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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


INFERNO NA TORRE / Richard Martin Stern
INFERNO NA TORRE / Richard Martin Stern

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

"É o edifício mais alto do mundo, e o mais moderno, um tributo perene ao engenho, à arte e à visão do homem. É um triunfo da imaginação."

GROVER FRAZEE na cerimônia inaugural da Torre Mundial.

"Um monumento a Mamona, produto do egotismo insaciável do homem, uma afronta aos deuses. Que se tenha investido tanto dinheiro na construção desta... desta monstruosidade enquanto a pobreza, sim, e até a fome, ainda se movem sobre a terra, é uma abominação! O castigo divino não poderá deixar de manifestar-se /"

O REVERENDO JOE WILLIE THOMAS, numa entrevista.

"Os depoimentos das testemunhas e as declarações dos peritos divergem de tal modo que é difícil, se não impossível, saber onde se poderá encontrar a verdade no que se refere ao desastre."

RELATÓRIO OFICIAL DA COMISSÃO DE INQUÉRITO

Subindo cento e vinte e cinco andares, desde o nível da rua até à Sala da Torre, o edifício ergue-se alto, nítido e rutilante. Por cima da Sala da Torre as flechas da rádio e da televisão apontam a prumo para o céu.

Por comparação com as massas gêmeas do vizinho Centro Comercial, o edifício parecia esguio, quase delicado, uma coisa aparentemente frágil, cheia de graça e beleza. Mas oito pavimentos abaixo do nível da rua as suas raízes encontravam-se profundamente ancoradas no leito pedregoso da ilha; e a sua estrutura interna e externa, habilidosamente concebida, tinha a força do aço para molas laminado.

Quando plenamente ocupado, o edifício albergaria cerca de quinze mil pessoas nos seus escritórios, estúdios e lojas; além disso receberia vinte e cinco mil visitantes por dia.

Através dos seus sistemas telefônico, de rádio e televisão operando ao nível do solo, emitindo através da atmosfera ou via satélite, a sua esfera de comunicação era, muito simplesmente, a terra.

Podia até comunicar consigo próprio, andar para andar, da subcave à torre refulgente.

Tinha-se erguido pavimento a pavimento, um prodígio a crescer à vista de toda a gente.

As grandes gruas elevavam o aço colocando-o em posição e segurando-o enquanto o estrondo ensurdecedor das pistolas de rebitar atestavam que estava a ser fixado; depois, completado o seu trabalho num pavimento, as gruas, como monstros inteligentes, içavam-se umas às outras para novas posições a fim de repetirem o processo.

À medida que a estrutura crescia, as suas artérias, veias, nervos e músculos iam-se entrelaçando no conjunto: quilômetros de fios, de canos, de tubagens de serviço; cabos e condutas; tubos, admissões e passagens de calor, ventilação e ar condicionado - e sempre, sempre os sistemas e instrumentos indicadores destinados a fiscalizar e controlar o ambiente interno do edifício, a sua saúde, a sua vida.

Sensores para transmitir informações sobre temperatura, humidade, fluxo e composição do ar; computadores para assimilar os dados, avaliá-los, emitir instruções essenciais no sentido de serem mantidos ou modificados.

Nos dez andares mais altos, ainda expostos aos raios do sol poente, regista-se uma temperatura superior à óptima? Aumente-se-lhes o fluxo de ar condicionado fresco.

Estão os dez primeiros andares acima do nível da rua a arrefecer rapidamente agora que entardece? Reduza-se-lhes o fluxo de ar condicionado e, se necessário, introduza-se-lhes ar quente.

O edifício respirava, manipulava os seus sistemas internos, dormia apenas como um corpo humano dorme: o coração, os pulmões, os órgãos depuradores funcionando por controlo automático, as ondas encefálicas pulsando incessantemente.

Prata baça era a cor básica do edifício - chapas de alumínio anodizado cobriam o aço estrutural; tudo perfurado por dezenas de milhares de janelas de vidro endurecido de um tom glauco.

Erguia-se sozinho numa praça, dominando com a sua altura toda a área do centro da cidade. Na sua base três andares de arcos encerravam uma arcada perimétrica. Grandes portas abriam para o átrio de dois andares, para os elevadores na estrutura central, para as escadas e escadas rolantes e para as lojas nas próprias galerias.

Os homens tinham-no imaginado, projectado e construído, às vezes quase com amor, às vezes quase com ódio, porque, como todos os grandes projectos, o edifício cedo começou a adquirir uma espécie de personalidade própria, e nenhum homem intimamente associado com ele pôde deixar de se lhe sentir de qualquer modo ligado.

Ocorre, ao que parece, um ricochete. O que o homem cria com as suas mãos ou o seu cérebro torna-se numa parte dele próprio. E ali, nessa manhã, erguia-se o edifício, a sua extremidade mais alta recebendo os primeiros raios do nascer do Sol, enquanto o resto da cidade ainda dormia na sombra; e os milhares de homens que haviam participado nos planos e na construção do edifício iam recordar esse dia para sempre.

 

 

 

 

As barreiras da polícia tinham sido empilhadas na Praça da Torre mal rompeu a aurora dessa sexta-feira. Os empregados municipais estavam agora a dispô-las em linhas rigorosamente rectas. Ainda não se notava qualquer ajuntamento.

O céu estava limpo, azul, ilimitado. Uma brisa branda da baía, com cheiro a sal, fresca, varria a praça. As bandeiras da praça agitavam-se. Dois polícias de giro, de serviço - viriam mais na próxima hora - estavam postados junto da arcada.

- Até que enfim - dizia o polícia Shannon - que não temos hoje de nos haver com politiquices, Deus seja louvado. Uma manifestação política... -Meneou a cabeça. - A maneira como certas pessoas se deixam excitar com a política é um pecado, uma vergonha e um desperdício. - Relanceou um olhar para o majestoso e rutilante edifício. - Chega quase ao céu - disse. Bastante acima das questiunculazinhas dos homens.

- Ainda está por desenterrar o homem descomprometido - declarou o polícia Barnes, que era preto. - Ao ouvi-los falar, julgar-se-á que todos os Irlandeses são pacíficos, bondosos, pacientes, calmos, afáveis, atenciosos e totalmente não-violentos. - Barnes tinha-se bacharelado em sociologia, estava já na lista para ser promovido a sargento e contava chegar, pelo menos, até capitão.

Sorriu para Shannon. - Essas reuniões de hippies que eles encenam em Londonderry, amigo, não se podem propriamente considerar assembléias de santos.

- Só quando provocados - disse Shannon. Permitiu-se um ligeiro sorriso compreensivo. - Mas não quero dizer que às vezes não se tenha de procurar a provocação. Ela às vezes esconde-se, como um ratinho num buraco. - O sorriso desapareceu ao aproximar-se um homem. - E para onde julga que vai?

Ficou mais tarde estabelecido que o nome do homem era John Connors. Transportava uma caixa de ferramentas. Quando prestaram depoimento, Barnes e Shannon foram unânimes em que o homem trazia roupas de trabalho usadas e um capacete de alumínio brilhante e que exibiu aquela espécie de arrogância que um operário especializado se sente tentado a mostrar quando lhe fazem perguntas idiotas.

- E para onde lhe parece que vou? Lá para dentro. Connors fez uma pausa. O seu sorriso era de compaixão pelos outros. - A não ser que procurem impedir-me de entrar? - Havia desafio na pergunta.

- Hoje não há trabalho - observou Barnes.

- Isso sei eu.

- E então? Connors suspirou:

- Onde eu devia estar era em casa. Na cama. Um dia de folga para toda a gente enquanto fazem discursos aqui e vão lá para cima beber champanhe. Em vez disso, cá estou, porque o patrão me mandou chamar e disse para me meter à canga.

- Para fazer o quê? - Foi ainda Barnes quem perguntou.

- Sou electricista - respondeu Connors. - Perceberá o que querem que eu faça se eu lhe explicar?

Provavelmente não, pensou Barnes. Mas esse não era o factor dominante. O problema eram as ordens, ou a falta delas.

- Tu e o Shannon - tinha dito o sargento de serviço - ides para lá e estai vigilantes. Eles devem andar a colocar as barreiras e não esperamos complicações, mas... -O sargento encolhera os ombros com aquela expressão de vocês-sabem-como-são-as-coisas.

E eles sabiam como eram as coisas hoje em dia: qualquer aglomeração de gente parecia trazer em si o germe da desordem. Muito bem, eles estariam vigilantes, mas a vigilância não incluía por certo impedir um trabalhador de seguir para o seu trabalho.

- Traz consigo o cartão do sindicato, amigo? - perguntou delicadamente Barnes.

- Quem é você então? - replicou Connors. - Inspector do NLRB? Sim, trago comigo o cartão do sindicato. Não sou nenhum fura-greves. - Puxou da carteira e agitou-a no ar. Continha um cartão, mas não se podia ver mais nada. - Satisfeito? - Connors voltou a guardar a carteira.

O gênio de Shannon começava a ferver depressa:

- Deixa-o seguir.

Mas Barnes ainda hesitava. Conforme declarou mais tarde, não tivera motivo para hesitar, apenas um palpite, e as acções baseadas em palpites são sempre suspeitas.

- Então? - disse Connors. - Decidam-se de uma vez. Só de parar aqui já estou a custar ao patrão...

- Desinfecte daqui - ordenou Shannon. Uma veia palpitava-lhe num dos lados do pescoço. Olhou para o colega. - Não temos ordens para impedir as entradas, Frank. Deixa esse filho da puta seguir o seu caminho. Talvez acabe por electrocutar-se a si próprio.

Era assim que recordavam o incidente e foi assim que o relataram mais tarde.

A data da cerimônia inaugural tinha sido fixada com meses de antecedência. Sempre se fez assim, e não há outra maneira de fazer, porque as datas da conclusão de um edifício são elásticas; e os convidados para a cerimônia vinham de Washington e das capitais estaduais, da City Hall, da ONU, das sedes das redes de rádio e TV e dos serviços telegráficos internacionais; aqueles que queriam aparecer e ser vistos e aqueles que teriam preferido ficar de fora mas que tinham sido colhidos pela inexorabilidade de um convite feito a tempo.

No gabinete de Nat Wilson, voltado para os planos do grande edifício que cobriam a parede, Will Giddings dizia:

- Há meia centena de coisas que eu quero rematar. Uma centena.

- E eu também - tornou-lhe Nat. Verdade elementar. Uma pessoa está ligada a um trabalho durante anos e, tal como sucede com um artista ao completar a sua obra-prima, vê que há aqui e além pequenos retoques que gostaria de ter tempo de fazer. Mas naquele dia não havia tempo.

- E, com os diabos - disse Giddings-, não quero ver uns presumidos a meter o nariz por toda a parte como um maldito bando de turistas. - Fez uma pausa. - Não estamos ainda preparados para isso. Tu sabes que assim é. E eu também sei.

Haverá sempre esta choradeira, pensou Nat, quando o pano está prestes a subir? De onde lhe viera aquele pensamento?

- Não estamos preparados - concordou. - É verdade. E depois? - Era ele o mais novo, arquitecto-engenheiro, de estatura mediana, que raramente perdia a calma.

- O centésimo-vigésimo-quinto andar - disse Giddings - mesmo por debaixo do mastro. Bebidas, palmadinhas nas costas, parabéns, e uma vista de não sei quantos quilômetros quadrados de água e de campos, e a coisa não se pode adiar só porque os tipos convidados são importantes como um raio, senadores, representantes, o governador, o presidente da Câmara, tipos da ONU, estrelas de cinema, e toda essa cambada?

- E toda essa cambada - repetiu Nat. Giddings, um homenzarrão, de cabelo ruivo, olhos

azuis, desempenhava essa antiga função de fiscal de obras, de representante do proprietário na obra. Entrara há pouco na casa dos quarenta. Algures, provavelmente no fundo de uma gaveta esquecida, tinha um diploma de engenheiro, e de vez em quando ao longo desses anos de trabalho em comum Nat vira-o, de régua de cálculo em punho, a fazer trabalho de secretária, mas parecia sempre mais no seu elemento de capacete de alumínio, encavalitado num guindaste ou caminhando ao longo de uma viga-mestra de aço ou percorrendo túneis e caves para ver se o trabalho corria bem.

- Eu não bebo cocktails - disse - nem como umas coisinhas espetadas em palitos. Talvez tu comas. - Era manifesta a tensão que havia nele.

- Isso está fora de questão - replicou Nat. - Foi Grover Frazee quem marcou o dia. O seu patrão.

Giddings sentou-se finalmente. Estendeu as pernas mas não houve descontracção nesse movimento.

- O meu patrão - pronunciou, e meneou a cabeça. Temos de ter homens de negócios, mas não somos obrigados a gostar deles. - Estava a estudar Nat. - Devias ser ainda um anjinho quando começaste a trabalhar nisto... há quanto tempo foi? Há sete anos?

- Muito perto disso - confirmou Nat. Fora no início da planificação preliminar, do pensamento conceptual, com ele na peugada mas mesmo assim acompanhando em toda a sua extensão o vôo das visões altaneiras de Ben Caldwell. Não resistiu a olhar através da janela para a Torre distante, nítida, pura e bela contra o céu; o resultado desses anos de trabalho. - E depois?

- É que, meu rapaz, caramba, o prédio é meu - disse Giddings. - Oh, também é teu em parte, mas eu assisti ao início das escavações que desceram oitenta pés até ao leito de rocha, vi-os rematar o aço a mil quinhentos e vinte e sete pés acima do solo, e conheço cada estaca, cada coluna, cada asna, cada tímpano tão bem como conheceria os meus filhos se tivesse tido alguns.

Não havia ali nada que exigisse comentário. Nat conservou-se calado.

- És um sacana muito reservado - prosseguiu Giddings. - Será um caso de profundidade de águas paradas? Não importa. - Os seus olhos voltaram-se num breve relance para a torre distante. - Também perdi alguns amigos. Isso sempre acontece numa grande obra. - Voltou a olhar para Nat. - Lembras-te de Pete Janowski?

Nat meneou vagamente a cabeça.

- Caiu de uma altura de sessenta e cinco andares e foi estampar-se numa rampa de betão mergulhando na banheira.

- Ah, foi esse - disse Nat, lembrando-se.

- Um polaco alto - declarou Giddings-, um bom homem, nunca parecia apressado, mas fazia o trabalho como devia ser, com segurança, foi isso que mais me impressionou. Quando não podemos atribuir uma causa às coisas ficamos a matutar nelas.

Havia qualquer coisa na voz de Giddings, na sua maneira - hipertensa, era o termo. Nat perguntou lentamente:

- Aonde quer você chegar com isso? Era como se ele não tivesse falado.

- Habitualmente - continuou Giddings - pode-se imaginar porque é que uma pessoa faz pualquer coisa.

Leio que um tipo qualquer roubou um banco e penso: "O pobre idiota queria arranjar dinheiro, talvez precisasse muito dele, e não encontrava outra maneira." Isto não é uma desculpa, mas uma certa explicação. -Fez uma pausa quase imperceptível. - Deita uma olhadela a isto.

Tirou um envelope de tela do bolso interior do seu casaco de bombazina, atirou-o para cima da secretária e depois deixou-se ficar sentado com uma cara inexpressiva enquanto via Nat levantar o envelope, abri-lo e espalhar o seu conteúdo em cima do mata-borrão. Papéis dobrados, o papel quebradiço das fotocópias Xerox, coberto com linhas e números e legendas de engenharia bem ordenadas.

Nat ergueu os olhos.

- Observa isso com atenção - disse Giddings. Nat examinou os papéis, um por um. Por fim ergueu

de novo os olhos.

- Autorizações para alteração de planos - comunicou. A sua voz estava calma e ele fazia votos para que a cara não mostrasse nada. - Têm todas a minha assinatura. - Surpreendentemente a voz manteve-se firme. - São tudo alterações eléctricas. Não é o meu pelouro.

- Mas ninguém iria discutir a tua assinatura - replicou Giddings. - Caldwell Associates, Arquitectos Superintendentes... tu és o representante deles na obra, tudo o que disseres está certo, são assim as coisas. - Içou-se para fora da cadeira, deu dois passos e voltou para trás, deixando-se cair de novo na cadeira. Observava Nat e esperava.

Nat empunhava ainda uma das ordens de alteração. Tinha as mãos firmes; o papel nem sequer tremia, mas era como se o seu cérebro tivesse ficado dormente.

- Estas alterações foram feitas?

- Não sei. Vi esses papéis pela primeira vez ontem à noite.

- Como foi que não deste por elas?

- Não posso estar em toda a parte ao mesmo tempo

- disse Giddings-, como tu também não podes. Tenho arquivos do trabalho executado de acordo com a especificação. Quando há desvios das especificações originais tenho as competentes autorizações. - Fez uma pausa. Mas não tenho essas nem outras como essas, e teria levantado um barulho dos demônios se as tivesse visto.

- E eu também - declarou Nat. Não se ouviu um único som no gabinete.

Giddings perguntou por fim:

- Que significa isto?

- Não são as minhas assinaturas- disse Nat. - Não sei quem foi que assinou, nem porquê, mas não fui eu.

Giddings voltou a levantar-se da cadeira, dirigiu-se para as janelas e ficou a olhar para o horizonte denticulado da cidade dominado pela Torre.

- Calculei que dirias isso.

No sorriso de Nat, amarelo, crispado, não havia humor.

- Claro. - "Depois do choque inicial, a nossa mente recomeça a trabalhar, limpidamente, logicamente como a treinaram... como um estuporzinho de um computador", pensou. - Se eu tivesse assinado essas alterações, naturalmente havia de negá-lo, pelo menos a princípio. Não as assinei, portanto nego-o também, mas por uma razão diferente. De uma maneira ou de outra a minha resposta seria a mesma, não é?

Giddings voltara-se para ficar de cara para a secretária.

- És um sacaninha cheio de lógica, não és?

Na peugada do choque vinham agora os prenuncies da cólera.

- Levarei o raciocínio mais longe - disse Nat. - Porque havia eu de assiná-las? Que razão teria para isso?

- Não sei. Essa - acrescentou Giddings - é a razão por que não estou agora e aqui mesmo a arrancar-te a verdade à pancada.

- Nem sequer experimente - tornou Nat. A sua voz conservava-se serena. com mão firme ergueu um dos papéis, olhou para ele, deixou-o cair de novo sobre o monte.

Giddings pronunciou numa voz diferente, mais calma:

- Que raio de podridão temos nós enterrada nas paredes do meu prédio? Quantas "economias" fizemos sem dar por isso? Até que ponto isso vai?

As mãos de Nat mantiveram-se espalmadas sobre o tampo da secretária.

- Ignoro a resposta - declarou - mas acho melhor tentarmos descobrir.

Giddings deu tempo ao tempo, com os olhos firmemente cravados na face de Nat.

- Tenta pelo teu lado - disse por fim. - Eu tentarei pelo meu. - Indicou os papéis. - Fica com eles. Tenho cópias. - Fez uma pausa. - O teu patrão já tem uma colecção para o caso de não saberes como lhe hás-de contar. - Encaminhou-se para a porta e parou ali, com a mão no puxador. - Se eu descobrir que é a tua assinatura - preveniu - voltarei para fazer contas contigo. - E saiu.

Nat deixou-se ficar onde estava e olhou de novo para os papéis, remexendo-os distraidamente com o indicador. As assinaturas eram muito claras: N. H. Wilson. Nathan Hale: os nomes tinham sido idéia de seu pai. O Nathan Hale originário fora enforcado. E pelo aspecto das coisas alguém estava a tentar mandar para a forca também o actual Nathan. Bem, se pensavam que ele ia subir submissamente os degraus do cadafalso, estavam enganados.

Levantou o telefone e chamou Jennie no PBX.

- Liga-me para o gabinete de Sr. Caldwell, querida. - E para Mollie Wu, secretária de Caldwell: -Fala o Nat, Mollie. Tenho de avistar-me com o patrão. É urgente.

- Eu ia justamente chamá-lo. - A voz de Mollie não exprimia nada. - Ele está à sua espera.

O gabinete de Caldwell ficava na sala de gaveto, imensa, impressionante. Quanto a Caldwell, era um homem pequeno, franzino, com o cabelo ralo e grisalho colado ao crânio, olhos azul-claros e mãos pequeninas, quase frágeis. Era ordenado, calmo, preciso e, em questões relacionadas com arte, engenharia ou arquitectura, implacável. Estava de pé junto das janelas a contemplar o panorama da cidade quando Nat bateu à porta e entrou.

- Sente-se - disse Caldwell e conservou-se junto das janelas, imóvel, em silêncio.

Nat sentou-se e esperou.

- O grande farol de Alexandria, o Faros - disse Caldwell - durante cerca de mil anos guiou os navios que se dirigiam para o Nilo. - Voltou-se de frente para o escritório. com as janelas a servirem de pano de fundo, ele era meramente uma sombra contra a imensidade do céu. - Encontrei há semanas o capitão do France - prosseguiu. - Contou-me que a primeira parcela da América que vêem quando navegam para ocidente é o topo dessa torre que planeámos e a cuja construção superintendemos.

Chamou-lhe o moderno Faros. - Caldwell dirigiu-se para a secretária e sentou-se. O seu rosto era agora claramente visível, inexpressivo. Sobre o mata-borrão, em frente dele, estavam espalhadas fotocópias Xerox. - Que foi que lhe fizemos, Nat?

- Não sei.

Caldwell indicou os papéis.

- Viu isto?

- Sim, senhor, vi. E falei com o Giddings. -Pausa. Corrijo: estive a ouvir o Giddings. - Outra pausa. Para que se saiba, essas assinaturas não são minhas. Eu não me teria metido a fazer alterações eléctricas sem a aprovação da Lewis. -Joseph Lewis & C. a, Engenheiros Electrotécnicos. Nat tinha a impressão absurda de estar a falar consigo mesmo.

- Não teria é uma frase sem sentido neste contexto

- observou Caldwell. - Teoricamente, ninguém teria feito alterações sem a aprovação da Lewis. Mas alguém escreveu essas autorizações de alteração e, a julgar pelas aparências, foi com a autorização desta firma na sua qualidade de arquitectos superintendentes. - Claro, lógico, preciso.

- Sim, senhor. - Como um rapazinho no gabinete do reitor, mas que mais havia para dizer? A cólera estava agora acumulada, como uma força potente e firme. - Mas porque haviam de pôr o meu nome? - disse Nat.

Caldwell estudou-o calmamente.

- Explique essa pergunta.

- Porque não o nome de Lewis ou de um dos seus homens? Seria mais lógico, menos sujeito a discussão.

- Segundo Will Giddings - disse Caldwell - não houve discussão. Isto - deu um empurrão na pilha de fotocópias - só agora é que veio à luz.

- Sendo assim - retorquiu Nat - nem sequer sabemos se as alterações se fizeram realmente, porque, no caso afirmativo, teria sido exibida uma autorização...

- "Teria"-disse Caldwell-"não teria". Repito: essas frases não têm sentido. - Conservou-se calado por uns momentos, a pensar. - Concordo - proferiu por fim - que não sabemos se as alterações se fizeram realmente. Nem tão-pouco sabemos até que ponto podem ser importantes. - Estava a observar a face de Nat. - Faríamos bem em procurar descobrir, não acha?

- Sim, senhor. - Nat fez uma pausa. - E há que -descobrir também outras coisas.

- Como por exemplo?

- Em primeiro lugar por que motivo se escreveram essas autorizações de alteração. Porque foi que puseram nelas o meu nome. Quem...

- Isso são perguntas que podem esperar - atalhou Caldwell. -Aprecio a sua preocupação pessoal, mas não a partilho. A minha preocupação é pelo edifício e pelo bom nome desta firma de arquitectura. - Fez uma pausa. - Está compreendido isso?

A resposta foi quase como a repetição de uma cantilena:

- Sim, senhor - retorquiu Nat.

Saiu do grande gabinete e passou pela secretária de Mollie Wu. Mollie observava-o, pequenina, bonita como uma boneca, inteligente e viva.

- Problemas, amigo?

- Problemas - confirmou Nat. - Aos molhos. -As implicações começavam a aparecer agora, as quase infindáveis permutas e combinações susceptíveis de resultarem de desvios à impecavelmente estudada e intricadamente urdida planificação eléctrica. - E de momento - dissenão sei por onde começar a resolvê-los. - Pura verdade.

- A mais longa viagem começa por um simples passo

- citou Mollie - e se esta frase é de Confúcio ou do presidente Mão, não faço a mínima idéia, mas ofereço-lha por aquilo que ela vale.

Nat regressou ao seu gabinete e sentou-se a fitar os desenhos afixados com percevejos na parede e a pilha de autorizações de alteração dos planos que jazia sobre a secretária. As duas coisas formavam uma mistura explosiva e o facto de ter sido ou não ter sido ele a assinar as ordens de alteração não tinha importância. Importante era que essas ordens tinham sido emitidas e talvez executadas, que se tinham feito "economias", como dissera Giddings, onde não deviam fazer-se economias, substituições onde nenhuma substituição podia permitir-se. Porquê?

Pergunta errada, disse para consigo. Nesse momento a sua preocupação era propriamente com o efeito, não com a causa. E havia um único lugar onde os efeitos podiam ser descobertos, e esse lugar não era ali na sua secretária.

Reuniu as cópias das ordens de alteração, meteu-as no envelope de tela e guardou o envelope na algibeira do casaco. Lá fora, na recepção, deteve-se apenas o tempo suficiente para dizer a Jennie aonde ia:

- vou à Torre, querida. Duvido que consigas comunicar comigo. Eu telefono-te.

10,05h - 10,53h

O Sol já ia bastante alto para penetrar através da massa de edifícios da baixa e alcançar o pavimento da Praça da Torre onde as barreiras da polícia se encontravam instaladas, dividindo a área em duas grandes metades separadas ao centro por um corredor de passagem da plataforma temporária encostada à arcada para a rua.

- Onde os VIPs hão-de sair dos seus carros - disse o polícia Shannon-, sorrir para a arraia-miúda e seguir como reis e rainhas para a plataforma...

- Onde os discursos serão todos iguais - declarou Barnes. - Hão-de tecer louvores à mãe-pátria, aos Estados Unidos da América e ao espírito indomável do homem. Um ou dois dos políticos hão-de lançar a rede para ver se apanham uns votos... -Calou-se. O seu sorriso era apologético.

- O que acontece - disse Shannon a sorrir também é que tu és contra reis, rainhas e quejandos e eu regozijo-me com eles. Pensa em como seria se só houvesse homenzinhos todos iguais, se não houvesse gigantes que sonham e fazem coisas, se não houvesse grandes acontecimentos para recordar, grandes edifícios como estes que até escondem o próprio Sol. Que me dizes a isso, Frank?

- Talvez fosse melhor.

- Tu - afirmou Shannon - abriste demasiados livros e encontraste dentro deles demasiadas idéias confusas.

O seu gesto envolveu todo o edifício rutilante. - Que sentirias tu se tivesses participado na construção de uma coisa destas? Uma grande torre refulgente que chega ao céu, e o teu nome numa chapa de bronze a dizer para todo o sempre que puseras nisto uma parte de ti mesmo? Que me dizes a isso?

- Empreiteiro-Geral - leu Barnes. - Bertrand meGraw e Companhia. - Sorria de novo, desta vez abertamente divertido. - Os Irlandeses vão-se safando, hem? Achas que esse McGraw progrediu honestamente desde servente de pedreiro até aqui?

- E tu, meu patife preto, progrediste honestamente desde escravo até aqui?

- Sim siô, patrão. - Sorriram um para o outro.

- Conheci o Bert McGraw - disse Shannon - e é um cavalheiro muito decente. Foi no dia de São Patrício, na Quinta Avenida...

- A tocar gaita-de-foles, sem dúvida.

- A soprar - emendou Shannon. - As gaitas-de-foles são instrumentos de sopro. Uma pessoa toca piano, toca violino e outros instrumentos menores. - Fez uma pausa. - Bert McGraw estará cá esta tarde. No seu lugar eu também estaria, para colher a minha parte de glória.

- Eu penso que me iria esconder em qualquer parte

- afirmou Barnes. - Teria medo de provocar a cólera divina com a minha presunção.

- Tu e as tuas idéias!

- É um desafio aos deuses - disse Barnes - e depois uma pessoa receia que eles nos possam atirar de novo para a valeta. É o mesmo que tu bateres com os nós dos dedos na madeira quando falas de qualquer coisa boa que está para acontecer.

Shannon esteve por um momento a pensar. Depois sorriu.

- É o que eu disse, Frank, abríste demasiados livros. Que diabo poderiam fazer os deuses a esta maravilhosa estrutura?

"O edifício está vivo - pensou John Connors-, a sua presença é quase palpável." Os seus passos ecoavam nos vestíbulos e nos corredores vazios, e só portas fechadas assistiam à sua passagem; mas através das condutas de ar condicionado ouvia a respiração do edifício, e sentindo no próprio cerne da enorme estrutura palpitar a força vital, perguntava para consigo se no fundo do coração aquele edifício vivo não teria medo.

Dele? Porque não? Era uma idéia agradável; levantava-lhe o moral. Ele era apenas um pontinho insignificante contra a imensidade da estrutura, mas a força estava nele, e saboreava a consciência disso enquanto caminhava, de caixa de ferramentas na mão, ouvindo o eco dos próprios passos e a turbulência dos seus pensamentos.

Nat percorreu a pé os trinta quarteirões que separavam os escritórios de Caldwell da Torre Mundial, proporcionando-lhe esse exercício algum alívio para a cólera e para a tensão que sentia.

- Acho que alguns homens se entretêm a jogar pela mesma razão - dissera ele uma vez a Zib - para afastarem um problema da mente e deixá-lo a cargo do subconsciente. Eu prefiro andar. Não sou antijogo. Simplesmente, quando eu estava a crescer, fazíamos outras coisas. Pescávamos, caçávamos, partíamos para a montanha a pé ou a cavalo; no Inverno esquiávamos e patinávamos. - O sentimento de se encontrar desenraizado ali na costa leste ainda não o abandonara de todo. - Uma vida primitiva - disse. - Todas essas coisas que vocês têm, eu não tinha. Não sou grande nadador. Não sei nada sobre vela. Não jogo o golfe, não jogo tênis...

E Zib dissera:

- Essas coisas talvez tenham sido importantes para mim noutros tempos, mas agora não são. Casei-me contigo por outros motivos. Talvez porque estava farta dos estereótipos da escola preparatória junto dos quais cresci. - Sorrira de súbito, devastadoramente. - Ou talvez fosse porque não tentaste ir comigo para a cama logo no primeiro encontro.

- Provincianismo meu. E terias ido?

- Possivelmente. Não, provavelmente. Simpatizei contigo.

- Eu achei-te espantosa e um nadinha assustadora, tão segura de ti mesma aqui no teu próprio meio ambiente.

Era verdade então, era verdade ainda depois de três anos de matrimônio.

Caminhava a passo firme, parando apenas quando o tráfego o obrigava. Antipatizava com a cidade, mas era ali, como ele dizia, que residia a acção; e se em toda a sua volta havia lixo, barulho, ajuntamentos, atitudes rabugentas e impertinentes, caras infelizes, pois bem, também havia fermento e excitação, a satisfação de encontrar e poder falar com os nossos iguais.

Mas mais importante, havia Ben Caldwell com o seu olho de artista e a sua infinita atenção ao pormenor que alguns chamam gênio. Os sete anos passados sob a direcção daquele homem compensavam tudo o mais.

Oh, um dia Nat havia de deixar a cidade; era uma coisa que ele sabia, uma certeza profunda. Regressaria aos horizontes abertos a que pertencia. E quando esse dia chegasse, perguntava para consigo, Zib iria com ele ou preferiria conservar-se no seu cenário nativo? Difícil de prever, desagradável de contemplar.

Havia polícia espalhada pela Praça da Torre. Nat olhou para os agentes com uma expressão de surpresa, que era disparatada, disse para consigo, porque naturalmente na cidade, onde as ameaças de bombas e a violência não são desconhecidas, teria de haver polícias presentes num acontecimento como a inauguração da Torre. A sua surpresa só servia para demonstrar que ele não estava a pensar.

Estava um polícia preto junto da porta, a escutar o que lhe dizia um irlandês de grande estatura, afastado. O polícia preto olhou para Nat e sorriu delicadamente:

- Podemos ser-lhe úteis em alguma coisa, senhor? Nat exibiu o distintivo que usava na obra.

- Arquitecto - disse. - Caldwell Associates. - Acenou com a cabeça para a placa de bronze ao lado da porta. - vou só deitar uma vista de olhos.

O polícia preto já não sorria.

-Há algum azar... -os seus olhos escuros relancearam um rápido olhar ao distintivo e ergueram-se de novo - Sr. Wilson? - Estudava a face de Nat.

- Rotina - respondeu Nat, e pensou, caramba, parecia-se como ninguém com uma personagem de Dragnet.

- Foi precisamente nessa altura que eu comecei de facto a desconfiar - declarou o polícia Barnes mais tarde-, mas continuava a ser apenas uma espécie de palpite de que talvez tivesse sido melhor não deixar entrar aquele tipo com a caixa de ferramentas. E sabem as chatices que uma acção arbitrária dessa espécie pode provocar. O Departamento excedendo as suas atribuições, abusando do seu poder para hostilizar inocentes cidadãos, etc. etc. - Pausa. - Mesmo assim, eu devia ter obedecido ao palpite.

Na altura própria, porém, dissera apenas:

- Se há algum azar, Sr. Wilson... quero dizer, se há alguma coisa que possamos fazer...

- O que ele quer dizer - atalhou o polícia irlandês é que nós, os rapazes de azul, pretendemos agradar. Nunca permita que digam que nos recusámos socorrer um homem que se afogava ou ajudar uma velhinha a atravessar a rua. Recorra a nós - disse o grande polícia irlandês, e continuou com a sua conversa que passou a versar o tema das apostas clandestinas - isto para o caso de o senhor gostar de apostar, claro.

"Não sou homem de apostas" -pensava Nat ao entrar no prédio. Outra lacuna, supôs, porque Zib adorava os cavalos e o totobola e coisas como piqueniques com música de Jazz lá em cima em West Point antes do jogo no Michie Stadium. "Sou um tipo sensaborão" - disse Nat para consigo.

Dentro do átrio hesitou. Não tinha destino certo. Entrar no edifício onde passara quase todas as horas do seu dia de trabalho nos últimos cinco anos fora um acto automático, emergindo dessa espécie de impulso que obriga uma pessoa a ir ver a estrebaria vazia depois de lhe dizerem que o cavalo desapareceu - não que pudesse fazer realmente alguma coisa até as brigadas de trabalho voltarem de novo à obra e ser possível verificar as ordens específicas de alteração penetrando na estrutura para ver que alterações tinham sido feitas

- se é que realmente houvera alterações.

Mas estava ali, o mesmo impulso continuava a agir, e assim percorreu o átrio vazio que rodeava o centro do edifício, dirigindo-se para a caixa dos elevadores onde premiu o botão para um local no décimo-quarto andar.

Nat ouviu o silvo suave do cabo de alta-velocidade quando o elevador começou a mover-se. Simultaneamente a luz do décimo-quarto andar apareceu no painel indicador e começou a baixar andar após andar. Nat entrou quando as portas se abriram, e ali, com o dedo poisado em cima do botão, manteve-se imóvel.

Quase imperceptivelmente, dentro do núcleo oco do edifício que albergava os múltiplos poços dos elevadores, podia ouvir outro cabo a zumbir, um elevador a subir ou a descer com a sua cadência rápida.

As portas do seu elevador fecharam-se automaticamente e Nat achou-se numa treva total. Encontrou o comutador da luz no painel, accionou-o, e deixou-se ficar alguns momentos à escuta. O zumbido do cabo continuava a ecoar em surdina no núcleo do edifício. E depois parou e fez-se silêncio total.

"Tudo o que podes fazer é conjecturas - disse para consigo; podia ser qualquer pessoa, e podia encontrar-se em qualquer andar entre este pavimento e o mastro, cento e vinte e cinco andares acima. - E depois? Estás nervoso, Nathan Hale; aquelas ordens de alteração falsificadas desorganizaram-te. Esquece-as" - ordenou a si próprio. Premiu o botão e o elevador começou a subir suavemente.

Deixou o elevador no oitavo andar e desceu um lanço de escada que conduzia ao segundo dos cinco pavimentos electrónicos do edifício.

Era aqui, como no subsolo, e nos quadragésimo-quinto, octagésimo-quinto e centésimo-vigésimo-terceiro andares que até um estranho ignorante começaria a compreender um pouco da vastidão e da complexidade do edifício.

Aqui os cabos grossos como a perna de um homem traziam das entranhas do edifício a corrente de catorze mil vóltios da vizinha subestação de Gon Edison, uma intensidade muito superior à da electrocução.

E aqui os transformadores ronronantes reduziam a voltagem para níveis utilizáveis no aquecimento, na refrigeração, no arejamento e nos serviços eléctricos necessários em cada uma das secções verticais do edifício.

O odor da área isolada por uma parede era o odor da casa das máquinas de um navio: metal aquecido e óleo, borracha e tinta, ar filtrado e redes isoladoras e maquinaria que zunia obedecendo ao senhor do local, a electricidade.

A electricidade não produzia som - embora os transformadores emitissem um zumbido surdo - nem se podia ver. Mas era a matéria-prima da energia, mais ainda, da própria vida do edifício.

Sem electricidade a grande estrutura a despeito da sua inteligente complexidade não passava de uma massa inerte, de uma coisa morta composta de centenas de milhares de toneladas de aço e betão, de janelas de vidro temperado e de colunas revestidas de alumínio, de cabos e condutas e fios e mecanismos incrivelmente complicados - inúteis.

Sem energia eléctrica o edifício não tinha calor, nem luz, nem ventilação, nem elevadores ou escadas rolantes que funcionassem, nem computadores-monitores com os seus controlos vigilantes...

Sem energia eléctrica o edifício era cego e surdo, incapaz de falar ou sequer de respirar - uma cidade morta dentro de uma cidade, um monumento ao engenho, à vaidade, à inteligência e à duvidosa sabedoria do homem; uma Grande Pirâmide, um Stonehenge ou umas ruínas de Anor, uma curiosidade, um anacronismo.

Nat cravou os olhos no principal cabo eléctrico destramente ensamblado para largar a sua enorme energia aqui e ao mesmo tempo transportar essa mesma energia, intacta, para o pavimento mecânico a seguir na ordem ascendente, e assim por diante até ao topo do edifício. Aqui o centro da vida do edifício encontrava-se à vista - passou-lhe pela mente o símile da cirurgia de coração aberto.

Sentia-se consciente do sobrescrito com as falsas ordens de alteração na algibeira, e de novo a sua cólera foi firme e profunda, activando-lhe os pensamentos.

Podia compreender a raiva controlada de Giddings porque as suas raízes se encontravam nele também, e pela mesma razão: uma obra era uma coisa sagrada.

Oh, muita gente, talvez a maior parte das pessoas hoje em dia, não visse a coisa desse modo - Zib para começar - mas o que essas pessoas pensavam nesta área não tinha importância.

Para aqueles que concebiam e construíam as estruturas duráveis - edifícios, pontes, aquedutos, barragens, centrais nucleares, estádios monumentais - a forma não era importante; para eles a obra era a sua própria recompensa e não devia ser deteriorada por desleixo ou, pior ainda, intencionalmente. Tinha de ficar tão perfeita quanto um homem era capaz de fazê-la ou não seria obra acabada, e o que devia ser motivo de orgulho tornava-se numa causa de vergonha.

Pensando agora nisto, Nat, que até aí nem em pensamento permitira à cólera andar à rédea solta, decidiu libertá-la. "Um filho da puta qualquer - disse lentamente, calmamente para o grande cabo ensamblado e para os sonolentos transformadores - andou a meter as patas aqui, e se o que ele fez é grave ou não, temos de descobri-lo, e havemos de fazê-lo. E hei-de descobrir o tipo também e pendurá-lo pelos tomates."

Falar com coisas inanimadas era uma tolice, naturalmente. Falar com árvores e pássaros, com esquilos tagarelas e com falcões altaneiros era também tolice, mas ele fizera-o durante quase toda a vida. "Portanto sou tolo" - pensou Nat quando se encaminhava de regresso à escada; mas, de certo modo, depois de feita aquela promessa, sentia-se um pouco melhor.

Não encontrou coisa alguma; não esperara mais. A sua visita a cada uma das casas das máquinas era meramente um gesto automático, como a passeata que o chefe da família dá todas as noites pelo pátio da sua casa. Os pavimentes intermédios estavam vazios e ecoavam; cheiravam ligeiramente a materiais novos - azulejo, tinta de parede, superfícies envernizadas de portas - tal como um carro novo ao sair da loja do vendedor exala o seu odor de carro novo.

À medida que ia subindo no edifício, de elevador local em elevador local, o horizonte da cidade começou a ficar abaixo dele até no centésimo-vigésimo-terceiro andar lhe ser possível olhar de cima para os telhados em terraço das torres gêmeas do vizinho Centro Comercial.

Continuou a subir, saindo por fim na Sala da Torre, no último pavimento, mesmo por debaixo do mastro das comunicações. As portas do elevador fecharam-se e Nat ouviu o silvo dos cabos de alta-velocidade quando o elevador começou a descer. Franziu o sobrolho para a seta DESCER iluminada, sentindo-se intrigado. "Chamado por quem? "-cogitava, e não encontrou resposta.

Concentrou a atenção na luz vermelha e pôs-se a escutar o silvo do cabo, tentando calcular quantos andares o elevador descia antes de o cabo silenciar. Dez? Quinze? Impossível dizer.

Ainda estava à escuta quando o som do cabo recomeçou. Desta vez houve um longo período de espera antes de o cabo voltar a silenciar. Teria descido até ao átrio? E depois? "Não penses mais nisso" - voltou a dizer para consigo, e afastou-se.

O panorama daquele andar superior não tinha nada que o embaraçasse. Ali estava a baía, a Narrows Bridge, e para além o oceano refulgente. Nat recordava o que Ben Caldwell lhe tinha dito: "A primeira parcela da América que os navios vêem ao aproximarem-se da costa é o rutilante mastro de comunicações imediatamente por cima deste andar." Era fácil compreender como o pensamento do capitão de marinha saltara logo para o antigo Faros, que durante mil anos guiara os navios que se dirigiam para o Nilo.

Para norte a cidade estendia-se no seu padrão rectangular regular de ruas e avenidas, as torres do centro da cidade parecendo, vistas desta distância, quarteirões de casas num modelo qualquer posto em cima de uma mesa. Irreal, mesmo depois de ter tido tanto tempo para se habituar.

Voltou as costas às janelas ao ouvir o som abafado de um elevador posto de novo em movimento. Desta vez a luz verde por cima das portas estava acesa. Pôs-se a observá-la e esperou, estranhando o sentimento de tensão que de súbito se apoderara dele.

O som do cabo cessou. A luz verde apagou-se. As portas abriram-se e Giddings saiu. Nas suas costas as portas fecharam-se silenciosamente, mas nenhuma luz se acendeu.

- Tinha o palpite de que te ia encontrar aqui disse Giddings.

- E porque não?

Giddings encolheu os ombros. Relanceou os olhos em volta da Sala da Torre. As mesas já estavam postas ao longo de uma parede interna. As bandejas de canapés, garrafas, copos, taças de nozes e batatas fritas, todos os aprestos de um cocktail party padronizado não tardariam a chegar, juntamente com criados e empregados de bar, criadas para despejar os cinzeiros e retirar os copos sujos enquanto a conversa continuava como se nunca mais fosse acabar. Giddings voltou a olhar para Nat.

- À procura de qualquer coisa? - disse Giddings.

- E você?

- Olha, rapaz... -principiou Giddings.

Nat meneou a cabeça:

- Assim não. Se quer fazer uma pergunta, faça-a. Se quer dizer qualquer coisa, diga-a. Acabo de concluir agora mesmo que há cinco anos que não simpatizo muito consigo, Will. Não me parece que tenha simpatizado alguma vez.

- E agora - disse Giddings - desde que brandi as ordens de alteração diante de ti, encontraste uma razão, não é assim?

- É isso o que você pensa?

- E se for?

- Se for, vá-se f... - respondeu Nat.

A expressão de Giddings assumiu um ar reflexivo.

- Não é linguagem muito elegante para um arquitecto - observou. A sua voz era suave.

O momento de conflito passara. Mas, pensou Nat, havia de voltar; era inevitável.

- Não fui sempre arquitecto. - Vaqueiro, pára-quedista, bombeiro, estudante. Entretanto: - Você acaba de subir do átrio?

Giddings não se apressou a responder:

- Porquê?

- Já estava cá dentro há mais tempo?

- Perguntei: porquê?

- Porque estava cá alguém. - A coisa nunca cessara de intrigá-lo; agora deitava-a cá para fora para ser examinada. - Ouvi elevadores - disse Nat. Fez uma pausa. - A praça está cheia de agentes. Fizeram-no parar?

Giddings estava agora de cenho franzido:

- Fizeram.

- A mim também. - Não era estritamente verdade, mas tinha havido aquela conversa.

- E estás a perguntar quem mais se encontra cá dentro - disse Giddings - e porquê?

- Exactamente.

- Talvez - retorquiu Giddings lentamente - estejas a inventar isso. Talvez não haja...

Giddings calou-se e voltou-se e os dois homens olharam para a luz vermelha que aparecera por cima das portas do elevador; ouviram ambos o som do elevador em movimento. Olharam um para o outro.

- Eu não invento coisas - protestou Nat.

- Desta vez - disse Giddings - acredito.

- Lembre-se disto da próxima vez.

Desceram directamente para o átrio vazio e saíram para a praça. Nat encontrou o mesmo polícia preto com o seu grande parceiro irlandês. Giddings ficou perto a observar, a escutar.

- Ele e eu-disse Nat, apontando para Giddings. - Entrou mais alguém desde que vocês aqui chegaram?

Barnes, o polícia negro, inquiriu:

- Porque pergunta, Sr. Wilson? Shannon, o irlandês, disse:

- Prédio grande. Outras portas. - Encolheu os ombros. - Pessoal de manutenção, outras bestas de trabalho.

Nat insistiu:

- Entrou alguém?

- Um homem - informou Barnes. - Um electricista. Disse que tinha havido uma chamada de emergência.

- Quem foi que a fez? - Foi Giddings quem perguntou.

- Pensei nisso - disse Barnes. Hesitou. - Talvez um nadinha demasiado tarde. - Fez uma pausa. - É importante, Sr. Wilson?

- Não sei. - Pura verdade. Sentia-se de novo cônscio das cópias das ordens de alteração que trazia na algibeira e sabia que era o facto da sua existência que estava a torná-lo nervoso. Mas não podia haver conexão entre elas e quem quer que tivesse entrado no edifício porque as ordens de alteração aplicavam-se apenas ao trabalho em curso e a obra estava concluída, ou muito perto disso. - Ele anda a passear nos elevadores - disse.

A face de Shannon abriu-se num enorme esgar.

- E que mal há nisso, não me dirá? Se um homem sente ganas de passear num elevador o céu há-de vir a baixo por causa disso? - O sotaque irlandês era de cortar à faca.

Giddings indagou:

- Um electricista? Que levava ele? Levava alguma coisa?

- Uma caixa de ferramentas - informou Barnes. Shannon voltou a intrometer-se:

- Oh, não, Frank, esqueceste-te. Era uma bomba atômica, luzidia como um espelho. - Abriu as mãos para dar a medida da bomba. - Verde de um dos lados e vermelha do outro, a chispar que até dava gosto ver...

- Basta, Mike - atalhou Barnes. Dirigiu-se a Nat:

- Só uma caixa de ferramentas. E levava o capacete de trabalho.

- Voltou a sair?

- Se voltou - declarou Barnes - foi por outra porta.

- Hesitou. - Mas estão fechadas, não é verdade, Sr. Wilson?

- Se não estão - disse Giddings - deviam estar. - Olhou para Nat. - É melhor irmos verificar.

As portas em volta do grande edifício estavam fechadas. Nat perguntou:

- Não há vigilantes? Não há pessoal de segurança?

- Num dia vulgar - declarou Giddings - isto estaria agora cheio de turmas de trabalho. Como sabes muitíssimo bem. E quem quer que não pertencesse à obra...

- Pergunto a mim mesmo - principiou Nat. Estava finalmente de novo a pensar. - Nunca pensei nisso antes, mas numa coisa tão grande como esta, com tanta gente a mover-se por aqui... - Meneou a cabeça. - Era como um peixe no mar, não chamava a atenção. - Esteve calado uns momentos, de olhos postos na abóbada em arco do átrio. - Nunca me tinha ocorrido - disse por fim, voltando a olhar para Giddings. - Você não está a ver a coisa?

Giddings meneou lentamente a cabeça:

- Nem sequer sei de que estás a falar. Nat pronunciou em voz pausada:

- Nós desenhamos um edifício para estar aberto, para as pessoas poderem entrar e sair com facilidade.

- E depois?

- Depois - disse Nat - ele torna-se pela sua própria natureza... vulnerável.

- A quê?

Nat ergueu as mãos e voltou a deixá-las cair:

- A tudo. A tudo.

11,10h- 12,14h

Para John Connors, viajar nos elevadores silenciosos era uma actividade interessante, agradável até; maquinaria de funcionamento rápido e suave sempre o fascinara. E se alguém andava à procura dele, o que mais cedo ou mais tarde havia de acontecer, viajar nos elevadores e fazer subir e descer cabinas vazias pelos poços era provavelmente a melhor maneira de desorientar uma busca.

Estava familiarizado com o edifício de dia - isto é, num dia de trabalho normal. O que ele não imaginara era como o edifício seria vazio e cheio de ecos, quando se encontrasse sozinho perante aquela estrutura viva, que respirava.

Era como uma catedral quando não havia ninguém lá dentro - apenas em maior. Tentou encontrar uma analogia. "Imagina um Yankee Stadium vazio" - sugeriu a si próprio.

Ouvindo apenas os seus passos ecoando num corredor, olhando lá para fora através das janelas enfileiradas, o mundo abaixo dele, e vendo apenas a imensidade do céu, pensando que tinha uma possibilidade e somente uma de fazer o que tinha de ser feito, era como estar ajoelhado a rezar, sozinho na presença dele, sentindo ecoar na mente a quietude e a expectativa de qualquer coisa grande prestes a acontecer.

Qualquer coisa que ouvira antes, talvez num comício, não se recordava bem, mas a frase colara-se-lhe na memória: "Um punhado de homens decididos mudando o curso dos grandes acontecimentos." Gostava daquilo. Tinha uma tonalidade cheia de grandeza. Homens decididos. Heróis. Como raptar um avião e sair-se bem. Como aterrorizar toda a Aldeia Olímpica. Um punhado de homens decididos. Ou um homem sozinho. Então tinham de obedecer-lhe. Seguindo ao longo dos corredores com a sua caixa de ferramentas, viajando nos elevadores - era quase como estar metido num imenso parque de diversões.

A electricidade, claro, era ali dentro o elemento essencial. Hoje em dia a electricidade parecia ser o elemento essencial em toda a parte. Connors lembrava-se daquela avaria na corrente anos antes e de como tudo, mas tudo, parará completamente e algumas pessoas tinham até pensado que chegara o fim do mundo. Não todas, claro, porque nove meses depois, mais dia menos dia, houvera aquela corrida às maternidades municipais a testemunhar que alguns tinham passado as horas de escuridão proveitosamente. Mas a princípio quase houvera pânico, e isso era uma coisa que não se devia esquecer.

Ele não era engenheiro electrónico nem sequer electricista experimentado, a despeito do que dissera ao polícia negro, mas tinha trabalhado no edifício e sabia de uma forma geral como era feita a distribuição da energia. Em cada um desses pavimentos electromecânicos existia aquilo a que chamavam uma caixa de junção de cabos, e sempre que podia, Connors passara uns minutos a observar os homens do subempreiteiro em actividade, repuxando a blindagem de arame de aço que reveste os cabos eléctricos, e depois repuxando a capa de plástico que se encontra por debaixo, e chegando finalmente ao que importava, aos grandes fios interiores pelos quais a corrente é realmente transportada.

Sabia que através de transformadores-redutores cada pavimento electromecânico fornecia energia eléctrica utilizável para uma secção vertical do edifício, e que cada pavimento transmitia ao pavimento electromecânico seguinte, com a intensidade original intacta, a electricidade que vinha da subestação fora do edifício. Ignorava qual fosse a intensidade dessa corrente primária, mas tinha de ser elevada, talvez chegasse aos quinhentos vóltios, porque, de outro modo, haviam eles de incomodar-se a reduzi-la?

O seu primeiro pensamento fora atacar a instalação eléctrica que servia os andares superiores do edifício, isolando assim a Sala da Torre, onde se realizaria a recepção. Tinha na caixa de ferramentas uma alavanca de demolição e uma porção de plástico explosivo roubado, e com isso, calculava, poderia provocar uma considerável perturbação e encher todo o prédio de faíscas como numa festa do 4 de Julho.

Mas quanto mais pensava no caso, tanto menos disposto se sentia a limitar a sua obra aos andares superiores. Porque não atacar a instalação básica lá em baixo nas entranhas do edifício, onde os cabos eléctricos entravam directamente da subestação? Porque havia de driblar quando com um chuto bem aplicado podia meter a bola na rede? Era uma idéia tentadora.

Entretanto, tudo o que tinha de fazer era manter-se oculto, e isso havia de ser fácil. Mas para o caso de a sorte lhe pregar uma partida, seria bom estar preparado.

Abriu a caixa de ferramentas e tirou de lá a alavanca, curva numa extremidade, aberta e chanfrada na outra. Era uma arma de que um homem se podia servir, e ele não teria o mínimo escrúpulo em utilizá-la se fosse necessário.

Estavam a instalar o estrado para a cerimônia quando Nat e Giddings saíram do edifício. Giddings olhou para lá com desagrado.

- Discursos - disse. - O governador felicitando o presidente da Câmara e o presidente da Câmara felicitando Grover Frazee e um dos senadores dizendo que grande coisa será este edifício para a humanidade...

- Calou-se.

- Ai, isso, talvez seja - pronunciou Nat. Estava a pensar de novo na referência de Ben Caldwell ao Faros. Um centro mundial de comunicações...

- Isso são lérias e tu sabes bem que são. E apenas mais um estupor de um prédio descomunal e já os temos de sobra.

Era uma relação amor-ódio a de Giddings com o prédio que ajudara a criar, pensou Nat. Bem, tanto quanto lhe dizia respeito, ele vacilava entre o orgulho e a admiração por um lado e por outro um ressentimento determinado pelo facto de aquela estrutura inanimada ter há muito tempo adquirido uma personalidade própria, dominando todos os que a serviam.

- Fique aqui a praguejar contra o prédio - disse.

- E aonde é que tu vais?

O atrito entre eles ameaçava explodir em declarada hostilidade. "Bem, se tiver de ser, que seja" - pensou Nat, mas pela sua parte não queria precipitar a explosão.

- Aonde alguém já devia ter ido antes - disse. Falar com Joe Lewis a respeito dessas alterações.

Afastou-se atravessando a praça e retirando de caminho o distintivo da lapela.

Desta vez, no interesse da velocidade, tomou o metropolitano para a Grand Central, percorrendo a pé apenas os dois quarteirões que ao longo do Parque conduziam ao Edifício dos Arquitectos, e subiu de elevador ao décimo andar onde a tabuleta na porta de vidro dizia: JOSEPH LEWIS, ENGENHEIRO ELETROTÉCNICO. O escritório e as salas de desenho ocupavam quase todo o andar.

Joe Lewis estava em mangas de camisa no seu grande gabinete atravancado. Era um homem pequenino, vivo, arguto, directo.

- Se é um novo projecto - declarou -, diga ao Ben que estou cheio de trabalho para os próximos seis meses. Se ele pode esperar...

Nat atirou com o sobrescrito de tela para cima da mesa. Viu Joe olhar para o sobrescrito, levantá-lo e despejar as cópias das ordens de alteração em cima do mata-borrão. Leu-as uma após outra rapidamente, deixando-as cair como se fossem coisas vivas. Por fim olhou para Nat, com uma cólera manifesta.

- Quem emitiu estas ordens? Quem foi que lhe deu o direito?

- Só soube dessas ordens hoje de manhã.

- Mas estão assinadas por si. Nat meneou a cabeça.

- É o meu nome, mas foi escrito por outra pessoa. - Como uma palavra excessivamente repetida, a verdade começava a perder o seu significado. "Acabarei por nem eu próprio acreditar" - pensou.

- Por quem então? - perguntou Joe.

- Não faço a mínima idéia.

Joe bateu com o indicador sobre os papéis:

- Estas alterações foram efectivamente feitas?

- Teremos de verificar. - Tinha sido até agora uma conversa sem finalidade, mas era preciso lançar os alicerces.

- E que pretende de mim? Eu dei-vos os desenhos, toda a planificação eléctrica. Se o trabalho fosse feito de acordo com esses desenhos e não por aqui...

- Ninguém está a acusá-lo. - "De momento", pensou Nat "porque no fundo ninguém se encontra por ora ilibado". - O que eu quero de si é uma ordem de prioridade. O que é que vamos verificar...

- Tudo. Sem faltar nada, mesmo que tenham de desventrar o prédio. vou insistir nisso. Caramba, homem, toda a planificação eléctrica desse edifício está em meu nome.

- E no nosso. Eu compreendo isso. - Porque seria que pessoas inteligentes não eram capazes de ver o que se encontrava diante delas? - Mas o que é que devemos verificar em primeiro lugar? E em segundo? E assim sucessivamente? Você é o perito. Dê-nos uma lista com a ordem de importância e meteremos a gente de McGraw à obra.

Lewis sentou-se abruptamente.

- McGraw - disse. - O Bert não deveria estar metido nisto. - Meneou a cabeça. - Impossível. Tentem fazer "economias" numa obra de McGraw, tentando pescar lucros ilícitos, subornando fiscais... e acabareis por receber a vossa própria cabeça numa bandeja.

Nat sentou-se também.

- Já ouvi dizer isso, mas não tenho maneira de saber se é verdade. - Aquilo podia lançar uma luz diferente no caso.

- Exceptuada a construção de estradas - pronunciou Lewis, agora mais calmo -, a construção de grandes prédios é a actividade que proporciona mais oportunidades de fazer trapaça. A bandidagem tem andado metida nisso há anos. Desde sempre. Em geral, mas nem sempre, nas obras públicas. Em Jersey... - Meneou a cabeça. - Em certos distritos de Jersey eu não aceitava uma obra de electrotecnia nem mesmo que chovessem diamantes do contrato. Por cá é melhor. A maior parte das vezes. Tanto quanto sei, a malta do dinheiro fácil só tentou a sua sorte uma vez com o McGraw. Sorriu. Era um sorriso amargo, bizarramente satisfeito.

Então Joe Lewis era um daqueles para quem o trabalho era sagrado, pensou Nat, um dos bons. Perguntou:

- Que aconteceu?

- Eles mandaram-lhe emissários - respondeu Lewis.

- Tudo o que o McGraw dizia era que não lidava com subalternos. O patrão ou ninguém. - Fez uma pausa. Era um grande prédio, podia colher-se ali muito dinheiro, e talvez isso fosse apenas um começo, por isso o patrão apareceu. - Nova pausa. - McGraw levou-o lá para cima onde pudessem falar em particular... tão alto quanto o aço alcançara, quarenta, quarenta e cinco andares, ninguém em volta, e a rua lá muito, muito em baixo.

"- Agora, seu filho da puta - disse McGraw depois de o bandido ter tido tempo de ver e de não gostar do que via -, queres voltar a descer no monta-cargas para te pores a cavar daqui e nunca mais cá apareceres, ou preferes seguir pelo caminho mais rápido, saltando agora mesmo dessa viga de aço para depois te tirarem da rua com papel mata-borrão? Decide-te depressa."

Lewis fez terceira pausa.

- Nunca mais voltaram a incomodá-lo - declarou. - Há certos homens com quem não se consegue nada, você sabe, e nem sequer vale a pena tentar.

Matéria para alimentar pensamentos. Nat manteve-se calado um instante, pondo em contraste o que sabia de McGraw com a história que acabava de ouvir. Condizia. Havia no velhote uma imediata prontidão para se arriscar, para aceitar qualquer parada que se lhe apresentasse. Era uma coisa que se via, que não enganava. O bandoleiro estivera talvez tão próximo da morte noutras ocasiões, mas Nat quereria apostar em como o risco nunca se lhe apresentara de forma tão declarada. Podia excluir McGraw do enigma.

- Você já tinha trabalhado antes com o Paul Simmons? - perguntou.

- Trabalho com ele desde que ele se casou com a filha do McGraw e o McGraw o lançou para cima.

- Então foi assim? Não sabia. O Paul é um rapaz inteligente. - Lewis fitou os olhos pensativamente nas ordens. - Você pensa que ele poderia ter feito isto?

- Meneou devagar a cabeça. - Não me parece. Mais tarde ou mais cedo estas ordens acabariam por aparecer, como apareceram, e então toda a gente perguntaria: "Quem lucrou?" O subempreiteiro da instalação Eléctrica é a personagem óbvia: recebe a sua comissão para fazer trabalho inferior, dinheirinho no bolso. Mas é demasiado óbvio, demasiado fácil. E, seja como for, que necessidade tinha ele disso? Tem um negócio próspero e o McGraw como sogro, possui uma óbvia genealogia universitária indicando que a família provavelmente tinha dinheiro. Porque se havia de sujar numa coisa destas?

- Visto isso - disse Nat, e o seu sorriso não era nada divertido - ninguém mais tinha qualquer boa razão para emitir ordens de alteração... e elas trazem o meu nome. Bonito. Poderá mandar-me arranjar essa lista? O principal no princípio, não importando a profundidade a que tenhamos de ir. Tem de ficar tudo certo.

Encontrava-se de novo a caminhar a pé; era a reacção automática. Subindo o Parque para a Rua Quarenta e Dois, atravessou a Quinta Avenida e dirigiu-se de novo para a zona residencial. Não via quem se cruzava com ele; via apenas as luzes do tráfego e os automóveis que poderiam constituir um perigo. E via os seus pensamentos.

As ordens de alteração eram reais. Esse era o primeiro ponto.

Ou tinham sido executadas - haviam sido feitas substituições e passado por alto certos trabalhos, resultando daí uma obra inferior - ou tinham sido ignoradas. Esse era o segundo ponto.

Os computadores, usando números binários, analisam um problema da mesma maneira - sim ou não a cada passo. O método é quase infalível - presumindo que se fazem as perguntas certas, que se dão os passos certos - mas a dificuldade está em que os passos se multiplicam exponencialmente, e que as séries simples e aparentemente inofensivas de progressão 1, 2, 4, se transformam rapidamente num horror cujas possibilidades ascendem aos milhões.

E era precisamente por isso, pensou Nat quase colericamente, que tinham computadores, que não lhe eram de nenhuma utilidade. Era o tipo de pensamento acidental que se intromete freqüentemente quando uma pessoa tenta concentrar-se.

Atravessou a Rua Cinqüenta e Nove em direcção ao parque, e tudo mudou imediatamente para ele. O seu passo afrouxou e alongou-se, a sua mente pareceu descontrair-se e começou a dar fé do que o rodeava. Ali havia árvores, e erva, e rocha nua, e o próprio céu parecia diferente, mais azul, menos torturado pela civilização. Oh, é certo que não havia panoramas como os que ele conhecera outrora, nem montanhas distantes constantemente encarapuçadas de neve, nem ar transparente e seco que se respirasse, nem genuíno silêncio. Mas era melhor, e os seus pensamentos fluíam com mais facilidade.

Se as ordens de alteração nunca tivessem sido executadas, então não havia razão para a sua existência - verdadeiro ou falso?

Não necessariamente verdadeiro, porque podiam ter sido emitidas, ou não, com uma finalidade diferente da de "fazer economias", que era aquela que saltava à vista? Por exemplo? Por exemplo com o fim de comprometer Nat Wilson! Podia ou não podia?

Mas porquê? Nat não fazia a mínima idéia. Tanto quanto sabia, não havia ninguém capaz de ir tão longe só para comprometê-lo.

Tinha tamanha certeza disso?

Parou junto do carro de um vendedor e comprou um saco de amendoins. Começou a caminhar, afastando-se da área do jardim zoológico e penetrando nas profundas do parque. Sentou-se numa rocha e esperou com a paciência de um homem das montanhas até que um dos esquilos do parque se aproximou para observá-lo.

- Finalmente vieste - disse Nat e atirou-lhe um amendoim. - Prazer em ver-te - acrescentou enquanto o esquilo fugia com a sua presa.

Podia ter a certeza de que ninguém estava a tentar fazê-lo cair numa armadilha? Era, disse para consigo, uma presunção demasiado arriscada.

Ele viera, com efeito, do nada, do montanhoso Oeste, sem amigos aqui no momento oportuno, sem cartas de apresentação, sem apertos de mão que lhe servissem de alavanca. E apresentara-se com a sua pasta e esperara até ser recebido por Ben Caldwell - isso levara-lhe quatro dias -, tendo saído da entrevista com um emprego que qualquer jovem arquitecto bem classificado e bem recomendado teria dado tudo por conseguir. Fora há sete anos, quando se tinha começado a pensar na Torre Mundial.

O esquilo voltou. Sentou-se e pôs-se a estudar Nat. Nada aconteceu. Cautelosamente, baixou as patas dianteiras, avançou dezoito polegadas e sentou-se de novo.

- Está bem - disse Nat -, representas a preceito. Toma. - Outro amendoim.

"Terei pisado os calos de alguém nessa altura?

- perguntou Nat em voz alta. - Terei pisado os calos a alguém de então para cá?" E a resposta foi: provavelmente, mesmo que eu não tenha dado por isso. Existia portanto a possibilidade de as ordens de alteração terem sido emitidas simplesmente para comprometê-lo. Pensamento desconfortável.

Mas supusesse-se que elas tinham sido executadas, uma coisa que ele só poderia saber depois de se iniciar o trabalho de investigação.

Então, naturalmente, a inferência imediata era de que o motivo fora o lucro: reduzir a qualidade do material e a mão-de-obra, aumentando assim a margem de lucro entre o custo e o pagamento para alguém. Quem? Paul Simmons continuava a ser o candidato óbvio. Mas, se Simmons tinha a seu favor tudo o que Joe Lewis mencionara, porque se iria arriscar a ser descoberto? Nat não tinha resposta.

Havia uma terceira possibilidade. Supusesse-se que as ordens tinham sido emitidas (por quem? ) e executadas, mas inocentemente. E se Paul Simmons e a sua gente tivessem pensado que essas ordens de alteração representavam uma autêntica mudança de idéias da parte dos arquitectos e dos engenheiros e, não lhes cabendo indagar motivos, tinham ido por diante com elas sem qualquer intuito desonesto? Essa terceira possibilidade apontava para várias direcções.

Nat abriu e comeu um amendoim. Soube-lhe bem. Recordou-se de que não tinha almoçado. Comeu outro amendoim e depois notou que o esquilo tinha voltado, com um amigo, e que os dois estavam sentados quase a seus pés, atentos, à espera.

- Desculpem, rapazes - disse Nat, e atirou dois amendoins, um para a esquerda, outro para a direita.

Outra possibilidade, disse para consigo, e esta última tinha ele tentado manifestamente empurrar para o fundo do seu subconsciente a fim de esquecê-la, mas lá voltava ela a borbulhar à superfície. E se as mudanças não o visassem a ele nem ao lucro, mas ao próprio edifício? Isso fazia algum sentido? Infelizmente, chocantemente, fazia. Ou poderia fazer.

Sem cálculos, que Nat seria capaz de fazer mas que Joe Lewis e a sua gente, os peritos, fariam mais depressa, não se podia dizer quão vitais, ou letais, eram as alterações.

Os prédios não eram projectados, como os aviões ou as naves espaciais, dentro dos rigorosos limites de tolerância dos materiais que os integram. Antes pelo contrário, visto que o peso não era o problema básico, havia um factor adicional de segurança calculado para cada elemento estrutural, para cada cabo, para cada instalação eléctrica. Nos cálculos do projecto eram programadas contingências remotas, tais como ventos horários de

150 milhas, o que excedia de longe tudo o que a cidade alguma vez suportara, ou aumentos súbitos da corrente eléctrica quase impossíveis de conceber.

Devido à altura da Torre, a queda de raios era considerada normal; o gigantesco esqueleto de aço transportaria a carga inofensivamente para o solo, como já o fizera muitas vezes no decurso da construção.

Os terramotos eram a mais remota das possibilidades: não havia áreas sísmicas nas proximidades. Apesar disso, os alicerces do edifício desciam até ao leito de rocha, esse torturado xisto que forma a espinha dorsal da urbe, e, com a sua forte e flexível estrutura firmemente agarrada àquela base sólida, o edifício podia suportar um tremor de terra de intensidade mais do que moderada sem sofrer dano.

Em suma, toda a ameaça susceptível de ser imaginada tinha sido prevista, e a defesa preparada. Tinham-se efectuado cálculos computadorizados. Tinham-se feito e submetido a experiências vários protótipos. O grande edifício, tal como fora planeado, era tão durável quanto o engenho do homem era capaz de fazê-lo.

TAL COMO FORA PLANEADO.

Mas mude-se uma coisinha aqui, uma coisinha além nos lugares inconvenientes - e a durabilidade, a funcionalidade e até a segurança podem tornar-se mera ilusão.

Porque havia alguém de ameaçar a integridade de um edifício dessa maneira? Nat não fazia idéia, mas num mundo onde a violência parece ser a norma e a irresponsabilidade é exaltada, a simples sabotagem de um edifício está longe de ser impossível.

Os dois esquilos tinham voltado outra vez, e apareceu um terceiro, atraído por aquele homem pródigo em ofertas de alimento.

- Há ocasiões - disse Nat - em que penso que devíamos entregar o mundo a vocês. Como lémures, poderíamos internar-nos no mar. Tomem lá. - Despejou o saco de amendoins a seus pés e levantou-se.

OBert McGraw encontrava-se no seu escritório, num andar elevado de múltiplas janelas. Estas abriam para a cidade, o que lhe permitia uma visão dos edifícios em cuja construção participara. Em geral apreciava aquela vista. Neste momento, porém, não tinha a certeza de gostar, porque erguendo-se no centro do quadro via a Torre Mundial, e o que Giddings lhe estava a contar e a mostrar a respeito dessa estrutura era bastante para arrefecer o entusiasmo de um homem, mesmo num dia de Primavera adiantada, claro e cheio de sol como este.

Os olhos de McGraw pareciam fuzilar as cópias das autorizações de alteração sobre a sua secretária. Voltou a olhar para Giddings.

- Mas o que é que sabemos ao certo? - perguntou. Tinha uma convicção profundamente enraizada de que a sua esperança era vã; de que as aparências desagradáveis não desapareceriam se fossem bem examinadas. Mas um homem deve sempre tentar. - Uns pedaços de papel - disse McGraw - e nem sequer se trata de originais.

- Você está a iludir-se a si próprio, Bert - disse Giddings -, e isso nem parece seu. Isto são fotocópias Xerox fidedignas das aldrabices que se fizeram debaixo do seu nariz... e, sim, admito-o, debaixo do meu também. Quantas dessas alterações foram levadas a cabo, não sei ainda. Até que ponto são graves, também não sei.

Quanto ao motivo que determinou a emissão dessas ordens, tudo quanto posso ter é palpites.

McGraw içou-se da cadeira e foi postar-se junto das janelas. Tinha havido um tempo em que aquilo não o abalaria sobremaneira. Agora foi como um soco traiçoeiro nos rins, e o mundo diante dos seus olhos começou a ficar turvo. Não era a primeira vez que isso lhe sucedia, e a coisa preocupava-o.

- Tens demasiado peso - dissera-lhe a sua Mary e trabalhas demasiado e já não és tão novo como eras, é esse o teu mal, Bert McGraw. Noutros tempos podias passar uma noite inteira a beber e a trabalhar e voltavas para casa fresco como uma alface, ou quase. Mas já não és jovem. Nem eu tão-pouco, o que mais pena me faz ainda. Portanto deixa de te preocupar.

Os seus olhos voltaram a focar correctamente o mundo. McGraw afastou-se das janelas.

- O nome que aqui está é o do jovem Nat Wilson - disse. - Será que este idiota realmente assinou as ordens?

- Ele diz que não.

- E você que diz? - Ainda havia vigor naquele velho.

- Não vejo que motivo teria ele - respondeu Giddings. - Que ganharia? Podia agarrar-se aos planos e dizer que não eram autorizadas alterações e estaria perfeitamente dentro do seu direito. Porque havia então de arriscar a cabeça?

McGraw encaminhou-se para a sua cadeira e deixou-se cair no assento.

- Muito bem - disse. - Pelo menos o que temos é confusão. Em face desses papéis, o edifício, esse belo e gigantesco edifício, não corresponde inteiramente às especificações, e isso é uma porta aberta para uma data de complicações... e até, valha-nos Deus, para complicações legais.

- E trabalho - acrescentou Giddings. - Teremos de abrir paredes, de verificar circuitos. - Meneou a cabeça.

- Faremos o que for preciso fazer - declarou McGraw secamente. Calou-se por um momento e a beligerância desapareceu. - Não é isso que estou a pensar. - Estava a ser místico, supersticioso até, como Mary, Deus a protegesse, costumava às vezes dizer que ele era, com o irlandês que havia dentro dele a sair cá para fora? - Você próprio o tem visto - disse. - Num trabalho correm mal umas coisinhas, acontecem acidentes, faltas de material atrasam-nos, vem o mau tempo, somos apanhados por uma greve... -Abriu as mãos e enrolou-as em torno dos pulsos, estudou-as como se fossem inimigos. - E às vezes - rematou - o chorrilho do azar não acaba mais. É como, Deus me perdoe, se alguém tivesse deitado mau olhado e nem a água benta de um padre fosse capaz de exorcisá-lo. - Fez nova pausa. - Sabe o que quero dizer, Will?

Giddings estava de novo a pensar em Pete Janowski a sair fora daquela viga de aço no sexagésimo-quinto andar sem qualquer motivo que se percebesse.

- Sei o que quer dizer - declarou. McGraw suspirou profundamente.

- Detesto ter de admiti-lo - disse-, mas há dois edifícios nesta cidade... não direi quais são mas construí-os a ambos... em que nem sequer entraria, quanto mais andar de elevador lá dentro. - Sacudiu a cabeça como a enxotar o pensamento. - Deixemos isso. Não adianta nada. - Aprumou-se na cadeira e a sua voz tornou-se áspera. - Quanto ao motivo por que essas alterações foram ordenadas você diz que tem apenas palpites, não é? Muito bem, venham de lá esses palpites.

- Você não vai gostar - disse Giddings.

- Quero que isso se lixe. - Era cólera genuína que o velho sentia agora, cólera sólida, profunda e forte. - Fomos vigarizados, eu directamente e você como representante dos proprietários. com mil raios, quero saber por quem e porquê.

Giddings encolheu os ombros:

- As alterações são todas na electricidade.

- E depois?

- Pelo que vi - disse Giddings - as alterações tendem todas para aplicar menos material ou simplificar os circuitos. - Fez uma pausa. - Que é que isso lhe diz?

Não houve hesitação.

- Que alguém esteve a tentar economizar dinheiro

- pronunciou McGraw. Içou-se da cadeira e foi de novo fitar através das janelas o mundo turvo lá de fora. Disse por cima do ombro: -E o homem que economizou dinheiro, está você a dizer, não é verdade, é o homem que detém o contrato para a instalação eléctrica? - Tal como há pouco a vista tornou aos poucos a focar correctamente os objectos. McGraw voltou-se. Conservava as mãos atrás das costas para que se não visse a tensão que ia nele. - Paul Simmons... é para quem você está a apontar o dedo, não é?

- Eu disse-lhe que só tinha palpites.

- E com efeito teve um.

- E - acrescentou Giddings - preveni-o de que você não ia gostar.

- Não - admitiu McGraw numa voz nova, calma. Não gosto. Não gosto que você pense isso, e não gosto de eu próprio pensar isso. - Descobriu finalmente as mãos, os dedos afastados e aduncos, e examinou-as durante longo tempo em silêncio. Quando voltou a olhar para Giddings a sua face estava quase cinzenta. - Havemos de descobrir, Will - disse. - Se eu tiver de pegar nele com estas duas mãos e vergá-lo até ele quebrar, havemos de descobrir. Prometo-lhe. Entretanto... -As palavras cessaram subitamente como se o velho tivesse esquecido o que ia dizer. Esfregou uma das mãos ao longo da face, com um movimento fatigado.

- Entretanto - disse Giddings, como se não tivesse havido qualquer solução de continuidade - tentarei descobrir o que temos de fazer.

McGraw arriou-se na cadeira. Meneou afirmativamente a cabeça.

- Faça isso, Will. E informe-me. - Aspirou profundamente o ar. A sua voz tornara-se de novo forte. - Nós responsabilizamo-nos pelos nossos trabalhos. Sempre o fizemos.

- Nunca duvidei disso - disse Giddings. McGraw continuou imóvel no seu cadeirão muito

depois de Giddings ter partido. Sentia-se esquisito e fatigado e relutante em fazer o que tinha de ser feito. Houvera tempo em que ele teria saído a rugir do seu escritório ao mínimo fiapo de suspeita de que alguém pudesse andar a fazer trapaça, fosse quem fosse, afim, parente, santo ou demônio. Mas a idade muda um homem, algumas das suas certezas tornam-se menos certas, as linhas de fronteira esbatem-se, e a tentação de McGraw era de recusar-se a crer que uma pessoa próxima dele, uma pessoa da sua família, tivesse prevaricado.

O velho sentia-se orgulhoso de Paul Simmons, o seu genro. Simmons era aquilo a que se costumava chamar um cavalheiro - Andover, Yale, coisas assim, de modo algum uma genealogia de gato de beco como a de McGraw.

E Patty ajustava-se bem ao círculo social de Paul, e isso era outro motivo para se sentir orgulhoso.

McGraw e Mary viviam ainda na casa de Queens que McGraw comprara com os lucros do seu primeiro grande negócio de construção trinta anos antes. Paul e Patty viviam em Westchester, apenas a algumas milhas mas a toda uma cultura de distância da casa de McGraw. Uma pessoa acalenta o sonho americano de ver os filhos progredir em relação aos pais. E quando isso sucede, uma pessoa ajoelha e agradece a Deus o seu favor.

"Agora - dizia McGraw para consigo - pega no telefone e chama ao teu genro trafulha e gatuno." Pensamento amargo.

As cópias das autorizações de alteração encontravam-se ainda em cima da sua secretária. Colocou-lhes em cima a pesada manápula. As folhas crepitaram como folhas secas.

Uma coisa dessas não podia ter acontecido, pensou McGraw, não numa empreitada sua, não debaixo do nariz de Giddings, ou do de Nat Wilson. E os fiscais? Comprados? Ou simplesmente enganados pelas falsas mudanças de planos?

Mas tinha acontecido. Ele sentia isso nos ossos. Oh, não era a primeira vez que acontecia numa grande empreitada alguém jogar às ervilhas no seu sector de trabalho, mudando as coisas como o homem do circo com as cascas de nozes e a ervilha que nunca está debaixo da casca onde devia estar.

Facturas e contas de mercadorias despachadas, ordens de trabalho, especificações, até os próprios desenhos, tudo isso pode ser alterado ou falsificado; pode dar-se por concluído trabalho que nunca foi feito, dinheiro pode ser passado por debaixo da mesa ou ficar pegado aos dedos de um tipo qualquer - há truques sem conta, e ao longo da sua vida McGraw deparara com todos, e nessas ocasiões havia alguém que largava o trabalho a toda a pressa com um pontapé aplicado entre as omoplatas e talvez alguns dentes perdidos no meio da refrega.

O telefone sobre a secretária despertou o velho, que olhou para o aparelho com antipatia antes de levantar o auscultador.

- A Sr. a Simmons está ao telefone - anunciou a sua secretária.

Patty não podia saber, disse McGraw para consigo. E, caramba, tão-pouco ele sabia ainda ao certo que Paul fosse um safardana capaz de emporcalhar um trabalho honesto. Isso, como eles diziam, estava ainda por provar, e um homem é inocente até prova em contrário. Um raio, é que era.

- Olá, querida - disse McGraw ao telefone.

- Estás disposto a oferecer-me um almoço, papá?

- A voz de Patty, como a própria Patty, era jovem, fresca, entusiástica. - Estou na Grand Central e o Paul está muito ocupado com uma entrevista de negócios.

- E nenhuma das pessoas tuas amigas está disponível - disse McGraw-, portanto acabaste por te lembrar do velhote, não é assim? - Bastou ouvir a voz da filha para sorrir mentalmente, aliviando de certo modo a dor que lhe torturava o espírito.

- Vai ser uma festa para mim - disse Patty. - Sabes que me teria casado contigo se não fosse por causa da mãe. - "E quem me dera ter podido fazê-lo", pensou ela, mas deixou essa parte por dizer. - Não sejas forreta.

- Muito bem, querida-respondeu McGraw. -Tenho de fazer uns telefonemas. - Um, pelo menos. - Arranja uma mesa no Martin's. Não me demoro.

- Terei uma bebida preparada à tua espera. McGraw desligou e tocou para a sua secretária.

- Ligue-me para Paul Simmons, Laura. - Obrigou-se a esperar calmamente.

A secretária apareceu de novo ao telefone, quase imediatamente.

- O Sr. Simmons está neste momento ocupado ao telefone. Volto a chamar daqui a pouco?

"Uma prorrogação? - pensou McGraw. Nada disso. A coisa não se pode adiar" - decidiu para consigo.

- Não - disse por fim -, ligue-me para a secretária dele. - E quando uma nova voz agradável surgiu no fio: - Diga ao Paul que o quero aqui no meu escritório à uma e meia em ponto.

A secretária hesitou:

- O Sr. Simmons tem uma agenda bastante ocupada, Sr. McGraw. Ele...

- Querida-atalhou McGraw-, diga-lhe que esteja cá.

Desligou, içou-se para fora da cadeira e dirigiu-se para a porta. "Um breve intervalo aprazível com Patty pensou - e depois-como era essa palavra agora tanto em voga? - confrontação." Seja. Aprumou os ombros automaticamente quando atravessou a porta.

No seu gabinete, Paul Simmons, ao telefone, dizia:

- Reservei a mesa e disse à Patty que tinha uma entrevista de negócios, por isso acho que me deves a tua companhia ao almoço.

- Achas isso? - O nome dela era Zib Wilson, em solteira Zib Marlowe. - Estava à espera de uma chamada do Nat. - Não era rigorosamente verdade: esperara que Nat lhe telefonasse. - Mas - acrescentou suponho que ele está muito ocupado com a inauguração da Torre. - Fez uma pausa. - E por falar nisso, porque - é que tu não estás?

- Não me casei com o meu trabalho. Não sou como certos homens... o teu querido marido, por exemplo.

- Simmons fez uma pausa. - Almocinho, minha querida. Depois de tomarmos a primeira bebida, dir-te-ei o muito que te amo. Depois da segunda bebida dir-te-ei baixinho o que te vou fazer da próxima vez que te apanhar na cama.

- Isso parece fascinante. - Havia pilhas de manuscritos sobre a sua secretária, o número de Agosto do livro ainda não estava concluído, não podia estar enquanto ela não dispusesse de pelo menos mais um trabalho aceitável de ficção. Por outro lado, uma lata de conservas

fechada e uma chávena de mau café em cima da escrivaninha

não a atraíam. - Convenceste-me - disse Zib. - Onde?

E quando? - Curioso como já não pensava em Nat nem em qual seria a sua reacção se soubesse que ela se extraviara do redil. "Uma frase de romance piroso", pensou ela enquanto tomava nota do nome e da direcção do restaurante. -Já está - disse. - Ciao. E pagarei a minha parte. Como de costume.

O governador Bent Armitage, que descera da capital para a inauguração da Torre, encontrou-se com Grover Frazee para um almoço antes da hora habitual no Harvard Club da Rua Quarenta e Quatro. Diante do seu martini o governador disse:

- Os relatórios da companhia que você tem mandado não dizem realmente muito, Grover. Como vão as rendas na Torre, ou é ainda demasiado cedo para dizer?

Quando se decidia a isso, pensou Frazee, o governador era capaz de assumir uma expressão desorientada, tímida, bucólica, que enganava a maioria das pessoas. Qual fora a alcunha que outrora tinham posto a Wendell Wilkie? O pé-descalço de Wall Street? A mesma coisa.

- O quadro está ainda um pouco confuso - disse Frazee.

O governador sorveu o martini com satisfação.

- Dantes, quando se pedia um martini - comentou estava tudo dito. Agora uma pessoa tem de preencher um questionário: sobre gelo ou puro? vodca ou gin? azeitona, cebola ou casquinha de limão? - E depois, sem mudar de expressão: - Fiz-lhe uma pergunta, Grover. Deixe-se de servir ambigüidades.

Era um assunto penoso, difícil.

- As rendas - disse Frazee - vão tão bem como se pode esperar dadas as circunstâncias.

O governador sabia sorrir como um lobo de Disney, mostrando os caninos brancos.

- Doze palavras que dizem exactamente nada. Você teria dado um excelente político. As rendas não vão bem. Diga-me porquê.

- Uma variedade de factores... -principiou Frazee.

- Grover. Você não está a falar para uma assembléia de accionistas. Está a falar para um accionista interessado na Companhia da Torre Mundial. Faz a sua diferença. Os inquilinos em perspectiva fogem às manadas? Quero saber porquê. Demasiado espaço disponível? Rendas excessivamente altas? Escassez de dinheiro? Incerteza na comunidade comercial? - O governador calou-se, observando a face de Frazee.

Frazee hesitava. O governador era um homem que se tinha feito a si próprio, e havia ocasiões, como agora, em que punha de parte a sua máscara jovial e amigável, permitindo ao parceiro contemplar uma parte daquela força que o erguera, quase, à presidência dos Estados Unidos.

- Por todas essas razões - disse Frazee. Esperava que o seu encolher de ombros descuidado tivesse sido convincente. - As coisas hão-de mudar. Têm de mudar. O Centro Comercial está a passar pelos mesmos apuros.

- O Centro Comercial - disse o governador - pertence à administração do porto. Precisarei de enumerar as outras fontes de rendimento da administração do porto? Para eles um prédio incompletamente ocupado é uma situação que podem tolerar quase indefinidamente. Nós somos uma empresa privada e estou constantemente a pensar no Empire State Building meio vazio durante a Depressão.

Frazee conservou-se calado.

- O que isso significa-continuou o governador-é que parece que escolhemos um tempo de vacas magras para construir a nossa maldita Torre, não foi? - Escorropichou o copo. - Prometi a mim mesmo dois martinis - disse, e curvou o dedo para o criado mais próximo.

Frazee continuava calado, vagamente deprimido. Não era um homem assustadiço nem se considerava a si próprio menos responsável. Quando surgiam problemas, estava habituado a lidar com eles e não, como muitos faziam, a varrê-los para debaixo do tapete. Por outro lado, não se atirava para a cabeça do touro, como o governador era propenso a fazer, porque, se uma pessoa não as procura deliberadamente, às vezes as dificuldades não nos atingem. A situação dos arrendamentos na Torre Mundial não era brilhante, mas também não era crítica. Por enquanto.

- O custo da construção excedeu as previsões? -perguntou o governador.

Ali Frazee encontrava-se finalmente em terreno sólido.

- Não - disse. - Mantivemo-nos muito dentro do orçamento. - Era uma fonte de orgulho. - O projecto e a planificação foram feitos com muito rigor.

- Bem, isso é um ponto positivo. - O governador sorriu de súbito. - Um ponto positivo inesperado. Dá-nos um certo espaço de manobra, não é verdade?

Frazee não via como. Foi isso mesmo que disse com uma certa secura. A sua depressão transformara-se em ressentimento ante a aparente insinuação de que estava a fechar os olhos ao óbvio.

- Em certos círculos - disse o governador - chama-se a isso agir com eficácia e falta de escrúpulos. Noutros considera-se meramente uma sensata acomodação aos factos da vida. Primeiro, uma pessoa tem de sobreviver, Grover. Lembre-se disso. É verdade na política e é verdade também na administração imobiliária. Visto que não excedemos os custos de construção, podemos permitir-nos tirar um dividendo ligeiramente inferior nas nossas rendas sem com isso sermos grandemente prejudicados, não é verdade?

- Publicámos a nossa tabela de rendas - disse Frazee severamente. - Assinámos contratos à base dessa tabela.

- Bo... om-murmurou o governador. -Agora, onde julgar conveniente, deixe os nossos agentes assinar alguns contratos por rendas ligeiramente inferiores à tabela, sugerindo aos inquilinos que fariam bem se mantivessem a boquinha calada a esse respeito.

Frazee abriu a boca e tornou a fechá-la cautelosamente. O governador exibiu o seu sorriso de lobo.

- Ficou chocado? Parece-lhe uma sugestão digna de ser feita num clube de cavalheiros de indústria? - Fez de novo sinal ao criado. - Vamos encomendar o almoço - disse - enquanto ainda me resta algum martini. Vai ser uma tarde muito longa e muito maçadora. - Consultou a ementa, escreveu a sua ordem e voltou a recostar-se na cadeira. - Há muitos interesses metidos nisto, Grover - declarou. - Talvez você não se importe com os seus, mas eu importo-me muito com os meus. Éticas de cavalheiro são muito boas para as regatas, para o golfe e para outras empresas inofensivas, mas nós construímos esse edifício para ganhar dinheiro. - Fez uma pausa. Tratemos pois de ganhá-lo.

13.05h

Paul Simmons encontrava-se já num pequeno reservado nas traseiras do restaurante quando Zib chegou. Levantou-se quando a viu aproximar-se, saia curta sobre umas meias deslumbrantes, cabelo comprido a fulgir, seios sem soutien a saltitarem docemente. Introduziu-se no reservado com a graça que ele sempre associava com a figura de Zib.

- Eu não devia estar cá - declarou ela, arremessando o cabelo para trás com ambas as mãos. - Devia estar a peneirar montes de escória à procura de um trecho de ficção que pudéssemos usar sem nos envergonharmos muito. - Franziu o nariz desdenhosamente.

- Tanto mais lisonjeado me sinto. - Paul fez sinal ao criado e mandou vir as bebidas: martinis de gin, puros, muito secos, muito gelados, com uma casquinha de limão. Depois voltou a recostar-se e sorriu para Zib. Quando é que te poderei ver?

- Estás a ver-me.

- Não da maneira que quero. Preciso explicar como é?

- Tu não passas de um imundo sensualão.

- E tu gostas.

O sorriso dela era secreto, inescrutável. Repuxava-lhe os cantos da boca e acendia luzinhas pequeninas nos olhos.

- Para nós o sexo não é tudo - disse.

- Não é?

Zib sorriu de novo. O assunto sexo era deleitável, agradável de discutir de uma maneira civilizada. Sempre assim fora desde que ela se podia lembrar.

- Ages de acordo com o teu tipo - disse ela.

- Há ocasiões em que pergunto a mim mesmo qual será o meu tipo.

A secretária tinha-o apanhado à saída com a mensagem de Bert McGraw. Ele depois de ouvi-la dissera de ânimo leve:

- Telefona-lhe, jóia, e diz-lhe que tenho o dia todo tomado...

- Tentei - explicou a rapariga. - Mas ele limitou-se a responder: "Diga-lhe que venha cá."

E que diabo quereria dizer aquela convocação peremptória? Agora:

- Em tempos - disse - imaginava-me um tipo médio da minha espécie: liceu, universidade, depois uma empresa qualquer onde poderia fazer o meu serviço sem me matar com trabalho.

Zib não tirava os olhos dele.

- E? - A sua voz era calma.

As bebidas chegaram. Paul levantou o seu copo numa saúde e sorveu o líquido devagar.

- Nunca conheceste o meu sogro, pois não?

- O Nat fala-me dele.

Simmons pousou o copo e ficou um momento a estudá-lo. Meneou a cabeça devagarinho ergueu os olhos:

- O Nat não podia deixar de falar dele. Não são muito diferentes. O Bert é um irlandês fanfarrão e agressivo...

- O Nat não é. O Nat é um cordeiro, às vezes demasiado cordeiro. - Zib franziu a testa. -Não olhes para mim dessa maneira. Se te estou a dizer é porque é.

- A última coisa que desejo - disse Simmons lentamente - é discutir contigo.

- Então não digas coisas dessas.

- Estás hoje muito susceptível, não estás?

- Nat é meu marido.

- E tu conhece-lo bem. - Simmons meneou afirmativamente a cabeça. "Mas o facto", pensou, "é que ela não conhece bem o marido." Na opinião de Simmons ela não o conhecia nem bem nem mal, o que era, talvez, um bem. - Portanto - disse - limitar-nos-emos ao meu venerando sogro, Bert McGraw.

Zib teve um dos seus raros momentos de inspiração:

- Tu tens medo dele, não tens?

Simmons sorveu o martini enquanto ponderava a pergunta e por fim disse:

- Sim. - Não tinha desejo de se apresentar como um herói; havia mais a ganhar apresentando-se com o sinal contrário, entregando-se com efeito à mercê de Zib. Usara dantes essa forma de abordagem com êxito. - Tu e eu - disse - somos anacronismos. Fomos educados para acreditar que todos os homens eram cavalheiros e todas as mulheres damas. A vida era estritamente ordenada segundo as regras do Marquês de Queensberry, sem batota, sem logros, sem golpes baixos. - Calou-se, à espera do efeito.

Zib não tinha a certeza de ter compreendido exactamente o que ele queria dizer, mas sentia-se lisonjeada por lhe estarem a falar a sério de assuntos sérios. Poucos homens o faziam. E ela e Paul provinham de meios sociais similares, portanto ela podia concordar pelo menos com isso.

- Penso que a miudagem vê isso hoje mais claramente do que nós no nosso tempo - disse Paul. - Ouvem falar das regras de moral e dos Dez Mandamentos e dizem que são tudo tretas porque hoje ninguém acredita nisso. Bem, isso não é exactamente verdade, mas as pessoas para quem eles apontam, aquelas para quem olhamos, aquelas que foram aquilo a que chamamos bem sucedidas, é verdade que nem sempre observaram essas regras no jogo, se é que alguma vez jogaram por elas.

Zib convenceu-se de que estava agora a percebê-lo.

- O teu sogro? - perguntou.

- Exactamente. Bert é um pugilista de rua num bairro de lata; isso sintoniza-o com o seu meio ambiente. Está numa profissão dura, e visto que é mais duro que a maioria, safa-se bem.

Zib olhou através da mesa com renovado interesse:

- E tu não?

Ele encolheu os ombros, modesto agora:

- vou seguindo aos bordos. - O seu sorriso era suplicantemente forçado. - com a Patty a cada passo a afastar-me com um empurrão.

Num certo sentido, pensou ele, tinha sido verdadeiro ao afirmar que costumava perguntar a si mesmo qual seria o seu tipo. Ele era e sempre tinha sido um camaleão, com a habilidade de um camaleão para se confundir com o seu meio. Possuía miolos, competência técnica - só lhe faltava não ter competência técnica depois de toda a educação que lhe havia sido ministrada - e era dotado de grande encanto, mas aqui a coluna do activo chegava ao fim. Às vezes ele próprio se convencia de que se tinham esquecido de deitar um ingrediente essencial nessa fórmula, um elemento qualquer que lhe desse tempera, e o resultado fora ele nunca ter coalescido numa entidade firme e reconhecível.

- Eu gosto da Patty - declarou Zib.

- Terei o maior prazer em ceder-ta. - Voltou a sorrir. - Esta sugestão não é tão remota como parece. Eu não ficaria surpreendido se a Patty brincasse nos dois lados da rua. Não se satisfaz com os homens. Ou comigo. - Fez uma pausa. - Ficaste chocada?

- Nem por isso.

- A mulher emancipada?

- Encaramos as coisas como elas são.

"O que há de pior na Libertação da Mulher - pensou Paul - é que a tomaram tão a sério que as suas discípulas só sabem falar por frases feitas."

Zib analisava o seu martini. Ergueu os olhos.

- No fundo nada sei de ti, não é verdade? - Fez uma pausa. -Às vezes pergunto a mim mesma se conheço realmente alguém. Experimentaste alguma vez essa impressão? Sabes a que me refiro... de uma pessoa estar fechada do lado de fora?

- Freqüentemente. - Paul fez sinal ao criado para servir outra roda de bebidas. Se tinha de enfrentar Bert McGraw, pensou, precisava de apoio interno.

- Que foi que disseste do Nat? - perguntou Zib.

- Disse que ele não era diferente do Bert McGraw.

- E que querias dizer com isso? Paul sorriu.

- Ele é uma personagem saída do Oeste Selvagem. Disfarça bem, mas de vez em quando vem um bocadinho cá para fora. "Quando disseres isso, sorri, parceiro!" Ou qualquer outra coisa deste gênero.

Zib meneou a cabeça.

- Estás enganado. É como eu disse. Ele é um cordeiro e eu gostava que ele não fosse. - "Porque se não fosse, não andaria metida contigo, nem com ninguém." Portanto, num certo sentido, era por culpa do Nat. Pensamento reconfortante.

- Jóia - disse Paul-, deixa-me dar-te um conselho. Nunca abuses demasiado dele. E agora, toca a encomendar o almoço. Fui convocado à divina presença.

Patty encontrava-se sentada numa mesa para dois no Martin's quando Bert McGraw entrou. O próprio Martin, de ementa na mão, correu a saudá-lo e a acompanhá-lo até à mesa. McGraw beijou a filha, não na face mas em plena boca; para os McGraws um beijo era um beijo e não um vago gesto.

Sentaram-se. O seu whisky estava à espera, conforme prometido, uma dose generosa de bourbon (1) em gelo. Ele provou a bebida, suspirou e sorriu para a rapariga.

- Olá, jóia.

- Estás com má cara, McGraw.

- Talvez esteja, mas não tarda a ficar melhor só de olhar para ti. - Pura verdade. Patty era uma longa geração mais nova que a sua Mary, mas havia uma semelhança entre as duas mulheres que nunca deixara de surpreendê-lo, uma doce e afectuosa tranqüilidade que por certo não provinha dos seus genes grosseiros. Na presença da filha podia descontrair-se. - Entre ti e o whisky, começo a sentir-me bem.

Patty estava também a sorrir.

- Mentiroso. Estás cansado. Atiram muita coisa para cima de ti nas grandes obras, e nunca houve nenhuma tão grande como a Torre Mundial.

- Tua mãe esteve a falar contigo.

- Não era preciso ela vir falar-me. - Continuava a sorrir. - Tenho olhos na cara. Precisas de descansar. Leva a mãe contigo. Vai vazer essa viagem à Irlanda de que sempre falaste. - Patty fez uma pausa. - Porque foi que ainda não foste, papá?

Realmente porquê?

- Nunca tive tempo.

 

(1) Variedade de whisky americano. (N. T.)

 

- Isso não é razão. McGraw sorriu.

-Já que és uma franganota tão esperta, diz-me tu qual é a razão. - Depois meneou a cabeça. - Não, isto não é jogo limpo. vou eu dizer-te a razão, querida. É porque a Irlanda para mim não é um lugar, é um sonho, e tenho medo de estragar o sonho se for ver como as coisas são realmente. - Confissão. Acabou o whisky.

Patt sorria enternecida.

- Acredito em tudo menos numa parte - disse ela-, e isso é que eu não engulo. Tu teres medo? Alguma vez tiveste medo de alguma coisa? - Meneou a cabeça. Não me parece.

Havia ocasiões em que o seu sentimento de ligação à filha igualava e, sob aspectos diferentes, até ultrapassava, o seu sentimento de ligação com Mary. Mulher e filha não eram a mesma coisa: cada uma tinha o seu domínio onde reinava sem contestação.

- Tive medo de muitas coisas, querida - disse McGraw. - Tive medo, desde o momento em que te vi através do vidro da maternidade, que um dia te fosses embora, como foste...

- Eu não me fui embora, papá.

- De certo modo foste. Não sei o que as mães sentem quando os filhos se casam, mas sei o que um pai sente a respeito da filha. - Obrigou-se a sorrir. Era uma tarefa difícil. - O melhor homem deste mundo não é suficientemente bom para ela.

- Consideras o Paul o melhor homem deste mundo? "Agora é contigo, McGraw. Como respondes a essa?

Sorrindo:

- Já conheci piores. - "Conheceste? Depois da tua conversa com o Giddings, continuas a pensar o mesmo?

O sorriso de Patty apagara-se.

- Pergunto a mim mesma se é essa realmente a tua opinião?

- Eu disse que era, não disse, jóia? Patty replicou:

- Tu és um urso das montanhas, papá, e, segundo me contaram, um excelente jogador de póquer. - Meneou a cabeça esperta. - Não vejo como, porque às vezes és muito transparente. Sempre pensei que gostavas do Paul.

- E que te fez mudar de opinião?

- A expressão dos teus olhos. Papá, que foi que aconteceu?

McGraw quis ganhar tempo. Ergueu os olhos quando um criado se aproximou.

- Outra bebida, senhor? - perguntou o criado.

- Sim. - Fora Patty quem respondera. - Para o meu pai, mas não para mim. - E quando o criado se afastou: - É grave? -perguntou ela.

- A ser empurrado para a parede pela minha própria filha - disse McGraw. Queria dar àquilo um tom ligeiro, mas não estava certo de ter sido bem sucedido. - Não sei, querida. Pode ser que seja... são coisas respeitantes à Torre Mundial.

- Que espécie de coisas? - E depois, filha de empreiteiro, mulher de subempreiteiro, ela formulou a sua própria questão: - Falcatruas? Paul? Mas como podia ele... - Calou-se. Perguntou rapidamente: - Podia, não podia? Lembro-me do que tu contavas... devoluções, facturas falsas, talões de descarga... -As palavras acudiam-lhe com facilidade à língua. - É isso?

- Não sei nada ao certo, querida. E não vou difamar um homem enquanto não souber.

A nova bebida chegou. McGraw olhou para o copo, levantou-o e obrigou-se a beber devagar. Do que estava a precisar, pensou, não era de beber um copo, mas uma garrafa. E de parceiros, como nos bons tempos simples de antigamente. Frank, e Jimmy, e O'Reilly e McTurk

- os nomes deslizavam-lhe pela mente como uma litania. Juntavam-se a beber, a armar zaragata, a rir às gargalhadas - há quanto tempo isso fora!

- Sim, papá.

Santo Deus, teria estado a falar em voz alta? Notou que a mão lhe tremia quando pousou o copo.

- Ouvi-te falar de todos eles - disse Patty. - Tenho pena de não te ter conhecido nessa altura.

Ele já conseguira dominar-se de novo:

- Eu estava a entrar nos quarenta, querida, quando tu nasceste.

- Eu sei.

- A Mary, bendita seja, era apenas um ano mais nova.

- Também sei. Nunca teve importância que vocês fossem mais velhos que a média dos pais. A falar verdade, nem sequer eram.

- Não sei - disse McGraw. - Os dias da juventude tinham passado, e tu apareceste. - Sorriu. - Desejávamos-te desesperadamente. Caí de joelhos e dei graças ao bom Deus por teres chegado sãzinha e inteira. - Ergueu de novo o copo. - Toca a mandar vir o almoço.

Foi como se Patty não tivesse ouvido:

- E que lhes aconteceu, ao Frank, ao Jimmy, ao O'Reilly e ao... era McTurk, não era?

- Era. Um grande irlandês trigueiro com ombros do tamanho de uma ponte. - McGraw calou-se. - O que lhes aconteceu? Não sei, querida. - O dia estava cheio de confissões e de reminiscências. -Uma vez tive um sonho. Ia a trepar uma montanha com amigos. Subíamos e subíamos internando-nos no meio da neblina. Eu perdi-os de vista, e acabei até por não ouvir o som das suas vozes, e tudo o que havia a fazer era continuar a subir. Fez uma pausa, olhando através da filha, através das paredes do restaurante, para muito longe, para o passado. Foi com esforço que regressou à mesa. - No topo da montanha - disse - saí para um sol radioso. Procurei, mas estava sozinho. Nunca soube o que aconteceu aos outros. Não me parece que alguma vez se saiba. No topo da montanha estamos sempre sozinhos. - Ia chamar o criado mas suspendeu o gesto. - Que foi que disseste?

- vou deixar o Paul, papá. Ou ia deixar. Mas se ele está metido em apuros... -Sorriu, zombando de si mesma. - Não quero parecer nobre. Detesto mulheres nobres. A nobreza delas... estraga tudo o que fazem.

- Pausa. - Precisamente, se Paul está em apuros, não é altura de deixá-lo, pois não?

- Não sei, querida. Não sei qual é a tua razão. McGraw hesitou. - Queres contar-me? - Quantas vezes fizera ele essa pergunta, sabendo que a resposta era "sim" ou o assunto, fosse ele qual fosse, nunca teria sido abordado. Ficou portanto a observar a filha e a aguardar em silêncio.

Patty sorriu de novo.

- Creio que também eu sou transparente. Talvez não devamos jogar póquer um com o outro.

McGraw continuou calado.

- A razão - disse Patty - é a usual e sórdida razão. Ou talvez já não seja usual hoje em dia. Talvez para a maior parte das pessoas uma trocazinha de esposas não tenha importância. Mas para mim tem.

McGraw manteve-se imóvel, a cólera renovada sob rígido controlo. Finalmente disse:

- Tem importância para mim, querida. E para tua mãe.

- Eu sei. - Patty sorria afavelmente. - Vocês educaram-me à antiga. Ainda bem.

McGraw manteve-se calado por um minuto. Por fim perguntou:

- Sabes quem é?

- Zib Wilson.

- O Nat sabe disso? - Não lhe perguntei. Fez-se um silêncio.

- Talvez - disse lentamente McGraw - se vocês tivessem tido filhos... Eu sei que isso também é antiquado.

- Não podemos, papá. Isso é outra questão. O Paul fez uma vasectomia. Não se deu ao incômodo de me contar isso durante uma data de tempo, mas a coisa é assim mesmo. - Patty pegou na ementa. Sorriu animosamente. - Como eles dizem, que mais temos de novo? Penso que estás a precisar de comer qualquer coisa, McGraw. A não ser que vás fazer um almoço líquido, seu bêbado inveterado.

"Meu Deus - pensou ele -, se ao menos pudéssemos encarregar-nos dos problemas dos filhos, das suas dores! Mas, claro que não podemos."

- Pareces mesmo uma esposa rabugenta - disse ele. Os olhos de Patty estavam brilhantes, demasiado

brilhantes.

- E tu, papá, pareces... - Calou-se. As lágrimas apareceram. À rapariga tirou Kleenex da carteira e esfregou os olhos furiosamente. - Oh, bolas! Bolas, bolas e bolas! Não tinha a mínima intenção de chorar!

- Às vezes - disse McGraw - é isso ou quebrar qualquer coisa. vou escolher o teu almoço.

Zib tomou um táxi para regressar do restaurante à revista. No seu gabinete caiu pesadamente na cadeira, libertou-se dos sapatos com um pontapé e, ignorando a pilha de manuscritos sobre a sua escrivaninha, pôs-se a fitar a parede com olhos que não viam.

Nem por um momento acreditara no que Paul Simmons dissera a respeito de Nat: que ele era uma personagem saída do Oeste Selvagem e que ela faria bem se não abusasse muito dele. Zib tinha a sua opinião pessoal sobre Nat.

Por outro lado, até que ponto conhecia o seu próprio marido? Até que ponto podia uma pessoa conhecer outra? A questão repetia-se constantemente na ficção que ela tinha de ler, portanto era possível que houvesse nisso qualquer coisa.

Ela vivia em intimidade conjugal com Nat fazia agora quase três anos, e embora isso não fosse tão longo como certos matrimônios, era decerto suficientemente longo para estabelecer uma familiaridade pelo menos com a atitude do homem para com as actividades quotidianas mais comuns, e não eram estas indicativas dos traços básicos do caracter?

Nat esvaziava os bolsos cuidadosamente todas as noites e pendurava todas as suas roupas. Metia encóspias nos sapatos. Espremia o tubo da pasta de dentes a partir do fundo e não a meio, e Zib estava convencida de que ele contava silenciosamente os trinta segundos - ou seriam quarenta e cinco? - da operação de escovar os dentes. Um chimpanzé, dois chimpanzés, três chimpanzés...

Zib tinha mau dormir, mexia-se muito na cama. Nat, por outro lado, deitava-se de costas e não se mexia. Nem ressonava. E embora não fosse dos que cantavam de manhã debaixo do chuveiro ou em qualquer outra ocasião, conduzia-se de uma maneira abominavelmente activa logo que rompia a manhã, tomava com gosto o seu sumo de frutas, o café e o ovo, e quando preparava o pequeno-almoço nunca lhe ocorria nenhuma dessas perversas e irritantes contrariedades habituais.

A sua corrida de manhã no parque e as suas caminhadas a pé de casa para o escritório e do escritório para casa, mais um regime diário de ginástica caseira mantinham-no numa esplêndida forma física. Zib supunha que seria capaz de tolerar a corrida e o passeio, mas a ginástica caseira teria ultrapassado as marcas se Nat lhe não tivesse explicado que eram necessárias devido a uma velha lesão na espinha sofrida quando fora derrubado de um cavalo numa dessas monstruosas montanhas do Oeste.

Possuía bom feitio e não se pegava nem com criados nem com motoristas de táxi. Era pontual. Preferia bourbon aos martinis, o que a princípio lhe parecera singular mas agora parecia perfeitamente normal. Observava com aprovação e olhar artístico uma mulher bonita, mas Zib apostaria muito em como aquilo nunca passava de olhares. A vida sexual do casal era agradável, variada e sem as compulsões de que muitas parecem sofrer hoje em dia.

Onde é que no meio disto tudo se encontrava o caracter que Paul Simmons lhe atribuía?

E porque é que ela se sentia de repente tão preocupada? Poderia realmente imaginar Nat no papel de marido ultrajado, lançando-lhe à cara a sua infidelidade e, se Paul fosse digno de crédito, vingando-se de uma maneira qualquer? O gênero de coisas que aparecem no Daily News ou, lá por isso, em provavelmente meia-dúzia dos manuscritos que ali tinha sobre a secretária? Disparate.

Se havia uma qualidade que faltasse a Nat, era a agressividade. Recordava-se de ter falado uma noite nessa falta. Tinha dito:

- Tu és melhor do que pensas. Ben Caldwell sabe disso. Se assim não fosse, porque te teria ele lançado da maneira que o fez?

- Não havia mais ninguém disponível. - Nat sorriu. - Mais perguntas?

- Isso - disse Zib - é uma das tuas mais aborrecidas características. Não se te consegue irritar. Nunca te vi perder o sangue-frio.

- Às vezes acontece.

- Não acredito. - E depois procurando as palavras para exprimir a idéia. - O respeito - disse. - É isso que conta.

- É importante-admitiu Nat. - Concordo. E depois?

- Como é que se pode respeitar alguém que não tem nem sequer vestígios de um sacana na sua personalidade?

- Ou de uma pega? - replicou ele calmamente. - Exacto.

- Preferias talvez que eu armasse zaragatas? Atirasse coisas?

- Não é isso que quero dizer. Mas neste mundo ou uma pessoa empurra ou passam-lhe por cima, ainda não percebeste?

- Isso é uma atitude de grande cidade.

- Estamos numa grande cidade. - Fez uma pausa. - Porque foi que te decidiste a vir para cá?

- Queres dizer que não pertenço ao meio?

- Sabes muito bem que não é isso que quero dizer. O que estou a perguntar é em primeiro lugar porque foi que vieste para cá?

- Para te encontrar.

- Não brinques.

- Muito bem. - Nat estava de novo a sorrir. - Porque Ben Caldwell estava cá e eu queria trabalhar com ele, trabalhar às ordens do melhor. Tão simples como isso.

- E conseguiste. - Zib meneou a cabeça. - Quando a Torre Mundial estiver toda acabada, toda embrulhada, será outro grande prédio, e depois o quê? - Zib hesitou. - Voltas para as tuas montanhas?

- Possivelmente. Provavelmente. E tu, irás comigo?

- Estaria deslocada. Tanto quanto... -Parou a meio.

- Tanto quanto eu estou aqui? - Nat meneou a cabeça, sorrindo outra vez. - Tu adaptas-te onde quer que estejas. És um ser social.

- E tu?

Nat encolheu os ombros.

- Às vezes - disse - pergunto a mim mesmo se sou. Nem vestígios de impaciência, pensava agora Zib;

nunca se notava o mínimo sinal de irritação. Oh, não era um apático; nada disso. com ela era um homem apaixonado, um amante. Mas noutras ocasiões, das maneiras que Paul Simmons insinuara? De modo nenhum. Paul estava enganado. Nat era aquilo que se via e mais nada. "Então porquê essa duvidazinha pertinaz? Responde-me a isso se podes, Elizabeth."

13.30h - 14.10h

Bert McGraw regressava ao escritório depois do almoço, e Paul Simmons, manifestamente nervoso, encontrava-se sentado num dos cadeirões baixos, de cabedal, destinados aos visitantes. O velho, pensou Paul, parecia um urso com uma pata doente, e nada lhe ficava mais a preceito que aquela sua maneira de andar arrastada. Olhou para o relógio.

- Uma e meia em ponto - disse. Fez uma pausa e, temerário, acrescentou: - Como foi marcado.

- Almocei com a Patty-declarou McGraw. Controlava-se, mas não fazia idéia de durante quanto tempo poderia dominar a tentação de desferir um murro sobre a mesa.

- Estive ocupado à hora do almoço-informou Paul. A condizer com as suas artes de camaleão ia uma voz de actor. - O negócio corre bem.

- Ah, sim? - com um gesto estudado o velho pegou no envelope de tela com as fotocópias das autorizações de alteração, olhou para ele, depois, com um súbito movimento de arremesso, calculou o impulso de modo a ir fazê-lo aterrar precisamente no colo de Paul. Dá uma olhadela a isso - disse McGraw, e içou-se da cadeira para se dirigir à janela, de costas para a sala.

No grande escritório o único ruído que quebrava o silêncio era o quase inaudível sussurrar dos papéis nas mãos de Paul. Por fim perguntou:

- E então?

McGraw voltou-se da janela. Imóvel, atarracado, com as mãos atrás das costas:

- É tudo o que tens para dizer?

- Não compreendo. Que mais havia de dizer?

- Fizeste essas alterações?

- Mas naturalmente.

- Porquê naturalmente? - A voz do velho começava a subir de tom.

Paul cocou uma sobrancelha:

- Não sei o que lhe hei-de responder. Porque é que não devia ter feito as alterações?

- Porque - disse McGraw - não és um mão-de-obra qualquer sem discernimento. Se alguém diz "Faça isto", tu não te limitas a obedecer sem discutir. Tu...

- McGraw calou-se. - Diz lá - ordenou -, diz o que tens para dizer.

A voz de Simmons adquirira um ligeiro tom esganiçado.

- Tentarei não tornar a coisa irreverente - disse porque não irá gostar.

- Diz o que tens a dizer sem rodeios. - O velho regressara à cadeira a cujos braços se agarrava com firmeza.

- Muito bem - principiou Paul. - Então lá vai. Na maior parte dos casos quando alguém diz "Mude isto", eu quero saber os motivos. Mas quando Jesus Cristo Ben Caldwell ou o seu discípulo ungido Nat Wilson me brindam com o seu Verbo, então eu puxo pela madeira e digo "Sim, sim, siô", e a alteração está feita. Não me compete perguntar porquê. Acha que isto responde à sua pergunta?

McGraw pronunciou lentamente:

- Não armes ao insolente comigo, rapaz. - Resposta automática. Conservou-se calado, pensativo, numa imobilidade intrigada. Por fim murmurou: - Estás a querer dizer, não é verdade, que foi o próprio Nat Wilson quem assinou essas alterações?

A face de Paul mostrou surpresa:

- Nunca pensei que não fosse. Porque havia de pensar?

- E - prosseguiu McGraw -, posto que as alterações, tanto quanto vi, te permitiam poupar uns dinheirinhos aqui, uns dinheirinhos acolá, somando tudo uma verbazinha razoável, tinhas ainda mais forte razão para aceitar o que te ofereciam sem discutir, não é verdade?

- Creio recordar que o senhor me disse um dia - observou Paul - que a cavalo dado não se olha ao dente. - Bateu ao de leve sobre os papéis que guardava no colo. - Se era esta a maneira como eles queriam o prédio electrificado, e se, como o senhor disse, eu poupava dinheiro fazendo como eles mandavam, porque havia de levantar problemas?

McGraw disse lentamente:

- Nat Wilson afirma que não emitiu essas ordens. A face de Paul alterou-se, mas o rapaz limitou-se a

murmurar:

- Estou a ver.

- E que raio estás tu a ver? Will Giddings não acredita que fosse o Wilson a emitir essas ordens. O Ben Caldwell também não.

- E o senhor meu sogro o que é que pensa?

O silêncio reinava de novo no gabinete. McGraw olhou para as mãos que espalmara sobre o tampo da escrivaninha.

- O que eu penso - disse lentamente - valia-me uma penitência se o fosse contar em confissão. - Olhava agora de frente para Simmons. - Penso que é um dos tais casos em que se aplica o dilema, ou tratante ou imbecil. Tu andas metido com a mulher desse homem...

- A Patty contou-lhe isso?

McGraw conservou-se calado, imóvel, a observar.

- Muito bem - declarou Paul por fim. - As coisas são como são. - Abriu as mãos. - O senhor não pode compreender...

- Isso é verdade. Nem perdoar. - A cólera negra subia, irresistível. - Sou um operário antiquado e estúpido e tu és jovem, inteligente, instruído, decentemente criado e tudo o mais... mas o cheiro, o fedor que deitas entra-me pelo nariz como o fedor de uma coisa morta que está há muito tempo ao sol.

- Escute - atalhou Paul-, tenho tolerado muita...

- Ainda nem sequer começaste a tolerar - atalhou McGraw. - Sai dessa cadeira antes de eu ter acabado senão quebro-te a espinha. - Fez uma pausa. A sua respiração era agora audível. com esforço obrigou a voz a baixar. - Porque havia Nat Wilson de emitir essas alterações? Explica-me. Ele não ganhava nada. É o arquitecto. Ele e Ben Caldwell, principalmente Ben, claro, mas isso não muda nada. Os dois aprovaram os planos de instalação eléctrica feitos por Lewis. Porque havia o Wilson de tentar alterá-los?

Simmons conservava-se sentado, calado. Apetecia-Lhe levantar-se e sair dali, mas tinha medo. O velho que se encontrava atrás da escrivaninha era, como ele dissera a Zib, um velho temível, muitíssimo capaz de cumprir a ameaça.

- Fiz-te uma pergunta - disse McGraw.

- Fez várias.

- Então responde a todas. Simmons respirou fundo.

- O Nat Wilson é um homem manhoso - disse.

- E que raio queres insinuar com isso?

- Ele detesta-me.

McGraw franzia agora o cenho.

- Porquê? - E a seguir: - Porque andas metido com a mulher dele, é isso que queres dizer?

Simmons fez que sim com a cabeça. Era melhor não falar.

- Não acredito - tornou McGraw. - Conheço o homem. Se ele soubesse que estavas a atraiçoá-lo deitava-te o gatázio e arrancava-te alguns dentes a esse teu sorriso Pepsodent. Ele...

- Ele diverte-se com a Patty - disse Paul.

McGraw abriu a boca. Tornou a fechá-la, mas reabriu-a mau grado seu. E depois voltou de novo a fechá-la. E abriu-a. Nenhum som emergiu. A face perdera a cor e a respiração vinha agora em grandes arquejos que não eram suficientes. Os olhos exorbitaram-se quando ele tentou fazer um gesto com a mão, e não conseguiu. Afundou-se profundamente na cadeira, continuando a arquejar como um peixe em seco.

Paul levantou-se rapidamente. Hesitou por um momento e depois encaminhou-se para a porta que escancarou. Dirigindo-se a Laura que se encontrava na antecâmara:

- É melhor chamar uma ambulância. Ele está... parece-me que ele está com um ataque cardíaco.

Grover Frazee tomou um táxi para regressar ao seu escritório de Pine Street depois do almoço com o governador.

Conhecia Armitage há muito tempo e, na habitual acepção do termo, eram bons amigos.

Mas no mundo do governador, e quanto a isso também no de Frazee, a amizade era uma bonita palavra que pouco tinha a ver com os negócios. Os negócios eram conduzidos sem interferências afectivas - ponto parágrafo.

Se um homem produzia, apoiava-se o homem; se falhava, não se apoiava.

Oh, ele não tinha falhado. Ainda não. Mas no futuro previsível o edifício ia ter muito poucos inquilinos. Era esse o busílis.

Podiam atirar-se as culpas para a crise geral dos negócios ou para esse governo de Washington com a sua política de três passos para diante dois passos e meio para trás.

Mas arranjar um culpado não resolvia nada. As explicações raramente ajudam, e neste caso, hoje, ao almoço, a explicação nem sequer amansara a atitude do governador.

- Você é o responsável, Grover - lembrara o governador -, o que significa que tanto recebe os ramos de flores como os insultos. Sei o que é estar nessa posição e o que se sente. - Sorriu amargamente enquanto mexia o açúcar no café e via o líquido redemoinhar. Por fim ergueu os olhos. - Até que ponto a coisa vai mal? Apresente-me números. - Observava Frazee atentamente.

Frazee apresentou-lhos - percentagem de área arrendada, novos arrendamentos em perspectiva, certeza e expectativa de rendimento contra custos de manutenção e juros. Desanimador.

- Mas isto não pode durar - disse.

- O diabo é que não pode. - A voz do governador não se elevara, mas adquirira um novo tom. - O desemprego não baixou e a inflação não foi dominada. Não penso que haja o perigo de irmos para uma depressão como a de 1930, mas também não penso que de repente vá tudo ficar bem, especialmente nas grandes cidades.

- O Bob Ramsay...

- O Bob Ramsay tem alucinações. O que me admira é não o vermos descer de um monte com as novas tábuas da lei. Ele pensa que vamos pôr todo o estado a trabalhar para a sua cidade, mas não vamos. Ele pensa que vai talvez transformar a cidade no quinquagésimo - quinto estado, mas não vai. Ele pensa que o Congresso vai deitar-se de costas a agitar as patinhas depois de lhe passar um cheque em branco, mas as coisas também não vão correr dessa maneira.

No seu íntimo, Frazee era da mesma opinião, mas não disse nada.

- Ele ama esta cidade - disse o governador. Concedo-lhe esse ponto. E tem-na mantido unida quase só com as mãos nuas. Mas a realidade é que uma quantidade enorme de negócios tem-se transferido para fora, para os subúrbios, mais do que os que entram. A grande época, a grande metrópole, o lugar supremo... esse conceito perdeu o seu atractivo. O que aqui resta está a tornar-se rapidamente num lugar para os muito ricos e para os muito pobres, e nem uns nem outros arrendam escritórios em grandes edifícios.

Bem, pensava agora Frazee no silêncio do seu escritório, Bent Armitage tinha provavelmente razão. Em geral tinha.

O telefone na sua secretária zumbiu em surdina. Abriu o comutador.

- Sim?

- O Sr. Giddings quer vê-lo - anunciou a voz de Letitia. - Ele diz que é urgente.

Primeiro Armitage ao almoço, agora Will Giddings obviamente com uma complicação qualquer; há ocasiões em que as complicações parecem cair em cima de uma pessoa de todos os lados.

-Muito bem - disse Frazee, resignado. - Mande-o entrar.

Giddings foi direito ao assunto.

- É altura de você saber - disse, e atirou para cima da secretária de Frazee o envelope com as cópias das ordens de alteração.

Frazee sacudiu-as para fora do envelope, olhou para uma ou duas, depois ergueu os olhos para Giddings vagamente desconcertado.

- Não sou engenheiro - disse. - Você é que é. Explique.

Giddings explicou e, depois de acabar, recostou-se na cadeira e esperou.

O silêncio reinava no grande gabinete. Frazee empurrou lentamente a cadeira para trás e, levantando-se, diri72

giu-se para a janela e ficou a contemplar o tráfego. De costas para o quarto.

- Você não sabia destas alterações - murmurou por fim.

- Não sabia. Sou culpado, juntamente com a gente do Caldwell, Nat Wilson em particular, e Bert McGraw. Somos todos responsáveis.

Frazee voltou-se para dentro.

- E agora?

- Verificamos cada uma dessas secções para ver se as alterações se fizeram e qual o efeito que podem causar.

- Que espécie de efeito? Giddings meneou a cabeça.

- Nem sequer imagino. Poderá ser insignificante. Poderá ser grave. E é por isso que estou aqui.

Frazee encaminhou-se de novo para a secretária e sentou-se.

- E que é que você pretende?

- Que se cancele esse disparate esta tarde na Sala da Torre. - Um homenzarrão grave, convincente. Não quero gente lá em cima.

- Porquê?

- Caramba-explodiu Giddings -, terei de soletrar as coisas. O edifício não está acabado. Agora sabemos, ou pelo menos temos motivos para crer, que pode haver falhas na instalação eléctrica. Não sabemos até que ponto essas falhas são graves, e até sabermos não faz sentido dar uma recepção lá dentro quando, valha-nos Deus, mesmo no meio da função...

- As luzes podem apagar-se? - disse Frazee. Qualquer coisa desse gênero?

Giddings estudava as costas das mãos enquanto se ia acalmando. Finalmente ergueu a cabeça e agitou-a num gesto de assentimento.

- Qualquer coisa desse gênero - disse.

- Mas não pode estar certo de que isso irá acontecer, pois não?

Não conseguia haver-se com Frazee nesta espécie de jogo, disse Giddings para consigo. Não era do tipo fluente, suave no trato; era um engenheiro, e de momento, com aquelas fotocópias em cima da secretária de Frazee, estava quase preparado para admitir que nem sequer era um engenheiro bom, um engenheiro cuidadoso.

- Não posso estar certo - respondeu. - É por isso que preciso de tempo.

Frazee estava a pensar no governador Armitage.

- Você é o responsável - dissera o governador -, o que significa que tanto recebe os ramos de flores como os insultos. - Isso era bem verdade, mas porque não havia de esquivar-se e deixar ser outro a receber os insultos?

- Não vejo como podemos cancelar os preparativos, Will - disse Frazee. Sorriu.

- Por que raio não podemos? Frazee mostrou-se cheio de paciência:

- Os convites foram expedidos há meses e foram aceites por pessoas que sem isso poderiam encontrar-se neste momento em Moscovo, Londres, Paris, Pequim ou Washington. Deram-se a algum incômodo para estarem aqui para aquilo que no fim de contas não passa

- o sorriso de Frazee ampliou-se - de um lançamento, Will. Quando um navio é lançado à água também não está completo: faltam ainda meses de trabalho. Mas a cerimônia do lançamento é uma ocasião solene, marcada com muita antecedência, e uma pessoa muito simplesmente não adia uma coisa dessas no último instante.

- Raios - barafustou Giddings -, você não pode comparar uma brincadeira de figurões de calças listradas com o gênero de complicações que podemos arranjar, ou será que não consegue ver isso?

Frazee conservou-se calado, contemplativo. Por fim disse:

- Não consigo ver isso, Will. De que natureza é a complicação que o preocupa tanto?

Giddings ergueu as manápulas e voltou a deixá-las cair.

- Aí é que está o busílis. Não sei. - Giddings estava agora a pensar na teoria de McGraw de que certos prédios tinham mau olhado, e embora não acreditasse nela nem por um momento, tinha conhecido obras onde tudo parecia correr mal, e por mais que uma pessoa se esforçasse, nunca conseguia descobrir uma explicação sólida para isso. Depois havia aquele outro incidente que ocorrera ainda há pouco. - Anda um tipo qualquer de um lado para o outro dentro do prédio e a coisa não me agrada.

A testa de Frazee enrugou-se:

- Quem?

- Não sei, e será loucura tentar descobrir sem uma busca andar por andar feita por um exército inteiro.

Frazee sorriu:

- Ridículo. Por que diabo há-de esse tipo de ter alguma importância?

Giddings disse:

- Escute, há demasiadas coisas que eu não sei, e essa é que é a maldita complicação. Sou responsável para consigo por aquele prédio, vivi com ele e suei por causa dele...

- Ninguém podia ter feito melhor, Will.

- Mas - replicou Giddings - há coisas que me passam despercebidas e que passaram despercebidas a todos os outros também, e agora o que peço é que descubramos até que ponto essas coisas são graves. Será pedir muito?

Frazee pegou numa lapiseira de ouro e pôs-se a estudá-la, pensativamente. Supondo que aconteciam coisas durante a recepção na Sala da Torre? Se houvesse uma falha qualquer na energia eléctrica, que mal tinha isso? Não iria, ao revelar falhas dentro do edifício, tirar-Lhe num certo sentido o fardo de cima das costas, dar-lhe mais tempo para encontrar inquilinos, seguindo a sugestão do governador de fazer um abatimento nas rendas se não houvesse outro remédio? Num certo sentido, transferindo as culpas para McGraw e Caldwell, o empreiteiro e o arquitecto superintendente, não ficaria ele na posição de dizer que circunstâncias que o ultrapassavam tinham retardado a afluência de inquilinos interessados em ocupar as esplêndidas instalações do novíssimo centro de comunicações da Torre Mundial?

Giddings comentou:

- Pelo menos você está a pensar nisso. Já é alguma coisa.

Frazee pousou o lápis.

- Mas creio que será tudo, Will. - Fez uma pausa. Não podemos cancelar a cerimônia. Lamento que você não consiga compreender, mas terá de contentar-se com a minha palavra. Não podemos transformar o edifício numa fonte de chacota logo no princípio.

Giddings suspirou e levantou-se. Realmente não esperara mais.

- Você é o patrão. Espero que tenha razão e que eu esteja errado, quando vejo coisas, sombras, quando penso num calmeirão de um polaco que passeava por uma viga de aço sem razão aparente... não, ele não tem nada a ver com isto, é apenas uma coisa dessas que se colam à minha mente nem eu sei porquê. - Encaminhou-se para a porta e parou aí, com a mão no puxador. Acho que vou daqui para o CharhVs Bar na Terceira Avenida. Creio que me vou embebedar. - Saiu.

Frazee conservou-se sentado à secretária, imóvel, pensativo. Estava convencido de que sabia ver as coisas com bom senso, mas pedir outra opinião era freqüentemente uma boa idéia. Pegou no intercomunicador e disse para Letitia:

- Ligue-me a Ben Caldwell, por favor.

O telefone zumbiu. Frazee levantou-o e identificou-se. A voz calma de Ben Caldwell perguntou:

- Então o que é que temos, Grover?

Os papéis estavam espalhados na secretária, em frente dele.

- Estas coisas - disse Frazee -, nem sequer sei como chamar-lhes... estes papéis com alterações nos planos... já tomou conhecimento deles?

- Já tomei conhecimento, já.

- Parece que foram assinados pelo seu assistente.

- Ele diz que não. Por enquanto acredito nele.

- São importantes, Ben?

A resposta veio sem hesitação:

- Teremos de ver.

Nem vestígio de ansiedade, pensou Frazee, e sentiu alívio ao constatá-lo.

- Will Giddings quer que eu cancele hoje a inauguração.

Caldwell estava calado.

A fronte de Frazee enrugou-se:

- Que é que você acha?

- Acho a respeito de quê? - Aquela era a faceta desinteressada de Caldwell.

- Devo cancelar a inauguração?

- As relações públicas não são o meu pelouro, Grover. - Havia um laivo de aspereza na voz calma.

- Não - disse Frazee -, claro que não. Seguiu-se um breve silêncio.

- Era tudo? - perguntou Caldwell.

- Era tudo. - Frazee desligou e reflectiu que de todos os homens que conhecia, incluindo o governador, somente Caldwell tinha o poder de evocar memórias infantis em que se via a sair do gabinete do director de turma depois de uma entrevista desagradável.

Bem, uma coisa estava decidida: não havia necessidade de alterar os planos para essa tarde.

14.10h -14.30h

O governador estava indeciso, mas como de costume o seu lado prático prevaleceu. Não havia nada que dissesse que ele, governador do Estado, tinha de contactar com o presidente da Câmara quando estava de visita à cidade. Por outro lado, porque irritar susceptibilidades? E as susceptibilidades de Bob Ramsay eram notoriamente fáceis de irritar.

- Estou ainda no Harvard Club - disse o governador ao telefone para o presidente da Câmara. - Acha que este relvado é suficientemente neutral para um homem de Yale? Se for, apareça. Ofereço-lhe uma bebida. Podemos ir juntos para esse arraial do Grover Frazee.

O mayor Bob Ramsey era um homem de cinqüenta e sete anos, em esplêndida forma física, que estava a cumprir com grande gosto o seu segundo mandato como presidente da Câmara da grande urbe. No léxico do mayor a palavra "desafio" estava impressa em maiúsculas.

Afundado numa poltrona de cabedal da sala de estar do clube, com um balão de conhaque ao lado, perguntava-lhe o governador:

- De que é que você vai falar? Da fraternidade humana simbolizada pela Torre Mundial?

Era um tema querido de Ramsey. Mas Bent Armitage tinha uma maneira de azedar até os mais elevados pensamentos, e o tema perdeu imediatamente o seu sabor. O mayor sorveu o seu café puro.

- Ainda não pensei nisso - disse. Foi um erro. O sorriso trocista apareceu na cara do governador.

- Isso é conversa fiada, e você sabe-o muito bem, meu velho. Tal como Mark Twain, você prepara os seus improvisos com muita antecedência. Todos nós o fazemos. Porque não havemos de reconhecê-lo? "

- O que eu quis dizer - replicou o mayor secamente é que ainda não decidi exactamente quais as considerações apropriadas.

O governador mudou habilmente de assunto:

- Que pensa você da obra?

Ramsey voltou a sorver o seu café enquanto examinava as possíveis armadilhas contidas na pergunta.

- Penso que estamos todos de acordo - disse que é um belo edifício, dos melhores trabalhos de Ben Caldwell, se não a sua obra-prima.

- Concordo com isso - declarou o governador.

- E vem proporcionar espaço adicional...

- de que a cidade necessita como de pão prà boca. Ramsey escorropichou o café com um gesto decidido.

Pousou a chávena.

- A sua ironia não é justa nem verdadeira. Do que a cidade necessita é de boas instalações - e esta é uma delas -juntamente com a espécie de ajuda que qualquer grande cidade deste país precisa para não perecer. - Isto era nele uma questão de fé. Olhou para o governador com uma expressão de desafio.

- Talvez - concedeu o governador. Olhou para o relógio. - Ainda temos algum tempo. Podemos discutir um pouco esse tema. Suponha que eu alvitro a idéia de que as cidades com mais de um milhão de habitantes se encontram tão ultrapassadas como o dinossauro?

O mayor respirou fundo e não disse nada.

- Estou a falar a sério - disse o governador. - Que me diz de uma florescência de cidades com uma população de cem mil habitantes, contendo cada uma os serviços imprescindíveis e rodeada pelas indústrias e empresas necessárias para proporcionarem emprego, mas sem esses irremediáveis bairros de lata, sem os gigantescos orçamentos de assistência social e sem os problemas do crime que resultam de tudo isso? Está de acordo com este conceito?

- E você - disse o mayor - é que está sempre a acusar-me de ter visões, de sonhar com utopias.

- Faz uma certa diferença - retorquiu o governador. - Você anda à procura de maná para manter vivo o seu dinossauro. Eu procuro uma nova espécie de mantimento que nos alimente. - Fez uma pausa e sorriu. - A analogia não é das melhores, mas talvez o ajude a perceber melhor o que eu quero dizer. Chame-lhe uma versão actualizada do ideal de Jefferson de uma civilização bucólica, a substituir os monstruosos centros urbanos que criámos e onde ninguém é feliz. Fez uma nova pausa. - Exceptuado talvez Bob Ramsey.

O mayor tinha estado a fazer a sua aritmética mental.

- Teríamos de dividir esta área metropolitana em cento e trinta cidades separadas, cada uma com a sua autonomia

- Independente como porcos no gelo - disse o governador. Fez com a cabeça um movimento afirmativo.

- Não faz mal nenhum empurrar um pouco as coisas. É isso que é preciso para fazer política.

- Raramente sei - disse o mayor-se você está a falar a sério ou se está apenas a fazer exercícios com a língua. Você próprio saberá?

De novo aquele sorriso, apontado para dentro, para as próprias idiossincrasias do governador.

- Desta vez - declarou - estou a falar perfeitamente a sério. A sua cidade está de qualquer maneira a desmantelar-se, a pobreza aumenta e o apoio sólido da classe média está a fugir. Não tarda muito que só cá restem ricaços vivendo em terraços e conduzindo "espadas" e pobres vivendo em bairros miseráveis e acotovelando-se uns aos outros nas ruas e nos metropolitanos. - O governador fez uma pausa, sem sorrir. - Poderá negar que é assim?

O mayor não podia.

- Mas você dá à coisa um tom desesperado, e não é. Restituam-nos alguns dos impostos que o estado nos tira, que o governo federal nos tira e...

- E - atalhou o governador - você proporcionará mais casas de renda barata, mais obras de assistência, mais hospitais para indigentes, mais escolas nos bairros pobres. - Fez uma pausa para dar ênfase ao que ia dizer: - E tudo o que conseguirá é atrair mais pessoas necessitadas dessas coisas. Isso significa que estará a cavar a sua cova mais funda e a complicar os seus problemas, significa que precisará de mais polícia para manter a ordem, e bombeiros, e tribunais e, inevitavelmente, mais casas de renda barata, mais assistência, mais hospitais para indigentes, mais escolas nos bairros pobres... ad infiniíum. - Fez nova pausa. -Você já ultrapassou o ponto em que lhe era lícito ter esperanças de poder travar o processo.

O mayor estava calado, deprimido.

- O que eu quero dizer - rematou o governador é que a nossa bela e refulgente Torre Mundial, novinha em folha, não é de modo nenhum sinal de progresso; é um sinal de retrocesso, apenas uma nova estrebaria de dinossauro. - Escorropichou o seu conhaque e suspirou. - Portanto vamos até lá e digamos a todos os presentes que o edifício que hoje inauguramos é um símbolo do futuro, a esperança do homem, a coisa mais importante que se inventou depois da roda. - Levantou-se com um movimento fatigado. - Que outra coisa poderíamos nós dizer?

14.30h -15.02h

O 2.º comandante dos Bombeiros, Timothy O'Reilly Brown, era alto, ruivo e enérgico, com um ponto de ebulição baixo. Não conhecia Nat, mas conhecia Ben Caldwell de nome - um nome que subia, subia... - e se havia alguém na cidade que não soubesse da construção da Torre Mundial, Tim Brown não fazia idéia de quem pudesse ser essa ave rara, portanto não se encontrava em terreno completamente desconhecido. Mesmo assim dizia agora para Nat:

- O que me está a contar é uma questão puramente interna. Não desejo intrometer-me. Você, Bert McGraw e os proprietários podem resolver isso uns com os outros.

- O senhor sabe melhor do que eu as linhas com que se cose, naturalmente - disse Nat -, mas as normas dos regulamentos de prevenção de incêndios não são às vezes observadas com menos rigor ou talvez até esquecidas quando se trata de qualquer acontecimento especial com data marcada? - Estava a ter tanto tacto quanto lhe era possível. Era um trabalho árduo.

- Não.

- Nunca?

- Ouviu o que eu disse. Que se lixasse o tacto.

- Isso - disse Nat - são lérias, e o senhor sabe-o muito bem. A maioria dos bombeiros, dos inspectores de incêndios são honestos, tal como a maioria dos polícias e dos fiscais de obras e dos empreiteiros são honestos e a maioria dos erros que se cometem são erros honestos.

- Fez uma pausa. - Mas alguns não são, e o senhor também sabe isso.

- A porta fica mesmo atrás de si - pronunciou Tim Brown. - Não sei que conversa fiada é essa que está a tentar impingir-me, mas nem sequer vou ouvi-lo até ao fim. Rua!

Nat conservou-se impassível.

- Suponha - disse -, suponha apenas...

- Eu disse rua!

- Não me parece que tenha força suficiente para me pôr na rua - retorquiu Nat - e pense no escarcéu que se levantava se o tentasse e depois acontecesse alguma coisa na Torre. - Fez uma pausa. - Ia dar a impressão de que o 2.º Comandante Brown tinha os dedos metidos em qualquer coisa, não ia? Ou nem sequer se importa com isso?

Tim Brown soerguera-se da cadeira. Voltou a sentar-se. O pesadelo de qualquer autoridade, evidentemente, era a possibilidade de ser meramente acusado de detenção arbitrária inocente ou não. Hesitou.

- Não estou a acusar ninguém - disse Nat. - Não estou a procurar ser processado por calúnia. Mas o que estou a dizer é que se fizeram aparentemente alterações na planificação eléctrica, e talvez essas alterações reduzam ou até eliminem os projectados factores de segurança, e se foram permitidas algumas condescendências no que se refere aos regulamentos dos bombeiros a fim de não impedir a inauguração no prazo marcado, então se acontecer alguma coisa nesse edifício vai ser o diabo e não haverá forma de passar a bola. - Recostou-se de novo na cadeira. - Poderei andar à caça dos gambozinos, oxalá ande. Então o senhor poderá chamar-me idiota e eu pedir-lhe-ei desculpa por lhe ter feito perder o seu tempo.

Brown conservava-se calado e imóvel, intensamente concentrado. Por fim perguntou:

- Que quer que eu faça?

- É o seu departamento, mas...

- Isso não serve. Você entra aqui a gritar "Fogo" e depois lava as suas mãos no que se refere a informações concretas. Você...

- Se e quando você descer das suas tamanquinhas - declarou Nat - talvez consigamos entender-nos, mas não antes disso. - Levantou-se. -Atirei-lhe com a criança para o colo. - Começou a dirigir-se para a porta.

- Espere aí - convidou Brown. - Sente-se. - A sua face tornara-se subitamente preocupada. Respirou fundo para recuperar o domínio. Disse devagar: - Tenho uma mulher doente e uma úlcera e um departamento de bombeiros com os quadros incompletos numa cidade cheia de gente que se está nas tintas para a espécie de protecção que lhe proporcionamos, que pensam que as caixas de alarme são para brincadeira... sabe que perdi dois homens na semana passada, dois homens mortos a responder a alarmes falsos? - Meneou a cabeça. - Não se importe, são problemas meus. - Abriu uma gaveta, tirou de lá um maço de cigarros, soltou um com uma sacudidela, partiu-o a meio e atirou-o furiosamente para o cesto dos papéis. Tornou a arremessar o maço para dentro da gaveta e fechou-a de estalo. - Faz hoje catorze dias que não fumo - disse. Obrigou-se a ficar calmo na cadeira. - Falemos agora com senso. - Fez uma pausa. - De que elementos dispõe exactamente?

Melhor, pensou Nat, e começou a contar pelos dedos.

- Primeiro - disse - um maço de cópias de ordens alterando os planos, com o meu nome escrito nelas, embora eu as não tivesse assinado. Temos de presumir que alguém estava interessado em fazer essas alterações. Joe Lewis, o engenheiro electrotécnico, está agora a estudar as alterações para ver até que ponto são importantes.

- E como é que você sabe se essas alterações chegaram a ser feitas?

- Temos de presumir que foram. Não é assim que vocês pensam? Presumem que pode suceder o pior e tentam evitá-lo. Nem todos os trapos com gasolina se incendeiam espontaneamente, mas vocês consideram os trapos com gasolina riscos de incêndio.

Perfeitamente verdade. Brown, mais calmo agora, meneou a cabeça confirmativamente.

- Está fora do meu domínio - disse Nat - e estou apenas a presumir, mas ocorre-me uma dúzia de coisas que a gente podia ter passado por alto, sabendo que o edifício não está realmente ocupado e sabendo que as cerimônias de hoje foram planeadas há meses e não podem ser adiadas. - Fez uma pausa. - Pressão nos canos verticais, mangueiras efectivamente montadas em todos os andares, portas de incêndio operacionais e não bloqueadas, extintores de incêndios examinados, geradores de reserva verificados e a postos... o que é da atribuição do seu departamento e o que é das atribuições dos fiscais de obras, não sei; vocês sempre me deram a impressão de trabalharem combinados.

- Trabalhamos. - No rosto de Brown desenhou-se um sorriso cansado. - Ou tentamos. Tentamos também trabalhar com a polícia...

- E há outra coisa - disse Nat. - A praça está atulhada de polícias. Presumo que isso significa que alguém se sente preocupado com alguma coisa.

- "E, reconhece-o", disse para consigo, "isso contribui também para te aumentar o nervosismo." - Eu também estou - confessou-, embora não saiba com quê. - Estava a pensar nas luzes do elevador que pestanejavam, no silvo suave dos cabos de alta velocidade enquanto alguém se movia à vontade no edifício vazio.

- Nestes dias - disse Brown - em que há loucos a atirar bombas ou a disparar contra multidões sem razão nenhuma, andamos todos sempre preocupados com tudo. - Fez uma pausa. - Ou devíamos andar. - Suspirou. Muito bem, verei se consigo descobrir alguma coisa. E providenciarei para que o edifício esteja agora tão bem protegido quanto o possa ser um edifício daquele tamanho.

As palavras desencadearam de novo um curso de pensamentos já quase esquecido.

- Um edifício daquele tamanho - disse Nat, e calou-se pensativo. - A despeito de todos os factores de segurança que lhe introduzimos e de todos os cuidados que temos com ele, por mais ameaças potenciais que se prevejam e por mais planos que façamos para frustrá-las... continua a ser vulnerável, não é verdade?

Brown abriu a gaveta da secretária, lançou uma olhadela feroz ao maço de cigarros, depois tornou a fechar a gaveta de estalo.

- Sim - disse -, o vosso grande edifício é vulnerável. Quanto maiores tanto mais vulneráveis são. É uma coisa em que vocês não pensam.

- É uma coisa em que estou a pensar - replicou Nat.

Voltou a pé para os escritórios Caldwell. Ben Caldwell já partira para as cerimônias no edifício da Torre. Nat encaminhou-se para o seu gabinete e sentou-se de olhos fitos nos desenhos pregados com tachas na parede.

Disse para consigo que estava a assustar-se com sombras, como de uma vez, difícil de esquecer, em que, caminhando sozinho de mochila às costas um pouco acima da curva de nível dos treze mil pés, fora dar com um dos maiores trilhos de urso que jamais vira, onde as grandes garras dianteiras nitidamente impressas indicavam o urso-pardo.

Os ursos-pardos estavam extintos, diziam alguns; ou quase. O quase não era consolação. Um urso-pardo era mais do que bastante; um único urso-pardo era inteiramente de mais.

Ursos-pretos eram uma coisa; uma pessoa deixa-os em paz e, a não ser que seja uma fêmea com crias, não nos molestam. Mas o grandalhão, o Ursus horribilis, não obedecia a normas que não fossem as dele: o que o urso-pardo queria o urso-pardo tomava, e tinha um temperamento muito pouco paciente.

Era capaz de correr mais do que um cavalo e matava um boi de quinhentos quilos com uma simples patada. À procura de petiscos como marmotas ou lúcios, rebolava com um tabefe de uma das patas pedregulhos que dois homens não conseguiam mover. Quando se caçavam ursos-pardos, ou o seu primo o grande urso-castanho do Alasca, nunca se disparava sem ser numa posição dominante; de outro modo, eram os entendidos que o garantiam, por maior que fosse o calibre da arma que se disparasse, o urso alcançava o caçador, e então era o fim da macacada. E Nat nem sequer levava uma arma.

Tudo isto evocado por algumas pegadas numa vertente da montanha varrida pelo vento muito acima da orla do arvoredo.

Nas horas de dia que restavam Nat tivera a impressão de querer olhar para todas as direcções ao mesmo tempo; e nessa noite, depois de escurecer, no saco-cama, fitando as estrelas e as nuvens ocasionais que se moviam por entre as suas figuras, fora pior; o mínimo som nocturno, o mínimo sussurrar do vento nos rochedos ou nos enfezados arbustos da serra, pareciam um despertador, e, a despeito da sua fadiga depois de um dia de caminhada, o sono tardou a chegar.

Quando acordou pouco depois do alvorecer e relutantemente emergiu do calor do saco-cama para o ar cortante da montanha, o urso-pardo não lhe acudiu logo ao pensamento - até descobrir pegadas frescas apenas a alguns pés do lugar onde dormira. O grande bicho viera obviamente ver quem era aquele estranho animal; e, a despeito de todo o seu volume, mais silencioso que a própria noite, curioso, intrépido - e, no fim, desinteressado.

Nat nunca viu o urso, mas nunca o esqueceu. Agora, sentado no seu escritório silencioso, disse em voz alta:

- Também nunca vi o homem da Torre e provavelmente nunca o verei, e talvez seja também inofensivo, mas isso é uma coisa que nem por um momento acredito.

Aprumou-se na cadeira e ligou para Joe Lewis:

- Ainda não descobriram nada?

- Não somos mágicos - disse Lewis. - Vamos ter de pôr algumas dessas alterações no computador e ver o que é que acontece se: se tivermos uma falha de circuito aqui ou uma sobrecarga ali, essa espécie de coisas que não se esperam mas que temos de prever. - Fez uma pausa. - Você não costuma ser nervoso.

- Estou agora - disse Nat - e, se me perguntar porquê, não lhe saberei explicar. Chame-lhe um palpite.

Seguiu-se um breve silêncio e por fim Lewis perguntou:

- Quando foi que apareceram essas alterações?

- Esta manhã. Trouxe-as o Giddings.

- E onde foi que ele as encontrou?

- Não sei. - Nat fez uma pausa. - Talvez seja melhor eu tratar de sabê-lo.

O telefone de Giddings no edifício da Torre não respondia. Nat chamou para o escritório de Frazee. Frazee já partira para as cerimônias.

- Não pode haver programa sem o mestre de cerimônias - disse Letitia Flores. - O meu patrão deve estar neste instante a inaugurar o palração. -Letitia era gorduchinha, fluente em quatro línguas, eficaz com o computador de Joe Lewis. - Posso ser-lhe útil nalguma coisa?

- Giddings - disse Nato. - Sabe onde ele pára?

- CharhVs Bar na Terceira Avenida. - Letitia deu a direcção. - Quer perguntar mais alguma coisa?

- Se ele aparecer - pediu Nat - diga-lhe que ando à procura dele.

- Digo-lhe porquê?

Por estranho que fosse, pensou Nat, não havia necessidade. Naquele problema, a despeito das suas desinteligências prévias, ele e Will Giddings concordavam completamente um com o outro.

- Ele sabe - foi a sua resposta.

Voltou a sair a pé, sem pensar no esforço, sem qualquer noção de fadiga física, coagido à acção pela agitação que se ia acumulando na sua mente. Desta vez ia atento às coisas que o cercavam.

A Terceira Avenida tinha mudado desde que ele a conhecia. Chegara demasiado tarde para o El (1), que outrora atravessava fragorosamente a Bowery; uma passeata nocturna, no Verão, era um espectáculo! Tinham-Lhe contado que, com as janelas iluminadas e abertas dos prédios residenciais, o passageiro via os inquilinos ocupados na prática da maior parte dos seus actos privados. Mas precisamente nos últimos anos as mudanças na avenida pareciam processar-se a ritmo acelerado, e aquilo que tinha sido dantes vizinhança eram agora estabelecimentos e edifícios de apartamentos despersonalizados, passeios cheios de gente desconhecida, apressada, em trânsito. Como ele próprio.

O Charlie's Bar era uma reminiscência do passado; portas giratórias com o nome gravado em vidro grosso, bar, reservados e mesas de madeira escura e pesada, o cheiro de fumo de cachimbo e de malte, e o som surdo de uma calma conversa de homens. Era um bar onde os clientes eram conhecidos e um homem podia matar tranqüilamente o tempo passando uma tarde a conversar diante de algumas canecas de cerveja. Zib, a despeito de toda a sua Libertação da Mulher, pensou Nat, entraria ali e imediatamente se sentiria impaciente por sair, embora ninguém lhe dissesse qualquer palavra desagradável.

Encontrou Giddings no bar, um copo de whisky e uma caneca cheia de cerveja em frente dele, e o botequineiro apoiado num cotovelo em conversa amigável.

Giddings não estava bêbado, mas os olhos brilhavam-Lhe.

 

(1) Metropolitano aéreo. (N. T.)

 

- Muito bem, muito bem - disse-, olha quem está aqui. Enganaste-te no caminho, não foi?

- Você em geral consegue representar melhor, Will. - Fez um gesto para as bebidas sobre o balcão. Para mim a cerveja, mas sem o whisky. - Depois de novo para Giddings: -Vamos para um reservado. Conversar.

- De quê?

- Não é capaz de adivinhar? Falei com o Joe Lewis. A gente dele vai consultar os computadores. Falei lá em baixo com um tipo chamado Brown.

- Tim Brown? - Giddings estava agora alerta.

Nat confirmou com a cabeça. Aceitou a caneca cheia de cerveja e ia meter a mão na algibeira. Giddings interveio.

- Não. Pago eu. - Deslizou do banco a baixo. Charlie McGonigle, Nat Wilson. Estaremos ambos no reservado do canto, Charlie. - Abriu caminho, empunhando as bebidas.

A cerveja era boa, fresca, não gelada, calmante. Nat bebeu quase sofregamente e pousou a caneca.

- Porquê o Tim Brown? - perguntou Giddings. Ignorou o whisky em frente dele.

Aquilo começava a soar como um disco tocado vezes sem conta ou como uma palavra que perdera o sentido. Nat desejava que fosse.

- Demasiados erros - disse. - Você é engenheiro. Compreende isso. Qualquer coisa corre mal. Devia ficar por aí porque concebemos meios de segurança que deviam funcionar imediatamente. - Fez uma pausa. - Mas suponha que os meios de segurança ficaram no papel? Ou que não estão a funcionar porque os homens dos bombeiros ou os fiscais permitiram que a coisa ficasse assim por agora?

Giddings sacudiu-se como um cão numa soleira.

- Talvez - disse. - Mas se foste procurar o Tim Brown, estás a pensar em fogo. Porquê? - A menção de Bert McGraw a prédios mal agourados perseguia-o. Gostaria de ser capaz de se livrar desse pensamento.

- Alterações eléctricas - disse Nat-, todas elas. Pode-se fundir o aço com cento e dez vóltios. Eu já o fiz: parte da lâmina de uma faca foi-se à viola numa torradeira eléctrica.

O gesto de cabeça de Giddings foi quase imperceptível. Os seus olhos mantinham-se fitos na face de Nat.

- A corrente que metemos no prédio - disse Nat não é de cento e dez vóltios, é de treze mil e oitocentos vóltios...

- Tu estás a pensar no tipo que andava nos elevadores? - Giddings fez uma pausa. - Mas porquê? Diz-me, caramba, pelo amor de Deus, explica-me porquê?

- Não sei. - Mas o palpite que era quase convicção mantinha-se. - Você é um matulão - disse Nat. Esteve alguma vez metido numa briga de bar?

Giddings sorriu deslavadamente, sem prazer.

- Uma ou duas vezes.

- Não terá sido porque um homenzinho qualquer estava com os copos e desejoso de pavonear-se armando ao teso se foi meter consigo justamente por você ser o tipo maior que estava no bar?

Giddings estava calado, pensativo.

- Continua.

- Eu não sei o que se está a passar - disse Nat. - Sou um arquitecto. Percebo também de cavalos, de montanhismo, de esqui e de umas coisas mais. Mas conheço pouco as pessoas.

- Continua - convidou novamente Giddings.

- Não quero ser psiquiatra - disse Nat-, mas se um tipo apesar de todas as suas extravagâncias não consegue que lhe prestem atenção e decide que, por exemplo, uma bomba é a única maneira, onde vai ele colocá-la? Num avião prestam-lhe atenção até de sobra... mas não se colocam bombas em aviões pequeninos, pois não? É sempre num grande jacto reluzente. Ou num aeroporto internacionalmente conhecido e cheio de gente... nunca em Teterboro ou Santa Fé.

Giddings ergueu o copo de whisky e voltou a pousá-lo intacto.

- Exageraste-disse. E depois acrescentou: -Espero.

- Também eu espero. - Nat sentia-se mais calmo agora, quase resignado, o que era estranho. - Aquele nosso prédio - disse - é o maior. E hoje é o dia em que toda a gente está com os olhos postos nele. Olhe para acolá. - Apontou para o aparelho de TV a cores montado atrás do bar.

O aparelho estava ligado, com o som reduzido. A imagem era a da Praça da Torre Mundial, das barreiras da polícia, do estrado agora parcialmente cheio de convidados sentados. Grover Frazee, de cravo na lapela, sorria e estendia a mão à medida que novos convidados iam subindo a escada do estrado. Uma banda tocava; o som da música chegava-lhes em surdina através da sala do bar.

- Você não queria essa inauguração - disse Nat. Tão-pouco eu queria. Agora ainda a quero menos e não sei dizer porquê. - Fez uma pausa. - Olhe para acolá.

A câmara da televisão girara do estrado e dos convidados para a multidão por detrás das barreiras. Aqui e além uma mão acenava para a objectiva, mas a máquina focava principalmente cartazes disseminados e erguidos acima das cabeças. ACABEM com A GUERRA! lia-se num cartaz. ACABEM com os BOMBARDEAMENTOS! instava outro. Os cartazes agitavam-se colericamente.

A câmara continuou a deslocar-se, parou, e surgiu então em primeiro plano outro cartaz: MILHÕES PARA ESTA CONSTRUÇÃO MONSTRUOSA! MAS QUANTO PARA A ASSISTÊNCIA SOCIAL?

- Muito bem - disse Giddings-, os indígenas estão agitados. Mas hoje em dia estão sempre. - Pegou no copo de whisky e tomou o conteúdo de uma golada, tendo recuperado o bom humor.

A máquina voltara-se para os degraus da plataforma onde o governador e o presidente da Câmara tinham parado para acenar ao povo.

- Sempre tive a impressão - disse Giddings, observando a cena - de que os políticos eram capazes de se juntar para inaugurar um bordel se isso lhes trouxesse publicidade. - Sorria agora. - Mas a verdade é que as pegas votam, como qualquer outra pessoa.

Nat perguntou calmamente:

- Onde foi você desencantar essas ordens de alteração, Will? - Viu o sorriso de Giddings desaparecer.

- Estás a perguntar-me se são genuínas? - retorquiu Giddings. Havia truculência na sua voz.

- Você mostrou-me cópias - disse Nat. - Onde estão os originais?

- Escuta, rapaz... Nat meneou a cabeça.

- Já o avisei: dessa maneira não. Se tem medo de responder à minha pergunta, diga simplesmente que tem.

- Não tenho medo de nada.

- Então onde estão os originais?

Giddings pôs-se a dar voltas e mais voltas ao copo vazio em cima da mesa. Por fim disse:

- Não sei. - Ergueu os olhos. - É essa a singela e estúpida verdade. O que me veio no correio ontem foi um envelope de fotocópias Xerox. - Fez uma pausa. Sem direcção do remetente. Carimbo do correio da Grand Central Station. - Abriu as grandes manápulas.

- Nenhum texto. Só as fotocópias. - Fez nova pausa. Talvez fosse uma brincadeira de mau gosto de um tipo qualquer.

- Você pensa isso?

Giddings meneou a cabeça lentamente:

- Não penso.

- Nem tão-pouco eu - disse Nat.

15.10h - 16.03h

Observando os convidados que chegavam e as multidões ainda ordeiras atrás das barreiras, considerando os cartazes ondulantes em todos os seus cambiantes de significado e não-significado, o polícia Barnes disse:

- Segurança. Há dez anos, Mike, ouvias alguma vez falar disso?

- É a fruta do tempo - comentou Shannon, como se o lugar-comum explicasse tudo. Tinha uma bonita figura de homem e estava consciente disso. Em frente das barreiras, embora não se pavoneasse propriamente, tão-pouco nada fazia por passar despercebido. - Tu não só leste demasiado, Frank, como ainda por cima pensas demasiado.

- "Liberdade para os Judeus Russos" - leu Barnes num cartaz que ondulava nas imediações. - A última vez que vi esse cartaz foi na Praça das Nações Unidas.

- com os preços de agora - observou Shannon uma pessoa poupa tudo o que pode para voltar a utilizar vezes sem conta. No estádio vêem-se aparecer as mesmas bandeiras jogo após jogo.

- Não precisamente as mesmas - disse Barnes. Sorria. Ele e Mike Shannon davam-se muito bem, e se havia disparidade entre eles em matéria de instrução ou mesmo de inteligência, bem, que mal fazia isso? Outros factores, como à-vontade, harmonia e lealdade, eram de longe mais importantes. -Já alguma vez entraste neste prédio, Shannon?

Shannon nunca lá tinha entrado. Não era exactamente porque um edifício é um edifício e nada mais do que um edifício, embora esse conceito matizasse um pouco o seu pensamento; era antes porque na cidade havia tantos edifícios, do mesmo modo que há tantas zonas, que um homem daria em doido se quisesse conhecer todos e o melhor que pode fazer é preocupar-se apenas com os das áreas que lhe são familiares. Foi isso mesmo que ele disse.

- Mas tu - disse, e abanou a cabeça - cobres demasiado território, Frank. Não é uma coisa saudável. - Fez uma pausa. - Que é que tem de especial o interior desse prédio? Que o torna excepcional? - Fez nova pausa e ergueu os olhos para cima, para o céu. - Não falando do seu tamanho?

- Um centro de segurança - replicou Barnes. - Lá temos outra vez essa palavra. É um posto de comando em contacto com todos os andares. Há um centro computador que controla a temperatura, a humidade e Deus sabe o que mais dentro de todo o edifício. As portas de incêndio que dão para os poços das escadas são fechadas electronicamente, mas em caso de emergência abrem-se automaticamente do lado da escada. Há um sistema de alarme de incêndios duplo que pode ser activado de qualquer andar... -Calou-se, com um tênue sorriso.

- Qual é a graça? - perguntou Shannon.

- Ouvi uma vez uma história - disse Barnes. O aeroplano do futuro. Parte do aeroporto de Heathrow perto de Londres. Recolhe as abas, o trem de aterragem e passa as asas para a posição do vôo supersônico. Então sai uma voz do altifalante: "Este é o vôo número cem de Londres para Nova Iorque. Voaremos a uma altitude de dezanove mil metros, a uma velocidade de doze mil quilômetros horários e chegaremos ao aeroporto de Kennedy precisamente às quinze e cinqüenta e cinco, hora de Nova Iorque. Este aparelho é o que há de mais avançado no mundo. É inteiramente automatizado e não há tripulação a bordo. Todas as operações aeronáuticas são realizadas electronicamente, todas as contingências foram previstas e não é possível nenhuma avaria nenhuma avaria nenhuma avaria... avaria...

Shannon meneou a cabeça:

- Não sei onde vais buscar as tuas histórias - disse.

Grover Frazee, com aquele cravo fresco na lapela, estava postado de cabeça descoberta e sorridente junto do primeiro degrau da escada para o estrado na Praça da Torre, enquanto os automóveis se aproximavam uns atrás dos outros pela faixa desimpedida da rua para descarregar os seus passageiros. Todos eles exibiam, pensava Frazee, a expressão reservada para casamentos, abertura de parlamentos e sessões legislativas, ou inaugurações solenes. Oh sim, e para funerais também. De onde lhe teria vindo este último pensamento?

Adiantou-se de mão estendida.

- Senhor Embaixador-disse-, foi muito generoso da sua parte arranjar tempo para vir aqui hoje.

- Não terria perrdido isto porr nada deste mundo, Srr. Frazee. Este enorrme e belo edifício dedicado à comunicação do homem com o homem... - O embaixador meneou a cabeça num movimento de admiração.

O senador John Peters partilhara o táxi que o trouxera do aeroporto La Guardiã com o representante Cary Wycoff. Tinham vindo de Washington juntos num vôo local, e parte da conversa que haviam tido persistia na mente de Cary Wycoff. A conversa começara naturalmente, quando ainda se encontravam pousados no Aeroporto Nacional.

- Houve uma época - dizia o senador enquanto apertava o cinto - em que era o caminho-de-ferro ou nada. Antes da guerra. Você não se recorda disso, pois não?

Cary Wycoff não se recordava. Tinha trinta e quatro anos, ia no seu segundo mandato no Congresso, e a própria guerra da Coréia fora antes do seu tempo, para já não falar da Segunda Guerra Mundial a que Jack Peters se estava obviamente a referir.

- Está a mostrar-me os galões, senador - disse Cary. O senador sorriu.

- Pura inveja. Gostaria de ter outra vez a sua idade, de estar precisamente a começar.

- Agora - perguntou Cary - ou no seu tempo? Ele nunca tinha pensado na questão nestes termos, mas o desejo de renovada juventude era pura nostalgia ou simplesmente um desejo de ficar para ver o que vinha a seguir? Puro egoísmo, ou curiosidade inteligente?

- Agora - disse o senador com ênfase. - Não sinto saudades do passado. Fui para Washington em trinta e seis. A depressão é agora apenas uma palavra. Então era uma ferida purulenta, e por mais que digamos a nós próprios que estávamos a curá-la, na realidade tudo o que estávamos a fazer-lhe era a dar ao doente aspirina e a pôr-lhe adesivo nas chagas abertas e a pedir a Deus que ele não nos morresse nas mãos.

Contra esta conversa de estadista veterano Cary sentia-se sempre defensivo.

- Temos problemas hoje - disse. - Não o contesta?

- Oh, caramba, rapaz, vocês sabem fazer melhor que isso. Mas a diferença é que hoje temos os meios de melhorar as coisas. Temos o conhecimento, a riqueza, a produção, a distribuição, a comunicação... acima de tudo a comunicação... e o que tínhamos então pouco mais era do que histeria e desespero.

- O conhecimento? - disse Cary. - Parece-me...

- Utilizei o termo apropriadamente - atalhou o senador de uma maneira cortante. - Temos o conhecimento. O problema está em saber se temos a sabedoria de usá-lo correctamente. Por isso é que eu gostaria de ter outra vez a sua idade, estar apenas a começar, mas num mundo que poderia ser melhor do que nunca foi desde que Eva deu a maçã a Adão. Simplesmente duvido que tivesse sido uma maçã; nunca ouvi falar de maçãs na Mesopotâmia, onde se presume que tenha ficado o Jardim do Éden. Já tinha pensado nisto?

Cary não tinha. Por pensar nisso agora, sentia-se divertido, não tanto pela pergunta mas pela arte com que o governador a trouxera à tona, mudando assim o rumo da conversa sem sequer dar a impressão de ter mexido no leme.

Jake Peters era uma anomalia; falava com um sotaque que era quase o de um operário de qualquer grande cidade, com uma pronúncia cerrada, mas a sua erudição numa surpreendente variedade de domínios era susceptível de abalar qualquer interlocutor. Se alguém se dispunha a discutir com Jake Peters, como atestavam inúmeros dos seus colegas senadores, era conveniente estudar muito bem a lição na véspera.

O senador estava já lançado noutro tema.

- Não sei o que se passa consigo - disse - mas estive quase para não vir hoje. - Sorriu. - Você costuma ter palpites, rapaz?

Cary Wycoff costumava, mas desagradava-lhe admiti-lo.

- Essa é boa, senador! - exclamou.

- Oh, não sou um vidente - retorquiu o senador. Estava a sorrir. - E conheço o Bent Armitage há uma data de tempo e isto representa muito para ele. - Fez uma pausa. O sorriso desvaneceu-se. - Pelo menos penso que representa. Nunca lhe perguntei.

- Eu diria - observou Cary Wycoff- que representa muito para muita gente. Um novo edifício significa novos empregos, novos negócios atraídos para a cidade, novos impostos...

- Você tem uma visão a preto e branco das coisas, não é? - disse o senador.

Era um ponto sensível. Cary Wycoff considerava-se mental e politicamente um liberal, mas, com grande desgosto seu, a acusação de ter uma perspectiva fechada surgia - como agora - e ele não sabia como refutá-la.

- Eu não procuro reprimir dissensões, senador - disse. E acrescentou: - Como fazem alguns.

- Se pensa que está a enfiar-me a carapuça, rapaz

- disse o senador calmamente-, acho melhor reconsiderar. - Havia no jovem Wycoff aquele ar de rectidão de escuteiro patarata que o senador já notara noutros congressistas e até em candidatos presidenciais, e sabia de há muito que não valia a pena discutir com gente dessa. Um homem totalmente convencido da sua própria rectidão só vê heresia nos pontos de vista alheios.

- Se um homem crê naquilo que diz ou faz - argumentou Cary Wycoff- eu acho que lhe deve ser permitido...

- Fazer o quê? Praticar violências? Destruir arquivos? Lançar bombas? - O senador observava a indecisão de Wycoff.

- A nossa própria revolução - disse por fim Cary foi uma dissensão violenta, não foi?

- Foi - admitiu o senador. - Mas se aqueles que a lançaram e prosseguiram tivessem perdido em vez de vencerem, teriam de sofrer as conseqüências, por mais nobre que fosse e é o documento da Declaração. Estavam a colocar a cabeça no cepo e sabiam-no.

- Então - perguntou Cary - a moralidade é decidida pelo facto de se ganhar ou perder? É isso? - Havia desdém na sua voz.

Isso disse o senador - vem sendo discutido há muito tempo e eu não pretendo saber a resposta. O que sei é que quando alguém toma o direito nas suas mãos e em conseqüência disso alguém sofre, eu não aprovo a amnistia total.

- Não acredita em oferecer a outra face? - Cary tinha a certeza de ter marcado um ponto de vantagem. Houve uma época - disse o senador - em que tudo o que um homem ganhava com isso era ficar com dois olhos negros em vez de um... e mesmo assim tinha de lutar. - Inclinou-se para diante a fim de estender uma nota por cima do ombro do motorista. - com palpite ou sem ele, já cá chegámos.

Saíram do táxi e dirigiram-se por entre as barreiras para o estrado. Cartazes ondulavam. Algumas vozes principiaram um coro ininteligível. A Praça "tá cheia de polícias - observou Cary Wycoh - - Dir-se-ia que esperam alguma coisa.

Admira-me - disse o senador - que você não os trate por chuis. - E a seguir: - Grover, você escolheu um belo dia para isto.

- Seja bem-vindo, Jack - saudou Frazee. - E você, Cary. Chegaram a tempo. Vamos principiar a palração.

Os três homens sorriram.

- Subam para o estrado - disse Frazee. - Tratem de acomodar-se. Eu já lá vou ter.

Presumo - disse o senador - que você pretende uma breve menção de Deus, da pátria e do futuro do homem... sem quaisquer tonalidades políticas? Frazee sorriu de novo.

- Precisamente.

O edifício estava equipado com um circuito fechado de televisão capaz de devassar cada andar, cada subcave. Mas neste dia, com o edifício ainda não aberto ao público, as secções de segurança não tinham ninguém e os sistemas de televisão estavam parados.

Esse aspecto fora discutido, mas a economia prevaleceu. A Torre Mundial, dissera-se, não era nenhum forte Knox com Uma incontável riqueza em ouro empilhada a tentar o saque. Pelo menos por ora.

Mais tarde, quando o edifício estivesse ocupado, inteiramente arrendado (Grover Frazee encolhera-se à idéia e ao uso dessa palavra manufacturada), a segurança tornar-se-ia um problema, como é em todos os grandes prédios da cidade, e a despesa da segurança seria aceite como um encargo normal.

Mais tarde, todas as secções de segurança seriam ocupadas por pessoal de dia e de noite, e o circuito fechado de televisão manter-se-ia incessantemente vigilante. Mas não por enquanto. Não hoje.

Mas mesmo hoje, e há muitos meses desde que o esqueleto de aço estrutural do prédio começara a ser revestido de carne e coberto, o centro computador estava ocupado. Considere-se a analogia do coração a bater no feto, a fornecer muito antes do nascimento alimento e força vital ao organismo que se desenvolve.

Ali numa mesa semicircular voltada para as luzes que piscavam, para as bobinas em rotação, para as fileiras de painéis de instrumentos, um homem velava pela saúde da grande estrutura.

No 65.º andar, o corredor noroeste precisava de mais ar frio - haveria qualquer fenda a deixar penetrar o calor exterior? Uma questão para examinar amanhã; para já, mais ar fresco, artificial, para o corredor noroeste.

O 125.º andar, a Sala da Torre, prevendo o afluxo de convidados para a inauguração com as suas concomitantes BTUs (!), sendo cada ser humano uma máquina de calor ambulante, fora já arrefecido dois graus abaixo do normal.

A pressão da corrente eléctrica que penetrava no edifício vindo da subestação Con Edison mantinha-se estável. O fluxo flutuaria à medida que os sistemas automatizados se ligassem e desligassem.

Dos transformadores redutores, todas as voltagens se mantinham estáveis dentro dos seus limites normais.

O elevador n.º 35, pavimentos locais 44-45, continuava encerrado para reparação; a sua luz não aparecia no painel.

Nas subcaves os sistemas automatizados funcionavam, os motores ronronavam docemente, os geradores de reserva esperavam com a sua maciça paciência concentrada.

 

(') Iniciais de British Thermal Unit (Unidade Térmica Britânica, quantidade de calor necessária para elevar de um grau Fahrenheit uma libra da água. (Jf. T.)

 

Todos os sistemas normais. Todos os sistemas a funcionar. O homem na cadeira giratória almofadada voltado para o grande painel podia descansar e quase dormi tar.

Chamava-se Henry Barber e vivia em Washington Heights com sua mulher, Helen, três filhos, Ann de 10 anos, Jody, de 7 e Petey de 3, e a mãe de Helen, de 64 anos. Barber era engenheiro electrotécnico licenciado pela Universidade de Golumbia. Os seus divertimentos predilectos eram o xadrez, o futebol profissional e as velhas fitas exibidas no Museu da Arte Moderna. Tinha trinta e seis anos de idade. Nunca seria mais velho.

Misericordiosamente, nunca soube o que o atingiu; a pancada do ferro de desempanar de dezoito polegadas esmigalhou-lhe o crânio, deixando-o quase instantaneamente morto e, por conseguinte, totalmente insensível ao que aconteceu depois.

John Connors demorou-se um instante a estudar as luzes pestanejantes do painel de controlo. Depois saiu da sala silenciosa e desceu até à cave onde os cabos eléctricos penetravam no edifício vindos da vizinha subestação. Ali, de porta fechada, certo de que não seria interrompido, sentou-se calmamente, relanceando de vez em quando uma olhadela para o relógio de pulso.

A questão que formulara a si próprio antes mantinha-se ainda na sua mente, agora satisfatoriamente respondida. Repetia-a incessantemente com prazer enquanto estudava os maciços cabos eléctricos e os meditativos transformadores: "Para quê driblar, quando com um chute directo se mete a bola nas redes?

- Toca pra diante - murmurou. - Corre para as redes.

Na praça a banda tocava "A Bandeira Recamada de Estrelas", enquanto os cartazes dos contestantes ondulavam ao ritmo do hino americano.

O rabino Stein orava para que o edifício com o seu potencial de comunicações fosse um instrumento de paz para toda a humanidade.

Num canto da praça, subtilmente contidos por um punhado de polícias uniformizados, um grupo misto, árabes e não-árabes, entoava palavras de ordem pedindo justiça para a Palestina.

Monsenhor O'Toole lançou a bênção ao edifício.

Cartazes pedindo o controlo dos nascimentos e o aborto legalizado brotavam como crocos no princípio da Primavera.

O reverendo Arthur William Williams pedia a bênção celestial, paz e prosperidade.

Cartazes apareciam pedindo que fossem sujeitas a imposto as propriedades da igreja.

O reverendo Joe Willie Thomas tentou subir os degraus que conduziam ao estrado dos microfones, mas impediram-no. Da base da escada denunciou a idolatria.

Grover Frazee agia como mestre de cerimônias.

O governador falou. Louvou a oportunidade do edifício.

O major falou a favor da fraternidade humana.

O senador Jake Peters louvou o progresso.

O congressista Cary Wycoff falou dos benefícios que o edifício traria para a cidade.

Uma fita que atravessava as portas do átrio foi cortada sob o olhar concentrado das objectivas da televisão e das máquinas dos fotógrafos. Foi rapidamente substituída e procedeu-se a segundo corte quando se soube que a NBC-TV tinha falhado a filmagem.

A corrente de convidados atravessou a porta e entrou em dois elevadores automatizados expressos para a viagem de menos de dois minutos até à sala mais elevada do edifício mais alto do mundo onde as mesas de bar já se encontravam postas, as velas acesas, os aperitivos servidos, o champanhe gelado e pronto, e os criados e as criadas aguardando.

 

"O que é importante recordar é que, havendo temperaturas suficientemente altas, não há nada que não arda, nada!

TIMOTHY O'REILLY BROWN,

2.º COMANDANTE DOS BOMBEIROS, numa declaração à imprensa.

 

16.10h - 16.23h

Na Sala da Torre, empunhando a bebida, dizia o governador a Grover Frazee:

- Não tenho absolutamente nada contra os padres em si, mas alguns deles tomam o freio nos dentes e nunca mais param.

- Gostava que citassem isso à sua clientela eleitoral?

- disse Frazee. Sentia-se melhor, mais calmo, mais descontraído do que estivera durante todo o dia. Will Giddings deprimira-o; era inegável. Mas com as felicitações a choverem de todos os lados, o sentimento de depressão fora-se atenuando e agora desaparecera completamente. Olhando em volta com satisfação, concluiu: - Poderia custar-lhe alguns votos.

- Sabe - replicou o governador -, talvez me estivesse nas tintas para isso. Tenho um rancho nas montanhas do Novo México. A casa do rancho fica a uma altitude de dois mil e quinhentos metros no meio de prados verdes. Há um riacho com trutas e da entrada do rancho avistam-se montes de cinco mil metros de altura que nunca perdem a neve. - Olhou em torno da sala apinhada. - O rancho parece-me cada vez melhor. - Chamou com uma olhadela um criado que passava: - Traga-me outro bourbon com água, por favor. - E dirigindo-se de novo a Grover Frazee: -Até já deixei de beber whisky escocês. - Sorriu vendo aproximar-se o mayor: - Ah, Bob - murmurou.

- Acho que tudo correu muito bem - declarou o mayor. - Parabéns, Grover.

- As suas observações sobre a fraternidade do homem deixou-os embatocados, Bob - disse o governador. Como eu já tinha assinalado há pouco, são precisamente esses improvisos cuidadosamente preparados que fazem o truque. - Havia ocasiões em que o governador se sentia quase envergonhado de fazer Bob Ramsey morder a isca; era, como diziam no seu Oeste adoptivo, tão fácil como apanhar peixes num barril de chuva, demasiado fácil. - Onde está a sua senhora?

- Junto das janelas. -A voz do mayor enternecera-se. - A admirar a vista. Sabe você que num dia claro...

- Ainda temos dias claros? - atalhou o governador. E logo a seguir: -Deixe lá, estava a pensar noutra coisa. - Em céus de um azul ilimitado e em montanhas visíveis a cem milhas de distância que ao crepúsculo se tornam cor de púrpura; num silêncio infindo e num sentimento de paz. O governador sentiu-se de repente sentimental: - Há quanto tempo está casado, Bob?

- Trinta e cinco anos.

- É um homem feliz.

O mayor examinou aquela declaração à procura de qualquer anzol. Não lhe pareceu haver nenhum.

- Sou. - Relanceou um olhar na direcção da mulher.

- E quem é que está com ela? - perguntou o governador.

- É uma prima minha que costuma votar em si. Chama-se Beth Shirley. - O mayor estava agora a sorrir. - Interessa-lhe?

- Deixe-me ir ter com ela - disse o governador. Era alta, essa Beth Shirley, com uns olhos azul-claros

e cabelo castanho-aloirado. Acolheu a apresentação com uma inclinação de cabeça e depois esperou que o governador tomasse a iniciativa da conversa.

- Tudo o que sei a seu respeito - disse o governador - é que é prima do Bob Ramsey e vota na boa lista. Que mais me convém saber?

O sorriso dela era lento, a condizer com a calma dos seus olhos.

- Isso depende, governador, daquilo que tem em mente.

- Na minha idade... - principiou o governador. Meneou a cabeça.

- Não me parece que a sua vida já tenha parado

- replicou Beth. O sorriso alastrou. - Pelo menos não é a imagem que sempre tive de si. Por favor, não me desaponte.

O governador reflectiu naquelas palavras. Disse por fim, com um sorriso que se combinava com o dela:

- Sabe, acho que a última coisa que desejo neste mundo é desapontá-la. - Por mais bizarro que parecesse, era verdade. Era, concluiu ele, o velho sátiro que voltava à tona. - E - acrescentou -, se isto parecer ridículo, pois bem, que seja. Já fui ridículo antes. Muitas vezes.

Havia redemoinhos de conversas em torno deles, mas nesse momento encontravam-se sozinhos.

- A capacidade que tem para rir de si mesmo - disse Beth - é uma das coisas que sempre admirei.

A capacidade do homem para absorver a lisonja, sempre pensara o governador, é ilimitada.

- Diga-me mais coisas.

- O Bob Ramsay não é capaz de rir de si mesmo.

- Por isso é que não se devia ter metido na política. O Presidente dos Estados Unidos também não é capaz de rir de si mesmo e todos nós perdemos com isso.

- O senhor podia ter sido presidente. Ficou perto.

- Costumávamos dizer - observou o governador que ficar perto só vale alguma coisa no jogo da malha, e mesmo assim uma pessoa tem de ficar tremendamente perto do fito. A presidência é um parafuso da roda. Poucos homens chegam a conseguir uma primeira oportunidade e quase nenhum consegue segunda. Eu tive a minha primeira oportunidade. Não haverá segunda, e o caso está arrumado. - Porque estaria ele hoje a pensar tantas vezes naquele riacho com trutas serpenteando no fundo da várzea e no aroma das sempre-verdes na atmosfera límpida da serra? - Conhece o Oeste?

- Estive na Universidade do Colorado.

- Esteve, caramba! - Quem quer que fosse que arranjava estes encontros do acaso, pensou o governador, havia de rir a bandeiras despregadas da vaidosa pretensão que o homem tem de controlar o seu próprio destino. - Conhece a parte setentrional do Novo México?

- Fiz esqui e equitação nas montanhas.

O governador respirou fundo.

- Pesca?

- Apenas trutas. Em riachos.

Foi então que o senador Peters se aproximou, empunhando uma taça de champanhe.

- Você foi sempre contra os monopólios, Bent -disse o senador-, mas surpreendo-o agora a monopolizar.

- Vá-se embora, Jake. - O encanto da intimidade quebrara-se. O governador suspirou. - Claro que não vai. Você nunca se vai embora. É como um remorso no meio da noite. Miss Shirley, senador Peters. Agora diga-me o que é que quer e depois vá-se embora.

- Você esteve a espicaçar o Bob Ramsey. - Havia um brilhozinho malicioso no olhar do senador.

- Apenas o suficiente - disse o governador - para colocá-lo na presença de uma nova idéia. A coisa relacionava-se com dinossauros.

- O Bob não se sente bem na presença de novas idéias.

- Miss Shirley é prima dele - observou o governador. O senador sorriu e acenou com a cabeça.

- Peço desculpa. - Fez uma pausa e depois, numa explicação parcial: - Eu e o Bent conhecemo-nos há muito tempo. Falamos a mesma linguagem, excepto que não estamos sempre de acordo e que o sotaque dele é melhor que o meu. Fizemos o nosso curso passando pelo mesmo liceu e pela mesma faculdade de Direito, o Bent um pouco depois de mim. Eu servi à mesa e fui piloto de lanchas a motor. O Bent era mais imaginativo: montou um negócio de lavandaria e vivia como um príncipe.

- E - disse Beth - o curso do Bob no liceu e em Yale foi-lhe pago pela família. - Meneou a cabeça a significar que compreendia as inferências.

- O Bob adora a cidade - disse o senador. - Honra lhe seja feita por isso. Está tão orgulhoso deste edifício como se tivesse sido ele próprio a erigi-lo.

- E o senhor não está, senador?

- Minha querida - disse o senador -, sou um idealista prático antiquado. E se isto parece contraditório...

- Não é - atalhou o governador. - No momento sindical eles chamam costeletas de porco àquilo que o Jake quer para o seu eleitorado: salários mais altos, benefícios. - Fez uma pausa. - Nada de prédios de fantasia, não é, Jake?

O senador confirmou meneando a cabeça.

- O Bob disse que você falou de cavalariças para dinossauros.

Foi a vez de o governador menear a cabeça, agora circunspecto.

- Isso ofende-te, Jake? É também a tua cidade. - Não me ofendi. Você opugna este prédio, mas também tem uma parte nele.

- Quando se não pode lutar contra eles - disse o governador - então será boa idéia juntarmo-nos a eles. - Mostrou os caninos. - E o Grover sabe ser muito persuasivo.

- E como vão de arrendamentos?

- Tanto quanto sei, muito bem. - Era apenas uma ligeira inverdade, que o governador proferiu com a máxima facilidade.

- Ouvi dizer coisa diferente.

- Podemos sempre ouvir aquilo que nos agrada ouvir, Jake. Ninguém sabe isso melhor do que você.

O senador hesitou. Passou um criado e o senador deteve-o.

- Leve esta coisa - disse - e traga-me um whisky decente. - Depositou a taça de champanhe na bandeja. Nunca consegui habituar-me a ter de levantar o dedo mendinho para beber champanhe - declarou.

O governador perguntou:

- Em que é que você está realmente a pensar, Jake? O senador voltou a hesitar.

- Esse Cary Wycoff, vivaço e ainda com o rabo por pelar, está preocupado com os males da humanidade, o que é uma boa coisa. Eu disse-lhe que hoje tínhamos os meios de remediá-los. - O seu gesto súbito abrangeu a sala, as pessoas, o bar e os criados e criadas que circulavam, a conversa e as risadas, e, suave acompanhamento, a música tocando através de altifalantes ocultos um tom acima do brando zumbido do ar-condicionado. - Nisto é que nós utilizamos os nossos meios, num edifício para fazer meia-dúzia de sujeitos ganharem uma data de dinheiro. Ou numa guerra, em armas para matar mais gente.

O governo Recomenda duas Alka-Seltzer - disse o governador.

O senador sorriu deslavadamente.

- Mereci a receita, Bent. Confesso-o. Mas não consigo libertar-me disto. "Condenado à morte, embora não destinado a morrer." No liceu nunca consegui entender o que queria o Dryden dizer com isto. Hoje creio que sei.

- Talvez duas Alka-Seltzer e um Di-Gel - aconselhou o governador. - Você tem de libertar esses gases.

Mas o senador não queria mudar de assunto.

- você talvez tenha uma certa razão - prosseguiu dirigindo-se ao governador - no que hoje disse ao Bob Kamsay. Olhe. - Fez um gesto desta vez para o grande painel de janelas, dando para fora e para baixo sobre prédios menores mas ainda assim gigantescos no primeiro plano, sobre a água rutilante do rio e da baía interior, sobre a terra da margem oposta esvaindo-se na neblina industrial, na mistura de fumo e nevoeiro.

O governador disse agora já sério:

- É uma balbúrdia, não é?

- Chegou a altura de passarmos a pasta, Bent-disse o senador.

O queixo do governador ergueu-se.

- Ao jovem Cary Wycoff? Aos que desfilam e contestam, aos que estão apenas contra e nunca pró? - O governador meneou a cabeça. Estava de novo a olhar para o campo que se alongava em frente deles, para o rico campo lavrado, inovador, poderoso. - Não nego que fizemos uma tremenda balbúrdia - disse - e não serei eu quem o negará. Mas, ao fazê-lo, construímos ao mesmo tempo alguma coisa de forte e de durável, alguma coisa em volta do que construímos uma nação. - Sorriu subitamente para Beth. - Estou a falar como um político? Não responda. Estou.

- Votarei por si - disse o senador. Estava a sorrir. boa e sólida oratória de campanha, Bent.

E Beth acudiu num protesto:

- Mas eu creio que o governador está a ser sincero. Jake Peters fez que sim com a cabeça.

Ele é sincero. Todos nós somos, minha querida, pelo menos a maioria de nós. E nisso consiste a tragédia: a distância entre a crença, a convicção e aquilo que se realiza. - Olhou em volta. - Onde estará esse criado com o whisky? vou ver se o encontro.

O governador e Beth ficaram de novo juntos, calados, e era como se outra vez uma cortina tivesse corrido, isolando-os dos restantes convidados. Os dois reconheceram a ilusão, sem se lhe referirem.

- Fui casado uma vez - disse o governador. Parecia perfeitamente natural dizer aquilo. - Há muito tempo.

- Eu sei.

As sobrancelhas do governador arquearam-se.

- Como é que sabe uma coisa dessas, Beth Shirley?

- Vi no Who's Who. Ela chamava-se Pamela Brown e morreu em 1950. Tem uma filha casada, Jane, que vive em Denver. Nasceu em 1946.

- O que - observou o governador - não deve ter sido muito depois da data do seu nascimento.

- Está a fazer-me uma pergunta? - Beth sorria.

- Nasci dez anos antes. -Fez uma pausa. - E não encontrará o meu nome no Who's Who, por isso dir-lhe-ei que também fui casada uma vez. Foi um desastre. Tinham-me avisado, mas os avisos são geralmente piores que inúteis, não são? Acho até que na maior parte dos casos produsem o efeito contrário. Casei-me com o John em parte porque tinha sido avisada e aconteceu-me aquilo que me tinham dito que ia acontecer: em vez de me encontrar com um marido encontrei-me com um filho de trinta e cinco anos.

- Lamento - disse o governador. Sorriu subitamente. - Ou talvez não lamente. Gosto de estar assim, de tê-la aí a falar comigo. - Viu Grover Frazee abrindo caminho no meio dos convidados e exibindo na face um sorriso pouco convincente. - Prepare-se - avisou o governador, baixinho -, estamos prestes a ser interrompidos, raio de sorte. - Depois: - Olá, Grover.

Frazee disse:

- Preciso de falar consigo, Bent.

- Está a falar comigo. - A voz do governador não era animadora. - Miss Shirley, Sr. Frazee. Grover é a ratoeira mental que se encontra por detrás do projecto da Torre Mundial.

- Estou a falar a sério - disse Frazee. - Temos um problema. - Olhou hesitantemente para Beth. - Eu preferia...

- Eu deixo-vos - disse Beth.

O governador agarrou-a pelo braço.

- Não deixa nada. Depois nunca mais conseguia encontrá-la. - Olhou para Frazee. - Qual é o problema? Deite isso cá para fora. Deixe-se de resmungos.

Frazee hesitou. Por fim disse:

- Temos um incêndio. Num dos andares inferiores. Oh, não é nada de grave, mas há algum fumo no sistema de ar condicionado e Bob Ramsey está a falar ao telefone com o comandante dos bombeiros, portanto penso que a situação estará esclarecida num instante.

- Então - perguntou o governador lentamente que necessidade tinha de vir procurar-me?

Ben Caldwell aproximou-se, pequeno, quase frágil, preciso. A sua face conservava-se inexpressiva.

- Ouvi a pergunta - disse. Falava directamente ao governador. - Grover está nervoso. Sabe que podem ter havido certas irregularidades na construção do edifício. Está preocupado.

- E - perguntou o governador - você não está? O governador é um chefe, pensou Beth, observando,

escutando calada. Não perde tempo em superfluidades, as suas perguntas são sondas. Ben Caldwell respondeu:

- Não formulo juízos sem ter provas suficientes, mas não estou preocupado nem vejo qualquer motivo de preocupação. Conheço a planta do edifício e um pequeno incêndio... - Deu de ombros.

O governador olhou para Frazee.

- Quer que lhe segure na mão enquanto lhe digo o que deve fazer? Muito bem. Peça a opinião do comandante dos bombeiros e se ele achar que é prudente evacuar esta sala imediatamente, então, valha-o Deus, faça-o, sem se importar com o que a imprensa...

Foi nesse instante, sem aviso, com aquilo que alguns descreveram mais tarde como um estremecimento convulsivo de todo o prédio, que as luzes se apagaram, o suave zumbido do ar-condicionado cessou, a música silenciou e todas as conversas emudeceram. Num canto qualquer da sala uma mulher gritou.

Eram 16, 23 h.

O incêndio que estava a lançar fumo nas condutas de ar condicionado era pequeno e em circunstâncias normais teria sido rápida e automaticamente extinto.

Era no apartamento 452, quarto andar, corredor sudeste. O apartamento, já arrendado, estava a ser decorado. Os senhores Zimmer e Schloss, decoradores de interiores, não acreditavam no látex. Era quase indecente a facilidade com que um pintor podia lavar os seus pincéis recorrendo apenas à água e ao sabão. E as cores pura e simplesmente não cantavam!

O apartamento 452 estava, por conseguinte, a ser decorado com a tradicional tinta de óleo. As latas de um galão de diluente estavam no chão no centro do quarto interior debaixo de uma chapa de contraplacado assente em dois cavaletes que os pintores utilizavam como mesa.

Acreditou-se mais tarde que fora a combustão espontânea de uns trapos oleosos que originara a fogueira. Uma lata de diluente explodira com o calor e esguichara líquido incandescente em todas as direcções.

Os extintores de tecto funcionaram, mas a prancha de contraplacado protegera o cerne da fogueira durante o tempo suficiente para esta adquirir força; e em qualquer hipótese a água não domina facilmente o incêndio de uma lata de diluente, que como a gasolina incandescente se limita a espalhar-se sobre a água e continua a arder. Mas sem a protecção do contraplacado é provável que as primeiras chamazinhas tivessem sido extintas.

Uma luz de alarme surgiu no painel do controlo-computador nas entranhas do edifício, mas não havia ninguém para vê-la,

As condutas de ar condicionado do apartamento 452 continuavam a introduzir novas lufadas de ar fresco que fornecia oxigênio para alimento das chamas.

A tinta nova nas paredes inflamou-se. Mais latas de diluente explodiram com o calor.

O ar condicionado aumentou os seus esforços para controlar a temperatura, fornecendo assim mais oxigênio. O fumo começou a penetrar em todo o sistema e por fim alcançou a conduta da Sala da Torre.

Mas mesmo neste ponto não havia ainda qualquer perigo real ou sequer um problema de maior.

Os sistemas primários entraram quase imediatamente em acção; os sistemas de emergência aguardavam para o caso de necessidade.

Os alarmes automáticos soaram na estação dos bombeiros apenas a dois quarteirões de distância. Em menos de três minutos dois carros de bombeiros estavam na praça abrindo caminho por entre a multidão que se ia rarefazendo.

A multidão voltara a concentrar-se, dificultando o trabalho dos bombeiros. A polícia, incluindo Shannon e Barnes, empurrou-a para trás das barreiras ainda a postos. Restabeleceu-se uma certa ordem.

Alto no flanco rutilante do prédio apareceu um penacho de fumo, recortando-se feio e negro contra o céu. Desconhecidos assinalavam-no uns para os outros no meio da multidão, e não era raro que o fizessem com um sorriso de gozo; há uma espécie de alegria em descobrir que os altos e poderosos também têm os seus problemas.

No painel da televisão do CharhVs Bar, a objectiva iniciara a incrivelmente longa ascensão pela fachada do edifício acima, andar após andar, tudo aquilo a escorçar-se à medida que o ângulo se elevava.

- É belo como um raio - disse Giddings. - Detesto ter de reconhecê-lo diante de ti, mas é belo. E amanhã vamos descobrir o que se passou com essas malditas ordens de alteração, deitamos tudo a baixo e pomos as coisas direitas. Falei com o Bert McGraw e ele disse que faria o que fosse preciso, e quando o Bert diz que faz uma coisa, faz mesmo. - Sentia-se agora quase comunicativo. - Tu às vezes és um bastardo irritante, Nat Wilson, mas tenho de confessar, mesmo que às vezes tenhas idéias esquisitas, que sabes a fundo do teu ofício. Tu...

Giddings calou-se de repente. Os seus olhos continuavam fitos no painel da TV. A objectiva agora alcançara a torre. Parou ali, na estrutura lisa e reluzente, azul, com a capa cerúlea do céu a pender-lhe dos ombros.

Giddings disse numa voz que não era totalmente calma:

- Que vem a ser aquele penacho de fumo? Acolá. Abaixo da torre.

- Já o vi - disse Nat. Estava de olhos muito abertos.

- Descarga de ar condicionado - opinou Giddings. Deve haver fumo num ponto qualquer lá dentro e isso significa... Aonde é que vais com tanta pressa?

Nat já ia a sair do reservado. Giddings lançou-lhe a mão ao casaco e agarrou com firmeza um punhado de fazenda.

- Seu filho da pêra - disse Giddings. Falava agora em surdina. - Tu sabias demasiado. Desde o princípio, tu...

Nat soltou-se do punho do homenzarrão com surpreendente facilidade. Deslizou para fora do reservado e pôs-se de pé.

- vou para lá - disse. - Você vem ou tenciona ficar com o cu colado nesse banco?

No centro da praça um comandante de batalhão de sapadores-bombeiros dirigia as operações através de um megafone. Mangueiras serpenteavam através do pavimento. A água começava a fazer poças no chão do átrio.

- Não é permitida a passagem a ninguém - disse o polícia Shannon nas barreiras. E depois: -Bem, quem me havia de dizer? É você outra vez.

- Afaste-se já da minha frente - disse Giddings, e deu um passo para diante.

- Calma, Mike - exclamou para Shannon o polícia Frank Barnes, com a sua face negra cheia de solenidade.115

E depois para Giddings e Nat: - Lamento, mas são ordens.

Nesse momento ouviu-se um novo som de sirene a uivar pela rua acima e surgiu uma limusina preta, com a luz vermelha a relampejar. O 2.º comandante Brown estava fora do carro mesmo antes de ele parar. Não trazia chapéu e o seu cabelo ruivo flamejava. Caminhava com o passo embaraçado de um animal de pernas compridas; uma cegonha, era a analogia que ocorria logo, uma cegonha furiosa. Parou em frente de Nat.

- Você tinha só um palpite ou sabia que isto ia acontecer?

Era uma pergunta que iria ser feita vezes sem conta, pensou Nat, e não lhe ocorria nenhuma maneira de evitá-la.

- Isso tem agora importância? - disse. - Você está a braços com um fogo e nós encontramo-nos aqui para fazer o que for possível...

- O que é que se passa exactamente?

- Não sei, mas nós os dois conhecemos este edifício melhor do que qualquer pessoa que não se encontre dentro dele. - Estava a pensar em Ben Caldwell, naturalmente, e em Bert McGraw. Mas esses pertenciam ao escalão de comando. Ele e Giddings eram tropa de linha com o conhecimento íntimo que só a vida dia após dia e mês após mês com uma estrutura pode proporcionar. E acrescentou: -Talvez melhor ainda que ninguém.

- Muito bem - disse Brown. - Venham, mas não se metam no nosso trabalho.

Shannon abriu a boca para protestar. Frank Barnes conservou-o calado com um gesto.

- Boa sorte - disse Barnes. E depois de uma pausa: Estou a falar a sério.

Brown dirigiu-se directamente para o comandante de batalhão que debaixo do seu chapéu branco se encontrava no centro da praça.

- Que temos?

- Ainda não descobrimos onde começou. No terceiro andar, no quarto andar. - Encolheu os ombros. O certo é que começou, começou como um raio, começou em excesso.

- Os extintores? - perguntou Giddings.

O comandante de batalhão mirou-o cuidadosamente.

- Os extintores - disse, e meneou a cabeça. Ajudam. Conseguem dominar a maior parte dos fogos que deflagram. Mas não dominaram este.

- E isso - perguntou Nat - que quer dizer?

- Não imagino o que queira dizer - respondeu o comandante. - Quando tudo estiver acabado, espero, talvez consigamos descobrir. Os extintores às vezes pioram certos fogos. Potássio, sódio, incêndios eléctricos, incêndios de gasolina... a água pode ser prejudicial.

Nat disse lentamente:

- Potássio, sódio... isso significa uma bomba?

- É possível. - O comandante ergueu o megafone. Mais mangueira! Tragam-na para dentro! - Baixou o megafone. - O fumo é denso e isso pode querer também dizer qualquer coisa.

Giddings disse:

- Você falou também na possibilidade de incêndios eléctricos. - Olhou para Nat.

- Sabe-se lá! - exclamou Nat. -Terceiro andar, quarto andar... - Meneou a cabeça. -Não são pavimentos mecânicos. - Calou-se.

Brown disse:

- O 1.º comandante está lá em cima na Sala da Torre. E o mqyor.

- E - acrescentou Giddings - outros figurões mais, tantos que uma pessoa nem consegue contá-los.

Brown ignorou Giddings. Para o comandante de batalhão:

- Não será melhor fazer descer toda a gente? Há um telefone lá em cima. E bastarão dois desses elevadores expressos.

- É uma viagem dos diabos - disse Giddings - no caso de estar a pensar tirá-los de qualquer outra maneira. O núcleo do edifício onde se encontram os elevadores é tão seguro como qualquer coisa o pode ser.

Foi então que sentiram, mais do que ouviram, a súbita explosão que se produziu quase por debaixo dos seus pés. O som, surdo e distante, chegou um momento mais tarde, como a porta de um armário fechando-se cavamente com enorme força. As poças de água no pavimento do átrio encresparam-se docemente. As luzes interiores apagaram-se de súbito.

Giddings murmurou baixinho:

- Jesus!

Brown olhou para Nat.

- Isto significa o quê?

Nat cerrou os olhos. Voltou a abri-los e sacudiu a cabeça para limpar as teias de aranha do choque. Disse lentamente:

- As entranhas do edifício ficam lá em baixo, com tudo o- que o impulsiona e faz viver.

- É lá de baixo das caves - perguntou o comandante de batalhão - que vem a corrente indutora, certo?

Nat confirmou com a cabeça. Giddings repetiu: -Jesus!

- Directa da subestação - disse o comandante de batalhão. - A uns oito ou dez mil vóltios. - Ergueu o megafone e a seu mando uma série de homens lançou-se a correr para as entranhas do edifício.

- Treze mil e oitocentos para ser exacto - informou Nat. - E não sou um engenheiro electrotécnico, mas se alguém fez qualquer macacada com esses grandes transformadores, valha-me Deus! - Ficou calado, imóvel, com os olhos cravados no átrio. - Vamos - disse baixinho -, vamos!

Brown franzia o sobrolho.

- Vamos quem, o quê?

- Os geradores de emergência - disse Giddings. Se funcionarem teremos ao menos energia para os elevadores.

- E se não funcionarem? - perguntou Brown calmamente.

- Então - declarou Nat - terá uma Sala da Torre cheia de gente importante a cento e vinte e cinco andares acima de um incêndio. E se o incêndio tomar o freio nos dentes...

- Não tomará - disse o comandante de batalhão.

- Tomará. - Giddings estava a olhar para Nat. Em que estás a pensar?

- Aquilo foi uma explosão - disse Nat. - Uma bomba? Talvez. Mas... e se foi um curto-circuito num circuito primário? Já ouviram o esteiro de um curto-circuito numa instalação de cento e dez vóltios?

Ninguém respondeu. Giddings instou:

- Continua, com mil raios, em que estás tu a pensar? -Já vos disse que não sou engenheiro electrotécnico - disse Nat - mas, caramba, que me dizem a uma sobrecarga resultante de um curto-circuito? Quanto tempo leva, com essa quantidade de energia, a aquecer os fios ao rubro... principalmente se o fio for de qualidade inferior?

- Inferior? - exclamou o comandante de batalhão, e olhou de um homem para o outro.

- Não sabemos - disse Nat. A sua voz era calma, quase resignada. - Não ouvi nenhum gerador de emergência começar a trabalhar. Talvez não se ouçam aqui.

- E talvez se ouçam e não tenham funcionado

- opinou Giddings. - Talvez estejam também avariados. O controlo-computador deveria...

- Deveria, não deveria - pronunciou Nat. Estava a pensar no comentário de Ben Caldwell: "As palavras não têm significado."

Um bombeiro emergiu a cambalear da porta mais próxima do átrio, vomitando. Uma vez ao ar livre parou e, penosamente dobrado pelo ventre, era sacudido por espasmos incontroláveis. Avistou o comandante de batalhão e aprumou-se, limpando a boca e o queixo com as costas da mão.

- A coisa está má lá em baixo. - As palavras eram quase incoerentes. - Tudo aquilo... parece a casa das máquinas de um navio... a arder. - Parou sacudido por outro espasmo para vomitar. Vômito negro pingava-lhe do queixo. - Encontrámos um homem - disse. Frito como toucinho. - Fez uma pausa. - E no que parece ser um painel de computador está outro homem... morto.

Um servente de ambulância levou o bombeiro dali. Brown estava a olhar para Nat.

- O que era isso a respeito de fio de qualidade inferior aquecido ao rubro por um grande curto-circuito?

- O que ele quer dizer - explicou o comandante de batalhão - é que em vez de um incêndio nas caves e outro nos andares à superfície de que já temos conhecimento, poderemos ter um cento de incêndios potenciais em conseqüência de o fio interno estoirar com a camada isoladora quando atingido por uma sobrecarga. - Olhava para a face gigantesca do edifício com uma expressão de terror reverente.

- Isso não pode acontecer - protestou Brown. O comandante de batalhão olhou para ele.

- Sim - disse -, eu sei. Nada disto pode acontecer. - Fez uma pausa. E acrescentou lentamente:

- Mas talvez, quem sabe, tenha acontecido.

Brown voltou a olhar para Nat. A sua pergunta era muda mas evidente.

- Que sabemos nós? - respondeu Nat. - Tentamos imaginar o que aconteceu. Atiramos idéias para Joe Lewis e ele faz com elas o que pode. Tentamos imaginar qualquer maneira de fazer descer aquela gente, mesmo que tenham de descer de cu porque as pernas não agüentam. Vocês continuem a fazer o que lhes for possível e nós tentaremos pensar. - Abriu as mãos. - Que mais se pode fazer?

16, 23 h-16, 34

Mesmo com as luzes fluorescentes apagadas entrava bastante luz pelas janelas sombreadas da Sala da Torre e as velas ainda ardiam. O governador disse para Ben Caldwell:

- Que significa isto? Não há luz? Não há nenhuma energia? - A sua voz era firme, o seu tom quase acusador.

- Não sei - disse Caldwell.

- Você é o arquitecto, trate de descobrir.

O governador era o homem que estava no comando, pensou Beth Shirley, e esse pensamento reconfortou-a. Como era essa velha canção da South Pacific - "Numa Tarde Encantada"? Ao ouvi-lo neste momento de crise em que assumia o comando sem hesitação, era difícil dominar o que sentia - como uma colegial com a sua primeira paixoneta súbita. "Bem, seja o que Deus quiser." Pousou a mão suavemente no antebraço do governador.

- Está tudo bem - disse imediatamente o governador. - Vamos pôr tudo em ordem, seja lá o que for.

- Sei que o fará, governador.

- O meu nome - declarou o governador - é Bent. Não volte a usar mais o título. - Arranjou tempo para brindar Beth com um rápido sorriso. Depois, para Grover Frazee, que não se mexera: - Onde está o comandante dos bombeiros? E Bob Ramsay? Você disse que havia um telefone. Indique-me onde é.

Lá seguiram atravessando a larga sala onde já não reinava o silêncio, zumbindo as conversas por todos os lados, Beth pelo braço do governador, Grover Frazee abrindo o desfile. Uma voz perguntou:

- Que se passa, governador? Poderá dizer-nos? E produziu-se um súbito silêncio nas imediações.

O governador parou e elevou a voz.

- Ainda não sabemos. Mas havemos de descobrir e, quando isso acontecer, serão informados. É uma promessa. - De novo o sorriso familiar. - Não é uma promessa de campanha eleitoral - acrescentou. Colheu um pequeno murmúrio divertido. Seguiram o seu caminho, atrás de Frazee.

Era um agradável gabinete, entestando com o núcleo central do prédio, agora fracamente iluminado por duas velas. O mayor estava à secretária, de auscultador no ouvido. Acenou com a cabeça para o governador e disse para o bocal:

- Então chame-o. Quero um relatório do 2.º comandante Brown em pessoa, está bem entendido? - Desligou.

Frazee perguntou:

- Que fazemos? Evacuamos a sala? - Dirigia-se ao mayor e ao 1.º comandante, que se postava, grande e sólido, atrás da cadeira da secretária.

- Ouviu o que ele disse - ripostou o governador. Antes de fazermos seja o que for vamos descobrir em que ponto estamos, como a coisa se apresenta lá de fora. Sabemos que há um incêndio...

- Não foi o incêndio que sacudiu o edifício - atalhou o comandante dos bombeiros. Havia truculência na sua voz. - A não ser que tenha havido por aí uma explosão qualquer. Teríamos nova complicação e quero saber do que se trata antes de deixar alguém ir seja lá para onde for.

- Ninguém está a discutir isso - disse o governador. - Mas há certas coisas que podemos fazer aqui em cima enquanto esperamos. Os elevadores funcionam? Devia haver geradores de emergência, não é verdade?

- Claro que devia haver - disse o comandante dos bombeiros-, mas não vi nenhuma indicação disso.

- A sua truculência esmorecera. Observava o governador e esperava.

- Escadas - disse o governador. - Há escadas de incêndio, não há?

- Duas séries - confirmou o comandante dos bombeiros meneando a cabeça.

- Muito bem - disse o governador. - Grover, mande o Ben Caldwell examinar os elevadores. Você examina as escadas. Oh, sim, e esses criados que voltem a servir bebidas. Não queremos um molho de bêbados, mas também não queremos pânico. Despache-se, homem, e volte aqui antes de contar seja a quem for o que se passa. - Fez uma pausa e baixou os olhos para o mayor. Estamos na sua cidade, Bob. Algumas objecções?

O mayor teve um ligeiro sorriso:

- Você parece que assumiu o comando. Continue. Se o governador sentiu a pressão orgulhosa da mão

de Beth no seu braço, não deu sinal disso.

- Provavelmente não há motivo para preocupações - disse -, mas, seja como for, joguemos pelo seguro.

O senador Peters entrou, acenou com a cabeça para a sala em geral e encostou-se à parede.

- Houve o caso daquele jovem assaltante de bancos

- disse sem qualquer preâmbulo na sua voz normal de sotaque rude. - Era o seu primeiro trabalho e ele estava muito tenso. Tinha a máscara posta a precipitou-se para dentro do banco agitando a arma. "Pronto, seus maricás", disse, "considerem-se f."

Aquilo aliviou parcialmente a tensão reinante. O governador olhou para Beth. Ela sorria da crueza do termo.

- É o nosso Jake - disse o governador. - Mas também é capaz de citar metros de Shakespeare. Altera o repertório adequando-o a cada situação. - Fez uma pausa. - Você está a receber um curso intensivo de política atrás dos bastidores e das discursatas, não é? - Também ele sorria. - Desiludida?

- Não. - Meneou lentamente a cabeça para dar ênfase à negativa. - Vocês são os responsáveis. Estou satisfeita.

- Senhora... -principiou o comandante dos bombeiros, e calou-se ao súbito retinir do telefone.

O major levantou o auscultador, pronunciou o seu nome, esteve um segundo a ouvir.

- Muito bem, Brown-disse. -O comandante vai atendê-lo. Comunique-lhe o relatório. - Fez uma pausa. - Todo o relatório, sem amenizar nada, está compreendido? - Passou o telefone ao comandante dos bombeiros.

O senador comentou:

- Quando uma pessoa está ao telefone e só se pode ouvir o seu lado da conversa... -Abanou a cabeça. - Nunca sei se devo olhar para ela ou olhar para fora da janela. - Depois, sem mudar de tom: - Que bela festinha vocês nos estão a proporcionar, Bent! - Recordava-se do vago pressentimento que sentira antes de partir de Washington.

- No caso de estar a pensar nisso - disse o governador - a festa não tinha sido planeada para ser assim.

- Compreendo-declarou o senador-, como faltaram as criadinhas nuas da cintura para cima, vocês tiveram de improvisar qualquer coisa, hem?

Ben Caldwell entrou na sala. Olhou para o comandante dos bombeiros ao telefone, relanceou uma olhadela pelos outros e meneou a cabeça num movimento inexpressivo. Conservou-se calado.

O governador perguntou:

- Onde está o Bert McGraw? Devia estar aqui. - McGraw - explicou o mayor - teve um ataque cardíaco. É tudo o que sei.

O governador cerrou os olhos por um segundo. Quando voltou a abri-los, murmurou:

- Sempre tinha pensado nele como um homem indestrutível.

- Nenhum de nós está a rejuvenescer, Bent - disse o senador. -Haja bastante tempo que deixei de pensar que era imortal. - Calou-se quando o comandante dos bombeiros cobriu com a concha da mão o bocal do telefone e pigarreou.

- O Brown diz - anunciou o comandante - que o fogo à superfície nos andares inferiores é grave, mas o comandante do batalhão de sapadores pensa que poderá dominá-lo. Convocou mais unidades, mandou vir mais equipamento e mais pessoal.

Fez-se silêncio. A mão de Beth crispou-se no braço do governador, que lha cobriu com a sua.

- Mas o verdadeiro problema - prosseguiu o comandante dos bombeiros - é nas caves onde se encontra o equipamento mecânico. Tanto quanto podem calcular... e um dos seus homens encontra-se lá, Sr. Caldwell...

- Espero que seja o Nat Wilson - disse Ben Caldwell.

- Sim - confirmou o comandante dos bombeiros-, ele e Will Giddings, fiscal das obras, estão ambos lá em baixo. Tanto quanto podem calcular, como ia dizendo, um maníaco qualquer penetrou no edifício dizendo que era um electricista chamado para uma pequena reparação. Encontraram-no na sala do transformador principal completamente frito. Contudo conseguiu produzir um curto-circuito geral, tanto quanto eles podem calcular, mas o fumo é tão espesso que não podem saber ao certo o que aconteceu, excepto que não há nenhuma energia.

Ben Caldwell perguntou:

- E os geradores de emergência?

O comandante dos bombeiros ergueu os ombros maciços e deixou-os cair de novo.

- Não há nenhuma energia - disse-, é tudo quanto sei.

Ben Caldwell moveu a cabeça num gesto de compreensão. Não tinha perdido nada da sua precisão ou da sua calma.

- Os elevadores não funcionam - disse. - Estive em todos. Há as escadas, naturalmente, e se o fogo nos andares inferiores for dominado, como certamente será, então as escadas serão perfeitamente seguras. As portas de incêndio fizeram-se precisamente com esse fim. A minha sugestão é que comecemos a mandar toda a gente descer as escadas, metade por um lado, metade pelo outro.

O governador fez que sim.

- com ordens de marcha - disse - e com uma dúzia de homens em cada escadaria para fazê-las cumprir. Sem correrias. Sem pânico. É uma longa caminhada até lá a baixo e alguns não serão capazes de percorrê-la pelos seus próprios meios e terão de ser ajudados. - Olhou em volta da sala. - É uma forma ridícula de resolver o problema da evacuação do prédio, estou de acordo, mas terá alguém uma sugestão melhor? - Apertou suavemente a mão de Beth.

Grover Frazee entrou na sala e parou. Vinha a suar.

- As portas para as escadas - principiou a dizer, mas a voz faltou-lhe. -As portas para as escadas... estão trancadas.

O comandante dos bombeiros disse:

- Não podem estar. Você enganou-se. Não há processo... - Meneou a cabeça, levantou o telefone e falou para o bocal. - Fiquem junto do telefone. - Temos de ir verificar umas coisas. - Desligou.

- Bem-disse o governador para Caldwell-, vá você ver com o comandante. - Olhou para Frazee. - E você sente-se e acalme-se, Grover. - Olhou para Beth e apertou-lhe a mão: - Lamento tudo isto, minha querida.

- Num certo sentido - respondeu Beth-, eu não lamento. Não creio que noutras circunstâncias tivesse tido a oportunidade de encontrá-lo.

- A dama vê o lado melhor da vida - disse o senador. - Tem o meu aplauso.

O prédio estava em tormentos, gravemente ferido. Durante algum tempo, talvez minutos, talvez horas, muitos dos seus ferimentos mais graves não seriam visíveis, apenas discerníveis, como num diagnóstico, por pura dedução.

Tinha havido uma explosão: isso pelo menos era óbvio. Muito mais tarde os peritos em bombas haviam de apurar o dano estrutural no transformador principal e calcular a potência do explosivo que Connors tinha transportado na sua caixa de ferramentas.

O plástico explosivo transporta-se com segurança: é uma massa cinzento-acastanhada que pode ser deixada cair ou moldada ou de qualquer outro modo manipulada sem protesto. Explode mediante uma sonda introduzida no seu corpo e uma pequena corrente eléctrica enviada à sonda por um fio. A sua força explosiva é quase inacreditável.

Os principais transformadores tinham ficado gravemente danificados, e embora o fogo que principiou depois da explosão tivesse destruído ou deformado muito do material que poderia ter sido estudado mais tarde, os computadores de Joe Lewis, trabalhando num certo sentido retrospectivamente a partir de resultados conhecidos, efectuaram um trabalho digno de elogio na reconstrução da causa provável:

Tinha havido um curto-circuito maciço na corrente primária, indubitavelmente causado pela explosão. Nenhuma outra explicação condizia com os factos.

O resultante aumento súbito e descontrolado de energia projectou-se para além dos cabos grossos como a perna de um homem concebidos para transportar a voltagem em segurança através dos transformadores avariados e, sem redução, penetrou nos fios concebidos para transmitir apenas as voltagens necessárias para acender lâmpadas fluorescentes ou fazer funcionar máquinas de escrever eléctricas.

O súbito aumento de tensão descontrolada durou apenas uma questão de microssegundos. Esse tempo infinitesimal foi suficiente.

O resultado, como temia o comandante do batalhão de sapadores-bombeiros, foi imediato e catastrófico.

O fio fundiu-se e, ao fundir-se, esteirou com o isolamento.

Em poucos instantes produziram-se novos curtos-circuitos que, agindo como maçaricos, projectaram o enorme calor de uma descarga eléctrica contra o material de parede, à prova de som, isolador - tudo resistente ao calor mas não totalmente à prova de incêndio.

Ao fim e ao cabo, nada é incombustível. Muito menos que o supremo calor do corpo solar chega para incinerar a maior parte das substâncias. São testemunhas disso Hiroxima, Nagasaqui ou Hamburgo.

Assim, dentro das paredes interiores do edifício, as chamas começaram a rastejar.

Algumas haviam de apagar-se por falta de oxigênio, deixando apenas como legado alguns pontos sobreaquecidos.

Outras, porém, penetrariam nas condutas, ou irromperiam nos espaços abertos dos corredores ou dos poços de comunicação vertical; aí, depois de respirarem o ar fresco em profundos haustos, concentravam força e furor e avançavam a rugir, consumindo tinta, madeiras, cortinados, tapetes, materiais de soalho fáceis de consumir, mas também materiais geralmente considerados resistentes ao fogo.

Os extintores de tecto, com os seus fios de fusível rapidamente fundidos, funcionavam e por algum tempo detiveram o progresso das chamas.

Mas o excesso de calor gera vapor nos canos de água, que mais cedo ou mais tarde rebentam, e então acabam-se os extintores.

Os focos seriam reduzidos aqui, reduzidos ali; as escaramuças, até as batalhas contra o inimigo múltiplo seriam vencidas.

Mas desde o princípio, como os computadores de Joe Lewis haviam de mostrar, o desfecho da guerra nunca esteve em dúvida.

16, 10h-16, 31h

Patty McGraw Simmons sempre detestara hospitais, e isso acontecia, admitia para consigo, provavelmente porque os hospitais embaraçavam-na e metiam-lhe medo. Era uma mulher saudável e o que sentia sempre que se encontrava num hospital era uma espécie de remorso causado pelo seu manifesto bem-estar. Era como se os olhos silenciosos que a viam caminhar ao longo do corredor lhe dissessem: "Não tens direito de estar aqui quando eu sofro. Vai-te embora."

Mas ela não se podia ir embora desta vez, e isso, de certo modo, piorava as coisas. Bert McGraw encontrava-se naquilo que no Hospital Universitário se chama a Unidade de Cuidados Goronários, uma sala vista apenas quando a porta abria ocasionalmente, uma sala cheia de mostradores e do que pareciam ser uns armariozinhos reluzentes cuja serventia Patty apenas podia tentar adivinhar; e a cama em que o pai jazia lembrava algum antigo estrado de tortura com tubos e fios que saíam dela e dele.

Oh, as outras pessoas também têm ataques de coração. É uma coisa que se lê todos os dias. Mas não Bert McGraw, homem e pai indestrutível. Claro que esse conceito era ridículo; era o velho exagero irlandês. E, contudo, mais do que qualquer outro homem, ele causava uma impressão de indestrutibilidade.

As primeiras recordações que tinha eram de um pai grande e barulhento, estrondeando gargalhadas e tratando Patty, como sua mãe dizia, "Mais como uma ursinha, Bert McGraw, do que como uma menina pequenina.

Acabas por lhe quebrar todos os ossos do corpo, com essas tuas brincadeiras brutas."

E a própria Patty guinchava um desmentido a apoiar os "Disparates" de Bert.

- Não quero fazer dela uma boneca embrulhada em algodão em rama. Ela gosta disto - dizia ele.

Não se tratava da usual história do pai que na falta de um filho varão quer transformar a filha numa maria-rapaz. Uma vez Patty perguntara-lhe se ele não teria gostado mais de ter tido um rapaz. A sua resposta, como todas as suas respostas, fora dada sem hesitação, com sinceridade:

- Não, caramba. Se eu tivesse um rapaz, se tivesse um rapaz não te teria tido a ti, e isso ter-me-ia transformado num velho solitário, podes ter a certeza.

A porta da Unidade de Cuidados Coronários abriu-se e uma enfermeira saiu. Patty teve uma breve visão antes da e porta se fechar de novo silenciosamente. Um velho solitário - a frase voltava-lhe à mente, sem que ela pudesse dizer como ou porquê. Um velho orgulhoso e solitário, jazendo impotente numa cama branca. i "Quando somos novos - pensava Patty - eles trabalham para nós. Levantam-nos do chão, escovam-nos, beijam-nos o dói-dói; encontram-se sempre onde são precisos e uma pessoa conta com eles como certos. Depois chegas-lhe a vez de se tornarem impotentes, e que podemos fazer senão ficar sentados à espera, lamentando não podermos acreditar numa oração, porque um bocadinho de fé ajuda muito em certas ocasiões?

Mary McGraw, finalmente localizada no meio das suas obras de caridade no Queens, aproximava-se num passo rápido, ofegante, ao longo do corredor. Patty levantou-se e, pegando nas mãos da mãe, beijou-a.

- Não há nada a dizer - murmurou Patty. - Ele está ali dentro. - Apontou com a cabeça para a porta fechada. - Ninguém o pode ver. O médico é um grande especialista de coração que não me diz nada, talvez porque não haja nada que dizer. Sente-se.

Mary McGraw disse:

- Ele queixava-se ultimamente de dificuldades de respiração. Eu disse-lhe que ele tinha demasiado peso, trabalhava de mais. Talvez...

- Já chega - atalhou Patty. - Daqui a pouco começará a dizer que foi tudo por sua culpa, o que não é verdade. - "Talvez fosse, pelo menos em parte, por culpa minha", pensou, "por descarregar sobre ele o peso dos meus problemas à hora do almoço." E então ocorreu-lhe um novo pensamento: - O Paul estava com ele quando isto aconteceu. - E onde se encontrava agora o Paul? Mary McGraw pareceu satisfeita.

- Ainda bem que o Paul estava com ele - disse. É um rapaz tão decente, o teu Paul! Ele e o teu pai dão-se muito bem.

De que servia desiludi-la? Patty conservou-se calada. A mãe prosseguiu:

- Teu pai receou sempre que te casasses com um grosseirão qualquer... como ele próprio, era o que sempre acrescentava, o que não é verdade, como ele muito bem sabia. Depois, quando levaste o Paul lá a casa, eu e teu pai passámos metade da noite acordados, a falar dele e a imaginar se seria o que te convinha. Recordas-te do casamento? Claro que te recordas. Toda aquela gente fina do lado do Paul, tu pelo braço de teu pai...

- Mãe - atalhou Patty, num tom quase ríspido-, o papá não está morto. Outros homens tiveram ataques de coração e sobreviveram. Tu... tu tens estado sempre a falar como se ele ja tivesse morrido, e não morreu.

Mary McGraw manteve-se calada.

- O que temos - prosseguiu Patty - é de providenciar para que ele não trabalhe tanto, para que não ande com uma carga tão grande em cima dos ombros.

Mary McGraw sorriu.

- Talvez o Paul possa ajudar. Ele é jovem e forte, e tem-se governado muito bem, diz teu pai.

Resposta automática:

- Sim.

- Só espero - disse Mary McGraw - que teu pai não ouça falar nas complicações que estão a ter com a inauguração da Torre Mundial. Ele devia lá ter ido, e queria que eu fosse, mas eu respondi que não, todas essas pessoas importantes, o governador, senadores, congressistas, o mayor e gente assim, deixam-me enervada. Mas não a teu pai. Não lhe causam nenhuma impressão. Ele...

- Mãe - atalhou Patty, e o seu tom era de novo imperativo -, a que complicações te referes?

- Transmitiu a televisão. Ouvi falar disso na TV quando passei lá em baixo no átrio.

- Estivemos a tarde toda a tentar encontrar-te. - Deixara de ser importante agora. - Que espécie de complicações?

- Há fumo. Um incêndio. Ninguém parece saber do que se trata. - Mary conservou-se calada por um momento. E depois, de súbito: - Bert! Bert! Por favor!

- exclamou numa voz doce, instante.

- Ele vai ficar bem, mama.

- Claro que vai. - Havia nela uma força tranqüila que se revelava agora pela primeira vez. Mary sacudiu a cabeça como para desanuviá-la, compôs uma madeixa caída. -Já aqui estás há muito tempo, filha.

- Não faz mal.

- O que custa mais é esperar. - Mary sorriu ligeiramente. - É uma coisa que se aprende. - Fez uma pausa. - Eu fico com ele agora.

- Mas não podes vê-lo.

- Ele saberá que estou aqui. Tu podes ir. Toma uma chávena de chá, dá um passeio a pé. Volta quando tiveres descansado um pouco. Eu estarei cá.

- Mãe...

- A sério - disse Mary McGraw. - Prefiro ficar aqui um pouco sozinha. Rezarei umas orações por nós dois. - A sua voz era agora mais forte. - Vai. Deixa-me com teu pai. - Era um despedimento.

Lá fora na grata luz do sol claro, longe do lugar da... sim, pensa-o, di-lo... do lugar da morte. "Para ti não, papá, por favor, por favor. Oh, terá de acontecer um dia, mas nós não pensamos nisso: fazemos de conta que a Morte, essa sombra negra, se manterá oculta indefinidamente, embora saibamos que assim não sucederá."

Para onde vai passear uma pessoa numa ocasião destas? Para o parque, esverdeado, árvores em flor? Onde o papá costumava levá-la nas excursões dominicais a Manhattan para ver os macacos dar cabriolas e os leões a refocilar na sua cova; para comer pipocas, uma barri gada de pipocas, e um sorvete de vez em quando? Não, para o parque não.

Patty desatou a caminhar, e mais tarde não se recordaria do caminho ou da direcção seguida, mas uma espécie qualquer de compulsão devia guiá-la porque de repente deparou-se-lhe a rutilante Torre Mundial que ela tantas vezes visitara ao longo dos anos da sua construção. Mas estava agora estropiada, um gigante indefeso, como o seu construtor Bert McGraw; com uma rebarbativa coluna de fumo a sair nas proximidades da cúpula, e as mangueiras que se espalhavam na praça como as tubagens que saíam da cama de Bert McGraw, penetrando sinuosamente no átrio através das portas abertas e desaparecendo lá dentro na densa fumarada.

Havia barricadas de polícia e pessoas boquiabertas e de olhos esgazeados como vampiros, espectadores de uma execução pública sedentos de mais sangue, de mais terror. Santo Deus! Patty perguntou para consigo se não iria desmaiar.

- Sente-se bem, miss? - Era um polícia com uma face negra, solícita. Atrás dele outro polícia franzia a testa, preocupado.

- Estou bem - disse Patty. - É apenas - apontou vagamente para o prédio torturado - isto...

- Sim, minha senhora - proferiu o polícia preto -, uma coisa triste. - Fez uma pausa e examinou-a mais atentamente. - Procura alguém?

- Não sei quem está aí. - Patty tinha consciência de que as suas palavras não faziam muito sentido e tentava pôr ordem na confusão. - Meu pai devia estar lá, na Sala da Torre.

- Quem é o seu pai, minha senhora?

- Bert McGraw. Foi ele que construiu o prédio.

O rosto do grande polícia irlandês abriu-se inesperadamente num sorriso.

- Um homem notável, miss.

- Está agora no hospital com um ataque de coração.

- Era um diálogo da Alice no País das Maravilhas: cada termo parecia mais absurdo e menos coerente que o anterior. - Quero dizer...

- E a senhora está no seu lugar - concluiu o polícia irlandês e meneou a cabeça compreensivamente. - Estás a ver como é, Frank. - O sorriso desaparecera-lhe da face, varrido por uma súbita solenidade. - O prédio que ele construiu está em perigo e a senhora veio em seu lugar para prestar-lhe ajuda. - Tornou a menear a cabeça. - Conhece os outros dois que se encontram aqui? Um homenzarrão chamado... - Shannon olhou para Barnes.

- Giddings - disse Barnes. - E um arquitecto chamado Wilson.

- Conheço - declarou Patty. - Mas devem estar muito ocupados. Eles...

- Eu levo-a junto deles - disse Shannon. Pegou-lhe no braço com uma mão tão grande como a de Bert McGraw, transpôs com ela a barreira e conduziu-a através da praça por entre outros polícias e bombeiros, saltando por cima das mangueiras e evitando os charcos.

Era um escritório ambulante de estaleiro de obras num atrelado, não longe da subestação. Lá dentro havia mesas de desenho e armários de arquivo, algumas cadeiras, telefones, e o cheiro de homem que Patty conhecera nos estaleiros de obras desde os primeiros alvores da memória, um cheiro que tinha neste momento qualquer coisa de reconfortante.

Shannon anunciou:

- Miss McGraw está aqui... -Não avançou mais.

- Entra, Patty - disse Nat. Pegou-lhe na mão.

- Ouvimos dizer o que aconteceu ao Bert. Sinto muito. Giddings interveio:

- Ele há-de vencer a crise. Sempre venceu.

- E depois: - Essas malditas portas não podem estar trancadas. Não podem.

O 2.º comandante Brown e três bombeiros uniformizados encontravam-se ali, a observar, a escutar. Nat disse:

- Não sabemos. Não podem ser abertas de dentro. Ben Caldwell verificou o facto. - Fez uma pausa e olhou para Brown. - As portas são à prova de avaria. Por razões de segurança em circunstâncias normais são trancadas por electromagnetos do lado da escada. Numa emergência, e Deus sabe que isto é uma emergência, ou em caso de faltar a electricidade, destrancam-se automaticamente.

- É o que aqui diz em bonita letra de forma - acrescentou Giddings. - Mas qualquer coisa correu mal porque em princípio não deviam ser trancadas por dentro e foram. A não ser - meneou a cabeça quase selvaticamente - que estejam bloqueadas em vez de trancadas.

- Nesse caso - disse Nat - mandamos um homem por cada lanço de escadas...

- Cento e vinte e cinco andares - obemperou Giddings - a pé?

- Nas montanhas - retorquiu Nat - uma pessoa sobe trezentos metros por hora, mais ou menos, num carreiro. Aqui é mais difícil porque é quase sempre a subir. Digamos uma hora e três quartos, duas horas. Mas que outra coisa se pode fazer? - Aguardou uma resposta que não veio. Dirigiu-se a Brown: - Tem alguns andarilhos? Dê-lhes machados e walkie-talkies e mande-os começar a ascensão. - Apontou para o telefone à mão de Brown. - Diga-lhes que eles vão a caminho.

- É provavelmente o equipamento de rádio e televisão para o mastro - disse Giddings. - Empilhado contra as portas de incêndio. Eu avisei-os contra isso, mas não me deram ouvidos. Alguns desses caixotes pesam como um raio.

- Então - alvitrou um dos bombeiros uniformizados - dão-se-lhes alavancas em vez de machados.

- E digam-lhes - recomendou Nat - que caminhem devagar e num passo regular, preparando-se desde o princípio para uma longa ascensão. - Pareceu tomar de novo consciência da presença de Patty: - Tens visto o Paul?

- Não o vejo desde esta manhã. - Fez uma pausa: Precisas dele?

- Precisamos de umas informações.

(Ao telefone, ao ser informado daquilo que acontecera ao equipamento mecânico e eléctrico na subcave, Joe Lewis exclamara:

- Jesus! Foi-se tudo à viola?

- Não há nenhuma energia - dissera Nat. - Há dois homens mortos lá em baixo, um deles, o que resta dele, reduzido a torresmos, dizem os bombeiros.

- ele esteve a brincar com a corrente primária não admira que ficasse frito. -Joe fizera uma pausa. - Você está preocupado com fogos latentes nos circuitos da aparelhagem eléctrica, não está? Não lhe posso dizer nada de repente. De acordo com os projectos que fizemos o aumento de tensão na corrente não podia passar para lá. Há disjuntores, ligações à terra, uma data de factores de segurança. De acordo com os nossos projectos. Mas se algumas dessas alterações foram efectivamente levadas a cabo, então não garanto nada. Que diz o Simmons? Ele é quem deve saber.)

Encontrar Simmons.

- Não o vi - disse Patty. - Lamento. Ele esteve com Bert depois do almoço. Achava-se com ele quando ele teve o ataque. Mas não sei onde se encontra agora. Fez uma pausa. - A não ser... - Calou-se.

- A não ser o quê, Patty?

Patty olhou em volta do escritório. Toda a gente tinha os olhos postos nela e tudo o que ela pôde fazer foi menear a cabeça.

- Vem cá - disse Nat, e pegando-lhe num braço levou-a para um canto afastado. Falou em voz baixa: A não ser o quê? Onde pode ele estar?

- Não vais gostar de saber. - Os olhos dela mantinham-se firmes na face de Nat. - Lamento.

- Não gosto de saber nada disto - ripostou Nat. Não gosto de saber que há um cento de pessoas fechadas lá em cima na torre sem maneira de sair de lá, e não gosto de saber que pode haver uma centena de fogos de que não temos ainda conhecimento, talvez um milhar, prestes a irromper das paredes... -Fez um esforço para se dominar. - Patty, se tu sabes onde ele está, ou simplesmente pode estar, então é preciso que me digas porque necessito de saber em que situação nos encontramos.

- O papá devia saber. Nat não disse nada.

- Mas mesmo que soubesse - prosseguiu Patty não pode dizer-nos, pois não? Não estou... a pensar muito bem. Desculpa. - Respirou fundo. - Talvez a Zib saiba onde ele está.

Nat não fez qualquer gesto, mas a mudança que se operara nele era patente, e profunda.

- Isso significa aquilo que eu penso que significa?

- A sua voz estava calma.

- Lamento, Nat.

- Deixa-te de lamentações e responde ao que te perguntei.

O queixo de Patty aprumou-se.

- Significa - disse Patty - que o meu Paul e a tua Zib andam, como se costumava dizer, metidos um com o outro. Penso que hoje nem é assim que se diz. A coisa tem provavelmente outro nome agora. Há nomes novos para tudo. Lamento. Por ti. Por mim. Por tudo. Mas o essencial é isto, é possível que a Zib saiba onde se encontra o Paul. Eu não sei.

Nat dirigiu-se para o telefone mais próximo. Levantou-o e marcou o número com mão firme. A sua face não exprimia nada. Para a telefonista da revista disse:

- Zib Wilson, por favor - e não havia nada de anormal na sua voz.

- Diz-me quem fala?

- O marido. - Teria havido uma certa ênfase de cólera no tom da sua voz? Pouco importava.

E não tardou a surgir a voz de Zib, cantante, cristalina, uma voz fresca de garota universitária:

- Ah, querido. Que se passa? Ou estou a fazer uma pergunta libertina?

- Sabes onde se encontra o Paul Simmons? Houve uma ligeiríssima hesitação.

- Porque havia eu de saber onde se encontra o Paul, querido?

- Não interessam neste momento os porquês - disse Nat. - Sabes? Preciso dele. Muito.

- Para quê?

Nat respirou fundo e dominou o gênio.

- Temos incêndios na Torre Mundial. Bert McGraw está no hospital com um ataque cardíaco. Temos um cento de pessoas encurraladas no centésimo-vigésimo-quinto andar, na Sala da Torre. E preciso de informações que só o Paul pode prestar.

- Querido - a voz de Zib era a voz cheia de paciência de uma professora de jardim de infância explicando uma coisa a uma criança atrasada-, porque não perguntas à Patty? Ela...

- A Patty está aqui ao meu lado. Disse-me que te perguntasse a ti.

Houve uma pausa.

- Percebo - disse Zib, e foi tudo. O temperamento explodiu.

- vou perguntar-te mais uma vez - disse Nat. - Onde está esse filho da p... Se não sabes onde está, descobre-o. E trá-lo cá. A toda a velocidade. Está entendido?

- Nunca me falaste nesse tom.

- Foi um erro. Provavelmente o que eu devia era ter-te dado umas boas sapatadas nesse teu aristocrático cu. Trata de descobri-lo e de trazê-lo cá.

- Eu... vou fazer o possível.

- Isso não chega - disse Nat. - Encontra-o. Trá-lo cá. Ponto final. - Desligou e ficou de olhos fitos na parede.

Giddings e Brown entreolhavam-se e não diziam nada. O uialkkie-talkie que um dos bombeiros uniformizados empunhava despertou.

- Chefe?

O chefe Jameson ergueu o walkie-talkie.

- O próprio.

- Walters. O primeiro fogo começou no quarto andar. Está quase dominado.

- Excelente - disse Jameson. - Excelente. - Sorria.

- Não tão excelente como isso - retorquiu Walters. - Temos uma dúzia de focos. Mais. Por cima de nós, por baixo de nós. - Ouviu-se uma tosse espasmódica. - Tem de ser dos fios. O que quer que foi que estoirou na subcave enviou uma sacudidela dos diabos através de todo o edifício.

Fez-se silêncio. Os olhos de Nat despregaram-se da parede. Olharam para Giddings.

- Agora sabemos - disse lentamente. - Doravante não precisamos de nos deitar a adivinhar.

Giddings meneou a cabeça com esforço, como se tivesse um jeito no pescoço.

- Resta-nos rezar - disse.

16.39h - 16.43h

No gabinete da Sala da Torre o comandante dos bombeiros atendeu o telefone e meneou a cabeça.

- Conserve-se em contacto - disse, e desligou. O seu olhar percorreu os circunstantes. - Estão a mandar homens pelas escadas. - A sua voz era inexpressiva.

O governador perguntou:

- Quanto tempo leva a subir cento e vinte e cinco andares? - Esperou, mas ninguém respondeu. O governador meneou a cabeça. - Muito bem, então acho que devemos tentar também fazer alguma coisa. - Conservou-se calado um momento, ponderando o problema.

- Ben, você e o comandante mobilizem três ou quatro desses criados. Há entre eles alguns bastante fortes. Comecem a trabalhar numa dessas portas. - Fez uma pausa e olhou para o comandante. - Se conseguirmos abrir uma dessas portas poderemos sair, não é verdade? Temos uma escada protegida daqui até ao solo?

O comandante hesitou. O mayor ordenou:

- Fale, homem. Responda à pergunta.

- Em princípio devíamos poder sair - disse o comandante. O seu tom era relutante.

- Sejamos claros - insistiu o governador. - Você está a arrastar os pés. Porquê?

Beth Shirley mantinha-se imóvel, a observar, a ouvir. A cada momento, pensava, o governador crescia em estatura, reduzindo a anões os outros homens presentes na sala. Bem, não inteiramente. O senador Peters com as suas maneiras ora rudes, ora eruditas e compreensivas, agüentava bem o confronto. Era um truísmo, evidentemente, que numa crise se evidenciavam claramente as qualidades de um homem, ou as de uma mulher, claro; mas ela nunca imaginara antes até que ponto podia ser dramática a demonstração desse facto.

O comandante hesitava ainda, e por fim lançou um olhar para Beth.

- A senhora... - principiou.

A mão do governador apertou a mão de Beth com mais força.

- A senhora - disse - encontra-se tão interessada neste nosso transe como qualquer de nós. Você ainda não o disse, mas a inferência é clara. As escadas não são o refúgio que supúnhamos que fossem. Porquê?

- Os homens nas escadas transportam walkie-talkies

- disse o comandante. - Informam que começaram a encontrar fumo.

No gabinete o silêncio foi total.

- Isso significa o quê? - Voltara-se para Ben Caldwell.

- Não poderei responder sem ter mais informações

- disse Caldwell. Esteve a observar por um momento o comandante dos bombeiros. - O que foi que você omitiu?

O comandante respirou fundo.

- O primeiro foco foi dominado. Só por si não teria grande importância. Mas o que aconteceu lá em baixo na sala do transformador principal causou a morte de dois homens e parece que originou incêndios - abriu ambas as mãos - através de toda a estrutura.

Grover Frazee agitou a cabeça num desmentido.

- Um edifício moderno à prova de incêndio... isso é ridículo. Como podia ser? Você ouviu mal. - Olhou para Caldwell. - Tenho ou não tenho razão, Ben? Diga-lhe.

Caldwell disse:

- À prova de fogo, não. Resistente ao fogo, sim. Agora, tenha calma, Grover. Tentemos descobrir em que situação nos encontramos. - Apontou para o comandante dos bombeiros. - Volte a chamá-los. Quero falar com Nat Wilson.

Frazee disse:

- Aí tem. Aí tem a sua prova. O telefone funciona, portanto não podemos estar sem electricidade. Não vêem isso? - Olhou em volta para todos os presentes.

Caldwell replicou num tom quase enfadado:

- Os telefones têm a sua própria fonte de energia. Não há qualquer relação. - Aceitou o telefone do comandante. - Nat? - disse, e carregou no botão do altifalante.

- Sim, senhor, sou eu. - A voz de Nat ecoou em tom cavo no gabinete. - vou dar-lhe um apanhado da situação. O incêndio no quarto andar está agora dominado. O que aconteceu lá em baixo na subcave ainda não está esclarecido, e talvez não tenha restado o suficiente para nos permitir chegar algum dia a saber, mas fosse o que fosse conseguiu provocar um curto-circuito na corrente primária e pensamos, Joe Lewis, Giddings e eu, que o curto-circuito provocou uma subida de tensão em todo o prédio, sobreaquecendo os fios que se incendiaram comunicando o fogo aos isolamentos e condutas. - Nat calou-se.

- Isso - perguntou Caldwell lentamente - pode explicar o fumo nas escadas?

- É o que pensamos. - Nat não notou que tinha esquecido o "senhor". - Os homens que seguem pelas escadas informam que em diversos lugares as paredes estão demasiado aquecidas para se lhes poder tocar. Acerca do que está a suceder dentro das portas de incêndio uma pessoa só pode fazer conjecturas. - Nat fez uma pausa. - Simplesmente não se trata de uma conjectura. É praticamente um raio de uma certeza. Quando o Simmons cá chegar talvez possamos saber um pouco mais.

Caldwell pensou um momento.

- Simmons - disse, e seguiu-se uma pequena pausa. Depois: -O Joe Lewis concorda que possa ter havido uma brusca subida de tensão?

- Sim. - Estavam a falar taquigraficamente, sendo as inferências óbvias.

- E você pensa que o Simmons... - Caldwell conteve-se. - Bert McGraw...

- Bert está no hospital com um ataque de coração

- disse Nat. Depois, intuitivamente: - Isso pode ter sido também causado pelo Simmons.

Caldwell deu tempo ao tempo.

- O problema aqui - declarou - é saber se devemos ou não tentar derrubar as portas de incêndio. Se...

- Estão a receber muito fumo pelas condutas de ar condicionado?

- Não demasiado.

- Então - opinou Nat - deixem as portas em paz. - A sua voz era firme, dominadora.

Outro, pensou Beth, embora nunca tivesse visto Nat, que numa emergência assume o comando. Ergueu os olhos para o governador e viu-o menear a cabeça cornpreensivamente.

Ben Caldwell hesitava.

A voz de Nat disse:

- Sabemos que há fumo nas escadas. Não há nada que o impeça de subir até ao vosso andar. Se neste momento estão mais ou menos livres de fumo, deixem ficar as coisas como estão. Conservem as portas fechadas.

- Acho que você tem razão - disse Caldwell.

- O Giddings - prosseguiu Nat - pensa que as portas podem estar bloqueadas pelo equipamento de rádio e TV que estava a ser transportado para a torre. Eles já o tinham feito antes, diz ele, e eu próprio o vi. Se assim for, as próprias escadas podem estar bloqueadas.

No rosto de Caldwell desenhou-se o seu sorrisinho duro.

- Condições que não se previram no projecto, Nat. Fez uma pausa. - Uma concatenação de erros. - Meneou a cabeça.

- Falámos com a tropa - disse Nat. - Verão uns helicópteros às voltas dentro de poucos minutos.

As sobrancelhas de Caldwell arquearam-se.

- Foi idéia sua?

- Foi o Brown que fez a chamada. Ele é o 2.º comandante dos bombeiros e dão-lhe ouvidos, ao passo que a mim não ligariam. - Nat fez uma pausa. - Para ser franco não sei o que eles poderão fazer, mas achei que seria uma boa idéia deitarem uma vista de olhos.

Caldwell sorriu de novo.

- Continue a pensar, Nat.

- E seria uma boa idéia manter esta linha desimpedida.

Caldwell meneou a cabeça.

- Concordo. Acho que por agora é tudo. - Voltou-se de novo para o auditório. - Comentários? - Dirigiu-se a toda a gente. - Perguntas?

- Apenas uma - disse o governador. - Como foi que tudo isto aconteceu?

TEMPO DE CONSTRUÇÃO

Para alguns desde o princípio era uma dessas coisas que fazem uma pessoa contorcer-se em sonhos e despertar coberta de suor. A simples grandeza da Torre Mundial era assustadora, mas era mais, muito mais do que isso. O edifício, à medida que ia tomando forma, parecia ir adquirindo uma personalidade própria, e essa personalidade era maligna.

Num dia de Outono, muito frio, uma rajada de vento fustigou o enorme espaço aberto onde ficaria a praça, pegou numa chapa ondulada e levantou-a como um rapazinho levanta do chão a tampa de uma latinha. Um trabalhador chamado Bowers viu-a vir pelo ar, tentou esquivar-se demasiado tarde, e ficou quase, mas não completamente, decapitado.

O pneu dianteiro de um camião parcialmente descarregado e perfeitamente imobilizado rebentou de súbito com força suficiente para desequilibrar a carga de canos desamarrada, sepultando três homens num emaranhado de fracturas sortidas.

Noutro dia frio de Outono principiou um incêndio numa cave, alastrou pela madeira empilhada e encurralou dois homens num túnel. Foram salvos vivos - ajusta.

Paul Simmons encontrava-se parado fora do edifício a falar com um dos contramestres, quando Pete Janowski pôs um pé em falso no 65.º andar. O efeito de Doppler acentuou os gritos do homem até que terminaram abruptamente com um impressionante baque que Paul, a menos de três metros de distância, nunca esqueceria. Tentou não olhar, descobriu que tinha de olhar, e vomitou imediatamente em cima dos pés.

Teria sido isso o princípio do fim?

- Essas coisas acontecem - dissera McGraw nessa noite ao jantar na pequena casa de Queens. Paul e Patty tinham ido lá jantar. - Não é que eu goste delas mais do que tu, mas a verdade é que acontecem.

- Parece-me - disse Paul - que acontecem em excesso, e é tudo. Estive dez dias à espera de transformadores. Encontrámo-los hoje. Sabe onde? A três mil milhas, em Los Angeles, não me pergunte porquê, e tão-pouco houve alguém que se incomodasse a perguntar o que é que estavam a fazer ali. - Os homens ociosos, porque todos os dias os transformadores eram prometidos; os custos de mão-de-obra a aumentar. - Encomendamos cabos. Entregam o calibre errado. Vamos verificar a instalação de um elevador e o motor não arranca ou as portas não abrem porque não foram convenientemente adaptadas às calhas. O meu principal entrançador de cabos teve um acidente em casa com a máquina eléctrica de cortar relva e ficou sem três dedos do pé.

- Dás a impressão de que a coisa te começa a afectar - observou McGraw. Os seus olhos não desfitavam a face de Paul.

Paul dominou-se.

- Começa - disse - e não começa. - O sorriso confiante de actor. - Mas terá de reconhecer que acontecem muitas coisas estranhas nesta obra.

- Reconheço-o, rapaz. Mas não deixarei que isso me moa o juízo.

- É quase - declarou Paul - como se estivéssemos em guerra com sabotadores em acção.

McGraw olhou-o de soslaio.

- Pensas que é isso?

- Não precisamente.

- Já aconteceu - disse McGraw. - Sei de casos. E nem sequer foi em tempo de guerra. - Meneou a cabeça. - Mas não desta vez. - Estudou Paul cuidadosamente. - Estás a tentar dizer-me alguma coisa?

Paul sacudiu a cabeça. Fez votos para que o seu sorriso parecesse confiante.

- Porque - prosseguiu McGraw -, se tens alguma coisa em mente, é agora, e não mais tarde, que deves deitá-la cá para fora.

- Nada que confessar - disse Paul. McGraw aguardou um momento.

- Tu fazes parte da família, rapaz, e os afins sempre tiveram significado para mim. Mas estamos num negócio, num negócio duro, e temos um contrato, tu e eu, e temos de manter-nos estritamente nos seus termos. Tu sabes isso.

- Nunca pensei de outro modo. - "Não pensaste, uma ova." Mas o sorriso de actor nunca falhava.

Patty sentira que havia complicações, mas não conseguia trazê-las à superfície. Voltavam de carro para casa uma noite depois de assistirem a um jantar em Westchester.

- Tu e o Carl Ross - disse Patty - parece que tivestes um pequeno problema. - As vozes exaltadas dos dois tinham dominado a reunião.

- O Carl - replicou Paul - é o tipo puro e não adulterado do cretino de Westchester.

De certo modo aquilo era divertido, pensou Patty, e tentou ignorar o profundo rancor que havia na voz do marido.

- Westchester puro - disse ela -, de Dês Moines, lowa.

- Toda a gente que cá está é de qualquer outro lugar. Isso não é novidade nenhuma. Ou de Dês Moines, como Carl, ou da Carolina do Sul, como Pete Granger, ou de qualquer montanha do Oeste como esse cowboy do Nat Wilson... -A voz de Paul calou-se e ele continuou a guiar em silêncio.

Patty disse:

- Que mal fez o Nat? Sempre pensei que fosse boa pessoa. O papá pensa o mesmo.

- Toda aquela malta do Ben Caldwell caminha sobre água. É uma das condições para apanharem o emprego.

Patty soltou uma risadinha. "Mantém a coisa num tom de brincadeira - disse para consigo -, mas esse tom hoje em dia é difícil de manter."

- E se molham as peúgas são despedidos, não é? E se dão uma topada numa ondazinha desgarrada?

Os pensamentos de Paul tinham já voltado para Carl Ross.

- Ele é um desses tipos do oh-a-propósito-ouvi-hoje-um-rumor... E os rumores são sempre malignos.

Pat inquiriu numa voz perplexa:

- Nat?

- Que vem o Nat fazer aqui? - A voz de Paul era áspera, defensiva.

"Oh, meu Deus - pensou Patty -, estamos já tão distanciados como isto? "

- Eu não percebi de quem estavas a falar. Ou de quê? Quem é que ouve rumores?

- O Carl Ross, raios o partam. O Nat não ouve rumores. Nunca. Tudo o que ele vê é o que tem debaixo do nariz, no papel, ou construído a partir de desenhos. Ele...

- Sempre pensei que gostasses dele - observou Patty. - E da Zib.

Houve um prolongado silêncio. O campo coberto pela noite corria para trás, um borrão nas trevas.

- As pessoas mudam - disse por fim Paul.

Era uma tentação assinalar que os lugares-comuns não tinham feito sempre parte do léxico de Paul. Patty dominou a tentação.

- Efectivamente mudam. - Fez uma pausa. - Foi o Nat que mudou? A Zib? - E depois, respondendo pelo menos a uma das suas perguntas: -Não estou completamente de acordo com a Libertação da Mulher que a Zib considera actualmente tão sagrada. Claro que ela tem busto para andar sem soutien, reconheço-Lhe isso. Mas lá por isso eu também tenho e não ando por aí com o peito a dar a dar.

- com a Zib não há novidade. - Uma afirmação peremptória que ficou a cintilar na penumbra.

Na mente de Patty houve primeiro quietude, depois dúvida, depois uma súbita e imediata convicção, quase um sentimento de déjà vu, uma impressão de já-vi-isto-antes-mas-apenas-em-pesadelos; e finalmente, auto-recriminação, acusação de cegueira, censura por não ter compreendido antes que já entrara nas fileiras das mulheres com maridos infiéis. "Oh, meu Deus! - pensava. Que... que tristeza!" Mas onde estava a dor profunda que devia sentir? "Virá mais tarde - pensou - quando me encontrar sozinha e tiver tempo de absorver a enormidade." Teve calma suficiente para dizer nessa altura:

- Então deve ter sido o Nat que mudou. - Sim. - Simplesmente isso.

- De que maneira?

- Não quero falar no assunto.

- Porque não, querido?

A má-disposição de toda a noite explodiu.

- Raios, porquê tanta pergunta? Se eu não gosto desse filho da p... desse cowboy, tenho de apresentar as razões que fundamentam a minha antipatia?

Ela também tinha o seu gênio.

- Que foi que lhe fizeste - perguntou - que te levou a antipatizar tanto com ele?

- E que significa isso? - Paul fez uma pausa. Trata-se de alguma subtileza psicológica da tua parte?

- As pessoas com quem tu mais antipatizas - disse Patty - são precisamente aquelas a quem fizeste qualquer patifaria.

- Uma das máximas de Bert, suponho eu.

- Duvido que o papá tenha feito alguma vez uma patifaria a outro homem. - O tom de Patty era razoável, mas a sua convicção não permitia equívocos. - Sei que deixou muitos homens estendidos na valeta. Que os venceu a beber, a trabalhar, a lutar e a pensar. Mas fez isso sempre lealmente, às claras. Nunca tramou nada nas costas de outro homem.

- Estás a dizer que eu o fiz? É isso que queres insinuar?

Patty não respondeu logo.

- Fizeste, querido? É isso que te irrita tanto?

Na semiobscuridade do automóvel a face de Paul era apenas uma mancha, onde não se distinguia qualquer expressão. Quando por fim voltou a falar, a sua voz estava mais calma.

- Como foi que nos metemos nisto? Eu tive uma chatice com o Gari Ross...

- Parece que hoje em dia as chatices surgem com facilidade.

- Está certo - disse Paul -, com efeito assim é. Ando enervado. Reconheço-o. Estou precisamente no meio do maior trabalho que jamais me apareceu, o maior trabalho deste gênero que jamais alguém teve... estás a compreender? Nunca houve um prédio como aquele que estamos a construir.

- Então é só isso? - inquiriu Patty. - Apenas o trabalho? -"Deixa as coisas assim", disse ela para consigo, e sabia que não acreditaria nisso nem mesmo que ele respondesse que era verdade.

Mas tudo o que Paul disse foi:

- A coisa entra-nos com os nervos. E é tudo.

- De que maneira?

- Eu já te disse que não queria falar do assunto. Tu disseste que não estás de acordo com a Libertação da Mulher da Zib. Muito bem, conserva-te tradicional. És tu quem governas a casa. Eu tratarei de ganhar para o lar. Tu disseste-me uma vez que me seguirias para onde quer que eu fosse. Pois bem, segue.

Os números não mentem. Oh, há piadas a respeito de mentirosos, de mentirosos indecentes, e de estatísticos. Mas quando os números eram os do próprio Paul, verificados num computador, não servia de nada discutir com eles. E o que os números que ele estava a contemplar demonstravam causava-lhe um sentimento afim da náusea no estômago e na mente.

Tinha calculado demasiado à justa na sua proposta original. O tempo estivera contra ele. As demoras nas entregas de material tinham lançado no caos todos os cálculos sobre os custos da mão-de-obra. Acidentes haviam atrasado o trabalho, e houvera uma incidência maior do que a habitual de obra rejeitada e que tivera assim de ser feita de novo. Ele, Paul Simmons, não era tão bom nesse negócio como chegara a considerar-se. O que tivera fora simplesmente um raio de uma pouca sorte! Deus estava contra ele. Raios, podia lançar mãos a um cento de razões (desculpas) e nenhuma delas adiantava nada.

Os factos olhavam-lhe para a cara e os factos eram que quando comparava o que lhe renderia o trabalho completo na Torre Mundial com o custo da obra até agora, se tornava evidente que no final não só não obteria lucro como não sairia financeiramente vivo.

Eram cinco horas. O seu gabinete parecia maior do que de costume, e muito silencioso. Os gabinetes exteriores deviam estar desertos a essa hora. Distantes sinais de tráfego chegavam até ele da rua, trinta andares mais abaixo. PENSA, diziam os anúncios da IBM. E num sítio qualquer vira um anúncio que dizia NÃO PENSES, BEBE. Porque lhe haviam de ocorrer esses disparates numa altura destas?

Empurrou a cadeira para trás, levantou-se e dirigiu-se para a janela. Era uma reacção automática também de McGraw; e porque lhe teria vindo isso à mente? Esta pergunta pelo menos era fácil de responder. Porque o próprio McGraw, o grande, o grosseiro, o duro, o intransigente, o divino McGraw raramente saía do pensamento de Paul. "Tens de encarar os factos: eu vivo na sua maldita sombra: e ao contrário de Diógenes, não tenho coragem de dizer: Não me tires o sol, Alexandre'."

Via as pessoas que se movimentavam lá em baixo nos passeios. A caminho de casa? Sentindo-se felizes com isso? Relutantes? Irritadas, depois de um dia de frustração? "Que me importa? Elas não fazem parte de mim; ninguém faz parte de mim. Nem a Patty, nem a Zib, ninguém. Eu sou eu e - como era a frase de McGraw?

- a vida apoiou-se em mim desta vez e esborrachou-me. E quem se importa com isso, excepto eu?

Deu consigo a olhar para as janelas sólidas, como se nunca as tivesse visto antes. Em edifícios com ar condicionado as janelas não foram feitas para se abrirem. Seria em parte para impedir que as pessoas saltassem por elas como parece que fizeram na velha depressão de 1929? Estaria ele, que Deus lhe valesse, sequer a pensar... nisso? "Disparate. Estás a representar para um espectador sozinho. Acaba com isso."

Regressou à sua secretária e demorou-se um momento de pé a olhar do alto para os números distintamente desenhados, impecavelmente alinhados, como soldadinhos marchando - para onde? Para a borda de um alto precipício - aí estava para onde - e depois pela borda fora. O som dos gritos de Pete Janowski voltaram-lhe à memória e o baque horroroso que lhes pôs fim. A náusea voltou-lhe à garganta. Fê-la retroceder com dificuldade.

Fora então que o telefone tocara e ele ficara durante alguns instantes sem fazer qualquer movimento para atendê-lo.

Era a voz de Zib.

- Hi.

- És tu? - disse Paul. - Olá. - Os seus olhos continuavam fitos nos números em marcha.

- Esse teu acolhimento enche-me de entusiasmo.

- Desculpa. Eu estava... a pensar.

- Também eu estive a pensar.

Ele e Zib eram muito parecidos: os pensamentos dela eram só dela, os dele também se interiorizavam. Foi quase com esforço que perguntou:

- A respeito de quê?

A voz de Zib mostrava-se cuidadosamente indiferente.

- Estive a pensar que me apetece levar uma f... Conheces algum macho interessado?

Quem era que arranjava estas coisas? Quem era que planeava esta justaposição de lascívia alegre e tragédia, verdadeira tragédia? O sexo era a última coisa que lhe apetecia nesse momento. Por que diabo a idiota da mulher não deixara isso para outra ocasião?

- Será que ouvi alguma proposta? - disse Zib.

E mesmo assim, porque não, por que diabo não havia de ser? Porque não havia de perder-se na ternura cheia de estratagemas de Zib, ouvir-lhe os sons e sorrir para consigo próprio a pensar que era ele quem os causava, encontrar a sua própria concentração, não no desespero, mas no puro prazer animal? Que melhor resposta?

- A proposta foi feita em silêncio - disse Paul. No hotel dentro de vinte minutos.

A voz dela estava agora divertida.

- Pareces realmente interessado.

- Viver - disse Paul - é melhor que morrer. E nem sequer tentes imaginar o que isto quer dizer. Vem pura e simplesmente preparada para uma patuscada fera.

Nua, descontraída.

- Supõem que estou a jantar com um escritor que chegou inesperadamente à cidade - disse Zib. - O Nat nem sequer fez perguntas. Há certas vantagens em ser editora.

Paul estava calado, a fitar o tecto. A sua mente, novamente desperta, sondava estranhos e tortuosos pensamentos. E se eu...

- Estás a ouvir-me, querido? - O indicador de Zib correu-lhe ao de leve pelo peito a baixo. - Hmmm?

- Ouvi.

- Então porque estás tão calado?

- Estou a pensar.

- Numa altura destas - disse Zib - é uma coisa pouco apropriada. - Suspirou. - Muito bem, seu machão presumido, em que estás tu a pensar?

- Em Nat.

Zib franziu a testa. O dedo indicador imobilizou-se.

- Por que diabo estás a pensar nele? Que se passa com ele?

- Olha - principiou Paul, e de repente encontrou-se a sorrir, tendo tomado uma decisão. - Acho que ele me vai fazer uns favorzinhos.

- És louco. - Uma pausa. - Porque havia ele de fazer-te favores?

- Bem - disse Paul -, ele nem sequer saberá que está a fazer-mos. - Aproximou-se então dela, que se lhe entregou de bom grado. - Do mesmo modo - concluiu Paul - que não sabe que de vez em quando me cede a mulher. Como neste preciso momento.

16, 01 -16, 32

QUEENS

Era um moderno prédio de apartamentos de muitos andares construído por uma companhia de seguros para inquilinos de rendimentos médios. Tecnicamente, o rendimento do inspector de construção civil estava acima do limite máximo, mas, lá por isso, uma porção considerável do seu rendimento nunca era declarada.

As janelas estavam fechadas e o ar condicionado quase não se ouvia. No parque de recreio lá em baixo crianças brincavam, mas os seus sons eram abafados, confortavelmente fechados lá fora. O inspector de construção civil repousava com uma cerveja na sua cadeira de balanço, voltado para o aparelho de televisão a cores de vinte e cinco polegadas, completo, com um único botão de sintonização, cérebro mágico e comando à distância, tudo metido num armário-consola estilo mediterrânico de vasta magnificência meditativa.

O inspector ia na casa dos quarenta; já não podia sequer pretender que ainda cabia no seu uniforme da guerra da Coréia, mas também já não se preocupava com isso.

- Bolas - gostava ele de dizer -, uma pessoa deve gozar a vida e aproveitar tudo o que vier à rede porque depois não há mais nada. Foi sempre essa a minha opinião.

Sua mulher estava numa cadeira de baloiço mais pequena, também a ver televisão, também a beber cerveja.

Tinha-se esforçado arduamente debaixo da lâmpada dos banhos de sol e com a aplicação de várias loções para conservar uma parcela do bronzeado que trouxera no princípio do ano da Florida. No supermercado e no cabeleireiro era uma coisa que as vizinhas notavam sempre com inveja. Usava cabelo ruivo a condizer com as unhas das mãos e dos pés.

- Já devem estar a dar o Family Fun Show - disse ela. O último discurso na Praça da Torre Mundial

acabava de chegar ao fim e as objectivas da televisão seguiam as celebridades que desciam do estrado e atravessavam as portas do átrio.

- Vão para a Sala da Torre - disse o inspector beber espumante e comer coisinhas espetadas em palitos. - Havia inveja rancorosa na sua voz. - Estás a ver aquele? É o senador Jake Peters, amigo do povo. Ah! Tem estado a encher as algibeiras em Washington, há mais de trinta anos!

- A Clara Hess entra hoje no Family Fun Show - disse a mulher. - Ela realmente entusiasma-me. Vi-a um dia na semana passada, na terça-feira, não, talvez tivesse sido na quarta. Se ri? Ia morrendo a rir. Ela esteve a gozar aquelas fulanas da Libertação da Mulher, e deixou-as realmente pelas ruas da amargura.

- E aquele - disse o inspector - é o governador Bent Armitage, o maior saco de vento que jamais conheci. E, olha, ali está o menino bonito, o mqyor Bob Ramsay, o cretino cem por cento americano. Porque é que não convidaram a malta que trabalhou na obra? Gostava que me dissesses.

- O que ela disse - prosseguiu a mulher - foi que elas não deviam escrever histórias, mas biografias... percebes? Oh, ela foi muito fina, muito esperta, uma pessoa nunca sabe o que ela vai dizer a seguir.

- Aquele é Ben Caldwell - ia explicando o inspector. - É um figurão que quando aparece as pessoas têm de dobrar o joelho, sabes, como se faz na igreja. Bem, chiça, ele enfia as calças talqualmente eu, uma perna de cada vez, e aposto que é mais sinuoso do que um saca-rolhas. Tinha de ser, para chegar aonde chegou. Têm todos de ser. Ninguém é tão bom como parece e toda a gente faz a sua batota ao jogo.

- Tu havias de gostar da Clara Hess - dizia a mulher -, tenho a certeza de que gostavas.

- Mas quem vem a ser essa Clara Hess? - Pergunta retórica. O inspector acabava a sua cerveja. - Que me dizes a outra?

- Sabes onde estão.

- Tirei a última.

- Não tiraste nada. E nem sequer me estiveste a ouvir porque, se estivesses, saberias quem é a Clara Hess.

- Bolas, tá bem? - disse o inspector. Arrancou-se com esforço da cadeira e dirigiu-se para a cozinha. Não toques nessa televisão - recomendou. - Tenho o direito de ver inaugurar um prédio que construí com as minhas próprias mãos.

- Tu não o construíste. Só vigiaste.

- Dá no mesmo, não dá? Se não fosse eu, como é que se podia ter a certeza de que eles o tinham construído bem?

Ou mal, mas isso eram pensamentos que uma pessoa conservava submersos. Às vezes, geralmente à noite, vinham à superfície, e esses pensamentos infantis e idiotas a respeito de Deus, do Bem e do Mal, surgiam também a atormentá-lo, mas ele era agora um adulto, chiça, capaz de tomar decisões pela sua cabeça, e essas histórias da juventude eram tudo tretas.

Se havia uma coisa que o inspector aprendera, era que no mundo só existiam duas categorias de tipos - os que ganhavam e os que perdiam - e há muito que o inspector decidira a que categoria queria pertencer.

A coisa era que, se uma pessoa olhasse com atenção para qualquer lugar, qualquer lugar, via logo que alguns tipos estavam na mão de cima e alguns, a maioria, não estavam. No Exército, quando pouco mais era do que um garoto, aprendera como a coisa funcionava. Alguns tipos estavam sempre a fazer quartos de sentinela, a ser mandados sair em patrulhas por dá-cá-aquela-palha, sempre a ser escalados para uma merda qualquer: eram os perdedores natos. Outros tipos, porém, dormiam em boas casernas aquecidas nos quartéis-generais e arranjavam empregos como o de amanuense de companhia onde ninguém se arrisca a apanhar um tiro. "Que queres tu ser? Um herói morto?

Agora, inspector de obras públicas, era a mesma história. Alguns tipos passam a vida agarrados ao que o regulamento diz. E depois? Uma reforma que nem chega para a cova de um dente, quanto mais para proporcionar as coisas a que uma pessoa tem direito, não é isso que dizem todos esses safardanas dos políticos quando andam à caça de votos?

"Portanto que mal tem se tu deixares um subempreiteiro qualquer fazer uma economiazinha aqui e acolá, apanhando tu uma gratificaçãozinha para fechares os olhos? A quem prejudicas? E quem há-de saber?" Essa era a questão importante, porque cada pessoa tem o seu ponto de vista, e quem vos disser o contrário ou é um idiota chapado ou um mentiroso, mas os tipos que se arranjavam eram os tipos que não eram apanhados, e os outros, os que eram caçados, eram os perdedores. Tão simples como isso.

O inspector abrira uma cerveja e ficara postado junto do enorme frigorífico-congelador a bebê-la. Curioso como bastara ver a Torre na televisão para aqueles pensamentos virem à tona. Bem, o trabalho estava agora acabado, mas não realmente esquecido. Uma parte considerável da vida do inspector fora passada naquela obra.

- Harry! - Era a voz da mulher que vinha da sala de estar. - Onde está a minha cerveja?

- Cala-te - replicou Harry -, estou a pensar.

Todas as obras deixam coisas para uma pessoa recordar, como por exemplo aquele Inverno com uma série de dias em que o frio chegava para congelar os tomates de um macaco de lata, ou aquele acidente do calmeirão do polaco a cair de uma viga e a estampar-se todo junto no chão, ou o caso daquele rapaz morto no metropolitano quando regressava do trabalho a casa. Uma pessoa recordava-se, e às vezes punha-se a pensar como era e porque era que essas coisas aconteciam.

Por exemplo, esse polaco, Harry sempre pensara que alguém o tinha empurrado; era um safardana forte e duro e Harry gostava de pensar que neste mundo essa espécie de pimpões competentes e que se bastam a si próprios acabam sempre por apanhar aquilo que estão a pedir.

O rapaz que morrera no metropolitano, isso era uma coisa diferente, embora o rapaz fosse um chato com as suas queixas por causa das ordens de alteração que estavam constantemente a chegar e talvez, se tivesse vivido, alguém lhe desse ouvidos e o tomasse a sério. Pensando bem no caso, alguém tivera uma sorte danada.

Com o facto de o rapaz ter morrido naquela altura. Harry nunca vira antes uma coisa assim.

Alguém. Não o Harry. Harry tinha a ordem de alteração assinada para mostrar se alguma vez lhe perguntassem porque era que os circuitos de segurança tinham sido completamente eliminados, e tanto quanto Harry sabia, e nunca se pusera a indagar, a ordem de alteração era genuína. Harry não fazia perguntas. Somente os loucos põem a cabeça de fora.

Mas talvez alguém tivesse tido realmente sorte quando o rapaz caíra debaixo do rápido. Caíra? Harry vira na televisão como é fácil alguém na hora de ponta apanhar um empurrão no momento errado, e quem irá saber? Talvez esse alguém não tivesse tido sorte; talvez alguém tivesse a sensatez suficiente de fechar o bico a um rapaz que podia causar complicações. Sendo a natureza humana aquilo que era, Harry não duvidou nem por um minuto que alguém tivesse tomado essa iniciativa para se proteger

- Harry! Vem cá! Está a acontecer uma coisa engraçada!

Harry suspirou e saiu da cozinha.

- Recomendei-te que não mudasses de programa. Se a tua maldita Clara Hess é tão grande... -Parou a olhar esgazeado para o maciço aparelho de televisão.

A objectiva elevara-se quase na vertical para o penacho de fumo que subia lá muito no alto do prédio, e a voz do locutor dizia:

- Não sabemos do que se trata, malta, mas mandámos um repórter lá ver... aqui o temos. George, que se passa? Aquele fumo é normal?

Na sala de estar Harry disse:

- Caramba, não, não é normal. Há qualquer coisa a arder num lado qualquer e eles faziam melhor se descobrissem onde é e tratassem de fazer qualquer coisa. Sentou-se mas não se reclinou para trás. - Que raio se estará a passar?

- Parece que não o construíste muito bem - comentou a mulher.

- Já basta de te ouvir disparates.

- Se eu vir fumo a sair do meu forno - teimou a mulher - calculo logo que fiz asneira com o bolo. Onde está a diferença?

- Bolas, cala-te praí!

Viram em silêncio chegar os bombeiros, as mangueiras serpentearem através da praça, o fumo sair pelas portas do átrio.

O invisível George, ofegante, voltou de novo ao microfone.

- O fogo é no quarto andar. Acabamos de receber essa informação. Há indicações de que se poderá tratar de fogo posto...

Curioso, pensou o inspector, como de repente a sua respiração se tornara mais fácil. Um fogo posto, hem? Nenhuma relação com a espécie de trabalho oculto dentro das paredes; nenhuma relação com ele. Recostou-se na cadeira de baloiço e sorveu uma longa golada da sua cerveja. Agora sorria.

- Os fogos postos podem ser perigosos - disse. O seu tom era o de um entendido, as suas palavras eram judiciosas. - Mas, caramba, da maneira que aquele prédio foi projectado apagam-no enquanto o diabo esfrega um olho. Têm extintores automáticos e portas contra incêndio, e o ar condicionado atira com o fumo para fora... - Encolheu os ombros. - É canja - concluiu.

- O Family Fun Show está quase acabado - queixou-se a mulher - e não me trouxeste a cerveja. E consideras-te tu um cavalheiro?

- Oh, caramba - exclamou Harry, e arrancou-se da cadeira.

Na cozinha tirou uma cerveja do frigorífico, mudou de idéias, tirou segunda e abriu-as ambas. Acabou a lata que estava a meio com três longas goladas e voltou para a sua cadeira.

- Ainda há muito fumo - disse a mulher. - Se o vosso prédio era assim tão bom, como se explica isto?

- Aceitou a lata de cerveja distraidamente, bebeu-lhe a fundo. - Talvez fosse melhor termos dois aparelhos de TV. Assim podias ver o que querias e eu podia ver o que queria. Que achas?

- Jesus - barafustou Harry - sabes porventura quanto custou este aparelho a cores que tanto desejaste? e aquela viagem à Florida que te dei depois de passares todo o Inverno a seringar-me o juízo? Pensas que sou feito de dinheiro?

- Eu só disse - replicou a mulher - que, se tivéssemos dois televisores, tu podias ver os teus jogos de base-ball e as partidas nocturnas de futebol das segundas-feiras e tudo o mais que te aparecesse, e eu...

- Tu podias ver essa Clara Qualquer-Coisa. Bem, chiça - disse Harry -, tens toda a semana, todos os dias, desde segunda até sexta-feira...

A imagem na televisão oscilou de repente, foi sacudida. Depois, à distância, o som cavo de uma explosão.

-Jesus! - exclamou Harry. - Que vem a ser isto? A voz do locutor, ligeiramente trêmula, disse:

- Não sabemos exactamente o que sucedeu. - Fez uma pausa: - Mas posso dizer-vos que o chão tremeu, e se me encontrasse de novo no Vietname, diria certamente que tinha principiado um ataque com morteiros. Comandante! Oh, comandante! Pode dizer-nos o que se está a passar?

O microfilme colheu sons da multidão, um murmúrio excitado como quando é dado o pontapé de saída, o sentimento de gozo do espectador num diapasão alto.

- O que foi que se passou, Harry?

- Como diabo hei-de saber? Talvez alguém tenha colocado uma bomba. Ouviste o que o homem disse.

Seguiu-se um período de confusão coberto pela publicidade. Por fim o locutor pronunciou:

- Este é o 2.º comandante Brown, dos bombeiros, senhoras e cavalheiros, e talvez ele nos possa contar o que aconteceu. Comandante?

- Receio não poder adiantar nada... por enquanto

- retorquiu Brown. - Sabemos que houve qualquer coisa como uma explosão numa das subcaves. A energia eléctrica faltou completamente no prédio. Há dois homens mortos lá em baixo e considera-se a possibilidade de sabotagem. Para além disso... -o comandante dos bombeiros encolheu os ombros.

- Os geradores de emergência - disse Harry. Que raio se passa com os geradores de emergência?

O locutor perguntou:

- Que significa a falta de energia eléctrica, comandante? Luzes? Elevadores? Ar condicionado? Isso está tudo liquidado?

- É isso que a falta de energia significa, pelo menos de momento. Agora se me dão licença...

Quando o 2.º comandante se afastava, o microfone de longo alcance apanhou Will Giddings e Nat Wilson que se encontravam juntos.

- Se foi um curto circuito - dizia Giddings - devia ter-se escoado para a terra. Caramba, pelo menos os Baianos da instalação eléctrica previam isso. - De acordo. - A voz de Nat denotava preocupação. Tinha ouvido dizer aquilo várias vezes. - A não ser que alguém os tivesse alterado.

As vozes foram interceptadas. No painel apareceu o anúncio publicitário de uma sopa.

- Harry! - A voz da mulher era quase um grito. Harry, por amor de Deus, que se passa? Parece que viste um fantasma.

Harry tentou pousar a lata de cerveja na mesinha ao lado da cadeira. Não conseguiu. Caiu no chão e a cerveja espumou sobre a alcatifa. Nenhum deles reparou nisso.

- Que se passa, Harry? Pelo amor de Deus, fala. Harry passou a língua pelos beiços. Sentia a garganta

seca e ao mesmo tempo cheia de um vômito amargo. Como poderia ter acontecido aquilo? Respirou fundo. Disse por fim numa voz de cólera contida:

- Muito bem. Seja. Tu quiseste esse raio dessa tua TV a cores, não quiseste? E a tua viagem à Florida? - Fez uma pausa. - Não te esqueças disso.

16.43h - 16.59h

No gabinete o governador disse numa voz fatigada:

- Muito bem. Só nos resta esperar. - Seja.

- Quando a violação é inevitável... -principiou Jake Peters. Meneou a cabeça. E depois: - Aonde é que você vai, Bent?

- Prometi um relatório. Frazee disse:

- Oh, pelo amor de Deus! Não sabemos se é tão mau como dizem. Conservemos a coisa aqui só para nós enquanto não temos a certeza.

- Grover - a voz do governador era cortante e o seu sorriso lupino descobria-lhe os dentes como se estivesse a rosnar. - Fiz uma promessa. Tenciono cumpri-la.

- Fez uma pausa. - Há ainda outro aspecto, que é o das pessoas que se encontram lá fora terem tanto direito como você a conhecer os factos. - Nova pausa. - Mais direito até porque nenhuma delas tem qualquer responsabilidade no que aconteceu.

- E eu tenho? - exclamou Frazee. - Escute, Bent...

- Isso - declarou o governador - é uma coisa que averiguaremos mais tarde. - Baixou os olhos para Beth Shirley. - Não tem necessidade de vir - disse-lhe.

- Não o perderia por nada deste mundo.

A luz que entrava pelas janelas foscas era ainda amplamente suficiente, mas os criados tinham encontrado mais velas que acenderam para animar o ambiente. Era, pensou o governador, o cenário de uma vulgar reunião, que por ser fútil não deixava de ser agradável, onde se tomam cocktails. Mas agora com uma diferença. Quando ele e Beth penetraram na sala as conversas esmoreceram e depois fez-se completo silêncio.

Encaminharam-se para o centro da sala e aí o governador fez sinal a um criado para que trouxesse uma cadeira. O governador subiu para cima dela e ergueu a voz.

- Quando era mais novo - disse - estava habituado a falar nas feiras, em cima de caixotes de sabão. Mas agora tenho de contentar-me com uma cadeira. - Começar sempre num tom ligeiro... quem foi que lhe ensinara isso há séculos? Não importava. Esperou até cessar o murmúrio divertido.

- Prometi um relatório - disse. - Esta é a situação... Beth escutava e ouvia, e pensava: "Não tenho o

direito de estar aqui. Mas mudaria eu as coisas mesmo que pudesse?" A resposta era não.

Olhou em volta para as faces mais próximas, enquanto o governador falava. A maioria exibia sorrisos fixos como máscaras; alguns mais franziam o rosto manifestando perplexidade, um ou dois exprimindo enfado.

Estava lá o jovem congressista Cary Wycoff, a quem fora apresentada. Era com essa expressão que ele esperava no Congresso que o adversário acabasse de dizer a sua tirada? Parecia tenso, quase contraído, contendo com esforço palavras de cólera. Os seus olhos nunca abandonavam a face do governador.

Estava lá Paula, a mulher de Bob Ramsay, alta, serena, sorrindo como sorrira num milhar de acontecimentos mundanos e de digressões de propaganda eleitoral. Cruzou o olhar com o de Beth e piscou-lhe o olho num gesto feminino de familiaridade. Era manifesto que para Paula a situação estava longe de ser grave.

Directamente em frente do governador encontravam-se o secretário-geral da ONU e o embaixador da União Soviética. As suas faces não exprimiam nada.

O senador Peters, notou Beth, saíra do gabinete e encostara-se a uma parede, observando a cena. Era um homem estranho, simultaneamente rústico e complexo, pensou ela. Ao longo dos anos tinha lido nos jornais e nas revistas artigos consagrados às actividades e idiossincrasias do senador. Agora que o via pela primeira vez, achava esses artigos ainda mais admiráveis.

Ornitologista de categoria quase profissional, o seu catálogo das aves que se encontram na bacia hidrográfica de Washington era modelar. Fora um dos orientadores no estabelecimento da Pista dos Apalaches e percorrera as suas duas mil milhas de extensão. Lia grego e latim com facilidade e falava francês e alemão - com um sotaque de operário de uma grande cidade americana. Constava que a sua colecção de poesias obscenas era a mais completa de todo o Congresso dos Estados Unidos. Encontrava-se agora ali, tal como Beth, não inteiramente, mas pelo menos parcialmente, por acaso.

Ou por determinação do Destino. Chamassem-lhe como quisessem. Ela estava ali, como ele estava, e poderia não ter sido assim. Quantas vezes não se ouviram histórias do passageiro que chegou ao aeroporto atrasado, perdendo por segundos o aparelho que se despenhou pouco depois de levantar vôo? Aquela idéia fê-la estremecer. Estaria ela a sentir já uma premonição do desastre?

Concentrou-se de novo no governador. Ele estava a concluir a sua explicação do que acontecera.

- Os telefones funcionam - disse. Sorriu de repente. - É por isso que eu sei o que se passa. Não inventei os factos. - Não houve murmúrio divertido... ele não esperara nenhum... mas mesmo assim uma certa ligeireza não ficava deslocada. O seu sorriso desapareceu. - Vem socorro a caminho. Foram mandados bombeiros pelas escadas de salvação que ficam uma de cada lado do prédio. É uma longa subida, como podem calcular, portanto temos de ser pacientes. - Fez uma pausa. Teria dito tudo? Pensava que sim, salvo, evidentemente, o apropriado remate. - Não era desta forma - disse - que estava prevista a recepção, como certamente terão compreendido. Mas eu, quanto a mim, tenciono divertir-me até as coisas voltarem à normalidade.

- E se não voltarem? - Era Cary Wycoff quem fazia a pergunta, num tom colérico. - E que acontece se não voltarem, governador?

O governador desceu da cadeira.

- Você está transtornado, Cary. -Falava agora em surdina. - Como disse o juiz Holmeseeu repito, "A liberdade de expressão não dá a ninguém o direito de gritar Fogo! num teatro à cunha." Ora, é precisamente isso que você está a fazer. Porquê? Só para chamar a atenção para si?

O congressista corou, mas não cedeu terreno.

- As pessoas têm o direito de saber.

- Isso é um lugar-comum - retorquiu o governador. - Como a maioria dos lugares-comuns é parcialmente certo e ao mesmo tempo enganador. As pessoas que aqui se encontram têm o direito de saber os factos correntes e por isso é que eu lhos relatei. Mas não têm o direito, e estou certo que não têm o desejo, de ficar aterradas por um jovem insensato que desata a anunciar aos gritos, como um fanático da Union Square, a aproximação do Dia do Juízo. Use ao menos de um pouco da sensatez que as pessoas lhe atribuem. - Voltou-se então para procurar Beth.

Ela aproximou-se e tomou-lhe o braço.

- Foi um belo e animador discurso - disse ela, e sorriu. - Votarei em si. Como vê, começo a aprender os meandros da política.

O governador cobriu-lhe a mão com a sua. Apertou-a suavemente.

- Graças a Deus - disse ele-, pelo menos algumas pessoas ainda sabem rir.

Ela esperara voltar para o gabinete, que já considerava mentalmente como o posto de comando. Mas o governador não mostrava pressa, e Beth compreendeu que com a sua presença ele contribuía para tranqüilizar os espíritos. Moviam-se os dois de grupo em grupo, parando durante alguns segundos para as apresentações onde eram necessárias e para meia-dúzia de palavras corteses, aparentemente irrelevantes.

Para o secretário-geral:

- Walther, permite-me que lhe apresente... -E depois: - Temos um americanismo, Walther, que me parece aplicável ao nosso caso. - O governador, sorrindo, olhou em volta da sala e depois, de novo, para o seu pequeno auditório: - É, confesso-o, um raio de uma maneira de dirigir um caminho-de-ferro.

O secretário-geral sorriu por seu turno.

- Já ouvi esse idiotismo, e creio que terei de concordar. Não se refere a uma espécie de... aperto... na Central de Pensilvânia? (')

 

(') Qualquer espécie de humor - bastante chocho aliás - que possa resultar da aplicação do idiotismo à situação concreta perde-se totalmente na tradução. Console-se o leitor com a certeza de que perde pouco... (N. T.)

 

- Vi há anos uma fita - disse o governador para uma actriz a envelhecer-, feita muito antes do seu tempo, tenho a certeza. Chamava-se King Kong e havia um gorila gigantesco que se encarrapitava no Empire State Building. Quase desejava que o Kong aparecesse agora. Seria pelo menos uma diversão.

- O senhor é muito amável, governador - disse a actriz-, mas não só a fita não foi antes do meu tempo como eu até desempenhei nela um pequeno papel.

Para o presidente de uma rede de televisão:

- Você acha que a sua gente nos está a dar uma boa cobertura, John?

- Se não estiver - respondeu John-, vão cair cabeças. - Tinha um sorriso nos lábios. - Temos de elaborar o material recolhido num documentário sobre como a civilização se excede a si própria. Sabemos como construir o mais alto edifício do mundo, mas estamos atrapalhados para encontrar maneira de tirar as pessoas lá de dentro. Não haverá por aí uma televisão a pilhas? Ou pelo menos um rádio?

- Boa idéia - disse o governador. - vou tentar descobrir. Mas não - acrescentou em voz baixa quando se afastou com Beth - para ser visto pelo público. Os que estão lá em baixo devem estar a dar-nos o tratamento por inteiro. Já nos devem considerar perdidos.

- E estamos, Bent?

Nada mudou no sorriso do governador, mas a sua mão apertou quase imperceptivelmente o braço da mulher.

- Assustada? - perguntou. O seu tom era ligeiro.

- Começo a estar.

- Pois também eu - confessou o governador. - Aqui entre nós, preferia de longe encontrar-me naquele prado do Novo México com uma cana de pesca na mão e uma truta celerada, que lá para aquelas bandas chamam uma indígena, a dar-me luta. - Baixou os olhos para ela, continuando a sorrir. - Consigo - disse. - E se isso me faz parecer egoísta e pusilânime, que seja. -Estava prestes a dizer mais qualquer coisa quando foi interrompido.

- Isto é indecente, Bent.

Um sujeito alto de cabelos grisalhos, do tipo administrador de empresa, pensou Beth, e quase soltou uma risadinha quando se confirmou o seu diagnóstico - com certeza, Paul - disse o governador-, estou de acordo contigo. Miss Shirley, Paul Norris... J. Paul Norris. - E sem mudar de tom: - Indecente é a palavra própria, Paul. O Exército acaba de chegar. - Apontou para dois helicópteros que manobravam para sobrevoar o edifício em círculos.

Pareciam tão livres, pensou Beth, próximos mas distantes, impossivelmente afastados desta... desta prisão. Sentia a mão do governador apertar-lhe a sua.

- Aí temos a nossa diversão - disse baixinho. Agora podemos escapulir-nos de novo para o quartel-general.

O senador Peters adiantou-se para interceptá-los.

- Eu fico aqui fora, Bent. Se precisar de mim para qualquer coisa... -Deixou por acabar aquela oferta clara e ilimitada. - O meu papel - disse depois - é diferente do seu. Você é o comandante, o administrador, o organizador. O meu lugar fica fora da cadeia de comando

- fez uma pausa - que é a maneira de estar que mais me agrada.

- Você parece - observou o governador - um pouco menos infeliz com a raça humana do que é seu costume, Jake.

O senador cobriu a grande sala com um olhar. Meneou lentamente a cabeça.

- Eles estão a comportar-se muito bem. Por enquanto. "Portanto - pensava Beth quando se dirigiam para o gabinete - o senador também sente essa premonição de desastre. Somos como personagens de uma novela de Tolstoi: o baile de gala antes da batalha desastrosa... que ridículo!

- Talvez sim - disse o governador. (Teria ela, então, falado alto? ). - E talvez não - acrescentou. - Nós construímos uma civilização baseada no princípio de nos mantermos firmes. Outros seguem métodos diferentes. Pessoalmente nunca me senti atraído pela técnica de esmurrar o peito, ranger os dentes e arrancar os cabelos. E você? -Baixou os olhos para ela num sorriso. - Pergunta desnecessária. Sei que também não. A derrota...

- Já foi derrotado, Bent? -"Quero saber tudo a respeito dele, tudo."

- Muitas vezes - respondeu o governador. - Na política como no desporto uma pessoa umas vezes ganha, outras vezes perde. Isso não torna o perder mais fácil, mas familiariza-nos um pouco mais com a derrota.

Foram encontrar Grover Frazee no gabinete acompanhado por um copo de uma bebida qualquer castanho-escura.

- Você falou com a populaça, Bent? Contou-lhe todos os factos desagradáveis e apontou com dedo firme para o culpado? - A bebida começava a produzir o seu efeito.

- Quem é o culpado, Grover? - perguntou o governador, empoleirando-se num canto da secretária. - É esse um ponto que eu quero esclarecer.

Frazee agitou a mão num gesto largo de quem desiste.

- O Will Giddings apareceu no meu gabinete com uma história da carochinha que não consegui cornpreender.

- Não é bem isso, Grover - atalhou Ben Caldwell. Você estava perfeitamente lúcido quando me telefonou.

- Voltou-se para o governador. - Apareceram ordens de alteração autorizando certos desvios ao plano original do sistema de instalação eléctrica do prédio. Só soubemos disso hoje e até agora - apontou para as velas que eram a única iluminação da sala - não conseguimos apurar se as tais alterações foram ou não efectuadas. Agora temos de presumir que pelo menos algumas delas foram.

O governador perguntou:

- Você sabia que isso era potencialmente perigoso?

- Estava a olhar para Frazee.

- Pelo amor de Deus, eu não sou nenhum engenheiro! Deixe-se de estar a atirar com todas as culpas para cima de mim. O Giddings mostrou-me essas estuporadas ordens e eu disse-lhe que não percebia patavina daquilo...

- Nesse caso - interveio Ben Caldwell-, que foi precisamente o que disse o Giddings?

- Nem sequer me lembro.

"Alguns homens avantajam-se nas crises - pensou Beth-, outros encolhem." Frazee, o aristocrata janota, estava já mais pequeno que o tamanho natural, e continuava a encolher rapidamente.

- Você perguntou-me - disse Caldwell - se eu pensava que se deviam adiar as cerimônias e a recepção. Se essa idéia partiu de si, então você deve ter compreendido bastante do que o Giddings lhe contou. Se essa idéia foi do Giddings, então você deve ter compreendido pelo menos uma parte da sua motivação. - Lógica fria e implacável. - Em que ficamos, Grover? - instou Caldwell. A mão de Frazee avançou automaticamente para a bebida, mas ele forçou-a a retirar.

- Você disse que não havia necessidade de adiar a recepção.

- Não foi isso que eu disse. -A voz de Caldwell era gélida. - Eu disse que as relações públicas não pertenciam ao meu pelouro. Uma resposta muito diferente, Grover. Você...

O governador interveio.

- A pergunta foi feita, Ben. Se o Giddings queria que a recepção fosse cancelada ou se o Grover meramente cogitou nisso, é amplamente irrelevante. Você é o técnico. Viu o perigo potencial? - A pergunta ficou suspensa no ar,

- A resposta a isso devia ser óbvia - disse por fim Caldwell. - Eu próprio vim. Estou aqui, como toda a gente. - Mostrava uma calma quase glacial. - Ninguém podia prever que um louco se iria meter na sala dos transformadores. Ninguém podia prever o incêndio no quarto andar, que em si mesmo não teria provavelmente causado mais do que um pequeno contratempo. - Fez uma pausa. - Mas juntando esses factores com as ordens para alterar os planos da instalação, que aparentemente foram cumpridas... - Meneou a cabeça. - Como eu já disse, houve uma concatenação de erros.

- com que conseqüências?

Caldwell meneou desanimadamente a cabeça.

- Está a pedir-me um juízo impossível, governador. O mayor ergueu a voz.

- Isso é precisamente o que ele está a pedir, Ben: um juízo e não uma resposta imediata.

Até Bob, o seu primo, pensou Beth, a quem ela nunca considerara um dos senhores da terra, até ele tinha essa qualidade de comando, de lucidez numa crise, essa total disposição para enfrentar factos que, na experiência de Beth, poucos homens ou mulheres possuíam.

Caldwell abanou lentamente a cabeça.

- Sim - disse -, compreendo. - Olhou para o comandante dos bombeiros. - Quero ouvir a opinião da sua gente. Deixe-me falar outra vez com o Nat Wilson.

A voz do 2.º comandante Brown soou cava no altifalante da mesa do telefone.

- Estamos a fazer o melhor que podemos... - principiou.

- Isso, caramba - replicou o comandante -, não é resposta, Tini. Eu sei que vocês estão a fazer o melhor que podem. O que eu quero saber é até que ponto a vossa acção está a produzir resultados e qual o aspecto das coisas?

Houve uma hesitação. Depois:

- O aspecto não é muito bom, para ser franco consigo. Como sabe não há em parte nenhuma equipamento que nos permita alcançar esse andar. Estamos a trabalhar do lado de fora, tão alto quanto nos é possível, e estamos a progredir no interior... pelas escadas acima. Há dois homens em cada escada subindo para aí, ou tentando subir. Levam máscaras...

- O fumo é muito?

- Pouco é que ele não é. Durante quanto tempo resistirão essas portas contra incêndio é que ninguém sabe, por maiores virtudes que se lhes atribuam. Se a temperatura se elevar demasiado...

- Eu sei isso, Tim. Continue. A voz de Brown assumiu um tom quase colérico.

- Aqui o Wilson, o arquitecto do Caldwell, tentou convencer-me a telefonar à Guarda Costeira...

- Valha-o Deus, mas para quê?

- Eles têm canhões que disparam cabos para navios em perigo. E ele pensa que é possível, apenas possível...

- A voz calou-se.

- Pelo menos o Wilson pensa - disse o comandante.

- Ele teve outra idéia louca...

- Chame-o ao telefone. - O comandante fez sinal com a cabeça a Caldwell.

- Fala Caldwell, Nat - disse Caldwell. - Qual é a sua idéia?

- Se obtivermos energia da subestação - disse Nat tenho o Joe Lwvis a trabalhar nisso, então talvez consigamos improvisar qualquer coisa para um desses elevadores rápidos. - Pausa. - Pelo menos é nesse sentido que estamos a trabalhar. Precisamos de alguns homens...

- O Simmons pode fornecê-los. A voz de Nat alterou-se.

- Sim - disse. - Estou ansioso por falar com o Simmons. A respeito de uma data de coisas. Caldwell voltou-se para a sala.

- Ouviram-no - disse.

A voz de Nat surgiu de novo no altifalante de secretária

- Os helicópteros não vêem qualquer maneira de intervir. com o mastro da torre não têm sítio onde pousar.

- Muito bem, Nat - disse Caldwell. - Obrigado.

- Relanceou uma olhadela circular pela sala muda.

O governador foi o primeiro a falar.

- Eu já li descrições de situações análogas a esta

- disse. - Nunca esperei encontrar-me em nenhuma.

- Mostrou o seu sorriso. - Arranjam-se parceiros para um joguinho de cartas?

Eram 16, 59 h. Tinham decorrido trinta e seis minutos desde a explosão.

16.58h - 17.10h

Betão e aço - insensitivos? indestrutíveis? Nada disso. O edifício estava em tormentos, e os homens que subiam os intermináveis degraus sentiam até através das portas contra incêndio a febre do sofrimento do prédio.

Os bombeiros Denis Howard e Lou Storr pararam para tomar fôlego no trigésimo andar. O fumo não era constante, apenas o calor, e àquela altura o ar estava puro. Tiraram as máscaras regaladamente.

- Mãe de Deus! - exclamou Howard. - Não te sentes como um desses cabritos-monteses? - Respirava arquejando como um fole.

- Eu aconselhei-te que deixasses de fumar - disse Storr. - Estás a ver o que ganhei com isso? - A sua respiração era pelo menos tão ofegante como a de Howard.

- Ainda temos de trepar noventa e cinco andares.

Estiveram um momento a respirar em silêncio. Depois Howard perguntou:

- Recordas-te daquela poesia na escola? Era a respeito de um rapazito que não regulava bem da mona e que atravessou uma cidadezinha qualquer agitando uma bandeira que dizia "Excelsior"?

Storr fez que sim com um gesto fatigado de cabeça.

- Tenho uma idéia - disse.

- Bem - prosseguiu Howard-, eu sempre perguntei a mim mesmo onde diabo ele pensava que ia. - Fez uma pausa. - Como agora. - Voltou-se de novo para a escada. - Toca a continuar.

Tinham retirado o corpo carbonizado da subcave decentemente coberto por um lençol de maça. As objectivas da TV seguiram a progressão do corpo até ao carro da morgue estacionado, onde o polícia Frank Barnes deteve a maça, ergueu o lençol e olhou demorada e atentamente. Disse para Shannon:

- É o nosso tipo, Mike. "Eu poderia tê-lo impedido de entrar", pensou. "Uma pessoa não adianta nada com estar a recriminar-se." Olhou para o servente da morgue.

- Sabe-se como ele se chama? - perguntou.

- Há um nome dentro da caixa de ferramentas... se porventura é a dele.

Barnes olhou para a caixa de ferramentas, enegrecida pela explosão mas ainda reconhecível.

- Era a que ele transportava.

- O nome que lá vem - disse o servente - é Connors, John Connors com um O. - Fez uma pausa. - "Cidadão do Mundo", é o que está escrito a seguir ao nome. Um maluco.

- O tenente - lembrou Barnes - há-de querer saber.

- Tanto quanto me diz respeito - declarou o servente da morgue-, o tenente pode ficar com todo esse carapau frito. Você já viu esses fornos de radar que cozinham instantaneamente? Pois é o que aqui temos.

Barnes partiu para se avistar com o tenente da polícia, cujo nome era James Potter. O tenente ouviu, escreveu o nome no seu canhenho e suspirou.

- Tá bem - disse. - Sempre é uma ponta por onde se começar.

- Eu podia tê-lo impedido de entrar no edifício, tenente - declarou Barnes. - Eu podia...

- Você sabe ler cartas voltadas do avesso, Frank? Eu não sei. Ele levava algum letreiro a dizer que era um maníaco que transportava explosivos?

Barnes voltou para se juntar a Shannon nas barreiras, não se sentindo melhor enquanto o tenente se dirigia para o atrelado da construção. Aí estava em curso uma conferência, e o tenente voltou a suspirar, encostou-se a uma mesa de desenho à espera que a conferência acabasse. Patty estava empoleirada num banco alto próximo. O tenente perguntou indolentemente para consigo que estaria ela a fazer ali, mas não deu expressão à sua curiosidade.

- Há duas maneiras - dizia um dos comandantes de batalhão presentes. - As escadas ou, se puder operar-se um milagre, um elevador. - Dirigia-se a Nat.

- Estamos a tentar - respondeu Nat. - Talvez resulte. Talvez não. - Fez uma pausa. - E talvez as escadas também não resultem. Talvez os seus homens cheguem a uma certa altura e descubram que não podem progredir mais porque o fogo irrompe no poço da escada por cima deles.

O comandante de batalhão podia pensar ainda noutra possibilidade, que era a de o fogo irromper abaixo dos seus homens, e isso seria o fim. Mas não disse nada.

- Portanto a terceira possibilidade pode ser tudo o que nos resta - disse Nat.

Tim Brown inquiriu:

- O canhão que dispara um cabo, e depois o quê?

- Calções de salvação.

Giddings estava a olhar para fora através da janela do atrelado.

- Para onde?

- Para a torre norte do Centro Comercial. É a mais próxima e a mais alta.

Os cinco homens ergueram os olhos para os edifícios altaneiros. Os seus topos pareciam convergir. Tim Brown observou:

- Uma pessoa num saco de lona, com as pernas pendentes e de fora, a balançar no ar a um quarto de milha de altura... um quarto de milha! - Os seus olhos fulgiam para Nat.

Patty, que escutava, estremeceu.

- Muito bem - replicou Nat, e a sua voz era quase brutal-, que é que você preferia... balançar nesse saco de lona meio morto de medo ou ser cozinhado até ficar em cinzas por um incêndio que não se deterá a meio caminho? Porque a alternativa é essa.

- A não ser - lembrou o comandante de batalhão as escadas ou o elevador.

Nat meneou a cabeça.

- Não podemos esperar.

Potter disse para ninguém em particular:

- É pegar ou largar.

Os cinco homens olharam para ele. Pode-se tirar qualquer cavalo da cavalariça - prosseguiu Potter - desde que seja o que está mais perto da porta. - Puxou da carteira e abriu-a para exibir o seu cartão de identificação. - Se algum de vocês puder dispor de um minutinho...

Tim Brown disse quase explosivamente:

- Muito bem! Chamaremos a gente da Guarda Costeira. Quaisquer outras idéias? - Estava a olhar directamente para Nat.

"O tipo está cheio de medo - pensou Nat-, mas isso acontece com todos nós."

- De momento não - replicou, e moveu-se para mais próximo de Potter. - Não sei se poderei ser de algum presumo.

Potter olhou para o distintivo de identificação de Nat.

- Arquitecto - leu. - Wilson. - Fez uma pausa.

- Um homem chamado John Connors. Lembra-lhe alguma coisa?

Nat esteve um momento a pensar. Meneou a cabeça.

- Ele - disse Potter-é o... carbonizado.

- O electricista.

Os sobrolhos de Potter ergueram-se.

- Sabe alguma coisa a respeito dele?

- Os polícias contaram-me. O polícia negro. O homem andava lá dentro. A viajar nos elevadores. Eu ouvi-o. Mas nunca o vi. - Breve memória daquele urso-pardo há tanto tempo, que também não vira.

Na extremidade do atrelado a voz de Tim Brown dizia alto ao telefone:

- Não discuto que seja inusitado, capitão, e talvez até seja absurdo. Mas estamos a ficar sem opções. -A sua voz baixou para o tom normal e já não se podiam distinguir as palavras.

Potter disse para Nat:

- O outro morto... - deixou ficar a coisa por aí.

- Não o conheço - declarou Nat-, mas tanto quanto sei estava junto do painel do computador.

Potter mantinha-se calado, pensativo. Por fim inquiriu:

- Ele teria podido... fazer qualquer coisa se estivesse vivo quando a coisa rebentou? Foi por isso que lhe arrefeceram o céu da boca?

"Estamos aqui parados, a falar calmamente do que já aconteceu - pensou Nat-, quando o que é realmente importante é aquilo que vai acontecer, ao edifício, às pessoas que se encontram na Sala da Torre, a essas altas personalidades, a não ser que alguém descubra uma maneira qualquer de as tirar de lá."

Sentiu-se tentado a repelir as perguntas do tenente como intempestivas. Mas não eram. Uma pessoa tem de trabalhar nos dois sentidos, disse para consigo, para diante e para trás. Porquê? Para que talvez, e apenas talvez, fosse possível evitar que uma coisa destas tornasse a acontecer.

- Eu diria que sim - admitiu Nat -, mas é apenas uma presunção. Praticamente qualquer perturbação seria assinalada no painel do computador. As perturbações seriam automaticamente sanadas, mas mesmo assim havia um homem de plantão... para o que desse e viesse. Pode sobrepor-se aos sistemas automatizados, e talvez tivesse tido tempo de fazer qualquer coisa antes de tudo parar. - Nat fez uma pausa. - Parece que Connors, se ele se chamava assim, pensou que o homem junto do painel poderia fazer qualquer coisa e portanto resolveu eliminá-lo previamente.

Patty moveu-se no seu banco. Pígarreou. Os dois homens olharam para ela esperaram.

- Não desejo intrometer-me - disse ela. O tenente replicou:

- Minha senhora, se tem alguma idéia, faça o favor de nos dizer.

Patty explicou lentamente:

- Se esse tal Connors sabia que havia um painel de computador com um homem a guarnecê-lo, para já não falar de ter pensado na hipótese de esse homem poder fazer qualquer coisa... isso não significa que Connors estava familiarizado com o edifício e com o seu funcionamento?

Nat sorria.

- Boa menina. - Olhou para Potter. - Isso significa que Connors provavelmente trabalhava no prédio, não acha? Para conhecer os meandros da casa?

- E - disse Patty - os arquivos do papá mostrarão se ele trabalhava para o empreiteiro-geral. Os arquivos dos subempreiteiros mostrarão se ele pertencia a alguma das suas equipas.

- Eu chamei-lhe electricista - pronunciou Nat lentamente. Depois meneou a cabeça. - Duvido. Se ele fosse electricista, a não ser que quisesse realmente matar-se, não teria ido brincar com a corrente primária. Isso equivalia a regar-se de gasolina e pegar um fósforo às roupas.

pior ainda; porque às queimaduras podia sobreviver, assim não.

Patty estremeceu e em seguida anunciou:

- vou telefonar para o escritório do papá e mandá-los ver se o nome de Connors está na lista do pessoal. -. Saltou do banco a baixo, contente por ter alguma coisa em que ocupar a mente, que se voltava sem cessar para aquele homenzarrão imobilizado na sua cama de hospital.

Nat seguiu-a com os olhos enquanto ela se afastava. Sorria.

E lá se aproximava Tim Brown nas suas pernas de cegonha, o cabelo ruivo em desalinho.

- A Guarda Costeira mandou para cá alguns homens

- disse - e algum equipamento. - Encolheu os ombros furiosamente. - Eles não crêem que dê resultado, mas estão dispostos a ver se é possível. O mal é que a torre do Centro Comercial mais próxima está provavelmente demasiado distante para arremessar um cabo para dentro da Sala da Torre, e a não ser que consigam isso... - Abriu as mãos. - Nada feito.

A face de Nat tornara-se pensativa.

- É isso que teremos de ver - disse.

Paul Simmons encontrava-se já no quarto do hotel quando Zib chegou ofegante e muito corada. A jovem lançou uma olhadela à televisão. Estava apagada. "Portanto ele ainda não sabe - pensou Zib -, julga que continua tudo na mesma."

- Não - disse depois, quando Paul estendeu a mão para agarrá-la. - Não vim para isso.

- Isso nem parece teu. Então para que me chamaste? Bizarramente, ela sentia-se quase calma. Talvez

resignada fosse uma palavra melhor, pensou. A sua voz não denotava nervosismo.

- Trago-te uma mensagem. Reclamam a tua presença na Torre Mundial.

Dirigiu-se para a televisão e ligou-a. Surgiu uma cena instantaneamente focada - a praça, os carros dos bombeiros e as mangueiras, uma cena de confusão controlada. Zib baixou o volume e fez-se silêncio no quarto.

- O Nat telefonou-me - disse ela. - Tem tentado entrar em contacto contigo. A Patty está lá com ele e disse-lhe que eu talvez soubesse onde encontrar-te.

- Estou a ver. - Apenas isso. Paul olhava para o televisor, silencioso. - Que se passa?

- Tudo o que ele disse foi que surgiram vários focos de incêndio no edifício, que Bert McGraw está no hospital com um ataque de coração, que têm um cento de pessoas encurraladas (foi como ele se exprimiu) na Sala da Torre e que precisa de algumas respostas tuas. - Seria tudo? Era um pedaço longo para decorar, mas as palavras não cessavam de repetir-se espontaneamente na sua memória desde que desligara o telefone depois da chamada de Nat.

- Encurraladas! - Paul repetiu apenas aquela palavra. - Isso significa que não há elevadores. Isso significa que não há energia. - Olhou finalmente para Zib. -E que espécie de respostas pensa ele que eu lhe posso dar?

- Ele não disse.

Paul exibia um sorrisozinho zombeteiro.

- Isso foi tudo o que ele disse?

Zib cerrou os olhos e meneou a cabeça. Toda a conversa com o marido ressoou-lhe clamorosamente na cabeça. Reabriu os olhos. Paul parecia um estranho, impassível, alheado.

- Ele perguntou-me: "Onde está esse filho da p... Se não sabes onde está, encontra-o. E trá-lo cá. Em grande velocidade."

- Bem! - exclamou Paul. O sorriso zombeteiro alastrou-se.

- Eu disse-lhe - prosseguiu Zib - que ele nunca me tinha falado nesses termos.

- E...

- Ele replicou-me que fora um erro, que provavelmente devia ter pregado umas boas palmadas no meu cu aristocrático. - "Como a uma rapariguinha", pensou ela, "uma rapariguinha estragada com mimos a quem se deixou fazer todas as vontades durante demasiado tempo."

- Como dizem os Ingleses - sentenciou Paul-, parece que temos gato à solta no meio dos pombos.

Teria ela rido da frase noutra ocasião? Não importava.

- Não acho que seja altura para graças.

- Então é altura para quê? Para lamentações? -Paul relanceou de novo os olhos para o aparelho onde continuava a agitação das pequenas figurinhas. - Não há nada que eu possa fazer ali. Nada, - Voltou a encarar.

- O que está feito, como diria Shakespeare, está feito, e não pode ser desfeito.

- Podias tentar. Eles estão a tentar.

- Isso - replicou Paul - é um desses estúpidos lugares-comuns que fazem parte da nossa educação americana. "Se não consegues à primeira, tenta outra vez." E citam David o Bruce e a sua maldita aranha. Creio que foi W. C. Fields quem exprimiu isso em termos correctos: "Se não conseguires à primeira", dizia, "desiste; não queiras que se riam de ti."

Zib perguntou lentamente:

- Tens alguma idéia do que aconteceu? É isso?

- Gomo poderia eu ter qualquer idéia?

- Mas disseste qualquer coisa a respeito do que está feito.

- Mera figura de retórica.

- Não penso que fosse. Penso...

- Estou-me nas tintas para aquilo que tu pensas. - A voz de Paul era gélida. - És decorativa e algumas vezes divertida e muito boa na cama, mas pensar não é o teu forte.

"Oh, Céus - pensou Zib-, um diálogo decalcado da revista! Irreal. Literatura de evasão transferida para a vida." Mas as palavras tinham sido como uma palmada, não tinham contundido. Onde estava a dor?

- Lisonjeias-me - disse ela.

- Combinámos no princípio...

- Que seria tudo riso e brincadeira - atalhou Zib. Sem dúvida.

- Não me digas que nos estás a tomar a sério.

"O safardana - pensou Zib-; está a sentir-se todo contente."

- Não - disse ela-, nunca houve em ti nada que se pudesse tomar a sério. - Fez uma pausa e olhou para a televisão. - E agora ainda há menos. - Fitou Paul nos olhos. - Tu foste o encarregado da instalação eléctrica. Até aí sei eu. Paul Simmons e Companhia, Instalações Eléctricas. Aldrabaste o trabalho? - Conservou-se calada por um momento, pensando, recordando-se. -Uma vez disseste-me que o Nat te ia fazer uns favores, simplesmente ele não saberia de nada. Era isso que tu querias dizer?

- Perguntas disparatadas - replicou Paul - Não merecem sequer respostas disparatadas. - Dirigiu-se para o aparelho de televisão e desligou-o. - Bem - disse-, foi bom enquanto durou. Não penses que não foi. - Dirigiu-se para a porta. - vou sentir saudades do hotel e desta atmosfera acolhedora. - Tinha a mão sobre a maçaneta.

- Aonde vais?

- Penso que me vou avistar com uns sujeitos - disse Paul - e depois penso que vou para casa. - Abriu a porta e saiu. A porta fechou-se silenciosamente.

Zib ficou imóvel no meio do quarto. Irreal, incrível: essas eram as palavras que lhe acudiram ao espírito. Pô-las de parte para ulterior análise, dirigiu-se para a cama, deixou-se cair no colchão e pegou no telefone.

Não tinha necessidade de procurar o número; depois desses anos todos o número do escritório anexo à obra era-lhe bastante familiar. E Nat encontrava-se lá. Zib conservou a voz calma, inexpressiva.

- Dei o teu recado ao Paul.

- Ele vem a caminho?

- Não. - Zib fez uma pausa. - Lamento, Nat. Eu tentei.

- Para onde foi ele?

Havia na voz do marido um tom que era novo para Zib. Chamem-lhe dureza, força, o que quiserem; o certo é que dominava.

- Disse que se ia avistar com uns sujeitos - informou ela - e que depois talvez fosse para casa.

- Está bem - disse Nat.

- Que vais fazer?

- Mandá-lo apanhar. Objecções?

Zib meneou a cabeça em silêncio. Não havia objecçoes.

- Ele viu a televisão - pronunciou. - E eu contei-lhe aquilo que tu tinhas dito. - Fez nova pausa. -Ele disse: "O que está feito está feito e não pode ser desfeito." Isso significa alguma coisa?

A voz de Nat era calma mas sem hesitação.

- Significa muitíssimo - respondeu, e desligou. Voltou as costas ao telefone para lançar uma olhadela pelo escritório do atrelado. Estavam lá o comandante Brown, os dois comandantes de batalhão, Giddings, Potter e ele próprio.

- Simmons - declarou - parece que viu tudo o que queria ver pela televisão. Não sei se o poderemos utilizar ou não, mas acho que o queremos cá.

- Se o quiserem cá, eu trago-o - prontificou-se Potter.

- Mais importante-declarou Giddings-, se o Lewis já fez os seus cálculos, é pôr alguns homens a trabalhar para ver se conseguimos energia pelo menos para um desses elevadores directos.

Nat deu um estalo com os dedos.

- O contramestre do Simmons... como é que ele se chama? Pat? Pat Harris? - Estava a olhar para Giddings e viu que Giddings tinha compreendido. Dirigindo-se a Brown, Nat disse: - Precisamos dele e de mais alguns homens. Talvez eles possam ajudar, talvez não possam, mas tentaremos. - Fez uma pausa. - Mas precisamos de Harris por outras razões. O Simmons não fez essas alterações com as suas próprias mãos. O Harris tinha de saber o que se passava.

Patty pigarreou. Estava sozinha, um nadinha hesitante, mas perfeitamente à vontade neste mundo masculino. A quantas obras não fora ela com seu pai? Em quantos atrelados como este não estivera ela sentada a fazer girar os polegares, à espera de que acabassem as discussões técnicas para iniciar com o pai uma passeata vespertina? Que quantidade de conhecimentos adquirira sem dar por isso?

- Há ainda outra pessoa que teria de saber das alterações - disse ela. Fez uma pausa. - O fiscal que lhes passou o visto. Quem era ele?

No meio do silêncio Nat voltou a dizer:

- Boa menina!

- Havemos de descobrir e trazer cá esse filho da p...

- declarou Giddings. - Conheço-lhe a cara. Ele chama-se... - Esteve em silêncio por um instante. - Harry. Não sei o último nome mas havemos de descobrir.

17.01h - 17.11h

O mayor Ramsay saiu do gabinete à procura da mulher. Encontrou-a sozinha junto das janelas da Sala da Torre a contemplar a larga toalha rutilante do rio. Sorriu ao ver aproximar-se o marido.

- Tão solene, Bob - disse ela. - A situação é realmente tão grave como o Bent a apresentou?

- Receio bem que sim.

- Tu hás-de encontrar qualquer saída.

- Não. - O mayor meneou a cabeça. - Isso compete inteiramente ao pessoal técnico... O Ben Caldwell, o arquitecto dele que se encontra lá em baixo, ou o Tim Brown. - Fez uma pausa. O seu sorriso era amargo. - E as ordens virão do Bent, não de mim.

- Estás na tua cidade, Bob. Nova negativa de cabeça.

- Chega sempre uma ocasião - disse Ramsay em que temos de admitir que há outros melhores que nós. Eu não me encontro à altura do Bent.

- Isso é um disparate. - O sorriso de Paula era afectuoso. - E só conseguirás fazer-me ficar zangada se persistires em pensar assim. Tu és o melhor de todos os homens que eu jamais conheci.

Ramsay conservou-se calado durante um breve instante, fitando o rio quase como hipnotizado.

- O Bent saiu-se esta tarde com uma certa idéia. Disse que este edifício não passava de outra cavalariça para um dinossauro. - Sorriu para a esposa. - Há um embrião de verdade nisso. Talvez eu tenha estado demasiado ocupado a correr daqui para ali, a pôr um remendo nisto e naquilo e não me tenha apercebido do facto.

- Não compreendo, Bob.

- Onde está o mérito - perguntou o mayor - de construir a maior coisa do mundo, seja ela qual for? A maior pirâmide, o maior navio, a maior barragem ou o maior prédio? A maior cidade, já que falamos disso? Os dinossauros eram os maiores e foi o seu próprio tamanho que deu cabo deles. É esta a tese do Bent. Meneou a cabeça. - Não - disse -, a qualidade e a necessidade têm de ser o critério, e a necessidade terá de ter prioridade. Precisamos disto? É possível? Estas duas perguntas devem ser formuladas logo no princípio e as respostas escritas em tinta indelével numa letra muito grande para que não sejam esquecidas.

- E onde foi que tu te desviaste disso? - perguntou Paula.

- Permiti que a cidade se desviasse. Um prédio como este é necessário? A resposta é não. Temos todo o espaço para escritórios de que precisamos. Mais. E eu podia ter posto cobro a isto. Em vez de fazê-lo, prestei-Lhe todo o auxílio que a Câmara Municipal lhe podia dar. Uma nova demonstração de... vaidade, um prédio que todo o mundo admiraria.

- E admirará, Bob.

O mayor abriu a boca, reconsiderou e tornou a fechá-la.

- Talvez - concedeu por fim. Era ainda cedo para admitir a catástrofe.

- Trinta e cinco anos é muito tempo, Bob - disse Paula. - As pessoas têm tempo de se conhecerem bem umas às outras. - Fez uma pausa. - Tenho estado a pensar desde que aqui chegaste e sei o que se passa na tua mente. - Sorriu. - Há telefones. Creio que nos podemos utilizar de um, não podemos?

O mayor franziu a testa.

- Penso que é melhor telefonar à Jill - disse Paula. Ela tencionava ver-nos na televisão. Deve estar preocupada.

- Boa idéia. - O mayor já estava de novo a sorrir, com esse sorriso agarotado que os eleitores tão bem conheciam. - Vamos tranqüilizá-la.

- Não era precisamente isso que eu tinha na idéia - proferiu Paula.

- Espera aí, tem calma. - O sorriso agarotado esmoreceu, desvaneceu-se. - Não há necessidade de pânico.

- Não se trata de pânico, Bob, mas não será já altura de deixarmos de fingir que não há perigo? Esses helicópteros aí por cima... que ajuda nos podem prestar? O Bent disse que os bombeiros vêm a subir as escadas... - Paula meneou a cabeça. O seu sorriso era afável, não continha qualquer censura, era compreensivo até, mas afirmava um desmentido. - A última arremetida louca para o topo do Everest... porquê? Que estão eles sequer a tentar conseguir?

- Caramba - protestou o mayor -, não vais desistir assim... sem mais nem menos.

- Eu não estou a desistir, Bob.

- Talvez eu te tenha compreendido mal - disse o mayor lentamente. - Que tencionas então dizer à Jill?

- Principalmente umas coisinhas.

- Significando o quê?

Paula sorriu, zombando de si própria. O sorriso desapareceu depressa. Pronunciou em voz lenta:

- Significando "au revoir". Quero voltar a ouvir a voz dela. Quero que ela ouça a nossa. Quero dizer-lhe onde ela poderá encontrar, naquele casarão, as nossas pratas... as da avó Jones. Quero que ela saiba que há umas jóias minhas, algumas que tu me deste, outras que estão na família há gerações... que se encontram depositados num cofre na casa-forte da filial da Irving Trust na esquina da Rua 42 com o Parque e que a chave está na minha escrivaninha. Quero pôr em ordem tudo o que puder.

"Mas além de coisas, quero que ela saiba que não pensamos que ela falhou, mesmo com o seu divórcio. Quero que ela saiba que compreendemos que a enchemos de demasiadas coisas porque havia sempre fotógrafos e repórteres e microfones, e que foi bastante difícil para nós, tu e eu, adultos, conservar uma certa dose de perspectiva, e que desde o princípio foi provavelmente impossível para ela, uma criança, ver o mundo como outra coisa que não fosse um grande pudim de ameixa... e todo dela ainda antes de ela ganhar qualquer parcela do pudim. E uma pessoa tem de ganhá-la, senão nunca será realmente nossa.

"Quero que ela seja feliz, que encontre a sua própria felicidade, e nesse sentido será bom que nós... já não estejamos cá, porque então ela já não terá abrigo onde se esconder a tremer e a sentir dó de si própria.

"Mas acima de tudo, Bob, quero que ela saiba o que é verdade e foi sempre verdade... que é muito preciosa para nós, querida; e que neste ridículo apuro em que nos encontramos agora, é nela e em mais ninguém que pensamos. Isso talvez lhe dê um pouco de apoio, um pouco mais de... força do que aquela que até hoje tem logrado demonstrar. - Paula fez uma pausa. - São estas as coisas que eu quero dizer, Bob. Achas... mal?

O mayor pegou-lhe no braço. Havia ternura na sua voz.

- Vamos procurar um telefone - disse.

Cary Wycoff encontrou o senador Peters encostado à parede, a observar a sala.

- O senhor está a aceitar isto com bastante calma

- disse o congressista num tom de censura.

- Que sugere que eu faça? - replicou o senador. Um discurso? Que promova uma audição ao nível de comissão? Quer que redijamos uma lei ou uma declaração de voto minoritário? - A sua voz alterou-se subtilmente. - Ou acha que devemos telefonar para a Casa Branca e lançar claramente as culpas sobre o governo e depois telefonar a Jack Anderson e contar-lhe tudo o que está por detrás desta história?

- O senhor e o Bent Armitage... -retorquiu Wycoff- tratam-me ambos como se eu fosse ainda um garoto, como se ainda usasse cueiros.

- Talvez, rapaz - declarou o senador -, isso seja porque você se comporta algumas vezes infantilmente. Não sempre, mas algumas vezes. Como agora, por exemplo. - Cobriu a grande sala com um olhar. - Eles são uma data de idiotas que não fazem a menor idéia do que se está a passar. Você já assistiu a uma situação de pânico? Verdadeiro pânico? Uma multidão enlouquecida de medo?

Wycoff replicou:

- E o senhor? - Devia ter pensado antes de perguntar, disse para consigo; Jake Peters nunca exibia uma arma descarregada quando discutia ou argumentava.

- Eu estava em Anchorage em 1964 - disse o senador - quando do terramoto. - Fez uma pausa. - Você já presenciou ao menos um simples tremor de terra? Não? O terror que suscita, penso eu, não tem nada que se lhe compare. Uma pessoa considera a terra sólida, imutável, segura. E quando até ela começa a mover-se debaixo dos nossos pés, então nada mais é seguro. - Fez um pequeno gesto impaciente. - Adiante, o que eu queria dizer era que já assisti a uma situação de pânico, sim senhor. E não quero assistir a outra. Particularmente aqui.

- Muito bem, nem eu. Que é então que sugere?

- Que me afaste da parede - disse o senador, e assim fez.

Wycoff abriu a boca num ímpeto de cólera. Tornou a fechá-la de estalo.

- Não se precipite a tirar conclusões - advertiu o senador -, não estou a brincar consigo. Palpe a parede. Está quente, não está? Tenho estado aqui encostado a senti-la aquecer. E está a aquecer bastante depressa. Isso significa provavelmente que ar aquecido, possivelmente até mesmo fogo, está a subir por alguns dos poços de ventilação centrais. - Lançou uma olhadela ao seu relógio e sorriu sem gosto. - Mais depressa do que eu pensava.

- O senhor devia ter sido um cientista. - Havia antipatia na voz de Wycoff.

- E porventura não o somos, você e eu? Cientistas sociais praticantes, não acha? - Ó senador sorriu, desta vez com gosto. - Não muito científicos, concedo-lhe, mas tentamos medir o pulso e a tensão arterial das pessoas que representamos... e depois agir de modo adequado.

- E algumas vezes, talvez a maioria das vezes - replicou Wycoff-não agir em absoluto.

- Isso em si mesmo é actividade. Uma coisa que aparentemente leva muito tempo a aprender e que alguns nunca aprendem. "Não fique praí parado, faça qualquer coisa! ", eis a reacção habitual. Quando às vezes, pelo contrário, "Não faça nada, deixe-se ficar aí parado!" seria um conselho muitíssimo mais sensato. Você recorda-se de quando Mowgli cai no ninho de cobras e elas não querem fazer-lhe mal, mas dizem para Kaa, a serpente píton dos rochedos: "Pelo amor de Deus, recomenda-lhe que esteja quieto e que pare de se agitar e de pôr os pés em cima! "? As chamas do inferno, meu rapaz, não me agradam mais do que a si, mas não me ocorre nada que se possa fazer e, a não ser que me ocorra alguma coisa útil, não adianta contribuir para tornar a situação pior. Portanto descontraia-se e observe as pessoas. Para onde supõem que o Bob e a Paula Ramsay se dirigem com tanta determinação? Para os mictórios? Wycoff sorriu:

- Uma presunção tão boa como qualquer outra.

- Provavelmente melhor que a maioria - disse o senador. - Precisamente no meio de um debate que provocou grande excitação nos dois grupos parlamentares e encheu as galerias com gente da imprensa, da rádio e da TV, para já não falar de simples curiosos, militantes de partidos que julgam que o futuro da nação está em jogo e talvez esteja... mesmo no meio, o senador de Nebraska ou Oklahoma ou, sim, Nova Iorque, inclina-se para o seu colega e murmura-lhe qualquer coisa ao ouvido, e na galeria da imprensa toma-se nota de que alguma coisa vai acontecer. E vai. O que o senador disse foi isto: "George, tenho de mijar ou rebento. Foi aquela data de café e a sopa de ervilhas. Eu volto antes de esse saco de vento acabar de despejar o recado." E levanta-se e sai solenemente da sala. Todos os que se encontram na galeria pensam que ele vai dali directamente para a Casa Branca a fim de se avistar com ELE.

Wycoff voltou a sorrir.

- Que é que o senhor deseja para epitáfio, Jake? "Saiu a rir"?

O senador meneou a cabeça. A sua expressão era séria.

- Não. Gostaria de me convencer de que adquiri o direito ao mais elevado de todos os epitáfios: "com aquilo de que dispunha, fez o mais que se podia fazer." Creio que não fazia mal nenhum se fôssemos tomar uma bebida, não acha?

- Não podemos saber o que aconteceu - declarou Joe Lewis, o engenheiro electrotécnico. - Talvez os motores se tenham queimado. Talvez o cabo que transportava a energia para eles se tenha inutilizado. Tudo o que podemos fazer é trazer outro cabo da subestação, estabelecer a ligação e ter esperanças de que reste cabo ascendente bastante para levar energia aos motores do elevador. - Ergueu as mãos e deixou-as cair. - É o melhor que podemos fazer.

- Então vamos a isso - disse Giddings. - A estação de Edison dar-nos-á toda a ajuda que puder. - Fez uma pausa e olhou para o céu onde os grandes edifícios pareciam confluir. - Você será capaz de me explicar porque é que pensámos que tínhamos de edificar este maldito prédio tão grande?

- Porque - respondeu Joe Lewis - outro qualquer construiu um prédio grande e o nosso tinha de ser maior. Tão simples como isso. E agora, mãos à obra.

17, 03 h- 17, 18

Zib encontrava-se de regresso à sua secretária na revista e incapaz de se concentrar. Era tarde, mas tinha diante dela pilhas de originais que haviam sido lidos e transmitidos até ela como possibilidades de aquisição de direitos, e em regra ela considerava a leitura desses trabalhos interessante, pelo menos como exercício de juízo crítico. Hoje, porém, achou-os sem interesse, idiotas até e, como agora se dizia, irrelevantes.

E contudo isso não era verdade. Sem mesmo precisar de olhar para as páginas, sabia que uma boa percentagem, até a maioria das histórias, se ocupavam das mulheres e dos seus problemas, e se isso não era relevante, então que havia neste mundo que o pudesse ser? Porque ela era uma mulher jovem, não é verdade? E só Deus sabia que se tornara por fim evidente que tinha problemas como toda a gente.

Como toda a gente. Era essa frase que a magoava, porque ela sempre considerara que não era como toda a gente.

Crescera como Zib Marlowe, um nome que tinha significado, e depois casara-se com um jovem em plena carreira ascensional, Nat Wilson da firma de Ben Caldwell. Esses dois factos só por si eram suficientes para distingui-la. Mas havia mais.

Havia aquele seu emprego de directora literária de uma das poucas revistas nacionais remanescentes, e desempenhava-se bem do seu trabalho. Havia o facto de o seu aspecto e figura, e uma inteligência educada muito acima da média. Havia - bem, fossem quais fossem os critérios de selecção, encontrar-se-ia sempre a Sr. a Zib Marlowe Wilson nos limites superiores da classificação.

Excepto talvez nas antiquadas virtudes que outrora eram consideradas tão importantes. "Que me respondes a isto, queridinha?

Risca a pergunta; Zib tinha-a respondido de forma satisfatória anos antes, o que era uma das razões para ter chegado aonde chegara.

E contudo, paradoxalmente, era ali mesmo na redacção da revista, esse monumento da sofisticação da camada superior da classe média, que de vez em quando encontrava motivo para duvidar da solidez das convicções que elegera. Tinha havido, por exemplo, essa história de Meacham uns meses atrás que lhe interessara e pela qual se batera sem êxito com Jim Henderson.

- Elizabeth, linda - dissera Jim -, as nossas leitoras estão bastante acima da média ou não leriam nada, estariam simplesmente coladas em frente da televisão. Mas são também esposas e mães preocupadas com orçamentos e hipotecas e associações de pais e professores, com coisas mundanas desse gênero. E a maioria delas não seria capaz de reconhecer uma crise de identidade se fosse afectada por ela. Eu próprio não sei se seria. Elas são o encanto especial da terra, e digo isto como elogio. Repara agora nesta história de contemplação do umbigo...

- Como você tornou abundantemente claro - atalhou Zib -, você é quem manda. Mas acontece que se trata de uma maravilhosa, sensitiva, penetrante...

- Data de disparates - concluiu Henderson. Levantou-se da cadeira, deu a volta à secretária e voltou de novo a sentar-se. Estava em mangas de camisa, comprido, ossudo e implacável. - Às vezes não te compreendo, rapariga. Tu és uma excelente directora literária no domínio da ficção. A maior parte das vezes. Depois um agente qualquer, o Soames provavelmente, que te conhece as fraquezas, manda-te uma coisa como esta e tu ficas toda entusiasmada quando sabes perfeitamente que não é isso que publicamos.

- Talvez devesse ser.

- E isso é um disparate também, e tu sabe-lo. Estás a ser pateta. Trata de devolver isto. - Estendeu o original entre o polegar e o indicador, como se fosse um papel sujo.

Zib, furiosa, voltou ao seu gabinete e telefonou a John Soames.

- Lamento, John. Eu gostei do trabalho do Meacham...

- Deixa-me adivinhar o resto, querida. Lord Henderson não gostou, e acabou-se a história. Mas que outra coisa podíamos esperar? Não havia hipótese.

- Então - perguntou Zib - porque foi que me mandaste a história?

Ele estava a sorrir. Zib quase conseguia vê-lo. E na face bronzeada, por debaixo dos óculos, franzindo os cantos dos olhos, o sorriso parecia muito avuncular, muito professoral-britânico, muito homem de letras cheio de confiança.

- Só para te mostrar a qualidade de ficção que a tua revista poderia publicar, se quisesse. Para que mais havia de ser?

O dia estava já ligeiramente desfocado, e ver para além do fingimento parecia fácil. Bizarro.

- Não devias desperdiçar o teu tempo - disse Zib -, nem o meu.

Houve um breve silêncio. Teria o sorriso desaparecido ou perdido um pouco da sua confiança? - vou ser franco contigo, querida - disse Soames numa voz diferente. - Enviei-te a história jogando na possibilidade de poderes comprar-ma pagando pelas vossas esplêndidas e exorbitantes tabelas um preço do qual dez por cento iriam para o meu cofre a título de comissão. Em vez disso tentarei impingi-la noutro lugar qualquer e talvez acabe por largá-la se alguém lhe quiser pegar. Se a minha comissão exceder dez dólares, em vez dos cento e cinqüenta que eu receberia de vocês, ficarei muito surpreendido.

- Pelo menos estás a ser honesto - declarou Zib, embora ela devesse saber desde o princípio como as coisas eram. - Diz-me uma coisa mais. No lugar do Jim Henson, terias comprado a história?

- Valha-te Deus, não! É ofensiva, pretensiosa, flatulenta. Mas, como ambos concordamos, tem um certo encanto, e a malta literata vai-se fartar de falar nela.

Porque se estaria ela a lembrar de uma coisa dessas decorrido tanto tempo? Porque, pensou, uma pessoa no fundo nunca esquece as derrotas, o que faz é escondê-las a um canto na esperança de que acabem por ficar decentemente cobertas pela poeira. Em voz alta, sussurrando: "Seja como for, que diabo estou a fazer aqui? Responde-me a isso, Elizabeth."

- Zib, querida. - Cathy Hearn, directora-literária-adjunta, estava parada à entrada da porta. - Como podes estar tão calma? O prédio que o teu inteligente marido planeou está a rebentar pelas costuras. A rádio e a TV portátil em cima da secretária do Jim estão a transmitir a reportagem e tu encontras-te aqui sentada a trabalhar! Francamente! Desligaste-te do mundo?

Cathy, pensou Zib, era uma provinciana anafada, vinda de uma cidadezinha qualquer do Midwest e que adorava intensamente viver na grande cidade. Era gorda e vivia constantemente preocupada com isso; mais espalhafatosa que brilhante, mas sempre a tentar dissimular esse facto; tão familiarizada com o sexo como uma coelha, mas sempre a exalar uma aura de fresca virgindade.

- Lá por isso, talvez me tenha desligado - disse Zib. Cathy empoleirou uma ampla anca num canto da

escrivaninha de Zib.

- Sarilhos, jóia? - Fez uma pausa. - Sarílhos com homem, naturalmente. E sempre isso. - Meneou a cabeça. - Há regras - disse ela. - Se o teu homem entra e te encontra engalfinhada com outro qualquer, é de supor que diga: "Ah, perdão! Continua!" E se tu puderes continuar, mo é savoir-faire.

Imaginar Nat nesse papel. Não era possível. "Enfrenta a realidade - disse Zib para consigo-, estás casada com um tipo recto, com um autêntico e honesto exemplar do tipo deus-pátria-e-família, conservador como Herbert Hoover e com as idéias morais de McKinley." Por um momento a cólera flamejou, tremeluziu e apagou-se.

- Não te sentes bem? - Havia preocupação na voz de Cathy.

Zib meneou a cabeça. O cabelo comprido cobriu-lhe a face. Ela repeliu-o para trás furiosamente.

- Nem sequer tenho essa desculpa.

Então - disse Cathy judiciosamente - sugiro um curandeiro, para te dar pílulas ou para te fazer desabafar. - Fez uma pausa. Depois, incredulamente: - Não estarás grávida, ou qualquer coisa ridícula desse gênero?

De novo o menear de cabeça. De novo o movimento furioso a repelir o cabelo. Porque havia ela de usar o cabelo tão comprido? Porque o usavam comprido as outras pessoas? Porque era a maneira elegante de usá-lo? Porque a moda assim o decretava? Que coisa ridícula!

- Não estou grávida. Não te preocupes comigo, Cathy.

- O meu problema - disse Cathy - é ser uma mãe no fundo do coração. Em miúda já era muito maternal. Tinha um não mais acabar de pintos, cordeiros e vitelinhos. E preocupava-me com eles. Enlatava vegetais e cozinhava bolos e sabia que um dia ELE havia de aparecer montado no seu cavalo branco para me colher (se tivesse força para levantar-me) e eu lá iria atravessada na sela a caminho do poente para constituir uma família, e isso havia de dar-me motivos bastantes de preocupação. Em vez disso, aqui estou eu, a psicanalisar gratuitamente...

- Cathy, vai-te embora.

Foi a vez de Cathy menear a cabeça. Afastou os cabelos compridos da face com ambas as mãos.

- E hei-de deixar-te aqui a matutar? Nem penses nisso. Se te demoras muito tempo a olhar para dentro de ti, acabas por descobrir que não te agrada nada do que vês, absolutamente nada. Toda a tua vida é uma simulação personificada, uma autêntica baralhada. Passaste estes anos todos a tentar descobrir quem és, como acontece nas novelas, farejando nos sítios mais esquisitos, e o que finalmente encontras é um centro de impulsos instintivos todo engelhado e incapaz de se escapulir para fora dos limites de uma camisa de noite solta; é isso que tu encontras, e o que é pior, o que é muito pior, o estuporzinho está-se a rir de ti. - Fez uma pausa para tomar fôlego.

Zib disse lentamente, solenemente:

- Sim, tens razão. Está-se a rir de mim. Cathy manteve-se calada por alguns momentos.

- A coisa afectou-te bastante, jóia. As mulheres do tipo aristocrático, como tu, a impressão que dão é que nem sequer perdem tempo a analisar-se, quanto mais a sentirem-se responsáveis por qualquer complicação que vos surja. Tu...

- É assim que tu vês isso, Cathy? - Era a sua própria voz, mas soava como a de uma estranha, e estava a fazer uma pergunta que nunca ocorrera a Zib fazer. - É assim?

- Não é tanto assim. - Cathy sorria, zombando de si própria, do seu exagero.

- Mas há um fundo de verdade nisso? - "Seria isso o que Nat também via? "

- Olha - respondeu Cathy-, estamos a discutir como duas colegiais... - Voltou a sorrir. - Eram discussões dessas que costumávamos travar depois do toque a silêncio no internato, nos tempos em que "Quando é que vais começar a usar soutien?" era a questão mais importante.

- Estou a perguntar - disse Zib. - Diz-me como a coisa te parece segundo a tua perspectiva.

Cathy hesitou.

- Estás a forçar-me a responder, não estás? - Fez uma pausa. - Muito bem. A coisa é assim. Eu freqüentei uma escola primária rural e um liceu de província com um cento de estudantes transportados de autocarro (não é uma forma elegante de viajar, mas era a única de lá chegar) disseminados por uma área que cobria cem milhas quadradas de terras rústicas. Tu para onde foste? Para o colégio de Miss Isto ou Miss Aquilo? Eu freqüentei uma universidade de que tu nunca ouviste falar. E tu? Vassar? Smith? Wellesley? Radcliffe? Meu pai chegou a freqüentar esse mesmo liceu, simplesmente houve então uma depressão e ele teve de desistir para ir trabalhar no que lhe aparecesse, o que não era grande coisa, porque o avô tinha sido suspenso por falta de trabalho no caminho-de-ferro. Teu pai esteve em Harvard? Ou teria sido em Yale? E talvez a depressão também vos tivesse afectado, vos tivesse levado até ao último iate, não me surpreenderia nada, mas a vossa gente sabia que era apenas um contratempo passageiro, enquanto os meus pensavam que o que estava para vir era o fim do mundo e não a era da prosperidade de que alguns falavam. A diferença básica entre mim e ti é que tu sabes que tudo o que fizeres está bem feito, porque como poderia ser de outra maneira? E eu tenho de meditar e preocupar-me com cada passo que dou, porque tão longe quanto se sabe os Hearns têm sido uns perdedores natos, talvez eu tenha quebrado o enguiço, mas quem sabe se os genes não existem em mim também, esperando apenas a sua oportunidade para me saltarem em cima. - Cathy fez uma pausa. - É essa a diferença entre ambiente básico e vazio cultural.

- Eu não sabia, Cathy. Nunca pensei nisso.

- E a última coisa que te quero ouvir dizer - disse Cathy - é que lamentas.

- Não o direi. -Zib passou um momento a reflectir. - Tu conheces o Nat. Disseste que ele é inteligente. Ele...

- Deu-te finalmente com os pés? - O tom de Cathy falava muito mais eloqüentemente que as suas palavras.

Zib ergueu os olhos.

- Já estavas à espera disto? Estavas atenta para ver quando isto acontecia? - Mas como se explicava que não experimentasse qualquer ressentimento?

- Não acompanhámos o jogo todo - disse Cathy-, mas seguimos as marcações o melhor que pudemos. Levantou-se da escrivaninha. - O que mais me surpreende é que, apesar do que se passa lá em baixo na cidade, continues aqui sentada a ler este refugo de baboseiras.

Portanto aí estava no que ia dar, a verdade básica posta a nu.

- Tenho estado a pensar em mim - disse Zib, e descobriu que não lhe custava nada dizer isso. - Nem sequer por um momento pensei naquilo que está a acontecer na cidade. - Fez uma pausa. - Acho que pensar em mim é um hábito que eu tenho.

- Pode ser que sim - proferiu Cathy, e saiu.

Era uma bonita vivendazinha em Garden City; relvado, petúnias brancas em flor, tabela e aro de basquetebol montados na porta da garagem, enorme antena de televisão apontada para a cidade, firmada à chaminé de tijolos e dominando o telhado.

A Sr. a Pat Harris, em calças justas cor de pêssego, alpergatas a condizer e corpete às riscas, abriu a porta. Trazia o cabelo enrolado em frisadores de plástico azul. Era jovem, atraente e inteiramente convencida disso.

- Bem - disse ela-, isto é uma surpresa, Sr. Simmons. Quer falar com o Pat?

- Se for possível. - Paul exibia o seu sorriso de actor e as suas maneiras descontraídas.

- Está lá em baixo a ver TV. - A rapariga fez uma pausa. - Pensávamos que o senhor estivesse na inauguração da Torre Mundial, Sr. Simmons. Não vi na TV, mas sei que estão a transmiti-la. Bem sabe, há sempre coisas a fazer em casa, mesmo quando o Pat cá está. Pode descer. Ele vai ficar muito contente quando o vir.

"Duvido que fique"-pensou Paul, mas o sorriso conservou-se inalterado quando desceu a escada que conduzia à sala de jogos apainelada. No painel do maciço aparelho de televisão a cores os carros dos bombeiros que sejuntavam em torno da praça tinham uma cor de sangue. O som estava baixo e a voz do locutor era quase inaudível: "Temos informação, senhoras e senhores, de que o fogo se está a espalhar no interior do prédio. Este desastre completo - porque a coisa começa a apresentar-se como um desastre quase certo - é incrível. Todos os factores de segurança conhecidos pelos arquitectos..."

O painel apagou-se e o som cessou imediatamente. Da sua cadeira Pat Harris disse:

- Bem aparecido, patrão. Calculei que viesse por cá. - Pousou o comando a distância na mesa do café e saltou para fora da cadeira. - Uma bebida? - Havia uma vaga hostilidade por detrás das suas palavras.

- Acho que uma bebida será boa idéia - disse Paul. Sentou-se e olhou em volta.

Havia um sofá e uma mesa de bilhar do tamanho regulamentar, um grande sofá de napa com poltronas a condizer, uma mesa de cartas com baralhos e fichas de póquer sobre o pano verde, uma tábua de dardos numa parede com três dardos cravados no centro do alvo.

- Você tem aqui uma bonita sala - disse Paul. Aceitou a bebida, agradeceu com a cabeça, saboreou o bem-apaladado whisky- "Chivas Regai, quase aposto", pensou. - Muito bonita.

- Sim. - Pat Harris era um homem pequeno e vivo. Os seus olhos irrequietos observavam atentamente a face de Paul. - Um homem trabalha muito, precisa de alguma compensação. - Harris fez uma pausa. - Não passo de um operário - disse. - Faço o que me mandam.

Paul ignorou o aparelho de televisão apagado e silencioso e concentrou-se no homem.

- Tenciona manter-se na mesma linha? - perguntou. Fez uma pausa. - Fazendo aquilo que lhe mandam?

Harris acendeu um cigarro e soprou uma nuvem de fumo. com o cigarro ainda pendente do lábio, partiu o fósforo aos bocadinhos; os seus movimentos eram bruscos e sacudidos.

- Tenho estado a pensar nisso. - Teve um sorriso rápido, sem significado. - É curioso que eu estava justamente a pensar nisso quando vossemecê desceu a escada.

Paul perguntou devagar, com cuidado:

- E a que conclusão tinha chegado?

Outra enorme nuvem de fumo. Harris inclinou-se para diante a fim de quebrar a cinza no cinzeiro sobre a mesa de café. Voltou a recostar-se.

- A coisa é assim, se é que me faço perceber, digamos por exemplo que vossemecê trabalha para um tipo. Ele é um porreirinho, trata-o bem, portanto vossemecê deve-lhe algo mais do que um coice nos dentes, não acha?

- Considero esse ponto de vista razoável - disse Paul. - Uma maneira amigável de ver as coisas.

- Por outro lado - continuou Harris-, se é que me percebe, um tipo tem, vossemecê sabe, de olhar por si mesmo. Vivemos num mundo de cães que se comem uns aos outros. Cada um trata de servir-se, ou não se abarbata com nada. - Fez uma pausa, à espera.

- Penso que há também alguma força nesse ponto de vista - admitiu Paul.

- Está a falar como um doutor.

"Falar como um doutor é um engano - disse Paul para consigo -, porque se dá a impressão de querer fechar a boca ao interlocutor." Mas era demasiado tarde para fazer outra coisa além de ignorar o deslize.

- Continue - disse.

- Da maneira que eu vejo as coisas, vossemecê sabe, uma pessoa compara uma com a outra e tenta ver o que é... razoável.

Paul fez que sim com a cabeça e sorveu o whisky. Soube-lhe imediatamente mal e produziu-lhe uma sensação de ardor no peito. "Pura e simples tensão" - disse para consigo próprio.

- E - perguntou com calma suficiente - como é que você decide?

Harris tirou o cigarro do cinzeiro, aspirou profundamente e soprou quatro grandes anéis de fumo em rápida sucessão antes de falar.

- Ouvi dizer que Bert McGraw está no hospital com um ataque de coração. Ouvi dizer que é capaz de não escapar. - Os olhos irrequietos procuraram a face de Paul.

- Isso não sei - retorquiu Paul. - Ele teve com efeito um ataque de coração. - Agitou a mão. - Estávamos a falar do que você pensa. Bert não interessa de momento.

- Isso - replicou Harris - não é assim. Se eu imaginasse que havia de ter esse velho a fitar-me com olhos congestionados... - Meneou a cabeça.

- Bert - disse Paul - mostrou-me umas ordens de alteração. - A sua voz estava inteiramente calma. Perguntou se tínhamos feito as alterações. Eu respondi que sim, naturalmente que as fizemos, porque não havíamos de fazê-las?

Harris passou as costas da mão pela boca.

- Jesus! Agora sei que vossemecê caiu como um pato.

Paul meneou a cabeça. "Não ligues à sensação de ardor. Não ligues a nada senão a isto."

- As ordens de alteração vieram à tona - disse. -Não sei como, mas foram parar às mãos de Will Giddings. Dissesse eu o que dissesse ao Bert, eles iam desatar a abrir as paredes para verem com os seus próprios olhos. Portanto a única coisa que eu podia dizer era, sim, naturalmente fizemos as alterações. Olhe para a assinatura: Nat Wilson, o menino-bonito de Caldwell. Havíamos de discutir ordens de cima? - A sua voz sublinhou as quatro últimas palavras.

Harris apagou o cigarro esmagando-lhe cuidadosamente a ponta. Depois voltou a erguer os olhos.

- Não sei - disse. - Vossemecê fala como um doutor e o que diz soa bem, mas não sei. - Levantou-se, atravessou a sala, deu meia volta e encaminhou-se de novo para a cadeira onde se deixou cair com um baque audível. - vou ser franco consigo. Vossemecê foi um bom patrão. Trabalhei para uns certos bastardos que só queria era ter uma oportunidade de pregar-lhes um coice nos dentes, mas vossemecê é porreiro.

- Obrigado - disse Paul, e com sinceridade.

- Eu lhe direi como vai ser. Há duas coisas que eu posso fazer, como sabe. Dois caminhos que posso seguir. Primeiro - ergueu um dedo - posso ir à Câmara Municipal quando isto acabar. - Indicou o aparelho de televisão com um gesto. - Posso dizer: "Jesus, se eu pudesse sequer imaginar o que se passava, teria dito para ele não se meter numa coisa dessas." Ele, quer dizer vossemecê. "Mas", posso também dizer, "que diabo, ele é o patrão, e é um engenheiro, e diz-me que as alterações estão bem e as ordens vêm assinadas pelo arquitecto, e quem diabo sou eu para me meter a discutir ordens de cima?

Fez-se um silêncio. Paul pronunciou sem expressão:

- A única coisa que você discutiu, Pat, foi quanto queria para não discutir.

- Isso é o que vossemecê diz - contestou Harris. Mas não é, sabe, aquilo que eu digo. Eu digo que discuti, e posso apresentar três ou quatro tipos a confirmarem que sim, que discuti e que vossemecê me disse que estava tudo bem, portanto eu segui com o trabalho. E Harry, o inspector, pôs o visto na obra, portanto para que havia eu de me preocupar mais?

"Calma - ordenou Paul a si mesmo-, calma."

- E qual é o... outro caminho que você pode seguir? Harris era incapaz de se conservar quieto. Pôs-se de

pé num salto, voltou a atravessar a sala, e depois deu meia volta mas não regressou à cadeira.

- Vossemecê disse ao McGraw que fizemos as alterações porque tínhamos ordens autenticadas com a assinatura de Wilson. Muito bem. Eu posso dizer o mesmo. Eu posso dizer que falámos os dois nessas ordens, que estivemos a matutar nelas, mas, caramba, quando o escritório do Caldwell nos manda fazer uma coisa, é isso mesmo que a gente faz. Esse sacaninha do Caldwell não gosta de quem se intromete nas suas decisões. - Harris fez uma pausa. - Este é o outro caminho.

- Um excelente caminho - disse Paul.

Harris encaminhou-se lentamente para a sua cadeira onde se arriou com precaução.

- Há duas coisas - disse. - Harry, o inspector, para começar.

- O Harry não causará complicações - declarou Simmons. - Ou, se as causar, será apenas para ele próprio. - Fez uma pausa. - Você falou em duas coisas. Qual é a outra?

A face de Harris conservava-se inexpressiva como a face de um jogador de póquer a estudar o adversário.

- Lembra-se de um rapaz chamado Jimmy?

- Não.

Harris sorriu ligeiramente, desdenhosamente.

- Não, eu calculei que não se lembrasse. Ele era apenas um rapazinho, trabalhava numa das minhas turmas, freqüentava a escola de engenharia de noite. - Fez uma pausa e acendeu novo cigarro. - Ele não gostava das alterações que se estavam a praticar. Não gostou especialmente da ordem de alteração que eliminava o circuito de segurança à terra da corrente primária. Disse que era perigoso e que ia falar no assunto ao Nat Wilson. - Nova pausa. - Não me quis ouvir nem ao Harry.

- Estou a ver - disse Paul, e isso foi tudo.

- Ele não chegou a falar com o Wilson - prosseguiu Harris. - Em vez disso teve um acidente. Caiu em frente de uma composição rápida do metropolitano numa hora de ponta.

No silêncio que se seguiu, Paul repetiu: - Estou a ver. Mas porque me conta isso? Sente algum peso na consciência?

O sorriso de Harris desta vez foi genuíno e significativo.

- Pode ficar-se com essa - disse. - E se eu o apoiar, tenho de jogar para que você não se vá a baixo e não tente atirar com tudo para cima de mim.

- Não me irei a baixo - retorquiu Paul. Sorveu o seu whisky. Sabia-lhe melhor.

- Só mais uma coisa - disse Harris. - Que ganho eu com isso?

- Você já recebeu a sua parte. Harris meneou a cabeça.

- Uh-uh! Pagaram-me para fazer um trabalho. Fi-lo. Isto é uma coisa diferente.

Tinha esperado essa espécie de chantagem? - perguntou Paul para consigo próprio. Provavelmente esperava, pensou. Porque não experimentava qualquer sentimento de indignação ou choque, apenas a decisão de concluir o arranjo da forma mais favorável possível. Não duvidava da sua capacidade para levar a melhor no regateio com aquele sujeitinho.

- Quanto? - perguntou. Harris estava de novo a sorrir.

- Agora estamos a entender-nos.

Paul subiu a escada sozinho. Lá em baixo na sala de jogos o aparelho da televisão estava de novo ligado, com Harris absorvido pela tragédia que se avolumava. Para a Sr. a Harris, que tinha retirado os frisadores azuis e sorria agora sedutoramente, Paul disse:

- Tem uma linda casa.

- Ah, obrigada, muito obrigada. - A satisfação dela pelo elogio era genuína.

- O Pat - acrescentou Paul - é um homem com sorte.

Quando o carro arrancou, um automóvel preto e branco da polícia dobrava a esquina para a casa de Harris. Paul esteve a observá-lo no espelho. O automóvel parou junto do passeio voltado em sentido contrário à sua mão e dois polícias uniformizados saíram, dirigindo-se para a porta de Harris.

Paul acelerou.

17.13h - 17.23h

No núcleo central, como numa chaminé, o ar aquecido ascendente criava a sua própria tiragem, que aspirava o ar fresco através das portas abertas dos átrios.

Lá fora as mais altas escadas de incêndio da cidade manobravam inutilmente; o problema era interno e não externo.

Andar após andar, acima e abaixo do nível da rua, bombeiros que suavam, arquejavam, tossiam e às vezes vomitavam, debatiam-se com as mangueiras e arrojavam água contra o inimigo às vezes visto mas geralmente oculto: o fogo.

Num milhar - ou em dez milhares - de pontos dentro das paredes do edifício, ardiam a fogo lento materiais de onde brotavam chamas hesitantes que depois adquiriam força e furor, ou ficavam reduzidas a uma mera brasa que se extinguia por falta de oxigênio.

Mas onde, por exemplo, o isolamento de espuma de borracha se derretera, tinham-se formado tubos e neles um novo efeito de chaminé que se dirigia para baixo e para fora no sentido dos patamares e corredores em busca de ar fresco para alimentar o braseiro, e as chamas crescentes contribuíam por sua vez para reforçar a tiragem. Os bombeiros Denis Howard e Lou Storr pararam no sexagésimo andar. Detiveram-se por algum tempo a arquejar, meramente existindo, enquanto os pulmões despejavam oxigênio no sangue e a força regressava gradualmente aos seus corpos. Olharam um para o outro em silêncio.

Foi Howard quem se aproximou da porta de incêndio,

experimentou e descobriu que não estava trancada. Abriu-a cautelosamente, lançou uma olhadela lá para dentro. Depois fechou-a rapidamente.

- Toca a andar - disse.

Storr abriu a boca. Voltou a fechá-la. Meneou a cabeça devagar.

Seja. - Fez uma pausa. - O sublime dever e todas essas lérias.

No atrelado Patty afastou-se do telefone e estendeu uma folha de papel ao tenente Potter.

-John Connors - disse. - Trabalhou na obra há meses. Trabalhava em chapas metálicas. - Fez uma pausa. - Foi despedido. - Nova pausa. - O sindicato não protestou.

A última frase significava muito, pensou Nat. O despedimento estava claramente justificado ou o sindicato ter-se-ia manifestado. Mas que significava isso senão que John Connors se revelara obviamente insatisfatório num aspecto qualquer? Não servia de nada aprofundar mais os motivos do despedimento; o próprio Connors tinha de ser a resposta para a questão de saber-se por que motivo entrara hoje no edifício para fazer o que fizera.

Potter via as coisas da mesma maneira.

- Um vingativo? - alvitrou. - Talvez. Uma pessoa nunca sabe a que ponto pode ir o ressentimento.

Patty estava a olhar através das janelas do atrelado para a praça, vendo a água suja e tremeluzente que cobria agora quase toda a área, as mangueiras como espaguete, as bombas e a multidão de curiosos.

Mas - disse - fazer o que ele fez? - O seu tom revelava incredulidade. Voltou-se para os dois homens.

Potter encolheu os ombros.

Nunca se sabe. - Enfiou a folha de papel na algibeira. - Tentaremos descobrir.

Para quê? - inquiriu Patty. Erguera o queixo. A coisa está feita. E o homem morreu.

Digamos - explicou Potter - que gostamos de esclarecer as coisas.

Nat, observando Patty, deu consigo a pensar que havia nela persistência, mais do que um vestígio do orgulho teimoso de seu pai. Recordou Bert McGraw e o gangster quarenta e cinco andares acima da rua, um ajuste de contas tão implacável e irrevogável como em qualquer cena de uma fita do Oeste. Bert não se deixava vencer; Patty também não.

- Tem de haver mais do que isso-obtemperou Patty.

Potter suspirou.

- Naturalmente há. com cada uma dessas coisas tentamos aprender. Talvez um dia estejamos suficientemente informados para podermos impedir os crimes antes de eles serem praticados. -O seu sorriso era deprecatório, dirigido para dentro à sua própria tolice. - Isso acontecerá um dia. - Dirigiu-se para a porta do atrelado, abriu-a e ia sair. Depois parou e voltou-se. – Sorte - disse, e desapareceu.

Na outra extremidade do atrelado um vualkie-talkie acordou.

- Septuagésimo-quinto andar - disse uma voz fatigada - e está a ficar mais quente do que permite o regulamento, comandante. Não há ainda fumo cá por cima, mas nem quero pensar no que está a acontecer por detrás daquelas portas de incêndio.

- Conserva-te calmo, rapaz - aconselhou o comandante. - Se não puderes continuar, não continues.

Nat viu o 2.º comandante Brown abrir a boca e depois voltar a fechá-la sem dizer nada. O comandante de batalhão viu também e o queixo endureceu-lhe numa cólera crescente.

- Não irei deliberadamente lançar fora dois homens valiosos numa causa perdida - disse-, seja lá quem for que se encontre nesse prédio.

O 2.º comandante Brown aquiesceu com um aceno de cabeça desanimado.

- Tem a certeza de que é uma causa perdida? - perguntou Nat.

- Não, não tenho, mas também não tenho a certeza de que o não seja. Dentro das portas de incêndio daquele prédio os nossos homens conseguiram subir doze andares com mangueiras. - O comandante fez uma pausa. Tanto quanto podemos dizer há mais um cento de andares, cada um com o seu incêndio, antes mesmo de o topo estar à vista. Passei vinte e cinco anos a aprender o meu ofício...

- Ninguém duvida de que você o conheça bem, Jim atalhou o 2.º comandante, e seguiu-se um breve silêncio.

Outra coisa - disse o comandante de batalhão, continuando a dirigir-se a Nat-, esse vosso gênio da electricidade. A fazer uns desenhos bonitinhos de como se liga um fio aqui e um fio acolá e, pasmem, oh gentes, um elevador rápido desata de repente a funcionar.

- Não lhe parece possível? - perguntou Nat.

- Não, não me parece possível. - Fora quase um grito. Depois numa voz calma, fatigada: - Mas estou disposto a tentar foguetões se com isso houver uma probabilidade num milhão.

O comandante de batalhão conservou-se calado um momento antes de se voltar para Brown.

- Você ainda não o disse, Tim, mas tem estado a pensá-lo e eu não lhe levo a mal por isso. No seu distrito... como diabo pode acontecer uma coisa destas? Temos um regulamento de construções. Não é perfeito, mas chega para não permitir que isto suceda. Durante cinco... seis anos, este prédio esteve em construção diante de Deus e de toda a gente, com inspectores e gente nossa e sei lá mais quem ainda a vigiar cada passo. - Calou-se e meneou a cabeça. - Não sei. Pura e simplesmente não sei.

O 2.º comandante olhou para Nat.

- Você parece saber mais a este respeito do que qualquer outra pessoa - disse, e ficou por ali, sendo manifesta a acusação implícita.

A sua primeira reacção foi de ressentimento; Nat dominou-a. Pronunciou devagar, cautelosamente:

- Começo a descobrir umas coisas a esse respeito, talvez a relacionar algumas, não que isso ajude o que você está a tentar fazer.

Brown dirigiu-se para as janelas do atrelado e olhou para fora, para cima.

- Se vocês os não construíssem tão altos - disse. Havia cólera na sua voz, a cólera da impotência. Voltou as costas às janelas. - Que diabo querem vocês provar com isso?

- Essa - retorquiu Nat lentamente - é uma boa pergunta. Ignoro qual seja a resposta.

- Eu penso que fomos ultrapassados pela nossa própria ciência - opinou Brown. - Percebe o que quero dizer? - Encaminhou-se para uma cadeira onde se deixou cair, triste, impotente e furioso. - Olhe. Eu nasci e fui criado numa cidadezinha remota a norte deste estado. O edifício mais alto do distrito tinha dois andares, não contando com as águas-furtadas... não, o mais alto era o Empire State Hotel, de quatro andares, na capital do distrito. Tínhamos riachos onde pescávamos. E ainda sou capaz de recordar o sabor da água da nossa cisterna. Nat meneou a cabeça.

- Percebo o que quer dizer.

- Meu avô adoeceu - prosseguiu Brown. - Ia na casa dos oitenta. O médico veio a meio da noite e ficou até ao meio-dia do dia seguinte, hora a que meu avô já tinha morrido. - Abriu as grandes mãos ossudas. - Era assim que aconteciam as coisas. Uma pessoa nascia, vivia, morria. Oh, é certo que havia acidentes, ninguém diz o contrário, e havia doenças que hoje se curam e nessa época nem sequer se fazia idéia do que fossem. Mas não havia prédios de cento e vinte e cinco andares e não havia também uma data de outras coisas.

Giddings subiu os degraus exteriores de acesso ao atrelado. Na face enfarruscada os olhos azuis reflectiam cólera.

- O tio de minha mulher - prosseguiu Brown como se Giddings não tivesse aparecido - está a beirar os noventa. Encontra-se num hospital. Não falemos já do que isso custa. Ele não ouve nem vê e não tem consciência de nada do que se passa em sua volta. Alimentam-no com uma sonda e ele jaz pràli, ainda a respirar, com o coração ainda a bater, os rins e os intestinos ainda a funcionar. Encontra-se assim há três meses. Os médicos sabem como mantê-lo vivo, se é que o termo se apropria, mas não sabem quando devem deixá-lo morrer decentemente. O que sabemos é demasiado para o nosso próprio bem.

- Não discordo disso - concedeu Nat. Olhou para Giddings e aguardou.

- Talvez sim, talvez não - disse Giddings. - Pessoalmente, penso que não. Não fazemos a mínima idéia do que sucedeu nos vãos mais altos dos elevadores. Que há muito calor lá em cima, calor de sobra, isso sabemos nós. As calhas poderão ficar deformadas... - Encolheu os ombros. - E por falar nisso, é possível que já estejam deformadas a estas horas. Devíamos ter-lhes dito que descessem pelas escadas.

- As malditas portas não abriam - replicou Brown.

- Deitassem o raio das portas a baixo. Nat obtemperou:

- Não sei. Perguntaram-me o meu parecer pelo telefone e eu talvez tenha dado um parecer errado.

- Não deu - esclareceu Brown. - O fogo irrompeu para o vão de uma das escadas. As probabilidades serão de que aconteça o mesmo na outra. Que seria então deles, apanhados a meio caminho e a descoberto?

- Talvez fosse melhor do que estarem onde estão - disse Giddings - encurralados. E tudo por causa...

- Por causa de quê? - atalhou Nat. - Não por causa de uma coisa. Nem mesmo por causa de duas ou três coisas. Foi uma data de coisas que não deviam ter acontecido mas aconteceram, todas ao mesmo tempo. Eu e você devíamos ter compreendido o que é que o Simmons estava a fazer, isto para começar.

- Ele foi demasiado esperto para nós, ele e aquele safardanazinha do seu contramestre.

- E o inspector - declarou Nat. - Mas um inspector superintendente devia forçosamente ter surpreendido as alterações e, das duas uma, ou não as surpreendeu ou deixou-as passar. Isto em segundo lugar. - Olhou para Brown.

Brown confirmou com um aceno furioso.

- E aparentemente deixámos passar algumas coisas que não nos deviam ter escapado. Há torneiras de pressão lá em cima, mas não há mangueiras e neste momento não deve haver também pressão porque alguns dos canos rebentaram com o calor e geraram vapor.

- Nós não queríamos esta recepção - disse Nat para Giddings. - O Frazee devia tê-la cancelado, mas você não lhe podia dizer porquê, e assim ele não a cancelou. - Fez uma pausa. - E ninguém contava que um maníaco conseguisse iludir os polícias e entrasse nas caves mecânicas para causar só Deus sabe que danos antes de perder a vida. Sabíamos que estava alguém lá dentro. Talvez devêssemos ter insistido para que o edifício fosse revistado...

- Andar por andar com um exército? - perguntou Giddings. - Você sabe que isso não teria servido de nada. - A sua irritação arrefecera.

- É esse o mal - disse Nat. - Eu sei que isso não teria servido de nada. Podíamos insistir até ficar roucos que ninguém nos prestaria a mínima atenção. - Voltou a olhar para Brown. - Você disse uma grande verdade. Temos mais ciência do que juízo. - Fez um gesto fatigado para Giddings. - Vamos lá ver se eles já estão prontos para fazer uma tentativa com um elevador.

- Quero-o aqui quando chegar a Guarda Costeira

- disse Brown. - A idéia foi sua.

Nat fez resignadamente que sim com a cabeça quando se preparava para sair.

No gabinete da Sala da Torre o governador declarou: - Mais cedo ou mais tarde vamos ter complicações, talvez pânico. - Dirigia-se ao comandante dos bombeiros. - Por uma questão de precaução, penso que devíamos mobilizar quatro ou cinco desses criados, os jovens mais bem constituídos, e mantê-los a postos.

- Encarrego-me disso - declarou o comandante, e saiu do gabinete.

- Grover - disse o governador para Frazee-, porque é que não se vai misturar com os seus convidados?

- Fez uma pausa. - E, caramba, sorria!

- Eu vou com ele-declarou Ben Caldwell. Os dois homens saíram juntos.

- E agora - disse o governador para Beth - está a ver como eu sou ardiloso? Estamos sozinhos.

Beth perguntou lentamente:

- Haverá um amanhã, Bent?

O telefone tocou nesse instante. O governador colocou o auscultador no descanso e ligou com um piparote o comutador do altifalante.

- Armitage - disse.

- Uma das escadas está impraticável, governador

- informou a voz de Brown. - A outra talvez agüente, mas pode ser também que não agüente. Os meus homens não se mostram muito optimistas, mas estão já a tentar chegar aí.

- E depois de chegarem? - perguntou o governador. Houve hesitação.

- Abrem a porta do lado por onde subiram.

- E?

Mais hesitação.

Não sei que aconselhar, governador – pronunciou por fim Brown.

Muito bem - disse o governador-, vejamos quais

as probabilidades. Uma das escadas está já fora de serviço. Quais são as possibilidades (homem, estou a pedir-lhe uma opinião, não estou à espera de mais nada), quais são as possibilidades de todas as portas de incêndio do outro lado agüentarem o suficiente para nos permitirem descer... para permitirem descer qualquer de nós?

A voz de Brown era relutante.

- Terei de dizer que são quase inexistentes, governador. - Fez uma pausa. - Há duas outras possibilidades que me parecem melhores. Talvez Wilson, Giddings e o engenheiro electrotécnico consigam pôr um elevador a funcionar. - Fez nova pausa. - E a outra é conseguirmos de uma maneira ou de outra dominar o fogo dentro do prédio antes... -Calou-se. - Dominar o fogo - disse.

A face do governador conservava-se inexpressiva. Os seus olhos estavam pregados na parede oposta.

- Então as nossas probabilidades são melhores se ficarmos aqui?

- Eu... penso que sim. - Brown hesitava. - Há outra probabilidade, mas é disparatada. Uma idéia do Wilson. Se a Guarda Costeira conseguir atirar-vos um cabo do lado norte da torre do Centro Comercial e instalar uns calções de salvação... -A voz calou-se, sendo manifesto o cepticismo.

- Aceitamos tudo - declarou o governador. Aprumou-se. - Mande regressar os seus homens.

Brown não disse nada.

- Ouviu-me? - inquiriu o governador.

- Talvez - respondeu Brown lentamente-, talvez seja melhor deixá-los continuar até aí, governador. Pelo sim pelo não. O que eu disse sobre as possibilidades foi apenas um palpite.

- Mande-os regressar - insistiu o governador. - Não faz sentido nenhum esgotá-los numa causa perdida.

Era, pensou Brown, exactamente o que dissera o comandante de batalhão. Baixou a cabeça numa aquiescência resignada, automática.

- Sim senhor. - E depois: - Dois deles... não podem regressar, governador. Têm fogo debaixo deles.

- Nós cá os esperamos, então - disse o governador. - Oferecemos-lhes uma bebida e qualquer coisa de comer. É tudo o que podemos fazer e é muitíssimo pouco.

- A sua voz mudou. - Muito bem, Brown. Obrigado pelo relatório. - Pousou o telefone. Sem mudar de expressão: - Você fez-me uma pergunta - disse para Beth.

- Retiro-a.

- Não. - O governador meneou a cabeça. - Merece uma resposta. Fez uma pausa. Por fim pronunciou: -Não sei se haverá um amanhã, mas duvido que haja. Pronto... estava dito. - E lamento isso por muitas razões.

Baixinho:

- Eu sei, Bent.

- Como pode você saber as minhas razões?

O sorriso dela era quase imperceptível, mas real: o antigo sorriso omnisciente da Mulher.

- Eu sei.

O governador fitou-a atentamente. Meneou a cabeça devagar.

- Talvez - disse. O seu gesto largo cobriu o gabinete e o prédio todo. - Estou aqui por vaidade, e uma pessoa acaba sempre por pagar isso. Gosto de ser ovacionado. Sempre gostei. Poderia ter sido um actor. - Sorriu de repente. - De qualquer maneira, aqui estou. - O sorriso alargou-se. - A descoberto - concluiu.

- Agrada-me o que vejo.

O governador conservou-se calado por alguns momentos.

- Talvez - disse por fim - com uma pessoa como você a Casa Branca não tivesse estado fora do meu alcance. - Nova pausa. - Podia muito bem ter acontecido. - Aprumou-se. - Eu preferia ficar aqui sozinho consigo, mas, como disse há pouco, uma pessoa paga pela sua vaidade. Tenho de estar lá fora, de girar de um lado para o outro... - Meneou a cabeça numa fraca desculpa.

- Posso ir consigo? - Ainda continuava a sorrir quando se levantou.

Dirigiram-se juntos para a Sala da Torre e pararam no limiar para lançar uma olhadela em redor. A sala apresentava-se como dantes: grupos que se formavam, fluíam; criados e criadas passando bandejas de bebidas e acepipes; conversa, algumas risadas até de vez em quando, um nadinha altas de mais talvez. Mas agora havia uma diferença.

É, pensou Beth, como uma dessas cenas de palco, numa ópera, ou talvez num bailado, em que uma animada mas patentemente falsa assembléia de pessoas se destina a manter interessados os espectadores até ao momento em que os actores principais saem dos bastidores.

Perguntava para consigo se o governador teria a mesma impressão, e pelo sorriso dele percebeu que sim.

- Toca a entrar em cena - disse ele,

O presidente da rede de televisão foi o primeiro a interceptá-los.

- Isto está a ficar quente aqui dentro, Bent. O governador sorriu.

- Pense no Verão passado quando cortaram a energia de uma vez só a trezentas mil pessoas que ficaram privadas de ar condicionado.

- As desgraças dos outros nunca serviram para aliviar as minhas.

- Nem tão-pouco as minhas - disse o governador. Por outro lado, quando não se pode fazer nada para remediá-las...

- Fiz sempre questão de encontrar qualquer forma de remediá-las. E você também.

O governador fez que sim com a cabeça. Estava com o seu sorriso que usava em público, mas na sua voz não havia vestígio de divertimento.

- Mas não desta vez, John. Agora não.

- Limitamo-nos então a esperar?

- De momento é tudo o que se pode fazer. - E prosseguiu o seu caminho com Beth.

O mayor Ramsay aproximou-se, na companhia da mulher.

- Alguma coisa de novo?

- Estão a experimentar um elevador. Em breve saberemos o que conseguiram.

- E os bombeiros que vêm pelas escadas?

- Dois deles - disse o governador - chegarão cá. Mandei retroceder os outros dois.

Os músculos do maxilar do mayor contraíram-se.

- Importa-se de me dizer porquê?

- Porque, Bob, os dois que cá virão ter não poderão retroceder. Há fogo no vão da escada por debaixo deles.

O mayor expeliu o ar dos pulmões num suspiro.

- E isso significa que a outra escada também não oferece segurança, não é?

- Receio bem que sim.

- Telefonámos à Jill - informou Paula Ramsay. Sorria para Beth. - Ela mandou-te muitas recomendações. - Fez uma pausa. - Foste sempre a sua predilecta. - Outra pausa. - Às vezes eu pensava que tu a conhecias melhor que eu e sentia-me ressentida por isso. Mas já não me sinto.

Mais palavras que nunca tinham sido ditas até este momento, pensou Beth. Porquê?

- Nunca tinha dado por isso.

- Agora já não tem importância. O ressentimento desapareceu todo. A Jill... - Paula meneou a cabeça.

- Ela é jovem, Paula, muito jovem...

- E agora vai encontrar-se entregue a si própria.

- Olhou para o governador. - Eu não sou uma mulher superior, Bent. Sou uma mulher furiosa. Porque é que nos encontramos aqui neste apuro? Quem é o responsável? Perguntei ao Grover Frazee...

- O Grover - atalhou o mayor - está cheio de medo e bêbado. - Havia desdém na sua voz. - De uma maneira requintada, naturalmente. Muito fino. O que ele disse foi: "Ora, ora, minha querida Paula, tudo se há-de compor... espero." Ou palavras idênticas.

- Quero que alguém seja castigado por isto - disse Paula Ramsay. - Estou farta e cansada dessas pessoas irresponsáveis e maldosas que fazem o que lhes apetece em nome de um activismo qualquer e que depois escapam às conseqüências. Quer sejam pretos ou brancos, homens ou mulheres, pediatras ilustres ou capelães universitários ou sacerdotes ou lá o que for, quero ver os responsáveis por isto punidos. - Deteve-se. - Não, não os verei punidos, pois não? Mas quero saber que serão punidos. Chamem-me vingativa, se quiserem. Chamem-me...

- Eu chamo-lhe honesta, Paula - atalhou o governador. - Confessarei que esta situação particular está a alterar também os meus pontos de vista a respeito do crime e do castigo.

- Mas não está ainda tudo perdido - protestou o mayor. - Você próprio o disse. O elevador...

- Não - corroborou o governador-, não está tudo perdido. - Pensou no socorro da Guarda Costeira e decidiu não o mencionar a fim de não despertar esperanças prematuramente. - Não gosto de usar analogias de futebol - disse. - Dão-me a impressão de que estou a ser... outro qualquer. Não falo de planos de jogo. Mas este não está acabado enquanto o apito do árbitro não toca a assinalar o final da partida. Enquanto isso não acontece...

- Uma expressão firme de grande dama - atalhou Paula Ramsay. Os seus olhos reflectiam cólera. - Sinto-me tentada a dizer obscenidades, Bent. Estou a falar a sério. - E depois: - Continue a sua digressão tranquilizadora. - Fez uma pausa e olhou para o marido.

- E nós fazemos o mesmo. Não podemos deixar ficar mal o partido, pois não? - Havia escárnio na sua voz.

O governador seguiu-os com os olhos, vendo-os afastarem-se. O secretário-geral aproximava-se.

- Aqui entre nós - disse o governador para Beth sinto exactamente o mesmo que a Paula. E se soubessem uma coisa dessas, não se ia por água a baixo a minha imagem pública? - Sorriu para o secretário-geral que empunhava uma taça de champanhe com o à-vontade que a grande prática confere. - Walther, parece-me que ainda não lhe pedi desculpa por este... melodrama. Peço agora.

- Mas é você o responsável?

- Indirecto apenas. - O governador deixou a coisa por ali, sem explicação.

- Você já reparou - disse o secretário-geral - com que rapidez, com que facilidade, a nossa perspectiva muda? Até há pouco tempo eu estava principalmente preocupado com assuntos tais como orçamento, inquietação no Médio Oriente, problemas do Sudeste Asiático, a irritabilidade de duas dezenas de delegados sobre uma dúzia de questões diferentes, o meio ambiente... -Fez uma pausa sorrindo apologeticamente. - Isto recorda-me um outro tempo em que só o imediato era importante.

- E quando foi isso? - perguntou Beth.

- Durante a guerra? - indagou o governador. É a isso que você se refere, Walther?

- Durante meses vivemos numa pilha de feno nos arredores de Munique - disse o secretário-geral. -A nossa casa tinha sido... confiscada. Eu tinha sido liberto do campo de concentração... Minha mulher conseguira arranjar isso. Éramos seis. Dois filhos, a mãe de minha mulher, uma tia minha e nós, o casal. - A sua voz era calma. - Uma vez conseguimos uma galinha, uma galinha inteira. - Meneou a cabeça brandamente. - Aprendi então o que pode significar o imediato. Essa galinha... -De novo o brando menear de cabeça. Havia na sua face, na sua voz, compaixão e compreensão sem censura. -Era para os nossos filhos, mas eles não chegaram a prová-la. - Fez uma pausa. - Quando eu e minha mulher estávamos distraídos, as duas velhotas comeram a ave. Toda, deixando os ossos completamente limpos. É assim... quando está em jogo a sobrevivência.

- Talvez - pronunciou lentamente o governador se pudéssemos trazer aqui todas as partes divergentes que lhe causam problemas e colocá-las nesta situação, víssemos resolver num abrir e fechar de olhos todas as suas diferenças. Que pensa disto como solução?

- Um expediente ianque. - O secretário-geral sorriu. - Presumo que não há nada de novo na nossa situação? - Meneou a cabeça ao reparar na expressão do governador. - Era o que eu calculava. Uma sugestão. O Sr. J. Paul Morris está, se me é permitido dize-lo, em ponto de explosão. Está indignado - de novo o sorriso-, muito para além da minha capacidade diplomática para apaziguá-lo.

- Eu falo-lhe - prometeu o governador.

  1. Paul Norris, o típico executivo alto e de cabelo grisalho, lançou-lhes um olhar ameaçador.

- Se não houver quem faça qualquer coisa sem perda de tempo - disse - eu tomarei pessoalmente conta da; situação.

O governador meneou agradavelmente a cabeça.

- E para fazer o quê, Paul?

- Não sei.

- Uma esplêndida sugestão, inteiramente digna de ti. Norris disse lentamente:

- Escute uma coisa, Bent. Já o aturei demasiado em público e em particular. Você tem uma língua afiada. Sempre a teve. E usa-a para ironizar de todas as coisas que tornaram este país grande. Você...

- Entre elas - atalhou o governador - a riqueza e as posições sociais adquiridas hereditariamente e aquilo que se costumava designar por privilégio. - Meneou a cabeça. - Vi o seu nome numa lista ainda há não muito tempo, Paul. O seu rendimento no ano passado não estava muito longe do milhão de dólares, mas mesmo assim você não paga imposto de rendimento.

- Perfeitamente legal. - Uma veia começava a aparecer na testa de Norris. - Absolutamente dentro dos regulamentos.

- Tenho a certeza de que estava, mas um nadinha difícil de compreender por um homem que ganha dez mil dólares por ano quando tem de pagar uma taxa de cerca de vinte por cento.

Enquanto observava, escutando, Beth perguntava a si mesma que finalidade poderia visar o governador ao hostilizar deliberadamente o outro, por mais justificação que tivesse para fazê-lo.

- Estou-me nas tintas para o homem que ganha dez mil dólares por ano - disse Norris. - Não é digno de qualquer consideração.

Beth sorriu para consigo própria. "Estou a ver agora - pensou-; é pura diversão, agitar o pano vermelho a fim de distrair o homem do problema fundamental."

- Sabe uma coisa, Paul - dizia o governador -, o nosso hipotético homem dos dez mil dólares por ano está-se também nas tintas para si, excepto no que se refere a causar-lhe complicações. Ele pensa que você e os da sua espécie já deviam estar enterrados há muitos anos.

- Você fala como um comunista.

- Quer dizer então que o confessa? O governador sorriu.

- Entro em linha de conta com a fonte da acusação. Os de tendências extremistas de esquerda consideram-me muito conservador... o que, juntamente com a sua opinião e com a de outros da sua espécie, me coloca aproximadamente onde me quero encontrar: muito próximo do centro. - Fez uma pausa. - Ocupe o seu tempo a meditar nestes imponderáveis. - E depois, numa voz que se tornou gélida: - Mas nem sequer pense em criar uma perturbação nesta sala, ou mando-o amarrar como um peru de Natal com uma mordaça na boca. Compreendido?

Norris respirou fundo. A veia na testa via-se agora perfeitamente.

- Você não se atrevia.

O governador mostrou os dentes.

- Não me tente, Paul. Só faço bluffno póquer. - Ele e Beth continuaram para diante.

Um criado com uma bandeja de bebidas parou em frente deles.

- Obrigado, rapaz - disse o governador. Ofereceu um copo a Beth e serviu-se de outro para ele.

- Que se passa, governador? - perguntou o criado. Conservou a voz baixa. - Eles dizem por aí, sabe, que estamos encurralados aqui sem remédio; que o fogo não está nem por sombras dominado. Eles dizem...

- Aparecem sempre uns "eles" - atalhou o governador - e sempre para anunciarem catástrofes.

- Sim. Eu sei. São como esses boateiros da Armada que estão sempre a meter o barco no fundo. Mas olhe, governador, tenho mulher e três filhos, e que será deles? É o que lhe pergunto, o que será deles?

- Rapazes - indagou o governador - ou raparigas?

- Que diferença faz isso? - E depois: - Dois rapazes e uma rapariga.

- Que idade?

O criado estava agora a franzir o sobrolho.

- Um dos rapazes tem onze anos. É o Stevie. O Bert tem nove. A Becky acaba de fazer seis. Que está a procurar impingir-me, governador?

- A Beckie é provavelmente demasiado nova - disse o governador-, mas porque é que não leva o Stevie e o Bert ao jogo de sábado?

- Isso é amanhã.

- Pois é. - O governador sorria afavelmente. - Talvez o veja lá. Se assim for, ofereço-lhe uma cerveja e uma coca a cada um dos rapazes. Que me diz?

O criado hesitou. Por fim respondeu:

- Penso que está a aldrabar-me, governador... desculpe a linguagem, minha senhora. - Fez uma pausa. - Mas com certeza, que aceito o convite se o encontrar. -Ia seguir o seu giro mas voltou para trás. - Geralmente vou para junto da primeira linha da base. - Sorria quando finalmente os deixou.

- Ele compreende, Bent - disse Beth. O governador confirmou com a cabeça.

- Eu estive colocado em Londres durante a Blitz.

- Sorriu. - Você era então muito novinha.

O sorriso de ffieth acompanhou o dele.

- Não tente tirar anos de cima de mim.

- Quando a, coisa se tornou séria - prosseguiu o governador - as pessoas agüentaram. Não gostaram, mas agüentaram. Suportavam sem se queixarem e raramente entravam em pânico. Pessoas como esse homem. Pessoas com quem Paul Norrís não está preparado para viver...

- Ou para morrer - disse Beth. - Sim. Estou de acordo. - Sentiu um ardume nos olhos. - Talvez no fim eu... entre em pânico.

- O fim não é ainda. - A voz do governador era forte. - E mesmo que chegue, você não entrará em pânico.

- Não me deixe, Bent. Por favor.

Eram 17, 23 h. Tinha decorrido uma hora desde a explosão.

17, 21h - 1? 32h

No atrelado um dos telefones tocou. Brown atendeu, identificou-se. Hesitou.

- Sim - disse-, ela está cá. - Estendeu o telefone a Patty.

- Pensei que estivesses aí, filha - pronunciou a voz da mãe. No seu tom não havia sinal de censura. - Ainda bem que aí estás. Teu pai teria ficado satisfeito. -Silêncio.

Patty fechou os olhos. Perguntou lentamente, hesitantemente:

- Teria ficado? Que quer isso dizer?

O silêncio no telefone cresceu, alongou-se. Mary McGraw deu por fim a notícia numa voz calma, sem lágrimas.

- Ele foi-se. - Apenas isso.

Patty pôs-se a fitar com olhos dilatados através das janelas a cena de controlada confusão lá de fora e encheu os pulmões de ar numa profunda inspiração trêmula.

- E eu estava aqui - disse.

- Não poderias ter feito nada. - A voz de Mary era afável. - Eu vi-o por um breve instante antes do fim. Mas ele não me viu nem sequer soube que eu estava ali.

As lágrimas estavam iminentes. Patty conteve-as.

- Já lá vou ter.

- Não. Eu vou para casa, minha filha.

- Irei lá.

- Não. - A voz da mãe era estranha, tensa e ao mesmo tempo controlada. - Agora vou tomar uma boa chávena de chá. E vou chorar. Depois irei à igreja. E não me poderás ajudar nem numa coisa nem noutra. - Mary fez uma pausa. - Isto não significa que quero afastar-me de ti. Sucede apenas que neste instante, depois de teu pai ter partido, quero estar sozinha. Ele teria compreendido.

- Eu também compreendo, mama - disse Patty, hesitantemente. "Cada uma de nós tem a sua maneira própria de enfrentar as suas dores", pensou; era um novo conceito. Nesse dia tinham surgido muitos conceitos novos.

- E tu? - perguntou a mãe.

Patty lançou um olhar quase perplexo em seu redor. E contudo a resposta era simples.

- Ficarei aqui. - com o prédio do papá. Houve uma longa pausa.

- O Paul não está? - perguntou Mary.

- O Paul não está. Isso... acabou. - Patty fez uma pausa. - O Papá sabia. - E agora no meio da dor surgiu a cólera renovada. Obrigou-se a dominá-la.

- Faz o que te parecer melhor, filha. - Pausa. Que Deus te proteja.

Patty desligou lentamente. Tinha consciência de que Brown e os dois comandantes de batalhão tentavam não olhar para ela, esperando constrangidos que ela lhes desse a deixa. Era estranha a facilidade com que compreendia aquilo; a facilidade com que compreendia muitas coisas a respeito de homens como esses, de homens com quem o papá sempre tinha lidado, homens que se não pareciam com Paul. "Mas não tenho nada que fazer aqui" - pensou.

- Meu pai morreu. - Disse isto lentamente, distintamente, e depois levantou-se. - Agora vou-me embora.

- Sente-se - aconselhou Brown. A sua voz era dura. Puxou em silêncio pelo maço de cigarros, escolheu um, partiu-o em dois e quase arremesou com as duas metades para dentro do cinzeiro. - Seu pai - disse. Tenho muita pena, Sr. a Simmons. - Através da fadiga e da tensão sorriu, uma careta afável. - Eu e ele tivemos as nossas brigas. Era fatal. Ele era um construtor e eu pela sua perspectiva era um chato, e tínhamos ambos pontos de combustão muito baixos. - O sorriso dilatou-se. - Mas melhor homem nunca existiu e sinto-me satisfeito por ele não estar por aqui para ver... isto.

Patty disse lentamente:

- Obrigada. Eu... não quero embaraçar-vos no vosso trabalho. - "Mas não tenho outro lugar para onde ir", pensou de súbito, "é tão simples como isso." E por fim a enormidade de estar só, de estar completamente só, pesou na sua decisão. Numa voz trêmula: - Obrigada - repetiu -, tentarei não vos causar embaraços.

O walkie-talkie crepitou.

- Estamos no andar da Sala da Torre, chefe. - Era a voz de Denis Howard, arquejante e rouca de cansaço. - O fumo não é por enquanto excessivo. Tentaremos desobstruir a porta.

- Que se passa com ela?

- Valha-nos Deus, chefe, como é que podem acon-" tecer coisas destas? -quase um lamento. - Há uma data de grandes caixas, caixas pesadas, algumas delas marcadas "Frágil, Equipamento Electrónico", e estão amontoadas de tal maneira que a porta se não pode abrir de dentro. Onde diabo estavam os nossos para deixarem bloquear uma porta de incêndio daquela maneira?

O comandante de batalhão cerrou os olhos.

- Não sei, Denis. Raios me partam se sei. Tudo o que sei é que, se há uma maneira errada de fazer as coisas, alguém acaba por descobri-la. É uma regra que nunca falha. E quando todas as coisas erradas acontecem ao mesmo tempo... Calou-se. - Despedacem essas malditas caixas. - A sua voz adquirira uma tonalidade selvagem. - Saiam do vão da escada e vão lá para dentro! E a vossa melhor probabilidade.

Brown fez um gesto fatigado. O comandante de batalhão passou-lhe o walkie-talkie.

- O governador prometeu-vos uma bebida e qualquer coisa de comer - disse Brown. - Isso deve ser toda a vossa recompensa.

Não houve resposta. O calor crescente avariara as baterias do aparelho de Howard.

Nat encontrava-se nas entranhas negras do prédio, movendo-se em parte pelo tacto e em parte pela luz fantasmagórica das lâmpadas de cabeça dos bombeiros, sentindo-se claustrofóbico na sua máscara e receando que cada vez que respirava fosse a última, encharcado pela água das grandes mangueiras e lutando através do fumo quase como se estivesse a atravessar uma substância sólida. Giddings e Joe Lewis e dois homens de uma equipa de reparações eléctricas de emergência encontravam-se perto, mas de momento Nat tinha-os perdido de vista.

Era, dizia para consigo mesmo, ridículo o simples facto de se encontrar ali em baixo. Joe Lewis era o engenheiro electrotécnico; sobre a localização dos quadros e dos circuitos Giddings sabia tanto quanto era possível saber qualquer pessoa, incluindo Nat. E contudo ali estava ele, incapaz de esperar lá fora ou, como um típico arquitecto de gabinete, de voltar para a sua prancheta de desenho, de lápis em punho, a cabeça cheia de cálculos abstrusos.

"Eu não pertenço a isto", e por isto já não se referia simplesmente aos subterrâneos desse grande edifício mas em geral a essa sociedade megalópode, com a sua complexa compartimentação onde a mão direita não sabe o que faz a esquerda, onde o homem se encontra tão afastado da realidade que um comutador manobrado a milhas de distância pode cortar-lhe a luz, o calor, os seus meios de cozinhar ou de se conservar lúcido contra o constante alarido tocando a espécie de música capaz de acalmá-lo. Ou pode matá-lo pelo erro radioactivo de qualquer gerador distante.

Oh, isto era um exagero, evidentemente, mas não excessivo. Aqui...

Foi subitamente empurrado por dois bombeiros que passaram por ele aos tropeções no meio do negrume, arrastando nova mangueira. Dir-se-iam inconscientes do facto de terem entrado em contacto com um corpo estranho.

E isso era outra coisa: o ajuntamento mesmo nas melhores circunstâncias. As pessoas nas grandes cidades eram como perus numa capoeira. Pareciam preferir ser abalroadas, empurradas e amontoadas em espaços impossivelmente pequenos. O metropolitano nas horas de ponta. Os autocarros. As bancadas à cunha no Yankee Stadium. As praias de Coney Island. Times Square na noite do fim de ano. Um comício em Madison Square... Meu Deus, e sentir prazer com isso!

Os pensamentos desfilavam no painel da sua mente, ultrapassando de longe a possibilidade de serem moldados em palavras.

Uma voz próxima abafada pela máscara disse subitamente.

- Se o filho da mãe quiser ter a bondade... sim, tu aí, seu bastardo! Certo. Passa-me uma luz, chiça! Um dos electricistas.

Giddings encontrava-se ali, maciço no meio do fumo.

- Se não conseguem avançar com isso, deixem-me tentar. - Também a sua voz soava irreal, distante e cava.

- Escuta, camarada, não aproximes as patas deste quadro. Não trazes contigo o cartão do sindicato.

"Oh não! - pensou Nat. -Não num momento destes!" E contudo era assim; arraigado, inelutável. Uma pessoa demarca o seu territoriozinho e defende-o contra todos os que se aproximam, amigos ou inimigos. Porquê? Porque o território é a pessoa, a manifestação da sua essência; violá-lo é violar a própria alma da pessoa. Merda. Não devia ser assim. A sua cólera alastrara a ponto de incluir agora o mundo em geral.

Joe Lewis, postado perto, disse cavamente:

- Despachem-se. - Principiou a tossir. - Há limites para o que um homem pode agüentar aqui dentro.

- Então ponha-se a andar - replicou Giddings. Nós acabamos o trabalho.

No meio do fumo e da escuridão Nat viu Lewis levantar um braço e deixá-lo cair num gesto vencido. A sua tosse era profunda, dilacerante. Deu meia volta, tropeçou, caiu, tentou levantar-se e falhou.

Giddings praguejou:

- Chiça...

- Continue com o seu trabalho - disse Nat. A sua voz era cortante. - Eu levo-o lá para fora.

Ajoelhou ao lado de Lewis, voltou-o de costas e colocou-o na posição de sentado. Lentamente, pesadamente, içou o homem para cima do ombro colocando-o numa posição de transporte, respirou fundo, e conseguiu por fim levantar-se.

Sentia as pernas fracas e mesmo através da máscara o sabor do fumo enchia-lhe os pulmões, usurpando áreas de tecido que deviam estar cheias de oxigênio, criando um atordoamento que não passava.

Inclinou-se para diante a fim de compensar o fardo que transportava aos ombros e, meio a andar, meio a tropeçar, rumou para a frente através do negrume.

O corpo de Lewis estava inerte, um peso morto. Nat não sabia se o homem respirava. Tropeçou no primeiro lanço de escada e lentamente, laboriosamente, começou a subir os degraus. Um, dois, três... havia catorze degraus entre cada patamar - porque lhe havia de lembrar uma coisa dessas nesse instante?

Treze, catorze... um patamar e depois mais degraus, e o fumo não diminuía nada.

O próximo degrau devia ser o último - e ele sabia que não era. Como num carreiro íngreme da montanha, a única coisa que uma pessoa podia fazer era baixar a cabeça e concentrar-se a colocar um pé após outro num ritmo lento. "Ignora a respiração... se puderes. Ignora a tosse que te sufoca." Treze, catorze - outro patamar e mais escadas.

Em certa ocasião tropeçou numa mangueira e caiu dolorosamente de joelhos, sentiu-se tentado a abandonar o corpo que lhe dificultava a marcha - e conseguiu afastar a tentação. "Levanta-te, caramba, levanta-te! "

Ouviu vozes, mas sabia que não passavam de sons dentro da sua própria cabeça.

Parou no meio de um lanço de escada acometido por um infindável ataque de tosse e depois seguiu para diante a cambalear.

À sua frente só havia treva e fumo. E ali estava uma porta, fechada-estaria, que Deus lhe valesse, trancada também? "Se está - pensou Nat - é porque me enganei na escada e estamos ambos arrumados."

Venceu a cambalear os dois últimos degraus e com a mão livre palpou à procura da maçaneta. Não havia nenhuma.

O atordoamento era agora quase uma náusea e pensar tornara-se quase impossível. Não havia maçaneta - porquê? "Caramba, tu conheces a resposta. Qual é? Tu és o arquitecto, não és?" Inclinou-se para a frente, empurrando o corpo inerte de Lewis contra a porta. Esta abriu-se de repente e Nat quase caiu - no meio do átrio cheio de fumo.

Finalmente lá fora no ar incrivelmente doce da praça, livre da máscara claustrofóbica - e aproximaram-se dois homens de branco para tomarem conta do corpo que ele trazia aos ombros.

- Respire isto - disse-lhe outra pessoa qualquer, e aplicou-lhe uma máscara de borracha à boca e ao nariz.

Aspirou profundamente o oxigênio e, gradualmente, a praça foi recuperando os seus contornos nítidos e as tonturas começaram a passar. Nat libertou-se da máscara e dirigiu-se com passos trôpegos para o atrelado. Sentia as pernas fracas quando subiu os degraus.

Um dos comandantes de batalhão sorriu-lhe:

- Quer entrar para o nosso departamento? - inquiriu. - Podemos proporcionar-lhe passeatas cheias de fumo quase todos os dias, se é disso que gosta.

- Muito obrigado - respondeu Nat. Obrigou-se a sorrir. Saiu uma careta. - Mas doravante combaterei os meus incêndios nas florestas.

- Sentes-te bem? - Era Patty, por cuja presença Nat ainda não dera.

Ele descobriu-a então, pequena, cheia de vivacidade, de momento preocupada, genuinamente preocupada. Porquê?

- Sinto-me óptimo - respondeu Nat. - Logo que recupere o fôlego.

- Pareces - disse Patty -, como o papá costumava dizer, um objecto pescado no East River. - Dirigiu-lhe um sorriso incerto.

Brown perguntou:

- E a respeito do elevador? Nat fez um gesto fatigado.

- É possível que funcione. Vão experimentá-lo. Não havia outra saída. A não ser... - A Guarda Costeira está a demorar - disse.

Giddings subiu os degraus. Ao vê-lo, Nat ficou com uma idéia aproximada de qual seria o seu próprio aspecto. A face de Giddings era uma mancha branca nos lugares que a máscara cobrira. A testa estava negra e a fuligem coloria-lhe o cabelo. Trazia o casaco de bombazina encharcado e listrado de negro.

- Onde é que está a graça? - perguntou.

- Um par de limpa-chaminés - disse Nat, com um novo simulacro de sorriso.

- E os limpa-chaminés - interveio Patty - costumam ser sinal de sorte. Não nos esqueçamos disso. "Reza a pedir sorte em todas as direcções", disse ela para consigo. "Onde quer que estejas, papá, que Deus te proteja."

Brown perguntou:

- Então?

- Se funcionar - disse Giddings - não parará senão na Sala da Torre a não ser... - Encolheu os ombros. Oh, bolas, a não ser quase tudo. Mas o ponto é que nem sequer saberemos que lá chegou se eles não no-lo disserem. É melhor aproximarmo-nos da corneta. Ele, Brown e os dois comandantes dirigiram-se para junto do telefone.

- Nat - disse Patty docemente. Que a levara a fazer aquilo? O mero sentimento de solidão? Não fazia idéia, mas tão-pouco se sentia com forças para resistir ao impulso. - Ele morreu, Nat. O papá. Grande e forte como era, mesmo assim...

- Lamento. - Nat pegou-lhe nas mãos pequeninas e limpas e apertou-as entre as suas. Sentiu-se desolado ao ver o resultado. - Também lamento isto.

- Não tem importância. - Patty não fez nenhum esforço para libertar as mãos. - A mãe telefonou. Viu-o, mas... ele... não a reconheceu!

Nat apertou as mãozinhas pequeninas.

- Calma. Calma. - Que outra coisa poderia dizer? "Não sou bom para esta espécie de situações", pensou; "entendo-me com as coisas, mas não com as pessoas."

- Lamento - voltou a dizer. As palavras eram ocas.

Patty prendera o lábio inferior entre os dentes. Tinha os olhos cerrados. Quando os reabriu estavam brilhantes mas não marejados.

- Estou bem. - Fez uma pausa. - Paul - disse depois, numa voz diferente.

- Que se passa com ele?

Patty tomou uma inspiração profunda e entrecortada.

- À hora do almoço eu falei ao papá nessa história do Paul e da Zib. Lamento, mas disse-lhe que ia deixar o Paul e tinha de apresentar-lhe uma razão.

Nat voltou a apertar as mãos pequeninas.

- com certeza.

Mas onde estava a dor que lhe devia causar o conhecimento de que lhe tinham posto os cornos? Para começar, tinha-se ele sequer importado? Não procurara desde o princípio iludir-se com a idéia de que entre ele e Zib havia um casamento, quando afinal aquilo não passava de um amiganço legalizado, sem quaisquer laços profundos?

- O Paul viu-o depois disso - disse Patty. - O Paul estava lá quando ele teve o ataque. - Calou-se, a observar a face de Nat.

Na outra extremidade do atrelado os quatro homens juntavam-se em torno do telefone. Ouviam-se vozes, palavras ininteligíveis. Aqui, numa pequena área de isolamento, reinava o silêncio. Nat pronunciou lentamente:

- Que queres tu dizer, Patty?

- O papá, sendo o que era - disse Patty-, deve ter descomposto o Paul por causa da Zib. Não achas que as coisas se devem ter passado assim? - Fez uma pausa. E que imaginas que o Paul teria respondido? - Fez uma pausa, e depois ela própria respondeu: - Que tu e eu também nos entendíamos. Só para ficar quite. Ou não fosse o Paul!

O silêncio envolveu-os e o tempo pareceu imobilizar-se.

- Não sei - respondeu Nat. Mas sabia. Ou o Paul não fosse o Paul: uma frase prática de aplicação adequada. - Sou pouco entendido em psicologia. Porque não lhe concedes o benefício da dúvida?

A cabeça de Patty fazia lentamente que não. O queixo mostrava-se firme.

- Se as coisas aconteceram assim - disse ela -, então ele matou o papá. - Fez uma pausa. As suas mãos estavam muito tensas entre as de Nat. - E se eu tiver uma oportunidade - afirmou -, matá-lo-ei a ele. Assim eu possa.

Nat reagiu vivamente:

- Patty... - Mas deteve-se.

A voz de Brown dizia para o telefone:

- Tem a certeza? Caramba, homem, trate de certificar-se - Falou para Giddins e para os dois comandantes. - Ele pensa que o elevador chegou lá a cima! E depois de novo para o telefone. - É certo? Sim, governador? Jesus, Maria, José! - Uma pausa. - Sim, senhor. Ficamos à espera. - Cobriu o bocal com a mão. - O elevador chegou lá acima. Estão agora a tratar de abrir as portas. Que me dizem a isto? - Dirigiu o olhar para Nat na outra extremidade do atrelado. - Você agora pode desistir dessa sua idéia disparatada do cabo de salvamento.

Nat hesitou. Aqui, finalmente, pensou, estava a lidar com um assunto onde tinha alguma competência para formular um juízo.

- Não - replicou. - Se o elevador trabalhar, óptimo. Mas conservemos uma reserva, por causa das dúvidas.

As janelas do sexagésimo-segundo andar do lado nordeste foram as primeiras a estalar com o calor. Pesados fragmentos de vidro temperado contra o sol foram projectados das janelas como se tivesse havido uma explosão, fulgiram como sincelos na sua longa queda e estilhaçaram-se na praça. A multidão excitada soltou guinchos e gritos agudos.

- Recuem essas barreiras! - gritou um megafone. Para trás, chiça!

O polícia Shannon levou a mão à face e pôs-se a fitar incrédulo o sangue que instantaneamente lhe cobriu a palma e começou a pingar entre os dedos.

Barnes puxou do lenço. Comprimiu-o contra o longo golpe rectilíneo.

- Aperta-o com força, Mike, e dirige-te para a ambulância. Vais precisar de uns pontos.

- Achas - perguntou Shannon, incorrigível - que me darão uma medalha por isto, Frank? Sempre ansiei ser um herói ferido.

- O teu desejo foi satisfeito. - Barnes começou a empurrar a multidão para fora da zona de perigo.

Os cartazes tinham desaparecido da praça, mas nos tormentos do edifício o reverendo Joe Willie Thomas encontrou pretexto para uma mensagem.

- É a vontade do Senhor! -gritou na sua voz de fanático. - É a justa retribuição! O vício e a perdularidade, de mãos dadas, abraçados, Sodoma e Gomorra que se repetem... que se repetem, digo-vos eu!

Havia pessoas que achavam a comparação apropriada.

Na atmosfera da praça havia um sabor a cinzas. Os charcos de água no pavimento tinham alastrado e eram agora poços onde a água coberta de fuligem mostrava um tom mate à superfície.

Lá no alto, incrivelmente alto, perto da torre rutilante do edifício, o fumo erguia-se opaco para o céu. Mais baixo, do lado oposto do prédio, escoava-se mais fumo e, impelido pelo vento, enovelava-se em torno da estrutura como uma capa asfixiante.

O fumo continuava a sair pelas portas do átrio, mas agora em menos quantidade. Muitos dos espectadores pensaram que o fogo estava a ser dominado. Não estava.

- Mais tarde ou mais cedo - dizia um segurador de Pine Street no meio da multidão - isto tinha de acontecer. Não quero que citem as minhas palavras, mas aí está. E, Deus seja louvado, não estamos metidos nisto.

- Os prêmios terão de subir.

O segurador fez que sim com a cabeça.

- Nem se discute. Os prejuízos têm de ser cobertos.

- E as pessoas que estão lá em cima?

- Isso - disse o segurador - é uma boa pergunta. Mas não lhe sei responder. A nossa companhia segura coisas, não segura pessoas.

17, 32 h-17, 43

O gabinete da Sala da Torre estava de novo transformado em posto de comando e o governador dominava a sala.

- Qual é a capacidade do elevador? Máxima? Mesmo com carga a mais?

Ben Caldwell disse:

- Cinqüenta e cinco pessoas é a carga prevista. Mas talvez se pudessem espremer outras dez lá dentro.

- Espremer-se-ão - retorquiu o governador. - Fez uma pausa. Sorriu, sem alegria. - Tradicionalmente as mulheres e as crianças são as primeiras. Alguém vê qualquer razão para abandonar a tradição?

- Vejo eu - declarou Beth, e fez-se silêncio. - Vocês são as pessoas importantes - disse ela. - Vocês são as pessoas que precisam de ser salvas. Acabem com esses cavalheirismos disparatados e sejam práticos.

Grover Frazee exclamou:

- Ouçam, ouçam!

- Cale-se, Grover - ordenou o governador, num tom irritado.

- Muito bem - apoiou o senador Peters -, sejamos práticos, minha querida. Tivemos o nosso tempo. Fizemos as ondas que pudemos fazer, influenciámos os acontecimentos que nos foi dado influenciar. - O hábito da oratória era forte. Teve de fazer um esforço sobre si próprio para abandonar os floreios. - A questão é que a tradição não provém apenas de cavalheirismos disparatados.

Baseia-se nesses aspectos práticos que você reivindica. São vocês e não nós o futuro da raça humana. Nós administramos os negócios enquanto vivemos, mas vocês providenciam para que haja quem nos substitua e cuidam dos nossos substitutos até eles se encontrarem aptos.

- Você está vencida, Beth - pronunciou o governador. Sorriu enternecido. Olhou em torno do gabinete. - Todas as mulheres. Você, Pete - ordenou para o comandante-geral dos bombeiros - providencie nesse sentido. Os outros ajudem-no. E despachem-se!

Beth esperou até ficarem os dois sozinhos.

- Eu não vou, Bent. Não vou sem si.

- Oh, sim, vai - O governador dirigiu-se para a parede interior do gabinete. - Venha cá. - Não a perdeu de vista enquanto ela se aproximava lentamente, surpreendida; então, pegou-lhe na mão e colou-a contra a parede. Ela retirou a mão vivamente. - Está quente, não está? -inquiriu o governador. - Não temos muito mais tempo e eu quero-a em segurança.

- Eu disse-lhe...

- Mas eu estou a dizer-lhe... - Ergueu-lhe o queixo com o indicador curvado e beijou-a ao de leve. - Não vou fazer discursos. Pela primeira vez na minha vida não tenho palavras para exprimir o que penso e o que sinto. Sorria afectuosamente. - E se isso parece incrível, bem, toda a situação é incrível, mas aconteceu. - Passou-lhe o braço em torno da cintura. - Venha. vou despedir-me de si.

Ela continuou a resistir.

- Haverá uma segunda viagem? Você? Os outros?

- Contamos com isso. Primeiro trataremos de pôr-vos em segurança. - Encaminharam-se juntos para a porta e aí pararam.

Lá fora uma voz gritava:

- Que diabo pensam que estão a fazer?

Havia outras vozes excitadas e o som de passos que corriam.

- Espere aqui - disse o governador e precipitou-se para a sala de recepção.

A cena tinha-se alterado subitamente, drasticamente. Como formigas em volta de um ninho destruído, pensou o governador, toda a gente se movia freneticamente de um lado para o outro, dir-se-ia que ao acaso.

- Parem com isso! - gritou o governador. - Parem com isso!

O movimento cessou parcialmente. Faces voltaram-se na sua direcção. Fez-se uma espécie de silêncio.

- Que se passa? -quis saber o governador. -Nós passamos por pessoas adultas, pessoas responsáveis. Que diabo foi que lhes deu? - O seu tom fustigava todos os presentes. - Eles operaram um milagre lá em baixo

- disse - e enviaram-nos um elevador. O...

- É esse o problema, Bent - atalhou o senador Peters, com o seu sotaque de operário de metrópole industrial mais acentuado que nunca. - O elevador partiu, para baixo, e não há forma de fazê-lo parar. Uma pausa. - Leva um passageiro. Um. Você é capaz de adivinhar quem foi?

Na grande sala o silêncio era agora total. Todos os olhos se voltavam para o governador. "Não será preciso adivinhar - pensou-, eu sei". Em voz alta pediu:

- Diga você quem foi, Jake.

-Paul Norris - anunciou o senador. -J. Paul Norris. Quem mais havia de ser?

O governador meneou lentamente a cabeça. Deu meia volta lentamente e regressou ao gabinete, passando por Beth como se esta não existisse. Sentou-se à secretária, pegou no telefone e ligou o comutador do altifalante com um piparote.

- Fala Armitage - disse. - O elevador vai a descer. Leva apenas um passageiro. Quero que o detenham.

A voz de Brown fez-se ouvir:

- Sim, senhor. - E depois, incredulamente: - Apenas um passageiro?

- Foi precisamente o que eu disse. - O governador fez uma pausa. - Quero que o promotor distrital seja informado de que o homem furtou deliberadamente o elevador. Se o promotor distrital for capaz de perceber bem a situação, quero que o homem seja pronunciado por tentativa de homicídio. - O governador fez nova pausa. - Testemunhas, é coisa que talvez seja difícil encontrar. Diga-lhe isso também.

Brown prometeu:

- Mandaremos o elevador imediatamente para cima. Se pudermos.

O governador meneou a cabeça.

- Se puderem - disse. - Compreendo. - Fez uma pausa. - Vocês, todos vocês, fizeram um trabalho magnífico, contra obstáculos aparentemente intransponíveis. Quero que saibam quanto o apreciamos, todos nós.

- Estava a fitar pensativamente o telefone. - Quanto tempo ainda vai durar o telefone é coisa que ninguém sabe, acho eu. Estou certo de que deve haver por aqui um rádio transistor. Há sempre. Vocês podem enviar-nos qualquer informação através da estação de rádio municipal. Vamos manter-nos sintonizados para lá.

O mayor apareceu no limiar da porta. Fazia que sim com a cabeça.

- Hei-de desencantar um transistor - disse. E depois - Eles mandam-nos o elevador para outra viagem?

- Governador? - Era a voz de Brown no altifalante.

- Estou!

- O elevador já chegou, governador. O homem lá dentro... -Brown fez uma pausa. - Está morto, governador. Horrivelmente queimado. - A sua voz tremeu.

Seguiu-se a voz de Nat Wilson, fatigada mas forte:

- O calor no núcleo. Deve haver um efeito de maçarico.

Ben Caldwell avançou passando pelo mayor.

- Máscaras, Nat? - disse. - Fatos de amianto? Borrifar o interior da cabina para arrefecê-la...

- Não - atalhou Nat. - Tivemos uma probabilidade e perdemo-la. Não conseguiremos fazer essa cabina subir outra vez. Está gravemente danificada e fora das calhas, portanto as calhas devem estar deformadas. Tentaremos com outra, mas... -deixou a frase por concluir.

Caldwell soltou lentamente o ar dos pulmões num assobio surdo.

- Compreendo.

A voz de Brown apareceu de novo.

- Estamos a trabalhar no interior do prédio - disse. - Um desses estuporados andares após outro. Desculpe, governador. Talvez... -A voz cessou. - Se eles ao menos não os fizessem tão altos! - Outra pausa. -O que nos resta agora é essa idéia louca do Wilson.

A face do governador conservava-se inexpressiva.

- Mantenha-nos ao corrente - disse, empurrou para trás a cadeira e levantou-se com um movimento cansado. - São horas de ir fazer nova comunicação. Dirigiu-se para a porta.

- Tem de fazê-la, Bent? - Era Beth que perguntava.

- Minha querida - replicou o governador -, se houve uma coisa que aprendi na minha longa carreira, é que as pessoas se conduzem pior quando não estão informadas. Na presença de verdades amargas às vezes reagem desagradavelmente; mas quando não lhes dizem nada, começam os boatos e o pânico vem logo a seguir.

Como da primeira vez, o governador subiu para uma cadeira no centro da vasta sala. Esperou um instante que a conversa cessasse. Depois anunciou:

- O elevador chegou ao átrio e ficou à espera. Produziu-se um murmúrio surdo e irritado.

- O homem que lá ia - disse o governador - estava morto em conseqüência do intenso calor no centro do edifício. - Nova Pausa.

Desta vez o silêncio era total. Ele tinha o seu auditório na mão.

- Estão a tentar enviar-nos um segundo elevador

- informou - e, se forem bem sucedidos, haverá roupas isoladoras e máscaras de ar para aqueles que descerem na cabina. - Ergueu uma das mãos. - Se conseguirem enviar-nos esse segundo elevador. Não é de modo algum certo que isso venha a acontecer.

Ouviram-se pancadas na porta de incêndio na parede do fundo da sala. O governador esperou enquanto o comandante dos bombeiros se precipitava para lá, dava a volta ao puxador e escancarava a porta. Os bombeiros Denis Howard e Lou Storr entraram a cambalear.

Cada um deles transportava uma ferramenta de demolição, uma comprida e pesada barra curvada em forma de gancho numa das extremidades, chanfrada na outra. As máscaras pendiam-lhes em volta dos pescoços. Na face de cada um dos homens era patente o extremo cansaço. As pernas tremiam-lhes quando eles se adiantaram respondendo ao gesto convocatório do governador.

- Fechem essa porta - disse o governador. Depois, para os dois bombeiros: - Agradecemos-lhes terem vindo.

- Não tem de quê, governador - respondeu Denis Howard. - Foi só um passeiozinho por umas escadas acima. Acenou com a mão num gesto pomposo: - O lema é: "Vida por vida."

Uma voz masculina inquiriu:

- Podemos servir-nos das escadas? Se podemos, toca a descer por lá.

Fez-se silêncio. Howard, abandonada já a postura pomposa, olhou para o governador, obviamente a perguntar se devia falar.

- Explique-lhes - ordenou o governador. Howard não se apressou.

- Podem servir-se das escadas - disse por fim. Mas não chegarão ao fundo nem nada que se pareça. Mostrou a mão. Tremia. - Estão a ver isto? Dantes tinha pêlos. - Correu a mão num movimento fatigado pelo rosto. - E dantes também tinha sobrancelhas. - Meneou a cabeça. - Podem servir-se das escadas. Podem até percorrer com vida todo o caminho até ao centésimo andar... se correrem bastante depressa.

O silêncio era total na sala.

- Prometi a ambos uma bebida - disse o governador. Olhou para o criado mais próximo. - Providencie para que eles sejam servidos. Depois conduza-os ao gabinete. - Olhou em redor para o seu auditório. - A situação não é brilhante. Mas também não é desesperada. Estamos a explorar todas as possibilidades. De momento não lhes posso dizer mais nada.

Gary Wycoff levantou a voz:

- Ó que eu desejo saber, ou melhor, corrigindo, o que eu exijo que me digam, é como tudo isto aconteceu? Quem é o responsável?

O governador esperou imóvel na cadeira até se esgotar o surdo murmúrio de aprovação. Depois, no silêncio que se fez, disse:

- Sugiro-lhe, Cary, que nomeie uma comissão parlamentar para estudar o assunto. Terei o maior gosto em dizer-lhe tudo o que sei. - Desceu da cadeira, ofereceu o braço a Beth e dirigiu-se num passo nem lento nem apressado para o gabinete.

Lá dentro deixou-se cair na cadeira da secretária.

- Considero-me como um homem bastante paciente e bastante razoável. Até me considero compassivo - declarou. Ergueu os olhos para Beth e sorriu sem alegria. Neste mesmo instante teria de bom grado estrangulado Cary Wycoff. E a minha única esperança é viver o bastante para poder cuspir no túmulo de Paul Norris. Fez uma pausa. - Se estes sentimentos são ignóbeis, então eu sou também ignóbil.

- Se Norris não tivesse roubado o elevador... -principiou Beth.

- Certo - concordou o governador. - Nenhum de vocês teria chegado lá a baixo vivo. E por isso apraz-me que as coisas tenham acontecido dessa maneira. Mas isso não altera nada.

- Compreendo, Bent.

Ele pegou-lhe na mão e levou-a à face.

- Homenzinhos - disse - de boinas de escriba e longos chinelos pontiagudos. Escrituram o livro grande da vida e depois puxam cordelinhos para ver se tudo corre como planearam. - Meneou a cabeça. - Pergunto a mim mesmo às vezes se os motivos deles não são basicamente maldosos. Acredita numa vida futura, minha querida?

- Penso que sim.

- Nunca tive necessidade disso - pronunciou o governador. - Também nunca precisei de acreditar numa divindade. - Fez uma pausa. - Mas pratiquei os rituais da adoração tal como pratiquei outras formas de conduta convencional. E pelo mesmo motivo: porque era o que se esperava de mim. Pergunto a mim mesmo quantos outros não farão o mesmo, embora sem o confessarem. - Fez uma pausa. - Se eu pudesse rezar com convicção, rezaria para que nos voltássemos a encontrar num lugar qualquer.

- Havemos de encontrar-nos, Bent.

- Ao lado de um riacho de trutas celestial? Creio que seria essa a minha escolha. A tempo de aproveitarmos a enchente do crepúsculo. - Libertou a mão de Beth e aprumou-se na cadeira quando os dois bombeiros e o comandante apareceram no limiar da porta. - Entrem - disse o governador. - Sentem-se. Analisemos as possibilidades - fez uma pausa - por mais sombrias que elas possam ser.

17.40h - 17.56h

Era quase um estado de esquizofrenia que se apoderara dela, pensou Patty, visto que uma parte da sua mente se ensimesmara para chorar; enquanto a parte restante insistia em concentrar-se na realidade actual e presente, na tensão que enchia o atrelado.

Depois de falar com Ben Caldwell, Nat afastara-se do telefone para se colocar junto de Patty a fitar com um olhar abstracto a praça e o prédio em tormentos. Disse lentamente:

- Estes grandes prédios eram planeados com tantas precauções e defesas contra incêndios que a municipalidade acabou por reduzir a cobertura do corpo de bombeiros nas áreas dos arranha-céus. - Voltou-se para Patty: - Sabias disto?

Patty esforçou-se por sorrir e meneou a cabeça.

- Paredes grossas - prosseguiu Nat -, soalhos grossos, janelas que abriam... uma pessoa podia entrar e sair. Um fogo podia ser contido. Agora... - Meneou a cabeça. - A construção central é mais econômica: podem concentrar-se os elevadores, as escadas rolantes, os canos, as condutas, os fios, todos os artigos improdutivos, num vão central. Isso deixa mais espaço para arrendar. Mas quando surge um fogo, um incêndio desta magnitude... -Voltou a menear a cabeça.

- Esse efeito de maçarico de que falaste ao telefone?

- perguntou Patty. - É como uma chaminé?

Um dos comandantes de batalhão, postado perto, disse:

- Às vezes, num incêndio como este, as temperaturas no núcleo podem ser tão elevadas que os bombeiros só conseguem trabalhar cinco minutos seguidos, às vezes menos. - Olhou para Nat. - Maçarico, disse você? Eu diria antes um alto-forno. - Apontou para a cúpula do prédio. - Se tirarmos alguém com vida lá de cima, será um raio dum milagre.

- Ouviu-se ao telefone a voz irritada de Brown:

- Sim, chiça, queremo-los aqui! Sem demora! Vocês pensam que isto é uma espécie de chamada ou o quê?

- Desligou batendo com o auscultador no descanso e agitou os punhos ossudos numa raiva impotente. - A polícia não conseguia compreender o que é que a Guarda Costeira poderia ter a ver com um incêndio num prédio. A coisa pareceu-lhes estranha, disseram, por isso deram tempo ao tempo e decidiram investigar antes de os deixarem atravessar as barreiras. - Os seus olhos fulgiam na direcção de Nat. - Acha que dará resultado? Acha? Essa idéia de usar os calções de salvação?

Nat ergueu as mãos e deixou-as cair num gesto de quem nada pode garantir.

- Você tem algumas idéias melhores?

- Esses helicópteros - disse Brown. - Continuam lá em cima a esvoaçar sem servirem de nada. Foi também uma idéia sua.

- Para já não falar da idéia do elevador - lembrou Nat - que poderia ter matado cinqüenta pessoas em vez de uma. - Havia de passar muito tempo antes de ele se esquecer daquilo, se é que alguma vez esquecia.

Uma vez nos seus tempos de bombeiro-pára-quedista tinha sido lançado numa área onde um fogo de floresta, impelido pelo vento, mudara de direcção sem aviso e encurralara dezanove homens numa bolsa fatal. Os seus corpos jaziam hirtos na posição fetal, enrolados como caracóis, de tal modo queimados que quase era impossível reconhecê-los. Era uma coisa que também não esquecia.

- Que mais podemos fazer a não ser tentar tudo o que nos ocorra? - disse Nat. - Porque se não tentamos... - Abriu as mãos.

Fez-se silêncio.

- Vejamos as possibilidades - prosseguiu Nat. Vocês não têm nada que lhes permita lá chegar. E eles não podem descer pelos seus próprios meios. Mesmo que dispusessem de cordas, de que lhes servia? Homens e mulheres de meia-idade tentando uma descida a pulso de quinhentos metros? - Falava numa voz surda, contida, quase selvagem. - Os helicópteros podem fazer alguma coisa? - disse então. - A resposta é negativa, sozinhos não podem fazer nada. Podiam quebrar-se algumas janelas lá em cima e transferir um acrobata para uma escada a balouçar de um dos helicópteros, mas nenhuma dessas criaturas que foram lá acima beber champanhe era capaz dessa proeza. Portanto, que resta? Essa é a resposta à vossa questão. Shadrach, Meshach e Abednego escaparam da fornalha de Nabucodonosor, mas esse milagre não se vai repetir aqui.

- Muito bem - concordou Brown, agora mais calmo. - Não se irrite. Vejamos o que é que a Guarda Costeira tem para dizer.

- Se não der resultado - declarou Nat -, não dá.

- Voltou de novo os olhos para a janela.

Patty tocou-lhe no braço.

- Isto foi realmente tudo por culpa do Paul? - A sua voz era calma. - O papá disse que não tinha a certeza e que não iria difamar um homem enquanto a não tivesse.

O envelope com as ordens de alteração estava ainda no seu bolso. Nat tirou-o cá para fora, sacudiu as ordens para cima da prancheta de desenho. Viu Patty pegar-Lhes uma por uma, relancear-lhes uma olhadela, deixá-las cair como se estivessem sujas. Por fim ela pronunciou:

- Não sou formada em engenharia, mas percebo umas coisas. - Analisava a face de Nat. - O teu nome aparece em todas, mas tu não as assinaste, pois não?

- Como é que sabes isso?

- Não é o teu estilo - replicou Patty. - E não me perguntes como é que o sei, mas sei. - Baixou os olhos para os documentos. - Uma das habilidades de Paul é a imitação de letras. Eu dantes achava isso engraçado. - Fez uma pausa. - Agora considero isso meramente infantil. E perigoso. - Conservou-se um momento calada. - Diz-me - perguntou finalmente - que nome se dá a uma mulher que se volta contra o marido?

- Admirável.

- Quem me dera poder acreditar nisso!

Pequena e indomável, pensou Nat, querendo olhar para os factos de frente mesmo quando isso era doloroso. Como reagiria Zib numa situação análoga? Provavelmente limitar-se-ia a pretender que se tratava de um equívoco, que não tinha acontecido nada, e voltaria as costas. Mas não Patty!

- Dou-te a minha palavra de que é precisamente o que penso - declarou Nat.

- Vamos lá a ver - disse uma voz da porta do atrelado - qual é o problema e o que é que vocês pensam que podemos fazer?

Era um homenzarrão, largo, sólido, maciçamente calmo - o imediato Oliver, da Guarda Costeira dos Estados Unidos. Escutou em silêncio enquanto Nat expunha a situação e saíram depois ambos do atrelado. Lá fora ergueram os olhos para as cúpulas dos prédios

- para a torre em terraço da fachada norte do Centro Comercial e para a Torre Mundial, cuja espira rutilante parecia perfurar o céu.

O imediato lançou uma olhadela em volta da praça para os curiosos, para os lagos fuliginosos, para as mangueiras serpenteantes e para os bombeiros vociferantes.

- Um autêntico circo - disse, e voltou a enviesar os olhos para as alturas, medindo distâncias, sem qualquer expressão na face. Olhou finalmente para Nat e meneou a cabeça. - Não é possível - declarou.

- Vocês trouxeram canhões-inquiriu Nat- e cabo... isso a que vocês chamam cabo de vaivém, não é?

- Temos tudo isso - respondeu o imediato.

- E a distância, homem, não é assim tão grande.

- A voz de Nat era impaciente, quase furiosa, - Portanto a coisa faz-se com meia-dúzia de tentativas. Um cabo naquela Sala da Torre é tudo o que vocês precisam, não é? Mandaremos quebrar toda uma fileira de janelas daquele lado. Teremos um alvo do tamanho de um celeiro. Vocês...

- Aqui em baixo no solo - disse o imediato - o vento está calmo ou quase. Lá em cima... que altura tem isto?

- Quinhentos metros. - A cólera desaparecera de súbito. - Vejo o que você está a pensar.

- Sopra como todos os diabos - disse o imediato. É o que acontece geralmente no alto. Está a ver aquele fumo, como se estende na horizontal? É com isso que temos de contar para disparar um cabo lá para dentro... -Fez uma pausa. - E não temos maneira de enfiá-lo lá. Não a essa distância.

"Outra má idéia", pensou Nat, e censurou-se por ainda não lhe ter ocorrido uma que fosse boa. Talvez não houvesse boas idéias, mas isso não alterava de modo algum o facto de que falhara. Pensamento amargo.

- Mas - declarou o imediato - vamos tentar. - Fez uma pausa. - Faremos o melhor que pudermos... mesmo que isso não chegue.

Pela primeira vez nesse dia desastroso, pensou Nat, sentia o primeiro e débil lampejo de uma esperança. Era difícil suprimir da sua voz um tom de triunfo.

- Fornecer-lhe-emos bombeiros e polícias - disse-, toda a gente de que precisar para subir ao terraço do Centro Comercial consigo e ajudá-lo no seu trabalho. Providenciarei para que quebrem as janelas na Sala da Torre e haja homens a postos para agarrarem um cabo se conseguir fazê-lo lá chegar. - Os pensamentos ocorriam-lhe agora com fluência. - O meu patrão, o arquitecto, está lá em cima. Ele encontrará na estrutura um lugar suficientemente forte para amarrar o cabo do calção salva-vidas e suportar qualquer esforço. Depois...

- Vamos experimentar - disse o imediato. - Isso é tudo o que eu posso prometer. - Sorriu de súbito. Mas será a mais horripilante experiência a que você jamais assistiu. - O sorriso dilatou-se. - E quem sabe?

- Gesticulou na direcção do atrelado. - Toque a reunir a sua gente.

O governador recebeu a chamada e chamou imediatamente Ben Caldwell e o comandante dos bombeiros para ouvirem o relato da situação.

- Uma equipagem da Guarda Costeira - dizia a voz de Nat - vai a caminho do terraço da torre norte do Centro Comercial. Vão tentar atirar para aí um cabo de vaivém...

Caldwell interrompeu.

- Isso significa quebrar as janelas deste lado. - Fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- Todas - respondeu Nat. - Sem excepção. Proporcionem-lhes um alvo tão grande quanto possível. – Fez uma pausa. - Estamos a evacuar toda a gente da praça desse lado. Esse vidro pesado ao cair pode matar.

- Começaremos a quebrar as janelas quando você ordenar - disse Caldwell. - Hesitou. - Esse terraço da torre fica muito distante, Nat.

- Tentaremos. É tudo o que se pode fazer. - E depois, rapidamente, para evitar que o tema de um possível malogro se desenvolvesse: - Tanto quanto compreendi a coisa, o canhão dispara um projéctil com lastro transportando um cabo de vaivém leve. Logo que receberem cabo, vocês puxam-no quando lhes fizerem sinal depois de eles lhe terem amarrado o cabo mais pesado. São dois cabos, portanto: o mais pesado para suportar a carga dos calções de salvação, e o mais pequeno que puxa os calções de salvação para o vosso lado e depois volta de novo a descer para o terraço da torre. - Fez uma pausa.

- Compreendido - declarou Caldwell. Havia no seu rosto um tênue sorriso.

- Você provavelmente já compreendeu tudo - disse Nat-, mas de qualquer maneira vou continuar a explicar toda a manobra. - Pausa. - Amarrem o cabo pesado a uma estrutura capaz de agüentar uma data de peso e não simplesmente a uma mesa ou uma cadeira. - Outra pausa. - E sugiro que na janela onde penetrar o cabo se certifiquem de que não restam nenhuns cacos de vidro. Não queremos o cabo cortado ou raspado. - Outra voz falou ininteligivelmente em segundo plano. - Esperem um instante...

No silêncio, o governador disse:

- Esse seu homem, Ben...

- É do melhor - atalhou Caldwell. - Se a coisa puder fazer-se, ele há-de descobrir a maneira e providenciar para que tudo corra como ele previu.

- Já evacuaram a praça deste lado - anunciou a voz de Nat reaparecendo no altifalante. - Podem começar com as janelas.

Caldwell olhou para o comandante dos bombeiros. O comandante baixou a cabeça, fez um círculo com o polegar e o indicador e saiu imediatamente do gabinete.

A voz de Nat proferiu num tom diferente:

- Não sei quantas pessoas estão a ouvir isto... -Hesitou.

O governador replicou rapidamente:

- Aqui fala Armitage. Pode dizer seja o que for que tiver para dizer.

- Muito bem - replicou Nat. A sua voz era solene. - Não queremos que as vossas esperanças subam demasiado porque a coisa pode não resultar.

- Compreendido - disse o governador.

- Mas - tornou Nat - se não resultar... -Fez uma pausa. - Se assim for, caramba, havemos de pensar em qualquer outra saída. Isto é uma promessa. - Outra pausa. - Por agora é tudo. - Ouviu-se o estalido de desligar.

No gabinete o silêncio era total. Ben Caldwell, sorrindo tenuemente, quase apologeticamente, olhou para o governador e para Beth.

- Descobri - disse - que uma pessoa pode confiar nas promessas de Nat Wilson. - O sorriso dilatou-se. É a essa idéia que me encontro agarrado neste momento.

- Encontramo-nos todos - acudiu o governador. Podemos construir edifícios como este e inventar governos e máquinas e instalar sistemas que não falham, mas quando chega a hora da verdade, não há nada capaz de substituir um homem em quem se possa confiar. - Fez uma pausa. - Ou uma mulher. - Sorriu. - Isto parece velho, não parece? Mas nunca teria chegado a envelhecer se não fosse uma verdade fundamental.

Do salão grande chegou um som de vidros quebrados e um crescente murmúrio de vozes.

O governador arrancou-se à sua cadeira.

- Horas de entrar em cena - disse. - Vamos pôr toda a gente ao corrente.

Nat afastou-se do telefone e atravessou o atrelado para se ir postar de novo junto de Patty.

- Conversa fiada - disse. O seu sorriso era deprecatório. - Mas não podia deixá-los... sem nada.

- Há-de ocorrer-te qualquer meio.

Que pode um homem responder a isto? Começou a reunir as cópias das ordens de alteração, a metê-las de novo no envelope.

- Havemos de precisar dos originais. Se conseguirmos encontrá-los.

Patty disse automaticamente:

- Nos arquivos do escritório do Paul.

Nat reflectiu naquela sugestão. Meneou a cabeça.

- Talvez tenhas razão. Faremos com que os apreendam. Falarei ao Brown. - Tinha-se afastado havia apenas alguns momentos e depois, irresistivelmente, voltara

uma vez mais a postar-se ao lado daquela criaturinha inteligente que não sabia o que fosse desistir. - Como é que tu explicas o Paul? - perguntou atty. O sentimento de esquizofrenia era muito forte; feli, na zona secreta, a parte ensimesmada da sua mente chorava em silêncio; aqui, a sua atenção concentrava-se na realidade, na vida. - Quero dizer - acrescentou-, eu sei que estas coisas acontecem. Mas o Paul?

Nat nunca se considerara um conhecedor de pessoas, mas compreendia agora que a necessidade de Patty era de uma pessoa que ouvisse, que de vez em quando falasse, mas que, acima de tudo, tentasse compreender.

- Tu conhece-lo melhor do que eu, Patty.

- Conheço? - Patty conservou-se calada durante um momento. - Sou sua mulher. Fomos para a cama juntos, rimos juntos, tivemos as nossas discussões, as nossas esperanças, os nossos êxitos, as nossas tristezas...

- Sacudiu a cabeça. - Mas conhecê-lo? Não me parece que o conheça. É uma carência minha.

- Talvez - tornou-lhe Nat lentamente - não haja muita coisa que conhecer.

Patty fitou-o com um olhar perspicaz.

- Tu nunca gostaste muito dele, pois não?

- Ele e eu somos inteiramente diferentes. Eu sou um tipo do campo.

- Isso é uma pose. Nat sorriu ao de leve.

- Talvez em parte. Mas, lá bem no fundo, não é. Não posso explicar...

- Tenta.

Nat levantou as mãos e deixou-as cair.

- Eu não vejo as coisas da maneira... que as pessoas da cidade vêem. Oh, eu não estou a tentar apresentar-me como um saloio pasmado diante dos arranha-céus...

O sorriso de Patty era forçado.

- Nas roupas de Brooks Brothers? Mesmo sujas como estão? Dificilmente.

- Mas - prosseguiu Nat - um duplex com ar condicionado com vista para o East River, uma casa em Westchester ou Fairfield, um iate no Sound ou ser sócio de um clube de tênis... isso para mim não é viver; são tentativas ridículas para tornar uma existência artificial meramente tolerável. - Sorriu com acanhamento. -Isso faz-me parecer terrivelmente provinciano, não faz? O sorriso de Patty era afável.

- E o que é que tu queres ser, Nat?

- Sou um arquitecto. Talvez seja isso que eu quero ser. Mas o que eu quero acima de tudo é espaço, espaço onde me mova, distâncias que se podem ver, montanhas que nos fazem sentir pequenos...

- Espaço para respirar?

Nat olhou para a rapariga com novo interesse.

- Tu compreendes, não é verdade?

- Achas isso surpreendente?

- Creio que sim.

- Nunca estive na tua terra - disse Patty - e provavelmente havia de parecer deslocada...

Nat meneou a cabeça.

- Tu não. - Ele dissera o mesmo a Zib em tempos, recordava-se, mas por razões inteiramente diferentes. Tu és... real - declarou por fim. - É uma coisa bizarra de dizer-se, eu sei.

- Sinto-me lisonjeada.

- O Bert - disse Nat. - Tu pareces-te com ele em certos aspectos, numa data de aspectos. Quando o Bert dizia qualquer coisa, uma pessoa não tinha de olhar em volta à procura de armadilhas ocultas. Ele dizia o que pensava e pensava o que dizia.

- Sinto-me mais do que lisonjeada.

Da outra extremidade do atrelado Brown anunciou:

- Eles estão no telhado. - Um uualkie-talkie falava cavamente. - Oliver quer que o informem logo que estejam a postos na Sala da Torre. - Brown estendeu o telefone para Nat. - É melhor você tomar conta.

Nat fez que sim com a cabeça.

- Vamos a isso.

17.31h - 17.43h

Paul Simmons voltou para Manhattan e estacionou o carro na garagem subterrânea do prédio onde tinha instalado o seu escritório. Dirigiu-se para os elevadores, mas depois mudou de idéia e voltou a sair para a rua, dobrando a esquina e entrando num bar. O local era mal iluminado e, exceptuando o botequineiro, encontrava-se deserto. No aparelho de televisão a cores por detrás do balcão via-se a Torre Mundial amortalhada em fumo. Paul tentou não olhar para o aparelho enquanto pagava a bebida que transportou para uj reservado num canto. O botequineiro não era dado a conversas, graças a Deus.

Portanto a polícia tinha ido buscar Pat Harris. Isso era a primeira coisa e as suas inferências eram desagradáveis. Se esse tipo de pressão entrasse a actuar, então Pat Harris pensaria primeiro, por último e sempre, no seu próprio pescoço, isso era certo e sabido. A história que ele iria contar não seria a que tinham combinado lá em baixo na sala de jogos, mas aquela com que ele ameaçara Paul: Harris estranhara as ordens de alteração, até as pusera em causa, mas Paul Simmons, seu patrão e engenheiro, ordenara-lhe que se metesse na sua vida e fizesse o que lhe mandavam. Assim talvez Harris saísse de tudo aquilo não muito limpo, mas também sem que se lhe pudesse imputar qualquer culpa. Raios partissem o Harris.

Harry Whitaker, o inspector, com a sua mão convenientemente protegida - que se passaria com ele? Cheio de pânico? Provavelmente, porque se tratava de Harry Whitaker, mas seria bom averiguar. Paul manobrou para sair do banco e dirigiu-se ao posto telefônico.

A mulher de Harry atendeu e nem sequer perguntou quem falava. O seu grito a chamar o marido quase rasgou os tímpanos de Paul.

Harry acudiu ao telefone a correr e a sua voz rosnou:

- Fecha essa maldita porta! - Depois, para o bocal, num tom diferente: - Sim?

- Fala o Simmons.

- Oh - exclamou Harry-, Deus seja louvado! Tenho tentado comunicar consigo mas diziam...

- Pois agora aqui me tem - atalhou Paul. A sua voz era fria. - O que é que você quer?

Houve uma pausa significativa.

- O que é que eu quero? - disse Harry numa voz nova, intrigado. - O que é que pensa que eu quero, Sr. Simmons? Quero saber o que hei-de fazer.

- A respeito de quê?

A pausa foi mais prolongada desta vez.

- Não compreendo, Sr. Simmons.

- Nem eu tão-pouco - disse Paul. A pausa, calculou, ia ser quase interminável desta vez enquanto o estúpido cretino tentava pensar. E foi.

- Olhe, Sr. Simmons - proferiu por fim Harry-, não viu na TV o que está a acontecer? Na Torre Mundial, quero dizer. Há uma data de incêndios, gente encurralada lá em cima da Sala na Torre e não há energia! Não há energia em parte alguma desse maldito casarão! A electricidade falta completamente!

- E depois?

A voz de Harry tentou parecer divertida.

- Deve estar a gracejar, Sr. Simmons. Quero dizer, o senhor sabe, o senhor sabe e eu sei, o que deve ter acontecido. Não pode ter sido outra coisa. Um curto-circuito na corrente primária que não estava convenientemente ligada à terra... Que outra coisa podia ter sido?

- Não compreendo o que é que quer dizer com isso

- retorquiu Paul.

A respiração de Harry tornou-se audível, dura.

- Escute, Sr. Simmons - disse, e a sua voz, que baixara agora de tom, era cuidadosamente controlada, o senhor pagou-me. O senhor sabe que pagou. Disse-me que tudo ficaria bom e que uma vez tudo fechado nas paredes quem poderia jamais descobrir que tínhamos feito uns cortezinhos? Nunca me disse que havia o risco de suceder uma coisa destas. Quero dizer, já morreram dois tipos, alguns dos bombeiros transportados cá para fora não parecem em muito bom estado, e que acha que pode acontecer se não conseguirem tirar aquela gente da Sala da Torre? - A voz calou-se e depois tornou-se mais instante. - Se não conseguirem tirar aquela gente, Sr. Simmons, isso será... assassínio! Que fazemos nós? É tudo o que lhe pergunto, que fazemos nós?

- Não imagino - respondeu Paul.

- Escute, vossemecê pagou-me!

- Não lhe paguei nada. Não sei o que é que você tem estado a sonhar, mas não me meta nisso.

- Vossemecê pagou-me! - A voz estava agora descontrolada. - Vossemecê pagou-me! Como pensa que fui à Florida naquelas estuporadas férias?

- Efectivamente estranhei - disse Paul. - Pareceu-me um nadínha esquisito, com o seu salário de inspector.

A pausa desta vez foi a maior de todas. A respiração rouquejante de Harry era o único som. Depois prosseguiu

- Então ele é isso, não é? - A voz era quase resignada. - Muito bem, Sr. Simmons. O meu nome está em todos os vistos. Sou o tipo que eles virão procurar. E que pensa que lhes vou dizer? Sabe, Sr. Simmons?

- Diga-lhes o que lhe apetecer.

- Direi! Raios me partam se não digo! - Foi um brado, quase um grito. - Pode ter absoluta certeza de que digo! Contar-lhes-ei o que vossemecê me pagou, até ao último centavo! Contar-lhes-ei que vossemecê me disse que estava tudo bem, que não me preocupasse, que não haveria novidade! Direi aos tipos que acreditei em si.

- Mas - replicou Paul - ninguém vai acreditar no que disser. Você tem testemunhas, fotocópias de cheques, qualquer coisa que sirva de prova? Será isso que eles lhe perguntarão. E vão perguntar-lhe também outra coisa: "Harry, você não está a inventar tudo isto só para tentar salvar o seu miserável pescoço?" E que responderá você quando eles lhe perguntarem isso, Harry? - Paul desligou, voltou para o reservado, espremeu-se para lá entrar e sentou-se pesadamente.

"Nat Wilson - pensou-, Giddings, Zib, Pat Harris e agora Harry Whitaker"; e, sim, não tinha a própria Patty desertado para o inimigo? Portanto, onde é que aquilo o deixava? Até que ponto era vulnerável? "Pensa, caramba! PENSA!

Dissera a Bert McGraw que executara as ordens de alteração sem discutir porque traziam a assinatura de Nat Wilson, o que significava que a autoridade de Ben Caldwell estava por detrás delas. E depois?

"Enfrenta a verdade" - ordenou Paul a si próprio, os arquivos eram reveladores a mais não poder ser. Qualquer perito contabilista descobriria sem dificuldade que até uma certa altura no decorrer da obra na Torre Mundial, Paul Simmons & Companhia tinham estado a afundar-se em areias movediças financeiras; e que, num prazo extraordinariamente pequeno, se operara uma súbita reviravolta e a razão entre os encargos e os pagamentos recebidos beneficiara de uma radical inversão. Simmons & Companhia não só tinham conseguido escapar às areias movediças, como caminhavam agora em terreno confortavelmente sólido onde a vida se torna fácil.

E não haveria para Nat Wilson a mínima dificuldade em relacionar essa súbita mudança de fortuna com a emissão da primeira das ordens de alteração. A coisa era de uma simplicidade absoluta. E lá estava de novo Nat Wilson.

Paul conservava-se sentado numa imobilidade total, olhando agora ociosamente para o painel colorido da televisão. A objectiva focava agora a fachada setentrional da Sala da Torre, numa filmagem de muito perto feita com lente telescópica. Estavam a quebrar as vidraças. Fragmentos de vidro caíam como uma saraivada rutilante. Dentro da sala vultos sombrios moviam-se manifestamente com finalidades práticas.

Era, pensou Paul, como ver uma dessas cenas de multidões no Bangladesh, ou no Biafra, ou mesmo, em qualquer aldeia de nome impronunciável do Vietname do Sul - distante, vagamente interessante, mas basicamente sem interesse. As pessoas não eram reais, eram meras fotografias animadas num painel. Não havia realidade fora do nosso próprio eu - não tinha um filósofo qualquer defendido isso? Bem, as coisas eram assim mesmo. Paul voltou a concentrar-se no estudo da sua bebida.

Os arquivos eram maus, mas mesmo assim não provavam nada. Ele limitara-se a executar as ordens de alteração e devido a essas alterações a sua fortuna melhorara. As pessoas podiam suspeitar de uma relação causal indicando trapaça, mas não poderiam prová-la. Como tinha sido aquele alvoroço na ITT em Washington, quando eles meteram os arquivos da firma numa máquina de desfibrar na previsão de um arresto? Houve muita suspeita, mas não se provou nada, e quem era que se lembrava agora dessa história? Mesmo assim seria melhor verificar. E uma questão permanecia em aberto: de onde tinham vindo as cópias das ordens da alteração?

Deslizou para fora do reservado e dirigiu-se de novo ao telefone; desta vez marcou o seu número privativo do escritório, que não vinha na lista. Era tarde, mas a sua secretária atendeu. A voz dela estava ofegante.

- Ruth, jóia - disse Paul-, pareces muito nervosa. - Uma campainha de alarme tocou ao longe na sua mente. - Que se passa? - Ela pelo menos dir-lhe-ia a verdade, estaria com ele. Depois do que tinham feito juntos. Não com tanta freqüência após o aparecimento de Zib, mas que importância tinha? Uma franganota simpática, essa Ruth, e era realmente muito boa na cama, e muito sabida. -Algum azar?

A voz ofegante serenou um pouco.

- É apenas... viu o que está a acontecer na Torre Mundial, não viu?

- Vi.

- E - prosseguiu Ruth - sabe do ataque de coração do Sr. McGraw?

- Também sei disso.

- Ele morreu.

- Ah, sim? - Paul começou a sorrir. Não desejava nenhum mal em especial ao velhote, mas era melhor, muitíssimo melhor, assim. - Coitado, tenho muita pena.

- Onde está, Paul? Vem ao escritório? De novo a campainha de alarme.

- Porque perguntas? - Fez uma pausa. - Houve chamadas? Alguém perguntou por mim? - Pelo canto do olho surpreendeu a mudança de ângulo da objectiva da televisão e voltou a cabeça para ver. A máquina focava agora uma aresta do terraço da torre do Centro Comercial. Havia ali um ajuntamento de homens, alguns deles em uniforme, e compreendeu imediatamente o que estavam a fazer. "Um disparate", pensou, "sem pés nem cabeça. Vão tentar usar os calções de salvação? Uma idéia de Nat?" - E então? - perguntou para o telefone.

- Não houve chamadas - respondeu Ruth. - Ninguém perguntou por si. - Fez uma pausa. - É só que... eu queria vê-lo. - Nova pausa. - É só isso.

De novo o dobre da campainha de alarme.

- Está alguém aí no escritório?

- Quem? - A voz de Ruth soou cheia de estranheza.

- Não sei. Estou a perguntar.

- Só cá estou eu.

Paul soltou o ar dos pulmões lentamente. "Somente nervosa - disse para consigo-, excitada".

- Muito bem - disse. - vou já subir. Tira-me para fora os arquivos da Torre Mundial. Preciso de lhes dar uma olhadela. - Fez uma pausa. - Tá certo?

- Certo. - Bonita, boa na cama e sabida. - Estarão à sua espera.

- Bonita menina - disse Paul, e dirigiu-se para a porta.

- Não toma outra bebida? - perguntou o botequineiro. -Raios! - Indicou com um gesto o aparelho de televisão. - Você é o primeiro freguês que me aparece desde que isto começou. - Fez uma pausa. - Olhe-me pràli. Um incêndio. Como pode acontecer isto? Eles têm hoje uma data de dispositivos de segurança, não é?

Paul lembrou-se da anedota do convidado para a boda confrontado pelo velho marinheiro e achou a pergunta vagamente divertida.

- Sei lá se têm - disse.

- Andam hoje em dia à solta por aí uma data de tipos chalados, autênticos malucos. - O botequineiro fez uma pausa. - Tem a certeza que não vai outra bebidinha?

- Fica para outra vez - retorquiu Paul. - Mas de qualquer maneira, obrigado. - Saiu para a rua. Estava quase vazia. Estranho.

Não se recordava de ter visto, mas tinha ouvido falar de outra ocasião em que toda a atenção da cidade se concentrara num único acontecimento, e as ruas, como agora, ficaram quase desertas. Fora na final entre os Dodgers e os Giants num ano que ele já não conseguia determinar; e quando por fim, no último segundo, Bobby Thompson marcara o ponto da vitória, desataram a sair de todos os prédios torrentes de gente, as pessoas davam saltos e cabriolavam nas ruas de uma cidade que enlouquecera.

Agora a atenção da cidade concentrava-se, não num jogo de baseball, mas num prédio em chamas.

O recepcionista abandonara há muito o seu posto junto da secretária na antecâmara do escritório. Paul atravessou-a e penetrou no seu gabinete. Ruth esperava ali, bonita, boa e sabida. E na sua secretária encontravam-se os arquivos da Torre Mundial, que ele tinha pedido.

- Olá, jóia - saudou Paul, e fechou a porta. Depois parou e ficou de pé a olhar fixamente para os dois homens postados atrás do batente.

- Este - disse a voz de Ruth muito calma - é o Sr. Simmons. Estes cavalheiros têm estado à sua espera, Paul.

No gabinete o silêncio era absoluto.

- John Wright, do gabinete do procurador distrital - apresentou-se um dos homens. - Confiscámos o seu arquivo da Torre Mundial. E gostaríamos que nos acompanhasse para responder a uma ou duas perguntas. - A voz de Wright alterou-se um pouco, endureceu. - Talvez mais do que duas.

- E se eu recusar? - quis saber Paul. Não houve alteração na face de Wright.

- Não recusará.

Paul olhou para Ruth. A face dela mantinha-se inexpressiva. Voltou a olhar para os dois homens.

- com que autoridade...

- Temos um mandato de busca, Sr, Simmons-disse Wright.

Paul olhou para a pilha de pastas de arquivo.

- Não encontrarão nada...

- Engana-se, Sr. Simmons, já encontrámos muito. Os originais de algumas ordens de alteração altamente suspeitas, por exemplo.

A boca de Paul abriu-se. Fechou-a com dificuldade. Olhou para Ruth.

- Não foram destruídos, Paul - informou Ruth. Achei preferível conservá-los. Foi assim que mandei fazer cópias para enviar ao Sr. Giddings. - A sua voz era perfeitamente calma, modulada. - Eu tinha a certeza de que ele se interessaria.

No silêncio, Paul exclamou:

- Sua puta!

A rapariga sorriu então. Era um sorriso agradável, de satisfação.

- Talvez - disse. E depois: - Bem vê, não gosto que se sirvam de mim, Paul. Não creio que haja muitas mulheres que gostem.

- Podemos ir andando, Sr. Simmons? - inquiriu Wríght. - Vamos dar uma bonita passeata até ao centro.

17.56h - 18.09h

Uma das praças da Guarda Costeira de nome Kronski encaminhou-se com passos hesitantes para um parapeito baixo na orla do telhado do Centro Comercial. Pousou as duas mãos na estrutura e cautelosamente, medrosamente, debruçou-se a fim de olhar para baixo. Recuou precipitadamente.

-Jesus, imediato - exclamou para Oliver -, uma pessoa nem sequer vê o chão! Nunca estive tão alto em toda a minha vida!

-Já andaste de avião - disse o imediato.

- Isso é diferente. - Kronski fez uma pausa. - Mas nem disso gostei. Não sou pára-quedista.

Mantendo-se bastante distante da orla do telhado, Kronski examinou a Torre Mundial, a fileira de janelas quebradas na fachada da Sala da Torre.

A seus pés estava um fuzil para disparar o projéctil destinado a transportar os cabos leves de vaivém que se encontravam a postos muito bem enrolados em tubos.

- Esteve com certeza a brincar, imediato - disse Kronski. - A esta distância e com este vento? - Meneou a cabeça. - Não se consegue.

Lá para consigo, Oliver concordou. Era ainda mais distante do que calculara do solo-talvez entre quinhentos a seiscentos pés - e o vento soprava em rajadas. Por outro lado prometera a Wilson que tentariam e ele não era homem para faltar à palavra dada.

Além disso, via perfeitamente as pessoas naquele maldito calmeirão de um prédio e cheirava o fumo que o vento lhe arrojava às narinas, e embora isso não fosse exactamente o mesmo que fogo no mar - essas três palavras que enregelam o sangue de qualquer marinheiro

- estava suficientemente próximo para o identificar com o drama. Eu podia estar ali se não fora a graça de Deus, era uma dessas idéias que estimulavam o sentimento de solidariedade...

- Não te pedi a opinião, Kronski - disse por fim. Toca a andar com isso.

Kronski encolheu os ombros e pegando no rifle carregou-o cuidadosamente.

- Suponha que conseguimos meter ali um cabo, imediato - disse. - E que conseguimos aparelhar uns calções de salvação. - Fez uma pausa. Fitou Oliver nos olhos. - Que lhe parece uma passeata dali pràqui, a esta altura e com um vento destes?

- Adiante, Kronski.

Kronski anuiu baixando a cabeça. Ergueu a espingarda ao ombro e apontou alto para uma trajectória máxima.

Pelo walkie-talkie Oliver anunciou:

- Vamos tentar o primeiro disparo.

- Certo. - Era a voz de Nat. - Eles estão a postos na Sala da Torre.

- Esses pobres diabos que vivem em terra - disse Kronski-metem-se às vezes em enrascadas dos diabos. - Puxou o gatilho.

O cabo mais leve saiu a lampejar da boca da arma.

Cresceu em comprimento, ligeiro como a esteira de um jacto, fulgindo no sol do poente.

Continuando a subir, dirigiu-se num gracioso arco ascendente para a fileira de janelas quebradas, mais alto, cada vez mais alto, até se encontrar ao nível da ponta do próprio mastro das comunicações.

E depois atingiu o seu apogeu e, obedecendo ao peso inexorável da gravidade, principiou a cair, arqueando-se ainda, enquanto a linha saía a silvar do cilindro.

Os dois homens mediram o seu alcance e a sua queda com os olhos e, mesmo antes de a linha mergulhar abaixo do nível das janelas distantes, perceberam que tinham falhado.

- Merda! - praguejou Kronski.

Erguendo-se alto, largo e sólido, maciçamente calmo, o imediato ordenou:

- Tenta outra vez. Não vamos desistir já.

O governador postou-se bastante recuado na Sala da Torre, com o braço em redor de Beth. Os dois seguiram com os olhos a subida do cabo, rutilante, nítido e claro, e por um momento houve esperança.

O olhar treinado de Ben Galdwell foi o primeiro a medir o malogro.

- Começa a pensar noutra coisa qualquer, Nat

- disse. Foi um sussurro, não mais do que isso, mas o senador ouviu-o.

- Nada a esperar dali? - perguntou o senador em voz baixa.

- Provavelmente - respondeu Ben - com aquele rifle. Penso que algumas das estações de terra dispõem de canhões, mas até que ponto são rigorosos na pontaria... - Encolheu os ombros. -Lançar um cabo para bordo de um navio do tamanho de um cargueiro é uma coisa: tudo o que é preciso é fazer cair o cabo num ponto qualquer da coberta. Meter um cabo nestas janelas a esta distância... -Voltou a encolher os ombros.

Grover Frazee, de bebida em punho, observava como hipnotizado, e quando a linha mergulhou na vertical e desapareceu abaixo das janelas os seus lábios começaram a mover-se silenciosamente e na expressão dos seus olhos havia qualquer coisa de anormal.

No salão principal alguém tinha ligado um transistor. A música rock começou a bramir em alta grita.

- Oh, pelo amor de Deus - protestou o mayor Ramsay-, isto não é ocasião para se ouvir essas coisas!

- Também ele tinha acompanhado o percurso do cabo até vê-lo mergulhar e perder-se de vista abaixo das janelas. - vou acabar com aquilo.

- Deixa lá, Bob - disse o governador -, a não ser que consideres mais apropriados os salmos e as orações.

- Não vejo que relação possa existir.

- Pois existe. - A voz do governador parecia fatigada. - A orquestra tocava no convés do Titanic enquanto o navio se afundava. Algumas pessoas diziam preces. A voz endureceu mas não aumentou de volume. Caramba, homem, algumas dessas pessoas estão mortas de medo e eu não as censuro por isso. Deixá-las defenderem-se como quiserem. - O seu braço estreitou com mais força a cintura de Beth, - Volto para o telefone. Hesitou. - E você?

- vou para onde você for-disse Beth. - Eu... não quero estar sozinha.

Ao telefone a voz de Nat:

- Desculpe, governador. Foi um tiro comprido. O imediato vai tentar outra vez, mas... - Deixou a frase em suspenso.

- Compreendo - disse o governador. - Tudo o que você puder... -Sorriu subitamente das suas próprias palavras. Meneou a cabeça. - Deixe lá. - Pausa. Os elevadores estão fora de questão?

- Demasiado calor - informou Nat. - Distorção das calhas. Lamento também que nada se possa fazer por esse lado.

Para Beth, o gabinete pareceu pequeno, atulhado de gente, claustrofóbico. Howard e Storr, os dois bombeiros, tinham entrado, juntamente com Ben Caldwell, Grover Frazee e o comandante da corporação. Beth teve o sentimento louco de que lhe cheirava a medo e olhou em volta à procura da fonte desse estranho odor.

O governador voltara-se do telefone. Perguntou a Howard:

- Tem a certeza de que as escadas estão fora de questão?

- Absoluta - respondeu Howard. Olhou para Storr que confirmou com a cabeça. - Estamos melhor aqui

- prosseguiu -, o que certamente não é muito consolador. Olhe... -Abriu as mãos num gesto crescente. - Viram um fogo de floresta? Ou talvez não tenham visto. Começa geralmente por pouco. Uma pessoa qualquer descuida-se com uma fogueira ou com um cigarro aceso, insignificâncias dessas. A erva inflama-se, depois os arbustos, finalmente os galhos mais baixos das grandes árvores pegam fogo. - Fez uma pausa, ilustrando com gestos expressivos como a coisa acontecia. - No alto do topo afilado de uma das grandes árvores encontra-se, digamos, um ninho de avezinhas. No solo e mesmo nos galhos mais baixos da sua grande árvore há fogo, o fumo e o calor sobem, as chamas trepam de ramo em ramo. Fez nova pausa. - Mas durante muito tempo o ninho continua em segurança. - Meneou a cabeça. - Não para sempre, claro, mas por algum tempo. Até as chamas alcançarem os ramos mais altos, as avezinhas estão melhor onde se encontram. - Uma pausa final. - Particularmente - concluiu - se não sabem voar. O comandante dos bombeiros disse:

- Estamos numa árvore alta como todos os diabos. Isso concede-nos um pouco mais de tempo.

- Para quê? - retorquiu Grover Frazee. - Só para ficarmos à espera, sabendo perfeitamente o que nos vai acontecer? - Pôs-se repentinamente de pé. - Bem, eu não fico! -A sua voz subia de tom.

No limiar da porta o mayor Ramsay ripostou:

- Sente-se, homem! Comece a comportar-se como um adulto responsável.

No silêncio que se seguiu disse Frazee:

- Você devia ter sido um chefe de escuteiros. Provavelmente até foi. Por Deus, pela Mãezinha e por Yale? A velha gravata do colégio e noblesse oblige? - Meneou a cabeça quando se dirigiu para a porta. - Não tentem deter-me. - Falava directamente para o governador.

- Não o faremos - disse o governador, e seguiu Frazee com os olhos até este desaparecer.

No gabinete o silêncio era total. Beth abriu a boca, mas voltou a fechá-la sem produzir qualquer som. O comandante dos bombeiros agitava-se nervosamente. O mayor disse por fim:

- Devíamos tê-lo impedido, Bent.

- Foi uma decisão judiciosa - opinou o governador. - Assumirei a responsabilidade.

O bombeiro Howard declarou:

- Ele nunca mais consegue descer aquelas escadas, governador.

- Estou ciente disso. - A face do governador revelava cansaço.

O senador Peters apareceu no limiar da porta. Encostou-se à ombreira.

- Uma decisão judiciosa - repetiu o governador. Talvez tenha feito bem, talvez tenha feito mal. Não sei. Nunca saberemos. Decisões como essa podem discutir-se indefinidamente.

- Você está a falar - disse o mayor - da vida de um homem, Bent.

- Também estou ciente disso - replicou o governador. - Mas o que é que me dá o direito de decisão sobre a vida de outro homem?

- Você está a abdicar da sua posição?

- Isso, Bob - replicou o governador -, é uma das coisas em que somos diferentes. Não acredito na teoria de que o papá-sabe-tudo-melhor. Em zonas de interesse público, assumo uma posição. Mas aquilo que um homem adulto decide fazer, a não ser que afecte directamente os outros, não é da minha competência.

Do grande salão exterior o ritmo do rock chegava agora em cheio. Uma voz feminina ergueu-se numa risada, estrídula, alcoólica, com laivos de histeria. Alguém gritou:

- Eh, olhem! Ele está a sair pela porta!

- Este é todo o seu público de momento, Bent - disse o mayor. - E está influenciado por Frazee. Você não o pode negar.

-É isso - afirmou o governador - que torna a coisa numa decisão judiciosa. Feitas bem as contas, penso que o público fica melhor servido por eu o deixar ir. É uma força desagregadora... fora de vista.

O senador Peters disse docemente para a sala em geral:

- Um filho da puta cheio de sangue-frio, não é? Ninguém respondeu.

O senador sorriu.

- Mas não posso deixar de concordar consigo, Bent. O governador ergueu-se na cadeira da secretária. -Portanto o que nos resta - disse - é a esperança

de que a sua gente, Pete, arranje uma maneira qualquer de dominar o fogo antes de ele alcançar - sorriu subitamente - o ninho.

- Como eu disse - lembrou o comandante dos bombeiros - é uma árvore grande como todos os diabos.

- Ninguém tem por aí um boletim meteorológico?

- perguntou Ben Caldwell. - Uma boa trovoada com chuva a cântaros era uma ajuda.

Beth, atenta, à escuta, quase conseguia sentir uma tempestade no ar. Perdendo-se em recordações, pensava na escuridão que se adensa à medida que as nuvens negras se acumulam. Depois o primeiro restolhar do vento que sobe, o primeiro rumor distante da procela. Quantas vezes não passara ela por isso, e quantas vezes, particularmente em criança, não detestara ter a tarde estival arruinada pelos elementos desencadeados?

As gotas começariam por ser grossas, pesadas, muito espaçadas, enquanto os relâmpagos se sucederiam numa seqüência acelerada e os intervalos entre o raio e o trovão diminuiriam.

Um hipopótamo, dois hipopótamos, três hipopótamos... contando o comprimento dos intervalos em segundos para calcular a distância do raio até, com o centro da tempestade directamente por cima da cabeça, já não haver qualquer intervalo, sendo o relâmpago e o trovão simultâneos.

Depois os céus abriam-se e a chuva tornava-se numa massa sólida, às vezes com as pedras da saraiva a bater ou a tamborilar contra as janelas e o telhado, dando aquilo tudo a impressão de que eram os próprios deuses a sacudir o universo.

E tinha ela detestado aquilo? Quando agora duas simples frases de Bent Caldwell tinham bastado para transformar uma tempestade estival numa esperança de salvação? Incrível.

- Uma boa chuvada de verão seria excelente - dizia o governador. Estava a sorrir. - Você conhece algum homem que saiba fazer chover, Ben?

O telefone começou a fazer ruídos. O governador ligou o altifalante para que todos pudessem ouvir.

- Fala Armitage.

A voz cansada de Nat Wilson pronunciou: - O segundo disparo não foi melhor que o primeiro, governador. Não havia muita esperança desde o princípio, mas tentámos o melhor que pudemos.

- Compreendido - disse o governador. - Apreciamos o esforço.

- O Brown quer saber se os dois homens chegaram aí em segurança.

- Chegaram. Estão aqui junto de mim. - O governador fez uma pausa. - Os outros dois já desceram?

Houve uma pausa. A voz de Brown surgiu no altifalante.

- Lamento dizer que não, governador. Encontram-se por alturas do quinquagésimo andar. Têm fogo no vão da escada por baixo deles.

- Então mande-os subir cá para cima, homem. Isto é, se eles ainda são capazes de andar.

- Também têm fogo por cima deles, governador. Os olhos do governador tinham-se cerrado. Finalmente abriu-os:

- Brown.

- Senhor?

- Chame outra vez o Wilson. - E quando a voz de Nat surgiu: -Quero que prepare um relatório completo - disse o governador. - De acordo com o texto desta... comédia de enganos. Quero que seja feito já, enquanto se podem ainda ouvir algumas testemunhas. Sem limites nem contemplações para com ninguém. Quem fez ou deixou de fazer isto ou aquilo e, sempre que possível, porquê. Enquanto nos for possível mantê-lo-emos informado de tudo o que acontecer aqui em cima, de todas as decisões que tomarmos, de todos os factos que descobrirmos.

Ouviu-se claramente no altifalante uma voz que resmungava ao fundo: era o ribombante protesto de Giddings- Diga a quem quer que aí está - prosseguiu o governador - que isto é um tribunal de inquérito aos factos, e que, se a investigação for adequadamente feita, esse relatório poderá evitar a repetição do que está a acontecer agora. Pelo menos espero que evite.

- Compreendo, governador.

- Deixe que sejam os factos a contar a história - continuou o governador. - Não carregue nas tintas. Isso não será necessário. Calculo que dadas as circunstâncias haverá culpas de sobra para todos. - Fez uma pausa. Incluindo alguns de nós que estamos cá em cima por se terem deixado arrastar pelas suas ambições. - Fez nova pausa. - Ficou tudo bem compreendido?

- Sim, senhor.

- Muito bem - disse o governador-, reuniremos...

- Calou-se surpreendido pelo súbito silêncio que se produziu no salão exterior.

Alguém gritou, voltou a gritar. O grito foi contagioso.

- Espere aí - disse o governador e saltou da cadeira precipitando-se para a porta a fim de ver o que se passava lá fora. - Meu Deus! - murmurou. - Valha-me santo Deus!

Alguém abrira a porta de incêndio respondendo a repetidas pancadas. Grover Frazee estava enquadrado no limiar. A maior parte das suas roupas tinham sido consumidas pelo fogo. O fogo levara-lhe o cabelo, a cara era uma bola negra onde os olhos não passavam de dois buracos negros na face atormentada. Os dentes estavam a descoberto num esgar. A carne do tronco caía em tiras esfarrapadas e o que restava do cabedal dos sapatos fumegava. Deu um passo indeciso em frente, com os braços parcialmente estendidos para diante, um som gorgolejante de estertor a sair-lhe do fundo da garganta. E então, de repente, caiu de borco, como um fardo negro a fumegar. Foi percorrido por um estremecimento convulsivo, depois os sons e os movimentos cessaram definitivamente.

O salão mantinha-se silencioso, em estado de choque.

O governador disse calmamente:

- Cubram-no.

A sua face mostrava-se inexpressiva quando voltou para o gabinete. "Uma decisão judiciosa", pensou, e cerrou os olhos por um instante.

18, 09 h-18, 19

Não podia ser - mas acontecia. Uma após outra as defesas do prédio tentaram deter o ataque e, falhando, desmoronavam-se.

Luzes piscaram durante algum tempo, sem que ninguém as visse, no painel de controlo do computador, mas extinguiram-se quando toda a energia faltou.

Os extintores entraram em acção em andares sucessivos quando o calor lhes derreteu os fusíveis. Mas grande parte do calor era dentro da própria estrutura, fora do alcance do jacto dos extintores, e quando o fogo irrompia em zonas abertas, sorvendo ar fresco para alimentar a sua fúria, as temperaturas subiam tão rapidamente que a água dentro dos canos dos extintores transformava-se em vapor, e os canos rebentavam; e era mais um ataque bem sucedido do inimigo.

No interior do núcleo do prédio, não uma mas uma centena, um milhar de fendas verticais transformaram-se rapidamente em chaminés que transportavam calor para cima e procuravam ao mesmo tempo chegar ao fundo para sorver mais ar fresco, primeiro para gerar e depois para alimentar a combustão.

O ar aquecido sobe - é um axioma - e o ar sobreaquecido sobe mais depressa que o ar meramente quente. Mas o calor pode também ser transmitido por condução: depressa através da estrutura de aço, mais lentamente mas não menos inexoravelmente através de painéis, azulejos e soalhos, através das próprias condutas, dos fios, dos canos e dos tabiques das paredes. E um fogo uma vez bem ateado torna-se quase capaz de se bastar a si mesmo, elevando as temperaturas acima dos níveis de combustão, fazendo os materiais inflamarem-se como espontaneamente. São grandes as responsabilidades de Prometeu.

A notícia espalhara-se. O prédio gigantesco que estava destinado a ser um centro mundial de comunicações estava agora a ser o foco de comunicações mundiais de outra natureza. Era sabido em todo o mundo, e em certos lugares a informação era recebida com satisfação, quiçá com alegria, que na mais rica nação da terra, no mais novo e no mais alto edifício que o homem jamais concebera, estava em curso uma catástrofe que os homens se sentiam impotentes para conjurar.

Mas não completamente.

Tinham coberto os restos de Grover Frazee com uma toalha branca de mesa e deixado o corpo onde ele caíra. A porta de incêndio foi de novo fechada, mas era agora claro para todos os que se encontravam na sala que as portas de incêndio constituíam apenas protecção temporária. O inimigo invasor penetraria lá quando chegasse a sua altura. A não ser...

- Eles estão a tentar conter o fogo nos andares inferiores - disse o governador. Subira de novo para a cadeira. - É a nossa melhor esperança. - Estivera quase a dizer única esperança.

Já não contava com o auditório completo. Num dos cantos do grande salão o rádio transistor estava de novo a tocar música rock. Meia-dúzia de pessoas dançavam, se àquilo se pode chamar dança. Bem, pensou o governador, ele próprio o tinha dito: ou aquilo ou então hinos e preces. Fez de conta que ignorava o espectáculo.

- Lamento comunicar que a tentativa do elevador falhou. - Fez uma pausa. - Considerando o que aconteceu na primeira tentativa, talvez tenha sido melhor. "Valha-me Nosso Senhor Jesus Cristo aos Pulinhos", pensou, "estou reduzido a bolsar lugares-comuns." Obrigou-se a sorrir de repente. - Não direi que está tudo a correr às mil maravilhas. Não está. Por outro lado, de momento estamos em segurança aqui e eu tenciono manter a convicção de que os nossos amigos bombeiros chegarão cá a tempo. - Fez uma pausa. - E agora vou tomar uma bebida. Afinal de contas isto começou por ser uma recepção.

Desceu da cadeira e pegou no braço de Beth.

- Uma bebida - disse - e um lugar qualquer onde possamos falar. Estou farto de sorrir como um idiota só para mostrar que estou cheio de confiança.

Com ela, pensou Beth, Bent não se sentia na obrigação de disfarçar. Era esse o milagre.

Dirigiram-se juntos ao bar e depois levaram as bebidas para um canto deserto. O governador aproximou duas cadeiras. Sentaram-se muito perto um do outro, de costas para a sala.

Foi Beth quem quebrou o silêncio.

- Como são os seus pensamentos, Bent? - perguntou.

- Sombrios e irritados. - O governador sorriu de súbito, desta vez com significado. - Estou a pensar no tempo perdido. A lamentá-lo. A detestá-lo. - Fez uma pausa. - A sacudir mentalmente os punhos para o céu. A praticar um exercício de futilidade infantil.

Ela compreendia essa impressão, partilhava-a até. Obrigou-se a afastá-la.

- Quando eu era criança e me castigavam mandando-me para o quarto - forçou-se a sorrir - costumava tentar pensar no que mais me apeteceria fazer, concentrava-me nisso. Que mais lhe apeteceria fazer, Bent?

Lentamente, perceptivelmente até, uma parte da tensão abandonou-o. O seu sorriso tornou-se fácil e afável.

- Retirar-me da política - disse. - Tenho meios para isso e já fiz todo o gosto ao dedo que me apetecia fazer. Esse rancho no Novo México...

- Só isso, Bent? Nada mais?

Ele não respondeu logo. Por fim meneou a cabeça.

- Não. Você obrigou-me a um exame de consciência. Odiaria a reforma total. - De novo o sorriso significativo. - Sou advogado. Gostaria de descobrir até que ponto seria um bom advogado.

- Você seria bom em tudo o que decidisse fazer.

- Mas as trutas estariam sempre ali - disse o governador, quase como se ela não tivesse falado - e eu arranjaria as coisas de modo a nunca me faltar tempo para ir pescá-las. - Fez uma pausa. - E desde que estou a pintar o quadro de uma Utopia, você também lá havia de estar sempre.

Beth sentiu uma onda tépida invadir-lhe a mente, todo o seu ser.

- Isso é uma proposta de casamento? Sem hesitação.

- É.

- Então - disse ela lentamente - aceito com o maior prazer.

Nat dirigiu-se para a porta do atrelado e desceu os degraus, indo postar-se ao nível da praça a fitar a imensidade do prédio. Foi só quando ela falou que compreendeu que Patty o tinha seguido.

- Tanta gente! - exclamou Patty.

Nat olhou então para a enorme multidão por detrás das barreiras.

- Times Square na noite de fim do ano - disse. Havia cólera na sua voz. - Malditos vampiros. Talvez devêssemos queimar pessoas na fogueira em público, vender bilhetes, ganhar milhões.

Patty conservou-se calada.

- Todos temos culpa - disse Nat. - Isto para começar. Agrada-me que o Bert nunca tenha chegado a saber.

- Agradeço-te o que acabas de dizer. - Patty fez uma pausa. - E hei-de lembrar-me disso. Outros estão metidos nisto também. Até o papá. Toda a gente contribuiu para o que se passa, não foste só tu, será que não percebes?

Ele conseguiu então sorrir com esforço.

- És uma optimista. -Ao contrário de Zib, que tendia para ser elegantemente pessimista. E isso, pensou, era outra das características da grande cidade de que ele não gostava: a firme convicção de que nada era jamais o que parecia ser; de que não havia realmente nada por que uma pessoa tomasse partido, a não ser contra; a ubíqua defesa do não-penses-que-me-comes-por-tolo de que a pessoa se rodeia como de uma cerca de arame-farpado para proteger a insegura cerca interior; tudo isso em nome da sofisticação mundana. Sofisma, talvez, mas não sofisticação.

- Que é que vai acontecer a toda essa gente, Nat?

- A voz de Patty era sóbria, concentrada. - Eles irão...

- Deixou a pergunta por concluir.

- Os bombeiros estão a subir com as mangueiras - disse Nat - de andar para andar. Cada degrau é uma batalha. Têm de subir cento e vinte e cinco andares.

- Mas o que é que está a arder? É isso que não compreendo.

- Tudo. Alguns dos escritórios já estavam arrendados. Móveis, alcatifas, portas apaineladas, papelada, é isso o que arde primeiro. E isso eleva a temperatura ao ponto em que a tinta arde e os azulejos do soalho e o gesso derretem, o que por sua vez eleva ainda mais a temperatura até que as coisas que uma pessoa considera incombustíveis começam a arder. - Nat fez uma pausa. Não sou um perito em incêndios, mas é em geral assim que acontece.

- Supõe - disse Patty - que o prédio já se encontrava ocupado quando isto aconteceu. Milhares de pessoas em vez de uma centena. - Fez uma pausa. - Mas os números não têm realmente importância, pois não? Mesmo que fosse uma única pessoa, continuaria a ser... trágico.

No meio da sua própria dor pela morte de Bert McGraw, pensou Nat, ela ainda era capaz de se preocupar com os outros. Mas isso talvez acontecesse precisamente por causa da morte de McGraw, visto que a perda de um ente querido irmana de certo modo os homens.

- Que é que tu vais fazer, Nat?

A pergunta apanhou-o desprevenido.

- É exactamente aquilo em que tenho estado a tentar pensar.

- Não. - A voz de Patty tinha agora um tom afável. - Refiro-me a quando tudo isto acabar.

Nat meneou a cabeça em silêncio.

- Irão reconstruir o prédio?

Ele ainda não tinha considerado a hipótese, mas a resposta veio nítida e forte:

- Espero que não. - Pausa. - Ainda esta manhã

- disse Nat - Ben Caldwell falou do Faros, o farol que se ergueu na foz do Nilo. Durante mil anos, disse ele. Era assim que ele imaginava este prédio. - Meneou a cabeça. - Como é a palavra? Arrogância: orgulho humano a desafiar os deuses. Em certos locais do Médio Oriente nunca acabam uma casa. Deixam sempre de fora meia-dúzia de tijolos, umas telhas... -Baixou os olhos a sorrir para a jovem. - Isso porque uma obra completa é considerada uma afronta. Ao homem é dado procurar a perfeição mas não é dado alcançá-la.

- Gosto dessa - disse Patty.

- Eu não estou certo de gostar, mas penso que compreendo. Um sujeito disse-me em tempos que só faz bem a um homem ser obrigado de vez em quando a tomar consciência da sua própria insignificância. - Fez uma pausa. - Voltemos lá para dentro.

- Tiveste alguma idéia?

- Não. - Nat hesitou. - Mas, tal como tu, não me posso alhear disto. - Ocorreu-lhe um novo pensamento. - Que acontecia se tu não fosses a filha de Bert - perguntou Nat - mas apenas... casada com alguém que estivesse metido nisto?

- Contigo? - Pequena, corajosa, disposta a enfrentar até uma simples conjectura, uma hipótese. - Queres dizer se estaria aqui junto do prédio? - Patty meneou a cabeça enfaticamente. - Estaria. Tentando não me meter no teu caminho, mas estaria.

- Era isso que eu pensava - disse Nat lentamente, intrigado pelo súbito prazer que lhe causava a confirmação.

Dentro do atrelado, um dos comandantes de batalhão falava para o walkie-talkie:

- Sabes qual a profundidade do fogo na escada por cima de vocês?

A voz que respondeu estava rouca de cansaço.

- Já lhe disse que não!

O comandante perguntou quase raivosamente:

- E por baixo de vocês? Fez-se silêncio.

- Ted! -chamou o comandante. - Fala, homem! Por baixo de vocês?

A voz fez-se ouvir, quase histérica desta vez.

- Que raio lhe deu, estamos a brincar aos exames ou o quê? Nós vamos descer. Se nos safarmos eu lhe direi qual a profundidade, tá bem? Estamos neste momento no cinqüenta e dois...

- Dentro - disse o comandante. - Como estão as coisas? Alguma possibilidade? Vocês podiam arrombar a porta...

- O estupor da porta está tão quente que nos deixa as mãos cheias de bolhas. É assim que as coisas estão lá dentro. Como lhe disse, vamos descer. Não há outra saída.

O comandante-adjunto Brown pegou no walkie-talkie.

- Aqui fala Tim Brown - disse. - Felicidades.

- Sim. Obrigado.

- Estaremos atentos a qualquer sinal.

- Claro. - E depois, falando para o lado: - Pronto. Levanta o rabo. Aí vamos nós. - O walkie-talkie emudeceu com um estalido.

Os dois comandantes de batalhão permaneciam imóveis, de olhos vagos. Os lábios de Tim Brown, notou Patty, moviam-se devagarinho. Numa oração? Giddings exibia uma catadura furiosa e havia raiva nos seus olhos azuis. Olhou para Nat e lentamente, quase imperceptivelmente, sacudiu o queixo. Nat meneou a cabeça ao de leve, a indicar que tinha entendido, possivelmente até que estava de acordo. Patty fechou os olhos.

Não era possível, pensou, e ao mesmo tempo sabia que era. Aquilo não era nenhum sonho, nenhum pesadelo. Não iria acordar de repente com o sentimento de alívio de todo aquele horror ter passado com a primeira luz da manhã. Apetecia-lhe voltar as costas e desatar a correr. Para o papá? Como tinha corrido ainda nessa manhã, à procura de conforto, alívio, compreensão? Mas não havia...

O walkie-talkie na mão de Brown despertou de súbito. Soltou um grito e depois outro. E a seguir foi o misericordioso silêncio, que contaminou todo o atrelado.

Brown foi o primeiro a mover-se. Dirigiu-se para a mesa de desenho, pousou o walkie-talkie muito devagar e desligou-o. Não olhou para ninguém. Em voz baixa e monótona desatou a praguejar.

18, 19h- 18, 38

Paula Ramsay aproximou-se das duas cadeiras isoladas num canto sossegado da Sala da Torre.

- Lamento interromper - disse - mas o que está a acontecer por detrás das vossas costas... -Sacudiu a cabeça. - Talvez esteja a ser antiquada.

O governador respondeu com um meneio inexpressivo.

- com excepção de Paul Norris e Grover-declaroutoda a gente se tem comportado admiravelmente, até agora. Que podemos nós esperar?

- Cary Wycoff está a fazer um discurso.

O governador inclinou a cabeça. Conseguia ouvir a voz, mas não as palavras; mas o tom, esganiçado, colérico, quase histérico, falava por si.

- Ele está provavelmente a dizer que alguém é culpado e a prometer uma investigação.

Paula Ramsay sorriu ao de leve.

- É precisamente isso, Bent.

- Daqui a pouco - disse o governador - o Cary estará à frente de uma delegação a exigir que se faça qualquer coisa. Meu Deus, quantas delegações dessas eu tive de ouvir!

- As pessoas - informou Paula - estão a afluir ao bar. Um dos criados está sentado a um canto sozinho, a beber pela garrafa...

O governador perguntou para consigo se não seria o criado que tinha três filhos. Suspirou e pôs-se de pé.

- Que pensa você que eu posso fazer, Paula? O sorriso de Paula era brilhante.

- Sou como o Cary Wycoff, Bent - respondeu ela-, penso que é preciso fazer qualquer coisa, mas não sei o quê. - Fez uma pausa. - E assim volto-me para si.

- Sinto-me lisonjeado. - O sorriso do governador zombava tristemente dele próprio e de toda a situação. -Há em Twain uma personagem que depois de ser coberta de alcatrão e penas é despachada da cidade num vagão de mercadorias. - O sorriso dilatou-se. - Ele diz que se não fosse a solenidade da ocasião, teria preferido sair a pé. Eu também preferia ficar aqui sentado. - Baixou os olhos para Beth. - Mas tentarei fazer qualquer coisa.

Passou pela porta de incêndio fechada onde o corpo de Grover Frazee jazia debaixo de uma toalha de mesa branca. O secretário-geral estava parado a olhar para o vulto imóvel. Lentamente, solenemente, benzeu-se, e depois, vendo o governador, sorriu quase apologeticamente.

- Desde os meus tempos de estudante - disse o secretário-geral - tenho-me constantemente ufanado do meu livre-pensamento. Agora descubro que as crenças da infância não são fáceis de morrer. Divertido, não é?

- Não é, Walther. Eu acho isso até quase invejável. O secretário-geral hesitou.

- Começo a compreender-disse-que você é basicamente um homem bondoso, Bent. Lamento não o ter compreendido antes.

- E - replicou o governador - eu sempre pensei que você era, que qualquer pessoa na sua posição tem forçosamente de ser, um presumido.

Sorriram um para o outro.

- Na minha terra - disse o secretário-geral -, onde subir montanhas é um desporto popular, os homens ligam-se uns aos outros com cordas por uma questão de segurança quando sobem, e temos um ditado que diz: "Não há estranhos numa corda". É triste, não é, que seja necessária uma situação de crise para que as pessoas cheguem a conhecer-se umas às outras? - Fez uma pausa. - Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudar!

- Reze - respondeu o governador, sem ironia.

- Já o fiz e vou continuar. - De novo a pausa, cortês, solícita, sincera. - Se houver mais alguma coisa, Bent...

- Contarei consigo - disse o governador, e com sinceridade. Dirigiu-se para o centro da sala e olhou em redor.

Paula não tinha exagerado. O bar estava a transbordar de clientes; no centro da sala Cary Wycoff fazia um discurso; era o criado com três filhos que se encontrava solitariamente sentado a beber uma garrafa de bourbon; no canto do fundo o transistor tocava música rock e alguns dos mais jovens pares dançavam, descrevendo contorções espasmódicos.

Saía agora fumo das condutas de ar condicionado, mas a coisa não era por enquanto opressiva; o seu sabor acre pairava no ar. O governador espirrou. O mayor Ramsay, ali próximo, disse:

- Santo Deus, olhe-me pràquilo!

Uma das dançarinas mais jovens perdera de todo a tramontana. com um simples movimento despiu o vestido pela cabeça e arremessou-o para longe. Usava minicalças e não trazia soutien. Os seus seios opulentos saltavam a cada arremesso súbito para a frente do pélvis.

- Teria sido um sucesso de arromba na Velha Howard quando eu estava na universidade - disse o governador. - A Kitty havia de gostar muito. - Sorriu. - E eu também.

O senador Peters aproximou-se.

- Isto está a ficar quente - disse - em mais do que um aspecto.

Ben Caldwell veio juntar-se ao grupo. O seu rosto era inexpressivo.

- Mais fumo - disse. - Antes de quebrarmos as vidraças, isto era um sistema mais ou menos estanque. Agora... - Meneou a cabeça, sorrindo ao de leve a indicar que compreendia que não tinha havido outro remédio. - Continuo à espera de que Nat Wilson tenha outra idéia.

Cary Wycoff soltou de súbito um rugido sem palavras e agitou os punhos acima da cabeça.

- Chiça, vocês enlouqueceram todos? - Lançou os olhos para o grupo do governador. - Uma assembléia de velhinhos numa partida de chá! Será que vocês nem sequer compreendem o que está a acontecer?

Era forte a tentação para responder à letra, gritando, gesticulando, acusando e replicando até toda a gente ter enlouquecido. O governador dominou a tentação.

- Compreendo perfeitamente que você esteja com um ataque de nervos, Cary-disse. -Tenciona suster a respiração até ficar com a cara azul? É uma receita muito popular em cuja eficácia não falta quem acredite.

Cary dominou-se com esforço. Tinha-se formado um grupo em volta dele. O governador reconheceu uma ou; outra cara. Estavam todos a observá-lo atentamente.

- Dêmos-lhe ouvidos - declarou Cary. A sua voz era agora mais calma. - Portámo-nos todos como damas e cavalheiros...

- Todos - atalhou o governador - excepto Paul Norris e Grover Frazee. Eles queriam acção. Você viu os resultados. É isso que tem em mente, Cary? - A sua voz era agora fria e dura. - Se é isso, a porta de incêndio está aí. Não está fechada.

Cary mantinha-se calado, a respirar com esforço.

- Há uma alternativa-lembrou o governador. - Estávamos justamente a falar das janelas quebradas. Pode saltar.

Uma voz no grupo por detrás de Cary disse:

- Deve haver qualquer maneira, chiça! Não podemos ficar aqui como ratos apanhados numa ratoeira!

- É - gritou Cary - aquela idiotice de atirar um cabo da torre do Centro Comercial! Uma fita! Nada mais que isso! Toda a gente sabia que não podia dar resultado.

Seguiu-se um murmúrio geral de concordância. O governador esperou que amainasse. As faces, pensou, já não se mostravam corteses, nem sequer deferentes; eram as faces de uma multidão que se preparara para apedrejar a polícia. O medo e a ansiedade causados pelo desespero agem às cegas.

- Estou aberto a qualquer sugestão - anunciou o governador. - Todos nós estamos. Pensam que esta situação me dá prazer?

O bramido da música rock cessou subitamente. A rapariga quase nua continuou a contorcer-se, perdida no seu próprio êxtase, mas os outros dançarinos voltaram-se a fim de observar a confrontação, de escutar.

O governador ergueu a voz.

- Não vou fazer um discurso - declarou. - Não há nenhuma matéria para discursos. Estamos metidos nisto, todos nós...

- Quem é o responsável? - gritou Cary. - É isso que eu quero saber.

- Não sei - replicou o governador. - Talvez lá em baixo saibam, mas eu não sei. A não ser - fez uma pausa-, a não ser que sejamos todos por nos termos afastado tanto das nossas raízes, por termos perdido o contacto com a realidade.

- Isso - gritou Cary - é conversa fiada.

O governador limitou-se a menear a cabeça. Encontrava-se agora para além da cólera, imerso na calma do desprezo.

- Fique-se com a sua, Cary. Não vou discutir consigo. Uma voz nova, calma, perguntou:

- Qual é o seu prognóstico, governador?

- Grave. - O governador voltou-se para todos. Não tentarei enganá-los. Não serviria de nada. Ainda nos mantemos em contacto com o solo pelo telefone. Eles conhecem a nossa situação. Vocês podem olhar lá para baixo para a praça e ver o equipamento dos bombeiros, o sem-número de mangueiras que penetram no prédio. - Abriu as mãos. - É grave - repetiu - mas não desesperado... ainda. - Olhou em redor da sala, à espera.

Só o silêncio lhe respondeu.

- Se houver qualquer alteração - disse o governador - prometo informá-los. É uma fraquíssima consolação, bem sei, mas é tudo o que lhes posso dar. - Dito isto, voltou as costas e encaminhou-se para o seu recanto isolado, passando sem um olhar pelo corpo coberto pela toalha de mesa.

Beth esperava com Paula Ramsay.

- Ouvimos - informou Beth. Sorria afavelmente. Saiu-se muito bem, Bent.

- Da próxima vez - disse o governador - não vai ser tão fácil. - Sentia-se velho e cansado e perguntava a si mesmo se o seu subconsciente não estaria simplesmente a preparar-se para o fim. Dominou-se com esforço. - E haverá uma próxima vez. O pânico chega em vagas, cada vez mais fortes. - Bem, tudo o que podiam fazer era esperar.

O imediato Oliver tinha atrás de si vinte anos na Guarda Costeira. Tinha servido em estações de terra e a bordo de cúteres em águas tropicais e nas passagens geladas do Árctico. Tinha auxiliado a pescar homens das águas cobertas de óleo em chamas e a retirá-los das cobertas de navios a afundarem-se; e às vezes os homens que ele colhera já se encontravam mortos.

Aprendera com a experiência que certas operações são impossíveis. Mas uma parte de si próprio recusava-se a acreditar nisso e todo ele se rebelava contra qualquer forma de derrota.

Agora, grande e impotente, postado na torre do Centro Comercial, fitando a fileira de janelas quebradas da vizinha Sala da Torre, na verdade tão próxima mas mesmo assim tão diabolicamente distante, sentia-se quase, mas não completamente, prestes a explodir de pura frustração.

Kronski perguntou numa voz cansada:

- Então disparamos outro cabo? - Fez uma pausa. - Recorda-se daquele poema? "Disparei uma seta para o ar. A seta caiu no chão, onde é que não sei." Aposto que o tipo perdeu uma data de setas desta maneira. Quer que tente outra vez?

- Não - respondeu por fim o imediato. Puro desperdício, pensou, e isso era uma coisa que ele também não podia sancionar. Permaneceu imóvel durante algum tempo, a olhar através do abismo. Havia pessoas do outro lado. Ele conseguia vê-las. E conseguia ver e cheirar o fumo.

Fogo e tempestade: tinham sido os inimigos de toda a sua vida de adulto. Ele enfrentara ambos e lutara contra eles, umas vezes ganhando, outras vezes perdendo, mas de uma maneira ou de outra nunca deixara de travar o combate. Mas agora...

Ergueu o walkie-talkie.

- Fala Oliver. Chama o atrelado.

A voz de Nat respondeu imediatamente:

- Aqui do atrelado.

- Não se consegue - disse o imediato. A sua voz estava saturada de desapontamento. - O alvo é demasiado distante e há demasiado vento contra nós.

- Compreendo. - Nat manteve a voz cuidadosamente inexpressiva. Outra idéia que falhava. "Pensa, caramba! Pensa!

- É preferível desistir - declarou o imediato. Segurando numa das mãos o walkie-talkie, Nat batia

lentamente com a outra sobre a mesa de desenho.

- Agüente um minuto, imediato. Deixe-me pensar.

- Uma súplica, uma esperança.

No atrelado não se ouvia uma mosca. Brown, o comandante de batalhão, Giddings e Patty esperavam todos em silêncio. "Estás a armar à importância - disse Nat para consigo-, a representar para um público" - e desprezou-se por isso.

E, contudo, qualquer coisa rastejava no fundo da sua mente. Se ao menos conseguisse trazê-la ao limiar da (consciência - caramba, o que é que tinha, apesar de (tudo, engatilhado esse sentimento? O que é... Outra idéia que não resultará, pensou de súbito. Era essa a chave do problema. Outra idéia - mas se reunisse às duas? Disse para o walkie-talkie:

- Tivemos um helicóptero a pairar lá em cima quando isto começou, imediato. - Obrigou-se a falar lentamente, com desnecessária clareza, elaborando o seu pensamento à medida que o exprimia. - Eles não conseguiram encontrar nenhum lugar onde pousar, portanto não puderam fazer nada. - Uma pausa. - Mas que me diz a mandar voltar o helicóptero para o levar a si e à sua espingarda para perto do prédio, suficientemente perto para lhe permitir disparar um cabo e metê-lo na Sala da Torre? Depois puxar o cabo de volta até ao terraço do Centro Comercial e iniciar a sua operação a partir daí? - Outra pausa. - Isso dará resultado? Há alguma possibilidade?

Seguiu-se uma prolongada pausa. Depois, num lento deslumbramento:

- Eu - disse o imediato - raios me partam. - Agora sorria e o sentimento de impotência tinha caído como uma capa que se solta dos ombros. - Não vejo porque não. Chame o seu pássaro rotativo. - Estava a olhar para Kronski. - Vais dar um passeio, rapaz. Trata de não ficares enjoado.

Chamaram o governador do seu recanto isolado para ir atender o telefone. Depois de ouvir a voz de Nat no altifalante, o governador perguntou:

- E a coisa resultará?

- Pensamos que é possível. - A voz de Nat controlava cuidadosamente o entusiasmo. - O helicóptero pode pairar e proporcionar ao atirador da Guarda Costeira um tiro quase à queima-roupa para dentro da Sala da Torre. Terá aí de evacuar uma boa parte da sala para que ninguém seja atingido pelo disparo. - Fez uma pausa. - É possível que seja necessário tentar umas duas vezes, mas não deve haver dificuldade de maior. - "Assim espero", pensou.

- Providenciaremos para evacuar toda a zona junto das janelas - disse o governador. - E teremos homens a postos para agarrarem o cabo. E depois?

- Fixem-no solidamente à estrutura - advertiu! Nat. - O cabo vai exercer forte pressão quando levarem o resto do cabo para a torre do Centro Comercial. Eu estarei em comunicação através do uialkie-talkie com Oliver, o imediato da Guarda Costeira, e manter-me-ei também em contacto convosco através desta linha. Desse modo poderemos manter as nossas instruções em boa ordem. - Fez uma pausa. - Quando eles tiverem o cabo de vaivém no terraço do Centro Comercial, amarram-lhe o cabo mais pesado. Então os seus homens podem começar a puxá-lo. - Fez outra pausa. - Mas não enquanto não lhes disserem.

- Compreendido - disse o governador. Sorria ao de leve. - A idéia foi sua, meu rapaz?

- Prometemos que havíamos de pensar em qualquer coisa. - Nat hesitou. -A única coisa é... porque foi que não pensámos nisto mais cedo?

O sorriso do governador dilatou-se.

- Durante anos - disse - andei à procura de um atrasado mental de três anos a fim de contratá-lo para me assinalar aquilo que é evidente. - Transferiu o sorriso para Beth. - Mas há ocasiões também em que consigo reconhecer uma coisa boa à primeira vista. Deus seja louvado. - O seu tom mudou. - Qual é a situação do incêndio?

- Não é boa. - Havia peremptoriedade naquelas três palavras.

- E esses dois homens que se encontravam na escada?

- quis saber o governador.

Nat ainda lhes ouvia os gritos no walkie-talkie. "Para começar a idéia de mandá-los para a escada foi minha"

- pensou, e sabia que tornaria a sugerir o mesmo se fosse necessário, porque era um risco que tinha de ser corrido.

- Não escaparam - declarou,

O governador viu os olhos de Beth cerrarem-se, Prolunciou com afabilidade:

- Tão-pouco escapou Grover Frazee. Tentou descer pelas escadas. - A sua voz tornou-se quase brutal. - Qual Irirá a ser a conta final da matança? - E depois, rapidamente: - Risque isso. - Recostou-se na cadeira com um movimento fatigado e remeteu-se ao silêncio.

O piloto do helicóptero disse:

- Tentaremos. - Encolheu os ombros. - Até que ponto me posso aproximar, isso não sei. Uma pessoa aproxima-se desses malditos arranha-céus e depois o vento... -Meneou a cabeça. - Sopra em todas as direcções ao mesmo tempo, percebe o que eu quero dizer?

A face do imediato conservava-se inexpressiva.

- Olhe - continuou o piloto do helicóptero-, eu não quero exagerar, mas se batemos nesse prédio, a coisa não vai adiantar nada a ninguém, pois não?

A cabeça do imediato deslocou-se uma fracção de polegada a significar que tinha percebido. A sua expressão não mudou.

- Você sabe como é a Porta do Inferno, não sabe?

- prosseguiu o piloto. - A água que vem do Sounds e encontra a do rio Harlem, formando esses redemoinhos, essas correntes cruzadas?

- Conheço a Porta do Inferno - disse o imediato. Tinha visto pequenas embarcações descontroladas nas águas da Porta do Inferno, impotentes para manobrar contra a força das correntes, chocando contra pilares de ponte, contra muralhas.

- É a mesma coisa com os ventos em volta desses malditos arranha-céus - declarou o piloto. Fez uma pausa. - Tudo o que estou a dizer é que iremos tentar, mas não posso prometer nada.

- Muito bem - disse o imediato. - Kronski, entra para dentro dessa coisa.

- Muitíssimo obrigado - proferiu Kronski.

Nat encontrava-se à porta do atrelado, de olhos no céu. Por enquanto nada. Esperar era o mais difícil - quem tinha dito isso? Mas era verdade, e ele nunca o tinha compreendido. Uma pessoa tem uma idéia e põe-na em movimento, e depois aguarda, espera que resulte, porque não pode fazer mais nada

- Há-de resultar - disse Patty. Sorriu. - Tem de resultar.

18.24h - 18.41h

Com as janelas quebradas fazia sensivelmente mais frio na Sala da Torre, embora, como alguns notaram com crescente inquietação, o fluxo de fumo pelas condutas de ar condicionado estivesse também a crescer.

- Causa e efeito, provavelmente - voltou a explicar Ben Caldwell. - Enquanto isto foi uma câmara mais ou menos estanque, o fluxo de fumo, ou de ar, através das condutas, era limitado. Agora com as janelas quebradas a agir como respiradouros... -Abriu as mãos e encolheu os ombros.

Henry Timms, o presidente da rede de televisão disse:

- Nesse caso não devíamos ter permitido que se quebrassem os vidros. - A sua voz era convicta, decisiva e crítica. - Havia obviamente poucas probabilidades de conseguir disparar um cabo cá para dentro.

Caldwell limitou-se a comentar:

- As coisas não são assim tão simples - e voltou as costas.

Era um arquitecto, um projectista e, segundo a sua maneira de ver, a vida raramente era simples. Detestava o mero som da palavra compromisso, mas tinha plena consciência de que as transigências que o compromisso implicava eram o que tornava possível a maioria dos empreendimentos. A alternativa aqui era entre a possibilidade de disparar um cabo do Centro Comercial e a certeza de que havia de entrar mais fumo. No que respeitava à decisão, sentia-se feliz por deixá-la a outros. Nada lhe poderia interessar menos.

Presumia que a maior parte das pessoas que se encoBtravam na sala ainda nutriam alguma esperança. Ele não. Estava habituado a enfrentar os factos tangíveis; tentar evitá-los era comprazer-se em futilidades. QuJo profundo iria ser o dano causado à estrutura do edifício era coisa que não podia começar a calcular, mas muito antes de o dano ser completo todos os que se encontravam naquela sala estariam mortos. Havia muito que se resignara a isso. E a perspectiva da morte deixara até de preocupá-lo porque uma grande parte de si próprio já tinha morrido.

Aquilo era o seu prédio, a sua visão, o seu sonho ambicioso. E agora estava arruinado.

Sobre que ombros recairia em definitivo a culpa, era coisa de que não fazia a mínima idéia. Tão-pouco isso lhe importava particularmente. Que diferença fazia a mão que empunhara o martelo desfigurador da Pietà? Oh, a sociedade poderia querer vingar-se, mas nada poderia restaurar a obra de arte.

Em Nova Iorque, em Los Angeles, em Chicago, em Pittsburgh e numa dúzia de cidades menores, ele tinha os seus monumentos, e eles manter-se-iam de pé muito tempo depois de ele ter desaparecido. Mas este prédio era - tinha sido - a sua obra-prima, e estava agora irremediavelmente perdido; visões, cálculos, compromissos, trabalho, amor, todo o sangue, suor e lágrimas do processo de realização - para nada.

Quando se encontrava nessa manhã no seu gabinete, com a pilha de ordens de alteração em cima da secretária e Nat Wilson presente, teria sentido então a primeira premonição do desastre? Difícil de dizer; as análises retrospectivas são sempre suspeitas. Mas pouco importava. O desastre estava agora a tomar forma.

O senador Peters aproximou-se, com o seu sorriso matreiro.

- Profundamente meditativo - disse. - Idéias? Caldwell meneou a cabeça.

- Não, apenas a ver se arranjo alguma desculpa.

- Isso soa a convite para uma recepção. O sorriso tenso de Caldwell era expressivo.

- Para esta recepção receio que não sirva de nada apresentar desculpas.

- Também me parece. - O senador fez uma pausa. - Isso não parece preocupá-lo.

- E a si?

- Sabe - disse o senador-, nos últimos tempos tenho tentado encontrar uma resposta para isso que me pergunta. Não tenho a certeza. - Fez um gesto deprecatório. - Oh, não quero dizer que esteja acima de qualquer medo da morte. Não estou. O que eu quero dizer é qualquer coisa inteiramente diferente.

- Gomo por exemplo? - A despeito de si próprio, Caldwell sentia-se interessado. - Alguma espécie de fé?

O senador sorriu.

- Não em qualquer sentido corrente. Fui sempre um ateu. Não - meneou a cabeça -, a coisa faz parte, presumo, de uma vida inteira a aprender que algumas coisas não se podem evitar, que algumas batalhas se não podem ganhar e que é forçoso aceitar algumas decisões...

- Numa palavra - rematou Caldwell -, política? A arte do possível?

O senador meneou a cabeça.

- Nós somos moldados pelo que fazemos. - Sorriu. O Bent não podia libertar-se do hábito de comandar, mesmo que quisesse. É como um piloto veterano de aviões que se sente enervado quando vai outro a pilotar.

Cada vez mais interessante.

- E Paul Norris? - inquiriu Caldwell. - Grover Frazee? Como explica a conduta deles?

O senador sorriu.

- vou contar-lhe uma história a respeito do Paul Norris. Na Universidade ele tinha um belo apartamento na Adams House. A janela do quarto dele dava directamente para o campanário da igreja católica. Alguns de nós tivemos uma idéia e Paul alinhou. Montámos uma espingarda de ar comprimido fixa no peitoril da janela e apontada para o sino da torre. À meia-noite, quando o sino da igreja batia as doze, puxávamos o gatilho e o sino dava treze badaladas.

Caldwell estava agora a sorrir, recuando nessa altura os quarenta anos que o separavam do entusiasmo juvenil.

- Continue.

- Repetimos a façanha na segunda noite - disse o senador. - Um par de católicos que viviam em Adams House foram à missa e informaram-nos de que os bons dos padres estavam compreensivelmente perplexos, um pouco perturbados até. Falava-se de um milagre. - O senador fez uma pausa. - Na terceira noite o bispo veio propositadamente de Boston para ouvir com os seus ouvidos. Não o desapontámos. O sino deu a décima-terceira badalada. Depois desmontámos o apoio que tínhamos preparado no peitoril e levámos a espingarda. Caldwell, que continuava a sorrir, perguntou:

- Mas... e que aconteceu com Paul Norris? O senador meneou a cabeça.

- Ele queria continuar com a brincadeira. Noite após noite. Não compreendia que era melhor ficar por ali... manter o mistério. Entre outras coisas a respeito de Paul, era um sujeito estúpido, e eu não gosto de perder tempo a discutir com gente estúpida. - Fez nova pausa. - Embora, como Deus bem sabe, um político nunca possa esperar evitá-lo.

Caldwell insistiu:

- O senhor afirmou que parte da sua... aceitação se devia a que certas coisas não podiam ser evitadas, certas decisões tinham de aceitar-se. Quais são as outras partes?

- Suponho - disse lentamente o senador - que tenho um sentimento oculto de que as coisas acontecem sempre pelo melhor. Não me pergunte como, porque nem sequer sou capaz de lhe fornecer uma explicação racional. - Fez uma pausa. - Recorda-se de que em Atenas, quando as coisas corriam mal, o rei tinha de morrer? O pai de Teseu despenhou-se da falésia porque as velas pretas no navio de Teseu indicavam que as coisas tinham corrido mal. - O seu sorriso era apologético. - Talvez nós estejamos a ser objecto de um sacrifício religioso? A idéia é ridícula, não é?

- Para expiar o quê?

O sorriso do senador apagou-se, desapareceu,

- Você continua impenitente, não é?

- Se com as suas palavras quer referir-se - replicou Caldwell secamente - às perturbações mundiais, às perturbações neste país, à pobreza, ao fanatismo e a coisas desse gênero... que temos nós a ver com isso? Eu não sou de modo algum responsável por isso.

- Um ponto de vista confortável. O gesto de Caldwell abrangeu toda a sala.

- Se está a pensar - disse Caldwell - que lá por ter projectado este edifício sou responsável pelas suas falhas, protesto. O projecto era, e é, bom. Não sei o que aconteceu para provocar este desenlace, mas a culpa não é do meu projecto.

- Presumo que a sua reputação se encontra acima de qualquer risco - declarou o senador-, e isso é que importa, não é?

Caldwell examinou a face do senador à procura de sinais de ironia. Não encontrou nenhum. Descontraiu-se ligeiramente.

- Você perguntou-me - prosseguiu o senador-como é que eu explicava a conduta de Grover Frazee. Penso que posso fazê-lo numa palavra: pânico. - Dito isto lançou também uma olhadela em torno da sala.

No canto oposto o transistor estava de novo a bramir a decadência do rock. A rapariga quase nua remexia-se infindavelmente. De olhos fechados, o seus movimentos eram eroticamente explícitos; o mundo ficara fechado lá fora.

Noutro canto um grupo misto juntara-se para cantar em coro. O senador pôs-se a escutar atentamente.

- O "Hino de Guerra da República" - disse - ou o "Avante, Soldados Cristãos". com a minha falta de ouvido não consigo distingui-los.

Junto do bar os três dirigentes religiosos que tinham participado nas cerimônias da praça conferenciavam: o rabino, o padre católico e o ministro protestante.

- Está a ocorrer-me um bom tema de oração - disse o senador. - Relacionado com a libertação de uma fornalha em chamas. Nabucodonosor teria adorado esta cena, não acha?

Caldwell pronunciou subitamente:

- Muito bem. Tenho de admitir que partilho da responsabilidade. Ela não é toda minha, mas partilho-a.

O senador reprimiu um sorriso.

- Isso agora já não tem realmente importância, pois não? - A sua voz era afável.

- Tem para mim.

- Ah - exclamou então o senador-, isso é uma história diferente.

- Não há nenhuma falha no projecto.

- Estou certo que não.

- A execução. É aí que a complicação começa. Quando uma pessoa transmite a outros o encargo de executar o trabalho, perde o domínio do processo.

- Causa uma impressão diabólica, não é - observou o senador -, quando uma pessoa tem de transmitir a outra aquilo que muito lhe custou a fazer?

Seguiu-se um longo silêncio.

- À sua maneira - disse lentamente Caldwell o senhor é um homem judicioso. E compassivo. Fez sentir-me melhor, mais limpo. Obrigado. - Ia começar a afastar-se.

- Que grupo escolhe? - perguntou o senador. Já não se dava ao trabalho de refrear o sorriso. - Dança, cânticos ou orações?

Uma parcela da tensão soltou-se perceptivelmente dos ombros de Caldwell. Voltou-se a três quartos com um sorriso descontraído.

- Talvez os experimente a todos.

- Que lhe faça bom proveito - desejou-lhe o senador. Encaminhou-se lentamente na direcção do gabinete, sozinho.

- E agora, doutor - disse quase a sussurrar -, cura-te a ti mesmo.

O governador vinha a sair do gabinete. A sua expressão era inescrutável.

- Venha comigo, Jack - convidou. - Vamos ter boas notícias, pelo menos espero. - Fez uma pausa. - Mas se esta tentativa também falhar, acho que teremos realmente pânico. Ou podemos ter. - Fez nova pausa. A tradicional corrida para os salva-vidas ou para a saída.

O governador encontrou uma cadeira e subiu-lhe para cima. Ergueu a voz.

- Prometi notícias logo que as tivesse. Agora peço a vossa atenção.

As canções calaram-se. Alguém baixou o volume do transistor. Fez-se silêncio na sala.

- Vamos tentar meter um cabo nesta sala - disse o governador. - Desta vez...

- Mais conversa fiada! - Era a voz de Cary Wycoff estrídula de cólera e com um laivo de terror. - Outro rebuçado para nos manter sossegados!

- Desta vez - declarou o governador, e a sua voz levou a melhor sobre a de Cary - eles vão tentar disparar o cabo de bordo de um helicóptero. - Fez uma pausa. - Quero toda esta ala do salão evacuada para que ninguém fique ferido se o disparo for bem sucedido. Fez sinal para o comandante dos bombeiros. – Tenho dois ou três homens postados para se apoderarem do cabo quando ele atravessar a janela. Depois...

- Quando? - gritou Cary. - Quer dizer "se"! E sabe muitíssimo bem que isso não vai acontecer. - As palavras agora quase se atropelavam umas às outras. - Desde o princípio você esteve a ocultar-nos factos, a tomar as suas próprias decisões, a fazer as suas combinaçõezinhas... -Aspirou tremulamente um grande hausto de ar. -Fomos apanhados aqui como ratos numa ratoeira.

Desde o princípio que estamos f. É perfeitamente claro, todo o governo da cidade!

Da multidão atrás de Cary Wycoff partiu um murmúrio surdo, raivoso.

- Calma, Cary - recomendou Bob Ramsay. Foi abrindo com os ombros caminho entre a multidão até se colocar junto de Cary, dominando-o com a sua altura. Calma, é o que lhe digo. Fez-se tudo o que era possível fazer, e agora esta...

- Merda! Vá impingir essas tretas aos eleitores e não nos queira comer por tolos. Nós estamos aqui para morrer, homem! E quem é o responsável? Isso é que eu quero saber. QUEM?

- Receio que tenhamos sido todos a matar a avozinha. - A voz do senador Peters elevara-se o suficiente para ser ouvida. Encarou Wycoff e aguardou um instante. - Desde que te conheço, Cary, são mais as perguntas que tens feito do que os ratos num casarão velho. Mas poucas são as respostas que tens dado, tudo o que te conheço são reacções. Já fizeste chichi nas calças? É só o que te falta para completar a tua conduta infantil.

Cary respirou fundo.

- Não me pode falar nesses termos.

- Dá-me uma razão para que o não faça. - O senador sorria. Não era agradável esse sorriso. - Pelos teus padrões eu sou um velho. Mas não te incomodes com isso se é em recorrer à força que estás a pensar. No bairro onde eu fui criado um puto de dez anos comia-te ao pequeno-almoço.

Cary conservava-se calado, indeciso.

- E quanto a todos os outros - prosseguiu o senador -, deitem água na fervura. O governador está a tentar dizer-vos o que é preciso fazer. Agora, chiça, dêem-lhe ouvidos!

De súbito o governador desatou a sorrir.

- Já disse tudo - declarou. Apontou para as janelas. - Vejam!

Voltaram-se todos. Um helicóptero balançava aproximando-se da fileira de vidraças partidas, e o som sin-" copado do seu motor tornava-se mais forte a cada momento.

Dentro do helicóptero: um homem, pensava Kronski, podia passar a vida inteira numa destas caranguejolas sem nunca conseguir equilibrar-se. Os barcos, mesmo os barcos pequenos em mares encapelados, movimentam-se com uma certa espécie de ritmo. Tudo o que o helicóptero fazia era saltar e pular, e como diabo pensava o chefe que ele poderia sequer atingir o prédio, para já não falar nas janelas, era coisa que ele não imaginava.

O estômago estava-lhe também aos altos e aos pulos, e ele engolia com força, voltava a engolir, e respirava fundo no ar frio.

Agora via caras dentro da Sala da Torre. Caras que fitavam o helicóptero como se este fosse uma visão.

O piloto olhou para Kronski. Havia uma pergunta nos seus olhos.

- Mais próximo! - rugiu Kronski. - Mais próximo, chiça! - Ele queria desesperadamente resolver tudo num único disparo, dizia para consigo, e depois voltar para terreno sólido, ou pelo menos para a solidez no terraço do Centro Comercial.

O piloto fez um breve aceno de assentimento. Moveu a alavanca dos comandos como se fosse uma coisa frágil capaz de se soltar e ficar-lhe na mão.

O prédio aproximava-se deles. As faces lá dentro viam-se com mais nitidez. Os saltos e os pulos aumentaram.

- Não me aproximo mais! -disse o piloto. - Dispare daqui!

As pessoas dentro da sala estavam agora a mover-se, escapulindo-se para um dos extremos da sala. Um homenzarrão - era o comandante dos bombeiros - agitava os braços para apressá-las.

Kronski ergueu a espingarda e tentou fazer pontaria. Num momento via diante da mira o mastro rutilante do prédio e logo no momento seguinte o que via era uma fileira de janelas intactas abaixo da Sala da Torre.

A mais estuporada operação em que já estivera metido. Ergueu a voz num grande berro:

- Pelo amor de Deus, você não pode manter isto quieto?

De dentro da sala viam a face tensa de Kronski, e a arma que ele empunhava, que apontava, que disparou por fim.

No meio da barulheira estrondeante do helicóptero o som do tiro foi inaudível, mas o frágil cabo era uma coisa tangível que todos puderam ver. Penetrou a serpentear na sala, chocou contra a parede do fundo e caiu no chão numa espiral emaranhada.

O comandante dos bombeiros e três criados precipitaram-se sobre o cabo e seguraram-no com força.

O helicóptero afastou-se rapidamente, a largar cabo.

Alguns deram vivas. Era contagioso.

18.41h - 19.02h

O polícia Shannon, com quatro pontos na cara debaixo de um penso branco posto de fresco, voltara para junto de Barnes nas barreiras.

- Uma pessoa lê a respeito destas coisas - disse Shannon. - Mas nunca espera vê-las com os seus olhos, pois não?

O seu gesto abrangeu a praça, as mangueiras e os bombeiros atarefados, o fumo que saía das janelas quebradas na fachada do prédio, o penacho de fumo próximo do topo da torre, e agora lá no alto o helicóptero que pairava, minúsculo, contra a imensidade dos edifícios.

- Um vampiro irlandês - disse Barnes. Não havia rancor na sua voz.

- Não há nada - dizia Shannon - como um bom incêndio. Nada. - Fez uma pausa. - Oh, eu sei, Frank, estou a parecer o homem sedento de sangue que não sou, mas é verdade. Porque é que as pessoas se juntam para ver? Por causa da excitação que lhes causa a dança das grandes labaredas, desse antegosto do inferno.

- E que me dizes - perguntou Barnes - de um bom e suculento acidente de tráfego? Corpos espalhados em volta? Sangue coagulado?

- Oh, deixa-te disso, Frank, não é nada a mesma coisa. Um desastre na estrada não passa de uma simples loucurazinha humana. Mas isto aqui é qualquer coisa... é grandioso! Olha pracolá! Chamas cobrindo metade da estrutura do monstro! Estás a ver?

- Estou a ver-disse Barnes. Fez uma pausa. - E tudo o que me ocorre pensar é Gõtterdámmerung.

- Põe isso em linguagem de gente, seu safardana preto.

- A Valhalá a arder - explicou Barnes. - A mansão dos deuses a arder até aos alicerces.

Shannon conservou-se calado por uns momentos, sempre de olhos no ar.

- É blasfemo - disse -, mas acho que estou a gostar de ver isto.

Com o telefone enganchado no ombro e o walkie-talkie sobre a secretária mesmo em frente dele, Nat comunicou ao atrelado em geral:

- Até aqui, tudo bem. Conseguiram meter o cabo de vaivém na Sala da Torre. O piloto do helicóptero está a dirigir-se para o terraço do Centro Comercial.

- Deus seja louvado! -exclamou Tim Brown. - Puxou do maço de cigarros meio vazio, olhou para ele, e com uma súbita decisão atirou-o com todo o seu conteúdo para o cesto dos papéis. - Nunca mais voltarei a ter melhor razão para deixar de fumar - disse.

Patty conservava-se sentada num banco, a observar, a escutar, a sorrir orgulhosamente. Giddings disse:

- Metade da batalha está ganha. A outra metade...

- De acordo - proferiu Nat, numa voz subitamente dura - mas, chiça, se não tivéssemos ganhado a primeira metade, nem sequer haveria segunda metade para tentar. - Depois, falando para o telefone: - Sim, governador?

- Presumindo que isto vai dar resultado - perguntava o governador -, que é preciso fazer? Por sorte nunca tive de me meter nuns calções de salvação, por isso não percebo nada da matéria. Há vento, bastante vento. Uma mulher pode fazer a travessia em segurança?

- O que tem de fazer é meter as pernas nos dois orifícios - disse Nat. - Encontra-se dentro de uma espécie de saco. Depois é fechar os olhos e deixar-se ir. Fez uma pausa, a sua voz era solene. - Mas o senhor tem de organizar umas coisinhas, governador. Quem vai e por que ordem...

- As mulheres primeiro. Já tínhamos decidido isso...

- Governador. A viagem completa do Centro Comercial à Sala da Torre e volta vai levar um certo tempo. Digamos um minuto. O senhor tem cem pessoas aí em cima, metade das quais provavelmente são mulheres. Irá levar quase uma hora só para tirar daí as mulheres e outra hora para os homens. É uma longa espera e é melhor estabelecer a seqüência exacta... -Calou-se ao ouvir outra voz no fundo do gabinete.

O governador informou:

- Fez muito bem, Jake. - E depois, para Nat:

- O senador Peters antecipou-se à sua idéia. Eu receava que ele estivesse a recortar bonecas de papel, mas o que está é a preparar quadradinhos numerados para as pessoas tirarem à sorte a sua ordem de partida.

Nat meneou a cabeça. Sorriu.

- Excelente. - Fez uma pausa. - E há alguém para fazer respeitar as precedências?

- Também trataremos disso. - A voz do governador fez uma pausa. - Duas horas? É esse o seu cálculo?

- Talvez menos - respondeu Nat. - Mas devagar e certo é a única maneira...

O walkie-talkie crepitou.

- Oliver para o atrelado - disse a voz. -Já fixámos os cabos grossos. Começaremos a soltá-los quando eles principiarem a puxar. Recomende-lhes que o façam devagar, com calma. Quando todo esse cabo grosso estiver fora, eles terão de puxar uma data de peso. Mais, por causa da ventania.

- Eu comunico-lhes - disse Nat. - Agüente um minuto, imediato.

Voltou a falar ao telefone:

- Tudo pronto, governador. Diga aos seus homens que comecem a puxar o cabo e se preparem para uma boa carga de peso antes de o trabalho terminar. - Fez uma pausa. - Boa sorte.

- Obrigado, meu rapaz. - Havia uma nota de ansiedade na voz do governador. - Você continua a postos junto do telefone?

- Sim, senhor. E do walkie-talkie.

- Bem haja - disse o governador.

Nat pousou o telefone no mata-borrão e recostou-se para trás na cadeira da secretária. O seu olhar encontrou o de Patty. Ela sorria.

Tim Brown perguntou:

- A estrutura agüentará? Se começa a desmoronar-se, vamos ter o maior monte de entulho que esta cidade já viu.

- Creio que vai agüentar - disse Nat. - Se o incêndio se tornar de todo incontrolável...

- Homem - declarou um dos comandantes de batalhão - o incêndio já se tornou de todo incontrolável. Tudo o que estamos a fazer é a lançar pazadas de merda contra a inundação. - Fez uma pausa. - E a perder homens para fazer isso.

- Então mais janelas irão saltar - disse Nat. - E o revestimento lateral de alumínio não resistirá indefinidamente. Mas a estrutura propriamente dita não se desmoronará.

- Tem a certeza? - perguntou Brown. Nat meneou a cabeça.

- É o que deduzo dos meus melhores cálculos - respondeu. - Melhor do que isso não posso fazer. - A sua mente desviou-se para um novo trilho. - Quando há fogo na floresta reza-se para que chova. - Como costumavam fazer em Boston - disse Giddings. - Um encantamento e logo vinham dois dias de " chuva. Que benefício causaria aqui uma boa chuvada?

- Dirigia-se aos bombeiros.

Um dos comandantes de batalhão encolheu os ombros.

- Ajudava. Daria aos que lá estão em cima - ergueu a cabeça indicando a Sala da Torre - um pouco mais de tempo, creio eu. - Fez uma pausa. - Mas se já estão a receber fumo... - Fez nova pausa. - Duas horas é muito tempo.

O tempo era o essencial, pensou Patty. O tempo era a dimensão contra a qual tudo o mais tinha de ser medido; dentro da sua moldura, comprimento, largura, espessura, os que esperavam a sua vez na Sala da Torre viveriam ou morreriam. "Enquanto nós esperamos fora da moldura incapazes de ajudar", pensou, e voltou a recordar-se da vigília no hospital à entrada da Unidade de Cuidados Coronários.

Perguntou a si mesma como estaria a mãe a sentir-se, e concluiu que nesse momento Mary McGraw devia estar na igreja, de joelhos, a orar por Bert McGraw, e acreditando que as suas preces haviam pelo menos de ser escutadas, mesmo que não inteiramente atendidas.

A fé tinha o poder de mover montanhas? Talvez sim, talvez não. Mas o que tinha sem dúvida era o poder de apaziguar e confortar.

"E eu não tenho fé", pensou Patty e, possivelmente pela primeira vez, esse pensamento foi acompanhado de genuína mágoa. A maior parte de nós voltámos as costas aos velhos costumes, mas que foi que colocámos em seu lugar?

Tomou de súbito consciência que Nat estava a observá-la com apreensão, e resolveu repetir a pergunta em voz alta, perguntando para consigo se ele compreenderia?

- Não me parece que tenhamos colocado nada

- disse Nat. - Substituímos a crença por aquilo que consideramos conhecimento e descobrimos que ainda não sabemos o suficiente para que a substituição dê resultado. Talvez nunca chegue a dar.

Os olhos dele perscrutando-lhe a face faziam uma pergunta, pensou Patty, que deslizou do banco para se aproximar de Nat, empoleirando-se num canto da secretária.

- Estou bem - disse. - Palavra. A mãe disse que ia para casa tomar uma boa chávena de chá e chorar para desafogar. Eu transferi a minha vez de fazer o mesmo para mais tarde.

- De tomar chá? - perguntou ele, tentando manter um tom ligeiro.

- Sou antiquada a esse ponto - respondeu Patty. O telefone crepitou. Nat levantou-o.

- Sim, governador?

-Tivemos um ataque de coração - disse o governador. - Isso fez-me pensar. Mandei elaborar uma lista de nomes e moradas de todos os que aqui se encontram. Quando estiver pronta eu leio-lha para alguém aí tomar nota. - Fez uma pausa. - Pelo sim pelo não.

- com certeza. - Nat cobriu o bocal do aparelho com a palma da mão. - Arranje um estenógrafo para tomar nota de uma lista de nomes - disse para Brown.

Patty mexeu-se no canto da secretária.

- Deixa-me fazer isso. - Qualquer coisa, fosse o que fosse que pudesse fazer, pensou ela, e que de um modo qualquer contribuísse para ajudar. Nat olhava-a com um sorriso de aprovação. - Eu escrevo legivelmente - garantiu Patty.

Nat declarou para o telefone:

- Estamos prontos para a sua lista quando quiser, governador. - E de novo se recostou para trás na cadeira da secretária a sorrir para Patty.

- Conseguiste - disse Patty baixinho. - Prometeste ter uma nova idéia e produziste-a. Sinto-me orgulhosa de ti.

- Ainda não acabou. Nem por sombras.

- Continuo a sentir-me orgulhosa de ti. E todas as pessoas que conseguirem escapar hão-de...

O walkie-talkie informou:

- Oliver para o atrelado. Eles já lá têm o cabo. Quero ficar completamente seguro de que alguém por lá sabe fazer um nó decente; um nó de escota é o que eu quero dizer. Se essa extremidade se solta enquanto estiver uma pessoa entre os dois prédios... -Deixou a frase por concluir.

- Há dois bombeiros lá em cima e provavelmente também alguns ex-escuteiros... -comunicou Nat. Não conseguia dominar inteiramente um sentimento eufórico de alegria. - vou tratar já de saber isso. Agüente um momento.

Levantou o telefone e falou para o governador, sorrindo levemente ao pensamento desse homem habituado a lidar com os problemas de dezoito milhões de pessoas encarregando-se agora de verificar se alguém tinha feito um nó a preceito na ponta de um cabo. Escutou a resposta.

- Obrigado, governador - disse, e voltou-se para o walkie-talkie'. - É um nó de escota. Esteja descansado, imediato.

- Então - replicou o imediato - diga-lhes que comecem a operação. Deste lado estamos prontos. - Havia também um tom de triunfo na voz do imediato.

No centro do edifício, convertido já numa grande chaminé, as temperaturas subiam para níveis de fundir velas. Uma contínua deslocação de ar fresco era sorvida na base, arremessada para cima pela sua expansão quase explosiva e, acelerando até quase atingir a velocidade de um furacão, agia, como tinha dito o comandante de batalhão, à maneira de um alto-forno.

O aço estrutural começou a ficar incandescente. Materiais menores fundiam-se ou evaporavam-se. Onde, à medida que de andar para andar, expandindo-se ao acaso, o ar sobreaquecido irrompia do núcleo para os corredores abertos transformando-se instantaneamente em chamas, as vidraças de vidro endurecido duravam apenas alguns instantes antes de estilhaçarem e caírem numa chuva de cacos sobre a praça.

Os tabiques de alumínio encaracolavam-se e derretiam-se; era a pele da estrutura a descascar, deixando a nu os tendões e o esqueleto interior.

Como um animal gigantesco em tormentos, o grande edifício parecia contorcer-se e estremecer, numa manifesta agonia.

Do solo, para aqueles cuja visão lhes permitia divisá-lo, o cabo suspenso entre os dois edifícios parecia impossivelmente fino, subtil como uma teia de aranha. E quando os calções de salvação partiram carregados pela primeira vez da Sala da Torre e iniciaram a oscilar a sua descida catenária para o terraço mais baixo do Centro Comercial, a impressão recebida era de que o saco de lona e a mulher que viajava lá dentro se encontravam soltos no ar, suspensos apenas pela fé, desafiando a gravidade numa tentativa milagrosa de escapar ao calor ascendente do alto-forno.

O seu nome era Hilda Cook, estrela da nova revista Jump for Joy em cena na Broadway.

Tinha vinte e nove anos de idade e toda a sua indumentária era constituída por uns sapatos, umas calcinhas e um minivestido enrolado agora acima da cintura. As suas pernas compridas e bem feitas pendiam a partir das virilhas através dos orifícios dos calções de salvação. A rapariga agarrava-se às bordas do saco de lona com a força da histeria.

Ela tinha arregalado os olhos incrédula para o número no quadradinho de papel que retirara da terrina de ponche vazia e o primeiro som que produzira fora um guincho. Depois exclamara:

- Não pode ser! - A sua voz era estrídula. - Sou a número um!

Era o secretário-geral que presidia ao sorteio.

- Alguém tinha de ser o número um - observou. Os meus parabéns.

Tinham feito passar o pesado cabo onde corriam os calções de salvação através da janela, indo ter ao tecto onde um dos bombeiros, servindo-se da sua ferramenta de demolição, pusera a nu uma trave de aço em volta da qual dobraram o cabo.

Ben Caldwell, dirigindo a operação, assinalara a vantagem.

- A não ser que recorramos ao tecto - disse como se estivesse a explicar o problema a uma classe de jovens arquitectos não muito brilhantes - o cabo assentará no peitoril da janela e não conseguiremos trazer os calções para dentro da sala. Eu, por exemplo, prefiro meter-me no saco cá dentro a ter de passar para fora da janela para me enfiar nos calções.

Três homens manobravam o cabo mais leve ligado também ele aos calções, e Hilda Cook, oscilando ainda dentro da sala, pediu: - com jeitinho, rapazes, pelo amor de Deus! Já estou com a boca seca de medo!

Quando ela atravessou a janela e se afastou da protecção do edifício, o vento fustigou o saco, o pesado cabo começou a oscilar e a sensação de queda era inescapável.

Hilda gritou, fechou os olhos e voltou a gritar.

- Foi precisamente nesse instante, queridos - conforme havia de contar mais tarde - que fiz chichi nas calças. A sério. E não tenho a mínima vergonha de confessá-lo.

O vento soprava-lhe frio nas pernas e silvava por cima nas roldanas com um uivo lúgubre.

Os movimentos oscilantes continuavam e os balanços tornaram-se mais violentos à medida que se aproximava do centro do percurso.

- Pensei que ia morrer, palavra que pensei. E depois dei comigo a desejar morrer! Gritava para que aquela maldita coisa parasse! Percebem. Parem o mundo, eu quero desembarcar! Mas não havia meio. Não havia meio! E quando eu era rapariguinha nem sequer gostava de andar de teleférico!

Talvez tivesse desmaiado; nunca saberia ao certo.

- Quando voltei a dar por mim, estava no Céu! Quero dizer que o balanço tinha parado, os uivos do vento também, e um matulão como eu nunca vi outro maior nem mais forte, queridos, puxou-me para fora do saco de lona como se estivesse a tirar um bombom de dentro de um cartucho. Pôs-me de pé no chão e se não me amparasse eu ia mesmo de cara para a frente. Pausa. - Se eu chorava? Queridos, eu berrava como um bebê, chorando e rindo ao mesmo tempo! - Outra pausa. - E tudo o que o matulão disse foi: "Pronto, menina. Agora acabou-se tudo." O que ele não sabia é que eu ainda sonho com isso e acordo quando começo a gritar!

Nat esteve a observar da entrada da porta do atrelado até o saco de lona voltar à Sala da Torre e emergir com a segunda carga.

- Demora um pouco mais do que um minuto - disse. - A esta cadência... - Meneou a cabeça em silêncio e voltou para dentro a fim de empunhar o walkie-talkie. -Atrelado para Oliver - disse.

- Oliver a atender.

- bom trabalho, imediato.

- Sim, obrigado. - Fez-se uma pausa. - Mas o quê? - perguntou o imediato.

O homenzarrão era perspicaz, sensível aos cambiantes, pensou Nat.

- Vai demorar uma data de tempo para tirar todos de lá - disse. Fez uma pausa. - Que me diz a segundo cabo, dois sacos de lona a trabalhar ao mesmo tempo?

O homenzarrão foi também categórico.

- Nada feito. Do ângulo que disparamos, não conseguiríamos meter as linhas suficientemente separadas através dessas janelas. Depois com este vento era certo e sabido que as duas linhas iam contender uma com a outra e ficávamos então sem nenhuma. - A sua voz era calma, mas havia nela um laivo de mágoa. - Eu pensei nisso. Mas não resulta. Temos de fazer o melhor que pudermos.

Nat meneou lentamente a cabeça.

- Sei que farão. Obrigado, imediato. - Pousou o walkie-talkie.

Para cada problema não há necessariamente uma solução: verdadeira ou falsa? Infelizmente isso era demasiadamente verdadeiro até. "De tudo o que precisamos - pensou - é de uma hora e quarenta minutos." Tudo? Uma eternidade.

Patty estava na secretária, de lápis e bloco de papel a postos, o telefone colado a uma orelha sobre o ombro encolhido.

- A-b-e-1, Abel - repetia ela para o bocal. - North Fiesta Road, 327, Beverly Hills. Outro, governador...

Nat ouvia os nomes à medida que Patty os ia escrevendo e repetindo em voz alta:

- Sir Oliver Brooke... com um e no fim... Eaton Square 93, Londres Sudoeste Um.

Devia ser o embaixador britânico, que ainda nessa manhã viera de avião de Washington.

- Henry Timms... com dois "emes"... Club Road, Riverside, Gonnecticut.

O presidente de uma das maiores multinacionais?

Howard Jones, US Steel... Manuel Lopez Garcia, embaixador do México... Hubert van Donck, da Shell Oil Company, Amsterdam... Walter Gordon, Secretário de Estado do Comércio dos Estados Unidos... Leopold Knowski, embaixador da URSS...

Um nome aproximadamente cada quinze segundos. A essa cadência iria levar meia-hora para completar a lista. Nat pegou no walkie-talkie.

- Dê-nos os nomes à medida que forem chegando, imediato. Havemos de querer saber quem... possa ter ficado para trás. - Voltou então para junto da porta e pôs-se a olhar para a praça.

Bombeiros, polícias, a multidão de boca aberta. O emaranhado ordenado de mangueiras e o som das bombas em acção. De vez em quando a voz repentina de um megafone. Toda a praça estava agora coberta de água como um lago artificial cheio de sujidade. O edifício atormentado conservava-se ainda de pé, mas numa centena de lugares o fumo escoava-se cá para fora, obscurecendo a fachada de alumínio que já perdera o brilho.

- Bonito, hem? - Era Giddings que se viera postar ao lado de Nat. A sua voz falava num tom baixo de raiva contida. - Dia de circo. Quando eu era rapazito o 4 de Julho era uma festa. Fogo de vista a estourar à noite em cima do lago. Vinham pessoas de muito longe para ver. - Apontou com um gesto para a multidão.

Como essas. - Fez uma pausa. - Bem vistas as coisas talvez não tenhamos nada que lhes censurar. Nat voltou a cabeça para olhá-lo.

- Nunca viram nada como isto - prosseguiu Giddings. - Nem ninguém viu. - Fez com a mão um gesto súbito de cólera. - Esse maldito Simmons.

- Não foi ele o único.

- Estás a defender esse filho da puta?

- Não - disse Nat - e por mais razões do que você pode imaginar. Mas - acrescentou - tão-pouco estou a absolver os outros, nós incluídos, da responsabilidade.

- Devíamos ter descoberto a coisa, é o que queres dizer? - Giddings meneou a cabeça. - Muito bem. Já concordámos com isso antes. Mas que é pior, fazer a porcaria ou não conseguir descobri-la? Responde-me a isto.

Era um jogo de palavras, pensou Nat, e considerou que a pergunta não valia uma resposta. Mas mesmo assim compreendia a necessidade que Giddings sentira de perguntar. Um homem tinha que salvaguardar o que podia do seu respeito próprio, não tinha? Não era o que toda a gente fazia todos os dias de múltiplas maneiras

- não era o jogo que toda a gente jogava?

Dentro do atrelado a voz de Patty dizia:

- Willard Jones, Peter Cooper Village.

Quem era Willard Jones? Ou importava quem ele era? Era um nome que pertencia a uma pessoa, agora viva e que talvez em breve estivesse morta. Ele, Nat, aceitava isso agora?

"Enfrenta a coisa, amigo - disse Nat para consigo mesmo -, tu sabias quase desde o princípio que isto ia acontecer" - e pensou nos dezanove corpos naquela clareira de montanha.

"Mas para com esses eu não tinha qualquer responsabilidade".

Que diferença fazia? A pergunta ecoava na sua mente.

Ninguém poderia ter previsto que toda a energia eléctrica se esgotaria; qualquer pessoa sã de espírito diria que isso era impossível. Mas impossível era também essa quebra de corrente que deixara todo o Nordeste inutilizado poucos anos antes. O mesmo se diga do afundamento do Titanic e do desastre do Hindenburg, da vaga de assassínios iniciada com o do presidente Kennedy, e da violência estival nas cidades não havia ainda muito tempo. Eram tudo coisas impossíveis, mas tinham acontecido.

A lógica, pensou, não tinha nada a ver com isso. A lógica era para a lei, para as análises ponderadas dos factos, para os juízos calma e objectivamente formulados. A lógica não era para ele.

Ele, Nat Wilson, era o que ele experimentava, o homem subjectivo, e não o homem com um cérebro de computador. E o que ele experimentava era um sentimento de culpa que não se apagaria - nunca.

O facto de não ter conseguido detectar falhas na estrutura do edifício poderia ser compreendido, explicado, reparado, perdoado - mas não por ele. Ele estava inextricavelmente envolvido em toda a teia desse dia, entrelaçado directamente no tecido dos acontecimentos, embora com alguns deles parecesse não ter conexão real.

Nunca pusera a vista nos dois bombeiros que tinham morrido aos gritos na escada. Ou nos outros dois que se encontravam agora na Sala da Torre, provavelmente em não melhores circunstâncias. Mas tinha sido ele a recomendar que os mandassem por aquelas infindáveis escadas acima, e embora estivesse dentro dos poderes de Brown ignorar a sugestão, para Nat o sentimento de responsabilidade permanecia.

Ele não tinha nada a ver com a morte de Bert McGraw. Verdadeiro? Falso? A lógica dizia uma coisa, a sensibilidade outra. Porque como marido de Zib ele havia sido insuficiente, Zib e Paul tinham-se metido... naquilo. E isso contribuíra de certo modo para o ataque de coração de McGraw se Patty acertara na sua presunção.

Então onde é que tudo aquilo o deixava?

"Estou contente por me ter feito essa pergunta, senhor!

"O diabo é que estou!

"Ando em maré de má-sorte?

"A julgar pelas aparências, é ridículo. Envolvido, sim. Responsável, sim. Não se encontram essas duas palavras, essas duas condições, entrelaçadas? E se estou envolvido, se sou responsável, então Ben Caldwell deve ser também arrastado para a cadeia dos acontecimentos. E é. Ele próprio o admitiu ainda esta manhã no seu escritório. Grover Frazee? Sim. Bert McGraw? Certamente." A lista começou a multiplicar-se com velocidade de computador, sendo as suas possibilidades quase infindáveis.

Então quem não estava em maior ou menor grau envolvido, quem não era em maior ou menor grau responsável? Pergunta incrível, sem resposta.

De bom grado deixara Barnes, o polícia negro, penetrar na mansão da culpa. Agora Nat pensava: "Penetra tu agora na mansão da raça humana, amigo; talvez comeces agora a compreender o que tudo isso significa. Talvez..."

- Nat. - A voz doce de Patty era quase suplicante.

Ele baixou os olhos para o sorriso triste da jovem.

- A lista está acabada - disse ela. - Todos os nomes. - Fez uma pausa. - De certo modo, só pelo facto de escrevê-los, faço parte... deles. Percebes o que quero dizer? Provavelmente não conheço nenhum e ao mesmo tempo conheço-os a todos. Sinto-me... - Meneou a cabeça.

- Não sei o que me sinto.

- Envolvida? - disse Nat. O seu tom era carinhoso. - Responsável?

A mudança nos olhos, na face dela era qualquer coisa digna de ser vista.

- Tu compreendes, não é verdade? Obrigada, Nat.

- Talvez eu comece a compreender - disse Nat.

19.02h - 19.23h

O tenente Jim Potter da polícia encontrava-se sentado com o seu capitão e com o inspector-chefe no grande gabinete silencioso. Potter tinha o canhenho sobre o joelho. Mantinha a sua voz propositadamente inexpressiva.

- John Connors -disse. - Indivíduo do sexo masculino, de raça caucasiana, idade trinta e quatro anos.

- Fez uma pausa. -Viúvo. Sem filhos. Ocupação: Trabalhava em chapa metálica quando trabalhava, o que ultimamente lhe não sucedia com freqüência. - Outra pausa. -Uma história de perturbação mental começada há três anos. - Fez de novo uma pausa, à espera.

O capitão perguntou:

- Que foi que sucedeu nessa altura?

- A mulher morreu-lhe. - A face de Potter era a de um jogador de póquer numa grande parada: totalmente inexpressiva. - Morreu na cadeia. - Pausa. Na cela dos bêbados. - Voltou a esperar.

O inspector-chefe inquiriu:

- Ela era uma alcoólica?

- Nem sequer bebia.

- Metia-se em drogas?

- Apenas numa. - Potter deu tempo ao tempo. Insulina. Era diabética. Prenderam-na porque ela tinha sofrido um colapso e estava caída no passeio. Pensaram que estivesse bêbada. - Fechou o canhenho com lentidão. - Visto isso atiraram com ela para a cela dos bêbados onde por falta de assistência médica morreu.

No silêncio que se fez o capitão perguntou:

- Ela não levava consigo qualquer espécie de identificação? Qualquer coisa a dizer que tinha diabetes?

- É possível. - Na voz de Potter notava-se agora um laivo de amargura, de tristeza. - E é possível que ninguém se tivesse dado ao incômodo de ir ver. A investigação depois do facto não foi muito rigorosa. Connors era a única pessoa profundamente interessada, mas tinha ficado transtornado.

No grande gabinete não se ouvia um som. O inspector-chefe soltou por fim o ar dos pulmões num ruidoso suspiro.

- Muito bem - disse. A expressão não tinha qualquer significado. - Ele tinha uma razão de queixa, ele não regulava bem do juízo, mas que relação tem tudo isso com o edifício da Torre Mundial?

- Não sou psiquiatra - disse Potter. - Mas o edifício da Torre Mundial foi o último verdadeiro emprego que ele teve. Despediram-no. Há uma relação, mas talvez uma pessoa tenha de ser chanfrada para vê-la. Não sei. Tudo o que sei são factos.

De uma certa maneira vaga a coisa fazia sentido. Os três homens sentiam-no. Fora o Estabelecimento que matara a mulher de Connors, não fora? A Torre Mundial era o novo símbolo reluzente do Estabelecimento, não era? E então?

Ficaram os três calados, a pensar naquilo.

Por fim, disse lentamente o inspector-chefe:

- Às vezes penso que todo esse maldito mundo enlouqueceu.

- Amen - aquiesceu o capitão.

Em lenta, quase interminável sucessão, as mulheres eram ajudadas a entrar ou metidas no saco de lona com as pernas enfiadas nos orifícios gêmeos. Quase sem excepção tinham os olhos arregalados de terror. Algumas gritavam. Outras rezavam.

Paula Ramsay era a número vinte e dois.

- Não quero ir - disse para o mayor enquanto esperava a sua vez. - Quero ficar aqui contigo.

O mayor sorria ao de leve enquanto meneava a cabeça. Não era o seu bem conhecido sorriso das campanhas eleitorais; era o homem real posto a descoberto.

- Eu quero que vás, e por um motivo puramente egoísta.

- Tu, egoísta?

- Quero que tu vás - disse o mayor - porque ver-te a salvo tem para mim mais importância do que qualquer outra coisa neste mundo. - O sorriso alastrou, tornou-se num sorriso que zombava do próprio que sorria. Incluindo a Casa Branca. A Jill precisa de ti.

- A Jill já é uma rapariga crescida. Concordámos os dois que era. - Paula olhou em redor. - Onde está a Beth?

- No gabinete com o Bent. A passar uns minutos juntos.

- Pensei - disse Paula - que ela tivesse partido antes de mim.

O mayor não se recordava de quando fora a última vez que tinha mentido à mulher.

- Se foi não sei - disse, e cravou os olhos nas janelas quando os calções de lona começaram na sua oscilante viagem de regresso do terraço do Centro Comercial.

O secretário-geral chamou:

- Número vinte e um, por favor. - Ninguém respondeu. A chamada foi repetida.

- Eih! - exclamou uma voz -, é você. Tem aqui o seu bilhete.

A rapariga de calcinhas que continuava a dançar num canto interrompeu as suas contorções. Sacudiu a cabeça como para clarificar as idéias.

- Eu pensava que era a número vinte e nove. - Soltou uma risadinha. - Tem piada. - Agitou a mão no ar e precipitou-se para diante, os seios nus a oscilar, na direcção da janela de embarque. - Aqui estou eu, pronta ou não pronta.

- Santo Deus! - exclamou o mayor. - Ela vai primeiro... seja lá de quem for? Porquê?

- Costumas ser mais tolerante do que isso, Bob.

- O sorriso de Paula era afável. - A rapariga está bêbada. E cheia de medo. - O sorriso alastrou. - A única diferença entre nós é que eu não estou bêbada.

- Nem nua.

- Isso tem alguma importância agora? O mayor fez um gesto quase irritado.

- Sou suficientemente caturra ou suficientemente puritano para acreditar que certos valores... -Calou-se de súbito. - Não, disse com uma certa surpresa-, agora não tem importância, pois não? Estamos reduzidos aos valores básicos.

- E o meu desejo básico - disse Paula - é não ir, mas ficar... contigo.

- Irás - declarou o mayor. Havia um novo tom de comando na sua voz.

Estiveram os dois a ver içar a rapariga seminua no saco de lona. Um qualquer atirou-lhe com o vestido para o colo. Ela olhou para o vestido com uma expressão perplexa, e depois, como se só nesse momento tivesse cornpreendido a sua nudez, cruzou ambas as mãos sobre os seios e começou a chorar.

- Que estou eu a fazer? - A sua voz era quase um grito. - Não... poosso...

- Arriar! - Era o comandante dos bombeiros, que dirigia a operação. - Aguente-se, mana, e quando menos esperar encontra-se a salvo do outro lado.

Os gritos da rapariga perderam-se no meio do silvo do vento.

O mayor pegou no braço da mulher e encaminhou-se com ela para junto da janela de embarque.

- Como nas partidas de aviões e de navios - disse ele - nunca há nada para dizer, pois não?

Ficaram calados, de mãos dadas, vendo o saco de lona aproximar-se do terraço do Centro Comercial, alcançá-lo. Viram o imediato tirar a rapariga do saco como se fosse um objecto sem peso. O vestido caiu no terraço. O chefe manteve-a de pé com uma das mãos enquanto levantava o vestido com a outra. Depois fez um gesto na direcção da Sala da Torre e os calções de salvação iniciaram a sua viagem de regresso.

A mulher do mayor via-os aproximarem-se.

- Bob.

- Sim?

Paula voltou-se para fitar a face do marido. Meneou lentamente a cabeça.

- Tens razão. Não há nada para dizer. Não se podem meter trinta e cinco anos nalgumas palavras, pois não? Fechou os olhos quando os calções atravessaram a janela e pararam a oscilar lentamente.

- Número vinte e dois, por favor - chamou o secretário-geral.

Paula abriu os olhos.

- Adeus, Bob.

- Au revoir - disse o mayor. Sorria gentilmente. - Não te esqueças dos teus conselhos à Jill. Dá-lhe saudades minhas.

O senador bateu à porta e entrou no gabinete. O governador estava na cadeira da secretária. Beth estava empoleirada num canto da secretária, com as pernas longas e esguias a balançar docemente.

- Entre, Jake - disse o governador. Do grande salão exterior os sons mesclados da música e das canções rock confundiam-se num contraponto cacofónico. Do bar chegou uma súbita gargalhada. - Sente-se - convidou o governador. - Eu também não alinho no bacanal.

- Não quero ser intrometido.

- Disparate. - O governador fez uma pausa. Você veio com qualquer intenção, não veio?

Sempre tinha visto fundo, este Bent Armitage, pensou o senador, o que provavelmente explicava pelo menos em parte os seus sucessos políticos. Uma pessoa não chega tão longe como ele chegou sem conhecer os seus semelhantes.

O senador sentou-se e estendeu as pernas com um suspiro fàtigado.

- Uma longa viagem solitária - disse, e sorriu. A energia da juventude já se foi há muito. - Apontou para o telefone. - Alguma novidade?

- Telefonei lá para baixo as listas-declarou o governador. - E depois - fez uma pausa, sorrindo - permiti-me uma chamada para minha filha, para a Jane, em Denver. - O sorriso ampliou-se. - Debitei a chamada ao telefone da minha residência oficial. Isso vai dar uma data de trabalho aos peritos de contas. Você deseja fazer alguma chamada, Jake? Permitirei que sejam os contribuintes a pagá-la.

O senador meneou a cabeça.

- Para ninguém - disse. Levantou-se de súbito. Aconteceu-lhe alguma vez duvidar de si próprio, Bent? Já alguma vez perguntou a si próprio de que utilidade terá sido, seja para quem for?

O governador sorriu.

- Freqüentemente.

- Estou a falar a sério - disse o senador. Deu tempo ao tempo. - Quando se é jovem e mal se principiou... para mim isso aconteceu em trinta e seis, acabava de ser eleito para o meu primeiro mandato no Congresso... olhamos em volta e vemos os grandalhões, os importantes, o homem da Casa Branca, os ministros, nomes de que ouvimos falar desde que nos lembramos... -Fez uma pausa e deixou-se cair de novo pesadamente na cadeira. Agitou a mão no ar. - Estudamos o estilo deles porque eles são aquilo que nós queremos ser. - O seu sorriso era mordaz. - Está hoje na moda falar de uma busca da nossa identidade. Isso implica desde já a existência de um "eu", de que tudo o que é preciso fazer é cada um ser ele próprio. - Meneou a cabeça. - Mas o que uma pessoa está realmente a fazer é procurar o papel da personagem que irá desempenhar durante o resto da sua vida, o que é uma coisa na verdade muito diferente.

"Eu própria sempre tinha pensado que era assim - pensou Beth subitamente-, mas estava convencida de que isso se devia a uma visão defeituosa da minha parte." Observava o senador, maravilhada.

- Assim - prosseguiu o senador - uma pessoa encontra o papel que lhe agrada e decora-o literalmente. - Fez uma pausa. - E a coisa resulta. É convincente. Um tipo começa por ser um jovem brilhante. Depois entra na casa dos quarenta e principia a adquirir algum calo. Alcança os cinqüenta, os sessenta, mas ainda não chegou lá. Você sabe o que eu quero dizer, Bent?

O sorriso do governador era triste.

- Nunca se chega lá - disse. - Há sempre qualquer coisa depois da próxima ladeira, e da outra. E quando se chega lá, a coisa também está mudada. - Abriu as mãos num gesto de dissolução. - Aquilo que parecia tão claro e brilhante de longe, visto de perto é apenas a luz do Sol sobre o fumo.

- E assim uma pessoa pergunta para consigo - prosseguiu o senador - quando é que vai dar o passo final que a colocará onde sempre quis estar para poder descansar e gozar a vitória sabendo que travou o bom combate, que fez um bom trabalho, que ganhou o seu repouso e um lugar ao sol, que levou a bom termo o mísero e mesquinho objectivo que se propôs. - Meneou a cabeça. - A resposta é... nunca. É por isso que não se reformam, esses velhos em Washington e noutros lugares. Continuam à espera do momento em que tenham concluído tudo o que pretendiam fazer para poderem descansar satisfeitos. E esse momento nunca virá, mas uma pessoa não se apercebe disso até que tem de enfrentar qualquer coisa como... isto. E então pergunta de súbito a si mesma porque é que passou toda a vida a correr desesperadamente, a perseguir uma coisa que nunca existiu. D. Quixote, Galaaz em busca do santo Graal... tudo tão estuporadamente fútil!

- Mas é engraçado - disse o governador. - Você tem de reconhecê-lo, Jake. Você fartou-se de gozar a rasteirar, a demolir com argumentos, a derrubar os patifes que se meteram no seu caminho. Você trocava isso por outra coisa qualquer?

- Provavelmente não. E é isso o mais estúpido da história. Nunca aprendemos nada.

O governador recostou-se para trás na cadeira e soltou uma gargalhada.

- Que é que tem tanta graça?

- O seu lamento - respondeu o governador. - Mete o rabo na boca e enrola-se como uma pescada. Claro que você voltaria a fazer tudo na mesma. Porque você é Jake Peters, sui generis. Você lutou e debateu-se e mordeu, sim, marrou no corpo-a-corpo quando foi necessário... como eu fiz... e gozou cada instante dessa refrega, vitórias, derrotas e empates. Você foi igual a si mesmo, coisa de que não são muitos os que se podem gabar.

- Ele escrevia ficção na universidade - explicou o senador para Beth. - Má ficção.

- E - disse o governador - você tem o descaramento de admitir que gozou tudo aquilo, mas continua a achar que foi fútil? Que mais pode um homem pedir do que poder olhar para trás e dizer que foi divertido? - O governador fez uma pausa. - Você provavelmente deixou umas coisas por acabar. Todos deixámos. Mas quando você sai do restaurante cheio até à borda com uma boa refeição, vai perder o seu tempo a lamentar não ter podido comer tudo?

- Isto - disse o senador para Beth - foi sempre a sua especialidade: a analogia grosseira. -Levantou-se. Como filósofo, Bent - declarou, olhando do alto para o governador-, você não vale o Santayana, mas disse uma ou duas coisas dignas de consideração. vou reflectir nelas lá fora. - Parou no limiar da porta para acenar com a mão num gesto vago. - A propósito, o número vinte e um acaba de partir. - Falava directamente para Beth. - Era a franganita nua. Ela pensava...

- Eu tenho o número quarenta e nove - disse Beth, e obrigou-se a sorrir.

O senador hesitou, depois tornou a acenar com a mão ao sair.

- E assim - disse o governador - ficamos outra vez sozinhos pelo menos por um momento. - Sorriu para Beth. - Tão pensativa?

- Todas as coisas que você disse ao senador - perguntou Beth lentamente - podiam aplicar-se a si, não podiam?

- Provavelmente. - O governador tornou a sorrir. Mas a diferença é que quando as dizemos a nós próprios não acreditamos necessariamente nelas.

- Penso que compreendo, Bent. - Estava também a sorrir. - Pelo menos espero que sim.

- Houve ocasiões - disse o governador - em que eu fiz coisas de que não me sinto particularmente orgulhoso, ou em que consenti que as fizessem, o que vem a dar na mesma, para alcançar um certo fim que eu considerava merecedor de transigência. Sei que sou capaz de me iludir a mim mesmo... pelo menos temporariamente. Penso que isso acontece com todos, e com alguns nem sequer é temporariamente.

- Eu acho que você é um homem bom, Bent, na melhor acepção da palavra.

- Obrigado.

- Creio que você é um homem melhor, mais forte ainda do que supõe. É aquele a quem vêm procurar. Aquele a quem escutam.

- Não se entusiasme muito a embelezar-me a figura, embora me agrade ouvi-la.

Beth meneou a cabeça.

- Foi ele que o disse, o senador. Ele disse: "Até ter de enfrentar uma coisa como esta" uma pessoa continua a enganar-se a si própria. - Fez uma pausa. - Eu já não me engano a mim própria. Abomino o que está a acontecer. Não quero morrer.

O governador pegou-lhe na mão.

- Bastante justo - proferiu. Sorria afavelmente. Agora diga-me: que número tirou você? Não foi o vinte e um?

19.23h - 19.53h

Para ocidente o céu escurecera e nuvens negras de trovoada começavam a acastelar-se. Giddings, parado à porta do atrelado, observava.

- Uma carga de água neste momento - disse. Olhou para trás, para Brown e depois encolheu os ombros. Um milagre? O mar Vermelho e abrir-se? - Meneou a cabeça e passou as costas da mão num gesto fatigado pela testa que ficou enfarruscada.

Um após outro o imediato Oliver tinha anunciado para baixo os nomes dos que iam concluindo sãos e salvos a travessia, e Patty procurava-os na sua lista para os descarregar.

- Esta - dizia agora a voz do imediato no walkie-talkie - não sabe quem é, e estou certo como um raio que efectivamente não sabe.

Nat perguntou:

- Ela não traz bilhete de identidade na carteira?

- Carteira? - A voz do imediato era um rugido. Ela nem sequer traz roupas em cima! - Depois mais afavelmente, num aparte: - Pronto, mana, agora está tudo acabado. Vá com estes polícias. Eles tomarão conta de si. - E de novo para o atrelado: - Havemos de descobrir o nome dela de uma maneira ou de outra. - O walkie-talkie calou-se.

- Seja quem for, é o número vinte e um - disse Patty. Ergueu os olhos e sorriu para Nat. -Graças a ti.

Nat arrancou-se subitamente à secretária e dirigiu-se para a porta a fim de olhar lá para cima, para as cúpulas dos grandes edifícios. Enviesando os olhos, conseguia divisar o saco de lona, de novo cheio, na sua viagem suspensa descendente para o terraço do Centro Comercial.

Dentro da Sala da Torre, ele sabia-o, três ou quatro homens estavam a largar cuidadosamente o cabo de vaivém para evitar que o saco de lona rolasse como um louco por ali a baixo, aterrando ainda mais o seu passageiro, possivelmente atirando com um a gritar numa queda de quinhentos metros até à praça. Perguntou a si mesmo com uma vaga curiosidade quem se encontraria agora a viajar nos calções de salvação.

Deu meia-volta e foi postar-se de novo junto de Patty.

- De quanto tempo ainda dispomos? - perguntou. - É essa a questão. Quantos ainda vão ter tempo de sair?

- Talvez todos - disse Patty. Fez uma pausa. Assim espero. - Fez nova pausa para estudar a face de Nat. - Tu não acreditas nisso?

Nat meneou a cabeça em silêncio. Por fim disse:

- Gostava de saber o que está a acontecer. Lá em cima na Sala da Torre. - Gesticulou subitamente. -Dentro do núcleo do prédio. Quando tudo estiver acabado, estudaremos o que restar e tentaremos apurar com rigor o que aconteceu. - Meneou de novo a cabeça. - Mas não há nada que nos permita saber o momento em que aconteceu. É por isso que colocam registadores automáticos nos aviões comerciais. Se há um desastre e o registador sobrevive, indica exactamente quais eram certas condições de vôo no momento do impacto. - Fez uma pausa meditativa. - Talvez o controlo por computador devesse estar localizado bem fora do edifício por essa mesma razão. -Uma coisa em que pensar. Ficou calado, a reflectir no assunto.

Patty observava e escutava, a parte prática do seu ser sorrindo interiormente. O papá também nunca se afastava muito do seu trabalho; estava convencida de que era isso que acontecia com os técnicos realmente bons. Mas não disse nada para não interromper a corrente de pensamento de Nat.

- Esta... trapalhada - disse ele por fim - vai alterar muitas idéias. Estávamos habituados a confiar levianamente nas tolerâncias, a pensar que os erros se anulariam automaticamente. Desta vez isso não aconteceu. Pelo contrário, adicionaram-se, e o resultado foi este. - Fez uma pausa. - Pensa no Titanic.

A analogia entre a Torre Mundial e o Titanic era exagerada. Apenas o facto do desastre inevitável ligava os dois casos, porque uma das tragédias ocorrera num cenário invulgar, ao passo que a outra tinha por cenário o quotidiano familiar.

O Titanic era um navio que atravessava o oceano numa época em que atravessar o oceano não era uma coisa trivial. Dentro desse cenário invulgar havia perigos desconhecidos à espreita; a sua existência poderia aceitar-se como real.

Mas aqui tratava-se de um prédio, de um mundo conhecido, com diferenças apenas de grau e não de espécie. Uma pessoa penetra todos os dias nos prédios e anda de elevador - e nada acontece. Desta vez tinha acontecido qualquer coisa, mas era inteiramente incrível que pudesse ser tão grave como alguns o queriam fazer. O aparecimento dos calções de salvação acalmou muitos temores.

Oh, continuava a haver quem cantasse, e quem rezasse, e alguns que bebiam ou dançavam enquanto esperavam a vez de serem salvos. Mas há quem cante, beba e dance todos os dias, e quem reze todos os domingos sem qualquer crise iminente à vista.

O que restava de Grover Frazee já ficara esquecido debaixo da toalha de mesa. Paul Norris era apenas uma morte de que se ouvira falar. As sobrancelhas chamuscadas dos dois bombeiros eram escassa prova de que um desastre real estivesse à vista.

Havia os calções de salvação, e uma após outra as mulheres iam atravessando o abismo entre os dois prédios a caminho da segurança. Mesmo assim...

A verdade era que de todos os que se encontravam na Sala da Torre, apenas um punhado compreendia e aceitava não só que uma catástrofe estava em gestação como a sua inevitabilidade.

Ben Caldwell compreendia e aceitava. Não necessitava de cálculos complicados para se convencer; bastava-Lhe a simples aritmética:

Cento e três pessoas tinham tirado números.

As viagens de ida e volta do saco de lona levavam em média cerca de um minuto.

Seria necessária portanto uma hora e quarenta e três minutos para evacuar toda a Sala da Torre.

Com calor no centro do edifício suficiente para deformar as calhas de aço dos elevadores, continuaria a Sala da Torre a ser um santuário durante uma hora e quarenta e três minutos?

Não.

Paciência.

Com muito menos conhecimento técnico o governador nem por isso deixava de compreender e aceitar a situação.

- Há necessidade de pressa - disse para Beth-, mas não nos podemos precipitar. - Recordava as prudentes recomendações de Nat Wilson.

Estava a ficar mais quente no gabinete. O governador recordava a analogia do bombeiro Howard do ninho no topo da árvore; mais cedo ou mais tarde o fogo chegaria lá e isso seria o fim dos passarinhos implumes. "Somos uns passarinhos implumes - pensou - e tão incapazes como eles de voar." Era grande a tentação de bater com o punho sobre a secretária num ímpeto de pura frustração. Mas dominou-se.

O mayor Ramsay apareceu à entrada da porta.

- A Paula já foi - disse. - Estive a vê-la aterrar sã e salva... se é este o termo que se aplica. - Ela voltara-se para acenar. Fez uma pausa, recordando. - Deus seja louvado por isso.

- Ainda bem para ela - disse o governador. - E sinto-me contente por sua causa, Bob.

Beth sorria.

- Estou muito contente também - declarou. O governador perguntou:

- Que número lhe calhou em sorte, Bob?

- Oitenta e três. - A voz do mayor era inexpressiva. O governador sorriu:

- Tenho o número oitenta e sete.

- Não é justo! - disse Beth subitamente. - Há pessoas lá fora naquela sala que não valem nada por comparação com vocês! com qualquer de vocês! E qual é o número do senador Peters? Aposto que é também um número alto!

- Calma - disse o governador-, calma! - Levantou-se, tirou o casaco e desapertou a gravata. Voltou a sentar-se e começou a enrolar as mangas da camisa para cima. Sorriu para Beth. - Está provavelmente mais fresco lá fora no salão, mas por agora, pelo menos, prefiro ficar aqui. - Fez uma pausa. - A não ser que você discorde?

Beth hesitou e depois meneou lentamente a cabeça. Tinha o lábio inferior apertado entre os dentes. Quando o soltou mostrava marcas de dentada.

- Desculpe, Bent.

- Eles têm estado a comportar-se muito bem até agora, Bent - informou Bob Ramsay. - Estive a observar o Cary Wycoff, e de momento, pelo menos, está... desactivado. E não creio que mais ninguém tenha a sua capacidade para agitar multidões.

A corrida do último momento para os salva-vidas, pensou o governador, ou o inevitável engarrafamento das saídas quando as chamas aparecessem. Ele nunca vira nem uma coisa nem outra, mas compreendia bem que num pânico súbito podiam acontecer coisas terríveis. Disse lentamente, pensativamente:

- Mas mesmo assim não faria mal nenhum se levantássemos barricadas, pois não? - Fez um gesto com as mãos formando ângulos rectos. - Algumas dessas mesas pesadas instaladas em torno da área de embarque com espaço só para passar uma pessoa de cada vez?

O sorriso imediato do mayor foi um sorriso amarelo, amargo. Meneou a cabeça.

- E a entrada guardada contra intrusos. - Meneou de novo a cabeça. - vou providenciar nesse sentido.

- Talvez - disse o governador - estejamos a ver sombras. - Fez uma pausa. - Mas receio não ser essa a minha convicção. - Recostou-se para trás na cadeira e esperou até o mqyor sair. Depois, dirigindo-se a Beth:

- Que tal é você a andar na corda bamba entre o cinismo e a realidade? - Meneou a cabeça.

- Vai haver desordem, Bent?

- Tentaremos preveni-la.

- Como?

- Assim. - O governador pegou no telefone e falou para o bocal. A voz de Nat respondeu instantaneamente. - Está tudo a correr muito bem, meu rapaz - disse o governador. - Quero que você e a Guarda Costeira aceitem os meus agradecimentos.

Beth sorriu. Era majestoso da parte dele apresentar os seus agradecimentos; e contudo era também apropriado, porque desde o início dos problemas fora um só homem, Bent Armitage, que tomara automaticamente conta da situação e falara por todos. E assim na sua atitude majestosa não havia arrogância, sendo por isso mesmo aceitável. Mais do que aceitável. O sorriso de Beth tornou-se enternecido e doce.

- Por enquanto está tudo em ordem - prosseguia o governador -, mas quando a pressão começar a aumentar e as pessoas começarem a compreender que não haverá tempo para todas... -Deixou a frase em suspenso.

- Sim, senhor - disse a voz de Nat. - Também tenho estado a pensar nisso.

- Eu já calculava. - O governador esperou. Nat pronunciou lentamente:

- Temos meios para impor a ordem, ou pelo menos o imediato que se encontra no terraço tem, e talvez faça o que eu lhe disser.

O governador meneava a cabeça.

- E que lhe dirá você?

- Poderemos apresentar um ultimato - respondeu Nat. - Ao primeiro sinal de perturbação podemos ameaçar cancelar toda a operação a não ser que o processo continue ordeiramente como o senhor o organizou, porque só com vagar e calma, uma pessoa de cada vez, a coisa pode resultar. É possível que pareça simples, mas é sensato, e um engano pode estragar tudo para toda a gente.

O governador estava de novo a menear a cabeça.

- E cumprirão o ultimato?

- Se houver necessidade-respondeu Nat - cumpriremos.

O governador meneou a cabeça pela terceira vez.

- Talvez haja necessidade - disse. E depois: De momento é tudo. - Fez uma pausa. - Deus o abençoe pela sua assistência. - Voltou a recostar-se na cadeira e fechou os olhos.

- Bent - disse Beth. Hesitou. - Oh, Bent, porque tem isto de ser assim?

- Gostaria de saber.

- É ridículo - pronunciou Beth - e eu bem sei, mas não posso deixar de fazer a grande pergunta: Porquê eu? Porquê qualquer de nós individualmente, mas mais particularmente porquê eu? Que fiz eu para estar aqui, para encontrá-lo e depois... acontecer isto? O governador exibiu um ligeiro sorriso.

- Perguntei a mim próprio a mesma coisa muitas vezes. - Fez uma pausa, - E, sabe, ainda não encontrei a resposta.

O senador entrou no gabinete.

- Venho só para dar notícias, Bent. O Bob mandou colocar mesas em torno da área de embarque no saco. Uma idéia sua, sem dúvida. Mas continua tudo mais ou menos sossegado. - Sorriu. - Por enquanto. - O sorriso ampliou-se. - O Bob disse que você lhe tinha perguntado qual era o número dele. - Deu tempo ao tempo.

- Bem, eu estarei a despedir-me de vocês dois. O meu número é o cento e um.

Beth fechou os olhos.

- Tenho estado também a pensar - disse o senador e, vejam lá vocês, dei comigo a fazer uma quintilha:

A uma freira de Biloxi, um beijo

Fê-la trocar a fé pelo desejo,

E descobrir que a cerca do convento já não lhe convinha desde essa hora

Em que de "irmã" passou a ser senhora.

Deixo-vos com este pensamento. - E antes de os outros terem tempo de dizer qualquer coisa, desapareceu. Beth meneava a cabeça, sorrindo até.

- Isto não é real - disse. - Não é real. As pessoas não se conduzem assim... numa ocasião destas. Não é possível.

- Não creio que uma pessoa faça qualquer idéia de como se conduzirá - declarou o governador - até se encontrar metida nas coisas. - Abriu as mãos. - E depois é demasiado tarde para mudar.

Cary Wycoff empunhava um copo de soda pura. Sorvia-a lentamente enquanto via as pesadas mesas a ser arrumadas em redor da área por onde o saco de lona entrava através da janela.

Era perfeitamente óbvia a finalidade daquela manobra. Era simplesmente mais uma confirmação da velha história: os privilégios entrincheirados erguendo barricadas para impedir a entrada dos bárbaros. Dele próprio. Diante daquilo sentia uma grande raiva acompanhada de um sentimento de impotência que agravava ainda mais as coisas.

O talão no seu bolso tinha o número sessenta e cinco, o que significava que quinze homens partiriam antes dele para a segurança. Estava em apostar que nesses quinze se encontrariam Bent Armitage, Bob Ramsay e Jake Peters. Oh, não seriam os primeiros três; eram demasiado espertos para isso. Mas teriam providenciado para se encontrarem suficientemente próximos dos números iniciais sem a coisa se tornar óbvia.

Cary também não concordava com o facto de as mulheres partirem à frente. Tinha-se batido como qualquer um, como nenhum, pelos direitos das mulheres, mas no fundo não acreditava realmente nelas. As mulheres eram mais fracas, geralmente menos inteligentes, e de uma forma geral membros socialmente menos úteis da comunidade, excepto para essa única função que nunca permitiam que um homem esquecesse serem elas, e só elas, a poderem exercer. E, por falar nisso, no entender de Cary havia nascimentos em excesso.

Mas ter partido em primeiro lugar, mesmo se lhe fosse permitido, teria sido denegrir-se aos olhos desse estúpido mundo, que pensava com o estômago; mais especialmente aos olhos desse estúpido eleitorado que não cessava de reenviá-lo para uma vida bastante agradável em Washington. Portanto era assim mesmo. As mulheres que fossem adiante.

Mas os homens, isso era uma coisa diferente, e ele não ia ficar à espera de braços cruzados que quinze sujeitos - quinze! -saíssem antes dele.

Bent Armitage e Jake Peters, esses dois em particular, tinham-no sempre tratado com menos consideração do que lhe era devida; não se podia negar isso. Cary sorveu outra golada de soda enquanto pensava no caso. Depois murmurou baixinho:

- Eu vos mostrarei, seus bastardos, desta vez vocês não hão-de levar a melhor.

Nat pousou o telefone depois da sua conversa com o governador, Tinha consciência de que Patty o observava, de sobrolhos franzidos.

- Ouviste o que eu disse? - perguntou.

Patty fez que sim com a cabeça. Conservou a voz inexpressiva.

- Tu fazias isso? Suspender toda... a operação só como ameaça?

- Não acredito em ameaças.

- Não... compreendo.

- Não tem importância.

- Tem para mim. - Era de novo a sua característica de cão de fila: recusa total de afastar para longe as coisas desagradáveis.

Nat limitou-se a dizer:

- Vamos lá ver o que diz o imediato. - Pegou no walkie-talkie. - Atrelado para terraço do Centro Comercial.

- Terraço a responder. - Era a voz do imediato. A franganita nua chama-se Barber, Josephine Barber. E depois dela chegou a Sr. a Robert Ramsay.

Nat observava Patty que de lápis em punho tinha começado a procurar na lista.

- Já está - disse. E depois: - Como vão andando as coisas, imediato?

- Devagar e certo. Aquilo que já esperávamos. Atravessaram para este lado vinte e dois em - uma pausa - vinte e três minutos certos. O máximo que nos era dado esperar. - Haveria uma tênue beligerância subjacente àquelas palavras?

- Mais do que eu supunha possível - disse Nat. Fez uma pausa. - Pergunto a mim mesmo se a coisa não irá acontecer antes de você ter passado todas as mulheres para aí. Espero que não. Mas quando a pressão começar a sério

- Vai haver sarilho, é o que você quer dizer? - Pausa. - São gente importante, não são? - A voz do imediato não revelava excitação.

- Isso - respondeu Nat - não significa que alguns não entrem em pânico.

Patty tinha encontrado os dois nomes e riscara-os. Estava agora sentada, empunhando ainda o lápis na sua mão pequenina, a olhar para Nat e à escuta.

- Sim - disse o chefe, mantendo-se calmo. - Os galões que um homem usa na manga não significam necessariamente muito. - Fez uma pausa. - Onde é que você está a querer chegar?

Nat repetiu-lhe o que tinha dito ao governador. Fez-se um silêncio.

- Da maneira que eu vejo as coisas - disse depois lentamente o chefe, ainda sem se excitar -, quando se tem uma situação de comando os homens obedecem ou amotinam-se. Se há motim, ou o dominamos logo no início ou ele foge-nos da mão. Ao primeiro sinal de perturbação, você informa-me e nós retemos os calções deste lado até eles se meterem de novo na linha e respeitarem a ordem estabelecida. Dessa maneira não conseguiremos tirar todos de lá, mas tiraremos alguns. Se os deixamos começar a brigar nem um só sai lá de dentro vivo.

Nat meneou a cabeça confirmativamente.

- Um grande discurso, imediato.

- Sim. Em geral não uso tantas palavras.

- Mas estou inteiramente de acordo consigo.

- Havemos de nos entender - disse o imediato. Só quero é que me informe se houver sarilho.

Nat pousou o walkie-talkie sobre a secretária. Ficou calado.

- Portanto vocês os dois concordam - disse Patty. Fez uma pausa. - Sabias que ele ia concordar, não sabias?

- Baixa a fervura - aconselhou Nat. Pôde até sorrir naturalmente. - Que pensas tu que o Bert teria dito?

Patty abriu a boca e voltou instantaneamente a fechá-la em silêncio. Meneou a cabeça devagar.

- Provavelmente o mesmo. - Capitulação. - Mas não sou obrigada a gostar disso. - De novo o desafio a atear-se.

- Não - disse Nat-, não gostas. - Afastou-se da secretária e encaminhou-se uma vez mais para a porta a fim de contemplar a praça.

Era uma cena desoladora, depressiva. Os bulcões acumulados no poente tinham obscurecido o sol; a luz na praça era fumacenta, cinzenta, o ar estava cheio de fuligem, acre.

Bombeiros enxameavam a praça - como formigas corricando ao retardador, pensou Nat - e o perímetro da área formava quase uma parede sólida de equipamento de incêndios estacionado lado a lado, com os motores e as bombas a latejar.

Todo o pavimento da praça era agora um lago. Cascatas de água refluíam do prédio descendo as escadas do átrio - que pareciam os socalcos onde os salmões vão desovar.

Um bombeiro saiu a cambalear do átrio, deu mais dois passos trôpegos e caiu de borco, com os braços e as pernas a moverem-se sem força.

Dois serventes de ambulância acorreram com uma maca, colocaram-lhe o bombeiro em cima e levaram-no dali.

Nat seguiu com os olhos a maca até à ambulância mais próxima, onde outros bombeiros se encontravam de pé a sorver oxigênio por máscaras de borracha.

Polícia guarnecia as barreiras. Nat conseguiu localizar Barnes, o polícia negro, e, sim, lá estava o seu companheiro, o grande irlandês, vendo-se-lhe distintamente o adesivo branco no rosto.

Por detrás das barreiras as multidões mantinham-se ordeiras e estranhamente silenciosas, como se por fim tivessem tomado consciência da enormidade da tragédia. Na multidão um braço levantou-se, apontando para o ar. Outros imitaram-no. Sem se voltar para olhar, Nat adivinhou que os calções de salvação estavam a fazer outra viagem, levando outra pessoa suspensa para pô-la a salvo.

Não se apoderou dele qualquer sentimento de triunfo. Há muito que isso passara. Pelo contrário, censurou-se por ser isso tudo o que lhes era possível fazer e por não ser bastante. Como era isso que ele tinha dito a Patty a respeito da maneira de pensar em certas zonas do Médio Oriente? Que se esperava do homem que tentasse alcançar a perfeição, embora nunca esperando que ele a alcançasse? Mas isso não adoçava a pílula do malogro, mesmo tratando-se de um malogro parcial.

Ele não era religioso, mas às vezes aconteciam coisas - recordou os dezanove corpos enrolados como caracóis nessa clareira de montanha reduzida a um montão de cinzas fumegantes - que pareciam demonstrar uma falha, apontar numa direcção, e pela mera profundidade da sua tragédia forçar o homem a reexaminar certos princípios e pensamentos que desde há muito tempo considerava indiscutíveis. Há demasiado tempo.

Se desses reexames resultava algo de constante, de inevitável até, era a determinação que se podia exprimir em duas palavras: nunca mais.

Nunca mais um Titanic a meter-se às cegas por um campo de gelos.

Nunca mais um Hindenburgh cheio de hidrogênio explosivo.

Nunca mais, se os homens de boa vontade puderem evitá-lo, uma tempestade de fogo sobre Hamburgo, uma Nagasaqui, uma Hiroxima.

Nunca mais um fogo destes num edifício deste tamanho...

Correcção: nunca mais um edifício deste tamanho. Assim fazia mais sentido, não fazia?

O tamanho pelo tamanho não era nunca uma solução. "Recorda-te disso."

- Hei-de recordar - disse Nat silenciosamente. Por Deus, que hei-de!

Ouviu um telefone tocar no atrelado, e esperou que alguém o atendesse. A voz de Patty pronunciou:

- Sim. Ele está aqui. - E depois, inexpressivamente:

- Nat.

Estava a estender-lhe o auscultador.

- A Zib - disse, e foi tudo.

Zib saíra da redacção da revista à hora do costume, seguira de táxi para casa e apressara-se a mergulhar num banho perfumado. Regalando-se na espuma de sabão, sentindo a tensão abandoná-la, disse para consigo que tudo acabaria em bem. Depois da conversa com Cathy sentia-se uma pessoa diferente, capaz de se ver a si própria com mais lucidez, e a regra do jogo não era precisamente essa - conhece-te a ti mesma?

E tinha dado com os pés no Paul Simmons, não tinha? Nat devia ter percebido isso quando ela ao telefone lhe dissera que Paul não tencionava ir à Torre Mundial. Era um corte definitivo dos velhos laços, não era? O simbolismo era inescapável. E no fundo Nat era um cordeiro. Não quisera realmente dizer aquelas coisas duras que lhe atirara. Não podia ter querido. Ninguém podia. Pelo menos a ela.

Afundou-se profundamente na banheira, cerrou os olhos e afagou com uma das mãos o ombro e o braço amaciados pela espuma de sabão. Como era esse anúncio publicitário na TV? "Se ele não consegue sentir a diferença, é porque não tem sentidos." Isso aplicava-se a ela inteirinha, não se aplicava?

Claro que Nat estaria cansado quando regressasse a casa. Mas não excessivamente cansado. Ela sempre tivera o poder de despertá-lo. Isso era uma das coisas que as fanáticas da Libertação da Mulher se permitiam esquecer, possivelmente porque algumas delas, mas não todas, eram uns exemplares pouco atraentes da mercadoria sexual, e qualquer gesto que pudessem avançar nesse domínio tendia para ser - como eram as palavras admiráveis desse juiz que permitira a venda do Ulisses? -"mais emético que afrodisíaco".

As qualificações de Zib nesse domínio eram impecáveis - como ela própria bem sabia. E, dado esse partido, na constante refrega sexual subjacente entre ela e um homem, qualquer homem, não havia pura e simplesmente luta.

Os homens gabavam-se de ser dominadores, exibindo os músculos e toda essa história. Em muitas culturas, como aprendera Zib no seu curso de antropologia, a poligamia era a norma. A poliandria, por outro lado, raramente se praticava. E isso só provava até que ponto os homens pensavam mal, porque uma mulher era capaz de satisfazer uma dúzia de homens, não era? E um mero homem via-se em apuros para satisfazer uma mulher. Mas, como diziam os Britânicos, era assim mesmo: o pensamento dos homens calejara-se ao longo dos séculos.

Afagou de novo o ombro e o braço e decidiu que havia realmente qualquer coisa de especial naquele óleo para banho: sentia a pele doce, macia, excitante ao tacto. Afagou suavemente os seios. Cada vez melhor. Mas, disse em voz alta:

- com jeito, rapariga, conserva-os intactos para o Nat. Não vás estragar agora o efeito.

Saiu do banho, secou-se e perdularízou o perfume na garganta, nos seios e no ventre. Depois vestiu o elegante e comprido roupão branco de que Nat tanto gostava, calçou os chinelos de salto que ele lhe dera e dirigiu-se para a sala de estar a fim de pôr música no gira-discos. Fora então que decidira telefonar para o atrelado.

Ao telefone Nat disse:

- Estou.

Que diabo tinha ela pensado dizer-lhe?

- Hi! - E acrescentou estupidamente: - Estou em casa.

Nat ouviu a música ao fundo: "Xerazade", com o solo do violino a iniciar o seu tema, Xerazade em pessoa a seduzir o sultão. Bolas.

- Calculei isso mesmo.

- Querido, como é que vai isso? Quero dizer...

- Vai óptimo. Não pode ir melhor. - Através da porta aberta Nat tornou a olhar para a praça atulhada. Ergueu uma das mãos a fim de passá-la fatigadamente pela testa e viu a fuligem da cave que conservava ainda na palma.

Oh, ele já muitas vezes se sujara antes disso ali na obra, e ele e Zib tinham rido até do aspecto que ele apresentava quando regressava a casa.

Mas isto era diferente, tão diferente como a noite do dia, como a morte da vida. Isto era...

Zib disse:

- Eu... tentei ver na televisão. Não... consegui. - Fez uma pausa. - Está tudo numa confusão, não está?

- Confusão é pouco. - Nat fez uma pausa. - Queres alguma coisa?

A hesitação na voz dela era muito-pouco-Zib.

- Não é que precise realmente. Cheguei a casa e...

- Calou-se. A sua voz era agora incerta. - Tu vens a casa? -Não conseguiu forçar-se a acrescentar: ou nunca mais vens?

Nat sentia que Patty estava a observá-lo. Tentava ignorá-la e não podia.

- Querido, fiz uma pergunta.

- Não sei qual é a resposta - disse, e desligou. Zib desligou lentamente. Foi então que as lágrimas

começaram.

O telefone na secretária principiou a fazer ruídos. Nat dirigiu-se rapidamente para lá, levantou o auscultador e identificou-se.

A voz do governador informou:

- Falta apenas despachar mais duas mulheres. Depois seguem-se os homens pela ordem da tiragem à sorte.

A sua voz não disse nada de particular, mas era manifesta uma vaga advertência.

- Muito bem - disse Nat. - Já falei com o imediato. Ele diz que numa situação de comando ou há obediência ou motim, e que se principia um motim...

- O imediato estende a mão para a malagueta mais próxima e descarrega-a na primeira cabeça que lhe aparece em frente, não é? - pronunciou o governador. Havia manifesta aprovação no seu tom.

- Isso mesmo - confirmou Nat. - Ele conhece o seu ofício e já passou por situações destas antes, e diz que se não se reprime a tempo a desordem... - Fez uma pausa, compreendendo que estava a falar a uma das vítimas potenciais. Depois prosseguiu porque não havia forma de ocultar o que pensava: - não se reprime a tempo a desordem ninguém sai vivo aí de dentro. Desculpe, governador, mas é esta a mensagem e tenho de concordar com ela.

- Não precisa de desculpar-se, rapaz. Concordo também consigo. Tem algumas sugestões?

- Sim. Duas. - Nat fez uma pausa para ordenar pensamentos. - Podia fazer saber aí imediatamente que ao primeiro sinal de desordem eu direi ao imediato que retenha o saco de lona no terraço do Centro Comercial até as pessoas entrarem outra vez na linha. Se alguém duvidar disso, que venha ao telefone para eu lho confirmar.

- Enquanto a linha telefônica se mantiver em serviço - disse o governador.

- Era essa a segunda coisa em que eu estava a pensar, governador. Comunicaremos através da estação de rádio municipal. Eles têm aqui com certeza microfones e equipamento para comunicação à distância. Se o telefone falhar, recorremos ao rádio. Tem aí em cima algum transistor?

- A tocar constantemente rock-and-roll - disse o governador. Fez uma pausa. - Combinado.

- Se o telefone se for - prosseguiu Nat - não poderão comunicar connosco. Se houver chatice, agite um lenço à janela e o imediato comunicará para baixo comigo. Certo?

Seguiu-se um breve silêncio.

- Muito bem - disse o governador. Outro silêncio. Depois: - Você tem uma boa cabeça, meu rapaz. Tem feito um trabalho admirável. É digno da gratidão de todos nós. - Pausa. - Isto é só para o caso de não vir a ter a oportunidade de lhe agradecer pessoalmente.

- Vamos fazer todo o possível para tirá-los a todos daí - disse Nat.

- Sei que fará. E obrigado.

  1. 53h - 20.09h

Os quarenta primeiros andares do prédio estavam agora na sombra. O polícia Shannon arregalou os olhos que mantinha erguidos para a mole fumegante e sacudiu a cabeça, incrédulo.

- Estás a ver o que eu vejo, Frank? Lá em cima o prédio a ficar em brasa?

Estava realmente a ficar em brasa. A maior parte das janelas tinham estoirado devido ao calor e o fumo jorrava através dos caixilhos vazios. Mas através do fumo, perfeitamente visível nas sombras escurecidas, o próprio edifício estava ligeiramente incandescente, e nas correntes de ar deformadas, criadas pela sua radiação, toda a estrutura parecia enroscar-se.

- Tu és um crente, Mike - disse Barnes. - É melhor que comeces a rezar. - Fez uma pausa. - Era um belo espectáculo, lembras-te? E toda essa gente importante que veio para assistir à inauguração.

Muito alto acima das suas cabeças o saco de lona saiu de novo a oscilar da Sala da Torre, fulgindo momentaneamente por um efeito de luz quando percorria a sua curva descendente rumo ao terraço do Centro Comercial. A multidão em peso tinha os olhos voltados para lá. Shannon benzeu-se.

- Uma cremação - disse Barnes. - Pergunto a mim mesmo quantos não estarão a pensar nisso. - Fez uma pausa. - Ou em Joana d'Arc na fogueira. - Pela primeira vez havia na sua voz um tom zangado. - Deixámos o maníaco entrar, Mike, e eu entre outras coisas nunca esquecerei isso, muito embora o branco, bendito seja, tivesse dito que éramos apenas um dente da engrenagem.

- E - perguntou Shannon - que queria ele dizer com isso?

- Que a culpa é partilhada, mesmo que eu não saiba como nem porquê. Mas posso imaginar. Uma coisa como esta não sucede sem causa. A vaca da senhora O'Leary pode ter derrubado a lanterna, mas tiveram de acontecer mil outras coisas para Chicago arder até ficar tudo raso. Aconteceu forçosamente o mesmo aqui, embora a consolação que isso nos dá seja pouca.

Shannon não fez comentários. Não parecia impressionado.

- Há gente lá em cima, homem - disse Barnes -, gente como tu e eu. Até vi meia-dúzia de caras negras. E...

- Eles estão a tirá-los de lá - atalhou Shannon a esses tipos.

- Não os tirarão a todos - disse Barnes. - Não com esse calor que já pôs o prédio em brasa. E sabes o pior disso tudo, Mike, o que torna a coisa diabólica? - Fez uma pausa. - Serão os melhores que ficarão para trás.

No terraço do Centro Comercial Kronski perguntou:

- Está à espera de chatices daquele lado, não é verdade, chefe?

- Talvez. Espero que não. - A calma maciça do imediato mantinha-se inalterável. Juntamente com Kronski colheu o saco oscilante e o imediato tirou lá de dentro a mulher.

Ela soluçava de medo, de dor.

- Mim marrido...

- Diga-nos o seu nome por favor, minha senhora

- pediu o imediato. - Estamos a fazer uma lista.

- Bucholtz! Mas mein marrido! Devem trrazê-lo já! Ele serr muito imporrtante! Ele pagarrá! Ele...

- Tá certo, senhora - disse o imediato. - Esses polícias vão tomar conta de si. Estamos a tentar tirar toda a gente. - Fez um gesto para os polícias que seguraram a mulher pelos dois braços.

- Mim marrido! Ele conhecerr gente muito imporrtante! Ele...

- Uma pergunta - disse o chefe. - Quantas mulheres faltam ainda?

Frau Bucholtz sacudiu a cabeça:

- Não sabe.

- A senhora é o número quarenta e oito - disse o imediato. - Quantas havia lá?

- Pensarr que haverr quarrenta e nove. Mas eu não sabe. E não me imporrta. Mein marrido...

- Tá certo - disse o imediato. - Levem-na daqui. - Voltou-se para seguir com os olhos os calções de salvação na sua longa subida de regresso à Torre Mundial.

Kronski disse:

- Vi uma vez um salva-vidas no mar de Bering. Meneou a cabeça. - Faz um frio dos diabos por lá, o senhor sabe como é? Esteve lá.

- Estive lá. - O imediato sabia que o que viria a seguir era qualquer história sinistra que não estava particularmente empenhado em ouvir, mas não disse mais nada.

- Era um desses cargueiros da cabotagem - prosseguiu Kronski. - Fogo a bordo. Tinham ficado com as máquinas inutilizadas. Mar grosso e o cargueiro começou a afundar-se. Meteram-se nos salva-vidas. - Fez uma pausa. - Soubemos tudo isso por um dos tripulantes, o imediato. Sobreviveu um pouco mais. Foi o único que recolhemos. O que aconteceu - continuou Kronski- foi que quando amaram os escaleres um voltou-se. Além disso... - Meneou a cabeça e abriu as mãos. - Sabe o que eu quero dizer, chefe?

O imediato disse pesadamente:

- Sei o que você quer dizer. - Fez uma pausa. Nessa altura tentaram todos meter-se no escaler que restava, não foi isso que aconteceu?

Kronski baixou a cabeça a confirmar.

- Certo. Tentaram afastá-los com os remos, contou-nos o imediato. Não serviu de nada. Absolutamente de nada. Eles continuavam a entrar. - Calou-se.

Os olhos do imediato estavam cravados nas janelas distantes. Via o saco de lona atravessá-las a oscilar. Na sua mente projectavam-se imagens dessas vagas gigantescas nos mares setentrionais, dos ventos uivantes, e do frio - acima de tudo do frio que enregelava os ossos.

Homens em escalares abertos, ou homens a tentar arriar escaleres abertos, homens desesperados e gelados. Sem afastar os olhos das janelas, disse:

- E o que aconteceu foi que eles fizeram com que esse segundo escaler se voltasse, não foi?

Kronski tornou a confirmar:

- Certo. Chegámos lá menos de uma hora depois. - Pausa. - Era igual a ter chegado no mês seguinte. Apenas esse imediato ainda se encontrava vivo e, como eu disse, não durou muito. - Outra pausa. - Podiam ter-se salvado talvez metade...

- Mas entraram em pânico e não se salvou nenhum. É sempre assim que as coisas acontecem. - A sua voz tinha um tom brutal e os seus olhos não se afastavam das janelas. Não via nenhum lenço a acenar. Por ora.

O governador regressou ao gabinete e deixou-se cair na cadeira da secretária. Sentiu-se subitamente velho e cansado para além da mera fadiga. Era como se na companhia agradável de Beth tivesse passado essas últimas horas imerso na fonte refrescante da eterna juventude, sabendo que isso não podia durar e ao mesmo tempo vagamente convencido de que de um modo ou de outro a situação se prolongaria. Agora, com a partida de Beth, estava concluída com êxito a evacuação das mulheres. E o governador não pudera assistir ao momento final.

Não há pior idiota do que um idiota velho - o governador perguntava para consigo a quem teria ocorrido pela primeira vez e em que circunstâncias fora cunhado esse aforismo. Provavelmente o autor fora algum velhote a zombar de si próprio ao descobrir que a franganita que ele julgara ter conquistado preferia afinal de contas entender-se com homens da idade dela.

Oh, não tinha sido assim com a Beth. Dadas outras circunstâncias em que a escolha fosse tão livre quanto uma escolha o podia ser alguma vez, o governador pensava que Beth teria ido com ele de bom grado, se não com verdadeiro ardor, para esse rancho nas montanhas do Novo México. Idílio sonhado - onde lera ele essa frase? Um sonho puro e simples. E que não se concretizaria.

Mas porque não? Era a pergunta que se repetia e que a própria Beth formulara. Porquê eu?

Porque não poderia esse sonho tornar-se realidade? Porque havia o raio de atingir uma pessoa e poupar outra? Porque não lhe havia de ser permitido viver o que lhe restava de vida na paz e no contentamento que planeara, com o bônus adicional dessa nova satisfação que ele só hoje descobrira?

Se tu existes, responde-me a isto, Senhor.

Estava a sentir pena de si próprio, não estava? Bem, por que diabo não havia de sentir? Lá em baixo na praça encontravam-se mil pessoas, porventura dez mil que quando o espectáculo estivesse terminado regressariam a casa para fazer o que muito bem lhes apetecesse antes de recolher à cama, sabendo que acordariam na manhã seguinte. Oh, é certo que muitas dessas pessoas, nas palavras de Thoreau, levavam existências de calmo desespero, mas isso não alterava o facto de que dispunham pelo menos de alguma liberdade de escolha, que lhes restavam algumas opções e que ele não tinha nenhuma.

Algum homem terá morrido feliz? Era essa a questão. Não, risque-se a última palavra. Algum homem terá morrido satisfeito? O governador pensava que não.

Alguns homens realizam muito, outros realizam pouco ou nada - mas nenhum homem realiza o bastante.

Jake Peters tinha dito o mesmo, e ele, Bent Armitage, havia-o admoestado por isso.

"Pronto - pensou-, deixa lá! Encerra o balanço." Coisas que ficaram por fazer, palavras por dizer, sim, mas haverá algum homem que possa dizer o contrário? Mas não ficavam dívidas por pagar. E quantos se poderiam vangloriar do mesmo? Pagamento à vista. O honesto Bent Armitage. Aquilo soava, pensou o governador, como o nome de um vendedor de carros em segunda mão.

E que dizer de todo o conhecimento e de todo o discernimento que iriam morrer com ele? Bem, e que tinha isso? Eram únicos? Insubstituíveis? Ou seria apenas que se sentia particularmente orgulhoso com essas qualidades por serem suas?

"Enfrenta as coisas - disse para consigo como tinha dito ao senador -, tu fartaste-te de gozar, não é verdade? E que terias tu mudado se te fosse dado recomeçar? Provavelmente nada."

Excepto Beth.

Talvez, pensou, se tivesse sabido procurar, tê-la-ia encontrado ou a alguma como ela antes de ser demasiado tarde. Alguma como ela? Bem, se ele nunca tivesse encontrado o artigo genuíno, nunca teria dado pela diferença, pois não? Meu Deus, que máquina de racionalizar era a mente humana!

Beth. Pelo menos estava lá em baixo, em segurança. Arrependia-se agora de não ter ficado a ver, só para ter a certeza. Bem, afinal era facílimo certificar-se.

Deu um piparote no comutador do telefone.

- Fala Armitage - disse. Não houve resposta. Premiu os botões desligados, voltou a premi-los. Não houve qualquer som. O telefone estava morto.

"E agora - pensou - encontramo-nos verdadeiramente sós."

O pesado cabo que se estendia da Sala da Torre até ao terraço do Centro Comercial suportando o peso dos calções de salvação era de nylon, forte, flexível, sem uma falha. Estava amarrado em volta da viga-mestra do tecto da Sala da Torre, e o nó que o prendia, um nó de escota, tinha sido dado sob os olhos atentos dos dois bombeiros.

Porque se sabia de casos em que mesmo um nó de escota, o rei dos nós, feito com nylon, se tinha soltado, os bombeiros haviam tomado a precaução adicional de dobrar a extremidade do cabo em duas meias-voltas em torno da parte fixa. As meias-voltas não davam sinal de escorregar e a não ser que o fizessem ou até que o fizessem, o nó de escota havia de agüentar.

Mas a viga onde o cabo fora amarrado era de aço, estava integrada na estrutura do prédio e era o principal suporte do mastro de comunicações que se erguia ainda a rutilar sob o sol no ocaso.

O aço é um bom condutor do calor.

E o nylon derrete.

O telefone na secretária do atrelado fez ruídos. Nat levantou-o e disse o seu nome. O som da sua voz no instrumento soou de uma maneira inusitada: fazendo eco. Tal como o governador, Nat premiu todos os botões desligados, voltou a premi-los, e tentou ainda uma terceira vez. O sinal de marcar soou-lhe de súbito aos ouvidos.

Marcou o número do gabinete da Sala da Torre, tornou a marcá-lo, e depois desligou.

- Acabou-se - disse sem se dirigir a ninguém em particular. - A linha lá de cima foi-se.

Os sistemas do edifício tinham sido tão cuidadosamente preparados, pensou, tão inteligentemente projectados, tão dispendiosamente investigados, e estavam agora a falhar um atrás do outro. Estavam a falhar? Tinham falhado. Havia qualquer coisa de definitivo na morte daquele telefone.

Voltou a marcar o número para onde já tinha falado uma vez, a estação de rádio municipal. Responderam-lhe imediatamente.

- Praça da Torre Mundial - disse. - A linha lá de cima foi-se. Vocês são a única maneira que temos de comunicar com eles.

- Manteremos esta linha aberta. Quando você der sinal poderá ir para o ar imediatamente.

- Uma coisa - disse Nat. - Vocês têm um sistema de retardamento automático, não têm? Para cortar da transmissão os palavrões e coisas assim?

- Você vai logo para o ar. Sem retardamento.

- Óptimo - disse Nat. - Obrigado. - Estaremos a postos. - Tornou a pousar o auscultador na secretária e levantou o walkie-talkie. Disse para o imediato no terraço do Centro Comercial:

- O telefone foi-se. Se receber algum sinal, chame-me. Eu falarei pela rádio.

- Assim farei - prometeu o imediato.

Nat recostou-se na cadeira e percorreu o atrelado com uma olhadela circular. Encontravam-se ali Tim Brown, um comandante de batalhão, Giddings e Patty.

- Vocês ouviram - disse Nat. Ergueu as mãos e deixou-as cair de novo. - Que raio há-de uma pessoa dizer? - perguntou.

- Tenho o pressentimento - declarou o comandante de batalhão - de que vai acontecer qualquer coisa, percebe o que quero dizer? Que o despertador vai tocar, que eu vou cair da cama a baixo ou, percebe, que este maldito pesadelo vai acabar duma maneira qualquer! - Fez uma pausa. - Simplesmente não vai, pois não? - A sua voz contida estava cheia de azedume.

Os grandes ombros de Giddings agitavam-se incansavelmente. Olhou para Patty.

- O Simmons é seu marido e lamento que o seja, Fez uma pausa. - Mas, se eu tiver a mais leve oportunidade, mato esse filho da puta com as minhas mãos.

O tenente Potter da polícia atravessou a porta. Olhou para o grupo e perguntou:

- Posso ser útil nalguma coisa? Ninguém respondeu.

- Era o que eu já pensava - disse Potter. Parou apoiado à parede. - Se não se importam, fico por aqui. Fez uma pausa. - Embora Deus bem saiba que não estou cá a fazer nada.

Foi Patty quem perguntou:

- Descobriu o que queria a respeito desse John Gonnors?

- Mais do quê queria - respondeu Potter. Comunicou-lhes o que tinha dito ao capitão e ao inspector-chefe.

Nenhum dos homens presentes no atrelado se manifestou. Patty pronunciou baixinho:

- Pobre rapaz!

- Não vou discutir - disse Potter. Não havia azedume, apenas tristeza na sua voz. Depois, lentamente:

- Sou um reles polícia. O meu ofício é descobrir quem prevarica. - Meneou a cabeça. - Às vezes isso é muito fácil. Mas doutras vezes, como agora, não é. - Apontou para cima. A sua voz subiu de tom. - Aquela gente que lá está em cima, alguém tem culpa do que lhe está a suceder, não é verdade? - Olhava para Brown. - É ou não é assim?

- Gomo diabo hei-de responder a isso? - Era quase um grito. E depois, mais sereno: -A coisa não faz sentido. Nada faz sentido. Você encontrou um homem que ficou chanfrado porque houve alguém que lhe deixou a mulher morrer - Brown apontou para Patty. - Ela tem um marido que fez coisas que em princípio não devia ter feito.

Giddings acrescentou:

- E há um agente electrotécnico e um inspector de obras públicas que deviam ser pendurados pelos...

- deteve-se e olhou para Patty-... pelos polegares.

- Alguns dos meus homens - disse Tim Brown

- deixaram passar coisas que não deviam ter deixado passar. - Meneou a cabeça raivosamente.

- E - concluiu Nat - alguns de nós devíamos ter detectado os erros e, pior que isso, enquanto estavam a ser cometidos. - Conservou-se calado por um breve instante. - Ainda mais uma coisa - disse -, talvez maior do que todas as outras juntas. - A sua voz era solene. - Quem diabo pensávamos nós que éramos para construir um prédio deste tamanho, tão complicado e tão... vulnerável?

Foi nessa ocasião que o walkie-talkie despertou dizendo:

- Terraço chama o atrelado.

No meio do silêncio súbito, Nat pegou no aparelho e disse:

- Atrelado a responder.

A voz do imediato informou:

- Estão a acenar com qualquer coisa branca. É melhor você ir para o ar. Tenho aqui os calções e não seguem sem ordem sua.

Nat respirou fundo.

- Vamos a isso - disse, e estendeu a mão para o telefone.

20.00h - 20.41h

Os relatos variam, como é normal em casos destes. Mas ao contar o que aconteceu realmente na Sala da Torre, cada sobrevivente parece ter a sua própria versão que o apresenta a comportar-se, se não como um herói, pelo menos de forma impecável; e nem sequer dá ouvidos aos desmentidos dos seus companheiros de aventura, por mais categóricos que tais desmentidos sejam. Mas talvez isso também seja normal em casos destes.

Num ponto, porém, há acordo: sem aviso, e por um desses caprichos do acaso que tão pródigos se mostraram nesse dia calamitoso, as condutas de ar condicionado desataram de súbito a arrotar grandes quantidades de fumo quente e acre. E isso, como o premir de um gatilho, deve ter sido o que desencadeou a explosão.

O cenário foi este:

O transistor, sintonizado para a estação municipal, tocava música suave. As mulheres já tinham partido todas e a dança acabara-se.

Num canto do grande salão o rabino Stein, monsenhor O'Toole e o reverendo Arthur William Williams conversavam calmamente. Não foi revelado aquilo de que falavam.

Na área de embarque por detrás da barreira de mesas, Harrison Paul, regente da orquestra sinfônica municipal, deixou que o içassem para dentro do saco e partiu a oscilar pela janela fora. Tentava conservar os olhos fechados, mas a tentação de olhar foi demasiado forte e o que ele viu da cidade por baixo dele dessa terrificante e quase insuportável altura fê-lo sentir-se violentamente mal. A música tempestuosa da sinfonia "Pastoral" trovejava-lhe na mente, como mais tarde recordaria, enquanto se agarrava desesperadamente ao saco de lona, aos bordos e aos sacões, convencido de que ia morrer. Quando por fim alcançou o santuário, e o imediato ajudado por Kronski o tirou do saco, tombou imediatamente de joelhos para beijar o pavimento do terraço

Foi o primeiro homem a ser evacuado e durante algum tempo pareceu que seria também o último.

O criado que tinha três filhos estava agora sentado no chão a afagar a sua garrafa de bourbon. O número da morte cruel que tinha no bolso era o número noventa e nove. Já decidira que as possibilidades que tinha de se salvar eram as de um cão de celulóide a perseguir um gato de amianto através do inferno. Não gostava especialmente do bourbon, mas estava decidido a não entrar em pânico; e pensava que se lhe acontecesse ficar inconsciente com a bebida, não se havia de importar muito com aquilo que não estava em seu poder evitar.

Os dois bombeiros, dois criados, o comandante dos bombeiros e o secretário-geral encontravam-se por detrás da barreira de mesas. Um dos criados testemunharia mais tarde que o silêncio reinava no salão; que se sentia a tensão a aumentar, principalmente depois da saída das mulheres, mas que tudo parecia sob controlo.

- Até ao momento - acrescentou - em que o pânico se desencadeou.

Havia surpresa na sua voz por tal coisa ter acontecido.

Cary Wycoff estava a falar com uma dúzia de homens dos quais apenas um, outro criado, foi identificado. O seu nome era Bill Samuelson e tinha sido através da vida várias coisas: estivador, futebolista semiprofissional e pugilista profissional de categoria inferior. Mais ninguém admitiu ter feito parte desse grupo.

Estava quente e o calor aumentava a todo o instante; também nesse ponto o acordo é total. O criado na zona barricada descreveria a situação nestes termos:

- Era engraçado. O vento que entrava pelas janelas partidas era frio e eu sentia as mãos quase dormentes.

Mas tinha os pés quentes e quanto ao resto sentia, vocês sabem, como se estivesse na estufa de um ginásio, percebem o que quero dizer? Calor em toda a volta, mas ao mesmo tempo o vento frio, e isso é que era tão engraçado... não sei se me faço entender?

Ben Caldwell e o embaixador soviético conversavam sobre a arquitectura de Moscovo e sobre a nostalgia que sempre acometia o embaixador quando nessa terra estrangeira da América via um Zwiebelturm, o zimbório bulbiforme das torres da Europa Oriental.

O senador Peters encontrava-se do lado ocidental das janelas, a ver calmamente as gaivotas que pairavam sobre o rio e sobre o porto. Para ele era infindável o prazer e o alívio de tensão que lhe proporcionava a observação das aves, que também lhe proporcionava às vezes algumas surpresas animadoras, como dessa vez no Novo México em que a sua atenção fora despertada por uma certa agitação no ar e ele contara rapidamente trinta e cinco grandes aves em vôo para o sul, com as asas brancas orladas de negro e as compridas pernas arrastando-se para trás, a identificá-las sem a mínima dúvida como os remanescentes de um bando de gruas gritadoras, provavelmente desviadas do seu itinerário normal de migração para evitar uma tempestade, mas mesmo assim apontando com aquele misterioso conhecimento de que tão pouco se sabe e que as empurrava infalivelmente para os seus ninhos nas terras do Texas. Agora, observando as gaivotas prateadas que descreviam círculos e provavelmente soltavam os seus gritos, tão livres como o ar em que flutuavam (i), o senador perguntava a si mesmo-como o já fizera infinitas vezes antes disso - porque teria o homem ao longo do seu processo evolutivo optado por ficar preso à terra.

O governador continuava no gabinete, sozinho com o telefone morto e com os seus pensamentos. Chegavam-lhe

 

1 - As gaivotas não são livres. São animais determinados por um complexo de instintos que lhes não deixam qualquer possibilidade de escolha. A liberdade de um ser mede-se pela sua possibilidade de efectuar uma escolha consciente. O senador toma por liberdade a possibilidade que as gaivotas têm de flutuar ao sabor das correntes aéreas que só contrariam quando o instinto compulsório as determina a procurarem alimento, a acasalarem-se ou a defenderem-se. (N. T.)

 

abalados aos ouvidos os sons da música do transistor, mas, tirando isso, as coisas estavam sossegadas lá fora. O mesmo não se poderia dizer dos pensamentos do governador.

Porque não tentara ele sequer puxar pelos galões e colocar-se entre os primeiros homens a seguir no saco de lona para a salvação? À primeira vista não havia resposta que fizesse qualquer sentido lógico. Agora, ou dentro de poucos minutos, poderia encontrar-se no terraço do Centro Comercial em vez de estar sentado àquela estúpida secretária à espera - à espera de quê? A resposta para isso era simples. Estava à espera do final dessa farsa trágica, mas como actor e não como espectador. Até que ponto podia a situação ser ridícula?

Os pensamentos que um homem se permite para consigo! Pensamentos ignóbeis, covardes, às vezes libidinosos, desonestos, pervertidos e loucos até; o caldeirão do demônio é capaz de conter toda essa infusão mental.

Mas são apenas pensamentos que não se tornam obsessivos nem se traduzem em acções. Assim, independentemente do que ele tinha feito ou deixado de fazer através do uso egoísta do poder, poderia desejar que tivesse sido de outro modo. Dizia para consigo mesmo que detinha esse privilégio - e descobriu que se sentia divertido com a sua rabulice. Divertido e ao mesmo tempo bastante indignado. Ele...

- Tão solene, Bent! - Era a voz de Beth que vinha da entrada da porta. Ela estava parada no limiar, com um meio sorriso nos lábios, à espera do que ele iria dizer.

O governador fitou-a numa surpresa, pensou até que boquiaberto.

- Aconteceu alguma coisa aos calções de salvação? Continuando a sorrir, ela fez que não com a cabeça. O governador ergueu as mãos, depois deixou-as

tombar. Era uma espécie de incredulidade o que sentia, mesclada de alegria e de tristeza.

- Você não partiu - murmurou ele. Fez uma pausa.

- Não tive coragem de olhar.

- Bem vi. - Começou a penetrar lentamente no quarto.

- Tentei telefonar para saber se você chegara... bem. - O governador fez uma pausa. - Mas o telefone já não funciona. - Despertou do seu estado de quase apatia. - Eu queria que você se salvasse. - A sua voz era mais forte, tendo readquirido um pouco da antiga confiança.

- Eu sei. - Beth estava agora junto da secretária. Empoleirou-se no tampo, como já o fizera antes, com as compridas pernas a oscilar. Estendeu a mão que o governador agarrou, apertando-a com força.

- Você devia ter partido, caramba.

- Não, Bent. - Havia uma grande calma e uma grande serenidade na sua voz, na sua atitude. - Eu disse-lhe que não voltaria a... fingir, nunca mais.

- Eu queria que você vivesse. - Fez uma pausa. E ainda quero. - Verdadeiro ou falso? Fosse como fosse, que se lixasse a análise.

- Eu sei. Fui eu que tomei a decisão.

- Tomou a decisão errada. - O governador empurrou a cadeira para trás. - Iremos...

- Não, Bent. Eu cedi a minha vez. Mesmo que quisesse, não podia recuperá-la. Quando uma pessoa toma uma atitude tem de sofrer-lhe as conseqüências.

- Tem um raio...

- Bent, escute-me. - Os seus dedos apertaram os dele. - Toda a minha vida tenho sido... decorativa, talvez algumas vezes interessante, divertida, agradável, todas essas coisas que nos ensinam a ser. - Fez uma pausa. - E inútil. - Viu a objecção que se formava nos lábios dele e apressou-se a antecipá-la. - Sim. Inútil. - Prosseguiu falando mais depressa. - Mas nestas últimas horas pela primeira vez na minha vida senti que estava... a fazer qualquer coisa útil, não muito talvez, mas mais, muito mais do que alguma vez fizera antes.

- Muito bem - disse o governador -, você terá aprendido algumas coisas enquanto estivemos aqui encurralados. Sendo assim, conserve esse conhecimento e parta...

- Há outra razão, Bent. Será preciso declará-la? Porque não é a espécie de coisa que uma pessoa diz e em que as outras acreditam. Mas é verdade. - Fez uma pausa, conservando a mão agora muito quieta sobre a dele. No meio da face os seus olhos miravam-no muito calmos. - É que prefiro ficar aqui consigo a estar lá fora... outra vez sozinha.

O silêncio total reinou por um momento naquele gabinete. Distantes, abafados, os sons da música alcançavam-nos, mas era tudo. Por cima deles, na conduta de ar condicionado,

no tecto apareceu um penacho de fumo negro, que se espalhou e assentou lentamente. Nenhum deles deu por isso.

- Que há-de uma pessoa dizer a isto? - murmurou o governador. - Eu tenho estado pràqui sentado, sozinho, a sentir pena de mim próprio... - Calou-se. - Bolas, não há direito de você estar aqui! Você...

- Não tenho o direito de estar onde quero estar? -Beth sacudiu a cabeça lentamente. Estava de novo a sorrir com os lábios, com os olhos, com todo o seu ser. - Querido Bent... - principiou ela.

Foi então que eclodiram os primeiros sons de conflito lá fora no grande salão: vozes que se erguiam soltando gritos de raiva, estrondos de móveis derrubados.

O governador arremessou a cadeira para trás e levantou-se. Hesitou apenas um momento.

- Espere aqui - disse e precipitou-se através da porta.

Era uma cena de manicômio representada através de uma neblina de fumo negro. Uma das mesas da barreira já fora derrubada e homens enlouquecidos como bichas empurravam-na para o lado, abrindo uma passagem, arranhando-se uns aos outros na sua impaciência frenética.

Enquanto o governador olhava, o comandante dos bombeiros agarrava no homem mais próximo pelas abas do casaco, puxava-o para si com um movimento brutal e aplicava-lhe um murro à boca. Soltou-o e estendeu a mão para se apoderar de outro.

Um criado de casaco branco, um tipo grande e musculoso - era Bill Samuelson - meteu-se à força pela passagem aberta, aplicou dois socos no ventre do comandante dos bombeiros e empurrou-o para o lado para cair.

Cary Wycoff conservava-se junto da mesa derrubada, apartado da refrega, de voz erguida, esganiçando-se, e, enquanto o governador trotava através da sala, o senador Peters, empunhando um castiçal na mão direita, aplicou-o como um chuço na barriga de Cary, fazendo-o dobrar-se em dois e, sem se deter, avançou para bater com o pesado castiçal na cabeça do criado musculoso. O homem tornbou como um novilho sob o machado do magarefe.

Não havia qualquer sentido, qualquer plano, apenas loucura e confusão. O governador sentiu que lhe davam um soco num ombro; por detrás do soco estava a face contorcida do administrador da multinacional. Tudo o que aquela face lhe lembrou foi a de um animal louco, enfurecido pelo medo.

As condutas jorraram mais fumo, uma massa sufocante, encegueirante, turbinosa, que parecia ter o condão de fazer subir a fúria dementada das lutas que se travavam, no seu seio.

Alguém gritou. Ninguém deu por isso no meio do clamor geral.

O governador ergueu a voz.

- Acabem com isso! com mil raios, estou a dizer-vos que acabem com isso! - Era como gritar no meio da tempestade. Baixou a cabeça e carregou.

Um cotovelo bateu-lhe na cara. Seguiu para diante. Ali estava o cabo grosso que penetrava através da janela. Ali estava a própria janela. Agarrou-se ao cabo com uma das mãos e debruçou-se tanto quanto lhe era possível para agitar o lenço várias vezes. Depois voltou a puxar-se para dentro e tentou libertar-se do emaranhado humano. O rádio continuava, sabia lá onde, a tocar música. O governador guiou-se pela música como se fosse um farol.

Viu-o pousado numa mesa próxima e quando se lançava para agarrá-lo a mesa foi derrubada. O rádio patinhou pelo soalho adiante, continuando a tocar.

Um tipo qualquer chocou contra o flanco do governador que caiu de mãos no chão e que depois, com toda a força que tinha, mergulhou para a frente, apoderando-se finalmente do rádio. Protegendo-o, segurando-o com força contra o corpo, escapuliu-se para fora da misturada de corpos em luta, e então, em temporária paz, longe da refrega, ergueu o rádio alto e regulou o volume de som para o máximo.

A música estrondeou dentro do salão. Fez-se um súbito silêncio. E então, por fim, a voz agigantada de Nat rugiu no meio da confusão: OUÇAM AGORA ISTO! OUÇAM AGORA ISTO NA SALA DA TORRE!

Fez-se uma pausa. O som da luta baixou sensivelmente.

OUÇAM ISTO NA SALA DA TORRE! -voltou a bramir a voz. - DAQUI O CONTROLO INSTALADO NA PRAÇA. NÃO SEI O QUE ESTÁ A SUCEDER Aí EM CIMA, MAS ATÉ QUE PARE O SACO DE LONA FICARÁ RETIDO NO TERRAÇO DO CENTRO COMERCIAL. FUI COMPREENDIDO? REPITO: ATÉ SE RESTABELECER A ORDEM, O SACO DE LONA NÃO VOLTARÁ À SALA DA TORRE. SE ME OUVIRAM AGITEM QUALQUER COISA BRANCA DA JANELA.

Na grande sala não se ouvia agora um som, era como se tudo tivesse parado. Os olhos de todos seguiam lentamente o governador que se dirigia para a área de embarque, continuando a empunhar o rádio. Passou-o ao senador, pegou numa toalha da mesa mais próxima e, inclinando-se como da primeira vez, agitou-a na direcção do terraço do Centro Comercial,

O silêncio manteve-se.

MUITO BEM! - trovejou subitamente a voz de Nat. - AGORA RECOMECEM A PROCEDER DISCIPLINADAMENTE. FUI COMPREENDIDO? RECOMECEM A PROCEDER DISCIPLINADAMENTE ou PÁRA TODA A OPERAÇÃO. ESTAMOS A FAZER TUDO O QUE PODEMOS PARA VOS TIRAR TODOS VIVOS DAÍ DE DENTRO. SE COOPERAREM PODEMOS CONSEGUIR. CASO CONTRÁRIO, NINGUÉM SAI. FICOU COMPREENDIDO ISTO? NINGUÉM!

O governador olhou em volta para as caras dos circunstantes, algumas delas com escoriações, algumas a sangrar. Bill Samuelson, o corpulento criado, estava de gatas, a sacudir a cabeça. Ergueu os olhos para o governador como um animal enfurecido.

- Algum comentário? - perguntou o governador.

Não houve resposta.

FICOU COMPREENDIDO ISTO? -rugiu a voz de Nat.

O governador voltou a debruçar-se na janela. Agitou a toalha de mesa. Seguiu-se a pausa para transmitir a informação do terraço para o atrelado.

MUITO BEM -disse depois a voz de Nat. - CONSERVEM-SE NESTE COMPRIMENTO DE ONDA E RECOMECEM A VOSSA OPERAÇÃO. O SACO DE LONA ESTÁ DE VOLTA. MAS - a voz fez uma pausa - AO PRIMEIRO SINAL DE NOVAS PERTURBAÇÕES TORNA A PARAR. REPITO: AO PRIMEIRO SINAL DE NOVAS PERTURBAÇÕES SUSPENDEMOS AS OPERAÇÕES DE SALVAMENTO. - A voz silenciou.

O senador baixou os olhos para o rádio que conservava na mão. Sorria quando reduziu o volume de som. A música recomeçou a tocar.

O secretário-geral chamou calmamente:

- Número cinqüenta e dois, faça o favor, número cinqüenta e dois.

Um dos criados que não se havia envolvido nos distúrbios avançou. Segurava com firmeza o quadradinho de papel com ambas as mãos.

No atrelado Nat pousou o telefone e deixou o ar sair-Lhe do peito num longo suspiro. Disse para o walkie-talkie:

- Tudo bem, imediato? Pensa que...

- Tanto quanto posso ver - disse o imediato, a sua voz ainda calma-, você obrigou-os a entrar na ordem. Eu informá-lo-ei se as coisas se apresentarem diferentes.

Nat pousou o walkie-talkie. Olhou em volta do atrelado. Tim Brown disse:

- Vai haver um chiqueiro tremendo. Quantas pessoas estavam sintonizadas e ouviram essa... ameaça, esse ultimato ou lá o que você lhe quiser chamar?

- Deu resultado, não deu? - Era Giddings que falava.

- Deu resultado - disse Patty. Baixou os olhos para Nat e sorriu.

- Número cinqüenta e três-disse o secretário-geral-, faça o favor.

O bombeiro Howard perguntou:

- Qual é o seu número? O secretário-geral sorriu:

- É o sessenta. Ainda tenho sete adiante de mim.

- E eu sou um deles - disse Howard. - Sou o cinqüenta e oito.

O secretário-geral voltou a sorrir.

- Os meus parabéns. - Fez uma pausa. - Foi um prazer trabalhar consigo.

- Talvez - sugeriu Howard - possamos tomar uma bebida juntos para comemorar, quando tudo isto estiver acabado.

- com o maior prazer.

O senador aproximou-se de Cary Wycoff. Empunhava ainda o castiçal numa das mãos.

- Para a próxima vez, Cary - disse baixinho racho-te o crânio. - Fez uma pausa. - Podes estar certo disso.

Ela ainda se encontrava sentada imóvel onde o governador a deixara, empoleirada num canto da secretária, as compridas pernas bem feitas a oscilar docemente, com uma aparência de sorriso nos olhos azuis calmos.

Seria assim, pensou o governador, que havia de recordá-la sempre.

Sempre?

Sempre. Através da eternidade.

- Você vai partir agora - declarou. Viu a objecção a formar-se na face de Beth e atacou-a imediatamente. Sim - disse. - Você vai partir. Porque, minha querida

- acrescentou -, é esse o meu desejo, a minha súplica, e se o que eu digo parece afectado, a culpa não é minha. É que, em ocasiões como esta, uma pessoa oculta-se por detrás do formalismo.

- Bent... - Calou-se. Os seus olhos já não pareciam sorrir.

- Não rematarei uma longa vida com um acto de baixo egoísmo - declarou o governador. De súbito sorriu. - Isto em si mesmo é egoísta, reconheço-o. Não consigo abster-me de tomar atitudes. - Dirigiu-se para ela e estendeu ambas as mãos. - Venha

Saíram do gabinete de mãos dadas. O grande salão estava agora submisso, desanimado. O transistor continuava a tocar música, mas ninguém escutava.

Dirigindo-se ao secretário-geral:

- O número quarenta e nove ficou para trás, Walther

- disse o governador. - Aqui está ele.

Cary Wycoff, vigilante, à escuta, abriu a boca e voltou a fechá-la em silêncio.

Na sala não se ouvia um único som.

O secretário-geral sorriu para o bombeiro Howard.

- Tinha-me enganado - disse-, afinal havia oito à minha frente.

- Oh, Bent! - exclamou Beth.

- Adeus, minha querida. - O governador hesitou. Sorriu. - Vá um destes dias pescar uma truta por mim. - Deu meia-volta e regressou ao gabinete vazio.

- Sessenta e um! - chamou o comandante dos bombeiros.

- Sessenta e dois!

Cary Wycoff avançou. O senador colocou-se em frente dele.

- Sou o número sessenta e cinco - disse Cary Wycoff empunhando o seu quadradinho de papel.

O senador mal lhe deu uma olhadela. Fez que sim com a cabeça e recuou um passo.

- Hás-de ser, quando chegar a tua vez - disse. Dentro da estrutura do gigante o calor continuava a

subir. Andar após andar a incandescência subia, seguindo as sombras do anoitecer.

Na praça era agora quase completamente noite, e tinham-se instalado lâmpadas de emergência. Ao seu clarão os homens e o equipamento em movimento projectavam bizarras sombras deformadas contra o edifício, através do fumo.

Por detrás das barreiras da polícia a multidão mantinha-se calada, não se viam ondular cartazes, não se entoavam cânticos nem se erguiam vozes.

O polícia Shannon disse:

- É uma cena do próprio inferno, Frank.

- É. - A voz de Frank era recolhida, solene. - Só que as pobres almas condenadas estão escondidas.

Muito alto por cima deles, ainda batido pelo sol, o saco de lona oscilante recomeçou uma vez mais a sua trajectória descendente para o terraço do Centro Comercial.

- Achas que eles não os conseguem tirar a todos? -perguntou Shannon.

Barnes ergueu os ombros e deixou-os cair.

- Mesmo que consigam, será um dia de triste memória. - Fez uma pausa. - Para todos nós - concluiu.

- Sessenta e seis! -chamou o comandante dos bombeiros. Tinha a voz rouca do fumo e da fadiga. Tossiu e voltou a tossir com um som espasmódico que pressagiava o vômito.

O senador afastou-se das janelas da fachada ocidental. Respirar tornara-se difícil e doloroso. Olhou em volta da grande sala.

No outro extremo junto da porta de incêndio a toalha branca vincava os restos de Grover Frazee.

Numa cadeira próxima um homem que o senador não conhecia, um homem idoso, estava afundado, cabeça caída para trás, boca e olhos abertos. Tanto quanto o senador podia dizer, já não respirava.

Ben Caldwell jazia no centro da sala onde tinha tido, um colapso. O seu corpo enrolara-se na posição fetal. Não fazia o mínimo movimento.

O criado sentado no chão estendeu a garrafa, oferecendo uma bebida. Na sua face estampara-se um sorriso idiota.

- Obrigado - disse o senador-, mas esperarei um pouco mais. - A sua voz tinha um som estranho, pesado. Aprumou-se com dificuldade e encaminhou-se para o gabinete.

O governador estava na sua cadeira junto da secretária. Ergueu os olhos, sorriu e tossiu. Quando a tosse cessou, disse:

- Sente-se, Jake. De que havemos de falar?

O imediato e Kronski içaram o homem para fora do saco de lona.

- Segurem-no - disse o imediato, e acrescentou erguendo a voz: - Oxigênio cá para cima! - Acenou para as janelas da Sala da Torre e o saco de lona recomeçou lentamente a sua viagem de regresso.

- Setenta e sete - disse o imediato. Falava para o walkie-talkie. - Chama-se Bucholtz. Necessita de cuidados de enfermagem.

Ficou postado à espera, enorme e maciçamente calmo, os olhos cravados nas janelas da Sala da Torre, enquanto Kronski ia dando linha do cabo de vaivém.

Ali no terraço do Centro Comercial fizera frio desde o princípio. Agora sob os últimos raios oblíquos do sol o ar gélido no poente penetrava nos ossos dos homens. Kronski sapateava e dava palmadas com as mãos uma na outra.

- Capaz de gelar os tomates de um macaco de bronze

- foi o seu comentário.

O imediato não mostrava sinais de desconforto.

- Pensa naqueles pobres diabos que ainda ali estão.

- Depois: - Olha! - Pela primeira vez a sua voz erguia-se perceptivelmente. - Olha para ali! Está a sair vazio!

O saco de lona saía a oscilar da janela. Ninguém o retinha. Pelo seu próprio peso principiou a deslizar ao longo da imensa curva descendente, cada vez mais depressa, mais depressa, balançando, sacudindo-se como uma coisa louca...

- Oh, Santo Deus! - exclamou o imediato. - Acabou-se - Estava a apontar.

Como uma serpente, o pesado cabo de apoio deslizou através da janela, com a extremidade a agitar-se em conseqüência do peso dos nós que ainda se conservavam intactos depois de o cabo propriamente ter sido derretido pelo calor da viga-mestra a que estivera amarrado. Principiou uma queda infindável.

- Afastem-se! - disse o imediato, e ele próprio saltou para o lado quando o pesado cabo fustigou furiosamente o seu poste de amarração no terraço. Depois imobilizou-se.

O imediato tentou ver através das janelas da Sala da Torre. Estendeu a mão.

- Binóculo.

Esteve em silêncio a estudar a sala através das lentes e depois deixou o binóculo cair suspenso da correia que tinha em volta do pescoço.

Ergueu lentamente o walkie-talkie.

- Terraço para o atrelado.

- O atrelado à escuta. - Era a voz de Nat. A voz do imediato conservou-se inexpressiva.

- O cabo partiu-se. Encontrarão o saco de lona caído aí em baixo. Vazio.

Nat murmurou baixinho:

- Oh, meu Deus!

- Não tem importância - disse o imediato. - Não consigo ver nenhum sinal de vida lá na sala. Penso que se acabou tudo. - Uma pausa. - Fizemos o melhor que pudemos - declarou-, mas não foi o suficiente.

Eram 20, 41 h. Tinham decorrido quatro horas e dezoito minutos desde o momento da explosão.

 

                   EPÍLOGO

Caminhavam em silêncio no frio enregelante do anoitecer, quarteirão atrás de quarteirão, sem destino, ambos imersos nos seus próprios pensamentos.

Pararam por fim, como se obedecessem a um sinal inaudível, e olharam para trás.

A agulha da grande torre colhia o último raio da luz diurna. Abaixo, a estrutura incandescente fulgia na escuridão que se adensava. Como um tição depois de extintas as chamas, já não parecia contorcer-se.

- O imediato disse - murmurou Nat - "o melhor que pudemos, mas não foi o suficiente." - A sua voz era contida, raivosa. - Talvez...

- Acabou-se - atalhou Patty. - Esquece o que se passou e continua para diante.

- Para diante? Para onde?

- Simplesmente para diante. - A voz de Patty era doce. - Para diante, não para trás. Não há regresso possível. -Fez uma pausa. -Tudo o que aconteceu... ficou para trás de nós. Tudo.

Recomeçaram a andar. Juntos.

   

                                                                                Richard Martin Stern

 

 

                      

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