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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


INEVITÁVEIS REENCONTROS / Izabella Mancini
INEVITÁVEIS REENCONTROS / Izabella Mancini

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Anita Aeixo era apenas uma menina quando deixou sua mãe para estudar fora. Cheia de sonhos e inquieta por começar uma vida amorosa, a jovem vive uma reviravolta quando retorna a cidade para o casamento da mãe e conhece em seu novo padrasto Viriatto Velasco - um rapazote pouco mais velho do que ela - uma história de amor recheada de impossíveis segredos.
Anos depois, após uma gravidez inesperada e uma história conturbada, Anita reencontra Viriatto e ambos descobrem que, ao contrário do que imaginavam, o amor de ambos segue mais vivo do que nunca.

 

 

Coloquei os pés fora do avião um tanto receosa por estar de volta após tanto tempo.

Em meus braços descansava Poncho, o bicho de pelúcia que me acompanhava durante todas as noites desde a infância. Realmente era uma vergonha uma garota de minha idade andar com tal objeto, mas minha insegurança sempre falou mais alto do que qualquer razão aparente.

O sol me queimou as bochechas assim que dei as caras no mesmo e me recordei de como o verão por aqui era tão severo no mês de Janeiro. Retirei os óculos de sol da mala de mão e o espalhei pelo rosto de modo a aliviar o impacto em minha retina. Parte de mim sorria animadamente pela lembrança deliciosa de estar em casa, finalmente.

Desci as escadas lentamente acompanhando a todos os passageiros do desembarque e, pelo que pude rapidamente constatar, o tempo estava claro e sem qualquer nuvem no céu. Os raios de sol brilhavam e o humor de todas as pessoas estava ótimo, como era de costume em minha linda cidade natal. Segui caminhando em direção ao desembarque e buscando entre as pessoas qualquer indicio de minha mãe, aquela que me obrigava a carregar um turbilhão desenfreado de saudade a tiracolo.

— Já não a vejo faz tantos anos que posso me considerar sortuda se encontrá-la primeiro entre as pessoas — Murmurei para mim mesma apalpando os bolsos em busca de meu celular.

Suspirei ao recordar que o mesmo estava completamente descarregado. Segui na ponta dos pés e ainda protegendo meu leopardo de pelúcia da multidão. Puxei um pouco meus óculos quando notei ao fundo, de pé ao lado de um balcão, um homem segurando nas mãos uma pequena placa escrita com meu nome, ou melhor, meu mais famoso apelido usado por mamãe.

" Pequena Anita ".

Sequer hesitei em caminhar em sua direção sem perceber qualquer indicio que revelasse a figura de minha mãe ao seu lado.

— Com licença... Conheço você?

A pergunta soou tensa. Observei o tal rapaz dos pés à cabeça. O mesmo também usava óculos de sol, era alto - talvez um metro e noventa - tinha cabelos loiros devidamente penteados e um aspecto nada desperdiçável. Usava jeans normal e uma blusa de mangas curtas na cor preta. A placa em suas mãos se abaixou quando me dirigi a ele um tanto apreensiva.

— Você é Anita Aeixo? — Questionou dando um sorriso cordial e educado.

Algo em sua pergunta o fez parecer surpreso.

— Desculpe, mas não sei se posso te responder isso — Revelei cruzando meus braços contra o peito tentando dar uma de durona ou esconder o discreto decote da blusinha que minha madrasta havia me feito usar para viajar. "Você não quer um namorado? Pois bem! Precisa usar uma roupa adequada a uma moça solteira de vinte anos ". Dissera ela, repudiando de imediato minha escolha cor de rosa com a estampa da Disney — Mas se me disser quem é e porque está me procurando posso até pensar em seu caso.

— Ah, então você é mesmo Anita... — Sorriu mais abertamente. Certamente se tratava de um daqueles modelos bonitões que minha mãe contratava em sua agência e sempre que podia me empurrava para um encontro — Muito prazer, eu sou... Um amigo de sua mãe, Andrea. Ela lamenta muito não poder ter vindo te pegar hoje, porém estava em uma reunião inadiável na agência e não pode comparecer.

— Não precisa se desculpar, já estou acostumada com as complicações de Andrea — Revirei os olhos e sorri — Mas desta vez ela não me disse nada sobre não poder vir, algo um tanto incomum da parte dela — Segui com a mesma postura apesar de vê-lo relaxar — Desculpe o questionamento, mas e se eu estiver diante de um criminoso sexual ou um serial killer ? — Divertindo-se, deu uma risada confusa — Por favor, passe para cá o seu celular. Quero ligar para minha mãe e confirmar essa situação — Estiquei a mão em sua direção.

Em nenhum momento houve hesitação. O rapaz enfiou a mão no bolso e tirou de lá um famoso celular prateado, mas deteve-se antes de colocá-lo em minha palma.

— Por acaso você não é nenhuma marginal ou ladra de celulares sem série, é? — Sorri e neguei ironicamente. O celular prateado foi posto em minhas mãos e disquei as teclas do número de minha mãe. O nome estava salvo na memória com o telefone dela, algo que finalmente retirou a duvida de minhas costas.

— Viriatto, querido — Respondeu a voz feminina do outro lado e constatei ser a de minha mãe — O que houve? Já está com Anita?

— Não é o Viriatto. Sou eu, Anita.

— Anita! Minha linda princesa, como você está? Já chegou? O que está fazendo com o telefone de meu... De... De Viriatto? — Riu nervosamente.

— Você mandou um estranho me buscar no aeroporto e não me disse nada, mamãe — Respondi um pouco tímida — Eu tinha que ver se era realmente verdade!

— Ah amor, fique tranquila! Viriatto é... Muito chegado a mim... — Enrolou-se — Pode confiar que ele te trará logo para casa.

— Está certo mamãe — Finalmente demonstrei algum alivio — O velhote já está ai? — Olhei para minhas unhas enquanto falava.

— Q uerida, estou em reunião e não em casa. E bem... O que quer dizer com velhote?

— O seu noivo ! Não te ofende que eu o chame assim, certo? Mas não se preocupe que em frente a ele serei um poço de educação. Jamais desrespeitaria meu futuro segundo papai — Viriatto estava em minha frente com uma expressão confusa e engraçada.

— Tu do bem, querida — Gaguejou — Vejo que hoje teremos muitas surpresas! Agora tenho que desligar. Obedeça ao Viriatto, pequena Anita!

Retirei o celular do ouvido e mirei o estranho conhecido a minha frente.

— O bedeça ao Viriatto, pequena Anita — Repetiu a ultima frase de minha mãe com a mão estendida pedindo o celular. Sorri e o entreguei.

— P equena Anita é um apelido que não me agrada. Ela não sabe que cresci — Começamos a caminhar de vagar — Ninguém me chama assim desde meus quinze anos.

— Como acabei de te conhecer acho que mereço um crédito — Apontou para o bicho de pelúcia embaixo de meu braço e corei as bochechas em vergonha.

— Que seja — Respondi nervosamente e constrangida — Por favor, nada de pequena Anita ! E minhas malas? — Olhei em volta — Onde estão?

— Paguei para um garoto levá-las para o carro — Ia perguntar como ele fez isso, mas quando saímos do aeroporto lá estava um belo carro prateado e reluzente brilhando ao sol do estacionamento em um local privilegiado. Sequer precisei perguntar se era dele, pois a luz das destravas brilharam quando Viriatto apertou o botão no controle da chave que carregava em mãos e abriu a porta para mim — Avante, pequena Anita .

Dei de ombros e adentrei com meu bicho de pelúcia em mãos. A porta foi fechada e um aroma deliciosamente masculino invadiu meus sentidos como uma pancada forte. Lá estava ele, segundos depois, ao meu lado acomodado no banco da direção.

— Então, grande Viriatto — Brinquei e ele gargalhou — De onde conhece minha mãe?

— Bem... — Pensou um pouco enquanto dirigia pelas conhecidas ruas de Londrina — Sua mãe é basicamente a melhor amiga de minha tia e nos conhecemos através dela.

— Oh, interessante. Pensei que você fosse um modelo da agência de minha mãe. Ela sempre escolhe os melhores para servirem em sua vida pessoal — Era incrível como o caminho para casa estava do mesmo jeito desde que sai daqui, aos dez anos, para morar com meu pai e estudar fora quando Andrea e ele se separaram — Você é daqui?

— Sou da capital do Estado — Explicou enquanto dirigia de maneira concentrada — Você sim é da cidade — Afirmou com os olhos fixos a sua frente.

— Sim. Como sabe disso?

— Andrea me contou. Falamos muito sobre você.

— Andrea anda falando de mim, é? — Cruzei os braços — Posso saber o que, especificamente?

— Não me lembro de muitos detalhes, mas sei que tem medo de água porque se afogou na piscina de sua avó aos seis anos. Aos catorze era zoada no colégio por usar um aparelho dentário horrível e não ter seios — Corei mais ainda, de modo a me afundar no banco — Também sei que é alérgica a mel.

— Você sabe mesmo sobre mim — Coloquei o braço na janela e desviei o olhar do dele — Ela contou até sobre o lance dos seios.

— Não tem problema. Comigo seus segredos estarão bem guardados... — Garantiu amigavelmente.

— Ao que parece vocês são bem amigos — Dei uma ênfase na palavra — Você conhece o idoso? Quer dizer, meu novo padrasto? — Errei de propósito, mas ele não sorriu.

— Conheço muito bem — Assentiu levemente, ainda concentrado em dirigir.

— Minha mãe não tem jeito! — Franzi o cenho e suspirei — Somente vai se casar para satisfazer seu desejo bobo de finalmente não ser mais separada — Viriatto continuava com expressão relaxada dirigindo — Aposto que esse homem é rico e tem uma doença terrível ou mais de oitenta anos e vai logo partir para outra.

— Sua mãe é uma boa mulher e não existe idade para o amor, Anita — Sua voz soou grave e rica — Isso é algo incontestável.

— Oh eu sei — Encarei-o retirando meus óculos — M as minha mãe não ama esse homem e isso eu te garanto!

Ao me dar conta já estávamos na garagem da casa de minha mãe, um bonito imóvel espaçoso aos arredores de Londrina. Viriatto estacionou o carro com cuidado e me olhou assim que o fez, avaliando-me o rosto com certa curiosidade.

— Você não se parece com Andrea — Murmurou com os olhos atentos em minha face por trás dos escuros óculos dele — E m quase nada — Senti as bochechas corando demais e pigarreei um tanto desconcertada pela análise de meu rosto.

— É o que dizem... Pareço-me mais com meu pai — Minha voz soou trêmula — Vamos?

Lá estava ele ao lado de fora abrindo a porta de modo que eu passasse por ela. Era a mesma casa de antes, o mesmo lugar que deixei aos dez anos para ir morar com meu pai Carlos em São Paulo. O antigo e luxuoso imóvel de meus pais, que um dia formaram um casal composto por um renomado médico que se casou na juventude com uma modelo famosa - ambos ambiciosos e envolvidos em um matrimônio frustrado.

O único fruto dessa união era eu, a jovem Anita que cresceu entre a ponte aérea de Paraná com São Paulo.

Carlos e Andrea viveram um casamento tortuoso e com a chegada da filha tudo piorou. Talvez a culpa fosse minha. Talvez o fato de nunca ter me dado muito bem com Andrea tivesse influenciado meu pai a largar tudo e me levar embora com ele para nunca mais sofrermos ao lado da tempestuosa Andrea, que com sua forte personalidade e ambição sempre conseguia o que queria.

Ainda era a mesma casa onde eu passava parte de minhas férias de verão todos os anos e encontrava minha mãe pura e simplesmente por ela ser minha mãe .

É claro que a amo, mas sinto como se Andrea fosse uma irmã mais velha ou uma tia qualquer. Nunca consegui nutrir por ela aquele sentimento fraterno de mãe e filha. A palavra maternidade não se encaixa no vocabulário de Andrea e a meu ver a única figura materna exemplar em minha vida era a da madrasta Anne.

Entre Andrea e eu existe uma longa amizade. Conversamos sobre homens, sobre minha virgindade e sobre o que quero ser quando desprender da barra da calça de meu pai . Andrea, para mim, é de fato algo muito importante. Talvez não fosse vista por mim como devesse ser vista aos olhos de uma filha, mas é minha melhor amiga. A melhor amiga que há vinte anos me deu a vida.

— Ainda é como se lembra? — Viriatto estava atrás de mim quase colando seu corpo ao meu. Um arrepio estranho percorreu todo meu ser e então pigarreei nervosamente.

— Exatamente como me recordo — Garanti caminhando em direção a casa. Viriatto abriu a porta para mim com seu jeito cavalheiro e me senti estranha querendo saber o porquê dele ser tão gentil.

De fato era lindo.

Lindo de até doer os olhos se eu o olhasse demais.

— Você sabe quando Andrea chega? — Questionei sentando-me no sofá um tanto tímida.

— Acredito que depois do almoço — Garantiu parado ao lado da janela de vidro com as mãos no bolso.

A paisagem da janela me permitia ver o jardim e a pequena clareira de flores em meio a ele. Por alguns instantes, ainda com meu leopardo de pelúcia no colo, peguei-me imaginando se não se tratava de uma cena de filme.

Viriatto encontrava-se lindo parado ao lado da janela e sozinho em uma sala comigo . Finalmente comecei a compreender Adele, minha melhor amiga. A mesma sempre dizia que existia uma ponte de madeira bem fraquinha em meio ao amor e ao desejo. Quando se amava muito a ponte se rompia e ambos se uniam, mas quando se desejava intensamente e a ponte se rompia antes do tempo as consequências poderiam ser gravíssimas.

— Quer conhecer seu novo quarto? — Apontava para a escadaria de vidro em meio a enorme sala.

— Oh claro — Deixei minhas sandálias de lado e fui descalça atrás de Viriatto pela escada longa e alcancei o corredor dos quartos.

Andrea havia me falado sobre meu novo quarto. Desde que tinha ido embora não deveria estar grande coisa, a não ser que eu ainda brincasse de bonecas e dormisse em uma cama da Barbie.

A porta ainda era branca e simples, mas quando aberta por Viriatto deparei-me com uma enorme e alta cama de casal envolta por um mosqueteiro branco. As paredes cor de gelo eram claras e ao mesmo tempo intensas por refletirem os raios de sol que entravam pela grande janela de vidro da sacada. Também tinha uma cortina longa e esvoaçante decorando a janela, assim como um closet enorme e de aspecto antigo.

— O que achou? — Questionou ao meu lado, ainda segurando a maçaneta. Olhei o grande espelho preso em uma parede quase toda e emoldurado por desenhos. Um daqueles anjos brancos e sem vida se parecia muito com Viriatto. Dei-me conta que era o mesmo espelho que havia em meu quarto nesta casa quando ainda era menina.

— Está tão adulto — Sussurrei entrando no quarto em passos pequenos e comprimindo Pocho contra o peito.

Observei minha própria imagem no espelho e lembrei-me deste mesmo lugar em minha infância. O mesmo espelho que há dez anos refletia uma imagem inocente, pequenina e graciosa agora me mostrava à imagem de uma mulher feita de curvas pequenas e bem postas. Eram os mesmos olhos escuros, o mesmo cabelo negro e o mesmo olhar inocente, mas absolutamente tudo estava diferente.

— Você é adulta, pequena Anita. J á vão trazer suas malas. Com licença.

— Viriatto espera! — Murmurei meio tímida — Você vai embora?

A estranha e agora familiar figura de Viriatto se tornou em pouco tempo a única coisa real na volta para casa. A ausência de Andrea apenas confirmava o pouco caso que minha mãe sempre fez de mim durante toda a vida. Para ela o trabalho sempre veio em primeiro lugar, acima de tudo e todos, até mesmo a própria família.

— Vou deixá-la a vontade para que tome um banho e se troque para o almoço — Concordei com um aceno breve — Com licença.

Após mais um olhar em minha direção, a porta se fechou e ele se foi. Levei as mãos ao coração e sentei-me na beira da cama me sentindo estranhamente abalada. O problema, talvez o único problema, fosse não saber se a aceleração constante de meus batimentos cardíacos se devia a mudança drástica de minha vida nos últimos anos ou ir almoçar na companhia deste estranho conhecido.

Meu corpo precisava relaxar e o fato ficou ainda mais evidente quando me vi sob a água do chuveiro. Voltar era diferente do que sempre ter estado aqui. Encarar minha mãe após tantos anos, ainda por cima com um padrasto na conta, seria por mais impactante. Finalizei o banho um tanto ansiosa para voltar a ver Viriatto. Queria questioná-lo sobre meu novo padrasto e, quem sabe, descobrir algumas nuances para me dar bem com ele.

Girei a maçaneta da porta com toda a coragem de meu ser.

O sol ainda brilhava lá fora e já era por volta do meio-dia. Desci as escadas principais em direção à cozinha sentindo uma brisa fresca vinda da porta. Assim que cheguei à enorme sala de jantar, lá estava ele, Viriatto, falando ao celular em tom baixo e costas para mim. A mesa estava posta e bonita, sinal de que todos os empregados de minha mãe estavam avisados de que em breve eu chegaria para visitá-la.

Cheia de fome sentei-me e assisti Viriatto mandar beijos e desligar o celular com as bochechas um tanto ruborizadas. A forma como se portou evidenciou que não se tratava de qualquer pessoa do outro lado da linha. Sorri sozinha. Obviamente o bonitão misterioso não era um homem solteiro.

— Anita — Cumprimentou-me puxando uma das cadeiras para se sentar em frente a mim.

— Viriatto... — Cumprimentei de volta e apoiei o rosto nas mãos — Era sua namorada?

— Alguém importante — Desconversou — Está com fome, eu imagino.

— Sim, de fato — Concordei um tanto decepcionada. Por um minuto pensei que os olhos dele brilhassem em minha direção, mas existia alguém para ele. Uma namorada — Está muito calor também. Havia esquecido como o verão daqui é intenso.

O almoço começou a ser servido e em silêncio passamos a comer. Por várias vezes me esqueci de levar os talheres à boca enquanto o contemplava.

Jamais vi olhos verdes tão claros e límpidos como os dele. Jamais estive na presença de alguém tão educado e agradável.

Durante minhas observações encontrei os olhos dele em meu rosto novamente e corei com o contato. Podia sim existir uma namorada, mas Viriatto sem dúvidas estava me encarando enquanto eu não estava olhando. Sorri em direção a ele em uma das escapadelas e o vi absurdamente sem graça.

— Você gosta de comida italiana? — Questionou ao ver-me se deliciando com a macarronada feita especialmente para mim a pedido de Andrea.

— Sempre gostei. Meu pai tem descendentes italianos e na casa dele a culinária de lá é muito presente — Expliquei rapidamente, buscando um pouco de simpatia lá no fundo da alma.

— Conheço um restaurante italiano ótimo onde fazem a melhor massa da região. Se quiser podemos ir juntos em qualquer horário livre antes do casamento de sua mãe — Encarei-o um tanto surpresa e não pude evitar uma tosse nervosa.

Era a primeira vez que um rapaz me convidava para sair tão diretamente. Era a primeira vez que meu coração deveras palpitava pela possibilidade! Tomei um gole de água e sorri para ele um tanto tímida.

— Eu adoraria.

O sorriso de resposta foi ainda mais encantador que o de convite, algo que fez meu coração voar ainda mais. Sai da mesa após receber uma ligação de meu pai e minha madrasta. Ambos queriam saber sobre minha chegada e certamente encheram—me de perguntas até o momento em que, finalmente, a figura bela de Andrea se materializou na porta de meu quarto.

Como de costume Andrea usava roupas pouco adequadas a sua idade, uma vez que mesmo aos quarenta e poucos anos ainda desfilava por ai com seu esculpido e plastificado corpo de adolescente.

— Vai ficar ai com cara de boba ou vai dar um longo e caloroso abraço em sua mãe? — Questionou em meio a sorrisos e lágrimas.

Há quanto tempo não nos víamos pessoalmente, limitando nosso contato através de câmeras? Saltei da cama e corri até seus braços abertos e a envolvi com animação. Era como rever minha melhor amiga após tantos anos separadas.

— Estava com saudades, Andrea — Sussurrei enquanto ela ainda me apertava fortemente contra o peito siliconado.

— Pequena Anita, minha princesa! — Choramingou comprimindo—me ainda mais — Como está moça e bonita! Sequer parece que se passaram quatro anos desde que não passa por aqui! — Beijou meu cabelo com carinho.

— Você está ótima Andrea — Comentei quando finalmente me soltou, mas não demorou a me puxar novamente — Oh!

— Não me chame de Andrea... Chame-me de mamãe! — Pediu de maneira dengosa e tive de gargalhar. Durante a infância nunca criei o hábito de chamá-la de mãe, uma vez que isso a deixava "mais velha". As coisas pareciam ter mudado um pouco e Andrea se mostrava sentimental.

— Mãe... Você está me sufocando! — Grunhi ainda prensada contra os seios dela — Estou ficando sem ar!

— Oh querida, perdão! — Separou-se de modo a observar meu rosto e depois meu corpo — Ah, mas você está tão parecida com Carlos! Está com um corpão, hein garota? Dê uma olhada nesses peitos! — Levou a mão ao meu busto e apertou os meus seios. Afastei a mão dela já acostumada com seus comentários em relação ao meu corpo — Temos tantas coisas para conversar! — Tomou uma de minhas mãos e me puxou em direção da cama, sentando-se — Diga-me... Gostou de seu novo quarto? A decoração foi por conta de meu noivo e eu!

— Estou apaixonada pelo quarto, mãe. Muito obrigado pela preocupação, vocês não precisavam ter se incomodado — Sorri acariciando o rosto dela.

— Obviamente devemos nos preocupar. Meu noivo principalmente, ele está aflito e temendo que não goste dele — Comprimiu e os lábios aguardando minha resposta. Dei de ombros.

— Claro que vou aprová-lo. Se te fez feliz também me fará, pode ter certeza! — Garanti e ela pareceu um tanto mais aliviada.

— Você é uma menina incrível, querida. Tenho muito orgulho da mulher que se tornou — Emocionada, beijou minha mão com carinho — Falando nisso... Será que algum homem já teve a sorte de tocar esse coração? Quando me dará um genro para viajarmos juntos em casal?

— Não precisa criar tantas frases para perguntar se já perdi a virgindade, mãe — Ela gargalhou alto. Conheço Andrea bem o suficiente para saber que a mesma não se conforma em me ver solteira e virgem aos vinte anos — A resposta é não. Devo adiantar que também não tenho pressa em encontrar alguém. Sabe que acredito naquela história toda de destino, não sabe?

— Claro que sei... — Acariciou meu cabelo — Você é uma alma romântica como fui um dia. Uma menina doce e meiga que espera pelo príncipe encantado — Balançou a cabeça em negativa — Tive que sofrer para aprender que isso não existe, meu amor. Espero que você não precise passar por isso também.

— Bom... Se você sofreu um dia, hoje não sofre mais — Não me aprofundei no assunto, pois sabia que renderia uma bela discussão. Andrea passou por um casamento ruim com meu pai e após isso se tornou uma mulher durona que não acreditava no amor tanto assim. Já eu, vendo o casamento bonito de meu pai e minha madrasta, sabia que era possível realmente viver uma vida feliz e apaixonada — Hoje está noiva de uma pessoa que, ao que você me diz, é o amor de sua vida. Onde está o seu noivo?

Sua expressão mudou no mesmo momento e pareceu nervosa de repente.

— Vou apresentá-lo e espero que seja compreensiva — Encarou profundamente meus olhos — Sei que como é uma menina romântica não será um problema para você entender que, apesar de tudo, eu e meu noivo podemos sim ser felizes.

— Claro mãe — Assenti positivamente — Te ver feliz é o que me importa.

Andrea pulou da cama e entrou no closet do quarto. Voltou um tempinho depois com um embrulho em mãos que eu já tinha visto lá dentro anteriormente.

— Preparei uma surpresa... Aqui está seu vestido de madrinha! — Depositou o embrulho sobre a cama — Abra e veja se gosta! — Bateu palmas de maneira empolgada.

Ser madrinha do casamento.

Parte de mim se emocionava com a ideia de finalmente ver Andrea feliz e assistir tudo de camarote. Puxei a fita que prendia a caixa e deparei-me com um adorável vestido dos sonhos! Ergui o vestido de cetim em minha frente, analisando o modelo frente única na cor vinho e com uma bela faixa de cristais que marcava a cintura discretamente.

— Nossa mamãe... — Sussurrei com o olhar fixo e apaixonado no vestido — É mesmo um vestido incrível!

— Mandamos desenhar especialmente para você, querida. Meu noivo e eu queríamos que seu lugar e seu vestido fossem marcantes, uma vez que sua opinião é tudo o que importa para nós.

— Obrigado mãe. Estou deslumbrada — Comemorei observando os detalhes ainda mais de perto.

De fato nunca usei uma peça tão rica e linda como o tal vestido, algo que já tornou a vinda para o casamento válida.

— Experimente agora para vermos se precisa de algum ajuste. De fato eu não contava que seu corpo estivesse tão bonito como está — Referiu-se ao meu decote. Meus seios haviam crescido consideravelmente durante os últimos quatro anos.

— Está certo, irei colocá-lo. Você me convenceu — Coloquei-me de pé com o vestido em mãos. Era melhor checar se não havia nada de errado com o vestido no corpo antes que não restasse mais tempo para ajustes.

— Estarei lá embaixo te esperando, meu amor. Quero ver se meu noivo já esta pronto para ser apresentado a você oficialmente.

— Em um minuto estarei na sala — Andrea concordou e saiu do quarto saltitando de felicidade.

Rapidamente ajustei-me ao vestido e mirei-me no espelho.

Jamais me senti tão bonita como me agora, analisando minha silhueta perfeitamente desenhada pela costura perfeita do vestido. Ajeitei o cabelo de modo a cair ao redor do corpo - agradecendo minha madrasta por não ter me apoiado a cortá-lo durante alguns anos - e sai do quarto em direção à sala de pés ainda descalços.

O sorriso em meu rosto era reflexo da alegria que a autoestima elevada poderia causar devido a um mero vestido. Todos os detalhes do mesmo pareciam ter saído direto de minha imaginação e sonho de princesa, algo tão profundo que tocava em meu mais secreto sonho. Sempre desejei usar algo assim, sedutor e recatado, exuberante e delicado.

Empolgada para me apresentar a Andrea, caminhei até as escadas com um belo sorriso e o coração transbordando. Me ver feliz também era o objetivo dela, que me conhecia perfeitamente a ponto de me preparar tal surpresa.

Lá estava minha mãe parada ao lado da figura bonita de Viriatto, ambos parados ao pé da escada e com a expressão curiosa. Pigarreei e então se voltaram para mim. Por pouco não desmaiei quando senti os olhos dele me percorrerem dos pés a cabeça com uma intensidade tão provocante que causava estremecimento.

Mordisquei os lábios vendo as mãos de minha mãe se fecharem juntas como faz uma menininha sonhadora ao ver-me descer as escadas com as mãos deslizando no corrimão de madeira. Concentrei-me em não pisar na barra do vestido até chegar ao chão, onde finalmente ergui os olhos para ambos. Senti como se o mundo se afundasse junto com meu estômago ao deparar-me com o belo par de olhos claro de Viriatto fixos em minha direção como se estivesse diante da oitava maravilha do mundo.

Nosso olhar não se separou nem mesmo quando Andrea finalmente rompeu o silêncio que pairava na sala.

— P equena Anita ! — Sussurrou com o olhar deslumbrado — Você parece ser a mulher mais linda que já vi! É como uma princesa! Não é mesmo, querido ? — As mãos dela pousaram carinhosamente no ombro de Viriatto e neste momento, como em um estalo intenso, fui lançada a realidade.

Andrea apenas chamava de querido às pessoas seletas de sua vida. Aqueles que ela realmente amava .

— Querido? — Não consegui evitar o tom estupefato, encarando Viriatto paralisado com os olhos nervosos e aflitos diante da situação — Não me diga que ele e você...

O silêncio voltou a dominar a sala quando respirei profundamente.

A decepção foi quase uma dor física quando me dei conta do que realmente acontecia ali, diante de meus olhos.

O homem pelo qual cheguei a me interessar e acreditei estar me dando atenção por gostar de mim era ele. O noivo dela.

Viriatto é o noivo dela !

"Para o amor não se tem idade".

"Espero que entenda que é com ele que eu sou feliz!"

Não pude evitar quando recuei dois passos imaginar os dois juntos. Minha mãe aos quarenta e cinco anos se casaria com um garoto que tinha idade para ser seu filho, meu irmão! Fechei os olhos com a surpresa e suspirei, agarrando-me ao corrimão.

— Anita, filha, este é Viriatto, o meu noivo .

— S eu noivo? — A expressão estupefata em meu rosto estava impossível de ser disfarçada — Quantos anos ele tem?

— Ele tem vinte e cinco e...

— Tem idade para ser meu irmão... — Sussurrei mais para mim do que para ela.

Tudo aquilo era muito pior do que eu poderia imaginar! O noivo de minha mãe era vinte anos mais jovem do que ela e apenas cinco anos mais velho do que eu!

Agora tudo fazia sentido.

— Anita, nós nos amamos e tudo foi muito intenso... — Começou a explicar pegando nas mãos dele decididamente. Aquilo me causou um comichão estranho — É isso o que importa! Você não me disse que entende agora mesmo? Que quer me ver feliz ?

Abaixei os olhos um tanto envergonhada. Mesmo que tudo fosse estranho, de fato era uma atitude preconceituosa de minha parte tratá-los daquela maneira. Parte de mim sabia que todo meu espanto se devia ao fato do encantamento que nutri sobre Viriatto.

— Me perdoe — Murmurei sem a coragem de encará-los — Você tem razão, mamãe. É que foi um choque para mim, realmente não esperava que seu noivo fosse... — Meus olhos encontraram com os dele — Tão novo. Desculpem.

— Anita? — Viriatto chamou-me dando um passo a frente — Acho que agora podemos nos apresentar formalmente. Sou Viriatto, o noivo de sua mãe — A mão dele estendia-se a minha frente pedindo para que eu a apertasse. Engoli em seco antes de tocar a mão dele com a minha brevemente.

— E eu sou sua enteada — Meu tom desconcertado o fez compreender o recado.

— Espero que vocês sejam amigos daqui para frente. São as pessoas mais importantes de minha vida — A voz de Andrea nos despertou.

— Farei o possível para que isso aconteça. Eu prometo — Garanti a eles com convicção — Agora se me derem licença...

Dei-lhes as costas sem pensar por nem mais um segundo. Caminhei em direção ao jardim em busca de ar fresco e sequer me importou que o belo vestido ainda estivesse em meu corpo. Desci pela clareira e me sentei sob a última árvore com os joelhos dobrados ao chão. Apertei os olhos com a respiração ofegante e o peito apertado em uma sensação esquisita.

Sequer o conhecia.

Sequer aconteceu nada .

Me iludi sozinha por um curto período que foi o suficiente para me baquear com a descoberta. A sensação era de ter sido traída como uma menina tola. Me senti imensamente boba por Viriatto ter flertado comigo desde que cheguei .

— Anita... Está tudo bem? — Era a voz dele. Viriatto. Ergui o olhar embaçado pelas lágrimas que se formavam quando me deparei com ele caminhando em minha direção. Provavelmente Andrea era muito covarde para me encarar naquele momento — Espero que entenda porque não contei quem era logo de cara... Apenas fiquei receoso por sua reação.

— O que diz de minha reação agora ? — Disparei limpando uma lágrima disfarçadamente — Tudo isso é muito estranho.

— Não era minha intenção ocultar nada. Sei que é difícil para você, assim como também é para todos aqueles que não têm mente aberta aceitarem algo assim, mas acredite... Andrea e eu estamos convictos do que fazemos. Apenas temíamos o que você pensaria. Você é o que importa — Abaixei o olhar, mas Viriatto se ajoelhou a minha frente e o ergueu — Você é importante demais, pequena Anita.

— Tire as mãos de mim — Desviei o rosto apertando os olhos o máximo que podia

— Não sou importante como dizem e não me chame de pequena Anita — Coloquei-me de pé — Agora, se realmente quer me fazer um favor, deixe-me em paz, papaizinho — Ironizei, mas a mão dele se fechou ao redor de meu pulso antes que pudesse sair.

Viriatto puxou-me em direção a ele e murmurou ao meu ouvido.

— Irei te deixar em paz como pede — O encarava sem conseguir desviar a atenção dos belos olhos claros — Mas nunca mais volte a me chamar de papaizinho — Suas mãos me largaram e suspirei pela falta que fizeram. Sem olhar para trás Viriatto simplesmente saiu caminhando sem dizer mais nada.

— Espero que minha mãe não fique sabendo disso...

Sussurrei para mim mesma enquanto o assistia se afastando.

Um padrasto quase de minha idade. Um padrasto tão lindo. Um padrasto que antes mesmo de eu sequer saber quem era me fez se encantar por ele.

No fundo eu sempre soube que ali estava começando um grande problema.

 


CAPÍTULO DOIS

INSTINTO

 

Apesar de estar na casa de minha mãe a cerca de três semanas nada parecia realmente acontecer por ali.

Passei grande parte do tempo correndo de um lado para o outro atrás de vestidos para daminhas, flores, cardápios e tudo o que se relaciona com preparativos de um casamento. Empenhar-me para ajudar mamãe com a festa era uma tentativa desenfreada de me desconectar de todo o resto, principalmente no que dizia respeito ao noivo.

Estar junto dela como a mais importante madrinha também demonstrar meu interesse em sua felicidade, compensando assim a falta que sempre acreditei ter cometido ao escolher viver com meu pai ao invés de morar com ela.

Ao fechar os olhos ainda podia recordar com riqueza de detalhes o dia em que resolvi ir embora com o meu pai. Ainda conseguia ouvir o choro desenfreado de Andrea ajoelhada ao chão implorando para que eu ficasse. Ainda conseguia lembrar o último abraço que demos antes que eu entrasse no avião e do telefonema que demorou quase dois meses para que ela atendesse. Estar com Andrea neste momento e apoiá-la me parecia ser o correto a ser feito.

Apesar de nossa personalidade ser absurdamente diferente, ela ainda era minha mãe. Apesar de sermos totalmente opostas, existia um sentimento imenso que nos uniria para sempre.

Faltavam dezessete dias para o casamento e íamos para o Rio de Janeiro, local escolhido para a realização da cerimônia. Sem muita vontade fiz a mala com profunda inquietação. Minha vontade eu ficar na casa de minha mãe e ir para o Rio somente no dia da cerimônia. Logo em seguida o plano era desaparecer novamente da vista dela e do maridinho por um tempo seguro o suficiente.

Seguro porque ainda era impossível parar de pensar nele.

Nada me tirava da cabeça que o olhar insistente de Viriatto sobre mim era muito mais profundo do que deveria ser. Nada conseguia apartar de meu coração que aquele que deveria ser somente um padrasto me comia com os olhos em meio ao silêncio que compartilhávamos.

Jamais me desrespeitou e sequer ficava a sós comigo na casa. Viriatto fazia de tudo para não cruzar meu caminho e mal olhava em meus olhos quando nos encontrávamos. Era discreto, educado e muito formal, mas o verde intenso de seus olhos parecia queimar quando em contato com os meus.

Resmunguei uma vez mais ao pensar nele. Deitei-me sobre a cama e afundei uma almofada em meu rosto. Parte de mim não aceitava o fato de tudo isso estar acontecendo em minha vida. Demorei muito tempo para conseguir sequer me impressionar com um homem parar o mesmo ser nada mais nada menos que o futuro marido de minha mãe!

— Querida? — Retirei a almofada dos olhos e lá estava Andrea parada com a cabeça dentro de meu quarto — Posso falar com você um instante?

— Sim mamãe — Voltei-me para a mala novamente terminando de colocar as roupas dentro dela.

— Será que podemos descer para a sala? Preciso que você e Viriatto estejam juntos — Parei de me mover e a encarei um tanto intrigada. Preciso que você e Viriatto estejam juntos. A frase me causou imenso temor.

— É algo sério? — Andrea saiu do quarto sem a resposta e a segui com os braços cruzados em frente ao corpo, absurdamente na defensivamente. Descemos as escadas e Viriatto chegou juntamente vindo da varanda da frente. Paramos lado a lado após um breve cumprimento — Diga mamãe. Estou curiosa.

— O assunto é importante — Iniciou muito séria — Sei que o combinado era de nós três irmos juntos ao Rio, mas houve um imprevisto na agência — Viriatto também cruzou os braços. Olhei-o de relance — Um investidor me comunicou sobre um desfile na semana de moda de Paris. É um crime me negar estar presente com as minhas modelos por lá!

— E quando será isso? — Questionou ainda de braços cruzados ao meu lado.

— Terá inicio na próxima segunda e acabará no próximo sábado.

— Mas mamãe, amanhã é o dia do nosso voo! — Exclamei — Não dá mais tempo de adiarmos a viajem! Se pararmos com os preparativos no Rio dará tudo errado no dia do casamento. Temos que ensaiar os padrinhos, as garotinhas e fechar o cardápio com o Buffet... São tantas coisas!

— A pequena Anita tem razão, querida — Viriatto falou ao meu lado, fazendo-me rodar os olhos pela menção de meu apelido — Não podemos adiar as coisas porque ficará muito em cima da hora.

— Não vamos parar! Por isso vocês dois vão juntos para o Rio amanhã e irei para Paris com a agência — Os olhos de Viriatto se voltaram para mim ao passo em que os meus buscaram os dele — Vocês seguem com os preparativos e assim que terminar por lá pego o primeiro voo para o Rio. Acreditem, vai dar tudo certo!

— Não é o correto a ser feito, mas parece ser nossa única solução — O comentário dele me provocou certo arrepio. Voltei a encará-lo um tanto receosa, mas mamãe parecia muito empolgada com tudo isso.

— Obrigado por compreender, querido — Pousou uma das mãos no ombro dele e desviei o olhar rapidamente.

— Não sei se concordo... Eu e Viriatto juntos no Rio para planejar tudo? Não temos gostos muito semelhantes e as coisas podem desandar.

— Sinto muito querida, mas vocês correrão o risco — Respirei profundamente. Por minha mãe isso teria de ser feito — Para nos despedirmos organizei um jantar em um restaurante italiano maravilhoso!

Sequer tive tempo de pensar.

Comida Italiana.

Foi onde combinamos ir antes que a farsa viesse à tona.

Viriatto subiu em direção aos quartos com Andrea e fiz o mesmo. Ambos estavam abraçadinhos e aquilo me embrulhou o estômago no mesmo momento. Tive somente uma hora para me arrumar, portanto escolhi um vestido simples de alças e prendi o cabelo em um penteado discreto.

Quando desci encontrei o noivo de minha mãe parado ao lado da janela de vidro do jardim como no primeiro dia em que estivemos juntos nesta sala. Seus olhos desviaram em minha direção enquanto meus pés desciam pelas escadas delicadamente. Não ousei encará—lo, mas pelo que o percebi o próprio sequer disfarçava o interesse por minha presença.

— Será que podia ao menos disfarçar...? — Questionei cruzando os braços com a bolsinha de contas nas mãos.

— O que quer dizer? — Seus olhos não me abandonavam por um só instante e parte de mim, confesso, estava adorando a atenção — Você está linda, pequena Anita — Comentou em tom sincero e com os olhos nos meus olhos.

— Acha que Andrea iria gostar de te ver me elogiando depois de me olhar desse jeito? — Terminei de descer as escadas e fui para longe dele em passos firmes.

— Porque tão geniosa? — Questionou me seguindo quando fui para a varanda da frente e parei olhando a paisagem segurando na grade — Tão somente lhe fiz um elogio, algo singelo e formal.

— Singelo e formal... — Sussurrei para mim mesma. Em segundos senti os dedos dele em minha face, de modo a desviar meu olhar em sua direção — O que está...?

— Porque tem me evitado desde que soube sobre minha relação com Andrea? — O tom se modificou e Viriatto me parecia na defensiva. Curioso, seguia esperando uma — Apenas quero que sejamos bons amigos, pequena Anita.

Desviei o rosto do dele olhando diretamente para frente e tremendo dos pés a cabeça como uma bobinha amedrontada.

— Você mentiu para mim — Murmurei — E não gosto de pessoas que escondem as coisas.

— Já expliquei tudo isso... — O interrompi chegando ainda mais perto do que poderia ser recomendado.

— Pensa que não vejo que me come com os olhos quando ninguém está olhando? — Os olhos claros se mantinham presos ao meu rosto ao passo em que sequer uma palavra era dita para contestar — Não acho prudente um padrasto fazer isso com uma enteada.

— Você não é nenhuma menina e tão pouco sou cego — O comentário foi acompanhado de um sorriso tímido — Não é você quem diz que somos da mesma idade...

— Mas você ainda vai se casar com a minha mãe! — Sussurrei nervosamente — Não deveria olhar para nenhuma mulher, muito menos para mim! — Repreendi e ele me segurou levemente pelo cotovelo.

— Eu também já vi você me olhando... — Disse perto de meu ouvido e mordi os lábios para não responder algo. Na verdade não existia defesa nenhuma diante de tal verdade — Acredito que seja errado da mesma maneira.

Puxei o braço de perto dele e sai de perto quando mamãe desceu as escadas de maneira contente e usando um bonito vestido azul escuro. Notei que em minha presença os dois não ficavam se abraçando e muito menos se beijavam. Talvez fosse por minha reação meio relutante em não esconder que não era a favor de mamãe casar com um homem tão jovem.

Enfrentamos comentários desagradáveis durante a noite sobre a diferença de idade e foi inevitável passar por certos constrangimentos. O garçom, por exemplo, quando chegou para trazer o cardápio entregou apenas um para mim e para Viriatto imaginando que nós dois fossemos o casal daquela mesa. Corei e Viriatto foi compreensivo aguardando meu pedido para depois comunicar o dele sem mais constrangimentos.

Mamãe me contou um pouco mais sobre a história deles e como Viriatto havia dito, Andrea era muito amiga da tia dele e por ela ambos se conheceram.

Tudo aconteceu em uma noite em que Viriatto faria um concerto de piano. Eu não sabia, mas além de ser lindo, Viriatto era também pianista profissional e muito conhecido pela alta sociedade. O jovem noivo de mamãe era um herdeiro rico e mais talentoso pianista da atualidade. Não me impressionei em não saber de tal fato, uma vez que jamais me interessei por piano e tão pouco pela alta sociedade Brasileira.

— Anita toca violino — Mamãe disse a Viriatto em certo momento enquanto eu observava as pessoas no restaurante — É muito talentosa.

— Violino? Como eu poderia imaginar... — Me encarou surpreso após beber um gole de vinho — Aprecio demais o violino. Se não fosse pianista certamente tocaria violino — Voltou-se para mim com certo brilho no olhar — Você toca desde que idade?

— Desde os quatro anos — Respondi secamente.

— Também comecei por aí — Parecia demasiadamente feliz pela descoberta de mais algo incomum entre nós — Pretende seguir carreira?

— Não que eu pretenda — Andrea desviou para conversar com uma moça que passou ao lado de nossa mesa e a cumprimentou — Minha vontade é me dedicar ao violino sim, mas meu pai acredita que isso não é futuro — Dei de ombros segurando minha taça de vinho — Nos últimos tempos ele mudou de ideia e está me dando uma força com isto e talvez até o final do ano eu consiga entrar em uma orquestra ou quem sabe fazer apresentações independentes.

— Isso não é problema agora — Não deixava de me olhar. Senti-me estranhamente perturbada com aquilo — Tenho muitos amigos que trabalham no ramo e posso fazê-los te ouvirem tocar. Se for tão boa quanto Andrea diz que é sua vaga estará garantida.

— Oh, mas tenho tanta vergonha — A minha frente estava um homem diferente do que conheci a pouco mais de um mês. O seu olhar era repleto de admiração e felicidade por saber que partilhávamos de algo tão intimo como o amor a música — Acha que tenho chance?

— Quero te ouvir tocando, mas somente pela maneira como fala eu já assistiria a todos seus concertos.

Uma vez mais o comentário sorrateiro e aparentemente inocente de meu padrasto fez com que meu corpo todo se arrepiasse. A maneira como me olhava era a mais errada de todas elas...

— E então? — Andrea voltou-se para nós com um largo sorriso — Qual o assunto? — Quando a mão dela buscou a de Viriatto sobre a mesa vi o olhar dele se tornar tenso e arredio, um tanto confuso pela situação.

Engoli em seco e tomei um gole do vinho banco que o garçom havia acabado de servir em minha taça.

A comida chegou e comemos em total silêncio. O prato de Viriatto era exatamente como o meu e o fato chamou muito a atenção de mamãe, que comemorava por termos vários gostos em comum. Para nós dois tudo ainda era uma surpresa... Jamais conheci alguém que se parecesse tanto comigo quanto ele.

— Qual tal nos ajudar a escolher o destino da lua de mel, pequena Anita? — Pigarreei com o pedido de mamãe e sequei os lábios com o guardanapo.

A menção da palavra lua de mel me contraiu o estômago instantaneamente. A cena de Viriatto e minha mãe se enroscando em uma cama invadiu minha mente e apertei os olhos de modo a desviar o olhar dos dois.

Por sorte o garçom chegou trazendo o champanhe para brindarmos o casamento e a nova família que surgiria entre nós três. Viriatto se ofereceu para abrir a garrafa e por um acidente a garrafa explodiu e quase toda a espuma vingou sobre meu vestido.

— Viriatto! — Mamãe exclamou levando as mãos a boca enquanto me observava em estado de choque.

Analisei o vestido molhado com a expressão devastado! O tecido se grudou ao meu corpo fazendo com que minha calcinha aparecesse através do pano e minha falta de sutiã se tornou evidente. Levei as mãos aos meus seios antes que alguém notasse e sentei-me de maneira e me esconder melhor. A roupa de Viriatto também se tornou um caos, pude perceber ao finalmente olhar ao redor.

Mal percebi que com o susto a garrafa acabou caindo e ferindo meu pé, algo não muito grave, mas que ardia e sangrava um pouco. Mamãe parecia imersa em um filme de comédia, tamanha gritaria que fez ao redor da cena.

Sequer senti quando Viriatto me ergueu nos braços e me levou em direção ao banheiro. Um rebuliço se fez no restaurante e mamãe contestava com o garçom sobre a qualidade da garrafa quando saímos de lá.

— Me põe no chão Viriatto — Suspirei sentindo o pé arder — Acho que não precisamos de tudo isso — Ao chegarmos ao banheiro ele rapidamente me colocou no chão próxima a pia — Viriatto! — Suspirei pelo ardor que senti no movimento.

— Você está sangrando, menina. Calma que eu cuido do machucado...

— Você também é medico? — Ironizei e ganhei um olhar torto. Olhei em volta enquanto Viriatto analisava meu pé.

Cheguei a pensar que nada poderia ser pior do que estar no colo dele, mas me vi parada em meio ao banheiro masculino daquela maneira estranha. Viriatto retirou a camisa formal que usava e ficou com uma regata branca. A camisa grande foi posta sobre meus ombros e me vi, finalmente, coberta.

Não antes de ter ficado por algum tempo daquele jeito comprometedor diante dos olhos dele. Após me ajudar a limpar o sangue do machucado, Viriatto finalmente ficou de pé a minha frente.

— Não foi nada, apenas uma lasquinha de vidro.

— Já ouviu falar que os pequenos cortes são os que mais doem? — Estávamos próximos demais quando mamãe entrou no banheiro um tanto afoita.

— Querida! — Exclamou vindo me abraçar — Você está bem? Graças a Deus Viriatto te socorreu logo e te arranjou a camisa — Analisou-me usando a camiseta dele — Foi algo grave com seu pé?

— Não querida — Viriatto respondeu imediatamente — Apenas um corte superficial. Vou limpar isto e já podemos ir embora.

— Graças aos céus! — Respirou aliviada com a mão sobre o peito — Você está horrível, Anita! Olhe só esse vestido que lastima se tornou!

— Nós já vamos embora — Ele retirou a carteira do bolso e entregou a minha mãe — Vá até lá e pague a conta e os estragos. Anita daqui a pouco estará pronta para ir.

— Claro que sim, eu sou terrível com cortes e machucados — Apanhou a carteira — Obedeça ao Viriatto, querida.

Minha mãe saiu e ficamos em completo silêncio dentro do banheiro vazio enquanto ele limpava o sangue em meu pé. O garçom trouxe alguns apetrechos de primeiro socorros que auxiliaram no manuseio do curativo.

— Vamos sair logo — Falei assim que acabou e finalmente pude ficar de pé — Não gosto de ficar sozinha com você.

Corei quando a atenção dele se voltou para meu rosto.

— Por quê? O que tem de tão inoportuno em minha presença? — Estávamos próximos demais e o fato me causou tremores.

— Você olha demais para onde não deve... — Certo fogo queimava dentro de mim enquanto Viriatto chegava mais e mais perto — O que você pensa...?

— Acaso você pensa que gostou de ficar te olhando assim? — Questionou fazendo-me se calar repentinamente — Pensa que é fácil não conseguir tirar os olhos de você sendo quem é, pequena Anita? — Estreitou o olhar. Mordi os lábios — Acho que deve saber sim, porque também sei que é incapaz de tirar seus belos os olhos dos meus.

Levou a mão a minha bochecha parado a uma distância pequena de minha boca.

— Eu... — Não consegui expressar qualquer palavra.

— Também me acho errado em tudo isso, mas confesso... Não posso mentir e tão pouco parar de te olhar. Desde que te conheci não sou capaz de tirá-la de minha cabeça. Não importa que seja somente uma menina, ninguém nunca me atraiu assim antes.

— Não sou menina, já sou mulher — Mesmo querendo, meu corpo não era capaz de se afastar do dele — Não é porque não tenho mais de quarenta anos que sou menina. Talvez para você sim, mas para os outros, não.

Viriatto sorriu de canto pela provocação, mas mesmo assim não dei tempo para que dissesse nada. Ele não tinha coragem suficiente dentro de si para fazer o que ambos queríamos naquele momento, mas eu sim.

Em um movimento rápido o envolvi pelo pescoço com os braços e o puxei em direção a mim. Os lábios dele eram exigentes, macios, ternos e ainda tinham gosto de champanhe. Sua língua delineava meus lábios levemente e aquele beijo com gosto de proibido era a sensação mais maravilhosa de minha vida.

Abandonei—me nos braços dele como uma amante profissional, mal sabendo ele que por dentro meu corpo todo derretia. A ideia de que mamãe poderia entrar havia sumido e apenas existia o quadril dele roçando contra o meu e seus lábios beijando cada canto de meu rosto.

Abandonados no desejo e sem ar, Viriatto separou-se de mim e colou a testa na minha. Com os olhos fechados eu respirava ofegante e vencida pela paixão.

— Odeio você — Murmurei contra a boca dele — Porque você apareceu...

— Pequena Anita — Senti as mãos dele em meu quadril e arfei abrindo os olhos — Então você também me quer?

Se não fosse um barulho vindo do corredor ele jamais teria me soltado.

Nosso olhar se buscava como o de dois cúmplices e ganhei espaço para sair na frente. Logo Andrea nos enxergou e com meias palavras e desculpas conseguimos ir embora. Não fui capaz de encarar mamãe durante todo o caminho, muito menos a ele. Subi em direção ao quarto e me tranquei lá dentro como faria uma tremenda criminosa.

Deitei-me sobre a cama e afundei uma almofada no rosto.

Beijei o noivo de minha mãe! Matei a vontade que existia em mim mesmo antes de saber quem de fato era Viriatto.

Apertei os olhos quando as palavras dele vieram a minha mente.

"Então você também me quer?"

Chacoalhei a cabeça e fui em direção do banheiro.

Retirei o vestido junto à blusa dele e me enfiei sob o chuveiro.

Após o banheiro joguei o vestido em um canto do quarto e quando me voltei, lá estava à camisa que Viriatto havia me emprestado descansando sobre minha cama. Tentei resistir à tentação, mas no minuto seguinte lá estava eu debruçada na cama para alcançar a peça, agarrando-a entre os dedos. Trouxe a mesma para perto e a cheirei profundamente. Ofeguei no mesmo momento.

O cheiro dele... Sabor de algo proibido e intenso.

Houve um barulho no corredor e abri os olhos, apertando a blusa contra o peito. E se fosse mamãe? Era melhor devolver logo essa camisa, do contrário o que iria inventar se fosse pega por mamãe com a roupa do noivo dela enroscada ao corpo?

Com a camiseta de Viriatto em mãos fui até a escada e vi a porta do quarto de Andrea um tanto aberta quando passei. Mamãe dormia sozinha apagada em um sono que eu podia jurar ser resultado de um calmante e não acabaria tão cedo. Olhei em direção a sala e vi a luz da cozinha acesa. Desci lentamente e notei que chovia.

Típica chuva de verão.

Viriatto não estava na cozinha, mas sim na varanda da frente apreciando a bela noite tempestuosa.

Caminhei até ele sem fazer barulho e me encostei ao batente da porta enquanto o observava parado com as mãos no bolso de uma calça de moletom preta, sem usar camisa e com uma taça em mãos. Seus olhos estavam voltados para a chuva que caia no jardim e parecia totalmente alheio a minha presença.

— Acha bonito ficar espionando as pessoas, pequena Anita? — Disse em tom divertido e sem sequer mover-se em minha direção.

— Apenas vim devolver isso — Estiquei a camisa. Caminhei até a varanda sentindo a brisa fresca e o cheiro de chuva invadirem minhas narinas. Coloquei a blusa sobre o ombro dele e, sem a coragem de sair dali, parei um pouco longe para me debruçar na grade e também olhar a chuva — Obrigado.

— Não precisa agradecer — Respondeu tomando um gole da taça. Não ousei encará-lo, pois podia imaginar como estava demasiadamente bonito sem usar camisa. Apertei os olhos enquanto ajeitava o cabelo atrás da orelha — Ansiosa para a viagem de amanhã?

Caminhei até ele em passos curtos. Viriatto sequer se moveu quando toquei a mão dele e retirei a taça de lá, tomando-a em minhas mãos para em seguida levar a borda aos meus lábios e beber um pouco de vinho.

— Na verdade não, mas se disser que estou tranquila estarei mentindo — Ergui a taça com um sorriso meio travesso.

A taça foi retirada de minha mão por ele em um gesto delicado.

— Está aqui agora porque se arrependeu de nosso momento lá no restaurante? — Parecia confuso enquanto esperava a resposta.

Pude ver a inquietude presente no olhar esverdeado, assim como certa culpa.

— Não costumo me arrepender de nada — Confessei para minha própria surpresa — Também não consigo parar de pensar em você desde que nos conhecemos e... — Suspirei — Sei que é errado. Você é noivo de minha mãe, mas...

— Esse é o problema... — Estreitou o olhar — Não sei se ainda quero ser noivo de Andrea — Senti o ar faltar pelas palavras dele.

A ideia de estar destruindo um casamento me atingiu em cheio. Acabar com um noivado não estava em meus planos, muito menos o de minha própria mãe!

— O que quer dizer com isso? — Sussurrei chegando ainda mais perto dele — Nós sequer nos conhecemos, apenas passamos por alguns segundos de insanidade...

— Não, menina, não foi! — Garantiu me imobilizando sem muito esforço e comprimindo-me contra a grade de metal da varanda — Você está me deixando louco, não consigo racionar e pensar em mais nada desde que te vi pela primeira vez.

Pisquei várias vezes pela intensidade com qual falou e engoli em seco.

— Também acontece o mesmo comigo, mas... — Abaixei o olhar — Não podemos simplesmente fingir que você não é noivo de minha mãe. O que menos quero na vida é acabar com a felicidade dela.

— Durante todo esse tempo acreditei realmente amar sua mãe — Explicou um pouco mais tranquilo, porém com o olhar ainda pesaroso — Mas não amo. Se amasse não estaria sentindo o que sinto por você.

— Como pode afirmar isso em tão pouco tempo? — Minha pergunta foi tomada por receio.

— Me pergunto a mesma coisa faz quase um mês — Respondeu com um suspiro — Você me virou a cabeça.

— Você não a ama?

— Sei que isso pode parecer evasivo, talvez até mentiroso — Afastou-se de mim — Mas o fato de me questionar sobre o que sinto por Andrea já é um forte indicio de que não a amo. O que sinto por ela é gratidão e carinho, algo forte porque ela é uma mulher incrível.

— Ah, por Deus... — Sussurrei dando as costas a ele.

— Mas não posso me casar com ela sabendo que desejo você, a filha dela. Não vou fazer isso. Principalmente agora que nós... — Se deteve diante do que iria dizer — Isso não é certo.

— Não é certo que o casamento de vocês não aconteça por minha causa! Isso eu não vou tolerar! — Adverti nervosamente — O que houve entre nós já passou... Foi um momento.

Nos encaramos em silêncio e o simples fato sussurrou ao silêncio que não, não era um simples momento. A chuva caia entre nós embalando o momento em que percebíamos a que ponto havíamos chegado. Não demorou sequer um minuto para que eu voasse novamente para os braços dele e nossos lábios se procurassem como se a vida dependesse disso.

— Te observei em silêncio durante todo o último mês desejando em silêncio poder te dizer mil palavras — Sussurrou ao meu ouvido enquanto podia.

— Você pode estar simplesmente brincando comigo... Apenas querendo me levar para cama. Você é um daqueles homens que ama a mãe, mas deseja a filha — Delicadamente Viriatto tomou minha mão direita entre as dele e a levou até o coração. Pude sentir como pulsava rápido, quase tanto quanto a chuva. Ofeguei.

— Acha que isso é mentira? — Questionou em um sussurro e com o olhar mais sincero que já vi em toda minha existência — Só de ficar próximo de você meu mundo desaba menina. Não me sinto feliz com isso, mas não posso controlar!

— Por favor, não termine o noivado com mamãe — Pedi em uma súplica — Por favor, não faça isso!

— Mas...

— Espere a viagem dela. Espere um pouco.

— Você acha certo que continuemos a enganando?

— Por favor.

Toquei o rosto dele com toda a coragem que me restava e sai correndo dali. Meu coração parecia correr no peito e no momento em que me joguei em minha cama pude sentir meu mundo se quebrando em mil pedaços.

Estava apaixonada pela primeira vez em minha vida.

Não conseguia parar de pensar em um homem pela primeira vez em vinte anos.

Estava tomada por desejos que jamais imaginei existir e sequer conseguia reprimi-los.

Tudo isso encoberto pelo nefasto e proibido.

Estava prestes a ir para a cama com o noivo de minha mãe.

 


CAPÍTULO TRÊS

A DECISÃO

 

Mamãe se despedia enumerando uma vez mais tudo o que Viriatto e eu deveríamos fazer ao chegarmos ao Rio de Janeiro.

Todos os detalhes da festa já estavam encaminhados, bastavam apenas pequenos reparos e escolhas que apenas os noivos e madrinhas poderiam decidir. Prestei atenção atentamente em tudo o que ela dizia enquanto buscava esconder ao máximo a tremedeira em meus dedos.

Confesso que parte da ansiedade se devia ao fato da expectativa. Meu corpo e coração se antecipavam ao inevitável... Viriatto e eu estaríamos sozinhos daqui por diante sem a vigilância constante de mamãe. Como uma tola, jamais confiei em meus instintos. Jamais confiei em mim mesma sozinha com este homem.

Enquanto o assistia anotando coisas em seu celular a pedido de mamãe, pensei uma vez mais nos braços dele ao redor de minha cintura... Nos músculos roçando contra minha pele e a boca macia percorrendo-me o corpo. Viriatto era tanto que mesmo relutante estava fora de meu alcance resistir. Apesar de todo o desejo que nutri de estar novamente nos braços dele e ser dominada por seus doces lábios, dentro de mim também reinava a culpa e o medo.

É impossível negar que parte de meu coração se despedaça quando lembro que o homem pelo qual me apaixonei a primeira vista irá se casar com minha mãe em poucos dias. Mais obvio do que todo o resto, tanto eu quanto ele sabíamos que essa aventura proibida tinha um destino certo... A cama.

Mamãe jamais me perdoaria se chegasse a saber que entreguei minha virgindade guardada a sete chaves para ninguém menos que seu noivo em uma aventura maluca no Rio de Janeiro. Seria eu forte o bastante para afastá-lo?

Enquanto o via se despedindo de mamãe, senti uma vez mais o estômago revirando pela ansiedade. Cada gesto dele era admirável e solene. Nunca conheci ninguém como Viriatto, muito menos senti uma conexão tão forte como sentia ao lado dele. Nos parecíamos tanto... Tínhamos tanto em comum! Ele seria o homem correto para mim se não fosse pelo pequeno detalhe que havia nos unido. O casamento de mamãe onde ele era o noivo.

— Anita? — Mamãe chamou minha atenção ao ver-me perdida em pensamentos — Entendeu tudo o que eu disse querida? — Assenti um tanto desconcertada. Mamãe me beijou na testa e segurou-me o rosto com as mãos — Se cuide... E obedeça ao Viriatto.

Tentei não olhar quando Andrea beijou-o nos lábios e Viriatto respondeu com pouco entusiasmo. Meu coração perdeu uma batida pela expressão desgostosa que se fez em sua face e lembrei-me da promessa que havia pairado no ar na ultima vez em que estivemos juntos...

"Não quero mais me casar com sua mãe".

Andrea nos assistiu caminhar lado a lado e seguimos em silêncio para a sala de embarque de nosso voo e mamãe seguiu em direção ao caminho dela para a Europa. Nossas poltronas na primeira classe eram lado a lado, sendo eu ao lado do corredor e ele na janela. Viriatto prendeu meu cinto de maneira cavalheira e não deixou de se atendar há mim um minuto sequer. De fato cumpria a promessa que fez a mamãe quando saímos de lá... Ele cuidaria de mim.

Minutos após o inicio do voo ajeitei-me na poltrona e o encarei, finalmente.

— Se importa de me acordar antes do pouso? — Sussurrei um tanto receosa.

— Tudo bem.

— Você não vai dormir, vai? — Meus olhos já ensaiavam se fechar devido ao sono.

— Não. Eu poderia ficar dias olhando para você aqui, pequena Anita — Corei um tanto tímida.

— Um dia irei lhe provar que não sou mais uma menina e ai então jamais me chamará deste bendito apelido novamente — O ouvi dar uma risada baixa — Futuro papai.

— Acredito que esse dia será o mesmo em que deixará de chamar de papai.

Nada respondi, limitando-me a sorrir e abraçar uma almofada contra o peito. Fechei os olhos e somente recordo de acordar quando o voo estava no final e deitada sobre o peito forte de Viriatto. Desembarcamos um tanto cansados e apanhamos um táxi direto para o nosso destino.

— Minha nossa! — Exclamei quando a porta do quarto foi aberta por Viriatto. Tratava—se de um apartamento amplo e com uma linda vista de frente para o mar — Esse é o hotel? — Questionei quando largou as malas na porta e passei.

— Não exatamente — Caminhamos um pouco e saímos do hall modesto, entrando em seguida em uma sala principal — Esse apartamento é meu — Parou em meio à sala com as mãos escondidas no bolso — Como estou quase sempre fazendo concertos por aqui o utilizo muito. Aconchegante não acha? — Seu sorriso era quase tão apaixonante quanto à bela visão.

— Certamente não me admira seu bom gosto — Passeei entre a varanda e a sala, observando bem de perto as muitas obras de arte que por ali estavam prostradas — Mas certamente não tem muito a ver com Andrea. Ela odeia arte e pouco se interessa por música.

— Tem razão — Pela primeira vez o vi sorrindo por mencionar mamãe — Andrea não acha graça em nada do que nós dois tanto prezamos — Referiu-se a mim.

— O mérito todo é de papai — Expliquei parada diante de um dos quadros — Ele sempre prezou a arte e a cultura acima de qualquer coisa e minha madrasta e professora de Artes em uma universidade.

— Andrea comentou o assunto certa vez — Aproximou-se um tanto mais de mim — Não entendo porque seu pai não acredita que a música te renderá frutos se ele mesmo é um admirador.

— Porque ele é médico e todos meus familiares são juízes e promotores — Viriatto me ouviu atentamente — Todos são muito racionais e, apesar de serem homens cultos e admiradores das artes, não apostam nela como meio de conseguir sucesso profissional, compreende?

— Certamente... — Garantiu com um pequeno sorriso — Por sorte meus pais e toda minha família são músicos e atores. Não foi difícil convencê-los a seguir o mesmo caminho.

Ao me dar conta, notei que o rosto dele estava perto demais em meio a forte penumbra que assolava o ambiente. Não consegui resistir aos avassaladores sentimentos que me invadiram o peito e levei uma das mãos ao rosto dele, acariciando sobre a barba rala com delicadeza e admiração.

— Nunca conheci ninguém como você, Viriatto — Os olhos dele se fecharam diante de meu toque — Porque não apareceu em minha vida antes ou em outra situação?

— O que eu mais queria é que tudo fosse diferente, Anita — Segurou minha mão na sua e levou aos lábios.

— Temos que ir. Temos hora marcada na igreja — Lembrei quando o silêncio e a tensão entre nós se tornou atraente demais.

Assim que chegamos juntos a linda igreja escolhida por mamãe os organizadores logo suspiraram dizendo que éramos o casal mais feliz e bonito que passou por ali nos últimos tempos. Nas palavras deles nós "brilhávamos juntos". Viriatto nada disse, limitou-se a sorrir e me encarar de canto cada vez que meu sorriso surgia diante de uma amostra de carinho como aquela.

Levamos praticamente o dia todo para acertar todos os detalhes, incluindo ensaios e degustação. Na volta pra casa, após um dia cheio, me vi novamente tensa por saber que uma vez mais estaria sozinha com ele.

Eu não confiava em mim e tão pouco Viriatto parecia seguro de sua posição. A vontade dele era não estar ali, nitidamente, organizando nada para o casamento.

— Este será ser seu quarto — Comentou abrindo a porta para mim. Entrei no espaço amplo onde havia uma cama alta de casal, abajur e um pequeno closet — Está bem acolhida?

— Claro, certamente — Sorri colocando a mala de mão sobre a cama. Viriatto colocou a maior e mais pesada sobre a cadeira giratória com destreza.

— Vou estar bem ao lado caso precise de mim — Olhou dos lados e pude notar sua tensão. Ele se sentia exatamente como eu — Tome um bom banho e tenha bons sonhos, pequena Anita — Fiz uma careta após o apelido.

Fiz como Viriatto recomendou. Tomei um banho longo para me livrar do estresse da viagem e correria, saindo do banheiro mais disposta e leve. Busquei em minha mala algo para dormir e me deparei com uma camisola simples de seda. Não se tratava de algo sedutor, mas sim de cor azul claro e inocente.

Deitei-me na cama aliviada pelo final daquele dia e assim que fechei os olhos uma melodia graciosa invadiu o ambiente de maneira deliciosa. Certamente era o som doce de um piano e vinha do lado de fora da porta. Respirei profundamente ao reconhecer a melodia sendo um clássico de Beethoven e assim que acabou iniciou-se uma nova melodia tão incrível quanto.

Com certeza se tratava de uma composição própria de Viriatto.

Não resisti ao impulso de me levantar e caminhar em direção ao som. Aquela linda composição refletia exatamente a pureza da paixão que sempre enxerguei nos olhos de Viriatto, algo muito maior do que uma simples atração pelo proibido. O que existia entre nós era verdadeiro e avassalador, algo profundo e tão sublime quanto visceral.

Nada no mundo fazia mais sentido para mim.

Nunca desejei tanto alguma coisa como desejava ser daquele homem este noite. Nunca sonhei como nada como sonhava em estar em seus braços. Caminhei até ele como uma verdadeira fascinada pela melodia e encontrei seu olhar à frente de um piano ilustre.

Viriatto tocava deslizando os dedos longos pelas teclas brancas com total destreza e habilidade, dando-me a impressão de que naquele momento era possível tocar as nuvens. Seu talento era admirável, dei-me conta, e não era a toa que Andrea havia dito que ele era um dos mais habilidosos pianistas contemporâneos.

Viriatto sequer olhava para teclas e nos enlaçava apenas pela expressão apaixonante de sua face. Como amante de música pude definir tudo com apenas uma palavra... Emocionante! Sem perceber bati palmas levemente quando a apresentação particular acabou.

Estremeci quando seus olhos se ergueram para mim e cintilaram com a luz da lua que invadia a sala pela janela da sacada. Meu coração explodiu no peito, principalmente após o olhar repleto de desejo que Viriatto usou para me percorrer o corpo todo. Não demorou para que caminhasse em minha direção lentamente e estendesse a mão em um pedindo pela minha. Toquei-lhe a palma e me envolveu em seus braços carinhosamente.

— Você é mesmo espetacular — Sussurrei com a cabeça baixa enquanto me observava em silêncio — Isso foi esplendido. Sequer tenho palavra para expressar o que senti ao ouvi-lo — Senti seus lábios roçarem minha testa com tanta delicadeza que me fez estremecer.

— Toquei para você e quero que saiba que sempre que tocar essa canção pensarei em ti. Quero que saiba que desde que te conheci toco todas as sinfonias e melodias pensando em você e para você. É minha única inspiração, pequena Anita.

Acariciei levemente o rosto dele. Os olhos se fecharam ao sentirem a palma de minha mão contra sua pele macia e coloquei-me na ponta dos pés para beijei-lhe os lábios docemente, sentindo o sabor único invadindo-me os sentidos. Abaixei-me e escondi o rosto em seu peito, corada pela atitude. Viriatto envolveu-me com os braços e acariciou—me o cabelo levemente.

— Não está certo — A respiração soava ofegante — Não posso ser sua inspiração. Não posso estar aqui, agora, assim, em seus braços... — Ergui os olhos de modo a encará-lo — Percebe o que estamos fazendo? Principalmente eu, que sou a filha dela...

— A culpa é toda minha! — Disse firmemente, ainda tocando-me o rosto — Fui eu quem se aproximou no banheiro do restaurante, naquela noite na sacada e...

— E eu te beijei agora — Interrompi concentrada na paixão presente em seus olhos verdes. O silêncio predominou e rapidamente notei que já estava acabado.

Ambos fomos vencidos pela paixão.

— Se você sente culpa, é melhor pararmos com tudo isso. É melhor que nos afastemos definitivamente! — Sugeriu de maneira sincera.

— Meu desejo é ir para longe, Viriatto — O olhar dele era compreensivo e abaixei o rosto — Mas não posso... Não consigo! Não sou capaz de ir para longe de você. Acho até que... Que eu estou... Você sabe... — As palavras morriam em meus lábios. Não podia crer que dizia tais coisas em voz alta para o noivo de mamãe — Estou apaixonada por você.

— Também estou apaixonado por você, pequena Anita.


Já era dia quando acordei e notei que o sol forte invadia o quarto em raios intensos pela janela aberta. Esfreguei os olhos sentando-me e nesse momento me dei conta de que tudo não foi um sonho. Viriatto estava aqui e eu deitada sobre o peito dele. Os olhos dele encontraram os meus e ficamos assim por uns segundos.

Perguntei-me várias coisas em pensamento, mas era bem real que não tinha acontecido nada demais à noite, somente dormimos entrelaçados em meio aos lençóis.

— O que é tão engraçado? — Questionou tentando não sorrir comigo, mas em vão.

— Meu cabelo e minha aparência — Comentei um tanto assustada — Nunca acordei ao lado de um homem antes — Confessei em um pedido silencioso para que me compreendesse.

— Nunca? — Ergueu uma sobrancelha.

— Não... Nunca.

Sequer tivemos tempo de prolongar a conversa, uma vez que o dia estava cheio na agenda que Andrea planejou para nós naquele dia.

Durante a manhã percorremos cartórios e fechamos contrato com a banda, algo que me mostrou o quão conhecido ele era por músicos e afins. Tudo relacionado ao casamento era feito por Viriatto em modo automático, deixando nítido para todos que não era a vontade dele estar ali. O casamento que organizávamos não parecer ser dele com mamãe, mas sim de pessoas estranhas, como se fossemos simples agentes.

Viriatto me mostrou o Rio de Janeiro sob seu ângulo, um dos poucos lugares que nunca visitei com muito tempo.

Durante a noite, após assistirmos a uma peça de teatro, jantamos com um amigo dele pianista e a esposa, que esperava um bebê. Naquele dia descobri a intensa vontade de Viriatto de ser pai e tal situação me comoveu. Mamãe já não tinha idade para ter filhos e tão pouco os desejava! Tudo o que Andrea mais detestava eram crianças e bebês!

Viriatto me mostrou que não mentia sobre o que sentia por mim quando não me apresentou como "a filha de sua esposa", mas sim como Anita, a mulher pelo qual estava apaixonado.

Descobri que Viriatto era muito mais parecido comigo do que pensei.

Também era apaixonado por pizza e sua cor favorita era o vermelho. Seu pai morreu há quatro anos e a mãe vivia em São Paulo com Carolina, sua irmã mais nova de apenas dez anos. Percebi que era muito apegado a irmã e que desde que o pai morreu ele representava a figura paterna para ela.

— Conheci Andrea e senti como se aquela mulher fosse me trazer todas as respostas que procurei durante anos no escuro, sem de fato me deparar com alguém que mexesse com meu coração — Confessou acariciando meu cabelo devagar e olhando-me fixamente. Estava deitada sob ele na espreguiçadeira da varanda do apartamento observando seus olhos e estudando sua expressão — Andrea era divertida e me fazia rir. Isso era bom pra esquecer a tristeza de ter perdido meu pai e na época também estava demasiadamente vulnerável. Tinha acabado de terminar um namoro que durou anos e vinha desde a adolescência. Andrea me ajudou a sair do buraco e me ergueu com toda a segurança de uma mulher mais velha. Com a ajuda dela consegui superar a tristeza e voltar a compor e tocar. Após algum tempo já estava conhecido e requisitado devido a influencia que sua mãe tem com pessoas do meio artístico. Devo muito a Andrea... Mais do que pode imaginar — Abaixou o olhar um tanto constrangido — Foi ela que me resgatou do fundo do buraco e acreditou em mim quando ninguém mais acreditava.

— Nunca pensei que vocês tivessem uma história tão longa. Já se conhecem há anos e Andrea nem sequer citou o seu nome para mim uma única vez!

— Acredito que nada acontece por acaso... Andrea não citou meu nome, mas nada pode atrapalhar o inevitável. O nosso encontro foi inevitável e agora vejo que não estava enganado.

— O que quer dizer?

— Sobre Andrea me trazer as respostas que eu procurava — Se abaixou para me dar um beijo casto — Andrea me trouxe você. O que sempre busquei e jamais encontrei.

— Você acreditou ser ela... Não é mesmo?

— Foi um erro — Garantiu deslizando a mão por meu braço delicadamente — Na verdade era você. Sempre foi você. Agora que encontrei as respostas que procurava não vou te deixar ir embora. Mesmo que não queira terminarei meu noivado com a sua mãe assim que ela voltar

— Garantiu firmemente — Direi para Andrea com todas as letras que estou apaixonado pela filha dela!

Segurando as lágrimas me abracei a ele e fui envolvida fortemente.

Tentei deixar escapar lágrimas, mas foi em vão. Por um lado ganharia o amor, mas perderia mamãe. Conhecia Andrea bem o suficiente para saber que era egoísta e que jamais pensou em mim antes de pensar nela. Apesar de ser maternal e preocupada, ainda era egoísta e controladora. Sempre queria tudo para si e duvidava muito que me perdoaria por ter roubado seu homem.

Como explicaria que era ele quem havia me roubado? Como explicar que ela não podia impedir o inevitável?

Viriatto não perguntou o porquê das lágrimas, uma vez que o motivo era tão evidente. Andrea era especial também para ele e perdê-la seria devastador. Tudo aquilo era como cometer um pecado capital. Olhei pra Viriatto devagar e senti quando secou uma lágrima que descia por minha bochecha.

Talvez me julgassem uma imoral por ter escolhido um homem ao invés de mamãe e me condenassem ao inferno por fazer sofrer meu próprio sangue, mas olhando nos olhos de Viriatto eu sabia que não podia controlar o que existia entre nós.

Sabia que era inevitável.

Eu o amava e receber o amor dele foi o que sempre esperei.

Já estávamos no Rio de Janeiro há quatro dias quando Viriatto tocou uma nova composição para mim. Encaixei-me no espaço entre as teclas do piano e o corpo dele para ouvir a doce melodia e para minha surpresa senti sua mão carinhosamente sobre meu ventre. Um espasmo de amor percorreu todo o meu corpo.

— Essa canção foi feita por meu pai e ele a tocava para minha irmãzinha quando ela era um bebê.

— É uma linda canção.

— Quando pensava em um futuro com sua mãe a ideia de não ter filhos era o que mais me assombrava. Sempre quis ser pai e ter pelo menos umas quatro crianças — Confessou um tanto tímido — O que pensa sobre isso?

— Obviamente não quero ter um filho agora, aos vinte anos, mas no futuro certamente penso em ser mãe.

— Sabia que teríamos ainda mais essa questão em comum — Sorriu abertamente.

— Você tocará essa canção para nossa filha? — Viriatto imediatamente levou às mãos as teclas do piano e começou a tocar a melodia lenta, como uma canção de ninar. Pensei que o atrapalharia estando sentada em seu colo, mas não aconteceu. Tocava como se eu nem estivesse lá.

— Vou tocá—la para nossa filha todos os dias que ela me pedir — Sequer podia acreditar que falávamos sobre filhos.

— Como se chama a canção?

— Laura — Murmurou ao meu ouvido — Esse será também o nome de nossa primeira filha.

— Laura — Repeti — Como sempre, um homem de bom gosto.

Viriatto sorriu beijando minha mão entre as dele. Ao contrário do que esperei, Viriatto apenas me abraçava, roubava um beijo e dormia todas as noites. Me respeitava e o fato me fazia sentir o quanto minha presença era importante para ele. Se fosse qualquer outro homem certamente na primeira noite teria tentado me levar para cama sem pensar nas consequências.

Mas era questão de tempo para tudo acontecer. Eu sabia que iria acontecer. Estarmos juntos é algo inevitável.

Naquela noite dormimos juntos novamente e minha última lembrança é dele me colocando na cama ao seu lado e envolvendo—me em seus braços para dormir. Meus sonhos vieram acompanhados de lindas borboletas e uma garotinha que se chamava Laura.

A menina era linda, doce e tinha os olhos verdes e brilhantes... Tão linda quanto seu pai.

 


CAPÍTULO QUATRO

O INEVITÁVEL

 

— Fico feliz em saber que está sendo proveitoso esse tempo com sua mãe, princesa — Papai disse do outro lado da linha. Há muitos dias não conversávamos e finalmente tive a lembrança de fazer a ligação — Estou muita saudade e tenho uma boa nova... Apareceu um concerto para você!

— Um concerto? Mas papai... Como? — Sentei-me na cama totalmente impactada com a notícia.

— Sim querida... — Respondeu entusiasmado — O diretor de uma Orquestra assistiu sua última apresentação e ligou realizando o convite. Segundo ele, você é talentosa e graciosa, um prato cheio para incorporar o time dele. Se tudo der certo com a apresentação você terá lugar garantido na Orquestra da cidade.

Eu mal podia crer no que meus ouvidos escutavam naquele momento. Essa era, talvez, a oportunidade de minha vida toda! Era a chance de virar profissional e poder viver da música!

— Isso está realmente acontecendo, pai? — Choraminguei sentindo os olhos marejados — É incrível a maneira como todos meus sonhos estão virando realidade de uma hora para outra...

— O que quer dizer com isso Anita? — Questionou com certa desconfiança em sua voz — Não vai me dizer que...

— Sim papai — Iniciei um tanto timidamente — Conheci alguém.

A linha se manteve muda por alguns instantes até finalmente Carlos romper o silêncio.

— Você sabe que isso não faz parte dos planos que tenho para sua vida, não sabe? — O tom dele era severo e um tanto rude.

— Sim papai, mas faz parte dos planos que eu tenho para minha vida...

— Anita... Tenho plena consciência de que já é uma mulher de idade suficiente para se envolver com um homem, mas ainda é minha única filha e sou um pai protetor. Temos planos para você desde que nasceu e sabe muito bem disso. Quero seu melhor e não irei medir esforços para que sua vida seja bem sucedida — Apertei os olhos por saber que papai era sim um homem difícil.

Carlos não engoliria facilmente minha história com Viriatto e me preocupava muito mais do que a própria Andrea em toda a situação.

— Certo papai... — Respirei profundamente e engoli as palavras — Posso te garantir que se trata de uma pessoa decente e bem estruturada. Não é um homem qualquer e o que importa é que nunca fui tão feliz!

— Então está na hora de controlar tua felicidade. Quando eu disse "volte inteira para casa" incluía também voltar sozinha e sem filhos, principalmente! Tome cuidado com seus atos, pois as consequências virão!

Demorei um longo tempo para convencer papai a me deixar desligar sem falar o nome do sujeito pelo qual estava apaixonada. Viriatto apareceu na porta quando a conversa acabou e levou algum tempo encarando minha face cansada e um tanto culpada.

— Onde estava? Quando acordei você tinha me deixado ao lado de um bilhete — Levantei-me da cama e caminhei em sua direção.

— Fique calma — O envolvi pelo pescoço e ele passou as mãos por minha cintura carinhosamente. Apertou-me em seus braços como se sentisse o meu cheiro ou algo assim — Fui comprar um presente, era o que estava escrito no bilhete...

— E onde está o tal presente?

— Por um segundo pensei que isso tudo era preocupação comigo — Chacoalhou a cabeça de um lado para o outro — Mas era tudo pelo presente...

— Oh, pare — Nós gargalhamos — Não sou garota que faz o tipo grudenta. Você pode fazer o que bem entende, mas isso não significa que não fico preocupada! Pensei que os homens detestassem mulheres ciumentas — Viriatto beijou minha testa.

— Não estou ligando para o que os homens odeiam... O meu negocio é você. Somente quero saber sobre você. Venha... — Ofereceu sua mão — Venha ver o seu presente... Que por um lado é meu também.

Toquei a mão na dele sentindo a textura macia de sua pele. Entrelaçamos nossos dedos e seguimos em direção à sala do piano. Ao lado do piano - repousado sobre um sofá cinza como um divã - estava um violino castanho avermelhado. Meus olhos cintilaram diante de tamanha beleza. Aquele instrumento era de fino acabamento e certamente adquirido por alguém que tinha profundo conhecimento.

— Oh... Mas isso é um ultraje! — Cobri os lábios com as mãos — Que coisa mais encantadora!

Caminhei empolgada até tomar o violino em mãos e Viriatto ficou parado na porta somente observando.

— Sabia que nosso gosto era parecido — Meus olhos não podiam abandonar a maravilhosa peça enquanto meus dedos ansiosos já percorriam as cordas de maneira animada.

— Seu presente seria assistir-me tocar, eu imagino... — Sentei-me no sofá.

O modelo do violino era igual a um dos meus, diferindo somente na cor. Notoriamente havia outra grande diferença... Meus dedos tocaram o cabo superior e encontraram algumas palavras gravadas sobre a madeira. Toquei-as enquanto lia.

Para minha pequena Anita e Grande inspiração.

Com amor, Viriatto.

— Com amor, Viriatto — Li as últimas em voz alta antes de encará-lo. Era a segunda vez que usava a palavra amor relacionada a mim.

— Provavelmente você já deve ter esse violino em sua coleção — Explicava um tanto ansioso — Mas não pude deixar passar a oportunidade de ouvi-la tocar tão de perto. Preciso marcar esses dias incríveis que passamos juntos de alguma maneira... Não quero que nenhum acontecimento tire de nós essa magia — Parou na minha frente de modo a tocar-me o rosto com carinho.

— Pode ser que dê tudo errado, não é? — Viriatto apenas colou a testa na minha e ficamos assim por longos segundos.

— Eu sei que será muito mais difícil para você e jamais irei te julgar se resolver deixar nossa história para trás.

Não pude respondê-lo. Obviamente tudo era muito mais difícil para mim.

Coloquei o violino sobre o ombro e comecei a tocar a primeira coisa que me surgiu em mente. Apenas fechei os olhos entrando na melodia e imaginando Viriatto e os últimos dias... Os dias que eram para ser um tormento se transformaram nos melhores de minha vida. Com a melodia simples de um dos clássicos sequer tive coragem de abrir os olhos e encarar Viriatto, mas quando o fiz encontrei um homem deslumbrado ao soar da última nota.

Como eu havia feito quando o ouvi tocando pela primeira vez, Viriatto bateu palmas com um sorriso enorme estampado no rosto. Voei para seus braços o envolvendo pelo pescoço e beijando-o nos lábios com uma alegria intensa que cheguei a pensar que sequer me pertencia. Senti novamente a tensão palpável crescer entre nós.

— Desde que te vi soube que era única — Sussurrou ao meu ouvido — A cada momento me surpreende mais, pequena Anita. Será que existe algo sobre você que eu ainda não sei? — Deslizava o dedo indicador levemente por minha coxa.

— Existe algo que não sabe... — Mordi os lábios pensando sobre minha obscura virgindade.

O que Viriatto pensaria se soubesse que não passo de uma menina inexperiente e medrosa?

— Pode me contar?

— Não. Ainda não. Isso você descobrirá sozinho se merecer — Toquei o peito dele levemente sem encará-lo nos olhos.

— Até agora estou merecendo?

— Talvez mais do que isso... Mas é algo que não pode ser dito com palavras.


Três dias.

Esse era o tempo que tínhamos para pensar no que dizer a Andrea. Dali a três dias iriamos novamente encará-la e desta vez com a verdade na ponta da língua.

Passeamos pelo Rio após terminarmos as obrigações do dia - ainda seguíamos preparando o tal casamento que sequer aconteceria a pedido meu. Não queria que mamãe desconfiasse de nada e, talvez, somente talvez, algo sussurrasse dentro de meu coração que tudo poderia desandar.

— Fico pensando a todo instante no que irei dizer a ela... — Comentava com Viriatto enquanto caminhávamos tomando sorvete — "Oi mãe, sabe da novidade? Estou saindo com seu noivo".

Viriatto me envolveu com um dos braços pela cintura e murmurou ao meu ouvido.

— Não se preocupe meu amor. Sou eu quem vai acertar as contas com Andrea — Tinha consciência de que muitas pessoas estavam ao nosso redor naquela praça localizada no centro do Rio, mas na verdade apenas podia enxergar aquele belo homem — Não vai precisar explicar nada até o momento em que se sentir preparada.

O envolvi pelo pescoço e me coloquei na ponta dos pés para selar nossos lábios gentilmente e com muita doçura. Viriatto me retribuía igualmente e pude sentir o sabor de limão em seus lábios misturando-se aos meus que deveriam ter gosto de morango naquele momento. Afastou-me um pouco e nesse instante senti uma gota pingar sobre meu cabelo. Quebramos o beijo e direcionamos o olhar para o céu. Viriatto sorriu quando viu as nuvens cinzentas sobre nossas cabeças e percebemos que quase todas as pessoas presentes na praça já começavam a recuar em direção a suas residências ou seus carros.

— Está chovendo! — Minha voz foi abafada pelo barulho estrondoso do trovão. Os braços dele envoltos em minha cintura e os meus repousados em seus ombros seguiram assim enquanto corríamos abraçados.

As chuvas de verão estavam intensas e não seria nada ruim ficar sob ela com Viriatto para sempre.

A camisa azul que ele usava se encharcou em segundos, assim como o cabelo loiro que agora adquiria um aspecto mais escuro e desgrenhado. Senti os ombros dele deslizantes e isso parecia encher meu corpo de calor. Minha blusa de alças branca também já estava ensopada e por sorte o sutiã era capaz de esconder tudo por baixo. Sorrimos novamente contra os lábios um do outro e quando percebemos que a chuva estava muito intensa e começava a causar um pouco de dor quando se chocava contra a pele Viriatto entrelaçou os dedos nos meus delicadamente e saiu me puxando pela praça em direção a qualquer lugar por ali.

As últimas coisas das quais me recordo foram as sandálias encharcadas e um beco de aspecto cinzento pelo tempo fechado. Não havia saída naquela estreita rua espremida entre duas casas e Viriatto me puxou para uma parede beijando-me com profunda intensidade. Deixei que o fizesse, estremecendo com o contato e sentindo a pele úmida contra a minha de uma forma deliciosa. Afastou-se um pouco e somente pude ouvir os pingos de chuva se misturando com minha respiração ofegante.

— Podemos ir para casa? — Perguntei respirando intensamente ainda com as mãos nos ombros dele e sentindo as dele por cima de meu quadril.

Aquelas palavras diziam muito mais do que pareciam.

— Claro que podemos.

Percebi neste momento que desejávamos exatamente a mesma coisa.

Com as mãos entrelaçadas corremos em direção ao apartamento. Escorreguei umas três vezes, porém em todas elas Viriatto me puxou antes que eu pudesse cair, me erguendo no ar com entusiasmo. Ríamos de tudo enquanto subíamos os degraus da escada do prédio, pois o elevador estava parado. Viriatto demorou a encontrar a chaves, mas as passou na porta rapidamente para me dar passagem. Como se lesse meus pensamentos Viriatto me puxou em direção a ele e prensou os lábios nos meus. Senti o sangue ferver nas veias ao notar o rumo que tudo aquilo tomaria.

Foi como se uma corrente elétrica passasse por meu corpo quando senti meus dedos deslizando pelo peito de Viriatto e empurrando a camisa dele pelos ombros. Ouvi um pequeno barulho quando o pano molhado se chocou contra o chão e logo em seguida desci as mãos até a barra da camisa e a puxei pelos braços fortes. O abracei novamente respirando contra a pele úmida e ele me envolveu esperando alguns segundos para levar as mãos até dentro de minha blusinha e tocar minhas costas.

O barulho da chuva era muito forte, mas mesmo assim ainda era possível ouvir o som de meu coração.

— Anita — Sussurrou docemente e tomado pela paixão — Não precisamos fazer isso. Talvez... Talvez estejamos indo rápido demais e eu não quero que você pense... — O calei com outro beijo tocando a bochecha dele com a ponta de meus dedos.

— Tudo o que penso agora é em como te quero — Mordi seus lábios levemente e ele me apertou mais entre seus braços — Eu sinto Viriatto. Por favor, não me negue isso agora — Sequer acreditei que dizia tais palavras.

Viriatto rapidamente puxou minha blusa de alças me deixando de sutiã a seus olhos. Começamos a caminhar pela sala ainda em um beijo longo. A pele quente roçava a minha e os gemidos de antecipação escapavam por meus lábios.

Senti que me encostou à lateral do piano e olhando em meus olhos buscou o feixe de meu sutiã. Meu peito subia e descia conforme a respiração, inflando-se pela expectativa. Mantive o contato visual e aquele olhar me fazia pensar como seria depois, uma vez que praticamente fazíamos amor em silêncio.

Naquele momento tive a certeza que não chegaríamos ao quarto e pouco me importei. Nada em minha vida era convencional e porque achei que a minha primeira vez o seria?

Nos fortes braços de Viriatto, o noivo de minha mãe, me perdi como na primeira vez em que o vi. Aquele homem que chegara misteriosamente a minha vida trouxe consigo tudo o que era necessário para arruinar o coração de uma jovem e tola mocinha de pouca idade.

E o pior de tudo é que eu o amava.

Estava apaixonada de tal maneira que não hesitei em entregar tudo de mim, o corpo e a alma, o amor e os melhores sentimentos. O que guardei por toda a vida no mais profundo e secreto de um puro coração.

Viriatto me desejava com fervor e era possível notar o fogo da paixão em seus olhos claros enquanto sussurrava aos meus ouvidos que jamais quis tanto uma mulher como me queria naquele momento.

Quase perdi o passo da respiração quando me envolveu com os braços após nos livrarmos de todas as roupas que nos separavam. O medo, de repente, foi quem tomou conta. Percebi ali que não tinha ideia do que fazer... Dei-me conta de que não podia esconder daquele homem tudo o que existia em meu coração.

No momento em que os belos olhos claros me encararam com doçura e admiração todas as incertezas se dissiparam.

Delicadamente acariciou minha cintura com as mãos molhadas e um arrepio de prazer foi lançado por todo meu ser.

— Viriatto... Eu amo você — Beijei seu pescoço e murmurei as palavras ao pé de seu ouvido. Senti os músculos de seu corpo se contraindo sob meus dedos.

Fechei os olhos sentindo-o se afundar certeiramente em meu interior.

Talvez de inicio a forte paixão entre nós tenha facilitado às coisas, mas por certo havia um ponto que eu não poderia esconder. Senti dor e não consegui ocultar o nervosismo que me consumia. Viriatto ergueu meu rosto em direção ao seu, que exibia uma expressão inelegível.

— Porque não me contou Anita? — Acariciou meu rosto enquanto secava uma lágrima fujona em minha bochecha.

Não deixei que uma resposta se formasse em meus lábios.

O envolvi novamente pelos ombros e o puxei em direção a um beijo. Eu o queria e o tive. Não iria em hipótese alguma parar agora!

— Também te amo Anita — Sussurrou ao meu ouvido enquanto éramos um — E não existe nada capaz de mudar isso.

Naquele momento as palavras de Viriatto faziam todo o sentido. Naquele pequeno instante diante de toda uma eternidade ele era tão meu e eu era tão dele que nada seria capaz de apagar essa história. Nada.

Tínhamos feito amor e agora qualquer coisa já não importava mais. Nada mais importava.

 


CAPÍTULO CINCO

DESENCONTROS

 

— Não, Anita! — Corrigiu-me colocando a mão sobre a minha que deslizava nas teclas de seu piano — Essa nota é o dó maior — Me guiou até apertar a tecla correta — Está vendo como flui melhor?

— Oh sim... — Sorri me divertindo com aquilo — Deixe-me tentar de novo!

Viriatto abriu espaço para que eu tentasse sozinha botando as mãos em minha cintura enquanto observava.

Estava entre as pernas dele sentados em frente ao piano. Um de meus sonhos era dominar ao menos uma musica neste instrumento inigualável e Viriatto insistiu em tentar me ensinar. Com ele era tudo mais fácil. Eu realmente me dedicava a aprender ouvindo-o sussurrar as instruções com paciência e delicadeza, admirando-me a cada soar das notas. Toquei delicadamente a sequência que me ensinou e desta vez pareceu soar perfeito.

— E então professor? — Virei-me e o encarei — O que achou de meu desempenho?

— Você sabe mesmo o que está fazendo... — Confirmou com um aceno dando-me um beijo no pescoço. Larguei o piano — Já está cansada? — Assenti pendendo para trás e me deitando no ombro dele — Quando tinha seis anos fazia cinco horas diárias e foi ficando pior. Você fez meia hora e já está pedindo clemência?

— Ah coitadinho... — Toquei seu rosto — Quando eu tinha seis anos também fazia cinco horas seguidas de aula de violino... E não se limitava a sentar e tocar as teclas, mas sim segurar aquela coisa em meus ombros por todo esse tempo — Passei a mão por dentro da blusa dele que estava em meu corpo exibindo meu ombro. Cicatrizes de corte de madeira eram exibidas no local — Parece que não, mas após algum tempo a madeira começa a pesar e ferir.

Por segundos analisou o local deslizando uma das mãos por meu braço. Tocou minhas cicatrizes com a ponta dos dedos e abaixou-se para depositar um beijo doce sobre elas.

Sempre me julguei uma tola derretida, mas agora, nos braços dele, existia em mim uma única certeza... Para sempre queria estar ao lado dele e isso era o único que me importava. Assim seria feliz.

— Posso perguntar uma coisa?

— Sim — Respondeu agora parando de me beijar — O que você quiser — Toquei uma de suas mãos e perguntei finalmente o que tanto rondei para saber.

— Se houvesse dito que era... Inexperiente... Você teria ficado comigo ontem? —Ajeitei-me ficando próxima a ponto de tocar seu rosto com meus dedos.

Viriatto parecia hipnotizado diante de meu rosto e uma pontada de timidez me invadiu os sentidos.

— Não — Respondeu seguramente — Certamente não teria... Primeiro resolveria tudo o que temos para acertar com Andrea. Foi por isso que tentei evitar qualquer coisa no primeiro momento, mas quando se ama as coisas são difíceis.

— E como são... — Ele sorriu.

— Mas se quer saber se me arrependo a história é outra — Finalmente sorri também. Era o que me atormentava — Não vou me arrepender nunca de ter feito amor com você ontem — Beijou minha mão com carinho — Eu poderia morrer depois que sequer notaria.

— Não menti quando disse que amo você — Murmurei contra os lábios dele totalmente derretida por beijo. Seus dedos acariciaram meu rosto e ele sorriu para mim.

— Eu também não. Nunca se esqueça disso — Respondeu baixinho e neste momento ouvimos a campainha ecoar no ambiente.

Juntos olhamos em direção a porta do outro lado do apartamento.

— Está esperando alguém? — Questionei em um sussurro. Viriatto se pôs de pé com a testa franzida.

O segui caminhando até a porta de entrada. Viriatto pensou bastante antes de pegar a fechadura de madeira e virá-la para finalmente abrir a passagem e revelar aos nossos olhos a pessoa que ali estava.

— Mãe? — Falei em um susto ao vê-la.

Andrea.

— Olá querida — Andrea respondeu com um aspecto cansado. Não parecia realmente ser ela mesma.

A tão elegante e refinada mulher agora usava um moletom preto cobrindo todo o corpo e acompanhado de um tênis. Na cabeça trazia um lenço amarrado ao cabelo escondendo todo o couro cabeludo. Os olhos azuis aparentavam inchaço e o rosto uma profunda palidez.

Viriatto seguiu estático a encarando e nós dois não conseguíamos esboçar qualquer reação diante da figura surpreendente de mamãe. O aspecto de Andrea era terrível e doente.

— Entre Andrea — Deu passagem a ela.

— Me desculpem por ter chegado sem avisar, mas tive de voltar antes — Entrou carregando ao lado do corpo uma bolsa comum. Viriatto apanhou a mala que descansava no chão e trouxe para dentro — Preciso urgentemente falar com você, Viriatto.

Me senti uma completa estranha em meio a eles.

Será que mamãe não havia mesmo notado minha proximidade com Viriatto? Não havia visto a mão dele quase segurando a minha ou o chinelo alguns números maiores em meus pés? Verdadeiramente ignorou a camiseta azul de seu noivo descansando em meu corpo quase como um vestido?

Não notou também meu cabelo bagunçado ou o brilho em nosso olhar? O que estava havendo com Andrea?

— O que é tão importante? — Também estava assustado. De fato era um susto enorme Andrea ter chegado dois dias antes da data prevista e isso não era bem o estilo dela.

Estremeci quando mamãe se adiantou para me dar um abraço apertado. Oh meu Deus, agora certamente perceberia! Seria impossível não sentir o perfume dele em minha roupa, em meu cabelo e minha pele. Mas, para minha total surpresa, Andrea pareceu ignorar.

— Mamãe?

— Preciso falar com Viriatto a sós — Me deu uma apertadinha no ombro — Pode ser, querida?

— Claro... É claro! Com licença — Viriatto olhou em meus olhos uma vez mais e pude constatar que estava perdido em meio a tudo isso. Também não sabia o que fazer.

Fui em direção ao quarto, mas não entrei, apenas bati a porta para dar a impressão de que tinha entrado. Fiquei parada atrás da parede somente para ouvi-los em silêncio.

— Andrea — Viriatto disse calmamente. Esgueirei-me contra a parede para ver um pouco sem me revelar. Lá estava ele parado bem distante dela e quase do outro lado da sala — Está me assustando com tudo isso... O que está havendo com você? Porque está vestida assim e com esse lenço no cabelo? Não compreendo...

— Estou doente Viriatto — Mamãe disse com um sorriso cansado e andando um pouco distante de Viriatto — Vejo que você está ótimo!

— Andrea... — Passou os dedos nervosamente entre os cabelos revoltos — Como assim está doente? É algo grave? Posso te ajudar? — Questionou sinceramente e mantendo uma longa distância dela.

Não existia mais aquele casal de antes da viagem. Não havia mais magia entre os dois e, se um dia houve amor, o que eu duvidava muito, já não estava mais lá. O fato não me agradava, porém tão pouco me deixava triste.

— Somente você pode me ajudar agora... — Vi uma lágrima deslizar por seu rosto. Apavorei-me de imediato diante do sofrimento dela — Sabe que não tenho família viva, nem pais e tão pouco irmãos. Somente tenho minha filha, mas ela ainda é uma garota muito jovem e com toda uma vida pela frente. Somente posso contar com você — Andrea atravessou o espaço entre eles e o abraçou profundamente — Eu sei, Viriatto, que pode não me amar... Sabe que também não te amo — Meu coração perdeu uma batida — Mas de fato ainda é meu amigo e sei que jamais me abandonará.

— Fique calma Andrea — A abraçou de volta um pouco nervoso — Me conte logo o que está acontecendo — Insistiu e suspirei entre as lágrimas silenciosas.

— Estou doente — Afastou-se dele — Não viajei para a Europa a trabalho... Foi tudo uma desculpa! — Deu de ombros com os olhos marejados — Na verdade fui em busca de consultar um médico. Um especialista em oncologia muito renomado e especializado no meu tipo de câncer.

— Andrea! — Meus lábios se abriram pelo pavor! Peguei-me tão impressionada quanto ele — Câncer? Você está com câncer?

— Me desculpe, mas não queria dizer em frente à Anita... — Choramingou com as mãos tapando a boca. Da mesma maneira que Andrea chorava, eu também chorava atrás da parede, ainda tão pasma quanto Viriatto. Somente pude seguir ouvindo com as lágrimas deslizando por minhas mãos — Sei que nunca fui uma boa mãe para Anita, Viriatto... Não quero que ela saiba por que sei que se souber vai querer largar tudo para ficar ao meu lado. Não quero que minha única filha, no auge de seus vinte anos, paralise sua vida por minha causa em uma situação tão lastimável!

— Anita tem o direito de saber, Andrea — Parecia mais desesperado que ela — Ela é sua filha!

— Não Viriatto! Anita não deve saber. Quero que minha filha viva para realizar seu sonho de tocar violino e que se dedique ao trabalho. Desejo que seja uma mulher de sorte, tenha êxito e que se case com um homem que verdadeiramente a ame — Sorriu esperançosa — Sei que Anita será boa mãe porque ela nunca teve uma mãe de verdade!

— Não seja tão dura consigo mesma, Andrea — Tentou argumentar, mas ela fez sinal para que ele se calasse.

— Somente te peço ajuda Viriatto. Vamos esquecer isso de casamento por agora... Sabe que não tenho mais ninguém para contar, somente você — Tudo aquilo foi demais para mim!

Entrei em meu quarto devagarzinho e ainda chorando muito. Sentei-me atrás da porta com os olhos embaçados e quase não vendo um palmo a frente de meu nariz devido às lágrimas. Escondi o rosto entre os joelhos sentindo o coração apertado. Justo agora. Justo quando tudo estava se encaixando... Logo quando encontrei o amor de minha vida tudo isso acontece?

Mamãe... Minha mãe com uma doença terrível que poderia facilmente matá-la!

Sempre tive ciência de que sou pecadora e mereço um castigo por ter roubado o amor de meu padrasto, mas a tanto chegou à ira sobre mim? Além de perder o homem que amo ainda de quebra mamãe podia ir embora para sempre?

Era como se um buraco houvesse sido aberto sob meus pés e o mundo todo desabasse! Além de tudo, eu não tinha o direito de passar por cima da vontade de mamãe e contar a eles que sabia de toda a história. Teria de engolir as palavras, mesmo engasgada por elas. Por horas somente remoí o que fazer sem chegar a qualquer conclusão... Já era alta noite quando fui colocada na cama por braços quentes e fortes.

Abri os olhos vagarosamente e deparei-me com Viriatto ajeitando-me sobre meu edredom. Sentou-se ao meu lado segurando em minha mão com carinho e a aparência abatida. Obviamente estava sendo difícil para ele também.

— Porque estava chorando meu amor? — Seu tom era terno e os olhos mais lindos do mundo para mim se mostravam inchados.

"Anita não deve saber disso jamais."

As palavras de mamãe ecoaram em meu coração.

— Apenas um sonho ruim — Menti tocando seu rosto. Não podia contar. Não deveria sequer saber de tudo, o que dirá dizer a Viriatto que escutei atrás da porta — Um terrível pesadelo.

A culpa falou mais alto e parte de mim estava ciente de que este seria meu castigo. Perder o homem de minha vida e sofrer em silêncio longe de minha mãe que morria aos poucos... Se Andrea chegasse a saber sobre eu e Viriatto - a única pessoa com a qual ela realmente podia contar - tudo poderia piorar. Não podia recair sobre mim uma piora em seu quadro e tão pouco um desgosto tamanho que poderia matá-la antecipadamente.

— Não acredite em tais sonhos, linda — Sorriu sem muito humor — Pode ser que as trevas predominem por um tempo, mas chegará o dia em que apenas o amor vai prevalecer. Como nos nossos sonhos... — Lágrimas se formavam em meus olhos e me perguntei, bem lá no fundo, se Viriatto realmente não sabia que ouvi toda a conversa dele com Andrea — Lembra que te pedi para nunca duvidar de meu amor? — Assenti positivamente secando a lágrima com cuidado — Promete que sempre fará isso, não importa o que acontecer?

— Prometo não duvidar nem por um minuto — Confirmei colando os lábios nos dele delicadamente — Não se esqueça de você foi meu primeiro amor.

— Amo você e sempre serei seu — Sorri contra os lábios dele finalmente fechando os olhos. Esse seria o último beijo e nossa despedida.

Quando nossos lábios se tocaram pela última vez senti como se fosse somente um "até breve", porém apenas em meus sonhos. Por Andrea eu teria que abrir mão de Viriatto, a coisa mais importante de toda a minha vida.

Meu primeiro homem.

Meu amor.

Meu sonho.

Meu pianista.

O meu Viriatto.


Não sei se fui ouvida às quatro da manhã quando deixei o apartamento de Viriatto levando todas minhas coisas. Ainda chorava sentada em uma das cadeiras da sala de espera do aeroporto com o coração nas mãos sangrando em pedaços.

Por sorte consegui um encaixe no voo das sete com destino a São Paulo, a casa de meu pai. Era para lá onde eu voltaria com o mundo arruinado e uma história de amor capaz de arrancar suspiros dos mais românticos. Mas sem ele... Sem Viriatto.

Agora me cabia apenas voltar para casa e esquecer essa semana mágica no Rio. Ao pensar em tal hipótese dei-me conta de que jamais poderia esquecer esses momentos... Não havia nada - sequer um objeto pequenino - que levei de Viriatto.

Nada.

Meu violino - um presente dele - ainda repousava sobre o sofá cinza no apartamento tão esquecido quanto nossa história seria dali por diante. Não existiam forças dentro de meu peito que suportassem ler as palavras gravadas na madeira do violino todos os dias.

A moça ao lado, preocupada com minhas lágrimas, cutucou-me perguntando se estava tudo bem. Agradeci erguendo-me um tanto trêmula para tomar um gole de água antes de meu voo ser anunciado. Respirei fundo e voltei ao meu lugar para apanhar minha bolsa e me dei conta de que tinha esquecido algo muito importante na casa de Viriatto...

— Oh não! Pocho! — Murmurei com os olhos embaçados por lágrimas. Meu bicho de pelúcia! Meu melhor amigo!

Caminhei apressadamente em direção à portaria com a passagem amassada em mãos. A lembrança dele era mais forte do que tudo. Mais forte do que eu e qualquer vontade.

— Anita, querida... — Assim que papai abriu a porta de casa corri para seu abraço como se ali fosse meu único refúgio — Filha, o que houve com você? Porque chora tanto?

— Estava com muita saudade, papai... Muita saudade! — Choraminguei contra sua camisa — Você tinha razão... Eu nunca deveria ter ido até a casa de minha mãe. Nunca!

Mesmo questionada intensamente por meu pai e Anne, minha madrasta, não falei exatamente tudo o que havia acontecido. Não adiantaria de nada me manter presa a um passado e tão pouco contar a ambos sobre meu romance tórrido e proibido com o noivo de minha mãe. Tudo estava perdido e o lugar de Viriatto era, definitivamente, ao lado de Andrea.

Papai fingiu acreditar que me decepcionei por não ter acontecido de fato o casamento, mas Anne me conhecia desde pequena e sabia mais sobre mim do que meus verdadeiros genitores. Minha madrasta tinha convicção de que tudo não passava de uma mentira para encobrir o que de fato aconteceu nos dias em que estive fora.

Naquela mesma semana pedi a papai que comprasse nova mobília para meu quarto. Aquele cenário infantil repleto de animas de pelúcia, bonecas e estrelas não condizia mais com minha realidade, muito menos com a nova Anita que renasceu em meu coração. A Anita criada por Viriatto não era mais uma menina tola que sonhava com um príncipe encantado, mas sim uma mulher que em poucos dias amadureceu o equivalente há anos.

Em apenas um mês experimentei o verdadeiro amor misturado à culpa, perdas e despedidas da forma mais intensa que se pode imaginar.

E se foram dias.

O quarto se transformou em outro e as lágrimas já não carregavam tanto a dor. Agora a angustia se instalara em meu peito de maneira enraizada, algo difícil de ser arrancado. Meu primeiro concerto oficial se aproximava e a ansiedade não podia ser contida. Minha carreira era a única maneira de conseguir escapar um pouco da realidade que me cercava, algo muito mais pesado do que cheguei a pensar quando aceitei viver aquele romance com Viriatto.

Meses já haviam se passado e não houve sequer uma ligação por parte de Viriatto ou de mamãe. Era como se ambos tivessem me apagado da memória e delatado de suas vidas. Principalmente ele, que um dia jurou me amar com tanta convicção. Andrea sempre me jurou amor eterno, mas sumia por longos meses. Diante do silêncio deles cheguei a cogitar se a história da doença não era apenas uma desculpa para nos separar. Quem sabe minha mãe não havia notado que algo estava diferente e resolveu se antecipar?

Sendo um blefe ou não, Andrea jamais entrou em contato para me comunicar sobre seu estado de saúde e todas as vezes que meu pai me obrigou a ligar para ela suas frases eram feitas e as respostas muito bem pensadas. Jamais tocou no nome dele e sequer mencionava a palavra câncer.

A realidade era simples e clara como a luz do sol... Fui apenas um jogo para Viriatto. Não passei de uma menina tola que se encantou por seus olhos verdes e corpo sarado e que foi alvo fácil para sua cama. Essa era a grande verdade... Tudo o que aquele homem sempre quis comigo foi o que conseguiu.

Infelizmente para mim as coisas não se limitaram a momentos de prazer e paixão.

— Anita... Já está na hora de enfrentar as coisas e sair deste quarto — Anne estava novamente parada ao batente da porta de meu quarto usando seu vestido floral e com o cabelo loiro caindo ao lado do corpo — Como se sente esta manhã, querida?

Sentada sobre a cama eu ainda olhava fixamente em direção à janela.

A chuva batia conta à vidraça e por detrás dela era possível contemplar a piscina como se estivesse desenhada sob o céu da tarde cinza. Uma almofada descansava em meu colo e minha cabeça descansava na cabeceira da cama... Uma vez mais existiam lágrimas em meu rosto. A vontade de chorar e sorrir ao mesmo tempo se confundia em meu coração de tal forma que sequer pensar era fácil.

Anne hesitou antes de entrar no quarto e sentar-se a beira da cama. Esticou-se para deslizar a mão por minha face e limpar as lágrimas que ali caiam. Segurou em minha mão com carinho e sorriu em sinal de cumplicidade.

Minha madrasta sabia de tudo. Contei a ela sobre como Viriatto me enganou e a forma intensa na qual me entreguei a ele.

— Obrigado por se importar, Anne — Sussurrei com a voz embaçada — Estou bem... Acredito que nós estamos — Ressaltei sorrindo entre as lágrimas. Anne pareceu compreender o que eu queria dizer e chacoalhou a cabeça levemente.

— Ah Anita... Sabe que não sei expressar o quanto sinto muito. Sequer sei o que te dizer...

— Não fique triste por mim, Anne — Falei em tom doce — Se choro ainda não é de tristeza, mas sim por medo. Ainda não sei o que fazer e muito menos o que será de mim.

— Fique calma querida, nós vamos te ajudar. Você será uma ótima mãe — Sua mão apertou a minha com carinho — Um dia olhará para trás e verá que tudo valeu a pena por esse lindo bebê que trás dentro de si.

Aquietei-me enquanto sentia o abraço acalentador de Anne ao meu redor. Seu apoio naquele momento difícil valia mais do que qualquer coisa para mim.

Não foi nada fácil me descobrir grávida após tudo que aconteceu, muito menos por saber que minha criança jamais chegaria a conhecer e ter qualquer contato com o pai. Sempre pensei que não havia levado nada de Viriatto comigo quando parti naquela manhã chuvosa, porém mais uma vez estava enganada! A vida me pregou uma tremenda peça quando os dias começaram a passar e em meu diário a marca do atraso menstrual se acentuou.

Não senti enjoos, tonturas e a fome em excesso, mas a médica que Anne insistiu para que eu visitasse foi enfática em me garantir que dentro de mim havia um bebê. Uma criança fruto de uma única noite de amor...

Era quase impossível crer que tudo aquilo realmente acontecia comigo, justo comigo!

Tão pouco pensei em proteção quando estive com Viriatto. Ele, talvez por não saber que estava lidando com uma menina virgem e inexperiente, deve ter cogitado que eu me protegia com algum tipo de anticoncepcional. Mas não... A imprudência resultou em uma enorme consequência!

Não tive tempo de lamentar e correr atrás de minha mãe e sua doença. Na verdade tudo ficou para segundo plano quando me descobri responsável por uma nova vida sozinha aos vinte e poucos anos. Todo o peso daquela aventura no Rio caia sobre minhas costas da forma mais inesperada. Cabia agora apenas esquecer o passado e confabular um futuro ao lado do pequeno Viriatto ou de Laura... A doce garotinha que habitava meus sonhos.

Quatro meses depois a barriga de quatro meses de gestação já era evidente, assim como a revolta de papai em relação à gravidez. Anne me apoiava, mas sequer sua condolência foi capaz de amolecer o coração de meu pai ao saber de toda a história. Sua vontade era ir atrás de Viriatto e cobrá-lo a paternidade do bebê, mas após saber que a doença de Andrea havia avançado as coisas mudaram. Papai não foi capaz de colocá-la no olho do furacão em uma situação tão grave. Levar este problema a uma mulher moribunda era inviável.

O que mais revoltava Carlos era saber que minha carreira podia desandar por conta da criança. Consegui um lugar fixo na orquestra e já estava recebendo bem por meu trabalho com arranjos e composições. Minha faculdade de música em São Paulo também seguia a todo vapor e me exigia esforço, no entanto tudo teria que ser paralisado após o nascimento da criança.

Carlos não podia aceitar a ideia de que sua única filha tivesse cometido um erro tão terrível. Para ele minha vida tinha terminado quando aceitei ir para cama com Viriatto e engravidei por um descuido. Papai não conseguia acreditar que todos os planos que fizera para mim durante vinte e um anos haviam sido destruídos pela presença de um homem.

— Como vai se dedicar a sua carreira e estudos com a criança, Anita? Me diz como será possível continuar em busca de seus sonhos com esse fardo a ser carregado! — Sua voz ecoava em minha cabeça sempre que surgia a oportunidade — Deve considerar que doar a criança em adoção é a melhor opção neste momento.

— Como pode me pedir isso, papai? —Tentava engolir as lágrimas — Estamos falando de meu bebê! Esta criança é a única coisa que tenho! — É a única coisa que eu tenho de Viriatto, seria a resposta certa, mas não tive coragem de dizer em voz alta o que morava em meu coração secretamente — Não sou fria o suficiente para passar nove meses com ele dentro de mim e doá-lo! Não tenho essa necessidade, posso muito bem criar esta criança e você sabe disso!

— Não, você não tem condições Anita! — Esbravejou — A criação do bebê será depositada sobre mim e Anne. E como fica todo meu esforço para fazer de você um nome famoso na musica? Demorei anos para aceitar sua opção de seguir esta carreira e, quando finalmente conseguimos algo, vem essa avalanche! Não vale a pena largar tudo o que planejamos por um filho bastardo de um homem que te enganou somente para te levar para cama! Sei que se apaixonou por ele, mas aquele sujeito não passa de um tipo desavergonhado que se aproveita de meninas tolas como você foi!

Engoli em seco diante das palavras dele e senti lágrimas deslizando em meu rosto. Não existiam argumentos diante das verdades ditas sobre Viriatto.

— Papai, por favor... — Sussurrei secando o rosto.

— Sei que somente por causa daquele homem quer continuar com a criança, mas ele não vai voltar! Aquele canalha nunca ligou para você realmente e sequer se importou com o que sentiu ao partir! A criança em seu ventre será um nada para ele tanto quanto você foi.

Senti meu coração sangrando diante das palavras de Carlos e agarrei-me a minha barriga de maneira protetora como se a qualquer momento algo fosse acontecer ao meu bebê. Papai tinha razão... Nunca signifiquei nada realmente para Viriatto e o bebê tão pouco o seria se ele chegasse a saber de sua existência. Minha alma podia estar feliz com a chegada do pequeno, mas ninguém ao redor parecia considerar isto um milagre. Eu estava sozinha diante da vida e da maternidade.

Em uma tarde qualquer, cinco meses depois, recebi um telefonema surpreendente de Andrea.

— Mamãe — Respondi um pouco sonolenta ainda na sala de espera da obstetra enquanto lia um livro para mães jovens — Como é que a senhora está? — Minha voz soava fria, mas Andrea tinha o tom mais caloroso que antigamente.

— Estou melhor agora falando com você, meu amor — Respondeu empolgada — Onde você está?

— No hospital fazendo alguns exames de rotina... E você?

— Também no hospital, mas não se preocupe com isso. Não é nada demais.

— Você tem frequentado muito o hospital ultimamente, mamãe — Senti o bebê mexer em meu ventre e levei a mão até o local — Está tudo bem?

— Sim querida — Respondeu um tanto desconcertada — Estou com muita saudade e tenho pensado demasiadamente em você — Percebi que ela chorava — Me desculpe por estar distante nos últimos tempos, eu só... Estou me cuidando.

— Não se preocupe, mamãe — Senti os olhos sendo preenchidos por lágrimas — Compreendo você. Sei que algo está errado e vou esperar até que seja o momento de me dizer o que é.

— Obrigado querida... Não sabe o quanto queria te ver agora.

Observei minha barriga saltada pela gravidez e sorri. Não era uma boa ideia que Andrea me visse naquele momento.

— Se permitir irei te visitar dentro de alguns meses.

— Será perfeito dentro de alguns meses, talvez no próximo verão. Te amo muito... Ah, querida, Viriatto está te mandando lembranças.

Desliguei a chamada no mesmo momento, sem sequer me despedir como deveria. Em cinco meses era a primeira vez que eu ouvia a respeito dele de maneira tão real. Viriatto... O nome de minha ruína. O homem que destruiu meus sonhos.

Fui chamada pela médica e finalmente pude ter a sorte de ver meu bebê pelo ultrassom. A emoção era tanta que sequer me lembrei de todo o resto que deixei para trás. Parte daquele homem habitava em mim e nada no mundo me fazia pensar que aquilo era ruim.

Meu filho.

Meu bebê.

Eu o amava mesmo antes de conhecê-lo.

— Pelo que vejo teremos uma garotinha chegando ao mundo dentro de quatro meses — A doutora comentou com um sorriso largo. A emoção me tomou no exato instante e me dei conta que meu corações sempre soube que era ela vindo até mim — Você já tem um nome?

— Laura.

 


CAPÍTULO SEIS

CORAÇÕES DISTANTES

 

Os nove meses de gestação passaram em um piscar de olhos e sequer pude crer que em breve chegaria o momento de ter minha filha comigo, finalmente.

Apesar de estar grande e com a barriga pesada, ainda trabalhava com as composições e na orquestra normalmente, inclusive seguindo regularmente as aulas da faculdade. Mesmo me vendo disposta com a gestação e muito feliz ainda conseguindo dar conta de tudo, papai seguia ignorando a presença de minha filha e insistindo na ideia de me persuadir a colocá-la para adoção. Meus amigos e pessoas próximas não compreendiam tamanha revolta de papai, uma vez que não abri para ninguém a verdadeira paternidade de Laura.

Anne aparecia sempre com algo de novo para o enxoval do bebê e estava cada vez mais feliz com a chegada dela. Laura tinha um pequeno berço em meu quarto e roupas diversas, uma vez que estava em meus planos sair da casa de meu pai assim que acabasse meu resguardo. Eu definitivamente não queria minha filha convivendo com um avô que jamais toleraria sua presença.

Após a faculdade, em uma tarde tranquila e chuvosa, sentei-me diante da janela sentindo Laura quietinha dentro de meu ventre, talvez aproveitando meu momento de descanso e os últimos momentos de sua estadia lá dentro.

— Aqui estamos, pequeno bebê — Murmurei me esticando um pouquinho para apanhar um embrulho que chegou pelo correio. Tratava-se de minha revista de música, uma assinatura mensal que sempre recebi ao decorrer da carreira — Está muito frio aqui fora... Como será que está ai dentro? — Pousei a revista sobre meu colo, deslizando a mão ao decorrer da grande barriga de grávida.

Folheei as páginas encontrando matérias interessantes e tive um sobressalto quando me deparei com quase cinco páginas destinadas ao piano. Quase derrubei a revista quando encontrei uma foto grade de Viriatto estampada no inicio da matéria. Ele estava lá, uma vez mais diante de meus olhos após tanto tempo! Era tão lindo quanto me lembrava, usando trajes elegantes e com o belo par de olhos verdes reluzindo.

— Não pode ser... — Sussurrei para mim mesma, ainda desacreditada por encontrá-lo.

 

O anjo dos teclados

Denominado como "O maior pianista contemporâneo" por muitos, Viriatto Velasco não apenas encanta seu público quando está à frente de um piano. Atualmente o jovem apelidado pelos críticos como "Anjo dos Teclados" dedica-se a cuidar do câncer de útero de sua noiva Andrea - dona de uma das maiores agências de modelo do país.

A reviravolta se iniciou na vida do pianista no final do verão, sendo o motivo principal pelo qual o casamento não aconteceu. Muitos acreditem que o choque emocional atingiu também a vida profissional do rapaz. Os rumores afirmaram que o desempenho de Viriatto tem deixado a desejar, mas no último concerto onde a equipe da revista esteve presente Velasco não fez feio, mostrando seu incrível desempenho ao presentear o público com uma nova composição chamada "Laura".

A nova canção se revelou um verdadeiro deleite aos ouvidos dos convidados e critica, consagrada como a nova sensação dos pianistas atuais. O mistério, apesar do sucesso, se instalou dentre os curiosos... Quem será Laura, a musa que inspirou a canção?

 

— Aquela música... — Murmurei para minha barriga enquanto ainda passava os olhos pela matéria que mais me parecia ser de uma revistar de fofocas — Será que um dia Viriatto saberá sobre você?

Andrea não fazia ideia que eu estava grávida. Mamãe não tinha parentes próximos e muito menos conhecidos em São Paulo! Não tinha como Viriatto saber sobre nossa filha, tinha? Como pudera ele lançar a tal canção que guardou a sete chaves durante tanto tempo justo agora? Teria sido um pressentimento, talvez?

Afastei todos os pensamentos embaralhados relacionados a ele e arremessei a revista longe.

Mamãe estava mesmo doente. Câncer no útero. Senti o corpo todo estremecer e tentei enxergar a situação sob o ponto de vista dela.

Não posso negar que inicialmente a culpei por não me contar sobre a doença e até mesmo me chateei por ter sido escolha dela me manter afastada, no entanto, ao me descobrir grávida dei-me conta de que se estivesse no lugar de Andrea não iria querer que minha filha me visse definhando em uma cama ao passo em que parava a vida dela. Andrea queria me poupar o sofrimento e ser uma boa mãe, algo que ela mesma tinha ciência de que nunca havia sido.

— Nada mais importa, não é Laurinha? Você pode não ter seu pai e seus avós, mas tem a mim. Sempre farei de tudo por nós duas, querida. Sempre escolherei você. Teremos uma à outra e isso é o que vai bastar.


Em uma noite qualquer desci até a sala para comunicar a meu pai sobre a data de meu parto e o encontrei sentado em completo silêncio com uma foto minha em suas mãos. Ao lado também estava a revista com a foto de Viriatto estampada nela.

Aquela altura, fazendo apenas alguns dias para a data da cirurgia cesariana, sequer conseguia me movimentar com destreza.

— Papai — Sussurrei com um breve sorriso e parando ao lado dele — Anne já chegou na Itália? Quando ela volta?

— Anita — Respondeu um tanto friamente — Sim... Ela já chegou e retorna na semana que vem — Seu olhar se deslocou em minha direção e senti como se meu corpo todo estremecesse com certo medo. Certamente diria algo sobre minha filha — Você viu isso? Andrea está com câncer no útero, como me foi dito pelo advogado dela.

— Sim, eu sei — Dei de ombros e fui até o sofá do outro lado. A revista que li anteriormente estava nas mãos de Carlos. O rosto de Viriatto era estampado sob seus olhos e papai parecia muito interessado na figura dele — O que foi?

— Este rapaz não me parece ser o tipo que rejeita uma filha — Seus olhos não me buscaram.

— O que você quer dizer? Este mesmo homem me rejeitou e certamente rejeitaria minha filha.

— Mas fez uma composição chamada Laura — Pontuou enfaticamente — Que por acaso é o mesmo nome que você dará a menina — Apontou minha barriga, na qual pousei as mãos como se protegesse — Acha mesmo que ele iria rejeitá-la?

— Quais são suas intenções, papai? — Perguntei por fim — Nunca antes se preocupou com Laura! Porque isso agora?

— Não acha melhor deixá-la sobre a responsabilidade dele? Quero dizer... Se não quer uma adoção talvez entregá-la ao pai seja a melhor opção. Ele é mais velho e consequentemente mais responsável.

Coloquei-me de pé sentindo o corpo estremecer intensamente.

— Viriatto pode ser tudo isso, porém certamente não amará minha filha tanto quanto eu! Laura precisa de mim e de mais ninguém, muito menos de um miserável como o pai dela que somente soube me enganar para me levar para cama! — Caminhei em direção da porta — Fico cada vez mais decepcionada com você, papai!

Sai da sala com os gritos de meu pai em minhas costas e já sentindo como se meu corpo todo flutuasse. A respiração falhava aos poucos e pontadas estranhas atingiam—me no baixo ventre.

Reconheci de imediato às contrações.

Tentei subir as escadas em direção ao meu quarto ignorando completamente papai e suas propostas sujas em relação ao bebê. Nada penetrava em minha mente, apenas uma grande pressão que parecia vir diretamente de meu coração. Minhas pernas paralisaram quando alcancei o meio da escada e todo o resto ficou turvo. Tentei me agarrar ao corrimão com força, mas sequer tive tempo de gritar antes de meu mundo ser engolido por uma nuvem negra e toda minha vista se apagar.

Já não sentia nada quando mergulhei na completa escuridão e rolei escada abaixo.


Narrador

A noite fria envolveu Carlos Aeixo quando o mesmo desceu do carro negro em direção à porta do orfanato de uma cidade no interior de São Paulo.

A linda menina recém-nascida dormia em seus braços como um anjo e respirando levemente. Apesar de estar preste a traçar um caminho totalmente diferente do que foi pretendido a pequena Laura, Carlos não podia deixar de admirá-la. De fato era uma criança linda. O cabelo escuro como o de Anita era farto e os grandes olhos eram claros em meio à imensidão da noite. Seria uma criança esplêndida, no entanto não havia lugar para ela em suas vidas.

Sentia-se no direito de decidir pela vida da filha e da neta, uma vez que ambas estavam abandonadas por um homem aproveitador e inescrupuloso. Não pretendia abandonar Laura, apesar de todo esforço que fez para separá-la de Anita.

Mentiu para a filha dizendo que a neta havia nascido sem vida após o acidente que sofreu em casa ao desmaiar. Mentiu para o Estado dizendo que Anita - em coma sem previsão de voltar devido a pré-eclâmpsia que sofreu - pretendia dar a menina em adoção por ser uma jovem e perdida mãe solteira.

A porta se abriu e a madre responsável pelo orfanato apareceu para recepcionar o homem que traria a nova criança.

— Ela é uma graça, devo confessar — Esticou-se para ver a pequena Laura dormindo nos braços do avô — É encantadora. Que fatalidade! Tão pequena e com a mãe doente deste jeito...

— Não se preocupe madre — Consolou-a com um sorriso — Minha filha sempre quis dar a menina em adoção e quando se recuperar o baque será menor, certamente.

Obviamente tudo não passava de uma deslavada mentira para conseguir se desfazer da menina. Anita estava viva mesmo que estivesse em coma e quando acordasse também seria vitima de uma nova mentira. Para ela seria dito que Laura havia nascido sem vida após seu episódio de convulsão.

— Iremos cuidar dela com todo o carinho, Carlos — Garantiu a madre — Esta linda ficará muito bem conosco.

— Sabe que ela jamais poderá ser adotada, não sabe? — A velha senhora assentiu — Laura não será uma órfã comum, uma vez que custearei todo o necessário para que tenha uma infância digna com tudo que puder oferecer. Irei vir visitá-la com frequência e não estará sozinha.

— Claro que sei Carlos. Você não quer abandonar sua neta, imagino.

— Exato... Mesmo que minha filha não a queira eu certamente quero fazer parte da vida dela — Mentiu — Jamais pretendo desampará-la.


Anita

TRÊS ANOS DEPOIS

Quando me disseram que tinha uma visita não esperei que Andrea fosse surgir bem a minha frente. Olhei em direção a minha mãe no meio da sala de braços abertos sem crer no que estava acontecendo.

Andrea avançou em minha direção e nos abraçamos com muito carinho e saudade.

— Mamãe! — Lágrimas brotavam em meus olhos após tanto tempo sem vê-la — Você veio... Ah meu Deus, nunca pensei que fosse realmente vir!

Era meu aniversário de vinte e quatro anos e o fato dela estar viva e bem a minha frente me fazia pensar que algo bom estava acontecendo após tantos anos. Rever Andrea era maravilhoso, mas ao mesmo tempo doloroso. Revê-la era recordar parte terrível de meu passado, algo que causou tanta dor que eu preferia esquecer.

— Achava mesmo que deixaria de vir? — Nos separamos do abraço com os olhos molhados — Depois de três anos achava que nunca mais iria aparecer?

— Ah mamãe — Andrea me parecia ótima. Estava com o cabelo relativamente curto, loiro e usava roupas de estilistas famosos. A antiga Andrea por fim parecia surgir novamente — Estou tão feliz por tê-la aqui!

Sentamos frente a frente segurando as mãos uma da outra. Ela me avaliava nitidamente contente, chorosa e um tanto ressentida.

— Confesso que não estou aqui apenas por seu aniversário — Carlos havia me antecipado que conversou com Andrea pelo telefone e contou a ela sobre tudo o que aconteceu há quase três anos em relação à perda do bebê — Estou aqui pra termos uma conversa, querida. Uma conversa séria.

— Já sei mamãe. Meu pai me contou que te disse tudo sobre o bebê e sinceramente fico feliz por isso. Já era hora de te contar o porquê sumi tanto tempo e o motivo de minha depressão nos últimos anos.

— Não tinha ideia que tinha estado grávida. Deveria ter me contado! Certamente teria te dado todo o apoio... Eu...

— Você estava doente mãe — Murmurei olhando em seus olhos azuis — Não era certo querer nada de você naquele momento, muito menos apoio em uma situação tão delicada.

— Mesmo assim sou sua mãe. Viriatto e eu teríamos te entendido e ajudado — Abaixei o olhar. Papai não havia dito nada sobre a paternidade da criança — Nós teríamos te ajudado com a criança.

— Mamãe, isso já passou — Dei de ombros sentindo os olhos se encherem de lágrimas. A coisa mais difícil para mim era falar sobre Laura... Sobre o doce bebê que carreguei no ventre por nove meses e de um momento paro outro tinha me deixado. Mais uma vez fui fraca e deixei meu único sonho ir pelos ares. Meu coração sangraria e se arrependeria até o meu último dia de vida — Agora ela está morta — Senti a mão de Andrea tocar meu rosto e secar as lágrimas — Ela se foi e a culpa disso foi toda minha.

— Oh Anita... Não pense assim jamais. Você a amava não amava?

— Muito — Gemi sendo incapaz de encará-la — Eu a amava tanto... Tanto. Não fui boa o suficiente.

— Claro que foi! — Me abraçou beijando minha testa — Foi uma ótima mãe enquanto ela estava dentro de sua barriga e teria sido melhor ainda se ela houvesse nascido! Era uma menina?

— Era, sim, uma menininha — Murmurei ainda abraçada a ela e chorando silenciosamente.

— Como seria o nome dela? — Nos separamos um momento, mas Andrea ainda segurava o meu rosto.

— Laura.

— Oh querida — Respirou fundo e triste — E o pai dela? Esteve com você?

— Não, mamãe — Minha voz se converteu em algo áspero — Laura não tinha pai, era somente minha e de mais ninguém. O pai dela não merecia tê-la como filha porque é simplesmente desprezível. Por favor, não fale mais sobre ele!

— Me desculpe querida — Ajeitou-se no sofá.

— Como está sua saúde? O seu câncer...

— Estou em remissão já faz seis meses e até agora os resultados são satisfatórios. Pode ser que volte, mas tenho esperança que não aconteça.

— Você deveria ter me contado.

— Fiz o que era certo assim como você! Você me fez feliz estando longe de mim, querida. Se tivesse ficado eu não teria coragem de continuar ao ver seu sofrimento, apenas iria querer morrer mais rápido para te livrar do estorvo de ficar atrás de mim — Abaixei o olhar — Foi o correto e estou contente por ter feito minha vontade — O silêncio predominou — Como foi que você descobriu? — Questionou um tempinho depois.

— Eu ouvi... — Comecei a me lembrar e instantaneamente meu coração sangrou — Quando você contou ao... Ao Viriatto.

— Não pode imaginar como Viriatto ficou desesperado quando foi embora — Levou a mão ao peito em sinal de agonia — Ficou apavorado e jamais o vi daquele jeito antes. Chegou até mesmo a ir atrás de você no aeroporto, mas o voo já tinha decolado.

Um nó se formou em meu estômago naquele momento, após ouvir tais palavras.

— Precisei fazer isso — Admiti — Não consegui lidar.

— Entendo você, querida.

— Como está Viriatto... O seu relacionamento... — Perguntei em um impulso.

— Viriatto é um homem genial — Iniciou um tanto reclusa — Quando o conheci me senti tão fascinada que na hora pensei ser amor de verdade. Logo quis ajudá-lo e me casar, obviamente, mas aos poucos notei que tudo o que sentia não passava de um fascínio por sua beleza e juventude. Quando descobri minha doença os olhos se abriram e me dei conta de que nosso relacionamento era algo passageiro resumido a uma linda amizade. Dei-me conta de que não o amava. Não nos casamos. Rompemos qualquer laço afetivo depois que você partiu, mas Viriatto permaneceu ao meu lado durante o tempo que passei no hospital. Ele disse que também se enganou e admitiu que não me amava.

Engoli em seco tentando disfarçar a intensa vontade que sentia de chorar.

— E como ficaram as coisas depois que parti?

— Viriatto ficou transtornado quase seis meses por sua causa. Você ter ido embora repentinamente de nossas vidas mexeu muito com ele, mas estava sempre ao meu lado de hospital em hospital. Aquele homem foi à única pessoa com quem pude contar. A paz na vida dele voltou apenas por agora que está com a mãe e a irmã em sua cidade natal.

Andrea não contou a ele sobre a gravidez e nada diria por pedido meu. Nada mais parecia o mesmo. Ele, de qualquer maneira, havia me esquecido. Como suspeitei não mencionou sequer uma palavra sobre nós à mamãe. Não passei de um vazio em sua vida, um grande silêncio.

Dois anos se passaram e finalmente vi alguma recompensa por todo meu esforço com a música. Tornei-me uma compositora e violinista famosa, uma mulher solitária que depositava no trabalho toda a frustração de uma vida marcada pela dor da perda de uma filha. O câncer de Andrea voltou e desta vez a própria me contou. Agora a doença era ainda pior, uma vez que o foco era o cérebro. Passei alguns dias ao lado dela no hospital e voltaria em breve, antes de sua decisiva cirurgia.

Se estivesse viva Laura estaria completando quatro anos.

Acabava de voltar da rua após comprar o presente de aniversário que minha filha jamais iria abrir quando recebi uma chamada do hospital do câncer no sul onde me avisaram que Andrea havia acabado de ir para o centro cirúrgico operar o cérebro em uma cirurgia de emergência.

Voei até a cidade de minha mãe com o coração na boca e absurdamente exausta pela correria de chegar até lá. Passei horas e horas contemplando uma boneca fixa dentro de uma caixa de papelão... Uma boneca que seria de Laura, minha filha que era nada mais que uma lembrança.

Era quase um novo dia quando cheguei ao hospital na capital do Paraná. A todo fôlego corri até a recepção perguntando sobre Andrea. A resposta que obtive talvez tenha sido — após a morte de minha filha — a pior noticia que recebi em toda a vida.

— Sinto muito por sua mãe, mas Andrea não está mais aqui — A médica me disse assim que chegou para conversar — Ela ficou na mesa de cirurgia.

— O que quer dizer com isso?

— Sinto muito. Andrea faleceu.

 


CAPÍTULO SETE

INEVITÁVEL REENCONTRO

 

O corpo de minha mãe era velado em um caixão a minha frente.

Parada na porta da sala de velório meus pés pareciam incapazes de se mover. Papai havia me ligado e dito que estava vindo o mais rápido possível, pois mesmo não sendo mais casado com Andrea ainda queria dizer o último adeus e me consolar. Ver-me sozinha naquele momento era aterrorizante, uma vez que as piores sensações atravessavam meu corpo em total intensidade. As pessoas ao redor me cumprimentavam com bastante pena e desejavam os pêsames com toda aquela carga emocional que um velório trazia.

Pensei em Laura uma vez mais. Se minha filha estivesse ao meu lado segurando em minha mão aquele momento certamente seria mais fácil de encarar. Talvez minha menina fosse linda como o pai e radiante como o sol, exatamente como sempre a imaginei em meus sonhos. Se ela estivesse ali me daria forças para ser melhor por ela.

A realidade é que a única coisa que me restava era o ensurdecedor silêncio do vazio.

Parei a beirada do caixão para encontrar Andrea sem sequer um fio de cabelo e completamente destruída pela doença. Toquei seu rosto e senti sua pele gelada em meus dedos. Meu coração se apertou e as lágrimas deslizavam por meu rosto de maneira incontrolável.

— Sinto muito mamãe... Realmente sinto tanto!

Momentos que compartilhei ao decorrer da vida com Andrea começaram a povoar minha mente enquanto meu último adeus acontecia.

Via-me pequenininha correndo pelo jardim com ela atrás de mim. Também me lembrei da forma como esfregava meu cabelo ao tomar banho e tirava fotos de minha janelinha quando o dente caia. Sentia seu abraço ao meu redor e o seu perfume... As palavras engaçadas e a risada escandalosa. Quando me dei conta estava curvada sobre o caixão chorando desesperadamente.

Sem acreditar que isso estava mesmo acontecendo fui envolta pela cintura e retirada dali por alguém. Vi-me encostada a um peito forte e amparada como uma criança. Segui chorando sem me importar em saber quem havia me tirado de lá e quando me dei conta estava do lado de fora do cemitério.

— Ah meu Deus — Tapei os lábios com as mãos ao deparar-me com os olhos dele — Viriatto... — Seu nome escapou de meus lábios como um palavrão e rapidamente busquei me desvencilhar de seus braços — Me solte!

— Anita — Me segurava enquanto insistia em me debater para se livrar dele — Fique calma, você precisa se acalmar! Por favor!

Oh meu deus, era ele!

Em carne e osso.

Em presença.

Bem a minha frente... Realmente ele.

Foi como se o tempo não houvesse passado. Foi como se o tempo voltasse quatro anos e estivéssemos frente a frente pela primeira vez.

— Não quero te ver. Saia daqui! Saia daqui agora!

Ao invés de sair Viriatto me puxou em direção a seu peito novamente. Não pude me controlar e chorei novamente até esvaziar meu estoque de lágrimas. Porque não pensei que ele estaria aqui? Como pude me esquecer dele, justo dele? Ergui-me disposta a enxotá-lo novamente, mas quando nossos olhares se cruzaram as palavras faltaram em meus lábios.

Encontrei um olhar singelo e devastado como nunca antes.

— Por favor, me escuta — Implorou ainda com os dedos envoltos em meu pulso — Andrea deixou uma carta para você comigo.

— Uma carta com você? — Puxei a mão dos dedos dele — Andrea não podia saber...

— Sabia de alguma maneira. Quando fui visitá-la pela última vez Andrea disse que sentia que partiria na cirurgia e me pediu para te entregar a carta.

— Pois então entregue — Usei meu melhor tom ríspido para contar a vontade de agredi-lo fisicamente.

Estar diante do homem que me enganou e ainda por cima me deixou com uma filha no ventre era doloroso demais! Encará-lo após tantos anos era uma tortura, uma vez que mal consegui parar de imaginar se Laura seria tão bonita quanto ele. Tolerar a presença do pai de minha filha morta era como cravar ainda mais fundo a faca que descansava em meu coração.

Se Viriatto estivesse ao meu lado quando engravidei certamente Laura estaria conosco agora.

— Está no meu hotel.

— Não vou sequer à esquina com você!

— Não vou deixá-la sozinha aqui. Se quiser ler a carta terá de vir comigo.

O segui pelas ruas da cidade em direção ao tal hotel. Subi com ele em completo silêncio ainda demasiadamente baqueada com nosso reencontro tão informal e inesperado. Era difícil acreditar que se tratava mesmo de Viriatto bem ao meu lado.

Viriatto entregou em minhas mãos tremulas um envelope cor de rosa. Todas minhas defesas caíram diante daquilo e desfaleci caminhando até o sofá onde me sentei. Desfiz o envelope e me deparei com uma folha de papel de caderno em linhas azuis e fundo branco. Viriatto se sentou ao meu lado e ignorei sua presença.

 

 

Anita,

Não fique zangada por não ter te ligado antes de acontecer. Essa hora deve estar chorando minha morte e estou com um nó na garganta por imaginar isso. Escrevo para dizer um adeus formal e também ressaltar que você foi tudo em minha vida. Peço perdão por ter sido uma mãe ausente e talvez narcisista, mas somente fui assim porque sabia que longe de mim você seria uma pessoa melhor. Eu te amei muito e sempre irei amar. Agora pretendo estar te olhando de perto e de mãos dadas com minha neta. Direi a ela como você a amou e como desejava que estivesse ao seu lado. Espero que atenda aos meus últimos desejos... Não chore mais por mim. Estou feliz em me ver livre desta doença e parar de sofrer por ela. Desejo profundamente que esqueça tudo e corra atrás de seu grande amor agora que nada pode te impedir. Sim, eu sei a verdade e não foi muito difícil concluir tudo sozinha. Quando notei o que havia acontecido já era tarde demais. Desculpe-me por não ter visto antes e por ter separado você e Viriatto, querida. É somente o que tenho a dizer. Estou com Laura agora e prometo cuidar dela como nunca antes fiz com você.

Te amarei eternamente,

Mamãe.

 

Ao terminar de ler tomei consciência de onde estava e com quem estava. Encontrei o olhar dele no meu tão emocionado quanto e coloquei-me de pé sentindo-me tremula.

— Ela sabia... — Sussurrei as palavras a ele um tanto desacreditada.

— Sim, ela me fez contar tudo na última vez em que nos vimos — Garantiu — Já era tarde demais.

— Obrigado por ter me dado à carta — Disse a ele enquanto limpava meu próprio rosto das marcas de minha fragilidade — Obrigado... — Dei-lhe as costas, mas não por muito tempo. Viriatto me deteve novamente, mas desta vez apenas com palavras.

— Vai embora novamente? Vai fugir de mim como fez no Rio...

— Espero que faça como da outra vez e não venha atrás de mim. Esqueça-me completamente!

Sai do apartamento batendo a porta e desci pelas escadas ignorando a espera pelo elevador. Uma vez mais deixei o coração para trás em busca de um novo destino para meu coração despedaçado.


Semanas depois

— Oh Anita, você está maravilhosa! — Adele se aproximou quando me viu parada no camarim das mulheres apenas me olhando no espelho. Envolveu-me em um abraço carinhoso e cheio de saudade — Faz quanto tempo que não nos vemos?

— Não muito tempo — Definitivamente não estava animada — Meu último concerto foi a três semanas.

— Meus pêsames... Sinto muito por sua mãe — Por causa da morte de minha mãe me afastei alguns dias do trabalho.

O último concerto em São Paulo encerrava a temporada e era considerado um evento grande com várias apresentações de renome na música clássica.

— Está tudo bem — Respondi com um breve sorriso. Por certo o vestido bege e longo que escolhi para encerrar a noite me deixava mais confiante para subir ao palco — Teremos várias apresentações hoje. Estou ansiosa para as férias.

— Ah, certamente eu também — Caminhamos juntas e desligadas da multidão ao redor — Será o melhor concerto de música clássica que a cidade já viu na ultima década. Além de nossa apresentação teremos uma apresentação de ópera — A olhei intrigada — E também um solo de piano do Velasco que todos estão ansiosos para assistir.

— Espera... O que? — Minhas pernas fraquejaram — O Velasco? Está falando de Viriatto Velasco?

— De quem mais, querida?

Segui em direção ao local onde Adele diria sua atenção e sequer pude acreditar no que meus olhos encontraram. Ninguém mais que Viriatto Velasco — lindo, loiro, alto e forte — conversava com alguns dos organizadores do evento e parecia estar sendo condecorado. Desviei o olhar quando o dele me encontrou e um arrepio me percorreu o corpo da cabeça aos pés. Ainda era exatamente como eu me lembrava... Aquele homem... O pai de minha filha morta.

— Oh céus... — Murmurei quando o notei que se aproximava de nós.

— Olá Viriatto, boa noite — Adele o cumprimentou enquanto meu pensamento vagava em Laura.

Se estivesse ao meu lado provavelmente seria a primeira vez que veria seu pai e o momento em que Viriatto descobriria, finalmente, que tivemos uma filha juntos. Laura seria uma menina encantadora e Viriatto poderia gostar dela, quem sabe amá-la. Poderíamos ter uma longa conversa e ele talvez me condenasse por escondê-la por tantos anos... Meu coração dizia que teria sido assim. Viriatto teria aceitado a pequena garotinha em sua vida agora

De fato nunca chegaria a saber como seria realmente. Tudo ficou enterrado junto ao pequeno corpo de meu anjo... Esquecido as sombras de uma história bonita que terminou em uma terrível tragédia.

— Adele — Tomou a mão dela entre as dele sem deixar de me encarar. Em seguida foi à vez de tomar a minha sem ao menos pedir permissão. Foi como se um choque me consumisse e apenas por ser um ambiente profissional me policiei para não parecer ríspida diante de nossos colegas — Anita.

— Boa noite — Compartilhar a mesma profissão que Viriatto nunca antes nos uniu como agora. Pela primeira vez nossos caminhos se cruzaram em um concerto em São Paulo e me peguei questionando secretamente se havia algum motivo no universo que nos levou até ali — Adele será que podemos...

— Viriatto — Minha colega me segurou no lugar de modo a me impedir de sair dali — Ansioso para noite de hoje?

— Não costumo ficar ansioso com os concertos depois de tanto tempo, mas confesso que hoje o clima está propício — Deu um sorriso calmo com os olhos presos em mim. Era constrangedor, de fato, uma vez que se tornava notório para todos ao redor a maneira como me percorria com o olhar — A noite de final de temporada é de longe a mais especial, principalmente quando recebemos uma ótima surpresa.

— Oh, eu adoro surpresas... — Adele comemorou sem saber do que se tratava.

— Um reencontro inevitável — O sangue ferveu em minhas veias. Minha vontade era de matá-lo agora mesmo! Como era possível que meu corpo o desejasse depois de tantos anos da mesma maneira? Como explicar ao meu coração tolo que acelerar por este homem era quase um pecado mortal?

Quase cinco anos separavam nosso primeiro encontro deste reencontro e ainda senti como se fosse à primeira vez.

— Vai estar presente na festa? — Adele questionou referindo-se a festa que aconteceria para todos os músicos presentes depois do grande concerto.

— Sim. Os certificados e condecorações serão entregues aos presentes lá — Sabia que também teria de estar presente e aguentá-lo próximo pelo menos até o final da festa — Gostariam de me acompanhar?

— Claro que sim, não é Anita? — Adele se empolgou e resolvi me pronunciar.

— Não é uma boa ideia — A diretora pediu para que nós duas nos reuníssemos com todos os músicos. Adele pediu licença a Viriatto e fomos de encontro a todos.

O olhar inquietante de Viriatto me perseguiu por toda a noite, sem exceção. Os olhos esverdeados presos em mim me causavam arrepio e repúdios. Era praticamente inevitável não estremecer me lembrando de como me olhava na tarde em que fizemos amor sobre o piano e a maneira doce como suas mãos percorreram minha pele.

Enquanto me preparava para entrar no palco após a inédita apresentação de ópera senti alguém chegar por trás e tocar em minha cintura.

— Da última vez que nos encontramos te perdoei por ir embora por se tratar do velório de sua mãe — A voz me fez se sobressair e encará-lo com certa ansiedade — Mas desta vez não vai escapar tão fácil, pequena Anita...

— Me deixa em paz! — Não me movi para evitar que as pessoas ao nosso redor percebessem meu desconforto — Não se aproximei de mim e muito menos me chame de pequena Anita!

— Tem razão... Você não parece mais aquela doce menina que encontrei no aeroporto — Seu tom de voz era carinhoso — Hoje te vejo como uma linda mulher. Confesso que nunca antes vi mais bela.

— Como tem coragem de se dirigir a mim depois de todos esses anos? — Questionei tomada pela indignação — Não tem amor próprio ou vergonha, Viriatto? — Ficamos frente a frente e estremeci com a visão linda de seu rosto.

— Foi você quem foi embora. Foi você quem me deixou.

— Posso ter partido, mas você nunca foi atrás de mim!

— Como pode dizer isso? Eu corri atrás de você naquele aeroporto, mas você escolher partir sem sequer se despedir! Mandei inúmeras cartas para casa de seu pai e sequer obtive resposta! Cheguei a telefonar na casa de Carlos e Anne e sempre tive negativas... Diziam-me que você não queria falar comigo nunca mais! — A confusão se instalou em mim diante das palavras dele — Seu pai foi enfático em me garantir que você me odiava e não queria saber de me ver nunca mais, apenas por isso não voltei lá...

— Você foi até a casa dele? — Questionei desacreditada.

— Sim, pergunte a ele! Recebi uma portada na cara e fui expulso pelos seguranças após ele chamar a policia!

Lembrei-me vagamente de um episódio onde papai teve de chamar a policia para expulsar um invasor. A história nunca foi muito clara para mim, mas sequer me importei na época. Estava grávida e ainda muito perturbada pelos problemas.

— Nunca recebi carta ou fiquei sabendo que telefonou... — Me atropelei nas palavras — Porque não procurou a mim? Você está mentindo!

— Não estou e você tem como saber se é verdade ou não, basta perguntar ao seu pai! — Disparou enraivecido — Você foi embora sem qualquer satisfação e não pensou em mim nem por um minuto quando partiu! Pergunte ao seu pai ou a tal Anne. Era ela quem atendia as ligações e recebia as cartas!

— Se tivesse ficado o que teria mudado? — Esbravejei sem dar a chance de continuar — Andrea estava doente e precisava de você...

— Mas eu precisava de você e teria te escolhido!

— Não foi o que me disse quando foi me ver no quarto... Não era o que parecia!

— Apenas estava baqueado pela tragédia na vida de Andrea, mas sem dúvidas teria escolhido ficar com você se houvesse escolhido permanecer ao meu lado para lutar.

Viriatto estava visivelmente alterado, por isso me deu as costas e caminhou para longe por algum tempo. O observei contendo as lágrimas e passei as mãos pelo rosto.

Mentiram para mim.

Papai e Anne mentiram sobre jamais terem recebido um telefonema da parte dele ou qualquer correspondência. Laura estava morta por causa de meu pai e sempre culpei Viriatto. Nos afastamos um do outro porque papai buscou nos manter longe. Meu pai havia tratado de nos afastar e ocultar a verdade.

Carlos era capaz de mentir e eu sempre soube...

Fui puxada em direção ao palco e quando pisei ali busquei esquecer todas as histórias. Tentei apagar de minha mente qualquer situação que envolvesse Viriatto e papai. Toquei o violino oferecendo o melhor de mim e a maior concentração. Sabia que ele estava me assistindo lá atrás e toda a raiva que guardei durante cinco anos se transformou em energia para trabalhar as cordas.

A vez de Viriatto chegou e a plateia explodiu em aplausos. Escorei-me na parede para vê-lo subir ao palco sob o melhor angulo. Era como se sua estrela houvesse nascido para brilhar ali. Caminhou gloriosamente até o centro do palco onde havia um microfone e os aplausos cessaram.

— Obrigado a todos por estarem aqui para apreciar nossa noite especial — Sua singela fala despertou a atenção a plateia — Hoje querida fazer diferente e dedicar a apresentação para alguém muito especial que reencontrei após muitos anos. Anita, essa e todas são para você.

Perdi o ar quando vários olhares se direcionaram para meu rosto corado.

— Ele quis dizer você? — Adele perguntou assombrada e com certa felicidade. Não respondi, limitando-me a admirá-lo tomar seu lugar em frente ao piano e começar a tocar.

Imediatamente reconheci a canção. Era aquela composição.

"Quero que saiba que sempre que toco essa música penso em você. Desde que te conheci todas são dedicadas a você. Você é minha inspiração".

Fui injusta com ele durante todos esses anos e o mundo foi cruel com nós. Ao passo em que senti lágrimas em meu rosto, agradeci silenciosamente a vida por ter me dado uma segunda chance com um inevitável reencontro.

Nossa história tinha de seguir.

 


CAPÍTULO OITO

ACASOS POR ACASO

 

Bebi um pouco de champanhe temendo que a taça vingasse sobre meu vestido. Minhas mãos ainda tremiam pela lembrança dos últimos acontecimentos e nada em minha memória era tão poderoso quanto o olhar penetrante de Viriatto.

Fechei os olhos e me encostei à parede buscando incansavelmente recuperar os sentidos. Respirei profundamente enquanto ouvia o som de uma música qualquer ecoando pelo salão em uma melodia agradável e lenta. Envolvi-me na sintonia levando a taça de cristal aos lábios para tomar mais um gole do saboroso champanhe.

— Está tudo bem? — Não abri os olhos ao ouvir a voz de Adele, apenas assenti.

— Tudo bem. Sabe quando vão terminar por aqui?

— Não devem demorar Anita. Você está mesmo bem? — Assenti positivamente.

Precisava que essa festa logo chegasse ao fim para poder voltar para casa o mais rápido possível. Cinco anos depois da morte de minha filha finalmente consegui sair da casa de meu pai e viver sozinha em um apartamento em São Paulo.

Despertei dos devaneios quando alguém retirou calmamente a taça de minha mão.

— Adele, eu já disse que... — Travei-me ao encontrar Viriatto bem a minha frente bebendo o resto de bebida de minha taça — Você... — Murmurei surpreendida— O que quer agora? Já não disse tudo o que desejava?

— Estou vendo que todos meus esforços para que acreditasse em mim foram em vão, não é mesmo? — Dei de ombros diante sua nítida decepção.

— Confesso que não sei o que pensar... — Abaixei o olhar — Estivemos cinco anos afastados e durante todo esse tempo pensei em você como o vilão da história. Em minha cabeça você jamais me procurou e apenas me usou para se divertir. De uma hora para outra quer que eu acredite que correu atrás de mim e teria me escolhido caso houvesse ficado? — Concordou, mas notando que minha descrença era uma grande confusão — Me desculpe, mas as coisas não funcionam assim. Estou confusa, compreende?

Ele também estava, pude constatar ao analisar firmemente seus olhos claros.

— Sei que ficou longe porque acreditou ser o melhor para sua mãe, acreditei em suas palavras... Porque é tão complicado acreditar nas minhas? — Nunca em vida desejei mais me jogar nos braços dele do que no instante em que vi lágrimas em seus olhos — Demorei cinco longos e terríveis anos para te reencontrar esperando por esse momento como um menino espera o presente de natal... Porque é tão difícil acreditar que sigo te amando e quero viver com você o que não tivemos tempo no passado?

— Não sabe sequer metade do que passei durante todos esses anos... — Sussurrei apertando o olhar e sentindo uma lágrima deslizar por minha bochecha — Você não sabe, mas se soubesse compreenderia...

— Não estou aqui por acaso, Anita. Sabia que você viria a este concerto e me organizei para te reencontrar — Apertei os lábios diante das palavras — Você tem outro homem?

— Não — Respondi imediatamente e um tanto nervosa — Nunca mais consegui me relacionar com ninguém depois de... — Engoli as palavras. Não era o momento de contar a ele sobre Laura — E você... Tem uma mulher?

— Tenho... Sempre tive — Declarou seguramente e ainda sustentando meu olhar — Estou tentando abrir os olhos dela agora para que compreenda de uma vez que finalmente chegou nosso momento. O nosso inevitável — Respirei profundamente e encarei os fatos. Eu o amava e acreditava nele mesmo que tudo parecesse confuso demais — Me pergunto se essa mulher ainda me ama como eu a amo.

— Seguramente ama — Garanti com o rosto vermelho e segurando a mão dele — Sempre amou. Mesmo buscando te odiar ela jamais conseguiu. Sua presença foi marcada a ferro e fogo no coração dela e não existe ninguém capaz de arrancar... Ninguém.

— Me desculpe por não ter lutado mais — Aproximou-se a ponto de roçar o hálito em meu rosto.

— Estava confusa e não sabia o que fazer. Se te odiei um dia foi porque te amei. Eu era só uma menina boba quando nossos destinos se cruzaram.

— Essa mesma menina mora em meus sonhos e coração, mas esperei muito tempo para reencontrar nela a mulher incrível e segura que vejo hoje — Sorrimos um para o outro e lhe toquei a face com cuidado.

Era a primeira vez que o sentia tão perto, mas fomos interrompidos pela organizadora do evento.

Quando entrei pela porta daquele teatro naquela noite ainda odiava com todas as minhas forças Viriatto Velasco e o via como o algoz de toda minha vida. Agora, prestes a ir embora, o amava de novo como cinco anos não separasse aquele momento da primeira vez que o vi.

A festa acabou e finalmente teríamos um tempo para nós.

— Onde está hospedada?

— Estou morando no centro de São Paulo agora — Caminhávamos lado a lado nos escondendo da noite fria da capital paulista em grandes casacos negros.

— Eu também. Quer ir até meu apartamento? Fica bem perto daqui — Ofereceu quando chegamos ao carro dele. Mordi os lábios em expectativa.

Viriatto abriu a porta para mim e não precisei pensar muito para resolver ceder à tentação. Ele ainda tinha a capacidade de me persuadir com seu charme e beleza.

— Deveria ser uma boa menina e ir para casa, mas não posso desperdiçar a oportunidade de conhecer sua casa depois de tantos anos — Ironizei enquanto ele dirigia pelas ruas da cidade.

— Você continua conservadora, pequena Anita. Esquece tudo e vamos viver uma nova fase juntos. Por mim, por você e por Andrea... Tudo o que sua mãe queria era te ver feliz e me fez prometer que cuidaria disso.

Pensei em Laura imediatamente.

Nossa filha também estaria demasiadamente feliz se aqui estivesse. Seria incrível ter Laura conosco agora que o pai dela tinha voltado para meus braços.

— Claro que iria gostar... — Viriatto sorriu acreditando que eu me referia a Andrea, mas na verdade era tudo sobre Laura — Estaria muito feliz nos vendo juntos agora... — Meu olhar vagava pelas ruas de São Paulo conforme Viriatto dirigia — Laura...

Não pude me controlar de sussurrar o nome dele quando meu coração apertou por sua memória. Ter Viriatto tão perto era como dobrar a presença de Laura em minha mente, sendo impossível esquecer a menina fruto de nosso amor em nenhum instante sequer. Ela vivia entre nós mais do que nunca agora.

— O que você disse?

Calei-me e o encarei um tanto assustada. Engoli em seco e busquei na mente uma desculpa por hora. Essa conversa sobre nossa filha deveria ser feita com serenidade e muita calma.

— Nada, apenas estava pensando alto — Menti com um sorriso triste.

— Por um minuto pensei ter ouvido você dizer Laura — Gelei ao ouvir o nome dela ser dito por Viriatto. Perdi até mesmo o rumo de meus pensamentos tentando evitar que as lágrimas de desespero escapassem.

— Lembra que conversamos sobre o nome de nossos filhos um dia? — Buscava me entreter com alguma coisa mais alegre.

— Viriatto... — Tentei disfarçar meu tom embaraçado pela emoção incontrolável.

— O que você tem Anita? — Questionou um tanto preocupado e já embicando o carro na garagem do prédio — Por acaso eu disse algo que te deixou triste? Por favor, me perdoe...

— Não Viriatto, você não disse nada — Suspirei e tentei sorrir. Diante de seu belo olhar era bem mais fácil conseguir isso — Apenas estou desacreditada que tudo isso está realmente acontecendo. Estou feliz por ter você aqui.

— Eu também, meu amor. Esperei anos por isso.

Subir para o apartamento dele me deu frio na barriga, principalmente com os braços de Viriatto envoltos em minha cintura. Foi impossível não me lembrar da primeira vez em que estivemos juntos no Rio de Janeiro, quando finalmente fui completamente dele de fato. O elevador nos levou até o quarto andar e Viriatto abriu a porta rapidamente. Mergulhamos no interior do belo apartamento e respirei mais aliviada pelo clima agradável ali. Retirei meu casaco com a ajuda dele esfregando as mãos uma na outra e caminhando até o meio da sala principal.

— Este lugar se parece muito com aquele do Rio de Janeiro... — Relembrei um tanto nervosa.

Por alguns instantes voltei a ser a menina boba de cinco anos atrás.

— Realmente sim... — Admitiu me encarando em busca de algo a mais — No que tanto pensa?

— Em como o tempo passou... — Respondi olhando em volta.

— Em como tenho sorte de tê-la em meu destino novamente.

— Continua galanteador... Foi assim que conseguiu me conquistar mesmo sendo noivo de minha mãe — Relembrei com um pequeno sorriso e me aproximando ainda mais dele.

— Então devo ser grato as minhas inúteis habilidades.

— Porque ao invés de falar com meu pai, minha madrasta e a empregada não procurou diretamente por mim? — Viriatto abaixou o olhar.

— Fiz tudo o que era possível Anita, mas você pareceu ter sumido do mapa.

— Estava doente... — Seus olhos me buscaram com certa curiosidade — Depressão.

— Seu pai me disse, mas de fato não acreditei — Assenti positivamente — Porque ficou doente?

— É uma longa história na qual não quero tocar agora... — Viriatto não parecia disposto a me questionar.

Não seria prudente dizer em voz alta sobre Laura antes que pudéssemos respirar novamente a presença um do outro. Talvez Viriatto se zangasse ao saber da existência de nossa filha, uma vez que não estava nos planos dele minha partida repentina. As coisas mudaram rapidamente e tudo o que guardei na memória para despejar sobre ele um dia não podia mais ser dito. Viriatto não tinha culpa como imaginei e as coisas deveriam ser feitas de outra maneira.

— Tem a ver com nossa história? — Questionou tocando em minha mão com carinho. Concordei com um aceno positivo e ainda sem encará-lo. Apertei os olhos diante das lembranças dolorosas — Existe algo que ainda não sei?

— Viriatto... — Suspirei um tanto nervosa — Acabamos de nos reencontrar. Não acho que seja o momento de conversarmos certas coisas. Esperei anos para te ver novamente e não quero perder mais tempo com questões que não podem ser mudadas.

— Tudo bem, tem razão! — Me abraçou e retribui com cuidado — Tudo tem seu tempo.

Enrolei meus braços ao redor do pescoço dele e selei nossos lábios em um beijo doce e cheio de saudade. Naquele instante, beijando-o depois de tanto tempo separados, foi como se fogos de artifício explodissem ao nosso redor. Matei a saudade que nutri por cinco anos de seus beijos, abraços, braços e cheiro... Nada parecia suprir a falta que minha alma sentiu de se aconchegar de encontro a ele e apenas esquecer que o mundo existia.

— Ah Anita... — Sussurrou tocando meu rosto — Porque tivemos de perder tanto tempo?

Viriatto me permitiu tomar um banho quente enquanto pedia algo de comer para comemorar nosso reencontro. Nada parecia ser real enquanto acontecia. Sequer imaginei que poderia estar novamente junto daquele homem um dia.

Jantamos massa com um bom vinho e conversamos ao decorrer da madrugada sobre os acontecimentos dos últimos cinco anos... Certamente ignorei a parte da gravidez de Laura.

Contei a ele sobre ter ouvido sua conversa com Andrea e as conclusões que tirei ali. Viriatto compreendeu a culpa que senti por ter roubado o homem de minha mãe após descobrir que a mesma estava prestes a morrer. Entendeu também que Andrea não tinha ninguém mais para contar além dele, mas não aceitou muito bem a ideia que tive de ir embora sem ao menos se despedir.

Ele, por sua vez, narrou tudo o que aconteceu em sua vida no mesmo período.

Tomei ciência de seu desespero ao me ver partir e os esforços que fez para chegar até mim. Conheci os detalhes de como foi afastado por meu pai e Anne e a maneira como suas forças se esgotaram após tentar inúmeras vezes me ver novamente. Carlos tinha sido duro com ele e não mediu forças para me ver livre do homem que me engravidou. Papai acreditava que me fazia um favor, quando na verdade me matava aos poucos.

— Seu pai estava nervoso por tudo que houve... Certamente faria o mesmo se fosse com minha filha — Engoli em seco e assenti positivamente.

— Ele não gostou nada de saber sobre... Sobre... — Viriatto me encarava um tanto curioso — Sobre nossa história envolvendo Andrea.

— Com razão... Aos ouvidos de quem está de fora tudo soa muito perverso.

Esclarecemos alguns fatos e deixamos as diferenças de lado. Finalmente tínhamos espaço e condições para ficarmos juntos e demos conta de que não haveria momento melhor. Dormimos juntos apos horas de conversa e sequer nos demos conta do tempo passar. Assim que o sol nasceu desci do sofá da sala um tanto dolorida por ter dormido braçada a ele. A noite foi ótima, apesar de não termos tido qualquer intimidade.

Caminhei pelo apartamento enquanto Viriatto dormia e encontrei fotos espalhadas por ali. Havia uma garotinha bela ao lado dele e de uma senhora, certamente sua mãe. A menina era muito parecida com os dois e conclui ser a irmã menor da qual sempre comentava. Perdi longos minutos analisando a fotografia e pensando se Laura seria parecida com aquele pequeno anjo... Rapidamente meus olhos foram tomados por lágrimas.

Encontrei seu quarto no final do corredor e não hesitei em entrar para procurar uma toalha limpa. Tive um sobressalto quando observei na prateleira meu antigo animal de pelúcia.

— Poncho... — Sussurrei cobrindo os lábios com as mãos. Sequer pude acreditar que realmente estava vendo-o ali. Caminhei em sua direção e trouxe a pelúcia até minhas mãos — Não posso acreditar...

Analisei-o e notei que estava exatamente como a cinco anos, muito limpo e conservado. Junto daquela pelúcia ficou para trás a inocência que carreguei um dia em minha vida. Poncho levou consigo minha meninice e toda a pureza que meu coração perdeu ao amar Viriatto.

— Anita? — Viriatto apareceu na porta e dei um sorriso pequeno em meio às lágrimas — Tudo bem?

— Achei isso... — Mostrei Poncho e ele sorriu um tanto constrangido. Aproximou-se vagarosamente — Você guardou durante tanto tempo...

— Foi à única coisa que me restou de você — Seu tom de voz era tristonho — Você, por outro lado, não levou nada meu. Talvez tenha sido melhor, uma vez que cada vez que meus olhos pousavam sobre esse bicho de pelúcia era impossível controlar as lembranças.

— É ai que você se engana... — Sussurrei para mim mesma.

Laura era parte dele e estaria comigo para sempre, viva em meu coração. Viriatto não tinha ideia de como esteve presente em minha vida sem ao menos aparecer por tantos anos. Almoçamos juntos e caminhamos pelo dia frio de São Paulo ainda nos atualizando sobre os últimos anos.

Já era noite quando Viriatto me deixou na porta de meu prédio e tomou minha mão entre as suas de maneira cordial. Havia uma caixa de veludo vermelha entre nós e era de uma famosa marca de alianças.

— Acha que é cedo demais para pedir sua mão em casamento?

Meu olhar congelou em seu rosto e demorei alguns segundos para compreender o que de fato estava acontecendo.

— Talvez seja um pouco cedo sim... — Sussurrei baqueada pela situação. Viriatto abriu a pequena caixinha e revelou a meus olhos um belo par de alianças de outro branco com nossos nomes gravados junto à data de cinco anos atrás.

— Me desculpe, mas esperei por isso durante um longo tempo — Sorriu — Quer se casar comigo?

Cobri os lábios com as mãos e novamente senti o coração inflar de alegria. Nada poderia me fazer mais feliz do que ser esposa de Viriatto Velasco. Tudo parecia ser uma loucura, mas não existia uma resposta diferente a ser dada.

— Sim! Sim! — Após cinco anos me senti novamente completa e finalmente em meu lugar. Juntos poderíamos ter outra criança e formar uma família. Juntos poderíamos viver nosso amor plenamente e minha vida teria algum sentido além da música — Eu amo você...

Sussurrei após ter o anel posto em meu dedo anelar da mão direita.

— Eu amo você.

Escolhemos não fazer uma festa muito formal. Nosso plano era casar no civil o mais rápido possível, comemorar com alguns amigos e familiares e sem seguida morarmos juntos em São Paulo. Marcamos a data do casamento para dali três meses e neste meio tempo ficamos de acertar nosso novo lar e nos desfazer das coisas antigas.

— Você vai se casar? — Carlos não escondeu a surpresa quando aparecei na casa dele para uma visita — Casar com quem, se nunca teve sequer um namorado?

— Claro que tive papai. O senhor saber muito bem!

— Não compreendo, Anita — Pontuou duramente atrás de sua grande mesa no escritório da casa — Diga de uma vez que história é essa...

— Viriatto Velasco — Os olhos dele cresceram no rosto — Se lembra deste nome?

Papai levou alguns segundos para digerir a notícia.

— Vai se casar com o homem que destruiu sua vida? — O rosto dele pareceu perder a cor aos poucos, torando-se pálido — Com o pai de sua filha, aquele degenerado que te abandonou grávida para ficar com sua mãe? — Relembrou nervosamente e pondo-se de pé.

Em cinco anos Carlos jamais mencionou Laura e aquilo me causou certo espanto. Nunca antes tocou no nome dela, exceto no dia em que me deu a notícia de sua morte.

— Exatamente, Viriatto Velasco é o meu noivo — Pontuei duramente e muito decidida — Mesmo diante de todos os esforços que as pessoas ao redor fizeram para tentar afastá-lo, a vida tratou de nos reencontrar novamente — Papai suspirou diante da indireta. De nada adiantaria brigar agora sobre coisas que já passaram — Finalmente a verdade prevaleceu e estou ciente de que meu lugar é ao lado dele. Nós nos amamos.

— Comovente... — Ironizou — De uma hora para outra decidiu que aquele homem é o melhor para você.

— Sim — Dei de ombros diante de sua provocação — Vou me casar e administrar a agência de modelos que minha mãe deixou.

— Não sou a favor disso, mas dinheiro não irá te faltar. Ele é rico e a agência de sua mãe é muito rentável...

— É com isso que sempre se importou, não é? O dinheiro... — Sorri sem humor — Mas não vim aqui para saber se você aprova ou não meu casamento e sim para lhe fazer uma pergunta.

— Pois diga — Voltou a sentar em sua cadeira de madeira e escrever algo sem me dar muita atenção.

— O senhor chegou a ver Laura?

Carlos paralisou diante da pergunta e largou a caneta que usava para escrever. Certamente foi pego de surpresa diante de meu questionamento.

— Porque isso agora? Você nunca antes me perguntou sobre o assunto... — Parecia incomodado.

— Você é a única pessoa que a viu e foi quem cuidou de todos os preparativos para o enterro e velório — Carlos seguia estático e um tanto nervoso — Nunca perguntei sobre sua sepultura ou qualquer coisa, mas agora que reencontrei Viriatto acho sensato contar a ele sobre Laura e fazermos uma visita em seu tumulo. Minha filha merece uma visita de seus pais e ao lado dele terei forças para finalmente dizer Adeus.

— Sim, cheguei a vê-la — Desviou o olhar de meu rosto — Você estava em coma e me pediram para reconhecer o corpo e preparar tudo.

— Porque os médicos não falaram nada quando acordei? — Essas perguntas nunca antes foram feitas, mas após me reencontrar com Viriatto tudo tinha de ser esclarecido. Certamente me perguntaria os detalhes que sequer tive coragem de questionar a Carlos na época.

— Pedi que não te perturbassem com isso. Você voltou do coma quase quinze dias depois da morta da criança e não achei prudente que te incomodassem ainda mais. Seu estado também era delicado e preferi eu mesmo te dar a noticia — Abaixei o olhar e concordei friamente — Sem mais perguntas? — Mais aliviado, buscou a caneta para voltar às atenções ao trabalho novamente.

— Como ela era? — Minha voz o fez apertar os olhos e largar novamente a caneta em uma atitude exausta.

— Porque isso agora, Anita? — Esbravejou — Já passou... Ela não está mais aqui!

— Nunca te perguntei antes porque não tinha coragem, mas agora me sinto forte suficiente para isso! Será que pode compreender o coração despedaçado de uma mãe que perdeu a filha sem sequer ver seu rosto? — Não pude me conter e elevei a voz mais do que deveria.

Peguei-me chorando e tapei o rosto com as mãos pelo momento de fragilidade. Era doloroso demais voltar a esse assunto, principalmente quando o tema era trazido para a realidade além de meus pensamentos solitários.

— Era uma menina linda — Carlos respondeu enfaticamente e um tanto receoso — O cabelo era escuro como o seu e o rosto era parecido com o dele.

— E os olhos? — Sussurrei imaginando um bebê daquela maneira — Como eram os olhos dela?

— Como os do pai. Bem claros — Especificou sem me encarar — Sua filha era linda, Anita, mas não posso descrever o pouco que me lembro daquela época. Também foi difícil por minha parte lidar com tudo aquilo.

— Me desculpe perguntar isso agora, mas não posso evitar pensar que Laura estaria muito feliz em me ver se casando com o pai dela depois de tantos anos — Expliquei e Carlos engoliu em seco — Viriatto ficará destroçado quando souber do que houve, por isso ainda não criei coragem para contar a ele.

— Não chore Anita — Carlos se aproximou um pouco mais de mim — As coisas foram como tinham que ser. Agora que estão juntos poderão ter outros filhos e criar uma nova família.

— Mas nenhum outro vai substituir Laura. Nenhum outro muda o fato de que jamais poderei abraçá-la e nunca a ouvirei me chamando de mamãe. Ela se foi sem sequer saber quem eu sou!

— Ela sabe como você é — Afirmou e ergui os olhos em sua direção — Conhece o seu rosto.

— Do que está falando, papai?

— Esteja onde estiver sua filha sabe quem você é e conhece seu rosto — Explicou-se melhor — Com licença.

Carlos me deu as costas em seguida e saiu da sala sem dizer mais nada. Tudo pareceu estranho a meus ouvidos, mas não me apeguei a detalhes pequenos. A única coisa que ainda pairava em minha memória era o fato de Laura ter os olhos de Viriatto. Ela seria linda e a cereja do bolo de nossa felicidade.

 


CAPÍTULO NOVE

SURPRESA DO DESTINO

 

Tudo aconteceu muito rápido e os três meses até a data do casamento chegaram como em um piscar de olhos. Adele e seu namorado foram nossas testemunhas e finalmente conheci a mãe e a irmãzinha de Viriatto. Nossa festa foi pequena e refinada, algo sutil como sempre imaginei. Recepcionamos os convidados até o amanhecer - meu pai não esteve presente - e seguimos em direção ao nordeste para passarmos uma bela lua de mel.

Após tantos anos separados finalmente fizemos amor com a mesma pressa e desequilíbrio emocional do passado.

— Parece que voltei no tempo e vivi novamente nossa primeira vez — Viriatto murmurou ao meu ouvido na cama do hotel. Meu corpo ainda estava quente e suado junto ao dele, enroscados como se houvéssemos nascidos juntos.

— Essa foi à segunda vez de toda minha vida — Rapidamente seu olhar se ergueu e Viriatto me encarou por incontáveis segundos.

— Não posso crer que durante todo esse tempo você não... — Parou ao notar que eu não estava blefando.

— Por todo esse tempo somente houve você e nada mais. Nunca mais — Sussurrei tocando seu rosto — Apenas você.

— Ah Anita... — A emoção era palpável em sua expressão — Minha Anita — Acariciei seus ombros e olhei fixamente em seus olhos completamente apaixonada.

— Agora que nos casamos desejo pedir algo — Concordou imediatamente.

— O que quiser.

— Quero um bebê — Surpreendeu-se.

— Tão já? — Acenei positivamente e ele permaneceu confuso — Não acha que devemos esperar um ou dois anos?

— Não... Quero começar a tentar agora mesmo — Pontuei enfaticamente e Viriatto concordou — Quanto antes, melhor! Não tem ideia de como é importante para mim ter um filho com você, Viriatto.

— Certo. Com você pedindo assim até mesmo gostei da ideia — Gargalhamos juntos — Está mesmo disposta a ter um filho comigo agora? Sempre desejei ser pai, mas pensei que por você ainda ser muito jovem iria querer esperar.

— Não sou muito jovem... Acredite! — Muito jovem eu era quando engravidei de Laura. Muito nova era quando perdi minha filha antes mesmo de conhecê-la — A única coisa que desejo agora é ter você para sempre e formarmos juntos uma família.

— Seu pedido é uma ordem, pequena Anita.


Meses depois...

Pegamos a estrada rumo ao interior de São Paulo para um final de semana diferente.

No fundo era o que precisávamos para fugir um pouco da rotina pesada de concertos que vínhamos enfrentando. Um tempo juntos seria incrível para nós dois.

Estávamos casados há poucos meses e nada parecia ser mais empolgante do que estar sempre ao lado de meu marido, principalmente em algo relacionado à nossa amada profissão. Viriatto era o principal patrocinador de uma escola de música para crianças e jovens que levava seu nome como inspiração e obviamente não podíamos deixar de participar da homenagem que fariam para ele.

O momento era especial e repleto de emoção. Foi uma grande surpresa saber que Viriatto era patrocinador da pequena escola interiorana e, ainda mais, professor das crianças nas horas vagas em suas férias.

— Tenho a esperança de conseguir formar músicos de alta qualidade do futuro, por isso invisto o quanto posso em pequenas escolas para crianças necessitadas de algo para ocupar seu tempo.

— É uma escola gratuita?

— Certamente. As crianças que fazem aula aqui pertencem a orfanatos, abrigos e hospitais públicos da cidade — Enfatizou com uma ponta de orgulho — Em meio a tantas crianças carentes existem muitos talentos e vez ou outra um que se sobressai.

As apresentações aconteceriam a céu aberto e havia um bonito palco montado em frente às cadeiras destinadas ao grande público. Nos dirigimos para a área dos patrocinadores e dirigentes, onde fomos cumprimentados formalmente por várias pessoas.

O local era destinado a crianças sem recursos que gostam de música e infelizmente não tinham condições de se dedicar exclusivamente a ela.

Enquanto Viriatto tratava assuntos com os demais envolvidos no projeto me peguei sentada olhando as crianças saltitando de felicidade pelo grande momento de se apresentarem. As garotinhas usavam saia escura, camiseta branca e boina nos cabelos. Certamente pensei em Laura enquanto as observava... A maioria dos pequenos tinha entre cinco e dez anos, a faixa etária que minha menina teria se estivesse aqui.

A inocência estava muito presente em todas as crianças, assim como certo ar de tristeza pela situação em que se encontravam. A maioria ali era sozinha no mundo e não podia contar com uma família.

— Madre... Quero te apresentar Anita, minha esposa — Viriatto me apresentou a uma senhora de olhos azuis e escondida atrás de um hábito de freira.

— Muito prazer em conhecer a mulher que cuida de grande parte das crianças aqui presentes — Comentei sem esconder a admiração e apertando a mão da senhora. Pareceu ser impressão, mas notei que me encarava de maneira estranha e durante vários segundos analisou friamente meu rosto.

— O prazer é meu, querida — Respondeu um pouco curiosa — Não fiquei sabendo sobre seu casamento, senhor Velasco — Comentou com Viriatto.

— Casamos faz apenas dois meses, madre, mas confesso que temos uma história longa a contar — Tomou minha mão de modo a entrelaçar nossos dedos.

— Não divulgamos o casamento para muitas pessoas, somente para nossos amigos íntimos e familiares — Pontuei e ela assentiu.

— São recém-casados feitos um para o outro, certamente. Parecem estar juntos a um longo tempo.

— Cinco anos. Foi o tempo que levamos para finalmente conseguirmos chegar até aqui.

— Minha querida, me perdoe, mas sinto que já te conheço de algum lugar — Comentou segurando em minha mão um tanto apreensiva — Você é da cidade?

— Oh não, madre. Moro em São Paulo desde criança e pouco estive aqui no interior — Respondi educadamente, mas seu olhar não deixou de me analisar ainda curiosa.

A velha senhora me encarava como se buscasse uma brecha para questionar algo forte que pairava em sua mente naquele instante. Pouco me era dito, mas estive certa de que algo poderoso entrelaçava meu destino ao dela naquele momento.

Uma das garotinhas se aproximou puxando outra pela mão e paramos para prestar atenção a sua presença. A garotinha guiada pela mão havia se ferido no dedo e pelo visto teria de ser amparada. A madre nos pediu licença para poder intervir na situação e rapidamente concordamos.

— Sua amiga é aquela que estuda piano, não é? — Viriatto questionou a pequena que ficou para trás ainda nervosa pela situação da amiga.

— Sim senhor — Respondeu com um sorriso fraco — Mas agora não poderá se apresentar com a mão machucada. Ela estudou muito para isso.

— Realmente sinto muito... Estava ansioso pela apresentação de piano.

— Ah, mas não se preocupe! — Seu sorriso era vitorioso — Ela não é a única menina que toca piano! Temos outra pianista muito talentosa que sempre manda muito bem nas apresentações. Algumas pessoas chegam até aqui somente para assisti-la — Suspirou.

— Confesso que a madre já comentou comigo sobre essa garotinha e tive muitas oportunidades de conhecê-la — Viriatto comentou despretensiosamente — Minha curiosidade apenas ficou mais aguçada agora que falamos sobre ela.

— Até mesmo eu fiquei curiosa para vê-la se apresentar — A pequena concordou com minhas palavras — Qual das meninas é dona de tamanho talento? — Questionei.

— Ela está bem ali — A menina apontava uma colega em meio às demais crianças.

— Aquela de cabelos negros? — A voz de Viriatto se sobressaiu em minha mente enquanto meu olhar procurava a figura em questão.

Tratava-se de uma menina de cabelos negros e longos que sussurrava sozinha em meio aos demais. Provavelmente repassava as notas que mais tarde executaria. Deveria ter no máximo seis anos e trazia consigo a expressão mais angelical que contemplei em vida. Sua pele clara reluzia no sol da tarde, assim como os olhos claros brilhavam para o céu em uma oração baixa pedindo sorte para seu momento. Meu coração apertou no peito no momento em que a pequena se virou em minha direção e nossos olhares se cruzaram por um instante.

Foi à sensação mais intensa de toda minha vida.

— Sim! É ela! — A garotinha voltou a falar conosco — É a melhor aluna da escola e pertence às meninas mais novas. A madre diz que ela nasceu com um dom, algo especial que Deus deu a ela como um presente — As palavras ecoavam em minha mente ao passo que meu coração disparava sem ao menos saber o motivo — O nome dela é Laura.

Sempre soube que minha filhava estava morta, mas nunca antes senti sua presença tão fortemente como no momento em que estive diante daquela pequena criança que tanto se assemelhava a ela.

Foi difícil me estabelecer depois de saber que a menina que tocava piano como nenhuma outra se chamava Laura, exatamente o nome de minha filha.

— É muito raro que uma criança de pouca idade seja tão boa no piano como me foi descrito a respeito de Laura — Viriatto comentou quando ficamos sozinhos e segui fazendo um grande esforço para não demonstrar a ele a maneira como minhas mãos tremiam — Realmente deve se tratar de um caso extraordinário.

— Talvez uma herança familiar — Sussurrei mais para mim do que para ele.

— Acredita mesmo nisso? — Dei de ombros sem encará-lo — A maioria das crianças aqui não tem família, Anita.

— Mas vieram de algum lugar, não vieram? — Viriatto concordou.

— Então quando tivermos nosso herdeiro ele ou ela será um exímio músico como a pequena Laura — Apertei os olhos diante de sua frase e nada respondi.

Era demasiadamente difícil me controlar diante de tal situação. Meu coração sangrava, mas seu grito era calado por meus próprios lábios.

Não demorou para que as apresentações começassem e agradeci mentalmente por isso. Pude me distrair com os momentos doces das crianças e afastar da mente a dor que sentia por tudo o que tive de escutar até agora. Nada me feria tanto como relembrar a memória de minha inocente filha que se foi. Confesso que todos meus esforços para voltar à realidade foram esmagados quando chegou à vez da pequena pianista se apresentar. Senti como se uma faca atingisse meu coração ao vê-la subir ao palco com o olhar repleto de insegurança.

A doce menina podia ser facilmente definida em poucas palavras... Graciosa, delicada e angelical. A menina que tinha o mesmo nome de minha filha morta postou-se a frente do piano posicionado no palco e notei que o olhar de Viriatto também era incapaz de abandoná-la. O salão foi premiado com a leve melodia de um clássico e estremeci diante do talento que Laura realmente apresentava. Senti-me tola por sequer um minuto duvidar de seu gigantesco potencial. Todos ali estavam diante de um talento prodígio.

Apenas me dei conta de que chorava quando Viriatto me abraçou de lado em busca de me consolar na emoção. A única coisa que meu marido era capaz de fazer era sussurrar a palavra “perfeito” a cada transição de nota que a menina executava com maestria.

Minhas lágrimas de nada serviam. Mesmo que essa garotinha carregasse o nome de minha filha, tocasse piano de maneira tão familiar e seus olhos fossem parecidos aos de Viriatto, ela não era Laura... Não a minha Laura!

Viriatto colocou-se de pé para aplaudir a melhor apresentação daquele dia e foi seguido por todos os presentes na plateia. Laura não conseguia parar de sorrir de maneira tímida diante dos aplausos e apenas saiu do palco quando a cerimonialista se postou para fechar a festa.

— O que acha de irmos até lá dar os parabéns a Laura pessoalmente? — Sugeriu me tomando pela mão.

Não sabia se estava pronta para encará-la tão de perto, mas aceitei ser guiada por meu marido em meio à multidão. Antes que alcançaremos Laura, a madre nos interceptou rapidamente.

— É de emocionar, não? — Disse com um sorriso encantador — Laura realmente tem talento e faz todos irem às lágrimas.

— Nunca antes aconteceu comigo, mas confesso que fui vitima de seu grande talento — Ainda secava algumas lágrimas.

— Realmente estou rendido ao talento daquela criança. Certamente quero saber mais sobre ela e observar seu progresso bem de perto — Viriatto foi enfático.

— Faz mais ou menos dois anos que Laura frequenta as aulas de piano e nosso professor disse que teve apenas de ensinar o básico a ela. Não demorou muito para que desenvolvesse autonomia e passasse a encantar quem a assiste.

— Sempre viveu aqui? — A pergunta de Viriatto também me rondava — Estou realmente interessado na garotinha. Minha mulher até agora está se debulhando em lágrimas.

— Laura vive conosco desde suas primeiras horas de vida — Começou em tom de tristeza — A mãe era uma jovem solteira que sofreu um acidente e estava hospitalizada, mas antes disso deixou claro sua intenção de colocar a criança em adoção. O pai foi embora e a ela restou o avô, que é quem a mantém aqui. O avô a visita sempre e traz presentes, doces e fotos da família — O sorriso de Viriatto se desfez — É algo curioso, pois em uma das fotos de Laura que certa vez tive acesso, posso jurar que havia uma moça muito parecida com sua esposa.

Encarei—a um tanto paralisada pela surpresa.

— Comigo? — Não sabia o que dizer.

— Esperem um minuto!

A madre nos deu as costas e adentrou em meio à multidão de pessoas que se cumprimentava após as apresentações. Viriatto me encarava sem nada dizer, apenas confuso com tudo que havia sido dito até aqui.

— O que foi isso? — Finalmente disse enquanto me assistia esticar o pescoço para tentar encontrar a madre em meio aos demais.

De fato não pude assimilar qualquer familiaridade com ninguém ali, mas meu coração gritava em alto e bom som que algo grande estava prestes a acontecer.

— Não compreendo... — Respondi a ele ainda perdida em sensações.

Não demorou nem dez minutos para que a madre fosse vista novamente caminhando em nossa direção, mas desta vez acompanhada da pequena Laura. Paralisei quando avistei ambas juntas e a madre guiando a garotinha pelos ombros. Viriatto, surpreso com minha reação, apenas assistia a tudo como um curioso telespectador.

Quase nada precisou ser dito.

Ao estar diante de Laura meu coração perdeu incontáveis batidas e por pouco não parou de funcionar. Encarar seus belos olhos era como encarar Viriatto e jamais em vida estive próxima de alguém tão parecida comigo.

— Laura, diga olá para o Senhor e a Senhora Velasco — As palavras da madre quebraram o pesado silêncio que se instalou entre nós.

Os encantadores olhos verdes se ergueram em nossa direção e durante alguns instantes incontáveis analisaram minunciosamente cada traço de minha face. Laura definitivamente estava assustada e demonstrava isso em sua infantil e impactada expressão.

— Não... Não é possível — Sussurrei para mim mesma, mas Viriatto pôde me escutar. Tocou meu ombro em sinal de confusão e seguiu parado ao meu lado.

Minha cabeça e meu coração sabiam que minha Laura estava morta, mas aquela criança parecia ser a personificação perfeita de meu sonho.

— Quem é essa moça? — A voz de Laura era um som lindo, doce e infantil. A pergunta foi dirigida para a madre, que teve a barra do hábito agarrada por ela.

— Eu sou a Anita... — Respondi docemente, sentindo todo o corpo trêmulo.

— Você está bem Laura? — Viriatto questionou quando notamos o rosto da garotinha perder a cor. Sua bochecha antes rosada e calorosa adotou um tom pálido e sem vida — Está sentindo algo? — A menina seguia me encarando como se estivesse diante de um fantasma.

— É ela madre! — Anunciou com os olhos fixos sobre mim — Ela é a moça das fotos! É ela!

O desespero tomou conta de Laura, que apenas sabia se agarrar a barra das vastes da madre e chorar desesperadamente.

— Laura, querida, não pode ser! — Abaixou-se em frente à menina enquanto Viriatto e eu assistíamos a tudo com total surpresa — Sua mãe mora no céu!

Uma vez mais Laura me olhou nos olhos.

Uma vez mais senti meu coração flutuando por algo desconhecido e a incerteza me atingir em cheio.

Ela tinha uma mãe morta e eu uma filha...

Não tive tempo de questionar, uma vez que Laura caiu desfalecida nos braços da madre e rapidamente foi amparada por Viriatto. A pobre criança havia levado um choque tão forte por minha presença que acarretou em um desmaio.

Viriatto checava os sinais vitais da garotinha ao passo que um grande alvoroço se formava ao redor de nós. Por minha vez, sequer consegui me mover diante dos acontecimentos. As palavras de Laura ecoavam em minha mente se repetindo de novo e de novo.

“Ela é a moça das fotos! É ela!”

— Precisamos levá-la para um hospital — Gritou preocupado com a menina em seus braços — Ela tem alguma alergia ou problema de saúde?

— É asmática, Senhor Velasco — Respondeu a madre já nervosa.

Em menos de segundos decidimos levá-la para o hospital e tudo aconteceu em um momento.

Foi um impulso.

Abaixei-me e a tomei nos braços como se minha vida dependesse disso e envolvi seu corpo de modo a encostar sua cabeça em meu ombro. Laura era leve, calma e pequena. Viriatto me olhou surpreso, assim como a madre, e ambos foram abrindo caminho entre as pessoas para que minha passagem com ela fosse mais rápida. O calor daquela inocente e frágil criança entre meus braços me fez estremecer.

O nome dela era Laura.

Tinha os olhos de Viriatto e cinco anos de idade.

Eu estava presente nas fotos dela.

O que estava acontecendo ali bem de baixo de meus olhos somente podia ser um devaneio... Ou um grande milagre!

Meu coração parecia gritar algo que não chegava plenamente a meus ouvidos. Durante todo caminho que fizemos dentro do carro Laura permaneceu desacordada e apenas descansando em meu peito. A temperatura elevada se transformara em febre alta.

Viriatto pisou fundo no acelerador e somente pude ouvir algo ao fundo de meu coração se calar. Ecoava em mim um ensurdecedor silêncio.

A menina que tocava como anjo se desfalecia em meus braços gemendo entre lágrimas e com as bochechas coradas pela febre. Descemos do carro e senti meus braços perdendo a força por carregá-la. Viriatto a tomou em seu colo como se erguesse algo precioso e a encaixou em seus braços andando em direção à portaria da emergência, onde desapareceu.

Sentei-me em uma das cadeiras da sala de espera tremendo muito e baqueada pelos últimos minutos que vivi. A sensação que tinha é de que explodiria a qualquer instante! Fechei os olhos encostando a cabeça na parede e sentindo lágrimas no rosto. Não demorou para que a madre se postasse ao meu lado.

— Não estou enganada... Era mesmo você nas fotos — Escondi o rosto entre as mãos — Sim, era mesmo você! — Toquei o pulso da madre.

— Fiquei grávida de Viriatto cinco anos atrás, Madre — Sussurrei tremendo e de maneira misteriosa — Não contei nada a ele porque na época tivemos um desentendimento e não desencontramos. Meu bebê era uma menina e o nome dela seria Laura... — Segui apertando a mão dela.

— Santo Deus! — Não pude ver sua expressão.

— Sofri uma séria eclampsia no final da gestação e acabei entrando em coma por conta disso após o parto de minha filha. Acordei semanas depois com meu pai contando detalhes sobre a morta dela — Prossegui com lágrimas deslizando por meu rosto em abundância — Sequer cheguei a conhecê-la quando saiu de dentro de mim — A senhora me abraçou devagar — Mas juro que a amava muito. Muito mesmo... Até hoje não me recuperei totalmente do pânico de tê-la perdido e não aceito como pude ter sido tão fraca.

A madre ficou em silêncio durante longos minutos e esperou que meu desespero desse lugar ao mínimo de racionalidade.

— O nome de seu pai é Carlos Aeixo? — Ergui o rosto em direção à madre sem acreditar que havia escutado de fato o nome de meu pai escapar de seus lábios — Cinco anos atrás, em uma noite chuvosa de outono, Carlos Aeixo apareceu em meu orfanato com uma recém-nascida nos braços dizendo ser sua neta rejeitada por sua jovem mãe, que no momento estava em coma devido a um acidente.

— Não pode ser... — Cobri os lábios com as mãos.

— Carlos me disse que o nome da menina era Laura e me fez concordar que jamais seria adotada, uma vez que estava disposto a bancar os gastos da criança e visitá-la com frequência. Ele ainda aparece para vê-la e sempre se mostra muito carinhoso com ela.

Perdi a consciência após ouvir as palavras da madre e tive a certa disso quando me vi, um tempo depois, sendo colocada em uma maca por enfermeiros e seguranças. Abri os olhos sentando-me de maneira aflita. Havia um algodão sobre meu braço dizendo que provavelmente alguém me sedou com algum remédio calmante.

Ao lado da maca Viriatto me observava de maneira confusa e nitidamente aguardava uma resposta.

— O que está acontecendo aqui, Anita? — Questionou nervosamente — Desde que topamos com Laura você teve atitudes irracionais e estranhas.

— Precisamos conversar — Sussurrei um pouco mais calma. Não podia simplesmente perder a cabeça agora e deixar a chance de minha vida escapar entre meus dedos.

Minha filha... Nossa filha estava viva!

Fui enganada da maneira mais cruel e monstruosa por uma pessoa que acreditei me amar durante todos esses anos... Fui feita de tola por alguém que sequer tinha o direito de me chamar de filha novamente um dia! Carlos arrancou parte de meu coração a sangue frio e de maneira desleal. Ele teria de pagar!

— Laura está passando por problemas — Parecia tenso — Não era um ataque de asma, simplesmente. A menina está com pneumonia também.

— O que disse?

— Laura está com pneumonia — Respondeu seriamente — O desmaio foi por um susto, mas ela já estava fraca fisicamente.

— Não pode ser...

— O que está havendo, Anita? Não entendo porque você está aqui e precisou ser medicada... Porque Laura ficou daquele jeito quanto te viu? Tem algo acontecendo que não tenha me contado antes? — Me coloquei de pé ignorando totalmente as ordens para voltar para a maca.

— Preciso vê-la antes de conversarmos — Viriatto me seguiu — Onde está?

— Anita, você não pode sair assim — Abri a porta da enfermaria indo em direção ao corredor.

Sem mais palavras Viriatto me levou aos quartos da ala pediátrica e ali encontrei Laura. Não sei durante quanto tempo fiquei desacordada, mas a pequena estava com fios ligados ao corpo monitorando seus sinais vitais e parecia ainda mais abatida do que antes.

Tudo isso era demasiadamente injusto! Demorei cinco anos para reencontrar minha filha e agora ela estava doente?

Minha filha.

Sorri quando as palavras passaram em minha mente e novamente chorei tomada pela emoção diante da cama dela. Era o sonho mais louco e real de toda minha vida! Reencontrá-la era o maior e mais importante momento de toda a história! Laura... Ela vivia e estava ali! Seus olhos estavam fechados e seu cabelo escuro, denso e liso espalhava pelo travesseiro. Viriatto não compreendeu minha emoção, mas me agarrou por trás quando ameacei cair.

— Laura... — Sussurrei tocando sua pequena mão com carinho.

Naquele mesmo instante a porta do quarto se abriu e Carlos passou por ela. Todas minhas duvidas se esvaíram ao vê-lo e foi no exato instante que me dei conta de que sim, Laura era mesmo minha filha e tudo aquilo estava de fato acontecendo.

Os olhos de Carlos cresceram no rosto e seu susto refletiu na maneira como levou a mão para o peito e tentou sair sem ser visto, mas tudo tarde demais.

Viriatto e eu o encaramos durante um longo período em um interminável silêncio. Somente o barulho do soro pingando até a veia de Laura podia ser ouvido. Por um momento a sensação de ódio começou a fervilhar em meu corpo e quando dei por mim já estava partindo para cima de meu pai com toda a indignação que uma mãe em minha situação poderia expor.

Carlos teria se machucado se não fosse Viriatto ter me segurado para não agredi-lo. Saímos do quarto de Laura e tudo continuou no corredor. Algumas pessoas paravam para ver a cena sem serem capazes de se intrometer.

— Vou mata-lo! — Gritei em sua direção e Carlos ainda me encarava sem acreditar em minha presença ali — Quero que pague pelo que me fez! Quero justiça! — Viriatto parecia terrivelmente confuso com minha atitude.

— Anita... — Carlos sussurrou — Como chegou até aqui?

— Você não podia ter feito isso comigo! Não tinha esse direito! — Sentia cada vez mais os braços fortes de Viriatto me mantendo no lugar enquanto lutava contra eles — Você acabou com minha vida!

— Anita...

— Ela é minha filha e saiu de meu ventre! Como foi capaz de enganar-me desta maneira? Como pôde mentir deslavadamente? Como teve a coragem de dizer que ela estava morta, quando na verdade estava viva e sendo criada por estranhos? — Continuei me debatendo nos braços de Viriatto — Eu a amava e você a tirou de meus braços!

— Fiz o que achei correto naquele momento, Anita. Tente compreender... Você era só uma menina! — Finalmente Carlos disse algo.

— Você não tinha o direito de tomar decisões sobre a vida de minha filha e muito menos levá-la para longe de meus braços! — As lágrimas rolavam em meu rosto desenfreadamente — Eu a amava e teria feito tudo por ela!

— O culpado é ele que te seduziu enquanto ainda era noivo de sua mãe! — Apontou Viriatto, que parecia imerso em um longo estado de choque — Você e a menina estavam largadas enquanto ele cuidava de Andrea e não cabia a mim deixar que minha única filha vivesse uma história miserável somente para cuidar da filha bastarda de um aproveitador!

Foi à vez de Viriatto querer partir para cima dele, mas me coloquei em sua frente de maneira enraivecida. Laura precisava de nós agora.

— Vá embora daqui! — Esbravejei para meu pai quando os seguranças do hospital começaram a intervir em meio ao escândalo. Laura precisava de mim e não seria prudente ser expulsa agora — Não quero te ver nunca mais perto de minha filha! Nunca mais!

Carlos não hesitou em sair de minha vista e certamente o fez porque as condições não eram nada favoráveis a sua estadia. Todos ao redor o repudiavam com o olhar por terem ouvido minhas palavras. Voltei para o quarto de Laura e Viriatto veio a meu encalço.

— Uma filha? — Viriatto questionou quando a vimos novamente — Nossa filha?

Parecia não acreditar em suas próprias palavras.

— Sim Viriatto, sim! — Sussurrei dentro do quarto — Quando fui embora estava grávida de uma criança sua. Por isso fiquei deprimida. Por isso fiquei doente... — Confessei quase sem forças para prosseguir.

— Grávida? — Seu tom era indignado, mas não parecia estar enraivecido — Então escondeu isso de mim durante todo esse tempo? — Assenti positivamente e o vi passando os dedos entre os fios de cabelo de maneira apreensiva.

Parecia desacreditado.

— Não te contei quando nos reencontramos porque ainda era doloroso demais e não queria estragar tudo o que finalmente estávamos tendo a oportunidade de viver! — Expliquei baixinho — Passei cinco anos achando que nossa filha estava morta, quando na verdade meu pai a separou de mim. Você ouviu tudo... — Viriatto concordou.

— Então o bebê é a Laura?

— Sim! — Sorri emocionada — É ela!

— Isso não pode ser verdade... — Dizia a si mesmo enquanto encarava a menina desacordada sobre a maca.

— Voltei para casa sem saber que estava grávida quando parti. Dois meses depois fui ao hospital por uma consulta de rotina e disse que estava com um atraso menstrual de quase seis semanas e a médica me mandou fazer um exame que deu positivo — Viriatto me olhava fixamente — Pensei em te procurar, mas acreditava que você sequer tinha me ligado — Abaixou o rosto em minhas mãos, mas prossegui — Resolvi que ficaria com o bebê e foi isso que fiz! Meu pai era contra a gravidez, mas não dei ouvidos a ele. Aos nove meses de gravidez tudo ia bem, mas tive um briga com Carlos que acarretou um problema grave. Depois disso somente me lembro de ter acordado e com ele me dizendo que Laura estava morta — Pela primeira vez vi os olhos de Viriatto tomados por lágrimas — Coloquei nela o nome que você queria, se lembra? — Viriatto olhou para Laura — Acreditei até agora que nossa filha estava mesmo morta e por isso nunca te contei.

— O que houve com ela... O que...

— Meu pai a deixou no orfanato. Naquele orfanato que fomos hoje — Suspirou e abriu os olhos — Era por isso que eu estava nas fotos dela. Foi por isso que a madre perguntou sobre nosso casamento. Por isso que Laura toca piano tão bem... Nós somos os pais dela, Viriatto. Você entende isso? Nossa filha não está morta!

Viriatto me abraçou com força sentindo na pele todo o drama que carreguei em silêncio durante anos. Choramos juntos em uma emoção que parecia não ter fim, algo tão inacreditável que chegava a ser doloroso.

— Sou pai... — Disse a si mesmo enquanto ainda me abraçava — Nós temos uma filha!

Era noite quando Laura abriu os olhos novamente e se sentou na cama os coçando. Nós dois estávamos lá sentados no sofá do quarto quietos e apreensivos.

— Onde estou? — Nos colocamos de pé juntos.

— Olá Laura — Viriatto sorriu emocionado para ela — Você está no hospital, querida. Está tudo bem — Explicou se aproximando da cama vagarosamente. Nossa filha o encarava ainda coçando os olhos verdes.

— Quem são vocês? — Sua voz era tranquila agora — Porque a madre não está aqui comigo?

— Isso pode te assustar, Laura, mas eu sou seu pai e Anita é sua mãe — Apontou em minha direção.

— Sei que ela é minha mãe... Já a conheço das fotos que ganhei de meu avô Carlos — Nos surpreendemos com a resposta — Mas não sabia que você era meu pai.

— Posso te dar um abraço? — Questionou emocionado e Laura assentiu abrindo os braços ligados ao soro.

Viriatto sorriu e se aproximou a apertando contra o peito. Laura riu quando recebeu um beijo na testa e segui ali parada absolutamente grata a vida por estar vivendo aquele momento que jamais pensei que se concretizaria.

Viriatto e nossa filha juntos.

— Você não vai me dar um abraço também, mamãe? Demorei muito esperando por esse dia — Corri até Laura e a comprimi contra mim o mais forte que pude. Não pude evitar chorar novamente, uma vez mais — Não chore... — Disse com as mãos em meu rosto. Sentia também a mão de Viriatto em meu ombro de modo compreensivo — Não gosto de ver ninguém chorar — Secou minhas lágrimas.

— Sua mãe é bem mais bonita sem chorar, não é mesmo? — Viriatto perguntou a Laura.

— A partir de hoje você não vai chorar nunca mais, querida. Nunca mais! — Garanti enfaticamente — Seu pai e eu estaremos ao seu lado para sempre!

— Onde estavam até hoje? — Simplesmente questionou — Meu avô disse que você não queria ficar perto de mim e que meu pai era ruim.

— Isso é mentira! — Pontuei decididamente — Carlos mentiu esse tempo todo! Eu e seu pai te amamos muito e jamais desistimos de você.

— Nunca vamos te deixar de novamente — Viriatto acrescentou chegando ainda mais perto — Sei que tudo é assustador. Acabei de descobrir que tenho uma filha e você acabou de descobrir que tem pais, mas juntos vamos nos acostumar... A única coisa que posso afirmar com convicção é que te amo e sequer te conheço — Laura deu um sorriso tímido — Vamos cuidar para que em breve vá para casa conosco.

— E as aulas de piano e meu colégio? — Questionou inocentemente.

— Existem muitos colégios bons por ai e você certamente terá um ótimo professor particular — Apontei para Viriatto e eles riram.

— Viriatto é o melhor pianista do mundo todo... — Laura completou animada.

— Isso até minha filha que toca como um anjo aprender tudo o que sei. Quando isso acontecer certamente meu reinado será ameaçado.

Laura corou de alegria e tive a certeza que meu castelo estava pronto e que meu reinado sim duraria para sempre.

Para sempre.

 


EPÍLOGO

 

Em breve Laura fará mais um ano de vida e Viriatto e eu combinamos de realizar uma grande festa. O primeiro aniversário que passaremos ao lado de nossa amada filha certamente deveria ser comemorado de maneira muito especial. Uma viagem em família para o Paraná, estado onde nossa história começou, também estava em nossos planos.

Ter Laura ao nosso lado era exatamente como sempre imaginei em meus mais profundos devaneios.

Apesar de viver em São Paulo conosco há quase um ano Laura não parava de se admirar com as coisas ao redor, principalmente com toda a atenção e amor que recebia diariamente. Ter minha família completa e feliz era tudo o que esperei da vida e depois de sofrer durante cinco anos finalmente podia me considerar uma mulher de sorte. Cada lágrima derramada tinha valido a pena.

Depois de descobrir o real algoz de minha história nos afastamos definitivamente de Carlos e concordamos que ele não tinha o direito de colocar os olhos em Laura novamente. Mesmo tendo arcado com as despesas dela no orfanato, os danos psicológicos causados em minha filha por ter crescido longe de seus pais superavam qualquer gesto de bondade por parte do avô. Laura não parecia se importar muito com a ausência de meu pai... Estava mais preocupada com as aulas de piano ao lado de Viriatto e o novo colégio que lhe trouxe muitos bons amigos.

Aparentemente a calmaria havia se instalado em minha vida e tudo ia bem demais para uma história envolvendo amor entre enteada e padrasto, doença terminal, gravidez escondida e pais separados de sua filha. Tantas coisas nos afastaram durante seis anos, mas tantas outras mais nos uniram. O destino tinha sido cruel, de fato, mas a beleza da vida ainda reinava em meados de uma delicada história de amor proibido.

Dizem que ninguém passa pela vida sem presenciar sequer um milagre e posso dizer que a minha vez chegou... Reencontrar Laura e Viriatto era o meu milagre. O mais puro e verdadeiro milagre.

Definitivamente tive sorte ao encontrar o amor e me dei conta disso enquanto assistia meu marido tocar uma música lenta no piano em sua apresentação em um dos maiores concertos da temporada. Pela primeira vez Laura tocaria ao lado de seu pai e incansavelmente Viriatto dizia que aquele era o momento mais emocionante de sua vida.

Lá estava ela entrando no palco de maneira muito segura para uma menina de apenas seis anos. Usava um vestido vermelho que escolhi minunciosamente e exibia um belo sorriso encantador. Viriatto deu lugar a Laura no banco do piano e ofeguei pela felicidade quando começaram a tocar em perfeita sincronia. Meu coração explodia no peito por saber que música era aquela. A música de Laura... A música que começou e terminou nossa história com chave de ouro. Ambos tocavam juntos e para mim.

Senti algo em meu ombro - como um toque - e as lágrimas voltaram a cair. Não havia ninguém, mas eu sabia que se tratava da presença de Deus que jamais me desamparou na busca pelo amor de minha família. Esse era meu tesouro e tudo que fazia a vida valer a pena.

Sequer notei quando acabou e me coloquei de pé com os olhos banhamos em lágrimas. Todos aplaudiam e levei um susto quando Laura ignorou o protocolo e desceu do palco pela escada da frente correndo em minha direção para me dar um longo abraço. Apertei-a contra o peito ainda ouvindo os aplausos e sorri emocionada quando Viriatto fez o mesmo e se juntou a nós.

— Te amo muito, mamãe — Laura murmurou ao meu ouvido.

— Obrigado por nunca ter desistido de nós — Viriatto sussurrou.

Depois de amar, odiar e quase desistir de toda minha história, o que me restava a essa altura era somente agradecer a vida e ao destino pelos inevitáveis reencontros.

 

 

                                                                  Izabella Mancini

 

 

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