Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
INOCÊNCIA PERVERSA
Um homem trajando calças azul-escuras e uma camisa verde desportiva esperava impacientemente na fila.
A rapariga que estava na bilheteira parecia-lhe incompetente; nunca fora capaz de fazer os trocos com rapidez. Ele meteu a calva cabeça no interior da tenda iluminada e leu: EM CENA! Mulher Marcada. Olhou desinteressadamente para o cartaz que mostrava uma mulher meio despida, exibindo uma das coxas, e virou-se depois para trás, para ver se descobria na fila de espera alguém conhecido. Mas não descobriu. «Não podia ter escolhido melhor ocasião», pensou. «Mesmo em cima da hora para a sessão das oito.» Colocou o dinheiro através da abertura do vidro da bilheteira.
- Olá! - disse ele, sorrindo, dirigindo-se à rapariga loura.
- Olá! - Os seus olhos azuis e vazios avivaram-se. -Como vai isso esta noite?
Não era uma pergunta para a qual ela esperasse uma resposta. E ele não lha deu.
Entrou então naquele teatro reles e promíscuo, ao som da música nervosa e marcial proveniente do documentário cinematográfico que começara precisamente naquele momento. Passou pelo balcão dos caramelos e pipocas e, quando alcançou o outro extremo do teatro, voltou-se com graciosidade, apesar da sua grande estatura, e olhou à sua volta com indiferença. Lá estava fony Ricco. Apressou o passo e cruzou-se com Tony quando ambos se dirigiam para a coxia central.
- Ora viva, Tony! - disse ele no mesmo tom empertigado que usava quando Tony trabalhava ao balcão da loja do seu pai.
- Olá, Sr. Kimmel! - Tonny sorriu. - Sozinho esta noite?
- A minha mulher acabou de partir para Albany. - Acenou com a mão e começou a caminhar de lado, por entre uma fila de cadeiras.
Tony continuou a andar ao longo da coxia até chegar perto do écran.
O homem comprimia os joelhos contra as costas das cadeiras, murmurando «Desculpe!» e «Obrigado!» à medida que avançava, pois todos tinham de se levantar ou encolher para o deixar passar. Continuou a avançar até chegar à coxia, situada ao longo da parede. Desceu seguidamente até à porta encimada pelo letreiro vermelho indicando a saída, abriu caminho através das duas portas de metal e saiu para o passeio, onde a atmosfera era quente e abafada. Prosseguiu na direcção oposta à da tenda e atravessou a rua quase imediatamente. Contornou uma esquina e entrou no seu Chevrolet negro de duas portas.
Conduziu o automóvel até ao terminal rodoviário da Cardinal Lines e esperou no interior da viatura cerca de dez minutos, até que um autocarro com o letreiro NEWARK-NEW YORK-ALBANY saiu do terminal, partindo depois atrás dele.
Seguiu o autocarro através do tráfego enfadonho à entrada do Túnel Holland e, ao chegar a Manhattan, curvou em direcção ao norte. Mantinha entre o seu Chevrolet e o autocarro uma distância de cerca de duas viaturas, mesmo após terem saído da cidade; apesar de aí o trânsito ser menos intenso e mais rápido. «A primeira paragem para descanso», pensou ele, «deverá ser perto de Tarrytown, ou talvez mesmo antes.» Se esse local não fosse propício, então teria necessariamente de prosseguir. E se não houvesse uma segunda paragem para descanso?... Bem, seria mesmo em Albany, numa avenida qualquer. À medida que se concentrava na condução, contraía os lábios grossos e carnudos, mas os olhos acastanhados, escondidos atrás das grossas lentes, esses não se alteravam.
O autocarro parou em frente de uma série de lojas de refeições ligeiras e.de um café, estacionando ele depois o automóvel tão perto da berma da estrada que os pequenos ramos de uma árvore roçaram a parte lateral do carro. Saiu rapidamente e começou a correr até chegar ao local onde o autocarro havia parado. Aí abrandou o passo, caminhando normalmente.
Os passageiros estavam ainda a apear-se. Ele viu-a então a descer e reconheceu-a imediatamente, atraído pelos movimentos bruscos e desajeitados daquele corpo atarracado. Mal ela dera os primeiros passos, já ele a tinha alcançado.
- Tu! - exclamou ela.
Com o cabelo grisalho em desalinho, ergueu para ele os olhos castanhos, pouco expressivos, como um animal que fica aterrorizado ao ser apanhado de surpresa. Ele imaginava-se ainda a viver uma das muitas discussões tidas na cozinha da sua casa em Newark.
- Tenho ainda algo a dizer-te, Helen. Vamos para ali-ordenou-lhe ele, agarrando-a por um dos braços e fazendo-a atravessar a rua.
Ela tentou libertar-se.
- A paragem aqui é apenas de dez minutos. Diz o que tens a dizer agora.
- A paragem é de vinte minutos. Já me informei - afirmou ele, aborrecido. - Vamos para um local onde não sejamos interrompidos.
Ela foi com ele, que já se tinha apercebido de que as árvores e demais vegetação eram densas e altas do lado direito, precisamente perto do local onde estacionara o automóvel. Estariam apenas a alguns metros da estrada.
- Se julgas que vou mudar de opinião em relação a Edward
- começou ela por dizer, denotando receio e, ao mesmo tempo, uma certa arrogância -, estás enganado. Nunca o farei!
«Edward! A mulher arrogante e apaixonada!» A ideia revoltou-o.
-Mudei de opinião - afirmou ele num tom calmo e contrito, mas os seus dedos comprimiram-se involuntariamente sobre o braço flácido de Helen. Mal se conseguia conter. Empurrou-a para a estrada.
- Mel, eu não me quero afastar tanto de ...
Ele deu-lhe uma pancada, arrastando-a depois para o meio da vegetação existente na berma da estrada. Quase se desequilibrou, mas a sua mão esquerda mantinha-se cravada no pulso dela. Com a mão direita golpeou-lhe violentamente a cabeça, partindo-lhe o pescoço, pelo menos ele assim o imaginava, mantendo a outra mão cravada no pulso esquerdo da vítima. Tinha apenas começado. O corpo dela jazia no solo e com a mão esquerda ele procurou-lhe a garganta, apertando-a como se quisesse impedi-la de gritar. Continuou a espancar o corpo com o outro punho, usando-o como martelo, atingindo-a em cheio no peito, entre a flacidez protectora dos seios. Em seguida golpeou-a na testa e nos ouvidos com as mesmas pancadas secas desferidas pelo punho funcionando como martelo e, finalmente, socou-a no queixo com a mesma brutalidade que teria usado para socar qualquer homem. Meteu então as mãos nos bolsos em busca da navalha. Abriu-a e cravou a lâmina -três, quatro, cinco vezes sucessivas. O principal alvo a atingir era a cabeça; queria desfazê-la. Continuou a golpeá-la no queixo com o punho cerrado, consecutivamente, até que a mão se encheu de sangue e ele começou a perder as forças, embora não tivesse consciência disso. Dominava-o a ânsia de vingança, a pura satisfação, um glorioso sentido de justiça, de ofensas punidas, anos de insultos e injúrias, de aborrecimentos, de imbecilidade; essencialmente imbecilidade, que ele agora lhe retribuía.
Deteve-se quando lhe faltou o fôlego. Viu-se então ajoelhado sobre as coxas dela e afastou-se imediatamente com repugnância. Daquele corpo apenas conseguia vislumbrar a luminosidade do seu vestido de Verão. Olhou em redor, na escuridão da noite, à escuta. Ouviu o zumbido dos insectos e o ruído do motor de um automóvel a afastar-se a grande velocidade na estrada. Apercebeu-se de que estava a poucos passos desta. Estava quase certo de que ela estava morta. Positivo! De repente desejou rever aquele rosto e os seus dedos crisparam-se dentro do bolso em busca da lanterna eléctrica. Não queria, porém, que a luminosidade denunciasse a sua presença.
Inclinou-se cautelosamente para a frente, retirando do bolso uma das enormes mãos e estendendo depois delicadamente os dedos como se estivesse preparado para tocar. A aversão aumentava à medida que a mão se aproximava. Quando as pontas dos dedos tocaram na pele escorregadia, afastou-se bruscamente. Ergueu-se, respirando com dificuldade por alguns instantes. Não pensava em nada; escutava apenas. Começou depois a andar em direcção à estrada. Sob a luz amarelada dos candeeiros mirou-se em busca de vestígios de sangue. Só as mãos estavam manchadas. À medida que caminhava, esfregava as mãos uma contra a outra, distraidamente, mas estas ficavam cada vez mais ensanguentadas. «Tinha de lavá-las!» Aterrorizava-o a ideia de ter de tocar no volante sem antes ter lavado as mãos. Ao mesmo tempo, pensou pormenorizadamente na eventualidade de encharcar o tapete colocado debaixo do lavatório com água ensanguentada, quando chegasse a casa. Esfregaria então toda a superfície do volante. Tentaria mesmo poli-lo.
Reparou que o autocarro já tinha partido, embora não soubesse quando. Entrou no automóvel, deu a curva e partiu para sul. O seu relógio marcava um quarto para as onze. Tinha uma das mangas da camisa rasgada e teria de se desfazer dela. Calculava chegar a Newark exactamente depois da uma.
Tinha começado a chover enquanto Walter esperava dentro do carro.
Ergueu os olhos do jornal e colocou um dos braços fora do vidro da porta do carro. Descobriu uma mancha azul-escura na manga do casaco de linho.
O som produzido pelas gotas daquele aguaceiro de Verão aumentava de intensidade ao caírem na capota do carro e, em poucos segundos, o alcatrão da rua ficou encharcado e cintilante, reflectindo uma enorme mancha de tonalidade vermelha, proveniente do reclame luminoso do drugstore situado no quarteirão seguinte. A noite caía e a chuva envolvera a cidade numa obscuridade súbita e profunda. Ao longo da rua, todas aquelas elegantes casas de estilo inglês pareciam mais brancas do que nunca, em contraste com a luz acinzentada, e as baixas vedações de madeira branca que contornavam os relvados adquiriam um realce tão nítido como a costura de um bordado.
«A imagem ideal», pensou Walter. O tipo de local onde seria possível casar com uma rapariga saudável e bem nutrida, viver com ela numa casa branca, ir à pesca aos sábados e criar os filhos dentro dos mesmos hábitos.
«Que enjoo!», dissera Clara nessa tarde, apontando para a pequena roda de fiar colocada perto da lareira da pousada. Ela imaginara Waldo Point como uma estância turística. Mas Walter escolhera esta aldeia depois de ter feito uma selecção prudente. Era precisamente a menos turística de uma série de povoações situadas na zona de Cape Cod. Walter lembrava-se de que ela se divertira bastante em Provincetown e não se tinha queixado do facto de esse local ser, ou não, um centro de turismo. Isto, no entanto, ocorrera durante o primeiro ano de casados e agora iam já no quarto. No dia anterior, o proprietário da pousada Spindrift contara a Walter que o seu avô tinha feito a roda de fiar para que as suas filhas aprendessem o ofício. «Se pelo menos Clara tentasse por breves momentos compreender...»
«Era uma insignificância», pensou Walter. Como eram aliás todas as discussões entre eles. Mesmo no dia anterior haviam discutido sobre o facto de o homem e a mulher se sentirem inevitavelmente cansados fisicamente um do outro após dois anos de casamento. Walter não considerava o facto inevitável. Clara constituía a prova mais evidente, embora ela tivesse recorrido a argumentos tão cínicos e tão pouco convincentes que o facto «era quase inevitável. Walter teria preferido roer-se de raiva a ter de lhe dizer que sempre a tinha amado fisicamente com a mesma intensidade. -E não o saberia Clara? Não teria sido a tentativa de o irritar a principal motivação de Clara durante a discussão?
No interior do carro, Walter mudou de posição, meteu os dedos na farta cabeleira loura, tentando descontrair-se, e voltou a ler o jornal. «Meu Deus», pensou ele, «e são isto férias!»
Desviou rapidamente os olhos para um artigo sobre as condições do Exército Americano em França. O seu espírito continuava, porém, dominado por Clara. Revia aquela manhã” de quarta-feira em que, depois do passeio matinal no pequeno barco de pesca (pelo menos, ela tinha-se divertido nesse passeio com Manuel, tido como educativo), de regresso a casa, dormiram a sesta. Nesse dia, Clara estivera com uma disposição maravilhosa, o que era raro nela. Tinham-se rido de coisas sem importância, tendo ela depois apertado os braços à volta do seu pescoço com ternura...
Tudo isto ocorrera apenas quarta-feira de manhã, três dias antes. Mas logo no dia seguinte a sua voz se tinha tornado áspera; o velho hábito de o castigar a seguir a qualquer concessão de favores era mais uma vez evidente.
Eram 8.10. Walter olhou através da janela do automóvel para a frontaria da pousada, situada por detrás dele. Por enquanto nenhum sinal dela. Olhando de novo para o jornal leu: CADÁVER DE MULHER DESCOBERTO PERTO DE TARRYTOWN, N. Y.
A mulher tinha sido brutalmente espancada e esfaqueada, mas não fora roubada. A polícia não possuía qualquer pista. Ela tomara o autocarro de Newark para Albany, desaparecendo logo após a primeira paragem, tendo o autocarro partido depois sem ela.
Walter perguntava a si próprio se haveria nesta história algo de interesse para os seus ensaios; se o assassino teria eventualmente uma relação estranha com a vítima. Veio-lhe à memória o caso de um crime sem motivos aparentes, cuja notícia lera num jornal e que mais tarde teria sido explicada como consequência de uma estranha amizade entre o assassino e a vítima; uma relação como a de Chad Overton e Mike Duveen. Walter conseguira utilizar a história desse crime para revelar certos elementos potencialmente graves na relação Chad-Mike. Recortou o pequeno artigo sobre o crime de Newark e guardou-o no bolso. De qualquer modo, seria melhor esperar alguns dias, para ver se surgiria algo de mais concreto sobre o crime.
Os ensaios tinham sido, durante os dois últimos anos, o passatempo preferido de Walter. Existiriam cerca de onze sob o título Amizades Injustificáveis. Concluíra apenas um deles, precisamente aquele que analisava o caso de Chad e Mike, tendo no entanto terminado os rascunhos de alguns outros. Baseavam-se todos eles em observações de casos que envolviam amigos e conhecidos seus. Walter defendia a tese de que a grande maioria das pessoas mantinham, pelo menos, uma relação com alguém inferior a si próprio para superar certas necessidades e deficiências, que seriam assim reflectidas, ou complementadas, nesse amigo de condição inferior. Chad e Mike, por exemplo, pertenciam a boas famílias que os tinham superprotegido. Chad, no entanto, decidira ir trabalhar, enquanto Mike optara pela vida de playboy, o que continuou a fazer mesmo depois de a sua família deixar de lhe conceder facilidades. Mike era um indivíduo sem escrúpulos, ébrio; em suma, um falhado que se aproveitava de todos os amigos. Chad foi o único que lhe permaneceu fiel até ao fim. Chad pensava: «Serei o seu anjo protector!» E, assim, ajudava-o monetariamente, tolerando de quando em quando a sua presença. Na realidade, Mike não era boa companhia para ninguém. Walter não tencionava publicar os seus ensaios: eram apenas para seu próprio prazer e não se preocupava com a ideia de quando, ou se, os acabaria.
Walter afundou-se no assento do carro e cerrou os olhos. Pensava na propriedade que Clara possuía em Oyster Bay e que ela tentava vender por 50 000 dólares. Ele desejava ansiosamente que um dos dois possíveis compradores já interessados fechasse negócio, para bem de Clara e para seu próprio bem. No dia anterior, ela tinha passado a maior parte da tarde a estudar os projectos da casa e terrenos anexos. Confessara estar a programar a sua actuação para a semana seguinte. Walter sabia que Clara se atiraria aos possíveis compradores com determinação e interesse. O que mais o surpreendia no meio de tudo aquilo era o facto de, se ela os não massacrasse, eles nunca virem a fechar o negócio. Como aliás acabou por acontecer. Na agência imobiliária Knightsbridge consideravam-na uma excelente mulher de negócios.
Se ao menos ele conseguisse que ela se descontraísse... Para Walter, a solução seria dar-lhe a dose certa de segurança. E não era isso que ele tentava fazer? Amor, afeição e dinheiro também, claro! Mas... Isso não resultava!
Ouviu-lhe os passos, o toe, toe, toe dos saltos altos à medida que ela corria. Ergueu-se de repente e pensou: «Raio! Eu devia ter estacionado o carro em frente à pousada. Está a chover!» Inclinou-se e abriu-lhe a porta.
- Porque não paraste o carro à porta? - perguntou-lhe ela.
- Desculpa. Só agora pensei nisso - afirmou ele, esboçando um sorriso.
- Podias ao menos ter visto que estava a chover! - exclamou ela, abanando a pequena cabeça em atitude de reprovação.
- Para baixo, querido, estás completamente encharcado! Ela enxotou Jeff, o seu fox-terrier, do assento, mas ele voltou a saltar. - Realmente, Jeff!
Jeff soltou um latido de contentamento, como se aquilo fosse uma brincadeira, e saltou, como uma mola, pela terceira vez. Clara acabou por deixá-lo ficar e abraçou-o afectuosamente.
Walter dirigiu-se para o centro da cidade.
- Que tal uma bebida no Melville antes do jantar? É a nossa última noite.
- Não me apetece beber, mas não me importo de te acompanhar se realmente sentes necessidade de tomar alguma coisa.
- O.K. - «Talvez conseguisse persuadi-la a tomar um Tom Collins, ou, pelo menos um vermute doce com soda. Mas provavelmente ela não se convenceria. Valeria a pena obrigá-la à acompanhá-lo numa bebida? Normalmente, ele tomava duas seguidas.» Walter ficava indeciso, sem força de vontade, sempre que tinha de decidir se deveria beber ou não. Passou pelo hotel, sem se voltar.
- Pensava que íamos passar pelo Melville - disse Clara.
- Mudei de ideias, já que não queres acompanhar-me numa bebida. - Walter apertou as mãos dela nas suas. - Vamos directamente para o Lobster Pot.
Ao fim da rua curvou à esquerda. O Lobster Pot ficava situado num pequeno promontório, na praia. A brisa marítima, fria e salgada, penetrou intensamente através da janela do carro e Walter encontrou-se, subitamente, no meio de uma escuridão absoluta. Olhou à sua volta, procurando o letreiro de luzes azuis do Lobster Pot, não conseguindo contudo descobri-lo.
- É melhor voltarmos à estrada principal e retomar o caminho pelas bombas de gasolina, como costumo fazer - afirmou Walter.
Clara riu-se. - E estiveste tu aqui cinco vezes, se não mais!...
- Que diferença é que faz? - inquiriu Walter, aparentando indiferença. - Não temos pressa, pois não?
- Não, mas é disparatado perder tempo e energia quando, com um bocadinho de inteligência, podias ter seguido o caminho certo desde o princípio!
Walter conteve-se para não lhe dizer que ela estava a afligir-se mais do que ele. O aspecto tenso do seu corpo e a expressão contraída do seu rosto, voltado para o pára-brisas, afligiram-no. Tudo aquilo lhe fez sentir que a semana de férias fora em vão, tal como a bela manhã, após o passeio de barco. Além desse dia, Walter podia contar pelos dedos as noites e as manhãs bem passadas, autênticos oásis no meio de tanta incompreensão e que eram pura e simplesmente votados ao esquecimento. Tentou pensar em algo agradável para lhe dizer antes de saírem do carro.
- Gosto muito de te ver com esse xaile - afirmou ele, sorrindo. Ela usava-o sobre os ombros nus e enrolado nos braços.
Sempre lhe agradara o~ modo como ela se vestia e o bom gosto que revelava na escolha das suas roupas.
- É uma estola! - corrigiu ela.
-Uma estola! Adoro-te querida. - Inclinou-se para a beijar e ela ofereceu-lhe os lábios. Walter beijou-a suavemente para não lhe estragar a pintura dos lábios.
Clara pediu lagosta fria com maionese, de que ela tanto gostava. Walter pediu peixe grelhado e uma garrafa de Riesling.
-Pensava que hoje ias escolher carne, Walter. Se comes peixe outra vez, não há nada para o Jeff!
- Está bem! - disse Walter. - Vou pedir um bife. O Jeff pode ficar com a maior parte dele.
- Dizes isso num tom tão desgostoso!...
Os bifes não eram muito famosos no Lobster Pot. Já na noite anterior, Walter pedira bife somente por causa do Jeff, que se recusava a comer peixe. -Por mim está óptimo, Clara. Não vamos discutir por coisas tão insignificantes na nossa última noite.
- Quem é que está a discutir? Isso traz água no bico!...
Mas, apesar de tudo, ele acabou por pedir o bife. Clara conseguiu o que queria, suspirou e olhou no vazio, aparentando estar a pensar noutra coisa. «É estranho que o sentido económico de Clara vá até ao pormenor de pensar na comida de Jeff», pensou Walter. «A que se devia isso? Que teria existido na vida de Clara para que ela se tivesse transformado numa pessoa incapaz de desperdiçar um tostão? A sua família não era nem muito rica nem muito pobre.» Esse era outro mistério que envolvia Clara e que ele, provavelmente, nunca conseguiria desvendar.
- Kits - dirigiu-se-lhe ele afectuosamente. Era este o diminutivo que ele lhe arranjara, mas que raramente utilizava, para não o tornar trivial. - Vamos divertir-nos o mais possível esta noite. Provavelmente não teremos oportunidade de passar férias juntos tão depressa. Que tal irmos dançar ao Melville depois de jantar?
- Está bem!-anuiu Clara. -Mas não te esqueças de que amanhã temos de nos levantar às sete!
- Não me esquecerei! - A viagem de regresso demoraria apenas seis horas, mas Clara desejava chegar a casa a meio da tarde para tomar chá com os Philpotts, seus patrões da agência imobiliária Knightsbridge Brokerage. Walter pôs a mão em cima da dela, sobre a mesa. Ele adorava aquelas mãos. Eram pequenas, mas não em demasia, elegantes, mas fortes. A sua mão colou-se à dele quando este a agarrou.
Clara não olhou para Walter. Olhava no vazio, não com ar sonhador, mas fixando algo. O seu pequeno rosto era belo, embora a expressão fosse fria e retraída; a boca, essa, fechada, parecia triste. O seu rosto denotava uma preocupação em arquitectar planos subtis. Era uma expressão difícil de fixar.
Walter voltou-se para trás, tentando descobrir Jeff. Clara tirara-lhe a trela e ele andava saltitando pela sala, cheirando os pés das pessoas e aceitando restos dos seus pratos. «Ele acaba sempre por comer peixe quando são os outros a dar-lho», pensou Walter. Sentia-se incomodado, pois na noite anterior o empregado tinha-lhe pedido que prendesse o cão com a trela.
- Não há qualquer problema com o cão - antecipou Clara. Walter provou o vinho e acenou ao empregado numa atitude
de aprovação. Esperou que a servissem e ergueu então o seu copo. - Brindemos à continuação de um Verão feliz e à venda de Oyster Bay - disse ele, reparando no brilho intenso que surgiu naqueles olhos castanhos ao ouvir mencionar a venda da propriedade. Depois de ela ter bebido algum vinho, Walter perguntou-lhe: -Que tal se marcássemos já a data para a tal festa?
- Que festa?
- Aquela de que falámos antes de partirmos de Benedict. Tinhas apontado como data provável fins de Agosto.
- Pode ser - acedeu Clara, contrariada, como se tivesse sido derrotada numa disputa, vendo-se depois obrigada a abdicar de um direito, por muito que isso lhe custasse. -Talvez sábado, dia 28.
Começaram a organizar a lista de convidados. A festa em questão não visava nenhuma comemoração em especial, a não ser o facto de eles não terem dado mais nenhuma festa desde a passagem do ano e terem já ido a uma série delas desde então. Os amigos que viviam nos arredores de Benedict costumavam organizar grandes festas e, embora Clara e Walter nem sempre fossem convidados, eram-no vezes suficientes para não se sentirem postos de parte. É claro que não se podiam esquecer dos Iretons, dos McClintocks, dos Jensens, dos Philpotts, de John Carr e Chad Overton.
- Chad? - perguntou Clara.
- Sim! Porque não? Acho que lhe devemos favores; não concordas?
- Se queres saber realmente a minha opinião, acho que ele é que nos deve uma desculpa.
Walter pegou num cigarro. Chad aparecera lá por casa uma noite, no caminho de regresso de Montauk. e, por qualquer motivo (Walter nunca chegou a saber concretamente porquê), tinha tomado tantos martinis que acabara por desmaiar em cima do sofá, ou, pelo menos, adormecera a sono solto. Nenhuma das desculpas por ele tentadas foi suficientemente convincente, nem mesmo o facto de ter conduzido durante todo o dia sob um calor intenso. Chad entrara para a lista negra. Isto apesar de terem pernoitado no apartamento dele várias vezes, quando iam assistir a alguma peça de teatro, tendo então Chad de passar a noite em casa de algum amigo para lhes ceder o apartamento.
- Não és capaz de te esquecer disso? - perguntou-lhe Walter.
- Chad é um bom amigo, Clara, e um tipo inteligente.
- Tenho a certeza de que ele desmaiaria novamente se visse uma garrafa de licor.
Era inútil dizer-lhe que nunca o vira desmaiar antes ou desde então. Desnecessário era também lembrar-lhe que o seu actual emprego o devia Walter a Chad. Walter tinha trabalhado na Adams, Adams e Branover, conselheiros jurídicos, como assistente de Chad, no ano imediato à conclusão da sua formatura em Direito. Walter abandonara a firma e partira para São Francisco com a intenção de abrir o seu próprio escritório, mas, tendo conhecido Clara, casara com ela e esta convencera-o a voltar a Nova Iorque e a continuar a trabalhar numa sociedade jurídica, que era mais rendável. Chad tinha dado a uma firma consultora, conhecida como Cross, Martinson e Buchman, melhores referências do que as que ele na realidade merecia. Chad e Martinson eram bons amigos. A firma pagava a Walter o ordenado de um advogado experiente, embora ele tivesse apenas trinta anos. «Não fora Chad, e nós não estaríamos agora aqui sentados no Lobster Pot, a beber vinho importado», pensou Walter. Ele achava conveniente convidar Chad para almoçar um desses dias, em Manhattan, ou, pelo menos, mentindo a Clara, passar uma noite com ele. Talvez não lhe mentisse; dir-lhe-ia simplesmente a verdade. Walter aspirou o fumo do seu cigarro.
- Fumar no meio da refeição?...
A comida tinha sido servida. Walter apagou o cigarro no cinzeiro, com uma calma deliberada.
- Não achas que ele nos deve uma explicação? Pelo menos um ramo de flores.
-Pronto, está bem, Clara!
- Mas porquê esse tom horrível?
-Porque eu estimo o Chad e, se continuarmos a pô-lo de parte, o resultado lógico é perdermos um amigo, tal como já perdemos os Whitneys.
-Não perdemos nada os Whitneys. Parece que achas que tens de lamber as botas às pessoas e aceitar todos os seus insultos para preservares a sua amizade. Nunca vi ninguém tão preocupado com o facto de todos os Toms, Dicks e Harrys gostarem de ti ou não!
- Não vamos discutir, querida. - Walter colocou as mãos na cara e baixou-as logo de seguida. Era um velho gesto que fazia habitualmente na privacidade do lar. Não suportava ter de o fazer no final de umas férias. Voltou-se novamente para procurar Jeff, que estava do outro lado da sala, entretido a tentar mordiscar o pé de uma mulher. Esta não parecia compreender a atitude” do cão e continuava a fazer-lhe festas na cabeça.-Parece-me que tenho de o ir buscar - arriscou Walter.
- Ele não está a fazer desacatos. Tem calma!
Clara arrancava com perícia as patas da lagosta e comia com rapidez, como sempre fazia.
Passados alguns instantes veio um empregado e dirigiu-se-lhes, sorrindo:
- Importavam-se de prender o cão com a trela?
Walter levantou-se e atravessou a sala para ir buscar Jeff, sentindo que as suas calças brancas e o seu casaco azul-claro o tornavam alvo de todas as atenções. Jeff continuava a tentar mordiscar o pé da mulher. Voltou o focinho malhado de preto e Arreganhou os dentes, como se não levasse aquilo a sério, tendo Walter dificuldade em afastá-lo do tornozelo da mulher.
-Peço imensas desculpas - disse ele.
-Mas porquê? Eu acho-o um amor! -respondeu a mulher.
Walter conteve-se para não bater no cão. Levou-o de volta, colocando uma das mãos sob o peito malhado daquele fogoso animal e a outra sobre o dorso. Obrigou-o a sentar-se no chão, com suavidade, ao lado de Clara, e prendeu-o à trela.
-Tu detestas mesmo o cão, não é verdade? - perguntou Clara.
- Acho que o estragaste com mimos, é tudo.
Walter observou o rosto de Clara quando ela puxou o cão para o seu colo. Ao afagá-lo, o seu rosto tornou-se mais belo, suave e adorável, como se estivesse a acariciar uma criança, o seu próprio filho. Observar o rosto de Clara enquanto ela acariciava o cão era o maior prazer que Walter atribuía ao animal. Ele detestava-o mesmo. Abominava o seu comportamento, egoísta e pretensioso, a sua expressão idiota, que parecia querer dizer: «Eu sou um lorde e tu, olha para ti!», sempre que Walter o observava. Na verdade, ele detestava o cão porque tudo o que este fazia a Clara nunca estava mal, mas tudo o que ele próprio fazia nunca estava bem.
- Achas realmente que o estraguei com mimos? - perguntou Clara, ao mesmo tempo que acariciava a grande orelha preta de Jeff, - Pensava que ele se tinha portado bem quando estivemos na praia esta manhã.
- O que eu acho é que tu escolheste um fox-terrier por eles serem mais inteligentes do que a maioria das outras raças, poupando-te assim o trabalho de teres de lhe ensinar as maneiras mais rudimentares.
- Será que te estás a referir ao que ele andava a fazer pela sala agora mesmo?
- Em parte é isso. Eu bem sei que ele só tem dois anos, mas, enquanto continuar a comportar-se assim,penso que não deveríamos deixá-lo deambular pelas salas de jantar. Como deves calcular, não é um espectáculo particularmente agradável à vista.
Clara arqueou as sobrancelhas. -Jeff estava apenas com brincadeiras inofensivas. Parece-me que estás com inveja dele... O que é de admirar, vindo de ti - disse ela num tom jocoso.
Walter não achou graça.
Regressaram a casa na tarde seguinte. Clara verificou que a venda de Oyster Bay ficaria em aberto, pelo menos durante um mês, e, no estado de ansiedade em que vivia, a realização da festa estava completamente fora de questão até que o caso se resolvesse.
Durante a quinzena seguinte, Chad manifestava-se pouco permeável quando Walter lhe telefonava, convidando-o a aparecer. Recusava-se, ou até talvez desligasse o telefone antes que Walter conseguisse contactá-lo. Clara disse ao marido que John os tinha convidado para um jantar simples que iria dar na semana seguinte. Mas ela não achava que valesse a pena deslocarem-se a Manhattan só por isso.
Às vezes Walter sonhava que um, alguns ou mesmo todos os seus amigos o tinham abandonado. Eram sonhos desoladores, de partir o coração, acordando com a sensação de ter um peso no peito.
Já perdera cinco dos seus amigos; concretamente, perdera-os porque Clara não os queria lá em casa, embora Walter continuasse a corresponder-se com eles e, sempre que podia, a vê-los. Dois deles estavam na Pensilvânia, terra-natal de Walter, outro estava em Chicago e os dois últimos em Nova Iorque. Para ser honesto consigo próprio, Walter teve de admitir que Howard Graz, de Chicago, e Donald Miller, de Nova Iorque se sentiam tão desapontados com ele que nunca mais se dera ao trabalho de lhes escrever. Talvez fosse o caso de serem eles a deverem-lhe carta.
Veio-lhe à memória o sorriso de Clara, um sorriso de triunfo, quando ele soube de uma festa em casa de Don, em Nova Iorque, para a qual não fora convidado. Demais a mais, tinha sido uma festa só para homens. Foi então que Clara teve a certeza de que conseguira afastá-lo de Don, o que a encheu de satisfação.
Foi exactamente nessa altura, decorridos já dois anos, que Walter se apercebeu, pela primeira vez, de que estava casado com uma neurótica, uma mulher que se revelava realmente louca nalguns aspectos. E, para além do mais, uma neurótica por quem ele estava loucamente apaixonado. Não conseguia esquecer-se do maravilhoso tempo que haviam passado juntos no primeiro ano de casados. Como se sentira orgulhoso por ela ser mais inteligente do que a maioria das mulheres (agora ele sentia aversão à palavra inteligência, em virtude de Clara a ter transformado num fetiche). Como tinham parodiado juntos e o prazer que tinham sentido ao mobilarem a casa em Benedict. Ele tinha a esperança de que a Clara desses tempos ressurgisse miraculosamente. Afinal de contas, ela era a mesma pessoa, o mesmo corpo. Oh! Como ele o adorava ainda!...
Quando Clara aceitou o emprego na Knightsbridge, oito meses atrás, Walter ficou esperançado de que este pudesse servir como escape para o espírito competitivo e inveja que ela sentia até mesmo dele próprio, em virtude de ele estar a ser bem sucedido na sua carreira. Contudo, o emprego apenas serviu para intensificar mais ainda o sentido de competição e a sua curiosa insatisfação consigo própria, como se tornar a trabalhar desencadeasse a erupção de um vulcão até agora adormecido. Walter chegou mesmo a sugerir-lhe que desistisse. Mas ela nem queria ouvir falar em tal. A ocupação lógica para ela teriam sido os filhos. E como Walter os desejava... ao contrário de Clara. Todavia, ele não fizera todos os possíveis para a persuadir. Clara nunca tivera paciência com crianças e Walter tinha sérias dúvidas de que ela viesse a ser diferente para com os seus próprios filhos. Mesmo quando tinha apenas 26 anos, quando casou, Clara teria argumentado jocosamente com o facto de ser demasiado velha. Ela estava plenamente consciente de ser dois meses mais velha que o marido e este teve de lhe assegurar várias vezes que ela aparentava ser mais nova do que ele. Clara ia agora nos 30 e ele sabia que agora o problema dos filhos estava completamente posto de parte.
Houve alturas em que, ao beberricar um uísque em casa de alguém em Benedict, perguntava a si próprio o que esperava concretamente da vida convivendo com aquela gente elegante, presunçosa e bem sucedida, mas muito maçadora. Pensava constantemente em abandonar a Cross Martinson e Buchman e planeava mudar-se com Dick Jensen, o colega com quem mais simpatizava no escritório. Dick, tal como ele, ambicionava ter o seu próprio escritório de advocacia. Certa noite, ele e Dick tinham posto a hipótese de abrir um escritório em Manhattan para solucionar casos que a maioria das empresas jurídicas não aceitavam. Os honorários seriam reduzidos, mas numerosos. Eles tinham arrastado Blackstone e Wigmore para o gabinete privado de Dick e aí conversaram sobre a fé, quase mística, que Blackstone depunha no poder da lei para criar uma sociedade ideal. Para Walter tinha sido um retorno ao entusiasmo dos seus tempos de faculdade, em que a lei era um meio justo que ele começava a aprender a usar. Sentiu-se, então, como um cavaleiro pronto a socorrer os desamparados e a apoiar os justos. Ele e Dick decidiram, nessa noite, abandonar a Cross no primeiro dia do ano. Alugariam um escritório algures em West Forties. Walter falara a Clara no assunto e, embora ela não se mostrasse entusiasmada, pelo menos não tentou desencorajá-lo da ideia. A questão financeira não era um obstáculo, visto Clara ir ganhar, pelo menos, 5000 dólares por ano. A casa já estava paga; fora uma prenda de casamento da mãe de Clara.
A única coisa que poderia dar uma resposta positiva a Walter à questão da sua realização pessoal e profissional era o escritório que ele desejava abrir com Dick. Ele imaginava o escritório progredindo e abarrotando de clientes satisfeitos. Por outro lado, perguntava a si próprio se o escritório ficaria aquém das suas expectativas. E se Dick perdesse o entusiasmo? Walter sentia que, ao nível das suas realizações, pouco conseguiria concretizar. Os homens fazem as leis, estabelecem metas e tudo acaba por cair por terra. Por exemplo, o seu casamento ficara aquém das suas expectativas; Clara fora um desapontamento e talvez também ele não tivesse correspondido àquilo que ela ambicionava. Porém, ele tinha tentado e continuava a tentar. Uma das poucas coisas de que ele tinha a certeza era do amor que sentia por Clara e agradar-lhe tornava-o feliz. E ele tinha Clara e tinha tentado agradar-lhe ao aceitar o emprego e ao dar-se com aquela gente elegante e maçadora. E Clara, apesar de não parecer tirar grande partido da vida que levava, não queria mudar-se para outro local e fazer outra coisa qualquer. Walter já lho tinha pedido. Aos 30, Walter concluíra que a insatisfação era normal. Ele tinha a ideia de que, para a maior parte das pessoas, a vida era uma sequência de ideias falhadas, exceptuando aqueles que se sentiam felizes na presença de alguém que amavam. Contudo, ele não conseguia tirar da ideia o facto de Clara, caso ela insistisse, poder acabar com as últimas esperanças que ele ainda depositava nela.
Seis meses antes, na Primavera, ele e Clara tinham abordado, pela primeira vez, a questão do divórcio, vindo a pô-la de parte mais tarde.
Na noite de 18 de Setembro encontravam-se cerca de quinze carros estacionados ao longo de um dos lados da Malborough Road e mais alguns tinham estacionado no átrio relvado, situado em frente da casa dos Stackhouses. Clara não gostava que as pessoas estacionassem os carros naquele local. Ela tinha acabado de fazer um tratamento revigorante às plantas aí existentes, à base de superfosfatos, adubo e cerca de 50 quilos de turfeira, tratamento que lhe ficara em duzentos dólares, incluindo a mão-de-obra. Já tinha dito a Walter que pedisse às pessoas que retirassem dali os carros.
- Eu podia fazê-lo, mas acho que isso é uma tarefa de homem - disse Clara.
- Se conseguirmos que eles saiam, aparecerão outros carros depois - advertiu-a Walter. - Eles estacionam aqui porque as mulheres não querem andar de saltos altos nesse tipo de pavimento. E tu bem o sabes!
- Parece-me que o que tu tens é receio de lhes fazer esse pedido! - retorquiu Clara.
Walter esperava que ela não pedisse a ninguém que mudasse o carro. Toda a gente em Benedict estacionava o carro em átrios relvados.
Todos os convidados, mesmo os Philpotts, que eram os mais velhos e os mais conservadores, pareciam estar bem dispostos. O Sr. Philpott, contra os seus hábitos, segundo supunha Walter, envergava uma casaca branca, calças e sapatos de cerimónia, apesar de Clara ter esclarecido que os homens não eram obrigados a usar trajo de cerimónia e que as mulheres podiam fazê-lo se assim o desejassem. Geralmente, as mulheres vestiam-se com requinte, ao contrário dos homens. A Sr. Philpott trouxera uma grande caixa de chocolates. Walter presenciou a cena da oferta, proferindo algumas palavras elogiosas que fizeram Clara corar. Clara tinha vendido a propriedade de Oyster Bay há cerca de dez dias a um dos clientes do Sr. Philpott.
Walter dirigiu-se a Jon Carr, que estava perto dele, à frente da lareira. O rosto de Jon denotava uma expressão imperturbável de bom humor, após a quarta ou quinta bebida. Dissera a Walter que acabara de chegar de um cocktail em Manhattan e não tinha ainda jantado.
- Que tal uma sanduíche? - perguntou-lhe Walter. - Há montanhas delas na cozinha.
- Sanduíches, não! - respondeu peremptoriamente Jon.
- Tenho de ter cuidado para manter a linha e, se tiver de engordar, ao menos que seja com o teu uísque.
- Que novidades há no escritório? - perguntou Walter.
Jon falou-lhe do próximo número da sua revista, que seria dedicado exclusivamente ao vidro e materiais de construção afins. Jon Carr era o editor de Skylines, uma revista de arquitectura com seis anos de publicação, que ele próprio tinha fundado e que era agora tão importante como qualquer publicação do mesmo ramo existente no mercado. Para Walter, Jon representava um tipo raro de americano, bem nascido e bem educado e que não tinha de se esforçar muito para atingir os seus objectivos. Como os pais não eram suficientemente abastados para o poderem ajudar na sua carreira, Jon viu-se até na contingência de ter de trabalhar durante os últimos tempos em que frequentou a Faculdade de Arquitectura. Walter tinha uma grande admiração por Jon e sentia-se orgulhoso da sua amizade. Na opinião de Jon, Walter incluía mesmo essa afeição, na categoria das «amizades injustificáveis».
Jon convidou Walter para irem à pesca com Chad, no domingo seguinte, ao largo de Montauk Point.
- Se Clara também quiser vir, não há problema - adiantou Jon. - Chad tem uma nova namorada e Clara podia ficar com ela na praia enquanto nós íamos pescar. Chama-se Millie. É uma rapariga esperta e acho que a tua mulher vai simpatizar com ela. Clara gosta de praia, não gosta?
- A propósito, onde está Chad?
Walter sorriu. - Lamento, mas neste momento Chad é persona non grata!
Jon fez um gesto com a mão, como que a dizer: «Está bem, já compreendi.»
Walter tirou um uísque com soda da bandeja que Claudia andava a fazer circular e levou-o à Sr.a Philpott, que recusou dizendo que não lhe apetecia beber mais. Ele insistiu novamente. Discretamente, enquanto conversava com ela junto à lareira, Walter interrompeu com o pé o ataque que Jeff movia às pernas de uma mulher. Jeff correu para a porta para saudar alguns convidados que acabavam de chegar. Divertia-se à grande naquelas festas. Circulava pelas salas, terraço e jardim, sendo amimado e recebendo canapés de toda agente.
- A sua mulher é o elemento mais espantoso que já passou pela nossa firma, Sr. Stackhouse - disse a Sr.a Philpott em jeito de elogio. - Acho que não há nada que ela não consiga comprar ou vender, desde que se proponha realmente fazê-lo.
- Hei-de dizer-lhe que é essa a sua opinião.
-Oh, acho que ela já sabe!-advertiu a Sr.a Philpott com uma piscadela de olho.
Walter sorriu, sentindo que tinha trocado com aqueles pequenos olhos azuis, cheios de rugas, uma profunda confidência.
- Não a deixem trabalhar demasiado - pediu ele.
- Mas isso está-lhe na massa do sangue. Penso que não há nada a fazer.
Walter acenou com a cabeça em sinal de assentimento e voltou a sorrir. A Sr.a Philpott manifestara-se alegremente e, claro que de acordo com o seu ponto de vista, tudo era tão simples como isso. Walter viu então Clara à porta da sala e foi ter com ela.
- Está tudo a correr bem, não está? - perguntou-lhe ela.
- Sim! Onde está Joan?
- Joan telefonou a dizer que não podia vir. A mãe está indisposta e ela ficou a fazer-lhe companhia.
Joan era a secretária de Walter, uma rapariga de 24 anos, inteligente e atraente, por quem Walter tinha grande consideração.
Ele sentia-se satisfeito por Clara nunca ter mostrado ciúmes de Joan.
- A mãe dela deve estar muito mal! - observou Clara.
Clara não gostava muito da própria mãe e Walter reparava que ela não aprovava o facto de as outras pessoas estimarem os seus familiares.
- Esta noite estás espantosa, Clara; absolutamente espantosa! Clara lançou-lhe um olhar sorridente e continuou a examinar os convidados.
-E aquele outro... Como se chama? Peter. Não está presente...
- Pete Slotnikoff! Tens razão. - Walter sorriu. - És boa observadora, atendendo ao facto de nunca o teres conhecido.
- Mas conheço todos os que «estão» presentes... Obviamente. O relógio de Walter marcava 10.17.
- Talvez ainda apareça. Ou anda perdido, quem sabe!
- Ele vinha de carro?
-Não, ele não tem carro. Penso que vinha de comboio.
- Walter tinha em mente oferecer-lhe o sofá do escritório para ele passar a noite, caso não houvesse ninguém que lhe desse boleia até Nova Iorque. Contudo, decidira omitir o facto a Clara até que fosse estritamente necessário falar-lhe nisso.
- A propósito, querida, Jon convidou-me para ir com ele à pesca, no próximo domingo, ao largo de Montauk. Tu também foste convidada e podias ficar na praia, se quiseres claro, pois a namorada do... do Jon também vai.
- A namorada do Jon?!
- Bem... uma amiga - corrigiu Walter. Jon mostrava-se extremamente tímido com as mulheres desde que se divorciara.
O pequeno rosto de Clara tornou-se estupefacto, como se tivesse perdido o equilíbrio por momentos, até ter examinado a ideia sob todos os ângulos, reflectindo sobre todas as vantagens e desvantagens que isso eventualmente lhe acarretaria.
- Quem é a rapariga?
- Eu nem sequer sei como se chama. Mas Jon diz que ela é simpática.
- Não me parece que esteja pelos ajustes de passar um dia inteiro com alguém que até pode ser uma grande chata - disse Clara.
- Por acaso, Jon disse que ela...
- Acho que o teu amigo acaba de chegar.
Peter Slotnikoff encontrava-se à porta de entrada, Walter dirigiu-se-lhe, tentando assumir a expressão agradável e descontraída própria de um bom anfitrião.
Com um ar envergonhado e desorientado, Peter mostrava-se, ao mesmo tempo, satisfeito de ver Walter. Tinha 26 anos, uma expressão sisuda e era rechonchudo. Os pais eram refugiados russos e Peter apenas tomou os primeiros contactos com o inglês quando chegou à América, contando na altura 15 anos. Apesar disso, concluiu, com classificações brilhantes, o seu curso na Faculdade de Direito de Michigão. A firma de Walter considerava-se afortunada por tê-lo como colaborador.
-Trouxe uma amiga-disse Peter, depois de Walter o ter apresentado a alguns convidados que estavam junto à porta. Peter apontou para uma rapariga em quem Walter não tinha reparado.
- Esta é a Ellie Briess. Este é o Walter Stackhouse. A menina Elspeth Briess - apressou-se Peter a corrigir.
Trocaram saudações e Walter conduziu-os até à sala para os apresentar e oferecer-lhes algumas bebidas. Walter não fazia a menor ideia de que Peter namorasse. Ela era, por sinal, realmente bonita. Walter escolheu o uísque mais forte da bandeja que Claudia andava a servir e estendeu-o a Peter.
- Se não descobrires ninguém com quem queiras falar, Pete, a televisão está lá fora no terraço - disse-lhe Walter. Ele colocara ali o aparelho de televisão para aqueles que quisessem ver o desafio de futebol dessa noite.
Walter dirigiu-se a um bar circular existente na sala e preparou uma bebida a Clara, com vermute italiano e soda, e levou-lha. Era a bebida favorita dela. Clara estava a conversar com Betty Ireton junto à lareira.
-Gostava que o meu marido também tivesse a delicadeza de me servir uma bebida - afirmou Betty.
- Vou buscar-te outra! - ofereceu-se Walter.
- Oh! Não foi essa a minha intenção. Ainda tenho o copo quase cheio. - Aquele • rosto belo e esguio sorriu-lhe por cima do rebordo do copo.
Betty Ireton adorava flirtar, se bem que de uma forma cuidadosa e inocente. Ela costumava dizer a Walter, mesmo na presença de Clara, que ela o achava o homem mais bem parecido de Benedict. Clara, contudo, ciente da sua inocência, não se preocupava com o facto.
- Queria apresentar-te ao Peter - disse Walter a Clara.
- E eu vou fiscalizar o meu marido - afirmou Betty. - Ele desapareceu no jardim.
-E então acerca de domingo? - perguntou Walter a Clara.
- Quero dar uma resposta a Jon ainda esta noite.
- Tinhas logo de escolher, para ires à pesca, o único dia que podemos passar juntos! Não acho que me convenha muito.
- Anda lá, Clara. Há já uma série de meses que eu não vou à pesca.
- Pois é, e com o Chad à mistura temos bebidas pela certa, e, quando regressares a casa, vais tresandar a álcool durante uma porção de tempo.
- Acho que estás a ser injusta.
- Eu acho que sim! Sei muito bem o que costuma acontecer. - Clara afastou-se.
Walter cerrou os dentes de raiva. Porque raio não haveria ele de ir? Bem... A resposta a isto era: o passeio não justificava os problemas que ela lhe iria levantar mais tarde. A Sr.a Philpott observava-o do sofá. Walter descontraiu-se imediatamente. A Sr.a Philpott ter-se-ia apercebido de alguma coisa? O velho rosto dela mostrava-se muito sagaz. Praticamente, todos os outros convidados tinham reparado, ou, melhor, todos os que já os conheciam.
- Walter, meu velho, achas que tenho direito a mais uma bebida?
Walter sorriu ao ver o rosto familiar de Dick Jensen e apeteceu-lhe colocar um braço por cima dos seus ombros. - Claro que tens, irmão! Eu também quero uma. Vamos à cozinha.
Claudia estava atarefada a servir carnes frias. Walter advertiu-a de que ainda era demasiado cedo para isso e que seria melhor verificar se alguém desejava outra bebida.
- A Sr.a Stackhouse disse-me que servisse agora os salgados, Sr. Stackhouse - disse Claudia com ar resignado.
- Aí tens - disse Dick. - Ordens superiores.
Walter calou-se. Até mesmo Dick sabia que Clara, ao mandar servir a comida tão cedo, pretendia evitar que alguém se embebedasse nessa noite. Walter preparou a Dick uma bebida esplêndida e outra magnânima para ele.
- Onde está a Polly? - perguntou Walter. _ Está lá fora no terraço, penso eu.
Walter preparou uma bebida para Polly, para o caso de ela não estar ainda servida, e dirigiu-se para o terraço. Polly estava a ver televisão, encostada ao corrimão, mas sorriu e acenou-lhe quando o viu. Ela não era bonita. Tinha ancas largas e o seu cabelo, escuro, estava apanhado num rolo, deixando-lhe o pescoço a descoberto. Polly possuía a personalidade mais simpática do mundo. Para Walter, o simples facto de ficar perto dela, ainda que por breves momentos, era motivo de excitação, tal como o excitava o simples facto de se deitar nu ao sol.
- Qual é a sensação de ser casado com uma mulher rica? perguntou Polly, com um grande sorriso estampado nos lábios.
-É bestial! Agora já não tenho problemas financeiros de qualquer espécie. Estou até a pensar reformar-me brevemente. Walter acabara de se aperceber do quanto bebera. Sentiu um calor profundo subir-lhe ao rosto.
Dick aproximou-se e agarrou no braço da mulher.
-Peço desculpa, mas tenho de ta roubar. Quero que ela conheça o Pete.
- Porque é que não pode ser o Pete a vir cá? - perguntou Walter.
-Ele está lá dentro, embrenhado numa discussão. - Dick acabou por levar Polly consigo.
Walter pegou no uísque que Polly deixara e olhou em redor, à procura de alguém a quem o oferecer. Os seus olhos detiveram-se numa rapariga que o observava do canto mais afastado do terraço. Era a namorada de Pete, que se encontrava sozinha. Walter acercou-se dela.
- Não toma nada? - perguntou ele. Não conseguia lembrar-se do nome dela.
- Já tomei uma bebida, obrigada. Acabei de sair para desfrutar um pouco do vosso ar campestre.
- Bem, acho que seria melhor tomar outra bebida! - Estendeu-lhe um copo e ela aceitõu-o. - É de Nova Iorque?
- Vivo lá. Neste momento ando à procura de um emprego, lá ou noutro sítio qualquer. - Olhou para ele directa e calorosamente, com uma expressão amigável.
- Sou música. Sou professora de música - concluiu ela.
- O que é que toca?
- Violino. Também toco piano, mas interesso-me mais pelo violino. Ensino música a crianças; educação musical.
- Hum... Música a crianças! - Esta ideia do ensino da música a crianças pareceu-lhe de repente encantadora. Ele quis dizer-lhe: «Que pena não termos filhos para lhes poder ensinar música também.»
- Ando a ver se arranjo lugar numa escola particular, mas é difícil quando não se possui um grande currículo. Estou quase tentada a experimentar as escolas públicas.
- Desejo-lhe sorte - disse Walter.
A rapariga parecia ter mais ou menos a mesma idade que Peter. Havia nela uma simplicidade, uma robustez campestre que Walter achava adaptar-se perfeitamente a Peter. Ela tinha a pele bronzeada, com uma leve sombra desmaiada ao longo do nariz. Quando sorria, mostrava uns dentes muito brancos.
- Há muito tempo que conhece Pete?
- Apenas há alguns meses. Pouco depois de ele ter começado a trabalhar consigo. Ele sente-se lá muito feliz.
- Nós também gostamos dele.
- Tudo começou quando, certo dia, ele meteu conversa comigo no autocarro, pois ambos levávamos os nossos violinos. Como deve saber, Pete também toca violino. Dá uns toques.
-Por acaso não sabia - atalhou Walter.- Ele é bom rapaz.
-Oh! Se é bom rapaz! -disse ela com tanta convicção que Walter sentiu que a sua observação tinha soado irreverente, comparada com a dele.
- Gostava de um pouco de angustura nesta bebida; se tiver, claro.
- Claro que temos! Dê-me o seu copo, por favor. - Walter dirigiu-se ao bar circular situado na sala, deitou cuidadosamente seis gotas de angustura no copo dela e misturou tudo mexendo com uma palha. Quando voltou ao terraço, Jon conversava com a rapariga. Ela atirou a cabeça para trás, rindo-se de alguma coisa que Jon tinha dito.
- Walter! - chamou Jon. - E então quanto a domingo?
- Não tenho a certeza se poderei ir, Jon. Parece que no domingo nós éramos para ir...
- Compreendo, compreendo... - murmurou Jon. -”Desculpa-me se...
- Eu compreendo, Walter - retorquiu Jon impaciente.
Walter lançou um olhar à rapariga, sentindo-se comprometido e um pouco enjoado. Se ela não estivesse ali, Jon teria certamente dito: «Oh! Diz à Clara que se lixe!» Jon tinha repetido isto vezes sem conta no passado, embora Walter, mesmo assim, não tivesse alinhado nessas ocasiões. «Jon não se vai dar ao trabalho de o repetir muitas mais vezes», pensou Walter.
- Dá-me uns minutos de atenção - disse Jon com a voz autoritária de um chefe editorial. Depois parou e respirou fundo, como se tudo fosse inútil.
A rapariga retirou-se diplomaticamente, descendo os degraus até ao jardim.
- Já sei o que vais dizer - afirmou Walter. - Mas, como sabes, não posso fazer nada.
- A propósito, Chad pediu-me que te dissesse que queria que tu fosses a uma festa que ele vai dar na próxima sexta-feira. Jantamos em casa dele e depois vamos até ao teatro. O amigo dele, Richard Bell, vai estrear a sua nova peça nesse dia. Seremos cerca de seis pessoas. Vê lá se consegues despachar a Clara. Fazia-te bem. Chad sabe que não está nas boas graças de Clara, por isso ele nem quis telefonar para cá.
-Está bem! Eu vou. - «Se Clara excluiu Chad», pensou ele, «Chad tinha também todo o direito de a excluir.»
- É o melhor que tens a fazer. - Jon acenou-lhe e desceu até ao jardim.
Ninguém se embebedou nessa noite, excepto a Sr.a Philpott. Perdeu o equilíbrio e estatelou-se à frente da aparelhagem, mas não se atrapalhou e continuou lá sentada, ouvindo a música que Vic Rogers executava para um pequeno e atento grupo de convidados. Clara irritou-se e achou que, sendo já 3 horas da manhã, era a altura ideal para acabar qualquer festa, mas, claro, eram os Philpotts quem, desta feita, estava a dar espectáculo e ela mal se atrevia a fazer-lhes qualquer reparo.
- Deixa-a divertir-se - disse Walter.
- Eu acho é que ela está bêbeda! - segredou Clara horrorizada.
- Não consigo que ela se levante do chão. Já é a terceira vez que lho peço.
De súbito, Clara marchou em direcção à Sr? Philpott e Walter observou, incrédulo, a forma como Clara lhe pôs as mãos debaixo dos braços e a ergueu. Bill Ireton puxou rapidamente uma cadeira para a amparar. Por breves instantes, Walter viu o olhar que a Sr.a Philpott deitou a Clara, um olhar atónito e de ressentimento.
A Sr? Philpott abanou os ombros como se quisesse ver-se livre de Clara.
- Bem! Eu não sabia que era proibido sentarmo-nos no chão. Um silêncio profundo abateu-se sobre a sala. De repente, Bill
Ireton parecia ter ficado completamente sóbrio. Walter tentou descongestionar o ambiente e começou por dizer à Sr.a Philpott que ele próprio se sentava muitas vezes no chão.
Bill Ireton explodiu em gargalhadas, tal como a sua mulher. Todos vociferaram então, até a Sr? Philpott; todos excepto Clara, que apenas sorria nervosamente. Walter colocou o braço à volta de Clara e estreitou-a carinhosamente. Ele sabia que o impulso de Clara em erguer a Sr? Philpott fora algo absolutamente irresistível.
Alguns minutos depois, todos se tinham retirado.
A janela do quarto deixava entrar a luz cinzenta-esbranquiçada do amanhecer. Jeff estava deitado entre as almofadas da cama, já aberta. Era o seu local preferido.
- Anda daí, rapaz! -ordenou Walter, dando estalidos com os dedos para o acordar. O cão ergueu-se, ensonado, e saltou da cama. Walter bateu na almofada, colocada no cesto onde Jeff dormia, num dos cantos do quarto, e Jeff mergulhou lá para dentro.
- Teve uma noite em cheio! - disse Walter, sorrindo.
- Acho que aguentou melhor do que tu - ripostou Clara.
- Cheiras a licor que tresandas e tens a cara corada de tanto álcool.
- Deixarei de cheirar quando lavar os dentes - praguejou Walter, dirigindo-se para a casa de banho.
- Quem era aquela rapariga que Peter Slotnikoff trouxe?
- Sei lá! - gritou ele do chuveiro. - Ellie qualquer coisa, penso eu.
- Ellie Briess. Eu só perguntei quem é que ela é na realidade. Walter sentia-se demasiadamente cansado para lhe gritar que
ela ensinava música e, além do mais, achava que Clara não tinha interesse especial em sabê-lo. Aparentemente, Ellie tinha carro, uma vez que ela e Peter tinham ido juntos, de carro, para Nova Iorque. Walter deitou-se e abraçou afectuosamente Clara, beijando-lhe o queixo, as orelhas, com o cuidado de a manter afastada do próprio cheiro a pasta dentífrica.
- Walter... estou arrasada.
- Também eu - disse ele, enroscando a cabeça na almofada, junto dela, e evitando o contacto com o local em que o cão tinha estado deitado. Passou uma mão à volta da cintura de Clara. Ele sentia a pele quente e macia do corpo dela envolto na seda da sua camisa de dormir. Adorava ver o arquear daquele corpo à medida que respirava. Puxou-a para si. Ela empurrou-o.
-Walter!...
- Dá-me só um beijinho de boas-noites, Kits - pediu ele, continuando a agarrá-la. Clara debatia-se, mostrando uma expressão de desagrado que ele conseguia ver sob a luz acinzentada.
Ela empurrou-o então com violência e ergueu-se na cama. -Eu acho que tu és é um tarado sexual! -explodiu ela indignada.
Walter ergueu-se também.
- Qualquer dia fecho-me mas é na minha concha! O único problema que há comigo é que estou apaixonado por ti.
-Metes-me nojo! -disse ela, e afundou-se novamente na almofada, de costas para ele.
Walter ficou em brasa, apetecendo-lhe saltar da cama e sair porta fora para ir dormir para a sala, mas sabia que aí dormiria mal, se o conseguisse fazer, e se sentiria ainda pior no dia seguinte. Afundou-se na almofada. Ouviu então Clara chamar baixinho por Jeff. Escutou o clique, clique dos passos ensonados de Jeff pelo chão e sentiu a vibração da cama quando Jeff saltou para o lado de Clara.
Walter atirou os lençóis para trás e saltou da cama.
- Oh, Walter! Não sejas absurdo!
- Está óptimo - disse ele com uma calma ameaçadora. Tirou o robe de seda do armário, voltou a pô-lo no mesmo sítio e remexeu tudo em busca do seu robe de flanela.
- Nunca gostei de dormir com um cão na cama.
-Que disparate!
Walter desceu as escadas. A casa estava mergulhada num cinzento profundo, a cor de um sonho. Ele sentou-se num sofá. Clara retirara os cinzeiros e os copos vazios e já estava tudo arrumado. Walter lançou um olhar fixo para a grande garrafa italiana cheia de filodendros que estava no peitoril da janela. Ele tinha oferecido a Clara, no seu último aniversário, a garrafa e uma pulseira de ouro. Os primeiros raios de luz do amanhecer brilharam através do vidro esverdeado da garrafa, entrecruzando-se graciosamente no gargalo. Eram belos como uma pintura abstracta.
Oh! Como é bela a vida!...
No dia seguinte, Walter sentia-se cansado e indisposto. Tinha uma leve dor de cabeça, embora não soubesse se ela se devia ao facto de ter dormido mal, ou ao contencioso que ele tivera com Clara. Ela foi encontrá-lo adormecido no chão da sala e acusou-o de estar tão bêbedo que nem se tinha apercebido que caíra no meio do chão. Nessa manhã deu um longo passeio pelo bosque, partindo do extremo da Malborough Road, não muito longe da sua casa, e, tendo regressado bastante cansado, tentou, em vão, pegar no sono.
Clara dera banho a Jeff e estava a escová-lo, ao sol, no terraço. Walter dirigiu-se ao escritório, passando pelo hall, vindo do quarto. Era um compartimento situado na ala norte da casa, envolto numa escuridão repousante no Verão, devido às árvores existentes à frente da janela. Tinha duas paredes repletas de livros e uma secretária de linhas direitas e estava atapetado com um tapete oriental já bastante puído, que estivera no seu quarto, em casa dos pais, em Bethlehem, na Pensilvânia. Clara tinha querido ver-se livre do tapete, pois até já um buraco tinha. Foi uma das poucas coisas em rejação à qual Walter não transigiu: o escritório era seu e ele iria manter o tapete naquele local.
Walter sentou-se à secretária e releu uma carta do seu irmão Cliff, chegada na semana anterior de Bethlehem. Era uma carta constituída por várias páginas, escritas em papel ordinário, narrando os acontecimentos do quotidiano da quinta que Cliff dirigia e que era propriedade do pai. Falava da subida do preço dos ovos, do último recorde do campeonato de aves de capoeira e de outras coisas banais. Teria sido uma carta aborrecida, não fora o humor acutilante que Cliff deixava transparecer linha após linha. Cliff enviara juntamente um recorte de um jornal de Bethlehem que Walter não tinha ainda lido, com a seguinte anotação: «Lê isto a Clara, talvez ela ache graça.» Era uma coluna denominada: «Cara Sr.a Plainfield».
CaraSr.a Plainfield:
A minha mulher tem uma maneira muito peculiar de me fazer a vida num inferno. Ela não faz nada de concreto, mas toma uns tais ares de superioridade que se torna praticamente impossível viver com ela. Se está a ver um desafio de futebol, bem, tem sempre de dizer os resultados verificados em todo o país e mesmo os tentos conseguidos pelas equipas, fazendo-o melhor do que ninguém. Como vê, não tem graça nenhuma discutir futebol com ela.
Neste momento anda com a mania das plantas de interior. Há semanas que ela não faz outra coisa senão investigar sobre a sua colecção de Philodendron dúbia, Philodendron monstera e até mesmo um pequeno exemplar de Philodendron hastatum, isto para não falar no dinheiro gasto. Como deve perceber, isto é uma conversa de surdos para si e para mim.
Da sua colecção faz parte uma linda planta cujas folhas têm a forma de um violino. Mas, se eu me atrevo a designá-la como tal, ela irrita-se logo e corrige-me cinicamente: «Ficus pandurata!» O mesmo acontece com a árvore-da-borracha. Segundo ela, não é a árvore-da-borracha, mas sim uma Ficus elástica.
Eu não tenho nada contra as plantas, ou contra aqueles que as cultivam, mas sou contra as pessoas que torcem o nariz à planta da batata doce porque não é uma Deacaena wameckii - e a minha mulher é deste tipo.
Sr. Aspidistra
Walter sorriu. Duvidava que aquilo conseguisse arrancar um sorriso a Clara. Ele sabia o que tinha levado Cliff a enviar aquele recorte de jornal: quando ele.e Clara foram visitar o pai dele e Cliff lhes andou a mostrar os celeiros, apontando para um tractor, ele dissera: «Chad», que era uma abreviatura da sua marca de fábrica. Clara perguntara a Cliff, muito séria, o que é que ele queria dizer com aquela palavra e, olhando com atenção para a parte da frente do tractor, disse que era um Chadwick. Depois disso, sem deixar de esboçar um sorriso, Cliff designava cada uma das peças mecânicas para que apontava por uma abreviatura imperceptível. Aparentemente, Clara não percebeu a piada, mostrando-se apenas confundida. Clara achava que Cliff era meio amalucado, tendo tentado por várias vezes convencer Water disso e de que ele devia fazer algo pelo irmão nesse sentido. Walter sentia-se agradecido a Cliff por este olhar pela quinta e cuidar do pai. O grande sonho do pai era que ele tivesse sido um pregador da igreja episcopal, como ele próprio, mas Walter desapontara-o, enveredando pela advocacia. Cliff era dois anos mais novo do que o irmão e menos sisudo do que ele. O pai deles nunca tentara persuadir Cliff a seguir os seus passos. Todos esperavam que Cliff partisse depois de ter abandonado os estudos, mas ele optou por ficar a trabalhar na quinta.
Walter atirou a carta para o lado e abriu o grande livro de notas que utilizava para os seus ensaios. Este estava dividido em onze secções, referindo-se cada uma a um par, ou grupo de amigos. Algumas páginas estavam cheias de anotações datadas, escritas com a pequena caligrafia de Walter. Outras tinham pedaços de papel colados, nos quais anotava pensamentos em momentos de divagação, passados algumas vezes à máquina no seu escritório. Outras páginas continham rascunhos deixados a meio. Procurou a folha que continha o rascunho que havia já começado sobre Dick Jensen e Willie Cross. Tinha já duas colunas paralelas, listando os traços característicos da personalidade de Dick e as suas considerações acerca de Willie Cross:
Dick: idealista e ambicioso sob uma aparência calma e popular. Admira Cross e protesta contra o facto de ele o desprezar.
Cross: insaciável e ostentativo, a maior parte das suas realizações devidas a bluff. Receia as potencialidades de Dick, se lhe deixar o terreno livre.
Walter lembrou-se de outra nota que escrevera acerca deles, no seu memorando, e foi ao quarto buscá-la. Apalpou os bolsos dos seus casacos à procura de outros papéis soltos e encontrou um pedaço de jornal e um envelope dobrado, no qual tinha escrito qualquer coisa. Levou-os para o seu escritório. A nota acerca de Dick dizia: «Almoço de Dick e violento ressentimento de C. D. a propósito da proposta de C. de abrir ele próprio a sua firma de advocacia.»
Era uma pequena nota muito sugestiva. Cross era também consultor jurídico noutra firma, de cujo nome Walter não se lembrava. Dick tinha exposto as suas ideias a Walter. A oferta fora tentadora e Walter perguntava-se a si próprio se Dick conseguiria resistir-lhe.
Bateram levemente à porta.
- Entre, Claudia! - disse ele.
Claudia entrou com uma bandeja. Trazia-lhe uma sanduíche de frango e uma cerveja.
- É mesmo o que eu estava a precisar - afirmou Walter, tirando a cápsula à garrafa.
-Imaginei que estivesse com fome. A Sr.a Stackhouse disse-me que já tinha almoçado. Não quer que eu corra as cortinas, Sr. Stackhouse? Está um sol tão radioso hoje!
- Obrigado, até me esquecia disso - retorquiu Walter. - Porque é que veio hoje, Claudia? Com toda a comida que sobrou da festa, não era necessário preparar mais nada.
- A Sr.a Stackhouse não me dispensou.
Walter mirou-a de cima a baixo, atento àquela figura esguia, enquanto ela corria as longas cortinas, prendendo-as dos lados. Claudia era desse tipo raro de empregada que gostava do trabalho que desempenhava e que, consequentemente, o realizava com a máxima perfeição. Em Benedict, muitos foram os que tentaram aliciá-la para o seu serviço, mas Claudia manteve-se sempre fiel, apesar da rotina que Clara impunha na lida da casa. Claudia vivia em Huntington e vinha todas as manhãs no autocarro das 7 em ponto, acabava o serviço às 11, para tomar conta de crianças em Benedict, e voltava às 6, para largar definitivamente às 9. Não podia ficar em regime interno, pois tinha de olhar pelo seu netinho, Dean, que vivia com ela em Huntington.
- Lamento termos-lhe estragado o seu domingo - desculpou-se Walter.
-Porquê, Sr. Stackhouse? Eu não me importo. - Claudia permanecia encostada à secretária, vendo-o comer a sanduíche. -Deseja mais alguma coisa, Sr. Stackhouse?
Walter levantou-se e meteu as mãos nos bolsos, à procura de qualquer coisa.
- Sim! Quero que aceite isto e compre qualquer coisa ao Dean. - Estendeu-lhe uma nota de dez dólares.
-Dez dólares, Sr. Stackhouse?! O que é que eu vou fazer com estes dez dólares? -Mas Claudia sorria de alegria com aquela dádiva.
- Bem, pense em qualquer coisa.
-Agradeço-lhe imenso, Sr. Stackhouse. Foi muito simpático da sua parte - disse ela enquanto se afastava.
Walter beberricou um pouco de cerveja e desdobrou o pedaço de jornal. O pequeno artigo que ele tinha recortado do jornal em Waldo Point.
CADÁVER DE MULHER DESCOBERTO PERTO DE TARRYTOWN, N.Y.
Tarrytown, 14 de Agosto - O corpo de uma mulher, identificado como sendo a Sr.a Helen P. Kimmel, de 39 anos, de Newark, N.Y., foi descoberto numa zona arborizada, a cerca de uma milha a sul de Tarrytown, de acordo com o relatório de polícia da 3.a esquadra. Foi estrangulada e apresentava uma série de golpes brutais e escoriações graves no rosto e em todo o corpo. A sua carteira foi descoberta a alguns metros do corpo, sem vestígios de ter sido remexida. A vítima tinha viajado de autocarro de Newark para Albany, para visitar uma irmã, a Sr.a Rose Gaines. O motorista, John McDonough, da Cardinal Bus Lines, afirmou que tinha notado a ausência da Sr.a Kimmel quinze minutos após a primeira paragem para descanso, efectuada num café à beira da estrada, na noite anterior, às 9.55. A bagagem da Sr.a Kimmel ainda se encontrava no autocarro. Supõe-se que ela tenha sido assaltada enquanto passeava ao longo da estrada principal. Nenhum dos passageiros inquiridos declarou ter ouvido gritos ou notado algo de estranho.
O marido da vítima, Melchior J. Kimmer, de 40 anos de idade, livreiro em Newark, identificou o corpo, esta tarde, em Terrytown. A polícia procura pistas que conduzam à captura do assassino.
«Sem interesse para os ensaios», pensou Walter, «provavelmente o atacante era um maníaco.» O mais estranho no meio de tudo isto era o facto de ninguém ter visto ou ouvido alguma coisa, a menos que ela estivesse muito afastada do local onde o autocarro estacionara. Walter perguntava a si próprio se alguém, conhecido dela, a teria encontrado nesse local e atraído, levando-a depois a afastar-se sob o pretexto de ter de falar com ela, tendo-a depois atacado. Walter hesitou, inclinou-se para o cesto dos papéis e deitou fora o recorte de jornal, vendo-o escorregar para um dos cantos do tapete. Pensou então: «Hei-de apanhá-lo mais tarde.»
Colocou a cabeça sobre os braços. O sono conseguiu finalmente vencê-lo.
Na terça-feira, Walter estava de cama com gripe.
Clara insistiu em chamar o médico para se descobrir o que era, apesar de Walter saber que estava com gripe: alguém, durante a festa, mencionara uma série de casos de gripe detectados na zona de Benedict. Mesmo assim, o Dr. Pietrich veio, detectou a gripe e mandou Walter para a cama, prescrevendo-lhe comprimidos e penicilina. Clara permaneceu durante alguns minutos ao pé dele, verificando se algo lhe faltava: cigarros e fósforos, livros, um copo de água e lenços de papel.
- Obrigado, querida, muito obrigado - dizia Walter à medida que ela ia colocando tudo ao seu dispor. Walter sentia que a estava a maçar; que ela fazia as coisas contrariada, como se fosse um dever, para tentar que ele se sentisse bem. Nas raras ocasiões em que ficava doente sentia-se de tal modo constrangido perante ela, que mais parecia ser um estranho. Sentiu-se mais à vontade quando Clara, finalmente, voltou ao emprego. Ele sabia que ela não telefonaria durante todo o dia, ou que nessa noite provavelmente se sentaria nas escadas a ler o jornal da tarde, antes de subir para ver como ele estava.
Nessa noite, ele não conseguiu tocar em nada; nem sequer provou o caldo que Claudia lhe preparara. Tinha o nariz tão dorido que nem conseguia fumar. Os comprimidos provocavam-lhe sonolência e, nos pequenos intervalos em que estava desperto, a depressão assaltava-lhe o espírito como se estivesse envolvido por uma atmosfera negra e pesada. Walter perguntava a si próprio como se deixara chegar a este ponto, esperando por uma mulher que ele julgava amar, uma mulher que nem sequer se daria ao trabalho de lhe pôr a mão na testa. Perguntava-se porque não tinha pressionado mais intensamente Dick a abandonarem a firma no Outono, em vez de ser no Ano Novo. Falara nisso a Dick na noite da festa, uma altura nada propícia, mas ele mostrava-se pouco à vontade para discutir o assunto no escritório; tão pouco à vontade como se o escritório estivesse repleto de microfones escondidos, colocados por Cross. Seria que ele tinha de tomar a atitude sozinho? Mesmo durante os seus acessos de cólera, Walter sabia, contudo, que necessitava do apoio de Dick. O tipo de escritório que tinham em mente requeria a mão de dois colaboradores e Dick possuía determinadas virtudes difíceis de encontrar.
Quando Clara chegou a casa, disse: -Sentes-te melhor? Que temperatura tens?
Ele sabia a temperatura porque Claudia lha tinha tirado nessa tarde. Ainda tinha bastante febre.
- Nada má! - disse ele. - Sinto-me melhor.
-Ainda bem.-Clara esvaziou a carteira metodicamente, pôs algumas coisas sob’re a cómoda e desceu as escadas para ir jantar.
Walter fechou os olhos e tentou pensar em algo que não fosse Clara sentada na sala, ouvindo rádio e lendo o jornal. Encetou um jogo que costumava realizar quando estava prestes a adormecer, ou a acordar: imaginava um jornal aberto diante de si e deixava que os seus olhos percorressem rapidamente as primeiras frases de cada uma das notícias. «Hoje em Gibraltar, na presença dos ministros dos Negócios Estrangeiros, tal e tal... foi assinado pelo presidente Mugwump de Blotz... um novo acordo recíproco e bilateral...» «Mulher diz: -Ele destruiu o meu amor e eu tinha de salvar o meu filho... - Uma história cruel revelada ontem perante o chefe da polícia Ronald W. Friggarty. Uma jovem mulher loura, com os olhos azuis dilatados pelo terror, contara que o seu marido chegava a casa e a espancava, a ela e ao filho, com uma frigideira, todas as noites às 6 horas...» «De acordo com declarações de peritos, o tempo na América do Sul tem-se tornado cada vez mais moderado. A descoberta ocasional de um pequeno meteorito de plástico no ombro esquerdo do Sr. Achinche, na Bolívia, levou os meteorólogos a acreditarem que nos próximos seiscentos anos as chinchilas serão capazes de computurizar os seus próprios impostos sobre-os rendimentos...» «Fotografias recentes mostram multidões de pessoas enlutadas arrastando a mão do explorador soviético Tomayatkin, assassinado em Moscovo.» «...Feira Internacional dos Têxteis a ser inaugurada no famoso Palácio de Cristal em Colónia...»
Walter sorriu. Viu o artigo que retirara do jornal, narrando o caso da mulher assassinada na paragem do autocarro. As palavras não lhe vieram à memória. Conseguiu apenas imaginar a fotografia dela. Prostrada no meio da vegetação, com um golpe profundo no queixo, jorrando sangue desde o olho até ao canto dos lábios. Não era bonita, mas possuía um rosto agradável, cabelo negro ondulado, um corpo sinuoso e forte e uma boca com uma expressão confiante, que se devia ter aberto de terror à primeira ameaça do assassino. Uma mulher como esta não se deveria ter afastado na companhia de um estranho. Imaginou-a interpelada por alguém que ela conhecia: «Helen, tenho de falar contigo. Chega aqui...» Ela teria olhado para ele, surpreendida. «Como é que chegaste até aqui? Deixa lá.» «Helen, tenho de falar contigo. Temos que resolver isto.» Walter pensou que poderia ter sido o marido. Tentou lembrar-se se o artigo referia o local em que o marido se encontrava nessa altura. Achou que não. Talvez Helen e Melchior Kimmel também tivessem vivido num inferno. Walter imaginava-os brigando na sua casa em Newark, chegando a um impasse familiar, após o qual a mulher decidira partir para ir visitar um parente. Se o marido a tivesse querido matar, tê-la-ia seguido de carro e teria esperado que ela saísse numa das paragens. Ele ter-lhe-ia dito: «Tenho de falar contigo.» E a mulher teria ido com ele para o meio de uma densa vegetação na berma da estrada...
Quinta-feira, ao fim da tarde, Clara entrou no quarto e sentou-se aos pés da cama, por alguns momentos. Receava apanhar a gripe por contágio e dormia num divã no escritório de Walter. Ele pensava que, tendo já decorrido três dias sem que tivesse sido contagiada, Clara estaria agora mais acessível. Ele quase não lhe dirigiu a palavra, mas ela parecia nem se aperceber disso. Estava absorvida com a possibilidade de concretizar novas vendas na Costa Norte.
«Odeio-a!», pensou Walter. Estava bem ciente disso, e esta ideia deu-lhe prazer. Mais tarde, nessa mesma noite, o barulho de um motor de automóvel despertou Walter. Ouviu duas vozes nas escadas. Uma delas era uma voz de mulher.
Clara conduziu Peter Slotnikoff e a rapariga chamada Ellie até à sala. Peter pediu desculpa de não ter telefonado primeiro. Ellie trazia-lhe um grande ramo de gladíolos.
- Ainda não morri - afirmou Walter confundido.
Walter olhou à sua volta para ver se descobria um lugar onde colocar as flores. Clara tinha saído do quarto. Walter sabia que ela estava aborrecida por eles terem aparecido sem avisar. Não havia nenhuma jarra à vista. Peter foi buscar uma ao hall e encheu-a de água na casa de banho. Deitado sobre as almofadas, Walter observava as mãos de Ellie enquanto esta colocava as flores na jarra. Eram umas mãos fortes e quadradas, como o seu rosto, mas suaves quando tocavam as coisas. Walter recordou-se então que ela tocava violino.
- Alguém deseja beber alguma coisa? - perguntou Walter.
- Que tal uma cerveja? Há cerveja no frigorífico, Pete. Porque é que não vais lá abaixo buscar o que te apetece?
Todos queriam cerveja. Peter desceu as escadas.
Ellie puxou a cadeira que Clara utilizava para se sentar ao toucador. Trazia uma blusa branca com as mangas arregaçadas, uma saia de tweed e calçava moccasins.
- Há quanto tempo vivem aqui? - perguntou ela.
- Vai para três anos.
- É uma casa amorosa. Eu gosto imenso do campo.
- Campo?! - riu-se Walter.
- Estando em Nova Iorque, isto, para mim, é o campo.
- As pessoas têm dificuldade em cá chegar, a menos que tenham carro. Tem razão.
Ela sorriu e os seus olhos castanho-azulados brilharam. - E isso não é uma vantagem?
- Não! Eu gosto que as pessoas apareçam. E, já que têm carro, espero que venham mais vezes.
- Obrigada. Ainda não viu o meu carro. É um carro de luxo, descapotável, cuja capota não funciona lá muito bem, pelo que tenho de conduzir com ela recolhida, a não ser que esteja a chover torrencialmente. Anda com uma fuga. Sempre tive o carro da família ao meu dispor e quando vim para Nova Iorque tive de comprar este, apesar de estar falida. Foi assim que comprei o Boadicea. É como lhe chamo.
- Onde é que vive?
- Lá para cima, para o norte. Conning. É uma cidadezinha aborrecida.
Walter tinha estado lá, de passagem, numa viagem que fizera de comboio. Tinha a ideia de ser extremamente cinzenta, como uma cidade mineira. Não conseguia imaginar Ellie naquele local.
Peter voltou com a cerveja e encheu os copos cuidadosamente.
-O fumo incomoda-o? - perguntou Ellie.-Eu posso evitar fumar.
- Não incomoda nada! - disse Walter. - Quem me dera à mim fazer o mesmo.
Ela acendeu o cigarro. - Quando estou engripada, o nariz fica-me tão dorido que mal consigo dormir com as dores que a respiração me provoca, quanto mais o fumo.
Walter sorriu. Aquilo tocou-o profundamente, como se fosse a coisa mais simpática que alguém já lhe dissera desde que estava doente.
- E como é que vai o escritório, Pete?
- O caso dos Parson e Sullivan tem dado que fazer ao Sr. Jensen-disse Peter. - Existem dois representantes, um é bestial. O outro, bem, acho que passa a vida a mentir. É o mais velho.
Walter olhou de relance para o rosto jovial e franco de Peter e pensou: «Dentro de dois ou três anos, Peter não ligará nenhuma às maiores mentiras do mundo.»
- Eles mentem com frequência - advertiu Walter.
- Espero que a tua mulher não tenha ficado aborrecida por não termos telefonado primeiro - disse Peter.
- Claro que não!
Walter ouviu os passos de Clara no hall afastando-se. Ela dissera que nessa tarde iria fazer um inventário dos atoalhados e ele sabia que era exactamente isso que ela estava a fazer. Tentou imaginar o que Ellie pensaria de Clara e da sua indiferença para com eles. Ellie, afastada da luz reflectida pelo candeeiro da mesa de cabeceira, contemplava-o fixamente. Walter não se importava. Não era um olhar crítico, como aqueles que Clara e algumas mulheres parecem lançar, desfazendo as pessoas em pedaços.
- Já conseguiu descobrir algum emprego, Ellie? - perguntou Walter.
- Sim, há uma hipótese de se arranjar alguma coisa na Harridge School. Ficaram de me dizer alguma coisa na próxima semana.
- Harridge?! Em Long Island?
- Sim, em Lenert. A sul daqui.
- Mesmo assim, não é muito longe - disse Walter.
-Não, mas ainda não é uma certeza. Eles não necessitam de mim lá. Estou apenas a tentar impor-me.-Ela sorriu e levantou-se subitamente. - É melhor irmos indo.
Walter pediu-lhes que ficassem mais um pouco, mas eles insistiram em partir.
Ellie agarrou-lhe na mão.
- Não tem medo de ser contagiada?
- Não! - riu-se ela.
- Ele apertou a mão que ela lhe estendia. Sentiu exactamente a sensação por ele já imaginada: uma sensação de solidez de quem aperta com firmeza. Os seus olhos brilhantes pareciam maravilhosamente amáveis. E ele perguntou a si próprio se ela olharia para toda a gente da mesma forma que olhava para ele.
- Espero que melhore rapidamente - disse ela.
Partiram e o quarto ficou vazio. Walter ouviu as desculpas formais dirigidas a Clara, lá em baixo, e, seguidamente, o barulho do motor do carro a afastar-se.
Clara entrou no quarto. - Com que então a menina Briess vai arranjar um emprego aqui perto!...
- Talvez. Conseguiste ouvir isso?
- Não. Perguntei-lhe agora mesmo.
Clara colocou algumas toalhas de banho dentro da gaveta da cómoda.
- Gostava de saber o que é que ela espera ao andar por aí com esse parvalhão do Pete.
- Acho que ela gosta dele. É muito simples.
Clara deitou-lhe um olhar desatento. - Eu acho que ela gosta é de todos os homens que por aí andam, isso posso eu assegurar-te.
Walter levantou-se no sábado e no domingo foram almoçar a casa dos Iretons.
Estava um lindo dia de sol e havia cerca de vinte pessoas a beber cocktails, no jardim, quando Walter e Clara chegaram.
Clara deteve-se junto de um grupo onde estava Ernestine McClintock e a amiga dos McClintocks, Greta Roda, a pintora. Walter prosseguiu. Bill Ireton contava anedotas no meio de um grupo de homens que se encontravam à volta do bar.
- A velha história do costume - dizia Bill -, aborda-se sempre a rapariga errada! - A explosão de gargalhadas que se seguiu soou demasiado estridente a Walter, que estava naquele estado de convalescença, após a gripe, em que qualquer barulho o incomodava, pondo-lhe até os cabelos em pé.
Bill Ireton apertou a mão a Walter, tendo a sua mão gelada e húmida do contacto com os cubos de gelo.
- Estou muito satisfeito de te ver aqui! Estás melhor?
- Agora já estou bem. Obrigado pela tua preocupação. Betty Ireton apareceu, deu-lhe as boas-vindas e levou-o para
apresentar a uma convidada, amiga deles, que estava lá a passar o fím-de-semana. A partir daí, Walter circulou sozinho, desfrutando do prazer de pisar a relva macia que atapetava o jardim sob o efeito inebriante do álcool subindo-lhe à cabeça,
Bill foi buscar um copo a Walter, encheu-o e fez-lhe um gesto para que o seguisse.
- O que é que se passa com Clara? -^ perguntou Bill à medida que caminhavam. - Esteve a moer a cabeça à Betty.
- A propósito de quê? - perguntou Walter, tenso.
- Acho que foi a propósito de toda a festa. Clara disse que não lhe apetecia beber e, quando a Betty se ofereceu para lhe ir buscar uma coca-cola, disse-lhe que «ela» não precisava de beber nada para se sentir bem - afirmou Bill num tom afectado, erguendo as sobrancelhas, tal como Clara fizera. - De qualquer modo, Betty ficou com a ideia de que ela se teria sentido melhor se tivesse ficado em casa.
Walter conseguia imaginar exactamente a cena.
- Olha, Bill, desculpa lá. Se fosse a ti, não levava isso muito a sério. Vê lá que, tendo eu estado doente toda a semana, com a Clara a trabalhar da forma que tu sabes, de vez em quando dava com ela fora de si.
Bill pareceu ficar na dúvida. - Quando ela não nos quiser dar o prazer da sua companhia, meu amigo, nós compreendemos perfeitamente. Temos sempre muito prazer em te ter cá; nunca te esqueças disso!
Walter calou-se. Achava que as palavras de Bill constituíam um verdadeiro insulto a Clara, caso ele as tomasse à letra. Mas ele optou por não o fazer, pois compreendia perfeitamente a atitude de Bill perante o comportamento de Clara. Walter deu uma volta pelo jardim, observando as pessoas, nomeadamente as mulheres que trajavam saias claras de Verão. De repente apercebeu-se de que estava à procura de Ellie, mesmo não havendo nenhuma hipótese de ela lá estar nesse dia. Ellie Briess. Ellie Briess. Pelo menos agora recordava-se do nome. «O nome fica-lhe a matar», pensou ele. «É simples, mas não ordinário, tem um não sei quê de alemão.» Walter sentiu-se nas nuvens com a segunda bebida. Almoçou com os McClintocks e Greta Roda numa das grandes mesas volantes, retirando para o seu prato deliciosos bocados de barbecue e batatas fritas, colocados em tabuleiros que a criada dos Iretons e as duas filhitas do casal iam servindo. Quando se tentou levantar para sair da mesa, cambaleou e Bill e Clara ajudaram-no, apoiando-o cada um de seu lado.
- Eu não estou bêbedo, só que, de repente, me senti horrivelmente cansado, - disse Walter.
- Tu acabaste de sair da cama, meu velho - disse Bill. - Não era preciso beberes muito para te sentires assim.
- Saíste-me uma boa peça! - disse-lhe Walter.
Mas Clara estava furiosa. Walter sentou-se, em silêncio, a seu lado, enquanto ela conduzia o carro a caminho de casa (ela insistiu, dizendo que ele não estava capaz de conduzir). Durante a viagem insultou-o pela sua estupidez de se deixar embebedar àquelas horas da tarde.
- Francamente, só porque vês um copo de álcool à tua frente e ninguém te diz que não bebas... és mesmo um estupor!
Tinha apenas tomado duas bebidas e, depois de ter tomado uma chávena de café em casa, sentiu-se sóbrio e comportou-se como tal, sentando-se no grande sofá da sala, a ler o jornal da tarde. Clara, entretanto, continuou a espicaçá-lo ininterruptamente. Sentou-se no outro lado da sala, pregando botões num vestido branco.
- Devias comportar-te como um advogado que és, um intelectual. Acho que tens outras coisas ao teu dispor mais interessantes para ocupares o intelecto do que afogares-te em álcool. Mais algumas cenas como a de hoje, e todos os nossos amigos nos desprezarão.
Ao ouvir isto, Walter ergueu os olhos. - Mas o que é isto, Clara? - perguntou Walter amavelmente. Estava indeciso se devia subir para o escritório e fechar a porta, mas... Ela segui-lo-ia e acusá-lo-ia de ser incapaz de aceitar uma crítica.
- Eu bem vi a cara de Betty Ireton quando atravessaste o jardim. Estava decepcionada contigo!
- Se julgas que Betty fica decepcionada por ver alguém com uma pinga a mais, não deves estar boa da cabeça.
- Tu não deves ter reparado, de qualquer das maneiras estavas bêbedo!
-Posso falar? - perguntou Walter levantando-se. - Tu deste-te ao trabalho de provocar a discórdia na festa de hoje... Confessa lá! Tu é que hás-de fazer com que todos nos desprezem. És negativa em relação a tudo e a todos.
- E tu és tão positivo, és de uma gentileza!...
Walter cerrou os punhos dentro dos bolsos e deu alguns passos pela sala cheio de vontade de lhe bater. - Posso afiançar-te que hoje os Iretons não tiveram grande prazer na tua presença e penso mesmo que há muito tempo que isso acontece. O mesmo se passa com muitos dos nossos conhecimentos.
- De que é que estás a falar? És um paranóico. Acho que és um psicopata, Walter. Confesso que realmente é essa a impressão que me dás!
- Se quiseres, posso-te inumerar as pessoas - disse ele, elevando o tom de voz e avançando em direcção a ela. - Há o Jon; não suportas que eu vá à pesca com ele. Há o Chad, que ultrapassou os limites uma vez. Antes disso foram os Whitneys, o que é que se passou com eles? Desertaram, não é verdade? Foi tudo muito estranho. E antes disso foi o Howard Graz; fizeste-lhe a vida num inferno depois do fim-de-semana que aqui veio passar connosco.
- Tens tudo muito bem registado. Deves ter passado horas sem fim a preparar esta inumeração de casos.
- Que mais posso eu fazer à noite? - atalhou Walter rapidamente.
- Lá estamos nós outra vez! Não consegues esquecer o assunto nem por cinco minutos, pois não?
-Seria melhor fazê-lo definitivamente. Não era isso que tu querias? É uma forma de te manteres independente de mim. Podes dedicar o teu tempo exclusivamente a manipulares-me de modo que os meus amigos se afastem de mim.
Clara voltou à costura. - Isso diz-te mais respeito a ti do que a mim, como é óbvio!
-O que eu quero dizer -afirmou Walter, engrossando a voz - é que não posso pactuar com uma atitude negativa que poderá, eventualmente, alienar-me, afastando-me de todos os seres vivos do mundo.
- Oh! Só estás preocupado contigo próprio.
- Clara, quero o divórcio.
Ela ergueu os olhos da costura, com a boca entreaberta. Naquele momento, a expressão por ela assumida fez-lhe lembrar as ocasiões em que ele lhe perguntava se ela se importava que eles fossem a uma reunião de amigos; - Acho que não era isso que querias dizer - disse ela.
- Eu sei que pensas isso, mas foi exactamente o que eu quis dizer. Desta vez não é como das outras. Já não sou optimista a ponto de acreditar que as coisas possam melhorar, porque, obviamente, isso já não é viável.
Clara ficou estupefacta e ele perguntou a si próprio se ela, por acaso, se lembraria do passado. Tinham chegado os dois exactamente ao mesmo ponto e Clara ameaçara-o de que tomaria de uma vez o frasco de calmantes que guardava no quarto. Walter tinha preparado uma quantidade de martinis e obrigara-a a beber um para a ajudar a recompor-se. Tinha-se sentado ao lado dela no sofá, no local em que Clara estava agora, e ela desatara a chorar, dizendo-lhe que o adorava, tendo a noite terminado de uma maneira completamente diferente daquela que Walter antevira.
- Já não chega estar apaixonado por ti fisicamente, porque mentalmente desprezo-te - disse Walter calmamente. Parecia-lhe que estava a libertar-se de todas as raivas acumuladas ao longo de centenas e centenas de dias e noites, em que não se atrevera a dizer-lhe nada, não que lhe faltasse a coragem, mas simplesmente porque sentia que isso era horrível e até mesmo fatal para Clara. Olhou então para ela, como olharia para qualquer coisa ainda com vida na qual desferira um golpe mortal, ao aperceber-se de que ela começava a acreditar nele.
- Mas talvez eu consiga mudar - murmurou ela, com a voz embargada pelas lágrimas. - Posso ir a um psicanalista...
- Eu não acho que isso possa alterar alguma coisa, Clara. Ele conhecia o seu desprezo pela psiquiatria. Tinha já tentado convencê-la a ir a um psiquiatra, embora ela nunca o tivesse querido fazer.
Ela fixou-o com um olhar espantado, com os olhos marejados de lágrimas, parecendo a Walter que, até mesmo nesta crise, ela estava possuída de uma raiva mais surda do que nas ocasiões em que ela lhe gritava como possessa. Jeff, irrequieto ao ouvi-los discutir, saltitou à volta de Clara, lambendo-lhe as mãos, embora ela não lhe prestasse qualquer atenção.
- É aquela rapariga, não é? - perguntou Clara subitamente. -O quê?!
- Não finjas. Eu sei muito bem. Porque é que não confessas? Queres divorciar-te de mim para poderes ficar com ela. Ficaste embeiçado por aquele sorriso estúpido de vaca com que ela olha parati. >
Walter franziu as sobrancelhas. - Que rapariga? >
- Ellie Briess! ’
- Ellie Briess? -repetiu Walter, incrédulo. - Bem, bem, Clara estás doida!
- És capaz de negar? - perguntou Clara.
- Nem sequer vale a pena negar.
- É verdade, não é? Pelo menos admite-o. Diz a verdade ao menos uma vez na vida.
Walter sentiu um arrepio na espinha. Tentou desviar o espírito, esforçando-se por imaginar uma situação diferente, lidando com alguém mentalmente perturbado.
- Clara, eu só vi a rapariga duas vezes. Ela não tem absolutamente nada a ver connosco.
- Eu não acredito em ti. Tens-te encontrado com ela ao fim da tarde, às escondidas, isto sempre que não chegas às seis e meia.
- Que tardes? Na segunda-feira passada? Foi o único dia que fui trabalhar desde que a conheci.
- Domingo!
Walter engoliu em seco. Lembrou-se que tinha dado um longo passeio na manhã de domingo, precisamente no dia a seguir a tê-la conhecido. - Não achas que temos razões suficientes para acabarmos com isto, sem entrar em fantasias?
A boca de Clara tremeu. - Não me dás outra oportunidade?
-Não!
- Então hoje à noite vou ingerir o frasco de comprimidos. Disse Clara numa voz subitamente calma.
- Ai isso é que não vais! - Walter dirigiu-se ao bar, serviu um brande e ofereceu-lho.
Ela agarrou-o com as mãos trémulas e bebeu-o dum trago, sem sequer reparar no que o copo continha.
- Julgas que estou a brincar, não é? Lá porque não o fiz da outra vez... Mas agora vou fazê-lo.
- Isso é uma ameaça, querida.
-Não me chames «querida», tu desprezas-me. - Ela levantou-se. - Deixa-me em paz! Ao menos deixa-me gozar um pouco da minha privacidade!
Walter sentiu-se de novo alarmado. Ela parecia mesmo louca, com um olhar duro e brilhante, tinha o corpo rígido como se tivesse tido um ataque epiléptico, ficando a balouçar como uma coluna de pedra.
- Para que queres tu a privacidade?
- Para me matar!
Walter fez um gesto involuntário para dar meia volta e ir lá acima ao toucador onde supunha que ela guardava os comprimidos. Olhou então para ela.
- Tu não sabes onde estão. Escondi-os.
- Clara, não sejamos melodramáticos.
- Então deixa-me em paz!
- Está bem, eu deixo.
Ele subiu as escadas a correr até ao escritório, fechou a porta e andou às voltas durante alguns momentos, fumando um cigarro. Ele não acreditava que ela fosse capaz. Em parte era uma ameaça e, por outro lado, era uma forma de demonstrar o seu terror de ficar sozinha. Mas ela havia de acabar por ceder. No dia seguinte, ela revelar-se-ia tão dura e tão convencida da sua probidade como sempre. Entretanto, ele teria de fazer de ama-seca toda a vida, ficando ligado a ela devido apenas a uma ameaça? Deu um empurrão na porta aberta e correu escada abaixo.
Clara não se encontrava na sala e ele chamou-a, subindo novamente as escadas a correr. Encontrou-a no quarto. Ela virou-se rapidamente para ele, ocultando algo sob o seu vestido branco, ou talvez estivesse apenas a agarrá-lo enquanto esperava que ele saísse. Depois, ao mesmo tempo que ela tirava o vestido e o colocava numa cruzeta, Walter pôde verificar que ela, afinal, não tinha mais nada nas mãos. Quando Clara se dirigiu ao armário, ele viu uma garrafa de brande meio cheia no parapeito da janela. Por momentos olhou incrédulo para a garrafa.
-Porque é que não me deixas em paz? - perguntou ela.
- Porque é que não sais e vais dar uma volta?
Jeff parou o seu saltitar alegre pelo quarto, sentou^se e olhou de frente para Walter, como se estivesse também à espera de que ele saísse.
- Está bem. Talvez faça isso - disse Walter, batendo com a porta do quarto ao sair.
Voltou para o escritório e disse para consigo que não tinha ficado em casa para a proteger, mas apenas porque não lhe apetecia ir dar uma volta. Sentiu, subitamente, a porta abrir-se atrás de si.
- Pensei que te devia avisar, para te sentires um pouco melhor, que de hoje em diante ficarás livre para passar «todo» o teu rico tempo com a Ellie Briess!
Walter tinha um pesa-papéis numa das mãos e, por momentos, apeteceu-lhe atirar-lho à cabeça. Contudo, pousou-o na secretária e saiu do escritório, passando por ela mais furioso do que nunca. Conseguia, porém, analisar-se ainda com objectividade: um homem dominado pela fúria atirando para dentro de uma mala camisas, um par de calças, a escova de dentes, a esponja e, num gesto de última hora, a pasta de que necessitaria no dia seguinte. Fechou a mala.
- Esta noite a casa é toda tua! - disse-lhe ele ao passar por ela no hall.
Walter entrou no carro. Descobriu que estava no parque de estacionamento de North Island antes de se aperceber de que não sabia para onde se dirigia. Para Nova Iorque? Podia ir para casa de Jon. Não queria, porém, descarregar todos os seus problemas sobre Jon. Walter seguiu pela via seguinte, indo dar a uma pequena comunidade que não conseguiu reconhecer. Viu um cine-teatro por perto. Estacionou o carro e entrou. Sentou-se no balcão, olhando fixamente para o écran e fumando um cigarro. Aguardaria pacientemente até que o filme que o levara a entrar começasse. Perto do final do filme, Walter pensou se Clara teria realmente tomado os comprimidos para dormir. Caso o tivesse feito, seria já demasiado tarde para que uma lavagem ao estômago surtisse efeito. Um acesso de pânico apanhou-o desprevenido.
Levantou-se e saiu.
Sobre a mesa-de-cabeceira estava um frasco esverdeado, completamente vazio, e um copo- contendo um pouco de água.
-Clara?!-Walter ergueu-a pelos ombros e sacudiu-a. Ela não esboçou qualquer movimento. Tinha a boca entreaberta. Ele tomou-lhe o pulso, conseguindo ainda sentir-lhe as pulsações num ritmo forte, normal. Dirigiu-se à casa de banho e humedeceu uma toalha com água fria. Voltando depois novamente ao quarto, colocou-a sobre o rosto dela. Não obteve qualquer reacção. Deu-lhe umas palmadas na cara.
- Clara! Acorda!
Sentou-a, mas ela estava mole como uma boneca de trapos. «É escusado tentar fazê-la beber café», pensou ele. A língua pendia-lhe fora dá boca. Walter, desesperado, correu para o telefone, que estava no hall.
O Dr. Pietrich não estava em casa, mas a criada deu-lhe o número do telefone de outro médico. À segunda tentativa, o médico assegurou a Walter que estaria lá em casa dentro de um quarto de hora.
Tinham decorrido vinte e cinco minutos e Walter estava em pânico, receando que ela deixasse de respirar ali mesmo na sua frente. Todavia, a respiração fraca mantinha-se. Finalmente, o médico chegou e, activamente, preparou a lavagem ao estômago. Walter ajudava-o, derramando água quente no funil, colocado numa das extremidades do tubo. Não saía nada de dentro dela, a não ser a água derramada pelo tubo, que vinha levemente misturada com o sangue dos mucos estomacais.
O médico deu-lhe então duas injecções e tentou colocar-lhe o tubo para nova lavagem. Walter observava os olhos meio abertos de Clara, a flacidez pouco natural na sua boca, tentando descobrir algum sinal de vida; as suas expectativas pareciam, contudo, logradas.
- Acha que ela sobreviverá? - perguntou ele.
- Como é que eu posso saber? - replicou o médico irritado.
- Ela não dá acordo de si. Tem de seguir imediatamente para o hospital.
Walter sentiu uma enorme aversão pelo médico.
«Alguns médicos, pensou ele, «comportam-se como se o facto de terem de se ocupar de um caso de suicídio seja para eles o maior frete do mundo. Ou, pelo menos, assumem automaticamente uma atitude de censura pelo acto.»
- Ela teve alguma vez problemas de coração? - perguntou um dos médicos.
- Não!-respondeu de imediato Walter.-Acha que ela tem hipóteses de sobreviver?
O médico arqueou as sobrancelhas, numa atitude de indiferença, continuando a escrevinhar na ficha.
- Tudo depende do coração dela-acabou o médico por dizer, e indicou-lhe o caminho através do corredor.
Clara estava deitada numa câmara de oxigénio. A enfermeira friccionava-lhe um dos braços para lhe aplicar outra injecção e Walter sentiu um arrepio quando a enorme agulha penetrou nas veias. Clara nem sequer estremeceu.
- Ou ela cura esta «bebedeira» dormindo, ou então nada feito - disse o médico.
Walter inclinou-se e observou fixamente o rosto de Clara. A sua boca permanecia imóvel, arroxeada, deformada, com os lábios levemente repuxados sobre os dentes. Uma expressão facial que Walter jamais vira; uma expressão como a da própria morte. Agora acreditava que Clara não queria viver. Walter sentiu-se sem saber o que fazer ao tomar consciência de que, em vez de continuar a lutar com a determinação inconsciente que ela aplicava ao trabalho para sobreviver, como faria qualquer pessoa normal, Clara se deixava agora levar pela morte, sem força de vontade para lutar mais.
Cerca das 2 horas da manhã não se tinha verificado ainda
qualquer modificação no seu estado. Walter regressou a casa. Telefonava para o hospital de vez em quando e a mensagem era sempre a mesma: SEM ALTERAÇÃO. Por volta das 6 da manhã tomou uma chávena de café e um brande, voltando depois ao hospital. Claudia veio às 7 e ele não quis vê-la, pois não sabia o que dizer-lhe.
Clara continuava exactamente na mesma posição. Walter teve a sensação de que as pálpebras dela estavam levemente inchadas. Havia algo de horrivelmente animalesco nas pálpebras inchadas e na boca inexpressiva. O médico advertiu Walter de que a pressão sanguínea baixara levemente, o que era um mau indício, mas’ desde que o coração aguentasse... Dava a impressão de que ela se estava a aguentar.
- Acha que ela conseguirá sobreviver?
-Não posso responder-lhe a essa pergunta. Ela ingeriu a dose suficiente para se matar, o que teria conseguido se não a tivesse trazido para cá. Veremos o que se passa nas próximas quarenta e oito horas.
- Quarenta e oito horas?!
- Ela pode permanecer em coma até mais do que esse tempo, mas, se isso realmente acontecer, duvido que ela consiga safar-se...
Por volta das 9 horas, Walter dirigiu-se para Nova Iorque. A sua mala continuava no porta-bagagens do carro e ele retirou dela a maleta dos documentos, antes de subir para o escritório. Tinha a impressão de que nunca decidira realmente ir para um hotel com a mala; teria sido, talvez, apenas um propósito intencional para sair de casa, de forma a deixar o terreno livre a Clara para ela se matar sem a interferência dele. Walter não conseguia libertar-se da ideia de que sabia que Clara acabaria por tomar os comprimidos. Ele podia tentar fazer crer a si próprio que sempre pensara que ela nunca os tomaria, pois não o fizera anteriormente. Contudo, desta vez o caso foi diferente. E agora aí estava o resultado!
«De certo modo», pensou Walter, «matei-a! Se ela acabar por morrer.» Tudo parecia revelar que ele tinha querido matá-la.
Walter mal tocou no almoço e sentou-se à secretária, tentando descodificar as notas que Dick elaborara sobre as entrevistas a Parson e Sullivan. Leu e releu as primeiras linhas, sentindo-se incapaz de verificar se tinha falhado algum pormenor ou se a sua mente estava apta a permitir-lhe compreender o significado das palavras existentes no documento. De repente agarrou no telefone e discou o número de Jon. Walter perguntou-lhe se o podia receber imediatamente no seu escritório.
-É alguma coisa relacionada com Clara?- perguntou Jon.
- Sim. - Walter não se apercebia de que o tom de voz o traía. Apenas Clara conseguia pô-lo naquele estado e Jon sabia-o.
Jon. tinha uísque guardado no escritório e ofereceu-o a Walter, mas este recusou.
- Clara está em coma no hospital. Talvez venha a morrer disse Walter. - Tomou soporíferos a noite passada. Todos os que havia lá em casa. Deve ter tomado para aí uns trinta. - Walter falou a Jon da conversa que ele e Clara tinham tido sobre a questão do divórcio, da ameaça de suicídio que Clara fizera e da sua saída de casa.
- Esta foi, porventura, a primeira vez que abordaram o problema do divórcio? - perguntou Jon.
- Não! - Alguns meses atrás, Walter contara a Jon que andava a pensar na possibilidade do divórcio, embora então não lhe tivesse dito que tinha falado no assunto com Clara.
- Ela ameaçou matar-se logo da primeira vez que lhe pedi o divórcio. Foi por isso que ontem não acreditei nela.
- E foi por isso que tu desististe da ideia da primeira vez? Só porque ela te fez essa ameaça?
- Acho que sim -- afirmou Walter. - Essa foi uma das razões.
- Eu sei. - Jon levantou-se e olhou através da janela. - Finalmente ganhaste um ponto, não foi? Aliás, tal como aconteceu ontem.
- Que é que queres dizer com isso?
-Ganhaste um ponto quando dizias: «Estou-me nas tintas para que ela se mate. Já me chega!»
Walter olhou fixamente para o tinteiro de metal amarelo colocado em cima da secretária de Jon, tinteiro que ele lhe tinha oferecido no primeiro aniversário da publicação da sua revista.
-Sim. É isso mesmo!-Walter cobriu a cara com as mãos.
- É como se fosse um assassínio, não é?
- Ninguém pode dizer que é um assassínio desconhecendo os factos. Não tens nada que andar para aí a falar no assunto a pessoas que desconhecem a realidade. Não massacres mais a cabeça com o facto de teres saído de casa.
- Está bem! - acedeu Walter.
- Talvez ela até consiga safar-se. Ela é rija, Walter.
Walter fitou o amigo. Jon sorria-lhe e Walter retribuiu-lhe do mesmo modo. Subitamente sentiu-se melhor.
- O problema real que agora se põe é o que é que vai acontecer quando ela acordar. Ainda queres o divórcio?
Walter fez um esforço para conseguir imaginar Clara novamente cheia de saúde. Tinha o espírito obcecado pelo remorso e sentia pena dela.
- Sim! - atalhou ele.
-Então vai em frente. Há vários modos de o conseguires, nem que tenhas de ir ao fim do mundo. Não te deixes controlar mais por essa fera.
Walter ressentiu-se com estas palavras e imaginou Jon controlado pelo amor que sentia pela mulher, quando esta teve uma ligação amorosa com um indivíduo chamado Brinton. Nessa altura, e durante dois meses a fio, Walter foi fazer companhia a Jon todas as noites, mas, finalmente, Jon conseguiu superar o problema e obteve o divórcio.
- Está bem! - respondeu Walter.
Nessa tarde, Walter passou pelo hospital, a caminho de casa. Clara tinha agora as unhas das mãos azuladas. O rosto estava ainda mais inchado. Mas o médico disse que ela estava a aguentar, embora Walter não estivesse muito ciente disso. Sentia que ela se estava a apagar.
Regressou a casa, decidido a tomar um banho bem quente, a barbear-se e a tentar comer qualquer coisa. Deixou-se dormir na banheira, coisa que nunca tinha acontecido. Só acordou quando Claudia o chamou para lhe dizer que o jantar estava quase pronto.
- É melhor ir descançar um bocado, Sr. Stackhouse, ou dá cabo de si - disse-lhe Claudia.
Walter dissera-lhe que Clara estava no hospital com uma gripe muito forte.
O telefone tocou quando ele estava a jantar e Walter correu para ele, pensando que era do hospital.
- Está? É o Sr. Stackhouse? Daqui fala Ellié Bríess. Já está curado da gripe?
- Oh, sim! Obrigado.
- A sua mulher gosta de bolbos? -Bolbos?!
- Bolbos de tulipa. Tenho cá mais de vinte. Acabei de jantar com uma das directoras da escola de Harridge e ela insistiu em que eu os trouxesse. Acontece que não tenho onde os pôr. São bolbos muito raros e achei que talvez vocês os pudessem aproveitar.
- Oh! Obrigado por se ter lembrado de nós.
- Posso ir levá-los aí agora, se estiverem em casa nos próximos vinte minutos.
- Está bem. Faça isso - disse Walter desajeitadamente.
Teve uma sensação estranha assim que pousou o telefone. Vieram-lhe à memória as acusações de Clara. Imaginou os lábios dela a moverem-se para o acusarem novamente. Era uma profecia mórbida.
Alguns minutos mais tarde, Ellie Briess estava à porta, com um pacote de cartão nas mãos.
- Aqui estão! Se está muito ocupado, não entro.
- Não estava a fazer nada. Faça favor de entrar. - Deixou-a passar. - Deseja tomar um café?
- Sim, obrigada. - Ela tirou um papel dobrado da carteira e colocou-o em cima da mesa. - Aqui tem as instruções para plantar os bolbos.
Walter olhou para ela. Parecia mais velha e mais sofisticada e, de repente, reparou que ela trajava um vestido negro, muito chique, e sapatos de salto alto, que a tornavam mais alta e esguia.
-Então sempre conseguiu arranjar o tal emprego em Harridge?
- Sim. Foi hoje. Foi por isso que fui jantar com o meu futuro patrão.
- Espero que ao menos ele seja simpático.
- É uma mulher, e por sinal até é muito simpática. Insistiu bastante em que eu trouxesse os bolbos.
- Os meus parabéns pelo seu novo emprego.
- Obrigada. - Ela sorriu-lhe abertamente. - Acho que me vou sentir lá muito bem.
Ela parecia feliz, a sua cara demonstrava-o. Walter sentiu desejo de a observar, mas ela olhava para o chão.
Claudia entrou com uma bandeja, com as chávenas de café e com um bolo de laranja que preparara especialmente para ele.
- Já conhece a menina Briess da festa, não é verdade, Claudia? Ellie, esta é a Claudia.
Trocaram cumprimentos e Walter reparou no prazer que Claudia sentiu em ser apresentada a Ellie. Geralmente não a apresentava às pessoas. Clara detestava isso.
- A sua mulher não está? - perguntou Ellie.
- Não, não está. - Walter serviu o café com todo o cuidado. Era um café forte e aromático, mais forte do que o costume, quando Clara estava em casa.
Ele foi buscar a garrafa de brande e dois cálices, depois sentou-se e, por momentos, apercebeu-se de que não tinha nada para dizer à rapariga. Tinha consciência de que uma profunda atracção o ligava a ela e isso fê-lo sentir-se envergonhado. Seria um interesse puramente sexual? Apeteceu-lhe deitar a cabeça no colo dela, sobre as meias que apareciam debaixo do seu vestido preto.
-A sua mulher trabalha muito, não trabalha? - perguntou Ellie.
- Sim. Quando trabalha, dedica-se de corpo e alma.
Walter fixou os olhos de Ellie. O belo e caloroso olhar, tão característico nela, mantinha-se. Não se tinha alterado nessa noite, como acontecera com o penteado e o vestuário. Walter hesitou e, depois disse: -Clara está com um ataque de gripe. Bem, é mais do que um simples ataque. Está no hospital.
- Oh! Lamento imenso.
Walter sentiu-se à beira de um colapso, não sabendo, contudo, o que aconteceria se tal se verificasse. Sentia-se desfalecer. Ficou indeciso sem saber se havia de estreitá-la nos braços, ou desaparecer definitivamente.
- Quer que eu ponha um disco a tocar?
-Não, obrigado. Não se incomode. - Ellie estava sentada. no topo do sofá. - Vou acabar de beber o brande e depois vou-me embora.
Walter olhou para ela, a agarrar na carteira e nas luvas, ao mesmo tempo que apagava o cigarro. Sentiu então que não a poderia reter por mais tempo. Seguiu-a até à porta.
- Obrigada por este delicioso café - disse ela.
-Espero que volte novamente. Onde é que vive?-Ele queria saber onde poderia encontrá-la.
- Em Nova Iorque! - replicou ela.
Walter sentiu o coração saltar-lhe do peito, como se ela lhe tivesse dado o número do telefone e lhe tivesse pedido que telefonasse. De qualquer modo, pelo menos já sabia que ela vivia em Nova Iorque. - Então agora vai fazer este percurso todos os dias?
- Sim. Acho que sim.-Ela sorriu, denotando de repente uma certa timidez. - Dê os meus cumprimentos à sua mulher. Boa noite.
- Boa noite. -Ficou à porta até que o barulho do motor do carro se esvanecesse.
Walter dirigiu-se ao hospital e permaneceu lá toda a noite, ora lendo, ora dormitando num dos bancos do corredor.
Na terça-feira à tarde, Walter recebeu um telefonema do hospital, no seu escritório. Aquela voz mecânica da enfermeira deixava transparecer uma certa boa disposição.
-A Sr.a Stackhouse saiu finalmente de coma, à cerca de quinze minutos.
- Vai ficar boa?
- Com certeza. Ficará óptima.
Walter desligou sem fazer mais perguntas. Apetecia-lhe subir pelas paredes, correr pela rua fora e gritar as boas novas a Dick, mas... Ele só lhe tinha dito que ela estava com gripe. Ninguém ficaria tão excitado só por ter recuperado de uma gripe. Walter esforçou-se por determinar o trabalho que tinha sobre a secretária. Fê-lo paciente e devotadamente, como um pecador que se sentia agradecido por ter sido salvo do Inferno, redimido dos seus pecados.
Quando Walter chegou ao hospital, a enfermeira comunicou-lhe que Clara estava a dormir, permitindo-lhe, no entanto, que a fosse ver: Os lábios dela estavam agora fechados. O médico dissera que ela se iria sentir bastante tonta durante uma semana ou duas, mas que poderia ir para casa no dia seguinte.
_ Gostaria de lhe dar uma palavrinha-disse o médico. -Pode chegar aqui ao meu gabinete?
Walter seguiu-o. Sabia já o que o médico lhe ia dizer.
_ A sua mulher vai necessitar de tratamento psiquiátrico durante os próximos tempos. Como deve saber, tomar uma dose excessiva de barbitúricos revela alienação. Além disso, o suicídio é considerado crime neste estado. Se ela não tivesse tido a sorte de ser tratada num hospital particular, teria certamente tido muito mais problemas com a lei do que teve.
- O que é que quer dizer com isso? Do que teve?
- Tivemos de comunicar a ocorrência, claro! Sendo eu o seu médico particular, sou, de certo modo, responsável. Gostava de ter a certeza de que ela irá ter tratamento psiquiátrico quando sair do hospital.
- Vou ter de a persuadir. Ela não gosta de psiquiatras.
- A mim não me interessa que ela goste deles ou não.
- Eu compreendo - disse Walter.
E foi assim que acabou a conversa. Walter telefonou então a Jon, para lhe dar a noticia.
Pouco depois das 10 horas, nessa mesma noite, Walter viu Clara a mexer-se. Tinha estado sentado à sua cabeceira. Inclinou-se, à espera de que ela se mostrasse ressentida por ele a ter abandonado naquela noite. Porém, ela não o fez; esboçou um leve sorriso e ele pensou que talvez ela estivesse demasiado tonta para o poder reconhecer.
- Walter! - A mão dela procurou-o através do lençol. Walter tocou-lhe com ternura, sentou-se à cabeceira da
cama e encostou a cara ao lençol que lhe cobria o peito. Sentia-lhe o corpo, quente e vivo. Teve a sensação de que nunca a tinha amado tão intensamente.
-Walter, nunca me abandones. Nunca o faças!-pediu ela num sussurro calmo e abafado. - Nunca me deixes!
- Não, querida!
Clara voltou para casa quinta-feira de manhã. Walter levou-a ao colo do carro até casa, pois ela tinha adormecido durante o percurso.
- É como se estivesses a transportar a noiva através da soleira da porta, não é? - disse Clara docemente enquanto atravessavam a porta.
- Sim. - Walter nunca o tinha feito. Clara tê-lo-ia mesmo achado demasiado sentimental quando casaram.
Claudia colocara flores do jardim por todo o quarto e Walter acabou por colocar ainda mais. Jeff tinha acabado de tomar banho e cumprimentou Clara com lambedelas e latidos, embora não tão entusiasticamente como Walter esperaria.
- Que tal te tens saído com o Jeff? - perguntou Clara.
- Eu e Jeff temo-nos dado muito bem. Queres sentar-te um bocado, ou ir já para a cama?
- Ambas as coisas! - disse ela rindo-se.
Ele retirou o roupão dela do armário, tirou os sapatos dos seus pés, sem meias, e pendurou o vestido que ela despira. Depois ajeitou-lhe as almofadas atrás das costas. Ela pediu uma limonada com muito açúcar. Walter desceu para ir prepará-la, uma vez que Claudia estava ocupada a fazer vickyssoise, um prato que Clara adorava e cuja receita era muito complicada.
- A quem é que falaste do caso? - inquiriu Clara quando ele voltou»
- Disse apenas ao Jon. A mais ninguém.
- E o que é que disseste para o meu emprego?
Walter mal se lembrava de eles terem telefonado. - Disse-lhes que estavas com gripe. Não te preocupes, querida. Ninguém precisa de saber a verdade.
- A Claudia disse-me que a Ellie Briess esteve cá ...
- Ela passou por aqui na segunda-feira à noite. Oh!, já me esquecia! Ela trouxe-te alguns bolbos de tulipa. Amanhã tens de os ver. Ela disse-me que são de uma qualidade rara.
- Claro que não te aborreceste enquanto estive internada no hospital!
- Oh, Clara, por favor!... -Estendeu-lhe a limonada. - Tens de beber muitos líquidos, foram ordens do médico.
- Eu tinha razão acerca de Ellie, não tinha?!
Walter achou que não se devia irritar. Mentalmente, ela ainda estava muito combalida. Não estava ainda no seu estado normal. Ele lembrou-se então de que, mesmo antes de tomar os comprimidos, ela também não estava muito bem. Tinha acabado de voltar à vida e retornava ao ponto de partida.
- Clara, amanhã falamos. Tu estás muito cansada hoje.
- Porque é que tu não admites que estás apaixonado por elis?
- Mas eu não estou! - Walter inclinara-se para a frente e abraçou-a. Parecia ironia do destino nunca ter sentido uma paixão e um desejo tão fortes por ela como acontecia agora. Por outro lado, a desconfiança dela em relação a ele era também agora mais forte do que nunca.
- Eu disse a Ellie que tu estavas doente. Ela telefonou ontem à noite a perguntar como estavas e eu disse-lhe que tu estavas bem.
- Isso deve ter-lhe agradado!
- Querida, hoje vou dormir no meu escritório. - Walter apertou-lhe o braço com carinho e ergueu-se. - Acho que descansarás melhor se dormires sozinha-acrescentou ele, a fim de evitar mal-entendidos.
Mas, apesar de tudo, pelo seu olhar espantado e ofendido, Walter percebeu que ela tinha dado outra interpretação às suas palavras.
Durante uma semana, Clara passou a maior parte do tempo na cama, dormitando. À noite, Walter costumava levá-la a dar pequenos passeios de carro e trazia-lhe bombons de chocolate do drugstore de Benedict. Betty Ireton veio visitá-la duas vezes. Todos pareciam acreditar na história que Walter tinha inventado, a de que Clara tinha tido um acesso grave de gripe. Finalmente recuperada, Clara pôde ir ao cinema, uma tarde, e no dia seguinte anunciou que voltaria ao serviço na próxima segundafeira. Tinham decorrido menos de duas semanas desde que voltara do hospital. Na mesma tarde de sexta-feira, a mãe de Clara telefonou de Harrisburg.
Walter ouviu a frieza com que Clara saudou a mãe; após a longa pausa que se seguiu à insistência da mãe para que ela a fosse visitar, Clara disse secamente:
- Bem, se não estás assim tão mal, que é que eu vou aí fazer? Sabes perfeitamente que tenho o meu emprego. Não posso abandoná-lo só por um capricho teu.
Walter levantou-se, inquieto, e desligou o rádio. A mãe dela não estava nada bem e ele sabia-o. Ela já tivera dois ataques. Como é que Clara podia ser tão impiedosa com a fraqueza dos outros, quando ela própria tinha estado às portas da morte há doze dias?
- Mãe, eu depois escrevo-te. Senão vais pagar imenso por esta chamada... Sim, mãe. Eu prometo.
De súbito, Walter lembrou-se dos bolbos de tulipa que Ellie tinha trazido.
Clara voltou-se, suspirando. - Ela é o máximo! É de mais!
- Depreendo que não vais lá. -Claro que não!
- Acho que um mês fora iria fazer-te bem. Irias descansar, e não...
- Sabes perfeitamente que eu não suporto estar ao pé da minha mãe.
Walter não insistiu mais. Tentava evitar arranjar problemas, para não a irritar, e este era certamente um deles.
- Diz lá então o que é que aconteceu aos bolbos de tulipa? A Claudia não tos mostrou? Eu pedi-lhe.
-Deitei-os fora!-disse Clara, recostando-se no sofá e pegando novamente no livro. Olhou para Walter numa atitude de desafio.
-Era preciso teres feito isso? - perguntou Walter.-Não te devias ter vingado nos pobres bolbos.
- Não queria as flores dela a enfeitar o meu jardim.
A raiva dele cresceu subitamente. - Clara, isso foi uma coisa muito estúpida da tua parte.
- Se quisermos tulipas, podemos comprar os nossos próprios bolbos-disse Clara.-É por isso que tu queres que eu vá para Harrisburg, não é? Queres que eu te deixe o caminho livre por uns tempos.
Walter esteve prestes a esbofeteá-la, o que nunca tinha-acontecido. - É revoltante o que estás a dizer! É degradante!
- Vai ter com ela! Telefona-lhe hoje à noite e vai visitá-la. Deves ter umas saudades terríveis dela, depois de tanto tempo!
Walter deu um passo em direcção a ela e agarrou-lhe o pulso. -Pára com isso, ouviste? És uma histérica!
- Vai passear!
Ele soltou-a e ela friccionou o pulso.
- Desculpa-me - disse Walter. - Às vezes tenho a impressão de que uma bofetada na cara seria o ideal- para te devolver a razão.
-Tratamento de choque!-disse ela ironicamente. - Estou no meu juízo perfeito e tu sabe-lo bem. Porque é que não dizes a verdade, Walter? Dormiste com ela enquanto eu estava internada no hospital, não foi?
Walter estava para dizer algo, mas conteve-se e saiu da sala.
Foi para a cozinha, desabotoando a camisa. Sob a luz ténue que vinha da sala, despiu-se e colocou as velhas roupas, que estavam penduradas no armário da cozinha, atrás das vassouras e dos panos de pó. Vestiu as velhas calças de manila, a camisa e o pulôver que costumava usar quando tratava do jardim. Descobriu os ténis debaixo do esfregão. Depois saiu de casa e entrou no automóvel.
Partiu em direcção a Benedict. Tremia, devido nomeadamente ao cansaço. Desde aquela noite de domingo em que ela tentara o suicídio ele sentia-se tenso e agora, que ela estava a pé novamente, as coisas não tinham melhorado. Que grande idiota tinha ele sido ao pensar que ainda se poderiam reconciliar!
Desviou-se do bar Three Brothers. Desejava ir a um bar onde nunca tivesse estado. Viu um local à beira da estrada, antes de chegar a Huntington.
Walter entrou no bar e pediu um uísque duplo com água. Deu uma vista de olhos pelas pessoas que estavam no bar: dois homens que pareciam camionistas; uma mulher com ar desleixado, que estava a ler uma revista, bebendo um licor de menta com aspecto repelente; um casal de meia-idade, de aparência muito ordinária, que estavam meio bêbedos e a discutir um com o outro. Walter fechou os olhos e escutou as palavras ocas que provinham da música da juke box. Queria esquecer a sua identidade, esquecer tudo aquilo em que tinha estado a pensar nessa noite. Quando se sentou ao balcão, olhou para as calças de manila que trazia vestidas, reparando que um dos botões estava desabotoado. Apertou-o à pressa e levantou-se do banco, reclinando-se sobre o balcão. As vozes exaltadas do homem e da mulher eram cada vez mais estridentes, abafando o som da música.
Ele aparentava 50 anos, com o rosto escanzelado por barbear. Ela era gorda e suja e era provável que estivessem casados aí há uns trinta anos. Sentiu inveja deles. As suas discussões eram tão simples... tão superficiais... Mesmo quando a cara do homem se crispou de ódio, este ódio era muito superficial. O homem levantou o braço e gesticulou como se lhe fosse bater, mas acabou por baixá-lo novamente.
Walter sentiu que aquilo lhe recordava algo, embora não tivesse a certeza do quê. Ele nunca batera em Clara. Levantou o copo e pousou-o vazio sobre o balcão. Veio-lhe à memória o assassínio da Sr.a Kimmel: o marido dela não parara de a agredir; tinha-a assassinado. Contudo, nada de concreto fora dito sobre o facto de o marido o ter feito e Walter lembrava-se disso perfeitamente, pelo menos assim o supunha. Era muito possível que o marido o tivesse feito, acercando-se da mulher, na paragem do autocarro, e persuadindo-a a dar uma volta com ele. Walter questionava-se sobre o que tinha sido já descoberto relativamente a este caso e se ele teria, eventualmente, perdido novas notícias sobre o crime nos jornais. Isso podia muito bem ter acontecido. Além disso, não era um caso que fosse muito propagandeado nos jornais. Teriam já descoberto o assassino? Pairaria alguma suspeita sobre o marido?
-Deseja outra bebida? - perguntou o empregado do bar, com a mão no copo de Walter.
-Não, obrigado - respondeu Walter.-Vou esperar um pouco mais.
Acendeu outro cigarro e continuou a olhar fixamente para as garrafas e copos colocados na primeira prateleira do bar. Melchior Kimmel era um livreiro, Walter lembrava-se de ter lido isto no jornal. «Haveria alguém capaz de identificar um assassino através de um simples olhar?», pensou Walter. «Claro que não! E seria alguém capaz de dizer que este ou aquele indivíduo era capaz de matar?» De repente ficou cheio de curiosidade sobre a personalidade de Melchior Kimmel. Apetecia-lhe ir a Newark para se certificar se aí existia uma livraria propriedade de Melchior Kimmel, ou se, caso ele existisse, se Walter poderia encontrar-se com ele.
Pagou a bebida, deixou gorjeta e saiu. Nessa noite, dormindo no escritório, Walter sonhou que tinha ido visitar Melchior Kimmel à livraria e que acabara por descobrir que este se tinha transformado numa das estátuas de pedra esculpidas nas colunatas que sustentavam uma das traves do telhado da loja. Walter reconheceu-o imediatamente e dirigiu-lhe a palavra, mas Kimmel ria-se apenas. A sua barriga de pedra abanava e ele recusou-se a responder às perguntas que Walter lhe fazia.
Já era sábado. Walter dormiu até cerca das 9 horas e, quando desceu as escadas, Claudia comunicou-lhe que Clara tinha saído.
- A Sr.a disse que ia às compras a Garden City e que não sabia a que horas voltava.
- Está bem, obrigado.
Por volta das 3 horas da tarde, Clara ainda não tinha voltado. Walter cortara a relva, aparara as sebes e acabara de ler um livro, que Dick lhe tinha emprestado, sobre o Código Penal de Nova Iorque. Sentia-se inquieto e bebeu uma cerveja, pensando que isso lhe traria o sono. Mas tal não aconteceu. Antes das 4 horas, Walter entrou no carro e partiu em direcção a Newark.
O nome, Melchior Kimmel, não constava da lista telefónica, mas existia uma livraria denominada Kimmel’s no n.º 313 da South Huron Street. Walter desconhecia por completo as ruas de Newark. Pediu informações ao empregado da tabacaria onde tinha consultado a lista telefónica. O homem informou-o de que a livraria ficava a cerca de dez quarteirões dali e indicou-lhe o caminho para lá chegar.
A loja ficava situada numa rua comercial, muito escura. Walter olhou automaticamente em busca das estátuas de pedra que, em sonhos, julgara existirem na parte fronteira da loja, mas foi em vão. Viu duas montras empoeiradas situadas na frontaria do edifício e, através da porta, descobriu as paredes cheias de livros, de ambos os lados. Parecia uma loja especializada em livros didácticos e livros em segunda mão. Walter estacionou o carro no outro lado da rua, desceu e aproximou-se cautelosamente da loja. Não viu ninguém lá dentro, a não ser um rapaz com óculos a ler um livro, encostado a uma das enormes mesas existentes no interior da loja. Havia uma pirâmide de compêndios de álgebra numa das montras e na outra um amontoado de romances populares, em lugar de destaque e com um letreiro no qual se podia ler, a letras vermelhas, «89 centimes». Walter entrou.
O local emanava um cheiro bafiento e adocicado. Estantes repletas de livros cobriam as quatro paredes, desde o chão até ao tecto. Existiam duas enormes mesas, excedendo metade do comprimento da loja, sobre as quais os livros estavam empilhados desordenadamente. Pendiam do tecto três lâmpadas sem globo e da parte de trás da loja vinha uma luz muito forte. Walter prosseguiu. Sob a luz brilhante proveniente dos fundos da loja Walter reparou num homem calvo, aparentando 40 anos, que estava sentado a uma secretária. Walter teve o pressentimento de que aquele era Melchior Kimmel, como se o tivesse reconhecido a partir de uma fotografia que ele já tinha visto algures.
O homem ergueu os olhos para Walter. Tinha uma enorme boca de lábios carnudos e muito rosados que pareciam estar extremamente inchados. Os seus olhinhos, escondidos atrás das lentes grossas, desprovidas de aros, seguiram momentaneamente Walter, à medida que este caminhava pela loja. Depois baixou novamente os olhos, olhando para os papéis que tinha na sua frente. Ao passar por ele (a loja estendia-se alguns metros para além da secretária e terminava em mais estantes de livros), Walter reparou que o corpo daquele homem era proporcionalmente avantajado e pesado em relação ao rosto. A curvatura das suas costas parecia uma montanha sob a camisa branca. Os poucos cabelos castanho-claros que ainda lhe restavam encaracolavam-se um pouco por cima das orelhas e caíam sobre a luzidia, rosada e grosseira nuca.
- Procura alguma coisa em especial? - perguntou o homem a Walter, fazendo rodar a cadeira e comprimindo as mãos sobre a secretária. Tinha o lábio inferior pendente.
- Não, obrigado. Importa-se que dê uma vista de olhos?
- Faça favor, esteja à vontade - afirmou ele, voltando a afundar-se nos papéis.
«Possui uma voz civilizada», pensou Walter, «nunca imaginaria que aquela voz correspondesse àquele corpo. Além do mais, tem uma expressão inteligente, apesar da sua fealdade.» Walter sentiu um ímpeto súbito. Aquele que ali estava na sua frente era apenas um homem cuja mulher fora assassinada, um homem sobre quem se tinha abatido uma grande tragédia. Parecia-lhe agora absurdo que alguma vez tivesse identificado o assassino da Sr.a Kimmel com o seu próprio marido. Se isso fosse.verdade, a polícia não teria já descoberto?
Walter olhou fixamente para uma prateleira com o seguinte letreiro: POESIA METAFÍSICA. Eram livros antigos, a maior parte dos quais pareciam ser didácticos. Olhou para a secção dos livros de direito e dirigiu-se para ela. Queria voltar a falar com o homem. Walter fixou a sua atenção numa fila de volumes dos Comentarias, de Blackstone, uma miscelânia de obras sobre delitos de natureza civil: New Jersey Civil Courts, 1938; New York State Bar Journal, 1945; American Law Reports, 1933, e The Weigth of Evidence, de Moor. Walter recuou até ao local onde o homem trabalhava à secretária.
- Por acaso têm um livro cujo título é Homens que Forçam a Interpretação da Lei? - perguntou Walter. - Tenho a certeza de que é este o título, não estou é muito certo do nome do autor. Acho que é Robert Miles.
- Homens que Forçam a Interpretação da Lei? - repetiu o homem, erguendo-se. De que ano é a publicação?
- O livro deve ter saído para aí há uns quinze anos, penso eu. O homem deteve-se em frente da estante dos livros de direito
e apontou um foco de luz duma lanterna aos títulos, percorrendo-os rapidamente. Deitou depois abaixo a fila dianteira de livros, com o auxílio do antebraço, e deu uma vista de olhos pelos volumes colocados na parte de trás. A estante estava iluminada e ele não teria necessidade de acender a lanterna para examinar os livros da frente. Walter calculou que o homem devia ver com dificuldade. A lâmpada colocada por cima da secretária era extremamente forte.
- O autor do livro não seria Marvin Cudahy?
Walter conhecia esse nome, mas ficou surpreendido por Kimmel o conhecer. Marvin Cudahy era um juiz reformado, de Chicago, que escrevera uma série de livros pouco conhecidos sobre a ética da lei.
- Tenho a certeza absoluta que o autor não é Cudahy - disse Walter. - Como já disse, não tenho a certeza do nome do autor. Sei apenas o título.
O homem baixou os olhos para Walter, devido à sua superior estatura, e este pressentiu, ou, pelo menos, imaginou, uma força particular que emanava daquele olhar perscrutador. Sentiu-se inspeccionado e isso confundiu-o, irritou-o até. Foi então levado a observá-lo desde os pequenos olhos castanho-claros até à sua camisa branca e limpa.
- Talvez consiga arranjá-lo - disse Kimmel. - Será uma questão de algumas semanas, quando muito. Quer deixar o seu nome para que eu possa depois informá-lo?
- Obrigado. - Walter seguiu o homem até à secretária. De repente sentiu uma certa relutância em revelar o seu nome, mas, quando notou que Kimmel aguardava com o lápis pousado na mesa, Walter decidiu-se e disse:-S-T-A-C-K-H-O-U-S-E! -Soletrou o nome pausadamente, como sempre fazia. - 49, Malborough Road, Benedict, Long Island.
- Long Island - murmurou Kimmel, escrevendo rapidamente.
- É o Sr. Melchior Kimmel, não é? - perguntou Walter.
- Sim! - Os olhos acastanhados, reduzidos a uma pequenez absurda devido às lentes extremamente grossas, ergueram-se e fixaram Walter.
- Estou-me agora a lembrar... A sua mulher morreu há pouco tempo, não foi?
- Sim, foi assassinada!
Walter agitou-se. -Não me recordo de ter lido nos jornais que o assassino já tenha sido descoberto...
- Não. A polícia continua a investigar.
Walter julgou ter detectado um certo tom de contrariedade na voz de Kimmel. Pareceu a Walter que o corpo do homem se tornara, de súbito, rígido. Walter não sabia como haveria de resolver a situação. Torceu as luvas entre as mãos, na expectativa de lhe ocorrer uma ideia para uma saída airosa.
-Porquê?! Conhecia a minha mulher? -perguntou Kimmel.
- Oh, não! Só me lembrei do nome por acaso.
- Compreendo - respondeu o homem, com o seu preciso e amável tom de voz. Não desviava os olhos do rosto de Walter.
Walter olhou para a mão direita de Kimmel, enorme e rechonchuda. A luz proveniente do candeeiro colocado sobre a secretária incidia sobre ela e Walter pôde verificar que a mão, para além de não ter pêlos, tinha a pele salpicada de sardas. Subitamente, Walter teve consciência de que Kimmel se apercebera de que ele tinha ido à livraria apenas para o conhecer, para satisfazer uma curiosidade sórdida. Agora, Kimmel sabia que ele vivia em Long Island. Kimmel estava ali muito perto dele. Um medo súbito apoderou-se de Walter. Temia que Kimmel erguesse a sua mão pesada e maciça como uma laje e a descarregasse sobre a sua cabeça, partindo-lhe o pescoço. .
- Espero que a polícia prenda o culpado.
- Obrigado - agradeceu Kimmel.
- Peço imensa desculpa por me ter intrometido deste modo disse Walter com acanhamento.
- Mas o senhor não se intrometeu! -replicou Kimmel num súbito acesso de cordialidade. Os lábios bojudos, com a forma de um coração obeso, horizontalmente fendido, moveram-se nervosamente.
- Obrigado pelos seus votos sinceros.
Walter encaminhou-Se Para a porta principal e Kimmel seguiu-o de perto, delicadamente. Walter sentia-se, finalmente, mais à vontade. Poucos minutos antes, precisamente no momento em que Kimmel afirmara que ele não se tinha intrometido, Walter sentira que era realmente possível que Kimmel tivesse morto a mulher. Não era a sua brutalidade física, nem o seu olhar circunspecto; era a sua súbita e excessiva simpatia que parecia querer denunciá-lo. Ocorreu mesmo a Walter a ideia de que Kimmel tinha ficado descansado quando soube que ele apenas lhe desejava sorte na resolução do caso e, ao mesmo tempo, que Walter não era um detective. Já à porta, Walter voltou-se e, inadvertidamente, estendeu-lhe a mão.
Kimmel aceitou a mão que Walter lhe estendia e apertou-a num gesto surpreendentemente afável, ao mesmo tempo que fazia uma pequena vénia.
- Até à vista - despediu-se Walter. - E obrigado.
-Até à vista.
Walter atravessou a rua e dirigiu-se para o carro. Já dentro do automóvel, olhou para trás, para a loja, e viu Melchior Kimmel atrás do vidro da porta principal. Viu-o erguer o braço e passar levemente a mão sobre a cabeça calva. Era o gesto característico de alguém que se tenta descontrair após um período de tensão. Walter viu-o depois afastar-se calmamente para o interior da loja, com a cabeça erguida e os enormes braços levemente afastados do corpo avantajado.
Melchior Kimmel sentou-se à secretária e olhou fixamente para os papéis em desordem. «Mais um bisbilhoteiro», pensou ele. «Só que mais inteligente e mais bem vestido do que a maioria. Ou seria, eventualmente, um detective?» Os olhos minúsculos de Melchior Kimmel quase se fecharam à medida que ia recordando pormenorizadamente a conversa tida com Walter. «Não, não era possível; o homem tinha revelado demasiado à vontade e, além disso, o que é que ele tinha tentado descobrir? Nada!» Ele tinha tido a sensação de que o homem, na realidade, era advogado, embora não lhe tivesse dito que o era. Kimmel remexeu tudo à procura do bloco de apontamentos onde tinha tomado nota do nome do homem e do livro que ele pretendia. Arrancou a folha amarela e colocou-a na gaveta, onde costumava guardar as notas dos pedidos. Este gesto, como se fosse o despoletar de um mecanismo de gestos habituais, foi seguido de uma ordenação e seleccção de papéis, cartas e vários livros de apontamentos de todos os tamanhos nas várias secções da secretária. Parecia um trabalho tão complicado como o da organização de um quadro de distribuição. O seu corpo pesado balançava com os movimentos e, por breves minutos, a sua mente pareceu concentrar-se exclusivamente nos fortes braços e mãos. Antes de colocar um pequeno bloco de apontamentos castanho na secção apropriada abriu-o numa das folhas finais e desenhou um pequeno traço vertical, seguido da data e da seguinte inscrição: «Ver B-2489», que correspondia ao número de ordem da página seguinte, subtraindo uma unidade. Existiam agora na folha sete traços verticais, seguidos de datas e três outras datas com asteriscos. Os três asteriscos representavam detectives da polícia, homens que ele tinha conseguido identificar como agentes policiais e que, provavelmente, pensavam que não tinham sido reconhecidos. O resto correspondia meramente a clientes e Kimmel não lhes atribuía grande significado.
Bocejou e espreguiçou-se, arqueando sensivelmente as suas largas costas. Depois descontraiu-se e enconstou-se para trás na cadeira com o assento de couro. Fechou os olhos e deixou cair a cabeça sobre a sua queixada balofa. Contudo, não adormeceu. Desfrutava o prazer da deliciosa sensação dos músculos descontraídos e da lassidão que percorria suavemente o seu corpo, desde os braços até à ponta dos seus dedos, flácidos e cabeçudos. Tinha sido um sábado movimentado e extenuante.
Cerca das 9 horas, Walter chegou a casa. Tinha trazido uma dúzia de crisântemos brancos para oferecer a Clara. Esta estava sentada na sala de estar, examinando uma série de documentos da firma que tinha espalhado em cima do sofá.
- Olá! - disse ele. - Desculpa-me ter chegado atrasado para o jantar. Eu nem sequer sabia se te iria encontrar em casa ou não.
- Oh, não há problema.
- Toma. São para ti. - Walter estendeu-lhe a caixa de crisântemos.
Ela olhou para a caixa e depois para ele.
O sorriso de Walter desvaneceu-se. - Queres que te coloque as flores numa jarra? - A voz dele tornara-se subitamente áspera.
- Faz-me esse favor - pediu Clara friamente, como se as flores não tivessem para ela qualquer significado.
Na cozinha, Walter abriu a caixa e encheu uma jarra com água. Tinha até escrito um cartão: «Para a minha amada Clara.» Rasgou-o em pedaços e atirou-os para dentro da caixa das flores, já vazia.
- Então como é que estava a Ellie?-perguntou Clara quando ele voltou para a sala, trazendo as flores.
Walter não lhe respondeu. Colocou a jarra com as flores em cima da mesa de café, tirou um cigarro da cigarreira e acendeu-o.
- Porque é que não vais passar o resto do serão com ela? «Era até uma esplêndida ideia!», pensou Walter. Porém, manteve-se calado, com os dentes cerrados. Voltou à cozinha, lavou as mãos e a cara com sabão no lava-louça e limpou-se a uma toalha de papel. Depois passou pelo hall, dirigindo-se para a porta. Quando saiu, Clara disse qualquer coisa.
Na Three Brothers Tavern, Walter deu uma vista de olhos pela sala, na expectativa de encontrar Bill ou Joel. Gostaria de tomar um copo com eles. Não conhecia ninguém. Acenou ao empregado do balcão, Ben, e saiu, dirigindo-se à Central Telefónica de Manhattan. Procurou o número do telefone de Ellie Briess. Na lista descobriu uma Ellie Briess e uma Elspeth Briess. A morada desta última pareceu-lhe a certa. Walter pediu a chamada. A telefonista disse-lhe que o número tinha sido alterado e deu-lhe um outro número, correspondente à zona de Lennert, em Long Island.
Ellie atendeu o telefone, dizendo-lhe que se tinha mudado nesse mesmo dia.
-Já tem programa para hoje? - perguntou ele. - Já jantou?
- Nem sequer pensei nisso. Hoje tive de ficar na escola até às quatro e os homens da mudança deixaram tudo amontoado no meio do chio. Peço imensa desculpa, mas acho que não vou aceitar o seu convite para jantar.
Apesar da sua recusa, a sua voz soou tão agradável que Walter sorriu.
- Talvez eu a possa ajudar -disse ele.- Posso dar aí um salto? Não estou muito longe.
- Bem... Se não se importar com a confusão que para aqui vai!...
- Qual é a morada?
-Brooklyn Street, 187. A campainha da porta fica situada debaixo do letreiro MAYS - M-A-Y-S.
Ele tocou a campainha e, quando ela carregou no trinco eléctrico, ele empurrou a porta e subiu as escadas de dois em dois degraus. Segurava uma garrafa de champanhe debaixo de um dos braços, como se fosse uma bola defutebol. No outro transportava um saco de papel contendo comida pré-preparada.
Ellie esperava-o à porta do seu apartamento, no segundo andar. - Olá! - disse ela. Seja bem-vindo!
Ao chegar junto dela, Walter ficou paralisado. Depois, mostrando o saco de papel, disse:-Trouxe umas sanduíches.
-Obrigada. Entre! Duvido é que encontre um sítio para se sentar.
Ele entrou. Era uma sala ampla, com duas janelas que davam para a rua e ao fundo ficava um pequeno hall que dava acesso à cozinha e à casa de banho. Walter deu uma vista de olhos pela sala em desordem, onde as malas e os cartões se misturavam. Existiam duas caixas de violinos. Um mais antigo e outro com aspecto de novo. Seguiu-a até à cozinha.
- Também trouxe isto - disse ele, entregando-lhe a garrafa de champanhe. - Não está fresco, parece que a câmara frigorífica da loja de bebidas de Benedict estava avariada.
-Champanhe?! Para comemorar o quê?
- O novo apartamento!
Ela segurou na garrafa, como se na realidade gostasse de champanhe. Não havia nada à mão que pudesse servir de balde de gelo. Ellie tirou uma toalha de uma das embalagens de cartão que estavam na sala e embrulhou nela a garrafa, juntamente com duas covetes de gelo.
- E que tal um uísque enquanto esperamos por isto? - perguntou ela.
-Óptimo!
- E uma sanduíche? Trouxe coisas tão apetitosas. Sanduíches de peru... E o que é isto?
- Trufas.
- Trufas! -repetiu ela.
- Gosta disto? -Adoro!
Ellie desembrulhou alguns pratos que estavam acondicionados em papel de jornal. Trajava saia e blusa, calçava mocasins e nlo tinha pintura.
- Estou satisfeita por ter companhia. Não gosto de arrumar ou desarrumar as coisas sem tomar uma bebida e beber sozinha deprime-me.
- Lá por isso, ajudo-a a beber e a desempacotar as coisas. Quer que a ajude nalguma destas coisas?
- Esqueçamos isso por agora. - Ela ofereceu-lhe um prato e ele retirou uma sanduíche.
Levaram os pratos e as bebidas para a sala e, uma-vez que não havia mesa, colocaram os pratos no chão.
Ellie olhou para a pilha de livros sobre música e perguntou:
- Gosta de Scarlatti?
- Sim. Ao piano. Tenho alguns...
- Óptimo. Eu toco Scarlatti ao violino.
Walter sorriu. Pôs as malas no chão e sentaram-se ambos no sofá. Ficou com a sensação de que já ali estivera várias vezes e que, depois de terem terminado as bebidas, fariam amor, como já teria acontecido frequentes vezes. Ellie falava-lhe de uma mulher que vivia em Nova Iorque, Irma Gartner, a qual iria sentir muito a sua falta, pois Ellie ajudava-a a trocar os livros de música, na biblioteca, quinzenalmente. Irma Gartner era coxa, com cerca de 65 anos e tocava violino.
- Ela ainda é uma boa executante - afirmou Ellie. - Não fora o facto de ser mulher, e teria certamente conseguido arranjar lugar numa dessas orquestras de cordas que tocam nos restaurantes ou nos mais diversos locais. Porém, ninguém contrata uma mulher daquela idade. É péssimo, não é?
Walter tentou imaginar Clara ligada a alguém que visitasse sem ser por amizade ou compaixão; mas isso era impossível. Sob a blusa branca, os ombros de Ellie pareciam-lhe extremamente suaves e ele desejava ardentemente abraçá-la. E se o fizesse? Ela tanto podia corresponder como não. E se ela reagisse friamente? Então seria a sua última oportunidade. Walter pensou: «Se não posso abraçá-la, também não estou para me torturar em vê-la novamente.» Pôs o braço nas costas do sofá e, pouco a pouco, fê-lo deslizar até o colocar à volta dos ombros dela. Ellie ergueu os olhos e depois encostou a cabeça no ombro dele. Walter sentiu então uma onda de desejo percorrer-lhe todo o corpo, como acontecia quando bebia. Voltando a cabeça, ficaram frente a frente e beijaram-se. Foi um longo beijo. De repente, porém,-ela afastou-se dele e levantou-se.
A meio da sala, Ellie voltou-se para trás e olhou para ele, com um largo sorriso de constrangimento estampado no rosto. «Até onde conduziria tudo isto?
Walter acercou-se dela, mas, vendo que Ellie parecia ter ficado assustada ou, pelo menos, incomodada, deteve-se.
Ela dirigiu-se calmamente para a cozinha.
O corpo de Ellie, sob aquela blusa e saia, parecia-lhe muito jovem e fresco; jovem pela sua aparência indiferente. Ela apalpou a garrafa de champanhe.
- Com um pouco de gelo, acho que isto fica bom - disse ela.
- Importas-te que eu ponha um pouco de gelo no copo?
-Não!
Ellie voltou a dirigir-lhe aquele olhar tímido e excitante.
- Não estou suficientemente chique para beber champanhe. Importas-te de esperar dez minutos? Aqui estão os copos. Desculpa lá, mas eu só tenho estes copos antiquados. - Ela estendeu-lhos e dirigiu-se à sala para ir buscar qualquer peça de roupa branca às malas. Depois desapareceu através da porta da casa de banho.
Walter ouviu então a água do chuveiro a correr. Colocou o gelo dentro dos copos, agarrou na garrafa de champanhe e pôs tudo em cima da tampa de uma das malas. A água continuou a correr durante bastante tempo e ele decidiu servir-se de outro uísque, mas acabou por desistir da ideia.
Ellie apareceu com um roupão branco, grosso, e descalça.
- Tenho de ir vestir o meu melhor vestido - disse ela, olhando para uma das malas.
- Não vistas nada! - O roupão era de veludo e Walter pensou de repente: «Clara detesta o veludo.»
- Gostaria que tirasses o roupão - disse ele.
Ellie ignorou por completo o pedido, o que para Walter foi a reacção mais excitante que ela poderia ter tido.
- Abre a garrafa. - Ela sentou-se no chão, ao lado da mala, e encostou-se ao sofá.
Walter tirou a rolha à garrafa e serviu o champanhe. Beberam em silêncio. Ele tinha desligado a luz do tecto e a única claridade existente provinha da luz da cozinha. Ela tinha uns pés amorosos, macios, pequeninos e bronzeados, como as pernas. Não condiziam com as mãos. Walter serviu mais champanhe.
- Não é nada mau, pois não?
- Nada mau - replicou ela.
Ellie inclinou a cabeça para trás, encostando-a ao sofá. - É maravilhoso, há certas alturas em que gosto da confusão. Esta noite é uma delas.
Ele levantou-se e estendeu u cobertor verde no chão. - Não achas que o chão é muito duro? - perguntou Walter.
Ela deitou-se de barriga para baixo sobre o cobertor, com o queixo apoiado nos braços, e ergueu os olhos para ele. Walter sentou-se ao lado dela, no cobertor. O champanhe parecia nunca mais acabar, como o mito do cântaro.
-Porque não te despes? - perguntou-lhe Ellie.
Walter fê-lo, desapertando o cinto. Com os seios contra as mãos dele, macias como seda, Ellie sentiu uma sensação maravilhosa. Walter foi muito calmo e cuidadoso para não a magoar, uma vez que o chão, apesar do cobertor, continuava áspero. Ellie, porém, parecia nem se aperceber do facto e ele acabou por se esquecer desse pormenor. De súbito sentiu-se dominado pela razão, tentando imaginar se alguém já teria feito amor com ela tão delicadamente como ele. Tinha a impressão de já terem estado juntos muitas vezes e que o amor que os unia nunca diminuiria de intensidade ao longo das suas vidas. Clara era uma pálida imagem no meio de tudo aquilo.
Quis dizer-lhe: «Amo-te», mas acabou por não dizer nada.
Ela abriu os olhos e olhou para ele.
Walter serviu o resto do champanhe e acendeu um cigarro para compartilhar com ela.
- Sabes que horas são? - perguntou Ellie.
Irritou-o o facto de ainda ter o relógio posto. - São só cinco para as duas!
- Só?! -Ela levantou-se, dirigiu-se ao rádio e ligou-o, pondo a música baixinho. Depois voltou para junto dele e ajoelhou-se, beijando-lhe a testa.
Walter observou-a a vestir o roupão e de seguida vestiu-se rapidamente. Não queria lá passar a noite toda, apesar de sentir que ela o desejava.
- Quando é que te vejo outra vez? - perguntou ele.
Ela ergueu- os olhos para Walter e este deduziu, pelo seu olhar, que ela estava decepcionada pelo facto de ele se querer ir embora.
- Prefiro não fazer planos - argumentou ela.
- Posso fazer alguma coisa por ti? -Que queres dizer com isso?
- Se’ queres que te faça algum recado, por causa da mudança. Ellie riu-se. Estava encostada à estante, ainda vazia. Apesar de a luz ser muito ténue, Walter conseguiu distinguir o brilho dos seus olhos azuis, que sorriam como se ela estivesse apaixonada por ele.
- Se calhar acabo por nunca pôr isto em ordem. Como já te disse, gosto da confusão.
Ele dirigiu-se a ela, caminhando devagar. - Depois telefono-te.
- Que simpático! - disse ela.
Walter, sorrindo, pegou-lhe nas mãos e atraiu-a a si. Beijaram-se e poderia ter começado tudo de novo. Contudo, ele abriu a porta.
- Boa noite - disse ele, saindo.
Ao descer as escadas, sentiu-se descontraído e rejuvenescido, como se cada uma das células do seu corpo se tivessem alterado. Estava feliz.
Ao entrar no quarto, acordou Clara.
- Onde é que estiveste? - perguntou ela ensonada.
- Estive a tomar uns copos com Bill Ireton. - Não se importava que ela descobrisse a mentira. Assim como não se importava que ela descobrisse que ele tinha estado com Ellie.
Clara voltou a adormecer, sem dizer mais nada.
Segunda-feira de manhã, Walter telefonou a Ellie, perguntando-lhe se ela podia jantar com ele. Pensava dizer a Clara que tinha um encontro marcado com Jon em Nova Iorque. Não voltaria a casa depois do emprego. Ellie, porém, disse-lhe que nessa noite teria de estudar violino, o que era uma necessidade absoluta, pois teria de fazer a selecção para um novo grupo de música nas suas aulas. Walter achou-a muito fria. Sentia que ela tinha decidido quebrar a relação e que talvez nunca mais o quisesse ver.
Na segunda-feira, durante o almoço, Walter dirigiu-se à Biblioteca Pública, em busca do artigo sobre o caso Kimmel, no jornal de Newark do mês de Agosto. Encontrou uma fotografia do corpo, tirada no local do crime. A mulher tinha um aspecto atarracado e escuro, mas, como tinha o rosto voltado, Walter não conseguiu ver mais nada, a não ser o vestido manchado de sangue. O corpo estava meio tapado por um cobertor. Walter estava curioso para ver se descobria alguma referência ao alibi de Kimmel, mas a única coisa que conseguiu descobrir foi um relato, várias vezes repetido: «Melchior Kimmel declarou encontrar-se em Newark, na noite do crime, tendo ido a uma sessão de cinema, entre as 8 e as 10.» Walter presumia que ele possuísse alguém que testemunhasse a seu favor e que isso nunca tivesse sido posto em causa.
Apesar de tudo, o assassino não tinha sido ainda descoberto. Walter leu e releu os jornais de Newark, publicados nos dias que se seguiram ao assassínio. Não havia qualquer alusão a possíveis pistas. Walter saiu da Biblioteca furioso e extremamente frustrado.
- Tenho de me encontrar contigo - disse Walter. - Nem que seja apenas por alguns minutos.
Ellie acabou por concordar.
Walter dirigiu-se o mais rapidamente possível para Lennert. Eram apenas 7 horas. Clara saíra para jantar com os Philpotts, de acordo com as palavras de Claudia. Ele esperava que Ellie estivesse livre toda a noite. Ouviu o som do violino, no passeio, por debaixo da varanda. Decidiu esperar até que ela tivesse tocado os mesmos acordes uma série de vezes. Depois tocaria à porta. Ouviu-a então dar o último acorde. O trinco da porta abriu-se.
Mais uma vez, Ellie esperava-o à porta do seu apartamento.
Walter começou a beijá-la, mas ela disse-lhe: - Importas-te de irmos dar uma volta?
- Claro que não!
O apartamento estava completamente modificado. Havia um tapete cor-de-rosa no chão, alguns quadros pendurados na parede e os livros estavam já arrumados na estante. Só a pilha de livros de música, com a obra de Scarlatti no topo, permanecia no mesmo local, como que a lembrar-lhe aquela noite. Ellie saiu do quarto com o casaco na mão.
Walter decidira levá-la à pousada Old Millhouse, perto de Huntington, pois não lhe apetecia encontrar ninguém conhecido. Durante o percurso, ela falou da escola. Walter sentiu que Ellie estava a milhas de distância dele e que não tinha sentido a sua falta.
Pediram dois martinis. Walter teria preferido ficar no reservado, mas esse local estava ocupado por um grupo barulhento de homens. Seria uma reunião de confraternização ou uma festa só para homens? Falavam e riam tão alto que eles conseguiam ouvi-los no local onde se tinham sentado. Ellie tinha-se calado. Parecia estar acanhada.
- Amo-te, Ellie - confessou ele.
- Ai isso é que não amas. Eu é que te amo!
As suas palavras atingiram-no em cheio. Sentia-se um adolescente apaixonado.
- Porque é que dizes que eu não te amo?
- Porque eu o sinto. Nunca mais farei o que fiz naquela noite enquanto não tiver a certeza de que me amas realmente. Talvez o tivesse feito para te demonstrar como sou forte.
-Oh, Ellie!-exclamou ele, franzindo o sobrolho.-É tudo tão complicado... Tem um certo sabor a russo...
-Bem, tenho uma costela russa.-Ela sorriu e prosseguiu:
- Posso ser franca contigo? Tu não me amas. Tu sentiste-te foi atraído por mim porque sou diferente da tua mulher. Como tinhas problemas com ela, vieste ter comigo. Não será esta a verdade? - Ela falou tão suavemente que ele se sentiu obrigado a continuar’ a ouvi-la. - Mas eu não sou tão indiscreta que chegue ao ponto de manter uma relação amorosa com um homem casado, mesmo estando apaixonada por ele.
- Ellie, podia fazer de ti a mulher mais feliz do mundo. Eu amo-te sinceramente!
- Só me pergunto é o que é que tu vais fazer agora. Eu não faço a menor ideia. - A sua voz não demonstrava qualquer sinal de ressentimento. Dera a sua opinião como se fosse uma simples verificação da realidade.
- Porque é que dizes isso?
- Bem, eu não te sei dizer os porquês... Talvez esteja errada. A seriedade dela punha-o estupefacto. Apercebeu-se então de que realmente não tinha qualquer plano, nem qualquer solução vinda de si próprio, ou talvez até tudo aquilo não passasse duma simples emoção. Analisou-se com objectividade, tal como ela o devia ter analisado, e sentiu-se envergonhado.
- Eu não te conheço bem, mas, mesmo assim, acho que te conheço o suficiente para te amar - afirmou Ellie. - Essencialmente acho que és uma pessoa decente, com personalidade. Acho que me apaixonei por ti a primeira vez que te vi.
Walter perguntava a si próprio se se teria passado o mesmo com ele. Aquela noite da festa ...
- Eu não tive uma vida muito regalada - prosseguiu ela. - O meu pai bebia. Morreu quando eu tinha apenas dezasseis anos. Eu tive de sustentar a minha mãe, já que o meu irmão é quase tão falhado como era o meu pai. A minha mãe deu-me o nome de Elspeth por ele o achar um nome bonito. Penso que foi a única batalha que a minha mãe deixou o meu pai ganhar. A única coisa que me preencheu foi a música. Já tive duas paixões, embora sem importância; nada parecido com o que sinto agora. Fez um sorriso agaiatado, mais jovial do que a sua voz. - Gosto de coisas concretas. Ambiciono ter um lar e filhos.
- Também eu! - atalhou Walter.
- E com um homem que eu pudesse considerar um modelo. Quero uma situação definida. Havias logo de ser tu a saíres-me na rifa!
- Compreendo perfeitamente o que estás a dizer. - Walter baixou os olhos e examinou a mesa de madeira acastanhada.
- Nunca te disse que tencionava pedir o divórcio à minha mulher nos tempos mais próximos. É claro que a nossa relação não vai nada bem. A situação é óbvia para quem vá lá a casa. Gostaria de me divorciar logo que seja possível. - Estava a ser sincero, mas desejaria ele casar com Ellie? Achava que ainda era cedo de mais para responder a essa pergunta e talvez fosse isso que o impedia de prosseguir.
- Quando? - perguntou ela.
- É só uma questão de semanas. Então, se ainda gostarmos um do outro... Se ainda nos amarmos...
- Daqui a umas semanas continuarei a amar-te. Como vês, és tu quem duvida. - Ela acendeu um cigarro. - Acho que é melhor não nos encontrarmos mais até que tu tenhas realmente a certeza do que sentes por mim.
-Que te amo? -Do divórcio.
- Está bem - acedeu Walter.
- Amo-te tanto... Consegues perceber isso? Eu não te devia dizer isto, ou devia? Até o simples facto de estar junto de ti me põe louca. Eis aqui o meu retrato psicológico..Uma coisa é certa, nunca me verás a rondar a tua rua.
Ele olhou pensativamente para o isqueiro.
- Agora importas-te que eu vá para casa? Não tenho mais nada a dizer.
-Está bem-disse Walter, procurando descobrir o empregado para pagar.
Quando saíram, os homens continuavam na folia.
Eram apenas 9.15, quando .Walter chegou a casa. Mas Clara já estava deitada, a ler. Walter perguntou-lhe como tinha decorrido o serão com os Philpotts.
-Nem sequer os vi-disse Clara no mesmo tom monocórdico que costumava usar quando iniciava uma discussão.
Walter olhou para ela: - Mas afinal não foste?
- Esta noite vi o teu carro estacionado à frente da casa de Ellie Briess.
- Pelo menos agora já sabes onde ela vive!
- Bem me dei ao trabalho de o descobrir.
Walter sabia que ela devia ter sido muito paciente, uma vez que, nessa noite, ele não tinha estado no apartamento de Ellie, mais do que cinco minutos.
- O que é que tencionas fazer? Porque é que não pedes o divórcio por adultério? - perguntou Walter, abrindo cuidadosamente um novo maço de cigarros. Contudo, o seu coração pulsava de temor. Era a primeira vez que se sentia realmente culpado das acusações que ela lhe imputava.
- Não o faço porque acho que isso é passageiro - disse Clara. Estava deitada sobre a almofada, mas a sua cabeça e ombros estavam rígidos e tinha a boca cerrada. De repente pareceu-lhe muito mais velha. Ela estendeu-lhe um braço.
- Querido, vem cá - pediu ela num tom que soou hediondo aos ouvidos de Walter, devido à sua falsa afectividade. Ele sabia que Clara queria que ele a beijasse e que fosse mesmo além... Isso já acontecera uma série de vezes desde que ela saíra do hospital. De dia amaldiçoava-o e acusava-o e à noite tentava compor as coisas, fazendo amor com ele, na intenção de o atrair e reter junto de si. Da primeira vez, Walter apercebera-se de que ela tinha feito amor com ele por obrigação e isso revoltou-o.
-Vamos resolver isto agora? Eu quero. Não posso esperar mais tempo.
- Resolver o quê?
- Eu quero o divórcio, Clara. Desta vez não to estou a pedir. Estou a pôr-te a par da minha intenção. E não é pela Ellie, também te digo isso.
- Há seis semanas disseste que me amavas...
- Isso foi um erro da minha parte.
- Queres ter outro cadáver nas mãos?
- Não estou para fazer de tua ama-seca o resto da vida. Se não concordares com o divórcio, eu hei-de consegui-lo nem que vá ao fim do mundo.
- Ao fim do mundo? - repetiu ela jocosamente.
Walter olhou fixamente para ela. Provavelmente Clara idío acreditava nele e isso era mau sinal.
Walter sentia que, de certo modo, Ellie o incitava, o levava a tomar uma decisão. Ela esperava-o não muito longe dali. Com o autocarro iluminado, ele conseguiu ver os passageiros a saírem, um a um. Lá estava Clara, com uma estola sobre os ombros, a descer os degraus. Walter aproximou-se rapidamente.
-Clara!
Ela não parecia ter ficado particularmente surpreendida por vê-lo ali.
- Tenho de falar contigo - disse ele. - Deixámos o quarto na mais completa das desarrumações.
Ela murmurou algo denotando relutância, mas acabou por segui-lo.
Ele acompanhou-a ao longo da rua. - Vamos até ali para podermos falar à vontade, sem que ninguém nos interrompa - disse ele.
Aproximaram-se do denso matagal que ele já tinha escolhido.
- Não nos devíamos afastar muito. O autocarro parte dentro de dez minutos - disse Clara num tom não muito ansioso.
Walter atirou-se a ela. Tinha as duas mãos apertadas à volta do seu pescoço. Arrastou-a para o meio dos arbustos, mas teve de empregar todas as suas forças, pois o corpo de Clara tornara-se exageradamente pesado, mais pesado até que o corpo de um homem. Ela tentava, a todo o custo, soltar-se e fugir para o meio dos arbustos. Walter puxou-a com violência. Mantinha as mãos comprimindo-lhe a garganta para que ela não gritasse. Clara começou então a sentir a garganta dorida e torcida como se fosse uma corda. Walter receou não ter coragem para a matar. De repente reparou que ela tinha deixado de se debater. Estava morta! Afastou as mãos do pescoço retorcido. Ergueu-se e cobriu-a com a estola que ela trazia. Jeff também lá estava, ladrando e saltitando, tão feliz como sempre, e, quando Walter abandonou o matagal, jef seguiu-o.
Ellie continuava à espera dele na rua, exactamente no mesmo local em que ela dissera ficar à espera. Walter acenou-lhe afirmativamente, como se isso fosse um sinal de que tudo tinha terminado. Ellie sorriu de alívio. Agarrou-lhe no braço e olhou para ele com admiração. Ia dizer-lhe qualquer coisa quando se deu uma explosão mesmo na sua frente. Parecia uma bomba, ou um choque de automóveis. Uma nuvem de fumo cinzento espalhou-se por todo o lado.
- A ponte caiu! -disse Walter. - Não podemos prosseguir!
Ellie, porém, continuou a andar. Ele tentou detê-la, mas ela avançou sozinha.
Walter deu por si com a cara virada para baixo, tentando erguer-se com o auxílio dos braços. Voltou a cabeça, estonteada e ecoante. «Seria Ellie que ali estava deitada?» Olhou para a cabeça e para o rosto de Clara, fixando-os. Estava deitada com a cara voltada para ele.
- Com o que é que estavas a sonhar? - perguntou ela com uma voz calma e atenta, como se já estivesse acordada há bastante tempo.
Walter sentiu-se transparente. - Com nada! Foi apenas um sonho mau.
- Sobre o quê?
- Sobre... Já não me lembro.
Walter voltou a afundar-se na cama e voltou a cabeça para o outro lado. «Teria falado alto?» Ficou rígido, à espera de que ela dissesse mais alguma coisa, e, como ela não o fez, ficou a ouvir o som da sua respiração, prenúncio de que estava a dormitar. Mas... nem isso chegou a ouvir. Sentiu as gotas de suor escorrerem-lhe pelas costas. Agarrou-se à madeira do estrado da cama, apertando-o com as mãos encharcadas em suor.
Walter telefonou a Ellie da Three Brothers Tavern. -Estás sozinha? - perguntou ele. Pareceu-lhe que ela estava acompanhada.
-Não, tenho cá uma pessoa amiga -disse ela suavemente. -Pete?
- Não, uma amiga minha.
Walter imaginou-a sentada ao telefone, no hall, de costas viradas para a sala.
- Queria dizer-te que no próximo sábado vou ao Reno. Vou estar ausente durante seis semanas. É a única maneira de conseguir o divórcio. - Esperava que ela dissesse alguma coisa, mas o silêncio foi a resposta. Walter sorriu.
- Como estás, querida?
-Estou bem.
- Tens pensado em mim?
-Sim.
- Amo-te - disse Walter. Por breves instantes ficaram em silêncio. *
- Se daqui a uns meses continuares a sentir o mesmo por mim, eu cá estarei.
- Claro que sentirei - disse Walter, e desligou. Clara encontrou-o à porta de casa.
- Ouviste alguma coisa sobre aquilo que se passou? Tive um desastre. Tenho o carro destruído!
Walter pôs a sua maleta na mesa do hall. Olhou para ela. Clara tremia. Ele não descobriu nela qualquer beliscadura. Pôs um braço à volta dos ombros dela e levou-a até ao sofá da sala. Era a primeira vez que lhe tocava desde há bastante tempo.
Ela contou-lhe que um camião tinha chocado contra ela, vindo de uma transversal, perto de Oyster Bay. Ela ia devagar, mas, como a estrada é muito arborizada, não viu o camião. Nem sequer conseguiu ouvir o som do motor, pois a viatura vinha em ponto morto, a descer uma rampa.
-O carro está no seguro-disse Walter, preparando-lhe uma bebida. - Ficou muito danificado?
-A parte da frente está toda amachucada, o carro quase capotou! - exclamou ela, repelindo as carícias de Jeff. Depois baixou-se e fez-lhe festas, denotando grande nervosismo.
Walter estendeu-lhe o brande.-Bebe isto. Vai-te acalmar.
- Mas eu não quero ficar calma! - gritou ela, levantando-se. Correu escada acima, com um lenço de papel no nariz.
Walter preparou um uísque sem gelo, com um pouco de soda, para ele. As mãos tremiam-lhe enquanto se servia. Imaginava qual o impacte que o acidente teria em Clara. Ela que sempre se orgulhara de nunca ter tido um acidente. Agarrou na bebida e subiu as escadas. Clara estava no quarto, meio reclinada sobre a cama. Continuava a chorar.
- Um acidente acontece a qualquer pessoa - disse ele. - Não te deixes abater por causa disso. Os Philpotts podem providenciar-te um carro com motorista, não podem? Seria melhor não conduzires durante umas semanas.
- Não precisas de fingir que estás preocupado comigo! Porque é que não sais esta noite e vais passar o serão com ela? Escusas de vir para casa aturar uma mulher que detestas!
Walter cerrou os dentes e voltou a sair do quarto, descendo depois as escadas. Ele sabia que Clara pensava que ele se encontrava com Ellie todas as noites que passava fora de casa. «Tinha de sair de vez. E era agora», pensou Walter. Mas a realidade era que se sentia dominado pelo medo de que Clara fizesse algum disparate, como, por exemplo, pegar fogo à casa, deixando-se consumir pelas chamas. Não lhe daria essa oportunidade. Ficaria de. atalaia. Neste caso, ele havia de se mostrar tão ansioso como ela.
Claudia entrou na sala e perguntou:
-O Sr. e a Sr.a Stackhouse estão prontos para o jantar?
Esta não era a forma habitual que Claudia usava para anunciar o jantar. Walter sabia que ela tinha ouvido Clara a gritar lá em cima. - Sim, Claudia. Eu vou chamá-la.
A campainha da porta tocou, estavam eles a tomar o pequeno almoço. Claudia estava na cozinha. Walter levantou-se. Era um telegrama para Clara. Teve um pressentimento de que era da mãe dela.
Clara leu-o rapidamente. - A minha mãe está a morrer - disse ela. - Este telegrama é do médico.
Walter pegou no telegrama. A mãe dela tinha tido outro ataque e não se esperava que ela sobrevivesse mais do que trinta e seis horas. - É melhor apanhares um avião - disse ele.
Clara empurrou a cadeira para trás e levantou-se. - Sabes perfeitamente que não gosto de voar.
Walter sabia isso muito bem. Clara tinha um medo terrível de voar.-Mas, pelo menos, vais!... -Walter seguiu-a até ao hall. Nessa manhã Clara tinha de sair muito cedo de casa para estar algures às 9 horas.
- Claro. Tenho de resolver alguns assuntos financeiros que ela deixou em aberto todos estes anos - disse Clara num tom aborrecido. Juntou alguns papéis que estavam em cima da mesa e guardou-os numa pasta de cartão que trazia sempre consigo.
-É uma chatice que o teu carro esteja avariado - disse Walter.
- Pois é. Torna tudo mais caro.
Walter sorriu. - Queres levar o meu carro?
- Tu vais precisar dele.
- Só para hoje e amanhã. No sábado não vou precisar dele. Na manhã de sábado iria de avião para Nevada.
- Fica lá com o teu carro - disse ela.
Walter pegou num cigarro. - A que horas pensas partir?
- Hoje, ao fim da tarde. Tenho uns assuntos para resolver no escritório que não podem ser adiados, mesmo sendo a minha mãe que está doente.
- Tentarei telefonar-te - disse Walter. - A que horas é que te posso apanhar em casa?
-Para quê?
-Para saber quando partes! Talvez te possa ajudar de alguma forma! - disse ele com impaciência. Walter sentia-se contrariado consigo próprio. «Porque raio havia de a ajudar?»
- Bem, já que queres, telefona-me por volta do meio-dia. Ela olhou através da janela e viu que o grande Packard dos Philpotts se aproximava. - É o Roger. Tenho de ir. Claudia! És capaz de me fazer o favor de colocar alguma roupa sobre a cama para eu depois fazer a mala? O meu vestido cinzento e o fato verde. Estarei de volta às três ou quatro horas. - Depois Clara partiu.
Walter telefonou a Clara, para o escritório, ao meio-dia. Ela disse-lhe que tinha decidido ir de camioneta e que partiria às
5.30 do terminal rodoviário da rua n.º 34.
- Camioneta!? -- exclamou Walter. - Vais ficar estafadíssima, Clara. Vais demorar uma série de horas.
- São só cinco horas até Harrisburg. O horário dos comboios não me convém. Tenho de ir, Walter. Vou almoçar a Locust Valley ao meio-dia e meia. Até à vista!
Walter pousou o telefone, irritado. Desapertou o colarinho e ouviu o botão dar um salto e cair no chão. «Devia lá ir para me despedir dela», pensou ele. Mas, ao mesmo tempo, revoltava-o a ideia de ter essa delicadeza com ela. Na realidade, o que ele queria era tirar a limpo algumas coisas que já tinha planeado perguntar-lhe antes de sábado. Por exemplo, o que iria ela fazer com a casa. A casa era dela, claro. Por outro lado, porque havia ele de se preocupar com o que ela iria fazer com a casa? Haveria, porventura, alguém tão auto-suficiente como ela? Apertou a gravata para ajustar o colarinho e deu uma penteadela nos cabelos. Depois telefonou a Joan, pois tinha umas cartas para despachar. Ela não respondeu e ele reparou, de súbito, que era a hora de almoço dela. Começou ele próprio a redigir as cartas. Joan chegou, entretanto, com dois sacos de papel.
- Trouxe-lhe qualquer coisa para o almoço-disse ela.-Acho que, se não fosse eu, não comia nada. É a minha boa acção de hoje.
- Bem, sendo assim, obrigado - disse Walter, surpreendido. Não era hábito em Joan ter para com ele atenções daquelas. Meteu as mãos nos bolsos, à procura da carteira.-Já agora deixe-me pagar.
- Não, senhor. É uma oferta minha. - Joan tirou de um dos sacos uma sanduíche e um recipiente com café e colocou-os em cima da secretária de Walter.
- Sr. Stackhouse, eu não sei ao certo o que aqui se está a passar entre o senhor e o Sr. Cross, mas queria dizer-lhe que, se está a pensar mudar-se ou ir trabalhar para outro escritório, eu gostaria que o senhor arranjasse as coisas de maneira a eu poder continuar ao seu serviço. Não há qualquer problema com o ordenado.
As palavras de Joan tocaram Walter profundamente. A gerência do escritório tinha concordado rapidamente de mais com o seu pedido de exoneração do seu cargo, dali a seis semanas. Walter tinha a ideia de que Cross o ia informar, num dos próximos dias, de que já tinha ouvido dizer que ele e Jensen planeavam abandonar a firma. Cross havia-lhe já dito, precisamente no dia anterior, que não estava satisfeito com o trabalho de Walter.-As coisas têm de mudar-disse Walter.- De facto, espero que isso aconteça. Se eu não voltar, Joan, manter-me-ei em contacto consigo.
-Óptimo.-O rosto arredondado de Joan deixou escapar um sorriso.
- Mas não diga nada a ninguém aqui do escritório, por favor.
- Oh! Pode estar descansado. E espero que tome cuidado consigo, Sr. Stackhouse.
Walter sorriu. - Obrigado.
Assim que Dick voltou, depois do almoço, Walter foi-lhe perguntar até que ponto Cross estaria a par dos seus planos. Dick disse-lhe apenas que Cross lhe havia confessado que não estava satisfeito com o trabalho de Walter e que lhe parecia que Walter tinha perdido todo o entusiasmo. Dick aconselhou Walter a recompor-se para poder apresentar um trabalho de valor nos últimos dias em que ainda permaneceriam na firma.
-Eu quero lá saber da opinião deles; se calhar não volto a pôr cá os pés - disse Walter.
Dick olhou para ele, franzindo o sobrolho.
Walter saiu e fechou a porta.
Às 5.15 já estava no terminal rodoviário. Descobriu imediatamente Clara num dos quiosques, a folhear os jornais. Tinha vestido o seu novo e elegante fato de tweed verde, que lhe assentava perfeitamente.
- Só mais uma coisa - disse ela, logo que ele se aproximou.
- O carro está pronto amanhã e fazes o favor de não pagar mais nada pelo trabalho dos cromados do pára-choques dianteiro. Isso foi logo incluído no primeiro orçamento, embora o gerente diga o contrário.
Walter agarrou na mala azul que Clara tinha trazido. Ela dirigiu-se a uma das janelas para fazer uma pergunta e Walter esperou, olhando para ela.
-Quanto tempo esperas ficar em Harrisburg? - perguntou ele quando ela voltou.
- Oh! Devo estar de volta no sábado, ou amanhã à noite. Ela ergueu os olhos para ele e fez-lhe um sorriso animado, embora Walter tivesse notado algumas lágrimas rebeldes nos seus olhos. Isso impressionou-o.
-E se ela morrer? - perguntou Walter. - Naturalmente vais ficar para o funeral.
- Não! - Clara inclinou-se, apoiando-se num dos saltos, para retirar um pedaço de papel que se tinha colado no salto do outro sapato. Para melhor se apoiar, estendeu automaticamente uma das mãos a Walter e ele agarrou-a.
Uma estranha sensação percorreu-lhe o corpo quando os dedos dela lhe tocaram. Era uma mistura de prazer, de aversão, de uma espécie de desespero e carinho que Walter tentou controlar logo que se apercebeu disso. Subitamente desejou abraçá-la e pegar-lhe na mão e depois afastá-la imediatamente.
- E isto?-disse ela, tirando um pedaço de papel dobrado do bolso do seu casaco. - Está aqui o nome de duas pessoas, a quem tinha de telefonar amanhã. Telefonas à Sr.a Philpott e dás-lhe estes números. Ela sabe o que tem a fazer. - Clara baixou os olhos como se fosse pegar numa das luvas e Walter viu uma lágrima cair sobre as luvas.
Observou-a atentamente, tentando descobrir se ela estava realmente preocupada com a mãe, ou se havia outra razão qualquer. - Telefona-me quando chegares. Telefona-me em qualquer altura.
-Então não estás ansioso por te veres livre de mim, pelo menos durante quarenta e oito horas? Com quem é que vais discutir agora? Porque é que não levas a Ellie contigo para o Reno? - Ela olhou para ele com rispidez, com um olhar demoníaco, soltando um sorriso forçado, como se o seu espírito de bruxa tivesse planeado tudo; como se ela soubesse que ele nunca mais estaria com Ellie, que ele nunca mais conseguiria ser feliz.
Walter seguiu-a, levando-lhe a mala, por entre as camionetas estacionadas. Apertou a pega da mala entre os dedos, como que a ganhar coragem para lha atirar à cabeça. Pousou a mala junto à outra bagagem que Clara levaria de Nova Iorque para Pittsburgh.
- Não pareces mesmo nada feliz - disse Clara num rompante. Walter olhou para ela com um sorriso amarelo nos lábios. «Se
eu a odiasse o suficiente...», pensou ele.
- Onde pára o teu autocarro? - perguntou ele subitamente.
- Parar? Não sei de nada. Provavelmente só em AUentown. Ela olhou à sua volta, mantendo ainda aquele sorriso gelado e demoníaco. - Acho que vou entrar.
Subiu os degraus da camioneta. Walter observou-a a caminhar entre os assentos, à procura do seu. Ela sentou-se na parte de trás, longe da janela. Olhou para fora sorrindo e acenou-lhe, em jeito de despedida. Walter ergueu a mão. Olhou para o relógio. Faltavam ainda cinco minutos para a camioneta partir. Voltou-se bruscamente e dirigiu-se à sala de espera. Apetecia-lhe uma bebida, mas passou pelo bar sem se deter.
Tinha estacionado o carro a alguns quarteirões a oeste do terminal rodoviário. Pôs o carro em andamento e curvou para leste. Havia um grande engarrafamento. Uma camioneta curvou e entrou na avenida, partindo em direcção ao sul. Walter não conseguiu distinguir se era a camioneta de Clara ou não. Calmamente, meteu o carro no meio daquele trânsito intenso e, sentindo-se novamente confuso, acendeu um cigarro. A camioneta com destino a Pittsburgh entrou na décima avenida passando por Walter e ele conseguiu vê-la de soslaio.
Quando o sinal vermelho caiu, Walter curvou à direita, seguindo a camioneta. Prosseguiu em direcção ao Túnel Holland, sempre no seu encalço.
«Vou parar em Newark, dar umas voltas por lá e depois volto para trás», pensou. Veio-lhe à ideia Melchior Kimmel. Talvez passasse pela livraria dele. Era possível que ainda estivesse aberta e que o livro já tivesse chegado.
Contudo, continuou no encalço da camioneta cinzenta, através das ruas de Newark. Ficou agitado quando se viu obrigado a parar num sinal vermelho e a camioneta desapareceu por uma das esquinas.
«Vou acender um cigarro e, logo que o acabe de fumar, volto para trás», pensou. Finalmente, a camioneta entrou numa das extensas ruas comerciais dos arredores da cidade e Walter colocou-se atrás dela.
«Em que é que Clara estará a pensar?», perguntou ele para com os seus botões. «Dinheiro?» Ela ia herdar perto de 50 000 dólares, depois de descontados os impostos, caso a mãe acabasse por morrer. Talvez isso lhe devolvesse o bom humor. «E ele e Ellie? Estaria Clara a chorar? Ou estaria ela entretida a ler o World-Telegram sem pensar em nada disto?» Imaginou-a a baixar o jornal e a inclinar a cabeça para trás, como às vezes fazia, para descansar um pouco os olhos. Entretanto, voltou a assaltá-lo a imagem dele a apertar-lhe o pescoço.
Seria necessária muita coragem para cometer um assassínio? Teria de se odiar muito? Odiaria ele o suficiente? Não bastava odiar. Ele sabia-o. Era necessário conjugar o ódio com outras forças interiores terríveis capazes de levar um indivíduo a cometer um acto daqueles. Para matar era necessário estar-se dominado pela loucura e Walter achava-se demasiado racional. Pelo menos por enquanto. Se, num daqueles momentos em que lhe apetecia espancá-la, a loucura surgisse, então era possível que ele conseguisse levar a cabo o crime. Mas... Ele sempre tinha sido demasiado racional. Mesmo agora, perseguindo a camioneta em que ela viajava, apesar de as condições serem as ideais, a razão sobrepunha-se ao sentimento. Era como se estivesse a viver o sonho que tivera algumas noites antes.
«Irei apenas até à primeira paragem», pensou Walter. Iria ter com ela e dir-lhe-ia, possivelmente, o que Melchior Kimmel dissera à mulher: «Clara, tenho de falar contigo. Anda daí.» Depois caminhariam um pouco e as palavras nada amistosas que haviam trocado no terminal rodoviário repetir-se-iam. De novo a mesma cena por causa de Ellie. Chamar-lhe-ia louco por se ter deslocado de tão longe e ele acompanhá-la-ia de volta até à camioneta, com os nervos à flor da pele, capaz de tudo. Involuntariamente, Walter carregou no acelerador e o carro partiu disparado. Carregou a fundo no travão e a velocidade diminuiu, detendo-se apenas quando o seu carro estava muito perto do carro da frente.
Tentou imaginar o que poderia acontecer caso se concretizassem os seus intentos; se o sonho se tornasse realidade. Primeiro não teria qualquer álibi. Por outro lado, havia o perigo de ser visto por alguém na paragem das camionetas. Se Clara o chamasse pelo seu nome, seria perfeitamente viável que as pessoas ouvissem e o identificassem.
Ellie desprezá-lo-ia!
Acelerou e ultrapassou a camioneta.
Veio-lhe à ideia o dia em que conhecera Clara, o dia em que almoçara em São Francisco com o seu colega de faculdade e amigo Hal Schepps. Hal aparecera com Clara. Mais tarde, Hal disse-lhe que tudo tinha sido um acaso, embora Walter pusesse isso em dúvida. Lembrava-se perfeitamente da forte sensação que ela lhe causara assim que a viu. Foi amor à primeira vista. Algum tempo depois, Clara confessara-lhe que o mesmo se tinha passado com ela. Walter lembrava-se ainda perfeitamente do estado de ansiedade em que vivera durante essa tarde, quando telefonou a Hal. Receava que Clara e Hal fossem comprometidos, ou estivessem apaixonados. Hal afirmou-lhe que não. «Mas tem cuidado», advertiu-o ele, «ela tem uma personalidade muito peculiar. É muito volúvel.» Apesar de tudo, ela tinha-se mostrado agradável e irresistível nas primeiras semanas. Contara-lhe que, antes dele, dois outros homens se tinham apaixonado por ela e que mantivera com cada um deles uma relação de cerca de um ano. Embora tivessem querido casar com ela, ela recusara. Clara confessara-lhe também a sua paixão por homens facilmente domináveis. Ela dizia sentir-se atraída por este tipo de homens, embora nunca pensasse em casar com eles. Estas confissões fizeram-no suspeitar de que ela o considerava o mais dominável de todos e a isso se teria devido o facto de ter acabado por casar com ele. Não era uma suspeita nada agradável.
Pequenas pedras de cascalho batiam contra o pára-brisas, produzindo um barulho semelhante a pequenas explosões, e Walter encolhia-se como que para se proteger. A camioneta rodava a grande velocidade e deixara-o para trás. O seu relógio marcava 5.40. Pô-lo ao ouvido e verificou que tinha parado. Com a mão esquerda acertou-o para as 7.05 e deu-lhe corda. Calculava que fossem essas horas. Haveria possivelmente uma paragem para descanso dentro de meia hora.
Surgiu uma lomba e depois uma curva. Walter viu-se obrigado a abrandar quando a camioneta entrou numa zona montanhosa. Ao longe, à sua esquerda, Walter descortinou as luzes de uma povoação. Não sabia onde se encontrava.
Ao chegar ao topo da montanha, a camioneta abrandou e Walter fez o mesmo. De repente viu a camioneta mesmo na sua frente, a curvar para a esquerda. Ficou numa tensão muito grande, pois pareceu-lhe que a camioneta continuava a andar e se ia despenhar por uma ribanceira abaixo. Na densa escuridão da noite, viu a camioneta a desaparecer.
Quando começou a descer a montanha, apercebeu-se de que a escuridão era intensificada pela sombra de um maciço de árvores que ladeavam a estrada e que a camioneta se encaminhava para uma zona com casas à beira da estrada. Após ter passado essa zona, Walter entrou na auto-estrada e desligou as luzes. Saiu do automóvel e começou a andar em sentido inverso, em direcção à zona habitada. A pequena área estava iluminada por um reclame luminoso, de luzes verdes e vermelhas intermitentes, sobre o restaurante. Tentou descobrir a pequena silhueta de Clara entre os passageiros que se apeavam da camioneta. Não a viu. Aproximou-se e olhou para dentro da camioneta. Ela já tinha saído.
Walter empurrou a porta envidraçada do restaurante e entrou, olhando de relance para as mesas e balcão. Não estava em parte alguma. Sentia-se como se estivesse a representar em pleno palco. Parecia uma representação absolutamente convincente. O marido ansioso em busca da mulher que tinha perseguido para lhe pôr termo à vida. As suas mãos estrangulá-la-iam em breve, mas... Ela não morreria; era tudo ficção e ele um pretenso assassino.
Dirigiu-se à porta da casa de banho das mulheres. Apenas desviou os olhos para olhar, através do vidro da porta, para um pequeno grupo de pessoas que iam a entrar. Os seus olhos desviaram-se depois para o longo balcão e, seguidamente^ para cada uma das mesas.
Saiu do restaurante e circundou a camioneta. Depois voltou a entrar e sentou-se num dos extremos do balcão, apenas a alguns metros da casa de banho das mulheres. Pelo relógio colocado em cima da porta acertou o seu. Eram 7.29. Ele não se tinha afastado por muito tempo.
-Quanto tempo dura esta paragem?-perguntou Walter a um homem que estava sentado ao balcão.
- Quinze minutos.
Walter deu alguns passos hesitantes até à porta. Subitamente voltou-se para trás. Calculava que tivessem decorrido sete minutos. A casa de banho era o sítio mais provável. Por outro lado, ele sabia perfeitamente que Clara não tinha o hábito de ir a casas de banho públicas, salvo as vezes em que era absolutamente imprescindível. Detestava-as. Walter olhou fixamente para a cara do homem que interrogara alguns minutos atrás. O homem voltou-se antes que ele lhe pudesse ver a cara. Walter encaminhou-se novamente para a porta principal. Havia uma parede espelhada, mas nem se atreveu a olhar-se! Descontraiu-se, desfranzindo as sobrancelhas, numa tentativa de descongestionar aquele ar tão carregado que tantas vezes intrigava as pessoas.
Dirigiu-se rapidamente para um grupo de pessoas que aguardavam à entrada da camioneta. Nem sinal de Clara. Pôs-se em bicos dos pés para poder observar o interior do veículo. Estava quase cheio. «Ter-se-ia enganado na camioneta?» Passou pela frente da viatura e lá estava o letreiro indicando: NEW YORK - PITTSBURGH. «Dar-se-ia o caso de haver duas camionetas para o mesmo destino, com o mesmo horário?»
Pôs as mãos dentro dos bolsos do casaco. Amachucou uma caixa de fósforos e atirou para o chão os pedaços desfeitos da mesma. Esperou, andando à volta do autocarro, calmamente.
Os quinze minutos estavam prestes a expirar. Ao voltar-se chocou com alguém.
- Peço imensa desculpa!
- Não tem importância - disse a mulher que ele tinha empurrado numa voz esganiçada.
De repente Walter sentiu-se alagado em suor. Viu o condutor da camioneta sair do restaurante. Já tinham entrado quase todos os passageiros. No meio da escuridão tentou descobrir qualquer sinal de Clara em ambos os lados da rua. Não era hábito ela dar passeios a pé. Olhou para o reclame luminoso da rua. O estabelecimento estava vazio. Por cima da porta, as luzes vermelhas e verdes anunciavam Harry’s Rainbow Grill.
A camioneta começou a trabalhar. Walter viu o condutor a caminhar entre os assentos, para contar os passageiros. Depois, já na parte da frente, parou e olhou para fora da camioneta.
- Estamos à espera de um passageiro - ouviu Walter dizer ao condutor.
Walter tinha a certeza de que o passageiro era Clara. Afundou as mãos nos bolsos e viu o condutor encaminhar-se para o restaurante, a resmungar. Depois viu-o sair novamente.
O condutor ajudou uma mulher baixa e gorda a subir para a camioneta.
- Por acaso reparou se ainda estava alguém na casa de banho das mulheres? - perguntou-lhe o condutor:
- Não vi ninguém - disse a mulher.
Walter foi colocar-se num sítio estratégico, de onde conseguia observar as duas faixas da auto-estrada, a porta do restaurante e a da camioneta. O barulho produzido pelo motor da camioneta aumentou de intensidade, fazendo estremecer o chão por debaixo dos pés de Walter. Ele viu a camioneta a recuar, parar e depois arrancar. Alguns metros à frente viu-a curvar e entrar na auto-estrada. Walter cerrou os dentes para não gritar. Dirigiu-se ao restaurante na intenção de forçar a porta da casa de banho das mulheres e gritar pelo seu nome. Porém, deteve-se. Abandonou o restaurante com uma expressão carregada e circunspecta.
A explicação plausível que conseguia dar ao caso era a de que ela tivesse, eventualmente, saído em Newark, num dos sinais vermelhos. Mas ela não teria conseguido sair com a mala numa dessas paragens tão breves. «Não seria ela o passageiro que o condutor esperava há pouco? Quem poderia ser senão Clara?» Na auto-estrada, Walter olhou em todas as direcções, não descobrindo ninguém. Então correu em direcção ao seu carro. Soube-lhe bem aquela breve corrida, apesar de ter caído quando se deteve. Ficou com as mãos arranhadas, embora não tivesse rasgado as calças. Quando tomou o caminho de regresso, continuou à procura dela, como um louco. Parou, olhando o vazio. Voltou a pôr o carro em andamento e partiu a toda a velocidade.
Walter chegou a casa pouco depois das 11. Estava tudo às escuras. Subiu as escadas e verificou que o quarto estava vazio. Desceu as escadas, ainda na esperança de encontrar a mala de Clara, ou qualquer outro sinal que revelasse a sua presença. Acendeu um cigarro e tentou manter-se sentado no sofá por breves momentos, enquanto aguardava um possível telefonema que explicasse todo aquele mistério. Porém, o telefone mantinha-se em silêncio.
Discou o número do telefone de Ellie. Não obteve qualquer resposta.
Walter decidiu então sair. Meteu-se no carro e partiu para Lennert. «Tenho de beber um brande!» Estava nervoso, tenso, sem saber bem porquê. Sentia-se culpado, como se a tivesse morto. Lembrava-se claramente dos momentos de ansiedade vividos enquanto esperava junto à camioneta. Via-se a caminhar ao lado de Clara, em direcção a um denso matagal, à beira da estrada. Abanou a cabeça involuntariamente como se estivesse a sofismar. Nada tinha acontecido. Disso estava seguro. Subitamente, a estrada começou a oscilar à sua frente e viu-se obrigado a travar bruscamente. O carro derrapou e as luzes dos faróis, incidindo no pavimento negro, encandearam-no. Apercebeu-se então de que estava a chover.
O apartamento de Ellie estava às escuras. Walter não viu o carro dela na rua nem no parque de estacionamento existente ao lado do edifício. Tocou a campainha, ainda esperançado. O silêncio foi a resposta.
Dirigiu-se a um bar, situado a alguns quarteirões dali, e pediu um Martel. Bebeu pausadamente e depois voltou a casa de Ellie. Continuava tudo às escuras e, tendo voltado a tocar a campainha, mais uma vez ninguém respondeu. Voltou para o bar.
- Algum problema? - perguntou o empregado. - Tem alguém de família no hospital?
-O quê?!
- Pensei que tivesse alguém de família no hospital. - O empregado agarrou num copo e começou a limpá-lo.-Sabe... é que o hospital é aqui perto, ao fundo da rua.
- Não sabia - retorquiu Walter. - Não, não tenho ninguém no hospital. - Apesar de se sentir atordoado pelo brande, apetecia-lhe cavaquear.
Às 12.30 voltou a casa de Ellie e tocou a campainha. Quando se ia embora, viu o carro dela ao cimo da rua. O coração começou a pulsar-lhe fortemente. Não era Ellie quem vinha ao volante. Quando o carro parou, Walter viu Peter Slotnikoff agachado a inspeccionar uma das rodas.
-Como está, Sr. Stackhouse? - perguntou Peter, sorrindo.
- Olá! - replicou Walter.
- Acabámos de chegar da casa de Gordon-disse Ellie, saindo do carro. - Estivemos à tua espera toda a noite.
Walter lembrou-se então de que Gordon lhe tinha telefonado alguns dias atrás para o convidar a ele e a Clara para um cocktail. - Foi-me impossível ir.
- É melhor ir-me embora, Ellie. Já só tenho sete minutos afirmou Peter. - Vou estacionar-te o carro junto ao quiosque, do lado direito.
- Está bem-acedeu Ellie. -Foi um prazer ver-te, Pete.- Deu uma pequena pancada com os nós dos dedos no vidro da porta do carro. «Foi uma pancadinha platónica», pensou Walter. - Boa noite.
Peter partiu.
De repente, Walter perguntou-se a si próprio se Peter suspeitaria da relação que ele encetara com Ellie. Teria sido esse o motivo que o levara a partir tão rapidamente? Ou teria realmente de apanhar o comboio? Walter e Ellie olharam-se nos olhos. Há cerca de duas semanas que não se encontravam.
- Tens algum problema?
- Só queria estar contigo antes de partir. E que tal se subíssemos?
Os olhos dela sorriram, mas ele conseguiu sentir a distância que ela procurava impor-lhe. -Está bem! -Ela voltou-se e dirigiu-se para a porta com as chaves na mão.
Subiram as escadas calmamente e entraram no apartamento.
- Foi uma pena não teres podido ir à festa em casa do Gordon - disse Ellie. - O Jon também lá estava.
- Até me esqueci completamente disso!
- Não te queres sentar?
Walter sentou-se, inquieto. - Clara foi para Harrisburg esta noite, para ir ver a mãe, que está muito mal. É capaz mesmo de morrer.
- Oh, isso são notícias muito más!
- Claro que isso não vem alterar em nada os meus planos. A minha partida no próximo sábado mantém-se.
Ellie sentou-se num dos cadeirões. - Estás preocupado com Clara?
- Não! Na realidade, ela está-se nas tintas para a mãe. - Walter coçou o tornozelo. - Posso tomar qualquer coisa, Ellie?
-Claro! -Ela levantou-se para o ir servir.- Água ou soda?
-Um pouco de água, mas sem gelo. - Ele levantou-se agarrou no violino dela, que estava em cima da mesa situada em frente ao sofá. Não tinha jeito nenhum para pegar no instrumento. Era um desajeitado. Aproximou-o da luz e leu uma pequena inscrição existente na parte interior, debaixo das cordas: Raffaele Gagliano, Napoli 1821. Voltou a colocar o violino no mesmo local e foi até à cozinha. Pôs a rolha na garrafa de uísque que estava sobre o lava-louça. Ellie foi ter com ele e entregou-lhe a bebida que lhe tinha preparado. Ele agarrou no copo com uma das mãos e com a outra enlaçou-a, beijando-a. Foi um longo e ardente beijo, embora, desta vez, Walter não tivesse sentido a mesma sensação que sentira no primeiro encontro. Ellie mantinha os braços apertados à volta do pescoço dele. Walter pensou então: «E se o que eu sinto por ela não é nem nunca será paixão?... E se aquela franqueza, a sua beleza fulgurante e natural, e mesmo aquele vestido de veludo preto que tanto o tinham atraído no seu primeiro encontro, no mês anterior, o fizessem mais tarde sentir-se enjoado da sua presença?... Para quê tantas preocupações? Afinal de contas, Ellie não era a razão principal do divórcio! Se alguma vez tivesse de lhe dizer que nunca casaria com ela, sentir-se-ia estúpido porque antes lho havia prometido.» Soltou-a e voltou à sala com a bebida na mão. Parecia-lhe que Ellie pensava que ele ia lá passar a noite e que ela esperava que ele lho pedisse.
- Tens algum problema a afligir-te? - perguntou Ellie.
- O que é que te preocupa?
Nessa noite, enquanto esperava por Ellie, tinha estado a magicar sobre a forma menos comprometedora de lhe confessar que tinha seguido a camioneta em que Clara viajava. Agora... sentia receio de o fazer. - Nada. Absolutamente nada.
- Os assuntos do escritório têm-te corrido bem? Lá não te levantaram problemas por te ires ausentar durante seis semanas?
- Sim, mas estou-me nas tintas. Eu e o Dick Jensen estamos a pensar demitir-nos em meados de Dezembro. Temos planos para montar o nosso próprio escritório. Um pequeno escritório de reclamações. Como vês, se o pessoal do escritório decidir despedir-nos, não me ralo absolutamente nada. Além do mais, a nossa saída não os obriga ao pagamento de qualquer indemnização.
- Mas que espécie de escritório de reclamações estão vocês a pensar montar?
- Só para casos particulares. Não tencionamos ocupar-nos com problemas corporativos. O nosso propósito são pequenos casos, como, por exemplo, condução sob o efeito do álcool, despejo de inquilinos, etc.- Walter admirou-se de nunca lhe ter falado no assunto.
- Mas isso representa uma grande mudança! –Pois é.
- Tenho de fazer um telefonema antes que seja tarde. Walter ouviu-a falar com uma colega, Virginia, que dava aulas
na mesma escola que ela. Lembrava-se de Ellie já ter falado nesse nome. Combinou com Virginia que esta a fosse buscar na manhã seguinte, pois o seu carro estava estacionado na estação de caminho de-ferro, ainda distante de casa.
- Costumas encontrar-te com o Pete? - perguntou-lhe Walter, enquanto Ellie escutava a outra parte.
-Não. Nem por isso. Não é muito fácil andar por aí sem carro. - Ellie voltou a sentar-se e olhou para ele. - Não me parece que ele tenha algum interesse especial por mim, se era isso que estavas a pensar.
A honestidade dela fê-lo sorrir. Ellie estava sentada, meio voltada na cadeira, com o braço apoiado. Naquela posição parecia mais alta, graciosa e repousante. Walter adorava aquele seu ar sereno e os seus silêncios, tão diferentes dos de Clara. Continuava inquieto. Foi até junto dela, ajoelhou-se e abraçou-a. Beijou-lhe o colo, o pescoço e, por fim, os lábios. Ao abraçá-la, sentiu o corpo dela descontraído.
- Queres cá passar a noite? - perguntou ela.
Walter levantou-se calmamente, tocou-lhe na testa com a palma da mão e depois na madeixa de cabelo castanho que caía sobre ela. - Prefiro esperar.
Ellie ergueu os olhos para ele com uma expressão que Walter interpretou como não denotando desapontamento nem aborrecimento.
- Talvez não nos encontremos mais até que eu regresse, Ellie. Pode ser que Clara volte amanhã à noite. É muito possível.
Ellie levantou-se também. - Está bem. Agora vais-te embora?
- Sim. - Ele dirigiu-se até à porta. Aí voltou-se para ela e tornou a abraçá-la, beijando-a nos lábios, com paixão.
- Amo-te, Walter.
- Adoro-te - replicou ele.
-Esperemos que não seja uma agonia muito longa-disse Claudia. - Mesmo que não se goste da mãe, não é agradável ver alguém às portas da morte e, seja qual for a atitude da Sr.a Stackhouse, ela não está preparada para passar por uma coisa dessas.
- Não, não está. - Walter observou as mãos esguias e morenas de Claudia lavando a louça do pequeno almoço. - Vou telefonar-lhe esta manhã-disse ele, levantando-se da mesa. Estava ansioso por telefonar para Harrisburg, mas não queria fazê-lo na presença de Claudia.
- O Sr. Stackhouse janta hoje em casa?
- Não sei. Talvez a Sr.a Stackhouse volte esta noite. Mas não vale a pena preocupar-se com isso. Pode ficar com a tarde livre. - Agarrou no casaco que estava em cima da cadeira. Claudia olhava para ele. Walter percebeu que ela queria dizer-lhe qualquer coisa. Caso ela não fosse lá a casa preparar-lhe a refeição, ele ficaria sem comer. Dirigiu-se para a porta, apressado.-Até amanhã, Claudia. Amanhã de manhã estou em casa até às 11 horas.
Logo que chegou ao escritório, Walter pediu uma chamada para Harrisburg. Uma mulher respondeu, dizendo ser a enfermeira da Sr.a Haveman.
- A Sr.a Stackhouse está? - perguntou Walter.
- Não. Estivemos à espera dela a noite passada. Quem está ao telefone?
- Walter Stackhouse.
- Onde está Clara?
-Não sei!-exclamou Walter, desesperado. Fui levá-la ao autocarro ontem às 5.30. Ela devia ter aí chegado a noite passada. Não ouviram dizer nada?
- Não e o médico acha que a Sr.a Haveman não vai sobreviver mais do que algumas horas.
- É capaz de tomar nota do meu número de telefone? Montague 57938. Diga à Sr? Stackhouse que me telefone assim que chegar, está bem?
Walter telefonou para a Knightsbrigde Brokerage. Falou com a Sr.a Philpott e perguntou-lhe se ela tinha recebido alguma mensagem de Clara desde as 5.30 do dia anterior.
- Não. Também não estava à espera. Teve notícias sobre o estado de saúde da mãe dela?
- Eu nem sequer sei onde se encontra Clara! Telefonei para Harrisburg e disseram-me que ela ainda não tinha chegado, quando ela deveria lá estar desde as 11 horas da noite passada.
- Santo Deus! Terá havido algum acidente com a camioneta?
- Se isso tivesse acontecido, naturalmente já haveria notícias.
- Bem, se não tiver notícias esta manhã, aconselho-o a contar o caso à polícia- disse a voz baixa, mas sonante, da Sr.a Philpott.
Walter tinha uma reunião marcada às 10 horas e era já meio-dia quando terminou. Foi directamente para o escritório para telefonar à polícia, mas Joan telefonou-lhe do gabinete dela, na porta ao lado, dizendo que o Departamento da Polícia de Filadélfia tinha telefonado há cerca de quinze minutos. Tinham deixado um número para ele ligar.
«Telefona já», pensou Walter. De repente sentiu que Clara estava morta, que tinha sido esfaqueada num lugar qualquer.
- Sr. Stackhouse?-perguntou uma voz arrastada. - Daqui capitão Millard, da décima segunda esquadra de Filadélfia. Foi encontrado esta manhã, no fundo de um penhasco perto de Allentown, o corpo de uma mulher, hipoteticamente identificada como Clara Stackhouse. Gostaríamos que fosse à morgue de Allentown, logo que possível, para confirmar a identidade.
Não havia dúvida! Bastou a Walter ver o pé esquerdo, com a meia esfarrapada, para a reconhecer. O guarda puxou o lençol para trás, descobrindo o corpo até às ancas. A saia rasgada estava cheia de sangue.
- É capaz de a identificar?
- Deixe-me ver o resto. O guarda destapou o corpo completamente.
Ao ver o crânio esmagado, Walter cerrou os olhos. Depois voltou a abri-los e olhou para o braço, estendido ao longo do corpo, aparentando naturalidade, mas esfacelado.
- Temos aqui a carteira dela - disse o guarda. - Foi encontrada na camioneta. É capaz de chegar aqui? Gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas.
Walter agarrou-se à ombreira da porta, ficando estático durante alguns minutos. Já tinha visto cadáveres, corpos esfacelados pela explosão de bombas no Pacífico, e isso tinha-o nauseado. Neste caso, a sensação era pior. Indistintamente viu o polícia vestido de escuro atrás da secretária, forte como um touro. Walter inclinou a cabeça para não desmaiar. Pairava no ar um cheiro nauseabundo a desinfectante. Endireitou-se antes que se sentisse pior. Ao ver o guarda indicar-lhe uma cadeira, aproximou-se e sentou-se obedientemente.
-O nome completo dela, por favor-pediu o homem que estava sentado à secretária.
- Clara Haveman Stackhouse. - Walter soletrou os nomes.
- Idade?
- Trinta anos.
- Local de nascimento?
- Harrisburg, Pensilvânia. -Filhos?
-Não.
- Familiares mais próximos?
Walter disse-lhe o nome da mãe de Clara e a morada de Harrisburg. Observou o homem a colocar, calmamente, etiquetas aqui e ali, como se o fizesse todos os dias.-Já apanharam o homem? - perguntou.
- O homem?! - O guarda ergueu os olhos.
- O homem que a matou.
O guarda franziu o nariz. - Presume-se que tenha sido suicídio, Sr: Stackhouse, até que apareçam provas em contrário. O corpo foi descoberto no fundo de um penhasco.
Nunca lhe ocorrera tal ideia. Custava-lhe a acreditar. - Como é que sabem que ela não foi empurrada?
-Isso não compete ao nosso departamento. Vai fazer-se a autópsia, claro.
Walter levantou-se. - Acho que alguém deveria demonstrar interesse em averiguar se ela se atirou, ou se foi empurrada. Eu quero saber!
- Está bem, pode falar com ele - replicou o homem apontando para o canto atrás de Walter.
Walter voltou-se e viu um homem em quem não tinha ainda reparado. Era jovem e trajava à civil. Levantou-se da cadeira e dirigiu-se a Walter, com um sorriso amarelo nos lábios.
- Como está? - disse ele, apresentando-se. - Tenente Lawrence Corby, do Departamento de Homicídios da Polícia de Filadélfia.
- Como está? - murmurou Walter.
- Quando viu a sua mulher pela última vez, Sr. Stackhouse?
- Ontem, às cinco e meia, no terminal rodoviário, em Nova Iorque.
- Tinha alguma razão para pensar que a sua mulher se podia suicidar?
-Não, ela ...-Walter parou. Lembrou-se das lágrimas de Clara no terminal rodoviário. - É possível - atalhou ele rapidamente. - Bem, suponho eu. Ela andava transtornada.
- Hoje estive lá a ver o penhasco - disse o homem. - Não é muito provável que tenha caído. Não é um local de acesso fácil. Tem um declive de cerca de dez metros e desce depois abruptamente. - Ilustrou as palavras fazendo movimentos com as mãos. -Ninguém se dirigiria a um local daqueles por acaso. O penhasco fica situado perto de um restaurante à beira da estrada e não podia ter acontecido nada de violento sem que as pessoas se apercebessem.
Walter ainda não tinha pensado que o penhasco ficava precisamente nesse local. Agora recordava-se do lugar onde se situava o restaurante e da escuridão que dava ao local a ideia da existência de um enorme precipício atrás dele. Tentou imaginar Clara saindo apressada da camioneta, ao chegar junto ao restaurante, e precipitando-se do penhasco. Não conseguia visualizar aa cena. Quando é que ela o podia ter feito?
-Mas duvido muito que ela tenha recorrido a este método para pôr termo à vida. Não seria próprio dela. Mas ela já tinha tentado matar-se com barbitúricos há cerca de um mês. Acho que o suicídio era uma ideia fixa para ela. - Walter apercebeu-se de que estava a rodear a questão. Olhou para aquele estranho que estava sentado na sua frente. A incongruência do sorriso amarelo que transparecia dos lábios do jovem tenente prendeu-lhe a atenção. - Mas não estou certo de que tenha sido suicídio - disse Walter. - Espero que se proceda a investigações.
- Com certeza - atalhou Corby.
O homem que estava sentado à secretária disse então:-Tem aqui as jóias. É capaz de assinar este recibo? Falta um brinco. Foi amontoando a pesada bracelete de ouro, os dois anéis e um brinco com uma pérola na frente de Walter. Este lembrava-se’ de ter visto, aquelas jóias muitas vezes em cima do toucador, lá em casa.
Walter rabiscou o nome no recibo e guardou as jóias no bolso do sobretudo.
- Antes de partir gostava de lhe fazer a pergunta habitual. Os pequenos e ansiosos olhos azuis do jovem tenente da polícia observavam-no atentamente. - Sabe se ela tinha algum inimigo?
- Não! -afirmou Walter. Passou em revista as pessoas que não simpatizavam com ela, aquelas com quem ela se tinha incompatibilizado desde que tinha começado a trabalhar. «Certamente nenhuma dessas pessoas a mataria.» Walter olhou para o jovem tenente atentamente. Pelo menos ia fazer algumas perguntas, ia esforçar-se. Não teria mais de 25, 26 anos, mas tinha um ar inteligente e eficiente.
O tenente Corby sentou-se a um dos cantos da secretária do oficial de polícia e cruzou os braços. - Voltou para casa depois de ter deixado a sua mulher no terminal rodoviário?
Walter hesitou por momentos. - Sim... Não directamente para casa. Tentava encontrar um amigo. Em Long Island. Dei umas voltas durante algum tempo.
- Conseguiu encontrá-lo?
- Sim.
- Quem era o amigo?
Walter voltou a hesitar. - Ellie Briess. Uma mulher que vive em Lennert. Pode... - Walter deteve-se.
O tenente Corby abanou a cabeça afirmativamente. - Pode dar-me a morada dela?
Walter deu-lha e também o número de telefone. Observou o tenente a tomar nota da morada e do telefone numa agenda de capa castanha que ele tinha retirado do bolso.
- Gostaria de ver o penhasco? - perguntou Corby.
Walter voltou a recordar o restaurante e o letreiro de luzes muito vivas. Lembrou-se que Clara conhecia aquela zona; tinha andado por ali várias vezes viajando entre Long Island e Harrisburg e provavelmente já conhecia o penhasco. - Não, não me parece que o queira ver.
- Pensei que talvez quisesse...
- Não! - afirmou Walter, abanando a cabeça. Olhou fixamente para o lápis com que o jovem tenente escrevia na agenda. Imaginou-se a apertar o pescoço a Clara, atirando-a depois para o precipício. A queda envolvia os dois, estatelando-se sobre as rochas pontiagudas existentes lá em baixo. Fechou os olhos e, quando os.abriu, Corby observava-o.
- É melhor esperarmos para ver o resultado da autópsia disse Corby casualmente. - Não exclui a possibilidade de suicídio, pois não?
Walter achou a pergunta pouco profissional. - Não, acho que não. Não faço ideia.
- Claro. Bem, teremos o resultado da autópsia esta noite e telefonamos-lhe depois para lhe dizer o resultado. - Corby estendeu-lhe a mão e por momentos, enquanto Walter lha apertava, o seu rosto assumiu uma expressão de gravidade. Walter voltou-lhe as costas e, dirigiu-se rapidamente para a porta, saindo da sala.
-Pode dizer-nos para onde devemos mandar o corpo amanhã? - perguntou-lhe o guarda que estava sentado à secretária.
Walter pensou na agência funerária por onde passava diariamente a caminho de Benedict. - Ainda não sei. Posso dizer-lhe mais tarde?
- Estamos abertos dia e noite.
A agência funerária estava também sempre aberta. Pelo menos assim o anunciava o letreiro luminoso. -É tudo? - perguntou Walter.
- Sim, é tudo.
Walter saiu para a tarde sem sol. Teve de se recordar onde tinha estacionado o carro e, dirigindo-se para ele, lembrou-se da mala de Clara. Voltou para trás.
O oficial de polícia disse-lhe que a mala ainda não tinha sido examinada e que seria enviada no dia seguinte com o corpo. Walter sentiu que o homem estava a ser deliberadamente indiferente e inflexível. A mala de lona azul, onde estavam guardados os objectos pessoais de Clara, continuava encostada à parede, a dois passos dele.
- Não contém papéis, são só roupas - afirmou Walter.
- Regras são regras - disse o guarda, sem levantar os olhos.
Walter dirigiu-lhe um olhar carrancudo, depois voltou-se e saiu do gabinete.
Quando pôs o carro a trabalhar, lembrou-se de avisar Ellie. Eram quase 4 horas. Ela já devia estar em casa. Abriu a porta do carro para sair, mas acabou por fechá-la novamente. Lembrou-se que não queria que o tenente o visse telefonar, embora, neste momento, ele não estivesse ali. Alguns quarteirões à frente estacionou o carro e telefonou de um drugstore.
Disse a Ellie que Clara tinha morrido e que a polícia punha a hipótese de suicídio. Abreviou a conversa e disse: -Estou em Allentown. Disse à polícia que tinha estado contigo ontem à noite, por isso são capazes de te telefonar para confirmar.
- Está bem, Walter.
- Eu não lhes disse a hora exacta em que aí estive. Claro que vamos ter de lhes dizer que foi depois do meio-dia.
- Isso tem alguma importância?
Walter cerrou os dentes, tentando controlar os nervos. Recordou-se que Pete o tinha visto lá depois do meio-dia -Não! disse Walter. - Isso não vem ao caso.
-Posso dizer-lhes que chegaste cá por volta do meio-dia e meia hora -, disse Ellie, como se estivesse à espera de que ele a contradissesse. - Não achas bem?
- Sim, está bem.
- Tens alguma coisa que fazer? Não queres passar por cá?
- Está bem. Vou directamente para aí.
- Não podes deixar aí o carro e vires de comboio? -Deixar o carro?!
- Pareces-me demasiado transtornado para vires a conduzir.
- Estarei aí daqui a pouco. Demorarei cerca de duas horas. Espera por mim.
-Não posso deixar de me culpar - afirmou Walter, levantando as mãos. - Devia tê-la obrigado a ir a um psiquiatra. Devia ter insistido e ir com ela ver a mãe. Mas não o fiz.
- Tens a certeza que foi suicídio?
- A certeza não tenho, mas é muito provável. Eu já devia estar à espera disto. - De repente sentou-se no cadeirão.
- De tudo aquilo que me tens contado, fico com a sensação de que na vida dela tudo contribuiu para ela se suicidar, até mesmo o acidente de automóvel que teve há alguns dias.
- Sim. - Walter também tinha falado a Ellie no caso dos barbitúricos,, mas ela não pareceu muito surpreendida. Dava a ideia de que estava por dentro da relação entre ele e Clara. Seria intuição ou simplesmente conjectura? - Eu não tenho de maneira alguma a certeza de que tenha sido suicídio. Não consigo imaginá-la a atirar-se do penhasco. Ela teria optado por uma forma mais simples.
-A polícia vai proceder a investigações, não vai? Walter encolheu os ombros. - Sim, dentro das possibilidades deles.
- Mas tu não te podes culpar, Walter. Não podes obrigar ninguém a consultar um psiquiatra, se essa pessoa não o quiser fazer.
Walter sabia que Jon diria exactamente a mesma coisa.
- Ela sabia alguma coisa de nós? - perguntou Ellie.
Walter abanou a cabeça afirmativamente. - Suspeitava. Já há algumas semanas, mesmo antes de eu ter reparado em ti.
Sempre que saía à noite acusava-me de vir passar os serões contigo.
Ellie franziu a testa. - Porque é que não me disseste nada?
Walter não respondeu por uns segundos. - Ela tinha uns ciúmes doentios, mesmo dos meus amigos - disse calmamente.
- Lamento que ela suspeitasse. Foi mais uma coisa a levá-la a fazer o que fez. Depois o divórcio...
- Ela nunca acreditou que eu gostasse de ti. - Walter levantou-se e começou novamente a andar de um lado para o outro.
- Clara tinha sempre de ter ciúmes de alguém ou de alguma coisa. Desta vez, por acaso, acertou.
- Onde disseste à polícia que estiveste ontem à noite? - perguntou Ellie,
Walter hesitou. Quis dizer-lhe, mas lembrou-se de Corby: todas as suas respostas estavam no bloco de apontamentos de Corby.-Disse-lhes que primeiro dei uma volta de automóvel durante o tempo em que esperava por ti. Depois fui para casa. Saí novamente e passei quase toda a tarde fora de casa.
Ellie pôs uma sanduíche num prato e colocou-o na mesa de café. Olhou para ele e disse à cautela: - Estava a pensar se eles... se eles não têm a certeza de que foi suicídio, poderia parecer que tinhas algum motivo para a matar.
- Porque é que dizes isso?
- Quer dizer... Vindo ver-me. O quadro completo.
-Não vão fazer perguntas dessas-disse Walter, com um olhar carregado. - Corby ainda nem sequer telefonou!
- Eles disseram que a morte tinha ocorrido por volta das sete e meia, não foi?
-Sim.
- Onde te encontravas a essa hora?
Walter ficou mais apreensivo. - Acho que estava em casa. Depois de ter levado Clara à camioneta, voltei para casa.
- Gordon telefonou-te por volta das sete e meia e ninguém atendeu.
- Se calhar já tinha saído!
- Ele voltou a telefonar-te às oito e meia. Digo-te isto porque nessa altura eu também estava perto do telefone.
- Bem, nessa altura certamente não estava em casa. – Walter sentiu-se empalidecer. Ellie olhava para ele como se estivesse a visualizar a cena.
- Eu estava a pensar, no caso de eles perguntarem, claro, que o melhor que tinha a fazer era dizer-lhes exactamente onde tinhas estado. A propósito, lembras-te onde estavas às sete e meia?
- Não! - disse ele num tom de protesto. - Se calhar em Huntington. Tinha lá que fazer. Nem sequer reparei nas horas. Mas eles não vão fazer essas perguntas todas, pois não, Ellie?
- Está bem. Talvez não as façam. - Ellie sentou-se no sofá, tensa. Cruzou as pernas. -Porque é que não comes a sanduíche?
«Ela também suspeitaria dele, ou seria intuição?» O telefone voltou a tocar e Ellie foi atender.
- Oh, sim, Jon! - Ellie voltou-se e olhou para Walter. - Meu Deus!... Não, lamento mas... Tens razão, ele não devia ...
Walter levantou-se e foi pé ante pé até à mesa do café, observando Ellie. Já devia ter vindo nos jornais da tarde. Pelo menos era isso que supunha. Ellie olhou para ele com uma calma espantosa. Ele esperava que ela se preocupasse mais. Achava-a incapaz de fingir tão bem como o estava a fazer agora com Jon.
-Tenho a certeza de que estava com um dos seus amigos dizia Ellie.- Sim, talvez fossem os Iretons... Espero que sim. Obrigada por teres telefonado, Jon. - Ellie desligou. - Não achei conveniente dizer ao Jon que estavas aqui.
Walter encolheu os ombros. - Não me ralava nada. Por acaso o Jon disse-te se os jornais falavam no caso?
- Sim, mas ele disse que Dick Jensen lhe tinha telefonado esta tarde a contar-lhe o sucedido. Porque é que não telefonas aos Iretons a pedir para lá ficares esta noite? Acho que não devias voltar para casa.
Ele teria preferido ficar com ela, mas pareceu-lhe que ela não o queria lá. - Não quero falar no assunto com ninguém. Vou mas é para casa.
- Achas que vais conseguir dormir lá?
- Sim. Vou andando.
Ellie enlaçou-lhe o pescoço e deu-lhe um beijo. - Telefona-me sempre que queiras. Telefona-me hoje à noite, se quiseres.
- Obrigado, Ellie. - Nem sequer lhe tocou. De súbito lembrou-se que tinha de telefonar para Allentown para informar a polícia do local para onde pretendia que enviassem o corpo de Clara. - Obrigado - disse ele novamente, partindo.
Em casa, havia um telegrama do Dr. Meacham dirigido a Clara, dizendo que a mãe dela tinha falecido às 3.25 da madrugada. Depois de o ler, Walter voltou a pô-lo sobre a mesa do hall.
Era meia-noite. Pensou telefonar a Jon, mas acabou por desistir.
Betty Ireton telefonou. Walter falou com uma voz mecânica e agradeceu-lhe o convite que ela fizera para passar a noite lá em casa. Bill também falou com ele e ofereceu-se para ir buscá-lo. Walter recusou e agradeceu.
Depois telefonou para a agência funerária Wilson-Hall, em Benedict. Disse-lhes que desejava que o corpo fosse cremado. De seguida telefonou para a morgue de Allentown, para saber o resultado da autópsia. Foi-lhe comunicado que não tinham sido quaisquer causas internas que pudessem ter provocado a morte. Apenas as lesões causadas pela queda no precipício teriam sido responsáveis pela morte de Clara. Walter informou-os da localização da agência funerária Wilson-Hall.
Nessa noite, Walter deixou-se ficar no escritório, ouvindo o silêncio que envolvia a casa e pensando que ele nunca mais seria quebrado pelos passos apressados e furiosos de Clara. Ela nunca mais invadiria a privacidade do seu escritório. Sentiu-se impassível e apercebeu-se que ainda não tinha vertido uma lágrima. «Ela também nunca foi muito humana», pensou Walter. Dominado pelo cansaço, viu Clara numa agonia de violentas incertezas, a que ela tinha posto fim com um último acto de violência- «bang!» Tal como a mãe, Clara tivera uma morte desamparada e triste, embora, no caso de Clara, esta parecer adaptar-se exactamente à sua personalidade. A agonia de Clara afigurou-se-lhe como um turbilhão de dúvidas e ambiguidades tão pouco nítidas como os seus próprios sentimentos em relação a ele. Por fim deixou-se adormecer.
Acordou com o barulho de uma porta que se abria. Verificou que era Claudia que chegava, como habitualmente, às 7 horas. Pegou numa manta e desceu as escadas.
Claudia estava na cozinha e tinha trazido o jornal da manhã.
- Sr. Stackhouse, soube do caso ontem à noite, mas ainda me custa a acreditar!
Walter tirou-lhe o jornal das mãos. Era o jornal de Long Island e o caso vinha referido na primeira página. Havia uma fotografia. Era precisamente a fotografia que Clara tinha dado aos jornais, já há bastante tempo, quando fora eleita presidente de um dos clubes locais.
CORPO DE UMA HABITANTE DE BENEDICT ENCONTRADO NA PENSILVÂNIA
Deu uma vista de olhos ao artigo. Presumia-se que a morte tivesse sido causada pelo suicídio. Havia uma breve referência à descoberta da mala no interior da camioneta e ao facto de ele ter identificado o corpo.
- O senhor viu-a, Sr. Stackhouse? - Claudia permanecia no mesmo local, como que paralisada, e com os olhos marejados de lágrimas.
- Sim - disse Walter. Achou que a referência à mala correspondia exactamente à que fora feita no artigo sobre o caso Kimmel. Não tinha comprado nenhum jornal na noite anterior. Tinha-se sentido demasiado cansado. Pôs a mão sobre o ombro de Claudia e apertou-o. Não sabia o que havia de dizer.
-Podia fazer-me um café, Claudia? Não me apetece mais nada.
- Sim, Sr. Stackhouse.
Dick Jensen, Ernestine McClintock e outros vizinhos telefonaram lá para casa nessa manhã. Deram-lhe todos as condolências e ofereceram-lhe os seus préstimos, mas Walter não necessitava de nada. Jon também telefonou e, pela primeira vez, Walter deixou-se vencer pela dor e chorou. Jon ofereceu-se para lhe ir fazer companhia. Walter não aceitaria, mesmo sabendo que era sábado e que Jon estava livre, mas acabou por concordar que ele fosse lá a casa nessa tarde, por volta das 6 horas, para jantar.
Nessa mesma tarde, depois das 2 horas, Walter teve um telefonema do tenente Corby, da polícia de Filadélfia. Corby perguntou se Walter poderia estar na Estação Central da Polícia de Filadélfia nessa tarde às 7 horas.
- Qual é o assunto? - perguntou Walter.
-Não posso explicar agora. Desculpe incomodá-lo, mas ajudar-nos-á muito se vier - disse educadamente Corby.
- Lá estarei - disse Walter.
«Será que Corby encontrou um suspeito, ou alguém que tivesse confessado?»
Walter sentia-se incapaz de imaginar fosse o que fosse. Tinha-se sentido inquieto no dia anterior e, naquele momento, tudo o que fazia era em câmara lenta.
Telefonou a Jon e disse-lhe que tinha de ir a Filadélfia, só podendo estar com ele mais tarde. Jon ofereceu-se para o levar lá, ou então acompanhá-lo.
- Obrigado - agradeceu Walter. - Posso ir buscar-te ao teu apartamento por volta das cinco horas?
Jon concordou.
Este conduziu o automóvel de Walter.
Durante o percurso, Walter contou a Jon a mesma história que tinha contado a Ellie, tendo este tido a mesma reacção que ela, aliás, como já esperava. Mas sob a aparente circunspecção que Jon deixava transparecer notava-se uma tentativa de auxílio. Jon procurava fazer-lhe ver que Clara era, já há muito, um caso à parte da sua vida; tudo dependera das acções dela. Clara tinha sido a única culpada.
- Não tens nada que te sentir culpado! Neste momento posso entender isso melhor do que tu. Daqui a seis meses também o compreenderás.
Jon esperou no carro, enquanto Walter entrou sozinho no edifício. Perguntou a um polícia que estava sentado a uma secretária onde se encontrava o tenente Corby.
- Gabinete cento e dezassete, ao fundo do corredor. Walter dirigiu-se para lá e bateu à porta.
- Boa tarde. - O tenente Corby saudou-o baixando a cabeça e sorriu.
- Boa tarde. - Walter viu um homem de aspecto rude, aparentando cerca de 50 anos, sentado numa cadeira, inclinado, com os cotovelos nos joelhos. «Seria aquele o suspeito?»
- Sr. Stackhouse, este é o Sr. De Vries - disse Corby. Cumprimentaram-se com um gesto.
- Já alguma vez tinha visto o Sr. De Vries?
«Parece um trabalhador», pensou Walter. Vestia um casaco de cabedal castanho, tinha cabelo grisalho, uma cara redonda com ar pouco inteligente, embora tivesse um brilho de interesse ou de troça no olhar. - Não me parece - afirmou Walter.
Corby voltou-se para o homem que estava sentado na cadeira.
- O que é que acha?
Com a cabeça grisalha enterrada entre os ombros, o homem inclinou-se. O tenente Corby encostou-se confortavelmente na cadeira. O seu sorriso pueril tornou-se mais vivo, embora a sua pequena boca, mostrando uma fileira de dentes regulares, deixasse transparecer uma certa mesquinhez. Walter não gostou daquele sorriso.
- O St. De Vries tem a impressão que foi você o homem que lhe perguntou quanto tempo a camioneta iria estar parada no Harry’s Rainbow Grill, na noite em que a sua mulher morreu. Walter voltou a olhar para De Vries. Lembrou-se que aquela era a cara do homem com quem tinha falado. Humedeceu os lábios. Imaginou que Corby se deveria ter dado ao trabalho de descrever a sua pessoa a De Vries. Corby suspeitava dele. Esta era, pelo menos, a sensação que Walter tinha.
- Como vê, isto foi tudo por mero acidente - disse Corby, soltando uma risada de prazer que irritou Walter.-O Sr. De Vries é camionista e trabalha para uma firma de Pittsburgh. De vez em quando volta para casa de camioneta. Já nos conhecemos. Só lhe perguntei se ele se lembrava de ter visto algum indivíduo com ar suspeito nas imediações do local onde a camioneta parou nessa noite.
«As coisas ter-se-ão passado realmente dessa maneira?» Walter lembrou-se das perguntas que Corby lhe fizera no dia anterior. «Encontrou o seu amigo?», «Quem era o amigo?» - Sim, eu estive lá. Segui a camioneta. Queria falar com a minha mulher.
- E conseguiu?
- Não. Não a consegui encontrar. Procurei por todo o lado, mas foi em vão. - Walter engoliu em seco. - Por fim perguntei a este homem o tempo que a camioneta iria estar parada naquele local.
- Não se quer sentar, Sr. Stackhouse? -Não!
- Porque é que não nos disse logo isso?
- Havia a possibilidade de ter seguido outra camioneta.
- Por que é que não nos disse depois ter visto que a sua mulher estava morta? Então a sua história de ter andado às voltas em Long Island era falsa... -disse Corby no mesmo tom educado de sempre.
- Sim, foi uma estupidez minha. Estava com medo.
O tenente Corby desabotuou o casaco e meteu as mãos nos bolsos das calças. Uma chave balouçava na corrente que estava presa no colete.
- O Sr. De Vries disse-me que o condutor esperou vários minutos quando verificou que faltava a sua mulher e que se lembrava perfeitamente que você ficou junto à camioneta até ela partir.
-Sim. Foi isso exactamente” o que se passou - respondeu Walter.
- O que é que pensou que teria acontecido à sua mulher?
- Não sei. Havia a possibilidade dela ter saído em Newark, por ter mudado de ideias e não querer prosseguir de camioneta. Eu tentei dissuadi-la de viajar de camioneta, mas foi em vão.
Corby estava sentado a um dos cantos da secretária, mexendo em vários objectos que estavam colocados em cima dela: o agrafador, o tinteiro, a caneta, com um ar possessivo e satisfeito. Em cima da secretária existia uma grande placa com o nome CAPITÃO J. P. MACGREGOR.
- Suponho que se pode ir embora, Sr. De Vries - disse Corby, sorrindo-lhe. - Muito obrigado.
De Vries levantou-se e deitou um último olhar a Walter, à medida que se encaminhava para a porta.-Boa noite -disse ele, dirigindo-se a ambos.
-Boa noite - replicou Corby, cruzando os braços. - Agora diga-me exactamente o que aconteceu. Seguiu a camioneta desde Nova Iorque?
-Sim.-Walter abanou a cabeça, recusando o cigarro que Corby lhe oferecia, e tirou um dos seus.
- Que assunto tão importante é que tinha a tratar com a sua mulher?
- Eu achava... Eu achava que tínhamos deixado a meio um assunto de que tínhamos estado a falar no terminal rodoviário, portanto eu...
- Discutiram?
-Não! Não discutimos. - Walter olhou de frente para o jovem tenente.-É melhor vermos as coisas desde o princípio, pouco a pouco. Vi a camioneta estacionar num local, em frente do restaurante. Parei o meu carro na estrada e voltei para trás...
- Na estrada?! Porque não o estacionou junto da camioneta? As perguntas foram-se sucedendo e Walter respondia devagar.
-Passei pelo local, parei logo que pude e saí. -Walter deteve-se, na expectativa de que Corby o espicassasse novamente. Mas isso não aconteceu e ele prosseguiu: -Não sei como é que ela me conseguiu escapar. Fui o mais rápido que pude, mas não consegui encontrá-la na camioneta nem no restaurante.
- Ainda são alguns metros desde a estrada até ao restaurante. Porque não voltou para trás e foi de carro?
- Não sei - respondeu Walter surdamente.
- Se ela saiu da camioneta e foi directamente para o penhasco, pode ter-se atirado num espaço de trinta segundos. Pode - repetiu Corby.
- Ela conhecia aquela zona -disse Walter.-Fez aquele percurso de carro várias vezes e pode ter acontecido que ela já tivesse reparado no penhasco.
- A camioneta já tinha parado quando você se dirigiu, a pé, para a zona do restaurante?
- Sim. Os passageiros estavam a apear-se.
- E não viu nenhum sinal dela?
- Não! -Walter observou-o a tirar notas na pequena agenda de capa castanha. A mão ossuda de Corby movia-se rapidamente, carregando no papel. Demorou apenas alguns segundos a escrever. Parecia estenografia. Corby guardou a agenda. - Não encontrou nenhum indício que o possa elucidar sobre a possibilidade de suicídio, pois não?
-Não, não!-repetiu Corby, olhando para um dos cantos da sala e depois para Walter.-Posso perguntar-lhe qual era o seu relacionamento com a sua mulher?
- O meu relacionamento?!
- Eram felizes?
- Não. De facto, estávamos em vias de nos divorciarmos, íamos fazê-lo daqui a algumas semanas.
- Quem queria o divórcio, os dois?
- Sim - afirmou Walter peremptoriamente.
- Posso perguntar-lhe porquê?
- Claro que pode perguntar-me porquê. Clara era uma mulher completamente neurótica, difícil de lidar. Vivíamos num conflito constante. Não conseguíamos entender-nos.
- Compartilhavam os dois da mesma opinião? -Energicamente!
Corby observava-o com as mãos delicadamente coladas aos lábios. O pequeno bigode dava-lhe um ar absurdamente jovem, em vez de o tornar mais velho.
Walter achava-o um jovenzinho ofensivo e enfatuado, a armar-se em Sherlock Holmes. - Acha que a perspectiva do divórcio a deprimiu?
- Disso não tenho qualquer dúvida!
- Era sobre o divórcio que você queria falar com a sua mulher? Foi isso que o levou a seguir a camioneta?
- Não, o divórcio era já um caso arrumado - afirmou Walter com uma voz cansada.
- Um divórcio nova-iorquino? Adultério?
Walter franziu o sobrolho. - Não. Até estava a pensar ir hoje para o Reno.-Tirou a carteira dos documentos do bolso.-Aqui está o meu bilhete de avião - disse Walter, atirando-o para cima da secretária.
Corby inclinou a cabeça para olhar para ele, sem, no entanto, agarrar no bilhete. -Não cancelou.o voo?
-Não!
- Porquê o Reno? Estava com muita pressa? Ou era para satisfazer o desejo da sua mulher?
Walter teria dado um braço para que tudo aquilo que Corby acabara de dizer fosse verdade.
- Não. Ela nem queria o divórcio. Era eu. Mas Clara sabia perfeitamente que não podia fazer nada para me impedir de conseguir o divórcio... Excepto matando-se.
Corby mordeu um dos cantos da boca, desconsoladamente.
- Não acha que seria demasiado inconveniente você ir passar seis semanas no Reno?
- Não - disse Walter, num tom monocórdico. - No escritório onde trabalho deram-me uma licença de seis semanas.
- O que é que a sua mulher tencionava fazer depois disso?
- Depois disso?! Presumo que ia ficar em casa, que aliás era dela, e manter o emprego. -Walter ficou na expectativa de que Corby dissesse alguma coisa e este fez o mesmo. -Deve ser uma situação muito peculiar para si o facto de termos vivido juntos, sob o mesmo tecto, até ao fim. Receava deixar a minha mulher sozinha. Tinha medo precisamente disto; do suicídio ou de qualquer outro acto violento. - Walter teve uma sensação optimista de que a sua história começava, finalmente, a ter sentido. Contudo, Corby continuava a observá-lo com os olhos dilatados, como se as circunstâncias do divórcio tivessem aumentado ainda mais as suas suspeitas.
- Tinha alguma razão específica para desejar o divórcio precisamente agora? Por acaso está apaixonado por outra pessoa?
- Não! - respondeu Walter com firmeza.
- Pergunto-lhe isto porque a situação que você acabou de descrever, entre você e a sua mulher, é do tipo que se pode prolongar por um tempo indeterminado sem que as pessoas façam qualquer coisa. - Corby sorriu. - Provavelmente - acrescentou.
- Não há dúvida que é verdade. Estivemos casados durante quatro anos-e só este ano a questão do divórcio foi aflorada.
- Por acaso lembra-se do assunto da conversa que queria terminar com a sua mulher na noite de quinta-feira passada?
- Sinceramente, não.
- Na altura deve-se ter irritado...
- De modo algum! Simplesmente achava que o caso não tinha sido concluído, fosse o que fosse. - De repente, Walter sentiu-se extremamente maçado e aborrecido. Era precisamente a mesma sensação que tivera várias vezes na Marinha, quando era obrigado a esperar horas a fio, nu, que o médico fosse fazer um exame de rotina. Também se sentia cansado, tão cansado que até dava a ideia de que os nervos o tinham abandonado e que se ia estatelar no chão, adormecido. Porém, a vontade de abandonar o edifício da polícia era superior ao cansaço.
-Ainda outra pergunta - disse o tenente.- Gostaria que me dissesse se, por acaso, viu algum indivíduo com ar suspeito enquanto andou à procura da sua mulher.
Walter já se sentia enjoado com aquele sorriso.-Penso que a minha mulher se suicidou. Não vi nenhum indivíduo com ar suspeito.
- Mas ontem você não estava tão certo de que a sua mulher se tinha suicidado!...
Walter manteve-se em silêncio.
O tenente Corby saiu de detrás da secretária. - Você é muito estranho! A maior parte das pessoas nunca se convencem de que as mulheres, ou maridos, ou mesmo qualquer familiar, se suicidaram. Exigem sempre que a polícia procure o assassino.
- Noutras circunstâncias eu também o faria - atalhou Walter.
- Suponho que em casos como estes nunca se consegue realmente provar a ocorrência de suicídio, pois não?
- Não. Mas também podemos eliminar as outras possibilidades. - Corby voltou a sorrir e encaminhou-se para a porta, como se o interrogatório estivesse a chegar ao fim. Subitamente deteve-se e olhou para Walter.
Walter queria perguntar-lhe se ele iria tomar nota do facto de ele ter estado na paragem das camionetas, mas não queria que Corby julgasse que ele estava com receio. - Este é o último inquérito? - perguntou Walter.
- Espero bem que sim. Só mais uma pergunta. - Corby voltou a passear pela sala. - Por acaso ouviu falar na outra morte, aliás ocorrida em condições semelhantes a esta, há alguns meses? Uma mulher que foi encontrada morta, com o corpo cheio de escoriações e esfaqueada, perto da paragem de camionetas em Tarrytown?
Walter estava certo de que a expressão da sua cara não se tinha alterado. - Não, não ouvi nada sobre o assunto.
- Uma mulher que dava pelo nome de Kimmel. Helen Kimmel?
-Não!
- O assassino ainda não foi descoberto. Essa, temos a certeza absoluta de que foi assassinada - acrescentou Corby, com um sorriso agradável nos lábios. - Apesar disso, a semelhança dos dois casos espanta-me; a paragem das camionetas...
Walter não disse nada. Fixou de frente os olhos azuis de Corby. Este sorria com a expressão mais amistosa que o seu rosto pálido e jovial comportava. Walter supunha que aquela expressão não tinha, contudo, absolutamente nada de amistoso.
-Então foi por isso que você se empenhou tanto neste caso?... - perguntou Walter.
Corby abriu as mãos. - Oh! Não tenho assim tanto interesse nesse caso. - Parecia ter adquirido a autoconfiança. - Acontece que este caso ocorreu no meu estado. Recordo-me do outro porque continua em aberto e, além disso, ocorreu ainda há muito pouco tempo, em Agosto. - Corby empurrou a porta aberta. - Muito obrigado por ter vindo.
Walter deteve-se. - Chegou a alguma conclusão? Está convencido de que a minha mulher se suicidou?
-Não me compete a mim tirar conclusões! -exclamou Corby, soltando uma gargalhada. - Eu nem sequer sei se já conseguimos reunir todos os factos!
- Compreendo.
- Boa noite. - Corby inclinou-se.
- Boa noite - replicou Walter.
«De certeza que o assunto vai aparecer nos jornais», pensou Walter, Tinha o pressentimento de que o tenente Corby iria dar parte do caso à imprensa. Walter contou a Jon o que tinha sucedido. A única coisa que omitiu foi a razão que o tinha levado a seguir a camioneta. Disse-lhe apenas que queria finalizar uma conversa que encetara com Clara no terminal rodoviário.
- Realmente foi preciso ter azar! - disse Jon. - Achas que o caso vai sair nos jornais?
- Sei lá! Não perguntei.
- Mas devias tê-lo feito!
- Devia ter perguntado uma série de coisas.
- Eles estão realmente convencidos de que foi suicídio?
- Hum... Acho que não. Acho que o caso está no ar. Há muitas dúvidas. - Não queria confessar a Jon que o tenente Corby era extremamente desconfiado. Walter apercebeu-se de que Jon podia estar tão desconfiado como Corby, se quisesse. Olhou para ele, tentando descobrir no que estaria ele a pensar. Observou-lhe o perfil, com a testa franzida e mordiscando o lábio inferior.
- É possível que o assunto não venha nos jornais, mesmo que as suspeitas recaiam sobre ti. Dentro de alguns dias é natural que as conclusões venham ao de cima e que então se consiga provar ter sido suicídio ou assassínio. Pessoalmente, acredito que tenha sido suicídio. Não me interessa absolutamente nada o que os jornais vão contar.
- Oh! Mas não é isso que me preocupa!
- Então o que é que te preocupa?
- A vergonha. Suponho eu. Ser apanhado em mentira ...
- Dorme mas é uma soneca, que o caminho até Nova Iorque ainda é longo.
Não lhe apetecia dormir, mas inclinou a cabeça para trás e alguns minutos depois estava mergulhado no sono. Acordou quando o carro deu uma guinada. Percorriam então uma rua escura, ladeada de armazéns, depósitos de água e uma fábrica de gim que mais parecia a frontaria de um hospital. Walter ficou espantado de ter cometido o erro estúpido de se mostrar ressentido com as perguntas que Corby lhe fizera. Afinal Corby estava apenas a desempenhar as suas funções. «Se voltar a encontrar-me com ele comportar-me-ei de outra maneira.»
- Para onde é que queres ir? - perguntou-lhe Jon. - Para a minha casa ou para a tua? Ou preferes ficar sozinho esta noite?
- Não quero ficar sozinho. Vamos para minha casa, se não te importas. Gostava que ficasses lá comigo.
Jon dirigiu-se para a sua garagem, em Manhattan, para ir buscar o seu carro. Antes de sair do automóvel de Walter, disse:
- Walt, acho melhor que te vás preparando para a eventualidade de os jornais fazerem propaganda do assunto. Se há alguém com quemqueiras falar antes que isso aconteça, é preferível que o faças hoje à noite.
- Sim - disse Walter. Iria telefonar a Ellie, nessa noite.
Eram quase 11 horas da noite quando chegaram a Benedict. Claudia ainda estava em casa. Tinha ficado para atender os telefonemas de condolências, de acordo com as palavras dela. Estimava muito Walter. Ellie tinha telefonado duas vezes...
Walter aconselhou Jon a ir, ele próprio, ao frigorífico e escolher o que lhe apetecia comer. Depois levou Claudia a Benedict para ela poder apanhar o autocarro das 11 para Huntington. No regresso passou na Three Brothers Tavern e telefonou a Ellie.
- Claudia não sabia onde estavas - disse-lhe Ellie. - Porque é que não me telefonaste durante todo o dia?
-Quando nos encontrarmos, explico-te. Já é muito tarde para vires a minha casa? Jon está cá e eu não posso ir ter contigo.
Ellie prometeu ir.
Walter regressou a casa e disse a Jon que Ellie vinha a caminho.
- Tens-te encontrado muito com Ellie? - perguntou-lhe Jon.
- Sim - afirmou Walter num tom sério. - De vez em quando vejo-a. - Preparou uma bebida e foi buscar uma fatia de carne fria que Jon tinha colocado num prato. Entendia o silêncio de Jon. Não apetecia a Walter comer carnes frias. Acabou por dar a sua fatia a Jeff, que andava a saltitar nervosamente à volta da sala. Depois dirigiu-se ao hall para telefonar à Sr? Philpott, que tinha deixado a seguinte mensagem: «Por favor, telefone-me.» Ellie chegou quando ele estava a telefonar e foi Jon que lhe abriu a porta. A Sr? Philpott não tinha nada de importante a comunicar-lhe e, após breves minutos, Walter apercebeu-se de que ela estava bêbeda. Elogiava Clara de uma forma exagerada. Lamentava o destino dela. Segundo ela, Walter tinha perdido a mais brilhante, encantadora, atractiva e amorosa criatura existente à face da Terra. Apeteceu-lhe esmagar o telefone nas mãos. Por várias vezes tentou cortar a conversa, interrompendo-a para lhe agradecer a atenção de lhe ter telefonado. Finalmente a conversa acabou.
Quando Walter voltou à sala, Jon e Ellie interromperam a conversa que estavam a ter. Ellie olhou para ele com expectativa.
- Preferias ficar sozinho, Walt? - perguntou Jon.
- Não, de maneira nenhuma - disse Walter. - Ellie, tenho de te dizer uma coisa que já disse a Jon. Ontem à noite, quinta-feira à noite, segui a camioneta em que Clara viajava. Segui-a até ao local em que ela apareceu morta: o local de onde ela se atirou. Andei à procura dela por toda a parte, mas não consegui encontrá-la. A morte deve ter ocorrido antes de eu ter chegado ao local. Esperei durante algum tempo e andei à procura dela até que a camioneta partisse. Por fim decidi voltar para trás.
- Sabias então que ela tinha desaparecido? - perguntou Ellie, incrédula.
- Eu não estava absolutamente certo. Pensava que ela podia ter saído da camioneta, algures, sem que eu me tivesse apercebido. Mas também se podia ter dado o caso de eu ter seguido a camioneta errada.
- E não falaste no caso a ninguém? - perguntou Ellie.
- Eu nem sequer tinha a certeza de que era Clara o passageiro que faltava - afirmou Walter, impaciente.-Pensei até dar parte do caso à polícia, ontem de manhã, depois de ter telefonado para Harrisburg e de me terem dito de lá que ela ainda não tinha chegado. Contudo, a polícia entrou em contacto comigo antes de eu tomar qualquer iniciativa. Na altura tinham já descoberto o corpo dela. - Walter olhou para Ellie, que estava completamente atónita. Walter sabia que existia apenas uma •única explicação: a de que ele se sentia culpado, apesar de ter estado à espera na paragem de camionetas e de se ter sentido perfeitamente alucinado quando, de regresso a Nova Iorque, lhe veio à memória a ideia bizarra de a levar para o matagal para aí a matar. Agarrou num copo e bebeu. - Bem, nessa noite dirigi-me à polícia de Filadélfia. Foi-me comunicado que tinha sido visto nas imediações do local onde tinha parado a camioneta. Enfim, tinham-me identificado. É muito provável que os jornais falem no caso, mas acho que não me consideram suspeito. A polícia continua a considerar a hipótese de suicídio. Mas, se eles quiserem fazer alarde disso nos jornais, fá-lo-ão sem escrúpulos nenhuns.
Jon sentou-se, encostando a cabeça a uma das almofadas do sofá, escutando Walter com extrema atenção. Este tinha a impressão de que Jon não acreditava na história que ele estava a contar.
- Quem é que te identificou? - perguntou Ellie.
- Um homem que dá pelo nome de De Vries. Ou o homem desconfiou de mim, pelo meu ar suspeito quando andava de um lado para o outro à procura de Clara, ou então Corby tem realmente suspeitas de mim e descreveu o meu aspecto físico a esse homem. De Vries era um dos passageiros da camioneta em que viajava Clara.
- Quem é esse tal Corby?
- Um detective da polícia de Filadélfia. Aquele com quem eu falei quando fui identificar o corpo de Clara. - Walter esforçava-se por manter a calma. - De acordo com o que ele disse no primeiro interrogatório, Clara ter-se-ia suicidado.
- Mas se o homem te viu...
- Ele não viu nada - interrompeu-a Walter. - Ele não me viu quando eu cheguei, ou, melhor, quando Clara se deve ter atirado do penhasco. Ele viu-me foi quando eu estava à espera dela no restaurante.
- Mas, se tu a tivesses morto, naturalmente não terias andado pelo restaurante à procura dela durante pelo menos quinze minutos.
- Exacto! - exclamou Jon.
- Tens toda a razão. - Walter sentou-se no sofá. Ellie agarrou-lhe numa das mãos e apertou-a entre as suas:
- Estás com medo, não estás? - perguntou-lhe Ellie.
- Não!-replicou Walter. Apercebeu-se de que Jon olhava para eles, de mãos dadas e, instintivamente, tirou a sua. - A situação não podia estar mais negra para mim, pois não? Um caso como este nunca se consegue resolver correctamente, pois não?
-Claro que se consegue - atalhou Jon com impaciência.
- Vão-te chatear mais um bocado, até que obtenham mais provas concretas, e depois decidirão, certamente, que o caso não passou de um suicídio.
Walter olhou para Jeff, que dormia enroscado num dos cadeirões. Sempre que se ouvia o barulho de um carro, Jeff ia até à porta, como se estivesse à espera de Clara. Walter decidiu tomar outra bebida. Ele tinha-a amado de verdade. Dava a ideia de que ninguém se recordava disso, a não ser a Sr? Philpott. Fez um sorriso amarelo e deitou um pouco de soda no copo. Quando se voltou, Ellie olhava para ele.
Ellie levantou-se. - Tenho de ir andando. Amanhã tenho de me levantar cedo.
- Amanhã?! - perguntou Walter.
- Tenho de ir visitar a Irma, uma amiga minha de Nova Iorque. Vou levá-la a East Hampton. Ela tem lá uns amigos que nos convidaram para almoçar.
Apeteceu-lhe pedir a Ellie que ficasse um pouco mais, mas não se atreveu a fazê-lo em frente de Jon. Faltava-lhe sempre a coragem quando ele estava presente. -Telefonas-me amanhã? perguntou ele. - Fico em casa todo o dia, excepto entre as três e as cinco. Nessa altura realiza-se a cerimónia do funeral, na igreja de Benedict.
- Está bem. Telefono-te - acedeu Ellie.
Walter acompanhou-a até ao carro. Sentiu uma frieza tão grande da parte dela que não se atreveu a fazer nada. Ellie sentou-se ao volante e disse-lhe através do vidro: -Vê se não te preocupas muito, Walter. Vai correr tudo bem. - Ela inclinou-se e ele beijou-a.
Walter sorriu. - Boa noite Ellie.
Ela partiu. Walter assobiou a Jeff, que os tinha seguido, e voltaram a entrar em casa. Durante alguns minutos, ele e Jon permaneceram em silêncio.
- Gosto da Ellie - acabou por dizer Jon.
Walter limitou-se a acenar com a cabeça. Seguiu-se um novo período de silêncio. Walter conseguia imaginar exactamente o que Jon pensava de Ellie. Apertou as mãos transpiradas uma contra a outra.
- Mas, se eu estivesse no teu lugar, manteria Ellie afastada de tudo até que o caso estivesse resolvido - afirmou Jon.
-Sim.
Não voltaram a falar de Ellie.
Na manhã seguinte, Jon entrou no escritório de Walter com o jornal nas mãos.
- A notícia vem no jornal - disse Jon, colocando o jornal no sofá em que Walter estava sentado.
Na pequena cozinha da sua casa de duas assoalhadas, em Nova Iorque, Melchior Kimmel tomava o pequeno almoço. A refeição consistia em pão de centeio com queijo amanteigado e uma chávena de café com açúcar. O Daily News, de Newark, estava na sua frente, encostado ao açucareiro, e ele tinha os olhos fixos no canto inferior da primeira página. A mão que segurava a fatia de pão deteve-se no ar. Abriu a boca e os lábios grossos estremeceram.
Stackhouse! Lembrava-se do nome e, ao ver a fotografia, teve a certeza. Stackhouse! Não havia qualquer dúvida. Kimmel leu avidamente as duas colunas que compunham o artigo. Stackhouse seguira a mulher e fora identificado, embora ainda persistisse a dúvida se ele a tinha morto. «Crime, ou suicídio?» Era este o título de um parágrafo.
[...] Stackhouse confirmou que não tinha visto a sua mulher na paragem das camionetas. Teria aguardado cerca de quinze minutos, voltando para Long Island depois de a camioneta ter partido. O marido da vítima terá argumentado que só teve conhecimento do sucedido no dia seguinte, quando a polícia de Allentown entrou em contacto com ele a fim de identificar o corpo. A autópsia revelou que as lesões detectadas se deviam unicamente à queda no precipício [...]
A cabeça calva de Kimmel inclinou-se para a frente intencionalmente.
«Por que motivo não revelou ele à polícia o desaparecimento da mulher?» Este era o título do último parágrafo. «Na verdade, porquê?», pensou Kimmel. Era esta exactamente a pergunta que ele punha.
Mas o último parágrafo referia apenas o facto de Stackhouse ser advogado e trabalhar para a firma Cross, Martinson and Buchman e de Stackhouse e a mulher estarem em vias de divórcio. Terminava de uma forma interessante.
Um arrepio apoderou-se de Kimmel. Sentiu uma espécie de pânico. «Porque é que Stackhouse se teria dado ao trabalho de vir de Long Island para o ver?» Kimmel levantou-se calmamente e deu uma vista de olhos para a desarrumação que imperava no lava-louça, repleto de garrafas de cerveja vazias. Depois olhou para o relógio existente por cima do fogão e para o oleado já desbotado, com maçãs verdes e cor-de-rosa, que cobria uma das bancas da cozinha. Tudo aquilo lhe fazia recordar Helen. «Stackhouse deve estar implicado. Não havia qualquer explicação para tantas coincidências! Stackhouse vai ser apertado. É muito provável que ele acabe por confessar sob pressão. E se a polícia estabeleceu um paralelo com o meu caso?»
«Bem, eu não sou do tipo que se deixa abater. Que espécie de provas poderia a polícia arranjar contra mim? Especialmente tendo já decorrido dois meses...» Kimmel tentou lembrar-se, com pormenor, do dia em que Stackhouse o foi visitar à loja. Teria sido há cerca de três semanas, no princípio de Outubro. Ainda guardava a nota com o pedido do livro, pois este não tinha ainda sido enviado. Pôs-se a pensar se não seria melhor destruir aquela nota. «Se o livro chegar», pensou Kimmel, «não direi nada a Stackhouse.» Era muito natural que nessa altura Stackhouse estivesse preso.
Kimmel começou a arrumar a cozinha. Limpou a mesa de esmalte branco com um pano da louça. E Tony? Não se podia esquecer que ele o tinha visto no cinema, e a história de aí ter passado a noite deveria estar tão entranhada no espírito de Tony que este deveria certamente acreditar que o tinha lá visto durante toda a sessão. Porém, Tony tinha apenas sido sujeito a um pequeno interrogatório. O que é que aconteceria se a polícia o interrogasse durante várias horas?
«Não tenho de me preocupar, isso ainda não aconteceu», pensou Kimmel.
Começou a juntar as garrafas de cerveja, arrumando primeiro as mais antigas. Colocou-as alinhadas, junto à parede, desde o armário situado por baixo do lava-louça até à porta da cozinha. Olhou à sua volta e, descobrindo um saco de papel junto ao fogão, deu-lhe um pontapé, atirando-o para perto das garrafas. Voltou a agarrar no saco, encheu-o de garrafas vazias e dirigiu-se para o seu Chevrolet, estacionado no pátio. Voltou à cozinha com o saco vazio e tornou a enchê-lo com o resto das garrafas. Lavou as mãos com água e sabão, pois as garrafas estavam cobertas de pó. Subiu as escadas, dirigindo-se ao quarto, e procurou uma camisa branca, limpa. Estava ainda de calças e camisola interior.
Levou as garrafas para a loja de Ricco, que ficava a caminho da sua livraria. Tony estava do outro lado do balcão.
- Como vai isso hoje, Sr. Kimmel? -. perguntou Tony. - Que é isto? Andou a arrumar a casa?
- Foi isso, mais ou menos. Que tal são hoje as iscas?
- Oh! Boas como sempre, Sr. Kimmel.
Kimmel pediu uma sanduíche de iscas e outra com arenque e cebola. Enquanto Tony as preparava, Kimmel deu uma vista de olhos pelas embalagens de comida envolvida em celofane e voltou ao balcão com uma pequena embalagem com nozes, amendoins e uma pequena caixa com chocolate e alteia, atirando tudo para cima do balcão.
Tony ainda lhe devia dinheiro quando fez o desconto do depósito das garrafas. Kimmel juntou duas garrafas de cerveja. Ainda era muito cedo para vender cerveja, mas Tony abria sempre uma excepção a Kimmel.
Kimmel entrou no carro e dirigiu-se para a livraria numa velocidade moderada. Adorava as manhãs de domingo. Geralmente, nesses dias passava a manhã e parte da tarde na sua loja. A livraria não estava aberta aos clientes no domingo, mas o facto de lá estar dava-lhe a sensação de lazer e liberdade. Sentia-se bem a passar o seu dia livre no mesmo local em que trabalhava toda a semana. Além disso, sentia-se melhor na loja do que em casa. Ao domingo, na livraria, podia folhear os seus próprios livros sem ser incomodado, almoçar calmamente, dormir a sesta e pôr em dia a correspondência que. recebia de pessoas que nunca tinha visto, mas que lhe parecia conhecer muito bem. Amantes de livros: diz-me o que lês e dir-te-ei quem és.
O carro de Kimmel era um Chevrolet negro de 1941, com os estofos já gastos, apesar de exteriormente parecer ainda bem conservado. Kimmel gostaria de ter outro carro, pois Nathan e outros amigos seus, como Tony, faziam chacota dele por causa daquele modelo antiquado. Mas, como não tinha dinheiro para um carro novo, Kimmel preferia manter o antigo a trocá-lo por outro em segunda-mão. Costumava sentar-se ao volante com dignidade. Detestava grandes velocidades. Costumava até dizer aos seus amigos que o modelo de 1941 se adaptava perfeitamente à sua pessoa e ele próprio fazia por acreditar nisso.
Afunilou os seus grossos lábios e começou a assobiar Reich Mir die Hand, Mein Leben. Olhou para o céu e para os edifícios por onde passava, como se aquela zona de Newark fosse realmente um local aprazível. Estava uma bela manhã de Outono, tão fresca e soalheira que revigorava o espírito. Kimmel olhou para a águia de pedra escura situada na frontaria de uma das casas. A cabeça estava voltada para o céu e as garras esticadas. Sempre que observava aquela águia, lembrava-se de um determinado edifício existente em Breslau, embora nunca pensasse nesse local. Preferia pensar na paz que envolvia Newark, no agradável conforto da loja e da casa, nos amigos, nas estatuetas de madeira e nos seus livros. Como se sentia calmo e feliz -desde que Helen desaparecera. Lembrar-se-ia sempre de que a tinha morto, mas isso parecia-lhe uma dádiva meritória, algo que o resto do mundo lhe tinha concedido, pois ainda ninguém o tinha chamado a prestar contas. O mundo continuava a girar como se nada tivesse acontecido. Kimmel gostava de imaginar que toda a vizinhança, Tony, Nathan, Miss Brown, a livreira, Tom Bradley e os Campbells, que viviam na casa ao lado da sua, sabiam que ele tinha morto Helen e que esse facto não os incomodava absolutamente nada; fá-los-ia até sentirem-se orgulhosos dele, considerando-o como acima da lei dos mortais. Certamente a sua reputação no seio da comunidade tinha aumentado desde o desaparecimento de Helen. Tom Bradley convidava-o para sua casa, apresentando-o a pessoas importantes, coisa que nunca fizera quando ele vivia na companhia de Helen. Além disso, nem se tinha levantado a mais leve suspeita contra ele. Tinha excelentes relações com a polícia de Newark e com todos aqueles que o haviam interrogado.
Eram 9.55 quando Kimmel abriu a porta. Nunca abria a loja antes das 9.30, mesmo durante a semana, pois detestava levantar-se cedo, embora soubesse que poderia perder alguns clientes, nomeadamente estudantes, que de manhã passavam pela livraria a caminho da faculdade, situada três quarteirões à frente. Até há alguns meses atrás, Kimmel tinha uma rapariga, Edith, para abrir a loja e ajudá-lo durante a manhã. Começou a vê-la muito nervosa e pensou que o facto se podia dever a uma possível gravidez. Passado algum tempo, ela acabou por se despedir. Às vezes, Kimmel perguntava a si próprio se ela o tinha feito por suspeitar que ele tinha sido o assassino de sua mulher. Edith presenciara muita coisa: o confronto de que tinha resultado a destruição do candeeiro da sua secretária; as várias vezes que Helen tinha ido à livraria pedir-lhe dinheiro e as discussões daí resultantes, que o tinham chegado a levar a torcer os pulsos a Helen, p.ois era a única forma de a fazer calar.
Kimmel encolheu os ombros. Já tudo tinha passado.
Veio-lhe à ideia a nota de encomenda do livro de Stackhouse que ele guardara numa das gavetas da secretária, mas, quando se sentou, retirou de outra gaveta as cartas a que pretendia dar resposta e colocou-as sobre o tampo da mesa. Havia também alguns catálogos de publicações e pequenas brochuras que ainda não tinha acabado de ler. Kimmel adorava ler os catálogos de publicações e fazia-o com extrema atenção, quer tencionasse fazer algum pedido, quer não. O mesmo prazer que um apreciador de boa mesa revela ao consultar um cardápio variado. Descobriu uma carta do velho Clifford Wrexall, da Carolina do Sul, a que pretendia dar resposta. Este mandava pedir outro livro esotérico de pornografia. A pornografia era, aliás, a principal fonte de receita de Kimmel. Era conhecido, entre os principais coleccionadores desta espécie de livros, como o único negociante da matéria capaz de arranjar o mais difícil dos exemplares. Kimmel fazia as suas encomendas em Inglaterra, França, Isle of Man, Alemanha e na livraria de um americano excêntrico que vivia na Turquia, um velho texano, magnate do petróleo, reformado, que concordou em ceder a Kimmel algumas das suas relíquias, depois de muitos esforços e de numerosa troca de correspondência. Quando Kimmel, à custa de muito esforço, conseguia mandar vir de Dillard, na Turquia, um livro pornográfico, fazia-se pagar muito bem.
Kimmel acendeu o aquecedor a gás, um suplemento necessário para aquecer a atmosfera, e sentiu-se novamente, procurando as notas com os pedidos de livros nas gavetas da secretária. Ao encontrar o pedido de Stackhouse, agarrou nele e observou-o demoradamente. Stackhouse! Lá estava a morada de Long Island. Kimmel dobrou o papel novamente. O livro de Síackhouse não tinha ainda chegado. «Não há nenhuma razão para destruir o papel», pensou Kimmel. Isso poderia torná-lo ainda mais suspeito. Teve ainda o impulso de o esconder num compartimento secreto debaixo da última gaveta do lado esquerdo da secretária ou no cimo de uma caixa de charutos cheia de lápis e borrachas. Kimmel segurava o papel embrulhado entre o polegar e o dedo indicador, hesitante.
A porta abriu-se e um homem entrou.
Kimmel levantou-se. - Desculpe, mas hoje a loja está fechada.
O homem continuou a caminhar em direcção a ele, sorrindo.
- Como está? É o Sr. Melchior Kimmel?
-Sim. Em que posso ser-lhe útil? - perguntou Kimmel, ofegante, pois só se apercebeu de que ele era detective da polícia quando este lhe perguntou o nome. Kimmel estranhou o seu próprio comportamento, pois geralmente detectava-os à distância.
- Tenente Corby, da polícia de Filadélfia. Pode dar-me um minuto de atenção?
- Com certeza. O que é que se passa? - Meteu a mão que tinha o papel dentro do bolso das calças, metendo, de seguida, a outra mão no outro bolso.
- Trata-se de uma coincidência de circunstâncias. - O jovem tenente apoiou um dos cotovelos no tampo da secretária de Kimmel e puxou o chapéu para trás. - Por acaso leu no jornal o caso de uma mulher que há dias foi morta perto da paragem das camionetas?
- Sim. Vi isso no jornal esta manhã. - Kimmel tentava aparentar uma calma e honestidade muito características do Americano, segundo ele supunha. - E, como é natural, li-o.
Terá eventualmente pensado na possibilidade de um assassino-comum, ou, por acaso, desde a morte da sua mulher, já encontrou alguma pista que o leve a suspeitar de alguém em particular?
Kimmel sorriu. - Se isso se tivesse verificado, certamente já teria comunicado à polícia. Tenho estado em contacto com as autoridades de Newark.
- Sim, e eu sou de Filadélfia - disse Corby, esboçando um sorriso. - Mas esta última morte ocorreu no meu estado.
-Mas, de acordo com a notícia, eu pensava que se tinha tratado de um suicídio-afirmou Kimmel.- O marido é o culpado?
O tenente Corby voltou a sorrir. - Digamos que ele não está acima de qualquer suspeita. Ainda não sabemos nada de concreto. Ele tem agido como se fosse o culpado.-Tirou um cigarro, acendeu-o, afastou-se alguns passos da secretária, voltando depois ao mesmo sítio.
Kimmel observou Corby com um certo aborrecimento. Corby deixava transparecer uma expressão matreira e, ao mesmo tempo, idiota. Kimmel não tinha ainda a certeza se ele seria ou não inteligente.
-Afinal era uma forma muito prática de consumar um crime-disse Corby. - Seguir a camioneta e esperar até que ela pare. - Os olhos azuis de Corby detiveram-se em Kimmel. -Não podia ter falhado, pois a mulher segui-lo-ia até um local recôndito...
Kimmel teve vontade de escarnecer da hipótese ingénua posta por Corby e, para disfarçar, esfregou os pequenos olhos, reajustando os óculos, mas acabou por tirá-los para os limpar com um lenço. Kimmel pensava em algo fulminante, ou, pelo menos, conveniente, para dizer.
- Só que Stackhouse nem sequer tem um álibi - afirmou Corby.
- Talvez ele não seja o culpado.
- Ocorreu-lhe a possibilidade de Stackhouse ter assassinado a mulher?
«Mas que pergunta!», pensou Kimmel. É claro que o jornal admitiu essa possibilidade. Kimmel olhou para Corby com arrogância. - É muito natural que este assunto me deprima. Esta manhã apenas dei uma vista de olhos pela notícia. Hei-de lê-la outra vez. Ainda tenho o jornal lá em casa. - O Sr. Stackhouse em cima,da mesa da cozinha! Kimmel simpatizava ainda menos com Corby do que com Stackhouse. «Stackhouse deve ter tido as suas razões.» Kimmel cruzou os braços. - Afinal o que é que o senhor me queria perguntar?
- Bem, eu já perguntei! - disse Corby, aparentando mais modéstia. Moveu-se, inquieto, no pequeno espaço livre entre a secretária de Kimmel e uma das grandes mesas repletas de livros.- Esta manhã estive a consultar os ficheiros da polícia para saber mais alguma coisa sobre o caso da sua mulher. Na noite do crime, o senhor estava no cinema, não estava?
- Sim! - Com uma das mãos brincava com a navalha, dentro do bolso esquerdo, e com a outra amachucava o papel dobrado.
- O seu álibi foi confirmado por Anthony Ricco.
- Sim, é isso.
- E a sua mulher não tinha também nenhum inimigo que a pudesse ter assassinado?
-É possível. - Kimmel arqueou as sobrancelhas, numa atitude de mofa, e desviou os olhos para a secretária iluminada na sua frente. - A minha mulher não tinha um feitio muito agradável. Bem... nem para toda a gente. Mas, ao mesmo tempo, não me ocorre ninguém que a pudesse ter realmente assassinado. Por isso nunca apontei nenhum suspeito.
Corby acenou com a cabeça afirmativamente. - E o senhor nunca foi dado como suspeito?
Kimmel arqueou ainda mais as sobrancelhas. Se Corby pretendia intimidá-lo, ele mostrar-se-ia inatingível. - Que eu saiba, não. Se o cheguei a ser, nunca mo comunicaram. - Ele mostrou-se muito direito, com um domínio absoluto de si próprio, enquanto era observado por Corby.
- Eu gostava que o senhor lesse o caso de Stackhouse atentamente. Se quiser, posso mandar-lhe os ficheiros da polícia, os deste caso ainda podemos emprestar-lhos.
- Mas não tenho assim tanto interesse nisso - disse Kimmel.
- De qualquer modo, agradeço-lhe por ter pensado que vos poderia.ajudar. Se houver alguma coisa em que possa ser útil, é só dizer, mas acho que não será necessário. - Mais uma vez tentava assumir o comportamento típico do Americano, erguendo a cabeça atentamente.
- Provavelmente não será necessário. - Os lábios de Corby voltaram a esboçar um sorriso sob o bigode castanho. - Mas não se esqueça... Eu tenho a certeza de que não se esqueceu de que o assassino da sua mulher nunca chegou a ser descoberto. Poderá haver ligação entre os dois casos.
Kimmel entreabriu os lábios e perguntou: - Mas vocês andam à procura de um homem que ataca mulheres indefesas nas paragens das camionetas?
- Sim. Pelo menos um homem. - Corby voltou-se e preparou-se para sair. - É tudo. Muito obrigado, Sr. Kimmel.
-Será sempre bem-vindo. - Kimmel observou-o quando saía, examinando a sua figura impenetrável com o sobretudo cor de ferrugem, até que desapareceu de vista e a porta se fechou.
Voltou a tirar do bolso o papel dobrado e tornou a pô-lo junto dos outros pedidos, onde sempre tinha estado. «Se o livro de Stackhouse chegar, deixá-lo-ei ficar por aqui e não direi nada a Stackhouse», pensou Kimmel. Se a polícia descobrisse o pedido na sua secretária, diria que não se recordava do nome que estava no pedido. Era mais seguro destruir o papel. Se a polícia fizesse uma busca nos seus papéis, aperceber-se-ia de que alguma coisa tinha desaparecido.
Achava que estava a ficar demasiado ansioso e aborrecido. Esse não era o caminho certo. Por outro lado, até agora ninguém tinha adivinhado o que se passara nem como as coisas tinham decorrido. De repente, Stackhouse, e agora Corby, pareciam querer levantar uma ponta do véu. Kimmel sentou-se e voltou a ler atentamente a carta de Wrexall, preparando-se depois para lhe responder. Wrexall pedia-lhe um livro denominado Cães Famosos nos Bordéis do Século
Cerca de uma hora mais tarde, Kimmel recebeu, um telefonema de Tony. Este comunicava-lhe que um homem tinha aparecido no seu estabelecimento a fazer perguntas sobre a noite em que Helen fora assassinada e sobre os elementos que Tony fornecera à polícia. Kimmel ficou sobressaltado, mas não lhe disse que o homem também o tinha ido visitar. Pelo tom de voz, pareceu-lhe que Tony não tinha ficado muito perturbado com o facto. Da primeira vez Tony viera, pronta e pessoalmente, contar-lhe como decorrera o inquérito com a polícia.
Na segunda-feira, dia posterior ao funeral, Walter ficou em casa, embora não houvesse nenhum motivo que o obrigasse a lá ficar. Solícito e paciente, atendeu os telefonemas de condolências, a maioria dos quais de pessoas que nunca conhecera. Era realmente espantoso o número de clientes com quem Clara lidava e que agora o contactavam para lhe darem os pêsames pela morte dela.
Walter teve a sensação de que ninguém suspeitava dele. Embora a imprensa mais sensacionalista tivesse tentado tirar o maior partido possível do caso, na generalidade, os jornais tinham-se limitado a tecer breves comentários sobre a ocorrência. Dois ou três indivíduos, que ele praticamente mal conhecia, lamentaram a sua pouca sorte de ter estado no local do crime para tentar salvá-la, outros limitavam-se a fazer conjecturas sobre o motivo que teria levado Walter a seguir a camioneta, mas todos eles pareciam acreditar na sua inocência. Esta sensação sentira-a já Walter na noite em que Jon o acompanhou até Filadélfia e em que Walter ficara com a ideia de que Jon tinha certas dúvidas em relação ao caso. Walter suspeitava até que Jon punha em causa o motivo que lhe tinha apresentado para seguir a, camioneta; e nisso Walter achava que Jon tinha razão. Jon estava, mais do que ninguém, a par da relação entre ele e Clara. Estava muito mais dentro do assunto do que os próprios Iretons. No entanto, só depois do funeral de Clara falou Walter a Jon na sua intenção de se deslocar ao Reno para obter o divórcio. Jon achou o facto muito estranho. Durante as últimas semanas Walter revelara um comportamento pouco normal, não querendo ver ninguém. As dúvidas que Walter julgava detectar em Jon eram mais um pressentimento do que uma verificação. Estivera várias vezes tentado a falar abertamente com Jon, a pôr-lhe o caso em pratos limpos, sem artefactos de qualquer espécie, sem omitir sequer o pormenor do seu encontro com Kimmel, ou mesmo as intenções bizarras que o tinham assaltado na noite em que seguiu a camioneta. Porém, retraiu-se e acabou por não o fazer.
Jon, que era quem conhecia mais a fundo os problemas da sua relação com Clara, continuava a ser o seu melhor amigo. Esteve presente quando Walter necessitou da sua ajuda e afastou-se quando ele preferiu ficar sozinho. Na noite de quarta-feira, quando Ellie telefonou lá para casa, Jon estava junto dele.
Ellie queria apenas saber se a polícia tinha adiantado alguma coisa. Walter disse-lhe que a polícia de Nova Iorque tinha estado no seu escritório, de manhã, para o interrogar.
- Não foram hostis - afirmou Walter. - Limitaram-se a pedir que repetisse a história que já antes tinha contado. - O homem que o interrogara, vestido à paisana, estivera lá apenas alguns minutos a falar com ele e Walter não atribuíra grande significado ao facto. Se eles tivessem chegado a alguma conclusão, naturalmente tê-lo-iam contactado mais tarde.
Ellie não lhe perguntou quando se voltariam a encontrar Walter sabia que ela compreendera que não seria muito aconselhável encontrarem-se depois do que os jornais de domingo haviam noticiado. Iria complicar as coisas e era mais um motivo de sensação a juntar aos outros. Mas a ansiedade que Walter sentia foi superior às suas forças e acabou por perguntar:-Posso encontrar-me contigo amanhã à noite, Ellie? Podes vir jantar comigo cá a casa?
- Se achas que não há problema... Claro que posso. Quando Walter voltou à sala, Jon encontrava-se num dos
cantos, dando uma vista de olhos pelos discos.
- O que é que Ellie significa para ti, Walt? - perguntou Jon.
- Acho que é algo muito importante.
- Há quanto tempo dura a vossa relação?
- Não existe relação nenhuma! - replicou Walter, denotando um certo aborrecimento.
- Estás apaixonado por ela? Walter hesitou. - Não sei.
- Em relação a ela é óbvio.
Walter baixou os olhos, olhando fixamente para o chão, e sentiu-se comprometido como uma criança. - Gosto dela. Talvez até esteja apaixonado por ela. Ainda não sei muito bem.
- Clara tinha conhecimento disto?
- Sim. Mesmo antes de ter existido qualquer coisa de concreto.
-Deves ter-te encontrado com Ellie algumas vezes!...-disse Jon, erguendo os olhos.
- Só duas vezes. - Walter começou a andar pela sala. Pensava no trabalho que Clara tivera em escolher aquele tapete, correndo todos os armazéns de Manhattan até encontrar o que a satisfez.
- Deves ter-lhe causado uma destas impressões!... - disse Jon, soltando um riso abafado.
- Pode ser sol de pouca dura. Ainda não a conheço muito bem.
- Oh, deixa-te de coisas, não acreditas no que estás para aí a dizer. - A voz de Jon parecia o rugido amável de um urso.
- Não fiz nenhum plano em relação a Ellie - confessou Walter, atrapalhado. Ele e Jon pouco falavam de mulheres. Neste domínio limitavam-se a falar dos seus casamentos. Se Joa tivera eventualmente algum envolvimento desde que se divorciara de Stella, pelo menos nunca lhe tinha tocado no assunto. Walter, por seu lado, nunca tinha tido qualquer relação extraconjugal até conhecer Ellie.
Jon levantou-se com uma série de discos nas mãos. - A propósito, gostava de repetir que gosto da Ellie. Se vocês gostam um do outro, também está bem.
O sorriso de Jon contagiou Walter. - Posso preparar-te uma bebida?
- Não, obrigado. Tenho de manter a linha.
- Nunca conseguirás emagrecer. Façamos um brinde a Ellie. Walter preparou dois uísques com soda e pô-los em cima da
mesa de café. Sentaram-se e pegaram nos copos. De repente, Walter franziu a testa e fez uma careta. Havia lágrimas nos seus olhos.
- Walter, acalma-te homem!-Jon estava sentado ao lado dele, com um dos braços sobre os ombros de Walter.
Pensava em Clara, desfeita, transformada num punhado de cinzas, guardadas numa caixa cinzenta. Clara que era tão bela, cujo corpo ele tinha estreitado entre os seus braços vezes sem conta. Sentiu que Jon lhe tirava o copo das mãos, mas deteve-o. - Achas que eu sou um miserável, não achas? - perguntou Walter. - Eu acho-me um autêntico miserável por estar aqui sentado a brindar a outra mulher quando a minha acabou de ser enterrada.
- Deixa-te de tolices, Walter. Claro que não acho!
- E por estar aqui sentado a falar nestas coisas todas, não me achas um miserável? - Walter continuou a falar com a cabeça inclinada para trás. - Deixa-me dizer-te que, apesar de tudo, amei Clara profundamente. Amei-a mais do que a qualquer outra mulher.
- Walt, eu sei isso.
- Não, tu não sabes nada. Ninguém sabe. - Walter sentiu que o copo se esmagava entre as suas mãos. Olhou para elas, segurando ainda um pedaço de vidro entre os dedos ensaguentados, e acabou por deixá-lo também cair no chão. - Tu não sabes; tu não sabes o que isso é. -Walter pensava na casa vazia, na cama em que agora dormia sozinho e nos lenços garridos de Clara, ainda guardados numa das prateleiras do armário do quarto. Pensava também em Jeff, esperando por ela dia e noite. Parecia-lhe estar a ouvir a voz de Clara...
Walter tentou levantar-se. Apercebeu-se de que Jon queria que ele fosse lavar as mãos, feridas pelos estilhaços do copo e começou a pedir desculpa.
- Desculpa-me, Jon. Peço imensa desculpa. Não é a bebida... - Tu nem sequer bebeste! -Jon tentava fazê-lo subir as escadas. - Agora vais lavar as mãos e a cara e esquecer tudo.
Nessa semana, Walter pouco teve que fazer no escritório. Dick Jensen tinha já resolvido a maior parte dos assuntos que seriam da sua incumbência, em trabalho de substituição pelas seis semanas que Walter iria estar ausente. Tirando partido da situação, Walter saía mais cedo todas as tardes. O ambiente do escritório deprimia-o ainda mais do que se ficasse em casa. Na quinta-feira, por volta das 3 horas, resolveu ir ter com Dick.
- Dick, vamos largar isto no mês que vem - sugeriu-lhe Walter. - Porque não telefonamos ao Sherman e lhe comunicamos que estamos dispostos a assinar o contrato de arrendamento no princípio de Dezembro, ou mesmo em meados de Novembro, caso o escritório já esteja vago nessa altura? - Sherman era o agente imobiliário que tinha a seu cargo o arrendamento do edifício da Rua 44 que eles tinham escolhido para montar o seu escritório.
Dick Jensen olhou para ele com gravidade e Walter apercebeu-se de que tinha reagido de uma forma um tanto histérica e que, naturalmente, Dick atribuiria a sua histeria à perda de Clara.
- Parece-me que seria preferível deixarmos que os ânimos se acalmassem - disse Dick.-Isto não significa que eu... Eu sei que tu não tiveste culpa nenhuma, Walt, mas, em minha opinião, acho que esta não é a altura mais oportuna para nos abalançarmos a montar um escritório de advocacia.
- As pessoas que vamos ter como clientes estar-se-ão nas tintas para o que aconteceu - atalhou Walter, Dick abanou a cabeça. Tinha-se levantado e continuava atrás da secretária. Notava-se uma certa preocupação no seu rosto.
- Repara bem, Walt. Nâb é que eu ache que isso vá ser catastrófico para nós, mas dá-me a sensação de que ainda não te apercebeste muito bem do quanto tudo isto te abalou. Por isso eu tento apenas evitar que as coisas sejam feitas precipitadamente; tento salvaguardar os nossos interesses.
«O que ele quer dizer é que não está disposto a cooperar num empreendimento que à partida está votado ao fracasso, pois o outro sócio tem má reputação», pensou Walter. «E ainda há bem pouco tempo, na terça-feira, Dick fez um discurso tão pomposo e convincente sobre a máxima confiança que depositava em mim... Ele próprio me assegurou que estava absolutamente certo da minha integridade!»
- Mas tu disseste que não tinhas qualquer dúvida de que tudo acabaria por se esquecer. No princípio de Dezembro já ninguém se lembraria de nada. O que eu há pouco te queria dizer era que achava preferível informar Cross das nossas intenções, com um mês de antecedência, e começarmos a fazer propaganda do nosso escritório. Se nos pusermos à espera de Dezembro para tomar qualquer iniciativa, só lá para meados de Janeiro receberemos a visita do primeiro cliente - disse Walter.
-Continuo a achar que devemos ter paciência e aguardar, Walt.
Walter reparou no ar balofo de Dick, metido naquele fato de corte clássico. O colete fazia uma série de pregas sobre o enorme volume do estômago, aumentado à custa de pequenos-almoços substanciais e de muita inactividade. Dick podia dar-se por feliz por ter uma mulher bem disposta e carinhosa que o esperava em casa, cheia de vida. Por isso mesmo, ele dava-se ao luxo de decidir as coisas pacientemente e com calma. Walter colocou a mala dos documentos no chão e vestiu o sobretudo.
- Já vais? - perguntou Dick.
- Sim. Isto aqui deprime-me. Estes papéis, também os posso ler em casa. - Walter encaminhou-se para a porta.
-Acho que está na altura de darmos a notícia a Cross. Ou, melhor, devemos pô-lo a par das nossas intenções com um mês de antecedência. Portanto, a próxima segunda-feira... dia um de Novembro, será, penso eu, a altura ideal.
- Está bem. Já redigi a minha carta pedindo a exoneração. Só me falta pôr-lhe a data.
Quando se encaminhava para o elevador, ocorreu-lhe a ideia de que provavelmente Dick tinha concordado em participar a Cross apenas porque, se viesse a mudar de ideias, poderia ainda ficar com o seu lugar. Dava a sensação de que Dick estava a tentar esquivar-se a assinar o contrato de arrendamento.
A caminho do parque de estacionamento, Walter reparou numa montra repleta de objectos de vidro. Entrou e comprou uma jarra de cristal sueco para oferecer a Ellie. Não tinha a certeza se ela iria gostar do presente, mas, pelo menos, iria fazer um figurão no apartamento dela. O apartamento de Ellie não estava decorado segundo um estilo particular. Ela foi-o mobilando de acordo com o seu gosto, sem atender aos estilos mais em moda.
Em Benedict parou em duas ou três lojas e comprou bifes, cogumelos, verduras para salada e uma garrafa de Médoc. Tinha dispensado Claudia nessa tarde, aliás tal como fizera nas três tardes anteriores, pois ele e Jon preferiam ser eles próprios a cozinhar. Passou o resto da tarde a ler os processos que tinha trazido do escritório e, por volta das 6.30, foi para a cozinha e começou a preparar o jantar. Depois acendeu a lareira da sala de estar.
Ellie tocou à campainha às 7.02. Walter estava tão certo da pontualidade dela que começou a preparar os martinis exactamente às 7 horas.
- Toma, isto é para ti - disse Ellie, estendendo-lhe um ramo de flores envolto em papel de cera.
Walter aceitou a oferta e sorriu.-És uma rapariga bestial!
- Porquê?
- Trazeres flores a um homem!...
- São umas florzitas que colhi num dos canteiros do parque de estacionamento do meu prédio.
Na cozinha, Walter desembrulhou a jarra de cristal que tinha comprado e colocou-lhe as flores. Os trevos e as margaridas tinham os pés tão curtos que quase desapareciam no interior da jarra. Agarrou no arranjo e levou-o apressadamente a Ellie.
- Isto é para ti - disse ele.
- Oh, Walter! A jarra? É muito bonita!
- Ainda bem - disse ele, satisfeito por ela ter realmente gostado da oferta.
Ellie foi buscar outro recipiente para pôr as flores e trouxe a jarra para a sala, colocando-a em cima da mesa, para a poder apreciar enquanto bebiam os cocktails. Ellie trazia um fato de seda cinzento-escuro, que ele não conhecia ainda, brincos e os sapatos pretos de camurça de que ele tanto gostava. Walter sabia que, nessa noite ela se tinha esmerado para lhe agradar.
- Quando é que abandonas esta casa? - perguntou ela.
- Nem sequer pensei nisso. Achas que devo?
- Penso que sim.
- Tenho de ver se falo com alguém sobre o assunto. O pessoal da Knightsbridge já se ofereceu para resolver o problema, caso eu queira livrar-me dela. - De repente, Walter lembrou-se de que havia também a propriedade da mãe de Clara, em Harrisburg. Apesar de Clara ter falecido primeiro, metade da propriedade pertencia-lhe, de acordo com a decisão da mãe de Clara. Contudo, havia ainda uma irmã da Sr.a Haveman que vivia algures na Pensilvânia. Walter ia abdicar dos seus direitos à propriedade e ao resto da herança a favor dela.
- Estás a dormir? - perguntou Ellie.
- Basta! - Apetecia-lhe beijá-la, mas conteve-se. - Está bem. No mês que vem mudo de casa e de emprego. Dick já concordou em entregar o seu pedido de exoneração na segunda-feira. Pelo menos no princípio de Dezembro já devemos estar instalados no novo escritório.
- Ainda bem. Fico satisfeita com isso. Então o Dick não se ralou com a história que os jornais andam para aí a propagar?...
-Não-disse Walter. - Nessa altura já tudo estará esquecido. - Walter sentia-se optimista e confiante. O martini estava perfeito e o seu resultado iria ser certamente eficaz. Levantou-se e foi sentar-se junto de Ellie, abraçando-a com ternura.
Ela beijou-ò levemente nos lábios. Depois levantou-se e começou a andar. Walter olhou para ela surpreendido.
- Por acaso será este o momento adequado para te perguntar qual será o meu papel no meio disto tudo? - perguntou ela, sorridente.
- Amo-te, Ellie. Isto diz tudo. - Ele aguardou a reacção dela. Sabia perfeitamente que ela não estava à espera que ele marcasse uma data para o casamento. Ainda era demasiado cedo. Ellie pretendia apenas certificar-se de que ele a amava. Pelo menos, isso ele podia garantir-lhe. Teve a certeza nessa mesma noite.
Acabaram de beber os martinis e prepararam outra dose. De seguida foram para a cozinha preparar o jantar. As batatas já estavam no forno. Ellie falou de Dwight, o seu melhor aluno, enquanto se ocupava dos cogumelos. Dwight tinha começado a tocar as sonatas de Mozart com menos de dois meses de ensino. Era um menino-prodígio. Ao mesmo tempo que a ouvia falar, Walter perguntava a si próprio se ele e Ellie alguma vez teriam um filho que fosse dotado para a música. Imaginava-se casado com Ellie. Via-a a tomar banhos de sol no terraço, no Verão, ou com a cabeça envolta num lenço de lã, dando com ele longos passeios na neve, no Inverno. Tencionava apresentá-la a Chad. Iriam certamente simpatizar um com o outro.
-Não estás a ouvir nada do que eu estou a dizer! -observou Ellie, aborrecida.
- Claro que estou. Estavas a contar que Dwight já toca Mozart...
- Isso já eu disse aí há uns bons cinco minutos. Acho que está na hora de fazermos os bifes; que achas?
O telefone tocou quando Walter ia pôr os bifes ao lume. Olharam um para o outro e Walter pousou os bifes para ir atender o telefone.
- Está? É o Sr. Stackhouse?
- Sim. O próprio.
- Daqui tenente Corby. Seria possível encontrar-me consigo por breves minutos? É muito importante. Não o demorarei muito. - Corby falou num tom tão seguro e confiante que Walter ficou hesitante, procurando a melhor maneira de se esquivar ao encontro.
-Não podemos discutir o assunto ao telefone? É que eu agora...
-É apenas uma questão de cinco minutos. Estou mesmo aqui em Benedict.
- Está bem - acabou por concordar Walter.
Foi até à cozinha, praguejando e tirando o avental.
- Corby - disse Walter. - Vem aí. Disse que eram só cinco minutos, mas acho preferível que ele não te~veja aqui, Ellie.
Ela comprimiu os lábios.-Está bem-disse um pouco contrariada.
Ellie apressou-se a sair e Walter não fez nada para a deter. Era até possível que Corby e ela se encontrassem à porta e Walter não queria que isso acontecesse.
- Porque não vais tomar um copo à Three Brothers Tavern? Eu telefono-te para lá depois de ele se ir embora.
- Não me apetece beber mais - disse ela. - Mas vou até lá. Walter estendeu-lhe o casaco. - Desculpa este imprevisto,
Ellie.
- Bem, o que é que se há-de fazer?... - disse ela, saindo. Walter deu uma vista de olhos pela sala. Agarrou no copo
com o resto do martini que Ellie estivera a beber. O copo dele estava na cozinha. Pelo menos, a mesa ainda não estava posta. O telefone voltou a tocar. Walter voltou-se e pousou o copo de Ellie em cima da lareira, por detrás do vaso com a hera. Era Bill Ireton. Telefonava para lhe dizer que tinha acabado de receber a visita de um tal tenente Corby, da polícia de Filadélfia, e que este lhe tinha feito uma série de perguntas sobre a vida particular de Walter, sobre os seus amigos de Benedict e da sua relação com Clara.
- Walter, sabes perfeitamente que já nos conhecemos há bastante tempo; há aproximadamente três anos. Não tenho absolutamente nada a dizer de ti e, aliás, foi exactamente o que fiz quando esse tal tenente me interrogou. Compreendes, não compreendes? - perguntou Bill.
-Sim. Obrigado, Bill.-Walter ouviu o barulho do carro de Corby, que acabava de chegar.
-Eu disse-lhe que tu e Clara realmente não eram o casal mais feliz do mundo. Não pude negar esse facto, mas também lhe disse que punha as minhas mãos no fogo em como tu não tinhas nada a ver com a morte da tua mulher. Ele perguntou-me se eu tinha conhecimento de alguma briga violenta entre ti e Clara e eu respondi-lhe que tu eras o tipo mais calmo que eu conheci em toda a minha vida.
«Estou tramado!», pensou Walter. A voz de Bill ecoava nos seus ouvidos. Apetecia-lhe ir despejar o cinzeiro à sala.
-Ele perguntou-me também se eu sabia alguma coisa da questão do divórcio. Eu disse-lhe que sim.
- Fizeste bem. Obrigado por me teres avisado. Fico satisfeito com isso.
- Podemos ajudar-te nalguma coisa, Walter?
- Penso que de momento não necessito de nada. - A campainha tocou. Walter manteve a voz baixa. - Depois telefono-te, Bill. Dá cumprimentos meus à Betty. - Desligou e foi até à porta.
- Boa noite - disse Corby, tirando o chapéu. - Peço desculpa de o vir a incomodar a estas horas.
- Não há problema nenhum.
Enquanto se dirigiam para a sala, Corby olhou à sua volta, inspeccionando tudo por onde passava. Tirou o casaco e colocou-o, juntamente com o chapéu, em cima de uma cadeira. Aproximou-se da lareira e começou a deambular. Parou e Walter reparou que ele olhava na direcção do cinzeiro, colocado em cima da mesa, contendo algumas pontas de cigarro manchadas de baton.
- Vim interrompê-lo - disse Corby. - Peço imensa desculpa.
- De maneira nenhuma. - Walter pôs as mãos nos bolsos do casaco. - Qual é o assunto de que me queria falar?
- Oh!... Perguntas de rotina. - Corby deixou-se cair no sofá e cruzou as pernas. - Estive a falar com alguns amigos seus que moram na vizinhança, pelo que é natural que eles o informem. É um costume nosso. - Corby sorriu. - Mas também falei com o tal Kimmel.
-Kimmel?!-Walter ficou tenso, na expectativa de que Corby dissesse que Kimmel o pusera ao corrente da sua visita à livraria.
- Sabe, aquele homem de que lhe falei no outro dia, cuja mulher foi assassinada num matagal, perto de Tarrytown? Aquele outro caso ocorrido na paragem das camionetas.
- Ah, agora me lembro - disse Walter.
Corby retirou um dos cigarros com filtro. - Estou tão convencido de que esse homem é culpado...
Walter acabou também por tirar um cigarro. - Está a trabalhar no caso Kimmel?
- Sim. Esta semana tenho estado ocupado com esse caso. Claro que o assunto me tem interessado desde Agosto. Interesso-me por todos os casos que não tenham ainda sido solucionados. Talvez eu consiga desvendar o mistério em que tem estado envolvido -afirmou ele explanatoriamente, com o seu sorriso jovial. - Depois de conhecer Kimmel e de estudar melhor as circunstâncias em que o crime ocorreu, tenho grandes suspeitas acerca dele.
Walter manteve-se em silêncio.
-Ainda não temos provas contundentes contra Kimmel. Pelo menos, eu não as tenho - acrescentou Corby com falsa modéstia. - E eu acho que a polícia de Newark não tem desenvolvido todos os esforços para resolver o caso. Já não se recorda muito bem dos pormenores, pois não?
- Recordo-me apenas do que me contou. Você disse-me que a mulher do Kirnmel tinha sido assassinada.
-Sim. Eu acho que o Kimmel não tem muito de comum consigo, mas parece-me que você é capaz de ter bastante a ver com ele.
- Não percebo aonde quer chegar!...
Corby inclinou a cabeça para trás, apoiando-a numa das almofadas do sofá, e passou a mão pela testa, numa atitude de fadiga. Havia uma marca rosada na sua testa, provocada pelo chapéu, e olheiras profundas, que faziam realçar o tom azul dos seus olhos. - O que eu queria dizer era que Kimmel anda perturbado com o caso Stackhouse, mais perturbado do que pretende demonstrar. E o mais interessante é que, quanto mais incomodado e transtornado ele fica, mais vulnerável se torna e acabará por se trair inconscientemente. Pelo menos, assim o espero. - Corby deu uma gargalhada. - Se bem que me pareça que ele não é o tipo de pessoa que se trai com muita facilidade.
«Entretanto eu sirvo de cobaia», pensou Walter. Corby parecia estar a querer exagerar o intuito da investigação do caso Stackhouse, para o transformar num novo caso Kimmel. Walter escutava-o atentamente, sem esboçar o mais leve movimento. Desta vez tentaria cooperar mais.
- Kimmel é um fulano grandalhão e rechonchudo, com bons miolos, se bem que um pouco megalómano. Gosta de bajular os seus inferiores. Fez-se a si próprio e considera-se um intelectual; e na realidade é-o.
O sorriso de Corby irritou Walter. «O tipo deve achar isto um jogo divertido!», pensou Walter. «Um jogo de polícias e ladrões. Realmente é preciso ter um espírito terrivelmente mesquinho e ser-se muito desagradável para se dedicar exclusivamente à investigação de homicídios, nomeadamente quando esse trabalho é feito com tanta satisfação e entusiasmo como os revelados por Corby.» - O que espera que Kimmel faça? - acabou Walter por perguntar.
- Que acabe por confessar. É exactamente isso que eu tentarei levá-lo a fazer. Andei a investigar e acabei por descobrir uma série de factos sobre a mulher dele, e as conclusões a que cheguei são suficientemente elucidativas de que Kimmel odiava a mulher de tal maneira, que provavelmente o divórcio não o satisfaria. Tudo isto se adapta perfeitamente ao carácter de Kimmel, que pode passar despercebido até que as pessoas contactem com ele e procurem conhecê-lo mais em profundidade. - Olhou para Walter e esmagou o cigarro no cinzeiro, perguntando:
- Importa-se que eu dê uma vista de olhos pela casa?
«As visitas costumam fazer exactamente esta pergunta», pensou Walter. - Esteja à sua vontade.
Walter ia acompanhá-lo às escadas, mas Corby deteve-se em frente à lareira. Estendeu a mão e agarrou no copo que estava escondido atrás do vaso com a hera. Rodou o pé do copo entre os dedos. Walter sabia que o rebordo estava manchado de baton.
- Deseja beber alguma coisa? - perguntou-lhe Walter.
- Não, obrigado. - Corby pousou o copo e esboçou um sorriso ao mesmo tempo que dirigia a Walter um olhar compreensivo. - Esteve com a menina Briess esta noite?...
- Sim - respondeu Walter inexpressivamente. Depois indicou a Corby as escadas que davam acesso ao piso de cima. Corby ainda não tinha telefonado a Ellie. Atribuíra-lhe uma designação categórica, que Walter imaginava ser «namorada» ou «amante». Os pormenores eram irrelevantes.
Corby entrou no quarto, mirou-o de alto a baixo com as mãos nos bolsos e absteve-se de fazer comentários. Depois saiu e Walter mostrou-lhe a outra pequena sala, situada na outra extremidade do corredor, que se destinava a servir de quarto das criadas, embora a única mobília existente fosse um sofá. Walter explicou-lhe que a criada deles não dormia lá em casa.
- Quem é a sua criada? - perguntou Corby.
- Claudia Jackson. Vive em Huntington. Vem trabalhar duas vezes por dia; de manhã e ao fim da tarde.
- Importa-se de me dar a morada dela? - Corby agarrou na sua agenda.
- Spring Street, n.º 717, Huntington.
Corby tomou nota dos dados. - Ela não está agora cá em casa, pois não?
- Não - respondeu Walter, franzindo o sobrolho.
-Têm quarto de hóspedes? - perguntou Corby quando se dirigia para o hall.
- A minha mulher nunca quis quarto de hóspedes. Há um compartimento ali ao fundo que serve de sala de estar.
Corby deu uma vista de olhos por ele, não mostrando interesse. Nunca se serviam daquela sala, embora Claudia a mantivesse sempre arrumada. Agora Walter achava-a fria e pouco acolhedora como uma secção de exposições numa casa de mobílias.
- Pensa ficar com a casa? - perguntou Corby.
- Ainda não decidi. - Walter abriu outra porta. - Aqui é o meu escritório.
- É agradável! - exclamou Corby, apreciando o ambiente. Dirigiu-se às estantes, com as mãos cruzadas atrás das costas, segurando o casaco. - Tantos livros de direito! Costuma trabalhar muito em casa?
- Não, nem por isso.
Corby olhou depois para a secretária, onde, a um dos cantos, estava o enorme álbum onde Walter arquivava os rascunhos dos seus ensaios e os recortes de jornais. - é um álbum de fotografias? - perguntou Corby, dirigindo-se a ele.
- Não. É uma espécie de livro de apontamentos.
- Posso vê-lo?
Walter fez um gesto com a mão para que Corby o consultasse, se bem que não lhe agradasse muito a ideia de o ver tocar-lhe. Apetecia-lhe fumar, mas, como não tinha cigarros à mão, cruzou os braços. Aproximou-se de uma das janelas. Através do vidro via a imagem reflectida de Corby inclinado sobre o álbum, a folheá-lo atentamente.
- Que é isto? - perguntou Corby.
Walter voltou-se. -É uma espécie de passatempo. São notas que eu tiro sobre pessoas, para depois redigir alguns ensaios que tenho em mente. - A testa de Walter franzia-se cada vez mais. Aproximou-se de Corby, tentando encontrar um motivo que o levasse a afastar-se do álbum, cujas últimas linhas o tenente se esforçava por decifrar. Walter observou-o a voltar outra página. Havia um recorte de jornal solto. Walter olhou para o pedaço de papel. As dimensões e as letras impressas correspondentes ao título eram-lhe familiares. Não podia acreditar!
Corby agarrou no artigo. - Mas isto é sobre Kimmel! - exclamou Corby, incrédulo.
- Ai é? - perguntou Walter no mesmo tom.
-Pois é! -disse Corby, dirigindo um sorriso amarelo a Walter. - Você recortou-o do jornal.
-É possível, mas não me lembro de o ter feito. - Walter olhou para Corby e, nesse preciso instante, algo de terrível aconteceu entre eles; o rosto de Corby denotava uma surpresa natural, como se acabasse de ter feito uma descoberta sensasional, a descoberta da mentira de Walter. Durante alguns momentos, olharam um para o outro como simples seres humanos e Walter sentiu que o efeito que aquilo provocara nele era devastador.
- Tem a certeza de que não se recorda?... -perguntou Corby.
- Não! Nunca me servi dele. Costumo recortar muitas coisas dos jornais - disse ele apontando para o álbum. Havia dez ou doze outros artigos de jornal, espalhados pelas folhas do álbum. «E eu que pensava que tinha deitado fora o raio do artigo sobre o caso Kimmel!»
Corby voltou a olhar para o artigo, colocou-o no local onde estava e voltou a inclinar-se sobre o álbum, lendo com atenção os rascunhos de Walter existentes na folha. Walter verificou que era a página em que escrevera sobre Jensen e Cross. Não tinha nada a ver com o caso Kimmel. «Se calhar até era melhor que fosse a propósito!»
- Isso são apenas uma série de notas sobre amizades injustificáveis - explicou Walter. - Coisas como esse artigo que tem na mão. É provável que eu o tenha recortado do jornal, pensando que o assassino acabaria por ser descoberto e mais tarde me tenha esquecido do nome. O que me interessava era a relação entre o assassino e a vítima. Como não se chegou a nenhuma conclusão, penso que foi por isso que me esqueci do nome. É uma coincidência espantosa! Se eu tivesse...- De repente, Walter começou a conjecturar.
Corby olhou para ele sagazmente, embora ainda não se tivesse refeito da surpresa. Observava Walter como se estivesse na expectativa de que Walter dissesse alguma coisa, reconhecendo a sua culpa. Corby sorriu. - Eu gostaria de saber o que é que lhe passou pela cabeça quando recortou o artigo.
- Já lhe disse. Interessava-me saber quem teria sido o assassino. Só que... - Walter esteve prestes a dizer-lhe que tinha recorrido também a um recorte de jornal que relatava o caso de um crime no seu ensaio sobre Mike e Chad. O crime tinha resultado de uma amizade injustificável. Mas esse artigo já há muito que fora deitado fora. - Interessava-me a relação entre Helen Kimmel e o assassino. - Walter reparou que Corby tinha retido o nome dela.
- Continue - disse Corby.
-Não há mais nada a dizer - afirmou Walter. Ocorreu-lhe a ideia da possibilidade de alguém ter colocado o recorte de jornal sobre o caso Kimmel no álbum. Mas afinal era exactamente o recorte que ele tinha retirado do jornal. Reconheceu as notas nas margens e os sublinhados. De repente lembrou-se de que o pedaço de papel tinha caído no chão, no dia em que o amachucou e o atirou para um dos cantos do escritório. Na altura tivera preguiça de o apanhar e, provavelmente, Claudia descobrira-o e guardara-o. - Sabe, é que eu atirei-o... - As palavras morreram-lhe nos lábios. Não queria confessar que se lembrava perfeitamente da cena. «Raios partam a Claudia!», pensou ele. «Raios partam tanta eficiência! Porque é que ela se havia logo de lembrar de o pôr dentro do álbum?»-Não é nada. Não tem importância.
- Pode ser que tenha - Corby tentava persuadi-lo.
- Não. Não tem importância nenhuma.
- Alguma vez se encontrou com Kimmel ou falou com ele?
- Não - disse Walter. Quis voltar atrás, mas já era tarde de mais. Estava terrivelmente indeciso entre a hipótese de lhe contar toda a verdade agora, ou então ocultar tudo o que pudesse acerca do seu encontro com Kimmel. «Mas... E se Kimmel amanhã vai contar tudo?» Walter sentia-se vítima de um complicado conluio, como se tivesse caído numa emaranhada teia que pouco a pouco o ia asfixiando.
Corby pôs uma das mãos nos bolsos das calças e aproximou-se de Walter. Andou à volta dele, mantendo sempre uma certa distância, como se tentasse vê-lo melhor à luz desta nova pista.
-Você anda mesmo obcecado com o caso Kimmel, não anda? - perguntou Walter.
- Obcecado? - Corby deu uma gargalhada depreciativa. -Neste momento tenho entre mãos, pelo menos, meia dúzia de casos de homicídio!
-Mas, tanto quanto me parece, o caso Kimmel não lhe sai da cabeça - explodiu Walter.
- Sim. Pode dizer-se que foi a semelhança entre os casos que me levou a reabrir o processo do caso Kimmel. A polícia de Newark tinha já abandonado as investigações, concluindo que o assassino seria algum desconhecido, um maníaco qualquer. Mas agora você forneceu-nos uma nova pista que poderá ser muito útil para chegarmos ao verdadeiro criminoso. - Corby calou-se, deixando as palavras no ar. - Afinal, o álibi de Kimmel não é assim tão consistente. A verdade é que ninguém o viu no momento em que ocorreu o crime. Por acaso já lhe passou pela cabeça a ideia de que Kimmel seja o possível assassino da mulher? Não se lembrou disso quando recortou o artigo, ou mesmo depois?
- Não. Acho que não. O artigo dizia que... - Deteve-se. Lembrou-se de que o jornal não fazia qualquer alusão ao álibi de Kimmel.
- Deve ser apenas coincidência, não acha?
Walter manteve-se calado. Aborrecia-o o facto de não ser capaz de identificar as ocasiões em que Corby se mostrava mais sarcástico.
- Importa-se que eu leve isto? - perguntou Corby, pegando no recorte.
- Faça favor.
Corby guardou o artigo na sua carteira é meteu esta no bolso.
«O que é que ele irá fazer com aquilo? Será que o vai mostrar a Kimmel?»
- Vai ver que consegue arranjar outras informações mais interessantes nos jornais sobre Melchior Kimmel - afirmou Corby, sorrindo. - Só espero é que não tenha de o incomodar novamente, como fiz hoje.
Walter não ligou nenhuma importância às palavras de Corby. Não tinha quaisquer dúvidas de que a história de- ele ter guardado o artigo sobre o caso Kimmel iria aparecer nos jornais mais cedo ou mais tarde. Saíram da sala. Corby foi buscar o casaco e o chapéu, que tinha deixado em cima de uma cadeira. Sentiu um cheiro estranho no ar. - Tem alguma coisa ao lume? Cheira a queimado?
Walter ainda não se tinha apercebido. Correu até à cozinha e desligou o forno. Eram as batatas! Abriu uma das janelas da cozinha.
- Desculpe ter-lhe estragado a noite -disse Corby quando Walter voltou.
- Não tem importância. - Acompanhou Corby até à porta da rua.
- Boa noite - disse o tenente.
- Boa noite.
Walter dirigiu-se imediatamente para o telefone, aguardando, no entanto, que o carro de Corby se afastasse. «O que é que eu vou dizer a Ellie? E aos outros? Não posso dizer-lhes nada.» Walter franziu a testa ao imaginar que os assuntos tratados nessa noite iriam aparecer nos jornais. Não se podia condenar um homem só pelo simples facto de ele ter em seu poder um recorte de jornal! Kimmel nem sequer tinha sido ainda inculpado. Se calhar, na realidade, não o era. Até aqui somente Corby suspeitava dele, além de Walter, é claro.
Walter subiu as escadas a correr. Lembrara-se de outro pormenor qualquer. Abriu a última gaveta da secretária e retirou um pequeno livro que, esporadicamente, utilizava como diário. Havia semanas que não escrevia lá nada. Mas lembrava-se de ter escrito qualquer coisa nos dois dias que se seguiram à recuperação da tentativa de suicídio de Clara. No último parágrafo escrevera: «É curioso que, durante os períodos mais importantes da vida de um indivíduo, ninguém se lembre de os anotar num diário. Há certos pormenores que, mesmo aqueles que habitualmente anotam tudo no diário, evitam pôr por escrito, pelo menos na altura em que os acontecimentos ocorrem. E que perda, se por acaso se pretende ser o mais honesto possível com os casos reais. O principal valor dos diários é o facto de eles permitirem registar períodos difíceis, os períodos em que as pessoas se sentem demasiado cobardes para exteriorizar as suas fraquezas, excentricidades, fantasias, vergonhas, pequenas mentiras, intenções egoístas, levadas a cabo, ou não, coisas que, aliás, demonstram o verdadeiro carácter dum indivíduo.»
A esta anotação seguia-se um interregno de um mês. Um mês de conflito constante com Clara, a que se seguiu a sua tentativa de suicídio. Walter rasgou a página. «Se Corby alguma vez descobrisse isto, era o meu fim.» Começou a queimar a folha com o isqueiro, depois agarrou no diário e desceu as escadas. O fogo consumiu o papel todo. Na sala rasgou o livro em três partes, pôs pedaços de madeira por cima e ateou-lhe o fogo.
Foi até ao telefone e ligou para a Three Brothers Tavern para falar com Ellie. Pediu-lhe desculpa pelo tempo que Corby lhe tinha tomado.
- O que é que se passou? - A voz de Ellie denotava aborrecimento e uma certa irritação pela longa espera.
- Nada - disse Walter. - A única coisa que aconteceu foi que as batatas se queimaram!
- Ia mesmo a sair - disse Kimmel.
- Se você É um assunto extremamente importante. Não o demorarei muito.
- Tenho mesmo de sair!
- Ponho-me aí num instante - disse Corby, desligando o telefone.
«Será melhor enfrentar a situação hoje ou amanhã?», perguntou Kimmel a si próprio. Acabou por despir o sobretudo e, com gestos mecânicos, pendurou-o. Olhou à sua volta pensativamente. Ao olhar para o piano, pensou, por momentos, estar a ver o fantasma de Helen sentado a tocar a Valsa de Tenessee. «O que é que o raio do Corby tem para me dizer? Se calhar não é nada, como aconteceu ontem. Será que ele vem cá só para me irritar?» Kimmel perguntava a si próprio se Corby se teria dado ao trabalho de andar a interrogar a vizinhança para ver se alguém lhe dizia alguma coisa sobre o tal agente de seguros, Kinnaird, que tinha andado a fornicar com Helen. Nathan, um amigo seu, professor de História na Faculdade local, sabia do caso. Ele estivera na livraria nessa manhã para lhe dizer que Ebby o tinha interrogado. Contudo, o nome de Ed Kinnaird não fora mencionado. Kimmel coçou o sovaco. Tinha acabado de chegar da Oyster House, onde fora jantar, e tencionava refastelar-se no sofá a beber uma cerveja e a ouvir rádio, durante algum tempo, antes de ir para a cama.
Pelo menos, a cerveja ia tomá-la. Foi à cozinha. O chão de madeira estalou-lhe debaixo dos pés. A campainha da porta tocou e ele dirigiu-se ao hall. Era Corby. Kimmel afastou-se para o deixar entrar.
- Peço imensa desculpa de o vir incomodar a estas horas da noite - disse Corby, que não parecia, no entanto, nada arrependido do facto. - Tenho andado ocupado o dia inteiro com outros trabalhos.
Kimmel .mantinha-se em silêncio. Corby inspeccionava a sala, inclinando-se para melhor apreciar as estatuetas de madeira negra, que estavam todas juntas como se estivessem numa lata de salsichas, colocadas em cima da enorme estante branca. «Se Corby me fizer alguma pergunta sobre elas, leva uma resposta obscena.»
- Estive com Stackhouse outra vez-disse Corby, endireitando-se. - E descobri uma coisa muito interessante.
- Já lhe tinha dito que não estou nada interessado no caso Stackhouse nem em tudo o resto que tem para me dizer.
- Pois é, só que você não está em posição de fazer afirmações dessas - replicou Corby, sentando-se no sofá.-Acontece que eu acho que você é o culpado, Kimmel.
- Já me disse isso ontem. -Ai sim?
- Você perguntou-me se eu tinha outra testemunha, além de Tqny Ricco, para sustentar o meu álibi. Com isto deixou implícito que eu poderia ser culpado.
- Suponho que Stackhouse é culpado - afirmou Corby.
- Mas quanto a você, tenho a certeza.
De repente, Kimmel foi assaltado pela ideia de que, possivelmente, Corby trazia uma arma debaixo do casaco desabotoado. Era muito provável. Agarrou na garrafa de cerveja que estava em cima da mesa, na frente de Corby, despejou o resto da garrafa no copo e voltou a pousá-la. - Tenciono dar parte disto à polícia de Newark amanhã. A polícia de Newark.não tem a mais leve suspeita, ou dúvida, sobre a minha pessoa. Sou muito conceituado em Newark.
Corby acenou, sorrindo. - Não se preocupe porque, no outro dia, antes de vir ter consigo, fui falar com a polícia de Newark. Era natural que tivesse de lhes pedir licença para me ocupar do caso Kimmel, uma vez que o assunto ocorreu em território fora da minha jurisdição. A polícia disse-me que não se importava absolutamente nada que eu me ocupasse do caso.
- Mas importo-me eu! Não admito que venham invadir a minha privacidade!
- Lamento muito, mas quanto a isso não há nada a fazer.
- O melhor que tem a fazer é sair desta casa antes que eu me veja obrigado a expulsá-lo. Tenho assuntos importantes a tratar.
- O que é que é mais importante, Kimmel, o seu trabalho ou o meu? O que é que vai fazer esta noite? Ler as memórias do Marquês de Sade?
Kimmel mirou o corpo frágil de Corby de cima a baixo. O que é que Corby poderia saber daquele livro? Uma confiança enorme apoderou-se de Kimmel, uma sensação de imunidade, poderosa e alastrante, como um mito. Comparado com Corby, ele sentia-se um gigante. Corby não conseguiria fazer nada contra ele.
- Lembra-se, Kimmel, quando eu lhe disse que achava que Stackhouse tinha cometido o crime por ter seguido a camioneta, persuadindo a mulher a ir até ao penhasco, para depois a empurrar?
Kimmel acabou por dizer: - Sim.
- Eu acho que você agiu do mesmo modo. Kimmel não se manifestou.
- E o mais interessante é que Stackhouse adivinhou as minhas conjecturas - prosseguiu Corby.- Ontem à noite visitei Stackhouse, em Long Island. Adivinhe o que fui descobrir. A história do assassínio de Helen Kimmel, datada de 14 de Agosto. - Corby tirou da carteira o recorte de jornal, sorrindo.
Corby estendeu-lhe o pedaço de papel. Kimmel agarrou nele e aproximou-o dos olhos. Identificou-o como um dos primeiros artigos que tinham sido escritos e publicados sobre o assassínio.
- Será que diz isso para eu acreditar? Não acredito em nada do que disse. - Mas, na realidade, acreditava nele. O que ele punha em dúvida era a estupidez de Stackhouse.
-Se não acredita em mim, pergunte ao Stackhouse - afirmou Corby, voltando a guardar o recorte do jornal na carteira.
- Não gostaria de se encontrar com ele?
- Não tenho qualquer interesse em encontrar-me com ele.
- Apesar de tudo vou tentar arranjar o encontro.
As palavras de Corby atingiram Kimmel em cheio como um martelo e, a partir daí, começou a sentir as pulsações do coração fazendo um ruído surdo no seu peito forte. Kimmel abriu os braços num gesto que pretendia demonstrar que estava disposto a encontrar-se com Stackhouse, embora não visse qualquer objectivo nisso. Kimmel estava a pensar que Stackhouse poderia eventualmente ter um colapso nervoso, mesmo ali na sua loja ou noutro lado qualquer. Stackhouse diria que já o tinha ido visitar e até poderia mesmo acusar Kimmel de lhe haver confessado que tinha morto Helen e de lhe ter explicado como o teria feito. Kimmel não poderia de modo algum prever a reacção de Stackhouse. Sentiu-se tremer da cabeça aos pés. Para disfarçar, pôs-se a andar de um lado para o outro, na frente de Corby.
- Eu sei um pouco acerca da vida privada de Stackhouse. Ele tinha motivos suficientes para matar a mulher, tal como você, desde que se deixasse dominar pelo ódio. Mas, por outro lado, o prazer foi também um dos motivos que o levaram a praticar o acto não foi?
Kimmel agarrou na navalha que estava no seu bolso esquerdo e começou a brincar com ela. Sentia-se sobressaltado. «Um detector de mentiras», pensou ele. Tinha a certeza de que conseguiria ludibriar o detector de mentiras se alguma vez o sujeitassem a isso. E se não conseguisse? «Stackhouse adivinhou-o, não foi Corby», pensou Kimmel. «Stackhouse tinha cometido a terrível estupidez de deixar o seu rasto por toda a parte, trazendo-o até à minha porta!... Não acredito!» -Então já conseguiu reunir todas as provas para acusar Stackhouse? - perguntou Kimmel.
- Então, Kimmel, está a ficar nervoso? Eu possuo apenas evidências circunstanciais, o resto é ele que vai confessar. Mas você não! Tenho de arranjar mais provas para o incriminar e deitar por terra o seu álibi. O seu amigo Tony saiu-se bem e pensa que você esteve no cinema durante toda a sessão, mas eu acho que, se eu falasse com ele, seria fácil persuadi-lo do contrário. Ele é um...
Num repente, Kimmel atirou o seu copo à cabeça de Corby, agarrou-o pelos colarinhos e levantou-o no ar. De seguida levantou a mão direita para desferir um golpe no pescoço de Corby, mas, nesse instante, sentiu uma pancada seca no diafragma. Kimmel tentou empurrá-lo com a mão direita, mas falhou o golpe. Fez um movimento brusco com o braço e sentiu uma dor aguda e desequilibrou-se. Ao receber um soco no estômago, fechou os olhos e sentiu-se tonto. Caiu no chão com tal impacte que fez estremecer os vidros das janelas. Kimmel estava sentado no chão. Olhou para a imagem ondulada e alongada de Corby, que permanecia de pé à sua frente. O braço esquerdo e balofo de’Kimmel ergueu-se no ar, independentemente da sua vontade, como um balão flutuante. Tocou-lhe e descobriu que não tinha qualquer sensação.
- Tenho o braço partido - disse ele.
Corby resfolegou e cerrou os punhos.
Kimmel voltou a cabeça em ambas as direcções, olhando para o chão. Pôs-se de joelhos. - Onde estão os meus óculos? Consegue vê-los?
-Estão aqui.
Kimmel sentiu que os óculos lhe eram depositados nos dedos da mão esquerda, que continuava levantada. Fechou os dedos sobre a armação fina de ouro e sentiu-a escorregar. Ouviu-a cair e, pelo som produzido, apercebeu-se de que as lentes se tinham partido. - Filho da puta! -gritou ele, levantando-se. Dirigiu-se a Corby, cambaleante.
Corby afastou-se, dizendo:-Não recomece, olhe que agora é pior.
-Desapareça!-rosnou Kimmel. - Saia daqui! Seu nojento! Seu verme! Maricas dum raio!-Kimmel tentou atingi-lo nos órgãos genitais e Corby avançou para ele, erguendo a mão. Kimmel calou-se, esquivando-se.
- Seu cobarde! - exclamou Corby.
Kimmel continuou a insultar Corby.
Corby agarrou no sobretudo e vestiu-o. -Vou avisá-lo, Kimmel. Vou tê-lo debaixo de olho. Toda a gente nesta cidade terá conhecimento disto; todos os seus amiguinhos. E um dia destes aparecerei na sua loja com Stackhouse. Vocês os dois têm muito em comum. - Corby saiu, batendo com a porta.
Kimmel permaneceu no mesmo local, durante bastante tempo, com o corpo balofo retesado, mal descortinando as coisas em virtude de não ter os óculos. Imaginou Corby a ir à livraria, a ir ter com Miss Brown, com Tom Bailey, o ex-vereador, que Kimmel considerava o homem mais inteligente das redondezas e cuja amizade Kimmel tanto lutara para conseguir e sempre preservara. Tom Bailey não tinha conhecimento da relação que Helen mantivera com Ed Kinnaird, mas Kimmel tinha a certeza de que Corby, mal o descobrisse, o diria a toda a gente, fornecendo mesmo os pormenores mais sórdidos e repelentes, como, por exemplo, o facto de Helen ir ter com ele à rua, como a mais comum das prostitutas. Até Lena, a melhor amiga de Helen, estava a par do assunto. Helen tinha-se vangloriado disso! Corby espalharia a dúvida.
Subitamente, Kimmel começou a andar, tentando manter-se direito e consciente, agarrando-se às paredes que ligavam o hall à cozinha. Aí abriu a torneira e lavou a cara com água fria para se tentar recompor. De seguida dirigiu-se ao telefone que estava na sala. Discou o número com dificuldade. A primeira tentativa saiu lograda. Era engano. Voltou a marcar o número.
-Tony? Olá, rapaz! -disse Kimmel com certa animação ao reconhecer a voz que lhe era familiar! - O que estás a fazer?... Acaba de me acontecer uma coisa terrível. Parti os óculos. Escorreguei no tapete e se calhar até parti outras coisas, mas os óculos é que me preocupam, ficaram feitos em estilhaços. Anda daí ter comigo. Esta noite estou impossibilitado de ler ou de fazer seja o que for. - Kimmel ouviu Tony dizer-lhe que estaria lá em casa dentro de breves minutos; era só o tempo de terminar um serviço que deixara a meio. Enquanto escutava pacientemente aquela voz monótona e humilde, Kimmel recordou-se da altura em que, três anos antes Tony, tendo engravidado uma rapariga, andava desesperado à procura de alguém que fizesse o aborto. Kimmel conseguira arranjar quem livrasse a rapariga daquele problema, rápida e seguramente e por uma quantia irrisória. Desde esse episódio, Tony tinha-lhe ficado extremamente grato. Kimmel livrara-o de uma grande alhada, evitando que a sua família, que era muito religiosa, já para não falar na família da rapariga, pudessem vir a descobrir.
Depois de ter desligado o telefone, Kimmel endireitou a mesa que tinha sido derrubada durante a luta, voltou a colocar o candeeiro no sítio certo e retirou do porta-lâmpada os restos de vidros partidos. Havia um limite nos estragos provocados pela queda de um homem! Apoiado na estante, Kimmel brincava com as estatuetas, colocando-as em ângulos diferentes e observando os vários efeitos. Apenas conseguia distinguir as formas ondulantes, em contraste com a cor clara da estante. Achou o efeito bastante interessante. Pareciam charutos ligados uns aos outros por um fio de arame. Algumas das estatuetas pareciam animais quadrúpedes, outras desafiavam o mais criativo dos espíritos. O próprio Kimmel não possuía uma definição específica para as caracterizar. Às vezes considerava-as as suas queridinhas. Cada uma das peças tinha sido esculpida de acordo com a criatividade artística do próprio Kimmel. Descobriam-se motivos persas em algumas delas. As superfícies tinham sido tão polidas com lixa que o simples toque as tornava agradáveis. Kimmel adorava passar os dedos pelas suas estatuetas. Estava ainda entretido a acariciá-las quando tocaram à porta.
Tony entrou com o chapéu na mão e sentou-se acanhadamente numa das cadeiras, antes que Kimmel lhe dissesse para tirar o sobretudo. Tony sentia-se sempre lisonjeado quando Kimmel o convidava a ir passar o serão lá em casa, o que apenas acontecera três ou quatro vezes. Tony levantou-se para ajudar Kimmel a encontrar uma cruzeta para o seu casaco.
- Queres uma cerveja? - perguntou Kimmel.
- Sim. Apetece-me uma - respondeu Tony de imediato.
Com dignidade e às apalpadelas, devido à falta dos óculos, Kimmel dirigiu-se ao hall e procurou o interruptor da luz da cozinha. «Tony não deve estar muito bem... É realmente estranho... Não se ter oferecido para ir buscar as cervejas!...», pensou Kimmel. A estupidez inata de Tony irritava-o profundamente, mas Kimmel sentia-se lisonjeado com o facto de ele respeitar e até recear a sua erudição e a sua maneira de ser e, mais até, com o prazer que Tony punha no simples facto de poder beber um copo na sua companhia. Contudo, para Kimmel, a companhia de Tony pouco significado tinha.
-Tony, far-me-ias um grande favor se, amanhã de manhã, pudesses ir comigo ao oculista-. Levavas o meu carro, pois eu estou impossibilitado de conduzir. - disse Kimmel, pondo as cervejas e os copos em cima da mesa.
- Com certeza, Sr. Kimmel. A que horas é que lhe dá jeito?
- Oh, lá para as nove horas.
- Sim, senhor! - disse Tony, voltando a cruzar as pernas, nervosamente.
«É realmente espantoso que um desgraçado destes, com uma fronha tão bexigosa e tão desprovido de personalidade, tenha conseguido engravidar uma rapariga!» Kimmel tinha a certeza de que Tony nunca se dera ao trabalho de pensar nos processos envolvidos. «Naturalmente foi por isso que as coisas foram tão fáceis para ele!...» Kimmel supunha que deveria ser rara a semana em que Tony não estaria com uma rapariga. Tony tinha uma namorada, mas sabia que ela não era do tipo de ir para a cama com um qualquer, como era hábito entre outras raparigas da vizinhança. Kimmel já ouvira várias vezes conversas entre rapazes e raparigas a esse respeito, de uma das janelas da sua livraria que dava para uma rua estreita. Connie era, entre as raparigas da zona, a que a malta preferia. Apesar de tudo, Kimmel nunca tinha ouvido mencionar o nome de Franca, a namorada de Tony.
-O que é que tens feito ultimamente, Tony? - perguntou Kimmel.
- Oh, o mesmo de sempre. Trabalho na loja e às vezes vou jogar bowling.
Era a resposta habitual. Por seu lado, Kimmel usava sempre o mesmo tom indelicado, pois sabia que era pouco apreciado.
-A propósito, Tony, é natural que, nos próximos dias ou semanas, a polícia te faça mais algumas perguntas. Não te deixes enrolar. Diz-lhes...
- Oh, não - respondeu Tony um pouco receoso.
- Diz-lhes exactamente o que se passou, exactamente o que viste - afirmou Kimmel com clareza e precisão. - Não te esqueças que me viste às oito horas a entrar no cinema.
- Oh, com certeza, Sr. Kimmel.
- Está aqui o tenente Corby, Sr. Stackhouse - disse a voz de Joan pelo intercomunicador que estava na sua secretária. - Digo-lhe para esperar, ou recebe-o já?
Walter deu uma olhadela a Dick Jensen, que estava a seu lado. Estavam ocupados com a resolução de um caso de impostos que deveria estar terminado às 5 horas. - Diga-lhe que espere um minuto - pediu Walter.
- Não será melhor ir-me embora? - perguntou Dick. «Provavelmente Dick já conhece Corby», pensou Walter.
Dick e Polly já deviam ter recebido a visita de Corby. Os Iretons já tinham sido interrogados por ele duas vezes. Quanto a Dick, se realmente o conhecia, pelo menos nunca dissera nada.
- Acho que é melhor recebê-lo a sós - disse Walter.
Dick agarrou no cachimbo apagado que tinha posto em cima da secretária de Walter e encaminhou-se para a porta, sem proferir uma palavra ou deitar um olhar. Walter avisou Joan de que Corby podia entrar e este apressou-se a fazê-lo, resplandescente.
-Sei que está ocupado e por isso vou directo ao assunto. Gostaria que viesse comigo a Newark esta tarde para conhecer Kimmel.
Walter levantou-se, tentando manter a calma. - Não me interessa absolutamente nada conhecer Kimmel. E, além disso, tenho Um assunto que ...
- Mas eu quero que Kimmel o conheça - disse Corby, fazendo um sorriso mecânico. -.Kimmel é culpado e nós andamos a envidar todos os esforços para solucionarmos de vez o caso.
Por isso quero que Kimmel o veja. Ele acha que você também é culpado e isso assusta-o.
Walter franziu a testa. - E você também me acha culpado? perguntou ele, fleumaticamente.
- Não. Essa não é a minha opinião. Eu ando é atrás do Kimmel. - Corby sorriu, demonstrando uma boa disposição forçada.
- Claro que você se pode recusar a ir...
- Acho que vou recusar.
-Mas... Olhe que eu posso tornar-lhe a situação muito mais difícil do que já está.
Os dedos de Walter crisparam-se no tampo da secretária. Ele sentia-se satisfeito por Corby não ter ainda revelado à imprensa o caso do recorte de jornal sobre o caso Kimmel. Por outro lado, tinha ainda a esperança de que Corby chegasse à conclusão de que tudo aquilo não passava de uma mera coincidência e que, portanto, ele podia muito bem ser dado como inocente. Agora Walter compreendia o motivo por que Corby lhe tinha pedido para ficar com o recorte. - Mas afinal qual é o seu objectivo? perguntou Walter.
- O meu objectivo é muito simples. É fazer com que a verdade venha ao de cima -afirmou Corby, sorrindo e mostrando-se confiante. Acendeu um cigarro.
De repente, Walter pensou: «O objectivo dele é mas é apanhar dois coelhos duma só cajadada, -a fim de conseguir um louvor ou até mesmo uma promoção.» A súbita ambição desmedida revelada por Corby espantou Walter por ser tão evidente. Admirou-se de não se ter apercebido logo de que essa era a única motivação que conduzia Corby. - Se se refere à publicação do caso do recorte de jornal encontrado em minha casa, pode ir para a frente com isso, mas agora não me aborreça com o facto de ter de ir conhecer Kimmel.
Corby olhou para ele friamente. - Isso é mais do que uma simples história, ou um episódio. Isso podia arruinar-lhe a vida e a carreira.
- Eu não vejo as coisas do mesmo modo. Você ainda não conseguiu provar a culpabilidade de Kimmel e muito menos provar que tanto eu como ele estejamos implicados nessas acções mesquinhas que...
- Você não sabe o que eu consegui provar - ripostou Corby secamente. - Estou a reconstituir exactamente o que aconteceu entre Kimmel e a mulher durante o período em que ela foi assassinada. Quando Kimmel for posto perante os factos concretos, há-de acabar por confessar, ponto por ponto, aquilo de que agora o acuso.
«Ponto por ponto aquilo de que agora o acuso!» A arrogância de Corby deixou Walter atónito e calado durante alguns minutos. O problema era se Kimmel confessasse, numa atitude retaliatória, que ele o tinha visitado no mês anterior, na sua livraria. Isto caso Kimmel ainda não o tivesse feito, arrastá-lo-ia para a mesma situação de culpa e Corby aproveitar-se-ia do facto para tentar fazê-lo confessar também.
- Então, sempre se decidiu a ir? Estou-lhe a pedir um favor. Se o fizer, prometo-lhe que os jornais nada dirão sobre aquele assunto. - A voz de Corby manifestava ansiedade, dirigindo-se a Walter num tom confiante.
«Depois de ver Kimmel já não é necessário que o assunto seja publicado», pensou Walter. Era natural que Kimmel já tivesse contado a Corby que ele estivera na livraria. «Porque é que Kimmel não o teria feito? Pelo menos Corby parece demonstrar que sabe do caso. Dá até a sensação de que está à espera que eu admita o facto agora.» Se Walter se recusasse a ir, Corby acabaria por trazer Kimmel ao seu escritório. Corby forçaria o encontro entre os dois de qualquer das formas. - Está bem - acedeu Walter. - Eu vou consigo.
- Muito bem. - Corby sorriu. - Voltarei às cinco horas. Vamos no meu carro. - Corby despediu-se com um aceno de mão e dirigiu-se para a porta.
Walter continuou agarrado ao tampo da secretária depois de Corby ter saído. O que mais o aterrorizava era o facto de, neste momento, Corby o considerar também culpado. Até há cinco minutos atrás, Walter atrevera-se a acreditar que Corby não fazia esse juízo de si, ou que, pelo menos, estava disposto a suspender o ataque até ter a certeza absoluta. Walter sentia que tinha caído deliberadamente na teia que Corby lhe tecia.
- Walter! - chamou Dick, fazendo um estalido com os dedos.
- O que é que se passa? Estás em transe.
Walter olhou para Dick e depois para os papéis que estavam espalhados em cima da secretária, designados pelo título «Peso da Verdade».
- Olha lá, Walter, mas o que é isto? - perguntou Dick espreitando pela porta. - A polícia continua a interrogar-te?
- É um tipo - disse Walter. - Não é da polícia.
- Acho que ainda não te disse que o Corby apareceu lá por casa para falar comigo e com a Polly uma noite destas. Fez-me uma série de perguntas sobre ti e sobre a Clara, como é óbvio.
- Quando?
- Há cerca de uma semana. Talvez um pouco mais.
«Hum... Deve ter sido antes de o tipo ter descoberto o recorte de jornal sobre o crime da mulher de Kimmel que eu tinha guardado lá em casa», pensou Walter. «As perguntas devem ter sido pouco suaves!» - O que é que esse gajo te perguntou?
- Perguntou-me abertamente se eu te achava capaz de cometer um acto daqueles. Ele não está com rodeios, pelo menos assim o aparenta. Eu respondi-lhe categoricamente que não. Contei-lhe pormenorizadamente como tinhas reagido quando Clara saiu de coma na altura em que tentou suicidar-se com barbitúricos. Disse exactamente que um homem que tivesse a intenção de matar a mulher não reagiria como tu reagiste.
- Obrigado - disse Walter, num sopro de voz.
- Eu não sabia que a Clara se tinha tentado suicidar, Walter. Só soube através de Corby. Agora já consigo compreender melhor tudo o resto. Já compreendo que Clara... Bem, que ela se tenha matado da forma como o fez.
Walter abanou a cabeça. - Sim, tu próprio achavas que todos acabariam por compreendê-lo.
Dick perguntou, num tom de voz baixo:-Não estás metido em nenhum sarilho com esse tal Corby, pois não, Walt?
Walter hesitou e acabou por dizer: - Não, não estou.
- De certeza absoluta?
- Não! - disse Walter. - Vamos voltar ao trabalho? - Queria acabar de resolver o assunto antes das 5, para poder encontrar-se com Corby, como havia prometido.
Às 5 horas, Corby voltou a convidar Walter a irem no seu carro até Newark e ele acabou por aceitar. Permaneceram em silêncio até chegarem ao Túnel Holland. A meio do túnel, Corby disse:-Já reparei que sempre se decidiu a colaborar, Sr. Stack-house. Agradeço-lhe imenso. - A voz de Corby tornava-se mais vibrante no túnel. - Espero que isto dê os seus frutos, se bem que não tão depressa como desejaríamos.
Corby conduziu o carro pelo complicado caminho que levava à livraria, como se já o tivesse feito várias vezes. Walter, inconscientemente, assumiu o papel de nunca ter visto antes o local, apesar de Corby não ter feito mais perguntas. O cheiro que exalava da loja, bafio e bolorento, pareceu profunda e aterradoramente familiar a Walter. Na loja estava apenas Kimmel. Walter viu-o levantar-se calmamente, por detrás da secretária, como um elefante que está de guarda à cria.
- Kimmel, gostaria de lhe apresentar o Sr. Stackhouse disse Corby, num tom familiar.
A enorme e redonda cara de Kimmel estava dominada por uma expressão vazia.-Como está? - começou Kimmel por dizer.
- Como está? - Walter estava na expectativa, tenso. O rosto de Kimmel permanecia inexpressivo. Walter não tinha ainda a certeza se Kimmel já o teria traído, contando tudo a Corby, ou se o iria fazer agora, fria e calmamente, logo que Corby lhe fizesse as perguntas adequadas.
-o Sr. Stackhouse também teve o infortúnio de perder a mulher há pouco tempo - disse Corby, colocando o chapéu sobre uma das mesas repletas de livros. - Foi também uma morte ocorrida perto duma paragem de camionetas.
- Acho que li qualquer coisa sobre isso - disse Kimmel.
- Acho que sim - disse Corby, sorrindo.
Walter mudou de posição e fixou Corby. O comportamento de Corby era uma combinação de uma franqueza profissional, desagradável e inacreditável, e de uma certa conveniência social.
- Acho que também lhe disse que o Sr. Stackhouse também teve conhecimento do caso do assassínio de sua mulher. Encontrei o recorte de um jornal de Agosto que referenciava o caso dentro de um livro de notas do Sr. Stackhouse.
- Sim - afirmou Kimmel solenemente, abanando a sua calva cabeça.
Os lábios de Walter abriram-se num sorriso nervoso, embora começasse a sentir-se dominado pelo pânico. Os pequenos olhos de Kimmel tinham uma expressão gélida e indiferente, como os olhos de um autêntico assassino.
- Parece-lhe que o Sr. Stackhouse seja um criminoso? - perguntou Corby a Kimmel.
- Não lhe compete a si descobrir isso? - perguntou Kimmel, crispando os dedos sobre a pasta verde colocada em cima da secretária. - Não compreendo muito bem o propósito desta visita.
Corby permaneceu em silêncio durante alguns minutos. Notava-se uma expressão de aborrecimento nos seus olhos. - O propósito desta visita virá ao de cima em breve - disse ele.
Kimmel e Walter olharam um para o outro. A expressão de Kimmel tinha-se alterado. Agora podia ver-se uma certa curiosidade nos seus pequenos olhos e Walter pôde observar que num dos lados da sua boca carnuda nascia um sorriso amarelo que parecia querer dizer: «Somos ambos vítimas deste jovenzinho absurdo.»
-Sr. Stackhouse - disse Corby.-Não pode negar que as acções de Kimmel lhe dominavam o espírito, o influenciaram, quando seguiu a camioneta em que a sua mulher viajava, pois não?
- Quando se refere às acções de Kimmel...
- Já discutimos isso - disse Corby friamente.
- Sim -disse Walter. - Claro que nego isso.- De repente, Walter sentiu uma tal piedade de Kimmel que isso o fez sentir-se embaraçado, e apercebeu-se que deveria ocultá-lo. Agora tinha a certeza de que Kimmel não havia contado a Corby a sua visita à loja e que não o iria fazer.
Corby voltou-se para Kimmel, dizendo: -Suponho que você não é capaz de negar que lhe passou pela cabeça a ideia de que Stackhouse matou a mulher da mesma maneira que você o fez, quando leu nos jornais a referência ao facto de Stackhouse ter estado na paragem das camionetas.
- É pouco provável que isso tenha acontecido, uma vez que os jornais tanto afirmam as coisas como as põem em dúvida respondeu Kimmel calmamente. - Mas o que acontece é que não fui eu que matei a minha mulher!
-Kimmel, você é um mentiroso!-gritou Corby.-Você sabe perfeitamente que o comportamento de Stackhouse o traiu e você continua a comportar-se como se estivesse por fora de tudo!
Numa atitude de indiferença, Kimmel encolheu os ombros.
Walter sentiu-se mais animado. Respirou fundo. Ocorreu-lhe a ideia de que Kimmel estaria receoso de que ele o traísse, falando-lhe na visita à loja; praticamente tão receoso como ele próprio se tinha sentido pensando que Kimmel iria tocar no assunto. Era evidente que Kimmel não tencionava dar grandes explicações a Corby. De súbito a atitude de Kimmel pareceu-lhe tão heróica e generosa- que Walter o identificou como um anjo fulgurante, em contraste com o diabólico Corby.
Impacientemente, Corby movia-se de um lado para o outro. Tinha perdido o seu ar de rapazinho bem nascido, assemelhava-se mais a um predador prestes a atacar a sua presa. - Não acha estranho o facto de Stackhouse ter recortado o artigo sobre o assassínio da sua mulher, seguindo depois a camioneta em que viajava a sua própria mulher, na noite em que ela foi assassinada?
- Mas você disse-me que a mulher de Stackhouse se tinha suicidado!... - exclamou Kimmel, surpreso.
- Isso ainda não foi provado. - Corby acendeu um cigarro e colocou-se entre Walter e Kimmel.
- Mas afinal o que é que você está a querer povar? - Kimmel cruzou os braços, arregaçando as mangas da camisa, e encostou-se à parede. Os seus óculos eram dois pequenos círculos brancos, ocos, reflectindo a luz do candeeiro existente em cima da secretária.
- Isso queria eu saber - disse Corby com sarcasmo. Kimmel voltou a encolher os ombros.
Walter não tinha a certeza de se Kimmel estava ou não a olhar para ele. Olhou para o livro que estava em cima da secretária de Kimmel. A parte de trás do seu pescoço doía-lhe quando se movia. Era um enorme livro antigo com duas colunas em cada página, como a Bíblia.
- Sr. Stackhouse - disse Corby. - Por acaso, quando leu a notícia do assassínio da mulher de Kimmel nos jornais, não lhe passou pela cabeça que ele poderia ser o criminoso?
- Já me fez essa pergunta! - disse Walter. - Não me ocorreu nenhuma ideia dessas.
Kimmel, lentamente, lançou a mão a uma caixa que estava em cima da secretária, abriu-a e estendeu-a a Walter. Este abanou a cabeça negativamente e Kimmel acabou por oferecê-la a Corby, que nem sequer olhou para ele. Kimmel tirou um charuto.
Corby atirou a beata do seu cigarro para o chão e pisou-a com o pé.-E noutra altura? - perguntou ele, já desesperado.
- Em qualquer outra altura?
Kimmel afastou-se da parede e olhou para Corby e depois para Walter. - Já acabámos?
-Sim. Por hoje é tudo.-Corby agarrou no chapéu e preparou-se para sair.
Kimmel baixou-se para apanhar a beata que Corby atirara para o chão, bloqueando, por momentos, a passagem a Walter. Deitou a beata no cesto dos papéis que estava junto da sua secretária. Depois encaminhou-se para a porta, seguindo Walter e Corby até à saída. O seu aspecto possante denotava a dignidade de um elefante. Abriu-lhes a porta para os deixar passar.
Corby saiu sem proferir uma palavra.
Walter voltou-se. - Boa noite-disse ele, despedindo-se de Kimmel.
Kimmel observou-o friamente através das espessas lentes dos seus óculos. - Boa noite.
Perto do carro, Walter disse:- Não é preciso levar-me a casa. Posso apanhar um táxi. - Sentia um nó na garganta, como se toda a tensão, de repente, se tivesse ali concentrado.
Corby abriu-lhe a porta.- Será muito difícil apanhar um táxi para Nova Iorque esta noite. De qualquer modo, tenho de voltar para Nova Iorque.
«Para ir chatear mais alguns dos meus amigos!», pensou Walter. Tinha começado a cair uma chuva miudinha. A rua escura parecia um túnel do Inferno. Walter sentiu-se assaltado por um desejo impetuoso de voltar para trás, à livraria, para falar com Kimmel e dizer-lhe exactamente o motivo por que recortara o artigo do jornal; contar-lhe tudo o que tinha feito e explicar-lhe o porquê dos seus. actos. - Está bem - disse Walter. Entrou tão bruscamente no carro que bateu com a cabeça na estrutura metálica da porta. Foi uma pancada tão violenta que se sentiu tonto durante alguns momentos.
Não falavam um com o outro. Corby sentia-se decepcionado com o falhanço dessa tarde. Chegaram a Manhattan antes que Walter se pudesse lembrar que tinha combinado encontrar-se com Ellie. Olhou freneticamente para o relógio e reparou que já estava atrasado uma hora e quarenta minutos.
- Algum problema? - perguntou Corby. -Não é nada.
- Tinha algum encontro marcado? -OhlNão!
Quando chegaram à 3.a Avenida, onde Walter estacionara o seu carro, este saiu e disse, dirigindo-se a Corby:-Espero que este inquérito tenha atingido os fins que você ambicionava.
Numa atitude de assentimento, Corby acenou afirmativamente, absorto. - Obrigado. - A voz dele denotava uma certa amargura.
Walter bateu com a porta. Esperou até que Corby desaparecesse de vista e começou a andar rapidamente. Agora, que estava livre da presença de Corby, tentou novamente analisar o comportamento de Kimmel. Kimmel não teria sido beneficiado se tivesse contado a Corby a visita que Walter lhe fizera. Kimmel não tinha nenhuma razão especial para o proteger. Excepto a chantagem. Walter franziu o sobrolho, fazendo conjecturas sobre o aspecto estranho que o rosto de Kimmel apresentava; tentava interpretá-lo. Era um rosto grosseiro, mas revelando um orgulho profundo. «Ele seria do tipo de fazer chantagem? Ou tentaria apenas não se queimar mais, falando o menos possível? Isso já não fazia sentido!»
Walter dirigiu-se ao bar do hotel Comodore. Olhou para todas as mesas, mas não viu Ellie. Ia perguntar ao chefe de mesa se havia, algum recado para ele, mas acabou por desistir da ideia. Dirigiu-se à sala de entrada, procurando Ellie. Já tinha desistido de a procurar e ia a sair quando a viu vir no passeio em frente ao hotel.
- Peço imença desculpa, Ellie - disse ele. - Não pude vir ter contigo a horas. Estive ocupado numa reunião durante três horas.
- Mas eu telefonei para o teu escritório...- disse ela. :
- A reunião não foi lá. Já comeste alguma coisa? -Não.
- Podemos comer aqui qualquer coisa, se quiseres.
-Não tenho vontade nenhuma - disse ela, mas acompanhou-o até ao bar.
Sentaram-se numa mesa e pediram bebidas. Walter encomendou um uísque duplo.
-Não acredito que tivesses estado numa reunião!...-disse Ellie. - Estiveste mas foi com Corby, não foi?
Walter olhou atentamente para o rosto dela e seguidamente para o alfinete de prata em forma de sol preso na gola do casaco.
- Foi isso - disse ele.
- Bem, o que é que ele queria desta vez?
- Fez mais uma série de perguntas. As mesmas perguntas de sempre. Preferia que não me perguntasses mais nada acerca disso. Já não aguento mais! Não vale a pena estarmos sempre a falar disso. - Olhou em volta para ver se vinha o empregado com a sua bebida.
- Eu também o vi. -O Corby?!
- Ele foi hoje ter comigo à escola à uma da tarde. Falou-me num tal recorte de jornal que tinha encontrado em tua casa.
Walter sentiu-se desfalecer. Começou a ficar pálido. Corby nem sequer se tinha dado ao trabalho de telefonar primeiro a Ellie. Tinha preferido esperar para lhe falar naquele assunto.
- É verdade, não é? - perguntou Ellie.
- Sim. É verdade.
- Porque é que o tinhas lá?
Walter pegou na bebida. - Recortei aquele artigo como costumo recortar muitos artigos de jornal. Andava à procura de notas para completar os ensaios que ando a escrever. Costumo guardá-los num álbum, lá em casa.
- Foi naquela noite em que eu estive à espera na Three Brothers Tavern?
-Sim.
- Porque é que não me contaste isso?
- Não te contei simplesmente porque Corby andava a fazer disso um grande alarido, como se fosse uma coisa absolutamente fantástica. Aliás, ele continua a fazer o mesmo.
- Corby disse-me que tem a impressão de que Kimmel matou a mulher. Acha que ele seguiu a camioneta... e que tu fizeste o mesmo.
Naquele momento Walter sentiu, em relação a Ellie, o mesmo ressentimento, a mesma raiva surda que sentira em relação a Corby. - Bem, não me digas que acreditas nele?
Ellie sentia-se tão tensa como ele, não tendo ainda tocado na bebida. - Ainda não percebi muito bem qual a importância desse artigo para ti. Mas que ensaios é que tu estás a escrever?
Walter explicou-lhe e disse-lhe que também tinha deitado fora o artigo do jornal e que possivelmente Cláudia o teria encontrado, guardando-o dentro do álbum.-Sim, sim, estou a entender. Além disso, o jornal não fazia qualquer alusão ao facto de Kimmel ter seguido a camioneta! E Corby não conseguiu provar isso. O fulano anda obcecado. Fartei-me de lhe explicar por que motivo tinha em meu poder o raio do recorte do artigo. Se as pessoas não acreditam na minha palavra, que vão todas para o Diabo!-Walter acendeu um cigarro, reparando depois que já tinha um aceso no cinzeiro. - Tenho a impressão de que Corby andou a tentar convencer-te de que eu matei a Clara e que tu foste um dos principais motivos que me levaram a fazê-lo. Diz lá se não tenho razão?
-Sim, tens razão, mas isso não me influenciou em nada; aliás, já estava à espera disso - disse Ellie.
«O que lhe faz espécie é o artigo!», pensou Walter. Tentou descobrir a intenção de Ellie, cujo olhar deixava transparecer uma certa dúvida em relação a ele. Até Ellie tinha Corby conseguido influenciar, enchendo-a de dúvidas com os seus argumentos irreflectidos e ilógicos.
-Ellie, as teorias dele não fazem sentido, é tudo pura especulação. Olha lá...
- Walter, és capaz de me jurar que não a mataste?
-O que é que tu estás para aí a dizer?! Mas afinal tu não acreditas na minha palavra? Não te disse já que estava inocente?
- Quero que me jures que não o fizeste - disse Ellie.
- Precisas mesmo que te jure? Já te contei tintim por tintim o que se passou naquela noite. Estás tão a par da situação como a polícia.
- Está bem. Eu só te pedi que jurasses.
- Realmente é incrível que até tu me peças uma coisa dessas! - afirmou ele com veemência.
- É um pedido muito simples, não achas?
- Como é que podes duvidar de mim?! - exclamou ele.
- Não duvido nada. Eu quero acreditar em ti. É que ...
- Não acreditas, pois, se acreditasses, não me pedirias uma coisa dessas!
- Está bem. Fiquemos por aqui. - Ellie olhou para o lado.
- Falemos mais baixo.
- Qual é o problema? Não sou culpado de nada. Mas tu não acreditas em nada do que eu digo, é perfeitamente óbvio. Estás na dúvida, como todos os outros!
- Walter, pára com isso - murmurou Ellie.
- Suspeitas de mim, não suspeitas?
Ela voltou a olhar para ele, furiosa. - Walter, desculpo-te essa tua atitude, pois estás muito nervoso, mas, por favor, acalma-te, senão fico mesmo chateada.
-Ah, com que então desculpas-me!-bradou ele em tom de mofa.
Ellie ergueu-se como uma mola e afastou-se. Walter conseguiu ver apenas o casaco dela no ar, desaparecendo através da porta. Levantou-se, procurou atabalhoadamente o papel da conta, colocou em cima da mesa uma nota de cinco dólares e saiu a correr.
-Ellie!-gritou ele. Olhou com atenção através das luzes e do tráfego intenso, àquela hora na 42? Rua, tentando descobrir algum sinal dela. Era possível que se tivesse dirigido para a Penn Station para apanhar o comboio para casa, pois não tinha trazido o carro. «Se calhar não! Onde raio é que Pete Slotnikoff mora? Ah! Já sei, é algures em West Side. Raios partam! Ela que se lixe!», pensou Walter.
Voltou para trás, dirigindo-se para o parque de estacionamento da 3.a Avenida. Decidiu ir pela velha estrada de East River.
Os salgueiros que ladeavam a Malborough Roa.d, perto de casa, deprimiam-no, faziam-lhe lembrar o ambiente fantasmagórico com figuras aladas pairando sobre pedras tumulares e leitos de morte, representados nas gravuras de Blake. Guardou o carro na garagem. Ao pisar um galho, o som produzido fê-lo estremecer e voltar-se. Apanhou a trave de madeira que servia para trancar o portão e, em vez de a pôr ao lado, junto à parede, colocou-a no portão.
Na manhã seguinte, Walter acordou às 6, nervoso e cheio de fome. Vestiu as velhas calças de manila, uma camisa e o casaco de flanela que costumava usar para ir à pesca. Passou pela cozinha e preparou uma sanduíche de queijo. Depois foi até à barraca onde guardava as ferramentas, que ficava junto à garagem. Ia decidido a consertar o portão.
Teve de serrar um pedaço de madeira para colocar debaixo da trave que estava partida. Quando terminou o conserto, sentiu-se satisfeito. Não estava perfeito, mas remediava; pelo menos, não voltaria a cair. Faltavam ainda vinte minutos para as 7, horas a que geralmente se levantava, e decidiu ir buscar uma lata de tinta branca e uma trincha à garagem para dar uns retoques nos degraus da cozinha, onde a tinta tinha começado a saltar. Estava prestes a acabar esta tarefa, quando ouviu passos no fundo da rua. Era Claudia. Ela sorriu e gritou-lhe:-Bom dia, Sr. Stackhouse!
-^ Bom dia, Claudia! - retorquiu ele. «Eis a autora de toda esta alhada em que estou metido!», pensou Walter. Claudia trazia um saco com mercearias para ele.
-Hoje levantou-se cedo!-exclamou ela. Sentia-se satisfeita por vê-lo a andar ali, de um lado para o outro, ocupado com ninharias, vestido à vontade.
- Estava na altura de arranjar o portão. Venha cá ver os degraus. Cuidado, que ainda estão húmidos.
- Que maravilha!-disse Claudia animadamente. Passou com todo o cuidado sobre os degraus e entrou na cozinha.
Walter levou o resto da tinta para a garagem, lavou a trincha com aguarrás e voltou para casa. Subiu as escadas e dirigiu-se ao telefone, que estava colocado no hall do primeiro piso. Ia telefonar a Ellie, embora não tivesse a certeza absoluta de a encontrar em casa. O telefone tocou cinco ou seis vezes antes que ela atendesse. Ellie tinha estado a acabar de tomar banho.
- Peço imensa desculpa do que se passou na noite passada, Ellie - disse Walter. - Reconheço que fui muito grosseiro. Quero dizer-te que juro por tudo que não tive nada a ver com o caso, aquilo de que falámos ontem à noite. Juro-te que eu não fiz absolutamente nada, Ellie.
Seguiu-se uma longa pausa. - Está bem. - A voz dela soou muito baixa e séria. - É impossível falar contigo quando estás assim nervoso. Ontem estavas impossível. Nessas alturas fazes com que as coisas para o teu lado pareçam piores do que na realidade são; comportas-te como um derrotista. Dás até a sensação de que estás a lutar contra alguma coisa que te aterroriza ou te anda a martirizar.
Parecia que ela estava à espera de que ele voltasse a protestar, dizendo-se inocente e tentando prová-lo novamente perante ela. Notava-se ainda uma dúvida latente na voz de Ellie. - Ellie, desculpa o que se passou ontem à noite. - Repetiu ele calmamente.
- Não voltará a acontecer. Meu Deus!
Novo período de silêncio.
-Podemos encontrar-nos hoje, Ellie? Podes vir jantar comigo, cá a casa? - Tenho ensaio até às oito.
Walter lembrou-se de que tinham começado a ensaiar, na escola, uma peça para o Dia de Acção de Graças. - Mas depois ficas livre... Vou buscar-te à escola, às oito.
-Está bem-acedeu ela, embora sem grande entusiasmo.
- Ellie, o que é que se passa?
- Tenho-te achado muito estranho nestes últimos tempos.
- Acho que estás a ver problemas onde eles não existem. Não compliques mais as coisas! - replicou Walter.
- Lá estás tu. Walter, não me podes censurar por te fazer perguntas depois da conversa que ontem tive com Corby...
- O Corby está louco!
- Se ele desconfia de ti, não percebo porque é que teimas em mentir. Com esse tipo de atitude só fazes com que as pessoas pensem que existe realmente algo que pretendes ocultar e a desconfiança aumenta. Não me podes censurar por querer saber a verdade, depois de Corby me ter contado a história à sua maneira, aliás, uma história em que ele acredita e que é possivelmente, repito, possivelmente, a mais plausível, de acordo com as pistas existentes. - Ellie acabou num tom um pouco exaltado.
Walter ia replicar, mas acabou por desistir. Depois, sentindo-se agitado, tentou encontrar algo que pudesse pôr termo às suspeitas que Ellie tinha em relação a ele e, ao mesmo tempo, para tentar segurá-la, pois tinha a sensação de que ela se estava a afastar pouco a pouco. - A história que Corby para aí anda a contar é tudo fruto da imaginação dele - começou Walter calmamente. - Como é que eu podia ter feito o que Corby acha que eu fiz, andando depois lá pela paragem das camionetas, durante quinze minutos com ar suspeito, para que as pessoas me identificassem, a perguntar a este e àquele pela mulher que tinha acabado de matar! Que grande fantochada!
Ellie mantinha-se em silêncio! Walter tentava adivinhar os pensamentos dela. «Pronto, já está outra vez no ar; o que é que se há-de fazer?...»
- Encontramo-nos logo à noite - disse ela. - Às oito horas.
Walter queria continuar com a conversa, queria explicar-lhe melhor a situação, mas não sabia como. - Está combinado. Depois desligaram.
Numa das esquinas, Walter deteve-se, olhando à sua volta, desconfiado que Corby pudesse lá estar.
Um homem idoso, segurando uma criança pela mão, atravessou a rua. O pavimento calcetado estava muito sujo, cheio de cascalho, com um aspecto degradado, tal como as casas existentes em ambos os lados da rua. Ao chegar ao primeiro quarteirão, Walter deteve-se, olhando fixamente para um cavalo com o dorso demasiado curvo, que puxava uma carroça cheia de cestos vazios, «Ainda estou a tempo de telefonar», pensou. A primeira ideia que lhe veio à mente foi telefonar, mas receava que Kimmel se recusasse a recebê-lo, ou desligasse, logo que reconhecesse a voz. Walter prosseguiu. A livraria era do lado esquerdo da rua. Passou por uma loja com artigos de decoração na montra e seguidamente por uma joalharia com aspecto decadente. Na sua frente desenhou-se a montra principal do estabelecimento de Kimmel.
Pareceu-lhe que, desta vez, a loja tinha mais luz do que das outras vezes em que lá tinha estado. Duas ou três pessoas folheavam os livros que estavam em cima das mesas e, quando Walter olhou através do vidro da montra, viu Kimmel dirigir-se a uma mulher que lhe entregava dinheiro. «Ainda estou ’à tempo de voltar atrás e ir-me embora», pensou Walter. Era uma ideia estúpida e imprudente. Tinha deixado trabalho por fazer no escritório. Dick tinha-se aborrecido com ele. Se voltasse para trás, chegaria ao escritório por volta das 4.15. Walter olhou para dentro da loja, pensativo. «Vai-te embora!», dizia-lhe uma voz dentro de si. Sabia, contudo, que, se voltasse para o escritório e depois para casa, voltaria a ser atormentado pelos mesmos anseios e incertezas. Acabou por empurrar a porta e entrar. Ao vê-lo, Kimmel deitou-lhe um olhar crítico, olhando-o depois fixamente nos olhos. Kimmel ajustou os óculos com os dedos batatudos e examinou-o demoradamente. Walter aproximou-se dele. - Pode dar-me uns minutos de atenção?
- Veio sozinho? - perguntou Kimmel.
- Sim.
A mulher com quem Kimmel estava a falar olhou para Walter inadvertidamente e voltou para junto da mesa onde estavam expostos os livros.
Kimmel dirigiu-se para as traseiras da loja com o livro e o dinheiro que a mulher lhe tinha entregue.
Walter aguardou pacientemente junto de outra mesa, agarrou num livro e observou a capa com atenção. Passados alguns minutos, Kimmel veio ter com ele. - Não se importa de chegar aqui? - disse ele, mirando Walter de alto a baixo, com o seu olhar frio e inexpressivo.
Walter acompanhou-o, tirando o chapéu.
- Deixe estar o chapéu na cabeça - disse-lhe Kimmel. Walter voltou a colocar o chapéu.
Kimmel deteve-se junto à sua secretária, como se estivesse à espera de alguma coisa, com uma expressão hostil.
- Gostaria de lhe dizer que estou inocente - afirmou Walter prontamente.
- Realmente isso tem muito interesse para mim...
Walter pensava que estava preparado para enfrentar a hostilidade de Kimmel, mas naquele momento, frente a frente, sentia-se impotente, dominado pelo pânico.-Acho que até terá o seu interesse. Talvez venha a ser provada a minha inocência. Apercebi-me que tinha posto a polícia no seu encalço.
- Não me diga!
- Também sei que tudo o que diga será impróprio e ridículo-prosseguiu Walter com determinação. - Eu próprio estou numa situação periclitante.
- Você está metido numa boa alhada! - disse Kimmel, elevando o tom de voz, embora continuasse a simpatizar com Walter. A forma como se lhe dirigiu não foi suficientemente feroz para atrair a atenção dos clientes que se encontravam na livraria naquele momento. - Pode ter a certeza de que está mesmo! prosseguiu Kimmel, alterando o tom de voz. Notava-se até uma certa satisfação na forma como se exprimia. - Está bem pior do que eu!
- Mas eu estou inocente - disse Walter.
- Eu quero lá saber disso! Não me interessa absolutamente nada o que você fez ou deixou de fazer. - Kimmel sentou-se, apoiando as mãos em cima da secretária.
A boca carnuda de Kimmel, com uma enorme cicatriz sobre o lábio superior, pareceu a Walter a coisa mais repelente que já tinha observado. - Eu compreendo que o meu caso não lhe interesse nada. Assim como também sei que o que você quer é que eu nunca mais apareça na sua frente. Eu só vim para... Walter calou-se quando um jovem se aproximou da secretária e perguntou: -Por acaso tem alguma coisa sobre motores de barcos?
Walter pôs-se a passear à volta da secretária.
Estava tudo a correr mal! Walter tinha imaginado um longo diálogo entre ele e Kimmel, acreditando até que seria possível desfazer o ressentimento que Kimmel pudesse ter em relação a ele. «Se ao menos ele me deixasse dizer aquilo que quero...» Agora não conseguia pôr cá fora aquilo que, à custa de tanto esforço e coragem, o levara até lá. Quando o rapaz se afastou, Walter voltou a entabular conversa.
- Pois fique sabendo que também eu me estou marimbando se você é ou não culpado - disse Walter fleumaticamente.
Kimmel, que estava inclinado sobre a secretária a anotar qualquer coisa na sua agenda, ergueu a cabeça e fixou Walter. - Mas afinal qual é a sua opinião?
Tal como Corby, Walter achava-o culpado.
«Mas ele por acaso, demonstra-o? Não me parece», pensou Walter.
- O quê? - perguntou Kimmel com ousadia, endireitando-se e atirando com a caneta. - A sua opinião é de importância vital, não é?
- Se realmente quer saber a minha opinião, considero-o culpado, mas estou-me nas tintas para isso.
Por momentos, Kimmel ficou perplexo. - O que é que você quer dizer quando afirma que se está nas tintas para isso?
- É isso mesmo> O seu caso não me interessa nada. Intrometi-me na sua vida por acaso. As outras pessoas também me consideram culpado. Pelo menos, a polícia conduz as investigações como se acreditasse realmente na minha culpa. Como vê, estamos os dois na mesma posição. -Walter calou-se, mas tinha ainda algo a acrescentar. Esperava que Kimmel dissesse alguma coisa.
- Se se considera inocente, porque é que eu me havia de ralar com o caso? - perguntou Kimmel.
Walter não tocou mais naquele assunto. Tinha outras coisas mais importantes a dizer-lhe. - Queria agradecer-lhe por uma coisa que você não fez nem tinha necessidade de fazer, ou seja, pelo facto de não ter contado a Corby que eu já cá tinha estado anteriormente.
- Não tem que agradecer - afirmou Kimmel com brusquidão.
- Também não se teria prejudicado se o tivesse feito. Eu seria o único a perder com isso; talvez até me comprometesse fatalmente.
- Mas olhe que ainda estou a tempo de lhe contar, claro atalhou Kimmel friamente.
Walter piscou os olhos. Era como se Kimmel o tivesse esbofeteado. - Por acaso pensa fazê-lo?
-Tenho alguma razão especial para o proteger? - perguntou Kimmel num murmúrio. - Já se deu conta dos problemas que me trouxe?
-Sim.
- Já pensou que esta situação se pode manter indefinidamente para mim e, provavelmente, para si também?
- Sim - afirmou Walter. Mas, na realidade, achava que não, pelo menos no que lhe dizia respeito. Respondia a todas as perguntas que Kimmel lhe fazia, como se fosse uma criança que estava a ser repreendida ou catequizada. Tomou a decisão de se manter mudo perante qualquer pergunta que Kimmel posteriormente lhe fizesse. Mas este não disse mais nada.
- Afinal você matou a sua mulher ou não? - perguntou Walter, distinguindo um leve tremor nos lábios de Kimmel, quando este sorriu de uma forma incrédula.
- Naturalmente julgava que eu lhe ia dizer, não? Seu grande idiota!
-Eu quero saber!-afirmou Walter, inclinando-se para a frente. - Já lhe disse que pouco me importa se a polícia provou ou não que você é culpado. O que eu quero saber é a verdade. Walter manteve-se na expectativa, observando Kimmel. De repente pareceu-lhe que ele ia finalmente responder e que tudo, a sua vida, o seu próprio destino, estavam irremediavelmente perdidos, como uma pedra que é atirada a um precipício. A resposta de Kimmel poderia ditar a sentença final.
- A si não lhe interessa se se vai provar, ou não, que eu sou culpado - disse Kimmel num sussurro feroz.-Além do mais, todos os seus movimentos, incluindo o facto de aqui ter vindo agora, são passíveis de conduzir à minha incriminação.
- Você protegeu-me e eu nunca o iria trair.
- Eu nunca lhe diria como as coisas se passaram. Você acha que é digno de confiança?
- Sim. Neste caso acho que deve acreditar em mim. - Walter fixou-o nos olhos.
- Estou inocente - disse Kimmel.
Walter não acreditava nele, mas tinha a sensação de que Kimmel já se tinha autoconvencido de tal maneira que era inocente, que assumia o facto com a maior das naturalidades. Walter apercebeu-se disso através do ar arrogante que Kimmel assumia na sua presença. Mostrava-se ofendido e provocador com as perguntas que Walter lhe fazia. Apesar de tudo, esta atitude fascinava Walter. De repente apercebeu-se de que queria fazer crer a si próprio que Kimmel era culpado, embora existisse ainda uma remota possibilidade de ele estar inocente. Esta possibilidade aterrorizou-o. - Nunca lhe passou pela cabeça fazê-lo? - perguntou Walter.
- O quê? Matar a minha mulher?! -perguntou Kimmel, resfolegando de indignação.- Não! Nunca! Mas é óbvio que a si isso aconteceu.
- Pelo menos quando recortei o artigo do jornal, não. Eu recortei-o por outros motivos bem diferentes. Passou-me pela cabeça a ideia de que você tinha assassinado a sua mulher. Tenho de admitir que foi exactamente isso que aconteceu. Depois pensei fazer o mesmo à minha mulher, mas acabei por desistir da ideia. Tem que acreditar em mim! - Walter encostou-se a um dos cantos da secretária.
- Porque é que eu tenho de acreditar em si? Walter não respondeu.
- Por acaso acha-me culpado da alhada em que está metido? O que é que eu tenho a ver com os seus problemas? - perguntou Kimmel, impaciente.
-Claro que não. Se eu fosse culpado... Culpado em pensamento...
-Oh, é só um minuto!-gritou Kimmel da secretária.- É da Wainwright’s? - Kimmel dirigiu-se para a porta e Walter viu um homem com uma embalagem de livros sobre os ombros.
Walter olhou para o chão e pôs-se a passear de um lado para o outro. Estava desesperado e impaciente, incapaz de dizer o que previamente tinha preparado. A sua missão tinha redundado num fracasso total, pelo menos tudo apontava para isso. Sentia-se como um mau actor que, em plena representação, é apupado e expulso do palco, mas que, apesar da vergonha e da humilhação, continua a desempenhar o seu papel até ao fim. Quando Kimmel regressasse, Walter voltaria a tentar a sua sorte.
Kimmel tinha uma série de recibos nas mãos. Assinou um deles, selou outro e devolveu ao homem que entregara a encomenda o recibo que tinha assinado.
Ao chegar junto de Walter, disse: -É melhor desaparecer. Nunca se sabe se o tenente Corby anda por aí. Certamente não gostaria que ele o visse aqui.
- Ainda tenho uma coisa para lhe dizer. -O que é?
- Acho... acho que, até certo ponto, ambos somos culpados.
- Já lhe disse que estou inocente!
Aquele diálogo acutilante continuou. - Pois olhe que eu acho que é-disse Walter. Depois explodiu: -Há pouco disse-lhe que tinha pensado no caso e que podia tê-lo feito nessa noite se tivesse encontrado a minha mulher. Acontece que não a vi em parte alguma. Procurei-a por todo o lado, mas não a vi. - Aproximando-se mais de Kimmel, prosseguiu: -Fique sabendo que esta é a verdade e pouco me rala o que você pensa. Se quiser contar à polícia, também me estou nas tintas para o que eles decidam. Percebeu? Somos ambos culpados; até certo ponto eu compartilho da sua culpa. - Walter reparou que tudo aquilo era como malhar em ferro frio. Afinal era apenas a sua crença na culpabilidade de Kimmel que nivelava as escalas, não a culpa dele, uma vez que nada tinha sido ainda provado. Kimmel escutava-o e, quando Walter se apercebeu de que estava a ser observado, sentiu-se envergonhado. - Você é a minha culpa! exclamou Walter.
Erguendo o punho, Kimmel gritou: - Cale-se!
Walter não se havia ainda apercebido de que também ele tinha elevado o tom de voz. Havia ainda um cliente na loja.
- Desculpe - disse ele contritamente. - Peço imensa desculpa.
Kimmel permanecia com a expressão alterada pelo ódio. Inclinou-se sobre o tampo da secretária e agarrou em algumas agendas, atirando-as novamente, uma a uma, para cima da secretária, como que tentando descarregar a sua irritação. Walter teve a sensação de já o ter visto antes a tomar a mesma atitude. Kimmel olhou então para a porta da frente da loja, apreensivo, acabando depois por se voltar para Walter.
- Compreendo-o - disse ele. - Contudo, isso não é suficiente para que a minha simpatia por si aumente. A verdade é que eu o detesto, odeio-o. - Kimmel calou-se, como se estivesse à espera de que a sua fúria aumentasse. - Quem me dera que você nunca aqui tivesse posto os pés! Compreendeu?
-Claro. Compreendi muito bem-disse Walter. Curiosamente, de súbito, começou a sentir-se mais calmo.
- E agora, se não se importa, desapareça!
- Está bem. Não se preocupe, que eu vou - afirmou Walter, sorrindo. Dirigiu-lhe um último olhar. Kimmel permanecia imóvel, com o seu olhar abrutalhado e a boca precisa e lasciva, cerrada.
Apesar de tudo, mantinha um ar inteligente. Walter acabou por se voltar e dirigiu-se para a saída.
Caminhou apressadamente até chegar à esquina onde, alguns momentos antes, estivera hesitante quanto à sua entrada na livraria. Quando se deteve, voltou a observar aquele ambiente escuro e sinistro, mas que desta feita lhe dava um certo prazer e alívio. Colocou um cigarro entre os lábios e acendeu-o. Sentiu um prazer enorme ao aspirar aquele fumo delicioso, como se tivesse estado sem fumar há uma série de dias. Com o cigarro ao canto da boca, encaminhou-se para o carro.
Agora, mais do que nunca, estava convencido de que Kimmel era realmente culpado, embora não se conseguisse lembrar de qualquer pormenor específico surgido durante a conversa que acabara de ter com Kimmel e que servisse como prova capital. «Já lhe disse que estou inocente.» A voz de Kimmel ecoava nos ouvidos de Walter como se essa fosse a verdade em que ele precisava de acreditar. «Compreendo-o. Mas isso não é suficiente para que a minha simpatia por si aumente. Detesto-o, odeio-o...» Walter caminhava rapidamente. Sentia-se como se se tivesse libertado de uma terrível tensão. Afinal, Kimmel estava-se nas tintas para o facto dele estar ou não inocente! Walter sentia-se melhor, mas custava-lhe a acreditar que a única razão que explicava a sua súbita descontracção se devia ao facto de ter conseguido dizer a Kimmel aquilo a que ele, afinal, nem sequer prestara a menor atenção. Como é que ele tinha sido tão ingénuo, ao ponto de acreditar que Kimmel lhe daria ouvidos? O que é que um inocente teria para confessar? «Seria igualmente condenável o simples facto de pensares matar Clara», pensou Walter para consigo. Esta ideia assaltara-o já várias vezes. «O simples facto de pensares matá-la, mesmo acabando por não concretizares o acto, isso, só por si, já seria nocivo.» Walter apercebeu-se de que os seus pensamentos se precipitavam e não conduziam a nada; apenas serviam para o consumir. Eram perigosos! Até tinha tencionado falar a Ellie sobre a conversa tida com Kimmel, talvez porque o encontro com ele decorrera satisfatoriamente, tinha sido quase uma vitória e, amando-a, queria partilhar com ela todos os bons momentos. Mas... Se calhar, seria melhor não o fazer. Lembrou-se que, na semana anterior, Ellie lhe tinha pedido para passar a noite no apartamento dela e ele tinha insistido em voltar para casa.
Não que o facto de ficar ou ir-se embora provasse alguma coisa, mas agora sentia-se espantado com a forma como recusara o convite; sentia-se envergonhado por ter agido tão indiferentemente e insensivelmente. Envergonhava-se tanto desta sua atitude como da primeira noite que passara no apartamento de Ellie, quando Clara ainda estava viva. Durante alguns momentos, para se tentar justificar perante si próprio, Walter procurou recriar a incrível atmosfera vivida nesses tempos conturbados, não muito distantes, em que Clara o massacrava constantemente com acusações exasperantes, as quais acabaram por o atirar para os braços de Ellie. Apesar de tudo, a situação agora afigurava-se ainda mais conturbada, exasperarite e difícil. Não era possível estabelecer qualquer paralelo. Pelo menos, nessa altura Clara estava viva.
Walter permanecia de pé, com uma das mãos apoiada na porta do carro, tentando pôr as ideias em ordem. Tornou a sentir-se inseguro, vacilante, em relação ao rumo que as coisas estavam a tomar. «Se calhar, voltei a pôr o pé na argola ao ir falar com Kimmel!...» Agora percebia o risco que correra ao fazê-lo. Era óbvio que fora demasiado imprudente. Olhou à sua volta para se certificar se Corby estaria ali a espiar. «Já é bastante tarde para estar a pensar em espiões», pensou Walter. Entrou para o carro e partiu. Faltavam ainda quatro horas para ir buscar Ellie. E se ela lhe tivesse telefonado para o escritório durante a tarde? Raramente o fazia, mas era uma possibilidade a considerar. Ainda nem tinha pensado numa desculpa para dar no escritório. Dissera apenas a Dick que iria ausentar-se por uma hora, mas que também era possível que não voltasse. «Se Ellie telefonou e não me encontrou, certamente vai pôr-se a conjecturar. Se calhar vai pensar que estive com Corby outra vez...» Era possível que, nessa noite, ela não acreditasse que ele não tinha estado com o tenente.
Walter aguardava dentro do carro, estacionado entre o portão principal da escola e o auditório. Havia mais quatro ou cinco carros no local, mas vazios. Um deles era o pesadão Boadicea, com a sua capota de lona e o seu ar desajeitado como um tamanco. Ali sentado, à espera, Walter sentia-se envergonhado e constrangido, receoso de que alguém conhecido, os Iretons ou os Rogerses, o vissem e percebessem que ele esperava por Ellie. Sabia que os ensaios tinham terminado às 6 e que apenas os professores continuavam lá dentro, discutindo o guarda-roupa para a festa. Tinha cismado durante toda a semana naquele encontro e nas consequências que dele poderiam advir. Se realmente se ia encontrar com Ellie, fá-lo-ia de cabeça erguida. Estava preparado para o que desse e viesse.
Quando a viu sair do auditório, saiu do carro e foi ao seu encontro. Walter queria que Ellie deixasse o carro dela em Lennert e prosseguissem depois no dele. Contudo, ela insistiu em levar o seu. Queria poupar-lhe o trabalho de ter de a levar de volta, à noite, para Lennert.
Foram directamente para casa de Walter e começaram logo a jantar, pois estavam ambos com apetite. Walter tomou ainda uma bebida na cozinha. Ellie não quis beber nada, pois sentia-se demasiado cansada. Apesar disso, falou durante toda a noite para o tentar animar e distrair. Contou-lhe uma história sobre a sovinice da Sr.a Pierson, a tesoureira da escola, em relação aos fatos para a representação da peça Hansel e Gretei. No ensaio dessa tarde, as bruxas tinham aparecido com saias, mas sem a parte de cima dos fatos. - Vê lá que tive de levar aquelas crianças meio despidas à presença daquela forreta inconsciente para lhe fazer ver o ridículo da questão, pois a fulaninha não acreditava em mim, nem me queria dar ouvidos - disse Ellie, soltando uma gargalhada sonora. - Finalmente, acabei por convencê-la a dar-nos mais alguns tostões.
Walter adorava ouvir as gargalhadas de Ellie. Eram contagiantes e espontâneas. Enchiam uma sala, tal como o vigoroso acorde de violino com que ela terminava a sessão.
Armaram a mesa de jogo na sala de estar. Quando iam sentar-se para começar a jantar, a campainha da porta tocou. Walter foi à porta. Eram os Iretons, desfazendo-se em desculpas por terem aparecido àquelas horas. Mas, decorridos alguns minutos, estavam ambos sentados na sala, tagarelando, enquanto Walter e Ellie jantavam. Walter não conseguia discernir se eles ali tinham ido em visita amigável, ou apenas para bisbilhotar.
- Ouvi dizer que você ia tocar piano na festa de Acção de Graças em Harridge - disse Betty Ireton, dirigíndo-se a Ellie.
- Eu vou assistir ao espectáculo com a Sr.a Agnew. Deve conhecer. É a mãe de Florence.
- Oh, sim! - exclamou Ellie, sorrindo. - Já sei de quem está a falar. É a Fio; canta no coro dos cucos.
-Os meus filhos é que ainda são muito novos para estar na escola...
Betty estava a ser mais amável do que o necessário. Walter limpou os lábios cuidadosamente, Ellie já quase não tinha baton.
- Então como é que vão os negócios, Walt? - Bill inclinou-se para a frente, virando para Walter a sua cara rosada e simpática.
- Como sempre, está tudo na mesma - respondeu Walter.
- Tens visto o Joel e a Ernestine?
- Não. Na semana passada não pude aceitar um convite que me fizeram. Já não me lembro do que se tratava.
-Era um «chá em Boston»! -disse Bill.’ Esta expressão era um regionalismo utilizado para designar uma festa que começava às 4 horas da tarde num fim-de-semana.
«Ao menos, sempre fui convidado!», pensou Walter. Subitamente ocorreu-lhe que não tinha ainda ouvido falar em nada acerca de nenhuma festa de Acção de Graças ou dê Natal. Habitualmente, nessa altura do ano já se falava muito de bailes de máscaras e até de competições de trenós na neve. Walter tinha a certeza de que houvera falatório, pois não lhe tinham querido dizer nada. Comia calmamente; dava até a sensação de que tinha perdido o apetite. Pousou a faca e o garfo. Betty e Ellie falavam cordialmente de banalidades; dos benefícios que Walter poderia colher dos contactos com as pessoas e de uma mudança radical na sua vida. Walter sentia que o silêncio que se mantinha entre ele e Bill tinha grande significado: Clara falecera apenas há um mês e ali estava, Ellie, sentada na casa que fora de Clara, jantando à mesa onde ela e o marido habitualmente tomavam as refeições. Cerca de quinze dias antes, os Iretons tinham-no visto na companhia de Ellie, a fazer compras no supermercado de Benedict. Walter lembrava-se perfeitamente da cena; Bill limitara-se a acenar-lhe e nem se dera ao trabalho de ir falar com ele.
- Então, já tiveste mais algum desses interrogatórios chatos com a polícia? - perguntou Bill a Walter.
- Não. Não houve mais nada. E tu?
- Também não. Mas acho que deves estar interessado em saber que esse Corby tem andado a fazer perguntas às pessoas lá do clube - afirmou Bill em segredo, não interferindo com a conversa que Betty e Ellie mantinham. - Quem me disse foi o Sonny Cole. O tal tenente andou a falar com ele e com o Marvin Hays. Acho que foi ele. E também com o Ralph.- Bill sorriu.
Walter lembrava-se vagamente de que Ralph era o nome do empregado do bar do clube. - Mas isso é uma sujeira! - replicou Walter. - O que é que eles sabem de mim? Há meses que não vou ao clube.
- Oh! Mas não foi acerca de ti, pelo menos é o que eu acho. Eles andaram a perguntar, ou seja, o tal Corby... Bem, afinal de contas, Walter, eu acho que o que eles andam a tentar provar é se ela se suicidou ou se alguém estranho a assassinou. Não concordas com a minha ideia? Eles andam a farejar, à procura de possíveis inimigos. - Bill olhou para o chão, apertando as mãos uma contra a outra e produzindo pequenos estalidos.
Walter sabia que Corby tinha andado a fazer perguntas a seu respeito, e não sobre possíveis inimigos de Clara. Reparou que Betty e Ellie tinham deixado de conversar e escutavam o que eles diziam. E ele tinha logo a pouca sorte de ter estado lá, exactamente na paragem das camionetas! Já todos sabiam. Walter tinha a impressão de que eles estavam à espera que ele declarasse, como já fizera centenas de vezes, que não tivera qualquer comparticipação no caso. Naturalmente, eles estariam à espera de ouvir mais uma vez, para tirarem as conclusões que lhes interessavam, para depois as levarem para casa, ponderarem sobre elas, provarem-nas, voltarem-nas do avesso, cheirarem-nas e, por fim, decidirem se os factos correspondiam exactamente à realidade ou não, em suma, decidirem sobre a verdade que eles achassem mais coerente. «Se calhar, até Ellie pensa como eles...», pensou Walter. Manteve-se em silêncio.
- Corby andou a rondar a nossa casa outra vez - prosseguiu Bill, no mesmo tom impassível, bastante diferente do tom amigável e compreensivo que usara na noite em que lhe tinha telefonado para o pôr a par da conversa tida com Corby. - O tipo falou-me numa história esquisita. Disse-me que tinha encontrado em tua casa um artigo de jornal sobre o caso Kimmel.
Bill prosseguiu, fugindo aos pormenores, como se estivesse por dentro do caso Kimmel. Walter deitou uma olhadela a Ellie e, nesse preciso instante, sentiu o mesmo olhar de expectativa de quem está à espera de ouvir uma resposta; um olhar que era quase tão indiscreto como a curiosidade manifestada pelos Iretons.
-Parece-me que Corby acha que existe uma semelhança entre os dois casos - disse Bill, abanando a cabeça, constrangido.
- Tenho a certeza de que não gostava de estar... Quer dizer...
- O que é que ias dizer? - perguntou Walter.
- Bem, acho que a situação está negra, Walter, não achas? Ao afirmar isto, Bill deixou transparecer um medo oculto, como se receasse que Walter se levantasse naquele preciso instante e o agredisse.
«Afinal isto assim ainda é pior do que se tivesse vindo publicado nos jornais», pensou Walter. Agora Corby andava a espalhar o assunto por todo o lado, dando a ideia a toda a gente de que a descoberta que fizera constituía uma prova evidente no nieio das suas investigações, se bem que ainda demasiado secreta e explosiva para ser publicada. - Eu expliquei essa história do artigo de jornal ao Corby e acho que a minha explicação foi satisfatória - disse Walter, procurando os cigarros.
- Realmente, é de muito mau gosto que Corby ande por aí a fazer alarde do assunto e de uma maneira tão pouco limpa. Ele anda é a tentar fazer ver às pessoas que tanto eu como Kimmel somos assassinos. Mas ainda não se provou que Kimmel o seja. Ele nem sequer foi ainda inculpado. Quanto a mim, nem se fala.
Betty Ireton estava sentada de olhos e ouvidos bem abertos, à escuta.
- Parece que ele pensa que Kimmel também seguiu a mulher e a matou nessa noite, na... - arriscou Bill.
- Ainda não se provou nada disso! - exclamou Walter.
- Queres um cigarro? - perguntou Ellie.
Walter não tinha encontrado os seus cigarros. Aceitou o que Ellie lhe oferecia. - Não vejo nenhuma semelhança entre o meu caso e o de Kimmel, excepto no facto de ambas as nossas mulheres terem morrido na paragem das camionetas.
- Oh! Mas eles não suspeitam de ti, Walter- disse Betty tranquilizadoramente. - Meu Deus!
Walter olhou para ela. - Achas que não? Então que é que eles andam a fazer? Por acaso imaginas como é que uma pessoa se sente depois de ter contado a mesma história vezes sem conta, com todos os pormenores, com todos os movimentos, e os tipos, mesmo assim, continuam a duvidar? Na realidade, a polícia acredita em mim. O estupor do Corby é que não, pelo menos assim o tem demonstrado. O que eu devia fazer era pedir protecção à polícia, contra esta perseguição desenfreada que Corby me está a mover! -Ele já tinha tentado fazer isso. Sabia, contudo, que não havia qualquer possibilidade de deter a investigação de um detective da polícia quando este achava que o suspeito deveria ser mesmo investigado.
-Walter... -advertiu-o Ellie depreciativamente, tentando que ele não adiantasse mais nada.
Walter baixou os olhos para o guardanapo. Com as mãos trémulas, agarrou-o e torceu-o. Um silêncio súbito abateu-se sobre a sala, deixando-o embaraçado. Queria explodir, dizer que, se uma pessoa repete a mesma história vezes sem conta, acaba por duvidar de si própria, pois as palavras deixam de fazer sentido.
Isso era um facto importante, mas ele não podia confessá-lo porque eles iriam certamente atribuir-lhe demasiada importância, até mesmo Ellie. Walter levantou-se da mesa e começou a andar de um lado para o outro. De repente voltou-se.
-Bill, não sei se Corby também te disse que Clara tentou suicidar-se em Setembro.
- Não - afirmou Bill, solenemente.
-Ela tomou uma dose exagerada de barbitúricos. Foi por isso que esteve internada no hospital. A ideia do suicídio perseguia-a constantemente. Não ia tocar neste assunto, mas, tendo em conta tudo isto sobre que temos estado a falar, acho que deves ficar a par do assunto.
- Bem, nós ouvimos falar no assunto - disse Bill.
- Ouvimos uns rumores...-corrigiu Betty Ireton delicadamente.
- Parece-me que foi a Ernestine que nos contou. Pelo menos, era esta a ideia que ela tinha. Não que ela tivesse a certeza, mas, como é muito intuitiva em relação a estas coisas, pôs-se logo com as suas conjecturas. Ela sabia que, nós últimos tempos, Clara andava muito em baixo. - Betty falava num tom suave e solene, conveniente à memória da morta.
Betty e Bill continuavam a olhar para Walter, na expectativa de que ele adiantasse mais alguma coisa. Walter sentia-se como se tivesse tido um choque. Pensava que o episódio dos barbitúricos poderia eventualmente provar o instinto, suicida de Clara. Os Iretons olhavam para ele com o mesmo ar interrogativo com que tinham chegado.
- Quem me dera saber qual a melhor forma de agir! - acabou Walter por dizer, cada vez mais desesperado e comprometido.
- Quem conseguirá alguma vez provar seja o que for num caso como este?
- Walter, eu acho que eles não andam a investigar nada sobre ti-repetiu Betty.-Não devias estar tão nervoso. Tenta controlar-te. Meu Deus!
- Isso é muito fácil de dizer. Quem não queria estar sob a alçada do Corby era eu - disse Bill. - Ou, melhor, eu compreendo o que ele está a tentar fazer.
- Tenho a certeza de que ele deve ter explicado tudo muito bem - disse Walter em tom de mofa. - Aliás está sempre a explicar as coisas às pessoas!
-Quero dizer-te, Walter, não que eu precisasse de to dizer, assim o espero, que disse ao Corby que tinha a certeza absoluta de que tu não eras uma pessoa capaz de fazer uma coisa daquelas. Eu sei o que é que eles dizem das pessoas que o fazem; são do género imprevisível. Em relação ao teu caso, é diferente. I Bill gesticulava, não dando, contudo, ênfase às suas palavras. - Não terias sido capaz de a assassinar.
As palavras de Bill soaram falsas e disparatadas a Walter. Ele nem tinha a certeza de que Bill o tivesse afirmado a Corby. (Walter engoliu o comentário que queria fazer em relação a I Corby, acabando apenas por dizer: - Obrigado. Sobreveio um novo silêncio. Bill olhou para Betty, trocaram um longo e solene olhar e Bill levantou-se. -É melhor irmos andando. Vamos embora, querida.- Era sempre Bill a tomar a iniciativa de se irem embora. Betty levantou-se prontamente.
Walter tinha vontade de lhes dizer algo mais que os fizesse acreditar nele. «E são estes os meus melhores amigos na vizinhança!», pensou Walter. Acompanhou-os até à porta, friamente, com as mãos nos bolsos do casaco. Eles estavam prestes a voltar-se contra ele, se é que não o tinham já feito! O velho costume da raça humana: perseguir e tramar o parceiro.
- Boa noite! - disse-lhes Walter, tentando aparentar simpatia. Fechou a porta e voltou-se para Ellie. - Que é que achas disto tudo?
-Estão a agir como qualquer pessoa normal. Acredita em mim, Walter. Talvez até estejam a agir melhor do que seria de esperar.
- Notaste algum ressentimento da parte deles em relação a mim?
-Não. De modo algum.- Ellie começou a levantar a mesa. - Se tivesse notado alguma coisa, dizia-te, não achas?
Pelo tom que ela utilizou, Walter percebeu que ela queria mudar de assunto. «Mas, se eu não posso falar com ela, com quem hei-de eu falar?», disse Walter para consigo mesmo.
Subitamente pensou: «E se alguém vai falar a Jon do artigo de jornal sobre o caso Kimmel?» Isto fê-lo sentir-se indisposto.
Imaginava que isso iria certamente espalhar a dúvida no espírito de Jon. Decidiu ajudar Ellie a levantar o resto da mesa, embora ela já tivesse quase tudo arrumado. Ellie já sabia o lugar das coisas. Era até mais diligente do que a própria Claudia. O café estava quase pronto. Quando acabaram de arrumar a cozinha, já o café estava pronto a servir. Levaram-no para a sala e Walter encheu as chávenas.
Ellie sentou-se e encostou a cabeça para trás, numa das almofadas do sofá. A luz, vinda de trás do sofá, incidia na curvatura do seu queixo eslavo. Estava mais magra do que no Verão e tinha perdido quase completamente o tom bronzeado. Walter achava-a agora mais atractiva e sensual do que nunca. Quando se inclinou sobre ela, Ellie abriu os olhos. Beijou-a nos lábios. Ela sorriu, mas Walter descobriu um certo ar misterioso e desconfiado nos seus olhos, como se ela.não soubesse o que fazer. Ellie acabou por pôr um dos braços à volta dos ombros de Walter, atraindo-o a si, sem contudo proferir uma palavra. Também Walter se manteve em silêncio. Beijou-a na testa e nos lábios. Ao estreitá-la entre os braços, sentiu uma paz e um conforto interior enormes. Walter achava que o facto de não falarem um com o outro era um disparate, tal como o era a forma como se beijavam: ele porque ela estava ali disponível e ela porque o desejava fisicamente. Walter sentia-o, através da tensão retraída, da respiração ofegante e da forma lasciva com que ela o olhava. Apesar de não se sentir disposto, Walter voltou a estreitá-la, beijando-a nos lábios.
Quando Ellie se levantou para ir buscar um cigarro, Walter sentiu o desejo dela como que apoderando-se dele; parecia algo de misterioso, que provinha do espaço que os separava. Levantou-se para lhe acender o cigarro. Ela pôs os braços à volta do pescoço dele.
- Walter, deixa-me ficar contigo aqui esta noite.
- Não posso. Ainda não.
Ellie apertou mais os braços à volta do pescoço de Walter.
- Então vamos para minha casa, por favor! - suplicou ela.
O tom de súplica que transparecia na sua voz deixou-o embaraçado e Walter acabou por se envergonhar dessa sua estúpida atitude. - Não posso. Não posso fazê-lo ainda. Compreendes-me? - disse Walter, afastando-se dela.
Calmamente, Ellie pegou no isqueiro e acendeu o seu cigarro.
- Não tenho a certeza se compreendo essa tua atitude, mas, pelo menos, vou tentar.
Walter sentia-se abúlico. A explicação para toda esta indecisão não era a casa ou a sua própria indiferença. Walter não conseguia encontrar a explicação certa. O que o levava a ficar mudo era o facto de ele não lhe ter podido dizer que mais tarde seria diferente. Que ele não tinha ainda feito qualquer plano em relação a ela.
- Teria a sua graça se alguma vez chegássemos a uma conclusão comum quanto aos nossos sentimentos - disse-lhe ela, dirigindo-lhe um olhar indirecto. Depois sorriu com um certo humor. - Bem, eu e o Boadicea vamo-nos chegando.
- Quem me dera que as coisas pudessem ser diferentes.
- Era bem preferível! - exclamou Ellie, agarrando na carteira e nas luvas.
«Estás a ser injusto, Walter. Estás a servir-te dela deliberadamente e sabes muito bem que a estás a magoar», disse Walter para consigo próprio. Seguiu-a até ao carro. Ela despediu-se dele através do vidro do carro, mas não esperou que ele lhe desse um beijo de despedida.
Walter voltou para o vazio da casa. Teria ele preferido ficar em casa apenas porque aí a barreira entre ele e ela se mantinha? A casa não o deprimia, embora o mesmo não se pudesse dizer de Ellie. Walter sabia que naquela casa nunca se sentiria à vontade com Ellie, porque a presença de Clara era constante, ele continuava a senti-la. No andar de cima, Claudia tinha arrumado o quarto sem que ele lho tivesse pedido: a cama estava a um dos cantos e o toucador, com os frascos de perfume vazios, as caixas de pó-de-arroz e um porta-retratos com a fotografia de ambos, estava situado entre as duas janelas. O armário estava cheio de malas com os fatos dela e alguns casacos estavam ainda pendurados. Tinha de fazer alguma coisa, o mais breve possível, com as roupas dela; dá-las a alguém ou pedir a Claudia que as levasse para as distribuir por pessoas que ela conhecesse. Já tinha pensado várias vezes no assunto.
O telefone tocou. Walter estava na sala de estar. Teve um pressentimento tão forte como se o sinal do telefone tivesse sido dado por uma voz humana; «Deve ser o Corby...» Deixou que o telefone tocasse quatro ou cinco vezes, e só depois se levantou para o ir atender. A meio do caminho desistiu e voltou para trás. Ficou na sala, rígido, à escuta, até que, após uns dez ou doze sinais, o telefone ficou mudo.
Cerca de cinco horas mais tarde, Kimmel foi despertado pela presença do tenente Corby, que o obrigou a vestir-se para o acompanhar até à 7 esquadra da polícia de Newark.
Com a pressa, Kimmel esqueceu-se até de vestir a roupa interior. A aspereza da lã do seu fato, em contacto com a pele delicada das nádegas, provocava-lhe uma sensação desagradável; sentia-se meio despido. A esquadra da polícia era um edifício quadrado, frio, desagradável, com dois lanços de escada que davam acesso à entrada principal. A escadaria trouxe-lhe à memória o termo «patamar» e o palácio Belvedere, em Viena, onde ele tinha visto lances de escada semelhantes, embora a hediondez da arquitectura do século XIX pudesse tornar essa associação absurda. À medida que ia subindo as escadas, Kimmel repetia mentalmente: «Patamar, patamar, patamar.» Era uma espécie de encantamento pessoal e preventivo contra o que pudesse vir a acontecer no edifício. A cave para onde Corby o levou tinha as paredes cobertas por azulejos hexagonais que lhe dava a aparência de uma casa de banho. Kimmel deteve-se sob uma das lâmpadas. O brilho intenso da luz, incidindo sobre a superfície dos azulejos, encandeou-o. A única peça de mobiliário existente na sala era uma pequena mesa.
- Você acha que Stackhouse é culpado? Kimmel encolheu os ombros.
- O que é que acha? Toda a gente tem uma opinião sobre Stackhouse.
- Meu caro tenente Corby - disse Kimmel convictamente -, você está tão convencido de que todas as pessoas se sentem fascinadas pelo universo do crime que não conseguirá descansar até conseguir apresentar o assassino à justiça; mas você é tão convencido e ambicioso que os louros terão forçosamente de lhe caber a si! Quem é que se rala com o facto de ele ser culpado ou não? Corby sentou-se em cima do tampo da mesa, balançando as pernas. - Que mais lhe andou o Stackhouse a confidenciar?
- Basta!
- Vá lá! O que é que ele lhe disse? - Na sala vazia, a voz de Corby soava metálica.
- Basta! - repetiu Kimmel com dignidade, torcendo às mãos rechonchudas. Depois coçou a barriga.
-Então o Stackhouse levou vinte minutos a pedir-lhe desculpa, não?
- Fomos interrompidos várias vezes. Ele esteve alguns minutos nas traseiras da minha loja, junto à secretária, a cavaquear um pouco comigo.
-Com que então a cavaquear!... -disse Corby.-«Peço imensa desculpa, Sr. Kimmel, por lhe ter causado todo este incómodo.» E o que é que você disse? «Oh! Não há problema nenhum, Sr. Stackhouse. Sem ressentimentos.» Não lhe ofereceu um cigarro?
-Eu disse-lhe que achava que nenhum tinha motivos para se preocupar. Mas que seria melhor ele não voltar a visitar-me, porque você iria logo deturpar as coisas - disse Kimmel.
Corby deu uma gargalhada.
Kimmel ergueu a cabeça. Olhou fixamente para a parede, permanecendo imóvel, batendo apenas com a ponta dos dedos no tampo da mesa. Estava de pé, apoiado apenas numa das pernas e com a outra apoiada na parede, quase de costas para Corby. De repente apercebeu-se de que era a mesma posição que ele por vezes estudava demoradamente, despido, em frente do grande espelho da porta da casa de banho. Fê-lo impensadamente e, embora não o demonstrasse, naquele momento sentiu-se envergonhado, mas, ao mesmo tempo, aquela posição dava-lhe um certo ar imperturbável. Kimmel manteve-se na mesma posição, como se estivesse petrificado.
- Culpado ou não, presumo que você sabe que Stackhouse nos levou a reabrir o seu processo - disse Corby.
- Isso é tão óbvio que é despropositado mencionar o facto atalhou Kimmel.
Corby continuou a balouçar a perna em cima da mesa, que fazia lembrar uma mesa de operações imunda e primitiva. Kimmel perguntava a si próprio se Corby acabaria por lhe aplicar um golpe de judu, atirando-o para cima dela.
- Por acaso, Stackhouse explicou-lhe os motivos por que tinha guardado o recorte de jornal? - perguntou Corby.
-Não.
- Não fez nenhuma confissão?
- Ele não tinha nada para confessar. Limitou-se a pedir-me desculpa de ter posto a polícia no meu encalço.
-Stackhouse tem muito que confessar - retorquiu Corby. -Para um homem que é inocente, a sua conduta é muito estranha. Ele não lhe disse por que motivo tinha seguido a camioneta em que viajava a mulher naquela noite?
- Não - replicou Kimmel, no mesmo tom indiferente.
- Mas talvez você me possa fornecer o motivo.
Kimmel cerrou os lábios trémulos. As perguntas que Corby lhe fazia começavam a irritá-lo. Kimmel supunha que Stackhouse também devia estar a ser pressionado. Por momentos sentiu-se dominado por um sentimento de comiseração em relação a Stackhouse. Afinal, ambos sentiam a mesma aversão por Corby. Tinham um inimigo comum. Acreditava nas palavras que Stackhouse proferira na sua loja. Acreditava na inocência dele. - Se realmente duvida da veracidade do meu relato sobre a conversa que Stackhouse teve comigo lá na livraria, devia ter mandado um espião para escutar o que dizíamos.
- Oh, nós sabemos que você é perito em reconhecer os detectives da polícia. Teria avisado Stackhouse e este ter-se-ia calado. Havemos de conseguir fazê-los vomitar a verdade!-Corby sorriu e aproximou-se de Kimmel. Estava a ser demasiado afoito e atrevido. Segundo dissera a Kimmel, nesse dia estava ao serviço no turno da noite. - Ouça lá, Kimmel. Seja sincero. Você está a tentar proteger Stackhouse, não está? Você adora assassinos, não é verdade?
- Eu tinha a ideia de que você não o considerava um assassino.
- Isso foram águas passadas. Depois de ter encontrado o artigo, a minha opinião mudou. Aliás, eu disse-lhe isso logo que o descobri!
- Eu penso que, no fundo, você ainda tem grandes dúvidas em relação a Stackhouse, não o quer é reconhecer, pois já decidiu fazer do caso dele um acontecimento sensacional!-gritou Kimmel mais alto do que Corby. - Nem que, para isso, você tenha de inventar os crimes!
-Oh, Kimmel!-proriunciou Corby, arrastando a voz.-Por acaso fui eu que inventei o cadáver de sua mulher?
- Mas inventou a minha participação no crime. Está sempre a especular em meu detrimento!
- Por acaso já tinha estado com Stackhouse antes de eu o ter levado à sua loja? - perguntou Corby. - Seja franco.
-Não.
-Eu tinha a ideia de que sim-disse Corby, especulando.
- Ele é desse género.
Kimmel ficou na dúvida se Stackhouse teria sido tão estúpido que tivesse contado a Corby que tinha lá estado anteriormente. - Não - disse Kimmel, já menos seguro. Tirou os óculos, soprou nas lentes, procurou o lenço e, não o encontrando, limpou-as à camisa.
- Pois olhe que eu estou a imaginar perfeitamente o Stackhouse a ir ter consigo, estudando-o e talvez até a tentar mostrar comiseração por si. É muito possível que ele o tivesse estudado para ver se você tinha realmente alguma coisa de comum com um assassino’, o que, deíxe-me dizer-lhe, até é verdade.
Kimmel voltou a pôr os óculos e tentou recompor-se. O medo começou a consumi-lo como uma pequena chama. Fê-lo vacilar e deu-lhe vontade de fugir. Até Corby surgir em cena, Kimmel julgava gozar uma imunidade sobrenatural. Agora, o próprio Corby parecia possuir poderes sobrenaturais como uma Nemesis. Corby estava a ser injusto. Os seus métodos não eram os mais comummente empregues pela justiça e, além disso, aproveitava-se do privilégio que o seu posto lhe conferia.
- Então já mandou arranjar os óculos? - perguntou Corby, aproximando-se de Kimmel como um franganote, com as mãos nos quadris, afastando as abas do sobretudo. Deteve-se mesmo em frente a Kimmel. - Kimmel vou dar cabo de si. Vou desmascará-lo. Até o Tony já acha que você matou Helen, sabia disso?
Kimmel ficou imóvel. Fisicamente, sentia receio de Corby e isso irritava-o, atendendo ao aspecto franzino do tenente. Receava estar a sós com ele, naquela sala, sem ter a menor oportunidade de pedir ajuda a alguém. Receava ser arremessado para o chão de mosaico, semelhante ao de um matadouro. Imaginava as mais vis torturas possíveis de infligir naquela sala. Imaginava a polícia a lavar o sangue que escorria das paredes depois de terem torturado um homem até às últimas consequências. De súbito sentiu necessidade de correr para os lavabos.
-Agora Tony está do nosso lado -disse Corby junto ao rosto de Kimmel. - Agora é que ele começou a relacionar os factos. Ele lembra-se de você lhe ter dito, alguns dias antes de ter morto Helen, que havia várias formas de um homem se livrar da mulher errada.
Kimmel lembrava-se realmente de ter falado nisso. Parecia-lhe estar a ver Tony sentado na Oyster House, bebendo cerveja. Tony tinha lá estado com alguns dos seus amigos adolescentes, embora não tivesse sido convidado. Kimmel falara abertamente, pois tinha-se aborrecido com o facto de Tony ter tomado a iniciativa de se sentar sem ter pedido licença. - E de que é que Tony se recorda mais? - perguntou Kimmel.
-Ele lembra-se também de que na noite do crime, depois do cinema, foi até sua casa, mas não o encontrou. Nessa noite você chegou a casa muito depois da meia-noite, Kimmel. E se eu o obrigasse a dizer onde tinha estado? O que é que me dizia?
Kimmel deu uma gargalhada. - É absurdo! Eu sei que Tony não foi a minha casa. É perfeitamente absurdo tentar. É absolutamente absurdo tentar reconstituir, passados três meses, o que aconteceu na noite mais calma e aborrecida do mundo. É natural que as pessoas já não se lembrem dos pormenores.
- Com que então a noite mais calma e aborrecida do mundo?...-Corby acendeu um cigarro. De repente levantou a mão e Kimmel sentiu uma dor aguda na face esquerda. Kimmel quis tirar os óculos antes que fosse tarde de mais. Mas acabou por não o fazer. A dor na face manteve-se, ardente, humilhante.
- Só a poder de pancada é que você .compreende as coisas, não é verdade, Kimmel? Você nunca se preocupa com as palavras nem com os factos, porque você é um louco. Você recusa-se a atribuir-lhes qualquer significado. Vive no seu mundo privado e a única maneira de penetrar nele é espancá-lo! -Corby voltou a esbofeteá-lo.
Kimmel esquivou-se, embora Corby, desta vez, não tivesse a intenção de o atingir; ia apenas tirar-lhe os óculos. Kimmel sentiu-se despojado deles. A sala parecia girar como uma mancha enevoada e ele tentou focar o vulto negro de Corby caminhando em direcção à mancha da mesa. Pôs as mãos à frente da cara, observou-a e atirou-a para trás, apertada contra a outra. Corby veio por trás.
- Porque é que você não admite que reconhece Stackhouse como culpado? Porque é que não admite que ele lhe contou o suficiente para você ter a certeza disso? Não me vai tentar fazer acreditar que gosta assim tanto de Stackhouse para o proteger dessa maneira, Kimmel.
- Somos ambos inocentes e estamos na mesma situação afirmou Kimmel, num tom monocórdico. - De acordo com as próprias palavras de Stackhouse. Foi essa a razão por que ele veio ter comigo.
Corby atingiu-o no estômago, fazendo com que Kimmel se dobrasse como acontecera na contenda travada em sua casa. Kimmel preparou-se para um novo golpe, que o atiraria por terra. Porém tal não aconteceu. Kimmel permaneceu curvado, tentando recuperar a respiração pouco a pouco. Viu pequenas manchas no chão, cada vez mais visíveis, à medida que se inclinava mais. De súbito notou que lhe escorria sangue do nariz. Teve de abrir a boca para respirar e nessa altura sentiu o sabor adocicado do sangue. Corby andava à volta dele e Kimmel voltou-se para tentar não perder de vista a figura de Corby. De repente, Kimmel apertou o nariz e soprou violentamente, atirando a mão molhada para um dos lados. - Este chão deve estar encharcado de sangue!-gritou Kimmel.-Até as paredes devem escorrer sangue das torturas que vocês infligem àqueles que são vítimas dos vossos interrogatórios!
Corby agarrou Kimmel pelos ombros e aplicou-lhe uma joelhada no estômago. Kimmel ficou de gatas, respirando com dificuldade e sentindo uma dor mais aguda do que anteriormente.
- Admita que reconhece Stackhouse como culpado! Kimmel ignorou a intervenção de Corby. Sentia pena de si próprio. Até a tentativa de recuperar a respiração era um processo involuntário e doloroso. Entretanto, Corby pontapeou-o e Kimmel caiu no chão. Estava deitado sobre um dos lados, com a cabeça erguida.
- Levanta-te, meu grande filho da puta! - gritou Corby.
Kimmel não se queria levantar, mas Corby pontapeou-o nas nádegas. Kimmel pôs-se de joelhos e, pouco a pouco, foi-se erguendo com a cabeça levantada. Nunca se tinha sentido tão fraco e impotente. Corby pavoneava-se à sua volta e, quanto mais se aproximava dele, mais fraco Kimmel se sentia. Dava a sensação de que Corby o tinha hipnotizado. Doía-lhe o corpo todo. Apercebia-se agora, mais nitidamente do que nunca, de uma ideia que o perseguia. Sentia-se extremamente feminino, mais até do que quando mirava as suas curvas sensuais no espelho da casa de banho, ou quando, às vezes, se entretinha a ler livros pornográficos para seu próprio deleite. Esta sensação dava-Ihe um prazer que ele não sentia há anos. Aguardou um novo golpe, que ele antecipadamente previu ir atingi-lo na orelha.
Como se Corby o tivesse percebido, desferiu-lhe um soco num dos lados da cabeça. De súbito, Kimmel soltou um grito e sentiu uma vergonha enorme, contrária ao prazer que tirava da situação. Ouviu a gargalhada de Corby.
- Kimmel, você está a corar! - disse Corby. - Vamos mudar da assunto? E que tal se falássemos de Helen? Daquele episódio em que ela deitou fora a sua Enciclopédia Britânica por pura malícia. Ouvi dizer que você tinha pago 55 dólares pela Enciclopédia em segunda mão, e logo numa altura em que se encontrava numa má situação financeira.
Kimmel ouviu Corby resplandecendo de triunfo, embora se sentisse ainda demasiado envergonhado para olhar para ele.. Fez um esforço tremendo para tentar descobrir quem teria contado a Corby o caso da Enciclopédia, pois isso acontecera haja bastante tempo, em Filadélfia.
-Também ouvi dizer que, nessa altura, Helen trabalhava como manucure para as amigas, para assim conseguir dinheiro para os seus alfinetes. Para si isso deve ter sido como um sonho; mulheres a entrar e a sair de casa todo o dia, sentadas à volta umas das outras, com mexericos. Foi nessa altura que você se apercebeu de que nunca conseguiria elevar Helen até chegar ao seu nível.
«Mas essa história durou apenas um mês...», pensou Kimmel. Tinha posto termo àquilo. De repente olhou para um dos lados, receoso de que Corby o voltasse a atacar. Sentia picadas nas pernas, debaixo das calças, como se estivesse nu e um vento gelado soprasse sobre ele.
- Mas, mesmo antes disso - prosseguiu Corby - você chegou a um tal ponto que não conseguia tocar-lhe. Sentia repugnância dela e, gradualmente, foi-se estendendo às outras mulheres. Você convenceu-se de que odiava as mulheres por elas serem estúpidas e que Helen era a mais estúpida de todas. Isso era um comportamento estranho em si, Kimmel, visto ter sido uma pessoa tão apaixonada na juventude! Terá sido influência dos livros pornográficos?
- Você enoja-me! -exclamou Kimmel.
- O que é que lhe pode causar nojo? - Corby aproximou-se.
- Casou com Helen quando tinha apenas vinte anos, demasiado novo para saber fosse o que fosse sobre as mulheres. Mas, como nessa altura era muito religioso, achou que tinha de casar primeiro para poder depois desfrutar da... Você deve ter um nome para designar isso, Kimmel!
- Isto só podia partir mesmo de si!-berrou Kimmel, limpando a boca com a mão.
- Quer os óculos?
-Kimmel agarrou neles sofregamente e colocou-os. Agora conseguia distinguir perfeitamente a sala e o rosto magro de Corby. Debaixo do bigode notava-se um sorriso de escárnio nos lábios.
- Bem, para Helen o dia em que casou consigo foi funesto. Mal sabia ela, um rapariguinha dos bairros pobres de Filadélfia, o que a esperava. Ela tornou-o impotente, pelo menos você assim o achou. Mas, no fundo, isso para si não foi assim tão mau, pois podia atribuir as culpas a Helen e dava-lhe imenso prazer odiá-la.
- Eu não a odiava - protestou Kimmel.-Na realidade, ela era uma mentecapta. Eu não tinha nada em comum com ela.
- Ela não -era mentecapta - disse Corby. - Bem, e já que estamos a falar no assunto, também sei que uma mulher com quem você teve um grande fracasso foi ter depois com Helen, contando-lhe tudo, e ela, então, começou a escarnecer de si, ofendendo-o.
- Isso não é verdade! Não houve mulher nenhuma!
-Sim, claro que houve. Chama-se Laura, como deve estar recordado. Estive com ela, que me contou tudo. Laura detesta-o. Diz que você lhe deu com os pés.
Kimmel espumou de raiva, revendo a cena à medida que Corby falava no assunto. Nunca esqueceria aquela tarde, passada no apartamento de Laura, estando o marido no trabalho. Ele tinha tentado fazer crer a si próprio que o fracasso, nesse dia, se teria ficado a dever ao facto de ter sido uma situação furtiva e, depois disso, nunca mais tivera a coragem de tentar novamente. Parecia-lhe estar a ver Laura a subir as escadas de sua casa, no dia seguinte, para contar tudo a Helen. Na realidade, Kimmel não a tinha visto subir as escadas, mas imaginava a cena como se a tivesse presenciado. Como Laura coxeava, era natural que se tivesse apoiado ao corrimão. Kimmel tinha visto as duas mulheres na sala a rirem-se abertamente dele e tapando a boca com as mãos, como crianças idiotas, envergonhadas do que tinham dito. Nessa mesma noite, Helen falara-lhe da visita de Laura e, a partir daí, não parara de soltar risadas maliciosas, zombando dele. Nessa noite, Helen tinha traçado o seu próprio destino com aquela zombaria estúpida!...
- Depois de isso se ter passado, você ficou com a impressão de que todos sabiam o que tinha acontecido consigo - disse Corby.- Para fugir aos falatórios, mudou-se para Newark. A gota de água que acabaria por fazer transbordar o copo ocorreu aqui em Newark, com o aparecimento em cena do agente de seguros Ed Kinnaird.
Kimmel estremeceu. - Quem é que lhe contou isso?
-É segredo - afirmou Corby. - Realmente, deixe que lhe diga, foi uma infelicidade não o ter morto a ele, em vez de Helen, Kimmel. Era capaz de ter escapado. Que pouca sorte! Helen até se ia encontrar com ele na rua, como uma autêntica prostituta! Uma responsável senhora de trinta e nove anos dominada pelo desejo, tentando a sua última conquista. Claro que para si isso era nojento! Ela, pelo contrário, sentia um enorme orgulho no seu adorado amante, fazendo até alarde, na vizinhança, das incríveis proezas de que ele era capaz. Você, roído de ódio, não podia suportar aquela afronta, ainda para mais uma pessoa da sua posição, que mantinha correspondência com professores e educadores de toda o país. E se eles viessem a saber do caso? Logo numa altura em que você tinha já conseguido assegurar uma reputação indelével como livreiro entre a sociedade de Newark.
- Quem é que lhe falou de Kinnaird? - perguntou Kimmel.
- Não me diga que foi o Nathan?
- Não revelo as minhas fontes - replicou Corby, sorrindo. Kimmel lembrou-se que Nathan tinha estado lá em casa na
noite em que Helen e Kinnaird se haviam lá juntado, mas achava pouco crível que ele tivesse sido capaz de falar no assunto; custava-lhe a acreditar nisso. Mas... podia ter sido Lena, ou Greta, e porque não Kane? Podia perfeitamente ter sido alguém daquela gentalha com quem Helen gostava de fazer mexericos! O que mais aborrecia Kimmel era, no entanto, o facto de Corby ter andado a interrogar a vizinhança toda e ninguém ter sido capaz de o pôr a par disso.
- Não foi Nathan - acabou Corby por dizer, abanando a cabeça. - Mas ele falou-me da noite em que você e ele estavam a jogar às cartas e Helen apareceu lá em casa, na companhia de Ed Kinnaird, para mudar de roupa antes de irem dançar a um sítio qualquer. Segundo parece, Kinnaird entrou com a maior das descontracções. Nathan sabia o que se passava, pois estava a par dos falatórios. E você o que é que fez?... Comportou-se como um autêntico eunuco, ficando assolapado na cadeira!
Kimmel avançou, titubeando, tentando agarrar Corby, com os braços estendidos para a frente. Sentiu um peso enorme no estômago e, com os pés no ar, sentiu uma pancada seca nos ombros. Por breves momentos, a sua cara quase tocou na volumosa barriga. Tinha as pernas apoiadas na parede. «Tenho os ossos do corpo todos quebrados!», pensou Kimmel. Nem sequer tentou mover-se, embora sentisse uma dor lancinante na coluna.
- Você pô-la na rua, mesmo em frente de Nathan. Mas essa não foi a primeira vez; já o fizera antes. Ed acabou por se ir embora e ela ficou em casa, lamentando ao telefone, com Lena, o que havia sucedido.
Kimmel sentiu um pontapé nas pernas. O pé chocou com o chão, provocando-lhe uma dor intensa. «Logo Nathan... ele que nem é de mexericos!», pensou Kimmel. «Então foi por isso que ele deixou de aparecer lá em casa e eu não o via há tanto tempo ...» Kimmel sabia, através da polícia de Newark, que, durante as investigações, Nathan nunca pusera sequer a possibilidade de ele ter cometido o crime. Mas também se podia ter dado o caso de a polícia de Newark não estar a par do episódio dessa noite. Nathan traíra-o! O professor da Faculdade de História que Kimmel considerava um verdadeiro cavalheiro e um bom profissional! Kimmel sentia agora uma desilusão amarga em relação a Nathan, um desapontamento que o corroía por dentro e o tornava cada vez mais vulnerável no meio de todo aquele Inferno. Tinha perdido os óculos novamente.
-Lena aconselhou Helen a ir passar uns dias a Albany, a casa da irmã dela. Por sinal foi um gesto pouco feliz. Realmente, Kimmel, com tanta gente a par das vossas rixas dessa noite... Até agora você conseguiu escapar de uma forma espantosa, não é verdade?
Kimmel não conseguia falar. Estava uma pilha de nervos. A mancha negra, que ele mal distinguia à sua frente, era o seu sapato, pelo menos ele assim o imaginava. Tentou agarrá-lo, mas a sua mão tocou em qualquer coisa fria e que ele não sabia distinguir se seria o chão ou a parede.
- O principal motivo que o levou a assassinar Helen não foi, certamente, o facto de ela andar envolvida com Kinnaird, mas sim a estupidez dela. Kinnaird foi apenas o rastilho que acabou por fazer com que tudo fosse pelos ares. Por isso você seguiu a sua mulher, naquela noite, com a intenção de a matar. Fê-lo deliberadamente. Admita-o, Kimmel!
Kimmel estava como que paralisado, com a boca seca. Dava até a sensação de que tapara os ouvidos para não ouvir a voz de Corby. Estava aninhado no chão, servilmente, como um cão; sentia-se como um cão. Não lhe restava outra alternativa se não suportar aquela situação humilhante. A voz áspera e estridente de Corby assustava-o terrivelmente. As mãos de Corby erguiam-no no ar, pelos ombros, como se estivesse possuído de uma força terrível e empurravam-no contra a parede, quase esmagando-lhe a cabeça. Kimmel não conseguia ver nada. Cada vez tinha mais dificuldade em identificar as coisas.
-Olhe para si, seu porco!--gritou Corby. - Admita que reconhece Stackhouse como culpado! Admita que sabe que está aqui por causa dele e que ele é tão culpado como você!
Pela primeira vez, Kimmel sentiu um ressentimento profundo em relação a Stackhouse, mas ele não o teria traído por nada deste mundo, pois isso era o que Corby desejava. - Os meus óculos?... - disse Kimmel num tom semelhante a um guincho, tio diferente da sua voz habitual. Sentiu-os nas mãos e, ao agarrá-los, teve a sensação de qualquer coisa a partir-se. Metade de uma das lentes estava despedaçada. Pô-los. Sentiu-os escorregarem pelo nariz e teve de os empurrar com a mão para conseguir ver alguma coisa.
- Por hoje é tudo - disse Corby.
Kimmel ficou imóvel e Corby repetiu a mesma frase. Kimmel não sabia onde era a porta e estava receoso de olhar e até com medo de voltar a cabeça. Então sentiu Corby dar-lhe um puxão num braço e empurrá-lo pelas costas. Quase deu um grande trambolhão. Sentiu qualquer coisa a cair no chão, à sua frente. Era o seu sapato, que Corby lhe tinha atirado pelo ar. Tentou alcançá-lo, mas teve de se sentar no chão para o conseguir fazer. Sentiu o chão gelado por baixo de si. Subiu as escadas até ao rés-do-chão do edifício. Corby tinha desaparecido. Estava sozinho. No hall estava um polícia, sentado à secretária a ler o jornal, o qual nem se dignou olhá-lo quando ele ia a passar. Kimmel teve uma sensação horrorosa como se estivesse morto e invisível.
Desceu os degraus da porta da rua, agarrando-se ao corrimão, e lembrou-se de Laura a fazer o mesmo. Parou no fim do corrimão para ver onde estava. Começou a andar, mas acabou por se voltar na direcção contrária. Continuava a segurar os óculos para poder ver melhor. Já era de manhã, apesar de o Sol ainda não ter nascido. Ao sentir um vento muito frio, apercebeu-se de que tinha as calças molhadas. Começou a bater os dentes sem conseguir discernir se seria frio ou medo.
Assim que chegou a casa, foi logo telefonar a Tony. Foi o pai dele que atendeu e esteve a falar com ele imenso tempo antes de passar o telefone a Tony.
- Olá, Sr. Kimmel! - disse Tony.
- Olá, Tony. Pode vir agora cá a casa?
Fez-se um silêncio sepulcral e, de repente, Tony disse: -Com certeza, Sr. Kimmel. À «sua casa»?
-Sim.
-Com certeza, Sr. Kimmel. Ah!... Ainda não tomei o pequeno-almoço.
-Então tome-o primeiro. - Kimmel desligou o telefone e dirigiu-se, com toda a dignidade que conseguia arranjar, para o seu quarto. Despiu as calças e pendurou-as para secarem, antes de as levar à lavandaria.
Limpou cuidadosamente os sapatos, pôs as meias de molho na bacia e abriu a torneira de água quente para tomar um banho. Tomou um longo e repousante banho, como de costume. No entanto, sentia-se observado e, assim que saiu da banheira, olhou, furtiva e desaprovadoramente, para o enorme espelho. Já no seu quarto, tirou da gaveta da cómoda uma camisa branca lavada, vestiu-a e pôs o roupão por cima. Com as pontas dos dedos acariciou o colarinho branco, perfeitamente engomado, numa atitude de avaliação. Adorava camisas brancas; para ele não havia cor alguma que pudesse comparar-se, em beleza, ao branco.
«Que prova lhes poderia fornecer Tony?», pensou ele, subitamente. «E se Tony se volta contra mim? Mas isso também acabará por não provar nada.»
Quando ia descer as escadas para pôr a cafeteira do café ao lume, tocou a campainha da porta. Kimmel deixou-o entrar. Tony passou por ele, calmamente, com uma certa relutância, até. Kimmel pôde ver uma certa apreensão nos olhos negros de Tony. «Parece um cachorro com medo de ser castigado!», pensou Kimmel.
- Deixei-os cair e pisei-os - afirmou Kimmel, antecipando-se a qualquer pergunta que Tony lhe fizesse a respeito dos óculos.
- És capaz de chegar aqui à cozinha?
Dirigiram-se ambos à cozinha. Kimmel indicou a Tony uma cadeira para se sentar, enquanto ele se preparava para fazer o café. Era uma tarefa difícil, pois tinha de estar constantemente a segurar os óculos.
- Ouvi dizer que andaste a falar outra vez com o Corby disse Kimmel. - O que é que lhe andaste a dizer desta vez?
- O mesmo de sempre.
- Tens a certeza de que não lhe disseste mais nada? - perguntou Kimmel, olhando de frente.
Tony estalou os dedos.-O fulano perguntou-me se eu o tinha visto depois de ter terminado o filme. Eu disse-lhe que não... ao princípio. O Sr. Kimmel sabe bem que é verdade.
- E o que é que isso tem? Tu não andavas à minha procura, pois não, Tony?
Tony hesitou.
Kimmel manteve-se na expectativa. «Que testemunha mais estúpida eu havia de ter arranjado! Se ao menos nessa noite eu tivesse procurado melhor, era muito capaz de ter encontrado Nathan!» -Mas não te lembras? Tu nunca disseste que andavas à minha procura. Falámos um com o outro no dia seguinte. Kimmel sentia repulsa cada vez que olhava para o enorme nariz de Tony, coberto de pêlos, que quase ligavam com as sobrancelhas. «Tem mesmo a aparência de um jovem delinquente», pensou Kimmel.
- Sim, recordo-me. Mas é muito natural que me tenha esquecido desses pormenores - disse Tony.
- E quem é que te meteu isso na cabeça? Foi o Corby, não? -Não. Bem... sim... foi ele -gaguejou Tony, assumindo
uma expressão séria, embora não mais inteligente do que a que era normal em si.
- O tipo disse-te que podias muito bem esquecer-te de certas coisas. Naturalmente também te disse que, entre as nove e meia e as dez, eu devia estar a quilómetros de distância, assassinando a minha mulher, não foi? Quem é que ele julga que é para estar a meter-te essas ideias na cabeça? - rugiu Kimmel indignado.
Tony começou a ficar assustado.- Mas... Sr. Kimmel, ele só disse que era possível...
-Possível o raio que o parta! Já agora é tudo possível! Não é assim?
- Sim - concordou Tony.
Kimmel reparou que Tony olhava espantado para a enorme mancha arrocheada na face direita, onde Corby o atingira violentamente. - Mas quem é esse homem para vir para aqui fazer confusão, chateando-te a ti, a mim e a toda a comunidade?
Tony encolheu-se na cadeira. Dava a sensação de que estava realmente a tentar caracterizar Corby ou a identificá-lo com as características com que Kimmel o designava. - Ele também falou com o médico. Disse que...
- Qual médico?
- O médico da Sr.a Kimmel.
Kimmel arfava de raiva. Já sabia! Tinha sido o Dr. Phelan. Ele devia ter conhecimento do facto de Helen ter ido falar com o Dr. Phelan. Este tratara-a de dores reumáticas que ela tinha nas costas. Helen considerava-o miraculoso. Kimmel pensou até que ele se deveria lembrar da altura em que Helen devia ter ido ter com ele, um mês antes de morrer, quando atravessava um período difícil, indecisa entre abandonar Ed Kinnaird ou desafiar o marido, saciando a sua paixão com o amante. Claro que o Dr. Phelan a teria aconselhado a mitigar os seus desejos. Era natural que Helen tivesse falado ao médico nos esforços desenvolvidos por Kimmel para pôr termo àquela relação.
- O que é que o médico disse? - perguntou Kimmel.
- Isso já não sei. Corby não me falou no assunto.
Kimmel olhou para Tony, franzindo a testa. O rosto de Tony revelava medo e dúvida. «E quando num espírito primitivo e tacanho como o de Tony se instala a dúvida... Tony não pôde duvidar, pensou Kimmel. A dúvida é algo que só devia existir nas mentes inteligentes.
- Corby disse que... O médico falou-lhe de Ed Kinnaird. Acho que foi qualquer coisa desse género. Um tipo...
«Já toda a gente sabe», pensou Kimmel. Corby tinha divulgado tudo, como um autêntico jornal.
Tony levantou-se, afastando-se da cadeira. Nos seus olhos havia um medo terrível de Kimmel. - Sr. Kimmel, eu acho que não... eu acho que não deveria encontrar-me consigo tantas vezes. Penso que compreende, Sr. Kimmel. - Depois prosseguiu rapidamente: - Não me quero meter em sarilhos por causa disto. Está a perceber o que eu quero dizer, não está? Não leve a mal, Sr. Kimmel. - Tony vacilou e parecia prestes a estender uma das mãos, mas estava demasiado amedrontado para o fazer. Recuou alguns passos até à porta.- Tudo o que o Sr. Kimmel disser, para mim está bem. Acredite que é verdade o que lhe estou a dizer.
Passados os primeiros momentos de admiração, Kimmel disse:-Tony... - Avançou em direcção a ele, mas, ao ver que Tony recuava, deteve-se. - Ouve lá, Tony. Tu estás metido nisto única e simplesmente como testemunha. Viste-me no cinema. Foi só isso que eu sempre te pedi que dissesses, não foi?
- Sim - disse Tony.
- Essa é a verdade, não é?
- Sim. Mas não se zangue comigo, Sr. Kimmel, se eu não... não vier tomar mais cervejas consigo. Ando apavorado - afirmou Tony, realmente apavorado. - Ando aterrorizado, Sr. Kimmel. - Depois voltou-se e dirigiu-se para a porta da frente.
Durante alguns minutos, Kimmel permaneceu imóvel, sentindo-se fraco, sem forças e com a cabeça oca. Começou a andar de um lado para o outro, na cozinha. Tinha o espírito dominado por uma série de pragas, maldições chocantes em polaco, alemão, mas principalmente em inglês. Eram maldições que não visavam ninguém nem nada em especial. Amaldiçoava Corby, Stackhouse, o Dr. Phelan e até mesmo Tony, mas quanto a este foi mais moderado. Arrastou-se pela cozinha com o queixo caído sobre a prega balofa que saltava por cima do colarinho da camisa.
- Stackhouse! -gritou Kimmel. A palavra ecoou na cozinha de tal forma estridente, que se poderia comparar a pequenos estilhaços de vidro caindo à sua volta.
- Quero cinquenta mil. Nem mais nem menos um centavo disse Kimmel.
Walter procurou os cigarros na secretária.
- Pode pagá-los em prestações, se quiser, mas só lhe dou o prazo de um ano para saldar a totalidade da quantia.
- Você julga que eu vou aceitar isso? Acha que eu sou culpado? Eu estou inocente, homem!
- Mas pode arranjar-se maneira de o fazer parecer culpado. Eu próprio o posso fazer! replicou Kimmel, impertigado. - O que interessa é lançar a dúvida no espírito das pessoas. Feito isso ...
Isso sabia-o Walter. Kimmel poderia perfeitamente tirar partido da primeira visita que ele tinha feito à sua loja. Provas suficientes, tinha-as ele na agenda onde tomara nota do pedido de Walter. Este sabia o motivo que levara ali Kimmel e o motivo por que os óculos deste estavam partidos e colados com fita-cola. Walter percebeu logo que Kimmel estava completamente desesperado e sedento de vingança; se bem que a primeira impressão que aquela visita causara em Walter tivesse sido um choque misturado com uma certa surpresa por vê-lo ali a ameaçá-lo e a fazer chantagem. - Mesmo assim, prefiro arriscar a ter de pagar a um chantagista.
- Olhe que está a ser precipitado e imprudente...
- Você está a tentar vender-me algo que eu não estou interessado nem disposto a comprar.
- O direito à vida?
- Duvido que me possa prejudicar assim tanto. Que provas é que tem para me poder incriminar? Você não tem testemunhas ...
- Já lhe disse que as provas não são o mais importante. Ainda tenho em meu poder a encomenda datada que você deixou na minha loja. A data pode ser confirmada pelas pessoas a quem eu fiz o pedido. Posso relatar aos jornais uma história estrondosa sobre aquele dia, o dia em que você me fez a primeira visita. Por detrás dos óculos, que os faziam parecer mais pequenos, os olhos de Kimmel tinham uma expressão de grande expectativa.
Walter observou aqueles olhos, para ver se denotavam alguma coragem, determinação ou confiança. Viu neles tudo isso. - Eu não aceito -disse Walter, andando à volta da secretária.-Pode dizer o que quiser ao Corby.
- Está a cometer um grande erro - disse Kimmel, impassivo. -Quer que lhe dê quarenta e oito horas para pensar melhor no assunto?
-Não!
-Isto porque dentro de quarenta e oito horas eu posso começar a mostrar-lhe aquilo de que sou realmente capaz.
- Eu sei do que é que você é capaz. Eu sei o que é que você vai mesmo fazer.
- Então é a sua última palavra? -Sim.
Kimmel levantou-se. Este pareceu a Walter enorme como uma torre, apesar de, na realidade, ser pouco mais alto do que ele.
- Ainda esta manhã o protegi - disse Kimmel, mudando o tom de voz. - Fui espancado, torturado, a fim de dizer se o tinha visto antes da morte da sua mulher, ou não. Apesar de tudo, não o traí - disse Kimmel com a voz trémula. Estava convencido de que tinha descido aos Infernos e tudo por causa de Stackhouse! Estava convencido de que Stackhouse lhe devia algo. Mas, ao mesmo tempo, sentia-se envergonhado pelo facto de lhe estar a tentar extorquir dinheiro. Só o fazia por achar que ele o merecia. O facto de ali ter ido naquela manhã era mais um indício da sua instabilidade emocional, que, pouco a pouco, se ia agravando, conduzindo-o à degradação. E tudo isto para quê? Para ser rejeitado por este imbecil e ingrato trapaceiro!
- Mas não me protegeu por uma. questão de altruísmo, pois não? - perguntou Walter em tom de mofa. - Lamento imenso que o tenham maltratado. Não precisa de me andar a defender. Não temo a verdade.
-Ah! Com que então não teme a verdade! Eu podia ter-lhes contado tudo, esta manhã, podia ter-lhes contado mais do que a verdade!
Walter sentiu no ar o cheiro horrível, tão característico da livraria, emanado de Kimmel, das suas roupas. Dava-lhe a sensação de ter sido apanhado numa ratoeira.
- Estou a percebê-lo. Mas fique sabendo que eu próprio hei-de contar a Corby toda a verdade. Depois, se quiser, pode embelezá-la a seu gosto. Vou arriscar! Prefiro fazê-lo a ter de lhe dar um centavo, ouviu bem?!
- Realmente você, aparentemente, é um homem corajoso, Stackhouse, mas... na realidade, não passa de um louco, de um cobarde.
Walter decidiu levantar-se e abrir a porta para que Kimmel saísse, mas deteve-se com a mão sobre o puxador. Não queria que Joan ouvisse nada. - Já terminou, Sr. Schaeffer?
Kimmel lançou-lhe um olhar carrancudo. O seu carão balofo fazia lembrar uma criança mal humorada. - Se calhar preferia que eu tivesse revelado a minha verdadeira identidade?
Walter escancarou a porta e gritou furiosamente: - Saia!
Kimmel passou por ele com ar provocador, de cabeça erguida. De súbito voltou-se e disse:-Pelo sim, pelo não, telefono-lhe nas próximas quarenta e oito horas.
- Será já demasiado tarde.
Walter fechou a porta, aproximou-se da janela e olhou fixamente para o céu, para além do topo de um dos edifícios fronteiros. A ideia de falar com Corby antes de Kimmel o fazer esvaía-se no seu espírito. Quanto mais falasse, mais pormenores revelaria sobre a verdade e acabaria por piorar ainda mais a sua posição. Deixara avançar de mais as coisas! Imaginava Corby delirando de satisfação quando lhe falasse da sua primeira visita à loja de Kimmel. Corby consideraria isso uma vitória. Certamente não acreditaria que o facto tivesse sido meramente acidental. Mesmo que lhe explicasse os verdadeiros motivos que o haviam lá levado, ver Kimniel, Corby revelar-se-ia intransigente em relação há dúvida. Para ele, a única verdade era a sua. Era até possível que Corby perguntasse: «Mas que interesse teria em ver Kimmel?» Walter sabia o propósito dessa sua visita e esta tinha tido todo o interesse para ele. Nenhum dos seus gestos era ’despropositado ou inexplicável.
Walter via-se em plena loja de Kimmel, revolvendo a sua secretária, até encontrar a nota com o pedido do livro. Sentindo-se embaraçado e inquieto, começou a andar de um lado para o outro. «Possivelmente Kimmel não o tem ali guardado; deve tê-lo escondido algures. Se calhar, até o trazia consigo quando aqui esteve há bocado!» Olhou para a lista telefónica, tentando imaginar onde poderia encontrar Corby àquela hora da manhã. «Não será melhor aguardares pelo telefonema de Kimmel nas próximas quarenta e oito horas? Podia ser que a questão se resolvesse!» O que quer que acontecesse, nunca poderia ser benéfico para ele. Walter sentia-se a afundar cada vez mais. Apertou os polegares entre os outros dedos. Dirigiu-se ao telefone, movido por um impulso repentino de contar tudo a Jon. Porém, deteve-se. Estava terrivelmente assustado. Não se sentia plenamente à vontade para lhe contar tudo o que se passara. Dois dias antes, tinha passado a tarde com ele. Reparara que Jon tinha agido de uma forma perfeitamente natural e aceitara até o pormenor do recorte de jornal sobre o caso Kimmel como pura coincidência. Pelo menos, foi esta a impressão com que Walter ficara. Corby já lhe falara no assunto. Jon sabia que Walter tinha o hábito de recortar artigos dos jornais para posteriormente elaborar os seus ensaios. «E se Jon soubesse da sua primeira visita à livraria de Kimmel?... Como reagiria?» Omitira-lhe esse pormenor. Possivelmente, seria esse o golpe de misericórdia e talvez, de repente, tudo se cristalizasse.
Walter saiu do escritório e esperou pelo elevador. Já na rua, decidiu entrar no hotel situado em frente para telefonar para a secção de homicídios da polícia de Filadélfia. Perguntou pelo tenente Corby. Ligaram-no a outra linha e teve de esperar alguns minutos. Enquanto aguardava sentiu-se tentado a desligar, pois ocorreu-lhe a ideia súbita de que Corby poderia eventualmente não acreditar em Kimmel quando este lhe falasse da sua visita à livraria e da nota do pedido. Walter lembrava-se de que Kimmel tinha anotado o pedido, a lápis e, portanto, era perfeitamente possível que ele tivesse escrito o seu nome no pedido de outra pessoa. Walter não acreditava que Kimmel tivesse escrito o seu nome nas cartas que enviara aos fornecedores, encomendando o livro, embora soubesse que ele era o tipo de pessoa capaz de tudo só para o prejudicar. De qualquer modo, Corby acabaria por saber e preferia ser ele próprio a tirar as conclusões, quer acreditasse, quer não. Walter achava que o tenente não se deixaria- influenciar por opiniões pessoais vindas de estranhos.
Acabou por agarrar no telefone.
- O tenente Corby está em Newark. Penso que não deve estar de volta dentro das próximas quarenta e oito horas. Daqui fala o chefe de Corby, capitão Dan Royer.
- Muito obrigado - disse Walter.
- Pode dizer-me quem está ao telefone, por favor
- Não tem importância - repetiu Walter. Partiu para Newark às 5.30.
Nas duas primeiras esquadras da polícia para onde Walter telefonou nunca tinham ouvido falar do tenente Corby. Não conheciam nenhum elemento com esse nome. Walter pôs então a hipótese de Corby andar a investigar em Newark por conta própria. Tentou uma terceira esquadra e de lá informaram-no de que Corby tinha ali estado de manhã cedo, mas não sabiam quando regressaria.
Walter voltou para o carro, desanimado. Decidiu passar pela última esquadra para onde tinha telefonado e deixar uma nota pessoal endereçada a Corby, pedindo-lhe que entrasse em contacto com ele o mais rápido possível. A caminho da esquadra, Walter reconheceu a rua onde estacionara o carro no dia em’ que fora encontrar-se com Kimmel para lhe dizer que estava inocente. Walter curvou para a rua onde se situava a livraria de Kimmel. Logo que avistou as montras da loja, as luzes dentro do estabelecimento apagaram-se. Walter abrandou a marcha e viu a enorme figura de Kimmel saindo da loja, deter-se por breves momentos a fechar a porta e, depois, voltar-se. Estava a poucos metros do carro de Walter. Este observou-o a descer a rua, curvado, com a cabeça baixa, como se tivesse de lançar para a frente o corpo pesado para conseguir deslocar-se com maior facilidade. Ao passar por ele, Walter carregou no acelerador como se receasse que Kimmel o perseguisse. «Meu Deus!», pensou Walter. «Meu Deus.» Estas palavras martelavam-lhe o espírito.
«Isto é uma autêntica loucura! Ali vai Kimmel, depois de ter sido espancado esta manhã e de ter fechado a loja esta noite, como se nada se tivesse passado. A sua mente deve continuar dominada pelo mesmo desejo demoníaco de vingança! Vingança contra ele, Walter Stackhouse! Mas... o que é que ele tinha a ver com aquele estranho, descendo aquela ruela escura de Newark?»
Na esquadra onde tinha obtido informações acerca de Corby, um agente da polícia comunicou-lhe que o tenente devia estar de volta entre as 9 e a meia-noite. - Anda a proceder a investigações aqui nas redondezas - afirmou o homem com indiferença. - Entra e sai sem que nos apercebamos.
Walter decidiu então aguardar dentro do carro. Como Corby demorava, pôs o carro a trabalhar e foi dar umas voltas para passar o tempo e, ao mesmo tempo, tentar acalmar a enorme tensão em que estava. Quando regressou, voltou a perguntar por Corby e esperou pacientemente.
Perguntava a si próprio se seria capaz de convencer Corby a não dar parte à imprensa do seu primeiro encontro com Kimmel e até de tentar evitar que este último o fizesse. «Será que Corby me vai achar culpado ou fingir que o acha, depois de ter ouvido a versão de Kimmel? Se eu conseguisse persuadi-lo a aguardar até que todas as provas estejam reunidas!.,.» Contudo, Walter sabia que o tenente podia considerar que aquelas eram as provas de que necessitava para poder fazer o seu juízo final. «Mas eu não fiz nada!», disse Walter para consigo. O facto de Walter saber que nada tinha feito não lhe saía da cabeça. Agora essa ideia parecia-lhe inconsistente, irreal.
De repente viu a figura esguia de Corby emergindo da escuridão que envolvia o passeio e apressou-se a sair do carro.
O rosto magro do tenente iluminou-se sob a aba do chapéu.
- Boa noite, Sr. Stackhouse!
- Preciso de falar consigo. Por isso aqui estou - disse Walter.
- Quer entrar? - Corby apontou para o edifício sombrio da esquadra com tal graciosidade, que parecia estar a convidá-lo a entrar em sua casa.
- É um assunto muito sigiloso. Preferia conversar dentro do carro.
-Não deveria ter estacionado aqui. Mas... enfim, também não é assim uma infracção tio grave - disse Corby, esboçando o seu sorriso jovial. Acabou por entrar no carro de Walter.
Logo que fecharam as portas, Walter foi directo ao assunto que ali o levara: -Hoje, o Kimmel foi ter comigo com o propósito de fazer chantagem. Aqui estou para lhe contar os factos tal qual se passaram antes que ele o faça, à sua maneira. Em Outubro passado estive com Kimmel. Algumas semanas antes da morte da minha mulher.
- Esteve com ele?
-Fui à livraria dele. Encomendei-lhe um livro. Sabia que era o Kimmel; aquele cuja mulher tinha sido assassinada. Falei-Ihe até no caso, pois estava ao corrente do que se passara através dos jornais. Isto que lhe acabo de contar foi o único assunto de que falámos nessa altura. Quando encomendei o livro, dei-lhe o meu nome e morada.
- O seu nome e morada! - repetiu Corby sorrindo. - Ai sim?
- Não tinha motivos para não o fazer - replicou Walter. - E continuo a não os ter. Não matei a minha mulher!
Corby abanou a cabeça como se o que acabava de ouvir fosse absolutamente incrível, inacreditável. - Mas, pelo menos, admite que pensou fazê-lo, Sr. Stackhouse? Não era esse o seu intuito?
-Sim.
- E acabou por não o fazer? -Não.
- E sabe como Kimmel o fez?
- Como Kimmel o poderá eventualmente ter feito era o que queria dizer, não era?
Corby soltou uma gargalhada e ergueu as mãos. - Mas que é isto? Agora defendem-se um ao outro?
Walter franziu a testa. - Se tem assim tantas provas incriminatórias contra Kimmel, porque é que não o prende?
- Lá iremos. Estou ainda a fazer umas investigações na vizinhança. Ando a tentar recolher mais alguns dados de que necessito - afirmou Corby, retirando a sua agenda de capa castanha do bolso do casaco. - Motivações!
- E você acha que as motivações são o bastante para condenar um homem? Não será mais lógico e justo recorrer a provas acessórias? Não é necessário ser advogado para saber que, neste momento, você não possui ainda provas suficientes para nos acusar. Se já as tivesse, a esta hora, certamente já estaríamos na prisão!
Corby escrevinhava na sua agenda. Olhou à sua volta e acendeu a luz do carro para poder ver melhor. - Kimmel acabará por quebrar. Há-de denunciar-se. Ele tem uma estrutura psíquica muito peculiar... -afirmou Corby num tom pedante e extremamente escolástico. - Tem vários pontos fracos. Só tenho de tentar descobrir o mais vulnerável.
- Em relação a mim não conseguirá descobrir nada.
Corby ignorou por completo o comentário de Walter. - Importa-se de me dizer a data desse seu primeiro encontro com Kimmel? Ou foi mais do que um?
- Não. Tanto quanto estou lembrado, foi para aí no dia sete de Outubro. - Walter sabia que era essa a data exacta, pois tinha coincidido com a sua primeira ida ao apartamento de Ellie, em Lennert.
- Mais ou menos, quanto tempo permaneceu lá?
- À volta de dez minutos, não mais do que isso.
- É capaz de me relatar tudo o que você lhe disse nessa altura? Ou melhor, tudo o qua ambos disseram.
Walter fez o relato pormenorizado e Corby foi tirando notas. Walter foi muito breve, pois tinham trocado poucas palavras.
- É muito provável que Kimmel lhe vá dizer que eu lhe confidenciei a intenção de matar a minha mulher - disse Walter.
- Ou então vai-lhe dizer que fiz tantas perguntas que o que eu queria saber se tinha tornado demasiado óbvio.
- E o que é que você queria saber?
- Eu disse e repito o que Kimmel achava que eu queria saber. Bem... a verdade é que eu queria ver Kimmel; vê-lo apenas. Não achava que ele pudesse ter assassinado a mulher. Fascinava-me a ideia de tentar ver se Kimmel se identificava com o tipo de pessoa capaz de o fazer.
- Ah! Então fascinava-o! - Corby olhou para Walter com um interesse perscrutador. Voltava a assumir o mesmo ar presumido de grande detective, como se estivesse a comparar Walter com algum tipo característico de criminoso que estudara algures e cuja psicologia conhecia perfeitamente.
Walter acabou por se arrepender de ter posto o assunto naqueles termos. - Estava interessado no caso. Como vê, estou a admiti-lo!
- Porque é que não o fez mais cedo?
- Bem... Porque... Atendendo à situação em que me encontrava...-afirmou Walter, desesperado. - Agora estou a pô-lo a par do facto. Como lhe disse, Kimmel tem em seu poder uma nota de encomenda com o meu nome e morada, com a data do dia em que lá estive. Isso é uma prova contundente da minha estada na livraria dele. Estou a avisá-lo antecipadamente para evitar que Kimmel lhe vá dizer sabe Deus o quê sobre o nosso encontro!
Corby permanecia inalterável. - Sr. Stackhouse, não acredito em nenhum dos pormenores dessa história que me está para aí a contar.
- Muito bem. Então ouça a versão de Kimmel!
-Claro que o farei. Stackhouse, tenho quase a certeza de que você não discutiu o assunto do assassínio com Kimmel, mas tenho grandes suspeitas de que você matou a sua mulher. Considero-o tão culpado como Kimmel.
- Então desculpe que lhe diga, mas não está a ser coerente! Está tão empenhado em provar a minha culpabilidade que já não é capaz de analisar ou julgar os factos com imparcialidade.
-Mas eu estou perante os próprios factos! Com um raio! Qualquer pessoa pode enxergar isso. Por mais que queira tapar o Sol com a peneira, Stackhouse... -Corby deixou a frase em suspenso e sorriu.- Talvez para a semana já tenhamos a prova decisiva. Não quer acrescentar mais nada?
Walter cerrou os dentes. Sentia que tinha esgotado todos os seus argumentos, todos os factos, e que não havia mais nada a dizer. Sentia-se num beco sem saída.
- O Kimmel não é nada estúpido. Em contrapartida, você comporta-se como tal. - Corby saiu do carro, batendo com a porta.
Walter ouviu os passos apressados de Corby galgando o lance de escadas que conduziam ao edifício da polícia. «Realmente é preciso ser muito estúpido para pensar que Corby ia acreditar em mim! E eu que até pensava pedir-lhe que não falasse no caso à imprensa!...» Walter achava que Corby necessitava de algo explosivo para levar o caso Kimmel-Stackhouse a um termo.
Este episódio era muito mais espectacular do que o simples facto da descoberta do recorte de jornal.
De repente teve um pressentimento estranho. Teve uma certa dificuldade em tentar compreender a que se devia. Depois de muito pensar, conseguiu descobrir o fio à meada: estava a atingir o ponto de ruptura; estava-se nas tintas para tudo. Tinha de falar com Ellie, com Jon, com todos. «Também..., de qualquer modo, acabarei por perder a amizade de todos eles.» Teria de enfrentar tudo sozinho.
Walter pôs o carro em movimento. «A primeira terá de ser Ellie», pensou ele. Já passava das 9 horas. Pensou que seria melhor telefonar-lhe de Newark para se certificar de que ela estava em casa. Subitamente lembrou-se de que, naquela noite, Ellie estaria ocupada com a representação da peça Hansel e Gretei. Era a véspera do Dia de Acção de Graças. Àquela hora, Ellie estaria certamente a tocar no auditório da escola de Harridge. Pôs a mão no bolso e reparou que tinha o bilhete para assistir ao espectáculo. Parou o carro, blasfemando. Sentia-se completamente baralhado. Se Kimmel conseguisse que os jornais publicassem aqueles novos factos, era possível que na sexta-feira a notícia fosse já do domínio público. Walter não conseguiria fazer nada para impedir que, no escritório, os colegas fizessem interpretações erradas acerca do caso, pelo menos até segunda-feira. Nessa altura, Dick Jensen seria peremptório: «Lamento muito, Walter, mas não contes comigo.» Eles tinham planeado mudar-se para o novo escritório no primeiro de Dezembro. Cross dir-lhe-ia que já nada tinha a fazer no seu escritório e que o melhor seria despedir-se. Walter duvidava mesmo que tivesse coragem suficiente para se apresentar ao serviço na segunda-feira.
Sentia as mãos suadas em contacto com o volante. Dirigiu-se para o túnel. Tentava pensar numa desculpa para dar a Ellie por não ter comparecido ao espectáculo dessa noite. A única desculpa que achava mais correcta era assumir a situação e contar-lhe toda a verdade.
Às 11 horas, Ellie ainda não estava em casa, embora Walter soubesse que o espectáculo terminava às 10. Esperou dentro do carro, estacionado do outro lado da rua, frente à casa de Ellie. Sentia-se terrivelmente ensonado e teve grande dificuldade para não se deixar adormecer.
Cerca da meia-noite menos um quarto, o carro de Ellie apareceu ao fundo da rua. Walter saiu e dirigiu-se para o parque de estacionamento onde ela geralmente estacionava o seu Boadicea.
- O que é que te aconteceu? - perguntou-lhe Ellie.
- Lá em cima explico-te tudo. Subimos? ;
- Não me digas que foi outra vez o Corby? Ele acenou afirmativamente.
Ellie olhou para ele furtivamente. Parecia estar aborrecida. Encaminharam-se para a entrada do edifício. Ela abriu a porta e os dois subiram até ao apartamento. Walter levava a caixa da Mark Cross contendo a mala de pele de crocodilo que ele fora buscar nessa manhã, antes de ir para o escritório. Quando entraram no apartamento, Walter entregou-lhe o embrulho.
- Toma, é uni presente pelo dia de Acção de Graças - disse ele. - Desculpa lá não ter podido ir à festa esta noite. Como é que correram as coisas?
- Correu tudo bem. Estive agora mesmo a falar com a Virginia e a Sr.a Pierson. Acharam esta festa melhor do que a do ano passado. - Ellie olhou para ele sorrindo e começou a desembrulhar a caixa.
Era uma enorme caixa quadrada forrada de seda. Quando viu o que era, Ellie resplandeceu: uma mala de pele de crocodilo com uma fivela e corrente douradas!
- É suficientemente grande? - perguntou ele.
Ellie soltou uma gargalhada. - Parece mais uma mala de viagem.
- Encomendei a maior de todas. Se não fosse isso, já te teria feito a surpresa há muito tempo.
- Então conta lá o que é que se passa com o Corby - disse ela, cheia de curiosidade.
- Tive que ir a Newark - afirmou ele, calando-se depois por momentos. De repente sentiu que não tinha coragem para lhe contar tudo.- Não aconteceu nada de especial - acabou Walter por dizer. - Eu... Eu conheci o Kimmel.
- Kimmel! Como é que ele é?
Dava a sensação de que Ellie estava apenas curiosa. - É um tipo grandalhão e gorducho que anda à volta dos quarenta, inteligente.e com um ar frio, insensível...
- Acha-lo culpado? -Não sei.
- Bem... Mas afinal o que é que se passou? Estiveram na polícia?
- Sim. O Kimmel não está preso. Talvez o fulano nem seja culpado. O Corby é um tarado! O que ele quer é ser promovido, custe o que custar, doa a quem doer.
- Mas que raio! Afinal o que é que aconteceu?
Walter olhou para ela. - Corby queria saber se existia alguma ligação entre mim e Kimmel, para além do recorte de jornal que eu tinha em meu poder. Claro que não havia. - Falou com tanta convicção que ele próprio parecia acreditar no que dizia. «Esta é provavelmente a última vez que falas com ela; a última vez que pisas esta sala, depois de ela descobrir que lhe mentiste. Se não for através dos jornais de sexta-feira, será pelo Corby, que irá contar tudo a todos os meus amigos», pensou Walter.
- Foi um simples interrogatório - prosseguiu ele.
- Estás com um ar cansado.
Walter sentou-se no sofá. - E estou mesmo. -E que mais? -perguntou ela, dobrando o papel que vinha a embrulhar a caixa.
Walter sabia que ela ia guardar o papel para outra coisa qualquer. «A Clara, de certeza, faria precisamente a mesma coisa», pensou Walter, - Foi tudo - disse ele. - Tive mesmo de ir. Acredita que fiquei com imensa pena de ter perdido o espectáculo desta noite.
Por momentos, Ellie olhou para ele. Walter perguntou a si próprio se ela teria realmente acreditado que era tudo, se bem que a sua expressão não deixasse lugar para dúvidas. - Já jantaste? - perguntou ela.
Walter não respondeu; limitou-se a olhar para ela. Sentiu um nó na garganta. Estava aterrorizado; dominado pelo pânico, embora não soubesse ao certo o motivo a que se devia tal instabilidade emocional. Sentiu, de repente, um desejo profundo de se casar com Ellie; de o ter feito antes da morte de Clara. Alguns tempos atrás sentira-se envergonhado só de pensar nessa hipótese.
- Vou fazer-te uns ovos mexidos. É a única coisa que cá tenho.-Ellie dirigiu-se à cozinha. - Porque não tentas dormir um bocado? Dentro de um quarto de hora os ovos e o café estarão prontos.
Walter continuava refastelado no sofá. Ainda lhe custava a acreditar que ela tivesse reagido tão pacificamente. Nem sequer se tinha mostrado muito aborrecida com o facto de ele não ter ido ao espectáculo; no entanto, também se podia dar o caso de ela estar a disfarçar antes de tomar a decisão final de pôr termo à relação entre eles.
- Já reparaste que estás a ficar cada vez mais magro? --perguntou Ellie da cozinha. - Não me digas que não tens tempo para comer de vez em quando.
Ele não respondeu. Inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos. Naquele momento não tinha sono. Alguns momentos depois, Walter levantou-se para a ajudar a pôr a mesa. Comeram ovos mexidos com torradas e compota de laranja.
- Amanhã passaremos um dia agradável - disse Ellie. - Não vamos deixar que uma porcaria qualquer nos estrague os planos.
-Não.
Tinham combinado ir jantar a um restaurante perto de Montauk e depois darem um passeio pela praia, o que Ellie gostava imenso.
Depois de ter comido, Walter sentiu-se de tal modo cansado que nem lhe apetecia fumar. Sentia as pernas e os braços muito pesados, como se estivesse drogado. Mal sentiu os dedos de Ellie acariciando-lhe as mãos, quando esta se foi sentar junto dele.
- Posso cá passar a noite?
- Sim - disse ela docemente, como se ele lho tivesse pedido várias vezes.
Estiveram sentados no sofá durante bastante tempo. Depois foram arrumar a louça e abriram o sofá que fazia de cama de casal.
«Cobarde!», disse Walter para consigo. «Walter Stackhouse és um autêntico cobarde! És um sacana!»
Abraçaram-se e Ellie permaneceu imóvel entre os seus braços, como se não esperasse que ele fizesse amor com ela. Mas, ao amanhecer, depois de ter dormido um pouco, fê-lo. Pareceu-lhe que desta vez tinha sido muito melhor do que da primeira, talvez porque receava que aquela fosse a derradeira. A impetuosidade de Ellie fê-lo imaginar que também ela se apercebera do facto. Walter imaginou uma pequena janela, quadrada, difícil de alcançar, por onde entrava o azul do céu e a sugestão de um verde profundo, ao longe.
Dick e Pete levantaram-se imediatamente para o ajudar, mas não havia nada que eles pudessem fazer excepto aguardar, enquanto ele se inclinava sobre a bacia para vomitar. Tinha o estômago vazio. Só bebera café ao pequeno almoço, mas os vómitos prolongaram-se durante dez minutos. Walter sentia-se demasiado constrangido para dizer a Dick e Pete que fossem ter com Cross e não se preocupassem com ele quando se curvou sobre a pequena bacia de porcelana verde-clara, sentindo um zumbido nos ouvidos. Atribuiu a sua má disposição ao trabalho que Cross pedira que ele e Dick fizessem. Estava cansado e indisposto. Aquele seria provavelmente o último trabalho que fariam naquele escritório. «De que é que lhe valia reagir daquela maneira? Não conduzia a nada.» Mas, lá no fundo, Walter sabia que a sua indisposição se devia ao facto de estar à espera do telefonema de Kimmel, por volta das 11.30, altura em que expirava o prazo das quarenta e oito horas que Kimmel lhe concedera.
-Isso é que foi farrar ontem!... -disse-lhe Dick, tentando ser agradável e dando-lhe umas pancadinhas amigáveis nas costas.
Walter manteve-se em silêncio. Apetecia-lhe ser ele a interpelar Kimmel. Não tinha forças para se levantar. Tinha a roupa colada ao corpo com o suor. Dick teve de o ajudar a ir até ao sofá e, se não fosse a toalha humedecida em água fria que este lhe pôs na testa, certamente teria desmaiado.
- Não terás qualquer infecção? - perguntou Dick.
Walter abanou a cabeça negativamente. Reparou que o rosto moreno e papudo de Cross espreitava sobre o seu ombro. Parecia aborrecido. «Tu vai também para o Diabo!», pensou Walter. Acabou por se levantar e disse que ia para o seu escritório tentar recompor-se.
- Lamento imenso - disse Walter a Cross.
- Desculpe-me - disse Cross secamente. - Se não se está a sentir bem, é melhor ir para casa.
Walter tirou a garrafa de uísque duma gaveta da sua secretária e deu um gole. Sentiu-se um pouco melhor.
Saiu do escritório por volta das 10.30.
Eram cinco para o meio-dia quando chegou a casa. Não estava ninguém. Claudia devia ter saído às 11. Walter gostava de saber se Kimmel teria telefonado antes das 11 e se teria falado com Claudia.
Acabou por ir directamente para o escritório e pegou na sua máquina de escrever. Tentou mover-se com energia, apesar de se sentir ainda muito fraco e tremelicante. Endereçou uma carta ao departamento administrativo da Escola Superior de Direito de Columbia, dizendo que ia abrir em Manhattan um escritório de advocacia para pequenos casos particulares e que gostaria de receber dois ou três estagiários para trabalharem como seus assistentes em sistema rotativo. Pedia que afixassem a notícia num dos placares da escola, para que os estudantes que estivessem eventualmente interessados pudessem entrar em contacto com ele. Não conseguia ordenar as ideias e acabou por ter de tornar a passar a carta à máquina.
Quando estava a acabar de passar a limpo, o telefone tocou.
Walter atendeu-o no hall.
- Como está, Sr. Stackhouse? - Walter reconheceu a voz de Kimmel.
- A resposta continua a ser não!
- Olhe que está a cometer um grande erro! -atalhou Kimmel.
- Já falei com Corby - afirmou Walter. - Se pensa acrescentar mais alguma coisa àquilo que eu lhe contei, pode preparar-se para que Corby não acredite em si.
- A mim n3o me interessa absolutamente nada o que você contou a Corby. A única coisa que me interessa é o que eu vou
contar aos jornais. Acho que você também deveria estar interessado nisso.
Embora Kimmel tentasse aparentar calma, Walter percebeu um certo tom de ressentimento. Walter trocara-lhe as voltas.
- Eles não vão acreditar em si. Vão lá publicar isso!...
Kimmel deu uma gargalhada estridente.-Eles hão-de publicar tudo o que eu lhes contar, desde que eu me responsabilize por isso, o que, aliás, farei com todo o prazer. Não está mesmo interessado em mudar de ideias? Olhe que são só cinquenta mil dólares!
-Não!
Kimmel ficou em silêncio, mas Walter continuou com o telefone na mão, à espera que Kimmel acrescentasse alguma coisa. Foi este quem acabou por desligar.
Walter voltou para a máquina, para acabar de dactilografar a carta. Tinha as mãos trémulas e húmidas de suor. Teve de dactilografar muito devagar. Acrescentou outro parágrafo, sentindo que aquilo que escrevera era tão idiota como aqueles anúncios que, por vezes, as pessoas põem nos jornais anunciando a venda de uma propriedade que na realidade não possuem, ou oferecendo-se para comprar um iate, sem, no entanto, terem possibilidades para o fazer:
Estou particularmente interessado em receber jovens estudantes finalistas, que de outro modo não teriam oportunidade de adquirir experiência prática tão cedo nas suas carreiras e os quais, certamente, prefeririam este tipo de trabalho às tarefas monótonas e pouco criativas que teriam de desempenhar se fossem estagiar para grandes firmas.
Agradecia que me enviassem uma resposta, dando-me o vosso parecer.
Atenciosamente Walter Stackhouse
Pôs a morada e o telefone de Cross, da Martinson e Bucham e também a morada do novo escritório, na 44.a Avenida, onde ele e Dick pensavam estar instalados na terça-feira seguinte. Walter já tinha discutido com Dick sobre a conveniência de contratarem pelo menos dois estudantes de Direito para os ajudarem no escritório e Dick concordara plenamente com a ideia. Neste momento, Walter achava que aquela carta que acabara de escrever tinha apenas por finalidade assegurar a vinda de alguém para o escritório que pudesse ajudá-lo, como se já tivesse a certeza de que Dick iria desfazer a sociedade que há tanto tempo planeavam e estavam em vias de concretizar.
Walter bebeu um gole de uísque, sentindo-se imediatamente bem disposto, como se a bebida tivesse exercido um efeito terapêutico exclusivamente de ordem psicológica. «Bem, mas afinal eu não tinha já decidido mandar tudo para o Diabo quando, na quarta-feira à noite, esperava por Corby no carro, frente à esquadra da polícia de Newark? Este meu colapso, hoje, foi um mero acidente! E se o cachorro do Kimmel acaba mesmo por conseguir que eles publiquem a sua história mirabolante? OhL. Mais uma mentira; já foram tantas... Não enfrentei já tanta porcaria, tantas chatices?... Foram tantas as perguntas e tantas as considerações erróneas feitas sobre o meu caso... Porque raio é que eu tinha logo de ter ido à paragem das camionetas? Corby martirizava-o constantemente com as mesmas perguntas: porque é que ele tinha em seu poder o tal artigo sobre o caso Kimmel; porque é que ele tinha voltado à loja de Kimmel, enfim... Agora era muito natural que eles se pusessem a conjecturar sobre o motivo que o tinha levado a visitar Kimmel antes da morte de Clara. Quando a polícia me vier buscar, encontrar-me-á a trabalhar, preso de pedra e cal, no meu escritório na 44? Avenida. É muito natural que esteja sozinho...» Walter acabou por tomar mais um gole de uísque.
De seguida dirigiu-se à cozinha e, num dos armários encontrou uma lata de sopa de tomate. Abriu-a e pô-la a aquecer no fogão. Na cozinha, o silêncio era apenas quebrado pelo barulho da chama da boca do fogão. Walter estava parado, à espera que a sopa estivesse quente. Depois começou a andar de um lado para o outro, para quebrar aquele silêncio sepulcral. De repente ouviu os passos de Clara no andar de cima, o que o fez ficar aturdido. Aquilo tudo já o estava a pôr maluco! Tinha ouvido os passos dela de uma forma tão clara como se fosse a água de um ribeiro correndo levemente. Foram seis ou sete passos.
Walter apercebeu-se de que estava já perto das escadas e olhava fixamente para o hall vazio. Estaria ele à espera de ver Clara? Nem sequer se tinha lembrado de subir os primeiros degraus. Quando voltou à cozinha, a sopa de tomate já fervia. Deitou um pouco numa tijela e começou a comer, sentado na cozinha.
Ouviu a voz de Clara murmurando algo como num sussurro. Levantou a cabeça, à escuta. Quanto mais se concentrava, mais lhe parecia que estava realmente a ouvir, apesar de as palavras não serem suficientemente perceptíveis para poder entender o que ela estava a dizer. Eram frases sibilantes, misturadas com risadas, como se ela estivesse a brincar com Jeff. Falava como nos velhos tempos em que tinham ido viver para aquela casa. Parecia-lhe estar a reviver um sonho antigo, mas muito belo. Contudo, Walter sabia que tudo aquilo era irreal. Jeff estava enroscado num dos cadeirões da sala. Se o que ele ouvia fosse realidade, com certeza que Jeff...
Walter levantou-se. Talvez estivesse a ficar louco. Talvez fosse aquela casa. Passou os dedos pelos cabelos, dirigindo-se seguidamente para uma das janelas da sala e abrindo-a de par em par.
Deixou-se ali ficar, tentando recordar-se de Clara, dos tempos em que tinham sido felizes naquela casa, antes que fosse tarde de mais para se lembrar. Depois de uns momentos de divagação e agonia, apercebeu-se de que não estava a pensar nem a sentir nada de concreto; estava apenas muito confuso.
Encaminhou-se para o telefone e discou o número da Knightsbridge Brockerage. O à-vontade com que ligou deu-lhe a sensação agradável e, ao mesmo tempo, aterradora de que toda a sua conduta, nos últimos tempos, era absolutamente indescritível, irreflectida, denunciante. Era como se Clara estivesse viva e o acusasse de alguma coisa. O telefone tocou várias vezes, o que significava que os Philpotts não tinham, naquele dia, aberto o seu escritório, mas, mesmo assim, ele deixou-o tocar umas quinze ou vinte vezes antes de desligar.
Ligou então para casa da Sr.a Philpott. Comunicou-lhe que queria vender a casa o mais rapidamente possível. Disse-lhe que poderia sair de lá na segunda-feira e que tentaria vender alguma mobília no dia seguinte. Ela disse-lhe que a transacção seria muito simples e rápida: a Knightsbridge Brockerage comprar-lhe-ia a casa por 25 000 dólares.
-Acontece que temos um cliente que vem amanhã para uma avaliação, mais concretamente, um cliente que está interessado em mobílias. E que tal se eu o levasse aí amanhã de manhã? Por acaso está em casa ao fim da tarde?
- Posso tentar - replicou Walter.
- Esteja descansado, que eu sou perita nesse assunto de venda de mobiliário. Não quero de maneira nenhuma que fique prejudicado - afirmou ela, soltando uma gargalhada.
Nessa tarde, Walter começou a juntar as coisas que pensava dar a Claudia. Possivelmente o seu pai e Cliff teriam vontade de ficar com algumas peças da mobília da sala de estar. Pensou que era a altura ideal para responder à carta do irmão. Tinha-a recebido dez dias antes. Desde a morte de Clara, Cliff já lhe escrevera três ou quatro cartas, cheias de afeição e revelando até uma certa timidez, tão característica nele. Ao lê-las, tinham-lhe chegado as lágrimas aos olhos, mas nem tivera paciência para lhe responder.
Subiu as escadas e começou a juntar todos os atoalhados em cima da cama, mas, passados alguns minutos, sentiu-se de tal modo desanimado e constrangido, que decidiu esperar até que Claudia viesse nessa tarde, para então o poder ajudar.
Pensou telefonar a Ellie para lhe dizer que tinha decidido vender a casa, mas acabou por mudar de ideias. Meteu-se no carro e foi até Benedict para enviar a carta que tinha escrito para Columbia.
Eram 3.12. Apetecia-lhe estacionar o carro algures e dar um longo passeio a pé pelo parque. Mas, ao mesmo tempo, pensou que talvez fosse melhor voltar para casa e embebedar-se; ficar sozinho consigo próprio, talvez fosse melhor. Àquelas horas já Ellie teria partido. Walter sabia que ela iria a Corning, por volta das 2 horas, visitar a mãe e só estaria de volta depois da meia-noite. Mas... em Corning também havia jornais! Era bem provável que, nessa noite, ou, pelo menos, na manhã seguinte, ela já estivesse a par de tudo. «Tornarei a vê-la depois de tudo isto?» Acabou por seguir para Nova Iorque. Iria fazer aquilo que já tinha antecipadamente ’decidido fazer: esperaria
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em Manhattan pela edição dos jornais da tarde. Estacionaria o carro numa rua qualquer e depois andaria a pé, sem sentido. Sempre tinha gostado de caminhar pelas ruas de Manhattan. Ninguém reparava nele, ninguém prestava atenção à sua figura. Podia parar e observar as montras, repletas de tesouras e facas com lâminas cintilantes, sentindo-se plenamente à vontade, longe de qualquer olhar reprovador.
Se bem pensou, melhor o fez. Saiu do carro e andou, andou, sempre à espera. Bebeu brandes e cafés sem conta e voltou para a rua, caminhando como se o cansaço não o incomodasse. Às
10 horas da noite saíram as primeiras edições e verificou que a história não vinha referida em nenhum dos jornais. Enquanto esperava, Walter sentira-se terrivelmente indeciso; não sabia se havia ou não de telefonar a Corby para lhe pedir que impedisse Kimmel de fazer qualquer disparate. Para isso teria de pôr de parte o seu orgulho e suplicar-lhe que o fizesse. Esta ideia parecia-lhe, contudo, demasiado humilhante. Enquanto se debatia com esta incerteza, o seu orgulho acabaria eventualmente por aumentar, e então tornar-se-ia mais arrogante ainda. Era uma situação realmente desesperante. De qualquer modo, se queria ver Corby como redentor, isso não passava de uma ideia absurda. Desta vez, Corby estaria do lado de Kimmel. Ou, melhor, optaria por ficar na sombra, observando-os enquanto um tentava acusar o outro, para se ilibar.
Por volta da meia-noite sairia outra edição. Walter decidiu esperar. Também desta vez a espera foi inútil. Walter começou a duvidar que Kimmel tivesse dado parte do caso aos jornais. «Será que Kimmel está algures em Newark à espera de um telefonema meu, comunicando-lhe que mudei de ideias? Ou... Se calhar está novamente a ser apertado pelo Corby! Nesse caso, é possível que ele não tenha tido tempo para dizer nada aos jornais.» Porém, Walter não conseguia imaginar Corby a detê-lo tendo algo tão importante a comunicar à imprensa. Não estaria de acordo com o seu jogo.
Walter permaneceu à esquina da 53.a Avenida com a 3.a Avenida, observando a velha estrutura que se erguia sobre a sua cabeça. A luminosidade intensa, proveniente do letreiro do estabelecimento Rikers, situado no edifício ao lado, feria-lhe os olhos. Enquanto olhava para a estrutura que se elevava acima de si, um autocarro passou por ele silenciosamente, com os faróis acesos, semelhantes aos olhos faiscantes de um monstro. Walter estremeceu.
Sentia que aquele inferno em que vivia o começava a corroer pouco a pouco.
Estava na cama, acordado, à espera de ouvir o barulho do jornal a bater na porta da frente. O jornal vinha, geralmente, a um quarto para as 7. Até àquela altura ainda não o tinha ouvido chegar. Desceu as escadas e acendeu a luz para ver melhor os degraus. O jornal ainda não tinha vindo. Foi para o quarto e vestiu-se.
O jornal chegou quando ele se dirigia novamente para a porta da frente. Walter olhou para ele através da luz que iluminava já o hall.
HOMEM DE NEWARK CONTA A
HISTÓRIA DO ASSASSÍNIO PREMEDITADO
DA MULHER ENCONTRADA MORTA EM BENEDICT
27 de Novembro -Uma história impressionante -sem mais provas senão a encomenda de um livro e a mente torturada e desesperada de um homem, que o levaram a prestar depoimentos para aclarar este caso- foi desvendada, a noite passada, nos escritórios do Newark Sun. Melchior J. Kimmel, proprietário de uma livraria em Newark, declarou que Walter Stackhouse, marido da falecida Clara Stackhouse, de Benedict, em Long Island, foi à sua loja duas semanas antes da ocorrência da morte da Sr.a Stackhouse, em Outubro. Este último fez uma série de perguntas pertinentes acerca do assassínio da sua mulher, Helen Kimmel...
Walter dobrou o jornal, colocou-o debaixo do braço e dirigiu-se apressadamente para o seu carro. Ele queria comprar todos os outros jornais. Contudo, ligou as luzes do carro e tornou a olhar para a notícia, que ainda não tinha acabado de ler.
[...] «Fiquei horrorizado», afirmou Kimmel. «Primeiro pensei que estava a lidar com um psicopata criminoso, mas, pensando melhor, resolvi não me preocupar com o assunto. Atendendo ao decorrido mais tarde, estou agora terrivelmente arrependido de não ter tomado uma atitude qualquer.»
Walter ligou a ignição. Ainda estava escuro e os faróis do carro incidiram em Claudia, que se encaminhava em direcção a ele. Walter observou os seus passos apressados afastando-se para a berma da estrada e pensou que ela se tinha afastado rapidamente mais da sua própria pessoa do que do automóvel. «Será que ela já leu a notícia, ou que a mulher com quem ela costuma vir de autocarro lhe terá contado tudo?», questionou-se Walter.
Em Oyster Bay parou no primeiro quiosque. Viu a notícia na primeira página de dois jornais de Nova Iorque. Comprou todos os jornais da manhã e levou-os para o carro. Quis lê-los todos ao mesmo tempo, dando uma olhadela furtiva em cada um para ver qual seria o mais sensacionalista.
O corpo de Helen Kimmel foi encontrado num matagal perto da paragem das camionetas, em Tarrytown, Nova Iorque, no dia 14 de Agosto. O corpo de Clara Stackhouse foi descoberto no fundo de um penhasco, nos arredores de Allentown, no dia 24 de Outubro. A polícia presume que a morte da Sr.a Stackhouse se terá devido a suicídio, embora não se tenha ainda manifestado quanto ao caso Kimmel.
LIVREIRO DE NEWARK AFIRMA QUE
STACKHOUSE TERÁ «PLANEADO» O ASSASSÍNIO
DA MULHER NA PARAGEM DAS CAMIONETAS
No New York Times, o artigo relativo ao caso não era muito longo, mas deixava clara a acusação de assassínio, apresentando depoimentos fornecidos por Kimmel: «Alegou... de acordo com Kimmel... Kimmel afirmou.»
Um outro diário de Nova Iorque trazia na primeira página um longo artigo com a fotografia de Kimmel, vociferante, gesticulando. Nesse mesmo jornal aparecia ainda uma fotografia do recorte do artigo que Walter guardara em sua casa, com o nome de Kimmel em letras destacadas. O próprio pormenor da data não fora esquecido.
De acordo com as palavras do editor Grimier, do Newark Sun, Melchior Kimmel, de 40 anos, com uma figura imponente e olhos castanhos expressivos, escondidos atrás de grossas lentes, contou a sua história em frases cadenciadas e com uma convicção tão tonante que os seus depoimentos se revelaram, de imediato, dignos de crédito...
De acordo com as declarações do próprio Kimmel, a conversa sobre o crime teria ocorrido depois de Stackhouse (advogado) ter feito o pedido de encomenda de um livro intitulado Homens que Forçam a Interpretação da Lei. Kimmel apresentou o pedido datado para corroborar as suas declarações. Kimmel declarou que Stackhouse teria deixado transparecer a ideia de que ele (Kimmel) tinha assassinado a mulher, Helen, e ter-lhe-ia confessado que tencionava matar a sua mulher, recorrendo aos «mesmos métodos», ou seja, atacá-la-ia durante o tempo que estivesse na paragem das camionetas.
As declarações de Kimmel relembram ainda que Stackhouse teria decidido seguir a camioneta no seu próprio carro, falar com a mulher durante a paragem das camionetas, para depois a persuadir a acompanhá-lo até um local isolado, onde, finalmente, lhe poria termo à vida sem ser visto. Segundo Kimmel, este seria o método que Stackhouse considerava ter sido o que ele tinha utilizado.
«Isto», afirmou Kimmel ontem, «foi o que Stackhouse fez.»
Mais tarde, Kimmel afirmou que Stackhouse o teria ido visitar novamente no dia 15 de Novembro, na intenção de se desfazer em desculpas’ e de lhe confessar que era o culpado do assassínio da sua mulher. Stackhouse, que nega qualquer participação no crime, ainda de acordo com as palavras de Kimmel, «persegue-me como um autêntico psicopata».
Stackhouse ter-lhe-á proposto vários encontros, aos quais ele se recusou comparecer. A visita de Stackhouse, no dia 15
de Novembro, foi confirmada pelo tenente Lawrence Corby,
/ detective do departamento de homicídios da polícia de Fila-
: délfia, que tem estado a proceder à investigação dos casos Kimmel e Stackhouse há várias semanas.
Kimmel declarou que as alegadas acções de Stackhouse levaram a polícia a investigar todos os seus movimentos (os de Kimmel) na noite do assassínio de Helen. Foi isto, segundo ele, que o teria levado a revelar o caso da última visita que Stackhouse lhe fizera, ocorrida em Outubro. «Não sou vingativo», continua Kimmel, «mas este homem é obviamente culpado e, acima de tudo, fez todos os possíveis para me comprometer ao nível pessoal e profissional, de uma forma perfeitamente implacável. O seu único desejo era
fazer-me culpado. A única coisa que eu quero é que se faça justiça.»
As alegações de Kimmel precederam anteriores revelações feitas pela polícia, segundo as quais Stackhouse fora visto e
identificado perto do local onde ocorrera o crime da sua
mulher, no dia 23 de Outubro, às 7.30 da tarde, embora Stackhouse tivesse declarado à polícia que na noite em que a sua mulher tinha morrido se encontrava em Long Island. No dia 29 de Outubro foi descoberto o recorte de um artigo de jornal sobre o caso Kimmel na posse de Stackhouse. Este terá declarado que tinha recortado o referido artigo de
: um dos jornais, guardando-o num álbum. Todas estas afirmações foram corroboradas pelo tenente Corby num telefonema que o editor Grimier, do New York Sun, fez à polícia.
O tenente Corby afirmou a Grimier que o próprio Kimmel era considerado suspeito da morte de Helen, sua mulher, e que não se responsabilizava por qualquer’ acusação que Kimmel fizesse contra Stackhouse, a menos que ele próprio confirmasse...
«Mas Corby confirmou quase tudo o que Kimmel andou para aí a dizer», pensou Walter. Era natural que o tenente tivesse instruído Kimmel no dia anterior, para ter a certeza absoluta de que ele não omitiria nenhum pormenor, para se certificar afinal de que ele seria suficientemente contundente nas suas declarações, fazendo da ficção realidade!
Walter pôs imediatamente o carro a trabalhar e dirigiu-se para casa. Claudia ainda lá estava, com o casaco vestido e chapéu na cabeça. Nas mãos segurava um jornal. Parecia atordoada,
- Myra deu-me isto, esta manhã no autocarro - disse ela, apontando para o jornal. - Sr. Stackhouse, eu hoje vim cá para lhe dizer que gostaria de deixar... Se não se importa, Sr. Stackhouse.
Por momentos, Walter sentiu-se incapaz de dizer fosse o que fosse, limitando-se a olhar fixamente para a cara dela, inexpressiva e receosa. Claudia parecia estar aterrorizada. Ele aproximou-se e viu que ela recuava. Walter deteve-se. Sabia que ela estava com medo, pois, de acordo com as notícias dos jornais, ele era um assassino. - Eu compreendo, Claudia. Como queira. Eu vou tratar do seu...
- Se fosse possível, ia só buscar os meus sapatos, que estão no armário, e mais umas coisas que tenho por aí.
- Esteja à vontade, Claudia.
Ela voltou-se. - Eu não acreditei quando a Myra me falou no assunto, esta manhã, mas, quando eu própria U a notícia... Claudia deteve-se.
Walter permaneceu em silêncio.
- Eu não quero que a polícia me ande a apoquentar com perguntas a toda a hora - disse ela um pouco mais audaciosamente.
- Desculpe lá o incómodo.
- Ele disse-me que não lhe falasse no assunto, o Sr. Corby. Mas agora tanto se me dá como se me deu. Eu não pude evitar que ele cá viesse, mas não quero sentir-me envolvida no assunto.
«Grande sacana!», pensou Walter. Estava mesmo a imaginá-lo a chatear Claudia, tentando saber mais pormenores. Walter tinha pensado, algumas semanas antes, prevenir Claudia para o caso de Corby tentar contactá-la, mas não se atreveu a fazê-lo.
- Mas eu nunca disse ao Sr. Corby nada contra si, Sr. Stackhouse - disse Claudia, receosa.
Walter acenou afirmativamente. - Vá lá buscar os seus sapatos, Claudia. - Dirigiu-se para as escadas. Tinha de ir buscar o dinheiro para lhe pagar. Nessa manhã esquecera-se de pôr dinheiro na carteira e tinha saído levando apenas alguns trocos nos bolsos.
Quando ia retirar o dinheiro do cofre, deteve-se. Pareceu-lhe ouvir um clamor de Clara, reprovativo e escandalizado, por Claudia ter decidido despedir-se, e tudo por culpa dele. Por momentos, Walter sentiu-se envergonhado, enraivecido e ressentido, pois tinha cometido um erro crasso que Clara agora reprovava. Já recomposto, desceu as escadas, a correr, com o dinheiro e um livro de cheques na mão. Passou um cheque a Claudia no montante de 30 dólares, correspondente ao pagamento de duas semanas de trabalho.
- Este dinheiro é apenas um reconhecimento pelos seus bons serviços, Claudia - disse Walter.
Claudia olhou para o cheque e acabou por pegar nele para lho devolver. - Esta semana só trabalhei quatro dias, Sr. Stackhouse. Só quero que me pague o que me é devido. Não aceito mais nada.
- Mas isso não está certo - protestou Walter.
- Está muito bem assim - afirmou Claudia, encaminhando-se para a porta. -Agora vou andando. Acho que não deixo cá nada.
Walter nem teve oportunidade de lhe dar qualquer referência. Também era natural que ela não a quisesse. Claudia levava um saco de papel no braço e Walter abriu-lhe a porta. Ao passar por ele, ela afastou-se extremamente receosa. Seria escusado ele oferecer-se para a levar à paragem do autocarro, ao fundo da Rua Malborough. Era melhor não dizer mais nada. Limitou-se a observá-la, enquanto ela descia as escadas para o pátio e se encaminhava para a rua. Viu que ela se voltou várias vezes, enquanto caminhava sob os salgueiros existentes no passeio. Custava-lhe a acreditar que provavelmente nunca mais veria Claudia; era realmente espantoso que lhe custasse tanto o facto de ela se ter despedido.
Walter fechou a porta da cozinha. De repente via-se sozinho, desamparado. E isto apenas porque a criada se tinha despedido!
E quanto aos outros? E Ellie? E Jon? E Cliff e o pai? E Dick? Walter foi até à cozinha, movendo-se mecanicamente, com a intenção de ir fazer café. Perguntava a si próprio se a Sr.a Philpott sempre viria nessa manhã, ou se telefonaria, inventando qualquer desculpa. Era provável que nem sequer chegasse a telefonar.
Antes das 9 o telefone tocou. Era uma chamada de fora e Walter esperou até que se completasse a ligação. Pensou que seria Ellie, que se encontrava em Corning. Mas... Era a voz de Jon.
-Walter?
- Sim, Jon.
- Bem, já estou a par de tudo.
Walter aguardou que Jon acrescentasse mais alguma coisa.
- O que é que há de verdade no meio de tudo isto? - perguntou Jon.
- No que respeita às visitas, é verdade, pelo menos a maior parte delas, mas, quanto àquilo que ele afirma que eu disse, é tudo falso.-Até a sua voz soava desesperada, pouco digna de crédito. Jon manteve-se em silêncio durante bastante tempo, como se ele próprio duvidasse de Walter.
- O que é que eles te vão fazer?
- Nada! - explodiu Walter. - Não julgues que eles me vão pôr na cadeia, ou coisa do género. De qualquer modo, os tipos não têm provas suficientes. A polícia não faz qualquer tentativa para provar seja o que for. Um gajo qualquer pode dizer o que lhe apetece sem que lhe exijam provas concretas. É uma técnica muito absurda!
- Ouve, Walter, quando estiveres mais calmo, o melhor que tens a fazer é dirigires-te à polícia e contares tudo - afirmou Jon com a sua voz calma e profunda. - Diz-lhes tudo o que omitiste até agora e...
- Eu não omiti nada!
- Essas visitas...
- Foram apenas três visitas e da segunda vez fui acompanhado pelo próprio Corby, que está a par de todos os meus encontros com Kimmel!
- Walter, dá-me a sensação de que todas as semanas aparece um pormenor novo. Sugeria-te que contasses toda a verdade, por escrito e confirmasses todas as tuas declarações sob juramento.
Walter sentiu que a voz de Jon se tornara fria. Era notória a sua impaciência. - Se estiveres realmente inocente, claro! acrescentou Jon ao acaso.
- Parece-me que ainda tens dúvidas! - exclamou Walter.
- Ouve lá, Walter, eu só te estou a sugerir que contes tudo de uma vez por todas, em vez de andares a contar as coisas aos poucos...
Walter desligou.
Pensava no que alguns jornais haviam noticiado: que era muito estranho que, não sendo verdadeira a história de Kimmel, Stackhouse tivesse optado por ir a uma livrariazeca, em Newark, à procura de um livro que encontraria muito mais facilmente em qualquer livraria de Nova Iorque.
Walter foi buscar a garrafa de brande e serviu um cálice.
«Afinal de contas, o que é que eles pretendem de nim? É claro que posso fazer declarações à imprensa. Eu diria a verdade, mas eles acreditariam em mim?... A verdade é tão pouco interessante em comparação com a história de Kimmel, tão sensacionalista, tão espectacular!»
Levou Jeff à rua. Este deteve-se várias vezes como se estivesse na expectativa de que Clara aparecesse. Era um cãozito desprotegido e cada dia que passava ficava mais triste. Mesmo quando Walter brincava com ele, mostrando-lhe um velho esfregão para que Jeff o agarrasse entre os dentes. Era a sua brincadeira predilecta. O focinho de Jeff, nunca mais revelara aquela expressão pretensiosa e tola, habitual quando Clara estava viva. A própria Ellie se tinha apercebido disso e se oferecera até para ficar com o cão, caso Walter pensasse desfazer-se dele. Porém isso estava fora de questão. Jeff ficaria consigo. Tentava tratá-lo tão bem como Clara fazia. Uma vez por dia levava-o à rua, para espairecer, e ele próprio lhe preparava a comida, mesmo quando Claudia estava ao serviço. Mas, se alguma coisa lhe viesse a acontecer, queria ter a certeza de que Jeff seria entregue a Ellie, ou aos Philpotts. Preparou-lhe o pequeno almoço, fazendo sopas de leite, e ficou a observá-lo enquanto comia. Walter batia com o tacão do sapato sobre o chão de linóleo. Parecia estar cansado. Alertado pelo barulho, Jeff levantou o focinho do prato e olhou para Walter.
De repente, o telefone tocou.
Era a Sr.a Philpott a perguntar se lhe era possível encontrar-se com o Sr. Kammerman, que estava interessado na mobília. Teria de ser imediatamente. Walter acedeu. A voz tranquila e delicada da Sr.a Philpott deixou-o desconcertado. Ela acabou por dizer: -Espero que me desculpe por não ter aparecido esta manhã, Walter. Acontece que, à última hora, apareceu-me um assunto cuja resolução não podia ser protelada de modo algum.
Em Nova Iorque, Walter telefonou para a esquadra da polícia de Newark. Informaram-no de que Corby se encontrava em Newark, embora desconhecessem ao certo o seu paradeiro. Walter decidiu seguir para lá.
Era 1.15. Tinha começado a cair uma chuva miudinha.
Quando lá chegou, Corby ainda não estava na esquadra da polícia. Um guarda pediu-lhe que se identificasse, mas Walter recusou-se a fazê-lo. Voltou para o carro e dirigiu-se para a livraria de Kimmel. A loja estava fechada. Havia uma grande racha numa das montras, provocada por algum objecto pesado. Ao reparar nisso, Walter sentiu-se profundamente excitado e olhou para o passeio, tentando descobrir o possível tijolo que o tivesse feito. Já lá não estava.
Dirigiu-se para as bombas de gasolina mais próximas, encheu o depósito e pediu a lista telefónica, para saber a morada de Melchior Kimmel. Lembrou-se então que esta não constava na lista, mas reparou que havia uma Helen Kimmel na Bowdoin Street. O empregado das bombas de gasolina não foi capaz de lhe explicar onde ficava essa bomba. Walter perguntou a um polícia de trânsito, que lhe deu algumas indicações, mas, mesmo assim, Walter não conseguiu chegar lá. Ficou tão irritado que teve de se esforçar para controlar a sua voz quando se dirigiu a uma mulher que caminhava num dos passeios para perguntar onde era realmente a rua. Finalmente obteve uma explicação exacta. Encontrava-se apenas a quatro ruas da Bowdoin Street.
Era uma rua com casas em construção, o número era o 245.
Walter parou em frente a uma pequena casa castanho-avermelhada, de dois andares, separada do passeio por um estreito relvado pouco cuidado. Havia uma vedação insignificante de ferro forjado a toda a volta; todas as persianas estavam corridas. Walter olhou para ambos os lados do passeio. Depois saiu do carro e dirigiu-se para os degraus de madeira, subindo-os até ao pátio; a campainha da porta fez um barulho estridente. No interior da casa não se ouvia qualquer rumor; Walter imaginava que Kimmel o estivesse a observar, escondido atrás de uma das janelas cujas persianas estavam corridas. Sentiu um medo enorme a apoderar-se de si, ficando tenso e de sobreaviso, mas acabou por não aparecer ninguém. Voltou a tocar à campainha, desta vez mais demoradamente. Deu um safanão na porta e as arestas do puxador de metal magoaram-no. Estava fechada à chave.
Walter voltou para o carro e esperou alguns momentos antes de entrar. Sentia que o medo, pouco a pouco, dava lugar a uma raiva frustrada. «Se calhar, a esta hora estão todos reunidos outra vez no Newark Sun.» Pensou que seria melhor dirigir-se para lá e fazer declarações que o pudessem vir a ilibar. Mas... Era provável que nem se dignassem a publicá-las. Walter achava que já ninguém acreditava nele. Necessitaria do apoio de Corby. Teria de ser aquele jovem e presumido polícia a corroborar as suas afirmações. Curvou e dirigiu-se para a esquadra da polícia. Lá disseram-lhe que Corby já tinha chegado, mas que estava muito ocupado.
- Diga-lhe que Walter Stackhouse quer falar com ele.
O sargento da polícia olhou-o de soslaio, abriu a porta que dava para o hall e desceu alguns degraus. Walter seguiu-o. Atravessaram outro hall e pararam à frente de uma porta a que o sargento bateu.
- Sim? - disse Corby, num tom abafado.
-Walter Stackhouse!-gritou o sargento, entreabrindo a porta.
Corby veio até à porta, sorrindo. - Olá! Estava à sua espera hoje!
Walter entrou com as mãos nos bolsos do sobretudo e reparou que Corby olhava para elas como se suspeitasse que ele trouxesse uma arma. Walter deteve-se subitamente: Kimmel estava sentado numa cadeira, com o corpo dobrado, como se estivesse com alguma dor estranha. Ao ver Walter, fitou-o espantado como se não o tivesse reconhecido. No rosto de Kinfmel distinguia-se apenas uma expressão vazia como se estivesse paralisado pelo terror.
- Hoje estamos em maré de confissões - afirmou Corby, triunfantemente. - O Tony já confessou, Kimmel vem a seguir e depois é a sua vez.
Walter manteve-se em silêncio. Olhou de relance para o rapaz de cabelo castanho e ar aterrorizado que estava sentado no outro canto da sala. Era uma sala de azulejos, fria, desconfortável, envolta numa luz ofuscante que reflectia a superfície dos azulejos brancos que revestiam as paredes. Kimmel tinha o rosto molhado; seriam lágrimas ou apenas suor? Tinha o colarinho aberto e a gravata, em desalinho e amarrotada, pendia-lhe no pescoço.
- Não se quer sentar, Stackhouse? Já só resta a mesa. Walter reparou que a porta estava trancada por dentro, com
um ferrolho de correr, como os que existem nas câmaras frigoríficas onde trabalham os carniceiros. - Vim cá para lhe perguntar o que é que vem a seguir. Quero tudo em pratos limpos! Posso parecer muito parvo, mas não estou disposto a deixar passar todas as mentiras que você ou qualquer um...
- Você facilitaria tudo se confessasse o que fez, Stackhouse! - atalhou Corby.
Walter olhou para a posição pretensiosa que o tenente mantinha, para a sua expressão carrancuda e ameaçadora. «Demagogozito dum raio! A fazer-se valer do distintivo!...», pensou Walter. Subitamente agarrou Corby por um dos braços, torcendo-o e, com a outra mão livre, tentou atingir o tenente no queixo, mas este esquivou-se e agarrou-lhe a mão, empurrando-o. Walter escorregou no chão de mosaico e teria caído se Corby não o mantivesse seguro pelo pulso, fazendo-o erguer-se.
- Kimmel já sabe que sou intocável, Sr. Stackhouse. É melhor que fique também, desde já, a saber isso. - Dava a sensação de que os seus maxilares se iam desarticular. Sacudiu os ombros e ajeitou o fato. Depois despiu o sobretudo e atirou-o para cima da mesa de madeira.
-Perguntei-lhe o que se segue!-disse Walter.-Por acaso isso surpreende-o? Quem é que julga que é para andar para aí a propalar mentiras nos jornais?
-Nenhum dos jornais refere qualquer mentira. Há, possivelmente, apenas uma inexactidão num dos artigos, aliás confirmada como não tendo sido corroborada pelas autoridades. Nada de mentiras, única e exclusivamente uma alusão inexacta!
«Inexactidão! Que raio de termo!», pensou Walter. Olhou para a figura magra e arrogante de Corby andando à volta da cadeira onde Kimmel estava sentado, como se fosse um elefante apanhado numa armadilha, um elefante ainda com vida. Kimmel tinha a- cabeça e o rosto completamente encharcados de suor, embora a sala estivesse gélida. Walter reparou que Kimmel estremecia e se encolhia sempre que o tenente passava pela frente dele. De súbito, Walter notou qualquer coisa de estranho em Kimmel; não parecia ser a mesma pessoa. Afinal... eram os óculos. Era isso! Faltavam-lhe os óculos. Corby devia tê-lo apertado impiedosamente durante toda a noite. Mesmo depois do bom trabalho que o pobre coitado tinha desenvolvido junto da imprensa! Walter cerrou os punhos dentro dos bolsos. Corby parecia estar a estudar as suas reacções, olhando para ele cada vez que dava uma volta à cadeira de Kimmel. Subitamente, a sua voz quebrou o silêncio:-Até aqui tenho usado de muita diplomacia consigo, Stackhouse. Tenho recorrido apenas a métodos pacíficos. Mas... pelos vistos, não resulta!
- O que é que quer dizer com isso?
- É muito simples. Não disse aos jornais aquilo que poderia ter dito. Gostava era que você enxergasse um pouco mais a sua estúpida teimosia em ocultar a verdade. Como já lhe disse, os meus métodos foram infrutíferos, ineficazes. Vou ter de o pressionar. O que saiu hoje nos jornais foi apenas o princípio. Você nem sabe até onde eu sou capaz de ir para o fazer falar! - Corby estava de pé, com as pernas afastadas, olhando ameaçadoramente para Walter. O seu rosto contraiu-se de tal modo que a sua expressão parecia cada vez mais carregada.
-Mas você também tem superiores - disse Walter. Estou a pensar ir falar com o capitão Royer.
Corby franziu o sobrolho. - O capitão Royer apoia-me incondicionalmente. Está plenamente satisfeito com o trabalho que tenho vindo a desenvolver. Aliás, não só ele, como todos os seus superiores. Em cinco semanas fiz o que a polícia de Newark não conseguiu fazer em dois meses, quando o rasto ainda estava fresco!
«Pondo de parte Hitler, ou um manicómio, nunca pensei que pudesse vir a assistir a uma coisa destas!»
-Aqui o Tony-disse Corby, gesticulando-já concordou que Kimmel podia muito bem ter saído do cinema imediatamente depois de o ter visto, às 8.05. O Tony até se lembra de ter ido a casa de Kimmel nessa, noite, depois do cinema, não o encontrando em casa.
-Isso não é verdade; ele não disse isso - protestou Kimmel nervosamente, num estranho tom adenoidal. - Ele não disse que tinha ido...
- Kimmel, você sabe que é culpado. Já me mete nojo essa sua teimosia! -gritou Corby, irritado. - Você tem tantas culpas no cartório como Stackhouse!
-Não! Não!-disse Kimmel num tom nasalado e com um sotaque estrangeiro, que Walter nunca lhe tinha ouvido. Havia algo de patético nos desmentidos desesperados de Kimmel, semelhantes aos últimos espasmos de um corpo cujos ossos tinham sido completamente quebrados.
- Tony sabe perfeitamente que a sua mulher tinha um affair com Ed Kinnaird. Contou-me isso esta manhã. Foram os vizinhos qUe lho contaram. Todos sabem do caso!-Corby fitou Kimmel nos olhos. - Ele sabe que esse motivo seria suficiente para você matar Helen; nem era preciso tanto. Diga lá que não é verdade? Tem coragem de negar?
Walter presenciava a cena horrorizado. Tentava imaginar Tony no banco das testemunhas. Um vadiozeco aterrorizado e estúpido que começava a desbobinar tudo aquilo que lhe tinham mandado dizer. Os métodos empregues por Corby eram demasiado cruéis. Corby não se importava de ferir fosse quem fosse para obter os resultados por que ansiava. Kimmel parecia ter esmorecido; dava a impressão de que, de repente, todas as suas forças o haviam abandonado; tinha-se derretido como uma bola de sebo. Depois voltou a negar as acusações que Corby lhe imputava, como um sussurro.
-Não! Não!
Irritado, Corby deu um pontapé na cadeira de Kimmel e, tendo falhado, agarrou as duas pernas de trás da cadeira e puxou-as para o lado. Devido à violência empregue, Kimmel estatelou-se no chão com um barulho surdo. Tony tentou levantar-se para ir ajudar Kimmel, mas acabou por ficar imóvel. Corby empurrou Kimmel com o sapato e este levantou-se meio estonteado; parecia um animal ferido. Corby continuou a exortá-lo a confessar, ao mesmo tempo que o agredia com tal brutalidade que Kimmel quase não se conseguia ter de pé. Walter sabia exactamente o que Corby iria dizer quando chegasse a sua vez de ser interrogado. Iria certamente rebater o caso das visitas a Kimmel e fingiria que acreditava na cumplicidade de Kimmel no crime. Fingiria também que toda a gente tinha a mesma opinião e que estava irremediavelmente perdido. Walter observou Corby, que gesticulava, dirigindo-se-lhe num tom de voz tão alto, que mais parecia estar perante um público numeroso. -... Este homem! Este homem fez com que os seus planos caíssem por terra, Kimmel! Walter Stackhouse, o trapalhão!
- Cale-se! - disse Walter.-Você sabe perfeitamente que eu estou inocente! Você próprio já o afirmou uma, duas, sabe Deus quantas vezes! Mas, desde que consiga inventar uma história espectacular para passar à frente de alguém que esteja acima de si, então nenhum obstáculo se lhe coloca pela frente e você mente e perjura vezes sem conta, só para demonstrar que a sua ideia disparatada é, no entanto, a mais correcta.
- A sua ideia disparatada! - exclamou Corby, imperturbável.
Walter dirigiu-se ameaçadoramente para ele. Cerrou os punhos e atingiu Corby no queixo. Corby foi pelo ar e chocou contra a parede branca, acabando por se estatelar no chão e ajeitando depois o casaco. Corby puxou do revólver, apontou-lho e levantou-se calmamente.
-Mais uma gracinha dessas e disparo mesmo!...-gritou Corby.
- Se o fizesse acabaria por não ter a confissão por que tanto anseia - replicou Walter, numa atitude provocatória. - Porque é que não me prende? Afinal de contas, agredi uma autoridade.
- Eu não o prenderia, Stackhouse - rosnou Corby. - Isso servir-lhe-ia de protecção e você não a merece.
Corby estava imóvel, continuando a apontar a arma a Walter. Walter observou novamente o seu pequeno e severo rosto, os olhos de um azul-gélido. «Será que ele realmente acredita que eu sou culpado?», perguntou a si próprio Walter. Achava que sim, pela simples razão de Corby não dar a mínima possibilidade de existência de qualquer dúvida relativamente à sua culpa, mesmo que viesse a surgir um facto que pudesse provar a sua inocência. Walter olhou para Kimmel, que o observava fixamente com uma expressão de cansaço; parecia estar a olhar para o vazio. Corby estava a pô-lo louco. Aliás, Corby e Kimmel, cada um à sua maneira, tinham ambos qualquer coisa de louco. Bastava olhar para aquele jovenzinho sentado na cadeira!
- Ou me prendem, ou então vou-me embora - afirmou Walter, voltando-se e caminhando para a porta.
Corby colocou-se entre ele e a porta, com o revólver na mão, ameaçadoramente.-Para trás!-disse ele, aproximando-se da cara de Walter, Estava suado e no queixo era bem visível uma mancha rosada; exactamente o local onde Walter o havia atingido alguns minutos antes. - Onde é que você julga que vai? O que é que você julga que vai encontrar lá fora? Liberdade? Quem é que vai querer falar consigo? Quem é que quer ser seu amigo agora?
Walter não esboçou qualquer movimento. Olhou para o rosto de Corby, que estava rígido como o de uma matrona. Lembrou-se de Clara. - O que é que vai fazer? Vai continuar a ameaçar-me com o revólver para me obrigar a confessar? Está muito enganado. Não o farei mesmo que dispare. - Aquela calma aparente com que costumava reagir quando Clara o aborrecia assaltava-o agora, como se para ele o revólver não passasse de um simples brinquedo. - Vá, dispare! Vão-no condecorar por isso! É até provável que o promovam - disse Walter ironicamente.
Corby passou a mão pelos lábios. - Vá para ali, para’junto de Kimmel.
Walter voltou-se, contrariado, e deixou-se ficar no mesmo local. Corby aproximou-se mais de Kimmel, continuando a apontar a arma a Walter. «Não há dúvida nenhuma. O gajo parece uma mulher histérica na posse de uma arma.»
Corby esfregou o queixo com a mão. - Diga-me lá, o que é que sentiu quando léu os jornais esta manhã, Stackhouse?
Walter ignorou a pergunta.
- Aqui o Tony... -Corby apontou para ele com o revólver.
- Já conseguiu ordenar as ideias. Já chegou à conclusão de que, afinal, a hipótese de Kimmel ter morto a mulher não é assim tão pouco provável. Aliás, recorrendo aos mesmos processos que você viria depois a utilizar.
- Depois de ter lido os jornais? - Walter deu uma gargalhada.
- Sim - disse Corby. - Kimmel quis acusá-lo, mas acabou por
se virar o feitiço contra o feiticeiro. Ele acabou por conduzir Tony à pista certa. O Tony tem sido um rapaz muito esperto e tem cooperado bastante comigo - retorquiu Corby presumidamente, andando à volta de Tony, que mantinha uma expressão amedrontada, infeliz.
Walter deu uma gargalhada sonante. O som produzido ecoou na sala. Olhou para Tony, que estava cada vez mais apatetado. Depois olhou para Kimmel, que começava a mostrar-se ofendido com o seu riso. Naquele momento sentia-se tão louco como qualquer deles e desatou a rir-se do seu próprio comportamento. Deu uma reviravolta. Apesar de tudo, ainda continuava suficientemente lúcido para poder perceber que todo aquele histerismo se devia essencialmente ao cansaço e aos nervos. Estava a fazer figura de parvo. Achava que Corby era tão digno representante da lei como Kimmel ou Tony e ele, apesar de ser advogado, nada podia fazer. Aquele juiz imparcial que Walter tinha imaginado, com um ar calmo, inteligente, com o cabelo grisalho e vestindo uma toga negra e que o ouviria pacientemente, atendendo a todos os pormenores, acabando por considerá-lo inocente, afinal, essa figura, era apenas fruto da sua imaginação. Ninguém ouviria as suas declarações, a menos que um exército de Corbys o levasse a isso. Ninguém acreditaria no que tinha realmente acontecido, ou, melhor, no que não tinha acontecido.
- De que é que se está a rir, seu idiota? - perguntou Kimmel, erguendo-se da cadeira.
Walter reparou que o rosto balofo de Kimmel assumiu uma expressão grave e o seu sorriso morreu-lhe nos lábios. Reparou que a rectidão e o ressentimento que ele agora revelava era o mesmo que ele pudera perceber no dia em que fora ter com Kimmel para lhe dizer que estava inocente. Subitamente sentiu receio de enfrentar a sua presença.
- Fez borrada e ainda por cima se está a rir! - exclamou Kimmel no mesmo tom adenoidal. As mãos tremiam-lhe e entrelaçava os dedos. Os seus olhos, raiados de sangue, demonstravam o ódio que sentia por Walter.
Walter olhou para Corby, que, por sua vez, observava Kimmel com um ar de satisfação, como se o seu elefante estivesse a representar bem. Walter começou a perceber que o objectivo de Corby era incitar Kimmel e levá-lo a odiá-lo cada vez mais. Parecia até que o seu desejo principal era ver Kimmel a confrontar-se com ele fisicamente. No rosto de Kimmel era visível uma convicção obsessiva da sua inocência, da injustiça do destino que o perseguia. Walter sentiu-se envergonhado, como se tivesse realmente conduzido um homem inocente a unia armadilha à qual era impossível escapar ileso. Quis desaparecer, desculpar-se, sair da sala, fugir de tudo aquilo.
Kimmel avançou em direcção a ele. O seu corpanzil parecia tombar sobre si próprio, agarrado às costas da cadeira. - Idiota! -gritou ele, dirigindo-se a Walter. - Assassino!
Walter olhou de soslaio para Corby e reparou que este sorria.
- Agora já se pode ir embora - disse Corby a Walter. - É o melhor que tem a fazer.
Walter ainda hesitou, mas acabou por se voltar e dirigir-se para a porta, sentindo vergonha como se estivesse a fugir de alguma coisa. Não conseguiu abrir a porta e tentou o fecho de segurança, puxando-o freneticamente até ficar coberto de suor. Imaginava Corby a apontar-lhe o revólver, ou Kimmel tentando agredi-lo por trás. Por fim, a fechadura cedeu e Walter escancarou a porta.
- Assassino! - rugiu Kimmel atrás dele.
Walter desceu as escadas a correr até ao hall. Os joelhos tremiam-lhe. Desceu as escadas que conduziam à rua e deteve-se no passeio, durante alguns minutos, aspirando o ar fresco, amparado ao corrimão de ferro. Sentia-se sufocado, paralisado, parecia-lhe que tudo aquilo fora um pesadelo. «Como é que tinha conseguido rir-se de tudo aquilo?» Walter não conseguia esquecer-se do ar ofendido e irritado de Kimmel quando se rira. Afastou-se do corrimão e, ainda receoso, começou a caminhar ao longo do passeio.
- Mas tu ainda nã”o me compreendeste - disse Ellie. - Se a tivesses realmente morto... Eu até podia fazer os possíveis para tentar imaginar como as coisas se passaram. E, provavelmente, era capaz de te perdoar. O que eu não posso tolerar nem perdoar são as tuas mentiras. Isso nunca!
Estavam sentados, um ao lado do outro, dentro do carro. Walter reparou nos seus olhos reprovadores. Mantinham a mesma expressão calma e serena de sempre. -Acabaste de dizer que não acreditavas na história do Kimmel... - disse Walter.
- Claro que eu não acredito que tenhas estado a discutir os pormenores do crime com ele, mas admitiste que o tinhas ido visitar.
- Foram só duas visitas - replicou Walter. - Se ao menos fizesses um esforço para compreender que não passou tudo de uma série de circunstâncias... de coincidências... Podia ter-se dado o caso de as coisas se terem passado mais ou menos como as pintam, mas, mesmo assim, eu continuaria a ser inocente... Estava à espera que ela protestasse, que ela acreditasse na sua inocência, mas as suas reacções demonstravam exactamente o contrário.
Ellie olhava para ele fixamente, sem se crer que me julgues culpado de Ellie - explodiu Walter.
- Prefiro não dizer mais nada.
- Deixa-me ter esse privilégio - retorquiu ela. - Prefiro não acrescentar mais nada.
Walter admirara-se de a ter notado tão calma, quando nessa manhã lhe telefonou. Ficou espantado por ela ter acedido a encontrar-se com ele. Agora percebia a que se devia toda a sua calma aparente. Ellie havia previamente decidido sobre a forma de agir quando estivesse frente a frente com ele.
- O que eu queria dizer-te há pouco era que podia ter passado por cima de tudo se tu, pelo menos, tivesses sido honesto comigo. Não gostei da tua atitude. Ponho certas dúvidas quanto ao nosso relacionamento futuro - afirmou ela, brincando com o porta-chaves entre os dedos, como se estivesse ansiosa por se ir embora. - Também não te deves ralar muito. Nunca fizeste qualquer plano em relação ao nosso futuro. Certamente nem sequer puseste a hipótese de nos casarmos.
De repente, Walter pensou que, naquela última noite que passara no apartamento de Ellie, ela já estaria contra ele. Precisamente a noite em ’que tencionara falar-lhe nas histórias que Kimmel iria contar aos jornais, colocando-o numa situação periclitante. Agora Walter perguntava a si próprio se, no caso de naquela noite não ter omitido tudo o que sabia e não ter feito amor com ela, a reacção de Ellie teria sido exactamente igual à que acabara de ter. Era muito difícil enfrentar o desprezo e a imparcialidade daqueles por quem sentia ainda viva amizade. Também não era novidade nenhuma para ele o facto de nunca ter tomado uma decisão quanto a um possível casamento. Lembrava-se vivamente da exaltação que sentira na primeira noite que haviam passado juntos. Nessa altura convencera-se de que acabariam por ficar juntos, pois estavam ambos apaixonados. Não lhe saía da cabeça a convicção do amor que sentia por ela desde a noite em que ele lhe telefonou para a Three Brothers Tavern. Sentira-se orgulhoso pelo facto de Ellie corresponder ao ideal de mulher que ele sempre ambicionara vir a encontrar; uma mulher leal, inteligente, carinhosa e, ao contrário de Clara, saudável. Agora tinha a sensação de que deitara tudo a perder e, mais do que isso, fizera-o deliberadamente. Era como se a vontade hostil de Clara o continuasse a dominar, mesmo depois de morta.
- Suponho que este é o nosso último encontro – afirmou Ellie, num tom calmo e acutilante como o bisturi do cirurgião dissecando um coração. - Para a semana que vem vou-me mudar; vou viver algures em Long Island. Tudo menos Lennert. Quero sair imediatamente daquela casa.
Walter pousou as mãos sobre o porta-luvas. - Tu disseste-me que não acreditavas em Kimmel. Isso é verdade?
- E isso tem alguma importância?
- Pois posso garantir-te que foi a única coisa que se passou ontem. Aliás, foi a única coisa que acabou por vir alterar tudo.
- Não, não foi. Este é o meu ponto de vista. Tu admitiste que tinhas estado com ele em Outubro, portanto mentiste-me.
-Bem, isso agora não vem ao caso. Eu perguntei-te se tu acreditavas nas patranhas que Kimmel andou para aí a contar sobre a morte de Clara, depois de tudo o que eu te disse sobre esse indivíduo.
- Sim - disse ela calmamente, continuando a fitá-lo. - Posso também acrescentar que, até certo ponto, cheguei a suspeitar de ti.
Walter olhou para ela, estupefacto. O rosto de Ellie adquirira uma nova expressão; parecia receosa de que ele recorresse à violência como retaliação. - Muito bem - disse ele entre dentes.
- Já me estou nas tintas para tudo, percebes?
Ela limitou-se a olhar para ele com os lábios cerrados, esboçando um sorriso forçado.
- Quero esclarecer tudo de uma vez por todas. Já estou a ficar farto! Pouco me rala o que as pessoas pensem. Ouviste bem?
Ela acenou afirmativamente e disse: - Sim.
- Se ninguém quer aceitar a verdade, também já estou farto de dar explicações. Percebes? - Ele abriu a porta do carro e saiu. Tendo dado alguns passos, voltou-se para trás. - Devo confessar-te que este... este nosso último encontro foi «perfeito». Está de acordo com tudo o resto! -Fechou a porta e dirigiu-se para o seu carro. Sentia-se extremamente fraco e cambaleava como se estivesse bêbedo.
Era um escritório muito simples, agradavelmente simples. Walter entrou para falar com George Martinson. Nesse dia, Willie Cross estava ausente, embora Walter preferisse que ele estivesse presente para lhe comunicar directamente a sua saída. Martinson deu-lhe o seu assentimento em poucas palavras. Olhava para Walter como se estivesse espantado por este ainda andar em liberdade.
Todos olhavam para ele da mesma forma, até Peter Slotnikoff. Ninguém dizia nada. Limitavam-se a mastigar algumas palavras. Parecia que todos esperavam que alguém tomasse a iniciativa de cair sobre ele e prendê-lo. A própria Joan olhava para ele cheia de medo, evitando dizer fosse o que fosse. Mas... Walter já não se importava. A sua indiferença, que pouco a pouco se foi tornando total e genuína, bem como o seu cansaço físico, que o tomava ébrio, funcionavam como uma armadura que o protegia de tudo e de todos.
Enquanto Walter recolhia os seus livros e arrumava a sua secretária, entrou Dick Jensen. Walter levantou-se imediatamente e observou-o à medida que ele se aproximava, com o queixo caído sobre o colarinho bem engomado. O sol matinal, incidindo sobre o relógio de ouro que ele usava pendurado no bolso do colete, tornava-o mais brilhante.
-Não precisas de dizer nada-começou por dizer Walter.
- Para mim está tudo bem.
- Para onde é que vais? - perguntou Dick.
- Para a 44.a Avenida.
- Então vais trabalhar sozinho?
- Sim - replicou Walter, continuando a despejar as gavetas da secretária.
- Walt, espero que compreendas o motivo por que não posso alinhar contigo. Como sabes, tenho a mulher para sustentar.
-Eu compreendo - disse Walter imparcialmente. Levantou-se e agarrou no seu livro de cheques. - Antes que me esqueça, quero devolver-te a tua parte da renda. Aqui tens um cheque de duzentos e vinte e cinco dólares. - Colocou-o em cima da secretária.
- Aceito-o com a condição de tu ficares com o Corpus Juris - afirmou Dick.
- Mas isso é teu.
- Não o íamos utilizar os dois?
O Corpus Juris encontrava-se no apartamento de Dick. Fazia parte da sua biblioteca particular. - Deixa estar, pode ser que venhas a precisar dele um dia - disse Walter.
- Ainda há-de demorar o seu tempo. De qualquer modo... gostaria que ficasses com ele. Podias também ficar com os State Digests. Quando abrir o meu próprio escritório já estarão desactualizados.
- Obrigado, Dick - disse Walter.
- Li esta manhã o anúncio da abertura do teu escritório nos jornais.
Walter ainda não o tinha visto. Era um pequeno anúncio que ele mandara publicar no sábado de manhã, numa atitude provocatória, antes de ir para Newark. - Tive o cuidado de não mencionar os nossos nomes -disse Walter.- O teu nome. O meu virá referido no segundo anúncio, a publicar ainda no decorrer desta semana.
Dick piscou os enormes olhos castanhos. Parecia ter ficado surpreendido. - Tenho de confessar que admiro a tua coragem, Walt.
Walter calou-se como se estivesse ansioso por ouvir mais alguma coisa que o confortasse. Porém, dava -a sensação de que ele nada mais tinha a dizer. Limitou-se a agarrar no cheque e a dobrá-lo. - Se não vires nenhum inconveniente, gostaria de ser eu próprio a ir buscar os livros um destes dias. Uma destas tardes, quando te der jeito. Vou mudar-me para Manhattan a partir de hoje. Mas fica assente que os livros são apenas um empréstimo que me fazes até precisares deles.
- Oh, deixa estar. Eu trago-tos qualquer dia, durante a hora de expediente.. Não te incomodes a ir lá a casa-disse Dick.
- Trago-tos aqui para o escritório. - Depois encaminhou-se para a porta.
Walter seguiu-o involuntariamente. Apesar de Dick se estar a esquivar ao diálogo, apesar da relutância que demonstrava em exprimir os seus pensamentos, Walter sentia que aquela não era a forma mais correcta de pôr termo a uma amizade que já durava há quatro anos.
-Dick!-chamou Walter.
Dick voltou-se. - O que é?
-Gostaria que me dissesses se... se duvidas da minha inocência? É esse o motivo?
Dick franziu o sobrolho e humedeceu os lábios. - Bem, eu... eu não sei, Walter. Se queres que seja franco contigo... -Dick olhou para ele, embaraçado, acabando por fitá-lo nos olhos, como se tivesse acabado de dizer aquilo por que Walter ansiava há tanto tempo.
Walter sabia que não podia criticar Dick por uma coisa que afinal era inevitável. Ao olhá-lo nos olhos, percebeu imediatamente que a última réstia de confiança existente entre eles, a sua lealdade, as promessas que ambos tinham feito um ao outro, tudo isto tinha sido banido, tudo se tinha esfumado; no ar pairava agora um sabor amargo de indiferença, um vazio desesperante.
- Agora vais à luta, não vais? - perguntou Dick. - O que é que vai acontecer?
- Eu estou inocente! -exclamou Walter.
- Bem... mas ao menos vais prestar declarações, não vais? -Oh, meu Deus! Mas então eu próprio terei de provar a
minha inocência? - explicou Walter. - É esse o novo sistema?
- Está bem - replicou Dick. - Tens toda a razão, mas acontece que...
- Achas que, se eu fosse culpado, estaria aqui neste momento? Eles não possuem provas suficientes para me poderem incriminar.
- Mas, muitos como eu...
- As pessoas como tu que se lixem! Estou farto desse tipo de gente. Estou farto de falar sem que as pessoas me dêem ouvidos! Estou-me nas tintas para o que os outros digam!
- Espero que consigas sobreviver. Faço votos para que consigas sair-te bem de tudo isto-disse Dick num tom extremamente frio. Depois voltou-se e caminhou até à porta, saindo.
Walter voltou para a secretária e continuou a juntar as suas coisas.
Quando ia a sair, Joan entrou, fechando a porta atrás de si.
- Vai-se embora hoje? - perguntou ela. - Sempre vai abrir o escritório?
- Sim. - Walter reparou que ela estava pouco à vontade e, para a ajudar, afirmou:-Eu compreendo, Joan. Não se incomode. Não tem nenhuma obrigação para comigo.
Ela hesitou. Por momentos, Walter pensou que ela ia dizer-Ihe, na sua voz calma, que continuava a acreditar nele e que estava disposta a ir trabalhar com ele no seu escritório, pois acreditava que ele conseguiria sair-se bem de toda aquela embrulhada. Isto era afinal aquilo que Walter tanto desejava e esperava ouvir da boca de Joan.
- Tinha de lhe dizer que mudei de ideias quanto à minha saída deste escritório. Acho preferível ficar por aqui. - Acabou ela por dizer.
Walter limitou-se a anuir: - Está muito bem.
Esperava que Joan lhe dissesse algo mais forte, mais confortante. «Porque é que ela não foi mais exacta?», pensou ele. Joan tinha sido sempre leal para com ele ao longo dos dois anos que tinham trabalhado juntos. De súbito sentiu-se tão baralhado como ela. - Não se rale, Joan. Fica tudo bem. Cá me hei-de desenvencilhar. - Passou por ela, preparado para sair. - Foi uma boa secretária. Acredite que gostei de trabalhar consigo acrescentou ele antes de abandonar o escritório definitivamente.
Joan ficou imóvel e calada.
«Tenho de aceitar os factos. Vão-se uns atrás dos outros. Tal e qual como acontecia com os meus amigos quando Clara estava viva. Parece mesmo a quinta-essência de Clara. O isolamento! Não tarda muito e eu saberei o que isso é. Que raio de destino o meu!» Walter não acreditava que algum finalista de Direito se candidatasse ao lugar de estagiário no seu escritório depois de estar a par da sua reputação. Apesar de todas as contrariedades, ele não era homem para desistir. Propunha-se levar a cabo os seus projectos. Era persistente e sê-lo-ia até ao fim! Aliás, fora a sua persistência, a sua forte teimosia e força de vontade que o haviam levado a desfazer-se da casa de Clara e a procurar alojamento num hotel, pagando um ou dois meses de renda adiantada, embora só lá tencionasse ficar uma semana. De certeza que tudo se resolveria; pelo menos, todas as coisas têm de ter um fim, de uma forma ou de outra! Uma mão acabaria por pousar sobre o seu ombro, alguém lhe apontaria uma arma e uma bala atingiria o alvo, com a cumplicidade da escuridão da noite. Ou então... O próprio Kimmel se encarregaria de resolver o assunto, apertando aquelas enormes manápulas à volta do seu pescoço. Mas, até lá muito teria de penar, todos se afastariam dele!... Acabaria por se ver completamente só. Todos lhe voltariam a cara. A Terra transformar-se-ia em Lua e ele passaria a ser o único ser humano a habitá-la. Triste solidão!
Pela quarta vez, Kimmel dirigiu-se ao oculista Bausch and Skaggs, na Avenida Phillston, para substituir os óculos. Desta vez, o jovem empregado que o atendeu não se conteve e riu-se abertamente. - Então, Sr. Kimmel, não me diga que voltou a deixá-los cair? Não acha que é melhor atar-lhes uma guita?
Através da hilariedade incontrolável e do ar de mofa patente no tom em que o empregado se lhe dirigiu, Kimmel desconfiou que ele já conhecia o motivo pelo qual os óculos estavam novamente quebrados. Não era de admirar que o empregado tivesse até comentado o facto com alguém. Kimmel poderia ter ido a outro oculista, mas o Bausch and Skaggs era indubitavelmente aquele cujo serviço era mais rápido.
- Não se importa de deixar um sinal, Sr. Kimmel?
Este retirou a carteira do bolso e retirou uma nota de 10 dólares do local exacto onde as costumava guardar.
- Amanhã de manhã estarão prontos. Quer que lhos mande entregar? - perguntou o empregado num tom de deferência exagerado, continuando a tirar partido da situação.
- Sendo assim, está bem. Passarei depois um cheque no valor restante, quando mós forem entregar lá a casa.
Depois, pela quarta vez, Kimmel saiu e atravessou o passeio para entrar no carro que o aguardava. Porém, desta vez não era o seu carro com Tony ao volante, mas sim um táxi. A caminho de casa, começou a sentir-se esfomeado, apesar de ter comido bastante ao pequeno-almoço, um pouco mais de uma hora antes. Pensava nas sensações de vazio no estômago como se estas fossem um problema palpável cuja investigação teria de ser necessariamente táctil. Tais pensamentos trouxeram-lhe à ideia a visão de uma sanduíche de fígado com rodelas de cebola acompanhada de uma cerveja bem fresca.
- O senhor não se importa de parar na Rua 24, por favor. Necessito de ir à confeitaria Shamrock.
Chegados à confeitaria, Kimmel voltou a apear-se do táxi, atravessou o passeio com a máxima precaução, como se estivesse no meio de uma rua com tráfego intenso, e entrou na loja. Pediu uma sanduíche de fígado e bebeu várias cervejas. Aquelas sanduíches não eram de modo algum comparáveis às que Ricco preparava, mas Kimmel já decidira não voltar a pôr os pés na loja dele. Tony escapava-se mal o via e o pai dele voltava-lhe a cara quando se cruzavam no meio da rua, Kimmel pegou na sanduíche e numa cerveja e voltou para o táxi, pedindo ao motorista que o levasse a casa. Desembrulhou a sanduíche para dar uma dentada. Ao chegar a casa, já tinha devorado três quartos da mesma e estava arrependido de, em vez de uma, não ter pedido logo duas. O taxímetro marcava 2 dólares e 10 centimes, de acordo com a informação dada pelo próprio motorista, pois Kimmel não conseguia distinguir os números sem óculos. Apesar de ter achado a tarifa demasiado elevada, decidiu pagar imediatamente.
Em casa, Kimmel bebeu mais duas cervejas, comeu o resto da sanduíche e uma fatia de pão com queijo. Depois sentou-se na sala, aguardando. Apetecia-lhe ler qualquer coisa, mas... faltavam-lhe os óculos. A única coisa que podia realmente fazer era esperar. Esperar pelos óculos e que Corby lhos voltasse a partir. Lembrou-se então da montra da sua loja, que alguém havia quebrado. Tinham atirado um tijolo contra o vidro, na sexta-feira anterior, numa altura em que ele ainda se encontrava no interior da loja. O impacte do tijolo no vidro não tinha provocado nenhum buraco, havendo apenas uma racha diagonal que apanhara o vidro de uma ponta à outra. Agora Kimmel tinha receio de estar na loja durante o dia. De qualquer modo, temia mais ser atacado na loja do que em casa. O seu receio devia-se, talvez, ao facto de todos saberem que a livraria Kimmel pertencia a Melchior Kimmel, mas muito poucos terem conhecimento do seu endereço.
Kimmel levantou-se e foi até à cozinha. Agarrou num pedaço dp madeira de pinho que tinha comprado numa serração para esculpir estatuetas. Levou-o para a sala e começou a talhar um madeiro com cerca de 18 centímetros de comprimento. A madeira tinha ainda uma série de arestas. Kimmel foi-a desbastando até conseguir torná-la cilíndrica como um charuto. Via com tanta dificuldade, que era quase impossível esculpir alguma forma, mas ao menos estava entretido. Trabalhava avidamente com a sua navalha, cuja lâmina, apesar de resistente, tinha sido afiada tantas vezes que estava extremamente delgada, com a ponta arredondada e cortava tão bem como uma navalha de barba.
Vieram-lhe novamente à memória as gargalhadas estridentes de Stackhouse. Sentia-se como se tivesse tido um sobressalto, uma sensação tão desagradável como a que sentia quando Corby o pontapeava. Um ódio terrível começou a apoderar-se dele. Quando se lembrava daquelas gargalhadas, assaltava-o o desejo de aniquilar Stackhouse, de o esfaquear. Levantou-se novamente, atirou a navalha e o pedaço de madeira para cima do sofá e começou a andar às voltas, com as mãos nos bolsos das calças. Debatia-se com a ideia de esquecer completamente Stackhouse, tal como já tinha esquecido Tony, varrendo-o da sua memória, ou espancá-lo para aliviar o ódio que o atormentava, para mitigar a sua sede de vingança. Stackhouse era um miserável cobarde que assassinava, mentia e gozava com as suas vítimas, conseguindo escapar miraculosamente, mesmo nas situações mais comprometedoras, em que os seus crimes eram praticados à frente de todos. Corby nunca lhe tinha levantado sequer um dedo. Além do mais. estava bem na vida! Kimmel imaginava Stackhouse vivendo num bairro chique de Long Island, rodeado do maior luxo e servido por inúmeros criados (mesmo que eles o tivessem abandonado, Stackhouse podia perfeitamente contratar muitos mais), e talvez até tivesse uma enorme piscina, rodeada de grandes jardins. «E o grande idiota a fazer-se avarento só porque lhe pedi 50 000 dólares, que ainda por cima pouca diferença Lhe faziam! A minha intenção era evitar que o nome dele fosse posto na lama.» Kimmel não só considerava que a decisão tomada por Stackhouse tinha sido estupidamente precipitada, mas achava também que esse dinheiro era uma dívida que Stackhouse tinha para com ele, pelos problemas que lhe tinha levantado.
Kimmel abriu o frigorífico e tirou um prato contendo algumas salsichas, dirigindo-se depois à caixa do pão. O cheiro apimentado das salsichas fez-lhe crescer água na boca e acabou por cortar um pedaço, metendo-o na boca e tirando a pele que envolvia a carne. Bebeu mais uma cerveja. Depois voltou para a sala, sentou-se no sofá e agarrou na navalha e no pedaço de madeira.
«Podia ir para outra cidade. Ninguém me pode impedir de o fazer. Mas o sacana do Corby, de certeza absoluta, acabaria por me descobrir. Pelo menos viveria em paz durante algum tempo, longe de vizinhos, amigos e conhecidos que voltam a cara quando me vêem. Podia tentar Paterson ou Trenton. Mesmo que aí acabasse por me aborrecer, sempre seria melhor do que andar para aqui a penar em Newark, onde os amigos me desprezam.»
Começou a talhar linhas cruzadas na madeira. Alimentava-o a esperança de que também Stackhouse perdesse todos os amigos. Com a ponta arredondada da navalha ia escavando pequenos buracos na madeira. Depois desenhou cruzes nos buracos, fazendo-o mais pelo tacto, pois a falta dos óculos não lhe permitia fazer desenhos minuciosos. Apesar disso, aquele trabalho dava-lhe prazer. Alguns momentos depois começou a sentir-se aborrecido e tenso. A sede de vingança voltava a atormentá-lo. Achava que o único castigo possível para Stackhouse era a castração. Começou então a imaginar se a casa de Stackhouse, em Long Island, seria isolada. À medida que espetava a navalha na madeira, resfolegava. Apercebeu-se de que começava a considerar Stackhouse realmente culpado e que, até agora, o vira apenas como inocente. Contudo, essa mudança de ideias era perfeitamente indiferente. Estava-se nas tintas para o facto de Stackhouse ter ou não morto a mulher e achava curioso que Corby sentisse, pelo menos aparentemente, a mesma coisa. Kimmel lembrava-se de que Corby considerava Stackhouse inocente, mesmo depois de ter descoberto o artigo de jornal, sobre a morte de Helen, em sua casa. O facto de Corby ter começado a dizer que Stackhouse era culpado e a tratá-lo como tal não passava de uma farsa. «No fundo, isto vai dar ao mesmo, quer ele seja culpado quer não. A mulher morreu, tudo indica que ele a tenha morto e o tipo acaba por me fazer a vida num inferno. Logo a mim, de quem ninguém suspeitava até então!» Kimmel tinha consciência de que preferia considerá-lo culpado, pois o facto, aliado à imunidade de que ele gozava, acabava por torná-lo mais repugnante. Imaginava-o no meio de alguns amigos leais, com um ar arrogante, fingindo, tentando fazer crer aos outros que seria incapaz de cometer um crime tão hediondo como aquele de que pretendiam acusá-lo, bebendo bom uísque e tentando fazer-lhes ver que ele tinha sido apenas uma vítima no meio de tudo aquilo. Eles, naturalmente, acabariam até por se rir do facto! Subitamente, Kimmel reparou que tinha feito um sulco profundo a meio da madeira, como se a fosse cortar. Dete-se e começou a alisar a superfície. Estava descontente com a obra. Tinha estragado tudo. A campainha da porta tocou e Kimmel saltou do sofá.
Ouviu uns passos a aproximarem-se. O hall estava às escuras e ele olhou cuidadosamente para a ombreira da porta, por entre as cortinas, e viu a silhueta enevoada de um chapéu e de uns ombros largos. «Tinha de ser Corby!»
- Vamos lá a abrir a porta, Kimmel. Eu sei que está aí dentro - disse Corby, como se o estivesse a ver. O próprio Kimmel não tinha a certeza de não estar a ser visto.
Acabou por abrir a porta.
Corby entrou. - Fui à loja, à sua procura. Já não trabalha lá? Oh! O raio dos óculos outra vez! -exclamou Corby,-sorrindo.
- Tinha de ser. - Passou pela frente de Kimmel e entrou na sala.
Kimmel escorregou no tapete. Dirigiu-se para o sofá, agarrou na navalha e no pedaço de madeira, guardando este último no bolso. Continuava com a navalha na mão, presa entre os dedos.
- Então diga-me lá o que é que tem feito? - perguntou Corby, sentando-se descaradamente.
Kimmel não respondeu. Corby estivera com ele na noite anterior até às 3 horas da manhã. Estava a par de todos os seus passos, de todas as pessoas com quem tinha falado, ou seja, ninguém, desde o último inquérito na esquadra da polícia.
- Stackhouse abriu um escritório na 44? Avenida. Fui lá visitá-lo esta manhã e pareceu-me que se está a sair muito bem.
Kimmel continuava de pé, à espera. Já estava habituado àquelas visitas de Corby e às suas informações, que caíam como excremento de ave.
- Pelos vistos, o facto de ter denunciado Stackhouse não lhe trouxe nenhum benefício, pois não, Kimmel? Não conseguiu extorquir-lhe o dinheiro, teve de fechar a loja por causa dos inimigos e, para cúmulo, Stackhouse conseguiu abrir o seu próprio escritório! Kimmel, a sorte abandonou-o, ha...
Apetecia-lhe cravar à navalha em Corby. - O que Stackhouse faz, não me diz respeito - atalhou Kimmel friamente.
- Importa-se de me mostrar a sua navalha? - perguntou Corby, aproximando a mão.
Irritava-o o facto de ver Corby espojado no sofá e saber que se investisse contra ele, era muito natural que Corby se esquivasse. Kimmel acabou por lhe estender a navalha.
- É uma beleza! - afirmou Corby, apreciando-a. - Onde é que a arranjou?
Kimmel sorriu ameaçadoramente, mas com prazer. - Foi em Filadélfia. A navalha não tem nada de especial.
- Para fazer estragos é suficiente. Foi a navalha que utilizou para assassinar Helen, não foi?
«Oh! Sim!» As palavras quase lhe saíram da boca, mas acabou por se controlar. Comprimiu os lábios. Continuava de pé, aparentemente calmo, embora o ódio que sentia dentro de si fosse alastrando como um veneno, fazendo-o sentir-se estonteado, indisposto, com o estômago às voltas. Estava já a antever Corby erguendo-se do sofá e a agredi-lo na cara, no estômago, e, caso ele respondesse, Corby daria cabo dele. Kimmel adorava imaginar-se a apertar a garganta de Corby, para o que uma das mãos seria suficiente. Se alguma vez o fizesse, iria até às últimas consequências, mesmo que Corby se debatesse e o agredisse. Talvez o chegasse a fazer ainda hoje. Essa ideia enchia-o de prazer. Também havia a hipótese de cravar a navalha na parte de trás do pescoço de Corby, quando este fosse a sair. O mais natural, no entanto, era acabar encolhido no meio do chão, como sempre, tremendo de medo.
- Não acha que o que se está a passar com Stackhouse é interessante? Parece que o caso não o prejudicou mesmo nada... disse Corby, abrindo e fechando a navalha.
Nas mãos de Corby, aquele som familiar, produzido pelo abrir e fechar da navalha, parecia hediondo. - Já lhe disse que isso não me interessa absolutamente nada!
- Quando é que tem os óculos prontos? - perguntou Corby com indiferença.
Kimmel ficou mudo. A despesa dos óculos que Corby partira já ia em 260 dólares.
Corby levantou-se. - Vê-lo-ei em breve, Kimmel. Se calhar, é já amanhã. - Corby saiu da sala.
- A minha navalha! - exclamou Kimmel, seguindo-o.
Já à porta, Corby voltou-se e entregou-lha. - Que seria de si sem isto?
Na noite seguinte, Kimmel meteu-se no carro e dirigiu-se para Benedict, em Long Island. Primeiro passou por Hoboken, conseguindo apanhar um ferry-boat que estava prestes a partir. Ao chegar a Manhattan, meteu por uma série de ruas que conduziam à zona ocidental e desceu a Park Avenue antes de curvar para este, em direcção ao Túnel Midtown, a fim de tentar despistar o agente que Corby incumbira de o seguir desde sua casa. Sentia-se tão irritado por estar a ser perseguido como quando Corby o insultava durante os interrogatórios. Sempre que reconhecia o seu perseguidor, e isso era frequente, embora Corby estivesse constantemente a mudar o seu auxiliar, a caminho da loja, ou quando ia às compras, Kimmel ficava furioso, sentia-se embaraçado, embora, ao mesmo tempo, uma onda de dignidade se apoderasse dele, confundindo-o e evitando que ele fosse capaz de fazer mal ao homem. Às vezes, num impulso assassino, sentia-se dominado por uma vontade diabólica de pôr termo à vida daquele infeliz pelas suas próprias mãos. Descontrolado, era capaz de o esmagar, como faria a um simples mosquito. Na noite em que fora a Benedict não tinha visto imediatamente o seu perseguidor, mas tinha conseguido imaginá-lo, mesmo depois de se certificar de que estava a ser perseguido. Isto bastou para ficar intratável. Nesse dia, Kimmel sentia-se muito indisposto.
Tinha arranjado um mapa, mas este não era suficientemente pormenorizado, pois não tinha incluída a Rua Marlborough de Benedict. Kimmel parou numa confeitaria, nos arredores da cidade, para perguntar onde ficava a rua. O homem com quem falou sabia onde ela ficava, mas parecia pouco disposto a informá-lo. Pelo menos foi essa a ideia com que Kimmel ficou. As saladas de batata, os canapés e as salsichas guardadas atrás do vidro do balcão tinham um aspecto fresco e apetecível, mas Kimmel acabou por não comprar nada, pois não tinha apetite.
Kimmel estacionou o carro na rua principal, perto do cruzamento que dava acesso à Rua Marlborough. Trancou as portas e começou a andar. Era uma rua escura e suja, apenas com duas ou três casas. Por mais que se esforçasse, não conseguia ver os números. Resolveu acender a lanterna de bolso e leu os nomes nas caixas do correio até ao cimo da rua. Nenhum dos nomes era o de Stackhouse e Kimmel prosseguiu até chegar a uma casa branca, situada no meio de um arvoredo. Olhou para trás, mas não viu nenhum carro, nem ouviu qualquer som. Aproximou-se da caixa do correio e incidiu a luz da lanterna sobre ela. W. P. Stackhouse. Não havia luz em nenhuma das janelas. Kimmel olhou para o relógio. Eram ainda 9.33. Era provável que Stackhouse, nessa noite, tivesse saído com um dos seus leais amigos. Mesmo assim, Kimmel aproximou-se cautelosamente da casa, atravessando o relvado em bicos de pés. O seu corpanzil fazia-o balancear, e, no entanto, tinha um ar menos grosseiro do que quando andava normalmente. Inclinou-se vagarosamente, para evitar tocar nas latadas, e continuou a rodear a casa. Estava tudo às escuras.
Kimmel voltou a deter-se em frente da porta principal. Hesitou entre tocar ou não à campainha. Seria agradável irritar Stackhouse, começar a aborrecê-lo e ameaçá-lo fisicamente com violência. Stackhouse não estava ainda suficientemente amedrontado. Agora, que Kimmel tinha despistado o seu perseguidor, podia matar Stackhouse nessa mesma noite. Já nem se preocupava com o álibi. Não deixaria rasto. Voltaria a mentir, se fosse necessário. Kimmel estremeceu só de pensar que iria estrangular Stackhouse e, de repente, apercebeu-se do local onde se encontrava. Stackhouse poderia vê-lo sob a luz fraca dos candeeiros da rua. Teve consciência de que tinha ido ali nessa noite apenas para satisfazer a sua curiosidade: ver onde Stackhouse morava. Provavelmente nem se encontrava em casa. Deveria dar-se por feliz por Stackhouse estar ausente, pois assim tinha oportunidade de observar melhor a casa.
Vagarosamente, dirigiu-se para a porta, apontou a lanterna para a parte de cima do vidro e espreitou. A luz reflectiu-se no chão brilhante do hall vazio. O hall parecia completamente vazio, embora a luz não o abrangesse na totalidade. Viu uma janela no rés-do-chão de um dos lados da casa. Apontou a lanterna e a luz incidiu na parede branca e no chão vazio. As janelas não tinham cortinas. Kimmel receou que Stackhouse se tivesse mudado. Num acesso súbito de irritação, voltou rapidamente à porta de entrada.
Tocou a campainha, que soou harmoniosamente. Aguardou e voltou a premir o botão. Sentia-se furioso. Afinal fizera aquela longa viagem em vão. Stackhouse tinha-o ludibriado. Sentia-se tão decepcionado como se Stackhouse se tivesse evaporado, com tudo o que possuía, apenas cinco minutos antes de ele ter chegado. Kimmel encostou-se à campainha, pressionando-a ininterruptamente e enchendo aquela casa vazia e escura com o eco do seu som banal. Deteve-se apenas quando o polegar lhe começou a doer. Voltou-se então, amaldiçoando Stackhouse.
Tinha de o ver e ninguém o poderia impedir de o fazer, nem mesmo o seu perseguidor. No escritório onde Stackhouse trabalhara teriam todo o prazer em dar-lhe a morada do seu novo escritório. Já imaginava a cara de Stackhouse quando o visse ao fundo das escadas, à sua espera, pronto a segui-lo até à sua casa. Naturalmente, Stackhouse ficaria receoso. Kimmel sentia isso desde o dia em que, pela primeira vez, Stackhouse fora à sua loja. Queria meter-lhe medo, custasse o que custasse, e depois talvez o matasse, numa noite como aquela, algures. «Realmente é uma pena que Stackhouse não esteja cá esta noite», pensou Kimmel. «Ao menos ficava já tudo resolvido de uma vez para sempre!»
Repentinamente, Kimmel afastou-se da porta, atravessou o relvado, com a cabeça erguida, numa atitude de indiferença, e com os braços pendentes a balouçarem. Aquela casa correspondia exactamente ao que Kimmel imaginara: era ampla, luxuosa, excessivamente cara, sem no entanto, ser demasiado ostensiva. Stackhouse era na realidade um indivíduo com bom gosto, muito convencido dos seus direitos, escudado pelo dinheiro, pela classe social e pela sua aparência anglo-saxónica. Kimmel deteve-se ao pé de um salgueiro, à beira da rua, e urinou.
Walter agarrou no telefone. - Está lá?
- Está? É o Sr. Stackhouse?
- Sim. - Walter olhou para o homem que aguardava junto à porta.
-Daqui fala Melchior Kimmel. Gostaria de me encontrar consigo. É possível marcarmos um encontro para esta semana?
Walter desejava que o homem se fosse embora. Já tinham acabado a conversa, mas ele continuava à espera, observando-o.
- Esta semana não me é possível.
- É muito importante - disse Kimmel, num acesso de fúria.
- Temos de nos encontrar uma destas tardes, senão eu...
Walter pousou o telefone com cuidado, interrompendo a voz de Kimmel, e levantou-se, aproximando-se do homem que estava junto à porta. - Talvez seja possível apresentar o caso no tribunal no princípio da próxima semana. Entrarei em contacto consigo logo que esteja alguma coisa assente.
O homem olhou para ele um pouco incrédulo. - Costuma-se dizer que é melhor não entrar em conflito com os senhorios. Todos me diziam para o não fazer.
- É para isso que eu aqui estou. Vamos tentar e vai ver que conseguiremos uma vitória - disse Walter, abrindo a porta.
O homem acenou afirmativamente. A suspeita que Walter imaginava ter visto no rosto dele era apenas apreensão. O homem duvidava de que conseguisse recuperar os 225 dólares em excesso que tinha pago ao senhorio nos últimos oito meses. Walter observou-o a atravessar o hall e a dirigir-se para o elevador. Depois voltou a entrar no escritório.
Olhou fixamente para os dois impressos que se encontravam em cima da sua secretária. Um, relativo ao caso do senhorio, e o outro, respeitante a uma detenção injustificável por excesso de álcool. E era tudo. Agora o escritório estava em pleno silêncio. O próprio telefone estava silencioso. «Também só ainda aqui estou há oito dias!...», pensou ele. Não se podia esperar que em tão pouco tempo o escritório abarrotasse de clientes. Ou, então, também se poderia ter dado o caso de ter vindo, ou telefonado, alguém quando teve de ir à biblioteca duas manhãs seguidas. «Se calhar telefonou algum finalista para preencher a vaga. O melhor que tenho a fazer é voltar a anunciar. Desta feita, talvez mande pôr um anúncio maior que o anterior.»
Olhou para o jornal dobrado num dos cantos da secretária e pensou na coluna dos mexericos. «Que raio de título: CASA ASSOMBRADA», pensou Walter, olhando para o artigo: «O mistério que envolveu a morte da mulher de um jovem advogado, que será eventualmente culpado, continua por desvendar. Imperturbável, pelo menos aparentemente, este estabeleceu-se por conta própria em Manhattan. Será que o número de clientes que procuram o seu escritório é tão numeroso quanto o número de pessoas que acorre à sua mansão, em Long Island, posta à venda? Alguns habitantes locais dizem que a casa está assombrada...»
Não era possível ter feito melhor; quanto mais publicidade fizessem sobre o caso mais lucros poderia ele ter. Walter sorriu, ouvindo os passos de alguém que se afastava. Esperava que fosse o carteiro. Estava ansioso por saber que surpresas lhe traria o correio da manhã.
«Não me digam que o Kimmel vai tentar novamente sacar-me dinheiro!? Ou... E se o tipo tem ideias de me matar? O que é que o Corby andará a fazer? Há uma semana que na”o dá sinal de vida. Será que ele e o Kimmel andam a tramar alguma?» Walter tentava encontrar uma resposta para todas estas perguntas, mas não conseguia. Sentia-se demasiado cansado para organizar as ideias. Levantou-se, como se o movimento o pudesse ajudar, e começou a andar à volta da secretária.
Voltando-se, Walter reparou num monte de cartas debaixo da porta. Aproximou-se e pegou-lhes. Eram quatro envelopes. Agarrou no maior, cujo endereço estava escrito à máquina. Era uma carta enviada por um estudante, Stanley Utter. Tinha
22 anos e frequentava o 3.° ano da Faculdade de Direito. Dizia estar interessado no lugar, pois achava que seria uma experiência positiva para a sua futura especialização em código penal. Pedia que Walter marcasse um encontro com ele e que telefonaria nos dias mais próximos. Era uma carta formal, cheia de deferência, e Walter sentiu-se tão tocado como se tivesse recebido uma carta de um amigo muito íntimo. Talvez Stanley Utter fosse exactamente o tipo de pessoa que ele procurava. Walter pôs de parte um envelope que mais parecia um anúncio e abriu a carta, que trazia como remetente Cross, Martinson e Buchman.
Caro Walt,
Acho que devo advertir-te de que o Cross anda a fazer tudo para te irradiar da Ordem dos Advogados. Penso, no entanto, que não é preciso preocupares-te, pois ele não o conseguirá fazer, a menos que se prove que és realmente o culpado. Mas, entretanto, Cross pode dar-te cabo da reputação, o que seria nocivo para o teu escritório. Não sei que conselho te deva dar, mas senti necessidade de te pôr a par do assunto.
Dick
Walter dobrou a carta e rasgou-a imediatamente a seguir. Já estava à espera daquilo. Ainda havia de ter mais algumas surpresas daquelas. «A única consolação que me resta é que, oficialmente, não me podem proibir de exercer. A única possibilidade é arrastarem-me o nome na lama.»
«E se lhes desse mais uma oportunidade?»
Walter deu uma gargalhada nervosa, estremecendo os ombros. Continuava a deambular pela sala, receoso e envergonhado. De olhos postos no chão, observou os tons verde e vermelho-vivo que decoravam a alcatifa.
A sala parecia estar à espera. Os dois sofás, encostados à parede, esperavam, a cama vazia, o relógio de bronze, que já não funcionava, estavam também à sua espera. Tudo esperava, excepto Jeff, que dormitava num dos cadeirões, como costumava fazer na casa de Long Island.
E Ellie, Jon, Dick, Cliff, os Iretons e os McLintoks... Também deveriam estar à espera de que algo acontecesse, de que ele admitisse ter finalmente sido apanhado.
- Como te sentes, Walt? - Bill Ireton tinha-lhe feito esta pergunta três dias antes. - Bem, um destes dias vamos fazer-te uma visita. - Walter estremecera ao ouvir estas palavras vazias, horríveis, que apenas denotavam curiosidade e hipocrisia brotando da insensibilidade material do telefone. Perguntava a si próprio se Bill teria já satisfeito plenamente a sua curiosidade, ou.se voltaria à carga.
Estava de pé, a olhar para Jeff, tentando lembrar-se se lhe tinha preparado algo para comer nessa noite. Porém, não conseguia recordar-se. Encaminhou-se para a pequena cozinha, ’abriu o frigorífico e os seus olhos detiveram-se na lata quase vazia de comida de cão. Mesmo assim não se conseguiu lembrar. Acabou por despejar um pouco do conteúdo da lata num tacho, aqueceu-o e levou-o até Jeff. Ficou entretido a vê-lo comer.
Pensou que deveria sair para pôr no correio a carta que tinha escrito a Stanley Utter. Acabara de escrever o endereço e pusera-a em cima da mesa da sala.
Apetecia-lhe telefonar a Jon. Não que estivesse à espera de alguma coisa, mas apenas para lhe dizer o que até então não tinha sido capaz. Na semana anterior telefonara-lhe para lhe pedir desculpa por ter desligado quando este lhe falara para Long Island. Porém, Jon não ficara sentido com o facto e Walter pôde verificar isso pelo seu tom de voz, calmo e compreensivo; exactamente o mesmo tom que Walter notara no dia em que ele lhe telefonara de fora: «Quando estiveres mais calmo, talvez então possamos conversar, Walt.» «Já estou calmo, e por isso mesmo te telefonei.» Tinha estado quase a pedir-lhe que fosse ter com ele, quando Jon afirmou: «Se tu deixasses de te acobardar e encarasses os factos de frente, sejam eles quais forem...» Nessa altura Walter apercebeu-se de que tudo se mantinha, que ele era realmente um cobarde por não querer enfrentar a realidade. Receava que Jon não acreditasse nele mesmo que pusesse a nu toda a verdade. Todos duvidavam dele. «O melhor é deixar andar.» Estas foram as únicas palavras que Walter fora capaz de pronunciar. Se assim o disse, melhor o fez. Desligou e Jon não voltou a telefonar-lhe.
«Conta-me, em pormenor, o que aconteceu, Walt. Se não o fizeres, não se conseguirá desvendar o mistério...» Estas foram algumas das palavras que Jon incluíra numa carta que lhe tinha enviado na semana anterior.
«É claro que isto continuará indefinidamente, a menos que você se decida a Confessar», dissera Corby.
Ellie fora mais peremptória: «O que não posso perdoar-te são as mentiras... posso dizer-te que já suspeitava de ti.»
Queria mesmo telefonar a Jon. Diria: «Fui suspenso. Estou mesmo tramado. Olha para mim! Podes contemplar à vontade. Todos vocês estão de parabéns! Finalmente conseguiram àquilo que tanto ansiavam; estou liquidado!»
Que seria dele?
«Estás um farrapo!», pensou Walter. Sentia o mesmo que quando estava com Clara, em Benedict, em casa de alguém conhecido, com uma ”bebida nas mãos e questionando-se sobre a sua presença ali, sobre o que queria da vida e porquê. Nunca conseguira obter uma resposta.
Voltou a olhar para Jeff que estava enroscado no cadeirão. «Amo-te, Clara», pensou ele. Seria verdade? Um farrapo teria por ventura capacidade de amar? Isso não fazia sentido. Mas o que é que fazia sentido no meio disto tudo? Desejava que Clara pudesse estar ali junto dele. Este era, aliás, o único desejo que Walter sentia veementemente, o que nem sequer fazia sentido.
Walter tirou o sobretudo do armário, vestiu-o à pressa, mas reparou que não tinha vestido o casaco. Não lhe apetecia voltar a tirar o sobretudo e deixou-se ficar. Enrolou um cachecol de lã à volta do pescoço. Lembrara-se subitamente de que a noite estava muito fria. Os seus gestos e pensamentos surgiam mecanicamente. Agarrou na carta dirigida a Stanley Utter e pô-la no bolso.
Caminhou na direcção oeste para o Central Park. No meio da escuridão descortinou uma massa compacta de árvores, semelhante a um abrigo, no meio da selva. Tentou descobrir um marco do correio, mas não viu nenhum ali perto. Empurrou a carta mais para dentro do bolso e enfiou as mãos nos bolsos, pois não tinha trazido luvas.
«Se o parque fosse realmente uma selva, continuaria a embrenhar-me por ele adentro para que ninguém me pudesse encontrar. Caminharia até desfalecer. Ninguém conseguiria encontrar o meu corpo. Desapareceria completamente como que por magia. Qual será a melhor forma de uma pessoa se matar sem deixar rasto? Ah!... Ácido, ou então uma explosão», pensou Walter. Lembrava-se ainda do sonho que tivera uns meses atrás, no qual a ponte explodira quando ele e Ellie se propunham atravessá-la. Agora parecia-lhe tão real como se tudo tivesse acontecido.
Finalmente, entrou no parque. À sua frente estendia-se um carreiro iluminado pela luz ténue de um candeeiro. O chão era acimentado. O carreiro desembocava num pequeno largo, onde convergiam vários outros carreiros. Estava tanto frio que provavelmente o parque estaria deserto. Alguns passos adiante deparou-se-lhe um casal sentado num banco, entre os arbustos, abraçados um ao outro e a beijarem-se. Walter saiu do carreiro e começou a subir uma pequena elevação.
No meio da escuridão não reparou e tropeçou numa pedra. Os pequenos ramos de um arbusto prenderam-se-lhe nas dobras das calças. Endireitou-se e prosseguiu a passos largos. Não pensava em coisa alguma. Sentia um enorme vazio dentro de si. Apesar disso, a sensação era-lhe agradável e deixou-se ficar. «Estou a pensar no facto de não estar a pensar em coisa alguma.» Seria isso possível? Ele não estaria a pensar em todas as pessoas e em todos os acontecimentos que neste momento tentava excluir da memória? E, estando ele a pensar em excluir algo, isso não significava já estar a pensar?
Imaginou ouvir a voz de Ellie confessando-lhe claramente: «Amo-te, Walter.» Walter deteve-se subitamente à escuta. Quantas vezes lhe tinha ela dito isso? Teria essa frase algum significado? Dito por ela não parecia ser tão convincente como na boca de Clara, apesar de Ellie o ter afirmado com sinceridade. Pôs-se novamente a caminho, mas, quase a seguir, voltou a parar e olhou para trás.
Tinha ouvido o som de um sapato chocando contra uma pedra.
Tentou penetrar na escuridão da noite que se estendia à sua frente. Não ouviu mais nada. Tentou descobrir outro carreiro. Não sabia onde estava. Continuou em frente. Talvez o som tivesse sido imaginação sua. Por momentos sentira um medo absurdo, imaginando Kimmel, atrás de si, furioso, olhando para ele fixamente. Os seus passos eram agora vagarosos e curtos. O pavimento tinha um declive.
Um pequeno ramo estalou atrás de si.
Walter caminhava em passos ritmados e viu-se obrigado a saltar por cima de uma pedra existente no carreiro. Correu precipitadamente para a sombra de um chorão. O local estava mal iluminado. A pouca claridade provinha de um candeeiro situado a alguns metros dali, mas Walter conseguiu distinguir a pedra que se tinha visto obrigado a saltar momentos antes e a pequena rampa que se estendia para lá do carreiro.
Ouvia agora distintamente passos. Desta feita não era sugestão.
Viu Kimmel aparecer no cimo da rampa, olhando à sua volta, descendo depois pelo declive. Walter viu Kimmel a olhar em ambas as direcções do carreiro e, seguidamente, caminhar na sua direcção. Walter estava agachado no declive da rampa. O carão de Kimmel virava-se ora para a esquerda, ora para a direita, à medida que avançava. A posição da sua mão direita era muito estranha, tal como se estivesse a agarrar numa navalha aberta cuja lâmina mantinha escondida na manga do casaco. Walter olhou fixamente para a mão, tentando descobrir alguma coisa, quando Kimmel passou por ele.
«Kimmel deve-me ter seguido desde que saí do apartamento», pensava Walter, «deve ter estado a observar o meu prédio.»
Walter ficou à espera, imóvel, até que Kimmel estivesse demasiadamente longe para poder ouvir os seus passos. Depois saltou para o carreiro e caminhou na direcção oposta. Deu alguns passos antes de se virar para trás. Mal o fez, Kimmel voltou-se. Walter podia agora vê-lo distintamente sob a luz do candeeiro. Receou que Kimmel o tivesse visto, pois este vinha na sua direcção.
Walter desatou a correr. Corria tão desaustinadamente como se tivesse entrado em pânico, mas o seu espírito parecia estar calmo; raciocinava logicamente. Perguntava-se: «De que é que estás a fugir? Não querias uma oportunidade para te defrontares com Kimmel? Aí a tens!» Os pensamentos sucediam-se desordenadamente. «Provavelmente Kimmel nem me viu, pois eu estava fora do seu ângulo de visão.» Agora Kimmel corria. Walter conseguia ouvir perfeitamente os seus passos pesados, batendo no chão de cimento por onde ele pouco antes tinha passado.
Walter sentia-se atarantado. Não sabia onde é que Kimmel poderia estar, de que lado surgiria. Olhou para a escuridão, tentando descobrir um ponto de referência para se poder orientar, pois ele próprio perdera a noção de espaço. Não havia nada em redor. Subiu uma encosta, agarrando-se aos arbustos para não escorregar. Queria esconder-se e, ao mesmo tempo, tentar descobrir uma saída do parque sem ser visto. Ofegante, Walter deteve-se, à escuta.
Em baixo, Kimmel passou a correr pelo carreiro. Walter viu-o. Era uma gigantesca sombra, movendo-se entre os ramos despidos das árvores. Walter esperou três ou quatro minutos depois de ele ter passado e começou a descer o declive. Agora sentia mais dificuldade em respirar do que quando fugira, correndo.
A certa altura ouviu Kímmel, que voltava para trás. Walter estava já quase ao fundo do declive. Agarrou-se ao ramo de uma árvore, pois os sapatos escorregavam em contacto com a erva húmida. Escutava com atenção os passos que se aproximavam na sua direcção. Kimmel estava apenas a alguns passos dele e Walter não tinha hipótese alguma de fuga, nem uma sombra que ocultasse a sua presença. Se voltasse a subir, Kimmel vê-lo-ia ou, pelo menos, ouviria os seus passos. Walter praguejou: «Porque é que o tipo não continuou a subir a encosta?» Estava cada vez mais tenso, pronto a saltar sobre Kimmel. Quando viu o vulto que se movia em baixo, mesmo à sua frente, saltou.
Com o impacte do choque desequilibraram-se ambos e caíram pesadamente no chão.
Walter agrediu-o com toda a força. Com os joelhos fincados sobre o peito dele, desferiu-lhe um murro na cara e pôs-lhe as mãos à volta do pescoço, apertando-o furiosamente. Estava senhor da situação. Sentia-se extremamente forte. Os seus braços eram possantes como duas tenazes e os dedos comprimiam a garganta de Kimmel como balas. Walter ergueu-lhe a cabeça e bateu com ela no pavimento, várias vezes, até que os braços lhe começaram a doer e os movimentos se tornaram mais lentos. Sentiu uma dor tão aguda no peito, que tinha dificuldade em respirar. Atirou a cabeça de Kimmel pela última vez contra o chão e ergueu-se, arfando. Parecia estar possesso.
Ouviu passos e voltou-se, preparado para correr. Ficou petrificado, quando viu que a enorme figura que se aproximava dele era... Kimmel, por mais inverosímil que parecesse!
O terror desabou então sobre Walter. Deu um passo à retaguarda, mas não conseguiu correr. As pernas não respondiam aos seus impulsos. Kimmel continuava a aproximar-se com a mão direita levantada, pronto a agredi-lo.
Kimmel deixou cair o braço pesadamente contra a cabeça de Walter e este rolou no chão. Os joelhos do homem que jazia morto pareciam penetrar-lhe nas costas e Walter moveu-se, tentando esquivar-se. Kimmel, porém, atirou-se sobre ele, sem lhe dar qualquer hipótese de fuga, e agarrou-o. Walter teve a sensação de que uma montanha se abatera sobre ele.
- Idiota! - vociferou Kimmel. - Assassino!
O punho de Kimmel atingiu Walter em cheio no queixo. No ar frio, Walter sentiu o cheiro bafiento, adocicado e repelente da loja de Kimmel, que estava impregnado nas suas roupas. Walter debatia-se em vão, sentindo os dedos de Kimmel comprimindo-se como garras à volta do seu pescoço. Tentou gritar, mas a mão direita de Kimmel ergueu-se e Walter sentiu uma lâmina espetar-se-lhe na garganta. Antes que se pudesse recompor, a lâmina voltou a atingi-lo como um raio, desta feita no queixo. Sentiu a navalha a roçar-lhe nos dentes. A dor violenta provocada pela facada que Kimmel lhe desferira na garganta, depressa se estendeu ao peito. Sentia-se desfalecer. Um frio intenso gelava-lhe a testa. Ouviu um rugido junto ao ouvido como um trovão. A morte estava iminente e a voz de Kimmel parecia atraí-la. Os insultos sucederam-se: «Assassino! Idiota! Desastrado!» Até que as palavras começaram a tornar-se menos consistentes aos seus ouvidos. Perdera a força, a vontade de lutar. Parecia-lhe estar a planar como uma ave e, de repente, viu aquela janela azul que já anteriormente vira, quando estivera com Ellie pela última vez. Era uma janela brilhante que deixava passar o sol, mas tão pequena e tão distante que era impossível alcançá-la. Viu Clara voltar-se para ele e sorrir-lhe. Foi um sorriso rápido, carinhoso, semelhante àquele com que ela o saudou no dia em que o conheceu. «Amo-te, Clara.» As suas palavras soaram-lhe como algo que se esvanecia. Então, a dor começou a ser cada vez mais fraca, mais compassada, como se todas as dores do mundo se escapassem por uma peneira, deixando-o vazio e agradavelmente leve.
Kimmel levantou-se, olhando à sua volta, apertando entre as mãos a navalha fechada e tentando ouvir algum som para além do seu respirar ofegante. Olhando para o meio da escuridão, começou a caminhar sem rumo definido; não sabia para onde se dirigir. Queria apenas permanecer no escuro. Sentia-se extremamente cansado, mas satisfeito,. tal como se tinha sentido depois de ter morto Helen. Não se esquecera dos últimos momentos em que pusera termo à vida da mulher. Pouco a pouco recuperou a respiração, continuando à escuta, embora agora tivesse a certeza de que não havia ninguém nas imediações.
«Dois cadáveres!» Kimmel quase deu uma gargalhada. Era realmente uma ironia do destino! «Ficavam mesmo bem, um ao lado do outro!»
Stackhouse já estava! O inimigo número um! Seguia-sé Corby. Kimmel sentiu uma onda de ódio a apoderar-se de si e pensou que, se Corby ali estivesse naquele momento, seria a sua oportunidade de também acabar com ele.
Kimmel reparou que havia luz nas janelas do prédio em frente.
- Kimmel?
Kimmel voltou-se e viu, alguns metros à sua frente, um homem empunhando um revólver. O homem aproximou-se. Kimmel estava imóvel. Nunca tinha visto aquele homem, mas sabia que era alguém enviado por Corby. Ficou estarrecido. Nos momentos em que o homem demorou a chegar até junto de si, Kimmel sabia que seria incapaz de dar um passo, não porque tivesse medo do revólver ou da morte. Era algo mais profundo que remontava à sua infância. Era um terror indefinido, terror do poder organizado, da autoridade. Agora Kimmel compreendia aquilo que, aliás, já estivera perante si em tantas situações e teve consciência de que, apesar do terror, tinha forçosamente de atacar. Mas desta vez sentia-se tão impotente como de todas as outras. As suas mãos ergueram-se automaticamente. Kimmel sentia-se descontrolado, incapaz de fazer alguma coisa, e isso irritava-o, mas, quando viu o homem à que frente, ameaçando-o com o revólver e obrigando-o a voltar-se e a andar, obedeceu com calma, embora despido de qualquer tipo de temor. Kimmel pensou: «Desta não me safo eu! Vou morrer!» Apesar de tudo, não tinha medo disso. Parecia não ter a noção do que lhe estava a acontecer. Sentia-se envergonhado de estar tão perto daquele homem insignificante que caminhava a seu lado e mais envergonhado ainda por este ser um estranho.
Patrícia Highsmith
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