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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


INFERNO NO BAIRRO CHINÊS / Alar Benet
INFERNO NO BAIRRO CHINÊS / Alar Benet

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

INFERNO NO BAIRRO CHINÊS

 

Em Chinatown, bairro que abrigava os mais perigosos gangsters, uma luta entre os dois maiores traficantes, é o inicio de uma guerra, que não perdoava ninguém. No meio deste caos, um viciado e uma mulher que enganava a todos tiveram suas vidas entrelaçadas e talvez isso fosse à salvação de ambos...

 

Peter Cochano, frequentador habitual do Ás de Paus, uma taberna com pretensões a clube no­turno, teve a atenção despertada por um índio ves­tido de branco, mocassins da mesma cor e coberto com o clássico "sarape" mexicano. Sempre o encon­trava ali ao entrar, noite após noite, sentado na cal­çada, com as costas apoiadas na parede. Era um mastigador contumaz de folhas de coca, pouco se importando com o que acontecia à sua volta, apa­nhando folhas e mais folhas da planta do bolso, em gestos maquinais, que enfiava na boca, juntando às que já mastigara.

Desejando investigar a que se dedicava o índio, Peter bateu-lhe com o pé num lado.

— Ei! Que está fazendo?

O homem continuou mastigando furiosamente e o "gangster" precisou bater com mais força, para que ele erguesse a cabeça.

— Siga seu caminho!

— Gostaria de ganhar alguns dólares?

— Agora não. Mais tarde.

— Está bem. Quando terminar, entre e pro­cure por mim.

O índio não respondeu. Cochano sabia que, tão logo ele sentisse os efeitos da cocaína no organismo, em vez de dormir como acontece com os viciados no ópio, ficaria ainda com mais disposição para rea­lizar trabalhos duros. Preferia a fome, a sede, o can­saço. Durante o tempo em que permanecera na América do Sul, fora comissionado por várias em­presas de mineração a fim de instalar postos de ven­das das folhas de coca à entrada dos poços. Embora isso arruinasse a saúde dos trabalhadores, em com­pensação àqueles homens trabalhariam como má­quinas, sem o menor esforço aparente.

Entrou no cabaré, não acreditando que o viciado se lembrasse de sua proposta. Talvez a ambição lhe despertasse a memória.

— Olá, Peter. Não temos mesas vagas. Quer vir para a minha?

O "gangster" virou-se para quem o cumprimen­tara. Era uma mulher de uns trinta anos, envelhe­cida prematuramente.

— Obrigado Brenda. Esperava por mim?

— Esperava. Atrasou, hem? O que houve? Boa coisa?

— Apenas em projeto.

Atravessaram a sala, cuja pista dançava alguns casais, numa atmosfera carregada de fumaça dos cigarros, praticamente irrespirável. Acomoda­ram-se, perto do tablado ocupado por uma orquestra de jazz.

A mulher foi até o balcão e trouxe duas taças e uma garrafa. Explicou ao voltar:

— Os garçons são insuficientes. Meia Chinatown parece ter marcado encontro aqui.

— As bebidas são baratas e todos preferem gastar menos.

— Um grande negócio o seu, Cochano.

O homem olhou para ela, sem pestanejar.

— Não entendi.

— É inútil fingir. Fiquei sabendo por casuali­dade, mas isso não vem ao caso. A que mais se de­dica? Não tive êxito em minhas averiguações.

— Segredo profissional. Não confio em você, Brenda.

— Fez muito bem em colocar um testa de ferro à frente do Ás de Paus. A polícia anda louca para agarrá-lo. Alcide Pella, seu sócio, é um boca­do vivo. Ei, que está olhando? Para aquele índio?

— Sim. Preciso falar com ele. Leve-o a meu reservado.

— Não sou garçonete.

— Mas é minha amiga. Por favor, faça isso.

— Bem, agora é outra coisa...

Peter Cochano sumiu por uma porta, cujo lado se postava um indivíduo de aparência abrutalhada, que o cumprimentou com um aceno. Pre­vendo o que pudesse acontecer futuramente, não que­ria que ninguém o visse com o índio mexicano.

Abriu o reservado e fechou a porta atrás de si. Ali era seu quartel general, o lugar em que pla­nejava as operações escusas que o vinham enrique­cendo. Seus homens guardavam o estabelecimento para protegê-lo das "gangs" inimigas e agentes se­cretos do governo. O compartimento não era am­plo, mas fora arrumado com gosto e conforto. Na esquerda ao fundo, um armário escondia a saída se­creta. Junto a ele, havia sua mesa de trabalho. Três poltronas de couro, uma mesinha de centro e meia dúzia de cadeiras, completavam o mobiliário. Nas paredes, fotografias de Al Capone e Dillinger, con­siderados por Cochano os "reis do crime".

Sentou-se numa poltrona e acendia um cigarro no momento em que bateram à porta. Abriu-a e dei­xou que Brenda e o índio entrassem. A mulher ia sair, mas ele ordenou:

— Pode ficar. Talvez precise de você.

— Depende do que for.

— Nenhuma das mulheres que conheço servi­rá tão bem como você. Sabe ser uma dama quando quer e talvez meus negócios a interessem.

— Obrigada. Vou pensar no assunto.

— Como é seu nome, amigo?

Com voz rouca, o cocainômano respondeu:

— Jim Brewer. E você?

— Peter Cochano. Nasceu no México?

— Não. Sou inglês. Quando criança, meus pais levaram-me para Chihuahua. Você falou em ganhar alguns dólares. Preciso de dinheiro para comprar folhas. Farei o que quiser.

— Assim é que gosto. Está em São Francisco há muito tempo?

— Alguns meses. Atravessei a fronteira sem documentos, pelo deserto de Cila. Um homem acor­dou-me quando dormia e apunhalei-o. Consegui fu­gir e tenho roubado aqui e ali, principalmente es­trangeiros.

— Onde se hospeda?

— Num lugar diferente a cada dia. Como re­parou em mim?

— Quero que faça desordem num cabaré e lute com um sujeito. Vencer ou perder não impor­ta, entendeu? Pagarei cinquenta dólares.

— Aceito.

— Espere-me aqui, Brenda. Trarei um de meus ternos para ele. Do que está rindo?

— Adivinho suas intenções. Hank Deering?

— Espertinha! Ele se julga invencível, mas Jim Brewer vai acabar com essa pose toda. Agora, conversemos nós dois.

— Mas ele o matará o... — ia mencionar o índio, mas calou a boca.

— Você ignora o que faz um homem, sob os efeitos da coca! Fique aqui. Preciso de sua colabo­ração. . .

 

Os ocupantes das mesas próximas à do temível chefão ficaram mudos de assombros e o mesmo aconteceu aos demais frequentadores costumeiros do cabaré de Hank Deering. Era um homenzarrão de ombros largos, com uma poderosa musculatura que infun­dia pavor, mas Jim Brewer insistiu:

— Quero dançar com sua companheira.

O "gangster" ia levantar-se com violência, mas Brenda Lytton puxou-lhe o braço.

— Está bêbedo e não sabe o que diz. Não bata nele! Você é o homem mais forte de Chinatown!

Fanfarrão, Deering ficou envaidecido com o elo­gio daquela mulher que frequentava todas as casas de diversões do bairro, como mais uma indesejável entre tantas. Cuspiu:

É só encostar-lhe um dedo e o coitado ro­lará pelo chão, sem a menor vontade de desafiar mais alguém.

Largou-se da mão de Brenda e um guarda-cos­tas ordenou que afastassem algumas mesas. O chefão aproximou-se bastante de Brewer.

— Tem um minuto para pedir desculpas!

— Deixe disso. Quero ver se você é tão valen­te como dizem.

— À vontade. Defenda-se! O "gangster" recuou alguns passos e Jim es­perou sua arrancada imediata, com os olhos bri­lhando de excitação.

Com um sorriso para Brenda, Hank Deering tirou o paletó e seus músculos de aço desenharam-se nitidamente, por baixo da fina camisa de seda. Atirou-se ao ataque, mas qual não foi a sua surpre­sa, ao verificar que o punho não alcançara o adver­sário! Num contra-ataque, Brewer fizera uma finta e enviara um forte direto ao fígado do fanfarrão, arrancando-lhe um gemido de dor.

O "gangster" parou por alguns segundos e es­tudou o inimigo, cuja imobilidade começava a de­sorientá-lo. Resmoneou.

— Não dançará muito!

Sorrindo com desdém, Jim Brewer replicou:

— Veremos! Já era hora de alguém cortar a crista do galo de briga de Chinatown!

Lançou o desafio co, m intenção de enfurecê-lo, pois sabia o quanto seu rival era perigoso.

Trocaram alguns socos fortes, animados pelos gritos dos espectadores. Intimamente, alguns desejavam a vitória de Jim, pois a autoridade despótica e brutal do chefão lhe granjeara numerosos inimi­gos.

Certo de que poderia dar a luta por perdida se fosse atingido por algum direto de Hank, Brewer esquivava-se com um ágil jogo de pernas, fugindo sem cessar, à espera da oportunidade que não de­morou a aparecer. Cego de ódio e movendo os bra­ços como pás de moinho, Deering quis liquidar o adversário imediatamente, mas conseguiu apenas re­ceber uma série de diretos que lhe cortaram as so­brancelhas.

Recuou, sufocando as imprecações ao ouvir os comentários dos que os rodeavam. Para Brenda Lytton ia crescendo a admiração pelo homem que era capaz de praticar tal façanha.

Hank já estava sem visão devido ao sangue, mas não queria ser humilhado na frente de seus homens. Mergulhou na direção de Jim e conseguiu derrubá-lo, segurando-o pela cintura.

Os pistoleiros de Deering assistiam à luta aten­tamente e não deram pela entrada de vários homens no cabaré. Já esperando por eles, Brenda afastou-se e tomou o caminho da porta. Assim que a atra­vessou, ouviu o pipocar de uma metralhadora. Aper­tou o passo, com o pensamento em...

Sabendo-se perdido se não reagisse, Brewer arqueou o corpo e, agarrando o "gangster" pelo pes­coço, girou para a direita. Não chegou a montá-lo, pois o matraquear da metralhadora espalhou o alar­ma geral.

Hank Deering ia levantar-se, mas seu adversá­rio não o deixou, segurando-o por um braço.

— Quieto! Levante-se e será crivado de ba­las!

Um dos atacantes virou o cano de sua metra­lhadora portátil para Hank, mas nem teve tempo de apertar o gatilho. Com uma velocidade incrível, Jim puxou um pequeno punhal que guardava numa bainha de couro à cintura e o lançou, acertando a garganta do indivíduo.

— Vamos, Hank! Corra para trás das mesas! Entrincheiraram-se rapidamente e Deering en­tregou-lhe um revólver, dizendo:

— Atire para matar. São homens de Cochano. Um traidor!

Jim abriu fogo, com uma perícia de espantar. Com três tiros liquidou três inimigos. Os guarda-cos­tas de Hank descarregaram as armas contra os agres­sores, enquanto mais tiros soavam no exterior.

Os "gangsters" recuaram precipitadamente, ou­vindo um assobio. Brewer ergueu-se para segui-los, mas Deering o conteve:

— Fugirão de carro. Devo-lhe a vida, rapaz. Quer ser meu amigo?

O rapaz afirmou com a cabeça.

— Sim. Mas ainda temos uma briga a liquidar.

— Esqueça-se dela.

Restabelecida a calma no estabelecimento e dispostos os turnos de vigilância, Hank acenou para um de seus homens e convidou o novo amigo:

— Vamos para um reservado. Não tem vonta­de de beber um drinque?

— Isso nunca se despreza.

Atravessaram um corredor e entraram num vas­to aposento com várias poltronas e uma mesa. Ao fundo um bar, de onde Hank tirou uma gar­rafa de uísque e copos. Dentro em pouco entrava um indivíduo de aspecto doentio e sorriso cruel. Era Joseph Popsky, o lugar-tenente de Deering, polo­nês refugiado, temido por todos devido à sua cruel­dade.

— Mataram dois rapazes e feriram três. Os sujeitos souberam aproveitar a ocasião oportuna. Ninguém os viu entrar.

— Você é o culpado por permitir que relaxas­sem a vigilância! Só não mando matá-lo porque preciso de você. Contudo, como castigo não terá sua parte na mercadoria que receberemos esta noite.

Joseph Popsky empalideceu, abriu a boca para responder, mas tornou a fechá-la, ouvindo que ba­tiam à porta fortemente.

— Abro?

— Sim.

Um chinês entrou no reservado, apertando o ombro esquerdo com as duas mãos. Deixou-se cair numa poltrona. Hank foi o primeiro a falar.

— O que aconteceu, Ming?

— Fomos atacados à entrada de sua casa. As­sassinaram os que vinham comigo. Só me salvei por fingir-me de morto.

— E as drogas?

— Levaram.

Deering crispou os lábios, esforçando-os por dominar a cólera.

— Quem era? — perguntou ansioso.

— Não tive tempo de identificá-los. Ouvi­mos tiros quando vínhamos chegando e imaginamos que fosse alguma briga de rua. Ao verificarmos que o tiroteio era aqui dentro, procuramos voltar atrás, mas foi inútil. Uma rajada matou meus auxiliares e fui ferido. Permaneci imóvel e senti que me tira­vam os pacotes que escondera nos bolsos internos. Após várias descargas e um período de silêncio, eu ainda estava no chão. Alguns carros aproximaram-se e ouvi comentários satisfeitos. Foi depois que os automóveis arrancaram, que me levantei, imaginando se teriam revistado também os que conduziam o resto das drogas. Tinham revistado. Já aqui dentro, procurei por você inutilmente, até que o barman indicou onde se encontrava. Cinquenta mil dólares perdidos! Como poderiam saber?

— Cochano dispõe de uma vasta rede de es­pionagem. Ordenei que três homens permanecessem na porta, mas quando comecei a brigar, largaram tudo para contemplar o espetáculo... Coincidência demais!

— Pensei o mesmo, chefe — disse Joseph Popsky. — Esse sujeito é um traidor!

Apontou para Jim Brewer, que bebia seu uísque aos golinhos, como se nada tivesse a ver com o diálogo. Hank Deering aproximou-se dele.

— Não fica aborrecido com a acusação? O jovem ergueu a cabeça, intrigado.

— Que acusação? Eu pensava apenas num bom punhado de folhas de coca. Logo poderei com­prá-las.

— Com que dinheiro?

— Com o dinheiro que vou receber de Peter Cochano. Os três homens entreolharam-se, parecendo não acreditar no que ouviam. O polaco fez menção de atirar-se contra o indivíduo que confessava sua culpa com tanta ingenuidade, mas Deering não per­mitiu.

— Deixemos que Jim se explique. Foi ele que o enviou para brigar comigo?

— Sim.

— Cochano é seu amigo?

— Conversei com ele pela primeira vez esta noite. Perguntou-me se eu queria ganhar cinquenta dólares e mencionou um fanfarrão seu inimigo, a quem desejava deixar em ridículo diante dos com­panheiros. Já fui boxeador e, apesar de minha apa­rência fora de forma, posso perfeitamente trocar socos com qualquer um. Foi a mais honesta propos­ta que já recebi em Chinatown. Dar ou receber uma surra. Nada entendo de "gangs" e o assunto não me interessa. Dentro em pouco irei receber meu dinheiro no Ás de Paus.

Hank Deering gabava-se de conhecer os ho­mens e percebeu que aquele não o enganava.

— Como se chama?

— Jim Brewer.

Meditou por alguns minutos e, virando-se para o chinês ferido, trajando corretamente à moda ociden­tal, indagou:

— Que me diz Wal Ming?

— Ele não mente.

— E você, Popsky?

— Acho que deve ser liquidado, mesmo di­zendo a verdade.

A resposta do polaco não deixou Jim inquieto e acendeu seu cigarro calmamente, com pulso firme.

— Não. — decidiu Hank. — Salvou-me a vida. Quer trabalhar para mim, Brewer?

— Agora não. Quando o dinheiro terminar, virei procurá-lo e farei o que você mandar. Posso ir embora?

— Sim.

Deering apertou a mão de Jim e este se dirigiu para a porta. Antes de abri-la, virou-se, tirou do bolso traseiro das calças o revólver que o "gangs­ter" lhe entregara e o depositou sobre a mesa.

— Tome. Não gosto das armas de fogo. Prefiro os punhais, que são menos barulhentos.

— Dou-lhe o meu de presente. O que você ti­nha, ficou na garganta do sujeito que queria me matar...

Hank estendeu a Jim seu punhal com cabo de madeira entalhada. Sem mais comentários, Brewer saiu, cruzando-se com um capanga de Deering.

— Uma patrulha da Metropolitana acaba de chegar.

— Preciso ir embora.

— Seguindo este corredor, encontrará uma janela que dá para um pátio.

— Porque me ajuda?

— Admiro quem tem coragem de enfrentar o chefe. Meu nome é Robert Hurley.

Continuou seu caminho, a fim de comunicar a chegada das autoridades ao chefe.

Dentro em pouco Jim estava na Avenida da ín­dia, dirigindo-se para o Ás de Paus em passos apres­sados.

Brenda Lytton deixou sua mesa e aproximou-se dele.

— Olá, Jim. Meus parabéns. Não pensei que lutasse tão bem.

— Nem tanto. E Cochano?

— Em seu reservado. Os rapazes disseram que você os enfrentou. É verdade?

— Apenas me defendi para não ser assassina­do. Mereço esse dinheiro e pretendo recebê-lo! Obri­gado pelo interesse.

— Não se incomoda se o acompanho? Lembra­rei a Cochano o que prometeu. Talvez já se tenha esquecido...

— Faça como quiser.

Sem dar importância à mulher que o seguia Jim entrou no reservado de Peter. Encontrou-o em com­panhia de Alcide Pella, seu homem de confiança, que ficou de pé ao vê-lo entrar. Brewer procurou uma cadeira e sentou-se sem convite. Franzindo o cenho, Cochano avisou:

— Acostume-se a pedir licença. Posso consi­derá-lo um inimigo e...

Não precisava dizer mais, porém, Jim fez ou­vidos de surdo.

— Venho atrás do "meu".

— E ainda ousa pedir?

— Porque não? Fui contratado para surrar um indivíduo. Foi o que fiz e muito bem. Brenda pode testemunhar, pois assistiu a tudo. Mereço meus cinquenta dólares.

A mulher assentiu com a cabeça, sem deixar de fitar o italiano Alcide Pella, cuja direita estava muito próxima do coldre de ombro.

— Como conseguiu escapar com vida?

— Defendi a casa contra os que atacavam. Eram seus homens?

— Sim.

— Pois eu não sabia desse detalhe. Você não me comunicou seus planos. E então, vai entregar os cinquenta dólares?

Petter Cochano trocou um olhar com seu ho­mem de confiança. Pella não chegou a empunhar a automática. Brenda apontava-lhe uma Browning que tirara da bolsa, com cujo fecho simulava brincar.

— É melhor ficar quieto, Alcide. Posso perfu­rar uma moeda a cinquenta metros. Vire-se de cos­tas! — Como ele vacilasse, ordenou firme: — Vamos!

O sócio de Peter obedeceu, enquanto ela o de­sarmava, apoderando-se de uma pistola com cano provido de silenciador. Entregou-a a Brewer, ironizando:

— Tomaram todas as precauções. Você ama­nheceria morto em qualquer beco. Não o julgo tão miserável a ponto de matar um homem por causa de cinquenta dólares, Peter. Qual era o verdadeiro motivo?

— Nenhum — mentiu o "gangster", cínico. — Estou surpreendido com sua atitude, menina.

Ela sorriu sarcasticamente.

— Talvez eu tenha feito um mau juízo de você. Caso isso lhe interesse, saiba que seus homens foram reco­nhecidos, Peter. Tão estúpidos, que atacaram com o rosto descoberto. Pague-nos o que nos deve e merecemos.

Brewer guardou a arma de Pella num bolso do paletó. Brenda continuava apontando a Browning para os bandidos. Peter apanhou várias notas e pas­sou-as a ela.

— Não pretendia ludibriá-los.

— Ainda bem. Contudo, acho melhor você to­mar precauções, mesmo sem haver perigo. Sua frase favorita, não? Note que sigo seus ensinamentos ao pé da letra.

Peter replicou seriamente:

— Não a censuro e confesso que ficaria abor­recido se você deixasse de frequentar o Ás de Paus.

— Virei amanhã. E então, Jim, vem comigo? Brewer assentiu, com os olhos semicerrados.

Cochano disse:

— Pena que lhe entregue esse dinheiro. Quan­do terminarem os efeitos da cocaína, cairá num sono pesado, tão pesado que qualquer vagabundo poderá arrebatar-lhe os dólares, isso, se os homens de Deering não o liquidarem antes ou...

— Ou os seus — terminou Brenda. — Provi­denciarei para que isso não aconteça.

Saíram, caminhando de costas para a porta.

O sórdido bairro chinês de São Francisco, a maior concentração oriental no mundo, à exceção dos países asiáticos, estava em plena ebulição.

As ruas transbordavam de estabelecimentos de diversões, bares e cabarés de baixa categoria, cujo comércio principal era o tráfico de drogas, prostí­bulos e o jogo.

A vida se media apenas por dinheiro ou violên­cia. Dólares para desfrutá-la e força para defendê-la.

Em sua fuga depois que deixaram a Avenida da índia, Jim e Brenda passaram diante de um dos teatros chineses que eram a atração dos turistas ávidos de emoções exóticas, não vacilando em arris­car-se ante os batedores de carteira que se escondiam nas esquinas.

Chinatown, famosa no mundo inteiro, justifica­va essa fama e era frequente o encontro de cadáve­res sobre um monte de lixo, em qualquer beco ou ruela escura.

As mais baixas paixões marcavam encontro na­queles lugares, onde a única lei imperante era a do baixo mundo.

Rostos finos e pálidos, de olhos vidrados e inex­pressivos, essa era a característica principal dos fuma­dores de ópio que procuravam o delírio passageiro de paraísos artificiais, noite após noite, Ruínas fí­sicas, seres capazes de matar por uma ampola de morfina... Nada os afastava de sua obsessão, fosse álcool ou mulheres. Para eles, havia uma única pa­lavra em seu dicionário: drogas!

Recorriam a qualquer processo para satisfazer o vício e assim, Chinatown se transformava num autêntico inferno na terra.

Pouca importância dando ao que viam Bre­wer e a moça caminhou durante meia hora até encontrarem um táxi, já fora do bairro chinês.

— Para Four Street!

— Seu amigo, está doente?

— Apenas indisposto. Apresse-se.

Brenda Lytton já traçara sua linha de conduta.

Jim lutava inutilmente contra o sono que lhe fechava as pálpebras, mas finalmente declarou-se vencido.

A moça residia no primeiro andar de um pré­dio de três pavimentos, bem perto da linha do trem. Assim que o veículo parou, pediu ao chofer:

— Pode ajudar-me? Terá uma boa gorjeta.

— Não é preciso, senhora.

Era um homem corpulento e carregou Brewer às costas, chegando a um quarto modesto, no fim de uma escada estreita.

— Deite-o no sofá, por favor. Tome.

Entregou-lhe cinco dólares e o motorista reti­rou-se. Após passar o ferrolho na porta, a moça vol­tou para a saleta e ficou contemplando seu hóspe­de durante vários minutos. Em seguida, retirou tristemente para seu quarto. Despiu-se. Não tinha apetite.

Vencendo a preguiça, sentou-se diante da pen­teadeira e começou a passar um creme no rosto.

A transformação foi surpreendente e o próprio Cochano perderia a fala se pudesse observá-la. As faces precocemente enrugadas recuperaram sua frescura juvenil. Sem as falsas olheiras, o rosto era belo e ingênuo.

Enxugou-se com uma toalha, apagou a luz do abajur e entregou-se a um merecido descanso...

 

Mal ficaram sozinhos, Cochano disse a Pella:

— Felizmente você não matou Brewer, pois talvez ele nos venha a ser útil. A pequena é cora­josa. Precisa ser investigada. Em que anda envolvida?

— Talvez se limite a prestar seus favores a al­gum amiguinho generoso.

— Pois não me parece dessas. Esqueça-se dela por enquanto. Os rapazes estão de guarda?

— Sim. Nada acontecerá esta noite. Deering é astuto e procurará atacar como uma serpente. Aonde vai?

— Para casa. Telefone se houver novidades.

Abriu o armário, entrou nele e fechou a porta, desaparecendo de vista. Com a claridade de uma lanterna, caminhou por um corredor que ia dar na garagem. Lá chegando, foi cumprimentado respei­tosamente por um indivíduo que empunhava uma metralhadora portátil:

— Boa noite, chefe. Sem novidades.

— Fiquem de olhos bem abertos.

Sem dizer mais nada, entrou num Packard úl­timo tipo e deu partida no motor. Uma hora depois, estacionava diante de um bangalô na Praça da União, circundado por um jardinzinho. Buzinou para que um empregado lhe abrisse o portão e, enquanto es­perava, teve a atenção despertada por um grito.

Olhou pela janela e viu que uma mulher era espancada por um homem que, sem dúvida, procura­va arrancar-lhe a bolsa.

Sem pensar numa possível cilada, deixando-se levar por um impulso estranho até então nunca sentido, Cochano correu em auxílio da desconhe­cida.

O agressor acabava de derrubá-la ao chão, mas, temendo enfrentar o homem que se aproximava, fugiu sem conseguir o que pretendia. Em vez de persegui-lo, Peter tomou a jovem nos braços, ca­minhando de volta para sua residência. O mordomo contemplou-o com assombro. — Cuide do carro.

— Não precisa de ajuda, senhor?

— Não. Faça o que mandei.

Atravessou o "hall" decorado com magnificên­cia, tomou um corredor e chegou até a biblioteca, onde depositou cuidadosamente sua bela carga numa poltrona. Examinou-a pela primeira vez. Era alta, esbelta, e apresentava uma lesão na face.

Deu alguns passos, a fim de preparar uma bebida que a revigorasse. Ao voltar, encontrou-a observando curiosamente o aposento em que se en­contrava.

— Quem é o senhor? Para onde me trouxe? Abriu a bolsa e deu um suspiro de alívio.

— Acalme-se, senhorita. Aqui está a salvo, mas poderá ir embora quando quiser. Meu nome é Peter Cochano.

— Obrigada. Deus pagará pelo que fez por mim.

Começou a chorar desconsoladamente. Aque­le homem embrutecido, que não dava o menor valor à vida de seus semelhantes, sentiu os dedos trêmulos quando tentou acender um cigarro. Aspirou a fumaça com avidez, apanhou a taça de conhaque de sobre a mesinha e ofereceu:

— Vamos, beba. Isso a acalmará.

A jovem aceitou. Bebeu um gole e tossiu.

— Desculpe-me. É que não estou habituada...

— Isso a honra, senhorita. Posso continuar a auxiliá-la?

Ela vacilou por alguns segundos.

— Não... Já o importunei demais. Foi muito amável comigo.

Levantou-se. Cochano pediu:

— Fique aqui até refazer-se. Se a incomodo, posso deixá-la sozinha.

— Não quis ofende-lo, senhor.

Tornou a sentar-se e ele estendeu à cigar­reira.

— Fuma?

— Não.

— Em casa não permitem?

Ela não deu resposta. As lágrimas começaram a deslizar inesperadamente por suas faces, enquan­to a piedade crescia no coração insensível do "gan­gster". Que seria aquilo que o enternecia a tal ponto?

Houve uma longa pausa. Peter esmagou a pon­ta do cigarro num cinzeiro de prata, insistindo:

— Não tem família?

— Não. Mamãe morreu há uma semana e, como eu não podia continuar na casa em que mo­rávamos, vendi nossos poucos móveis, pensando em me mudar para uma pensão, até arranjar emprego.

— Compreendo.

— Meu nome é Eva Ram. O que há senhor? Cochano empalidecera. O passado penetrava em sua mente, com incrível violência. Conseguiu rea­gir:

— Nada, nada. Uma ligeira indisposição. Não venho me sentindo muito bem ultimamente.

— Quer que chame seus criados?

— Não é preciso. Seu sobrenome é alemão, engano-me?

— Acertou. Mamãe nasceu na Saxônia e foi lá que conheceu o esposo, seu primo-irmão. Portan­to, meus sobrenomes, tanto o materno como o pa­terno, são iguais. Era uma mulher muito bonita, apesar da enfermidade que a debilitava desde a mocidade. Tenho comigo uma fotografia dela. Quer vê-la?

— Gostaria de saber se é tão bonita como você. Deixe-me tratá-la assim. Poderia ser minha filha, não?

Tinha a voz trêmula. A jovem estendeu-lhe a fotografia, mas Peter não teve ânimo para contem­plá-la.

— É um retrato tirado alguns dias depois de meu nascimento.

— Seu pai ainda vive?

— Não cheguei a conhecê-lo... Morreu num acidente de aviação.

Cochano finalmente tomou coragem e observou a foto. Representava uma mulher de extraordinária beleza, embora um tanto lânguida. Eva! Por alguns momentos, o tempo pareceu recuar e ele se viu em Nova Iorque...

— Compreendo como se sente — disse por fim. — Tinham o mesmo nome?

— Sim.

— Aceita uns sanduíches? Ainda não jantei. Posso levá-la de carro até um hotel. Como é que saiu de casa tão tarde?

— Perdi a noção das horas e comecei a cho­rar. O senhor é muito bondoso.

— Ora, não tem importância.

Tocou uma campainha e dentro em pouco o mordomo aparecia.

— Sirva-nos uma ceia fria. — Assim que o homem saiu, Cochano virou-se para a jovem carinho­samente. — Conheço muita gente e talvez possa colocá-la em meu próprio escritório.

— Qual o seu ramo de negócios, Senhor Co­chano?

— Oh, vários...

— Sei escrever a máquina e...

— Formidável! — interrompeu Cochano, com fingido entusiasmo. — Ando precisando da cópia de trechos de alguns livros. Poderá começar a trabalhar amanhã.

— Mas... — começou ela a dizer.

— Está decidido. Enquanto não nos servem, conte-me tudo que sabe sobre seu pai.

— Mamãe falava muito sobre ele, pois eu vi­via insistindo nisso. Sempre dizia que fora um ho­mem digno.

Fortemente perturbado, Peter virou-se de cos­tas, mas ela não notou sua aparência alterada, de­vido à chegada do mordomo com uma bandeja.

Novamente a sós, a moça não teve coragem de romper o silêncio de Cochano que contemplava o jardim com olhar ausente, através da janela. Tos­siu timidamente.

— Desculpe-me, por favor. Lembrou uma pas­sagem triste de minha vida...

Cearam sem apetite. Peter fez perguntas sobre a mãe da jovem e ela, emocionada deu início a um relato que o comoveu ainda mais.

— Nossa vida foi difícil. Só depois que fiz dez anos pude perceber os esforços de mamãe para não sucumbirmos à miséria. Ela cantava bem e trabalhou em várias casas de espetáculos, porém sua voz se tornava dia a dia mais fraca de modo que foi obri­gada a transferir-se para várias tabernas de Nova Iorque no meio de gente grosseira que muitas vezes a censurava e vaiava. Havia também as pancadas, segundo me contou ao morrer. Fomos para São Fran­cisco, mas sua saúde abalada não suportou a via­gem. Chegou lá muito doente e...

Não conseguiu terminar, pois seus olhos en­cheram-se de lágrimas. Ele procurou animá-la:

— Vamos, precisa ser corajosa. Ainda é mui­to nova e conquistará o mundo. Prometo.

Olhou-o, entre surpresa e desconfiada. Peter corrigiu logo:

— Frisco oferece muitas oportunidades para os que querem lutar. Você ficará aqui, trabalhando em minha biblioteca. Terminou?

— Sim.

— Vou levá-la a um hotel. Tem preferência por algum?

— Para mim tanto faz, desde que seja barato.

— Então vamos a ele. Não se preocupe com o preço. Agora já tem um emprego e falaremos sobre o salário, assim que eu puder avaliar suas aptidões.

Foram para o jardim e, novamente no Packard, ele a convidou a subir. Ela obedeceu, sentando-se no banco traseiro.

— Vim causar-lhe muitos aborrecimentos, se­nhor.

— Eu precisava de uma secretária. Confio em sua honestidade.

— Obrigada. O senhor é muito generoso. Os dedos de Peter crisparam-se no volante. Atravessaram várias ruas e finalmente chega­ram à Avenida Jefferson.

— Espere aqui. Vou indagar os preços.

Desceu do carro e penetrou no vestíbulo do hotel. Um empregado cochilava no balcão. Peter falou com ele e, entregando-lhe algumas notas, des­pediu-se com um aperto de mão.

— De acordo?

— Sim. Cobraremos apenas vinte e cinco por cento da hospedagem. Avisarei a meus companhei­ros.

— Será gratificado se trabalharem direito. Ah! Mais um aviso, para apagar esse sorriso mali­cioso que começo a perceber. Eva Ram é decente. Só engendrei essa farsa para não ferir seu orgulho.

A expressão de Cochano era tão ameaçadora, que o homem empalideceu.

— Nunca duvidei disso, senhor.

— Ainda bem. Nada de favores.

O nervosismo do empregado aumentou. Peter voltou para junto da mocinha.

— Há quartos disponíveis. O dono é meu amigo e fará um preço especial para você. Suas ma­las, onde ficaram?

— Deixei-as na portaria de nossa casa.

— Mandarei um criado apanhá-las. Dê-me o endereço. E agora, até amanhã às nove.

— Que Deus lhe pague o que faz por mim!

A jovem escreveu rapidamente algumas linhas numa folha de papel, entregou a Peter e entrou no hotel. Cochano pôs o carro em movimento e vol­tou para casa, sentindo o passado voltar à men­te, em dolorosas recordações.

Eva! Recuou mentalmente no tempo. Dezenove anos. Fora sua primeira canalhice, sua iniciação na vida do crime. Ela era uma mocinha inexperiente, cuja única ambição era triunfar como cantora. Não foi difícil seduzi-la. Naquela época, era represen­tante de uma próspera firma de automóveis e pro­meteu casamento, sem a menor intenção de cumprir a palavra. Certa noite, Eva comunicou-lhe que ia ser mãe e ele, querendo fugir à responsabili­dade, fugiu para São Francisco, num dos carros da firma.

Depois... Acossado pela polícia, matou um dos agentes e procurou refúgio em Chinatown, onde preparou um habilidoso álibi que o livrou da cadei­ra elétrica. Foi condenado a dois anos de prisão, por roubo. Na penitenciária, veio a conhecer Alcide Pella e juntos planejaram associar-se, quando estivessem em liberdade.

Por que fatalidade, o destino lhe permitira conhecer inesperadamente sua própria filha?

Muitas vezes evocara Eva com remorso e tris­teza, ao longo de sua vida de criminoso. Fora a pri­meira mulher a que amara, talvez a única.

Já rico, procurou-a inutilmente em Nova Ior­que. Ao saber que morrera, sentia agora um estra­nho nó na garganta.

Ele a matara, com seu abandono irresponsá­vel! Era a única vítima que o fazia sentir o quanto era canalha.

Estremeceu, com a ideia de contar a verdade a jo­vem. Não. Seria melhor que ela continuasse a igno­rá-la, guardando uma boa lembrança do pai, em vez de odiá-lo. Tinha o mesmo nome da mãe, Eva Ram. A história do parentesco entre os esposos, sem dú­vida fora inventado por ela, a fim de dar veracidade ao sobrenome materno.

Parou o carro diante das grades de seu banga­lô e o criado indagou:

— Guardo o carro, senhor?

— Não. Vá apanhar a bagagem da Senhorita Ram. Aqui tem o endereço. A partir de amanhã, essa moça passará a ser minha secretária particular e desfrutará de toda a consideração. Virá às nove.

— Bem. Permite-me uma sugestão, senhor? — Cochano concordou com um gesto. — Não será perigoso trazer uma mulher para a casa? São curio­sas demais e. — Providencie para que ela não se ponha a investigar. Você é meu homem de confiança. Direi a Alcide Pella e aos rapazes que evitem aparecer por aqui. Como vai de saúde?

— Se não fosse pelo senhor, eu já teria mor­rido em qualquer buraco por aí.

— Você me é muito útil. Faça o que mandei.

Peter subiu as escadas entre o vestíbulo e o pavimento superior. Abriu a porta de um aposento no qual havia dois homens. Um deles cochilava numa poltrona e o outro, sentado, olhava para fora pela janela. Levantaram-se quando ele entrou.

— Nada de novidades, chefe.

— Está bem. Agora, ouçam um aviso que de­vem transmitir aos que vierem substituí-los, usem a porta de serviço. Nada de andanças pela casa, entendido?

— Perfeitamente, chefe.

— Fumem à minha saúde.

Entregou-lhes dois charutos que tirou do bolso do paletó. Um dos "gangsters" apanhou o seu, examinando-o atentamente.

— Hum... Boa marca.

Sem responder, Cochano foi para seu gabinete, transferiu a máquina de escrever portátil para a biblioteca. Levou também um bom maço de folhas de papel em branco. Depois acendeu um cigarro e examinou vários livros, escolhendo um deles.

Segurando-o, meditou na realidade, sorrindo amargamente. Precisava auxiliar sua filha, de um modo que ela não desconfiasse. Escreveu algumas li­nhas com sua esferográfica: "Copie o trecho compreendido entre as páginas cinquenta e sete e cento e dois. Virei vê-la antes de terminar o tra­balho".

Jogou fora o cigarro e preparou um uísque du­plo. Hank Deering não o preocupava. Sabia que o seu inimigo não ousaria invadir sua casa, pois a guerra limitava-se a Chinatown. Entretanto, igual a Al Capone, bastaria seus guardas er­guer uma alavanca e eletrificariam toda a grade de ferro e redondezas. Embora tivesse duas metralhado­ras prontas para entrar em ação e capazes de manter cinquenta homens à distância, no terraço do ban­galô havia um helicóptero que lhe garantiria a fuga.

Seu maior receio era que Eva descobrisse seu verdadeiro meio de vida e desistisse do emprego. Nesse caso, talvez fosse obrigado a confessar a verdade.

São Francisco era uma cidade transbordante de tentações para uma jovem bonita e sem experiência. Homens sem escrúpulos infestavam as ruas, todos os lugares. Ele era um exemplo vivo desses seres.

 

Jim Brewer acordou com uma dor de cabeça fe­nomenal. Olhou em volta, intrigado com o lugar.

Puxou a manta que lhe cobria o corpo e ficou de pé. Numa mesinha, um relógio marcava doze ho­ras. Do dia ou da noite? A claridade da janela dis­sipou suas dúvidas, ao constatar que o dia lá fora era claro e radioso.

— Sente-se mais descansado?

Virou-se assustado, sem saber quem era aquela linda jovem que entrava com um copo de leite.

— Quem é a senhorita?

— Brenda Lytton.

— Está zombando de mim. Brenda terá no mínimo mais dez anos. É irmã dela, talvez?

— Sou a própria Brenda, fique certo. Tome, antes que o leite esfrie.

— Como adivinhou?

— Depois do sono provocado por qualquer entorpecente, acorda-se com um gosto horrível na boca.

Brewer bebeu avidamente e devolveu o copo vazio.

— Obrigado. A senhorita faz muito mais do que mereço.

— Pode ser, mas não me arrisquei a deixá-lo em Chinatown, imaginando que pudessem apunha­lá-lo. Agora sou sua tesoureira. Guardei seu dinhei­ro. E então, está melhor?

— Sim, mas não entendo. . .

— Porque me disfarço? Muito simples. Em meu ramo de atividades, sou obrigada a agir dessa maneira, a fim de evitar complicações sentimen­tais. Espero que saiba guardar o meu segredo.

— Prometo. Ontem à noite parecíamos mais amigos. Não acha que assim devemos continuar?

— Concordo desde que veja em mim apenas a Brenda Lytton que já conhecia. De que ri?

— Estou sem ânimo para pensar em outra coisa além... Tem um cigarro?

— Há um maço à sua esquerda. Você é forte e não tem muita idade. Porque procura arruinar sua vida?

— Poderia fazer a mesma pergunta. Matei um homem no México.

— Não é motivo suficiente. Quanto a mim, preciso ganhar dinheiro. Muito longe daqui, na França, mantenho uma irmã num dos melhores sanatórios psiquiátricos. Há esperanças de que fi­que boa. Éramos empregadas numa loja e, quando ela adoeceu, precisei fazer o possível para que nada lhe faltasse. Os salários eram baixos e, procurando me manter envelhecida, vim para Chinatown ousadamente. Ofereceram-me empregos de garçonete, mas havia algo mais rendoso: as drogas. Comecei como intermediária entre o dono de um "ponto de fumo" e clientes que não queriam se arriscar, indo até lá. Poupei algumas centenas de dólares e com­prei a primeira partida, de modo que os lucros já foram maiores.

— E também a responsabilidade — interrom­peu Jim.

— E daí? Pude mandar minha irmã para a França, recompensada em saber que melhora a olhos vistos. Quando voltar, iremos embora daqui e pro­curaremos trabalho em qualquer outro lugar do país. Nem sei por que conto tanta coisa a você. Cochano anda intrigado sobre minhas atividades, mas nunca pensará que também sou traficante.

— Nem eu acreditaria se você não contasse. Houve um longo silêncio após aquelas palavras.

Os dois jovens entreolharam-se com simpatia.

— E sua história, Jim?

— Contarei em outra ocasião. É pior que a sua, porque os fins não justificam os meios, embora seu objetivo seja nobre. Quanto a mim... Bem, vou dei­xá-la. Já lhe dei trabalho demais.

— Espere. Vai sair com essa roupa tão desa­linhada? Vou passá-la para você. Almoce comigo. Eu gostaria de ajudá-lo.

— Será difícil. Muito obrigado pela boa in­tenção. — Olhou para o paletó, as calças e a cami­sa que Cochano lhe entregara. — A briga com Deering e uma noite dormindo sem mudar de roupa, estragaram a roupa.

— Passarei tudo em um minuto.

Saiu e voltou com uma toalha. Jim comentou com bom humor:

— Ficará como uma saia. Eu precisaria no mínimo de duas.

— Conforme-se com esta. Jogue a roupa no corredor.

Afastou-se, caminhando com graça. Brewer fez como ela indicara e, meia hora depois, o terno e a camisa pareciam outros.

— Entre, Brenda. Não é comum encontrar uma mulher como você por essas bandas.

— Amabilidade sua. A segunda porta à direi­ta do corredor dá para o banheiro. Vou preparar o almoço.

— Seria formidável uma ducha.

Uma hora depois, os dois conversavam à fren­te de um prato de ensopado.

— Tem excelente sabor — ele reconheceu.

— Não mereço o elogio, pois me limitei a es­quentar a lata de conservas. Pretende voltar a Chi­natown?

— Sim, pois encontrarei meu fornecedor de folhas de coca. Sem mastigá-las, não sou ninguém.

— Agora seria capaz de surrar Hank Deering?

— Não.

Os olhos da jovem faiscaram.

— Então... Você só é valente sob o domínio das dro­gas! Enganei-me ao julgá-lo. Pensei que fosse mais homem.

Jim fez uma careta.

— Não tem o direito de me insultar! Terminaram de comer em silêncio e Brewer saiu da mesa.

— Agora vou embora. Farei o possível para vê-la esta noite. Quer me entregar? — ela con­tou dez notas de cinco dólares, tiradas do bolso do quimono que usava.

— Tudo, não... Cobre o que achar justo.

— Sua vida?

— Tem certeza de que me matariam?

— Sim há coisas que o dinheiro não paga rapaz.

— Concordo plenamente. — Jim sorriu com cinismo. — Muito altruísmo de sua parte, se preocupando com os sofrimentos alheios. Está a par das últimas estatísticas?

Encararam-se, desafiantes.

— Sobre quê?

— Milhares de jovens enlouquecem ou enve­redam pelo caminho do crime, devido ao uso de narcóticos. Muitos não têm solução, mas há ou­tros que, se fossem privados do vício, recuperariam a saúde. Não é incomum o roubo ou assassinato por uma ampola de morfina ou algumas gramas de ópio. Eu mesmo talvez me curasse, se não encontrasse fo­lhas de coca, mas em Chinatown há vendedores em todas as esquinas, de modo que a tentação é forte demais.

— Para um espírito fraco, sim. Mas não para um...

Calou-se, pois não precisava dizer mais nada.

— Julga-me um covarde?

— Para mim, são covardes todos os que não se levantam acima de suas próprias fraquezas. Acha que sou dura? Conheço minha responsabilidade e já lhe contei os motivos.

— Injustificados. Não tem repugnância em apertar minha mão?

Estendeu à direita e Brenda Lytton perguntou também:

— E você a mim? Brewer deu uma gargalhada.

— Deixemos de lado os escrúpulos e sejamos amigos.

A mão fina da mulher juntou-se à do homem.

— Adeus.

— Até breve, Jim.

Ele saiu e Brenda entrou em seu quarto, reco­meçando o trabalho diário da maquilagem envelhecedora...

 

Eva Ram estava tão absorta em seu trabalho, que não percebeu a chegada de Peter Cochano. Era uma datilografa de grande agilidade e ele a contem­plava, de pé atrás da cadeira.

— Olá, pequena.

A jovem virou-se, assustada.

— Bom dia. Descansou bem?

— Bastante, menina. Que tal a hospedagem?

— Muito confortável e econômica. Devo-lhe muito, senhor.

— Bobagens! Alguma dúvida no trabalho?

— Nenhuma. O senhor gosta de política? Desconcertado com a pergunta inesperada, Pe­ter vacilou.

— Não... — emendou. — Não tenho re­médio senão estudá-la, a fim de preparar algumas conferências para breve. São interessantes os capí­tulos que transcreveu?

— Bastante. A obra do General Bradley, "A Soldier's Story", é conhecida universalmente.

— Pode dispor de sua tarde como quiser. Se preferir ler na biblioteca, faça corno se estivesse em sua casa. Vivo muito sozinho e, ao vê-la, imaginarei que se trata de minha filha ou irmã.

Saiu do aposento, sem ouvir as despedidas de sua eficiente secretária, que imediatamente voltou ao trabalho.

Em seu carro, foi para Chinatown, entrando na garagem pelo corredor secreto que se comunicava com o reservado do Ás de Paus. Apertou um botão e Alcide Pella não demorou a aparecer.

— Olá, Peter. Chegou muito cedo hoje.

— Precisava dar-lhe algumas ordens.

— Mais drogas?

— Não. Sente-se. O que vou falar é muito importante.

Com o rosto sério, o italiano se acomodou di­ante do chefe e companheiro. Cochano começou a falar lentamente, pesando cada palavra que anun­ciava.

— Terá cinco mil dólares de recompensa se houver êxito. Se fracassarmos, serão apenas quinhen­tos. E então? Tem toda a tarde e parte da noite para localizar o homem. Mate-o sem a menor vacilação.

— Está bem. Será que ele estará em casa?

— É quase certo. Já vai?

— Não poso perder tempo. Porque não veio antes e contou o que sabia?

— Não tive coragem. Pela amizade que me dedica, por seus interesses, e principalmente por "sua saúde", espero que seja prudente Alcide.

— Fique descansando. Onde poderei encontrá-lo em caso de necessidade Pete?

— Ficarei aqui. Só sairei depois que receber suas notícias.

 

O navio tipo "Victory", pertencente à reserva da Frota de Guerra dos Estados Unidos, partiu-se em dois envoltos em uma gigantesca labareda, seguidos por uma grande explosão. As águas da baía agita­ram-se, batendo com violência no muro de concre­to do porto. O "Liberty", carregado de víveres para a Europa, balançou perigosamente na crista de um vergalhão.

Era um espetáculo impressionante dentro da noite. As chamas elevavam-se a grande altura, ras­gando as sombras com resplendores avermelhados. O navio incendiado adernava irremediavelmente, prestes a ir a pique de vez.

Uma sirena soou e muitas outras fizeram coro, contribuindo para espelhar o alarme. Os fun­cionários do porto correram para os botes, a fim de socorrer os tripulantes do transporte, cuja parti­da para a Coréia, com um carregamento de muni­ções, fora fixada para a manhã seguinte. Os telefo­nemas eram infindáveis, pedindo socorro para a catástrofe do cais.

Com as águas mais calmas, as lanchas puderam sair. Alguém gritou:

— Vejam!

Um homem bracejava energicamente, ansioso por chegar a terra. Ao ser recolhido por um gru­po de marinheiros, exclamou:

— Obrigado! Para onde vão?

— Salvar seus companheiros.

— Não façam isso! O perigo ainda não passou.

Como se fosse uma frase profética, duas explosões trovejaram pelos ares, virando as pequenas embar­cações. Seus ocupantes, nadadores peritos, puseram-se a salvo com bastante esforço.

O navio afundava agora para sempre e as cha­mas chiavam, ao contato com a água.

No cais, o chefe de serviço contra incêndio, médicos e enfermeiras das ambulâncias, assistiram impotentes ao desaparecimento dos destroços do na­vio. Inúmeros botes partiram do "Liber­ty", convergindo para o local dos acontecimentos. Dentro em pouco, aquele ponto ficava atulhado de pequenas embarcações.

Tudo acontecera tão de repente e com tal ra­pidez, que o espanto era visível em todos os rostos. Poucos tripulantes, alguns espantosamente mutilados, puderam ser recolhidos pelos salvadores, enquanto os demais afundavam com o navio.

O inspetor chefe da Polícia Federal compare­ceu pessoalmente ao cais e, no escritório da Alfân­dega, preparou-se para interrogar o sobrevivente da catástrofe. De pé à frente de Herbert Wold, o ho­mem tremia de medo e excitação.

— Sente-se e conte o que aconteceu, sem omitir o menor detalhe. Como se chama?

— Jorge Ollen. Nasci em São Francisco e era segundo contramestre. Terminada minha guarda, contemplava a cidade, debruçado na amurada da proa, quando repentinamente me vi levantado no ar, como que suspenso por uma mão gigantesca. Mer­gulhei na água, quase sem sentidos, mas o instinto de conservação foi mais forte e nadei com ener­gia. Avistei o navio em chamas e, sabendo o que transportávamos, procurei afastar-me o mais pos­sível, até ser recolhido por uma lancha. Uma se­gunda explosão atirou-me novamente ao mar, mas por fim consegui chegar a terra.

Baixou a cabeça, acabrunhado. Trocando um significativo olhar com um agente, o inspetor pro­curou acalmá-lo.

— Esqueça rapaz. Reside aqui em Frisco?

— Sim.

— Pois vá para casa e amanhã compareça em meu gabinete. Tome meu cartão.

— Obrigado, senhor.

Jorge Ollen saiu, acompanhado por um auxi­liar de Wold.

— Porque não o prendeu, inspetor? — per­guntou um oficial da United States Armed Forces. — Contou uma história falsa. O navio era vigiado por forças de meu Departamento e as precauções tomadas anulam a possibilidade de qualquer fato fortuito. Fomos vítimas de um ato de sabotagem.

— Também acho — replicou o inspetor com a mesma calma.

— Mas então... Não compreendo sua atitu­de.

— Muito simples. Apenas um homem tinha motivos para saber a hora exata da explosão e assim, atirou-se na água, permanecendo afastado do casco, até que veio a catástrofe. Existe até a possibi­lidade de que ele subisse ao "Liberty", permanecen­do oculto no convés, a fim de jogar-se ao mar de­pois do perigo passado. Esta é a minha teoria.

Estendeu um maço de ciganos ao interlocutor. O marinheiro tirou um, acendendo-o perguntou:

— Quais são os seus planos?

— Esse indivíduo é incapaz de realizar um ato de sabotagem tão importante, por conta própria. Precisa de cúmplices e um estímulo, o dinheiro. Hoje, daqui a uma semana ou um mês, irá querer re­ceber o que lhe prometeram. Se for um membro da espionagem, entrará em contato com seu chefe ou superiores. Meus agentes não o perderão de vista, anotando todos os seus passos. Preciso con­tinuar?

O sorriso de Herbert Wold era amplo e satis­feito. O oficial das Forças Armadas dos Estados Uni­dos procurou desculpar-se.

— Compartilho de seus sentimentos rapaz — replicou Wold. — Muitos homens perderam a vida e esse navio que acabam de fazer desaparecer, faz parte do novo organismo da Administração Marí­tima do Governo. Prendendo Jorge Ollen, obtería­mos apenas um êxito parcial. O assunto diz respei­to à futura segurança das nossas instalações militares. Os senhores — virou-se para três subordinados que esperavam ordens — devem manter contato com seu companheiro, por meio do rádio portátil de onda curta. Avisem a Patrulha número um, para que tenha os carros preparados e prontos os mem­bros que farão a guarda. Devemos evitar que Jorge Ollen...

Distante dali, o contramestre do navio afundado chegou às imediações de Chinatown num táxi. Pagou a corrida ao motorista e caminhou pelas ruelas estreitas e mal iluminada.

Estava perturbado e alegre ao mesmo tempo. Com os dez mil dólares que iria receber, partiria para Chicago, para bem longe dos interrogatórios do inspetor Wold.

Chegou a Mission Street pela Avenida da Pérsia e logo se achava na Avenida da Índia. Ouvindo ru­mor de risadas e música, olhou para a direita e avis­tou um enorme estabelecimento de bebidas, uma espécie de bar e cabaré de quinta categoria. "Um traguinho viria a calhar, após tantas emoções", disse para si mesmo.

Entrou na casa, e no balcão, pediu um uísque duplo que bebeu de um gole. Saiu em seguida, ignorando que acabara de entrar no esta­belecimento de Hank Deering, detalhe que futura­mente desorientaria os federais.

Mal andou cem metros, percebeu um au­tomóvel que se aproximava a pouca velocidade. Virou-se, ouvindo um grito às suas costas. Um indi­víduo ordenava-lhe, de pé em uma porta:

— Para o chão! Para o chão!

Hesitou alguns segundos, tempo que decretou sua morte. Uma metralhadora pipocou, enviando uma saraivada mortal no peito do contramestre.

Em casos assim, geralmente um grupo de curio­sos corre ao local, atrapalhando o trabalho das au­toridades. Em Chinatown, contudo, era diferente. Todos procuravam afastar-se dali o máximo possível, de modo que, em poucos segundos, a Avenida da Índia pare­cia um deserto. Aproximou-se do cadáver, contemplando com desolação.

— Já devíamos ter imaginado...

Guardou a arma e transmitiu uma mensagem, em um moderno emissor receptor de ondas-curtas. Quinze minutos mais tarde, um automóvel freava a poucos passos do morto. Despejou quatro agentes na calçada, dois dos quais armados de me­tralhadoras.

De rosto sombrio, Herbert Wold examinou Jorge Ollen.

— Não poderia evitar?

— Eu daria a vida para que isso não aconteces­se, inspetor.

O tom lamentoso e sincero do policial dissipou a cólera do inspetor.

— Eu sei, O'Days. Como foi?

Em poucos minutos, o policial relatou ao ins­petor tudo que o contramestre fizera desde que deixara a baía. Ao terminar, Wold comentou:

— Muito significativo, o fato de ele entrar no estabelecimento de Deering. Lembrem-se deste de­talhe. Ponham o corpo no carro.

— Não vamos esperar o juiz?

— Para o inferno com tantas formalidades! — mastigou o inspetor. — Façam o que estou man­dando! Levem-no para a Chefatura da Metropoli­tana.

— E o senhor? — perguntou O'Days.

— Vou fazer uma visita. Quer me acompa­nhar?

— Era o que eu já ia pedir inspetor.

Esperaram até que o carro oficial se perdesse ao longe e então penetraram resolutamente no bar de Hank Deering. A presença de Herbert Wold cau­sou a mais viva sensação. Alguns "gangsters" apres­saram-se a procurar as sombras do tablado da or­questra enquanto outros desapareciam pela porta dos reservados.

— Estão apavorados, chefe — disse O'Days.

— Quase todos já tiveram algo a ver comigo. Estou em Frisco há quinze anos.

Um garçom fingiu ignorar a personalidade dos visitantes e perguntou, em tom amável:

— Os senhores desejam uma mesa?

— Não. Diga a Deering que desejo vê-lo.

— Seu nome?

— Alguns pistoleiros já se encarregaram de comunicá-lo. Vamos! Não gosto de perder tempo!

Intimidado pelo tom enérgico de Herbert, o empregado não esperou segunda ordem e voltou mi­nutos depois.

— Sigam-me, por favor.

Wold e O'Days atravessaram a pista de dança e chegaram a um corredor, onde Hank já os esperava.

— Prazer em vê-los — saudou e, olhando para o empregado: — Apanhe uma garrafa do melhor uísque. Entrem em meu gabinete.

O inspetor simulou não ver a mão estendida do "gangster" e, já no gabinete, encarou-o severamente:

— Falemos claro, Hank. Estou há meses sem ter notícias de você, embora tenha a certeza de que continua traficando narcóticos.

— Engano seu, inspetor. Retire-me de ne­gócios tão perigosos e agora vivo apenas dos rendi­mentos proporcionados por este cabaré.

— Refugio de bandidos, eu diria melhor.

— Ponto de vista, inspetor. Não discutiremos por isso. Sente-se.

Acomodaram-se em torno da mesa secretária, mas Herbert não pode iniciar logo o interrogatório, devido à chegada do empregado com o uísque. Mal o homem deu as costas, começou:

— Que sabe você sobre um homem chamado Jorge Ollen?

Hank encheu os copos com a bebida.

— Nada. Soda?

— Não. Escute, posso prendê-lo mesmo sem ordem judicial.

— Eu sei — replicou o "gangster", impertur­bável. — Há anos foi aprovada a lei que concede aos federais o direito de deter qualquer suspeito sem nenhum tramite ilegal.

— Exato.

— Muito bem. E que tem isso comigo? Não o imagino tão... Pouco sensato a ponto de pren­der-me apenas porque não conheço um indivíduo.

Bebeu o uísque, saboreando. Houve um bre­ve silêncio, durante o qual o O'Days ficou maravilhado com o cinismo e tranquilidade do ban­dido. Mudando o tom autoritário por outro amisto­so, o inspetor comentou:

— Ouça Deering. Para obrigá-lo a sair de São Francisco, preciso apenas ordenar que meus melhores homens vigiássemos sua organização "co­mercial". Uma revista nesta casa seria bastante in­conveniente para você. Não, não me interrompa. Enquanto centralizar suas atividades em Chinatown e sem excesso, continuarei como fui até agora. Em tro­ca desta tolerância, preciso de sua ajuda.

— Conte comigo, inspetor. Dou-lhe a minha palavra de...

— Apenas os fatos me convencem. Que sabe sobre Jorge Ollen, contramestre de um cargueiro tipo "Victory"?

— Nunca ouvi falar de tal indivíduo.

— Estava bebendo no seu bar. Cinco minutos depois, era metralhado na calçada. Pense bem. Se estiver mentindo, fique certo de que se arrependerá.

— Sua obstinação me incomoda, inspetor.

— Acredito. Dentro de uma hora, envio-lhe a fotografia do sujeito. Espalhe seus informantes, a fim de investigarem tudo o que Ollen fez antes de embarcar. Certo?

— Sim. É somente isso?

— Nada mais. Se conseguir os informes...

— Sim?

— Contará com minha estima e retribuirei o favor em momento oportuno.

— Farei o possível para satisfazê-lo, inspetor. Se fracassar, não será por minha culpa. Não experi­menta o uísque?

— Sim — e Herbert Wold esvaziou o copo, estalando a língua. — Escocês legítimo. Acertei?

— Sim.

— Muitos embaraços na Alfândega?

O inspetor deu uma gargalhada e ficou de pé, seguido obedientemente por O'Days. O policial conservava a mão no bolso, empunhando um revól­ver do regulamento, pronto a dispará-lo assim que houvesse qualquer agressão. Contudo, sua providên­cia foi inútil e o próprio Deering foi com eles até a porta.

— Adeus, Hank.

— Até a vista. Estou esperando o retrato.

— Logo o terá em mãos.

Já fora de Chinatown, tomaram um táxi e fo­ram para a Chefatura. Um agente informou:

— O governador o espera com o juiz, no gabi­nete do comissário.

— Está bem. O legista já chegou?

— Sim. Nestes momentos, está fazendo a autópsia.

— Diga-lhe que venha falar comigo antes de sair para escrever seu relatório. O'Days providen­cie a fotografia de Jorge Ollen e consiga várias có­pias de sua ficha no Departamento Marítimo.

— Perfeitamente, chefe. Cantarolando uma melodia popular, o inspetor entrou sem bater no gabinete ocupado por três homens: dois uniformizados e um com traje civil. O que era da Metropolitana ficou de pé, cumprimentando-o com cordialidade.

— Olá, Herbert. Como vão as coisas?

— Mais ou menos. O assunto está ficando complicado. Prazer em vê-lo, governador.

— Não repetiria isso, se soubesse do motivo de minha presença. Você burlou a lei consciente­mente, sabendo que somente um juiz tem autori­dade para proceder à transferência de um cadáver. Porque não esperou um pouco?

— Quatro homens são um triste reforço para enfrentar um bando organizado, na avenida da ín­dia. Temi que me arrebentassem o corpo, a fim de que não pudesse examinar os projéteis. Imagino que já estejam a par da sabotagem. Jorge Ollen, o contramestre, foi o autor material. Falta des­cobrir seus mandantes.

— Sinto muito, mas devo solicitar a seus che­fes, em Washington, que reprovem sua atitude.

— Posso poupar-lhe o trabalho, governador. Tirou o fone do gancho e pediu à telefonista:

— Ligue-me com o Conselho Nacional de Se­gurança. Obrigado.

O juiz falou então, perguntando:

— Para que vai telefonar ao Serviço Secreto?

— Ficará sabendo em seguida, juiz. Aí vem o legista. E então, que me diz Crawford?

— Morte instantânea. Cinco projéteis no pei­to, um deles no coração. Usaram um fuzil-metralhadora belga. Não estou certo quanto ao calibre. Se não precisam mais de mim, vou redigir um rela­tório com mais detalhes.

Homem de poucas palavras, Austin Crawford deixou o gabinete, no momento em que o telefone tocava. Herbert atendeu.

— Estou esperando... Washington... Falan­do o Inspetor Wold.

A seguir, narrou os últimos acontecimentos com todos os detalhes, sem omitir a queixa da auto­ridade máxima do Estado. Ao terminar ouviu aten­tamente para dizer depois:

— Sim... Obedecerei... Fale governador.

Passou o fone ao governador, mas este não pro­nunciou qualquer palavra. Ouvia-se uma voz enér­gica do fio. Ao colocar o fone no gancho, declarou, em tom despeitado:

— Julguei cumprir o meu dever.

— Não fique aborrecido comigo. Sempre me senti muito honrado com sua amizade, governador.

Controlando-se, a autoridade estendeu a mão a Wold:

— Folgo em sabê-lo, pois ambos servimos à pátria. — E virando-se para o juiz: — Senhor juiz, o secretário executivo da Central Intelligente Agency, em nome do presidente, ordenou-me que con­ceda todas as facilidades aos federais e membros do Serviço Secreto. Segundo parece, o caso é grave.

— Ainda bem. Só denunciei o fato por uma imposição do cargo que desempenho. Além do mais, tenho grande simpatia por Herbert.

O comissário da Metropolitana interveio:

— Minha atitude é a mesma dos três. Quais são os seus planos, Wold?

— Por enquanto, investigarei a vida particular do contramestre. Vivo ou morto, ele é o único ponto de ligação com nossos inimigos...

 

Houve uma nova notícia que não pôde ser escondi­da da Imprensa e provocou uma onda dos mais exaltados comentários.

Segundo comunicado do Quartel General das Forças Aéreas na Europa, dois caça a jato america­nos não tinham regressado a base em Biebelstadt. Imaginava-se que os pilotos, por motivos financeiros ou ideológicos, tivessem aterrado por trás da "corti­na de aço" soviética. Os comentaristas políticos e militares encontraram ligação entre essa traição e a sabotagem da baía, exigindo uma investigação rigoro­sa em todos aqueles que prestavam serviços nos postos de responsabilidade.

Com um sorriso satisfeito, Peter Cochano do­brou o jornal, comentando para Alcide Pella:

— Devemos ser ainda mais prudentes. Meus camaradas europeus não se descuidam. Sua ideia de liquidar Jorge Ollen foi excelente, pois assim jamais nos denunciará. Tem certeza de que os federais an­davam atrás dele?

— Absoluta. Um sujeito deu um grito, avisando-o antes de atirarmos. Felizmente fui mais rá­pido.

— Você mesmo fez o serviço?

— Sim. Não confiaria uma missão tão delica­da a outra pessoa. Se falhasse, ele talvez fosse visitar o inspetor Wold, por vingança. Ficariam de­sorientados por ele ter entrado no cabaré de Deering para um trago.

— Bem, agora cumprirei o combinado. Aqui tem os cinco mil.

Entregou um maço de notas ao cúmplice, ho­mem cujo único objetivo na vida era enriquecer. Seu coração sem lugar para sentimentos, fez com que dissesse:

— Hum... A sabotagem é mais rendosa que as drogas. Ah! Já ia esquecendo, aquele tal Jim Brewer está aí fora.

— No salão?

— Não. Na calçada, mastigando folhas de coca. Matamos?

— Por enquanto, deixe-o viver. É um sujeito inofensivo e virá pedir mais dinheiro, quando seus cinquenta dólares terminarem. Aí então...

O sorriso de Peter tornou-se cruel. Alcide Pella, cujo respeito por ele aumentara depois que descobri­ra sua dupla condição de "gangster" e sabotador a serviço de uma potência estrangeira, não teve coragem de perguntar qual o futuro destinado a Brewer.

— Deseja algo mais?

— Sim. Que reviste a casa de Brenda Lytton. Aproveite uma hora em que ela esteja aqui. Pode ser hoje. Tentarei distraí-la enquanto você vai. Ah! Envie-me mais uísque.

— Imediatamente.

Ficando sozinho, Peter Cochano apertou as têmporas entre as mãos, desejando esquecer uma realidade que o atormentava: Eva Ram.

Contemplou o retrato de Al Capone, pendura­do à parede. Apesar de sua vida de crimes, aquele homem tivera um lar, filhos, uma esposa carinhosa. Em seus momentos de descanso, sentia-se mais hu­mano junto à família. No entanto, ele Cochano, ja­mais quisera ter paz de espírito, obcecado pelo cri­me e pela espionagem.

Um empregado colocou uma garrafa de bebida na mesa e retirou-se, tão silenciosamente como en­trara. Cochano bebeu avidamente.

Se pudesse contar a Eva que ele... Não. Ela o detestaria e gostaria de continuar a protegê-la.

Bebeu uma nova dose de uísque e levantou-se, indo para o salão. Pella fez um gesto significativo, indicando-lhe a porta por onde Brenda Lytton aca­bara de aparecer. Peter foi recebê-la:

— Boa noite. Pensei que não viesse.

— Por quê? Sou tão importante assim?

— Mais do que pensa. Tenho um tempera­mento impressionável.

Ela deu uma gargalhada.

— Que seus rapazes não o ouçam, para não rirem às escondidas. Você me faz a corte como um colegial!

— Não era a isso que me referia, mas a... Bem, é melhor falarmos sentados.

Procuraram uma mesa de canto. Cochano fi­cou mudo por vários minutos, finalmente Bren­da perguntou impaciente:

— Estou intrigada com tanto mistério.

Ele não replicou, esperando que o garçom trou­xesse uma garrafa de champanhe. Encheu duas ta­ças e ofereceu uma à sua acompanhante:

— Que conceito tem de mim, Brenda? Ela olhou para ele, espantada.

— E isso faz diferença?

— Mais do que pensa. Por favor, responda sinceramente.

— Bem... Você é um produto típico de Chinatown! Vive como um lobo solitário, defendendo-se a dentadas dos próprios servidores. Caridade e gratidão são palavras que não compreende. É cruel, vingativo, ambicioso, incapaz de amar alguém... O que há? Você pediu franqueza, não?

Peter ficara de pé irritado, mas tornou a sen­tar-se.

— Talvez tenha razão, embora tudo haja mu­dado. Preciso de um conselho. Você o daria?

— Porque não?

Cochano vacilou brevemente, mas sentia-se in­clinado às confidencias, graças ao uísque ingerido. Para assombro de sua interlocutora, contou tudo sobre o caso Eva Ram, terminando:

— Não sei o que fazer. Se quisesse ajudar-me...

— De que maneira?

— Muito fácil. Se eu tivesse uma mulher de respeito dentro de casa? Poderia convencer Eva ficar, como secretária e governanta. Uma falsa his­tória...

— Não continue. Meus negócios rendem mil dólares por semana e não posso abandoná-los.

— E se eu lhe pagasse o mesmo?

— Quatro mil mensais para andar vagabun­dando? Ora, vá dormir Peter. Não sabe o que diz. Bebeu demais hoje...

— Falo sério. Se aceitar minha oferta, deixa­rá de lado todos os riscos que corre e viverá como uma dama. Talvez possa ajudar-me e guiar uma jovenzinha que acaba de perder a mãe, sentindo-se sozinha, angustiada...

A voz de Cochano tremia de emoção. Brenda duvidava se a alma daquele homem poderia con­servar um assomo de bondade.

— Está bem — disse. — Estou ouvindo.

— Vamos para o reservado. Deve aprender bem o seu papel, pois se ela descobrir qualquer golpe, eu a perderia para sempre...

Jim Brewer mastigou suas folhas de coca du­rante uma hora. Finalmente levantou-se, sacudiu o paletó com as mãos e caminhou para a Avenida da Índia, procurando o cabaré de Deering. Encontrou o proprietário da casa bebendo grandes goles de uísque numa mesa dos fundos, atento à marcha dos negócios.

Seu homem de confiança, Joseph Popsky deu alguns passos para barrar o caminho do visitante, mas o chefe ordenou:

— Deixe-o aproximar-se.

Cuspindo uma série de imprecações, o polaco afastou-se, para que Brewer chegasse até o "gangster".

— Posso sentar?

— Claro. Beba um trago, se quiser.

— Não, obrigado. Venho procurar trabalho. Um sorriso frio apareceu no rosto depravado e brutal do dono do estabelecimento.

— Os cinquenta dólares que recebeu de Co­chano já terminaram? Ou será que ele o enviou para vigiar-me?

Com as feições alteradas pela fúria, Jim der­rubou a garrafa com uma pancada e ameaçou:

— Vou amassar-lhe a cara! Nunca fui chama­do de traidor, sem pagar o insulto! Deixamos uma luta em suspenso e o desafio a continuá-la.

O "gangster" continuou impassível, para es­panto de seu homem de confiança, o qual acariciava a coronha do revólver.

— Sossegue rapaz. É lógico que eu tenho que me prevenir. Tenho algo para você. Terá mais cinquenta dólares.

— Que devo fazer?

O chefe tirou do bolso o retrato de um homem. Para facilitar-lhe o serviço, Wold o presenteara com várias cópias da fotografia de Jorge Ollen, o contramestre metralhado.

— Descubra com quem este sujeito falou, an­tes de ser morto. Pergunte a seus amigos.

— Só isso?

— Mas será difícil. Está armado?

Brewer guardara no bolso das calças a auto­mática com silenciador que Brenda tirara de Alcide Pella, mas negou:

— Não. Tenho apenas o punhal.

— Quer uma arma? Talvez o julguem indis­creto e queiram eliminá-lo.

— Não é tão fácil como parece. Me de "al­gum" por conta.

— Aí vão dez dólares.

— Obrigado. Bem, vou andando. Logo trarei notícias. Preciso comprar coca.

Deu as costas e saiu rapidamente do cabaré. No exterior, observou detidamente o retrato e diri­giu-se para o Ás de Trevo. Talvez Brenda pudesse ajudá-lo, com seu conhecimento de todos os inde­sejáveis de Chinatown, forçado pelo tráfico de drogas.

Ela não estava na parte reservada ao público. Assim que se sentou, apareceu um garçom.

— Que vai beber?

— Nada.

— Então vá embora. Para ficar, precisa gastar.

— Como queira. Traga-me então um suco de laranja. Qual é a graça?

Foi tão agressiva a sua inflexão, que o emprega­do apressou-se a trazer o que pedira.

Talvez Brenda e Cochano estivessem juntos, pois havia dois "gangsters" montando guarda na porta dos reservados. Além disso...

Suas divagações foram interrompidas com o aparecimento da pessoa a quem buscava, acompa­nhada por Peter. Não se enganara. Assim que o vi­ram, os dois caminharam em sua direção,

— Olá, Jim. Posso sentar?

— Naturalmente. E Cochano também.

— Muito obrigado — ironizou o "chefão". — Vejo que ainda ficou com algum dinheiro.

— Sim, mas a fonte é outra. Conhecem este homem?

Puxou o retrato do bolso externo do paletó, depositando-o sobre a mesa. Percebeu a intensa pa­lidez de Peter, ao deparar com o rosto do homem na fotografia.

Brenda negou:

— É a primeira vez que o vejo.

— E você?

— Digo o mesmo. Agora anda a procura de desaparecidos? A curiosidade geralmente é muito perigosa.

— Eu sei. Tentarei em outro lugar.

— Por conta de quem está investigando? Transformou-se em informante da polícia?

— De modo algum. Faço apenas um favor para meu amigo Deering.

O "gangster" estremeceu. Qual seria o inte­resse de Hank em Jorge Ollen? Decidiu averiguar.

— Não entendi Jim. É algum contrabandista?

— Não sei. "Ganhará cinquenta dólares se descobrir com quem falou este indivíduo", foi o que ele me disse há uma hora. Aceitei o encargo e foi só.

— Pediu dinheiro a ele?

— Sim. Lamento não poderem ajudar.

Fez menção de levantar-se, mas Peter não o deixou ir.

— Espere. Falarei com Alcide Pella. Afastou-se e trocou algumas palavras com o italiano, o qual se aproximou de Jim.

— Deixe-me ver o retrato... Ofereço cem dólares por ele.

— Precisarei consultar Deering.

Pella e Cochano trocaram um olhar signifi­cativo.

— Está bem. Tome as notas. Posso ficar com o retrato?

— Não, enquanto não tiver autorização de Deering.

— Tantos escrúpulos em Chinatown? Faça o que achar melhor. Talvez amanhã eu já não pense mais nisso.

— Correrei o risco.

Alcide e Peter afastaram-se, deixando Jim e Brenda sozinhos. A moça avisou:

— Fique alerta. Não torne a entrar nas casas de Cochano e Deering. Um ou outro terminarão por matá-lo. Não acredita? Observe as manobras. Vários guarda-costas estão saindo, sem dúvida para esperá-lo na rua.

— Não querem que eu descubra quem é o sujeito da foto. Começo a ficar com sono.

Brenda Lytton suplicou num murmúrio:

— Domine-se! Vai matá-lo! Fuja daqui!

— Farei o possível, mas não creio que aguente por muito tempo.

Ficou de pé, cambaleando como um bêbedo. Pella aproximou-se.

— Quer ficar para dormir aqui?

A resposta foi tão inesperada, que o italiano sobressaltou-se:

— Não. Você virá comigo, para que seus ra­pazes não me assassinem.

Enfiara o cano da automática nas costas do ita­liano, mantendo a arma com pulso firme. Ao perce­ber o que havia, Cochano quis intervir, mas o aviso de Jim interrompeu seu movimento e o dos pisto­leiros.

— Por mais rápidos que atirarem, ainda terei tempo de apertar o gatilho.

As conversas pararam de súbito e um profundo silêncio pairou no interior do cabaré. Com a deci­são estampada no rosto, Brewer chegou até a calça­da. Três homens já o esperavam, empunhando as armas, mas vacilando em atacá-lo ao verem Alcide Pella em sua companhia.

— Quietos! Deixem-no ir! — foi o aviso do italiano.

— Você virá comigo.

Caminharam por Chinatown até as proximida­des da Avenida da Índia. Jim indagou:

— Prefere uma coronhada ou irá embora sem virar a cabeça?

— A última hipótese é mais aceitável.

O italiano respirou fundo ao ouvir:

— Fora!

Brewer entrou no cabaré de Deering, com a automática pronta a entrar em ação. Joseph Popsky aproximou-se:

— Procura Hank?

— Sim.

— Espere que vou chamá-lo. Trouxe notícias do que ele deseja?

— Melhores do que você imagina.

O homem de confiança do "boss" dominou a antipatia que sentia por Jim, convidando-o a segui-lo para não perderem tempo. Em seu gabinete, Deering acolheu-o com um sorriso.

— Não o imaginei tão cedo de volta...

— Também eu pensei que não tornaria a vê-lo. Nunca estive em tamanho aperto antes.

Narrou sua aventura com simplicidade. Ao terminar, Hank disse eufórico:

— Formidável! Você é o homem de que pre­ciso. Ofereceram-lhe cem dólares pela fotografia. Posso conseguir mil! Que tem você?

— Mastiguei coca e estou morrendo de sono.

— Popsky lhe mostrará um quarto onde descansará.

— Não me liquidarão enquanto dormir?

— Não atraiçoo meus amigos e você já de­monstrou que é. Aceita trabalhar para mim, com quinhentos mensais e gratificações?

— Sim. Quero esmagar Cochano.

Suas pálpebras baixaram pesadas. Hank or­denou:

— Arranje-lhe uma cama, Joseph. Volte logo. Tenho instruções para você.

Um sorriso satisfeito passou pelo rosto do "boss". Tinha Peter nas mãos!

O polaco não demorou a voltar.

— E então, chefe?

— Sente-se. Você fará uma visitinha a Co­chano.

— Com os rapazes?

— Nada disso. Irá sozinho. Telefonarei antes, exigindo que respeitem sua vida. Escute...

 

Os "gangsters" do Ás de Trevo ficaram impressio­nados com a serenidade de Joseph Popsky, firmando os cotovelos no balcão, o homem de confi­ança de Deering pediu a Alcide Pella:

— Sirva-me um copo desse petróleo que vocês chamam de uísque e diga a Peter que vim falar com ele. Que tal a noite?

— Você deve saber, pois veio da rua.

— Cheguei de carro, mas você, em troca, deu um longo passeio... Fizeram mal, conquistando a inimizade de Jim Brewer. A tentativa de assassiná-lo vai lhes custar...

— Quanto? — interrompeu Pella.

— Direi a Cochano. Se você estiver presen­te, ficará sabendo. Esperarei aqui. Diga aos rapazes que não cometam tolices com as armas. Se aconte­cer algo comigo, serão presos como sabotadores pe­los federais.

Apesar de seu domínio próprio, Alcide não pôde evitar um tremor quase imperceptível na mão que levantava o copo de bebida.

— É muito perigoso o que está dizendo.

— Depende das circunstâncias.

Joseph Popsky virou seu uísque de só um trago e acendeu um cigarro, esperando que Pella comu­nicasse sua presença ao chefe. Não foi preciso. Avisado por um guarda-costas, o chefe do bando veio ao encontro do visitante.

— Entre. Lá dentro conversaremos mais à vontade. Venha conosco, Alcide.

Inquieto por sua sorte, Pella não vacilou em acompanhá-los. Já no reservado, Cochano falou, sem convidar o inimigo a sentar-se:

— Diga o que tem a dizer. Só mesmo um as­sunto muito grave o obrigaria a penetrar na boca do lobo.

— Exatamente. Deering quer prestar-lhe um favor em troca de... Cinquenta mil dólares.

— Porque tal importância?

— É o valor das drogas que você nos arreba­tou. Não diremos à polícia que já conheciam o contramestre Ollen. O inspetor Wold está pro­curando os promotores da explosão de um navio.

— Transformaram-se em delatores?

— Não, a menos que nos obriguem.

— Chantagem?

— Dê o nome que quiser. Tem cinco minutos para resolver.

Houve um profundo silêncio no reservado. Num rompante de cólera, Peter agarrou o inimigo pelas lapelas, mas este ficou imóvel, sob a mira de Alcide Pella.

— Pois vá dizer a seu chefe, que o matarei, assim que o vir. Não darei um dólar, entendido? Se voltar aqui, não viverá para contar.

Empurrou-o com violência, derrubando-o no chão. O polaco não fez qualquer movimento para empunhar a automática, conhecendo a rapidez de Cochano no gatilho.

Ergueu-se, com os olhos fuzilando. Contudo, o tom de sua voz foi inteiramente natural ao dizer:

— Darei seu recado, mas lamento por vocês. Posso ir embora?

Não ousava viraras costas para os inimigos.

— Se permanecer aqui mais três segundos, não sairá por seus pés!

Não precisou repetir o comentário. Uma vez sozinho Peter perguntou a Alcide:

— Porque não foi revistar a casa de Brenda?

— Enviei dois rapazes. Ela olhava a toda hora para mim.

— Que encontraram?

— Nada, nem drogas ou correspondência. Ape­nas uma bolsa com mil dólares. Apanharam o di­nheiro, para que ela se imagine visitada pelos la­drões. Ficou tudo revirado... Já saiu?

— Foi embora há algum tempo. Que acha da proposta de Hank?

— Tenho receio de opinar. Talvez tenhamos cometido um erro.

— Não. Acedendo, a chantagem continuaria indefinidamente. Aquele maldito Brewer! Não se preocupe. Fugiremos para o estrangeiro em caso de perigo. Continue a atender aos fregueses. Vou para casa. Telefone se acontecer qualquer coisa ou en­vie-me alguém com a notícia.

— Está bem.

Peter chegou até a garagem pelo corredor se­creto. Dentro em pouco, o Packard estacionava em frente a seu chalé, na Praça da União. O mordomo estava a esperá-lo.

— O que há Ellis?

— Eva saiu às três da tarde. Robert Hurley esperava na porta. Afastaram-se, conversando como dois bons amigos.

— Impossível!

— Foi o que também achei e os segui até Market Street. Ela ria com o que ele dizia. Deseja alguma coisa?

— Nada. Pode retirar-se.

Assim que o mordomo saiu, Cochano começou a meditar sobre a estranha notícia que ele lhe dera. Certamente Deering descobrira a presença da jo­vem em casa do rival e destacara um de seus ho­mens com a incumbência de cortejá-la e investigar que laços a uniam ao "gangster". Poderia também tentar suborná-la, transformando-a em sua infor­mante... Não, isso nunca. Cochano jamais per­mitiria. Brenda Lytton seria sua salvação. Falaria com Eva na manhã seguinte...

 

— Você tem toda a liberdade de aceitar ou não, porém, eu gostaria que acompanhasse minha irmã pela cidade, ao menos durante o primeiro mês. E então?

— Atenderei com prazer — replicou a jovem. — Será uma maneira de retribuir tantas gentilezas que recebi do senhor. — Já copiei estes capítulos. Que faço agora?

— Vá descansar. Hoje ficará para almoçar co­nosco. Minha irmã chega ao trem de uma hora, e irei esperá-la. Não peço para acompanhar-me, porque como sabe, a estação é tem muita gente. Pode dar umas voltas pelo jardim ou ler.

— Lerei um pouco. Já vai?

— Sim, até logo.

Em seu automóvel, Peter dirigiu-se para a re­sidência de Brenda Lytton. Ela já o esperava.

— Cheguei cedo demais?

— Quase meia hora, mas não tem importân­cia. Ontem à noite assaltaram minha casa e fui roubada em mil dólares. Não sei se devo apresen­tar queixa à polícia.

— Deixe disso. Começaremos a investigar e... É um conselho sincero. Precisa de dinheiro?

— Sem dúvida.

— Posso antecipar um mês de salário hoje à tarde. Não me convida para um drinque?

O breve diálogo acontecia no pequeno vestíbulo. Já acomodado numa poltrona, Cochano contou a Brenda o que seu mordomo lhe informara e pediu sua opinião.

— Finja ignorar o que há. Eu investigarei a verdade. Não será difícil conquistar a amizade dessa jovem.

— Você nunca teve alguém em sua vida?

— Faltou tempo para o amor. Soda?

— Não. Seco.

Entregou-lhe um copo com uísque até a metade.

— Alguma mudança de planos? — quis saber.

— Nenhuma. Devemos evitar que Eva des­confie da farsa, pois, a pequena é bastante inteligente.

— Saiu ao pai...

Arrependeu-se imediatamente da ironia, mas era tarde.

— Pensa exatamente o contrário de mim, não?

— Desculpe. Não queria ofendê-lo. Porque não lhe conta a verdade e parte para a Europa? Isso resolveria tudo.

Peter baixou a cabeça, pesaroso.

— Não posso. É impossível abandonar São Francisco nesse momento. E então, vamos? Daremos uma volta pela cidade e aproveita­remos o lindo sol da manhã.

Já no Packard, passaram por Fourt Street e Avenida Market. Cruzaram à frente do hospital Lot e alcançaram Thirteenth, que desemboca em Frederich Street e esta, por sua vez, no Colden Gate, o maravilhoso parque que abriga gigantescas palmei­ras e coníferas.

Percorreram em silêncio as vias destinadas aos veículos. A jovem perguntou subitamente:

— Você quer mesmo a sua filha ou pretende apenas acalmar a consciência, portando-se de um modo digno em relação a ela?

— Seu julgamento é muito generoso e fico grato. Acredito que o primeiro ato decente em minha vida foi quando a livrei do ataque de um desconhecido. Porque tive esse impulso? Nunca sa­berei. A verdade é que algo mais forte sacudiu a dureza de meu coração e procurei socorrer alguém mais fraco. Depois o passado voltou com força, fazendo-me ver que a vida cujo único atrati­vo é o da lei primitiva, a do mais forte, constitui uma pesada carga. Infelizmente, ninguém pode desmanchar em horas o que praticou durante anos. É uma pena! Estou cansado da luta.

Por alguns momentos, Brenda Lytton contem­plou as mãos crispadas do homem ao volante. Seria sincero?

— Você ainda é jovem. Fuja com sua filha.

— Talvez isso seja realidade dentro em pouco, mas agora é impossível. Jamais fui traidor. Fiz uma promessa e devo cumpri-la.

— Não entendi. O contrabando de drogas...

— Não se trata disso.

Arrependeu-se em seguida da insinuação, pois Cochano cravou nela as pupilas acesas pela descon­fiança. Sustentou o olhar com altivez, perguntando:

— Que tem você?

— Está na hora de voltarmos. Espero o má­ximo de sua prudência.

— Não se preocupe...

 

Ao ouvir os passos do mordomo, Eva Ram le­vantou os olhos da novela inglesa que lia. O criado trazia uma bandeja.

— Recebi instruções para trazer-lhe um co­quetel. Gosta?

— Sim, obrigada. Coloque na mesinha. Está a muitos anos trabalhando aqui?

— Dois anos senhorita. Antes, fui garçom num clu­be noturno, mas fiquei doente. O Senhor Cochano protegeu-me.

A verdade era outra. Douglas Ellis fora mem­bro da "gang" de Cochano, mas numa briga de rua, tivera um pulmão atravessado por uma bala e contraí­ra tuberculose. Como Peter precisava de um empre­gado de confiança dentro de casa, recolheu-o e, após um tratamento intensivo, instruiu-o sobre o novo cargo, cujo desempenho receberia o mesmo sa­lário dos demais membros da "gang".

— O Senhor Cochano é muito bondoso. Para mim e para o senhor, foi uma verdadeira Providência...

— Sem dúvida... Bem, vou retirar-me. Não quero molestá-la.

— Ao contrário. Nós dois servimos à mes­ma pessoa. O senhor como mordomo, e eu como secretária. Portanto, somos colegas. Sente-se e con­versaremos sobre nosso chefe. Conte-me o que o irrita, para que eu não o contrarie, sim?

Envaidecido com o tom amistoso de Eva, Dou­glas Ellis sentou-se a seu lado.

— O Senhor Cochano ocupa-se dos negócios durante quase todo o dia e não é exigente em mi­núcias. Apenas não admite infidelidade entre os seus. É esplêndido amigo, mas inexorável como inimigo.

— Não entendi bem.

— Quero dizer que ele tanto sabe premiar como castigar. Se alguém o aborrece, simplesmen­te se desfaz dessa pessoa.

— E de política, ele gosta?

— De modo algum.

— Como se chamava minha antecessora?

— O Senhor Cochano nunca teve secretária e fiquei espantado quando ele a admitiu, senhorita. Sempre costumou tomar conta pessoalmente de seus negócios. Desculpe-me a franqueza...

— Até lhe sou grata por isso. Como é a irmã dele?

— Não a conheço.

— E quanto ao almoço?

— Já o pedi a um restaurante. Conte comigo se precisar de alguma coisa.

— Digo o mesmo, Senhor Ellis.

O mordomo saiu e a jovem mergulhou na lei­tura, até ser interrompida pela buzina de um auto­móvel. Levantou-se e contemplou o jardim pela ja­nela. Ao ver Brenda Forrest, não pôde sufocar uma exclamação de assombro:

— Ela!

 

A subcentral elétrica, situada nas redondezas da Avenida da Índia, um operário caminhava por entre os enormes transformadores, examinando os quadros de controle, voltímetros e amperímetros.

Entediado, dirigiu-se depois para um aposento vizinho onde três homens o contemplaram sem ne­nhum comentário. Havia um telefone na parede.

— Nada — disse um deles. — Reparar ava­rias durante a noite é tarefa bem tediosa.

— Não cante vitória antes do tempo — re­plicou outro oferecendo um maço de cigarro aos companheiros. — Ainda não são as três da madru­gada. O pessoal aqui dorme tarde e os estabeleci­mentos baixam as portas ao nascer do sol.

— Gosto deste serviço — comentou um ter­ceiro. — A responsabilidade é menor. No centro da cidade, os endinheirados intimidam com tantas exi­gências, mas aqui podemos mandá-los para o in­ferno. Não têm amparo legal.

— Mas em troca tem a força — disse uma voz irônica, vindo da porta. — Levantem os braços!

Os quatro homens viraram-se, sobressaltados, e seu espanto não teve limites, quando depararam com dois indivíduos mascarados, com enormes re­vólveres nas mãos.

— Por onde entraram? — perguntou o chefe do grupo de consertos. — A fechadura é...

— Incapaz de resistir a uma gazua manejada com perícia. Fiquem em fila, com as mãos na nuca, voltados para a parede. Assim. Gosto dos meninos obedientes.

— Seria idiotice reagirmos. Deram um golpe inútil, pois não temos um só dólar.

Os dois assaltantes sorriram.

— Não importa. Se tiverem juízo, nada acontecerá, rapazes. Queremos que... Bem, di­remos dentro de alguns minutos.

Enquanto o "gangster" falava, seu companhei­ro amarrava as mãos de três empregados às costas, usando um arame. Ao terminar a operação, diri­giu-se ao que ficara livre:

— Quando avisarmos, você deixará Chinatown às escuras. Não tente nos enganar. Telefona­rão para cá, dizendo se obedeceram ou não.

— E se eu me recusar?

— Isso é problema seu. Seria morto e outro tomaria o seu lugar — guardou o revólver, tirando um punhal afiado. — E então?

— Obedecerei! — exclamou o ameaçado sem perda de tempo, sentindo que grossas gotas de suor lhe escorriam pela fronte.

Os invasores acomodaram-se nas cadeiras em torno da mesa. O silêncio era perturbado apenas pelo ruído distante dos transformadores. O ponteiro de segundos avançava inexoravelmente, enquanto os empregados torturavam o cérebro, procurando adi­vinhar qual seria a atitude futura daqueles homens. Sentiam-se inquietos, ante a crueldade dos "gangsters". Talvez resolvessem assassiná-los para eliminar testemunhas. Então... Para que a precaução de esconderem os rostos em lenços? Não. Não deveriam pensar em mata-los...

As conjeturas dos empregados da subcentral de Chinatown foram interrompidas por algumas pala­vras autoritárias.

— Chegou o momento. Prepare-se para agir. Onde ficam os comandos?

— Na sala de máquinas.

— Irei com você. Previno-o de que atirarei à menor reação.

— Sossegue. Não tentarei nada.

Dois minutos mais tarde, após levantar várias alavancas, o empregado virou-se para o "gangster", ao ouvi-lo perguntar:

— Pronto?

— Sim.

— Como é que as lâmpadas daqui continuam acesas?

— Já é previsto. Seria impossível consertar­mos as avarias na escuridão.

Voltaram para junto dos outros.

— Tudo feito, Al.

— Cale a boca, idiota!

Alcide Pella fulminou o imprudente com o olhar.

— Verifique as cordas e amarre o homem que ficou livre. Devemos dar o fora imediatamente. Não perca mais tempo.

— Está certo, chefe.

A campainha do telefone tocou três vezes, com breves intervalos: era o sinal combinado. Alcide Pella ergueu o fone:

— Sim. Pronto. Não demoraremos. Está bem.

Cortou os fios telefônicos, enquanto esperava que o companheiro amarrasse os tornozelos dos ope­rários. Feito isto, os dois homens abandonaram o local e, de automóvel, dirigiram-se para o ponto em que teria lugar uma das mais audaciosas operações criminosas de todos os tempos.

 

O helicóptero baixou suavemente, até roçar o telhado de uma casa, em meio a mais completa es­curidão.

Um indivíduo saltou do aparelho, preso por uma corda na cintura, que alguém sustinha do inte­rior do helicóptero.

Da maleta que levava na mão direita, tirou dois pacotes escuros que introduziu numa claraboia, após cortar sua vidraça com um diamante. Murmurou, avisando:

— Preciso deslizar mais.

Caminhou pelo telhado e deixou-se cair, sem­pre suspenso pela corda. Oscilou no ar por alguns segundos, mas recuperou o equilíbrio com ajuda dos pés. Olhou para baixo, avaliando a altura dos dois pavimentos que o separavam do solo.

Uma claridade vacilante escapava do interior do cabaré de Hank Deering. Certamente os empre­gados tinham colocado velas nas mesas, até que a Companhia reparasse o defeito nas linhas. O silên­cio era profundo no primeiro andar, reservado aos jogos, mas as janelas também deixavam escapar uma tênue claridade. O pavimento superior se acha­va imerso na mais absoluta escuridão, enquanto a casa era vigiada pelos "gangsters".

Grudou um pouco de massa numa vidraça que cortou como a da claraboia, depositando-a no peitoril. Em seguida penetrou num aposento e colocou outro dos pacotes escuros, apressando-se a sair. Com as mãos livres, chegou com mais facilidade e sem arranhões, junto aos companheiros.

— Sem novidades, chefe.

— Está bem.

Peter Cochano pilotava o helicóptero e iniciou a retirada na maior velocidade possível de voo. Den­tro em pouco pousava no alto de seu chalé da Praça da União.

— Continuem montando guarda — disse a seus homens. — Preciso ser visto.

Tomou seu Packard e dirigiu-se a um dos mais famosos clubes noturnos da cidade, onde Brenda Lytton e Eva Ram já o esperavam.

Enquanto isso, um espaço era tomado por uma série de explosões, na Avenida da Índia. A rua fi­cou coberta de telhados e cacos de vidro, e o quar­tel-general de Hank Deering era tomado pelas chamas, ardendo furiosamente.

Mais uma vez, as portas do inferno abriam-se em Chinatown.

Em poucos minutos, o fogo assumiu propor­ções assustadoras. Os primeiros a sair do cabaré foram varridos por uma rajada de metralhadora, pois os "gangsters" do Ás de Paus cercavam o local, dispostos a liquidar os inimigos para sempre. As armas automáticas trovejavam sem cessar.

Gritos de dor e vitória, chamas devoradoras que ameaçavam propagar-se a tudo.

De bruços no assoalho do cabaré, Deering gri­tou para Popsky:

— Verifique se bloquearam a saída de emer­gência!

O polaco arrastou-se no chão para cumprir a ordem. Brewer saíra para telefonar ao corpo de bombeiros e à polícia. Informou ao voltar:

— O aparelho não funciona. Cochano cuida de todos os detalhes. Que faremos?

Hank virou-se para ele.

— Tem medo?

— Eu? Onde há bombas de mão? Serei o primeiro.

— Não é preciso, Jim. Talvez tenhamos fuga pela porta dos fundos. Aquele miserável do Peter!

Essa última esperança também falharia, quan­do Popsky regressou, anunciando lugubremente:

— Estamos encurralados!

A confusão era indescritível no interior do ca­baré. As mulheres gritavam e os frequentadores habituais, certos de que a morte aguardava na rua, cercavam os empregados, suplicando aos gritos que os tirassem dali antes que morressem queimados.

Percebendo que só com calma escapariam do fim, Deering ordenou a seu homem de confiança:

— Reúna os rapazes no reservado e deixe dois de guarda! Não temos um segundo a perder.

Entrou no gabinete seguido por Jim a iluminar com uma vela. Três homens seguiram atrás. Cinco minutos depois, Hank começou:

— Ainda ignoro como aconteceu a explosão. Certamente algum traidor ou.

— Um helicóptero — completou Brewer. — Logo que as luzes se apagaram, julguei ouvir um ruído de pás, rodando nos ares. Como as mulheres logo começaram a gritar, pedindo luz, não pôde verificar ao certo o que havia.

— Talvez nos tenham bombardeado com lí­quido incendiário. O fato é que não podemos perma­necer mais tempo aqui. Que fazer?

Jim tomou novamente a palavra.

— Abriremos caminho com bombas de mão. Talvez a metade morra, mas se não agirmos com rapidez, nenhum de nós ficará vivo.

Um murmúrio de aprovação indicou que todos concordavam. Joseph Popsky saiu do reservado, voltando pouco mais tarde com uma caixa de gra­nadas. Os "gangsters" rechearam os bolsos com os cilindros metálicos e Brewer, sem esperar que o seguissem, chegou até o salão em que continuava a gritaria:

— Silêncio! Silêncio!

Seu tom enérgico causou efeito e os gritos cessaram.

— Vamos sair à força. Procurem salvar-se, amparados pela fumaça e explosões.

Arrastou-se para a porta principal e, naquela posição, atirou uma granada num ponto da calçada fronteira, origem do tiroteio mais intenso. Sem dar tempo aos inimigos para voltarem a si da surpresa, repetiu a operação, quando sentiu alguém tocar-lhe num ombro. Era Deering.

— Agiremos em massa — disse o chefão. — Amanhã estarei à sua espera, em casa de Wal Ming.

— Certo. Agora precisamos silenciar as metralhadoras.

Com uma temeridade perto da loucura, Jim ficou de pé, atirou novas granadas e correu colado à parede da casa, iluminada fantasmagoricamente pelas chamas. Mal percorreu alguns metros, atirou-se ao chão segundos antes do pipocar de uma me­tralhadora. As balas cravaram na parede e Brewer, guiando-se por suas labaredas, atirou outra granada naquela direção. Novas explosões, enchendo o ar com sua barulheira infernal. Hank Deering e os outros membros do bando atacaram nesse mo­mento.

O estrondo era inacreditável. Um torvelinho de gente atirou Jim ao chão novamente, mas talvez isso lhe salvasse a vida. Ao ficar de pé, viu uma mulher que caía ao seu lado, com o corpo varado pelos projéteis. Seu grito de dor pareceu despertá-lo, incitando-o a fugir na hora em que já se ouviam ao longe as sirenas dos carros da Patrulha Móvel, atraí­dos pelo barulho da batalha.

Pretendeu entrar num bar, mas todos os es­tabelecimentos tinham corrido as portas, distanciando-se da luta. Os faróis dos carros policiais já es­tavam à vista.

Encurralado, Jim olhou em torno. A esquina formada pela Rua da Missão ficava a uns dez metros e ele correu, introduzindo-se apressadamente numa porta que um homem ia fechar.

— Fora daqui!

Esgrimindo a automática, Jim ameaçou o que queria opor-se à sua salvação:

— Não me obrigue a matá-lo! Feche a porta e diga-me por onde posso escapar!

Amedrontado o indivíduo obedeceu.

— Mais ao fundo há um pátio que se comuni­ca com outro prédio. Por ele, irá sair na Avenida da Pérsia.

Dez minutos mais tarde, Jim Brewer afastava-se de Chinatown, antes que a polícia cercasse o bairro por suas principais artérias.

Para onde ir? Sorriu ao pensar na resposta.

Chamou um táxi e deu ao motorista o endere­ço de Brenda Lytton, em Fourt Street.

Apertou várias vezes a campainha, sem conse­guir resposta. Dominado por um trágico pressenti­mento, arrombou a porta com sua própria gazua e revistou os aposentos, cheio de angústia. Um sus­piro brotou de seu peito, ao constatar que se enga­nara. Por um instante, chegara a temer encontrá-la morta.

Esperaria por ela. Na cozinha, encontrou san­duíches, pão e uma garrafa de leite. Saciou o ape­tite, fumou um cigarro e sentou-se no gabinete, adormecendo sem se dar conta.

 

Envergando um "smoking" impecável, Peter perguntou a um garçom que se aproximava, solícito:

— A mesa do Senhor Cochano, por favor.

O empregado conduziu-o a uma fileira lateral e Eva Ram levantou-se respeitosamente, vendo-o chegar.

— Demorei muito?

— Nem tanto — replicou Brenda. — As atrações são interessantes e sua secretária, uma jo­vem encantadora. Que horas são?

— Quase três e meia. Menos um minuto.

— O mesmo amante da exatidão. Convida-me para dançar?

— Com muito gosto mana.

Saíram para a pista do luxuoso clube da Avenida Market, dançando aos acordes de blue.

— Como vou indo em meu papel, Peter?

— Às mil maravilhas. Também eu não espe­rava outra coisa de você. É uma mulher admirável.

— E você muito galanteador. O que há? Tem as mãos trêmulas.

Ao olhar na mesma direção de Cochano, Bren­da percebeu que Eva se levantara e conversava com um desconhecido. Sentiu-se estremecer com as som­brias palavras de Peter.

— Serei forçado a matá-lo!

— Quem é ele?

— Robert Hunley, um dos homens de Hank Deering, que vive num constante assedio a Eva. Desconfio que seu chefe incumba de averiguar quem é ela ou procurar conquistá-la.

— Quem com ferro ferem, com ferro será ferido.

Os dedos de Peter agarraram com incrível violência na cintura de Brenda, fazendo-a soltar um gemido abafado.

— Não torne a dizer isso, se não quer que eu perca a cabeça!

— Você é um bruto!

Continuaram dançando em silêncio. Quando voltaram à mesa, era Eva quem dançava, por sua vez.

A jovem aproximou-se deles com um sorriso fe­liz no rosto ingênuo.

— Permitem-me apresentar-lhes um amigo? O Senhor Cochano, meu chefe. E este senhor é...

— Robert Hurley — declarou Peter, antes dela. — Já nos conhecemos.

— Sim — replicou o pistoleiro de Deering. — Temos o mesmo ramo de negócios. E esta senhorita, quem é?

— Brenda Cochano.

— Sua irmã, Peter?

— Sim — replicou o bandido, fulminando o outro com o olhar. — Não a conhecia?

— Não. Contudo, é muito parecida com uma velha amiga. Permitem que eu me sente à sua mesa?

Para não despertar suspeitas, Peter fingiu con­cordar e pediu outra garrafa de champanhe. Quis deixar o outro desconcertado e perguntou, com in­tenção declarada:

— Há muito que não vê Hank?

— Três dias. Pedi férias por um mês — virou-se para Eva. — Falamos sobre um dos homens mais poderosos da cidade, um competidor de seu chefe.

— Deixou de ser. Fracassou num caso im­portante.

— Duvido um pouco.

Querendo mudar aquele diálogo que começa­va a ficar importuno, Brenda Lytton interveio:

— Sirva-me outra taça de champanhe, Peter. Depois poderemos ir, não? Está ficando tarde de­mais.

— Como queira.

Cochano encheu a taça com a espumante be­bida e fez um aceno ao garçom.

— Traga-me a conta.

— Já foi paga.

— Por quem?

Robert Hurley respondeu:

— Tomei essa liberdade. Queria ter o pra­zer de convidá-los, imaginando que não se ofende­ria. Entre colegas.

O sorriso do "gangster" se tornou irônico e de­safiante. Peter precisou apelar para todo o seu autocontrole, a fim de dominar-se.

— Obrigado. Vai ficar?

— Não. Tomarei um táxi. Até amanhã, Eva.

— Até amanhã.

Já no Packard, dirigido por Cochano com mão de mestre decidiu aconselhar a jovem em tom paternal:

— A companhia de Hurley não lhe convém. Eva. É um inimigo meu e sua reputação não é das melhores. Talvez sua intenção seja inteirar-se de meus negócios em seu próprio proveito.

— Jamais mencionamos o senhor em nossas conversas. Certamente deve estar enganado em suas suposições, Senhor Cochano.

— Só vou aconselhá-la, pois você é dona de seus atos. A propósito minha irmã já lhe disse que, enquanto permanecer em São Francisco gosta­ria que você a acompanhasse, dormindo em nossa casa? Como é muito comunicativa, assusta-se com a solidão.

— Aceitarei o convite com prazer. Voltando a Robert...

— Não se preocupe — interrompeu Brenda. — Peter é muito exigente em questão de moral, mas se o rapaz parece bom para você, creio ser o suficiente.

— Obrigada. — A senhora é muito bondosa.

— Pode me tratar por você.

— Mas...

— Por favor. Assim, terei a impressão de que gosta mais de mim, querida.

Eva olhou para ela ternamente.

— Obrigada. Na verdade, sinto tanta falta de uma boa amiga!

— Soube de sua história por meu irmão. Pre­cisa enfrentar o futuro com mais coragem, Eva. Hum! Chegamos, felizmente.

Entraram no chalé e Brenda pediu que o mor­domo conduzisse a jovem a seu quarto.

— Para representar melhor a farsa — disse ela, assim que ficou a sós com Peter — arranje serviço datilográfico para Eva, amanhã. Preciso ir até meu apartamento.

— Assim farei. Que achou dela?

— Uma grande pequena. Cedo ou tarde des­cobrirá a verdade, e então será muito mais difícil perdoá-lo. Quer que eu lhe conte?

— Por ora, não. Às vezes penso em despedi-la, não pensar mais nela, mas algo que jamais senti, grita que não devo acrescentar outra canalhice às muitas em minha vida de crimes.

— Isso é com você. Até amanhã.

Não querendo prolongar a conversa Brenda Lytton foi para seu quarto um prolongamento do de Eva, mas separado por uma cortina que ocultava um meio arco de separação entre o enorme aposento.

 

O abrir a porta de seu apartamento, Brenda parou sobressaltada, segurando a automática. Ouvira um ruído distante e percebeu que alguém usava o banheiro.

Chegou até lá e bateu à porta:

— Quem está aí?

Repetiu duas vezes, até conseguir resposta:

— Sou eu, Brewer. Felizmente você voltou. Eu já pensava incendiar São Francisco. Vá prepa­rando o desjejum...

Aquele homem era de um descaramento extraordinário. Não tão irritada como gostaria, sentou-se numa poltrona do gabinete, onde Jim foi cumprimentá-la, cinco minutos depois, em mangas de camisa. Brenda passou os olhos admirados pelo corpo que se desenhava sob o tecido, musculoso e bem proporcionados.

— Não preciso dizer que fique à vontade.

— Não seja irônica. Ontem à noite me livrei de Peter e da Polícia por verdadeiro milagre. Ainda não sabe do que houve?

Intrigada, ela pediu para que ele contasse.

— Nem sei como conseguimos escapar — co­mentou ao terminar o relato. — Onde esteve esse tempo todo?

— Interessado?

— Sim. Devo protegê-la. Salvou-me a vida e... Brenda deu uma gargalhada sonora.

— Não continue. Nem da primeira nem da segunda vez, você estava realmente embriagado pela coca.

— Da primeira vez, sim. Mas na segunda, compreendi a gravidade da situação e limitei-me a mascar folhas inofensivas. Graças a isso é que con­tinuo vivo.

As palavras de Jim transbordavam de sincerida­de e ela, grata àquela prova de confiança, narrou-lhe o passado de Cochano e o papel que desem­penhava em sua casa. Perguntou:

— Qual é o seu jogo?

— E o seu?

— Uma pergunta não responde outra. Não é direito.

— Talvez, mas você só procura dinheiro, ao introduzir-se na "família" de Cochano?

— Exatamente.

— Não acredito. Quem é você na realidade?

— A que já conhece. E você?

— Um malfeitor vulgar. Porque não faz uns sanduíches? Se tirasse esses cremes que lhe enfei­tam o rosto, eu poderia admirá-la à vontade.

— Muito gentil. Farei sua vontade e, além disso, meus poros precisam descansar. Agora, diga-me, por onde entrou?

— Pela porta, como todo mundo. Apenas usei uma gazua, demonstrando que na verdade não pas­so de um ladrão. Duvida?

— Sim. Há certa nobreza em você. Bem... Encontrará manteiga e suco de frutas na geladeira. Faça as honras da casa.

Brenda Lytton entrou em seu quarto, enquan­to Jim preparava os sanduíches na cozinha. Meia hora depois, estavam prontos para saciar a fome. Contemplando a jovem, Brewer comentou:

— Gostaria de não ser um delinquente. Pode­ria pedir que me deixasse ficar ao seu lado para sempre.

Ela preferiu levar a frase na brincadeira, mas foi impossível, quando viu angústia, pesar e arrependimento nas pupilas de seu companheiro.

— Por favor! — suplicou. — Não tenho tem­po para pensar em mim.

Comeram em silêncio. Levantando-se, ele ves­tiu o paletó que pendurara numa cadeira e estendeu a mão a Brenda.

— Adeus. Creio que será difícil um novo en­contro, Brenda. Tentarei localizar Deering, para ajudá-lo a esmagar Cochano.

Saiu e ela o contemplou da janela, vendo-o afas­tar-se por Fourt Street, em direção ao cais central.

* * *

Em seu gabinete, Herbert Wold estudava as notas facilitadas horas antes por Cerald O'Days, seu mais valioso auxiliar na polícia federal, quando a campainha do telefone tocou. Atendeu.

— Quem fala? Sim. Farei como diz...

Examinou o aparelho gravador que, quando li­gado ao telefone, registraria qualquer diálogo à sua vontade. Ligou-o.

— Comece...

À medida que ouvia, o rosto de Wold expres­sava os mais diversos sentimentos que o animavam. Dúvida, inquietação, alegria... Um "clique" me­tálico do outro lado do fio, o fez constatar que seu interlocutor não gostava de perder tempo.

Sem dar crédito ao que ouvira, ligou o grava­dor e escutou atentamente:

"Fala o agente M-37. Confira o código com Washington. Não deve deixar de cumprir minhas ordens em hipótese alguma. Se não o visito é por­que sou vigiado. Só providencie a detenção de Pe­ter Cochano quando eu indicar. Instrua seus agen­tes para que não o sigam. É preciso que ele se julgue a salvo. Deixe de se preocupar com o as­sunto da sabotagem na baía. Isso é conosco. Su­ponho que Hank Deering marcará um encontro com o senhor. Se assim for, procure não ser visto e di­ga-lhe que já agarrou o culpado, insistindo quantas vezes forem precisas, na inocência do "chefão" ri­val. Não confirme esta mensagem no escritório par­ticular de São Francisco. Boa sorte".

Era tudo. Se aquela chamada demorasse mais alguns minutos, Cochano e Alcide Pella teriam sido detidos. Deering telefonara, comunicando o ata­que da noite anterior e sua certeza quando à respon­sabilidade de Peter. Deixando-se levar por um pres­sentimento, o inspetor discou um número.

— Hank — perguntou.

Houve uma leve pausa, durante a qual Wold tamborilou impacientemente com os dedos na super­fície da mesa.

— Herbert falando. Tenho uma má notícia para você. Cochano é inocente.

— Convicto e confesso. Lamento por sua vingança.

— Não há possibilidades de erro. Certos fatos que você alegou não tinham ligação entre si.

— Não me esquecerei. Adeus.

Desligou e começou a passear por seu gabinete, sentindo-se nervoso e inquieto.

Cerald O'Days perguntou da porta:

— Interrompo chefe?

— Não, pode entrar. Alguma novidade para mim?

— Tenho. À hora do assalto ao cabaré da Ave­nida da Índia, Peter estava num clube noturno, em companhia de duas mulheres, uma das quais, Brenda Lytton. Que vai fazer?

— Pedir uma ligação para Washington. Não ouso ordenar que cessem de seguir esse homem.

O secretário executivo do Serviço Secreto ti­rou-lhe um peso da consciência, ao informar que M-37 era o inspetor encarregado do caso, pessoa de comprovada fidelidade.

— Isso muito me tranquiliza senhor — disse, antes de desligar. E virando-se para O'Days: — Você e seus companheiros de agora em diante esquecerão que, Cochano existe.

— Mas...

— Transmita a ordem!

— Perfeitamente, chefe.

Satisfeito, Herbert Wold acendeu um enorme charuto, distraindo-se em contemplar os ornamentos que subiam para o teto.

 

Após telefonar para Eva Ram, Robert Hurley di­rigiu-se à praça da União e sentou-se num banco de pedra entre duas árvores, decidido a esperá-la. A jovem não demorou a sair, mas Hurley não foi ao seu encontro, limitando-se a ficar de pé. Sabia que Cochano desejava eliminá-lo.

— Olá, Eva. O Peter deu licença para que saís­se hoje?

— Desde que eu estivesse de volta às seis. Comprou um camarote para o teatro esta noite. Te­mos duas horas para nós. Para onde está olhando?

— Julguei ver algo brilhando numa janela do chalé. Parecia um objeto metálico. Vamos sair da­qui sem perda de tempo.

Caminharam em passos rápidos até um ponto de táxi.

— Aonde iremos? — perguntou ela.

— Ao lago Mountain. É um lugar delicioso e preciso contar um segredo. Se não souber guardá-lo, perderei a vida.

— Você me assusta, Robert.

— Preciso dizer a verdade sobre Cochano.

— Seu rival nos negócios?

— Nunca foi, embora ele julgue que sim.

Tomaram um carro e Eva ia continuar a inter­rogá-lo, mas ele fez um sinal para calar a boca.

— Agora não.

No motorista, acabara de reconhecer um dos homens de Peter. Não pelo rosto, pois o disfarce era perfeito, mas por uma cicatriz na mão esquerda.

Com os nervos tensos, o jovem esperou até que chegaram aos jardins em torno do presídio. Quando o táxi parou nas imediações do lago, Eva não pôde conter uma exclamação de espanto. Robert empunhara sua automática com incrível rapidez e dera uma coronhada na nuca do chofer.

— Que fez você. É um...

— Cale-se. Não desça do carro!

Outro veículo aproximava-se deles. Hurley sentou no lugar do motorista sem perda de tempo, deci­dido a se esquivar da morte, cuja proximidade pres­sentia. Deu partida no motor e tomou uma das extensas alamedas para carros, na máxima velocidade. Ordenou à companheira:

— Deite no chão!

A jovem não obedeceu, continuando a olhar pela vidraça posterior. Reconhecendo o Packard de seu chefe!

Robert dirigia o carro com perícia, conseguin­do aumentar a distância entre eles e os perseguido­res, ao ganhar a Avenida Turk, entre os cemitérios Laurel Hill e Valvary. O motorista ainda inconsci­ente a seu lado, mexeu-se levemente, mas uma nova coronhada tornou a enviá-lo ao reino dos so­nhos.

— Vou parar na esquina de Lake Street com a Avenida Parker e você descerá. Volte para o chalé.

Procure mostrar-se bastante horrorizada e conte o caso a Peter e sua irmã. Faça com que não a vejam. Enquanto pensarem que você continua no carro, não atirarão.

— Por quê?

— Poderiam ter atirado no parque, mas não fizeram. Receberam ordens para agarrar-me so­zinho.

— Não!

— Faça como digo! Peço-lhe em nome... Do amor que lhe dedico.

— Robert!

— Agora! Desça ou serei morto!

A jovem obedeceu, correndo para uma porta. De seu esconderijo, viu o carro dirigido pelo homem que amava desaparecer ao longe. O Packard não demorou a passar também.

Eva Ram tomou um ônibus até a avenida Market e dali chegou caminhando, até a praça da União. No jardim, Brenda conversava animadamen­te com Cochano.

— Já de volta tão depressa?

Começou a chorar, balbuciando entre soluços:

— O senhor queria matá-lo! O senhor!

Com incrível sangue frio e cinismo, o "gangster" perguntou:

— Que aconteceu? De que me acusa?

Brenda abraçou a jovem trêmula e fitou Co­chano com rancor.

— Acalme-se, pequena. Agora está a salvo. Conte-nos tudo.

Eva demorou-se a acalmar-se. Confortada pela amizade que lhe dedicava a "irmã" de seu chefe, narrou a perseguição do Packard.

— Robert é um rapaz decente!

— Não duvido — replicou Peter. — Apenas esqueci de mencionar que esta manhã roubaram meu carro diante do Banco da Califórnia. Comuni­quei o fato à polícia. Talvez seja alguma manobra de seu amigo para que você me odeie. Como já dis­se, somos rivais nos negócios. Nada lhe acontecerá, sossegue. Vamos para dentro. Você está trêmula e um gole de conhaque fará bem. E então, con­tente agora?

— Sim. Desculpe minha acusação, Senhor Cochano.

— Eu agiria da mesma maneira, pois as provas eram contra mim... Vista um traje de noite, pois do teatro iremos diretamente ao melhor restauran­te da cidade. Ajude-a, Brenda.

Esperou que as duas saíssem, para fechar-se em seu escritório com expressão feroz. Olhou para o telefone. Discou um número.

— Peter falando... Idiotas! Vocês o deixaram escapar! Não posso confiar em ninguém!... Dispenso explicações! Quero-o morto, antes do ama­nhecer.

Desligou bruscamente, com os olhos fuzilando de raiva. Em sua narrativa, Eva Ram não esconde­ra a intenção de Hurley em revelar um segre­do. Certamente pretendia informá-la sobre os ne­gócios escusos do homem que a empregara. Ia de­nunciá-lo, antes que sua filha soubesse por outros meios. Quando? Decidiu contar a ela pessoalmen­te, nessa mesma noite.

Enfiou a chave numa gaveta da secretária, mas estranhou o fato de já encontrá-la aberta.

— Juraria que a deixei fechada — murmurou.

Sentiu-se invadir por uma vaga inquietação. Há várias semanas, o instinto lhe indicava o perigo. Era apenas um pressentimento, mas com tal intensidade, que começava a preocupar-se.

Fugir dos Estados Unidos! Afagou a ideia com deleite. Num cofre secreto, embutido na parede por trás de um quadro, tinha cerca de um milhão de dólares em joias. Se quisesse, não teria dificuldades em arranjar passagem em qualquer na­vio cargueiro, rumo à Alemanha. Seus chefes dariam autorização para abandonar o país? Prova­velmente não, a menos que houvesse um forte mo­tivo como justificativa.

O mordomo interrompeu suas reflexões, anunciando a visita de Alcide Pella.

— Mande-o entrar em seguida.

— Olá, Peter — cumprimentou o italiano — Esperava-me?

— Sente-se. Que deseja?

— Dar uma grande notícia. Os rapazes lo­calizaram o novo refúgio de Hank Deering. Juntou-se a meia dúzia de homens, entre os quais Jim Brewer. Acha que vale a pena visitá-lo?

O italiano sorriu, adivinhando o efeito de suas palavras. Oferecendo um charuto a seu colabora­dor, Cochano declarou:

— Precisamos mata-los. Não ousarão dei­xar o esconderijo durante o dia. Quem os protege?

— Wal Ming, seu fornecedor de narcóticos, a quem pensei já ter eliminado. Residem em um prédio de dois pavimentos, uma mistura de teatro chinês e "ponto de fumo".

— Escute o que vou dizer e cumpra minhas ordens ao pé da letra. Quero exterminar Deering e, para não ser apontado como suspeito, preciso de um culpado. Faça o seguinte.

Falou lentamente, desenvolvendo um velho projeto que ainda não pusera em prática devido às circunstâncias. Ao terminar, o italiano reconheceu:

— Não será difícil. Os coitados imaginam-se muito seguros.

Acendeu o charuto com um isqueiro. Peter le­vantou-se, indício de que terminara a entrevista.

— Devo sair agora. Voltarei as duas, aproxi­madamente. Venha nessa hora comunicar os resultados. Nada de fracassos!

— Farei o possível. Já agarraram Robert Hurley?

— Conseguiu iludi-los. Talvez vá ao encontro do chefe e...

— Se for assim, nós o calaremos para sem­pre. Algo mais?

— Que tenha boa sorte.

— Obrigado. Adeus.

Alcide Pella saiu e Cochano foi para o vestíbulo, ao encontro de Brenda Lytton e Eva Ram.

— Quando quiserem, podemos ir, meninas. Precisamos chamar um táxi.

Ao abrir o portão, o mordomo exclamou:

— Veja senhor!

O automóvel desaparecido parava diante do chalé e de seu interior desciam dois agentes da Metropolitana. Um deles indagou:

— O Senhor Cochano?

— Sou eu. Aonde encontraram meu carro?

— Abandonado nas imediações do bairro chinês.

— Muito obrigado. Transmitam minhas feli­citações ao inspetor por sua eficácia.

— Cumprimos o nosso dever. Quer assinar aqui, por favor?

Um policial estendeu um bloco a Cochano e este assinou no lugar indicado.

— Não disponho de tempo para convidá-los a entrar. Se não se importam, gostaria de presenteá-los com alguns dólares, para que bebam um drinque à minha saúde.

— Isso é proibido pelo regulamento. Boa noi­te, senhor.

— Adeus.

Vendo os policiais se afastarem, Brenda co­mentou, com evidente intenção:

— É confortador lidar com incorruptíveis servidores da lei. Graças a eles, São Francisco não ferve de maldade.

Peter olhou para ela, com expressão indefinível.

— Entrem. Felizmente tenho as chaves comigo.

As duas mulheres acomodaram-se no banco traseiro do carro, enquanto Cochano tomava o vo­lante, dirigindo-o com perícia.

Após atravessar a zona da cidade, destruída pelo terremoto de 1906, estacionou o veículo diante do Grande Teatro, na Avenida de São Francisco da Ca­lifórnia. De lá, saíram às nove e meia e foram cear num restaurante italiano, nas proximidades da Es­cola de Medicina. Ao terminarem, encaminharam-se para o mesmo clube noturno da noite anterior, no qual Peter já mandara reservar uma mesa.

Brenda estava singularmente pensativa e Eva olhava em todas as direções, ansiosa por avistar Robert Hurley...

 

Wal Ming instalou seu rendoso estabelecimento no número 73 de Saratoga. O primeiro andar destinava-se exclusivamente a apresentações do teatro chinês, ficando o segundo para suas inconfes­sáveis atividades de fora de lei.

A rua era das mais movimentadas de Chinatown, pois congregava os mais variados estabeleci­mentos de diversões, principalmente bares e ca­barés.

Quando Hank Deering saiu do prédio, acompa­nhado por seus homens, perscrutou as redondezas cautelosamente. Um caminhão entulhado parecia esperar pacientemente, na calçada de uma lavan­deria. Andaram durante alguns metros, dando as costas ao veículo. Foi isso que os perdeu.

Um grupo de dez indivíduos pulou do interior do caminhão, atacando-os pela retaguarda.

— Levantem os braços! — ordenou Alcide Pella.

Joseph Popsky esboçou um gesto de resistên­cia, logo cortado por um tiro que lhe despedaçou a cabeça. Praguejando e certo de que nada o salva­ria da morte se tentasse empunhar o revólver, Deering, foi o primeiro a obedecer. Jim Brewer fez o mesmo, à sua direita.

Uma vez desarmado, Pella ordenou que os dois subissem ao caminhão, sob a vigilância de quatro homens seus. Deu então a ordem final:

— Liquidem os outros!

O horrendo crime foi perpetrado a sangue frio. Os sobreviventes do ataque de Cochano ao cabaré tombaram na calçada para sempre.

O caminhão começou a rodar para fora da ci­dade, com Pella e seus homens sempre atentos a qualquer movimento dos dois prisioneiros. Hank insultou-os:

— Vocês são uns covardes!

Um "gangster" quis esmurrá-lo, mas Alcide não permitiu.

— Não de importância. — Virou-se para Brewer e entregou algumas folhas de coca, com um saquinho contendo cal: — Pegue, mastigue isso. — Como o jovem hesitasse, ordenou: — Vamos, se não quer que.

Puxou um punhal e, com isso, Jim baixou a cabeça.

— Você manda!

Obedeceu, enquanto Deering acendia um ci­garro, demonstrando sua coragem...

 

— Sentemos no refeitório do jardim, se preferir — convidou Peter. — Preciso conver­sar com vocês.

— Comigo também? — perguntou Brenda.

— Quero que você esteja presente. Eva vai passar por um rude golpe.

A jovem olhou para ele, muito pálida. Sua ima­ginação voou para o assunto que a obcecava.

— Robert Hurley morreu?

— Não sei. Também não é isso que vou men­cionar. Você o ama tanto assim?

— Mais que a tudo no mundo.

— Pois deve esquecê-lo. Hurley é um foragido da justiça, um indesejável.

— Não! — foi um grito de dor, que escapou do fundo de seu coração juvenil. — Robert é bom.

— Tanto como eu. Bem, não fiquemos de pé. Minha história é bastante longa.

Acomodaram-se em poltronas de vime, cercados por trepadeiras em flor. A lua derramava sua clari­dade no pequeno parque e Brenda imaginou se aquele homem teria coragem de pôr sua alma perversa a descoberto, diante daquela mocinha ingênua. Peter começou a falar, denotando sinceridade e emoção. Contou sua vida, e era visível seu estado de perturbação.

Eva ouvia, com olhos cheios de dor e es­panto, começando a compreender pouco a pouco.

Deliberadamente, Cochano omitiu sua paternidade até o final, procurando um golpe de efeito, o que não foi difícil conseguir. A jovem negou com ener­gia.

— Não é verdade! Meu pai era um homem bom. Mamãe sempre afirmava que era decente e ela não mentia!

Emocionado, Peter relatou seu noivado e cer­tas particularidades que finalmente a convenceram de que dizia a verdade.

Eva chorou desconsoladamente, enquanto Co­chano e Brenda acendiam seus cigarros, esperando que a jovem desabafasse.

— Agora entendo suas gentilezas, a ânsia de ocupar-me de algo que jamais o interessara, a viagem de sua irmã...

— Brenda não é minha parenta.

— Mais um engano!

— Era necessário, a fim de retê-la a meu lado, Eva.

Peter tentou tomar-lhe as mãos, dominado pela afeição, mas a mocinha começou a correr para casa, gritando:

— Não me toque! Brenda levantou-se, declarando:

— Você não precisa mais de mim, portanto, minha permanência nesta casa não faz sentido.

— Engana-se. É agora que mais necessidade tem de sua companhia. Vá lá dentro e procure convencê-la.

— De quê? De que seu pai é um homem digno e honrado?

— Pretendo refazer minha vida. Dentro em pouco partiremos dos Estados Unidos. E então, fará o que peço?

— Tentarei, mas não creio que adiante muito. O mordomo presenciara a cena de longe, sem ousar interrompê-la. Aproveitou o momento em que Brenda se afastava anunciou:

— Pella o espera no gabinete.

— Diga-lhe que irei imediatamente.

Controlando-se com esforço, Peter ocultou sua perturbação e caminhou para o gabinete. Agora compreendia finalmente muitas coisas das quais sempre zombara. O sacrifício pelos filhos, à nobreza de sentimentos, as cadeias do passado... Pella ficou impressionado com o tom áspero de sua voz:

— Quais são as notícias?

— Satisfatórias. Tudo consumado. Telefonei de uma cabine pública para a Polícia Federal a fim de comunicar o fato e desliguei sem me identificar.

— Robert Hurley estava entre os mortos?

— Não.

— É preciso que ele morra. Procurem por ele!

— Procuraremos. O que há com você? Não parece muito alegre por ter eliminado Deering e os seus.

— Pois estou contente. Apenas me sinto cansado. Amanhã conversaremos melhor em Chinatown...

Após receber a denúncia e, temendo uma cila­da, o inspetor Wold ordenou que dois carros patrulhas o acompanhassem ao quilômetro 10 da estrada de São José. Chamando Gerald O'Days, rumou para o local indicado.

— Porque não prendemos logo Alcide Pella, o homem de confiança de Cochano? As declarações dos empregados da subcentral confirmam o nome de um dos indivíduos e que começa por Al. Per­mitimos que escapem ou nos eliminem se foram mais rápidos?

Herbert mordeu os lábios, a fim de reprimir uma resposta demasiado dura a seu leal ajudante, cuja intenção era cooperar com a justiça.

— Por mim, eu agiria conforme você diz, mas. Aumente a velocidade, Joe.

O motorista pisou no acelerador, dando a im­pressão de que a estrada se tornara mais estreita.

— Quem o pressiona, chefe? — perguntou O'Days. — Trabalho sob suas ordens há muitos anos e sei que não é dos que costumam dar tré­gua aos inimigos.

— Mudemos de assunto, Gerald.

Puxou seu maço de cigarros e ofereceu um a seu ajudante, talvez pretendendo amenizar o efeito daquela resposta brusca. O federal não chegou a acendê-lo, pois o automóvel parou de repente, em meio a um ranger de freios. Wold foi o primeiro a saltar. Segundo depois, eram cercados por uma dúzia de indivíduos armados de revólveres e me­tralhadoras portáteis.

— Chegamos ao ponto indicado. Que nin­guém faça nada por conta própria. Manobre, de modo que os faróis iluminem as duas margens da estrada, Joe.

O motorista obedeceu e, ao manobrar, iluminou dois vultos caídos na valeta esquerda. Aproxima­ram-se e constataram que um deles tinha um punhal cravado nas costas. Não viam o rosto do outro.

Herbert revirou-o e não pode conter uma ex­clamação de espanto ao identificá-lo:

— Deering!

— Quem é o outro? Não está morto, mas dor­mindo, talvez vítima de algum narcótico — sugeriu O'Days.

Após examiná-lo, o inspetor declarou, erguendo-se:

— Está sob os efeitos da cocaína. Algemem-no. Se acordar durante a volta, poderá ficar peri­goso. Que quatro homens permaneçam vigiando o cadáver. Comunicaremos ao juiz. Venha comigo, Gerald. Se as impressões digitais coincidirem, o caso fica esclarecido.

— O senhor parece ter muita certeza do que diz.

— Hank era um lutador e não posso conce­ber como pode cair em semelhante emboscada, prin­cipalmente para morrer em mãos de um único indivíduo.

Meneando a cabeça em dúvida, entrou no carro policial, seguido por seu auxiliar. Mal che­gou ao gabinete, o telefone tocou.

— Já telefonaram várias vezes — explicou um sargento. — Não quiseram deixar recado.

— Está bem. — Levantou o fone. — Pode falar... Sim... Seja mais claro! Irrita-me an­dar às cegas... Não... Não me oponho... Conheço sua voz... Assim farei — enquanto desli­gava, resmungou: — Novamente M-37!

— A que se refere inspetor?

— A um fantasma, O'Days. Jamais aspire ser promovido, rapaz. Como agente, vivemos com mui­to menos responsabilidade.

— Não entendi.

— Nem é preciso. Que despertem esse in­divíduo e o tragam até aqui. Preciso interrogá-lo em particular. Cada dia que passa contém uma nova surpresa... Prefiro enfrentar criminosos a cola­borar com o Serviço Secreto! Vá fazer o que ordenei.

— Sim, senhor.

Herbert Wold acendeu um charuto, mais pelo prazer de morder a ponta, do que propriamen­te por fumar.

Uma hora depois, após uma longa conversa com o prisioneiro, ordenava cheio de perplexidade que o colocasse em uma cela do porão da chefatura, a fim de receber o comunicado dos especialistas em impressões digitais.

— As de Jim Brewer são as únicas encontra­das no punhal que matou Hank Deering. É ele o assassino...

 

Certo de que lhe seria impossível conciliar o sono, Peter continuou de pé, decidido a passar a noi­te na biblioteca. Douglas Ellis, o mordomo, ousou aconselhar.

— Precisa de repouso, chefe.

— Vá dormir se quiser — replicou o chefão, em tom grosseiro. Conhecendo o temperamento explosivo do chefe, o criado não insistiu, passando a levar-lhe uma xícara de café com intervalos de meia hora. Ora enfiado numa poltrona, ora passeando agitadamente de um lado para outro, Cochano não trocava palavra com seu fiel empregado.

— Que horas são? — perguntou numa das raras ocasiões em que falou. — Meu relógio parou.

— São seis e um quarto. Preparo-lhe o banho?

— Sim e providencie um terno de passeio.

Às sete e meia, reanimado pela água, Cochano fazia o desjejum em seu gabinete. Abriu o cofre es­condido na parede e empalideceu. O estojo das joias não estava no mesmo lugar em que costumava deixá-lo. Examinou o conteúdo, mas verificou que nada faltava. As notas estavam empilhadas no fun­do, cobertas por uma pasta com documentos.

Pensou em Brenda. Conhecendo-o, ela não se­ria capaz de traí-lo. Além do mais, o complicado mecanismo do cofre tornava impossível abri-lo por um leigo. Brenda dedicava-se apenas ao tráfico de drogas. Certamente seus nervos começavam a traí-lo.

Fechou o cofre e caminhou para o jardim. Eram oito horas de uma radiosa manhã. Brenda Lytton abordou-o no saguão:

— Bom dia, Peter.

— Olá. Levantou-se cedo, não?

— O mesmo lhe pergunto eu. Não dormiu?

— Não e nem você, pelo que vejo.

— Acertou — confessou ela. — Tenho pena dessa mocinha. Não parou de chorar a noite toda.

Cochano apertou os lábios, preocupado.

— Acha que eu deveria ir vê-la?

— Não, ainda é um pouco cedo. Vá cuidar de seus negócios calmamente, enquanto procuro im­pedir que ela vá embora. Talvez a convença a perdoá-lo.

— Conseguindo ou não, devo-lhe muito, Brenda.

— Não falemos nisso. Virá almoçar?

— Sim. Até logo.

O "gangster" saiu, tomou seu carro e foi dire­tamente para o Ás de Paus, entrando no reservado pela garagem. Encontrou Alcide Pella à sua espera, sorridente e sacudindo um exemplar da edição ma­tutina do Chronicle.

— Vamos, leia!

— Tenho dor de cabeça. Leia para mim.

O italiano não se fez de rogado e começou, com inflexão triunfal:

— "Com uma punhalada, um viciado mata um dos mais temíveis chefes de "gang" da ci­dade" — explicou: — Este é o primeiro título, vêm outros. "Jim Brewer declarou não se lembrar do que aconteceu até o momento em que foi interrogado pelo inspetor Wold." "O detido não nega que pudesse ter cometido o assassinato." "Um frequentador assíduo do cabaré de Hank Deering, em Chinatown, afirma que a vítima lutara a socos com o famoso "gangster", semanas antes".

— Posso continuar. Sem dúvida a coca deixou o homem perturbado. É inconcebível que não me acuse, procurando defender-se. Ele o reconheceu quando foi agarrado?

— Pois eu digo que a tática de Brewer é das melhores. Talvez o Tribunal se convença de que praticou o crime influenciado pela droga e não por vontade própria.

O argumento tinha peso e Peter, após ler a reportagem do redator policial do mais importante jornal de São Francisco, declarou:

— Se ele persistir nessa atitude me poupa gastos com advogado e aborrecimentos. Vamos descansar Alcide. Novidades?

— O bar dá lucros polpudos e temos reserva de drogas para um mês. Já vai?

— Sim. Quero fazer um pouco de exercício. Meia hora mais tarde, Cochano parava diante de uma loja de tecidos e comprava um calção de banho. Em seguida rumou para a costa em grande velocidade, procurando um lugar deserto, alguns quilômetros ao sul da capital.

Passou quase toda a manhã na praia. Acos­tumado a passar as noites em claro, seu organismo resistente não apresentou o menor sinal de debili­dade pela vigília da véspera.

Seus inimigos estavam mortos. Com eles foi embora seu medo de levar uma bala pe­las costas, como acontecera a tantos outros reis do crime.

Chegou ao chalé quando o relógio marcava uma e meia da tarde. Eva Ram conversava animadamen­te com Brenda, mas as duas silenciaram, percebendo que ele entrava. Peter aproximou-se da mocinha, colocou a mão direita em sua cabeça e perguntou:

— Não me odeia filha?

A pausa foi breve, mas quando ela respon­deu, tinha os lábios trêmulos:

— Não...

Peter enviou a Brenda Lytton um olhar transbordante de gratidão. Para fugir aquilo, ela anun­ciou:

— O almoço nos espera. Vamos?

— Primeiro, bebamos um coquetel. Sabe pre­pará-los, Eva?

— Não muito bem, mas tentarei.

O almoço correu em uma atmosfera feliz e ani­mada. Cochano fazia planos para o futuro.

— Pretendo levá-la à Flórida, Nova Iorque, Washington. Quando estiver comigo, quero que esqueça tudo que ficou para trás e viva ape­nas o presente.

Voltaram ao jardim e tomaram café ao ar li­vre. Douglas Ellis, o fiel mordomo, trouxe os jornais da manhã.

— Talvez queira lê-los.

Peter fulminou-o com o olhar, mas já era tar­de. Brenda apanhara um deles e exclamou fraca­mente:

— Não!

— O que há? — perguntou Cochano, solícito.

Refazendo-se, ela olhou para ele, acusadora:

— Ainda não sabe! Mataram Deering.

— Quem?

O "gangster" representava à perfeição.

— Jim Brewer é acusado do crime. Não acre­dito que você ignore a notícia.

— Pois meu espanto é tão grande como o seu. Estive muito preocupado com Eva. Deixe-me ler — e fingiu passar os olhos na reportagem que lera pela manhã.

— Inacreditável! Brewer não era homem para liquidar Hank. Só pode ter sido pelas costas.

— Ele não é um covarde!

— Limito-me a dar a mesma opinião do repór­ter. Aonde vai?

— Convencê-lo de que deve defender-se.

— Em seu lugar, eu não faria isso, Brenda. A atitude de Brewer parece a mais inteligente. Do­minado pelo narcótico, talvez o Tribunal lhe comute a pena de morte em prisão perpétua.

A ideia nascida horas antes no cérebro de Al­cide Pella, não foi suficiente para para-la e foi ao quarto, apanhar sua bolsa.

— Vá com meu carro, Brenda. Nada tenho contra esse homem. Se precisar, disponha de meu dinheiro e minha influência.

O cinismo de Peter não a enganou. Eva Ram ofereceu-se:

— Quer que a acompanhe?

— Não é preciso. Voltarei para a ceia. Tomou o automóvel do "boss" e logo sumiu de vista. Pretendia fazer uma visita ao inspetor Herbert.

Ele demorou meia hora para atende-la e, sem grandes amabilidades, foi terminante:

— Impossível conceder o que deseja. Ale­gre-se por eu não mandar deter você, pois estou bem a par de suas atividades no tráfico de drogas. Fora daqui.

— Sua gentileza é comovente — replicou ela, sem se desconcertar. — Afirmo que não partirei sem vê-lo. Posso ordenar.

— Alegando o quê?

— Apenas mencionando um código de três si­glas. Sou auxiliar de M-37 e pertenço ao Serviço Secreto.

Abriu a bolsa e, desmontando o forro, puxou uma carteirinha, exibindo-a aos olhos aturdidos do inspetor. Subitamente encolerizado, ele não se conteve:

— Acabarão me deixando louco! Que mais pretendem? Vou esquecer tudo que instruíram e meter Alcide Pella e o sujo do Cochano no fundo da cadeia!

— Modere sua linguagem ou...

— É uma ameaça?

— Ou terei de ficar à sua altura. Também conheço palavras grosseiras e sei usá-las. Como eu, o senhor deve se limitar a obedecer a M-37.

— Quem é esse agente?

— Não sei.

— Pois não acredito. Darei instruções para que a acompanhem à cela de Brewer.

— Sua sensatez me emociona, inspetor. Um policial guiou-a até uma cela.

— Entre. Quando quiser sair, bata com os dedos.

Fechou a porta. Devido à escassez de ilumi­nação, Brenda ainda levou alguns segundos para avistar o prisioneiro.

— Olá — disse ela simplesmente.

— Para que veio?

— É assim que me recebe? Pretendo prestar um favor.

— É mesmo? Pois então arranje um cigar­ro. Os meus terminaram e não tenho dinheiro para comprar outros.

Desconcertada, ela estendeu o maço.

— Fique com ele. Você matou Hank?

— Não me lembro de nada e ignoro por que estou preso.

— Deixe de fingimentos. Venho salvá-lo, Jim. Escute, menti ao contar minha história. Nunca fui criminosa, mas sim um membro do Serviço Se­creto dos Estados Unidos. Infiltrei-me em Chinatown cumprindo ordens, pois precisava averiguar quem dirigia um forte contrabando de coca. Trafi­quei em drogas.

— Agradeço sua confiança, mas acho muito exagerado seu interesse por mim. Ama-me, por acaso?

Brenda afirmou com a cabeça e com a voz:

— Sim.

Numa reação que a surpreendeu, Jim aproxi­mou-se, tomando-a pelos ombros.

— Escute Brenda, sou um homem cujo único futuro é a cadeira elétrica ou o presídio. Não valho tanto.

— Talvez, mas... Houve um momento em que julguei que gostava de mim. Um pressentimento, intuição, sabe lá...

Jim sorriu com ternura, puxou-a e bei­jou seus cabelos carinhosamente.

— E estava certa, mas é melhor que tudo ter­mine aqui.

— Usarei minha influência, suplicarei a meus superiores. Revolverei céus e terras, farei tudo...

— E não conseguiria nada. Se soubesse o bem que me fez! Agora não me importa morrer.

Brenda chorava silenciosamente e Brewer, co­movido, mordeu os lábios para sufocar as palavras que lhe subiam aos lábios, aos borbotões. Deses­perada, ela sugeriu:

— Posso deixar minha pistola com você. Se quiser fugir.

— Obrigado, querida. Não trocarei minha li­berdade pela sua. Agora, prometa-me uma coisa.

— Diga.

— Não intervenha em meu processo. Escute, o álibi de Cochano é perfeito e imagino que o de Alcide também. Talvez, se eu narrasse minha his­tória desde que cheguei a Chinatown conseguisse me livrar da morte, mas nunca de uma longa sen­tença de vinte ou trinta anos. Uma vida! A opinião pública influirá no ânimo dos jurados, se estive­rem dispostos a eliminar o "gangsterismo". Uma quadrilha já foi liquidada. Com minha morte, teriam um indesejável a menos. Seja corajosa!

— Não poderei suportar! Ele acariciou-lhe as faces.

— Asso, farei um mau juízo dos agentes do Serviço Secreto. Sempre ouvi dizer que eram gente valente, disciplinada, para quem o sacrifício é rotina na existência. Mentiria, se lhe dissesse que fiquei atônito com sua revelação. Sua dupla personalidade, graças à maquilagem, levou a ima­giná-la uma agente feminina da Metropolitana ou uma aventureira que se escondia sob um dis­farce. É consolador saber que está ao meu lado. Já mais calma Brenda prometeu:

— Hei de salvá-lo!

— Mas em troca, seria a sua perdição. Jim Brewer deve morrer. Chegou a sua hora. Bem, acho que agora deve ir embora.

Havia tanta firmeza naquelas palavras, que a jovem não ousou contrariá-lo.

— Deixe-me ficar mais um pouquinho. O inspetor não fixou hora...

— É melhor que tudo termine. Adeus, Bren­da. Não traia sua vocação e sua pátria por mim.

Acompanhou-a até a porta e ela caminhou no­vamente para o gabinete de Herbert Wold, que a esperava em companhia de Gerald O'Days.

— Vim agradecer. Fique com estes dó­lares para que não faltem cigarros ao prisioneiro.

Entregou várias notas ao inspetor e ele não pode ocultar um sorriso.

— Parece gostar muito dele.

— É um homem decente.

— Desculpe minha rudeza anterior. Disponha sempre de mim.

— O senhor é muito amável.

Apertou a mão de Wold, mas este não a apre­sentou a seu subordinado, a fim de mais tarde não ser forçado a dar explicações.

Obcecada pela ideia fixa de libertar Jim Bre­wer de um destino degradante, Brenda Lytton dirigiu-se ao chalé da Praça da União. Douglas Ellis abriu a porta.

— O patrão?

— Está em seu gabinete.

— E a senhorita?

— Lendo na biblioteca. Quem diria que era filha dele! Bem que fiquei intrigado com a súbita mudança do Cochano — emendou-se, — do Senhor Cochano, quero dizer. Agora, tudo se explica.

— Sem dúvida. Diga a ele que desejo falar-lhe.

— Não é preciso. Ele mesmo ordenou que a senhora fosse vê-lo assim que chegasse.

Peter recebeu-a com um sorriso cortês.

— Sente-se. Já tinha falado com o mordomo, adivinhando o que você pediria quando voltasse. Te­nho uma dívida com você e sei pagar o que devo. Meu advogado será encarregado da defesa de Brewer. É um homem que não me desagrada. Com a morte de Hank Deering, terminaram meus inimi­gos. Não pouparei despesas para reduzir a sentença. Estou enganado?

— Não. Sua oferta é sincera? Eu amo Jim.

— Não era preciso dizer, Brenda. Você o salvou uma vez, pouco reparando nos riscos. Quer que eu prepare sua fuga?

— Propus isso a ele, mas recusou. Não com­preendo o motivo.

— Talvez esteja saturado de viver. Quer re­almente que eu a ajude?

— E nem imagina quanto!

— Não se preocupe. Que mais é preciso?

— Só isso. Não será uma artimanha para...

Não chegou a terminar, pois Peter levantou-se com expressão grave e replicou:

— Prometo fazer o impossível para tirá-lo des­sa situação. Tomo minha filha como testemunha. É suficiente?

— Sim. Agora vou para casa. Já cumpri mi­nha missão.

— Não toda. Ainda sinto certo constran­gimento em permanecer sozinho com ela. Ficamos angustiados com os momentos de silêncio, nós dois. Quer sacrificar mais uns dias de sua liberdade? As­sim se distrairá e esquecerá um pouco as preocupa­ções. Tome o dinheiro que prometi.

Entregou-lhe um envelope, que ela guardou na bolsa sem conferir.

— E Robert Hurley? — inquiriu.

— Certamente assustou-se, pois não tornou a molestar minha filha. Foi o melhor para ele. Eu seria implacável! Conhece Los Angeles, Brenda?

— Não.

— Pretendo mostrar a Eva a "Meca" do cine­ma, além das cidades de Santa Mônica e Santa Anna. As antenas de televisão dos montes de São Bernardino merecem uma olhada. Estive lá há um mês atrás. Voltaremos logo.

— Não tenho muita vontade, mas irei. Não quero sair de São Francisco enquanto durar o pro­cesso de Jim Brewer. Quando falará com seu advo­gado?

— Agora mesmo e diante de você.

Por mais de quinze minutos, Cochano esteve conversando com o advogado pelo telefone. Deu-lhe todas as informações e avisou, antes de desligar.

— Talvez ele recuse a defesa, mas você precisa convencê-lo a colaborar. Espero-o amanhã ao meio-dia. Vai visitá-lo hoje mesmo? — de­vem ter respondido afirmativamente do outro lado do fio, pois Cochano respondeu: — Tanto melhor. Assim poderá fornecer detalhes.

— Obrigada, Peter — disse Brenda. — Você previu justamente o que receio que possa acontecer.

— Ainda é cedo para emitirmos opiniões. Quero que você esteja presente à entrevista, não só para certificar de minhas boas intenções, como também para fornecer dados ao advogado. Vá bus­car Eva. São três da tarde e chegaremos a Los Angeles às dez horas. Adequada para vermos o gran­de mundo dos astros da tela. Ficaremos em Hol­lywood até a madrugada, quando então voltaremos. Uma excursão bastante rápida e exaustiva, porém descansaremos pelo resto do dia. Amanhã inicia­rei a liquidação de meus negócios. Já ganhei dinhei­ro para viver folgadamente o resto da vida.

Brenda Lytton, agente do Serviço Se­creto, não pareceu impressionada com a notícia.

— Vou buscar Eva.

Saiu do gabinete e foi para seu quarto. Eva terminava de pentear-se, enquanto Cochano telefo­nava para Alcide Pella, marcando um encontro para a tarde seguinte. Não seria difícil chegar a um acordo com o sócio.

Apanhou uma automática de pequeno calibre numa gaveta, trocando-a por seu revólver, mais vo­lumoso. Em seguida, enfiando um punhado de notas na bolsa, dirigiu-se ao jardim, onde Douglas Ellis terminava de limpar o automóvel.

— Precisará encher novamente o tanque em São Simeão ou São Luís.

— Está bem. Aumente a vigilância enquanto eu estiver fora. Que os rapazes fiquem atentos.

Dez minutos mais tarde, o Packard abandonava o chalé da Praça da União.

 

Um mês depois, o processo de Jim Brewer chegava ao fim, embora já se soubesse a sentença ante­cipadamente. O próprio prisioneiro parecia prazeroso em acumular acusações contra si mesmo, em sensacionais declarações sobre a criminalidade em Chinatown.

A imprensa dos Estados Unidos divulgou ampla­mente o julgamento, exigindo que as autoridades eliminassem definitivamente o "gangsterismo". Consternada, Brenda Lytton se esforçou em vão para que Jim a recebesse, mas ele se recusava a compa­recer ao parlatório da prisão.

Após serem derrubados todos os argumentos do advogado de Cochano, Brewer foi condenado à pena máxima.

Eva, Peter e Brenda assistiam à sessão e saíram da sala em silêncio, dirigindo-se para o Packard. Che­garam à Praça da União sem trocar uma palavra. O ad­vogado dentro em pouco chegava também. Chama­va-se Dolan Saunders e andava perto dos cinquenta anos. Pretextando uma enxaqueca, Eva subiu para seus aposentos.

— É inconcebível tamanha obstinação! — ex­clamou Dolan.

— Digo o mesmo — concordou Cochano. — E devo ser grato a ele, pois não mencionou meu nome uma única vez. Na verdade, não havia necessidade disso, pois não precisava acusar ninguém para de­fender-se.

— Será eletrocutado! — exclamou Brenda, fora de si.

— Fizemos tudo que estava ao nosso alcance para salvá-lo.

O advogado tinha razão e um silêncio profundo dominou o ambiente. Angustiada, Brenda pediu li­cença para retirar-se e foi para o jardim. Saunders extraiu vários documentos de sua pasta, a fim de que Cochano os assinasse.

—Tudo resolvido. Receberei os passaportes dentro de dez dias. Perderei meu melhor cliente.

— Talvez, mas não o único. Que devo fazer?

— Solicitar as passagens para o navio. Não me foi possível ir até as companhias de navegação.

— Alcide fez algum comentário?

— Não. Concordou em dirigir o cabaré, cujos lucros durante um ano serão divididos entre os mem­bros da "gang". Depois disso, a casa passará para suas mãos. Depositei o dinheiro da venda da co­caína no banco.

— Formidável. E seus honorários?

— Envio a conta amanhã. Ainda tenho duas visitas a fazer. Adeus, Peter.

— Até quando quiser Dolan.

Já sozinho Cochano apanhou duas enormes pas­tas, enchendo-as de documentos, dinheiro e o estojo das joias. A seguir, fechou tudo no cofre embutido atrás do quadro e preparou-se para ir ao encontro de Eva e Brenda.

 

A vida brindara toda espécie de surpresas a Pe­ter Cochano, mas daquela vez, dois dias antes da partida para a França, precisou apoiar-se contra a pa­rede, temendo cair. Diante dele, uma mulher o contemplava atentamente.

— Você! Você! — balbuciou o "gan­gster".

— Em pessoa. De que se espanta? Parece que viu um fantasma.

Dominando-se, ele replicou.

— Sente-se. Precisamos conversar sobre mui­tas coisas. Sobre você, sobre nossa filha...

— Nasceu morta.

Cochano entrara num bar da Sétima Avenida para um aperitivo e a garçonete que o atendera era...

— Morta! Você está em São Francisco há mui­to tempo, Eva?

— Um ano apenas. Vim de Chicago. Fico sa­tisfeito em ver que se lembrava de mim. Pois eu logo o esqueci. Afinal, a vida não foi tão má para mim.

A mulher devia ter uns quarenta anos e seu rosto ainda mostravam sinais da antiga beleza. Peter crispou os punhos, furioso. Então, a que fingira ser sua filha era uma intrusa. E o retrato? Foi cate­górico:

— Você mente. Que fez da pequena?

— Repito que nasceu morta.

Uma ideia perpassou pela mente do bandido, veloz como um relâmpago:

— Você tem ficha na polícia?

— Sim. Andei envolvida num roubo de auto­móveis e cumpri pena de dois meses.

Agora tudo se explicava. Para não inquietá-la, Cochano perguntou, dominando-se:

— Onde mora?

— No número 10 da Rua Knok, terceiro an­dar, apartamento sete. Irá visitar-me?

— Quem sabe? Quando termina seu horário aqui?

— Dentro de uma hora.

— Acreditará em mim, se disser que não a esqueci?

— Não, mas agradeço a galanteria. Que vai tomar?

— Um uísque duplo. Traga o telefone para a mesa.

— Vou enviá-lo por um empregado. Minutos depois, Peter discava o número de sua casa, sendo atendido pelo mordomo.

— Diga a Brenda que quero falar com ela.

— Não para de chorar. O rádio anunciou que Brewer será eletrocutado ao anoitecer e ela está inconsolável.

— Então não a perturbe. Não me esperem. Só voltarei de madrugada.

Desligou, consultando o relógio. Eram dez e meia.

Bebeu o uísque de um só gole, sentindo-se do­minar por uma cólera surda. Chamou Eva e pagou a despesa.

— Voltarei amanhã — disse. — Agora pre­ciso ir. Tenho uma visita a fazer.

— Voltará mesmo?

— Prometido.

No Packard, em velocidade moderada, dirigiu-se às vizinhanças da Praça da União. Para consumar seu plano, precisava penetrar em casa, sem que Eva Ram ou Brenda Lytton o vissem.

Atravessou o parque a pé, enfiou uma chave no portão do jardim e atravessou-o. Não viu sinal do mordomo, certamente ocupado nos aposentos interiores.

Evitando qualquer ruído, foi até seu gabinete e abriu a porta. Eva virou-se ao pressenti-lo. O cofre embutido estava aberto de par em par.

— Olá, filha — cumprimentou Peter ironica­mente. — Parece muito entusiasmada com meus as­suntos pessoais, mas entre nós não deve haver se­gredos. Os laços de sangue tudo justificam.

Aproximou-se dela que, muito pálida, foi re­cuando, de modo a deixar a mesa entre ela e Cochano.

— Foi com sua mãe que aprendeu essa ha­bilidade que hoje demonstra? Que comovedor! Nada como a família... Sentimo-nos amparados, prote­gidos, livres de traidores. Não acha Eva?

Ela não respondeu, estudando os menores ges­tos do inimigo.

— Tenho uma grande notícia para você. Aca­bo de separar-me de sua mãe. Ressuscitou, sabe? Nem imagina o que ela me contou; que você nas­ceu morta! Você não existe compreende?

— Pretende me matar?

— Não. — replicou com ferocidade. — Como posso matar alguém que nunca viveu?

Apontou a automática ordenando:

— Afaste-se dessa gaveta. Aí dentro há um revólver. Afaste-se ou atiro!

Ela obedeceu. Não tremia e o "gangster" ficou maravilhado com tamanho autodomínio.

— Gostaria de sentar-me.

— Não. Prefiro vê-la de pé, para me orgulhar da filha que tenho tão alta e tão bela. Responda-me uma pergunta; por conta de quem vinha agindo?

— Do Serviço Secreto — disse uma voz, vin­da da porta. — Eva é minha amiga e colaboradora. Não faça o menor movimento, Peter. Sua carreira de crimes encerra-se esta noite.

— Brenda! Você também!

A pistola que ela apertava não tremeu.

— Sim, eu também. Largue a arma!

Surpreendido, o "gangster" obedeceu, espe­rando por uma providencial aparição de Douglas Ellis. Se pudesse apertar o botão da campainha de serviço!

— Vocês ganharam. Que tem o Serviço Se­creto contra mim?

— Muito mais do que você pensa. Eva tele­fone para M-37. Que cerquem a casa. Feche a por­ta por dentro.

A jovem telefonou, sem que Cochano nada pudesse fazer para evitar. Ao desligar, virou-se para Brenda:

— Chegou bem a tempo.

— Eu o vi entrar, mas não pude avisá-la. Con­versava com um dos dois homens que vigiam a casa no andar de cima. Servi uma bebida com um poderoso narcótico.

Peter decidiu aproveitar a oportunidade e sal­tar sobre ela. Procurou distraí-la.

— Muito inteligente de sua parte.

— Fui superada por você, Peter. Como sus­peitou de Eva?

— Pura sorte. Encontrei a mulher que ela adotou como mãe e conversamos longamente. Fi­quei sabendo que nunca tive nenhuma filha. Compreendi a verdade e telefonei para cá, queren­do confiar-lhe minha angústia, Brenda.

— Não imaginamos que fosse alguma cilada, mas não tem importância. O Serviço Secreto já de­cretou sua prisão. Não quer saber como consegui­mos descobrir sua história e o retrato? Foi muito fácil. Seu passado não é nenhum mistério para a polícia, de modo que a foto foi obtida na ficha da Metropolitana. Bastou um ligeiro retoque e ficou pronta para o que queríamos.

— Posso imaginar.

— Criamos uma história. Tive um encontro com Eva, recém-saída da Academia de Washington. Um agente espancou-a na sua presença, para que você a defendesse. O resto foi saindo normalmente. Você espalhou tanto mal, que a Justiça recorreria a todos os meios para castigá-lo. Caiu na armadi­lha. Por meu turno, comecei a frequentar seu am­biente em Chinatown. Já esperava seu pedido para fazer companhia à "sua" filha! Durante todo este tempo, nós duas o vigiamos, foto­grafando todos os seus documentos. Receávamos que você os destruísse.

— Porque demoraram a agir? — indagou Peter.

— Precisávamos da relação completa dos inte­grantes do serviço de espionagem que você chefia. Porque ficou pálido?

Cochano dera um passo atrás.

— Pensei que estivessem interessados na co­caína.

— Isso é com os federais. Ainda terá muitas surpresas, Cochano. Robert Hurley, o jovem que tanto o inquietou, não passa de outro agente do Serviço Secreto, infiltrado no bando de Deering. Du­rante dois anos, agiu como "gangster" porque a pátria assim exigiu. Eva ignorava sua identidade. Sob o pretexto de averiguar suas futuras intenções, Hurley não teve dificuldades em convencer Deering a dei­xá-lo em liberdade para fazer a corte à filha do rival. Queríamos aumentar suas perturbações para fazê-lo cometer maiores erros. Foi Ro­bert quem lhe telefonou anonimamente, comunican­do a remessa de drogas destinadas a Deering. Tinha a intenção de fazer uma quadrilha atirando um contra o outro, para que se destruíssem mutuamente. Sorri?

— Sim, Brenda. Creio que me vinguei de você. Você amava Jim, mas fui eu que ordenei a morte de Deering, de modo que ele parecesse culpado, embriagado pela coca.

— Miserável!

O dedo indicador da mulher curvou-se sobre o gatilho, mas Eva gritou, interrompendo-a:

— Não faça isso! M-37 jamais a perdoaria. Você não pode devolver a vida a Brewer. Ninguém deve fazer justiça por suas próprias mãos!

— Tem razão, mas quase fiquei cega pelo ódio. Temos provas de sobra para condená-lo por alta trai­ção, caso seus assassinatos não bastem. Só ignora­va qual o meio de que se valia para transmitir suas mensagens, mas fiquei sabendo na viagem a Hol­lywood. Pensou que nos deixara no restaurante por meia hora, mas segui seus passos. Esta noite, será preso o funcionário da emissora de televisão.

À medida que Brenda Lytton falava, Cochano dissimulou e, muito lentamente, roçou o indicador no botão elétrico da mesa, o qual era usado quando precisava de Douglas Ellis. Eva percebeu a manobra e exclamou:

— Cuidado! Ele vai chamar o mordomo! Correu à gaveta da mesa e apanhou o revólver, preparando-se para agir. Ouviram os passos do mor­domo e sua voz:

— Deseja algo, Peter?

— Diga que não. — ameaçou Brenda, num sussurro.

Não teve tempo de ser obedecida, porque soou um tiro no corredor.

— M-37! — exclamou Eva. — Terá sido morto?

Tal não acontecera.

— Abram!

Brenda Lytton puxou o ferrolho e um homem entrou, com a mão direita no bolso da calça. A mu­lher levou a mão à boca, sufocando um grito, en­quanto Peter recuava como se tivesse visto um fantasma.

— Brewer!

— Engana-se. "Jim Brewer" foi condenado hoje. Quem o visita é o inspetor Morton, do Ser­viço Secreto. Fui obrigado a atirar em seu mordo­mo. Neste momento, o Ás de Paus está sendo vas­culhado por patrulhas comandadas pelo inspetor Wold, a fim de deterem Alcide Pella e os "gangs­ters" do bando. Robert Hurley e vários membros do Serviço Secreto já partiram para o estabelecimen­to de Wal Ming. Vejo que continua espantado, Peter. Era preciso deixá-lo inteiramente despreo­cupado, para que pudéssemos ter acesso a seus do­cumentos, inclusive os mais secretos. Eva fez um trabalho magistral.

Algemou Cochano e este, vencido, deixou-se cair numa poltrona, sem dar crédito ao que via e ouvia. Brewer olhou para Brenda.

— Causei-lhe muitos sofrimentos, querida, mas o dever nos impõe penosos sacrifícios. "Jim" pre­cisava morrer em seu coração, para em seu lugar re­nascer uma nova esperança.

Entraram três homens em trajes civis. Ao vê-los, M-37 ficou rígido.

— Às suas ordens, senhor. Não o esperava.

— Tomei um avião em Washington, mas ain­da cheguei a tempo de assistir à sua vitória.

— Minha vitória, não. Do Serviço Secreto.

O Secretário Executivo apertou as mãos de seus colaboradores, felicitando-os.

— Nos Estados Unidos — anunciou — fize­mos a mais importante colheita da história da es­pionagem, acobertada por um contrabando de nar­cóticos. Que queria de mim, Morton?

— Sua permissão para me casar com Brenda Lytton. Imagino que Robert Hurley e Eva farão idêntico pedido.

— Nada difícil de ser concedido. Meus para­béns. E os originais das fotografias? O chefe dese­ja examiná-los.

— Estão dentro das pastas — indicou a agente que se fizera passar por Eva Ram. — Há também uma fortuna em joias.

— Muito bem.

O Secretário Executivo do Serviço Secreto e sua escolta apoderaram-se das provas de culpabilida­de e riqueza adquirida por Cochano. Avisou, antes de juntar-se aos demais agentes:

— Espero vocês na Chefatura. Passarei a noite em São Francisco, só partindo ao amanhecer. Pro­cedam a uma minuciosa revista.

— Às suas ordens.

Brenda e o inspetor Morton — "Jim Brewer" — uniram as mãos durante um segundo, transmitindo-se uma silenciosa mensagem de amor.

Afastando-se, o jovem ordenou, simulando au­toridade:

— Precisamos trabalhar...

 

                                                                                Alar Benet  

 

                      

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