr. d'Urville e do geô-metra Fallières para traçar os mapas e sumários da viagem que tinham realizado juntos desde os Grandes Lagos.
Finalmente, se fosse o caso de indicar o auge de todos os ressentimentos que Sabina de Castel-Morgeat acumulara contra Angélica, poder-se-ia dizer que aquele filho adorado nutria a maior admiração, um sentimento de paixão, para falar com franqueza, pela mulher que a mãe considerava uma rival odiosa.
Angélica sorria diante daquele entusiasmo de rapazinho, e não se incomodava, contanto que as manifestações do amor que assombrava o coração e a imaginação de Ana-Francisco não ultra-passassem os limites de um solícito devotamento por servi-la sempre que tinha ocasião, e da eloquência de seu belo olhar negro ao pousar nela. Mas Angélica reconhecia que isso não melhorava as coisas entre ela e Sabina de Castel-Morgeat.
Desde o canhonaço, as senhoras da Sagrada Família vinham mantendo Sabina em quarentena. Após deliberação, não a haviam excluído de todo da santa confraria. A Sra. de Mercourvil-le informou Angélica de que lhe tinham deixado a liberdade de visitar seus "pobres envergonhados", ou seja, os pobres ou miseráveis que tendem a ser esquecidos ou que correm o risco de ser negligenciados porque nunca se queixam, seja por orgulho, seja por timidez. Assim, a Sra. de Castel-Morgeat tinha algumas pessoas e famílias a que socorria discretamente. Não ousaram proibi-la de continuar a ocupar-se deles, porque ela dava muita importância às suas boas obras - mas mais por orgulho e ostentação do que por caridade profunda. "Depois, ela é tão desajeitada e desgraciosa, que até aqueles a quem ajuda a temem...", suspirara a Sra. de Mercourville.
Angélica tinha espírito de justiça e foi levada a tomar-lhe a defesa. Em sua opinião, a Sra. de Castel-Morgeat se mostrava desagradável porque não a conheciam direito e porque era infeliz no casamento. Ninguém lhe reconhecia o devotamento real. Além do mais, Angélica não compartilhava a opinião daquelas senhoras de que Sabina era feia. Versalhes lhe ensinara a reconhecer com um golpe de vista os trunfos que uma mulher possui e de que poderia tirar partido, dada a ocasião. Pensava então que, na corte, a Sra. de Castel-Morgeat, com sua boca regular, o peito que se adivinhava escultural, apesar dos corpetes e barbatanas com que o cingia, os olhos negros ao mesmo tempo andaluzes e trágicos, teria feito mais do que chamar a atenção. Teria agradado. Mas, em Quebec, ela não estava no seu lugar, não soubera fazer-se apreciar.
No Dia de Reis, novamente os soldados, designados para fazer o pão bento, retiniram tambores e flautas para vir ao Ofertório, e, no final da missa, saíram do mesmo jeito.
A tarde houve teatro no seminário. A sessão reuniu crianças de diferentes escolas, moças e moços das confrarias.
Para encorajar as crianças e os jovens artistas, Angélica foi aplaudi-los, apesar da aproximação do baile, que se realizaria à noite, e todas as pessoas da boa sociedade fizeram o mesmo. A sala estava abarrotada. O espetáculo foi muito interessante. Um dos atores, que representava Cristo, atraiu a atenção de todos, e seu nome e dados pessoais logo passaram de boca em boca. Tratava-se de um alferes do regimento local, o filho mais novo de uma família que, empobrecida, forçara-o a abraçar a vida militar. Mas ele fizera sólidos estudos, e naquela rude vida de soldado conservava o gosto pelas boas obras. Oferecera-se para dar aulas de mecânica às crianças do seminário, em troca de aulas de teologia e filosofia para si, cursos que se podiam frequentar ali. Magro, barbudo, representava o papel de Crisjto com tanta convicção e bondade, que, quando um horrível diabo de cascos fendidos entrou em cena, os índios que se encontravam na primeira fila lançaram-se aos gritos para os braços do jovem alferes, para lhe pedir proteção. Angélica notou, com prazer, que Delfina du Rosoy contribuíra com muita diligência e habilidade para montar o espetáculo. Fazia o papel de mulher piedosa, e, ao replicar às falas do jovem alferes, usava tom tão correto e bem pausado, que foi aplaudida.
No intervalo, Angélica encontrou Henriqueta, uma das Moças do Rei, companheira de Delfina. Servia agora como dama de companhia e camareira à Sra. de Beaumont. Trocaram algumas palavras.
- Estou contente - disse Angélica - por ver que Delfina parece participar com gosto das obras da paróquia.
.- Ela recobrou coragem, depois que a senhora conversou com ela - concordou Henriqueta.
- Será que ela não se entenderia com esse jovem alferes, que parece um companheiro alegre, dedicado aos selvagens e desejoso de elevar-se, instruindo-se? Ambos me parecem combinar em gosto e idade.
Henriqueta balançou a cabeça, com ar compenetrado.
- Não... não é possível. Delfina não há de querer nunca... Ela tem um segredo.
Achando que já falara demais, considerou preferível confiar o segredo à Sra. de Peyrac, que saberia compreender. Aproximando-se dela, Henriqueta murmurou:
— Ela está apaixonada pelo governador.
— Pelo governador? - admirou-se Angélica, voltando a cabeça na direção de Frontenac. - Mas está louca...
— Por quê? Eu a entendo. Era um belo homem, e se mostrou generoso conosco, pobres náufragas.
— Mas de quem você está falando?
__ Do nosso governador, o Sr. Paturel. O de Gouldsboro. Foi por isso que ela ficou contente no outro dia. Nutre a esperança de que a senhora a leve de volta para Gouldsboro.
— Mas... é impossível! E um projeto estúpido!
— E por quê? O senhor governador é solteiro e não é tão velho assim! Ela seria uma boa mulher para ele...
Bateram palmas e as velas foram apagadas, menos as que estavam junto do palco. Os atores reentraram em cena.
"Colin!", pensava Angélica. "Nunca!"
Bem que tivera razão de desconfiar de Delfina, aquela água-parada... Colin, casado com uma jovem que lhe prepararia quitutes e o cercaria de cuidados e se enfatuaria de ser a esposa daquele governador soberbo e ousado! Inimaginável... Mas, afinal de contas, por que não? Não, isso nunca!
Não pôde ir mais longe nas suas reflexões. Por distração, no escuro, sentara-se perto da Sra. de Castel-Morgeat, e esta, ao se dar conta disso, ergueu-se muito rija e acotovelou todo mundo para fugir-lhe.
As coisas estavam nesse ponto.
Mas iam mudar. E já naquela noite mesma, sem que nada fizesse prever isso. Principalmente depois daquela explosão no teatro do seminário. Aguardava-se o pior. Pelo menos, o que ninguém esperava era ver a Sra. de Castel-Morgeat dar-se por vencida. Pois se a maioria das pessoas em causa tinha traquejo mundano suficiente para fazer boa cara na eventualidade de um encontro desagradável, todos sabiam que de Sabina de Castel-Morgeat não se podia esperar nada, pois mesmo quando estava bem-disposta trazia para o círculo mais jovial uma sensação de constrangimento que anuviava todo espírito de alegria.
Sabia-se que naquela noite ela estava mais fora de si do que nunca. Todos já se preparavam para vê-la, durante o baile, ir de grupo em grupo, lançando ao passar um comentário deprimente ou vendo na reflexão mais inocente uma alusão malévola, destinada a feri-la.
Havia apreensão entre os convidados. Tinham que aceitar a presença de Sabina, visto que morava no Castelo Saint-Louis, mas fizeram-se planos para conter suas intervenções. O alegre Ville-d'Avray e o amável Gualberto de La Melloise prometeram que "se encarregariam" dela, caso a vissem azedar-se.
- Farei com que ela beba - disse Ville-d'Avray, que gostava de desafios. - Comigo ela será toda doçura.
Mas não havia nada de menos certo.
Também ela era uma mulher da Aquitânia, uma espécie em que não se passa o cabresto com facilidade.
Eram esses, então, os prognósticos e o estado de espírito geral algumas horas antes da abertura do baile, em torno da guerrinha entre a Sra. de Peyrac e a Sra. de Castel-Morgeat.
Assim, foi com uma espécie de espanto incrédulo que, ao longo da noite, a Sra. de Peyrac e a Sra. de Castel-Morgeat seriam vistas de braços dados, com uma amizade digna mas segura, indo até sentar-se a distância e pondo-se a conversar com a seriedade própria das explicações francas. Por último, e aí o milagre tomaria proporções não só inesperadas, mas completamente inimagináveis, a Sra. de Castel-Morgeat seria vista transformando-se de súbito, a atravessar os salões dando mostras de um entusiasmo, uma disposição e um espírito desnorteantes, que, depois de causarem estupor, só contribuíram para fazer daquele baile de Epifania uma noite inesquecível. E ninguém ficaria sabendo o que acontecera.
Quem receberia os convidados à porta do Castelo Saint-Louis? A questão fora longamente debatida nos dias precedentes e havia-se proposto: o Sr. de Frontenac assistido pela Sra. de Castel-Morgeat? o Sr. de Frontenac assistido pela Sra. de Peyrac? o Sr. e a Sra. de Peyrac? ou o Sr. de Frontenac com o Sr. de Castel-Morgeat, juntos com o intendente?... Em desespero de causa, Frontenac consultou o Marquês de Ville-d'Avray para resolver essa questão de protocolo. O Sr. Gualberto de La Melloise ofendeu-se. Os dois eram rivais como conselheiros de etiqueta. Angélica ficou aliviada ao saber que, como a temporada estava animada por tratados de aliança, eles decidiram que os dois representantes da dita aliança receberiam os convidados: o Sr. de Frontenac e o Sr. de Peyrac.
Assim, todas as pessoas, ao chegarem ao castelo, seriam reconhecidas e recebidas por eles e poderiam cumprimentá-los sem precisar procurá-los na multidão. Os camareiros em seguida conduziriam os recém-chegados às mesas.
Angélica poderia desempenhar o papel de convidada naquele dia. Agradeceu ao céu por isso. Partiu para o baile, insegura quanto a haver escolhido o vestido adequado. Não quisera usar o vestido dourado, um dos três que Joffrey sugerira para a entrada em Quebec. Não ficaria bem. Era suntuoso demais. Aquele vestido seria para... caminhar na direção do rei. Um dia, talvez? No momento, estorvava como um pedaço de sol.
Estava a ponto de vestir o traje de veludo vermelho, quando lembrou que não tinha os alfinetes com cabeça de diamante que fixavam a blusa. A ausência dessas peças eliminaria a magnificência do traje. O vestido vermelho tinha um quê espanhol que não lhe assentava, sobretudo naquela noite, em que suas feições lhe pareciam tensas, os olhos, abatidos. Depois ficou sabendo que Joffrey usaria seu costume vermelho, o qual, com sua cabeleira e olhos escuros, lhe emprestava ares de Mefistófeles, e isso a fez rejeitar para si, sem apelação, um conjunto que era de um vermelho diferente, mais arrojado, o vermelho das louras. Juntos, os dois tons de encarnado prejudicariam a apresentação do casal.
Paciência! Já sem tempo a perder, decidira-se pelo vestido azul-claro, que usara no dia da chegada. Todos tinham gostado dele, e assim ela não eclipsaria ninguém, deixando às outras mulheres, desta vez, o prazer de exibirem vestuários novos. Irritou-se mais uma vez com as dificuldades de vestir-se apenas com o auxílio de Iolanda, maldisse mais uma vez o rei da França, responsável pela cicatriz que a impedia de expor às luzes um dorso que, examinado ao espelho, ela sabia exemplar e feito para atrair o olhar iluminado, quase perturbado na verdade, de seus admiradores e apaixonados. Finalmente, saiu para o baile, com a testa contraída por uma enxaqueca.
Para se animar, pensou nas pessoas que a receberiam dentro em pouco e, certamente, nos mais devotados: Loménie, Ville-d'Avray, Carlon, Frontenac... e o próprio bispo, que não ficava descontente em trocar algumas reflexões com ela.
E Joffrey estaria lá! Algum dia ela se saciaria de vê-lo, avistá-lo onde quer que estivesse, como se fosse o primeiro dia, dominando os outros mais pela irradiação de seu ser do que por sua alta estatura e elegância? Tudo isso misturado com um pouco de irritação diante do sucesso que ele fazia com as damas, que nem sempre usavam de tato para com a esposa legítima. Haveria algo nele que o fizesse parecer acessível? Sempre conservara o gosto de seduzir do grão-senhor tolosano.
Angélica espetou-se com um alfinete e pensou que seu nervosismo se devia a um mau pressentimento. Alguma coisa ia acontecer naquele baile.
O Sr. de Bardagne provocaria o Sr. de La Ferté para um duelo, ou então Berengária Amada namoricaria de modo tão desavergonhado o Conde de Peyrac, que Angélica seria obrigada a pô-la no seu lugar e passaria por velha ciumenta e rabugenta, tratando com amargura o triunfo-de uma rival mais jovem... Era inquietante...
Nisso houve um contratempo, como sempre acontece quando tudo se desarmoniza. O trenó que devia buscá-la e conduzi-la ao solar de Montigny tombara no riacho cheio de neve da Grand'Place, e ela esperou em vão, entendendo que chegaria atrasada. Enviaram-lhe uma cadeirinha e um recado. Joffrey de Peyrac seguira sozinho para o Castelo Saint-Louis com sua escolta, certo de que ela já havia ido para lá. Isso completou-lhe a irritação. Achou que as jóias não lhe caíam bem, retornou ao quarto para trocá-las diante do espelho, sempre repetindo consigo que preferiria ficar em casa. Desta vez não se enganava: era uma premonição. Alguma coisa ia acontecer. Uma daquelas catástrofes ou cataclismos naturais, comuns naquele país instável: tremor de terra, tempestade, aparição de canoas em chamas no céu. Ou tragédias provocadas: incêndio devastador na cidade, um ataque de iroqueses, bem capazes de ensanguentar-uma festa cristã, ou quem sabe um crime...
Chegou de cadeirinha aos arredores iluminados da residência do governador.
Ao atravessar o pátio de entrada, por entre as alas formadas pelos soldados, que apresentavam armas apesar do frio, ela reagiu e lembrou que em Versalhes a resistência mundana fazia parte das virtudes exigidas para se conservarem os favores do rei. Suas amantes, uma hora depois de um parto, impunham-se o dever de aparecer diante dele, com um sorriso nos lábios.
Angélica apelou às suas recordações gloriosas, ergueu os ombros sob o peso do magnífico manto de pele branca, levantou um pouco o queixo, para não dar a impressão de que esquivava aos olhares um rosto com que não estava muito satisfeita nessa noite - mas seria pior dar a impressão de ter consciência desses olhares -, e conseguiu atravessar, radiosa, as portas do grande salão.
Frontenac veio-lhe ao encontro. Os músicos sobre um estrado subiram de um tom os acordes, como que para chamar a atenção para a entrada dela.
Angélica sorria e respondia com dignidade às saudações e cumprimentos daqueles e daquelas que logo a rodearam, muito numerosos.
Não estava encontrando o Conde de Peyrac. Já havia uma multidão. As senhoras da Sagrada Família ocupavam-se em apresentar algumas das moças a oficiais e suboficiais uniformizados e também a uns três ou quatro rapazes bem postos e elegantes, apesar do bronzeado do rosto que contrastava com as perucas e os peitilhos de renda que exibiam na ocasião.
Angélica quis ir na direção delas, mas o círculo de ferro da enxaqueca que lhe contraía as têmporas pareceu estreitar-se um pouco mais, e se agravou com vertigens e náuseas. Precisou parar, pois as pernas já não lhe obedeciam. Com um sorriso fixo nos lábios, perguntava-se como enfrentaria a situação. Pensando em Versalhes, teve medo: "E se me tiverem envenenado?"
Nisso, a causa, muito simples e corriqueira, de seu mal-estar lhe foi revelada por alguns fenómenos íntimos, e ela entendeu por que estava tão irritadiça há algumas horas. Era o dia.
Angélica maldisse do fundo do coração a falta original de nossa mãe Eva, as consequências disso para as pessoas de seu sexo até o fim dos tempos, e sua própria negligência, que a fizera esquecer, em meio às ocupações e preparativos das festividades, de um lembrete sempre possível ou prematuro do pecado original. Uma catástrofe natural e desastrosa, que as mulheres estão acostumadas a suportar inúmeras vezes ao longo da existência e cujos inconvenientes elas se esforçam por dissimular com grande heroísmo.
Rodeada pela multidão e presa.de seu papel, que fazia dela a rainha da festa, e também de seu frágil vestido azul-claro, Angélica elaborou rápidos planos estratégicos que pudessem arrancá-la daquela situação espinhosa sem atrair demasiada atenção.
Depois de correr os olhos à volta, vendo somente criados e sem descobrir sequer a coifa de uma camareira a quem confiar-se, avistou a alguns passos a Sra. de Castel-Morgeat, que naquele instante lhe apareceu como a própria imagem da salvação. Como a Sra. de Castel-Morgeat morava no Castelo Saint-Louis, pensou, poderia ajudá-la discretamente.
Vendo-a esgueirar-se por entre os grupos para alcançá-la, Sabina de Castel-Morgeat virou-se e quis afastar-se, mas Angélica conseguiu chegar até ela e pousou-lhe a mão no braço.
- Senhora - sussurrou-lhe -, posso dizer-lhe duas palavras?
-Não! - fez a outra, retirando o braço com violência.
Estava indignada. Até agora, sempre conseguira evitar Angélica, e este ataque brusco a pegava de surpresa.
Tremia, pois era muito emotiva.
— Como ousa abprdar-me?
— Sabina, somente você pode socorrer-me. Estou no maior embaraço. Só vejo a você para me acudir.
A Sra. de Castel-Morgeat indignou-se ainda mais por ver Angélica tão dócil.
— Está tentando conquistar-me com sua familiaridade? Não conte com isso. Você não é minha amiga e não a autorizo a usar meu prenome.
— Não seja má, Sabina. Repito, somente você pode ajudar-me.
— Estaria você querendo fazer-me crer que carece de amigos? Dirija-se a um desses cavalheiros que estão todos apaixonados por você, ou mesmo ao bispo, pois parece que se tomou de amizade por você, apesar de sua impiedade.
Angélica pôs-se a rir, fazendo-lhe sinal para que falasse mais baixo. Teve toda a dificuldade do mundo para fazê-la entender do que se tratava e que somente uma mulher podia apiedar-se dela e oferecer-lhe socorro imediato, particularmente a Sra. de Castel-Morgeat, que estava alojada no Castelo Saint-Louis.
- Leve-me a uma de suas camareiras ou indique-me uma de suas criadas...
A interlocutora, depois de estar prestes a fazer um escândalo, acalmou-se. Corou, empalideceu e pareceu muito contrafeita ao reconhecer o próprio engano. Mais uma vez ela se encolerizara sem motivo. Mas é verdade que nunca se apelava em vão à solicitude dela, por mais desajeitada que ela fosse às vezes...
- Siga-me a meu apartamento - disse. - A festa não começou. Acabaram de servir os refrescos. Você terá tempo de se ajeitar antes de os convidados passarem à mesa.
Na escada, explicou:
- As criadas estão nas cozinhas ou em seus aposentos. De resto, são muito estúpidas. Não vale a pena chamar nenhuma delas. Porei o necessário à sua disposição.
— Obrigada... Ah, minha cara, fico realmente feliz por você morar no Castelo Saint-Louis!
— Seus canhões me demoliram a casa! - retorquiu Sabina de Castel-Morgeat, amarga.
Entretanto, abria a Angélica as portas de seu apartamento e se apressava, eficiente. Sua agressividade amainara, e a animosidade que reinava entre elas se evaporara como que por encanto. A cumplicidade de mulheres vítimas dos mesmos embaraços derrubara as barreiras.
Quando Angélica voltou para junto dela um pouco mais tarde, no salão do apartamento, Sabina de Castel-Morgeat perdera a expressão lúgubre e exibia até um vago sorriso, que lhe suavizava a bela boca, maquilada com discrição naquela noite.
— Você fez de propósito! - disse.
— Sabina, você sabe muito bem que este é o tipo de coisa que não se pode introduzir com certeza num plano de reconciliação....
— Sim, mas o acaso está sempre a seu favor. O menor incidente reverte em seu proveito. Eis-me desarmada...
Angélica foi espontaneamente na direção dela, de mãos estendidas.
- Sabina, não podemos ser amigas?
Sabina de Castel-Morgeat deu de ombros, com um sorriso triste e resignado. Mas deixou que Angélica lhe segurasse as mãos, e as duas se olharam com franqueza.
- Nunca tive antipatia por você, apesar do que fez contra nós à nossa chegada.
A mulher do governador militar corou.
— Eu estava louca, odiava-a... Mas eu... não acreditava que o canhão fosse disparar... Mais uma canhestrice de minha parte...
— Felizmente não foi completa - não pôde deixar de dizer Angélica. - Mas por que me odeia tanto, afinal? Dir-se-ia que seu ódio se dirige muito mais a minha pessoa do que ao fato de que representamos possíveis rivais disputando os territórios do Novo Mundo ou, conforme se receava antes de virmos para cá, que fôssemos cúmplices dos ingleses para prejudicar a Nova França.
— É a você que detesto, de fato - disse Sabina de Castel-Morgeat, desviando os olhos.
Mas agarrava-se às mãos de Angélica como se enfrentasse um doloroso conflito interior.
— Por quê? O que foi que lhe fiz?
— Você sempre teve tudo... Tudo o que eu não tive. Você agrada, inspira o amor... enquanto eu, assim que apareço, noto que alguma coisa não corre bem. As pessoas se calam. Os homens se desviam. A Sra. de Mercourville me diz isso com frequência. Oh, com boa intenção, a boa criatura, recomendando-me que faça um esforço... Mas um esforço em que direção? Sou feia...
— Qual nada! Que tolice!
— Sei o que estou dizendo... Fizeram-me entender isso o suficiente.
Arrancou as mãos das de Angélica e pôs-se a andar de um lado para outro, com agitação. Tocava a testa e gesticulava, com um ar desnorteado.
— Não! Há coisas demais nos separando, Angélica! Não posso esquecer... você me arruinou a vida!
— Eu? A esse ponto! Sabina, você dramatiza tudo.
— Você me tomou o homem de minha vida - gritou a outra.
Angélica ficou boquiaberta, de olhos arregalados. Que pena! A imaginação atormentada de Sabina de Castel-Morgeat recomeçava a divagar. Estaria referindo-se ao Padre d'Orgeval?
— O homem de sua vida, Sabina? Qual?
— Sim, com efeito! - bradou a Sra. de. Castel-Morgeat, recobrando o riso sarcástico. - Existiria um homem para me amar? E eu me esquecia de que você tem por onde escolher! Qual dentre todos aqueles que, hoje, lhe fazem a corte poderia, antes, ter-me dedicado algum sentimento que, naturalmente, desapareceu assim que você chegou?
Ela se aprumava, vibrando de um misto de indignação e de sofrimento que lhe fazia brilhar os olhos negros como azeviche. Fez um gesto autoritário na direção da porta que abria para a galeria daquele andar e para a grande escada de pedra.
- Desçamos! Vou mostrá-/o a você!
No vestido preto, cuja cauda lhe prolongava a linha do corpe-te rijo de barbatanas, ela parecia uma rainha de tragédia.
- Sabina, você é bela! - exclamou Angélica. - Se se visse neste
momento no espelho, ficaria convencida.
A Sra. de Castel-Morgeat estremeceu como se um raio a houvesse atingido, e cravou-lhe os olhos de pupilas dilatadas.
— E é você que me diz isso... Você, minha rival. Ah, é demais!
Arqueou-se como se tivesse levado um golpe demasiado rude. Mas recompôs-se. O clarão em seus olhos lembrava o que brilha nos dos guerreiros que marcham para um combate desejado há longo tempo.
- Vamos! - repetiu.
Angélica a seguiu, intrigadíssima. O alarido que subia do vestíbulo e dos salões trazia-lhe o eco daquelas inúmeras vozes masculinas que se cumprimentavam e se interpelavam cordialmente.
"Qual desses homens eu lhe terei roubado, afinal?", indagava-se. "Seja quem for, hei de poder tranquilizá-la bem depressa. O marido dela? Claro que não. Frontenac? É bastante sedutor, não nego, mas mostra-se cortês com todas as senhoras, e pouca coisa mais comigo do que com as outras... O intendente? Não é muito agradável, mas é preciso admitir que tem o seu encanto quando a gente o conhece melhor, e ele faz o seu sucesso. A Srta. d'Houredanne é louca por ele e a Sra. d'Aubrun bebe-lhe cada palavra como um elixir."
Pararam à porta dos grandes salões, completamente indiferentes ao interesse que suscitaram por surgirem assim lado a lado.
- Pois bem, Sabina - disse Angélica -, mostre-o!
A outra hesitava.
- Sabina, você falou demais! Agora, continue... O que significa essa acusação? Eu, arruinar-lhe a vida? Como eu teria podido fazer isso?
Sabina empalidecia. Sentia-se que estava a ponto de revelar um segredo terrível que nunca lhe atravessara os lábios.
— Você o tomou de mim - gemeu.
— Mas quem?
— Ele!
Pronunciou esta palavra com paixão e dor.
- Ele - repetiu, estendendo o braço.
Angélica seguiu a direção daquele braço e só avistou Joffrey de Peyrac, seu marido, que replicava a Frontenac, no centro de uma roda de homens e mulheres já bem alegres.
Voltou-se para Sabina de Castel-Morgeat, com um olhar de incompreensão. Esta, então, pareceu decidir-se.
- Sou a sobrinha de Carmencita... - declarou, como se isso explicasse tudo.
CAPITULO X
A sobrinha de Carmenclta no baile de Reis
Depois de declarar "Sou a sobrinha de Carmencita", Sabina de Castel-Morgeat esperou, muda e imóvel como uma estátua de sal. Angélica a teria imaginado louca declarada, se aquele nome, Carmencita, não lhe tivesse lembrado alguma coisa. Por trás do nome estava a chave do enigma.
— Você não se lembra? - insistiu Sabina de Castel-Morgeat. - Ora, faça um esforço. Carmencita de Mordores, que era então a amante do homem com quem você' iria casar em Toulouse.
— Toulouse! - repetiu Angélica. - Remonta a tanto tempo assim, então...
— Não para mim... Foi há pouco, foi ontem. É por isso que sua presença me é intolerável. Sofri demais naquek época.
— Vamos nos sentar - disse Angélica -, e explique-se.
Atravessaram os salões, cumprimentando e sorrindo maquinalmente à medida que iam abrindo caminho, mas ninguém sequer sonhou em detê-las, tamanha era a estupefação de as verem juntas.
Acharam um canto discreto num salãozinho contíguo, onde já havia alguns casais que trocavam confidências ao mesmo tempo que vigiavam pela porta escancarada a chegada dos convidados e a ordem das cerimónias, a "fim de não perderem o sinal para seguirem para a sala de banquete.
— Fale agora - disse Angélica. - Se compreendo bem, você estava em Toulouse quando fui conduzida até lá a fim de desposar o Sr. de Peyrac.
— Sim. Eu tinha vinte anos. Minha tia, Carmencita de Mordores, levara-me como acompanhante. Eu deixava pela primeira vez meu velho castelo bearnês. Minha família é de origem catara, portanto, até então, eu vivera de modo austero. E de repente, ao chegar ao Palácio da Gaia Ciência, em Toulouse, descobri todas as belezas e prazeres do mundo, um luxo inimaginável, os encantos do espírito, da poesia, a rica cultura intelectual de meu país, uma permissividade amorosa que aquelas manifestações adornavam com uma espécie de virtude, e de honrar a criatura humana e responder aos votos de seu Criador, que a quis feliz. Como não ficar fascinada? E principalmente por aquele que ordenava essa festa perpétua: Joffrey de Peyrac de Morens dlrristru, o grão-senhor que reinava sobre Toulouse. Já possuía a estatura que apresenta hoje, mas mais mefistofélica, um pouco assustadora. Acentuava esse lado provocante, porque nascera para ser o primeiro homem de sua província e todo mundo sentia isso. Minha tia, Carmencita, estava louca por ele. Tinha trinta anos e sempre levara uma vida dissoluta. Era por isso que me tratava com condescendência. É preciso reconhecer que ela era inteligente e culta. No entanto, acho que ele logo se cansou dela, que por duas vezes fugiu para a Espanha e voltou. Eu, enquanto isso, conseguia permanecer em Toulouse.
— Agora me lembro dela, Carmencita, aquela louca que, disfarçada de freira histérica, depôs mais tarde durante o processo de Joffrey, acusando-o de havê-la enfeitiçado.
— Para vingar-se dele e de seus desdéns. Compreende agora por que sinto tanto rancor por você.
— Tomou a tal ponto as dores de sua tia?
— Não, mas eu também estava envolvkla. Também estava apaixonada por ele... - disse Sabina, veemente.
Deu de ombros e soltou um profundo suspiro.
- Quem não estava? Como poderia eu não me apaixonar loucamente por ele - prosseguiu Sabina de Castel-Morgeat -, eu, uma jovem de vinte anos, que nunca sonhara e que descobria pela primeira vez o sentimento do amor? Em Toulouse, minha tia me falava dele o tempo todo... Ele falava de amor nas reuniões. Cantava segundo a tradição dos trovadores. Chamavam-no de Mago...
A Sra. de Castel-Morgeat falava como num sonho, transportada àqueles dias antigos de felicidade, cuja recordação lhe alimentara os devaneios da existência melancólica.
Angélica não se sentia em condições de interrompê-la. A cabeça recomeçava a doer-lhe, e ela encontrava dificuldade em juntar três pensamentos coerentes.
— Que trovoada num céu tão azul - continuou a interlocutora -, quando se soube que o Mago, que perdia a conta de seus sucessos femininos, resolvera casar-se. Ele! Ele! Ele, que não temia anunciar que pertencia a todas e que todas lhe pertenciam. De início falou-se de uma aliança com uma família de alta estirpe e de uma moça muito jovem, e convenci-,me de que se tratava de mim, pois eu sabia que ele me notara e me considerava com interesse. Eu me calava diante de minha tia, que, você bem adivinha, estava numa inquietação mortal. Ele não se preocupara em fornecer-lhe as razões para seu gesto. Ela receava ver o fim do próprio reinado. De minha parte, vivi alguns dias de esperança louca. Depois o cutelo caiu. Foi a certeza de que se tratava de uma estrangeira. Vinha do Poitou. Ele sequer a escolhera entre as jovens de sua própria província... E fomos em cortejo ao seu encontro...
Angélica olhava Kuassi-Ba em pé à sua frente, com o turbante de penacho e o traje oriental. Apresentava-lhe uma xícara de café numa bandeja de prata.
A sua vista perturbada, ele era o mesmo grande escravo que ela vira peb. primeira vez em Toulouse e que as palavras de Sabina acabavam de evocar.
- Pode sorrir - observou Sabina, amarga. - Quantos corações perderam toda esperança ao verem-na... De minha parte, compreendi imediatamente que ele ia apaixonar-se por você. Você era tão bonita!... Tão bonita! E, de fato, tudo mudou depois de sua chegada... Eu assistia às cóleras impotentes de minha tia destituída. Estava louca de raiva... Se ela perdera as suas chances, o que podia esperar eu, então?... Que ele se casasse com você, não era nada. Mas logo se tornou claro aos olhos de todos que ele começara a amá-la...
Abaixou a cabeça, com ar abatido.
Kuassi-Ba voltara para junto delas com um pequeno tripé de pau-ferro chinês, sobre o qual tornou a colocar a bandeja e a cafeteira de Damasco, desta vez acompanhadas de uma segunda xícara, para a Sra. de Castel-Morgeat. Esta, porém, recusou.
- Não?! Isso me traria de volta recordações demasiado cruéis e deliciosas!
Angélica, sem hesitar, tomou sua segunda xícara de café e sentiu que renascia. Kuassi-Ba preparara a bebida do modo como gostava, adoçara bem e juntara uns graõs de coentro.
— Kuassi-Ba, obrigada, meu amigo! Você me ressuscitou.
— O patrão estava preocupado - disse o criado. - Mandou trazer-lhe café.
Levantando os olhos, Angélica avistou de longe Joffrey de Pey-rac, que olhava em sua direção. Em seu traje vermelho-escuro com reflexos esbraseados, que brilhava a cada um de seus movimentos, ele parecia alto, talvez menos mefistofélico, como dissera Sabina de Castel-Morgeat, mas sempre atraente e um pouco inquietante, mesmo se procurava provocar menos do que antigamente, forçado a usar de mais astúcia e prudência. "Ele não mudou..."
— Ele não mudou - murmurou em eco a voz de Sabina de Castel-Morgeat. - Continua o mesmo, sobretudo quando se trata de reter uma mulher, de seduzi-la... E essa mulher é você. De você, nada lhe escapa, ele adivinha tudo... Veja... Estávamos conversando... Mas de longe ele notou que você estava emocionada, talvez indisposta... E enviou Kuassi-Ba com o café. Aonde quer que vá, se você estiver presente, ele a olha o tempo todo... E o que ele demonstra nos olhos quando a fita me trespassa o coração. Depois de tantos anos! Eu esperava, pelo menos, que o tempo me vingasse... Mas não aconteceu nada... Sempre você teve sorte.
— Sorte é coisa relativa.
A porta do passado fechou-se com um sonido surdo e as duas se viram de regresso ao Canadá.
- Você se deu a conhecer a ele? - indagou Angélica, porque
Joffrey não lhe dissera nada.
A Sra. de Castel-Morgeat deu uma risada que pareceu um rincho desencantado.
— Isso, nunca... Eu não disse nada, e ele não podia reconhecer-me. Que ele me notou outrora, é certo. Eu era alta e bela. Mas agora estou velha e acabada. Enquanto ele permanece o mesmo: magnífico. E você também. Sua entrada em Quebec valeu bem a entrada em Toulouse.
— Só que, como você, também nós temos uns vinte anos a mais.
— Não você! Você é uma criatura de vida e felicidade. Enquanto eu me tornei esta mulher sem sedução...
— Ah, não recomece, Sabina, por favor!
Nesse momento o Duque de Vivonne, saindo dentre a multidão, dirigiu-se para elas. Era demais.
— Sabe o que você vai fazer, Sabina? - disse ela, voltando-se para a Sra. de Castel-Morgeat, com uma súbita inspiração. - Terá a ocasião, nesta noite, de vingar-se de mim, de me afastar, de me apagar, de me pôr na sombra, a ponto de me esquecerem e só verem a você... Não serei brilhante esta noite. Você conhece os motivos de minha falta de ânimo, e não são as revelações que acaba de fazer-me que contribuirão para me reanimar. Assim, aproveite a ocasião e ao mesmo tempo preste-me um favor. Livre-me desse Duque de La Ferté, que é obcecado por mim. Tenho meus motivos para não gostar dele. Afaste-o. Retenha-lhe a atenção. Uma mulher hábil deve conseguir isso... Quem sabe? Ao descobri-la como uma autêntica mulher da Aquitânia, meu marido talvez a reconheça.
— Você é espantosa! - exclamou Sabina.
Mas fora desafiada, e levantou-se, persuadida, enquanto um leve rosado lhe subia às faces. Lançou um último olhar indeciso a Angélica.
- Surpreenda-o! - exclamou esta. - Surpreenda a todos!
A Sra. de Castel-Morgeat caminhou ao encontro do Sr. de La Ferté e do Conde de Saint-Edme com audácia. Num instante, conduziu-os às mesas de refrescos e comidas e eles não puderam resistir-lhe à solicitude, sob pena de se mostrarem grosseiros.
Angélica suspirou de alívio.
Bardagne veio sentar-se a seu lado. Quase todo mundo já chegara e começavam a espantar-se de não a verem nos salões.
— O tratado que acabo de firmar com a Sra. de Castel-Morgeat merecia um eclipse - explicou ela. - Os homens estão acostumados a levar mais tempo nesse género de trabalho e com menos resultados. Nós, mulheres, temos nossos métodos. A vida é divertida, não acha?
— O que tem ela de divertido?
— Pois bem! Estou aqui, você está aqui! O passado e o presente se misturam.
Levantou-se, pousou a mão no pulso que ele lhe estendia, e retornaram ambos aos salões. Bardagne já não lamentava estar em Quebec. O mundo, sua vida, paravam ali.
A súbita exuberância da Sra. de Castel-Morgeat dera novo ímpeto ao entusiasmo geral. E dos mais jovens aos mais velhos, todo mundo falava, apresentava-se, soltava exclamações, e começou-se a dançar.
A viúva de belo rosto a quem chamavam Rendeira e que o Barão de Vauvenart cortejava fora juntar-se a algumas senhoras que, como ela, pertenciam às primeiras famílias da colónia. As que haviam compartilhado entre si o primeiro pão do primeiro trigo. Aquelas grandes famílias, na maioria muito ricas atualmen-te, compunham uma aristocracia que não se misturava com as novas levas de imigrantes.
Vauvenart, apertado num traje de veludo ameixa, com o manto de gola sobre o ombro e espada na cintura, pôde fazer-lhe uma corte solícita. Ele rebentava de satisfação.
No decorrer da festa, depois que ambos já tinham bebido muito, o Marquês de Ville-d'Avray disse a Vauvenart, com um muxoxo:
- A Rendeira! Você poderia ter escolhido melhor.
O senhor acadiano por pouco não teve um ataque.
— O que está dizendo? - balbuciou. - Essa mulher é admirável!
— Mas é mãe de Nicolau Carbonnel, o notário. Você não sabia?
De fato, foi surpresa para muitos. Não se imaginava que o escrivão do Conselho Soberano tivesse mãe, sobretudo uma mãe que fazia renda.
Mas Carbonnel também estava presente, com a mulher - pois também tinha esposa -, e fora de suas funções revelava-se muito loquaz, contando boas histórias. Pelo final da noite, haviam já esquecido que ele era o escrivão rabugento que distribuía multas.
Depois da Rendeira, chegara a Sra. Le Bachoys.
A Polaca dizia que a Sra. Le Bachoys era "esquisita". Mas ficava nisso, pois a Sra. Le Bachoys possuía o talento de inspirar estima e mesmo uma indulgente afeição em todos. Chamavam-na de "consolo dos aflitos" ou "albergue acolhedor".
As brincadeiras não iam além disso.
Ela se vestia ignorando todo o bom senso. Dizia que, em questões galantes, a roupa foi feita para ser tirada, por isso não via por que dar-lhe tanta importância.
Mandava reformar os trajes que lhe traziam da França. Era como se precisasse de qualquer maneira assemelhar-se o máximo possível aos adornos em moda no reinado de Henrique IV, que sua avó, que a criara, a fazia usar na juventude e com os quais declarava sentir-se muitíssimo bem. Como desde os dezesseis anos de idade tivesse um sem-número de pretendentes, não via necessidade alguma de abandonar uma moda com que se dera tão bem.
Foi ao baile de Epifania com o leque de peru selvagem de que nunca se separava, usando um folho redondo e pregueado sobre um vestido roxo -que mandara enfeitar com passamanarias.
Isso ainda não era nada. A cor até que lhe teria caído bem, se ela não tivesse coberto o rosto rechonchudo com uma generosa pintura.
No meio de todo aquele carmim, os belos olhos azuis, ternos e risonhos, tinham como que uma gentileza ainda maior, e o conjunto dava vontade de atirar-se-lhe ao pescoço e beijá-la com ternura.
A Sra. de Mercourville tentou, em vão, atraí-la para um canto e aconselhar-lhe que suavizasse um pouco a pintura do rosto com um lenço.
Não teve tempo, pois a Sra. Le Bachoys foi imediatamente tirada para dançar. Dançava admiravelmente.
As moças de Quebec escarneceram, mas logo mudaram de tom ao ver-lhe o sucesso.
Apesar dos esforços dignos de elogio da Sra. de Castel-Morgeat, Angélica não conseguiu evitar a abordagem do Duque de Vivonne. Encontrá-la era o objetivo confesso da presença dele no baile. Por polidez, ela aceitou mordiscar uma guloseima e bebericar um copo de champanha na companhia dele, que já não parecia lembrar-se das palavras pouco afáveis que haviam trocado no dia seguinte ao Natal. Isso estava bem de acordo com as maneiras da corte, onde num dia se nutre ódio mortal por alguém e no dia seguinte trocam-se mil afagos com a mesma pessoa.
Ele soube retê-la com habilidade.
— Não podia falar na frente de meus companheiros, mas quero que você saiba... Nunca consegui esquecê-la,
— Eu, sim!
Ele não se desencorajava. Gpstava quando ela assumia aquele ar altivo. O desdém assenta às belas mulheres.
Ela o olhava de cima.
Retirados do brilhante viveiro de pássaros debatendo-se em torno do Rei Sol, aqueles cortesãos desvendavam a falsidade dos seus ouropéis, privados do clarão que emanava do rei e os fazia cintilar. Exalava das dobras de seus mantos perfumados de almíscar ou violeta o ranço de escândalos sórdidos, de intrigas mesquinhas.
- Não o entendo, Sr. de Vivonne. Você reconheceu que, para sua irmã, rever-me seria um desprazer enorme.
— Felizmente minha irmã tem seus trunfos.
— Eu sei.
— Você sabe coisas demais. Atenaís dizia que você tinha ligações com a polícia e com tipos perigosos.
— Ela também.
— Não com a polícia.
— Reconheça, então, que estou duplamente armada. Meu marido também, ainda que de outra maneira. Você lembrava no outro dia que ele disparou contra as galeras do rei. Mas isso é passado. Também a Sra. de Montespan um dia atirou no rei, seu primo, e hoje é uma princesa diante de quem as pessoas fazem profundas reverências. Ninguém pode prever as mudanças de opinião do rei. Em suma, o que você quer de mim?
— Que não seja demasiado cruel comigo - disse o duque, que se sentia desconjuntado como um polichinelo de madeira. - Encontremo-nos de vez em quando. Eu lhe falarei de todas as novidades da corte.
Mas ela se afastou com uma expressão que não significava nem sim nem não.
Desde que falara com ela na saída da igreja, ele oscilava em seu julgamento. Era mesmo ela, com todas as suas promessas flamejantes. Depois, já não era ela...
Ora dizia consigo que seria fácil reconquistá-la, ora que não valia a pena, ora ainda que estava louco varrido.
O banquete foi servido em três longas mesas. A mesa dos "poderosos", os senhores comiam em grande aparato, de chapéu na cabeça, manto ao ombro e espada à cintura.
Foi a sra. Le Bachoys que ganhou a fava. O rei foi Florimond de Peyrac.
- Tudo isso foi combinado de propósito - cochichou Beren-
gária Amada, amuada por não ter sido contemplada pela sorte.
Observaram-lhe que, sendo a Sra. Le Bachoys canadense, de idade madura, de condição burguesa, não havia motivo algum para que não se lhe concedesse espontaneamente aquela efémera soberania.
Uma escolha dirigida, que pretendesse lisonjear, antes teria designado a Sra. de Peyrac como a rainha da noite e o Sr. de Fron-tenac como rei.
No entanto, ao escolher Florimond de Peyrac, a sorte não carecera de tato. Os presentes ficaram contentes de ver coroado o filho dos hóspedes estrangeiros, que tinham organizado tantas celebrações na capital.
De resto, Florimond estava perfeito em seu papel. Nunca se viu casal de Epifania mais díspar e mais harmonioso. Florimond e a Sra. Le Bachoys dançaram com entusiasmo uma pavana, um minueto, e depois arrastaram todos os convidados para uma louca sarabanda.
Pelo final do banquete, Florimond desapareceu. De passagem, deixou a coroa com um lacaio, e saiu para orientar os artilheiros que iam acender os fogos de artifício.
Ele mesmo presidira a disposição dos fogos.
Todos os convidados passaram para o terraço do Castelo Saint-Louis, que dava para o rio.
A beleza iluminada da paisagem, o deleite dos espectadores, o desenho dos telhados e das chaminés em diferentes alturas, a suavidade da lua, o brilho da neve pousando seu escudo gelado sobre os montes longínquos e o vasto desenrolar da clara planície do Saint-Laurent compunham uma noite inesquecível.
Mais adiante, abaixo do forte, via-se correr como sombra escura contra o gotejar de fontes de prata ou púrpura, contra a profusão de fachos amarelos, verdes ou vermelhos, a longa silhueta de Florimond, que tanto se assemelhava à do pai.
Angélica evocou os prazeres de Versalhes e as inúmeras ocasiões em que o Sr. de Saint-Aignan, encarregado de organizar as festas reais no parque, requisitara os serviços do pequeno pajem.
Para que Quebec participasse do cenário da festa, ordenara-se aos habitantes que acendessem uma candeia atrás de cada janela. Dos pobres só se exigiu uma vela ou lâmpada a óleo.
Foi como se a cidade tivesse belos olhos claros e brilhantes por trás dos vidros, avermelhados ou amarelo-mel quando a vela dos pobres irradiava através dos quadrados de papel oleado ou de pele de cabrito.
Natal Tardieu de La Vaudière mordia os lábios e se agitava. Com aquela profusão de foguetes e chamas, velas e lâmpadas a óleo, estava tudo perfeito para um incêndio, predizia ele.
- É uma pena ver um rapaz tão belo preocupar-se tanto com tolices - dissa a Sra. Le Bachoys. - Ele desperdiça a própria primavera. Não faria melhor em divertir-se como todo mundo numa noite como esta e aproveitar para namorar alguma solitária... ou no mínimo para vigiar a mulher, que parece levar a vida de modo mais ligeiro?
Cada vez que Angélica olhava na direção de Joffrey de Peyrac, tinha certeza de que veria voltear por perto a graciosa Berengá-ria Amada, e começava a indagar-se se o que tomara por coque-teria de moça, "desejosa de experimentar suas armas sobre um renomado sedutor, não .ocultaria um sentimento mais profundo, que a cortesia amável de Joffrey teria encorajado. Não se podia esquecer que Berengária tinha encanto, espírito e era gascona. Esta lembrança foi fugidia, mas desagradável. Nesse-instante sentiu o braço de Joffrey, que lhe rodeava a cintura, e sua voz, que lhe chegava por entre as explosões dos fogos de artifício, perguntando-lhe se estava satisfeita com a recepção. Foi imediatamente transportada para aquele paraíso de segurança e felicidade que a simples presença dele lhe criava ao redor. As dificuldades esvaneceram-se. Restava somente a certeza da cumplicidade de ambos, que parecia intensificar-se pelo fato de ser mais secreta e menos expressa.
Angélica adiou para mais tarde as perguntas que gostaria de fazer-lhe. Tinha ele reconhecido na Sra. de Castel-Morgeat a sobrinha de Carmencita, sua antiga amante vulcânica? Estava inclinada a crer que não. Mas em outros momentos a dúvida a aguilhoava. Depois, esquecia. A festa estava um sucesso.
Vivonne ainda rondava por ali. Os irónicos olhos azuis pousavam nela com insistência. E nunca Angélica estivera mais longe de se deixar seduzir por ele do que naquela noite do baile de Reis.
Depois do espetáculo de fogos de artifício, as pessoas, mais ou menos transidas de frio, retornaram aos salões, onde se serviu um último vinho queimando de quente.
CAPITULO XI
O amor de Joffrey de Peyrac
-Você se lembra da sobrinha de Carmencita?
Angélica não conseguira conter-se e fizera a pergunta, embora tivesse sopesado se não seria mais hábil deixar adormecidas recordações desse género. Depois, ocorrera-lhe que talvez Joffrey de Peyrac já tivesse descoberto há muito tempo quem era Sabina de Castel-Morgeat. Não a surpreenderia que ele tivesse descoberto o fato por si e o ocultasse dela. Assim, preferiu perguntar. Ele conhecia todos os grandes nomes da Gasconha, e ali em Que-bec todos os que se relacionavam de perto ou de longe com a Aquitânia reuniam-se em torno dele quase sem perceberem.
O Conde de Peyrac voltou um olhar surpreso para Angélica.
- Que sobrinha? E que Carmencita?
O espanto polido, um tanto irónico, que dominou o tom empregado, tom que os homens utilizam quando são alvo de perguntas incongruentes por parte de mulheres encantadoras cuja lógica nem sempre lhes é clara, trouxe a Angélica um alívio muito maior do que ela previra.
Pôde permitir-se rir.
- Nisso, monseigneur, acho que você demonstra certa ingratidão. Não se lembra de Carmencita de Mordores, sua ardente amante que reinava sobre seus" prazeres quando cheguei a Toulouse para casar com você?
A expressão que se lia nas feições de Joffrey de Peyrac, de indiferença mesclada ao esforço para lembrar-se a fim de satisfazê-la, encantava Angélica. Ele não teria levado a hipocrisia até aquele ponto, caso desejasse ocultar-lhe algo.
— Lembra-se pelo menos da vingadora que depôs em seu processo para acusá-lo de havê-la enfeitiçado.
— Oh, sim, de fato! Carmencita! - exclamou ele, como se tivesse mais presente na memória a recordação da mulher rancorosa do que a da amante a quem devia noites de loucura. Tivera inúmeras amantes ardentes entre aquelas mulheres da Aquitânia que constituíam o adorno das festas cintilantes do Palácio da Gaia Ciência.
— E da sobrinha dela? - insistiu Angélica.
— Que sobrinha?
Quanto a isso, Joffrey sinceramente não se recordava de nada. Angélica lembrou-lhe - informou-lhe, na verdade - que Carmencita estava em Toulouse com a jovem sobrinha, que lhe servia de acompanhante, que a moça conservara uma recordação imperecível do Palácio da Gaia Ciência, e que, pelos acasos da vida, hoje se encontrava em Quebec e não era outra senão a Sra. de Castel-Morgeat.
O comunicado divertiu-o.
- Se ela conservou tal recordação de meus palácios, demonstrou-o muito mal, atirando em meus navios.
Mas nem com toda a boa vontade do mundo e recorrendo àqueles detalhes, havia na memória dele o menor vestígio da sobrinha de Carmencita, sequer de seu nome ou prenome. Ignorava completamente que Carmencita tivesse uma sobrinha, um elemento ínfimo, perdido na multidão que gravitava à volta dele, cujo número, assim como o rei em relação a seus súditos, ignorava.
Pobre Sabina, que se imaginava ter sido "notada" a ponto de ele pensar em desposá-la! Angélica bem que supusera que ela se iludira, mas agora ouvia a confirmação disso.
- E quando resolveu se casar, por que você não deitou olhos numa herdeira da Gasconha ao invés de numa estranha à sua província, como eu?
- Ah, minha cara, mas eu não pensava em casar! Levava uma existência que convinha à perfeição a meus gostos. Enquanto herdeiro do nosso feudo tolosano, às vezes me ocorria que eu precisava garantir minha descendência, e prometia a mim mesmo que um dia, o mais tarde possível, contrairia um casamento de aliança, no interesse de minha província. Não foi assim que aconteceu conosco? Lembre. Foi um assunto de comércio, palavra repulsiva para um nobre e que me atraiu muitas afrontas da parte de meus pares, mas pelo qual tive a fraqueza de interessar-me, pois assim podia garantir minha posição à testa de minha província sem recorrer, como os outros senhores de feudo, à generosidade do rei. Uma liberdade que o ouro e a prata conferem, mas pela qual também paguei caríssimo. Com um comércio hábil, eu podia prosseguir com meus trabalhos no domínio da ciência. Entre meus agentes mais ativos havia Molines, o intendente protestante de seu pai, o Barão de Sancé. Molines, como todos os huguenotes, lançava suas redes financeiras em todas as direções. Assim, só pude entrar na posse das minas de prata que tinha em suas terras do Poitou em troca do casamento com uma das filhas sem dote do Barão de Sancé de Monteloup.
— Molines se metia no que não lhe dizia respeito! - exclamou Angélica, revivendo a cólera de outrora e lembrando como se debatera entre o pai e o intendente para escapar àquele casamento execrado. - Em suma, como muitas outras, fui uma noiva vendida. E você não se preocupava com minha triste situação. Comprou-me como gado, pronto a me abandonar, depois das bodas, e a troçar de mim com suas belas mulheres da Aquitânia.
— Isso é verdade!
O Conde de Peyrac levantou-se. Tomou-a nos braços, rindo, apertando-a contra si num gesto possessivo.
— Mas no momento em que vi os olhos verdes da fada Melu-sina, perdi a lembrança das outras mulheres.
— O que teria acontecido se...?
— Se uma pequena poitevine não me tivesse sido levada para Toulouse em troca de algumas minas de prata? Eu não teria conhecido a paixão. Não teria conhecido o Amor...
AS PANQUECAS DA CANDELÁRIA
CAPÍTULO XII
Os saraus da Srta. d'Houredanne - As festas e jantares que antecedem a Quaresma
- Namoro com Nicolau de Bardagne - O ciúme do Duque de Vivonne e seus comparsas
Como falara de um segredo que lhe cingia o coração há tantos anos e cujo peso aumentara ainda mais nos últimos meses, Sabina de Castel-Morgeat transformara-se. Essa feliz mudança e a importância da vitória, atribuída à Condessa de Peyrac, aumentaram a fama de Angélica e a afeição que muitos lhe tinham.
Angélica não se arrependia de haver levado conforto a uma mulher menos afortunada do que ela na conquista do amor. Mas a intrusão desta num quadro em que até então sempre se vira sozinha com Joffrey - ele avançando pelo caminho em direção a ela, que chegava para desposá-lo - empanava-lhe a imagem ideal. Visto que só podia conversar com ela sobre esse passado, Sabina a procurava. A Angélica não desagradava retornar àquelas belas visões de sonhos e sol dos palácios tolosanos, e os detalhes que Sabina acrescentava contribuíam para fazer renascer, ainda mais vívidas, aquelas recordações inesquecíveis. Mas habituava-se: uma estranha, até agora considerada inimiga, falava de Joffrey com uma familiaridade entusiasmada, como se o fato de ter sido apaixonada por ele antes dela lhe conferisse um direito de propriedade. Traçava dele um retrato em .que Angélica não reconhecia de todo o homem que se revelara a ela para conquistá-la, ou que mostrava dele um aspecto que ela temia não conhecer, como se antes de Angélica chegar a Toulouse Joffrey de Peyrac tivesse sido outro homem a quem o casamento "acorrentara". Ao pronunciar esta palavra, Sabina de Castel-Morgeat viu Angélica eriçar-se.
— Infelizmente ele não teve que suportar muito tempo essas correntes. As correntes das galés substituíram as do casamento.
— Perdoe-me - murmurou a mulher do governador militar. - Falo de tudo isso como falaria de fantasmas. Você não pode compreender.
— Sim, posso compreender. Sei o que é um homem a quem não se consegue esquecer e com que nostalgia a lembrança dele pode nos perseguir. Acreditei-o morto e estive separada dele por longos anos.
— Mas você ficou com o melhor... Foi o amor dele, continua sendo... Enquanto eu não podia sequer chorar e nãotinha certeza de ter merecido um único dos pensamentos dele.
Angélica conteve-se para não lhe dizer que de fato Joffrey não tinha nenhuma lembrança da sobrinha de Carmencita. E não havia utilidade alguma em despertá-la bruscamente de seus sonhos.
Sabina continuava a afirmar qíie jamais gostaria de revelar sua verdadeira identidade a Joffrey, temendo-lhe a decepção quando a reconhecesse carregada com o peso dos anos. Angélica desta vez impediu-se de estimulá-la a sair de uma conveniente discrição. O que teria ela a ganhar, realmente, ao perceber que não deixara vestígio algum na memória do seu ídolo? Observou a Sabina que não cabia a ela, mulher do Conde de Peyrac, falar a ele sobre um passado desaparecido por trás de muitas tragédias e injustiças e que talvez ele não tivesse muita vontade de recordar. Estava com a consciência tranquila, pois quando revelara ao marido o louco amor que ele inspirara outrora a uma jovenzinha que hoje era a Sra. de Castel-Morgeat, Joffrey exibira uma indiferença bem masculina, que, aliás, também estendeu à bela e ardente Carmencita. Não lhe tinha rancor pela calúnia que levantara contra ele e que havia ratificado as acusações de feitiçaria que lhe imputavam. "De qualquer maneira, eu estava condenado", dissera, "pois o rei queria me afastar e me destituir. Não foram aqueles gritos de enfeitiçada que fizeram pender mais ou menos a balança de meu destino... E a intervenção dela foi de primeira qualidade... Há que admitir que Carmencita era muito bonita e muito rancorosa."
- Também acho que a tratou bem mal em Toulouse, quando ela se agarrava a você, não suportando havê-lo perdido depois de seu casamento comigo. Para acalmar-lhe os gritos, você um dia lhe despejou uma bacia de água na cabeça. Eu me lembro.
- É possível. O homem é cruel quando já não ama. E principalmente quando ama outra.
Este caso lembrou a Angélica que outrora não deixara de temer a sedução das belas mulheres da Aquitânia. Se tivessem vivido em Toulouse ao invés de terem sido separados por uma catástrofe, a felicidade deles teria sido forte o suficiente para resistir àquelas audaciosas conquistadoras de tez leitosa, aos olhos aveludados, ao aroma apimentado das morenas, cujo poder sobre o sensual conde tolosano ela receava?
Essas-discussões, assim, despertavam-lhe num recanto muito esquecido do espírito uma apreensão e também um pesar por não haver conhecido em Joffrey o homem que ele fora antes dela. Admitia para si mesma sem dificuldade que, nas circunstâncias atuais e depois de tudo o que tinham vivido juntos, tal sentimento era dos mais vãos. Mas evitou comparecer a diversas recepções onde encontraria Sabina de Castel-Morgeat. Não queria que notassem que sua vitória, tão misteriosamente obtida, lhe pesava, e que a transformação que encorajara naquela que fora sua inimiga declarada começava a inquietá-la. Tanto mais porque não paravam de cumprimentá-la por isso.
— O que foi que você fez? - não parava de indagar Ville-d'Avray, mais do que intrigado.
— Segredo de mulher - respondia Angélica, zombeteira.
Ao levantar, acontecia de Angélica abrir a janela, para uma aurora palpitante de estrelas. O frio era intenso, imóvel, de uma pureza vibrante. O silêncio da natureza, tão profundo que chegava até ela o rumor longínquo da queda d'água situada a duas léguas de Quebec, a que chamavam de salto de Montmorency.
Depois o dia despontava com clarões lilás ou cor de flor de pessegueiro. Uma luz avermelhada se estendia pela orla das montanhas. Todas as asperezas da paisagem, todas as pontas dos campanários, as empenas das casas, mesmo das mais afastadas-, ganhavam um toque carmesim, e a vertente gelada dos campos reluzia sob a carícia do sol levante, como vidros preciosos. O azul das matas nas encostas confundia-se com o do céu, tão intenso e puro se tornava o firmamento.
Mas às vezes ficava tudo branco, da terra ao céu. E só se adivinhava vida na costa de Beaupré pelas vacilantes línguas de fumaça que escapavam das chaminés. Sob os altos telhados normandos, o morador, rodeado da família e "contratados", sentava-se diante do primeiro copo de aguardente e da grande tigela de leite com bocados de pão, pousada no centro da mesa.
Durante o mês de janeiro a vida na cidade era muito animada. A Quaresma chegaria logo, diziam, com seu cortejo de penitências: quarenta dias de jejum e abstinência em perspectiva, açougues e padarias fechados...
Tudo èra consumido em dobro: comida, prazeres, divertimentos. Havia muitos jantares de igreja, ou seja, ceias de confraria, um pretexto para reunir sob os olhos indulgentes do respectivo santo padroeiro os membros de uma piedosa cofporação ou de uma diligente sociedade de caridade.
Pretexto para beber mais que o razoável. As senhoras trocavam receitas culinárias ou receitas das bebidas que faziam das respectivas casas um local de renome, visitado com prazer.
A Srta. Eufrosina Delpech, de quem os "vinhateiros" falavam com reverência, porque ela possuía a melhor levedura para álcool, fabricava um licor com quatro grãos: funcho, angélica, coentro e aipo, que era uma maravilha e que as pessoas afetavam tomar como remédio, embora não houvesse coisa melhor para beber antes de ir para a cama em companhia galante. Pelas virtudes do seu licor afrodisíaco, perdoavam-lhe o fato de ser a pessoa mais maledicente da cidade.
Lia-se, recebiam-se convidados, as pessoas gostavam dos belos discursos, dos belos sermões, das missas"grandiosas.
A Srta. de Campvert deu um grande baile. Como tinha fausto e graça quando se dava ao trabalho, e como sua língua intimidava, todo mundo compareceu, exceto a Sra. Le Bachoys, que reteve as filhas e os amantes à barra da saia. - É uma depravada - dizia -, e o amor não ganha nada em ser mascarado de devassidão.
Dançava-se, jogavam-se cartas com frenesi, e amava-se.
Maledicências, calúnias e rivalidades seguiam seu curso, mas tratava-se de uma sociedade em que não se censurava ao próximo por ser menos bem-nascido, visto que todo mundo no Canadá trabalhava ou estava empregado a serviço do rei.
A Srta. d'Houredanne começara a sua leitura de A princesa de Cleves, uma história de amor escrita por uma de suas amigas parisienses, a Sra. de La Fayette, que se arvorava em beletrista.
Naqueles serões, encontravam-se em sua "ruela", além da Sra. de Peyrac e filha, o Marquês de Ville-d'Avray, o intendente Car-lon, o Sr. de Bardagne e o Sr. de Chambly-Montauban, -a Sra. Haubourg de Longchamp com a camareira e a filha de uns dez anos, a Sra. de Mercourville com as duas filhas mais velhas, o Sr. Le Bachoys, que vinha expressamente para isso da Cidade Baixa, e outros.
Os saraus da agradável leitora eram bem concorridos.
O Senhor Gato se insinuava, obstinado, no encalço de Angélica e Honorina, atraído por aquela morada misteriosa. A cadela, então, era mandada para a cozinha, com a criada inglesa. Esta, porém, insistia em assistir à leitura, e instalava-se num canto do aposento com as mãos sobre os joelhos, como se se preparasse para ouvir um sermão sobre a Bíblia, no dia do Senhor, na meeting-house de seu povoado bostoniano.
Na cozinha, a cadela gemia, pois também apreciava aquela hora em que era embalada pela voz suave da dona. Tinham que trazê-la de volta ao círculo familiar. Cão e gato acabaram entendendo-se, e era encantador ver o Senhor Gato, empoleirado no alto do baldaquino, franzir os olhos com ar compenetrado quando, em certas passagens, a voz da leitora tremia de emoção, e a cadela, deitada, sonhadora, aos pés da inglesa, ambas a soltar profundos suspiros esporádicos.
Intrigava a todos o que a cativa da Nova Inglaterra podia compreender das intrigas amorosas e açucaradas daqueles duques e princesas da França, que não paravam de interrogar-se, gemer, chorar e morrer, e passavam como sombras aureoladas em seus grandes folhos pregueados, dos corredores do palácio do Louvre às margens do Sena, das residências reais à beira do Loire, onde tivera sua corte no século anterior um dos últimos reis Valois, Henrique II.
Desde o início Berengária Amada de La Vaudière se mostrara assídua às leituras na casa da Srta. d'Houredanne. Esperaria encontrar Peyrac ali? Ter a possibilidade de vê-lo mais facilmente e como que por acaso? Pensava que uma noite Angélica a convidaria e que ela poderia introduzir-se na pequena casa em frente para esvoaçar de um lado para outro, observando tudo? Com que intenção, afinal? Não se sabia o que pensar. Uns diziam que ela era uma criança que não se dava conta do próprio comportamento. Para outros, era uma astuta.
E era desagradável para Angélica pensar que pelas suas costas muitas comadres tagarelavam que, se estivessem no lugar dela, desconfiariam.
A presença de Berengária estragava-lhe as horas agradáveis dos saraus em que se prosseguia com o relato do amor fatal da Sra. de Clèves pelo Sr. de Nemours. A leitura da morte da Sra. de Chartres, mãe da Sra. de Clèves, Berengária rebentou em soluços.
— Oh! Que saudade sinto de minha mãe - gemeu. - Este exílio é demasiado longo... Mais de nove meses sem uma carta, sem que eu possa saber como ela está, nem confiar-lhe meus sofrimentos.
— Faça como eu: escreva! - aconselhou-lhe Cleo.
— Não! Não! De que serve escrever a um fantasma? Talvez ela também tenha morrido... Oh, não aguento mais!... Quero rever minha mãe... minha mãe, oh, oh!...
O choro aumentou e se transformou em gritos. Tiveram que rodeá-la para tentar acalmá-la. A Sra. de La Melloise insistia com Angélica em que a levasse até sua casa, logo ali em frente, e lhe desse algo para beber.
Angélica recusou-se a fazer-se de irmã de caridade. Fez-se de surda. As lágrimas de Berengária não a enterneciam. Para aquela, tudo servia para uma boa comédia. Ninguém estava mais habilitado a consolar a Sra. de La Vaudière do que seu belo e encantador marido, declarou Angélica, frisando o "encantador". Deviam levá-la de volta à Cidade Baixa, onde o casal residia.
- Eu a acompanho - decidiu Ville-d'Avray.
Os convidados da Srta. d'Houredanne, depois de a verem sair curvada ao peso da sua mágoa, mas ternamente amparada pelo marquês, não hesitaram em dizer que este a consolaria de modo muito mais eficaz do que o marido.
Naquele início de ano, além da sucessão ininterrupta de visitas que todos queriam fazer-se, houve no solar de Montigny jantares, jogos, bailes, pequenos concertos ou teatro, seguidos de um repasto ligeiro.
Conservava-se o hábito parisiense de sair mascarado à rua, o que tinha a vantagem, já que as máscaras eram de veludo ou de seda, de proteger o rosto contra as intempéries, frequentemente açoitantes.
Apesar das festas, havia muitas atividades. Os dois prisioneiros ingleses vinham toda manhã do acampamento dos huronianos para ensinar a Sra. de Mercourville a tingir lã e linho. Mas a viúva índia - que era duplamente ama de um deles porque lhe substituía um criado a que ela tinha direito, pois o filho que devia ajudá-la fora morto em combate contra os ingleses, e substituía ainda um marido igualmente morto em combate - enciumou-se com essas visitas, que ela autorizara para agradar ao senhor intendente e a Onôncio, ou seja, ao governador.
Veio pessoalmente, e com toda a solenidade, ver como era a Sra. de Mercourville, e achando-a agradável, criou caso. É que a viúva gostava do seu John! Gostava daquele trabalhador puritano de Massachusetts, que labutava arduamente e que tinha pelo menos o mérito de não pôr má cara para fazer amor. Embora menos arrojado do que os franceses, tinha gosto pela coisa, como todos os europeus, o que as índias apreciam, já que seus guerreiros se preocupam muito mais em poupar as forças para correr, combater com mais habilidade e suportar com mais coragem a tortura quando lhes chega a vez de cair nas mãos dos iroqueses.
Foi então às pressas que levou de volta seu cativo inglês para o povoado de Loreto, e a Sra. de Mercourville teve que contentar-se com o outro, um jovem arruivado, completamente indianiza-do, mas que se lembrava do que o pai, artesão em Salein, lhe ensinara.
O intendente Carlon, de sua parte, requisitava gente para levar os teares aos lares onde as mulheres poriam mãos à obra. Eram aparelhos frágeis, pesados, estorvantes, mas a colónia tinha que ser auto-suficiente, repetia-se por toda parte. Panos e tecidos eram coisa importante, custava caro importá-los. E depois, as mulheres não deviam ficar ociosas.
Embora gostasse bastante da sua Cidade Alta, dos salões, igrejas e mosteiros, Angélica descia todos os dias à Cidade Baixa, à taberna Ao Navio de França, onde as recordações evocadas, se não tinham o refinamento das do Palácio da Gaia Ciência, pelo menos pertenciam somente a ela.
Ora, notou-se que o jovem Cantor de Peyrac, aquele adolescente grave, belo como um anjo, mas cuja expressão às vezes lembrava a Angélica o ar um pouco insulso de alguns garotos De Sancé de Monteloup, como seus irmãos Josselino, Gontran, Dê-nis, só ria e brincava com a Sra. Gonfarel, dona do albergue Ao Navio de França.
Um dia em que ele foi ao albergue com um grupo de amigos e alguns oficiais do séquito de Peyrac, a amável taberneira, que estava um pouco bêbada, disse-lhe:
- Bom dia, meu garoto. Você não me conhece, mas eu o conheço e há muito tempo. Quase lhe dei de mamar!
Cantor caiu na risada. Levantou-se do banco, encantado, e, passando os braços em torno do pescoço dela, beijou-lhe as duas faces.
- Ele me reconheceu! - confiou a Polaca, transtornada, a Angélica quando a reviu; - Pense o que quiser, ele me reconheceu! Lembra-se de mim, de quando corri até Charenton para arrancá-lo aos ciganos... Você sabe, os bebes olham, não dizem nada, mas se lembram.
Era um fato que Cantor ia com frequência à taberna Ao Navio de França e sempre se mostrava muito alegre e amável com Janine Gonfarel. Essa alegria, que não lhe era habitual, transformava-o, fazia-lhe brilhar os olhos verdes, conferindo-lhe a beleza tão vivaz de sua mãe.
— Ah, eu bem que avançava nesse belo garoto! - confiava a Polaca a Angélica, quando estava um pouco tocada. - Você sabe o que sinto: esse lado incestuoso das amas...
— Mas você nunca foi ama dele! - protestava Angélica. - Ninguém amamentou Cantor... Nem eu, que não tinha leite!... Ele foi alimentado a mamadeira.
Hoje Florimond e Cantor de Peyrac iam pelos seus dezenove e dezessete anos, e estavam no Canadá, belos, vigorosos, saudáveis e felizes, segundo as aparências, embora tivessem experimentado tantos "acasos", como se dizia.
A consideração com que os membros da família Peyrac honravam o albergue Ao Navio de França trouxe para o local a fina flor da nobreza, bem como da alta burguesia.
Até o intendente Carlon foi visto ali. Nicolau de Bardagne era um dos fiéis.
As maneiras educadas e amenas do emissário do rei, sua simplicidade e sua complacência em esvaziar copo após copo, havendo ocasião, o que lembrava que ele possuía uma sadia disposição para apreciar os prazeres da vida, granjearam-lhe muitos amigos. Os oficiais de sua casa e até seu escudeiro, secretário e primeiro camareiro eram de boas íamílias burguesas ou da pequena nobreza.
Gostava-se de vê-los chegar à taberna Ao Navio de França.
Em compensação, a alegre exuberância esfriava quando se via aparecer o Duque de La Ferté e companheiros. Tinham feito inimigos pela sua arrogância e por tratarem os habitantes do Canadá de "campônios" e "rústicos".
A cada vez a Polaca repetia que um dia os faria entender que não deviam voltar à sua casa, mas não fazia nada, pois sabia que tinham a bolsa bem recheada.
Para Nicolau de Bardagne, era uma provação ser obrigado a encontrar o Sr. de La Ferté quando Angélica estava presente.
— Então, ele foi seu amante... Talvez ainda seja - disse-lhe um dia.
— Sr. de Bardagne, você insulta a mim e à honra de meu esposo, presente nesta cidade. Eu tinha perdido até a lembrança desse Sr. de La Ferté, e não lhe escondo que a presença dele me contrariou bastante. Mas o que se pode fazer?
— Assim, você confessa - disse Bardagne, empalidecendo. - É verdade mesmo. - Ele foi seu amante?
— Mas se você mesmo está convencido disso, de que serve negar? - retrucou Angélica, enervando-se. - Admita de uma vez por todas que eu tive um passado e não me faça uma tragédia que não serve para nada nas circunstâncias atuais. Doravante não pode haver mais nada entre mim e esse gentil-homem.
— Ele, de sua parte, me pareceria muito disposto a isso...
— Mas nesse género de transação, são as minhas preferências que têm primazia. Você deveria saber. Você me conhece bem.
— Qual! Eu acreditava que a conhecesse. Mas as inesperadas facetas de seu caráter trouxeram-me a dúvida ao espírito. Em La Rochelle, a quem você tinha como namorado?
— A você!
Esta conversa se tornara quase um jogo entre eles. Bardagne vinha carregado de pensamentos dramáticos, que remoera longamente, e Angélica afetava encarar o diálogo com leviandade. A discussão desenvolvia-se com um quê teatral pelos mesmos temas, modificados e desenvolvidos.
Além disso, a paixão de Bardagne cercava-a de uma solicitação sensual que, embora contida, mas expressa diariamente por olhares, suspiros, alusões, uma atitude de solicitude e carinho nos gestos e nas atenções que ele lhe dispensava, criava um clima excitante em torno dela, que não lhe desagradava e contribuía para torna-la alegre e tolerante com aquele apaixonado tímido. Saber do ob-cecante desejo que ele nutria por ela não a irritava como as declarações do Duque de Vivonne, meio insolentes, meio aliciantes, que, quando bebia e considerando que tinham sido amantes, parecia encarar como coisa natural que ela voltasse a conceder-Ihe seus favores.
Bardagne estava deixando crescer o bigode. Aparava-o bem alto, numa vírgula delgada acima do lábio, à moda do rei.
No início, quando a encontrava na taberna Ao Navio de França, censurava-a por frequentar lugares mal-afamados, coisa que não ficava bem. Ela replicará que não cabia a ele dar-lhe lições de moral, visto que soubera que, talvez para se consolar de sua incurável mágoa amorosa, ele organizava, graças à discrição de sua morada, festas muito descontraídas para as quais convidava os companheiros de bebedeiras e de jogos, acompanhados de algumas mulheres de temperamento alegre e nada devoto.
Nicolau de Bardagne inquietou-se.
— Meus convidados fazem muito barulho? Perturbam seu sono e a paz de sua rua?
— De modo algum.
A situação de enviado extraordinário do rei permitia a Nicolau de Bardagne manter-se fora dos círculos mundanos e religiosos, e era considerado demasiado estranho à vida do país para que se preocupassem com sua boa ou má conduta.
Mais de um lhe invejava a liberdade.
Angélica sabia que ele escrevera uma carta ao rei, em Tadous-sac, que o comandante do Maribelle levara para a França.
Desejava esclarecer um ponto. Nicolau de Bardagne falara dela ao rei? Sua Majestade de fato o incumbira de saber se a mulher que acompanhava o Conde de Peyrac não era a mesma que todas as suas polícias procuravam: A Rebelde do Poitou.
Numa tarde em que se encontrava num grupo da taberna Ao Navio de França, arriscou uma abordagem.
- Meu caro Nicolau, percebo que quase não tivemos tempo de nos ver depois do Grande Conselho, a que tive a honra de assistir. Fiquei com a ideia de que precisávamos agradecer-lhe pela opinião favorável a nosso respeito em sua missiva ao rei.
Nicolau de Bardagne não desconfiou de nada, muito feliz que estava por haver agradado a Angélica com sua intervenção no Conselho. E expôs-lhe de bom grado, em linhas gerais, o teor da missiva que escrevera de Tadoussac ao rei, e despachara pelo Maribelle, o último navio a partir do Canadá para a França.
— Sua Majestade não pode deixar de ter ficado impressionado com a rapidez com que pude responder aos diversos pontos referentes à minha missão. Graças a você, cara amiga, reconheço, pois através de nosso encontro soube, assim que pisei no Canadá, tudo o que precisava saber sobre aquele que, infelizmente, se tornara seu esposo. Assim, não ocultei ao,rei, embora você pudesse ressentir-se comigo, que aquele que se dizia senhor do Maine, ocupando indevidamente diversos territórios e costas da Acádia francesa, era o mesmo Rescator, aventureiro e pirata, que outrora combatera as galeras reais no Mediterrâneo. Em compensação - afirmou, veemente, pois tinha consciência do que estas palavras podiam ter de detestável para Angélica -, garanti-lhe que você não era, como ele parecia crer e temer, não sei por quê, aquela a quem chamaram "Rebelde do Poitou" e que ele mandou procurar persistentemente. Pude afirmar-lhe que a companheira do pirata não tinha relação alguma com aquela miserável criatura. Não estava eu em boa posição para sabê-lo? - concluiu, com um meio sorriso cúmplice. - Afinal, eu a conhecia, e para mim você era uma velha amiga de La Rochelle. Mas isso eu não lhe confiei. É assunto pessoal. Contentei-me em assegurar-lhe que minha fonte de informações era boa e que ele podia, com toda a tranquilidade, dar fé às minhas afirmações.
Angélica o ouvira, abrindo a boca em várias ocasiões com a intenção de interrompê-lo. Mas desistiu. Acabou tomando um gole de água para ganhar coragem. Por que desiludi-lo? Graças a Deus, ele ignorava que era ela a Rebelde do Poitou, o que, no fundo, era natural. Mas mais uma vez se via diante do dilema de deixá-lo enganado ou pô-lo a par, suscitando problemas inextricáveis que só poderiam aumentar a confusão e desencadear controvérsias que talvez redundassem em drama e que ainda por cima eram inúteis e estéreis.
A carta ao rei seguira em novembro, e realmente não havia como alcançá-la e retificá-la antes de os gelos derreterem e os navios regressarem. E talvez Luís XIV logo viesse a saber que não se enganara em sua intuição. Talvez Desgrez lhe informasse, depois de receber a carta que ela enviara também de Tadoussac pelo Maribelle. Ao lhe escrever, ela quisera colocar nas mãos do policial uma arma que, sabia, ele utilizaria da melhor maneira.
Imaginava-o muito bem, apresentando-se em Versalhes, inclinando-se muito respeitoso e dizendo, em voz neutra: "Sire, assunto encerrado. Encontramos a Sra. du Plessis-Bellière... Está no Canadá".
A fim de se absolver por manter em relação a um amigo no final das contas devotado um silêncio que um dia se revelaria culposo, Angélica sorriu a Nicolau de Bardagne com grande meiguice. Os sorrisos de Angélica, mesmo os mais indiferentes, possuíam sempre o dom de extasiar aqueles a quem eram dirigidos. Quando ela o fazia com intenção, era difícil ao beneficiário não ceder a um sentimento de euforia que podia prolongar-se por várias horas, ou mesmo um dia inteiro e mais, acompanhado por vezes dos sonhos mais desvairados.
Bardagne viu-se sem defesa diante de um presente tão espontâneo. Nada lhe pareceu mais maravilhoso, mais inebriante do que aquele rosto de mulher, de uma beleza harmoniosa e tocante, emergindo à sua frente como um sonho, envolto num halo vacilante pela luz das lâmpadas a óleo que atravessava o denso nevoeiro da sala hiperaquecida.
Naquele albergue à beira do rio, o silêncio opaco do Saint-Laurent era ainda mais tangível do que na Cidade Alta.
Ali fora, a alguns passos, a margem baixa, numa carapaça de gelo, soldava-se à planície coberta de neve, afogada em obscuridade. Por aquele silêncio esmagador, sentia-se o amplexo feroz do rio que subjugava terra e água, e cuja tenaz gelada mordia o rochedo de Quebec. Disso resultava naiquele instante, como que suspensa, uma qualidade de solidão mais completa e invencível do que em qualquer outro lugar do mundo.
Ao pensar que se encontrava encerrado ali e que tinha diante de si o sonho de sua vida, desde La Rochelle, o Conde de Bardagne sentiu-se invadir por uma onda de felicidade. Estendeu o braço por sobre a mesa e pousou a mão sobre a de Angélica, mão que, na sua, pareceu-lhe de uma pequenez e fragilidade surpreendentes. Percebeu que nunca notara a beleza dos dedos de Angélica, e assustou-se, como se esse esquecimento fosse uma aberração. Então não a conhecia em tudo, ele, que não parava de examiná-la com avidez? Quantas coisas ainda não teria a descobrir nela: os pés, os joelhos, as pontas dos seios, o sexo misterioso, adorável...
A perturbação o fez tremer.
Murmurou:
- Sou feliz.
O Duque de Vivonne enciumava-se com a solicitude de Bar-dagne. Raramente via Angélica.
Bebia. Entediava-se. Azedo, refletia consigo que a companhia do Sr. e Sra. de Peyrac era muito solicitada, enquanto desdenhavam a ele, homem da corte, brilhante, e que no mundo só conhecera sucessos. Tinha algumas aventuras com esposas de funcionários, dessas que se entediam e imaginam que levando uma vida um tanto devassa vão conseguir convencer as pessoas de que viveram na corte.
Dizia consigo que jamais a teria. Percebeu que a via: ela estava ali e nunca lhe parecera tão inacessível.
Era inacessível porque pensava em outra coisa, e era isso que o enlouquecia. Porque não se sabia quem ela era, não se sabia como retê-la, seduzi-la. Era um mistério odioso.
E por ela o rei ficara de coração partido, como um camponês vulgar.
Simplesmente tinha que realçar diante de Saint-Edme e de Bessart o menor detalhe que lhe permitisse evocá-la.
- Não notou o jeito do rei, quando passeia pelos seus jardins? As vezes pára no alto do tanque de Latone. E minha irmã fica furiosa, pois sabe que ele pensa nela...
Vivonne interrompia-se, atingido pela figura sinistra dos companheiros. Virava-se furioso. Era lançar pérolas a porcos, falar diante daquelas caras de Quaresma!
Os outros trocaram um olhar de cumplicidade. Tinham tempo pela frente, mas precisavam atentar desde agora â que não se alimentasse o crédito de uma rival tão temível para a Sra. de Mon-tespan.
Seria desastroso que ela pudesse regressar à corte e mesmo à França. Não deveria ter nunca a oportunidade de reencontrar-se com aquele Desgrez, a alma danada de La Reynie, comandante da polícia do reino. Discutiram acerca de La Reynie. Um homem honesto, muito hábil, e que modificou o sistema todo. Pôs luzes nas ruas em toda parte, dispersou os bandidos do Pátio dos Milagres, trancafiou os pobres. O rei queria o crime punido. Paris e Versalhes iam tornar-se muito aborrecidas.
Falando, excitavam Martim d'Argenteuil, lembrando a ele que a Sra. de Peyrac fora amante do policial Francisco Desgrez, que tão vilmente traíra a Sra. de Brinvilliers e a conduzira ao cadafalso, a tal ponto que, em seu cérebro enfumaçado, o mestre da pela do rei não estava longe de acusá-la de haver denunciado a marquesa e de ser responsável pelos atuais aborrecimentos deles, que tinham forçado o Sr. de Vivonne a desaparecer - conclusão que, com mais alguns meses, poderia ter sido verdadeira.
Com a presciência atilada dos seres à beira da demência, Mar-tim d'Argenteuil dizia que sentia a sombra do policial por trás de Angélica. Se soubesse disso, ela certamente ficaria impressionada, porque pensava com frequência em Desgrez. Que uso faria ele das informações que ela lhe dera? Falaria em favor deles?
O Conde de Saint-Edme, apesar de sua força de mago, censurava-se por não poder pronunciar nunca o nome da Sra. de Peyrac. Martim d'Argenteuil, nos seus maus dias, lembrava que o Velhaco Vermelho a vira a bordo de uma das canoas da chasse-galerie, e para ele isso não pressagiava nada de bom.
As luvas vermelhas de Martim d'Argenteuil, bem como as mãos, que ele abria e fechava com uma satisfação vaidosa, para salientar os músculos, também inspiravam desconfiança. Uma adolescente de doze anos fora encontrada estrangulada e violentada na Cidade Baixa, e espontaneamente acusava-se o "homem das luvas vermelhas". A menina pertencia àquele magote de pobres e miseráveis que povoavam o bairro Sous-le-Fort, anónimos, imigrantes mal-aquinhoados, azarados, preguiçosos. Suspeitava-se que a mãe dela frequentasse os apartamentos privados da taberna Ao Navio de França. Mas os rumores que acusavam Martim d'Ar-genteuil do crime só circularam à socapa.
Juntamente com alguns jovens, D'Argenteuil organizara uma partida de péla num velho entreposto na Cidade Baixa. Ia-se vê-lo como se se fosse a um espetáculo, pois era maravilhoso vê-lo jogar com as mãos enluvadas de vermelho, a palma musculosa aberta para receber o choque da pelota de couro, disparando como uma bala, e que ele tornava a lançar em seguida, com um movimento do pulso e do braço de vigor impressionante.
— Eu não gostaria de ser apedrejada por você - disse a Sra. Le Bachoys com um arrepio.
— Não tem nada a temer, cara senhora - respondeu ele, com aquele misto de charme e grosseria que resultava de sua estultice -, não é a mulher adúltera.
A Sra. Le Bachoys foi a única a rir da réplica, que para ele fora galante. Achavam-no idiota e canhestro. Não estava a par de nada.
CAPITULO XIII
Barriga Aberta entre as freiras da Santa Casa
Uma manhã, um dos grumetes do Gouldsboro chegou sem fôlego do solar de Montigny para avisar a Sra. de Peyrac de que Barriga Aberta, ou seja, Aristides Beaumarchand, acometido de dores terríveis no estômago, fora levado com urgência para a Santa Casa.
Foi o tempo de Angélica lançar o manto aos ombros e calçar as botas para correr rumo ao convento das irmãs da Santa Casa, onde entrou pela primeira vez, embora de suas janelas já tivesse podido examinar com frequência o prédio alto e vasto, erguido a meio da encosta Sainte-Geneviève.
Depois de ser encaminhada à sala dos homens, onde, procurando em vão por Aristides, começara a temer tivesse ele já falecido, Angélica o descobriu na sala reservada aos oficiais ou pessoas "de qualidade", aonde ele se fizera admitir logo ao chegar, valendo-se de suas altas relações com o Sr. e a Sra. de Peyrac. O que provava que, no final das contas, não se encontrava num estado assim tão desesperador, quando fora levado para lá.
Os leitos daquela sala eram guarnecidos de cortinas de sarja verde, que se erguiam dos dois lados durante o dia, e Angélica avistou a cabeça do pirata adoentado, com olhos remelentos e cabelos engordurados, tão emaranhados quanto uma meada de barbante, emergindo de um lençol esticado, muito branco, e repousando sobre um travesseiro de crina, igualmente envolto em pano branco. Sentada à sua cabeceira, uma freirinha, bonita como uma flor, fazia-o pacientemente engolir às colheradas uma tigela de caldo.
- Ele está envenenado - informou a pequena religiosa.
Depois de fazer o paciente ingurgitar uma última colherada, a irmã se levantou para ceder lugar a Angélica. Chamava-se, disse, Madre Francisca Marcot de Charles Borromee.
As freiras do Canadá costumavam ser designadas pelo nome de família, seguido do patronímico religioso.
Interrogado por Angélica com severidade, Aristides deixou que ela arrancasse dele uma confissão. A causa fora a "barreia de madeira", explicou, de que lhe tinham falado Elói Macollet e Nicolau Héurtebise a propósito do fabrico de uma "boa bebida" para trocar com os selvagens. Juntando-se algumas gotas ao pior álcool diluído em água, a bebida transformava-se numa aguardente que faria todos os sagamores e guerreiros hipócritas das florestas americanas dar pulos até as estrelas, dos papanichois do norte aos illinois do sul.
Munido da receita, ele fabricara uma "barreia de madeira", uma maravilha, mais negra do que tinta, com um reflexo amarronza-do, e só de ver o líquido transpirar do leito de palha embebida admirava que a palha não se inflamasse, pois o que gotejava ali era fogo puro. Ora, a Sr a. de Peyrac lembrava bem do que Héurtebise recomendara, ela estava presente quando ele dissera: "Dessa mistura a gente pode juntar duas gotas num quartilho, mas três podem ser mortíferas". Ele, Aristides Beaumarchand, vulgo Barriga Aberta, antigo Irmão da Costa, e que sempre gostara de fazer as coisas direito e de vender boa mercadoria, misturara quatro gotas. Na hora tivera a impressão de que suas tripas, já tão maltratadas, haviam sido perfuradas em mil"pontos, pior do que uma peneira. Caíra no chão, torcendo-se de dor e gritando tanto, que acharam que estivesse acometido de ergotismo, para o que pouco faltou.
Na medida de seus conhecimentos, Angélica, reconstituindo de memória as manipulações aconselhadas, onde entravam resinas, carvão de madeira, cinza e outros ingredientes, dava-se conta de que o hábil aprendiz de feiticeiro obtivera um produto tão perigoso quanto soda cáustica ou terebintina, de onde talvez lhe viesse o nome deformado de "barreia de madeira".
— Você não é nada prudente, Aristides Beaumarchand - aborreceu-se ela. - Como quer que eu fique tranquila com relação a você?
— Bem vê que o bom Deus o puniu, Sr. Beaumarchand - repreendeu a jovem Madre Saint-Charles Borromee, de dedo em riste.
Mas o envenenado recompunha-se rapidamente.
- Ele tem a alma cavilhada ao corpo - disse Angélica.
As religiosas quiseram saber em que circunstâncias ele recebera o ferimento medonho que a Sra. de Peyrac tratara, e que arma o causara.
Angélica e seu operado trocaram uma olhada de soslaio.
- Foi outra coisa em que o bom Deuí o puniu - disse ela.
Aristides Beaumarchand estava encantado por ser tão bem cuidado, e reconciliava-se com Quebec. Não era nos navios de flibusteiros que a gente era mimada assim: os cirurgiões tinham mais de açougueiro do que de clínico com dedos de fada.
Na visita seguinte, Angélica encontrou-o de pé e muito excitado.
— Espero que dê certo - confiou-lhe -, mas as freiras gostaram de mim e comenta-se que vão me aceitar como faz-tudo para os trabalhos pesados.
— Que trabalhos pesados? Você é o indivíduo mais fraco que conheço, e não o imagino levantando sequer uma acha de lenha.
— Não tema nada! Saberei fazer-me útil... Mas venha por aqui, tenho uma coisa para mostrar-lhe.
Magro, enfraquecido, com as mãos sobre o ventre para protegê-lo de esbarrões, levou-a pelos labirintos do mosteiro, que lhe parecia familiar agora, até a porta da botica.
Da soleira, pediu-lhe que desse uma olhada geral sobre o quadro sedutor formado pelo conjunto de retortas de gargalo longo e alambiques de cobre.
- Essas freirinhas são muito espertas em alquimia! Frabricam
um álcool de que não lhe conto nada!
Naquele aposento ele se sentia nos postos avançados de seu combate. Nada o proibia de sonhar que um dia oficiaria ali. Tudo se engrenava para o melhor. Juliana ajudaria as religiosas com os doentes. Era dedicada, vigorosa, e só de vê-la os moribundos recobrariam ânimo. O casal teria à sua disposição um pequeno alojamento não muito distante do terreno onde as famílias dos selvagens hospitalizados erguiam suas cabanas de casca de árvore. Sempre houvera wigwams ao redor do hospital. Aristides seria encarregado de vigiar o acampamento e o comportamento dos índios, frequentemente briguemos, ladrões ou inconvenientes.
- Não é melhor do que o bordel da Gonfarel?
No dia seguinte, triunfante, mostrou a Angélica o registro onde estavam inscritos os nomes de todos os criados da Santa Casa.
O dele vinha seguido de uma menção em latim que o deixava muito orgulhoso: "ad multa", próprio para tudo.
Quebec continuava sendo a cidade das soluções singulares e paradoxais.
A Madre Maria da Natividade mostrava com alegria a oficina das flores artificiais, que ganhava um impulso considerável. Ao longo dos anos as religiosas tinham aperfeiçoado aquela arte, que talvez tivesse nascido de uma necessidade orçamentária, visto que as ordens missionárias com frequência eram obrigadas a acrescentar alguma renda à que era dispensada pela caridade, sempre ultrapassada pelas necessidades dos pobres. Nos primeiros tempos, tinham também fascinado e atraído os selvagens, presenteando-os com raminhos aplicados sobre cartolina, que lembravam os ornamentos que eles próprios bordavam com pérolas ou pêlos de alce coloridos sobre o vestuário acamurçado.
Mas adivinhava-se que, para as agostinianas da Santa Casa, o motivo secreto que as impelira a dedicar-se a uma forma de artesanato, de que uma delas, ao chegar da França, trouxera algumas noções, fora o fato de, naquele país submetido aos rigores do inverno oito meses por ano, estarem privadas da alegria de embelezar a capela.
Não poderem exprimir seus sentimentos de adoração, veneração e louvor a Deus, florindo seu santuário, era-lhes o mais penoso dos sacrifícios.
Naquele século de Contra-Reforma, havia como que uma obsessão com altares. Nada era demasiado belo, rico ou suntuoso para afirmar com que ternura e respeito se cultuava o Altíssimo.
Quando cederam um lote da propriedade a um vizinho, estipularam no contrato que "o licitante entregará às religiosas do hospital desta cidade de Quebec, todo ano, perpetuamente, um ramo de flores para sua capela no dia 8 de setembro, festa da Natividade da Virgem, e no dia de São Remígio, 1o de outubro".
Á parte esses dois ramos anuais de flores verdadeiras, por toda parte agora havia flores artificiais feitas pelas mãos delas, maravilhas florais de cores delicadas, frequentemente misturadas com pétalas de ouro e prata. Criadas pelas hábeis artesãs, eram até enviadas para a França, tão perfeitas eram e tão naturais o seu frescor.
Por toda a casa e pelas capelas, sobre credencias, nos cantos, ao pé das estatuetas, elas colocavam pequenas taças de cobre guarnecidas de pétalas de flores secas no verão, corações de pequenas rosas e cravos que pareciam conservar o perfume original.
O uso de perfumes, a mais inocente das delícias com que Deus quisera cumular sua criatura, levava a uma devoção mais suave e tornava mais fervorosa a súplica.
CAPITULO XIV
A nova curandeira de Quebec - Guilhermina de Montsarrat, a feiticeira da ilha de Orléans
Angélica sentou-se no pequeno cómodo transformado em laboratório onde, naquele dia, escolhia suas plantas.
Das profundezas dos porões da casa, ouviam-se os golpes surdos e regulares de Suzana, que batia manteiga de leite de cabra. Já havia algum tempo, Angélica se vira obrigada a fabricar uma nova provisão de certos remédios de sua composição, que diziam miraculosos. Com aquela manteiga, misturada a bálsamos resinosos e essências de plantas, ela faria alguns potes de unguento a partir de uma velha receita da bruxa Melusina, para aliviar as dores profusas de músculos, nervos ou ossos. De toda parte da cidade chegavam-lhe pedidos do preparado.
Não fora com muito boa vontade nem sem censurar a si mesma que recomeçara a tratar das pessoas a. sua volta. Em sua opinião, estava cometendo uma imprudência.
Começou com a Sra. de Campvert. Angélica sempre evitara seus convites. Tinha plena certeza de que nos salões dela reencontraria indesejáveis como o Duque de La Ferté. Mas, certo dia, um lacaio lhe levou uma carta da dita senhora, rogando-lhe que atendesse ao pedido de ir à sua casa o mais rápido possível. Como o tom era incomum, Angélica não pôde fazer outra coisa senão ir pelo menos informar-se do que se tratava.
A Sra. de Campvert recebeu-a despojada daqueles modos zombeteiros e altivos de grande dama habituada a trapacear nas mesas de jogo do rei.
Estava de roupão e ainda não passara no rosto a camada de al-vaiade e carmim com que compunha uma máscara de boa saúde, se não de juventude. Não passava de uma velha desamparada, que segurou Angélica nos braços, bradando:
— Você, pelo menos você, não me recusará isto!
Levou-a até um cesto acolchoado, onde um macaquinho morria. O médico Ragueneau recusara-se a vir, indignado com o fato de recorrerem à sua ciência, nula de resto, por causa de um animal.
— Pensei em você, cara condessa. Ninguém tem coração neste país. Não dissimule. Faz dois anos que estou no Canadá e já me falaram o suficiente sobre seus conhecimentos de medicina, pois chegaram ao ponto de anunciá-la como feiticeira.
— E justamente por isso, senhora, que não quero de modo algum pôr os meus conhecimentos em prática. Também me acusaram de rogar pragas.
— Mas isso tudo está esquecido! - exclamou a Sra. de Campvert. - O jesuíta está longe, você não tem mais que temer-lhe a suspeita invejosa e intolerante. Rogo-lhe... Você é a única pessoa freqiientável nesta ilhota infeliz onde morro de tédio e frio. Não me decepcione.
As súplicas não teriam bastado para.demover Angélica, caso os imensos olhos devorantes do macaquinho não a tivessem perturbado. Quando o levantou, mais leve do que um ramo privado de seiva, ele atirou-lhe à volta do pescoço os longos braços delgados e negros, e aninhou-se-lhe contra o peito, tremendo violentamente. Lembrou-lhe o macaco Piccolo, do Pátio dos Milagres, que fora pedir-lhe socorro na noite em que um bando de grão-senhores assassinara o taberneiro mestre Bourjus, dono da Taberna da Máscara Vermelha.
A respiração do animalzinho era sibilante. Ele ardia de febre.
— De fato, o frio é excessivo para ele neste país - disse. - Foi imprudência trazê-lo para cá.
— Eu já não havia abandonado o suficiente de minha vida para vir para este exílio? - exclamou a Sra. de Campvert, que se pôs a chorar. - Só me restava meu companheirinho.
Apesar do fogo estrepitoso que a Sra. de Campvert mantinha em casa o tempo todo, o esforço de arrancar o pobre animal à morte parecia destinado ao fracasso.
No momento, curou-o. Depois de aliviar-lhe a congestão que o impedia de respirar, empanturrou-o com um óleo extraído do fígado de bacalhau fresco. Quando de sua estada na costa leste, ela trouxera várias bexigas de alce cheias com esse óleo. Os marinheiros bretões o comerciavam, depois de empilhar os fígados em tablados de ripas, de onde o óleo escorria e dissolvia-se ao sol. Tinham-lhe gabado as virtudes para a defesa contra os males do inverno. O odor era desagradável, mas os resultados, surpreendentes, a ponto de a Sra. de Campvert considerar tal cheiro o mais delicioso do mundo.
A partir daí, não se parou de chamar Angélica nos casos desesperados, às vezes antes do padre, o que fez os eclesiásticos franzir o cenho.
Como poderia ter-se esquivado quando vira chegar, cinza de preocupação, a babá antilhana Pedrina, e soubera que a pequena Ermelina, "miraculada" por ela, fora tragada poruma vala cheia de neve durante uma de suas fugas?
Até aquele momento, os anjos da guarda haviam feito o que podiam. Disso não se podia discordar, pois fora com certeza graças à diligência e engenhosidade deles, que para cumprir sua missão utilizavam-se de todos os recursos, que um passante, bêbado de cair, fora rolar bem naquele local. Apesar do nevoeiro que lhe perturbava a vista, o homem distinguira um sapatinho de pelica branca aparecendo abaixo do vagalhão imóvel de um monte de neve recém-caída. Isso bastara para pô-lo sóbrio e fazê-lo precipitar-se em socorro da criança. Ela ainda respirava. Tinham-na reanimado. Mas, apesar dos cuidados enérgicos, adoecera, a doença progredia, e percebia-se que desta vez os anjos da guarda se davam por vencidos. Somente a Sra. de Peyrac ainda podia salvar a frágil criança. Somente ela podia intervir, afastar a sombra sinistra da morte que rondava perto do passarinho risonho, do bebezinho guloso. Gemendo, a negra suplicava e torcia as mãos.
Angélica seguiu-a até o casarão dos Mercourville. Sentada junto do berço, com a mãozinha de Ermelina aninhada na sua, com a negra murmurando obscuras encarnações africanas à sua frente e, no poleiro, a dois passos, o papagaio silencioso, que dançava pulando de uma pata para a outra enquanto revirava os olhos aflitos de pai à cabeceira da mulher dando à luz, Angélica lutou vários dias.
Reencontrava seu lugar, que remontava à sua infância, quando os camponeses, da enxerga nas cabanas enfumaçadas, suplicavam que a chamassem, a fadinha do castelo.
Gostava de estar ali, gostava de sentir o benefício que, fluindo dela, serenava as feições crispadas pela dor, e do alívio que podia ler nos olhos da pessoa, criança ou adulto.
A garotinha recobrou o sorriso, a gulodice. Tinha menos entusiasmo pelo óleo de fígado de bacalhau do que pelas pastilhas de hortelã, mas estas ajudavam-na a aceitar o remédio.
A Polaca afeiçoara-se a uma mulher da ilha de Orléans que praticava a magia e que a iniciara na leitura do Gr and Albert e do Petit Albert. Era curandeira também. Numa tarde de fevereiro, a Polaca mandou chamar Angélica até a Cidade Baixa.
— Ela virá até aqui - confiou-lhe - e quer vê-la. É raro que ela se aventure até o "continente". Deve estar realmente curiosa por conhecê-la.
— Você vai hospedá-la?
— Não, ela nunca passa a noite aqui.
— Por quê?
— Tem medo.
A bruxa chegava pelos caminhos balizados do Saint-Laurent.
Anunciou-se de longe por um halo luminoso de poeira de neve e pelo hálito condensado de seus cavalos, que aureolavam o trenó. Quanto mais se aproximava, mais nítidos se tornavam seus gritos e os estalidos do longo chicote com que estimulava a parelha, já em galope desenfreado.
Naquele dia estava tudo branco e azul, como que cinzelado pelo frio. Cada som produzia múltiplos ecos.
A multidão da praça, que se entretinha indo de loja em loja, aproximou-se da margem num movimento imperceptível.
Quando o trenó surgiu por entre os cascos dos barcos e navios presos no gelo que entulhavam a enseada do fundo da baía, as pessoas se afastaram e os dois cavalos, atrelados em fila, saltaram e num impulso só atingiram a margem do rio, num ruído de cascos martelando e derrapando sobre o gelo e rangidos dos desli-zadores do trenó mordendo a neve. Estacaram diante da taberna Ao Navio de França, à porta da qual estavam Angélica e a Polaca.
O longo chicote estalou mais uma vez como uma salva de mosquetes. Vários homens e jovens correram para segurar pelas narinas os cavalos, que ofegavam, de olhos arregalados e envoltos em vapor. Acalmaram-nos e atiraram cobertas sobre seu dorso lavado em suor.
Uma mulher alta, em pé na frente do trenó, atirou as rédeas a um menino e pulou em terra.
Encaminhou-se para a taberna a grandes passadas de homem, sempre com o chicote na mão e já começando a tirar as estolas de pele em que estava envolta.
Venha por aqui - disse-lhe a Polaca. - Vamos sentar-nos num canto da galeria. De lá você poderá enxergar sua ilha e, do outro lado, a praça, por onde o corpo da guarda pode aparecer.
As três mulheres atravessaram o salão, por entre as mesas dos bebedores e jogadores, que se calaram, sem que nenhum deles levantasse os olhos para a feiticeira.
No canto isolado onde se instalaram, a mulher acabou de tirar os xales e estolas de lã e pele.
Arrancou o gorro e passou os longos dedos afilados pelos cabelos curtos e muito brancos.
Como lhe tinham anunciado uma bruxa, Angélica a imaginara corcunda, enfezada, suja e sem dentes, à imagem da Melusina das florestas de sua infância.
A mulher à sua frente era idosa, sim, mas ereta e alta, com uma dentadura admirável. A pele de pergaminho quase não tinha rugas. Seus olhos eram azuis, extraordinários, muito claros e risonhos, e estava vestida confortável e cuidadosamente. Sua segunda saia, de la marrom alamarada de preto, erguia-se a meio sobre as botas da terra, algo entre botas indígenas e botas de cavaleiro, forradas, bordadas com ornamentos índios, mas de couro fino. Lembrou a Angélica Mrs. Williams, aquela velha senhora da Nova Inglaterra que uma flecha abenaki matara na sua frente e que, no fim da vida, dava-se o luxo de belas coifas de renda.
Para a feiticeira da ilha de Orléans, a roupa, as botas, o chicote eram luxo. O toucado a preocupava menos, mas aquela auréola de cabelos brancos em desalinho lhe caía muito bem. Ela se apresentou sem rodeios:
- Sou Guilhermina de Montsarrat-Béhars, senhora do feudo
de La Giovanderie, na ilha de Orléans.
Estava com os dois cotovelos apoiados à mesa, e a Polaca apressou-se a colocar-lhe na frente um cálice e um púcaro de aguardente.
- Então, como andam as coisas nesta cidade de patifes? - perguntou Guilhermina. Pegou o cachimbo preso à cintura e começou a enchê-lo com o fumo que trazia numa tabaqueira de bexiga de alce.
Examinava Angélica, sentada à sua frente. Em seus olhos havia uma luz de benevolência e interesse. Depois de algumas baforadas em silêncio, deslizou a mão aberta por sobre a mesa. Com um gesto do queixo, intimou Angélica a entregar-lhe a mão direita, a fim de que pudesse ler-lhe o destino nas linhas de sua palma. Angélica aquiesceu.
Guilhermina se debruçou, mas logo pareceu contrariada. Largou o cachimbo, para procurar nos bolsos das saias amplas os óculos, que empoleirou no nariz a fim de examinar mais de perto o desenho da mão.
— Mas não vai dar certo! - exclamou. - Não vai dar certo!
— O quê?
— O que você deseja.
— Mas o que sabe você do que desejo? Ela própria saberia?
- Em todo caso, não vai dar certo - repetiu a feiticeira, com
ar desapontado.
- Como não sabe o que é, não tem importância.
Angélica perguntava-se se o que desejava secretamente não era
retornar à França e rever Versalhes, e sentiu uma curiosa pontada no coração.
No fundo, entendia o que Guilhermina queria dizer. Ficava decepcionada e tranquila ao mesmo tempo, como se a feiticeira tivesse roçado com seus longos dedos patrícios em verdades que ela não confessava nem a si mesma. "O que me é devido dará certo", pensou, para defender-se de uma sensação de decepção. "Mas o que talvez não dê certo é o que imaginam que eu esteja esperando..." Era melhor não saber. Ou, pelo contrário, era melhor saber para não alimentar ilusões.
O braço da Polaca rodeava os ombros da amiga do Pátio dos Milagres.
— Por que lhe fala de maus presságios, Guilhermina? - censurou.
— Não são maus presságios - replicou Guilhermina de Mont-sarrat.
Mas parecia desconcertada.
- No entanto, você é uma triunfadora! - soltou, brusca.
- Sim - concordou Angélica -, sou uma triunfadora.
Guilhermina parecia surpresa e chocada com o que descobria naquela mão aberta à sua frente, como se Angélica, a quem nunca vira antes, a tivesse conscientemente enganado a seu respeito.
- Ah, você é exigente com seus amigos - suspirou -, é dominadora.
Angélica não dizia nada.
Havia verdade e mentira nas palavras de Guilhermina, que devia ter percebido nela alguma coisa, mas não conseguia interpretá-lo. Guilhermina fez um gesto de irritação.
— As palavras não têm o mesmo significado quando se referem a você. Você é exigente, é verdade, mas sem que exija nada. É dominadora, mas porque os outros se põem sob seu domínio. É porque seus amantes não conseguem esquecê-la que os oprime...
— Assim, você não me considera responsável pelas infelicidades deles? - perguntou Angélica, rindo.
— Não... Mas você não faz nada para evitar que caiam em suas armadilhas... E, no fundo, tem razão...
Deu uma piscadela com ar de cumplicidade. Quando se alegrava, adivinhava-se-lhe a generosidade profunda.
— Perdoe-me - disse. - Deixei-a preocupada.
— Não tem importância.
— De fato, não tem importância... Você é muito forte. Triunfará.
Mas não parecia feliz, e fumava, mal-humorada. Lançou um olhar desconfiado para as duas mulheres à sua frente.
— O que é que existe entre vocês? Não é próprio de você, Janine, fazer amizade com uma grande dama. O que é que as une, afinal?
— Isto - disse a Polaca, cruzando os dedos dè determinada maneira.
— A matterie!
Atrás da feiticeira, um rapaz de ar franzino e zombeteiro também cruzava os dedos em sinal de reconhecimento.
- É o amanuense do Sr. Basílio - cochichou a Polaca ao ouvido de Angélica. - É de nossa terra...
"Nossa terra", para Janine Gonfarel,era o Pátio dos Milagres, em Paris. E, de fato, Paulo Le Follet fez um gesto com a mão bem "de nossa terra" para passar à feiticeira uma bolsa recheada de escudos, em troca de um saquinho de pano que ela puxou da cintura.
No decorrer da tarde, diversas pessoas se aproximaram do canto onde as três mulheres conversavam. A cada uma a bruxa entregava um pacotinho, que acompanhava de algumas recomendações.
O homem a quem chamavam de Velhaco Vermelho, que também tinha a fama de adivinho e feiticeiro, apareceu mas não se aproximou. Tinha medo de Angélica. Ela desconfiava que ele atirara uma pedra em seu gato, no dia da chegada. Fora ele, dizia-se, que vira cruzar os ares as canoas em chamas da chasse-galerie, enquanto a frota do Conde de Peyrac se avizinhava de Quebec. Desde então seus dons de vidência haviam-se acentuado. Era muito consultado, e seus clientes subiam, com risco da própria vida, até sua choupana, empoleirada acima de outras, no flanco da falésia, sob o forte. De escada em escada, chegava-se a seu antro, meio sepultado por longas estalactites. Vivia ali com seu índio esquimó, rodeado de livros e alfarrábios pelos quais também a feiticeira Guilhermina tinha o mais profundo respeito.
— De onde foi que ele tirou esses livros? Só pode tê-los feito surgir da terra por graça de Satã... ou então os roubou.
— Ele tem o Grand Albert e o Petit Albert.
— E uma cópia do Livro de Tot.
— O que admira é que com livros como esses o bairro ainda não tenha pegado fogo - dizia a Polaca, olhando com reverência para as alturas cobertas de gelo onde vivia o feiticeiro. - Se soubesse disso, o procurador Tardieu mandaria pôr todas as casas abaixo. Ele já proibiu que se construa abaixo da falésia, por causa dos desabamentos.
Tomaram aguardente, o que as fazia falar com tranquilidade de coisas graves.
- "Eles" nos matarão a todas! "Eles" nos matarão a todas!
- disse Guilhermina.
De quem estava falando?
- Vá! Fale! Conte o que a atormenta - pediu-lhe a Polaca, solene. - Depois poderemos conversar melhor...
Mas a mulher permanecia imóvel, com a cabeça um pouco inclinada, como se estivesse encerrada em si mesma com uma visão dilacerante. Finalmente suspirou e recomeçou a fumar. Sem saber por quê, Angélica sentia piedade e remorso.
A bruxa tornou a passar a mão pela cabeleira branca. Com gestos inconscientes, ajeitava as mechas em franja sobre a testa, acima dos olhos azuis, de um azul desconcertante.
- Ora! - exclamou. - O que acontecia na Place de Greve, em sua Paris, não era nada... Nos burgos, nos campos, foi pior...
- Pior! Só vendo! - protestou Janine Gonfarel, ferida em seu apego à capital do reino da França.
Fazia questão de que Paris fosse grandiosa em tudo, tanto no bem quanto no mal.
Em palavras dissimuladas, em pequenas frases que revirara na cabeça durante longo tempo, a feiticeira se pôs a evocar a encarniçada cruzada de terror, lançada havia trezentos anos para eliminar da sociedade as coletoras de ervas medicinais, perigosas por possuírem uma ciência que não lhes fora ensinada e que a Igreja não as encorajara a adquirir...
- Minha mãe era mulher sábia num grande burgo nas fronteiras da Loraine - contou. - Também visitava os campos... "Eles" a puseram na fogueira. E enquanto o fogo crepitava e a consumia, "eles" me puxavam o cabelo para me obrigar a levantar a cabeça, e me gritavam nos ouvidos: "Olhe! Olhe! Olhe sua mãe ardendo, bruxinha!"
Levou o copo de estanho à boca, bebeu e pareceu voltar a si.
— Você entende - continuou -, não queriam deixar nada para nós, nem mesmo esse poder. Não podem suportar que sejamos mais fortes do que "eles"...
— Mas quem são "eles", afinal? - indagou Angélica.
— Os homens!
Guilhermina atirou a palavra com rancor. Como é que eles podiam suportar que as mulheres, criaturas;ignorantes, que não tinham passado por suas universidades e por seus exames de teologia, possuíssem tal poder sobre a vida e a morte, sobre o amor e o nascimento? Um poder demasiado grande para que não tentassem arrancá-lo a elas.
- Foi por isso que queimaram as bruxas, e queimaram sem parar, inclusive e sobretudo as que praticavam o bem, que curavam, que aliviavam, mas que ousavam fazê-lo "fora" do poder dos homens e. da Igreja.
Por trás de seu rancor, percebia-se uma dor inumana e pungente, que a fazia voltar a investir o tempo todo contra aquele mal que se tornara familiar, à força de ser comum: as fogueiras das bruxas.
Para ela, eram todas vítimas.
— Mas há feiticeiras que envenenam - disse Angélica, pensando na Voisin.
— Claro! O veneno foi a única coisa que nos deixaram.
Proibiram-nos a beneficência. Sabe o que está escrito no Livro dos inquisidores?
Recitou, dando ênfase às palavras:,
__ "Devemos lembrar que, por feiticeiras, não entendemos somente aquelas que atormentam e matam, mas todo adivinho, encantador, charlatão e mago, comumente chamados de homens e mulheres sábios... aqueles e aquelas a quem se considera bons e boas feiticeiras, que não fazem mal algum..." Está ouvindo? Que não fazem mal algum! "...que não contaminam nem destroem, mas que salvam e libertam do mal... Seria melhor para todos nós que a terra fosse desembaraçada de todas essas feiticeiras, particularmente das que fazem o bem..."
— No entanto, deixam que nossas freiras cuidem dos doentes.
— Porque são religiosas e agem sob a orientação de médicos imbecis, mais ignorantes do que elas, mas que se atribuíram o poder!
— Acalme-se - disse a Polaca -, senão você é que vai acabar numa fogueira!
Com o fornilho do cachimbo apertado entre os dedos, Guilhermina soltava a fumaça em pequenos jatos, do canto dos lábios. Prosseguiu, pensativa:
- Onde estava o mal? Diga-me... As mulheres sempre foram curandeiras... Porque possuem o sentido da terra, dos segredos e dos mistérios da terra. Porque dão a vida. Preocupam-se empreservar o corpo, vêem no corpo outra coisa além de caça para a morte e para o inferno... Não são como "eles", que deixam os infelizes perecer na sua dor. "Irão para o céu", dizem... Não querem que a gente lhes escape... As mulheres curam, cuidam, aliviam... Foi por isso que eles juraram destruir-nos...
Seu olhar pousou sobre as mãos de Angélica.
- Também você tem mãos de curandeira... Mas é mais astuta e hábil do que eu... Haverá de escapar-lhes...
Levantou-se e deu alguns passos pela sala. Voltou-se bruscamente. O rosto suavizara-se-lhe e os olhos azuis brilhavam de novo, alegres.
- Você virá comigo até a ilha, minha bela?
A claridade púrpura do céu insinuava-se pela janela e a iluminava.
- Não... Você virá mais tarde... na estação dos açúcares... quando a seiva do bordo escorre... Você verá, a ilha é toda perfumada...
Juntava as peles atiradas sobre um banco e recomeçava a se envolver nelas. Olhava ao longe.
- Toda perfumada no exterior e um pouco acre e violenta no interior, como uma bela mulher em sua natureza... O perfume é o incenso dos açúcares que a gente coze nas florestas de aceráceas, e o mau cheiro é dos queijos que a gente começa a fabricar nas'entranhas da ilha, sob as abóbadas das herdades na primavera. Você virá! Conversaremos! Preciso contar-lhe muitas coisas que você nào sabe e pelas quais, no entanto, foi perseguida. É preciso que você conheça a conspiração dos homens contra as mulheres e tudo o que fizeram para arrancar a elas o poder que receberam de Deus: o de curar. Ah! Eles queimaram milhares de mulheres sábias e também de homens sábios, a quem elas haviam iniciado em sua ciência. Ah! Veja só, ainda não acabou... Quantas fogueiras ainda! Quantas fogueiras!... Meu Deus!
Uma expressão de dor intensa crispou-lhe as feições.
- Mas não pense mais nisso! - instou a Polaca. - Não pense mais! E parta logo. O sol vai desaparecer.
Antes de lançar seus cavalos pelo Saint-Laurent, Guilhermina de Montsarrat voltou-se mais uma vez para Angélica.
- Gosto de você. Vou preparar-lhe um talismã de proteção.
Se algum perigo a ameaçar, virei avisá-la.
Ao longe, a ilha de Orléans afundava entre as nuvens lilás e rosa que se estendiam acima de seu cimo arborizado, refletindo o sol que se escondia atrás das planícies de Abraão.
A Polaca reprovava a violência da mulher da ilha.
- Foram as infelicidades que lhe viraram a cabeça. Mas se continuar a falar assim, vão acabar por queimá-la ou enforcá-la.
Em sua opinião, Guilhermina denunciava com ousadia excessiva a malícia humana, e não se esforçava por tranquilizar as pessoas a seu respeito.
Vivia em seu solar, que dominava a enseada de Sainte-Pétronille e de onde avistava Quebec de longe, rodeada de gente, animais, índios, crianças, reunindo a vizinhança em festas e bebedeiras cuja licenciosidade era exagerada pelos comentários, fraternalmente ligada à ardorosa Eleonora da Aquitânia, sua vizinha.
Ah! Aconteciam coisas na ilha, com aquela feiticeira a reinar ali...
Não se sabia se era viúva ou casada. Escolhia os amantes entre os belos jovens, rapazes que poderiam ser seus filhos, que no final das contas talvez até fossem seus filhos...
Contavam-se casos de todo tipo a respeito da bruxa, sempre enfatizando o pior.
Na paróquia de Saint-Marcel, perto de Levis, num dia em que se empenhavam em expulsar o Diabo de uma possessa - uma menina de dezesseis anos, de cabelos claros, que pelos seus malefícios causara a perda da colheita de linho -, ela surgira de repente à porta da igreja, estalando o chicote. Na assistência, ninguém se mexeu, sabendo muito bem que ela podia utilizá-lo. Subira pela nave, estendera o braço à pobre possessa e dissera-lhe, com uma estranha suavidade: "Venha! Venha, minha criança".
Acalmada, a outra, que urrava e se debatia, levantara-se e seguira-a, respingando a água que lhe haviam atirado e o sangue das picadas de alfinete que lhe tinham feito para descobrir os "pontos do Diabo".
Cinco minutos mais tarde, o trenó da feiticeira galopava pelo Saint-Laurent, levando a jovem.
"Veio buscar a presa, a maldita!", comentaram os presentes.
Agora, dizia-se que ela cuidava da jovem na ilha com poções calmantes. Mas muitos falavam até mesmo de sabá.
De volta a casa, Angélica pousou as mãos sobre as flores secas, que selecionava à medida que lhe vinham pedir remédios. Fizera de tudo para evitar ser solicitada.
Mais bem-informada do que a Polaca, sentia-se menos tentada a tachar Guilhermina de exagerada. Pois a ciência das plantas levara centenas de milhares de mulheres à fogueira.
"Tanta loucura! Por quê?", dizia consigo, fechando suavemente o cofre de medicamentos. São Cosme e São Damião velavam. Eles eram bem a prova de que sobre a terra tudo se interliga, e que até a loucura tem sua contrapartida de bom senso.
Diante de seus saquinhos e frascos, sentia-se próxima de Jof-frey, que, no meio de suas retortas, também inspirara a desconfiança e dera azo à perseguição. Era por isso que os dois se assemelhavam e que pudera nascer entre eles um amor maravilhoso.
No crepúsculo gelado, de um azul de água profunda, as luzes dos solares distantes, ao longo da costa de Beaupré, brilhavam como olhos de lobos.
Às vezes, qual flor vermelha, uma fogueira tremeluzia à beira de um rio ou na orla de um bosque.
Uma luz deslocava-se qual vaga-lume na imensidão azul afogada em sombra do rio congelado, e Angélica adivinhou que Guilhermina, a feiticeira, fazia galopar seu trenó e suas duas éguas favoritas. Retornava a seu refúgio, a seu solar cheio de vida, fora das leis comuns.
Angélica sentiu que um dia gostaria de sentar-se no salão do solar de Guilhermina de Montsarrat-Béhars, e esta lhe contaria seu segredo.
Iria visitá-la na ilha de Orléans quando chegasse a estação que precede a primavera e que, no Canadá, chamavam de "a época dos açúcares".
CAPITULO XV
Ecos da Diaba - A noite das panquecas
Angélica procurara diferentes pretextos para rever a Madre Madalena, conforme esta lhe pedira que fizesse. ' Pouco depois do Dia de Reis, levou-lhe para dourar dois candelabros de madeira, com motivos religiosos, que encomendara ao Sr. Le Basseur com a intenção de presenteá-los à Polaca, para seu oratório.
A Madre Madalena, que era chefe das oficinas, recebeu a encomenda pessoalmente.
A aplicação e o prazer evidente com que as religiosas se entregavam ao trabalho inundavam Angélica de serenidade. Quando ia à oficina para visitar a Madre Madalena, tinha dificuldade em lembrar que o conhecimento delas fora presidido por uma sombria história demoníaca.
Duas outras ursulinas e suas aprendizes também trabalhavam na oficina, cada uma absorta em sua tarefa específica. Mas era possível trocar com elas algumas palavras.
A queima-roupa, Angélica fez à Madre Madalena a pergunta que havia muito a preocupava.
- Diga, irmã, que rosto tinha o arcanjo?
A freira lançou-lhe uma rápida olhada de soslaio, mas não fez cara de não haver compreendido.
Depois de manejar mais um pouco o trapo de lã com energia, a Madre Madalena pousou-o a seu lado. Com um gesto do piil-so, já que não podia usar os dedos manchados de mil produtos, afastou da testa uma mecha que escapara da coifa.
- Parecia-se com você - disse afinal. - Sim, é assim que o vejo... sobretudo desde que a conheci. Antes era somente uma silhueta de luz, com um espada flamejante. Uma silhueta de alguém muito jovem, mas muito orgulhoso. Muito puro, mas também... implacável... O arcanjo vingador. Tinha olhos claros como os seus, senhora, e nas feições, algo de sua beleza... Mas não era você... Nenhuma possibilidade de confusão... Não era sequer um reflexo seu... Posso dizer que esse aspecto viril que se atribui aos anjos encarregados de guardar o trono de Deus transparecia-lhe em toda a pessoa, embora a juventude o adornasse de uma graça feminina. Tinha longos cabelos cacheados... dourados... Era... maravilhoso - suspirou ela. - Era um arcanjo - concluiu, com seu bonito sorriso desarmante.
— E o monstro? O animal peludo que se atirou sobre a Diaba para despedaçá-la com os dentes pontudos e as -garras?
— Também o vejo - afirmou ela, arrepiando-se. - Era um animal assustador... Suas pupilas brilhavam com um fogo feroz. Os dentes, os caninos agudos de vampiro, descobriam-se num ricto cruel... As garras me pareceram aguçadas como punhais alongados...
Novamente cravou em Angélica um olhar perscrutador, depois um meio sorriso levantou-lhe os cantos da boca, enquanto um clarão malicioso fazia cintilar-lhe as lentes dos óculos.
— Por que me faz todas essas perguntas, cara senhora? O que ainda espera saber de minha lastimável clarividência? Qual será o arcanjo que um dia se erguerá e intimará a besta imunda a destruir a Diaba? Na verdade, talvez já o saiba melhor do que eu.
— Sim... Talvez... de fato - murmurou Angélica.
A visão de Cantor com o seu glutão irnpunha-se a ela, só que Wolverines não era uma "besta imunda", longe disso...
Depois, de repente, sentiu que empalidecia. Por que a Madre Madalena falara no futuro? "O arcanjo que se erguerá..."
- Mas... Mas ela morreu! - bradou.
As trabalhadoras, que lidavam num silêncio de feltro, levantaram a cabeça e olharam na direção delas. Angélica procurou acalmar-se.
— Por que se exprimiu assim? - perguntou baixinho à Madre Madalena. - Falou como se esses acontecimentos ainda fossem ocorrer. Não é verdade! O arcanjo já atacou! A besta já matou! Por que se exprimiu como se a Diaba ainda rondasse por esta terra e não tivesse concluído sua missão infernal entre nós?
— Eu... eu não sei - balbuciou a pequena ursulina, com ar infeliz.
A visível emoção de Angélica a desconcertava.
— Falei assim porque... talvez porque sinta que a Acádia ainda não está salva...
Angélica censurou-se pela própria impulsividade sempre à flor da pele quando se mencionava aquela história maléfica. Ora, a reflexão da Madre Madalena era pertinente. Mesmo com Am-brosina morta, a Acádia não estava salva. Mesmo com o Padre d'Orgeval afastado, as consequências dos atos' deles e das tramas que haviam urdido, das armadilhas que haviam concebido ainda se podiam fazer sentir.
Teve vontade de insistir com a jovem visionária, obrigando-a a definir suas intuições, mas a monja, lembrada dos imperativos de sua tarefa de douradoura, fez-lhe sinal, com um dedo sobre a boca, para que não falasse mais, mal respirasse e evitasse qualquer movimento brusco que provocasse deslocamento de ar. Pois uma pequena aprendiz acabara de colocar à sua frente a almofada que servia para transportar as folhas de ouro em que eram cortadas, na forma desejada, com um faca especial. Era uma pequena prancha de madeira, forrada de algodão de qualidade e recoberta de pele de vitelo desengordurada ou pele de gamo. Uma folha de pergaminho cercava três lados da prancheta, para impedir o vento de levantar e levar as folhas de ouro. Era preciso desconfiar do próprio hálito, tão impalpável e aéreo era o material a moldar.
Com a circunspecção e a prudência de um índio na trilha da guerra, Angélica levantou-se, afastou-se da bancada e foi embora.
Uma neve suave e algodoada caía do céu noturno. O ângelus do anoitecer acabava de soar. Ainda havia passantes nas ruas, adivinhavam-se-lhes as silhuetas por trás das brancas e lânguidas cortinas de neve, bem como coches aos solavancos. Na Place dermes, um esquadrão de soldados saindo do forte, de enxada ao ombro, começava a desentulhar õs arredores do Castelo Saint-Louis, antes que se tornassem inacessíveis. Uma tarefa hibernal que se assemelhava à de esvaziar o inesgotável tonel das Dao,ai-des. E os montes de neve se acumulariam, as trilhas se tornariam cada vez mais estreitas, labirintos sinuosos por entre os muros de uma cidade de gelo que envolvia a outra.
Andando, sozinha, envolta em neve e silêncio algodoado, Angélica, com as mãos metidas em seu regalo de pele, tentava dissipar uma nova apreensão sem objeto. Mas, ao empregar o futuro, quando dissera "Qual será o arcanjo que virá...", a Madre Madalena a impressionara desagradavelmente. Recomeçava a raciocinar agora. E se Ambrosina não estivesse morta e fosse reaparecer à sua frente, ali, em Quebec? Com aquele sorriso que ocultava féleos horrores! Um espírito súcubo não é capaz de tudo? Nada disso! Ela morrera! Seu corpo fascinante fora encontrado dilace-.rado, "uma horrível mistura de ossos e carne macerada, arrastada pela lama...", conforme se declamava antigamente nas tragédias de Racine.
Para voltar a. atormentá-los, Ambrosina precisaria encontrar outro corpo para si... Impossível... Com o desaparecimento daquele corpo, cessava o malefício, Angélica sabia. "Estou delirando... Ela está morta e bem morta..."
Chegou-lhe aos ouvidos o som de um órgão, abafado, incerto. A ogiva de um vitral recortava-se, indistinta, na alta falésia de um muro. Angélica estava atrás da catedral. Ligando a sé ao seminário e às vezes servindo de sacristia, havia uma construção que alojava em sua torre-campanário um órgão, onde os alunos vinham estudar. Angélica adivinhou quem estava tocando naquele momento: Cantor.
Levantou o trinco de uma portinha de madeira ao pé da torre e, depois de atravessar a sacristia, subiu uma escada íngreme até o andar sob as cumeeiras, arrumado como sala de estudo para os músicos. Um órgão mais modesto do que o que ocupava as tribunas da catedral, mas de belo som, permitia aos alunos exercitar as escalas.
Cantor estava ali, iluminado por duas tochas enfiadas em argolas de ferro, cravadas na parede para essa finalidade. A fumaça fuliginosa escapava pelos interstícios do teto. O desconforto glacial do lugar não parecia perturbar o jovem músico. Tocava com entusiasmo e, em certos instantes, com majestade. O calor de seu sangue animado por uma alegria interior e o vigor que precisava despender para executar os difíceis exercícios rosavam-lhe o rosto. As vezes, quando abaixava as mãos sobre as teclas e nelas apoiava os dedos com uma vibrante determinação, parecia que os enfiava numa matéria maleável como argila para extrair um som possante, subterrâneo, escondido naquele amálgama inerte de madeira, marfim, ébano, couro e metais trabalhados, atravessado pelo ar para exalar aquele inexprimível grito da alma que a terra e o céu, e a água e as árvores aprisionaram no caos da Criação, para todo o sempre, em suas fibras, em seus poros, e que o milagre da arte, entre outros, liberta.
Os olhos de Cantor a viram ali, em pé perto do órgão. Mas ele continuou a tocar. Não estava presente... Corria no desencadeamento de notas e sons, assim como corria sob as árvores do Novo Mundo, com a velocidade do índio, assim como se deixava ir ao sabor das ondas nas grutas das margens do Maine.
Florimond o vira em sonho no alto de cristas espumantes, chamando: "Venha! Venha! Florimond!... Venha fazer isto comigo!"
Em certos instantes, seu olhar de água clara voltava a pousar em Angélica. Ela sentia que, ao distinguir-lhe o rosto no escuro, uma onda de exaltação viera somar-se ao arrebatamento do rapaz.
"Que força e que virtuosismo o possuíram?"
Estava paralisada, comovida, sufocada como que por um choque, um golpe que tivesse levado em pleno peito e que lhe fizesse perder o fôlego, enquanto a amplidão dos sons, a música que planava, imensa, enorme, parecendo vir de outro lugar, recobria a ambos, quase esmagando-os. Mas o arcanjo.alçava vòo. Planava, por sua vez, em meio àquela tempestade que ele desencadeara e de que continuava sendo o senhor. Sorria. Um sorriso de luz, interior. O rosado de suas faces, a claridade de seus olhos verdes, o reflexo dourado de seus cachos irradiavam essa luz interior, como num fenómeno de transfiguração.
Olhava-a com a expressão de uma criança encantada com o próprio poder, oferecendo-lhe o que podia oferecer de mais belo, obra de suas mãos.
A mãozinha rechonchuda e vigorosa de Cantor na dela, quando saltitava a seu lado pelas ruas de Paris... Sempre trazendo os filhos pela mão, sempre andando, correndo, trazendo-os, levando-os rumo à vida...
Inclinado para ela enquanto os sons do último acorde se perdiam num ronco majestoso, ele oferecia-lhe o rosto radioso.
"Como é jovem! Como é inocente!"
Parecia esperar alguma coisa dela, uma palavra, um gesto, mas na verdade ainda não a via senão em sonho. Sua alma retornava lentamente. Todas as palavras seriam pobres. Ela lhe dava a própria presença, aquela emoção que lhe contraía a garganta.
Os sons decresciam, morriam. Ouviram-se as tochas de resina crepitar. Cantor levantou as mãos. Quando falou, a voz pareceu-lhe quase débil, depois daquele trovão desenfreado.
Uma voz grave e suave, de homem novo.
- Você veio, minha mãe...
Ela lhe disse que, passando pela rua, ouvira os acordes do órgão e soubera que ele se encontrava ali.
- Você ouviu? Ouviu a passagem dos espíritos infernais?
Fitou a partitura musical.
- Há uma passagem em.que o compositor quis evocar os demónios que rondam na terra, por entre os homens... Enquanto tocava, não pude deixar de lembrar a horrível criatura que quis nos destruir neste verão, na costa leste, o fogo dos-olhares daquela mulher... Que alívio quando, ao som de trompetes, chegam do céu as falanges, lançando-se em socorro dos homens...
Após um silêncio, murmurou:
- Ela morreu! Ela morreu!
Angélica quase não se admirou de ouvi-lo responder a seus pensamentos. Indagou, a meia voz:
— Foi você, Cantor, o primeiro a encontrá-la morta?
— Sim.
— Wolverines estava com você?
— Sim.
Levantou para ela o tranquilo olhar verde.
— Mas não foi ele que a matou... Os ferimentos não eram recentes... Quando me aproximei, uma nuvem de moscas levantou-se de seu rosto desfigurado...
— Você só a encontrou ao amanhecer... O glutão não poderia tê-la matado durante a noite, correndo-lhe ao encalço, depois que ela fugiu?
Ele fez sinal de que não.
- Nesse caso, ele lhe teria separado a cabeça do tronco... Teria sido preciso ir procurar-lhe a cabeça entre as árvores. Os glutões costumam agir assim.
Sussurravam, pois o eco fazia repercutir o menor ruído sob as abóbadas.
— Não se pode imaginar a força de um glutão movido por uma fúria assassina. Consegue arrastar até o alto de um bordo ou olmo a cabeça de um alce, com toda a galhada... E Wolverines odiava a Sra. de Maudribourg...
— Teria sido obra de lobos?
— Não sei...
Cantor aproximou o rosto do da mãe, a fim de falar-lhe ainda mais baixo.
_ Ela está morta, minha mãe... Isso é o que sei. No momento, está morta! Não pode fazer mais nada contra você...
Sob o efeito do frio glacial que reinava na capela, o hálito deles ao conversar unia-se em nuvenzinhas de vapor. Os dedos de Cantor, imóveis agora, entorpeciam. Ele os levou aos lábios, para tentar aquecê-los.
Bem perto, no campanário, rangeu um mecanismo, e o badalo de um relógio soou uma nota tranquila, severa, lenta em apagar-se, e Angélica sentiu-a como um chamado à ordem. O relógio tinha razão: aquelas palavras sinistras não convinham ao local santo onde harmonias tão celestiais acabavam de retinir.
Cantor enrolou as partituras, como aluno aplicado.
Em Quebec, recuperara o prazer da música religiosa e do coral. A voz, que mudara de todo agora, conservava o dom recebido no nascimento. Tornara-se mais grave, mas permanecia clara e bela.
Lá fora, viram-se encerrados no segredo de uma neve sem violência, suave como uma chuva de pétalas.
Seguiram pelo silêncio das ruas de Quebec, onde Angélica não imaginara que caminharia um dia ao lado do filho reencontrado. Agora era ele quem lhe tomava o braço, pois era mais alto do que ela.
No dia seguinte comemorariam a festa da Candelária, e Angélica lembrou-se daquele 2 de fevereiro em que o levara nos braços, como um pequeno Jesus de cera, através de Paris coberta de neve, fugindo à sórdida Santa Casa onde ele acabara de nascer. Um bebe puro e branco, penugem de ouro e faces de porcelana, e ela o segurava como a um -tesouro sob o manto, aquecendo-o ao regaço.
- Amanhã é a festa da Candelária -. disse ele de repente. - Faremos panquecas e você nos contará-sobre "o tempo do chocolate".
Passaram pelo solar de Montigny, para convidar Florimond a vir fazer panquecas no dia seguinte, conforme a tradição.
Florimond estava alojado no solar. Pouco o viam, pois era sempre requisitado por mil atividades.
Trabalhava, entre outras coisas, redigindo mapas e relatórios de sua expedição ao Mississipi, no sul, que terminara na baía do Hudson, no norte.
Angélica espantou-se ao encontrar no gabinete de trabalho onde ele ficava habitualmente a Sra. de Castel-Morgeat, a quem Flori-mond e Ana-Francisco relatavam o primeiro encontro deles, no rio dos miamis, quando Ana-Francisco, então prisioneiro dos Illinois, estava a ponto de conhecer um destino funesto. Já lhe tinham levantado várias vezes a cabeleira com ares de avaliação, quando Florimond interviera. O relato do combate e da fuga comportava vários episódios. A amizade dos dois datava daquele dia. A presença da mulher do tenente-general podia explicar-se pela de Ana-Francisco, que quase não se separava do companheiro, mas Angélica desconfiou que Sabina procurava todas as ocasiões para estar na presença daquele que fora seu primeiro amor, o Conde de Peyrac.
Olhava para Florimond como se visse nele o filho que sonhara ter, nascido do homem a quem amava.
"Ele deve se parecer com a mãe de Joffrey, pensava Angélica mais tarde, quando, estando toda a casa adormecida, demorou-se junto ao aquecedor de louça, no salão aconchegante.
E sentiu-se tocada em seu ponto fraco, como se outra mulher, que tivesse alguns direitos sobre Joffrey, tivesse vindo pedir-lhe contas.
Joffrey falava raramente da mãe. Outro dia, evocando as viagens durante as quais conhecera o Padre de Maubeuge, dissera: "Eu navegava. Enquanto isso, minha mãe era regente de nossos domínios tolosanos..."
Criança, Joffrey fora confiado a uma ama, uma protestante das montanhas. Era o tempo das guerras religiosas. Durante um massacre perpetrado pelos católicos no povoado huguenote, o menino de três anos fora atirado pela janela e ferido no rosto. Um camponês o recolhera em sua cesta. Ele lembrava sua chegada a Toulouse e contava: "Minha mãe me pegou nos braços e me levou para o terraço do palácio, para o sol. Fiquei deitado ali durante anos. Pouco a pouco recuperei força e saúde". Um garotinho parecido com Florimond, deitado num leito de repouso, no topo de um palácio rosado e, perto dele, uma mulher alta, de olhos negros, com a constância de sua presença, suas mãos, seu olhar, o traz de volta à vida, com o auxílio do sol.
O sol! O sol!
O gelo estalava lá fora, na noite muito negra.
Na Candelária, atrás da qual se escondia a festa pagã do solstí-cio de inverno, as panquecas bem redondas, douradas, simbolizavam o sol, chamavam o retorno dele ef assim, também o da fortuna.
Com um luís de ouro na mão, tinha-se que fazer as panquecas saltarem, e caso se conseguisse atirar uma para cima do armário, a família ficaria rica naquele ano.
Também se dizia que "na Candelária, se o urso sai e vê a própria sombra, neva quarenta dias".
Segundo o ditado, o sol era mau sinal, pois enganava o urso adormecido e o atraía para fora do covil, crendo numa primavera precoce demais para manter-se.
A tormenta, pelo contrário, que soprasse os círios bentos trazidos da igreja, fazia esperar que o inverno, depois de esgotar sua vindita, se cansasse mais cedo.
Naquele ano, o dia trouxe um enigma. De manhã o sol brilhava, mas à tarde a neve começou a cair abundantemente.
O inverno seria longo ou curto?
De todo modo, diziam as pessoas, sem ilusões, quase não havia diferença entre um inverno longo e um curto. Como de hábito, teriam que chapinhar na lama até maio, e os navios não chegariam antes de junho.
Na casa, o pequeno tambor do exército, cuja condição de órfão movera Angélica a convidá-lo, viera juntar-se a Florimond e Cantor e às crianças "habituais": Neals, Marcelino e Timóteo. O sol ainda brilhava quando eles começaram a untar a frigideira. Duas horas mais tarde, quando levantaram a cabeça, vermelhos e suando, para contemplar .as pilhas de panquecas sobre a mesa, viram que a neve silenciosa chegava quase à beirada da janela. O nível subia a uma velocidade surpreendente, como o de um reservatório alimentado por uma barragem escancarada. Divisaram uma lebre branca, que, vinda dos bosques, erguia-se sobre as patas traseiras, para roer a casca dos troncos no cruzamento dos galhos.
Nos santuários brancos das árvores sobrecarregadas, pássaros embolados, de garganta vermelho-alaranjada, verde ou amarela, alinhavam-se uns juntos dos outros, como num espeto, como lâmpadas de Natal. A brancura da neve derramava no interior da casa uma claridade de festa.
Angélica falava da Candelária em Paris, quando "crianças azuis" e "crianças vermelhas", os órfãos vestidos com as cores da cidade, passavam o dia vendendo grandes filhoses açucarados pelas ruas.
As recordações desfilavam, e Angélica contou-lhes como fora procurá-los na casa da arrendatária de Neuilly, a quem precisou ameaçar com a ponta de seu punhal egípcio para reavê-los.
O bebe Cantor estava deitado sobre a palha do estábulo, entre o boi e o asno.
— E, apesar disso, você continuava rechonchudo, roliço, e se contentava em sugar com toda a paciência um pedaço de pano. Estava horrivelmente sujo. A criadinha Javotte o alimentava como podia, com um pouco de leite que ela roubava na hora em que ia vendê-lo. Mas nunca ninguém o lavava.
— Que bonito! - disse Cantor.
Florimond não lembrava que se escondera na casinha do cão para proteger-se dos maus-tratos da rendeira. Tampouco se lembrava da Tour de Nesle ou do Pont-Neuf. Só da casa do moinho verde. As provações da infância só lhe haviam deixado uma vaga recordação.
Em compensação, quando, alguns anos mais tarde, fora introduzido na corte, começara a viver, e a partir daí tinha apenas boas lembranças, mesmo dos anos de colégio que se seguiram.
Na corte, o aprendizado de pajem, a que se somara o do manejo da espada, e mais tarde, quando tivera que renunciar àquela existência de diligente borboleta que ele levava em Versalhes a fim de ingressar num colégio sombrio - a descoberta das ciências -, tinham-lhe permitido não sofrer.
Desde que tivera que h>ater-se em duelo, atrair a atenção dos príncipes e do rei e fazer experiências de química, abrira-se para ele uma porta para um mundo fascinante, que fizera deslizar para o esquecimento as provações que não lhe permitiam, mesmo quando era pequenino, mostrar de que era capaz. Desempenhar uma função, fazê-lo o melhor possível junto a pessoas importantes, convinha-lhe à atividade infatigável e no sentido que ele possuía da própria importância, somado a uma avidez por aprender e aperfeiçoar-se o mais possível em tudo, que o fez aceitar sem dificuldade o contraste brutal entre a vida na corte e o colégio austero.
Para Cantor, as coisas foram diferentes e pareciam ter acontecido ao inverso. Sonhador, artista preocupado com a tranquilidade e o bem-estar, interior e exterior, com satisfações pacatas, em que a alegria de comer lentamente boas coisas ocupava um grande espaço, a vida na corte lhe desagradara profundamente. Claro, as grandes damas tagarelas entupiam-no de guloseimas, que ele nem tinha tempo de saborear tranquilamente; claro, com Flo-rimond, puderam fazer grandes artes, como no dia em que amarraram um no outro os laços dos sapatos do Sr. de Ronsabel no momento em que ele ia fazer sua reverência ao rei; claro, ele gostava muito do Abade de Lesdiguières, seu preceptor, e também gostava de cantar para a rainha, mas era preciso ter pressa sempre, correr, segurar a cauda de mantos carregados de bordados, que para um menino de oito anos eram bem pesados. De resto, em Versalhes, na maioria das vezes não se sabia onde se dormiria nem onde se comeria. E por último, o Sr. Lulli, mestre-de-capela do rei, falara em várias ocasiões,' com Cantor em mente, de uma inquietante operação destinada a conservar-lhe a "voz de anjo"...
- Eu sabia que não podia fazer nada contra as coisas desagradáveis - explicou Cantor. - Só tinha que ser paciente e esperar a ocasião de jogar minha cartada: ir ao encontro do meu pai. Sempre pensei assim, acho que mesmo quando ainda era um bebe de berço.
Florimond e ele admitiam de bom grado que tinham tido ciúme da mãe. Ela pertencia a outros. Nunca a viam. O rancor vinha do sentimento de perda irreparável que tinham quando o rosto dela se apagava diante de seus olhos, desaparecendo como um sol e fazendo-os mergulhar de novo numa escuridão onde se sentiam às voltas com o que Cantor chamava de "coisas desagradáveis". Tormentos e penas informulados, que eles sentiam a espreita de sua frágil existência. E quando moravam na casinha de cocheiro, quando Angélica trabalhava na Taberna da Máscara Vermelha ou na chocolataria, Bárbara, a criada, tinha tanto medo quanto eles.
Ameaças horríveis, cuja sombra sumia como que por encanto assim que a mãe reaparecia.
E enquanto falavam, os jovens se davam conta de que aquele elo rosto de mulher se incorporava às suas mais remotas sensações de felicidade. Evocaram o cavalo de pau de Florimond, a caixa de tesouros em que a mãe começara a guardar objetos de sua vida passada e que sempre abriam com ar misterioso. Honorina ouvia, arregalando olhos atentos, e fazia perguntas:
- Mamãe, o que havia em sua caixa de tesouros?
Angélica precisou fazer um esforço de memória. Havia, certamente, a adaga afiada de Rodoguno, o Egípcio, aquele punhal com que ameaçara a rendeira. Havia uma pena do impenitente panfletário a quem chamavam Poeta Pobre e que acabara enforcado, por haver satirizado demais em suas canções os escândalos da corte.
Mais tarde houve uma esmeralda de um príncipe da Pérsia, Bei Bakhtiari...
- Mamãe, que foi que você fez de sua caixa de tesouros?
Disso Angélica não conseguia lembrar-se.
. A penumbra descia. A neve continuava caindo. Na casa, só o clarão do fogo iluminava os jovens rostos, e a um canto da sala ardia a chama do círio da Candelária, que devia presidir àquele primeiro dia e que depois, ao longo do ano, seria aceso nas tempestades, para afastar o perigo iroquês, para velar os agonizantes e os mortos.
Angélica interrogou Florimond acerca da viagem para além dos mares, que ele empreendera a partir diurna "ideia", uma certeza de que encontraria o pai e Cantor, e que lhe salvara a vida. Falaram de Natanael de Rambourg, que partira com ele.
Mas este período mais recente da existência deles agradava-lhes menos do que o outro, o "tempo do chocolate", e retornaram àquela época, aos poucos fazendo desse episódio da primeira infância um inesquecível conto de fadas, povoado de brinquedos, de biscoitos e mingaus quentes, de passeios de verão, com o Sena como cenário quando iam a Versalhes ver o rei comer, as danças do macaco Piccolo, risos e canções, a boa Bárbara, que os beijava apertando-os contra o amplo peito, recriando dias tocados pelo perfume de sua mãe, iluminados pela presença de sua beleza e que, de recordação em recordação, transformavam numa infância paradisíaca, em que ela nunca se separara deles.
O JARDIM DO GOVERNADOR
CAPÍTULO XVI
A corte do Canadá - Intimação do chefe de polícia
Alguns dias depois da Candelária, à saída da missa cantada, o senhor governador decidiu passear em seu jardim. "Com todas as suas damas...", conforme diria a canção.
O tempo estava límpido e belo. Tinham acabado de ingressar naquele período do inverno em que os dias se encadeavam tão claros e serenos, que não surgia uma única nuvem por três semanas seguidas.
O cortejo, subindo da catedral, passou diante do Castelo Saint-Louis e atravessou a Place d'Armes. Um pouco acima, atingia-se o jardim desenhado pelo Sr. de Montmagny, segundo governador da Nova França, em cujas aléias o Sr. de Frontenac, ao passear, sentia-se um pouco como Luís XIV em Versalhes.
Guardadas as proporções, naturalmente.
No entanto, quanto à beleza e à graça das damas do cortejo, a imponência e a animação dos cavalheiros, o luxo de seus trajes, a que as capas e mantos de pele, os regalos, as boinas ornadas de plumas, as botas trabalhadas à maneira indígena acrescentavam uma nota suntuosa, a pequena corte do governador valia bem a do Rei-Sol. Os gentis-homens levavam espada. Alguns, como Ville-d'Avray, apoiavam numa bengala com pomo de ouro ou marfim uma mão enluvada em pele forrada.
Os caminhos que serpeavam entre duas muretas de neve davam menos segurança a uma caminhada nobre do que as aléias de areias dos canteiros reais, mas o séquito ainda podia distinguir-se pela conversa elegante e pela alegria. Era a corte do Canadá.
Em todo caso, o jardim do governador, cujo traçado à francesa apresentava certo rigor, com seu labirinto de buxo aparado, com o qual tentaram dar-lhe um arzinho de Versalhes, perdia a solenidade quando se chegava diante do que constituía o orgulho de Frontenac: o seu canteiro de repolhos.
Havia ali uma reserva para o inverno inteiro, afirmava ele, pois mandara plantar vários acres. Nas primeiras geadas, cortavam-se os repolhos, que eram virados de cabeça para baixo nos sulcos, onde a neve e o frroos conservavam. Quando precisava, o cozinheiro do castelo mandava seus auxiliares abastecerem-se de tal reserva.
Naquele dia de fevereiro, participava do passeio quase toda a alta sociedade de Quebec, que escoltava o governador. Oficiais, conselheiros, nobres e mercadores estavam ali, bem como moços e moças das respectivas famílias, e algumas crianças.
Honorina vinha de mãos dadas com Angélica.
Houve exclamações acerca da graciosidade do buxo sob a neve e, mais adiante, acerca da vastidão do canteiro de repolhos.
- Os horizontes de Versalhes não são mais grandiosos? - soou atrás de Angélica a voz do Duque de La Ferté.
O frio avivava um pouco a acne das arestas do nariz dele. A luz crua do sol nórdico era nociva à compleição congestionada dos grandes bebedores.
— Os horizontes de Versalhes são belíssimos, mas também gosto destes - replicou ela, apontando o deserto branco que se enxergava das alturas do cabo.
— Bah! Selvageria! Que decadência para uma mulher para quem Versalhes inteira voltava os olhos!
— Que decadência para você também, Sr. de La Ferté, que tem que ocultar a própria soberba sob um nome sem brilho!
— Isso é coisa provisória, você bem sabe. Mas refletiu nas minhas últimas declarações?
— Quais?
— Que poderíamos nos desentediar juntos.
— Cavalheiro, creio que já dissemos tudo a esse respeito.
— O assunto me apaixona...
- Está dizendo disparates...
Ela se afastou.
A arrogância de Vivonne não resistira à atmosfera do Canadá. Fora-lhe singularmente diminuída, como que embaciada, assim como um metal não-nobre não pode resistir a agressões demasiado violentas e contrárias da natureza.
Privado de honras, de lisonjas, do jogo das intrigas, da auréola com que o cercavam a glória da irmã e a amizade do rei, afastado de um cargo que ele não preenchia sem talento, o de almirante das galeras do rei, desocupado, remoendo as próprias inquietações, sem poder encontrar em si mesmo os recursos suficientes para lutar, visto que nunca se preocupava em acumular tais recursos, ele envelhecia. Soubera antecipadamente que se entediaria, mas não que sofreria. E, de fato, nada teria acontecido caso não tivesse tido a surpresa de ver Angélica aparecer. Sem ela, a situação poderia ter sido aceitável.
Mas ela o impedia de esquecer. Despertava-lhe as mágoas, e no sono os sonhos tinham ressurgido com mais acuidade. Toda manhã, ao despertar, dizia consigo: "Ela está aqui, nesta cidade, a mais bela". E isto bastava para transformar a cidadezinha entediante no receptáculo de uma aventura que o fazia fremir de impaciência e com uma expectativa que o exasperava mais pelo fato de ele saber que não haveria nada, nunca mais haveria nada entre eles. Para ele, a presença dela era tão inútil quanto a de um fantasma, como se a contemplasse inacessível por trás de uma vidraça. Cada palavra que trocavam o deixava com uma impressão penosa, irritante. Repetia que na próxima vez lhe diria isto e aquilo, que haveria de feri-la e vingar-se.
Os grupos dispersaram-se por entre as aléias, e muitos foram visitar o labirinto de buxo, que Frontenac mandava os soldados desobstruir com frequência necessária.
Cuidando para manter-se a distância de ouvidos devotos e eclesiásticos, Ville-d'Avray contava histórias licenciosas.
A Sra. de Mercourville, de seu lado, comunicava sua vitória aos amigos. O Sr. Gualberto cedera e lhe dera o nome dos prisioneiros ingleses que eram escravos na aldeia dos huronianos e que conheciam os segredos das tinturas vegetais para a lã. Caso pudessem trazê-los para a cidade e empregá-los, o Canadá já não precisaria importar tecidos da França. Enquanto isso, teceriam o linho de que houvera uma primeira colheita naquele ano, nas margens do Saint-Laurent.
Os marceneiros construíam teares, usando como modelo o que ela encomendara de Aunis.
- Gosto de ver vários ferros ao fogo...
O Sr. de Peyrac, o Sr. de Frontenac e o intendente Carlon conversavam sobre minas de potassa e alcatrão.
Berengária Tardieu de La Vaudière, com aquela espécie de ingenuidade que lhe era habitual, já não ocultava que faria tudo o que pudesse a fim de que o Conde de Peyrac a amasse. Sua carinha infantil emergia de um grande capuz bordado de pele cinzenta, mas Angélica notou com satisfação que o nariz da sedutora estava um pouco vermelho. Certamente não lhe ensinaria as compressas de água de melissa e flor de laranjeira que ela aplicava no próprio rosto-quando voltava dos passeios.
O Sr. de Bardagne conduzia a Sra. Haubourg de Longchamp, uma mulher suave e distinta, muito culta, que era o braço direito da Sra. de Mercourville na administração da Confraria da Sagrada Família. O emissário do rei parecia querer consolar-se com ela de seu incurável ferimento de amor. Cumprimentou Angélica de longe, com ar distante. O Cavaleiro de Loménie também pareceu esquivar-se intencionalmente, e ela ficou um pouco magoada com isso.
Visto que seus galãs preferidos pareciam dispostos a ignorá-la, Angélica aceitou a companhia do Sr. Gualberto de La Melloise. Tinha algumas prevenções contra ele, desde que soubera que ele encomendava luvas de pele de aves ao esquimó do feiticeiro da Cidade Baixa. Mas ele a livrava da companhia de Vivonne.
Os principais capitães indígenas, huronianos e algonquinos, integravam o cortejo, fumando e conversando em sua língua com o Sr. de L'Aubignière ou com o Barão de Maudreuil.
Piksarett pavoneava-se em seu uniforme inglês vermelho com sutaches dourados, um chapéu de aba galonada, enfeitado com penachos espetados sobre tranças de honra. As perneiras e os mo-cassins que lhe completavam a indumentária não o impediam de sentir-se muito glorioso. Nunca antes ele permanecera tanto tempo em Quebec ou negligenciara as belas florestas do país dos nar-.rangasetts.
As filhas mais velhas da Sra. de Mercourville estavam ali, bem como as da Sra. Le Bachoys. Os rapazes como Florimond, Ana-Francisco, Cantor e outros amigos da mesma idade dedicavam-se a um joguinho que consistia em tentar subtraí-las ao assédio dos companheiros do Duque de La Ferté, Martim d'Argenteuil e o maduro Barão de Bessart, que, mais por hábito do que por convicção, esforçavam-se por reter a atenção das frescas senhoritas canadenses.
Foi preciso intervirem para impedir o agressivo cão do Sr. de Chambly-Montauban de se engalfinhar com o cachorro mais pacífico do Padre Dorin.
O Reverendo Padre de Maubeuge e o capelão do marquês, Sr. Dagenet, estavam absortos numa grande conversa a propósito das missões iroquesas.
Estavam ali o médico viúvo e o mercador Basílio, com as duas filhas e seu amanuense. A Sra. Le Bachoys distribuía seus favores a muitos, mas no momento o Sr. Guérin, um dos primeiros almotacéis da cidade, parecia haver arrebatado a palma e ser o amante titular. Ele andava nas nuvens com a promoção.
Amparava a Sra. Le Bachoys, levantando bem a mão, como se quisesse apresentá-la ao grupo e dizer: "Vejam, ela não é admirável?"
A mulher dele, Sra. Guérin, um pouco abaixo, travava um diálogo animado com a Sra. de Mercourville. Falavam dos teares e da necessidade de, no inverno, porem a trabalhar as mulheres ociosas. Mulher amável e cortês, a Sra. Guérin não parecia preocupar-se muito com o fato de ostentar cornos tão abertamente. Efeito do hábito ou de uma convenção tácita, em Que-bec não se parecia achar que um adultério com a Sra. Le Bachoys pusesse em causa a honra das senhoras e a paz de cada casamento.
Seria antes de inquietar que ela desdenhasse um pretendente... Cair nas graças da Sra. Le Bachoys era como um tranquilizador certificado de virilidade...
Sempre tinha à sua volta uma corte assídua, e naquele mesmo instante havia todo um grupo de homens, jovens e menos jovens, que riam de seus gracejos, e se mantinham no irradiante calor de sua face bondosa, corada e alegre.
Angélica não podia deixar de acompanhar de longe a conduta de Berengária Amada de La Vaudière. Tinha que fazer justiça a Joffrey: ele não dispensava à jovem leviana mais atenção do que dedicava às outras pessoas do mesmo sexo que procuravam atrair-lhe as boas graças. Não podia censurá-lo por ser galante com jovens graciosas. Sempre fora assim. Fora galante mesmo com Ambrosina, até o dia em que lhe lançara palavras terríveis de condenação.
Era-o com todas as mulheres, jovens ou velhas, belas ou não, e na escolha de suas atenções manifestava preferências que só podiam amainar os temores de um coração desconfiado.
Mostrava-se muito solícito, por exemplo, com a Sra. Le Bachoys e com a Sra. de Beaumont, e muito atento aos discursos da Sra. de Mercourville acerca de teares.
Com Berengária, parecia divertido, mas sem excesso de indulgência.
Antes, ela lhe censuraria um excesso de suavidade circunspecta, das mais perturbadoras, em relação à deliciosa Sra. de Beaumont, mas .esta contava mais de cinquenta anos...
Mesmo com Sabina de Gastel-Morgeat, que disparara contra seus navios, ele nunca abandonara uma atitude polida, e não mudara nada no próprio comportamento depois de ser informado de que ela era sobrinha da sua antiga amante, Carmencita. Teria sido inteligente da parte de Angélica revelar-lhe isso? Era evidente que a Sra. de Castel-Morgeat o devorava com seus grandes olhos negros. Depois que deixava de se maquilar atabalhoadamente, constatava-se que ela sabia ser belíssima, com uma pele de uma brancura dourada que lhe compensava o formato um tanto anguloso do rosto. O conde não parecia prestar mais atenção aos olhares dela do que aos de Berengária. Era a Sra. Le Bachoys, por corpulenta e vermelhona que fosse, que às vezes inquietava Angélica. Pois a Polaca dizia que se tratava de uma mulher "engraçada", e engraçada ela sabia ser de fato. Podia-se rir de suas extravagâncias, censurá-las ou decidir que, nela, não havia motivo para censura. Fosse como fosse, seu temperamento revelava um cordial apetite pelo amor, o que nunca desagradava aos homens experientes. Joffrey era escrupuloso no que concernia ao amor? Ele gostava das mulheres que o faziam rir.
Angélica, então, passou a ver a Sra. Le Bachoys e a Polaca sob luzes menos tranquilas. Como, porém, por outro lado, não duvidasse da lealdade daquelas duas mulheres para com ela, tinha confiança. Assim, como acontece com um coração apaixonado, quando Angélica terminou de passar em revista suas possíveis rivais, quase não havia entre as damas de Quebec uma de quem, por um motivo ou por outro, ela não tivesse algo a recear, mas também com que se tranquilizar.
O que provava que estava sendo ridícula.
Em Quebec, podia-se brincar, namoricar, mas a sólida armadura das consciências, a dificuldade de subjugá-las, mantinham nos limites da prudência a aventura entrevista.
Por outro lado, Ville-d'Avray dizia que Quebec era uma cidade para se cometerem adultérios deliciosos. Tanto mais deliciosos pelo fato de serem espionados pelos olhares mais severos.
Cometiam-nos?
Eis a questão.
Uma questão que se entrelaçava como um véu vaporoso por entre aqueles casais que seguiam risonhos pelas aléias do jardim do governador. Com aqueles franceses, nunca se podia ter certeza se um sorriso, uma pressão de mão, uma ternura no olhar eram mera cortesia ou se não valeriam por um sinal discreto e promissor para um encontro ardente.
O Reverendo Cotton Matther, de Boston, sempre assombrado pelo Diabo que lhe rondava as ovelhas, estaria tão errado quando atribuía ao Maligno sotaque francês e ares papistas?
Quando conhecera o pastor protestante em Gouldsboro, Angélica o julgara exagerado, fanático e completamente ignorante das sutilezas do caráter francês, muito mais virtuoso do que imaginava o estrangeiro.
Hoje, porém, já não sabia...
O monte Carmel, atravessado por um vento tão puro que parecia virginal, estava banhado numa luz que fazia pensar na claridade que reina à entrada dos átrios celestes, e aquele brilho parecia absolver e transmutar em virtude todo desejo de felicidade.
Mas que tipo de felicidade?
Fosse como fosse, a felicidade que inocenta o amor e lhe devolve sua sublimidade primeira parecia animar, naquela manha de fevereiro, a amável sociedade de Quebec, que ia pelo jardim do senhor governador a admirar-lhe os buxos e os repolhos.
Avistava-se o céu azul-rosado através do véu malva dos galhos e ramos, entrelaçados a ponto de formarem um fino trançado aracnídeo, onde as gotas de gelo refletiam as luzes de mil diamantes.
O tronco dos olmos e dos bordos do jardim era de um violeta prateado que se harmonizava com o tom mais profundo das suas sombras, que corriam sobre a neve.
Do outro lado do vale branco do Saint-Laurent, avistavarrPse o campanário novo da paróquia de Levis e outro, menor, sobre a vertente da costa de Lauzon, arranhando ambos o céu com suas cruzes de metal.
Ultrapassando o jardim, o grupo tomou um caminho que contornava o cabo Diamant e passava ao pé do abrigo de madeira, um belvedere erigido ali para vigiar a curva do rio e guardar os paióis de pólvora, uma construção no flanco do monte Carmel que os governadores tinham desejado que fosse isolada da cidade e meio escondida sob a terra.
O passeio para fora da cidade excitava os ânimos. O cabo Diamant ressoava com o eco dos risos e vozes.
O riacho não longe dali soluçava em seu invólucro de pedaços de gelo. Os caniços e salgueiros que o ladeavam rompiam em girândolas douradas e coral.
A direita, uma cruz imensa erguida à beira do céu, entre um patíbulo e um poste onde se expunha o corpo dos condenados, dava ao monte Carmel um ar de Gólgota. Uma revoada de pássaros negros à sua volta, seguindo as correntes gélidas, teria acentuado a impressão macabra, não fosse a presença de um pequeno moinho de farinha, que girava suas pás a dois passos dali.
A candura do local resgatava as marcas sinistras introduzidas pelo homem.
Quando atingiam a extremidade do cabo Diamant, o Conde de Loménie veio buscar Honorina pela mão e levou-a até a borda da falésia. Inclinando-se para a menina, explicou-lhe que a algumas léguas naquela direção, Saint-Laurent acima, começava um rio chamado La Chaudiere. Fora descendo seu curso que, no ano anterior, o Sr. de Loménie, saindo de Quebec, pudera ir visitar a Srta. Honorina em seu porto de Wapassu. Ela não se lembrava? Os olhinhos de Honorina espreitavam a imensidão branca. Da ilha de Orléans, instalada na embocadura do rio ao norte, percorreram o horizonte e focalizaram a perspectiva que o Cavaleiro de Malta lhe indicava, ao sul.
Era visível que ela se esforçava por ocultar a própria satisfação, mas o Sr. de Loménie, com suas informações geográficas, acabava de tirar-lhe um grande peso do coração. Então se podia encontrar uma rota para retornar a Wapassu, pensava ela. Desde que o glutão Wolverines regressara, Honorina se sentia nostálgica ao se lembrar do ursinho Lancelot. Ficava apreensiva diante do Saint-Laurent paralisado, que, dava-se conta, retinha prisioneiros os navios de seu pai e, levantando o narizinho, acontecia-lhe de invejar os pássaros que rodopiavam no céu. Como escapar de Quebec, cravada no meio de lugar nenhum, senão voando?
- A gente não poderia partir de trenó pelo La Chaudiere? - perguntou. - Já, agora...
— Poderia. Mas em pleno inverno, a expedição seria dura. Uma pioneira como você tem experiência suficiente para entender isso. Lembre do triste estado em que nos encontrávamos, meus companheiros e eu, quando chegamos a seu forte. Felizmente vocês cuidaram bem de nós.
— Sim! Sim! - lembrou Honorina, balançando a cabeça.
— É preferível esperar pela primavera para nos pormos a caminho - garantiu o Sr. de Loménie. - O inverno exige paciência. Não está bem em nossa companhia, senhorita?
O Cavaleiro de Malta pareceu muito feliz de conseguir arrancar-lhe um sorriso condescendente, mas afirmativo.
Daquela altura, via-se a extensão branca do rio sulcada pelos trenós entre as balizas. Muitas pessoas atravessavam a pé de Que-bec a Levis. Nas duas margens havia tal pulular de gente e veículos, que o procurador Tardieu de La Vaudière comentou, franzindo o belo cenho de jovem deus grego:
— Que eu saiba, não é dia de mercado. Por que essa agitação? A cidade inteira está na rua! Quando é que essa gente trabalha, afinal?
— E por causa do dia de Santa Ágata - disse-lhe Ville-d'Avray. - É feriado.
O procurador, contrariado, continuou a observar aquela animação na Cidade Baixa que lhe causava acidez estomacal. Depois foi segurar o braço do Sr. de Frontenac e fê-lo notar como se podia avaliar, do local onde se encontravam, o escândalo intolerável representado pelo aglomerado de casebres sórdidos acumulados como depósito de lixo contra a falésia, e que logo subiriam até o forte. Habitações de madeira, cambaias, podres, no topo das quais, para cúmulo da insalubridade, ficava o covil de um feiticeiro, segundo lhe haviam informado - todo um conjunto de andaimes oscilantes, que'o peso do gelo tornava ainda mais instável. Um dia tudo aquilo viria abaixo, provocando um incêndio gigantesco.
— A fumaça, os odores, as exalações nauseabundas que sobem dessa cloaca até o Castelo Saint-Louis não o incomodam, senhor governador?
— Não! - disse Frontenac.
— A Sra. de Castel-Morgeat, que habita sob seu teto, queixou-se de que a ela incomodam.
— Ora, essa se queixa sempre!
No regresso, os grupos se recompuseram aqui e ali pelo jardim. Por trás dos bosquezinhos, as pessoas se aqueciam com alguns tragos de aguardente, discretamente tomados pelo gargalo de cantis de pele.
Nas aléias do labirinto, entre duas altas paredes de neve, Ville-d'Avray fora conversar com seu amigo preferido, o Sr. Garreau d'Entremont, comandante de polícia civil e criminal.
Voltou pouco depois, e foi dizer a Angélica, com ar misterioso:
— O Sr. Garreau d'Emremont gostaria de falar-lhe em particular.
— Comigo?
— Sim. Atenda-lhe o pedido. Você sabe como ele me é caro.
Ville-d'Avray gostava de deixar pairar sobre todas as suas relações de amizade uma dúvida acerca da natureza dos elos sentimentais que ele mantinha com tal pessoa, fosse homem, fosse mulher. Era uma das suas manias. Deixava aos interlocutores perplexos que decidissem, segundo as próprias conveniências.
Neste caso, Garreau d'Entremont, que a Polaca apelidara de Resmungão, burguês austero, atarracado, sempre vestido de escuro e sem apresto, e tenente de polícia ainda por cima, não devia prestar-se às suspeitas de um idílio com o buliçoso marquês. Este, porém, insistia com toda a seriedade, querendo que Angélica acedesse ao pedido do Sr. d'Entremont:
-E um homem encantador, erudito.
Percebendo-lhe a hesitação, protestou que não via motivo para o desprazer dela. Angélica devia compreender.
Tímido, como costumam ser os carrancudos e as pessoas que, devido à própria profissão, são obrigadas a se apresentar logo de imediato sob uma luz desagradável, Garreau d'Entremont hesitara muito, dizia o marquês, em abordar Angélica diretamente, pois ela o impressionava. Apelara ao Sr. de Ville-d'Avray, como a um sedutor capaz de obter isso dela sem contrariá-la.
— Mas o que é que esse tenente de polícia quer comigo?
— Ele mesmo lhe dirá.
Fingindo enganaf-se sobre as razões da desconfiança dela, exclamou:
— Não se trata de galanteria, não faz o género dele. Quer pedir-lhe algumas informações.
— Sobre o quê?
— Ignoro. Mas tenho certeza de que se trata de mera formalidade.
— Não seria antes com meu marido que ele gostaria de falar?
— De modo algum! É com você! Com você! O que acontece, Angélica? Já não a reconheço. O que está temendo?
Era difícil para Angélica explicar que no decorrer de sua existência suas relações com a polícia a tinham levado a nutrir certa reserva com respeito a esses funcionários.
A intimação - pois para ela a solicitação de Garreau d'Entre-mont valia por uma intimação - não lhe pressagiava nada de bom. Deu alguns passos, para ganhar tempo de refletir.
A paisagem mudara de súbito. A claridade tão pura e cintilante pareceu-lhe anuviada com um véu negro. Sentia-se angustiada. O que estava acontecendo?
Andava tudo tão bem! Estava tudo tão bonito e agradável! Os acontecimentos encadeavam-se harmoniosamente. Os encontros que poderiam ter-lhes acarretado mais embaraços tinham-se voltado em favor deles. O inverno revelava-se um aliado cheio de encanto e de surpresas felizes. Uma vibração toda particular, semelhante à do amor, reinava em surdina, atravessava todas as coisas, atingia e transfigurava os seres sem que estes se dessem conta.
E pronto... O encanto ia quebrar como vidro frágil? Nunca se podia estar tranquilo?
- Por que está me apertando à mão com tanta força, mamãe?
- perguntou Honorina.
Ville-d'Avray vinha logo atrás delas. Estava magoado. Não compreendia por que Angélica se mostrava tão pouco disposta a agradar-lhe. Queria desconsiderá-lo aos olhos de Garreau d'Entremont. Demonstrar abertamente como ele, Ville-d'Avray, tinha pouco peso e poucos amigos em Quebec. Depois de tudo o que precisara suportar, ainda teria que aguentar mais uma decepção? O que podia ela ter a temer de um homem tão amável?
— De que se trata?
— Não sei - gemeu ele.
Mas o olhar de Angélica cruzou com o clarão de seus olhos azuis, que lhe pareceram frios, inquisidores. E convenceu-se de que ele desconfiava, se é que não sabia do assunto sobre o qual o tenente de polícia queria conversar com ela.
"Se você me colocar em apuros, há de me pagar", pensou.
— Tenho certeza de que não é nada de grave - afirmava o marquês, arregalando os olhos cândidos.
— Muito bem - decidiu-se ela. - Avise o Sr. Garreau de que o verei quando ele quiser. Mas note que só faço isso para agradar a você.
Ville-d'Avray, que fazia muita questão do êxito de sua missão diplomática, beijou-lhe a mão, efusivo.
Afastou-se, enveredando pelo labirinto de buxo. Deve ter-se encontrado com Garreau, que se escondia ali dentro. Pouco depois retornou, todo feliz, a informar o local e a hora do encontro que o tenente de polícia propunha. A fim de não perturbar a Sra. de Peyrac em suas tarefas e divertimentos, o Sr. d'Entre-mont sugeriu recebê-la na próxima hora, quando ela terminasse o passeio, no prebostado. Ele estaria lá à sua espera.
Ficava a dois passos. Era melhor resolver tudo já.
A Sra. de Mercourville convidara Honorina a ir brincar com suas filhas até as vésperas. Serviriam às crianças uma boa xícara de chocolate para aquecê-las. Depois se distrairiam junto ao fogo, sob a vigilância de Pedrina, Um dos meninos Mercourville tinha um cavalo de pau de balanço de que Honorina gostava muito. Assim, seguiu com o grupinho de bom grado.
CAPITULO XVII
Interrogatório do inspetor Garreau
Angélica não precisou percorrer um longo Caminho para chegar à Place d'Armes. A esquerda abria-se a Grande Allée e, bem em frente da antiga casa da Sra. de La Peltrie, erguiam-se os prédios do senescalato. Os membros do Conselho Soberano reuniam-se ali com frequência. O tenente de polícia civil e criminal e o procurador distribuíam justiça daquele local, em nome do senescal, Sr. de Masset, a quem raramente se via e.que preferia morar na sua senhoria de Saint-Cyrille. Até cedera seus apartamentos no palácio de justiça ao Sr. d'Entremont.
Um arqueiro introduziu Angélica num salão forrado com uma tapeçaria escura. As janelas davam para a rua e, naquela hora ao começo da tarde, apenas os fundos das casas recebiam os raios do sol.
Uma parte das paredes do aposento estava coberta de prateleiras, que sustentavam livros encadernados. Não havia quadros, exceto por um retrato do rei, quase tão escuro quanto as tapeçarias e, acima de uma grande escrivaninha com ornamentos de bronze dourado, um brasão com as armas da família do tenente de polícia civil e criminal, que era "de prata com javali de sable, acompanhado em chefe de lambei de goles, e em ponta de três ferros de lança de sinopla, alinhados de frente".
Enquanto aguardava pelo tenente de polícia, Angélica mergulhou numa meditação que a fez devanear sobre as analogias que às vezes era possível encontrar entre o simbolismo de um brasão e o caráter, bem como a aparência, de quem o usava: "Um javali negro entre lanças erguidas de um belo verde...". Convinha muito.
Não se sentia coerente por estar ali. Sentou de costas para a janela numa poltrona de encosto rijo e braços com volutas para convidar a pessoa intimada a se descontrair durante o interrogatório.
Ao fazer isso, notou, abertos sobre a escrivaninha do tenente de polícia, dois grossos volumes. Assim que os reconheceu, entendeu por que o responsável pelo aparelho judiciário do Canadá fazia tanta questão de vê-la em particular. Os avisos de Guilhermina, a feiticeira, deveriam tê-la feito mais ou menos prever um aborrecimento daquele género. Um dos volumes era o Tratado das feiticeiras, dejoão Bodin. O outro era o temível Mal-léus maleficarum. Há coisa de dois séculos aqueles livros serviam de bíblia aos inquisidores católicos e protestantes„para amparar as acusações contra feiticeiros e feiticeiras.
Escrita em 1484 pelos "filhos bem-amados" do Papa Inocêncio VIII, os reverendos Sprenger e Kramer, um dos quais dominicano, esta última obra pretendia apresentar uma coletânea de receitas destinadas a indicar aos juízes como reconhecer magos e demónios. Também haviam registrado ali todos os meios que permitiam desmascarar uma feiticeira ou feiticeiro com toda a aparência de normalidade, bem como as melhores práticas para fazê-los confessar seus crimes. Na realidade, tratava-se de uma compilação de insanidades cruéis. Mas desde o século XIII permitia que as acusações de feitiçaria seguissem um procedimento legal.
Todos os que tivessem sido conduzidos perante o Santo Ofício por calúnias e denúncias podiam dar-se,por perdidos no momento em que os juízes enfiassem o nariz entre as páginas daquelas obras.
Apesar da reputação delas, marcadas antes pela garra do Diabo do que pela benevolência da Igreja, Angélica sentiu-se aliviada ao perceber que não passava daquilo: supôs que o Sr. d'Entremont ouvira falar das suas atividades junto dos doentes.
Na página aberta do Malleus maleficarum, uma frase estava sublinhada. Angélica enclinou-se e leu: "Quando uma mulher pensa sozinha, pensa mal...".
O axioma trouxe-lhe um sorriso aos lábios, que deu a impressão de acolher com toda a amabilidade do mundo a entrada do tenente de polícia pela portinha dissimulada na tapeçaria.
O que se tornou evidente logo à primeira vista foi que ele estava muito embaraçado. Pediu a ela que se sentasse e fez o mesmo. Garantiu que não sabia como agradecer à Sra. de Peyrac a gentileza de dar-se ao trabalho de ir até ali. Tanto mais que eram tudo meras futilidades. Mas pensara que ela poderia prestar-lhe um grande favor num inquérito delicado que ele estava conduzindo no momento.
- Estou ouvindo - disse ela, surpresa.
Depois de hesitar, dar uma olhada nos livros satânicos, como que para deles extrair um encorajamento, e aparar uma pluma, que logo largou, o tenente de polícia se decidiu.
- Senhora, tenha o obséquio de dizer-me tudo o que sabe acerca do Conde de Varange.
Angélica vacilou. O nome não lhe dizia nada, embora não lhe parecesse de todo desconhecido.
— Conde de Varange... - repetiu, pensativa. - Eu conheci esse gentil-homem?
— Com certeza - confirmou ele.
— Perdoe-me. Não sei quem é. Apresentaram-me tanta gente em Quebec!
— Não teria sido em Quebec que o leria conhecido.
— Onde, então?
— Em Tadoussac.
— Tadoussac!
Ela entendia cada vez menos.
- Quando viemos, em novembro?
Depois, assim como um cadáver emerge de águas turvas, veio-lhe uma lembrança à memória. E tratava-se mesmo de um cadáver. Lastreado com uma pedra ao pescoço e atirado no rio pelos homens do Conde de Peyrac, entre os gritos de aves marinhas que esvoaçavam na noite e no nevoeiro.
O Conde de Varange! O homem que os atraíra a uma cilada e a quem ela abatera com um tiro de pistola no momento em que ele atacava Joffrey.
Angélica pousou no Sr. d'Entremont um olhar que continuava incerto.
- Tadoussac! Já está bem longe em minha memória...
O Sr. d'Entremont afundou contra o encosto da sua poltrona. Pareceu tratar a pergunta com mais superficialidade. Explicou que o Conde de Varange chegara a Quebec quatro ou cinco anos antes, a fim de ocupar funções ligadas à tesouraria junto ao intendente Carlon. Para falar a verdade, era um "deportado", uma daquelas personagens que, graças às próprias relações, escapam à Bastilha ou a condenações mais infamantes, indo fazer-se esquecer no Canadá... O que só servia para complicar a tarefa do tenente de polícia.
- Compreendo.
Até então o Sr. de Varange, um homem de idade, discreto e muito recomendado em altos círculos, não lhe causara nenhum aborrecimento. Fizera-se notar tão pouco em Quebec, que pudera desaparecer em novembro sem que ninguém se desse conta.
- Desaparecer?
Fora só em meados de janeiro que o comandante da polícia fora alertado pela Sra. de Castel-Morgeat.
"No que é que ela foi se meter agora?", pensou Angélica, irritada.
O Sr. de Varange morava numa casa afastada, pouco além da Grande Allée, onde vivia com o criado, o cocheiro e dois pequenos saboianos, que trouxera consigo da França e que lhe serviam de ajudantes de cozinha e cavalariços. O Sr. e Sra. de Castel-Morgeat eram seus vizinhos mais próximos. Depois do... bombardeio - e o Sr. d'Entremont baixou as pálpebras, tímido -, o casal fora instalar-se no Castelo Saint-Louis. No entanto, a Sra. de Castel-Morgeat ia com frequência à antiga morada, a fim de inspecionar as obras de reconstrução e de proteção contra a neve, na parte que permanecia intacta. Foi assim que notou, um dia, o abandono em que se encontravam osldois pequenos lacaios saboianos. Desde o desaparecimento do amo e dos outros domésticos, as duas crianças vagavam, vivendo de furtos e esmolas. Perambulavam pela cidade, dormiam na casa, abandonados, acendendo o fogo somente na cozinha, onde dormiam, aninhados sobre a pedra da lareira.
- A Sra. de Castel-Morgeat preocupou-se com o destino das crianças e avisou o procurador, Sr. Tardieu de La Vaudiere, que em seguida me comunicou o fato. Depois de uma investigação, concluí que desde meados de novembro seu amo não mais fora visto em Quebec.
O tenente de polícia interrompeu-se. Parecia esperar um comentário qualquer de Angélica. Como esta se mantivesse calada, prosseguiu:
- Pude determinar que o viram partir a bordo de um barco carregado de habitantes de Tadoussac, que voltavam para lá. E é lá que se perde o rastro dele e do criado.
— Ter-se-ia afogado no trajeto?
— Só se tiver sido depois de chegar a Tadoussac, pois o Sr. de Ville-d'Avray me disse que o encontrou durante sua escala em Tadoussac.
"Não é verdade!", por pouco não replicou Angélica. Sabia muito bem que o Sr. de Varange já estava mofto no encontro de Mercy, acima de Tadoussac, quando a frota dos Peyrac fundeara na enseada do primeiro forte francês no Saint-Laurent.
Conteve-se, e esperou que seu impulso não tivesse sido notado pelo policial.
- Está certa de que não o recebeu a bordo? - insistiu este.
- Não que eu saiba.
Após uma pausa, sugeriu:
— O senhor indagou a meu marido? Parece-me que ele estaria mais habilitado do que eu a responder-lhe... se é que esse Conde de Varange o encontrou.
— Farei isso. Mas preferi ouvi-la antes dele.
— E por quê?
Ele fez um muxoxo, que não o deixou mais bonito, e pareceu sopesar os riscos do que ia dizer.
- Tudo é estranho neste caso. Imagine, senhora, que durante o inquérito vieram procurar-me e me declararam categoricamente:
"Foi a Sra. de Peyrac que matou o Conde de Varange. Sei disso de fonte segura!"
Angélica soltou uma exclamação:
- Quem?!... Quem pôde dizer-lhe tal coisa?
Sua palidez e sua cólera podiam ser atribuídas a uma emoção indignada.
— O Conde de Saint-Edme.
— O Conde de Saint-Edme! Mas como...
Esteve a ponto de deixar escapar: "Como foi que ele soube?" Mas, mais uma vez, conteve-se.
- O Conde de Saint-Edme! Mas quem é ele? Ah, sim, aquele velho que acompanha o Sr. de Lá Ferté. Mas que bicho o mordeu para se pôr a espalhar boatos assim caluniosos? Mal o conheço. Nunca trocamos mais de três palavras. Ele perdeu a razão...
Garreau a contemplava, com olhos inexpressivos. "São todos iguais esses malditos escrevinhadores!", pensou ela, enraivecida. Recobrou o sangue-frio, dizendo consigo que a força de Joffrey era inabalável. Seus fiéis estavam à volta dele, como uma muralha, e se calariam. Cada um desempenhava ó próprio papel pelo bem de todos. Apesar de sua habilidade, Garreau d'Entre-mont não poderia provar nada.
Não teria acabado de compreender isso? Pois de súbito agradeceu a ela pelo tempo que lhe dispensara e voltou a pedir-lhe que o desculpasse por havê-la retido, sobretudo para uma conversa tão triste. Repetiu que era tudo esquisito naquele caso.
- O Sr. de Saint-Edme confiou-lhe de onde obteve essas informações estranhas?
O tenente confessou que não. Tornou a pedir desculpas. Angélica não se fiava nos protestos dele. O rosto avermelhado e des-gracioso parecia pouco disposto a sutilezas. Ela aprendera, porém, a desconfiar das aparências. Os olhares inexpressivos, as lenti-dòes de raciocínio, as súbitas desistências não a tranquilizavam. Qual um javali, o Sr. Garreau d'Entremont seguia a pista que o faro lhe indicava.
No entanto, esforçaram-se ambos por romper uma tensão que, em princípio, não tinha sentido.
Angélica estava a ponto de despedir-se quando seu olhar não pôde deixar de pousar nos dois grossos volumes sobre demono-logia, em cima da escrivaninha. Ele não lhes fizera nenhuma alusão.
- E o senhor mesmo, Sr. d'Entremorft, que se interessa por magia a ponto de consagrar seu tempo à leitura de tais obras?
O tenente de polícia, que acabava de contornar a mesa, com o intento de acompanhá-la à porta, olhou com espanto o que ela apontava e pareceu embaraçado.
- Na verdade, não. Sou pouco versado nesse género de ciência. Mas serei obrigado a instruir-me, pois me notificaram de Paris que os crimes de feitiçaria, sacrilégios, sortilégios estão se multiplicando e que devo prestar atenção a isso também na Nova França. O Sr. de La Reynie enviou-me estes livros a fim de que eu me ponha a par e possa julgar com mais clareza os casos que me sejam submetidos. Çonfesso-lhe que peferiria que os de litos desse tipo continuassem a ser encaminhados ao bispo e ao Santo Ofício, mas parece que os tribunais eclesiásticos já não estão habilitados. A Inquisição cometeu abusos demais, e as novas disposições judiciais estimam que o grande número de assassinatos e envenenamentos que essas práticas acarretam os colocam sob a alçada da justiça secular.
Pegou de sobre a escrivaninha uma folha coberta de números e escritos.
- Veja! Tenho aqui um relatório que me chegou com os navios do verão. Parece que se suspeita de que haja em Paris mais de trezentos antros de magos e magas, cujo comércio provoca a morte. Todo tipo de gente vai a esses lugares em busca de auxílio criminoso, considerado dos mais eficazes. Envenena-se, degola-se, imola-se, é uma verdadeira loucura... E, justamente, sobre o mistério do desaparecimento do Sr. de Varange, vem introduzir-me um caso feio de operação mágica que, infelizmente, não tem a simplicidade das acusações que nos chegam do campo de vez em quando, de que este anda a rogar pragas no gado e aquele, a espetar alfinetes. É mais grave. Como já a importunei muito, não queria entrar em detalhes, mas foi a senhora quem tocou no assunto e entenderá por que lhe disse que tudo é esquisito nesta história. Quanto mais puxo o fio da meada, mais revelações assustadoras trago à tona. Parece que o Conde de Varange praticava magia negra. Pouco antes de sua partida para Tadous-sac, ele teria realizado em sua casa, na Grande Allée, a dois passos do prebostado, uma horrível representação destinada a obter o auxílio dos demónios. Quase não se podem extrair informações dos dois saboianos, que mal pronunciam algumas palavras em francês e que me parecem completamente imbecis. Mas o cocheiro, ao escapar, refugiou-se com os selvagens, e teria dito de passagem, a um morador da paróquia de Saint-André, que ia embora porque estava com medo. Contou que o conde, certa noite, quis fazer um espelho mágico falar e, quando conseguiu enfeitiçá-lo, conversou com uma sacerdotisa do Diabo, a quem ele aguardava em Quebec no outono e que não chegava. Queria saber onde ela se encontrava, informar-se dos projetos que tinha em andamento com ela. Para que a operação mágica tivesse êxito, imolou-se um cão negro, que foi crucificado vivo. Abriu-se-lhe o ventre, extraiu-se-lhe o fel, e o sangue do animal... - Gar-reau verificou, dando uma olhada num papel - devia escorrer sobre um crucifixo, colocado sob ele. Consegui apanhar o menino que forneceu o cão. Os vizinhos tinham-se queixado da agitação e afirmaram ter ouvido urros... Mas, como a casa é muito isolada...
- Mas isso e horrível! - disse Angélica.
E perguntava consigo: "Teria sido Ambrosina que ele viu no espelho mágico? Ambrosina, que devia vir-lhe ao encontro em Quebec, depois de liquidar-nos".
- O que terá ele visto no espelho que o impeliu a embarcar logo em seguida para Tadoussac? - continuava o tenente de polícia.
Fora principalmente.para esclarecer esse ponto que ele quisera falar com a Sra. de Peyrac, pois, repetia, em Tadoussac ela poderia ter visto ou ouvido falar de alguma coisa.
Esse "alguma coisa" e o modo como fora pronunciado arrepiaram Angélica da cabeça aos pés.
— Deus me guarde de ter que lidar algum dia com criatura tão ignóbil! - lançou ela, veemente. - Não entendo por que o desaparecimento dele o desola tanto. Antes, deveria felicitar-se por ter ele se volatilizado definitivamente, como os vapores deletérios de seus malefícios.
— Não me desola em absoluto...
Garreau d'Entremont afetou um ar de altivez.
- Não me desola em absoluto, senhora. Mas sou o tenente de polícia. O homem desapareceu. Devo saber o que foi feito dele, pois meu papel é velar para que sejam denunciados e não permaneçam impunes os crimes cometidos no território da Nova França. Ora, o desaparecimento do Sr. Varange é suspeito. Ainda que seja um sequaz do Diabo, se-foi assassinado, tenho que encontrar seus assassinos...
Proferiu as últimas palavras com força e firmeza. Angélica lembrou-se do comentário da Polaca: "Não é mau sujeito o Resmungão! Mas é um homem de princípios... Os mais perigosos".
Apesar dessa escaramuça final, separaram-se sem acrimônia. Quase como bons amigos.
CAPITULO XVIII
A "dor do mundo" - Convite do Cavaleiro de Malta
O escravo negro, Kuassi-Ba, esperava sentado na escada do pre-bostado. Levantou para ela o rosto todo agasalhado. A imagem dele chegou-lhe aos olhos junto com o desenrolar distante das montanhas lavadas em luz, e Angélica retomou posse de toda a sua riqueza atual: o Novo Mundo, a liberdade...
Suspirou.
— Nada de grave - disse, respondendo à interrogação muda do amigo fiel. - Mas quero passear um pouco antes de voltar para casa.
— Volte a Montigny, onde o conde a espera.
O grande negro afastou-se, tranquilizado. Angélica, dobrando a esquina da casa da Sra. de La Peltrie, seguiu pela Rue des Par-loirs, e, depois de ultrapassar o portal das ursulinas, continuou por uma trilha que dava a volta ao parque do mosteiro.
Sua saia ia levantando uma neve penugenta, cuja poeira ficava longo tempo suspensa, caindo lentamente. Tudo brilhava. Os arbustos e moitas à beira do caminho pareciam recobertos de vidro. Ao longe repicava o ângelus do meio-dia.
A neve endurecida da trilha rangia-lhe sob os passos. As vezes ela parava.
Daquela história sinistra, mais do que o receio de que Garreau descobrisse a verdade - ele não poderia provar nada -, ficava-lhe a imagem daqueles pequenos saboianos, domésticos do terrível Conde de Varange. Era uma imagem familiar para ela, que conhecera o submundo de Paris. Os pequenos limpadores de chaminés saboianos, com suas escovas e escadas, chegavam no outono à capital, fugindo do inverno na sua Sabóia empobrecida.
Vestidos de preto, com gorros escuros e lambuzados de fuligem, trazendo consigo um animalzinho das montanhas, uma marmota, a que faziam dançar para distrair os passantes, percorriam as ruas de Paris, gritando no seu patoá mesclado de italiano: "Limpa chaminé! Limpa chaminé!"
Acontecia de, adormecidos, entorpecidos de frio num desvão de porta, serem vítimas de mercadores de crianças, que os raptavam e vendiam a grãos-senhores, para seus prazeres. Não era preferível, dizia João Podre, que morressem de frio, numa noite de geada,"junto com a marmota?
Devia ter sido esse, com pequenas diferenças, o destino dos pequenos lacaios do Conde de Varange, que, seguindo o amo, tinham ido dar no Canadá.
Do Velho Mundo os navios traziam mercadorias e benefícios, mas também perversão. Um homem decaído, seguido de um criado de expressão patibular e dois lacaiozinhos, desembarca um dia em Quebec, e ninguém sabe que o Mal acaba de entrar na cidade.
Se Ambrosina, ofuscante, tivesse pisado com o delicado pezinho aquele solo, teriam sabido?
"Caramba! Aquele Garreau me olhava como se eu tivesse matado o Sr. de Varange..."
E fora mesmo ela quem o matara.
Quanto a isso, porém, nada a recear. Garreau se chocaria com o mutismo de Joffrey e seus homens.
A única coisa inquietante, porque inexplicável, era a denúncia do Sr. de Saint-Edme, declarando que fora a Sra. de Peyrac que "matara seu amigo, o Conde de Varange".
Como e por que aquele velho, com sua máscara de maquila-gem metida sob perucas exageradas, luvas azuladas que lhe transformavam as mãos em patas de lagarto esbranquiçado, aqueles ares desvairados de espantalho de luxo, estava metido naquela mixórdia?
Por que fora procurar o tenente de polícia para declarar: "Foi a Sra. de Peyrac que matou o Conde de Varange"? E como podia saber disso? A partir dessa pergunta, Angélica sentia-se invadir pelo receio. Pois não havia mais do que uma resposta: o Conde de Saint-Edme estava de conluio com Varange nas práticas de feitiçaria. Assim como Varange, aguardava a chegada de Ambrosina em Quebec. Participara da conjuração satânica? Vira aparecer no espelho mágico o rosto ensanguentado da Diaba?
Horrível portento! Poder do Príncipe das Trevas, que não pode abrir caminho até a superfície da Terra senão através de um desfiladeiro de sangue e profanações. Um crucifixo conspurcado, um cão martirizado...
Uma capela solitária na encruzilhada, apoiada contra um bos-quete de árvores com os galhos floridos de neve.
Um campanário de madeira abrigava um pequeno sino. A capela comportava duas janelas dos lados, uma porta em ogiva no centro da fachada. O santuário era dedicado à Santa Fé.
Angélica levantou o trinco e entrou. A penumbra lhe fez bem, depois da crua claridade exterior que lhe feria os olhos. De início, naquela suave obscuridade, só distinguiu o ouro do tabernáculo, luzindo ao fundo, e o rubi da lamparina, estrela vacilante na sua copela de vidro. Persignou-se e avançou alguns passos. Foi então que notou um homem que rezava, ajoelhado no primeiro degrau, diante do altar.
Era o Cavaleiro de Loménie-Chambord. Discretamente, Angélica ficou junto à porta. Não queria perturbá-lo na oração. Mas ele se virou e avistou-a. Ela viu que ele se persignou em seguida e, depois de uma rápida genuflexão, foi-lhe ao encontro naquele passo macio e silencioso que todos os guerreiros franceses tinham adquirido nas florestas indígenas. Uma expressão preocupada marcava-lhe as feições quando se inclinou para ela.
- O que aconteceu, minha amiga? - murmurou. - Você está transtornada!
Seus olhos claros a examinavam, e ela se deixou tragar por sua luz irradiante.
— O que aconteceu? - insistiu ele, premente. - Fizeram-lhe mal? Diga. Conte-me, querida amiga...
— Não foi nada.
Tinha vontade de gritar: "Não foi nada, é só a dor do mundo..." Suspirou:
- Não foi nada!... Mas mesmo, assim é terrível!
Ele a puxou para si, num movimento instintivo e protetor, e ela abandonou-se contra seu ombro, de olhos fechados, subitamente fatigada.
"Sim, sim, é isso", pensou. "Aperte-me com força. Abrace-me com força, você, o Santo, o Puro, o Terno, você, que redime os pecados dos homens."
Sentia-lhe o hálito, que a roçava, enquanto em voz baixa, como em segredo, ele lhe murmurava palavras de conforto.
- Você não deve... Não, não deve... Não tema nada... Deus a protege... Você, tão bela! Você, que traz a alegria e a esperança... Não tema nada. Deus a ama.
Foi como se dissesse: "Eu a amo".
Uma aura de luz banhava-lhe o rosto claro, e aquele abraço firme apagava nela a lembrança do medo e da repulsa. Viu-lhe os lábios próximos, que brilhavam sob o bigodinho castanho, que pousaram sobre os seus, como num sonho.
Quando se viram na soleira da capela, suas mãos, que se tocavam e se apertavam, separaram-se de comum acordo. Emergiram daquele instante de graça com a sensação de deixar um aposento iluminado, para reencontrar, ali fora, frio e trevas. No entanto, o sol continuava brilhando em pleno céu. Só que, sem que se pudesse dizer o que isso significava, a claridade do dia diminuía, lânguida.
Permaneceram em silêncio. Com o olhar, correram os elementos da paisagem que os rodeava: as paredes de neve, as planícies cintilantes, o reluzir dos gelos nos galhos das árvores, os alinhamentos distantes das chaminés, de onde se alongavam baforadas de fumaça branca.
— Afinal, será que devo dar-lhe? - disse Loménie de repente, com ar compenetrado.
— Dar o quê? A quem?
— A faca de escalpelar... A Honorina. Fiz-lhe essa promessa implicitamente, já que me comprometera a dar-lhe o que me pedisse. E sinto que ela não me considera descomprometido. Não aceitaria um canivete nem uma faquinha... Não! O que quer é uma autêntica faca de escalpelar. E uma arma perigosa. Pensando bem, pergunto-me se não poderia chegar a um acordo com ela... Qual é o seu sonho? Identificar-se com um invencível iroquês... Talvez a belicosa menina se contentasse com um pequeno arco e uma aljava de flechas de sabugueiro! O que você acha?
Angélica se pôs a rir.
— Sr. de Loménie, você é encantador. E demasiado indulgente com essa garotinha.
— É agradável presentear a inocência - disse ele mansamente. - Só a inocência o merece.
Depois, inclinando-se com deferência, roçou-lhe a mão com os lábios.
- Renita na questão, Angélica, e se quiser dar-me sua resposta sem tardar, poderemos combinar um encontro amanhã, nas aléias do jardim do governador. Não haverá ninguém lá, poderemos fazer um passeio... O local é tranquilo para se conversar sobre coisas sérias.
CAPITULO XIX
Um beijo roubado - A reunião dos gascões
O amor de Loménie dava-lhe asas. "Não", retificou ela mentalmente, "não é amor, mas um sentimento delicioso, consolador", que afastava para longe a sombria visão do tenente de polícia a falar de crimes repugnantes e personagens imundas. O cavaleiro a amava? Beijara-a como que para reconfortá-la.
Atrás dela, um passo rápido de homem, que fazia a neve ranger, alertou-a. O Sr. de Bardagne a alcançava.
— Desta vez será em vão que você afirmará que seus sentimentos pelo Sr. de Loménie-Chambord são de simples amizade - lançou ele, agitado. - Quando penso que você chega ao ponto de encontrar-se com ele numa capela...
— Você está louco. Não marquei nenhum encontro com ele.
— Como acreditar em você? Vi quando chegou e entrou na capela poucos minutos depois dele.
— Repito que foi um acaso. Eu estava voltando para casa, seguindo pelo caminho atrás do convento das ursulinas. Quis entrar para rezar.
— E o Cavaleiro de Loménie encontrava-se lá como que por acaso...
— Encontrava-se... Um santuário não é um lugar onde todo mundo tem o direito de entrar?
— Seu recolhimento não me pareceu muito profundo. De vez em quando eu a ouvia cochichar. Você falava baixinho... Por quê?
— As Santas Espécies estavam presentes.
— Coisa que não a impediu de modo algum de divertir-se com um Cavaleiro de Malta! Você não respeita nada!
— Rogo-lhe, caro Nicolau. Modere um pouco seu ciúme. A força de tagarelices e desconfianças, você acabará atirando-me nos braços do cavaleiro.
- Mas você estava nos braços dele! - exclamou ele, indignado. - Eu a vi!
Ela lhe deu uma olhada inquieta. Teria ousado alçar-se até a janela da capela, para olhar o interior? Um emissário do rei? Impensável! Mas no ponto em que ele se encontrava, havia que estar preparada para tudo.
- E quando saíram juntos da capela, você segurava a mão dele.
Angélica deu de ombros. Não se lembrava de modo algum de haver segurado a mão do Sr. de Loménie-Chambord. Tomou a coisa com humor.
— Decididamente é maravilhoso ser tão amada - riu. - O Sr. de Loménie, você...
— ... o Sr. de Ville-d'Avray - continuou ele -, o Sr. de La Ferté, o jovem e louco Ana-Francisco de Castel-Morgeat, e o velho e igualmente louco Beltrão de Castel-Morgeat, pai dele, Basílio, o Sr. de Chambly-Montauban...
— Você está exagerando. Sua imaginação atormentada o desnorteia, pobre Nicolau! Ainda assim, você me dá prazer. Como é agradável a gente sentir-se amada, quando tantos perigos e tanto ódio fervilham no mundo... Meu caro apaixonado de La Ro-chelle, obrigada!
— Não me fite com esses olhos cintilantes - disse ele, numa voz fremente. - Bem sabe que isso me põe fora de mim.
A Srta. d'Houredanne os viu passar, rindo e de braços dados. Notou que não se despediram diante da casa de Ville-d'Avray, mas continuaram na direção do bosquezinho por trás do qual se dissimulava a residência do Sr. de Bardagne.
— Você nunca veio a minha casa - disse ele a Angélica enquanto subiam a rua, trocando frases cheias de alegria.
— É porque você passa todo o seu tempo diante da minha... E depois, não faço questão de encontrar em sua casa alguns de seus amigos.
— Hoje não há ninguém.
Do caminho abria-se uma aléia por entre as árvores, ao fim da qual se avistava uma bonita construção de dois andares, com o habitual telhado de ardósia, ladeado de chaminés quadradas.
O sol ainda iluminava-a fachada, mas, sob as árvores, reinava uma sombra fria, entrecortada de círculos de luz que se deslocavam acompanhando a hora, como os trémulos reflexos de um espelho.
Tjm hálito gelado saía dentre os troncos e arbustos. Nicolau de Bardagne puxou Angélica para junto de si, envolvendo-a no manto que fechou à volta dela, talvez para defendê-la daquele brusco assalto polar, talvez para ampará-la, pois o caminho que levava até a casa estava mais escorregadio do que uma pista de patinação.
__ A situação é insolúvel, desastrosa - murmurava Bardagne. --- Sem saída... E, no entanto, não posso adotar uma medida drástica. Vê-la, ouvir seu riso por sobre as frondes... Depois, caminhar um pouco a seu lado, como agora... São felicidades que, percebo, mais parecem torturas... Esperar? Mas o quê?... Acontece de eu decidir que não a verei mais, pelo menos por um dia. Então me sinto livre, calmo, volto a ser eu mesmo. Mergulho com alegria em minhas leituras, em meus trabalhos e em meus prazeres. De chofre, dou-me conta da loucura de minha resolução... Entendo que você está aqui, nesta cidade, a dois passos, você, a quem tanto chorei, a quem eu havia perdido. E julgo-me demente por querer fugir a uma realidade tão miraculosa. Ainda que dela só recolha migalhas. Amei-a demais para que não me pertença um pouco, não é? Então, lanço-me à sua procura. Meu coração pára de bater quando a vejo, e o que sinto transforma o momento e o local onde a encontro em palco de delícias incomensuráveis. Ainda que devesse pagar por elas com sofrimentos mais amargos, não as lamentaria.
- Sr. de Bardagne, sua eloquência, cujo ardor aprecio, me toca, mas penso que pode nos fazer tropeçar, no sentido próprio do termo...
Para não cair, agarrou-se a ele.
— Como a amo! Como a amo! - murmurou ele.
— Esta aléia é demasiado escorregadia... Jamais chegaremos até a casa.
— O que importa! Estamos bem aqui e não há ninguém à vista. Venha por aqui.
Levou-a para debaixo das árvores, para a sombra azul e fria, misteriosa por ser insondável, entornando a tomá-la nos braços, autoritário, beijou-a.
Durante um longo momento os lábios se responderam, separando-se e tornando a unir-se, a cada vez com um impulso mais ávido.
Não era a primeira vez que a paixão de Nicolau de Bardagne despertava a de Angélica, arrastando-a, malgrado seu, como um vagalhão. Já em Tadoussac ele a subjugara num longo beijo devorador. A onda de sensualidade que os levava era bem semelhante à vaga sorrateira que passa por sobre a amurada do navio, pega a tripulação de surpresa, afogando tudo, investindo e derrubando ao acaso, antes de retirar-se com uma suave hipocrisia, a fazer crer que se sonhou, não fosse pelos vestígios que lhe ficam na esteira. E não fosse-por Angélica, quando os rostos se separaram, envoltos no tépido vapor do hálito de ambos, ouvir a disparada do próprio coração e sentir em seu corpo o ardor irradiante e bem conhecido do desejo.
O fato é que, arquejantes, não tiveram força nem vontade de pronunciar uma única palavra. Retornaram à aléia e separaram-se na soleira da propriedade, sem dizer nem comentar nada.
Depois do mergulho nas profundezas submarinas do desejo, profundezas surdas, azuis, atravessadas de relâmpagos, à imagem da penumbra do pequeno bosque que os dissimulara, Angélica espantou-se de rever a luz do dia ainda intensa. Não era tão tarde. E o céu, muito azul, mal começava a empalidecer, adquirindo a oeste um matiz de porcelana.
Angélica andou até a encruzilhada do olmo, onde se erguia o pequeno acampamento dos índios, com suas cabanas de casca de árvore recobertas de neve, seus cães de pêlo frisado e suas fogueiras.
Ao invés de voltar para casa, tomou o caminho transversal, que podia conduzi-la pelos campos que subiam até o solar de Mon-tigny. Se lhe ocorreu a ideia de que, após o beijo que acabava de trocar com o Sr. de Bardagne, partir à procura imediata do marido era dar prova de leviandade, rejeitou-a, como inoportuna. Trocar um beijo com um apaixonado não acarretava consequências. Não somente não sentia remorsos nem receio, mas, pelo contrário, felicitava-se pelo ocorrido, pois tinha a satisfatória impressão de que acabava de oferecer a si mesma uma excelente diversão para mágoas insuportáveis.
Agora lhe parecia que recuperara a força necessária para fazer face a elas, e que poderia falar a Joffrey sobre as ameaças que surgiam por trás da investigação do tenente de polícia. Sentia-se invadida por uma benfazeja embriaguez, pueril, a que, vendo-se sozinha no caminho, teve vontade de abandonar-se.
Com um gesto largo dos braços, que fez seu manto esvoaçar ao vento, lançou-se na corrida rumo ao topo da colina, escoltada sem se dar conta, pelos cães indígenas, que vinham aos saltos pesados e a que sua exuberância repentina tivera o dom de arrancar da apatia.
Alcançaram-na e fizeram um círculo à sua volta, movendo um toco de rabo, surpresos de vê-la parar lá em cima, para observar o solar de Montigny embaixo.
Não sabia por quê, mas os arredores da mansão, em torno da qual costumavam azafamar-se os homens da tripulação ou inúmeros visitantes, pareceram-lhe anormalmente calmos. Sua excitação arrefeceu-se, novamente substituída pelo mal-estar. Exceto pelas modulações do vento, o silêncio era total.
Angélica começou a descer na direção do castelo. Decepcionados com a imobilidade dela, os cães tinham-na deixado, retornando ao acampamento.
A morada parecia meio abandonada. Havia movimento para o lado das cozinhas e saía fumaça das chaminés, mas nos salões do térreo, onde, via de regra, sobretudo ao final do dia, podia-se observar um alvoroço de oficiais como D'Urville, Barssempuy, Erikson, que vinham receber ordens ou regressavam ao "quartel", não encontrou vivalma.
Num gabinete de estudos, percebeu, dispostos sobre uma mesa, as penas, os rolos de mapas e papéis, os instrumentos de medir de que Florimond se servia para redigir o relato de suas explorações do verão, tarefa a que consagrava várias horas por dia. Mas também ele estava ausente.
- Onde foi que se meteu toda a gente, afinal?
Subiu ao primeiro andar, esperando encontrar Joffrey no cómodo que ele reservava para si e a que chamava de sua "câmara de comando". Ela só entrara ali uma vez. Era ali que ele dormia também, quando trabalhos ou reuniões tardias o retinham noite adentro.
Ao ver a mobília bem escolhida do aposento, Angélica indagara-se se não seria o quarto especialmente preparado para a Duquesa de Maudribourg.
Foi influenciada por esse pensamento quando, depois de bater sem receber resposta, entrou no cómodo. Convenceu-se de que no aposento, ora vazio, flutuavam os eflúvios de um perfume feminino. Não eram vestígios bem precisos. Para sentir, era preciso ter narinas exercitadas. Também não saberia dizer se se tratava do perfume de Berengária Amada. O que a deixou de melhor humor, depois de dar umas três ou quatro voltas pelo aposento, farejando como um gato, foi a constatação de que tudo indicava tratar-se de vários perfumes femininos. Um grande número de pessoas, entre elas mulheres, devia ter-se reunido ali recentemente.
- Mas para onde foram?
Retornou ao térreo e, prosseguindo com a inspeção, descobriu, numa das grandes salas de jantar, os aparentes restos de um banquete. Os. convivas deviam ter-se levantado da mesa pouco tempo antes.
- Houve um jantar no castelo - disse-lhe um ajudante de cozinha, que encontrou no pátio, afinal.
Apontou-lhe o começo de um caminho que adentrava pela floresta.
- Foram todos por ali.
E por ali se enfiou Angélica, seguindo a trilha que coleava por entre troncos de bétulas e espruces. Havia muitas clareiras. Sobre a neve rosada, o anoitecer começava a espichar sombras cor de lavanda.
Pouco depois atingiu os arredores de uma vasta clareira. Reunia-se ali um grande número de pessoas, todas voltadas para Joffrey de Peyrac. Este, numa posição mais elevada, sobre uma leve saliência do terreno, olhava-as e falava-lhes.
Entre os presentes Angélica reconheceu o Sr. e a Sra. de Castel-Morgeat, e Berengária Amada de La Vaudiere. Mas seu marido, o procurador, não estava ali. Com espanto, jnotou também a presença daquela mulher de Orléans, de opulenta cabeleira castanha, Eleonora de Saint-Damien, a quem chamavam de Eleonora de Aquitânia, de quem se dizia que tivera três maridos, e que viera para a missa da meia-noite.
Havia também muitos oficiais, entre os quais Melquior Saba-nac, mas também simples soldados.
Angélica não soube qual foi o instinto que a reteve de descer o talude e introduzir-se no grupo, no qual muitos eram amigos seus e a que seu marido presidia.
Teve a sensação de que ficaria deslocada ali.
Aguçou os ouvidos e tentou compreender o que Joffrey dizia. Ouvia-o bem distintamente, .mas não entendia, exceto por uma ou outra palavra, cujo significado lhe era mais nítido, sem que, ao mesmo tempo, tivesse certeza de havê-lo captado.
De súbito o motivo de sua perplexidade tornou-se-lhe aparente Não entendia por que ele não estava falando francês. Falava em provençal, a língua das regiões meridionais da França. E não havia motivo de surpresa com a presença, naquele grupo, da bela Eleonora de Saint-Damien, pois sem dúvida alguma tratava-se de uma reunião de gascões.
A partir do momento em que a verdade lhe apareceu, Angélica sentiu-se como que atingida por um raio. Pôs-se imóvel como uma estátua atrás das árvores, com o cérebro tão gelado quanto os pés e as mãos. Seria o caso de crer que a Srta. d'Houredanne tinha razão ao dizer: "Desde que o Sr. de Peyrac se encontra entre nossos muros, os gascões saem de todos os buracos. Não se imaginava que houvesse tantos deles na Nova França"?
Isso também explicava a presença de oficiais e soldados, cuja maioria pertencia ao regimento de Carignan-Salière, recrutada nas regiões da Sud-Provence e da Aquitânia.
Angélica mal notou que as pessoas se separavam e dispersavam com grandes saudações alegres, e deu uma longa volta para retornar a casa sem ter que passar novamente diante do solar de Montigny.
A neve tornava-se fosforescente. A noite anunciava-se glacial. Angélica tocou os lábios e, esquecida dos beijos de Bardagne, achou-os sensíveis.
Alçando os olhos para o firmamento, disse consigo que a noite seria propícia a ver-se passar pelo céu as canoas em chamas da chasse-galerie, prenunciando fenómenos sísmicos, loucura nos espíritos e transtornos nas almas. Passando perto do quintal de Banistère, ouviu retinir a corrente do cão magro sobre o gelo e viu delinear-se a triste silhueta do animal, voltado para ela, que se aproximava.
Pobre animal inocente!
Na casa - seria um pesadelo? - também não havia ninguém. Precisou lembrar a si mesma que ainda mal anoitecera. Suzana acabava de ir embora para casa, deixando junto às cinzas um caldeirão borbulhando suavemente e.a mesa para o jantar arrumada.
Uma parte do pessoal devia estar na casa da Srta. d'Houredan-ne, para ouvir a leitura de A Princesa de Cleves.
Os outros dedicavam-se às suas ocupações na cidade. Até o Senhor Gato estava ausente.
Em pé no centro da grande sala de que tanto gostava, Angélica ja não reconheceu o cenário de sua felicidade.
Estava a ponto de ceder a uma emoção provocada por inúmeros motivos, quando se deu conta de que o primeiro desses motivos advinha do esgotamento físico em que se encontrava, pois estava morrendo de fome e sede.
Não comera nada. o dia inteiro. Na verdade, não comia nada desde a véspera, pois de manhã saíra em jejum para comungar na missa de Santa Ágata, e depois o governador levara toda a sua corte para ò jardim. Ao regressar do passeio, o Sr. Garreau d'En-tremont a retivera por quase duas horas em seu gabinete. Ao deixá-la, devia ter seguido imediatamente para a sala de jantar, onde um arqueiro transformado em camareiro lhe servira uma substancial refeição. Enquanto ela, Angélica, saíra a caminhar e a meditar em histórias sinistras, a ser beijada por uns e outros a título de reconforto, o que a levara até uma hora avançada da tarde, para descobrir, ao anoitecer, Joffrey de Peyrac discursando em provençal, rodeado de gascoes e daquelas belas mulheres da Aqui-tânia, cujo domínio a lourice poitevine de Angélica temera em Toulouse.
Agora o sol se pusera. Caíra a noite. Estava com os pés gelados e o estômago vazio.
Com movimentos enérgicos, a que transferiu parte de sua raiva e indignação, Angélica começou puxando do poço o balde onde cintilava a água fresquíssima, que sorveu longamente, do balde mesmo.
Depois cortou uma enorme fatia de pão de centeio e cobriu-a generosamente com manteiga. Juntou uma fatia de presunto e, com o prato na mão, foi sentar-se à extremidade da mesa.
Como não matara a sede, tornou a levantar-se para encher de água um púcaro de louça, que pousou sobre a mesa, ao alcance da mão. Tentada a descer à cozinha para servir-se de uma tigela de leite, desistiu. Estava cansada demais.
Mordendo a grandes dentadas seu pão com manteiga e presunto, começou a examinar os diversos acontecimentos do dia.
Quisera falar com Joffrey sobre a conversa com o tenente de polícia, sabendo que ele a tranquilizaria. Não temia nada: Garreau poderia atirar-lhe aos pés o cadáver decomposto de Varan-ge, que ele no máximo sorriria e o outro veria desabar suas defesas de javali perante o inabalável autocontrole do Conde de Peyrac. Este sentia-se seguro quanto ao silêncio de seus homens. Uma circunstância a mais em que se afirmaria como príncipe independente. Angélica não sabia o que pensar daquela reunião de gas-cões na mata, aonde ele os convocara para falar-lhes na língua de sua província... Uma província anexada (há dois séculos pelos "bárbaros do norte", e que continuava irritadiça.
Teria falado de vingança? De liberdade? Que loucura!
Mas a ela não diria nada, pois escondia-lhe tudo, na verdade. Seria inútil abordar abertamente o assunto com ele, e... para falar francamente, ela jamais ousaria isso. Até no abandono do prazer, sempre o sentia mais forte. Nunca se deixava dominar por ninguém e retinha-a pelo fascínio que exercia sobre ela. "Escrava! Sou sua escrava. E ele sabe..."
Como é comum com as pessoas muito vivazes, robustas e apaixonadas pela existência, o que contava para Angélica era o presente, e o presente lhe mostrava um Joffrey inquietante, inexplicável, inacessível.
Afastava-se dela para ir reunir-se com os amigos e falar-lhes em provençal, enquanto ela enfrentava o tenente de polícia.
Pois a ele não se ousava convocar assim!
Muito bem! Paciência! Ela resolveria sozinha aquela história. E, para começar, ia tomar satisfação com o Conde de Saint-Edme.
CAPÍTULO XX
Na taberna Cão que Gira - Passeio com Loménie-Chambord
Logo depois de ouvir a primeira missa, saiu pela cidade à procura do Conde de Saint-Edme.
Dormira mal. Logo de início o Conde de Peyrac mandara avisá-la de que não poderia ir naquela noite. Ela imaginara o pior, ou seja, Berengária triunfando nos braços dele. Em seguida se acalmou, e concluiu que se angustiava sem razão. E ficou satisfeita com a ausência dele.
Se tivesse ido naquela noite, ela não se teria mostrado um pouco incoerente?
Não fora...
"Tanto melhor!", pensou ela, olhando-se no espelho.
Não era a Bardagne e à rudeza do bigode dele que devia as marcas vermelhas em torno dos lábios?
Havia circunstâncias em que era vantajoso não viverem muito perto, um sob o olhar do outro. Olhar mais inclinado a se mostrar desconfiado pelo fato de se estar apaixonado. Leviandades como as que cometera na véspera ganhavam com o afastamento, por não redundarem em tragédia. Pois os beijos muito conscientes que retribuíra a Bardagne não tinham importância alguma. A ausência de Joffrey permitia à sua consciência esquecê-los.
Agora, quando queria encontrar Vivonne e seus cúmplices, ninguém sabia onde estavam. Angélica acabou indo bater na casa da Sra. de Campvert, que, desde que ela lhe salvara o macaquinho, vivia disposta a prestar-lhe todos os favores.
A fidalga indicou-lhe a taberna Cão que Gira, um estabelecimento a meio caminho da encosta do palácio, algo entre taberna e restaurante, que, pela clientela, podia ser uma espelunca onde se jogava alto.
O Sr. de La Ferté e seus companheiros eram assíduos ali.
Enquanto Angélica descia pela rua escarpada, segurando-se a tudo o que podia, Ville-d'Avray cruzou com ela, subindo alegremente - talvez fosse à taberna Cão que Gira, onde se jogava desde o amanhecer. Disse-lhe:
— Correu tudo bem? Com Garreau?
— Ele foi odioso... Nunca na vida me vi em situação tão in-sultante. Tudo não passava de tagarelices e calúnias.
— Quais?
— Você sabe muito bem. Por que não me preveniu de que se tratava daquele Conde de Varange? Varange era um dos que esperavam a Sra. de Maudribourg aqui.
— Não fui eu que dei parte do desaparecimento dele, mas a Sra. de Castel-Morgeat.
— Outra que faria melhor em não se imiscuir nos problemas alheios... É muito desagradável que se revolva essa história, pois segundo alguns ele teria partido para o norte, ao encontro da duquesa, segundo outros teria ido ao encontro de nossa frota... Depois desapareceu, e ninguém se incomodou com isso, até que Sabina interveio... Ela precisava mesmo preocupar-se com esse indivíduo, que ao que parece tinha costumes dissolutos e invocava o Diabo!
— Exatamente como a nossa cara duquesa! Cada qual com seu igual... Você se defendeu bem, pelo menos?
— E de que eu deveria ter-me defendido? E por que foi comigo que Garreau quis conversar, e não com qualquer outra pessoa que se encontrava a bordo de nosso navio? Gostaria muito de saber.
— Eu também - confessou Ville-d'Avray, desta vez parecendo sinceramente intrigado.
A taberna Cão que Gira era um estabelecimento de importância mediana, sem o renome do Sol Levante nem a qualidade da acolhida e a alegria do Ao Navio de França.
Angélica fora sentar-se ali uma vez com o Sr. de Loménie, pois o proprietário, originário de Marselha, servia café turco. Não gostara da sala escura e enfumaçada, de onde não se podia contemplar nenhum horizonte, pois dava para uma rua estreita, ladeada de casas muito altas, que a tornavam apertada e sombria como uma fenda.
Os vinhos da taberna eram de qualidade medíocre, e o espeto da grelha era movido por um cão que, galopando e dia inteiro dentro de uma jaula redonda em forma de tonel, em que estava fixado o espeto, arrastava-o num movimento de rotação.
Segundo a Polaca, aquele sistema era o que havia de melhor para queimar toda uma enfiada de capões, quando o animal parava, esgotado. Mas os taberneiros eram de Marselha, pouco chegados ao trabalho. A patroa era da Auvergne, o que sempre provocava indignação entre os inúmeros meridionais de sua clientela. "Por que vêm à minha casa, então?", gritava-lhes ela. "Vão à casa da Laverdure!"
O cão que girava o espeto dera o nome à espelunca-taberna, que não era indicada por nenhuma tabuleta.
Assim que entrou, Angélica viu a uma mesa o Duque de Vi-vonne, e notou com satisfação que se o Conde de Saint-Edme estava ali, o Barão de Bessart, cuja prudência calculista ela receava, encóntrava-se ausente. Os quatro biltres eram só três hoje, e jogavam cartas.
Angélica puxou uma cadeira e sentou-se diante deles, recusando o oferecimento do patrão, que se aproximava com um jarro de vinho. Ele, então, segundo o costume da terra, contentou-se em servir-lhe um copo de água fresca, o que não era de se recusar, pois o calor estava sufocante. O fogo na lareira ardia alto, e a Polaca tinha razão: o espeto de capões jque girava ao fogo corria o grande risco de queimar.
Depois de notar maquinalmente esse detalhe, na qualidade de ex-taberneira, Angélica começou a falar.
- Não é a você que procuro, senhor duque, mas ao Sr. de Saint-Edme.
Em algumas palavras, e desdenhando os protestos galantes que o velho se acreditou obrigado a dirigir-lhe, expôs o motivo de sua vinda. O tenente de polícia pretendia que o Sr. de Saint-Edme fosse procurá-lo e lhe dissesse sem rodeios: "A Sra. de Peyrac matou o Conde de Varange". Era sobre esta afirmação insensata que ela vinha pedir-lhe satisfações. Para começo de conversa, desconhecia esse Conde de Varange, a quem, de repente, um tenente de polícia aparentemente sério e que não estava embriagado a acusava de haver assassinado. Segundo, desejava saber por que o Sr. de Saint-Edme, a quem, aliás, ela conhecia pouquíssimo, permitia-se servir-se do nome dela e implicá-la em brincadeiras de mau gosto, a menos que se tratasse de uma loucura da parte dele, coisa que se devia examinar, ou de hostilidade declarada, cujo motivo ele devia explicar. Em resumo: que bicho o mordera? Os olhos do Sr. de Saint-Edme ficaram tão frios quanto os de uma serpente. Mas pareceu que um júbilo secreto animou-lhe com um arrepio rápido a pele enrugada. Respondeu naquela voz ras-cante que, passando-lhe por entre os lábios delgados, parecia provir de outra criatura, invisível.
- Não foi você que o matou?
Os olhos verdes de Angélica esforçaram-se, apesar da repulsa, por captar aquelas pupilas mortas fechadas num círculo de rímel. Seguiu-se entre eles um diálogo bastante intenso.
— Quem lhe disse isso?
— O feiticeiro da Cidade Baixa, O Velhaco Vermelho.
— Como foi que ele soube?
— Através de magia.
— Foi você quem lhe pediu essa operação de magia?
— Sim.
— Por quê?
— Nosso amigo, O Conde de Varange, havia desaparecido e queríamos saber o que lhe acontecera.
Angélica concedeu-se um momento de reflexão. Tomou um gole de água para refazer-se.
— Não o ouvi repetir inúmeras vezes, cavalheiro, que os feiticeiros da Nova França não valem nada? São suas próprias palavras. Não discutirei seu discernimento no assunto, mas se sua opinião era essa, por que dar crédito às lorotas de um deles?
— Porque com essa revelação ele me provou que era muito forte.
— Eu teria desconfiado. Segundo os detalhes que me forneceu o tenente de polícia, que, em minha opinião, não imagina de onde você recebeu suas informações, quando seu Varange desapareceu nossa frota ainda não chegara a Quebec.
— Precisamente.
A voz de Saint-Edme tornava-se sibilante e seu olhar reluzia.
— Ele partiu ao encontro de sua frota... Louco de dor.
— De dor? - repetiu ela, pasmada.
— Ele viu no espelho mágico o rosto daquela a quem esperava, ensanguentado, pisado, vencido... Ela pronunciou duas palavras: Peyrac, Angélica... Assim, compreenda, senhora, que quando o feiticeiro citou seu nome, tudo ficou claro a nossos olhos. Angélica atirou-se para trás e apoiou-se no encosto da cadeira.
- Vejo que o monsenhor estava certo ao nomear um exorcista para sua diocese do Canadá - disse depois de parecer meditar nas palavras que acabava de ouvir. - Trabalho não lhe faltará.
O Conde de Saint-Edme a aturdia como numa visão de pesadelo, com o pano de fundo das chamas da lareira, as cintilações dos frangos no espeto e, através das barras da jaula giratória, a sombra do cão escravo, que galopava sem parar.
- Você perdeu o bom senso! - disse ela. - Rógo-lhe, parede brincar com esses crimes de magia e feitiçaria, senão isso virá à tona um dia e você será julgado e condenado.
Os homens trocaram um olhar divertido.
— Mas, minha cara criança - disse Saint-Edme, com ar hipócrita -, de onde você está. vindo? Não está a par de nada! Hoje em dia ninguém mais é julgado ou condenado por crime de feitiçaria ou magia. A Inquisição já teve a sua época. A nova polícia não se preocupa com distraçòes esotéricas, a que os espíritos inspirados gostam de dedicar-se. Já tem bastante trabalho limpando Paris de suas classes perigosas e livrando as estradas dos bandidos.
— A nova polícia intervém, se há assassinato por trás de suas distraçòes esotéricas, senhor.
O Conde de Saint-Edme estirou os lábios pintados numa careta fria, que era seu modo de sorrir, mas que fazia tremer.
— Quem fala de assassinato, senão a senhora? O Sr. de Varan-ge matou alguém? Não, considero-o a salvo de uma acusação dessas. Enquanto, a dar-se crédito ao Velhaco Vermelho, o mesmo não se aplicaria a sua pessoa, ah, ah!
— Tampouco se aplicaria a você, Sr. de Saint-Edme. Quantas pessoas matou com suas encarnações, missas negras ou veneno? Não sei, mas será fácil saber e obter pelo menos os nomes das crianças imoladas em seus sacrifícios ao Diabo. Não há necessidade de operações mágicas para isso: tenho mil fontes de informações que me dariam com que contentar o Sr. de La Reynie e o Sr. Francisco Desgrez a seu respeito. E sobre você, senhor duque, e você também, Sr. d'Argenteuil. Fiquei sabendo, antes mesmo da polícia, das experiências a que se dedicava sua cara Marquesa de Brinvilliers... Soube pelos vagabundos de Paris, os mendigos que a surpreenderam na Santa Casa misturando pós no caldo ou na tisana dos pobres doentes... Isso são crimes, não são? Assassinatos?
- Então foi você quem a entregou à polícia? - indagou ele com um clarão nos olhos. - Eu desconfiava... E sabia que, em bora tenha confessado, eles a submeteram a torturas?
Angélica deu de ombros. Aquele ali estava realmente louco. Retornou a Vivonne.
- Que perversão o domina para que se dedique assim ao Mal? Você, senhor duque, a quem o rei elevou tanto em funções estatais, e sua irmã, a quem ele ama com tamanha paixão, como puderam, você e ela, chegar a atos tão baixos... Precisava realmente disso, senhor almirante, para conservar sua posição, suas vantagens, os favores do rei? Só se pode encontrar salvação no veneno, nos afrodisíacos, na feitiçaria e nos crimes? Por que faz isso?
Vivonne, que a ouvia embaralhando as cartas com aparente indiferença, deu uma resposta surpreendente:
- Todo mundo faz...
Era moda. Um mundano deve seguir a moda. Vendo-a calada, acrescentou:
— Na corte, quem não envenena é envenenado. Quem não afasta um rival, desaparece... E o jogo!
— Não! O rei, não. O rei nunca envenenou nem mandou envenenar ninguém, que eu saiba! E há mérito nisso, pois nem sempre seus predecessores agiram assim. Mas é verdade que ele é neto de Henrique IV, que também era um homem honesto. Essa linhagem nova de nossos reis rompeu com os costumes depravados das outras dinastias. Mas vocês, os grandes do reino, não o imitam.
A bela boca do irmão de Atenaís torceu-se numa careta.
- O rei pode permitir-se serhtonesto - disse, amargo. - Pela virtude de seu reino, ele se apega aos burgueses... Quanto a nós, povo de cortesãos à sua mercê, ele se vingou da Fronda dos príncipes emasculando-nos. Privando-nos de nossos feudos, de nossas províncias, de nosso poder sobre nossas terras, deixou-nos somente as armas fatais!
Foi com alívio que Angélica reencontrou lá fora o dourado e o rosado de confeito do inverno sobre a neve dos telhados e das ruas. Reencontrou o ar puro e gelado e a surpresa de ser transportada para o Canadá, como que por uma vara de condão... "Não valeria a pena ter vindo para tão longe se eu ainda precisasse me calar... e temê-los..."
Quase corria íie se aproximar do jardim do governador, na impaciência de avistar a silhueta de Loménie vestido de cinza contra o branco entrelaçado de malva dos canteiros.
Ele estava lá. Esperava-a. Tinha os olhos fitos nela e, como na véspera, Angélica só se dava conta do prazer de se encontrar em sua companhia.
Caminhou perto dele num sonho tranquilo e feliz, olhando-o às vezes, pois tinha consciência do encanto que lhe emanava do rosto e que a deixava indiferente, por alguns segundos, às palavras pronunciadas por aquela boca sobre a qual tinha vontade de pousar a sua.
Feliz com o prazer de sentir o movimento de seu andar ao lado dela, de cruzar-lhe o olhar, de esperar pelo instante em que, despedindo-se, ela sentiria na sua o aperto daquela mão que, ao longo de todas as idas e vindas pelo jardim, ela não cessaria de querer reter e apertar.
— Com você, o amor não tem o mesmo rosto - disse ele. Angélica protestou:
— Cavalheiro, não sou perfeita.
Diante dele, com os lábios ainda coloridos dos beijos selvagens e proibidos de Bardagne, sentia-se um tanto pecadora. "O que saberá do desejo este belo homem de olhos meigos?" Aquelas mãos que tão bem sabiam manejar a espada, o sabre e o mosquete, teriam pousado alguma vez sobre o corpo de uma mulher? Angélica imaginava que não, pois o voto de castidade fazia parte da regra da Ordem de Malta.
- E você? Tendes medo da Mulher, senhor cavaleiro?
- Quando ela adquire as suas feições, certamente que não - replicou ele, rindo.
A existência de monge guerreiro pelo mundo ensinara-lhe a arte da réplica.
Um punhado de neve, arrancado de uma árvore pelo vento, atingiu-lhes o rosto como o beijo frio de um sonho.
Riram ambos. Com um dedo, Loménie removeu a neve das sobrancelhas de Angélica. Sua curva dourada, com um reflexo sedoso, não cessava de atrair-lhe o olhar. O gesto lhe veio com tanta naturalidade, que ele não quis coibir-se.
Quando falaram de Honorina, ele lhe contou como gostava de crianças. Ensinara-as e ajudara-as a sobreviver em Ville-Marie. Nas expedições ou nas escaramuças contra os iroqueses, que ele conduzia com um punhado de soldados-trabalhadores, pensava sempre nas crianças, que, ignorando os perigos horríveis que pairavam sobre elas, esperavam confiantes, no forte ou nas casas de toras, o resultado dos combates. A lembrança delas duplicava-lhe as forças.
Estimava as criaturinhas. Admirava-lhes a sabedoria e a inocência. E invejava as alegrias elementares e quase divinas, que eram o apanágio daquela idade abençoada. Lembrava-se da própria infância como de um hino perpétuo à alegria de viver.
Ela gostava de ouvi-lo falar da mãe e das irmãs, com quem conservava vínculos de amizade.
O passeio foi maravilhoso. Teve gosto de paraíso.
O pequeno moinho girava no topo do monte Carmel. A cruz, o poste e o patíbulo, aureolados de luz, tinham a singeleza de uma imagem piedosa.
Ao longe, a ilha de Orléans, colorida de um azul suave, prosseguia em seu diálogo com Quebec. Entre ela e o rochedo, as carroças e os trenós teciam uma rede animada. Angélica e o cavaleiro andavam, saboreando a tepidez do sol com o reconhecimento dos convalescentes. Ela confessou-lhe que temia soluções radicais da parte dele. Que resolvesse, por exemplo, que a amizade deles não podia prosseguir. Ora, ela necessitava da amizade dele. Necessitava pelo menos poder encontrá-lo ao acaso das ruas, saber que ele estava na cidade, pois ele lhe oferecia uma imagem tão serena e justa do homem, que ela sentia os próprios rancores e receios inexprimidos acalmarem-se, ou melhor, apagarem-se para sempre. Ele a deixava feliz.
CAPITULO XXI
O rompimento com Sabina de Castel-Morgeat - Convite para um piquenique
Ao retornar do passeio com Loménie pelo jardim do governador, Angélica encontrou o Tenente de Barssempuy à sua espera à porta de casa, para entregar-lhe uma carta do Conde de Pey-rac. Como não a encontrara, o tenente estava a ponto de ir embora.
Angélica partiu o lacre imediatamente e leu, decepcionada, que Joffrey passara ali de manhã para avisá-la de que estava de partida com o Sr. de Frontenac para uma volta pelo Saint-Laurent. Como o tempo andava bom e firme, era possível cobrir alguma distância sem risco, seguindo as pistas do rio. Visitariam senhorias cujos proprietários o governador queria apresentar a Peyrac - senhores na maioria empreendedores, preocupados com o bem-estar de seus arrendatários, e que tinham o mérito e a consciência de viverem nas próprias terras mesmo no inverno. Também inspecionariam alguns redutos de madeira abandonados, que o Conde de Peyrac se oferecia para restaurar, pois torres de vigia nunca eram demais, ao longo do rio, para se surpreender em tempo uma expedição de iroqueses. Uma d.elas, na embocadura do Chaudière, na rota do sul, também podia ser tomada de empréstimo pelos sorrateiros e odientos inimigos da Nova França.
Joffrey explicava-lhe tudo isso com a minúcia e a gentileza habituais, manifestando seu pesar por não havê-la encontrado quando fora despedir-se. Precisava partir logo, pois os dias eram curtos e, exceto pelos arredores das senhorias bem povoadas, as pistas do rio não estavam balizadas.
Apesar das frases amáveis em que ele envolveu os adeuses, Angélica sentiu-se frustrada, além do fato de querer vê-lo e falar-lhe pelo menos das suspeitas do tenente de polícia, o mal-estar provocado pela reunião de gascôes... Atormentada, deu-se conta de que nos últimos tempos acostumara-se a vê-lo com menos frequência. Os dias passavam, ricos para ela de uma felicidade muito certa e muito substancial. Não se diz que o verdadeiro significado da felicidade é que liberta da infelicidade? De que infelicidade a livrava aquela liberdade que ela'reclamara? Não sabia, mas sentia-lhe o benefício.
No entanto, naquele momento lamentava ter estado ausente a amanhã inteira. Não quis mostrar a própria contrariedade diante de Barssempuy.
Aproveitou a calma daquele encontro para pedir-lhe notícias suas. Apiedara-se do rapaz, sabendo como ele sofrera com a morte da jovem a quem amava, Maria, a Meiga. Sorriu-lhe e perguntou sobre sua saúde, seu bem-estar e o estado de seu coração, que, esperava, estivesse menos dolorido após alguns meses em Que-bec. Tinham-lhe contado que uma encantadora senhorita interessava-se pelos belos olhos dele. Tudo isso com uma graça e uma expressão de encanto, entre maternal e galante, que fez a Srta. d'Houredanne observar, de sua alcova:
"Aprendi, infelizmente, com a Sra. de Peyrac, observando-a quando se dirige a qualquer pessoa diante de sua casa, onde se sucede uma espécie de corte das mais variadas, como os cortesãos e solicitantes na antecâmara do rei, aprendi, então* digo-lhe, todos os matizes da arte de dirigir-se a um ser humano: homem, mulher, criança, velho, nobre e pobre, e de todas as raças ou cores que temos em nossa cidade; dirigir-se a ele seduzindo-o, o que não deixa de causar-me uma dor bastante cruel e que você entenderá, você, que gosta de se debruçar sobre as sutilezas do coração humano; pois se eu tivesse sabido praticar suas regras quando era jovem, ocorre-me a ideia de que em muitas ocasiões eu poderia ter vivido dessas aventuras de coração, de amor e de ternura cujo reflexo vejo passar pelo belo rosto dela quando fita outro rosto, seja o do bêbado D'Heurte-bise ou do seu índio de dentes compridos, o narrangasett, ao invés de ser hoje somente uma velha acamada, a quem ninguém ama e cuja vida é bem pobre de recordações amorosas".
Barssempuy agradeceu a Angélica o interesse. Ia tudo bem com ele, afirmou, e com seu coração também... embora... Passou um clarão pelos olhos do jovem oficial, que, não se devia esquecer, estivera sob as ordens de Barba de Ouro, um pirata declarado.
- Os que a mataram, aquela a quem eu amava, não foram suficientemente castigados, senhora... Mas por ora Deus me pediu que me resignasse.
A vida era agradável em Quebec, e havia que admitir que o Sr. de Peyrac era um chefe que não deixava desocupados os homens de sua comitiva ou-de sua tripulação. Barssempuy não dispunha de muito tempo para se deter nas mágoas do coração.
Tendo-se, então, "dominado", conforme lhe recomendava outrora tia Pulquéria, pois o primeiro dever de uma fidalga era saber "dominar-se" no mundo, a fim de nunca deixar transparecer nada do próprio desprazer, Angélica chegou ao pátio nos fundos da casa e entrou, com a mensagem de Joffrey na mão e não muito segura de que não rebentaria em lágrimas em seguida.
O Sr. de Ville-d'Avray e a Sra. de Castel-Morgeat esperavam-na nó pequeno salão, ambos sentados no sofá. Levantaram-se.
- Sabina ficou perturbada ao saber que você a acusava de intervir no caso do Conde de Varange - disse o marquês. - Deseja explicar-se, e eu a trouxe com essa finalidade.
Angélica fulminou-o com o olhar. Vendo isso, o marquês esquivou-se, com um sorriso hipócrita:
- Deixo-as!
O manto da Srá. de Castel-Morgeat tinha jam forro cor de ameixa. Em pé na meia-luz que vinha da rua, com sua calorosa palidez, estava decididamente belíssima.
— O Sr. de Ville-d'Avray me informa que ao me interessar pela sorte dos pequenos saboianos do Sr. de Varange eu a contrariei - começou Sabina, cujos olhos andaluzes se dilataram sob o efeito da ansiedade. - Angélica, estou muito magoada. Você teria levantado acusações contra mim.
— Que acusações?
— Que eu, conscientemente, comuniquei o caso dos pequenos saboianos a fim de que você fosse convocada pelo tenente de polícia.
— Ah, não transforme tudo em tragédia!
— Minha vida é trágica - bradou Sabina de Castel-Morgeat.
— O que diria eu da minha, então! Sente-se!
A Sra. de Castel-Morgeat voltou a tomar lugar no sofá, enquanto Angélica se sentava na outra extremidade.
A mulher do governador militar esforçou-se por se acalmar a fim de explicar que jamais sonhara em causar o menor dano à Sra. de Peyrac. Simplesmente fora a primeira a notar a ausência do Sr. de Varange do bairro onde ele morava.
- O Sr. de Varange era nosso vizinho mais próximo antes de nossa casa ser demolida. Nós o visitávamos pouco, mas eu notava as idas e vindas de sua criadagem. Numa ocasião, observei-lhe que precisava enviar seus pequenos lacaios ao catecismo. Disse-me que faria isso. Não sei se voltou a pensar no assunto. As crianças são originárias da Sabóia, mal falam francês.
Num dia recente ela constatara que na casa vazia só restavam os dois domésticos, cuja vadiagem e estado miserável atraíam-lhe a atenção. Alertara sobre o estranho fato o procurador Tardieu, que comunicou pessoalmente o Sr. Garreau d'Entremont. Descobriu-se então que fazia semanas e até meses que o conde desaparecera. Quanto às crianças, ela de início as recolhera no Castelo Saint-Louis, onde podiam comer nas cozinhas, mas o Sr. Tardieu tivera a excelente ideia de levá-k>s para o cartório, para o controle da limpeza de chaminés, ofício habitual das crianças saboianas. Pequenos e magros, esgueirando-se por todos os orifícios, eles acompanhavam os arqueiros de controle e podiam relatar prontamente o bom estado do conduto, que devia ser limpo a cada dois meses, às custas do morador, sob pena de multa severa. Os meninos, então, viviam no cartório, entre os padrões de pesos e medidas com que se determinavam as fraudes comerciais. A zeladora do cartório os alojava e alimentava. Carbonnel, o escrivão real, tomara-os sob sua responsabilidade. Ia constituir-lhes um pequeno pecúlio na qualidade de funcionários do Estado. Angélica tinha consciência de não poder explicar a Sabina os verdadeiros motivos de sua contrariedade.
- Você teve razão - disse alta. - Não questionei sua carida de, Sabina. Sei que é muito generosa.
- Generosa mas desajeitada, o que significa não ser generosa...
Angélica não soube o que responder.
— Parece-me - murmurou Sabina de Castel-Morgeat - que me censuram mais ainda pelos meus atos de bondade do que pelas minhas intervenções de cólera ou revolta. Como se, permitindo-me ser boa, eu contrariasse a ordem das coisas.
— Qual nada! Você está imaginando coisas.
— Eu podia deixar aqueles pequenos infelizes ao abandono?- animou-se Sabina. - Estavam magros de dar pena. Os vizinhos da Grande Allée, na maioria, são ex-"viajantes" ou intérpretes enriquecidos com o comércio de peles e que construíram ali suas casas. Gente dura consigo mesma e com os outros. Quando viam os meninos.vagando, contentavam-se em atirar-lhes um pedaço de pão ou em espancá-los, caso os surpreendessem a assaltar-lhes os galinheiros. Nem no Natal ninguém se preocupou em saber como eles estavam passando a festa abençoada do Menino Divino... Assim que fiquei a par desse estado de coisas, não pude me desinteressar. Também não acha isso?
— Certamente que sim! Você teve absoluta razão - repetiu Angélica, num tom tão exagerado e atormentado, que anulava todo o efeito suavizante de sua aprovação, aterrorizando Sabina de Castel-Morgeat e deixando-a sem voz e quase a ponto de rebentar em soluços.
— Eles não podiam permanecer muito mais tempo naquela morada sinistra, glacial e úmida - continuou Sabina. - Só acendiam fogo na cozinha, dormiam diante da lareira, sobre um pouco de palha. O Sr. Carbonnel não é mau homem. No domingo os levará para comer em casa, à mesa da família. Achei que fazia bem...
— Claro que fez bem! Mas cale-se, por amor de Deus... - exclamou Angélica.
Em seu nervosismo, esbarrou no braço do sofá e, por um estalido do móvel, pensou que o mecanismoia desencadear-se. Ao pensar que corria o risco de ver-se de pernas para o ar com a Sra. de Castel-Morgeat, soltou uma gargalhada, o que foi inoportuno.
Sabina levantou-se, pálida.
- Você está zombando de mim!
- Garanto-íhe que não - afirmou Angélica. O rosto da visitante suavizou-se e foi sua vez de quase sorrir, fitando-a.
- Você ri sempre!
Essa fora uma das censuras de Ambrosina, embora Angélica não se lembrasse de ter sido assim tão alegre na presença dela.
- Observo-a. Você é alegre como uma mulher que... que sabe... que terá amor quando a noite chegar. E que toda manhã acordará rica de mais uma munificência, certa de ser bela, de ser mulher, de ser amada. E não como alguém que adormece toda noite e desperta toda manhã num eterno exílio desse paraíso a que todos os seres humanos têm direito na terra: o amor.
— Quem a impede de ascender a esse paraíso?
— Não atraio o amor.
— Porque não ama e porque não gosta de si mesma. Que ca-nhestrice para com a vida a levou a odiar-'se a tal ponto? Sabia que eu, a quem você pretende que recebeu tudo das fadas no berço, invejo-lhe a bela cintura e o peito escultural e seus cabelos negros, se não os escondesse? Você é desejável, Sabina. Seus amantes nunca lhe disseram isso?
— Amantes! - protestou ela, indignada. - O que está ousando dizer? Ah, bem reconheço a leviandade de sua moral!
— Então, azar seu! Quando converso com você, pergunto-me se a melhor virtude não é a que consiste em ser feliz, em gozar dos prazeres deste mundo. Você se encerrou em seu amor frustrado como numa doença... Quis vingar-se do amor renegando-o, mas agora é ele que se vinga de você...
Sob o olhar dela - aquele olhar que considerava triunfante -, Sabina se sentia como uma leprosa.
Também se maldizia por jamais conseguir conversar com Angélica com sangue-frio.
Toda vez que falavam, ela acabava por sofrer terrivelmente de mágoas e ciúme.
— Dá vontade de poder odiá-la - murmurou.
— Parece-me que você não se priva disso - replicou Angélica. - E tudo isso porque pretende que lhe "tomei" o homem a quem amava! O que sabe você desse amor?
— Assim que a vi no caminho de Toulouse, entendi que havia perdido a partida, porque ele não podia escapar a um encanto como o seu. Entendi que o acorrentaria completamente, aquele homem de bom gosto, sensual, que amava as mulheres como a belos objetos, mas que até então nunca se entregara a nenhuma. E foi tão injusto que fosse você, uma poitevinel Você, tão distanciada de nossa civilização!
— Falemos dessa sua civilização - bradou Angélica, inflamando-se. - Eis aí tolices de que eu preferiria que ele se afastasse e que já lhe custaram bem caro.
Angélica correu os olhos à volta, para certificar-se de que não havia ninguém ao alcance de sua voz.
— Acho que meu marido tem se interessado demasiado por sua civilização desde que estamos em Quebec...
— Você não pode pedir-lhe que renegue a cultura dos trovadores!
— Já não existem trovadores! Não lhe basta que ele tenha sido torturado, condenado e banido, e agora, anos depois, quando consegue ser reconhecido e talvez reabilitado, vocês têm que recolocá-lo em perigo? -
— Em perigo? - repetiu Sabina. - O que quer dizer?
— Que não viemos para a Nova França a fim de dar ao Conde de Peyrac o luxo de conspirar contra o rei - disse Angélica, atabalhoadamente, para lamentar as próprias palavras à medida que lhe saíam da boca. - Será que precisarei descobrir que a injustiça de nosso soberano para com ele não foi infundada?
— Mas que conversa é essa? Você está perdendo a razão! Angélica, o que está imaginando? Somos todos súditos fiéis do rei da França!
— Eu os vi reunidos no bosque, e ele falava com vocês em provençal.
A Sra. de Castel-Morgeat sorriu, e isso irritou Angélica, que naquele momento se sentia muito diminuída.
— Nós nos reunimos assim com frequência, para falar nossa língua familiar, a da infância, de nossa terra. Faz bem aos exilados. O próprio Sr. de Frontenac, que é gascão, gosta de participar de nossos colóquios. O Sr. de Peyrac, ao nos convidar, lembrou-me de sua melhor qualidade, embora a menos reconhecida, talvez, por trás de sua aparência às vezes mordaz: ele é bom.
— Não é verdade. Ele não é bom de modo algum. É bem mau, até.
— Decididamente, você o conhece pouco.
— Conheço-o melhor do que você, parece-me. É meu marido! E todas as recordações que você tem dele não modificarão nada nisso, pois sou eu a mulher dele! Fui eu que sofri com ele sua desgraça e que tive que padecer o destino dos rejeitados, porque lhe usava o nome. Você o amava porque ele era rico e faustoso, porque se imaginava reinando em Toulouse, presidindo aos jogos florais. Mas teria suportado ver-lhe a reputação e a fortuna ruírem? Sua grandeza vilipendiada, seus amigos a evitá-lo, e você, entregue à mais terrível miséria?
— E você? Suportou isso?
Sabina erguia-se, encarando-a com olhos faiscantes.
- Também você o amava porque era rico e faustoso? E não suportou vê-lo cair do pedestal? É isso o que sinto por trás de suas palavras... Você continua a querer-lhe mal pelo aviltamento a que a condenou... Sequer foi capaz de padecer com ele e por ele o eclipse que ele sofria!
Angélica também se levantou.
— Tola! Não tente entender algo de sentimentos nem blasfemar contra meu amor por ele... Queimaram-no na Place de Greve. Só mais tarde vim a saber que foi só em efígie. Eu o adorava^ amava, e ele desaparecera para sempre. Um eclipse, você diz? É fácil falar. Você embalava seu pequeno Ana-Francisco ao abrigo do castelo do Sr. de Castel-Morgeat, a quem havia desposado por despeito, enquanto eu chafurdava sozinha em minha miséria, com meus filhos em andrajos...
— Quem lhe disse que foi tudo tão fácil? Meu marido pôs-se completamente ao lado do Sr. de Peyrac, e quando a agitação na Aquitânia se acalmou, recebemos o exílio para o Canadá como punição. Foi você, embora se queixe que recebeu a melhor parte. Você o amava, e ele a você. Estar unida a um homem a quem não se ama e que nos repugna é a pior das misérias.
— Quem a obrigou a forçar assim seu coração e seus sentidos? Você é uma tola! Uma tola! O Sr. de Castel-Morgeat possui todas as qualidades para ser amado por uma mulher, por mais de uma até.
— Ah, claro! Ele não deixa de visitar as putas!
— E você que o envia a elas, recusando-se a ele. É você que o ridiculariza com seu rancor injustificado e sua apoquentação. Quanto a mim, considero-o muito agradável, corajoso, entusiasmado e boa companhia. Tenho muita estima por ele.
— E considera-se autorizada a"deixá-lo ouvir isso, a fim de incluir mais uma vítima em seu quadro de caça de sedutora? Deixe meu marido em paz, por favor!
— E você ao meu!
— Não basta que meu filho Ana-Francisco morra de amores por você? Quer o pai também?
— Não sou responsável pelas loucuras que podem germinar no cérebro desse rapaz, seu filho... De minha parte, isso só me aborrece... Por outro lado, o interesse que a leva a debruçar-se sobre os trabalhos de meu filho Florimond me parece menos puro. Você o lisonjeia, interessando-se pelos mapas e viagens dele, mas será que não se deixa atrair pelo jovem pajem contente de si, que se parece um pouco demais com o pai para não a emocionar?
— Você está divagando! Não sou uma desavergonhada como você para me interessar por seu filho...
— Mas acusa-me de seduzir o seu! Na verdade, você tem mágoa de Ana-Francisco e de mim porque, estando apaixonado por mim, ele lhe escapa. -
— Sim! - explodiu Sabina com raiva. - Eu só tenho a ele no mundo, meu filho! Quando retornou da floresta, já não o reconheci. Encontrara-a em Tadoussac e estava inteiramente mudado. Achei que ia odiar-me. Foi morar no solar de Montigny, junto de Florimond, porque era mais uma maneira de aproximar-se de você. Cometi ação assim tão vil ao me interessar pela expedição dele e de Florimond, a fim de chegar perto de meu filho único?... Os dois rapazes ficaram bem contentes com o interesse que lhes dediquei aos relatos, pois a juventude gosta de falar de suas façanhas e trabalhos. Eu não podia suportar perder Ana-Francisco completamente, era exigir demasiado de mim. Sem ele não me restaria mais nada. Você pode entender?
— Entendo principalmente que você é uma mulher ciumenta, que deseja dominar todo mundo.
— Devolvo-lhe o cumprimento. Não lhe assenta muito bem lançar-me essa censura, quando não pára de atrair o amor de todos os homens, inclusive de eclesiásticos ou religiosos, como o Sr. de Loménie, Cavaleiro de Malta.
— Tampouco você pode falar muito nesse sentido. É bem conhecida sua paixão por seu confessor.
— Meu confessor! - gritou a Sra. de Castel-Morgeat, levando a mão ao peito como se fosse desmaiar. - Que nova calúnia é essa? De que confessor você está falando?
— Do santíssimo Padre Sebastião d'Orgeval, naturalmente... Não vai negar que era louca por ele.
— Ele! Jamais me passou pela cabeça olhá-lo senão como ao guia de minha alma! Como ousa imaginar tal coisa?
— Não imagino nada! As manifestações de seu apego não enganaram ninguém. A cidade inteira comenta...
— Você é uma víbora!
— Sou franca. Não dissimulo sob negativas virtuosas apegos vindos do coração e mesmo da carne, que, em minha opinião, contêm muito mais virtude do que suas hipocrisias estéreis. Você está se destruindo, Sabina, querendo crer que nossos impulsos de amor vêm somente de Satã. Pois também você é uma apaixonada, uma passional...
Desta vez a Sra. de Castel-Morgeat e a Sra. de Peyrac separaram-se brigadas de morte. Não valia a pena have/em-se reconciliado de modo tão visível e surpreendente no baile de Reis.
O mundo, que é lento para entender, não notou nada. Continuaria a satisíazer-se com a reconciliação do baile da Epifania, que agradava pelo lado misterioso, jamais esclarecido.
Ninguém desconfiou da última briga delas, que explodira de repente, tão tola quanto violenta. Angélica, porém, ficou com a consciência pesada, e Sabina, desesperada.
Naquela mesma noite, pouco depois que Sabina foi embora, um mensageiro do Cavaleiro de Loménie veio distrair Angélica de seus remorsos. Convidava-a a compartilhar de seu trenó para um grande piquenique que fariam no dia seguinte, domingo, às quedas de Montmorency.
Para compensar o abandono em que "àqueles senhores" partidos para o Chaudière, rio acima, haviam deixado "aquelas senhoras" presas ao "acampamento" em Quebec, algumas delas, entre as quais a Sra. de Mercourville e a Sra. de La Vaudière, tinham organizado uma grande expedição algumas léguas abaixo. Metade da cidade estaria presente. Passariam o dia junto às quedas. Patinariam e escorregariam pelo Pão de Açúcar.
O Sr. d'Arreboust deixara seu trenó à disposição do Sr. de Loménie. Este, então, pedia a Angélica que o aceitasse como acompanhante. Ela apressou-se a aceitar, com um recado que lhe remeteu imediatamente. Os senhores de Bardagne, Ville-d'Avray e Chambly-Montauban, que vieram colocar-lhe à disposição os respectivos carros, chegaram tarde demais.
AS QUEDAS DE MONTMORENCY
CAPITULO XXII
Confidências num trenó - Atentado no Pão de Açúcar
- Noite de delícias - A fuga do Cavaleiro de Malta
Sob o sol de ouro, o trenó deslizava pela pista do Saint-Laurent por entre as balizas de galhos de cedro ou abeto, e os guizos dos dois cavalos atrelados um atrás do outro cadenciavam o ritmo da corrida. Os canadenses tinham adquirido o hábito de pendurar guizos aos arreios dos cavalos de tração, já que uma parelha avançando sob uma nevasca não se anunciava mais do que um fantasma. Não se ouviam aproximar-se os passantes, os veículos, e tinha havido acidentes.
Sentada sob peles, ao lado do Cavaleiro de Loménie, Angélica deixava-se invadir pela euforia do passeio, em que a sensação de brusco espaço aberto, depois que, com um movimento balou-çante, o trenó saíra da margem de Quebec e se lançara sobre a pista gelada da planície que se estendia a perder de vista, misturava-se à vertigem de compartilhar com o tranquilizador Conde de Loménie aqueles momentos límpidos e inebriantes de evasão.
Tranquilizador não era o termo. Ela o empregara por não encontrar outro que traduzisse o prazer que sentia na presença dele, prazer leve e sem nuvens, como aquele céu incrivelmente puro, onde o azul intenso enfrentava a invasão do sol com uma alegria combativa. Entre a safira e o ouro, quem venceria? Eles tinhan deixado a cidade pelo fim da manhã, e por ora os exércitos do sol pareciam ganhar a batalha.
Com a cabeça atirada para trás, Angélica respirava o ar gelado. O capuz de espessa pele branca protegia-a das guilhoadas do vento. Sob as cobertas de pele, escorregou a mão para a do cavaleiro, e seu coração estremeceu de afeto ao sentir aquela mão enluvada fechar-se em torno da sua, com uma pressão natural, firme e tranquila.
Tudo estava bem e repousante.
Em pequenas frases, com os olhos semicerrados sob as flechas do sol, ela contava ao cavaleiro sobre o descontentamento que sentia com relação a si mesma depois que acreditara perceber no próprio comportamento, que ela se esforçava o máximo possível para manter justo e equânime, horríveis motivos de rancor que a-levavam a gostar de fazer sofrer.
- Você? - disse ele.
Ela ia explicar, sem julgar necessário revelar-lhe que o exame de consciência fora ocasionado pela observação de Sabina de Castel-Morgeat: "E você? Suportou?" Rememorou o passado, expondo-lhe a queda terrível que sofrera, do cume de um sonho de amor e de riquezas sem igual ao fundo mais negro da miséria e do abandono.
- Quais são as censuras que você se faz? - indagou ele.
Ouvia-a com uma atenção tão completa e indulgente, que ela, para continuar a mergulhar na luz daquele olhar onde se mesclavam admiração e ternura, estava disposta a prolongar suas confissões durante horas.
- Na época eu era muito jovem... Jovem demais... Mal completara vinte anos... Hoje penso que o que enfrentei estava além de minhas forças... E que disso conservei algo de mau, como escrófulas frias e duras.
Lutara com unhas e dentes, mas do combate conservara no fundo do coração a lembrança de uma promessa que repetira com frequência, rilhando os dentes: os homens pagarão por isso.
- E, pensando bem, mesmo em relação ao homem que adoro, mas cuja queda me expôs a tantas infelicidades, creio que por vezes vi surgir em mim algo que não lhe perdoava.
Ele a ouvia, sério. Tristeza e comiseração passavam-lhe pelo rosto sensível ante o relato das provações que ela entremostrava; mas também havia um ligeiro matiz de repreensão.
- Você quer vingar-se dos homens - disse -, o que é concebível... Mas nem por isso está certo. E coisa muito feia, mesmo.
Ela apoiou a cabeça contra o ombro dele.
- Sim! Ralhe comigo, Sr. de Loménie. Preciso de que alguém ralhe comigo...
Fechou os olhos e através do ímpeto gelado do vento a tepidez do sol sobre suas pálpebras foi como que uma carícia para ela.
- Revejo-me egoísta, dura, implacável...
- É isso mesmo!
Reabri ido os olhos, ela viu nele uma expressão melancólica, mas, em seu olhar, um clarão bem-humorado, como se ele acabasse de arreliá-la.
- Egoísta, dura, implacável - repetiu o conde. - Como a juventude. Como, infelizmente, a juventude precisa ser com frequência para sobreviver ao abordar a vida. O que são, afinal, as forças dos vinte anos, as forças de uma mulher muito jovem, presa dos homens, ou as do jovem guerreiro, indo a combate para semear a morte? Dentre os compromissos que nos são solicitados, conservar depois dessas provas o nosso terno e alegre coração de filho de Deus certamente não é a menor. Dito isto, não seja demasiado severa consigo e com sua imagem antiga... que deve ter sido deliciosa.
E sorriu. E ela achou que ele fosse beijá-la.
Continuou com a cabeça apoiada ao ombro dele. As vezes, quando um solavanco os sacudia, ela se soerguia por um segundo, atenta à impassibilidade do cocheiro, cujo dorso embrulhado numa capa de couro forrada de pele não se movia, quadrado, um nada ultrapassado no centro pelo topo do gorro de lã vermelha canadense. Ele estava fumando, pois viam-se pequenas baforadas azuis jorrar a intervalos e fundir-se à nuvem cintilante de seu hálito. O homem estava completamente indiferente ao que se passava às suas costas.
Seguiam em frente, embrenhando-se na paisagem dourada, onde se avantajava a sombra da ilha de Orléans, enquanto à esquerda desfilavam os primeiros contrafortes da costa de Beaupré. Já visível, o campanário da paróquia de Beauport picava com sua agulha de prata o céu cor de pervinca. E podia-se apreciar o belo alinhamento regular das faixas censitárias, escalando as bordas do rio rumo ao cimo arborizado, cada uma delas com uma única casa no centro, quadrada, de telhado em forma de sino, cujas chaminés soltavam tranquilas baforadas de fumaça branca.
Depois de havê-las contemplando com tanta frequência do alto, Angélica as via de baixo, aquelas casas intencionalmente separadas umas das outras, que mais do que nunca tinham o ar de sentinelas pacientes.
- Pois, de minha parte - continuava Loménie -, dir-lhe-ei que, pelo contrário, com frequência me emocionei ao notar como você é escrupulosa em não magoar a ninguém, desejosa de encorajar, aliviar das próprias penas as pessoas que a rodeiam. Talvez esse sentido de caridade tão rara se deva aos ferimentos de injustiça e humilhação que você mesma sofreu. Você saberia dizer-me que atas seus a levaram a pensar que procurava vingar-se, em particular daquele a quem reconhece amar mais do que a tudo no mundo e a quem a ligam longos anos de amor recíproco? Ainda que, conforme me contou, o acaso os tenha separado inúmeras-vezes.
Angélica interrogou a própria consciência. A necessidade que sentira, ao chegar a Quebec, de isolar-se, de dissociar um pouco a própria vida da do marido, não era um sinal?
Loménie sorriu.
- Minha cara criança, eis aí um ponto pelo qual eu antes me sentiria tentado a cumprimentá-la. Durante longos anos em Montreal, ocupando-me de conservar a harmonia dos casais naquele pequeno forte onde a vida era difícil, tão ameaçada, mas as almas, de boa vontade, frequentemente lamentei não poder aconselhar a cada um dos cônjuges que se entregasse à santa disciplina do que, em nossas ordens seculares ou monásticas, chamamos de retiro. Todo religioso deve fazer um retiro espiritual no mínimo uma vez por ano. Silêncio, recolhimento, solidão, meditação sobre si mesmo, revisão de nossas relações não só com Deus, mas com todos os que nos cercam e a quem amamos. Ora, na agitação da vida mundana, como podem dois seres, dia e noite ligados um ao outro, não sentir uma aspiração, caso sejam especiais, a se separarem um pouco, ainda que seja para em seguida se servirem mutuamente melhor? Pressinto que você obedeceu a um apelo desse tipo, e que o Sr. de Peyrac, entendendo a situação, não se aborreceu. Rara sabedoria! Pois tenho podido constatar que não é tanto o rigor das leis conjugais que mantém unidos os esposos e os leva a não se concederem liberdade, mas o ciúme mais insensato e um azedume de proprietário que por vezes chega à ferocidade.
O cavaleiro interrompeu-se, como se temesse haver-se excedido em seu julgamento.
- E verdade que não é fácil desfazermo-nos da criatura que nos pertence carnalmente - suspirou.
Angélica deixava que esvoaçassem à sua volta as palavras que ele pronunciava a meia voz e que o vento entrecortava. Captava-lhes a essência, e seus pensamentos, ao mesmo tempo entorpecidos e ágeis, murmuravam-lhe agradáveis aprovações interiores.
"Ele tem razão... Era assim mesmo que eu estava sentindo as coisas..."
Sentira-se tentada a isolar-se em si mesma, reconhecer-se, mover-se novamente com toda a liberdade através da vida e dos outros, agarrando o prazer que passa - fosse o galanteio de um apaixonado, fosse a doçura de uma paixão - como um alimento tão necessário quanto passageiro. E não se sentia culpada por essas leviandades com que satisfazia a necessidade de vingar-se, em parte, dos danos que os homens lhe haviam causado e, em parte, do poder que Joffrey tinha sobre ela, um poder que a oprimia porque lhe estreitava o coração e que um dia também poderia pesar a ele. Uma mulher feliz, uma mulher livre e sem angústias, não era o que ela podia dar-lhe de melhor?
Assim, não se sentia culpada por estar tão feliz porque se encontrava no trenó ao lado de Loménie, deslizando pelo Saint-Laurent num dia límpido de inverno. Uma linha de luz sublinhava o fino perfil do cavaleiro, e, examinando-lhe o desenho da boca, ela voltou a perguntar-se se, exceto pelo beijo que lhe dera outro dia, na capela, aquela boca conhecera outros lábios.
- Diga-me, meu caro Cláudio... Com toda a amizade... E não responda à minha pergunta, se preferir... Mas acabou de pronunciar uma palavra: calmamente... Para falar de amor com tanta competência, devo crer que... talvez antes de entrar para a ordem... você teria adquirido certos conhecimentos...?
Cláudio de Loménie sorriu.
— Está me perguntando se sou virgem? O que responderei? Sim e não...
— O que quer dizer isso?
— A castidade é um estado. Quando nos engajamos ao serviço de Deus, que a exige, temos a presciência de que ela nos convém. No entanto, pouco antes de entrar para a Ordem de Malta, na época em que eu preparava um exame de teologia na Sorbon-ne, em Paris, fui tomado de escrúpulos. Convenci-me de que, se me decidira a pronunciar os votos, talvez fosse por medo. Medo dessa criatura por quem não pararam nunca de nos inspirar o maior receio: a Mulher. Meu confessor, que era jesuíta, compreendeu que essa dúvida sobre os motivos de minha vocação poderia perseguir-me para sempre, e, com a permissão dele, fui à procura de um bordel na Rue de Glatigny.
— Atrás da Notre-Dame!
— De fato! Uma grande sombra da catedral naquela triste rua...
— E... dessa incursão pelo submundo da luxúria, que sentimento você conservou? Repugnância?
— Qual nada! Minha curiosidade foi solicitada por demasiadas descobertas para se deter no ambiente sórdido ou nas estranhezas de um ato cujas etapas necessárias um de meus companheiros, estudante de medicina, me descrevera cuidadosamente antes. Essa incursão, conforme você diz, à Rue de Glatigny trouxe-me outra coisa e me foi das mais benéficas. Descobrindo a mulher, mas na sua condição mais abjeta, meu olhar se deteve ao mesmo tempo na miséria, na fragilidade e no encanto dessas criaturas, e entendi também tudo o que se ocultava por trás da palavra "mulher"; sedução, fraqueza, condenação. Conservei da experiência um sentimento de compaixão e de compreensão para com todas as mulheres. Também aprendi naquela pocilga sórdida o valor de uma qualidade essencialmente banal, mas de extrema utilidade para nos ajudar a atravessar situações humilhantes ou embaraçosas: a gentileza. Veja que dessa recordação única extraí ensinamentos bem preciosos.
Angélica o ouvia e achava-o encantador. Ele falava com uma displicência sorridente, mas a expressão de seu olhar cinzento a perturbava quando para ela se voltava, e chegou a ter vontade de que ele pousasse a mão sobre seu seio.
"Ele faria amor muito bem", devaneou.
Um solavanco fê-la temer que o cocheiro se virasse, e ela se afastou um pouco.
- Então, essa experiência do amor,não o desviou de sua vocação?
Ele murmurou, como que para consigo mesmo:
- A experiência do amor está acontecendo agora.
Falou tão baixo, que ela pôde fingir não ter ouvido. Pois as quedas de Montmorency se descobriam na virada de um promontório, e o ronco das águas crescia bruscamente, acompanhado de alegres gritos de crianças.
Ao pé do célebre salto e do não menos célebre apêndice de inverno, o Pão de Açúcar, fervilhava meia cidade.
Filas de trenós começavam a formar-se a pouca distância, bem como de veículos, os mais variados, alguns dos quais, compostos de uma prancha de madeira chata e uma amurada, podiam transportar até seis ou sete pessoas em pé.
Os relinchos dos cavalos se misturavam aos chamados alegres dos amigos, interpelando-se, e às risadas estridentes de crianças e moças.
O Conde de Loménie saltou em terra e contornou o trenó para abrir-lhe a porta e ajudá-la a descer.
Ocorreu a Angélica que estava caminhando sobre a superfície daquele grande rio Saint-Laurent, de abismos tão profundos. Ora, assim que deu os primeiros passos, o gelo cedeu e sua perna penetrou nele até o joelho. Ela soltou um grito.
Loménie segurou-a e ajudou-a a safar-se, pedindo-lhe desculpas por não a haver amparado o suficiente. Ele ria. O rio, explicou, revolvido por ondas e correntes, congelava de modo irregular, ainda que fosse dominado brutalmente pelo gelo. Aqui e ali restavam bolsões vazios. De vez em quando estalavam, mas geralmente era alarme falso, não havia nada a temer. Naquela estação devia haver no mínimo três camadas de gelo sobrepostas.
- Três camadas! Deus seja louvado!
Antes de serem rodeados pelos amigos e conhecidos que, avistando-os, vinham-lhes ao encontro, eles levantaram a cabeça para abarcar com o olhar a beleza de um espetáculo que a natureza, nas convulsões de sua criação, deixara ali e que causava admiração.
A queda-d'água, no desvão negro da floresta onde surgia para se lançar de uma altura de quase trezentos pés, oferecia a imagem de uma alta e impressionante torre de cristal dominando a planície do rio congelado.
O inverno pouco lhe diminuía o jorro. Entre as colunas de gelo que cobriam a rocha, suas ondas continuavam a atirar-se num ronco ininterrupto, despertando o eco das altas falésias da costa de Beaupré. Ao pé da catarata, miríades de gotículas dispersadas em vapor de espuma furiosa cristalizavam-se no frio, formando uma poeira brilhante que, voltando a cair sem parar como chuva e acumulando-se sobre a margem, acabava erigindo, diante da cascata, um cone que, devido à sua forma, fora batizado de Pão de Açúcar, alto o suficiente para que as silhuetas que lhe atingissem o topo parecessem minúsculas.
De uma matéria gelada, dura e como que porosa, que também fazia pensar em açúcar, esse monte artificial era incessantemente revestido de uma poeira de neve, brilhante e macia como veludo de seda. Se a ascensão não era fácil, a descida, em compensação, podia acontecer com uma rapidez vertiginosa. Os gritos dos entusiastas, que, em grupos de quatro ou cinco, acocorados uns atrás dos outros sobre trenós primitivos, deslizavam a toda a velocidade, ressoavam por toda parte.
Nos dias de piquenique, diligentes comerciantes, que não desdenhavam nenhuma ocasião de lucro, como o Sr. Gonfarel entre outros, erguiam sobre o gelo pequenas cabanas-tabernas, onde se vendiam salsichas grelhadas, servia-se cerveja ou limonada e, a quem não tivesse trazido sua provisão costumeira, jarros ou quartilhos de aguardentes diversas.
Um local cuidadosamente nivelado e raspado permitia aos capacitados entregarem-se às alegrias da patinação. Enquanto outros, calçando tamancos e de mãos dadas, se lançavam a deslizar em farândolas enormes. Tombos e risos era o que não faltava.
O Sr. de Ville-d'Avray, auxiliado por Chambly-Montauban, que, como ele, era muito versado na arte da patinação, fazia Ho-norina e Querubim evoluírem, e as crianças soltavam gritos de alegria.
O passeio às quedas de Montmorency, no final das contas, conferia a todos a satisfação de se encontrarem em outro lugar que não a Place de la Cathédrale, na Cidade Alta, ou a Place du Marche, na Cidade Baixa, e os grupos se formavam, andando a passos curtos e conversando ao sol.
No flanco do Pão de Açúcar, tinham-se entalhado degraus no gelo "para as senhoras". Angélica, escapando subrepticiamente à atenção da companhia demasiado numerosa, decidiu encetar a escalada do cone de gelo, para puro prazer pessoal.
Ao se escalar sozinho, rumo ao topo de uma imaculada brancura, envolto num cintilante nevoeiro, sentia-se uma vaga reminiscência bíblica: o monte Tabor ou o Sinai.
Atingindo o cume, viu-se quase a meia altura da catarata. O ponto culminante do domo apresentava-se como uma esplanada bastante vasta e achatada, e não, conforme parecia de baixo, pontudo e arredondado, qual um autêntico pão de açúcar, de que tinha a forma quase perfeita.
Umas dez pessoas podiam reunir-se ali com toda a estabilidade, mas Angélica estava sozinha. Abaixo dela, do abismo que a separava da cascata, não cessavam de subir nuvens de vapor cintilante, vindo das profundezas em volutas permanentemente renovadas.
Estreitando o manto junto ao corpo, com o rosto molhado pelo hálito úmido exalado, Angélica absorveu-se na contemplação do muro líquido erguido à sua frente. O rugido" daquelas toneladas de água arremetendo sobre os rochedos depois de tamanha queda cobria qualquer outro ruído.
No entanto, ela percebeu, quase ouviu, porque foi bem próximo, um choque ligeiro a alguns passos. Voltando a cabeça, viu uma flecha indígena, cravada na neve, quase a seus pés.
No flanco da falésia, bem à sua frente e quase à sua altura, movia-se uma silhueta: um índio com seu arco. Mas no mesmo instante aconteceu algo abominável. Duas mãos vigorosas, enluvadas de vermelho, saíram do nevoeiro que a envolvia, enquanto um rosto medonho, de olhar enlouquecido, atravessou a aura luminosa. Naquele rosto, a boca escancarada, quadrada como de uma máscara de tragédia antiga, berrou palavras inaudíveis.
- ...tortura ...tortura... Você a entregou... ao policial. Vai... morrer...
Martim d'Argenteuil cambaleava na direção dela. Queria estrangulá-la. Mas não valia a pena: com um empurrão podia atirá-la no vazio. Lá de baixo, ninguém veria nada. Gritar? Inútil naquele estrondo infernal. Esses pensamentos ocorreram-lhe como um relâmpago. O que sobreveio transcorreu tão depressa, que ela não teve tempo sequer de esboçar um leve movimento. No silêncio criado pelo ruído furioso da queda-d'água, ela viu o homem arquejar, pular como um peixe fisgado, tombar aos seus pés, escorregar e, de repente, fundir-se, dissolver-se na nuvem luminosa. Foi como uma sombra evanescendo numa nuvem de miríades de gotículas de cobre. Mas ela teve tempo de avistar uma segunda flecha, cravada entre as omoplatas dele. O nevoeiro voltou ,a se fechar em mil formas móveis,- densas, atravessadas de ouro pelo sol.
Por entre os pinheiros negros e circunspectos, agarrados a cada saliência de rocha, movia-se a pele de urso negro de Piksarett. Por sobre o abismo, o índio fez-lhe um sinal, intimando-a a descer, coisa para a qual ela não necessitava de encorajamento. Por que ele fora postar-se ali? Só ele sabia, ele, que consultava os melhores feiticeiros índios da região, interpretava os sonhos e se fiava nas próprias premonições...
Angélica começou a descer pelos degraus de gelo, e, como o estrondo das águas diminuía, ela tentava reconstituir o que acontecera.
A primeira flecha de Piksarett fora para alertá-la. A segunda, para impedir o gesto criminoso de Martim d'Argenteuil, cujo avanço o índio devia estar seguindo da falésia.
Subindo em sua direção, ela avistou o Cavaleiro de Loménie, e, quando este a alcançou, ela lhe aceitou de bom, grado o apoio da mão para completar a descida.
- Vem aí uma tempestade - disse ele -, todos se preparam para partir.
Interrogando o céu, Angélica não viu mais do que algumas nuvens dispersas em ramos de plumas brancas. Mas a tempestade vinha chegando, os augures a haviam previsto. Os taberneiros ambulantes desmontavam as cabanas. As pessoas se lançavam apressadas para os trenós. Içavam-se para eles os que tinham ido a pé. E um atrás do outro, os veículos foram tomando o rumo de Quebec.
- Já despachei seus filhos com os criados - informou o Sr. de Loménie.
Ela agradeceu-lhe e pediu-lhe que a esperasse um instante, pois desejava dizer duas palavras ao Sr. de La Ferté. Alcançando-o no momento em que o duque ia subir no trenó, chamou-o à parte.
— Não o preveni? - disse-lhe baixinho, tremendo de raiva e de medo pelo que passara. - Foi você quem o mandou para me matar?
— Quem? De quem você está falando?
— De vosso Martim d'Argenteuil, aquele demente! Tentou estrangular-me. Foi por ordem sua?
— O imbecil!
O duque se recompôs.
— O que está imaginando, minha cara? Ainda tenho muita esperança de reconquistá-la um dia, para dar a ele ordens desse género.
— Não brinque. Desta vez posso informar o Sr. de Frontenac sobre seus atos. Não esqueça que o governador, na Nova França, tem os poderes do rei, e que, na impossibilidade de comunicar-se com Sua Majestade durante o inverno, as decisões dele, sejam quais forem, serão ratificadas em Versalhes.
— Acalme-se - pediu o duque. - Você sabe que Martim é louco, e o clima o põe mais louco ainda.
— Que seja! Estou disposta a admitir que ele agiu por impulso próprio, numa crise de loucura. Mas não íente contra minha vida, Sr. de Vivonne, nem você, nem seus amigos, nem sua irmã...
Afrontava-o com seus faiscantes olhos de esmeralda.
— Será que não entendeu que não pode nada contra mim? Sou eu a mais forte! Se vocês se meterem comigo, desaparecerão todos!
— Não grite tão alto - disse o duque, olhando à volta, preocupado, pois na cólera ela o chamara várias vezes de Sr. de Vivonne.
Acrescentou:
— Onde está ele?
— Quem?
— Martim d'Argenteuil.
Angélica, então, deu-se conta da dramática pantomima que há pouco se desenrolara sob seus olhos, no cume do Pão de Açúcar: Martim d'Argenteuil, atingido por uma flecha, caíra no abismo.
- Está morto - respondeu. - Mas não fui eu que o matei...
Escorregou e caiu nas cataratas.
Afastou-se, deixando-o desconcertado e apavorado.
O Cavaleiro de Loménie ajudou-a a instalar-se no trenó. Sem entender o motivo, via-a pálida e transtornada, e não disse palavra. Cuidadosamente, ajeitou as cobertas à volta dos ombros dela. Depois, acomodou-se a seu lado. O caminho de regresso se fez em silêncio.
O mesmo não aconteceu com os demais participantes da alegre expedição. Os gritos e chamados vogavam através da planície caótica do Saint-Laurent, onde, numa claridade que se fizera mais esverdeada de súbito, as sombras se alongavam.
Hoje os encarcerados do Novo Mundo tinham estirado um pouco a corda que lhes rodeava o acampamento. Retornavam ao porto de origem, a cidadezinha de Quebec, meio normanda, meio bretã, com ares de monte Saint-Michel, cercada pelas amplidões de um oceano lívido. Voltavam com a boca cheia de salsichas, e tão aquecidos pelo calvados, pelo gim, pelo rum, pela aguardente de caroços de frutas, de centeio e de cevada, e de aguardente pura, simples e fortíssima, de abóbora canadense, que houve colisões, e por pouco o trenó do Sr. de Chambly-Montauban não passou por cima do corpo de João Prunelle, o merceeiro, deitado de través na pista, enquanto o veículo de onde ele fora cuspido seguia em frente, em meio â cantos e risos.
Quando o trenó ultrapassou, à esquerda, a ponta da ilha de Orléans; Angélica pensou com rancor na feiticeira Guilhermina.
"Ela não disse que mé avisaria quando algum perigo me ameaçasse?"
O que mais a assustava no que acabava de acontecer, ali no Canadá, era a indiferença com que vira o homem ser engolido pelo borbulhar de caldeirão de um Tártaro gelado. Não era como na corte, onde, entre duas portas, envenenava-se alguém, da mesma forma que se poria açúcar numa bebida, para reaparecer sorrindo e sacudindo os punhos? "Todo mundo faz."
Ela continuava em conflito com seu dilema interior. Falaria desses acontecimentos a Joffrey? Assim que pensava nisso, erguiam-se impossibilidades, complicadas pela sensação de que ele se afastava dela e que não podia, antecipadamente, estar segura quanto aos pensamentos dele. Era um homem sigiloso e, se se enganara sobre o coração dela, Angélica, de seu lado, tinha da vida interior dele uma imagem confusa, que a assustava um pouco e que nunca tentara definir, exceto em relação a si mesma.
Isso quereria dizer que o amara mal? "Mil agulhas pareceram eriçar-lhe a carne no arrepio que a percorreu ante o enunciado de tamanha heresia. Pois era precisamente na carne que começava o mistério que a unia a ele, como, de resto, toda paixão amorosa.
Estava descobrindo coisas banalmente evidentes, que nem por isso eram menos mortificantes e difíceis de superar.
Quebec surgia à vista. Angélica deu um sorriso de desculpas a Loménie, que lhe respondeu com outro sorriso, tão meigo que ela se sentiu consolada. Desculpava-a em tudo. Não exigia nada dela.
A tempestade chegava.. Adivinhava-se-lhe a aproximação em negros galopes por trás de uma barreira de nuvens azul-ardósia que o poente salpicava de rubis e que subiam do nordeste. A animação e o atropelo eram enormes na margem do rio, onde os trenós se chocavam com os cascos de navios e barcos imobilizados pelo gelo do porto. Foi preciso fazer fila e aguardar para alcançar a margem pelo caminho mais praticável.
Anunciou-se que a expedição que seguira à embocadura do Chaudière retornara na mesma hora, e era isso que estava causando toda aquela confusão. A expedição não pudera ultrapassar a embocadura do rio, e a Sra. Le Bachoys teve que desistir da visita ao solar da filha, visto que não havia pista trafegável.
Ao saber desse regresso, Angélica reanimou-se e seus olhos brilharam de alegria.
- E o Sr. de Peyrac? - indagou alto.
Não estava longe. Tinham acabado de vê-lo passar com seus espanhóis...
Avistou-o. As primeiras rajadas de neve açoitaram a cidade no momento em que ela se atirou aos braços dele.
Ao abrigo da alcova, os beijos deles tiveram o sabor dos segredos inconfessos.
Naquela troca de beijos, tentavam dizer-se as muitas coisas que fermentavam neles. Segredos, segredos demasiado pesados ou demasiado imprecisos, que palavra alguma podia ou devia pronunciar.
Era todo o ardor das paixões contidas, indagações ansiosas, promessas tranquilizadoras, comprometimentos irreversíveis, ternuras demasiado profundas e voluptuosas para serem expressas, aflorando-lhes aos lábios naqueles beijos infinitamente repetidos, no coração da noite, boca a boca, corpo contra corpo, de que, inebriados e ausentes do mundo, eles não se cansavam nunca.
Ela sonhou com água, com o rio, e que se afogava.
Estava à margem do Sena, banhando-se com a Polaca, numa daquelas casas de banho que, nos dias de calor, encontravam-se junto ao rio. Estacas cravadas aqui e acolá, cercadas por grandes pedaços de pano, permitiam aos parisienses refrescar-se a salvo de olhares indiscretos, homens de um lado, mulheres do outro.
No sonho, o policial Desgrez rondava pela ribanceira.
Assustada, ela escorregara, perdera o pé e se pusera a debater-se enquanto a água lhe entrava pela boca e a sufocava. "Mas eu sei nadar!", pensava ela.
Joffrey não se encontrava longe, mas não lhe estendia a mão.
Com um esforço supremo, ela conseguiu sair da água, e acordou, ofegante.
Levou algum tempo para entender onde se encontrava, e agarrou-se a Joffrey. Acariciou-lhe a nuca, deslizando os dedos pelos fartos cabelos dele. Gestos de ternura, que não ocorriam com muita frequência.
— Como te amo! Como te amo!
— Meu amor, o que foi?
— Você não está feliz em sua casinha?
— Oh, sim, estou feliz, feliz!
Tornou a adormecer e novamente sonhou com água e rio.
Desta vez foi o Saint-Laurent. Estava sentada num rochedo que ia à deriva. Era uma placa de gelo. Chamava por Joffrey, mas ele não a ouvia. "Tenho que me safar sozinha", disse consigo.
Teve vontade de mergulhar. Era proibido. Sabia que jamais reencontraria a água primeira, a água da liberdade. Notou que era criança outra vez, de saias curtas e pés descalços. Estava calma e livre, sem receio algum, como quando era pequena.
Um clarão a despertou. Achou que fosse o sol, mas a noite ainda era profunda, e a casa estava silenciosa.
Joffrey acendeu o aquecedor de porcelana e um inebriante odor de rum com canela se alçava da caçoula sobre o fogo.
- Você tem que se aquecer.
Iam beber juntos, rindo, cada um segurando uma alça da xícara de cobre, destinada a receber a beberagem ardente, que reconforta os apaixonados.
Dos dois sonhos em que vira Joffrey inatingível ou incapaz de ouvir-lhe os chamados, Angélica ficou com uma única impressão: "Tenho que safar-me sozinha! " E reencontrava a tranquilidade da infância. Haveria de safar-se sozinha, e fora por isso que viera a Quebec reencontrar o próprio passado, como que para um desafio. Chegara o momento de seu combate com o anjo, o combate que todo indivíduo, um dia, tem que enfrentar, a sós, como Jacó. Não sabia muito bem qual seria a vitória, mas já não sentia medo.
Sem entender muito bem como, Angélica adivinhava que tudo o que acontecia naquele inverno abençoado camuflava a longa marcha secreta que os dois tinham empreendido um na direção do outro, a fim de se conhecerem melhor e de se amarem com um amor maior.
Assim como acontecera com Varange, passaria muito tempo até que se notasse o desaparecimento de Martim d'Argenteuil, e mais tempo ainda até que isso causasse alguma emoção. Vivon-ne haveria de entrincheirar-se com o cúmplice em torno da mesa de jogo na casa da Sra. de Campvert, amaldiçoando a ideia que achara tão boa de vir fazer-se "esquecer" no Canadá.
Angélica já não ousava falar dele agora a Joffrey. Mas resolveu relatar-lhe a conversa que tivera com o tenente de polícia. E ficou sabendo que, depois de tê-la recebido, o Sr. Garreau d'En-tremont solicitara uma entrevista com o Sr. de Peyrac.
Conforme Angélica imaginava, o conde não se perturbou de modo algum com as suspeitas que o tenente de polícia nutria contra eles acerca do desaparecimento do Conde de Varange. Fortalecido pela certeza de que do segredo deles nada poderia transpirar, opusera às perguntas do magistrado uma serena indiferença. Mas sustentara que aquele Conde de Varange estava de conluio com a Duquesa de Maudribourg. Nesse ponto, Garreau d'Entremont voltara à carga, para obter esclarecimentos acerca do naufrágio do La Licorne, mas não insistira, e fora Joffrey que acabara ouvindo do tenente de polícia que, no que concernia à benfeitora, nem tudo era alvo como a neve. Durante o verão o Sr. d'Entre-mont recebera alguns relatórios sobre ela, em que se falava dos boatos ocorridos por ocasião da morte de seu velho marido. Nada mais. E os membros da Companhia do Santíssimo Sacramento a sustentavam, alguns de boa fé. Mas caso houvesse outros do jaez daquele Conde de Varange, a reputação da sedutora duquesa acabaria sendo atingida.
A alusão à operação de magia conduzida por Varange deixou Peyrac indiferente. Angélica não quis demonstrar como ficara impressionada. Ele talvez a acusasse de ser supersticiosa, como todos os habitantes das escuras florestas célticas. De fato, "como essa gente da Aquitânia é diferente de nós", pensava ela, olhando para Joffrey.
Nunca como em Quebec captara tão nitidamente essa diferença, que residia menos no comportamento dos indivíduos do que na mentalidade, na concepção que tinham da vida. A civilização do norte - langue d'oil, a dela - punha em primeiro lugar a submissão às forças do Além, donde uma aplicação rígida e primordial da religião. Quais eram os conceitos que haviam regido a antiga civilização do sul - langue d'oc - e que davam aos gascões uma superficialidade às vezes escandalosa: amor e fausto, liberdade em relação ao céu e ao inferno, ao bem e ao mal?
— Esse Varange me parece uma triste figura - comentou ele. - Mas sou-lhe grato. Revelou-me os laços misteriosos que seu coração tinha comigo. Pois somente um instinto fortíssimo poderia tê-la avisado de que eu estava em perigo, à mercê dele.
— E como poderia ser de outro modo? Você é minha vida. E sinto-me muito próxima de você... embora eu não passe de uma pequena poitevine, estrangeira em sua província, à sua raça e à sua cultura - arrematou, com um suspiro.
Surpreso e intrigado, ele ergueu-lhe o queixo.
- O que significa isso?
Mas ela não se sentia em condições de fornecer-lhe uma explicação ou de pedir-lhe uma... Tudo era demasiado confuso. Temia palavras que precipitassem os acontecimentos e dessem consistência ao que talvez ainda não fosse mais do que imaginação de sua parte.
Por que falar de Berengária Amada? Das reuniões de gascões nos bosques? Por que, revelando suas próprias dúvidas, correr o risco de ainda por cima criar divergências entre eles? Mais valia amarem-se e permanecerem em silêncio.
Assim que o tempo melhorou, Angélica, querendo rever o Sr. de Loménie, foi à casa dele. Soou a aldrava da porta da pequena casa perto do prebostado que o Sr. d'Arreboust.colocara à disposição do montrealês exilado.
— O senhor cavaleiro partiu - disse o criado que a atendeu.
— Partiu? - repetiu Angélica, imediatamente alarmada. - Para onde?
Partir para onde, quando o destino nos fez encalhar num ponto do globo rodeado pela mais cruel selvageria polar?
O criado fez um gesto vago na direção do horizonte de ouro e rosa infinito.
- Para fora dos muros.
- Que muros? - exclamou ela, louca de preocupação.
Fora dos muros de gelo e neve que guardavam a cidade, para onde se podia partir senão para o deserto? Onde é que alguém podia enfiar-se? A procura de quê, senão do martírio ou da morte, sob o gelo da tempestade cega? Angélica correu para o convento dos jesuítas.
- Então, também a ele você mandou para a terra dos iroqueses? - indagou, febril, ao Padre de Maubeuge.
O superior dos jesuítas mandou-a sentar-se e fez-lhe algumas perguntas com calma, para entender de que se tratava.
- Os Cavaleiros de Malta não dependem de nossa orientação
— respondeu, depois de ouvi-la. - Os deslocamentos e encargos deles dependem do grão-mestre da ordem, que reside em Malta e que delega poderes aos grãos-mestres das oito divisões territoriais, chamadas "línguas", ou seja, Provença, Auvergne, França, Itália, Alemanha, Castela e Inglaterra. Em Quebec, na ausência de qualquer mensagem do comandante da "língua" da França, a que suponho que ele esteja ligado e que poderia atribuir-lhe outras tarefas ou outros locais de residência, o Sr. de Loménie-Chambord é o único juiz de seus atos e decisões. Acontece de vir pedir-me conselho, mas não tenho de modo algum que intervir em sua conduta. Faz várias semanas que não o vejo, e ignoro onde se encontre. Vá ver o Sr. de Frontenac - acrescentou, pois Angélica se levantava, mordendo os lábios de despeito e mágoa.
— Pode ser que esteja ao corrente...
— O Sr. de Loménie está com os recoletos - informou-lhe o governador. - Queria fazer um retiro para se preparar para a Quaresma, atenuar, disse-me, a dissipação que todo este período mundano lhe acarretou. Veio ver-me para saber se, na qualidade de membro do Grande Conselho, eu precisaria convocá-lo nesta quinzena... Bem-aventurado cavaleiro! - suspirou Frontenac, vendo o rosto de Angélica iluminar-se. - Como eu gostaria de poder reter-lhe a atenção da mesma forma...
— Mas o senhor tem toda a minha atenção - garantiu-lhe ela.
- E se não me preocupo com sua pessoa, é porque sei onde encontrá-lo.
A glória do sol cintilante nas árvores envoltas em cristal dos pomares, ao longo do caminho que descia para o estuário do Saint-Charles, em cujas margens se erguia o convento dos recoletos, insultava sua preocupação, dizia Angélica consigo. A fuga do Cavaleiro de Loménie não lhe prenunciava boa coisa.
Os pequenos campanários das paróquias de Beauport, Ange-Gardien, Château-Richier, erguidos na manhã com a ponta de sua flecha reluzindo como se em seu topo tivesse sido engastada uma eterna estrela de Natal e que parecia gritar "Estamos aqui!
Estamos aqui!" com ar insolente, exasperavam-na, pois nada era mais precário do que a existência das pequenas paróquias católicas no Novo Mundo, e elas deviam saber disso...
No pátio do convento dos recoletos, outro veículo aguardava. Angélica reconheceu o trenó de Ville-d' Avray. Certamente o marquês viera indagar sobre o andamento dos trabalhos do seu,caro Irmão Lucas.
Do parlatório, onde a admitiram, ela ouviu os ecos da voz dele, que falava e sem dúvida se extasiava. Mas quase no mesmo instante um frade de sotaina cinza veio buscá-la para levá-la a outro parlatório, menor, mais afastado, onde o Sr. de Loménie-Chambord a esperava.
Uma mesa, uma cadeira, um genuflexório, um crucifixo na parede, acima do genuflexório. E, sobre a mesa colocada diante da janela, uma escrivaninha e folhas de papel. Oratório modesto, humilde, de inefável serenidade.
Pela janela, a alguma distância do convento, via-se um rebanho de vacas, que atravessara o rio desde Beauport, pelos caminhos balizados, e que se dirigia para o convento, guiado por um vaqueiro de capote e sotaina de burel, a lhe cair sobre as botas algonquinas.
Era frequente os camponeses se prestarem mutuamente o favor de levar os rebanhos a andar pelo Saint-Laurent, a fim de socar a neve recém-caída sobre as pistas. Eralbom para arejar e exercitar o gado, fechado nos estábulos o inverno inteiro.
A imagem era calma também, e familiar. O mugido dos animais subia a intervalos pelo ar cristalino.
A porta da cela fechara-se atrás de Angélica. Ela parou diante do cavaleiro, que estava em pé perto da mesa. Não lhe via a expressão, pois ele estava contra a luz, mas sentia o olhar dele, enternecido e ardente, pousado nela. Entendeu que ele estava feliz com sua vinda. Uma felicidade que, naquele momento, ele aceitava plenamente.
Após um longo silêncio, ela disse afinal:
— Por que você partiu?
— Você sabe muito bem --- respondeu ele.
Sua voz estava calma e segura. Ela começou a temer que a força anímica daquele homem meigo e lúcido já o tivesse conduzido para um domínio do qual ela estava excluída.
- Não poderia pelo menos ter-me enviado um recado?
- A decisão que tomei, de fazer um retiro no convento dos recoletos, só dizia respeito a mim. Não julguei necessário avisá-la, tanto mais que já me censurava por havê-la perturbado um pouco a consciência com minhas confidências.
Angélica meneou a cabeça com impaciência.
— Não é verdade - disse, numa voz que se estrangulava como se as lágrimas lhe brotassem bruscamente. - A verdade é que você me abandonou.
— Você é forte o bastante para ser abandonada. E eu... sou fraco. Fraco como Adão nos primeiros dias, quando descobriu a Mulher que Deus lhe havia dado para sua alegria e consolo.
— Está usando de pretextos para renegar sua amizade. No entanto, ela foi espontânea desde nosso primeiro encontro. Lembra-se de Katarunk?
— Sim, desde Katarunk eu a "vi". E ainda hoje não tenho explicação para o que aconteceu então. Ao longo dos dias eu sentia sua ausência como uma aguilhoada, e não entendia. Caríssima, eu devia sentir-me culpado por haver sentido tanta atração por você, tanta ternura inexprimível, tanta devoção pelo que você é, pelo que significa. Mas não posso. Nada do que nos aproximou foi despido de sabor, e agradeço a Deus por me haver concedido, de alguma maneira, participar do festim do mundo. Com você aprendi o valor do que sacrifiquei no altar da castidade... E muito! Antes eu não sabia...
— Percebo - disse Angélica. - Também você lamenta que eu exista.
Ele sorriu-lhe.
- Com certeza! A vida seria mais simples sem você, Angélica. Mas quão menos maravilhosa! A vida! De súbito dá vontade de saborear-lhe todos os frutos. Descobre-se-lhe o esplendor. Indago-me às vezes se não foi isso o que Deus desejou, ao nos cercar de tanta beleza, tornando-nos depositários de uma aptidão tão natural para o prazer do amor, e se não lhe serviríamos melhor passando pela alegria de viver segundo a carne, ao invés de renunciar a essa alegria. Não o nego. E devo inclinar-me e reconhecer a alegria insensata que me invade ante a ideia de que pude emocioná-la e que você se entristece por não me ver mais. Mas, afinal, sejamos modestos! Sejamos modestos - repetiu. - O que sou eu e o que seria eu, como homem, como amante e mesmo como companheiro de vida, perto daquele a quem você ama, daquele que lhe ocupa o coração, cativa-lhe o corpo, mesmo quando estão separados, mesmo quando se acreditam em desacordo? Ele está cravado no meio de você como uma montanha ardente, indestrutível e inabalável, da mesma forma como você está plantada no meio dele.
Tomou-lhe a mão e levou aos lábios os dedos que ela apertava convulsivamente em torno dos dele.
- Tudo seria bem pálido... bem pálido... - murmurou ele.
Angélica teve vontade de suplicar-lhe que fosse menos severo.
Que continuasse pelo menos amigo seu. Por que recusar-se uma suavidade que ajuda a viver quando não se pode conceder-se mais do que isso? Mas compreendeu que por ora era impossível... Mais tarde, talvez... Ele lhe soltara a mão e permanecia imóvel, de olhos baixos.
— É nos encontros que temos que nos é dado, a cada vez, ver com clareza onde se encontra nosso coração, nossa via, nosso destino - disse ele ainda. - Minha vida, todo o meu ser pertencem Aquele que derramou o próprio sangue pela humanidade. "Servir a Deus e a meu rei" são as armas que sempre ostentei... mas a amei...
— Venham ver - gritou Ville-d'Avray, entrando disparado na cela -, venham ver as obras admiráveis que o Irmão Lucas pintou para mim...
Em seu ateliê, o monge ocupava-se em fazer o brasão do Sr. de Ville-d'Avray. Erguida contra a parede, havia uma grande prancha de madeira sobre a qual estavam esboçadas as linhas de uma composição pictórica onde se adivinhavam o mar, tritões, pessoas com a roupa inflada pelo vento. Depois de pintado, o quadro seria transportado para o navio de Ville-d'Avray e fixado sob o castelo de popa, no local denominado "tutela", de onde poderia ser admirado e avistado de longe, ao mar.
— Olhe bem a Sra. de Peyrac, irmão - pediu Ville-d'Avray, apresentando Angélica ao artista. - Gostaria de que desse os traços dela à principal figura feminina de seu quadro.
— Ah, não, por favor! - protestou ela. - Já me basta estar representada na tutela do Coeur-de-Marie. Sei que você inveja a Colin pela beleza daquela pintura. Se pudesse arrancá-la do navio dele e levá-la embaixo do braço, teria feito isso.
— Ah, com certeza! - admitiu Ville-d'Avray.
Fungou várias vezes, como que para dissimular um sorriso, pareceu refletir e, com um ar falsamente inocente:
- Então é mesmo você quem está representada no Coeur-de-Marie? Meus sentidos não me enganaram. Mas como é possível? Aquele pirata de ombros robustos, Colin Paturel, a teria conhecido outrora, antes de deixar-se capturar em G-ouldsboro? Você me contará, não é? Levo a Sra. de Peyrac comigo - disse, dirigindo-se ao Conde de Loménie. - Você não me quer mal, não é, cavaleiro? Você a reteve o suficiente outro dia, nas quedas de Montmorency... Belo passeio, não foi?
O marquês estava exultante quando a ajudou a instalar-se no trenó.
— Quanto mais a conheço, mais sua vida me parece cheia de mistérios, que só fazem atiçar minha paixão por você. Gostaria de que me pertencesse... Sim, realmente, é a palavra exata: de que me pertencesse.
— Como seus quadros ou seus vidros de Veneza?
— Sim, você seria o fantástico e o maisprecioso dos meus ob-jetos de arte... Um autómato, que eu teria trazido da Alemanha, diria eu. A mulher mais bonita do mundo. Parece viva. Sorri... Quando a gente acaba de admirá-la, vira-lhe a chave, e pronto: ela conta seus segredos...
Ele era enfadonho, mas engraçado.
CAPITULO XXIII
Honorina no convento das ursulinas - A "querela da Aquitânia"
No dia seguinte o Sr. de Loménie mandou entregar na casa de Ville-d'Avray um presente embrulhado em peles costuradas, que, uma vez abertas, revelaram um pequeno arco numa aljava bordada de pérolas e espinhos de porco-espinho, bem guarnecido de flechas com penachos multicoloridos. O presente vinha endereçado à Srta. Honorina de Peyrac.
Um mimo desses, tão suntuoso quanto inesperado, mergulhou a menina em êxtase silencioso.
Depôs o arco e a aljava sobre um tamborete e ficou longo tempo a contemplá-los, enquanto Elói Macollet e Piksarett se ofereciam para dar-lhe lições de tiro e Querubim ardia de vontade de tocar naquele belo brinquedo.
Foram todos até a encruzilhada do olmo, onde a primeira experiência realizou-se sob os olhares interessados dos índios do acampamento.
Honorina, que agora possuía uma arma contra seus inimigos, graças a Loménie, sentir-se-ia forte o suficiente para enfrentar o vasto mundo fora dos muros de sua casa e de seu círculo familiar?
O fato é que, no dia seguinte, a Cidade Alta foi abalada por um acontecimento importante.
Acompanhada da mãe, dos irmãos, dos criados, dos amigos pequenos e grandes, de personalidades de destaque como o Sr. de Bardagne e Piksarett, ou mais humildes, como Nicásio Heurtebise, e dos índios do acampamento com seus cães amarelos, a Srta. Honorina de Peyrac dirigiu-se ao convento das ursulinas, para aprender a ler.
De mãos dadas com a mãe, levando arco e flechas embaixo do braço, toda envolta em lã e peles, que só lhe deixavam à mostra os olhos amendoados e o nariz vermelho, seguida desde a partida pela importante escolta, Honorina saiu de casa pela porta principal, passou diante da Srta. d'Houredanne, pelas residências da família Gualberto de La Melloise, da Rendeira e de Loubette, foi saudada pelos clientes da forja e pelos do albergue Sol Levante, e atravessou a Place de la Cathédrale depois de vadear o riacho que soluçava sob seus blocos de gelo. As crianças que se dirigiam à escola chegavam de todas as direções, envoltas em mantos, capotes e calçando botas indígenas, pois fazia um daqueles frios intensos, vaporosos, cor de malva.
Corria a notícia: Honorina de Peyrac está indo para o convento das ursulinas!
Faltou pouco para que não tocassem os sinos.
Juntou-se verdadeira multidão diante do mosteiro, onde as freiras esperavam.
Honorina, muito ereta, soltou a mão de Angélica e, sem dignar-se olhar para trás, empunhando arco e flechas, atravessou a porta do claustro e desceu os degraus de pedra que conduziam ao primeiro vestíbulo.
Acolhida, beijada, engolida pelas pregas dos hábitos pretos, das saias pesadas, brancas para as noviças, pretas para as madres, que murmuravam longos rosários de buxo, ela desapareceu, adentrando as profundezas do convento sob os olhares protetores da Encarnação num quadro e sob as alas formadas pelos corações de Jesus e de Maria, coroados de espinhos e atravessados de punhais.
Despropositadamente angustiada e de coração partido como se nunca mais fosse revê-la, Angélica passou a manhã no sótão de casa, com Suzana e Iolanda, a espiar pela última lucarna o pátio de recreio das ursulinas. Na hora em que as crianças foram brincar ali, avistou a silhueta da filha, em pé, num canto, rodeada de menininhas que se mantinham a distância. Estariam a molestá-la? Será que a rejeitariam? Suzana foi mandada para perguntar. Pouco depois foi vista entrar no jardim com uma freira, parlamentar e sair. Ia tudo muito bem, afirmou ao regressar. Honorina já reinava sem contestação em seu novo universo. As menininhas lhe faziam agrados na esperança de que as deixasse atirar com o arco. Mas as autorizações só eram dispensadas com muita parcimônia.
Passada a primeira aflição, Angélica viu-se aliviada por sentir que Honorína estava colocada sob a proteção divina bem naquele momento em que ela própria era solicitada e atormentada por várias coisas.
Recriminava-se por não haver explicado melhor ao Sr. de Lo-ménie, quando o encontrara no mosteiro dos recoletos, os perigos que a rondavam. Deveria ter-lhe contado do atentado de que quase fora vítima por obra de Martim d'Argenteuil. Tivesse sabido, Loménie não a teria abandonado. Teria querido retornar a Quebec para velar por ela, ainda que de longe. Mas ela não tinha Piksarett, apertado na casaca vermelha de oficial inglês ou embrulhado na pele de urso negro, segundo caprichos que ele não explicava? Encontrava-o com frequência por perto. Às vezes, tagarela, acompanhava-a; outras vezes, era tão discreto, tão invisível, que ela se assustava ao descobri-lo logo atrás de si.
E o cavaleiro tinha razão. Era sobretudo na alma dela que se encontravam as armadilhas.
Angélica ressentiu-se bastante do afastamento de Loménie-Chambord, de sua recusa em encontrá-la. Embora admitisse que "era melhor assim", teve sonhos perturbados. Não escondia a si mesma que, apesar dos obstáculos insuperáveis que os separavam, a rendição daquele homem casto e meigo entre seus braços não lhe teria desagradado. Por meio dela, ele teria podido descobrir o desabrochar do amor. Não teria sido canhestro: somente hesitante e como que sufocando ao peso de uma felicidade desmesurada. Não era maravilhoso? Cumular alguém de alegria! Onde estava o pecado nisso?
Alguns dias após o passeio às quedas de Montmorency, o Sr. Garreau d'Entremont veio vê-la. Ela achou, um pouco tolamente, que ele fosse falar-lhe de Martim d'Argenteuil. Mas não era isso, o faro ainda não o havia prevenido. Ele continuava a ocupar-se do caso Varange. Queria mantê-la a par. Contou que estava à procura do soldado que fizera a conjuração sobre o crucifixo. Tinha uma pista. Parecia que o haviam visto num forte para os lados do rio Saint-François. O fato de um soldado ter sido acusado do ato sacrílego não o surpreendia. Os militares enviados para as colónias tinham perambulado por toda parte. Fanfarrões, costumavam divertir-se engodando os camponeses em casa de quem se hospedavam. Eram sobretudo gente daninha. A maioria dos crimes cujo relato chegava à mesa de Garreau eram cometidos por eles. A categórica opinião do tenente de polícia acerca dos militares da metrópole explicava-se: a Nova França ainda não possuía "tipos perigosos".
Naquele período de frios intensos, em que as casas eram aquecidas ao máximo, Natal Tardieu de La Vaudière vivia assombrado pelas fagulhas e pelo risco de incêndio. "Morreremos todos", vivia dizendo. E mandava contar incessantemente os baldes de couro, afiar os machados, examinar os telhados para ver se as escadas estavam em bom estado e não tinham apodrecido. Todo dia os pequenos saboianos se introduziam nas chaminés, e as pessoas se queixavam de que se congelavam em pé, pois, naturalmente, durante a limpeza, era necessário manter apagadas as lareiras e esperar, batendo o queixo na rua, que os tubos se esfriassem.
- Pois é! Perfeito para se pegar uma doença e morrer! - resmungavam os moradores.
Os pequenos saboianos executavam bem seu ofício. Não eram retardados, como dissera Garreau, somente embrutecidos. Eram pequenos saboianos perdidos. Tinham sido vendidos, violados, explorados, levados para o fim do mundo. Tinham-lhes tomado tudo, até as marmotas.
Limpavam e desobstruíam as ventoinhas, bem como as cruzes e os instrumentos da Paixão que ficavam no alto dos campanários e que eles escalavam com facilidade.
Começou a Quaresma, precedida dos três dias de carnaval, cujo nome, que na etimologia latina, carnem levare, significava "suprimir a carne", perdera o sentido, pois aqueles três dias, na verdade, tinham-se tornado pretexto para "desordens ímpias", conforme dizia o bispo, e em que as pessoas se empanturravam de carne e charcutaria, por conta -dos quarenta dias de abstinência.
No dia seguinte, Quarta-feira de Cinzas, Quebec inteira regressou das igrejas com a testa marcada por um estigma negro, destinado, a lembrar^ a cada um que eram todos pó e que a ele retornariam.
Na Quaresma, só se admitia uma única refeição por dia, de preferência ao meio-dia... Com as carnes e os laticínios proibidos, sobrava o quê? Pão, peixe, legumes e, felizmente, as bebidas. Haveria, então, um consumo redobrado de aguardente, de vinho da Espanha, de Tenerife, de Málaga, bebidas "aquecedoras", e nos lares mais rústicos, de cerveja, sidra, cerveja de cevada, de espruce ou de sabugueiro, e aquele "caldo" de massa fermentada.
Três dias depois, rebentou a primeira briga da Quaresma, e não foi coisa insignificante. Ficaria nos anais de Quebec sob o nome de "querela da Aquitânia". Ocorreu na casa do sr. Haubourg de Longchamp, primeiro conselheiro.
A Sra: Haubourg de Longchamp era uma mulher apagada e recebia pouco. Em compensação, o Sr. Haubourg, que pertencia à Companhia do Santíssimo Sacramento, gostava de aproveitar o período de penitência para promover reuniões eruditas, em que se podia discutir teologia, moral,- o destino do homem; reuniões que, dada a grande cultura da maioria dos convidados, atingiam um alto nível de interesse. As senhoras eram convidadas, naturalmente. Os tempos não eram mais aqueles em que uma sociedade masculina, ainda particularmente grosseira, reconheçamos, pois submetida ao estrépito das estocadas contra as pesadas couraças antigas, afastava a mulher de seu círculo dissoluto julgando-a tola, uma criada, boa apenas para procriar.
Fazia no mínimo dois séculos que os costumes tinham mudado. Os homens tinham aprendido, sobretudo na França, a procurar a companhia das mulheres para outros prazeres além dos da carne, ou seja, os do espírito. A Renascença, sob reis refinados como Francisco I, começara a honrar a mulher culta e os encantos de seu espírito.
Ora, o desentendimento surgiu daí. Alguém sugeriu que tal transformação entre os bárbaros do norte fora devida ao esforço da civilização meridional, a das cortes de amor da Provença, pouco a pouco assimilada pelos seus vencedores. Num instante todos se manifestaram a esse respeito.
A contrapartida dos conhecimentos variados e da erudição da maioria dos presentes era que cada um sabia do que estava falando. Daí um fogo cerrado de precisões históricas, teológicas ou políticas que dispararam para apoiar ou demolir a tese apresentada. Logo estavam todos no tempo de Carlos Magno, depois na época romana, quando os Césares se haviam encantado com suas terras recentes no sul da Gália, onde reinava a prima língua occitana.
Disso resultara o reino da Provença. Sua subdivisão em Aquitânia e Languedoc não alterava em nada o fato de que os costumes e a língua, que permanecera muito latina, fossem os mesmos. No século X, os árabes, indo até Narbonne e ali ficando por mais de meio século, ensinaram aos provençais do sudoeste prazeres mais doces e refinados, as ciências, a poesia... Dessas contribuições nasceu uma civilização encantadora e rica, personificada na sua forma doutoral pelas cortes de amor dos trovadores, mestres na arte de pensar, grandes espíritos, grandes poetas. Naquele reino os litígios se resolviam com cortesia.
— A maneira deles - atalhou o Sr. Haubourg, interrompendo o Major Sabanac, que, com lirismo, acabava de traçar um quadro sucinto mas altamente colorido do passado da sua província. - Não vai dizer-me que nessas cortes de amor, onde, ao que parece, aprendia-se a copular, a mística...
— Também se aprendia a falar galantemente com as senhoras, "fazer-lhes a corte"... Naquele reino os litígios se resolviam com cortesia, justiça. As próprias classes inferiores eram muito pouco grosseiras. Era conhecido que um trabalhador de Aquitânia tinha mais desenvoltura, mais estudos e uma linguagem mais bela do que um barão normando ou borguinhão - respondeu o Sr. de Dorillac, um oficial do regimento de Carignan.
As expressões se anuviaram, e tentou-se restabelecer a equidade. A conversa mantinha-se nos limites do decoro. Queria-se agradar à gente do sul, porque muitos dos funcionários dentre os "homens do norte" lembraram em tempo que o governador deles era gascão. Era melhor conterem-se do que correrem o risco de irritar a suscetibilidade meridional de um poderoso.
— Uma terra elegíaca, que seja! - disse Carlon. - Mas que, por excesso de amenidade, acarretava abusos, fraquezas... Indiferença ou respeito ao próximo? As seitas, as heresias eram toleradas ali e multiplicavam-se sem cessar, escarnecendo da doutrina da Igreja. Até surgirem aqueles sombrios cátaros, em Albi, e que se apresentavam como o inverso da civilização liberal e sensual de onde provinham, pois professavam que, como o mundo material é a expressão do mal, é pecaminoso viver e principalmente procriar.
— Não era dever da Igreja conter essa heresia imunda?
Os cátaros eram fervorosos, puros, não faziam mal a ninguém, replicaram os gascões. Tinham servido de pretexto à voracidade da gente do norte.
Citaram-se fatos ainda vívidos. Os relatos de horror da guerra empreendida contra os albigenses por Simão de Montfort, cruzado, e pelo grande São Domingos, o monge de sotaina branca, criador da Inquisição, ainda punham as pessoas de cabelo em pé, e alguém contou que mesmo então, depois de quatro séculos, quando se queria assustar um garoto turbulento nos campos provençais, dizia-se-lhe: ''Simão de Montfort virá pegar você!"
Pois não se tratara de guerra, mas de massacre. Não fora cruzada, mas extermínio: homens, mulheres, crianças, velhos, recém-nascidos, todos os cátaros foram passados pelo fio da espada ou atirados à fogueira. A cruzada sanguinolenta prosseguira para além da destruição da heresia. O que sobreviera fora a destruição da civilização meridional.
Os cátaros não tinham sido mais do que um pretexto. Era ao marquesado da Provença, ao condado de Toulouse, que visavam os retres em armadura de ferro.
No salão do Sr. de Haubourg, no Canadá, essas reminiscências com cheiro de sangue e a lembrança da inquietante quantidade de fogueiras crepitando pareceram, de súbito, impedir qualquer conciliação entre aquelas pessoas que usavam perucas semelhantes, adornavam-se de rendas de maneira semelhante, tinham a mesma educação e caráter afáveis, e estavam todas ali encerradas pelo exílio e pelo inverno canadense.
- Afinal de contas, não se podia tolerar... - imprecou o Sr. Garreau d'Entremont, após uma pausa consagrada a saborear seu vinho.
Uma voz de mulher, clara e harmoniosa, interpôs-se:
- Pode-se tolerar tudo daquele que não empreende uma conquista por meio da violência.
Era a Sra. de La Vaudière, Berengária Amada, que entrava na liça. E como a observação fora judiciosa e ela a lançasse com um arzinho ousado, Joffrey de Peyrac dirigiu-lhe um sorriso e um sinal de aprovação. Ela corou de prazer.
— Confessem que vocês, gente da Aquitânia, são esquisitos - disse o Sr. Le Bachoys, bonacheirão e conciliador. - O vencedor lhes deixou suas formas de governo, seus costumes, sua língua, e vocês abusam disso para salvaguardar sua liberdade de costumes escandalosos. Ainda hoje agem como se pouco se importassem com o pecado, como se o pecado não existisse.
— Sim... Existe... Mas o pecado não é o que vocês, gente do norte, denunciam...
- Heresia! - resmungou o Sr. Magry de Saint-Chamond. - Bem se vê que vocês vêm de uma fonte corrompida: a Roma pagã, o Islã licencioso; que mergulham suas raízes em solo diferente...
— Que grande novidade! - gritaram os gascões. Os argumentos entrecruzavam-se.
— E suas guerras baussenques... seus antipapas?
— Meus ancestrais estiveram do lado dos reis e de Alexandre IV - disse Peyrac.
— Os meus também! - gritou Castel-Morgeat.
O Sr. Haubourg de Longchamp, aproveitando um instante da calmaria em que os adversários retomavam fôlego, quis interromper.
— Nossas palavras não levam a nada, pois esta discussão não tem saída. Nem os séculos futuros poderão esgotá-la, pois nossos antagonismos residem numa concepção diferente do pecado.
— De fato - aprovou o Sr. d'Avrenson, que Angélica descobriu gascão -, nossa civilização propunha atingir-se Deus pelo amor carnal vivido em transcendência, caminho de comunicação com o divino, e não por sua supressão e rejeição.
— O que teria acontecido, então, caso a civilização do norte não houvesse triunfado? - perguntou ainda Berengária de La Vau-dière, voltando-se para o Conde de Peyrac com uma expressão de inocência exaltada.
Angélica, a quem a altercação, inquietara, notou que as mulheres tinham como que se agrupado em torno de Joffrey à espera de suas palavras e alçando para ele olhares enamorados que, em sua opinião, só ela podia dirigir-lhe.
Entre elas, a Sra. de Saint-Damien, a bela Eleonora da ilha de Orléans, que, decididamente, era vista com muito mais frequência em Quebec neste inverno.
"Sim, todas essas damas da Aquitânia eram loucas por ele e sem saber por quê!... Ah, não, eu sei por quê..."
Sabina de Castel-Morgeat era a que se mantinha mais perto dele, muito ereta e alta, na atitude de mulher que está prestes a defender até o fim seu senhor e amo.
Ora, era a Angélica que cabia esse lugar. E ser destituída, sem que ninguém o notasse, pareceu-lhe o cúmulo da impertinência.
- Saberia responder-nos, caro suserano? - indagou Eleonora de Saint-Damien, com um olhar incendiário.
- Sim, responda! - rogaram vozes impacientes. - Se os reis da Provença tivessem triunfado sobre o rei da Ile-de-France e, com isso, destruído a civilização do norte, o que teria acontecido?
No decorrer do sarau, Angélica notara que Joffrey respondia com superficialidade, como se não quisesse dar às próprias palavras um tom demasiado sério. Mas respondia o que queria, e o que dizia nunca era anódino.
Desta vez ele deixou passar algum tempo antes de dizer:
— Talvez tivesse havido a reconciliação do amor e da Igreja!
— Aí está uma coisa agradável de ouvir - comentou Ville-d'Avray.
— Está sugerindo que a verdade teria sido outra e, sem dúvida, os dogmas também? Você está blasfemando! Nosso reino teria tombado na heresia, como os ingleses...
Deixando que se desencadeasse uma tempestade de protestos, Angélica, que já não aguentava, preferiu afastar-se e retirou-se para um salãozinho contíguo. Teve o alívio de ver-se sozinha ali. "Ainda bem que o Sr. de Bardagne, emissário do rei, não está presente. Nem o Duque de Vivonne", pensou.
No salão a batalha continuava.
— Podia-se chegar a Deus com o amor!
— Com o amor ou contra o amor!
— Reconheçam pelo menos o julgamento da história - dizia o Sr. de La Melloise. - A vitória de Sijnão de Montfort havia decidido: contra o amor.
Angélica sentia-se muito transtornada. Já não tinha coragem de ouvir nada, e ficou no salãozinho, escondendo-se atrás das cortinas.
Mais que a imprudência de Joffrey, tomando a defesa de uma província cuja rebelião latente contra o rei estava longe de ter sido apaziguada, era a atitude das damas da Aquitânia que a torturava.
Deveria entender que já era enganada, e havia muito tempo, pelo gascão de coração frívolo e aquelas mulheres sem escrúpulos? A ideia do corpo gracioso de Berengária Amada nos braços de Joffrey fez um arrepio glacial percorrer-lhe a nuca. Ele dedicara um sorriso a ela. Angélica não podia suportar a ideia de que Joffrey dirigisse a outra mulher o mesmo sorriso que dava a ela.
Com emoção na voz, o Marquês de Ville-d'Avray exclamava:
— Ah! Por que eles não ganharam, esses alegres meridionais e sua bela divisa: delectus coitus?
— Marquês, um pouco de decência - protestou o dono da casa. - Estamos na Quaresma.
A saída foi agitada. A residência do primeiro conselheiro empoleirava-se a meia encosta do caminho da montanha. A faixa que lhe separava a soleira do precipício revelou-se estreita. Caso saíssem num grupo compacto e animado, correriam o risco de que um ou dois bêbados dali despencassem.
Quando os trenós e outros veículos à espera se misturavam, tentar separar-se depois de uma boa noitada tornava-se coisa perigosa.
A luz iluminava uma confusão de carruagens e cadeirinhas. Houve bengalas brandidas no ar contra cocheiros e criados. E ressoaram os ecos desses gritos e relinchos, alarido pouco propício ao recolhimento exigido pelo período de Quaresma. No dia seguinte, aliás, o Sr. de Bernières, superior do seminário, que vivia na vizinhança, apresentou um relatório ao bispo sobre a balbúrdia.
Angélica, impelida pela onda, viu-se bruscamente diante do Conde de Peyrac, e como sua cólera não se acalmara, lançou-lhe:
- Você está louco! Faz assim tanta questão de se alienar da Igreja com suas declarações? Já não lhe basta ter o rei contra si?
Ele deu um sorriso cáustico e arqueou as sobrancelhas, como que surpreso e divertido com a violência dela.
- Seria você um agente do rei, Sra. du Plessis-Bellière? E encarregada de sustentar-lhe a política contra os rebeldes do sul?
Ela ficou sem ter o que dizer.
Angélica pediu a Ville-d'Avray que a levasse embora em sua carruagem. Em casa, esperou por Joffrey. Estava decidida a explicar-se. Desta vez não bastariam carícias e palavras ternas, enquanto ele se divertia às suas custas com aquela Berengária. Mas ele não veio. Angélica passou a noite em claro, a virar-se na cama, pois jamais teria imaginado que Joffrey pudesse falar-lhe naquele tom. O "Sra. du Plessis-Bellière" fora particularmente venenoso.
Já não duvidava, depois de ouvi-lo lançar esse nome num tom entre provocante e zombeteiro, de que ele soubesse tudo sobre a presença do Duque de Vivonne em Quebec e de que ele o conhecera sob esse nome. Pensar que ela chegara ao ponto de arriscar a própria vida, calando-se a fim de que ele não soubesse que ela reencontrara pessoas da época em que reinara na corte da França, período acerca do qual ele parecia sentir ciúme e amargura...
De manhã, com o intuito de reconciliarem-se, dirigiu-se às pressas ao 'solar de Montigny. Foi informada de que o Sr. de Peyrac estava ausente da cidade. Estava inspecionando seus fortes para os lados do cabo Rouge e Loreto.
Correta ou incorretamente, Angélica imaginou que a situação fosse catastrófica. Correu até o convento dos jesuítas.
Quando o Padre de Maubeuge recebia a Sra. de Peyrac no tribunal da penitência, à cerimónia desenrolava-se segundo um rito estabelecido, mas que não tinha nada de tradicional.
Angélica era introduzida na bela e erudita biblioteca. Sentava-se numa poltrona de encosto alto de tapeçaria, enquanto o superior, a alguns passos, tomava lugar num modesto tamborete. Persignavam-se. O padre pronunciava uma breve oração em latim. Em seguida, conversavam sobre tudo. Um dia conversaram sobre a transmissão de pensamento; em outra ocasião a conversa recaiu no gin-seng, uma raiz de propriedades medicinais de que os chineses faziam grande uso e que também se podia encontrar na América. Um dos padres trouxera um pouco de suas viagens e estudava a raiz a fim de decidir se se tratava da mesma planta da Ásia ou de uma variedade.
Depois, o Padre de Maubeuge levantava-se, pedia-lhe que se ajoelhasse e recitasse o ato de contrição, e dava-lhe a absolvição.
Naquele dia Angélica não sabia por onde começar para tornar justificáveis suas lágrimas. Sentia-se em perigo, explicou... Um homem tentara matá-la sem razão. Uma praga rondava à sua volta, e ela temia encontrar nisso um sinal da constante vontade de destruí-la de inimigos antigos, que não depunham armas e que mesmo a distância continuavam a persegui-la. Depois, o marido e ela não eram da mesma província... Daí advinha todo o mal.
Quando ela se calou, o padre deixou passar um longo momento de reflexão, que Angélica respeitou. Reconhecia que ele teria mérito se entendesse alguma coisa do seu confuso relato.
- As mulheres que receberam como apanágio o dom da beleza - disse ele, afinal - representam para o restante dos homens uma interrogação misteriosa. Pois elas vivem algo de singular, e lhes é difícil medir o inefável dessa particularidade. A vida lhes é ao mesmo tempo mais fácil e mais árdua. Como não têm que enfrentar o destino comum, com frequência se vêem afastadas das felicidades comuns. Mensageiras do encanto e do sonho de perfeição de que cada ser humano traz em si a nostalgia, sacerdotisas designadas pelos sufrágios deles a esse sonho, acontece a elas sofrer um destino em que seu íntimo se vê esquecido, mal conhecido e por vezes imolado. É frequente estarem ao lado de príncipes e reis, incumbidas, pela louca ilusão dos homens, de uma responsabilidade desmedida em relação à fragilidade de seu espírito e a ternura feminina de seu coração. Inebriadas pelas homenagens e por uma adulação que se dirigem menos a elas do que ao reflexo que as distingue, não é raro que o coração delas murche e que elas soçobrem na imbecilidade.
— Se é a mim que o senhor se dirige - disse Angélica, que o ouvira surpresa - e se é para mim, incluindo-me entre essas mulheres que receberam, como diz, "o apanágio da beleza", que pinta esse quadro sinistro, dir-lhe-ei, meu padre, que sempre lutei por permanecer um ser humano e preservar meu direito de viver segundo meu coração e de pensar segundo meus gostos. Isto posto, saiba que sou feliz por ser bela - acrescentou, olhando-o com desafio.
— E faz bem - aprovou o Padre de Maubeuge -, pois não me deixou concluir, senhora... Eu ia dizer-lhe que, por outro lado, as mulheres belíssimas têm certeza de que agradarão em todas as circunstâncias, ou seja, fascinarão àqueles a quem se apresentarem. É nisso que vivem um destino singular. Constatar, cada vez que se aproximam de alguém, a irradiação de uma feliz surpresa, de um meigo encantamento, de uma alegria benfazeja iluminando os rostos, e saber que são vocês a causa disso, é, sem contestação possível, uma aventura mais agradável do que ler nos rostos alheios, sem que tenhais culpa disso, repugnância, frieza, antipatia ou desconfiança. É essa a boa forturna das mulheres belas: podem agradar sem esforço. O mundo lhes sorri. Ora, outra mulher que não tenha menos mérito do que os seus, mas cujos traços sejam ingratos, verá o mundo fazer-lhe cara feia. Pense, senhora, nos favores que recebeu do céu, e que é justo que às vezes pague por eles... um pouco.
Fez uma pausa, e continuou:
— Quanto a seus receios de cair nas armadilhas de inimigos que visariam a atentar contra sua vida, seja por violência, seja por magia, a luminosa saúde de sua aura me indica que triunfará sobre eles, e - um clarão irónico passou-lhe por entre as pálpebras semicerradas - digo-lhe que me sinto levado a lamentá-los, pois me parece que, a persistirem na empresa de ameaçá-la, correm o risco de perder a vida, se não a alma. Por outro lado, não posso senão recomendar-lhe com insistência que se apresse a resolver com o Sr. de" Peyrac essa "querela da Aquitânia", cujos ecos me chegaram e com a qual a senhora se mostra magoada. Como é comum nas escaramuças entre esposos,- atribui-se ao outro mais do que ele pensa. Estou convencido de que a senhora exagera a importância que o Sr. de Peyrac confere a esses debates, ao mesmo tempo em que atribui a essas reuniões que ele gosta de organizar com amigos uma finalidade que elas não têm. Ele sequer deve imaginar que a senhora possa magoar-se com elas. Eis aí dois pontos que seria bom esclarecerem um com o outro sem demora.
— Ele está ausente de Quebec - disse Angélica em tom de lamento. - Partiu.
— Voltará... esta noite... ou amanhã... Nesta estação ninguém pode partir para muito longe... A duas léguas daqui... já não existe nada...
O Padre de Maubeuge zombava dela. Angélica retirou-se, tranquilizada.
CAPÍTULO XXIV
Um leve recuo
Que seja! Não ignorava que vinha de uma província onde se acreditava em fadas, em lobisomem, nos malefícios da floresta que oprimia o homem por toda parte com a sua abóbada sombria, quando não era cortada por pântanos assombrados por fogos-fátuos, onde as pessoas se perdiam. Nos castelos do bosque, não se falava de amor de corte, mas evocava-se Gil de Retz, que imolara centenas de garotinhos ao Diabo, torturando-os. Angélica tinha poucos conhecimentos no domínio das belas-letras, das artes e das ciências, mas disso só podia acusar a si mesma e dar a mão à palmatória, pois só o devia à própria preguiça quando estivera no convento das ursulinas. Não passava de uma estrangeira, de uma poitevine... Mas amava-o.
Mas amava-o mais que a todo mundo! Ele precisava saber disso. Precisava acreditar nela. Embora fosse poitevine.
Joffrey de Peyrac começou a rir tanto, que sufocava. Estavam os dois, pelo final da manhã, na "câmara de comando" do solar de Montigny. Ao recuperar a seriedade, quis saber o que lhe pusera na cabeça ideias tão absurdas e loucas, e começou a interrogá-la.
Angélica falou-lhe das reuniões a que ele chamava os compatriotas e de que ela se sentia excluída. Esses colóquios lhe haviam inspirado receios. Vendo-os reunidos, ouvindo-lhes as queixas e acusações, não pudera deixar de reviver as disputas de Toulouse, cujo perigo para a felicidade e a vida deles ela tivera ocasião de compreender mais tarde. Ora, a sabedoria e a experiência que adquirira lhe mostravam como eram vãs aquelas disputas.
Os esforços deles ali não tendiam a ludibriar, mas a seduzir o rei da França e a lembrar o que podia suscitar a desconfiada inquietação dele a propósito de sua autoridade no reino; Joffrey não corria o risco de arruinar uma tentativa que em primeiro lugar visava somente a obter direito de boa vizinhança com a Nova França, a paz na América?
- E precisamente assim que concebo nossa presença aqui - afirmou ele -, e tento fazê-ía entender, para lhe acalmar os temores, quão pouco me atormenta esse reconhecimento da hegemonia de meus ancestrais sobre a Aquitânia, e com a qual tive que arcar pela lei de sucessão, mas que, após os combates supremos que ocasionou, está fora de questão reivindicar. Sequer discutirei se isso é bom ou mau, pois embaralhar e redistribuir as cartas incessantemente é um jogo natural da humanidade... E é a isso que chamam história... Há que saber montá-la como a um cavalo a galope e não desviá-la de modo algum do caminho que ela deseja seguir, pronta a encontrar a seu bel-prazer as perspectivas novas.
Isso não impedia cada um de conservar o que lhe era caro, o que o compunha. Daí o prazer que sentia com a vida agradável de Quebec, que lhe permitia compartilhar, com seus irmãos de raça, antigas emoções literárias e poéticas.
- Com toda a boa vontade eu a teria convidado a unir-se a nós, meu amor, tivesse eu ao menos pensado que você ficaria feliz com isso. Mas me parecia que as atividades que você escolheu em Quebec a preenchiam a vida de satisfação, e me alegrou muito saber que você estava livre e vivaz como uma criança a quem se deixa fazer o que lhe dá prazer. Minha querida, amando-a mais do que à minha alma, aprendi que vê-la feliz, pouco a pouco liberta das opressões que lhe haviam destruído a alegria de viver, esquecendo as injustiças que a fizeram padecer, voltando a ser você mesma pelo prazer de existir, fazendo desabrochar o que lhe compraz das qualidades que recebeu do céu, assim como cada um de nós, é que eu conhecia minhas melhores alegrias e a alcançava com mais certeza, na minha ciumenta aspiração de conhecê-la melhor, de desvendar-lhe os- mistérios. Uma mulher feliz se revela melhor do que outra, que, por um motivo ou outro, se sente prisioneira. Acontece-me de desejar tê-la entre estas paredes, de considerar uma inutilidade absurda as horas privadas de sua presença. Mas refreio essa exigência masculina, tirânica e egoísta. E é com maior enlevo que saboreio o encanto de encontrá-la em sua casinha, aonde me insinuo inebriado de só respirar ali sua presença, o sinal, a marca como que de um perfume, sim, que é seu, e pela escolha que você faz daquilo que a rodeia ou daqueles a quem admite em sua intimidade. Descubro-a, aprendo em você como num livro de imagens novas, de páginas viradas a cada dia. E lá, quando a vejo, sei que você está somente comigo e que ambos fechamos a porta para o alarido do mundo e para a servidão dos nossos encargos. Acredito, no benefício de um pouco de egoísmo. Talvez o segredo da felicidade, para dois amantes, esteja em serem conscientes, um e outro, de sua vida.
- É por isso - disse ela - que tremo ao pensar que uma segurança tão completa e tão fugidia possa destruir-se. Saio de casa e descubro-o expondo-se ao perigo. Ou imagino que se põe em perigo, segundo o que afirma. As provações que nos abateram e os acontecimentos que as provocaram ainda estão demasiado vivos em minha memória. Diga o que disser, ainda não estou curada, e lembro que foi ao primeiro senhor da Aquitânia que o rei da França quis destruir...
Ele levantou-se e ralhou gentilmente com ela, tomando-a nos braços.
Na outra noite, na casa do Sr. Haubourg de Longchamp, ela não vira que ele se esforçara por responder zombeteiramente acerca de coisas sérias, pois na realidade as coisas não eram sérias?
- Não passam de justas agradáveis para desatar o espírito e impedi-lo de entorpecer na preguiça que um longo inverno produz.
Então não notara que naqueles torneios linguísticos as opiniões se invertiam, que se tratava de um prazer, e fora assim que, ao final da memorável noitada, viram-se galicanos defender ao papa, jansenistas, aos jesuítas, libertinos, à virtude e... a Sra. du Plessis-Bellière, a Rebelde do Poitou, tornar o partido do rei da França?
— É verdade... - disse ela. - É então que a gente percebe que os anos passam. Que as revoltas se esfumam e os ferimentos se curam. A vida que queremos viver nos força a pousar o olhar num mundo que tínhamos acreditado imutável, e damo-nos conta de que ele se molda sem nós e se modifica. Acreditamos que atravessamos a existência conservando o mesmo coração, a mesma alma... Voltamo-nos e notamos que certas ideias que nos compunham tornaram-se fúteis. Certos seres morreram e não podem ressuscitar.
— Acredita que ignoro isso, minha querida, e que me iludo sobre os tempos que se anunciam?
Com as duas mãos pousadas na cintura dela, puxou-a para si, suavemente.
- Eu sei! Já não existem trovadores. E já não existem fadas...
Os olhos escuros e ardentes mergulhavam nos dela, verdes, com reflexos de fonte.
- Sim! - disse ela. - Existimos nós!
Foi agradável fazer amor à luz do sol de inverno. A claridade que passava pelos vidros em losango estriado da janela era cor de pérola rosada Ou dourada. Matiz de pêssego, lourice branca do céu.
A luz brincava nas colunas do baldaquino.
O corpo dele era cor de madeira queimada contra a brancura dos lençóis, e entre seus braços ela se sentia clara, lisa e carnuda. Gostou daquele quarto pacífico impregnado da presença dele. Poderia dividi-lo todos os dias com ele. Roçou-lhe a mente a ideia de instalar-se no solar de Montigny... mas descartou-a. Joffrey tinha razão. As escolhas que cada um fizera para a própria vida podiam impor ao outro obrigações com que ambos nada tinham o que fazer. Reconheciam os dois que era bom viverem livremente, já que podiam ver-se todos os dias, falar-se e amar-se, e conversar sobre os respectivos projetos e sobre o que tinham feito durante o dia.
Joffrey gostava da pequena casa, onde a encontrava ciumentamente longe dos olhares alheios e só para ele. Quanto a ela, disse consigo que gostaria de voltar ali às vezes... como se fosse à casa de um amante.
"Alguma vez terei sido tão feliz num abraço de amor quanto hoje?", indagou consigo mesma.
No entanto, pareceu-lhe que desde a querela da Aquitânia nem tudo permanecia exatamente como antes, e desde essa tarde maravilhosa começou a atormentá-la a recordação do que num secretíssimo recanto de seu coração ela chamava de "o recuo".
Pela primeira vez em toda a vida amorosa dos dois, Angélica, enquanto se acariciavam naquele dia, teve a impressão de notar da parte dele... um recuo... Teria sido um recuo? Não... Mas, im-perceptivelmente, sentira algo desse tipo, algo ténue...
Perguntou e tornou a perguntar a si mesma se isso de fato ocorrera. Procurava, esmiuçava... Perdida no nevoeiro voluptuoso que aquelas poucas horas de amor lhe deixaram na lembrança, aos poucos foi-se recordando do instante... E aos poucos o instante foi-se destacando, ganhando importância, um relevo e um significado maiores, à medida que lhe repassava pelo espírito... De súbito ela abrira os olhos. Não pudera fazer outra coisa senão abrir os olhos, como se a força do desencadeamento que se anunciava nela, qual vagalhão devastador de um maremoto, a arrancasse ao torpor do prazer, puxasse-lhe a carne à superfície, estirasse-lhe as pálpebras contra sua vontade, escancarando-as. E vira os olhos dele cravados nela. Naquela água, negra, naquele fogo vermelho, a vida se extinguia. E sentira que partia... partia naquele olhar insondável, que parecia descobrir no seu o mesmo abismo. Lá no fundo, acreditou ver, a contemplá-la e descobri-la, o desconhecido, o estranho que não tem nome, o mais próximo...
Agora que tentava recordar, reconhecia que sentira um instante de terror sagrado.
Ela ouvira, numa voz alterada... atónita, extática:
- Você! Você!
Foi então que houve aquele recuo, que talvez não tivesse sido um recuo. Ele simplesmente se movera, e ela retomara a consciência, como se caísse de um astro, e seu ato de amor prosseguira, encantado e muito bem consumado.
Mas quanto mais retornava àquele movimento, mais se convencia de que alguma coisa acontecera. E seu coração batia, como então, com um sentimento de pesar e frustração que não conseguia explicar. Apesar disso, a inquietação que sentia era de um caráter especial, em que não entrava o receio de já não agradar a ele ou de que ele deixasse de amá-la. Sabia que nunca fora tão bela. O espelho lhe dizia isso. Havia nela uma luz que se irradiava e cujo reflexo ela via nos olhos fascinados dos que a encontravam, como naquele espelho sobre o qual se debruçava. Passou um dedo sobre as sobrancelhas, sobre a linha dos lábios. Não, certamente não lamentava haver recebido o dom da beleza. E o Padre de Maubeuge tivera razão em lembrá-la desse dom. Era o mais maravilhoso dos dons. A ele devia pelo menos o fato de que nunca sofrera com a dúvida de si mesma, essa dúvida que atormenta tantas mulheres, o fato de nunca se haver sentido traída, condenada pela própria aparência, de não ter precisado temer olhares indiferentes ou desdenhosos.
Por todo o prazer que recebera na existência, ainda que fosse apenas o de poder dizer, nesses dias conturbados, que possuía a arma mais eficaz para reter o amor de Joffrey e também o de pensar que no dia em que voltasse a atravessar a Galeria dos Espelhos poderia entregar sem receio o próprio rosto aos olhares ávidos e invejosos dos cortesãos, e que o olhar que o soberano pousaria nela não se desapontaria, Angélica agradecia ao céu. E, se fosse preciso, estava pronta a pagar... um pouco.
Era feliz por ser bela. Tivera uma vida atormentada, mas preferia permanecer como estava e não como Sabina de Castel-Morgeat, que murchava, que nunca conhecera o prazer... Aquela partida louca e delirante para Citera...
Preocupada, demorou-se a refletir sobre Sabina, e sentiu remorsos ao se lembrar do que ela lhe atirara ao rosto na outra noite e que parecera atingi-la tão dolorosamente.
CAPITULO XXV
A trágica Sabina de Castel-Morgeat
A última altercação que Sabina tivera com Angélica na casa dos Haubourg de Longchamp causara uma terrível devastação na alma da Sra. de Castel-Morgeat. Depois de acreditar por algum tempo que ia renascer, o estado em que recaíra era pior do que aquele em que, de um modo ou de outro, passara sua vida atormentada e desapontada. Por que "eles" precisavam voltar para liquidá-la: Ele, Ela? Liquidá-la, arrancar-lhe a máscara, para que ela se descobrisse leprosa.
Era por isso que fugiam dela. Era por isso que não lhe dispensavam simpatia e que a amizade que dedicava às pessoas só provocava frieza da parte delas.
Sabia que Angélica dissera a verdade, que aquele amor frustrado assim que lhe nascera no coração, na aurora da sua juventude, deixara-a doente para o resto da vida. Ela se encerrara na doença. Fugira do amor, matara o amor. Vingara-se do amor repelindo-o, carregando-o de opróbrio, dando-lhe um rosto hediondo, o do pecado, mentindo a si mesma quando nostalgias inconfessáveis vinham atormentar-lhe as noites insulsas, odiando os próprios desejos, chamando virtude ao distanciamento que mantinha da carne, quando na realidade se mostrava culpada para consigo mesma. Porque lhe parecia que fora injustamente atingida pela sorte, traída pela vida, já que outra lhe tomara o objeto de suas esperanças, ela se mutilara voluntariamente.
Agora, como a aurora que apaga lentamente a própria luz e de repente a extingue brutalmente, no instante em que o punhal do sol transpassa o horizonte, o gosto e o apelo do amor haviam despertado nela com a vinda daquele que a assombrara em seus sonhos. Personagem de lenda, que ela acreditava desaparecido para sempre. Fora com terror que vira aproximar-se aquela frota onde, dizia-se, ele chegava, ressuscitado dos mortos. E vira-o, reconhecera-o. Poderia ter-se curado num átimo diante da materialidade de um sonho que ela não cessara de embelezar e de ornamentar com quimeras. Recaíra, pelo contrário, sob o jugo de uma presença onde se reconhecia, enriquecida e como que fortificada de um calor mais humano, a sedução do grão-senhor ines-quecido. O halo da tragédia sobre a qual a vontade dele triunfava, aquela marca grisalha nas têmporas, a traírem provações e a marcha do tempo, tinham aumentado a paixão vã e louca que ela lhe dedicava. Ora, agora que Angélica falara, Sabina dava-se conta de que era tarde demais. Percebia que erguera como que uma sebe de espinhos à sua volta. Não era só porque a passagem dos anos lhe marcara o rosto e o corpo. Mas ela enfeara prazerosamente, quisera afastar de si todas as homenagens.
E agora, agora que ele estava ali, ela é que já não existia. Pousara uma máscara de ausência sobre o próprio ser. Aquela criatura viva, fogosa e ávida, que era Joffrey de Peyrac, faria o que com um fantasma amargo? A sebe de espinhos preservava-a. E, a dar crédito a Angélica, ele não se lembrava dela... Não a notara outrora, ainda que fosse bem bonita, bela até. Angélica mentia. Ele, tão atento ao encanto das mulheres, não podia tê-la ignorado. Ou então tinha que acreditar que já trazia em si aquela tara secreta que distanciava de si o amor e impedia que fosse objeto de amizade.
Que suplício! Agora que seu corpo despertava, a ponto de, certas noites, ela se revolver na cama, sofrendo de uma fome que de modo algum conseguia saciar, agora era tarde demais!
Com ele... Com ele... como o amor poderia ter sido maravilhoso... Ela se haveria esbraseado. Mas, dele, era tudo para Angélica. Apesar de sua cortesia, sentia-se que, quando Angélica estava presente, as outras mulheres lhe importavam pouco. Quantas vezes, seguindo-os com o olhar quando saíam juntos de uma recepção, ela não pensara, dilacerada: "Esta noite eles vão se amar...".
Detinha-se longos momentos diante do espelho. Tocava as têmporas com o dedo, avaliando a textura fina de sua pele. Com a ponta da unha seguia o rasto de uma ruga no canto da pálpebra.
Era inútil que Angélica lhe dissesse que era bela, que tinha encanto e presença: bem sabia que era tarde demais. Jamais se curaria daquele amor e jamais se curaria de seu silêncio frustrado.
Fizera-se detestar pelos homens. Não descansara até passar para a categoria das mulheres que eles temem e de quem fogem como da peste. Milagre algum poderia penetrar e abalar a dura fortaleza edificada por seus próprios cuidados e que agora lhe dirigia os gestos, as palavras, como se não pudesse impedir-se de todos os dias acrescentar mais uma pedra ao muro interior que a isolava dos olhares de todos.
Angélica! Angélica tinha o dom da felicidade. Dos cabelos brancos fazia um adorno de fada. Enquanto Sabina, horrorizada, arrancava os primeiros fios prateados que se misturavam à sua cabeleira escura, até então de um ébano profundo.
Fora roçada pela esperança de amizade. Naquelas reuniões de gascôes no solar de Montigny, sentira-se participar do cálido entendimento que o Conde de Peyrac recriara para eles. Por vezes ele lhe dirigira a palavra. Ela respondera sem esforço e de maneira inteligente. Vira aprovação no olhar dele. Sob aquela irradiação, a vida adquiria forma, cores... Mas tudo só servira para lhe tornar a queda mais alta e para que se desse conta de que sua condição se tornara ainda mais assustadora.
Joffrey de Peyrac e Angélica tinham acabado de destruir o precário equilíbrio de sua vida.
Até dos índios, tão ingratos e versáteis, Angélica não obtivera, como que brincando, um sucesso que só se podia atribuir àquele dom para encantar sem esforço, de que Sabina carecia singularmente? O que fizera ela, Angélica, para atrair a atenção dos selvagens? Sabina fazia-se em vão essa pergunta. O poder do encanto dela escapava-lhe à análise. Havia que reconhecer-lhe o mérito. Sabina, outrora, ensinara o catecismo a Piksarett e o preparara para o batismo. Hoje ele nem a reconheceria na rua, enquanto, por outro lado, se investira de guardião e defensor daquela intrigante, Angélica, que cativava todos os corações, todos os seres, bastava que aparecesse. Já Sabina, bastava que aparecesse para exasperar todo mundo. Ou então, apagavam-na. No entanto, ela amara muito aquele país do Canadá, para o melhor e para o pior. Sentia-se uma estranha ali agora. Até alguns amigos ou amigas, poucos, que outrora lhe apreciavam a conversa, como a Sra. de Mercour-ville, o Sr. Gualberto de La Melloise, tinham usado o canhona-ço como pretexto para lhe virar as costas. O procurador Tardieu era o único a dispensar-lhe consideração. Mas ela logo entendera que ele desejava somente sua cumplicidade para um projeto que tinha, de demolir as casas de madeira empoleiradas contra a falésia, sob o forte. A fim de agradar-lhe ou livrar-se dele, acabara queixando-se a Frontenac da fumaça e dos maus cheiros que subiam do bairro podre da Cidade Baixa. O governador aborreceu-se e lhe respondeu, secamente, que se ela achava o Castelo Saint-Louis desconfortável, tudo o que tinha a fazer era retornar a seus aposentos em sua casa exposta a todos os ventos.
Só se dirigiam a ela, -só faziam apelo à sua generosidade quando tinham que pedir-lhe um favor, livrar-se de uma tarefa penosa.
A Sra. Favreau e duas moradoras do subúrbio jiào permitiram que se instalassem teares, em suas cumeeiras. Como não se sabia onde pô-los, pediu-se à Sra. de Castel-Morgeat que os guardasse numa saleta, no térreo do Castelo Saint-Louis, que lhe fora concedida como quarto de despejo e que ela desejava transformar em oratório. Ninguém lhe agradeceu.
Sabina não existia mais. Não lhe restava nada. Nem o filho, que não lhe perdoava por haver disparado contra a frota de Pey-rac. Tinha vergonha dela. Fugia-lhe. E, novamente, era por causa deles, por causa dela: Angélica.
Era atingir o fundo... Assomaram-lhe ideias de suicídio. E se se atirasse do alto do Sault-au-Matelot, aquele canto da falésia onde o descobridor Cartier cravara, na primeira viagem, uma das três cruzes gigantes, com as armas do rei da França? Imaginava-se ao pé daquela cruz, reunindo coragem antes de lançar-se no vazio. A dificuldade era encontrar o ponto da queda. Da Cidade Alta, sempre se acabava desabando sobre os telhados da Cidade Baixa.
Do cartório, encravado como um ninho de águia, ela iria empalar-se nas pontas aguçadas dos troncos inteiros que formavam a paliçada do acampamento dos huronianos.
Do terraço do Castelo Saint-Louis, seu corpo se projetaria sobre duas saliências de rocha e podia ir arrebentar as choupanas do famoso bairro pobre, que naquela estação só pareciam manter-se em pé graças à capa de gelo.
Acabrunhada por visões macabras, Sabina de Castel-Morgeat acompanhava o próprio enterro no cemitério da encosta da montanha. Mais uma vez comentariam sua canhestrice, e esta última, com que se matara. O bispo talvez lhe recusasse sepultura cristã. E haveriam de suspirar que ela criava ainda mais embaraços morta do que viva.
Olheiras violáceas afundavam-se-lhe cada dia mais escuras à volta dos olhos, no rosto pálido.
Jamais conhecera o amor. Jamais conheceria o amor...
Um dia, sozinha em seus aposentos e quase tremendo, despiu-se e mirou-se nua no espelho. Ficou surpresa com o arredondado das ancas, com a linha de ânfora da cintura, com a abundância do peito, que a chocou. Corou ao bater os olhos no pequeno escapulário de pano branco, que usava sempre. Mas seus seios de morena, com mamilos grandes e escuros demais para o seu gosto, não eram o que atraía a concupiscência dos homens? Entendeu que, em determinado momento de sua vida, fora ludibriada.
"Sou bonita", pensou. "Mas homem algum jamais me disse isso..."
O que não era verdade.
Alguns homens lhe tinham dito ou deixado que ouvisse o comentário, antes que ela os desencorajasse com sua recusa interior em aceitar-se bela e em ser cortejada. Pois esse tipo de confissão ela queria ouvir de um único homem, de uma única boca.
Obstinada em não se resignar, considerara um insulto, mais do que uma homenagem, a paixão fogosa de Castel-Morgeat, gas-cão, amante de mulheres. A avidez dele lhe parecera um sinal insuportável de lubricidade. Com suas recusas, forçara-o a desertar do leito conjugal. Mas Sabina entendeu, ao examinar-se, que aquele libidinoso não concordara com isso sem pesar. Teve uma crise de choro diante do espelho.
"Um corpo inútil! Desprezado!", dizia consigo, apiedando-se de si mesma. "Uma única vez", pensou. "Conhecer o amor... Uma única vez!... Antes de morrer! Antes de envelhecer!..."
Arrancou o escapulário que trazia ao pescoço.
CAPITULO XXVI
Visita à ilha de Orléans
Nos primeiros dias de março a temperatura foi das mais baixas.
"Seria preciso ter o sangue de aguardente, o corpo de bronze e os olhos de vidro para resistir ao frio que está fazendo", escreveu a Srta. d'Houredanne, "e os rigores da Quaresma vêm arrematar nosso enregelamento."
Na paisagem coberta de branco, o Saint-Laurent raiado de dunas e valas, atravessado de pistas de onde se alçavam os guizos das parelhas, fazia esquecer que um dia fora um rio.
Não! O inverno não estava perto de acabar. Longe disso. Alternando-se com aqueles dias gelados mas secos, formavam-se tempestades que duravam uma noite, um dia, levantando uma poeira fustigante, seca, dura, silvante, cortando a pessoa em duas.
Era com grande animação que se montava a peça teatral marcada para a Mi-Carême, que cairia eirT 12 de março.
A Sra. de Castel-Morgeat interveio com acrimônia a propósito da escolha da peça. Tartufo, proposta pelos espíritos fortes, fora descartada. Inútil recriar em Quebec o rebuliço que havia agitado Versalhes. Sabia-se que o rei, que apoiava Molière, tivera que inclinar-se diante da cabala dos devotos. A Sra. de Castel-Morgeat pareceu liderar estes últimos: nenhuma obra encontrava aprovação perante seus olhos. Acerca desta e daquela, pretendia sempre que o Padre d'Orgeval jamais as teria tolerado.
Por que voltava a falar do Padre d'Orgeval? Já se tinha dificuldade que bastasse para suportar a Quaresma e o inverno.
Propôs Castor et Pollux ou Déjanire et Acheloús, de um autor pouco conhecido mas que o Sr. Berinot, secretário do Sr. de Fron-tenac, com quem ela se entendia bem e que até escrevera algumas obrazinhas, lhe aconselhara.
Discutiu-se o assunto na casa do intendente. Era conhecido seu gosto pelo teatro, que o fizera ser designado como diretor do espetáculo. Discutiu-se, suspirando, acerca das exigências da Sra. de Castel-Morgeat, que, felizmente, estava ausente: Castor et Pollux ou Déjanire et Acheloãs?
— E se pedíssemos ao Sr. Berinot que nos escrevesse uma obra inédita, em três atos, com um ou dois pequenos bales? - sugeriu a Sra. Le Bachoys.
— A que ele intitularia Sabina e Sebastião - propôs o intendente.
O gracejo pouco caridoso provocou uma hilaridade enorme, exagerada, mas que se desculpava, vindo como vinha de pessoas cujos nervos eram submetidos a uma rude provação. Aproximava-se o dia em que a peça devia ser encenada, e era impossível começarem os ensaios, visto que a escolha da dita peça ainda não estava resolvida. Além do mais, estava frio e estavam todos de barriga vazia. O Sr. e a Sra. Gollin, chegando atrasados, encontraram um salão cheio de pessoas que se contorciam como que acometidas de ergotismo, algumas com o rosto lavado em lágrimas, enquanto outras tinham dificuldade para não sufocar.
- Ah, se vocês soubessem! - exclamou Angélica. - O senhor intendente nos mata de rir...
O que pareceu loucura ainda maior, pois ninguém se lembrava de que alguma vez o intendente Carlon tivesse merecido acusação desse tipo. O ar aturdido dos Gollin provocou outra crise. Entre dois soluços, contaram-lhe a anedota, e passou-se o resto da reunião a gargalhar.
Angélica tinha remorsos. Já havia algum tempo se sentia descontente consigo quando pensava em Sabina de Castel-Morgeat.
— Sabina me preocupa - disse-lhe a Sra. de Mercourville, ao encontrá-la. - Ela parecia que se tinha emendado, até se tornara agradável. De repente, pronto, voltaram-lhe os maus humores! Anda com uma cara de dar medo. Estou convencida de que ela não dorme. Você não teria um medicamento a aconselhar-lhe?
— Infelizmente, não. Não posso fazer nada por ela. Eu, menos do que qualquer outra pessoa.
— Vou mandar chamar Guilhermina de Montsarrat-Béhars, na ilha de Orléans. Dizem que é muito versada em plantas.
— Ah, não! De jeito nenhum deve pôr essas duas mulheres em contato! Uma deixará a outra louca e vice-versa. Talvez eu mesma vá visitar Guilhermina.
- Pois bem, se vai vê-la - disse a Sra. de Mercourville, cuja eficiência não deixava passar em branco nenhuma ocasião -, eis o escapulário de Sabina, que outro dia ela me atirou ao rosto, não sei por quê. Entregue-o a Guilhermina. Dizem que esses curandeiros precisam de um objeto pertencente à pessoa doente para seus passes mágicos.
Aconteceu que, na manhã seguinte, Angélica, que se dirigia ao albergue Ao Navio de França, foi chamada na rua pela Sra. Eleo-nora de Saint-Damien. A bela mulher, muito atraente no seu capuz cor de amaranto, estava sentada no trenó que ela acabava de parar perto do velho paiol do rei.
— Guilhermina lhe envia saudações - disse. - Espera sua visita.
— Você está retornando à ilha de Orléans? - indagou Angélica, tomada de súbita inspiração.
- Eu pretendia passar o dia aqui e a noite na casa de meu filho, o Major Fabrício - respondeu ela -j mas se você está decidida a acompanhar-me, partirei dentro de uma hora. Será o tempo de algumas compras. Voltaremos juntas para Quebec hoje à noite.
Angélica, a um canto de mesa na grande sala do albergue, escreveu um bilhete às pressas. Para variar, era ela quem avisava Joffrey de que se ausentaria de Quebec durante o dia. Não que fosse muito longe, mas poder galopar pela^planície, depois de deixar para trás a cidade que diminuía, dava-lhe uma benfazeja sensação de liberdade.
Simultaneamente ela estaria de olho na bela Eleonora, que não teria deixado de ir ao solar de Montigny a fim de saudar aquele a quem chamava de seu "suserano".
O solar de Guilhermina, a meia encosta, dominando a Anse-aux-Canots, onde se empoleirava o pontiagudo campanário da paróquia de Sainte-Pétronille, apresentava-se como uma bela morada, cheia de gente. Doentes, índios, vizinhos e crianças entravam e saíam sem cessar.
Guilhermina os recebia mais como castelã do que como curandeira, sentada à extremidade de uma mesa grande, numa poltrona de encosto alto esculpido, rindo e conversando com eles. Às vezes os levava até seu gabinete, para distribuir-lhes ervas e conselhos.
Logo conduziu Angélica para outro aposento, mais calmo, um salão bem mobiliado.
- Fique até amanhã, ou então prometa-me que retornará. Temos muitas coisas a nos dizer...
Angélica contou-lhe que nos últimos dias estivera em perigo, que tinham tentado matá-la no Pão de Açúcar, e que Guilhermina, apesar da promessa que lhe fizera, não a prevenira.
- Você morreu? - perguntou a feiticeira. - Não! De que está se queixando? Você é a mais forte. É protegida...
As horas, de fato, passaram rapidamente, e quando se anunciou o momento de regressar a Quebec, os sinais de uma tempestade, que ao longe já escondia a cidade, levaram Angélica a decidir-se a passar a noite ali.
Nos trinta anos transcorridos desde ,que Guilhermina fora para o Canadá, acompanhando o homem com quem se casara a fim de poder fugir da Europa, e a quem a acusaram de haver assassinado pouco depois de sua chegada, sua vida confundia-se com a da ilha. Quando ali construíra sua primeira cabana, ainda era a ilha deserta a que Cartier de início dera o nome de ilha Baco, devido às vinhas selvagens. Depois a ilha se povoara.
Quinze anos antes, Guilhermina escapara ao massacre perpetrado pelos iroqueses, cuja flotilha descera da direção de Tadoussac, porque estava colhendo tomilho silvestre nas colinas da ilha com algumas criancinhas. Em seguida as adotara, visto que os pais delas morreram naquele dia, bem como o segundo marido de Guilhermina, Gil de Montsarrat-Béhars, e a maioria dos huronianos refugiados que, desde o êxodo de sua nação, tinham ali um acampamento.
A vida da feiticeira da ilha de Orléans pareceu a Angélica mais bem-comportada e ordenada do que se dizia em Quebec. Conservava os amantes por longo tempo, e eles nunca se separavam dela sem pesar. Guilhermina contou que lhes ensinava muitas coisas sobre amor mais preciosas do que poderiam aprender com as índias da mata.
O amante do momento, um jovem hércules sonhador, ocupava-se dos trabalhos da senhoria com competência.
Indo das tarefas simples de que gostava - a lenha, os animais, o queijo, o feno - ao leito de uma mulher a quem amava e que o saciava, ele oferecia a imagem de um homem que encontrou o próprio paraíso e não se indaga sobre o paraíso alheio. Era repousante yê-lo entrar, sair, sentar-se à mesa diante de um prato onde certamente o esperava boa comida, sob o olhar terno de Guilhermina - uma criança mimada, feliz, mas tão consciente de sê-lo, que se tornava edificante.
Uma adolescente de cabelo louro, quase branco, bonita mas de olhos vazios, fazia o serviço com gestos de criança aplicada. Depois da refeição veio sentar aos pés de sua senhora, apoiando a cabeça nos joelhos dela.
- E uma inocente - disse Guilhermina, acariciando-lhe os cabelos claríssimos. - Sofre da doença de São João.
Era originária de uma paróquia constituída de várias fazendo-las espalhadas, primeira senhoria da margem sul subindo para norte, pela qual o proprietário não se interessava. Por ali se encontrava uma mistura de camponeses procedentes do oeste e do norte da França. Gente rústica, desconfiada. Devido às suas convulsões, manifestações do grande mal que fora sempre encarado como maldição dos deuses, a menina fora acusada de haver secado com um sortilégio a nova colheita de linho, com que seu cabelo se parecia, e mandou-se vir um padre de Quebec para exorcizá-la.
- A terra era salobra. Foi por isso que o linho secou. Deste lado do rio o mar ainda sobe muito. Não admira nada que a poucas léguas de Quebec se encontrem bolsões profundamente impregnados de sal. Mas os ignorantes não se dçram ao trabalho de refletir antes de arrastar a pobre possessa"para a igreja.
Guilhermina fora arrancá-la às garras deles. Agora a criança vivia calma, na ilha. Guilhermina tratava-a com extratos de arruda e de valeriana, bem como com infusões de Datura stramoine, conhecida como maçã espinhosa, devido ao fruto coberto de espinhos. As crises tornaram-se menos frequentes.
- Esse tratamento lhe fez mais bem do que receber agulhas pelo corpo inteiro, a fim de que descobrissem os "pontos" do Diabo.
O relato lembrou a Angélica o caso de Sabina de Castel-Morgeat, por quem se deslocara desde Quebec. Traçou um retrato, que desejou fosse exato, daquela fidalga que parecia gozar de boa saúde, mas que era corroída por um desespero interior que a fazia considerar a gente à sua volta e as pessoas com as melhores intenções para com ela adversárias empenhadas em destruí-la.
Hesitou em expor o que sabia acerca das verdadeiras razões que inspiravam os tormentos da mulher do governador militar da Nova França. Seria lançar-se num relato bem complicado. Preferiu, então, confiar nos dons supranormais de Guilhermina para adivinharem o essencial.
A feiticeira ouvia, e a intervalos fixava em Angélica olhares rápidos que pareciam ler o que não era dito. Depois fez o gesto habitual, que a tornava tranquilizadora: pôs os óculos. Apalpava e revirava entre os dedos delgados o escapulário da Sra. de Castel-Morgeat que Angélica lhe entregara, e aproximava-o das narinas.
— Bela mulher, ardente e generosa - murmurou.
— Sim, isso é verdade - concordou Angélica, esforçando-se por ser justa -, e é por isso que os amigos dela se preocupam... Receiam que antes do fim do inverno ela cometa algum ato extremo... No degelo é frequente certas pessoas atentarem contra a própria vida, sob o efeito de uma lassidão ou de uma tensão excessivas... Isso não pode continuar assim... Ela precisa ser salva...
Parando de falar, Angélica notou que a feiticeira a fitava havia alguns instantes com uma expressão que lhe pareceu ambígua e que lhe causou um mal-estar. Sabina de Castel-Morgeat estaria condenada?
Mas a bruxa desviou os olhos e disse, em tom enigmático:
- Não se inquiete! Ela será salva...
CAPITULO XXVII
A libertação de Sabina
Era inevitável que a brincadeira de João Carlon sobre "Sabina e Sebastião" chegasse rapidamente aos ouvidos da Sra. de Castel-Morgeat. Mas foi-lhe contada como proferida pelos lábios de Angélica, o que causou à mulher do governador um sofrimento sem igual, duplamente venenoso.
Cegamente ferida, agarrou seu manto e saiu na disparada, deixando ali plantada e atónita a "boa alma" que lhe levara a notícia e que era, acredita-se, Eufrosina Delpech.
Com os dois punhos bateu furiosamente na porta que dava para a rua, entre os dois atlas que sustentavam o globo.
- Entrai por trás, senhora - gritou-lhe Susana das janelas do primeiro andar, em cujos peitoris ela pusera os colchões para arejar.
Sabina de Castel-Morgeat tropeçou na escada que contornava a casa e por pouco não desembocou entre os caldeirões e detritos no quintal dos Banistere. Susana introduziu-a na sala e explicou-lhe que nunca se entrava pela porta da rua. Por ali apenas se saía, e somente a Sra. de Peyrac, de manhã, quando chegava à soleira para olhar o horizonte.
— Onde está ela? - gritou a visitante, desvairada.
— Saiu.
— Aonde foi?
— A ilha de Orléans, à casa da feiticeira.
— Feiticeira é ela também! - rugiu Sabina de Castel-Morgeat, desabalando para fora.
Por entre os movimentos do grande manto que seus gestos largos projetavam em todas as direções e que lhe davam o ar de uma ave negra em meio a uma tempestade, ela executou entre os degraus da escada, o acampamento dos índios, a Rue de la Cathédrale, uma dança de hesitação que a Srta. d'Houredanne, por trás de suas vidraças, registrou com uma pluma intrigada.
Afinal, escolhendo a pista que partia da encruzilhada do olmo, Sabina lançòu-se rumo ao solar de Montigny.
Conhecia a morada porque estivera com frequência naquelas reuniões de gascões que Angélica tanto lhes censurava, reuniões em que, embalada pelas sonoridades cantantes de sua língua, ela reencontrava o eco dos poemas antigos que o Sr. de Peyrac se comprazia em lembrar-lhes... Entrou, subindo a escada às carreiras, seguiu pelo corredor do primeiro andar, abriu a porta.
Joffrey de Peyrac viu-a à entrada do seu apartamento qual uma viúva trágica, pois vinha pálida de dar medo, toda vestida de escuro. Diante da janela escancarada, ele se preparava para colocar uma luneta astronómica sobre um tripé.
Sabina estava fora de si.
- Sua Angélica é de uma maldade inacreditável - lançou. - Veja como me trata!
Numa voz entrecortada e tremula, relatou o incidente que lhe haviam contado, protestando contra os gracejos de que era alvo por parte de uma mulher que acreditava que tudo lhe era permitido, porque era bela, porque todos os homens se inclinavam diante de sua sedução sem que ela precisasse sequer fazer o esforço de agradar-lhes, e porque tinha certeza da indulgência dele, fizesse o que fizesse...
Repetiu o gracejo que fazia dela, a mulher do governador militar, o riso da cidade e lhe atirava sobre a conduta suspeitas escandalosas, envolvendo-lhe o nome com o de Sebastião d'Or-geval.
O conde ouvia-a, de cenho levemente franzido, pois o relato muito confuso requeria atenção concentrada por parte do interlocutor. Sabina era presa, visivelmente, de um distúrbio anormal. Já não controlava os próprios gritos. Ele foi fechar a porta que ela deixara aberta. Depois deu-um sorriso, que levou a raiva da visitante ao auge.
— Ah, a história o diverte! - bradou ela. - Pouco lhe importa a maldade dela!
— Pois claro! Acho que isso assenta mais à beleza dela do que ser vítima. Gosto de vê-la cravar os dentinhos brancos na carne dos que a invejam e que tentam prejudicá-la.
Um punhal afiado cravou-se no coração de Sabina de Castel-Morgeat e pareceu cortar-lhe o fio da vida.
- Você só ama a ela! - exalou ela, numa voz que foi como que um estertor. - Só a ela!... E eu... Eu estou perdida.
Num paroxismo de desespero, correu na direção da janela aberta, e ter-se-ia atirado, para ir esmagar-se contra as lajes do pátio, caso dois braços vigorosos não lhe houvessem rodeado a cintura, retendo-a.
Debateu-se com gritos de recusa e de protesto. Queria escapar dele, queria dar com a cabeça na parede. Os cabelos desataram-se-lhe e caíram-lhe sobre os ombros. Por entre as mechas desordenadas, achou que via outras pessoas que tinham acorrido e que a olhavam com reprovação. A ideia de que era ela, Sabina de Castel-Morgeat, que se entregava a uma cena de tamanho mau gosto, diante de testemunhas, paralisou-a de horror. Deu-se conta, porém, de que era apenas a própria silhueta e a do Conde de Peyrac, estreitamente enlaçadas e refletidas no grande espelho preso à parede.
Foi então que percebeu a que ponto ele era obrigado a apertá-la contra si para segurá-la. Os braços fortes, viris, à sua volta, pareceram-lhe irradiar um calor insólito. Sentia dificuldade em respirar.
— Que bicho lhe mordeu, louca que é? - perguntou ele, quando a viu um pouco mais calma.
— Deixe-me morrer!
— De modo algum! Acha que me convém que se diga que o Sr. de Peyrac defenestrou a Sra. de Castel-Morgeat porque lhe guardava rancor por haver disparado contra seus navios?
Sabina não refletira nesse outro aspecto da questão que seu gesto de loucura acarretaria. Sua excitação arrefeceu e ela se sentiu amargamente decepcionada... Não fora por ela que ele temera, mas por si próprio. E ele podia censurar-lhe, com conhecimento de causa, o fato de ela só causar embaraços.
— Perdoe-me - balbuciou.
— Perdôo-lhe. Com a condição de que me conte as verdadeiras razões de seu comportamento insensato.
Vazia de pensamentos, ela permaneceu em silêncio.
- Não o agrado - murmurou afinal.
A fisionomia do conde suavizou-se e ele deu um sorriso apiedado, examinando-a no espelho. A expressão acabrunhada e a desordem dos cabelos revelavam-na como era na verdade, por trás da rigidez e das extravagâncias: uma bonita mulher desorientada.
— E por que não me agradaria, bela tolosana? Sabina já não se sentia com forças de lutar.
— Sou feia...
— De modo algum. Você é uma belíssima mulher.
— Ainda assim, outrora, no Palácio da Gaia Ciência, você não me notou.
— Talvez você fosse menos bela...
— Realmente não se lembra de mim?
Ele meneou a cabeça com um sorriso gentil para atenuar a decepção que lhe causava.
Ela mordeu os lábios com violência, não conseguindo impedir que seus olhos brilhassem sob um afluxo de lágrimas que não conseguiu reter.
— Que tola fui! Durante anos imaginei que você tinha pensado em mim. Que no mínimo me tivesse visto... Vivi dessas recordações.
— As mulheres são sonhadoras - disse ele. - E o menor defeito delas. Não estrague seus bonitos lábios mordendo-os assim.
Uma entonação nova vibrava-lhe na voz. E ela ficou perturbada com o olhar que ele pousava nela, no espelho.
— O que importa o passado! Vejo-a agora.
— Não! - exclamou ela, sem esperança. - Agora é tarde demais. Agora já não existo. Já não tenho corpo.
Ele começou a rir.
- Permita, senhora, que um homem de gosto se levante contra essa assertiva. Seguro-a nos braços e me é difícil acreditar no que diz. De minha parte, vejo grandes olhos negros, uma cabeleira de égua espanhola, uma cintura flexível, seios belíssimos.
E como ele sublinhasse as próprias palavras com um gesto atrevido, ela sentiu-se desfalecer.
- De que lhe falarei ainda, senhora, daquilo de que se considera desprovida? Sem corpo, está dizendo? Gostaria de certificar-me mais de perto...
Ela lutava com todas as forças para não sucumbir à vertigem.
- Teria medo do amor, senhora?
- Receio-o e odeio-o - respondeu ela, numa voz abafada.
O presente estava em vias de roubar-lhe um passado em que ela se envolvera como num manto brilhante e protetor. Não queria que lho arrancassem. Não lhe restaria mais nada. Revia-se jovem, na luminosidade de Toulouse, prometida por sua beleza a uma vida de felicidade e encantamento.
Tremia convulsivamente, receava rebentar em soluços.
Ele estreitou o abraço em torno dos ombros dela e, inclinando-se, apoiou a têmpora contra a dela.
- Irmã de minha terra - disse, meigo -, o que posso fazer para socorrê-la?
De cabeça baixa, ela desviou o rosto, a fim de esquivar os traços crispados da vista dele. Mas, sobre a nuca inclinada, sentiu roçar a manga dele.
Depois ele virou-lhe o rosto na sua direção. Apertou-lhe as faces entre as duas mãos e, obrigando-a a levantar a cabeça, pousou os lábios sobre os dela. Sabina sufocou, como que vítima de um choque, paralisada por um transe que só a deixava perceber agora o contato imperioso daquela boca estranha sobre a sua. Para recobrar o fôlego, teve, numa aspiração, que ir ao encontro daqueles lábios, daquela língua. Sentir-lhes o contato. Caída na armadilha, contraía-se toda, mas sabia que era assim que um homem devia beijar uma mulher. E que sonhara a vida inteira em receber um beijo assim, o beijo do desejo, espontâneo, brutal e cego do homem que, confessando-se sobre seus lábios, fizesse dela uma mulher, e uma mulher desejável.
Pensamentos desvairados atravessavam-na como relâmpagos^ como aves enlouquecidas a se empurrarem: "Não é verdade! É medonho! É preciso arrancar-me a uma submissão tão abjeta!" Mas não podia. O destino queria assim... Ela não morreria, não envelheceria sem antes conhecer o segredo das outras mulheres, o que Angélica conhecera, conhecia a vida inteira, o que tornava tão loucamente feliz e luminosa a carnação dela, a ponto de, até sob a roupa, ela parecer impregnada de amor em todos os gestos.
O segredo! O segredo de vida das outras mulheres. Era como um licor ardente que lhe corria pela garganta embargada, insinuando-se-lhe pelas veias.
"Sou desejável? Desejável? Desejável?", repetiam seus pensamentos, chocando-se contra as paredes do seu crânio.
E a certeza de que a resposta inebriante lhe era imposta assim fazia-a desfalecer. Uma espécie de dor adocicada lhe torcia as entranhas e lhe dava vontade de vomitar e de gemer. Sentia que uma mão quente e imperiosa lhe queimava a carne - nas costas, nos ombros, na cintura - através do tecido da blusa. Aquela mão, de úmida irradiação, deslizava por toda parte, subjugando-a, libertando-a. Mais uma vez ela soube que sempre esperara por carícias como estas e que agora precisava senti-las sobre a pele nua. Tinha vontade de arrancar a roupa como se fosse uma túnica de Nesso, ou morreria. Somente aquela mão sobre a sua pele poderia consolá-la, fazê-la reviver, arrancá-la à morte.
"Só uma vez!", gemia ela interiormente. "Só uma vez, em toda a vida... para saber que estou viva... Estou viva? Estou viva?"
- Mas sim, você está, tolinha! - disse a voz masculina, longínqua como se viesse do outro lado de um nevoeiro.
Sabina não sabia que falara alto. Quis responder. Contraía os dentes para reter aquela náusea que lhe tirava todas as forças. O sangue zumbia-lhe aos ouvidos. Os lábios doíam-lhe. Tinha a língua grossa e dura como pedra. O medo e o desejo a percorriam, em extenuantes correntes contrárias. Quando tomou consciência de que estava deitada na cama e, enfim, inteiramente nua, o reconhecimento de tal milagre foi como um vagalhão que a submergiu, arrastando consigo todas as defesas. As mãos hábeis que a acariciavam não lhe davam tempo de perceber outra coisa senão a sensação de um imenso bem-estar, a que se mesclava, inflando pouco a pouco, a de um ofuscante triunfo. Acontecera afinal! Ela finalmente cometia o pecado terrível, aquele pecado delicioso! Atravessava a barreira do fogo, o muro impávido em que por tanto tempo se chocara, dilacerara, ferira. E tudo acontecia com leveza, como se levado pelo harmonioso ondular do mar. Fluxo e refluxo erguendo-a para fora de seu peso amargo e doloroso.
Era tudo simples! O sol rompia-lhe no coração, na alma, no corpo surpreso mas consciente.
Estava livre.
Uma mulher, uma mulher de verdade, cuja beleza chamava ao prazer do amor. Tinha que acreditar que era bela e desejável, pois ele sentia prazer em amá-la, ele, familiarizado com o corpo de tantas mulheres e com o da mais bela de todas. Soluçava e ria ao mesmo tempo, agarrando com as duas mãos algo duro e tépido que percebia, por clarões, tratar-se do corpo dele, sobre ela, seus ombros sólidos, a nuca, os braços musculosos. Ficava fascinada ao descobrir tão próximo do seu aquele rosto de olhos brilhantes, acerados e zombeteiros, e de adivinhá-lo atento em exasperar-lhe o delírio e, ao mesmo tempo, o próprio gozo.
Sob o roçar da boca dele, ela descobria os próprios seios ere-tos, inflados, com a ponta ardente, como dois seres vivos, separados dela, e achou que fossem rebentar de prazer. A presença dele habitava-a com uma amplidão que sufocava, como sé tivesse sido invadida até a garganta. Seu corpo deserto enchia-se de fontes e ecos, de movimentos anárquicos e profundos, como uma terra sacudida pelas convulsões de um fogo subterrâneo. Era assustador, mas tão bom! Ela podia morrer agora! Ia morrer!
"Obrigada, meu Deus! Obrigada por um homem destes nesta terra!"
Atónita, sentiu-se dominar pela loucura e quase gritou. Mas a luz foi tão lancinante e ofuscante, que, por longos instantes, ela ficou arqueada, palpitante, quase desfalecida, consciente apenas daquela felicidade sem nome de que usufruía pela primeira vez e que lhe era arrancada como num nascimento, numa profusão de sensações estranhas e desconhecidas, um fogo de artifício cujas girândolas não paravam de disparar e as estrelas, de cair numa chuva coruscante. Um frémito incoercível a ergueu bruscamente e com o mesmo repente atirou-a para trás, com violência. Sua têmpora chocou-se com um ornamento do grande leito de colunas. Desta vez ela desmaiou de fato.
Ao voltar a si, sentia a cascata de seus cabelos pesados como uma seda sobre os ombros. Estava seminua sobre aquela cama e, percebendo à sua cabeceira o Conde de Peyrac completamente vestido, indagou-se por um momento se não sonhara. Sentiu-se presa de medo quando pensou que talvez nada tivesse acontecido. Mas o bem-estar do corpo lhe certificava de que o que acabara de viver nos braços daquele homem não fora um sonho. Levantou a mão e com um dedo tocou na têmpora um ferimento que lhe doía. Cortara a testa contra a cabeceira da cama.
- Como se sente, minha cara? - disse ele. - Precisei brincar de frade enfermeiro.
Explicou-lhe que lhe aplicara uma compressa de água fria no ferimento para estancar o sangue e depois, para reanimá-la, fizera-a respirar um frasco de sais revulsivos.
- Está vendo - disse ela com tristeza -, até no amor sou desajeitada...
Mas ele ria e a contemplava com um olhar cálido.
— Você é demasiado passional, minha cara. Terá que aprender a segurar os freios dos cavalos fogosos da volúpia.
— Então sou uma mulher de verdade? - perguntou ela, humilde.
Ele continuava a rir.
- Ora essa! Parece-me que me forneceu todas as provas possíveis.
Ela fitava-o sempre. A penumbra invadia o aposento com grandes clarões avermelhados do poente sobre os móveis, os bibelôs, os belos instrumentos científicos. Chegara a hora. Ele ajudou-a a vestir-se. E agora ela estava diante dele, espantada com á ideia de que estivera, por tão pouco tempo, fundida àquele corpo.
"Pele contra pele, hálito contra hálito", e presa das mãos dele, cujos gestos precisos, quando ele falava, sempre a haviam extasiado. "Nunca mais acontecerá de novo", pensou.
Mas ia embora depois de receber dele um tesouro inestimável. Um mundo inteiro a separava da mulher desvairada que penetrara naquele aposento no começo da tarde. Adorava aquele homem. Salvara-a: de si mesma, de todos, do suicídio, da loucura, do ridículo e da ruína. Mas ele não era para ela. E o que acabava de viver não se repetiria.
— É preciso esquecer - disse ela, torcendo as mãos. - Você esquecerá, não é?
— Claro que não! Seria demonstrar ingratidão para com a bondade dos deuses e a perfeição de seus encantos.
Sabina se pôs a rir. A réplica agradou-lhe e devolveu-lhe um pouco da frivolidade e da alegria inerentes à raça meridional deles. Ele sorria. Como ele sorria!
Ela se pôs de joelhos diante dele. Segurou-lhe as mãos, beijou-as com fervor, apertando-as contra a face, contra os lábios, e balbuciando:
— Obrigada, obrigada! Obrigada por ser um homem diferente dos outros. Um homem cujo coração é quente, o corpo vivo, um homem que não tem medo do pecado. Oh, bendito seja você por isso! - disse, numa voz entrecortada. - Sem você eu estava perdida, eu sei. Você me salvou! Obrigada por ser você, por não temer a ninguém nem ao inferno.
— Parece-me, senhora, que está fazendo bem pouco-caso de minha salvação.
Ele troçava.
Mas Sabina sentia-lhe a indulgência por ela e a conivência de um segredo compartilhado entre ambos. Jamais esqueceria. Levantando-se, pousou nele o olhar úmido e agradecido de seus grandes olhos negros.
Jamais esqueceria a seriedade com que ele lhe dissera há pouco: "Você é uma belíssima mulher!"
Na impossibilidade de acrescentar qualquer outra palavra, encaminhou-se para a porta. Estava com o ferrolho passado. Em que momento o Gonde de Peyrac a trancara? O detalhe, confirmando-lhe que ele tivera a vontade deliberada de tomá-la nos braços e fazer dela sua amante, dissipou as últimas dúvidas que Sabina nutria sobre si mesma.
- Senhora!
Sabina voltou-se, interrogando-o com o olhar.
— Não esqueça de ir à confissão.
— Ah! Você é o Diabo! - exclamou ela.
Puxou a porta e foi-se. Mas por dentro, ria. Tinha a vida pela frente, e todos os dias que viriam agora seriam ricos de felicidade.
Sem se importar com as rajadas de neve que começavam a soprar, Sabina de Castel-Morgeat voltou para casa, o Castelo Saint-Louis, e, depois de tirar novamente toda a roupa, meteu o corpo ardente entre os lençóis, mergulhando num devaneio voluptuoso.
- O que foi que eu fiz? Angélica não me perdoará nunca!
Estava aterrorizada e, ao mesmo tempo, invadida por um triunfo que resgatava os fracassos suportados. Vingança sobre aquela mulher de uma lourice ofuscante, que, adornada de todos os encantos, de todas as graças, cravara-se em sua vida como uma adaga e a afastara do paraíso. "Fui injusta! Fui estúpida!" Seus loucos rancores esmigalhavam-se, reduziam-se a pó... O gelo de seu coração se derretia ao sol daquela vingança que ela jamais teria imaginado tão precisa e tão completa. Vingança sem continuação. Sabia disso. Mas suficiente para romper o círculo maléfico em que ela se encerrara...
Caiu numa sonolência de que despertou bruscamente, assustada com a ideia de que sonhara aquelas horas inacreditáveis, demasiado belas, demasiado breves, e que nada acontecera, e de que estava novamente encerrada em seu túmulo gelado, prisioneira de seus demónios. Mas o corpo fê-la lembrar-se, prometendo-lhe que não voltaria a traí-la. Os frémitos e as leves pontadas, como queixumes, suaves gemidos, que sentia no fundo das entranhas cochichavam-lhe que o prazer é uma magia de mil nuanças e que só dependia dela e de seu consentimento ao desejo de um homem que o prazer se repetisse. Qualquer homem, disse-consigo, exaltada e dilacerada, pois já não devia sonhar com ele.
CAPITULO XXVIII
A reconciliação dos Castel-Morgeat
Viu-se a Sra. de Castel-Morgeat sair do apartamento do Sr. de Peyrac gritando: "Você é o Diabo!"
Como tivesse um ferimento na têmpora, correu o boato de que o conde, desta vez, respondera à insolência virulenta da virago e lhe batera. A novidade não era daquelas que um começo de tempestade poderia deter em seu avanço natural.
Chegou sem demora à Cidade Baixa, rolou de uma espelunca a outra, insinuou-se sem dificuldade por entre os alegres jogadores da taberna Ao Navio de França e alcançou os ouvidos do Sr. de Castel-Morgeat no momento em que, inflamado por inúmeras libações e pelos encantos de uma afável comadre que já lhe concedera favores antes, ele se preparava para dar prosseguimento à aventura galante nas profundezas do albergue.
Não lhe deram tempo de se recompor. 0s amigos rodearam-no, instando, uns, para que pusesse um basta aos atos da mulher, que lhe prejudicavam a carreira, e outros, para que desafiasse em duelo o Sr. de Peyrac, que ousara levantar a mão contra ela.
Dividido entre a vontade de ir aplicar um corretivo na esposa e a de vingar a própria honra, Castel-Morgeat saiu do albergue na disparada, bêbado de vinho e cólera. A noite e as chicotadas de neve acolheram-no em seus turbilhões. Ignorando os desvios demasiados longos da encosta da montanha, ele escolheu o caminho mais curto até o Castelo Saint-Louis, ou seja, a linha reta até o cume, e depois de escalar as casas suspensas do bairro Sous-le-Fort, vencer barreiras, rebentar o telhado da velha vizinha do Velhaco Vermelho, ultrapassar o tugúrio do feiticeiro, ele atacou a falésia de frente e se alçou, agarrando-se aos arbustos e às árvores anãs, em meio a uma chuva de seixos e gelo quebrado, uma avalancha de neve e lama. Sustentado, levado, levantado por algo como um transe diabólico, de calças rasgadas, a metade do manto arrancada, sem chapéu, alcançou a morada do governador. Os dois soldados de vigia no corpo da guarda do fortim de madeira avançado entreviram-no entre duas rajadas e imaginaram-se diante de uma visão.
— Você viu o que eu vi, La Fleur? - indagou um.
— Vi, sim - respondeu o outro, de olhos arregalados.
— E o que foi que viu, La Fleur?
— Vi nosso comandante a voar pelos ares...
O Sr. de Castel-Morgeat tateava com as mãos feridas as pedras rugosas dos contrafortes do castelo, embaixo do terraço. Achou os degraus de pedra abruptos, por onde se chegava às dependências dos criados, atingiu uma portinha, penetrou no castelo, depois num quarto de despejo à disposição dele e da mulher, e de onde saía a escada que conduzia a seu apartamento sem passar pelo vestíbulo de honra. A escuridão era profunda. Ele tropeçou num amontoado de madeira, de pranchas e cordas, de que teve toda a dificuldade do mundo para se desenredar. Bastante contundido, soltou todas as imprecações da Gasconha contra essas mulheres dementes que se divertiam em lhe atravancar a vida com obstáculos malfazejos, como aqueles teares que Deus sabia por que tinham sido postos ali. Foi em estado de raiva concentrada que entrou no quarto da Sra. de Castel-Morgeat. A luz de uma lamparina iluminava a alcova.
Estupefato, ele estacou. No grande leito, uma mulher dormia seminua. Era de uma beleza perturbadora em seu abandono. O seio, belo e firme, erguia-se suavemente ao ritmo de seu sono profundo. Ele não acreditava nos próprios olhos.
Depois de imaginar, assustado, que estivesse perdendo a razão, acabou entendendo que era sua própria mulher e, no ato, sentiu de novo todas as dores e todos os desejos que ela lhe inspirara. Ora! Era culpa dele se sempre a amara e desejara? Era ela quem queria a infelicidade dele, pois ele se contentaria plenamente com aquele corpo magnífico e jamais precisaria correr atrás de prostitutas se ela não o houvesse repelido.
Ela sentiu o olhar dele e abriu os olhos. De início não reconheceu o marido naquele espadachim espanhol sem penacho - pois ele estava em farrapos - que se erguia à sua cabeceira, arquejando como um assobio de forja. Depois lembrou. Era ontem ou hoje? Acontecera um milagre. Ontem a vida lhe fizera presente do prazer. As alegrias cegas do amor estavam em seu sangue, prontas a se desencadear ao menor apelo. E isso transfigurava tudo. Quem se erguia ali já não era o homem a quem ela acreditara odiar tanto. Era um homem, um homem, e o seu olhar enlouquecido e ávido já nào a insultava.
Compreendeu que bastava que se entregasse a ele para reencontrar os enlevos entrevistos, pois aquele homem estava ali e a desejava.
Quando estendeu os braços para ele, Castel-Morgeat não perdeu tempo sequer em tirar as botas. Deu um pulo e se atirou na cama.
- Ai, .minha perna!
Enquanto a enlaçava, espantado de encontrar naquela longa odalisca, cheia de imprevistos arredondados, uma mulher nova para ele, pensou consigo que aquilo era um achado e-tanto. Já não precisaria descer de noite até a Cidade Baixa.
Notou-se nos dias qúe.se seguiram que uma felicidade serena e discreta parecia habitar a Sra. de Castel-Morgeat. Uma atitude de benignidade e paciência tinha substituído seu nervosismo habitual. A ponto de se começar a sentir falta de suas explosões. A Sra. de Mercourville desconfiou de uma reconciliação entre marido e mulher, pois Castel-Morgeat também se tornara mais frequentável. Frontenac, que lhes compartilhava a intimidade, disse: - Ora! Ora! Seria bem possível! - e passou a observá-los com mais atenção.
Sabina andava bem indiferente aos comentários. Vivia vegeta-tivamente, como uma planta que reencontra a primavera. Esforçava-se por não pensar e demonstrava muita suavidade para com os outros, pois era na calada da noite que sua vida read-quiria um sentido. Castel-Morgeat era um amante vigoroso e eram muitos os anos de amor que ela precisava compensar.
Às vezes, em meio à volúpia, uma lágrima surgia por entre a seda de seus longos cílios cerrados. Excesso de prazer, nostalgia de felicidades perdidas, pesar pelos anos ávidos e dilapidados numa ilusão, pesar por um sonho demasiado belo e que coubera a outra mulher.
Mas a vida não fora madrasta com ela. Na última hora, fora salva do desastre de toda uma existência sem amor, e isso sem quase precisar pecar, pois agora vivia esse desabrochar nos braços do marido, o que, quando pensava no miraculoso encadeamento dos eventos, bastava para deixá-la maravilhosamente feliz e cheia de gratidão para com o céu.
Embora sentisse alguns escrúpulos em acender um círio para agradecer a Deus por isso.
O PASSEIO À CASA DOS "BERRICHONS"
CAPITULO XXIX
Encontro com o Velhaco Vermelho - A ameaça dos conspiradores
Na manhã mais dura, fria e cintilante do que uma armadura, os cavalos pateavam, impacientes por se lançar pela brancura imaculada da neve recém-caída. Angélica preparava-se para subir no trenó e retornar a Quebec, que brilhava ao longe como uma pérola sobre seu rochedo.
Ela e Guilhermina de Montsarrat-Béhars tinham passado uma parte da noite conversando, Guilhermina a fumar seu cachimbo de uma tabaco tão rústico que chegava a produzir uma ligeira alucinação.
Estranha Guilhermina, de olhos azuis, tão sábia e que voltava a ser fraca quando, no meio da noite, era perseguida pela visão insuportável: "Olhe! Olhe, bruxinha! Olhe sua mãe ardendo...".
- Mas minha mãe era tão boa - contou -, você não pode saber. Só fazia o bem, só o bem! Quando foi levada para a fogueira, segurava-me a mão, mas era eu que a conduzia e amparava, pois ela enlouquecera. Em resultado de tudo o que a fizeram suportar e dos interrogatórios e torturas para que confessasse... Confessar o quê? Que havia copulado com o Diabo, que envenenava crianças, que destruía as. colheitas, e sei lá mais o quê. Eu era pequena, tinha sete anos, mas cuidei dela até o fim. Seus poderes passaram para mim...
Guilhermina envolvia-se em fumaça. Depois retomava o monólogo, baixinho:
— Eles nos odeiam... mais pelo bem que fazemos do que pelo mal. Porque nos ocupamos do corpo e não da alma, de belos corpos vivos, de pobres corpos doentes... Para eles, o corpo não passa de pecado.
— Em cada homem há sempre um padre.
- Os padres nos matarão. Queimar-nos-ão. Mas aqui, na minha ilha, estou protegida.
Do pé do cadafalso onde vira a mãe consumir-se até o dia em que pisara naquelas margens, não conservava nenhuma recordação dos países percorridos nem dos atos realizados.
Começara a reviver ao respirar o odor suave que exalava das aceráceas na "época dos açúcares", quando os selvagens começavam a fazer incisões nos troncos das árvores para recolher e ferver a seiva. Um odor de mel desconhecido, suave e amargo, como o de um sopro num beijo.
A grande calma da ilha e o afastamento do local de suas dores haviam-na curado do mais agudo sofrimento.
Aquele país grandioso, sem passado, tranquilizava-a. Olhava Quebec ao longe, como um sonho, e já não tinha rancores.
Entregara-se ao desenrolar dos dias e das estações, que traziam consolo, ternura e cumplicidade, as da neve e das tempestades, que abrigam, protegem, e, quando fazia bom tempo, uma louca alegria nas suas cores cinza-pérola, rosa ou azul-lavanda.
Tinha menos medo dos iroqueses do que das próprias recordações, menos medo da solidão do que dos homens.
Gostava dos índios porque vê-los lembrava-lhe que estava longe do velho reino.
As mulheres de quem cuidava, o gosto pelas plantas e por seus trabalhos, o amor pelos belos rapazes, o poder de fazer a felicidade alheia apaziguavam-lhe a revolta.
Angélica olhava a mulher alta, em pé na margem do rio, ao sol, com aqueles olhos espantosamente azuis, e pensava na inglesa, Mrs. Williams, do povoado de Newehevanik. Mas, enquanto a rígida senhora puritana hesitava em permitir-se a ousadia de uma coifa de renda, Guilhermina permitia-se todas as loucuras.
Podia galopar pela grande superfície branca e sem fim. Quando chegasse o degelo, ela, de gibão e perneiras, como um homem, iria puxar seu barco do gelo dos canais, junto com os belos jovens da ilha, arrojados e vigorosos.
- E ele? - perguntou Angélica de súbito. - O homem a quem amo? Você não me falou dele.
— Não o conheço absolutamente - respondeu a feiticeira. E desviou a cabeça, com um sorriso.
— No entanto, você deveria adivinhá-lo. Ele tem tanta força!
- Não se deve tentar demasiado. Há coisas demais em torno dele.
Ficou pensativa, olhando na direção da vila, como se não desse importância ao assunto. Sorria com um ar indulgente.
- Você é uma mulher feliz... - murmurou.
Depois o rosto anuviou-se-lhe e ela disse, como que a contragosto:
— Ele não deve ir a Praga!
— Praga! - repetiu Angélica, surpresa.
— Sim, Praga!... A cidade!... Você é ignorante?
Depois, para compensar a inquietação inútil que acabava de provocar, maternalmente acariciou a face de Angélica, querendo dissipar-lhe as sombras.
- Minha querida! Não tema nada!... Fica longe, muito longe. E talvez não aconteça... Quanto a você, fique sabendo que sempre será a mais forte. Vejo isso inscrito em sua testa. E agora, vá, Angélica, a Bela!...
Em Quebec, Angélica foi informada, para sua decepção, de que o Sr. de Peyrac encontrava-se em Sillery.
Eufrosina Delpech, espionando os arredores do solar de Montigny para ver sair a Sra. de Castel-Morgeat, a quem vira entrar num estado próximo à histeria, foi punida pelo gesto maldoso: seu nariz congelou-se.
Muito aborrecida, e após consultar o médico, os vizinhos e as freiras da Santa Casa, que menearam a cabeça, resolveu ir à casa da Sra. de Peyrac, que, dizia-se, possuía "remédios mágicos".
Angélica acabava de regressar da visita à feiticeira da ilha de Orléans, o que aumentou ainda mais a esperança de Eufrosina de encontrar um remédio para seus males. O nariz dobrara de volume e apresentava uma variedade-de cores que teria honrado a paleta do Irmão Lucas: azul, vermelho, amarelo, verde, violeta.
Por razões que preferiu guardar para si mesma por enquanto e que lhe eram inspiradas pelas reflexões que fizera durante aquela longuíssima visita da Sra. de Castel-Morgeat ao Conde de Peyrac, e pelas deduções que extraíra disso, sobretudo depois que vira o rosto iluminado da visitante ao deixar o castelo, a Srta. Eufrosina sentia-se muito constrangida de surgir diante da Sra. de Peyrac, e não o teria feito, não fosse tão grande o medo de perder o precioso apêndice que todo ser humano carrega no meio do rosto.
— Como foi que se deixou apanhar assim pelo gelo. Você, uma canadense? - admirou-se Angélica.
— O sol brilhava e me convenci de que a temperatura era amena. Assim, fiquei um bom momento parada ao ar livre, sem pensar nisso.
"Ela devia é estar vigiando um vizinho e preferiu deixar-se queimar pelo frio a não satisfazer a curiosidade", pensou Angélica, que tinha antenas e conhecia a mulher.
Dos dois lados do emplastro que lhe aplicou sobre o rosto, os olhinhos da "comadre" a examinavam, notando nela apenas uma tranquila segurança na postura e, nas feições, a serenidade animada que fazia o encanto de Angélica. Os traços de Angélica raramente se crispavam: cólera, raiva, revelavam-se nela na expressão dos lábios e na intensidade dos olhos, pelo brilho ou pela suavidade deles, enquanto uma onda a recobria, escura ou luminosa, de alegria ou de desprazer.
Eufrosina, porém, notou um movimento das louras sobrancelhas que parecia atenuar aquela expressão habitualmente franca e amável.
- Eufrosina, minha cara - disse Angélica -, você, que sabe tudo, melhor do que a gazeta do país, pode dizer-me que história é essa de Sabina de Castel-Morgeat com meu marido?
Se já não estivesse multicolorido, o rosto de Eufrosina Delpéch teria passado por todas as cores sob a máscara. Mas não se tratava daquilo em que pensou.
Por Janine Gonfarel, Angélica soubera que, enquanto se encontrava na ilha de Orléans, tinham ido procurar o Sr. de Castel-Morgeat no albergue, incitando-o ao duelo contra o Sr. de Peyrac, que, parecia, esbofeteara a esposa do comandante dos exércitos reais na América.
- Esse comentário absurdo acaba de me chegar aos ouvidos e desconfio que tenha havido algum incidente que o originou. Mas que incidente? Não sei, pois confesso-lhe que não consigo ver meu marido a levantar a mão contra uma mulher, por mais insuportável que ela seja.
Eufrosina sentiu-se dominar pela vergonha, e, vendo que estava prestes a cometer mais um daqueles pecados de maledicência para cuja penitência o confessor lhe dava rosários e rosários a desfiar, corou, o que lhe aumentou as dores, e se pôs a chorar.
- Está sentindo muita dor? - perguntou Angélica.
E como Eufrosina meneasse a cabeça negativamente:
— Então por que está chorando?
— Porque não sou boa - respondeu entre duas laboriosas fun-gadelas. - Não, realmente não sou boa, e acredite que lamento isso. Você é mil vezes melhor do que eu, Angélica, digam o que disserem, e não merece em absoluto o mal que lhe querem, nem as traições com que a afligem. Perdoe-me, rogo-lhe. Perdoe-me, peço-lhe humildemente.
Os protestos de Eufrosina Delpech, que partiu com um pote de unguento embaixo do braço e afogada nas lágrimas de um misterioso arrependimento, deixaram em Angélica uma impressão duvidosa. Se era desagradável passar por diaba, tampouco lhe agradava passar por santa. O que acontecera, afinal, em sua ausência, curta é verdade, que envolvia a incorrigível Sabina? O Sr. de Castel-Morgeat se batera em duelo com Joffrey de Peyrac? Ninguém lhe dizia nada.
Dirigiu-se ao Castelo Saint-Louis, com a intenção de encorajar Sabina a tomar as ervas que estava trazendo da casa de Guilhermina, e talvez assim ficasse sabendo, pois a impulsiva Sabina não sabia dissimular nada das próprias emoções.
Disseram-lhe que a Sra. de Castel-Morgeat estava na igreja. Encontrou-a no átrio e na hora notou a equimose que a outra trazia na têmpora.
- O que foi que fez aí? - perguntou Angélica, depois de trocarem saudações banais.
Sabina não se alterou.
- Ah, isso! - exclamou, levando um dedo ao ferimento. - Não é nada, dei com a testa na quina de um móvel.
Deu aquele sorriso raríssimo, que a deixava bela, apagando-lhe os vincos de amargura nos cantos da boca.
- Você não ignora como sou desajeitada...
Vendo-a de humor acessível, Angélica entregou-lhe o saquinho que a Sra. de Montsarrat-Béhars lhe enviara.
— Falam muita coisa sobre ela, mas é uma pessoa de bom coração e muito sábia, acredite-me. -
— Se você a recomenda, não poderei pensar de outra forma... Sua opinião não me surpreende. Sei que os que a condenam ao cadafalso costumam ser os primeiros a ir pedir-lhe socorro...
Pegou o saquinho que Angélica lhe estendia.
- Sua bondade me toca, Angélica. Não há no mundo duas mulheres como você.
- Ela está completamente transformada - comentou a Sra. de Mercourville pouco depois. - Os medicamentos que você conseguiu aconselhar-lhe talvez tenham algo a ver com isso, mas creio conhecer a verdadeira origem dessa conversão. Soube de tudo pelo criado do.Sr. de Frontenac. Parece que houve uma briga terrível entre marido e mulher, na noite da tempestade que a reteve na ilha de Orléans. Claro que não foi a primeira briga deles, e estamos acostumados a ver Sabina nos aparecer trazendo no rosto as marcas daquele bruto. Só que desta vez, e tenho o testemunho do criado, houve reconciliação, e reconciliação sobre o travesseiro, que, você concordará comigo, é a melhor, digam o que disserem nossos confessores. E está durando! E um milagre! As senhoras da Sagrada Família e eu tínhamos prometido uma novena e vinte círios ao santuário de Santa Ana de Beaupré caso Sabina saísse do estado terrível em que se encontrava. Veja - acrescentou a petulante e fervorosa Sra. de Mercourville - a que ponto o céu se mostra clemente conosco. Tudo para ele é bom, até os culposos enlevos do amor, quando se trata de salvar uma alma humana!...
A explicação da Sra. de Mercourville acalmou as apreensões de Angélica. Em compensação, dissera a Sra. de Mercourville, havia um sacrifício imposto a todas elas: tinham que desistir de encenar uma peça de teatro na Mi-Carême. Adiara-se muito, o bispo estava demasiado reticente, pois "as festividades coincidiriam com as de São José, padroeiro da Nova França, e ele receava não poder homenagear o santo com suficiente solenidade e religiosidade... E depois... Fazia frio demais, demais... E o frio só fez aumentar nos dias que se seguiram. Aos mais ativos, os deslocamentos custavam um sofrimento enorme, e as mulheres temiam que a pele de seu rosto se gretasse sob o gelo, como a madeira das árvores na floresta.
As quedas de Montmorency tinham parado de correr. Estavam completamente congeladas. O corpo de Martim d'Argen-teuil devia ter sido triturado por trás daquelas colunas de gelo.
O Sr. de La Ferté dissera que o escudeiro estava doente. O que deixou todo mundo indiferente. Exceto a Srta. d'Houredanne, que empalideceu: o mal napolitano!
- Por Deus! Não trate dele - suplicou a Angélica.
Piksarett encontrava-se ausente. Deixara a cidade dizendo que ia consultar um célebre curandeiro, conforme denominava os xa-mãs indígenas que possuíam o dom de interpretar os sonhos.
O frio durou. As pessoas se encapuzavam como casulos, e as ruas viviam povoadas de cegos esbarrando em tudo, mal arriscando um olho lacrimoso por uma fenda do capuz.
Honorina pensava no cão dos Banistère e estendia braços súplices para Angélica.
— Vá soltá-lo! Vá soltá-lo!
— Os cães resistem ao frio!
— Esse não, ele é muito burro e muito magro.
— A última tempestade vai liquidá-lo - anunciava Ademar, sinistro.
A ausência de Honorina, que passava o dia na escola, dava mais liberdade a lolanda, e as ursulinas aceitaram receber Querubim também, que se entediava. De vez em quando elas recebiam menininhos com menos de seis anos. lolanda aproveitava as horas de liberdade para encontrar os compatriotas acadianos. E, na opinião de Ademar, ela tomava com demasiada frequência a Rue Saint-Jean, onde os acadianos se reuniam num grande albergue-caravançará, de nome Baía Francesa. Ele se sentia excluído e perguntava a si mesmo se, com uma conduta respeitosa demais e que a jovem talvez tivesse julgado tímida, ele não teria frustrado as esperanças da sólida filha de Marcelina.
Voltava a ter seus medos insensatos e sonhos premonitórios, de preferência sinistros.
— Como se pode saber que é a última tempestade?
— Porque é a mais terrível, ao que me disse a gente daqui. Reconhecem-na pelas devastações que causa.
Angélica não revira Joffrey desde -o regresso da ilha de Orléans, o que já fazia quase quatro dias.
Diziam que ele se encontrava em Sillery.
Ia com'frequência a Sillery. E Angélica não se permitiu ser tola o bastante para pensar que uma daquelas damas, sobretudo Be-rengária, pudesse ir ao encontro dele naqueles fortes desconfortáveis. Ainda assim, aquelas ausências não indicavam um desafe-to? Estaria ele descontente com sua escapadela até a ilha de Orléans? Fosse esse o caso, seria exagero da parte dele. Ou será que a querela da Aquitânia" deixara mais sequelas do que ele afirmava? Quando pensava no "recuo", Angélica sentia um leve choque, mas logo repelia a sutil inquietação.
Barssempuy. veio com alguns homens indagar sobre ela, a mando do conde. O tempo para ir do solar de Montigny à casa de Ville-d'Avray exigia heroísmo. O vento os tranformara como que em bonecos de madeira.
Elói serviu seu álcool mais forte.
O Sr. de Peyrac continuava em Sillery.
— Ele vai com frequência a Sillery - observou Angélica, rancorosa.
— Os homens aquartelados em nossos fortes também precisam vê-lo.
Finalmente o tempo amainou e, quando o domingo chegou, o sol esquentou por algumas horas. Angélica estava atormentada pela ideia de a coquete Berengaria ficar rodopiando em torno de Joffrey, a espreitar-lhe o regresso e a esperá-lo, no mínimo, corri tanta impaciência quanto ela.
Na casa, cruzou com Cantor, que, de guitarra embaixo do braço, dirigia-se ao solar de Montigny, a fim de cantar algumas canções do Languedoc para o grupo.
- Então você também vai a essas reuniões de gascões? - disse-lhe ela.
Ele olhou-a surpreso e com uma ponta de arrogância.
- Mas sou o segundo filho da casa de Pgyrac, minha mãe. Também eu sou da Aquitânia.
O que era a própria evidência.
Não era porque ele lembrava a Angélica seus irmãos, os Sancé de Monteloup, que eram poitevins, que ele não tinha nas veias o sangue daquele moreno meridional, grão-senhor de Toulouse, seu pai.
Um pequeno incidente veio completar-lhe o nervosismo.
Honorina estava em casa naquele domingo.
- Venha - disse-lhe Angélica. - Deixemos esse senhorzinho da Aquitânia e seu pai com suas reuniões. Nós, que somos poitevines, vamos passear na floresta.
O sol brilhava e fazia um "frio magnífico". Assim que se viu caminhando, trazendo Honorina pela mão pelo caminho de neve endurecida que enfiava pela floresta atrás da cidade, Angélica recuperou o bom humor.
A primeira intenção era ir ao mosteiro dos recoletos. Um bonito passeio. Mas para quê? Sendo Quaresma, não lhe abririam a porta. Ir à casa de Susana, nas colinas?... Logo se deu conta de que ultrapassara o subúrbio e estava bem longe, "fora dos muros" de Quebec, que não tinha muros, mas somente alguns bastiões de vigia de madeira nos pontos estratégicos. Fazia bem andar ao ar puro e frio, que tornara a neve tão dura, que os atalhos marcados ficavam acessíveis sem raquetes. Angélica esquecia a ausência de Peyrac e o comportamento insólito de Berengária, que talvez contribuísse para aquela ausência. Mãe e filha avançavam pela mata, que se adensava mais e mais. Aquele era um movimento natural, quando se queria evadir-se de Quebec e ter a ilusão de ir e vir livremente dando as costas ao rio. Quando se morava na Cidade Alta, ia-se sempre em frente, seguindo pelo cimo do cabo, na direção noroeste, domínio do poente púrpura, em cuja concavidade languesciam os laurêntidas. Pelas pegadas que viam, a pista parecia ter sido muito trilhada naquele dia.
Por entre as árvores, avistaram a silhueta furtiva do escrivão Carbonnel, sozinho, e carregando um grande guarda-chuva de tela gomada. Ao ver-se reconhecido, ele as alcançou na vereda. Parecia embaraçado e achou que devia a explicação de que aproveitava o domingo para ir medir concessões recém-distribuídas no Loreto e nas ilhas Verdes.
Teriam cravado os marcos? Traçado as divisórias? Respeitado a passagem do caminho do rei?
Por que o escrivão real se sentia obrigado a fornecer-lhe tantas explicações? É verdade que o domingo mostrava as pessoas sob outro aspecto. Descobriam-se manias imprevistas nelas. Ele saíra de guarda-chuva porque detestava receber no rosto a poeira de neve que o vento soprava.
- Mas você não está agasalhado! - disse-lhe ela.
Pois ele passeava numa casaca de. lã grossa, mas sem capote. Ao que ele respondeu que, embora escrivão, não era menos canadense, ou seja, endurecido de nascimento nas temperaturas mais baixas.
Angélica pediu-lhe que não se atrasasse por causa delas e ele, como andava rapidamente, logo desapareceu numa curva.
Começava a surgir uma bruma ligeira, ocultando pouco a pouco a base das árvores. Angélica e Honorina atravessaram uma esplanada plantada de espruces baixos e de pequenos lariços roxos e cinzentos. O ar continuava puro e o sol impregnava a bruma, que, como um halo, se elevava e subia do rés do chão. Um homem, que saiu dentre as árvores do outro lado da clareira, vinha mergulhado no nevoeiro até a metade das coxas. Dava a impressão de avançar como se andasse numa água luminosa. Encaminhou-se pela clareira para vir à direita, rumo ao atalho, e quando se aproximou Angélica reconheceu o Velhaco Vermelho.
Ela parou. O local estava deserto. Fazia muito tempo que An-gélicadeixara de andar com uma ou duas pistolas à cintura. Não se entra nos salões de uma cidade refinada armado como um corsário. O Velhaco Vermelho, armado de lança e besta, retornava da caça. Matara um lobo, cujo cadáver trazia atravessado sobre os ombros. Avançava gingando, pois vinha calçado de raquetes, e o peso do lobo, animal de grande porte, retardava-lhe a marcha. Era evidente que, tendo-a avistado, queria alcançá-la. E como ela também tinha pensado em visitá-lo em breve, mais valia esperar.
Visto de perto, o homem parecia mais baixo, mais atarracado do que imaginara. Um homenzinho com ar de explorador de florestas no seu gibão de pele de caribu, o gorro de lã vermelha enterrado até os olhos, parado a alguns passos. Fitava nela um olhar perspicaz e tranquilo e, a título de preliminares, houve um longo silêncio.
Foi Angélica que falou primeiro.
— Por que você atirou uma pedra em-meu gato no dia em que a nossa frota chegou?
— Os gatos são animais mágicos e vocês tinham sido anunciados como perigosos. Quis ver.
— E o que foi que viu?
— A pedra desviou. O gato tem um espírito.
Ele fez um muxoxo irónico com os lábios finos, numa constatação, numa aprovação.
— Quer um dente de lobo? Pêlos de focinhos? Fazem-se bons talismãs com isso...
— Compadre, você não me levará na conversa assim tão facilmente. Ainda tenho uma pergunta a fazer-lhe. Você disse ao Sr. de Saint-Edme, pois foi ele que me contou, que eu havia matado o Conde de Varange?
— Não é verdade?
Os olhinhos brilhantes estavam cravados nos dela. Diante da lucidez excepcional daquele olhar, Angélica conteve a pergunta espontânea que o teria feito casquinar: "Como soube? Quem lhe disse?" Ninguém lhe dissera. Ele soubera por meio da autoridade de uma velhíssima ciência cujos poderes não podiam ser subestimados. Ficaram ambos imóveis a se olharem por um longo tempo. De repente, ela disse:
— O que foi que lhe mostrou no espelho mágico?
— O que ele queria saber. Foi uma operação simples, mas ele não foi forte o suficiente para levá-la a cabo.
Apesar do peso das armas e da presa, ele esboçou um desdenhoso dar de ombros.
- Os que vêm ao mundo hoje em dia nos estorvam. Querem dominar Satã do mesmo modo como a gente faria um contrato com um empregado. Não é tão simples, e você sabe disso. Ele quis usar do que aprendera para perpetrar uma vingança grosseira, armar uma emboscada! Com armas... Bah! Todos esses erros se voltaram contra ele... Era fatal! E topou com você no caminho, você, que nasceu para denunciar a impostura.
Seu olhar de água cintilante atravessava-a.
— Poderíamos fazer uma aliança - disse ele.
— Contra quem?
— Mamãe! Estou com frio nos pés - gritou Honorina.
A menina estava farta daquelas paradas e daqueles conciliábulos ociosos. Há pouco o homem com o guarda-chuva, agora o homem da besta... Se continuasse assim, elas não chegariam nunca. Aonde? Ela não sabia, mas queria andar. Sem contar o coitado daquele lobo, com uma língua vermelha pendurada, que a olhava com um olho semicerrado e que lhe cortava o coração. Usou de todas as forças para puxar Angélica.
- Venha ver-me em minha cabana - disse o Velhaco Vermelho. - Mostrar-lhe-ei alguns livros...
Aquele aliado inesperado compensava uma impressão de fracasso que parecia anunciar uma virada na sorte. Angélica continuou a caminhada aventureira e enfiou-se na floresta. E trazer a criança pela mão aumentava-lhe o entusiasmo. "Você nasceu e deve viver, garotinha. Eu a levarei. Havemos de construir-lhe um reino. Você terá um destino feliz."
"É bom mimar a inocência", dissera Loménie.
Também se gosta de defendê-la. A mão de uma criança na de um adulto inspira grandiosidade. "Você já me deu tanto, minha menina!"
- Não trouxe meu arco e minhas flechas - disse Honorina de repente.
A bruma se dissipara ao nível do solo. Durara somente enquanto elas atravessaram um espaço provavelmente pantanoso. Nos galhos despojados das árvores, só se sentia o movimento dos ani-maizinhos de pêlo, saqueadores de galinheiros com dentes agudos, que durante o inverno se insinuavam para dentro de estábulos e celeiros.
Uma marta disparou ao longo de um tronco e mostrou-lhes, por entre dois galhos, uma carinha chata e triangular. Na penumbra, seus olhos verdes cintilavam. Um gnomo!
Subiram uma encosta onde a neve era pouco espessa e a rocha aflorava, pontilhada de líquenes amarelos. Depois o nevoeiro reapareceu, desceu do cume, e elas ouviram música. A medida que avançavam, o ritornelo se tornava mais cheio e animado, como se espíritos invisíveis se divertissem dançando a bourrée e o rigo-dão no fundo das matas. Atraídas, Angélica e Honorina afastaram-se do atalho para seguir na direção da música e logo atingiram um caminho mais bem traçado que, ao cabo de alguns passos, as conduziu a um lago congelado, recortado de trilhas. Do outro lado do lago erguiam-se alguns tipis e wigwams de casca de árvore e, ao fundo de uma clareira, uma casa grande, diante da qual músicos tocavam instrumentos campesinos, violas, violinos e sanfonas, enquanto alguns casais muito; alegres dançavam aos saltos. Uma mulher avistou-as e fez-lhes sinal.
- Ei! Venham aqui! Vamos à casa dos berrichonsfEles têm carne e aves, e a casa está aberta a todos!
Reconhecendo Angélica quando esta se aproximou, alguém disse:
- Ah, senhora! Não nos denunciará ao monsenhor, não é?
Afinal, Quaresma ou não, a gente tem que se divertir um pouco no domingo.
A grande sala-cozinha da morada já estava cheia e perfumada de odores deliciosos. Os músicos foram aclamados. Eram aguardados com impaciência, e começou-se a desocupar uma parte da sala para se dançar. Muita fumaça de tabaco, muito ruído de copos de dados. E Angélica viu o notário Carbonnel à mesa, com um guardanapo ao pescoço, diante de uma sumarenta fatia de carne. Entendeu por que ele parecera embaraçado ao encontrá-la. O ardoroso defensor da lei comparecia furtivamente a banquetes culposos. Fora da aglomeração santificada de Quebec, era pecado quebrar o jejum? Boa pergunta. Privados de todos os prazeres e cuidadosamente vigiados por um numeroso e rigoroso pessoal eclesiástico, muitos habitantes de Quebec tinham adquirido o hábito de ir banquetear-se naquela casa. A informação era passada de boca em boca, assim como d endereço. O anfitrião, corajoso o bastante para desafiar as proibições e para transformar a própria residência em albergue de um dia, era recompensado de diversas maneiras: vantagens administrativas ou financeiras. A melhor recompensa, porém, era enganar a longa duração do inverno com um alegre dia de encontros. Honorina estava encantada.
- Também quero dançar. Você sempre vai dançar sem mim.
A dona da casa chamava-se Solange. Veio conversar com Angélica. A família era do Berri e o patoá que falavam tinha conso-nâncias com aquelas duas regiões do oeste. Ofereceu hortulanas, que acabava de assar com nabos em potes de argila.
Angélica e a filha comeram com gosto. Mas Angélica não queria demorar-se. Sentiu um olhar pousado nela. Um soldado, a um canto, observava-a. Desviou rapidamente os olhos luzidios. Jogava cartas com outros soldados, mal barbeados como ele. Reconheciam-se os soldados pelo uniforme, mais ou menos adaptados à maneira indígena, mas de que conservavam o gibão cinza e branco, mais cinza do que branco agora, do regimento de Carignan-Salière, e pelo feltro bordado com um galão de passa-manaria desbotada que eles traziam sobre um gorro de lã. Certamente eram desertores, que, depois de "se terem habituado com os selvagens", conforme se dizia, aproximavam-se das casas no inverno para trocar peles e retomar o contato com um pouco de civilização. Este, porém, embora descuidado, parecia diferente, menos sujo, menos grosseiro. Tinha um olhar inquieto, e, quando se encararam, Angélica leu medo nos olhos dele.
Ocorreu-lhe a ideia de que se tratava do soldado a quem Garreau procurava, aquele que fizera conjurações sobre o crucifixo, na sessão de magia.
Angélica também não queria perturbar por mais tempo a digestão de Nicolau Carbonnel, que, ao reconhecê-la, fizera cara comprida. Quando se levantou, dirigiu a ele um sorriso tranquilizador, mas não deixou de pensar que aquele segredinho entre eles ambos talvez o tornasse um pouco mais flexível um dia, na aplicação de seus regulamentos.
Retomaram a trilha por onde tinham vindo. Honorina ia muito contente. Gostava das reuniões enfumaçadas e ruidosas que lhe lembravam o forte de Wapassu.
Para Angélica, o interlúdio preenchera a finalidade. Ela esquecera as razões de sua impaciência. A intervalos, avistava ao longe as alturas da cidade. Os campanários, vislumbrados no flanco do cabo, começaram a dourar a distância, trazendo-lhe aos ouvidos chamados de sinos intermitentes. Não era tarde. O céu continuava branco, no zénite: um nácar. De vez em quando, porém, as sombras se adensavam sob uma longa abóbada de galhos cerrados, e ela sentiu medo da mata. Voltando-se para observar a marcha do sol por entre os galhos, teve a impressão de perceber uma silhueta vindo pela mesma trilha. Com certeza alguém que regressava da casa dos berrichons.
Estava impaciente por chegar à clareira onde encontrara o Velhaco Vermelho. Depois, bastariam alguns minutos de caminhada para que atingisse a casinha tranquilizadora do marquês. Mãe e filha se descalçariam, enfregariam os pés e as mãos diante do fogo e depois se trocariam, envergando traje de cidade para irem à casa da Srta. d'Houredanne.
Virou-se de novo. Na claridade filtrada pelos galhos, um homem se aproximava. Era o soldado com quem cruzara o olhar na sala dos berrichons.
Quando começamos a interpretar os fatos como decorrentes de uma possível ação maléfica, tudo se relaciona e passamos a ver somente a lógica das coincidências, clara à nossa interpretação, invisível aos outros. Armadilha em que nos debateremos sozinhos, porque somos os únicos a entender e enxergar.
- Por que está andando tão depressa, mamãe? - queixou-se Honorina.
Angélica pegou-a no colo.
A clareira estava à vista. Agora tinha certeza de que era a ela que o soldado seguia e se esforçava por alcançar. Virando-se, captava-lhe, embora ainda a distância, o olhar que ela sentia falso e mau. Perdeu-o de vista ao atravessar a clareira, mas ainda não atingira a outra extremidade quando ele surgiu de novo.
As primeiras casas já não estavam longe, porém. Na altura em que Angélica ia atravessar um último bosquezinho ralo, uma maciça silhueta interpôs-se à sua frente, iluminada de frente pelo sol, que começava a declinar. Eustáquio Banistère estava ali, de través sobre o caminho, tão grande e escuro quanto um urso. Angélica estacou, voltou-se, olhou na direção do perseguidor. Segurava Honorina firmemente nos braços,-e o seu olhar ia do indivíduo maciço ao soldado que se aproximava, perscrutando um e outro, tentando adivinhar-lhes as intenções.
- Boa tarde, vizinho - disse Angélica, dirigindo-se a Banistère em tom confiante.
Ele sequer a olhou.
— O que você quer? - perguntou ao soldado, que, vendo-o, parara, indeciso.
— E você, o que quer? - replicou o outro, esforçando-se por parecer insolente.
— Responda! - grunhiu Banistère, de sobrolho cada vez mais carregado.
— Escute, Banistère - disse o soldado, afetando tom de cumplicidade -, ela sabe coisas demais sobre nós. Foi o que "eles" me disseram... Porque é feiticeira ou maga.
— Quer dizer que "eles" lhe pagaram para que fizesse mal a esta dama? É por isso que você vem meter o bedelho aqui, La Tour?
— Ela pode nos levar à forca. É o que "eles" dizem, porque ela controla o bispo, o governador e o intendente.
Como ele chiava por entre os dentes estragados, amarronza-dos de fumo, o que dizia era quase ininteligível, e Angélica, que entendia com dificuldade uma ou outra coisa, perguntava-se, com um misto de incredulidade e inquietação, se era dela mesma que estavam falando.
- Ajude-me, Banistère - insistia o homem. - Você tem tanto interesse nisso quanto eu... Prometo-lhe. Dividiremos o butim... E, se houver dinheiro, rachamos... Você terá com que pagar seus processos...
O gigante ficou tanto tempo silencioso, imóvel e impassível, que era de imaginar que as três silhuetas na orla da mata, uma delas com uma criança ao colo, e que se destacavam, escuras, como estátuas de bronze à claridade do céu, tinham acabado de se congelar em pé, de repente. "O que não vai demorar para acontecer", conjecturou Angélica, enregelada.
Um daqueles dois brutamontes tinha a intenção de fazer-lhe mal, a dois passos de Quebec. Por quê? E a mando de quem? Como, obscuramente, conhecia as respostas, também não se movia. O fato de Quebec estar perto não significava socorro. Vida e morte seguiam lado a lado, e cada um vivia o próprio destino em segredo.
No mesmo instante, o soldado, impaciente, esboçou um mo-vimento.para a frente. Com um único grunhido mau, Banistère o imobilizou.
- Não se mova!
Depois fez um gesto rápido e sem apelação com o queixo.
— Volte para o lugar de onde veio, La Tour. De preferência, para mais longe...
— Você está louco, Banistère... Sabe o que está arriscando? Por que a defende?
— É minha vizinha - respondeu Banistère, como se dissesse "é minha prima", reconhecendo nesse vínculo inalienável obrigações de assistência mútua.
A claridade dourada do céu atrás deles acentuava a imprecisão da silhueta de cada um. Só se viam brilhar os olhos. Nem por isso Eustáquio Banistère deixou de perceber o movimento da mão de La Tour na direção da abertura do casaco. Com um pontapé, acertou aquela mão, não lhe deixando tempo de revelar se pretendia sacar uma pistola ou uma faca. Depois, agarrando o homem pela nuca, estalou-lhe os ossos, desfgriu-lhe três murros e o jogou longe, na direção da floresta. O outro se recompôs como pôde. Não estava morto. Só pudera soltar uns roncos e agora recobrava o fôlego com dificuldade. Era como se já não soubesse o que fazer com os braços.
— Deixei-lhe as pernas - disse o colosso - para que possa correr mais rápido. Senão, teriam que levar-lhe para a Santa Casa e o Resmungão estaria num instante à sua cabeceira...
— Você também não gostaria nada disso, imbecil! Também você tem contas a prestar!
Mas, prudentemente, o soldado se afastava, coxeando.
- O que foi que lhe deu, Banistère?
A voz rouca perdeu-se, enquanto a sombra da floresta lhe tragava a silhueta cambaleante.
Recuperando os movimentos e pondo Honorina no chão, Angélica avançou para agradecer a Banistère pela proteção que lhe dera. Mas ele ergueu uma mão grande como uma raquete.
- Não foi por você!... Eu ia olhar umas armadilhas, encontrei o Velhaco Vermelho, que me disse: um perigo aguarda a senhora por ali, poste-se lá e cuide para que não lhe aconteça nenhuma infelicidade. Não se deve desobedecer nunca a um feiticeiro...
Depois, tomou-lhe a dianteira e ela caminhou atrás dele, com a criança, até os arredores das respectivas moradas.
Ao avistar a trilha que levava ao quintal da casa e ao da choupana, Honorina saiu correndo, a chamar pelos amigos. Estava encantada com o passeio. Angélica, menos.
- Desconfie, tenha cuidado - disse Banistère antes de deixá-las. "Eles" querem destruí-la.
Esses "eles" de quem Banistère e o soldado falavam deviam ser os amigos de Vivonne: Saint-Edme, Bessart e o próprio duque, mais uma vez envolvido com suas intrigas de aprendizes de feiticeiro. Com conhecimento insuficiente, não havia nada de mais perigoso do que penetrar no domínio maléfico. A desobediência, a inépcia do conjurador não eram pagas somente com o fracasso, mas também com males indizíveis, que se voltavam contra ele. A operação mágica a que Varange se entregara parecia destinada a produzir uma avalancha de cadáveres. Era triste que no centro de quase todas as manipulações de magia negra se encontrasse um animal ou uma criança, imolados como símbolo de inocência para satisfazer ao cruel deus das trevas.
O único iniciado, o Velhaco Vermelho, nem por isso era uma criatura tranquilizadora. Angélica não podia esquecer que ele ajudara o Conde de Varange a saber, por meio da intervenção do Diabo, que fim tivera Ambrosina. Quando Angélica deixou o quintal dos Banistère, o cão magro sob a árvore a olhava, cada vez mais magro, com um olhar cada vez mais apagado, por entre o arbusto de agulhas de gelo que eram seus pêlos.
Ela entrou em casa, oprimida por um peso terrível.
Honorina já estava numa tina de água quente, com Querubim, e matraqueava enquanto Iolanda a esfregava energicamente.
— Passei um dia formidável. Comi hortulanas e dancei.
— Na Quaresma! - espantou-se Iolanda.
— Cuide bem dela - disse Angélica. - Olhe bem pelas crianças... E pendure-lhes ao pescoço as medalhas do Sr. de Loménie... E o gato? Onde está o gato?
Procurou-o da adega ao sótão e, como não o encontrou, convenceu-se de que chegara tarde demais. "Eles" se haviam apoderado dele e estavam a esfolá-lo vivo, para oferecê-lo ao Demónio. Atirou um manto aos ombros.
— Vou sair - disse sem se voltar.
— Mamãe - gritou Honorina -, não se esqueça de que hoje à noite vamos ouvir a história da Princesa de Clèves.
Dirigíndo-se para a porta, Angélica percebeu o gato, empoleirado numa mesinha, ao lado do crucifixo, a seguir-lhe as idas e vindas com um olhar olímpico.
- Você me deu um bom susto, bandidinho! .
Como estava pronta para sair, resolveu ir até o prebostado. No caminho, lembrou que era o domingo do mês que o Sr. Garreau d'Entremont dedicava à sua devoção particular a São Miguel Arcanjo. Entrou na catedral e encontrou o tenente de polícia mergulhado em oração, meio à parte. Que luz estaria ele pedindo ao céu e para iluminar que lanterna?... Seria a graça para denunciar o mal que ele discernia sob máscaras frequentemente bem enganadoras?
A tarefa fora mais simples para o arcanjo São Miguel, cuja estatueta de madeira pintada dominava de sobre uma base de pedra, acima de uma bandeja de círios. O dragão representando Lúcifer era suficientemente hediondo para ser esmagado, mas Angélica achou que o monstro ainda fora pintado de um verde demasiado bonito.
Dizendo ao Sr. d'Entremont que precisada transmitir-lhe um comunicado urgente, conduziu-o pelo átrio. Declarou-lhe que podia indicar-lhe o paradeiro do soldado La Tour, que fizera a conjuração sobre o crucifixo, no caso Varange. Ele falara diante dela e, percebendo-se descoberto, tentara atacá-la. Alguém interviera em tempo. O homem estava ferido e não podia estar muito longe. Seria encontrado na casa dos berrichons ou arredores.
Ele identificaria sem dificuldade os que lhe pagavam para todo tipo de tramóia e conjuração criminosa, os amigos daquele Varange, entre os quais o tal Saint-Edme, que espalhara calúnias absurdas sobre ela, o Barão de Bessart e o criado deles, indivíduo com perfeita cara de bandido, de nome La Corne.
— O senhor deveria prendê-los, ou no mínimo pô-los sob vigilância, pois eles são perigosos.
— Mas essas pessoas pertencem à casa do Duque de La Ferté, ao que me parece - gemeu Garreau d'Entremont, franzindo o cenho. - É um grão-senhor da comitiva do rei, em Versalhes.
— Que está aqui sob nome falso, conforme o senhor sabe sem dúvida alguma. Talvez para escapar às consequências de atos mais que repreensíveis.
— Não o nego, senhora. Mas esses indesejáveis escapam a meu controle, ainda que o senhor governador, a quem foram recomendados, esteja muito atento, vigiando-lhes á conduta. Mas temos ordem de evitar desagradar-lhes.
— Então, sejam vigilantes. Pois eles são verdadeiros assassinos, garanto- lhe.
O Sr. Garreau d'Entremont franziu os olhos. Uma expressão de astúcia passou-lhe pelo rosto redondo.
— E a quem a senhora inclui na categoria de "falsos" criminosos, digamos, se a entendo bem, criminosos justiceiros? A si mesma, talvez?
— Ah! O senhor sempre volta a essa estranha suspeita a meu respeito. Foi o Sr. de Saint-Edme, aquele velho lúbrico, envolvido nessas orgias horríveis, que veio acusar-me depois de ler tal revelação em sinais cabalísticos no espelho mágico? E é o senhor, um policial, que reclama provas e cadáveres para acusar, quem atribui fé a feitiçarias? Pois bem! Saiba que, se eu tivesse tido a oportunidade de matar seu imundo Varange, eu o teria feito com todo o prazer e me felicitaria por isso.
— Mas não contaria...
— Sr. d'Entremont, o senhor me magoaria se eu não sentisse que vela por nós assim como o Sr. de La Reynie vela por Paris, e que isso é o que o leva a não negligenciar pista alguma... nem as mais impensáveis. Pois bem! Veja, trago-lhe uma informação: encontre o soldado. Talvez a confissão dele conduza ao cadáver do Sr. de Varange... ou a seu assassino. Eu o perdoo. Sua tarefa não é fácil. Agora que o vi, sinto-me mais tranquila. Sinto muito por haver perturbado suas oraçõeVe rogo-lhe que me conceda sua indulgência...
"Essas mulheres bonitas são emotivas", disse Garreau consigo, seguindo-a com o olhar. "Mas como são encantadoras!..."
Não conseguia vê-la matando alguém.
Ainda assim...
Ao chegar à casa da Srta. d'Houredanne, onde a leitura já começara, Angélica encontrou todo mundo debulhado em lágrimas, inclusive Honorina.
O Sr. de Clèves acabava de morrer.
Morrera de desespero de amor. A confissão que a Sra. de Clèves lhe fizera, de que estava apaixonada pelo Sr. de Nemours, atingira-o no coração, tão direto quanto um punhal.
- Bem que eu dizia: nunca confesse! - exclamou Ville-d'Avray. - Essa tola confessa, e todo mundo morre em consequência disso. Bonito resultado! De todo modo, não havia nada de grave em tudo isso... Nada!
Em amor, nada é grave nem merece que alguém se mate e se prive dos benefícios da vida...
Pensava-se demais naquela cidade. Vivia-se demais. Amava-se demais. O vento assobiava.
- Mamãe - intercedeu Honorina -, agora que Banistère ficou gentil, você não poderia soltar o cão, talvez?
Angélica sentia a cabeça a ponto de estourar.
O preparo de uma sopa de favas, que elaborou no dia seguinte com a Polaca, concedeu-lhe uma trégua.
As duas sozinhas pelaram ativamente mais de um alqueire de favas. Retirada a primeira pele, os legumes foram mergulhados em água fervente com sal, junto com uns ramos de segurelha. Em seguida foram escorridos e uma parte foi separada para a ornamentação.
Energicamente, o restante foi socado em pilões de madeira, e a pasta assim obtida, dissolvida em caldo de carne. Após uma nova fervura no caldeirão, a sopa foi passada na peneira e posta em outro recipiente.
Angélica e Janina discutiram sobre a quantidade a diluir em leite frio com uma farinha inglesa que a Polaca guardava escondida e que reservava somente aos preparados de qualidade. Para ela, o produto extraído de uma raiz exótica, e que os ingleses chamavam de arrowroot, ou araruta, era melhor para "dar liga" às sopas do que as farinhas comuns.
A dosagem se revelou por si, logo depois de uma nova fervura, que fez a sopa engrossar e ficar untuosa como um creme. Adicionaram-se gemas de ovos, as favas separadas e a metade de um tablete de manteiga.
A Polaca tinha sua maneira de gerir a Quaresma de seus clientes.
- Os padres não podem dizer nada: é sopa de penitência, legumes e laticínio.
Enquanto descascava, socava e mexia, Angélica ia pondo a amiga a par de seus dissabores e preocupações.
O reconfortante, quando se conversava com a Polaca, é que tudo lhe parecia verossímil. Ela não duvidava. Nem do espírito do interlocutor, nem de seu bom senso, nem do que ele viu e ouviu, nem da interpretação que se fez disso. Para ela eram evidentes, patentes, todas as manifestações que o drama humano pode assumir, e não via obstáculo a que elas se manifestassem todas ao mesmo tempo, o perigo e o milagre, a esperança e a vitória, a intervenção do Diabo como a do corpo da guarda. Aceitava a tudo, acompanhava o interlocutor por seus dédalos, compartilhava, refletia, sofria e tremia com ele. Depois disso, empenhava-se com entusiasmo ainda maior do que o interlocutor a extrair uma conclusão e a traçar planos de ataque e de defesa. Ia e vinha entre o pilão e as panelas, e destas até o oratório, onde acendeu duas velas nos castiçais de madeira dourada que Angélica lhe dera de presente.
— Não se inquiete, irmã - disse. - Há momentos assim na vida, em que tudo desaba no lombo da gente. Quando nos querem bem, vai tudo bem. Mas quando nos querem mal, é sinal de que a gente incomoda. E quando a gente incomoda, é sinal de que se é mais forte do que os outros... E que em algum lugar existe algo em jogo que vale a pena ganhar. Onde estão esses tipos que querem sua pele ou, no mínimo, reduzi-la ao silêncio? Do que é que têm medo? De que você se torne poderosa demais? Junto de quem? De que revele as tramóias deles? A quem? Esse soldado tem medo de que fiquem sabendo do sacrilégio dele. E o Resmungão quer saber quem assassinou o Conde de Varange. Desse lado, estou tranquila. Todo mundo cala o bico. Vá ver o Velhaco Vermelho. Ele pode dizer-lhe de quem desconfiar e com quem tomar cuidado, ou fazer-lhe uma pequena conjuração para desencorajá-los. Mas, se você quer minha opinião, as coisas não vão assim tão mal para você e vejo-a em posição muito boa.
— Foi o que me disse o Padre'de Maubeuge.
- Não me admira! Os jesuítas e eu, está vendo, nos entendemos...
Despedindo-se da Polaca, Angélica levantou os olhos. No flanco da falésia a lua acendia diamantes nas guirlandas de gelo e, sob lábios de neve, longos dentes de cristal pendiam na escuridão dos quintais e recantos do velho bairro Sous-le-Fort, no topo do qual morava o Velhaco Vermelho. Iria lá no dia seguinte.
CAPITULO XXX
A cabana do Velhaco Vermelho
Ficou decepcionada com o encontro?
Tinha pela frente um homenzinho muito instruído, mas que não queria dizer-lhe nada.
A cabana do feiticeiro era iluminada por uma lâmpada de ferro forjado, do tipo a que chamavam de "bico de corvo", pendurada às vigas, e numa cuba de esteatita escavada, labaredas que se alimentavam de óleo de baleia difundiam um calor suficiente.
O esquimó a um canto, o que fabricava luvas de pele de pássaro e curativos de pele de camundongo, vigiava, de olhos brilhantes.
O Velhaco Vermelho dizia que não assistira à cerimonia que o Conde de Varange realizara em sua casa.
— Ensinei-lhe o que fazer para ler no espelho negro, mas não sei o que ele viu.
— Quem sabe?
— Os que estavam presentes: as crianças, o criado, o soldado que fez a conjuração sobre o crucifixo... e agora o tenente de polícia, caso consiga fazê-los falar - acrescentou, fungando e passando a mão sob o nariz, para dissimular um sorriso.
— Não está me dizendo a verdade...
— Você não tem necessidade de sabê-la. Quando se tem o jogo nas mãos, e você o tem, é preferível não saber tudo. A criatura é fraca, é melhor que seja um pouco cega e que ignore a profundidade do precipício que ela ladeia. Assim se encaminha com mais segurança rumo à meta que os inimigos temem que ela alcance.
Troçava dela. Mas admitiu que, na noite seguinte à chegada da frota de Peyrac a Quebec, o Sr. de Saint-Edme e Martim d'Argenteuil tinham ido vê-lo com hóstias roubadas, dispostos a pagar-Ihe uma fortuna para que preparasse uma poção bem poderosa, capaz de pô-los em comunicação com o cúmplice deles em alquimia demoníaca, Varange, que desaparecera.
— Eles me fizeram rir com suas hóstias. Essa gente degrada os segredos. Tocam em coisas perigosas, sagradas e difíceis, para satisfazer insanas questões de prestígio ou gratificações régias. O outro, Varange, era mais sério. Ardia de amor infernal por um ser infernal. Aprisionou-se de mil maneiras nas malhas da concupiscência, que devora o próprio fogo. Com ele a operação podia dar certo.
— Você disse: um ser infernal. Então sabe a quem ele viu no espelho mágico?
Ele deu de ombros, irritado.
— Mas pare de falar no espelho mágico! Não é nada disso! Na realidade, trata-se do que John Dee viu na pedra negra de Enoque... É muito mais grave. Implica encontros siderais...
— Quem foi John Dee?
Com paciência, ele explicou que fora um inglês, um cientista do começo do século, matemático ilustre, especialista nos clássicos. Inventara a ideia de um meridiano de base: o meridiano de Greenwich. Mas acabara preso por conspiração mágica contra a vida da rainha Maria Tudor.
Mais tarde atribuíram-lhe os poderes do rabino Jacó Loeb, que, em Praga, criara com o pensamento e a distância um ser, o Go-lem, cujas aparições fantasmagóricas aterrorizavam a cidade. Praga, porém, era a cidade mais feiticeira da Europa, privilegiada das ciências ocultas.
Quanto à pedra negra através da qual ele captava o que denominou de "vozes enoquinas", teria vindo de outro mundo? Teria ele êmulos, que possuiriam fragmentos da pedra?
De sob uma pilha de manuscritos, o bruxo retirou folhetos com a borda corroída, como se alguém tivesse tentado fazer renda com eles, e mostrou-lhe o título do livro em questão, que ela teve a surpresa de decifrar em inglês: O relato fiel e autêntico do que aconteceu entre o Dr. John Dee e alguns espíritos.
Também os outros - Saint-Edme e D'Argenteuil - lhe davam dó, e medo até, com sua ignorância inábil e suas manipulações perversas, grosseiras. Mandara-os embora com sua caixa de hóstias. Por nada no mundo teria tocado nelas.
- Esse Varange cometeu uma infração grave. Misturou aos ritos que lhe ensinei os da conjuração de Belzebu, pois o ser que ele invocava era um demónio. Desencadeou forças perigosas, terríveis. E agora a pedra negra é maldita, já não posso utilizá-la. Olhava-a, batendo as pálpebras, como se o que lesse nela a cada vez o embaraçasse.
— Em toda conjuração de Belzebu o animal deve estar vivo.
— O mal se paga com o sofrimento dos seres vivos. O Velhaco Vermelho encolheu os ombros.
- Mal? -Bem? Anjo? Demónio? Isso não passa de palavras que dissimulam a intervenção"dos invisíveis. Os espíritos maus querem sangue vivo porque é o raio vermelho da vida, e querem o sopro vivo que o anima porque têm inveja do dom dos homens, que eles perderam ou nunca possuirão...
Angélica arrepiava-se.
"Oh, Joffrey, eles quiseram arrastá-lo para essas trevas, condená-lo como feiticeiro... Que aberração!"
- Mas aqui as coisas não acontecem como no Velho Mundo - continuava o bruxo. - Não somos numerosos como nos campos da Europa. Sou o único ou quase o único a saber, senhora.
Apontou-lhe os livros que se empilhavam. Não era de causar grande admiração que, numa cidade onde todos se arvoravam em instruídos, um feiticeiro possuísse uma biblioteca de teólogo.
Mostrou-lhe um exemplar do Livro de Toth, O apocalipse alquimista, de Basílio Valentin, O espelho dos segredos, de Roger Bacon, O desejo desejado, de Nicolau Flamel,. O rosário filosófico, de Arnaldo de Villeneuve e, em inglês, O livro das doze portas, de Ripley. Todos livros malditos, mas que estavam ali lado a lado com O paraíso aberto, do jesuíta Paulo de Bary, e com doutos ensaios da universidade de Louvain. Onde e quando ele obtivera tantos exemplares raros? Angélica continha as perguntas fúteis a que a curiosidade feminina impelia.
- Cada tempo é o tempo de uma esfera - explicou ele. - Uma vez que a revolução se complete, é necessário passar para outra esfera, pois as esferas se unem sem cessar. Agora devo consagrar-me ao estudo. Há coisas novas a descobrir aqui, que os padres não levam em consideração.
- Está renunciando à magia negra?
Ele casquinou.
- Magia negra? Magia branca? Já lhe disse que é tudo igual.
Também os padres derramaram sangue vivo e penduraram inocentes no gancho do suplício.
E acrescentou, num sussurro cúmplice:
- Você sabe tão bem quanto eu... Mas não se deve dizê-lo, ou eles tornam a acender a fogueira das purificações... E agora, bela dama, retorne a seu poleiro na Cidade Alta. Pois está se anunciando a última tempestade, a mais terrível.
CAPITULO XXXI
A última tempestade - No albergue Sol Levante
- O cão dos Baíiistère e a tragédia de seus donos
Uma poeira que formava nuvem turbilhonava no topo da ilha de Orléans e da encosta de Levis. O sol ainda brilhava, mas todo mundo se apressava.
Na encosta da montanha, Angélica avistou a pequena Ermeli-na, que lhe vinha ao encontro. A "miraculada" em vários sentidos causava-lhe preocupação. Ergueu-a nos braços. "Como gosto de você, bebezinho guloso!"
Nuvens negras subiram rapidamente por trás da catedral e o sol apagou-se. E de repente houve a descarga.
Para atar melhor o manto sob o queixo, Angélica teve a imprudência de pôr a criança no chão. Ermelina decolou no mesmo instante, com as sainhas infladas pelo vento formando um sino. Angélica agarrou-a no vôo. Charretes, cestos, escabelos, todas as coisas esquecidas pela rua começavam a sua sarabanda, rolando, rodopiando, para voltar a cair bruscamente. Um cão, atirado contra um muro, uivou. Aninhou-se no chão, protegido por um pilar de amarrar cavalo. Angélica atravessou a Place de la Cathédrale, curvada como uma velha, com a impressão de pesadelo de que o vento acabaria arrancando-lhe Ermelina, demasiado frágil, do mesmo modo como lhe arrancava o manto, que ela já não sentia sobre os ombros. As saias batiam-lhe atrás, e sacudiam-na como se mil demónios estivessem agarrados a elas. No alto dos mastros e dos edifícios, as bandeiras e auriflamas que não haviam sido arriadas rasgavam-se num único golpe, com um estalido seco de arma de fogo. O mordomo dos Mercourville veio ao encontro de Angélica no jardim, mas o homem, muito idoso, esteve a ponto de não conseguir resistir ao vento, e precisou permanecer imóvel, fazendo força para não ser atirado ao chão. Felizmente, a neve, que começava a se amontoar, conferia um pouco de peso aos seres e aos objetos. Angélica prosseguiu com a trôpega caminhada até a soleira da grande residência dos Mercour-ville, onde só se sentiu tranquila quando viu, pela fresta da porta a que se agarravam os irmãos, a pequena Ermelina passar para os braços seguros da ama martiniquenha, enquanto o juiz, que era alto, de boa estatura, vestia uma capa para ir em socorro do mordomo.
- Fique! Fique, senhora! - gritava a família toda reunida em círculo no vestíbulo.
Mas Angélica enxergava o começo de sua rua não longe dali. No fim daquela rua ficava sua casa, e ela queria aproveitar que a tempestade ainda não desabara para chegar lá. Sob o fluxo da neve, que se adensava, o vento dera uma trégua. Sem muita dificuldade, ela conseguiu partir na direção oposta e encetar a subida da Rue de la Petite Chapelle. Mas a poeira se tornou tão fustigante, glacial e sufocante, que ela só conseguia avançar com os braços cruzados sobre o rosto. Um turbilhão de vento repentino fê-la perder o equilíbrio. Angélica atirou as mãos para a frente e agarrou-se a uma saliência de janela, que só largou quando sentiu diminuir a fúria das rajadas, que, assim como a corrente de um rio, pareciam querer arrastá-la. Fez-se uma calmaria e, por entre as cataratas brancas que despencavam, Angélica viu cintilar acima de sua cabeça um sol de ouro flamejante, com um grande riso ingénuo e olhos arregalados: o Sol Levante. Uma fenda de luz atravessou a tormenta, uma mão estendeu-se, segurou-a pelo pulso e puxou-a para dentro.
A mão que a agarrou e levou para aquele refúgio de calor que era a sala do albergue Sol Levante era a do próprio taberneiro.
- Ah, senhora! - disse ele, solícito. - A senhora me desdenha. Terá entrado duas vezes se tanto em meu estabelecimento, desde que chegou a Quebec? É preciso que a tempestade a atire à minha soleira para que me conceda a honra de sentar-se em minha casa.
Desembaraçou-a do manto, pesado de neve. Ofereceu-lhe uma cadeira com encosto, posta diante de uma mesa que ele deixou brilhando com uma rápida esfregadela. Sabia de onde vinha o mal: Janine Gonfarel, que se apropriara dela, depreciava-lhe o estabelecimento, fazendo troça do seu xarope de orchata. Ela tinha um inesgotável repertório de gracejos para zombar das bebidas deliciosas que ele preparava para aquelas senhoras encantadoras da Cidade Alta, entre as quais Angélica não quisera ser incluída, embora morasse a poucas casas de distância.
— Que seja! Sirva-me seu xarope de orchata - disse ela, enquanto a Sra. Boisvite lhe trazia uma toalha para enxugar o rosto e os cabelos. - Mas traga também uma bebida quente, pois estou gelada.
— Não tema nada, senhora, minha avó taberneira tinha uma receita que legou a mim. Mistura-se xarope de orchata com leite quente e café bem quente. Ela era normanda, mas o marido viajara e ensinara-lhe a fazer café.
Num instante trouxe uma grande tigela fumegante, onde misturara os diversos ingredientes, juntando, ao servir, uma concha cheia de creme grosso.
Achando que tomava uma bebida inofensiva, Angélica segurou o recipiente com as duas mãos, e com alguns goles demorados engoliu a beberagem ardente, cremosa, com gosto de amêndoas doces e açúcar, um regalo para crianças, mulheres ou gatos gulosos, de fazer lamber os beiços.
Ora, assim como a bebida martiniquenha da Sra. de Mercour-ville, que sob um xarope açucarado escondia fortes doses de rum, o café da avó normanda dissimulava meio quartilho de um álcool de pêra cujo frasco Boisvite exibiu orgulhoso, um frasco com reflexos buliçosos de uma água dourada que merecia mais do que nunca seu nome latino, aquavitae, água da vida, água ardente para os índios.
- De fato, isto esquenta maravilhosamente - teve tempo de exclamar Angélica, antes de se agarrar à mesa com às duas mãos.
Os olhos verdes embaçaram-se-lhe com um véu lânguido. E, malgrado seu, a voz adquiriu-lhe uma inflexão fraquejante para dizer:
- Sr. Boisvite, o senhor é um traidor...
Em seguida, viu ou teve a impressão de ver Nicolau de Bardagne vir sentar à sua direita, e o Duque de Vivonne, à sua esquerda. A taberna pareceu-lhe povoada de seres incertos, meio fantasmas, meio humanos, surgidos para distraí-la. De início enxergou uma pessoa que não imaginaria encontrar ali: a Rendeira.
- Eu? Ir a seu refúgio de facínoras na Acádia! - dizia a Rendeira, atirando a cabeça para trás e soltando uma gargalhada. - Eu, que nunca saí de Quebec, mesmo para ir a Trois-Rivières ou a Montreal!
Vauvenart fez um sinal a Angélica. Ele estava ali? Ou não? Deslocou toda a sua estatura, que tocava nas vigas do teto, para vir beijar-lhe a mão.
- Hei de convencê-la...
Ele cambaleava um pouco.
Uma mulher muito loura, de ar arrojado, interessante, pensou Angélica, uma Guilhermina mais jovem, ocupava a extremidade de uma mesa em torno da qual vários homens se haviam sentado. Não desgrudavam os olhos dela, rindo de tudo o que dizia. Entre eles, Grand Bois, mas também o Major d'Avrensson.
O taberneiro, que viu os olhos de Angélica fitos na mulher, veio informar, falando-lhe ao ouvido:
- E uma proprietária da região do lago Saint-Pierre, a Sra. De La Dauvernie.
Tinha quarenta anos. Um solar, centenas de acres de boas terras arrendadas. Mais uma viúva! Não por muito tempo. Fora a Quebec para procurar um homem. No Canadá, vivia-se bem. Não havia viuvez sem remissão. Uma mulher afável e bem-provida nunca ficava sozinha por muito tempo. Esta desejava um companheiro e um amante para os negros serões em seu solar perdido. Para dirigir a propriedade, não precisava de ninguém. Isso ela mesma fazia, e como! Havia muitas como ela. As mulheres do Canadá - opinião de Boisvite - valiam mais do que os homens. Era fato sabido.
Havia um rapaz sentado sozinho sobre um tonel emborcado a um canto da grande lareira, com um pé apoiado ao degrau de pedra. Fumava um longo cachimbo emplumado. Era de uma beleza prodigiosa, com longos cabelos negros e lisos. O olhar escuro e pensativo sonhava. "Deus do céu, ele me inspira!", pensou Angélica.
— Por que olha assim aquele mestiço? - perguntou o Duque de Vivonne.
— Ele é bonito.
Mas o jovem se levantou. Ela achou-lhe as pernas um pouco curtas e seu entusiasmo arrefeceu.
- Não estou de acordo - dizia um jovem funcionário, sentando à mesa deles - com esses casamentos que deram franceses novos que não estão bem nem na floresta nem em nossos salões. Mas para a guerra com os iroqueses, claro, eles valem os melhores soldados da Europa.
Ele próprio era canadense, o que lhe permitia beber muito sem perder a cabeça. Chamava-se Adriano Desforges. O intendente Carlon, que o tinha em seu estado-maior, colocara-o à disposição do Duque de La Ferté, desprovido de escudeiro, pois o seu estava adoentado e não podia acompanhá-lo às tabernas.
— Se alguma vez - dizia La Ferté-Vivonne com uma voz pastosa e dirigindo-se a Nicolau de Bardagne, do outro lado de Angélica - ela o olhou do modo como acaba de olhar aquele mestiço, você é um homem feliz. Mas não creio que possa gábar-se disso. Ela é como o pássaro, que, evoluindo com graça no céu, se entrega à admiração de seus olhares e se inebria com isso, mas é inaceitável, entendeu? É um pássaro livre, que só de deixa capturar quando quer... Ah! Não reconheci o momento em que o capturei! Deixei que passasse sem entender... Só compreendi mais tarde... Ela não pensavaem mim... Estava em outro lugar... Zombou de mim... No entanto, ela gosta bastante de fazer amor. Seu prazer não é fingido, e é nisso que está sua força... E ele que nos descontrola... Ela gosta bastante de fazer amor...
— Cale-vos, senhor - disse Nicolau de Bardagne, com a testa banhada em suor, pois todas as imagens evocadas pelo monólogo do Duque de La Ferté o lançavam em estados alternados de fúria e perturbação.
Angélica recomeçava a recuperar o uso da palavra.
— Qual é a maldição - disse -, qual é a maldição que faz com que sempre os encontre juntos no mesmo lugar... Vocês! Os dois!
— O que é que a liga a esse tratante? - perguntou Vivonne, apontando Bardagne com o queixo.
. - E os dois a me fazerem sempre as mesmas perguntas estúpidas: o que é que a liga a ele? o que é que ele quer com você? por que ele? por que não eu?
— Cavalheiro, foi a mim que acabou de aludir ao falar de tratante? - perguntou Bardagne, franzindo o cenho.
— A quem quer que eu aluda?
— Você está embriagado," suponho!
— Você também!
— Talvez, mas a mim nunca aconteceria, nem no pior estado, de esquecer a deferência que devo à função de certas pessoas. Fui encarregado de uma missão pelo rei, cavalheiro, e sua linguagem em relação a mim me parece provar que se esqueceu disso...
- Oh! Você se tem em altíssima conta, cavalheiro - escarneceu o duque. - Quanto a mim, vejo-o qual papalvo nessa história. Conheço o rei, e por trás da escolha que fez de sua pessoa oculta-se algo que ele não revelou, pois, quanto mais o conheço, menos entendo as qualidades que teriam podido reter a atenção de Sua Majestade. Deve ter sido preciso que você fosse muito, muito bem recomendado... E não vejo por quem. Quem, de meu conhecimento, poderia correr esse risco...
Bardagne interrompeu-o com um desdém gelado.
— Cavalheiro, você vive num mundo onde não se pode subir sem padrinho, pois o valor não contribui em nada para o motivo da ascensão. Felizmente o mesmo não acontece em toda parte, e minha carreira foi suficiente para recomendar-me ao rei e inspirar-lhe confiança em minha pessoa. Saiba, senhor - e Nicolau de Bardagne empertigava-se, digno -, que durante vários anos fui representante do rei em La Rochelle para assuntos religiosos, uma posição cuja seriedade não se pode contestar... Sobretudo em nossa época, em que o rei deseja a conversão de todos os huguenotes da França, um problema a que Sua Majestade dedica todos os seus cuidados...
— Quem foi, mesmo, que disse que você não teve energia suficiente em La Rochelle? Você mesmo, no final das contas! Num dia em que estava disposto a fazer confidências. Parece que não houve abjurações suficientes nem detenções suficientes!
— Cavalheiro, essas questões de consciência religiosa não podem ser tratadas com brutalidade. Para uma conversão, é necessário haver consentimento interior. Esforcei-me por fazer amigos entre os huguenotes...
— E viu-se na Bastilha, pelo "que imagino... Sim, cavalheiro, suas proteções não devem ser negligenciáveis. Para, depois de erros tão evidentes, ter saído de lá e ainda munido de uma missão-zinha de consolo no Canadá...
— O que você sabe sobre a missão de que Sua Majestade deu-me a honra de encarregar-me? É secreta e muito pessoal.
Vivonne ergueu os ombros com um sorriso de piedade.
- O que você imagina, afinal? Sei tudo sobre a missão que você conduziu com tanto brilho para o rei. Tinha que informá-lo sobre um cavalheiro aventureiro que se fazia chamar Conde de Peyrac.
— Não fale nesse tom sobre o Sr. de Peyrac - interveio Nicolau de Bardagne. - Diante da Sra. de Peyrac, é indecente, desagradável.
— Você não se mostrou tão indulgente para com esse pirata em seu relatório ao rei...
— Como sabe o que eu disse ao rei? E como sabe que já enviei um relatório a Sua Majestade? - espantou-se o outro. - Você lhe falou da carta que escrevi em Tadoussac? - perguntou, alarmado, dirigindo-se a Angélica.
- Claro que não... Acho que não... - disse ela.
O Duque de Vivonne balançava a cabeça.
— Meu caro, não há a menor necessidade das indiscrições de uma amante para que o menor movimento de um funcionário como você seja conhecido por todo mundo. Basta engraxar um pouco seu pessoal... Você tem muito a aprender nesse sentido. Se lhe derem tempo... Então, já podemos imaginar o rei com seu relatório em mãos... Vejo-o... vejo-o decifrar suas linhas, e como o deixa interessado ao falar da beleza da mulher que acompanha o pirata.
— Não fiz nenhuma alusão a ela - retorquiu friamente Nicolau de Bardagne. - Aí está a prova de que você fala sem saber de nada e que me faz duvidar inutilmente da discrição de meus criados. Está jogando verde para colher maduro. Com que finalidade, cavalheiro? Ignoro, mas não vejo por que eu lhe ocultaria informações tão insignificantes. O único interesse do rei pela mulher, esposa ou companheira, que acompanhava o Sr. de Peyrac, consistia em informar-se se por trás dela não se ocultava uma pessoa muito procurada pela polícia real, que empunhou armas contra ele numa rebelião de província. Pude responder a Sua Majestade que não... e é tudo...
O "é tudo" perdeu-se na explosão de riso que acometeu Vivonne, cujo estrépito quase encobriu os chiados, assobios e roncos aterrorizantes da tempestade.
Segurando a pança, como se fosse explodir, ele disse, entre dois soluços:
— Cavalheiro! Cavalheiro, repito o que disse há pouco... Você conhece mal nosso rei.
— E no quê, por favor?
- Basta! - disse Angélica.
Se não estivesse tão embriagada, teria pulado com todas as garras à mostra ao pescoço de Vivonne, para fazê-lo calar-se. Mas, graças à bebida, pudera considerar de cima as incidências de um debate que a punha em destaque da maneira mais inquietante. Mas o duque tinha que entender que a brincadeira já durara o suficiente.
- Se você continuar a rir e se disser uma palavra a mais... Eu o ... Eu me vingarei de você - garantiu-lhe, desferindo-lhe um olhar homicida.
Sob esse olhar, Vivonne acabou acalmando-se, mas casquinava, como se não conseguisse conter-se, e afundava na cadeira, dizendo que não aguentava mais de tanto rir.
— E no que, por favor, meu relatório pecaria por não satisfazer ao rei? - insistiu Bardagne, muito nervoso.
— Pois bem! Digamos... - Vivonne casquinou outra vez, olhando Angélica de soslaio - que o relatório não pode estar bem... completo... O rei gosta de detalhes... lembre-se disso, muitos detalhes... sobretudo sobre as mulheres bonitas...
— Basta! - repetiu Angélica.
O jovem Desforges ria tola e servilmente, pois não devia entender melhor do que os outros o que divertia tanto o grão-senhor.
— Estou desolado por você, desolado - continuava o duque. - Não posso deixar de ter um pressentimento a seu respeito, caro Bardagne. Porque a uma calamidade como você, quando está a serviço do rei, sabe o que lhe acontece quando... desagrada...? Ou não conheço o rei ou...
— Pare com isso... Deixe-o em paz! - gritou Angélica, que defendia Bardagne como uma mulher defende uma criança tímida atormentada por garotos cruéis. Com um riso idiota, o duque avançou o braço por sobre a mesa.
— Meu dedo mindinho me diz que você será enviado às galés, Sr. de Bardagne - sussurrou. -
Todos, pasmados, contemplavam aquele dedo em que brilhava um anel e que a Angélica pareceu gorducho e obsceno. Nicolau de Bardagne conseguiu levantar-se, branco de raiva.
- Cavalheiro, chegará o dia em que me dará satisfação por seus insultos, à espada. Agora mesmo, se for preciso.
O taberneiro Boisvite interpôs-se.
- Não em minha casa, senhores cortesãos, nada de escândalo em minha casa! Acalmem-se ou então vão bater-se... lá fora!
A injunção era suficiente para acalmar os mais audaciosos. O Duque de Vivonne não se movera.
— Que melancolia! - murmurou. - Os urros do inferno nos cercam.
— Venha sentar-se perto de mim - disse Angélica a Bardagne, puxando-o pela mão. - E acalme-se!
Acariciou-lhe a face.
— Não lhe dê ouvidos. Ele é muito mau. Eu o vi em La Ro-chelle e posso testemunhar que você foi um representante do rei muito estimado pela cidade e respeitado pelos próprios hugue-notes por sua equidade, pois tinha todos os poderes nas mãos e deles não abusava nunca.
— O que você fazia em La Rochelle? - indagou Vivonne.
Os homens estavam insuportáveis. A tempestade se desencadeava em torno deles como.o fim do mundo e eles só pensavam em se dilacerar e fazer mal um ao outro.
Uma velha, a Sra. Marivoine, dirigiu-se a passinhos rápidos para a porta, trazendo consigo o marido, a quem um dos criados da tasca amparava.
— Vou levá-lo para casa. Está bêbado. E quando está bêbado, semeia o pânico, anunciando ataque de iroqueses.
— Os iroqueses vêm aí, os iroqueses vêm aí! - resmungava o velho.
— Seria melhor que vocês ficassem aqui. Os iroqueses não virão com um tempo desses.
— Eles vêm com qualquer tempo - disse alguém. - Ninguém vai se incomodar se seu Marivoine ficar soltando seu grito de guerra...
— Vocês não sabem do que estão falando - respondeu a velha. - Os gritos dele fazem gelar o sangue nas veias, e vocês se põem em armas na hora... Não se consegue resistir...
Pagou a conta com gentileza e embrulhou-se em seus xales.
- Acalmou um pouco - disse uma voz.
Seis homens, arqueando, puxaram a porta. Foi o tempo de se ver passar, demente e urrante, uma rajada branca, e logo a empurraram atrás dos dois velhos, que iam agarrados um ao outro e logo se curvaram como fetos.
A última tempestade!
A visão do cão magro atormentava Angélica. Os olhos bondosos do animal a brilhar, se não de inteligência, pelo menos de ternura e esperança. E os bracinhos de Honorina levantados para ela: "Vá soltá-lo! Vá soltá-lo!"
Levantou-se, empurrando a cadeira, que caiu para trás.
— Sr. Boisvite!
— Sim, senhora? - acorreu o taberneiro.
— O senhor é ferreiro?
— Sim, senhora.
— Eu precisaria de uma torquês para cortar aço.
— A sua disposição, senhora...
Ele abriu um alçapão. Desceram ambos uma escada até o subsolo do Sol Levante, onde havia, lado a lado, barricas e peles, as mais belas penduradas a ganchos no teto, as outras empilhadas em fardos. Peles eram moeda de troca, e era comum um comerciante hábil fazer-se pagar em peles de castor. Boisvite levou Angélica a um porão contíguo, onde havia ferramentas diversas sobre uma bancada, inclusive torqueses e tenazes de todos os tamanhos.
— É desta que preciso - disse ela, pegando uma grande torquês estreita, com dois pés de comprimento, que podia segurar bem na mão e que apresentava uma cabeça pequena redonda, a ponta afilada, afiada como uma lâmina.
— Está à sua disposição, senhora condessa.
Subindo de volta, tropeçaram e, caindo para trás, desabaram sobre as peles.
— Senhor! - exclamou Boisvite. - Nunca me vi com deusa igual nos braços! Ah! Senhora, como faz tempo que a vejo passar diante do meu estabelecimento, e como a admiro... Permite que a beije?
— Que seja, beijemo-nos, primo! Seu xarope de orchata merece a fama... e há pouco você foi magnífico...
Ele beijou-a nas duas faces, deleitado.
- Agora, ajude-me a sair daqui.
E retornaram ao salão.
— O que vai fazer com essa torquês? - indagou Boisvite, que perguntava consigo se ela pretendia atacar alguém.
— Dê-me meu manto, vou-me embora.
— Nem sonhar!
— Os velhos Marivoine já se foram.
— Talvez já estejam mortos.
— Não tem importância!
— E loucura.
— Angélica, suplico-lhe - disse Bardagne.
— Não! Tenho que ir, minha casa não fica longe.
— Acompanho-a.
— Não, você não se aguenta em pé, e vocês todos me cansam! Não são decentes...
Ninguém se encontrava em estado de acompanhá-la, e ela não queria acompanhante.
— Passe a noite aqui, Sra. de Peyrac - insistiu a mulher do taberneiro. - Nosso quartos estão ocupados, mas pude encontrar um desvão livre para a Sra. de La Dauvernie. Poderá dividir o leito com ela.
— Não, tenho que ir.
De resto, a Sra. de La Dauvernie talvez tivesse outras intenções acerca da divisão do leito. O entendimento dela com Grand Bois parecia bem avançado.
— Quanto lhe devo, senhor? - perguntou Angélica, remexendo na bolsinha.
— Nada! Já recebi minha parte - disse o taberneiro, cujos olhos brilhavam tanto quanto os de um visionário.
— Detenham-na! - disse uma voz. .
— Deixem-na - disse Vauvenart. - Não se detêm mulheres como ela...
Angélica pediu as luvas e um cliente se precipitou para oferecer-lhe as suas, que subiam até o cotovelo e a protegeriam melhor. Outro fez questão de emprestar-lhe um gorro de índio, pontudo e forrado de pele, com abas que desciam dos dois lados do rosto.
- E só segurá-las com uma mão e fechar bem...
Os olhos dos bebedores a seguiam, curiosos, enquanto ela se encaminhava para a porta.
- Aonde vai ela com essa torquês?
Nicolau de Bardagne não tinha força para retê-la. Viu-a desaparecer, como se a visse, impotente, atirar-se num abismo.
— Como é bela! - disse Boisvite, perto dele. - Estamos bem felizes de acolhê-la entre nossos muros.
— Ela não será para mim - murmurou Vivonne. - Mas, paciência, pelo menos eu a vi...
Desabou, com a testa contra a mesa, e mergulhou num sono profundo.
Angélica penetrava na matéria tangível de um assobio contínuo. Ia animada por um fogo maravilhoso. Era sua segunda grande bebedeira do ano, depois da que compartilhara com a Polaca, no seu primeiro dia em Quebec.
Estava embriagada, e bastante. Mas não estivesse e jamais teria odido enfrentar o que enfrentava naquela noite, que apenas começava, mas que era mais assustadora e negra do que a mais negra das noites. Nem cogitar de dar um único passo a frente. Ela, porém, deu vários passos para a frente. O que demonstrava a excelência da beberagem que Boisvite lhe servira.
Avançava, cega, por entre as rajadas frementes e raivosas de uma neve que feria mais do que o gume de uma espada, na noite e no urro feroz do vento de nordeste, o mais cruel inimigo da humanidade. Não sabia se avançava. Punha um pé diante do outro, tão curvada que se perguntava se não estaria andando de quatro. Segurava-se aos muros das casas, reconhecendo ao passar a madeira de uma janela, uma soleira contra a qual tropeçava, as estacas de uma cerca. Quando chegasse à casa da Srta. d'Houre-danne, atravessaria, e então teria um deserto pela frente, pois se caísse só lhe restaria morrer em pleno meio da Rue de La Closerie, a dois passos dos pilares com os atlas sustentando o mundo. Na época do degelo seria encontrada naquela sarjeta.
Um ruído selvagem de madeira quebrada explodiu-lhe aos ouvidos e por sobre a cabeça passou-lhe algo como uma imensa asa de morcego, que foi chocar-se contra a muralha. A dois dedos da "coisa" que lhe barrava o caminho, Angélica viu que era uma asa arrancada do moinho dos jesuítas... Ainda bem que o moinho não veio atrás...
"Decapitada por uma asa de moinho dos jesuítas... Era o que faltava ao meu destino..."
Estava sóbria agora. A embriaguez da luta insana substituíra a do álcool de pêra.
Topou com os atlas e, de joelhos, estreitou-os contra o coração, como se tratasse de crianças bem-amadas.
Subindo, alçou-se pela encosta do flanco da casa de Ville-d'Avray, cuja presença, indomável e benévola, ela sentia, mas em cujo seio tépido, por entre o pipilar feliz das crianças que a amavam, ainda não podia refugiar-se.
Caiu no quintal dos Banistère como no mar. Tinha neve até o pescoço. Onde estava o cão? Achou-lhe a forma gelada, esquelética. Estaria morto? Não... Sacou da torquês que enfiara no cinto para cortar a corrente. Nas luvas de pele, os dedos não se moviam bem.
"Vou conseguir! Hei de partir esta corrente!" Mas, ao puxar a corrente, os elos vieram com um pedaço de tábua podre, a que a corrente estava presa. Não valia a pena dar-se ao trabalho de cortá-la.
O cão deu sinal de vida quando Angélica quis puxá-lo pela coleira. Resistiu...
Era verdade que ele era imbecil. Imbecil a ponto de não querer ser salvo. A ponto de não poder fugir de si próprio.
"Venha! Venha!"
Angélica caía, sem encontrar ponto de apoio, sobrecarregada por aquela massa, que só ganhava vida para resistir.
A tempestade amainou, conforme acontecia às vezes, logo depois de um paroxismo. Um momento de estupor! Nesses momentos a neve voltava a cair como lágrimas inesgotáveis. Um clarão vindo das casas, de uma janela ou porta aberta, mostrou-lhe uma silhueta gigante, em pé à beira da cratera onde ela se debatia.
"Não me matará, Eustáquio BanistèreP'
Mas era Jofírey, com seu capote negro, o gorro de pele enfiado até os olhos, e ele ria. Angélica não podia vê-lo, mas sentia que ele ria.
A mão dele agarrou-a pela axila. Puxou-a com força, enquanto ela puxava o cão. Surgiram outras silhuetas, como que nadando no elemento penugento, que a levantaram e carregaram, e ela se viu no salão da casa, diante do fogo, com Joffrey de Peyrac, os espanhóis, Yann le Couénnec e o cão com a corrente e o pedaço de tábua, que, muito assustado, foi enfiar-se embaixo do forno de pão.
- Oh! Você! Oh! Você! - dizia Angélica, olhando sem crer nos próprios olhos.
Joffrey explicou que, não a encontrando em casa e vendo a tempestade aumentar, sairá à sua procura com dois espanhóis, Yann e Barssempuy, pelas ruas de Quebec. Souberam que ela acabava de deixar - loucamente - o albergue Sol Levante, com uma tor-quês de ferreiro na mão.
- Oh! Você! Oh! Você! - repetia Angélica, atirando-se aos braços dele.
Ele a apertava contra si.
- Minha fadinha!
A neve escorria pelo rosto de ambos e lhes caía dos ombros, mas o fogo que lhes ardia no coração era tão crepitante quanto o da lareira, onde Elói Macollet empilhava achas e meios troncos, do mesmo modo como se alimenta um canhão.
- Oh! Você! Oh! Você! Meu amor!
As tempestades sempre se revelavam como os melhores aliados. A alegria de Angélica ao dizer consigo "Ele voltou" era duplicada pela certeza de que o teria e conservaria ao seu lado por algum tempo, graças à fúria dos elementos desencadeados, a que se somava a densidade da noite, fazendo redobrar a guarda à sua porta.
Mas, malgrado seu, apesar do desejo que ele sabia tão bem despertar nela ao tomá-la nos braços, com um gesto possessivo que não tolerava delongas, ou com determinado olhar, naquela noite um sútil espírito de indocilidade, quase de desconfiança, conteve o impulso de Angélica.
Apesar de todas as resoluções que tomara no sentido de não se deixar arrastar ao papel de mulher reivindicadora, precisava fazê-lo entender que achara a ausência dele em Sillery longa, inquietante, desesperadora. Não acrescentou que Satã lhe rondava à volta com seus sortilégios, porque isso era um assunto pessoal que precisaria resolver sozinha e a questão que a preocupava era de outra natureza. Morrer não era nada, mas perder o amor dele era coisa que ela não conseguia encarar sem desfalecer de agonia. A tempestade, a bebida fulminante de Antonino Boisvite, a odisseia com a torquês em punho para fazer justiça não eram pretexto para que não fizesse a pergunta essencial: por que aquela ausência, aquele silêncio?
Barssempuy aludira à ousadia de certas damas canadenses, a perseguir o conde com seu ardor.
Joffrey de Peyrac olhava-a rindo, pois, descabelada, de olhos brilhantes, a voz um pouco insegura, e meio despida, ela ainda dava ótimo testemunho da excelência da bebida.
— Não oculto que me aconteceu de precisar valer-me de algumas astúcias para escapar aos avanços de nossa Berengária - disse, com leviandade -, mas os homens do fortim de Sillery reclamavam a minha presença. Havia doentes, um ferido, o frio chegando de repente. Fiquei um pouco mais, para ajudá-los a atravessar esse período difícil.
— E o ferido?
— Uma queda do alto de uma verga congelada, no convés, durante uma inspeção de manutenção do navio.
— E?
— Foi impossível transportá-lo. Resistiu durante alguns dias, depois morreu. É o destino dos homens do mar.
— Não poderia mandar chamar-me?
— Com este frio terrível! Quando se hesita até em pôr um mensageiro na estrada! Por mais curta que seja a distância, eu não poderia impor-lhe essa viagem. De resto, caríssima amiga, você não resolveu que daria uma trégua à sua vida de irmã de caridade de Wapassu e Gouldsboro? Parece-me que tínhamos combinado isso... Abadessa, sim! A condição lhe assenta... Mas não queime todas as riquezas de seu coração a torto e a direito. Todos esses marujos aventureiros não ganhariam nada em ver o céu descer-lhes à tasca com muita frequência. Eles precisam manter a carapaça sólida, que lhes protege o coração de homem contra os pesares e nostalgias.
— Talvez eu pudesse tê-lo consolado - disse ela, levantando a mão.
— Eles não temem a dor. Nem a morte. Em compensação, doente ou ferido, o pobre marinheiro necessita do chefe à sua cabeceira. Precisa receber mais uma ordem: você tem que viver! pode morrer!... Isso o ampara na cura, auxilia-o para a grande jornada... O capelão estava lá.
Ele pegou a mão que ela levantara e trouxe-a para perto de si, para nela encostar o rosto.
- Não... Esta mãozinha divina, permita a meu ciúme que eu, na medida do possível, a guarde só para mim!
Angélica olhava o perfil dele, rude mas elegante, inclinado contra sua mão, enquanto os lábios de Joffrey lhe pousavam docemente na palma.
"Que homem é você?", pensava. "Às vezes duro, implacável...
No entanto, tão terno também, compadecido das fraquezas humanas!"
Lembrava-se da observação de Sabina de Castel-Morgeat: "Ele é muito bom...". E era verdade. Embora, dependendo do caso, fosse igualmente capaz de demonstrar uma insensibilidade total...
— Meu amor, meu caro amigo - disse ela-a meia voz -, não tenho certeza de conhecê-lo bem.
— É necessário?
Ele deu aquele sorriso cáustico, acompanhado de uma espécie de piscadela cúmplice.
- É bom que toda criatura tenha seus recônditos ocultos. Não é sem desprazer que pronuncio esta frase. Confesso que também receio os meandros de seu coração secreto. Põem-me à sua mercê. Os amantes não cessam de lutar entre o desejo acerbo e possessivo de saber tudo a uma luz cruel e o encanto irresistível que existe em se suspeitar do desconhecido na pessoa a quem se adora. Acredito no benefício de um pouco de egoísmo. As mulheres não são, de modo algum, suficientemente providas disso. Talvez o segredo da felicidade esteja em sermos dois, cada um consciente da própria existência, do próprio destino, mas sem tentarmos nos fundir ou confundir. - Ele suspirou. - Mas chega de filosofar, senhora. Os minutos da vida já são demasiado contados para nos demorarmos a sondar a inconsequência humana, masculina ou feminina... Tenho-a aqui e sou seu. A esta hora e nesta conjuntura, estes debates, para mim, só têm utilidade porque permitem ver seus olhos verdes refletir sombras e clarões ao sabor de seus pensamentos, seus lábios entreabrir-se e fremir sob o efeito da surpresa ou da emoção. Só admito que paire sobre nós a sombra das injustiças que acometem as mulheres, se elas me dão pretexto para tomá-la nos braços a fim de protegê-la delas e consolá-la com- a melhor filosofia que existe no mundo: o amor. - Então concluiu: - É por isso que bendiremos o destino pelo encontro que nos propiciou...
Gritos de crianças vogavam pela tempestade desumana. Almas perdidas, aves marinhas desorientadas. Angélica despertou nos braços do marido, onde adormecera feliz. 0 barulho era medonho. Era como se estivesse em pleno oceano. Mas desta vez não se tratava de sonho. Havia crianças de fato gritando por socorro.
Embaixo, Yann Le Couénnec e Macollet, saído do seu banco-leito, tentavam distinguir de onde vinham os gritos no tumulto da noite.
- Parece que a cabana dos Banistere voou.
A tormenta arrancara o choupo podre. Agarrado ao teto, Banistere fora arrastado para longe e atirado no fundo de uma ruela, onde foi encontrado no dia seguinte. Joana da Alemanha partiu em busca de socorro como uma louca, afundou na neve e morreu. Seria encontrada na primavera, na orla das planícies de Abraão.
O mais ousado dos exploradores de florestas não se- arriscaria a ir lá fora.
- Vamos pelos porões - disse Elói Macollet. - O senhor marquês mandou escavar quase até o fim. Com algumas picaretas, desembocaremos na toca de Banistere.
Assim se fez. Penetraram no porão, sob a choupana, que estava cheia de peles, barricas de sidra e aguardente, ferragens e potes de argila lacrados com cera.
Empurraram o alçapão, por cujos interstícios o vento silvava. Acharam as crianças enrodilhadas numa chanfradura das paredes de argamassa ruídas, sepultadas pela neve, mas protegidas pelo cadáver da vaca. Levaram-nas pelas adegas para a casa de Ville-d'Avray, e enquanto alguns se apressavam a tapar os buracos entre os porões contíguos, outros aqueciam as crianças diante do fogo.
Desembaraçados de capotes e mitasses, nus e tiritantes diante do fogo, os quatro "terrores" de Quebec não passavam de crianças pálidas e macilentas, entre as quais se descobriu uma menina. O menorzinho chorava convulsivamente. Só se acalmou quando Elói Macollet teve a ideia de lhe dar tabaco para mascar. Aquelas crianças estavam realmente destinadas a viver entre selvagens. Fora um erro fazê-los cair entre colonos civilizados de raça branca. Que fossem para a floresta! Os peles-vermelhas as domariam, e, em termos de barbárie, não haveria desacordo.
O cão mártir saiu de sob o forno de pão quando reconheceu os seus algozes, as crianças que amava. Sacudiu a cauda. Era realmente um cão imbecil.
Acalmada a tempestade, enviou-se a menina para o convento das ursulinas, os dois mais velhos para os padres do seminário, e o menor a uma enérgica vizinha. Banistere, achado ferido mas não morto, foi levado para a Santa Casa. Voltando a si, mandou dizer que queria ver a Sra. de Peyrac, mas a ela só.
Quando Angélica saiu, ainda se ouvia a tempestade assobiar, um silvo agudo e modulado. Mas estava amainando.
Por entre os galhos do olmo, saiu do sol, numa nuvem uniformemente cinza, um olho oval amarelado com a pupila dourada. Pupila curiosa de gato gigante a observar o caos.
Angélica dirigiu-se à Santa Casa por uma cidade fantasma, mas onde pás e carroças já se punham em ação.
As ventoinhas loucas, galos, flechas, rosas-dos-ventos, as cruzes e os instrumentos da paixão, desmantelados, arrancados, pontilhavam um universo de montes esbranquiçados.
Para comprovar a violência da borrasca, já se comentava que a cruz da abside da catedral, forjada pelo Sr. Boisvite, estava torcida e curvada como um bastão de cera sob o fogo. Mestre Boisvite defendia sua honra, dizendo que uma das chaminés da casa dos Mercourville, de que se reconheciam os escombros na praça, devia ter sido a causa daquela torção, visto que a cruz se encontrara no caminho da chaminé ao vir abaixo.
Pela estranheza de um destino que, ao longo de sua vida, com frequência a fizera confidente de crápulas arrependidos e depositária de seus segredos, se não de suas últimas vontades, Angélica se viu à cabeceira de Eustáquio Banistère, vulgo Cabeçudo.
O robusto excomungado, ainda que bem maltratado, não tinha nenhuma intenção de morrer. Mas, como todos os outros antes dele - os Calembredaine, os Aristides, os Clóvis, que, na escuridão de seus cérebros matreiros e de suas almas malfazejas, tinham recebido o único raio de luz que lhes indicara a única pessoa em que se podiam fiar nesta terra e que seria capaz de despertar, sem que eles soubessem por quê, uma última aspiração ao que se poderia chamar de o melhor deles próprios -, Banistère enfiara na cabeça que Angélica era a única pessoa a quem podia confiar seus bens. Ela precisou se debruçar, pois ele receava que a enfermeira, uma freira, ouvisse demais.
- Não sobrou muita coisa de minha cabana, hein? Mas o porão! No porão estão meus instrumentos, um belo butim que juntei para quando puder partir de novo para a mata, e nos potes, embaixo das presuntadas e dos "cretons", os patês, tenho ouro, muito ouro. Ganhei esse ouro com todos esses "cortesãos" que queriam invocar o Diabo. Um tesouro... E depois, muito importante, minhas botas também estão lá. Eu não gostaria que minhas botas ardessem quando eles atearem fogo... Vá até lá, você sozinha, ao meu porão... Todos os outros me saqueariam.
Dito isto, continuou em voz alta com a confissão que, na opinião dele, não poria nada em risco se fosse ouvida pela serena Madre Agostinha.
— Admite que o marquês escavou sob meu campo, aumentando o porão dele, hein?-As ursulinas também. Está provado, medido. Se eu tiver com que pagar meu processo, isso não ficará assim, não. Quando espoliam a gente, tem que haver justiça. E o procurador? Acha justo que eu seja privado de minhas cartas de nobreza porque ele esqueceu de registrá-las? Claro, conheço a lei, toda pessoa que desvie pele de castor será privada de seus direitos durante cinco anos. Mas por que é que essa lei só se aplica a mim? E a aguardente? Será que sou o único que levou aguardente para os selvagens? A senhora, que se entende com o governador, com o intendente e com o bispo, não poderia intervir para que me devolvam minha licença? Eu iria embora para a floresta com meu filho mais velho e não aborreceria mais ninguém. Em troca, eu a prevenirei. Tome cuidado com aquela gente de quem o soldado La Tour falou no outro dia. Os que me pediram hóstias para coisas do Diabo.
— Sei como se chamam.
— Não faça nada!... "Eles" são maus. Queriam as hóstias e dei-as a eles... Mas agora é a você que querem... Queriam que eu incendiasse a casa do marquês... Deram-me ouro para isso... Peguei o ouro, mas disse: esperem um pouco, não estou com pressa de ver minha cabana arder também, muita gente ficaria feliz com isso... E agora, tome cuidado, eu a avisei.
Retornando à casa de Ville-d'Avray, Angélica alegrava-se com a ideia de que, tendo escapado a tamanho perigo, agora o cão imbecil que haviam recolhido sob seu teto e que dava alarma de incêndio querendo "destruir-se", protegia-os a todos de um atentado desse tipo.
CAPÍTULO XXXII
Interrogatório de Monsenhor Laval
Exceto pela tempestade, os idos de março transcorreram sem catástrofe maior. A Sra. de Mercourville alegrava-se. Era inútil lamentarem a peça de teatro que não puderam montar, pois, com a tempestade, não se poderia tê-la encenado.
Em 18 de março, entre sete e oito horas da noite, em meio a montanhas de neve, pôde-se acender na praça a fogueira de São José. O governador foi quem a acendeu.. Os soldados dispararam três salvas e houve quatro canhonaços. Também se soltaram alguns foguetes.
No dia 19, quando soou o ângelus, disparou-se um tiro de canhão e, durante a missa, na elevação, mais uns três ou quatro, com algumas salvas de mosquete.
No dia 20, Monsenhor de Lavai convocou a Sra. de Peyrac ao seminário. Formalmente, pedia-lhe que tivesse a bondade de fazer-lhe uma visita, mas era evidente que o bispo a esperava, categórico, após as vésperas, por volta das quatro horas.
Era a primeira vez que Angélica voltava àquela ala do seminário que servia de episcopado, onde fora recebida pelo prelado dois dias depois de chegar a Quebec. Agora seguia para lá com mais tranquilidade.
Ainda era difícil caminhar pelas ruas. O sol mal aparecera, e só para a festa de São José. Desde a manhã o céu se cobria de nuvens, e quando Angélica atravessou a grade do seminário passaram algumas rajadas de neve.
Foi introduzida num cómodo menor, onde o bispo se instalara para passar o período de frio mais árduo. Seus companheiros lhe aconselharam que velasse um pouco mais pela própria saúde, depois que fora acometido de uma tosse muito forte.
Depois das preliminares habituais, passou logo aos fatos.
O mais recente e, na opinião do bispo, mais inacreditável é que a tinham visto visitando aquela figura inquietante a que chamavam de feiticeiro da Cidade Baixa. Que ele soubesse, jamais fidalga alguma tivera a ideia de empreender a escalada do bairro Sous-le-Fort para penetrar num tugúrio daqueles. Algumas das senhoras da Sagrada Família de fato confiavam nas poções, da feiticeira da ilha de Orléans, o que tampouco era lugar que o bispo recomendasse às suas ovelhas. Mas o Velhaco Vermelho, nunca! Ele também nâo recomendaria às suas ovelhas uma assiduidade excessiva no albergue Ao Navio de França, mas a Sra.. de Peyrac era vista com frequência ali. Fazia anos que ele protelava uma decisão sobre o caso da proprietária daquele estabelecimento, mulher generosa para com as boas obras e piedosa até, mas que, conforme denunciavam regularmente os membros da Companhia do Santíssimo Sacramento, abria suas portas a encontros galantes.
- Esses cavalheiros utilizaram o estabelecimento com esses fins, para serem tão categóricos? - atalhou Angélica, sorrindo.
Perguntava-se por que motivo o bispo parecia haver decidido de repente - quando estavam em plena Quaresma e recém-saídos de uma tempestade medonha - passar em revista suas "faltas", que, postas lado a lado, suscitavam uns pontos de interrogação, é verdade.
Havia ainda o fato de que Eustáquio Banistère a chamara à Santa Casa. Havia também o relato de um cura deXoreto. O homem irrompera numa casa que lhe fora denunciada como local de fartos banquetes aos domingos, quebrando sem pudor algum o santo jejum da Quaresma. Os moradores, originários do Berry, haviam-se defendido argumentando que o guisado só continha caudas de castor, carne que as autoridades eclesiásticas toleravam, considerando-o um animal aquático. Como prova de inocência, disseram que a Sra. de Peyrac, que gozava de grande reputação, sentara-se à mesa com eles naquele dia.
— Eu estava passeando com minha filha. Entramos para descansar.
— Eram realmente caudas de castor? - perguntou o bispo.
— Só tomamos um pouco de leite - respondeu Angélica, prudente.
Afinal, chegava-se ao assunto mais grave, doloroso ao seu coração de pastor de almas: o inquérito do tenente de polícia sobre o desaparecimento do Conde de Varange, que levara à descoberta das sinistras vilezas de uma cerimónia de feitiçaria perpetrada em pleno coração de Quebec, um horror indizível, cuja lepra ele não podia imaginar que um dia se estenderia ao Canadá. Uma história tanto mais sombria pelo fato de que seu autor, o Conde de Varange, era um membro da Companhia do Santíssimo Sacramento, a quem o bispo considerara devoto.-Garreau d'Entre-mont não parecia ter perdido tempo. Anunciava que em breve poria as mãos num soldado desertor, La Tour, que estivera envolvido na conjuração e que fora visto a rondar pelos arredores. Como se via diante de um caso de operação mágica, o tenente de polícia se consultara longamente com o bispo. Os tribunais religiosos episcopais existiam somente para os clérigos.
Tiveram que estudar juntos a forma que teria a acusação, para que o braço secular pudesse abater-se sobre o miserável autor daquelas práticas horríveis... quando o encontrassem. Pois desaparecera.
- O Diabo o carregou - disse Angélica.
Também nesse caso o nome da Sra. de Peyrac fora pronunciado.
Angélica procurava um pretexto para sua visita ao Velhaco Vermelho. Falaria da compra daquelas peles de camundongo curtidas pelo esquimó e que podiam servir de curativo para pequenos ferimentos?
As explicações de Monsenhor de Lavai sobre o caso Varange abriram-lhe uma saída. Não fora por uma "denúncia" do feiticeiro que o nome de Angélica fora pronunciado? Pois então: fora por isso que fora à casa dele, para lhe pedir uma explicação das calúnias de que ela era alvo, conforme o Sr. d'Entremont lhe informara.
— Mas que motivo podia levar o adivinho a mencioná-la? - surpreendeu-se o bispo.
— Malevolência, sem dúvida alguma. Quem sabe o que passa pelo espírito finório dos feiticeiros? Uma bolsa bem pesada também pode ajudá-los a ver o que satisfaz ao pagador. Eu antes seria levada a crer que um homem como o Velhaco Vermelho se vale de seus dons e de sua ciência para engodar a arraia-miúda e para delatar os gentis-homens movidos de intenções maldosas em relação a seus semelhantes.
De súbito, foi tomada de uma inspiração. Podia tranquilizar o bispo acerca do feiticeiro. A Irmã Madalena lhe contara como os "ares" estavam perturbados na noite em que eles tinham chegado. A religiosa visionária vira em sonhos o santo Padre Bré-boeuf, mártir dos iroqueses, instando-a a orar pela conversão de um feiticeiro. Sem dúvida alguma se tratava do feiticeiro da Cidade Baixa, pois quando a Sra. de Peyrac o visitara só encontrara um sábio, que lhe garantira: "Está acabado. Não tocarei mais num único alfarrábio de magia. Quero apenas dedicar-rne,ao estudo dos livros antigos".
Evocando aquela norteiem que decididamente parecia haver acontecido muita coisa, o homem lhe dissera que tinham levado a ele uma caixa de hóstias, para que efetuasse manipulações diabólicas. Com toda a certeza as preces da Madre Madalena tinham sido ouvidas e atendidas pelo céu.
- Ele está convertido, posso garantir, monsenhor.
O bispo pareceu emocionado. Era realmente uma notícia feliz. Restava encontrar o outro criminoso: o Conde de Varange. O tenente de polícia estava convencido de que o conde fora assassinado.
- Se for esse o caso, monsenhor, não se poderia pensar que o braço que o abateu pode ser considerado o braço justiceiro?
O bispo soltou outro suspiro e ficou calado. Estudava-a, pensativo. Em seus olhos cinzentos, cujo clarão inquisitivo as pálpebras caídas atenuavam, Angélica podia ler que ele se perguntava que acasos - pois se tratava de acasos - levavam aquela mulher de sociedade, de boa índole, que só fizera^amigos, e a respeito de quem o seu exorcista garantira total inocência das acusações de demonologia levantadas contra ela, a estar envolvida em todos os casos um pouco turvos, suspeitos ou francamente inquietantes que lhe tinham sido submetidos ao longo do inverno.
Angélica intuía que ele não a mandara chamar unicamente para indagar sobre suas visitas ao Velhaco Vermelho ou ao albergue Ao Navio de França. Ele olhou na direção da janela. As listras brancas da neve passavam sobre a tela negra da noite.
- O inverno ainda é rigoroso! - disse. - Mas não esqueçamos que abril não está longe, e com a aproximação desse mês podemos antever o fim das nossas misérias...
Houve um silêncio. Monsenhor de Lavai abriu a boca, hesitou, e mudou de assunto.
- Disseram-me que a senhora se tornou devota do Pai Eterno.
Ela aquiesceu.
O bispo levantou-se para ir buscar gravuras do Pai Eterno na biblioteca. Angélica olhava pela janela, para ver se a neve se acalmava, más as rajadas brancas continuavam a passar sobre a tela negra da noite. Houve uma batida contra a janela. Um grande pombo acabava de pousar ali, no ângulo do peitoril. Como a pomba da Arca, não encontrando nada sobre a terra desolada, refugiava-se junto aos homens. Sobrevivia graças à cidade e aos seus mil abrigos e restos de comida... As pálpebras de membrana branca piscavam rápido sobre seus olhinhos vermelhos. Sem medo, o pombo a encarava com ar de familiaridade.
- Ele vive aí - disse o bispo. - É o seu ninho. Nas tormentas mais fortes vejo-o encolhido e satisfeito. A pequena saliência de pedra, pouca coisa mais larga do que as suas duas patas, representa segurança para ele, que parece agradecer a Deus por isso. Que lição para nós, que somos tão exigentes e tão preocupados com nosso bem-estar!
Como se a simpatia de ambos pelo pombo o houvesse encorajado, o bispo decidiu-se:
- Sente-se mais alguns instantes, senhora. Tenho um comunicado importante e secreto a lhe fazer. Diz respeito à senhora, à senhora e seu esposo.
CAPÍTULO XXXIII
As cartas comprometedoras - Fim do Velhaco Vermelho
Começou falando do Padre d'Orgeval, o que pôs Angélica alerta e lhe pareceu mau augúrio.
Abriu uma pasta de couro que Angélica já tinha notado sobre a mesa. Continha três missivas, cujos autores ele foi citando à medida que as pegava unia a uma.
O bispo achou bom lembrar que o Padre d'Orgeval gozava de excelente posição na corte, junto ao rei. Fora recebido várias vezes por Sua Majestade e soubera reter a atenção do soberano.
- Tenho aqui alguns trechos do relatório que o Padre d'Or-geval lhe dirigiu. Esforçou-se por despertar o interesse do rei pelo enorme reservatório de guerreiros a serviço da França que os selvagens representavam.
O padre escrevera:
"Os abenakis são inimigos dos ingleses por questões religiosas. Não há nada de mais edificante do que a devoção deles quando marcham ao encontro do inimigo...".
Mas algumas linhas adiante, expunha seu ponto de vista e a razão salvadora pela qual era preciso arrastar os abenakis à guerra:
"Nunca os transformaremos em cristãos. Mesmo entre os ba-tizados o sentimento religioso continua a entrelaçar-se com suas grosseiras superstições, deixando-os nas mãos de seus feiticeiros.
"Preguei, então, que a salvação eterna só podia ser obtida mediante a destruição dos hereges, e esse exercício de piedade pareceu-lhes claro e fácil de executar. Uniram-se aos milhares sob meu estandarte, onde mandei bordar cinco cruzes rodeadas de quatro arcos e flechas...".
A carta de Colbert, ministro do Comércio e da Marinha, que o bispo também tinha em seu poder, falava da apreciação do rei:
"Padre de mérito, o Reverendo Padre d'Orgeval pareceu-nos notável, pois foi o único a insistir em reavivar a guerra contra os ingleses, com quem firmamos a paz, o que nos impede de continuar a enfraquecê-los e a abater-lhes a arrogância abertamente. Mas transpor a luta para as florestas do Novo Mundo não é nada inábil. O Padre d'Orgeval deve continuar a impedir todo entendimento possível com os ingleses... Ele não regateará o auxílio de que precisar... .
Ao que o ministro respondera, sublinhando que compreendera bem as intenções de seu soberano:
"Recomendou-me em particular que desperte a hostilidade dos selvagens contra os ingleses, que moleste os colonos ingleses e, se possível, que os force a abandonar o país, bem como a desistir de povoá-lo..".
O rei não deixara de ouvir uma linguagem que tanto lhe convinha.
— De quando data essa correspondência?
— Chegou-nos há cerca de dois anos. O-Padre d'Orgeval retornou na mesma época, para retomar a direção das missões na Acádia.
— Já não me admira que desde nossa chegada tenhamos encontrado uma campanha de guerra organizada... e entendo melhor como nossa vinda para Katarunk e Gouldsboro deve ter parecido um incomodo obstáculo ao organizador... e também avalio o senso de equidade e... de coragem de que todos os oficiais da Nova França, e o senhor mesmo, monsenhor, deu prova ao responder às nossas propostas de paz.
— O Grande Conselho de Quebec, se deseja executar sua função, deve ser capaz de manter certa independência. Permanecemos isolados nove meses por ano.
— Sinto que subestimei a delicadeza e o rigor de sua luta com o Padre d'Orgeval.
— Foi delicada e rigorosa... e ainda não terminou. Está entrando em nova fase, embora aquele que a dirige tenha sido obrigado a abandonar a liça. Mas deixou vestígios e preparou uma armadilha...
O bispo recolocou na gaveta de sua escrivaninha a pasta com as cartas explosivas, todas marcadas com o sinete real.
- Ouça: no momento em que deixava Quebec, na altura em que vocês chegavam, o Padre d'Orgeval pediu-me uma audiência. Foi breve. Disse-me que ia embora. Não discutiu a própria derrota. "O senhor fez a sua escolha, monsenhor, o senhor e os edis de Quebec/' Ele se eclipsava diante do homem que lhe arruinara a obra na Acádia, o Conde de Peyrac, que nos preparávamos para receber, bem como diante da mulher -que ele combatera inutilmente. Nós todos tínhamos sucumbido perante um mál de que nos arrependeríamos um dia, disse ele. Abandonava-nos por seis meses, até abril, digamos, comentou com um sorriso frio, para que nossos ouvidos e nossos olhos se abrissem e para que conhecêssemos a verdadeira natureza das pessoas que estávamos acolhendo naquele dia. Caso - prosseguiu o bispo, que não parecia ter-se impressionado com as ameaças proferidas pelo jesuíta - até lá não nos arrependêssemos por nós mesmos de havermos aberto as portas à senhora e a seu marido, seríamos levados a fazê-lo. Ele havia reunido documentos irrefutáveis a seu respeito. "Em abril", concluiu. "O tempo de reflexão. E serão entregues ao senhor, monsenhor, pois é a consciência da Igreja na Nova França. Neles encontrará ou uma prova para sustentar a opinião que terá formado acerca dos perigos que há em se lidar com essa gente de Gouldsboro, ou a força de se dirigir às suas ovelhas, mais fracas de entender, visto que se deixaram abusar e levar por um caminho desastroso." Abril... Ainda não chegamos lá, mas a data se aproxima. Foi por isso que quis encontrá-la, senhora, e pô-la a par do assunto.
— Quem deverá entregar-lhe esses papéis comprometedores?
— Ignoro-o... Mas o que lhe afirmo é que não os quero. Não quero vê-los nem recebê-los... Compreende?
— O padre d'Orgeval não fez nenhuma alusão à natureza dessas... denúncias?
O bispo meneou a cabeça.
- Ele somente parecia certo de que, depois que eu tomasse conhecimento delas, seria difícil para mim continuar a apoiá-los.
Angélica pensava na observação de Ville-d'Avray a propósito do "espião do rei". Era plausível que um desconhecido, já na cidade, aguardasse o momento para se dirigir ao bispo e entregar-lhe os relatórios "irrefutáveis" que o prelado não queria receber.
— Por que o senhor não preferiu chamar meu marido?
— Para despertar menos curiosidade. Recebo com mais frequência as senhoras da Sagrada Família do que o Sr. de Frontenac, por exemplo, ou o senhor intendente, pois imediatamente ficam todos a se perguntar que revolução palaciana estará em andamento. E depois, antes de falar com a senhora eu queria esclarecer essas histórias dúbias a seu respeito... Explicamo-nos. Agora, a senhora está avisada, e o Sr. de Peyrac o será por seu intermédio. Mas permita-me recomendar-lhe a maior prudência, a maior discrição.
— O que fazer? - perguntou ela, angustiada.
— Ignoro-o. De minha parte e após refletir, confesso-lhe que eu não saberia em quem concentrar minhas suspeitas, e não quero conversar sobre isso com meus colaboradores, pois é preferível que a esse respeito não circule nenhum comentário. Assim, não pude obter a opinião deles. Não posso fazer mais nada. Falei com a senhora. Uma mulher observadora, atenta a nuanças, pode ter algumas ideias... E como o observei em seus empreendimentos, creio que o Sr. de Peyrac também é bastante hábil para garantir a própria proteção.
Não podia ser mais claro: "Encontrem esse cúmplice do Padre d'Orgeval", parecia dizer o bispo. "Coloquem-no fora de ação..."
Angélica levantou-se e, depois de arrumar o manto sobre os ombros, beijou o anel do bispo.
— Fico sensibilizada, monsenhor, e meu marido, tenha certeza, compartilhará de meu reconhecimento ao senhor por tentar evitar-nos novas afrontas.
— Elas só poderiam ser inúteis para todo mundo e destruir o frágil equilíbrio de paz que criamos e conseguimos manter com dificuldade por alguns meses.
— Devo compreender, monsenhor, que correspondemos à bondade de sua acolhida com uma atitude que não o decepcionou, e que se alegra com nossa presença entre vocês?
Ele admirou aquela beleza de mulher que parecia ignorar a si própria e que com isso só se tornava mais poderosa. Ela estava diferente. Era inegável. Ele não podia deixar de pensar que graças a ela o inverno fora menos cinzento, a alegria dos corações, mais calorosa. Respondeu, com um meio sorriso:
- Por um inverno... sim!
Angélica gostou da lealdade e da franqueza do bispo. Ele não contrariava seu sentimento e sua razão, que o faziam encontrar satisfação e benefícios na presença do Conde e da Condessa de Peyrac. Mas tampouco escondia que não considerava nem um nem outro completamente confiáveis. Em todo caso... "por um inverno... sim!"
No verão, iriam embora.
Rumo a que horizonte?! Isso importava pouco. O bispo desejava que a separação ocorresse em paz, e acompanhada de proje-tos positivos de aliança. Por ora não estava de modo algum disposto a ver surgir novos elementos de discórdia.
Era preciso que lhe prestassem o favor de dar sumiço em tempo aos autos daquele processo, mas, apesar da confiança que ele parecia depositar na habilidade de Peyrac para descobrir o possuidor dos papéis, era um pouco como procurar uma agulha em um palheiro.
Antes de conversar com o marido, Angélica pensou no Velhaco Vermelho. "É vidente, e muito sábio. E sabe tudo sobre a cidade e seus mistérios."
O bairro Sous-le-Fort sofrera com a tempestade. Telhados miseráveis tinham sido arrancados, e inúmeras estacas, partidas. Os moradores do local agitavam-se falésia acima, falésia abaixo, como formigas, trazendo da serraria tábuas e vigas novas, atirando lá embaixo a neve e o gelo que os sepultara.
Assim que chegou à casa do feiticeiro, Angélica comunicou-lhe o que Monsenhor de Lavai lhe confiara. Não disse nada sobre as medidas previstas contra o bruxo, pois a questão parecia resolvida. Contou-lhe somente que o bispo não fazia a menor questão de ter entre as mãos um documento que os prejudicaria a todos e que, depois de recebê-lo, ele seria obrigado a levar em consideração. A dificuldade estava em que nem ele nem ninguém podia prever quem daria o golpe.
- E você veio pedir-me que lhe diga quem é esse indivíduo
que possui os papéis perigosos? - indagou o Velhaco Verme
lho, olhando-a com ironia.
Estava sentado, sempre à maneira indígena, no fundo de seu antro, sobre algumas peles, com um grande livro aberto à sua frente.
— Assim?! Fecho os olhos e o vejo?! Descrevo-o e lhe digo o nome dele?!
— A mim você viu bem, a léguas daqui, numa noite - murmurou Angélica.
— Eu lhe disse que não queria mais lidar com vidência! Está encerrado! Agora só quero consagrar-me ao estudo...
E virou, com afetação, uma página do livro, cujas gravuras em madeira, belíssimas, representavam os signos do zodíaco.
"Decididamente você o converteu bem demais, minha irmãzinha ursulina", pensou Angélica.
O bispo podia ficar inteiramente tranquilo a respeito do feiticeiro.
O Velhaco Vermelho lançava-lhe olhadas zombeteiras, parecendo divertir-se com a desventura dela.
— Você é como os outros. Quer tudo numa bandeja de prata, e com magia ainda por cima! Quando basta refletir um pouco. Quem possui essas cartas? A pergunta, antes, é: quem as trará?... Por que imagina que o homem se encontra na cidade e aguarda sua hora? O bispo disse: "No fim do inverno, final de março ou abril...". Por que essas exatidões? Você sabe o que isso significa? Que ele ainda não está aqui. Que ainda virá.
— Mas de onde e como? Está tudo gelado. Não podemos esperar notícias da Europa antes de junho_, final de maio, talvez.
— Para o lado da Nova Inglaterra e da Acádia o mar está livre. Os navios podem começar a chegar, trazendo correspondência da Europa. E a partir do próximo mês, um bom "viajante" treinado pode subir para o norte sem grande risco de perder-se. As tempestades se fazem mais raras, os rios, como o Penobscot ou o Kennebec, estão navegáveis...
— Então? Um mensageiro, vindo do sul? Depois de receber esses documentos num porto no oceano?
— Claro! Informe-se! Fique à espreita! Você tem suas armas. É assunto dos homens estarem vigilantes e frustrarem as astúcias de seus inimigos. Ao mais finório, a vitória. E as ciências perigosas devem ser reservadas a comunicações mais sérias.
— Você não tem ideia alguma sobre quem possa ser esse mensageiro?
— Bom, bom! Vou pensar. Venha ver-me outra vez. Mas lembre que acabei corri as conjurações. Aqui, eu lhe disse, as coisas acontecem de outro modo, é lançar pérolas a porcos. Restam-me meus livros e os mistérios que desvendei e que serei o único, talvez, a penetrar. Minha cara senhora, ainda posso, se quiser, fazer dançar as vacas e amaldiçoar um estábulo a ponto de todos os animais morrerem. Mas para que ter tanto trabalho aqui? O enfeitiçado irá para as matas, a trocar peles, e voltará mais rico ainda. É preciso apenas guardar os grandes segredos. Para o resto, os feiticeiros indígenas sabem mais do que nós.
— Você aprendeu alguns dos truques deles?
— Ora! Exceto por dois ou três poderes que temos em comum, é outro ensino, outra pesquisa demasiado longa e que tem pela frente uma vida curta -demais. A aguardente está destruindo os poderes dos índios. Eles acharam que nela tinham encontrado um meio de acesso fácil aos sonhos e à transcendência. Não passou de um artifício. Os grandes poderes vão apagar-se diante do objeto. Um mosquete, um canhão, causam mais danos mortais do que o mau-olhado do mais hábil feiticeiro... A magia resistirá mal aos tempos que se anunciam. Adormeceremos, deslizaremos para debaixo da terra, levando conosco o tesouro das revelações. Toda magia branca ou negra vai abastardar-se, perder o sentido. Uma infâmia - resmungou ele, como se o que vislumbrasse para os séculos futuros lhe inspirasse profundo asco.
Cuspiu com desprezo.
- Será necessário aguardar pela era do Espírito, quando a fonte ressurgirá, a água viva do Signo.
Seu indicador cinzento, com a ponta enegrecida de tabaco, pousou bruscamente na página do livro que tinha aberto à frente.
- Aquário... - grunhiu. - Olhe! O velho sábio, vertendo a água do conhecimento.
Quando Angélica se inclinou para examinar a representação do signo zodiacal, a contemplação dos dois foi interrompida por um alarido lá fora, misturado com clarões projetados pelas chamas movediças de tochas.
A velha que morava sobre o tugúrio do Velhaco Vermelho começou a esganiçar como uma pega.
Angélica levantou-se para ir averiguar. A porta abriu-se sobre uma aparição que, devido ao local e ao momento, pareceu a Angélica das mais fantásticas. Contra um pano de fundo de noite iluminada pela tocha empunhada por um miliciano do prebos-tado, erguia-se o procurador Tardieu de La Vaudiere, muito alto e muito bonito como sempre. Vestia a toga magistral escura com peitilho branco correspondente a seu cargo. Para completar a personagem oficial no exercício de suas funções, ele pusera a peruca alta de rolos brancos, muito bem alinhados, que era de praxe os magistrados usarem no tribunal.
A surpresa dele ao topar com Angélica sem dúvida alguma se igualou à dela. Mas o procurador logo se recompôs, pois vivia um dos grandes momentos de sua carreira e não queria perder nada.
Curvando a grande estatura, aumentada ainda mais pela imponente peruca, penetrou no antro do feiticeiro da Cidade Baixa. Sem lançar um único olhar à volta, tamanho'eram o desdém e a repugnância que o ambiente lhe causava, desenrolou um pergaminho cheio de fitas e pesado com sinetes de cera. Para enxergar melhor, aproximou-se da cuba de pedra mole, onde ardia o óleo de baleia. Iniciou a leitura.
Com as fórmulas usuais, o texto anunciava que o Sr. João Maria Luís Tomás Jaumette era solicitado a deixar sua casa e seguir sob escolta até o prebostado, a fim de ser interrogado pelo tenente de polícia. Em caso de resistência, ele ficava prevenido de que representantes do corpo da guarda, ou seja, um esquadrão de seis arqueiros com alabardas e um sargento, esperavam nas escadas do bairro, a fim de cortar-lhe toda retirada.
Diante da porta, onde quase já não havia lugar para mais gente, tal era o amontoado, plantaram-se um miliciano do prebostado e o escrivão do conselho real, vindos para assistir o procurador.
— Por que o estão prendendo? De que o acusam? - perguntou Angélica, assim que entendeu que João Maria Luís Tomás Jaumette designava oficialmente o Velhaco Vermelho.
— Bruxaria! Senhora, posso permitir-me observar que estou chocado de encontrá-la neste antro sinistro? O que está fazendo aqui?
— Vim trazer ao Sr. Jaumette a garantia que me foi dada pelo bispo de que ele não seria perturbado, visto que não havia provas contra ele. Reconheço que monsenhor é o único habilitado para julgar este caso. De resto, o senhor tenente de polícia repetiu-me em várias ocasiões que hoje em dia já não se prende ninguém por feitiçaria, mas por crimes.
— Oh, crimes! Havemos de encontrar crimes! - disse o procurador, jovial. - O importante é que ele desocupe este local. Finalmente consegui que o grande inspetor viário me assinasse uma ordem que me permitirá pôr abaixo este bairro insalubre.
— E procura pretextos para justificar as expulsões?
— Exatamente! Um feiticeiro! Ninguém poderá encontrar nada para comentar... Por que você está se imiscuindo? - perguntou bruscamente. - Por que será, senhora, que você e seu marido são sempre encontrados envolvidos em casos suspeitos? O governador é cego!
— O governador, pelo contrário, tem consciência das vantagens que a Nova França pode auferir da amizade que lhe dedicamos, o Sr. de Peyrac e eu. Felizmente ele tem uma concepção sobre o modo como deve executar a sua função mais ampla do que a que você tem sobre a sua.
— Isso não é assunto para se discutir num lugar como este. Por estreita que seja minha concepção da aplicação das leis, continuo a achar estranho que uma pessoa de sua qualidade se comprometa com um indivíduo miserável e repugnante como este.
— Tenho o aval do bispo para ele. Pode dirigir-se ao episcopado.
— Ninharia! Eu tenho o aval do grande inspetor viário, que me autoriza a começar a demolição desta podridão.
— Mas não vai expulsá-lo de sua casa, não?
— Chama isto de casa! Não vê que este amontoado de casebres é um feixe de lenha pronto pára um incêndio?
— O senhor é que vai atear fogo a meu choupo com suas tochas - interveio o Velhaco Vermelho, que permanecia impassível, com o livro aberto sobre os joelhos. - E afaste-se um pouco, procurador, vai esmagar o meu esquimó ali no canto, que fica perigoso como um urso-branco quando se aborrece. É um índio das geleiras... Há de devorá-lo cru.
Natal de La Vaudière baixou o olhar e descobriu contra a perna o rosto chato e castanho do esquimó, e o ricto que lhe expunha os dentes agudos, limados com cuidado.
Deu um pulo para o lado e sua peruca de magistrado enganchou-se no "bico de corvo" pendurado ao teto, onde ardia a mecha a óleo. O óleo se derramou. Os rolos brancos e sedosos começaram a queimar.
Angélica quis se lançar na direção de Natal Tardieu para abafar a chama com o manto,- mas ele correra para fora, de medo do esquimó, sem saber que sua peruca estava pegando fogo. Vendo-o e querendo socorrê-lo, o escrivão Carbonnel acorreu e passou pela tábua podre da galeria da velha vizinha. O escrivão soltou um grito terrível, pois quebrou a perna, um grito a que o senhor procurador fez eco, pois, entendendo o que acontecia ao se sentir queimado no rosto, arrancou a peruca e atirou-a longe, com força. Qual cometa em chamas a cortar um céu de verão, a peruca descreveu uma curva graciosa e foi cair num patiozinho, onde todo o lixo amontoado e a cerca pegaram fogo na hora. Logo depois foi a vez de um telhado de ripas, e os moradores da tapera só tiveram tempo de correr para fora das suas quatro paredes de tábua em chamas, pular e aterrar nos montes de neve, na Rue Sous-le-Fort.
Os arqueiros, postados a meio caminho com suas tochas e ala-bardas, não sabiam se deviam descer para o ponto do incêndio ou subir para acudir lá em cima o procurador e o escrivão, que gritavam.
- Ajude-me a tirar o Sr. Carbonnel daqui - dizia Angélica ao marido de Berengária.
Mas o procurador, alucinado, contemplava abaixo dele a efervescência súbita daquelas chamas, que com tanta frequência lhe haviam atormentado os pesadelos.
Afinal o sargento deu prova de sangue-frio. Depois de ordenar que apagassem as tochas na neve - agora se enxergava bem -, tomou dois homens consigo para ir socorrer o escrivão e despachou os demais para auxiliarem a população da falésia. De cada cabana de tábuas ou toras, já atingida ou ameaçada, os moradores saíam aos berros, tentando salvar alguns trapos, um caldeirão, uma caixinha. Tentar extinguir o fogo estava fora de questão.
- Olhem pelos velhos e pelas crianças - gritou o sargento. -Levem-nos daqui...
Mas o vento carregou alguns chumaços de choupo incendiado, que foram cair no pátio traseiro do albergue Ao Navio de França, e um criado correu dizendo que barricas vazias já começavam a arder diante do depósito.
- Minhas peles de castor! - gritou a Polaca, precipitando-se. -Meus móveis!... Minha casa!...
Perfurava-se a margem a picaretadas para tentar encontrar água. Uma carroça partiu com um tonel" até o buraco, onde se cortava o gelo na esperança de enchê-lo mais facilmente, mas a neve recente fechara todas as saídas.
- Os poços!
Das casas onde havia poços internos, surgiram homens e mulheres, cada um trazendo um balde cheio e gotejante.
- Os baldes!
Não havia baldes que bastassem. Os de couro, de reserva para incêndio, estavam guardados no velho depósito do rei, cuja chave quem tinha era o escrivão Carbonnel ou o procurador.
- Os machados!
Os machados também. Falou-se em subir até o cartório. Ainda não se sabia que o procurador, queimado no rosto, e o escrivão, de perna quebrada, estavam ali mesmo na Cidade Baixa. No pátio traseiro do albergue, conseguia-se debelar o incêndio.
Mas, por entre roncos e estalidos, o bairro Sous-le-Fort estava entregue ao holocausto. O vento soprava, arrastando as temíveis pipas de fogo, e ninguém conseguia prever onde cairiam para acender outros focos.
A Cidade Baixa tombaria vítima das chamas.
A Polaca, com o rosto lambuzado de fuligem, entrou correndo no salão do albergue, onde Angélica ajudava os arqueiros a instalar o lamuriento escrivão sobre um banco.
— Ele está chamando você! Está chamando você!
— Quem?
— O Velhaco Vermelho! Ele ficou lá em cima! Angélica correu para a porta. As labaredas atingiam a choça
do Velhaco Vermelho, a última, no topo do amontoado de cabanas na falésia.
Avistou-o em pé na saliência da rocha iluminada pelas gigantescas línguas douradas, que, contorcendo-se, içavam-se até ele. Apertava nos braços, contra o peito, o grande livro de Toth, de couro e pergaminho. Olhava para o céu, que devia enxergar negro e salpicado de estrelas através da hedionda aproximação do fogo.
A Polaca caiu de joelhos aos pés de Angélica.
- Diga-lhe que apague o fogo! - gritou. - Só ele pode fazer isso! Diga-lhe que afaste a catástrofe! Diga-lhe! Só você pode fazê-lo! Pelo Espírito Santo!
Ouviram-se as estruturas da cabana estalar. As vigas de sustentação cederam e a fachada se inclinou, transformando-se num pórtico de ouro fluido acima do homem. Da multidão, que instintivamente recuava para o rio, subiu um clamor.
A cabana tombou.
Numa profusão de faíscas, desapareceram o Velhaco Vermelho, seu esquimó e seus livros malditos.
Mas, ao se soltar da falésia, a casa do feiticeiro arrastou consigo uma enorme massa de lama, rochas e gelo, que, em avalancha e num chiado atroz de vapor e emanações de matérias calcinadas, apagou o gigantesco braseiro que ardia lá embaixo.
Houve uma espécie de luta titânica entre os elementos, entre o fogo e o desabamento. Depois, as últimas serpentes vermelhas que tentavam insinuar-se para fora do caos foram detidas pelos desmoronamentos de neve, borrifadas com água às pressas, esmagadas com o pé. E a escuridão voltou a reinar. Mais tarde se ficou sabendo que a tragédia durou apenas vinte minutos.
As nuvens de fumaça espessa e nauseabunda que se elevavam das ruínas e subiam em volutas para o céu acabaram incomodando os habitantes do Castelo Saint-Louis, no rochedo. Governador, oficiais, lacaios e ajudantes de cozinha saíram para o terraço.
Os soldados da guarda do Sr. de Frontenac, alertados, correram para a Cidade Baixa, dando alarme de incêndio. O sino da catedral se pôs a soar.
Os militares arrombaram a porta do velho depósito do rei. Baldes de couro, machado, croques de ferro, escadas, foram agarrados e distribuídos. Os salvadores desembocaram na Place de 1'Anse, onde, diante do albergue Ao Navio de França, poupado, a multidão se postava imóvel, atónita, tossindo e cuspinhando sob uma chuva de cinzas.
— Como foi que o fogo se extinguiu? - perguntaram.
— Por magia! - responderam as testemunhas.
O procurador recusou energicamente todo auxílio e remédio para sua queimadura, da parte da Sra. de Peyrac, que no entanto sua mulher solicitou com insistência.
Conservou daquele dia uma cicatriz que, tornando-o menos belo, deu-lhe, não se sabe por quê, um ar mais inteligente.
Pouca gente o lamentava.
- E então, está contente? - diziam-lhe com rancor. - Limpou seu bairro Sous-le-Fort!
Notou-se que o seu superior hierárquico, Garreau d'Entremont, não lhe endereçou cumprimento algum. A carantonha do tenente de polícia deixava adivinhar um ar de contentamento. A fatuidade do jovem funcionário, bem como seu zelo, tinham-no agastado com frequência.
- Ele quis brincar de La Reynie a investir contra o Faubourg Saint-Denis e a dispersar os últimos vagabundos do Pátio dos Milagres. Mas Quebec não é Paris!
Durante muito tempo esse caso atormentou Natal Tardieu de La Vaudière.
A alguns esquecidos que, encontrando-o, indagavam da preocupação que lhe anuviava a expressão, ele respondia, com o mesmo tom matizado de medo com que os ingleses devem ter exclamado "Queimamos uma santa", depois da fogueira de Joana d'Are:
- Queimei um feiticeiro!
Anne e Serge Golon
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