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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


INFERNO / Linda Howard
INFERNO / Linda Howard

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

INFERNO

 

Duzentos anos depois do clã Raintree os derrotar e abandonar em uma pequena ilha do Caribe, os magos Ansara estão novamente elevando-se para enfrentarem seus inimigos mais inflamados. Apesar de seus extraordinários poderes e sua origem sobrenatural, os Raintree se integraram em grande parte ao mundo moderno. Eles são banqueiros, policiais, maridos, esposas e amantes na sociedade humana. Mas agora, de Nevada a Carolina do Norte, a batalha medirá a resistência de seu povo. Porá a prova suas ações e relações. E lhes imporá novas vidas que sequer podiam imaginar.

Como rei, depende de Dante Raintree proteger seu clã, mas seu coração —e talvez suas ações — podem ser fatalmente divididas quando Lorna Clay tropeça em sua vida...

 

 

Dante Raintree estava de pé, com os braços cruzados, enquanto olhava a mulher no monitor. A imagem era em preto e branco, para mostrar melhor os detalhes sem a distração da cor. Concentrou-se em suas mãos, observando cada movimento que ela fazia, mas o que mais o impactou foi sua tranqüilidade. Ela não se agitou, ou brincou com suas batatas fritas, ou olhou para os outros jogadores. Lançou uma olhada em sua carta, não voltou a tocá-la e fez gestos pedindo outra, golpeando a mesa com a unha. Só porque não prestava atenção aos outros jogadores não significava que estivesse tão distraída como parecia.

- Qual é seu nome? - perguntou.

- Lorna Clay - respondeu seu chefe de segurança, Al Rayburn.

- Esse é seu nome verdadeiro?

- Está registrado.

Se Al já não a houvesse investigado, Dante estaria decepcionado. Pagava muito dinheiro a Al para que fosse eficiente e cuidadoso.

- No princípio pensei que estava contando - disse Al. - Mas não presta muita atenção.

- Está prestando atenção, muita - murmurou Dante. - Só que você não a vê fazendo.

Um contador de cartas tem que recordar cada carta jogada. Supostamente contar cartas era impossível com o número de naipes usados nos cassinos, porque ninguém queria um contador de cartas em suas mesas. Mas existiam indivíduos singulares que podiam calcular as probabilidades até com maços múltiplos.

- Também pensei isso - disse Ao. - Mas olhe o fragmento de fita que vem a seguir. Alguém que a conhece se aproxima e fala com ela, ela olhe ao redor e começa a conversar, esquecendo completamente o jogo da pessoa situada a sua esquerda e não olha nem quando é sua vez, só dá um toque com o dedo. E maldita seja se não ganhar, outra vez.

Dante olhou a fita, rebobinou-a, olhou-a outra vez. Voltou a olhá-la pela terceira vez. Tinha que haver algo que estava deixando passar, porque não podia descobrir nenhuma artimanha.

- Se está trapasseando - disse Al com respeito - é o melhor que vi.

- O que diz seu instinto? - Dante confiava em seu chefe de segurança. Al tinha trabalhado trinta anos no negócio de cassinos, e algumas pessoas juravam que podia reconhecer trapaceiros assim que passavam pela porta. Se Al achava que ela estava trapasseando, então Dante teria intervindo e não estaria observando a fita, mas havia algo que o fazia sentir-se muito intranqüilo.

Al coçou a mandíbula enquanto pensava. Era um homem corpulento, mas ninguém que o observasse muito tempo pensaria que era lento, física ou mentalmente. Finalmente disse:

- Se ela não está trapasseando, é a pessoa mais afortunada. Ela ganha. Semana após semana, ganha. Nunca uma grande quantia, mas revisei os números, e nos leva uns cinco dos grandes por semana. Demônios chefe! Na saída do cassino irá parar em uma máquina caça-niqueis, introduzirá um dólar nela e sairá ao menos com cinqüenta. Nunca é a mesma máquina. Estive seguindo ela, procurei os mesmos rostos no cassino cada vez que está aqui, e não encontrei um denominador comum.

- Está aqui agora?

- Entrou faz aproximadamente meia hora, joga blackjack, como de costume.

- Quem é o croupier?

- Cindy.

   Cindy Josephson era a melhor croupier de Dante, quase tão aguda em reconhecer um trapaceiro quanto Al. Estava com ele desde que tinha aberto Inferno, e confiava nela para dirigir um jogo honesto.

- Leve a mulher ao meu escritório - disse Dante, tomando uma decisão rápida. - Que não faça uma cena.

- Entendido - disse Al, deu a volta e saiu do centro de segurança, onde os monitores mostravam cada ângulo do cassino.

Dante partiu também, para seu escritório. Seu rosto estava tranqüilo. Normalmente deixava que Al lidasse com os trapaceiros, mas sentia curiosidade. Como ela fazia? Havia muitos trapaceiros maus, alguns poucos bons, e a cada certo tempo vinha um desses que inspiravam as lendas: o trapaceiro que não se podia detectar, mesmo quando as pessoas estavam alerta e as câmaras estavam fixas sobre ele - ou, neste caso, ela.

Era possível para uma pessoa ter simplesmente sorte, como a maior parte de pessoas entendia a sorte. A possibilidade podia converter um perdedor habitual em um ganhador de alto nível. Os cassinos, de fato, prosperavam com aquela esperança. Mas a sorte em si mesmo não era habitual, e sabia que o que acontecia a sorte era, freqüentemente, algo mais: trapassa. Então havia outro tipo de sorte, o tipo que ele mesmo possuía, mas isto não dependia de uma possibilidade, e sim quem e o que era ele, sabia que era um poder inato e não um sorriso errático da dama fortuna. Já que seu poder era excepcional, as probabilidades diziam que a mulher que tinha observado era só uma estelionatária muito hábil.

   Sua habilidade poderia proporcionar um ótimo estilo de vida, pensou, fazendo alguns cálculos rápidos em sua cabeça. Cinco dos grandes por semana eram duzentos e sessenta mil dólares por ano, e isso só em seu cassino. Ela provavelmente lesava a todos, se tomava o cuidado de manter os números relativamente baixos, assim ficava fora do radar.

Perguntou-se quanto teria lhe tirado, quanto havia ganho um pouco aqui, um pouco ali, antes que Al notasse.

As cortinas ainda estavam abertas na janela que tomava toda a parede seu escritório, dando a impressão, quando alguém abria a porta, de sair para um balcão coberto. Dava para o oeste, para que pudesse ver o por-do-sol. O sol estava baixo agora, o céu se via colorido de púrpura e ouro. Em sua casa nas montanhas, a maior parte das janelas davam o leste, permitindo a vista do amanhecer. Algo necessário para ele, tanto a nascer quanto o pôr-do-sol. Sempre se sentia atraído pela luz solar, talvez porque o fogo era seu elemento a convocar, a controlar.

Checou seu relógio interno: quatro minutos até o crepúsculo. Sabia exatamente, sem checar as mesas cada dia, quando o sol se deslizaria detrás das montanhas. Não tinha um despertador. Não precisava de um. Estava tão em sintonia com a posição do sol que só tinha que checar dentro de si mesmo para saber a hora. Quanto a despertar em um momento em particular, era uma dessas pessoas que podia dizer a si mesmo: acorda, quando precisava, e o fazia. Aquele talento em particular não tinha nada a ver em ser um Raintree, não tinha que escondê-lo; muitas pessoas comuns tinham a mesma habilidade.

Havia outros talentos e capacidades, entretanto, que requeriam ser cuidadosamente protegidos. Os largos dias de verão o induziam a um alto nível de excitação sexual, quando podia sentir o poder contido zumbindo sob sua pele. Tinha que ser muito cuidadoso para não fazer com que as velas saltassem em chamas só com sua presença, ou que começasse um incêndio com um olhar para escova seca como a isca. Amava Reno; não queria incendiá-la. Só que se sentia tão malditamente vivo, com toda a luz do sol que se derramava, que queria deixar a energia emanar por ele, em vez de contê-la dentro de si.

Era assim que devia se sentir seu irmão Gideon, enquanto o relâmpago o atraía, todo esse poder quente queimando por seus músculos, suas veias. Eles tinham isso em comum, a conexão com o poder puro. Todos os membros do extenso clã Raintree tinham um pouco de poder, alguma forma aumentada de capacidade, mas só os membros da família real podiam canalizar e controlar as energias naturais da terra.

Dante não era apenas da família real; ele era o Dranir, o líder do clã inteiro. "Dranir" era sinônimo de “rei", mas a posição que ele tinha não era cerimonial, esta era de puro poder. Era o filho mais velho do Dranir anterior, mas teria sido tirado da posição se não houvesse herdado também o poder para mantê-la.

Gideon era o segundo no comando; se algo acontecesse com Dante e morresse sem um filho que tivesse herdado suas capacidades, Gideon se converteria no Dranir, uma possibilidade que enchia seu irmão de temor, daí o encanto de fertilidade que atualmente estava no escritório de Dante. Este tinha chegado no correio nessa mesma manhã. Gideon com regularidade os enviava, em parte como uma brincadeira, mas principalmente porque fazia todo o possível para assegurar-se que Dante tivesse um descendente que aumentasse as possibilidades de que ele nunca herdasse essa posição. Sempre que eles conseguiam se reunir, Dante tinha que procurar com cuidado em todos os lugares, assim como em toda sua roupa, para checar que Gideon não tinha deixado um de seus pequenos mas inteligentes encantamentos em algum lugar escondido.

Gideon estava melhorando em seu preparo, refletiu Dante. Depois de tudo, a prática faz a perfeição, e Deus sabia que ele tinha feito muitos encantamentos em anos passados. Não só eram mais potentes agora, como variavam em sua preparação. Alguns deles eram óbvios, peças de prata para ser usadas ao redor do pescoço como um amuleto - não que Dante fosse do tipo de usar amuleto. Os outros eram diminutos, sutis, como o que Gideon tinha encravado no cartão de visita mais recente que tinha enviado, sabendo que Dante colocaria provavelmente o cartão em seu bolso. Só tinha se equivocado em que o mesmo poder do encanto o delatava; Dante havia sentido o zumbido de seu poder, embora houvesse perdido um tempo do demônio para encontrá-lo.

Detrás dele sentiu o característico golpe na porta de Al. O escritório externo estava vazio, a secretária de Dante havia ido para casa horas antes.

- Entre - disse, sem deixar de olhar o pôr-do-sol.

A porta se abriu, e Al disse:

- Senhor Raintree, esta é Lorna Clay.

Dante deu a volta e olhou para a mulher, todos seus sentidos estavam alertas. A primeira coisa que notou foi a cor vibrante de seu rico cabelo, vermelho escuro, rodeado de múltiplas sombras de cobre a Borgonha. A cálida luz âmbar dançava ao longo dos fios brilhantes, e sentiu um forte puxão de luxúria em suas vísceras. Olhar seu cabelo era quase como olhar o fogo, e tinha a mesma reação.

A segunda coisa que notou foi que ela tragou nervosa.

 

Várias coisas ocorreram sucessivamente, tanto que poderiam ter sido simultâneas. Com seus sentidos amplificados, a rápida chicotada de desejo se chocou com a reação visceral de Dante de abrasar, enviando explosões graduais de emoção ao longo de todos os seus neurônios, muito rápido para controlar. Do outro lado da sala, viu todas as velas acendendo repentinamente, os pavios queimando muito rápido, muito selvagem, de modo que várias chamas pequenas ondulavam, maiores e mais brilhantes do que deveriam. E em sua mesa, o maldito pequeno encanto de fertilidade de Gideon começou a zumbir com força, como se tivesse um interruptor que tivesse sido pressionado de repente.

Que demônios...?

Não tinha tempo para disecar e analisar tudo o que ocorria; tinha que controlar-se e rápido, ou a sala inteira estalaria em chamas. Não tinha sofrido uma perda tão humilhante do controle de seus poderes desde que tinha entrado na puberdade e o aumento de hormônios havia lhe trazido problemas com tudo.

Implacavelmente, começou a exercer sua vontade sobre seu aumento de poder. Não era fácil; embora se mantivesse perfeitamente calmo, mentalmente se sentia como se montasse um grande touro de temperamento perigoso. A inclinação natural da energia era ser livre, e resistia a qualquer esforço de domesticação, de luta para contê-la dentro de seu muro mental. Seu controle era no geral prodigioso. Depois de tudo, ter poder não era o que o fazia um Dranir; era tê-lo e controlá-lo. A falta de controle induzia à devastação, e por último à exposição. Os Raintree tinham sobrevivido durante séculos, em grande parte graças a sua capacidade para mesclar-se com a gente normal, assim era um assunto que não devia ser encarado com brincadeira.

Dante treinou toda sua vida para dominar o poder e as energias que o atravesavam, e embora soubesse que quando o solstício de verão se aproximava, seu controle sempre se expandia, não estava acostumado a este grau de dificuldade. Gravemente se concentrou, contendo-se, freando-se, exercendo sua vontade sobre as mesmas forças da natureza. Poderia ter apagado as velas, mas com uma força de vontade ainda maior, deixou-as arder, pois fazer com que as diminutas chamas piscassem apagando-se poderia chamar inclusive mais a atenção, que sua repentina iluminação.

A única coisa que escapava de seu controle era o maldito feitiço de fertilidade em sua mesa, que zumbia, palpitava e quase despedia um efeito estroboscópico[1]. Mesmo sabendo que Al e a Senhorita Clay não podiam perceber a energia que essa coisa emanava, não olhá-lo tomou todo seu autocontrole. Gideon tinha se excedido com isto. Esperaria a próxima vez que visse seu irmão mais novo, prometeu-se Dante em tom grave. Se Gideon pensava que isto era emgraçado, ambos veriam o quanto engraçado seria quando os papéis se invertessem. Gideon não era o único que podia realizar feitiços de fertilidade.

Com todos os indomáveis fogos novamente sob controle, voltou a atenção a sua convidada.

Lorna tratou novamente de puxar seu braço para se afastar do gorila que a segurava, mas ele a agarrava forte o bastante para segura-la sem aplicar uma pressão excessiva. Enquanto uma pequena parte dela apreciava que tentasse não machucar-lhe, no entanto, a maior parte dela estava tão furiosa - e, também, assustada - que queria arremeter contra ele com toda sua força, arranhando, dando chutes e dentadas, qualquer coisa para poder escapar.

Então seu instinto de sobrevivência a golpeou a toda velocidade, tanto que todo seu cabelo se arrepiou quando entendeu que o homem que estava de pé tão silencioso e quieto diante das enormes janelas, era para ela uma ameaça muito maior que o gorila.

Sua garganta se fechou, um punho de medo se apertou ao redor de seu pescoço. Ela não poderia explicar que era que tanto a alarmava a respeito dele, só uma vez havia se sentido desta maneira antes, em um beco em Chicago. Estava acostumada a tomar cuidado nas ruas e usava normalmente o beco como um atalho para sua casa - um desmantelado e singelo quarto em um edifício em ruínas - mas uma noite quando tinha começado a caminhar pelo beco, o medo tinha formigado por seu couro cabeludo e congelou, incapaz de dar outro passo. Não podia ver nada suspeito, não podia ouvir nada, mas não podia avançar. Seu coração tinha estado martelando com tanta força em seu peito que mal podia respirar, e havia se sentido repentinamente doente de medo. Devagar, tinha retrocedido até a entrada do beco e tinha fugido rua abaixo tomando o caminho mais longo para sua casa.

Na manhã seguinte o corpo de uma prostituta tinha sido encontrado no beco, brutalmente violentda e mutilada. Lorna sabia que a mulher morta poderia ter sido ela, se não fosse o repentino pânico que lhe deixou de cabelos em pé e que a tinha avisado que se afastasse.

Isto era igual, como ter o corpo golpeado por uma percepção de perigo. O homem que tinha a sua frente, quem quer que fosse, era uma ameaça para ela. Duvidava - ao menos a um nível racional - que a assassinasse e mutilasse, mas havia outros perigos, outras destruições que poderia sofrer.

Sentiu que se asfixiava, sua garganta tão apertada que pouquíssimo ar podia passar pelo nó. As espetadas de luz flamejavam ao redor de sua visão, e em silencioso horror soube teve consciência de que poderia desmaiar. Não se atrevia a perder os sentidos; estaria completamente indefesa se o fizesse.

- Senhorita Clay - disse ele com uma voz calma, suave como a nata, como se seu pânico fosse completamente invisível para ele e ninguém mais na sala soubesse que estava a ponto de gritar. - Sente-se, por favor.

O prosaico convite/ordem teve o bendito efeito de tira-la da armadilha de pânico. De algum jeito, conseguiu tomar inspirar sem ofegar audivelmente, depois outra. Não ia acontecer nada. Não era necessário sentir pânico. Sim, isto era ligeiramente alarmante e provavelmente não retornaria ao “Inferno” para jogar, mas não tinha quebrado nenhuma lei ou regra do cassino. Estava segura.

Aquelas espetadas de luz flamejaram outra vez. O que...? Perplexa, girou a cabeça e se encontrou contemplando dois enormes pilares com velas, cada um deles facilmente de oitenta centimetros de altura, um no chão e o outro sobre uma laje de mármore branco que servia como chaminé. As chamas dançavam ao redor dos múltiplos pavios das velas.

Velas. Ela não tinha estado a ponto de desmaiar. As piscadas de luz ao redor de sua visão tinham vindo daquelas velas. Não as tinha notado quando a tinham arrastado literalmente para dentro da sala, mas era compreensível.

As luzes das velas dançavam e se balançavam, como se estivessem colocadas no meio de uma corrente de ar. Também era compreensível. Não sentia nenhum movimento perceptível de ar, mas era verão em Reno, e o ar condicionado dirigiria um vento forte. Em qualquer caso, ela sempre usava mangas compridas quando ia a um cassino; fora isso, estava muito fria.

Alarmada, se deu conta que estava contemplando as velas e que nenhum dos dois se moveu, nem tinha respondido ao convite de sentar-se. Bruscamente voltou sua atenção ao homem que estava de pé na janela, tentando se lembrar como o gorila o tinha chamado.

- Quem é você? - exigiu ela bruscamente. Mais uma vez puxou seu braço, mas o gorila simplesmente suspirou enquanto a segurava. - Me deixe!

- Pode soltá-la - disse o homem, parecendo ligeiramente divertido. - Obrigado por trazê-la aqui.

O gorila imediatamente a liberou e disse:

- Estarei no centro de segurança. - E silenciosamente deixou o escritório.

Imediatamente Lorna começou a avaliar a possibilidade de sair correndo, mas no momento se manteve firme. Não queria correr; o cassino tinha seu nome, sua descrição. Se corresse, a poriam na lista negra - não só no “Inferno”, mas também em cada cassino de Nevada.

- Sou Dante Raintree - disse o homem, em seguida esperou um instante para ver se ela reagia ao nome.

Este não lhe disse nada, etão ela simplesmente levantou interrogativamente suas sobrancelhas.

- Sou o proprietário do “Inferno”.

Merda! Um dono tinha um peso importante na comissão de jogo. Teria que tomar cuidado aonde pisava, mas tinha uma vantagem. Ele não podia provar que ela tinha trapaceado, pela simples razão de que não tinha feito.

Dante. Inferno. Compreendo - respondeu ela com um pequeno fio de E o que? em seu tom.

Ele era provavelmente tão rico que pensava que todos deveriam estar intimidados em sua presença. Se queria intimidá-la, teria que encontrar algo mais além de sua riqueza para fazer a tarefa. Apreciava o dinheiro tanto como qualquer um; certamente fazia a vida mais fácil. Agora que tinha um pequeno pé de meia, estava assombrada do quanto dormia melhor - o alívio que era não ter que preocupar-se de onde viria sua próxima refeição, ou quando. Ao mesmo tempo, desprezava as pessoas que pensava que sua riqueza os lhes dava um tratamento especial.

Não era apenas que seu nome fosse ridículo. Talvez seu sobrenome realmente fosse Raintree, mas ele tinha escolhido provavelmente seu nome para dar dramatismo e encaixar com o nome do cassino. Seu nome verdadeiro talvez fose algo assim como Melvin ou Fred.

- Por favor, sente-se - convidou ele outra vez, indicando o sofá de couro cor nata a sua direita. Uma mesa de centro, de jade, estava situada entre o sofá e duas cadeiras de clube que pareciam confortáveis. Ela tratou de não fixar seus olhos na mesa enquanto se sentava em uma das cadeiras, que era tão confortável quanto parecia. Certamente a mesa era só da cor do jade e não realmente feita da autentica pedra, mas parecia real, como se fosse ligeiramente translúcida. Certamente era só cristal. Por isso, o artesanato era magnífico.

Lorna não tinha muita experiência com artigos de luxo, mas tinha uma espécie de sexto sentido a respeito de seu entorno. Começou a sentir-se afetada pelas coisas ao redor dela. Não, não afetada; essa não era a palavra correta. Tratou de cortar de uma vez o que sentia, mas havia uma característica estranha desconhecida no mesmo ar, a seu redor, que não podia descrever. Esta era pouco familiar, e definitivamente implicava o fio de perigo que tanto a tinha alarmado quando tinha notado isso pela primeira vez.

Enquanto Dante Raintree passava perto, precaveu-se que estava centrada nele. Tinha razão; ele era o perigo.

Movia-se com graça indolente, mas não havia nada lento ou preguiçoso nele. Era um homem alto, aproximadamente vinte ou vinte cinco centímetros mais alto que seus próprios um metro e setenta, e embora sua roupa feita à medida desse uma aparência magra, não havia nenhum alfaiate perito o bastante para disfarçar completamente o poder de seus músculos sob o tecido. Não como um leopardo, melhor, como um tigre.

Notou que tinha evitado olhar seu rosto, como se não ter esse conhecimento lhe desse uma pequena medida de segurança. Ela sabia bem; a ignorância nunca era uma boa defesa, e Lorna tinha aprendido fazia tempo a não esconder a cabeça na areia e esperar o melhor.

Ele se sentou do outro lado da mesa, e reforçando-se interiormente, foi ao encontro de seu olhar, conectando totalmente.

Seu estômago se desprendeu até o fundo.

Tinha uma fraca e vertiginosa sensação de queda; que apenas refreou agarrando os braços da cadeira para estabilizar-se.

Seu cabelo era negro. Seus olhos eram verdes. Cores comuns, e ainda assim nada nele era comum. O cabelo era liso e lustroso, caindo por seus ombros. Não gostava do cabelo comprido nos homens, mas o seu parecia via limpo e suave, e quis enterrar as mãos nele. Afastou essa idéia e rapidamente se viu presa em seu olhar fixo. Seus olhos não eram apenas verdes, eram verdes, tão notavelmente verdes que seu primeiro pensamento foi que ele usava lentes de contato coloridas. Uma cor tão enigmaticamente rica e pura não podia ser verdadeira. Eram apenas lentes muito realistas, com diminutas estrias negras como nos olhos verdadeiros. Tinha visto anúncios publicitários delas nas revistas. Só que, quando as velas flamejaram e suas pupilas se contraíram brevemente, a cor de sua íris pareceu expandir-se. Poderiam as lentes de contato dar aquele aspecto?

Ele não usava lentes de contato. Por instinto soube que tudo o que via, da lisa escuridão de seu cabelo até aquela intensa cor de olhos, era autentico.

Atraía-a. Algum poder que não podia entender a prendia com uma sensação quase física. As chamas das velas dançavam grosseiramente, mais brilhantes agora que o sol tinha se posto e o crepúsculo se fazia mais profundo do lado de fora da janela. As velas eram a única luz no agora sombrio escritório, enviando sombras que cortavam através dos duros ângulos de seu rosto, e contudo, seus olhos pareciam resplandecer com uma cor ainda mais brilhante da que tinham um momento antes.

Não haviam dito uma palavra desde que ele se sentou, entretanto, sentiu como se estivesse em uma batalha por sua vontade, sua força, sua vida independente. Profundamente em seu interior, o pânico flamejou a vida com a luz das velas, dançando e saltando. Ele sabe, pensou, e se preparou para correr. Esquecer os cassinos, esquecer o agradável dinheiro que tinha conseguido, esquecer tudo exceto a sobrevivência. Corre!

Seu corpo não obedeceu. Seguiu sentada ali, congelada... hipnotizada.

- Como você faz você? - perguntou ele finalmente, seu tom ainda tão calmo e sereno como se não soubesse dos redemoinhos e as ondas de poder que a golpeavam.

Uma vez mais, sua voz pareceu abrir caminho através de sua confusão interior e devolve-la a realidade. Desconcertada, contemplou-o. Pensava que ela fazia todas essas coisas estranhas?

- Eu não sou - resmungou. - Pensei que era você.

Poderia estar enganada, porque à luz das velas ler uma expressão era complicado, mas pensou que ele parecia ligeiramente assombrado.

- Trapaças - disse ele em elucidação. - Como está me roubando?

 

Talvez ele não soubesse.

Sua brutalidade foi um perverso alívio. Lorna tomou ar profundamente. Pelo menos agora estava tratando com algo que entendia. Ignorando as estranhas correntes ocultas na sala, a sensação quase física de estar rodeada por… algo… elevou o queixo, estreitou os olhos e respondeu com um olhar igual.

- Não estou trapaceadno! ?Isso era certo… pelo menos até certo ponto, e no significado normal da palavra.

- É obvio que sim. Ninguém tem tanta sorte como você parece ter, a não ser que ele, perdoe, ela, esteja trapaceando. - Agora seus olhos estavam brilhando, mas em seu dicioário, brilhar era muito melhor que esse estranho resplendor. De todas as formas os olhos não resplandeciam. O que estava acontecendo com ela? Alguém tinha colocado uma droga em sua bebida quando não observava? Nunca bebia álcool quando estava apostando, atendo-se a café ou bebidas sem álcool, mas tinha achado a última taça de café amarga. Nesse momento tinha pensado que tinha tido a má sorte de receber a última xícara da cafeteira, mas agora se perguntava se não tinha sido quimicamente melhorada.

- Repito. Não estou trapaceando. - Lorna espetou as palavras, sua mandíbula rígida.

- Esteve vindo aqui há um tempo. Vai com cinco mil a cada semana. Isso faz um bom quarto de milhão ao ano… e isso só do meu cassino. Quantos mais está visitando? - Seu olhar frio a percorreu da cabeça aos pés, como se se perguntasse porque não se vestia melhor, com a quantidade de dinheiro que tinha.

Lorna sentiu como se seu rosto acalorava, e isso a deixou furiosa. Ela não tinha se sentido envergonhada por nada fazia muito tempo, a vergonha era um luxo que não se podia permitir, mas algo a respeito dessa avaliação a fez querer se retorcer. Certo, não era a pessoa que melhor se vestia no mundo, mas era arrumada e limpa, e isso era o que importava. Qual o problema se tinha comprado sua calça e sua camisa de manga curta no Wal-Mart[2]? Simplesmente não podia gastar cem dólares em um par de sapatos quando um par de doze dólares serviriam igualmente bem. Com a diferença de oitenta e oito dólares poderia comprar um montão de comida. E a seda não só custava muito, mas também era difícil de cuidar; antes preferiria uma agradável mescla de algodão e poliéster, que não tinha que ser engomada, no lugar da seda em qualquer momento.

- Perguntei, quantos cassinos visita a cada semana?

- O que faço não é assunto seu. - Fulminou-o com o olhar, contente pelo broto de energia que lhe dava o aborrecimento. Sentir-se zangada era muito melhor que sentir-se magoada. Não ia deixar que a opinião deste homem importasse o suficiente para feri-la. Pode ser que suas roupas fossem baratas, mas não estavam maltrapilhas; ela era limpa, e se negava a sentir-se envergonhada por elas.

- Pelo contrário. Apanhei-a. portanto deveria fazer que Al avisasse os outros chefes de segurança.

- Não me apanhou fazendo nada! - Estava completamente segura disso, porque não tinha feito nada que ele pudesse notar.

- Tem sorte de que eu seja eu no comando - continuou ele como se ela não houvesse dito nenhuma palavra. - Há um certo número de elementos em Reno que acreditam que trapacear é um crime que merece a pena de morte.

O ritmo de seu coração acelerou. Tinha razão, e ela sabia. Havia sussurros pelas ruas, histórias de gente que tinha tentado inclinar as apostas a seu favor… e que, ou tinham desaparecido por completo, ou tinham adotado uma temperatura ambiente no momento em que foram encontrados. Ela não tinha a alegre ignorância que lhe deixaria pensar que simplesmente estava exagerando, porque tinha vivido no mundo onde aconteciam essas coisas. Conhecia esse mundo, a gente que o habitava. Tinha sido cuidadosa em mantê-lo menos visível possível, e nunca tinha usado as freqüentes cartas dos jogadores que permitiam os cassinos controlar quem estava ganhando e quem não, mas ainda assim tinha feito algo errado, algo que tinha atraído a atenção para sua pessoa. Sua inocência não importaria a muitas pessoas; uma palavra à pessoa errada, e seria uma mulher morta.

Estava dizendo que não ia entrega-la, que deixaria o problema como um assunto privado do “Inferno”?

Por que faria isso? Só dois raciocínios possíveis vieram a sua mente. Uma era o velho jogo de trocar sexo por favores: “Seja boa comigo, menina, e não contarei o que sei”. A outra era que talvez suspeitasse que trapaceava mas não tinha provas, e tudo o que pretendia era enganá-la para que confessasse, ou pelo menos proibir sua entrada ao “Inferno”. Se sua razão era a primeira, então era um pervertido, e ela sabia como lidar com eles. Se sua razão era a última, bom, então era um bom tipo.

O que seria má sorte para ele.

Estava olhando para ela, realmente olhando, sua completa atenção centrada em ler cada vislumbre de emoção em seu rosto. Lorna lutou contra o impulso de se mover nervosamente, porque ser o centro desse tipo de concentração a deixava muito inquieta. Preferia misturar-se com a multidão, estar em segundo plano; ser anônima significava segurança.

- Fique relaxada, não vou chantagear você para fazer sexo comigo… embora não que não esteja interessado - disse ele, mas não preciso de coação para ter sexo quando quero.

Ela quase pulou. Ou tinha lido sua mente, ou estava ficando bastante descuidada em ocultar sua expressão. Sabia que não era descuidada; durante muito tempo, sua vida tinha dependido de permanecer alerta; os hábitos defensivos de toda uma vida estavam profundamente arraigados. Tinha lido sua mente. Oh, Deus, tinha lido sua mente!

Um verdadeiro pânico começou a nublar sua mente; então se dissipou imediatamente, forçado a sair por uma vívida e detalhada imagem dos dois fazendo sexo. Por um momento desorientador sentiu como se estivesse fora de seu corpo, vendo os dois na cama… nus, seus corpos suados pelo exercício estendendo-se juntos. O musculoso corpo a pressionava para baixo, esmagando-a sobre os lençóis revoltos. Seus braços e pernas, pálidos contra a pele masculina de tom oliváceo, estavam envolvendo-o. Sentiu as fragrâncias de sexo e pele, sentiu o calor e o peso dele em cima dela enquanto empurrava brandamente em seu interior, ouviu seu próprio gemido quando a levantou com seus lentos e controlados impulsos. Estava a ponto de chegar ao clímax, igual a ele, suas estocadas ficando mais duras e rápidas…

Saiu de um impulso da cena, de repente horrivelmente segura de que se deixase que continuasse até o final, se humilharia tendo um autentico clímax ali mesmo, na frente dele. Mal podia se manter no presente; o atrativo do prazer imaginário era tão forte que queria voltar, perder-se no sonho, ou alucinação, ou o que demônios fosse.

Algo estava errado. Ela não tinha controle sobre si mesma, mas em vez disso estava sendo sacudida por estranhos redemoinhos de poder que surgiam e se afastavam pela sala. Nem sequer podia agarrar-se a algo tempo o suficiente para examiná-lo; justo quando pensava que tinha pego, via-se lançada para outra reação, outra selvagem emoção borbulhando até a superfície.

Ele falou outra vez, aparentemente sem se dar conta de nada mais que seus próprios pensamentos. Como podia não sentir tudo o que estava acontecendo? Estava imaginando tudo? Agarrou-se nos braços da cadeira, perguntando-se se estaria tendo uma espécie de crise nervosa.

- É precognitiva. - Ele inclinou a cabeça como se estivesse estudando um espécime interessante, com um ligeiro sorriso nos lábios. - Também é sensitiva, e talvez também há um pouco de telecinésia mesclada. Interessante.

- Está louco? - soltou, horrorizada, e ainda lutando por concentrar-se. Interessante? Ou ele estava a ponto de destruir sua vida ou ela estava ficando louca, e ele pensava que era interessante?

- Acredito que não. Não, estou bastante seguro de que estou com razão. - A diversão apareceu a seus olhos, fazendo-os mais quentes. - Adiante, Lorna, dá o salto. A única maneira de saber que é uma precognitiva é… - sua voz baixou um tom, convidando ela a terminar a frase.

Ela ficou gelada, olhando fixamente para ele. Estava dizendo que realmente podia ler mentes, ou a estava colocando em algum tipo de armadilha que não podia ver?

Um repentino frio gelado varreu a sala, tão frio que doeu até nos seus ossos, e com ele veio o mesmo entristecedor sentimento de pavor que tinha sentido ao entrar na sala e vê-lo. Lorna se abraçou e apertou os dentes para impedir que batessem. Queria fugir e não podia; seus músculos simplesmente não obedeceriam o instinto de escapar.

Era ele a fonte desta… confusão na sala? Ela não podia pensar em uma melhor descrição que essa, porque nunca antes havia se sentido dessa maneira, como se a realidade estivesse estratificada com alucinações.

- Pode relaxar. Não há maneira de prová-lo, por isso não acusarei você de trapacear. Mas soube o que é assim que disse que pensava que eu “estava fazendo”. Fazendo o que? Não disse, mas a afirmação era bastante intrigante, porque queria dizer que é sensível às correntes na sala. - Entrelaçou os dedos e os apoiou contra os lábios, observando-a por cima deles com um olhar firme. - As pessoas normais nunca teriam sentido nada. Muitas vezes, uma forma de habilidade psíquica vem muito unida a outras formas, é óbvio, agora, como ganha tão regularmente. Sabe que carta irá sair, não é? Sabe que máquinas caça-niqueis darão dinheiro. Talvez inclusive possa manipular o computador para que saiam três seguidos.

O frio deixou a sala tão abruptamente como entrou. Ela se tinha tensionado para resistir a ele, e a repentina diminuição da pressão a fez sentir como se fosse cair da cadeira. Lorna apertou a mandíbula com força, temerosa de dizer algo. Não podia deixar-se levar a uma discussão sobre habilidades paranormais. Por tudo o que sabia, essa sala poderia ter instalações de vídeo e áudio, e estivesse gravando tudo. O que acontecia se uma dessas estranhas alucinações tomava o controle outra vez? Poderia dizer o que ele quisesse que dissesse, admitir qualquer descabelada acusação. Demônios, tudo o que estava sentindo podia ser resultado de alguns efeitos especiais estranhos que tivesse instalados.

- Sei que não é Raintree - continuou brandamente. - Conheço os meus. Então a grande pergunta é… é Ansara, ou simplesmente uma extraviada?

A comoção a resgatou uma vez mais.

- Uma extraviada? - repetiu, voltando de repente para um mundo que se sentia real. Ainda havia um subjacente sentido de desorientação, mas pelo menos essa imagem sexualmente perturbadora se foi, igual ao frio e o pavor.

Tomou ar profundamente e lutou contra a rajada quente de ira. Acabava de compara-la com um cão guia de ruas não desejado. Sob a ira, entretanto, estava a ponta corrosiva do amargo e velho desespero. Não desejada. Sempre tinha sido isso. Durante um momento, por um maravilhosamente doce momento, tinha pensado que isso mudaria, mas então até essa última esperança tinham tirado dela, e não tinha o coração, a vontade, de voltar a tentar. Algo dentro dela a tinha abandonado, mas a dor não se apagou.

Ele fez um gesto descartando.

- Não esse tipo de extraviada. Usamos para descrever a uma pessoa com habilidade que não está filiada.

- Não filiada a que? Do que está falando? - Sua perplexidade ante este ponto, ao menos, era real.

- Alguém que não é nem Raintree nem Ansara.

Suas explicações foram em círculos, igual aos pensamentos dela. Frustrada, assustada, Lorna fez um movimento abrupto com a mão e soltou:

- Quem demônios é a Tia Sarah[3]?

Inclinando a cabeça para trás, Dante pôs-se a rir, o som foi rápido e fácil, como se o fizesse muitas vezes. O fundo de seu estômago revoou. Imaginar fazer sexo com ele tinha baixado as defesas que normalmente tinha levantada, e o distante reconhecimento de sua atração se converteu em uma consciência bem firme. Contra a sua vontade, notou as linhas musculosas de sua garganta, a escultural linha de sua mandíbula. Era… bonito, de uma maneira particular, uma palavra muito feminina para descrevê-lo. Era impressionante, suas feições muito irresistíveis para ser meramente bonito. Tampouco tinha sido seu físico o primeiro que tinha notado dele; de longe, sua primeira impressão tinha sido uma de poder.

- Não “Tia Sarah” - disse ele ainda rindo. - Ansara. A-N-S-A-R-A.

- Nunca ouvi falar deles -disse Lorna com cautela, se perguntando se estava falando de algum tipo de máfia. Ela não se deixava enganar pensando que o crime organizado estava restrito as velhas famílias italianas de Nova Iorque e Chicago.

- Não? - disse com amabilidade, mas Lorna, com suas terminações nervosas nuas como estavam, sentiu a dúvida, e a ameaça inerente, tão clara como se a tivesse gritado.

Tinha que controlar suas reações. As coisas estranhas que aconteciam nessa sala a tinham pego de surpresa, envolvendo-a em uma vulnerabilidade que normalmente não permitia, mas agora que tinha um momento, sem nenhum assalto a seus sentidos, começou a recuperar a compostura. Mentalmente voltou a recompor suas barreiras internas; foi uma luta, porque era difícil concentrar-se, mas persistiu com severidade. Pode ser que não soubesse o que estava acontecendo, mas sabia que se proteger era de vital importância.

Ele estava esperando que respondesse a sua pergunta retórica, mas ela o ignorou e se concentrou em seus escudos…

Escudos?

De onde tinha vindo essa palavra? Nunca tinha se considerado como uma pessoa de ter escudos. Se considerava forte, seu coração erodido e endurecido por tempos difíceis; considerava-se insensível.

Nunca tinha se considerado como uma pessoa que tinha escudos. Até agora.

Era a sensitiva mais desprotegida que tinha visto, pensou Dante enquanto a via lutar contra o fluxo e as ondas de poder. Reagia como uma completa novata tanto ante os pensamentos dele como a sua afinidade com o fogo. Ele agora tinha seu dom sob estrito controle, mas para testá-la, tinha enviado pequenas descargas pela habitação, fazendo que as velas dançassem. Ela tinha se agarrado aos braços da cadeira como se precisasse de uma âncora, seu olhar alarmado movendo-se ao redor como se procurasse monstros.

Quando tinha captado sua previsão de ser chantageada por sexo - o que não tinha sido exatamente difícil de adivinhar - permitiu-se uma breve e agradável pequena fantasia, a que ela tinha respondido como se realmente tivesse nua na cama. Sua boca tinha ficado vermelha e suave, suas bochechas ruborizadas, seus olhos com as pálpebras pesadas, enquanto debaixo de seu pulôver barato os mamilos tinham ficado tão duros que sua forma tinha sido visível até através do sutiã.

Maldição. Durante um momento, ela tinha estado em verdadeiro perigo de que sua fantasia se tornasse realidade.

Talvez fosse Ansara, mas se era, não estava nada treinada. Ou isso ou tinha a habilidade suficiente para parecer não treinada. Se era Ansara, apostaria no último. Ser Raintree tinha várias vantagens e uma grande desvantagem: um inimigo implacável. A hostilidade entre os dois clãs tinha estalado em uma enorme batalha campal fazia uns duzentos anos, e os Raintree tinham saído vitoriosos, os Ansara quase destruídos. Os restos esfarrapados do que uma vez tinha sido um poderoso clã estavam divididos por todo mundo e nunca se recuperaram até o ponto de poder voltar a fazer uma guerra coordenada com os Raintree, mas isso não queria dizer que um ocasional Ansara solitário não tentasse causar problemas.

Como os Raintree, os Ansara tinham diferentes dons de diversos graus de força. Aqueles com os que Dante ocasionalmente cruzava, tinham sido treinados tão bem como qualquer Raintree, o que significava que nenhum deles podia ser ignorado. Embora não eram a ameaça de antigamente, sempre tinha consciência de que qualquer um deles adoraria a oportunidade de atacar de qualquer forma.

Seria típico de um Ansara lhe dar um golpe roubando. Havia cassinos maiores em Reno, mas roubar “O Inferno” seria anotar um enorme tanto… se era Ansara.

Ele tinha alguma capacidade telepática, não tanto quanto sua irmã mais nova, Mercy, mas suficiente para poder ler a maioria das pessoas assim que a tocava. As exceções, principalmente, eram os Ansara, porque tinham sido treinados para defender-se de uma forma que os humanos normais nunca fariam. Os sensitivos tinham que defender-se ou seriam afligidos pelas forças a seu redor… como Lorna Clay parecia estar.

Talvez fosse somente era uma boa atriz.

A luz das velas era magia em sua pele, em seu cabelo. Era uma mulher bonita, com uma estrutura óssea elegantemente modelada, talvez um pouco ressentida e hostil em sua atitude, mas que demônios, se o tivessem apanhado trapaceando, provavelmente também seria hostil.

Queria tocá-la, para ver se podia ler algo.

Embora se a tocasse, provavelmente sairia correndo e gritando da sala. Estava tão tensamente vulnerável que poderia se lançar para trás na cadeira se lhe dizia “Buu!” Pensou em fazê-lo, só por diversão.

Teria feito isso, se não fosse pelo sério problema de trapacear.

Inclinou-se para frente para deixar claro um ponto, e…

Um ruidoso mas não desagradável tom soou, seguido por outro, e logo outro. Uma corrente de adrenalina percorreu seu sistema e ficou em pé, agarrando seu braço e arrancando a da cadeira antes de que o aviso gravado pudesse começar.

- O que é isto? - gritou ela, seu rosto empalidecendo, mas sem tentar separar-se dele.

- Fogo -disse brevemente, quase a arrastando para a porta. Uma vez que o alarme de incêndios soou, todos os elevadores pararam respondendo a chamadas… e eles estavam no andar dezenove.

 

Lorna tropeçou e quase caiu de joelhos quando a arrastou para a entrada. Seu quadril golpeou dolorosamente contra o marco da porta; então recuperou o equilíbrio, cambaleou até acima e se precipitou tão rápido que se chocou contra o outro lado da parede. Seu braço, suspenso por uma garra de ferro, estava torcido enquanto ele implacavelmente a puxava para frente. Não disse uma palavra, não lançou nenhum grito, não notou a dor, porque o pesadelo vivo excluía todo o resto.

Fogo!

Ela viu como lhe dava uma abrasadora, compreensiva olhada; então ele liberou seu braço e em troca a segurou com seu braço esquerdo ao redor da cintura, a abraçando do seu lado, e sustentando enquanto corria para a escada. Só estavam eles no vestíbulo, mas assim que abriu a porta da Saída de Emergência, pode ouvir passos, debaixo deles, quando as pessoas saíram em disparada pela escada.

O ar do vestíbulo estava espaçoso, mas quando a porta ressoou fechando-se detrás, ela o cheirou: o fedor da fumaça queimava a garganta. O batimento de seu coração vacilou. Tinha medo do fogo, sempre, e não era só a precaução de uma pessoa racional. Se tivesse que escolher o pior modo neste mundo de morrer, séria o fogo. Tinha pesadelos sobre estar presa atrás de uma parede em chamas, incapaz de alcançar alguém, um menino, talvez? - que era mais importante para ela que sua própria vida, ou até salvar-se. Quando as chamas a alcançavam e sentia que sua carne começava a queimar, ela despertava, tremendo e com lágrimas de horror.

Não gostava de nenhuma vela com a chama descoberta, chaminés, ou até mesmo uma cozinha de gás. Agora Dante Raintree a levava para o coração da besta, quando todos seus instintos gritavam que subisse, acima, ao ar fresco, tão longe do fogo quanto pudesse ficar.

Quando giraram o primeiro patamar da escada, o caos e o pânico começaram a se fortalecer e a prenderem, mas o dominou. Logicamente sabia que eles tinham que descer, que saltar do telhado não era uma opção viável. Apertando os dentes para se impedir de gritar, concentrou-se em manter o equilíbrio, se assegurando que seus pés pisassem com segurança, embora pelo modo em que ele a sustentava, duvidava que pudesse tropeçar. Ela não queria lhe atrapalhar ou, Deus não o quisesse, fazer com que ambos caíssem.

Alcançaram um grupo de pessoas que também descia a escada, mas o caminho estava bloqueado, e as pessoas gritavam para que outros se retirassem do caminho. O alvoroço era confuso; ninguém podia se fazer ouvir, e alguns tossiam por causa da densa fumaça.

- Vocês, não podem subir! - gritou Raintree, sua voz profunda se ouviu sobre a gritaria, e só então Lorna notou que o alvoroço era causado por pessoas que tentavam de empurrar para cima enquanto outros se concentravam em descer.

- Quem demônios é você? - bramou alguém de baixo.

- O dono do “Inferno”, esse é quem demônios sou - espetou Raintree. - Construí este cassino, e sei aonde vou. Agora gire seu traseiro e vá para o térreo, é a única saída.

- A fumaça é pior por aquele caminho!

- Então tire a camisa e a amarre sobre seu nariz e boca. Todo mundo deve fazer isto - ordenou, as palavras retumbando de novo de tal maneira que todos pudessem ouvir. Dando exemplo, liberou Lorna para tirar o caro casaco. Ela estava de pé intumescida a seu lado, vendo como ele rapidamente tirava uma navalha do bolso, abrindo-a e cortava o forro de seda cinza do casaco. Então rapidamente rasgou o forro em dois pedaços retangulares. Dando um a ela, disse:

- Use isto - Enquanto fechava a navalha deslizando-a em seu bolso traseiro.

Ela esperava que um pequeno grupo seguisse para cima, sem considerar o que ele disse, mas ninguém fez isso, ao contrário, vários homens, que vestiam seus casacos, seguiram seu exemplo e arrancaram os forros da roupa. Os outros tiraram as camisas, as rasgando e oferecendo pedaços as mulheres que estavam pouco dispostas a tirar suas blusas. Lorna depressa atou a seda sobre seu nariz e boca, apertando ele contra seu rosto como uma máscara cirúrgica. Ao seu lado, Raintree fazia o mesmo.

- Vamos! - pediu, e como ovelhas obedientes o seguiram. O amontoado de pessoas começou a se desenredar, como um cordão para baixo. Lorna se encontrou movendo seus próprios pés como se não fossem seus, levando-a para baixo, descendo, mais perto, ao inferno que chispava esperando a eles. Cada célula de seu corpo gritava em protesto, seu fôlego chegava em grunhidos estrangulados, mas de todos os modos continuava descendo a escada como se não tivesse vontade própria.

A mão dele pressionou sua cintura, movendo-a para um lado.

- Deixem-nos passar - disse. - Mostrarei a saída a vocês.

As pessoas a frente deles se moveu a um lado, e embora Lorna ouvisse vários murmúrios zangados, foram abafados por outros que diziam que se calassem, que este lugar era dele e saberia sair do edifício.

Cada vez mais pessoas se apinhavam no vão da escada diante deles deixando os andares vazios, mas sairam para o lado quando Raintree se moveu com Lorna para frente. A fumaça acre picava seus olhos, fazendo-os chorar, e ela podia sentir a temperatura que se elevava enquanto desciam. Quantos andares tinham descido? No patamar seguinte olhou atentamente a porta e o número pintado nela, mas as lágrimas nos olhos turvavam as figuras, dezesseis, talvez. Ou quinze. Era tudo? Não tinham ido mais longe que isto? Tentou lembrar quantos andares tinham passado, mas estava muito intumescida pelo terror para emprestar atenção.

Ia morrer neste edifício. Podia sentir o fôlego gelado da Morte esperando por ela, do outro lado das chamas que não podia ver, mas entretanto, podia sentir, como se fossem uma grande força que a puxava. Era este o porque sempre tinha tido tanto medo do fogo; sabia de algum jeito que estava destinada a se queimar. Logo iria, sua força vital queimada ou asfixiada. E ninguém a sentiria sua falta.

Dante vigiava cada movimento para baixo, obrigando sua mente a forçá-los a uma evacuação ordenada. Nunca tinha tentado usar este poder em particular, não sabia que o possuía, e se não tivessem estado tão perto do solstício do verão, duvidava que pudesse fazer isto. Infernos, não estava seguro de poder fazê-lo funcionar absolutamente, muito menos em um grupo tão grande, mas com o fogo que ameaçava destruir o cassino que tanto trabalho lhe havia custado construir, tinha vertido toda sua vontade de pensamento, em suas palavras, e eles obedeceram.

Podia sentir as chamas cantando, o canto de sereia o chamando. Talvez elas alimentavam seu poder, porque a proximidade do fogo fazia com que seu coração pulsasse mais rápido com a adrenalina vertida. Inclusive embora a fumaça picasse seus olhos e se filtrasse pela seda amarrada sobre seu nariz e boca, sentia-se tão vivo que sua pele mal podia contê-lo. Queria rir, queria elevar os braços e convidar o fogo, ter uma batalha com ele, então poderia exercer sua vontade sobre o fogo como com estas pessoas.

Se não fosse pelo nível de concentração que tinha que manter no lugar, já teria estado mentalmente engajado na batalha. Tudo nele desejava a luta. Venceria as chamas, mas primeiro tinha que conseguir levar estas pessoas para um lugar seguro.

Lorna seguiu o ritmo ao lado dele, mas uma olhada rápida ao seu rosto - que podia ver por cima da seda cinza - percebeu que só por força de vontade baixava a escada. Estava branca como papel, e seus olhos tinham quase o olhar vazio pelo terror. A aproximou de seu lado, querendo ela ao seu alcance quando chegassem ao térreo, porque por outra parte, seu pânico poderia ser forte o bastante para se sais de seu controle e fugir. E ainda não havia terminado com ela. De fato, com este maldito fogo, pensava que teria muito mais para discutir com ela do que as trapaças no blackjack.

Se fosse Ansara, se estivesse de algum jeito metida com o início do fogo, ela morreria. Era simples.

Havia tocado nela, mas não podia saber se ela era Ansara ou não. Seu poder telepático era fraco de todos os modos, e agora mesmo não podia realmente se concentrar na leitura dela. Não captou nada que desse a entender se era uma extraviada ou uma Ansara, e com força suficiente para se defende realmente dele. De qualquer maneira, a questão teria que esperar. A fumaça se fazia mais densa, mas não dramaticamente. Alguns estavam falando, embora em maior parte as pessoas guardavam o fôlego para conseguir descer a escada. Havia entretanto, um constante murmúrio de tosses.

O Fogo, sentia, estava concentrado até agora no cassino, mas se estendia rapidamente para a parte do hotel. A diferença da maioria dos hotéis/casinos, que eram construídos de tal modo que os convidados estavam obrigados a passar pelo cassino no caminho a qualquer lugar, para aumentar as probabilidades que parassem para jogar, Dante tinha construído o “Inferno” com os quartos de hóspedes a um lado, longe. Havia uma área comum onde ambos se conectavam e se sobrepunham, mas também proporcionava um pouco de distância para o convidado que queria. Arriscou-se, mas o desenho era calculado. Concentrando-se em um nível de elegância incomparável a qualquer outro hotel/casino em Reno, fazia o “Inferno” diferente e portanto desejável.

Aquele desenho salvaria muitas vidas esta noite. Quantos convidados tinham estado no cassino, embora... não soubesse sobre eles. Não podia se permitir preocupar-se com eles, ou poderia perder o controle das pessoas na escada. Não podia ajudar as pessoas do cassino, ao menos não agora, então deixou de pensar. Se estas pessoas entrassem em pânico, começariam a empurrar e correr, não só algumas pessoas cairiam e seriam pisoteadas, a multidão poderia esmagar a barra de saída e impedir que a porta se abrisse. Isto tinha acontecido antes, e aconteceria outra vez - mas não em seu local, não se podia ajudá-los.

Alcançaram outro patamar, e olhou atentamente através da fumaça o número na porta. Três. Só dois mais andares, graças a Deus. A fumaça se fazia tão espessa que seus pulmões se queimavam.

- Estamos quase lá - disse, mantendo focadas as pessoas que estavam atrás dele, ouviu que começavam a repetir as palavras a aqueles empilhados na escada por cima deles.

Ele estreitou seu braço ao redor da cintura da Lorna e a segurou com força a seu lado, a levantando de seus pés quando desceu os andares restantes de dois em dois degraus de uma vez. A porta aberta não dava ao exterior mas sim a um corredor de escritórios. Sustentou a porta aberta com seu corpo, e quando as pessoas tropeçaram no corredor, disse:

- Girem à direita. Passem pelas portas duplas ao final do corredor, dêem a volta à direita outra vez, e a porta que está antes das máquinas de refresco dará acesso ao nível do estacionamento. Vão, vão, vão!

Foram-se, impelidos por ele - tropeçando e tossindo, mas apesar de tudo, movendo-se. O ar ali estava denso e quente, sua visão só alcançava a ver uns pés, e as pessoas que subiam a frente dele pareciam fantasmas e desapareciam em segundos. Só as tosses e o som de seus passos marcavam seu progresso.

Sentiu o movimento da Lorna, tentando sair de seu braço que estava ao redor dela, tentando obedecer não só sua ordem mental, mas também as ordens de seu próprio cérebro preso de pânico. Apertou seu braço ao redor dela. Talvez pudesse reajustar o controle o suficiente para exclui-la agora mesmo. Não, isto não valia o risco. Enquanto tinha todos sob seu controle, os mantinha ali e em movimento. Tudo o que tinha que fazer era agarrar Lorna para impedir que escapasse.

Podia sentir o fogo em suas costas. Não literalmente, mas agora mais perto, muito mais perto. Tudo nele desejava dar a volta e enfrentar-se com a força da natureza que era sua para convocá-la e controlá-la, sua para possui-la. Ainda não. Ainda não...

Então quando nenhuma figura coberta de fumaça surgiu da escada, e com Lorna firmemente presa, deu a volta e abandonou o estacionamento e a segurança, para o vermelho demônio rugente.

   - Noooo.

O som foi pouco mais que um gemido, ela resistia grosseiramente no círculo de seus braços. Depressa lhe deu um último impulso mental a corrente de pessoas que encabeçava a saída do estacionamento, logo transferiu o controle para uma ordem diferente, esta vez dirigida unicamente a Lorna:

- Fica comigo.

Imediatamente deixou de lutar, embora pudesse ouvir os estrangulados sons de pânico que ela fazia enquanto caminhava rapidamente através da fumaça para a outra porta, uma que abria ao vestíbulo.

Lançou-se pela porta aberta e caminhou no inferno, arrastando-a com ele.

O sistema de aspersão automático fazia um valente esforço, orvalhava água no vestíbulo, mas o calor era um monstro incinerador que evaporava a água orvalhada antes de que tocasse o chão. Este ia estalar como uma onda expansiva, um golpe físico, mas ele murmurou uma maldição e o fez retroceder. Porque eram produzidos pelo fogo, eram partes do fogo, ele possuía o calor e a fumaça tão seguro como possuía as chamas. Agora que podia concentrar-se, desviou-as, criando uma bolha protetora, um campo de força, ao redor de Lorna e dele, que enviou a fumaça em espiral e manteve fora o calor, protegendo a eles.

O cassino estava completamente ocupado. As chamas eram ávidas línguas em vermelho, grandes folhas em laranja e negro, transparentes forcas de ouro, que dançavam e rugiam em sua impaciência por consumir tudo a seu alcance. Várias das elegantes colunas brancas se incendiaram como enormes tochas, e a enorme tapete era muito pequenos fogos, acesos pelos escombros que caiam. As colunas atuavam como velas, mechas de chamas que chegavam ao teto. Começou ali, tirando o poder do fundo de seu interior e usando-o para dobrar o fogo a sua vontade. Devagar, devagar, as chamas que lambiam as colunas começaram a extinguir-se, vencidas por uma força superior.

Fazendo tanto, que até manter a bolha de seguramça ao redor deles, tomou cada grama do poder que tinha. Algo não estava bem. Deu-se conta quando se concentrava nas colunas, sentindo a tensão profundamente. Sua cabeça começou a doer; a morte das chamas não deveria tomar muito esforço. Elas eram lentas em responder a sua ordem, mas não as deixou subir, inclusive enquanto se peguntava se a energia que tinha usado no controle de mentes em grupo o tinha drenado de algum jeito. Não sentiu que era isso, mas algo definitivamente estava errado.

Quando apenas brincos da fumaça se originavam nas colunas, mudou sua atenção para as paredes, empurrando para trás, empurrando para trás.

Pelo canto de seu olho, viu as colunas irromper em chamas outra vez.

Com um rugido de fúria e incredulidade, fez explodir sua vontade nas chamas, e remeteram outra vez.

Que demônios?

A janela explodiu, enviando fragmentos de cristal por toda parte. O brutal jorro de água se verteu através da fachada, cortesia do Corpo de Bombeiros de Reno, mas as chamas pareceram dar uma rouca gargalhada antes retroceder rugindo mais vivas e mais quentes que antes. Um dos dois enormes lustres de cristal, caiu do debilitado teto para o chão e se espatifou lançando uma brilhante orvalhada de letais estilhaços de cristal. Estavam tão longe que só poucos os alcançaram, mas um dos estilhaços de cristal cortou bochecha, provocando um filete de sangue em seu rosto. Talvez devesse ter se esquivado dele, pensou com abstraído humor.

Podia sentir Lorna pressionada contra ele, tremendo convulsivamente e fazendo pequenos sons de terror, mas estava indefesa para romper o controle mental que tinha posto nela. O cristal a tinha golpeado? Não havia tempo para chcar. Rapidamente, uma enorme língua de fogo rodou através do teto, consumindo tudo em seu caminho assim como o que pareceu a maior parte do oxigênio disponível; então começou a comer seu caminho para baixo pela parede atrás deles, fechando qualquer fuga.

Mentalmente, empurrou as chamas, complacentes se retiraram, tomando todas suas reservas de força e poder. Ele era o Dranir dos Raintree; o fogo o obedecia.

Exceto que não o fez.

Em troca começou a avançar lentamente através do tapete, pequenos fogos que se combinavam com outros maiores, e aqueles unindo-se com outros até que o chão esteve em chamas, aproximando-se mais, mais perto.

Não podia controlá-lo. Nunca tinha encontrado antes uma chama que não pudesse dobrar a sua vontade, mas isto era algo além de seu poder. Usar o controle mental deve tê-lo debilitado de algum jeito; não era algo que tivesse feito antes, por isso não sabia quais eram as conseqüências. Bem, sim, sabia; a menos que ocorresse um milagre, as conseqüências seriam duas mortes: Lorna e ele.

Rechaçou aceitar isto. Nunca se tinha rendido, nunca deixou que um fogo o golpeasse; não ia começar com este.

A bolha de segurança vacilou, deixando que a fumaça se infiltrar. Lorna começou a tossir convulsivamente, lutando contra ele embora não fora capaz de correr a menos que a liberasse do controle. De todas as formas não havia para onde correr.

Com todas suas forças, confrontou as chamas. Precisava de mais poder. Tinha usado tudo para extinguir o fogo, e não era suficiente. Se Gideon ou Mercy estivessem aqui, eles poderiam se unir a ele, combinar suas forças, mas aquele tipo de associação requeria a proximidade, assim só contava consigo mesmo. Não havia nenhuma outra fonte de poder que pudesse tomar… exceto Lorna.

Não perguntou; não tomou tempo para lhe avisar o que ia fazer; simplesmente pôs ambos os braços ao redor dela por trás e rompeu seus escudos mentais, implacavelmente tomando o que precisava. O alívio se derramou através dele pelo que encontrou. Sim, ela tinha poder, mais do que tinha esperado. Não se parou a analisar que tipo de poder tinha, porque não importava; neste nível, o poder era o poder, como a eletricidade. As máquinas podiam tomar o mesmo poder e fazer diversas coisas descontroladas, como passar o aspirador pelo chão ou tocar música. Este era o mesmo princípio. Ela tinha poder; tomou, e o usou para sustentar seu próprio dom.

Ela deu um grito atenuado e resistiu em seus braços, em seguida ficou rígida.

Furiosamente ele atacou as chamas, enviando uma rajada mental de 360 graus que literalmente arrebentou o muro de fogo detrás dele e tomando também a parede física. A rajada de oxigênio renovado fez que o fogo diante dele flamejar, assim que se juntou e o fez outra vez, vertendo mais energia na batalha, sentindo suas próprias reservas renovar-se quando tomou cada grama de poder e força de Lorna e o mesclou com o seu.

Seu corpo inteiro zumbia, seus músculos se queimavam pelo esforço de se conter e concentrar. A bolha invisível de segurança ao redor deles começou a brilhar e tomou um débil resplendor. Suando, jurando, ignorando à dor em sua cabeça, verteu a energia de sua vontade no fogo uma e outra vez, fazendo-o retroceder, enquanto tratava de contar o tempo que estava ali de pé, quanto tempo tinha que dar às pessoas do hotel para escapar. Havia múltiplos espaços na escada, e estava seguro que nem todas as evacuações tinham sido tão ordenadas como a que tinha controlado. Todos já estariam fora? E as pessoas deficientes? Teriam que ajuda-los a descer as escadas. Se parasse, o fogo se levantaria avançando, engolindo o hotel em algo que não poderia parar. Até que o fogo fosse controlado, não podia se deter.

Não podia apagá-lo, não completamente. Por alguma razão, fosse porque se esgotava, se distraía ou mesmo que fogo fosse de algum jeito diferente, não podia apagá-lo. Aceitava isto agora. Tudo o que podia fazer era manter sob controle chamas até que o corpo de bombeiros o tivesse controlado.

Foi no que se concentrou, controlar o fogo em vez de extingui-lo. Isto conservou sua energia, e precisava de cada pingo que tinha, porque a ferocidade do fogo nunca deixou de empurrar, nunca parou de lutar por sua liberdade. O tempo não significava nada, porque não importava quanto tomasse, não importava quanto doía sua cabeça, tinha que agüentar.

Em algum lugar caminho perdeu a linha divisória entre ele e o fogo. Este era seu inimigo, mas era formoso em sua destruição; dançava para ele como sempre, mágico em seu movimento e suas cores. Sentia sua beleza como lava fundida que transpassava suas veias, sentiu que seu corpo respondia com irrefletida luxúria até que sua ereção se esticou dolorosamente contra seu zíper. Lorna tinha que senti-lo, mas não havia uma maldita coisa que pudesse fazer para controlá-lo. O melhor que podia fazer, dadas as circunstâncias, era não se mover contra ela.

Finalmente, os gritos roucos se impuseram através do atenuado rugido da besta. Girando ligeiramente a cabeça, Dante viu as equipes de bombeiros que avançavam com suas mangueiras. Rapidamente deixou que a bolha de segurança amparo se dissolvesse, abandonando Lorna e ele na fumaça e ao calor.

Com seu primeiro fôlego, a fumaça quente queimou seus pulmões. Afogou-se, tossiu, tentado inalar. Lorna dobrou seus joelhos, e ele se deixou cair ao lado dela quando os primeiros bombeiros os alcançaram.

 

Lorna se sentou sobre o pára-choque do caminhão médico dos bombeiros e colocou uma manta gasta a seu redor. A noite era cálida, mas estava empapada, e ao que parecia não podia deixar de tremer. Tinha ouvido o médico dizer que não estava em choque; embora sua tensão arterial estivesse um pouco alta, o que era compreensível, o número de pulsações estava perto do normal. Só tinha friou por estar molhada.

E tudo a seu redor parecia ter… emudecido, como se houvesse um muro de cristal entre ela e o resto do mundo. Sentia a mente nublada, capaz apenas de funcionar. Quando o médico tinha perguntado seu nome, por sua vida que não tinha sido capaz de recordá-lo, muito menos pronunciá-lo. Mas recordou que nunca trazia a carteira ao cassino, por causa dos ladrões, e que guardava o dinheiro em um bolso e a carteira de motorista no outro, assim tinha tirado a licença e a tinha mostrado. Era uma licença do Missouri, por que não tinha obtido uma daqui. Para conseguir uma de Nevada tinha que ser residente e com “trabalho remunerado”. E o trabalho remunerado era o que tinha falhado.

- Você é Lorna Clay? - perguntou o médico e ela assentiu.

- A garganta está doendo? - perguntou-lhe depois e parecia uma explicação tão razoável para continuar em silencio como qualquer outra que assentiu de novo. Examinou sua garganta, pareceu um pouco perplexo. Então lhe deu oxigeno para respirar e disse que devia ser examinada no hospital.

Sim, claro. Não tinha nenhuma intenção de ir a um hospital. O único lugar que queria ir era para longe dali.

E ainda assim permaneceu exatamente onde estava enquanto Raintree era examinado. Tinha sangue no rosto, mas o corte parecia pequeno. Escutou-o dizer aos médicos que estava bem. Que não, não acreditava ter se queimado em nenhum lugar, que tinham tido muita sorte.

Sorte, sua bunda. O pensamento foi claro como água, surgindo do pântano inativo que era seu cérebro. Tinha-a segurado em meio desse inferno rugente pelo que pareceu uma eternidade. Deveriam ser insetos tostados, teriam ao menos que estar lutando por respirar através de suas danificadas vias respiratórias, em vez de se encontrar bem. Sabia o que o fogo fazia, tinha visto, tinha cheirado e era feio, destruía tudo em seu caminho. O que o tinha feito dançar a seu redor e deixá-los ilesos?

Apesar disso aqui estava ela… ilesa. Relativamente de qualquer modo. Sentia-se como se um caminhão a tivesse atropelado, mas ao menos não estava queimada.

Deveria estar queimada, deveria estar morta, de qualquer modo, só contemplava o fato de que não só não estava morta, nem sequer estava ferida. Doía-lhe muito a cabeça e a duras penas podia estar de pé respirando e o muro de cristal entre ela e a realidade se fez um pouco mais espesso, assim não pensou em estar viva ou morta ou qualquer outra coisa. Simplesmente se sentou ali enquanto a cena de pesadelo girava a seu redor, as luzes piscando, a multidão os rodeando. Os bombeiros ainda ocupados com suas mangueiras, apagando as chamas remanescentes e fazendo que não aumentassem de novo. Os caminhões de bombeiros ressonaram tão forte que o ruído reverberou sobre ela e a fez desejar cobrir os ouvidos, mas não o fez tampouco, simplesmente esperou.

O motivo, não estava segura. Não podia deixá-lo. Pensou centenas de vezes em afastar-se na noite, mas entrar em ação parecia impossível. Não importava quanto desejasse partir, estava atada pela inércia Não podia lutar, tudo o que podia fazer era… sentar-se.

Então Raintree se levantou e abruptamente, encontrou-se levantando também, levada por algum impulso que não entendia. Só sabia que se ele se levantava, ela deveria se levantar. Estava muito cansada mentalmente para encontrar uma razão que tivesse sentido.

Sua cara estava tão negra pela fuligem que só via o branco de seus olhos, então imaginou que ela estava bastante parecida. Grandioso. Isso significava, que não teria muitas oportunidades de passar inadvertida. Ele tomou um trapo que alguém lhe ofereceu e o passou por sua enegrecida cara, o que não fez muita diferença. A fuligem era gordurosa; só o sabão adequado poderia eliminá-la.

Com determinação ele dirigiu seus passos, moveu-se para um pequeno grupo de policiais, três uniformizados e dois vestidos de civil. Um vago alarme se elevou em Lorna. Ia entrega-la? Sem provas? Desejou desesperadamente afastar-se, mas imediatamente se encontrou seguindo-o docilmente.

Por que fazia isto? Por que não o abandonava? Lutou com as perguntas, tratando de conseguir que seu cérebro funcionasse. Ele não olhou em sua direção, não tinha nem idéia de onde ela estava, se retrocedesse agora e se misturasse com a multidão… como se pudesse se misturar com alguém, coberta de fuligem como estava. Mas outros também mostravam os efeitos do fogo, alguns dos empregados do cassino por exemplo, e os jogadores. Provavelmente podia afastar-se silenciosamente, se fosse capaz de fazer o esforço.

Por que seu cérebro estava tão inativo? Em um nível muito superficial os processos de seus pensamentos pareciam normais, mas debaixo disso, nada. Não havia nada mais que lodo. Havia algo importante que devia recordar, algo que brevemente emergiu, só o suficiente para causar um ponto de preocupação, então desapareceu de sua memória como um fio de fumaça. Franziu a testa tentando extrair a lembrança, mas o esforço só intensificou a dor em sua cabeça, e se deteve.

Raintree se aproximou dos dois policiais vestidos de civis e se apresentou. Lorna tentou passar desapercebida, o que provavelmente era uma causa perdida considerando como reluzia além do fato de que estava esperando só a uns passos. Todos a olharam com uma mescla de desconfiança e curiosidade que somente os tiras podiam ter. Seu coração começou a acelerar. O que faria se Raintree a acusava ou traía? Correr? Olhá-lo como se fosse um idiota? Talvez a idiota fosse ela, esperando aí, como um cordeiro para o sacrifício.

A imagem a galvanizou como nenhuma outra coisa poderia. Não seria uma vitima disposta, trataria de afastar-se, mas por alguma razão a ação parecia ultrapassá-la, o único desejava era permanecer com ele.

Fica comigo.

As palavras ressoaram através de seu fatigado cérebro, fazendo doer sua cabeça. Cansadamente esfregou a testa, se perguntando onde tinha escutado as palavras e por que lhe importavam.

- Onde estava quando começou o incêndio senhor Raintree? - perguntou um dos detetives. Ele e o outro detetive, se apresentaram, mas seus nomes flutuaram fora da cabeça de Lorna assim que os escutou.

- Em meu escritório, falando com a senhorita Clay - indicou Lorna, sem olhar realmente em sua direção, como se soubesse exatamente onde estava esperando.

Olharam-na com mais seriedade agora; então o detetive que estava falando com Raintree disse:

- Meu companheiro poderia tomar declaração enquanto eu tomou a sua, assim podemos economizar tempo.

Com certeza, pensou Lorna sarcasticamente. E também tinha uma propriedade frente à praia aqui em Reno que desejava vender. Os detetives desejavam separa-la de Raintree, assim não escutaria o que ele dissesse e não poderiam coordenar suas declarações. Se um negócio ia por água a baixo, às vezes o dono tratava de minimizar as perdas queimando e cobrando a apólice do seguro. O outro detetive se deteve seu lado. Raintree a olhou sobre seu ombro.

- Não vá longe, não quero perder você entre a multidão.

O que é que procurava? perguntou-se. Havia soado como se tivessem uma relação ou algo. Mas quando o detetive disse:

- Caminhemos por aqui. - Lorna obedientemente caminhou atrás dele cerca de vinte passos, então abruptamente se deteve como se não pudesse dar nenhum mais.

- Aqui - disse, surpreendendo-se com o quanto áspera e fraca era sua voz. Tinha tossido um pouco, é certo, mas sua voz soava como se tivesse estado se deteriorando por dias, mal era audível sobre o ruído dos caminhões de bombeiros.

- Está bem. - O detetive olhou ao redor e casualmente se colocou para que Lorna estivesse de costas para Raintree. - Sou o detetive Harvey, seu nome é…

- Lorna Clay. - Ao menos recordava seu nome desta vez, por um horrível segundo, não tinha estado segura. Esfregou a testa de novo, desejando que esta confusa dor de cabeça se afastasse.

- Vive mora aqui?

- No momento. Não decidi se ficarei. - Soube que não poderia. Nunca tinha permanecido em um lugar por muito tempo, alguns meses, seis no máximo e se mudava. Ele perguntou seu endereço e se desconcertou. Se tratasse de investigar, encontraria que a coisa mais lamentável contra ela era uma multa expedida fazia três anos. Tinha pago a multa sem discussão. Não havia problemas nisso, contanto que Raintree não a denunciasse ou a enganasse, estaria bem. Desejava poder olhar para ele por cima de seu ombro, mas sabia que era melhor não ficar nervosa ou algo pior se observava que respostas ele dava.

- Onde se encontrava quando começou o fogo?

Ele tinha ouvido Raintree, quando respondeu uma pergunta idêntica; disse que tinha estado com ela, mas era assim como os tiras operavam.

- Não sei onde começou o fogo - disse um pouco irritada. - Estava no escritório do senhor Raintree quando soou o alarme.

- A que hora foi isso?

- Não estava com tinha relógio, não sei, de qualquer modo não teria podido olhar a hora, o fogo me deixa nervosa.

O canto esquina da boca dele se torceu um pouco mas a controlou. Tinha um rosto agradável, um pouco flácido nas bochechas, enrugado ao redor dos olhos.

- Está bem, podemos obter a hora do sistema de segurança. Há quanto tempo estava com o senhor Raintree quando soou o alarme?

Agora, essa era a pergunta. Lorna retrocedeu ao episódio de pânico que experimentou nesse escritório, às confusas alucinações ou a desconcertante fantasia sexual. Nada nessa sala quarto tinha sido normal e embora normalmente tinha uma boa noção do tempo, encontrou-se incapaz de estimá-lo.

- Não sei, era o entardecer quando, entrei lá, é tudo o que posso lhe dizer.

Anotou sua resposta. Só Deus sabia o que acreditava que fizeram, pensou cansadamente, mas não pôde consegui que lhe importasse.

- O que fez quando soou o alarme?

- Corremos pelas escadas.

- Em que andar estavam?

Agora isso, sabia porque tinha visto os números ao subir no elevador.

- No dezenove.

Anotou também. Lorna pensou que se pretendesse queimar um edifício, não iria ao andar dezenove esperar o alarme. Raintree não tinha nada a ver com o que tinha causado o fogo, mas os tiras teriam que checar tudo ou não estariam fazendo seu trabalho. Embora… foram os detetives normalmente à cena de um incêndio? Um inspetor de incêndios ou um investigador de bombeiros, o que Reno tivesse, teria que determinar que um fogo era causado com premeditação antes de que o tratassem como um crime.

- O que aconteceu então?

Havia muita gente nas escadas - disse em voz baixa, tentando recuperar a lembrança. - Lembro… muita gente, só pudemos avançar alguns passos antes que nos barrassem, porque algumas pessoas dos andares inferiores tentavam subir. A fumaça devia ser espessa porque a visibilidade era horrível. As pessoas caminhavam como fantasmas… Não, isso deve ter sido depois. Não havia muita fumaça dentro das escadas. Depois... - Não estava segura sobre o que ocorreu mais tarde. A seqüência de sucessos estava toda mesclada, e ao que parecia não podia classificá-la.

- Prossiga - estimulou o detetive Harvey quando guardou silêncio por uns instantes.

- O senhor Raintree disse, às pessoas que subiam as escadas, que tinham que retornar, que não havia saída se continuassem subindo.

- Discutiram?

- Não, todos deram a volta, ninguém entrou em pânico.

Exceto ela, tinha sido apenas capaz de respirar, e não era a causa da fumaça. A lembrança estava se tornando clara, e se maravilhou de como a evacuação tinha sido ordenada. Ninguém tinha se empurrado, ninguém tinha corrido. As pessoas tinham se apressado, certamente, mas não imprudentes para arriscar-se a uma queda. Em retrospectiva, seu comportamento tinha sido condenadamente antinatural. Como podiam estar todos tão calmos? Sabiam o que causava o fogo?

Mas ela tampouco tinha corrido, compreendeu, não tinha empurrado, tinha caminhado com passo estável, segura no braço do senhor Raintree.

Espera, então a tinha agarrado? Não acreditou que o tivesse feito, tocava-a na cintura, guiando-a para fora, mas tinha sido livre para correr, assim… por que não o tinha feito?

Tinha avançado como todos outros em uma ordenada fila. Por dentro, estava gritando, mas por fora estava controlada.

Controlada… não autocontrolada, e sim controlada como uma marionete, como se não tivesse vontade por si mesma. Sua mente estava gritando que corresse, mas seu corpo simplesmente não obedeceu.

- Senhorita Clay?

Lorna se sentiu respirar mais rápido quando recordou esses momentos. Fogo! Aproximando-se mais e mais perto, não queria ir, queria correr, mas não podia, estava presa em um desses pesadelos onde tenta correr mas não pode, onde tenta gritar mas não sai nenhum som.

- Senhorita Clay?

- Eu… o que? - Aturdida o olhou, pela mescla de impaciência e preocupação em seu rosto, pensou que devia tê-la chamado várias vezes.

- O que fez você quando saiu?

Estremecendo, abraçou-se.

- Não o fizemos, acredito. Fomos até o térreo e o senhor Raintree mandou os outros para a direita, para o andar do estacionamento. Então ele… nós… - sua voz vacilou.

Tinha lutado contra ele, tentando seguir os outros, recordava isso. Então ele havia dito “fica comigo” e tinha feito, sem vontade de fazer outra coisa, apesar de ter estado meio louca de terror.

Fica comigo.

Quando ele se sentou, ela se sentou; quando ficou de pé, ela também. Quando ele se movia ela se movia. Até então, tinha sido incapaz de dar um só passo longe dele.

Só uns momentos antes, ele havia dito: - Não vá longe. - E tinha sido capaz de afastar-se de seu lado então. Mas não tinha ido longe antes de deter-se como se batesse em um muro de tijolos.

Uma horrível suspeita começou a crescer. Estava-a controlando, talvez com algum tipo de sugestão pós-hipnótica. Embora quando e como a tinha hipnotizado, não tinha idéia. Todo tipo de coisas estranhas tinham ocorrido em seu escritório. Talvez todas aquelas condenadas velas, em realidade tinham emanado alguma espécie de gás que a tinha drogado.

- Prossiga - disse o detetive Harvey, irrompendo em seus pensamentos.

- Fomos para a esquerda - disse, começando a tremer. Abrigou-se com os braços ao redor, segurando a manta perto em um esforço para controlar seus caprichosos músculos, mas em segundos, tremia de pés a cabeça. - No vestíbulo. O fogo… - O fogo tinha saltado sobre eles como uma besta enfurecida, rugindo com prazer. O calor a tinha chamuscado durante uma mínima fração de um segundo. Tinha se sufocado com a fumaça. Logo... não havia nada de fumaça, nenhum calor. Ambos tinham se afastado. Ela e Raintree deveriam ter sido vencidos em segundos, mas não tinha sido assim. Tinha sido capaz de respirar. Não havia sentido o calor, mesmo quando olhou as línguas de fogo lambendo avidamente o tapete até ela. - O fogo fez algum tipo de c-chaminé através do teto e saltou detrás de nós, e estávamos presos.

- Gostaria de sentar-se? - perguntou interrompendo sua linha de pensamento, mas considerando quão violentamente estava tremendo, provavelmente acreditou que sentá-la antes que caísse era uma boa idéia.

Ela poderia ter tido o mesmo pensamento. Se sentar não significasse se acomodar no asfalto coberto com as ruínas do fogo e repleto de água escurecida. Provavelmente queria dizer sentar-se sobre algum outro lugar, do que teria gostado se tivesse se sentido capaz de dar um só passo além de onde estava agora. Sacudiu a cabeça.

- Estou bem, só molhada e fria e um pouco aturdida. - Se dessem algum prêmio à negação descomunal, acabava de ganhá-lo.

Olhou-a durante um momento, então decidiu claramente que ela saberia se realmente precisava sentar. De todos os modos, tinha tentado, o que o liberava de qualquer obrigação.

- O que você fez?

Melhor não lhe dizer que se havia sentido rodeada por algum tipo de campo de força. Isto não era Star Wars, assim poderia não entender. Melhor não dizer que havia sentido uma brisa fria no cabelo. Devia ter sido drogada, não havia outra explicação.

- Não havia nada que pudéssemos fazer. Estávamos presos. Recordo o senhor Raintree soltando uma enxurrada de maldições. Lembro que sufocava e estava no chão, então os bombeiros chegaram a nós e nos resgataram.

Em altares da credibilidade, tinha condensado os sucessos da noite como os recordava, mas certamente não tinham estado no vestíbulo por muito tempo, não mais de trinta segundos. Um campo de força imaginário não teria resistido ao calor e a fumaça reais. Os bombeiros deviam estar perto deles. Mas estava muito presa pelo pânico para notar.

Havia algo mais, provavelmente esse preocupante vazio em sua memória, esse que não podia compreender. Algo mais tinha ocorrido, sabia, simplesmente não podia pensar no que era. Talvez depois que tomasse banho e lavasse o cabelo - várias vezes - e tivesse umas vinte ou trinta horas de sono, poderia recordar.

O detetive Harvey olhou sobre seu ombro, então fechou seu pequeno caderno.

- Tem sorte de estar viva. Já a examinaram pela inalação de fumaça?

- Sim, estou bem. - O médico estava perplexo por sua boa condição, mas não ia dizer isso ao detetive.

- Imagino que o senhor Raintree estará preso por aqui um momento, mas você é livre para partir. Tem algum número onde possa ser localizada em caso de futuras perguntas que lhe fazer?

Começou a perguntar Como quais, mas em troca disse:

- Certo. - E deu o número de se celular.

- É local?

- É meu celular. - Agora que os números móveis podiam ser trasferidos, não perdia tempo com uma linha local se tinha serviço de celular onde quer que ficasse temporariamente.

- Conseguiu um número local?

- Não, isso é tudo, sinto muito, não vejo a necessidade a conseguir uma linha local sem ter decidido se vou ficar.

- Não há problema, obrigado por sua cooperação. - Deu uma sacudida de cabeça como breve agradecimento.

Porque parecia o que devia fazer, Lorna compôs um débil sorriso enquanto ele retrocedia para o outro detetive, mas rapidamente se desfez. Estava exausta e suja, sua cabeça doía. Agora que o detetive Harvey tinha terminado de entrevistá-la, iria para casa.

Tentou, fez vária tentaivas de afastar-se, mas por alguma razão não podia fazer que seus pés se movessem. Encheu-se de frustração. Tinha caminhado por aí fazia alguns minutos, não existia nenhuma razão para que não fosse capaz de caminhar agora. Só para ver que era totalmente capaz de mover-se, retrocedeu, aproximando-se de Raintree. Não havia problema. Todas suas partes se moviam como deviam.

Experimentalmente, deu um passo adiante, e suspirou de alívio quando seus pés e pernas em realidade obedeceram. Estava mais que esgotada se o simples ato de caminhar se tornou tão complicado. Suspirando, começou a dar outro.

E não pôde.

Não podia ir mais longe. Era como se tivesse alcançado o final de uma corda invisível.

Congelou-se com a incredulidade. Isso a enfurecia. Devia tê-la hipnotizado, mas como?, quando? Não podia recordar dele lhe dizendo “Está dormindo”, e de qualquer modo, estava bastante segura de que a hipnose não funcionava dessa maneira. Supunha-se que devia estar profundamente relaxada, não algo do tipo fazer-coisas-contar-sua-vontade, independente de tudo o que os filmes mostravam.

Lamentava não estar usando um relógio, então poderia ter notado qualquer discrepância de tempo quando tinha entrado no escritório de Raintree e quando o alarme contra incêndios tinha tocado. Tinha que averiguar que hora tinha sido, porque sabia aproximadamente a que hora era o pôr-do-sol. Tinha estado em seu escritório durante meia hora talvez... acreditava. Não podia estar segura. Aquelas desconcertantes fantasias poderiam ter tomado mais tempo de que estimou.

Independentemente de como tinha feito, ele controlava seus movimentos. Sabia. Quando disse, “fica comigo", ficou, inclusive quando se enfrentavam com o inferno. Quando disse, "Não vá longe", tinha sido capaz de ir só até onde estava agora e nem um passo mais à frente.

Girou a cabeça para olhá-lo sobre seu ombro e o encontrou esperando mais ou menos sozinho, claramente tendo terminado de responder a quaisquer que fossem as perguntas que o outro detetive tinha feito. Olhava para ela, sua expressão severa. Seus lábios se moveram. Com todo o ruído de fundo não podia ouvir o que dizia, mas leu seus lábios com muita claridade

Disse:

- Venha aqui.

 

Ela foi. Não podia parar. Sua cabeça latejava e tinha calafrios, mas continuava, seus pés se moviam automaticamente. Seus olhos totalmente abertos pelo alarme. Como ele fazia isto com ela? Não era o “como” o que importava; o que importava era o que ele estava fazendo. Ser incapaz de controlar a si mesma, estar sob seu controle, poderia conduzi-la a situações desagradáveis.

Nem sequer podia pedir ajuda porque ninguém acreditaria. No melhor dos casos, as pessoas pensariam que estava drogada ou que era mentalmente instável. Todas as simpatias estariam com ele porque tinha perdido seu cassino, seu sustento; o último que precisava era que uma louca lhe acusasse de estar controlando seus movimentos de uma forma ou outra. Podia ver a si mesma gritando:

- Ajuda! Não posso parar de andar! Ele me obriga a fazer isso!

De acordo, não funcionaria.

Deu-lhe um pequeno e forçado sorriso de autosatisfação quando ela se aproximou, e isso a tirou do sério. Estar zangada a fazia sentir-se bem; não gostava de se sentir desvalida de nenhuma forma. Muito atenta para deixar de ver suas intenções, manteve os olhos abertos, com expressão de alarme, entretanto quanto de seu rosto ele poderia ver através da fuligem e a imundície era um enigma. Manteve o braço direito preso do seu lado, seu cotovelo se dobrou um pouco, e esticou os músculos das costas e o ombro. Quando esteve perto dele, tão perto que quase poderia beijá-lo, lançou-lhe um gancho direto no queixo.

Não o viu vir, e o punho se chocou no queixo com uma força que lhe fez bater os dentes. A dor percorreu os nódulos dela, mas a satisfação de golpea-lo fez com que valesse a pena. Ele cambaleou para trás meio passo, então recuperou o equilíbrio com graça atlética, alargando uma mão com rapidez para agarrar seu pulso com seus dedos compridos antes que pudesse golpeá-lo outra vez. Usou o agarre para atrai-la contra ele.

- Mereci um soco - disse aproximando-a enquanto inclinava a cabeça o suficiente para lhe falar ao ouvido - não aceitarei um segundo.

- Me solte - disse bruscamente - e não me refiro somente a sua mão.

- Então compreendeu - disse serenamente.

- Sou meio lenta, mas ser empurrada em meio de um enorme e maldito incêndio estava me distraindo. - Recorreu ao sarcasmo tanto quanto pôde. - Não sei como está fazendo ou por que...

- O "por que”, ao menos, deveria ser óbvio.

- Então devo estar privada de oxigênio desde que inalei a fumaça, caramba, pergunto-me de quem foi o lapsus, porque não esta claro para mim!

- Está o pequeno assunto de que me fraudou. Ou pensou que esqueceria isso ante a comoção de ver como se queimava meu cassino até os alicerces?

- Eu não... Espera um minuto. Espera um maldito minuto. Não pode ter me hipnotizado enquanto íamos descendo dezenove lances de escadas, e se fez enquanto estávamos em seu escritório, então isso foi antes sequer que se iniciasse o fogo. Explica isso, Lucy[4]!

Ele sorriu abertamente, seus dentes brilharam na cara enegrecida pela fuligem.

- Supõe-se que deveria dizer: Oh, Ricky!?

- Não me preocupa o que diga. Somente desfaz o vodu, ou o feitiço, ou o hipnotismo ou o que seja que tenha feito. Não pode me reter aqui assim.

- Isso é ridículo, quando é óbvio que não estou retendo assim.

Lorna pensava que poderia sair fumaça de suas orelhas. Tinha ficado zangada muitas vezes em sua vida - inclusive tinha estado exasperada algumas vezes - mas esta era a vez que mais enfurecida havia se sentido.

Até esta noite haveria dito que as três palavras significavam o mesmo, mas agora sabia que estar enfurecida suportava uma grande quantidade de frustração. Estava indefesa e odiava isso. Sua vida inteira estava construída ao redor da premissa de não sentir-se indefesa, de não ser uma vítima nunca mais.

- Me-dei-xe ir.

Apertou os dentes, sua voz era quase gutural. Seu autocontrole se sustentava só por um fino fio, mas somente porque sabia que gritar não levaria a lugar nenhum, e só a faria parecer idiota.

- Ainda não, temos alguns assuntos que discutir.

Completamente indiferente a seu mau humor, ele levantou a cabeça para observar a cena de destruição a seu redor. O fedor da fumaça impregnava todas as coisas, e os brilhos vermelhos e azuis das distintas luzes de emergência criavam um efeito estroboscópico que o fazia sentir-se como se um prego estivesse golpeando na sua testa. Alguns pontos quentes ainda brilhavam com carmesim vida nas ardentes ruínas, até que os vigilantes bombeiros os apontavam com suas mangueiras. Uma multidão se pressionava contra a fita que a polícia tinha posto para delimitar a área.

Viu os mesmos detalhes que ele e as luzes intermitentes recordavam uma bola de fogo... não, não de fogo... algo mais. Ofegou quando sentiu um violento batimento de coração em sua cabeça.

- Então vamos discuti-los, agora - disse bruscamente, pondo a mão na cabeça em um gesto instintivo para conter a dor.

- Aqui não. - Olhou-a de cima abaixo. - Está bem?

- Tenho uma horrível dor de cabeça, poderia ir para casa e me deitar se não fosse tão babaca.

Estudou-a com o olhar.

- Mas sou um babaca, assim como me chama. Agora fique calada e seja uma boa garota. Estarei um momento ocupado. Quando acabar, iremos a minha casa e teremos essa conversa.

Lorna se calou, e quando ele saiu, ela ficou fixa no lugar. Maldito seja, pensou, enquanto furiosas lágrimas emanavam de seus olhos e corriam por suas sujas bochechas. Levantou as mãos e limpou as lágrimas. Pelo menos, a tinha deixado usar as mãos. Não podia andar e não podia falar mas podia secr o rosto, e se Deus fosse realmente amável com ela, poderia golpear Raintree da próxima vez que estivesse ao alcance.

Então, sentiu um frio, se arrepiando toda. O breve calor que sentia devido ao aborrecimento desapareceu destruído por um medo repentino que lhe paralisou a mente...

O que era ele?

Um homem e uma mulher que haviam estado, atrás do cordão policial, olhando o gigantesco fogo, finalmente deram a volta e trabalhosamente começaram a caminhar para seu carro.

- Merda - disse a mulher sobriamente.

Seu nome era Elyn Campbell, e era a mestra de fogo mais poderosa do clã Ansara, excetuando o Dranir. Tudo o que sabiam sobre Dante Raintree, e tudo o que Elyn sabia sobre o fogo - ajudada por poderosos feitiços - uniu-se para formar um plano que deveria ter causado a morte do Raintree Dranir e em vez disso não tinha completado sua missão.

- Sim - Rubén Williams sacudiu sua cabeça. Tudo seu cuidadoso planejamento, seus cálculos, converteram-se em fumaça. - Por que não funcionou?

- Não sei. Deveria ter funcionado. Ele não é tão forte. Ninguém é, nem sequer um Dranir. Isto foi demais.

- Então evidentemente é o Dranir mais forte que alguém já viu. Ou isso ou é o mais afortunado.

- Ou saiu antes do que prevíamos. Talvez se acovardou e correu para cobrir-se em vez de tentar controlá-lo.

Rubén deu um profundo suspiro.

- Talvez. Não vi quando o tiraram, então talvez tinha estado um momento em algum lugar fora de vista antes que finalmente eu o descobrisse. Todo esse maldito equipamento estava atrapalhando.

Ela elevou a vista para o céu estrelado.

- Assim temos duas possíveis opções. A primeira é que se acovardou e saiu correndo. A segunda, e infelizmente a mais provável, é que seja mais forte do que esperávamos. Cael não ficará contente.

Rubén suspirou outra vez e enfrentou ao inevitável.

- Suponho que o postergamos tempo suficiente. Temos que ligar.

- Tirou o celular do bolso, mas a mulher pôs a mão sobre sua manga.

- Não use seu celular, não está codificado. Espere até que voltemos para o hotel e usaremos uma linha fixa.

- ?Boa idéia.

Algo que atrasasse a ligação para Cael Ansara era uma boa idéia. Cael era sua primo por parte de mãe, mas o parentesco não reduzia a frieza com o bastardo - e dizia bastardo tanto em sentido literal como figurado. - Talvez aquela secreta associação com Cael contra o atual Dranir, Judah, não era a coisa mais inteligente que tinha feito. Inclusive embora estivesse de acordo com Cael em que os Ansara já eram o suficientemente forte, depois de duzentos anos de reconstrução, para enfrentar os Raintree e destrui-los, talvez tinha se equivocado. Ou melhor Cael estava equivocado.

   Sabia que Cael aceitaria automaticamente a primeira opção possível, que Dante Raintree se acovardou e tinha escapado, em vez de tentar apagar o fogo, desprezando completamente a possibilidade que Raintree era mais forte do que qualquer um deles tivesse imaginado. Mas, e se Raintree era realmente tão poderoso? A tentativa de golpe planejada por Cael seria um desastre, e os Ansara teriam sorte de sobreviver como clã. Tinha levado dois séculos reconstruir sua atual fortaleza, depois de sua última batalha campal com os Raintree.

Cael era incapaz de conceber que estivesse equivocado. Se o plano falhasse - o que aconteceria - Cael somente veria duas possibilidades: ou que Rubén e Either não tinham executado o plano corretamente, ou que Raintree tinha mostrado uma veia covarde. Rubén sabia que eles não tinham cometido nenhum engano. Tudo tinha funcionado como um relógio, exceto o resultado. Supunha-se que Raintree seria consumido por um fogo que não poderia controlar, uma deliciosa ironia, porque os mestres do fogo tinham uma estranha relação de amor-ódio com o fogo que dançava ao ritmo que eles mesmos marcavam. Em vez disso, tinha saído ileso. Asqueroso, com fuligem, talvez um pouco chamuscado, mas essencialmente ileso.

Uma bala na cabeça teria sido mais eficiente, mas Cael não quis fazer algo que alertasse o clã Raintree, e um assassinato certamente o faria. Fez tudo para que parecesse um acidente, o que naturalmente fez garantir com quer o resultado fose mais problemático. A família real, os mais poderosos Raintree, tinha que ser derrotada de forma tal que ninguém suspeitasse de um assassinato. Um fogo - pensariam que a perda de seu Dranir em um incêndio era um trágico e amargo final -mas entenderiam completamente que tivesse lutado até o final para salvar seu cassino e seu hotel, sobretudo o hotel, com todos os hóspedes alojados nele.

Cael, é obvio, não teria em conta o fato de que provocar incidentes que não apontassem aos Ansara não era uma ciência exata. As coisas podiam sair erradas. Definitivamente, algo tinha saído errada aquela noite.

Dante Raintree estava ainda vivo. Isso era o que de pior podia acontecer...

O grande assalto ao lar dos Raintree, o Santuário, estava planejado para o solstício do verão, que era uma semana depois. Elyn e ele tinham uma semana para matar Dante Raintree ou Cael mataria a eles.

 

Dante tristemente retornou onde tinha deixado Lorna, relutante em ir embrora, mas sabendo que não havia nada mais que pudesse fazer ali. Uma vez que a polícia acabou de interrogá-lo, seu único pensamento tinha sido inspecionar seus empregados para averiguar se tinha havido alguma vítima. Para sua profunda pena e ira, a resposta a esta última pergunta foi sim. Um corpo já tinha sido tirado das ardentes ruínas do cassino, e os tiras estavam trabalhando com as pessoas para estabelecer se havia algum amigo ou parente perdido, o que levaria tempo. Não poderia haver uma recontagem final até alguns dias.

Encontrou Al Rayburn, rouco e tossindo pela inalação de fumaça mas se negando a ir ao hospital, ajudando em troca a manter a ordem entre os hóspedes evacuados. O pessoal do hotel estava fazendo um trabalho admirável. O hotel mesmo tinha sofrido comparativamente poucos danos, e a maioria estava na área do vestíbulo que conectava o hotel e o cassino, onde Dante ficou. Todo mundo no hotel, hóspedes e empregados, tinham sido evacuados. Havia algumas pessoas com feridas leves, tornozelos torcidos e similares, mas nada de importância. Havia danos por causa da fumaça, naturalmente, e o hotel inteiro teria que ser limpo para tirar o fedor. As boas notícias, as que haviam, eram que a coberta do estacionamento não foi afetada, e o hotel não tinha danos estruturais. Provavelmente poderia reabrir o hotel em duas semanas. A questão era: por que alguém iria querer ficar ali sem o cassino?

O cassino se perdeu completamente. Os aproximadamente vinte veículos no estacionamento em frente à entrada do cassino tinham sido danificados, o estacionamento era um desastre nesse instante. Vinte ou trinta pessoas se queimaram em maior ou menor grau, e outros tantos estavam padecendo os efeitos da inalação de fumaça; todos eles tinham sido enviados a hospitais locais.

Os meios de comunicação tinham vindo em massa, é obvio, seus constantes gritos e interrupções e pedidos/exigências de entrevistas interfirindo nas suas tentativas de organizar a seus empregados, arrumar outro alojamento para os hóspedes de seu hotel, e acertar com Al para que os hóspedes recuperassem seus pertences e ao mesmo tempo proteger o hotel contra ladrões que pudessem fazer-se passar por eles. Tinha sua própria asseguradora com a que tratar. Tinha que ligar para Gideon e Mercy, para que soubessem sobre o fogo e que estava bem, antes de que vissem tudo isto nos noticiários. Ambos estavam na Zona Horária a Leste, o que significava que seria melhor que ficasse em contato com eles malditamente logo.

Finalmente tinha aceito que havia pouco mais que pudesse fazer essa noite; seus empregados eram excelentes e tinham os problemas sob controle, além disso sempre podia estar em contato por telefone. Bem que podia ir para casa e tomar uma necessária ducha.

E isso lhe deixava o problema de Lorna.

Esta noite era uma noite de estréias. Antes desta noite, nunca tinha usado o controle mental, nunca soube que podia. Não tinha idéia de quais eram os parâmetros. Ao princípio tinha pensado que seu próprio senso de urgência tinha proporcionado o impulso, mas mesmo depois que a evacuação acabou, tinha sido capaz de controlar Lorna só com as palavras e um empurrão de sua mente, então a adrenalina não tinha sido o catalisador. Tinha entrado em um novo território, e tinha que andar com cautela já que este poder em particular podia ser facilmente mal utilizado. Demônios, já tinha abusado dele, não era? Lorna diria definitivamente que sim a isso, quando a deixasse falar.

Esta noite também tinha sido a primeira vez que tinha invadido brutalmente a mente de alguém e literalmente tinha roubado o poder disponível. Depois da desgraça, ela tinha ficado aturdida, entorpecida, incapaz de recordar sequer seu nome, todos os sintomas atribuíveis a um choque emocional. O quanto extensa era a amnésia, e por quanto tempo, era algo que ficava a se ver. Ela tinha começado a se recuperar muito rápido, mas ainda não lembrava grande parte da experiência, a menos que tivesse recuperado a memória em sua ausência, em cujo caso provavelmente deveria encontrar alguma equipe de cuidados antes de liberá-la do controle.

Ela era Ansara? Essa era a questão pendente que tinha que ser respondida, e logo.

Seu pensamento ia em ambos os sentidos. Parte dele dizia, não, ela não podia ser, ou não seria capaz de dominar sua mente tão facilmente, tampouco ela séria tão suscetível ao controle mental. Uma Ansara, treinada desde o nascimento para dirigir e controlar suas incomuns habilidades, como o era os Raintree, teria resistido automaticamente ao controle mental. O poder era excepcional, tão excepcional que nunca tinha conhecido ninguém capaz de exercitá-lo, embora a história da família dizia que uma tia seis gerações atrás tinha sido perita nisso. Excepcional ou não, porque o poder existia, ele e cada um dos Raintree tinham sido adestrados em construir escudos mentais. Os Ansara basicamente refletiam os Raintree em seus dons, e indubitavelmente, também, ensinavam a sua gente a proteger-se, o que queria dizer que a completamente desprotegida Lorna não podia ser Ansara.

A menos…

A menos que tivesse tanto talento que ele não pudesse detectá-lo. A menos que simplesmente estivesse fingindo ser controlada pelo controle mental. Ele havia dito sua vontade em voz alta, então ela sabia o que queria. Se também tinha o dom de controlar o fogo, podia ter estado reforçando o fogo, ressuscitando as chamas cada vez que ele conseguia derrotá-las. Não. Rechaçou essa idéia. Se ela tivesse sido a que alimentava o fogo, teria sido capaz de extingui-lo completamente depois de que se apropriou de seu poder. Alguém mais devia ter alimentado o fogo, mas ela podia tê-lo distraido, desviando algo de seu poder.

Era ou não era? Saberia logo. Se não era... então tinha jogado um pouco duro com uma mulher que podia não ser uma inocente, mas que ainda estava longe de ser uma inimiga. Embora, não sabia se tivesse feito algo diferente. Quando tinha dominado sua mente, tinha sido um ato de desespero, e não teve o luxo do tempo para explicar-lhe as coisas. Poderia compensá-la, mas não estava arrependido do que tinha feito. Estava contente de que ela tivesse estado ali, contente de que fosse dotada e tivesse uma reserva de energia mental para extrair.

Rodeou um caminhão de bombeiros, onde os tripulantes estavam preparando suas mangueiras para recolhê-las, aproximou-se do beira da calçada. Agora podia vê-la. Isso era mais do que podia dizer, ela estava no lugar exato em que a tinha deixado, que ao menos era a um lado, assim não estava no caminho de nenhum dos bombeiros. Estava muito suja, seu cabelo endurecido pela desagradável mescla de fumaça, fuligem e água, sua postura gritava esgotamento. Ainda aferrava uma manta ao redor dela e estava literalmente cambaleando onde estava de pé. Sentiu um repentino acesso de impaciência, mesclada com simpatia. Por que não se sentou? Não a tinha impedido de fazer isso.

Olhando para ela, fez uma careta mental de dor em nome dos assentos de seu carro, então encolheu os ombros imediatamente já que ele também estava asqueroso. O que importava de todas formas? O couro podia ser limpo.

Quando o viu, pura fúria brilhou em seus olhos, dissipando a fadiga. Se tinha esperado dela que fosse covarde, teria ficado decepcionado. Como fora, um pequeno vislumbre de antecipação disparou através dele. Inclusive depois de tudo pelo que tinha passado, ela ainda estava se defendendo por si mesma. Recordando a vasta reserva de poder que tinha encontrado quando havia tocado sua mente, perguntava-se se ela sequer sabia o quão forte era realmente.

- Vem comigo - disse, e, obedientemente, o seguiu.

- Não havia nada obediente no modo em que agarrou seu braço, embora, o aproximou. Olhou-o furiosamente, indicando sua boca com um gesto breve e impaciente. Queria falar; provavelmente tinha um montão de coisas memorizadas que dizer.

Dante começou a liberar o controle, então se deteve e fez uma careta.

- Acho que desfrutarei de um pouco mais do silêncio - disse, sabendo que realmente poderia enrolar suas calças em um nó. - Não há nada que tenha a dizer que não possa esperar até que estejamos sozinhos.

Al tinha arrumado para que um dos de segurança fosse procurar o carro de Dante do estacionamento, onde tinha uma vaga reservada perto de um elevador privado. Ele tinha sido discreto com isto, porque alguns dos hóspedes, os que não tinham identificação, não seria permitido que tirassem seus carros do estacionamento. Já tinham solucionado esse problema de segurança com aqueles hóspedes que consideravam realmente que tinham que ter um carro esta noite, embora Dante estava proporcionando transporte para levar todo mundo aos diversos hotéis onde seus empregados tinha encontrado alojamento. Estava fazendo todo o possível para cuidar de sues hóspedes, mas sabia que ainda podia haver um montão de ressentimento que se formaria por detalhes como ele conseguindo seu carro quando eles não podiam.

O Lotus Exige negro estava ligado em ponto morto, com as luzes de freio ligadas, no final do enorme estacionamento do cassino, oculto da maioria da multidão de curiosos pelo enorme grupo de veículos de emergência com suas luzes brilhantes. Dante guiou Lorna ao passarem pela borda do estacionamento, quando se aproximaram do carro, a porta do condutor se abriu e um dos homens da segurança saiu.

- Aqui está, senhor Raintree.

- Obrigado, José. - Dante abriu a porta do passageiro. Lorna lhe dirigiu um olhar letal enquanto subia ao carro e de algum jeito conseguiu cravar um cotovelo nas suas costelas. Ele dissimulou uma careta, depois fechou a porta com um firme clique e o rodeou para a porta do condutor.

O Lotus tinha o chão baixo e não era de tudo confortável para seu corpo musculoso de um metro e noventa, mas adorava dirigi-lo quando estava com ânimo para isso. Quando queria mais comodidade, dirigia seu Jag[5]. Esta noite teria preferido conduzir por uma paisagem despovoada e pisar fundo, para aliviar a ira e o agudo fio de dor com absoluta velocidade e agressividade. O Lotus podia ir de zero a cem em onze segundos, o que era uma rajada. Precisava ir a duzentos quilômetros por hora agora mesmo, precisava empurrar a maquininha de alto rendimento até a seus limites.

Em vez disso conduziu calma e prudentemente, consciente de que não podia afrouxar a tensa correia que estava segurando seu gênio. O fato era que a noite ajudava, mas a data estava muito perto do solstício do verão para correr qualquer risco. Demônios - Ele poderia ter começado o maldito fogo? Era responsável pela perda ao menos de uma vida?

O oficial de incêndios disse que as entrevistas preliminares indicavam que tinha começado na parte de atrás, onde estava o interruptor diferencial, mas o lugar ainda estava muito quente para que os investigadores entrassem ali a comprovassem. Se o fogo tinha começado por um problema elétrico, então ele não tinha nada a ver, mas lhe dava voltas à possibilidade de que o fogo resultasse ter se iniciado por algo completamente diferente. Seu controle vacilou quando tinha visto Lorna pela primeira vez, com os últimos raios do sol poente convertendo seu cabelo em um rico fogo. Tinha aceso as velas sem nem sequer pensar nelas; tinha aceso algo mais?

Não, não tinha feito. Estava seguro disso. Se tivesse sido a causa, as coisas teriam estalado em chamas por todo o hotel e o cassino, não em um lugar distante. Tinha contido seu poder, mantendo-o sob controle. O fogo do cassino tinha sido causado por algo mais; o momento tinha sido só coincidência.

Transcorreu quase meia hora antes que abrisse sua porta com um controle remoto e guiasse o Lotus por uma estrada com curvas até sua casa de três andares localizada em uma ladeira voltada para o leste de Serra Nevada. Outro botão do controle remoto levantou a porta da garagem, e situou o Lotus em sua vaga como um astronauta acoplando um foguete com a Estação Espacial, em seguida fechou a porta atrás dele. O Jag prateado brilhou em seu lugar ao lado do Lotus.

- Vamos - disse a Lorna, e ela saiu do carro. Olhou para frente enquanto ele dava um passo a um lado para permitir que o precedesse dentro da brilhante cozinha. Pressionou seu código no sistema de segurança para deter o assobio de alarme, em seguida se deteve. Brevemente considerou levá-la a cidade depois de ter falado com ela, então descartou a idéia. Estava cansado. Ela podia ficar aqui, e se tivesse que fazer isso - como sem dúvida seria - usaria o controle para mantê-la aqui e fora de problemas. Se não gostasse, má sorte; as últimas horas tinham sido uma droga, e não tinha vontade de fazer o trajeto.

Com isso em mente, reativou o alarme e se girou para ela. Estava de pé dando-lhe as costas, a menos de dois metros, os ombros rígidos e, a julgar pelo ângulo da cabeça, com o queixo levantado.

Lamentando a iminente perda de silêncio, disse:

- Certo, pode falar agora.

Ela girou para enfrentá-lo, e ele se preparou para uma inundação de impropérios enquanto os punhos se fechavam a seus flancos.

- O banheiro! - gritou.

 

A mudança em sua expressão poderia ter sido cômica se Lorna estivesse de humor para apreciar. Ele rodou os olhos com compreensão, e rapidamente indicou para um pequeno vestíbulo.

- Primeira porta à direita.

Deu um passo desesperado, e logo ficou gelada. Maldito seja, ainda a controlava! O olhar abrasador que lhe deu deveria conseguir o que o fogo do cassino não pode, concretamente chamuscar cada cabelo de sua cabeça.

- Não se afaste - resmungou ele, se precavendo que não tinha acabado o controle.

Lorna correu. Bateu a porta do banho mas não perdeu tempo em fechá-la. Mal a fechou, e a sensação de alívio foi tão grande que tremeu com estremecimentos involuntários. Uma cena do Tom Hanks em Uma Equipe Muito Especial cruzou por sua mente, e mordeu o lábio para se abster de gemer em voz alta.

Então ficou apenas sentada, os olhos fechados, tentando acalmar os nervos excitados. Tinha levado-a para sua casa! Que intenção tinha? O que ele fosse, não importava, ele a controlava, estava indefesa para se libertar. Durante todo o tempo em que ele esteve fora, se dispos repetidas vezes a dar um só passo, dizer uma palavra... e não pôde. Metade de sua mente estava assustada, a outra metade traumatizada, e se por acaso fosse pouco, estava tão zangada que pensou poderia ter uma fúria chiando, fora-de-controle e esperneando de mal humor só para aliviar a pressão.

Abrindo os olhos, começou a colocar a corrente, mas ouviu sua voz e permaneceu quieta, tentando ouvir o que estava dizendo. Haveria mais alguém aqui? Justo quando começava a relaxar um pouco, notou que estava falando por telefone.

- Sinto acordar você. - Fez uma breve pausa, então disse: - Houve um incêndio no cassino. Poderia ter sido pior, mas é suficientemente mau. Não quis que visse nos noticiários da manhã e fizesse perguntas. Ligue para Mercy em algumas horas e conte a ela que estou bem. Tenho o pressentimento que vou estar muito ocupado nos próximos dias.

Outra pausa.

- Obrigado, mas não. Não tem que subir em nenhum avião esta semana, e aqui está tudo bem. Só queria telefonar antes que ficasse tão enrolado com a papelada burocrática que não pudesse telefonar.

A conversa continuou durante um minuto, e se manteve em assegurar a quem quer que estivesse do outro lado que não, não precisava de ajuda; que tudo estava bem... bom, não bem, mas sob controle. Havia pelo menos uma vítima. O cassino se perdeu completamente, mas o hotel tinha sofrido um dano mínimo.

Finalizou a chamada, um momento mais tarde Lorna ouviu uma selvagem maldição murmurada, em seguida um ruído surdo, como um murro na parede.

Não parecia do tipo que dava murros às paredes, pensou. No entanto, não o conhecia. Poderia ser um golpeador de paredes em série. Ou talvez desmaiou ou algo assim, e o golpe surdo tinha sido o corpo golpeando o chão.

Gostou dessa idéia. Aferrou-se à idéia de chutá-lo enquanto ele estava no chão. Literalmente.

A única maneira de ver se estava caído ali inconsciente era saindo do banheiro. A contra gosto, colocou a corrente, em seguida foi para para o lavabo lavar as mãos... um lavabo com a bancada escura de granito marrom dourado e elementos dourados. Quando conseguiu abrir a água, o contraste entre a riqueza do lavabo e sua mão completamente imunda e escura com a fuligem, a fez se envergonhar interiormente quando levantou a cabeça.

Um imundo pesadelo surgiu no espelho em frente a ela. Tinha o cabelo embaraçado com fuligem e água, e fedia a fumaça. Tinha a cara tão negra que unicamente se definiam os olhos, e estavam sanguinolentos. Com os olhos vermelhos, parecia um demônio do inferno.

Estremeceu, recordando o quanto as chamas tinham chegado perto. Sendo que não podia imaginar como ainda tinha algum cabelo na cabeça, não deveria se queixar que estivesse embaraçado. O xampu (em grandes quantidades) se encarregaria disso. A fuligem poderia se esfregada. As roupas estavam arruinadas, mas tinha outras. Estava viva e ilesa, e não sabia como.

Enquanto ensaboava as mãos imundas, clareou-as, e as ensaboou de novo, tentou reconstruir uma seqüência exata dos acontecimentos. A dor de cabeça, que tinha se acalmado, retornou tão ferozmente que teve que se agarrar com as mãos ensaboadas a borda do lavabo.

Os pensamentos formaram redemoinhos tentando conectar uma seqüência coerente, mas logo os segmentos estiveram fora de seu alcance outra vez.

- Deveria ter se queimado...

- o cabelo chamuscado...

- bolhas...

- nem queimada...

- agonizante...

Choramingando pela dor na cabeça, caiu de joelhos.

Raintree amaldiçoou.

Algo que a lembrava de alguma coisa. De estar presa em frente a ele, com os braços fechados a seu redor, enquanto as maldições ressonavam em sua cabeça e seu... seu...

As lembranças desapareceram, evitando a tentativa de agarra-las. A dor banhava sua visão, e fixou os olhos nas bolhas de sabão das mãos, tratando de unir energia para agüentar. Estava tendo uma premonição? A dor era tão intensa, ardia, e enchia sua cabeça até que pensou que seu crânio explodiria pela pressão.

Bolhas de sabão.

As trêmulas bolhas (algo sobre elas a fazia recordar) tinha havido algo ao redor...

Uma trêmula bolha. A memória explodiu em seu dolorido cérebro, tão clara que lhe provocou lágrimas. Tinha visto, rodeando-os, mantendo o calor e a fumaça do lado de fora.

Sentia a cabeça como se realmente tivesse explodido. Tinha tido um impacto tão grande que não podia compará-lo com nada que tivesse experimentado, mas imaginava que a sensação seria a mesma se tivesse sido atropelada por um trem... ou golpeada por um meteoro. Era como se as membranas celulares de seu cérebro houvessem se disolvido, como se tudo o que tivesse sido, foi, e seria, tivesse sido sugado, tomado o controle e usado. Tinha estado indefesa, completamente indefesa como um recém-nascido, para resistir a dor ou ao homem que cruelmente tinha tomado tudo.

Com um estalo, tudo voltou para seu lugar, como se essa lembrança tivesse sido a peça que precisava para ter o quebra-cabeças completo.

Recordou tudo: cada momento de indescritível terror, sua incapacidade para agir, o modo em que ele a tinha utilizado.

Tudo.

- Já teve tempo de sobra - a chamou da cozinha. - Ouvi como colocou a corrente. Venha aqui, Lorna.

Como uma marionete, levantou-se e saiu do banheiro, com o sabão ainda grudado em suas mãos e com o humor aceso. O via carrancudo, ali de pé esperando por ela. Com cada passo vacilante que dava, seu temperamento chegava em outro nível na estratosfera.

- Imbecil! - gritou, chutando seu tornozelo quando passou a seu lado. Só conseguiu dar alguns passos mais à frente antes que o invisível muro a detivesse, então girou rapidamente e retrocedeu.

- Asno! - cravando um cotovelo nas suas costelas.

Não deve tê-lo machucado muito porque parecia mais assombrado que dolorido. O que a enfureceu muito mais, e quando o muro a obrigou a dar a volta outra vez, alcançou um nível completamente novo de fúria enquanto começava a andar para cima e para baixo dentro dos limites da vontade dele.

- Obrigou-me a ir para o fogo... - o golpeou na cintura rapidamente como uma serpente.

- Tenho terror ao fogo, mas você se importa? - Outro chute, esta vez diretamente no joelho.

- Oh, não, tive que estar ali enquanto fazia seus rituais... - Nesta volta, dirigiu o golpe para o plexo solar.

- Depois violou meu cérebro, imbecil, gorila, feiticeiro de merda... - Na viagem de volta, golpeou o rim.

- Depois, se por acaso fosse pouco, todo o tempo esteve esfregando sua ereção contra minha bunda! - Estava tão indignada que gritou a última parte, e sesta vez colocou todo seu empenho no golpe contra seu queixo.

Ele o bloqueou com um veloz movimento do antebraço, então que lhe deu um pisão.

- Ai! - uivou ele, mas o imbecil estava rindo, maldito, e em outro de seus movimentos relâmpago, capturou-a entre seus braços, atraindo-a solidamente contra ele. Abriu a boca para protestar, ele inclinou a cabeça e a beijou.

Diferente das táticas repressivas que tinha usado com ela toda a noite, o beijo foi suave, ligeiro como uma pluma e quase doce.

- Sinto muito - murmurou e a beijou de novo. Fedia tanto quanto ela, possivelmente mais, mas o corpo sob as roupas danificadas era rocha pura com músculos e muito quente no frescor da casa com ar condicionado. - Sei que dói... Não tive tempo de explicar... ?Entre as frases, continuou beijando-a, cada toque sucessivo de seus lábios se tornando um pouco mais profundo, durando um pouco mais.

A emoção a manteve quieta: emocionada porque ele queria beijá-la; emocionada porque o deixava beijá-la, depois de todo esse antagonismo entre eles; depois de fazer tudo o que tinha feito; depois que ela o tivesse submetido a essa serie de ataques. Não a obrigava lhe deixar beijá-la; isto era como querer caminhar e não poder. Tinha as mãos em seu peito musculoso, mas não fazia nenhum esforço para afastá-lo, nem sequer mental.

Ele deslizou a boca para o suave espaço sob a orelha, depositou uma suave dentada na curva de seu pescoço.

- Teria preferido esfregar minha ereção contra sua parte dianteira - disse, e retornou a sua boca com um beijo que não tinha nada de ligeiro ou doce. A língua entrou rapidamente, deixando-o conhecer seu sabor, enquanto a mão direita descia até seu traseiro, deslizando carinhosamente sobre as curvas, em seguida pressionou seus quadris para encontrá-lo.

Estava fazendo exatamente o que havia dito que preferia ter feito.

Lorna não confiava na paixão. Pelo que tinha visto, a paixão era egoísta e egocêntrica. Não era imune, mas não confiava nela... não confiava nos homens, os quais por sua experiência diziam mentiras só para ter relações sexuais. Não confiava em ninguém que queria cuidar dela, olhar por seus interesses. Se acaso se abriu à paixão lentamente, com receio.

Se não estivesse tão cansada, tão estresada, tão traumatizada, teria se controlado completamente, mas tinha perdido o equilíbrio no minuto em que o chefe de segurança a tinha escoltado até seu escritório. Agora estava desequilibrada, a cabeça dava voltas como se a cozinha estivesse girando a seu redor, como se o chão se inclinasse sob seus pés. Em contraste, ele era sólido e muito quente, os braços fortes como nenhum que a tivessem segurado antes, e o corpo respondeu como se nada existisse mais à frente do que o simples prazer do momento. Estar presa contra ele era bom. O calor de seu corpo ardente era bom. A grosa longitude de sua ereção, empurrando contra sua barriga, era bom... tão bom que se pôs na ponta dos pés para acomodá-lo melhor, e não lembrava ter feito.

Tardiamente alarmada por não mostrar sua cautela habitual, separou a boca dele e empurrou contra seu peito.

- Isto é estúpido - resmungou.

- Descerebrado - ele estava de acordo, com a respiração um pouco acelerada. Demorava para soltá-la, então o empurrou outra vez, e, a contra gosto, deixou cair os braços.

Não deu um passo atrás, então ela deu, olhando fixamente pela cozinha, assim não tinha que olhar para ele. Supôs que como todas as cozinhas era bonita. Não gostava de cozinhar, por isso é que no esquema geral das coisas, para ela as cozinhas eram mais ou menos um desperdício.

- Me seqüestrou - ela foi à carga com o cenho franzido.

Ele considerou, então inclinou brevemente a cabeça.

- Fiz isso.

Por alguma razão este assentimento a zangou mais que se tivesse discutido sua afirmação.

- Se vai me acusar de trapaceira, faça logo - estalou. - Não pode provar nada, e ambos sabemos, como está ficando ridículo, melhor, o que me preocupa, porque logo poderei ir e não o verei...

- Não vou apresentar queixa contra você - interrompeu. - Tem razão. Não posso provar nada.

Sua repentina admissão a deixou perplexa.

- Então por que me arrastaram até lá em cima?

- Disse que não posso provar que fez. Isso não quer dizer que seja inocente. - Deu-lhe um estreito e taxativo olhar. - De fato, é culpada como o demônio. Utilizar suas habilidades paranormais nos jogos de azar é trapaça, pura e simplesmente.

- Não tenho... - Automaticamente, começou a negar que era psíquica, mas ele levantou uma mão para cortá-la.

- Por isso é que fiz a “violação de cérebro”, como você chama. Precisava de uma reserva extra de poder para afastar o fogo, e sei que está dotada... mas me surpreendi o quanto. Não pode me dizer que não sabia. Há muito poder para fazê-lo passar só como sorte.

Lorna não soube como reagir. A fria aceitação do que lhe tinha feito arrepiou de novo os cabelos de sua nuca, mas a acusação de que ela estava “dotada” a inquietou tanto que começou a negar com a cabeça antes de que ele acabasse de falar.

- Números - resmungou. - Sou boa com os números.

- Teimosa.

- Isso é tudo! Não leio a sorte ou leio as folhas de chá ou nada do estilo! Não soube que o 11 de setembro ia acontecer...

Mas os números de vôo derrubados a tinham atormentado durante dias antes do ataque. Se tentava marcar um número, os números marcados eram esses números de vôo... na ordem em que os aviões se chocaram.

Essa recordação em particular surgiu como um salmão saltando fora da água, e um calafrio a estremeceu. Não tinha pensado nos números de vôo depois. Tinha enterrado as lembranças profundamente, onde não causassem problemas.

- Sai - sussurrou a suas lembranças.

- Não vou a lugar nenhum - disse ele. - E você tampouco. Ao menos, não imediatamente. - Suspirou e lhe deu um olhar arrependido. - Tire as roupas.

 

- Não vou fazer isso! - uivou Lorna, se afastando o quanto podia dele, o que é obvio não era muito.

- Então farei eu, provavelmente - respondeu ele ironicamente, aproximando-se mais, se inclinando ameaçador sobre ela. - Ninguém a ajudará. Olhe, não me excederei. Só tire as roupas e acabe logo com isso.

Retrocedeu quando ele avançou, agarrando a blusa como se fosse uma ultrajada virgem vitoriana e procurando uma arma, qualquer arma. Era uma cozinha, maldita seja; supunha-se que devia ter facas localizadas em um extravagante bloco nessa bancada extravagante. Em vez disso, não havia nada mais que uma vasta extensão de gentil granito.

Respirou fundo, em seguida suspirou como se estivesse aborrecido.

- Posso fazer sem necessidade de tocar em você. Você sabe, e eu sei, então por que fazer da maneira difícil?

Tinha razão, pensou com impotência. Algo que tivesse em mente fazer com a mente dela, poderia fazer quando quisesse.

- Isto não é justo! - gritou-lhe, apertando as mãos em punhos. - Como pode me fazer isto?

- Sou um médico bruxo de merda, lembra?

- Não esqueça todo o resto! Bastardo! Asno…

- Sei, sei. Agora tire as roupas.

Ela sacudiu com força a cabeça, embaraçando o cabelo com o movimento. Amargamente, esperou que tomasse o controle de sua mente, mas não o fez. Ele só avançou inexoravelmente quando ela retrocedeu, seguindo a rota da passagem do pórtico do banehiro que tinha utilizado, atravessando o que assumiu era um estúdio muito elegante. Embora não ousasse tirar seu olhar dele, deu uma olhada rápida o suficientemente a seu redor.

Tocava-a, notou, como se fosse uma ovelha e não tivesse escolha, mas não podia fazer nada mais além de ser conduzida com o rebanho. Os olhos verdes injetados de sangue brilharam na suja cara, fazendo-o parecer completamente selvagem. O coração dela pulsava desenfreadamente. Era algum tipo de louco assassino em série que deixava corpos desmembrados dispersos por toda parte de Nevada? Um Rasputin moderno? Um fugitivo de alguma instituição para doentes mentais? Na verdade, não parecia nem agia como o milionário dono de um casino-hotel de primeira categoria. Agia como se fosse algum tipo de caudilho, o amo de tudo o que contemplava.

Apoiou-se no marco de uma porta, brevemente desequilibrada, então enfrentou outra surpresa ao dar-se conta de que a tinha dirigido para outro banheiro, desta vez um banheiro completo, e muito mais opulento que o meio banheiro da cozinha. Nenhuma das luzes estava acesa, mas a iluminação que provinha da porta aberta revelou seu reflexo no brilhante espelho a sua esquerda.

Alcançou-a e acendeu as luzes, tão brilhantes e brancas que teve que levantar uma mão para proteger os olhos.

- Agora - disse ele - sem mais atrasos. Tire as roupas você mesma, ou farei isto da maneira difícil.

Lorna deu uma olhada a seu redor. Estava abandonada.

- Vá para o inferno - disse ela, e fez o que todos os animais abandonados fazem sempre: Atacou.

Durante algum tempo ele somente bloqueou seus murros, desviou seus chutos, evitou suas dentadas, e a facilidade com que o realizou, fez com que ela se zangasse ainda mais. Perdeu um sapato na batalha, a sandália barata atravessou o quarto para se chocar com estrépito contra a imensa banheira. Então, sentiu uma repentina onda de impaciência vindo dele, e em menos de três segundos a teve inclinada sobre o lavabo com as mãos presas atrás dela.

Ele se concentrou na tarefa, utilizou suas poderosas pernas para controlar os chutes, e agarrou o decote de seu Top. Três fortes puxões trouxeram o som de vários fios cedendo, mas as costuras resistiam. Ele amaldiçoou e puxou mais forte, e a costura do lado esquerdo se rasgou. Sem piedade rompeu o objeto até convertê-la em farrapos, pendendo de seu braço direito. Seu sutiã era abotado nas costas, e foi presa fácil do rápido toque de dedos que soltaram dos cochetes.

Retorceu-se como uma enguia, chiando até que ficou rouca. Ele ignorou completamente tudo o que disse, cada insulto e súplica que lançou, silenciosa e cruelmente concentrando em despi-la. Ela alternava entre a fúria e um pânico soluçante quando ele abriu o botão de suas calças e baixou o zíper, mas se deteve antes de empurrar suas calças e a roupa interior até abaixo de seus quadris.

Ela estava sem forças, soluçava, sua cara pressionada contra a fria pedra do lavabo. Deixou de baixar suas roupas, e em troca o calor de sua mão se mudou para o pescoço, levantando o cabelo preso por um momento, para em seguida delinear os ombros. Mudou a maneira como segurava as mãos dela, para empurrá-las para cima e sobre a cabeça antes de reiniciar o que se sentia como uma busca centímetro a centímetro em sua pele. Os flancos de seus seios, as costelas, a curva da cintura, os quadris cheios, ele examinou tudo isso, baixando ainda mais suas calças para revisar as curvas inferiores das nádegas. Mortificada, retorceu-se e soluçou, mas ele foi inexorável.

Então ele suspirou e disse:

- Devo outra desculpa a você.

Liberou as mãos dela e retrocedeu, libertando ela da pressão de seu corpo. Quando se retirou disse:

- Trarei algumas roupas para você. Pensa em tomar uma ducha, recupera o fôlego e depois falaremos. - deteve-se, adicionando - não saia deste quarto. - Em seguida fechou brandamente a porta.

Soluçando, deslizou do lavabo ao chão e se curvou sobre si mesma vencida. Ao princípio tudo o que podia fazer era chorar e tremer. Depois de um momento seu gênio ressuscitou e cintilou em um silencioso grito. Chorou um pouco mais. Finalmente se incorporou, limpou a cara com as partes de sua blusa, e gritou:

- Bastardo!.. - Na porta. Agora se sentia levemente melhor graças ao insulto.

Seus olhos estavam inchados e o nariz congestionado, mas se sentia tranqüila o bastante para levantar, embora não fosse fácil com as calças ao redor dos joelhos. O ultraje se acrescentou à humilhação, mas não tinha objetos que arremessar. Em lugar disso se despiu completamente e parou ali extranhamente indecisa.

A sugestão de tomar uma ducha, descobriu, era apenas isso: uma sugestão. Se não queria, não tinha porque fazê-lo. Poderia tomar um banho longo na jacuzzi, se desejasse. Não tinha que se banhar depois de tudo, embora tenha desprezado imediatamente esta opção.

Entrar na banheira não seria prático, porque se não acabaria por sentar-se em água suja. Uma larga-muito-larga ducha quente era a única forma de ficar limpa.

A ducha não tinha porta. A entrada era uma parede curva de pedra que tinha um armário embutido, no qual se amontoavam grossas e acobreadas toalhas, desceu três degraus que a levaram ao cubículo da ducha de mais ou menos um metro e meio quadrado com múltiplas torneiras. Os controles estavam perto, e quando os girou, a água jorrou pelas três paredes e de cima. Esperou até que sentiu o calor do vapor subir ao rosto, então deu um passo dentro dos jorros de água.

Concentrando-se em estar limpa, e nada mais, concedeu a seus nervos um descanso muito necessário. A água quente correndo sobre seu corpo era tranqüilizadora, uma vibrante massagem. Pos xampu no cabelo e o esfregou, em seguida fez isso outra vez, e outra vez mais, até que sentiu o cabelo limpo e desembaraçado. Ensaboou-se e esfregou com o fragrante gel de banho, e comprovou que não tirava toda a fuligem e a imundície. Uma segunda refrega não produziu melhores resultados, então trocou pelo xampu; se tinha funcionado com o cabelo, devia funcionar na pele.

Finalmente se deu conta de que tinha ficado na ducha tanto tempo que as gemas de seus dedos se enrugaram e a água quente há muito tempo se esgotou, já era suficiente. Estava empapada. Com pesar, fechou a água, e os fluidos jorros desapareceram tão de repente como se tivessem sido absorvidos pelos grifos. Só os sons do ar condicionado e da água drenando chegaram a seus ouvidos.

Não tinha ligado o ar condicionado. A menos que ligassem automaticamente quando o nível de umidade alcançava certo ponto… Ele tinha estado no banheiro.

Apressadamente, subiu os três degraus, agarrou uma das esponjosas toalhas e a envolveu ao redor de si mesma, logo conseguiu outra e a retorceu em um turbante sobre o cabelo molhado. Apoiando-se na parede curvada, caminhou até que pôde ver a parte principal do banheiro. O espelho de parede atrás do lavabo duplo retornava seu reflexo, mas era o único reflexo. Estava sozinha… agora. O grosso robe felpuda colocado no tamborete da penteadeira lhe indicou que ele tinha estado ali.

Lorna se olhou fixamente no espelho. Parecia pálida, ainda para ela mesma. A pele ao redor das maçãs do rosto estava tensa, dando uma expressão embotada e alterada.

Isso estava bem. Ela se sentia embotada e alterada.

Havia dito a ela que não saísse do banheiro. Estava tão desanimada que nem sequer fez a tentativa, assim não sabia se isso tinha sido outra sugestão ou uma de suas estranhas ordens mentais que não podia desobedecer. Nesse momento não se importou se era uma sugestão ou uma ordem. Estava contente simplesmente de permanecer ali, onde não havia nada mais difícil de fazer que secar o cabelo.

Registrando nas gavetas da penteadeira, encontrou uma loção de banho, assim como um secador de cabelo e escova, que era tudo o que precisava nesse momento. O xampu tinha feito com que sua pele se sentisse tensa, então esfregou a loção por todas as partes que podia alcançar, então começou a tarefa de secar o cabelo.

Seus movimentos com a escova se fizeram mais lentos, logo ainda mais lentos. O cansaço fez que seus braços tremessem. Tinha sorte que seu cabelo fosse em sua maior parte liso e tivesse um bom comprimento, porque qualquer tentativa de dar uso a ele estava além de suas forças. Só queria que o cabelo estivesse seco antes que desabasse, isso era tudo.

Com essa tarefa cumprida, colocou o robe, o qual evidentemente era dele; as mangas caíam vários centímetros além das pontas de seus dedos e a barra quase roçava o chão. Divertido, pensou confusamente, ele não parecia do tipo que usasse robe.

Então esperou, cambaleando, os pés descalços pisando no tapete felpudo. Poderia pelo menos ter aberto a porta, mas não tinha nenhuma pressa em encará-lo, nem para averiguar se a porta se abria, estava encarcerada neste quarto. Muito tempo. Era tempo de enfrentar o inimigo outra vez.

Falariam, havia dito a ela. Não queria falar com ele. Não tinha nada que lhe dizer que não incluísse muitos palavrões. Tudo o que queria era ir embora... bem, não para casa exatamente, porque não tinha um lar nesse sentido. Desejava retornar aonde se hospedava, aonde estavam suas roupas. Isso era o mais próximo a um lar para ela. Por enquanto, só queria dormir até tarde na cama a que estava acostumada.

Sem aviso, a porta se abriu e ele parou ali, alto e de ombros largos, tão cheio de vitalidade como se a noite não tivesse sido longa e traumática. Ele também tomou banho; o comprido cabelo negro, ainda úmido, estava penteado para trás revelando cada linha forte e ligeiramente exótica de seu rosto. Barbeou-se também; seu rosto tinha um aspecto fresco.

Usava umas leves calças de pijama... e nada mais. Nenhum sorriso.

Os agudos olhos procuraram seu rosto, notando-se em sua palidez, sinal de total esgotamento.    

- Conversaremos pela manhã. Duvido que pudesse formular uma oração coerente neste momento. Vamos, mostrarei a você onde fica seu quarto.

Retrocedeu, e ele a olhou com uma expressão ilegível.

- Seu quarto - enfatizou ele. - Não o meu. Não estava dando nenhuma ordem com isso, mas farei se for necessário. Não acredito que seja cômodo dormir no banheiro.

Estava o suficientemente acordada para replicar:

- Terá que dar uma ordem, do contrário não posso sair do banheiro, de todos os modos.

Tinha decidido que a ordem para não sair do banheiro significava uma forma de curto-circuito que lhe permitisse fazer sua própria vontade, e pelo brilho de irritação, viu que ela tinha razão.

- Me siga - disse ele bruscamente, uma ordem que a liberou do banheiro mas a sentenciou a segui-lo como um patinho.

Levou-a para um espaçoso dormitório com janelas de dois metros que revelavam as cintilantes cores de néon de Reno.

- O banheiro privado está ali - disse ele, indicando uma porta. - Está a salvo. Não a incomodarei. Não a machucarei. Não saia deste quarto. - Com isso, fechou a porta detrás dele e a deixou plantada no dormitório fracamente iluminado.

Ele poderia recordar acrescentar esta última condenação, maldito - agora não se sentia capaz de fugir por causa disso. Nesse momento sua força se limitava a subir a enorme cama, usando ainda o robe muito grande. Se encolheu sob o lençol e o edredom, mas ainda se sentia muita exposta, então puxou o lençol sobre sua cabeça e dormiu.

 

Segunda-feira

- Está bem?

Lorna despertou, como sempre, com uma sensação persistente de temor e medo. Não a alarmaram as palavras, já que imediatamente reconheceu a voz. Entretanto, estavam longe de ser bem-vindas. Sem ter em conta onde estava, o temor sempre estava aí, dentro dela, sendo uma parte tão grande, que era como se o tivessem gravado nos próprios ossos.

Não podia vê-lo, porque ainda tinha o lençol sobre a cabeça. Raras vezes se movia quando dormia, por isso ainda estava enroscada de forma tão apertada, que o enorme robe não havia se deslocado nem desabotoado.

- Está bem? - repetiu ele, com mais insistência.

- Ótima - grunhiu, desejando que partisse outra vez.

- Estava fazendo ruídos.

- Estava roncando - disse categoricamente, agarrando o lençol se por acaso tentasse tira-lo como se pudesse pará-lo se ele realmente quisesse fazer. Tinha aprendido a inutilidade disto com a humilhante luta de ontem à noite.

Ele soprou.

- Sim, bom. - Fez uma pausa. - Como você gosta do café?

- Eu não gosto. Sou uma bebedora de chá.

Durante um momento só houve silêncio; então Dante suspirou.

- Verei o que posso fazer. Como bebe o chá?

- Com amigos.

Ela ouviu o que soou notavelmente como um grunhido, então a porta do dormitório se fechou com mais força do que a necessária. Tinha soado ingrata? Bom! Depois de tudo o que tinha lhe feito, se pensava que a oferta do café ou do chá a compensava, estava tão longe da base que nem sequer estava no estádio de beisebol.

Para falar a verdade, tampouco era muito bebedora de chá. A maior parte de sua vida só pôde se permitir o que era grátis, o que queria dizer que tomava muita água. Nos últimos anos, tinha tomado um café de vez em quando ou um chá quente em tempo muito frio, mas realmente não lhe importava nenhum dos dois.

Não queria levantar-se. Não queria ter aquela conversa que ele parecia empenhado, embora não podia imaginar o que ele pensava que tinham a falar. Ontem à noite a tinha tratado muito mal, e embora evidentemente se deu conta que estava equivocado, não parecia inclinado a compensá-la. Por exemplo, não a tinha levado ontem à noite para sua casa. Tinha prendido ela neste quarto. Nem sequer tinha alimentado prisioneira!

O vazio em seu estômago disse que tinha que sair da cama se queria se alimentar. Sair da cama não garantia que seria alimentada, é obvio, mas ficar nela certamente garantia que não comeria. A contra gosto, jogou o lençol para trás, e a primeira coisa que viu foi Dante Raintree, de pé na porta. O valentão não partiu; só tinha fingido ir.

Ele levantou uma sobrancelha em uma pergunta silenciosa e sardônica.

Zangada, ela estreitou os olhos.

- Isso é desumano.

- O que?

- Levantar só uma sobrancelha. Uma pessoa de verdade não pode fazer isto. Só os demônios.

- Eu posso fazer.

- O que demonstra meu raciocínio.

Ele sorriu amplamente, o que a zangou ainda mais, porque não queria diverti-lo.

- Se você quer levantar, este demônio lavou sua roupa…

- A que não destroçou - interrompeu acidamente, para ocultar seu alarme. Tinha esvaziado primeiro os bolsos? Não perguntou, porque se não o tivesse feito, talvez seu dinheiro e carteira de motorista ainda estivessem ali.

- … e emprestou uma de suas camisas de demônio. Provavelmente terá que jogar as calças fora, porque as manchas não sairão, mas ao menos estão limpas. Servirão no momento. Suas opções para o café da manhã são cereal e fruta, ou um bagel[6] e queijo cremoso. Quando se vestir, venha para a cozinha. Comeremos ali. - Então partiu… realmente partiu, porque o viu ir.

Dante assumia que compartilharia a comida com ele. Infelizmente, tinha razão. Estava morta de fome, e se o único modo de conseguir alimento era sentar-se em algum lugar próximo a ele, então se sentaria ali. Uma das primeiras lições que tinha aprendido sobre a vida era que as emoções não tinham muito peso quando a sobrevivência estava do outro lado da balança.

Sentou-se devagar, sentindo dores e pontadas em cada músculo. Suas calças recém lavadas, manchadas sem remédio, estavam ao pé da cama, assim como sua roupa interior e uma camisa branca feita de um material mole e justo. Agarrou as calças e colocou a mão em cada bolso, seu coração afundou. Não apenas seu dinheiro não estava, sua licença tampouco. Ou ele os tinha, ou tinham caído ao lavá-los, o que queria dizer que tinha que encontrar a lavanderia deste lugar e procurar na máquina de lavar roupa e na secadora. Talvez tinha alguém que se encarregava de lavara a roupa; talvez essa pessoa tinha tomado seu dinheiro e identificação.

Saiu da cama e caminhou coxeando ao banheiro. Depois de atender suas necessidades mais urgentes, olhou nas gavetas da penteadeira, esperando que fosse um bom anfitrião - embora fosse uma pessoa péssima - e tivesse abastecido o banheiro com provisões de emergência. Precisava desesperadamente de uma escova de dentes.

Era um bom anfitrião. Encontrou tudo o que precisava: um fornecimento de escovas de dentes em suas embalagens fechadas de plástico, pasta de dente, enxágüante bucal, a mesma loção perfumada que tinha utilizado a noite anterior, um pequeno equipamento de costura, até escovas novas para o cabelo e barbeadores elétricos de barbear disponíveis.

O fabricante da escova de dentes evidentemente tinha tido a intenção de que ninguém sem uma faca ou tesouras pudesse ser capaz de usar seu produto. Depois de lutar para rasgar a embalagem de plástico, primeiro com os dedos e depois com os dentes, agarrou as tesouras diminutas do equipamento de costura e laboriosamente apunhalou, serrou e cortou até que liberou a escova de dentes presa. Observou as tesouras pensativamente, depois as colocou na penteadeira. Eram muito pequenas para lhes dar muito uso, mas...

Depois de escovar os dentes e lavar o rosto, passou a escova pelo cabelo. Bastante bem. Inclusive se tivesse seu pequeno conjunto de maquiagem, não teria posto nada para benefício do Raintree.

Voltando para o dormitório, fechou a porta com chave no caso dele voltar a entrar ou lgo do tipo, e logo tirou o robe e começou a se vestir. A precaução era inútil, pensou amargamente, porque se ele quisesse entrar, tudo o que tinha a fazer era ordenar que abrisse a porta e ela faria o que ele dissesse, quisesse ou não. Odiava isto, e odiava a ele.

Não queria usar sua camisa. Recolheu-a e a girou para poder ver a etiqueta. Não reconhecia a marca, mas não era isso o que estava procurando, de todos os modos. A etiqueta com as instruções de cuidado dizia: 100 % seda. Só lavar a seco.

Talvez pudesse derrubar um pouco de gelatina na camisa. Acidentalmente, é obvio.

Começou a colocar os braços nas mangas e fez uma pausa, recordando como tinha expresso seu último comentário: Quando estiver vestida, venha para a cozinha. Uma vez que estivesse vestida, provavelmente não teria mais opção do que ir à cozinha, então qualquer coisa que quisesse fazer, tinha que fazê-la antes de colocar aquela camisa.

Deixou cair a camisa na cama e recuperou as diminutas tesouras do banheiro, guardando ela em seu bolso direito. Então sistematicamente procurou tanto no banheiro como no dormitório, procurando algo que pudesse usar como arma ou que a ajudasse de algum jeito a escapar. Se visse uma oportunidade, por menor que fosse, tinha que estar pronta para aproveitá-la.

Um grande obstáculo era que não tinha sapatos. Duvidava que os que estavam usando antes pudessem se salvar, mas ao menos protegeriam seus pés. Raintree não os havia trazido para o dormitório, mas poderiam estar ainda no banehiro que tinha usado ontem à noite. Não queria correr com os pés descalços pelo campo, embora fizesse isso se fosse necessário. Que distância teria que percorrer antes de ser livre? Que distância teria a esfera de influência do Raintree? Tinha que haver uma distância em que seus truques mentais não funcionassem, não? Tinha que escutá-lo dar a ordem, ou simplesmente tinha que pensá-la para ela?

Com inquietação, esperava que de alguma forma, simplesmente a tivesse hipnotizado, porque do contrário, estava tão profundamente metida no cilindro da Além da Imaginação[7]que talvez nunca tirasse a porcaria estranha do seu pé.

Além das tesouras, nem o banheiro nem o dormitório forneceram algo útil. Não havia nenhuma pistola nas gavetas embutidas, nenhum martelo perdido que pudesse usar para golpeá-lo na cabeça, nem sequer mais roupa no enorme armário que pudesse usar para asfixiá-lo. Com pesar, sem nenhuma outra opção, finalmente colocou a camisa de seda. Enquanto enrolava as mangas compridas, perguntou-se quando a golpearia o assunto do controle mental. O material escorregadio não se enrolava muito bem, por isso refez as mangas várias vezes antes de desistir e deixar que as dobras caíssem sobre seus pulsos. Inclusive então, não sentiu um impulso irresistível de ir à cozinha.

Estava sozinha. Não tinha colocado seu estranho controle mental sobre ela.

Tremendamente zangada de que, por sua própria vontade, de todos os modos estava fazendo o que ele tinha ordenado, abriu a porta do dormitório e saiu ao vestíbulo.

Duas escadas se abriam ante ela, a da direita ia ao andar seguinte e conduzia ao que parecia ser um balcão. A da esquerda descia, alargando-se em um elegante leque para ao fundo. Franziu o cenho, já que não recordava nenhuma escada na noite passada. Tinha estado tão mal? Definitivamente recordava ter chegado à casa, recordava ter notado que tinha três andares separados, por isso é obvio havia escadas… só que não as recordava. Ter este tipo de buraco em sua memória era espantoso, porque, que mais não recordava?

Tomou a escada que descia, fazendo uma pausa ao chegar ao final. Estava em um lugar espetacular... uma sala de estar? Se fosse, não se parecia com nenhuma sala de estar que tivesse visto antes. O teto arqueado se elevava três andares acima de sua cabeça. Em um dos extremos havia uma enorme chaminé, enquanto que a outra parede era de cristal. Claramente se via que era aficionado ao cristal, porque tinha muito. A vista era literalmente impressionante. Mas tampouco recordava isto. Nada disto.

Um corredor se comunicava com uma lateral, e com cautela o seguiu. Ao menos algo disto lhe parecia familiar. Abriu uma porta para descobrir o banheiro em que tomou banho ontem à noite… e aonde Dante tinha arrancado sua roupa. Apertando a mandíbula, entrou e olhou ao redor procurando seus sapatos. Não estavam ali. Resignando-se a estar descalça, caminhou pela sala, passando pelo lavabo que tinha usado e entrou na cozinha.

Dante estava sentado no balcão, com as pernas compridas enganchadas em um tamborete, uma xícara de café em uma mão e o jornal da manhã na outra. Elevou a vista quando ela entrou.

- Encontrei um pouco de chá, e a água está fervendo.

- Beberei água.

- Porque o chá é o que compartilha com os amigos, verdade? - Deixou o jornal e se levantou, abrindo uma porta do armário e baixando um copo de cristal para a água, que encheu na torneira. - Espero que não espere água de marca, porque penso que é uma enorme perda de dinheiro.

Ela encolheu de ombros.

- Água é água.

- Deu-lhe o copo de cristal, e em seguida levantou ambas as sobrancelhas.

- Cereais ou bagel?

- Bagel.

- Boa escolha.

Só então notou um pequeno prato com o bagel de Dante, à vista quando tinha deixado o jornal. Talvez era mesquinho por sua parte, mas desejava que não comessem o mesmo. Entretanto, não desejava o suficiente comer os cereais.

Ele pôs um bagel aberto na torradeira e tirou da geladeira o requeijão. Enquanto torrava, ela olhou ao redor.

- Que horas são? Não vi nenhum relógio.

- São dez e cinqüenta e sete - disse sem se voltar. - E não tenho nenhum relógio… exceto o do forno atrás de você. E talvez o do microondas. Sim, suponho que um microondas deve ter um relógio hoje em dia.

Ela olhou para trás. O relógio do forno era digital, e mostrava as dez e cinqüenta e sete em números azuis. A única coisa era que esteve bloqueando o forno de sua vista… e ele não se girou, de todos os modos. Devia ter olhado quando tirou o requeijão.

- Meu celular também tem a hora - continuou. - E meus computadores e carros têm relógios. Assim suponho que realmente possuo relógios, mas não tenho simplesmente um relógio. Todos estão ligados a algo mais.

- Se acha que este pequeno bate-papo me relaxará e esquecerei que o odeio, não está funcionando.

- Não pensei que faria. - Deu-lhe uma olhada, e o verde em seus olhos era tão intenso que Lorna quase retrocedeu um passo. - Tinha que saber se era Ansara, e para conseguir a resposta a tratei de forma grosseira. Peço perdão.

A frustração ferveu nela. Metade do que havia dito não tinha nenhum sentido, e estava cansada disso.

- Quem demônios é essa gente da Tia Sarah, e onde demônios estão meus sapatos?

 

- A resposta da segunda parte de sua pergunta é simple. Joguei-os fora.

- Genial - resmungou, olhando os pés nus, com os dedos encolhidos sobre os frios ladrilhos de pedra.

- Encomedei um par de sapatos para você no Macy’s. Um de meus empregados está a caminho com eles.

Lorna franziu o cenho. Não gostava de aceitar nada de ninguém, e muito menos gostava de aceitar nada dele, mas parecia que teria que fazer isso muitas vezes, sem importar como se sentisse. Por outro lado, ele tinha jogado fora seus sapatos e destruído sua camisa, assim substitui-los era o mínimo que poderia fazer.

- E essa gente, os Tia Sarah? - Sabia que ele havia dito “Ansara”, embora isso não tivesse muito mais sentido para ela, mas esperava que pronunciar errado a palavra o incomodasse.

- Isso requer uma explicação mais longa. Mas depois da noite passada, tem direito de ouvi-la.

Um pequeno ding soou, e a torradeira cuspiu um bagel. Utilizando uma faca para o requeijão, Dante tirou as 2 metades do pão da torradeira e as pôs em um prato pequeno; então lhe passou a faca, o prato e o requeijão.

Lorna agarrou o tamborete que estava mais longe dele, e começou a passar o requeijão em uma das metades.

- Vamos ouví-la - disse secamente.

- Há algumas outras coisas que eu gostaria de esclarecer. Primeiro. - Tirou um maço de notas do bolso dianteiro de seu jeans, e as deslizou até ela.

Lorna as olhou. Sua licença de motorista estava guardada entre as notas.

- Meu dinheiro! - disse, agarrando-os cobiçosamente e enfiando ele nos bolsos.

- Quer dizer meu dinheiro, não? - perguntou severamente, mas não tinha insistido em ficar com ele. - E não volte a me dizer que não trapaceou, porque sei que fez. Nem sequer estou seguro de que saiba que está fazendo trapaças, ou de como as faz.

Lorna centrou a atenção no bagel, com uma expressão fechada. Ia começar de novo com suas teorias esotéricas, mas ela não tinha por que segui-lo no cilindro.

- Não fiz trapaças - disse obstinadamente, porque ele havia dito que não dissesse.

- Não sabe... Espera, meu celular está vibrando. - Tirou um pequeno telefone do bolso, levantou a tampa para abri-lo. - Raintree… Sim, perguntarei. - Olhou para Lorna e perguntou - Quanto disse que custavam seus sapatos novos?

- Cento e vinte e oito e noventa - replicou automaticamente, e deu uma dentada no pãozinho.

Fechou o telefone e voltou a meter-lo no bolso.

Depois de uns segundos, o silêncio da sala fez que Lorna levantasse a vista. Os olhos dele eram de um verde tão brilhante que pareciam incandescentes.

- Não tinha uma ligação no celular - disse ele.

- Por que perguntou, então? - calou-se de repente, se dando conta do que havia dito quando perguntou por seus sapatos, e o ligeiro rubor que tinha recuperado se desvaneceu de seu rosto. Abriu a boca para lhe dizer que certamente tinha mencionado o preço dos sapatos, mas a fechou de novo, porque sabia que ele não tinha feito. Tinha um sentimento de ansiedade na boca do estômago, quase o mesmo que tinha cada manhã quando se levantava.

- Não sou um bicho estranho - disse ela com voz débil.

- A palavra é “dom”. Tem um dom. Acabo de demonstrar isso a você. Não precisei de necessitei nenhuma prova, porque já sabia. Eu inclusive tenho um dom maior que o seu.

- É um louco, isso é o que é.

- Sou ligeiramente telepático, o suficiente para ler bem as pessoas, especialmente se as toco, por isso sempre cumprimento com um aperto de mãos quando tenho reuniões de negócios - disse ele, falando por cima dela, como se não o tivesse interrompido. - Como bem sabe, só utilizando minha mente, posso forçar as pessoas a fazer coisas contra seus desejos. Isto é novo para mim, mas que demônios! Estamos perto do solstício do verão. Isso, além do fogo, provavelmente tenha desencadeado tudo. Posso fazer um monte de coisas diferentes, mas sobre tudo, sou o Mestre do Fogo Número Um da Classe A.

- E isso o que significa? - perguntou sarcasticamente, para esconder o fato que estava abalada até o fundo. - Que está multiempregado em um circo como bombeiro?

Ele estirou uma mão, com a palma para cima, e uma delicada chama azul ganhou vida no meio da palma. Apagou-a com um sopro indiferente.

- Não pode fazer isso durante muito momento - disse ele - ou se queimaria.

- É só um truque. Os efeitos especiais o fazem o tempo todo nos filmes…

Seu bagel se acendeu.

Lorna o olhou fixamente, paralisada, enquanto a grosso pedasso de pão ardia e lançava fumaça. Dante agarrou o prato e rapidamente lançou o pão ardente à pia, jogando água em cima dele.

- Não queremos que dispare o alarme contra incêndios - explicou Dante, e deslizou o prato que tinha a outra metade do pãozinho diante dela.

Detrás dele, uma vela se acendeu.

- Sempre tenho várias velas ao redor - disse. - São meu equivalente a um canário em uma mina de carvão[8].

Um pensamento crescia e crescia até que não pôde mais contê-lo.

- Você incendiou o cassino! - disse ela horrorizada.

Ele negou com a cabeça enquanto se recostava no tamborete e tomava seu café.

- Meu controle é melhor que isso, inclusive estando tão perto do solstício. Não era meu fogo.

- Isso é o que você diz. Se for um Classe A, Super Mestre do Fogo, por que não o apagou?

- É o mesmo que me estive perguntando.

- E a resposta é…?

- Não sei.

- Uau! Que esclarecedor!

Um brilhante e zombeteiro sorriso cintilou em seu rosto.

- Alguém já disse a você alguma vez que é como um pé no saco?

Ela com muita dificuldade conseguiu evitar encolher-se, em uma resposta automática. Sim, já lhe haviam feito esse comentário antes, várias vezes, e sempre acompanhado, ou inclusive precedido, por uma bofetada.

   Não levantou o olhar para checar se ele tinha notado algo estranho em sua resposta, mas em vez disso continuou concentrada em passar o requeijão na metade restante do bagel.

- Como nunca pratiquei o controle mental até ontem à noite, é possível que tenha ficado sem energia - continuou ele depois de um momento. Ela ainda se negava a olhá-lo, mas podia sentir a intensidade de seu olhar em seu rosto. - Não me sentia cansado. Tudo estava normal, mas até que não explore os parâmetros, não saberei quais são os efeitos do controle mental. Provavelmente não estava totalmente concentrado. Talvez minha atenção estava dividida. Diabos, sei que estava dividida. Ontem à noite havia um monte de fatores anômalos.

- Honestamente acredita que teria podido apagar aquele fogo?

- Sei que teria podido… normalmente. Embora certamente o chefe de bombeiros teria pensado que o sistema de aspersores tinha feito um bom trabalho. Em troca…

- Em troca, arrastou-me em meio de um alarme de incêndio de nível quatro e quase nos mata aos dois!

- Está queimada? - perguntou ele, sorvendo seu café.

- Não - respondeu a contra gosto.

- Inalou fumaça?

- Não, maldito seja!

- Não acredita que ao menos deveria ter alguns cabelos chamuscados?

Ele só estava dizendo o que ela já se perguntou. Não entendia que tinha passado durante o fogo, e não entendia nada do que tinha passado após. Desesperada, desejou passar sobre a superfície de tudo, fingir que nada estranho estava acontecendo, e abandonar esta casa com suas pretensões ainda intactas, mas ele não ia deixar que isso acontecesse. Podia sentir sua determinação, como um campo de força que emergia dele.

Não!, disse a si mesma com desespero. Nenhum campo de força, nenhuma emanação. Nada disso.

- Criei um escudo de proteção ao nosso redor. Então, ao final, quando estava usando todo seu poder combinado com o meu para conter o fogo, o escudo se solidificou um pouco. Você o viu. Eu o vi. Brilhava como…

- Bolhas de sabão - murmurou ela.

- Ah - disse brandamente, depois de pensar um momento. - Então isso é o que provocou suas lembranças.

- Tem idéia do que dói o que fez?

- Tirar seu poder? Não, não tenho nem idéia, mas posso imaginar.

- Não - disse categoricamente - não pode.

A dor que sentia estava além de qualquer descrição possível. Se dissesse que se sentia como se uma bigorna tivesse caído sobre a cabeça, era pouco.

- De novo, sinto muito. Não tive outra opção. Era isso, ou morrer os dois, além de toda as pessoas do hotel que não tinham saído ainda.

- Tem uma forma de pedir desculpas que diz que voltaria a fazer o mesmo se fosse o caso, assim é bastante difícil acreditar-se nesse “sinto muito”.

- Isso é porque não só é uma precognitiva embora não esteja treinada, mas também além disso é muito perceptiva à energia paranormal de seu redor.

O que queria dizer que voltaria a fazer, nas mesmas circunstâncias. Ao menos não era um hipócrita.

- Ontem, em meu escritório - continuou - estava reagindo a umas energias que não poderia ter percebido se não tivesse o dom.

- Pensei que era perverso - disse ela, e mordeu grosseiramente o bagel. - Nada do que tem feito após me tem feito mudar de opinião.

- Porque me excitou? - perguntou brandamente. - Só dei uma olhada em você, e todas as velas da sala se acenderam. Normalmente não estou tão fora de controle, mas tive que me concentrar para mantê-lo. Então continuei olhando para você, pensando em fazer sexo contigo, e maldita seja se não se conectou com minha fantasia.

Oh, Deus, notou isso? Sentiu como sua cara ardia, e transformou sua confusão em ira.

- Está insinuando isso? - perguntou incrédula. - Realmente tem o descaramento de pensar que deixaria que me tocasse com um pau de 3 metros depois do que me fez ontem à noite?

- Bom, não é tão comprido - disse, sorrindo ligeiramente.

Vá, procurou aquele comentário ela sozinha. Atirou com violência o bagel no prato e se levantou do tamborete.

- Não quero estar na mesma sala que você. Quando partir daqui, não quero voltar a ver sua cara nunca mais. Pode pegar sua asquerosa fantasia e que se dane, Raintree!

- Dante - corrigiu, como se não houvesse dito que morresse. - E isto nos leva aos Ansara. Estava procurando uma marca de nascimento. Todos os Ansara têm uma lua crescente azul em algum lugar das costas.

Estava tão zangada que uma névoa vermelha nublou sua vista.

- E enquanto procurava essa marca de nascimento em minhas costas, decidiu revistar meu traseiro também, não?

- É um traseiro muito bonito, bem valeu a pena revistá-lo. Mas, não, em todo momento tive a intenção de comprovar. Dizer “costas” é um pouco impreciso. Tecnicamente, as “costas”[9] ocupam da cabeça até os calcanhares. Cheguei a encontrar até debaixo da cintura, e nas histórias há informações, em alguns casos excepcionais, de que se pode encontrar essa marca nas nádegas. Dada a seriedade do fogo, e do fato de que não podia apagá-lo, tinha que me assegurar de que não tivesse estado me impedindo.

- Impedindo, como? - chiou, nada calma com sua explicação.

- Se você também fosse uma Mestra do Fogo, poderia ter alimentado o fogo enquanto eu tentava apagá-lo. Nunca tinha visto um fogo que não pudesse controlar, até ontem à noite.

- Mas disse que nunca antes tinha usado seu controle mental, assim não sabia como podia afetar você! Por que decidiu automaticamente que eu tinha que ser um desses Ansara?

- Não fiz. Sou consciente de todas as variáveis. Mas devia eliminar todas as possibilidades de que fosse uma Ansara.

- Se for bom lendo as pessoas quando as toca, já deveria ter sabido que eu não era - lhe acusou.

- Muito bem - reconheceu, como se ele fosse o professor e ela sua aluna avançada. - Mas os Ansara são treinados desde seu nascimento para controlar seus dons e proteger-se, igual os Raintree. Um Ansara poderoso talvez poderia ter construído um escudo que eu não teria sido capaz de detectar. Como disse, minhas habilidades telepáticas são escassas.

Sentia que ia explodir de frustração.

- ?Se tivesse feito um desses escudos, pedaço de idiota, não teria sido capaz de violar minha mente!

Ele tamborilou ligeiramente com os dedos em cima da mesa, estudando-a com os olhos entreabertos.

- Realmente, eu não gosto nada desse termo.

- Pois se chateie. Realmente, eu não gostei nada que violasse meu cérebro. - Lançou-lhe as palavras como facas, e desejou que o tivessem cravado profundamente na carne.

Considerou-as um momento, então assentiu.

- Acredito que seria justo. Voltemos para o tema do escudo. Você tem, mas não do tipo que eu estou falando. O seu se desenvolveu naturalmente, com a vida. Você protege suas emoções. Eu falo de um escudo mental construído deliberadamente para esconder parte da energia de seu cérebro.  Em quanto a me manter afastado, carinho, só há outra pessoa, ao menos que eu tenha conhecimento, que poderia me bloquear sua mente, e você não é essa pessoa.

- Oooh, então é terrivelmente poderoso, não?

Assentiu lentamente.

- Diria que sim.

- Então, o que é, como o Rei do Mundo ou algo assim?

- Sou o rei dos Raintree - disse, se levantando e deixando seu prato na lava-louça. - É suficientemente bom para mim.

Era estranho, mas de todas as coisas realmente estranhas que havia lhe dito, esta era a mais incrível. Escondeu a cabeça entre as mãos, desejando que esse dia acabasse de uma vez. Queria esquecer que o tinha conhecido. Obviamente, ele era um louco. Não, não podia se consolar com essa ilusão. Tinha atravessado o fogo com ele, literalmente. Ele podia fazer coisas que ela nunca teria pensado que fossem possíveis. Então possivelmente - só talvez - realmente era algum tipo de líder, embora se considerar “rei” era levar as coisas um pouco longe.

- Está bem, acredito - disse cansadamente. - Quais são os Raintree e os quais os Ansara? Algo assim como dois países diferentes mas habitados só por tipos um pouco estranhos?

Seus lábios se moveram como se quisesse rir.

- Temos um dom. Um dom. Somos dois clãs diferentes, clãs em guerra, se quer concretizar. Nossa inimizade se remonta a milhares de anos.

- Algo equivalente aos Hatfields e os McCoys[10]?

- Ele riu então, com um brilho de dentes brancos.

- Nunca tinha pensado desse modo, mas… sim. Um pouco parecido. Exceto o que há entre os Raintree e os Ansara não é uma simples inimizade, é uma guerra. Aí está a diferença.

- Sim, a diferença entre inimizade e guerra. Mas qual é a diferença entre o clã dos Raintree e o dos Ansara?

- O modo de ver a vida, suponho. Eles usam seus dons para extorquir, para fazer mal, para seu benefício pessoal. Os Raintree consideram suas habilidades como verdadeiros dons, e tentam utilizá-los corretamente.

- São os meninos do chapéu branco.

- Se considerarmos em termos humanos, sim. O senso comum me diz que alguns Raintree não estão muito longe dos Ansara no que se refere a atitude. Mas se querem seguir pertencendo ao clã dos Raintree, terão que fazer o que eu ordene.

- Assim nem todos os Ansara têm que ser totalmente malvados, mas se desejam seguir com seu clã, seus amigos e suas famílias, têm que se comportar como ordena o Rei Ansara.

Assentiu com a cabeça.

- Isso.

- Admite que podem ser mais similares que diferentes.

- Em alguns aspectos. Em características gerais, estamos em pólos opostos.

- Em quais?

- Desde o início, se um Raintree e um Ansara se uniam e tinham descendência, o Ansara matava à criatura. Sem exceções.

Lorna esfregou a testa, que começava a doer de novo. Sim, isso era mau. Matar crianças inocentes porque sua herança não era a oportuna era mau, com M maiúsculo. Parte de sua filosofia de vida era que havia algumas pessoas que não mereciam viver, e as pessoas que machucavam crianças pertencia a esse grupo.

- Então, suponho que não terá havido muitos matrimônios cruzados entre os clãs, verdade?

- Nenhum em séculos. Que Raintree iria querer tentar? Terminou com seu bagel?

Destraida pela pergunta prosaica, Lorna olhou seu bagel. Comeu quase a metade. Embora antes estivesse esfomeada, a conversa durante o café da manhã tinha eliminado eficazmente seu apetite.

- Suponho que sim - disse sem interesse, lhe passando o prato.

Ele devorou o restante do pão e pôs o prato também na lava-louça.

- Necessita de treinamento - disse. - Seus dons são muito fortes para que fique por aí desprotegida. Um Ansara poderia usar você.

- Como você fez? ?Nem sequer tentou dissimular o tom amargo de sua voz.

- Como eu fiz - assentiu. - Só que ele alimentaria o fogo, em lugar de lutar contra ele.

Conforme ia considerando as implicações do que ele dizia, ia se dando conta de que, gradualmente, estava se familiarizando com esses “dons”, e que em algum ponto ao longo da conversa, tinha passado de rejeitá-los a aceitá-los. Agora se dava conta do que ele pretendia, e um velho pânico profundamente enraizado nela floresceu de novo.

- Oh, não - disse, sacudindo a cabeça enquanto retrocedia uns passos. - Não penso deixar que me “treine” em nada. Acaso tenho a palavra “imbecil” tatuada na testa, ou algo assim?

- Irá procurar problemas se não receber algum treinamento, e rápido.

- Então tentarei dirigi-los como posso, como sempre tenho feito. Além disso, você já tem seus próprios problemas que resolver, não?

- As próximas semanas vão ser duras, mas nem tanto para mim como para as pessoas que já perderam alguém. Outro corpo foi retirado logo depois do amanhecer. Com isso já temos duas vítimas. - Sua expressão era severa.

- Não estou falando disso. Falo dos tiras. Algo estranho está acontecendo, porque se não, por que dois detetives foram interrogar as pessoas antes que o chefe de bombeiros esclarecesse se o fogo era provocado ou acidental?

A expressão nos olhos dele se tornou fria enquanto Dante a olhava. Esse pequeno detalhe tinha escapado da sua grande sabedoria, de seus dons de vidência, ela se deu conta. Mas se havia uma coisa que uma vida dura tinha lhe ensinado, era como funcionava a lei. Os detetives não deveriam estar ali até que estivesse claro que havia algo a investigar, e o chefe de bombeiros não faria suas declarações até o dia de hoje, provavelmente.

- Maldita seja - murmurou ele, e tirou seu telefone. - Não vá a lugar nenhum. Tenho que fazer algumas chamadas.

Havia dito de maneira literal, Lorna descobriu quando tentava sair da cozinha. Seus pés deixaram de caminhar quando chegou à soleira da porta.

- Maldito seja, Raintree! - grunhiu, girando-se para ele.

- Dante - corrigiu ele.

- Maldito seja, Dante!

- Muito melhor - disse ele, e piscou um olho.

 

Dante começou a fazer ligações, começando por Al Rayburn. Lorna estava certo: estava acontecendo algo estranho, e estava aborrecido porque ela havia indicado. Teria que ter prestado atenção a esse detalhe. Em lugar de responder às perguntas dos detetives, teria que ter perguntado ele, algo como: O que estavam fazendo ali? A cena de um incêndio não era a cena de um crime a menos que, e até que, a causa fosse determinada como um incêndio provocado ou pelo menos existisse a suspeita. Oficiais uniformizados deveriam ter estado ali para controlar à multidão, o tráfego, a segurança - por muitas razões - mas não detetives.

Não surgiram respostas a suas perguntas, mas tampouco as esperava. O que estava fazendo agora era inverter o fluxo da informação, e isso levaria seu tempo. Agora que as perguntas eram formuladas - por Al, por um amigo que Dante tinha na prefeitura, por um dos membro do clã Raintree a quem gostava da vida um pouco do lado tormentoso e dessa forma tinha alguns contatos interessantes - um monte de coisas podiam ser vistas com uma luz diferente.

O que for que estivesse acontecendo, de qualquer esses forma dois detetives estavam envolvidos, Dante pretendia averiguar, inclusive se precisasse traria Mercy, cujo dom de telepatia era tão forte que uma vez quando ela tinha dez anos e ele dezesseis, irrompeu em sua cabeça em um momento muito inoportuno - ele estava com sua namorada do momento - e disse: “Eh! Asqueroso!” o que o sobressaltou tanto que perdeu a concentração, a ereção e a namorada. As garotas de dezesseis anos, aprendeu, não levavam bem com algo que vissem como um insulto para seu atrativo em geral. Esse foi o dia em que começou a bloquear Mercy em sua cabeça, o que a enfureceu nesse momento. Inclusive contou a seus pais o que ele tinha feito, o que deu como resultado um compridissimo, seriíssimo bate-papo com seu pai sobre a importância de ser preparado, usar anticoncepcionais e tomar a responsabilidade das ações.

Enfrentando a severa convicção de seu pai de que Dante se casaria com qualquer garota que deixasse grávida e que permaneceria casado com ela o resto de sua vida, deixou extremamente cuidadoso. Os Raintree Dranir definitivamente não tinham uma atitude despreocupada sobre os seus. Um Raintree, qualquer Raintree, era geneticamente dominante; qualquer criança herdaria os dons dos Raintree. Igualmente certo era para os Ansara, que era perque os Ansara tinham matado imediatamente a qualquer criança nascida da união de um Raintree e um Ansara. Quando duas facetas dominantes se mesclavam, podia resultar algo… e o resultado podia ser perigoso.

O dom de Mercy só se fortaleceu mais enquanto crescia. Entretanto, Dante não acreditava que sua presença fosse necessária; os Raintree tinham outros telépatas que poderia chamar. Não seriam tão fortes como Mercy, mas bem, tampouco precisavam ser. Mercy estava mais cômoda no Santuário, o lar do clã Raintree, onde não tinha que bloquear seu dom do implacável assalto emocional e mental por parte dos humanos, que não tinham idéia de como se defender. Ocasionalmente ela e Eve, sua filha de seis anos, visitavam a ele ou Gideon - Mercy era uma verdadeira fêmea no que diz respeito a seu amor pelas compras, e ele e Gideon estavam sempre encantados de cuidar de Eve o Diabinho enquanto sua mãe se regalava com uma pequena terapia - mas Mercy era a guardiã do lugar. O Santuário era sua responsabilidade, seu para governá-lo, e o amava. Não lhe pediria ajuda se tinha outras opções.

Todo o tempo em que ele esteve fazendo ligações, Lorna se manteve em pé onde a tinha obrigado a ficar, soltando fumaça, protestando e se zangando mais cada minuto, até ele esperava que todo esse cabelo vermelho escuro se arrepiasse pela pressão. Poderia tê-la soltado, ao menos dentro dos limites da casa, mas certamente utilizaria essa liberdade para atacá-lo com algo. Como fosse, tinha que admitir que se divertia mais com sua fúria e menos com as adulações.

O fato era, que se divertia com ela.

Nunca tinha estado tão enfeitiçado… ou tão emocionado. Quando tinha ouvido esse lastimoso e pequenoa choramingo que fez em sonhos, sentiu o coração realmente em um punho. O que realmente, realmente tinha chegado a ele era que obviamente ela sabia que som tinha feito… provavelmente o fazia sempre… mas decididamente o negou. Roncando que nada.

Negava-se a ser uma vítima. Gostou disso. Inclusive quando algo ruim acontecia com ela - como ele, por exemplo - furiosamente rechaçava qualquer sinal de vulnerabilidade, qualquer indício de simpatia, qualquer sugestão de que era, de qualquer forma, mais fraca que King Kong. Não tomou a moléstia de se defender; em lugar disso atacou, com valentia feroz e uma língua afiada, assim como o soco casual.

Tinha sido brusco com ela… em mais de um sentido. Não só a tinha aterrorizado, tratado brutalmente com a mente, a tinha humilhado e envergonhado arrancando suas roupas e examinando-a da forma em que tinha feito. Se tivesse apenas cooperado… Mas não o fez, e ele não podia culpá-la. Nada do que tinha feito ontem à noite tinha-lhe inspirado sua confiança, em todo caso essa confiança não surgiria facilmente. Inclusive não podia dizer a si mesmo que nunca teve a intenção de lhe machucar. Se a marca de nascimento, a meia-lua azul, dos Ansara estivesse em suas costas… pois bem, seu corpo nunca teria sido encontrado.

A brutalidade de seu alívio ao não encontrar a marca de nascimento tomou por surpresa. Queria tomá-la entre seus braços e reconfortá-la, embora, a menos que não a prendesse com um controle mental a machucaria, provavelmente teria arrancado seus globos oculares com as unhas, e no que diz respeito a suas outras bolas... não quis pensar no que teria feito com elas. Nesses momentos não tinha querido nada mais dele que sua ausência.

A forma em que tinha crescido era uma desonra. Deveria ter sido treinada para controlar e desenvolver seus dons, aprender o modo de se proteger. Ela tinha a naior reserva de energia pura que já tinha visto em um extraviado, o que queria dizer que tinha uma enorme possibilidade de ter abusado ou ter sido abusada.

Agora que pensava nisso, seu dom provavelmente não era de videncia tanto quanto era de clarividência. Não tinha visões, como seu primo Echo; melhor, simplesmente “sabia” coisas... tais como qual seria a seguinte carta, se uma certa caça-niqueis daria o prêmio, quanto custaria os sapatos novos. Ele não podia dizer por que escolhia jogar em cassinos em lugar de comprar um bilhete de loteria, a menos que tivesse escolhido instintivamente permanecer tão invisível quanto possível. Certamente tinha a habilidade de ganhar a quantidade de dinheiro que quisesse, desde que seu dom se revelou para os números.

Sobretudo, se destacavam duas verdades bem definidas:

O tirava do sério.

E a desejava.

Deveriam ter se negado mutuamente, mas não podiam. Inclusive quando o zangava, o que era freqüente, ela fazia com que quisesse rir. E não só a queria fisicamente, queria que aceitasse sua própria singularidade, que aceitasse a ele com todas suas diferenças, que aceitasse sua proteção, seu guia na aprendizagem de como moldar e controlar seu dom... tudo o que ela rejeitava, o que andava dando voltas lhe irritando.

Soou a campainha, indicando a chegada dos sapatos de Lorna. Deixou-a soltando fumaça e foi para a porta, onde alguém de seu pessoal do hotel esperava, com a caixa em mãos.

- Sinto muito chegar tarde, senhor Raintree, - disse o jovem, secando o suor da testa. - Havia um acidente na interestadual que parou o trânsito...

- Nenhum problema - disse, aliviando a ansiedade do jovem. - Obrigado por nos tirar desta. - Posto que continuava pagando os salários do pessoal, pensava que podia utiliza-los da maneira em que os precisasse.

Levou a caixa de sapatos para a cozinha, onde Lorna ainda estava plantada no lugar.

- Aqui está, experimente - disse, entregando a caixa para ela.

Olhou-o furiosa e evitou segurá-los.

Achou que não podia culpá-la.

Tirou os sapatos da caixa, as bolas de papel deles e se agachou sobre um joelho. Esperou que ela recusasse terminantemente que levantasse seu pé, mas o deixou fazer isso, limpando com a mão a planta do pé de qualquer areia fina, e deslizando o suave e negro sapato baixo no pé. Repetiu o processo com o outro pé, em seguida permaneceu sobre um joelho e elevou o olhar para ela.

- Serviram? Estão apertado em algum lugar?

Os sapatos eram muito parecidos com os seus danificados, sabia: simples pretos e baixos. Mas ali acabava toda a semelhança. Este par era fabricado com pele de qualidade, com um bom apoio para a sola do pé e bem feitas. Seu outro par tinha solas finas como o papel, e as costuras começavam a desfiar. Ela estava levando cerca de sete mil dólares, e usava sapatos de quinze dólares. No que fosse que gastava o dinheiro, não era em roupa.

- Serviram - disse a contra gosto. - Mas não valem cento e vinte e oito dólares.

Ele riu baixinho enquanto se levantava e a olhou no rosto por um instante, totalmente enfeitiçado outra vez por sua obstinação. Era uma dessas mulheres cuja personalidade a fazia mais bonita do que realmente era, se a pessoa considerava unicamente seus traços. Não era que não fosse bonita; era. Nem vistosa, nem bela, simplesmente agradável à vista. Era essa atitude, essa boca sarcástica e descarada, os olhos de vá-ao-inferno-e-volte, que lhe davam a faísca de vitalidade. A única forma em que Lorna Clay nunca seria descrita era relaxada.

Deveria solta-la do controle que a mantinha ali, mas se fizesse, ela iria embora… não só desta casa, como também de Reno. Sabia isto com uma certeza que o deixava pasmado.

Dante se virava muito bem no mundo normal, humano, mas era o Dranir Raintree, e em seu reino, era obedecido. Tinha sido Dranir durante dezessete anos, desde que tinha vinte, mas mesmo antes disso, não tinha levado uma vida normal. Era da Família Real Raintree. Tinha sido Príncipe, o Herdeiro e depois o Dranir.

“Não” não era uma palavra que ouvisse muito freqüentemente, e não lhe importava ouvi-la de Lorna.

- Pode ir onde quiser dentro desta casa - disse, e acrescentou silenciosamente uma condição que no caso de perigo, o controle acabaria. Se a casa começasse a arder, ele queria que ela pudesse escapar. Depois de ontem à noite, coisas assim passaram pela sua mente.

- Por que não posso sair? - Seus olhos verde avelã se abriram com ira, mas ao menos não lhe deu um murro, beliscou ou chutou.

- Porque escapará.

Não podia negar, em lugar disso estreitou os olhos.

- Ah é? Não me buscam por assassinato.

- Mas me sinto responsável por você. Precisa aprender muito sobre seus dons, e eu posso ensinar. - Essa era uma razão tão boa como qualquer outra, e soava lógica.

- Eu não… - Começou a negar que tivesse algum dom, mas se deteve e inspirou profundamente. Não era lógico negar o óbvio. Quando ele abordou o tema pela primeira vez, em seu escritório, a negativa tinha sido imediata e absoluta. Ao menos agora começava a aceitar o que era.

Como tinha chegado a negar tão inflexivelmente tudo o que ela era? Suspeitava que sabia, mas a menos que estivesse disposta a falar disso, não bisbilhotaria.

Depois de um momento disse obstinadamente:

- Sou responsável por mim mesma. Não quero nem necessito sua caridade.

- Caridade, não. Conhecimento, sim. Acho que me equivoquei quando disse que era vidente. - Observou o brilho de alívio em seu rosto, em seguida morreu imediatamente quando continuou. - Acho que poderia ser clarividente. Já ouviu algumo a respeito disso?

- Não.

- O que sabe sobre el-sike?

- Isso é um nome árabe.

Ele sorriu. El-sike se pronunciava el-see-kay... e ela estava certa, soava árabe.

- É uma forma de controle da tempestade. Meu irmão Gideon tem esse dom. Ele pode atrair os relâmpagos.

Deu-lhe um olhar compassivo.

- Soa como uma forma de dano cerebral. Que louco quer estar perto de um relâmpago?

- Gideon. Ele se alimenta de eletricidade. Também tem telecinese elétrica, a qual em resumidas contas significa que se dá muito mal com a eletrônica. Faz explodir o sistema de iluminação pública. Frita os computadores. Não é seguro para ele voar a menos que lhe envie um encantamento de proteção.

Isso captou seu interesse, embora a contra gosto. Viu o volúvel brilho em seus olhos.

- Por que não faz seus próprios encantamentos de proteção?

- Isso é de certo modo o mesmo porque videntes não são capazes de ver seu próprio futuro. Unicamente na família real se podem dar de presente feitiços, mas nunca a si mesmos. É um tira, um detetive de homicídios, por isso que o mantenho abastecido de feitiços de proteção, e se tiver que voar, o envio um feitiço que bloqueia sua energia elétrica, assim não frita os computadores do avião.

- Telecinese elétrica - disse devagar, provando as palavras. - Soa enloquecedor.

- Ouvi dizer - disse secamente. Também tinha ouvido que Gideon às vezes resplandecia depois do sexo… ou possivelmente era antes. Ou durante. Há algumas coisas sobre as quais um irmão não faz muitas perguntas. Mas se Lorna estava por fim interessada em aprender sobre todos os tipos das habilidades paranormais, não se importava de utilizar alguns do mais exóticos dons para mantê-la intrigada.

- O que me diz? - disse ele, como se tivesse ocorrido agora a idéia, quando de fato esteve considerando algo pelo estilo toda a manhã - por que não aceita um curto período de prova, digamos, uma semana, e me deixa te ensinar as coisas básicas para se proteger? É tão sensível a todas as ondas de energia que estou surpreso que seja capaz de estar com as pessoas.

- Posso confeccionar alguns testes simples, conseguir uma idéia aproximada de quão dotada estas nas diferentes áreas.

Viu a rejeição instantânea a essa ideia em sua expressão, um rápido brilho, logo a curiosidade se elevou para rebatê-lo. Seguindo quase imediatamente, a cautela; não ficaria facilmente nas mãos de outro.

- O que teria que fazer? - perguntou com receio.

- Não tem que fazer nada. Se se opuser completamente à idéia de aprender mais, então não posso atar você a uma cadeira e fazer que aprenda as lições. Exceto que de todas as formas, vai estar aqui uns dias, também pode usar o tempo para aprender algo sobre si mesma.

- Precisarei de minhas roupas - disse, o que era provavelmente o mais próximo a uma capitulação que ouviria dela.

- Me dê seu endereço e as trarei aqui.

- Isto é só uns dias. Depois disso, quero sua palavra que me liberará desta estúpida coisa de controle mental e me deixará partir.

Dante considerou. Ele era o Dranir; não, não podia dar sua palavra à toa. Finalmente disse:

- Depois de uma semana, considerarei. É esperta, pode aprender muito em uma semana. Mas não posso fazer uma promessa definitiva.

 

― O que, exatamente, deu errado?

O tom de Cael Ansara foi agradável e sereno, o que não enganou em nada a Rubén McWilliams. Primo ou não, sempre tinha havido algo sobre Cael que fazia que Rubén andasse com muita cautela a seu redor. Quando Cael estava mais amável, era quando merecia a pena estar mais cauteloso. Rubén não gostava do filho da puta, mas aí estava, a rebelião os fazia estranhos companheiros de cama.

Sua intuição havia lhe dito que retardasse em contatar Cael, assim não o tinha telefonado na noite anterior; em vez disso, tinha posto gente no terreno, fazendo perguntas, e sua jogada tinha dado fruto… ou pelo menos tinha proporcionado uma interessante variável. Ainda não sabia exatamente o que tinham descoberto, só que tinham encontrado algo.

― Não sabemos… não exatamente. Tudo foi perfeitamente bem por nossa parte. Elyn estava conectada a mim, Stoffel e Pier, tirando nossa energia e alimentando o fogo. Ela disse que tinha o Raintree dominado, que estava perdendo terreno… e rápido. Então… algo aconteceu. É possível que visse que não podia dirigir o fogo e se retirasse. Ou que seja mais poderoso do que pensamos.

Cael estava em silêncio, e Rubén se moveu inquieto na cama do motel. Tinha esperado que Cael saltasse à suculenta possibilidade de que o poderoso Dante Raintree tivesse entrado pânico e escapado de um incêndio, mas como era habitual, Cael era imprevisível.

―O que diz Elyn? ― perguntou Cael finalmente. ― Se Raintree fugiu, se parou de tentar combater o fogo, sem sua resistência teria se descontrolado. Ela saberia, não é? Haveria sentido a quebra de onda.

― Não sabe. ― Elyn e Ele tinham discutido o acontecido desde o começo ao final, tentando identificar o que tinha saído errado. Ela deveria haver sentido a quebra de onda, se tivesse acontecido… mas não só não a havia sentido, mas também não tinha notado o retrocesso quando o departamento de bombeiros apagou as chamas. Teve que haver algum tipo de interferência, mas não sabiam o que dizer para explicá-lo.

― Não sabe? Como não pode saber? É uma Mestre do Fogo, e essa era sua chama. Deveria saber tudo dela desde sua concepção.

O tom de Cael foi mordaz, mas não mais do que tinham sido os seus quando Elyn e ele tinham analisado os acontecimentos. Elyn não queria que o dedo acusador a apontasse, é obvio, mas tinha estado verdadeiramente perplexa.

― Tudo o que sabe é que, justo quando estava atraindo o fogo para o hotel, perdeu contato com ele. Podia dizer que ainda estava ali, mas não sabia o que estava fazendo. ― Deteve-se. ― Está dizendo a verdade. Eu estava unido a ela. Pude sentir sua surpresa. Acredita que deve ter havido algum tipo de interferência, possivelmente um escudo protetor.

― Está dando desculpas. Escudos como esse só existem na casa familiar. Nunca detectamos nada como isso em nenhuma das outras propriedades dos Raintree.

― Estou de acordo. Não a respeito do Elyn dando desculpas, mas sim da impossibilidade de que houvesse um escudo. Ela simplesmente perguntou. Disse-lhe que não, que eu teria sabido se houvesse um.

― Onde estavam os outros Raintree?

― Estavam todos controlados. ― Nenhum dos outros Raintree estava o suficientemente perto para que seu Dranir se unisse a eles e usasse seu poder para aumentar o próprio, como tinha feito Elyn unindo-se a ele e aos outros. Tinham posto algumas pessoas para seguir os distintos membros do clã Raintree em Reno. Só eram oito, sem contar o Dranir, e nenhum deles tinha estado perto do “Inferno”.

― Então, apesar de todas as garantias que me deu, falhou, e não sabe por que.

― Ainda não. ― Ligeiramente Rubén recalcou o ainda. ― Há outra possibilidade. Outra pessoa, uma mulher, estava com o Raintree. Nenhum de nós os viu ser resgatados porque os caminhões de bombeiros cobriram a nossa vista, mas nos fizemos passar por agentes de seguros e fizemos perguntas. — Não tinham levantado nenhuma suspeita; os agentes de seguros já estavam pululando, e não só os que representavam à companhia de seguros do Raintree. Uma multidão de veículos tinham sido danificados. Clientes habituais tinham perdido objetos pessoais. Tinha havido feridos, e dois mortos. Somado aos advogados de danos corporais à mistura, e havia um monte de gente fazendo muitas perguntas; ninguém notava umas poucas pessoas ou perguntas a mais e ninguém comprovava os créditos.

― Como se chama?

― Lorna Clay. Um dos médicos tomou seu nome e endereço. Não estava registrada no hotel, e o endereço de seus papéis era do Missouri. Não é válida. Já chequei.

― Continua.

― Evidentemente estava com Raintree desde o começo, em seu escritório do hotel, porque evacuaram juntos o edifício. Estavam na escada oeste com muita gente. Ele dirigiu todos os outros para fora, através do andar do estacionamento, mas foi com a mulher na outra direção. Muitas coisas são suspeitas. Primeiro, ela não estava queimada… no mínimo. Dois, tampouco estava Raintree.

― Uma bolha protetora. Judah também pode construi-las. ― O tom de Cael se tornou plano quando disse o nome de Judah… Judah era seu meio-irmão legítimo e o Dranir dos Ansara. A inveja de Judah, a amargura de que fosse o Dranir em vez de Cael, o tinha carcomido toda sua vida.

Rubén estava impressionado pela bolha. Fumaça? A fumaça tinha presença física; qualquer Mestre do Fogo poderia se defender da fumaça. Mas o calor era uma entidade diferente, parte do ar mesmo. Os Mestres do Fogo, inclusive os da Casa Real, ainda tinham que respirar. Separar de algum jeito o calor do ar, atrair um mas manter o outro de fora, era uma façanha que ia muito além de controlar o fogo.

― A mulher ― apontou Cael bruscamente, tirando Rubén de sua silenciosa admiração.

― Vi cópias da declaração que deu depois do acontecido. Concorda com a dele, e nenhuma é possível, dado que sabemos o horário. Estimo que esteve ocupado com o incêndio pelo menos meia hora. ― Isso era uma eternidade, em términos de sobrevivência.

― Deveria ter sido vencido. Deveria ter gasto tanta energia tentando controlar o incêndio que não poderia ter mantido a bolha. É do tipo heróico ― disse Cael com desprezo. ― Sacrificaria-se para salvar às pessoas do hotel. Isto deveria ter funcionado. Sua gente não teria suspeitado. Teriam esperado que ele fizesse o valente e honorável. A mulher tem que ser a chave. Tem que ter dons. Uniu-se a ela, e ela o alimentou de poder.

― Ela não é Raintree ― disse Rubén. ― Tem que ser uma extraviada, mas estes não são tão poderosos. Se estivessem vários deles, talvez haveria energia suficiente para que ele contivesse o incêndio. Ainda poderoso que indubitavelmente é Dante, acrescentar o poder de uma extraviada, inclusive de uma forte, seria como acrescentar um copo de água a uma banheira cheia.

― Segue sua própria lógica ― disse Cael com brutalidade. ― Extraviados não são tão poderosos, por isso não pode ser uma.

― Ela não é Raintree ― insistiu Rubén.

― Não é uma Raintree oficial. ― Cael não usou a palavra “ilegítima”. O velho Dranir o tinha reconhecido como filho, mas isso não tinha dado a Cael preferência sobre Judah, ainda considerando que era o mais velho. A injustiça sempre o tinha carcomido, como um ácido corrosivo. Todos ao redor de Cael tinham aprendido a não sugerir nunca que talvez Judah era Dranir por seu poder, não por seu nascimento.

― Tem que ser de linhagem real para ter poder suficiente para que Dante pudesse conter o incêndio durante tanto tempo contra quatro de nós ― disse Rubén com dúvida, porque isso era impossível. O nascimento de um membro da realeza se tomava muito a sério para que não se notasse. Simplesmente eram muito poderosos.

― Assim no melhor é. Mesmo que a divisão aconteceu faz mil anos, o poder herdado não teria diminuído.

Sendo geneticamente dominantes, inclusive se um membro de um dos clãs se reproduzia com um humano ― o que faziam freqüentemente ― a descendência era completamente Ansara ou Raintree. As famílias reais de ambos os clãs eram as mais poderosas entre as que tinham dons, que era como se converteram em realeza em primeiro lugar; como dominantes, seu poder se transmitia intacto. Segundo a maneira de pensar de Rubén, isso só reforçava seu argumento de que, passasse o que passasse, um nascimento real não seria ignorado durante nenhum tempo, certamente não por um milênio.

― Seja o que ela seja, onde está agora?

― Na casa de Dante. Levou-a a noite passada, e ainda está ali.

Cael ficou em silêncio, por isso Rubén simplesmente esperou enquanto seu primo repassava isso em seu retorcido cérebro.

― Bem ― disse Cael abruptamente. ― Ela tem que ser a chave. De qualquer lugar de que venha, seu poder é forte o suficientemente para levar os quatro a um empate. Mas isso é o passado. Não podem voltar a usar fogo sem que o bastardo comece a suspeitar, assim têm que pensar em outra coisa que pareça um acidente ou que não possa se associar a nós. Não me importa como fazem, simplesmente façam. A próxima vez que escute sua voz, será melhor que me diga que Dante Raintree está morto. E enquanto está nisso, mate também à mulher.

Cael desligou com força o telefone. Rubén colocou o auricular mais devagar, depois beliscou a ponte do nariz. Taticamente, matar à realeza Raintree era inteligente. Ao cortar a cabeça de uma serpente, se ocupar do corpo era simples. A comparação não era completamente exata, porque qualquer Raintree era uma força a considerar, mas também eram os Ansara. Com toda a família real morta, a vantagem seria toda sua e o desenlace inevitável.

O erro que tinham cometido fazia duzentos anos foi não se encarregar primeiro da família real, uma falha que tinha tido desastrosos resultados. Como clã, o Ansara quase tinha sido destruído. Os sobreviventes tinham sido desterrados a sua ilha do Caribe, onde a maioria permaneciam. Mas tinham usado esses duzentos anos para reconstruir em segredo sua força, e agora eram o suficientemente fortes para voltar a combater ao inimigo. De todas formas, Cael opinava assim, igual a Rubén. Só Judah os tinha refreado, aconselhando prudência. Judah era banqueiro, pelo amor de Deus; o que sabia sobre correr riscos?

O descontentamento nas filas Ansara tinha crescido durante anos, e tinha alcançado o ponto de crise. O Raintree tinha que morrer, igual a Judah. Cael nunca o deixaria viver, nem sequer no exílio.

O poder de Rubén era substancial. Por isso, e porque era primo de Cael, tinha lhe dado a tarefa de eliminar ao mais poderoso dos Raintree… uma tarefa mais complicada porque Cael insistia em que a morte parecesse acidental. O último queria era todos os Raintree correndo para a casa familiar para protegê-la. O poder do Santuário era quase místico. Quanto disso era real e quanto percebido, Rubén não sabia e não lhe importava.

O plano era simples: matar à realeza, romper os escudos protetores ao redor de Santuário e tomar a casa familiar. depois disso, o resto dos Raintree estariam grandemente debilitados. Destrui-los seria brinacadeira de criança.

Não ter destruído a casa familiar dos Ansara duzentos anos atrás, não ter destruído a cada membro do clã, tinha sido o engano dos Raintree. Os Ansara não lhes devolveriam o favor.

Rubén se sentou durante um longo momento, sumido em seus pensamentos. Alcançar o Raintree seria fácil se estivesse distraído. Ele e a mulher, Lorna Clay, evidentemente eram amantes; de outra maneira, para que levá-la para casa com ele? De todas as formas, ela seria a mais fácil de matar dos dois… e que ela fosse o objetivo óbvio em vez do Raintree, não levantaria o alarme do clã.

A idéia de Cael tinha sido muito boa: matar a mulher.

  

Segunda-feira a tarde

― O que acontece se você morrer? ― perguntou-lhe Lorna, franzindo o cenho enquanto, com as chaves do carro na mão, Dante abria a porta da garagem. ― O que acontece se tem um acidente e despenca montanha abaixo? E se tiver uma embolia pulmonar? E se um transportador de frangos sofre uma falha nos freios e esmaga este patinete que você chama de carro? Fico presa? Essa pequena maldição, ou o que seja, me manterá aqui embora morra ou fique inconsciente?

Dante parou a meio caminho para a porta, girando para ela com uma expressão metade divertida, metade incrédula.

― Um transportador de frangos? Não pode pensar em alguma outra forma mais digna de me matar?

Lorna sorveu pelo nariz.

― A morte é a morte. O que mais seria? ― Então algo lhe ocorreu, algo que a deixou muito intranqüila. ― Oh, porque pode morrer, não? ― O que aconteceria se a situação era ainda mais estranha do que pensava? E se em uma escala de esoterismo de um a dez, ele tinha um treze?

Dante riu ante isso.

― Agora devo me perguntar se está planejando me matar.

― É só um pensamento ― disse francamente. ― E aí?

Dante se apoiou no marco da porta, com descuido e relaxado, tão condenadamente sexy que Lorna quase teve que olhar para outro lado. Estava se esforçando muito para ignorar suas respostas físicas ante ele, e a maioria do tempo conseguia, mas às vezes, como agora, seus olhos verdes pareciam que iam arder, e em sua imaginação podia sentir outra vez o duro e musculoso torso de Dante contra ela. O fato de que, pela segunda vez, tivesse podido sentir sua ereção contra ela quando a segurava, só fazia sua luta muito mais difícil. O mútuo desejo sexual era um potente ímã, mas só porque ela sentia a força da atração, não significava que tivesse que agir em conseqüência. Às vezes também queria ultrapassar um semáforo, porque estava ali, porque não queria parar, porque podia… mas nunca fazia, porque fazê-lo seria estúpido. Fazer sexo com Dante Raintree entraria dentro da mesma categoria: estúpido.

― Sou tão mortal como você… ou quase. Graças a Deus. Por muito que a mortalidade seja uma merda, a imortalidade seria ainda pior.

Lorna deu um passo atrás.

― O que quer dizer com quase?

― Essa é outra conversa, e não tenho tempo para ela agora. Respondendo a sua outra pergunta, não sei. Talvez, sim, talvez, não.

Lorna quase se consumia pela indignação.

― O que? O que? Não sabe se terei que ficar aqui ou não se acontecer algo com você, mas vai sair e me deixar aqui de todos os modos?

Dante pensou brevemente, e disse:

― Sim ― E saiu pela porta.

Lorna deu um salto e agarrou a porta antes que se fechasse.

― Não me deixe aqui! Por favor.

Odiava ter que suplicar, e o odiou por fazê-la suplicar, mas de repente, alarmou-se além da razão ante o pensamento de ficar encerrada ali pelo resto de sua vida.

Dante entrou no Jaguar, dizendo:

― Estará bem.

E então o ruído da porta da garagem se elevando abafou qualquer outra coisa que ela houvesse dito.

Furiosa, fechou de repente a porta da cozinha, e em um ataque de ressentimento, trancou tanto a fechadura como o ferrolho. Deixá-lo fora de sua própria casa era inútil, já que ele tinha suas próprias chaves, mas ao menos o incomodaria.

Lorna ouviu o Jaguar sair; então a porta da garagem começou a baixar.

Maldito, maldito, maldito fora! Realmente tinha ido e a tinha deixado fechada ali. Não, fechada, não… encarcerada.

Suas roupas tinham sido entregues cedo, e tinha trocado as calças arruinadas ― e a enorme camisa de seda de Dante ― então que ele não teria tido que esperar que ela se arrumasse nem nada. Não tinha nenhuma razão para deixá-la ali, dado que ele poderia impedir facilmente que escapasse, com uma de suas condenadas ordens mentais.

Impotente, olhou raivosa ao redor da cozinha. Ser um Drainer… rei… ou o que demônios houvesse dito, o tinha deixado muito presumido. Virtualmente sempre fazia o que tinha vontade, sem se preocupar com que os outros queriam. Era óbvio que nunca tinha sido casado e certamente nunca estaria, porque nenhuma mulher que se apreciasse faria isso.

Sal.

Percorreu de novo a cozinha com o olhar, e viu o grande saleiro e o pimentero de aço inoxidável ao lado da vitrocerâmica. Começou a abrir as portas até que encontrou a despensa… com uma reserva de sal muito satisfatória.

Lembrou que Dante dava uma colherada de açúcar no café. Com muito cuidado, tirou o sal do saleiro, substituindo-o pelo açúcar do açucareiro, então pôs o sal no açucareiro. Dante não desfrutaria muito da primeira xícara de café da manhã, e algo que salgasse saberia muito ruim.

Então Lorna se tornou criativa.

Ao redor de uma hora depois que Dante partiu, soou o telefone. Lorna olhou o identificador de chamadas, mas não se incomodou em responder; ela não era sua secretária. Quem quer que estivesse telefonando, não deixou nenhuma mensagem.

Explorou a casa… melhor, registrou-a. Era uma casa grande para uma só pessoa. Não tinha um referente para estimar quantos metros quadrados tinha, mas contou seis dormitórios e a metade de banheiros. O dormitório de Dante ocupava todo o andar superior, uma vasta extensão que cobria mais espaço do que muitas famílias de quatro pessoas tinham para viver. Era um quarto muito masculino, com tons dominantes em azul aço e verde-oliva claro, mas aqui e ali ― nos quadros, em uma inesperada terrina decorativa, em uma almofada ― tinha pinceladas de um rico e profundo tom vermelho.

Havia uma área separada para descansar, com uma televisão de tela grande que saiu de um armário quando apertou um botão, e que voltou a afundar em seu esconderijo depois. Ela sabia, porque tinha encontrado o controle remoto e tinha apertado todos os botões, só para ver o que fazia cada um. Havia um móvel-bar com uma pequena geladeira e uma cafeteira para quando não queria se incomodar em descer as escadas para fazer-se café ou pegar algo para comer. Lorna substituiu o açúcar por sal também ali… e misturou terra das plantas no café.

Então se sentou em meio da cama de casal, em um colchão de sonho, e ficou pensando.

Embora a casa fosse grande e confortável, não era o que ela chamaria uma mansão. Não era ostentosa. Dante gostava dos bens materiais, mas ainda assim, notava-se que era um lugar em que viver, e não para exibir.

Ela sabia que Dante tinha dinheiro, e muito… suficiente para permitir uma casa dez vezes maior que esta. Considerando o fato de que vivia sozinho, sem um serviço diário que se cuidasse dele e de sua casa, chegou à óbvia conclusão de que a privacidade era mais importante para ele que ser mimado. Assim por que a obrigava a ficar ali?

Ele dizia que se sentia responsável por ela, mas podia se sentir assim onde quer que ela estivesse, porque devido ao maldito talento recentemente descoberto, com o qual podia fazer as pessoas fazerem o que ele queria, Lorna não poderia escapar se ele tivesse ordenado que ficasse. Possivelmente Dante estava interessado no destreinado “poder” de Lorna, e queria ver até onde podia chegar, só para satisfazer sua curiosidade. Novamente, não era necessário que ela permanecesse ali para que lhe desse aulas, ou realizar alguns experimentos com ela.

Dante queria fazer sexo com ela, então talvez era isso o que o motivava. Podia fazer que viesse a ele, fazer sexo, mas não era um violador. Talvez fosse um louco, um intimidador, sem dúvida, mas não era um violador. Ele queria que Lorna estivesse disposta, verdadeiramente disposta. Assim, acaso a mantinha ali para seduzi-la? Não poderia fazer se partia e a deixava ali, sem mencionar que ao fazer aquilo, estava conseguindo que se zangasse com ele.

De algum modo, a opção de que fazia isso pelo sexo tampouco era muito boa. Se ele queria colocar Lorna em sua cama, fazê-la prisioneira não era a melhor forma de consegui-lo. Não só isso, ela não era uma mulher fatal. Simplesmente, não podia imaginar que ninguém tomasse tantas moléstias para ter sexo com ela.

Devia haver outra razão, mas maldita fora se podia compreendê-la. E até que averiguasse… bem, não havia nada que ela pudesse fazer, apesar disso. A menos que pudesse deixá-lo inconsciente e escapar, estava presa até que ele estivesse preparado para deixá-la partir.

A noite passada, desde o momento em que o gorila a tinha “escoltado” da mesa de blackjack e a levou de rudemente ao escritório do Raintree, tudo tinha sido um puro pesadelo. Um sobressalto era seguido de perto por outro ― de algum modo, cada um pior que o anterior ― tanto, que ela pensava que tinha perdido o contato com a realidade em algum ponto ao longo do caminho.

Ontem a essa mesma hora era uma pessoa anônima, e gostava que fosse assim. Oh, as pessoas podia vir e falar com ela, como faziam com os ganhadores, e isso lhe parecia bem, mas estar sozinha também era bom. De fato, estar sozinha era melhor que bom, era seguro.

Raintree não sabia o que estava lhe pedindo, fazendo-a ficar ali, aprendendo sobre seus “dons”. Nem sequer tinha perguntado. Não tinha dado nenhuma oportunidade.

Dante a esteve surrupiando até admitir que tinha certo talento com os números, mas ele não sabia quanto a enojava pensar em sair do armário do paranormal. Lorna teria preferido permanecer em uma metafísica sacola de roupa, bem pendurada nas costas.

Dante tinha crescido em uma cultura clandestina, onde os talentos paranormais eram a norma, onde os animava, os celebrava, os treinava. Tinha crescido como um príncipe, pelo amor de Deus. Um príncipe do estranho, mas príncipe no fim das contas. Não tinha nem idéia do que era crescer nos subúrbios, muito fraca, não querida, e diferente. Nunca houve um pai a seu redor, só um interminável desfile de “namorados” de sua mãe. Nunca o haviam jogado mesa, literalmente, atirado da cadeira por dizer algo que sua mãe pudesse considerar estranho.

Sendo uma menina, não entendia por que sua mãe pensava que o que ela dizia eram coisas estranhas. O que tinha de mau em dizer que o ônibus que sua mãe pegava para ir trabalhar em um bar do outro lado da cidade estava com seis minutos e vinte e três segundos de atraso? Ela pensava que sua mãe queria saber. Em troca, a tinha atirado de seu assento com uma bofetada.

Os seus eram os números. Se algo tinha um número, ela sabia qual era. Recordava ter começado a escola primária ― não houve creche para ela, sua mãe dizia que as creches eram uma estúpida perda de tempo ― e o alívio que sentiu quando finalmente alguém lhe explicou os números, como se uma enorme parte de si mesmo finalmente encaixasse em seu lugar. Agora tinha nomes para as formas, significados para os nomes. Toda sua vida tinha estado fascinada com os números, fossem em uma casa, em um pôster, em um táxi, ou em qualquer outro lugar, mas era como uma linguagem estrangeira que não podia compreender. Estranho, ter tal afinidade com eles mas não entendê-los. Tinha pensado que era tola, como sua mãe dizia, até que tinha ido à escola e tinha encontrado a chave.

Quando tinha uns dez anos, sua mãe tinha caído no álcool e nas drogas, e os bofetões progrediram quase a surra diária. Se sua mãe se deixava cair uma noite e decidia que não gostava de algo que Lorna fazia durante o dia, ou no dia anterior ― ou na semana anterior, não importava ― agarrava a primeira coisa que tinha à mão e o atirava em qualquer lugar que estivesse. Muitas vezes, a transição entre o sono e a vigília tinha sido para ela um golpe, na cara, na cabeça, qualquer lugar onde sua mãe pudesse golpeá-la. Tinha aprendido a dormir em um estado de silencioso terror.

Sempre que pensava em sua infância, o que mais recordava era o frio, a escuridão e o medo. Tinha medo de que sua mãe a matasse, e ainda mais medo de que sua mãe não se incomodasse em voltar para casa alguma noite. Se havia algo que Lorna sabia além de toda dúvida, era que sua mãe não a tinha querido antes de nascer, e era muito seguro que tampouco a queria depois. Sabia porque essa tinha sido a música de fundo em sua vida.

Lorna tinha aprendido a esconder o que significavam os números para ela. A única vez que havia dito alguém ― a única ― tinha sido no ginásio, quando se tinha assanhado por um menino de sua classe. Ele era doce, um pouco tímido, não era dos meninos mais populares. Seus pais eram muito religiosos, e nunca o deixavam participar das festas do colégio, ou aprender a dançar, nem nada similar, o que Lorna achava bom, já que ela tampouco fazia nenhuma dessas coisas.

Falavam muitas vezes, davam-se as mãos, beijavam-se às vezes. Então Lorna, se armando de coragem, tinha compartilhado seu segredo mais profundo com ele: às vezes sabia coisas antes que acontecessem.

Ainda recordava a expressão de absoluta repugnância que apareceu em seu rosto. “Satã”, tinha-lhe cuspido, e nunca mais voltou a falar com ela. Ao menos, ele não contou a ninguém, mas foi provavelmente porque não tinha nenhum colega a quem contar.

Ela tinha dezesseis anos quando sua mãe finalmente partiu e não se incomodou em voltar. Lorna tinha voltado para casa do colégio ― sua “casa” trocava de endereço com bastante freqüência, normalmente quando o aluguel se atrasava ― para encontrar que as coisas de sua mãe tinham sido retiradas, as fechaduras trocadas, e seu exíguo vestuário jogado no lixo.

Sem um lugar onde viver, fez o único que podia fazer: contatou ela mesma os funcionários da cidade e entrou no sistema de adoções.

Viver em casas de acolhida durante dois anos não tinha sido uma maravilha, mas sua vida não foi tão má como tinha sido anteriormente. Ao menos pôde acabar a escola secundária. Nenhum de seus pais de acolhida a tinha golpeado ou abusado dela. Tampouco nenhum deles tinha demonstrado que gostassem muito dela, mas depois de tudo, sua mãe sempre havia dito que ela não era agradável.

Se arrumou como pôde. Quando completou dezoito, saiu do programa de adoções e ficou sozinha. Nos treze anos seguintes ― toda sua vida, de fato ― fazia o possível para estar fora do radar, para evitar que se fixassem nela, para não ser nunca, nunca uma vítima. Ninguém poderia rejeitá-la se não se oferecia a ninguém.

Tinha tropeçado com os jogos de azar em pequena escala, em um pequeno cassino da reserva dos Seminolas[11], na Florida. Estava acostumada a ganhar pequenas quantidades, mas algumas centenas de dólares significava muito para ela. Um tempo depois foi a alguns outros cassinos no Rio Mississippi, e ganhou algo mais de dinheiro. Havia pequenos cassinos em todas as partes. Foi a Atlantic City, mas não tinha gostado. Las Vegas era boa, mas tudo era muito: muito néon, muita gente, muito calor, muita estridência. Reno era melhor. Menor, mas tampouco muito. Melhor clima. Oito anos depois daquela primeira pequena vitória na Florida, Lorna ganhava entre cinco e dez mil dólares por semana de maneira regular.

Esse tipo de dinheiro era uma carga, porque não era capaz de gastar muito mais do que normalmente fazia. Agora já não passava fome, nem frio. Tinha um carro se por acaso queria fazer as malas e partir, mas nunca um novo. Tinha contas bancárias em todas as partes, além de que normalmente levava um monte de dinheiro vivo, perigoso, sabia, mas se sentia mais segura se tinha dinheiro suficiente em mãos se por acaso precisasse. A menos, e até que se instalasse em um lugar concreto, o dinheiro era um problema, porque quantas cadernetas de poupança e talões se supunha que devia conduzir através do país?

Essa era sua vida. Dante Raintree pensava que tudo o que tinha a fazer era educá-la um pouco em seu talento com os números, e… bem, o que esperava o que acontecesse? Ele não sabia nada da vida de Lorna, assim não podia ter planejado nenhuma mudança específica. Acaso devia ela se converter em uma pequena Mary Sunshine[12]? Encontrar outras pessoas como ela, talvez desenvolver sua própria comunidade fechada, na qual se você ficava sem líquido para acender o churrasco, um de seus vizinhos podia soprar sobre as brasas para acendê-la? Talvez ela poderia escrever um blog sobre suas experiências, ou participar de uma transmissão radiofónica.

Oh, oh. Preferia comer vidro moído. Gostava de viver sozinha, estar sozinha e depender somente dela mesma.

O telefone voltou a tocar, sobressaltando-a. Engatinhou através da cama para olhar o identificador de chamadas, embora para que se incomodar, não tinha nem idéia de quem era. Não reconheceria o número de ninguém que ligasse para Dante Raintree, de todas formas. Assim tampouco respondeu essa chamada.

Tinha estado sentada na cama, pensando, durante tanto tempo que as sombras da tarde começavam a se alargar, e estava adormecendo. Menos mal por essa chamada, ou teria dormido na cama de Dante, e não teria sido uma situação interessante quando ele tivesse retornado a casa? Lorna não tinha nenhuma intenção de brincar de ser a Cahinhos de Dourados.

Mas estava com sono, e fome. Depois do café da manhã tardio, não tinha comido nada. Por que não comer um jantar rápido agora e ir cedo para a cama? Não podia pensar em nenhuma razão pela qual devesse esperar o Raintree, já que ele não tinha tido a cortesia de lhe dizer quando estaria de volta.

O menos que podia fazer era telefonar… embora ela não tivesse respondido ao telefone, ao menos podia ter deixado uma mensagem.

Definitivamente, tinha sentido esperá-lo. Fez uma incursão à geladeira e se preparou um sanduíche frio. Depois olhou os livros das estantes ― Dante tinha vários livros de temática paranormal, mas escolheu um romance de suspence ― e se acomodou no estúdio para ler um momento. Por volta das oito da tarde, estava cabeceando sobre seu livro, o qual, evidentemente, não era o suficientemente intrigante para mantê-la acordada. O sol ainda não tinha se posto, mas não se importou; ainda estava cansada da noite anterior.

Quinze minutos, e uma ducha depois, já estava na cama, enroscada em um quente novelo, com os lençóis lhe tampando até a cabeça.

O brilho de um abajur ao se acender a despertou. Suportou o habitual medo agudo, o pânico, sabendo que sua mãe não estava ali, embora depois de todos estes anos, seu subconsciente ainda não tinha captado a mensagem. Antes de poder relaxar o suficiente para baixar o lençol de sua cabeça, as colchas se elevaram e um quente e virtualmente nu Dante Raintree se deslizou dentro da cama junto a ela.

― Que demônios está fazendo? ― tagarelou meio adormecida, olhando da borda dos lençóis.

Dante se acomodou a seu lado e estirou um comprido braço musculoso para apagar a luz do abajur.

― Parece que há areia em minha cama, então dormirei aqui.

 

― Não seja bobo. Não podia deixar a casa, então como conseguiria a areia? Isto é sal. ― Talvez esperava que ela negasse qualquer participação, mas isso seria absurdo, já que ela tinha sido a única pessoa na casa depois que ele saiu. Talvez ele também esperava que se sentisse indignada e empertigada, porque estava na cama com ela, mas por alguma razão, não estava alarmada. Aborrecida por ser despertada, sim, mas não alarmada.

― Eu tinha razão. ― Ele utilizou seus músculos superiores e peso para empurrá-la sobre a cama. ― Se mexa. Preciso de mais espaço.

Já a tinha expulsado de seu quente e agradável lugar, o que a incomodou ainda mais.

― Então por que não entra pelo outro lado, em vez de fazer com que me mova? ― queixou-se ela enquanto escapulia para o outro lado da cama, que uma king-size[13], como todas as outras camas na casa.

― Você é quem pôs o sal em minha cama.

Os lençóis estavam frios ao redor dela, fazendo ela se enroscar em uma bola mais apertada do que o habitual. Inclusive o travesseiro estava frio. Lorna levantou a cabeça e colocou o travesseiro debaixo dela. Sacudindo, antes, em cima dele.

― Me dê meu travesseiro. Este está frio.

Ele fez um som se queixando, mas empurrou o travesseiro morno para ela e colocou o outro sob sua cabeça. Ela se encolheu na calidez; o tecido suave já tinha a essência dele a seu redor, o que descobriu não era algo ruim. Conhecia-o fazia pouco tempo, mas muito deste o tinham passado em contato íntimo. A parte primitiva de seu cérebro reconhecia sua essência e estava reconfortada.

― Que horas são? ― perguntou ela sonolenta, enquanto deslizava para o sono.

― Sabe que horas são. É um número. Pense nele ― soava sonolento também.

Ela nunca teria pensado no tempo como um número, mas logo que o fez, a imagem de três números surgiu dentro de sua cabeça.

― Um, zero, quatro.

― Bingo.

Ligeiramente alegre, dormiu

Despertou antes dele, o que não era surpreendente, dado o cedo que foi à cama e o tarde que ele se deitou. Ela jazia ali deitada pensado na tensa espera que começava a atravessá-la, então lentamente relaxou. A cama estava comodamente morna; ele emitia tanto calor que podia sentir sua tepidez ainda que não estivessem se tocando.

Sonolenta e curiosa para ver se a coisa do tempo funcionava outra vez, pensou na hora como uma série de números e imediatamente viu um quatro, um cinco e um um. Tirou o lençol que lhe cobria a cabeça: o quarto se estava ficando um pouco mais claro. Sem maneira de checar ― a não ser que saísse da cama e descesse para a cozinha, o que não estava disposta a fazer ― supôs que era aproximadamente 4:51. Como seria útil isso, não necessitar de um relógio?

Dante estava deitado ao seu lado, o rosto voltado para ela, um braço dobrado sob sua cabeça, a respiração suave e profunda. O quarto ainda estava muito escuro para que ela distinguisse muitos detalhes, mas isso era bom, porque não estava pronta para os detalhes ainda; a impressão geral era suficientemente sexy tal como estavam as coisas.

O que se supõe que devia pensar uma mulher quando um homem saudável e heterossexual dorme com ela pela primeira vez e nem sequer trata de roubar uma carícia? O que tinha ela de errado? Por que não se sentia atraído por ela?

Acreditava que ele era perigosamente inteligente e intuitivo.

O sexo definitivamente era parte de sua relação, se conhecer alguém há aproximadamente umas trinta e seis horas poderia se descrever como uma relação. Algumas dessas trinta e seis horas pareciam largos anos, especialmente as primeiras quatro ou cinco. Tampouco poderia dizer se o tempo passado juntos tinha sido de qualidade. Por outro lado, posto que não o tinha visto em seu melhor momento, pensava que o conhecia melhor que muitos que o conheciam há fazia muito, mas só no âmbito social, assim não estava surpreendida que não tivesse atirado pedras nela durante essa noite.

Não estava pronta para o sexo com ele, poderia não estar nunca, e ele sabia. Se tivesse tratado de assaltar suas defesas, como ela esperava, teria redobrado sua resistência. Pelo simples feito de dormir com ela e não realizar nenhum movimento abertamente sexual, ele estava, em certa forma, rebatendo aquelas terríveis primeiras horas juntos, fazendo do sexo uma possibilidade, no mínimo.

Ainda não estava nu, embora os boxers que estava usando ao deitar-se não cobriam muito. Ela tampouco estava nua; ele tinha tido que trazer toda sua roupa, assim estava dormindo com seu habitual pijama de algodão. Perversamente, posto que ele não tinha tentado ter sexo, começou a se perguntar como seria se eles…, logo ela suspeitou que ele tinha previsto sua reação.

O sexo não era fácil para ela. Não confiava facilmente; não se excitava facilmente. Ceder deliberadamente seu senso pessoal da intimidade era difícil, e o pagamento não era no geral o valor do custo. Gostava da sensação do sexo, e quando pensava nisso em abstrato, queria. A realidade, entretanto, consistia em que a execução não cumpria com a expectativa. Sem importar o que fizesse, raras vezes se relaxava completamente, o que pensava, era isso o que provavelmente requereria o bom sexo.

A questão era, que estava mais relaxada com Dante do que tinha estado em longo tempo, muito tempo. Ele sabia o que ela era, sabia que era diferente e não se importava ― porque ele era ainda mais diferente do que ela. Não tinha que esconder nada dele, porque não se preocupava se gostava ou não. Certamente ela não tinha tratado de esconder seu caráter ou adoçar sua língua ácida. Igualmente, ela não tinha uma visão suave do caráter dele. Sabia que era desumano, mas também sabia que não era ruim. Sabia que era autoritário, mas que da sua maneira tratava de ser respeitado.

Por isso, talvez poderia se deixar ir e realmente desfrutar do sexo com ele. Não teria que se preocupar com seu ego; se ele começava a ir muito rápido, poderia lhe dizer que reduzisse a velocidade, e se não gostava disso... pois que se agüente! Não teria que estar preocupada com seu prazer; ele se asseguraria disso por si mesmo.

Perguntou-se se ele tomaria seu tempo, ou se gostava de ir direto ao ponto.

Perguntou-se o quanto ele era grande.

Talvez poderia se relaxar o suficiente para desfrutar, e mesmo que não fizesse, pelo menos teria satisfeito sua curiosidade.

Com uma brutalidade que a assustou, ele retirou os lençóis e saiu da cama.

― Onde vai? ― perguntou ela, surpresa quando ele se dirigiu para a porta em vez do banheiro.

― É o amanhecer. ― Foi tudo o que ele disse.

E daí? O sol sai todos os dias. Queria dizer que sempre despertava a essa hora, mesmo que só tivesse gozado de quatro horas de sono? Ou tinha um encontro cedo?

Ela não o seguiu. Tinha seu próprio encontro ― com o banheiro. Também queria lhe dar tempo suficiente para que tivesse essa primeira xícara taça de café

Quando abandonou o quarto, quarenta e cinco minutos mais tarde, depois de ter feito a cama e guardado em a roupa em seu lugar, foi à cozinha, mas viu que esta estava vazia. Entretanto uma xícara de café tinha sido feita e ela sorriu com satisfação.

Onde ele estava? Na ducha?

Não tinha a intenção de estar de pé esperando que aparecesse. Estava na sala de estar, junto a seu dormitório, quando ele apareceu no balcão dois andares acima.

― Venha aqui ― a chamou. ― Estarei fora.

Seu dormitório tinha uma coberta ― ou este também era um balcão? ― que dava ao leste. Tinha visto ontem, mas não tinha saído, porque sua maldita ordem a tinha impedido de andar fora. Havia duas cadeiras que pareciam cômodas e uma pequena mesa ali, e tinha pensado que este devia ser um lugar confortável para se sentar a tarde quando o sol tinha passado seu cume e esse lado da casa estava sombreado.

Subiu dois andares pela escada até o dormitório dele. Observou que a cama tinha sido desfeita; isto lhe deu uma sensação de satisfação. Podia vê-lo sentar-se fora em uma das cadeiras, então se dirigiu à porta francesa aberta. Com uma xícara de café na mão, ele estava sentado com a cabeça inclinada um pouco para trás, seus olhos quase fechados contra a luz do brilhante sol da manhã, a expressão em sua cara era quase... feliz.

― É hábil com o sal, não é? ― disse ele neutramente, bebendo em goles o café, mas ela sentiu que não estava zangado. É obvio, o café da cozinha não tinha sabor ruim. Quando ele fez a seguinte cafeteira aqui dentro, podia não ser tão otimista sobre isso.

― Retribuição.

― Adivinhei.

Ele não disse nada mais, e depois de um momento ela alternou seu peso.

― Era isto tudo o que queria, só dizer isso?

Ele olhou ao redor, como se tivesse perdido dentro de uma fantasia e estivesse ligeiramente surpreso por sua presença.

― Não fique apenas aí pé, venha aqui fora e sente-se.

Só pensar em fazer isso sentiu a sensação de chocar-se contra uma parede.

― Não posso.

Obteve um rápido sorriso dele quando se deu conta que ainda permanecia atada à casa. Não disse nada, mas imediatamente a parede mental desapareceu.

― Merda ― disse ela, saindo e sentando-se a seu lado.

― O que?

― Não disse nada, só pensou. Esperava que tivesse que dizer a ordem em voz alta, para que pudesse ouvi-la, antes que funcionasse.

― Sinto muito, tudo o que tinha que fazer era pensar. Ontem a tarde, estive tentado a usar o dom e ordenar a algumas pessoas que saltassem no lago, mas me contive.

― É um santo entre os homens ― disse ela secamente, e ele deu uma rápida piscadela.

― Estava me enfrentando com os meios de comunicação, assim, considerando o nível de tentação, tentarei estar de acordo contigo.

Os meios de comunicação, ufff? Não se surpreendeu que se negasse a levá-la.

― Telefonei ontem à noite para dizer que não retornaria até tarde, mas não atendia o telefone.

― Por que faria? Não sou sua secretária.

― A ligação era para vocêi.

― Não sabia disso, não é?

― Deixei uma mensagem.

― Não escutei. ― A secretária eletrônica estava na cozinha e ela estava no quarto quando o telefone tocou da última vez, que devia ser ele telefonando.

― Isso é porque você não se incomoda em responder ― soava irritado agora.

― Por que o faria? Não sou…

― Minha secretária, sei. É um pé no saco, sabia?

― Tento ser ― disse ela, dando um sorriso que era mais uma exibição de dentes que um pouco relacionado com o humor.

Ele grunhiu e sorveu o café por um momento. Lorna subiu o pé descalço sobre a cadeira e se fixou nas montanhas e os extensos vales, desfrutando estar fora depois de todo um dia confinada na casa. A manhã estava suficientemente fria para fazê-la desejar usar médias, mas não tão fria para forçá-la a voltar para dentro.

― Você gostaria de ir comigo hoje? ― perguntou ele finalmente, com aparente desinteresse.

― Depende, O que fará?

― Fiscalizar a limpeza, falar com a seguradora e ainda não tenho uma resposta de por que dois detetives estiveram fazendo perguntas imediatamente depois do fogo, assim estou buscando indo diretamente à fonte.

― Soa divertido.

― Estou contente que alguém ache ― disse ele ironicamente. Se arrume e tomaremos o café da manhã fora. Por alguma razão, não confio na comida daqui.

 

Terça-feira pela manhã, 7:30 a.m.

O homem que estava sentado, oculto detrás de uns matagais, encontrava-se no lugar desde antes da alvorada, quando tinha dispensado o infeliz idiota que tinha vigiado a noite inteira. Quando viu a porta da garagem deslizar para cima, agarrou os binóculos que pendiam de uma correia ao redor do pescoço e os enfocou para a casa. As luzes de freio vermelhas brilharam na escura garagem; então um Jaguar começou a sair de ré.

Recolheu um rádio e adaptou o microfone.

― Está saindo agora.

― Está sozinho?

― Não posso dizer… não, a mulher está com ele.

― Dez-quatro. Estarei preparado.

No momento seu trabalho estava feito, deixou cair os binóculos antes que a luz cintilasse sobre as lentes delatando-o. Agora podia relaxar. Seguir o Raintree não era seu trabalho.

― O inspetor do departamento de bombeiros disse como começou o incêndio? ― perguntou Lorna enquanto conduziam pelo escarpado e tortuoso caminho. O ar estava muito limpo, o céu era uma zona cheia de azul profundo. As sombras lançadas pelo sol da manhã bruscamente delineavam cada arbusto, cada rocha.

― Só que tinha começado ao redor de um armário de utensílios.

Ela colocou a correia do cinto de segurança de tal forma que o nylon não roçasse seu pescoço.

― Então faz com que um de seus adivinhos mentais dê olhadinha e diga o que pensa o inspetor do departamento de bombeiros.

Dante teve que rir.

― Parece que pensa que há muitos de nós, que tenho um exército de gente dotada que posso chamar.

― Bem, não é verdade?

― Dispersos por todo mundo. Aqui em Reno, há nove, incluindo eu. Nenhum deles está dotado em telepatia.

― Significa que não pode chamar o telepata mais forte e lhe dizer…

― Ela.

― …o nome do inspetor do departamento de bombeiros e que o leia de onde seja que se encontre?

― A telepata é minha irmã, Mercy, e ela só poderia fazer isso se já conhecesse chefe de bombeiros. Também poderia fazer se o encontrasse pessoalmente. Mas uma leitura a frio, sobre um desconhecido, a uma distância de aproximadamente duas mil e quinhentas milhas? Não funciona dessa maneira.

― Adivinho que tem suas vantagens a menos que precise ler a mente de um estranho a umas mil milhas de distância. Suponho que isto significa que adivinhar o pensamento não é um de seus talentos. ― De todos os modos, ela esperava que não. Se ele tivesse lido sua mente aquela manhã…

― Posso me comunicar telepaticamente com Gideon e Mercy, se deliberadamente baixarmos nossos escudos, mas estamos mais cômodos com os escudos em seu lugar. Mercy era uma pequena menina curiosa. Depois, quando cresceu, quis se assegurar de que não podíamos entrar subitamente em sua cabeça sem adverti-lo, então se blindou, talvez muito.

― De todas as formas o que pode fazer? Além de brincar com fogo e essa coisa do controle mental.

― Linguagens. Posso entender qualquer língua, o que é prático quando viajo. Chama-se xenoglossia. Um… sabe que tenho o suave dom da empatia. Um pouco divertido é que posso fazer luz fria, psicoluminiscencia. No geral chamada luz de bruxa.

― Creio que é útil quando acaba a luz.

― Tem seus momentos ― admitiu ele rindo. ― Era especialmente divertido quando era criança e mamãe fazia que apagasse a luz e fosse para a cama.

Esse tipo de vida caseira era tão alheio a ela como se tivesse crescido em Marte e isto a fazia se sentir um pouco insegura. Para mudar de assunto, perguntou:

― Algo mais?

― Não algo em grande medida.

Ela ficou calada, refletindo sobre toda aquela informação. Havia tanto que desconhecia sobre esta matéria. No caminho Dante falou de sua família e ele, como os dons se desenvolveram com a idade e como suas habilidades tinham crescido igual a qualquer outra habilidade, pelo uso constante. Se ela começasse a aprender mais sobre o que podia fazer, encontraria mais dons dentro de seu poder? Não estava segura de querer isso. De fato, estava quase segura de não fazer. Suficiente era suficiente.

Agora que estava fora da casa, sentiu-se exposta e vulnerável. Embora ao mantê-la encerrada desse modo autocrático a tinha enfurecido, talvez devia admitir que fez o correto. Ali tinha estado isolada do mundo, capaz de pensar calmamente que era uma dotada… embora modesta “extraviada” em comparação com os Raintree ou os Ansara, o que assemelhava ser um Volkswagen comparado com um Jaguar, por isso não foi necessário se proteger. Com cada minuto que se aproximavam de Reno e com cada minuto crescia mais e mais sua ansiedade. Quando ele coduziu o Jaguar perambulando pela costa para a interestadual e se uniram ao pesado trafego, estava quase em estado de pânico.

Velhos hábitos e padrões eram difíceis de romper. Uma vida de precaução e segredos não podiam mudar facilmente. Em solidão era bastante fácil de refletir e parecia completamente diferente do mundo real. A mãe de Lorna não tinha sido a única pessoa em sua vida que reagiu de maneira tão negativa ante seus dons. Dante podia chamá-lo um dom, mas em sua vida, isto tinha sido mais uma maldição.

De repente sentiu vertigem e se sentiu doente tão somente de pensar com mais profundidade neste novo mundo no que se encontrava. Nada mudaria. Se permitia a alguém conhecê-la, poderia se abandonar abertamente a exploração, ao ridículo, a perseguição ou algo pior.

― O que está errado? ― perguntou-lhe Dante bruscamente, observando-a fixamente. ― Está quase hiperventilando.

― Não quero fazer isto ― disse ela, os dentes batendo pelo repentino frio. ― Não quero ser parte disto. Não quero aprender como fazer mais.

Ele murmurou uma maldição, deu uma olhada rápida sobre o ombro para checar o tráfego e encaixou o Jaguar entre um semiautomático e um caminhão de pizzas congeladas. Na saída seguinte, separou-se da interestadual.

― Respira uma vez profundamente e prende o fôlego ― disse ele, enquanto entrava no estacionamento de um MacDonald’s. ― Maldita seja, deveria ter imaginado, isto é por que necessita treinamento. Disse a você que era muito sensível. Recolhe todos os padrões de energia a seu redor, tem que ser todo este tráfego e isto a sobrecarrega. Como demônios funcionou alguma vez? Como sobreviveu em um cassino, ou em qualquer lugar?

Obediente a sugestão anterior, Lorna tomou fôlego o mais profundo que pôde e o manteve. Estava hiperventilando? perguntou-se fracamente. Supunha que sim. Mas tinha frio, tão frio, da mesma maneira em que tinha estado no escritório de Dante antes do fogo.

Ele pôs uma mão calmante sobre seu braço nu, franzindo um pouco o cenho quando sentiu o quanto fria estava a pele.

― Se enfoque ― disse ele. ― Pensa que sua sensibilidade é como um cristal brilhante e com facetas, recolhendo o sol e lançando um arco íris por todo seu redor. Ou se você não gosta dos cristais, faça-o mais frágil e quebrável. Está fazendo? Pode vê-lo em sua imaginação?

Ela lutou por concentrar-se.

― Que forma tem o cristal? Hexagonal? Quantos lados tem?

― Que diferença há… não importa. É redondo. O cristal é redondo e com facetas. Consegue?

Ela formou uma imagem mental de um cristal redondo, só ela estava refletida. Não despedia um arco íris, despendia reflexos. Não mencionou isto. A concentração ajudava a dissipar aquela debilitante frieza, por isso estava disposta a pensar em cristais todo o dia.

― Consigo.

― Bom. Uma chuva de granizo se aproxima. O cristal se romperá a não ser que construa um refúgio a seu redor. Mais tarde pode voltar e construir um refúgio realmente forte a seu redor, mas agora mesmo tem que utilizar qualquer material que tenha ao alcance da mão. Olhe a seu redor.Vê o que pode usar para proteger o cristal?

Em sua mente ela olhou a seu redor, mas nenhum prático tijolo e cimento estavam perto. Havia alguns arbustos, mas não eram robustos. Talvez pudesse encontrar rochas planas e começar a empilha-las em camadas para formar uma barreira.

― Depressa ― disse ele. ― Só tem uns minutos.

― Há algumas rochas aqui, mas não são suficientes.

― Então pensa em algo mais. O granizo é do tamanho de bolas de golfe. Derrubará as rochas.

Em sua mente ela o olhou irritada; então, decepcionada e incapaz de pensar em nada mais, mentalmente se ajoelhou e começou a cavar um buraco na terra arenosa. Os lados do buraco eram suaves e mantinham a cavidade, então tirou um pouco mais. Podia ouvir a tormenta se aproximando com um rugido ensurdecedor enquanto o granizo golpeava todo o caminho. Tinha que se refugiar ela mesma. O buraco era profundo o bastante? Pôs o cristal no buraco e apressadamente começou a rastelar a terra ao redor e sobre isso. Não, isto era muito superficial; a bola de cristal não estava completamente coveira. Começou a juntar a terra de um círculo mais amplo, amontoando-o em cima do cristal. O primeiro granizo golpeou seu ombro, um golpe como um punho e soube que a terra não ia fazer o trabalho. Sem tempo e nenhuma outra opção, ela lançou seu próprio corpo na terra amontoada sobre o cristal, protegendo-o com sua vida.

Ela se sacudiu a imagem e o olhou exaperada.

― Bem, isto não funcionou ― espetou ela.

Ele se inclinou aproximando-se, seus olhos verdes concentrados em seu rosto, a mão ainda sobre seu braço.

― Lancei-me sobre a granada de mão, por assim dizer.

― O que?

― Tentava enterrar o maldito cristal mas não podia fazer profundo o bastante, então me lancei em cima dele e a chuva de granizo me golpeou até a morte. Não se ofenda, mas sua imaginação contagia.

Ele soprou e liberou o braço, recostando-se sobre seu assento.

― Essas não eram minhas imagens, eram as tuas.

― Você pensou no estúpido cristal.

― Sim. Funciona, também não é?

― O que?

― As imagens. Ainda sente e não sabe como se sentia, mas acredito adivinhar que era como se te atacassem por toda parte.

Lorna fez uma pausa.

― Não ― disse ela pensativamente. ― Não sinto isso agora. Mas não era como se atacassem. Era mais como um sentimento de ansiedade, uma sensação de desastre. Em seguida, tive tanto frio, do mesmo modo que em seu escritório antes do fogo.

― Só depois? Nunca havia se sentido assim aflita exceto em meu escritório? ― Ele considerou a idéia, franzindo um pouco o cenho.

Ela se esfregou a parte posterior do pescoço, sentindo os nós de tensão.

― Contrariamente ao que possa pensar, eu podia ir a todos os lugares e fazer as coisas sem sentir todos esses redemoinhos e correntes, como se o mundo chegasse a seu fim. Pensava que era você que fazia tudo isto, recorda? ― Qualquer que fosse essa coisa nova, não gostava absolutamente. Não era uma pessoa despreocupada, nunca o tinha sido… era duro ser a Pequena Miss Sunshine quando a golpeavam na mão sempre que abria a boca… mas nunca se sentiu derrotada, afligida pelo escuro desespero que a levava além da depressão.

― Não sou um sensitivo ― disse ele. ― Nunca senti o que descreve. Sei que emito um campo de energia, porque outros sensitivos o recolheram, mas nunca ninguém me disse que os fiz sentir como se chegasse o fim do mundo.

― Talvez eles não o conheciam da maneira em que eu ― disse ela docemente.

― Tem razão sobre isso ― respondeu ele, rindo um pouco e justo então o rápido ar entre eles se fez pesado e quente, como se uma tormenta de verão se aproximasse. Seu olhar desceu para seus seios, acariciando suas curvas com uma sensação quase física. Nunca havia tocado seus seios, não a tinha tocado sexualmente absolutamente a não ser que contasse as vezes que ela tinha sido capaz de sentir sua ereção contra ela. Voltar a pensar nisto, era uma preciosa maldição sexual. Com uma sacudida de auto-honestidade, ela compreendeu que tinha gostado de saber que podia deixa-lo duro; pensando em como ele a tinha feito sentir tensos os músculos abdominais sob seu ventre.

Como podia fazer isto, fazê-la responder tão rápido? Os mamilos se sentiam como pérolas, assim cada respiração os fazia roçar contra o sutiã, deixando-os mais duros. Ela quase curvou os ombros para aliviar a pressão, mas sabia que seria um caminho morto. Seu sutiã era bastante substancial para que ele não pudesse ver seu entusiasmo, o que era uma boa coisa. Ele poderia suspeitar, ela podia sentir em suas bochechas como aumentava a cor, mas ele não podia saber.

Seu olhar relampejou, apanhando o seu. Devagar, mas nada vacilante, ele levantou a mão e esfregou a parte posterior de um dedo sobre o mamilo esquerdo, deixando ela saber que se enganou: ele sabia. Suas bochechas ficaram mais quentes e sentiu o delicioso aperto outra vez e a profunda brandura em seu interior. Se ela não tivesse pensado em fazer sexo com ele… se não tivesse pensando só algumas horas antes de vê-lo nu… talvez não teria respondido tão facilmente. Mas tinha feito e fazia.

― Quando estiver pronta ― disse ele, sustentando o olhar durante um longo momento. Então deixou cair a mão e cabeceou para o restaurante de comida rápida. ― Vamos tomar o café da manhã.

Ele tinha aberto a porta e estava saindo quando, em tom de assombro, disse:

― Me trouxe para tomar o café da manhã em um MacDonald’s?

― São os arcos dourados ― disse ele. Me atraem o tempo todo.

 

― Estão entrando no McDonald’s. ― informou um dos observadores Ansara.

― Não se mova daí ― disse Rubén McWilliams, sentado na cama do quarto do motel. Por que nos motéis não colocavam os malditos telefones na estúpida mesinha para que um homem pudesse se sentar em uma cadeira quando falava ao telefone, em vez de ter que se sentar curvado no incômodo colchão?. ― Mantenha-os à vista, mas não se aproxime mais. Algo o assustou. Me faça saber quando se forem.

Algo tinha incitado Raintree a cruzar abruptamente duas vias de tráfego e tomar a rampa de saída para 110 quilômetros por hora, mas Rubén duvidava que esta repentina urgência fosse por um McMuffin[14]. Não era como se não pudesse esperar passar por mais algumas saídas para encontrar outro McDonald’s, sem necessidade de fazer essas manobras perigosas.

Não acreditava que sua gente tivesse feito algo que causasse o anormal comportamento, mas não estava no lugar, assim não podia estar seguro. Supunha-se que sua gente vigiaria e perseguiria, isso era tudo. Raintree não era um clarividente, por isso não deveria ter captado nenhum aviso dessa maneira, mas podia ter tido uma premonição. A premonição era uma habilidade muito comum, inclusive simples humanos a tinham. Raintree deve ter sentido uma pontada de intranqüilidade, e já que era um dos dotados, nunca descartaria o aviso; agiria segundo ele, onde a maioria dos humanos ordinários não fariam.

Dado que aí não tinha um perigo imediato ― isso viria despois ― talvez tivesse pressentido um acidente no futuro imediato se ficava na auto-estrada, por isso a deixou na saída seguinte. Era possível. Sempre havia variáveis.

O posicionamento na cena do incidente planejado tinha sido impossível em tão pouco tempo. Não sabiam quando Raintree ia deixar a casa, ou aonde iria quando o fizesse. Agora que estavam atrás de seu rastro, podiam mandar os amigos[15] até ele, onde quer que estivesse; logo se retirariam e deixariam que os amigos fizessem seu trabalho.

Sobre um McMuffin, Dante disse:

― Diga exatamente que sentiu quando estava em meu escritório.

Lorna sorveu o café, pensando. Depois das estranhas sensações que tinha tido no carro, tinha precisado de algo quente para beber, mesmo embora Dante tinha dissipado todo o frio físico. O calor do café não podia alcançar o vestígio de calafrios mentais que ainda sentia, mas de todas as formas era reconfortante.

Examinou sua memória. Que normalmente era excelente, mas tudo tinha passado tão recentemente que os detalhes ainda estavam ainda frescos em sua mente.

― Assustou-me de morte ― replicou finalmente.

― Por que foi apanhada fazendo trapaças? ― incitou quando não continuou falando imediatamente.

― Não fiz trapaças ― insistiu, franzindo o cenho. ― Saber algo não é o mesmo que trapacear. Mas, não, não foi isso. Uma vez, em Chicago, estava voltando para casa uma noite e estava a ponto de tomar um atalho através de um beco. Utilizava o beco freqüentemente… como muita gente fazia. Mas essa noite, não pude. Congelei. Já sentiu alguma vez um medo tão intenso que faz você se sentir doente? Senti-me dessa forma. Retrocedi pelo beco e tomei outro caminho para casa. Na manhã seguinte o corpo mutilado de uma mulher foi encontrado nesse beco.

― Pressentimento ― disse. ― Um dom que salvou sua vida.

― Senti o mesmo quando o vi. ― Viu pela expressão que isso não o tinha agradado em nada, mas ele perguntou, então respondeu.

― Senti como se esta enorme força simplesmente… se fechasse dentro de mim. Não podia respirar. Tinha medo de desmaiar. Mas então disse algo, e o pânico se foi.

Afastou-se recostando no cubículo, franzindo o cenho.

― Eu não representava nenhum perigo para você. Por que teria uma reação tão forte?

― Você é o perito. Diga-me isso você.

― Minha primeira reação a você foi que te queria nua. A menos que o sexo a aterrorize, e não acredito que seja o caso… ― Deu um olhar com as pálpebras entreabertas que endureceu os seus mamilos outra vez ― …não poderia ter captado nada de mim que a fizesse sentir dessa forma.

Novamente o calor formava redemoinhos no baixo ventre, e não era pelo café. Posto que estavam em um McDonald’s e havia um menino de quatro anos sentado no cubículo do lado, afastou o olhar e removeu à força os pensamentos de ir para a cama com ele.

― Ao menos parte disso vinha de você ― insistiu. ― Lembro ter pensado que inclusive o ar parecia diferente, rarefeito, algo que nunca senti antes. Quando se aproximou, pude dizer que a sensação vinha de você. É um homem perigoso, Raintree.

Só ficou olhando-a, esperando que continuasse, porque realmente não podia negar essa acusação em particular.

― Podia sentir você ― disse, em voz baixa quando entrou na lembrança. ― Me atraindo, quase como se estivesse me tocando. As velas estavam se descontrolando. Queria correr, mas não podia me mover.

― Estava tocando você ― disse. ― Em minha imaginação, ao menos.

Recordou como tinha sido surpreendida pela fantasia sexual dele, atraída, roubando sua respiração.

― Sabia que algo estava errado ― sussurrou. ― Não estava controlada. Senti como se tivesse sido apanhada em uma onda de poder que continuava oscilando, indo e vindo, me desequilibrando. Então se voltou tão frio, como no carro. Não era um frio normal, com calafrios e tremores, mas algo tão intenso que me doeram os ossos. Logo essa sensação de temor voltou, a mesma sensação que tive no beco. Estava falando a respeito de como eu era sensível às correntes da sala…

― Estava falando de correntes sexuais ― disse aborrecido. ― O solstício do verão é em poucos dias, e o controle é mais difícil quando há tanta luz do sol. É por isso que as velas dançaram. Estava excitado, e meu poder flamejava continuamente.

Lorna meditou a respeito disso. Sentiu-se atraída por ele desde o primeiro momento em que o olhou nos olhos. A pesar do medo e pânico que sentiu no princípio, quando encontrou seu olhar, caiu de cabeça na luxúria. O debilitante frio tinha chegado depois e não tinha afetado a resposta física a ele, porque quando o frio se foi a atração permaneceu… igual.

― O frio se foi ― disse. ― Como se algo estivesse pressionando contra a cadeira e logo depois de repente se foi. Pensei que cairia da cadeira, porque tinha estado empurrando tão forte em resposta, e de repente a pressão se foi. Isso foi tudo. Falamos algo mais, e em seguida o alarme de incêndios disparou. Fim da cena, começo de inclusive mais raridades.

― E sentiu a mesma coisa no carro?

Assentiu.

― Exatamente o mesmo. Exceto pelo sexo. Quanto mais longe estávamos da casa, mais ansiosa e deprimida me sentia, como se verdadeiramente estivesse exposta e vulnerável. Logo senti muito frio.

― Definitivamente estava absorvendo energias negativas externas, provavelmente do tráfego que nos rodeava. Nunca sabe quem está no carro do lado. Pode ser alguém que não queria te encontrar nem sequer em uma abarrotada rua ao meio dia. O que me deixa perplexo é por que sentiu o mesmo em meu escritório. ― Sacudiu a cabeça. ― A menos que tenha percebido o fogo que ia começar abaixo no cassino, o que é possível, se tiver alguma habilidade precognitiva.

― Penso que poderia, mas só quando as coisas se relacionam com números. ― Contou-lhe a respeito dos números 11/9[16] flutuando, e o fato de que não teve visões de choque de aviões ou edifícios em chamas, só números flutuando se inserindo em seu subconsciente. ― O que senti antes do fogo foi diferente. Possivelmente porque eu…

Deteve-se e o olhou ferozmente. Ele arqueou as sobrancelhas.

― Você… o que?

― Tenho uma obsessão com o fogo. ― Esperou, e, exasperada, finalmente disse: ― Tenho medo dele, ta certo.

― Qualquer com um pouco de inteligência é precavido com o fogo. Eu sou precavido com ele.

― Não é precaução. Tenho medo. Como em, me aterra. Tenho pesadelos a respeito de ser presa em um edifício em chamas. ― Podia ser precavido com o fogo, pensou ela, mas ainda assim o excitava. Podia se converter em um excelente pirómano. Parados diante do incendiado cassino, tinha podido sentir sua fascinação e apreciação pelas chamas, sentir sua excitação, porque o tinha expresso muito fisicamente. ― De qualquer maneira, possivelmente é por isso que senti tanto pânico nesse momento, e tanta ansiedade. Mas o por que me senti assim hoje… a menos que vá me forçar a entrar em outro edifício em chamas na próxima hora ou algo assim, em cujo caso me diga isso agora, para que possa matar você.

Riu enquanto recolhia os restos da comida, e os colocava na bandeja de plástico. Ela saiu do cubículo, caminhado diante dele enquanto deixavam o restaurante. ― Aonde agora?

― Ao hotel.

Em uns minutos estavam de volta na interestadual. Dante a olhou de soslaio.

― Sente-se bem?

― Sinto-me bem. Não sei que esta acontecendo comigo.

Sentia-se bem. Estava montada em um Jag com o homem mais incomum que já tinha conhecido, e estava pensando em ir para a cama com ele. Deu-lhe um olhar, pensando em como ficaria vestindo só aquela cueca, e sentindo a prazenteira calidez da antecipação.

Gostava de vê-lo conduzir. No domingo de noite, enquanto se dirigiam a sua casa, não tinha estado em forma para apreciar a suavidade, a economia de movimentos, com a qual dirigia um carro. Um bom condutor era muito sexy, pensou. O jogo de músculos de seus antebraços, deixados ao descoberto devido às mangas curtas da camisa pólo que vestia, era incrivelmente sexy. Devia exercitar-se em algum lugar, de forma regular, para manter-se nessa forma.

Estavam andando pela via do meio. Um carro com um ruidoso escapamento estava se aproximando pela direita, e o viu olhar pelo espelho retrovisor.

― Idiotas ― murmurou, acelerando brandamente e se metendo dentro da via esquerda. Lorna voltou a cabeça para ver do que estava falando. Uma amassada Dodge branca, com fumaça cinza saindo do escapamento, estava se aproximando rapidamente. Pôde ver várias pessoas dentro. O que tinha incitado a Dante a se mover e lhes dar bastante espaço era o Nissan azul que ia bem próximo ao pára-lama da Dodge.

― Esse é um acidente à espera de acontecer ― disse ela, justo quando o Nissan azul oscilou dentro da via central, a que eles acabavam de deixar vaga, e disparou para frente até que esteve ao lado da Dodge branca. O Nissan virou para a Dodge, e o condutor da Dodge parou sobre os freios, causando uma reação em cadeia de chiados de freadas e fumaça de aros detrás dela. O motor do Nissan estava chiando quando o carro chegou ao nível de Dante e Lorna. Dentro, ela pôde ver quatro ou cinco hispanos, rindo e indicando para trás a Dodge.

O tráfego na interestadual era bastante denso, como sempre, mas não tão denso para que o condutor da Dodge branca não estivesse ultapassando-os rapidamente.

― Galeras ― disse Dante em uma voz cortante, freando para deixar que o desastre sobre rodas que estava se desenvolvendo o adiantasse. Não podia acelerar, porque havia um carro adiante; não podia rodear o carro, porque o Nissan azul estava bem ao lado, encaixotando-o. Ninguém dentro do Nissan parecia estar prestando atenção a eles; estavam todos olhando a Dodge. Como do nada, o condutor do Nissan soltou o acelerador, como se quisesse que a Dodge o alcançasse.

― Merda! ― Desviou para a esquerda tudo o que pôde quando a Dodge deslizou junto ao Nissan. Lorna viu um borrão quando o passageiro de atrás à direita na Dodge baixou o vidro e tirou uma arma; então a mão direita de Dante se fechou sobre seu ombro em agarrando-o que parecia chegar até o osso, e a empurrou bruscamente para a frente e abaixo justo quando a janela junto a sua cabeça se quebrava em cem pedaços. Houve várias profundas explosões surdas, alternadas com rangidos mais leves e seguidos, logo um estremecedor impacto quando Dante girou o volante e os enviou patinando contra a barreira de concreto.

 

De algum jeito Dante tinha liberado o ombro da correia do cinto de segurança, mas as correias do colo se esticaram com a sacudida. Algo tinha arranhado a parte direita da cabeça e havia golpeado o ombro direito tão forte e rápido que a atirou para trás, e terminou de cabeça, com a parte de cima do corpo cruzada sobre o painel e torta entre os assentos dianteiros. Todos os horríveis sons de pneus chiando e de metal esmagando tinham cessado, e um estranho silêncio enchia o carro. Lorna abriu os olhos, mas tinha a visão imprecisa, por isso os fechou de novo.

Nunca tinha estado em um acidente de carro antes. A absoluta velocidade e violência disso a aturdiu. Não sentia dor, só… se sentia intumescida, como se um gigante a tivesse levantado e atirado contra o chão. Provavelmente a dor viria muito em breve, pensou vagamente. O impacto tinha sido tão brutal que se sentia um pouco surpresa de estar viva.

Dante! O que tinha acontecido com Dante?

Incitada por este premente pensamento, abriu os olhos novamente, mas a visão imprecisa persistia e não pôde vê-lo. Nada era familiar. Não havia volante, nem painel…

Pestanejou e lentamente se deu conta que estava olhando o assento de atrás. E o impreciso era… névoa? Não, fumaça. Levantou-se com repentino pânico, ou tratou de fazê-lo, mas parecia que não conseguia nenhum ponto de apoio.

― Lorna?

A voz era tensa e áspera, como se tivesse dificuldades para falar, mas era Dante. Veio de algum lugar detrás e por cima dela, o que não tinha nenhum sentido.

― Fogo. ― As arrumou para dizer, tentando dar patadas com as pernas. Por alguma razão só pôde mover os pés, o que a aliviou já que eram sua parte mais longínqua; se podiam se mover, tudo entre eles e a coluna estava bem.

― Fogo não… são bolsas de ar. Está ferida?

Se havia alguém que podia saber se era ou não fogo, essa pessoa era Dante. Lorna tomou um profundo fôlego, relaxando-se um pouco.

― Não acrho. Você?

― Estou bem.

Estava em uma posição tão incômoda que a dor ferroava através dos músculos das costas. Retorcendo-se, as arrumou para tirar o braço esquerdo de debaixo de seu corpo para empurrar com a mão contra o chão de atrás, tentando se levantar e voltar-se para poder deslizar para seu assento novamente.

― Espera? disse Dante, lhe agarrando o braço. ― Há vidros por todos os lados. Cortaria você em tiras.

― Tenho que me mover. Esta posição está matando as minhas costas. ― Mas se deteve, porque a imagem mental do que fariam os cristais deslizando sobre sua pele não era boa.

Chegavam gritos vindos de fora, aproximando-se, ao tempo que os transeuntes se detinham e corriam em sua ajuda. Alguém bateu na janela de Dante.

― Hei, cara! Estão bem?

― Sim. ― Dante levantou a voz para que pudessem ouvi-lo. Sentiu a mão contra o flanco enquanto ele tentava soltar o cinto de segurança. O fecho estava emperrado; deixou escapar uma impetuosa maldição, logo tentou de novo. Na terceira tentativa, saltou abrindo. Livre dessa restrição, deu a volta, e ela sentiu as mãos descesdo pelas suas pernas. ― Seu pé direito está enrolado na bolsa de ar. Pode movê-lo…? ― A mão agarrou seu tornozelo. ― Move seu joelho para mim e o pé para sua janela.

Mais fácil dizer que fazer, pensou, porque mal podia se mover. Se ajeitou para mover o joelho direito um pouco.

O homem fora da janela de Dante agarrou a maçaneta da porta e tentou abri-la, sacudindo o carro, mas a porta estava travada.

― Tente do outro lado! ― ouviu Dante gritar.

― Esta janela se avariou ― disse outro homem, recostando-se sobre a janela do co-piloto, ou onde antes tinha estado, e perguntou com urgência: ― Estão feridos?

― Estamos bem ― disse Dante, recostando-se sobre ela e empurrando seu tornozelo direito enquanto lhe girava o pé.

O gancho do pé se afrouxou um pouco, o que lhe permitiu mover um pouquinho o joelho.

― Isto prova uma coisa ― disse ela, ofegando pelo esforço que lhe exigiu essa pequena mudança.

― Ponha os pés de ponta como uma bailarina. Que isto prova?

― Definitivamente, Auhh!, não sou precognitiva. Não o vi vir.

― Acredito que se poderia dizer que nenhum dos dois é precognitivo ― grunhiu, em seguida disse: ― Aqui está. ― Com um último puxão, liberou seu pé. Ao homem apoiado no guichê disse: ― Pode encontrar uma manta ou algo para atirar sobre este vidro para que possa tira daqui?

― Não há necessidade que me agarrem ― resmungou ela. ― Se posso me mexer, poderei sair daqui.

― Tenha paciência ― disse Dante, girando para poder deslizar o braço direito debaixo do peito e os ombros e suportar um pouco de seu peso para dar a seus músculos um pouco de descanso.

Podiam ouvir as sirenes soando através do ar árido, mas ainda a certa distância.

Uma nova cara, vermelha e suada, e pertencente a um tipo corpulento que usava uma boina de Caterpillar[17], apareceu na janela quebrada.

― Tinha uma manta na parte traseira da cabine ― dijo, reclinando-se para arrumar o tecido sobre o assento, dobrando em seguida o restante formando uma ampla almofadinha para cobrir os pedaços de vidro que ainda estavam presos na janela quebrada.

― Obrigado ― disse Lorna animadamente quando Dante começou a puxá-la para endireitá-la no assento. Os músculos gritaram pelo esforço, e o alívio por voltar para uma posição mais natural foi tão intenso que quase gemeu.

― Aí vai! ― disse o caminhoneiro, estirando-se uma vez mais e agarrando-a por debaixo dos braços, tirando-a pela janela quebrada antes que pudesse fazer isso ela mesma.

Agradeceu a ele e a cada um dos que ajudaram, em seguida se voltou e olhou pela primeira vez o carro enquanto Dante saía com o mesmo garbo que um piloto de corridas, como se sair através de uma janela fosse algo que fizesse todos os dias.

Mas por mais calmo e sexy que parecesse saindo do carro, o que a aturdiu até deixá-la muda foi o carro.

O elegante Jaguar era somente uma enrugada e despedaçada chapa de metal. Tinha patinado quase até dar meio giro, a parte dianteira tinha batido contra a barreira de concreto, o lado do condutor fazia quase um T com o tráfego que subia. Se outro carro tivesse se chocado depois que golpeassem a barreira, Dante poderia estar morto. Não sabia porque outro veículo não bateu contra eles; o tráfego era suficientemente denso pelo que isto não era nada menos que um milagre. Olhou para o congestionamento de carros e caminhões detidos em todos os ângulos pela colisão múltipla, como se as pessoas estivessem pisando nos freios e patinado. Havia três pára-lama torcidos na via da direita, a uns treze metros para baixo, mas as pessoas estavam fora dos veículos examinando os danos, então estavam bem.

Ela não esta bem. Tinha o estômago revolto, e sentia o coração como se alguém tivesse dado um murro no peito. Tinha uma lembrança muito clara de Dante dando voltas no volante, mandando o Jaguar a uma controlada derrapagem… virando para afastar o lado do passageiro da rajada de balas e colocando o lado dele de frente ao tráfego que circulava.

Ia matá-lo.

Não tinha direito de assumir esse tipo de riscos por ela. Nenhum. Não eram amantes. Conheceram-se há menos de 48 horas, sob circunstâncias realmente terríveis, e a maior parte desse tempo gostosamente o teria empurrado dentro do tráfego ela mesma.

Como se atrevia a ser um herói? Não queria que fosse um herói. Queria que fosse alguém cuja ausência não pudesse feri-la. Queria poder se afastar dele, inteira e contente consigo mesma. Não queria pensar nele depois. Não queria sonhar com ele.

Seu pai não tinha se importado o suficiente para ficar perto, assumindo que soubesse a respeito dela. Não tinha uma verdadeira idéia de quem era… e tampouco tinha sua mãe. Sua mãe certamente não teria arriscado uma unha, muito menos a própria vida, para salvar Lorna de nada. Então o que estava fazendo este… este desconhecido, pondo a própria vida em perigo protegendo-a? Odiava-o por lhe fazer isto, por se tornar alguém cujo rastro sempre permaneceria em seu coração.

O que se supunha que devia fazer agora?

Voltou a cabeça, procurando por ele. Estava só a alguns metros de distância, o que supôs tinha sentido, porque se tivesse se movido um pouco mais longe haveria se sentido obrigada a segui-lo. Não podia se livrar do maldito controle mental que usava para prendê-la, mas tinha arriscado a vida por ela… o cretino.

Normalmente mantinha o comprido cabelo negro penteado para trás, mas agora lhe caía ao redor do rosto. Havia uma fina linha de sangue correndo por sua bochecha esquerda de um pequeno e inchado corte que tinha na parte de cima da maçã do rosto. A pele ao redor estava inchando e se tornando escura. O braço esquerdo parecia machucado, também; o trecho entre o pulso e o cotovelo estava de uma cor vermelha escura. Não estava embalando o braço nem tocando a bochecha, coisas que a maioria das pessoas faz instintivamente quando está ferida. As feridas bem poderiam não existir pela atenção que ele lhes dava.

Parecia em completo domínio de si mesmo e da situação.

Lorna pensou que poderia ficar doente, de tão zangada que estava. O que tinha feito não era justo… de todas formas não era como se tivesse parecido preocupado pela justiça antes.

Como se estivesse sintonizado com seus pensamentos, voltou a cabeça abruptamente e centrou o olhar nela. Com duas velozes pernadas estava a seu lado, segurando-a pelo braço.

― Não tem absolutamente, nenhuma cor no rosto. Deveria se sentar.

― Estou bem ― disse automaticamente. Uma repentina brisa soprou uma mecha de cabelo a atirando pelo rosto, e levantou a mão para afastá-lo. Duas patrulhas estavam se aproximando pelo outro lado da auto-estrada, com as sirenes ligadas, e quase teve que gritar para fazer-se ouvir. ― Não estou ferida.

― Não mas está abalada. ― Ele também elevou a voz, girando a cabeça para observar as patrulhas que se detinham do outro lado da barreira. As sirenes morreram, mas outros veículos de emergência estavam se aproximando, e o estrondo estava crescendo outra vez.

― Estou bem! ― insistiu, e estava… fisicamente, ao menos.

A mão dele se fechou sobre seu braço, levando-a para a barreira de concreto.

― Vamos, sente-se. Me sentirei melhor se fizer isso.

― Não sou eu que esta sangrando ― assinalou.

Tocou a bochecha, como se tivesse esquecido completamente do corte, ou possivelmente desde o começo nem o tinha notado.

― Então vem se sentar comigo e me faça companhia.

Tal como resultaram as coisas, nenhum dos dois chegou a se sentar. Os policiais estavam tentando averiguar o que tinha acntecido, endireitar e pôr em movimento o tráfego novamente, embora fosse muito lentamente, e conseguir que qualquer pessoa ferida fosse levada para o hospital para ser avaliada. Logo um total de sete patrulhas estavam na cena, junto com um caminhão de bombeiros e três ambulâncias. Os condutores dos carros danificados que ainda eram conduziveis receberam instruções para que movessem seus veículos para a beira da estrada.

Havia várias testemunhas do que tinha acontecido. Nenhum sabia se um arrebatamento de fúria entre condutores tinha causado o tiroteio ou se tudo tinha sido um conflito entre turmas rivais, mas todos tinham uma opinião e uma ligeiramente diferente versão dos acontecimentos. A única coisa em que todos estavam de acordo era que as pessoas da Dodge branca tinham disparado ao Nissan, e os do Nissan tinham respondido.

― Alguém tomou os números das placas de qualquer dos veículos? ― perguntou um patrulheiro.

Dante imediatamente olhou para Lorna.

― Números?

Ela pensou na Dodge branca e três números lhe vieram à mente.

― A Dodge é 873. as placas de Nevada eram três dígitos seguidos de três letras.

― Chegou a ver alguma das letras? ― perguntou o patrulheiro, com o lápis preparado.

Lorna sacudiu a cabeça.

― Só recordo os números.

― Isto estreitará a muito a busca. E a do Nissan?

― Hmm… 612.

Anotou isso, também, depois se voltou para falar pelo rádio.

O celular de Dante tocou. Tirou-o do bolso dianteiro das calças e olhou quem chamava.

― É Gideon ― disse, abrindo o telefone. ― O que aconteceu? ― Escutou um momento, logo disse: Magnificamente fodido.

Uma breve pausa.

― Recordo.

Falaram menos de um minuto e logo Lorna o ouviu dizer:

― Uma olhada no futuro. ― O que a fez se perguntar o que estava acontecendo. Estava rindo de algo que seu irmão disse quando repentinamente ela tiritou, envolvendo-se com os braços embora a temperatura estava rapidamente subindo por volta dos 35 graus. Esse horrível, frio que lhe provocava dor nos ossos havia se apoderado dela tão repentinamente como se tivesse se atirado dentro de uma piscina de água gelada.

O olhar de Dante se aguçou, e abruptamente terminou a ligação, colocando o telefone de volta ao bolso.

― O que está errado? ― perguntou, mantendo o tom baixo enquanto a puxava, para aproximá-la.

Lutou contra as ondas de vertigem, trazidas pelo frio intenso.

― Acho que o depravado assassino em série deve ter nos seguido ― disse.

 

Dante a abraçou, apertando-a contra o calor de seu corpo. Seu corpo sempre estava quente, pensou ela, como se sempre tivesse febre. Esse calor agora a fazia se sentir maravilhosamente bem, esquentando sua pele fria.

― Concentre-se ― disse ele, inclinando sua cabeça para que ninguém mais pudesse ouvir. ― Pensa em construir esse refúgio.

― Eu não quero construir um maldito refúgio ― disse irritada. ― Isto não acontecia comigo de te conhecer e quero que pare.

Dante esfregou a bochecha contra seu cabelo e ela sentiu como movia os lábios enquanto sorria.

― Verei o que posso fazer. Enquanto isso, se não quiser construir refúgios, veja se pode me dizer o que causa o problema. Feche os olhos, busque mentalmente ao nosso redor e me diga se capta algo, como uma mudança de padrões de energia em uma área concreta.

Essa idéia lhe pareceu mais prática que a de construir refúgios imaginários para imaginários espelhos. Preferia fazer algo para deter esses repentinos sentimentos mórbidos, em vez de simplesmente aprender a dirigi-los. Fez o que Dante dizia, inclinou-se sobre ele e deixou que suportasse parte de seu peso enquanto fechava os olhos e mentalmente começava a procurar algo estranho. Não sabia o que estava fazendo ou o que estava "procurando" mas se sentia melhor tentando.

― Supõe-se que isto funcionasse de verdade? ― perguntou contra o ombro dele. ― Ou está só me distraindo?

― Isto deveria funcionar. Cada um tem um campo de energia pessoal, mas alguns são mais fortes que outros. Uma pessoa sensitiva tem uma consciência mais ampla de ditos campos de energia. Deveria ser capaz de dizer de onde vem um mais enérgico, algo assim como a capacidade de dizer de onde vem o vento.

Tinha sentido para ela, exposto de forma que pudesse entender. A questão se baseava em se era sensitiva… por que não sentia isso de forma regular? Além daquela vez em Chicago, quando tinha ficado morta de medo pelo que a tinha espreitado naquele beco, nunca tinha sido consciente de nada insólito.

Alguns são mais fortes que outros, havia dito Dante. Talvez a maior parte de sua vida tinha estado rodeada de gente normal. Por isso, estes sentimentos deveriam significar que as pessoas que tinha agora ao redor não eram e seus campos de energia eram muito potentes.

O mais forte de todos era da pessoa que a tinha em seus braços. Concentrando-se nisso, decidiu tomá-lo como medida, como modelo para comparar tudo o que descobrisse. Podia sentir fisicamente toda a força dos poderes de Dante, quase como se alguma energia estática lhe rodeasse o corpo inteiro. A sensação era muito poderosa para resultar agradável mas tampouco era desagradável. Melhor excitante e sexual, como se pequenas pontas de alfinetes de fogo entrassem em seu corpo.

Mantendo uma parte da sensação em primeiro plano de seus pensamentos, começou a ampliar sua consciência, procurando lugares que tivessem fortes correntes. Era, pensava ela, como tentar pescar uma truta.

Ao princípio, não havia nada mais que um fluxo normal de energia, embora de muitas pessoas diferentes. Dante e ela estavam rodeados por policiais, bombeiros, médicos, gente que tinha vindo em sua ajuda. Seu fluxo de energia era afetuoso e consolador, preocupado, protetor. Eram boas pesssoas, todos tinham suas esquisitices mas no fundo eram bons.

Ampliou o círculo mental. O padrão aqui era ligeiramente diferente. Estavam os espectadores, os fofoqueiros, os que tinham curiosidade mas não se moviam para ajudar. Queriam mexericar sobre o acidente, sobre ter estado na fila X número de horas como se fosse algo difícil de agüentar, mas não queriam fazer nenhum esforço. Eles…

― Ali!

Sobressaltou-se, um pouco alarmada pelo que estava sentindo.

― Onde está? ― sussurrou Dante contra seu cabelo, apertando os braços.

Provavelmente as pessoas ao redor deles pensava que a estava consolando, ou que se aferravam o um ao outro agradecidos por não ter sofrido nenhum dano.

Ela não abriu os olhos.

― A minha esquerda. Aproximadamente… não sei cem metros, talvez. A um lado, como se estivesse encolhendo o ombro.

― Ele?

― Ele ― respondeu ela, definitivamente.

― Nossos amigos falharam completamente ― disse o capanga de Ansara indignado, baixando os binoculos que sustentava com uma mão para se concentrar no telefonema. ― Ele destroçou o carro mas não estão feridos.

Rubén amaldiçoou em voz baixa. Supôs que isto só provava o velho refrão: "Se quiser que algo se faça bem, faça você mesmo".

― Suspende a vigilância ― disse ― tenho algo mais em mente.

Os planos tinham sido muito complexos. O melhor plano era o mais simples. Havia menos detalhes em que podiam falhar, menos gente que pudesse estragar as coisas, menos oportunidades de que o objetivo notasse.

Em vez de tentar fazer que a morte de Raintree parecesse um acidente, o mais fácil era esperar até o último minuto, quando seria muito tarde para que o clã se reunisse no santuário, então simplesmente lhe colocar uma bala na cabeça.

O simples sempre era o melhor.

― Já vejo de quem está falando ― disse Dante ― mas não posso descobrir nada dessa distância. Não parece estar fazendo algo, só está parado fora de seu carro como várias pessoas.

― Olhe ― disse Lorna ― está nos olhando.

― Pode me dizer algo de seu campo de energia?

― Está enviando um monte de ondas. Ele é mais forte que qualquer pessoa senti por aqui, mas, hum… diria que em nenhum lugar próximo há alguém tão forte como você.

Ela levantou sua cabeça e abriu os olhos.

― Ele é o único estranho pelo que sei. Está certo de que não estou imaginando isso?

― Estou certo. Tem que começar a confiar em seus sentidos. Provavelmente ele simplesmente está…

― Senhor Raintree ― disse um dos policiais fazendo gestos para Dante.

Deu um beijo rápido na boca de Lorna, logo a soltou e foi até o policial. Quisesse ou não, Lorna o seguiu, embora parou asssim que pôde, quando o controle já não a estava empurrando para avançar.

A cena do acidente começava a se esclarecer; as testemunhas tinham feito suas declarações, e cada vez mais pessoas conseguiam manobrar seus veículos ao redor do destruído Jag, os restos do choque e todos os veículos de resgate. Tinham chegado duas gruas, uma para rebocar o jaguar de Dante, a outra para pegar o carro envolvido no acidente porque tinha o radiador quebrado. Antes que levassem seu pobre carro, Dante tirou sua carteira e seu seguro do porta-luvas, assim como o controle da porta da garagem. Dado o destroços em que tinha ficado o carro, encontrar algo inteiro era um descobrimento.

Tudo o que Lorna sabia era que Dante não estava absolutamente aborrecido pelo Jaguar. Parecia-lhe uma moléstia, mas o carro em si mesmo não significava nada para ele. Já tinha tomado providências, um carro de aluguel o esperaria no hotel e um de seus muitos empregados estava a caminho para buscá-los. Como ela sempre tinha suspeitado, o dinheiro sempre ajuda a salvar as dificuldades na vida.

Pensar em dinheiro a impulsionou a colocar despreocupadamente a mão no bolso esquerdo dianteiro. O dinheiro continuava ali, sua licença de motorista e as pequenas tesouras estavam no bolso direito. Não tinha nem idéia de que bem poderiam fazer aquelas tesouras em uma situação realmente perigosa, mas as conservava de todos os modos.

Notou que se sentia muito melhor. Que a desagradável, fria sensação, foi embora. Deu a volta e observou onde tinha estacionado o observador. Não estava ali, nem seu carro tampouco. Coincidência, perguntou-se, ou causa e efeito?

E não era estranho que ela tivesse aquela insuportável sensação de frio antes do incêndio no cassino, como antes de que quase fosse baleada no tiroteio entre guangues? Talvez não estava reagindo a uma pessoa em concreto, e sim a algo que estava a ponto de ocorrer. Ou melhor a frieza era uma advertência. Certamente, também tinha tido esse sentimento pouco antes de que Dante lhe desse um Mcmuffin para tomar no café da manhã, mas a idéia ainda podia seguir em pé: Cuidado! Mcmuffin aproximando-se!

Quase havia chegado a aceitar aquilo da clarividência, porque mesmo quando tinha passado parte de sua vida insistindo em que simplesmente era boa com os números, sempre soube que era mais que isso. Não queria descobrir ainda seus outros talentos, em particular um que parecia ser inútil. Uma advertência estava bem se soubesse o que estava enfrentando. De outra maneira, para que se incomodar?

― Nosso carro esta aqui ― disse Dante, aparecendo por trás e descansando a mão na curva da cintura de Lorna. ― Quer vir ao hotel comigo ou voltar para casa?

― Casa? Estava se refirindo a sua casa como se fosse a dela também? Olhou para ele, lista para desfazer seu engano e as palavras morreram em seus lábios. Olhava-a com uma ardente e firme intenção; não tinha sido um lapsus linguae e sim uma advertência de outra classe.

― Ambos sabemos aonde vamos com isto ― disse ― tenho uma suíte no hotel e os eletricistas arrumaram a luz ontem, então está em ordem. Pode vir ao hotel ou ir para casa, mas de qualquer forma vai estar por minha conta. A única diferença é que se for para casa terá mais tempo, se precisar.

Lorna ia precisar mais que tempo, mas estar de pé na beira da interestadual não era o lugar ideal para ter a discussão que sabia que se aproximava.

― Ainda não decidi se vou dormir contigo ou não, e irei no meu ritmo, não no teu ― respondeu. ― Irei contigo ao hotel porque não quero passar outro dia fechada nessa casa, assim não fique todo metido, Raintree.

A expressão de intensa concentração desapareceu, para ser substituída por uma de ironia. Avisando a si mesmo disse:

― Muito tarde.

 

Lorna estava muito agitada para apenas se sentar na suíte de Dante, enquanto ele estava literalmente por toda parte do hotel, dirigindo a limpeza e os reparos, andando com os peritos do seguro, reunindo-se com empreiteiros. Seguiu seus passos, escutando mas sem participar. Os detalhes entre os bastidores de um hotel de luxo eram fascinantes. O lugar estava à espera também. Em lugar de esperar até que a companhia de seguros pagasse, ele havia trazido os peritos para tirar fotos; depois continuaria com os reparos usando seu próprio dinheiro.

Que fosse capaz de fazer algo assim lhe dizia que era extremamente rico, o que fazia de seu estilo de vida algo mais que uma declaração a respeito de Dante. Não tinha um exército de criados esperando por ele. Vivia em uma magnifica casa, mas não era uma mansão. Conduzia carros caros, mas os conduzia ele mesmo. Preparava seu próprio café da manhã, carregava sua própria lava-louça. Gostava do luxo, mas estava satisfeito com muito pouco.

Quando aconteceu isto ao hotel, entretanto, foi inflexível. Tudo tinha que ser de primeira classe, do papel higiênico dos banheiros aos lençóis nas camas. Um quarto que tivesse sido prejudicado pela fumaça não podia ser limpo e descrito como "bastante bom." Tinha que ser perfeito. Tinha que ser melhor do que tinha sido antes do incêndio. Se o aroma de fumaça saía das cortinas, as cortinas eram desprezadas; igual aos quilômetros de tapete.

Lorna descobriu que no dia anterior tinha sido uma casa de loucos, com hóspedes com permissão para ir a seus quartos e recuperar seus pertences. Devido ao fato de que o cassino destruído estava anexo ao hotel, por questões de segurança os hóspedes tiveram que ser escoltados para se assegurar de que sua curiosidade não os conduzisse aonde não devessem ir.

Um cassino existia por uma só razão, e essa razão era o dinheiro. Em um breve momento em que teve tempo para conversar, contou a Lorna que mais de seis milhões de dólares por dia tinham que passar pelo cassino só para que ele cobrisse seus gastos, e já que todo o sentido de um cassino era sua generosa margem de lucro, a quantidade de dinehiro vivo com a que ele realmente lidava diariamente era alucinante.

A sucata acre de máquinas caça-níqueis, derretidas e carbonizadas, continham milhares e milhares de dólares, por isso os destroços tiveram que ser vigiados durante vinte e quatro horas até que as máquinas pudessem ser transportadas e salvar seu conteúdo tanto quanto pudessem ser. Aproximadamente a metade delas tinha vomitado boletos impressos em vez de despejar cuartos[18], que salvaram tanto tempo como dinheiro. A caixa forte de moedas e a câmara blindada principal eram incombustíveis, salvando assim uma quantidade de dinheiro enorme, os empregados situados nos caixas tinham evitado sair até ter salvo o dinheiro, o qual tinha sido muito leal por parte deles, mas não muito inteligente: as duas vítimas tinham sido de suas filas.

O inspetor do departamento de bombeiros estava finalizando sua investigação quando Dante o encurralou.

― O incêndio foi provocado? ― exigiu sem rodeios.

― Tudo indica que sua natureza era elétrica, senhor Raintree. Não encontrei nenhum rastro de aceleradores na fonte do incêndio. As chamas alcançaram temperaturas excepcionalmente altas, assim tenho suspeitas, admito.

― Então quando os detetives me interrogavam aqui, imediatamente depois do incêndio no domingo de noite, você não tinha começado sua investigação. Isto não era a cena de um delito.

O inspetor do departamento de bombeiros esfregou o nariz.

― Não o informaram? Entrou uma chamada aproximadamente no momento em que começou o incêndio. Algum louco afirmou que estava incendiando o cassino. Quando o localizaram, resultou que esta pessoa estava comendo em um dos restaurantes e quando o alarme de incêndios disparou, ele tirou seu cômodo celular e fez uma tentiva de levar a glória. Tinha bebido muito.

O chefe sacudiu a cabeça.

― Algumas pessoas estão malucas.

Dante encontrou com o olhar fixo de Lorna; ambos pesarosos.

― Perguntávamo-nos que era que tinha acontecido. Já começava a me sentir como um teórico de conspiração ― disse.

― Coisas estranhas acontecem nos incêndios. Uma delas é como é que vocês dois estão vivos. Não tinham nenhuma proteção absolutamente, mas o calor e a fumaça não os feriram. Assombroso.

― Senti como a fumaça nos alcançava ― disse Dante em um tom seco. ― Pensei que estava em meus pulmões.

― Mas suas vias respiratórias não tinham nenhum dano significativo. Vi morrer pessoas que enfrentaram menos fumaça que a que vocês dois respiraram.

Lorna se perguntou o que ele pensaria se pudesse ver como ficou o Jaguar de Dante, já que os dois andavam sem uma contusão.

Não, não era correto. Franzindo o cenho, olhou para Dante, realmente o olhou. Tinha tido um corte no rosto, onde o impacto da bolsa de ar literalmente tinha aberto a pele sobre o maçã do rosto. Estava machucado e inchado e seu braço esquerdo ferido.

Só alguumas horas mais tarde, sua bochecha parecia bem. Ela não podia ver nada do corte. Não havia nenhum inchaço, nenhuma contusão. Sabia que não tinha imaginado porque havia sangre em sua camisa e ele tinha ido à suíte para se trocar; em vez da camisa de pólo, agora usava uma camisa branca social com os jeans, as mangas enroladas até expor seu antebraço esquerdo, não machucado.

Ela não tinha nenhuma contusão, tampouco. Depois do modo que tinha sido golpeada por toda parte, deveria ter ao menos alguns músculos rígidos e doloridos, mas se sentia bem. O que acontecia?

― Era um beco sem saída ― comentou depois o inspetor do departamento de bombeiros, que tinha se afastado e inspecionava o dano feito ao cenário.

― A estupidez de algumas pessoas é alucinante.

―Sei ― disse ela distraídamente, ainda perseguindo mentalmente o mistério do desaparecimento do corte. Havia alguma forma de perguntar diplomaticamente a um homem, você é humano?

Mas e sua própria falta de contusões? Sabia que ela era humana. Era parte de suas habilidades? Tinha uma maneira de mantê-la segura dos ferimentos?

―O corte em seu rosto ― perguntou, muito inquieta para se calar. ― O que aconteceu com ele?

―Me curo rápido.

― Não me solte essa tolice ― disse, mais zangada que quando a havia obrigado. ― Sua maçã do rosto estava machucada e inchada, e a pele estava aberta faz apenas umas horas. Agora não há uma só marca.

Fez para ela um gesto rápido como um relâmpago, então disse:

― Vamos até a suíte, então poderemos conversar. Há algumas coisas que não mencionei.

― Sem brincadeiras ― resmungou ela quando passaram pelos escritórios do hotel para o elevador privado, que ia apenas para sua suíte.

O escritório estava no mesmo andar, mas estava separado da suíte, do outro lado do hotel. Quando o chefe de segurança a havia arrastado até ali, tinham usado um dos elevadores públicos. “Não me estranha que não houvesse nenhuma outra pessoa no andar quando eles o evacuaram”, pensou; “o andar inteiro era dele”.

A suíte de mil metros quadrados se sentia e se parecia com qualquer suíte de hotel de luxo: completamente impessoal. Ele havia dito que as únicas vezes que passava a noite ali era quando alguma complicação o mantinha no cassino, tão tarde que conduzir até a casa era ridículo. Os quartos eram grandes e confortáveis, mas não havia nada dele ali, exceto as mudas de roupa que guardava para as emergências.

Era estranho pensou, ela conhecia seu gosto em mobiliário, suas cores preferidas, as obras artísticas que ele tinha escolhido pessoalmente. Algum desenhista de interiores que se especializava em hotéis, não em casas, tinha decorado a suíte.

Ele desceu os dois degraus que levavam a sala de estar rebaixada e às janelas. Tinha notado que ele tinha preferência pelas janelas. Gostava do vidros e aos montes, mas gostava mais de estar fora, que era pelo que a suíte tinha uma varanda banhada pelo sol, grande o bastante para conter uma mesa e cadeiras, uma sala de jantar ao ar livre.

― Bem ― disse ela ― agora me diga como as contusões e os cortes se desvaneceram só em algumas horas. E enquanto está nisso, me diga por que não estou machucada também. Não estou nem sequer dolorida!

― Isso é fácil ― disse tirando um amuleto de prata de seu bolso e cobrindo a corda com sua mão, de maneira que o amuleto enchia sua palma. ― Isto estava no porta-luvas do carro.

O pequeno amuleto era alguma espécie de ave em vôo, talvez uma águia. Ela sacudiu a cabeça.

― Não compreendo.

― Este é um amuleto de proteção. Falei para você sobre eles. Gideon me fornece isso. No geral me envia amuletos de fertilidade.

Lorna se sacudiu para trás, fazendo uma cruz com os dedos como se afugentasse um vampiro.

― Mantenha essa coisa longe de mim!

Ele riu entre dentes.

― Disse que isto é um amuleto de proteção, não um amuleto de fertilidade.

― Quer dizer que isso é como uma camisinha que se coloca ao redor de seu pescoço em vez de colocá-lo em seu pênis?

― Não esse tipo de proteção. Este tipo previne o dano físico ou o minimiza.

― Pensa que por isso que não fomos feridos hoje?

― Sei que foi isso. Desde que é polícial, Gideon usa um o tempo todo. Este chegou pelo correio sábado, o que significa que acabou de fazê-lo. Não sei por que fez um amuleto de proteção em vez de um amuleto de fertilidade, a menos que agora tenha um complô diabólico para disfarçar finalmente um amuleto de fertilidade como um amuleto de proteção, mas esse é o verdadeiro trato. Com o solstício perto, seus dons devem estar fora dele, assim como fazem os meus às vezes. Deve ter infundido um inferno de encantamento ― disse admiradamente. ― Não o tinha usado. Só o coloquei no porta-luvas e me esqueci dele. Normalmente os amuletos são para indivíduos específicos, mas quando nenhum de nós foi ferido hoje... Suponho que deve afetar a qualquer um dentro de uma certa distância. Essa é a única explicação.

Realmente, aquilo era um pouco tranqüilizador. Até gostou do modo em que ele o tinha expresso: Infundido um inferno de encantamento.

― Faz que se cure mais rápido, também?

Dante sacudiu a cabeça quando deslizou o amuleto em seu bolso.

― Não, isto é só uma parte de ser Raintree. Quando digo que me curo rápido, quero dizer realmente, realmente rápido. Um pequeno corte assim não é nada. Um corte mais profundo poderia levar toda a noite.

― Que terrível para você ― disse ela franzindo o cenho. ― Que outras injustas vantagens tem?

― Vivemos mais tempo que a maioria dos humanos. Não muito mais, mas nossa expectativa de vida média é aproximadamente de noventa a cem anos. São no geral bons anos também. Tendemos a estar realmente saudáveis. Por exemplo, nunca estive resfriado. Somos imunes aos vírus. As infecções bacterianas ainda podem nos afetar, mas os vírus basicamente não reconhecem nossa composição celular.

De todas as coisas que havia dito, não ter tido alguma vez um resfriado lhe parecia o mais maravilhoso.

― Isso significa também que nunca teve gripe e… Não pode se contamoinar com a AIDS!

― Isso. Nós funcionamos mais quentes que os humanos, também. Minha temperatura está geralmente ao redor dos cem graus. O tempo tem que se estar realmente, realmente frio antes de que me sinta incômodo.

― Isso é tão injusto ― se queixou ela. ― Quero ser imune aos resfriados e à AIDS também.

― Nem sarampo ― murmurou ele. ― Nem varicela. Nem herpes. Nem resfriado. ― Seus olhos dançavam com alegria. ― Se realmente quer ser Raintree e não ter nunca o nariz congestionado outra vez, há uma forma.

― Como? Enterrar um frango no lado escuro da lua e correr para trás ao redor de um toco sete vezes?

Ele fez uma pausa, detido pela imagem.

― Tem uma imaginação muito estranha.

― Me diga! Como alguém se torna Raintree? Qual é o ritual de iniciação?

― É um antigo. Já ouviu dele.

― O do frango é o único que conheço. Vamos, que é?

Seu sorriso era lento e quente.

― Tenha um bebê meu.

 

Lorna ficou pálida, em seguida se ruborizou e em seguida empalideceu de novo.

― Não tem graça ― disse em um tom sufocado, se levantando para dar voltas inquietamente ao redor do quarto. Ela recolheu uma almofada e a acomodou, mas em lugar de recolocá-la no sofá, levantou-se com ela abraçada ao peito, inclinando a cabeça.

― Não estou brincando.

― Não... não deveria ter um bebê como um meio para conseguir um fim. As pessoas que não querem bebês para eles mesmos nunca, nunca deveriam tê-los.

― De acordo ― disse ele brandamente, afastando-se das janelas e caminhando para ela pausadamente como se ele não tivesse um destino, nenhum plano.

― Não é algo para fazer a toa. ― Ele jogava sujo, dizendo Tenha um bebê meu como se fosse a sério. Não podia dizer isso a sério. Só fazia dois dias que se conheciam. Isso era algo que os homens diziam para seduzir as mulheres, porque centenas de séculos atrás algum ardiloso bastardo supôs que à maioria das mulheres podiam ser controladas por meio dos bebês.

― Estou levando isso muito a sério, prometo isso. ― Seu tom era cortês enquanto tocava seu ombro, curvando a palma sobre seu contorno antes de deslizar a mão por suas costas. Ela sentiu o calor se transferindo de sua pele para a dela, ardendo através de suas roupas. As gemas dos dedos procuraram sua coluna vertebral, acariciando-a para baixo, apagando brandamente a tensão que pulsava sob a pele.

Ela não se deu conta de que estava tão tensa, ou que a suave massagem a deixava como a manteiga. Permitiu-lhe que a aproximasse contra ele, apoiando a cabeça em seu ombro, porque tudo o que fazia a deixava bem. Tranqüila... o olhou com olhos entreabertos.

― Não ache que não notei o quanto essa mão está perto do meu traseiro.

― Estaria desiludido se não notasse. ― Um sorriso curvou sua boca quando depositou um beijo quente, e depois outro, em sua têmpora.

― Não a desca mais ― avisou.

― Tem certeza?

Começando no côs de seu jeans, ele deslizou um dedo pela costura central, descendo, pressionando ligeiramente, enquanto sua cálida palma massageava o traseiro. Esse dedo deixava um rastro de fogo atrás de si, fazendo ela se retorcer e estremecer e começar, ao menos dez vezes, a dizer que não. Ele se deteria se dissesse. A decisão de continuar ou não, era dela ― mas essa segurança era o que a impedia de pronunciar uma só palavra. Em lugar disso, o que fez foi ficar sem fôlego com angustiada antecipação, e se arquear, e agarrar ― esperando, esperando, centrando sua atenção no lento avanço de sua carícia, como sua mão deslizava lentamente entre suas pernas desde detrás. Ele então pressionou mais forte, seus dedos roçando contra sua entrada através de seu jeans, de forma que a fricção da costura raspava ligeiramente sua carne que estava suave e elástica.

Ele a esteve atraindo a este ponto durante dias, desde essa primeira vez que se beijaram em sua cozinha, alimentando pacientemente a faísca do desejo até que se converteu em uma pequena chama, depois, mantendo a chama com toques fugazes e algo ainda mais difícil de resistir: seu manifesto desejo por ela. Podia reconhecer o que ele fazia, ver os sutis avanços, e inclusive apreciar o domínio de sua contenção. Se meter na cama com ela a passada noite, sem tocá-la, tinha sido diabólicamente inteligente. Desde o momento em que se conheceram, ele a tinha obrigado a fazer várias coisas, mas não tentou nem sequer uma vez forçar sua resposta. Ela teria se fechado em banda se tivesse feito. A faísca teria se apagado, e ela não teria deixado que fosse acesa de novo.

Seu boca cálida percorreu a linha de sua mandíbula, mordiscando com suavidade e deleneando, como se ele não quisesse nada mais que isso e tivesse todo o tempo do mundo para saboreá-la. Só a duríssima protuberância em seu jeans deixava transparecer urgência, e ela estava tão fortemente apertada contra ele que podia sentir cada contração nervosa, cada pulsação, que a incitavam a separar suas pernas e lhe permitir aproximar-se ainda mais.

Depois, sua boca se fechou sobre a sua e o último farrapo de controle se dissolveu. O beijo era duro, profundo e faminto, sua língua tomando sua boca. O desejo chispava por seus nervos, deixava-a quente, rendida e como se não tivesse ossos. Sua mão livre se moveu até seus seios, encontrou seus mamilos através das camadas de tecido, beliscou-os brandamente para endurecê-los. Ele a tinha agora; Ela não impedia nenhuma de suas carícias, e a roupa que separava seu corpo do dele era repentinamente enloquecedora. Ela queria o resto, tudo o que ele tivesse para dar, e com um brilho de clareza, ela soube que tinha que dizer o que queria dizer agora. Um minuto mais poderia ser muito tarde.

A prova do longe que ela tinha chegado estava na quantidade de força de vontade que precisou para separar sua boca da dele.

― Precisamos conversar ― disse ela com voz tensa e rouca.

Ele gemeu e riu ao mesmo tempo.

― Oh, Meu Deus! ― resmungou, a frustração era evidente em seu tom. ― As quatro palavras que garantem que um homem se paralise de medo. Não pode esperar?

― Não, se trata disso. De nós. Agora.

Ele lançou um suspiro e pressionou sua testa contra a dela.

― Tem um sádico senso de oportunidade, sabia?

Lorna deslizou as mãos pela seda negra de seu cabelo, sentindo o frescor das mechas, o calor de seu couro cabeludo.

― É culpa sua. Quase o esqueço. ― Sua língua parecia um pouco grosa, seu discurso mais lento que o normal. Sim, isto era definitivamente culpa dela, tudo isso.

― Falemos então. ― A resignação era evidente em suas palavras, a resignação de um simples macho que só queria ter relações sexuais. Ela teria rido, se não fosse pelo pesado puxão do desejo que ameaçava turvar todo o resto.

Ela tragou saliva, lutou para conseguir alinhar as palavras em sua cabeça para poder dize-las de forma coerente.

― Minha resposta... sobre se faremos ou não... depende de você.

― Voto sim ― respondeu ele, mordendo seu lóbulo.

― Esta coisa de controle mental... tem que parar. Posso ser sua prisioneira ou sua amante, mas não serei ambas.

Ele levantou então sua cabeça, seu olhar se tornou frio e afiado.

― Não há nenhum controle mental envolvido nisto. Não estou forçando você. ― A cólera entrecortava suas palavras.

― Sei ― disse ela, lançando um trêmulo suspiro. ― Posso notar a diferença, acredite em mim. É que... tenho que ter escolha, seja de ficar ou ir. Tem que haver liberdade. Não pode continuar me guiando como uma boneca.

― Era necessário.

― A princípio. Depois odiava isso, odeio isso agora, embora tivesse razões válidas no princípio. Agora não. Acho que está muito acostumado a fazer tudo a sua maneira, Dranir.

― Teria escapado ― disse ele categricamente.

― Minha escolha. ― Ela não podia se render nisto. Dante Raintree era uma força da natureza; lidar com ele em uma relação seria o suficientemente desafiante mesmo sem sua habilidade para prende-la com um pensamento. Ele tinha que ceder ante o livre-arbítrio dela ou sua única relação seria a de carcereiro e prisioneira.

― Somos iguais... ou não somos nada.

Lê-lo não era fácil, mas ela podia ver que não gostava de renunciar ao controle absolutamente. Intuitivamente, ela captou seu dilema. A um nível puramente intelectual, ele entendia. A um nível mais primitivo, ele não queria perdê-la, e ele estava disposto a ser tão autocrático e autoritário quanto fosse necessário.

― Tudo ou nada. ― Encontrou seu olhar, enfrentando ele como lutadores em um ringue de boxe. ― Não pode usar o controle mental sobre mim nunca mais. Não sou sua inimiga. Em algum momento tem que confiar em mim, e esse momento é agora. Ou pensava me conservar presa para sempre?

― Não para sempre ― resmungou ele. ― Só até…

― Até o que?

― Até que quisesse ficar.

Ela sorriu ante essa áspera admissão e agarrou seu cabelo com ambas as mãos.

― Quero ficar ― disse simplesmente, e o beijou no queixo. ― Mas em algum momento poderia querer ir. Tem que fazer sua escolha, e se esse dia chega, tem que me deixar ir. Eu faço a mesma escolha contigo, que um dia poderia não me querer a seu lado. Quero sua palavra. Me prometa que nunca mais usará o controle mental comigo.

Ela via sua fúria e sua frustração, via sua mandíbula marcar-se ao apertar os dentes. Sabia o que estava pedindo a ele, renunciar a um poder estava contra cada instinto que ele tinha, tanto como homem e como Dranir. Ele vivia em dois mundos, o normal e o paranormal, e em ambos ele era o chefe. Mesmo subestimando como mantinha as coisas, ele ainda era o chefe. Se não fosse o Dranir Raintree, seu natural predomínio estaria mais controlado, mas a realidade era a que era, e ele era um rei nesse mundo.

Abruptamente ele deixou cair seus braços e deu um passo atrás. Seus olhos estavam entreabertos e ferozes.

― Pode ir.

Lorna mal controlou um protesto pela perda de seu tato, de seu calor. O que ele estava dizendo?

― Está me dando sua permissão… ou uma ordem?

― Uma promessa.

De repente respirar foi difícil. Seus lábios tremiam, ela os apertou e começou a falar, mas ele levantou uma mão para detê-la.

― Uma coisa.

― O que?

O verde de seus olhos quase resplandecia, estavam tão determinados.

― Se ficar... os freios acabam.

Um aviso oportuno, pensou ela aturdida, um pouco trêmula pela antecipação.

― Fico ― conseguiu dizer, dando meio passo a frente.

Meio passo foi tudo o que ela teve tempo de dar antes que ele se movesse, uma explosão de poder contido, agora era livre de toda restrição. Se ela era livre, então ele também. Ele a levantou e a levou ao dormitório, movendo-se tão rápido que sua cabeça dava voltas. A lenta e cuidadosa sedução tinha terminado, e só ficava o puro desejo. Lançou-a sobre a cama e a seguiu, puxando suas roupas, seus movimentos eram bruscos pela urgência, embora ela o ajudasse com mãos trêmulas, enquanto abria botões e zíperes, ganchos e cordões. Ele tirou de um puxão os sapatos e os jeans, enquanto ela lutava por desabotoar sua camisa, deslizou a roupa interior pelas pernas dela, enquanto ela lutava por descer seu zíper, com dificuldade pelo impulso de sua ereção.

Ele desceu de um puxão seu jeans e cueca, e os chutou fora. Lorna tentou alcança-lo, tentou acaricia-lo, mas ele era uma onda gigantesca que a comprimia contra a cama e a esmagava sob seu peso. Sua penetração não foi cuidadosa, foi dura, rápida e poderosa, levando-o até o fundo.

Ela lançou um grito sufocado, seu corpo se estremeceu pelo impacto embora se elevou para encontrá-lo. Seu calor a queimava, por dentro e por fora. Ele se separou, empurrou outra vez, e outra. Seu cérebro gaguejou uma advertência do que esse calor queria dizer, e ela conseguiu dizer:

― Camisinha.

Ele preguejou, separou-se, e abriu bruscamente uma gaveta da mesinha. Ele rompeu a primeira camisinha, ao desenrolá-la. Preguejando ainda mais, foi mais devagar, teve mais cuidado com a segunda. Quando estava embainhado de forma segura, empurrou nela outra vez, a mantinha presa a ele, seus corpos se moviam juntos enquanto o alívio os estremecia. As lágrimas rolavam por seu rosto. Isso não era um orgasmo, era... alívio puro, como se a dor incontrolável repentinamente tivesse desaparecido. Era uma culminação… não uma sexual, e sim algo que foi mais profundo, como se uma parte de si mesma houvesse se perdido e aparecesse de repente.

Estava completa, quando ela não sabia o quanto estava vazia; Farta, quando ela não sabia que tinha fome.

Ele se levantou, suportando seu peso em seus braços enquanto retrocedia, em seguida avançando com um impulso lento, profundo.

― Não chore ― murmurou, beijando as lágrimas de sua cara molhada.

― Não estou ― disse ela ― só é um desabafo.

― Ah.

Disse isso como se entendesse, e talvez entedesse. Ele prendeu seu olhar e a suspendeu enquanto se movia para frente e para trás, provocando sua resposta, indo até o fundo para encontrar mais. Ela estava relaxada e tensa ao mesmo tempo: relaxada porque sabia que ele não ia abandona-la, e tensa pelo crescente prazer.

Ocorreu mais rápido do que ela teria acreditado possível. Em lugar de flutuar fora de seu alcance, elevando-se lentamente, ela experimentou abruptamente uma sensação que rugiu através de todo seu corpo. Dante se deixou ir, impulsionando-se rápida e profundamente, e a seguiu.

Quando ela conseguiu respirar de novo, abrir os olhos, a primeira coisa que viu foi fogo. Todas as velas do quarto estavam acesas.

― Me diga por que renunciou a seu dom.

Jaziam entrelaçados, a cabeça dela no ombro dele, mal tinham se recuperado do que haviam sentido, tal cataclismo que nenhum deles tinha falado durante muito tempo. Em lugar disso se acariciaram lentamente um ao outro, o tato substituindo às palavras, toques de tranqüilidade e conforto, de silenciosa alegria.

Ela suspirou, pela primeira vez em sua vida se sentia um pouco distanciada da infelicidade de sua infância.

― Acho que já sabe. Não é uma história original, ou interessante.

― Provavelmente não. Me conte de qualquer forma.

Ela sorriu contra de seu ombro, contente que ele não fizesse um grande problema disso, embora o sorriso murchou quase tão rápido como tinha florescido. Falar de sua mãe era difícil, embora tivesse quinze anos a última vez que a viu. Talvez nunca seria fácil, mas ao menos a dor e o medo eram menos imediatos.

― Embora seja ruim, para uma grande quantidade de crianças é pior. A única razão porque ela não me abortou foi que assim podia obter o cheque mensal. Ela me dizia isso todos os meses quando chegava. Sacudia o envelope em frente a mim e dizia, “esta é a única razão pela que está viva, monstro”. Esse cheque a permitia conseguir drogas e bebida.

Ele não disse nada, embora sua boca estivesse apertada.

Sua cabeça encontrou um lugar mais confortável em seu ombro, e se aconchegou contra ele, absorvendo seu calor. Ela sabia que ele sentia calor, mas era bonito saber que não tinha imaginado coisas.

― Havia bofetadas constantemente, e me lançava as coisas, taças, garrafas de vinho vazias, um abridor de latas. O que quer que tivesse perto. Uma vez lançou uma lata de sopa de frango com macarrão, bateu na minha cabeça, e me deixou inconsciente. Tive dor de cabeça durante dias inteiros. E ela não me deixou me comer a sopa.

― Quantos anos tinha?

― Essa vez... seis, acho. Tinha começado à escola e tinha descoberto os números. Algumas vezes estava tão excitada que tinha que contar a alguém o que tinha aprendido sobre os números esse dia, e ela era a única que tinha. Disse a minha professora que tinha caído e golpeado a cabeça no meio-fio.

― Estaria melhor a cargo dos serviços sociais ― grunhiu ele.

― Acabei ali quando tinha dezesseis anos. Ela saiu um dia e nunca retornou. Recordo... embora ela tinha deixado claro quanto me odiava, quando partiu foi como se parte de mim faltasse, porque ela era o que conhecia. Então não estava indefesa, mas era pequena... não importa o quanto seja ruim, as crianças fazem qualquer coisa para se agarrar que consideram uma família, sabe? ― suspirou. ― Sei que exagerei sobre o bebê. Sinto muito. Disse “bebê”, e isso é um de meus interruptores.

Um pequeno sorriso curvou sua boca.

― Não se incomode outra vez, mas não estava brincando. Quando uma mãe humana dá a luz a um bebê Raintree, ela se converte em Raintree. Não, não entendo a ciência disso. Algo a ver com hormônios e a mistura de sangue, e o bebê sendo geneticamente dominante. Não estou seguro de haver alguma ciência que explique. A magia não precisa ser lógica.

A explicação a intrigou. Tudo o que tinha aprendido a respeito dos Raintree a intrigava. Era um mundo tão diferente, uma experiência diferente, e existia normalmente dentro do mundo real, não no mundo real que conheciam, porque se isso alguma vez acontecia, então sua existência não só não seria normal mas também poderia deixar de existir absolutamente. Lorna tinha poucas ilusões sobre o mundo em que vivia.

― O que acontece aos homens humanos que têm bebês com mulheres Raintree? O que muda para eles?

― Nada ― disse Dante ― permanecem humanos.

Isso não parecia justo, e assim disse. Dante encolheu de ombros.

― A vida não é perfeita. Tem que aceitar isso.

Não era mais que a verdade. Ela sabia aceitar. Também sabia que, agora mesmo, estava muito contente.

A mais ou menos dúzia de velas que havia no quarto dava calor o suficiente para começar a se sentir incômoda. Olhando a seu redor, ela se deu conta de que Dante e o fogo, anavm de mãos dadas. Não gostava do fogo, sempre lhe daria medo, mas... a vida não era perfeita. Tem que aceitá-lo.

― Pode apagar essas velas? ― perguntou.

Ele levantou sua cabeça do travesseiro e as olhou, como se não soubesse que ardiam.

― Maldita seja. Sim, não há problema. ― De repente, apagaram-se, as mechas fumegando brandamente.

Lorna subiu em cima dele e o beijou, sorrindo quando sentiu um salto de interesse contra a parte interior de sua coxa.

― Agora, menino grande, vejamos se pode acendê-las outra vez.

 

Domingo pela manhã.

Ela tinha ficado.

Dante voltou para o quarto vindo da varanda onde tinha presenciado o amanhecer, uma intensa satisfação o preenchia enquanto via Lorna ainda placidamente adormecida na cama. Só a parte superior de sua cabeça era visível, o cabelo de um vívido vermelho escuro contra o branco do travesseiro, mas era agudamente consciente do que significava o fato de não estar coberta pelo lençol.

Estava se sentindo mais segura. Não completamente segura, ainda não, mas mais segura. Quando estava na cama com ela, dormia estirada, relaxada, abraçada contra ele. Quando deixava a cama, embora fosse só por cinco minutos se encolhia em uma hermética, protetora bola. Um dia ― talvez não esta semana nem este mês, ou inclusive este ano, mas um dia ― desejava poder vê-la estirada durante o sono, com a cabeça descoberta, talvez não completamente coberta. Então poderia saber que se sentia segura.

E quando chegasse o dia que não sentisse a necessidade de checar constantemente seu paradeiro, poderia saber que se sentia seguro, também.

Ele não a checava constantemente; o orgulho não lhe deixava fazer isso nem a ela ou a ele mesmo, mas a necessidade, a ansiedade, estava sempre aí.

Na quarta-feira não foi com ele. Telefonou para a concessionária de Jaguar e lhe mandaram um carro novo, e ela ficou ali para recebê-lo. O vendedor telenou para dizer que a entrega tinha sido feita, mas Dante esperou que Lorna também telefonasse e lhe dissesse. Não tinha feito. Ele havia também recebido um carro, o dela ― um escândalo ao passar as marchas, um Corolla vermelho ligeiramente oxidado ― entregue aquela manhã, tinha sido agudamente consciente de que ela era livre, tinha carro, e dinheiro no bolso. Se quisesse partir, não poderia detê-la. Tinha dado sua palavra.

Tinha desejado telefonar, só para assegurar a si mesmo que ainda estava ali, mas não fez. Podia ir embora assim que que terminasse a chamada, assim falar com ela em qualquer momento era inútil. O único que podia fazer, que poderia fazer, era desejar. E rezar.

Não tinha reduzido seu trabalho. Sem importar o que acontecesse, se ficava ou partia, o trabalho tinha que ser feito. Conseqüentemente, era quase o anoitecer quando conduziu até ver o carro estacionado na garagem, com o completamente novo Jaguar estacionado fora, exposto ao sol e ao pó do ambiente. Enquanto a toda velocidade introduzia o Lotus em seu lugar, o único que tinha notado era o alívio tão grande que sentia e que o tinha deixado fraco. Deixou que o Jaguar ficasse fora; ver seu Corolla ainda ali era mais importante para ele que qualquer carro, sem importar o quanto era caro.

Reuniu-se com ele na porta da cozinha, usando um short curto e uma de suas camisas de seda, a cara carrancuda.

― São oito e meia. Estou faminta. Trabalha até tão tarde em circunstâncias normais? Tem alguma idéia do que vamos fazer para jantar?

Ele riu e avançou, e mostrou exatamente o que queria para jantar. Não havia dito nenhuma outra palavra sobre comida até depois das dez.

Na quinta-feira, foi ao hotel com ele. O trabalho continuava a um ritmo frenético. Tinha obtido a permissão para derrubar as ruínas carbonizadas do cassino, assim poderia ser reconstruído, e as coisas estavam tão agitadas que tinha delegado alguma autoridade a ela, porque ele não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo. A um nível perverso, tinha desfrutado ao ver Lorna dando ordens a Al Franklin. Al, sendo Al, era otimista em respeito a tudo, mas Lorna conseguiu um monte de satisfação com o acordo. E ele conseguiu um montr de diversão por sua satisfação.

No almoço, foram à suíte e acenderam as velas. Duas vezes.

Na sexta-feira, não foi com ele, e tinha suado até o final desse dia, também. Quando chegou em casa, o alívio ao ver ainda ali seu carro tinha sido tão forte como tinha sido na quarta-feira, e então foi quando encarou a verdade.

Amava-a. Isto não era só sexo, só uma breve aventura, ou apenas algo. Era a verdadeira sensação. Amava sua coragem e valentia, seu mau humor. Amava os comentários embaraçosos, a tenacidade e a vulnerabilidade que odiava que visse qualquer outra pessoa.

Gideon se mijaria de rir quando descobrisse, não só tanto porque Dante foi agarrado, depois de tanto tempo, e se os anjos sorrissem, logo perderia sua posição como herdeiro natural.

O estomago de Dante se revolveu e sua barriga se tensionou. Na outra noite estava desembrulhando uma camisinha quando de repente se deu conta que não queria usar proteção. Lorna estava olhando, esperando, e ela tinha notado sua vacilação. Finalmente, sem uma palavra, tirou a camisinha e a tinha atirado a um lado, então encontrou seu olhar. Se ela quisesse que colocasse outro, faria. A decisão era dela.

Tinha lhe alcançado e atraído para si e a seu interior. Só de recordar a intensa meia hora que tinha seguido, o deixava de tal forma que a vela junto à cama flamejava com força.

Hoje era o solstício, e se sentia como se pudesse prender o mundo em chamas, como se sua pele ardesse com todo o poder que fervia dentro dele. Queria atrai-la debaixo dele, montá-la até que estivesse completamente vazio, até que ela tivesse tomado tudo o que ele tinha para dar. Primeiro, pensou, deviam ter uma conversa séria. Na noite anterior tinham feito algo que era muito importante para eles para deixar escapar.

Enquanto se sentava na borda da cama, apagou a vela, porque uma vela que já estava acesa era inútil como barômetro de seu controle. Esta conversa deveria estar carregada emocionalmente, por isso deveria ser muito cuidadoso.

Introduziu a mão sob o lençol e tocou a coxa nua.

― Lorna. Acorda.

Sentiu sua tensão, como sempre; então relaxou, e um sonolento olho cor avelã piscou e olhou por cima da borda do lençol.

― Por que? É domingo, o dia de descanso. Estou descansando. Pare com isso.

Puxou o lençol para baixo.

― Acorda. O café da manhã está pronto.

― Não está. Está mentindo. Estiva na varanda. ― Agarrou o lençol e o pôs sobre a cabeça.

― Como sabe isso, se estava dormindo?

― Não disse que estava dormindo, disse que estava descansando.

― Comer não é considerado como um trabalho. Venha. Tenho suco de laranja recém espremido, café, os bagels já estão na torradeira, e o amanhecer é genial.

― Para você, talvez, mas são cinco e meia de um domingo pela manhã, e não quero comer o café da manhã tão cedo. Quero um dia da semana em que não me arraste da cama ao “amanhecer e trinta”.

― No próximo domingo pode dormir, prometo. ― Melhor que lutar com ela pela custódia do lençol, introduziu a mão sob os cobertores, encontrou a coxa de novo e rapidamente para cima consegui beliscar o traseiro.

Chiou e saiu a toda pressa da cama, esfregando o traseiro.

― A vingança será um inferno ― avisou, enquanto empurrava o cabelo emaranhado fora do rosto e ia raivosamente para o banheiro.

Imaginava que seria. Dante sorriu amplamente enquanto voltava para a varanda.

Saiu cinco minutos depois, envolta em seu grosso penhoar e ainda carrancuda. Não usava nada debaixo do penhoar, assim desfrutou ao dar umas olhadas enquanto se deixava cair na cadeira em frente a ele. Também se abriu pela zona do pescoço, mostrando a corrente de ouro da que prendia o amuleto protetor que tinha lhe dado na noite da quarta-feira. Tinha feito especialmente para ela, aqui fora, na varanda, e a deixou olhá-lo. Estava encantada pelo modo em que ele sustentava o amuleto e o manteve elevado para que o fôlego o esquentasse enquanto murmurava umas poucas palavras em gaélico. O amuleto tinha ganho um suave brilho verde que se extinguiu rapidamente. Quando deslizou a corrente por sua cabeça ela tocou o amuleto, parecia que ia chorar. Não o tinha tirado depois disso.

Tão resmungona como quando despertou, não permaneceu muito tempo desse modo. No momento em que deu uma segunda dentada no bagel parecia muito mais alegre. Ainda assim, esperou que terminasse o bagel e que seu copo de suco estivesse vazio antes de dizer:

― Se casará comigo?

Teve a mesma reação de quando tinha mencionado o bebê. Empalideceu, depois ficou vermelha, depois saltou da cadeira e parou na balaustrada com as costas voltada para ele. Dante sabia muito sobre mulheres, mas mais especificamente, conhecia Lorna, assim não deixou que ficasse parada sozinha. Envolveu-a com os braços, pondo as mãos em cima das suas na balaustrada, não a segurava muito apertada mas lhe dava calor.

― É uma pergunta tão difícil de responder?

Sentiu seus ombros estremecerem. Alarmado, girou-a. As lágrimas estavam escorrendo pelo rosto.

― Lorna?

Não estava soluçando, mas os lábios estavam trêmulos.

― Sinto muito ― disse, limpando o rosto. ― Sei que isto é tolo. É só que... ninguém nunca me quis.

― Duvido. Provavelmente não notou que a queriam. Eu quis você desde o minuto em que a vi.

― Não esse tipo de querer ― outra lágrima caiu. ― O outro tipo, o de ficar perto.

― Amo você ― disse brandamente, amaldiçoando mentalmente a puta que tinha dado a luz por não alimentar o sentimento de segurança que toda criança deve ter, o conhecimento de que, sem importar o que, alguém a amava e a queria.

― Sei. Acredito em você ― tragou. ― de certo modo imaginei quando deliberadamente destroçou seu Jaguar para me proteger.

― Sabia que podia comprar outro ― disse simplesmente.

― Foi quando soube que tinha me arruinado, que não seria capaz de deixar você a não ser que me atirasse. Mantive a esperança de que fosse a tradicional luxúria o que estava sentindo, mas soube, e me assustou até a morte ― riu trêmula, a pesar do lento cair de outra lágrima. ― Em só dois dias, me arruinou.

Esfregou um lado do nariz.

― Não passamos muito tempo juntos, mas foi um tempo de qualidade.

― Qualidade! ― Olhou-o estupefata, com a boca aberta. A indignação secou suas lágrimas. ― Me maltratou, arrastou dentro de um incêndio, abriu violentamente a cabeça e fez em pedaços o cérebro, arrancou a minha roupa e me manteve prisioneira!

― Não disse que era de boa qualidade. Tem um dom com as palavras, sabia ― “abriu violentamente a cabeça”, minha bunda.

― Você não gostou quando chamei “violação de cérebro” ― disse asperamente. ― E penso que tinha um melhor conhecimento de como parecia que você.

― Acredito que tem, nesse caso. Quando voluntariamente se conecta com alguém, não...?

― Bom Deus ― parecia horrorizada. ― Algum de vocês realmente faz voluntariamente?

― Já te disse isso, não dói quando se faz corretamente. Se alguém precisa aumentar seu poder, encontra alguém com quem se conectar voluntariamente. Cada vez mais freqüentemente Gideon e eu vamos para casa ao Santuário, e nos conectamos com Mercy para realizar uma invocação protetora sobre o lar. Fazer isso bem leva seu tempo, mas não dói. Responderá a...?

― Espero que tenham uma lei contra fazer isso sem permissão.

― Uh... não.

Parecia horrorizada.

― Quer dizer que a gente Raintree pode ir por aí irrompendo na cabeça das pessoas, e ninguém faz nada para evitar isso?

Começava a se sentir frustrado. Poderia a mulher não responder a pergunta?

― Não disse isso. Muito poucos de nós somos o suficientemente fortes para dominar a mente de outros sem que eles colaborem.

― E você é um desses poucos ― disse sarcasticamente. ― Genial. Que sorte a minha.

― Em concreto, só a família real. A que pedi que se junte, eu gostaria de assinalar, se respondesse a maldita pergunta!

Ela sorriu, e foi como um raio de sol atravessando as nuvens e iluminando o rosto vívido e expressiva.

― É obvio que me juntarei. Realmente duvidava?

― Nunca sei por onde saltará. Pensava que devia me amar, porque ficou. Então, a outra noite... ― Deu um peteleco em seu queixo. ― Não me pedir que colocasse uma camisinha foi mortalmente fácil.

Olhou para ele, sua cara adotou uma peculiar expressão.

Endireitou-se, ficando em alerta imediatamente.

― O que está errado? ― Rapidamente parecia doente, como se fosse vomitar.

Esfregou os braços, carrancuda.

― Estou gelada. É a mesma... ― calou-se, abriu os olhos com horror, e antes que pudesse reagir se jogou contra ele, pegando-o com a guarda baixa pelo impacto de seu peso. Segurou-a, cambaleando para trás, então cambaleou para um lado enquanto tentava alcançar o equilíbrio e falhou. Caíram no chão da varanda em um emaranhado de braços, pernas e penhoar enquanto a porta francesa se tornava migalhas atrás dele. Duramente com a explosão do cristal se produziu um eco cortante e uma profunda réplica nas montanhas.

Disparo de rifle.

Dante enlaçou os braços ao redor de Lorna, pôs os pés embaixo de si e se impulsionou através da porta destroçada justo quando outro disparo acertava o alvo no lado da casa onde tinham estado. Então rodou com ela, colcando-a longe da parede, impulsionando-se finalmente com seus pés e arrastando-a para a entrada.

― Se mantenha agachada! ― gritou quando tentou levantar-se, empurrando para o chão de novo.

Sua mente ia a toda velocidade. O fogo. O bando disparando quando ele e Lorna pareciam tão convenientemente estar encaixotados na zona da morte. Agora alguém estava disparando de novo. Não eram acidentes; Todos estavam relacionados. O chefe de bombeiros não tinha encontrado nenhuma evidência de que o incêndio fosse provocado, o que significava...

Um mestre do fogo não precisava de aceleradores para começar um fogo, ou para mantê-lo. Alguém, ou muitos alguéns, tinham alimentando o fogo; essa era a razão pela que não tinha conseguido extingui-lo. Se não tivesse usado o controle da mente em primeiro lugar só alguns minutos antes de tentar controlar o fogo e não soubesse como poderia lhe afetar, se não tivesse suspeitado que Lorna poderia ser Ansara, teria imaginado.

Ansara! Grunhiu com fúria. Tinham que ser eles. Devem ter se unido muitos deles e decidiram tentar queima-lo. Sabiam que poderia cuidar do fogo, que não o abandonaria até que tivesse extinto. Se Lorna não estivesse ali, o plano teria funcionado bem, mas não tinham contado com ela.

A sensação fria e doentia que o atravessava... era a mesma que tinha quando um Ansara estava próximo.

― Havia um ponto vermelho em sua testa ― disse, embora os dentes estivessem batendo tão forte que quase não podia falar, ou talvez era porque ele estava ajoelhado virtualmente sobre suas costas para mantê-la agachada.

Um sistema de foco laser, então. Isto não era simplesmente aproveitar uma oportunidade, mas sim tinha sido cuidadosamente planejado e executado.

O franco-atirador tinha falhado. O que seria o próximo? Tinha que assumir que havia mais de um Ansara ali fora, tinha que assumir que havia um plano B. Não tentaria queima-lo de novo, posto que a primeira tentativa tinha falhado; pensariam que tinha poder suficiente para controlar qualquer chama que pudessem reunir. Mas o que poderiam fazer?

O que fosse, não podia deixá-los agir, não com Lorna aqui.

― Fique aqui! ― ordenou ficando de pé.

Engatinhou detrás dele. A mulher não obedecia as malditas ordens.

― Disse que ficasse aqui! ― Bramou, girando e agarrando-a pelo braço, empurrando-a ao chão mais uma vez. Começou a prender seu traseiro no chão com uma ordem mental, mas tinha prometido ― maldição, tinha prometido ― e não podia fazer isso.

― Ia chamar a polícia! ― gritou, tão furiosa por seu rude tratamento que virtualmente levitava.

― Não se incomode. Isto não é algo que os tiras possam controlar. Fique aqui, Lorna. Não quero que fique apanhada entre nós.

― Quem é nós? ― gritou-lhe à costas enquanto ele descia as escadas. ― O que vai fazer?

― Combater o fogo com fogo ― disse inexoravelmente.

Dante contava com uma grande vantagem. Esta era sua casa, sua propriedade, e conhecia cada canto dela. Porque era um Raintree, porque era o Dranir e tinha tomado precauções, saiu pelo túnel que tinha construído sob a casa. Sabia onde estava quando o laser de alcance o tinha marcado com o revelador ponto na testa, assim também tinha uma boa idéia de onde estava o franco-atirador.

Só havia um. Não tinha encontrado sinais de nenhum outro.

Não tinha intenção de tentar capturar ao bastardo ou travar algum tipo de batalha cara a cara. Rondou a ravina como um felino, com a morte nos olhos. A posição do franco-atirador devia estar ao redor deste lance, talvez nesses grandes grupos de rochas. Um franco-atirador precisava de uma superfície estável para disparar, e essas rochas seriam muito convenientes. Esta ravina proporcionava uma boa proteção, também, para atacar.

E para ir embora.

Dante deslizou rodeando as rochas se encontrou cara a cara com um homem que usava roupa de camuflagem e armado com um rifle. Nem sequer duvidou. O homem virtualmente não se moveu, levantando o rifle para disparar, quando Dante lhe prendeu fogo.

Os gritos foram horripilantes e horríveis. O homem deixou cair o rifle e se jogou no chão, rodando freneticamente, mas sem piedade o fogo de Dante continuou ardendo. Este bastardo tinha estado muito perto de matar Lorna, e não tinha piedade no coração para qualquer um que a ameaçasse. Em segundos os gritos se converteram em uivos, adquirindo uma qualidade desumana... e depois o silêncio.

Dante apagou as chamas.

O homem jazia ardendo lentamente, virtualmente irreconhecível como humano.

Dante usou os pés para dar a volta no homem até colocá-lo de costas. Incrivelmente, uns olhos cheios de ódio o olharam da cara chamuscada. O buraco que tinha sido a boca do homem se moveu, e um som fantasmagórico saiu de uma garganta que não deveria ter funcionado.

― Muiiiito tarde. Muiiiito tarde.

Então morreu, uma grande sacudida parou o coração. Dante ficou gelado, sua mente trabalhava furiosamente.

Muito tarde? Muito tarde para que?

Havia tocado o Ansara. O homem estava agonizando, o ódio se elevou como um muro protetor, e Dante o tinha lido.

Muito tarde.

Podia avisar Mercy, mas poderia ser muito tarde.

― Oh, merda ― disse brandamente, e correu.

Lorna tinha obedecido, e se tinha ficado onde havia lhe dito. Estava na cozinha, agachada junto ao frigorífico, quando entrou e agarrou o telefone mais próximo. A primeira chamada foi para Mercy. A segunda para Gideon, que podia chegar a Mercy mais rápido que ele.

Porque era o solstício, porque o escudo elétrico pessoal de Gideon interfiria em todos os aparelhos eletrônicos, quando Gideon atendeu o telefone quase tudo o que Dante pôde ouvir era energia estática.

― Vá ficar com Mercy! ― grunhiu, esperando que Gideon pudesse entender de todos os modos. ― Os Ansara estão atacando o Santuário! ― Então desligou de repente o telefone e abriu a porta da garagem, pensando rapidamente.

O jato da empresa poderia levá-lo do aeroporto mais próximo ao Santuário em umas quatro horas. Poderia tentar entrar em contato com Gideon de novo no avião.

Fazia duzentos anos os Ansara tinham tentado destruir os Raintree e tinham falhado. Agora estavam tentando de novo, e, maldição, agora podiam ter êxito destruindo o Santuário... onde estava Mercy, com Eve.

― Aonde vai? ― Lorna gritou quando ele se meteu no Lotus.

― Fique aqui! ― ordenou-lhe uma última vez, e conduziu fora da garagem de ré. Não queria Lorna nas proximidades do Santuário. Não sabia se conseguiria voltar com vida, mas a qualquer preço, tinha que saber que ela estava a salvo.

― Não acredito ― murmurou furiosamente enquanto trocava de roupa. Dante Raintree não era a única pessoa que sabia como resolver as coisas. Se pensava que podia deixá-la para atrás enquanto ia lutar contra algum tipo de batalha sobrenatural, bem, logo descobriria que estava equivocado.

 

[1]O efeito estroboscópico é um efeito óptico que se produz ao iluminar mediante lampejos, um objeto que se move de forma rápida e periódica. (N. da tradutora – Todas as notas são da tradutora espanhola)

[2] WalMart Stores, Inc., é o maior vendedor varejista do mundo e a maior companhia baseada no crédito. Seu conceito de negócio é a loja de autoserviço. É uma das empresas que mais gera dinheiro no mundo. (N. da tradutora)

[3] Jogo de palavras em inglês que não ocorre em português. Dante fala “Ansara”, o que Lorna confunde com “Aunt Sarah” (Tia Sarah), pela forma que soam parecidos. Este jogo de palabras se repete em futuras frases. (N. da tradutora)

[4]Lucy e Ricky são personagens da comédia de situação “I love Lucy” interpretada nos anos 50 por Lucille Ball y Desi Arnaz. (N. da tradutora)

[5] Jaguar. (N. da tradutora)

[6] Pãozinho em forma de rosquinha. (N. da tradutora)

[7] The Twilight Zone, em portugués Além da Imaginação, é uma série de televisão americana, especializada no gênero de ciencia-ficção, fantasia e terror. (N. da tradutora)

[8] Faz referência ao fato de que antigamente se utilizavam canários e animais pequenos em jaulas para detectar as emissões de gás nas minas. Era como um sinal de alerta para os mineros. (N. da tradutora)

[9]“Back” no original, pode-se interpretar tanto por costas como parte traseira. (N. da tradutora)

[10] A disputa familiar Hatfield-McCoy, é uma das mais famosas dos Estados Unidos. Começou em 1863 entre duas importantes familias de Kentucky, que viviam em ambos lados de um rio, e dorou até 1891. Houve inclusive episódios violentos nos quais houve mais de uma dúzia de mortes. Em 2003 descendentes de ambas familias firmaram uma trégua. (N. da tradutora)

[11] Seminolas, tribo indígena norte-americana. (N. da tradutora)

[12] Little Mary Sunshine: musical americano ao estilo de uma opereta, encenado em 1959. Foi criticado por alentar os estereótipos negativos sobres os nativos americanos, e por menosprezar as mujeres. Seus defensores alegam que o racismo ou sexismo latente na obra não deve ser tirado de contexto, já que é uma obra satírica, considerando que uma manera poderosa de combater esses males é ridicularizando-os. (N. da tradutora)

[13] King-size, extragrande (N. da tradutora)

[14] McMuffin, um dos menus de café da manhã do McDonald’s. (N. da tradutora)

[15] Em español original. (N. da tradutora)

[16] Faz eferência ao 11 de setembro, data dos atentados terroristas as Torres Gêmeas nos EUA. (N. da tradutora)

[17]Caterpillar, companhia americana produtora de maquinário agrícola e industrial. (N. da tradutora)

[18] U.S. Moeda de 25 centavos. (N. da tradutora)

 

                                                                                 Linda Howard  

 

                      

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