Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
INFERNO
Segunda Parte
O sol havia nascido por completo e lançava longas sombras pelos cânions estreitos que ziguezagueavam entre os edifícios da antiga Florença. Comerciantes começavam a abrir as grades de metal que protegiam suas lojas e bares, e o cheiro de café e cornetti recém-saídos do forno pairava no ar.
Apesar de faminto, Langdon não parou. Preciso encontrar a máscara... e ver o que está escondido atrás dela.
Enquanto conduzia Sienna para o norte pela estreita Via dei Leoni, achava difícil se acostumar com a visão de sua careca. Sua aparência radicalmente diferente o fez pensar que mal a conhecia. Eles seguiam em direção à Piazza del Duomo – a praça onde Ignazio Busoni fora encontrado morto depois de fazer sua última ligação.
“Robert”, ele conseguira dizer, ofegante. “O que você busca está escondido em um lugar seguro. Os portões estão abertos para você, mas não demore. Paraíso 25. Boa sorte.”
Paraíso 25, repetiu Langdon para si mesmo, ainda intrigado que Ignazio Busoni se lembrasse do texto de Dante bem o suficiente para se referir a um canto específico assim, de cabeça. Pelo jeito, para Busoni havia algo de memorável naquele canto. Fosse o que fosse, Langdon estava prestes a descobrir – assim que conseguisse um exemplar do texto, o que poderia fazer com facilidade em vários locais mais à frente.
A peruca que lhe chegava aos ombros já estava começando a fazer sua cabeça coçar e, embora ele se sentisse um tanto ridículo com aquele disfarce, tinha que admitir que a caracterização improvisada de Sienna fora um truque eficaz. Ninguém se interessara por eles, nem mesmo os reforços policiais que haviam acabado de passar em direção ao Palazzo Vecchio.
Sienna já caminhava em total silêncio ao seu lado havia um bom tempo e Langdon olhou para ela, para se certificar de que estava bem. Parecia-lhe muito distante, sem dúvida tentando aceitar o fato de que tinha acabado de matar a mulher que os vinha perseguindo.
– Uma lira pelos seus pensamentos – arriscou ele em tom de brincadeira, na esperança de distrair Sienna da imagem da mulher de cabelos espetados morta no chão do palazzo.
Lentamente, Sienna deixou seus devaneios.
– Estava pensando em Zobrist – falou, devagar. – Tentando lembrar se sabia algo mais sobre ele.
– E?
Ela deu de ombros.
– Quase tudo o que sei li em um artigo controverso que ele escreveu alguns anos atrás. Esse texto me marcou muito. Na comunidade médica, virou uma epidemia assim que foi publicado. – Ela se encolheu. – Desculpe, péssima escolha de palavras.
Langdon deu uma risadinha amarga.
– Continue.
– Em linhas gerais, o artigo declarava que a raça humana estava à beira da extinção e que, a menos que houvesse algum evento catastrófico que diminuísse drasticamente a população mundial, nossa espécie não sobreviveria por mais cem anos.
Langdon se virou para encará-la.
– Só mais um século?
– Era uma tese bem radical. O cronograma previsto era muito mais pessimista do que as estimativas anteriores, mas era sustentado por dados científicos bem sólidos. Zobrist fez muitos inimigos ao declarar que todos os médicos deveriam deixar de atuar porque aumentar a expectativa de vida humana só estava piorando o problema da superpopulação.
Langdon agora entendia por que o artigo havia se espalhado tão rapidamente pela comunidade médica.
– Como era de esperar – prosseguiu Sienna –, ele foi atacado por todos os lados: políticos, membros do clero, a OMS, todo mundo o ridicularizou como um maluco apocalíptico que estava apenas tentando gerar pânico. O que causou tanto ressentimento foi a afirmação de que os filhos da juventude de hoje, caso ela decidisse se reproduzir, literalmente testemunhariam o fim da raça humana. Zobrist ilustrava seu argumento com um “Relógio do Apocalipse”, mostrando que, se todo o período da vida humana na Terra fosse concentrado em uma só hora... hoje estaríamos nos últimos segundos.
– Já vi esse relógio na internet – disse Langdon.
– Pois é. Bem, o relógio é dele e causou um furor e tanto. Mas a reação mais negativa veio quando ele declarou que seus avanços no campo da engenharia genética seriam muito mais úteis à humanidade se fossem usados não para curar doenças, mas para criá-las.
– O quê?!
– Isso mesmo: ele afirmava que a sua tecnologia deveria ser utilizada para limitar o crescimento populacional por meio da criação de cepas híbridas de doenças que a medicina moderna seria incapaz de curar.
Langdon sentiu um temor crescente enquanto surgiam em sua mente imagens de “vírus sintéticos” estranhos e híbridos que, uma vez disseminados, seriam impossíveis de combater.
– No espaço de poucos anos, Zobrist deixou de ser o queridinho da comunidade médica e virou um pária. Um excomungado. – Ela se deteve e uma expressão compassiva cruzou seu semblante. – Não é de espantar que ele tenha enlouquecido e se matado. O mais triste é que a tese dele provavelmente está certa.
Langdon quase caiu para trás.
– O quê? Você acha que ele está certo?!
Sienna deu de ombros com um gesto solene.
– Robert, de um ponto de vista puramente científico, com base apenas na lógica e sem qualquer emoção, posso lhe afirmar sem sombra de dúvida que, a menos que haja alguma mudança drástica, o fim da nossa raça está chegando. E depressa. O mundo não vai acabar com fogo, enxofre, apocalipse ou uma guerra nuclear... vai acabar com um colapso absoluto em decorrência da quantidade de pessoas no planeta. A matemática é indiscutível.
Langdon se contraiu.
– Estudei bastante biologia e é muito normal uma espécie entrar em extinção pelo simples fato de ter superpovoado seu habitat – prosseguiu ela. – Imagine uma colônia de algas vivendo na superfície de um pequeno lago na floresta, aproveitando o perfeito equilíbrio de nutrientes do ambiente. Se não forem controladas, elas vão se reproduzir de forma tão agressiva que logo cobrirão toda a superfície do lago, impedindo a luz de entrar e, portanto, impedindo o desenvolvimento de nutrientes na água. Depois de sugar ao máximo os recursos do ambiente, essas algas morrem depressa e desaparecem sem deixar vestígios. – Ela suspirou. – Um destino semelhante pode estar reservado à humanidade. Muito mais cedo e muito mais rápido do que imaginamos.
Langdon sentiu uma angústia profunda.
– Mas... isso parece impossível.
– Impossível, não, Robert, só impensável. A mente humana tem um mecanismo primitivo de autodefesa que nega qualquer realidade estressante demais para o cérebro. É o que chamamos de negação.
– Já ouvi falar de negação, mas não acredito que exista – brincou Langdon.
Sienna revirou os olhos.
– Muito engraçado! Mas pode acreditar, é muito real. A negação é um elemento essencial do mecanismo de defesa humano. Sem ela, todas as manhãs acordaríamos apavorados só de pensar em todas as maneiras como poderíamos morrer. Em vez disso, nossa mente bloqueia o medo existencial, concentrando-se em estresses com os quais podemos lidar: como não chegar atrasado no trabalho ou como pagar as contas em dia. Mesmo que tenhamos medos mais graves, de natureza existencial, nós os descartamos bem rápido para nos concentrar em tarefas simples e banalidades cotidianas.
Langdon se lembrou de uma pesquisa recente sobre os hábitos de navegação na internet dos alunos de algumas das universidades de elite nos Estados Unidos. O estudo revelou que até os usuários mais cultos demonstravam uma tendência instintiva à negação. Ao clicar em algum artigo deprimente sobre o derretimento das calotas polares ou sobre espécies em extinção, a grande maioria dos universitários se apressava em sair da página e passar para algo mais trivial que afastasse o medo de seus pensamentos. Algumas das escolhas preferidas eram manchetes esportivas, vídeos fofinhos de gatos e fofocas sobre celebridades.
– Na mitologia clássica – comentou ele –, um herói em negação é a maior manifestação de húbris e orgulho que pode existir. Não há homem mais orgulhoso do que aquele que se considera imune aos perigos do mundo. Dante concordava com isso, claro, pois, segundo ele, a soberba era o pior dos sete pecados capitais, expurgado no primeiro terraço do Purgatório.
Sienna passou alguns instantes pensando antes de continuar:
– O artigo de Zobrist acusava muitos dos líderes mundiais de estarem em um estado de extrema negação, como um avestruz com a cabeça enterrada na areia. Criticava particularmente a Organização Mundial da Saúde.
– Aposto que isso pegou bem.
– Eles reagiram comparando-o a um fanático religioso que anda pelas ruas com uma placa dizendo “O fim está próximo”.
– Tem alguns desses lá em Harvard Square.
– Pois é. E nós sempre os ignoramos porque não imaginamos que vá acontecer de verdade. Mas, acredite, o fato de a mente humana não conseguir imaginar que algo vá acontecer não significa que seja impossível.
– Você está quase parecendo uma fã de Zobrist.
– Eu sou fã da verdade, por mais duro que seja aceitar isso – retrucou ela.
Langdon não respondeu, tornando a se sentir estranhamente distante de Sienna naquele momento, tentando entender sua bizarra combinação de entusiasmo e desapego.
Sienna olhou para ele e sua expressão ficou mais suave.
– Olhe, Robert, não estou dizendo que Zobrist tem razão ao afirmar que uma praga que extermine metade das pessoas do mundo seja a resposta para o problema da superpopulação. Tampouco que devemos parar de curar os doentes. O que estou dizendo é que o caminho que estamos trilhando é uma fórmula muito simples para a destruição. O crescimento populacional é uma progressão exponencial que ocorre dentro de um sistema de espaço finito e recursos limitados. O fim vai chegar de forma muito abrupta. Não vai ser como um carro cujo combustível vai acabando aos poucos... vai ser como despencar de um precipício.
Langdon expirou longamente, tentando processar o que acabara de ouvir.
– Por falar nisso, tenho quase certeza de que foi daqui que Zobrist pulou – acrescentou ela, apontando para o alto à direita, com uma expressão grave.
Langdon olhou para cima e viu que estavam passando pela austera fachada de pedra do Museu Bargello. Atrás da construção, a torre da Badia Florentina se erguia afunilada acima das estruturas ao redor. Olhando para o topo da torre, ele se perguntou por que Zobrist havia pulado de lá e torceu que não fosse por ter feito algo terrível e não querer enfrentar as consequências.
– Os críticos de Zobrist gostam de ressaltar como é paradoxal que muitas das tecnologias genéticas desenvolvidas por ele estejam agora aumentando de forma drástica a expectativa de vida – disse Sienna.
– O que só agrava o problema da superpopulação.
– Exato. Zobrist chegou a afirmar publicamente que gostaria de poder recolocar o gênio dentro da lâmpada e eliminar parte de suas contribuições à longevidade humana. Imagino que faça sentido, em termos ideológicos. Quanto maior for nossa expectativa de vida, mais nossos recursos serão destinados a sustentar idosos e doentes.
Langdon concordou com um aceno de cabeça.
– Certa vez li que, nos Estados Unidos, cerca de 60% da verba da Saúde é usada para tratar pacientes nos últimos seis meses de vida.
– É verdade. E mesmo que o nosso cérebro diga “isso é uma loucura”, nosso coração diz “vamos manter vovó viva pelo maior tempo possível”.
Langdon tornou a assentir.
– É o conflito entre Apolo e Dioniso, um dilema famoso na mitologia. A batalha ancestral entre mente e coração, que raras vezes desejam a mesma coisa.
Ele tinha ouvido dizer que essa mesma referência mitológica era agora usada em reuniões dos Alcoólicos Anônimos para descrever o alcoólatra que olha para um copo de bebida: seu cérebro sabe que aquilo lhe fará mal, mas seu coração deseja o conforto proporcionado pela bebida. A mensagem parecia ser: não se sinta sozinho, até os deuses enfrentavam esse dilema.
– Quem precisa de agathusia? – sussurrou Sienna de repente.
– O quê?
Sienna ergueu os olhos.
– Acabo de me lembrar do título do artigo de Zobrist: “Quem precisa de agathusia?”
Langdon nunca tinha ouvido a palavra agathusia, mas deu seu melhor palpite com base em suas raízes gregas: agathos e thusia.
– Agathusia... seria um “bom sacrifício”?
– Quase. O verdadeiro sentido é “autossacrifício em prol do bem comum”. – Ela fez uma pausa. – Também conhecido como suicídio altruísta.
Aquela expressão Langdon já tinha ouvido – uma vez em referência a um pai falido que se matara para que a família pudesse receber o seguro e outra para descrever um assassino em série arrependido que pusera fim à própria vida por medo de não conseguir controlar o impulso de matar.
O exemplo mais arrepiante de que se lembrava, no entanto, era o romance Logan’s Run (A fuga de Logan), de 1967, que descrevia uma sociedade futurista na qual todos aceitavam de bom grado se suicidar aos 21 anos de idade – aproveitando a juventude ao máximo, sem que a idade avançada sobrecarregasse os recursos limitados do planeta. Se bem se lembrava, a adaptação do livro para o cinema, Fuga do Século 23, aumentara a “idade limite” de 21 para 30 anos, sem dúvida na tentativa de tornar o filme mais palatável para o público entre 18 e 25 anos, faixa etária crucial para o sucesso nas bilheterias.
– Mas esse artigo de Zobrist... – disse ele. – Acho que não entendi o título direito. “Quem precisa de agathusia?” Ele estava sendo sarcástico? Como se a resposta fosse... todo mundo?
– Na verdade, não. O título é um trocadilho.
Langdon balançou a cabeça, sem entender.
– Em inglês, a palavra quem e a sigla da OMS são iguais: WHO. O título do artigo poderia ser, portanto “A OMS precisa de agathusia”. Nele Zobrist criticava a diretora da organização, Dra. Elizabeth Sinskey, que ocupa o cargo há uma eternidade e, segundo ele, não leva a sério a questão do controle populacional. O artigo afirmava que seria melhor para a OMS se a diretora Sinskey se matasse.
– Quanta compaixão.
– São os perigos de ser um gênio, imagino. Muitas vezes os cérebros especiais, aqueles capazes de se concentrar com mais intensidade do que os outros, fazem isso em detrimento da maturidade emocional.
Langdon se lembrou dos artigos que lera sobre a jovem Sienna, a menina-prodígio com 208 de QI e uma função intelectual muito acima do normal. Pensou se, ao falar de Zobrist, ela também não estaria, de certa forma, referindo-se a si mesma. Também se perguntou por quanto tempo ela insistiria em guardar seu segredo.
Mais adiante, Langdon viu o ponto de referência que estava buscando. Depois de atravessar a Via dei Leoni, conduziu Sienna até a esquina de uma rua excepcionalmente estreita – na verdade, um beco. A placa lá em cima dizia: via dante alighieri.
– Você parece saber muito sobre o cérebro humano – comentou ele. – Era sua especialidade na faculdade de medicina?
– Não, mas eu lia bastante quando era criança. Desenvolvi esse interesse pelos estudos do cérebro porque tive alguns... problemas de saúde.
Langdon a encarou com curiosidade, torcendo para ela prosseguir.
– O meu cérebro... – começou Sienna, baixinho. – Ele não cresceu como o da maioria das outras crianças e isso me causou alguns... problemas. Passei muito tempo tentando descobrir o que havia de errado comigo e, por tabela, aprendi bastante sobre neurociência. – Ela cruzou olhares com Langdon. – E, sim, a calvície tem a ver com o meu distúrbio.
Langdon desviou os olhos, constrangido por ter perguntado.
– Não se preocupe – disse ela. – Aprendi a conviver com isso.
Enquanto eles adentravam o frio beco mergulhado em sombras, Langdon refletiu sobre tudo o que acabara de descobrir sobre Zobrist e seu alarmante posicionamento filosófico.
Uma pergunta martelava sua cabeça:
– Aqueles soldados... Os que estão tentando nos matar. Quem são eles? Não faz sentido. Se Zobrist liberou uma praga em potencial, todo mundo não deveria estar do mesmo lado, tentando impedir sua disseminação?
– Não necessariamente. Ele podia ser um pária na comunidade médica, mas decerto tem uma legião de fãs ardorosos, gente que concorda que um expurgo é um mal necessário para salvar o planeta. Esses soldados podem muito bem estar tentando garantir que o plano de Zobrist se concretize.
Um exército particular de discípulos de Zobrist? Langdon ponderou essa possibilidade. De fato, a história estava repleta de fanáticos e membros de cultos que se matavam por conta de todo tipo de teoria maluca – por acreditarem que seu líder é o Messias, que uma nave espacial os espera atrás da lua ou que o Dia do Juízo Final está próximo. Toda aquela especulação sobre controle da população mundial pelo menos estava embasada em dados científicos, mas mesmo assim algo naqueles soldados não lhe cheirava bem.
– Não consigo acreditar que um grupo de soldados treinados fosse aceitar promover uma matança de inocentes... correndo eles próprios o risco de adoecer e morrer.
Sienna lhe lançou um olhar de incompreensão.
– Robert, o que você acha que os soldados fazem quando vão à guerra? Eles matam inocentes e arriscam a própria vida. Tudo é possível quando as pessoas acreditam em uma causa.
– Disseminar uma praga? Isso é uma causa?
Sienna o encarou com firmeza, sondando-o com seus olhos castanhos.
– Robert, a causa não é disseminar uma praga... é salvar o mundo. – Ela fez uma pausa. – Um dos trechos do artigo de Bertrand Zobrist que gerou muito debate foi uma provocadora pergunta hipotética. Quero que você a responda.
– Qual é a pergunta?
– Zobrist questionou o seguinte: se você pudesse apertar um botão e matar aleatoriamente metade da população da Terra, faria isso?
– Claro que não.
– Tudo bem. Mas e se você soubesse que, se não apertasse esse botão agora, daqui a cem anos a raça humana estaria extinta? – Ela passou alguns instantes calada. – Nesse caso, você o apertaria? Mesmo que isso talvez significasse matar amigos, parentes e até a si mesmo?
– Sienna, eu não tenho a menor condição de...
– É uma pergunta hipotética – disse ela. – Você mataria metade da população hoje para salvar a nossa espécie da extinção?
Profundamente incomodado por aquele assunto macabro, Langdon ficou grato ao ver um conhecido banner vermelho pendurado na lateral de um edifício de pedra logo adiante.
– Pronto – anunciou, apontando para a frente. – Chegamos.
Sienna balançou a cabeça.
– É como eu disse. Negação.
A Casa di Dante fica na Via Santa Margherita e é fácil identificá-la graças ao grande banner pendurado na fachada de pedra no meio da rua estreita: museo casa di dante.
Sienna olhou para o banner com uma expressão desconfiada.
– Nós estamos indo para a casa de Dante?
– Não exatamente – respondeu Langdon. – Ele morava ali na esquina. Esse prédio é mais um museu.
Langdon já havia entrado lá uma vez, curioso para conhecer o acervo de arte que revelara não conter nada além de reproduções de obras famosas relacionadas a Dante vindas do mundo inteiro. Mesmo assim, foi interessante vê-las reunidas em um mesmo local.
De repente, Sienna pareceu esperançosa.
– E você acha que eles têm alguma edição antiga da Divina Comédia em exposição?
Langdon deu uma risadinha.
– Não, mas sei que têm uma loja de souvenirs que vende pôsteres enormes com o texto integral do poema impresso em tipologia microscópica.
Ela se limitou a encará-lo, um tanto consternada.
– Eu sei. Mas é melhor do que nada. O único problema é que a minha vista não é mais como antes, então você vai ter que ler as letras miúdas.
– È chiusa – disse um velho em voz alta ao vê-los se aproximar da porta. – È il giorno di riposo.
Fechado para o dia de descanso? De repente, Langdon voltou a se sentir desorientado. Olhou para Sienna.
– Hoje não é segunda-feira?
Ela assentiu.
– Os florentinos preferem descansar na segunda.
Langdon resmungou, lembrando-se do peculiar calendário da cidade. Como os turistas gastavam mais nos fins de semana, muitos comerciantes florentinos preferiam transferir o “dia de descanso” cristão de domingo para segunda, a fim de evitar que a folga comprometesse muito os lucros.
Ele percebeu que, infelizmente, isso também eliminava sua outra opção: a Paperback Exchange, uma de suas livrarias favoritas em Florença, que sem dúvida teria exemplares da Divina Comédia.
– Alguma outra ideia? – perguntou Sienna.
Depois de algum tempo pensando, Langdon por fim assentiu.
– Tem um lugar aqui perto onde os entusiastas de Dante costumam se reunir. Aposto que alguém lá vai ter um exemplar para nos emprestar.
– Também deve estar fechado – alertou Sienna. – Quase todos os estabelecimentos da cidade fecham na segunda.
– Esse lugar nem sonharia em fazer uma coisa assim – respondeu Langdon com um sorriso. – É uma igreja.
Uns 50 metros atrás deles, à espreita em meio à multidão, o homem com a pele irritada e o brinco de ouro se encostou em uma parede, aproveitando para recuperar o fôlego. Sua respiração não estava melhorando e era quase impossível ignorar as erupções do rosto – sobretudo as da pele sensível logo acima dos olhos. Ele tirou os óculos Plume Paris e esfregou com cuidado a manga da camisa nas pálpebras, tentando não ferir a pele. Quando os recolocou, viu seus alvos se afastando. Forçou-se a segui-los, respirando da forma mais suave possível.
Vários quarteirões atrás de Langdon e Sienna, dentro do Salão dos Quinhentos, o agente Brüder estava de pé junto ao corpo desconjuntado de uma mulher de cabelos espetados muito conhecida. Ajoelhou-se para pegar sua pistola e, por segurança, removeu o pente de balas antes de entregá-la a um de seus homens.
Um pouco afastada, a administradora do museu, Marta Alvarez, acabara de compartilhar com Brüder um breve porém surpreendente relato do que havia acontecido com Robert Langdon desde a noite anterior, incluindo uma informação em especial que Brüder ainda estava tentando digerir.
Langdon afirma estar com amnésia.
Brüder sacou seu telefone e discou um número. Foram necessários três toques antes de a ligação ser atendida por uma voz distante e abalada.
– Sim, agente Brüder. Pode falar.
Brüder articulou as palavras devagar para garantir que fossem entendidas.
– Ainda estamos tentando localizar Langdon e a mulher, mas houve outro desdobramento. – Brüder fez uma pausa. – E, se for verdade... isso muda tudo.
O diretor andava de um lado para outro em seu escritório, lutando contra a tentação de se servir de mais uma dose de uísque e forçando-se a encarar aquela crise cada vez mais grave.
Nunca em sua carreira ele havia traído um cliente ou descumprido um acordo e com certeza não tinha a menor intenção de começar agora. Mas ao mesmo tempo desconfiava de que havia se envolvido em uma situação cujo propósito divergia do que ele imaginara de início.
Um ano antes, o famoso geneticista Bertrand Zobrist havia subido a bordo do Mendacium e solicitado um local seguro para trabalhar. Na época, o diretor acreditara que ele estivesse planejando desenvolver algum procedimento médico secreto cuja patente fosse aumentar ainda mais sua grande fortuna. Não seria a primeira vez que o Consórcio estaria sendo contratado por cientistas ou engenheiros paranoicos que preferiam trabalhar em isolamento extremo para evitar que suas valiosas ideias fossem roubadas.
Pensando assim, o diretor havia aceitado o cliente e não ficara nada surpreso ao descobrir que o pessoal da OMS começara a caçá-lo. Tampouco perdera o sono quando a diretora da OMS em pessoa – Dra. Elizabeth Sinskey – pareceu abraçar como missão pessoal localizar Zobrist.
O Consórcio sempre enfrentou adversários poderosos.
Conforme combinado, o Consórcio cumpriu o prometido a Zobrist sem fazer perguntas, frustrando as tentativas da Dra. Sinskey de encontrá-lo durante toda a vigência de seu contrato.
Ou quase.
Menos de uma semana antes de o contrato expirar, Elizabeth Sinskey conseguira localizar Zobrist em Florença e entrara em ação, perseguindo-o e encurralando-o até ele se matar. Pela primeira vez em toda a sua carreira, o diretor havia deixado de proporcionar a proteção estipulada em contrato e isso o assombrava... assim como as circunstâncias bizarras da morte do geneticista.
Ele se matou... para não ser capturado?
O que Zobrist estava tentando proteger?
Após a morte do geneticista, a Dra. Sinskey havia confiscado um objeto de seu cofre, e agora o Consórcio travava uma batalha direta com a diretora da OMS em Florença, uma arriscada caça ao tesouro para encontrar...
O quê?
O diretor se pegou lançando um olhar instintivo em direção à estante e ao pesado volume que Zobrist lhe dera de presente quinze dias antes, com uma expressão alucinada no rosto.
A Divina Comédia.
Foi pegar o livro e o levou até a mesa, onde o deixou cair com um baque. Com dedos trêmulos, abriu a capa, foi até a primeira página e tornou a ler a dedicatória:
Meu caro amigo, obrigado por me ajudar a encontrar o caminho.
O mundo também lhe agradece.
Para começar, pensou o diretor, nós nunca fomos amigos.
Releu a dedicatória mais três vezes. Então olhou para o círculo vermelho que o cliente havia rabiscado em seu calendário, assinalando a data do dia seguinte.
O mundo lhe agradece?
Ele se virou e fitou longamente o horizonte.
No silêncio, pensou no vídeo e ouviu a voz do facilitador Knowlton repetir as palavras que lhe dissera mais cedo ao telefone. Achei que talvez o senhor fosse querer dar uma olhada antes do upload... o conteúdo é um tanto perturbador.
O diretor continuava intrigado com aquele telefonema. Knowlton era um de seus melhores facilitadores. Não era de seu feitio fazer um pedido desses. Ele sabia muito bem que não deveria sugerir uma quebra do protocolo de compartimentalização.
Depois de recolocar A Divina Comédia na estante, o diretor foi até a garrafa de uísque e se serviu de meia dose.
Tinha uma decisão muito difícil a tomar.
Conhecido como a Igreja de Dante, o santuário da Chiesa di Santa Margherita dei Cerchi é mais uma capela do que uma igreja. O pequeno local de oração de um só aposento é um destino popular entre os fãs do poeta, que o veneram como o solo sagrado no qual transcorreram dois momentos cruciais de sua vida.
Reza a lenda que foi naquela igreja, aos 9 anos, que Dante viu pela primeira vez Beatriz Portinari, por quem se apaixonou à primeira vista e por quem sofreu a vida toda. Para grande agonia de Dante, Beatriz se casou com outro homem e depois morreu muito jovem, aos 24 anos.
Foi também naquela igreja, alguns anos depois, que Dante se casou com Gemma Donati, mulher que, segundo o escritor e poeta Boccacio, se mostraria uma péssima escolha como esposa. Apesar de ter tido filhos, o casal dava poucas mostras de afeto e, após o exílio de Dante, nenhum dos dois cônjuges demonstrou grande interesse em se reencontrar.
O amor da vida de Dante sempre fora a falecida Beatriz Portinari, moça que o poeta mal conhecera mas cuja lembrança, de tão avassaladora, fez do seu fantasma a musa inspiradora das maiores obras do florentino.
O célebre livro de poemas de Dante – La Vita Nuova – é repleto de versos lisonjeiros sobre “a abençoada Beatriz”. De forma ainda mais reverente, A Divina Comédia alça sua musa à condição da redentora que o guia pelo Paraíso. Em ambas as obras, o poeta anseia por sua amada inalcançável.
Hoje em dia, a Igreja de Dante é um templo para quem sofre com um amor não correspondido. A própria Beatriz está sepultada dentro da igreja e seu modesto túmulo se tornou um local de peregrinação tanto para os fãs do poeta quanto para os que trazem no peito um coração partido.
Nessa manhã em que Langdon e Sienna serpenteavam pela Florença antiga em direção à igreja, as ruas não paravam de se estreitar até se tornarem pouco mais do que vielas para pedestres. Vez por outra um carro aparecia, avançando devagar pelo labirinto e obrigando os transeuntes a se espremerem contra os edifícios.
– A igreja fica logo depois daquela esquina – disse Langdon, torcendo para que algum turista lá dentro pudesse ajudá-los.
Sabia que as suas chances de encontrar um bom samaritano eram melhores agora que Sienna havia pegado sua peruca de volta e que ambos haviam retornado a seus antigos “eus”, passando de roqueiro e skinhead a professor universitário e jovem elegante, respectivamente.
Voltar a se sentir ele mesmo foi um alívio para Langdon.
Quando entraram num beco ainda mais estreito – a Via del Presto –, ele percorreu com os olhos as várias portas ao seu redor. Era sempre complicado achar a entrada da igreja, pois a construção em si era muito pequena, sem nenhum adorno e ficava espremida entre dois outros edifícios. Era perfeitamente possível passar sem notá-la. Por mais estranho que parecesse, costumava ser bem mais fácil localizar a igreja não com os olhos, mas com os ouvidos.
Uma das peculiaridades do santuário de Santa Margherita dei Cerchi era que sempre abrigava concertos e, mesmo quando não havia nenhum em curso, tocavam as gravações de concertos anteriores para que os visitantes pudessem apreciar a música a qualquer hora.
Como esperado, à medida que avançavam pelo beco, Langdon começou a ouvir acordes distantes de música gravada que foram ficando cada vez mais altos até ele e Sienna chegarem diante de uma entrada quase imperceptível. A única indicação de aquele ser de fato o local correto era uma pequeníssima placa – verdadeira antítese do banner vermelho-vivo do Museo Casa di Dante – anunciando, sem alarde, que aquela era a igreja de Dante e Beatriz.
Quando Langdon e Sienna deixaram a rua, entrando no espaço fechado e escuro da igreja, o ar ficou mais frio e a música, mais alta. O interior era austero e simples, menor do que Langdon se lembrava. Havia apenas uns poucos turistas, conversando, escrevendo em diários, sentados em silêncio nos bancos para ouvir a música ou examinando o curioso acervo de obras de arte.
Com exceção do retábulo de Neri di Bicci cujo tema era a Madona, quase todas as obras originais do santuário tinham sido substituídas por peças contemporâneas representando as duas celebridades que atraíam a maior parte dos visitantes àquela pequena capela: Dante e Beatriz. A maioria dos quadros retratava o olhar de anseio de Dante no famoso primeiro encontro com Beatriz, ocasião em que o poeta, segundo seu próprio relato, havia se apaixonado. De qualidade discutível, a Langdon pareciam quase todos cafonas e fora de lugar. Em um deles, o famoso gorro vermelho com orelheiras do poeta parecia ter sido roubado de Papai Noel. Mesmo assim, o tema recorrente do olhar carregado de desejo sobre sua musa não deixava dúvidas de que aquela era uma igreja dedicada ao amor sofrido – não consumado, não correspondido, inalcançado.
Por instinto, Langdon se virou para a esquerda e olhou para o modesto túmulo de Beatriz Portinari. Este era o principal motivo que levava as pessoas àquela igreja, nem tanto para ver o sepulcro em si, mas o famoso objeto ao seu lado.
Um cesto de vime.
Nessa manhã, como sempre, o cesto simples estava posicionado ao lado da tumba. E nessa manhã, como sempre, estava repleto de pedaços de papel dobrados – cartas escritas à mão pelos visitantes para a própria Beatriz.
Beatriz Portinari havia se tornado uma espécie de santa padroeira dos que sofriam de amor. Segundo uma antiga tradição, preces manuscritas podiam ser depositadas naquele cesto na esperança de que Beatriz intercedesse pelo remetente – talvez inspirando alguém a amá-lo mais, ajudando-o a encontrar um amor de verdade ou até mesmo dando-lhe forças para esquecer um amor já falecido.
Muitos anos antes, durante a penosa pesquisa para um livro de história da arte, o próprio Langdon entrara naquela igreja para deixar um bilhete no cesto, suplicando à musa de Dante que lhe concedesse não um amor de verdade, mas parte da inspiração que possibilitara ao poeta redigir sua imensa obra.
Cante em mim, ó Musa, e através de mim narre a história...
O verso de abertura da Odisseia de Homero lhe parecera uma súplica digna e bem lá no fundo ele acreditava que sua mensagem houvesse de fato despertado a inspiração divina de Beatriz: ao voltar para casa, escrevera o livro com uma facilidade incomum.
– Scusate! – retumbou de repente a voz de Sienna. – Potete ascoltarmi tutti? – Todos podem me ouvir?
Quando Langdon se virou, viu que ela se dirigia em voz alta ao pequeno grupo de turistas; todos agora olhavam para ela parecendo um tanto alarmados.
Sienna lhes presenteou com um sorriso encantador e perguntou, em italiano, se alguém por acaso não teria um exemplar da Divina Comédia. Depois de alguns olhares desconfiados e cabeças fazendo que não, tentou a mesma pergunta em inglês, mas obteve o mesmo resultado.
Uma senhora mais velha que varria o altar sibilou de um jeito ríspido e levou um dedo aos lábios, pedindo silêncio.
Sienna tornou a se virar para Langdon e fechou a cara como se perguntasse: “E agora?”
O alerta geral por ela gritado não era bem o que Langdon tinha em mente, mas ele precisava admitir que esperava uma reação melhor do que a recebida. Em visitas anteriores, vira muitos turistas lendo A Divina Comédia naquele espaço sagrado, parecendo imersos no universo dantesco.
Hoje não é bem assim.
Então viu um casal de idosos sentado perto do altar. A cabeça calva do homem estava inclinada para a frente, o queixo colado ao peito. Era óbvio que estava cochilando. A mulher ao seu lado, por sua vez, parecia muito desperta, com um par de fios brancos de fones de ouvido pendurados sob os cabelos grisalhos.
Uma centelha de esperança, pensou Langdon, subindo a nave da igreja até junto do casal. Como ele torcera para acontecer, os fios brancos que vira desciam até um iPhone no colo da mulher. Quando se sentiu observada, ela ergueu os olhos e tirou os fones do ouvido.
Langdon não fazia ideia de que língua ela falava, mas a proliferação global de iPhones, iPads e iPods havia criado um vocabulário tão universal quanto a sinalização de masculino e feminino em portas de banheiro mundo afora.
– iPhone? – perguntou ele, olhando para o aparelho com um ar de admiração.
A senhora reagiu com uma animação instantânea e assentiu, orgulhosa.
– Nunca vi brinquedinho mais inteligente – sussurrou ela com um sotaque britânico. – Meu filho comprou para mim. Estou ouvindo meu e-mail. Dá pra acreditar? Ouvindo meu e-mail. Esta maravilha lê as mensagens para mim. Uma ajuda e tanto para meus olhos cansados.
– Também tenho um – disse Langdon com um sorriso, sentando-se ao lado dela com cuidado para não acordar o marido. – Mas o perdi ontem à noite, não sei como.
– Ai, que tragédia! Já tentou usar o “Buscar Meu iPhone”? Meu filho disse que...
– Por pura burrice, nunca habilitei esse recurso. – Langdon fitou a mulher com um ar envergonhado e arriscou, hesitante: – Se não for muito abuso, a senhora se importaria de me emprestar o seu um instantinho? Preciso fazer uma pesquisa na internet. Me ajudaria muito.
– Mas claro! – Ela desconectou os fones do aparelho e o entregou a Langdon. – Não tem o menor problema! Coitadinho do senhor.
Langdon agradeceu e pegou o telefone. Enquanto ela seguia tagarelando ao seu lado sobre como ficaria arrasada caso perdesse o seu iPhone, ele abriu a página de busca do Google e pressionou a tecla do microfone. O aparelho apitou uma vez e ele pronunciou o que queria pesquisar:
– Dante, Divina Comédia, Paraíso, Canto XXV.
A mulher pareceu impressionada: pelo visto ainda não conhecia aquele recurso. Conforme os resultados da pesquisa começavam a surgir na pequena tela, Langdon lançou um breve olhar para Sienna, que folheava algum material impresso perto do cesto de cartas para Beatriz.
Não muito longe dela, um homem de gravata ajoelhado nas sombras rezava com fervor, a cabeça muito abaixada. Langdon não conseguiu ver seu rosto, mas sentiu uma pontada de tristeza por aquele homem solitário que decerto havia perdido seu amor e ido até lá em busca de consolo.
Tornou a prestar atenção no iPhone e em poucos segundos conseguiu um link para uma versão digital da Divina Comédia – como a obra estava em domínio público, o acesso era gratuito. Quando a página se abriu precisamente no Canto XXV, viu-se obrigado a admitir que estava impressionado com aquela tecnologia. Preciso parar de ser tão esnobe com essa coisa de livros de papel, pensou. Os e-books têm lá as suas vantagens.
Sob o olhar da velha senhora, que mostrava certa preocupação e dizia algo sobre as altas tarifas de dados para acessar a internet do exterior, Langdon entendeu que sua oportunidade seria breve, então se concentrou na página de internet à sua frente.
A fonte era pequena, mas a penumbra da capela tornava a tela iluminada mais legível. Langdon ficou satisfeito ao constatar que por acaso havia topado com a moderna e muito apreciada tradução para o inglês do falecido professor universitário americano Allen Mandelbaum. Pelo primoroso trabalho, o tradutor fora condecorado com a Ordem da Estrela da Solidariedade Italiana. Embora reconhecidamente menos poética do que a versão de Longfellow, a tradução de Mandelbaum tendia a ser bem mais compreensível.
Hoje vou preferir clareza a poesia, pensou Langdon, esperando encontrar logo no texto a referência a um local específico em Florença: o lugar em que Ignazio havia escondido a máscara mortuária de Dante.
A pequena tela do iPhone mostrava apenas seis versos de cada vez. Assim que começou a ler, Langdon se lembrou do trecho. No começo do Canto XXV, Dante falava sobre a própria Comédia, sobre o fardo físico que lhe custara escrevê-la e sobre a ardorosa esperança de que talvez o poema celestial pudesse vencer a brutalidade do degredo que o mantinha longe de sua bela Florença.
Canto XXV
Se porventura este poema sagrado,
engendrado tanto na Terra como no Céu,
e que tanto me exauriu por longos anos,
puder vencer a crueldade que me afasta
do leito sublime em que repousava,
um cordeiro em meio aos lobos que ali guerreiam...
Embora o trecho fosse um lembrete de que a sublime Florença era o lar pelo qual Dante ansiava ao escrever a Divina Comédia, Langdon não viu referência a nenhum local específico da cidade.
– O senhor sabe alguma coisa sobre as tarifas de dados? – interrompeu a dona do iPhone, olhando para o telefone com uma apreensão repentina. – Acabei de lembrar que meu filho me falou para tomar cuidado ao navegar na internet no exterior.
Langdon lhe garantiu que não iria demorar e se ofereceu para ressarci-la, mas mesmo assim percebeu que ela nunca o deixaria ler todos os cem versos do Canto XXV.
Apressou-se em descer o texto até os seis versos seguintes e prosseguiu a leitura.
Então com outra voz, o cabelo já branco,
poeta voltarei à fonte do meu batismo
para lá revestir a coroa de louros;
pois ali me foi apresentada a fé
que ao reino de Deus as almas conduz,
e pela qual por Pedro fui cingido.
Também se lembrava vagamente desse trecho: uma referência velada ao acordo político oferecido a Dante por seus inimigos. Segundo a história, os “lobos” que baniram o poeta de Florença lhe teriam dito que ele só poderia retornar se concordasse em se submeter a uma humilhação pública: apresentar-se perante toda uma congregação, sozinho diante de sua pia batismal, trajando apenas burel para admitir sua culpa.
No trecho que ele acabara de ler, Dante, que havia recusado o acordo, proclama que, se um dia retornasse à sua pia batismal, não seria com o burel de um penitente, mas com a coroa de louros de um poeta.
Langdon ergueu o indicador para continuar a descer pelo texto, mas a dona do telefone protestou de repente e estendeu a mão para pegar o aparelho de volta, aparentemente reconsiderando o favor.
Mas ele mal a escutou. Uma fração de segundo antes de tocar a tela, seus olhos haviam passado por um par de versos... que ele então releu.
poeta voltarei à fonte do meu batismo
para lá revestir a coroa de louros;
Ficou encarando aquelas palavras e se deu conta de que, na ânsia de encontrar uma menção a um local específico, quase deixara passar uma pista promissora em um dos primeiros versos do canto:
à fonte do meu batismo...
Em Florença ficava uma das mais famosas pias batismais do mundo, que havia mais de setecentos anos era usada para purificar e batizar jovens florentinos – entre eles Dante Alighieri.
No mesmo instante, Langdon visualizou a construção que abrigava tal pia: um edifício espetacular, em formato octogonal, sob muitos aspectos mais celestial do que o próprio Duomo. Perguntou-se então se já não teria lido tudo o que precisava.
Será esse o lugar a que Ignazio estava se referindo?
Um raio dourado de luz lampejou em sua mente e fez surgir uma linda imagem: um espetacular conjunto de portas de bronze, radiantes, cintilando ao sol da manhã.
Já sei o que Ignazio estava tentando me dizer!
Qualquer resquício de dúvida se dissipou logo em seguida, quando ele entendeu que Ignazio Busoni era uma das únicas pessoas em Florença capazes de destrancar aquelas portas.
Robert, os portões estão abertos para você, mas não demore.
Langdon devolveu o iPhone para a velha senhora e lhe agradeceu profusamente.
Caminhou a passos rápidos até Sienna e sussurrou-lhe empolgado:
– Já sei a que portões Ignazio estava se referindo! Os Portões do Paraíso!
Sienna pareceu não levar muita fé.
– Portões do Paraíso? Mas eles não ficam... no Céu?
– Na verdade – disse Langdon, abrindo um sorriso de ironia e se encaminhando para a porta –, se você souber onde procurar, Florença é o Céu.
Poeta voltarei... à fonte do meu batismo.
As palavras de Dante não paravam de ecoar na mente de Langdon enquanto ele e Sienna atravessavam, rumo ao norte, a estreita passagem conhecida como Via dello Studio. Seu destino estava logo à frente e a cada passo Langdon ficava mais seguro não apenas de que estavam no caminho certo, mas também de que tinham deixado seus perseguidores para trás.
Os portões estão abertos para você, mas não demore.
Conforme se aproximavam do fim do beco, que mais parecia um abismo, Langdon pôde ouvir o fraco burburinho de atividade mais à frente. De repente, a caverna que os cercava sumiu e eles desembocaram em um amplo espaço.
A Piazza del Duomo.
Com sua complexa rede de estruturas, a imensa praça era o antigo centro religioso de Florença. Atualmente um importante centro turístico, a praça já fervilhava com vários ônibus de excursão e multidões de visitantes que se aglomeravam em volta da célebre catedral de Florença.
Depois de chegarem pelo lado sul da piazza, Langdon e Sienna se viram de frente para um dos lados da catedral, com seu deslumbrante exterior de mármore verde, rosa e branco. Tão impressionante pelas proporções quanto pelo esmero artístico investido em sua construção, o prédio se estendia em ambas as direções até alcançar um tamanho aparentemente impossível. Seu comprimento total era pouco menor que a altura do Monumento a Washington.
Embora favorecesse uma rara e exuberante mistura de cores em detrimento da tradicional filigrana de pedra monocromática, a catedral tinha estilo puramente gótico – clássica, sólida e resistente. Na verdade, em sua primeira visita a Florença, Langdon achara aquela arquitetura quase cafona. Nas viagens seguintes, porém, pegara-se estudando a catedral durante horas a fio – seduzido por seus efeitos estéticos pouco usuais –, até que por fim passara a admirar sua beleza espetacular.
Além de ter proporcionado um apelido para Ignazio Busoni, Il Duomo – ou, em seu nome formal, a Catedral de Santa Maria del Fiore – também servira por muito tempo não só como centro espiritual para a cidade, mas também como palco para séculos de drama e intriga. O volátil passado da construção ia desde prolongados e aguerridos debates acerca do tão desprezado afresco do Juízo final de Vasari, pintado no interior da cúpula, até a disputadíssima competição para escolher o arquiteto que concluiria a cúpula em si.
Filippo Brunelleschi acabara conseguindo o lucrativo contrato para terminar a cúpula – a maior em seu estilo na época. Até hoje, o arquiteto pode ser visto esculpido sentado em frente ao Palazzo dei Canonici, olhos erguidos para sua obra-prima com um ar satisfeito.
Nesta manhã, Langdon erguia seus olhos para a famosa cúpula de tijolos vermelhos que tinha sido o prodígio arquitetônico de sua época, lembrando-se da vez em que cometera a tolice de subir até o alto da cúpula – apenas para descobrir que suas escadas estreitas e abarrotadas de turistas eram tão claustrofóbicas quanto qualquer outro espaço apertado que ele já tivesse enfrentado. Ainda assim, Langdon se sentia grato por ter passado pelo calvário de escalar o “Domo de Brunelleschi”, uma vez que este o incentivara a ler um divertido livro de Ross King com o mesmo título.
– Robert? – chamou Sienna. – Vamos?
Langdon tirou os olhos da cúpula, percebendo que havia parado para admirar a arquitetura.
– Desculpe.
Os dois seguiram em frente, mantendo-se rente aos limites da praça. Com a catedral agora à sua direita, Langdon reparou que um fluxo de turistas já deixava o edifício pelas saídas laterais, riscando o monumento de sua lista de atrações a visitar.
Logo à frente assomava o formato inconfundível de um campanário – a segunda das três estruturas do complexo da catedral. Mais conhecido como Campanário de Giotto, o campanile não deixava dúvida de que formava um par com a catedral vizinha. Revestida com as mesmas pedras cor-de-rosa, verdes e brancas, a torre quadrada erguia-se em direção ao céu até uma vertiginosa altura de quase 100 metros. Langdon sempre havia considerado incrível que aquela estrutura esguia tivesse permanecido em pé por tantos séculos, resistindo a terremotos e intempéries, sobretudo sabendo-se quanto pesava o seu topo, que sustentava mais de nove toneladas de sinos.
Sienna caminhava ao seu lado a passos rápidos, nervosa, vasculhando com os olhos o céu acima do campanile. Estava claro que procurava o drone, mas não o encontrou. Apesar da hora, a multidão já estava bastante densa, e Langdon fez questão de se manter bem no meio dela.
Ao se aproximarem do campanile, passaram por uma fila de caricaturistas que, em pé diante de seus cavaletes, desenhavam retratos exagerados dos turistas – um adolescente andando de skate; uma menina dentuça empunhando um taco de lacrosse; um casal em lua de mel se beijando montado em um unicórnio. Langdon achou engraçado que aquela atividade fosse permitida sobre as mesmas pedras sagradas do calçamento em que, ainda menino, Michelangelo havia montado seu cavalete.
Contornando depressa a base do Campanário de Giotto, Langdon e Sienna viraram à direita e atravessaram o pátio externo bem em frente à catedral. Ali a multidão era mais cerrada, com turistas do mundo inteiro erguendo câmeras de celular e filmadoras para a colorida fachada principal.
Langdon mal olhou para cima, pois já estava concentrado em uma estrutura bem menor que acabara de surgir em seu campo de visão. Bem em frente à entrada principal da catedral ficava a terceira e última estrutura do complexo.
Era também a preferida de Langdon.
O Batistério de San Giovanni.
Adornado com as mesmas pedras policromáticas e colunas listradas da catedral, o batistério se destacava do edifício maior pelo formato surpreendente – um octógono perfeito. Parecida, segundo alguns, com um bolo de noiva, a construção de oito lados consistia em três andares distintos que subiam até um baixo telhado branco.
Langdon sabia que o formato octogonal nada tinha a ver com estética, mas sim com simbologia. Na Cristandade, o número oito representava renascimento e recriação. O octógono funcionava como um lembrete visual dos seis dias que Deus levara para criar o Céu e a Terra, mais o dia de descanso e o oitavo dia, no qual os cristãos “renasciam” ou eram “recriados” por meio do batismo. Por causa disso, esse havia se tornado um formato comum para batistérios mundo afora.
Embora Langdon considerasse aquele batistério uma das mais belas construções florentinas, sempre achara sua localização um pouco injusta. Em qualquer outro lugar do mundo, aquele batistério seria o centro das atenções. Ali, porém, à sombra de seus dois irmãos colossais, ficava parecendo um anãozinho.
Até você entrar nele, Langdon lembrou a si mesmo, visualizando o assombroso trabalho em mosaico do interior, tão espetacular que alguns dos primeiros a vê-lo afirmaram que o teto do batistério se assemelhava ao próprio Paraíso. Como ele tinha dito a Sienna com ironia: Se você souber onde procurar, Florença é o Paraíso.
Durante muitos séculos, aquele santuário de oito lados servira de cenário para o batismo de incontáveis personalidades importantes – entre elas o próprio Dante.
Poeta voltarei... à fonte do meu batismo.
Exilado, Dante jamais tivera permissão para voltar àquele recinto sagrado – o lugar de seu batismo –, mas Langdon tinha cada vez mais esperança de que, graças à improvável sequência de acontecimentos da noite anterior, a máscara mortuária finalmente houvesse encontrado o caminho de volta no lugar do poeta.
O batistério, pensou Langdon. Só pode ter sido aqui que Ignazio escondeu a máscara antes de morrer. Lembrando-se do recado desesperado do amigo ao telefone, ele sentiu um frio na espinha ao imaginar o homem corpulento apertando o próprio peito, atravessando cambaleante a piazza até um beco e dando um último telefonema antes de confiar a máscara à segurança do batistério.
Os portões estão abertos para você.
Langdon não desgrudou os olhos do batistério enquanto ele e Sienna ziguezagueavam em meio à multidão. Ela agora se movia com tanta agilidade e determinação que Langdon quase tinha que correr para acompanhá-la. Mesmo de longe, pôde ver as imensas portas de entrada do batistério a reluzir sob o sol.
Feitas em bronze folheado a ouro e com quase 5 metros de altura, as portas haviam ocupado o artista Lorenzo Ghiberti por mais de duas décadas. Eram enfeitadas com dez intricados painéis de delicadas figuras bíblicas que, de tão refinadas, levaram Giorgio Vasari a qualificar as portas como “indubitavelmente perfeitas sob todos os aspectos e... a mais bela obra-prima já criada”.
No entanto, o que lhes valera um apelido que perdurava até os dias de hoje tinha sido o elogio rasgado de Michelangelo: segundo o artista, de tão belas, aquelas portas poderiam servir... de Portões do Paraíso.
A Bíblia escrita em bronze, pensou Langdon, admirando as lindas portas à sua frente.
Os reluzentes Portões do Paraíso de Ghiberti consistiam em dez painéis quadrados, cada um retratando uma cena importante do Antigo Testamento. Do Jardim do Éden a Moisés e ao templo do rei Salomão, a narrativa em relevo de Ghiberti se desdobrava por duas colunas verticais de cinco painéis cada.
Ao longo dos séculos, o espantoso conjunto de cenas individuais havia gerado uma espécie de concurso de popularidade entre artistas e historiadores da arte, cada qual, de Botticelli aos críticos mais recentes, defendendo sua preferência pelo “painel mais bonito”. Por consenso geral, o vencedor era Esaú e Jacó – o painel central da coluna da esquerda –, supostamente escolhido por causa do impressionante número de métodos artísticos usados em sua confecção. No entanto, Langdon suspeitava que a verdadeira razão para a preferência por esse painel fosse o fato de ele ter sido o escolhido por Ghiberti para assinar seu nome.
Alguns anos antes, Ignazio Busoni havia mostrado com orgulho aquelas portas a Langdon. Na ocasião, chegara a admitir, encabulado, que após mil anos de exposição a enchentes, vandalismo e poluição, as portas douradas tinham sido discretamente trocadas por réplicas idênticas, e que as originais agora se encontravam na segurança do Museo dell’Opera del Duomo para serem restauradas. Por educação, Langdon não disse a Busoni que tinha plena consciência de estar admirando cópias e que, na realidade, aquele era o segundo par de “falsas” portas de Ghiberti que já vira. Havia topado com o primeiro par por acaso, quando, durante pesquisas sobre labirintos na Catedral da Graça, em São Francisco, descobrira que as réplicas dos Portões do Paraíso de Ghiberti vinham servindo como portas da frente para essa catedral desde meados do século XX.
Diante da obra-prima de Ghiberti, os olhos de Langdon foram atraídos para a tabuleta informativa montada ali perto, na qual uma simples expressão em italiano chamou sua atenção e o espantou.
La peste nera. “A peste negra.” Meu Deus, pensou Langdon, ela está por toda parte! Segundo a tabuleta, as portas haviam sido encomendadas como oferenda “votiva” a Deus – uma prova de gratidão pelo fato de Florença ter, por motivos desconhecidos, sobrevivido à epidemia.
Langdon se forçou a olhar outra vez para os Portões do Paraíso, as palavras de Ignazio tornando a ecoar em sua mente: Os portões estão abertos para você, mas não demore.
Apesar da promessa de Ignazio, estava claro que os Portões do Paraíso encontravam-se fechados, como sempre acontecia – exceto em raros feriados religiosos. Os turistas em geral entravam no batistério por outro lado, usando a porta norte.
Ao seu lado, Sienna, na ponta dos pés, tentava espiar por cima da multidão.
– Não tem maçaneta – constatou. – Nem fechadura. Nada.
É verdade, pensou Langdon, sabendo que Ghiberti não iria arruinar sua grande obra com algo tão trivial quanto uma maçaneta.
– As portas abrem para dentro. São trancadas pelo outro lado.
Sienna pensou por alguns instantes, franzindo os lábios.
– Quer dizer que daqui de fora... ninguém saberia se elas estão trancadas ou não.
Langdon assentiu.
– Estou torcendo para Ignazio também ter pensado assim.
Deu alguns passos para a direita e espiou pela lateral norte do prédio em direção a uma porta bem menos ornamentada – a entrada de turistas –, onde um vigia entediado fumava um cigarro e repelia visitantes desinformados, apontando para o cartaz afixado à porta: apertura 13:00 – 17:00.
Ainda faltam algumas horas para o batistério abrir, pensou Langdon, satisfeito. E ninguém entrou lá até agora.
Por instinto, olhou para o pulso e mais uma vez lembrou-se de que seu relógio do Mickey Mouse não estava lá.
Quando voltou para junto de Sienna, ela estava acompanhada por um grupo de turistas que tirava fotos por sobre as barras da grade simples de ferro erguida alguns metros à frente dos Portões do Paraíso para impedir os visitantes de chegarem perto demais da obra de Ghiberti.
Feita de ferro forjado negro encimado por pontas onduladas pintadas de dourado, imitando raios de sol, essa grade de proteção lembrava as cercas que costumavam delimitar as casas de subúrbio. Estranhamente, a placa informativa que descrevia os Portões do Paraíso havia sido afixada não às espetaculares portas de bronze em si, mas àquela reles grade protetora.
Langdon já ouvira dizer que o posicionamento da placa às vezes causava confusão entre os turistas. De fato, neste exato momento, uma mulher corpulenta, vestida com um conjunto de moletom da Juicy Couture, abriu caminho entre a multidão, espiou a placa, franziu o cenho para a grade de ferro e comentou com desdém:
– Portões do Paraíso? Ora, mais parece o portãozinho do canil lá de casa! – E afastou-se antes que alguém pudesse lhe explicar.
Sienna ergueu as mãos e agarrou a grade de proteção, espiando casualmente por sobre as barras para ver o mecanismo que a mantinha fechada por trás.
– Olhe – sussurrou ela, virando-se para Langdon com os olhos arregalados. – O cadeado ali de trás está aberto.
Langdon olhou por sobre as grades e viu que ela estava certa. O cadeado estava posicionado como se estivesse fechado, mas, olhando bem, dava para ver que, definitivamente, estava aberto.
Os portões estão abertos para você, mas não demore.
Langdon ergueu os olhos para os Portões do Paraíso do outro lado das grades. Se Ignazio houvesse de fato deixado as imensas portas do batistério destrancadas, bastaria empurrá-las e elas se abririam. Difícil, porém, seria entrar sem chamar a atenção de todas as pessoas na praça, o que incluía a polícia e os vigias do Duomo.
– Cuidado! – gritou de repente uma voz de mulher ali perto. – Ele vai pular! – A voz estava repleta de pavor. – Lá em cima, na torre do sino!
Langdon virou de costas para os portões e viu que a mulher que gritava era... Sienna. A uns 5 metros dali, ela apontava para o alto do Campanário de Giotto e exclamava:
– Lá no alto! Ele vai pular!
Todos os olhos se voltaram para o céu e puseram-se a vasculhar o topo do campanário. Ali perto, outros turistas começaram a apontar, estreitando os olhos e gritando uns para os outros.
– Alguém vai pular?!
– Onde?!
– Não estou vendo!
– Ali, à esquerda?!
Foi preciso apenas uns poucos segundos para todas as pessoas na praça sentirem o pânico e imitarem as primeiras, erguendo os olhos para o alto do campanário. Com a fúria de um incêndio consumindo um campo de palha seca, a onda de medo se espalhou pela piazza até deixar toda a multidão de pescoço esticado, olhando e apontando para o alto.
Marketing viral, pensou Langdon, sabendo que teria poucos segundos para agir. Sem demora, agarrou a grade de ferro e a abriu enquanto Sienna voltava para o seu lado, entrando junto com ele no pequeno espaço entre a grade e os portões. Uma vez fechada a grade, os dois se viraram para as portas de bronze de 5 metros de altura. Torcendo para ter interpretado corretamente a mensagem de Ignazio, Langdon pressionou o ombro contra uma das folhas da imensa porta dupla e fez força com as pernas.
A princípio, nada aconteceu. Então, muito devagar, a pesada folha começou a se mover. As portas estão abertas! Quando os Portões do Paraíso se abriram cerca de meio metro, Sienna se virou de lado sem titubear e atravessou a fresta. Langdon a imitou, esgueirando-se de lado pela abertura estreita e adentrando a escuridão do batistério.
Juntos, os dois se viraram e empurraram a porta na direção oposta, rapidamente fechando o gigantesco portão com um baque. No mesmo instante, o barulho e a confusão do lado de fora se extinguiram, deixando apenas silêncio.
Sienna apontou para uma comprida viga de madeira no chão a seus pés, que evidentemente devia ficar encaixada nas alças de ambos os lados das portas para mantê-las fechadas.
– Ignazio deve ter tirado a trave para você – comentou.
Os dois ergueram a viga do chão e a puseram de volta nos suportes, trancando os Portões do Paraíso... e isolando-se com segurança dentro do batistério.
Langdon e Sienna ficaram um bom tempo parados sem dizer nada, encostados na porta, recuperando o fôlego. Comparado aos barulhos da piazza lá fora, o interior do batistério era de fato tão sereno quanto o Paraíso.
Do lado de fora do batistério de San Giovanni, o homem de óculos Paris Plume e gravata paisley percorria a multidão, ignorando os olhares nervosos de quem reparava em suas sanguinolentas erupções.
Ele acabara de chegar às portas de bronze pelas quais Robert Langdon e sua companheira loura haviam astutamente sumido. Mesmo do lado de fora, pôde ouvir o pesado baque do portão sendo travado por dentro.
Impossível entrar por aqui.
Aos poucos, o clima na piazza voltava ao normal. Os turistas que antes olhavam para cima com expectativa já começavam a perder o interesse. Não há suicida nenhum. Todos voltaram a seus afazeres.
O homem tornou a sentir a coceira; a irritação estava piorando. Agora as pontas de seus dedos também estavam inchadas e rachadas. Ele enfiou as mãos nos bolsos para não se coçar. Seu peito ainda latejava quando ele se pôs a contornar o octógono em busca de outra entrada.
Mal havia dobrado a esquina quando sentiu uma pontada de dor no pomo de adão e percebeu que estava se coçando outra vez.
Reza a lenda que é fisicamente impossível não olhar para cima ao se entrar no batistério de San Giovanni. Embora tivesse estado ali muitas vezes, Langdon sentiu o magnetismo místico do lugar e deixou o próprio olhar se erguer em direção ao teto.
Muito acima deles, a superfície da abóbada octogonal, que se estendia por 25 metros de um lado a outro, cintilava e reluzia como se fosse feita de carvões em brasa. Sua superfície polida cor de âmbar refletia a luz ambiente de forma irregular a partir de mais de um milhão de pastilhas smalti – pequeninas peças de mosaico de sílica vitrificada cortadas à mão e afixadas sem cimento – dispostas em seis círculos concêntricos que retratavam cenas da Bíblia.
Acrescentando intensa dramaticidade à porção superior do recinto, a luz natural penetrava o espaço escuro por uma grande abertura central, à semelhança da que havia no Panteão de Roma. Esta, por sua vez, era rodeada por uma série de janelas altas, pequenas e bem afundadas na alvenaria, que deixavam entrar fachos de luz tão concentrados e precisos que pareciam quase sólidos, como vigas estruturais inclinadas em ângulos em constante mutação.
À medida que avançava com Sienna batistério adentro, Langdon assimilava o lendário mosaico do teto – uma representação em múltiplas camadas do Céu e do Inferno, muito parecida com aquela descrita na Divina comédia.
Dante Alighieri viu isto quando criança, pensou. Uma inspiração vinda das alturas.
Langdon fixou o olhar na peça central do mosaico. Pairando diretamente acima do altar-mor erguia-se um Jesus Cristo de mais de 8 metros, sentado, julgando os redimidos e os condenados.
À direita de Jesus, os justos recebiam a recompensa da vida eterna.
À esquerda, porém, os pecadores eram apedrejados, assados em espetos e devorados por toda a sorte de criaturas.
Retratado em um colossal mosaico na forma de uma criatura infernal e devoradora de homens, Satã supervisionava a tortura. Langdon sempre se encolhia ao ver aquela figura, que, mais de setecentos anos antes, havia pairado acima do jovem Dante Alighieri, aterrorizando-o e, mais tarde, vindo a inspirar seu vívido retrato daquele que habitava o último círculo do Inferno.
O assustador mosaico acima deles retratava um demônio chifrudo em pleno ato de devorar um ser humano pela cabeça. As pernas da vítima pendiam da boca de Satã de um jeito que lembrava os pecadores enterrados até a cintura, com as pernas se debatendo no ar, do Malebolge dantesco.
Lo ’mperador del doloroso regno, pensou Langdon, relembrando o texto do poeta. O imperador do reino de agonia.
Duas serpentes enormes e rastejantes brotavam de dentro das orelhas de Satã para também devorarem pecadores, o que dava a impressão de que a criatura demoníaca tinha três cabeças, exatamente como Dante descrevia no último canto de seu Inferno. Langdon vasculhou a memória e se lembrou de alguns fragmentos da cena imaginada pelo poeta.
Quando vi em sua testa três faces... Com seis olhos chorava, e por três queixos lhe escorria o pranto e a sanguinosa baba... Em cada boca com os dentes um pecador dilacerava.
Langdon sabia que o fato de o mal de Satanás ser triplicado possuía um grande significado simbólico: servia para colocá-lo em perfeito equilíbrio com a trina glória da Santíssima Trindade.
Com os olhos erguidos para a horrenda visão, tentou imaginar o efeito daquele mosaico no jovem Dante, que passara tantos anos assistindo a missas naquela igreja, com Satã a observá-lo lá de cima sempre que rezava. Nesta manhã, porém, Langdon teve a desagradável sensação de que o diabo estava olhando diretamente para ele.
Baixou depressa o olhar para a sacada do primeiro andar, onde ficava a galeria da qual se podia observar o batistério – o único lugar de onde as mulheres eram autorizadas a assistir aos batismos. Em seguida, olhou para o túmulo suspenso do antipapa João XXIII, cujo corpo repousava no alto da parede, qual um homem das cavernas ou um voluntário em um truque de levitação de algum ilusionista.
Por fim, seu olhar chegou ao chão ornado com rebuscados ladrilhos, que muitos pensavam conter referências à astronomia medieval. Deixou que os olhos percorressem os intricados padrões em preto e branco até chegarem bem ao centro do recinto.
E ali está, pensou, sabendo que olhava para o lugar exato em que Dante Alighieri fora batizado, na segunda metade do século XIII.
– Poeta voltarei... à fonte do meu batismo – recitou, sua voz ecoando pelo espaço vazio. – É isso.
Sienna também encarou o centro do piso, para onde Langdon agora apontava. Tinha a expressão preocupada.
– Mas... não tem nada aqui.
– Não mais – respondeu Langdon.
Tudo o que restava era um grande octógono de cimento marrom-avermelhado. A peça de oito faces de estranha simplicidade interrompia de forma clara o padrão do piso, cujo aspecto era muito mais ornamentado: na verdade, parecia um buraco grande e remendado – e era justamente isso.
Langdon explicou de modo breve que a pia ou fonte batismal original era uma grande piscina octogonal localizada bem no centro do batistério. Enquanto as pias modernas costumavam ser recipientes elevados, as mais antigas se aproximavam do significado literal da palavra fonte – “nascente” ou “manancial” –, nesse caso uma funda piscina d’água na qual os batizandos podiam ser imersos por completo. Langdon tentou imaginar o grito de pavor das crianças ecoando por aquelas paredes de pedra, ao serem literalmente mergulhadas na grande piscina de água gelada que outrora ocupava o centro do piso.
– Batismos eram uma coisa fria e assustadora – falou. – Um verdadeiro rito de passagem. Perigoso, até. Dizem que Dante certa vez pulou dentro da piscina para salvar uma criança que estava se afogando. A antiga pia batismal foi coberta em algum momento do século XVI.
Sienna então se pôs a correr os olhos pelo batistério, em óbvia aflição.
– Mas, se a pia batismal de Dante não existe mais... onde Ignazio escondeu a máscara?!
Langdon entendia sua inquietação. Não faltavam esconderijos naquele lugar imenso – atrás de colunas, estátuas, tumbas, nichos, no altar ou mesmo no andar superior.
Apesar disso, foi com uma segurança notável que ele se virou para encarar a porta pela qual haviam acabado de entrar.
– Melhor começarmos por ali – falou, apontando para uma área junto à parede logo à direita dos Portões do Paraíso.
Sobre uma plataforma elevada, atrás de uma grade decorativa, havia um pedestal hexagonal de mármore esculpido que se assemelhava a um pequeno altar ou mesa para auxiliar na missa. Os relevos do exterior eram tão complexos que a peça mais parecia um camafeu de madrepérola. Sobre essa base de mármore havia um tampo de madeira encerada com mais ou menos um metro de diâmetro.
Hesitante, Sienna seguiu Langdon até lá. Conforme subiam os degraus e passavam para o outro lado da grade de proteção, Sienna olhou mais de perto. Ao perceber o que estava vendo, soltou um arquejo de espanto.
Langdon sorriu. Isso mesmo; não é um altar nem uma mesa. A tábua de madeira encerada era, na verdade, uma tampa que recobria a estrutura.
– Uma pia batismal? – perguntou ela.
Langdon assentiu.
– Se Dante fosse batizado hoje, seria nesta pia aqui.
Sem perder tempo, ele respirou fundo, com determinação, e pousou as palmas das mãos no tampo de madeira, sentindo um arrepio de expectativa ao se preparar para retirá-lo.
Segurando com firmeza as bordas da tampa, moveu-a para um dos lados, deslizando-a com cuidado sobre a base de mármore e colocando-a no chão ao lado da pia. Então baixou os olhos para o espaço oco e escuro de meio metro de largura.
A visão sinistra o fez engolir em seco.
Das sombras, o rosto morto de Dante Alighieri o encarava de volta.
Busca e encontrarás.
Parado junto à borda da pia batismal, Langdon encarou a máscara mortuária amarelo-clara, cujo semblante enrugado o fitava lá de baixo com uma expressão vazia. O nariz adunco e o queixo proeminente eram inconfundíveis.
Dante Alighieri.
O rosto sem vida já era suficientemente perturbador, mas algo em sua posição dentro da pia lhe dava um ar quase sobrenatural. Por alguns instantes, Langdon não soube ao certo o que estava vendo.
A máscara está... suspensa no ar?
Inclinou-se para examinar mais de perto o objeto à sua frente. A pia tinha vários metros de profundidade – era mais um poço vertical do que uma bacia – e suas paredes íngremes desciam até um recipiente hexagonal cheio d’água. Por mais estranho que parecesse, a máscara parecia flutuar a meio caminho do fundo, pairando logo acima da superfície da água como por encanto.
Langdon levou alguns instantes para perceber o que estava causando aquela ilusão de óptica. A pia tinha um eixo vertical no centro que se erguia até a metade da sua altura, achatando-se para formar uma espécie de pequena bandeja de metal logo acima da água. A bandeja parecia um chafariz decorativo ou talvez um apoio para o bumbum de um bebê, mas no momento funcionava como um pedestal sobre o qual a máscara de Dante repousava, em segurança, acima do nível da água.
Nem Langdon nem Sienna disseram nada enquanto permaneciam ali de pé, lado a lado, olhando para baixo em direção ao rosto enrugado de Dante Alighieri, ainda protegido pelo saco Ziploc, como se tivesse sido sufocado. Por alguns instantes, a imagem de um rosto olhando para cima do fundo de uma bacia cheia d’água fez Langdon se lembrar da experiência que tivera quando criança, preso no fundo de um poço e olhando desesperado para o céu.
Afastando esse pensamento, abaixou a mão com cuidado e segurou a máscara pelos dois lados, onde deviam ficar as orelhas de Dante. Embora fosse um rosto pequeno para os padrões atuais, o gesso antigo era mais pesado do que ele esperava. Devagar, Langdon retirou a máscara da pia e a suspendeu para que ele e Sienna pudessem examiná-la mais de perto.
Mesmo por trás do saco plástico, a máscara era de um realismo notável. Cada ruga, cada marca do rosto do velho poeta havia sido registrada pelo gesso úmido. Exceto por uma antiga rachadura no centro, a peça estava em perfeitas condições.
– Vire a máscara – sussurrou Sienna. – Vamos ver o lado de trás.
Era justamente o que Langdon já estava fazendo. O vídeo de segurança do Palazzo Vecchio deixara claro que Langdon e Ignazio tinham descoberto alguma coisa no verso da máscara – algo de um interesse tão espantoso que os dois haviam saído do palácio levando o artefato.
Tomando um cuidado excepcional para não deixar o gesso frágil cair, Langdon virou a máscara e a pousou de cabeça para baixo na palma da mão direita, para que pudessem examinar o verso. Em contraste com o rosto castigado e cheio de texturas de Dante, o lado interno da máscara era liso e sem marcas. Como a delicada peça não tinha sido feita para ser usada, a parte de trás fora preenchida com gesso para lhe conferir certa solidez, produzindo uma superfície uniforme e côncava, como uma tigela de sopa rasa.
Langdon não sabia o que esperava encontrar no verso da máscara, mas com certeza não era aquilo.
Nada.
Absolutamente nada.
Apenas uma superfície lisa e vazia.
Sienna parecia igualmente atônita.
– Só gesso? – sussurrou. – Se não há nada aqui, o que você e Ignazio viram?
Não faço ideia, pensou Langdon, esticando o saco plástico por cima do gesso para ver melhor. Não há nada aqui! Cada vez mais aflito, ergueu a máscara até um facho de luz e a examinou com atenção. Ao incliná-la para melhorar o ângulo de visão, por um instante achou que tivesse vislumbrado uma leve descoloração perto do alto – uma linha de marcações que corria na horizontal pelo lado interno da testa de Dante.
Será uma marca natural? Ou quem sabe... alguma outra coisa? Virando-se na mesma hora, Langdon apontou para um painel de mármore com dobradiças na parede atrás deles.
– Dê uma olhada ali dentro – pediu a Sienna. – Veja se tem algum pano.
Embora parecesse cética, Sienna obedeceu e abriu o armário discretamente disfarçado, que continha três coisas: uma válvula para controlar o nível de água da pia; um interruptor para acionar a luz acima dela e... uma pilha de toalhas de linho.
Sienna lançou um olhar de surpresa para Langdon, mas ele já visitara um número suficiente de igrejas mundo afora para saber que pias batismais quase sempre proporcionavam aos padres acesso fácil a cueiros de emergência – uma vez que a imprevisibilidade das bexigas infantis representava um risco universal para qualquer batizado.
– Ótimo – disse ele, olhando de relance para os panos. – Pode segurar a máscara um instante?
Com cuidado, ele transferiu o objeto para as mãos de Sienna e pôs mãos à obra.
Primeiro, pegou a tampa hexagonal e tornou a colocá-la em cima da pia para reconstituir a pequena mesa semelhante a um altar que tinham visto antes. Em seguida, pegou vários cueiros de linho do armário e os estendeu por cima da madeira, como uma toalha de mesa. Por fim, acionou o interruptor de luz da pia batismal e a lâmpada acima dela imediatamente se acendeu, iluminando a área do batismo e projetando um brilho intenso sobre a superfície coberta.
Com delicadeza, Sienna depositou a máscara sobre a pia batismal enquanto Langdon pegava mais panos, que usou como se fossem pegadores de panela para retirar a máscara do Ziploc, tomando cuidado para não tocá-la com as mãos nuas. Instantes depois, a máscara mortuária de Dante jazia descoberta e sem proteção, com o rosto virado para a luz forte, como a cabeça de um paciente anestesiado sobre uma mesa de cirurgia.
A expressiva textura da máscara parecia ainda mais perturbadora sob a luz, o gesso descorado realçando os vincos e rugas da idade avançada. Sem perder tempo, Langdon usou os pegadores de panela improvisados para virar a máscara e pousá-la de cabeça para baixo.
O verso tinha um aspecto bem menos envelhecido do que a frente – limpo e branco, em vez de encardido e amarelo.
Sienna inclinou a cabeça, intrigada.
– Não está achando este lado mais novo?
De fato, a diferença de cor era bem mais evidente do que Langdon teria imaginado, mas aquele lado com certeza tinha a mesma idade da frente.
– Envelhecimento irregular – disse ele. – O verso ficou protegido pela vitrine, por isso que não sofreu os efeitos envelhecedores da luz.
Langdon fez uma anotação mental para dobrar o fator de proteção de seu filtro solar.
– Espere aí – disse Sienna, chegando mais perto da máscara. – Olhe! Aqui na testa! Deve ter sido isso que você e Ignazio viram.
Langdon correu os olhos pela superfície branca e lisa até a mesma descoloração que vira antes através do plástico – uma linha tênue de marcas que percorria na horizontal o lado interno da testa de Dante. Mas agora, sob a luz forte, Langdon viu com clareza que aquelas marcas não eram uma descoloração natural... eram propositais.
– É... uma inscrição – sussurrou Sienna, engasgando-se com as palavras. – Mas...
Langdon analisou as inscrições no gesso. Uma única fileira de letras, escritas com uma caligrafia floreada em um débil tom marrom-claro.
– É só isso que diz? – indagou ela, soando quase zangada.
Langdon mal a ouviu. Quem escreveu isso?, perguntou-se. Alguém da época de Dante? Parecia improvável. Nesse caso, algum historiador da arte teria visto a inscrição muito tempo antes, durante alguma limpeza ou restauração de rotina, e a inscrição teria se tornado parte do folclore da peça. Mas ele nunca tinha ouvido falar naquilo.
Uma fonte bem mais provável logo se materializou em sua mente.
Bertrand Zobrist.
Como dono da máscara, teria sido fácil para Zobrist solicitar acesso reservado a ela quando bem entendesse. Poderia ter escrito o texto no verso pouco tempo atrás e depois tornado a guardá-la na vitrine sem que ninguém descobrisse. O dono da máscara, dissera-lhes Marta, não permite nem mesmo que os nossos funcionários abram a vitrine sem a sua presença.
Langdon explicou rapidamente sua teoria.
Sienna pareceu aceitar a lógica do que ele dizia, mas era óbvio que não estava convencida.
– Não faz sentido – disse ela, parecendo agitada. – Se Zobrist escreveu algo em segredo no verso da máscara mortuária de Dante e ainda se deu o trabalho de criar aquele pequeno projetor para indicar sua localização... então por que não escreveu alguma coisa mais significativa? Não faria sentido mesmo! Você e eu passamos o dia inteiro procurando essa máscara e só encontramos isso aqui?
Langdon tornou a dirigir sua atenção para o texto no verso da máscara. A mensagem escrita à mão era muito breve – tinha apenas sete letras –, e de fato não parecia fazer o menor sentido.
A frustração de Sienna é bastante compreensível.
Langdon, porém, sentia a familiar adrenalina de uma revelação iminente, pois quase no mesmo instante havia se dado conta de que aquelas sete letras lhe diriam tudo o que precisava saber sobre o próximo passo que ele e Sienna deveriam dar.
Além disso, detectara um leve odor na máscara – um cheiro conhecido que explicava por que o gesso do verso era tão mais branco que o da frente... e a diferença não tinha nada a ver com idade ou luz.
– Não entendo – disse Sienna. – As letras são todas iguais.
Langdon assentiu calmamente enquanto analisava a linha de texto – sete letras idênticas inscritas com esmero em caligrafia cursiva no verso da testa de Dante.
PPPPPPP
– Sete pês – disse Sienna. – O que vamos fazer com isso?
Langdon abriu um sorriso tranquilo e ergueu os olhos para encará-la.
– Sugiro que façamos exatamente o que a mensagem nos diz para fazer.
Sienna o fitou, confusa.
– Esses sete pês são... uma mensagem?
– Isso mesmo – respondeu ele sem parar de sorrir. – E, para quem estudou Dante, ela não poderia ser mais clara.
Do lado de fora do batistério de San Giovanni, o homem engravatado limpou as unhas no lenço e o usou para secar as pústulas no pescoço. Tentou ignorar a queimação nos olhos enquanto os estreitava para ver melhor aonde estava indo.
A entrada de turistas.
Em frente à porta, um vigia de ar cansado vestindo um blazer fumava um cigarro e dispensava os turistas que pareciam incapazes de decifrar os horários de funcionamento, escritos em hora internacional.
apertura 13:00 – 17:00.
O homem de pele irritada verificou o relógio de pulso. Eram 10h02 da manhã. O batistério continuaria fechado por mais algumas horas. Depois de passar algum tempo observando o vigia, ele se decidiu. Retirou o brinco de ouro da orelha e o guardou no bolso. Então sacou a carteira e verificou o conteúdo. Além de vários cartões de crédito e de um maço de euros, ela trazia também mais de três mil dólares em dinheiro vivo.
Felizmente, a cobiça era um pecado comum a todas as nações.
Peccatum... Peccatum... Peccatum...
Os sete pês inscritos no verso da máscara mortuária de Dante haviam levado os pensamentos de Langdon imediatamente de volta ao texto da Divina Comédia. Por alguns instantes, ele se viu de novo no palco, em Viena, ministrando a palestra “Divino Dante: Símbolos do Inferno”.
– Nós agora descemos – sua voz ecoou nos alto-falantes – e atravessamos os nove círculos do Inferno até o centro da Terra, onde nos vimos cara a cara com Satanás.
Langdon foi passando de slide em slide por uma série de Satãs de três cabeças tirados de várias obras de arte – o Mappa de Botticelli, o mosaico do batistério de Florença e o terrível demônio negro de Andrea di Cione, com o pelo manchado com o sangue escarlate de suas vítimas.
– Juntos – prosseguiu Langdon – escalamos o peito hirsuto de Satanás, mudamos de direção quando a gravidade se inverteu e emergimos do sombrio mundo inferior... para vermos novamente as estrelas.
Langdon avançou os slides até chegar a uma imagem que já havia mostrado – a lendária pintura de Domenico di Michelino que ficava no interior do duomo e retratava um Dante vestido de vermelho em pé do lado de fora dos muros de Florença.
– Se olharem com atenção, vocês poderão ver essas estrelas.
Langdon apontou para o céu estrelado que descrevia uma abóbada acima da cabeça do poeta.
– Como podem ver, o céu é formado por uma série de nove esferas concêntricas em volta da Terra. Essa estrutura do Paraíso com nove níveis busca refletir e equilibrar os nove círculos do mundo inferior. Como já devem ter reparado, o número nove é recorrente em Dante.
Ele fez uma pausa, tomou um gole d’água e deixou a plateia recuperar o fôlego após a árdua descida que havia culminado com a saída do Inferno.
– Assim, após suportar os horrores do Inferno, vocês devem estar muito animados para chegar ao Paraíso. Infelizmente, no mundo de Dante nada é tão simples. – Ele deu um suspiro teatral. – Para subirmos ao Paraíso devemos escalar uma montanha, tanto no sentido figurado quanto no literal.
Ele apontou a obra de Michelino. Atrás de Dante, no horizonte, uma única montanha em formato cônico que se erguia até o céu. Subindo em espiral pelo monte, um caminho dava voltas ao redor do cone – nove ao todo –, formando terraços cada vez mais estreitos até chegar ao topo. Ao longo do trajeto, vultos nus galgavam a subida a duras penas, suportando toda a sorte de penitências pelo caminho.
– Com vocês, o monte Purgatório – anunciou Langdon. – Infelizmente, essa árdua escalada de nove andares é o único caminho que conduz das profundezas do Inferno à glória do Paraíso. É possível ver as almas arrependidas subindo por ele... todas pagando o preço adequado pelo pecado cometido. Os invejosos têm de subir com os olhos costurados para não cederem à cobiça; os orgulhosos devem carregar imensas pedras nas costas para se curvarem com humildade; os gulosos devem subir sem comida nem água, suportando assim uma fome excruciante; e os luxuriosos devem subir em meio a labaredas de fogo, de modo a se purgarem do calor da paixão. – Ele fez uma pausa. – No entanto, antes de obter o privilégio de subir essa montanha e expiar os pecados, é preciso falar com este personagem aqui.
Langdon avançou os slides até um detalhe da pintura de Michelino, no qual se via um anjo alado sentado em um trono ao pé do monte Purgatório. Aos pés desse anjo, uma fila de pecadores penitentes aguardava a permissão para poder iniciar a subida. Estranhamente, o anjo brandia uma longa espada e parecia usar sua ponta para apunhalar o rosto do primeiro da fila.
– Quem sabe o que esse anjo está fazendo? – perguntou Langdon.
– Apunhalando a cabeça de alguém? – arriscou uma voz.
– Não.
– Furando o olho do sujeito? – sugeriu outra pessoa.
Langdon fez que não com a cabeça.
– Mais alguém?
Uma voz bem no fundo da sala respondeu com firmeza:
– Escrevendo em sua testa.
Langdon sorriu.
– Parece que alguém lá atrás conhece Dante. – Tornou a gesticular na direção do quadro. – Eu sei que parece que o anjo está apunhalando esse pobre coitado na testa, mas não. Segundo o texto de Dante, o anjo que guarda a entrada do Purgatório usa a ponta da espada para escrever algo na testa dos pecadores antes de eles entrarem. “Mas o quê?”, vocês vão perguntar.
Langdon fez uma pausa de efeito.
– Pode parecer estranho, mas ele escreve uma única letra... sete vezes. Alguém sabe que letra o anjo escreve sete vezes na testa de Dante?
– P! – gritou uma voz na plateia.
Langdon tornou a sorrir.
– Isso mesmo. A letra P. P significa peccatum, pecado em latim. E o fato de a letra ser repetida sete vezes é um símbolo dos Septem Peccata Mortalia, também conhecidos como...
– Sete Pecados Capitais! – gritou outra pessoa.
– Exatamente. Assim, apenas galgando cada um dos níveis do Purgatório é possível se redimir dos pecados. A cada nível vencido, um anjo remove um dos pês de sua testa, até você chegar ao topo com a fronte limpa... e a alma expurgada de todos os pecados. – Ele deu uma piscadela. – Não é à toa que esse lugar se chama Purgatório.
Ao despertar de suas divagações, Langdon notou que Sienna o encarava do outro lado da pia batismal.
– Os sete pês? – disse ela, puxando-o de volta ao presente e gesticulando em direção à máscara mortuária de Dante. – Está dizendo que isso daí é uma mensagem? Que está nos indicando o que fazer?
Langdon resumiu a maneira como Dante descrevia o monte Purgatório, os pês que representavam os Sete Pecados Capitais e o ato de limpá-los da testa.
– É óbvio que Bertrand Zobrist, sendo fanático por Dante, devia conhecer os sete pês e o ato de limpá-los da testa como forma de avançar rumo ao Paraíso – concluiu ele.
Sienna ainda parecia ter suas dúvidas.
– Você acha mesmo que Bertrand Zobrist pôs esses pês no verso da máscara mortuária para que nós literalmente os apaguemos? É isso que acha que devemos fazer?
– Eu sei que é um pouco...
– Robert, mesmo que apaguemos as letras, em que isso vai nos ajudar?! Tudo que vamos ter é uma máscara sem nada escrito.
– Pode ser que sim. – Langdon abriu um sorriso esperançoso. – Mas pode ser que não. Acho que tem mais coisa aqui do que parece. – Ele indicou a máscara com um gesto. – Eu falei que o verso da máscara tinha uma cor mais clara por causa do envelhecimento irregular, não falei?
– Foi.
– Acho que estava enganado. A diferença de cor parece pronunciada demais para ser só envelhecimento e a textura do verso tem dentes.
– Dentes?
Ele lhe mostrou como a textura do verso era bem mais áspera do que a da frente, além de bem mais rugosa, como uma lixa.
– No mundo da arte, essa textura áspera é chamada de dente e os pintores preferem pintar sobre superfícies como essa, pois assim a tinta adere melhor.
– Não estou entendendo.
Langdon sorriu.
– Você sabe o que é gesso-cré?
– Claro, é o que os pintores usam para preparar telas e... – Ela se interrompeu, parecendo compreender o que ele dizia.
– Isso mesmo – disse Langdon. – Eles usam o gesso-cré para criar uma superfície limpa, branca e dentada, e às vezes para cobrir pinturas indesejadas quando querem reutilizar uma tela.
Sienna agora parecia animada.
– E você acha que Zobrist pode ter coberto o verso da máscara com gesso-cré?
– Isso explicaria os dentes e a cor mais clara. Talvez explique também por que ele iria querer que nós limpássemos os sete pês.
Esse último detalhe pareceu deixar Sienna intrigada.
– Cheire aqui – disse Langdon, erguendo a máscara até o rosto dela como um padre oferecendo uma hóstia.
Sienna torceu o nariz.
– Gesso-cré tem cheiro de cachorro molhado?
– Nem sempre. O gesso-cré normal tem cheiro de giz. O que tem cheiro de cachorro molhado é o gesso-cré acrílico.
– Ou seja...?
– Ele é solúvel em água.
Sienna entortou a cabeça e Langdon pressentiu que ela estava começando a entender. Depois de olhar demoradamente para a máscara, ela de repente tornou a se virar para Langdon com os olhos arregalados.
– Você acha que tem algo debaixo do gesso-cré?
– Isso explicaria muitas coisas.
Na mesma hora, Sienna segurou o tampo hexagonal que cobria a pia batismal e o girou um pouco, até a água lá embaixo ficar visível. Pegou um pano de linho limpo e o mergulhou na água benta. Então estendeu o pano molhado para Langdon.
– É melhor você fazer isso.
Langdon segurou a máscara de cabeça para baixo na palma da mão esquerda e pegou o pano molhado, que sacudiu para retirar o excesso de água. Então começou a passá-lo na parte interna da testa de Dante, umedecendo a área onde estavam escritos os sete pês. Depois de algumas esfregadelas com o indicador, tornou a mergulhar o pano na pia e prosseguiu. A tinta marrom começou a ficar borrada.
– O gesso-cré está se dissolvendo – disse ele, animado. – E a tinta está saindo junto.
Ao repetir o processo pela terceira vez, falou com uma voz devota e grave que ecoou pelo batistério:
– Por meio do batismo, o Senhor Jesus Cristo o liberta do pecado e o faz renascer por meio da água e do Espírito Santo.
Sienna o encarou como se ele tivesse enlouquecido.
Langdon deu de ombros.
– Pareceu apropriado.
Ela revirou os olhos e tornou a encarar a máscara. Conforme Langdon seguia molhando o objeto, o gesso original por baixo do gesso-cré vinha à tona, com um tom amarelado mais condizente com o que ele teria esperado de um objeto tão antigo. Quando o último P desapareceu, ele secou a área com um pano limpo e ergueu a máscara para Sienna ver.
Ela deixou escapar um arquejo alto.
Como Langdon previra, havia de fato algo escondido debaixo do gesso-cré: uma segunda camada de caligrafia – nove letras escritas diretamente sobre a superfície amarelo-clara do gesso original.
Desta vez, no entanto, as letras formavam uma palavra.
– Possessão? – perguntou Sienna. – Não entendo.
Também não tenho certeza se entendo. Langdon analisou o texto que havia se revelado sob os sete pês – uma única palavra gravada no verso da testa de Dante.
possessão
– Como uma... possessão demoníaca? – perguntou Sienna.
Talvez. Langdon voltou o olhar para cima em direção ao mosaico de Satã devorando as pobres almas que nunca tinham sido capazes de se redimir do pecado. Possessão... de Dante? Não parecia fazer muito sentido.
– Deve haver mais – insistiu ela, tirando a máscara das mãos de Langdon para estudá-la mais de perto. Após alguns instantes, pôs-se a balançar a cabeça. – É isso, olhe para as duas pontas da palavra... tem mais texto dos dois lados.
Langdon tornou a olhar e dessa vez viu a sombra indistinta de mais palavras despontando através do gesso-cré umedecido de ambos os lados da palavra possessão.
Afobada, Sienna pegou o pano e recomeçou a esfregar em volta da palavra até outro trecho aparecer, escrito em uma curva suave.
Ó, vós, na possessão de tão robustos intelectos
Langdon deixou escapar um assobio baixo.
– Ó, vós, na possessão de tão robustos intelectos... observai os ensinamentos que se escondem... sob o véu destes estranhos versos.
Sienna o encarou.
– Como é que é?
– Essas palavras vêm de uma das estrofes mais conhecidas do Inferno de Dante – explicou Langdon, animado. – É quando o poeta instiga seus leitores mais inteligentes a buscarem os ensinamentos ocultos em seus versos enigmáticos.
Langdon citava com frequência esse mesmo verso ao ensinar simbolismo literário para os seus alunos: não havia melhor exemplo de um autor agitando os braços como um louco, como se gritasse: “Ei, leitores! Tem um duplo sentido simbólico aqui!”
Sienna tornou a esfregar o verso da máscara, agora com mais vigor.
– Vá com calma! – pediu Langdon.
– Você está certo – anunciou Sienna, removendo o gesso-cré com energia. – Aqui está o resto da citação de Dante... exatamente como você disse. – Ela parou para mergulhar o pano outra vez na água benta e enxaguá-lo.
Langdon ficou observando, consternado, o gesso-cré dissolvido turvar a água da pia batismal. São João, nos perdoe, pensou, incomodado com o fato de aquela fonte sagrada estar sendo usada como tanque.
O pano estava pingando quando Sienna o tirou da água. Ela mal o torceu antes de levá-lo ao centro da máscara e começar a esfregar com movimentos circulares, como se lavasse uma tigela de sopa.
– Sienna! – ralhou Langdon. – Isso é uma antigui...
– A parte de trás está cheia de palavras! – anunciou ela, sem parar de esfregar o interior da máscara. – E elas estão em... – Ela não terminou a frase.
Inclinando a cabeça para a esquerda, começou a girar a máscara para a direita, como se tentasse ler de lado.
– Elas estão em quê? – perguntou Langdon, sem conseguir ver.
Sienna acabou de limpar a máscara e a secou com um pano limpo. Então a pousou na frente dele para juntos poderem examinar o resultado.
Quando Langdon viu o interior da máscara, quase não acreditou nos próprios olhos. Toda a superfície côncava estava coberta de texto; devia haver umas cem palavras ali. Começando pelo alto com o verso Ó, vós, na possessão de tão robustos intelectos, o texto prosseguia em uma única linha ininterrupta... descendo em curva pelo lado direito da peça até a borda inferior, onde virava de ponta-cabeça e prosseguia pela parte de baixo, subindo de volta pelo lado esquerdo até o começo, repetindo a partir dali um caminho semelhante para formar um círculo ligeiramente menor.
O trajeto percorrido pelo texto lembrava, de forma perturbadora, a trilha em espiral do monte Purgatório rumo ao Paraíso. O lado simbologista de Langdon identificou de imediato a espiral precisa. Espiral de Arquimedes no sentido horário. Reparou também que o número de revoluções a partir da primeira palavra, Ó, até o último trecho no centro era conhecido.
Nove.
Quase sem conseguir respirar, Langdon girou a máscara em círculos lentos e foi lendo o texto que se enroscava cada vez mais para dentro do espaço côncavo, afunilando-se em direção ao centro.
– A primeira estrofe é de Dante, uma citação quase literal – falou. – Ó, vós, na possessão de tão robustos intelectos... observai os ensinamentos que se escondem... sob o véu destes estranhos versos.
– E o resto? – instou Sienna.
Langdon balançou a cabeça.
– Acho que não. Está escrito com uma métrica parecida, mas não reconheço o texto de Dante. Parece alguém imitando seu estilo.
– Zobrist – sussurrou Sienna. – Só pode ser ele.
Langdon assentiu. Era um palpite bastante razoável. Afinal de contas, ao alterar o Mappa dell’Inferno de Botticelli, Zobrist já havia revelado sua propensão para colaborar com os mestres e modificar grandes obras de arte para atender às próprias necessidades.
– O resto do texto é muito estranho – disse Langdon, girando novamente a máscara e lendo mais para dentro. – Fala sobre... ter cortado cabeças de cavalos... e arrancado ossos de quem já não pode ver. – Ele correu os olhos até a última linha, escrita em um círculo apertado bem no meio da máscara. Então fungou, espantado. – E menciona também “águas rubras de sangue”.
Sienna arqueou as sobrancelhas.
– Rubras, ou seja... vermelhas? Como nas suas visões da mulher de cabelos prateados?
Langdon tornou a assentir, intrigado com o texto à sua frente. As águas rubras de sangue da lagoa que não reflete as estrelas?
– Olhe – sussurrou Sienna, lendo por cima de seu ombro e apontando para uma única palavra na espiral. – Um local específico.
Os olhos de Langdon encontraram a palavra, que ele havia pulado durante a primeira leitura. Era o nome de uma das cidades mais espetaculares e únicas do mundo. Ele sentiu um calafrio, sabendo que também se tratava da cidade em que Dante Alighieri notoriamente contraíra a doença fatal que o levaria à morte.
Veneza.
Langdon e Sienna passaram um bom tempo analisando em silêncio os versos enigmáticos. O poema era perturbador, macabro e difícil de decifrar. O uso das palavras doge e lagoa, para Langdon, não deixava dúvida de que o poema de fato se referia a Veneza – uma singular cidade italiana que era um verdadeiro mundo aquático. Erguida sobre uma imensa lagoa e entrecortada por centenas de canais, durante séculos Veneza fora governada por um chefe de Estado conhecido como doge.
À primeira vista, Langdon não soube dizer exatamente para que lugar de Veneza aquele poema apontava, mas o texto sem dúvida parecia instar o leitor a seguir suas instruções.
Levai ao chão vossa orelha, para ouvir os sons da água que corre.
– Está apontando para debaixo da terra – disse Sienna, que lia junto com ele.
Langdon assentiu com hesitação enquanto lia o verso seguinte.
Descei às profundezas do palácio afundado... pois lá, na escuridão, espreita o monstro ctônico.
– Robert? – indagou Sienna, ressabiada. – Monstro o quê?
– Ctônico – respondeu Langdon. – É uma palavra de raiz grega. Significa “que vive debaixo da terra”.
Antes que ele pudesse prosseguir, o clique alto de um trinco ecoou pelo batistério. A entrada de turistas parecia ter sido destrancada por fora.
– Grazie mille – disse o homem com a pele do rosto irritada. Muito obrigado.
O vigia do batistério assentiu com nervosismo, enquanto embolsava os 500 dólares e olhava em volta para se certificar de que ninguém estava observando.
– Cinque minuti – falou, entreabrindo a porta apenas o suficiente para o homem se esgueirar para dentro. O vigia então fechou a porta, trancando-o lá dentro e bloqueando qualquer som de fora. Cinco minutos.
A princípio, o vigia não havia se apiedado daquele homem que alegava ter vindo dos Estados Unidos para rezar no batistério de San Giovanni na esperança de curar sua terrível doença de pele. Com o tempo, contudo, acabara por se convencer a demonstrar compaixão, sem dúvida auxiliado pela oferta de 500 dólares em troca de cinco minutos sozinho dentro do batistério... aliada ao medo crescente de que aquela pessoa de aparência contagiosa fosse passar as três horas seguintes ali plantada ao seu lado esperando que o monumento abrisse.
Agora, ao avançar sorrateiramente pelo santuário octogonal, o homem sentiu um impulso irresistível de olhar para cima. Puta merda. Nunca tinha visto nada igual àquele teto. Um demônio de três cabeças olhava lá do alto bem na direção dele, o que o levou a baixar os olhos na mesma hora.
O lugar parecia deserto.
Onde eles se meteram?
O homem correu os olhos em volta, detendo-se sobre o altar-mor – um imenso bloco de mármore retangular situado dentro de um nicho atrás de uma barreira de colunas de metal e cordões destinada a manter os visitantes afastados.
O altar parecia ser o único esconderijo de todo o batistério. Além disso, um dos cordões balançava de leve... como se houvesse acabado de ser movido.
Atrás do altar, Langdon e Sienna estavam agachados em silêncio. Mal tiveram tempo de recolher os panos sujos e endireitar a tampa da pia batismal antes de saltarem para trás do altar-mor, carregando com cuidado a máscara mortuária. O plano era ficarem escondidos ali até o local se encher de turistas, para então saírem discretamente no meio da multidão.
A porta norte do batistério sem dúvida acabara de se abrir – pelo menos por alguns instantes –, pois Langdon havia escutado os sons vindos da piazza. Porém, tão subitamente quanto antes, ela voltara a ser trancada e não se ouviu mais nada.
Agora, de novo em meio ao silêncio, Langdon ouviu os passos de uma única pessoa atravessarem o chão de pedra.
Será que algum vigia veio verificar o espaço antes de abri-lo para os turistas daqui a pouco?
Perguntou-se se o suposto vigia iria notar a luz acesa em cima da pia batismal, que ele não tivera tempo de apagar. Parece que não. Os passos se moviam depressa na direção deles e pararam bem em frente ao altar, diante do cordão por cima do qual Langdon e Sienna haviam acabado de pular.
Houve um longo silêncio.
– Robert, sou eu – disse uma voz masculina zangada. – Sei que você está aí atrás. Saia agora mesmo e venha aqui se explicar.
Não adianta nada fingir que não estou aqui.
Langdon acenou para Sienna não abandonar a segurança do esconderijo e continuar agachada, protegendo a máscara mortuária de Dante que ele havia tornado a lacrar dentro do Ziploc.
Então, bem devagar, Langdon se levantou. De pé como um padre atrás do altar do batistério, olhou para seu rebanho de uma ovelha só. O desconhecido à sua frente tinha cabelos castanho-claros, usava óculos de grife e apresentava uma terrível irritação no rosto e no pescoço. Coçou de um jeito nervoso a pele inflamada enquanto seus olhos inchados pareciam faiscar de incompreensão e raiva.
– Robert, quer fazer o favor de me dizer que droga você está fazendo?! – exigiu saber, passando por cima do cordão e avançando em direção a Langdon. Falava com um sotaque americano.
– Claro – respondeu Langdon, educado. – Mas primeiro me diga quem é você.
O homem parou com ar incrédulo.
– Como é que é?!
Langdon notou algo vagamente familiar nos olhos dele... na voz também, talvez. Já conheci esse homem... de alguma forma, em algum lugar. Repetiu a pergunta com calma:
– Por favor, me diga quem você é e de onde nos conhecemos.
Sem acreditar, o homem jogou as mãos para o alto.
– Jonathan Ferris? Da OMS? O cara que foi buscar você de avião em Harvard?
Langdon tentou processar o que ouvia.
– Por que você não entrou em contato?! – perguntou o sujeito, ainda coçando o pescoço e as bochechas, que estavam vermelhos e empolados. – E posso saber quem é aquela mulher que entrou aqui com você? É para ela que você está trabalhando agora?
Sienna se levantou depressa ao lado de Langdon e logo assumiu o controle da situação.
– Dr. Ferris? Meu nome é Sienna Brooks. Também sou médica. Trabalho aqui em Florença. O professor Langdon levou um tiro na cabeça ontem à noite. Está sofrendo de amnésia retrógrada, portanto não sabe quem é o senhor nem o que aconteceu com ele nos últimos dois dias. Estou aqui para ajudá-lo.
Enquanto as palavras de Sienna ecoavam pelo batistério vazio, o homem entortou a cabeça, intrigado, como se não houvesse entendido muito bem o que ela acabara de dizer. Ficou atônito por alguns instantes, então cambaleou para trás, apoiando-se em uma das colunas que sustentavam o cordão.
– Ai, meu Deus... – gaguejou. – Isso explica tudo.
Langdon viu a raiva sumir do rosto dele.
– Robert, nós achamos que você tivesse... – sussurrou o recém-chegado, balançando a cabeça como se tentasse encaixar as peças daquele mistério. – Achamos que tivesse mudado de lado... que talvez tivesse sido subornado por eles... ou ameaçado... Nós não sabíamos!
– O professor não falou com mais ninguém, só comigo – disse Sienna. – Tudo o que ele sabe é que acordou ontem à noite no hospital com pessoas tentando matá-lo. Além disso, tem tido visões terríveis: cadáveres, vítimas da peste, uma mulher de cabelos prateados e um amuleto de serpente que fica lhe dizendo...
– Elizabeth! – disparou o homem. – É a Dra. Elizabeth Sinskey! Robert, foi ela que chamou você para nos ajudar!
– Bem, se for ela mesmo, espero que saibam que ela está correndo perigo – disse Sienna. – Nós a vimos trancada na traseira de uma van cheia de soldados e ela parecia ter sido drogada ou coisa parecida.
O homem assentiu devagar e fechou os olhos. Tinha as pálpebras inchadas e vermelhas.
– O que houve com o seu rosto? – perguntou Sienna.
Ele abriu os olhos.
– Perdão?
– Com a sua pele. Parece que você está infectado com alguma coisa. Está doente?
O homem pareceu espantado e, embora a pergunta de Sienna fosse tão direta que parecia quase grosseira, Langdon havia pensado a mesma coisa. Levando em conta todas as referências à peste que tinha encontrado naquele dia, a visão de uma pele vermelha e toda empolada era perturbadora.
– Eu estou bem – respondeu o homem. – Foi a droga do sabonete do hotel. Tenho uma baita alergia a soja, que é a matéria-prima da maioria desses sabonetes perfumados italianos. Foi burrice minha não conferir antes.
Sienna suspirou aliviada e seus ombros relaxaram.
– Que bom que não foi a comida. Dermatite de contato é melhor do que choque anafilático.
Ambos deram uma risadinha sem graça.
– Me diga uma coisa – arriscou Sienna –, o nome Bertrand Zobrist significa alguma coisa para o senhor?
O homem gelou de tal forma que parecia ter acabado de dar de cara com o demônio de três cabeças.
– Parece que acabamos de achar uma mensagem dele – prosseguiu ela. – O texto indica algum lugar em Veneza. Isso faz algum sentido para o senhor?
Os olhos do homem ficaram alucinados de tanta empolgação.
– Meu Deus, sim! Com certeza! Para onde a mensagem aponta?!
Sienna respirou fundo, obviamente prestes a contar àquele sujeito tudo sobre o poema em espiral que os dois haviam acabado de descobrir na máscara. Contudo, antes que pudesse fazê-lo, Langdon cobriu a mão dela com a sua num gesto instintivo. Embora o homem parecesse um aliado, depois dos acontecimentos daquele dia, seu sexto sentido lhe dizia para não confiar em ninguém. Além disso, a gravata dele lhe parecia familiar e Langdon sentia que aquele poderia ser o mesmo homem que vira rezando mais cedo na pequena igreja de Dante. Será que ele estava nos seguindo?
– Como nos achou aqui? – indagou Langdon.
O homem ainda parecia estranhar o fato de ele não se lembrar de nada.
– Robert, você me ligou ontem à noite dizendo que tinha marcado um encontro com um diretor de museu chamado Ignazio Busoni. Depois disso, sumiu. Não entrou mais em contato. Quando eu soube que Ignazio Busoni tinha sido encontrado morto, fiquei preocupado. Passei a manhã inteira procurando você pela cidade. Vi a atividade policial em frente ao Palazzo Vecchio e, enquanto esperava para descobrir o que tinha acontecido, por acaso vi você saindo de trás de uma portinha junto com... – Ele olhou de relance para Sienna, como se houvesse tido um branco.
– Sienna – ajudou ela. – Brooks.
– Desculpe... junto com a Dra. Brooks. Segui vocês na esperança de descobrir o que estavam fazendo.
– Era você quem estava rezando na igreja de Cerchi, não era?
– Sim! Eu estava tentando entender o motivo daquilo tudo, mas não fazia sentido! Você saiu da igreja com tanta determinação que resolvi segui-lo. Quando vi vocês dois entrarem às escondidas no batistério, resolvi que estava na hora de confrontá-los. Então subornei o vigia para conseguir alguns minutos sozinho aqui dentro.
– Muito corajoso da sua parte, se achava mesmo que eu tinha me voltado contra vocês – comentou Langdon.
O homem fez que não com a cabeça.
– Algo me dizia que você não faria isso. O professor Robert Langdon? Sabia que devia haver outra explicação. Mas amnésia? Incrível. Eu jamais teria adivinhado.
O homem voltou a se coçar, aflito.
– Escutem, só consegui cinco minutos. Temos que sair daqui agora mesmo. Se eu encontrei vocês, as pessoas que estão tentando matá-lo talvez também encontrem. Há várias coisas acontecendo que vocês não entendem. Precisamos ir para Veneza. Agora. O difícil vai ser sair de Florença sem sermos vistos. As pessoas que pegaram a Dra. Sinskey... e que estão perseguindo você... elas têm olhos por toda parte. – Ele gesticulou em direção à porta.
Langdon se manteve firme, finalmente com a sensação de que estava prestes a obter algumas respostas.
– Quem são os soldados de uniforme preto? Por que eles estão tentando me matar?
– É uma longa história – respondeu o homem. – No caminho eu explico.
Langdon franziu a testa, ainda insatisfeito com aquela resposta. Acenou para Sienna e puxou-a de lado para confabular.
– Você confia nele? – cochichou. – O que acha?
Sienna olhou para Langdon como se ele estivesse maluco por perguntar aquilo.
– O que eu acho? Ele trabalha para a Organização Mundial da Saúde! Acho que ele é nossa melhor chance de conseguir respostas!
– E as feridas na pele?
Sienna deu de ombros.
– São exatamente o que ele está dizendo... um caso grave de dermatite de contato.
– Mas e se não forem o que ele está dizendo? – sussurrou Langdon. – E se forem... outra coisa?
– Outra coisa? – Ela o fitou com uma expressão incrédula. – Robert, ele não está com a peste, se é isso que você quer dizer. Pelo amor de Deus, o cara é médico. Se tivesse contraído uma doença fatal e soubesse que está na fase contagiosa, não cometeria a imprudência de sair por aí contaminando meio mundo.
– E se ele não soubesse?
Sienna franziu os lábios e refletiu por alguns instantes.
– Nesse caso, infelizmente você e eu já estamos ferrados... assim como todo mundo à nossa volta.
– Um pouco de tato não faz mal a ninguém, sabia?
– Estou apenas sendo sincera. – Sienna entregou a Langdon o Ziploc que continha a máscara mortuária. – Tome, pode carregar nosso amiguinho.
Ao voltar para junto do Dr. Ferris, os dois notaram que ele encerrava um discreto telefonema.
– Acabei de ligar para o meu motorista – disse o homem. – Ele vai nos esperar lá na frente perto do... – O Dr. Ferris interrompeu a frase no meio, olhando para a mão de Langdon e vendo, pela primeira vez, o rosto morto de Dante Alighieri. – Nossa! – exclamou, recuando. – O que é isso?
– É uma longa história – respondeu Langdon. – No caminho eu explico.
O editor nova-iorquino Jonas Faukman acordou com o toque do telefone de seu home office. Rolou na cama e verificou o relógio: 4h28.
No mundo editorial, emergências no meio da madrugada eram tão raras quanto o sucesso repentino. Contrariado, Faukman saiu da cama e atravessou depressa o corredor até seu escritório.
– Alô?
A voz do outro lado era grave e familiar.
– Jonas, graças a Deus você está em casa. É Robert. Espero não ter acordado você.
– É claro que me acordou! São quatro da manhã!
– Desculpe, estou fora do país.
E por acaso não ensinam fusos horários em Harvard?
– Jonas, estou meio encrencado e preciso de um favor. – A voz de Langdon soava tensa. – É sobre seu cartão corporativo NetJets.
– NetJets? – Faukman soltou uma risada incrédula. – Robert, nós trabalhamos com edição de livros. Não temos acesso a jatinhos particulares.
– Nós dois sabemos que isso é mentira, meu caro.
Faukman deu um suspiro.
– Está bem, vou reformular. Não temos acesso a jatinhos particulares para autores de livros sobre história religiosa. Se quiser escrever Cinquenta tons de iconografia, aí podemos conversar.
– Jonas, qualquer que seja o custo do voo, eu devolvo o dinheiro. Dou a minha palavra. Por acaso já quebrei alguma promessa que fiz a você?
Fora ter estourado o último prazo em três anos? Mesmo assim, pelo tom de Langdon, Faukman sentiu que se tratava mesmo de uma emergência.
– Me diga o que está acontecendo. Vou tentar ajudar.
– Não tenho tempo para explicar, mas realmente preciso que você me faça esse favor. É uma questão de vida ou morte.
Faukman já trabalhava com Langdon havia tempo suficiente para estar acostumado com seu irônico senso de humor, mas não detectou nenhum traço de brincadeira no tom ansioso que ele usava agora. Esse cara está falando sério. Faukman bufou e tomou uma decisão. Meu gerente financeiro vai me matar. Trinta segundos mais tarde, já havia anotado os detalhes do voo de que Langdon precisava.
– Tudo bem? – perguntou Langdon, parecendo sentir a hesitação e a surpresa de seu editor.
– Tudo, é que achei que você estivesse nos Estados Unidos – respondeu Faukman. – Estou surpreso por saber que está na Itália.
– Eu também – retrucou Langdon. – Obrigado outra vez, Jonas. Estou indo para o aeroporto agora mesmo.
O centro de operações da NetJets nos Estados Unidos fica em Columbus, Ohio, com uma equipe de suporte de voo disponível 24 horas por dia.
A representante de serviços a proprietários Deb Kier acabara de receber a ligação de uma empresa de Nova York que era uma das donas de uma aeronave de sua frota.
– Um instante, senhor – falou, ajeitando seu headset e digitando em seu terminal. – Tecnicamente, isso seria um voo da NetJets Europa, mas posso ajudá-lo daqui.
Ela acessou o sistema da NetJets Europa, cuja sede ficava em Paço de Arcos, Portugal, e verificou a posição de seus jatinhos na Itália e arredores.
– Certo – falou. – Parece que temos um Citation Excel posicionado em Mônaco que podemos desviar para Florença daqui a pouco menos de uma hora. Isso atenderia às necessidades do Sr. Langdon?
– Vamos torcer para que sim – respondeu o executivo da editora, cuja voz soava exausta e levemente contrariada. – Ficamos muito agradecidos.
– O prazer é todo nosso – disse Deb. – E o Sr. Langdon gostaria de voar para Genebra?
– Parece que sim.
Deb continuou digitando.
– Confirmado – disse por fim. – O Sr. Langdon partirá da base de serviços aeroportuários de Tassignano, em Lucca, cerca de 80 quilômetros a oeste de Florença. Partida às 11h20 da manhã, horário local. O Sr. Langdon precisa estar na base dez minutos antes da decolagem. O senhor não requisitou nenhum transporte terrestre nem serviço de refeições a bordo e já me deu os dados dele, então está tudo resolvido. Mais alguma coisa?
– Um emprego novo? – respondeu ele, rindo. – Obrigado. A senhora foi muito prestativa.
– O prazer foi todo nosso. Tenha uma boa noite.
Deb encerrou a ligação e se virou de volta para o monitor para concluir a reserva. Inseriu os dados de Robert Langdon e estava prestes a prosseguir quando o monitor começou a piscar com uma caixa vermelha de alerta. Ao ler a mensagem, Deb arregalou os olhos.
Deve ser um erro.
Tentou redigitar os dados. O alerta tornou a aparecer. O mesmo aviso teria surgido nos computadores de qualquer empresa de aviação comercial do mundo em que Langdon tentasse reservar um voo.
Deb Kier ficou um bom tempo encarando a tela, sem acreditar no que via. Sabia que a NetJets levava muito a sério a privacidade dos seus clientes, mas aquele alerta falava mais alto do que qualquer regulamento interno relativo a privacidade.
Na mesma hora ligou para as autoridades.
O agente Brüder fechou o celular com um estalo e começou a chamar seus homens de volta para as vans.
– Langdon está fugindo – anunciou. – Vai pegar um jatinho particular para Genebra. O avião decola em pouco menos de uma hora de Lucca, 80 quilômetros a oeste daqui. Se formos rápidos, conseguiremos chegar lá antes da decolagem.
Nesse exato momento, um sedã Fiat alugado disparava no sentido norte pela Via dei Panzani, deixando a Piazza del Duomo para trás e avançando em direção à estação de trem de Florença, Santa Maria Novella.
No banco de trás, Langdon e Sienna se mantinham abaixados enquanto o Dr. Ferris ia na frente com o motorista. Reservar um voo pela NetJets tinha sido ideia de Sienna. Com sorte, aquilo proporcionaria pistas falsas suficientes para permitir que os três passassem em segurança pela estação de trem florentina, que, de outra forma, sem dúvida estaria abarrotada de policiais. Felizmente, Veneza ficava a apenas duas horas de trem e as viagens domésticas não exigiam passaporte.
Langdon olhou para Sienna, que parecia examinar o Dr. Ferris com um ar preocupado. Era óbvio que ele estava em agonia, com dificuldade para respirar, como se cada inspiração fosse um martírio.
Espero que ela esteja certa em relação à doença dele, pensou Langdon, olhando de esguelha para as erupções do homem à sua frente e imaginando todos os germes que pairavam no ar do pequeno carro apertado. Até as pontas dos dedos do Dr. Ferris pareciam inchadas e vermelhas. Langdon afastou essa preocupação da mente e olhou pela janela.
Já perto da estação, eles passaram pelo Grand Hotel Baglioni, que costumava abrigar os eventos de uma conferência de arte à qual Langdon comparecia todos os anos. Ao ver o hotel, ele se deu conta de que estava prestes a fazer algo que nunca tinha feito na vida.
Estou indo embora de Florença sem visitar o Davi.
Com um silencioso pedido de desculpas a Michelangelo, voltou os olhos para a estação ferroviária mais à frente... e os pensamentos para Veneza.
Langdon está indo para Genebra?
Balançando-se para a frente e para trás de forma entorpecida, a Dra. Elizabeth Sinskey se sentia cada vez pior no banco de trás da van que agora deixava Florença a toda a velocidade rumo ao oeste, em direção a uma pista de pouso particular nos arredores da cidade.
Genebra não faz sentido, pensou.
O único vínculo relevante era o fato de a cidade abrigar a sede mundial da OMS. Será que Langdon está indo atrás de mim? Isso não tinha a menor lógica, uma vez que o professor sabia que Elizabeth Sinskey estava ali em Florença.
Então outro pensamento lhe ocorreu:
Meu Deus... será que Zobrist pretende atacar Genebra?
Zobrist era um homem que gostava de simbolismos, e criar um “marco zero” na sede da OMS de fato tinha certa elegância, levando em conta a batalha que ele vinha travando com a Dra. Sinskey havia um ano. Mas, pensando bem, se Zobrist estivesse mesmo procurando um ponto de conflagração propício para uma peste, Genebra era um péssima escolha. Se comparada a outras metrópoles, a cidade ficava isolada geograficamente e era um tanto fria naquela época do ano. A maioria das pestes se disseminava em ambientes superpopulosos e mais quentes. A cidade suíça ficava mais de 300 metros acima do nível do mar e estava longe de ser um lugar adequado para iniciar uma pandemia. Por maior que seja o desprezo que Zobrist nutra por mim.
Assim, a dúvida persistia: por que Langdon estava indo para lá? O bizarro destino do professor era mais um item em sua crescente lista de comportamentos inexplicáveis iniciada na noite anterior. E, por mais que se esforçasse, a Dra. Sinskey tinha muita dificuldade para encontrar qualquer explicação racional para eles.
De que lado Langdon está?
Era bem verdade que ela só conhecera o professor poucos dias antes, mas em geral era uma boa avaliadora de caráter e se recusava a acreditar que um homem como Robert Langdon pudesse se deixar seduzir por dinheiro. Por outro lado, ele cortou contato conosco ontem à noite. E agora parecia estar fazendo tudo à sua maneira, como algum tipo de agente rebelado. Será que, de alguma forma, ele foi convencido a acreditar que os atos de Zobrist faziam algum sentido doentio?
O pensamento lhe causou um arrepio.
Não, garantiu a si mesma. Conheço muito bem a reputação do professor; ele é melhor do que isso.
A Dra. Sinskey havia encontrado Robert Langdon pela primeira vez quatro noites antes, dentro da carcaça oca de um avião de transporte C-130 reformado para uso não militar que funcionava como centro de coordenação móvel da OMS.
Eram pouco mais de sete da noite quando o avião pousou em Hanscom Field, a menos de 4,5 quilômetros de Cambridge, Massachusetts. Ela não sabia muito bem o que esperar do renomado acadêmico que havia contatado por telefone, mas ficou agradavelmente surpresa ao vê-lo subir a passarela traseira do avião a passos confiantes e cumprimentá-la com um sorriso descontraído.
– Dra. Sinskey, suponho? – Langdon apertou a mão dela com firmeza.
– Professor, é uma honra conhecê-lo.
– A honra é toda minha. Obrigado por tudo o que vocês fazem.
Langdon era um homem alto, de voz grave e aparência atraente e sofisticada. Elizabeth Sinskey concluiu que ele só poderia estar usando seu traje de dar aulas – paletó de tweed, calça cáqui e sapatos sociais –, o que fazia sentido, visto que ele fora praticamente arrancado do campus da universidade sem aviso prévio. Também parecia mais jovem e em melhor forma física do que ela imaginara, o que só serviu para fazer Elizabeth recordar a própria idade. Eu quase tenho idade para ser mãe dele.
Ela lhe lançou um sorriso cansado.
– Obrigada por ter vindo, professor Langdon.
Ele gesticulou em direção ao colega sisudo que a Dra. Sinskey havia despachado para buscá-lo.
– O seu amigo ali não me deixou muita escolha.
– Ótimo. É para isso que pago o salário dele.
– Belo amuleto – comentou Langdon, espiando o colar de Elizabeth. – É de lápis-lazúli?
Ela assentiu e baixou os olhos para o amuleto de pedra azul no formato simbólico de uma serpente enrolada em volta de um bastão vertical.
– O símbolo moderno da medicina. Como o senhor deve saber, chama-se caduceu.
Langdon ergueu os olhos de repente, como se quisesse dizer alguma coisa.
Ela esperou. Pois não?
Aparentemente contendo seu impulso, o professor deu um sorriso educado e mudou de assunto.
– Então, o que estou fazendo aqui?
Elizabeth gesticulou em direção a uma área de reunião improvisada em volta de uma mesa de inox.
– Sente-se, por favor. Tenho algo que gostaria que o senhor visse.
Langdon se dirigiu com tranquilidade até a mesa e Elizabeth notou que, embora talvez estivesse intrigado com a perspectiva de um encontro secreto, o professor não parecia nada abalado com a situação. Um homem à vontade consigo mesmo. Tinha suas dúvidas se ele iria se mostrar tão relaxado assim depois que descobrisse por que fora levado até ali.
Depois de acomodar Langdon e sem qualquer preâmbulo, Elizabeth lhe apresentou o objeto que ela e sua equipe haviam confiscado de um cofre de banco particular em Florença menos de doze horas antes.
Langdon deteve-se examinando o pequeno cilindro gravado e em seguida fez um rápido resumo de tudo o que ela já sabia. O objeto era um antigo selo cilíndrico que podia ser usado para impressão. Aquele ali apresentava a imagem particularmente medonha de um Satã de três cabeças acompanhado por uma única palavra: saligia.
– Saligia – disse Langdon – é um termo mnemônico em latim que significa...
– Os Sete Pecados Capitais – atalhou Elizabeth. – Sim, nós pesquisamos.
– Bem... – Langdon parecia intrigado. – Algum motivo para vocês quererem que eu visse isto aqui?
– Na verdade, sim. – Ela pegou o cilindro de volta e começou a sacudi-lo com força, fazendo a bolinha em seu interior se mover de um lado para outro.
Langdon pareceu não entender o que ela estava fazendo, mas, antes que pudesse perguntar qualquer coisa, a ponta do cilindro começou a brilhar e a doutora a apontou para um pedaço liso do isolamento na parede do avião oco.
Langdon deixou escapar um assobio baixo e se aproximou da imagem projetada.
– O Mapa do Inferno de Botticelli – falou. – Baseado no Inferno de Dante. Mas aposto que você já sabe disso.
Elizabeth concordou com a cabeça. Ela e sua equipe tinham usado a internet para identificar o quadro, que, para espanto da Dra. Sinskey, era de Botticelli, pintor mais conhecido pelas obras-primas solares e idealizadas O nascimento de Vênus e A primavera. Ela adorava os dois quadros, embora ambos retratassem a fertilidade e a criação da vida, o que só servia para lhe recordar sua própria e trágica incapacidade de conceber – único pesar significativo de uma vida que, em todo o resto, era extremamente produtiva.
– Eu esperava que o senhor pudesse me falar sobre o simbolismo oculto nesse quadro – disse ela.
Pela primeira vez naquela noite, Langdon pareceu irritado.
– Foi para isso que me chamaram aqui? Pensei que a senhora tivesse dito que era uma emergência.
– Me dê um voto de confiança.
Langdon suspirou, paciente.
– Dra. Sinskey, em geral, se quiser informações sobre algum quadro específico, o melhor a fazer é entrar em contato com o museu que abriga o original. Nesse caso, seria a Biblioteca Apostólica do Vaticano. Eles têm diversos iconografistas fabulosos que...
– O Vaticano me odeia.
Langdon lançou-lhe um olhar surpreso.
– A senhora também? Pensei que eu fosse o único.
Ela deu um sorriso pesaroso.
– A OMS tem a firme opinião de que a ampla disponibilidade de métodos contraceptivos é uma das chaves para a saúde mundial, tanto no combate às doenças sexualmente transmissíveis, como a aids, quanto para o controle do crescimento populacional.
– E o Vaticano não pensa assim.
– Exato. Eles já gastaram uma quantidade colossal de energia e dinheiro para catequizar os países do Terceiro Mundo quanto aos males da contracepção.
– Ah, claro – comentou Langdon com um sorriso cúmplice. – Quem melhor do que um bando de octogenários celibatários para ensinar ao mundo como fazer sexo?
A cada segundo que passava, Elizabeth Sinskey gostava mais do professor.
Ela sacudiu o cilindro para recarregá-lo, tornando a projetar a imagem na parede.
– Olhe mais de perto, professor.
Langdon caminhou em direção à imagem, estudando-a, chegando cada vez mais perto. De repente, parou.
– Que estranho. O quadro foi modificado.
Até que ele foi rápido.
– Sim, foi. E gostaria que o senhor me dissesse o que essa modificação significa.
Langdon se calou enquanto estudava a imagem, parando para assimilar as dez letras que formavam a palavra catrovacer... depois a máscara da peste... e por fim a estranha inscrição na borda sobre “os olhos da morte”.
– Quem fez isso? – perguntou ele. – De onde veio essa imagem?
– Na verdade, quanto menos o senhor souber, melhor. O que estou torcendo é para que seja capaz de analisar essas alterações e nos dizer o que significam. – Ela acenou em direção a uma mesa no canto.
– Aqui? Agora?
A Dra. Sinskey assentiu.
– Sei que estou pedindo demais, mas não tenho como enfatizar o suficiente quanto isso é importante para nós. – Ela fez uma pausa. – Pode ser uma questão de vida ou morte.
Langdon a avaliou com o olhar, preocupado.
– Talvez eu leve algum tempo para decifrar essa imagem, mas se é tão importante para vocês...
– Obrigada – interrompeu a doutora antes que ele pudesse mudar de ideia. – Tem alguém para quem o senhor precise ligar?
Langdon fez que não com a cabeça, dizendo-lhe em seguida que estava planejando um fim de semana tranquilo sozinho.
Perfeito. A Dra. Sinskey o instalou à mesa com o projetor, papel, lápis e um laptop com conexão segura via satélite. Embora lhe parecesse muito intrigante que a OMS estivesse interessada em um quadro modificado de Botticelli, Langdon começou obedientemente a trabalhar.
A Dra. Sinskey imaginava que ele fosse passar horas analisando a imagem sem descobrir nada, de modo que se acomodou para adiantar um pouco seu próprio trabalho. De vez em quando, podia ouvi-lo sacudir o projetor e rabiscar alguma coisa no bloco de notas. Menos de dez minutos depois, Langdon pousou o lápis e anunciou:
– Cerca trova.
Elizabeth Sinskey ergueu os olhos.
– O quê?
– Cerca trova – repetiu ele. – Busca e encontrarás. É o que diz o código.
Ela se aproximou às pressas e sentou-se bem junto dele, escutando fascinada a explicação de Langdon sobre como os níveis do Inferno de Dante haviam sido embaralhados e como, quando recolocados na sequência correta, formavam a expressão em italiano cerca trova.
Busca e encontrarás?, estranhou ela. É esse o recado daquele maluco para mim? A expressão parecia um desafio direto. A perturbadora lembrança das últimas palavras que o louco lhe dirigira durante seu encontro no Conselho de Relações Exteriores lhe voltou à mente: Então parece que nosso jogo começou.
– A senhora ficou pálida de repente – disse Langdon, observando-a com atenção. – Não esperava encontrar uma mensagem como essa?
A Dra. Sinskey se recompôs e endireitou o amuleto no pescoço.
– Não exatamente. Diga uma coisa... o senhor acredita que esse mapa do Inferno esteja sugerindo que eu procure alguma coisa?
– Sim. Cerca trova.
– E ele me sugere onde procurar?
Langdon alisou o queixo enquanto outros funcionários da OMS começavam a se aproximar, ansiosos por informações.
– Não de um jeito explícito... embora eu tenha um bom palpite sobre por onde a senhora deveria começar.
– Onde? – perguntou a Dra. Sinskey, mais incisiva do que Langdon esperava.
– Bem, o que a senhora me diz de Florença, na Itália?
Ela contraiu o maxilar, esforçando-se ao máximo para não esboçar reação. Seus funcionários, porém, foram menos controlados. Todos se entreolharam, espantados. Um deles pegou um telefone e fez uma ligação. Outro saiu depressa por uma porta em direção à frente do avião.
Langdon parecia atônito.
– Foi alguma coisa que eu falei?
Com certeza, pensou a Dra. Sinskey.
– O que o faz sugerir Florença?
– Cerca trova – retrucou ele. Em seguida relatou em poucas palavras um mistério antigo envolvendo um afresco de Vasari no Palazzo Vecchio.
Então é Florença, pensou a doutora. Já ouvira o suficiente. É claro que o fato de seu arqui-inimigo ter saltado para a própria morte a menos de três quarteirões do Palazzo Vecchio não podia ser mera coincidência.
– Professor – disse ela –, quando lhe mostrei meu amuleto mais cedo e disse que era um caduceu, o senhor fez uma pausa, como se fosse dizer alguma coisa, mas depois hesitou e pareceu mudar de ideia. O que ia dizer?
Langdon balançou a cabeça.
– Nada. É bobagem. Às vezes não consigo controlar o meu lado professoral.
Olhando bem fundo nos olhos dele, Elizabeth Sinskey disse:
– Estou fazendo esta pergunta porque preciso saber se posso confiar no senhor. O que ia dizer?
Langdon engoliu em seco e pigarreou.
– Não que tenha alguma importância, mas a senhora disse que o seu amuleto é o símbolo da medicina, o que está correto. No entanto, quando o chamou de caduceu, cometeu um erro muito comum. O caduceu tem duas serpentes em volta do cabo e asas no topo. O seu amuleto tem uma única serpente e não tem asas. O seu símbolo se chama...
– O Bastão de Asclépio.
Surpreso, Langdon inclinou a cabeça de lado.
– Exatamente.
– Eu sei. Estava testando a sua sinceridade.
– Perdão?
– Estava curiosa para saber se o senhor me diria a verdade, por mais constrangedor que pudesse ser para mim.
– Parece que não passei no teste.
– Que isso não se repita. Honestidade total é a única forma de o senhor e eu conseguirmos trabalhar juntos nessa história.
– Trabalhar juntos? Ainda não acabamos?
– Não, professor, ainda não. Preciso que o senhor vá a Florença e me ajude a encontrar uma coisa.
Langdon a encarou, sem acreditar.
– Agora? Esta noite?
– Temo que sim. Ainda preciso lhe falar sobre a natureza verdadeiramente crítica desta situação.
Langdon negou com a cabeça.
– Não importa o que a senhora me diga. Eu não quero ir a Florença.
– Nem eu – retrucou ela, soturna. – Mas, infelizmente, o tempo está se esgotando.
O sol do meio-dia se refletia no teto lustroso do trem italiano de alta velocidade, o Frecciargento, que seguia rumo ao norte, traçando um gracioso arco ao longo da zona rural da Toscana. Apesar de se afastar de Florença a 300 quilômetros por hora, o “flecha de prata” quase não fazia barulho e seus leves estalos repetitivos e seu balançar suave surtiam um efeito relaxante nos passageiros.
Para Robert Langdon, a última hora tinha sido um borrão.
Agora, a bordo do trem, ele, Sienna e o Dr. Ferris estavam sentados em um dos salottini reservados do Frecciargento – um pequeno compartimento na classe executiva com quatro assentos de couro e uma mesa dobrável. Ferris havia reservado a cabine inteira com seu cartão de crédito, solicitando também sanduíches variados e água mineral, que Langdon e Sienna haviam consumido com voracidade depois de fazerem uma toalete sumária no banheiro vizinho ao compartimento privado.
Assim que os três se acomodaram para o trajeto de duas horas até Veneza, o Dr. Ferris voltou sua atenção para a máscara mortuária de Dante, depositada sobre a mesa ainda dentro do saco plástico.
– Temos que descobrir para onde exatamente em Veneza esta máscara está nos conduzindo.
– E logo – acrescentou Sienna, ansiosa. – Essa talvez seja nossa única esperança de impedir a peste de Zobrist.
– Espere aí – disse Langdon, pousando a mão sobre a máscara em um gesto defensivo. – Você prometeu que, quando estivéssemos seguros a bordo deste trem, me daria algumas respostas em relação aos últimos dias. Até agora, tudo o que sei é que a OMS me recrutou em Cambridge para ajudar a decifrar a versão de Zobrist para o Mappa.
O Dr. Ferris se remexeu na cadeira, desconfortável, e tornou a coçar as erupções em seu rosto e pescoço.
– Entendo a sua frustração – falou. – Tenho certeza de que é perturbador não se lembrar do que aconteceu, mas, de um ponto de vista médico... – Ele olhou de relance para Sienna em busca de confirmação antes de prosseguir: – Recomendo que não gaste energia tentando se lembrar de detalhes. Para as vítimas de amnésia, o melhor é deixar que o passado esquecido continue esquecido.
– Deixar para lá?! – Langdon sentiu a raiva crescer dentro de si. – Nem pensar! Eu preciso de respostas! A sua organização me trouxe até a Itália, onde levei um tiro e esqueci dias da minha vida! Quero saber como isso aconteceu!
– Robert – interveio Sienna bem baixinho, numa clara tentativa de acalmá-lo. – O Dr. Ferris tem razão. Com certeza não seria saudável você receber uma enxurrada de informações de uma vez só. Pense nos pequenos fragmentos de que você de fato se lembra... a mulher de cabelos prateados, “busca e encontrarás”, os corpos contorcidos do Mappa... Essas imagens inundaram a sua mente em uma série de flashbacks embaralhados e incontroláveis que o deixaram quase incapacitado. Se o Dr. Ferris começar a relatar o que aconteceu nos últimos dias, é quase certo que isso vá trazer novas lembranças à tona, e você talvez volte a ter alucinações. Amnésia retrógrada é um distúrbio sério. Desencadear lembranças perdidas pode ser muito prejudicial para a sua psique.
Langdon não tinha pensado nisso.
– Você deve estar se sentindo bastante desorientado – prosseguiu Ferris –, mas no momento precisamos da sua psique intacta para podermos avançar. É fundamental descobrirmos o que essa máscara está tentando nos dizer.
Sienna concordou.
Os médicos pareciam estar de acordo, observou Langdon sem dizer nada.
Sentado ali em silêncio, ele tentava superar a incerteza. Era uma sensação estranha encontrar um total desconhecido e descobrir que, na verdade, vocês já se conheciam havia dias. Mas, pensando bem, Langdon refletiu, os olhos dele têm mesmo algo vagamente familiar.
– Professor – disse Ferris em um tom de voz compassivo –, percebo que não tem certeza se pode confiar em mim, o que é compreensível, considerando tudo por que o senhor passou. Um dos efeitos colaterais mais comuns da amnésia é uma leve paranoia e desconfiança.
Faz sentido, pensou Langdon, levando em conta que não posso confiar nem na minha própria mente.
– Falando em paranoia – brincou Sienna, tentando descontrair o ambiente –, quando Robert viu sua pele irritada, ele achou que o senhor estivesse contaminado pela Peste Negra.
Os olhos inchados de Ferris se arregalaram e ele deu uma gargalhada.
– Isto aqui? Acredite, professor, se eu estivesse com a peste, não estaria me tratando com um anti-histamínico comprado sem receita na farmácia.
Ele tirou do bolso um tubinho de pomada e o jogou para Langdon. De fato: era um tubo de pomada para reações alérgicas, já pela metade.
– Desculpe – disse Langdon, sentindo-se tolo. – Tive um dia longo.
– Não se preocupe – falou Ferris.
Langdon se virou para a janela e pôs-se a observar os tons discretos da paisagem rural italiana se mesclarem em uma plácida colagem. Vinhedos e fazendas ficavam mais esparsos à medida que as planícies davam lugar aos morros no sopé dos Apeninos. Em breve o trem atravessaria o sinuoso desfiladeiro da cordilheira para depois tornar a descer, zunindo rumo ao leste em direção ao mar Adriático.
Estou indo para Veneza, pensou. Atrás de uma peste.
Aquele dia estranho o deixara com a impressão de estar percorrendo uma paisagem composta apenas de formas vagas, sem nenhum detalhe específico. Como um sonho. Por ironia, os pesadelos em geral faziam a pessoa despertar... mas Langdon tinha a sensação de ter acordado dentro de um.
– Uma lira pelos seus pensamentos – sussurrou Sienna ao seu lado.
Ele ergueu os olhos e deu um sorriso cansado.
– Não paro de pensar que vou acordar em casa e descobrir que isso tudo não passou de um sonho ruim.
Sienna inclinou a cabeça e se fez de recatada.
– Não sentiria a minha falta se acordasse e descobrisse que não sou real?
Langdon não conseguiu reprimir um sorriso.
– É, iria sentir um pouquinho, sim.
Ela afagou seu joelho.
– Pare de sonhar acordado, professor, e ponha mãos à obra.
Relutante, Langdon voltou os olhos para a mesa à sua frente, de onde o rosto enrrugado de Dante Alighieri lhe devolveu um olhar vazio. Com delicadeza, ele pegou a máscara de gesso e a virou, observando o interior côncavo e a primeira linha de texto em espiral:
Ó, vós, na possessão de tão robustos intelectos...
Duvidava que no presente momento ele próprio se encaixasse nessa descrição.
Mesmo assim, começou a trabalhar.
Pouco mais de 300 quilômetros à frente do trem-bala, o Mendacium continuava ancorado no mar Adriático. Na coberta, o facilitador Laurence Knowlton ouviu alguém bater suavamente em sua saleta de vidro e apertou um botão debaixo da mesa, fazendo a parede opaca ficar transparente. Do outro lado, um vulto de baixa estatura e pele queimada de sol se materializou.
O diretor.
Sua expressão era soturna.
Sem dizer nada, ele entrou, trancou atrás de si a porta da saleta e acionou o interruptor que tornava o vidro opaco outra vez. Exalava um cheiro de álcool.
– O tal vídeo que Zobrist nos deixou... – começou.
– Pois não, diretor?
– Quero vê-lo. Agora.
Robert Langdon já havia terminado de transcrever o texto da máscara mortuária para um papel, para que pudessem analisá-lo com mais atenção. Sienna e o Dr. Ferris se aproximaram para ajudar e Langdon fez o possível para ignorar as coçadas constantes e a respiração penosa do homem.
Ele está bem, disse Langdon para si mesmo, forçando-se a se concentrar nos versos à sua frente.
Ó, vós, na possessão de tão robustos intelectos,
observai os ensinamentos que se escondem...
sob o véu destes estranhos versos.
– Como mencionei mais cedo – começou Langdon –, a primeira estrofe do poema de Zobrist foi tirada, verbatim, do Inferno de Dante... um alerta ao leitor de que esses versos têm um significado mais profundo.
A alegórica obra de Dante era tão repleta de comentários velados sobre religião, política e filosofia que Langdon muitas vezes sugeria que seus alunos estudassem o poeta italiano mais ou menos como estudavam a Bíblia: lendo nas entrelinhas para tentarem desvendar os sentidos ocultos dos escritos.
– Estudiosos de alegorias medievais em geral dividem suas análises em duas categorias: texto e imagem – continuou Langdon. – O texto é o conteúdo literal da obra, ao passo que a imagem é sua mensagem simbólica.
– Certo – disse Ferris. – Então o fato de o poema começar com esse verso...
– Sugere que a nossa leitura superficial talvez só revele parte da história – interrompeu Sienna. – Que o verdadeiro significado talvez esteja escondido.
– É, algo assim. – Langdon tornou a se concentrar no texto e prosseguiu a leitura em voz alta.
Buscai o traiçoeiro doge de Veneza
que de cavalos cortou cabeças...
e os ossos arrancou de quem já não pode ver.
– Bem – disse Langdon –, não tenho certeza quanto a cavalos sem cabeça nem aos ossos de quem já não pode ver, mas parece que devemos localizar um doge específico.
– Talvez o túmulo de um doge? – arriscou Sienna.
– Ou uma estátua ou retrato? – rebateu Langdon. – Os doges não existem há séculos.
Os doges de Veneza eram semelhantes aos duques de outras cidades-estado italianas. Mais de uma centena deles havia governado a cidade ao longo de mil anos, a partir de 697 d.C. Sua linhagem chegara ao fim no século XVIII com a conquista de Napoleão, mas a glória e o poder dos doges até hoje constituía um tema de intenso fascínio para os historiadores.
– Como vocês já devem saber – falou Langdon –, as duas atrações turísticas mais populares de Veneza, o Palazzo Ducale, ou Palácio dos Doges, e a Basílica de São Marcos, foram construídas por e para esses governantes. Muitos deles estão sepultados lá mesmo.
– E por acaso existiu algum doge considerado particularmente perigoso? – perguntou Sienna, olhando para o texto no papel.
Langdon baixou os olhos para o verso ao qual ela se referia. Buscai o traiçoeiro doge de Veneza.
– Não que eu saiba, mas o poema não usa a palavra “perigoso”, e sim “traiçoeiro”. Existe uma diferença, pelo menos no mundo de Dante. A traição é um pecado mortal... o pior de todos na verdade, punido no nono e último círculo do Inferno.
Na definição de Dante, trair era o ato de violar a confiança de alguém que se amava. O exemplo histórico mais notório desse pecado era a traição a Jesus por Judas, ato que Dante julgava tão vil a ponto de banir Judas para o núcleo mais central do Inferno: uma região chamada Judeca, em homenagem a seu mais desprezível residente.
– Quer dizer então que nós estamos procurando um doge que cometeu um ato de traição – disse Ferris.
Sienna meneou a cabeça, concordando.
– Isso vai nos ajudar a reduzir a lista de candidatos. – Ela fez uma pausa para examinar o texto. – Mas esse verso seguinte aqui... um doge que “de cavalos cortou cabeças”? – Sienna ergueu os olhos para Langdon. – Houve algum doge que cortou cabeças de cavalos?
A imagem evocada por Sienna fez Langdon pensar na medonha cena de O poderoso chefão.
– Não consigo pensar em nenhum. Segundo este texto aqui, porém, ele também arrancou os ossos “de quem já não pode ver”, ou seja, dos cegos. – Ele olhou para Ferris. – Seu celular tem acesso à internet, não tem?
Ferris sacou o telefone do bolso e ergueu os dedos inchados e inflamados.
– Acho que não vou conseguir digitar direito.
– Deixem comigo – falou Sienna, pegando o telefone. – Vou fazer uma busca sobre os doges de Veneza e cruzá-la com cavalos sem cabeça e os ossos dos cegos.
Ela começou a digitar depressa no pequeno teclado.
Langdon correu os olhos pelo poema mais uma vez e continuou a lê-lo em voz alta.
Ajoelhai-vos no dourado mouseion de santo saber,
e levai ao chão vossa orelha,
para ouvir o som da água que corre.
– Nunca ouvi falar em mouseion – disse Ferris.
– É uma palavra antiga que significa um templo protegido pelas musas – explicou Langdon. – Na Grécia antiga, um mouseion era um lugar onde os homens esclarecidos se reuniam para trocar ideias e debater literatura, música e arte. O primeiro mouseion foi construído por Ptolomeu na Biblioteca de Alexandria, séculos antes do nascimento de Cristo, e depois disso centenas de outros surgiram mundo afora.
– Dra. Brooks – disse Ferris, fitando Sienna com um olhar esperançoso. – Pode ver se existe algum mouseion em Veneza?
– Na verdade, existem dezenas – respondeu Langdon com um sorriso brincalhão. – Hoje em dia eles são chamados de museus.
– Ah... – murmurou Ferris. – Acho que a nossa busca vai ter que ser mais ampla.
Sienna continuava digitando no celular, sem dificuldade alguma em fazer várias coisas ao mesmo tempo enquanto relacionava calmamente as informações disponíveis.
– Certo, então estamos buscando um museu em que haja um doge que cortou cabeças de cavalos e arrancou os ossos dos cegos. Robert, algum museu específico que possa ser um bom lugar para procurar?
Langdon já estava elaborando uma lista mental de todos os museus venezianos mais conhecidos: Gallerie dell’Accademia, Ca’Rezzonico, Palazzo Grassi, Coleção Peggy Guggenheim, Museo Correr... mas nenhum deles parecia se encaixar na descrição.
Tornou a olhar para o texto.
Ajoelhai-vos no dourado mouseion de santo saber...
Foi então que abriu um sorriso irônico.
– Veneza tem um museu que se encaixa perfeitamente na descrição “dourado mouseion de santo saber”.
Tanto Ferris quanto Sienna o encararam com ar de expectativa.
– A Basílica de São Marcos – declarou Langdon. – A maior igreja de Veneza.
Ferris não parecia convencido.
– A igreja é um museu?
Langdon assentiu.
– Bem parecido com o Museu do Vaticano. Além disso, o interior da Basílica de São Marcos é famoso por ser enfeitado de cima a baixo com ladrilhos de ouro maciço.
– Um mouseion dourado – disse Sienna, em um tom de genuína animação.
Langdon tornou a assentir, bastante seguro de que São Marcos era o templo dourado ao qual o poema se referia. Durante muitos séculos, os venezianos haviam chamado a basílica de La Chiesa d’Oro – a Igreja de Ouro –, e ele considerava seu interior o mais impressionante de todas as igrejas do mundo.
– O poema faz referência ao ato de se ajoelhar – acrescentou Ferris. – E uma igreja é um lugar óbvio para isso.
Sienna já estava digitando furiosamente outra vez.
– Vou acrescentar São Marcos à busca. Deve ser lá que temos que procurar o doge.
Langdon sabia que haveria doges de sobra em São Marcos – que era, literalmente, a basílica dos doges. Sentiu-se estimulado ao se debruçar mais uma vez sobre o poema.
Ajoelhai-vos no dourado mouseion de santo saber,
e levai ao chão vossa orelha,
para ouvir o som da água que corre.
Água que corre?, estranhou Langdon. Debaixo de São Marcos tem água? De repente, percebeu que aquela era uma dúvida boba. Havia água debaixo da cidade inteira. Todos os prédios de Veneza aos poucos estavam afundando e se enchendo de infiltrações. Langdon visualizou a basílica e tentou imaginar onde, lá dentro, alguém poderia se ajoelhar para ouvir água correndo. E mesmo que façamos isso... o que faremos em seguida?
Voltou ao poema e terminou de lê-lo em voz alta.
Descei às profundezas do palácio afundado...
pois lá, na escuridão, espreita o monstro ctônico,
submerso nas águas rubras de sangue...
da lagoa que não reflete as estrelas.
– Certo – disse Langdon, incomodado com aquela imagem –, então parece que devemos seguir o som da água que corre... até alguma espécie de palácio afundado.
Ferris coçou o rosto, parecendo aflito.
– O que é um monstro ctônico?
– Um monstro subterrâneo – respondeu Sienna, ainda digitando no celular. – “Ctônico” significa “debaixo da terra”.
– Em parte, é isso mesmo – interveio Langdon. – Mas a palavra tem outra conotação do ponto de vista histórico... em geral associada a mitos e monstros. Os ctônios são toda uma categoria de deuses e monstros míticos, como, por exemplo, as Fúrias, Hécates ou a Medusa. São chamados assim por habitarem o mundo inferior e estão associados ao Inferno. – Langdon fez uma pausa. – Historicamente, eles emergem da terra e sobem à superfície para semear o caos no mundo humano.
Fez-se um silêncio prolongado e Langdon sentiu que os três pensavam a mesma coisa. Esse monstro ctônico... só pode ser a peste de Zobrist.
pois lá, na escuridão, espreita o monstro ctônico,
submerso nas águas rubras de sangue...
da lagoa que não reflete as estrelas.
– Enfim – disse ele, tentando não perder o fio da meada –, é óbvio que estamos à procura de um local subterrâneo, o que pelo menos explica o último verso do poema, com essa referência à “lagoa que não reflete as estrelas”.
– Bem observado – falou Sienna, erguendo os olhos do celular de Ferris. – Uma lagoa subterrânea não pode refletir o céu. Mas Veneza tem lagoas subterrâneas?
– Não que eu saiba – respondeu Langdon. – Mas, para uma cidade construída sobre a água, as possibilidades devem ser infinitas.
– E se a lagoa estiver dentro de algum lugar? – perguntou Sienna de súbito, olhando para os dois. – O poema faz referência às “profundezas do palácio afundado”. Você não acabou de dizer que o Palácio dos Doges é interligado à basílica? Ou seja, essas estruturas têm muito do que o poema menciona: um mouseion de santo saber, um palácio, uma relação com os doges... E estão todas localizadas bem à margem da principal lagoa de Veneza, no nível do mar.
Langdon pensou um pouco.
– Está achando que o “palácio afundado” do poema é o Palácio dos Doges?
– Por que não? O poema nos diz para, primeiro, nos ajoelharmos na Basílica de São Marcos, depois para seguirmos os sons de água corrente. Pode ser que o barulho da água conduza ao prédio contíguo, o Palácio dos Doges. Ele talvez tenha alicerces submersos ou algo assim.
Langdon já tinha visitado o Palácio dos Doges muitas vezes e sabia que se tratava de uma construção descomunal. Um imenso complexo de prédios, o palácio abrigava um grandioso museu, um verdadeiro labirinto de salas administrativas, aposentos e pátios, além de uma rede de prisões tão vasta que precisava ocupar vários prédios.
– Talvez você tenha razão – disse Langdon –, mas uma busca às cegas nesse palácio levaria dias. Sugiro que façamos exatamente o que manda o poema. Primeiro, devemos ir à Basílica de São Marcos e encontrar o túmulo ou a estátua desse tal doge traiçoeiro, para depois nos ajoelharmos lá dentro.
– E depois? – indagou Sienna.
– Depois – repetiu Langdon com um suspiro –, só nos restará rezar com fervor para ouvir o som de água corrente... e para que ela nos leve a algum lugar.
No silêncio que se seguiu, Langdon visualizou o rosto ansioso de Elizabeth Sinskey como o tinha visto em suas alucinações, chamando-o por cima da água. O tempo está se esgotando. Busca e encontrarás! Perguntou-se onde ela estaria agora... e se estava bem. Àquela altura, os soldados de preto sem dúvida já teriam percebido a fuga de Langdon e Sienna. Quanto tempo demorarão para vir atrás de nós?
Ao voltar os olhos para o poema outra vez, Langdon precisou lutar contra uma onda de exaustão. Enquanto espiava o último verso, outro pensamento lhe ocorreu. Refletiu se valeria a pena mencioná-lo. A lagoa que não reflete as estrelas. Aquilo decerto era irrelevante para a sua busca, mas ele decidiu compartilhar a ideia mesmo assim:
– Tem mais uma coisa que eu gostaria de mencionar.
Sienna ergueu os olhos do celular.
– As três partes da Divina comédia de Dante, Inferno, Purgatório e Paraíso, terminam todas com a mesma palavra.
Sienna pareceu espantada.
– Que palavra? – perguntou Ferris.
Langdon apontou para o final do texto que havia transcrito.
– A mesma que encerra este poema aqui: “estrelas.” – Ele pegou a máscara mortuária de Dante e apontou bem para o meio do texto em espiral.
A lagoa que não reflete as estrelas.
– E tem mais: no final do Inferno, Dante ouve um barulho de água correndo dentro de uma rocha e segue o som por uma abertura... e isso o conduz para fora do mundo inferior – concluiu Langdon.
Ferris empalideceu de leve.
– Meu Deus.
Neste exato momento, o som ensurdecedor de uma rajada de ar encheu a cabine quando o Frecciargento mergulhou dentro de um túnel na montanha.
No escuro, Langdon fechou os olhos e tentou deixar a mente relaxar. Zobrist pode até ter sido um louco, pensou, mas seu domínio de Dante com certeza era extraordinário.
Laurence Knowlton sentiu uma onda de alívio invadi-lo.
O diretor mudou de ideia quanto a assistir ao vídeo de Zobrist.
Knowlton praticamente se atirou sobre o cartão de memória vermelho, que inseriu no computador. O peso da bizarra mensagem de nove minutos de Zobrist assombrava o facilitador, fazendo-o ansiar que outros olhos também a vissem.
Não serei mais o único a carregar esse fardo.
Knowlton prendeu a respiração e deu início ao vídeo.
A tela ficou preta, então um barulho suave de água chapinhando encheu a saleta. A imagem percorreu a névoa avermelhada da caverna e, embora o diretor não tenha demonstrado reação alguma, Knowlton pressentiu que o chefe estava ao mesmo tempo alarmado e perplexo.
A imagem interrompeu seu avanço, inclinou-se para baixo sobre a superfície da lagoa, mergulhou na água e afundou vários metros até revelar a reluzente placa de titânio chumbada ao fundo.
NESTE LOCAL, NESTA DATA,
O MUNDO FOI TRANSFORMADO PARA SEMPRE.
O diretor se encolheu de forma quase imperceptível.
– Amanhã – sussurrou ao ler a data. – Por acaso sabemos onde “neste local” pode ser?
Knowlton fez que não com a cabeça.
A imagem então se deslocou para a esquerda, revelando o saco plástico submerso contendo o fluido gelatinoso marrom-amarelado.
– Que porcaria é essa?!
O diretor puxou uma cadeira, sentou-se e ficou encarando a bolha ondulante, suspensa debaixo d’água como um balão preso por uma cordinha.
Um silêncio desconfortável tomou a saleta enquanto o vídeo avançava. Pouco depois, a tela ficou preta e então uma estranha sombra com nariz em forma de bico surgiu na parede da caverna, começando a falar em sua linguagem hermética:
Eu sou a Sombra.
Fadado ao subterrâneo, devo falar ao mundo das profundezas da terra, exilado nesta caverna sombria em que as águas rubras de sangue se acumulam na lagoa que não reflete as estrelas.
Mas este é o meu paraíso... o útero perfeito para o meu frágil rebento.
Inferno.
O diretor ergueu os olhos.
– Inferno?
Knowlton deu de ombros.
– Como eu disse, é perturbador.
O diretor tornou a voltar os olhos para a tela, compenetrado.
A sombra bicuda continuou a discursar por vários minutos, falando sobre pestes; sobre a necessidade de a população purgar a si mesma; sobre seu próprio e glorioso papel no futuro; sobre sua batalha contra as almas ignorantes que vinham tentando detê-lo; e sobre os poucos indivíduos leais que de fato compreendiam que medidas drásticas eram a única maneira de salvar o planeta.
Fosse qual fosse aquela guerra, Knowlton perdera uma manhã inteira se perguntando se o Consórcio não estaria lutando do lado errado.
A voz seguiu falando:
Eu criei uma obra-prima de salvação. Ainda assim, meus esforços foram retribuídos não com trombetas e coroas de louros... mas com ameaças de morte.
Não temo a morte... pois é ela que transforma visionários em mártires... e converte ideias nobres em movimentos poderosos.
Jesus. Sócrates. Martin Luther King.
Em breve me juntarei a eles.
A obra-prima por mim concebida é uma criação do próprio Deus... um presente Daquele que me imbuiu do intelecto, das ferramentas e da coragem necessários para forjar tal criação.
Agora o dia se aproxima.
Inferno repousa logo abaixo de mim, preparando-se para irromper de seu útero aquático sob o olhar atento do monstro ctônico e de todas as suas Fúrias.
Apesar da virtude dos meus feitos, assim como você, não desconheço o Pecado. Até mesmo eu carrego a culpa do mais tenebroso dos sete – a tentação solitária da qual tão poucos conseguem se proteger.
Soberba.
O próprio fato de gravar esta mensagem me fez sucumbir à atração instigante da Soberba... ansioso por garantir que o mundo conhecesse o meu trabalho.
E por que não?
A humanidade precisa conhecer a fonte de sua salvação... o nome daquele que selou para sempre os portões escancarados do Inferno!
A cada hora que passa, o desfecho se torna mais certo. A matemática – tão implacável quanto a lei da gravidade – não admite negociação. O mesmo exponencial florescer de vida que quase extinguiu a Humanidade será também a sua redenção. A beleza de qualquer organismo vivo – seja ele bom ou mau – reside no fato de que este sempre seguirá a lei de Deus com singular determinação.
Crescei e multiplicai-vos.
Sendo assim, eu combato fogo... com fogo.
– Chega – disse o diretor em voz tão baixa que Knowlton mal o escutou.
– Como disse, diretor?
– Pare o vídeo.
Knowlton congelou a imagem.
– Na verdade, diretor, o final é a parte mais assustadora.
– Já vi o suficiente. – O diretor não parecia se sentir bem. Passou um bom tempo andando de um lado para outro na saleta. Então se virou abruptamente: – Precisamos entrar em contato com FS-2080.
Knowlton refletiu sobre essa decisão.
FS-2080 era o codinome de um dos contatos de confiança do diretor – o mesmo que recomendara Zobrist como cliente ao Consórcio. Sem dúvida, naquele exato momento, o diretor repreendia a si mesmo por ter confiado no juízo de FS-2080; a recomendação de Bertrand Zobrist como cliente havia instaurado o caos no mundo delicadamente estruturado do Consórcio.
FS-2080 é a razão desta crise.
A sucessão de calamidades em torno de Zobrist só parecia piorar, não apenas para o Consórcio, mas talvez para o mundo inteiro.
– Temos que descobrir as verdadeiras intenções de Zobrist – declarou o diretor. – Quero saber exatamente o que ele criou e se essa ameaça é real.
Knowlton sabia que, se alguém tinha as respostas para essas perguntas, essa pessoa era FS-2080. Ninguém conhecia melhor Bertrand Zobrist. Já era hora de o Consórcio quebrar o protocolo e avaliar que tipo de insanidade a organização talvez houvesse apoiado ao longo do último ano.
Knowlton considerou os possíveis desdobramentos de um confronto direto com FS-2080. O simples ato de fazer contato tinha certos riscos.
– Se o senhor for entrar em contato com FS-2080, naturalmente precisará agir com muita cautela – disse Knowlton.
O diretor sacou o celular, os olhos chispando de raiva.
– A hora de agir com cautela já passou há muito tempo.
Sentado com seus dois companheiros de viagem no compartimento reservado do Frecciargento, o homem de gravata com estampa paisley e óculos Plume Paris teve que se esforçar ao máximo para não coçar as erupções, que continuavam piorando. A dor em seu peito também parecia ter aumentado.
Quando o trem enfim emergiu do túnel, ele olhou para Langdon, que abriu os olhos devagar, parecendo retornar de pensamentos distantes. Ao seu lado, Sienna começou a encarar o celular do homem, que havia largado quando o trem entrara no túnel, pois lá não tinha sinal.
Sienna parecia ansiosa por continuar sua busca na internet, mas, antes que pudesse estender a mão para o aparelho, ele começou a vibrar de repente, emitindo uma série de bipes.
O homem de pele irritada, que conhecia bem aquele toque, pegou o telefone na mesma hora e conferiu a tela iluminada, fazendo o possível para esconder seu espanto.
– Com licença – falou, levantando-se. – Minha mãe está adoentada. Preciso atender.
Sienna e Langdon assentiram com a cabeça, de modo compreensivo, enquanto ele saía da cabine, avançando depressa pelo corredor até um banheiro ali perto.
O homem de pele irritada trancou a porta do banheiro e atendeu a ligação.
– Alô?
A voz do outro lado era grave.
– É o diretor.
O banheiro do Frecciargento não era maior do que o de um avião comercial – mal havia espaço para se virar. O homem de pele irritada encerrou a ligação com o diretor e guardou o telefone no bolso.
A situação mudou, percebeu ele. De repente tudo parecia ter ficado de cabeça para baixo e ele precisou de alguns instantes para se situar.
Meus amigos agora são meus inimigos.
O homem afrouxou a gravata e encarou no espelho o rosto coberto de pústulas. Seu aspecto estava pior do que ele imaginara. O rosto, porém, era pouco preocupante se comparado à dor que ele sentia no peito.
Com gestos hesitantes, ele desabotoou a parte de cima da camisa e a abriu.
Forçou-se a olhar no espelho... e examinou o peito nu.
Meu Deus.
A área enegrecida estava aumentando.
A pele no centro de seu peito estava escurecida por um negro-azulado profundo. A mancha, que havia aparecido na noite anterior, do tamanho de uma bola de golfe, agora estava tão grande quanto uma laranja. Ele tocou delicadamente a pele sensível e fez uma careta.
Apressou-se em abotoar a camisa de volta, esperando ter forças para fazer o que devia ser feito.
A próxima hora vai ser decisiva, pensou. Uma delicada série de manobras.
Fechou os olhos e se recompôs, repassando mentalmente tudo o que precisaria acontecer. Meus amigos se tornaram meus inimigos, tornou a pensar.
Respirou fundo várias vezes, em constante agonia, na esperança de que isso o acalmasse. Sabia que precisava manter a serenidade se quisesse esconder suas verdadeiras intenções.
Paz de espírito é fundamental para uma atuação convincente.
O homem de pele irritada estava habituado a farsas, mas mesmo assim seu coração batia acelerado. Tornou a respirar fundo, latejando de dor. Você vem enganando as pessoas há anos, lembrou a si mesmo. É isso que faz da vida.
Reunindo forças, preparou-se para voltar à companhia de Langdon e Sienna.
Minha última atuação, pensou.
Como uma precaução final antes de sair do banheiro, retirou a bateria do telefone, certificando-se de que o aparelho não pudesse mais ser usado.
Como ele está pálido, pensou Sienna quando o homem de pele irritada tornou a entrar na cabine e se acomodou na cadeira com um suspiro de angústia.
– Está tudo bem? – perguntou ela, genuinamente preocupada.
Ele assentiu.
– Sim, tudo bem. Obrigado.
Como o homem não parecia disposto a compartilhar nada mais do que isso, Sienna mudou de tática:
– Se não se importar, preciso do seu telefone de novo. Gostaria de continuar buscando mais informações sobre o doge. Talvez consigamos encontrar algumas respostas antes de visitarmos a Basílica de São Marcos.
– Claro – disse ele, tirando o celular do bolso e verificando a tela. – Ai, droga. Minha bateria estava quase acabando durante a ligação. Parece que agora morreu de vez. – Ele olhou de relance para o relógio. – Já estamos chegando a Veneza. Vamos ter que esperar.
A 8 quilômetros do litoral italiano, a bordo do Mendacium, o facilitador Knowlton observava em silêncio o diretor dar voltas no interior da saleta como um animal enjaulado. A ligação sem dúvida servira para colocar a mente do seu chefe para funcionar e Knowlton sabia muito bem que não deveria dar um pio enquanto ele estivesse pensando.
Por fim, o homem bronzeado voltou a falar, sua voz mais tensa do que Knowlton se lembrava de já tê-la escutado.
– Não temos escolha. Precisamos mostrar esse vídeo à Dra. Elizabeth Sinskey.
Knowlton permaneceu sentado, imóvel, sem querer demonstrar surpresa. O demônio de cabelos prateados? A pessoa de quem ajudamos Zobrist a fugir o ano inteiro?
– Está bem, diretor. Quer que eu dê um jeito de mandar o vídeo para ela?
– Meu Deus, não! E correr o risco de que vaze para o público? Seria uma histeria em massa. Quero a Dra. Sinskey a bordo o mais rápido possível.
Knowlton o encarou, incrédulo. Ele quer trazer a diretora da OMS para o Mendacium?
– Diretor, essa quebra do nosso protocolo de confidencialidade traz óbvios riscos de...
– Knowlton, apenas obedeça. AGORA!
FS-2080 olhava pela janela do veloz Frecciargento, observando o reflexo de Robert Langdon no vidro. O professor continuava pensando em possíveis soluções para o enigma da máscara mortuária criado por Bertrand Zobrist.
Bertrand, pensou FS-2080. Meu Deus, que saudade!
Sentiu mais uma vez a dor da perda. A noite em que os dois haviam se conhecido ainda parecia um sonho mágico.
Chicago. A tempestade de neve.
Mês de janeiro, seis anos atrás... mas parece que foi ontem...
Estou atravessando a duras penas a neve acumulada no trecho exposto ao vento da Michigan Avenue conhecido como Magnificent Mile, com a gola do casaco levantada para me proteger da violenta nevasca. Apesar do frio, repito em minha mente que nada poderá me impedir de chegar ao meu destino. Essa noite é a minha chance de ouvir o grande Bertrand Zobrist falar... ao vivo.
Já li tudo o que esse homem escreveu e sei que tenho sorte de ter conseguido um dos quinhentos ingressos disponibilizados para o evento.
Quando chego ao auditório, com o corpo quase anestesiado pelo vento, sinto uma onda de pânico ao ver que a casa está quase vazia. Será que a palestra foi cancelada?! A cidade está quase interditada por causa do mau tempo... será que Zobrist não conseguiu chegar?!
Então ele aparece.
Uma silhueta imponente e elegante sobe ao palco.
Ele é alto... tão alto... com vibrantes olhos verdes que parecem encerrar em suas profundezas todos os mistérios do mundo. Quando ele percorre o auditório vazio com o olhar – apenas cerca de uma dezena de fãs empedernidos –, sinto vergonha por haver tão pouca gente na plateia.
Aquele é Bertrand Zobrist!
Há um terrível instante de silêncio enquanto ele nos encara com uma expressão severa.
Então, sem qualquer aviso, com os olhos verdes faiscantes, solta uma gargalhada.
– Para o inferno com este auditório vazio! – esbraveja. – Meu hotel fica bem aqui ao lado. Vamos para o bar!
A plateia vibra e nosso pequeno grupo se desloca até o prédio vizinho para um bar de hotel, onde nos aglomeramos ao redor de uma grande mesa reservada e pedimos bebidas. Zobrist nos encanta com histórias sobre suas pesquisas, sua ascensão à fama e suas ideias sobre o futuro da engenharia genética. Enquanto a bebida rola solta, o tema da conversa muda para sua recém-descoberta paixão pela filosofia transumanista.
– A meu ver, o transumanismo é nossa única esperança de sobrevivência a longo prazo – defende ele, afastando a camisa para mostrar a todos a tatuagem de “H+” no ombro. – Como podem ver, estou comprometido de corpo e alma.
É como se estivesse em um encontro particular com um astro do rock. Nunca imaginei que o famoso “gênio da genética” fosse ser tão carismático ou sedutor. Toda vez que Zobrist olha na minha direção, seus olhos verdes despertam em mim um sentimento inteiramente inesperado... o forte magnetismo da atração sexual.
Com o passar da noite, o grupo aos poucos vai diminuindo, os presentes pedindo licença para voltar à realidade. À meia-noite, estou a sós com Bertrand Zobrist.
– Queria agradecer por esta noite – digo a ele, sentindo a leve embriaguez de algumas doses a mais. – O senhor é um professor incrível.
– Nada como uma boa massagem no ego. – Zobrist sorri e chega mais perto; nossas pernas agora se tocando. – Aí está uma chave que abre qualquer porta.
A cantada é obviamente inadequada, mas naquele hotel deserto de Chicago, com a neve caindo do lado de fora, minha impressão é de que o mundo parou de girar.
– Que tal uma saideira no meu quarto? – pergunta Zobrist.
Eu gelo, sabendo que devo parecer um animal encurralado.
Os olhos de Zobrist cintilam, tórridos.
– Deixe-me adivinhar – sussurra ele. – Você nunca esteve com um homem famoso.
Sinto-me enrubescer, lutando para disfarçar uma enxurrada de emoções – vergonha, excitação, medo.
– Com toda a sinceridade – respondo –, eu nunca estive com homem nenhum.
Zobrist sorri e chega mais perto ainda.
– Não sei bem o que estava esperando, mas, por favor, permita que eu seja o primeiro.
Então todos os constrangedores medos e frustrações sexuais da minha infância desaparecem... simplesmente evaporam no ar.
Pela primeira vez na vida, sinto um desejo livre de vergonha.
Eu desejo aquele homem.
Dez minutos mais tarde, estamos os dois no quarto de hotel de Zobrist, nus nos braços um do outro. Zobrist não se apressa. Suas mãos pacientes arrancam do meu corpo inexperiente sensações que nunca experimentei.
Foi uma escolha minha. Ele não me forçou.
No casulo do abraço de Zobrist, sinto que tudo no mundo está em seu devido lugar. Ali, naquela cama, observando pela janela a noite de neve lá fora, tenho certeza de que seguirei esse homem a qualquer lugar.
A velocidade do Frecciargento diminuiu de repente e FS-2080 despertou da feliz lembrança e voltou à desolação do presente.
Bertrand... você se foi.
Aquela primeira noite juntos fora o primeiro passo de uma incrível jornada.
Não éramos meros amantes. Éramos como mestre e aprendiz.
– A ponte da Libertà – disse Langdon. – Estamos quase chegando.
FS-2080 assentiu com pesar, olhando pela janela para as águas da Laguna Veneta, recordando a vez em que a atravessara de barco com Bertrand... uma imagem de paz que então se desfez, transformando-se na horrenda lembrança de uma semana antes.
Eu estava lá quando ele pulou da torre da Badia Fiorentina.
Os últimos olhos que ele fitou foram os meus.
Sacudido por uma forte turbulência, o Citation Excel da NetJets levantou voo do aeroporto de Tassignano e se inclinou para fazer a curva em direção a Veneza. A bordo da aeronave, a Dra. Elizabeth Sinskey mal reparou na decolagem atribulada. Afagando distraidamente o amuleto no pescoço, ela olhava pela janela para o vazio.
Eles enfim tinham parado de lhe aplicar as injeções e por isso ela já conseguia pensar com mais clareza. Na poltrona ao seu lado, o agente Brüder continuava calado, sem dúvida ruminando a bizarra reviravolta que acabara de ser revelada.
Está tudo de cabeça para baixo, pensou a Dra. Sinskey, ainda com dificuldade em acreditar no que testemunhara havia pouco tempo.
Meia hora antes, eles tinham invadido a pequena pista de pouso para interceptar o embarque de Langdon no jatinho particular que havia reservado. Em vez do professor, porém, o que encontraram foi um Citation Excel de turbinas ligadas e dois pilotos da NetJets andando de um lado para outro pela pista, olhando o relógio.
Robert Langdon não havia aparecido.
Foi então que recebemos o telefonema.
Quando o celular tocou, Elizabeth Sinskey estava no mesmo lugar em que passara o dia inteiro: no banco de trás da van preta. O agente Brüder entrou no veículo com uma expressão estupefata e lhe entregou seu celular.
– Ligação urgente para a senhora.
– Quem é? – perguntou ela.
– Ele só me pediu para avisar que tem informações importantes sobre Bertrand Zobrist.
Ela agarrou o telefone.
– Dra. Elizabeth Sinskey falando.
– Dra. Sinskey, não nos conhecemos, mas a minha organização foi responsável por esconder Bertrand Zobrist da senhora durante o último ano.
Ela se empertigou no assento.
– Seja quem for o senhor, protegeu um criminoso!
– Nós não fizemos nada contra a lei, mas isso não vem...
– É claro que fizeram!
O homem do outro lado da linha respirou fundo, tentando não perder a paciência. Quando voltou a falar, foi com um tom muito suave:
– Vamos ter tempo de sobra para debater a ética dos meus atos. A senhora não me conhece, mas sei bastante coisa a seu respeito. Durante o ano que passou, o Sr. Zobrist me pagou uma bela quantia para manter a senhora e outras pessoas longe dele. Ao contatá-la, estou quebrando meu próprio e rígido protocolo. Mas acredito que não temos escolha a não ser unir forças. Temo que Bertrand Zobrist tenha feito uma coisa terrível.
Elizabeth Sinskey não fazia ideia de quem era aquele homem.
– E o senhor só foi descobrir isso agora?!
– Exatamente, senhora. Agora há pouco. – Seu tom era enfático.
Ela tentou entender melhor a situação:
– Quem é o senhor?
– Alguém que quer ajudá-la antes que seja tarde demais. Tenho uma mensagem em vídeo deixada por Bertrand Zobrist. Ele me pediu que a divulgasse para o mundo... amanhã. Acho que a senhora precisa vê-la o mais rápido possível.
– O que a mensagem diz?
– Por telefone, não. Temos que nos encontrar.
– Como vou saber que posso confiar no senhor?
– Vou lhe dizer agora mesmo onde Robert Langdon está... e por que ele está agindo de maneira tão estranha.
Ao ouvir o nome de Langdon, a Dra. Sinskey quase caiu para trás e foi com assombro que ouviu a bizarra explicação. Por mais que aquele homem parecesse ter sido cúmplice de seu inimigo durante o último ano, conforme ouvia os detalhes, ela teve a nítida sensação de que precisava confiar no que ele dizia.
Não tenho escolha senão fazer o que ele está mandando.
Somando seus recursos, os dois não tiveram dificuldade para confiscar o Citation Excel “disponível” da NetJets. Elizabeth Sinskey e os soldados estavam agora em plena perseguição, correndo em direção a Veneza, onde, segundo as informações daquele homem, Langdon e seus dois companheiros de viagem desembarcavam de trem naquele exato momento. Já era tarde para chamar as autoridades locais, mas o homem ao telefone afirmara saber para onde Langdon estava indo.
Praça São Marcos? A doutora sentiu um calafrio ao imaginar a multidão que haveria na área mais concorrida de Veneza.
– Como o senhor sabe?
– Por telefone, não – repetiu o homem. – Mas saiba que Robert Langdon está viajando com uma pessoa muito perigosa, embora nem desconfie disso.
– Quem?! – indagou Elizabeth Sinskey.
– Um dos confidentes mais próximos de Zobrist. – Ele suspirou com força. – Uma pessoa que eu mesmo considerava digna de confiança. Por pura tolice, ao que parece. Alguém que, a meu ver, talvez agora represente uma grave ameaça.
No jatinho particular que seguia em direção ao aeroporto de Marco Polo, em Veneza, com os seis soldados a bordo, a Dra. Sinskey tornou a pensar em Robert Langdon. Ele perdeu a memória? Não se lembra de nada? Embora explicasse muitas coisas, a estranha notícia fez a doutora se sentir ainda pior por ter envolvido o renomado acadêmico naquela crise.
Eu não lhe dei alternativa.
Quase dois dias antes, quando havia recrutado Langdon, Elizabeth Sinskey não o deixara sequer ir em casa buscar o passaporte. Em vez disso, providenciara uma entrada discreta pelo aeroporto de Florença como agente especial de cooperação da Organização Mundial da Saúde.
Enquanto o pesado C-130 sobrevoava o Atlântico rumo ao leste, a Dra. Sinskey tinha olhado para Langdon ao seu lado e reparado que ele não parecia se sentir bem. O professor encarava firme a parede do avião sem janelas.
– Professor, o senhor está vendo que este avião não tem janelas, não está? Até pouco tempo atrás, era usado como transporte militar.
Langdon se virou para ela, lívido.
– Sim, reparei assim que subi a bordo. Não me dou muito bem com espaços fechados.
– Então está fingindo olhar por uma janela imaginária?
Ele deu um sorriso encabulado.
– É, mais ou menos isso.
– Bom, que tal olhar para isto aqui? – Ela sacou uma foto de seu arqui-inimigo alto, de olhos verdes, e a pousou diante de Langdon. – Este é Betrand Zobrist.
Elizabeth Sinskey já havia contado a Langdon sobre seu confronto com Zobrist no Conselho de Relações Exteriores; sobre a paixão daquele homem pela Equação do Apocalipse Populacional; sobre suas declarações amplamente divulgadas a respeito das vantagens globais de uma Peste Negra; e, o que era ainda mais assustador, sobre a maneira como sumira do mapa durante o ano anterior.
– Como alguém tão famoso consegue passar tanto tempo escondido? – indagou Langdon.
– Ele teve muita ajuda. Profissional. Quem sabe até de algum governo estrangeiro.
– Que governos iriam compactuar com a criação de uma peste?
– Os mesmos que tentam comprar ogivas nucleares no mercado negro. Não se esqueça de que uma peste eficaz é a arma química mais refinada que existe e vale uma fortuna. Zobrist poderia muito bem ter mentido para os sócios e garantido que o mal criado por ele tinha um raio de ação limitado. Assim, só ele saberia o que ela realmente era capaz de fazer.
Langdon ficou calado.
– De todo modo – prosseguiu a doutora –, as pessoas que ajudaram Zobrist podem não ter sido motivadas por poder ou dinheiro, mas por acreditarem em sua ideologia. O que não lhe falta são discípulos dispostos a fazer qualquer coisa por ele. Zobrist era uma celebridade e tanto. Aliás, ele deu uma palestra na sua universidade não faz muito tempo.
– Em Harvard?
A Dra. Sinskey pegou uma caneta e escreveu algo na margem da fotografia de Zobrist: a letra H seguida por um sinal de +.
– O senhor tem talento para símbolos – falou. – Reconhece este aqui?
H+
– H mais – sussurrou Langdon, assentindo de leve. – Claro... alguns verões atrás o campus ficou cheio de cartazes com esse símbolo. Imaginei que fosse algum tipo de congresso de química.
Elizabeth Sinskey deu uma risadinha.
– Não. Eram cartazes anunciando a Cúpula de 2010 da “Humanidade mais”, um dos maiores eventos transumanistas já organizados. “H mais” é o símbolo do movimento transumanista.
Langdon inclinou a cabeça, como se tentasse lembrar quando tinha ouvido aquele termo antes.
– O transumanismo é um movimento intelectual, uma espécie de filosofia, e está se enraizando depressa na comunidade científica – explicou ela. – Em linhas gerais, afirma que os seres humanos deveriam usar a tecnologia para transcender as fraquezas inerentes a nossos corpos físicos. Em outras palavras, o próximo passo da evolução humana seria começarmos a manipular biologicamente a nós mesmos.
– Parece perigoso – comentou Langdon.
– Como qualquer mudança, é só uma questão de intensidade. Tecnicamente, já manipulamos a nós mesmos há muitos anos, desenvolvendo vacinas para tornar as crianças imunes a determinadas doenças, como paralisia infantil, varíola ou tifo. A diferença é que agora, com as decobertas de Zobrist na área da manipulação genética de células germinativas, estamos aprendendo a criar imunizações hereditárias, ou seja, que afetariam o receptor no nível do núcleo das células germinativas, tornando todas as gerações subsequentes imunes a essa doença.
Langdon pareceu espantado.
– Quer dizer que a espécie humana passaria, por assim dizer, por uma evolução que a tornaria imune ao tifo, por exemplo?
– Na verdade, uma evolução assistida – corrigiu a Dra. Sinskey. – Em circunstâncias normais, o processo evolutivo leva milênios para acontecer, seja para um peixe pulmonado desenvolver pés ou para um símio desenvolver polegares opositores. Mas agora podemos realizar adaptações genéticas radicais em uma única geração. Essa tecnologia é considerada pelos seus defensores a expressão definitiva da “sobrevivência do mais apto” de Darwin: os humanos se tornariam uma espécie capaz de aprimorar o próprio processo evolutivo.
– Mais parece brincar de Deus – retrucou Langdon.
– Concordo plenamente. Zobrist, contudo, assim como muitos outros transumanistas, defendia com fervor o argumento de que usar todos os poderes à nossa disposição, entre eles a mutação genética das células germinativas, para nos aprimorar como espécie seria uma obrigação evolucionária da humanidade. O problema é que nossa estrutura genética é como um castelo de cartas: todos os elementos estão interconectados e se sustentam mutuamente, muitas vezes de maneiras que não compreendemos. Se tentarmos eliminar um único traço humano que seja, podemos levar centenas de outros a se modificarem ao mesmo tempo, talvez com consequências catastróficas.
Langdon assentiu.
– Não é à toa que a evolução é gradual.
– Exatamente! – concordou a doutora, sentindo sua admiração pelo professor aumentar a cada segundo. – Estamos manipulando um processo que levou bilhões de anos para se desenvolver. Vivemos em uma época de grande perigo. Hoje podemos ativar determinadas sequências de genes capazes de tornar nossos descendentes mais hábeis, mais resistentes, mais fortes ou até mesmo mais inteligentes... em suma, uma super-raça. Esses hipotéticos indivíduos “aprimorados” são o que os transumanistas chamam de pós-humanos, e há quem acredite que eles serão o futuro da nossa espécie.
– A semelhança com a eugenia é sinistra – comentou Langdon.
O comentário fez Elizabeth Sinskey se arrepiar.
Na década de 1940, cientistas nazistas haviam feito experimentos com base em uma teoria que batizaram de eugenia – uma tentativa de usar uma engenharia genética rudimentar para aumentar a taxa de natalidade de indivíduos com determinados traços genéticos “desejáveis”, ao mesmo tempo que diminuía a taxa de natalidade daqueles com traços étnicos “indesejáveis”.
Limpeza étnica no nível genético.
– Há semelhanças – reconheceu a doutora. – Embora seja difícil imaginar como alguém poderia criar uma nova raça humana por meio da engenharia genética, muitas mentes brilhantes consideram que o início desse processo é essencial para a nossa sobrevivência. Um dos colaboradores da revista transumanista H+ afirmou que a manipulação genética de células germinativas é “obviamente o próximo passo”, acrescentando que ela simboliza o verdadeiro potencial da nossa espécie. – Ela fez uma pausa. – Mas, para ser justa, é bem verdade que eles reproduziram uma matéria da revista Discover intitulada “A ideia mais perigosa do mundo”.
– Acho que esse seria o meu lado – disse Langdon. – Pelo menos de um ponto de vista sociocultural.
– Como assim?
– Bem, suponho que, assim como as cirurgias plásticas, o aprimoramento genético custe muito caro, certo?
– Claro. Nem todo mundo teria dinheiro para aprimorar a si mesmo ou os próprios filhos.
– Ou seja, a legalização dos aprimoramentos genéticos logo criaria um mundo de favorecidos e desfavorecidos. Nós já temos um abismo cada vez maior entre ricos e pobres, mas a engenharia genética criaria uma raça de super-humanos e de... supostos sub-humanos. A senhora acha que as pessoas estão preocupadas com o um por cento de ultrarricos que manda no mundo? Imagine se esse um por cento fosse também, literalmente, uma espécie superior: mais inteligente, mais forte, mais saudável. É o tipo de contexto perfeito para a escravidão ou a limpeza étnica.
Elizabeth Sinskey sorriu para o atraente acadêmico sentado ao seu lado.
– Professor, o senhor entendeu bem depressa o que considero ser o maior risco da engenharia genética.
– Bom, posso ter entendido isso, mas ainda estou meio confuso em relação a Zobrist. Toda essa filosofia transumanista parece ter o sentido de melhorar a humanidade, de nos tornar mais saudáveis, curar doenças fatais, aumentar nossa longevidade. As opiniões dele sobre superpopulação, por outro lado, parecem defender a matança de pessoas. As ideias sobre transumanismo e superpopulação parecem estar em contradição, não?
A Dra. Sinskey deu um suspiro solene. Era uma boa pergunta, e a resposta, infelizmente, era clara e perturbadora.
– Zobrist acreditava piamente no transumanismo... no aprimoramento da espécie por meio da tecnologia. No entanto, acreditava também que a nossa espécie se extinguiria antes de termos a chance de fazer isso. De fato, se ninguém tomar uma atitude, o excesso de pessoas vai eliminar a espécie humana antes de conseguirmos realizar as promessas da engenharia genética.
Os olhos de Langdon se arregalaram.
– Quer dizer que Zobrist queria reduzir o rebanho... para ganhar mais tempo?
A Dra. Sinskey assentiu.
– Ele certa vez disse que tinha a sensação de estar preso a bordo de um navio no qual o número de passageiros dobrava a cada hora, enquanto tentava desesperadamente construir um bote salva-vidas antes que a embarcação afundasse por não suportar o próprio peso. – Ela fez uma pausa. – A solução que ele propunha era jogar metade das pessoas no mar.
Langdon fez uma careta.
– Que ideia assustadora.
– De fato. Não se iluda – disse ela. – Zobrist estava convicto de que, no futuro, uma redução drástica na população humana seria lembrada como o derradeiro ato de heroísmo... o momento em que a nossa raça optou pela sobrevivência.
– Como eu disse, é assustador.
– Mais ainda porque ele não era o único a pensar assim. Quando Zobrist morreu, ele se tornou um mártir para muita gente. Não faço ideia de quem vamos encontrar quando chegarmos a Florença, mas teremos que tomar muito cuidado. Não seremos os únicos tentando encontrar essa peste. Para sua própria segurança, não podemos deixar ninguém saber que é por isso que o senhor está na Itália.
Langdon lhe falou sobre Ignazio Busoni, seu amigo especialista em Dante que talvez pudesse ajudá-lo a entrar no Palazzo Vecchio depois do horário de visita para examinar com calma o quadro que continha as palavras cerca trova, presentes na imagem dentro do pequeno projetor de Zobrist. Talvez Busoni também pudesse ajudar Langdon a entender a estranha citação sobre “os olhos da morte”.
A Dra. Sinskey puxou os longos cabelos prateados para trás e encarou o professor.
– Busca e encontrarás, professor. O tempo está se esgotando.
Ela foi até um compartimento de carga do avião e pegou o tubo mais seguro para transportar materiais de risco da OMS – um modelo com lacre biométrico.
– Me dê seu polegar – falou, pousando o tubo em frente a Langdon.
Apesar de intrigado, o professor obedeceu.
A doutora programou o tubo para que ele fosse a única pessoa capaz de abri-lo. Então pegou o pequeno projetor e o depositou lá dentro.
– Considere isto um cofre portátil – falou, com um sorriso.
– Com um símbolo de risco biológico? – Langdon parecia pouco à vontade.
– É o que temos. Veja o lado positivo: ninguém vai tentar abrir.
Langdon pediu licença para esticar as pernas e ir ao toalete. Durante sua ausência, a Dra. Sinskey tentou pôr o tubo lacrado no bolso de seu paletó. Infelizmente, não coube.
Ele não pode andar por aí carregando este projetor na frente de todo mundo, pensou. Depois de refletir por alguns instantes, tornou a andar até o compartimento de carga, de onde trouxe um estilete e um kit de costura. Com a precisão de uma especialista, fez um corte no forro do paletó e costurou com cuidado um bolso oculto do tamanho exato para esconder o tubo.
Quando o professor voltou, ela estava acabando de dar os últimos pontos.
Langdon parou e ficou encarando-a como se ela tivesse desfigurado a Monalisa.
– A senhora cortou o forro do meu Harris Tweed?
– Relaxe, professor – respondeu ela. – Sou uma cirurgiã formada. Os pontos ficaram bem profissionais.
A estação de trem de Santa Lucia, em Veneza, é uma construção baixa e elegante, de pedra cinza e concreto. Foi projetada em estilo moderno, minimalista, com a fachada graciosamente desprovida de qualquer sinalização, exceto por um único símbolo: as letras FS no meio de duas asas, o logotipo do sistema ferroviário italiano, o Ferrovie dello Stato.
Como a estação fica no extremo leste do Canal Grande, logo ao sair os passageiros que desembarcam em Veneza já estão totalmente imersos nas imagens, nos cheiros e nos sons característicos da cidade.
A primeira coisa que chamava a atenção de Langdon era sempre o cheiro – uma mistura de maresia com o aroma da pizza bianca vendida pelos ambulantes em frente à estação. Neste dia, o vento soprava do leste e o ar trazia também o cheiro do óleo diesel da longa fila de táxis aquáticos que aguardava sobre as águas do Canal Grande, com os motores ligados. Dezenas de capitães agitavam os braços e gritavam para os turistas, na esperança de atrair um novo cliente para seus táxis, gôndolas, vaporetti e lanchas particulares.
O caos sobre a água, filosofou Langdon ao ver aquele engarrafamento flutuante. Por algum motivo, um congestionamento que, em Boston, levaria qualquer um à loucura, em Veneza parecia pitoresco.
A poucos metros de distância, atravessando o canal, a lendária cúpula de azinhavre de San Simeone Piccolo se erguia no céu da tarde. A igreja apresentava uma das arquiteturas mais ecléticas de toda a Europa. Seu domo mais escarpado do que o habitual e seu santuário circular eram em estilo bizantino, mas o nártex de colunas de mármore tinha sido claramente inspirado na entrada grega clássica do Panteão de Roma. A entrada principal da igreja era encimada por um pedimento espetacular, com intricados relevos em mármore que retratavam vários santos supliciados.
Veneza é um museu ao ar livre, pensou Langdon, baixando os olhos para as águas do canal que lambiam a escadaria da igreja. Um museu que está afundando aos poucos. Apesar disso, o potencial para alagamentos parecia irrelevante se comparado à ameaça que Langdon temia espreitar agora debaixo da cidade.
E ninguém nem imagina...
O poema atrás da máscara de Dante ainda estava em sua mente e ele se perguntava para onde os versos iriam conduzi-los. Trazia a transcrição do poema no bolso, mas a máscara mortuária – por sugestão de Siena – fora embrulhada em jornal e guardada discretamente dentro de um dos escaninhos do guarda-volumes na estação de trem. Embora fosse um local de repouso bastante inadequado para um artefato tão precioso, o escaninho sem dúvida era mais seguro do que sair carregando a inestimável máscara de gesso por uma cidade cercada de água por todos os lados.
– Robert? – chamou Sienna, um pouco mais à frente com Ferris, acenando para os táxis. – Não temos muito tempo.
Langdon se apressou para alcançá-los, embora, como entusiasta de arquitetura, lhe parecesse quase impensável apressar uma viagem pelo Canal Grande. Poucas experiências venezianas eram mais prazerosas do que embarcar no Vaporetto 1 – o principal ônibus aquático da cidade –, de preferência à noite, e sentar-se na proa para sentir o vento bater no rosto enquanto as catedrais e os palazzos iluminados desfilavam à sua volta.
Nada de vaporetto hoje, pensou Langdon. Os ônibus aquáticos eram famosos por sua lentidão e um táxi seria uma opção mais rápida. Infelizmente, naquele momento a fila em frente à estação parecia não ter fim.
Sem muita disposição para esperar, Ferris logo assumiu as rédeas da situação. Com um generoso maço de dinheiro, chamou uma limusine aquática – uma típica lancha veneziana conversível, muito brilhante, feita de mogno sul-africano. Embora aquela embarcação chique fosse um exagero, a viagem seria reservada e rápida – apenas quinze minutos pelo Canal Grande até a praça São Marcos.
O condutor do táxi, de uma beleza notável, estava vestido com um terno Armani. Parecia mais um astro de cinema do que um capitão, mas, afinal de contas, eles estavam em Veneza, berço da elegância italiana.
– Maurizio Pimponi – disse ele, piscando para Sienna ao recebê-los a bordo. – Prosecco? Limoncello? Champanhe?
– No, grazie – respondeu Sienna em italiano, instruindo o condutor a levá-los até a praça São Marcos o mais depressa possível.
– Ma certo! – Maurizio deu outra piscadela. – Meu barco é o mais veloz de Veneza...
Os três passageiros se acomodaram em assentos macios na popa descoberta e Maurizio fez a embarcação dar ré, afastando-a da margem com manobras experientes. Então, girando o volante para a direita, acelerou o motor Volvo Penta e conduziu a grande embarcação por entre uma profusão de gôndolas, fazendo vários gondolieri de camisa listrada sacudirem os punhos enquanto seus lustrosos barquinhos pretos se balançavam para cima e para baixo em sua esteira.
– Scusate! – gritou Maurizio, pedindo desculpas. – Clientes VIP!
Em segundos, Maurizio já havia se desvencilhado do caos da estação de Santa Lucia e seguia rumo ao leste pelo Canal Grande. Quando passaram acelerados sob o gracioso arco da Ponte degli Scalzi, Langdon pôde sentir o aroma adocicado característico da iguaria local chamada seppie al nero – lulas preparadas em sua própria tinta –, que emanava dos restaurantes toldados ao longo da margem. Ao fazerem uma curva no canal, a gigantesca cúpula da igreja de San Geremia surgiu diante de seus olhos.
– Santa Lucia – sussurrou Langdon, lendo o nome da santa na plaquinha afixada à lateral da igreja. – Lucia, Luzia... Os ossos de quem já não pode ver.
– Como é que é? – Sienna olhou na direção dele, parecendo ter esperanças de que Langdon houvesse descoberto algo mais em relação ao misterioso poema.
– Nada – respondeu Langdon. – Pensei uma coisa estranha. Não deve ser nada. – Ele apontou para a igreja. – Está vendo aquela placa ali? Essa igreja abriga as relíquias de Santa Luzia. Eu às vezes dou palestras sobre arte hagiográfica, a arte de retratar santos cristãos, e acabo de me lembrar que Santa Luzia é a padroeira dos cegos.
– Sì, Santa Lucia! – interveio Maurizio, ansioso por se mostrar útil. – A santa dos cegos! Vocês conhecem a história, não conhecem? – O condutor olhou para trás, tentando falar mais alto que o barulho dos motores. – Luzia era tão linda que todos os homens a desejavam. Então, para ficar pura para Deus e continuar virgem, ela arrancou os próprios olhos.
Sienna soltou um grunhido.
– Isso que é compromisso.
– Como recompensa pelo sacrifício, Deus lhe deu um par de olhos ainda mais belos! – acrescentou Maurizio.
Sienna olhou para Langdon.
– Ele sabe que isso não faz sentido, não sabe?
– Os caminhos de Deus são insondáveis – observou Langdon, pensando nas mais de vinte telas de grandes mestres que retratavam Santa Luzia carregando os próprios globos oculares em uma bandeja.
Embora a história de Santa Luzia tivesse muitas versões diferentes, em todas ela arrancava os próprios olhos, que a induziam à luxúria, e os entregava em uma bandeja a seu ardoroso pretendente, declarando em tom de desafio: “Eis aqui o que tanto desejavas... quanto ao resto, imploro-te, deixa-me em paz!” O mais macabro era que as próprias Escrituras haviam inspirado a automutilação de Luzia, vinculando para sempre a santa ao famoso conselho de Cristo: “Se o teu olho te fizer tropeçar, arranca-o.”
Arrancar, pensou Langdon, percebendo que o mesmo verbo havia sido usado no poema. Buscai o traiçoeiro doge de Veneza que os ossos arrancou de quem já não pode ver.
Intrigado com a coincidência, ficou se perguntando se aquilo não seria uma enigmática indicação de que Santa Luzia era a pessoa cega à qual o poema se referia.
– Maurizio! – gritou, apontando para a igreja de San Geremia. – Os ossos de Santa Luzia estão naquela igreja, não estão?
– Alguns, sim – respondeu o condutor, guiando habilmente com uma das mãos enquanto olhava para trás na direção dos passageiros, ignorando o tráfego de embarcações à frente. – Mas a maioria, não. Santa Luzia é tão amada que o corpo dela foi espalhado por igrejas do mundo inteiro. Mas é claro que nós, venezianos, a amamos mais que todos, então comemoramos...
– Maurizio! – gritou Ferris. – Quem ficou cega foi Santa Luzia, não você. Olhe para a frente!
Maurizio deu uma risada bonachona e virou-se para a frente bem a tempo de evitar com desenvoltura uma colisão com um barco que vinha no sentido contrário.
Sienna analisava Langdon.
– Aonde você quer chegar? Está pensando no doge traiçoeiro que arrancou os ossos de quem já não pode ver?
Langdon franziu os lábios.
– Não tenho certeza.
Ele contou a Sienna e Ferris uma versão resumida da história das relíquias de Santa Luzia – seus ossos –, uma das mais estranhas de toda a hagiografia. Em tese, quando a bela Luzia rejeitou um pretendente influente, ele a denunciou e fez com que fosse condenada à fogueira, onde, segundo a lenda, seu corpo se recusou a arder. Como a sua carne se mostrou resistente às chamas, difundiu-se a crença de que suas relíquias tinham poderes especiais, capazes de proporcionar uma vida excepcionalmente longa a qualquer um que as possuísse.
– Ossos mágicos? – perguntou Sienna.
– Assim acreditavam, e foi por isso que as relíquias da santa foram espalhadas pelo mundo inteiro. Durante dois mil anos, líderes poderosos tentaram derrotar a velhice e a morte por meio dos ossos de Santa Luzia. Seu esqueleto foi roubado, roubado de novo, transportado e dividido mais vezes do que o de qualquer outro santo da história. Seus ossos passaram pelas mãos de ao menos uma dezena das figuras mais importantes da história.
– Inclusive as de um doge traiçoeiro? – indagou Sienna.
Buscai o traiçoeiro doge de Veneza que de cavalos cortou cabeças e os ossos arrancou de quem já não pode ver.
– Possivelmente – disse Langdon, percebendo agora que Santa Luzia aparecia com muita proeminência no Inferno de Dante.
Ela era uma das três mulheres abençoadas, le tre donne benedette, que ajudavam a invocar Virgílio para ajudar o poeta a escapar do mundo inferior. Como as outras duas eram a Virgem Maria e sua amada Beatriz, Dante havia colocado Santa Luzia na mais elevada companhia.
– Se você estiver certo – disse Sienna, a animação transparecendo em sua voz –, então o mesmo doge traiçoeiro que cortou as cabeças dos cavalos...
– ...também roubou os ossos da cega Santa Luzia – concluiu Langdon.
Sienna assentiu.
– O que reduziria bastante a nossa lista. – Ela olhou para Ferris. – Tem certeza de que o seu celular não está funcionando? Talvez consigamos fazer uma pesquisa na internet...
– Completamente sem bateria – respondeu Ferris. – Acabei de conferir. Sinto muito.
– Já estamos chegando – disse Langdon. – Sem dúvida encontraremos algumas respostas na Basílica de São Marcos.
São Marcos era a única peça do quebra-cabeça que Langdon considerava inquestionável. O mouseion de santo saber. Ele estava contando que a basílica fosse revelar a identidade do misterioso doge... e, de lá, com sorte, o local específico que Zobrist escolhera para liberar sua peste. Na escuridão do palácio afundado... espreita o monstro ctônico.
Langdon tentou afastar quaisquer imagens da peste, mas não adiantou. Muitas vezes já havia se perguntado como devia ter sido aquela incrível cidade no auge de seu poder, antes de a peste enfraquecê-la a ponto de ser conquistada primeiro pelos otomanos e depois por Napoleão, na época em que Veneza reinava gloriosa como centro comercial da Europa. Segundo todos os relatos, não havia no mundo cidade mais bela ou cuja população possuísse tamanha riqueza e cultura.
Por ironia, foi justamente o gosto de seus habitantes por luxos importados que causou a derrocada de Veneza – foram os ratos escondidos nos navios mercantes que levaram a peste mortal da China até a cidade. A mesma peste que havia dizimado inimagináveis dois terços da população chinesa aportou na Europa, onde matou depressa uma em cada três pessoas – sem diferenciar jovens e velhos, ricos e pobres.
Langdon já tinha lido descrições da vida em Veneza durante os surtos de peste. Como havia pouca ou nenhuma terra firme onde enterrar os mortos, cadáveres inchados boiavam nos canais. Em algumas áreas a quantidade era tão grande que os trabalhadores precisavam fazer como os madeireiros e empurrar os corpos para o mar. Por mais que se rezasse, nada parecia diminuir a fúria da peste. Quando os governantes se deram conta de que eram os ratos que estavam causando a doença, já era tarde demais. Mesmo assim, Veneza instituiu um decreto obrigando todas as embarcações que chegassem a ficar ancoradas longe da costa durante quarenta dias completos antes de poderem descarregar suas mercadorias. E essa foi a sombria origem da palavra quarentena.
Enquanto a lancha fazia mais uma curva no canal a toda a velocidade, uma flâmula vermelha festiva se agitou ao vento, afastando a atenção de Langdon de seus pensamentos soturnos sobre a morte e atraindo-a para uma elegante estrutura de três andares à esquerda.
casinò di venezia: emoção infinita.
Embora Langdon nunca tivesse entendido muito bem as palavras na bandeira do cassino, o espetacular palácio renascentista fazia parte da paisagem veneziana desde o século XVI. Outrora uma mansão particular, era agora um salão de jogos de luxo, célebre por ser o local em que, no ano de 1883, o compositor Richard Wagner sofrera um ataque do coração fulminante pouco depois de compor a ópera Perceval.
Após o cassino, à direita, uma fachada barroca de cantaria rústica exibia uma bandeira ainda maior, azul-escura, que anunciava: ca’pesaro: galleria internazionale d’arte moderna. Anos antes, Langdon havia entrado ali para admirar a obra-prima O beijo, de Gustav Klimt, na época emprestada de Viena. O deslumbrante quadro folheado a ouro retratando dois amantes enlaçados despertara nele uma verdadeira paixão pela obra do artista e até hoje Langdon atribuía ao Ca’Pesaro de Veneza o despertar de seu amor pela arte moderna.
Maurizio seguia conduzindo a lancha, aumentando a velocidade ao chegar ao largo canal.
Mais adiante, assomava-se a famosa Ponte do Rialto – que marcava o meio do caminho até a praça São Marcos. Quando estavam prestes a passar debaixo dela, Langdon ergueu os olhos e viu uma figura solitária e imóvel junto à amurada, espiando-os com uma expressão grave.
Um semblante ao mesmo tempo conhecido... e aterrador.
Por instinto, Langdon se encolheu.
Cinzento e alongado, o rosto tinha olhos frios, sem vida, e um nariz comprido em forma de bico.
Assim que a lancha passou por baixo do vulto sinistro, Langdon entendeu que aquilo não passava de algum turista pavoneando sua mais recente aquisição – uma das centenas de máscaras da peste vendidas todos os dias no Mercado do Rialto, ali perto.
Dessa vez, no entanto, a fantasia lhe pareceu tudo, menos encantadora.
A praça São Marcos fica no extremo sul do Canal Grande de Veneza, onde o curso de água desemboca no mar aberto. Guardando esse perigoso encontro está a austera fortaleza triangular da Dogana da Mare – a Alfândega Marítima –, cuja torre de vigia costumava proteger a cidade das invasões estrangeiras. Hoje em dia, a torre foi substituída por um imenso globo dourado e um cata-vento que representa a deusa da fortuna e muda de direção ao sabor do vento, lembrando aos marinheiros que partem rumo ao oceano que o destino é imprevisível.
Quando Maurizio manobrou a lustrosa lancha em direção à foz do canal, o mar agitado se abriu à sua frente, ameaçador. Robert Langdon já tinha feito aquele trajeto muitas vezes, mas sempre a bordo de um vaporetto bem maior, por isso se sentiu um tanto aflito quando a limusine aquática começou a sacudir sobre as ondas cada vez mais altas.
Para chegar ao atracadouro da praça São Marcos, a lancha precisaria atravessar um trecho aberto de lagoa cujas águas estavam congestionadas por centenas de embarcações. Havia de tudo, desde iates de luxo até navios-tanque, passando por veleiros particulares e enormes cruzeiros. Era como se estivessem saindo de uma estradinha rural para entrar em uma supervia de oito pistas.
Sienna também pareceu apreensiva ao observar o gigantesco navio de cruzeiro de dez andares que agora passava diante deles, a apenas 300 metros de distância. Os vários pavimentos do navio fervilhavam de passageiros, todos aglomerados e debruçados nos parapeitos para fotografar a praça São Marcos. Em seu rastro, enfileiravam-se três outros cruzeiros, aguardando a chance de passar em frente à atração turística mais conhecida da cidade. Langdon ouvira dizer que, nos últimos anos, o número de barcos havia se multiplicado tão depressa que uma fila sem fim de embarcações passava por ali dia e noite.
Ao volante, Maurizio examinou a fila de cruzeiros, depois olhou de relance para a esquerda, em direção a um cais coberto por um toldo não muito distante.
– Posso atracar no Harry’s Bar? – Ele apontou o restaurante que ficou famoso por ter inventado o drinque Bellini. – A praça São Marcos fica bem pertinho dali.
– Não, leve-nos até lá – ordenou Ferris, indicando o atracadouro de São Marcos mais adiante.
Maurizio deu de ombros, sem perder o bom humor.
– Como quiserem. Segurem firme!
Ele acelerou o motor e a limusine começou a atravessar o mar agitado, entrando em uma das raias de navegação demarcadas por boias. Os navios de cruzeiro pareciam prédios flutuantes e a marola que produziam ao passar faziam as outras embarcações chacoalharem como se fossem rolhas na água.
Para espanto de Langdon, dezenas de gôndolas faziam aquela mesma travessia. Seus cascos esguios – com cerca de 12 metros de comprimento e quase 650 quilos – demonstravam uma estabilidade impressionante nas águas revoltas. Cada embarcação era pilotada por um gondoleiro com um equilíbrio notável, viajando de pé sobre uma plataforma do lado esquerdo da popa, usando a tradicional camisa listrada de preto e branco e manejando um único remo preso à amurada direita. Mesmo no mar agitado, era óbvio que todas as gôndolas puxavam misteriosamente para a esquerda, uma peculiaridade que Langdon sabia que era causada pela construção assimétrica da embarcação: todas tinham o casco curvado para a direita, na direção oposta à do gondoleiro, de modo a resistir à tendência do barco de puxar para a esquerda quando se remava do lado direito.
Maurizio apontou orgulhoso para uma das gôndolas quando eles a ultrapassaram em grande velocidade.
– Estão vendo aquele enfeite de metal ali na frente? – disse por cima do ombro, indicando com um gesto o elegante ornamento que se sobressaía na proa. – É a única peça de metal de uma gôndola e se chama ferro di prua, ferro de proa. É um verdadeiro retrato de Veneza!
Maurizio explicou que o ornamento em formato de foice que despontava da proa de todas as gôndolas venezianas tinha um significado simbólico. O formato curvo do ferro representava o Canal Grande, seus seis dentes refletiam os seis sestieri, ou distritos, venezianos, enquanto sua lâmina oblonga era uma estilização do adorno de cabeça usado pelo doge de Veneza.
O doge, pensou Langdon, tornando a se lembrar de sua tarefa. Buscai o traiçoeiro doge de Veneza... que de cavalos cortou cabeças e os ossos arrancou de quem já não pode ver.
Langdon ergueu os olhos para a margem à sua frente, onde um pequeno parque arborizado vinha até a beira d’água. Acima das árvores, delineada contra um céu sem nuvens, erguia-se a torre de tijolos vermelhos do campanário de São Marcos, encimada por um Arcanjo Gabriel dourado que espiava do alto de vertiginosos 100 metros de altura.
Em uma cidade sem arranha-céus por causa de sua tendência a afundar, o imponente Campanile di San Marco fazia as vezes de farol para todos os que se aventuravam pelo labirinto veneziano de canais e passagens. Bastaria um simples olhar para o alto para que um viajante perdido visse em que direção estava a praça São Marcos. Langdon ainda achava difícil crer que a imensa torre houvesse desabado em 1902, soterrando a praça numa enorme pilha de escombros. O mais impressionante era que a única vítima do desastre tinha sido um gato.
Em Veneza era possível vivenciar a atmosfera singular da cidade em diversos lugares de tirar o fôlego, mas o preferido de Langdon sempre fora a Riva degli Schiavoni. O largo passeio de pedra ao longo da margem fora construído no século IX com lodo dragado e se estendia do antigo Arsenal até a praça São Marcos.
Margeada por cafés chiques, hotéis elegantes e a igreja frequentada por Antonio Vivaldi, a Riva começava no Arsenal – antigo pátio de construção naval da cidade –, onde, no passado, o aroma de pinho da fervura da seiva de árvores dominava o ar enquanto os construtores passavam piche quente em suas frágeis embarcações para tapar-lhe os buracos. Supostamente, fora uma visita a esse mesmo pátio que havia inspirado Dante Alighieri a incluir rios de piche fervente como método de tortura em seu Inferno.
O olhar de Langdon correu para a direita, acompanhando a Riva pela beira-mar, e foi pousar no final impressionante do passeio. Ali, na ponta meridional da praça São Marcos, a vasta área de calçamento encontrava o mar aberto. Durante a idade de ouro de Veneza, aquele íngreme precipício recebera o orgulhoso apelido de “a borda de toda civilização”.
Ao chegarem ali, o trecho de 100 metros em que a praça São Marcos se encontrava com o mar estava ocupado, como sempre, por não menos que uma centena de gôndolas pretas atracadas que se balançavam, com seus ornamentos de proa subindo e descendo, em contraste com os edifícios de mármore branco da piazza.
Langdon ainda custava a crer que aquela cidade minúscula – que tinha apenas o dobro do tamanho do Central Park de Nova York –, tivesse conseguido emergir do mar para se tornar o maior e mais rico império do Ocidente.
Conforme Maurizio se aproximava com a lancha, Langdon viu que a praça principal estava apinhada de gente. Napoleão certa vez se referira à praça São Marcos como “a sala de estar de toda a Europa”. Pelo visto, naquela “sala” estava acontecendo uma festa para um número excessivo de convidados. Toda a piazza parecia prestes a afundar sob o peso de tantos admiradores.
– Meu Deus – sussurrou Sienna, olhando para a multidão.
Langdon não soube se ela estava dizendo isso por medo de Zobrist talvez ter escolhido um local tão cheio para liberar sua peste... ou por sentir que o geneticista, na verdade, poderia ter uma parcela de razão ao alertar quanto aos perigos da superpopulação.
Veneza recebia uma quantidade descomunal de turistas todos os anos – estimada em um terço de um por cento da população mundial, o que em 2000 significava cerca de vinte milhões de visitantes. Como a população mundial havia aumentado em um bilhão de pessoas desde então, a cidade agora suportava o fardo de três milhões de turistas a mais por ano. Veneza, assim como o próprio planeta, dispunha de uma área limitada. Portanto, em determinado momento, não conseguiria mais importar tanta comida, descartar tanto lixo ou proporcionar camas suficientes para todos os que quisessem visitá-la.
Em pé perto de Langdon e Sienna, Ferris tinha os olhos voltados não para a terra firme, mas para o mar, observando todas as embarcações que chegavam.
– Tudo bem? – perguntou Sienna, fitando-o com um ar curioso.
Ele se virou de modo brusco.
– Sim, tudo bem... só estava aqui pensando. – Ele se virou para a proa e falou com Maurizio. – Pare o mais perto que puder de São Marcos.
– Sem problemas! – exclamou o condutor com um aceno. – Dois minutos.
O táxi estava agora na mesma altura da praça e o Palácio dos Doges emergia majestoso à sua direita, dominando o litoral.
Perfeito exemplo de arquitetura gótica veneziana, o palácio era um exercício de elegância discreta. Sem nenhuma das torres de pequeno ou grande porte em geral associadas aos palácios da França ou da Inglaterra, fora concebido como um imenso prisma retangular, que proporcionava a maior área interna possível para abrigar a substancial equipe de governo e os numerosos assistentes do doge.
Vista do mar, a enorme extensão de pedra calcária branca do palácio teria parecido exagerada, se não estivesse cuidadosamente suavizada pelo acréscimo de pórticos, colunas, uma loggia e perfurações em formato de quadrifólio. Desenhos geométricos em calcário rosa se estendiam por toda a fachada, fazendo Langdon pensar na Alhambra, o complexo de fortaleza e palácios mouros em Granada, na Espanha.
Enquanto a lancha se aproximava do atracadouro, Ferris pareceu preocupado com a aglomeração em frente ao palácio. Uma multidão compacta havia se reunido em cima de uma ponte, todos apontando para baixo em direção a um estreito canal que separava duas grandes porções do Palácio dos Doges.
– O que elas tanto olham? – indagou Ferris com a voz aflita.
– Il Ponte dei Sospiri – respondeu Sienna. – Uma famosa ponte veneziana.
Langdon espiou mais à frente do canal lotado e viu o túnel coberto de formosos relevos que descrevia um arco entre as duas partes do prédio. A Ponte dos Suspiros, pensou, recordando um dos filmes preferidos de sua infância, Um pequeno romance, baseado na lenda de que, se um casal de namorados se beijasse debaixo daquela ponte ao pôr do sol, na hora em que os sinos de São Marcos estivessem tocando, iriam se amar para sempre. Essa ideia profundamente romântica o havia acompanhado por toda a vida. É claro que também não fizera mal nenhum o filme ser estrelado por uma adorável atriz estreante, de 14 anos, chamada Diane Lane, por quem Langdon desenvolvera uma paixonite juvenil... que – era preciso admitir – nunca havia superado por completo.
Anos mais tarde, Langdon ficara horrorizado ao descobrir que a Ponte dos Suspiros devia seu nome não a suspiros de amor, mas de tormento. Na verdade, a passarela fechada servia de ligação entre o palácio e a prisão dos doges, onde os detentos definhavam e morriam. Seus gemidos de angústia ecoavam por entre as grades das janelas que se estendiam pelo estreito canal.
Langdon tinha visitado a prisão uma vez e ficara surpreso ao descobrir que as celas mais aterrorizantes não eram as que ficavam no nível da água e muitas vezes inundavam, mas aquelas situadas logo ao lado, no último andar do palácio em si – chamadas de piombi por causa das telhas de chumbo –, o que as tornava insuportavelmente quentes no verão e geladas no inverno. O grande amante Casanova certa vez ficara preso em uma das piombi. Acusado pela Inquisição de adultério e espionagem, sobrevivera a 15 meses de detenção e acabara fugindo após seduzir o carcereiro.
– Sta’ attento! – gritou Maurizio para um gondoleiro, fazendo a lancha deslizar para a vaga que a gôndola liberava naquele exato momento. Ele conseguira parar em frente ao Hotel Danieli, a apenas 100 metros da praça São Marcos e do Palácio dos Doges.
Maurizio lançou um cabo em volta de um cabeço de amarração e pulou do barco como se estivesse fazendo um teste para figurante em um filme de capa e espada. Depois de amarrar a lancha, estendeu a mão para dentro, oferecendo-se para ajudar os passageiros a desembarcar.
– Obrigado – disse Langdon, enquanto o musculoso italiano o puxava para a terra firme.
Ferris desembarcou em seguida; parecia um tanto transtornado e olhava de novo para o mar.
Sienna foi a última a desembarcar. Quando o incrivelmente lindo Maurizio a puxou para o cais, encarou-a com um olhar profundo que parecia lhe dizer que ela se divertiria bem mais se largasse aqueles dois e ficasse a bordo com ele. Sienna pareceu não reparar.
– Grazie, Maurizio – falou, distraída, o olhar fixo no Palácio dos Doges bem ao lado.
E então, sem perder um só segundo, ela conduziu Langdon e Ferris para o meio da multidão.
Apropriadamente batizado em homenagem a um dos mais célebres viajantes da história, o Aeroporto Internacional Marco Polo fica 6,5 quilômetros ao norte da praça São Marcos, às margens da Laguna Veneta.
Graças às regalias das viagens aéreas particulares, embora tivesse desembarcado do avião havia apenas dez minutos, Elizabeth Sinskey já estava atravessando a lagoa a bordo de uma preta e futurista lancha de apoio – uma Dubois SR52 Blackbird –, enviada pelo desconhecido que lhe telefonara mais cedo.
O diretor.
Para ela, depois de passar o dia inteiro imobilizada na traseira da van, estar ao ar livre no mar era revigorante. Com o rosto virado para o vento salgado, ela deixava os cabelos prateados esvoaçarem atrás de si. Quase duas horas haviam se passado desde que tomara a última injeção e ela enfim se sentia desperta. Pela primeira vez desde a noite anterior, Elizabeth Sinskey era ela mesma.
Sentado ao seu lado estava o agente Brüder, acompanhado por sua equipe. Nenhum deles dizia nada. Se tinham alguma preocupação quanto àquele encontro incomum, sabiam que sua opinião era irrelevante; não cabia a eles tomar nenhuma decisão.
Conforme a lancha avançava, à direita foi surgindo uma ilha grande, com a costa salpicada de baixas construções de tijolo com chaminés. Murano, percebeu Elizabeth, reconhecendo as famosas fábricas de vidro artesanal.
Não acredito que estou de volta, pensou, sentindo uma pontada aguda de tristeza. O círculo se fecha.
Anos antes, quando ainda era estudante de medicina, tinha ido a Veneza com o noivo e visitara o Museu do Vidro de Murano. Lá, o rapaz vira um lindo móbile de vidro artesanal e comentara inocentemente que, um dia, iria querer pendurar um igualzinho no quarto do bebê deles. Tomada pela culpa por ter guardado seu doloroso segredo por tanto tempo, Elizabeth enfim contou ao noivo a verdade sobre a asma que tivera quando criança e o trágico tratamento à base de glicocorticoides que destruíra seu sistema reprodutor.
Nunca saberia se fora sua desonestidade ou sua infertilidade que tinham feito o coração do rapaz virar pedra. De todo modo, uma semana depois Elizabeth foi embora de Veneza sem o anel de noivado no dedo.
Sua única recordação daquela infeliz viagem era o amuleto de lápis-lazúli. O Bastão de Asclépio era um símbolo apropriado para a medicina – nesse caso, para um remédio amargo –, mas isso não a impedira de usá-lo desde então.
Meu precioso amuleto, pensou. Presente de despedida do homem que queria que eu fosse a mãe de seus filhos.
Agora, as ilhas de Veneza já não tinham para ela nenhum significado romântico e aqueles povoados isolados a faziam pensar não em amor, mas nas colônias de quarentena outrora criadas ali na tentativa de deter a Peste Negra.
Enquanto a lancha Blackbird passava a toda a velocidade pela Isola San Pietro, Elizabeth se deu conta de que estavam se aproximando de um imenso iate cinza que parecia aguardá-los ancorado em um canal profundo.
A embarcação cinza-chumbo parecia ter saído diretamente do programa antirradar das forças armadas americanas. O nome gravado na popa não dava nenhuma pista do tipo de barco que poderia ser.
Mendacium?
O iate ficava cada vez maior à medida que se aproximavam e, em questão de instantes, a Dra. Sinskey pôde ver um vulto solitário em pé na parte traseira do convés – um homem baixo, de pele bronzeada, que os observava com o auxílio de um binóculo. Quando a lancha de apoio chegou à espaçosa plataforma de embarque na popa do Mendacium, o homem desceu até lá para recebê-los.
– Dra. Sinskey, bem-vinda a bordo. – Educado, ele apertou a mão dela. Sua palma era lisa e macia, bem diferente da mão de um marinheiro. – Obrigado por terem vindo. Queiram me acompanhar.
Conforme o grupo subia os vários níveis do convés, a doutora pôde ver de relance o que pareciam ser saletas de trabalho em plena atividade. A estranha embarcação na verdade estava lotada de gente, mas ninguém parecia estar ali por lazer: todos trabalhavam.
Em quê?
Ainda subindo, ela ouviu os imensos motores do iate serem ligados. Em seguida, a embarcação voltou a se mover, deixando um rastro turvo atrás de si.
Para onde estamos indo?, perguntou-se, alarmada.
– Eu gostaria de falar com a Dra. Sinskey a sós – disse o homem aos soldados, detendo-se para olhar de relance para a doutora. – Se a senhora concordar.
Elizabeth assentiu.
– Se me permite, sugiro que a Dra. Sinskey seja examinada pelo seu médico de bordo – falou Brüder com firmeza. – Ela teve algumas complicações mé...
– Eu estou bem – interrompeu a doutora. – De verdade. Mas obrigada mesmo assim.
O diretor fitou Brüder demoradamente, então gesticulou para uma mesa de comes e bebes que estava sendo servida no convés.
– Reponham as energias. Vocês vão precisar. Muito em breve estarão de volta em terra firme.
O diretor deu as costas para o agente e conduziu Elizabeth Sinskey para dentro de uma elegante cabine particular equipada como um escritório; depois de entrarem, fechou a porta.
– Aceita uma bebida? – perguntou, indicando um bar.
A doutora fez que não, ainda tentando entender aquele ambiente estranho. Quem é esse homem? O que ele faz aqui?
Seu anfitrião a examinava com as mãos unidas em um triângulo sob o queixo.
– Sabia que o meu cliente Bertrand Zobrist chamava a senhora de “demônio de cabelos prateados”?
– Também tenho alguns bons apelidos para ele.
O homem não demonstrou emoção alguma ao caminhar até a mesa de trabalho e apontar para um grande livro.
– Queria que desse uma olhada nisso.
Elizabeth Sinskey foi até a mesa e examinou o volume. Inferno de Dante? Lembrou-se das horripilantes imagens de morte que Zobrist havia lhe mostrado durante seu encontro no Conselho de Relações Exteriores.
– Zobrist me deu esse livro há quinze dias. Tem uma dedicatória.
A Dra. Sinskey estudou a mensagem manuscrita na folha de rosto. Era assinada por Zobrist.
Meu caro amigo, obrigado por me ajudar a encontrar o caminho.
O mundo também lhe agradece.
Sinskey sentiu um frio na espinha.
– Que caminho o senhor o ajudou a encontrar?
– Não faço a menor ideia. Ou melhor, não fazia até poucas horas atrás.
– E agora?
– Agora, abri uma rara exceção no meu protocolo... e resolvi pedir sua ajuda.
Elizabeth Sinskey tinha feito uma longa viagem e não estava com a menor paciência para conversas enigmáticas.
– Olhe, eu não sei quem o senhor é nem o que faz neste iate, mas me deve uma explicação. Exijo saber por que protegeu um indivíduo que estava sendo perseguido pela Organização Mundial da Saúde.
Apesar do tom exaltado da doutora, o homem respondeu com um sussurro controlado:
– Sei que a senhora e eu temos trabalhado com objetivos opostos, mas sugiro que esqueçamos o passado. A meu ver, é o futuro que exige nossa atenção imediata.
Com essas palavras, ele sacou um minúsculo cartão de memória vermelho, inseriu-o no computador e fez um gesto para ela se sentar.
– Bertrand Zobrist gravou este vídeo. Esperava que eu o divulgasse para a imprensa amanhã.
Antes que pudesse reagir, a tela do computador ficou preta e ela ouviu um leve barulho de água chapinhando. Na escuridão, uma cena começou a ganhar forma. Mostrava o interior de uma caverna cheia d’água... como um lago subterrâneo. O estranho era que a água parecia iluminada por dentro... luzindo com uma estranha claridade vermelha.
O chapinhar continuou, enquanto a imagem se inclinava para baixo e mergulhava, mostrando o fundo da caverna, coberto de lodo. Chumbada ao chão, uma reluzente placa retangular exibia uma inscrição, uma data e um nome.
NESTE LOCAL, NESTA DATA,
O MUNDO FOI TRANSFORMADO PARA SEMPRE.
A data era o dia seguinte. O nome, Bertrand Zobrist.
Elizabeth Sinskey estremeceu.
– Que lugar é esse?! – perguntou. – Onde fica?
Ao responder, o diretor exibiu seu primeiro indício de emoção até aquele momento: um profundo suspiro de preocupação e desapontamento.
– Dra. Sinskey, eu estava torcendo muito para que a senhora tivesse a resposta para essa pergunta.
A menos de 2 quilômetros dali, no passeio litorâneo da Riva degli Schiavoni, a vista do mar aberto havia sofrido uma mudança quase imperceptível. Um observador atento notaria que um enorme iate cinza acabara de surgir por trás de uma língua de terra ao leste. E agora avançava a toda a velocidade em direção à praça São Marcos.
O Mendacium, percebeu FS-2080 com uma onda de pânico.
O casco cinza da embarcação era inconfundível.
O diretor está a caminho... e o tempo está se esgotando.
Serpenteando em meio à densa multidão da Riva degli Schiavoni, Langdon, Sienna e Ferris caminharam junto à beira d’água até a praça São Marcos e chegaram pelo lado sul, onde a piazza encontra o mar.
Ali, a massa quase impenetrável de turistas cercava Langdon de forma claustrofóbica, amontoando-se para fotografar as duas imponentes colunas que emolduram a praça.
O portal oficial da cidade, pensou ele com ironia, consciente de que o local também havia sido usado para execuções públicas até o século XVIII.
No topo de uma das colunas do portal, viu a bizarra estátua de São Teodoro em uma pose altiva junto ao lendário dragão morto, que Langdon sempre achava muito mais parecido com um crocodilo.
Em cima da segunda coluna fica o onipresente símbolo de Veneza, visível em praticamente todas as esquinas da cidade – um leão alado com sua pata orgulhosamente apoiada sobre um livro aberto, no qual se lê a inscrição em latim Pax tibi Marce, evangelista meus (Que a paz esteja contigo, Marcos, meu evangelista). Reza a lenda que, quando São Marcos chegou a Veneza, um anjo teria dito essas palavras e previsto que seu corpo um dia repousaria ali. Mais tarde, os venezianos se valeram dessa lenda apócrifa para roubar os ossos de São Marcos de Alexandria e tornar a enterrá-los em sua basílica.
Langdon apontou para a direita, além das colunas, em direção ao outro lado da praça.
– Se nos separarmos, espero vocês na porta da basílica.
Os outros concordaram e logo começaram a margear a multidão em direção à praça, mantendo-se rente ao muro ocidental do Palácio dos Doges. Apesar das leis que proibiam alimentá-los, os célebres pombos de Veneza pareciam gozar de ótima saúde: alguns ciscavam aos pés da multidão, outros mergulhavam entre as mesas dos cafés ao ar livre para pilhar cestos de pão desprotegidos e atormentar os garçons de smoking.
Diferentemente da maioria das praças europeias, em vez de quadrangular, essa grandiosa piazza tem o formato de uma letra L. O lado mais curto – conhecido como piazzetta – liga o mar à Basílica de São Marcos. Mais adiante, a praça faz uma curva de noventa graus em direção à sua “perna” mais comprida, que se estende desde a basílica até o Museo Correr. Esse lado, em vez de reto, tem formato trapezoidal irregular, estreitando-se de forma acentuada em uma das extremidades. Essa ilusão de óptica digna de um parque de diversões faz a praça parecer bem mais comprida do que de fato é, efeito acentuado pela disposição em grade das pedras do calçamento, cujos contornos indicavam a posição das barracas dos mercadores de rua do século XV.
Enquanto avançava rumo à basílica, Langdon viu ao longe, bem na sua direção, o mostrador de vidro azul cintilante da Torre do Relógio de São Marcos – o mesmo relógio astronômico através do qual James Bond lançava um vilão no filme 007 contra o foguete da morte.
Só quando chegou à praça protegida pôde admirar por completo a mais singular atração da cidade.
O som.
Praticamente desprovida de carros ou qualquer tipo de veículos motorizados, Veneza goza de uma feliz ausência de frotas de automóveis, trens e sirenes comuns às cidades, o que proporciona espaço sonoro para a tapeçaria claramente não mecânica de vozes humanas, arrulhos de pombos e acordes dos violinos fazendo serenata para os clientes dos cafés. Nenhum outro centro metropolitano do mundo soa como Veneza.
Com o sol do fim de tarde derramando-se do oeste, lançando sombras compridas sobre as pedras do calçamento, Langdon ergueu os olhos para a grande torre do campanile, que se assomava sobre a praça, dominando o horizonte da cidade. Na loggia superior da torre havia centenas de pessoas. A simples perspectiva de subir até lá lhe dava arrepios, por isso Langdon tornou a abaixar a cabeça e continuou a atravessar o mar de gente.
Sienna poderia ter acompanhado o ritmo de Langdon com facilidade, mas, como Ferris estava ficando para trás, decidira se manter a meia distância, de modo a fazer com que os dois permanecessem em seu campo de visão. Agora, porém, à medida que eles ficavam cada vez mais afastados, ela começou a olhar por sobre o ombro com impaciência. Ferris apontou para o próprio peito, indicando que estava sem ar, e acenou para que ela seguisse em frente.
Sienna obedeceu, apertando o passo para alcançar Langdon e perdendo Ferris de vista. Enquanto ziguezagueava pela multidão, porém, foi contida por uma sensação incômoda – a estranha desconfiança de que Ferris estava ficando para trás de propósito.
Havia muito tempo que ela aprendera a confiar nos próprios instintos. Portanto, encurvou-se para se enfiar em uma alcova e pôs-se a observar em meio às sombras, vasculhando a multidão à procura de Ferris.
Onde ele se meteu?
Era como se ele nem mesmo estivesse tentando segui-los. Depois de vasculhar os rostos da multidão, ela finalmente o viu. Para sua surpresa, Ferris havia parado e estava agachado, digitando no celular.
O mesmo celular que ele me disse que estava sem bateria.
Um medo visceral a invadiu e mais uma vez ela soube que deveria dar atenção ao que sentia.
Ele mentiu para mim no trem.
Enquanto observava Ferris, tentou imaginar o que ele estaria fazendo. Mandando um torpedo para alguém? Pesquisando sem ela saber? Tentando solucionar o mistério do poema de Zobrist antes de Langdon?
Qualquer que fosse a sua motivação, Ferris havia mentido descaradamente.
Não posso confiar nele.
Sienna cogitou correr até lá e confrontá-lo, mas logo decidiu voltar para o meio da multidão antes que ele a visse. Tornou a seguir em direção à basílica, tentando encontrar Langdon. Preciso avisá-lo para não revelar mais nada a Ferris.
Estava a menos de 50 metros do templo quando sentiu a mão forte de alguém puxando seu suéter por trás.
Virou-se na mesma hora e deu de cara com Ferris.
O homem de pele irritada estava muito ofegante. Era óbvio que tinha atravessado a multidão correndo para alcançá-la. Reparou que ele aparentava certa afobação que ela não tinha observado antes.
– Desculpe – disse ele, quase sem conseguir respirar. – Me perdi no meio desse monte de gente.
Assim que olhou dentro dos seus olhos, Sienna teve certeza.
Ele está escondendo alguma coisa.
Quando Langdon chegou diante da Basílica de São Marcos, ficou surpreso ao constatar que seus dois companheiros não estavam mais atrás dele. Outra coisa também o espantou: a ausência de uma fila de turistas para entrar na igreja. No entanto, logo se deu conta de que já era fim de tarde, horário em que a maioria dos turistas – já com a energia comprometida por pesados almoços de massa e vinho – decidia passear pelas piazzas ou tomar um café em vez de tentar absorver mais fatos históricos.
Imaginando que Sienna e Ferris fossem chegar a qualquer momento, Langdon direcionou o olhar para a entrada da basílica à sua frente. Por vezes acusada de oferecer “um constrangedor excesso de entradas”, a parte térrea da fachada da basílica tinha cinco acessos recuados cujos aglomerados de colunas, arcos abobadados e portais de bronze decerto tornavam o prédio, no mínimo, bastante acolhedor.
Um dos mais belos exemplares europeus de arquitetura bizantina, a Basílica de São Marcos tinha um aspecto decididamente suave e fantasioso. Em contraste com as austeras torres cinzentas de Notre-Dame ou Chartres, a igreja parecia ao mesmo tempo imponente e, de certa forma, bem mais terrena. Mais larga do que alta, era encimada por cinco volumosas cúpulas caiadas que lhe conferiam uma atmosfera etérea, quase festiva, o que levara mais de um guia turístico a comparar a construção a um bolo de casamento com cobertura de merengue.
Do pico central da igreja, uma esguia estátua de São Marcos observava a praça que levava seu nome. Seus pés repousavam sobre um arco de vértice pontiagudo, pintado de azul-escuro e salpicado de estrelas douradas. Contra esse fundo colorido, desenhava-se o leão alado dourado, mascote da cidade.
Justamente debaixo desse leão dourado São Marcos exibia um de seus mais famosos tesouros: quatro colossais garanhões de cobre, que àquela hora reluziam ao sol da tarde.
Os Cavalos de São Marcos.
Como muitos dos tesouros de Veneza, aqueles quatro garanhões de valor inestimável, que pareciam prestes a pular para dentro da praça a qualquer momento, tinham sido roubados de Constantinopla durante as Cruzadas. Outra obra de arte saqueada estava exposta abaixo deles, na quina sudoeste da igreja – uma escultura em pórfiro roxo conhecida como Os tetrarcas. A estátua era famosa por ter um pé faltando, quebrado quando fora trazida de Constantinopla no século XIII. Por milagre, o pé havia sido desencavado em Istambul nos anos 1960. Veneza chegou a solicitar que o pedaço faltante da estátua lhes fosse enviado, mas a resposta das autoridades turcas foi categórica: Vocês roubaram a estátua – nós vamos ficar com o pé.
– Comprar, senhor? – perguntou uma voz de mulher, atraindo o olhar de Langdon para baixo.
Uma corpulenta cigana segurava uma longa vara da qual pendiam várias máscaras venezianas. A maioria era do popular modelo volto intero – máscaras brancas estilizadas, de rosto inteiro, que as mulheres usavam durante o Carnevale. O conjunto incluía também algumas divertidas meias-máscaras de Colombina, outras tantas de queixo triangular e uma Moretta sem cordão. Apesar das mercadorias coloridas, contudo, o que atraiu a atenção de Langdon foi uma única máscara entre o preto e o cinza pendurada bem no alto da vara, cujos ameaçadores olhos sem vida pareciam encará-lo por cima de um longo nariz em formato de bico.
O médico da peste. Langdon desviou o olhar; não precisava ser lembrado do que estava fazendo ali em Veneza.
– Comprar, senhor? – repetiu a cigana.
Langdon abriu um sorriso fraco e balançou a cabeça.
– Sono molto belle, ma no, grazie.
Enquanto a mulher se afastava, os olhos de Langdon seguiram a sinistra máscara da peste que se balançava acima da multidão. Suspirando com força, tornou a fitar os quatro garanhões de cobre na sacada do segundo andar da basílica.
Então, de repente, tudo ficou claro.
Langdon foi invadido por uma enxurrada de informações que pareciam colidir umas com as outras – Cavalos de São Marcos, máscaras venezianas e tesouros saqueados de Constantinopla.
– Meu Deus do céu – sussurrou. – É isso!
Robert Langdon estava petrificado.
Os Cavalos de São Marcos!
Os quatro magníficos animais, com seus pescoços elegantes e suas coalheiras marcadas, haviam despertado nele uma lembrança súbita e inesperada – que Langdon agora percebia conter a explicação de um elemento fundamental do misterioso poema escrito no verso da máscara de Dante.
Certa vez, ele havia comparecido a uma festa de casamento de celebridades no histórico haras Runnymede, em New Hampshire – que servia de lar para o puro-sangue Dancer’s Image, vencedor do Kentucky Derby. Entre as muitas e requintadas atrações, os convidados puderam assistir a uma apresentação da renomada trupe equestre Behind the Mask, um magnífico espetáculo em que os cavaleiros usavam exuberantes fantasias venezianas e tinham o rosto escondido por máscaras volto intero. Os cavalos da trupe, frísios muito negros, eram os maiores que Langdon já tinha visto. De estatura colossal, os impressionantes animais corriam trovejantes pelo campo, formando um borrão de músculos bem definidos e crinas de um metro de comprimento esvoaçando atrás de longos e graciosos pescoços.
A beleza daqueles animais o deixara tão impressionado que, ao voltar para casa, Langdon havia pesquisado a respeito deles na internet, descobrindo que eram os cavalos de guerra preferidos dos reis medievais – e que, depois de quase entrar em extinção, a raça fora recuperada recentemente. Antes conhecida como Equus robustus, o nome atual da raça se devia à sua região de origem, a Frísia, província holandesa que fora o berço do brilhante artista gráfico M. C. Escher.
Os corpos poderosos dos frísios serviram de inspiração para a estética robusta dos Cavalos de São Marcos. Segundo o site que Langdon consultara, as estátuas dos animais eram tão belas que haviam se tornado “as obras de arte mais roubadas da história”.
Como sempre acreditara que essa honra dúbia coubesse ao Retábulo de Ghent, Langdon deu uma rápida conferida no site da Associação de Pesquisas sobre Crimes contra a Arte – ARCA, na sigla em inglês – para confirmar sua teoria. A ARCA não mantinha nenhum ranking definitivo, mas oferecia um resumo da atribulada existência dos cavalos de Veneza como vítimas de pilhagens e saques.
Fundidos no século IV por um escultor grego anônimo na ilha de Quios, os quatro animais de cobre lá permaneceram até Teodósio II levá-los para serem expostos no Hipódromo de Constantinopla. Então, quando as forças venezianas saquearem a cidade bizantina durante a Quarta Cruzada, o doge em exercício exigiu que as quatro preciosas esculturas fossem transportadas de navio até Veneza, feito praticamente impossível por causa de seu tamanho e peso. Em 1204, os cavalos chegaram à cidade e foram instalados na fachada da Catedral de São Marcos.
Mais de quinhentos anos depois, em 1797, Napoleão conquistou Veneza e tomou os cavalos para si. Eles foram levados a Paris e posicionados com destaque no alto do Arco do Triunfo. Por fim, em 1815, após a derrota de Napoleão em Waterloo e seu exílio, os cavalos foram removidos e transportados a bordo de uma barcaça de volta para Veneza, onde foram reinstalados na sacada frontal da Basílica de São Marcos.
Apesar de conhecer bem a história daquelas esculturas, Langdon ficou espantado com um dos trechos encontrados no site da ARCA.
As coalheiras decorativas foram acrescentadas aos pescoços dos cavalos pelos venezianos em 1204, para esconder a área em que as cabeças haviam sido cortadas a fim de facilitar seu transporte de navio de Constantinopla até Veneza.
O doge mandara cortar as cabeças dos Cavalos de São Marcos? Para Langdon, isso parecia inconcebível.
– Robert?! – Sienna o chamou.
Despertado de suas divagações, Langdon se virou e viu que ela abria caminho pela multidão, com Ferris a seu lado.
– Os cavalos do poema! – gritou ele, animado. – Eu entendi!
– O quê? – Sienna, por sua vez, não parecia compreender.
– Nós estamos procurando um doge traiçoeiro que cortou cabeças de cavalos!
– E daí?
– O poema não está se referindo a cavalos vivos. – Ele apontou bem para o alto da fachada de São Marcos, onde o sol forte iluminava as quatro estátuas de cobre. – Está se referindo àqueles cavalos ali!
A bordo do Mendacium, as mãos da Dra. Elizabeth Sinskey tremiam. Ela estava assistindo ao vídeo no escritório do diretor e, embora já tivesse visto algumas coisas aterrorizantes na vida, aquele filme inexplicável feito por Bertrand Zobrist antes de seu suicídio lhe causou uma sensação fria como a morte.
No monitor à sua frente, a sombra de um rosto bicudo oscilava, projetada na parede úmida de uma caverna. A silhueta continuava a falar, descrevendo orgulhosamente sua obra-prima – a criação chamada Inferno –, que iria salvar o mundo mediante o expurgo da população.
Que Deus nos proteja, pensou.
– Nós temos que... – começou ela, com a voz trêmula. – Nós temos que encontrar esse local subterrâneo. Talvez ainda não seja tarde demais.
– Continue assistindo – retrucou o diretor. – Fica mais estranho ainda.
De repente, a sombra da máscara cresceu na parede, tornando-se imensa. Então um vulto surgiu no quadro.
Puta merda.
O que Elizabeth Sinskey estava vendo era um médico da peste em traje completo, com direito à capa preta e à sinistra máscara com nariz em forma de bico. Ele andou em direção à câmera e sua máscara preencheu a tela inteira, causando um efeito aterrorizante.
“Os lugares mais sombrios do Inferno”, sussurrou, “são reservados àqueles se mantiveram neutros em tempos de crise moral.”
A doutora sentiu a pele do pescoço se arrepiar. Era a mesma citação que Zobrist lhe deixara no balcão da companhia aérea quando ela se esquivara dele em Nova York, um ano antes.
“Eu bem sei”, prosseguia o médico da peste, “que há quem me chame de monstro.” Ele fez uma pausa e a Dra. Sinskey sentiu que aquelas palavras se dirigiam a ela. “Sei que há quem me considere uma fera sem coração escondida atrás de uma máscara.” Ele parou de novo e chegou mais perto da câmera. “Mas não sou desprovido de rosto. Tampouco de coração.”
Com essas palavras, Zobrist tirou a máscara e abaixou o capuz, revelando seu rosto. Ela se retesou ao encarar aqueles conhecidos olhos verdes que vira pela última vez na penumbra do Conselho de Relações Exteriores. No vídeo, os olhos transmitiam a mesma paixão, o mesmo fogo, mas também algo mais – o fervor alucinado de um louco.
“Meu nome é Bertrand Zobrist”, disse ele, encarando a câmera. “E este é o meu rosto, revelado e exposto aos olhos do mundo. Quanto à minha alma... se eu pudesse entregar a vocês meu coração em chamas, como Deus fez com Dante para sua amada Beatriz, veriam que estou transbordando de amor. Do tipo mais profundo. Por todos vocês. E, acima de tudo, por um de vocês.”
Zobrist chegou ainda mais perto, encarando a câmera com um olhar profundo e falando no tom brando que se usa com a pessoa amada.
“Meu amor”, sussurrou ele, “meu precioso amor. Você é minha bênção suprema, capaz de destruir todos os meus vícios, de reafirmar todas as minhas virtudes... você é a minha salvação. Só você se deitou ao meu lado sem nenhum véu e, sem se dar conta, me ajudou a cruzar o abismo, dando-me forças para fazer o que agora fiz.”
A Dra. Sinskey ouvia com repulsa.
“Meu amor”, continuou Zobrist, com um sussurro pesaroso que ecoou na caverna espectral dentro da qual ele falava. “Você é minha inspiração e meu guia, ao mesmo tempo meu Virgílio e minha Beatriz, e esta obra-prima é uma criação tanto sua quanto minha. Mesmo que você e eu, amantes malfadados, nunca mais voltemos a nos tocar, encontrarei paz na certeza de ter deixado o futuro em suas delicadas mãos. Meu trabalho aqui embaixo acabou. Chegou minha hora de voltar à superfície... e vislumbrar novamente as estrelas.”
Zobrist parou de falar e a palavra estrelas ecoou na caverna por alguns instantes. Então, com muita calma, ele estendeu a mão e tocou a câmera, encerrando a transmissão.
A tela ficou preta.
– Esse local subterrâneo – falou o diretor, desligando o monitor. – Não conseguimos reconhecê-lo. A senhora sabe onde é?
Elizabeth Sinskey balançou a cabeça. Nunca vi nada parecido. Pensou em Robert Langdon, imaginando se ele teria avançado mais um pouco na tentativa de decifrar as pistas de Zobrist.
– Não sei se pode ajudar – disse o diretor –, mas acho que sei quem Zobrist chama de “amor”. – Ele fez uma pausa. – Uma pessoa cujo codinome é FS-2080.
A doutora teve um sobressalto. Encarou o diretor, chocada.
– FS-2080?!
Ele parecia igualmente espantado.
– Isso significa alguma coisa para a senhora?
Ela assentiu, incrédula.
– Com certeza.
Seu coração estava disparado. FS-2080. Embora não conhecesse a identidade da pessoa em questão, com certeza sabia o que significava o codinome. A OMS vinha monitorando outros como esse havia muito tempo.
– O senhor sabe o que é o movimento transumanista? – perguntou ela.
O diretor fez que não com a cabeça.
– Grosso modo, o transumanismo é uma filosofia que defende que os seres humanos usem todas as tecnologias disponíveis para manipular nossa própria espécie de modo a torná-la mais forte. A sobrevivência do mais apto.
O diretor deu de ombros, aparentemente impassível.
– De modo geral, o movimento transumanista é composto por indivíduos sensatos: cientistas com responsabilidade ética, futuristas, visionários – continuou. – No entanto, como em muitos outros movimentos, existe uma facção pequena porém militante que acredita que eles não estão avançando depressa o bastante. Há pensadores apocalípticos segundo os quais o fim está próximo, e alguém precisa tomar atitudes drásticas para garantir o futuro da espécie.
– Deixe-me adivinhar: Bertrand Zobrist era uma dessas pessoas? – indagou o diretor.
– Isso mesmo – respondeu Sinskey. – Ele era um líder do movimento. Além de muito inteligente, tinha enorme carisma e escreveu artigos catastróficos que deram origem a toda uma facção de defensores radicais do transumanismo. Hoje em dia, muitos de seus discípulos fanáticos usam codinomes, todos com um formato semelhante: duas letras e um número de quatro algarismos. Por exemplo, DG-2064, BA-2103 ou esse que o senhor acabou de citar.
– FS-2080.
Elizabeth Sinskey assentiu.
– Isso só pode ser um codinome transumanista.
– Os números e as letras têm algum significado?
A doutora fez um gesto em direção ao computador.
– Abra o navegador. Vou lhe mostrar.
O diretor pareceu hesitar, mas foi até o computador e abriu um site de busca.
– Pesquise “FM-2030” – falou, sentando-se ao seu lado.
Quando o diretor digitou FM-2030, milhares de páginas da internet apareceram listadas.
– Clique em qualquer uma – instruiu a doutora.
O diretor clicou na primeira ocorrência, que remeteu a uma página da Wikipédia com a fotografia de um atraente iraniano – Fereidoun M. Esfandiary –, descrito como escritor, filósofo, futurista e fundador do movimento transumanista. Nascido em 1930, era a ele que se atribuía a introdução da filosofia transumanista às massas, bem como a previsão da fertilização in vitro, da engenharia genética e do processo de globalização da civilização.
Segundo a Wikipédia, a mais ousada afirmação de Esfandiary era a de que as novas tecnologias lhe permitiriam viver até os 100 anos, fato raro em sua geração. Como voto de confiança na futura tecnologia, Fereidoun M. Esfandiary mudou o próprio nome para FM-2030, codinome criado pela combinação das iniciais de seu nome com o ano em que completaria o centenário. Infelizmente, o iraniano sucumbiu a um câncer de pâncreas aos 70 anos, sem alcançar seu objetivo. Em sua homenagem, seguidores zelosos do transumanismo continuaram a prestar tributo a FM-2030 adotando a mesma técnica de nomenclatura.
Ao terminar de ler, o diretor se levantou e andou até a janela, onde passou um bom tempo fitando o mar com uma expressão vazia.
– Quer dizer que o amor de Zobrist, FS-2080, é sem dúvida um desses transumanistas – sussurrou ele por fim, como se estivesse pensando em voz alta.
– Sem dúvida – respondeu Elizabeth Sinskey. – É uma pena eu não saber quem é FS-2080, mas...
– Era aí que eu queria chegar – interrompeu o diretor, ainda fitando o mar. – Eu sei. Sei exatamente quem é.
O próprio ar parece feito de ouro.
Robert Langdon já tinha visitado muitas catedrais esplêndidas ao longo da vida, mas a atmosfera da Chiesa d’Oro de São Marcos sempre lhe parecia singular. Durante muitos séculos, dizia-se que o simples fato de respirar o ar da basílica era capaz de enriquecer uma pessoa. E essa afirmação deveria ser interpretada não só de maneira metafórica, mas também literal.
Como o interior da igreja era revestido de vários milhões de antiquíssimas peças de mosaico feitas de ouro, dizia-se que muitas das partículas que flutuavam no ar eram, na verdade, desse mesmo material. Combinada com a intensa luz do sol que entrava pela ampla janela ocidental, essa poeira de ouro suspensa criava um ambiente vibrante que ajudava os fiéis a alcançarem tanto a riqueza espiritual quanto um enriquecimento mais mundano – desde que respirassem bem fundo –, pois estariam folheando a ouro os próprios pulmões.
Àquela hora, os raios do sol baixo que entravam pela janela ocidental se espalhavam acima da cabeça de Langdon como um amplo e reluzente leque, ou um toldo de seda radiante. Ele não conseguiu conter um arquejo de admiração e notou que, a seu lado, Sienna e Ferris também não conseguiram.
– Por onde? – sussurrou Sienna.
Langdon gesticulou em direção a uma escada. A parte da igreja que era um museu ficava no piso superior e incluía uma vasta exposição permanente dedicada aos Cavalos de São Marcos. Langdon esperava que isso revelasse depressa a identidade do misterioso doge que lhes cortara as cabeças.
Enquanto subiam, viu que Ferris estava mais uma vez com dificuldade para respirar. Então Sienna cruzou olhares com Langdon, coisa que vinha tentando fazer havia vários minutos. Como se quisesse alertá-lo, ela meneou a cabeça discretamente em direção a Ferris e articulou com os lábios algo que Langdon não conseguiu entender. Contudo, antes que ele pudesse lhe pedir uma explicação, o outro homem olhou para trás – uma fração de segundo atrasado, pois Sienna já desviara o olhar de Langdon e olhava para Ferris.
– Está se sentindo bem, doutor? – perguntou em tom inocente.
Ferris assentiu e começou a subir mais depressa.
Que atriz talentosa, pensou Langdon. Mas o que ela estava tentando me dizer?
Quando chegaram ao andar de cima, tiveram uma visão de toda a basílica, que se estendia mais abaixo. Construído em formato de cruz grega, o santuário tinha um aspecto bem mais quadrado do que os retângulos alongados de São Pedro ou da Notre-Dame. Com nártex e altar situados mais próximos um do outro, São Marcos transmitia uma sensação de robustez e resistência, mas também de maior acessibilidade.
Porém, para não parecer acessível demais, o altar-mor da igreja ficava atrás de um anteparo de colunas encimado por um imponente crucifixo. Abrigado por um elegante cibório, o altar continha um dos retábulos mais valiosos do mundo – o célebre Pala d’Oro. Extenso painel de prata folheada a ouro, o “pano” só era um tecido no sentido de ser uma colagem formada por várias obras mais antigas fundidas em uma só – em sua maioria, peças bizantinas esmaltadas – e entrelaçadas dentro de uma mesma moldura gótica. Adornado com cerca de 1.300 pérolas, 400 granadas e 300 safiras, além de esmeraldas, ametistas e rubis, o Pala d’Oro era considerado, junto com os Cavalos de São Marcos, um dos maiores tesouros de Veneza.
Do ponto de vista arquitetônico, a palavra basílica se referia a uma igreja oriental, em estilo bizantino, erigida na Europa ou no Ocidente. Como era uma réplica da Basílica dos Santos Apóstolos de Justiniano, em Constantinopla, São Marcos tinha um estilo tão oriental que os guias de turismo muitas vezes sugeriam que visitá-la era um substituto aceitável a uma visita às mesquitas turcas, muitas das quais eram catedrais bizantinas convertidas em templos muçulmanos.
Embora Langdon jamais pudesse considerar São Marcos um substituto para as espetaculares mesquitas da Turquia, era obrigado a admitir que um apaixonado por arte bizantina adoraria visitar o conjunto secreto de salas situado logo depois do transepto direito daquela igreja. Era ali que ficava escondido o chamado Tesouro de São Marcos – uma resplandecente coleção de 283 preciosos ícones, joias e cálices obtidos por ocasião do saque a Constantinopla.
Ficou satisfeito ao encontrar a basílica relativamente tranquila naquela tarde. Por mais que ainda houvesse muita gente, pelo menos havia espaço para se mover. Ziguezagueando entre vários grupos de pessoas, ele foi guiando Ferris e Sienna em direção ao janelão ocidental, onde havia uma porta pela qual os visitantes podiam sair para ver os cavalos na sacada. Embora estivesse confiante de que fossem conseguir identificar o doge em questão, Langdon continuava preocupado com o passo que precisariam dar depois disso – localizar o doge. Seu túmulo? Sua estátua? Essa etapa exigiria alguma ajuda, levando em conta que havia centenas de estátuas dentro da basílica, na cripta inferior e nas tumbas encimadas por cúpulas ao longo do braço norte da igreja.
Foi então que Langdon viu uma jovem guia conduzindo uma visita pela igreja e interrompeu educamente sua preleção.
– Com licença – falou. – Ettore Vio está aqui hoje?
– Ettore Vio – A moça encarou Langdon com um olhar estranho. – Sì, claro, ma... – Ela interrompeu a frase no meio e seus olhos se iluminaram. – Lei è Roberto Langdon, vero?! – O senhor é Robert Langdon, não é?
Ele abriu um sorriso paciente.
– Sì, sono io. É possível falar com Ettore?
– Sì, sì! – A moça fez um gesto para que o grupo aguardasse um instante e se afastou a passos rápidos.
Langdon e Ettore Vio, o curador do museu, já tinham participado juntos de um curto documentário sobre a basílica e mantinham contato desde então.
– Ettore escreveu um livro sobre esta basílica – explicou ele a Sienna. – Vários livros, na verdade.
Sienna ainda parecia estranhamente perturbada pela presença de Ferris, que permaneceu junto deles enquanto Langdon os guiava pelo andar superior rumo ao janelão ocidental, que conduzia à sacada onde os cavalos podiam ser vistos. Quando lá chegaram, a silhueta das musculosas ancas dos garanhões se tornou visível, destacada contra o sol vespertino. Lá fora, na sacada, turistas admiravam de perto os cavalos, bem como uma vista espetacular da praça São Marcos.
– Ali estão eles! – exclamou Sienna, avançando em direção à porta.
– Não exatamente – corrigiu Langdon. – Esses cavalos expostos na sacada são apenas réplicas. Os verdadeiros Cavalos de São Marcos ficam guardados dentro da basílica, por segurança e para melhor preservação.
Ele conduziu Sienna e Ferris por um corredor em direção a uma alcova bem iluminada na qual um grupo idêntico de quatro garanhões parecia trotar para cima deles, vindos de um fundo formado por arcos de tijolo.
Langdon indicou as estátuas com um gesto de admiração.
– Os originais são esses aqui.
Sempre que via aqueles cavalos de perto, Langdon não conseguia deixar de se maravilhar com a textura e os detalhes de sua musculatura. Um azinhavre suntuoso, entre o verde e o dourado, cobria toda a superfície das esculturas, intensificando a aparência dramática dos corpos sinuosos. Para Langdon, ver aqueles quatro garanhões em perfeito estado de preservação, apesar de seu passado atribulado, era sempre um lembrete da importância de se preservar a grande arte.
– As coalheiras – disse Sienna, apontando para os arreios decorativos em volta do pescoço dos animais. – Você disse que elas foram acrescentadas? Para esconder as emendas?
Langdon já havia contado a Sienna e Ferris sobre o estranho detalhe relativo às “cabeças cortadas” encontrado no site da ARCA.
– Parece que sim – respondeu, encaminhando-se para uma plaquinha informativa afixada diante das esculturas.
– Roberto! – bradou uma voz amistosa atrás deles. – Assim você me ofende!
Langdon se virou e deu de cara com Ettore Vio abrindo caminho em meio à multidão – um senhor de aspecto jovial e cabelos brancos, vestido com terno azul e com os óculos pendurados em uma correntinha no pescoço.
– Como se atreve a vir a Veneza e não me ligar?
Langdon sorriu e apertou a mão do amigo.
– Quis fazer uma surpresa, Ettore. Você está ótimo. Esses são meus amigos, Dra. Brooks e Dr. Ferris.
Ettore também os cumprimentou e recuou um passo para avaliar Langdon.
– Viajando com médicos? Por acaso está doente? E que roupa é essa? Está virando italiano?
– Nem uma coisa, nem outra – disse Langdon com uma risadinha. – Vim atrás de uma informação sobre os cavalos.
Ettore assumiu uma expressão intrigada.
– Existe alguma coisa que o famoso professor ainda não saiba?
Langdon tornou a rir.
– Preciso descobrir mais sobre como as cabeças desses cavalos foram cortadas para o transporte durante as Cruzadas.
Pela cara que Ettore Vio fez, era como se Langdon tivesse perguntado sobre as hemorroidas da rainha.
– Robert, pelo amor de Deus, nós não falamos sobre isso – sussurrou ele. – Se quiser ver cabeças cortadas, posso lhe mostrar o famoso Carmagnola degolado, ou então...
– Ettore, preciso saber qual doge de Veneza cortou essas cabeças.
– Isso nunca aconteceu – retrucou o italiano, na defensiva. – Já ouvi boatos, claro, mas quase não há indícios históricos que sugiram que algum doge tenha cometido...
– Por favor, Ettore, faça isso por mim – pediu Langdon. – Segundo os boatos, qual foi o doge?
Ettore pôs os óculos e olhou para o amigo.
– Bem, segundo os boatos, nossos amados cavalos foram transportados pelo doge mais inteligente e ardiloso de Veneza.
– Ardiloso?
– Sim, o doge que enganou a todos quanto à necessidade de partir em Cruzada. – Ele fitou Langdon com um ar de expectativa. – Ele pegou o dinheiro do Estado sob o pretexto de navegar até o Egito, mas em vez disso redirecionou as tropas e foi saquear Constantinopla.
Isso me cheira a traição, ponderou Langdon.
– E qual é o nome dele?
Ettore franziu o cenho.
– Robert, achei que você estudasse história mundial.
– E estudo, mas o mundo é grande e a história é longa. Uma ajudinha seria bem-vinda.
– Está bem, vou dar uma última pista.
Langdon teve vontade de protestar, mas sentiu que seria em vão.
– Esse doge que você procura viveu quase um século – disse Ettore. – Um milagre para a época. A superstição atribuiu tamanha longevidade ao corajoso ato de resgatar os ossos de Santa Luzia de Constantinopla e trazê-los de volta a Veneza. A santa perdeu os olhos para...
– Ele arrancou os ossos de quem já não podia ver! – exclamou Sienna, lançando um olhar para Langdon, que tinha acabado de pensar a mesma coisa.
O italiano encarou a moça com uma expressão estranha.
– De certa forma, acho que sim.
Ferris pareceu subitamente abatido, como se ainda não tivesse recuperado o fôlego depois da longa caminhada pela piazza e da subida até o museu.
– Devo acrescentar que esse doge amava Santa Luzia tão intensamente porque ele próprio era cego – continuou Ettore. – Aos 90 anos, saiu em direção a esta mesma praça, sem ver nada, e pregou a Cruzada.
– Já sei quem é – disse Langdon.
– Bom, me espantaria se não soubesse! – retrucou Ettore com um sorriso.
Como sua memória fotográfica se adequava melhor a imagens do que a ideias fora de contexto, a revelação ocorrera a Langdon sob a forma de uma obra de arte: uma famosa ilustração de Gustave Doré de um doge encarquilhado e cego, com os braços erguidos acima da cabeça, incitando uma multidão reunida a participar da Cruzada. O nome da ilustração de Doré surgiu claro em sua mente: Dandolo pregando a Cruzada.
– Enrico Dandolo – declarou. – O doge que viveu para sempre.
– Até que enfim! – falou Ettore. – Acho que a sua mente está ficando velha, meu caro.
– Assim como o restante de mim. Ele está enterrado aqui?
– Dandolo? – Ettore balançou a cabeça. – Não, aqui não.
– Então onde? – quis saber Sienna. – No Palácio dos Doges?
Ettore tirou os óculos e parou um tempo para pensar.
– Só um instantinho. São tantos doges, não me lembro bem...
Antes que ele terminasse a frase, um funcionário do museu chegou correndo com uma expressão assustada e o puxou de lado para sussurrar algo em seu ouvido. Ettore se retesou, parecendo alarmado, e foi imediatamente até uma balaustrada, lançando o olhar para o santuário lá embaixo. Logo em seguida, tornou a se virar para Langdon.
– Já volto – gritou, afastando-se às pressas sem dizer mais nada.
Confuso, Langdon foi até a balaustrada e olhou para baixo. O que está havendo ali?
A princípio não viu nada, apenas turistas zanzando pela igreja. Depois de algum tempo, contudo, reparou que muitos dos visitantes olhavam para o mesmo ponto, na direção da porta principal, por onde um intimidador grupo de soldados vestidos de preto acabara de entrar na basílica, se espalhando pelo nártex para bloquear todas as saídas.
Os soldados de preto. Langdon agarrou a balaustrada com força.
– Robert! – chamou Sienna atrás dele.
Langdon não conseguia desgrudar os olhos dos soldados. Como eles nos acharam?!
– Robert – chamou ela com mais urgência. – Tem alguma coisa errada! Preciso da sua ajuda!
Intrigado com seus gritos de socorro, Langdon se virou para trás.
Onde ela foi parar?
Em questão de instantes, seus olhos encontraram tanto ela quanto Ferris. Bem em frente aos Cavalos de São Marcos, Sienna estava ajoelhada no chão junto ao outro homem... que havia desabado em plena convulsão, apertando o próprio peito.
– Acho que ele está infartando! – gritou ela.
Langdon correu até onde o Dr. Ferris jazia esparramado no chão. Ele arquejava, sem conseguir recuperar o fôlego.
O que houve com ele?! Para Langdon, era como se tudo tivesse acontecido ao mesmo tempo. Com a chegada dos soldados e Ferris se debatendo no chão, ele se sentiu paralisado por um momento, sem saber para que lado correr.
Sienna se inclinou sobre Ferris, afrouxando-lhe a gravata e arrebentando os botões de sua camisa para ajudá-lo a respirar. Quando afastou o tecido, no entanto, recuou e deixou escapar um grito agudo de espanto, cobrindo a boca ao cambalear para trás, fitando a pele nua do peito do homem.
Langdon também viu.
O peito de Ferris estava todo manchado. Um hematoma preto-azulado, feio e redondo, do tamanho de uma laranja, cobria seu esterno. Ele parecia ter sido atingido por uma bala de canhão.
– É uma hemorragia interna – disse Sienna, erguendo os olhos para Langdon com uma expressão chocada. – Não foi à toa que passou o dia inteiro sem conseguir respirar direito.
Ferris girou a cabeça, claramente tentando dizer alguma coisa, mas tudo o que conseguiu produzir foi uma série de chiados indistintos. Alguns turistas haviam começado a se juntar ao redor deles, e Langdon pressentiu que a situação estava à beira do caos.
– Os soldados estão lá embaixo – disse Langdon, alertando Sienna. – Não sei como nos acharam.
Na mesma hora, a expressão de surpresa e temor no rosto de Sienna se transformou em raiva, e ela encarou Ferris com um olhar furioso.
– Você mentiu para nós o tempo todo, não foi?
Ferris tentou falar outra vez, mas mal conseguiu emitir som. Sienna vasculhou rapidamente seus bolsos e pegou sua carteira e seu celular, que guardou no próprio bolso antes de se levantar e lançar a ele um olhar acusador.
Nesse exato momento, uma italiana idosa abriu caminho entre a multidão, gritando zangada para Sienna:
– L’hai colpito al petto! – Ela levou com força o punho cerrado contra o próprio peito.
– No! – disparou Sienna. – Ressuscitação cardiorrespiratória o mataria! Olhe só para o peito dele! – Ela se virou para Langdon. – Robert, precisamos sair daqui. Agora.
Langdon olhou para Ferris, que, desesperado, encarou-o com uma expressão de súplica, como se quisesse comunicar alguma coisa.
– Não podemos deixá-lo aqui! – falou, à beira do pânico.
– Confie em mim – disse Sienna. – Isso não é infarto. Vamos embora daqui. Agora.
Conforme a multidão se aglomerava, turistas começaram a gritar por socorro. Sienna agarrou o braço de Langdon com uma força surpreendente e o arrastou para longe da confusão, em direção ao ar livre da sacada.
Por alguns instantes, a luz intensa o cegou. O sol estava bem diante dos seus olhos, já rente à lateral oeste da praça São Marcos, banhando a sacada inteira com uma luz dourada. Sienna foi puxando Langdon para a esquerda ao longo da sacada, serpenteando por entre os turistas que haviam saído para admirar a piazza e as réplicas dos Cavalos de São Marcos.
Enquanto corriam pela frente da basílica, uma estranha silhueta na laguna atraiu o olhar de Langdon: um iate ultramoderno, que mais parecia uma espécie de navio de guerra futurista.
Antes que pudesse pensar mais sobre o assunto, ele e Sienna já haviam dobrado à esquerda outra vez, virando a quina da basílica em direção à “Porta do Papel” – o anexo que ligava a igreja ao Palácio dos Doges –, batizada assim por ser onde os governantes costumavam afixar seus decretos para a população ler.
Não é um infarto? A imagem do peito preto-azulado de Ferris estava gravada na mente de Langdon, e ele percebeu que estava com medo de ouvir o diagnóstico de Sienna sobre a verdadeira doença que acometia o médico. Além disso, algo parecia ter mudado e ela não confiava mais em Ferris. Será que era isso que estava tentando me dizer mais cedo?
De repente, Sienna parou de correr e se debruçou sobre a elegante balaustrada para espiar um canto protegido da praça São Marcos mais abaixo.
– Que droga – reclamou. – É mais alto do que pensei.
Langdon se limitou a encará-la. Você estava pensando em pular?!
Sienna parecia assustada.
– Robert, eles não podem nos pegar.
Langdon tornou a se virar em direção à basílica e olhou para a pesada porta de ferro forjado e vidro logo atrás deles. Turistas entravam e saíam por ali. Se não estivesse enganado, aquela porta os levaria de volta ao interior do museu, junto aos fundos da igreja.
– Eles devem ter bloqueado todas as saídas – disse Sienna.
Langdon considerou as opções de fuga, percebendo que só lhes restava uma.
– Acho que vi uma coisa lá dentro que talvez resolva o nosso problema.
Mal conseguindo atinar com o que ele próprio estava pensando, Langdon conduziu Sienna de volta para dentro da basílica. Os dois seguiram rente às paredes do museu, tentando se manter incógnitos no meio dos turistas, muitos dos quais agora olhavam na diagonal ao longo do amplo espaço aberto da nave central, em direção à confusão armada em volta de Ferris. Langdon viu que a senhora italiana irritada instruía uma dupla de soldados vestidos de preto a sair para a sacada, revelando a rota de fuga dos dois.
Vamos ter que nos apressar, pensou, correndo os olhos pelas paredes e enfim encontrando o que procurava junto a um grande conjunto de tapeçarias expostas.
O artefato na parede era amarelo-vivo, com um adesivo vermelho de alerta: allarme antincendio.
– Um alarme de incêndio? É esse o seu plano? – indagou Sienna.
– Podemos sair com a multidão.
Langdon ergueu a mão e segurou a alavanca do alarme. Seja o que Deus quiser. Antes que pudesse pensar duas vezes, puxou o mecanismo para baixo com força e o viu estilhaçar com precisão o pequeno cilindro de vidro que havia lá dentro.
Mas as sirenes e o pandemônio que esperava não aconteceram.
Houve apenas silêncio.
Ele tornou a puxar.
Nada.
Sienna o encarava como se ele fosse louco.
– Robert, estamos dentro de uma catedral de pedra lotada de turistas! Você acha que esses alarmes de incêndio públicos ficam ativos quando um engraçadinho qualquer poderia...
– É claro! As leis anti-incêndio nos Estados Unidos...
– Nós estamos na Europa. Aqui não há tantos advogados. – Ela apontou por cima do ombro de Langdon. – E o nosso tempo também está se esgotando.
Langdon se virou em direção à porta de vidro pela qual haviam acabado de entrar e viu uma dupla de soldados chegarem às pressas da sacada e correrem seus olhos duros ao redor. Reconheceu um dos dois: era o mesmo agente musculoso que havia atirado neles quando fugiam na scooter, saindo do apartamento de Sienna.
Quase sem alternativas, Langdon e Sienna desapareceram por entre uma escada em caracol escondida e tornaram a descer até o térreo. Quando chegaram lá, pararam na penumbra do vão da escada. Do outro lado do santuário, vários soldados protegiam as saídas, seus olhos vasculhando com atenção todo o recinto.
– Se sairmos desta escada, eles vão nos ver – disse Langdon.
– A escada continua descendo – sussurrou Sienna, acenando em direção a um cordão de acesso vietato que bloqueava o restante dos degraus. Do outro lado do cordão, a escada descia em uma espiral ainda mais estreita rumo à mais completa escuridão.
Má ideia, pensou Langdon. Cripta subterrânea sem saída.
Sienna já havia passado por cima do cordão e descia tateando pelo túnel em espiral, desaparecendo no escuro.
– Está aberto – sussurrou lá de baixo.
Langdon não ficou surpreso. A cripta de São Marcos era diferente de muitos outros lugares daquele tipo, pois era também uma capela em atividade, na qual eram rezadas missas na presença dos ossos do santo.
– Acho que estou vendo uma luz natural! – tornou a sussurrar Sienna.
Como é possível? Langdon tentou recordar suas visitas anteriores àquele espaço subterrâneo sagrado e imaginou que Sienna estivesse se referindo à lux eterna – uma luz elétrica que permanecia sempre acesa sobre o túmulo de São Marcos, no centro da cripta. Ao ouvir passos se aproximarem acima de onde ele estava, porém, não teve tempo de pensar. Passou depressa por cima do cordão, tomando o cuidado de não tirá-lo do lugar, e levou a palma da mão à parede áspera de pedra, tateando enquanto sumia pela curva abaixo.
Sienna o aguardava ao pé da escada. Na escuridão atrás dela, mal dava para ver a cripta – uma câmara subterrânea cujo teto de pedra aflitivamente baixo era sustentado por colunas e arcos de tijolos milenares. Todo o peso da basílica repousa sobre essas colunas, pensou Langdon, já sentindo a claustrofobia.
– Bem que eu falei – sussurrou Sienna, o rosto bonito mal iluminado por uma fraca nesga de luz natural. Ela então apontou para várias pequenas traves em forma de arco situadas no alto nas paredes.
Poços de luz, percebeu Langdon, que havia se esquecido da existência deles. As aberturas eram destinadas a permitir a entrada de luz e ar fresco na cripta abafada e davam para dutos profundos que desciam desde a praça São Marcos mais acima. As janelas de vidro eram reforçadas por uma compacta trama de quinze círculos entrelaçados em ferro e, embora Langdon desconfiasse que pudessem ser abertas por dentro, elas ficavam na altura dos ombros e deviam ser apertadas. Mesmo que conseguissem passar por uma das janelas e entrar no duto, seria impossível sair do outro lado, pois estavam 3 metros abaixo do nível da praça e, lá em cima, ele estaria fechado por uma pesada grade de segurança.
Sob a fraca luz que entrava pelos poços, a cripta de São Marcos parecia uma floresta iluminada pelo luar – um denso bosque de colunas semelhantes a troncos de árvores que projetavam sombras compridas e marcadas no chão. Langdon dirigiu o olhar para o centro da cripta, onde uma luz solitária ardia no túmulo de São Marcos. O santo que dava nome à igreja repousava dentro de um sarcófago de pedra atrás de um altar, diante do qual havia algumas fileiras de bancos para os poucos fiéis de sorte convidados a fazer suas preces ali, no coração da Cristandade veneziana.
De repente, uma luzinha se acendeu ao seu lado. Quando Langdon se virou, viu Sienna segurando a tela iluminada do celular de Ferris.
Ele ficou pasmo.
– Ferris não disse que a bateria tinha acabado?
– Ele mentiu – respondeu Sienna, sem parar de digitar. – Sobre várias coisas, aliás. – Olhou de cara feia para o telefone e balançou a cabeça. – Aqui não tem sinal. Achei que talvez pudesse descobrir onde está a tumba de Enrico Dandolo. – Ela foi depressa para junto do poço de luz e ergueu o aparelho até a altura do vidro, na esperança de conseguir sinal.
Enrico Dandolo. Langdon mal tivera tempo de pensar no doge antes de ser obrigado a fugir da igreja. Por mais que estivessem em apuros, aquela ida a São Marcos de fato havia cumprido sua função: revelar a identidade do traiçoeiro doge que cortara cabeças de cavalos... e arrancara os ossos de quem já não podia ver.
Infelizmente, ele não fazia a menor ideia de onde ficava o túmulo de Dandolo e, pelo jeito, Ettore Vio tampouco. Ele conhece esta basílica como a palma da mão... e o Palácio dos Doges também, sem dúvida. O fato de Ettore não ter sabido dizer de imediato o local do túmulo de Dandolo sugeria que ele não devia ficar nem perto de São Marcos ou do Palácio dos Doges.
Mas onde, então?
Langdon olhou para Sienna, agora em pé sobre um dos bancos de igreja que havia puxado até debaixo de um dos poços de luz. Ela destrancou a janela, abriu-a e segurou o celular de Ferris do lado de fora, no próprio duto.
Quando os barulhos externos da praça São Marcos desceram até a cripta, Langdon de repente se perguntou se afinal não haveria um jeito de sair dali. Atrás dos bancos de igreja havia uma fileira de cadeiras dobráveis, e ele achou que talvez conseguisse levantar alguma delas até o fundo do poço de luz. Quem sabe as grades lá em cima também não abrem de dentro para fora?
Atravessou às pressas a escuridão em direção a Sienna. Dera apenas alguns passos quando uma forte pancada na testa o jogou para trás. Ao cair de joelhos no chão, pensou por um instante que houvesse sido atacado. Mas logo percebeu que não fora isso. Amaldiçoando a si mesmo por não ter previsto que seu 1,83 metro excedia em muito a altura de uma cripta construída para a estatura humana média de mais de mil anos antes.
Ainda ajoelhado no chão duro de pedra, esperando parar de ver estrelas, pegou-se lendo uma inscrição no piso.
Sanctus Marcus.
Encarou-a por vários segundos. Não foi o nome de São Marcos que chamou sua atenção, mas a língua em que estava escrito.
Latim.
Após passar um dia inteiro imerso no italiano moderno, Langdon ficou levemente desorientado ao ver o nome do santo escrito em latim, um rápido lembrete de que aquela língua morta era a lingua franca do Império Romano na época da morte de São Marcos.
Foi então que um segundo pensamento lhe ocorreu.
No século XIII – época de Enrico Dandolo e da Quarta Cruzada –, o idioma do poder ainda era, em grande parte, o latim. Um doge de Veneza que houvesse trazido grande glória para o Império Romano com a reconquista de Constantinopla jamais teria sido enterrado com o nome de Enrico Dandolo... Em vez disso, o nome usado teria sido a versão em latim.
Henricus Dandolo.
Com isso, uma imagem esquecida havia tempos lampejou em sua mente como um raio. Embora houvesse tido a revelação ajoelhado dentro de uma igreja, ele estava certo de que não se tratava de uma inspiração divina. O mais provável era que uma simples “dica” visual lhe tivesse permitido fazer uma súbita conexão. A imagem que saltou de repente das profundezas de sua memória foi a do nome latino de Dandolo... gravado em uma placa de mármore gasto incrustada em um rebuscado piso de lajotas.
Henricus Dandolo.
Quando visualizou a lápide simples que indicava o túmulo do doge, Langdon ficou quase sem ar. Eu já estive lá. Como o poema dizia, Enrico Dandolo estava mesmo enterrado dentro de um museu dourado – um mouseion de santo saber –, só que não era a Basílica de São Marcos.
Assimilando a realidade, Langdon foi se levantando bem devagar.
– Não estou conseguindo sinal – falou Sienna, descendo de junto do poço de luz e andando em sua direção.
– Não precisa mais – ele conseguiu dizer. – O mouseion dourado de santo saber... – Ele respirou fundo. – Eu... me enganei.
Sienna ficou pálida.
– Não me diga que estamos no museu errado.
– Sienna – sussurrou Langdon, sentindo um mal-estar. – Nós estamos no país errado.
Lá fora, na praça São Marcos, a cigana que vendia máscaras venezianas estava encostada na parede externa da basílica, tirando um intervalo de descanso. Como sempre, tinha ido ocupar seu lugar favorito: um pequeno nicho entre duas grades metálicas na calçada, ponto ideal para largar suas pesadas mercadorias e admirar o sol poente.
Ao longo dos anos, já havia testemunhado muitas coisas naquela praça, mas, dessa vez, o acontecimento bizarro que chamou sua atenção não estava acontecendo na praça, mas debaixo dela. Espantada com um barulho a seus pés, a cigana espiou por entre uma das grades para dentro de um poço estreito, que devia ter uns 3 metros de profundidade. A janela no fundo dele estava aberta e uma cadeira dobrável fora colocada no chão do poço, arranhando o piso.
Para sua surpresa, depois da cadeira surgiu uma mulher bonita, de rabo de cavalo louro, que parecia ter sido alçada lá de baixo e agora escalava a janela para atravessar a pequena abertura.
A mulher loura se colocou de pé e olhou para cima na mesma hora, obviamente espantada ao ver a cigana olhando para ela lá do alto, por trás da grade. Levou um dedo aos lábios e abriu um sorriso tenso. Em seguida, desdobrou a cadeira e subiu nela, erguendo as mãos em direção à grade.
Você não tem altura para isso, pensou a cigana. Aliás, o que está fazendo?
A mulher loura desceu da cadeira e falou com alguém lá dentro. Embora mal houvesse espaço para ficar em pé junto à cadeira no poço estreito, deu um passo para o lado quando uma segunda pessoa – um homem alto, de cabelos escuros, vestindo um terno chique – se içava do subsolo da basílica para se enfiar no duto estreito.
Ele também olhou para cima, cruzando olhares com a cigana através da grade de ferro. Então, com um desajeitado balé de pernas e braços, trocou de posição com a loura e subiu na cadeira bamba. Como era mais alto, quando ergueu a mão conseguiu soltar a barra de segurança que prendia a grade por baixo. Na ponta dos pés, levou as mãos à grade e fez força para cima. A grade se ergueu uns dois centímetros antes que ele tornasse a soltá-la.
– Può darci una mano? – gritou lá de baixo a mulher loura para a cigana.
Dar uma mãozinha? A cigana hesitou, sem querer se meter naquilo. O que vocês estão fazendo?
A loura sacou do bolso uma carteira masculina e tirou dela uma nota de 100 euros com a qual acenou, oferecendo o dinheiro. Negociadora experiente, ela fez que não com a cabeça e ergueu dois dedos. A loura pescou uma segunda nota.
Sem acreditar em sua sorte, a cigana deu de ombros, concordando de má vontade, e tentou aparentar indifereça enquanto se agachava e agarrava as barras da grade, encarando o homem para que ambos pudessem sincronizar seus esforços.
Quando ele tornou a empurrar, a cigana puxou com seus braços fortalecidos por muitos anos carregando mercadorias e a grade se ergueu... até a metade. Quando ela achou que houvessem conseguido, ouviu um estrondo de alguma coisa caindo lá embaixo e o homem desapareceu, despencando de volta no poço quando seu peso fez a cadeira ceder.
Na mesma hora, a grade de ferro se tornou mais pesada e ela achou que fosse ter que largá-la. Mas a ideia de embolsar 200 euros lhe deu forças e ela conseguiu erguê-la outra vez, apoiando-a na lateral da basílica.
Ofegante, a cigana espiou para dentro do poço em direção ao emaranhado de corpos e pedaços de cadeira. Enquanto o homem se levantava e passava as mãos nas roupas para limpá-las, ela estendeu a mão para baixo, pedindo o dinheiro.
A mulher do rabo de cavalo assentiu, agradecida, e ergueu as duas notas. A cigana esticou o braço, mas o dinheiro estava longe demais.
Dê o dinheiro para o homem.
De repente, houve uma confusão dentro do duto, um som de vozes zangadas vindo do interior da basílica. Tanto o homem quanto a mulher se viraram, amedrontados, e se afastaram da janela.
Então tudo virou um caos.
O homem de cabelos escuros assumiu o comando da situação, agachando-se e ordenando à mulher com uma voz firme que pusesse o pé sobre os seus dedos, que acabara de entrelaçar para lhe oferecer apoio. A mulher obecedeu e ele a alçou para cima. Ela se espichou pela lateral do duto, prendendo as notas nos dentes para liberar as mãos enquanto tentava alcançar a borda. O homem a empurrou mais alto, mais alto... suspendendo-a até ela conseguir agarrar as bordas com os dedos.
Com um esforço imenso, ela içou o próprio corpo para fora, como se saísse de uma piscina. Enfiou o dinheiro nas mãos da cigana, virou-se para trás na mesma hora e se ajoelhou à beira do poço, estendendo a mão para o homem lá dentro.
Tarde demais.
Braços fortes vestidos com mangas pretas compridas já se esticavam para dentro do poço, como tentáculos de um monstro faminto a se agitar, agarrando as pernas do homem e puxando-o de volta em direção à janela.
– Corra, Sienna! – gritou o homem que se debatia. – Agora!
A cigana viu os dois trocarem olhares de arrependimento e pesar... e então tudo terminou.
O homem foi puxado com violência janela abaixo, para dentro da basílica.
A mulher loura ficou observando a cena, chocada, seus olhos se enchendo de lágrimas.
– Eu sinto muito, Robert, de verdade – sussurrou ela. Então, depois de uma pausa, acrescentou: – Por tudo.
Logo em seguida, saiu correndo em meio à multidão, com o rabo de cavalo balançando conforme avançava pelo beco estreito da Merceria dell’Orologio... desaparecendo no coração de Veneza.
Um barulho de água chapinhando trouxe Robert Langdon suavemente de volta à consciência. O cheiro forte e estéril de antisséptico misturado com maresia invadiu suas narinas e ele sentiu o mundo oscilar debaixo de si.
Onde estou?
Parecia que apenas poucos segundos antes estivera numa luta feroz contra mãos poderosas que tentavam arrastá-lo para fora do poço de luz, de volta para a cripta. Agora, estranhamente, não conseguia mais sentir o frio piso de pedra da Basílica de São Marcos sob seu corpo. Em vez disso, sentia um colchão macio.
Langdon abriu os olhos e observou o ambiente ao seu redor – um quarto pequeno, de aspecto higiênico, com uma única escotilha. O balançar continuava.
Estou dentro de um barco?
Sua última lembrança era a de ter sido imobilizado no chão da cripta por um dos soldados vestidos de preto, que dizia com irritação:
– Pare de fugir!
Langdon gritava feito um louco, pedindo ajuda ao mesmo tempo que os soldados tentavam abafar sua voz.
– Precisamos tirá-lo daqui – dissera um dos soldados para o outro.
O colega então assentiu, relutante.
– Vá em frente.
Langdon sentiu dedos fortes tatearem as artérias e veias de seu pescoço. Então, depois de localizarem um ponto preciso na carótida, os dedos começaram a aplicar uma pressão firme e concentrada. Em segundos, a visão de Langdon começou a embaçar e ele sentiu que perdia a consciência, pois o fluxo de oxigênio para seu cérebro havia sido interrompido.
Eles estão me matando, pensou. Bem ao lado da tumba de São Marcos.
A escuridão se abateu, mas lhe pareceu incompleta... mais como um borrão cinza pontuado por formas e sons indistintos.
Langdon não sabia ao certo quanto tempo havia passado desde então, mas o mundo já voltava a entrar em foco. Até onde conseguia entender, estava em algum tipo de enfermaria, a bordo de uma embarcação. O ambiente estéril à sua volta e o cheio de álcool lhe causaram uma estranha sensação de déjà-vu – como se ele tivesse dado uma volta completa e acordado exatamente como na noite anterior: em uma cama de hospital desconhecida, com lembranças muito vagas.
Na mesma hora pensou em Sienna e se perguntou se ela estaria segura. Ainda podia ver seus suaves olhos castanhos fitando-o do alto do poço, cheios de remorso e medo. Rezou para que ela tivesse conseguido fugir e escapar de Veneza.
Nós estamos no país errado, ele dissera após se dar conta, para seu próprio espanto, da verdadeira localização da tumba de Enrico Dandolo. No fim das contas, o misterioso mouseion de santo saber do poema não ficava em Veneza, mas a meio mundo de distância. Exatamente como o texto de Dante alertara, o significado daquele enigmático poema estava escondido “sob o véu de estranhos versos”.
Pretendia explicar tudo a Sienna assim que conseguissem fugir da cripta, mas não tivera essa oportunidade.
Ela fugiu sabendo apenas que eu fracassei.
Sentiu o estômago embrulhar.
A peste continua lá... a meio mundo de distância.
Do lado de fora da enfermaria, no corredor, ouviu pesados passos de botas. Quando se virou, viu um homem de preto entrar em sua cabine. Era o mesmo soldado musculoso que o havia imobilizado no chão da cripta. Seus olhos eram frios como gelo. O instinto de Langdon foi se encolher quando ele se aproximou, mas não havia para onde correr. Essa gente pode fazer o que quiser comigo.
– Onde estou? – perguntou ele, com o tom mais desafiador que foi capaz.
– A bordo de um iate ancorado perto de Veneza.
Langdon olhou para o medalhão verde no uniforme do homem – um globo terrestre circundado pelas letras ECDC. Nunca tinha visto aquele símbolo nem aquela sigla.
– Precisamos que o senhor nos dê algumas informações – disse o soldado –, e não temos muito tempo.
– Por que eu faria isso? – perguntou Langdon. – Vocês quase me mataram.
– Não chegamos nem perto disso. Só usamos uma técnica de estrangulamento do judô chamada shime waza. Não tínhamos a menor intenção de machucá-lo.
– Vocês atiraram em mim hoje de manhã! – declarou Langdon, lembrando-se com clareza do estampido produzido pela bala no para-choque da scooter que Sienna pilotava em alta velocidade. – Foi por pouco que a bala não acertou as minhas costas!
O homem estreitou os olhos.
– Se eu quisesse acertar as suas costas, teria acertado. Dei um único tiro para tentar furar o pneu traseiro da scooter e impedi-los de fugir. Tinha recebido ordens para estabelecer contato com o senhor e descobrir por que estava agindo de forma tão imprevisível.
Antes que Langdon conseguisse processar por completo as palavras dele, dois outros soldados entraram e avançaram em direção à sua cama.
Entre eles, vinha uma mulher.
Uma aparição.
Etérea, como se pertencesse a outro mundo.
Langdon a reconheceu de imediato: era a mesma de suas alucinações. A mulher à sua frente era linda, tinha longos cabelos cor de prata e usava um amuleto de lápis-lazúli. Como ela antes se encontrava em meio a uma horripilante paisagem de corpos agonizantes, Langdon precisou de alguns segundos para acreditar que estivesse de fato ali na sua frente, em carne e osso.
– Professor Langdon, que alívio... o senhor está bem – disse a mulher, aproximando-se de sua cama com um sorriso cansado. Sentou-se e tomou seu pulso. – Fui informada de que está com amnésia. Lembra-se de mim?
Ele passou alguns instantes estudando-a.
– Eu tive... visões com a senhora, mas não me lembro de termos nos conhecido.
A mulher se inclinou mais para perto dele com uma expressão de empatia.
– Meu nome é Elizabeth Sinskey. Sou diretora da Organização Mundial da Saúde e recrutei o senhor para me ajudar a encontrar...
– Uma peste – ele conseguiu completar. – Criada por Bertrand Zobrist.
Elizabeth Sinskey assentiu, parecendo mais animada.
– Está se lembrando?
– Não. Acordei em um hospital com um estranho projetor e visões da senhora me dizendo para buscar e encontrar algo. Era isso que eu estava tentando fazer quando esses homens tentaram me matar. – Langdon acenou em direção aos soldados.
O mais musculoso se eriçou, visivelmente prestes a responder, mas Elizabeth Sinskey o calou com um gesto.
– Professor – disse ela com voz suave. – Não tenho dúvidas de que o senhor está muito confuso. Como fui eu quem o envolvi nessa história toda, estou horrorizada com o que aconteceu e aliviada em ver que o senhor está bem.
– Bem? – retrucou Langdon. – Estou preso em um barco!
E a senhora também!, pensou ele.
A mulher de cabelos prateados meneou a cabeça, compreensiva.
– Infelizmente, por conta de sua amnésia, muitos aspectos do que vou lhe contar talvez o deixem desorientado. Mas nosso tempo é curto e muitas pessoas precisam da sua ajuda.
A doutora hesitou, como se não soubesse bem como prosseguir.
– Em primeiro lugar – começou ela –, preciso que o senhor entenda que o agente Brüder e a equipe dele nunca tiveram a intenção de lhe fazer mal. Eles tinham ordens claras para restabelecer contato com o senhor usando quaisquer meios que fossem necessários.
– Restabelecer contato? Eu não...
– Por favor, professor, apenas ouça. Prometo que tudo vai se esclarecer.
Langdon tornou a se recostar na cama da enfermaria. Sua mente era um verdadeiro turbilhão. A Dra. Sinskey prosseguiu:
– O agente Brüder e seus homens são uma equipe de SMI: Suporte ao Monitoramento e Intervenção. Eles trabalham sob as ordens do Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças, o ECDC.
Langdon olhou de relance para o emblema no uniforme dos soldados: ECDC. Prevenção e Controle de Doenças?
– A especialidade desse grupo é identificar e conter ameaças envolvendo doenças contagiosas – continuou ela. – São basicamente uma equipe da SWAT encarregada de conter graves riscos de saúde em larga escala. Como o senhor era a minha principal esperança de localizar o agente infeccioso desenvolvido por Zobrist, depois do seu sumiço incumbi a equipe de SMI de localizá-lo... Fui eu quem os chamei a Florença para me dar suporte.
Langdon não conseguia acreditar.
– Esses soldados trabalham para a senhora?
Ela assentiu.
– Emprestados pelo ECDC. Ontem à noite, quando o senhor sumiu e não fez mais contato, achamos que alguma coisa houvesse acontecido. Só hoje de manhã cedo, quando nossa equipe de suporte de tecnologia viu que o senhor tinha checado sua conta de e-mail de Harvard, tivemos certeza de que estava vivo. A essa altura, nossa única explicação para o seu comportamento estranho era que o senhor tivesse mudado de lado... possivelmente depois de receber uma grande soma em dinheiro para localizar o agente infeccioso para alguma outra pessoa.
Langdon balançou a cabeça.
– Que absurdo!
– Eu sei, parecia mesmo improvável, mas era a única explicação lógica... e, com tanta coisa em jogo, não podíamos correr nenhum risco. É claro que nunca nos ocorreu que o senhor pudesse estar com amnésia. Quando nossos técnicos viram sua conta de e-mail ficar ativa de uma hora para outra, rastreamos o endereço IP do computador até o apartamento de Florença e acionamos a equipe de intervenção. Só que o senhor fugiu de scooter com uma mulher, o que aumentou ainda mais nossas suspeitas de que estava trabalhando para outra pessoa.
– Nós passamos bem na sua frente! – exclamou Langdon, quase engasgando. – Eu vi a senhora no banco de trás de uma van preta, cercada de soldados. Pensei que estivesse presa. Parecia estar delirando, como se tivesse sido drogada.
– O senhor nos viu? – A Dra. Sinskey pareceu espantada. – Pode parecer estranho, mas era isso mesmo... eu tinha sido medicada. – Ela fez uma pausa. – Mas porque pedi.
Langdon não entendia mais nada. Ela pediu para ser drogada?
– Talvez o senhor não se lembre, mas, quando nosso C-130 aterrissou em Florença, a pressão atmosférica mudou e eu tive uma crise de vertigem posicional paroxística... um transtorno do ouvido interno altamente debilitante que já tive em outras ocasiões. É temporário e inofensivo, mas causa uma tontura e uma náusea tão intensas que você mal consegue manter a cabeça em pé. Em circunstâncias normais, eu me deitaria e ficaria esperando o forte enjoo passar, mas estávamos no meio dessa situação com Zobrist, por isso receitei a mim mesma injeções de metoclopramida de hora em hora para não vomitar. Esse remédio tem um efeito colateral severo: forte sonolência. Mas pelo menos pude comandar a operação por telefone, do banco de trás da van. A equipe de SMI queria me levar para um hospital, mas não deixei que fizessem isso antes de termos cumprido nossa missão de reencontrar o senhor. Felizmente, a vertigem acabou passando durante o voo para Veneza.
Langdon se deixou afundar na cama, atônito. Passei o dia inteiro fugindo da Organização Mundial da Saúde – justamente as pessoas que vieram me pedir ajuda.
– Agora, professor, precisamos nos concentrar – declarou Elizabeth Sinskey com um tom de voz urgente. – A peste de Zobrist... o senhor faz ideia de onde ela esteja? – Ela o fitou com uma expressão de intensa expectativa. – Temos pouquíssimo tempo.
Está muito longe daqui, Langdon quis responder, mas algo o deteve. Ergueu os olhos para Brüder, um homem que havia atirado contra ele naquela mesma manhã e quase o estrangulara um pouco mais cedo. Tudo havia mudado tão depressa que Langdon não sabia mais em quem deveria confiar.
A Dra. Sinskey se inclinou para mais perto, a expressão em seu rosto ainda mais intensa.
– Desconfiamos que o agente infeccioso esteja aqui em Veneza. É isso mesmo? É só o senhor dizer o local que despacho uma equipe para terra firme.
Langdon hesitou.
– Professor! – vociferou Brüder, perdendo a paciência. – É óbvio que o senhor sabe alguma coisa... Diga-nos onde está o agente! Não entende o que está a ponto de acontecer?
– Agente Brüder! – A Dra. Sinskey virou-se para o soldado, furiosa. – Já chega – ordenou, voltando-se novamente para Langdon antes de prosseguir em voz baixa: – Considerando tudo pelo que o senhor passou, é compreensível que esteja desorientado e sem saber em quem confiar. – Ela fez uma pausa e olhou bem no fundo dos seus olhos. – Mas o nosso tempo é curto, e estou lhe pedindo que confie em mim.
– Langdon consegue ficar em pé? – indagou uma terceira voz.
Um homem baixinho e de aparência bem cuidada, com a pele queimada de sol, apareceu à porta. Embora avaliasse Langdon com uma calma contida, o professor notou certa hostilidade em seus olhos.
A doutora fez um gesto para Langdon se levantar.
– Professor, este aqui é um homem com quem eu preferiria não colaborar, mas a situação é tão grave que não temos escolha.
Com movimentos hesitantes, Langdon se sentou, tirou as pernas de cima da cama e se colocou de pé. Precisou de alguns segundos para recuperar o equilíbrio.
– Venha comigo – disse o homem, andando em direção à porta. – Há algo que o senhor precisa ver.
Langdon não se mexeu.
– Quem é você?
O homem parou e uniu os dedos em um triângulo.
– Nomes são irrelevantes. Pode me chamar de diretor. Eu administro uma organização que, lamento dizer, cometeu o erro de ajudar Bertrand Zobrist a alcançar seus objetivos. Agora estou tentando consertar esse erro antes que seja tarde demais.
– O que quer me mostrar? – perguntou Langdon.
O homem o encarou com um olhar firme.
– Algo que vai acabar com suas dúvidas sobre estarmos todos do mesmo lado.
Langdon seguiu o homem bronzeado por um verdadeiro labirinto de corredores claustrofóbicos na coberta do iate, com a Dra. Sinskey e os soldados do ECDC atrás de si, formando uma fila. Quando se aproximaram de uma escada, Langdon torceu para que fossem subir em direção à luz do dia, mas, em vez disso, eles desceram ainda mais fundo na embarcação.
Embrenhados nas entranhas do iate, foram conduzidos por seu guia por entre uma série de saletas de vidro isoladas – algumas com divisórias transparentes; outras, opacas. Dentro de cada um desses compartimentos à prova de som, diversos funcionários trabalhavam, digitando em computadores ou falando ao telefone. Os que erguiam os olhos e reparavam no grupo que passava pareciam seriamente alarmados ao ver desconhecidos naquela parte da embarcação. O homem bronzeado meneava a cabeça para tranquilizá-los e seguia em frente.
Que lugar é este?, perguntou-se Langdon conforme eles avançavam por mais uma série de compactas áreas de trabalho.
Por fim, seu guia chegou a uma ampla sala de reuniões na qual todos entraram. Depois de se sentarem, o homem apertou um botão que fez as divisórias de vidro chiarem de repente e se tornarem opacas, isolando-os lá dentro. Langdon tomou um susto: nunca tinha visto nada parecido.
– Onde estamos? – perguntou enfim.
– Este é o meu iate... o Mendacium.
– Mendacium? – repetiu Langdon. – Como... a palavra latina para Pseudologos, a divindade grega da dissimulação?
O homem pareceu impressionado.
– Pouca gente sabe isso.
Um nome nada nobre, pensou Langdon. Mendacium era a divindade traiçoeira que comandava todos os pseudologoi – espíritos especializados em farsas, mentiras e engodos.
O homem pegou um pequeno cartão de memória vermelho e o inseriu em um painel de aparatos eletrônicos no fundo da sala. Um imenso monitor de LCD se acendeu e as luzes do teto ficaram mais fracas.
No silêncio carregado de expectativa, Langdon ouviu um suave barulho de água chapinhando. A princípio, pensou que o som estivesse vindo de fora da embarcação, mas então percebeu que ele saía dos alto-falantes do monitor. Aos poucos, uma imagem se materializou: a parede molhada de uma caverna, iluminada por uma luz avermelhada bruxuleante.
– Bertrand Zobrist gravou esse vídeo – explicou o anfitrião. – E me pediu que o divulgasse para o mundo amanhã.
Incrédulo e sem palavras, Langdon começou a assistir ao bizarro vídeo amador: um espaço cavernoso com uma lagoa de águas ondulantes, na qual a imagem mergulhava, avançando sob a superfície até um piso de lajotas coberto de lodo no qual havia uma placa chumbada, onde se lia:
NESTE LOCAL, NESTA DATA,
O MUNDO FOI TRANSFORMADO PARA SEMPRE.
A mensagem era assinda por bertrand zobrist.
E a data era o dia seguinte.
Meu Deus! Na sala escura, Langdon se virou para a Dra. Sinskey. A diretora da OMS, no entanto, fitava o chão com uma expressão vazia. Parecia já ter assistido ao vídeo, e era óbvio que não conseguiria fazer isso de novo.
Quando a imagem se deslocou para a esquerda, Langdon ficou pasmo ao ver, flutuando debaixo d’água, uma bolha ondulante de plástico transparente que continha um líquido gelatinoso marrom-amarelado. A delicada esfera parecia estar presa ao chão por um cordão que a impedia de vir à tona.
Que diabo é isso?! Langdon examinou a bolsa inflada. Seu conteúdo viscoso parecia rodopiar lentamente... quase como se estivesse fervendo.
Quando enfim compreendeu o que via, ficou sem ar. A peste de Zobrist.
– Parem o vídeo – disse a doutora no escuro.
A imagem congelou, mostrando um saco plástico amarrado ao chão, flutuando debaixo d’água – uma nuvem lacrada de líquido suspensa no espaço.
– Imagino que o senhor já tenha adivinhado o que é esse objeto – prosseguiu Elizabeth Sinskey. – A questão é: por quanto tempo ele vai permanecer lacrado? – Andando até o monitor, ela apontou para uma marca quase imperceptível no saco transparente. – Infelizmente, isto aqui nos informa de que material o saco é feito. Consegue ler?
Com a pulsação acelerada, Langdon estreitou os olhos para ler as letras que pareciam indicar a marca de um fabricante: Solublon©.
– O maior fabricante mundial de plástico hidrossolúvel – informou a doutora.
Langdon sentiu o estômago embrulhar.
– A senhora quer dizer que esse saco está... se dissolvendo?
A Dra. Sinskey assentiu com um ar soturno.
– Entramos em contato com o fabricante e fomos informados de que, para nosso azar, eles produzem esse plástico em dezenas de espessuras diferentes, que podem se dissolver em intervalos que variam entre dez minutos e dez semanas, dependendo do uso pretendido. A velocidade de degradação varia ligeiramente conforme a qualidade e a temperatura da água, mas não temos dúvida de que Zobrist estudou todos esses fatores com muito cuidado. – Ela fez uma pausa. – Achamos que esse saco vai se dissolver...
– Amanhã – interrompeu o diretor. – Foi essa a data que Zobrist marcou no meu calendário. A mesma data da placa.
Sentado no escuro, Langdon não sabia o que dizer.
– Mostre o restante a ele – falou a Dra. Sinskey.
No monitor, a imagem mudou, deslocando-se por sobre as águas iluminadas e a escuridão cavernosa. Langdon teve certeza de que aquele era o lugar ao qual o poema se referia. A lagoa que não reflete as estrelas.
A cena evocava imagens das visões infernais de Dante... as águas do rio Cócito a correr pelas grutas do mundo inferior.
Onde quer que estivesse situada aquela lagoa, suas águas eram delimitadas por paredes íngremes e cobertas de limo que, na opinião de Langdon, só podiam ser uma construção humana. Ele também notou que a câmera revelava apenas uma parte bem pequena de uma enorme área interna, e as fracas sombras verticais refletidas nas paredes sustentavam seu palpite. Essas sombras eram largas, tubulares e espaçadas a distâncias regulares.
Colunas, concluiu Langdon.
O teto da tal caverna era sustentado por colunas.
Aquela lagoa não ficava dentro de uma gruta, mas no interior de um enorme recinto.
Descei às profundezas do palácio afundado...
Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, sua atenção foi atraída pela aparição de outra sombra na parede: uma silhueta humanoide com nariz comprido em formato de bico.
Ai, meu Deus...
A sombra então começou a falar, suas palavras abafadas, meros sussurros se propagando por sobre as águas em um ritmo poético, sinistro.
Eu sou a sua salvação. Eu sou a Sombra.
Langdon passou vários minutos assistindo ao filme mais aterrorizante que já vira. Composto pelo que eram desvarios de um gênio enlouquecido, o solilóquio de Bertrand Zobrist – declamado pela sombra do médico da peste – era repleto de referências ao Inferno de Dante e transmitia uma mensagem bem clara: o aumento da população humana estava fora de controle, comprometendo a própria sobrevivência da humanidade.
Na tela, a voz entoou:
Não fazer nada é o mesmo que acolher o Inferno de Dante... amontoados e famintos, chafurdando em Pecado. Por isso tive coragem de tomar uma atitude. Alguns se encolherão de horror, mas toda salvação tem seu preço. Um dia o mundo irá entender a beleza do meu sacrifício.
Langdon se encolheu quando Zobrist em pessoa surgiu na tela, sem aviso, vestido como o médico da peste e arrancando a máscara em seguida. O professor encarou aquele rosto magro e seus olhos verdes insanos e percebeu que enfim estava diante do rosto do homem no centro daquela crise. Zobrist começou a declarar seu amor por alguém que chamava de sua inspiração.
Eu deixei o futuro em suas delicadas mãos. Meu trabalho aqui embaixo acabou. Chegou minha hora de voltar à superfície... e vislumbrar novamente as estrelas.
Ao final do vídeo, Langdon reconheceu as derradeiras palavras de Zobrist: eram uma cópia quase exata do último verso do Inferno de Dante.
Na penumbra da sala de reunião, entendeu que todos os momentos de medo que experimentara naquele dia haviam acabado de se cristalizar em uma única e aterrorizante realidade.
Bertrand Zobrist agora tinha um rosto... e uma voz.
As luzes da sala se acenderam e Langdon viu que todos os presentes tinham os olhos fixos nele, cheios de expectativa.
Elizabeth Sinskey se levantou, com uma expressão petrificada no rosto, e alisou com nervosismo o amuleto em seu pescoço.
– Professor, uma coisa é certa: nosso tempo é muito curto. A única boa notícia até agora é que não tivemos nenhuma ocorrência de detecção de patógeno ou relatos de doença, então estamos partindo do princípio de que o saco de Solublon continua intacto. Mas não sabemos onde procurar. Nosso objetivo é neutralizar a ameaça, isolando o saco antes que ele se rompa. O único jeito de fazer isso, claro, é identificar imediatamente o local que aparece no vídeo.
O agente Brüder então se levantou e encarou Langdon com firmeza.
– Supomos que o senhor tenha vindo a Veneza por ter descoberto que foi aqui que Zobrist escondeu sua peste.
Langdon correu os olhos pelo grupo ao seu redor, todos aqueles rostos contraídos de medo, torcendo por um milagre, e desejou ter notícias melhores para lhes dar.
– Estamos no país errado – anunciou. – O que vocês buscam está a mais de 1.500 quilômetros daqui.
Langdon sentiu suas entranhas estremecerem por causa do forte ronco dos motores do Mendacium, que acelerava fazendo uma curva bem aberta e voltando em direção ao aeroporto de Veneza. A bordo, um pandemônio havia se instaurado. O diretor saíra correndo da sala, gritando ordens para a tripulação. Elizabeth Sinskey pegara o celular e telefonara para os pilotos do C-130 da OMS, ordenando-lhes que estivessem preparados para decolar do aeroporto de Veneza o mais rápido possível. O agente Brüder, por sua vez, saltara para a frente de um laptop para tentar coordenar algum tipo de equipe avançada internacional em seu destino.
A meio mundo daqui.
O diretor então voltou para a sala de reunião e se dirigiu a Brüder com um tom de urgência.
– Alguma novidade das autoridades venezianas?
Brüder fez que não.
– Nada. Eles continuam procurando, mas Sienna Brooks desapareceu.
Langdon se sobressaltou. Eles estão procurando Sienna?
Elizabeth Sinskey encerrou a ligação e também entrou na conversa.
– Nenhum sinal dela?
O diretor balançou a cabeça.
– Se a senhora concordar, creio que a OMS deveria autorizar o uso de força para detê-la, caso seja preciso.
Langdon se levantou com um pulo.
– Por quê?! Sienna Brooks não tem nada a ver com essa história!
Os olhos escuros do diretor se fixaram nele.
– Professor, preciso lhe contar algumas coisas sobre a Srta. Brooks.
Abrindo caminho em meio à multidão de turistas na Ponte do Rialto, Sienna voltou a correr, avançando depressa no sentido oeste pelo passeio que margeava o canal, a Fondamenta Vin Castello.
Eles pegaram Robert.
Ainda podia ver os olhos desesperados do professor erguidos para ela enquanto os soldados o arrastavam pelo poço de luz abaixo, de volta para a cripta. Estava certa de que seus captores dariam um jeito de convencê-lo a revelar tudo o que havia descoberto.
Nós estamos no país errado.
Mais trágico ainda, porém, era saber que esses mesmos captores logo explicariam a Langdon toda a situação.
Eu sinto tanto, Robert.
Por tudo.
Por favor, entenda que não tive escolha.
Por mais estranho que parecesse, Sienna já estava com saudades do professor. Ali, em meio às hordas de Veneza, sentiu uma conhecida solidão se instalar em seu peito.
O sentimento não tinha nada de novo.
Sienna Brooks se sentia sozinha desde criança.
Por ter crescido com uma inteligência excepcional, havia passado toda a juventude se sentindo uma estranha em uma terra desconhecida... uma alienígena presa em um mundo solitário. Tentara fazer amigos, mas as pessoas da sua idade viviam imersas em frivolidades pelas quais ela não nutria o menor interesse. Tentara respeitar os mais velhos, mas era como se a maioria dos adultos não passasse de crianças envelhecidas, que não tinham sequer a mais básica compreensão do mundo à sua volta, ou – o que era ainda mais perturbador – qualquer curiosidade ou preocupação em relação a ele.
Eu tinha a sensação de não fazer parte de nada.
Assim, Sienna Brooks havia aprendido a ser um fantasma. Invisível. Aprendera a ser um camaleão, uma atriz, fingindo ser apenas mais um rosto em meio à multidão. Tinha certeza de que a sua paixão infantil pela arte da representação dramática vinha daquilo que se transformaria no sonho de uma vida inteira: tornar-se outra pessoa.
Uma pessoa normal.
Sua atuação em Sonho de uma noite de verão a ajudara a se sentir parte de alguma coisa e os atores adultos a apoiavam sem se mostrarem condescendentes. Sua alegria, porém, havia durado pouco, evaporando-se no instante em que descera do palco na noite da estreia e se vira diante de um bando de jornalistas de olhos arregalados, enquanto seus companheiros de elenco saíam discretamente pela porta dos fundos, sem que ninguém reparasse neles.
Agora eles também me odeiam.
Aos 7 anos, Sienna já havia lido o suficiente para diagnosticar em si mesma uma depressão profunda. Quando contara aos pais, eles tiveram a reação de sempre: ficaram estarrecidos diante da estranheza da filha. Mesmo assim, marcaram uma consulta para ela com um psiquiatra. O médico a enchera de perguntas que a própria Sienna já havia feito a si mesma, prescrevendo em seguida uma combinação de amitriptilina e clorodiazepóxido.
Furiosa, ela se levantou do divã do psiquiatra com um pulo.
– Amitriptilina?! – exclamou, com um tom desafiador. – Eu quero ficar mais feliz... não virar um zumbi!
O psiquiatra, justiça seja feita, permaneceu muito calmo diante daquela explosão e propôs uma alternativa.
– Sienna, se você preferir não tomar remédios, podemos tentar uma abordagem mais holística. – Ele fez uma pausa. – Parece que você está presa em um círculo vicioso no qual não para de pensar em si mesma e em como não se encaixa no mundo.
– É verdade – respondeu Sienna. – Eu tento parar, mas não consigo!
O médico abriu um sorriso tranquilo.
– É claro que não consegue. É fisicamente impossível para o cérebro humano não pensar em nada. A alma anseia por emoção e está sempre em busca de combustível, bom ou ruim, para essa emoção. O seu problema é que você está abastecendo a sua mente com o combustível errado.
Sienna nunca tinha ouvido ninguém falar sobre a mente em termos tão mecânicos, por isso logo ficou intrigada.
– E como eu faço para usar um combustível diferente?
– É preciso mudar o seu foco intelectual – disse ele. – Hoje, você pensa basicamente em si mesma. Fica se perguntando por que você não se enquadra... e o que há de errado com você.
– É verdade, mas eu estou tentando solucionar o problema. Estou tentando me enquadrar. Como vou solucionar o problema sem pensar nele?
O médico riu.
– Acho que pensar no problema... é justamente o problema.
A sugestão do psiquiatra foi que ela tentasse mudar o foco, afastá-lo de si mesma e de seus próprios problemas e voltar a atenção para o mundo à sua volta... e para os problemas dele.
Foi então que tudo mudou.
Sienna começou a dedicar toda a sua energia a não sentir pena de si mesma... mas dos outros. Criou uma iniciativa filantrópica, foi distribuir sopa nos abrigos para os sem-teto e ler para os cegos. Para sua surpresa, nenhuma das pessoas que Sienna ajudava parecia reparar que ela era diferente. Ficavam apenas gratas pelo fato de alguém se importar com elas.
Ela trabalhava mais duro a cada semana e mal conseguia dormir pensando em quantas pessoas precisavam da sua ajuda.
“Sienna, pegue leve!”, viviam lhe repetindo. “Você não pode salvar o mundo inteiro!”
Que coisa horrível de se dizer.
Graças ao seu trabalho voluntário, ela teve contato com vários membros de um grupo humanitário da região onde morava. Quando eles a convidaram para uma viagem de um mês às Filipinas, ela aceitou na hora.
Imaginava que fosse dar comida a pescadores ou agricultores carentes da zona rural daquele país, que, pelo que tinha lido, possuía uma beleza geológica paradisíaca, com solos oceânicos vibrantes de vida e belíssimas planícies. Assim, quando o grupo montou acampamento em meio aos aglomerados humanos da cidade de Manila, tudo o que conseguiu fazer foi ficar boquiaberta de horror. Nunca tinha visto tamanha pobreza.
Como é possível uma pessoa só fazer diferença?
Para cada indivíduo alimentado, havia centenas de outros que a fitavam com uma expressão desconsolada. Manila tinha engarrafamentos de seis horas, uma poluição sufocante e uma indústria sexual aterrorizante, cuja mão de obra era formada, sobretudo, por crianças pequenas – muitas das quais eram vendidas a cafetões por pais que encontravam consolo no fato de que, desse modo, os filhos pelo menos não morreriam de fome.
Em meio a esse caos de prostituição infantil, pedintes, batedores de carteira e coisas ainda piores, ela se viu subitamente paralisada. À sua volta, tudo o que via era a humanidade subjugada por seu instinto mais primitivo de sobrevivência. Diante do desespero, os seres humanos se tornam animais.
A depressão de Sienna voltou com toda a força. De repente, ela havia compreendido o que a humanidade era de fato: uma espécie à beira do colapso.
Eu me enganei, pensou. Não posso salvar o mundo.
Tomada por um surto frenético, Sienna saiu correndo pelas ruas da cidade, abrindo caminho em meio à multidão, derrubando as pessoas, seguindo sempre em frente à procura de um espaço aberto.
Estou sendo sufocada por carne humana!
Enquanto corria, voltou a sentir os olhos dos outros a observando. Não era mais igual às demais pessoas. Era alta, tinha a pele clara e um rabo de cavalo louro se balançava atrás de sua cabeça. Os homens a olhavam como se ela estivesse nua.
Quando suas pernas por fim perderam as forças, ela não fazia ideia de quanto havia corrido, nem de onde tinha ido parar. Secou as lágrimas, limpou a sujeira dos olhos e viu que estava no meio de uma espécie de favela – uma cidade toda feita de chapas de metal corrugado e pedaços de papelão apoiados e presos uns aos outros. O choro de bebês se fazia ouvir e o fedor de excrementos humanos impregnava o ar.
É como se eu tivesse atravessado os portões do Inferno.
– Turista – disse uma voz maldosa atrás dela. – Magkano? – Quanto?
Sienna se virou e viu que três rapazes se aproximavam, salivando feito lobos. Imediatamente percebeu que estava correndo perigo e tentou recuar, mas eles a encurralaram como predadores que caçam em bando.
Gritou por socorro, mas ninguém lhe deu atenção. A menos de 5 metros dali, viu uma senhora de idade sentada em um pneu, removendo a parte podre de uma cebola velha com uma faca enferrujada. A mulher nem sequer ergueu os olhos diante dos gritos de Sienna.
Quando os homens a agarraram e a arrastaram para dentro de um pequeno barraco, ela não teve nenhuma ilusão quanto ao que iria acontecer e o terror a dominou por completo. Lutou com unhas e dentes, mas os homens eram fortes e logo conseguiram imobilizá-la em cima de um colchão sujo e surrado.
Rasgaram sua blusa, arranhando-lhe a pele macia. Quando Sienna tornou a gritar, enfiaram a blusa rasgada tão fundo em sua garganta que ela achou que fosse sufocar. Então, viraram-na de bruços, empurrando seu rosto contra a cama pútrida.
Sienna Brooks sempre tivera pena das almas ignorantes capazes de acreditar em Deus em um mundo de tanto sofrimento, mas de repente se pegou rezando... do fundo de seu coração.
Meu Deus, por favor, livrai-me do mal.
Enquanto rezava, ouvia os homens rindo, zombando dela ao tirar sua calça jeans e puxá-la por suas pernas bambas com as mãos imundas. Um deles montou em suas costas, pesado e coberto de suor que ela sentiu pingar sobre a sua pele.
Eu sou virgem, pensou. É assim que vai ser a minha primeira vez.
De repente, o homem pulou de cima dela e as provocações e risos maldosos se transformaram em gritos de raiva e medo. O suor morno que escorria pelas suas costas... de repente se tornou pegajoso... e começou a pingar no colchão, deixando manchas vermelhas.
Quando ela se virou para ver o que estava acontecendo, deparou com a velha da cebola meio descascada com a faca enferrujada na mão, de pé junto a seu agressor, que agora sangrava profusamente de um ferimento nas costas.
A velha fulminou os outros dois rapazes com o olhar, brandindo a faca ensanguentada no ar até os três saírem correndo.
Sem dizer nada, ajudou Sienna a catar suas roupas e se vestir.
– Salamat – sussurrou Sienna, aos prantos. – Obrigada.
A velha senhora cutucou a própria orelha para indicar que era surda.
Sienna uniu as palmas das mãos, fechou os olhos e inclinou a cabeça em atitude de respeito. Quando tornou a abri-los, a mulher tinha sumido.
Foi embora das Filipinas no mesmo dia, sem nem ao menos se despedir dos outros membros do grupo. Nunca falou com ninguém sobre o ocorrido. Tinha esperanças de que, se ignorasse o incidente, ele fosse deixar de existir, mas essa atitude só pareceu piorar a situação. Meses depois, ela continuava a ser assombrada por terrores noturnos e já não se sentia segura em lugar nenhum. Começou a praticar artes marciais e, apesar de ter dominado rapidamente a técnica mortal do dim mak, ainda se sentia ameaçada em toda parte.
A depressão voltou, dez vezes pior do que antes e, com o tempo, ela não conseguia mais dormir. Sempre que escovava os cabelos, reparava que eles caíam em grandes tufos, cada dia mais. Para seu horror, em poucas semanas já estava quase careca, tendo desenvolvido sintomas que ela própria diagnosticou como eflúvio telógeno – uma alopecia relacionada ao estresse cuja única solução era a cura do estresse em si. Toda vez que se olhava no espelho, a visão do crânio careca fazia seu coração disparar.
Estou parecendo uma velha!
Por fim, não teve alternativa senão raspar a cabeça. Pelo menos não parecia mais uma velha: só doente. Como não queria ficar com o aspecto de alguém com câncer, comprou uma peruca loura que usava presa em um rabo de cavalo. Pelo menos assim se parecia outra vez com ela mesma.
Por dentro, contudo, Sienna Brooks havia mudado.
Estou estragada.
Em uma tentativa desesperada de mudar de vida, viajou para os Estados Unidos e começou a estudar para se tornar médica. Sempre tivera uma afinidade com a medicina e torcia para que a profissão lhe trouxesse a sensação de estar sendo útil... como se estivesse fazendo pelo menos alguma coisa para aliviar a dor daquele mundo combalido.
Apesar da carga horária puxada, a faculdade não lhe parecera nada difícil. Enquanto os colegas estudavam, ela arrumou um emprego de atriz em tempo parcial para ganhar algum dinheiro. Com certeza não era Shakespeare, mas sua facilidade para línguas e para a memorização fez com que, em vez de parecer um trabalho, atuar fosse como um santuário onde ela podia esquecer quem era... e ser outra pessoa.
Qualquer pessoa.
Ela vinha tentando escapar da própria identidade desde que aprendera a falar. Quando criança, rejeitara seu primeiro nome, Felicity, preferindo adotar o do meio, Sienna. Felicity significava “felicidade”, “fortuna”, e ela sabia que estava muito longe disso.
Afaste o foco dos seus próprios problemas, costumava lembrar a si mesma. Concentre-se nos problemas do mundo.
O ataque de pânico nas ruas apinhadas de Manila despertara em Sienna uma profunda preocupação com o crescimento descontrolado da população mundial. Foi nessa época que descobriu os escritos de Bertrand Zobrist, geneticista que havia proposto algumas teorias muito progressistas sobre a questão.
Esse cara é um gênio, percebera ao ler o trabalho dele. Nunca havia sentido nada por nenhum outro ser humano. Quanto mais textos de Zobrist ela lia, mais tinha a sensação de estar olhando para dentro do coração de uma alma gêmea. Seu artigo intitulado “Você não pode salvar o mundo” trouxe à memória de Sienna aquilo que todos costumavam lhe dizer quando ela era pequena... só que Zobrist defendia exatamente o contrário.
Você PODE salvar o mundo, escrevia ele. Se não você, quem? Se não agora, quando?
Sienna estudou com afinco as equações matemáticas de Zobrist, informando-se sobre suas previsões de uma catástrofe malthusiana e do iminente colapso da espécie. Seu intelecto adorava aquelas especulações de alto nível, mas, conforme vislumbrava o futuro à sua frente... matematicamente garantido... tão óbvio... inevitável... ela sentia seu nível de estresse aumentar.
Por que ninguém está prevendo isso?
Por mais que as ideias de Zobrist a amedrontassem, Sienna ficou obcecada por ele: assistia a vídeos com suas apresentações, lia tudo o que ele escrevia. Quando ouviu dizer que ele daria uma palestra nos Estados Unidos, soube que precisava ir vê-lo falar. E foi nessa noite que o seu mundo se transformou.
Um sorriso iluminou seu rosto, um raro instante de felicidade, quando ela se lembrou daquela noite mágica... a mesma noite que havia recordado vividamente horas antes, sentada no trem junto com Langdon e Ferris.
Chicago. A tempestade de neve.
Mês de janeiro, seis anos atrás... mas parece que foi ontem...
Estou atravessando a duras penas a neve acumulada no trecho exposto ao vento da Michigan Avenue conhecido como Magnificent Mile, com a gola do casaco levantada para me proteger da violenta nevasca. Apesar do frio, repito em minha mente que nada poderá me impedir de chegar ao meu destino. Essa noite é a minha chance de ouvir o grande Bertrand Zobrist falar... ao vivo.
O auditório está quase vazio quando Bertrand sobe ao palco. Ele é alto... tão alto... com vibrantes olhos verdes que parecem encerrar em suas profundezas todos os mistérios do mundo.
– Para o inferno com este auditório vazio! – esbraveja. – Meu hotel fica bem aqui ao lado. Vamos para o bar!
E então ali estamos nós, um grupo pequeno sentado em volta de uma mesa reservada, ouvindo-o falar sobre genética, população e sua mais recente paixão... o transumanismo.
Enquanto a bebida rola solta, minha sensação é de estar em um encontro particular com um astro do rock. Toda vez que Zobrist olha na minha direção, seus olhos verdes despertam em mim um sentimento inesperado... o forte magnetismo da atração sexual.
É uma sensação totalmente nova para mim.
E então ficamos sozinhos.
– Queria agradecer por esta noite – digo a ele, sentindo a leve embriaguez de algumas doses a mais. – O senhor é um professor incrível.
– Nada como uma boa massagem no ego. – Zobrist sorri e chega mais perto; nossas pernas agora se tocando. – Aí está uma chave que abre qualquer porta.
A cantada é obviamente inadequada, mas naquele hotel deserto de Chicago, com a neve caindo do lado de fora, minha impressão é de que o mundo parou de girar.
– Que tal uma saideira no meu quarto? – pergunta Zobrist.
Eu gelo, sabendo que devo parecer um animal encurralado. Não sei como agir em uma situação dessas!
Os olhos de Zobrist cintilam, tórridos.
– Deixe-me adivinhar – sussurra ele. – Você nunca esteve com um homem famoso.
Sinto-me enrubescer, lutando para disfarçar uma enxurrada de emoções – vergonha, excitação, medo.
– Com toda a sinceridade – respondo –, eu nunca estive com homem nenhum.
Zobrist sorri e chega mais perto ainda.
– Não sei bem o que você estava esperando, mas, por favor, permita que eu seja o primeiro.
Então todos os constrangedores medos e frustrações sexuais da minha infância desaparecem... simplesmente evaporam no ar.
E me vejo nua em seus braços.
– Relaxe, Sienna – sussurra ele enquanto, com as mãos pacientes, arranca do meu corpo inexperiente sensações que eu nunca sequer imaginei que fossem possíveis.
Aninhada no casulo do abraço de Zobrist, sinto que tudo no mundo está em seu devido lugar, e sei que minha vida tem um propósito.
Eu encontrei o Amor.
E irei segui-lo aonde quer que vá.
No convés do Mendacium, Langdon segurou com força a amurada de teca envernizada do iate e firmou as pernas bambas, tentando recuperar o fôlego. A brisa do mar agora estava mais fria e o rugido de jatos comerciais voando baixo lhe indicava que eles se aproximavam do aeroporto de Veneza.
Preciso lhe contar algumas coisas sobre a Srta. Brooks.
Ao seu lado, junto à amurada, o diretor e a Dra. Sinskey se mantinham alertas e em silêncio, dando-lhe alguns segundos para se recuperar. O que haviam revelado a Langdon lá embaixo o deixara tão desorientado que Elizabeth Sinskey o levara até o convés para tomar um pouco de ar.
O mar do fim de tarde era revigorante, mas não foi suficiente para clarear a mente de Langdon. Tudo o que ele conseguia fazer era fitar o rastro turvo do iate com o olhar perdido, tentando encontrar algum fio de lógica na história que acabara de ouvir.
Segundo o diretor, Sienna Brooks e Bertrand Zobrist haviam tido um longo relacionamento. Os dois agiam juntos, numa espécie de movimento clandestino, o transumanismo. O nome todo dela era Felicity Sienna Brooks, mas ela também era conhecida pelo codinome FS-2080... suas iniciais e a data de seu centésimo aniversário.
Nada disso faz sentido!
– Conheci Sienna Brooks em circunstâncias diferentes e confiava nela – dissera o diretor a Langdon. – Portanto, quando ela me procurou ano passado me pedindo que encontrasse um possível cliente muito rico, eu aceitei. Era Bertrand Zobrist. Ele me contratou para lhe providenciar um lugar seguro onde pudesse trabalhar em segredo na criação de sua “obra-prima”. Imaginei que estivesse desenvolvendo uma nova teconologia que não queria que ninguém copiasse, ou talvez realizando alguma pesquisa genética inovadora que contrariasse os regulamentos éticos da OMS. Não fiz perguntas, mas, acredite, nunca imaginei que ele estivesse criando... uma peste.
Atônito, Langdon conseguiu apenas assentir com uma expressão vazia.
– Como era fanático por Dante – prosseguiu o diretor –, Zobrist escolheu a cidade de Florença como refúgio. Assim, minha organização providenciou tudo de que ele precisava: um laboratório discreto com alojamentos, várias identidades falsas e meios de comunicação seguros, além de um assistente particular que cuidava de tudo, desde sua segurança pessoal até a compra de mantimentos. Zobrist nunca usava os próprios cartões de crédito nem aparecia em público, por isso era impossível rastreá-lo. Chegamos até a lhe fornecer disfarces e documentos alternativos para que pudesse viajar incógnito. – Ele fez uma pausa. – E parece que ele fez isso quando foi depositar o saco de Solublon no local do vídeo.
A Dra. Sinskey bufou, sem se dar o trabalho de ocultar sua frustração.
– A OMS vinha tentando localizá-lo desde o ano passado, mas ele parecia ter sumido do mapa.
– Estava se escondendo até de Sienna – informou o diretor.
– Como assim? – Langdon ergueu os olhos e pigarreou, tentando desfazer o nó em sua garganta. – Pensei que tivesse dito que eles tinham um caso.
– E tinham, mas Zobrist cortou laços com ela de repente, assim que passou a viver na clandestinidade. Embora tenha sido Sienna quem o indicou para nós, meu acordo era com o próprio Zobrist. Parte do combinado era que, quando ele sumisse, seria para o mundo inteiro, até para ela. Parece que, depois de se esconder, ele lhe enviou uma carta de despedida dizendo que estava muito doente, que só tinha mais um ano de vida ou algo assim, e que não queria que ela visse sua saúde se deteriorar.
Zobrist abandonou Sienna?
– Ela me procurou em busca de informações, mas não atendi as suas ligações – acrescentou o diretor. – Tinha que respeitar os desejos do meu cliente.
– Há duas semanas – prosseguiu a Dra. Sinskey –, Zobrist entrou em um banco de Florença e alugou um cofre particular anonimamente. Depois que ele saiu, o pessoal responsável pela nossa lista de observação foi avisado de que o novo software de reconhecimento facial do banco identificara o homem disfarçado como Bertrand Zobrist. Minha equipe foi de avião a Florença e levou uma semana para localizar o tal cofre. Estava vazio, mas lá dentro encontramos indícios de que ele tinha criado alguma espécie de patógeno altamente contagioso e o escondido em algum outro lugar.
Ela fez uma breve pausa.
– Estávamos desesperados para encontrá-lo. Na manhã seguinte, antes de o sol nascer, ele foi visto caminhando à beira do Arno e na mesma hora começamos a persegui-lo. Foi então que Zobrist fugiu para o alto da torre da Badia e se matou, pulando lá de cima.
– Talvez esse fosse o seu plano desde o início – atalhou o diretor. – Estava convencido de que não tinha muito tempo de vida.
– Na verdade, acabamos descobrindo que Sienna também estava atrás dele – prosseguiu a doutora. – De alguma forma, ela descobriu que tínhamos nos deslocado para Florença e passou a acompanhar nossos movimentos, pensando que talvez nós o tivéssemos encontrado. Infelizmente, chegou bem a tempo de ver Zobrist pular. – Ela deu um suspiro. – Imagino que tenha sido um grande trauma para ela ver o namorado e mentor se jogar para a morte.
Langdon sentiu um embrulho no estômago; mal conseguia compreender o que estava ouvindo. A única pessoa em quem confiava naquela história toda era Sienna, e agora Elizabeth Sinskey e o diretor lhe diziam que ela não era quem dizia ser? Eles podiam falar o que quisessem, mas Langdon não conseguia acreditar que Sienna compactuasse com o desejo de Zobrist de disseminar uma peste.
Ou estaria enganado?
Você mataria metade da população hoje para salvar nossa espécie da extinção?, ela lhe perguntara.
Langdon sentiu um calafrio.
– Depois que Zobrist morreu – explicou a doutora –, usei minha influência para obrigar o banco a abrir o tal cofre particular, que, por ironia, continha uma carta para mim... e um dispositivo estranho.
– O projetor – arriscou Langdon.
– Exatamente. A carta dizia que ele queria que eu fosse a primeira a visitar o marco zero, que ninguém jamais o encontraria a menos que seguisse o seu Mapa do Inferno.
Langdon visualizou em sua mente o quadro adulterado de Botticelli projetado pelo pequeno aparelho.
– Zobrist tinha me incumbido de entregar à Dra. Sinskey o conteúdo do cofre, mas só depois da data marcada; amanhã de manhã – acrescentou o diretor. – Como ela conseguiu acesso ao cofre antes disso, nós entramos em pânico e começamos a agir para tentar recuperar o projetor e a carta, conforme os desejos de nosso cliente.
A Dra. Sinskey olhou para Langdon.
– Eu não tinha grandes esperanças de entender o mapa a tempo, por isso convoquei o senhor para me ajudar. Consegue se lembrar de algumas dessas coisas agora?
Langdon fez que não com a cabeça.
– Nós o levamos discretamente até Florença de avião, onde o senhor tinha marcado um encontro com alguém que acreditava que poderia nos ajudar.
Ignazio Busoni.
– Foi se encontrar com essa pessoa ontem à noite e depois sumiu – concluiu. – Pensamos que alguma coisa tivesse acontecido com o senhor.
– E alguma coisa de fato lhe aconteceu – falou o diretor. – Numa tentativa de recuperar o projetor, mandamos uma agente minha segui-lo desde o aeroporto. Vayentha o perdeu de vista em algum lugar perto da Piazza della Signoria. – Ele fez uma cara feia. – Foi um erro grave. E ela teve a audácia de pôr a culpa em um pássaro.
– Como assim?
– O arrulhar de uma pomba. Segundo Vayentha, ela estava em uma posição perfeita, observando o senhor de dentro de um nicho escuro, quando um grupo de turistas passou. De repente, uma pomba arrulhou alto no caixilho de uma janela bem em cima dela, fazendo os turistas pararem e impedirem-na de sair. Quando finalmente conseguiu voltar ao beco, o senhor já tinha sumido. – Ele balançou a cabeça, contrariado. – Enfim, ela demorou horas para reencontrá-lo. Quando conseguiu, o senhor já estava acompanhado por outro homem.
Ignazio, pensou Langdon. Devíamos estar saindo do Palazzo Vecchio com a máscara.
– Ela conseguiu segui-los em direção à Piazza della Signoria, mas parece que vocês a viram e decidiram fugir em direções diferentes.
Faz sentido, pensou Langdon. Ignazio fugiu com a máscara e a escondeu no batistério antes de ter um infarto.
– Foi então que Vayentha cometeu um erro terrível – disse o diretor.
– Deu um tiro na minha cabeça?
– Não. Decidiu abordá-lo cedo demais. Ela o trouxe para ser interrogado antes de o senhor de fato saber alguma coisa. Precisávamos descobrir se tinha conseguido decifrar o mapa ou se havia revelado à Dra. Sinskey o que ela precisava saber. Mas o senhor se recusou a falar. Disse que preferiria morrer.
Eu estava à procura de uma peste mortal! Devo ter achado que vocês eram mercenários tentando obter uma arma biológica!
Foi então que os enormes motores do iate se reverteram, diminuindo a velocidade da embarcação que se aproximava da plataforma de atracamento do aeroporto. Ao longe, Langdon pôde ver a fuselagem discreta de um avião de transporte C-130 sendo reabastecido. No corpo da aeronave estava escrito: organização mundial da saúde.
Brüder apareceu neste exato momento, com uma expressão sombria.
– Acabei de saber que a única equipe de intervenção qualificada a menos de cinco horas do local somos nós... ou seja, estamos sozinhos nessa.
A Dra. Sinskey ficou abatida.
– E a coordenação com as autoridades locais?
Brüder adotou uma expressão de cautela.
– É cedo demais. Pelo menos essa é a minha recomendação. Ainda não temos uma localização precisa, portanto não há nada que eles possam fazer. Além disso, uma operação de contenção está muito além da capacidade das autoridades locais e corremos um risco real de que, em vez de ajudar, elas acabem causando mais danos.
– Primum non nocere – sussurrou a doutora com um meneio de cabeça, recitando o preceito fundamental da ética médica: Em primeiro lugar, não causar danos.
– Para completar, ainda não tivemos nenhuma notícia sobre Sienna Brooks – disse Brüder. Ele olhou para o diretor. – O senhor sabe se ela conhece alguém em Veneza que possa ajudá-la?
– Isso não me espantaria – respondeu o diretor. – Zobrist tinha discípulos por toda parte e, se bem conheço Sienna, ela vai se valer de todos os recursos disponíveis para conseguir o que quer.
– Vocês não podem deixá-la sair de Veneza – falou a Dra. Sinskey. – Não temos a menor ideia da condição atual do saco de Solublon. Se alguém o encontrar, a esta altura bastaria um simples toque para o plástico estourar e contaminar a água.
Houve alguns instantes de silêncio enquanto eles assimilavam a gravidade da situação.
– Infelizmente, acho que tenho mais notícias ruins – disse Langdon. – O mouseion dourado de santo saber. – Ele fez uma pausa. – Sienna sabe onde ele fica. Ela sabe para onde estamos indo.
– O quê?! – a voz da doutora se alterou, alarmada. – Pensei que o senhor tivesse falado que não teve oportunidade de dizer a ela o que havia descoberto! Apenas que estavam no país errado!
– E é verdade – respondeu Langdon. – Mas ela sabia que estávamos procurando o túmulo de Enrico Dandolo. Basta uma busca rápida na internet para descobrir a sua localização. E, quando ela encontrar esse túmulo, o recipiente solúvel não pode estar muito longe. O poema dizia para seguir o som da água correndo até o palácio afundado.
– Que droga! – explodiu Brüder antes de se retirar, pisando firme.
– Ela nunca vai conseguir chegar lá antes de nós – disse o diretor. – Estamos em vantagem.
Elizabeth Sinskey suspirou.
– Eu não teria tanta certeza. Nosso transporte é lento e Sienna Brooks parece ser muito engenhosa.
Enquanto o Mendacium atracava, Langdon se pegou olhando nervoso para o pesado C-130 na pista. O avião mal parecia capaz de voar e não tinha janelas. Eu já voei nesse troço? Não se lembrava de nada.
Não sabia se por causa do movimento do iate atracando ou de suas crescentes reservas em relação à aeronave claustrofóbica, foi subitamente acometido por uma onda de náusea.
Virou-se para a Dra. Sinskey.
– Acho que não estou me sentindo bem para voar.
– O senhor está bem – afirmou ela. – Passou por muita coisa hoje e é claro que seu organismo ainda não eliminou as toxinas...
– Toxinas? – Langdon deu um passo cambaleante para trás. – Que história é essa?
A doutora desviou o olhar. Era óbvio que tinha revelado mais do que pretendia.
– Professor, eu sinto muito. Infelizmente acabei de ser informada de que o seu estado de saúde é um pouco mais complicado do que um simples ferimento na cabeça.
Langdon sentiu uma pontada de medo ao se lembrar da mancha escura na pele do peito de Ferris quando o homem havia desabado dentro da basílica.
– O que eu tenho? – exigiu saber.
A doutora hesitou, como se não soubesse muito bem como prosseguir.
– Primeiro, vamos embarcar no avião.
Situado bem ao lado da espetacular igreja dos Frari, o Ateliê Pietro Longhi sempre fora um dos principais fornecedores venezianos de fantasias, perucas e acessórios de época. Sua lista de clientes incluía estúdios de cinema e companhias de teatro, bem como pessoas influentes que confiavam na experiência de seus funcionários para vesti-las para os bailes mais extravagantes do Carnevale.
O vendedor estava quase encerrando o expediente e fechando a loja quando a sineta da porta retiniu bem alto. Ao erguer os olhos, viu uma mulher bonita de rabo de cavalo louro entrar esbaforida. Estava ofegante, como se houvesse corrido muitos quilômetros. Aproximou-se depressa do balcão, seus olhos castanhos frenéticos e desesperados.
– Quero falar com Giorgio Venci – disse ela, sem ar.
E quem não quer?, pensou o vendedor. Mas ninguém nunca vê o mago.
Giorgio Venci – o principal artista do ateliê – só atuava por trás dos panos e, nas poucas ocasiões em que falava com os clientes, era sempre com hora marcada. Por ser muito rico e influente, era autorizado a ter determinadas excentricidades, como aquela paixão pela vida solitária. Jantava sempre sozinho, só viajava de avião particular e vivia reclamando do número cada vez maior de turistas em Veneza. Não era um homem que apreciasse companhia.
– Sinto muito – respondeu o vendedor com um sorriso ensaiado. – Infelizmente o Signor Venci não está. Quem sabe não posso ajudá-la?
– Giorgio está, sim – declarou a mulher. – O apartamento dele fica em cima da loja. Vi que a luz está acesa. Sou amiga dele. É urgente.
A mulher irradiava uma intensidade ardente. Ela disse “amiga”?
– E quem devo anunciar?
A mulher pegou um pedaço de papel no balcão e rabiscou uma série de letras e números.
– Mostre isto aqui a ele – falou, entregando o papel ao vendedor. – E, por favor, seja rápido. Não tenho muito tempo.
Hesitante, o vendedor levou o papel até o andar de cima e o pousou sobre a comprida mesa de trabalho, sobre a qual Giorgio estava curvado, concentrado, junto à máquina de costura.
– Signor – sussurrou o vendedor. – Uma moça está aqui para vê-lo. Ela disse que é urgente.
Sem interromper o serviço nem erguer os olhos, o homem estendeu uma das mãos e pegou o papel para ler o que estava escrito.
O barulho da máquina de costura cessou.
– Mande-a subir agora mesmo – ordenou Giorgio enquanto picava o papel em minúsculos pedacinhos.
O grande avião de transporte C-130 continuava a subir, descrevendo uma curva para o sudeste, rugindo sobre o Adriático. A bordo, Robert Langdon sentia-se ao mesmo tempo confinado e à deriva – oprimido pela ausência de janelas da aeronave e perplexo com todas as perguntas sem resposta que rodopiavam em sua mente.
O seu estado de saúde, dissera-lhe Elizabeth Sinskey, é um pouco mais complicado do que um simples ferimento na cabeça.
A pulsação de Langdon se acelerou ao pensar no que ela talvez fosse lhe revelar, mas naquele momento a doutora estava ocupada discutindo estratégias de contenção com a equipe de SMI. Ali perto, ao telefone, Brüder falava com agências do governo sobre Sienna Brooks, mantendo-se informado acerca de todas as tentativas de localizá-la.
Sienna...
Langdon ainda tentava processar a informação de que ela estava envolvida até o pescoço naquela situação. Quando o avião enfim se estabilizou, o pequeno homem que se autointitulava diretor atravessou a cabine e foi se sentar à sua frente. Fez um triângulo com os dedos sob o queixo e franziu os lábios.
– A Dra. Sinskey me pediu que o informasse... que tentasse esclarecer um pouco mais a sua situação.
Langdon duvidava que aquele homem pudesse dizer algo capaz de lançar o mínimo de luz que fosse sobre aquela confusão.
– Como comecei a explicar mais cedo – falou o diretor –, boa parte do que está acontecendo começou depois que uma agente minha, Vayentha, trouxe o senhor para ser interrogado antes da hora. Não sabíamos que progresso já tinha feito para a Dra. Sinskey nem até que ponto havia compartilhado suas informações com ela. Mas temíamos que, se ela descobrisse a localização do projeto que nosso cliente havia nos contratado para proteger, fosse confiscar ou destruir o material. Tínhamos que encontrá-lo antes dela, por isso precisávamos que o senhor trabalhasse para nós... e não para a Dra. Sinskey. – Ele se deteve, batendo as pontas dos dedos umas nas outras. – Infelizmente, como já havíamos colocado as cartas na mesa, o senhor com certeza não confiava em nós.
– Então vocês me deram um tiro na cabeça? – perguntou Langdon, irritado.
– Bolamos um plano para fazer o senhor confiar em nós.
Langdon se sentiu perdido.
– Como é possível fazer alguém confiar em você... depois de ter sequestrado e interrogado essa pessoa?
O homem se remexeu, subitamente desconfortável.
– Professor, o senhor já ouviu falar em uma família de substâncias conhecidas como benzodiazepinas?
Langdon fez que não com a cabeça.
– É uma nova linha de fármacos usada, entre outras coisas, para tratar o estresse pós-traumático. Como deve saber, quando alguém passa por uma experiência terrível, como um acidente de carro ou uma agressão sexual, as memórias de longo prazo do ocorrido podem ter um efeito debilitante permanente. Com o uso das benzodiazepinas, os neurocientistas conseguem tratar o estresse pós-traumático antes mesmo de ele se instalar.
Langdon ouvia em silêncio, incapaz de imaginar o rumo que aquela conversa poderia tomar.
– Quando as lembranças novas se formam – prosseguiu o diretor –, os acontecimentos ficam armazenados na memória de curto prazo durante cerca de 48 horas antes de migrarem para a memória de longo prazo. Usando novas combinações de benzodiazepinas, é perfeitamente possível atualizar a memória de curto prazo... apagando seu conteúdo antes de as lembranças recentes migrarem e se transformarem em memórias de longo prazo. Por exemplo, se uma vítima de agressão for medicada com uma substância dessa família poucas horas depois do ocorrido, as lembranças podem ser eliminadas para sempre e o trauma jamais fará parte da sua psique. A única desvantagem é que vários dias da vida dela também serão apagados de sua memória.
Langdon o encarava com uma expressão incrédula.
– Vocês provocaram a minha amnésia!
O diretor deixou escapar um suspiro, como se pedisse desculpas.
– Infelizmente, sim. Usamos substâncias químicas para induzi-la. Um procedimento muito seguro. Mas, é verdade, sua memória de curto prazo foi apagada. – Ele fez uma pausa. – Enquanto estava desacordado, o senhor ficou balbuciando algo sobre uma peste e imaginamos que fosse apenas por ter visto as imagens do projetor. Nem nos passou pela cabeça que Zobrist tivesse criado uma peste de verdade. – Ele se calou por mais alguns instantes. – O senhor também não parava de balbuciar uma expressão que nos pareceu ser Very sorry. Very sorry.
Vasari. Àquela altura, isso devia ser a única coisa que Langdon havia compreendido em relação ao projetor. Cerca trova.
– Mas... Achei que a amnésia tivesse sido causada pelo ferimento à bala. Alguém me baleou.
O diretor fez que não com a cabeça.
– Ninguém o baleou, professor. O senhor não sofreu nenhum ferimento na cabeça.
– O quê?! – Por instinto, os dedos de Langdon foram até os pontos e o inchaço na parte de trás de seu crânio. – Então que porcaria é esta aqui?! – Ele levantou os cabelos para expor a parte raspada.
– Faz parte da farsa. Fizemos uma pequena incisão no seu couro cabeludo e imediatamente a fechamos com pontos. O senhor precisava acreditar que tinha sido atacado.
Isso na minha cabeça não é um ferimento à bala?!
– Quando acordasse – prosseguiu o diretor –, queríamos que o senhor acreditasse que havia pessoas querendo matá-lo... que estava correndo perigo.
– Mas havia pessoas tentando me matar!– gritou Langdon, sua fúria repentina atraindo olhares dos outros passageiros do avião. – Vi um médico ser morto a sangue-frio no hospital, o Dr. Marconi!
– Isso foi o que o senhor viu – insistiu o diretor, com um tom de voz impassível –, não o que de fato aconteceu. Vayentha estava trabalhando para mim. Ela tem uma habilidade incrível para esse tipo de trabalho.
– Matar pessoas? – perguntou Langdon.
– Não – respondeu o diretor, mantendo a calma. – Fingir que está matando pessoas.
Langdon passou um bom tempo encarando o outro homem enquanto visualizava o médico de barba grisalha e sobrancelhas fartas caído no chão com sangue esguichando do peito.
– A arma de Vayentha estava carregada com balas de festim – explicou o diretor. – Os tiros acionaram um estopim controlado por rádio que fez explodir um saco de sangue preso ao peito do Dr. Marconi. A propósito, ele está bem.
Langdon fechou os olhos, aturdido com o que ouvia.
– Mas... e o quarto do hospital?
– Um cenário improvisado às pressas – respondeu o diretor. – Professor, sei que isso tudo é muito difícil de processar. Estávamos correndo contra o tempo e o senhor estava grogue, então nada precisava ser perfeito. Quando acordou, viu o que queríamos que visse: objetos hospitalares cenográficos, uns poucos atores e uma agressão coreografada.
Langdon não conseguia acreditar.
– É isso que a minha empresa faz – disse o diretor. – Somos muito bons em criar ilusões.
– E Sienna? – indagou Langdon, esfregando os olhos.
– Precisei tomar uma decisão rápida e resolvi me aliar a ela. Minha prioridade era proteger o projeto do meu cliente da Dra. Sinskey, algo que tanto eu quanto Sienna desejávamos. Para conquistar a sua confiança, Sienna o salvou da assassina e o ajudou a fugir por um beco nos fundos do hospital. O táxi que estava parado na rua também era nosso, com um segundo estopim controlado por rádio no para-brisa traseiro para criar um último efeito durante a sua fuga. O táxi levou vocês para um apartamento que havíamos montado às pressas.
O modesto apartamento de Sienna, pensou Langdon, entendendo por que ele parecia todo mobiliado com artigos de segunda mão. Isso também explicava a feliz coincidência de o “vizinho” dela ter roupas exatamente do seu tamanho.
Tudo não passara de uma grande encenação.
Até o telefonema desesperado da amiga de Sienna no hospital tinha sido falso. Sienna, é Danikova!
– Quando o senhor telefonou para o consulado dos Estados Unidos, ligou para um número que Sienna lhe deu – falou o diretor. – O telefone que tocou fica a bordo do Mendacium.
– Nunca cheguei a falar com o consulado...
– Não, nunca.
Não saia daí, dissera-lhe o falso funcionário. Alguém irá buscá-lo agora mesmo. Então, quando Vayentha apareceu, Sienna convenientemente a vira do outro lado da rua e ligara os pontos. Robert, o seu próprio governo está tentando matá-lo! Não pode envolver nenhuma autoridade nessa história! Sua única esperança é descobrir o que significa aquele projetor.
O diretor e sua misteriosa organização – fosse ela qual fosse – tinham reprogramado Langdon de forma muito eficaz, fazendo-o parar de trabalhar para a Dra. Sinskey e começar a trabalhar para eles. A farsa tinha sido um sucesso.
Sienna me enganou feito um patinho, pensou, sentindo mais tristeza do que raiva. Durante o curto tempo que haviam passado juntos, tinha se afeiçoado a ela. Para Langdon, o mais perturbador de tudo era o inquietante mistério de como uma pessoa tão inteligente e afetuosa quanto Sienna pudesse ser capaz de abraçar de corpo e alma a solução insana de Zobrist para o problema da superpopulação.
Posso lhe afirmar sem sombra de dúvida, dissera-lhe Sienna mais cedo, que, se não houver alguma mudança drástica, o fim da nossa raça está próximo... A matemática é irrefutável.
– E as matérias de jornal sobre Sienna? – indagou Langdon, lembrando-se do programa da peça de Shakespeare e dos artigos sobre seu QI excepcionalmente alto.
– Eram autênticas – respondeu o diretor. – As melhores ilusões são aquelas que contêm o maior número possível de elementos reais. Nosso tempo era curto, então o computador de Sienna e seus arquivos pessoais reais eram quase tudo que tínhamos à disposição. Na verdade, nem era para o senhor ter visto nada daquilo, a menos que começasse a duvidar da autenticidade dela.
– Tampouco deveria ter usado seu computador – disse Langdon.
– Sim. Foi por isso que perdemos o controle. Como Sienna não imaginava que a equipe de SMI de Elizabeth Sinskey fosse capaz de encontrar o apartamento, entrou em pânico e teve que improvisar. Na esperança de manter a farsa, fugiu de scooter com o senhor na garupa. Quando a missão foi por água abaixo, não tive alternativa senão desvincular Vayentha, embora depois ela tenha quebrado o protocolo e ido atrás de vocês mesmo assim.
– Ela quase me matou – disse Langdon, contando ao diretor o confronto no sótão do Palazzo Vecchio, quando Vayentha havia empunhado a arma e apontado para seu peito.
Só vai doer por um instante... mas você não me deixa alternativa. Então Sienna correra e a empurrara por cima da balaustrada, fazendo Vayentha mergulhar para a morte.
O diretor suspirou, refletindo sobre o que Langdon acabara de lhe contar.
– Duvido que Vayentha tenha tentando matá-lo... a arma dela só disparava tiros de festim. Àquela altura, sua única chance de redenção era capturá-lo. Deve ter achado que, se lhe desse um tiro de festim, o faria entender que afinal não era uma assassina e que o senhor estava vivendo uma farsa.
O diretor ficou calado por alguns instantes, pensativo, antes de prosseguir:
– Será que Sienna realmente queria matar Vayentha ou estava apenas tentando desviar o tiro? Não me atrevo a arriscar um palpite. Estou começando a perceber que não conheco Sienna Brooks tão bem quanto pensava.
Nem eu, pensou Langdon, mas, quando se lembrou da expressão de choque e remorso no rosto dela, teve a sensação de que o que ela fizera com a agente de cabelos espetados tinha sido um erro.
Langdon se sentia desnorteado... e completamente sozinho. Virou-se para onde deveria haver uma janela, ansiando olhar para o mundo lá embaixo, mas tudo o que viu foi a fuselagem da aeronave.
Preciso sair daqui.
– O senhor está bem? – indagou o diretor, encarando-o com um olhar preocupado.
– Não – respondeu Langdon. – Nem um pouco.
Ele vai sobreviver, pensou o diretor. Só está tentando processar a nova realidade.
O professor americano parecia ter sido arrebatado por um tufão, girado de um lado para outro e depois largado em uma terra desconhecida, aturdido.
Os alvos das atividades do Consórcio raramente desvendavam a realidade por trás das encenações que presenciavam e, quando isso acontecia, o diretor nunca estava presente para ver as consequências. Desta vez, no entanto, além da culpa que sentia ao testemunhar em primeira mão a perplexidade de Langdon, ele também carregava nos ombros um avassalador senso de responsabilidade por aquela crise.
Aceitei o cliente errado. Bertrand Zobrist.
Confiei na pessoa errada. Sienna Brooks.
Agora, o diretor voava para o olho do furacão – o epicentro do que poderia muito bem ser uma peste mortal, com potencial para instaurar o caos no mundo inteiro. Se saísse vivo daquela situação, desconfiava que o seu Consórcio não fosse resistir às suas devastadoras consequências. Os inquéritos e acusações seriam infindáveis.
Será este o meu fim?
Preciso de ar, pensou Robert Langdon. De uma vista... qualquer coisa.
A fuselagem sem janelas parecia se fechar ao seu redor. É claro que o estranho relato do que realmente lhe acontecera naquele dia não estava ajudando em nada. Seu cérebro latejava com tantas perguntas sem resposta... a maioria relacionada a Sienna.
Por mais estranho que parecesse, sentia falta dela.
Ela estava atuando, lembrou. Estava me usando.
Sem dizer nada, ele se afastou do diretor e da Dra. Sinskey e foi até a frente do avião. A porta do cockpit estava aberta e a luz natural que entrava por ali o atraiu feito um farol. Em pé no vão da porta, sem que os pilotos o notassem, deixou que a luz do sol aquecesse seu rosto. O espaço aberto à sua frente era como uma bênção. O céu azul e límpido lhe parecia muito tranquilo... imutável.
Nada é imutável, disse a si mesmo, ainda se esforçando para aceitar a catástrofe em potencial que eles estavam enfrentando.
– Professor? – chamou alguém atrás dele em voz baixa, e Langdon se virou.
De tão espantado, chegou a dar um passo para trás. À sua frente estava o Dr. Ferris. A última vez que o vira, o homem estava se contorcendo no chão da Basílica de São Marcos, sem conseguir respirar. Agora, estava dentro do avião, encostado na divisória, com um boné de beisebol na cabeça e o rosto todo cor-de-rosa e pastoso, coberto de Caladryl. Tinha o peito e o tronco envoltos em ataduras e respirava com dificuldade. Se Ferris estivesse mesmo com a peste, ninguém parecia muito preocupado que fosse transmiti-la.
– O senhor está... vivo? – perguntou Langdon, sem tirar os olhos dele.
Ferris assentiu, parecendo cansado.
– Mais ou menos. – Sua postura havia mudado radicalmente: ele agora estava bem mais relaxado.
– Mas eu achei... – Langdon não terminou a frase. – Na verdade, já não sei muito bem o que pensar.
Ferris lhe abriu um sorriso compreensivo.
– O senhor escutou várias mentiras hoje. Achei que deveria vir pedir desculpas. Como já deve ter adivinhado, eu não trabalho para a OMS nem fui recrutá-lo em Cambridge.
Langdon assentiu, tão esgotado que não conseguia se espantar com mais nada.
– O senhor trabalha para o diretor.
– Isso. Ele me enviou para dar suporte emergencial ao senhor e Sienna... e ajudá-los a escapar da equipe de SMI.
– Nesse caso, parece que executou seu trabalho com perfeição – disse Langdon, lembrando-se de como Ferris havia aparecido no batistério, convencendo-o de que trabalhava na OMS, e, em seguida, auxiliado Sienna e ele a saírem de Florença e fugirem da equipe de Elizabeth Sinskey. – O senhor não é médico, claro.
O homem balançou a cabeça.
– Não, mas hoje interpretei esse papel. Meu trabalho era ajudar Sienna a manter a farsa até o senhor descobrir para onde o projetor apontava. O diretor estava determinado a encontrar a criação de Zobrist para protegê-la da Dra. Sinskey.
– O senhor não imaginava que fosse uma peste? – indagou Langdon, ainda curioso em relação às estranhas erupções e à hemorragia interna de Ferris.
– É claro que não! Quando o senhor mencionou a peste, pensei que fosse apenas uma história que Sienna tivesse lhe contado para mantê-lo motivado. Então entrei no jogo. Pegamos o trem para Veneza... e foi aí que tudo mudou.
– Como assim?
– O diretor assistiu ao vídeo bizarro de Zobrist.
Isso explica tudo.
– E então percebeu que Zobrist era louco.
– Exatamente. Foi aí que ele entendeu no que o Consórcio havia se metido e ficou horrorizado. Na mesma hora exigiu falar com a pessoa que mais conhecia Zobrist, FS-2080, para ver se ela sabia o que ele tinha feito.
– FS-2080?
– Perdão, Sienna Brooks. Esse foi o codinome que ela escolheu para a operação. Parece que tem algo a ver com os transumanistas. E o único jeito de o diretor entrar em contato com Sienna era por meu intermédio.
– A ligação no trem – disse Langdon. – A sua “mãe doente”.
– Bem, é claro que eu não podia atender a ligação do diretor na sua frente, então saí da cabine. Ele me contou sobre o vídeo e eu também fiquei apavorado. Ele esperava que Sienna tivesse sido enganada, mas, quando contei que o senhor e ela estavam falando sobre pestes e não pareciam ter nenhuma intenção de interromper a missão, o diretor concluiu que Sienna e Zobrist estavam juntos nisso. De uma hora para outra, ela virou uma adversária. Ele ordenou que eu o mantivesse informado sobre a nossa posição em Veneza... e disse que iria mandar uma equipe para capturá-la. O agente Brüder e seus homens quase a pegaram na Basílica de São Marcos, mas ela conseguiu escapar.
Langdon fitava o chão com um olhar perdido. Ainda podia ver os belos olhos castanhos de Sienna o encarando do alto do poço antes de ela fugir.
Eu sinto muito, Robert. Por tudo.
– Ela não é fácil – comentou Ferris. – Acho que o senhor não viu quando ela me atacou na basílica.
– Atacou?
– É. Quando os soldados apareceram, eu estava prestes a gritar para revelar onde Sienna estava, mas ela deve ter percebido. Foi então que aplicou um golpe com a base da mão bem no meio do meu peito.
– O quê?!
– Na hora, nem entendi o que havia me atingido. Ela deve ter usado algum golpe de artes marciais. Como eu já estava com um hematoma grave no peito, a dor foi insuportável. Precisei de cinco minutos para recuperar o fôlego. E Sienna arrastou o senhor para a sacada antes que alguma testemunha pudesse revelar o que ela fizera.
Atônito, Langdon se lembrou da senhora italiana que havia gritado para Sienna – L’hai colpito al petto! – e levado com força o punho cerrado contra o próprio peito.
Não!, retrucara Sienna. Ressuscitação cardiopulmonar vai matá-lo! Olhe só para o peito dele!
Ao repassar a cena em sua mente, Langdon percebeu como Sienna Brooks havia pensado depressa. Tivera a presença de espírito de traduzir errado o italiano da senhora. L’hai colpito al petto não era uma sugestão para que Sienna fizesse compressões no peito de Ferris... era uma acusação furiosa: Você deu um soco no peito dele!
No calor do momento, Langdon nem percebera.
Ferris lhe deu um sorriso sem graça.
– O senhor já deve ter ouvido falar que Sienna Brooks é muito inteligente.
Ele assentiu. É, já ouvi falar.
– Os homens de Elizabeth Sinskey me trouxeram de volta para o Mendacium e trataram das minhas lesões. O diretor pediu que eu os acompanhasse para dar suporte de inteligência, porque era a única pessoa, com exceção do senhor, que havia estado com Sienna hoje.
Langdon tornou a assentir. Estava distraído com a irritação na pele de Ferris.
– Mas e o seu rosto? – indagou. – E o hematoma no seu peito? Não é...
– A peste? – Ferris riu e fez que não com a cabeça. – Não sei se o senhor já percebeu, mas, na verdade, hoje eu interpretei dois médicos.
– Como assim?
– Depois que apareci no batistério, o senhor achou que eu lhe parecia vagamente familiar.
– É verdade. Acho que eram os olhos. O senhor me disse que era porque tinha ido me recrutar em Cambridge... – Langdon se deteve. – Mas agora sei que isso é mentira...
– Eu lhe parecia familiar porque nós já tínhamos nos encontrado. Só que não em Cambridge. – Os olhos do outro homem sondaram os de Langdon em busca de alguma indicação de reconhecimento. – Na verdade, fui a primeira pessoa que o senhor viu ao acordar hoje de manhã no hospital.
Langdon visualizou o deprimente quarto hospitalar. Estava zonzo e com a visão comprometida na hora, mas estava seguro de que a primeira pessoa que vira ao acordar fora um médico pálido, mais velho, de sobrancelhas grossas e barba desgrenhada e grisalha, que só falava italiano.
– Não – disse ele. – A primeira pessoa que vi foi o Dr. Marconi...
– Scusi, professore – interrompeu Ferris em um italiano impecável. – Ma non si recorda di me? – Ele curvou as costas como se fosse mais velho, alisou fartas sobrancelhas imaginárias e cofiou uma barba grisalha invisível. – Sono il dottor Marconi.
Langdon ficou de queixo caído.
– O Dr. Marconi... era o senhor?
– Foi por isso que os meus olhos lhe pareceram familiares. Eu nunca tinha usado barba nem sobrancelhas postiças e só percebi tarde demais que era gravemente alérgico à cola, um adesivo à base de látex, que deixou minha pele em carne viva. O senhor deve ter ficado horrorizado quando me viu... levando em conta que estava atento à possível eclosão de uma peste.
Langdon se limitou a encará-lo, lembrando como o Dr. Marconi havia coçado a barba antes de ficar estendido no chão do hospital, com o peito sangrando, após ser atacado por Vayentha.
– Para piorar – continuou Ferris, indicando as ataduras em volta do peito –, meu estopim saiu do lugar quando a operação já havia começado. Não consegui ajeitá-lo a tempo e na hora da detonação ele estava enviesado. Resultado: quebrou uma das minhas costelas e me deixou com um baita hematoma. Passei o dia inteiro sem conseguir respirar direito.
E eu pensando que o senhor estava com a peste.
Ferris inspirou fundo e fez uma careta.
– Na verdade, acho que é melhor eu me sentar outra vez. – Enquanto se afastava, ele apontou para trás de Langdon. – De toda forma, acho que o senhor agora tem companhia.
Langdon se virou e viu a Dra. Sinskey atravessando a cabine a passos largos, seus longos cabelos prateados esvoaçando atrás de si.
– Professor, eu estava à sua procura!
A diretora da OMS parecia exausta, mas, ao mesmo tempo, por mais estranho que fosse, Langdon detectou em seus olhos uma renovada fagulha de esperança. Ela descobriu alguma coisa.
– Desculpe tê-lo deixado sozinho – disse, aproximando-se. – Nós estávamos coordenando a operação e fazendo algumas pesquisas. – Ela indicou a porta aberta do cockpit. – Estou vendo que veio pegar um pouco de luz, não?
Langdon deu de ombros.
– Faltam janelas no seu avião.
Ela lhe exibiu um sorriso compreensivo.
– Por falar em luz, espero que o diretor tenha conseguido esclarecer os acontecimentos recentes.
– Conseguiu, sim, embora eu não tenho gostado nada do que ele me falou.
– Também não gostei – concordou ela, olhando em volta para se certificar de que os dois estavam sozinhos. – Confie em mim – sussurrou –, ele e sua organização vão enfrentar sérias consequências. Eu mesma vou garantir que isso aconteça. Mas, por ora, precisamos nos manter concentrados em localizar o recipiente antes que ele se dissolva e propague o agente infeccioso.
Ou antes que Sienna chegue lá e o ajude a se dissolver.
– Preciso falar com o senhor sobre a construção que abriga o túmulo de Dandolo.
Desde que entendera que aquele era o seu destino, Langdon vinha visualizando a espetacular estrutura. O mouseion de santo saber.
– Acabei de fazer uma descoberta animadora – disse Elizabeth Sinskey. – Falamos ao telefone com um historiador de lá. Ele nem imagina por que estamos interessados no túmulo de Dandolo, claro, mas eu lhe perguntei se ele por acaso sabia o que existe debaixo da sepultura, e adivinhe qual foi a resposta? – Ela sorriu. – Água.
Langdon se espantou.
– Sério?
– Sim, parece que os andares inferiores do edifício estão inundados. Ao longo dos séculos, o lençol freático debaixo dele subiu, submergindo pelo menos dois dos níveis mais baixos. Segundo o historiador, com certeza há vários bolsões de ar e espaços parcialmente submersos lá embaixo.
Meu Deus. Langdon pensou no vídeo de Zobrist e na caverna de iluminação estranha, em cujas paredes cheias de limo ele pudera identificar as tênues sombras verticais de colunas.
– É um recinto submerso.
– Exato.
– Mas, nesse caso... como Zobrist conseguiu descer até lá?
Os olhos da Dra. Sinskey brilharam.
– Isso é o mais impressionante. O senhor não vai acreditar no que acabamos de descobrir.
Nesse exato momento, a menos de 2 quilômetros do litoral de Veneza, na ilha estreita conhecida como Lido, um jato Cessna Citation Mustang decolou da pista do aeroporto de Nicelli, riscando o céu cada vez mais escuro do crepúsculo.
Seu dono, o famoso criador de fantasias Giorgio Venci, não estava a bordo, mas instruíra os pilotos a levarem a jovem e atraente passageira aonde ela precisasse ir.
Na antiga capital bizantina, a noite acabara de cair.
Por toda a extensão da orla do mar de Mármara, postes de luz se acendiam, iluminando uma paisagem de mesquitas reluzentes e minaretes delgados. Era a hora da akşam, por isso alto-falantes espalhados por toda a cidade reverberavam com os lamentos insistentes do adhān, o chamado para a prece.
La-ilaha-illa-Allah.
Não há outro deus senão Deus.
Enquanto os fiéis se apressavam a caminho das mesquitas, o resto da cidade seguia sua vida: universitários barulhentos tomavam cerveja, executivos fechavam negócios, comerciantes ofereciam temperos e tapetes, e turistas assistiam a tudo, maravilhados.
Era um mundo dividido, uma cidade de forças opostas: religiosas e seculares; antigas e modernas; orientais e ocidentais. Situada bem na fronteira geográfica entre Europa e Ásia, aquela cidade atemporal era literalmente a ponte que ligava o Velho Mundo... a um mundo mais velho ainda.
Istambul.
Embora não fosse mais a capital da Turquia, por muitos séculos a cidade fora o epicentro de três impérios distintos: Bizantino, Romano e Otomano. Por esse motivo, Istambul podia ser considerada um dos lugares com maior diversidade histórica no mundo. Do palácio de Topkapi à Mesquita Azul, passando pelo Castelo das Sete Torres, a cidade está repleta de relatos folclóricos de batalhas, glórias e derrotas.
Naquela noite, nas alturas do céu noturno, bem acima das multidões em alvoroço, um avião de transporte C-130 descia através de uma tempestade que se formava, preparando-se para aterrissar no aeroporto de Atatürk. No cockpit, preso pelo cinto de segurança ao assento retrátil atrás dos pilotos, Robert Langdon espiava pelo para-brisa da aeronave, aliviado por terem lhe oferecido um assento com janela.
Sentia-se um tanto revigorado depois de ter comido alguma coisa e cochilado na traseira do avião. Um descanso de quase uma hora, extremamente necessário.
Agora, à sua direita, podia ver as luzes de Istambul, uma península cintilante em forma de chifre que penetrava a mancha escura do mar de Mármara. Aquele era o lado europeu, separado de seu irmão asiático por uma sinuosa faixa de escuridão.
O estreito do Bósforo.
À primeira vista, o Bósforo parecia um talho largo que partia Istambul ao meio. Mas Langdon sabia que, na verdade, o canal era a artéria que alimentava o comércio da cidade. Além de lhe proporcionar dois litorais em vez de um só, o Bósforo permitia a passagem das embarcações do Mediterrâneo para o mar Negro, transformando Istambul em uma escala entre dois mundos.
Conforme o avião descia por uma camada de névoa, os olhos de Langdon vasculharam com atenção a cidade ainda distante, tentando detectar a imensa construção que tinham ido procurar.
O local do túmulo de Enrico Dandolo.
Na realidade, Enrico Dandolo – o traiçoeiro doge de Veneza – não estava enterrado na cidade que governara. Seus restos mortais estavam sepultados no coração do baluarte conquistado por ele em 1202 – o imenso centro urbano que se estendia lá embaixo. Como não poderia deixar de ser, Dandolo jazia no santuário mais espetacular que a cidade que capturara tinha a oferecer, um prédio que até hoje ainda era a joia da coroa daquela região.
Haghia Sophia. Santa Sofia.
Originalmente construído em 360 d.C., o templo tinha sido uma catedral cristã ortodoxa até 1204, quando Enrico Dandolo e a Quarta Cruzada tomaram a cidade e o converteram em igreja católica. Mais tarde, no século XV, após a conquista de Constantinopla pelo sultão Mehmed el-Fatih, a igreja virou mesquita, continuando a ser um local de devoção muçulmano até 1935, quando foi secularizada e transformada em museu.
O mouseion dourado de santo saber, pensou Langdon.
Haghia Sophia não apenas era enfeitada com mais mosaicos de ouro do que São Marcos, mas seu nome significava, literalmente, “Santo Saber”.
Ele visualizou a colossal construção e tentou processar a ideia de que, em algum lugar debaixo dela, uma lagoa escura abrigava um saco submerso e ondulante, preso por um cordão, dissolvendo-se pouco a pouco, preparando-se para liberar seu conteúdo.
Rezou para não chegarem tarde demais.
– Os níveis inferiores do prédio estão inundados – anunciara Elizabeth Sinskey durante o voo, chamando Langdon com um gesto animado para segui-la até a traseira do avião, onde ficava sua área de trabalho. – O senhor não vai acreditar no que acabamos de descobrir. Já ouviu falar em um documentarista chamado Göksel Gülensoy?
Langdon fizera que não com a cabeça.
– Quando eu estava pesquisando a basílica de Santa Sofia, descobri que haviam feito um filme sobre o museu. Um documentário que Gülensoy dirigiu alguns anos atrás.
– Já houve dezenas de filmes sobre Santa Sofia.
– Sim, mas nenhum como esse – disse ela, chegando à área de trabalho. Virou o laptop para que ele pudesse ver. – Leia isso aqui.
Langdon se sentou e deu uma olhada no artigo – um apanhado de várias fontes jornalísticas, entre as quais o Hürriyet Daily News – que falava sobre o último filme de Gülensoy: In the Depths of Hagia Sophia (Nas profundezas de Santa Sofia).
Assim que começou a ler, entendeu por que a Dra. Sinskey estava tão animada. As primeiras três palavras já o fizeram erguer os olhos para ela, espantado. Mergulho com cilindro?
– Eu sei – disse a doutora. – Continue lendo.
Ele tornou a baixar os olhos para o artigo.
mergulho com cilindro sob santa sofia: O documentarista Göskel Gülensoy e sua equipe de mergulhadores localizaram bacias inundadas a centenas de metros de profundidade sob a basílica de Santa Sofia, edifício religioso que é uma das maiores atrações turísticas de Istambul.
Durante a exploração, foram descobertas inúmeras maravilhas arquitetônicas, entre elas túmulos afundados de crianças martirizadas com mais de oitocentos anos, bem como túneis submersos que ligam Santa Sofia ao palácio de Topkapi, ao palácio de Tekfur e às supostas extensões subterrâneas das Masmorras de Anemas.
“Na minha opinião, o que há debaixo de Santa Sofia é ainda mais instigante do que o que se pode ver acima da superfície”, explicou o diretor, que afirma ter tido a inspiração para o filme ao ver uma antiga fotografia de pesquisadores examinando os alicerces do templo de barco, remando por um salão parcialmente submerso.
– O senhor sem dúvida achou o edifício certo! – exclamou Elizabeth Sinskey. – E debaixo dele parece haver grandes bolsões de espaço navegável, muitos deles acessíveis sem equipamento de mergulho. Isso talvez explique o que vimos no vídeo de Zobrist.
Em pé atrás deles, o agente Brüder examinava o monitor do laptop.
– Parece também que os cursos de água sob o edifício se ramificam em direção a diversas áreas fora do prédio. Se o saco de Solublon se dissolver antes de chegarmos, não teremos como impedir que o conteúdo se espalhe.
– O conteúdo... – começou Langdon. – Vocês têm alguma ideia do que seja? Exatamente? Sei que se trata de um patógeno, mas...
– Nós analisamos as imagens com cuidado – respondeu Brüder – e elas sugerem que de fato seja algo biológico, não químico... ou seja, uma substância viva. A julgar pela pequena quantidade que está dentro do recipiente, calculamos que seja altamente contagiosa e tenha a capacidade de se replicar. Ainda não temos certeza se é algo que se propaga pela água, como uma bactéria, ou algo que, uma vez liberado, tem a capacidade de se propagar pelo ar, como um vírus. As duas coisas são possíveis.
– Agora estamos reunindo informações sobre a temperatura dos lençóis freáticos da região – disse a Dra. Sinskey – para tentar avaliar a que tipos de agentes infecciosos essas condições seriam favoráveis. Mas Zobrist era bastante talentoso e pode muito bem ter criado uma substância com capacidades únicas. Além disso, desconfio que tenha tido um motivo para escolher esse local específico.
Brüder meneou a cabeça, resignado, e compartilhou com eles sua análise do incomum mecanismo de dispersão – o saco de Solublon submerso –, que começava a parecer a todos ao mesmo tempo simples e brilhante. Ao suspender o saco tanto debaixo da terra quanto debaixo d’água, Zobrist havia criado um ambiente de incubação excepcionalmente estável: com temperatura constante, sem radiação solar, dotado de isolamento cinético e cem por cento reservado. Se escolhesse um saco de durabilidade adequada, ele podia deixar o agente infeccioso amadurecendo sozinho por um período antes de ele se autoliberar exatamente no momento programado.
Mesmo que Zobrist nunca voltasse ao local.
O súbito tranco do avião ao tocar o solo trouxe Langdon de volta para o seu assento retrátil no cockpit. Os pilotos frearam com força e, em seguida, taxiaram até um hangar afastado, onde pararam a imensa aeronave.
Langdon quase esperava ser acolhido por um exército de funcionários da OMS usando roupas de proteção. No entanto, a única pessoa que os aguardava era o motorista de uma grande van branca com o emblema de uma cruz vermelha com quatro braços do mesmo comprimento.
A Cruz Vermelha está aqui? Langdon teve que olhar outra vez para se dar conta de que outra organização também usava aquele símbolo. A embaixada suíça.
Tirou o cinto de segurança e foi procurar Elizabeth Sinskey enquanto todos se preparavam para desembarcar.
– Onde está todo mundo? – perguntou. – A equipe da OMS? As autoridades turcas? Já estão todos em Santa Sofia?
A Dra. Sinskey o fitou com uma expressão preocupada.
– Na verdade, decidimos não alertar as autoridades locais – explicou. – Já contamos com a melhor equipe de SMI do ECDC, então achamos que, por enquanto, o melhor era agir com discrição e não correr o risco de provocar um pânico generalizado.
Ali perto, Langdon pôde ver Brüder e seus homens fechando os zíperes de grandes bolsas de viagem pretas que continham todo tipo de equipamento anticontaminação: biotrajes, respiradores, aparelhos eletrônicos de detecção.
Brüder colocou sua bolsa sobre o ombro e se aproximou.
– Estamos prontos. Vamos entrar lá, encontrar o túmulo de Dandolo, tentar ouvir um barulho de água, como sugere o poema, e então minha equipe e eu vamos reavaliar a situação e decidir se pedimos ou não o apoio das autoridades.
Langdon logo viu que o plano tinha furos.
– Santa Sofia fecha na hora do pôr do sol. Não vamos conseguir entrar lá sem liberação das autoridades.
– Vamos, sim – interveio a doutora. – Tenho um contato na embaixada suíça que ligou para o curador do museu Santa Sofia e solicitou um tour VIP assim que chegássemos. O curador aceitou.
Langdon quase deu uma gargalhada.
– Um tour VIP para a diretora da OMS? E um exército de soldados com bolsas cheias de equipamento anticontaminação? A senhora não acha que vamos chamar um pouco a atenção?
– A equipe de SMI e o equipamento vão ficar no carro enquanto Brüder, o senhor e eu avaliamos a situação – respondeu Sinskey. – Além disso, só para deixar claro, o convidado VIP não sou eu. É o senhor.
– Como é que é?!
– Informamos ao museu que um célebre professor universitário americano tinha chegado a Istambul com uma equipe de pesquisa para escrever um artigo sobre os símbolos de Santa Sofia, mas que o voo dele tinha sofrido um atraso de cinco horas e chegado depois do horário de visitação. Como o professor e sua equipe iriam embora amanhã de manhã, nós esperávamos que...
– Está bem, já entendi – disse Langdon.
– O museu vai mandar um funcionário nos encontrar lá. Ao que parece, ele é um grande fã dos seus artigos sobre arte islâmica. – Elizabeth Sinskey lhe deu um sorriso cansado, obviamente se esforçando para parecer otimista. – Eles nos prometeram que o senhor vai ter acesso a todos os cantos do edifício.
– E o mais importante – declarou Brüder – é que estaremos totalmente sozinhos lá dentro.
Robert Langdon olhava com uma expressão vazia pela janela da van, que disparava pela autoestrada litorânea entre o aeroporto de Atatürk e o centro de Istambul. Os oficiais suíços tinham dado um jeito de contornar a burocracia alfandegária, fazendo com que Langdon, a Dra. Sinskey e os outros membros do grupo conseguissem sair do aeroporto em questão de minutos.
Elizabeth Sinskey ordenara ao diretor e a Ferris que permanecessem a bordo do C-130 com vários funcionários da OMS para tentarem descobrir o paradeiro de Sienna Brooks.
Embora ninguém acreditasse mesmo que Sienna fosse conseguir chegar a Istambul a tempo, temia-se que ela pudesse telefonar para algum dos discípulos de Zobrist na Turquia e pedir ajuda para concluir seu plano louco antes de a equipe da Dra. Sinskey poder intervir.
Sienna seria mesmo capaz de cometer assassinato em massa? Langdon ainda tinha dificuldade em aceitar tudo o que acontecera naquele dia. Por mais que lhe doesse, no entanto, era obrigado a encarar a verdade: Você nunca a conheceu, Robert. Ela o enganou.
Uma leve chuva começava a cair sobre a cidade e ele sentiu um súbito cansaço, embalado pelo chiado repetitivo dos limpadores de para-brisa. À sua direita, no mar de Mármara, podia ver as luzes dos iates de luxo que passavam e dos colossais navios-tanque que iam e vinham do porto de Istambul mais à frente. Por toda a orla, minaretes iluminados despontavam, esguios e elegantes, acima das cúpulas das mesquitas – silenciosos lembretes de que, embora Istambul fosse uma cidade moderna e secular, seu núcleo sempre havia sido a religião.
Para Langdon, aquele trecho de 16 quilômetros de autoestrada sempre lhe parecera um dos mais bonitos da Europa. Exemplo perfeito do contraste entre velho e novo que existia em Istambul, a estrada margeava parte da muralha de Constantino, construída mais de dezesseis séculos antes do nascimento do homem que hoje dava nome à avenida: John F. Kennedy. O presidente americano tinha sido um grande admirador do projeto de Kemal Atatürk de fazer surgir uma república turca das cinzas de um império decaído.
Com vistas incomparáveis do mar, a avenida Kennedy serpenteava por espetaculares bosques e parques históricos, passava pelo porto de Yenikapi e, por fim, se embrenhava por entre os limites da cidade e o estreito de Bósforo, onde prosseguia rumo ao norte até contornar todo o Chifre de Ouro. Era lá que, bem acima da cidade, erguia-se a fortaleza otomana do palácio de Topkapi. Com uma perspectiva privilegiada do curso do Bósforo, o palácio era um dos destinos preferidos pelos turistas, que o visitavam para admirar tanto a vista quanto a espantosa coleção de tesouros otomanos, da qual faziam parte o manto e a espada que supostamente haviam pertencido ao profeta Maomé.
Não iremos tão longe, pensou Langdon, visualizando seu destino: Santa Sofia, que se assomava no centro da cidade mais ou menos perto dali.
Quando saíram da avenida Kennedy e começaram a traçar um caminho sinuoso pela populosa cidade, Langdon olhou para as hordas de pessoas nas ruas e calçadas e voltou a se sentir assombrado pelas conversas que tivera ao longo do dia.
Superpopulação.
Peste.
As aspirações ensandecidas de Zobrist.
Embora entendesse desde o início qual era o destino daquela missão de SMI, só agora a processava por completo. Estamos a caminho do marco zero. Pensou no saco de fluido marrom-amarelado que se dissolvia aos poucos e perguntou-se como havia se permitido chegar àquela situação.
O estranho poema que Langdon e Sienna tinham descoberto atrás da máscara mortuária de Dante acabara por levá-lo até ali, a Istambul. Fora ele quem guiara a equipe de SMI até Santa Sofia e sabia que teriam mais a fazer quando chegassem lá.
Ajoelhai-vos no dourado mouseion de santo saber,
e levai ao chão vossa orelha,
para ouvir o som da água que corre.
Descei às profundezas do palácio afundado...
pois lá, na escuridão, espreita o monstro ctônico,
submerso nas águas rubras de sangue...
da lagoa que não reflete as estrelas.
Sentiu-se inquieto por saber que o último canto do Inferno de Dante terminava com uma cena praticamente idêntica: após uma longa descida pelo mundo inferior, o poeta e Virgílio chegam ao ponto mais profundo do Inferno. Quando acreditam estar presos ali, ouvem um barulho de água correndo em meio às pedras debaixo dos seus pés e seguem o regato por entre fendas e frestas... até chegar à segurança.
Dante escreveu: Existe lá embaixo um lugar... que com os olhos não se pode distinguir, mas sim pelo som de um regato a descer pelas fendas de uma rocha... por esse caminho oculto entramos, meu guia e eu, para ao mundo de luz retornar.
Estava claro que a cena de Dante servira de inspiração ao poema de Zobrist, embora o geneticista parecesse ter feito tudo ao contrário. Langdon e seus companheiros de fato seguiriam um som de água corrente, mas, ao contrário do poeta, não estariam deixando o Inferno para trás... mas entrando nele.
Enquanto a van manobrava por ruas cada vez mais estreitas e bairros cada vez mais populosos, Langdon começou a perceber a lógica perversa que levara Zobrist a escolher o centro de Istambul como epicentro de uma pandemia.
Onde o Oriente encontra o Ocidente.
A encruzilhada do mundo.
Em diversas ocasiões ao longo da história, Istambul havia sido assolada por pestes mortais que dizimaram fatias imensas de sua população. Na realidade, durante a fase final da Peste Negra, passara a ser conhecida como o “núcleo difusor da peste” no império. Segundo relatos, a doença chegara a matar mais de dez mil habitantes por dia. Muitos quadros otomanos famosos mostravam cidadãos desesperados cavando valas comuns para enterrar montanhas de cadáveres nos campos de Taksim, que ficava nos arredores da cidade.
Langdon torceu para Karl Marx ter se enganado ao afirmar: “A história se repete.”
Enquanto a chuva caía pelas ruas, as pessoas cuidavam de seus afazeres vespertinos sem desconfiar do que estava acontecendo. Uma turca bonita chamava os filhos para casa, pois era hora do jantar; dois velhotes bebiam juntos na varanda de um café; um casal bem-vestido caminhava de mãos dadas debaixo de um guarda-chuva; e um homem de smoking pulava de um ônibus e saía correndo pela rua, protegendo um violino sob o casaco, aparentemente atrasado para algum concerto.
Langdon se pegou estudando os rostos à sua volta, tentando imaginar as minúcias da vida de cada uma daquelas pessoas.
A massa é composta por indivíduos.
Fechou os olhos, virou a cabeça na direção oposta à janela e tentou se afastar do caminho mórbido pelo qual seus pensamentos haviam enveredado. O estrago, porém, já estava feito. Na escuridão de sua mente, uma imagem indesejada se materializou: a paisagem desolada do Triunfo da Morte, de Bruegel, uma representação hedionda da pestilência, da agonia e da tortura que devastavam uma cidade à beira-mar.
A van dobrou à direita na avenida Torun e, por um instante, Langdon pensou que eles haviam chegado. À esquerda, uma imensa mesquita se erguia em meio à bruma.
Só que aquela não era Santa Sofia.
A Mesquita Azul, percebeu ele assim que viu os seis minaretes do templo, afunilados, em formato de lápis, com suas múltiplas sacadas şerefe que subiam em direção ao céu até terminarem em pontas afiadas. Certa vez lera que o aspecto exótico e digno de um conto de fadas dos minaretes daquela mesquita havia inspirado o célebre castelo da Cinderela da Disney. A Mesquita Azul devia seu nome ao esplendoroso mar de azulejos azuis que enfeitava suas paredes internas.
Estamos quase lá, pensou enquanto a van seguia depressa, virando na avenida Kabasakal e atravessando a vasta esplanada do parque de Sultanahmet, entre a Mesquita Azul e Santa Sofia, famosa pela vista que proporcionava dos dois monumentos.
Estreitou os olhos para enxergar através do para-brisa molhado, vasculhando o horizonte à procura do contorno de Santa Sofia, mas a chuva e os faróis dos outros veículos prejudicavam a visibilidade. Para piorar, o tráfego na avenida parecia ter parado.
Tudo que via era uma fila de luzes de freio.
– É algum tipo de evento – informou o motorista. – Um show, se não me engano. Talvez seja mais rápido ir à pé.
– Falta muito? – perguntou a Dra. Sinskey.
– Basta atravessar esse parque. Uns três minutos. É muito seguro.
Elizabeth Sinskey assentiu para Brüder, virando-se em seguida para a equipe de SMI.
– Fiquem na van. Cheguem o mais perto que puderem do monumento. O agente Brüder entrará em contato em breve.
Com essas palavras, ela, Brüder e Langdon saltaram e seguiram para o parque.
Enquanto o trio avançava depressa pelos caminhos margeados de árvores de Sultanahmet, as copas de folhas largas proporcionaram uma certa proteção do tempo cada vez pior. As trilhas eram pontuadas por placas que indicavam aos visitantes as muitas atrações do parque: um obelisco egípcio vindo de Luxor, a Coluna da Serpente do Templo de Apolo em Delfos e o marco Milion, que outrora servia como “ponto zero” para medir todas as distâncias no Império Bizantino.
Por fim, chegaram a um espelho d’água circular que marcava o centro do parque. Langdon ergueu os olhos para o leste.
Santa Sofia.
Mais do que uma construção, o templo era uma montanha.
A silhueta descomunal do monumento cintilava sob a chuva, como uma cidade dentro da cidade. O domo central – de uma largura inacreditável, estriado de cinza-prata – parecia repousar sobre uma série de outras construções com cúpulas que se aglomeravam ao seu redor. Quatro minaretes altíssimos – cada um dotado de uma única sacada e de uma ponta cinza-prata – erguiam-se dos cantos do edifício, tão distantes do domo central que mal era possível determinar se todos faziam parte de uma única estrutura.
Elizabeth Sinskey e Brüder, que até então vinham avançando em um trote regular e compenetrado, pararam de repente e voltaram os olhos para cima, erguendo-os cada vez mais alto, à medida que tentavam assimilar as dimensões da construção que se assomava diante deles.
– Meu Deus! – exclamou Brüder, incrédulo. – É dentro disso que vamos fazer nossa busca?
Estou aprisionado aqui: era essa a sensação que o diretor tinha enquanto andava de um lado para outro dentro do avião de transporte C-130. Concordara em acompanhar a Dra. Sinskey até Istambul para ajudá-la a evitar aquela crise antes que a situação fugisse totalmente ao controle.
O diretor sabia muito bem que cooperar com a OMS poderia ajudá-lo a mitigar quaisquer consequências punitivas que seu envolvimento involuntário naquele episódio pudesse acarretar. Mas agora estou sob a custódia dela.
Assim que o avião parou dentro do hangar reservado a aeronaves do governo no aeroporto de Atatürk, a Dra. Sinskey e sua equipe desembarcaram. A diretora da OMS então ordenou ao diretor e a seus poucos funcionários do Consórcio que permanecessem a bordo.
Quando tentou sair para respirar um pouco de ar puro, o diretor foi impedido pelos pilotos sisudos, que lembraram-lhe as ordens da Dra. Sinskey de que ninguém desembarcasse.
Não estou gostando nada disso, pensou, sentando-se e começando a perceber quanto seu futuro era incerto.
Havia muito tempo que estava acostumado a ser o mestre das marionetes, a ter total controle sobre os acontecimentos – mas, de repente, todo o seu poder lhe havia sido roubado.
Zobrist, Sienna, Sinskey.
Tinha sido afrontado por aqueles três... manipulado, até.
Agora, enjaulado naquela estranha cela sem janelas que era o avião da OMS, ele começou a imaginar se a sua sorte não teria se esgotado... e se por acaso aquela situação não seria uma espécie de expiação cármica por uma vida inteira de desonestidade.
Eu ganho a vida mentindo.
Sou um fornecedor de informações enganosas.
Embora não fosse a única pessoa no mundo a vender mentiras, o diretor havia chegado ao “topo da cadeia alimentar” em seu ramo de negócios. Seus concorrentes pertenciam a uma raça bem diferente e o simples fato de ser associado a eles lhe desagradava.
A internet estava repleta de organizações com nomes como Alibi Company, que faziam fortuna em todo o mundo proporcionando a cônjuges infiéis meios de trair sem serem pegos. Com a promessa de “fazer o tempo parar” para permitir a seus clientes escapar durante um certo período de maridos, mulheres ou filhos, essas empresas eram mestres na arte de criar ilusões: inventavam congressos, consultas médicas e até mesmo casamentos – que sempre incluíam falsos convites, brochuras, passagens de avião e confirmações de reserva em hotéis, chegando até a fornecer números de telefone que tocavam nas centrais da Alibi Company, onde profissionais treinados se faziam passar por quaisquer recepcionistas ou contatos necessários à farsa.
O diretor, contudo, nunca perdera seu tempo com artifícios tão fúteis. Dedicava-se apenas às farsas em grande escala, atendendo a clientes dispostos a pagar milhões de dólares por serviços da mais alta qualidade.
Governos.
Grandes corporações.
Um ou outro milionário.
Para alcançar seus objetivos, esses clientes teriam à sua disposição todos os recursos e funcionários, toda a experiência e criatividade do Consórcio. Mas, acima de tudo, pagavam pela possibilidade de negar tudo – pela garantia de que qualquer ilusão fabricada para sustentar sua farsa jamais seria rastreada até eles.
Fosse para valorizar um mercado de ações, justificar uma guerra, ganhar uma eleição ou atrair um terrorista para fora de seu esconderijo, os poderosos do mundo dependiam da disseminação de informações enganosas para ajudar a moldar a opinião pública.
Era assim desde sempre.
Nos anos 1960, os russos haviam construído toda uma falsa rede de espionagem encarregada de transmitir informações ilegítimas que os britânicos passaram anos interceptando. Em 1947, a Força Aérea americana havia fabricado um complexo factoide envolvendo óvnis para desviar a atenção de um acidente aéreo ultrassecreto em Roswell, no Novo México. Mais recentemente, o mundo fora levado a acreditar na existência de armas de destruição em massa no Iraque.
O diretor passara quase três décadas ajudando os poderosos a proteger, conservar e aumentar seu poder. Embora tomasse muito cuidado com os contratos que fechava, sempre temera que um dia aceitasse o trabalho errado.
E agora esse dia chegou.
Ele era da opinião de que todo desastre de grandes proporções podia ser rastreado até um instante específico – um encontro fortuito, uma decisão equivocada, um olhar indiscreto.
Naquele caso, a seu ver, esse instante ocorrera uma década antes, quando ele contratara uma jovem estudante de medicina a fim de ganhar algum dinheiro. A argúcia, a incrível facilidade para idiomas e seu dom para improvisação fizeram com que se destacasse sem demora no Consórcio.
Sienna Brooks era um talento nato.
Ela logo entendera a natureza das atividades do Consórcio e o diretor sentira que a moça tinha experiência em guardar segredos. Durante quase dois anos, havia trabalhando para a organização em troca de um generoso salário que a ajudava a pagar a faculdade de medicina. Então, sem qualquer aviso, anunciou que iria embora. Queria salvar o mundo e, segundo lhe dissera, não poderia fazer isso no Consórcio.
O diretor jamais imaginara que Sienna Brooks fosse reaparecer quase dez anos depois, trazendo consigo uma espécie de presente – um cliente em potencial, riquíssimo.
Bertrand Zobrist.
A lembrança enfureceu o diretor.
É tudo culpa de Sienna.
Ela participou do plano de Zobrist desde o início.
Ali perto, em volta da mesa de reunião improvisada do C-130, os funcionários da OMS falavam ao telefone e discutiam, suas vozes cada vez mais exaltadas.
– Sienna Brooks?! – indagou um deles, gritando ao telefone. – Tem certeza? – O homem escutou por alguns instantes com o cenho franzido. – Certo, descubra os detalhes para mim. Sim, eu espero.
Ele cobriu o fone com a mão e se virou para os colegas.
– Parece que Sienna Brooks saiu da Itália logo depois de nós.
Todos à mesa ficaram tensos.
– Como é possível? – perguntou uma funcionária. – Nós bloqueamos o aeroporto, as pontes, a estação ferroviária...
– Da pista de pouso de Nicelli – respondeu-lhe o colega. – No Lido.
– Não pode ser – retrucou a mulher, balançando a cabeça. – Nicelli é um ovo. Nenhum voo decola de lá. Eles só fazem passeios turísticos de helicóptero e...
– Sienna Brooks teve acesso a um jatinho particular. Eles ainda estão averiguando. – Ele tornou a levar o fone à boca. – Sim, estou aqui. O que vocês descobriram? – Enquanto a pessoa do outro lado da linha o atualizava, seus ombros foram se encurvando cada vez mais, até que ele acabou se sentando. – Entendi. Obrigado. – O funcionário desligou.
Seus colegas o encaravam com expectativa.
– O jato em que ela embarcou estava a caminho da Turquia – anunciou ele, esfregando os olhos.
– Então vamos ligar para o Comando Europeu de Transporte Aéreo! – exclamou alguém. – E mandar interceptarem a aeronave!
– Não adianta – respondeu o funcionário. – Ela pousou há doze minutos na pista particular de Hezarfen, a apenas 25 quilômetros daqui. Sienna Brooks escapou.
A chuva agora fustigava a cúpula ancestral de Santa Sofia.
Durante quase mil anos aquela havia sido a maior igreja do mundo e mesmo agora era difícil imaginar algo maior. Ao vislumbrá-la outra vez, Langdon lembrou que o imperador Justiniano, ao ver Santa Sofia concluída, recuara um passo e exclamara com orgulho: “Salomão, eu o superei!”
A Dra. Sinskey e Brüder marchavam cada vez mais decididos em direção à monumental construção, que parecia aumentar de tamanho conforme eles se aproximavam.
Os caminhos que conduziam à estrutura eram margeados pelas antigas balas de canhão usadas pelas forças de Mehmet, o Conquistador – um lembrete decorativo de que a história daquele edifício tinha sido repleta de violência, pois fora conquistado e readaptado para atender às necessidades espirituais de diversas potências vitoriosas.
Quando se aproximaram da fachada sul, Langdon olhou para a direita em direção aos três anexos em formato de silo, encimados por cúpulas, que pareciam brotar da construção principal: os mausoléus dos sultões. Rezava a lenda que um deles, Murad III, tivera mais de cem filhos.
O toque de um celular cortou o ar e Brüder pegou o telefone no bolso. Depois de checar o identificador de chamadas, atendeu, lacônico:
– Alguma novidade?
Escutando a resposta, começou a balançar a cabeça com incredulidade.
– Como pode? – Ouviu mais um pouco e bufou. – Entendido. Mantenham-me informado. Estamos quase entrando. – Ele desligou.
– O que houve? – perguntou Elizabeth Sinskey.
– Fiquem de olhos abertos – respondeu Brüder, olhando em volta. – É possível que tenhamos companhia. – Ele tornou a olhar para a doutora. – Parece que Sienna Brooks está em Istambul.
Langdon o encarou. Para começar, não conseguia acreditar que Sienna tivesse encontrado um meio de chegar à Turquia. Em segundo lugar, depois de fugir de Veneza, ela estava se arriscando a ser capturada e talvez até morta para garantir o sucesso do plano de Zobrist.
Igualmente alarmada, a Dra. Sinskey inspirou fundo, como se quisesse fazer mais perguntas a Brüder, mas pareceu mudar de ideia e se virou para Langdon.
– Para que lado?
Langdon apontou para a esquerda, depois da quina sudoeste do prédio.
– A Pia de Abluções fica por ali – falou.
O ponto de encontro com o funcionário do museu era um poço coberto por uma grade ornamentada, outrora usado para as abluções rituais que antecediam a prece muçulmana.
– Professor Langdon! – gritou uma voz de homem quando eles se aproximaram.
Um turco sorridente saiu de baixo da cúpula octogonal que encimava o poço. Agitava os braços com animação.
– Por aqui, professor!
Langdon e os outros caminharam depressa até lá.
– Olá. Meu nome é Mirsat – falou, com um inglês carregado e cheio de entusiasmo. Era um homem franzino, de cabelos ralos, que usava óculos de aspecto professoral e um terno cinza. – É uma grande honra recebê-lo.
– A honra é toda nossa – respondeu Langdon, apertando a mão de Mirsat. – Obrigado pela hospitalidade com tão pouca antecedência.
– Claro, claro!
– Prazer, Elizabeth Sinskey – disse a doutora, apertando a mão de Mirsat e fazendo um gesto em direção a Brüder. – E este é Christoph Brüder. Viemos ajudar o professor Langdon. Sinto muito pelo atraso do nosso avião. Foi muita bondade sua nos receber.
– Imaginem! Não é nada! – respondeu Mirsat, efusivo. – Para o professor Langdon, eu ofereceria um tour particular a qualquer hora. O pequeno livro dele, Símbolos cristãos no mundo muçulmano, é um dos mais procurados na loja de souvernirs do nosso museu.
Sério?, pensou Langdon. Agora sei qual é o único lugar do mundo em que esse livro vende.
– Podemos ir? – indagou Mirsat, acenando para que os outros o seguissem.
Os quatro atravessaram a passos rápidos um pequeno espaço aberto, passaram pela entrada normal de turistas e seguiram até aquela que originalmente havia sido a entrada principal do edifício – três arcos bem recuados com imensas portas de bronze.
Dois seguranças armados os esperavam. Ao verem Mirsat, destrancaram e abriram uma das portas.
– Sağ olun – disse o funcionário do museu, murmurando uma das poucas expressões em turco que Langdon conhecia: uma forma especialmente educada de agradecimento.
Assim que o grupo entrou, os seguranças fecharam as pesadas portas e o baque ressoou pelo interior de pedra.
Langdon e os outros três agora estavam no nártex de Santa Sofia – uma estreita antecâmara habitual nas igrejas cristãs que fazia as vezes de anteparo arquitetônico entre o divino e o profano.
Uma espécie de fosso, como os que protegem os castelos, só que espiritual, era como Langdon costumava descrevê-los.
O grupo seguiu em frente até um segundo conjunto de portas e Mirsat abriu uma delas. Do outro lado, em vez do santuário que esperava ver, Langdon deparou com um segundo nártex, um pouco maior que o primeiro.
Um nártex interior, percebeu o professor, que havia se esquecido de que o santuário de Santa Sofia tinha dois níveis de proteção do mundo externo.
Na intenção de preparar o visitante para o que o aguardava, o nártex interior era bem mais ornamentado que o exterior, com paredes de pedra polida que reluziam à luz de elegantes lustres. Do outro lado desse espaço sereno ficavam quatro portas e, acima delas, havia mosaicos espetaculares que Langdon se pegou admirando com atenção.
Mirsat foi até a maior das portas – um imenso portal revestido de bronze.
– A Porta Imperial – sussurrou, com a voz quase eufórica de tanta animação. – Na época bizantina, essa porta era reservada para uso particular do imperador. Os turistas em geral não passam por ela, mas hoje é uma noite especial.
Ele estendeu a mão para abri-la, mas se deteve.
– Antes de entrarmos – murmurou –, gostaria de saber uma coisa: há algo de especial que os senhores queiram ver lá dentro?
Langdon, a Dra. Sinskey e Brüder se entreolharam.
– Sim – respondeu Langdon. – Há muito que se ver, claro, mas, se possível, gostaríamos de começar pelo túmulo de Enrico Dandolo.
Mirsat inclinou a cabeça, como se não tivesse ouvido direito.
– Como? Os senhores gostariam de ver... o túmulo de Dandolo?
– Isso.
Mirsat pareceu decepcionado.
– Mas, professor... o túmulo de Dandolo é tão simples. Não tem símbolo nenhum. Temos coisas muito melhores a oferecer.
– Eu sei – respondeu Langdon com educação. – Mesmo assim, ficaríamos muito gratos se o senhor pudesse nos levar até lá.
Depois de passar algum tempo encarando Langdon, Mirsat ergueu os olhos para o mosaico logo acima da porta, que o americano havia admirado segundos antes. Era uma imagem do século IX do Cristo Pantocrator – a consagrada imagem de Jesus segurando o Novo Testamento na mão esquerda e dando a bênção com a direita.
Então, como se uma luz houvesse se acendido de repente na mente do guia, os cantos de seus lábios se curvaram num sorriso cúmplice e ele começou a agitar um dedo.
– Esperto! O senhor é muito esperto!
Langdon se limitou a encará-lo.
– O quê?
– Não se preocupe, professor – respondeu Mirsat com um sussurro conspiratório. – Não vou contar a ninguém o que o senhor realmente veio fazer aqui.
Elizabeth Sinskey e Brüder lançaram olhares intrigados para Langdon.
Ele se limitou a dar de ombros enquanto Mirsat empurrava a pesada porta e os conduzia para o interior do templo.
Aquele espaço já havia sido chamado de Oitava Maravilha do Mundo e, uma vez lá dentro, Langdon não se sentia inclinado a discordar.
Quando o grupo cruzou o limiar e entrou no colossal santuário, o professor foi lembrado de que Santa Sofia precisava de apenas um segundo para fazer os visitantes perceberem a impressionante magnitude de suas dimensões.
O recinto era tão amplo que, diante dele, até mesmo as grandes catedrais da Europa pareciam pequenas. Langdon sabia que a espantosa força de sua imensidão era em parte ilusão – um dramático efeito colateral de sua planta em estilo bizantino, com um naos centralizado que concentrava todo o espaço interior em um único ambiente quadrado, em vez de estendê-lo pelos quatro braços de uma planta cruciforme, estilo adotado nas catedrais posteriores.
Este edifício é setecentos anos mais antigo do que a Notre-Dame, pensou Langdon.
Depois de reservar alguns instantes para absorver a vastidão do espaço à sua volta, ele se permitiu erguer os olhos, lançando-os a mais de 50 metros de altura, até a imensa cúpula dourada que coroava o templo. Quarenta nervuras irradiavam do centro, como raios de sol, estendendo-se até uma arcada circular formada por quarenta janelas abobadadas. Durante o dia, a luz que entrava por essas janelas se refletia – mais de uma vez – nos cacos de vidro incrustados nos mosaicos dourados, criando a “luz mística” que tornara Santa Sofia tão famosa.
Langdon só tinha visto a atmosfera dourada daquele recinto reproduzida com exatidão em pintura uma única vez. John Singer Sargent. Não era de espantar que, ao pintar seu famoso quadro de Santa Sofia, o artista americano houvesse limitado sua paleta a múltiplos tons de uma mesma cor.
Dourado.
A cintilante cúpula, muitas vezes chamada de “o domo do próprio paraíso”, era sustentada por quatro arcos monumentais, escorados por uma série de semicúpulas e tímpanos. Esses suportes, por sua vez, tinham como base outro nível de semicúpulas e arcadas ainda menores, criando um efeito em cascata de formas arquitetônicas que desciam do céu em direção à terra.
Cabos compridos desciam direto da cúpula, também do céu à terra, embora por um caminho mais direto. Um mar de lustres acesos pendia deles, parecendo pairar tão perto do chão que era como se os visitantes mais altos corressem o risco de bater com a cabeça. Na verdade, isso era apenas mais uma ilusão causada pela magnitude do espaço, pois os lustres estavam a cerca de 4 metros de altura.
Como em todos os grandes santuários, o tamanho prodigioso de Santa Sofia tinha dois objetivos. Em primeiro lugar, servia para provar a Deus quanto o homem era capaz de se esforçar para prestar homenagem a Ele. Em segundo, funcionava como uma espécie de tratamento de choque para os fiéis – um espaço tão imponente que aqueles que nele entravam se sentiam diminuídos, seus egos aniquilados e sua existência física e importância cósmica reduzida ao tamanho de uma simples partícula diante de Deus... um átomo nas mãos do Criador.
Até o homem não ser nada, Deus nada pode fazer com ele. Martinho Lutero havia pronunciado essas palavras no século XVI, mas o conceito fazia parte da mentalidade dos construtores desde os primeiros exemplos de arquitetura religiosa.
Langdon olhou para Brüder e a Dra. Sinskey, que baixaram os olhos, antes erguidos para as alturas, até o nível do chão.
– Jesus! – exclamou Brüder.
– Sim! – respondeu Mirsat, animado. – E Alá e Maomé também!
Langdon deu uma risadinha quando o guia conduziu o olhar de Brüder até o altar-mor, onde um imenso mosaico de Jesus era ladeado por dois enormes discos que traziam gravados, em caligrafia rebuscada, os nomes em árabe de Alá e Maomé.
– Para lembrar aos visitantes os diversos usos deste espaço sagrado – explicou Mirsat –, este museu exibe tanto a iconografia cristã da época em que Santa Sofia era uma basílica quanto a iconografia islâmica de seus tempos de mesquita. – Ele sorriu com orgulho. – Apesar do conflito entre essas duas religiões no mundo real, achamos que os símbolos funcionam muito bem juntos. Sei que o senhor concorda conosco, professor.
Langdon assentiu com sinceridade, lembrando-se de que toda a iconografia cristã havia sido coberta com cal quando o edifício fora transformado em mesquita. O trabalho de restauração dos símbolos cristãos, agora lado a lado com os islâmicos, havia gerado um efeito hipnótico – em especial pelo fato de o estilo e a sensibilidade das duas iconografias serem inteiramente opostos.
A tradição cristã privilegiava imagens literais de Deus e santos, ao passo que o Islã se concentrava na caligrafia e nas formas geométricas para representar a beleza do universo de Deus. Segundo a tradição islâmica, como só Deus podia gerar a vida, não cabia ao homem criar imagens que a representassem – fossem elas de Deus, de pessoas ou mesmo de animais.
Langdon se lembrou de ter tentado explicar esse conceito a seus alunos certa vez:
– Um Michelangelo muçulmano, por exemplo, jamais teria pintado o rosto de Deus no teto da Capela Sistina. Em vez disso, teria escrito o nome de Deus. Retratar o rosto Dele teria sido considerado blasfêmia.
Em seguida, explicara por quê:
– Tanto o cristianismo quanto o islamismo são logocêntricos, ou seja, centrados na Palavra. Na tradição cristã, a Palavra se fez carne no livro de João: “Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós.” Portanto, retratar a Palavra em forma humana era aceitável. Mas, na tradição islâmica, a Palavra não se fez carne, portanto, deve permanecer sob a forma de palavra. Na maioria dos casos, são representações caligráficas dos nomes das figuras sagradas do islamismo.
Um de seus alunos resumira a complexa história com uma nota de rodapé curiosamente precisa: “Cristãos gostam de rostos; muçulmanos gostam de palavras.”
– Aqui os senhores podem ver uma mistura única de cristianismo e islamismo – prosseguiu Mirsat, indicando com um gesto amplo o espetacular recinto.
Ele se apressou em mostrar a fusão de símbolos na imensa abside, dentre os quais se destacava a Virgem e Menino com os olhos voltados para um mirabe – nicho semicircular que, nas mesquitas, aponta na direção de Meca. Ali perto, uma escadaria subia até um púlpito parecido com aqueles usados na declamação dos sermões cristãos, mas que na verdade era um mimbar, a plataforma sagrada a partir da qual o imame conduz as preces da sexta-feira. Da mesma forma, a estrutura em forma de tablado que se assemelhava à galeria de um coro cristão era de fato uma dikka, a plataforma elevada na qual o muezim se ajoelha para entoar o cântico em resposta às preces do imame.
– Mesquistas e catedrais são surpreendentemente parecidas – afirmou Mirsat. – As tradições de Oriente e Ocidente não são tão diferentes quanto se imagina!
– Mirsat? – pressionou Brüder com um tom impaciente. – Gostaríamos mesmo de ver o túmulo de Dandolo. É possível?
Mirsat pareceu um pouco irritado, como se a pressa do visitante demonstrasse certo desrespeito ao edifício.
– Sim – apoiou Langdon. – Lamento apressá-lo, mas nosso cronograma está muito apertado.
– Muito bem – disse Mirsat, apontando para uma sacada alta à sua direita. – Vamos subir e ver o túmulo.
– Subir? – repetiu Langdon, espantado. – Enrico Dandolo não está sepultado na cripta? – Ele se lembrava do túmulo em si, mas não de sua localização. Vinha imaginando as áreas escuras do subsolo.
Mirsat pareceu não entender a pergunta.
– Não, professor. Posso garantir que o túmulo de Enrico Dandolo fica lá em cima.
Mas o que está acontecendo aqui?, perguntou-se Mirsat.
Assim que Langdon pediu para ver o túmulo de Dandolo, ele teve a impressão de que aquilo não passava de uma desculpa. Ninguém quer ver o túmulo de Dandolo. Imaginou que o professor estivesse interessado mesmo era no enigmático tesouro situado bem ao lado do túmulo do doge – o Mosaico do Deesis –, um Cristo Pantocrator antiquíssimo considerado uma das mais misteriosas obras de arte do museu.
Langdon está pesquisando esse mosaico e não quer que ninguém saiba, supôs Mirsat, imaginando que o professor estivesse escrevendo algum artigo secreto sobre o Deesis.
Agora, contudo, estava confuso. Era óbvio que Langdon sabia que o Mosaico do Deesis ficava no primeiro andar. Então por que estava agindo como se estivesse tão surpreso?
Será que ele está mesmo atrás do túmulo de Dandolo?
Intrigado, Mirsat guiou o trio na direção da escada, passando em frente a uma das duas célebres urnas de Santa Sofia – um mastodonte com capacidade para 1.250 litros, esculpido em uma única peça de mármore durante o período helenístico.
Subindo calado junto com os outros, Mirsat começou a se sentir um pouco inseguro. Os colegas de Langdon nem de longe pareciam acadêmicos. O homem lembrava uma espécie de soldado, musculoso e rígido, todo vestido de preto. Quanto à mulher de cabelos grisalhos, Mirsat tinha a impressão de que... já a tinha visto antes. Teria sido na TV?
Estava começando a desconfiar que o objetivo daquela visita não era o que eles diziam. O que eles realmente estão fazendo aqui?
– Ainda falta um lance – anunciou o guia com uma voz jovial quando o grupo chegou ao patamar. – Lá em cima fica o túmulo de Enrico Dandolo e, é claro... – Ele fez uma pausa e olhou para Langdon. – O célebre Mosaico do Deesis.
Nenhuma reação.
Pelo visto, Langdon não parecia estar ali por causa do mosaico. Ele e seus dois acompanhantes pareciam nutrir uma inexplicável fixação pelo túmulo de Dandolo.
Enquanto Mirsat seguia na frente escada acima, Langdon pôde perceber que Brüder e a Dra. Sinskey estavam preocupados. De fato, subir ao primeiro andar parecia não fazer sentido. Langdon não parava de pensar no vídeo subterrâneo de Zobrist e no documentário sobre as áreas submersas debaixo de Santa Sofia.
Nós temos que descer!
No entanto, se era mesmo ali que ficava o túmulo de Dandolo, a única alternativa era seguir as instruções de Zobrist. Ajoelhai-vos no dourado mouseion de santo saber, e levai ao chão vossa orelha, para ouvir o som da água que corre.
Quando enfim chegaram ao primeiro piso, Mirsat os conduziu para a direita, ao longo parapeito da galeria, que proporcionava vistas incríveis do santuário no térreo. Langdon permaneceu compenetrado no caminho à sua frente.
Mirsat tornara a discorrer com fervor sobre o Mosaico do Deesis, mas Langdon não lhe deu atenção.
Já podia ver seu alvo.
O túmulo de Dandolo.
Era exatamente como ele se lembrava: uma peça de mármore branco retangular, incrustada no piso de pedra polida e protegida por colunas e correntes.
Langdon foi correndo examinar o texto gravado na pedra.
HENRICUS DANDOLO
Assim que os outros chegaram, ele entrou em ação, passando por cima da corrente de isolamento e pousando os pés bem em frente à lápide.
Mirsat protestou em voz alta, mas Langdon não se deteve, ajoelhando-se depressa como se estivesse prestes a rezar aos pés do traiçoeiro doge.
Então, com um movimento que arrancou gritos horrizados de Mirsat, ele espalmou as mãos sobre a lápide e se abaixou. Quando levou o rosto ao chão, percebeu que parecia estar se curvando na direção de Meca. Aparentemente espantado com o gesto, Mirsat se calou. Um silêncio repentino recaiu sobre todo o templo.
Respirando fundo, Langdon virou a cabeça para a direita e encostou com delicadeza a orelha esquerda na lápide. Sentiu a pedra fria em sua pele.
O barulho que escutou subindo pela pedra foi claro como a luz do dia.
Meu Deus.
O final do Inferno de Dante parecia ecoar lá embaixo.
Bem devagar, virou a cabeça e olhou para Brüder e a Dra. Sinskey.
– Estou ouvindo – sussurrou. – Um barulho de água correndo.
Brüder pulou por cima da corrente de isolamento e foi se agachar ao seu lado para escutar. Após alguns segundos, pôs-se a assentir com fervor.
Agora que estavam ouvindo a água, restava uma pergunta: Para onde ela corria?
A mente de Langdon foi inundada por imagens de uma caverna semissubmersa, banhada por uma luz vermelha sinistra... em algum lugar abaixo de onde estavam.
Descei às profundezas do palácio afundado...
pois lá, na escuridão, espreita o monstro ctônico,
submerso nas águas rubras de sangue...
da lagoa que não reflete as estrelas.
Quando o professor se levantou e tornou a passar por cima da corrente, Mirsat o encarava com um olhar alarmado, como se tivesse sido traído. Com seus quase 30 centímetros a mais de altura, Langdon parou diante do guia turco.
– Mirsat – começou –, sinto muito. Como pode ver, esta é uma situação muito peculiar. Não tenho tempo para explicar, mas preciso lhe fazer uma pergunta muito importante sobre este edifício.
Mirsat conseguiu menear de leve de cabeça.
– Faça.
– Debaixo desse túmulo é possível ouvir um pequeno curso de água. Precisamos saber para onde essa água vai.
Mirsat balançou a cabeça.
– Não estou entendendo a pergunta. É possível ouvir água debaixo do piso em todos os cantos de Santa Sofia.
Os outros três se retesaram.
– Sim, principalmente quando chove – continuou Mirsat. – Santa Sofia tem mais de 9 mil metros quadrados de telhados cujas águas precisam escoar, o que pode levar dias. E é comum voltar a chover antes que o escoamento termine. O barulho de água corrente é bem comum por aqui. Os senhores devem saber que Santa Sofia fica em cima de grandes cavernas cheias de água. Foi feito até um documentário que...
– Sim, sim – disse Langdon –, mas sabe se a água que podemos ouvir aqui no túmulo de Dandolo corre para algum lugar específico?
– É claro – respondeu Mirsat. – O mesmo lugar para onde escoa toda a água de Santa Sofia. A cisterna da cidade.
– Não pode ser – declarou Brüder, saltando de volta a corrente. – Não estamos procurando uma cisterna. Estamos procurando um espaço grande e subterrâneo... com colunas, talvez?
– Exatamente – falou Mirsat. – A antiga cisterna da cidade é assim: um grande espaço subterrâneo com colunas. Na verdade, é bem impressionante. Foi construída no século VI para armazenar a água da cidade. Hoje em dia, a água lá não passa de 1,20 metro de altura, mas...
– Onde fica esse lugar?! – perguntou Brüder, sua voz ecoando no recinto vazio.
– A cisterna? – respondeu Mirsat com um ar assustado. – Fica a um quarteirão daqui, a leste deste edifício. – Ele apontou para fora. – Chama-se Yerebatan Sarayi.
Sarayi?, estranhou Langdon. Igual a Topkapi Sarayi? Durante o trajeto de carro, ele vira inúmeras placas indicando o caminho para o palácio de Topkapi.
– Mas... sarayi não significa “palácio”?
Mirsat assentiu.
– Isso mesmo. Nossa antiga cisterna se chama Yerebatan Sarayi... o palácio afundado.
Chovia torrencialmente quando a Dra. Elizabeth Sinskey saiu correndo de Santa Sofia acompanhada por Langdon, Brüder e Mirsat, seu guia atônito.
Descei às profundezas do palácio afundado, pensou ela.
Para chegarem à cisterna da cidade – Yerebatan Sarayi – eles precisavam voltar em direção à Mesquita Azul e, de lá, seguir um pouco para o norte.
Mirsat foi na frente.
A Dra. Sinskey não vira alternativa senão contar ao turco quem eles eram e que estavam correndo para evitar uma possível emergência de saúde dentro do palácio afundado.
– Por aqui! – chamou Mirsat, conduzindo-os pelo parque escuro.
Haviam deixado para trás a gigantesca basílica de Santa Sofia e podiam ver cintilar mais adiante as agulhas de conto de fadas da Mesquita Azul.
Correndo ao lado da doutora, o agente Brüder berrava no celular, passando as últimas informações à equipe de SMI e ordenando que fossem encontrá-lo na entrada da cisterna.
– Parece que o alvo de Zobrist é o sistema de abastecimento de água da cidade – disse, ofegante. – Vou precisar de plantas de toda a tubulação da cisterna. Vamos aplicar os protocolos de isolamento e contenção total. Precisaremos de barreiras físicas e químicas, além de um vácuo de...
– Espere um instante – gritou Mirsat. – O senhor não entendeu o que eu disse. A cisterna não fornece a água da cidade. Não mais!
Brüder abaixou o telefone e lançou um olhar fulminante para o guia.
– O quê?
– Antigamente a cisterna armazenava a água da cidade – explicou Mirsat. – Mas isso mudou. Nós nos modernizamos.
Brüder parou debaixo de uma árvore para se abrigar da chuva e os outros três o imitaram.
– Mirsat, tem certeza de que ninguém bebe a água da cisterna? – perguntou a Dra. Sinskey.
– Absoluta – respondeu o turco. – A água só fica ali parada... e, com o tempo, é absorvida pelo solo.
Elizabeth Sinskey, Langdon e Brüder trocaram olhares de incerteza. A diretora não sabia se devia sentir alívio ou temor. Se ninguém tem contato frequente com a água, por que Zobrist iria querer contaminá-la?
– Décadas atrás, quando nós modernizamos nosso sistema de abastecimento de água – explicou Mirsat –, a cisterna caiu em desuso e virou apenas um grande lago subterrâneo. – Ele deu de ombros. – Hoje em dia, é só uma atração turística.
A doutora se virou para Mirsat. Atração turística?
– Espere um pouco... as pessoas podem descer até a cisterna?
– Claro – respondeu o turco. – Muitos turistas a visitam todos os dias. A caverna é fascinante. Há passarelas acima da água e até um pequeno café. Como não é muito bem ventilado, o ambiente é meio abafado e úmido, mas mesmo assim faz muito sucesso.
Quando olhou para Brüder, a Dra. Sinskey pôde ver que o agente especializado em SMI pensava a mesma coisa que ela: uma caverna escura e úmida, cheia de água estagnada na qual um patógeno estava sendo incubado. Para completar o pesadelo, o lugar era cheio de passarelas pelas quais turistas passeavam o dia inteiro, logo acima da superfície da água.
– Ele criou um bioaerossol – declarou o agente.
Elizabeth Sinskey assentiu e seus ombros caíram.
– E isso significa? – quis saber Langdon.
– Significa que o agente infeccioso é capaz de se propagar pelo ar – explicou Brüder.
Langdon se calou e a doutora pôde ver que ele agora estava entendendo a magnitude daquela emergência.
Não era de agora que a diretora cogitava a possibilidade de um patógeno que se propagasse pelo ar. Contudo, quando ainda acreditava que a cisterna abastecesse a cidade, torcera para que Zobrist tivesse escolhido um organismo vivo que se propagasse pela água. Bactérias que viviam na água eram robustas e resistentes a mudanças climáticas, mas, em compensação, sua propagação era lenta.
Patógenos que se progavam pelo ar se espalhavam depressa.
Muito depressa.
– Se o agente se propaga pelo ar, deve ser um vírus – afirmou Brüder.
Um vírus, concordou a Dra. Sinskey. O patógeno de propagação mais veloz que Zobrist poderia ter escolhido.
Liberar debaixo d’água um vírus que se propagava pelo ar sem dúvida era uma escolha estranha, mas havia muitas formas de vida que incubavam em líquido para depois eclodir no ar: mosquitos, esporos de mofo, as bactérias causadoras da legionelose, micotoxinas, marés vermelhas e até mesmo os seres humanos. Elizabeth Sinskey teve uma sombria visão do vírus permeando a lagoa da cisterna... e depois das microgotículas infectadas se espalhando pelo ar úmido.
Mirsat agora olhava para o outro lado de uma rua engarrafada com uma expressão apreensiva. A doutora seguiu seu olhar até uma construção baixa de tijolos vermelhos e brancos cuja única porta de entrada se encontrava aberta, deixando entrever o que parecia o vão de uma escada. Algumas pessoas bem-vestidas pareciam aguardar do lado de fora, debaixo de guarda-chuvas, enquanto um porteiro controlava o fluxo de visitantes que descia a escada.
Será algum tipo de boate subterrânea?
Então viu a inscrição em letras douradas no prédio e sentiu um súbito aperto no peito. Entendeu por que Mirsat parecia tão preocupado, a menos que a boate se chamasse Cisterna e houvesse sido construída em 523 d.C.
– O palácio afundado – balbuciou o turco. – Parece... que há um concerto lá hoje.
Elizabeth Sinskey pareceu não acreditar.
– Um concerto dentro de uma cisterna?!
– É um ambiente fechado muito espaçoso – respondeu ele. – Muitas vezes é usado como centro cultural.
Brüder já parecia ter ouvido o suficiente. Foi correndo em direção ao prédio, esquivando-se do tráfego que congestionava a avenida Alemdar. Os outros saíram em disparada logo atrás dele.
Quando o grupo chegou à entrada da cisterna, a porta estava bloqueada por um grupo de espectadores que aguardava permissão para descer – um trio de mulheres de burca, um casal de turistas de mãos dadas e um homem de smoking. Estavam todos amontoados junto à porta, tentando se proteger da chuva.
A Dra. Sinskey escutou os acordes melodiosos de uma peça clássica vindos lá de baixo. Berlioz, foi o seu palpite, a julgar pela orquestração peculiar. Qualquer que fosse a música, porém, soava fora de lugar ali nas ruas de Istambul.
Assim que o grupo se aproximou da entrada, ela sentiu uma lufada de ar morno subir pela escada, vindo do fundo da terra e escapando da caverna fechada. O ar trazia até a superfície não apenas o som de violinos, mas os cheiros inconfundíveis de umidade e de pessoas aglomeradas.
Trouxe-lhe também um pressentimento funesto.
Quando um punhado de turistas emergiu da escada, conversando animadamente ao sair, o porteiro permitiu que o grupo seguinte descesse.
Na mesma hora, Brüder avançou para entrar, mas o porteiro o deteve com um aceno educado.
– Um instante, senhor. A cisterna está com a lotação máxima. O próximo visitante deve demorar menos de um minuto para sair. Obrigado.
Brüder pareceu prestes a entrar à força, mas a Dra. Sinskey pousou uma das mãos em seu ombro e o puxou de lado.
– Espere – ordenou ela. – Sua equipe está a caminho e você não vai conseguir fazer uma busca neste lugar sozinho. – Ela indicou com um gesto a placa que havia na parede ao lado da porta. – A cisterna é imensa.
A placa informativa descrevia um recinto subterrâneo do tamanho de uma catedral, cujo comprimento equivalia a quase dois campos de futebol, e com um teto de mais de 9 mil metros quadrados sustentado por uma floresta de 336 colunas de mármore.
– Olhem só para isso – disse Langdon, parado a poucos metros de distância. – Vocês não vão acreditar.
A Dra. Sinskey se virou. Langdon apontou um cartaz na parede que anunciava o concerto.
Meu Deus.
A diretora da OMS havia acertado ao identificar o estilo da música que estava sendo executada; era de fato uma peça romântica. No entanto, não havia sido composta por Berlioz, mas por outro compositor do gênero: Franz Liszt.
Naquela noite, nas profundezas da terra, a Orquestra Sinfônica Estatal de Istambul estava executando uma das obras mais conhecidas de Franz Liszt – a Sinfonia Dante –, uma composição inteira inspirada pela descida de Dante Alighieri ao Inferno.
– Faz uma semana que a sinfônica está tocando esse concerto – disse Langdon, examinando as letras miúdas do cartaz. – É um espetáculo gratuito. Patrocinado por um doador anônimo.
Elizabeth Sinskey achava que sabia quem era o doador. Pelo visto, o pendor de Zobrist para a teatralidade era também uma impiedosa estratégia prática. Aquela semana de concertos gratuitos atrairia milhares de turistas a mais do que o normal para dentro da cisterna, colocando-os em uma área congestionada... onde iriam respirar o ar contaminado para em seguida retornar a suas casas, tanto em Istambul quanto no resto do mundo.
– Senhor? – disse o porteiro, chamando Brüder. – Temos lugar para mais duas pessoas.
O agente se virou para a Dra. Sinskey.
– Chame as autoridades locais. Independentemente do que encontrarmos lá embaixo, vamos precisar de ajuda. Quando a minha equipe chegar, peça que eles me chamem pelo rádio para que eu os atualize. Vou descer e ver se consigo descobrir onde Zobrist pode ter amarrado esse troço.
– Sem máscara de gás? – estranhou a doutora. – Você não tem como saber se o saco de Solublon está intacto.
Brüder fechou a cara e ergueu a mão para sentir o vento morno que subia pela porta.
– Detesto dizer isso, mas, se o agente infeccioso tiver sido liberado, calculo que todo mundo na cidade já deva estar infectado.
Elizabeth Sinskey estava pensando a mesma coisa, mas não quisera dizer nada na frente de Langdon e Mirsat.
– Além do mais – acrescentou Brüder –, já vi o que acontece com multidões quando minha equipe chega usando roupas de proteção. Enfrentaríamos o pânico generalizado e uma debandada.
A diretora da OMS decidiu acatar a sugestão do agente; afinal ele era o especialista e não era a primeira vez que enfrentava uma situação como aquela.
– Nossa única alternativa realista é supor que lá embaixo ainda seja seguro, partir para a ação e tentar conter a ameaça – disse-lhe Brüder.
– Está bem – concordou a Dra. Sinskey. – Faça isso.
– Tem mais um problema – interveio Langdon. – E Sienna?
– O que tem ela? – indagou Brüder.
– Sejam quais forem as suas intenções aqui em Istambul, ela é muito boa com idiomas e deve falar um pouco de turco.
– E daí?
– Sienna sabe que o poema menciona o “palácio afundado” – continuou Langdon. – E, em turco, “palácio afundado” aponta literalmente... – Ele indicou a placa em cima da porta, que dizia “Yerebatan Sarayi” – ... para cá.
– É verdade – concordou Sinskey, parecendo esgotada. – Ela pode muito bem ter entendido isso sem nem precisar passar por Santa Sofia.
Brüder olhou para a única porta da cisterna e resmungou um palavrão.
– Certo, se ela estiver lá embaixo e planejar romper o saco de Solublon antes de conseguirmos isolá-lo, pelo menos não deve ter chegado há muito tempo. A área é imensa e ela provavelmente não faz a menor ideia de onde procurar. Além disso, com tanta gente por perto, talvez não consiga entrar na água sem ser notada.
– Senhor? – tornou a chamar o porteiro. – Gostaria de entrar agora?
Brüder viu outro grupo de espectadores atravessando a rua na direção deles e assentiu para o porteiro.
– Eu vou junto – disse Langdon, indo atrás dele.
Brüder se virou para encará-lo.
– Nem pensar.
Langdon assumiu um tom de voz inflexível:
– Agente Brüder, um dos motivos para estarmos nessa situação é o fato de Sienna Brooks ter passado o dia inteiro me enganando. E, como o senhor mesmo disse, talvez já estejamos todos infectados. Vou ajudá-lo, queira o senhor ou não.
Depois de encará-lo por alguns segundos, Brüder acabou cedendo.
Quando Langdon atravessou a porta e começou a descer a escada íngreme atrás de Brüder, sentiu a rápida lufada de ar morno vinda das entranhas da cisterna. A brisa úmida trazia consigo os acordes da Sinfonia Dante de Liszt, bem como um cheiro conhecido, mas indescritível: o de uma grande aglomeração de pessoas reunidas em um espaço fechado.
De repente, sentiu-se envolvido por uma mortalha espectral, como se dedos compridos, invisíveis, se estendessem das profundezas da terra para arranhar sua pele.
Essa música.
Nesse exato momento, o coro da orquestra sinfônica – composto por uma centena de vozes – entoava um trecho conhecido da peça, articulando cada sílaba do texto macabro de Dante.
– Lasciate ogne speranza, voi ch’entrate!
As seis palavras do verso mais famoso de todo o Inferno subiram pela escada como o agourento fedor da morte.
Acompanhado por um crescendo de trompetes e trompas, o coro tornou a entoar o mesmo alerta.
– Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate!
Abandonai toda esperança, vós que aqui entrais!
Banhada em luz vermelha, a caverna subterrânea reverberava com as notas de uma música inspirada pelo próprio Inferno: lamento de vozes, guinchos dissonantes de cordas e o grave rufar de tímpanos trovejavam pela gruta como um tremor sísmico.
Até onde a vista de Langdon alcançava, o piso daquele mundo subterrâneo era um reluzente espelho d’água – escuro, imóvel e liso –, semelhante ao gelo negro de um lago congelado na Nova Inglaterra.
A lagoa que não reflete as estrelas.
Erguendo-se da água, meticulosamente dispostas em fileiras que pareciam não ter fim, centenas de grossas colunas dóricas, cada uma com cerca de 10 metros de altura, sustentavam o teto abobadado da caverna. Como eram iluminadas de baixo para cima por uma série de spots de luz, as colunas compunham uma floresta surreal de troncos realçados que se perdiam na escuridão distante, como uma espécie de ilusão multiplicada.
Langdon e Brüder pararam ao pé da escada, imobilizados por um instante no limiar da cavidade espectral à sua frente. Toda a caverna parecia reluzir em tons de vermelho e, enquanto assimilava aquela cena, Langdon mal conseguia respirar.
O ar lá embaixo era mais denso do que ele havia imaginado.
Mais adiante à sua esquerda, viu a multidão. O concerto acontecia bem no fundo daquele espaço subterrâneo, a meio caminho da parede mais afastada, e o público se acomodava sobre uma série de plataformas. Centenas de espectadores estavam sentados em anéis concêntricos dispostos em volta da orquestra, ao passo que outra centena de pessoas se postava de pé atrás desses assentos. Outras ainda haviam se posicionado nas passarelas próximas e, apoiadas nos sólidos parapeitos, fitavam a superfície da água, ouvindo a música.
Langdon se pegou percorrendo com os olhos aquele mar de silhuetas amorfas à procura de Sienna. Não havia nem sinal dela. Em vez disso, viu figuras usando smokings, vestidos de gala, bishts, burcas e até mesmo alguns turistas de short e moletom. Para Langdon, aquele conjunto variado de seres humanos reunidos sob a luz escarlate mais parecia estar celebrando algum tipo de missa negra.
Se Sienna estiver aqui embaixo, vai ser quase impossível encontrá-la, percebeu.
Nesse exato momento, um homem corpulento passou por eles e começou a subir a escada, tossindo. Brüder deu meia-volta e o observou partir, examinando-o com atenção. Langdon sentiu uma leve coceira na garganta, mas disse a si mesmo que era apenas sua imaginação.
Brüder então deu um passo hesitante na passarela, avaliando as diversas alternativas que se apresentavam. O caminho à frente deles parecia a entrada do labirinto do Minotauro. Logo adiante, a passarela única se dividia em três, sendo que cada uma dessas três vias tornava a se dividir, criando um labirinto suspenso acima d’água, que ziguezagueava por entre as colunas e serpenteava rumo à escuridão.
Vi-me nas entranhas de uma floresta escura, pois o caminho reto perdido estava, pensou Langdon, lembrando o agourento Canto I da obra-prima de Dante.
Ele olhou por cima do parapeito em direção à água. A lagoa tinha mais de um metro de profundidade e era de uma limpidez supreendente. Era possível ver o fundo de lajotas de pedra coberto por uma fina camada de lodo.
Brüder também lançou um breve olhar para baixo e, com um resmungo, tornou a erguer os olhos para a caverna.
– Está vendo alguma coisa parecida com a área mostrada no vídeo de Zobrist?
Tudo, pensou Langdon, analisando as paredes úmidas que os cercavam. Fez um gesto em direção ao canto mais distante da caverna, bem à direita, longe da multidão que se aglomerava ao redor da orquestra.
– Meu palpite é que esteja mais lá para trás.
Brüder concordou.
– Foi o que pensei também.
Os dois atravessaram depressa a passarela e, quando ela se dividiu, pegaram o caminho da direita, afastando-se do público em direção aos confins do palácio afundado.
Enquanto caminhavam, Langdon percebeu como seria fácil se esconder ali para passar a noite. Zobrist poderia ter feito exatamente isso para gravar o vídeo. É claro que, se tivesse sido ele mesmo o generoso patrocinador daquela semana de concertos, também poderia apenas ter solicitado algum tempo sozinho dentro da cisterna.
Não que isso tenha alguma importância agora.
Brüder passara a andar mais rápido, como se acompanhasse de forma inconsciente o andamento da sinfonia, que havia se acelerado até uma série de semitons descendentes e pausados, imitando uma cascata.
A descida de Dante e Virgílio rumo ao Inferno.
Langdon examinava com atenção as paredes íngremes e cobertas de limo à sua direita, ainda distantes, tentando encaixá-las com o que vira no vídeo. A cada vez que a passarela se dividia, eles dobravam à direita, afastando-se mais e mais da multidão e se encaminhando para o canto mais remoto da caverna. Quando olhou para trás, Langdon ficou espantado com a distância que já haviam vencido.
Agora quase correndo, passaram por um punhado de visitantes desgarrados, mas, quando chegaram aos limites da cisterna, o número de pessoas havia se reduzido de tal forma que não restava mais ninguém.
Brüder e Langdon estavam sozinhos.
– É tudo igual – disse o agente, desesperado. – Por onde começamos?
Langdon sentia a mesma frustração. Lembrava-se com clareza do vídeo, mas nada ali se destacava do resto.
Conforme avançavam, foi estudando as placas informativas iluminadas por uma luz tênue que salpicavam a passarela. Uma delas descrevia a capacidade volumétrica da cisterna: 80 milhões de litros. Outra indicava uma coluna diferente das demais, roubada de uma estrutura próxima durante a obra. Uma terceira mostrava o diagrama de um antigo relevo: o símbolo do Olho do Pavão que Chora, que pranteava todos os escravos mortos na construção da cisterna.
Estranhamente, uma das placas exibia uma única palavra que fez Langdon parar na mesma hora.
Brüder fez o mesmo e se virou para trás.
– O que houve?
Langdon apontou.
Na placa, acompanhado por uma seta que apontava a direção, havia o nome de uma temível górgona – a infame mostruosidade da mitologia grega.
medusa
Brüder leu a placa e deu de ombros.
– E daí?
O coração de Langdon estava acelerado. Ele sabia que a Medusa não era apenas a medonha criatura com cobras no lugar dos cabelos, cujo olhar tinha o poder de petrificar quem a encarasse. Era também uma integrante proeminente do panteão grego de espíritos subterrâneos... uma categoria específica conhecida como monstros ctônicos.
Descei às profundezas do palácio afundado...
pois lá, na escuridão, espreita o monstro ctônico...
Ela está apontando o caminho, compreendeu ele, saindo em disparada pela passarela. Brüder mal conseguia acompanhá-lo enquanto Langdon ziguezagueava rumo à escuridão, seguindo as placas da Medusa. Por fim, o professor chegou a uma pequena plataforma de observação junto à base da parede mais à direita da cisterna, depois da qual não havia como prosseguir.
Foi ali que deparou com uma incrível visão.
Um gigantesco bloco de mármore esculpido erguia-se de dentro d’água: a cabeça da Medusa, com as cobras se contorcendo em meio aos cabelos. O fato de a cabeça estar ao contrário sobre o pescoço a tornava ainda mais bizarra.
Ela está invertida como as almas condenadas, entendeu Langdon, pensando no Mapa do Inferno de Botticelli e nos pecadores pintados no Malebolge.
Brüder chegou ofegante ao seu lado junto ao parapeito e encarou a cabeça invertida da Medusa com uma expressão atônita.
Langdon desconfiava de que aquela cabeça esculpida, que agora fazia as vezes de plinto e sustentava uma das colunas, devia ter sido saqueada de algum outro lugar e usada ali como material de construção barato. Sem dúvida estava invertida pela superstição de que isso privava a Medusa de seus poderes maléficos. Mesmo assim, ele não foi capaz de reprimir a enxurrada de pensamentos apavorantes que o assaltou.
O desfecho do Inferno de Dante. O centro da Terra, onde a gravidade se inverte. A descida passa a ser subida.
Sentindo uma premonição sinistra arrepiar sua pele, Langdon estreitou os olhos em direção à névoa avermelhada que rodeava a cabeça esculpida. A maior parte dos cabelos infestados de cobras da Medusa estava submersa, mas seus olhos se encontravam acima da superfície, virados para a esquerda, fitando a margem oposta da lagoa.
Tomado pelo medo, ele se inclinou por sobre o parapeito e virou a cabeça para acompanhar o olhar da estátua rumo ao conhecido canto vazio do palácio afundado.
Precisou apenas de um segundo para entender.
Era ali.
Aquele era o marco zero de Zobrist.
O agente Brüder desceu sorrateiramente, deslizando por baixo do parapeito e entrando na água que lhe chegava ao peito. Quando o líquido frio encharcou suas roupas, a temperatura fez seus músculos se retesarem. O fundo da cisterna lhe pareceu escorregadio sob as botas, mas também firme. Ficou algum tempo parado, tentando se situar, enquanto observava os círculos concêntricos de água se afastarem de seu corpo e encresparem a superfície da lagoa.
Por alguns instantes, Brüder nem respirou. Vá devagar, disse a si mesmo. Tente não agitar a água.
Acima dele, junto ao parapeito, Langdon corria os olhos pelas passarelas ao redor.
– Tudo certo – falou. – Ninguém está vendo.
Brüder se virou e encarou a imensa cabeça invertida da Medusa, iluminada por um spot vermelho. Agora que estava no mesmo nível que ele, o monstro lhe pareceu ainda maior.
– Siga o olhar da Medusa pela lagoa – sussurrou Langdon. – Zobrist tinha talento para simbolismo e drama... Eu não me espantaria se ele tiver depositado sua criação bem na linha de seu olhar letal.
Mentes brilhantes pensam de um jeito parecido. Brüder sentiu-se grato pelo fato de o professor ter insistido em acompanhá-lo até ali embaixo. Foi graças aos conhecimentos dele que tinham chegado sem demora àquele canto afastado da cisterna.
Com os acordes da Sinfonia Dante reverberando ao longe, Brüder pegou sua minilanterna à prova d’água Tovatec e, depois de submergi-la, a acendeu. Uma forte luz halógena varou a água, iluminando o fundo da cisterna à sua frente.
Devagar, lembrou o agente a si mesmo. Não faça movimentos bruscos.
Sem dizer mais nada, ele iniciou sua cuidadosa jornada lagoa adentro, avançando em câmera lenta pela água, movendo a lanterna metodicamente de um lado para outro, como um caçador de minas submersas.
No parapeito, Langdon havia começado a sentir uma constrição aflitiva na garganta. Apesar da umidade, o ar da cisterna lhe parecia viciado, quase irrespirável. Enquanto Brüder avançava com cautela pela lagoa, ele tentou se tranquilizar dizendo a si mesmo que tudo correria bem.
Chegamos a tempo.
Está tudo intacto.
A equipe de Brüder vai conseguir conter a ameaça.
Mesmo assim, sentia-se nervoso. Como era claustrofóbico desde pequeno, sabia que ficaria ansioso naquele lugar, quaisquer que fossem as circunstâncias. Deve haver milhares de toneladas de terra acima de onde estamos... sustentadas apenas por colunas em decomposição.
Afastou esse pensamento e tornou a olhar para trás, a fim de ver se alguém demonstrava mais interesse do que devia pelo que Brüder e ele estavam fazendo.
Nada.
As únicas pessoas por perto, em pé sobre diversas outras passarelas, olhavam todas na direção oposta, para a orquestra. Ninguém parecia ter reparado no homem que avançava lentamente pela água naquele canto remoto da cisterna.
Langdon olhou de volta para o chefe da equipe de SMI, cujo facho de luz halógena submerso ainda oscilava à sua frente, fantasmagórico, iluminando o caminho.
Enquanto observava o agente, a visão periférica de Langdon captou de repente um movimento à sua esquerda – uma ameaçadora forma escura erguendo-se da água diante de Brüder. Langdon deu meia-volta e fitou a densa escuridão, quase esperando ver alguma espécie de leviatã emergir da água.
Brüder se deteve; parecia ter visto a mesma coisa que ele.
Na extremidade oposta, uma forma negra e tremeluzente se erguia uns 10 metros na parede. A silhueta espectral parecia quase idêntica à do médico da peste no vídeo de Zobrist.
É uma sombra, percebeu Langdon, soltando a respiração presa. A sombra de Brüder.
A sombra havia sido projetada quando o agente passara em frente a um spot de luz submerso na lagoa. Parecia que fora exatamente o que Zobrist fizera no vídeo.
– É o spot de luz – disse Langdon para Brüder. – Está bem aí perto.
Brüder assentiu e continuou a avançar devagar pela água. Langdon foi margeando o parapeito para acompanhá-lo. Conforme o agente se embrenhava mais na lagoa, Langdon deu outra olhada rápida em direção à orquestra para se certificar de que ninguém o vira.
Nada.
Quando olhou outra vez para a água, uma centelha de luz refletida atraiu seu olhar para a passarela a seus pés.
Ele olhou para baixo e viu uma pequena poça de líquido vermelho.
Sangue.
Para sua surpresa, estava pisando bem em cima dela.
Estou sangrando?
Não sentia dor, mas mesmo assim começou a se tatear freneticamente em busca de algum ferimento ou possível reação a algum tipo de toxina que pairasse no ar. Verificou o nariz para ver se havia hemorragia, depois as unhas das mãos e as orelhas.
Sem saber de onde viera aquele sangue, olhou em volta e confirmou que estava sozinho na passarela.
Porém, quando tornou a baixar os olhos para a poça, reparou em um minúsculo filete que escorria pela passarela até empoçar debaixo de seus pés. O líquido vermelho parecia vir de algum lugar mais à frente e escorria graças a uma inclinação no caminho.
Tem alguém ferido ali na frente, pressentiu. Relanceou os olhos para Brüder, que agora se aproximava do centro da lagoa.
Então Langdon começou a andar depressa pela passarela, seguindo o filete vermelho. À medida que avançava em direção ao final do caminho, o filete foi se alargando até passar a escorrer livremente. O que é isso? A essa altura, já estava diante de um pequeno riacho. Ele começou a correr e seguiu o líquido até junto à parede, onde a passarela terminava de forma abrupta.
Fim da linha.
Na escuridão turva, viu uma poça grande que cintilava, vermelha, como se alguém houvesse acabado de ser esquartejado ali.
Nesse instante, ao ver o líquido pingar da passarela para dentro da cisterna, percebeu que havia se enganado.
Não é sangue.
Aliadas ao tom avermelhado da passarela, as luzes que iluminavam o amplo espaço tinham criado uma ilusão, dando àquelas gotículas transparentes um tom entre o negro e o vermelho.
É só água.
Em vez de lhe trazer uma sensação de alívio, a revelação instilou em Langdon um medo profundo. Ele tornou a olhar para a poça e viu que o corrimão também estava molhado... e notou pegadas no chão.
Alguém saiu da água aqui.
Virou-se para chamar Brüder, mas o agente estava longe demais e a música havia se intensificado em um fortissimo de sopros e tímpanos. Era ensurdecedor. De repente, Langdon sentiu uma presença ao seu lado.
Não estou sozinho.
Em câmera lenta, virou-se para a parede na qual a passarela terminava. A 3 metros de onde estava, discerniu uma forma arredondada em meio a sombras escuras, como uma grande pedra envolta em panos pretos, pingando no meio de uma poça d’água. A forma estava imóvel.
Então se mexeu de repente.
A silhueta se alongou e sua cabeça sem traços se virou para cima da pose curvada em que estava.
É uma pessoa de burca, percebeu Langdon.
Apesar de a veste tradicional islâmica cobrir o corpo inteiro e não deixar nenhum pedaço de pele aparente, quando o rosto velado se virou na sua direção, viu dois olhos escuros espiando pela fenda estreita da máscara da burca e se cravarem com intensidade nos seus.
Em um segundo, ele entendeu.
Sienna Brooks se levantou de onde estava escondida com um pulo que foi uma verdadeira explosão. Bastou-lhe um passo para começar a correr. Ela trombou com Langdon, derrubando-o no chão, e saiu desabalada pela passarela.
Agora o agente Brüder estava parado no meio da lagoa. O facho de luz halógena da lanterna Tovatec acabara de captar o forte brilho de um objeto metálico mais à frente, no fundo da cisterna.
Quase sem conseguir respirar, Brüder deu um passo cauteloso mais para perto, tomando cuidado para não criar nenhuma agitação na água. Pela superfície vítrea, pôde discernir um retângulo de titânio brilhante chumbado ao chão.
A placa de Zobrist.
A água era tão clara que ele quase conseguiu ler a data do dia seguinte e o texto que a acompanhava:
NESTE LOCAL, NESTA DATA,
O MUNDO FOI TRANSFORMADO PARA SEMPRE.
Não tenha tanta certeza disso, pensou o agente, sentindo-se mais confiante. Ainda temos várias horas para impedi-lo.
Lembrando-se do vídeo, moveu a lanterna lentamente para a esquerda da placa em busca do saco de Solublon preso ao fundo. Quando o facho clareou a água escura, estreitou os olhos, sem entender o que via.
Não havia saco nenhum.
Moveu o facho ainda mais para a esquerda, até o ponto exato em que o saco aparecera no vídeo.
Nada ali tampouco.
Mas... estava bem aqui!
O maxilar de Brüder se contraiu e ele avançou mais um passo, hesitante, movendo a luz da lanterna por toda a área.
Não havia saco nenhum. Apenas a placa.
Por um breve instante de esperança, pensou que talvez aquela ameaça, como tantas coisas hoje em dia, não tivesse passado de ilusão.
Será que foi tudo um alarme falso?!
Será que Zobrist só queria nos assustar?!
E foi então que ele viu.
À esquerda da placa, quase invisível no fundo, havia uma cordinha solta. O barbante flácido parecia uma minhoca sem vida. A ponta mais afastada tinha uma pequena presilha de plástico à qual estavam presos alguns resquícios de plástico Solublon.
Brüder ficou olhando para os restos esfarrapados do saco transparente. Ainda presos à extremidade da cordinha, pareciam o nó rasgado de um balão estourado.
A verdade se instalou devagar em suas entranhas, pesada como chumbo.
Chegamos tarde.
Ele imaginou o saco submerso se dissolvendo, se rompendo... o conteúdo mortal se espalhando pela água... e borbulhando até a superfície da lagoa.
Com um dedo trêmulo, apagou a lanterna e ficou parado alguns instantes no escuro, tentando organizar os pensamentos.
Eles logo se transformaram em preces.
Que Deus nos ajude.
– Repita por favor, agente Brüder! – gritou Elizabeth Sinskey no rádio, descendo até a metade da escada que conduzia à cisterna para tentar melhorar o sinal. – Não entendi!
O vento morno passou por ela, veloz, e subiu a escada em direção à porta aberta lá em cima. Na rua, a equipe de SMI já havia chegado e seus integrantes se preparavam atrás do edifício, tentando manter os equipamentos de proteção fora da vista do público enquanto aguardavam a avaliação de Brüder.
– ... saco rompido... – A voz de Brüder crepitava no aparelho de Sinskey – ... e... liberado.
O quê?! Rezando para ter entendido mal, ela desceu correndo mais um pedaço da escada.
– Repita! – Agora estava próxima do pé da escada, onde a música da orquestra era mais alta.
Dessa vez a voz do agente soou bem mais nítida:
– ... repetindo... o agente contaminante se dispersou!
A Dra. Sinskey se lançou para a frente e quase caiu ao pé da escada na entrada da cisterna. Como é possível?!
– O saco plástico se dissolveu – disse a voz de Brüder, bem audível. – O agente contaminante está na água!
A doutora sentiu um suor frio brotar de sua pele. Ergueu os olhos para tentar entender que vasto mundo subterrâneo era aquele que agora se estendia à sua frente. Em meio à névoa avermelhada, viu uma ampla superfície de água da qual brotavam centenas de colunas. Mais do que tudo, porém, viu pessoas.
Centenas de pessoas.
Ficou olhando para aquela multidão alheia ao perigo, presa na armadilha mortal subterrânea de Zobrist. Reagiu por instinto.
– Agente Brüder, suba imediatamente. Vamos começar a evacuar as pessoas agora mesmo.
A resposta do agente foi instantânea.
– De jeito nenhum! Lacrem a porta! Não deixem ninguém sair!
Como diretora da OMS, Elizabeth Sinskey estava habituada a ter suas ordens acatadas sem questionamento. Por um segundo pensou que não havia entendido direito as palavras do chefe da equipe de SMI. Lacrar a porta?!
– Dra. Sinskey! – gritou o agente, mais alto que a música. – Está me entendendo?! Fechem a droga da porta!
Brüder repetiu a ordem, mas era desnecessário. A Dra. Sinskey sabia que ele estava certo. Diante de uma possível pandemia, a contenção era a única alternativa cabível.
Por reflexo, ela ergueu a mão e segurou com força o amuleto de lápis-lazúli. Sacrificar poucos para salvar muitos. Mais decidida, levou o rádio à boca.
– Confirmado, agente Brüder. Vou dar a ordem para lacrarem a porta.
Estava prestes a virar as costas para o horror da cisterna e dar a ordem de lacrar o recinto quando percebeu uma súbita confusão no meio das pessoas.
Não muito longe dali, uma mulher de burca preta corria na sua direção por uma passarela lotada, derrubando quem estivesse na sua frente. A mulher de véu parecia seguir diretamente para a Dra. Sinskey e para a saída.
Alguém a está perseguindo, pensou a diretora ao ver um homem correndo atrás da mulher.
Então gelou. Mas aquele ali é Langdon!
Voltou a olhar para a mulher de burca, que se aproximava depressa e agora gritava algo em turco para todos os que estavam na passarela. Elizabeth Sinskey não falava turco, mas, a julgar pela reação apavorada dos presentes, as palavras da mulher tinham tido o mesmo efeito de gritar “fogo” dentro de um teatro lotado.
Uma onda de pânico varreu a multidão e, de repente, não eram mais só a mulher de burca e Langdon que corriam para a escada. Eram todos.
A Dra. Sinskey deu as costas para a multidão desabalada que vinha na sua direção e começou a gritar desesperada para sua equipe no alto da escada.
– Tranquem a porta! – berrou. – Lacrem a cisterna! AGORA!
Quando Langdon dobrou uma quina para chegar à escada, derrapando por causa da velocidade, a Dra. Sinskey já havia subido até a metade e avançava aos tropeços em direção à rua, gritando descontroladamente para que fechassem a porta. Logo em seu encalço vinha Sienna Brooks, lutando contra a pesada burca molhada que dificultava sua subida.
Correndo atrás das duas, Langdon pôde sentir uma imensa maré de espectadores aterrorizados crescer atrás dele.
– Lacrem a saída! – tornou a gritar Elizabeth Sinskey.
As pernas compridas de Langdon lhe permitiam subir os degraus de três em três, e ele estava diminuindo depressa a distância que o separava de Sienna. Lá em cima, viu a pesada porta dupla da cisterna começar a se mover para dentro.
Está devagar demais.
Então Sienna ultrapassou a Dra. Sinskey, agarrando-a pelo ombro e usando-a como alavanca para disparar na sua frente, passando por cima dela em direção à saída. A diretora da OMS tropeçou e caiu de joelhos na escada. Seu querido amuleto bateu no degrau de cimento e se partiu ao meio.
Langdon resistiu ao instinto de parar a fim de ajudá-la e passou correndo por ela, seguindo a toda a velocidade rumo ao patamar superior.
Sienna agora estava a poucos metros dele, quase ao seu alcance, mas já havia chegado ao topo e a porta não estava se fechando depressa o bastante. Sem diminuir a velocidade, virou o corpo esguio com desenvoltura e passou de lado pela abertura estreita.
Ainda estava passando quando sua burca agarrou em um trinco e a obrigou a parar, presa em plena soleira, a poucos centímetros da liberdade. Enquanto ela se contorcia para se soltar, Langdon estendeu a mão e pegou um pedaço da burca. Segurou com força e puxou para trás, tentando trazer Sienna de volta para dentro, mas ela se contorceu feito louca e de repente ele viu que segurava apenas um pedaço de pano molhado.
A porta se fechou em cima da burca e por pouco não imprensou a mão dele. A roupa embolada estava agora presa na porta, o que impedia os homens lá fora de fechá-la por completo.
Pela fresta estreita, Langdon viu Sienna Brooks correndo por uma rua movimentada; seu crânio calvo brilhava à luz dos postes. Ela ainda usava o mesmo suéter e a mesma calça jeans com os quais passara o dia inteiro, e Langdon de repente teve uma intensa e avassaladora sensação de ter sido traído.
A sensação durou apenas um segundo. Um peso súbito e esmagador o projetou com força para cima da porta.
A multidão em debandada o havia alcançado.
Gritos de terror e incompreensão começaram a ecoar pelo vão da escada ao mesmo tempo que a música da orquestra lá embaixo desafinava até virar uma cacofonia confusa. Langdon sentiu a pressão nas costas aumentar à medida que o funil se estreitava. Sua caixa torácica começou a ser dolorosamente imprensada contra a porta.
As duas folhas da porta então explodiram para fora e Langdon foi lançado para o ar noturno como a rolha de uma garrafa de champanhe. Cambaleou pela calçada e quase caiu no meio da rua. Atrás dele, um rio de gente brotava da terra como formigas fugindo de um formigueiro envenenado.
Ao ouvir aquela algazarra caótica, os agentes de SMI saíram de trás do prédio. Sua aparição – todos paramentados com roupas de proteção e máscaras de gás – só fez aumentar o pânico.
Langdon se virou e olhou para o outro lado da rua, na direção em que Sienna fugira. Tudo o que conseguiu ver foi engarrafamento, luzes e confusão.
Então, por um instante fugaz, mais adiante à sua esquerda, o pálido brilho de uma careca fulgurou na noite, avançando em disparada por uma calçada apinhada e desaparecendo ao dobrar uma esquina.
Olhou para trás desesperado à procura de Elizabeth Sinskey, da polícia ou de um agente de SMI que não estivesse usando o trambolho de uma roupa de proteção.
Não viu ninguém.
Entendeu que estava sozinho.
Sem hesitar mais, saiu correndo atrás de Sienna.
Bem lá embaixo, nos mais recônditos recessos da cisterna, o agente Brüder continuava sozinho, parado dentro da água. O barulho do pandemônio ecoava pela escuridão enquanto turistas e músicos se acotovelavam em um verdadeiro frenesi para tentar chegar à saída antes de desaparecerem escada acima.
A porta não foi lacrada, compreendeu ele, horrorizado. A contenção fracassou.
Robert Langdon não era nenhum grande corredor, mas anos de natação haviam lhe garantido pernas fortes e suas passadas eram compridas. Em poucos segundos, dobrou a esquina e se viu numa avenida mais larga. Aflito, vasculhou as calçadas com os olhos.
Ela tem que estar aqui!
Tinha parado de chover e, daquela esquina, dava para ver toda a rua iluminada. Não havia onde se esconder.
Mesmo assim, Sienna parecia ter desaparecido.
Langdon parou com as mãos nos quadris. Ofegante, examinou a rua encharcada de chuva à sua frente. O único movimento que viu foi uns 50 metros adiante, onde um moderno otobüs de Istambul se afastava do meio-fio e começava a subir a avenida.
Será que Sienna embarcou em um ônibus?
Parecia-lhe arriscado demais. Será que ela iria mesmo se encurralar dentro de um ônibus quando sabia que todos estariam à sua procura? Mas, pensando bem, se achasse que ninguém a vira dobrar a esquina e se o ônibus por coincidência tivesse encostado naquele exato momento, proporcionando-lhe uma oportunidade cronometrada e perfeita...
Podia ser.
Uma placa em cima do ônibus informava o destino – um painel de luz programável que mostrava uma única palavra: galata.
Langdon subiu a rua correndo em direção a um elegante senhor idoso parado debaixo do toldo de um restaurante, vestido com uma túnica bordada e um turbante branco.
– Com licença – falou ao se aproximar, ainda ofegante. – O senhor fala inglês?
– Claro – respondeu o turco, parecendo abalado com a urgência em seu tom de voz.
– Galata?! Isso é um lugar?
– Galata? – repetiu o homem. – Ponte de Galata? Torre de Galata? Porto de Galata?
Langdon apontou para o otobüs que acabara de partir.
– Galata! Para onde aquele ônibus está indo!
O homem do turbante olhou para o coletivo que se afastava e o observou por alguns instantes.
– Ponte de Galata – respondeu. – Ela sai da cidade velha e vai até o outro lado.
Langdon soltou um grunhido e tornou a vasculhar a rua, mas não viu sinal algum de Sienna. Sirenes agora ecoavam por toda parte e veículos de emergência passavam em disparada rumo à cisterna.
– O que está acontecendo? – perguntou o senhor de turbante com ar alarmado. – Está tudo bem?
Langdon deu outra olhada em direção ao ônibus que partia e soube que seria uma aposta arriscada, mas não tinha alternativa.
– Não. Não está – respondeu. – Está havendo uma emergência e preciso de sua ajuda. – Acenou em direção ao meio-fio junto ao qual um manobrista acabara de estacionar um reluzente Bentley prata. – Esse carro é seu?
– É, sim, mas...
– Preciso de uma carona – disse Langdon. – Sei que nunca nos vimos antes, mas está havendo uma catástrofe. É uma questão de vida ou morte.
O senhor de turbante passou vários segundos encarando o professor como se lhe perscrutasse a alma. Por fim, assentiu.
– Então é melhor o senhor entrar.
Quando o Bentley se afastou do meio-fio com um rugido, Langdon se pegou agarrando com força o assento. Estava claro que o turco era um motorista experiente e o desafio de costurar no tráfego para brincar de gato e rato com o ônibus parecia lhe agradar.
Bastaram três quarteirões para o Bentley chegar bem atrás do otobüs. Langdon se inclinou para a fente e estreitou os olhos para ver melhor através da janela traseira do coletivo. A luz lá dentro era fraca, e tudo o que ele conseguiu distinguir foram as vagas silhuetas dos passageiros.
– Continue a seguir o ônibus, por favor – pediu ao turco. – O senhor tem celular?
O homem sacou um celular do bolso e o entregou a Langdon. Ele lhe agradeceu profusamente e só então se deu conta de que não fazia a menor ideia de para quem ligar. Não tinha os telefones da Dra. Sinskey nem de Brüder, e telefonar para o escritório da OMS na Suíça poderia ser demorado demais.
– Qual é o número da polícia daqui? – perguntou.
– Um cinco cinco – respondeu o motorista. – De qualquer lugar de Istambul.
Langdon digitou os três números e aguardou. Os toques do outro lado pareciam não terminar nunca. Por fim, uma gravação atendeu e disse, primeiro em turco e depois em inglês, que por causa do grande volume de chamadas era preciso aguardar. Langdon se perguntou se o motivo do volume de chamadas seria a crise na cisterna.
Àquela altura, o pandemônio no palácio afundado já devia ser completo. Pensou em Brüder avançando pela água da lagoa e se perguntou o que o agente teria descoberto lá. Teve a desanimadora sensação de que já sabia.
Sienna tinha entrado na água antes dele.
Mais à frente, as luzes de freio do ônibus se acenderam e o coletivo encostou em um ponto junto ao meio-fio. O motorista do Bentley também encostou e ficou parado com o motor ligado uns 50 metros atrás, proporcionando a Langdon uma visão perfeita dos passageiros que embarcavam e saltavam. Apenas três pessoas desceram – todas do sexo masculino –, mas mesmo assim ele estudou cada uma delas com atenção, bem consciente dos talentos de Sienna para disfarces.
Seus olhos se voltaram novamente para a janela traseira. O vidro era escuro, mas o interior do ônibus estava agora bem iluminado e ele pôde ver melhor os passageiros. Inclinou-se para a frente, esticou o pescoço e aproximou bem o rosto do para-brisa do Bentley para tentar encontrar Sienna.
Por favor, não me diga que eu estava errado!
Então a viu.
Bem no fundo do ônibus, de costas para ele, um par de ombros esguios subia até a parte de trás de um crânio raspado.
Só pode ser ela.
Quando o ônibus acelerou, as luzes internas tornaram a diminuir. Na fração de segundo antes de sumir na escuridão, a cabeça virou para trás e olhou pela janela.
Langdon se abaixou no banco do carona para se esconder nas sombras do Bentley. Será que ela me viu? O motorista de turbante já estava saindo com o carro outra vez para voltar a seguir o ônibus.
A rua agora descia em direção à água, e mais à frente Langdon pôde ver as luzes de uma ponte baixa que se estendia por cima dela. A ponte parecia totalmente parada por causa do tráfego. Na verdade, toda a área próxima ao acesso à ponte parecia congestionada.
– O Bazar de Especiarias – explicou o turco. – É um programa concorrido nas noites de chuva.
Ele apontou para a beira d’água, onde um prédio de comprimento surpreendente se estendia à sombra de uma das mesquitas mais espetaculares da cidade: a Mesquita Nova – se Langdon não estivesse enganado, a julgar pela altura dos famosos minaretes gêmeos. O Bazar de Especiarias parecia maior do que a maioria dos shoppings americanos, e ele viu pessoas entrando e saindo pela imensa porta em arco.
– Alo?! – disse uma voz débil em algum lugar do carro. – Acil Durum! Alo?!
Langdon baixou os olhos para o celular em sua mão. A polícia.
– Ah, alô! – respondeu, erguendo o aparelho. – Meu nome é Robert Langdon. Estou trabalhando com a Organização Mundial da Saúde. Está havendo uma emergência grave na cisterna da cidade e estou seguindo a pessoa responsável. Ela está a bordo de um ônibus perto do Bazar de Especiarias, a caminho da...
– Um instante, por favor – disse o atendente. – Vou passá-lo para a central.
– Não, escute! – Mas ele já havia sido posto em espera de novo.
O motorista do Bentley se virou para ele com um ar assustado.
– Uma emergência na cisterna?!
Langdon estava prestes a explicar quando o rosto do turco de repente se iluminou de vermelho, como o de um demônio.
Luzes de freio!
O motorista se virou depressa para a frente e o carro freou com uma leve derrapada logo atrás do ônibus. As luzes internas do coletivo tornaram a se acender e Langdon viu Sienna. Em pé junto à porta de trás, ela puxava a cordinha de parada de emergência e batia na porta para saltar.
Ela me viu, percebeu. Sem dúvida Sienna devia ter visto também o congestionamento na Ponte de Galata, entendendo que não podia ficar presa ali.
Langdon abriu a porta do carro na hora, mas Sienna já havia pulado para fora do ônibus e saído correndo pela noite. Ele jogou o celular de volta para o turco.
– Avise à polícia o que aconteceu! Mande cercarem a região!
O senhor de turbante assentiu, assustado.
– E obrigado! – gritou Langdon. – Teşekkürler!
Então ele disparou pela rua em declive no encalço de Sienna, que agora corria bem na direção das pessoas aglomeradas em volta do Bazar de Especiarias.
Com trezentos anos de funcionamento, o Bazar de Especiarias de Istambul é um dos maiores mercados cobertos do mundo. O vasto complexo em forma de L tem 88 compartimentos em arco que abrigam centenas de barracas nas quais os vendedores oferecem com grande alarido uma variedade estarrecedora de prazeres gustativos vindos do mundo inteiro: especiarias, frutas, ervas e os doces típicos encontrados por toda a cidade, conhecidos como lokums.
A entrada do bazar – imenso portal de pedra encimado por um arco gótico – fica na esquina de Çiçek Pazari com a rua Tahmis. Diz-se que mais de trezentos mil visitantes passam por ela todos os dias.
Nessa noite, ao se aproximar da entrada apinhada de gente, Langdon teve a sensação de que todas as 300 mil pessoas estavam ali ao mesmo tempo. Ainda estava correndo, sem desgrudar os olhos de Sienna. Agora apenas uns 20 metros à sua frente. Ela corria em direção à entrada do bazar sem dar sinais de que iria parar.
Quando chegou ao portal em arco, Sienna deparou com a multidão. Começou a serpentear entre as pessoas para tentar abrir caminho. Assim que cruzou o limiar, olhou de relance para trás. Langdon viu em seus olhos uma garotinha amedrontada cuja fuga era impulsionada pelo medo... uma garotinha desesperada e fora de controle.
– Sienna! – gritou.
Mas ela mergulhou no mar de gente e sumiu.
Langdon se precipitou atrás dela, esbarrando, empurrando e esticando o pescoço até vê-la ziguezaguear pelo corredor ocidental do bazar, à esquerda de onde ele estava.
Barris cheios de especiarias exóticas margeavam o caminho – curry da Índia, açafrão do Irã, chá de flores da China –, e suas cores ofuscantes criavam um verdadeiro caleidoscópio de amarelos, marrons e dourados. A cada passo, Langdon sentia um cheiro diferente: cogumelos aromáticos, raízes amargas, óleos almiscarados, tudo flutuava pelo ar, misturando-se ao coro ensurdecedor de idiomas do mundo inteiro. O resultado era uma onda avassaladora de estímulos sensoriais... embalada pelo rumor incessante das pessoas.
Milhares de pessoas.
Uma sensação torturante de claustrofobia invadiu Langdon e quase o fez parar, mas ele se controlou e seguiu abrindo caminho pelo bazar. Viu Sienna logo à sua frente, acotovelando-se em meio à multidão com uma força decidida. Era óbvio que ela não pararia de correr antes de chegar ao fim... qualquer que fosse o fim que a aguardasse.
Por um breve instante, Langdon se perguntou por que a estava perseguindo.
Por justiça? Levando em conta o que Sienna fizera, não conseguia sequer imaginar que tipo de punição ela teria que enfrentar caso fosse capturada.
Para impedir uma pandemia? O que tinha sido feito estava feito.
Enquando avançava aos empurrões por aquele mar de estranhos, Langdon de repente entendeu o que o fazia querer tanto alcançar Sienna Brooks.
Quero respostas.
Menos de 10 metros à frente, Sienna se dirigia para uma porta de saída no final do braço ocidental do bazar. Deu outra olhada rápida para trás e pareceu alarmada ao ver Langdon tão perto. Quando tornou a se virar para a frente, tropeçou e caiu.
Sua cabeça se projetou para a frente e colidiu com o ombro da pessoa que caminhava adiante. Ao cair, ela estendeu a mão direita em busca de qualquer coisa que pudesse aparar sua queda. Tudo o que encontrou foi a borda de um barril cheio de castanhas secas que agarrou em desespero, puxando-o sobre si e fazendo uma avalanche de castanhas se esparramar pelo chão.
Langdon precisou de três passos para chegar ao ponto em que Sienna caíra. Baixou os olhos para o chão, mas tudo o que viu foi o barril virado e as castanhas. Nem sinal dela.
O vendedor gritava feito um louco.
Onde ela se meteu?!
Langdon pôs-se a girar no mesmo lugar, mas Sienna dera um jeito de sumir. Quando ele olhou para a saída ocidental, a apenas 15 metros de onde estava, entendeu que aquele tombo espetacular não fora nenhum acidente.
Correu até a saída e irrompeu em uma imensa esplanada igualmente apinhada. Percorreu-a com os olhos, procurando em vão.
Bem à sua frente, do outro lado de uma via expressa de várias pistas, a Ponte de Galata se estendia por sobre o largo curso do Chifre de Ouro. Bem altos à sua direita, os minaretes gêmeos da Mesquita Nova brilhavam com intensidade acima da esplanada. E à sua esquerda não havia nada além de um espaço aberto... abarrotado de pessoas.
O barulho de buzinas furiosas tornou a atrair seu olhar para a frente, em direção à via expressa entre a esplanada e a água. Tornou a ver Sienna, já 100 metros distante, correndo por entre os carros e escapando por pouco de ser esmagada entre dois caminhões. Ela estava indo em direção à água.
À esquerda de Langdon, nas margens do Chifre de Ouro, um grande entroncamento de transportes fervilhava de atividade: barcas, otobüsler, táxis, embarcações de turismo.
Langdon atravessou em disparada a esplanada em direção à via expressa. Chegando ao guarda-corpo, sincronizou o pulo com os faróis que se aproximavam e conseguiu saltar em segurança pela primeira de várias vias expressas de mão dupla. Durante quinze segundos, cegado pela luz ofuscante dos faróis e pelas buzinas iradas, conseguiu passar pelos canteiros sucessivos que separavam as pistas, parando, recomeçando a avançar e ziguezagueando até enfim pular por cima do último guarda-corpo e pisar a margem coberta de grama.
Embora ainda pudesse vê-la, Sienna já estava bem à sua frente. Havia passado pelo ponto de táxi e pelos ônibus que aguardavam para partir e seguia direto para o cais, onde Langdon viu vários tipos de embarcações chegando e partindo: barcas turísticas, táxis aquáticos, barcos de pesca particulares, lanchas. Do outro lado, as luzes da cidade cintilavam na margem ocidental do Chifre de Ouro e ele não teve dúvida de que, caso Sienna conseguisse chegar lá, não haveria esperança alguma de encontrá-la, nunca mais.
Quando finalmente chegou à beira d’água, ele virou à esquerda e pôs-se a correr pelo passeio, atraindo olhares de espanto dos turistas que faziam fila para embarcar em uma pequena frota de barcas-restaurante bem decoradas, dotadas inclusive de cúpulas semelhantes às de uma mesquita, adornos imitando ouro e guirlandas de neon.
Las Vegas no Bósforo, resmungou Langdon, passando em disparada.
Viu Sienna bem à frente. Ela não estava mais correndo. Havia parado no cais em uma área cheia de lanchas particulares e falava com um dos proprietários com gestos de súplica.
Não a deixe embarcar!
Quando se aproximou, pôde ver que o pedido de Sienna se dirigia a um rapaz em pé diante do leme de uma lancha esguia que se preparava para zarpar. Apesar de estar sorrindo, o rapaz balançava a cabeça educadamente, numa negativa. Sienna continuou a gesticular, mas o dono da lancha parecia decidido e tornou a se virar para seus comandos.
Langdon foi chegando mais perto e Sienna olhou para ele; seu rosto era uma verdadeira máscara de desespero. Abaixo de onde ela estava, os dois motores de popa da lancha aceleraram, fazendo a água espumar e afastando a embarcação do cais.
De repente, Sienna deu um pulo e saltou por cima d’água, aterrissando com estrondo na popa de fibra de vidro da lancha. O condutor sentiu o impacto e se virou com uma expressão incrédula. Puxou o acelerador para trás fazendo a lancha parar onde estava, a uns 20 metros do cais. Gritando, zangado, marchou até a traseira em direção à passageira indesejada.
Quando o condutor a alcançou, Sienna deu um passo ágil para o lado, segurou-o pelo pulso e usou a energia de seu próprio movimento para jogá-lo para o alto e por cima da amurada de popa. O rapaz caiu de cabeça na água. Instantes depois, subiu à superfície cuspindo e agitando freneticamente os braços enquanto soltava uma fieira do que sem dúvida eram vários palavrões em turco.
Sienna parecia tranquila ao lançar uma almofada de flutuação para ele, caminhar até a proa da lancha e empurrar os dois aceleradores para a frente.
Os motores rugiram e a lancha partiu em alta velocidade.
Parado no cais recuperando o fôlego, Langdon observou o casco branco lustroso se afastar, quase parecendo não tocar a água, e se transformar em uma sombra fantasmagórica na noite. Ergueu os olhos para o horizonte e entendeu que Sienna agora tinha acesso não somente à margem oposta, mas também a uma rede quase interminável de cursos de água que se estendia do mar Negro ao Mediterrâneo.
Ela se foi.
Ali perto, o dono da lancha saiu da água, pôs-se de pé e foi correndo chamar a polícia.
Langdon se sentiu muito sozinho vendo os faróis da lancha roubada ficarem cada vez mais fracos. O rugido potente dos motores também se distanciava.
Então, de uma hora para outra, os motores se calaram.
Ele estreitou os olhos, tentando enxergar ao longe. Será que ela desligou o motor?
Os faróis da lancha não estavam mais se afastando e agora se balançavam suavemente, embalados pelas ondas fracas do Chifre de Ouro. Por algum motivo misterioso, Sienna Brooks havia parado.
Será que acabou o combustível?
Langdon levou as mãos em concha a uma das orelhas e aguçou os ouvidos, distinguindo o débil rumor dos motores ligados.
Se o combustível não acabou, o que ela está fazendo?
Ele esperou.
Dez segundos. Quinze. Trinta.
Então, sem aviso, os motores tornaram a acelerar, primeiro relutantes, depois com mais decisão. Para assombro de Langdon, os faróis da lancha começaram a se inclinar em uma curva bem aberta, e a proa se virou na sua direção.
Ela está voltando.
Conforme a lancha se aproximava, viu Sienna ao volante, olhando para a frente com uma expressão vazia. A menos de 30 metros, ela desacelerou e devolveu a lancha com segurança ao cais do qual acabara de sair. Então desligou os motores.
Silêncio.
Logo acima, Langdon a encarava, incrédulo.
Sienna não ergueu os olhos.
Em vez disso, enterrou o rosto nas mãos. Começou a tremer, sentindo calafrios nos ombros curvados. Quando enfim olhou para Langdon, ele viu que seus olhos transbordavam de lágrimas.
– Robert – disse ela, soluçando. – Eu não posso mais fugir. Não tenho mais para onde ir.
Pronto, espalhou-se.
Parada ao pé da escada da cisterna, Elizabeth Sinskey fitava o vazio da caverna evacuada. Tinha a respiração dificultada pela máscara de gás. Embora sem dúvida já houvesse sido exposta a qualquer patógeno que pudesse haver lá embaixo, sentiu-se aliviada por estar usando uma roupa de proteção quando ela e a equipe de SMI entraram no espaço deserto. Todos vestiam volumosos macacões brancos conectados a capacetes hermeticamente fechados e pareciam um bando de astronautas invadindo uma nave alienígena.
Ela sabia que, lá em cima, centenas de espectadores e músicos assustados continuavam aglomerados na rua, muitos sendo atendidos por conta de ferimentos sofridos durante a correria. Outros haviam fugido. Sentia-se com sorte por ter escapado apenas com um hematoma no joelho e o amuleto quebrado.
Só existe um contaminante que se propaga mais depressa que um vírus, pensou. O medo.
A porta da cisterna estava trancada, lacrada de modo a impedir a troca de ar e protegida pelas autoridades turcas. A Dra. Sinskey imaginara que haveria um conflito de jurisdição quando a polícia local chegasse, mas todos os possíveis enfrentamentos haviam se dissipado no instante em que os agentes viram o equipamento de risco biológico da equipe de SMI e ouviram seus alertas quanto a uma possível peste.
Estamos por nossa conta, pensou a diretora da OMS com o olhar perdido na floresta de colunas refletida na lagoa. Ninguém quer descer aqui.
Atrás dela, dois agentes estendiam um grande lençol de poliuretano no pé da escada, grudando-o à parede com o auxílio de uma pistola de calor. Dois outros haviam encontrado um espaço aberto nas passarelas e começavam a montar uma série de equipamentos eletrônicos, como quem se organiza para analisar a cena de um crime.
É exatamente isso que este lugar é, pensou a doutora. A cena de um crime.
Tornou a se lembrar da mulher de burca molhada que fugira da cisterna. Ao que parecia, Sienna Brooks havia arriscado a própria vida para sabotar os esforços de contenção da OMS e concluir a insana missão de Zobrist. Ela veio aqui e rasgou o saco de Solublon...
Langdon saíra correndo no encalço de Sienna, e Elizabeth Sinskey ainda não tivera notícia alguma sobre o que acontecera com eles.
Tomara que o professor Langdon esteja bem, pensou.
Em pé na passarela, pingando, o agente Brüder fitava com um olhar vazio a cabeça invertida da Medusa e se perguntava o que fazer.
Como agente de SMI, tinha sido treinado para pensar em nível macro, deixando de lado quaisquer preocupações éticas ou pessoais imediatas e se concentrando em salvar o máximo de vidas a longo prazo. Até aquele momento nem havia pensando nos riscos à própria saúde. Eu entrei nessa água, pensou, recriminando-se pela atitude arriscada, mas ciente de que não tivera alternativa. Nós precisávamos de uma avaliação imediata.
Forçou-se a se concentrar na tarefa mais urgente: implementar o Plano B. Infelizmente, em uma crise de contenção, o Plano B era sempre o mesmo: aumentar o raio de ação. Combater doenças contagiosas muitas vezes era como combater um incêndio na mata – de vez em quando era preciso recuar e dar por perdida uma batalha na esperança de vencer a guerra.
Àquela altura, Brüder ainda não descartara por completo a ideia de que uma contenção integral fosse possível. O mais provável era que Sienna Brooks houvesse rompido o plástico poucos minutos antes da histeria coletiva e da evacuação. Nesse caso, embora centenas de pessoas houvessem deixado o local, todas deviam estar longe o bastante do marco zero para terem sido contaminadas.
Com exceção de Langdon e Sienna, pensou Brüder. Ambos estiveram no marco zero e agora estão soltos na cidade.
Outra coisa também o preocupava: uma falha de lógica que não lhe saía da cabeça. Ele não havia encontrado o saco de Solublon rompido dentro d’água. O mais normal, se Sienna tivesse rasgado o saco, seria ter encontrado os vestígios boiando em algum lugar ali perto.
Mas ele não encontrara nada. Todos os vestígios do plástico pareciam ter desaparecido. Duvidava que Sienna o tivesse levado embora, pois a essa altura o saco devia ser apenas uma gosma pegajosa e parcialmente dissolvida.
Nesse caso, onde ele foi parar?
Brüder teve uma desconfortável sensação de estar deixando passar alguma coisa. Mesmo assim, concentrou-se na nova estratégia de contenção, que exigia resposta a uma pergunta crítica.
Qual é o atual raio de dispersão do agente contaminante?
Sabia que essa pergunta seria respondida em poucos minutos. Sua equipe havia montado nas passarelas uma série de unidades de PCR portáteis a distâncias cada vez maiores da água. Esses aparelhos usavam algo conhecido como reação em cadeia da polimerase – PCR, na sigla em inglês – para detectar uma contaminação por vírus.
O agente de SMI ainda tinha esperança. Como a água da lagoa era parada e pouco tempo havia transcorrido, estava confiante de que os aparelhos detectariam uma área de contaminação relativamente pequena, que poderia ser tratada com substâncias químicas e sucção.
– Tudo pronto? – perguntou um técnico por um megafone.
Os agentes espalhados pela cisterna fizeram um sinal de positivo com o polegar.
– Podem analisar as amostras – chiou a voz.
Por toda a caverna, os peritos se agacharam e ligaram seus aparelhos de PCR. As máquinas começaram a analisar amostras do ponto da passarela em que estavam, espaçadas em arcos cada vez maiores ao redor da placa de Zobrist.
Um silêncio tomou conta do recinto enquanto todos aguardavam, rezando para ver apenas luzinhas verdes.
E então aconteceu.
Na máquina mais próxima de Brüder, uma luz de detecção viral vermelha começou a piscar. Ele tensionou os músculos e olhou para a máquina seguinte.
Nela também piscava uma luz vermelha.
Não.
Murmúrios estupefatos ecoaram pela caverna. Horrorizado, Brüder viu os aparelhos de PCR começarem a piscar com uma luz vermelha por toda a cisterna, um após outro, até a entrada.
Meu Deus. O mar de luzes vermelhas pintava um quadro inconfundível.
O raio de contaminação era enorme.
Toda a cisterna estava infestada de vírus.
Robert Langdon encarava Sienna Brooks encolhida junto ao volante da lancha roubada e se esforçava para entender o que acabara de acontecer diante de seus olhos.
– Você com certeza deve me odiar – disse ela, ainda soluçando.
– Odiar?! – exclamou Langdon. – Eu nem faço ideia de quem você é! Você mentiu para mim o tempo todo!
– Eu sei – disse ela baixinho. – Desculpe. Eu estava tentando fazer a coisa certa.
– Disseminar uma peste?
– Não, Robert. Você não entende.
– Entendo sim! – retrucou ele. – Você entrou naquela água para romper o saco de Solublon! Queria liberar o vírus de Zobrist antes que alguém pudesse contê-lo!
– Saco de Solublon? – O olhar dela era de incompreensão. – Não sei do que você está falando. Robert, eu fui à cisterna deter o vírus de Zobrist. Pretendia roubá-lo e fazê-lo sumir para sempre... para que ninguém jamais pudesse estudá-lo, nem mesmo a Dra. Sinskey e a OMS.
– Roubá-lo? Por que esconder o vírus da OMS?
Sienna respirou fundo.
– Tem tanta coisa que você não sabe, Robert, mas agora não adianta mais nada. Chegamos tarde, muito tarde. Nunca tivemos uma chance sequer.
– É claro que nós tivemos uma chance! O vírus só seria liberado amanhã! Foi a data escolhida por Zobrist e, se você não tivesse entrado na água...
– Robert, eu não liberei o vírus! – gritou ela. – Quando entrei na água, estava tentando encontrá-lo, mas já era tarde. Não havia mais nada lá.
– Não acredito – disse Langdon.
– Eu sei que não. E não o condeno. – Sienna pôs a mão no bolso e pegou um folheto encharcado. – Mas talvez isto aqui possa ajudar. – Ela jogou o papel para ele. – Encontrei pouco antes de entrar na lagoa.
Langdon pegou o folheto e o abriu. Era o programa das sete apresentações da Sinfonia Dante marcadas para acontecer na cisterna.
– Veja as datas – disse ela.
Ele leu as datas uma vez e depois tornou a ler, intrigado. Por algum motivo, tivera a impressão de que o espetáculo daquela noite era a estreia – o primeiro de sete concertos naquela semana destinados a atrair pessoas para dentro de uma cisterna infectada. Mas aquele programa dizia outra coisa.
– Hoje era o encerramento? – perguntou Langdon, desviando os olhos do papel. – A orquestra se apresentou a semana inteira?
Sienna assentiu.
– Fiquei tão surpresa quanto você. – Ela fez uma pausa. Sua expressão era sombria. – Robert, o vírus já foi liberado. Há uma semana.
– Não pode ser – insistiu Langdon. – A data é amanhã. Zobrist fez até uma placa.
– Sim. Eu a vi debaixo d’água.
– Então sabe que ele tinha uma fixação com o dia de amanhã.
Sienna suspirou.
– Robert, eu conhecia Bertrand muito bem. Mais do que admiti para você. Ele era um cientista. Para ele, o que importava era o resultado. Agora entendo que a data na placa não é o dia da liberação do vírus. É outra coisa, mais importante para o objetivo dele.
– O quê?
Da lancha, Sienna ergueu os olhos para ele, com um ar solene.
– É uma data de saturação global, uma projeção matemática de quando o vírus teria se espalhado pelo mundo inteiro... e infectado toda a população.
Essa ideia fez Langdon estremecer, mas ele não pôde deixar de suspeitar de que ela estivesse mentindo. Sua história tinha uma falha crucial e Sienna Brooks já provara ser capaz de mentir sobre qualquer coisa.
– Só tem um problema, Sienna – disse, encarando-a. – Se essa peste já se espalhou pelo mundo, por que as pessoas não estão adoecendo?
Ela virou a cabeça, subitamente incapaz de sustentar seu olhar.
– Se a peste foi liberada há uma semana, por que as pessoas não estão morrendo? – insistiu Langdon.
Ela tornou a se virar para ele devagar.
– Porque... – começou, mas as palavras ficaram presas em sua garganta. – Porque Bertrand não criou uma peste. – Seus olhos tornaram a ficar marejados. – Ele criou uma coisa muito mais perigosa.
Apesar do fluxo de oxigênio que entrava por sua máscara de gás, Elizabeth Sinskey estava tonta. Havia cinco minutos que os aparelhos de PCR de Brüder tinham revelado a pavorosa verdade.
Nossa janela de contenção já se fechou há muito tempo.
Ao que parecia, o saco de Solublon tinha se dissolvido em algum momento da semana anterior, mais provavelmente na noite de estreia do concerto cujas apresentações – ela agora sabia – haviam começado sete dias antes. Os poucos farrapos de Solublon ainda presos à cordinha só não tinham desaparecido por estarem revestidos com um adesivo que ajudara a prendê-los ao barbante.
O agente contaminante está no ar há uma semana.
Sem qualquer possibilidade de isolar o patógeno, os agentes de SMI se reuniram junto às amostras no laboratório improvisado da cisterna e adotaram a atitude alternativa habitual: análise, classificação e avaliação de risco. Até o momento, as unidades de PCR só tinham produzido uma única informação sólida, e essa descoberta não deixara ninguém surpreso.
O vírus se propagava pelo ar.
Pelo visto, o conteúdo do saco de Solublon havia borbulhado até a superfície, liberando partículas virais no ar por aerossol. Não seria preciso muitas, Elizabeth Sinskey sabia. Principalmente em uma área tão confinada.
Ao contrário de uma bactéria ou de um patógeno químico, um vírus podia se espalhar com velocidade e poder de penetração espantosos. Com um comportamento parasítico, os vírus entravam em um organismo e se vinculavam a uma célula-hospedeira num processo chamado adsorção. Então injetavam nela seu próprio DNA ou RNA, cooptando a célula invadida e forçando-a a replicar o vírus. Uma vez produzido um número suficiente de cópias, as novas partículas virais matavam a célula e rompiam sua membrana, saindo em busca de novas células para atacar e repetindo todo o processo.
Em seguida, um indivíduo infectado projetava gotículas respiratórias no ar por meio da expiração ou do espirro; essas gotículas permaneciam suspensas até serem inaladas por outros hospedeiros, e o ciclo recomeçava.
Crescimento exponencial, refletiu a Dra. Sinskey, recordando os gráficos de Zobrist que ilustravam a explosão demográfica. Ele está usando o crescimento exponencial dos vírus para combater o crescimento exponencial da população.
A pergunta mais urgente, porém, era a seguinte: Qual seria o comportamento desse vírus?
Friamente falando: Como iria atacar seu hospedeiro?
O Ebola comprometia a capacidade de coagulação do sangue, causando hemorragias impossíveis de conter. O hantavírus provocava falência pulmonar. Toda uma série de vírus conhecidos como oncovírus causava câncer. E o HIV atacava o sistema imunológico e causava a aids. Não era segredo na comunidade médica que, se o vírus HIV se propagasse por contágio aéreo, poderia ter causado a extinção da espécie humana.
Então o que faz esse vírus de Zobrist?
Fosse o que fosse, era óbvio que os efeitos demoravam a aparecer. Nenhum hospital das redondezas havia relatado casos de pacientes com sintomas fora do normal.
Ansiosa para obter respostas, Elizabeth Sinskey foi até o laboratório. Viu Brüder em pé junto ao poço da escada, onde seu celular conseguira captar um sinal fraco. O agente falava com alguém em voz baixa.
A diretora se aproximou depressa e chegou bem na hora em que ele encerrava a ligação.
– Certo, entendido – disse Brüder. Sua expressão transmitia uma emoção entre a incredulidade e o terror. – Vou repetir mais uma vez para que fique bem claro: essa informação é totalmente confidencial. Por enquanto, só você pode saber. Me ligue assim que tiver mais informações. Obrigado. – Ele desligou.
– O que está acontecendo? – perguntou a Dra. Sinskey.
Brüder expirou bem devagar.
– Acabei de falar com um velho amigo, um virologista de ponta no CDC de Atlanta.
A diretora da OMS fechou a cara.
– Você alertou o CDC sem a minha autorização?
– Achei que valia a pena correr esse risco – respondeu ele. – Meu contato sabe ser discreto e nós vamos precisar de dados bem mais específicos do que conseguiremos obter aqui neste laboratório improvisado.
Elizabeth Sinskey olhou para os agentes de SMI recolhendo amostras de água ou curvados junto a aparelhos eletrônicos portáteis. Ele tem razão.
– Meu contato no CDC está em um laboratório de microbiologia bem equipado – continuou Brüder – e já confirmou a existência de um patógeno viral altamente contagioso e nunca visto.
– Espere aí! – interrompeu a doutora. – Como conseguiu mandar uma amostra para ele tão depressa?
– Não mandei – respondeu Brüder, tenso. – Ele analisou o próprio sangue.
Elizabeth Sinskey só precisou de alguns instantes para processar o significado daquela informação.
O vírus já é global.
Caminhando a passos lentos, Langdon se sentia estranhamente fora de seu corpo, como alguém que se move em um pesadelo mais vívido do que o normal. O que poderia ser mais perigoso do que uma peste?
Sienna permanecera calada desde que saltara da lancha e fizera sinal para que ele a seguisse por um caminho de cascalho tranquilo que saía do cais e ia se afastando cada vez mais da água e das multidões.
Embora tivesse parado de chorar, Langdon sentia que ela ainda guardava dentro de si uma enxurrada de emoções. Podia ouvir ao longe o silvo das sirenes, mas Sienna parecia não notar. Tinha os olhos cravados no chão e a expressão vazia, parecendo hipnotizada pelo som ritmado de seus pés sobre o cascalho.
Eles entraram em um pequeno parque e Sienna o conduziu até o meio de um denso bosque que os ocultava do mundo. Ali, sentaram-se em um banco de frente para a água. Do outro lado, a antiga Torre de Galata cintilava acima das tranquilas residências que pontuavam a encosta da colina. O mundo visto dali parecia estranhamente em paz, muito diferente do que Langdon imaginava estar acontecendo na cisterna. Àquela altura, desconfiava ele, Elizabeth Sinskey e a equipe de SMI já deviam ter percebido que haviam chegado tarde demais para deter a peste.
A seu lado, Sienna fitava a água.
– Robert, eu não tenho muito tempo – falou. – As autoridades vão acabar descobrindo para onde fui. Mas antes que isso aconteça preciso lhe contar a verdade... toda a verdade.
Langdon assentiu, em silêncio.
Ela esfregou os olhos e se remexeu no banco para ficar de frente para ele.
– Bertrand Zobrist... – começou. – Foi meu primeiro amor. E acabou se tornando um mentor para mim.
– Já me contaram isso, Sienna.
Ela pareceu espantada, mas continuou a falar, com medo de perder o embalo:
– Eu o conheci numa idade em que nos deixamos impressionar com facilidade, e as ideias e a inteligência dele me enfeitiçaram. Bertrand acreditava, assim como eu, que a nossa espécie está à beira do colapso... que enfrentaremos um fim horripilante que está vindo depressa em nossa direção, muito mais rápido do que qualquer um se atreve a aceitar.
Langdon não comentou nada.
– Passei a infância querendo salvar o mundo – continuou ela. – E todos me diziam: “Você não pode fazer isso, então não sacrifique a sua felicidade tentando.” – Ela se calou, o rosto tenso, tentando conter as lágrimas. – Então conheci Bertrand, um homem lindo, inteligentíssimo, que me disse não só que salvar o mundo era possível, mas que era um imperativo moral. Ele me apresentou a todo um círculo de pessoas que pensavam da mesma forma, indivíduos com capacidades e intelectos impressionantes... gente que podia mesmo mudar o mundo. Pela primeira vez na vida, Robert, eu não me senti sozinha.
Ao ouvir seu tom sofrido, Langdon abriu um sorriso discreto.
– Já passei por algumas coisas horríveis na vida – prosseguiu Sienna com a voz cada vez menos firme. – Coisas que tive dificuldade de superar... – Ela desviou os olhos e passou a mão pelo crânio calvo com um gesto ansioso antes de se recompor e tornar a se virar para ele. – E talvez seja por isso que a única coisa que me faz seguir em frente é acreditar que podemos ser melhores do que somos... que podemos tomar atitudes para evitar um futuro catastrófico.
– E Bertrand também acreditava nisso? – indagou Langdon.
– Piamente. Sua esperança em relação à humanidade não tinha limites. Ele foi um transumanista que acreditava que estávamos no limiar de uma brilhante era “pós-humana”... uma era de genuína transformação. Tinha um raciocínio futurista e olhos capazes de enxergar à frente de maneiras que outros nem concebiam. Entendia os poderes notáveis da tecnologia e acreditava que, em algumas gerações, nossa espécie se tornaria um animal muito diferente: geneticamente aprimorado para ser mais saudável, mais inteligente, mais forte e até mais generoso. – Ela fez uma pausa. – Só havia um problema. Ele não achava que a nossa espécie fosse viver o suficiente para que esse futuro se concretizasse.
– Por causa da superpopulação – disse Langdon.
Ela assentiu.
– A catástrofe malthusiana. Bertrand costumava dizer que se sentia como São Jorge tentando matar o monstro ctônico.
Langdon não entendeu o que ela quis dizer.
– A Medusa?
– Metaforicamente falando, sim. A Medusa e todo o grupo de divindades ctônicas vivem no subterrâneo porque têm associação direta com a Mãe Terra. De um ponto de vista alegórico, os ctônios são sempre símbolos de...
– Fertilidade – completou Langdon, surpreso por não ter pensado antes naquele paralelo. Frutificação. População.
– Isso mesmo. Fertilidade. Bertrand usava a expressão “monstro ctônico” para se referir à perigosa ameaça da nossa própria fecundidade. Ele descrevia nossa produção exagerada de descendentes como um monstro à espreita no horizonte... um monstro que precisávamos conter agora, antes que consumisse a todos.
Estamos ameaçados por nossa própria virilidade, entendeu Langdon. O monstro ctônico.
– E como Bertrand combateu esse monstro?
– Por favor, entenda – disse ela, na defensiva. – Esses não são problemas de fácil solução. A avaliação é sempre um processo confuso. Um homem que corta a perna de uma criança de 3 anos comete um crime hediondo... a menos que ele seja um médico e salve a criança da gangrena. Às vezes a única escolha possível é o menor de dois males. – Seus olhos tornaram a ficar marejados. – Na minha opinião, o objetivo de Bertrand era nobre, mas os seus métodos... – Ela desviou o olhar, prestes a cair em prantos.
– Sienna – sussurrou Langdon em tom brando. – Eu preciso entender tudo isso. Preciso que você me explique o que Bertrand fez. O que foi que ele soltou no mundo?
Sienna tornou a encará-lo e seus olhos castanhos suaves irradiavam agora um medo mais sombrio.
– Um vírus – respondeu ela, também com um sussurro. – Um tipo de vírus muito específico.
Langdon prendeu a respiração.
– Por favor, me explique.
– Bertrand criou um vetor viral. É um vírus fabricado de forma intencional para inserir informações genéticas na célula que está atacando. – Sienna fez uma pausa para permitir que ele racionalizasse o conceito. – Em vez de matar a célula hospedeira, um vírus-vetor insere nessa célula um fragmento de DNA predeterminado e basicamente modifica o genoma da célula.
Langdon teve que se esforçar para entender o que ela estava dizendo. Esse vírus muda o nosso DNA?
– A natureza insidiosa desse tipo de vírus está no fato de ninguém saber que foi contaminado – continuou ela. – Ninguém adoece. Não há sintomas claros que indiquem uma modificação genética.
Por alguns instantes, Langdon pôde sentir o sangue pulsando em suas veias.
– E que mudanças ele causa?
Sienna fechou os olhos por alguns instantes.
– Robert, na hora em que esse vírus foi liberado na água da cisterna, uma reação em cadeia se iniciou. Todos que desceram lá e respiraram aquele ar foram contaminados. Eles se tornaram hospedeiros, cúmplices involuntários, transmitindo o vírus para outras pessoas e iniciando uma proliferação exponencial da doença, que a esta altura já varreu o planeta como um incêndio florestal. O vírus já deve ter penetrado a população do mundo inteiro. Você, eu... todo mundo.
Langdon se levantou do banco e começou a andar na frente dela como um louco, de um lado para outro.
– E o que ele faz? – tornou a perguntar.
Sienna demorou um bom tempo para responder.
– Ele tem a capacidade de tornar o corpo humano... infértil. – Ela se remexeu, pouco à vontade. – Bertrand criou a praga da esterilidade.
As palavras atingiram Langdon de forma brutal. Um vírus que nos torna estéreis? Sabia que alguns vírus podiam causar esterilidade, mas um patógeno altamente contagioso por via aérea capaz de fazer isso alterando nossos genes parecia ser coisa de outro mundo... uma espécie de distopia do futuro à George Orwell.
– Bertrand muitas vezes teorizou sobre um vírus assim, mas nunca pensei que ele fosse tentar criá-lo... muito menos que conseguiria – disse Sienna, baixinho. – Quando recebi a carta e soube o que ele tinha feito, fiquei chocada. Tentei desesperadamente encontrá-lo e implorar para que destruísse sua criação. Mas cheguei tarde demais.
– Espere aí – interpôs Langdon, enfim recuperando a voz. – Se o vírus torna todo mundo infértil, não haverá novas gerações e a raça humana vai entrar em ameaça de extinção... imediatamente.
– É isso mesmo – concordou ela, com a voz tão baixa que era quase inaudível. – Só que a extinção não era o objetivo de Bertrand. Na verdade, o objetivo dele era o contrário. Foi por isso que ele criou um vírus que se ativa de maneira aleatória. Apesar de Inferno ser agora endêmico a todo DNA humano e embora ele vá ser transmitido por todos nós a partir desta geração, só será “ativado” em uma determinada porcentagem de pessoas. Em outras palavras, o vírus agora é carregado por toda a população do planeta, mas só vai causar esterilidade em uma parcela selecionada de forma aleatória.
– E... que parcela é essa? – indagou Langdon, sem acreditar que estava perguntando aquilo.
– Como você já percebeu, Bertrand tinha fixação pela Peste Negra, a praga que dizimou de modo indiscriminado um terço da população da Europa. Na opinião dele, a natureza sabia conter a si mesma. Quando fez as contas sobre infertilidade, ficou entusiasmado ao descobrir que a taxa de mortalidade da peste, uma em cada três pessoas, parecia ser exatamente o necessário para começar a selecionar a população mundial em um ritmo manejável.
Que monstruosidade, pensou Langdon.
– A Peste Negra diminuiu o rebanho e preparou o caminho para a Renascença – disse Sienna – e Bertrand criou Inferno como uma espécie de catalisador moderno para uma renovação global, uma Peste Negra transumanista, com a diferença de que os indivíduos que manifestarem a doença, em vez de morrer, apenas se tornarão inférteis. Supondo que o vírus tenha pegado, um terço da população mundial agora é estéril... e um terço da população continuará estéril para sempre. O efeito seria semelhante ao de um gene recessivo, transmitido para todos os descendentes, mas que só se manifesta em uma pequena porcentagem.
As mãos de Sienna tremiam quando ela prosseguiu:
– Na carta que me escreveu, Bertrand parecia bastante orgulhoso e dizia que considerava Inferno uma solução muito elegante e humana para o problema. – Novas lágrimas brotaram de seus olhos e ela as secou. – Comparada à virulência da Peste Negra, reconheço que a abordagem dele tem certa compaixão. Não haverá hospitais transbordando de gente doente e agonizante, corpos apodrecendo nas ruas nem sobreviventes angustiados tendo que suportar a morte de seus próximos. Os seres humanos simplesmente vão parar de ter tantos filhos. Nosso planeta vai passar por uma diminuição gradual da taxa de natalidade até a curva populacional se inverter e a população começar a se reduzir. – Ela fez outra pausa. – O resultado será bem mais duradouro do que o da peste, que só controlou nosso número por um breve período, criando uma depressão temporária no gráfico do crescimento populacional. Com Inferno, Bertrand criou uma solução de longo prazo, permanente. Uma solução transumanista. Ele era um geneticista que manipulava células germinativas. Solucionava os problemas no nível mais elementar.
– Isso é terrorismo biológico... – sussurrou Langdon. – É mudar quem nós somos, quem sempre fomos, no nível mais fundamental.
– Bertrand não pensava assim. Ele sonhava ser capaz de consertar a falha crucial da evolução humana: o fato de a nossa espécie ser prolífica demais. Somos um organismo que, apesar do intelecto ímpar, parece incapaz de controlar a própria quantidade. Anticoncepcionais gratuitos, campanhas educativas, incentivos do governo, nada disso funciona, seja em que intensidade for. Querendo ou não, não paramos de ter filhos. Você sabia que o CDC acabou de divulgar que quase metade das gestações nos Estados Unidos não são planejadas? E nos países subdesenvolvidos esse número passa dos setenta por cento!
Apesar de já ter visto essas estatísticas, só agora Langdon começava a entender suas implicações. Como espécie, os seres humanos eram iguais aos coelhos introduzidos em certas ilhas do Pacífico e deixados livres para se reproduzir de modo desenfreado até destruírem o ecossistema e entrarem em extinção.
Bertrand Zobrist reprojetou nossa espécie: na tentativa de nos salvar, ele nos transformou em uma população menos fértil.
Langdon respirou fundo e deixou que seus olhos se perdessem nas águas do Chifre de Ouro, sentindo-se tão sem chão quanto os barcos que navegavam ao longe. As sirenes continuavam a soar mais altas e vinham agora de todas as direções do cais. Ele sentiu que o tempo estava se esgotando.
– O mais assustador de tudo não é o fato de Inferno causar infertilidade, mas de ter essa capacidade – declarou Sienna. – Um vetor viral transmitido por contágio aéreo é um salto quântico muitos anos à frente do nosso tempo. Da noite para o dia, Bertrand nos retirou da idade das trevas da engenharia genética e nos lançou de cabeça no futuro. Ele destravou o processo evolutivo e proporcionou à humanidade a capacidade de redefinir a espécie de forma ampla e abrangente. A caixa de Pandora se abriu e não há como tornar a fechá-la. Bertrand criou uma chave para modificar a raça humana e, se essa chave cair nas mãos erradas... Deus nos proteja! Essa tecnologia nunca deveria ter sido criada. Assim que li a carta em que Bertrand explicava como havia alcançado seus objetivos, eu a queimei. Então jurei encontrar o tal vírus e destruí-lo até o último vestígio.
– Não entendo – disse Langdon, deixando transparecer uma certa raiva em seu tom. – Se você queria destruir o vírus, por que não cooperou com a Dra. Sinskey e com a OMS? Deveria ter ligado para o CDC ou para algum outro lugar.
– Você não pode estar falando sério! As agências governamentais são as últimas organizações no mundo que deveriam ter acesso a uma tecnologia dessas! Pense um pouco, Robert. Ao longo de toda a história da humanidade, todas as tecnologias inovadoras desenvolvidas pela ciência foram transformadas em armas, do simples fogo à energia nuclear, e quase sempre pelas mãos de governos poderosos. De onde você acha que vêm nossas armas biológicas? Elas são criadas a partir de pesquisas realizadas em lugares como a OMS e o CDC. A tecnologia de Bertrand, um vírus pandêmico usado como vetor genético, é a mais poderosa arma já criada. Ela prepara o caminho para horrores que não podemos sequer imaginar, incluindo armas biológicas com alvo definido. Imagine um patógeno que ataque apenas pessoas cujo código genético contenha determinados marcadores étnicos. Isso possibilitaria uma limpeza étnica generalizada em nível genético!
– Entendo suas preocupações, Sienna, de verdade, mas essa mesma tecnologia não poderia ser usada para o bem? Essa descoberta não é uma dádiva para a medicina genética? Uma nova forma de ministrar vacinas em nível global, por exemplo?
– Pode ser. Mas infelizmente aprendi a esperar sempre o pior dos poderosos.
Ao longe, Langdon ouviu um zumbido de helicópteros que pareceu partir o ar em mil pedaços. Espiou por entre as árvores na direção do Bazar de Especiarias e viu as luzes de uma aeronave passarem depressa por sobre a colina e descerem em direção ao cais.
Sienna retesou o corpo.
– Tenho que ir – falou, levantando-se e olhando para o oeste, em direção à ponte de Atatürk. – Acho que consigo atravessar a ponte a pé e de lá chegar a...
– Sienna, você não vai embora – disse Langdon, com firmeza.
– Robert, eu voltei porque senti que lhe devia uma explicação. E agora já lhe dei uma.
– Não, Sienna – rebateu ele. – Você voltou porque passou a vida inteira fugindo e finalmente entendeu que não pode mais continuar.
Ela pareceu encolher na sua frente.
– E que alternativa eu tenho? – indagou, observando os helicópteros percorrerem a água com seus faróis. – Assim que eles me encontrarem, vão me prender.
– Sienna, você não fez nada de errado. Não criou esse vírus, tampouco o disseminou.
– É verdade, mas me esforcei bastante para impedir que a OMS o encontrasse. Se eu não acabar numa prisão turca, serei processada em algum tipo de tribunal internacional, acusada de terrorismo biológico.
O ronco do helicóptero ficou mais alto e Langdon olhou para o cais à frente. Uma aeronave pairava no ar, vasculhando os barcos ancorados com suas luzes enquanto as hélices revolviam a superfície da água.
Sienna parecia prestes a sair correndo.
– Por favor, escute – continuou Langdon com a voz mais branda. – Sei que você passou por muita coisa e que está com medo, mas precisa considerar a situação como um todo. Quem criou esse vírus foi Bertrand. Você tentou detê-lo.
– Mas não consegui.
– Não. E agora que o vírus foi disseminado, a comunidade médica e científica vai precisar entender exatamente o que ele é. Você é a única pessoa que sabe alguma coisa a respeito dele. Talvez haja um jeito de neutralizá-lo ou de fazer algo para nos preparar para o que está por vir. – Seus olhos penetrantes se cravaram nos dela. – Sienna, o mundo precisa ter acesso ao que você sabe. Você não pode simplesmente desaparecer.
O corpo esguio dela agora tremia, como se as comportas da melancolia e da incerteza estivessem prestes a se romper.
– Robert, eu... eu não sei o que fazer. Nem sei mais quem eu sou. Olhe para mim. – Ela levou uma das mãos ao crânio careca. – Virei um monstro. Como vou poder enfrentar...
Langdon deu um passo à frente e a abraçou. Sentiu o corpo dela tremer e notou como ela era frágil encostada assim em seu peito. Sussurrou bem baixinho em seu ouvido:
– Sienna, sei que você quer fugir, mas não vou deixar. Mais cedo ou mais tarde você terá que começar a confiar em alguém.
– Eu não consigo... – Ela agora soluçava. – Não sei se tenho essa capacidade.
Langdon a apertou mais forte.
– Comece aos poucos. Dê um primeiro passo, bem pequenininho. Confie em mim.
O retinir agudo de metal contra metal ecoou na fuselagem do C-130 sem janelas, assustando o diretor. Do lado de fora, alguém batia com o cabo de uma pistola na porta de carga do avião, pedindo para entrar.
– Continuem todos sentados – ordenou o piloto enquanto avançava em direção à porta. – É a polícia turca. Acabaram de chegar de carro.
O diretor e Ferris trocaram um olhar rápido.
A julgar pelo tumulto de ligações apavoradas dos funcionários da OMS a bordo, o diretor podia sentir que a missão de contenção havia fracassado. Zobrist executou seu plano, pensou. E a minha empresa possibilitou isso.
Do outro lado da porta de carga, vozes gritavam em turco, num tom autoritário.
O diretor se levantou com um pulo.
– Não abra a porta! – ordenou ao piloto.
O homem parou e o fitou com um olhar hostil.
– Por que não?
– A OMS é uma organização internacional de ajuda humanitária e este avião é território soberano! – respondeu o diretor.
O piloto fez que não com a cabeça.
– Não, senhor. Este avião se encontra estacionado em um aeroporto turco e, até deixar o espaço aéreo da Turquia, está subordinado às leis deste país.
Ele avançou até a saída e abriu a porta.
Dois homens de uniforme olharam para dentro. Suas expressões duras não davam o menor sinal de condescendência.
– Quem é o comandante desta aeronave? – perguntou um deles em inglês com forte sotaque.
– Sou eu – respondeu o piloto.
O policial entregou-lhe duas folhas de papel.
– Mandados de prisão. Esses dois passageiros terão que vir conosco.
O piloto passou os olhos pelos papéis e se virou para o diretor e para Ferris.
– Ligue para a Dra. Sinskey – ordenou o diretor ao piloto. – Fazemos parte de uma missão de emergência internacional.
Um dos policiais o encarou com um sorriso zombeteiro.
– A Dra. Elizabeth Sinskey? Diretora da OMS? Foi ela que mandou prendê-los.
– Não é possível – retrucou o diretor. – O Sr. Ferris e eu estamos aqui tentando ajudar a Dra. Sinskey.
– Nesse caso não estão fazendo um bom trabalho – respondeu o segundo policial. – A Dra. Sinskey entrou em contato conosco e os acusou de serem cúmplices de um complô de bioterrorismo em solo turco. – Ele sacou algemas. – Ambos terão que ir conosco até a central para serem interrogados.
– Eu exijo um advogado! – gritou o diretor.
Trinta segundos depois, algemados, ele e Ferris, foram empurrados pela plataforma de embarque e jogados com violência no banco de trás de um sedã preto. O carro partiu a toda a velocidade e atravessou a pista até um canto afastado do aeroporto, onde parou diante de uma cerca de arame que havia sido cortada e afastada para permitir sua passagem. Passada a cerca que circundava o aeroporto, o sedã seguiu sacolejando por um terreno desolado e seco, cheio de equipamentos aeroportuários quebrados, até parar junto a um velho prédio de serviço.
Os dois agentes uniformizados desceram do carro e correram os olhos ao redor. Parecendo convencidos de que ninguém os seguira, despiram e jogaram no chão os uniformes da polícia. Então ajudaram Ferris e o diretor a saltar do carro e retiraram suas algemas.
O diretor esfregou os pulsos. Realmente não me daria bem na prisão, pensou.
– A chave do carro está debaixo do tapete – disse um dos homens indicando uma van branca estacionada ali perto. – Tem uma bolsa de viagem no banco de trás com tudo o que o senhor solicitou: documentos, dinheiro vivo, celulares pré-pagos, roupas e também algumas outras coisas que achamos que talvez pudesse apreciar.
– Obrigado – agradeceu o diretor. – Vocês são bons.
– Somos apenas bem treinados, senhor.
Os dois turcos tornaram a embarcar no sedã preto e foram embora.
Elizabeth Sinskey nunca me deixaria ir embora, o diretor disse a si mesmo. Ao pressentir isso a caminho de Istambul, enviara um alerta por e-mail à sucursal do Consórcio na cidade dizendo que talvez ele e Ferris precisassem ser resgatados.
– Acha que ela virá atrás de nós? – perguntou Ferris.
– A Dra. Sinskey? – O diretor assentiu. – É claro! Embora desconfie que ela agora deva ter outras preocupações.
Os dois embarcaram na van branca e o diretor vasculhou o conteúdo da bolsa para organizar sua documentação. Pegou um boné de beisebol e o enterrou na cabeça. Dentro do boné, enrolada em um pano, havia uma garrafinha de single malt Highland Park.
Esses caras são bons mesmo.
Encarou o líquido cor de âmbar e disse a si mesmo que deveria esperar até o dia seguinte. Logo em seguida, porém, pensou no saco de Solublon de Zobrist e se perguntou como seria o dia seguinte.
Eu violei minha regra fundamental, pensou. Entreguei o cliente.
Sentiu-se estranhamente à deriva, sabendo que nos dias que se seguiriam o mundo seria assolado pelas notícias de uma catástrofe na qual ele havia desempenhado um papel crucial. Nada disso teria acontecido sem mim.
Pela primeira vez na vida, a ignorância não lhe parecia mais uma garantia de moralidade. Rompeu o lacre da garrafa de uísque.
Saboreie bem, pensou. Seus dias estão contados.
Tomou um gole generoso da bebida e se deliciou com o calor que lhe desceu pela garganta.
De repente, a escuridão se acendeu com canhões de luz e com os lampejos azuis estroboscópicos de viaturas de polícia que os cercaram por todos os lados.
O diretor olhou em todas as direções, atarantado... e então ficou parado feito pedra.
Não tenho para onde fugir.
Enquanto policiais turcos cercavam a van, fuzis em riste, ele tomou um último gole do Highland Park e ergueu as mãos devagar acima da cabeça.
Dessa vez, os agentes não eram seus.
O Consulado Suíço de Istambul fica em um arranha-céu reluzente e ultramoderno na Levent Plaza, no 1. Sua fachada côncava de vidro azul se destaca dos prédios da antiga metrópole qual um monólito futurista.
Havia se passado quase uma hora desde que Elizabeth Sinskey deixara a cisterna para montar um centro de comando provisório nas salas do consulado. Canais de notícias da cidade transmitiam sem parar reportagens sobre o pânico e o corre-corre na última apresentação da Sinfonia Dante, de Liszt, na cisterna. Nenhum detalhe tinha sido divulgado até o momento, mas a presença de uma equipe médica internacional usando roupas de proteção havia gerado inúmeras especulações.
A Dra. Sinskey olhou pela janela para as luzes da cidade e se sentiu totalmente sozinha. Em um gesto instintivo, ergueu a mão para tocar o amuleto do pescoço, mas não o encontrou. O talismã estava agora em cima de sua mesa, partido ao meio.
A diretora da OMS havia acabado de agendar uma série de reuniões de emergência marcadas para acontecer em Genebra nas próximas horas. Especialistas de várias agências já estavam a caminho e a própria Elizabeth Sinskey planejava pegar um avião em pouco tempo para encontrá-los. Para sua felicidade, algum funcionário do turno da noite havia providenciado uma caneca de um genuíno café turco bem quente que ela logo esvaziara.
Um jovem funcionário do consulado esticou a cabeça pela porta aberta.
– Diretora? O professor Robert Langdon está aqui para falar com a senhora.
– Obrigada – respondeu ela. – Mande-o entrar.
Vinte minutos antes, Langdon lhe telefonara dizendo que Sienna Brooks tinha conseguido fugir depois de roubar uma lancha e partir para o mar. A Dra. Sinskey já ouvira a mesma notícia das autoridades turcas, que ainda estavam vasculhando a área, mas ainda não haviam encontrado nada.
Quando a silhueta alta de Langdon surgiu no vão da porta, ela mal o reconheceu. O professor vestia um terno sujo, tinha os cabelos despenteados e um olhar exausto e abatido.
– O senhor está bem, professor? – perguntou ela, levantando-se.
Langdon deu um sorriso cansado.
– Já tive noites mais tranquilas.
– Sente-se, por favor – disse a doutora, indicando uma cadeira.
– O agente contaminante de Zobrist – começou ele sem preâmbulo, assim que se sentou. – Acho que ele talvez tenha sido liberado há uma semana.
Elizabeth Sinskey meneou a cabeça devagar.
– Sim, nós chegamos à mesma conclusão. Nenhum sintoma foi relatado ainda, mas já isolamos amostras e estamos nos preparando para conduzir intensas baterias de testes. Infelizmente, é possível que levemos dias ou semanas para entender o que esse vírus é de fato... e o que pode fazer.
– É um vírus-vetor – disse Langdon.
A doutora inclinou a cabeça de lado, espantada pelo fato de o professor conhecer aquele termo.
– Zobrist criou um vírus-vetor que se dissemina por contágio aéreo e tem o poder de modificar o DNA humano.
A diretora se levantou tão abruptamente que chegou a derrubar a cadeira. Isso nem é possível!
– Por que o senhor diria uma coisa dessas?
– Sienna – respondeu ele, baixinho. – Ela me contou. Há meia hora.
Ela apoiou as mãos na mesa e olhou para Langdon com súbita desconfiança.
– Mas ela não fugiu?
– Fugiu, sim – retrucou ele. – Ela estava livre, a bordo de uma lancha em alta velocidade em direção ao mar, e poderia muito bem ter desaparecido para sempre. Só que mudou de ideia. Voltou por livre e espontânea vontade. Sienna quer ajudar nesta crise.
Elizabeth Sinskey deixou escapar uma risada áspera.
– Me perdoe se eu não estiver disposta a confiar na Srta. Brooks, ainda mais diante de afirmação tão disparatada.
– Eu acredito nela – disse Langdon num tom inflexível. – E, se ela está dizendo que é um vírus-vetor, acho melhor a senhora levá-la a sério.
De repente a doutora sentiu-se exausta. Seu cérebro penava para analisar as palavras de Langdon. Ela foi até a janela e olhou para fora. Um vetor viral capaz de alterar o DNA? Por mais improvável e horripilante que essa possibilidade lhe soasse, tinha que admitir que havia nela uma certa lógica sinistra. Afinal, Zobrist era geneticista e sabia muito bem que a mais insignificante mutação em um único gene podia ter efeitos catastróficos no corpo: cânceres, falências de órgãos, anomalias sanguíneas. Até uma doença tão horripilante quanto a mucoviscidose, que afoga suas vítimas em muco, devia-se a nada mais do que uma minúscula falha em um gene regulador do cromossomo 7.
Os especialistas agora haviam começado a tratar esses distúrbios genéticos usando vírus-vetores rudimentares, injetados no paciente. Esses vírus não contagiosos eram programados para viajar pelo organismo e substituir os fragmentos de DNA danificados por outros. Mas essa nova ciência, assim como todas as demais, também tinha seu lado obscuro. Dependendo das intenções do geneticista, os efeitos de um vírus-vetor podiam ser favoráveis ou destrutivos. Se fosse programado de maneira mal-intencionada para inserir DNA danificado em células saudáveis, os resultados seriam devastadores. Além disso, se o vírus destrutivo de alguma forma fosse manipulado para se tornar altamente contagioso por via aérea...
A possibilidade fez a Dra. Sinskey se arrepiar. Que aberração genética Zobrist terá imaginado? Como ele planeja diminuir o rebanho dos homens?
Sabia que poderia levar semanas para encontrar a resposta. O código genético humano continha um labirinto aparentemente infinito de permutações químicas. A ideia de vasculhar sua totalidade na esperança de encontrar a única alteração específica feita por Zobrist seria como procurar uma agulha num palheiro... sem nem ao menos saber em que planeta estava localizado o palheiro em questão.
– Dra. Sinskey? – A voz grave de Langdon a trouxe de volta ao presente.
A doutora se virou da janela e olhou para ele.
– Ouviu o que eu disse? – perguntou ele, ainda sentado e calmo. – Sienna queria destruir esse vírus tanto quanto a senhora.
– Duvido.
Langdon expirou e se levantou.
– Acho que a senhora deveria me escutar. Pouco antes de morrer, Zobrist escreveu uma carta para Sienna dizendo a ela o que tinha feito. Explicou exatamente como o vírus agia, como iria nos atacar e como atingiria seus objetivos.
Elizabeth Sinskey gelou. Existe uma carta?!
– Quando leu a descrição de Zobrist do que havia criado, ela ficou horrorizada. Quis impedi-lo. Achou esse vírus tão perigoso que não queria que ninguém tivesse acesso a ele, nem mesmo a OMS. Será que a senhora não entende? Sienna estava tentando destruir o vírus... não liberá-lo.
– Existe uma carta? – perguntou a Dra. Sinskey, agora muito concentrada. – Com detalhes?
– Sim, foi o que Sienna me disse.
– Nós precisamos dessa carta! Os detalhes podem nos poupar meses para entender o que é essa coisa e saber como lidar com ela.
Langdon balançou a cabeça.
– A senhora não entendeu. Quando Sienna leu a carta de Zobrist, ficou apavorada. Ela a queimou na mesma hora. Queria ter certeza de que ninguém...
Elizabeth Sinskey deu um tapa na mesa.
– Ela destruiu a única coisa que poderia nos ajudar a contornar esta crise? E o senhor quer que eu confie nela?
– Sei que é pedir muito, ainda mais diante da forma como ela agiu, mas, em vez de castigá-la, talvez seja útil lembrar que Sienna é dotada de uma inteligência ímpar que inclui uma capacidade notável para se lembrar de fatos. – Langdon fez uma pausa. – E se ela conseguir recriar a carta de Zobrist o suficiente para ser útil a vocês?
A doutora estreitou os olhos e assentiu de leve.
– Bem, professor, nesse caso, o que o senhor sugere que eu faça?
Langdon indicou com um gesto a caneca vazia de café.
– Sugiro que peça mais café... e ouça a única condição que Sienna impôs.
A pulsação da Dra. Sinskey se acelerou e ela olhou para o telefone.
– O senhor tem como entrar em contato com ela?
– Tenho.
– Qual é a condição dela?
Langdon respondeu e Elizabeth Sinskey se calou, avaliando a proposta.
– Acho que é a coisa certa a fazer – acrescentou ele. – O que a senhora tem a perder?
– Se tudo o que o senhor está dizendo for verdade, eu lhe dou minha palavra. – A doutora empurrou o telefone na sua direção. – Por favor, entre em contato com ela.
Para sua surpresa, Langdon ignorou o telefone. Em vez disso, levantou-se e saiu da sala, afirmando que voltaria em um minuto. Intrigada, a Dra. Sinskey foi até o corredor e o viu atravessar a passos largos a recepção do consulado, empurrar as portas de vidro e chegar ao saguão do elevador. Por um instante pensou que ele fosse sair, mas então, em vez de chamar o elevador, entrou discretamente no banheiro feminino.
Alguns segundos depois, saiu de lá acompanhado por uma mulher que parecia ter 30 e poucos anos. Elizabeth Sinskey precisou de um tempo para se convencer de que aquela fosse mesmo Sienna Brooks. A bela moça de rabo de cavalo que vira mais cedo nesse dia parecia outra pessoa. Estava agora careca, como se o seu crânio houvesse sido raspado.
Os dois entraram na sala e se sentaram em frente à mesa da diretora, sem dizer nada.
– Me perdoe – disse Sienna depressa. – Sei que temos muito o que conversar, mas primeiro eu gostaria que a senhora me deixasse dizer uma coisa.
A Dra. Sinskey notou a tristeza em sua voz.
– Claro.
– A senhora é diretora da OMS – começou Sienna com a voz muito fraca. – Sabe melhor do que ninguém que somos uma espécie à beira do colapso, uma população fora de controle. Durante muitos anos, Bertrand Zobrist tentou conversar com pessoas influentes como a senhora sobre essa crise iminente. Visitou inúmeras organizações que acreditava poderem implementar mudanças: o Instituto Worldwatch, o Clube de Roma, a organização Population Matters, o Conselho de Relações Exteriores. Mas nunca encontrou ninguém com coragem para ter uma conversa séria sobre alguma solução real. Vocês todos respondiam com planos para melhorar a educação sobre métodos anticoncepcionais, incentivos fiscais para famílias menores ou mesmo sugestões de colonizar a lua! Não é de espantar que Bertrand tenha ficado louco.
Elizabeth Sinskey a encarou sem reagir.
Sienna respirou fundo.
– Dra. Sinskey, Bertrand a procurou pessoalmente. Implorou que a senhora reconhecesse que estávamos à beira do abismo e que iniciasse algum tipo de diálogo. Mas a senhora, em vez de ouvir suas ideias, chamou-o de louco, pôs o nome dele em uma lista de pessoas a serem vigiadas e o obrigou a mergulhar na clandestinidade. – A voz de Sienna ficou carregada de emoção. – Bertrand morreu sozinho porque pessoas como a senhora se recusaram a ter a mente aberta o suficiente para ao menos admitir que a nossa situação catastrófica talvez precise de uma solução incômoda. Tudo o que ele fez foi dizer a verdade, nada mais... e foi proscrito. – Ela secou os olhos e encarou a Dra. Sinskey por cima da mesa. – Acredite, eu sei como é se sentir sozinho... e o pior tipo de solidão que existe é a solidão de ser incompreendido. Ela pode fazer as pessoas perderem a noção de realidade.
Sienna parou de falar e um silêncio tenso recaiu sobre a sala.
– Era só isso que eu queria dizer – sussurrou.
A doutora a estudou por um bom tempo e então se sentou.
– Tem razão, Srta. Brooks – falou, com a maior calma possível. – Eu posso não ter ouvido antes... – Ela uniu as mãos sobre a mesa e cravou os olhos nos de Sienna. – Mas estou ouvindo agora.
Fazia muito tempo que o relógio do Consulado Suíço já batera a uma da manhã.
O bloco de notas sobre a mesa de Elizabeth Sinskey parecia agora uma colcha de retalhos de textos escritos à mão, perguntas e gráficos. Havia mais de cinco minutos que a diretora da OMS não se mexia nem dizia nada. Postada junto à janela, apenas fitava a noite lá fora.
Atrás dela, Langdon e Sienna aguardavam, sentados e em silêncio, segurando canecas com o que restava de seus cafés turcos, cujo forte aroma de pistache e grãos moídos dominava a sala.
O único barulho era o zumbido das lâmpadas fluorescentes no teto.
Sienna podia sentir o coração disparado e se perguntou o que a doutora estaria pensando depois de ouvir a verdade com todos os seus impiedosos detalhes. O vírus de Bertrand é uma praga de infertilidade. Um terço da população humana vai ficar estéril.
Havia passado toda a explicação estudando as emoções da outra mulher, que, embora contidas, tinham sido notáveis. A primeira fora uma aceitação estupefata de que Zobrist de fato havia criado um vírus-vetor que se disseminava por contágio aéreo. Em seguida, ao saber que o vírus não fora projetado para matar, demonstrara uma esperança passageira. Então, aos poucos, a doutora havia mergulhado em uma espiral de horror, conforme absorvia a verdade e compreendia que uma enorme porcentagem da população da Terra iria ficar estéril. Era evidente que a revelação de que o vírus atacava a fertilidade humana a afetava de forma profunda e pessoal.
A maior emoção de Sienna foi alívio. Ela agora havia compartilhado com a diretora da OMS todo o conteúdo da carta de Bertrand. Não tenho mais segredos.
– Doutora? – arriscou Langdon.
Lentamente Elizabeth Sinskey abandonou suas divagações. Quando olhou para os dois, tinha o rosto abatido.
– Sienna – começou ela com tom de voz neutro –, as informações que você me deu vão ser muito úteis na preparação de uma estratégia para lidar com esta crise. Obrigada pela sua sinceridade. Como sabe, os vetores virais pandêmicos vêm sendo discutidos em teoria como uma possível forma de imunizar grandes populações, mas todo mundo acreditava que a tecnologia ainda fosse levar muitos anos para ser desenvolvida.
Ela voltou para a mesa e se sentou.
– Me desculpem – falou, balançando a cabeça. – Isso tudo ainda está me parecendo ficção científica.
Não é de espantar, pensou Sienna. Todos os saltos quânticos em medicina haviam produzido aquela mesma sensação: a descoberta da penicilina, da anestesia, a primeira vez que um ser humano olhara por um microscópio e vira uma célula se dividir.
A diretora da OMS baixou os olhos para o bloco de notas.
– Em algumas horas vou a Genebra e serei bombardeada de perguntas. Não tenho dúvidas de que a primeira delas vai ser: existe ou não alguma forma de reverter esse vírus?
Sienna desconfiava que ela estivesse certa.
– E imagino que a primeira solução a ser proposta será analisar o vírus que Bertrand criou, entendê-lo o máximo possível e depois tentar criar uma segunda cepa, uma variação que possamos reprogramar para restituir o formato original de nosso DNA. – Quando ela olhou para Sienna, sua expressão não parecia otimista. – Resta descobrir se um contravírus será viável, mas, hipoteticamente falando, eu gostaria de saber o que você pensa dessa abordagem.
O que eu penso? Por puro reflexo, Sienna se virou para Langdon. O professor meneou a cabeça para ela. Seu recado era claro: Você já veio até aqui. Diga o que acha. Compartilhe o seu ponto de vista.
Sienna pigarreou, virou-se para a Dra. Sinskey e falou com uma voz nítida e forte:
– Eu frequentei o mundo da engenharia genética por muitos anos com Bertrand. Como a senhora sabe, o genoma humano é uma estrutura extremamente delicada, como um castelo de cartas. Quanto mais ajustes fazemos, maiores as chances de mexermos por engano na carta errada e jogarmos por terra a estrutura inteira. Minha crença é que tentar desfazer o que já foi feito é muito perigoso. Bertrand era um geneticista de perícia e visão excepcionais. Estava anos à frente de seus pares. Não tenho certeza se hoje eu confiaria em alguma outra pessoa para manipular o genoma humano na esperança de consertá-lo. Mesmo que vocês conseguissem criar algo que talvez pudesse funcionar, para testá-lo teriam que reinfectar a população inteira com outra coisa.
– É verdade – disse Elizabeth Sinskey, sem aparentar surpresa com o que acabara de ouvir. – Mas é claro que existe uma questão maior. Talvez nós nem queiramos reverter o vírus.
Aquelas palavras pegaram Sienna desprevenida.
– Como é que é?
– Eu posso até discordar dos métodos de Bertrand, mas a avaliação que ele fez da situação mundial procede. Nosso planeta está enfrentando uma questão populacional séria. Se conseguirmos neutralizar o vírus dele sem um plano alternativo viável... vamos voltar à estaca zero.
O choque de Sienna deve ter sido aparente, pois Elizabeth Sinskey deu uma risadinha cansada e completou:
– Você não esperava me ouvir dizer isso, não é?
Sienna balançou a sabeça.
– Acho que eu não sei mais o que esperar.
– Então talvez eu vá surpreendê-la outra vez – continuou a Dra. Sinskey. – Como lhe disse mais cedo, líderes das principais agências de saúde mundiais vão se reunir em Genebra daqui a poucas horas para discutir esta crise e preparar um plano de ação. Até onde eu me lembre, é a reunião mais importante em todos os meus anos de OMS. – Ela encarou a jovem médica. – Sienna, eu gostaria que você participasse desse debate.
– Eu? – Sienna se encolheu. – Não sou geneticista. Já falei tudo o que sabia. – Ela apontou para o bloco da doutora. – Tudo com que posso contribuir está anotado aí.
– De jeito nenhum – interveio Langdon. – Qualquer debate significativo sobre esse vírus vai precisar de contextualização, Sienna. A Dra. Sinskey e sua equipe vão ter que montar um arcabouço moral para avaliar como devem reagir. Ela obviamente acredita que você está em uma posição privilegiada para contribuir com esse diálogo.
– Desconfio que o meu arcabouço moral não vá ser do agrado da OMS.
– Provavelmente não – retrucou Langdon. – E esse é mais um motivo para que você esteja lá. Você pertence a uma nova categoria de pensadores. Suas ideias são um contraponto. Você pode ajudá-los a entender a disposição mental de visionários como Bertrand: indivíduos brihantes cujas convicções, de tão fortes, os levam a tomar as rédeas da situação.
– Bertrand não foi o primeiro a fazer isso.
– Não. Nem vai ser o último – interveio Elizabeth Sinskey. – Todos os meses a OMS descobre novos laboratórios nos quais cientistas estudam as regiões obscuras da ciência. Há de tudo, desde a manipulação de células-tronco humanas até a criação de quimeras, espécies mistas que não existem na natureza. É inquietante. A ciência está progredindo tão depressa que ninguém mais sabe como estabelecer limites.
Sienna teve que concordar. Havia pouco tempo, dois respeitados virologistas – Fouchier e Kawaoka – haviam criado um vírus mutante H5N1 altamente patogênico. Apesar de sua intenção ser apenas acadêmica, a nova criação tinha determinadas capacidades que deixaram alarmados os especialistas em biossegurança e provocaram uma gigantesca controvérsia na internet.
– Meu medo é que essa situação fique cada vez mais confusa – disse a Dra.Sinskey. – Estamos prestes a descobrir novas tecnologias que ainda não conseguimos sequer imaginar.
– E novas filosofias também – acrescentou Sienna. – O movimento transumanista está a ponto de sair das sombras e virar tendência. Um de seus preceitos fundamentais é que nós, seres humanos, temos a obrigação moral de participar de nosso processo evolutivo, de usar nossas tecnologias para aprimorar a espécie e criar pessoas melhores: mais saudáveis, mais fortes, com cérebros mais funcionais. Em breve tudo será possível.
– E você não acha que essas crenças entram em conflito com o processo evolutivo?
– Não – respondeu Sienna sem hesitar. – Os seres humanos foram evoluindo aos poucos ao longo de vários milênios e inventaram novas tecnologias nesse tempo: esfregaram um graveto no outro para obter calor, desenvolveram a agricultura para se alimentar, inventaram vacinas para combater doenças. Agora criaram ferramentas genéticas para ajudar a adaptar nosso corpo de modo a nos tornarmos aptos a sobreviver neste mundo em mutação. – Ela fez uma pausa. – Na minha opinião, a engenharia genética é apenas mais um passo em uma longa lista de avanços da humanidade.
Elizabeth Sinskey ficou calada, imersa em pensamentos.
– Quer dizer que você acredita que devamos acolher essas ferramentas de braços abertos?
– Se não as acolhermos, seremos tão pouco merecedores da vida quanto um homem das cavernas que morre de frio por medo de acender uma fogueira – respondeu Sienna.
Suas palavras pareceram pairar por um bom tempo no ar antes que alguém voltasse a se manifestar.
Foi Langdon quem quebrou o silêncio.
– Não quero soar antiquado – começou ele –, mas fui criado ouvindo as teorias de Darwin e não consigo deixar de questionar a sensatez de tentar acelerar o processo natural de evolução.
– Robert, a engenharia genética não é uma aceleração do processo evolutivo – falou Sienna, enfática. – É o curso natural dos acontecimentos! Você está se esquecendo de que foi a evolução que criou Bertrand Zobrist. O intelecto superior dele era justamente o resultado do processo descrito por Darwin: uma evolução ao longo do tempo. Sua rara compreensão da genética não foi um clarão de inspiração divina, mas o resultado de anos de progresso intelectual da humanidade.
Langdon se calou e pareceu considerar a questão.
– Se você é darwinista – prosseguiu ela –, deve saber que a natureza sempre encontrou uma forma de manter a população humana sob controle: pestes, fome, enchentes. Mas me diga uma coisa: não seria possível a natureza ter agora inventado uma forma diferente? Em vez de nos mandar desastres naturais e misérias terríveis, talvez, por meio do processo evolutivo, a natureza tenha criado um cientista que inventou um método diferente para reduzir nossa população ao longo do tempo. Sem peste. Sem morte. Apenas uma espécie mais adaptada ao ambiente.
– Sienna – interrompeu a Dra. Sinskey. – Está tarde. Temos que ir. Mas, antes de partirmos, preciso esclarecer uma última coisa. Você me disse várias vezes hoje à noite que Bertrand não era um homem mau, que ele amava a humanidade e que sua ânsia de salvar nossa espécie era grande a ponto de ele conseguir racionalizar a aplicação de medidas tão drásticas.
Sienna assentiu.
– Os fins justificam os meios – falou, em uma referência à teoria do famoso cientista político florentino Maquiavel.
– Então me diga: você acredita que os fins justificam os meios? Acredita que o objetivo de Bertrand de salvar o mundo era nobre a ponto de justificar a liberação desse vírus?
Um silêncio tenso se abateu sobre a sala.
Sienna se inclinou para a frente com uma expressão veemente.
– Dra. Sinskey, como já lhe disse, acho que os atos de Bertrand foram temerários e muito perigosos. Se eu pudesse ter impedido suas ações, teria feito isso sem pestanejar. Preciso que a senhora acredite em mim.
Elizabeth Sinskey estendeu o braço por cima da mesa e, com delicadeza, segurou as duas mãos da jovem.
– Eu acredito, Sienna. Acredito em cada palavra do que você me disse.
No aeroporto de Atatürk, o ar que precedia a aurora estava frio e enevoado. Uma leve bruma havia se assentado rente ao chão, cobrindo a pista do terminal privativo.
Langdon, Sienna e a Dra. Sinskey chegaram num carro de luxo e foram recebidos em frente ao terminal por um funcionário da OMS que os ajudou a saltar.
– Estamos prontos. Partimos quando a senhora quiser, diretora – disse ele, guiando o trio para dentro do modesto prédio do terminal.
– E o voo do professor Langdon? – indagou ela.
– Um avião particular para Florença. A documentação de viagem temporária do professor já está a bordo.
Elizabeth Sinskey meneou a cabeça em agradecimento.
– E a outra questão sobre a qual conversamos?
– Já está sendo providenciada. A encomenda será despachada assim que possível.
A Dra. Sinskey agradeceu ao funcionário, que se afastou pela pista em direção ao avião. Então se virou para Langdon.
– Tem certeza de que não quer vir conosco? – Ela abriu um sorriso cansado e afastou do rosto os longos cabelos cor de prata, prendendo-os atrás das orelhas.
– Considerando toda a situação, não sei se um professor de História da Arte terá muito com que contribuir – respondeu ele num tom brincalhão.
– O senhor já contribuiu bastante – falou a Dra. Sinskey. – Mais do que imagina. E uma de suas maiores contibuições foi... – Ela fez um gesto para indicar Sienna ao seu lado, mas a moça já não estava mais ali.
Uns 20 metros mais atrás, Sienna estava parada diante de uma grande vidraça através da qual fitava o C-130 estacionado na pista. Parecia perdida em pensamentos.
– Obrigado por confiar nela – disse Langdon baixinho. – Sinto que ela não teve muito disso na vida.
– Desconfio que Sienna Brooks e eu teremos muito a aprender uma com a outra. – A diretora estendeu a mão. – Vá com Deus, professor.
– A senhora também – respondeu Langdon enquanto se cumprimentavam. – Boa sorte em Genebra.
– Obrigada. Vamos precisar mesmo – disse ela e em seguida meneou a cabeça na direção de Sienna. – Vou deixá-los a sós um instante. Diga para ela sair quando tiverem acabado.
Enquanto atravessava o terminal, a doutora levou distraidamente a mão ao bolso e segurou as duas metades do amuleto quebrado, apertando-as com força.
– Não desista desse Bastão de Asclépio – disse Langdon em voz alta atrás dela. – Ele tem conserto.
– Obrigada – respondeu ela com um aceno. – Espero que tudo tenha.
Sozinha diante da vidraça, Sienna Brooks fitava as luzes na pista do aeroporto, que tinham um aspecto fantasmagórico graças à névoa rasteira e às nuvens que se adensavam no céu. No alto de uma torre de controle ao longe, a bandeira turca tremulava orgulhosa: um fundo vermelho com os antigos símbolos da lua crescente e da estrela, vestígio do Império Otomano ainda a se desfraldar, altivo, em pleno mundo moderno.
– Uma lira turca pelos seus pensamentos – disse uma voz grave atrás dela.
Sienna não se virou.
– Está vindo um temporal.
– Eu sei – respondeu Langdon, baixinho.
Depois de um bom tempo, Sienna ficou de frente para ele.
– E também que eu queria que você estivesse indo para Genebra conosco.
– É muita gentileza sua dizer isso – retrucou ele. – Mas você vai estar ocupada discutindo o futuro. A última coisa de que vai precisar é de um antiquado professor universitário atrapalhando.
Ela o encarou, intrigada.
– Você se acha velho demais para mim, não é?
Langdon deu uma gargalhada.
– Sienna, eu com certeza sou velho demais para você!
Ela se remexeu, sem graça.
– Tudo bem... mas pelo menos você sabe onde me encontrar. – Conseguiu dar de ombros com uma espontaneidade juvenil. – Quero dizer, se um dia quiser me ver de novo.
Ele sorriu.
– Seria um prazer.
Ela ficou mais animada, mas mesmo assim um longo silêncio se instalou entre eles. Nenhum dos dois sabia muito bem como se despedir.
Quando Sienna ergueu os olhos para o professor, foi tomada por uma onda de emoção que não estava acostumada a sentir. Impulsivamente, ficou na ponta dos pés e lhe deu um beijo na boca. Quando se afastou, seus olhos estavam marejados.
– Vou sentir saudades – sussurrou.
Com um sorriso afetuoso, ele a envolveu nos braços.
– Eu também.
Ficaram assim um bom tempo, presos num abraço que nenhum dos dois parecia querer desfazer. Por fim, Langdon tornou a falar:
– Existe um ditado antigo, muitas vezes atribuído ao próprio Dante... – Ele fez uma pausa. – “Lembre-se desta noite, pois ela é o início da eternidade.”
– Obrigada, Robert – disse Sienna, as lágrimas começando a correr. – Finalmente sinto que tenho um objetivo.
Langdon a abraçou mais forte.
– Você sempre disse que queria salvar o mundo, Sienna. Quem sabe esta não é a sua chance?
Ela deu um leve sorriso e se afastou. Enquanto caminhava sozinha rumo ao C-130 parado na pista, pensou em tudo o que havia acontecido, em tudo o que ainda poderia acontecer e em todos os futuros possíveis.
Lembre-se desta noite, pois ela é o início da eternidade, repetiu para si mesma.
Ao embarcar no avião, Sienna rezou para que Dante estivesse certo.
O sol fraco da tarde se punha sobre a Piazza del Duomo, refletindo-se no mármore branco do campanário de Giotto e cobrindo com longas sombras a magnífica catedral florentina de Santa Maria del Fiore.
O funeral de Ignazio Busoni estava apenas começando quando Robert Langdon entrou discretamente na catedral e encontrou um lugar para sentar, satisfeito que a vida de Ignazio fosse ser homenageada ali, na basílica atemporal que tantos anos estivera sob os seus cuidados.
Apesar da fachada vibrante, o interior da catedral de Florença era simples, vazio e austero. Nesse dia, porém, o ascético santuário parecia irradiar uma atmosfera de celebração. Autoridades do governo, amigos e colegas do mundo da arte tinham vindo de toda a Itália e lotado a igreja para recordar o homem imenso e cheio de vida carinhosamente chamado de il Duomino.
Segundo a imprensa, Busoni morrera fazendo o que mais amava na vida: dando um passeio noturno pelos arredores do Duomo.
O tom do funeral foi muito positivo, com comentários bem-humorados de amigos e parentes. Um colega apontou que o amor de Busoni pela arte renascentista, segundo ele próprio, só se comparava a seu amor por espaguete à bolonhesa e budino de caramelo.
Depois da cerimônia, enquanto os convidados conversavam e se lembravam com carinho de episódios da vida de Ignazio, Langdon se pôs a vagar pelo interior do Duomo para admirar as obras que Busoni tanto amara: o Juízo Final de Vasari no teto da cúpula; os vitrais de Donatello e Ghiberti; o relógio de Uccello; e o muitas vezes negligenciado piso de mosaico que adornava o chão.
Em determinado momento, viu-se diante de um rosto conhecido: Dante Alighieri. Retratado por Michelino em sua lendária pintura, o célebre poeta aparecia em pé, com o monte Purgatório ao fundo, segurando nas duas mãos estendidas sua obra-prima, A Divina Comédia, como se a ofertasse com humildade.
Não pôde evitar imaginar o que Dante teria achado se soubesse da influência que seu poema épico viria a exercer no mundo séculos mais tarde, num futuro que nem mesmo o poeta florentino poderia ter vislumbrado.
Ele encontrou a vida eterna, pensou Langdon, lembrando-se do conceito de fama dos antigos filósofos gregos. Enquanto o teu nome for dito, tu jamais morrerás.
A noite já caía quando ele atravessou a Piazza Sant’Elisabetta e voltou ao elegante Hotel Brunelleschi. Ao chegar ao quarto, ficou aliviado por encontrar um grande pacote à sua espera.
Enfim havia chegado.
A encomenda que fiz a Elizabeth Sinskey.
Cortou às pressas a fita adesiva que lacrava a caixa e retirou o precioso conteúdo, aliviado ao ver que ele fora embalado com esmero e envolto em plástico-bolha.
Para sua surpresa, no entanto, a caixa continha alguns outros objetos além do esperado. Pelo visto, Elizabeth Sinskey usara sua considerável influência para recuperar um pouco mais do que ele pedira. A caixa continha as roupas de Langdon: sua camisa, sua calça social e seu surrado paletó Harris Tweed, todos lavados e passados. Até os sapatos sociais estavam ali, recém-engraxados. Também ficou satisfeito ao encontrar dentro da caixa seu passaporte e sua carteira.
Mas foi a descoberta de um último objeto que o fez dar uma risadinha. Sua reação em parte foi causada pelo alívio de recuperá-lo... e em parte pela vergonha de lhe dar tanta importância.
Meu relógio do Mickey Mouse.
Na mesma hora pôs o relógio de colecionador no pulso. O contato da pulseira de couro gasta na pele lhe causou uma estranha segurança. Quando terminou de vestir as próprias roupas e calçou de volta seus sapatos, Robert Langdon quase se sentiu ele mesmo outra vez.
Saiu do hotel carregando o embrulho delicado dentro de uma bolsa do Brunelleschi emprestada pelo concierge. A noite estava quente para aquela época do ano, o que tornou ainda mais onírica sua caminhada pela Via dei Calzaiuoli em direção à solitária torre do Palazzo Vecchio.
Ao chegar, Langdon se registrou na sala de segurança, onde seu nome estava em uma lista para encontrar Marta Alvarez. Ele então foi conduzido até o Salão dos Quinhentos, ainda apinhado de turistas. Chegou bem na hora marcada e imaginou que Marta fosse estar à sua espera na entrada, mas não havia nem sinal dela.
Chamou um funcionário que passava por ali.
– Scusi? – disse Langdon. – Dove posso trovare Marta Alvarez?
O homem abriu um sorriso largo.
– Signora Alvarez?! Ela não está! Teve bebê! Catalina! Molto bella!
Langdon ficou feliz ao receber aquela notícia.
– Ahh... che bello – respondeu. – Stupendo!
Enquanto o funcionário se afastava a passos rápidos, Langdon se perguntou o que deveria fazer com o embrulho que carregava.
Não demorou a se decidir: atravessou o Salão dos Quinhentos, passou debaixo do mural de Vasari e subiu em direção ao museu do palazzo, tomando cuidado para não ser visto por nenhum segurança.
Por fim, chegou diante do estreito andito do museu. A passagem estava escura, isolada por colunas de metal com cordões e uma placa de chiuso/fechado.
Langdon olhou para um lado, depois para o outro, e então passou por baixo do cordão e entrou no espaço mal iluminado. Enfiou a mão na bolsa e pegou com cautela o delicado embrulho, retirando em seguida o plástico-bolha.
Quando terminou de desenrolar o plástico, a máscara mortuária de Dante tornou a encará-lo. A frágil peça de gesso continuava dentro do Ziploc. Tinha sido recuperada, conforme instruções de Langdon, no guarda-volumes da estação ferroviária de Veneza. Parecia em perfeito estado, tirando um pequeno detalhe: um poema inscrito em uma elegante espiral no verso.
Langdon olhou para o antigo mostruário. A máscara mortuária de Dante fica exposta de frente... ninguém vai notar.
Tirou a máscara do Ziploc com cuidado. Então, bem devagar, tornou a colocá-la no gancho dentro da vitrine. A máscara se encaixou no lugar, aninhando-se no familiar fundo de veludo vermelho.
Langdon fechou o mostruário e ficou parado alguns instantes fitando o semblante pálido de Dante, uma presença fantasmagórica no recinto escuro. Enfim em casa.
Antes de sair, ele removeu as colunas, o cordão e a placa na entrada do andito. Ao atravessar a galeria, abordou uma jovem funcionária:
– Signorina? Vocês precisam acender as luzes em cima da máscara mortuária de Dante. É muito difícil vê-la no escuro.
– Sinto muito, senhor, mas essa parte do museu está fechada – respondeu a moça. – A máscara mortuária de Dante não está mais aqui.
– Que estranho. – Langdon fingiu surpresa. – Eu a estava admirando agora mesmo.
A mulher exibiu uma expressão confusa.
Enquanto ela seguia apressada em direção ao andito, Langdon escapuliu do museu sem chamar atenção.
Dez mil metros acima da superfície escura do golfo da Biscaia, o voo noturno da Alitalia para Boston seguia rumo a oeste pela noite enluarada.
A bordo, Robert Langdon estava entretido com um exemplar brochura da Divina Comédia. O ritmo musicado dos versos em terça rima, aliado ao zumbido das turbinas do avião, o embalara até um estado quase hipnótico. As palavras de Dante pareciam saltar das páginas, ressoando em seu coração como se tivessem sido escritas especialmente para aquele momento de sua vida.
O poema de Dante, como a releitura o fizera lembrar, falava menos sobre as agonias do Inferno e mais sobre a capacidade do espírito humano de suportar qualquer provação, por mais aterrorizante que fosse.
Lá fora, uma lua cheia surgira no céu, deslumbrante e resplandecente, ofuscando todos os outros corpos celestes. Langdon fitou a imensidão e se deixou levar pela lembrança de tudo o que havia acontecido nos últimos dias.
Os lugares mais sombrios do Inferno são reservados àqueles que se mantiveram neutros em tempos de crise moral. Para ele, o significado dessas palavras nunca estivera tão claro: Em situações de perigo, não existe pecado maior do que a omissão.
Sabia que ele próprio, assim como milhões de outras pessoas, carregava essa culpa. No que dizia respeito à situação do mundo, a negação havia se tornado uma pandemia global. Langdon prometeu a si mesmo nunca esquecer isso.
Conforme o avião seguia, pensou nas duas corajosas mulheres em Genebra, encarando o futuro sem medo e lidando com as complexidades de um mundo que nunca mais seria o mesmo.
Pela janela, uma massa de nuvens surgiu no horizonte e se deslocou devagar pelo céu até ficar bem em frente à lua e bloquear sua luz intensa.
Robert Langdon se recostou na cadeira, sentindo que era hora de dormir.
Ao apagar a luz de leitura, voltou os olhos uma última vez para o céu. Lá fora, na escuridão que acabava de cair, o mundo havia se transformado. O firmamento era agora uma reluzente tapeçaria de estrelas.
Dan Brown
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