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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


INOCENTE FEITICEIRA / Hannah Howell
INOCENTE FEITICEIRA / Hannah Howell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Costa noroeste da Escócia, agosto de 1400

— Minha ousadia não merece um sorriso seu, bela jovem?

Moira relanceou o olhar ao homem que se dirigia a ela, sem pedir licença. Andava espreitando-a desde que subira ao navio, três dias antes. A perversa Annie, sua guardiã, havia resmungado algo contra o cavalhei­ro e prevenido Moira de que deveria evitá-lo. O que não era fácil, numa embarcação relativamente peque­na e abarrotada.

Ele a inquietava com seus cabelos negros estriados por faixas grisalhas. A cintura, longe de ser fina, repuxava o gibão, e o casaco curto como era usado pelos homens em geral. Além disso, exibia uma cerrada bar­ba negra e, na cabeça, um chapéu de aba tão baixa que quase velava os olhos.

Tudo nele indicava uma pessoa além da meia-idade e pouco asseada. Contudo Moira notara alguns deta­lhes que contradiziam tal imagem. As mangas justas do rico gibão escuro revelavam braços fortes. A cal­ça preta, sugeria pernas longas e bem proporcionadas. A voz soava firme e profunda, como a de um jovem, e ele se movia com uma graça que desmentia tanto a possível maturidade quanto o excesso de peso.

Ao ser abordada, convenceu-se de que ele não era quem aparentava. Tal percepção apenas a tornou mais nervosa. Olhou ao redor, em busca de Annie, e ficou aborrecida ao ver a enrugada mulher conversando com um marinheiro igualmente envelhecido.

 

 

 

 

— Ela se cansará de repreender você e logo a dei­xará livre. — comentou o cavalheiro.

— Creio que vou me juntar a ela. — Moira suspirou com suavidade e foi tomada de espanto quando o ho­mem segurou-lhe a mão.

— Veja, senhorita, não acredito que queira arrui­nar a chance de a velha megera praticar um pouco de amor, certo?

Moira chocou-se com essas palavras. A idéia de Annie fazendo amor era quase tão perturbadora quan­to o toque forçado daquele estranho. Ele começou a rir, depois franziu a testa. Parecia perceber o temor que ela tentava esconder. A preceptora a havia ensinado a ter medo dos homens. Era injusto, mas no momento em que o estranho prendeu-lhe a mão, ela teve vontade de desferir um tapa como reação.

— Ah, minha pobre criança, você nada tem a temer do velho George Fraser.

Desagradou-a ser chamada de criança. Por isso, livrou seus dedos com um puxão.

— Uma criança, sr. Fraser, há de ficar preocupa­da quando um homem com o triplo da idade dela lhe pega na mão.

— O triplo da idade?— George respirou, esticou a frente do gibão sobre a cintura e por fim deu de om­bros. — O avanço dos anos não me impede de apreciar a visão de uma bela mulher.

— Talvez sua esposa goste dessa atitude.

— Gostaria, sem dúvida, mas ela já não está entre nós. — Ele soluçou dramaticamente, apoiando-se na amurada do convés. — Há três anos, uma febre levou minha santificada Margaret.

— Oh, lamento muito. — Moira tocou o braço de George com instintiva compaixão, e assim sentiu como era rija a musculatura dele. — Não foi minha intenção suscitar lembranças tristes.

— Tire seus olhos dessa moça — interveio Annie, retirando a mão dela do braço masculino, no momento em que George fazia menção de cobri-la com os pró­prios dedos.

— Estávamos falando da esposa do sr. Fraser — protestou Moira, determinada a libertar-se da mão de sua guardiã, que agora lhe pressionava o pulso.

— Bem, ela deve ser muito paciente, para suportar esse libidinoso patife.

— Annie! — Moira corou. — A mulher dele morreu!

— Claro, caiu doente por causa das traições do marido. — Annie não abrandou sua desfaçatez.

— Sinto muito, senhor — Moira desculpou-se em nome de sua aia, após notar o ar sombrio de George.

— Agora vamos. — Annie empurrou-a de leve, a fim de afastá-la do galanteador, e continuou com uma das mãos às suas costas enquanto ruma­vam para a cabine que ocupavam no navio. — Você não quer que sir Bernard a veja falando com um desconhecido, quer?

A insinuação causou um calafrio em Moira.

— É verdade, não desejo isso de forma alguma.

Inclinado sobre a amurada, o homem, na verdade chamado Tavig MacAlpin, observou a cena. Verificou se ninguém o fitava e ajeitou o estofamento que lhe engrossava a cintura. Desde que pusera os olhos em Moira Robertson, seu disfarce como o idoso George Fraser se tornara uma maldição. No entanto, isso lhe salvara a vida. O prêmio oferecido por sua captura era polpudo o bastante para motivar qualquer caçador de recompensas. Felizmente, não havia ninguém desse feitio na modesta embarcação.

Ele tinha esperado três dias por uma chance de abordar Moira. Agora, ponderava por qual motivo agira assim. Examinara o corpo da moça com avidez, enquanto ela passeava no convés ao lado de sua gri­salha e feroz protetora. Os cabelos avermelhados de Moira, da cor do cobre, sempre estavam presos, mas alguns cachos caíam livremente e emolduravam seu rosto oval. Nos alegres momentos em que conseguia espiá-la de perto, ele maravilhava-se com a sucessão de sardas que coloriam a pele alva e aveludada.

Podia lembrar-se claramente do primeiro contato visual com os olhos de Moira. Havia esperado ver íris castanhas, ou verdes, mas nunca o impressionante azul que ela ostentava, debaixo de longos cílios negros. Olhos azuis e grandes, ele sorriu ao recordar-se, admi­tindo que faria de tudo para vê-los mais vezes.

Um riso breve lhe escapou. Talvez a impressão deixada pela face dela fosse tão marcante porque não existia muito mais a admirar em Moira. Era magra e, embora possuísse curvas de mulher, estas se mostra­vam discretas também. Por certo, não correspondia ao seu ideal feminino, e mesmo assim havia lhe captura­do a atenção.

Deplorou o medo que acendera naqueles lindos olhos, ao tocá-la. Depois, o temor dela crescera quando Annie mencionara o nome de seu tio e legítimo tutor, sir Bernard Robertson, um detestável aproveitador.

Embora Bernard ainda não tivesse castigado Moira, durante a viagem, Tavig sabia que tal possibilidade existia, graças à espionagem de Annie. Esperava estar a uma distância segura, junto a seu primo Mungan, quando isso ocorresse. Do contrário, sair em defesa de Moira e lutar com uma pessoa do tamanho de Bernard desvendaria seu disfarce, o que significava ser arras­tado de volta até os domínios de seu insidioso primo Iver, onde aguardaria a hora da execução por enforca­mento, em virtude de crimes que não cometera.

Arrepiado, Tavig praguejou e esticou o casaco em volta de si. Olhou para o céu e percebeu que, mistu­rados às usuais nuvens vespertinas, indícios de uma tempestade noturna se faziam presentes. Mais um xingamento, mais um calafrio provocado pelo vento no convés. O tardio temporal de verão o levaria de vol­ta à cabine que dividia com outros três passageiros, para seu absoluto desconforto, somado ao medo de ser desmascarado. A chuva poria em perigo sua pre­cária fantasia de velho obeso, e ele prometeu a si mesmo ficar alerta aos primeiros pingos.

 

Uma pressão no peito despertou Moira de seus so­nhos. Abriu os olhos e conteve um grito. À luz fraca do lampião que oscilava no teto da cabine coletiva, ela descobriu que não Annie, mas seu guarda-costas, o ex-soldado Connor, é que se instalara no mesmo col­chão. Por segundos, manteve-se quieta, mal respirando, até concluir que Connor estava bêbado demais para representar qualquer ameaça a sua virtude. Ganhou um mínimo de distância do corpo dele e a repulsa inicial deu lugar à irritação.

Considerou seriamente a hipótese de dormir no chão do aposento repleto, mas bastou um olhar às pessoas ali acomodadas para desistir. Elas cheiravam a vinho e suor, tal como Connor. Recostou-se na parede do beliche e amaldiçoou a viagem repentina e o navio precário.

O pedido de resgate para sua prima Una havia chegado na semana anterior. Connor poderia ter es­colhido uma rota de socorro por terra, de carruagem. Os buracos das estradas seriam menos desconfortá­veis do que um navio sem cabines individuais.

Aliás, a embarcação agora balançava com intensi­dade e Moira segurou-se no colchão de palha a fim de não deslizar sobre Connor, que roncava. Algo an­dava errado. O frágil navio, pelo que se dizia, já havia vencido mares revoltos. No entanto, o ruído de chu­va e vento feriu-lhe os sentidos, intensificando seus receios.

Ansiou pela companhia de Annie, mas ela não se achava na cabine. Provavelmente, dava continuidade ao flerte com o marinheiro que conhecera no convés. Resolvida a encontrá-la, abraçou a saia rodada com a mão e saltou ao piso. Com o balanço do navio, caiu por cima das pessoas ali amontoadas. Embora nin­guém reclamasse ou lhe desse atenção, ela ficou tensa, pois pretendia cruzar a porta sem ser notada. Do contrário, teria de confrontar-se com seu protetor, Bernard.

Uma vez no convés, movendo-se junto à parede para escapar da chuva, Moira passeou o olhar pela passagem estreita. Annie, refletiu, poderia estar se­gura na cabine do marujo, mas logo ela descartou a idéia. O homem que a criada vinha cobiçando certa­mente não possuiria um quarto privativo. Restava-lhe, então, examinar o convés encharcado.

Para isso, subiu um degrau de acesso, e novamente o movimento brusco da embarcação a desequilibrou, prensando-a contra a parede dura da passagem.

Tentou de novo, ainda com dor nas costas. A chuva torrencial quase a fez desistir. Ela rilhou os dentes e firmou as passadas, segurando-se em qualquer coisa que visse à frente. Seria difícil deparar com Annie ali, no mínimo a aia teria improvisado um abrigo no con­vés, sozinha ou acompanhada.

Quem se encontrava ali era Tavig. Ele viu a figura pequena de Moira avançando sobre o soalho, debatendo-se contra o vento e a água. Praguejou. Passara a última hora tentando voltar à sua cabine, mas o comandante da embarcação, com tripulação reduzi­da, lhe pedira ajuda na busca a um marinheiro desa­parecido. Tavig achava que esse marujo devia estar a sós com Annie, em algum ninho ignorado. Sabia que seu disfarce como homem idoso e obeso derretia-se a cada pingo, o que poria todos os viajantes em risco, pois ele poderia sofrer uma tentativa de assassinato.

Também Moira se achava nessa condição. Tavig ha­via rezado para que a jovem não viesse atrás de sua prestimosa aia, pois só criaria problemas, e por culpa dele. Naquele momento, preferiu estar enganado em suas previsões, depois notou que Moira dobrava os joelhos e caía, sem conseguir firmar a mão na amurada. No mesmo instante, importou-se com a vida da moça, mais do que com a dele.

— O que faz aqui, minha jovem? — Ele inclinou-se e gritou para ser ouvido apesar da chuva, enquan­to ajudava Moira a levantar-se. — Até os marinheiros de serviço no convés deixaram seus postos e foram para a cama, no porão. Você deveria fazer o mesmo.

— E você, não?

— Ainda tenho de ajudar a fechar todas as escotilhas. — Tavig contemplou o céu negro, sentindo que o vento perdia força e a chuva diminuía. — Parece que a tempestade dará uma trégua.

— Isso é bom. Assim poderei achar Annie.

— Annie deve estar trocando suspiros com seu namorado...

A escuridão não ocultou o rubor manifesto nas faces de Moira.

— Talvez tenha razão — Moira encarou Tavig —, mas ela pode estar em perigo. Deveria ter volta­do à cabine assim que a tempestade começou. — Um golpe de vento forçou-a a agarrar-se no corrimão de madeira da amurada.

Tavig observou-a e procurou encontrar uma manei­ra de convencê-la a abrigar-se rapidamente. Pairava sobre ele a sensação de que se metera em problemas que não podia controlar ou resolver.

— Afaste-se desse corrimão — murmurou, tentan­do esconder seu desencanto.

Tensa, Moira franziu a testa molhada. Havia uma nota estranha na fala de George Fraser, e ela imaginou se o velhote era mais perigoso do que havia pensado.

— Farei isso, assim que o vento parar — respon­deu, ponderando se não seria melhor correr para longe de George.

— A ventania não vai cessar tão cedo — ele retru­cou. — Ao contrário, o temporal deve voltar e uma onda alta poderá envolvê-la. Saia já dessa maldita amurada!

Ao obedecer, com o fim de aplacar George, Moira percebeu algo inesperado: os cabelos dele já não ti­nham duas cores, e uma tintura cinzenta lhe escorria pelos ombros, onde os fios progressivamente negros se enrolavam nas pontas. Ficou assombrada. Em de­finitivo, o sr. Fraser não era quem aparentava ser. A curiosidade a dominou, dando-lhe vontade de tocá-lo na cabeça.

— Sua aparência parece estar sendo mudada pela chuva — disse.

— Antecipei que isso iria acontecer. Preciso me abrigar do temporal. — Ele segurou Moira com força, pelos ombros, trazendo-a para junto dele.

Uma voz sobrepôs-se ao ruído do aguaceiro.

— Então, foi por isso que desapareceu da cabine? Para oferecer-se a um desconhecido?

Surpresa e medo tomaram conta de Moira, ime­diatamente arrancada das mãos de George por seu tio e tutor, Bernard Robertson. A rudeza do gesto a fez agachar-se diante dele.

— Não, meu tio. Juro que vim ao convés à procura de Annie.

— Nos braços desse renegado? — Bernard a sacudiu vigorosamente. — Não acrescente a mentira ao pecado, jovem depravada.

O fidalgo armou um tapa visando o rosto de Moira, que se preparou para o golpe, relaxando todos os músculos. Por anos a fio, havia aprendido que essa providência amenizava a dor. Por isso, não gemeu quando a bofetada a deixou caída no chão ensopado. Protegeu a cabeça, temendo que o agressor estendesse o castigo.

Então, um som estranho interrompeu sua concen­tração. Não era um gemido de sua parte, e sim um barulho abafado de pura fúria, vindo de quem se apresentava como George Fraser. Já sentada no piso, ela ficou boquiaberta quando George avançou contra Bernard e deu um soco no queixo do homem maior e mais pesado do que ele, derrubando-o.

— Você é corajoso, Robertson, quando se trata de bater numa jovem frágil! — vociferou Tavig.

— Quem fala! — rebateu o fidalgo, colocando-se de pé. — Um homem que assedia uma jovem com metade de seus anos tem pouco direito a criticar os outros. Você é um velho tarado que tenta seduzir uma mocinha.

— Mesmo que essa acusação fosse verdadeira, ain­da sou melhor do que alguém que bate numa mulher.

Enraivecido, Bernard partiu contra George Fraser, com os punhos em riste. Ambos desabaram no con­vés e Moira gritou de angústia. Não sabia direito o que fazer, mas moveu-se na direção dos contendores, imaginando como parar a luta que inadvertidamente tinha causado.

— Não seja idiota — uma voz masculina a alcan­çou por trás. Ela olhou por sobre o ombro e deparou-se com seu primo Nicol.

— De onde veio? — Moira o interpelou, detendo-se.

— Segui meu pai quando ele saiu à sua procura. Pressenti que você estava fazendo algo muito errado, como insinuar-se para esse velho barbudo.

— Não me insinuei para ninguém, apenas procurava Annie, e o sr. Fraser me incentivou a voltar à cabine.

— Nunca deveria ter deixado o dormitório — Nicol rebateu, aborrecido. — Olhe, a barriga de seu pretenso amigo murchou.

Sem entender, Moira observou os combatentes próximos, que tentavam agarrar um ao outro a fim de provocar uma queda no convés. Praticamente gi­ravam dentro de um círculo imaginário, de braços estendidos, esperando o momento certo de atacar. Ela surpreendeu-se com o ventre de George Fraser, não mais protuberante. A ponta de um tecido estofa­do, lembrando uma almofada, era visível através do gibão aberto. Por que ele teria encenado ser obeso?

— Os cabelos grisalhos também sumiram, depois de tanta chuva — Moira disse ao primo.

— Sim — concordou Nicol. — O homem não é quem fingiu ser. Pode me censurar, mas acredito que conheço a real identidade dele.

Antes que Moira pedisse explicações, Nicol colo­cou-se ao lado do pai, para somar forças contra Fraser. Este não se acovardou, porém foi colhido por um soco na cabeça e seu chapéu voou até a superfície do mar, onde permaneceu boiando. Os cabelos completamente pretos de Fraser ficaram expostos, e esvoaçaram ao vento enquanto ele procurava livrar-se de Bernard, que lhe apertava o pescoço, tentando esganá-lo. Não demorou a safar-se, empurrando o adversário. Sem a menor dúvida, Fraser era jovem e forte.

Nicol posicionou-se entre os dois combatentes, im­pedindo o prosseguimento da luta. Pelo olhar do pri­mo e do tutor, Moira deduziu que ambos reconheciam o adversário e, além disso, estranhavam sua presença no navio. Ela temeu pela vida do homem que a havia defendido.

— Tavig MacAlpin! — bradou Bernard, levando a mão à bainha de sua espada.

— Sim, e qual o problema? — Tavig alterna­va o olhar cauteloso entre os dois membros do clã Robertson.

— Problema de todo homem decente, aqui ou em Londres.

— Você é um patife, Bernard. Vive levantando os punhos ou a espada contra os mais fracos, e mostra inesgotável crueldade. Não consegue obter o respeito ou o afeto dos outros, por isso instila o medo em to­dos os que o cercam. — Ciente da gravidade de suas palavras, Tavig também tocou sua espada, defensiva­mente. — É um milagre que ainda esteja vivo, que ninguém tenha cortado sua garganta.

— Mas você gostaria de fazer isso, não é? — Bernard zombou. — Como fez com os dois homens que assassinou. Segundo dizem, dois amigos que confiavam em você. Seu primo Iver MacAlpin está oferecendo uma alta soma por sua cabeça, e quero ga­nhá-la. — Robertson sacou a espada e a brandiu na direção de Tavig.

— Papai! — interveio Nicol. — Iver não deseja este homem morto.

— O canalha merece morrer.

— Venha e tente — Tavig provocou-o, empu­nhando a própria arma. — Com sorte, conseguirá me liquidar, mas morrerá junto comigo, na ponta de minha lâmina.

Bernard rosnou como fera acuada e deu início aos golpes contra Tavig, que aparava todos com destre­za. Não queria morrer, claro, mas também descartava a condição de eventual prisioneiro. Caso fosse devol­vido a seu traiçoeiro primo Iver, sofreria um fim lento e doloroso, por crimes não confessados nem admiti­dos. Ou venceria a luta ou talvez fosse melhor sucum­bir à espada de Robertson.

— Basta, Bernard! — Moira decidiu interferir após ver os dois litigantes, exaustos pelo esforço físico, reduzirem o ritmo da peleja.

Tavig desviou-se freneticamente do que seria o último golpe do adversário, e Moira correu até o tio, prendendo-lhe o braço. Foi violentamente empurra­da, batendo as costas na amurada do navio. Tavig va­leu-se da breve distração de Bernard para aplicar-lhe dois furiosos socos e jogá-lo ao chão. Viu Nicol mover-se depressa e desembainhar sua espada.

— Moira, saia já da amurada! — ordenou Tavig, como que a ignorar a ameaça de Nicol.

Ainda zonza e dolorida, ela não discutiu a ordem, mas seus passos foram barrados pela ventania que se intensificou de repente, com força inexorável. Esticava o braço, procurando agarrar a mão estendida de Tavig, mas não a alcançava. Respirava com dificuldade em meio ao vento, que a pressionava contra a parede da amurada. Via Tavig enfrentando as rajadas, na tenta­tiva de resgatá-la, enquanto Nicol esperava, inerte. Porém, porém seu novo amigo mal se mantinha em pé. Então, ela escutou um estalido de madeira quebrada.

A barra na qual se apoiava cedeu antes de qualquer alerta, e ela tombou nas águas revoltas do mar, jun­to com o pedaço de madeira. Tavig e Nicol gritaram palavras de encorajamento, aproximaram-se da borda e repetidamente esticaram os braços para baixo, com reduzida esperança de que Moira os alcançasse para escalar o costado e voltar ao navio.

Na verdade, ela gritou, com metade do corpo envolta pelo oceano.

Inclinado na parte intacta da amurada, Tavig bradou o nome dela. O que podia ver resumia-se ao branco de sua roupa. Corajosa, Moira conseguira flutuar, mas as ondas geladas não a poupariam por muito tempo. Quase submersa, logo seria tragada pela água. Ele entrou em desespero, à procura de um meio de salvá-la.

— Dê-me aquela corda, rápido — instruiu Nicol, apontando um rolo próximo.

O primo de Moira obedeceu, depois de guardar a espada na bainha.

— O que pretende fazer?

— Vou atrás dela. — Tavig recolheu a corda e simulou amarrá-la num gancho da amurada.

— Está louco? — Nicol avaliou a fúria das águas. — Acabará morrendo.

— Melhor assim do que pender na forca erguida por Iver. Mas minha intuição diz que vou sobreviver, bem como salvar Moira. Entenda, rapaz, sua prima não conseguirá safar-se sozinha da situação. De qualquer modo, esse é o meu destino, e o dela.

Com uma prece em favor de seus bons presságios, Tavig saltou no mar. Afundou pela ação da gravidade. De imediato, sentiu o choque térmico. Bracejou com força a fim de ganhar a superfície, e quando emergiu teve de respirar convulsivamente até recuperar-se.

Olhou em torno de si e nadou rumo ao tecido branco, seu único ponto de referência. Amaldiçoou a tempes­tade e a negligência do armador quanto à segurança da embarcação.

Moira se mantinha agarrada ao sarrafo que caíra da amurada, junto com ela. Tavig a recolheu da precária tábua de salvação, passou a corda pela cintura da mu­lher e, assim que a sentiu segura, empurrou para longe o sarrafo já sem utilidade. Tomou a jovem pelos pulsos, enlaçou-a com o outro braço e nadou com vigor.

— Você é louco! — ela conseguiu dizer, tossindo ferozmente por causa da água salgada que lhe invadia a boca.

Não havia como discordar. Os dois poderiam afo­gar-se juntos. Mas Tavig se sentia recompensado pelo atrito, mesmo frio e úmido, de seu corpo contra o dela.

Um gemido rouco chegou aos ouvidos de Moira, e ela tardou em perceber que o som vinha dos próprios lábios. Sentia-se muito mal. Sua face estava em contato com algo molhado e áspero: a areia de uma praia. O corpo doía demais, a ponto de dar-lhe vontade de chorar. Logo experimentou pontadas no estômago, como se estivesse encharcada por fora e por dentro.

Ouviu uma voz masculina dizer que ela iria me­lhorar e o incômodo passaria. Mas vivenciava um momento de infelicidade que nenhum incentivo tolo poderia abafar. Na verdade, queria estar longe dali, tratando do corpo doente, porém ainda ignorava como alcançar essa meta. Com esforço, ergueu a cabeça da areia em que estava, deitada de braços.

Tavig sorriu, com evidente cansaço, quando ela o xingou. No entanto, Moira apreciou que seu salvador continuasse a massagear-lhe as costas, sobre o teci­do da blusa. Era um paliativo, pelo qual deveria agra­decer. Assim que o contato cessou, ela sentou-se na areia, ainda desolada com sua má sorte.

— Pegue, molhe sua boca. — Tavig passou-lhe uma caneca, e Moira descobriu que era vinho. Enquanto bochechava e engolia a bebida, recordou em detalhes o que acontecera para estar agora numa praia, tingida de rosa pelo sol nascente. Franziu a testa ao contem­plar Tavig.

— Onde conseguiu o vinho e a caneca? Trouxe-os com você?

— Não, há uma cabana de pescador no limite da praia.

— Alguém que possa nos ajudar?

— Eu não diria isso. A cabana parece abandona­da. Apesar de conter alguns suprimentos, não vi sinal algum de barco nas imediações. Penso que o pobre dono saiu para pescar e não voltou.

Moira devolveu a caneca e fez o sinal da cruz. Então, desabou novamente na areia. As roupas de Tavig se achavam sujas e rasgadas, e ela ponderou por que ele permanecia vestido. Os andrajos que restavam não cobriam todo o largo peito cabeludo. Pensou em sua própria aparência. A brisa que sopra­da atingia mais quantidade de pele nua do que se a saia e a blusa estivessem intactos. Ela sabia que precisava examinar-se para conhecer a extensão do dano causado. No entanto, não inclinou a cabeça para olhar-se. Sentia-se esgotada, cada centímetro do corpo drenado de toda a energia.

— O que houve com sua barba? — perguntou a Tavig, cujas feições eram atraentes demais para sua paz de espírito.

— Raspei tudo. Já não agüentava o desconforto. — Ele sentou-se ao lado de Moira, com expressão feliz.

— E sua esposa, que morreu de uma febre?

— Era mentira. Você se sente melhor?

— Não muito. Ocorreu-me a idéia de ficar parada aqui e morrer de inanição. Estou tão fria quanto um cadáver. Melhor você cavar minha sepultura e fazer uma mortalha.

— Não pensei nisso. Mas, nem juntando nossas roupas dá para improvisar uma mortalha.

— Quer dizer que minhas vestes se rasgaram, e eu não estou decente?

— Bem, não chega a tanto. As partes de seu corpo que um homem olharia ainda estão cobertas.

Moira imaginou por que não ficara ofendida ou ruborizada. Concluiu que estava cansada demais para se incomodar com as insinuações de Tavig, mas não dispensou uma censura a ele.

— Você é muito impertinente, para um condenado à forca!

— Condenado, porém livre.

— Qual condenado pode julgar-se livre? Você ape­nas está vivo. Eu também, e por isso lhe sou grata. Lembro-me de seu salto na água, para me resgatar. Gesto estranho, um pouco maluco, mas que me salvou. Agradeço.

— Eu também, por você ter impedido seu tutor de me rachar ao meio com a espada. Essa atitude pode ter salvado minha vida, e eu tinha de retribuir. Como ficar parado no convés e deixar que a jovem com quem pretendo me casar morresse afogada?

Além de galanteador, Tavig sabia ler a expres­são facial de Moira. Por isso, duvidava de que ela o compreendesse, ou ao menos acreditasse em suas palavras. Com os grandes Olhos azuis arregalados, ela talvez pensasse que Tavig havia enlouquecido, ou que a testava, tentando medir sua reação ao absurdo que ele dissera.

— Acho que engoliu muita água, sr. MacAlpin, e isso afetou seu cérebro — Moira afirmou.

— Isso é resposta a um pedido de casamento? — ele contrapôs.

— Pedido? É mesmo um absurdo. Penso que está me testando para ver se caio em sua lábia.

— Absurdo ou loucura? Estou com o coração ferido.

— Pare com a provocação e ajude-me a levan­tar. — Moira estendeu a mão. — Julga que o navio naufragou?

— Não, não vi escombros ao longo da praia. — Ele ignorou o esforço dela para recolher a mão presa. — Andei em todas as direções enquanto você se recuperava.

Com a mão livre, Moira ajeitou a saia molhada em torno das pernas. Ficou contente ao ver que pouca coisa de seu corpo se achava exposta ao olhar libidinoso de Tavig. A situação em si já era estranha o suficiente para ela se preocupar com seu recato.

— Se o navio não afundou, meus parentes virão à minha procura — disse. — Acho melhor ficar aqui. Mas compreenderei se você aproveitar esta chance para fugir.

— Bondade sua...

Ela exibiu uma carranca e forçou os dedos para fora dos dele.

— Percebo que considera meu plano muito modesto.

— Mas notei, desde o princípio, que lido com uma moça esperta. — Ele identificou, nos olhos que se estreitavam, o despertar da raiva de Moira contra ele. Apressou-se em explicar: — Se os seus parentes acreditarem que você sobreviveu ao mar revolto, terão de vencer muitos quilômetros de costa até en­contrá-la. Levará dias, e eles não dispõem de tanto tempo.

Moira praguejou, mas com timidez. Tavig estava irritantemente correto. O tutor, o primo e o guarda-costas tinham de resgatar sua prima Una até o final do mês. Faltavam três semanas. Haviam perdido dias a negociar com o raptor de Una, sem êxito. Ela tinha certeza de que a recompensa referente a Tavig MacAlpin, embora tentadora, não os faria arriscar a vida de Una. Sir Bernard fizera grandes planos para a filha, incluindo um casamento rico, Moira teria de arranjar-se sozinha, ela reconheceu, observando Tavig a olhá-la calmamente. Não podia depender dele para mais ajuda do que já recebera, pois ele tinha o próprio pescoço a salvar. Quanta fé seria possível inculcar num homem acusado de dois homi­cídios, ainda que ele corresse risco de vida a fim de salvá-la?

— Bem, então é melhor eu procurar o xerife, um guarda, seja o que for — ela acrescentou.

— Acha que encontrará ajuda neste lugar ermo? Você nem mesmo consegue provar quem é. Sem ofensa, mas por causa de suas boas roupas pode ser tomada por uma ladra.

— Tem algum outro plano? — Moira mostrou-se aborrecida com a demolição de seus planos pela lógica implacável de Tavig.

— Calma, minha sensível noiva.

— Não sou sua noiva! — Ela irritou-se ainda mais, porém Tavig não tomou conhecimento.

— Se ficar comigo, eu a levarei a um lugar seguro.

— Com você? Ouvi o que meu primo disse quan­do o seu disfarce se desfez. Está condenado às galés. Não pensei que a prisão fosse um lugar seguro para mim.

— O laço da corda ainda não rodeou meu pescoço, querida. — Ele espanou a roupa com os dedos e ofere­ceu a mão a Moira. — Venha. É melhor começarmos a caminhada, pois há uma longa jornada pela frente.

— Aonde vamos? — ela quis saber.

Recusou-lhe a mão, mas correu para alcançá-lo. Pelo menos, Tavig não parecia magoado com suas pa­lavras nem a culpava de hostilidade. Havia salvado sua vida, mas ela não o conhecia bem. Só sabia que era acusado de dois assassinatos. Nessas condições, como confiar nele?

— Tavig, aonde vai me levar? — Moira insistiu, penando para segui-lo rocha acima, no limite da praia.

— À casa de meu primo. — Tavig ajudou-a a escalar uma pedra mais alta e indicou a direção da residência do parente, a longa distância. — Ele não só nos ajudará, como achará um padre que possa nos casar.

Em vez de aborrecer-se de novo, Moira preferiu obter mais informações.

— Por acaso eu o conheço? Um nome seria de grande valia.

— Ele se chama Mungan Coll. — Tavig olhou para trás e viu que Moira tinha estacado, paralisada, sobre a pedra.

— O mesmo homem que íamos encontrar quando eu caí do navio? O Mungan Coll que mantém minha prima Una como refém, por um resgate?

— O mesmo.

— Como quer que eu acredite que estarei segura com um criminoso?

— Mas é o mais certo a fazer. Na propriedade dele seus parentes a descobrirão, sem a menor dúvida. — Ele tomou-lhe a mão, vencendo a resistência, e colo­cou Moira a caminho da cabana de pescador.

— Oh, sim — ela ironizou. — Vão deparar comigo cativa, ao lado de Una. Seu primo pedi­rá resgate por mim também. — Angustiou-se, por não ter certeza de que seus parentes pagariam algum dinheiro para libertá-la.

— Não. Mungan nunca seqüestraria minha mulher.

 

Ao ingressar na cabana, Moira amaldiçoou a situa­ção. Permaneceu junto à porta, enquanto Tavig acen­dia velas feitas de sebo. A seu ver, o plano dele era terrível, porém, para seu desgosto, não conseguia pensar numa alternativa.

Quando alguma luz clareou o lugar, Moira sentou-se em um banco rústico, do lado de uma mesa cons­truída em madeira crua. Carrancuda, viu Tavig juntar diversos alimentos e começar a cozinhar uma sopa. A autossuficiência daquele homem a irritava. Em seus dezoito anos de existência, ela jamais tivera de limpar uma casa, costurar uma blusa, fazer comida ou qual­quer coisa prática. Duvidava de que pudesse sobre­viver a qualquer período extenso de trabalho duro ou de privação.

Não lhe cabia culpa por essa falta de competência. Pais, amas e criadas a haviam educado daquela manei­ra. Contudo, sabia ser impossível manter esse estilo de vida se voltasse a morar com sir Bernard Robertson e sua família. Annie, dois anos antes, passara a ensi­nar-lhe tricô e crochê, além de algumas técnicas de defesa pessoal. Não houvera tempo para ela aprender muito, exceto por certa habilidade no uso de uma faca ou punhal.

Saberia defender-se caso atacada, pensou satisfei­ta. Era pouco, levando em conta que também precisa­va comer e proteger-se do frio. Necessitava de Tavig, concluiu, e tal dependência a enfurecia, como quando ele colocou um prato fumegante de sopa à sua frente.

— Agora, moça, por que está tão triste? — Tavig sentou-se no banco e deu a primeira colherada.

— Com tudo o que me aconteceu, queria que eu ficasse alegre, Cantando?

— Você sobreviveu. Aos tapas de Robertson e às profundezas do mar...

— No entanto, nada tenho para vestir, além desta roupa esfarrapada.

— Penso que seus trajes resistiram bem à conjun­tura adversa.

— Não tenho idéia do que fazemos aqui — Moira protestou. — Nem de como chegar ou sair deste lugar malfadado.

— Não se preocupe, querida. Eu guiarei você.

— Mas há outra coisa. — Ela raspou com a co­lher de pau o fundo de seu prato. — Não sei realizar qualquer tarefa doméstica. Conto com você para me conduzir a uma mansão bonita, onde eu possa ter criados.

— É normal uma mulher depender do marido... — declarou Tavig, voltando à carga.

Moira bateu a pesada colher na mesa.

— Se precisamos ficar juntos, pare com essa conversa tola. Não a considero divertida.

— Estou feliz por ouvir isso. O casamento não é feito para rir. É um assunto sério. — Ele quase riu diante do olhar desconsolado que recebeu.

— Por que você persiste? — ela questionou.

A proposta de casamento de Tavig devia ser um gracejo de mau gosto. Moira já havia se resignado a viver solteira, talvez dedicando seus dias a cuidar dos filhos de Una. Como nenhum matrimônio tinha sido arranjado para ela, supunha que lhe faltava um dote, em dinheiro ou em terras. Também formava uma figura estranha, com os cabelos vermelhos e as sardas rosadas. Possuía, porém, um dom especial, o de curar doentes com o toque de suas mãos. Isso constituía um segredo absoluto, porque assustava as pessoas, alimentando a hostilidade. Ela temia ter de revelá-lo a um noivo eventual. Assim, permaneceria donze­la. Considerava cruel da parte de Tavig lembrá-la a toda hora de que ainda era solteira.

— Você nem sabe direito quem eu sou — prosse­guiu. — Nos conhecemos recentemente, o que nos impede de falar numa parceria permanente. Além disso, parece que sua vida não será duradoura.

— Ainda não morri, mocinha. Suponho que acredite em mim quando digo que sou completamente inocente da morte de duas pessoas. — Ele serviu-se de vinho.

— Se é inocente, por que foi condenado à forca, por seus próprios parentes? Escutei o que meu tio lhe disse, e você não contestou.

— Ser condenado não significa que cometi o cri­me. Muitos corpos de inocentes balançam nas galés. Quanto a ser julgado e sentenciado por um parente meu, existe melhor maneira de se livrar do herdeiro legítimo de tudo o que essa pessoa cobiça?

Tavig soava sincero. Existia um laivo de amargura em sua voz, um traço que apenas acrescentava vera­cidade a suas palavras. Moira desejava crer nele, mas conservava dúvidas e cautelas. Era um momento ruim para acreditar em alguma coisa.

— O que fizeram seus outros parentes? Acharam que a acusação contra você é uma mentira? Ninguém protestou ou ajudou? — Moira demonstrou um pouco de simpatia e compaixão.

— A resposta é "sim", para todas as perguntas, mas com algumas ressalvas. O homem que fez isso comi­go, meu primo Iver, tem muitos aliados. Os meus são poucos, sem o poder e a fortuna de Iver, porém me ajudaram a fugir.

— Você não ficará livre por muito tempo, sem os préstimos de Mungan Coll. — Moira desejou ardente­mente que a liberdade de Tavig fosse plausível.

— É verdade — ele disse, sorrindo. — Caí vítima de um rosto bonito, que esconde um coração perverso.

— Boa maneira de admitir que foi descoberto por­que resolveu flertar em vez de fugir. — Surpreenden­temente, ela riu.

— Todo homem pode se distrair e se perder nos olhos de uma bela mulher. — Tavig estendeu a mão sobre a mesa e tocou os dedos dela. — Mas você não deve recear que eu abandone o leito nupcial. Levo meus votos a sério.

Mais uma vez, Moira retirou a mão do alcance dele.

— Você é um homem cujos princípios estão sob suspeita.

— Palavras duras! — ele a olhou tão tristonho, que Moira teve vontade de rir de novo, mas se conteve.

Não era engraçado. Se ele não estivesse escarne­cendo porque ela havia descartado a idéia de casamen­to, então era realmente louco. Nada digno de riso, em ambos os casos. Cabia a Moira esforçar-se por ignorar aquela ridícula conversa de Tavig sobre união conju­gal. Agora, diante da imensa tarefa de permanecer viva até ser encontrada por seus parentes, ela admitiu que precisava concentrar-se nessa missão, e somente nela.

— Por que tomou aquele navio? — perguntou.

— Enquanto fugia dos lacaios de Iver, soube que a embarcação faria escala num porto próximo das terras de Mungan. Era arriscado navegar, mas menos arris­cado do que permanecer onde eu estava. — Ele exibiu um discreto sorriso. — Acredita em mim?

— Deixe-me pensar um pouco, primeiro. — Moira lançou-lhe um olhar severo. — Julgo que nosso tempo será mais bem gasto se discutirmos o que fazer em seguida.

— Já lhe disse. Vamos em busca de meu pri­mo Mungan. — Ele recolheu os pratos e talheres de madeira, mergulhando-os numa tina com água.

Ao vê-lo lavando os utensílios, Moira pensou em assumir á tarefa, já que ele tinha feito o jantar. Contava com pouca experiência no assunto, mas queria adap­tar-se às circunstâncias e mostrar-se útil.

Ela observou Tavig por um momento. Como po­dia parecer bem, dentro de uma situação tão adversa? A roupa dele estava rasgada e com manchas, os ca­belos desgrenhados pela água salgada do mar, Havia também pequenos ferimentos e cortes no rosto e nos braços. Algumas dessas marcas deviam-se, mais do que ao oceano, à espada de Bernard.

Moira mudou de intenção, da lavagem dos pratos para a prestação de cuidados pessoais a Tavig, lim­pando suas feridas. Contudo, sentiu-se assustada, um pouco temerosa. Aquele homem não só tinha tornado sua vida um caos, como também começava a exercer um efeito alarmante sobre seu bom-senso.

— Não me esqueci de que você planejou um encontro com Mungan Coll. — A cobrança tinha a finalidade de inserir na mente dela a certeza de que ficaria segura. — Como chegaremos até ele? Estamos esfarrapados, sem cavalos e sem provisões.

— É verdade. — Ele voltou a sentar-se à mesa, após enxugar as mãos. — Mas temos aqui alimentos suficientes para iniciarmos a viagem. É só pegar e embalar.

— Seria roubo.

— Minha querida, o pescador que morava aqui morreu. Por milagre, deixou as prateleiras abasteci­das. Pare de afligir-se com o que é certo ou errado. O que quer que lhe tenha acontecido, não recolheu os suprimentos, supondo que alguém precisaria deles. É o nosso caso.

—Entendo seu raciocínio, mas fico perturbada por me apropriar dos pertences de outra pessoa.

— Para aliviar sua consciência, prometo retornar aqui um dia e pagar pelas mercadorias, se o pescador estiver vivo. Só não deixo algumas moedas na mesa porque seriam roubadas.

— Bondade sua, porém será difícil voltar a este deserto.

— Então, você poderá fazê-lo — Tavig atalhou.

— Só que não tenho nenhum dinheiro — disse Moira, embaraçada por confessar sua pobreza.

— Nenhum? Nem moedas?

— Não. Bernard afirma que meu pai não possuía o costume de poupar nada.

— Pensei que você fosse uma herdeira rica, mas não preciso de dinheiro e ficarei feliz do mesmo modo se tomar uma moça pobre como esposa. — Tavig rebateu com um sorriso o olhar crítico de Moira.

Em seguida, ela imaginou que ele não falava com intenção de magoá-la. Não poderia saber que era desprovida de qualquer dote, se ela não lhe contasse. Tam­bém ignorava que esse era apenas um dos motivos que a empurravam para o celibato, condição difícil de acei­tar. Embora convencida de que Tavig não desejava entristecê-la, Moira odiava aquela entediante conversa sobre casamento.

— É hora de você adotar alguma outra brincadeira — sugeriu.

Tavig balançou a cabeça e exibiu uma expressão sombria.

— Bem, minha cara noiva, é agradável para mim prever que estaremos juntos por uma quinzena ou mais, devido às circunstâncias. Bom prazo para namorar.

Ela fingiu não escutar a última frase.

— Uma quinzena? Por que tantos dias?

— Como você disse, não temos cavalos.

— E não pode consegui-los?

— A mim também me falta dinheiro, e não quere­mos roubar. Portanto, sem cavalos.

— Então, como chegaremos à casa de seu primo?

— Andando.

— Mas seu primo mora a quilômetros de distância, não é?

— Sim — confirmou Tavig, seguro de si. — Você terá de usar seus delicados pezinhos para caminhar. Por isso falei em duas semanas ou mais.

Moira encarou-o e decidiu que se preocuparia me­nos com o fato de ele ser um condenado, e mais com os sinais de loucura que apresentava.

 

— Pareço-me cada vez mais com uma mendiga.

Tavig não levou em conta a queixa de Moira, em parte porque era verdadeira. Mas ele havia achado agulha e linha numa prateleira, e depois de limparem os corpos, com água, ambos se revezaram na costu­ra dos rasgões em suas roupas. Isso ela sabia fazer, mas infelizmente a linha era preta e a saia, branca. Os remendos ficaram visíveis. Durante a tarefa, ela se cobrira com uma camisa marrom, velha e larga, deixa­da ali pelo pescador, e apenas suas feições delicadas ou a pele leitosa a distinguia da mais pobre das pedintes. Ele estava igualmente deselegante. Por causa da linha, sua fina camisa branca parecia riscada de pre­ta. Pior, a toalha com que escondera a seminudez lhe deixara a pele cheirando a peixe.

— Formamos um belo par... — Tavig ironizou.

— Está mesmo certo de que o pescador morreu? Senão, praticamos um furto. — Moira ainda tinha à sensação de que roubava algo.

— Mocinha, se tivesse visto a condição em que o dono abandonou suas vacas, não duvidaria de que ele sofreu algum problema ou doença grave. Ninguém alimentou os animais, por dias. Quase resolvi sacrificá-los, para abreviar o sofrimento. Ou vão se tornar vítimas de lobos famintos ou algum fazendeiro das vizinhanças terá de resgatá-los. Caso o dono esteja vivo, merece perder seu pequeno rebanho, por tratá-lo tão mal.

— Tem razão — ela concordou, relutante.

— Mas não consigo evitar o sentimento de que estou furtando.

— Bem, como eu disse, gostaria de deixar na mesa alguma recompensa, mas estou sem dinheiro algum. Minha bolsa ficou no navio, e provavelmente você não pegou a sua, ao ser arremessada ao mar.

— Obrigada pela intenção, mas não precisa ser tão impertinente.

— Garota, sua sensibilidade é admirável, mas está fora de lugar. Chegamos a essa praia deserta em far­rapos e sem suprimentos. Considerando que o dono da cabana morreu, foi uma sorte que ninguém antes de nós tenha levado tudo, inclusive camisas e toalhas.

Moira exibiu um esgar. Ele estava certo, mais uma vez, e ela reconheceu que sentimentos elevados eram um luxo descabido naquele lugar e momento.

— Vou parar de reclamar de nossas condições de sobrevivência — ela afirmou. — Sei que temos coisas mais importantes a fazer.

Tavig colocou as mãos nos ombros de Moira, esbo­çando um abraço e lamentando a maneira como ela, tensa, fugiu do gesto carinhoso.

— Prometo listar tudo o que usamos e pagar inte­gralmente ao proprietário — assegurou.

Calada, Moira serenou ao fazer o mesmo voto, ainda que ciente da dificuldade de conseguir dinhei­ro. Por outro lado, não podia esquecer que Tavig era um condenado à forca, e talvez não fosse tão sincero em sua promessa.

— Por que sempre parece triste? — ele murmurou, começando a juntar pacotes de alimentos num farnel. — Livre-se de seu mau humor, minha noiva, e vamos iniciar a viagem.

— Espera que eu esteja feliz com uma marcha tão longa e perigosa pelo interior da Escócia? — Ela aguardou resposta e, como esta não veio, restou-lhe seguir os passos de Tavig.

Na trilha estreita que serpenteava entre as rochas, depois de vencida a areia úmida, ele olhou para trás e sentiu certa culpa por fazer Moira caminhar com os pés envoltos em meias e sapatos femininos. Observou as próprias botas e deplorou que, na cabana, não houvesse nenhum calçado que servisse para ela.

— Seus pés estão desprotegidos. Farei o possível no sentido de corrigir isso, logo.

— Roubando botas para mim? — Moira continuou ácida.

— Uma noiva não deve questionar os métodos do homem que atende a suas necessidades.

— Pode parar de me chamar de sua noiva? Até quando vai insistir nessa loucura? — A voz vinda detrás soou aflita.

— Não é loucura! — Ele ergueu o tom.

— Não? Que outro nome devo dar a isso? — Moira tropeçou numa pedra e, quando foi segurada pela mão, escondeu que tinha apreciado o toque firme dos dedos de Tavig. — Você não sabe quem eu sou, desconhece minha família e todo o resto sobre mim. Não compreendo como colocou essa idéia na cabeça e como a cultiva. Parece acreditar que se trata do destino.

— Ah, mas estamos, sim, predestinados um ao outro — ele alegou.

Moira sussurrou uma imprecação e retomou a caminhada.

— Não posso dizer que não creio no destino ou na sorte — ela disse. — É penoso viver sem essa esperança. No entanto, neste caso não cabe falar de conceitos ilógicos, irreais.

— Penso que destino e sorte sejam partes integran­tes de nossa vida. Quando aquela amurada quebrou e você tombou nas águas revoltas do oceano, percebi que estávamos ligados para sempre. Simbolicamente, eu a amarrei em mim para salvá-la, e assim nos unimos de maneira muito próxima.

— Obrigada — ela resmungou, cansada das refe­rências de Tavig ao ato de salvamento.

— Não acha que o destino já estava em ação quan­do você me concedeu um minuto de cortesia e falou comigo no convés?

— Só que não era o destino. Você falou comigo primeiro, eu apenas respondi.

— Não foi o destino que causou sua queda no mar? — Tavig interrogou.

— Objetivamente, foi a tempestade e a grade podre da amurada.

— No meu entender — Tavig endureceu a expres­são —, o destino me fez saltar na água e tentar salvá-la.

— Está sendo lunático, desmiolado. — Moira já não media as palavras. — Você quis me fazer um galanteio perigoso, é isso.

— Galanteio? Obrigado.

— Agradece-me por chamá-lo de lunático?

— Também me considerou galante.

— Ambas as condições são igualmente despropositais. — Ela meneou a cabeça quando Tavig parou e franziu a testa, esperando que seguissem emparelhados.

— Compreendi que nossas existências estavam ligadas enquanto mantinha vigília, aguardando sua recuperação. Você estava estirada na areia, prati­camente desfalecida, e eu lhe prestava assistência. Foi assim que tudo tornou-se claro para mim.

— Claro? Eu cuspia água, estava coberta de areia e, com a roupa rasgada. Não era uma situação que inspirasse idéias de casamento...

— Não, vi muito mais do que uma mulher em frangalhos. É a minha sina — ele murmurou, convicto de que acabaria convencendo Moira. Mas ela argumentava bem.

— Está tentando me dizer que foi abençoado Com uma espécie de visão privilegiada?

— Realmente, não tenho visões. — Tavig fixou o olhar no chão, incapaz de enfrentar a reação de Moira a sua estranha confissão: — Eu apenas consigo saber das coisas com antecedência. Acho que é um dom, perceber com certeza o que vai ocorrer em minha vida e na dos outros. Ele guardou uma pausa, esperando que Moira dis­sesse algo, porém ela nada comentou. — Quando a vi pela primeira vez no convés, já senti que teria problemas. Tinha certeza de que você não deveria se escorar naquela amurada, pois ela iria quebrar.

— Pode ter sido coincidência, ou adivinhação, ou mero acaso — ela declarou, com certa frieza.

— Foi mais forte do que isso — rebateu Tavig.

— Posso ver imagens na minha mente, mas não são autênticas visões. Talvez imagens desconexas das certezas que me dominam. No dia dos assassinatos, que não cometi, sabia que meus dois amigos estavam perdidos. Mesmo que me apressasse em alertá-los, seria tarde demais. Na minha cabeça, os dois jaziam mortos no meio da rua. Nunca tentei mudar o que o destino escreveu, mas, naquela ocasião, meu dom me salvou de cair na armadilha de meu primo.

Finalmente, Moira sofreu algum impacto. Não sa­bia o que pensar da confissão de Tavig, mas a ideia de que ele possuía o poder de prever o futuro ou rece­ber alertas antecipados era estranha demais. Verdade ou mentira, ela não gostaria de ficar ao lado de um vidente.

— Caso seja sincero e não esteja gracejando com a proposta de casamento, você acaba de me dar ou­tro bom motivo para recusar o noivado. Além de sua condenação à forca, claro. — Admitiu que estava sendo dura, porém franca.

Tavig a contemplou decepcionado, porque, como muitos outros, ela não aceitava seu excêntrico poder.

— Você ficou com medo de mim — ele redarguiu —, como as demais pessoas.

— O medo nada tem a ver com isso. Não repa­rou na cor de meus cabelos? São vermelhos, sinal de coragem.

— De fato, você é gloriosamente ruiva, mas não muito. — Ele correu a mão pelas madeixas de Moira, sem ser impedido. — Uma sedosa cortina de fogo, com um matiz que complementa sua beleza.

Tocada pelo elogio, e agradavelmente comovida pela proximidade dele, Moira lutou para manter o raciocínio focado naquilo que interessava.

— Dizem que cabelos avermelhados indicam um temperamento forte, quase colérico. É a cor da dis­simulação. Uma barba vermelha denota um homem vil e cruel. Também é o tom das bruxas, condenadas a morrer na fogueira. Se nos casarmos, provavel­mente nossa união, terminaria em um ano. Alguém, com certeza, nos denunciaria como feiticeiros e nos queimaria.

— Queimados como bruxos? — Tavig quase riu, aliviado porque o surto de horror de Moira não se dirigia a ele pessoalmente, mas era causado pelas eventuais dificuldades trazidas por seu estranho poder. — Por toda a vida tive essa espécie de premonição, e ninguém ainda se ajoelhou a meus pés para me venerar como santo.

— Bem, talvez aqueles que o cercavam pudessem tanto aceitá-lo como rejeitá-lo. Fui tratada do mesmo modo. No entanto, se estivermos juntos, nossa aceita­ção social tende a piorar. — Sobretudo quando descobrirem que eu também tenho um poder especial.

— Você se preocupa demais — Tavig procurou tranqüiliza-Ia.

— Como assim? Nunca viu alguém fazer o sinal da cruz ao passar por você, para prevenir qualquer mal? Quer me convencer de que nenhuma pessoa teve Receio de seus poderes?

— Algumas, é verdade. — Ele exibiu um esgar ao se recordar das reações das pessoas.

— Ouça, Tavig. Você tenta esconder a realidade, mas ela não pode ser ignorada. Sabe disso tanto quando eu. Sofri em silêncio a suspeita de ser uma bruxa, eleita pelo diabo. Pessoas me evitavam por confundi­rem superstições com fatos reais. Uma senhora ido­sa chegou a implicar com minha magreza, comen­tando que pouca gordura poderia ser extraída de meu cadáver.

— O que há de importante sobre sua gordura ou a falta dela? — Tavig pareceu honestamente intrigado.

— Um homem com os seus dons — disse Moira em tom resignado — deveria conhecer as crendices do povo. A gordura de uma ruiva morta é útil no preparo de poções curativas.

— Puro absurdo! — ele reagiu.

— Claro que é, mas a superstição prevalece. Uma parte de mim diz que seus poderes premonitórios também são um absurdo, mas outra parte acredita e tem medo deles. E olhe que me considero uma pessoa racional.

— Tem medo, então? — Tavig enrugou a testa en­quanto estudava a expressão de Moira, lamentando ter feito a confidencia. Incomodava-o pensar que ela sentia temor dele. — Não há motivo algum para você ficar assustada.

— Não? Imagino que você próprio receia seu dom. — Ruborizada, ela sabia como ninguém que o medo de algum poder especial podia paralisar a pessoa dotada, de quando em quando. — Quem pode gostar da certe­za de que determinada criatura consegue ver o futuro? Existe um grande debate sobre se isso é uma dádiva de Deus ou uma obra do diabo.

Numa pausa, Moira examinou o semblante de Tavig. Neutro.

— Em geral, seu dom é considerado uma maldição — prosseguiu. — no entanto, você proclama que ele salvou sua vida e certamente ajudou a salvar a minha, portanto o toma como dádiva divina. Infelizmente, o povo chama de obra do diabo tudo o que não conse­gue compreender.

Tavig deslizou a mão pelos cabelos, praguejando em tom baixo.

— Só não quero que você tenha medo de mim por causa disso — confessou.

— Não é medo, mas desconforto — ela retrucou.

— Se fosse para temê-lo, seria devido a sua conde­nação como assassino. — Embora se expressasse assim, Moira já não acreditava que Tavig era um criminoso frio.

— Não matei aqueles dois homens — ele atalhou, apertando as passadas sob o peso de lembranças dolorosas. — Mas pude ouvir os gritos deles.

— Estava perto do local do crime?

— Não. Ouvi os sons na minha mente, como parte da cena do duplo assassinato. Achava-me a um dia de distância do lugar, longe demais para tentar impedir o trágico fim de meus amigos. Eles ficaram pendurados numa árvore, atados pelos pulsos, e foram degolados. Só Deus sabe o quanto devem ter sofrido.

Moira sentiu-se nauseada ao pensar na imagem de uma morte tão selvagem e cruel. O dom de Tavig era muito mais dramático do que o seu. Ela ao menos conseguia consolar-se com o fato de que ajudava pessoas necessitadas, reduzindo-lhes as dores.

— Encontrou os corpos naquele estado? — ela quis saber.

— Não na mesma hora. Fui alcançado por outro amigo, perto do local, e alertado de que havia um ar­dil contra mim. Iver tinha planejado usar meu dom contra mim, a fim de me incriminar. Estava seguro de que eu captaria mentalmente as mortes e correria até meus amigos. Ficou aguardando no lugar, junto com guardas armados para me prender.

— Ah, e acusá-lo de levar na mão um punhal ensangüentado...

— Isso mesmo — Tavig confirmou a observação de Moira. — Evitar o ardil não me livrou de ver meus amigos com o pescoço cortado nem da acusação de duplo assassinato. — Ele a enlaçou pela cintura e ajudou-a a saltar sobre uma pedra grande no caminho, pulando depois dela. — Fui detido, forçado a reco­nhecer os corpos, e então jogado nos calabouços de Drumdearg.

— Drumdearg?

— Minha propriedade, por direito.

— Aquela que seu primo reclama para si.

— Sim. Tenho a impressão de que Drumdearg fica a uma semana de caminhada a partir deste ponto, a noroeste.

— Mais perto do que você gostaria, acredito.

Tavig gesticulou com a cabeça, não só concordando como admirando a perspicácia de Moira. Imaginou-se ocupando a grande sala da mansão, na condição de herdeiro legítimo dos MacAlpin.

— Diga-me — ela solicitou. — Como o seu dom de premonição não o avisou da cilada em que caiu?

— Avisou, mas minimizei essa parte da visão. Na minha mente, o perigo residia na morte de dois ho­mens, não na ida até o local.

— Mas parece que seus amigos apreciavam uma boa luta de espadas.

— Questão de honra, minha querida — Tavig pontificou, sem retardar o passo.

— A honra também jogou muitos homens no túmu­lo. Duvido de que os cadáveres deles tenham ficado mais quentes em função disso.

— Fico tentado a concordar. No entanto, todo ho­mem de verdade tem um código de honra e o segue até o fim.

Moira ponderou esse conceito enquanto enfrentava a trilha irregular. A honra era um bom preceito, mas infelizmente muitos utilizavam sua preservação como desculpa para matar os semelhantes. Sempre que ou­via falar que um nobre havia "morrido com honra", ela imaginava como o morto se sentiria. Acordaria no paraíso, perceberia que sua vida tinha acabado e festejaria a honra intacta? Ela então notou que verba­lizara em voz alta á maior parte do comentário.

— Você não tem grande apreço pelas atitudes de um homem, não é, Moira? — Divertido, Tavig admitiu que as opiniões dela revelavam uma aguda inteligência.

— Eu não diria que não tenho nenhum, mas, quan­do penso no assunto, reconheço uma série de absur­dos. Há ocasiões, é verdade, em que os atos de um homem demonstram grande nobreza. Mas talvez essa idéia derive de minha mente feminina, de meu cora­ção sensível. Talvez eu simplesmente não compreenda o gênero masculino, por não ter sido treinada como homem, ensinada a lutar e ferir segundo as regras da cavalaria.

— Perfeito — comentou Tavig. — As mulheres são treinadas para dar à luz e nutrir uma vida. Os ho­mens, para tirá-la. — Ele parou e empunhou o can­til que trouxera da cabana de pescador, passando-o a Moira. — Nenhuma mulher é feita para liquidar um ser vivo.

Depois de extinguir sua sede e devolver a água para que Tavig também bebesse, Moira sorriu debilmente.

— Nem sempre, creio eu. A mulher pode desco­nhecer as artes da guerra, mas uma ou outra possui temperamento para matar, e até com certa habilidade, mas não faz isso por questões de honra. — Ela ob­servou, curiosa, como o pomo de adão de Tavig subia e descia enquanto ele matava a sede.

— Não? — Secou os lábios com a mão e fechou o cantil. — E o que leva uma mulher a matar? O ódio?

Embora pouco focada na discussão, Moira conse­guiu responder:

— Uma mulher sabe odiar, sem dúvida. Talvez com mais intensidade do que um homem. — Ela pertur­bou-se com o suave toque de Tavig em seu rosto, para remover uma mancha de terra. Percebeu-se olhando fixo para ele. — O ciúme também incita a mulher.

— E a ganância. — Tavig recolocou o cantil no ombro e puxou Moira pela mão, a fim de seguirem em frente.

— Suponho que sim. A maioria das mulheres tra­maria a morte de qualquer pessoa que ameaçasse a vida de um filho, por exemplo.

— Quer dizer que uma mulher pode tornar-se violenta quando vê sua criança em perigo?

— Na verdade — Moira prosseguiu em seu fino raciocínio —, uma mulher é capaz de matar pelas mesmas razões que um homem. Contudo, não temos iguais oportunidades para isso, e muitas das motiva­ções masculinas são estranhas a nós.

— Bem, nem sempre podemos encarar um inimigo face a face e espada contra espada. Há o risco de nos tornarmos a vítima e não o algoz. Somente um tolo não reconhece a própria fraqueza diante de alguém mais forte.

— Nesse caso, tenta-se apunhalar as costas do adver­sário, nas sombras da noite, enquanto ele dorme.

Moira percebeu que falava com amargura e teve a coragem de questionar o motivo. Pensou em seu tu­tor, na brutalidade sutil ou direta dele. Em vários mo­mentos, enquanto tratava os ferimentos que Bernard Robertson lhe havia causado, ela pensara numa ma­neira de matá-lo. Chegou a imaginar uma morte lenta, em revide a toda a dor que tinha sentido. Cortar-lhe o pescoço gordo durante o sono poria fim a um reinado de crueldade e medo.

— Alguns homens merecem uma morte dolorosa — murmurou.

Tavig notou que a raiva contida naquelas palavras era endereçada a Bernard. Ele ansiava por perguntar a Moira sobre sua vida, seus sentimentos, na companhia do temido fidalgo, no entanto julgou que o instante era impróprio para um interrogatório. Melhor que ela se acostumasse a ele, que o conhecesse bem. A espera, porém, seria angustiante. Sabia que o tratamento dado a Moira por Bernard poderia criar-lhe problemas, até mesmo levantar uma barreira entre eles, um obstácu­lo difícil de transpor. Silenciosamente, mas do fundo do coração, ele amaldiçoou sir Bernard Robertson.

— Por vezes, você é impertinente — provocou-a, ficando satisfeito ao vê-la nervosa.

De fato, Moira sofrera um arrepio gelado ante a definição. Inconveniente? Quando tinha ido morar com seu tutor, este a chamava assim, com freqüência. Aprendera a vigiar a língua. Qualquer traço de impertinência de sua parte dava origem a severos castigos físicos.

Dissimuladamente, ela analisou a expressão de Tavig. Ele a havia olhado com a fronte enrugada, mas agora já concentrava a atenção no caminho que se­guiam. Não parecia inclinado a bater nela, um gesto difícil de imaginar. Em todo caso, ela decidiu contro­lar suas palavras. Conhecia os limites da tolerância de Bernard, mas não os de Tavig. Até aquele momento, não sentira nenhum medo real do seu salvador. Falara com liberdade. Liberdade demais, admitiu. O silêncio seria seu melhor conselheiro.

Quando ela calou-se por longo tempo, Tavig de­dicou-se a procurar a trilha menos acidentada, mais suave a ser seguida. O olhar temeroso que Moira lan­çara na direção dele o deixou agastado. Era tangí­vel que, em seu íntimo, ela se protegia dele, embora continuassem de mãos dadas.

Ele media o volume de trabalho que teria pela fren­te, cumprindo seu alegado destino: o casamento com Moira, pleno e duradouro. Não desejava uma esposa submissa, que se humilhasse a toda hora. Reconhecia força e determinação dentro da noiva desejada. Bernard havia sufocado o espírito dela. E ele haveria de libertá-lo.

— Deixe-me espiar seus pés — disse Tavig, ajoe­lhado diante de Moira.

Ela emitiu uma exclamação de surpresa. Olhou em torno de si e espantou-se ao ver um fogo aceso, no qual era cozida a sopa do dia, e as mantas para dor­mir já estendidas no solo. A última coisa de que se lembrava, antes de cochilar, era que ambos haviam parado numa clareira e sentado na grama, com a in­tenção de repousarem um pouco antes de retomar a jornada. Tinha removido sapatos e meias, estendendo os pés no ar, e perdera toda a noção de tempo.

— Não, eles estão bem — contestou, tirando as pernas do alcance de Tavig.

Ele a estudou por um instante, franzindo a testa ao notar o medo nervoso que permanecia nos olhos dela.

— São as primeiras palavras que trocamos, no prazo de horas — ele comentou. — Não entendo por quê. Antes, você falou o dia todo.

— Eu disse tudo o que pretendia, até você me chamar de impertinente.

— E por isso tornou-se tão quieta e desanimada? Queria apenas provocá-la. — Pelo olhar de Moira, Tavig desconfiou que ela não acreditava nele. — Além disso, um pouco de impertinência não é crime.

— Bem, meu tutor pensa o contrário. — Ela deitou-se a alguns metros de Tavig, com expressão de raiva.

— Não sou seu tutor nem guardião. Jamais a cas­tigaria só porque disse alguma coisa que eu reputas­se inconveniente. — Ele avançou, agachou-se e co­lheu um dos tornozelos de Moira, puxando-lhe o pé até descansá-lo em seu colo. Emitiu um xingamento ao examinar o local. — Não admira que você esteja mancando. Abusou desses pequenos e lindos pés.

— Eu?

— Sim. Deveria ter olhado onde pisava, em vez de ficar amuada por ser chamada de impertinente.

Moira cerrou os punhos, com vontade de batê-los na cabeça de Tavig. Conteve-se, pois não tinha certeza de que aquele homem era respeitador, sem inclinação para bater numa mulher. Para ela, qualquer homem podia ostentar bons sentimentos e, de repente, espan­car uma mulher. Reconheceu que o cansaço e as dores no corpo haviam se juntado para plantar o rancor.

— Não estava amuada — defendeu-se. — Só exa­minava a trilha entre dois passos. Você tem mania de me repreender, quando é culpa sua que eu esteja dei­tada aqui, incapaz de me mover e com os pés cheios de dor.

— Culpa minha! Você adora fazer acusações infundadas!

— Claro. Tentou flertar comigo e tem um pri­mo cobiçoso demais. Não fosse por ele, não estaria condenado nem se esconderia no navio. Aliás, eu e minha família só viajamos naquela embarcação por causa de outro de seus primos, o infame seqüestrador Mungan Coll.

Moira calou-se por alguns instantes, a fim de coor­denar melhor as idéias.

— Sem as suas maquinações — prosseguiu —, Annie não sumiria com um marinheiro indecente, e eu não sairia ao convés, no meio da tempestade, para procurá-la. Então, caí na água e fui parar numa praia deserta, somente com a roupa do corpo. E foi você quem decidiu fazer esta maldita caminhada, até a casa do insano Coll. De outro modo, eu não estaria deitada aqui, com os pés doendo.

— Parece que nenhum de nós fomos abençoa­dos em nossas relações — Tavig murmurou, impres­sionado com o fôlego e a lógica cruel de Moira. — Sente-se melhor depois desse desabafo?

— Sim.

Era verdade. Estava mais serena, depois da litania de acusações a Tavig, por coisas que ele realmente não fizera ou não pudera mudar. Não se desculparia, porém. Concedeu-lhe apenas um sorriso discreto.

— Tinha pensado em ajudá-lo a montar o acampa­mento — disse.

— Foi seu primeiro dia, mocinha. Estamos exaus­tos. E logo teremos de apertar as passadas — anun­ciou Tavig.

— Nem sempre é possível eu ser mimada — Moira respondeu, emitindo um suspiro de prazer quando, após tomar água do cantil, Tavig verteu uma boa quan­tidade de líquido sobre os pés dela.

— Nem sempre... — ele ecoou, admirando as per­nas femininas à luz do crepúsculo e da fogueira. Sob seus dedos, podia sentir alguns calos e bolhas nos pés de Moira, algo espantoso numa jovem bem-nascida e criada.

— O que há de errado? — ela interrogou, notando o ar preocupado de Tavig.

— Seus parentes nunca lhe compraram sapatos, ou você gosta de correr descalça?

— Eles me vestiram e alimentaram. Eu não tinha o direito de esperar muito mais.

— Botas resistentes iriam lhe fazer bem.

— Mas teriam pouca utilidade. — Ela mostrou-se embaraçada com o prazer incomum que experimenta­va graças à massagem em seus pés. — Annie costu­mava esfregá-los com um óleo suavizante.

— E ajudou a enfraquecer seus pés...

Moira deu de ombros e alegou que tinha coisas mais importantes em que pensar. Tavig interrom­peu os movimentos, levantou-se e saiu na direção da fogueira. Ajeitou um ou outro graveto e pôs a panela de sopa para ferver. Sentou-se ali e ponderou que a história dos sapatos de Moira constituía um quebra-cabeças. Por que sir Bernard lhe negara calçados por algum tempo? Afinal, não eram um complemento caro. Embora o fidalgo não fosse dado a rasgos de bondade, devia ter um motivo misterioso para deixar a sobrinha vivendo descalça, ganhando calosidades dignas de um indigente das ruas.

Havia outro enigma a decifrar, pensou ele, obser­vando a aproximação de Moira. Por que ela embar­cara naquele navio? A presença dela era totalmente desnecessária. Nada conseguiria fazer em benefício do resgate da prima Una Robertson. Do pouco, que ele soubera sobre a vida dela com os Robertson, tinha concluído que Moira não era considerada como parte da família, somente como uma entediante responsabi­lidade grupal. Simplesmente não existia motivo para Moira integrar-se à comitiva de sir Bernard.

Tavig aproveitou que entregava um fumegante pra­to de sopa a Moira para esquadrinhar seu semblan­te. Duvidava de que ela soubesse por que havia sido incluída na viagem. Mas ele precisava refletir nas questões certas a perguntar. Queria obter respostas válidas para a solução do quebra-cabeças.

— Moira? — indagou entre duas colheradas, — Por que você estava naquele navio?

— Íamos resgatar Una. Pensei que soubesse.

— Sim, sabia. Mas por que você se juntou aos outros? Pediu para ir?

Por um instante, Moira recorreu a sucessivas co­lheradas de sopa para evitar uma pronta resposta. Ignorava efetivamente o que dizer. Ela própria havia feito a mesma questão, sem conseguir explicar o fato. Não era algo que gostaria de confessar a Tavig: sua exclusão, na prática, da família Robertson. Tinha pavor de reconhecer isso. Admiti-la seria muito doloroso.

— Se era um assunto dos Robertson, por que eu não deveria estar presente?

— No mínimo — contrapôs Tavig —, porque a viagem era longa, árdua e perigosa.

— Tornou-se perigosa quando dei atenção a um certo George Fraser.

Tavig ignorou a sutil agressão.

— Negociar um resgate é coisa para homens — rebateu.

— Talvez Bernard e Nicol tenham pensado que Una precisaria de uma mulher para confortá-la, após sua provação.

— Você e Una são amigas íntimas?

Era outra pergunta que ela não gostaria de responder. Tavig possuía talento para apresentar questões difíceis, pensou Moira enquanto reabastecia o prato |de sopa. Dessa vez, sua hesitação falhou em disfarçar a verdade. Percebeu que teria de contá-la, por mais desagradável que fosse.

— Não. Una e eu não somos amigas — disse, contrita. — Também não somos inimigas. Ela nunca me destratou, porém jamais fui parte de sua vida. Una vive ocupada preparando-se para um bom casamento.

— E você foi pressionada a trabalhar junto das criadas.

— Sim, uma maneira justa de pagar por minha estadia na casa.

Ainda que suspeitasse de que Moira trabalhava duro nas tarefas domésticas, Tavig nada comentou en­quanto recolhia os pratos, enxaguava-os e guardava no saco de viagem. Depois, contra-atacou:

— Então, por que todos julgaram que você seria útil a Una, em matéria de confortá-la?

— Somos moças da mesma idade — defendeu-se Moira. — É o bastante para nos entendermos. Mas por que pergunta? Que importa isso? Não vejo a razão de tanta curiosidade.

— Tudo o que lhe diz respeito me interessa. Um homem aprecia saber o máximo possível sobre a mulher com quem vai se casar.

O calor que tal declaração provocou em Moira esvaiu-se rapidamente.

— Você é mesmo louco — acusou. — Retomou suas manias, bem no momento em que eu começava a achar que era uma pessoa racional. Chega por hoje. Estou cansada e preciso repousar.

Ela dirigiu-se à manta estendida sobre a grama seca e notou que ali não havia espaço para dois.

— Você preparou um só lugar para dormir?

— Sim, minha doce Moira. O pescador devia viver sozinho e na cabana não encontrei nenhuma colcha de casal.

— É triste. — Ela concentrou-se mais na vida so­litária daquele homem do que na incômoda perspec­tiva de deitar-se ao lado de Tavig e passar a noite. — O pescador não teve quem chorasse por ele, quando morreu. E não sei se conto com muita gente para isso, na minha hora.

— Ah, pobre Moira. — Tavig suavizou a voz. — Eu chorarei por você.

Nervosa, ela franziu a testa.

— Tolice! Sou uma pessoa que muita gente do povo quer ver morta, como bruxa. Mas não serei ceifada tão cedo pelo anjo das sombras, enquanto você, Tavig MacAlpin, tem um carrasco e um cadafalso a sua espera...

— Não me esqueci, mas acredito que meu destino está escrito, para o bem ou para o mal. Você derrama­ria uma lágrima por mim?

— Conversa idiota! — Moira emendou, avançando até o leito improvisado na clareira, no qual se deitou e se cobriu.

Tavig sorriu ante a atitude dela. Principiava a com­preender Moira. Ela não havia tirado suas dúvidas, o que representava a dificuldade de dizer-lhe um firme "não". Ainda assim, ela o prantearia se fosse levado à forca. Iria chorar muito, talvez sem entender por quê. Deixando os pensamentos de lado, ele foi apagar o fogo, tomando o cuidado de deixar acesa uma pe­quena chama, que não lhes traria calor, mas serviria para espantar animais. Em seguida, removeu as botas e tomou lugar debaixo da coberta. Posicionou perto de si, além de uma faca afiada, a espada rústica que descobrira na cabana de pescador. Antes de virar o corpo, sorriu para Moira, que se mantinha de costas. Num impulso, ele pousou o braço na cintura dela.

Sem olhar para ele, Moira empurrou-lhe o braço, alarmada com a liberdade que Tavig julgava ter junto a ela.

— Nada disso! Você fica do seu lado, eu do meu! — determinou.

— Um homem deve embalar sua noiva...

A sutil, inebriante sensação de estar com Tavig, que vinha rondando sua mente, desvaneceu-se com aque­las palavras. Ocorreu-lhe que a constante referência ao casamento poderia esconder algum objetivo libidinoso. Afinal, ponderou, se ele a convencesse a abra­çar essa meta, ela acabaria por relaxar na proteção de sua castidade.

Moira girou o corpo para fitar Tavig e abominou as sombras que recobriam a expressão dele.

— Esse é o seu jogo, não? — indagou.

— Meu jogo? — Tavig identificou a raiva conti­da na voz rouca e admitiu que dera um passo errado, ao tentar abraçá-la.

— Sim, você me decepciona ao agir como um con­quistador barato, de alguma taverna. Quer que eu acre­dite em sua ladainha sobre casamento, sobre ser sua noiva, e assim me faria ceder a seus instintos, pensan­do que dormir com você não seria um grande pecado.

— Céus! — ele contrapôs, surpreso. — Sua men­te abre pensamentos perigosos, que me confundem. Mocinha, se eu procurasse apenas prazer e diversão, nunca teria utilizado as palavras "casamento" e "noi­va". Cuidarei de não lhe dar pretextos para reclamar de mim. — Colheu-a nos braços, segurando-a firme­mente a fim de calar qualquer protesto. — Simples­mente, eu a seduziria.

— É muita arrogância! — Moira cessou de se debater, mas permaneceu tensa de encontro a ele, avaliando se tanta proximidade era algo bom ou ruim. — Nem toda garota pode ser seduzida.

— Sim, sei disso. Na verdade, eu não tentaria se­duzi-la. — No íntimo, Tavig pediu perdão pela men­tira, pois sua intenção secreta era transformar Moira em sua amante. — Não tenho necessidade de fazê-lo. Somos companheiros, formamos uma dupla que o destino converterá em par amoroso.

— Você continua dizendo absurdos!

— Mesmo? Não sente o elo entre nós?

Moira era capaz de sentir alguma coisa, mas sem a certeza de que podia falar em laços românticos ou sensuais com Tavig. Com beijos suaves, ele esquenta­va a curva de seu pescoço até o ombro. Um calor gen­til ondulava pela mente, onde se mesclava a lampejos de raiva e desconfiança.

Para Moira, um elo de amor era construído em anos de familiaridade com uma pessoa que despertasse calma e segurança. O que Tavig fomentava dentro dela era algo novo: quente, forte e... assustador. Conside­rava que, de fato, ele a vinha seduzindo. Ao mencio­nar os laços do matrimônio, só tencionava satisfazer o mais fundamental dos desejos. Tinha medo da inten­sidade desse desejo e de sua própria fraqueza.

— É injusto para comigo você fazer o jogo da luxúria — ela protestou, surpresa com a rouquidão da voz. — Sou uma donzela bem-nascida, não uma moça sem moral.

— Bem, garota. Embora admitindo que você me deixa muito excitado, não estou propondo nada de mais. — Tavig passou a dar-lhe beijos rápidos em todo o rosto, movido pelos sinais de paixão que havia detectado nela. — Como pode não sentir nossa pre­destinação? Pensa que falo de casamento a qualquer mulher quase afogada que conduzo à praia?

— Desconheço o que você fala a outras mulheres — ela refutou. — E só ontem comecei a dialogar com você.

— É verdade, mas já a perdoei por ter me tratado tão friamente.

— Você é mesmo um bufão, Tavig MacAlpin! Só lhe falta uma fantasia de palhaço! — ela o desafiou.

— O que eu fiz para você não confiar em mim? — Ele pareceu magoado.

— Além de estar condenado pela morte de dois homens?

— Já sabe que não fiz isso. — A fala soou rouca, o olhar dele foi de perplexidade, combinado com um sorriso estranho.

Moira entendeu que a maneira de Tavig examiná-la era não só intimidativa como entediante.

— Ainda estou pensando se acredito em sua histó­ria de inocência ou não.

Ele pousou os lábios na cavidade de uma orelha de Moira, que estremeceu.

— Não há em que pensar — afirmou.

— Você é arrogante, Tavig! — Estremecida, ela agarrou a frente da camisa dele, na tentativa de reunir forças para empurrá-lo para longe de si. — Deveria ter mais respeito pela inocência de uma mulher e seu desejo de conservá-la.

— Mocinha, julgo que você poderia divertir-se com qualquer homem da Escócia, e ainda assim perma­necer donzela. Mas o amor de quem quer se casar com você não pode ser descartado.

— Decidi ignorar essa idéia maluca de casamento — ela rebateu.

— Continua pensando desse modo, agora? — Ele distribuiu beijos suaves nas faces dela aproximando-se da tentadora boca de Moira.

— Sim, e por isso lhe peço que me solte.

— Soltá-la... — Tavig murmurou, e depois atritou levemente seus lábios contra os dela.

Na realidade, Moira não desejava encorajá-lo. Uma pontada de ressentimento cortava a corrente de sua excitação. Tavig teria de aceitar sua recusa em dar seqüência ao jogo, mesmo ao custo de parecer desalmada. A irritação durou pouco, todavia. Um tremor forte, instintivo, lhe percorria o corpo. Nunca havia sido beijada antes, e queria desesperadamente des­cobrir como era. Prometeu a si própria conceder um único beijo a Tavig.

Ele captou a aquiescência e selou a boca de Moira com a sua. Também por instinto, ela curvou o braço em torno do pescoço de Tavig, que a apertava pela cintura e apreciava o momento de intimidade. Uma promessa de paixão os rondava, e Tavig sofria para concretizá-la, embora ciente de que não poderia apressar Moira. A vida com sir Bernard deixara nela marcas de mágoa. Ele sabia que precisava agir gentilmente para suavizar aquelas feridas.

Movendo as mãos pelas laterais do corpo de Moira, ele retraçou com delicadeza o corpo esguio. Ela fez pressão contra Tavig, levando-o a pensar como seria difícil proceder com cuidado. No entanto, acelerar o ritmo das carícias poderia destruir o clima passional daquele momento, e então ele se apegou à promessa de ir devagar.

Quando fitou Moira de perto, quase perdeu o fôle­go. À luz baça da lua, pôde ver o rubor do arrebata-mento nas faces dela. As pálpebras se achavam semi-cerradas, os lábios brilhavam, úmidos, e ele sentiu os seios pequenos e firmes subindo e descendo em ritmo acelerado.

— Abra seus lábios, Moira — solicitou.

— Para quê?

— Logo vai saber.

Moira teve alguns segundos de hesitação. Tavig ainda não havia feito nada de atemorizante. Mas quan­do entreabriu os lábios e escutou um gemido, passou a duvidar da atitude dele. Não houve tempo para resistir. Tavig comprimiu a boca quente contra a sua, intro­duzindo a língua entre seus lábios. Ela colou-se a ele enquanto cada movimento lançava fogo em suas veias. Sem noção de tempo e espaço, sentiu-se preenchida com o deleite sensorial que ele lhe proporcionava.

Em silêncio, Tavig deitou-a na cama improvisada e cobriu-lhe o corpo com o seu, acentuando as carícias. Só então ela lutou contra os instintos. Sentia-se tão feliz que queria prosseguir, mas, dentro de sua ino­cência, Moira deu-se conta de que as coisas estavam indo longe demais. Recordou os conselhos da velha Annie, sobre nunca ficar tão perto de um homem.

No instante em que arquitetava a melhor forma de afastá-lo, Tavig parou. Apoiou sua testa na dela e inalou grandes haustos de ar. Um minuto depois, de­sabou para o lado, quieto, mantendo apenas o braço sobre seu tórax.

— Acredito que já teve o bastante, mocinha — ele disse, com voz suave e rouca.

— Certamente. — Mesmo roída de desejo, Moira julgava mais sábio parar.

— Você me tentou — aduziu Tavig, levantando-se, — Comporte-se melhor, caso queira manter sua castidade.

Para ela, a alegação de Tavig era incompreensí­vel. Como e quando o havia provocado? Na hora em que ele riu, ela tornou-se ainda mais agitada e teve vontade de estapeá-lo. No entanto, sua mão afagava o braço dele. Recolheu-a como sinal de protesto.

— Desculpe-me — sussurrou, certa que de Tavig usaria o dobro de força a fim de revidar um soco dela.

— Desculpar pelo quê? — Ele franziu a testa. — Esperava que eu batesse em seu traseiro?

— Não, claro que não! — Moira sentiu-se confusa com tais palavras. — De qualquer modo, não pode­ria fazer isso, pois já estou sentada nele. — Ela levou a mão à própria boca, chocada por ter se exprimido daquela maneira, e completou: —Você me influencia mal, Tavig MacAlpin!

Rindo, ele inclinou-se para beijá-la na testa.

— Mentira. Que mal há em um pouco de humor, mesmo se for levemente grosseiro? Mostra que você pode ficar à vontade comigo.

— Mas por que eu desejaria ficar à vontade com um homem acusado de dois assassinatos?

— Você me magoa.

— Duvido de que tão pouco baste para machucá-lo — Moira contrapôs antes de bocejar. Fingiu não resistir quando ele a puxou para si, e então pestanejou. — Preciso dormir, sir Tavig.

Ele esperou ouvir dela um voto de bom sono, mas só obteve silêncio. Ficou observando-a, presa em seus braços. Era evidente que Moira decidira deitar-se sem falar mais nada com ele. Sorriu e aninhou-a mais confortavelmente contra seu corpo. O sorriso se am­pliou quando Moira emitiu um suspiro, abraçando-o com prazer, como que numa aceitação da intimidade.

— Ah, garota. Logo veremos o que o destino nos reservou. Tenho de curar alguns ferimentos que Bernard infligiu a você. — Osculou a cabeça dela com paixão. — Apenas rezo para ter a paciência e a capacidade de fazê-lo.

 

— Suponho que não vai acreditar em mim se disser que encontrei isto largado na mata. Moira focalizou o pão comprido, intato, que Tavig lhe apresentava, depois fitou o homem com malícia.

— Tem toda a razão. Não vou mesmo — ela disse.

Após dois dias de jornada rumo ao norte, por terras primitivas e quase desertas da Escócia, Moira pensava ter convencido Tavig a não roubar nada. O pão tenta­dor era uma sólida prova de que fora ingênua. O pior era lidar com as emoções conflitantes em seu íntimo. Embora julgasse Tavig MacAlpin um homem bom, ele conseguia furtar coisas com facilidade e sucesso. A idéia de roubar lhe era repugnante, contudo an­siava por provar daquele pão. A fome rapidamente ofuscava sua moral.

Sentando-se na clareira, ao lado dela, Tavig usou seu canivete para cortar uma boa fatia do alimento.

— Foi um milagre — ele declarou, — Simplesmente o pão apareceu em minha mão. Deus compreende nossas necessidades.

— Não blasfeme, Tavig MacAlpin! — contra­pôs Moira. — Esperava fazer esta viagem sem furtar nada.

— Bem, minha querida, lamento decepcioná-la, mas sua esperança é irracional. Mesmo se continuar­mos ingerindo dois pratos de sopa por dia, estaremos sem comida lá pelo fim da semana. — Tavig sorriu ao passar a ela o pedaço de pão. — Nenhum de nós é acostumado a marchas tão longas e penosas.

— E isso faz diferença? — Moira irritou-se con­sigo mesma por achar delicioso o alimento.

— Oh, sim. Tamanha luta requer toda a nossa ener­gia. É preciso comer bem para enfrentar o desafio.

— Você sabe inventar desculpas.

— Não desculpas, mas fatos.

— Talvez, mas enquanto nos saciamos, o dono do pão provavelmente passará fome.

— Não. Eu nunca tiraria comida de alguém que precisasse muito dela.

— Mas como sabe que este pão estava sobrando? — Com o cenho franzido, Moira não dava o braço a torcer.

— Porque eu o peguei na cozinha de uma bela casa, próxima daqui. Havia outros cinco iguais na mesa e muitas panelas cheias no fogão.

Ela esquivou-se de Tavig quando ele quis enlaçá-la pela cintura. Estava curiosa demais para permitir-lhe tanta familiaridade.

— Quer dizer que, de uma rica cozinha, você só tirou um pão e fugiu? — Aceitou de bom grado uma segunda fatia.

— Pensa que foi fácil? — Ele meneou a cabeça vigorosamente. — Quando meus problemas termina­rem, voltarei e direi ao fazendeiro que os guardas da propriedade são omissos. Pagarei pelo pão, alertan­do o bom homem para a falta de segurança em suas terras. Estava tudo aberto e vulnerável, como um mosteiro.

— Excelente idéia — Moira elogiou. — Seria triste saber que o fazendeiro foi ferido ou morto por ser tão confiante. — Ela contemplou o céu. — Já é tarde. Restam poucas horas de luz.

— Verdade — Tavig concordou. — Vamos retomar a marcha em minutos.

Ele guardou o pão restante no farnel, sorriu vaga­mente e trouxe Moira para seus braços. Ela tentou parecer contrariada, mas era cada vez mais difícil resistir a Tavig. Como de hábito, posicionou as mãos no peito dele, com a intenção de empurrá-lo. Intenção baldada pelo toque cálido dos lábios quentes nos seus. O bom-senso e a moralidade recomendavam que ela se opusesse ao contato, porém, como no caso do pão, ela admitiu que era fraca demais para recusar algo que desejava tanto.

Passou os braços pelo pescoço de Tavig enquanto ele repetia os beijos rápidos, mordiscantes. Após um momento, ela se colou ao corpo dele, requisitando silenciosamente o beijo pleno e completo que ele adiava. Um gemido escapou de sua garganta quando Tavig por fim atendeu sua súplica. Um forte calor apoderou-se dela, centrando em seu baixo-ventre. Ocasionalmente, ouvira falar de mulheres que queimavam de desejo por um homem. Agora, era sua vez.

— Ah, garota, você tem a boca mais doce que já experimentei — ele sussurrou, de encontro à nuca que percorria com os lábios.

— A sua não é ruim — ela devolveu, sorrindo.

— Muito envaidecedor! — Foi o comentário dele.

Os dedos longos atritaram a curva dos seios de Moira, que estremeceu sob a força da excitação do­minante. Rilhando os dentes, ela desviou-se do toque. Ficou calada, torcendo para que ele não notasse quão motivada ela se achava. Pretendia, de algum modo, descobrir em si a energia necessária para lutar contra a atração que Tavig lhe despertava.

— Melhor voltarmos à trilha — propôs, maldizen­do a rouquidão na voz.

— Você não pode continuar fugindo de mim — contestou ele, ao mesmo tempo que apanhava o saco de viagem e recomeçava a andar.

— Não sei do que está falando — Moira afirmou, apressando-se atrás dele.

— Claro que sabe. Estamos predestinados um ao outro. Sente isso no próprio sangue, quando ele ferve de desejo.

— Quanta pretensão!

Tavig deixou a zombaria passar em branco, mas logo comentou:

— Você cresceu tão reprimida que não entende o que seu corpo e seu coração lhe dizem. Por isso, desaprova isso e me evita. Mas, sou paciente. Posso esperar até que você assimile a verdade.

Atrasada, Moira focalizou as costas dele, ponde­rando como era possível arder de paixão por aquele homem, num minuto, e querer chutar-lhe o traseiro, no minuto seguinte. Tinha consciência de que sua maior irritação se devia ao fato de Tavig adivinhar como ela se sentia. Quando aceitou a mão dele a fim de escalar uma pedra mais alta, receou que ele pudes­se ler sua mente. Esse temor logo se desvaneceu, por ser infundado. Se fosse verdade, ele daria risada ou esca­paria para longe dela.

Ele me conhece muito bem, ou possui a aptidão de decifrar minhas expressões faciais, meditou. Se qui­sesse omitir algum segredo emocional ou sensação física, teria de apelar a alguns truques. Já havia apren­dido a esconder o medo e a raiva de Bernard. Não lhe custaria nada barrar sentimentos e emoções do alcance de Tavig.

— Já era hora de chover — Moira resmungou, procurando acomodar-se no abrigo de galhos e panos que Tavig havia preparado para os dois.

— Mas é pena chover durante nosso tempo de descanso. Podemos perder o sono. — Ele cortou um pedaço do pão roubado naquela manhã. — Isto é tudo o que teremos para comer esta noite, pois não posso acender um fogo sem madeira seca.

— Julga que estou menos preocupada com o fur­to do alimento? — Ela enrolou-se na manta e engoliu um naco de pão.

— Não, sei que você se apega firmemente a sua desaprovação.

— Nem tanto, pois não me recuso a comer desta iguaria. Espero que não me critique por isso. — Ela suspirou e esfregou os pés doloridos.

— Por que não tira essas meias rasgadas e estende os pés na chuva, por alguns minutos?

— Ora, ficarão molhados e frios como gelo.

— Engano seu. A água irá suavizar a dor que você tenta disfarçar. — Tavig deparou com o olhar de descrença por parte de Moira. — Confie em mim. Tenho experiência. Já caminhei muitos quilômetros, descalço ou de botas apertadas. Sei bem como esse incômodo aflige uma pessoa. Nada encontrei de me­lhor do que um banho frio nos pés. Não é igual a mergulhá-los numa bacia, mas tente e verá.

Com a ajuda dele, Moira removeu as meias. Subiu um pouco a saia e esticou as pernas pelo vão do abri­go, até que seus pés passassem a receber a água da chuva. Teve de admitir que era bom. O ar frio da noi­te completava a ação dos pingos, e ela suspirou de alívio. Encarou o sorriso satisfeito de Tavig.

— Você é uma moça teimosa, Moira Robertson. — Ele riu, balançando a cabeça.

Ela notou que o seu súbito e instintivo lampejo de medo tinha sido percebido por Tavig, pois a risada se dissipou, e ele a fitou, muito sério. Na casa de Bernard Robertson, ser chamada de teimosa constituía o prelú­dio de uma agressão a tapas ou castigos ainda maio­res. Apesar do curto tempo na companhia de Tavig, ela sabia que ele não a trataria como seu tutor, mas os receios longamente cultivados a impediam de vivenciar a diferença.

— Não entendo por que tem medo de mim — ele a desafiou.

— De você não temo nada — ela disse, contrariando sua expressão. — Meu medo vem de uma lembrança.

— Uma lembrança?

— Sim. Você me chamou de teimosa, e recordei-me das surras que levava logo após ouvir esse termo.

— Então, devo pesar cada palavra que dirijo a você? — Tavig aborreceu-se.

— Não, pois seria injusto para você e não me aju­daria a sossegar. Preciso aprender que, quando alguém me diz alguma coisa que meu tio costumava falar, isso não significa que essa pessoa vá agir igual a ele. Preciso aprender a ouvir além das palavras, captar o tom. Não havia raiva nem censura em sua voz. É o que me falta para recuperar a serenidade.

— Pelo visto, sir Bernard dizia pouca coisa que não fosse seguida de um ato de brutalidade.

— Às vezes, ele não falava nada. Era quando se tornava ainda mais perigoso. — Moira estremeceu, e não por causa dos pés gelados sob a chuva. Recolheu-os, dando a Tavig a chance de massageá-los e calçá-los com as meias.

Ela nunca havia confidenciado a alguém, dados so­bre sua vida com Bernard Robertson. Costumava fazer uma ou duas alusões ao que a incomodava, e então caía em silêncio. Foi o que aconteceu naquele mo­mento. Tavig sentiu como se Moira o descartasse, mas racionalmente sabia que não era o caso. Ele ponde­rou até quando a sombra do fidalgo iria pairar sobre ela, sobre ambos.

— Nem todos os homens são como o seu guar­dião — complementou, ajeitando Moira a seu lado, deitada, no interior do abrigo.

— Sei disso. Lamento se o ofendi.

Com um leve beijo nos lábios macios, Tavig a calou.

— Não é preciso se desculpar. Enquanto você aprende a avaliar melhor as palavras, eu devo parar de pensar que cada surto de medo é dirigido a mim. Sir Bernard lhe ensinou duras lições. Você necessita de tempo para superar isso, embora eu possa lhe asse­gurar de que nunca mais terá de viver dessa maneira.

— Ah, e como planeja realizar a façanha?

— Convencendo você a ficar comigo.

— Mas seu futuro, prezado cavalheiro, é demasiado incerto. Não vejo como partilhar uma cela com você seja melhor do que viver com meu tutor.

— Não serei levado às galés. Assim que encontrar meu primo Mungan, contarei com a ajuda necessária para lutar contra Iver.

— E isso provará sua inocência?— Ela reclinou-se mais pesadamente no colo dele.

— Não, mas ninguém acredita que matei aqueles dois homens. Meu povo em Drumdearg sabe exa­tamente quem foi o assassino. No entanto, tentarei ser reconhecido como inocente, para que todos me aceitem assim. — Tavig meneou a cabeça. — Penso o tempo todo em recuperar o que me foi roubado e fazer Iver pagar por seus crimes. É verdade, porém, que pela extensão que os boatos tomaram preciso limpar meu nome.

— Vai ser difícil clareá-lo completamente — Moira opinou.

— Você sabe mesmo me incentivar, não? — Tavig sorriu, resignado, e ela deu uma risada sonolenta.

— Mas tem razão, outra vez. É injusto, digno de uma praga, mas as pessoas que me interessam conhecerão a verdade.

— Por que está tão certo de que seu primo Mungan o acolherá, em vez de entregá-lo a Iver?

— Mungan sempre detestou Iver e desconfia dele. — Tavig aplicou um beijo no topo da cabeça de Moira.

— Não se preocupe, garota. Ele nos dará segurança e explicará os planos que tem para sua prima Una.

— Suponho que ele a viu de longe, apaixonou-se e a raptou. E você?

— Não, Mungan não é dado a esses arroubos ro­mânticos. É um homem bom, por isso tenho certeza de que sua prima está ilesa e saudável. Se ele decidiu raptar uma mulher para si, tomará conta dela e lhe será leal, mesmo sem recitar palavras de amor. No entan­to, se Mungan foi colhido por um sentimento novo, por que pediu resgate para devolver Una?

— Talvez tenha perdido o sentimento ao descobrir que Una não o quer.

— Duvido. Mungan não é esse tipo de pessoa. Certa vez, pendurou um menestrel pelos pés e balançou o pobre-coitado sobre a mesa, porque ele só entoava canções de amor, e Mungan desejava ouvir músicas militares e hinos de guerras vencidas pelos escoceses.

Com a pálpebras pesadas de sono, Moira lançou um último olhar a Tavig.

— E ainda quer que eu me sinta segura com esse louco?

Ele gargalhou, depois acomodou-se para dormir, contra o tronco de árvore que utilizara ao improvisar o abrigo.

— Meu primo não matou o menestrel, matou? Também não o deixou suspenso por mais do que o necessário, e nem o feriu. Mungan é excêntrico, mas inofensivo. Garanto que com ele ficaremos bem. Jamais machucou uma mulher ou uma criança.

Moira não reprimiu um sonoro bocejo.

— Você tem uma família de excêntricos, Tavig MacAlpin.

Ela adormeceu, protegida pelos braços dele. Tavig lhe examinou os pés e anteviu o desconforto que ela ainda sofreria. Pena que não poderia carregá-la no colo até a propriedade de Mungan. Ao menos tirou-lhe da face alguns fios de cabelo, almejando que ela confias­se nele, o amasse e decidisse permanecer a seu lado para sempre. Restavam dez dias até o destino final. Era muito a caminhar, pensou ele, e mesmo assim o tempo lhe pareceu curto demais.

Moira gemeu de leve e passou o braço pelo pescoço de Tavig enquanto ele, com a boca, esquentava seus lábios. O beijo derrotou o frio que lhe invadia o cor­po, bem como outras dores e desconfortos. Tudo foi repentinamente substituído pela paixão. Ela pressio­nou o corpo contra Tavig, absorvendo-lhe o calor, saboreando a sensação trazida por seus músculos sinuosos.

Ele deslizou as mãos por seu corpo e apertou-a contra si. Sentiu a rigidez na virilha masculina e suspirou de prazer no momento em que ele lhe colheu os seios, por baixo da roupa. Moira chegou a arquear-se ante o toque, mas depois um lampejo de razão dissipou a entrega passional que sombreava sua mente. Desprezando a carícia, ela pôs-se de joelhos e a cabeça roçou no teto do abrigo. Olhou fixo para Tavig.

— Seria mais fácil você ter dito apenas bom dia — ela queixou-se. Notando o dia claro do lado de fora, rastejou na direção da luz.

— E o que eu estava fazendo, ao beijá-la? — Tavig também arrastou-se para o exterior do pequeno abrigo. Espreguiçou-se à claridade do sol.

— O que fez foi me pegar desprevenida e tentar impor seu estilo de conquista.

— Meu estilo? Aparentemente, você gostou de minhas cadeias.

— Não é o que penso, sir Tavig. — Ela ignorou o sorriso malicioso dele e andou até atrás de uma árvore, onde se aliviou.

De retorno, ainda recompondo as roupas, Moira percebeu que seus pés continuavam a doer. Achou injusto não poder usar os toques curativos de suas mãos em si mesma e curar a própria dor. Caso ten­tasse, correria o risco de Tavig descobrir o alcance daquele dom. Da experiência passada, ela sabia que o emprego da dádiva a deixaria extenuada, completa­mente incapaz de esboçar qualquer outro gesto pelo prazo de meia hora ou mais. Com certeza, Tavig estra­nharia que, com os pés curados, ela não conseguisse dar um passo sequer.

Contrariada, encontrou-o na clareira, terminan­do de preparar a fogueira para o cozimento da sopa. Queria muito compreender melhor sua estranha habilidade. Talvez assim não teria tanto medo de que os outros soubessem de seu dom. Tristemente, admi­tiu que aquele poder de cura era um mistério para si própria. Às vezes, um mistério aterrador.

Ainda que Tavig possuísse um dom capaz de le­vantar superstições, ela o imaginou apavorado com sua capacidade. Por isso, não havia confiado seu segredo a ele. Temia ter a mente invadida por ele, horrorizava-se com a idéia de que ele pudesse extrair tudo dela ou, ao contrário, passasse a evitá-la.

— Então, minha querida? Continua amuada por causa de meu beijo de bom-dia? — ele indagou, sentando-se à beira do fogo.

— Não sei como você pode distorcer tanto a rea­lidade e parecer tão inocente. Um bufão! Aliás, não penso que é um palhaço, apenas disse que se parecia com um.

Ela teve de agradecer pelo prato de sopa que rece­beu de Tavig.

— Sua opinião sobre mim se altera com espantosa rapidez — ele comentou.

— Engana-se se julga que perco meu tempo for­mando opiniões sobre você.

Sorrindo vagamente, Moira admirou-se com a faci­lidade com que tinha voltado aos velhos dias, quando utilizava a língua ferina para enfurecer seu guardião e tutor. Seu espírito nunca havia morrido por com­pleto, mas somente recuado, tornando-se mais sua­ve, mais quieto. Era surpreendente que Bernard não lograsse anular esse espírito, como ela chegara a temer quando espancada. Por outro lado, era admirá­vel como aquele antigo temperamento tinha sobrevi­vido e se reafirmado.

Enquanto lavava os pratos, ela decidiu que gos­tava de si mesma, de sua maneira específica de ser. Existia perigo e desconforto na situação presente, mas também jamais se sentira tão livre, com o cora­ção tão leve. O retorno à rotina ao lado de Bernard, a uma vida de medo e cautela, seria extremamente penoso. Arrepiava-se só de pensar nisso.

Olhou para Tavig, que se certificava de ter apagado por completo o fogo. Morar com Bernard represen­tava tamanha infelicidade, que ela sentiu-se capaz de esquecer todos os motivos que a afastavam de Tavig. Não desprezaria mais o que ele lhe oferecia. Longe dos punhos do tio, ela poderia deixar de lado o bom-senso e permanecer na companhia de seu novo defen­sor, por mais arriscado que fosse.

No curto período em que estivera com ele, começara a apreciar sua liberdade redescoberta. Sabia bem que talvez não tivesse outra oportunidade. Tavig não tinha noção do presente que lhe dera, mas ela era profundamente agradecida.

— Pronta? — ele perguntou, recolhendo os pertences.

— Sim. — Ela suspirou dramaticamente ao segui-lo pela trilha. — É pena que não exista um caminho mais rápido ou que não saibamos voar. Por acaso você tem um primo que more mais perto?

— Não. — Tavig contemplou o céu e um sorriso iluminou seu rosto. — Seria ótimo voarmos como os pássaros. Pouparia nosso tempo e nossos pés...

— Mais do que ótimo. Mas se você tem casa perto daqui e Mungan vive no norte, o que foi fazer no sul?

— Tive a tola idéia de falar com o rei da Escócia. Ou com um de seus assessores. Queria contar o que sei, como pretendia agir. Mas o preposto do rei me mandou embora, dizendo que à Coroa não cabe tra­tar de interesses particulares e que eu cuidasse do assunto pessoalmente, com a ajuda de parentes.

— Julgou que o soberano do país gostaria de ver de perto os feudos e as batalhas campais?

— Ele já tem muito com que se preocupar. No momento, sua atenção está centrada nos limites geográ­ficos da nação e nos ingleses, que pleiteiam parte do território. É uma área litigiosa. Voltei em busca de Mungan, quase fui apanhado pelos asseclas de Iver e então descobri o navio. Disfarçado, eu estaria seguro em alto-mar.

— Foi quando sir Bernard e eu aparecemos para arruinar sua fuga.

— Você não arruinou nada. Talvez tenha prolon­gado meu problema, mas, como já disse, estávamos predestinados. Se bem que o destino poderia ter en­contrado um modo mais suave de nos conhecermos.

Moira arqueou a sobrancelha, pensativa, antes de se pronunciar:

— Acho que não acredito no destino tanto quanto você.

A descrença se estampou nos olhos de Tavig, o que a aborreceu. Ele tinha o direito de julgar que ela apenas se gabava da própria incredulidade, mas não o de ser petulante quanto a tal assunto. Segundo ela, o destino, se existisse, tinha cometido um grande en­gano ao juntar os dois. Nem sempre os fados promo­vem um final feliz para os casais que formam.

Como Moira não havia contado a Tavig sobre seu dom especial, ele podia fiar-se totalmente no desti­no. De alguma maneira, porém, ela se manteria atenta para vencer tudo o que ele atribuía a uma invencível fatalidade.

Um grito de susto escapou da garganta de Moira, quando Tavig subitamente apareceu a seu lado. Durante a semana que haviam passado juntos, ela ainda não se habituara à maneira silenciosa como ele se movimentava.

Ele a deixara escondida entre os densos arbustos que cresciam no limite da floresta, enquanto seguia em frente a fim de fazer o reconhecimento do vila­rejo próximo. Seu isolamento, que durou uma hora, aumentou-lhe o nervosismo. Chegou a antever que Tavig sofreria uma emboscada e uma morte horrível a caminho da vila. Daí o alívio, temperado com sur­presa, que a tomou apesar do modo como ele a havia assustado.

— Então, podemos ir ao vilarejo? — perguntou, afligindo-se quando ele sentou-se perto e rodeou os ombros dela com o braço.

— Parece seguro, embora seja um lugar pobre. Os habitantes têm expressão abatida, como se fossem maltratados pela vida. Não sei se vale a pena. Difi­cilmente encontraremos botas para você ou roupas novas. Um de nós terá de trabalhar por uma refei­ção fresca e, talvez, um quartinho para passar a noi­te. — Tavig arriscou um beijo na curva do pescoço de Moira, que não teve reação. — Você está fria com seu marido.

— Você não é meu marido!

— No entanto, teremos de nos passar por um legíti­mo casal, enquanto estivermos no vilarejo. As pessoas nos receberão melhor se acreditarem que somos marido e mulher.

— Não podemos ser parentes? Primos? Ou irmão e irmã? — Moira tentou esquivar-se da proposta.

— Nós não nos parecemos, mocinha.

— Primos não precisam ser parecidos.

— Mas podem ser amantes, e aqueles aldeões pro­vavelmente sabem farejar qualquer sinal de pecado.

Moira admitiu que sua teimosia era injustificável, mas resolveu prevenir-se.

— Está bem. Então nos fingiremos de marido e mulher, mas não por completo.

— Ah! — Tavig levou o outro braço à cintura de Moira e girou-a de modo a tocar-lhe os lábios com a boca. — Sem beijos roubados?

— Sem — ela murmurou, agradavelmente envolta no calor do contato.

— E nenhum abraço apertado também — com­pletou ele, simulando decepção. — Nem dormirmos lado a lado sob o mesmo cobertor.

— Nada — Moira confirmou, entendendo que Tavig tentava seduzi-la de novo, e de novo ela o repelia sem grande sucesso.

Ele atritou-lhe os lábios com os seus, provocando arrepios de prazer e uma reação instintiva de fechar os olhos. Ela permitiu ser cingida com força pelos braços vigorosos de Tavig, que aprofundou o bei­jo até ela entreabrir a boca e receber a língua que se insinuava provocante. Enquanto o enlaçava pela nuca, ela refletiu que era patético resistir aos avanços dele, tanto quanto repetir negativas simulando convic­ção. Prometeu a si mesma que só concederia a Tavig um beijo por dia.

Mas foi lenta e longa a carícia então recebida, e Moira saboreou cada segundo. O modo como seu sangue esquentava quando ele movia as mãos costas abaixo, até as nádegas, a levou a lamentar a decisão de opor-se à tentação que a vida lhe apresentava.

Não podia esquecer que a virgindade era seu único dote. Embora fossem reduzidas suas chances de um casamento honesto e frutuoso, ela não jogaria fora sua virtude por um breve momento de paixão. Desejava que a paixão despertada por Tavig fosse menos intensa e embriagadora. Por vezes, quando sentia o calor do corpo dele próximo ao seu, à noite, percebia-se ques­tionando mentalmente a vantagem de apegar-se a sua castidade.

— É melhor chegarmos ao vilarejo antes que to­dos terminem a jornada de trabalho — disse assim que Tavig pôs fim ao beijo.

— Tem razão. — Ele a soltou de seus braços e mostrou-se pronto para partir. — Você precisa parar de me distrair...

Desfilando na mente todas as pragas que pudesse pensar, Moira recusou a mão oferecida por Tavig e limpou-se de folhas aderidas à roupa. Aquele homem sabia ser irritante. Não era de admirar que certas pes­soas desejassem vê-lo morto. O primo Iver, por exemplo. Provavelmente, não cobiçava os bens materiais de Tavig, mas não suportava mais as provocações dele. Em seguida, porém, ela desculpou-se, ainda que em silêncio, por fazer graça com a situação desesperada de seu salvador.

No momento em que Tavig tomou-lhe a mão, na entrada do vilarejo, ela novamente quis livrá-la, mas lembrou-se de que deviam comportar-se como marido e mulher. A idéia de Tavig demonstrara que ele era um esperto sobrevivente. Por isso, ela decidiu ser sábia e fazer tudo o que lhe fosse solicitado. Menos aceitar, é claro, que o falso marido torcesse as cir­cunstâncias em seu favor.

Tavig marchou pela única rua do povoado com um garbo que assombrou Moira. Ninguém o confundiria com um homem procurado pela Justiça. No entanto, os moradores lançavam olhares pouco amistosos para eles, e ela começou a imaginar que a amargura daque­las pessoas se devia a algo maior do que uma rotina árdua. Observou a torre do castelo senhorial que se elevava na colina, no fim da rua.

— Lugar sombrio, não? — murmurou Tavig.

— Não gostaria de ter que olhar para isso todos os dias.

Nos lados da via de terra batida, alinhavam-se ca­sas pequenas e modestas, a atestar como era triste a existência de seus ocupantes. A torre do castelo proje­tava uma comprida sombra sobre tudo e todos. Moira sentiu um calafrio. A similaridade com os criados de Bernard era grande demais para ser ignorada.

Quando Tavig parou, à entrada de uma estalagem, ela colocou-se junto dele. O dono da hospedaria, gordo e calvo, equilibrava-se sentado num pequeno banco, do lado de fora. Um sorriso ácido surgiu em sua face envelhecida no momento em que Tavig falou sobre um quarto e uma refeição.

— Perfeitamente, senhor. Posso instalar o casal agora mesmo, no melhor quarto do estabelecimento. — Examinou-os, ambos cheios de pó e em farrapos.

— É bom ter algum cliente de novo, embora jovens andrajosos como vocês não possam pagar. Juro que o velho fidalgo local consegue ouvir os estalidos da cama, quando um hóspede se deita, e vem correndo cobrar sua parte na diária.

— Existe a possibilidade de arranjarmos emprego no vilarejo? — Tavig quis saber.

— Receio que não, rapaz. Ninguém passa por aqui se puder achar outro caminho.

— Então, por que os moradores não vão embora? — Moira perguntou, curiosa.

— Estamos atados ao nosso fidalgo. — O estalajadeiro ergueu ambos os ombros. — Mesmo os que romperam os laços de servidão não ousam partir, porque o senhor local fez muitos inimigos e agora somos cercados por pessoas que nos odeiam. Se al­gum de nós for encontrado fora dos limites das terras senhoriais, arrisca-se a ser morto. Aconselho que con­tinuem sua viagem. Se ficarem aqui, muitos começa­rão a pensar que são exilados ou que desejam negociar com os moradores. Há muitos espiões espalhados pelas redondezas.

— Eu tinha esperança de conseguir um par de botas para minha esposa, além de um bom pote de sopa. — Tavig virou-se para olhar de um lado a outro da rua.

— Bem, podem tentar a viúva Giorsal. Ela reside no último casebre, deste mesmo lado. Só teve um filho, e foi assassinado pelo senhor feudal. Pode precisar de algum trabalho. — O dono da estalagem olhou para Tavig e Moira. Tinha simpatizado com os dois.

— Mas entendam, a viúva não possui um centavo, porém dispõe de um quarto vago e de boa comida caseira.

— Obrigado pelo grande favor — Tavig agradeceu.

— Não há necessidade, rapaz, Um último conse­lho: não mostre demais suas bonitas feições ou as de sua mulher. Foi por ter um belo rosto que o filho da viúva Giorsal foi assassinado. Não acreditem em qualquer outra versão. — Após uma pausa, o homem idoso exprimiu-se com a voz embargada: — A linda e jovem filha de minha irmã foi levada à torre, depois da derradeira colheita, e nunca mais a vi. A formosura pode constituir uma maldição, nestas terras.

Logo que se distanciaram do estalajadeiro, Moira sussurrou a Tavig:

— Acho melhor partirmos daqui.

— Vamos tentar, primeiro, ganhar teto e comida da viúva. Ambos precisamos disso, e muito.

O avanço dos dois foi dificultado pela pequena multidão aglomerada na saída de uma capela. Uma jo­vem senhora meneava a cabeça enquanto ouvia elo­gios à criança a seu lado. Tavig ficou tenso quando observou a menina em questão. Era saudável e bonita, com cachos dourados e pele bem rosada.

Ele sentiu algo estranho: o arrepio de uma premo­nição. A criança acenou para um homem alto, do outro lado da rua, e começou a correr naquela direção. Sem saber por quê, Tavig tinha de manter a menina junto à mãe.

— Não, menina. — Ele a segurou pelo bra­ço e, para não assustá-la, afagou o rosto da criança. — Fique aqui.

— Preciso ver meu pai — ela berrou, procurando livrar-se das mãos de Tavig.

— Não, deve ficar aqui.

A mãe apressou-se em acudir a menina.

— Solte minha filha! Por acaso, você é um desses demônios que roubam crianças e nem mesmo as dei­xam crescer? — Ela estendeu os braços para acolher a menina.

Tavig levantou a criança em seu colo, fora do alcance da mãe.

— Não sou um ladrão de crianças — ele disse. — Se esperar um minuto, posso explicar tudo, mas a menina precisa ficar distante da rua.

— Está maluco? — Tavig notou o exame que a mãe fazia de sua deplorável figura. — A pobrezinha só quer ver o pai.

Naquele momento, um homem alto se aproximou e passou a bater em Tavig, que defensivamente abra­çava a menina em seu colo, sem poder revidar. Viu o rosto de Moira entre a multidão que aumentava. Ela estava pálida e temerosa, mas tentava manter as pes­soas longe.

No momento em que os pais estendiam os braços para a chorosa criança, um som tempestuoso roubou a atenção de todos. Uma tropa de homens armados galopava rua abaixo, no sentido da torre. Os cavalos levantavam poeira e não poupavam nada que estivesse à frente. Um senhor idoso viu-se empurrado para o lado e diversas galinhas foram atropeladas pelas patas dos animais.

Agora, Tavig sabia com certeza por que fora compelido a tirar a menina da rua. Ela nunca alcan­çaria a outra margem em tempo, sem ser seriamente ferida.

Os soldados passaram ao largo da torre e desapa­receram na floresta próxima. Por um tenso minuto, ninguém falou nada. Depois, lentamente, todos os olhares se fixaram em Tavig. Ele entregou a crian­ça aos pais e sentiu a mão de Moira colher a sua. Desejava fortemente nunca tê-la trazido ao vilarejo, pois a raiva e a suspeita começavam a evidenciar-se no rosto dos presentes.

— Bruxo! — murmurou uma senhora de idade.

— Não — rebateu Moira. — A senhora está sendo injusta. Ele apenas viu os cavaleiros despontando no fim da rua.

— Mas esse homem adivinhou o que ia acontecer — disse uma mulher grisalha, a esticar um dedo acu­sador para Tavig. — Ninguém mais viu os soldados. Ele é um feiticeiro!

— Saia daqui, Moira — ordenou Tavig. — Corra.

— Não posso deixá-lo sozinho — ela protestou.

— Seja esperta! Corra para salvar sua vida! — Era tarde. Muitos já os cercavam, e então ele gritou: — Esta mulher nada tem a ver com o problema. Deixem que ela se vá.

Tavig lutou para livrar-se de dois homens que o seguraram, porém outros dois já se acercavam, de punhos cerrados. A visão de Moira sendo grosseira­mente manietada por um grandalhão robusto o enfu­receu. Passou a usar de mais força para defender-se. Viu um de seus captores erguer um porrete, e nada pôde fazer para evitar o golpe.

Moira gritou ao constatar que Tavig tinha sido atingido na cabeça e sangrava. Desacordado, ele de­sabou nos braços dos agressores, enquanto ela procu­rava soltar-se das mãos do brutamontes que a prendia, mas o homem apertou-lhe ainda mais os pulsos.

— Fique quieta, bruxa, ou receberá o mesmo tratamento de seu companheiro! — rosnou o captor no ouvido de Moira.

Impossível duvidar, por isso ela parou de debater-se e deu graças por conseguir respirar. Um jovem intrometeu-se e anunciou que Moira e Tavig seriam detidos no depósito da hospedaria, até que o padre viesse julgá-los. Ela conteve um grito de horror ao ouvir, de uma pessoa entre a multidão, que o clérigo só passaria pelo vilarejo no prazo de quinze dias.

Pouco depois, cercado de testemunhas, o dono da estalagem abriu o alçapão no chão dos fundos da taverna, permitindo que os dois acusados de bruxaria fossem atirados para baixo. Moira machucou-se ao cair no solo do depósito, mas o pior era ver Tavig inconsciente, antes que a escuridão tomasse conta do recinto com o fechamento do alçapão. Protestou, porém ninguém lhe deu ouvidos.

Tateando a cabeça de Tavig, ela concluiu que o ferimento não era grave. Correu as mãos pelo corpo dele. Felizmente, não havia ossos quebrados. Ele logo acordaria. Passou a apalpar a si própria com cautela, e também não encontrou fraturas. O que a aterrorizou, no entanto, foi o barulho de ratos. Detestava ouvi-los sem poder ver nada, embora a situação não fosse nova.

Seu tutor gostava de prendê-la em celas sombrias, infestadas de roedores. Dessa vez, felizmente, não estava sozinha, o que a fez sentir-se mais calma.

Moira pegou entre as suas as mãos inertes de Tavig, aninhando-se junto a ele. Seria uma espera angustiante, até que despertasse.

Com resmungos e imprecações, Tavig abriu cami­nho de volta à consciência. Sentiu a cabeça pousada numa superfície macia, mas ela doía intensamente. Dedos pequenos, um tanto ásperos, lhe acariciavam a testa. Recordou-se dos acontecimentos e descerrou os olhos, ansioso por ver Moira, mas apenas se deparou com a escuridão. Ficou alarmado. Decorreu um minu­to até ele perceber que sua visão não tinha sido afe­tada pelo golpe na cabeça, simplesmente estava num porão sem luz. Mexeu-se um pouco, admirado como o toque das mãos de Moira o confortava e aliviava sua dor.

— Eu devia ter deixado a maldita menina morrer no meio da rua — resmungou.

— E passaria o resto da vida tomado pela culpa — Moira contrapôs. — Como está sua cabeça?

— Parece partida ao meio. — Tavig franziu a testa. — Mas já está parando de latejar.

— Ainda permanece inteira. Acho que nem mes­mo um porrete consegue quebrar uma cabeça tão dura — Moira conseguiu gracejar.

— Ah, obrigado. Onde estamos? Por um instante, temi ter ficado cego. Não podia enxergar nada.

— Fomos jogados no porão da hospedaria. Acho que estaremos seguros até que um padre venha nos julgar, por bruxaria. Escutei que ele chega somente dentro de uma quinzena. — Ela estremeceu, e Tavig procurou suas mãos no escuro. — Existem ratos aqui.

— Eles não farão nada se um de nós se mantiver acordado. Se este é o lugar onde o dono da taverna armaneza suprimentos, os ratos têm muito a comer antes de nos incomodar.

— Não fale assim. — Ainda trêmula, Moira olhou em volta, sem ver coisa alguma. — É asqueroso.

— Fique tranqüila, encontrarei um canto para nos abrigarmos. — Devagar, ele tentou se sentar, surpre­so pelo fato de seu movimento não intensificar a dor na cabeça. — Desculpe-me pela brincadeira.

— Seus gracejos são imperdoáveis — ela murmurou, mas sem animosidade. — Julga que alguém nos trará água e comida?

— Ah, sim. Desejam que encaremos o padre vivos e saudáveis. Mas existe o perigo de algum cidadão afoito querer nos julgar por conta própria.

— Não sei se é tão perigoso. Um padre pode ser mais severo em seu julgamento do que uma pessoa comum.

— É verdade, porém no geral todos são intoleran­tes. — Ele sentiu Moira tremer e procurou abraçá-la.

— Gostaria de dizer algo que melhorasse seu humor.

— Prefiro ouvir a verdade, ainda que dolorosa. Se ao menos não fosse tão escuro aqui...

Tavig beijou-lhe os cabelos. Havia detectado medo na voz dela. Isso gerou uma onda de ternura para com Moira. Sabia que ela lutava por um pouco de coragem, e a necessidade de transmitir-lhe segurança o afligiu. Não via nenhuma chance de fuga ou resgate para ambos, contudo rechaçava a idéia de que o destino, numa mudança de rumo, tivesse reservado a eles uma morte inglória, antes que se tornassem amantes e se casassem.

Procurou convencer-se de que o futuro imediato de ambos não era um túmulo frio.

— Devia ter corrido quando eu pedi.

— Eu me sentiria covarde, deixando você sozi­nho nas mãos dos agressores supersticiosos e idiotas. Também há uma razão prática para ficarmos juntos. Você é o único que conhece o caminho até a casa de seu primo. Eu nem faço idéia de onde estou. Como iria sobreviver?

— Ah, e eu aqui cultivando a esperança de que você ficou para cuidar de mim.

— Não deixe a vaidade plantar bobagens em sua mente...

Em resposta, Tavig sorriu e continuou a beijar os cabelos de Moira. Tinha certeza de que ela se preocu­pava com ele, sobretudo após ver-lhe o rosto assustado em meio à multidão e ouvir seu grito de horror ao ser golpeado. Talvez a afeição dela fosse menos profunda do que gostaria, mas era patente que existia um sen­timento caloroso por ele, atrás do desejo sensual que ela não conseguia esconder.

— Pena que, agora, isso de nada lhe servirá — sussurrou em tom quase inaudível.

— O quê?

— Estava apenas maldizendo minha estupidez...

— Não devemos esquecer que você foi atirado neste porão por salvar a vida de uma criança. A ingra­tidão do povo foi inaceitável. — Moira sentiu Tavig mover-se de novo, até sair de seu alcance, e essa ausência reacendeu-lhe os temores. — Onde está indo?

— Perto. De qualquer modo, não há muito espaço livre aqui. Minha cabeça parou de doer e quero ex­plorar o local, descobrir, algo de útil para nós. Você viu alguma coisa antes que fechassem o alçapão?

— Não, estava ocupada com minha queda pelos degraus, batendo todos os meus ossos. — Para sua surpresa, Tavig encontrou suas mãos no escuro e as afagou.

— Fomos jogados neste porão?

— Sim, como sacos de arroz.

— Não se feriu?

— Alguns arranhões, só isso. Você caiu muito mais pesadamente do que eu.

— Agora compreendo por que meu corpo todo dói. Pensei que o motivo fosse a brutalidade com que me arrastaram, depois da pancada na cabeça. — Ele soltou a mão de Moira e afastou-se.

Pouco depois, ela o escutou gritar de surpresa e ficou tensa.

— O que houve? Está tudo bem?

— Sim. Encontrei um barril de cerveja, que pode nos sustentar por algum tempo. Descobri também peças de queijo, penduradas em ganchos.

— Quer se embriagar antes de ser executado? — Moira brincou, percebendo o toque de Tavig em seu braço. — Você pode ver no escuro?

— Ninguém será executado — declarou ele em voz firme, antes de beijá-la na face.

— Teve essa premonição? — Para Moira, era o primeiro fio de esperança quanto a escaparem dali.

— Gostaria de dizer que vislumbrei claramente nossa fuga, mas não. Nada vi. — Sentiu Moira cam­balear de leve em seus braços. — Não acredito que vencemos tantos riscos para terminar assim. Nosso destino não pode ser este. Lembre-se dos caminhos que fomos forçados a percorrer: fui alertado sobre a armadilha de Iver, sobre sua queda do navio, sobre mi­nha iniciativa de resgatá-la das águas. Por que Deus nos conduziria à morte depois de tantas graças?

Moira não soube responder. Suspeitava de que toda pessoa, diante da proximidade do fim, pergun­tava a mesma coisa, pleiteando clemência. No entan­to, ela e Tavig eram inocentes de qualquer erro ou transgressão.

No intimo, tentou convencer-se de que ambos se­riam declarados isentos de culpa e libertados, mas era improvável. Haviam sido chamados de bruxos, e tal acusação costumava valer por uma sentença de mor­te. Não tinham defensores nem dinheiro para lastrear sua defesa. Tavig nem mesmo poderia alegar que era um fidalgo e proprietário de terras, pois tal informa­ção o lançaria nas mãos assassinas de seu primo Iver. Parecia não haver salvação possível.

Essa idéia perturbadora seguiu viva em sua men­te quando Tavig roçou os lábios nos seus. Como de hábito, ela enlaçou pelo pescoço. Todavia, dessa vez o beijo foi uma mescla de paixão e desespero.

Ele a deitou no chão duro e frio, e ela não ofere­ceu resistência. Ao contrário, saudou as carícias que recebia em seu corpo. Se fosse para morrer, ao me­nos conheceriam antes a plenitude do desejo que os abrasava.

— Agora, chega disso!

Tavig demorou alguns segundos para dar-se conta de que tinha ouvido uma voz estranha. E outros mais para desfrutar o rosto de Moira, porque surgira uma luz naquela prisão. Embora constatasse um ar de embaraço e um toque de esperança em seu olhar, ele se afastou, suprimindo o contato dos corpos.

Piscou repetidas vezes a fim de ajustar a visão à cla­ridade. Achava-se ao mesmo tempo contente e aborre­cido por não ter tido tempo de remover nenhuma peça da roupa dela. Moira estava pronta a fazer amor, disse ele tinha certeza. Por isso, lamentou que a abertura do alçapão não ocorresse um pouco mais tarde.

— Melhor que tenha uma boa razão para a sua vi­sita — rosnou Tavig, reconhecendo no alto da escada de cordas o musculoso dono da hospedaria.

— Você e sua mulher podem terminar o que faziam em outro lugar — o homem com um sorriso malicioso.

Tavig levantou-se e ajudou a suposta esposa a ficar de pé.

— Vai nos deixar sair? — indagou ao improvisado carcereiro.

— Sim, rapaz. Até parece que você teve mais uma visão — o estalajadeiro falou, enquanto Tavig apressava Moira a subir. — Não considero a premonição uma qualidade ruim, especialmente quando ela salvou a vida de minha netinha.

O proprietário da taverna puxou Moira pelo pulso auxiliando-a a ganhar o patamar superior. Ela suspirou ao ver seis outras pessoas reunidas ali, e sentiu alívio quando reconheceu em meio ao gru­po os pais da criança. Tavig veio logo atrás dela e a puxou para perto de si, o que a deixou mais tranqüi­la. A remota esperança de fugir incólume do vilarejo agora parecia real.

— Por que permitiram que nos detivessem? — perguntou, um tanto admirada com a mudança de ânimo daquelas pessoas.

— Sinto muito por isso — respondeu a mãe da me­nina salva do tropel. — Ficamos confusos, pensan­do que seu marido iria roubar nossa criança. Agora, tivemos tempo de entender o que houve. O povo os chamava de bruxos e a conseqüência foi inevitá­vel, naquela hora. Decidimos que seria mais seguro esperar, e depois resgatá-los desse porão.

— Mas correrão perigo por causa disso — con­trapôs Tavig. — Ou conceberam uma boa explicação para nossa fuga?

— Claro — assegurou o dono do lugar. — Há objetos úteis no depósito. Temos barris de bebida que podem ser empilhados até a boca do alçapão, cuja tampa deixaremos aberta. Uma marreta servirá para simular como você a abriu. E mais: alguém me dará um soco no queixo, assim poderei mostrar como fui dominado. Não tenham receio, só irei gritar por socor­ro depois de passada uma hora. Porém vocês devem andar depressa. Cheguem o mais longe possível das terras de nosso senhor feudal.

— Como saberei se ultrapassei os limites da propriedade?

— Tome a direção norte, e quando cruzar um pequeno córrego estará fora deste lugar maldito. São quilômetros de distância, mas duvido de que alguém os siga. Em todo caso, como falei, estamos cercados de inimigos. — O taverneiro devolveu as armas de Tavig, liberando-o para fugir.

— Não seria melhor aguardarmos até o anoitecer?

— Seria, mas o povo escalou um guarda para vo­cês, imaginando que eu quisesse dormir um pouco. Por precaução, saiam já.

— Mostre-me qual a porta exata. E obrigado pela ajuda. — Agarrando Moira pela mão, Tavig acompanhou seu benfeitor, mas foi brevemente interrompido.

— Aqui estão água e comida para a viagem. — A mãe da menina colocou nas mãos dele um cantil e um farnel volumoso. Nas de Moira, uma sacola. — Também incluí um par de calçados e algumas roupas femininas. Acho que vão servir.

Tavig temeu o exame feito pela mulher na figura de Moira, medindo-lhe o tamanho. A inspeção poderia revelar que ela não estava em farrapos, apesar de tudo. Tinha calosidades nas mãos e pés, era verdade, mas seu traje era de evidente qualidade, não obstante os rasgões. Ele preferia evitar mais suspeitas.

— Obrigado, senhora. Usaremos seus presentes, sem a menor dúvida. Agora vamos, Moira.

Ela também agradeceu, apertando a mão direita da mulher, e de imediato percebeu o erro, talvez fatal. A mão era encarquilhada, quase em forma de garra, e aos dedos faltava a capacidade de flexão. Aquela mãe, por certo, vivia torturada pelo defeito físico e pelas dores que devia sentir. Em silêncio, disfarçando sua expressão de surpresa e piedade, Moira terminou o que havia começado, e pela força da mente pôs fim ao sofrimento da pobre mulher, que arregalou os olhos na mesma medida de seu alívio por recuperar a mobi­lidade da mão.

Logo ao notar que seu dom de curar nada mais po­dia fazer pela bondosa senhora, Moira soltou-lhe os dedos, agarrou a sacola de roupas e seguiu Tavig.

Flora Dunn observou demoradamente o casal que se distanciava a passos largos, depois olhou para sua mão. Abriu e fechou os dedos diversas vezes, até notar que seus familiares a fitavam, espantados. Sem pala­vra, ela saiu à rua, apertando a mão do marido. Não sentiu dor. Enquanto os olhos do esposo se arregala­vam, os dela se encheram de lágrimas. Um por um, estreitou as mãos dos parentes, e todos a fitaram com um misto de surpresa e confusão.

— Que milagre curou sua mão? — perguntou o pai, exatamente o dono da hospedaria, afagando-lhe os dedos agora lisos e macios.

— Aquela mulher a segurou por alguns instantes, atritou-a, e meus problemas desapareceram — foi a resposta.

Uma senhora idosa acercou-se e tocou Flora, a fim de conferir a novidade.

— Vejam só! Eles de fato são bruxos — disse.

— Não, mamãe — rebateu o taverneiro. — Quando foi que bruxas e feiticeiros praticaram algum ato de bondade? Minha filha superou a deformidade na mão, e minha neta está viva e saudável, em vez de ferida ou morta pelas patas dos cavalos. Veja, aquele rapaz tem o dom da premonição, e sua jovem esposa possui o poder de curar pelo toque. Deus os preserve. Fomos abençoados duas vezes.

— Mas acho que ele desconhece a dádiva dela — murmurou Flora. — Com o olhar, ela me pedia silên­cio e segredo sobre o que fez.

— Bem, os dois tomarão uma trilha perigosa. Logo o rapaz descobrirá o segredo da mulher, se ela tiver de usá-lo em seu benefício. Receio que enfrentarão problemas na viagem.

— Tavig, podemos descansar? — Moira pediu, sem retardar as passadas sobre o caminho de pedriscos.

— Preciso recobrar o fôlego.

Parecia-lhe que avançavam em ritmo rápido fazia horas. Não suportaria mais um quilômetro naquelas condições. Incomodavam-na os pés feridos, a sacola de roupas aparentava estar cheia de tijolos.

— Mais um pouco, querida. Acho que à frente o ar é mais fresco. Posso ouvir o som de água corrente.

Um riacho.

— Sim, também escuto — ela concordou.

Amaldiçoou-se por ser covarde, e mesmo assim olhou para trás pela centésima vez, verificando se não eram seguidos. A mulher cuja mão deformada ela havia curado não fizera escândalo, porém seus fami­liares poderiam perfeitamente mudar de atitude e vir ao encalço dos supostos bruxos. Agira por impulso e quase pusera tudo a perder. Seu segredo, uma vez exposto, despertaria a ira de muitos e isso tornaria a fuga inviável.

Já havia arriscado bastante quando presa com Tavig. Ele deduziria que, por meio de toques, ela tinha banido a dor latejante em sua cabeça. No entanto, para ela fora impossível ficar sentada naquele porão, sem ajudar Tavig. Decidira correr o risco de ter seu poder revelado, mas o fato de ele estar inconsciente, durante o processo de cura, manteve o dom protegido. Já no caso de Flora Dunn, ela cometera um grave equívoco, capaz de, pelo menos, lembrá-la de ter cautela.

— Aí está — Tavig anunciou, estudando o riacho que precisariam atravessar.

Moira veio para o lado dele e preocupou-se ao ver o fundo rochoso do córrego. Não sabia avaliar com precisão a profundidade das águas, mas, como inexistia qualquer ponte, cruzar o riacho significava ficarem totalmente molhados. Ou se afogarem.

— Parece fundo, frio, e corre depressa — ela co­mentou. — Suponho que não poderemos contornar seu curso.

— Vamos simplesmente atravessar para a outra margem. Este é o limite de terras ao qual o taverneiro se referiu.

— Como conseguirá carregar sua bagagem junto comigo no colo?

Tavig riu e entrou na água, chamando Moira para secundá-lo. Quando ela o atendeu, emitiu um grito por causa do líquido frio que lhe molhou as pernas. Ela rapidamente equilibrou a sacola de roupas no alto da cabeça e segurou-o com uma só mão. Balbuciou im­propérios durante toda a travessia, divertindo Tavig. A seqüência de queixas a ajudou a controlar o medo quando, no meio do pequeno rio, a água subiu até sua cintura, gelando-a até os ossos.

— Pronto! — ele exclamou. — Já estamos em terra firme, sãos e salvos.

— Mas ensopados até a alma. — Moira colocou a sacola no chão e torceu, no próprio corpo, a saia molhada.

— A água estava um pouco fria — afirmou Tavig.

— Um pouco! Puro gelo. Posso contrair pneumo­nia e morrer.

— Ora, pare com isso — ele solicitou, acomodando Moira no solo, a seu lado. — O sol está forte, o céu livre de nuvens, e ficaremos secos em minutos.

Sem grande demora, ele pegou a mão dela e guiou-a através de um denso bosque. Já percebera que as reclamações de Moira constituíam um meio de abafar o próprio pavor. Desse modo, ela não hesitava em prosseguir e provava ser dona de uma energia sur­preendente. Tinha demonstrado isso no vilarejo, ao permanecer junto a ele, em vez de se evadir quando podia.

A idéia de Moira vir a morrer, no entanto, o preocupou, mesmo ciente de que ela gostava de predizer a morte de ambos a cada novo obstáculo. Havia cismado com a saúde dela logo ao pôr o pé na água do córrego. Tratava-se de uma mulher franzina, delica­da, e ele pensava em como poupá-la. Queria esco­lher depressa um lugar para acampar, onde acenderia uma fogueira destinada a aquecê-la e secar-lhe a rou­pa. Também planejava roubar um cavalo e cumprir o restante da jornada com mais conforto e velocida­de, embora percorrer a estrada sob sol intenso fosse igualmente arriscado.

A pé, em cerca de uma hora, ele acharia uma clarei­ra segura, pensou, e então Moira teria todas as condições de se manter saudável. No entanto, sua busca no interior do bosque demorou quase duas horas. O sol caiu no horizonte e o calor cedeu rapidamente. Numa elevação rochosa, ele encontrou o melhor ponto para acamparem e passarem a noite. Além disso, a clareira se ligava a uma trilha, ao norte, e caso fossem desco­bertos por algum inimigo, teriam a chance de escapar, subindo a colina.

Ele não tardou em cavar um buraco na terra, e acender uma fogueira. A despeito do empenho em disfarçar seu estado, Moira tremia.

— Tire essa roupa molhada, mocinha — ordenou, empunhando sua pedra de acender fogo. Já havia uma pilha de gravetos sobre o buraco, e ele protegeu com as mãos a centelha produzida pela pedra. As chamas começaram a crepitar, esquentando o ambiente.

— Não vou ficar nua aqui — Moira argumentou, mas ciosa de que era uma providência crucial.

— Ninguém pode vê-la. Estamos sozinhos na colina.

— Mas você está aqui — ela rebateu.

— Prometo virar de costas e não olhar. — Tavig retirou do saco de viagem, abastecido na cabana de pescador, uma coberta, que abriu e ergueu à altura do rosto. — Tire toda a roupa molhada, depois se enrole neste cobertor, para se aquecer.

Ele esforçou-se por desviar a vista, porém o sua­ve farfalhar de roupas femininas sendo retiradas o fez refletir que o sacrifício de não espiar Moira estava acima de suas forças. Caso olhasse, por cima da manta, ela não notaria nada ou então tenderia a relevar aque­la quebra de confiança. Preocupado em não arruinar seu relacionamento com ela, ele hesitou, até ceder à tentação.

Moira tirava os remanescentes da camisola que lhe servira de camisa. Aos poucos, revelou-se por in­teiro. Tavig sabia ser difícil, doravante, tratá-la com delicadeza e reprimir sua excitação, após ver o corpo pelo qual ansiava.

Os seios de Moira, embora pequenos, eram perfeitos, e os bicos rosados estavam rijos devido ao vento frio. Tavig engoliu em seco, fantasiando como eles vibrariam dentro de sua boca.

Não havia nenhum excesso de carne naquele corpo de estrutura harmoniosa. Ela lhe recordava um belo potro. A cintura era delgada, os quadris suavemente arredondados. A despeito da baixa estatura, Moira tinha pernas longas, muito bem torneadas, e pele alvíssima. Imaginou também como seria tocá-la nas coxas e partes íntimas. Rezou para que ela não o tives­se flagrado num ato de sensual espionagem.

Assim que Moira terminou de se trocar, ela puxou a manta estendida no ar, a fim de cobrir-se, e ele afas­tou-se até o fogo, sorrindo como um bom cumpridor de promessas. Não podia deixar que ela constatasse eu estado de excitação. Após embrulhar-se na coberta, Moira veio sentar-se a seu lado. Aparentemente concentrado na preparação do jantar, deu-lhe pouca atenção. A tarefa se tornara difícil, naquele momento pois ele falhava em apagar da mente a imagem de Moira nua, gemendo de prazer debaixo de seu corpo.

A virilha chegava a doer. Nada falou, pois a necessi­dade urgente de fazer amor não lhe saía da cabeça.

A pausa para a refeição, também feita em silêncio, o acalmou. Tavig improvisou pequenas estacas onde Moira pôde pendurar as roupas que precisariam estar secas na manhã seguinte. Depois, tratou de arrancar alguns galhos e, junto à reentrância de uma rocha, montou um abrigo para passarem a noite. Era ótimo, pensou, permanecer ocupado com coisas práticas.

Ainda protegida pela manta, Moira abriu a sacola de roupas que havia ganhado no vilarejo. Inspecio­nou-as e então olhou para Tavig. Os trajes eram gran­des, mas seriam úteis. Eram feitos de tecido rústico, e ela decidiu não vesti-los sem pôr a camisola, que protegeria sua pele.

Observou Tavig, que mal havia falado com ela, e preparou-se para ouvir provocações. Aquele homem adorava fazê-la corar. Lavou os pratos de madeira com água e areia, tentando ignorar a presença dele, mas a tarefa falhou em distraí-la completamente.

No olhar seguinte, percebeu que ele estendia com capricho, no chão do abrigo, os panos sobre os quais se deitariam. Ficou nervosa porque ele parecia zan­gado e, desse modo, perigoso. Decidiu permanecer calada, porém sentiu que lhe faltava o direito à omis­são. Tinha de saber o que o perturbava. Suspirou fundo e se aproximou dele.

— Tavig? Fiz alguma coisa que o enfureceu?

Quando ele a encarou, Moira instintivamente retro­cedeu. Ouviu-o praguejar, e então sentiu um tremor. Apesar de suas intenções de mostrar-se resoluta e co­rajosa, pôs-se tensa, encolhendo-se com os braços ao peito. Ele a segurou pelos ombros e deu-lhe um leve empurrão. O problema, para Moira, não era a eventual dor de um castigo, mas quem o aplicava. Queria desesperadamente que Tavig fosse diferente dos outros homens.

— Não fuja de mim — ele pediu.

— Você parece esquisito e bravo.

— Não estou zangado, mas, se estivesse, não faria diferença. Pense, minha tímida Moira, o que você fez para me deixar irritado?

Ela franziu a testa, aflita porque a situação tinha tudo para acabar numa briga.

— Não fiz nada — disse em tom convincente.

— Bem, e não fiquei aborrecido com você, mas com outras coisas. As roupas que ganhou não servem?

Tavig deixou de desafiá-la com o olhar, e ela rela­xou um pouco, embora fosse estranha a maneira como ele havia mudado de assunto. Logo sentiu as mãos dele a atritar seus ombros nus. A carícia mesmo leve, a levou a inclinar-se na direção dele. Segundos depois, notou que ele examinava o cobertor que ainda se mantinha sobre seu colo graças a um nó na altura do busto.

Moira reconheceu então a expressão lasciva que Tavig exibira durante toda a semana anterior. O desejo que ele sentia era óbvio. Uma ardente lembrança dos abraços apaixonados que tinham partilhado na prisão passou por sua mente. A tensão sexual a contaminou. Tavig a desejava, e saber disso a tornava embria­gada de volúpia. Agora, ela almejava entregar-se sem restrições, como já havia acontecido nos momentos finais do cativeiro, sob o estigma da morte que poderia alcançá-los.

Subitamente, avaliou que apegar-se a sua inocência era a coisa mais correta, mais sábia a fazer. Todavia, não se importava mais em ser correta ou sábia. Para que guardar sua pureza até a hora de um casamento formal? Tal união poderia nunca ocorrer, ou even­tualmente sim, mas sem considerar seus sentimentos. Desejava Tavig com a força da sensualidade por tem­pos reprimida. Dispunha-se a sofrer alguma penalida­de por sua luxúria.

Num sinal claro de sua decisão, Moira afagou os cabelos do companheiro, obrigando-o a contemplá-la, porém ele retirou-lhe as mãos com aspereza. Sentou-se a fim de remover suas botas.

— Lamento, querida. Devemos descansar um pou­co. Durma tranqüila, pois não farei nada com você, por isso não se preocupe.

Ela ajoelhou-se diante da cama improvisada, enquanto ele retirava a calça.

— Mas pensei...

— Pensou o quê? Que eu estava faminto por você? Sim, isso vem desde o instante em que a conheci. Agora, a não ser pela manta, você está nua na minha frente, e seus ombros descobertos são instigantes. Sem falar do restante. — De ceroulas, Tavig não se importou em esconder sua excitação. — Estou mui­to motivado, sim, e minha virilha não me dá sosse­go. Mas não devemos ter pressa. Por mim, continuarei sonhando em tê-la em meus braços, mas não vou forçá-la. Deite-se e tente dormir.

Ele estirou-se no chão, e Moira, frustrada, qua­se sorriu ante a estudada suavidade da voz de Tavig.

Ele se comportara com honradez, mas com certeza não gostava de agir daquele jeito. Como conven­cê-lo de que não necessitava mais portar-se qual um cavalheiro?

Isso iria exigir ousadia da parte dela. No mínimo, Tavig a julgaria inconseqüente ou, pior, descobriria que ela tinha avaliado mal a profundidade de seu desejo.

Suspirando fundo, Moira exprimiu-se em tom suave:

— Talvez você não precise mais ser tão gentil co­migo... — Tomada de surpresa, viu Tavig mover-se depressa e, por sua vez, ajoelhar-se à sua frente.

— O que disse? Não sei se ouvi corretamente, mocinha.

— Falei que não precisa ser tão respeitador... — ela repetiu, ruborizada.

As mãos dele, um pouco trêmulas, alcançaram o laço abaixo do ombro de Moira e principiaram a desfazê-lo.

— Se começarmos, não haverá volta — ele a alertou. — Nós nos tornaremos amantes.

— Eu sei — ela o tranqüilizou. — Já decidi. Não faço questão de morrer pura e, caso venha a me casar, não poderei escolher o noivo. — Percebeu, admirada, que os dedos dele não trabalhavam mais sobre o nó da manta que a recobria, tendo migrado para os cabelos que ele tanto apreciava afagar. — Por que hesita?

—Vejo muito medo em seus olhos. É imperioso que eu tenha certeza do que você quer. Senão, estarei me precipitando ou dando um passo errado. E isso só aumentará seus receios.

De novo. Como Moira o convenceria de que sabia exatamente o que desejava? Já havia demonstrado estar pronta. Já tinha declarado que não pretendia manter sua castidade por mais tempo. O que mais poderia dizer?

O instinto a alertou de que palavras eram insufi­cientes. Teria de agir. Assustada com a própria audá­cia, ela desatou a manta e deixou-a cair em torno dos quadris.

Tavig resmungou algo incompreensível enquanto se deslumbrava com a beleza nua de Moira. As sen­sações que o invadiam eram tão fortes, que ele ficou paralisado. Ela estava se oferecendo inteira, tudo o que ele sonhara. Mas de súbito, sentiu-se temeroso de fazer alguma coisa errada: machucá-la, engravidá-la... Teria a habilidade necessária para dar vazão a seu desejo?

— Tavig? — ela murmurou, segurando a ponta da coberta.

— Não faça isso. — Sorrindo, impediu-a de cobrir-se outra vez. — Entenda que estou passando por um surto de covardia.

— Covardia? — Moira nunca poderia entender.

— Você é ingênua demais, é muito delicada. — Tavig correu um dedo pela extensão dos lábios ma­cios. — Por anos, você conheceu apenas o pior que existe nos homens. E eu confesso ter medo de desa­gradá-la, de não lhe dar prazer e somente ampliar sua infelicidade.

— Não temo você, Tavig. Admito que às vezes fujo ou me humilho, mas trata-se mais de um hábito do que pavor. — Ela respirou fundo antes de se aproxi­mar dele. — Também não sei fazer o que pedi para ser feito, mas, se me decepcionar, fique certo de que ja­mais irei culpá-lo. Tudo bem quanto a me entregar a você.

Um arrepio de desejo ondulou dentro dele. Abra­çando Moira, deitou-a na provisória cama. Tomou o rosto delicado entre as mãos e beijou-a com fervor, desfrutando o calor e a doçura daquela boca.

Moira sentiu que seu nervosismo se abrandava a cada contato dos lábios. Isso preenchia suas expec­tativas, a ponto de livrá-la de qualquer inibição. Por dez anos, não conhecera nem a felicidade nem o afeto. Embora Tavig tivesse omitido a palavra "amor", ele era bondoso, gentil e fazia seu sangue ferver. Isso, se­gundo ela, constituía o ponto mais próximo do amor que poderia trair. Depois de ver a morte de perto no vilarejo, sabia que as conseqüências de entregar-se jamais se igualariam ao remorso de continuar negan­do-se a Tavig.

Foi com satisfação e uma pitada de vergonha que ela viu Tavig remover a manta que cobria seus quadris. Inclinado sobre ela, ele a olhou com volúpia. Moira admitiu que seu eventual rubor era causado pelo pró­prio desejo. Era excitante ser contemplada com tanta paixão, por um homem como Tavig MacAlpin. Sabia, acima de qualquer dúvida, que ele a desejava. A por­tentosa rigidez na virilha não o deixava mentir.

— Ah, garota, você esconde muita beleza nesse corpo pequeno — disse ele, retirando o restante de suas roupas.

Um corpo masculino não era estranho a Moira. Os homens de sir Bernard por vezes se exibiam nus, e a privacidade dela não passava de um luxo. No entanto, jamais tinha visto alguém que se comparasse a Tavig. Os rápidos olhares que dispensara a outros nunca haviam reverberado em seu coração ou em seus senti­dos, a ponto de tirar-lhe o fôlego, como acontecia ago­ra. Aguardou que ele se deitasse sobre ela, apertou-o contra si e estremeceu quando os músculos de ambos se encontraram, pele com pele.

— Você é linda... Como seda quente. — Tavig cobriu-a de beijos.

— Também você é bonito — ela murmurou, deslizando as mãos pelas costas largas.

— Ainda é tempo de pararmos, doce Moira — avisou Tavig.

— Não quero parar. — Ela sentia a prova do desejo dele pressionando suas coxas, acendendo a excitação. — Pela primeira vez, em muitos anos, estou fazendo o que decidi. Algum problema?

— Não espere de mim uma resposta justa. Não quando estamos aqui nus, nos braços um do outro. Mas você merece um pouco de prazer, e eu rezo para poder proporcioná-lo. Não sou inexperiente, porém nunca possuí uma mulher como você, Moira Robertson.

— Se terminar como começou, vou apreciar muito nossa noite, sir MacAlpin.

Ela sentia-se bem nas mãos dele. A pele quente, a musculatura rija, os pelos das pernas que roçavam nela eram estimulantes de sua libido. Quando Tavig deslizou as mãos por seus seios, ela arqueou-se toda, reagindo ao suave contato. Em seguida, ele lhe acari­ciou os cabelos e, a partir da nuca, desceu a boca até os mamilos que o fascinavam. Ela deixou escapar um gemido de deleite ao constatar que os bicos estavam duros no atrito com a língua de Tavig. Ele demorou-se a sugá-los, e ela reconheceu que nunca tinha experi­mentado algo tão prazeroso. Sentiu o calor da paixão fluindo por seu corpo.

Tavig regozijou-se na mesma medida. Inundado de desejo, julgou difícil controlar as crescentes sen­sações. Cada um de seus toques inflamava Moira, e ela se estreitava contra ele, expressando sua ânsia por um prazer ainda maior. Lentamente, deslizou as mãos pelo ventre liso e com gentileza acariciou o tesou­ro, guardado por pêlos em caracol. Moira gemeu de prazer.

— Fique calma, minha querida — disse, tornando a beijá-la. — Não me enganei com você.

— Não? — disse ela, entregando-se com abandono às carícias.

— Abra-se para mim, sem medo de sentir prazer. Continuou a beijá-la no rosto, descendo pelo pescoço até encontrar novamente os seios.

— Tanto calor, doce calor... — murmurou. — Como você pode negar que somos predestinados?

— Isto é o que consigo tentar... para nós dois — ela respondeu, agarrando-lhe os ombros e prendendo-o com as pernas elevadas sobre as costas dele. — Tavig...

O nome sussurrado indicou que ela estava pronta para recebê-lo.

— Ah, minha doce Moira...

Ela ficou tensa ao sentir como Tavig procurava introduzir-se em seu corpo.

— Não quero causar-lhe nenhuma dor — ele declarou.

— Então, é melhor fazer isso depressa.

De olhos bem abertos, testemunhando a tensão no rosto de Tavig, Moira o sentiu penetrá-la, só uns pou­cos centímetros. Havia gotículas de suor acima de seus lábios. Num gesto gentil, ele a agarrou pelas nádegas e empurrou-se para dentro da fenda úmida. Houve dor, mas o fato tornou-se insignificante diante da sensação dos corpos unidos.

Devagar, ele correu as mãos pelos quadris de Moira, que saboreava a sensação de ter um homem dentro de si. No entanto, ele não se movimentava, o que a afligiu.

— Algo de errado? — perguntou, estranhando a própria voz, rouca e embargada.

— Machuquei você. Ouvi seu gemido de dor.

— Já passou, estou bem agora.

Moira o estreitou em seus braços, aumentando assim a proximidade entre ambos. Tavig estremeceu diante do toque que o incitava a possuí-la com plenitude.

— Se continuar me atormentando assim, mocinha, não serei capaz de me controlar até o minuto final.

— Não quero que se controle, Tavig — ela rebateu, segura de si e de seu prazer.

Beijou-o de leve, provocou-o com a língua e mol­dou-se à musculatura firme dele. Tavig já dera um ritmo regular às investidas, e ela instintivamente o acompanhou, movendo levemente as nádegas.

O ritmo intensificou-se até ela gemer debaixo do peso de Tavig, engolfada por um prazer indescritível, que lhe roubou o pensamento, a noção de onde estava. Colando-se ao corpo másculo percebeu que os movi­mentos dele se tornavam frenéticos. Então, ele gritou seu nome, os dedos cravados em sua pele. Ainda trê­mula e atordoada, ela o segurou contra si no instante do êxtase, após ele desabar em seu peito.

Moira não saberia dizer por quanto tempo desfrutou as sensações que vagavam por seu corpo, mas de súbi­to começou a tomar consciência de outras realidades. O chão duro passou a incomodá-la nas costas. O pescoço se achava quente e úmido, no ponto em que Tavig descansara o rosto. As inebriantes reações anteriores principiaram a desvanecer-se.

— Ignorava que podiam sumir — ela balbuciou, frustrada.

— O que podia sumir, doce Moira? — Tavig afrouxou seu abraço e apoiou-se no cotovelo para fitá-la.

— Não sei como chamar isso. — Ela evitou olhá-Io diretamente. — Foi um sentimento. Ou um conjunto deles. Mas não duraram tanto quanto eu gostaria.

— Ficou embaraçada quando ele riu. — Esqueça, falei uma tolice.

— Não, minha querida. — Ele lhe deu um beijo suave. — Você é toda fogo e doçura. Somente ri por­que você estava admitindo que sentiu prazer, sem conhecer o nome.

Quando Tavig ergueu-se da cama improvisada, ela ajeitou a manta sobre seu corpo, subitamente gelado. Certificando-se de que a espada e o punhal acha­vam-se ao alcance de sua mão, Tavig deslizou para baixo da coberta e estreitou Moira nos braços.

— Agora, você é minha — murmurou, passando os dedos pelos cabelos sedosos dela.

— Vai recomeçar aquela história maluca de casa­mento?— ela contrapôs.

— A maioria das mulheres não consideraria malu­ca uma proposta de casamento.

— Nem eu, se você não tocasse nesse assunto desde o primeiro dia. Como disse com clareza, seria pura insanidade nós nos casarmos. Aliás, também não precisamos nos casar por causa do que acabou de acontecer.

— Casados ou não, você é minha, Moira. — Ele sorriu ao dirigir-lhe um olhar atravessado. — Era justo que soubesse como me sinto a seu respeito.

— Humph! Além de arrogante, agora você des­ponta como autêntico senhor feudal, proprietário de pessoas.

— Depois do que nós partilhamos, acho que tenho direito a certa arrogância.

— Partilhamos? Significa que sentiu que em nosso ato havia algo diferente, não?

— Oh, sim, muito diferente. Já tive minha cota de amantes comuns.

— Acredite: não quero conhecer essa parte de seu passado — Moira murmurou.

Novamente ele riu, e depois beijou-a no topo da cabeça.

— Agrada-me ouvir essa demonstração de ciú­me. — Tavig ignorou o gesto de negação de Moira. -— Nenhuma dessas mulheres me deu o que você fez esta noite. Nenhuma me incendiou tanto. Dividimos aquilo que todo homem de brio sente vontade de com­partilhar. Não foi uma simples posse. Foi uma paixão sem freio.

Mas não foi amor, Moira pensou com angústia. Ela queria que Tavig a amasse. Com os corpos colados, tinha sentido que o amava, de modo profundo e incu­rável. Por que ele não admitia. Ela estava cansada de ouvir palavras bonitas sobre paixão, destino, fatalida­de. Desejava agora escutar Tavig gritando que sentia amor por ela.

Mas talvez fosse puro egoísmo, ponderou. Levá-lo a amar poderia ser cruel, mesmo que ela conseguisse desempenhar o papel de mulher amada. Não poderia se casar com ele sem instigar as perigosas superstições do povo a respeito deles. Mais sensato seria deixar Tavig acreditar que ela era apenas uma de suas aman­tes de ocasião. Então, somente sofreria quando tives­sem de se separar. Fantasiar com o amor dele atenderia apenas a sua vaidade.

— Eu... — Abafou um grito quando Tavig, sem aviso, cobriu-lhe a boca com a mão.

— Ponha sua roupa depressa — ele ordenou num murmúrio, usando a manta para apagar a pequena fogueira.

Moira obedeceu sem hesitação. Tomada de confu­são mental, vestiu-se em silêncio, apanhou a sacola e seguiu Tavig até o bosque adjacente. Ele rumou para a colina rochosa na qual havia identificado um bom esconderijo. Mas, a meio caminho, virou à direita, de onde o acampamento que tinha montado ainda era visível. A confusão dela aumentou. Chegaram a um grupo de árvores que margeavam um matagal. Ali ele depositou sua bagagem.

— Pensei que estávamos fugindo — Moira afirmou, parando ao lado dele.

— Estamos — disse Tavig, seco. — E continua­remos a fugir até eu saber quem nos persegue.

— Há alguém em nosso encalço? — Ela indagou, assustada com o som de cascos de cavalos.

— O taverneiro garantiu que ninguém do vilarejo ousaria atravessar o córrego. Creio nele, mas preci­samos descobrir quem está vindo pela trilha. Talvez tenhamos de mudar de caminho.

 

Seis homens parrudos, montados, frearam os cava­los na clareira abaixo do ponto de observação. O líder, o mais velho deles, desmontou e agachou-se diante dos restos da fogueira. Retirou sua luva e tocou as cin­zas, ainda quentes, numa ação para medir o intervalo de tempo.

— Pode ser que resolvam partir dentro de alguns minutos — Tavig disse, em tom esperançoso.

— Já devem saber que estamos perto — Moira declarou num sussurro.

— Sim. Penso que são os mesmos homens que o taverneiro temia tanto. Descobriram nossa fuga e saíram atrás de nós. — Ele ergueu o pesado farnel. — Melhor partirmos, querida.

— Melhor mesmo é virem conosco — recitou uma voz grave, desconhecida. — Você e sua querida.

Tavig girou e tocou a bainha de sua espada. Moira recuou quando ele usou o outro braço para protegê-la atrás dele. O homem que falara era enorme e vestia apenas um manto típico escocês. Sua longa lâmina já estava apontada para Tavig, bem como a de dois comparsas. Para Moira, era o fim de ambos.

— Agora, rapaz — acrescentou o homem. — Deseja realmente terçar armas com três espadachins, na frente de sua querida? Ofereço-lhe uma conversa com o velho Colin, se me entregar sua espada. E o punhal também, claro.

Praguejando em voz baixa, Tavig passou ao homem suas armas. Manteve um olho nos três sorridentes invasores enquanto apanhava seus pertences e os de Moira. Ela tremia, e ele passou o braço por seu om­bro, cônscio de que lhe dava uma precária segurança.

Escoltados, desceram até a clareira. Tavig encarou o homem que atiçava o fogo, reavivando-o. Como os outros se perfilaram diante dele, deduziu que se tratava do velho Colin. De cabelos longos e negros, era mais musculoso do que o normal para a possível idade. Parecia feroz em seu manto escocês e capuz de pele de lobo. No entanto, nada havia a temer no olhar firme do velho, nem maldoso nem cruel. Tavig rezou para que tal certeza nascesse de seus instintos, não de uma falsa esperança.

— Então, rapaz — disse Colin. — Conte-me por que está vagando por minhas terras.

— Acho que esse é o casal que fugiu do vilarejo — interveio um dos captores.

— Verdade, Lachlan. Justamente, quero ouvir por que saíram de lá como se os cães do diabo estivessem em suas canelas. Tem uma boa resposta para isso? — o velho Colin interpelou Tavig.

— Eu salvei a vida de uma menina pequena — ele respondeu com um sorriso. — Percebi que ela seria esmagada pelos cavalos da tropa do senhor feudal, e a puxei para fora da rua. Como ninguém mais pres­sentiu o perigo, o povo julgou que eu tinha usado algum truque diabólico e começou a me chamar de bruxo. — Vendo que Moira tremia à menção dessa palavra, abraçou-a com um pouco mais de força. — Minha mulher tentou intervir e também foi acusada de feitiçaria.

— Portanto, foram detidos para esperar o padre acender a fogueira...

— A família da criança resolveu nos libertar, em agradecimento.

— Como se chamam?

— Tavig e Moira.

— Não têm família nem amo?

— Não neste momento. — Tavig surpreendeu-se quando o velho sorriu.

— E para onde viajam?

— Para o norte, onde mora meu primo, sir Mungan Coll.

— Ah, um homem de bem. Respeitável e grande guerreiro. Um pouco excêntrico, mas um bom aliado se você conseguir bandeá-lo para o seu lado.

— Conhece meu primo? — Diversas fogueiras, munidas de grelhas, tinham sido acesas na clareira, e o cheiro de carne assada fez o estômago de Tavig reclamar de fome.

— O pai dele me presenteou com um pedaço de terra, contra a vontade de Mungan. No ano passado, seu primo retomou a área.

— Você lutou contra ele?

— Não. A terra não valia uma batalha, e Mungan Coll não é o tipo de pessoa que eu desejaria enfrentar. Seu ambicioso primo Iver já colocou um olho na propriedade.

Tenso, embora não sentisse nenhuma real amea­ça da parte do velho Colin, Tavig perguntou se ele o conhecia bem, e obteve resposta afirmativa.

— Convido você e sua mulher a sentar-se e comer um naco de carne de veado, com cerveja. Não precisa temer nada. — Eles aceitaram a oferta e se colocaram em frente a uma das fogueiras. — Não irei entregá-los a sir Iver MacAlpin, apesar da bela soma que ele oferece por sua captura. Evito negociar com gente ma­treira como Iver. Por sua vez, Mungan falou bem de você e me alertou contra os ardis de Iver. Chamou-o de ladrão e rato.

— Então nos deixará partir? — Tavig deu um sus­piro de alívio.

— Sim. Gostaria de lhe dar um cavalo, mas não tenho o suficiente para meus próprios homens. Uma doença matou metade de meu estábulo, e leva tempo para eu roubar os animais necessários dos morado­res de Craigmoordun.

Era o nome do vilarejo, deduziu Tavig. A cortesia o obrigava a manter a conversação, mas ele fez uma pausa a fim de degustar, junto com Moira, o prato de carne e a caneca de cerveja que haviam recebido.

— O povo de Craigmoordun está apavorado com você — ele prosseguiu depois. — Dizem que matará quem quer que pise em suas terras.

O velho Colin e seus capangas riram, enquanto Tavig repetia a saborosa refeição.

— Metade de meus homens vieram do povoa­do. Aliás, Craigmoordun inteiro já me pertenceu. — Colin ergueu no ar um osso roído. — O líder Duncan MacBean, que se esconde naquela torre, su­gou toda a vida do vilarejo e de seu povo bom. Confis­cou Craigmoordun de meu pai, por meio de fraude e assassinato. Procurei retomar o lugar, porém meu pai construiu a torre como uma fortaleza inexpugnável. Muitos morreram atrás de suas paredes. Ser degolado dentro daquela montanha de pedra não me acrescenta nada.

— É difícil acreditar que você tenha desistido — disse Tavig com sinceridade.

— Não. Seu primo Mungan me indicou como re­conquistar o castelo. Basta arrebanhar seus servidores para o meu lado, roubar os cavalos, esvaziar as planta­ções. Ao me deparar com alguém da família MacBean, farei uma oferta irrecusável para que se juntem a nossa causa. Alguns morrerão, por escolherem lutar. A maio­ria, porém, se alegrará em safar-se do jugo de Duncan, compreendendo que seu voto de lealdade foi obtido à força. Por exemplo, o principal guarda-costas de MacBaen já se tornou um de meus homens. — Colin olhou para o céu e suspirou. — Não é uma batalha gloriosa, concordo. Mas vem funcionando.

— E a maior parte de seus empregados e parentes estará viva para festejar seu sucesso — Tavig enfati­zou, julgando-se inspirado.

A conversa pareceu durar horas. Colin se mostra­va ávido por informações sobre o mundo externo, que o visitante pudesse ter. Tavig nem percebeu o tempo passar, até que Moira desabou em seu colo, dormindo profundamente.

— Pobre mocinha — Colin murmurou. — Ela é uma maravilha que qualquer parente de sir Bernard Robertson gostaria de tomar para si.

Intrigado, Tavig sorriu ao homem mais velho,

— Existe algum segredo que você guarde, a esse respeito?

— Sim, mas não aprecio manter segredos por mui­to tempo. Não chega, a ser uma façanha saber quem ela é. Meu primo, na última visita que me fez, viu o navio de Robertson aportando ao sul daqui. Correram muitos comentários sobre como você e a moça foram lançados para fora da embarcação, em meio a uma tempestade no mar. — Numa pausa, Colin encarou Tavig com certa compaixão. — Consta que Robertson não ficou triste, apenas aborrecido. Aliás, raivoso. Tem a fama de abrutalhado. Sua acompanhante estará melhor longe dele.

— Obrigado por sua bondade — Tavig disse então. Os homens de Colin haviam estendido duas camas rústicas debaixo das árvores, e ele levantou Moira no colo após agachar-se.

— Sou eu que agradeço, rapaz. Você me trouxe mais notícias do que tive em um ano. Não permita que Robertson ponha as mãos gordas em sua bela dama.

— Já fiz isso. Quando Moira caiu no oceano, sir Bernard perdeu todos os direitos sobre ela. Só me falta fazê-la compreender tal fato. — Tavig disse, Satisfeito, e Colin riu à vontade.

 

Moira acordou sentindo as mãos carinhosas de Tavig, que a afagavam na cintura. Virou-se e colou seus lábios aos dele num beijo faminto, cheio de desejos.

Ela o envolveu com as pernas, unindo os corpos. Girou e ergueu o tronco enquanto ele pressionava o membro já ereto contra seu ventre. Logo se uniram na cegante queda até o fundo do poço da paixão. Seus gritos de prazer ecoaram no bosque ainda escuro.

Moira ainda desfrutava os beijos de Tavig em seu pescoço, quando lembrou-se do que acontecera pouco antes de adormecer. Com um gesto, ela o empurrou para que ele a largasse. Sentada, amarrou uma coberta ao peito e olhou em volta.

— Onde estão todos? — perguntou, sem importar-se com os resmungos de Tavig enquanto limpava suas costas de folhas soltas e poeira.

— Julga que eu a possuiria com uma dúzia de homens olhando? — Ele balançou a cabeça e riu, zombeteiro.

— Não, na verdade não pensei isso. — Ela deu de ombros e sorriu. — Apenas fiquei assustada ao me lembrar daqueles cavaleiros na clareira, todos mal-encarados. Para onde foram?

— Voltaram à fazenda do velho Colin. Só os encon­tramos porque caçavam alguns servos que fugiram do vilarejo. Os mesmos, suponho, que incitaram a mul­tidão contra nós. — Tavig entregou-lhe as roupas e passou a vestir-se também.

— Não receou que eles o levariam até seu primo Iver? — ela perguntou, enquanto vestia sua camisa.

— Por um momento, sim. O velho Colin me disse que não tinha estômago para lidar com Iver. Foi a pri­meira vez que a maldade de meu primo me fez algum bem. Pena que Colin não dispunha de um cavalo para nos dar.

— Estaríamos mais adiantados na estrada, então. — Ela suspirou, frustrada.

— Sim. Mas temos mais comida e um cobertor extra. — Ele apontou os suprimentos. — Farei uma sopa rapidamente, depois seguiremos. Não devemos permanecer aqui.

Interiormente decepcionada, Moira terminou de se vestir e enrolou os panos, utilizados como lençóis. Detestava imaginar mais um dia de caminhada, embora a consolasse o fato de agora contar com bons sapatos. A mulher do vilarejo havia acertado no tamanho, o calçado era forte e confortável. Restava-lhe esperar que durassem, por mais tantos quilômetros.

— Chegaremos a um povoado no final do dia — anunciou Tavig no instante em que serviu-lhe a sopa.

— E se for perigoso como o anterior? — Moira preocupou-se.

— Não, esse outro é seguro.

— Você deve ter pensado a mesma coisa antes de entrar em Craigmoordun.

— Sim, mas não conhecia ninguém ali. No próximo vilarejo, tenho um ou dois amigos.

Pegando o cantil que ele lhe oferecia, Moira bebeu água, lavou seu prato e depois encarou Tavig.

— Amigos? Se o velho Colin soube que você é acu­sado de duplo assassinato e que Iver ofereceu recom­pensa por sua captura, então o povo da vila também deve saber. E se o prêmio é tão tentador, por que acha que ninguém o denunciará?

— É exagero preocupar-se com isso, minha querida.

— Não posso acreditar! — Ela reagiu com uma ca­reta. — Não sugeri que seus colegas o trairiam, mas um morador local pode fazê-lo. A menos que entre incógnito no povoado, para pedir ajuda aos amigos.

— Pretendo pisar tão destemidamente nessa vila quanto pisei cm Craigmoordun.

— Ótimo! Veja o que ganhamos. Você é maluco! — Moira resistia a uma iniciativa tão tola, que lhes traria risco de morte. Encarou-o com triste suspeição.

— Ou está somente me provocando?

Tavig riu e lhe pespegou um beijo na face.

— Eu realmente tenho amigos na vila, mas eles não me conhecem como Tavig MacAlpin.

— Não! Vai apelar de novo àquele disfarce ridículo?

— Ridículo? Acho que compus muito bem a figura de George Fraser.

— Até quando choveu. E chove muito na Escócia, não se esqueça disso.

— Tem razão. Sem disfarces, dessa vez. Para os amigos que verei ainda hoje, no vilarejo de Dalnasith, sou Tomas de Mornay, o filho bastardo de um guerrei­ro escocês com uma criada francesa, lembrança viva de gloriosas batalhas contra os ingleses, na França.

Moira pareceu acalmar-se. Tavig prosseguiu:

— Há muito tempo sei que meu primo Iver tenta me prejudicar. Então, escolhi alguns lugares nos quais poderia me esconder e onde ninguém me conhecesse como Tavig MacAlpin. Às vezes, uso disfarces, mas em Dalnasith vou me passar por um homem pobre, de roupa rasgada e aparência suja.

— Ah, por isso não tem feito a barba que cresce em seu rosto. — Moira se aproximou e esfregou os dedos nos espessos fios negros na face de Tavig.

Ele aproveitou para segurar-lhe a palma e beijá-la.

— Feri sua pele macia, ontem e hoje de manhã?

Moira corou ante a referência dele aos atos de amor. Estivera tão aflita com a proximidade do velho Colin e seus homens, que nem percebera que fizera amor à luz do sol matinal. Agora, sentia-se choca­da. Qual poder de Tavig a fazia agir tão intempestivamente?

— Não, não me espetou — ela murmurou por fim, aguardando os pratos enquanto Tavig lidava com a panela.

O nome era paixão, concluiu, e a paixão não res­peita os mais delicados sentimentos de uma pessoa. Teria, no entanto, de tomar mais cuidado, Não que­ria deixar que tal sentimento a dominasse e a tornasse frágil. Estava cansada de se curvar a gente ou a fatos mais poderosos que ela.

Então, entendeu que não podia permitir que um sentimento qualquer, embora doce, regesse sua vida.

Instalara-se dentro dela uma pequena rebelião, cuja existência só ela conheceria, mas a decisão tomada lhe transmitiu uma força real e imediata.

Moira suspirou ao sentar-se na grama farta e macia. Olhou para trás, observando a colina rochosa cuja tra­vessia lhe tomara toda a manhã. Daquele nível de alti­tude, era surpreendente que eles a tivesse vencido tão depressa. No entanto, do outro lado do estreito vale que Tavig escolhera para o descanso da tarde, ela viu mais uma série de montes elevados e queixou-se.

— Eis aqui, mocinha. Um gole de vinho vai reanimá-la. — Ele sentou-se ao lado dela e passou-lhe a garrafa. Em seguida, deu-lhe um bom pedaço de pão com queijo.

— Quantas montanhas mais teremos de escalar?

— Não são montanhas, mas apenas colinas. — Tavig sorriu.

— Para mim, são. E por certo é cansativo atravessá-las.

— As colinas adiante são menores e bem no sopé delas está Dalnasith. Como não venho aqui há mui­to tempo, os moradores podem pensar que me casei. Você deve fazer de novo o papel de minha esposa.

— Oh! Vejo que isso não melhorou nossa seguran­ça em Craigmoordun, certo?

— Moira, não é bom para você estar viajando com um homem. Sabe como o povo encara essas atitudes. Vão tratá-la mal se pensarem que é somente minha concubina.

— Eles não têm esse direito! — respondeu ela, contrafeita.

— Não, mas alegar que é minha esposa evitará muitos problemas. Espero não antever coisas ruins, como aconteceu no outro vilarejo. — Tavig pareceu contrito.

— Fiquei imaginando por que você não sente quando uma visão está chegando.

Tavig apagou o fogo com água e areia.

— Creio que meu dom não é constante, e sim volúvel. Quanto mais um perigo se aproxima, mais esse poder se torna caprichoso. — Ele deu de ombros. — Talvez houvesse muito com que me preocupar, porém meu dom escolheu me alertar sobre a criança na rua.

— Era a pessoa menos apta a defender-se — Moira raciocinou. — Quem sabe seja assim que seu poder especial funciona.

— Seria bom, como pretexto para manifestar-se, mas temo que essa capacidade de premonição siga uma característica temperamental. Por exemplo, não sinto nada a respeito de Dalnasith, mas não posso garantir que estaremos completamente seguros. — Olhou para Moira com um misto de ternura e compaixão.

— Há chances de eu conseguir um banho quente e uma cama macia? — ela indagou, apanhando sua sacola.

— Claro, e uma refeição fresca, com boas bebidas.

— Então, por que continuarmos parados aqui?

Tavig riu e deu trabalho aos pés, rumo às colinas, bravamente, Moira emparelhou com ele. Daria tudo por um bom banho. A água gelada do riacho havia removido parte da poeira da viagem, mas ela ansiava por uma longa imersão, com sabão perfumado.

Uma cama acolhedora também seria bem-vinda, ela decidiu, maldizendo em silêncio as pedras que lhe feriam os pés, apesar dos sapatos novos, moles demais. Sua vida com sir Bernard não tinha sido nada fácil, porém nas noites em que não era castigada de algum modo, contava com uma boa cama para descan­sar seu corpo alquebrado.

Pensar no tio e tutor provocou-lhe arrepios. Pare­cia um milagre que não o visse pela frente, com os punhos erguidos para espancá-la. Aquele homem e seu comportamento haviam se tornado um peso em seu coração, mente e alma. Ponderou se um dia ficaria totalmente livre dele e dos próprios temores.

— Ele não está aqui, minha querida — disse Tavig em tom confortador.

Moira aceitou ajuda para vencer uma pedra, mas sua inquietação aumentou.

— Você viu dentro de minha mente? — Não era agradável a idéia de estar inteiramente exposta.

— Não de verdade, mocinha. — Ele parou no iní­cio de uma trilha suave e plana, tocando o rosto de Moira. — Captei um certo olhar, apenas isso.

— Que tipo de olhar? — ela quis saber.

— O olhar assustado que você sempre tem quando vê, ouve ou pensa naquele canalha. Uma nuvem de medo lhe tolda a visão e sua expressão fica retesada. Juro que farei o patife pagar por isso.

— Foi minha culpa também. Por covardia, desisti de lutar.

— Tola. Você é uma sobrevivente, o que requer força e coragem. Não é um homem, curtido nas guerras e capaz de enfrentar alguém como Bernard Robertson. Chegou criança na casa dele. Sim, possui cicatrizes, mas nunca se vergou, e tenho a maior admiração por seu brio.

Moira não soube o que responder. Tavig tinha fa­lado a verdade, como ele a via. Todos os seus galanteios sobre os olhos dela, os cabelos e outros atributos femininos teriam sido fáceis de ignorar ou de atribuir ao lado conquistador de um homem. Aquele novo elo­gio, porém, calou fundo em sua alma. Ela sentiu seu machucado orgulho voltar à vida, embora se apres­sasse em reprimi-lo. Orgulho era uma emoção que freqüentemente lhe trazia problemas.

— Bem, acho que não me destaco tanto assim como pessoa, mas obrigada de qualquer maneira.

— Você precisava ver outras mulheres que viveram sob o jugo de um brutamontes. Saberia então como sobreviveu. Na verdade, já viu pessoas assim. Os moradores do vilarejo lhe mostraram de que maneira suas vidas são regidas pelo medo e pela crueldade. — Ele permitiu, numa pausa, que Moira assimilasse a idéia. — Não posso fazê-la reconhecer suas quali­dades apenas com palavras. É algo que deve aprender sozinha. Você tem de transcender seus temores e o espectro de Robertson em seu coração.

Marchando atrás dele, Moira concordou silen­ciosamente. Faltava-lhe a certeza de poder alcançar aquela ambiciosa meta. Contudo, de que isso serviria? Logo voltaria a viver sob as regras brutais de Bernard Robertson. Se fortalecesse seu espírito e cultivas­se a autoestima, o odioso tio a remeteria de novo à submissão. Tinha apenas uma semana de liberdade, se tanto. Daí ser um pouco cruel que Tavig exigisse dela uma luta inglória. Ele deveria saber que um re­torno à situação anterior lhe traria mais dor, afinal.

Ela ainda esmiuçava tal pensamento quando che­garam ao topo da colina suave. Logo abaixo, surgiu um povoado semelhante a Craigmoordun, exceto pela ausência de um castelo e uma torre que ensombre-cesse o lugar. Todavia, ela viu uma pequena igreja de pedra e estremeceu, tomada de um súbito calafrio que a levou a esfregar os braços. Caso alguém os acu­sasse de bruxaria, dessa vez haveria um padre bastan­te próximo para proferir uma sentença. Olhou para Tavig com o cenho franzido.

— Dalnasith conta com uma igreja — murmurou.

— Você não está com vontade de se confessar, está? — Ele sorriu e beijou-lhe a fronte a fim de anular as rugas.

— Não, mas quero fazer minha penitência, de joelhos até essa capela.

— Eu a espero depois do caminho de pedras... — ele disse com irreverência.

— Se há uma igreja, há um padre residente. Escapamos por pouco, no outro vilarejo, mas aqui corremos o risco de ser rapidamente condenados à fogueira, se acreditarem que temos um pacto com o diabo.

— Ninguém vai nos acusar de feitiçaria.

— Quanta confiança! Você disse que estaríamos seguros em Craigmoordun.

— Mas essa é a verdade, caso eu tivesse sido mais cauteloso. Agi sem pensar, ao pressentir que aque­la menina corria um grave risco. Existem outras maneiras de me conduzir, segundo minhas visões, sem ser tão perigosamente óbvio.

— Não pretendi criticá-lo — Moira arrependeu-se. Sorriu, embaraçada. — Você fez o que devia ser feito. Apenas fico relutante em entrar num outro povoa­do, por mais tentador que seja ganhar uma boa cama e um banho quente.

— É compreensível — Tavig a consolou, pegando sua mão para um beijo. — O que vai nos ajudar é você lembrar-se, a partir de agora, de ser Moira de Mornay, esposa de Tomas de Mornay.

— Espero que não me façam muitas perguntas. Preciso de habilidade para mentir.

— Eles me conhecem, querida. Não exercerão pressão demais sobre você. A maioria desses aldeões não está interessada no passado de um viajante, e sim no que ele viu ou escutou em suas aventuras. Teremos somente de satisfazer essa curiosidade, com histórias sobre o mundo fora de Dalnasith.

— Com certeza, você sabe contá-las — murmurou ela, guiada pelo braço colina abaixo.

— Alguém já disse que tenho uma língua esperta — disse Tavig, rindo.

— Esperta, suave e doce... — Moira emendou.

— Doce também? — Ele riu mais, envaidecido, sob o olhar repreensivo da amante. — Não custa nada evitar problemas. Menos pessoas serão magoadas. Ei, cuidado, querida. Neste ponto, a trilha fica íngreme e pedregosa.

Moira não sentiu grande mudança, mas nada fa­lou. Estava concentrada em manter passadas firmes, para entrar com altivez no vilarejo. Três homens guardavam o limite do povoado, porém não se move­ram na direção deles, fosse para ajudar ou barrar.

Imaginou que Tavig tinha ficado exposto no topo da colina para que os guardas soubessem que apenas um homem e uma mulher se aproximavam. Ao vê-los decidindo qual a melhor forma de cruzar o caminho, os guardas riram e souberam que os visitantes não era uma ameaça.

— Pensei mesmo que era você, Tomas — afirmou um deles, que se adiantou a fim de apertar a mão de Tavig. — E a moça?

Moira tornou-se rubra diante dos três vigilantes e encostou-se em Tavig.

— É a minha mulher, Moira. Querida, este rapaz é Robert.

— Não me diga que se casou? — Robert sorriu maliciosamente. — Essa novidade não vai agradar a todos em Dalnasith.

— O que isso quer dizer? — Moira não tardou em perguntar.

— Nada, minha querida. — Tavig bateu com for­ça no braço de Robert. — Nunca imaginou que um renegado como eu fosse se casar.

Ao perceber o olhar reprovador que Tavig lança­va para o amigo, Moira teve a impressão de que ele instava Robert, silenciosamente, a se calar. Nervoso, o guarda desviou a vista. Havia algum segredo en­tre os dois homens, algo que Tavig não desejava que ela soubesse.

Moira sorriu, fingindo ignorância. Até então, não tinha queixas sobre a honestidade dele. Difícil acreditar que, agora, estivesse escondendo dela um segredo importante. Bem, aguardaria que ele pró­prio contasse, e assim a deixasse menos vulnerável a uma surpresa desagradável.

— Bem... — Robert exibiu os dentes muito alvos. — Você encontrou uma bonita moça, Tomas.

— Obrigada — ela manifestou-se, grata pelo cumprimento que seu suposto marido endossaria.

— Minha esposa, Mary, ficará contente com uma visita — prosseguiu Robert. — As mulheres sempre têm muito a conversar, não é? Venha à minha casa, Tomas, ainda hoje se quiser. Saio deste posto no fim do dia e lhe oferecerei uma boa cerveja.

— É um bom sujeito, amigo. — Tavig conduziu Moira rumo à rua larga que atravessava a cidade. — Guarde a cerveja para mim.

Distanciaram-se do humilde posto de fronteira, ainda sem destino definido.

— Como ele pode ser tão hospitaleiro? Parece ser pobre — comentou Moira.

— Como todo aldeão, ele leva uma vida modesta. — Tavig a encarou, curioso. — Isso a incomoda?

— Claro que não. Mas, se Robert tem poucos bens, é injusto pedir a ele cama e comida.

— Meu amigo possui o suficiente para nos hos­pedar por uma noite. — Tavig beijou-a no rosto. — E será bem recompensado, no futuro, quando meus problemas terminarem. Vou melhorar a vida dele. — A expressão de Moira denotou duvida. — O quê? Só pensa em minha iminente ruína?

— Não vejo necessidade de me repetir. — Foi a vez de Moira dar risada.

Ela parara de falar sobre o cadafalso e a corda que os aguardavam. Ele também conhecia o motivo: morrer suspenso numa forca a perturbava desde o início, e agora ainda mais. Imaginar tal cena a punha fisicamente doente e deixava seu coração apertado de horror. Seus sentimentos por Tavig haviam ganhado uma profundidade que a compelia a ver o futuro com o mesmo otimismo que ele. Era penoso, porém. Desde o falecimento dos pais e depois dos longos anos sob a odiosa tutela do tio, sua esperança tornara-se frágil.

Tavig parou defronte a um agradável sobrado com telhado de colmo, a casa de Robert. Uma mulher roliça, de cabelos castanhos um pouco embranquecidos e olhos escuros o saudou alegremente. Moira retribuiu o cumprimento sincero de Mary quando Tavig a apre­sentou como sua esposa. Sentiu uma pontada de re­morso por enganar a mulher cordial, que os conduziu para dentro de sua casa e apresentou os cinco filhos. Concedeu ao amante o privilégio de uma conversa solta com Mary, pois não queria mentir tanto quanto ele.

Por um instante, enquanto Mary lhes servia pão, queijo e cerveja, Moira ponderou se devia preocupar-se mais com aquela habilidade de Tavig. Com ligeireza, ele narrava a cerimônia de casamento como se acreditasse em sua real existência. Concluiu então que mentir era mais uma maneira de Tavig mantê-los em segurança.

No fim do relato, ele perguntou a Mary sobre a possibilidade de um banho. Antes que Moira pudesse protestar, a mulher concordou. Ela tendeu a recusar a oferta pois uma imersão na tina com água quente daria trabalho adicional a já ocupada dona de casa.

Por fim, desculpando-se pela inconveniência, aceitou. Não fez diferença, para ela, que tivesse de tomar seu banho numa velha tina de madeira, perto do estábulo. O lugar era limpo, privado, ao abrigo do vento. Com ansiedade, desfez-se das roupas assim que Mary a deixou sozinha.

O som de uma antiga canção, entoada em voz doce, atraiu Tavig para o anexo do estábulo. Acercou-se quie­to e sorridente. Moira estava parcialmente submersa na água espumante, cantando, com a cabeça pousada na borda e os cabelos molhados pendentes fora da tina. Ele admirou o intenso prazer que Moira encontrava num simples banho quente.

De olhos fechados, ela não o percebeu, mas a vi­são que Tavig teve de seu corpo, ainda que quase todo escondido, o excitou. Naquele instante, ele a desejou intensamente. Mergulhou a mão na água, direto entre as pernas de Moira. Rindo, jogou o líquido no rosto dela. Moira abriu as pálpebras com surpresa, seguida de aborrecimento.

— Não me diga que veio ordenhar a vaca... — reclamou ela.

— Como boa anfitriã, Mary tirou sua única vaca daqui, por sua causa. Já me banhei e troquei de roupa. Não acha que é hora de sair da tina? Se ficar muito, poderá ficar enrugada como uma saia velha.

— Vale a pena. — Moira tremeu de frio, maldizen­do o súbito resfriamento da água. — Agora que você viu que não me afoguei, pode me dar licença? Preciso me secar e me vestir.

— E não quer ajuda com a toalha? — De imediato, Tavig empunhou a peça de linho diante dela, aguar­dando. — Pode escorregar no chão molhado.

— Sei como me arranjar sem a sua ajuda — Moira disse, acidamente.

Mas Tavig, aproximando-se, a beijou de leve na boca.

— Quero ver.

— Renegado! — ela proferiu, embora lhe desse razão. Achava-se cansada do longo banho. Tavig po­deria ser útil. — Devo confiar em você, se pedir para fechar os olhos?

— É muita coisa para pedir a um homem, querida.

— Gostaria que se comportasse como um cavalhei­ro— Moira reforçou.

Ela praguejou quando Tavig apenas sorriu. Já que eram amantes, desconhecia por que experimentava uma crise de recato. Levantar-se e exibir sua nudez, à luz baça do estábulo, era ousado demais para o seu gosto. Estava claro que Tavig não a deixaria sucumbir àquela pitada de vergonha. Por isso, respirando fundo, ergueu-se devagar.

A exposição de Moira roubou o fôlego de Tavig. Até mesmo a aparente irritação estampada no rosto não Obscurecia sua beleza. Os pingos d'água davam à pele sedosa uma convidativa sensualidade. Ele não queria escondê-la com a toalha que segurava. Preferia desfrutar a festa para seus olhos e fruir o desejo com que seu corpo reagia a ela.

Quando a viu tremer, ele superou seu fascínio e a cobriu, mas puxou-a da tina diretamente para seus braços.

— Assim não ficarei seca — ela murmurou, e teve os lábios capturados pelos dele.

— Talvez não, mas ficará quente como eu, que já estou suando.

Moira riu e o abraçou pela nuca. Com um suspiro de prazer, Tavig ergueu-se nos braços e depositou-a sobre um monte de feno, após estender ali a ampla toalha. Então, cobriu o corpo delicado com o seu. Ela o acolheu languidamente, mostrando que o desejava tanto quanto era desejada. Ele tomou a distância necessária apenas para se livrar rapidamente da ca­misa, e deitou-se sobre ela, gemendo ao deliciar-se com a pele macia.

— Tomas! Ele apreciou ser chamado pelo falso nome. Um segundo depois, porém, a expressão de choque e a ten­são no corpo de Moira alertaram-no para o fato de que tinham sido interrompidos. Ela sentou-se e protegeu-se com a toalha, enquanto olhava fixamente para a porta do estábulo. Tavig descobriu ali a mulher que tão rudemente pusera um freio na torrente de paixão. Sentado à frente de Moira, procurou ocultar-lhe a nudez.

— O que veio fazer aqui, Jeanne? — perguntou à sensual morena que os havia surpreendido.

— As notícias correm e eu soube que você voltou ao povoado. — Ela avançou na direção de Tavig, e as mãos na cintura lhe davam um ar provocante. — Mary não quis me dizer onde você estava, portanto resolvi procurá-lo por mim mesma.

— Então, já me encontrou. Fico feliz por vê-la com saúde. Adeus!

— Como pode me dispensar depois de tudo o que fomos um para o outro? E quem é essa vadia?

— Esta é minha mulher — falou Tavig com os dentes rilhados. Por uma questão de princípio, não esbofeteou Jeanne por ter insultado Moira.

— Sua esposa?! — Jeanne cerrou os punhos, ado­tando uma expressão de pura incredulidade em seus olhos castanhos. — Mary mencionou alguma coisa sobre você estar comprometido, mas nunca pensei que se referisse a uma mulher. Não aceito você ter-se casado com outra! Diga-me que é uma brincadeira e que nunca desprezou meu amor.

— Não sei por que fala assim, Jeanne. — Tavig encarou a intrusa, enquanto Moira se refugiava atrás da tina a fim de vestir-se. — Não temos mais nada um com o outro. Você não tem o direito de vir aqui e interpretar o papel da donzela ofendida e abandonada. Já era bem treinada na arte do amor, quando a conhe­ci, e nunca lhe prometi nada. Desfrutei o que me foi oferecido, apenas isso.

— Ora, seu canalha! — Jeanne voou para cima de Tavig, com o braço erguido, mas ele a segurou pelo pulso, evitando o golpe.

— É melhor sair logo daqui, Jeanne. Se imaginou que se casaria comigo, perdeu o jogo. Pare de per­der tempo. Estou casado, agora, e não pretendo trair minha esposa. Encontre outro homem para você.

Moira avaliou o que escutara, inclusive a praga que Jeanne jogara contra Tavig. O confronto entre os dois era doloroso e constrangedor. Embora esperta o bastante para não imaginar que Tavig fosse tão virginal quanto ela, detestava se deparar com uma das muitas mulheres que ele tivera. Especialmente com uma tão bonita e curvilínea.

Terminando de se vestir, penteou os cabelos com os dedos e viu Tavig empurrar a ex-amante para fora do estábulo. A raiva de Jeanne, porém, a preocupava. Provavelmente, nada tentaria contra eles, mas tinha fúria e ódio de sobra.

Após soltar-se da mão forte de Tavig, Jeanne parou na saída do estábulo.

— Está bem, vou embora. Aproveite sua noiva adolescente enquanto puder. Mas não aceito tais ofen­sas pacificamente, Tomas. Agirei para que você não repouse nesses braços finos por muito tempo.

Tavig praguejou enquanto ela se afastava. Ponderou se devia levar a sério a ameaça de Jeanne. Voltou-se para Moira e não gostou de vê-la toda vestida. O mo­mento de sensualidade entre ambos fora quebrado e não haveria mais retorno, pelo menos por enquanto. Ele esperava que Jeanne tivesse um pouco de orgulho e dignidade, e se mantivesse longe, após saber que ele agora era um homem casado. Por certo, tal esperança destoava do que conhecia sobre a ex-amante. Restava-lhe apenas contornar as dúvidas e emoções de Moira, que o fitava com ar sério.

— Lamento a respeito de tudo isso, querida. — Acercou-se dela. — Devia tê-la alertado sobre essa mulher. — Tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios dan­do-lhe um beijo temo. — Não se preocupe com ela.

— Como não? Ela parecia furiosa. Deve estar odiando tanto a mim quanto você e quer vingança.

— Jeanne não tem do que se vingar. Eu nada lhe prometi, a não ser alguns bons momentos na cama. — Tavig suspirou quando Moira enrugou sua fronte.

— Sinto muito, mocinha.

— Não é preciso ficar se desculpando. Acho que não fez nada de errado, afinal nem nos conhecíamos. Mas não devemos ignorar completamente as ameaças dela. Creio que não estamos livres.

— E o que sugere que façamos, Moira? Ela desco­nhece minha real identidade, e ninguém dará atenção a suas arengas. Todos entendem que Jeanne não tem motivo para clamar que foi usada ou traída. Já se deitou com metade dos homens do vilarejo. Foi infiel a mim, enquanto eu estava fora. Às vezes, até mesmo quando passava alguns dias aqui. Ela não tem aliados.

— Talvez eu seja covarde, mas me sinto apreensiva.

— Não se preocupe. Iremos embora logo pela manhã. — Passando o braço pela cintura dela, ele a tangeu para fora do estábulo. — Na verdade, se al­guém tem direito à vingança, sou eu. Ela arruinou o que prometia ser uma aprazível tarde de amor... — Tavig riu diante do rubor que avermelhou as faces de Moira.

 

— Não deixe que aquela vadia perturbe você — Mary aconselhou ao sentar-se à mesa na frente de Moira.

Em sobressalto, ela olhou em torno de si, à pro­cura de Tavig. Aceitou a caneca de cerveja que Mary lhe ofereceu. Todos haviam jantado, as crianças ti­nham ido dormir no pavimento superior e, para seu desgosto, ela se achava sozinha com a amistosa anfitriã.

Tavig estava no canto oposto da sala, ajudando Robert a afiar a espada e lubrificar sua armadura, en­quanto conversavam sobre batalhas, feudos e motins ocorridos desde a última visita. Ambos não podiam ouvir o que as mulheres falavam, mas ainda assim Moira observava Mary com cuidado.

— Jeanne foi embora e não pensei muito sobre ela — disse por fim, sem surpreender-se quando Mary riu.

— Aposto como não pensou em mais nada, desde que ela flagrou você e seu marido no estábulo. Jeanne desprezou meu conselho, na hora em que lhe disse que Tomas não queria vê-la. Pode ficar tranqüila. Ela é uma dessas mulheres que um homem usa antes de decidir estabelecer família.

— E alguns homens, depois disso. — Moira disse num fio de voz para que Tavig não a ouvisse.

— Infelizmente, é verdade. Não com o seu Tomas, claro. Ele não é do tipo.

— Como posso ter certeza?

— Sinto aqui. — Mary apontou seu próprio peito. — Se eu fosse solteira, indecisa quanto a quem dar meu coração, confiaria no belo Tomas. Ele tem sentimento, coragem e honra. — Ela apagou o sorriso do rosto. — Sei que guarda um ou dois segredos de nós. Mas os revelará quando puder.

— Por que acha que ele tem segredos?

— Minha doce Moira, nasci e cresci pobre, casei-me com um homem modesto. Reconheço um fidalgo, proprietários de terras, quando vejo um. Aquele seu marido ali não é um bastardo sem posses. Tem mui­tos criados e vive bem. É mesmo um nobre, mas, por alguma razão, finge ser um vagabundo sem destino. Eu e o meu Robert acreditamos que ele está se escon­dendo. Homens de poder e riqueza freqüentemente têm inimigos dispostos a roubá-los e matá-los. — Mary esticou a mão sobre a mesa até conseguir bater segui­damente na de Moira. — Não fique assustada, criança. Nesta casa, Tomas pode se esconder pelo tempo que desejar.

Por um instante, Moira pensou em negar os co­mentários da anfitriã, depois decidiu que, de fato, não existiam ameaças a temer. Mary e Robert claramente gostavam de Tavig, e jogariam o jogo dele até o fim. No íntimo, ela receava apenas que Mary tivesse adivi­nhado que eles não eram de fato marido e mulher.

— Tenho certeza de que ele vai ficar muito feliz em saber. — murmurou. — Agora pode ver por que as ameaças de Jeanne me deixaram inquieta?

— Fique tranqüila. — Mary tinha a resposta pronta. — Ela ignora quem ele verdadeiramente é, por isso não pode trazer seus inimigos à nossa porta. Penso que as alegações de Jeanne são irreais, mas você tem ra­zão num detalhe: ela inveja o que você e seu marido partilham. Compreenderei se não quiser falar sobre seus temores, porém é falando deles que conseguimos dominá-los.

— Seria bom. — Moira sorriu debilmente para Mary. — Jeanne é uma mulher muito bonita e sensual. Eu tenho ossos finos, sardas e sou ruiva. Para ser honesta, ela me preocupa, pois já mostrou sua deter­minação. — Ela suspirou. — Não deveria me afligir, porque Tomas resolveu partir, amanhã cedo, mas é inevitável pensar em quantas outras Jeannes ele cole­cionou em seu passado.

— Disse bem, criança. No passado. Jeanne sempre será uma presença no passado dos homens, ansiosa por tornar-se parte do futuro de alguém. É triste — Mary fechou a expressão —, mas poucos se casam com uma pessoa promíscua como ela. Eles defendem a inocência das noivas escolhidas e recorrem a mulheres como Jeanne para aliviar as tensões, sem apaixonar-se. Só isso. Portanto, merecem nosso perdão...

— Sei perfeitamente que não há nada a perdoar em Tomas — confirmou Moira. — Ele não me conhecia na época nem está se aliviando agora com Jeanne. É tolice, mas fico imaginando o que ela tem de espe­cial para atrair os homens. — Sorriu, timidamente, enquanto Mary desatava a rir.

— Ela é uma moça vistosa, é verdade, mas bastante desinibida, se é que entende o que estou insinuando. — Moira entendeu parcialmente. — Muitos rapazes daqui se digladiaram para usufruir os favores dela. Em alguns casos, oferta grátis.

— Não acha injusto os homens a condenarem por agir como eles agem?

— Muito injusto, mas assim é o mundo. Há quem perdoe uma mulher por ter tido um amante, no passado. O que torna Jeanne diferente é que ela tem alma de pecadora. É o coração e a mente que fazem uma prostituta, não o fato de se deitar com homens. Você de forma nenhuma perderá seu marido para alguém como ela. E não, ele também não vai escorregar para a cama de Jeanne. Se você não esquentasse bem o leito conjugal, seu homem não lhe pediria algo tão íntimo quanto dividi-lo. Além disso, seria inacreditável que ele não sentisse desejo por você. Vi o brilho daqueles olhos negros sempre que a focalizam.

— Verdade? — Moira tinha notado também, mas receava que estivesse apenas vendo o que queria, não um fato real.

— Sim, claro. Se um homem cuida de você, o volu­me de suas curvas não interessa.

Se um homem cuida de você... As palavras de Mary ecoaram fundo na mente de Moira. Desde que a conhe­cera, no navio, Tavig cuidara dela com muito zelo. No entanto, jamais falara de amor, de carinho, de qualquer sensação mais profunda do que a lascívia. Referia-se bastante a um destino comum que os uniria, mas ela não punha fé nesse argumento. Também relutava em permanecer com ele só porque alguma voz inte­rior, em Tavig, dissera que ambos deveriam constituir um casal estável. Era angustiante admitir que não tinha idéia do que Tavig realmente sentia por ela.

— Bem, parece que falhei em consolar você — falou Mary, balançando a cabeça. — Conheço os seus medos muito de perto. Passei por isso quando, ainda jovem, entreguei meu coração a Robert. Se perdoar minha pretensão, gostaria de lhe dar alguns conse­lhos. Não perturbe seu homem com esses temores, não permita que seus receios a levem a acusá-lo, sem pro­va alguma de que ele se comportou mal, e também não os deixe cegá-la para a verdade. Vigie seu marido. Pese suas palavras e ações. Aposto como, sem demora, você verá que lhe faltam motivos concretos para te­mer as antigas namoradas dele ou aquelas que tentam chamar a atenção de Tomas.

— Pretendo lembrar-me disso, Mary. Obrigada.

Rapidamente, a mulher mudou de assunto, pressen­tindo que logo Robert e Tomas terminariam suas tare­fas e voltariam à mesa, para consumir mais cerveja. Ela falou de moda e fez mexericos. Estava sedenta por saber de Moira novidades sobre o mundo externo ao vilarejo, que conhecia pouquíssimo.

Era tarde quando Moira e Tavig se retiraram até a alcova cortinada em que passariam a noite. Mary e Robert iriam dormir na parte de cima, com as crian­ças, garantindo ao casal de visitantes certa privaci­dade. Moira logo se despiu, ficando apenas de só de camisola, e subiu à estreita cama.

— Esteve muito quieta, na sala — Tavig comentou, ao aproximar-se e gentilmente tomá-la nos braços.

— Evitei ser apanhada numa mentira — ela jus­tificou-se, a deslizar as mãos pelas costas largas de Tavig. — É difícil mentir a Mary. Ela é uma pessoa simples, mas astuta.

— Sim, mas acredito que há algo mais a perturban­do. Ficou calada desde que Jeanne lançou seu veneno sobre nós. Acha mesmo que eu a trairia com ela?

Moira considerou tedioso que qualquer pessoa notasse seus receios tão facilmente.

— Por que eu me afligiria com o lugar ou com quem você dorme? — Ela teve vontade de dar um tapa em Tavig, ao vê-lo suprimir um sorriso.

— Não precisa ter ciúme, minha linda. — Ele a beijou sem muita expectativa.

— Posso ser tudo, menos ciumenta — ela protes­tou, recebendo mais um beijo.

— E não há necessidade de temer que eu possa lhe ser infiel. Para que procurar outra, quando já tenho uma mulher bonita e fogosa em meus braços?

— Porque outra pode ter mais a lhe oferecer.

— Moira, não seja tola.

— Muito amável de sua parte — ela ironizou. Tavig riu e abraçou-a com mais força por um momento.

— Certamente, você é magra como um caniço. Nunca terá o porte exuberante de alguém como Jeanne. Serei honesto, querida. Mesmo quando sinto vontade de agarrá-la, pergunto-me por quê. Você não é o tipo de mulher que eu costumava procurar. Depois de um ato de amor, geralmente penso em não pedir de novo. — Ele moveu as mãos lentamente pelo corpo dela.

— No entanto, você possui todas as curvas de que preciso para me satisfazer. E todo o fogo que um homem poderia desejar.

Moira ficou tocada por essas palavras. Tavig não fizera rodeios nem a cobrira de galanteios. Omitira votos ou promessas. A falta disso tornava mais fácil acreditar nele. Ele lhe falara de atração física e paixão carnal, de modo bastante convincente. Ela talvez esti­vesse condicionada a sentir emoções mais profundas, porém o relacionamento com Tavig não era de todo mau.

— Sinto muito. — Soou rouca, sob as carícias dele.

— Não sei fazer muitas das coisas que Jeanne faz. Ela deve ter talento para arrancar elogios dos homens. — Encolheu os ombros. — Compreendo a diferença e...

— E julga que eu também vou flertar com Jeanne... — emendou Tavig.

— Já fez isso, pelo menos uma vez. — Ela pareceu desiludida.

— Não, nunca tive por Jeanne mais do que um desejo passageiro. Por qual motivo acha que eu me hospedo com Robert e Mary, toda vez que venho a Dalnasith? Se Jeanne significasse alguma coisa para mim, eu iria dormir na casa dela, e isso nunca acon­teceu. Meu coração já palpitou por uma ou duas outras mulheres, mas, se Jeanne não tivesse se atirado a meus pés, eu a deixaria em paz.

— Por quê? — Moira interpelou. — Veja, não es­tou pressionando você para contar o que não quer ou para dirigir elogios a mim... É apenas curiosidade.

— Difícil de explicar — ele respondeu sem relu­tância. — Tenho dúvidas sobre se gosto de sexo como todo homem ou se meu dom premonitório me leva à compulsão. Quando vi Jeanne pela primeira vez, soube que ela traria mais problemas do que alegrias. Mas, como todo homem, fui suscetível aos praze­res que ela oferecia. Estava perto e era fácil de con­quistar. — Deu um sorriso ligeiramente culposo. — Enfim, não me orgulho do passado.

— Também nunca tentou se passar por santo... — Moira rebateu, afiada.

Jeanne já não constituía uma ameaça a ela. Seus temores e acessos de ciúme haviam sido anulados pelo desprezo com que Tavig falara da antiga aman­te. Jeanne tomara a liberdade de seduzi-lo, e ele a possuíra como qualquer jovem viril.

— É verdade, nunca fui santo — Tavig explicou.

— Se fosse, não teria abordado você, por interesses condenáveis.

— Suponho que eu devia ficar envergonhada, porque você não precisou de muito esforço para me seduzir.

— Mas não está envergonhada, está?

— Não muito. Vez por outra, sinto uma pontada de vergonha.

— Pensando bem, você não tem do que se enver­gonhar — ele procurou tranquilizá-la.

— Você é o único a pensar assim. Estou dividin­do uma cama com um homem que não é meu mari­do. — Ela rapidamente pôs a mão na boca de Tavig, impedindo-o de apartear. — Não recomece aquela conversa tola sobre casarmos por predestinação.

Tavig libertou-se dos dedos que o calavam.

— Não é uma conversa tola. Achei que você acreditava em minha visão especial. Eu...

Tenso, ele silenciou e olhou para a parede em frente.

— O que foi? O que há de errado? — Moira sur­preendeu-se ainda mais quando ele saltou da cama, puxando-a para si.

— Vista-se, rápido! — ele instruiu, passando a colocar seus trajes. — Temos de fugir.

Obediente, Moira tratou de preparar-se, mas ansia­va por uma explicação.

— Viu alguma coisa?

— Não, maldição! Apenas sei que precisamos sair daqui. Depressa!

— Estou me vestindo tão rápido quanto possível — ela murmurou, já calçando os sapatos. — Deve­mos prevenir Robert e Mary?

— Não, eles não correm perigo. Inferno, por que minha visão ocorreu tão em cima da hora?

Moira arfou ao vê-lo recolher a espada e o punhal, e depois empertigar-se junto à porta da sala. Mal con­seguiu piscar antes que diversos homens irrompessem no local. Tavig a levou até a porta dos fundos, mas esta também estava aberta e bloqueada por pessoas armadas.

Ela permaneceu junto a Tavig enquanto ele tentava vigiar as duas portas alternadamente e a protegia com o próprio corpo. Quando Jeanne surgiu no meio dos invasores, Moira sentiu um arrepio na espinha. Devia ter dado mais atenção às ameaças da prostituta, em vez de centrar-se em seus temores e ciúmes.

— Ali está ela! — Jeanne gritou, apontando Moira. — Previu nossa vinda e preparou-se para fugir. Agora pergunto, como poderia saber, a não ser que seja uma bruxa?

— O que está havendo? — indagou Robert à bei­ra da escada, segurando seu camisolão e servindo de escudo a uma pálida e assustada Mary. — Ficaram loucos? Por que invadiram minha casa, no meio da noite?

— Viemos pegar a feiticeira — respondeu-lhe um homem robusto à direita de Jeanne, chamado Geordie.

— Feiticeira? De onde tirou essa idéia absurda, Geordie?

— Jeanne diz que essa mulher é uma bruxa. — O homem avançou um passo na direção de Moira, mas teve de recuar diante da espada erguida por Tavig. — Não tema por sua vida, senhor — ele assegurou então. Sabemos que foi enfeitiçado a fim de proteger essa moça. Você também — completou, fitando Robert.

— A moça não é bruxa coisa nenhuma — Robert enfatizou, antes de apontar Jeanne. — Vocês todos foram enganados por essa vadia.

— Ela faz bruxarias, sim — bradou Jeanne. — Procurei salvar Tomas da influência do mal, e ela diri­giu seu feitiço contra mim. Atormentou-me por meio de feridas abrasadoras na pele e uma de minhas cabras morreu, vertendo sangue pela boca. O animal não es­tava doente, e eu também nada tinha de errado, até que ela me amaldiçoou no estábulo, hoje de manhã.

— Rameira mentirosa! — Tavig exaltou-se.

Moira estremeceu, o medo lhe revirando o estôma­go. A reação de Tavig poderia fazer com que Jeanne reforçasse suas acusações. Diversos homens murmu­raram seu apoio a ela. Não existia saída. Dois dos in­vasores mantiveram Robert e Mary cativos na esca­da. Embora armado, Tavig não conseguiria enfrentar meia dúzia de adversários fanatizados. Ainda que os derrotasse, haveria outros tantos amigos de Jeanne aguardando do lado de fora.

Era evidente que Tavig pretendia lutar para prote­ger Moira, mas ela previu friamente que isso só lhe traria a morte. Também estava claro que nenhum inva­sor ouviria a voz da razão. Assim, ela tomou como sua a missão de encerrar o confronto, ciente de que havia apenas uma maneira de fazer isso: declarar-se culpada, ao custo da raiva do amante.

— Sinto muito, Tavig — disse, batendo sua sacola contra a espada e arrancando-a das mãos dele.

Após imprecar, Tavig abaixou-se para recuperar a arma, porém Geordie e um outro homem foram mais rápidos e manietaram o adversário por meio de uma chave de braço. Um terceiro prendeu Moira pelos pulsos e atou-os com uma corda.

— Por que fez isso, mocinha? — Tavig inquiriu, fitando Moira com uma mescla de confusão e medo, mas sem a fúria que ela esperava.

— Sei que é um bom espadachim — ela replicou, a exibir um sorriso amargo. — No entanto, não poderia vencer tantos.

— Nem você, querida.

— Talvez não, mas é somente a mim que acusam. Estes homens matariam você por me proteger, e ain­da assim eu ficaria presa. Decidi que não quero vê-lo morrer num ato de infrutífera nobreza.

— Ele pode tentar libertar a bruxa — interveio Jeanne, a manter uma prudente distância de Tavig. — Por isso precisa permanecer detido num lugar em que não tenha como agir. E ela também poderia usar seu feitiço para trazê-lo de volta.

— O que vão fazer com Moira? — Tavig quis sa­ber enquanto seus pulsos eram amarrados atrás das costas.

— Vamos acordar nosso sacerdote — Geordie retrucou. — O padre Matthew saberá como punir a bruxa.

Moira focalizou Mary e Robert, abismados com tudo o que ocorria em sua casa. Mary havia se tor­nado mais pálida com o terror estampado nos olhos. Robert mantinha a testa franzida, preocupado com o destino do amigo e sua pretensa esposa. Não pare­ceu a Moira que o casal considerasse altas as chances de uma absolvição. Ela teve o degradante sentimen­to de que iria deparar-se com um padre fortemente ligado à superstição. Também preocupante era a fa­cilidade com que Jeanne convencera os aldeões a apoiar suas acusações.

— Vamos levá-la à igreja agora — Jeanne propôs.

— Não podemos correr o risco de que ela use suas habilidades para escapar.

— O padre Matthew deve estar dormindo — rebateu Geordie. — Convém esperarmos um pouco.

— Ele ficará contente por levantar-se da cama por uma boa causa. Não costuma alertar todos nós sobre os aliados do diabo? Mostraremos ao padre como somos vigilantes.

— Mais provavelmente, como são idiotas — ata­cou Robert, olhando fixo para Jeanne. — O padre também nos alertou contra as prostitutas, embora você nunca tenha sido levada a um julgamento de fé.

— Moira enfeitiçou todos vocês! — gritou Jeanne.

— Vamos sair já!

Ela marchou até a porta, a incentivar os outros para que a seguissem. De passagem, Moira observou a escada e o andar de cima. Os cinco filhos de Robert e Mary se perfilavam no patamar superior, vendo tudo, mas obedeciam à ordem dos pais para ficarem distantes do tumulto.

Em seguida, fitou Tavig, agora furioso, e deduziu que, fosse como fosse, Jeanne pagaria por suas maldades. Seria bom que essa certeza lhe transmitisse alguma força, porque tudo indicava que precisaria de muita energia para enfrentar aquela adversidade.

Bastou a Moira um olhar furtivo ao padre Matthew para saber que não encontraria piedade nem compai­xão naquele homem. Parecia disposto a questionar as queixas de Jeanne, mas não deixaria passar a oportu­nidade de aumentar seu prestígio junto à comunidade.

— Não pode crer nessa tolice, padre — gritou Tavig. — A única acusadora de minha mulher não é uma testemunha confiável.

— E você não pode negar a gravidade de uma acu­sação de feitiçaria, atacando a vítima dela — respon­deu o clérigo sem emoção na voz.

— Jeanne é vítima da própria vaidade — afirmou Tavig. — Está usando todos aqui para uma vingan­ça. Mas é absurdo perseguir uma inocente apenas para aplacar a raiva de uma mulher desprezada.

— Por que Jeanne se sente desprezada? — o padre inquiriu.

— Porque eu me recusei a levá-la para minha cama.

— E ainda acusa Jeanne de ser vaidosa? — Matthew colheu um punhado dos cabelos de Moira e deixou-os escorrer entre seus dedos. — Cabelos da cor do fogo! Uma representante do diabo!

— Outra tolice — Tavig rebateu. — Muitas pessoas têm cabelos vermelhos.

— Como relaxamos nossa vigilância neste vilarejo, o demônio está livre para reinar — disse o sacerdote.

— A língua malévola de Jeanne é que parece rei­nar aqui. Por Deus, avalie quem o senhor se dispõe a ajudar.

Enquanto Tavig tentava desacreditar Jeanne, Moira a contemplou. Era ótima atriz, simulando um estado de choque. Os olhos, porém, cintilavam com um brilho de triunfo.

Observar os aldeões, no entanto, fortaleceu a dé­bil esperança de Moira. Apoiavam Tavig e se mostra­vam envergonhados com a situação, lançando a Jeanne olhares inamistosos. Mary dissera que ela havia se deitado com metade dos homens do povoado, e agora os cidadãos presentes na audiência lembravam-se dos pecados de Jeanne. Por suas expressões, também se recordavam de outras condutas pouco edificantes da­quela rameira. No entanto, diante do padre, ninguém ousou rebater as alegações dela. O sacerdote esta­va pronto, e até ansioso, para condenar uma suposta bruxa. Os moradores de Dalnasith tinham medo dele.

— Silêncio! — pediu o padre Matthew, olhando fixo para Tavig. — Você me deu boas razões para du­vidar de Jeanne, caluniando-a com palavras duras.

— Não é calúnia, e sim a verdade! — retrucou Tavig. — A acusada é minha mulher, mas isso não influi no que estou dizendo.

— Não? Você falaria qualquer coisa para salvá-la. É parte do feitiço. Devia tomar mais cuidado, meu rapaz, antes de ter relações carnais com uma bruxa. Isso pode lhe trazer uma punição severa.

— Moira não é bruxa! — Tavig insistiu.

— Amordacem esse homem! — ordenou o reli­gioso, meneando a cabeça quando os aldeões que seguravam Tavig obedeceram. Olhou para Moira. — Agora, o que acha que devemos fazer com você?

— Creio que a decisão já foi tomada, portanto não me atormente com suas perguntas — ela replicou com altivez.

— Está resignada a seu destino?

— Não, mas vejo a futilidade de arguir minha inocência. Estão todos cegos e surdos aos fatos reais. Ninguém verificou se Jeanne foi vítima de feitiçaria. Não desejo participar desta encenação, suplicando por minha vida.

— Minha cabra morreu, e isso constitui uma pro­va. Desconheço a causa, mas também posso provar como fui atingida. Fiquei coberta de erupções na pele. — Jeanne levantou a saia até o meio das pernas, a fim de mostrar as feias feridas, que deviam doer e talvez fossem contagiosas.

— Foi bom que você não tivesse esse problema quando se deitou com meu marido — Moira falou em tom baixo.

— Você é que provocou isso. As bolhas apareceram depois que tentei ajudar Tomas, afastando-o de suas diabólicas garras. — Jeanne deu um passo à frente e, a despeito da resistência de Moira, ergueu-lhe a saia e apontou uma verruga escura logo acima do joelho.

— Eis a marca do diabo. A bruxa tem outras, como pude ver no estábulo de Robert, onde ela estava nua. Quando Jeanne soltou a saia, Moira desferiu-lhe um pontapé. A prostituta exagerou em seu grito de dor, e um dos vigias teve de segurá-la para evitar o revide.

— Parece-me que aqui só temos a palavra de uma contra a de outra — comentou Robert.

— Tem razão — concordou o sacerdote, sem desviar os olhos de Moira. — Precisamos descobrir quem fala a verdade. Uma penitência nos ajudará nessa missão. — Matthew relanceou o olhar para Tavig, que praguejava e se debatia contra seu captor.

Moira combateu o medo que a invadira. Com frequência, uma pessoa posta em castigo só conseguia provar sua inocência quando morria. Penitências orde­nadas pela Igreja sempre eram dolorosas, e variavam desde colocar alguém com a cabeça dentro d'água, me­dindo sua resistência ao afogamento, até fazer o peni­tente segurar um ferro em brasa. Caso não se queimas­se, sua inocência estaria confirmada. Em teoria, Deus protegia os inocentes de qualquer dano. Moira julga­va que Deus tinha coisas melhores a fazer, mas não desejava criar outro escândalo devido sua opinião.

A expressão fria do padre Matthew ao fitá-la era angustiante.

— Não temos todos os instrumentos de que neces­sitamos — declarou o sacerdote, por fim.

— Que pena — ela revidou, imaginando desde quando se tornara tão sarcástica.

— Mas contamos com o suficiente para lhe pre­parar uma razoável penitência — Mathew acrescen­tou, ordenando a alguns homens que delimitassem um espaço na frente da igreja e esquentassem pedregulhos e pedaços de carvão.

Moira empalideceu, sem sangue no rosto. Observou Tavig, que se mantinha inerte. Se realmente fosse for­çada a caminhar sobre brasas e pedras quentes, ela não tinha certeza de sair ilesa. Sabia ser inocente, porém não confiava em penitências perigosas que provassem isso.

Quando o padre ordenou que dois fiéis retirassem duas botas e meias, Moira alarmou-se, a despeito de seus esforços para parecer valente. Quando comple­tasse o percurso sobre brasas, com os pés severamente queimados, Matthew mandaria executá-la.

Ela foi empurrada até o pátio frontal da igreja. Era-lhe cansativo continuar simulando coragem. Resistiu à marcha, fincou os pés no chão de terra, xingou seus captores de todos os nomes feios que já ouvira. O padre caminhava à frente da pequena procissão e, em tom piedoso, repreendeu-a por seu linguajar e sua falta de fé.

Diante do leito de brasas, ela perdeu os últimos res­quícios de força interior. A multidão crescera em tama­nho no cenário da grande prova. Tavig havia desmaia­do entre os dois homens que o arrastavam. Um deles tinha batido em sua cabeça com um bastão, para pôr fim a sua forte resistência. Robert e Mary apelavam ao bom-senso dos amigos ou vizinhos. O rosto dos aldeões seguia revelando a incerteza que os acometia, mas novamente nenhum deles atreveu-se a protestar. Ali perto, Jeanne saboreava cada minuto do sofrimento de Moira.

— Agora, bruxa, você tem de atravessar toda a extensão do leito de brasas — disse o padre.

— Está bem claro que, seja qual for o resultado, já decidiu que sou culpada. — Moira balançou a cabeça, esperando que o tom calmo de sua voz distraísse a platéia o suficiente para não perceberem que ela es­tava banhada de suor. — Já me julgou e condenou. Isto é apenas um acréscimo à minha dor.

— Ande! Se chegar ao outro lado sem queima­duras nas plantas dos pés, então Deus é que a terá proclamado inocente.

— E quando isso acontecer — ela desafiou —, Deus olhará com bastante severidade para aqueles que alegam agir em Seu nome.

Após respirar fundo, Moira libertou-se dos que a seguravam e preparou-se para o primeiro passo. Despertando, Tavig gritou de desespero. As mãos dela continuavam amarradas, e por isso poderia cair, caso perdesse o equilíbrio.

O calor impregnou-se nas solas dos pés. Moira sen­tiu desconforto, mas não uma autêntica dor. Imaginou se a sua mente se recusava a aceitar a agonia, poupando-Ihe maior sofrimento. Quase sem perceber, chegou ao fim da trilha e examinou os pés. Surpreendentemente, eles não exalavam fumaça nem cheiro de queima­do. No entanto, as brasas vermelhas atestavam que a caminhada deveria ter sido extremamente dolorosa.

Ela sentou-se no solo enquanto o padre se apressa­va a alcançá-la, para inspecionar seus pés. Ela também os observou incrédula. Sentia a pele aquecida, porém não havia sinal algum de dano ou ferimento. Matthew chegou a espanar com a mão a cinza dos pés, a fim de olhar melhor. Mas, antes que falasse qualquer coisa, alguém veio por trás e desamarrou as mãos de Moira. Já refeito, Tavig correu para abraçá-la. Mary e Robert também se colocaram ao lado dela, assombrados. Só então Moira deu-se plena conta de que havia passado no teste ilesa.

— A inocência dela foi provada — Tavig dirigiu-se ao padre.

— Acho que ela andou depressa demais — con­testou o religioso, mas foi calado pelo murmúrio que finalmente se elevou da multidão.

— O teste foi válido — disse Geordie, antes de voltar-se para Jeanne. — O marido dela tinha razão. Nós nos acostumamos a sustentar a vaidade de uma prostituta.

Moira esquivou-se de Tavig no momento em que a fúria da multidão recaiu sobre Jeanne. Ela bradava inocência e reiterava as acusações contra Moira, enquanto os aldeões a cercavam. O padre Matthew também não tardou em censurá-la. Moira teve a im­pressão de que a vida de Jeanne estava em perigo.

— Eles irão matá-la — alertou, experimentando a firmeza dos pés contra o solo.

— Nada podemos fazer — Tavig respondeu com frieza e, no fundo, satisfação.

— É verdade — Robert apoiou. — O mais sábio é você e sua esposa saírem rapidamente do vilarejo.

Os quatro iniciaram a volta para a casa de Robert. Um grito de pavor, vindo de Jeanne, fez Moira hesitar, mas Tavig a instou a prosseguir rua abaixo. Ao chegarem, Mary banhou-lhe os pés com um bálsamo, e Robert foi ajudar Tavig a recolher seus pertences.

— Devíamos ter socorrido Jeanne — murmurou Moira, verificando o estado de seus pés uma última vez, antes de calçar as meias e os sapatos trazidos da igreja por Robert.

— Havia amigos e parentes dela no meio da mul­tidão — Robert informou. — Mas fugiram assim que o povo se enfureceu contra ela. Nós quatro juntos não conseguiríamos apaziguá-los. Cuide primeiro de sua própria segurança.

— Jeanne planejou matá-la! — Mary lembrou.

— Eu sei. — Moira meneou a cabeça. — Ainda não compreendo como pude andar naquela trilha de fogo, sem sofrer mais do que um pouco de calor.

— Gostaria de dizer que você foi protegida por Deus — interveio Tavig.

— Gostaria, mas não consegue. — Ela sorriu de modo matreiro, levantando-se da cadeira para empu­nhar a sacola de viagem. — Não se preocupe. Eu tam­bém não acredito que Deus tenha tempo para coisas pequenas.

— Provavelmente não — ele confirmou. — Só posso pensar que suas calosidades ajudaram a salvar seus pequenos e preciosos pés. E notei uma camada de poeira que deve ter colaborado.

— Estava aterrorizada — ela justificou-se, sorrin­do. — As solas dos pés ficaram suadas. Percebi que o pó e outros detritos se grudavam nelas, ao começar o percurso. Isso me irritava, pois dava vontade de cocar. Depois, vi que esse incômodo era um trunfo para eu sair ilesa.

— Concordo. A sujeira e os calos funcionaram como uma barreira contra as brasas. Mas agora temos de ir.

Eles agradeceram a Robert e Mary enquanto cruza­vam a porta. Moira ouviu o fragor da multidão e olhou para trás, tentando ver o pátio da igreja, mas Tavig acelerou os passos rumo à estrada.

O senso de urgência dele apoderou-se de Moira. Em seu íntimo, ela sentia um nó de pavor. Começou a relaxar apenas quando o bosque foi alcançado, mas gritou de susto ao ouvir o suposto nome de Tavig ser chamado de entre as árvores.

Ele puxou sua espada com um gesto brusco e escu­dou Moira com o próprio corpo. No momento em que a figura sombria surgiu à luz da lua, ela se acalmou. Era somente um homem idoso, a carregar uma trouxa e tanger uma cabra. Como Tavig distendeu os múscu­los, Moira assegurou-se de que não existia nenhuma ameaça.

— Iain — ele chamou o velho pelo nome, curvando-se em reverência —, temo que sua filha se envol­veu em algo de que não pode fugir.

— Já sei. Jeanne morreu. Tentei ajudá-la, mas quan­do cheguei eu a vi suspensa de uma árvore na praça.

— Sinto muito.

— Não há por quê. Ela pretendia matar sua mulher. Claro que vou chorar por Jeanne, que tinha meu san­gue, mas ela gastou a maior parte de sua curta vida criando problemas.

— Como sabia onde me encontrar? — Tavig in­quiriu, apreensivo.

— Passei pela casa de Robert e vi você se prepa­rando para fugir. Certamente, não tomaria a trilha pela qual chegou, por isso me apressei em vir aqui. Era impossível deixar você escapar sem vê-lo pessoalmente.

— Por qual motivo?

— Para lhe dar isto. — Ian depositou nos braços do surpreso Tavig a trouxa que carregava.

Moira dispensou um olhar ao amante, pois sabia exatamente o que a trouxa de pano continha. Uma voz interior lhe pediu para não querer saber mais, porem Tavig abriu o embrulho, e ela se aproximou de modo a ver melhor. Embora a claridade do luar fos­se modesta, ela reprimiu uma exclamação ao deparar com o bebê que trazia no rosto uma marca de nascença de Tavig. Jeanne havia dado à luz um filho dele.

— Não pode ser... — A voz de Tavig soou debi­litada pelo choque.

— Mas sim — atalhou Iain — é seu filho e estou entregando-o a você, agora que a mãe se foi.

— Sem ofensa, não queria falar mal dos mortos, mas Jeanne...

— Era uma prostituta, eu sei. Ficou muito aflita desde que se descobriu grávida.

— Como pode ter certeza de que o filho é meu?

— Os olhos — Moira sussurrou atrás de Tavig. — E a marca no pescoço.

— Sim — Iain corroborou. — Sua esposa tem di­reito a ele. O menino possui os mesmos olhos negros que você. Esperei que ele nascesse para verificar se tinha os traços de algum rapaz do vilarejo, que eu for­çaria a casar com Jeanne. Mas só há um homem com sinais indiscutíveis de paternidade: você!

Tavig permaneceu absorto nas feições do bebê, que também o fitava, curioso. Ele gostaria de negar as semelhanças, porém era inviável. Aparências à par­te, o instinto lhe dizia que o menino era seu. Estivera certo disso desde o primeiro olhar à trouxa aberta.

Procurou os olhos de Moira, mas ela se recusou a fitá-lo. Segurar o filho nos braços enchia Tavig de um senso de afeto e proteção, e também de um vasto conjunto de incertezas e emoções conflitantes. Num repente, ele amaldiçoou o destino que lhe impusera aquela carga na hora errada.

— Iain, viajo a pé e tenho pelo menos uma semana de caminhada pela frente. Não posso ficar com o bebê. Ele também é sua carne, sua responsabilidade.

— Sei disso e vou sentir falta dele. É uma criatura quieta e forte. Mas como criá-lo ao lado de meus oito filhos, de minha mulher doente e da família da irmã viúva? Sou um homem pobre. E, pense nisso, Jeanne é a mãe. Ficando aqui no vilarejo, o menino pagará pelos pecados dela.

— Qual a idade? — Tavig quis saber.

— Oito meses, quase nove.

— O nome?

— Nenhum ainda. Jeanne afirmava que, sabendo da gravidez e do parto, você se casaria com ela. Eu lhe disse que talvez aceitasse a criança, mas nunca a desposaria. — O homem mais velho deu de ombros. — Se for possível, gostaria de ter notícias do menino, de vez em quando.

— Juro que será informado.

Iain trouxe a cabra até perto de Moira e pôs a rédea em suas mãos, bem como um pequeno pacote.

— A criança se alimenta do leite da cabra, desde que nasceu. No embrulho, encontrará material para a ordenha, uma mamadeira e uma muda de roupa. Lamento dar-lhe trabalho, senhora, mas realmente não posso cuidar da criança. Ele chora pouco e não traz problemas. Rezo para que a senhora aceite ser a nova mãe dele.

— Bem, eu nunca deixaria uma criança pagar pelos pecados da verdadeira mãe. — Moira cravou os olhos em Tavig. — Ou do pai. Zelarei pelo menino da melhor maneira possível.

— Que Deus esteja com a senhora — lain murmu­rou, em seguida beijou a face do menino e desapareceu em meio ao bosque.

— Moira... — começou Tavig, assim que o velho sumiu.

Ele balançava o bebê nos braços, e vê-lo ninar o filho de Jeanne gerava nela emoções fortes. Moira precisava de algum tempo para se recuperar do abalo.

— Pensei que o mais importante para nós — ela declarou — era chegarmos depressa ao nosso destino. Os planos mudaram?

— Não, não — ele gaguejou, comovido. — Os habitantes do povoado se vingaram de quem os en­ganou. Não quero esperar para ver se ainda estão nos culpando por alguma coisa.

— Então, o melhor é andarmos. — Ela acomodou a bagagem como pôde e, puxando a cabra pela rédea, começou a marchar.

— É esquisito caminhar levando um bebê — Tavig queixou-se, seguindo atrás de Moira.

Ela parou, respirou fundo e, sem dizer palavra, separou uma das mantas, que dobrou várias vezes, fazendo diversos nós, até produzir uma espécie de bolsa para o bebê, que pendurou junto ao peito, por meio de alças presas nos ombros.

Apanhou o menino, ajeitou-o dentro do ninho im­provisado. Passou as sacolas a Tavig, retesou a rédea da cabra e de novo se pôs a caminho. Para seu alívio, mesmo livre da carga Tavig não falou com ela. Melhor assim, pensou Moira, receosa de manifestar alguma impropriedade, devido a seu estado emocional.

Raiva era uma dessas emoções, mas ela não tinha certeza do que a provocara. Jamais tinha atribuído a Tavig a mesma inocência dela. Portanto, um filho bas­tardo não constituía grande surpresa. Saber que ele havia se deitado com outras mulheres era mais supor­tável do que ver a prova viva e tangível de seu mau passado: o menino pequeno que pressionava contra seu peito. Tentava convencer-se de que receber um bebê para cuidar não era necessariamente um sinal de verdadeira afeição. Censurou-se interiormente por continuar apegada ao ideal romântico de escolher um marido e formar uma família própria.

Mágoa e ciúme igualmente floresciam em seu ín­timo. Tentou suprimi-los lembrando-se de que o filho de Tavig e Jeanne tinha quase nove meses e levara ou­tros nove em gestação. E dezoito meses antes ela nem sequer conhecia sir Tavig MacAlpin, e ele ignorava sua existência. Portanto, era tolice considerar o nasci­mento do menino como uma afronta pessoal. Prometeu a si mesma julgar as atitudes de Tavig somente a par­tir do momento em que estavam juntos. Nesse ponto, não podia reclamar de ciúme ou mágoa.

Depois de puxar a cabra teimosa por um trecho íngreme, Moira seguiu analisando seus sentimentos. Julgava importante não transmitir à criança nada de negativo, quando ela crescesse, e tomasse conheci­mento das condições de nascimento. Isso certamente a faria ficar sentida ou carente. Assim como Tavig igualmente não merecia tais restrições. Resistiu ao impulso de chamá-lo e conversar com ele sobre seus sentimentos e conclusões. Haveria muito tempo para conversarem, na hora em que montassem acampamento.

Tavig praguejou no vazio, imaginando que Moira o evitava, sem conceder-lhe um simples olhar. Agia como se ele não existisse. Embora capaz de com­preender os sentimentos dela, em face da nova situa­ção, era desagradável ser ignorado. Gostaria de saber o que ela pensava e sentia, mas faltava-lhe paciência. No entanto, ouvi-la era indispensável para que pudes­se tranquilizá-la.

Seu maior medo era que o aparecimento de um filho ilegítimo erguesse uma barreira entre eles, uma mu­ralha que nunca mais se rompesse. Os meandros do destino, ele pensou, mostravam-se frívolos e cruéis. Vendo Moira como um prêmio em sua vida, ele não queria nenhum obstáculo no caminho para o coração dela.

Finalmente, ele concentrou-se na busca de um local seguro para passarem o que restara da noite. Assim que conseguisse reter Moira cativa num determinado lugar, ele iniciaria a desejada conversa.

— O bebê está dormindo, já nos alimentamos e nossa cama está estendida — disse Tavig ao lado da fogueira, fitando a silenciosa Moira. — Agora acho que podemos conversar.

— Sobre o que você quer falar? — ela indagou, sentindo um certo prazer do olhar irritado que ele lhe dirigia.

— A respeito do bebê. Você não disse uma palavra desde ele foi colocado em meus braços. Mal me olhou. Preciso saber o que se passa dentro de sua cabeça.

Era justo. Tavig teria de tomar conhecimento de como ela encarava a situação. Também era um desafio.

Moira optou por falar honestamente, mas sem entrar em detalhes. Referir-se a seu amor por Tavig e ten­tar mobilizar a afeição dele seria cruel. Pior ainda, ela não iria permanecer junto dele. Seus problemas familiares e os incidentes nos vilarejos haviam forta­lecido sua convicção de que a vida a dois seria muito perigosa.

— É uma bonita criança — verbalizou final­mente. — Você precisa dar-lhe um nome.

— Pensei em batizá-lo de Adair, homenagem a um amigo que morreu.

— Um dos homens que seu primo Iver mandou matar? — Quando Tavig gesticulou, confirmando, ela sorriu e acrescentou: — É um bom nome.

— Era uma excelente pessoa — ele emendou. — Resolvida essa questão, o que mais gostaria de falar?

— Não sei com certeza — ela rebateu. — Na verdade, que direito tenho de dizer alguma coisa?

Tavig veio sentar-se ao lado dela e tomou-lhe a mão.

— Mais direito do que qualquer outra pessoa. Somos amantes, e eu lhe trouxe um filho nascido de outra mulher. Preciso saber como está se sentindo diante dessa situação.

— Imagino que você tenha mais a declarar do que eu. E é claro que o menino é seu. — Percebi isso desde que o vi. Não gostaria de que Iain o levasse, mas, considerando o número de homens com quem Jeanne se deitou, parece um capricho do destino que minha semente criasse raízes no ventre dela. Sempre fui muito cuidadoso, como sabe.

— Talvez Jeanne decidisse deixar sua seiva germinar. — Moira notou a surpresa de Tavig. — Mas está feito. As criadas que prestam favores a sir Bernard nunca tiveram bastardos. Por certo, uma mulher como Jeanne sabia como se livrar de uma gravi­dez indesejada, mas um filho seu ela aceitou.

— Provavelmente, você tenha razão. Mas ainda não sei como se sente a respeito de tudo isso. Achei que ficou esquiva e com raiva de mim, embora não me repreendesse.

— Não fique contente com isso, sir Tavig MacAlpin. O rancor foi só uma parte de minha frus­tração. Mas não me pressione. Também estou confusa e acho impossível explicar-lhe tudo.

— Então me diga apenas por que ficou furiosa comigo.

— Julgo desnecessário. O mal-estar apareceu sem envolver você. Refleti que a criança foi concebida dezoito meses atrás, quando não nos conhecíamos. Considerei tolice me aborrecer com algo que ocor­reu antes de nosso encontro. — Ela sorriu, aliviada, e Tavig a abraçou. — Mas gostei de vê-lo preocupado com minha raiva.

— Como evitar? Quando Iain colocou o pequeno Adair em meus braços, vi o menino como uma barrei­ra entre nós.

Moira recuou um pouco e fitou Tavig nos olhos.

— Por que pensou assim e por que eu permiti? Sim, incomoda-me que a mãe dele fosse Jeanne, a pessoa que tentou me prejudicar e dar fim a minha vida. — Ela balançou a cabeça suavemente. — Mas os erros dela ou os seus não devem afetar a mim e à criança. Você seduziu uma mulher que na época o desejava, nem mais nem menos.

Moira deu-se conta de que existia uma questão séria por trás de suas palavras. O sorriso de Tavig mostrou que ele tinha compreendido.

— Nem mais nem menos — ele ecoou. — Já lhe disse que tudo o que me aconteceu antes de você foi mera volúpia. Deixei que minha luxúria me guiasse, mas agora mudei. Deveria ter seguido a intuição, para não lamentar, como lamento, que Jeanne tenha sido a mãe de Adair. — Tavig olhou para a criança ador­mecida na manta que ele colocara no chão. — Jamais a escolheria para ser mãe de meu filho, pois seria incapaz de criar Adair.

— Concordo plenamente. Ela o usaria contra você, a fim de chantageá-lo. — Moira suspirou. — Não falemos mais disso, e até podemos lembrar de Jeanne com uma certa generosidade. Desde já, você deve prever que, quando crescer, Adair lhe fará perguntas sobre a mãe.

— Somente a mim? — Tavig estranhou.

— Talvez eu não esteja mais por perto. Meus pa­rentes certamente já me aguardam na casa de seu primo Mungan ou virão me buscar pouco depois de chegarmos. Exigirão que eu viaje de volta com eles.

— Não se estivermos casados — argumentou Tavig.

— Por favor, não comece de novo com essa histó­ria — Moira falou com firmeza.

— Por causa de Adair?

— Não, e você sabe disso. Se me tornasse sua es­posa, acabaria me preocupando com quantos filhos ilegítimos você plantou por aí. Deve ter espalhado sua seiva vital por todos os vilarejos.

Apesar do pensamento tortuoso, Moira pareceu segura de si.

— Não — ela prosseguiu —, não é o bebê nem o seu passado que me desencorajam, mas o fato de que nossa união nos levaria direto às galés ou à fogueira. Viu com os próprios olhos o risco que corremos, nos dois povoados. Superstição e medo dominam rapida­mente as pessoas crédulas, daí o perigo.

Enquanto Tavig meditava sobre isso, ela limpou os pratos e guardou os alimentos no farnel.

— É impossível parar de viver por causa dos re­ceios idiotas dos outros — ele alegou em seu favor.

— Eu sei, mas ignorá-los também constitui uma tolice. Não posso, a cada noite, ficar apavorada com uma eventual invasão de aldeões, portando tochas e me chamando de bruxa. — Ela postou-se diante de Tavig, com as mãos na cintura. — Nós dois fomos amaldiçoados com poderes que provocam supersti­ções. Separados, provavelmente conseguiremos levar nossas vidas sem maiores problemas. Juntos, esta­mos de antemão condenados. Já tivemos uma amostra perfeita disso. Aliás, duas.

Tavig trouxe Moira para perto de si de maneira que ela se sentasse em seu colo.

— Está enganada. Na primeira vez, foi somen­te meu dom de premonição que causou transtornos. Na segunda, intervieram uma mulher ciumenta e um padre ambicioso.

— Ambicioso?

— Sim, apenas Jeanne acusou você de feitiçaria. Um bom padre mandaria os cidadãos para casa, evitando complicações. Mas ele quis imprimir sua marca pessoal no combate a Satã, sem notar a vaida­de de Jeanne. — Tirando a camisa, Tavig inverteu as posições e se aninhou no colo de Moira. — Não admito nem pensar em perder você.

— Confesso que quase me atirei em seus braços, logo que o conheci. Julga que, após quebrar todas as regras da sociedade, eu o deixaria por causa de um filho gerado muito antes?

— Mas parece disposta a me abandonar por conta de seus temores quanto a perseguições de gente igno­rante. — Um breve beijo, e Tavig colou sua face na de Moira. — Esquece-se de minha dedicação a seu bem-estar?

— Não, e isso me envaidece, mas são muitos os riscos que você correrá a meu lado.

Um novo beijo, e Moira parou de pensar no as­sunto, permitindo-se fruir seus sentimentos. Desejou mergulhar na paixão, afastando o medo. Fazer amor com Tavig despertaria nela uma estranha mistura de liberdade e força, beleza e segurança. Ela o acompanhou nos beijos e carícias. Quanto mais ousada se tornava, mais Tavig perdia o controle sobre sua excitação. Durante a estreita união dos corpos, ela o recebeu dentro de si com avidez, e seu clímax foi rápido e atordoante. Moira mal percebeu Tavig a suar e gemer, imersa na semiconsciência do próprio êxtase.

Seus sentidos retornaram ao normal enquanto ela desfrutava um doce calor na pele. Tavig fez um letárgico esforço para interromper o contato íntimo, Moira apertou braços e pernas em torno dele, a fim de conservá-lo dentro de si. À medida que o desejo se abrandava, ela suspirou, contente e saciada, e todos os medos se esvaíram, trocados pelas sensações deliciosas que ele lhe despertava.

— Você é maravilhosa, Moira — ele murmurou, saindo do abraço para esticar-se ao lado dela e trazê-la até seu peito. — Uma ótima aluna, também.

Sorridente, de encontro ao tórax largo, ela quis saber se isso era bom. Ele confirmou, acrescentando que tanta atividade sexual podia fazer mal à saúde.

— Vamos dormir — propôs. — A noite quase ter­minou e não podemos descansar de dia. Ainda temos muitos quilômetros pela frente.

Tavig se espreguiçou langorosamente quando se ergueu para tornar a vestir a calça. Moira mediu-lhe a figura e ponderou se ele sabia como era bonito. Mas um bocejo quebrou seu fascínio pelo amante. Vestiu a camisola e, assim que Tavig se deitou, ela aninhou-se perto dele outra vez, com a intenção de relaxar e dormir. Foi quando um alarme soou em sua mente.

— O bebê! — Moira saltou e foi ver a criança, que continuava adormecida. — Você acha que é seguro deixá-lo dormindo sobre o chão?

— Não há outra solução.

— O problema é que Adair já tem idade para enga­tinhar. E se ele acordar sem notarmos e rastejar para longe?

— Bem... — Tavig cocou o queixo. — Podemos colocá-lo no meio de nós. Assim sentiremos se ele se mexer. — Ele suspirou de frustração. — Confesso que preferia dormir abraçado a você.

— Adair pode se machucar seriamente se sair engatinhando no meio do bosque. Portanto...

Tavig pareceu arrependido de ter formulado uma f boa idéia. O transtorno não era culpa do bebê. Ao ajeitá-lo entre os dois, ficou olhando para aquele rostinho encantador.

— Tal pai, tal filho — disse Moira, rindo discretamente.

— É muito engraçado. — Ele tocou os cachos escuros da criança. — Mas não vejo a hora de deitar Adair num berço de verdade.

— Também eu. Não é bom ele se acostumar com estas condições.

Tavig esperou Moira adormecer. Pressentia que ela não havia se referido às regras normais de cuidados com crianças, mas ao fato de que planejava sair de cena. Caso Adair se apegasse a ela, como era previsível, sofreria quando ela fosse embora.

Observando-a, ele imaginou o quanto sentiria sua falta. Moira nunca prometera ficar e apresentara suas razoes para não se casar com ele. Como ter raiva dela?

O gosto do fracasso amargou-lhe a boca. Moira se convertera em sua amante, porém ele queria mais, muito mais. Era como se Deus e o destino, juntos, o forçassem a uma nova provação.

Gentilmente, ele passou o braço em torno de Moira e da criança, e posicionou-se o mais perto possível, sem acordá-los. Se ela tinha aceitado o bebê sem restrições, significava que se importava com ele. No entanto, ele tinha receio de consultar seu coração sobre seus reais sentimentos por ela. As aterrorizantes experiências vividas com a amante, por suposta feitiçaria, haviam castigado seus sentimentos. O mesmo se repetia em face da idéia de Mo ira deixá-lo. Teria de romper a resistência dela. Esperava apenas que essa luta não fosse tão dura ou inglória.

Moira acordou com um peso diferente sobre o peito. Abriu um só olho e deparou-se com o pequeno Adair, que tinha escalado seu corpo até ficar a centímetros de seu rosto. Ele tinha o dedinho na boa e babava, e não adiantou Moira enxugá-lo, porque mais saliva apareceu. O frio e a escuridão indicavam que ainda era madrugada. Um breve olhar para o lado, revelou que Tavig dormia profundamente.

— Não lhe ocorreu, meu pequeno, acordar seu pai? — Ela o depositou novamente na bolsa e ergueu-se.

— Se está com fome, precisa esperar até eu conseguir seu leite.

Moira trocou o pano molhado que envolvia o bebê, sorrindo diante da maneira como ele mexia os pezinhos. Tinha os olhos do pai, o que não queria dizer que possuísse o mesmo dom nem o mesmo pendor para criar problemas. Adair era uma criança quieta, e pa­recia feliz. Provavelmente sabia que iria ganhar sua mamadeira, por isso não chorava.

Na hora em que Moira encheu a garrafa com o leite da cabra, Tavig despertou. Riu ao ver o modo como ela ralhava com a cabra, por relutar em soltar o alimento em mãos inexperientes. Em seguida, o bebê mamou todo o conteúdo da mamadeira, sob os olhares enter­necidos de ambos.

— Ele de fato se parece com você — disse Moira, divertida com a constatação.

— Ainda bem que Jeanne não deixou nenhum sinal visível no menino. — Tavig entreteu-se com o prepa­ro de um mingau grosso, com aveia.

— Perturba você se ele crescer com alguma carac­terística da mãe?

— Não. Apenas se apresentar traços de maldade. Jeanne se prostituiu após ouvir constantes queixas da mãe sobre sua pobreza. Achou que assim poderia ganhar presentes e dinheiro, mas não conseguiu ver que nada mais teria. Iain é um homem bom, não lhe permitiria criar o neto.

— E Adair não desenvolverá a mesma ambição? — Moira inquiriu, a segurar o bebê contra o ombro.

— Se crescer feliz, não pensará que pode fazer qualquer coisa para ganhar algumas moedas. Além disso, ele gosta de você.

Moira meneou a cabeça, ciente da armadilha enunciada por Tavig.

— É um bebê ainda. E os bebês não são ensinados a hostilizar pessoas. Têm confiança e amor para dar. Você realmente não espera que eu assuma a criação de Adair, não é? Ele não pode ser atingido pelos perigos que nosso casamento traria.

— Acredito que um casamento definitivo não comportaria nenhum risco maior do que o enfrentado todos os dias, se ficarmos separados. — Tavig pontuou sua fala com olhares de ternura. — Vejo, porém, que você não escuta a voz da razão.

— Poderia dizer o mesmo de você, sir Tavig MacAlpin.

— Bem, já fui considerado persistente.

— Teimoso, isso sim.

Ela riu antes de apanhar seu prato de mingau. Sob o riso, contudo, havia uma dor sutil. O fim da viagem marcaria o fim de seu tempo com Tavig, o que vinha ganhando o peso de uma sentença de morte. Para ela, abandonar o amante e o menino constituía uma ques­tão de segurança, mas o distanciamento partiria seu coração. Deixou Tavig falar à vontade, expondo de novo seus motivos, o que a levou a referir-se mais uma vez às razões de sua recusa, na esperança de que ele por fim compreendesse.

Com a colher de pau, ela deu a Adair um pouco de mingau. Almejou que pudesse criar uma barreira entre seus sentimentos com relação à criança, após ter falhado nessa meta quanto ao pai. Era triste pensar em deixar o bebê, pois seria fácil aceitá-lo como se fosse seu. Bastaria dar e receber amor.

Moira lutou para afastar tal idéia da mente, pois poderia convencer-se de que precisava continuar com Tavig, pelo bem da criança. Mas condenava a tentativa dele em usar o menino para mantê-la a seu lado.

— Vou lavar as roupinhas de Adair — ela avisou, distanciando-se, e Tavig moveu-se rápido para segurar o menino que já engatinhava atrás de Moira. Temeu pelo futuro do filho, sem uma mãe que tivesse os mesmos cuidados de Moira.

Ela retornou depressa e, vendo a cena de amor en­tre pai e filho, imaginou que sua crescente ligação com Adair tendia a tornar-se uma fraqueza, capaz de romper sua resistência à união com Tavig. Embora houvesse um paradoxo, pois ela também o condenara por valer-se do bebê a fim de prendê-la junto a ele, no entanto ela poderia usar a criança como meio de permanecer ao lado do homem amado.

Bem, era apenas uma suposição. Tavig não abalaria sua certeza sobre a conveniência de partir. Ele pró­prio não desejaria que ela ficasse por causa de Adair, e sim porque o seu coração lhe ditava a permanência ao lado do legítimo companheiro. Os dias faltantes tal­vez fossem insuficientes para mudar a opinião dela, mas Tavig sorriu ao filho, sentindo crescer sua capa­cidade de amar. Era reconfortante saber que, enquan­to tudo o mais desabava, ele ainda dispunha de uma última cartada.

 

Moira suspirou ao ver Tavig de volta de entre as árvores. Ela havia parado a fim de dar a Adair sua refeição da tarde. Em dois dias de caminhada, o menino parecia ter se ajustado às circunstâncias. No entanto, a expressão no rosto de Tavig era de medo, o que a deixou atemorizada.

— Vi um par de lobos e acho que me viram também — ele disse, acomodando o filho na bolsa que Moira trazia pendurada sobre seu peito.

— Seguiram você? — Ela demonstrou apreensão.

— Perdão, não me expressei bem. São dois ho­mens, provavelmente enviados por Iver para me caçar. Você precisa pegar a cabra, nossas provisões e tudo o mais, e esconder-se na floresta com Adair.

— Mas, Tavig, o que faremos? Você nem mesmo procurou um abrigo para nós.

— Eles estão muito perto. Pretendo retomar a tri­lha e guiá-los para longe de vocês. Se eu não voltar até a hora do crepúsculo, você segue sem mim até a propriedade de Mungan, no meio daquelas colinas. — Tavig indicou a direção com o dedo. — Não quero que ponham as mãos em você e muito menos era meu filho.

Impossível discutir, porque Moira já podia escutar, bem próximo, o barulho dos inimigos. Ela tendia a permanecer junto de Tavig, mas agora não eram so­mente os dois. Adair tinha de ser preservado. Sua vida corria perigo tanto quanto a do pai.

Enquanto Tavig desaparecia em meio às árvores, Moira abrigou-se com o menino numa espécie de gruta formada por arbustos e pedras. Sem tardança, escutou um grito vindo dos capangas de Iver. Haviam localizado Tavig. A Moira, só o que restava era esconder-se, e rezar.

Tavig praguejou, alterado, e tentou manter-se no trecho de mata fechada que retardava seus persegui­dores, montados em cavalos. Aproximava-se de uma clareira, mas os cavaleiros haviam bloqueado seu caminho de volta à floresta. No descampado, eles fa­cilmente o dominariam.

Murmurou mais um xingamento quando passou a última árvore e agachou-se na clareira. Seu dom de premonição lhe havia falhado, pois não o alertara do risco que corria ao procurar um coelho para incre­mentar o almoço. Tinha praticamente se deslocado até as mãos dos adversários, que eram ajudados por cães farejadores. Amaldiçoou a crueldade de Iver, e seu único consolo era saber que Moira e Adair estavam a salvo.

Encurralado, empunhou a espada, disposto a resis­tir aos inimigos, que somavam seis homens, prova­velmente bem armados. Sem a menor dúvida, ele per­deria a luta, mas deixaria algumas marcas de sangue nos vitoriosos.

Enfrentou dois espadachins, com tal facilidade que sua esperança cresceu. Logo foi extinta, porem. Havia derrubado um terceiro homem de sua sela, e decidiu cavalgar até a liberdade. No entanto, ele também caiu no chão, debaixo de socos e golpes que o levaram a um estado de semiconsciência. Não conseguia revi­dar ou esquivar-se das pancadas, e só se ergueu pelas mãos de um cavaleiro que desmontara. Era Andrew MacBain, ele reconheceu, o principal mercenário a serviço de Iver.

— Iver nos pagará bem pela captura dele — disse Andrew, cofiando a barba comprida, empoeirada.

— Se acha que vai receber dinheiro, é mais tolo do que eu fui — Tavig retrucou, sentindo dores por todo o corpo.

— Não tente semear a desconfiança. Fomos aler­tados contra sua lábia. Iver prometeu recompensar quem lhe entregasse um foragido da justiça e crimi­noso cruel.

— Belas palavras, vindas de quem manuseou o punhal assassino! — Tavig debochou, desafiando Andrew.

— Além de Iver e nós, você é o único que sabe dis­so. Mas nem ele nem ninguém aqui contará a verda­de. — O mercenário alisou com os dedos o fio de seu punhal. — Não é raro um homem ter a língua cortada durante uma batalha.

Andrew guardou a lâmina na bainha.

— Vamos acampar aqui mesmo, onde dificilmente nos encontrarão. — Empurrou Tavig de volta ao chão. — Amarrem-no pelos tornozelos e pulsos — ordenou a um comparsa magro, que prontamente o atendeu.

Uma vez atado, Tavig foi esquecido pelo grupo, que se dedicou a preparar o acampamento por uma só noite e a aplicar bandagens nos feridos. Gemendo de dores, ele empurrou-se para trás com o pés amarrados, até poder apoiar as costas num arbusto e proteger-se do vento forte, que prenunciava um temporal.

A menos que um milagre acontecesse, Iver tinha vencido, o que produziu um travo amargo na boca de Tavig. Pior, estivera perto de alcançar Mungan, de obter ajuda e segurança. Caso Moira conseguisse encontrar o primo e contasse os fatos, Mungan cer­tamente tentaria resgatá-lo. No entanto, talvez fosse tarde demais. MacBain e seus mal-encarados asse­clas o entregariam a Iver antes de Moira chegar ao destino combinado.

Ao pensar nela, ele suspirou, abatido pela possi­bilidade de nunca mais vê-la, bem como por não ter evitado a ação dos inimigos. Moira não teria escolha, exceto retornar ao convívio de sir Bernard Robertson. E seu filho de poucos meses? Também sofreria. Ele não havia deixado nada escrito sobre a paternidade de Adair, que seria maltratado por Bernard e, uma vez crescido, não poderia reclamar sua herança por direi­to. Se Moira desistisse de tomar conta de seu filho, ele passaria a ser órfão de pai e mãe. Com sorte, Mungan acolheria o menino.

Pelo menos estavam todos vivos, ele ponde­rou, procurando amenizar sua sensação de fracasso. Caso Moira e Adair fossem localizados por Andrew MacBain e seus comparsas, não sobreviveriam por muito tempo. Era quase certeza de que ela seria abusada e morta, na presença da criança. Tavig orou para que ela tivesse o bom-senso de agir como ele havia instruído.

 

O céu alaranjado não deixava dúvida. Já era hora do crepúsculo e nem sinal de Tavig. Acomodando Adair na bolsa, ela utilizou outra manta a fim de reu­nir as provisões e demais objetos nas costas da cabra. Teria de enfrentar o aclive das colinas, antes de descer, encontrar Mungan Coll e mobilizá-lo para o resgate de Tavig, em tempo de salvá-lo. Duvidou da própria capacidade e também de que Tavig vivesse por mais dias, após cair nas mãos de Iver.

Felizmente, a criança estava em um sono profundo.

— Você é filho de Tavig. Mesmo sem nenhum papel para provar isso, será reconhecido por Iver ao primeiro olhar. Ele vai desejar matá-lo, para não per­der a herança. Gostaria de que salvar sua vida não anulasse as chances de Tavig também ser salvo. Mas nada posso fazer.

Moira retirou um galho do caminho e deu ritmo às passadas. Adair, semidesperto, alcançou com os dedos uma mecha avermelhada dos cabelos dela e levou-a à boca. De novo fechou os pequenos olhos quando Moira afagou seus cachos escuros. Ela sofria, temen­do por Tavig, porém todos os instintos lhe diziam para ir em frente e salvar a criança. Poderia contar com a compreensão de Adair, depois que crescesse?

Franziu a testa diante da vastidão das colinas que deveria cruzar. Entre ela e as elevações, havia um amplo trecho de terreno aberto, com apenas alguns arbustos retorcidos, incapazes de escondê-la junto com o bebê e a cabra.

Decidiu abandonar momentaneamente o animal, cuja rédea prendeu a um tronco baixo, e retomou a marcha. Caso fosse necessário, sem a cabra ela po­deria rastejar até os arbustos. Contudo, ao observar bem o local, não viu indícios da presença dos inimigos de Tavig. Sentiu-se aliviada.

Ao olhar para o leste, porém, ficou gelada. Uma fogueira era visível, contornada por seis homens. Chamou-lhe a atenção a figura que jazia no solo, de encontro a um arbusto. Teve certeza de que estava vendo não só os algozes de Tavig, como também ele próprio. Parecia respirar. Saber que Tavig se achava vivo e tão próximo lhe inspirou uma mudança nas prioridades.

Como se afastar dali, naquelas circunstâncias? O que deveria fazer? Não teve resposta. Seguiu vi­giando os homens até o surgimento de alguma idéia. Os captores de Tavig claramente não bebiam água dos cantis. Estavam se embriagando. A continuarem assim, logo perderiam a noção da realidade.

Moira tomou uma decisão. Voltou ao tronco, desa­marrou a cabra, mas atou-lhe a boca com um retalho de pano. Depois, tangeu-a rumo às colinas, mantendo o olhar na fogueira até cobrir os últimos metros da trilha, já na base rochosa dos montes, onde poderia ocultar-se entre os arbustos e as pedras.

Novamente prendeu a cabra e procurou por um bom lugar para esconder Adair. Ainda que não pre­tendesse deixá-lo sozinho por muito tempo, necessi­tava de um refúgio contra o vento da noite e animais selvagens.

Ante a falta de alternativas, Moira deixou-se cair sob uma rocha coberta de musgo. Se alguma coisa acontecesse com ela, a criança morreria de inanição. Teria de levá-la com ela, em sua incursão pelo acam­pamento dos bandidos. Parecia loucura, mas insani­dade maior foi apanhar o punhal de Tavig entre seus pertences.

— Você é o bebê mais quieto que conheço. — Ela acariciou-lhe o rosto. — Por favor, continue assim. Vamos tentar salvar seu pai, ou pelo menos dar-lhe uma segunda chance de safar-se sozinho.

Moira respirou fundo e correu de volta à clareira, parando para tomar fôlego somente quando alcançou a segurança das árvores.

— Se Tavig escapar — ela murmurou a si mes­ma —, vai querer me matar. Lentamente. — Sorriu a esse pensamento, e o instante de coragem também foi de alívio.

Ela partiu rumo à fogueira, parando em cada árvo­re por precaução. Soltou a bolsa com o bebê nas pro­ximidades. Já conseguia ver o arbusto no qual Tavig se reclinava. No fim do renque de vegetação, Moira prendeu o punhal entre os dentes e jogou-se no chão, de braços. Torcendo para que os inimigos estivessem de fato dormindo, como pareciam, ela rastejou na direção de Tavig. Tudo o que teria de fazer era cortar as amarras dele e passar-lhe a lâmina.

Tavig tentou ajeitar o corpo em posição menos desconfortável. Observou seus captores. Os dois ho­mens que havia ferido estavam embriagados e agora dormiam. Outros dois jaziam estirados no solo, com muito sono, e os últimos também não ficariam acordados por longo tempo.

A confiança do grupo em sua incapacidade de fu­gir enfureceu Tavig. Enquanto procurava uma posi­ção menos desconfortável, para cochilar, ele sentiu as cordas nos pés e mãos sendo cortados. Sem ver Moira, debateu-se instintivamente, imaginando que algum animal da floresta o farejava. Um toque suave no rosto o devolveu à realidade. Era Moira.

— Por Deus, o que faz aqui? — Ele se exaltou. — Onde deixou meu filho? Por que não me obedeceu e fugiu?

— Obedeci, mas fale baixo para não acordar esses porcos. Adair está a salvo e poderemos atravessar as colinas. Se você não quiser ir agora, eu o espero lá, perto das rochas.

— Sim, vá e me aguarde. Tome cuidado.

Tavig ouviu o farfalhar da saia de Moira quando ela se distanciou, deixando-lhe o punhal. Surpreendeu-o a movimentação dela, em silêncio quase absoluto. Tinha de admirar a habilidade e a coragem da amante.

Andrew MacBain foi o último dos bandidos a de­sabar no solo, em torpor alcoólico. Tavig observou o grupo de captores, ponderando o que fazer com eles. Precisava ter certeza de que não reagiriam a sua esca­pada. A única chance de continuar livre consistia em aprofundar-se nas colinas. Pensou em roubar um dos cavalos próximos, mas um simples relincho poderia despertar os inimigos.

Em poucos minutos, ele concluiu que nenhum dos homens acordaria antes do amanhecer. Olhando para o grupo por cima do ombro, ele tomou o rumo do bos­que, censurando-se por pisar ruidosamente em folhas secas. Chegou à base das colinas, cansado e dolorido, mas sorriu ao deparar com Moira puxando a cabra e levando ao peito a bolsa em que Adair dormia.

— Moira — ele a chamou baixinho, aproximando-se. — Obrigado por tudo, mas acredito que não con­seguirá levar a cabra sozinha, durante a subida. Ela também necessita de descanso, para que o leite não falte à criança. — Percebeu os suprimentos amarrados no lombo do animal. — Boa idéia.

— Acha que assim ela não produzirá leite?

— Talvez, mas antes disso chegaremos à casa de Mungan. — Tavig afagou a cabeça da cabra e depois deu um beijo rápido em Moira. — Você salvou minha vida, porém devia ter fugido, como pedi.

— Eu não podia deixá-lo, depois de ver a fogueira do acampamento em minha rota de fuga.

— Correu perigo, e Adair também. Em principio, Iver só queria tirar a minha pele.

— Fui obediente a você, mas não consegui simples­mente abandoná-lo à sanha de seus inimigos. O fato de os captores terem se embebedado facilitou minha entrada no acampamento.

— E o que fez com meu filho? Ele rastejou atrás de você?

— Não vou mentir. — Um traço de culpa se estam­pou no rosto dela. — Tive de deixá-lo sozinho, mas abrigado junto a uma pedra.

— Moira! — Tavig praguejou, porém compreen­deu que não houvera outra saída.

— Já resgatei Adair. Ele está dormindo tranqüilo.

— Você é maluca. Onde aprendeu a lidar com um punhal, de uma maneira que qualquer soldado inve­jaria? Usualmente, isso não faz parte da educação feminina.

— Quando se mora com um homem como Bernard Robertson, é indispensável saber deslocar-se sem ruído e dominar o emprego de uma arma. Ele próprio me incentivou.

— Detesto ter de ficar grato àquele homem, mas você salvou minha vida.

— Ah, Bernard não me ensinou pessoalmente, aprendi sozinha, para me sentir menos insegura.

— E ainda planeja voltar à maldita casa dele? — Tavig enrugou a fronte.

— Não tenho escolha — admitiu Moira. Parando de andar e voltando-se para ela, Tavig não escondeu a contrariedade.

— Tem, sim. Venho lhe oferecendo uma solução desde que voltou a si, naquela praia. Mas você se recusa a considerar minha proposta de casamento. Cada vez entendo menos suas alegações.

— Diante dos incidentes nos vilarejos, uma união formal com você só vai inflamar as crendices do povo. Nós dois e seu filho viveríamos sob constante perigo. Já me cansei de explicar.

— Você está longe de ser covarde, Moira. Provou sua coragem mais de uma vez, nesta viagem. É difícil para mim crer que você queira aceitar a brutalidade de Bernard, por julgar que nosso casamento aumen­taria a superstição popular. É difícil crer que fuja diante de crendices tolas.

— Não sou tão corajosa quanto pensa — ela defendeu-se, embora envaidecida pelo que ouvira de Tavig. — Tolice seria enxergar os riscos e correr na direção deles. Entenda que estarei fazendo o melhor para você e Adair.

— No meu meio, as pessoas não são supersti­ciosas. Ficaremos seguros entre elas. Você poderia permanecer comigo até reencontrarmos meu povo. Então, decidirá.

— Penso que não mudarei de idéia. Em qualquer ambiente, há um limite para a tolerância. Mas prefiro encerrar o assunto. Partirei com meus parentes assim que vierem resgatar minha prima Una.

Para Moira, era cada vez mais penoso manter a recusa. Seria bom ficar com Tavig, embora ele nun­ca pronunciasse a palavra "amor". A persistência do amante lhe recordava que omitia dele um segredo, o de seus dons de cura, e por isso sentia-se crescentemente culpada.

Tavig tocou-a no ombro gentilmente com os dedos.

— Pode voltar a qualquer tempo à vida miserável que Bernard lhe oferece. Tudo o que peço são mais alguns dias. Prometa ficar comigo até eu recuperar os bens que Iver roubou de mim.

— Está bem, prometo.

Ele sorriu e beijou-a. Segurou a rédea da cabra, ouvindo Moira imprecar contra a própria fraqueza sentimental. Mais alguns dias a seu lado significa­vam adiar a dor de deixá-lo. Ela temia ser coagida a permanecer um tempo maior, entre pessoas menos tolerantes do que Tavig imaginava. Fatalmente, teria de revelar seu estranho dom.

 

— Você disse que a propriedade de seu primo ficava logo depois das colinas, mas não que a trilha era interminável — resmungou Moira, sentando-se a uma pedra coberta de musgo. — Já são dois malditos dias de travessia.

— Tivemos de tomar uma rota sinuosa, para despis­tar os homens de Iver. — Tavig terminou de ordenhar a cabra e deu a Moira a garrafa com a refeição do meio-dia de Adair. — Se eles não bloquearem nossa mar­cha em alguma curva, chegaremos à casa de Mungan amanhã no final da tarde.

Ele se demorou a contemplar, feliz, a mamada de seu filho.

— Pois eu acho que aqueles porcos não irão nos perseguir, por falta de vigor e determinação — opinou Moira, impressionada com o apetite do bebê. — O problema é que Iver prometeu uma alta recompensa por minha captura. E não perdoa falhas, Como dois dos homens estão feridos com cortes, ele vai deduzir que me tiveram em suas mãos, porém me perderam. Enfim, os capangas podem ser castigados se não me apanharem.

— Talvez sejam persistentes, mas não podem ficar muito tempo cavalgando por aqui. Os dois feridos não irão sobreviver sem repouso e cuidados profissionais.

— Não aposto que os outros parem a fim de enterrar alguém. São pessoas abrutalhadas, sem sentimentos. Na verdade, se me acharem, talvez se matem entre si, para não dividirem o prêmio.

— Vão nos seguir até as portas de Mungan Coll? — Moira preocupou-se.

— Penso que já descobriram nossa rota e estão se posicionando em algum ponto entre nós e a casa de meu primo — esclareceu Tavig, em tom neutro para não afligir Moira ainda mais.

— Suponho que você tem um plano para nos safar­mos ilesos — ela completou.

— Um ou dois, sim. Não se preocupe, doce Moira. Temos uma vantagem.

— Sobre seis homens montados e armados?

— Eles não querem ser vistos por Mungan e seus auxiliares, porque serão reconhecidos e passados no fio da espada. É uma pequena vantagem, mas melhor do que nenhuma.

Moira concordou com um gesto de cabeça, porém interiormente cedeu a uma sensação de medo. O que fariam os asseclas de Iver quando vissem que sua va­liosa presa havia fugido? Ela não conseguiria enfren­tar uma perseguição tenaz pelas colinas, após dois dias e noites exaustivos. A reserva de alimento trazida do último vilarejo estava quase terminando, pois a cau­tela recomendava que não acendessem fogueiras para cozinhar caldos e sopas. Seriam notados pelos inimi­gos, denunciando sua posição.

Tinham sido caçados desde o início da longa jor­nada, mas nunca como agora. O receio pela vida de Tavig amargava a boca de Moira. Temia por si pró­pria e por Adair, porém menos intensamente. Previa que o amante repetiria o que já fizera, colocando-se ao alcance dos captores a fim de dar a ela e ao filho uma oportunidade de escapar em segurança. O sen­so de culpa já a rondava. Proteger os dois reduzia a capacidade de reação de Tavig.

— Talvez seja melhor você nos deixar aqui e ir so­zinho atrás de Mungan — Moira sugeriu, enquanto deitava Adair na bolsa e esfregava as costas dele, no ritual de provocar um arroto.

— Às vezes, querida, você exagera nas tolices — Tavig respondeu.

— Não falei nenhuma tolice. É inegável que seu filho e eu atrapalhamos você, em matéria de atenção e agilidade. Sem nós, você vencerá o confronto.

— E o que você fará enquanto eu salvo a minha vida? — Ele retorceu a boca ao falar.

— Esperarei aqui mesmo, até que você volte tra­zendo ajuda. — Moira, ao contrário, foi calma na resposta.

— E se os lobos que ouvimos durante a noite se aproximarem, farejando o bebê? Você não pode acen­der uma fogueira, porque isso alertaria os facínoras. Nem sei se você sabe acender uma fogueira.

— Observei você durante quinze dias. Tenho certe­za de que consigo.

No íntimo, Moira ficou apreensiva. Tavig fazia o que soava como uma boa idéia parecer uma bobagem. Ela não contava com um afastamento tão demorado que pudesse trazer-lhe perigo, mas admitiu que não havia pensado muito à frente. Sem dúvida, Tavig le­varia quase um dia inteiro até retornar. Ela passaria pelo menos uma noite sozinha, junto com o bebê, e a idéia a apavorava. Mas não admitiria isso.

— Não quero ser responsável de novo por sua captura — Moira se esquivou.

— Você não teve culpa.

— Não? Se estivesse sozinho, você despistaria fa­cilmente aqueles homens. Mas decidiu colocar-se no rumo deles, para que não encontrassem a mim ou a Adair. Pode acontecer novamente. — Em vez de uma negativa, ela recebeu um beijo na face. — Por que me beijou?

— Pelo cuidado que você tem com o meu bem-estar. — Tavig bateu levemente nas costas de Adair, fazendo o bebê sorrir e deitar a cabecinha no ombro de Moira. — Seguiremos juntos. A casa de Mungan está a meio dia de viagem daqui.

— Sim, se os seus caçadores não impuserem uma mudança de direção. — Ela suspirou, na tentativa de reduzir a ansiedade que ameaçava deixá-la de mau humor. — Lamento, Tavig, mas estou cansada de fugir e me esconder.

— Eu também, querida. Mas é o que temos feito desde que caímos navio.

— Mas não deste jeito. Não tínhamos bandidos nos perseguindo, a ponto de nem podermos acender uma fogueira para não sermos vistos.

Tavig sentou-se ao lado de Moira e do filho. Passou um braço protetor pelos dois e experimentou uma sensação agradável. Entendia o que a perturbava. Os capangas de Iver nunca haviam estado tão perto e por tanto tempo. Era horrível viver acossado daquela maneira. No entanto, Mungan e a almejada seguran­ça achavam-se próximas, apesar de as manobras de despistamento terem somado quilômetros à jornada. Por vezes, Tavig pensava em agir de modo temerário a fim de livrar-se dos mercenários.

— A viagem tornou-se mais difícil do que havíamos planejado, mas chegaremos até Mungan. — Ele acariciou a cabeça do menino. — Adair está pronto. Vamos continuar?

— Está bem, vamos tentar chegar um pouco mais perto. — Moira suspirou enquanto acomodava o bebê de volta no suporte e levantou-se. — Não ligue para mim, Tavig. Estou de mau humor.

— Não há do que se desculpar. Meu humor não está muito melhor, no momento. — Ele empunhou a rédea da cabra e começou a descer a colina, dese­jando que dessa vez pudessem manter-se na mesma trilha. — Para melhorar, preciso agir. Gostaria de encontrar os homens de Iver e matá-los sem piedade.

Moira arregalou os olhos ao detectar a profunda rai­va na voz de Tavig. Percebeu também outros vestígios de fúria: o vigor ao pisar, as linhas retesadas do rosto dele, a impaciência com que puxava a cabra, e sentiu-se culpada por semear nele os próprios sentimentos de frustração, tédio e rancor que vinha cultivando.

Moira prometeu a si mesma parar de queixar-se. Isso abrandaria suas emoções, bem como suas pala­vras, fazendo-a sentir-se melhor. Tavig não merecia ser incomodado com mesquinharias.

Suas boas intenções, porém, se tornaram difíceis de manter quando, uma hora depois, Tavig a empurrou para um abrigo natural formado por pedras grandes e árvores frondosas. Ela sabia perfeitamente do que se tratava. Outra vez os homens de Iver tinham se acer­cado. Ela começou a odiá-los também.

— Onde estão, agora? — indagou, ajeitando a criança no colo.

— A esquerda, não muito longe. Escolheram a trilha mais curta para o sopé da colina — ele res­pondeu, com uma ruga na testa.

— E se, para variar, nós os seguíssemos pela retarguarda, sem sermos vistos? — Moira sugeriu, e em seguida sorriu ao ver a expressão atônita de Tavig. — Desculpe-me. Foi uma brincadeira de mau gosto. Mas é que está difícil agüentar...

Tavig riu e a beijou no rosto, surpreendendo-a.

— Pois desta vez você se saiu com uma idéia inspirada.

— O que quer dizer? — Moira ponderou, por um segundo, se a mente dele ficara afetada pelas adversidades dos últimos dias.

— Veja bem, Moira, eles estão me procurando adiante. Qual é o último lugar em que esses imbecis pensariam em me achar? Atrás deles! Nunca irão pres­tar atenção à retaguarda, porque simplesmente não esperam que estejamos ali, na mesma rota. Entendeu?

Aturdida, Moira não se entusiasmou com a idéia que tivera, e que expressara mais para aliviar a revol­ta do que de fato para dar uma sugestão útil. Na ver­dade, a perspectiva de se aproximar dos inimigos a apavorava.

— E o que vamos fazer se eles pararem? Você mes­mo disse que eles não chegarão perto da proprieda­de de Mungan, receando uma represália. Isso signi­fica que podem acampar bem perto de nós, e teremos de dar uma volta enorme para nos encontrarmos com seu primo.

— Eu não disse que era um plano perfeito. Mas é melhor do que ficarmos trilhando um caminho incerto. Na verdade, contornar o grupo não será mais difícil do que estamos fazendo agora. Gastamos tempo demais tentando nos esconder.

— Concordo, acho que devemos arriscar. Afinal, você nos trouxe em segurança até aqui.

Tavig deu uma risada curta e amarga.

— Em segurança? Pois eu diria que cometi uma grande insensatez ao decidir buscar a ajuda de Mungan...

— De jeito nenhum. Você impediu que morrêssemos afogados no mar, livrou-nos daqueles tontos que nos chamaram de bruxos só porque você salvou uma criança, conseguiu nos tirar do vilarejo. Todos os im­previstos que surgiram, você enfrentou e resolveu. E por dois dias nos afastou das mãos dos asseclas de Iver.

— Pelo contrário, sem mim você não teria passado por nada disso — insistiu Tavig, acabrunhado.

— Bem, não vamos ficar com pena de nós mesmos — retrucou Moira, resoluta. — Se aqueles patifes já se puseram a caminho, acho melhor fazermos o mesmo.

— Sim, agora que você desprezou minha tentativa de ser humilde, só nos resta caminhar.

Moira riu de leve ao colocar-se ao lado de Tavig, a trilha. Mas seu bom humor, que havia voltado, começou a murchar quando se posicionaram logo atrás do grupo comandado por Andrew MacBain. A situação era incômoda, quase irreal, mas ela sabia que havia tomava todo o cuidado para não serem vistos e guardava a devida distância. Ainda assim, a sensação de que, a qualquer momento, cairiam diretamente as garras dos inimigos.

O sol começou a descer no horizonte, e Tavig fez um sinal para que parassem. Exausta, Moira acomodou o bebê no chão e deitou-se, antevendo o desconforto de mais uma noite ao relento, sem ao menos um fogo para combater o frio. Adair poderia ficar doente.

Ela aguardou pacientemente que Tavig retornas­se de sua exploração do terreno mais à frente, a fim de ver com precisão onde o bando de Andrew havia acampado. Foi somente ao sentir um suave toque no braço que se deu conta de que havia cochilado. O sol já desaparecera, e o céu estava com aquela coloração acinzentada que precedia o anoitecer.

— Está tudo bem? — perguntou, sonolenta.

— Sim, tudo. — Tavig ajoelhou-se ao lado dela.

— Os homens resolveram desistir e ir embora?

— Não tão bem assim... — corrigiu Tavig. — Eles montaram acampamento, e obviamente estão cansa­dos como nós. Um deles foi escolhido como vigia no­turno, mas caiu no sono antes mesmo de eu voltar.

— Vamos tentar passar por eles agora? — A voz de Moira denotava extrema fadiga.

— Sim. Mungan mora a uns três quilômetros daqui. É perigoso andar no escuro, mas logo a lua vai apa­recer, e teremos um pouco de claridade. No mínimo, poderemos estar certos de que, se passarmos para o outro lado sem sermos vistos, aqueles idiotas não vão nos caçar durante a noite. — Ele entregou a Moira a garrafa de leite do bebê. — Se você cuidar logo de Adair, talvez possamos tirar alguma vantagem do escuro da noite, antes de a lua aparecer.

Ela lutou bravamente contra a exaustão, tentando demonstrar otimismo e alegria. O esforço valeria a pena, se além de conforto e segurança, encontrassem na casa de Mungan comida quente e uma cama macia.

Depois de alimentar Adair e recolocá-lo no suporte em seu ombro, Moira se preparou para caminhar.

— Precisa mesmo fazer isso? — ela indagou a Tavig, que tirava a mordaça da cabra. — Esse animal é barulhento demais.

— Se os homens de Iver ouvirem algum balido, nestas paragens, vão pensar que vem da fazenda de Mungan. O pano na boca provoca agitação na cabra, o que pode ser mais perigoso do que deixá-la em paz. — Ele contemplou, pensativamente, a série de colinas íngremes que haviam ficado para trás. — Confesso que eu não achava possível vencê-las, pelo menos não tão facilmente.

— Foi bom não ter falado antes. Eu estava aterrorizada, sem saber o que você pensava.

Tavig se aproximou e deu um beijo rápido nos lábios dela.

— Pobre Moira... Mais um pouco, e estaremos todos em segurança.

— Diga a verdade. Você conseguirá achar a casa de seu primo no escuro?

— Sim, querida. Logo ficará mais claro, por causa do luar. E o único consolo que posso lhe dar, por enquanto.

— É o suficiente.

Decididos, reiniciaram a marcha. Como mal enxergava o chão, Moira fixou o olhar em Tavig, repetindo seus passos com exatidão. Quando a lua finalmente brilhou no céu, ela suspirou, aliviada.

— Aí está! — anunciou Tavig, momentos depois.

Moira olhou na direção que ele apontava e prendeu o fôlego. Imaginara uma casa relativamente pequena, talvez com uma ou duas torres, à semelhança de um castelo. Mas a propriedade de Mungan Coll era muito maior do que ela esperara. Ficava pouco a dever às grandes fortalezas da Inglaterra e da França, e a es­pessa muralha que circundava a construção dava uma sensação de solidez e segurança.

— Devemos espera o dia amanhecer para nos apro­ximarmos? — ela perguntou.

— Seria melhor, mas, depois de tudo o que passa­mos, não tenho paciência de esperar. Somos apenas dois, mais Adair e a cabra. Não creio que vão nos con­fundir com alguma ameaça. Também conheço a maio­ria dos vigilantes que se ocupam da muralha, e eles vão me identificar.

— Queira Deus! Seria terrível sermos escorraçados pelo homem que tanto nos custou encontrar. — Moira sorriu quando os olhos de Tavig se iluminaram à luz da lua e ele iniciou a caminhada final até o castelo.

— Devo lhe contar alguns detalhes sobre Mungan, antes de entrarmos.

— Você já me disse que ele é excêntrico.

— De fato. Também é um homem alto e grande, por isso parece feroz. Mas não é preciso ter medo dele. Às vezes, parece um tolo, de tão simplório. Em outras, diz coisas sábias. Mas o mais importante de tudo é que ele possui uma forte determinação, quando decide fazer uso dela.

— Mungan é confiável? — indagou Moira, em dúvida.

— Sim e não... Depende do momento. Penso que não vai me apunhalar pelas costas ou agir criminosamente como Iver, mas também pode ser matreiro, astuto.

— Bem, nada tenho que ele possa querer. — Moira ajeitou a bolsa com o bebê e percebeu, no rosto de Tavig, estranhas linhas de sombra, produzidas pelo luar.

Perto dos portões do castelo, ela começou a ficar ansiosa. No escuro e todo rodeado de barricadas, o lu­gar não parecia muito acolhedor. Os vigias na torre acompanhavam os passos dos recém-chegados. Ficar imóvel na entrada, submetida ao escrutínio deles, era enervante.

— Sou Tavig MacAlpin! — ele gritou para o alto. — Vim ver Mungan Coll, meu primo.

— É difícil enxergar nesta luz. Devemos acreditar na palavra dele? — perguntou um dos vigilantes ao porteiro, que estava ao nível do solo, olhando por uma fresta no muro de pedra.

— Foi você quem falou, Conan? Que tipo de ini­migo chegaria aqui com uma mulher, um bebê e uma cabra?

— É esquisito aparecer a esta hora e sem um cava­lo, principalmente se for Tavig MacAlpin — retrucou Conan.

— Estou sendo perseguido por Iver! — avisou Tavig. — Deixem-nos entrar e verifiquem, com seus lampiões, que não constituímos nenhuma ameaça.

— Encostem na muralha! — ordenou o vigia.

Perto de Tavig, Moira obedeceu e esperou. Um ins­tante depois, um pequeno portão de serviço se abriu. Antes de se dar conta do que acontecia, ela foi puxada para dentro, junto com Tavig e a cabra. A porta bateu ruidosamente atrás deles. Um homem grisalho surgiu diante deles e inspecionou Tavig atentamente por alguns segundos, antes de abrir os braços para acolhê-lo.

— É um prazer revê-lo, Conan — disse Tavig, retribuindo o abraço.

— É você mesmo! Mungan ficará contente. — O vigia soltou Tavig depois de lhe dar alguns tapinhas nas costas. — Não vai me apresentar sua senhora?

— Claro, esta é Moira. — Tavig sorriu quando Conan beijou galantemente a mão dela. — O menino é Adair, meu filho e de uma mulher chamada Jeanne.

— Deve ter muito a contar. — O criado de Mungan esticou o braço na direção da casa. — Entrem. Seu primo está se arrumando para jantar. Desconfio que vocês não comam direito há dias.

— Sempre foi difícil esconder algum segredo de você, Conan.

Outro surto de ansiedade engolfou Moira no ins­tante em que ela pisou no salão principal da mansão, de mão dada com Tavig. Um homem de compleição enorme e cabelos muito pretos ocupava a cabeceira da mesa. Ela estacou no lugar quando Mungan le­vantou-se e veio abraçar o primo com seus músculos fortes, suspendendo Tavig alguns centímetros acima do chão.

— O que houve para você chegar assim, em plena noite? — indagou o primo, soltando Tavig, mas ainda sem dar atenção a Moira.

— Estou fugindo de Iver e seus homens.

— Ah, eu ouvi alguns rumores de que você esta­va enfrentando problemas, mas não se preocupe. Não acredito que tenha matado aqueles dois cavalheiros, e de forma tão cruel. Logo pensei que Iver devia estar por trás disso. Você o pegou, afinal?

— Não tive oportunidade. Os facínoras que o aju­dam ficaram nos meus calcanhares durante os últi­mos dias. Acamparam na colina mais próxima, ao sul daqui.

Sem alarde, mas surpreendendo Tavig, Mungan chamou seu principal soldado e ordenou que formas­se um grupo para caçar os homens de Iver, avisando que queria pelo menos um deles vivo.

— Vejo que se casou, finalmente? — Só então ele demonstrou ter reparado em Moira e no bebê nos braços dela.

— Ainda não, primo. Uma mulher chamada Jeanne me deixou este legado: meu filho Adair.

— Lindo bebê — comentou Mungan, e mais uma vez gritou, dessa vez na direção da cozinha, chamando uma criada, que atendeu prontamente. — Cuide desta criança com todo o carinho. O nome dele é Adair.

A serviçal, sorridente, pegou o bebê no colo e logo lhe fez um afago, levando-o corredor adentro. Mungan voltou-se para Moira.

— Perdão, mas faltou você me apresentar sua... acompanhante.

— Esta é Moira Robertson — Tavig anunciou, segurando a mão dela. Percebeu a expressão de surpresa e prazer do primo, que confirmava suas crescentes suspeitas.

— Seu renegado! — Mungan exclamou, tocando satisfeito no ombro de Tavig. — Você me trouxe o resgate que eu esperava!

— Eu? — Chocada, Moira engoliu em seco. — Eu sou o resgate por Una, sua refém?

— Era de desconfiar — comentou Tavig, sob o olhar aterrorizado de Moira. — Isso explica muita coisa, inclusive por que Bernard a trouxe com ele, no navio.

— E agora está me entregando ao seqüestrador? — Ela relutou em crer no olhar triste de Tavig.

— Querida, quando vai confiar em mim? Sou dife­rente de seus familiares. Como lhe disse, vim exata­mente porque precisava da ajuda de Mungan, e você se reunirá a seus parentes aqui nesta casa, se assim desejar.

— E eles me entregarão a seu primo em troca de Una. — Era-lhe penoso anular por completo as des­confianças.

— Não. Jamais permitirei.

Mungan alternou o olhar de um para outro, antes de aproximar com cautela.

— É de fato estranho que Robertson enviasse um parente meu com o resgate. Acho que mereço saber como você se tornou parte dessa trama, Tavig.

— Não estou lhe passando Moira como refém. — Ele a enlaçou pela cintura e notou, com alívio, que a tensão dela havia diminuído. — Moira veio porque viaja comigo.

— Com você? — Mungan resmungou por um ins­tante e rugiu como Tavig havia previsto: — Por acaso anda dormindo com minha noiva?!

— Chamá-la de sua noiva não altera os fatos — retrucou ele.

— Realmente não — Moira o apoiou. — Esse é um privilégio que só Tavig pode desfrutar.

Ao contrário do primo, Mungan não ignorou a obser­vação. Examinou Moira com curiosidade e cobiça. Ele de fato deveria ter escolhido melhor as palavras.

— Primo, Moira é minha — afirmou Tavig, ganhan­do a total atenção do outro. — Somos predestinados.

— Ah, é assim? Você teve uma visão?— inquiriu Mungan.

— Sim. Sei que vou me casar com ela.

— Bem, então venham à mesa, — O anfitrião pas­sou o braço pelo ombro do primo e conduziu-o.

— Estamos famintos. — Tavig estendeu a mão para que Moira o seguisse. — Quando eu tiver lhe contado tudo, verá os fatos com mais clareza. Onde confinou Una?

— Não prendi Una. Ela como sempre está atrasa­da para o jantar. — Mungan viu que Moira e Tavig sentavam-se lado a lado. — Sua prima, minha jovem, é uma mulher obstinada. A teimosia dela desafia a paciência de qualquer homem.

— Você por acaso a machucou? — Moira ousou perguntar, surpreendendo-se com o olhar ofendido de Mungan.

— Claro que não! Só coloquei os dedos nela quan­do a trouxe para cá. As mulheres de sua família têm os homens em baixa conta, concorda?

— Elas têm bons motivos para isso, primo — redarguiu Tavig.

— O que você está fazendo aqui? — A voz aguda de Una soou na sala.

Moira levantou-se e correu a cumprimentar a prima, mas a figura voluptuosa de Una desaconselhou sua aproximação. Ela voltou a sentar-se. Una não lem­brava uma vítima de seqüestro. Mostrava-se saudável e vestia-se com elegância. No entanto, ficou pálida e apoiou-se na parede de pedras, olhando a sua volta.

— Meu pai também veio? — perguntou, com voz trêmula de medo.

— Não, vim sozinha. Quer dizer, com sir Tavig MacAlpin. — Moira o apontou com um gesto de cabeça.

— O acusado de duplo assassinato? — Una emper­tigou-se, apalpou os cabelos loiros para certificar-se de que estavam bem penteados, e por fim ocupou a cadeira vazia à esquerda de Mungan.

— Como já lhe falei, ele é inocente, um homem sem maldade — disse o anfitrião. — A culpa toda é do outro primo, o repugnante Iver MacAlpin.

— Então, viajaram juntos? — Una estreitou os olhos, e Moira não compreendeu a beligerância da prima, que começava a incomodá-la.

— É verdade, prima. Fico feliz por ver que você está ilesa. Eu também estou, apesar das dificuldades da viagem. Obrigada por perguntar.

— Agora tenho certeza de que papai não está no castelo. Do contrário, você não seria tão petulante. Quando veio morar conosco, era pura impertinência.

— E o canalha de seu pai a curou rapidamente disso, não foi? — Tavig provocou.

— Sim, curou. — Una nem se abateu. Pegou a tra­vessa de carne e serviu-se de uma porção. — Moira nunca ouviu meus conselhos, sempre foi rebelde e teimosa. Papai teve de ser enérgico. Colocou-a dentro do poço por algumas noites.

--- Do poço?— Tavig esforçou-se para acreditar.

— Sim. — Una completou seu prato com batatas e cenouras cozidas. — Papai mantém um poço externo, desativado, perto da pocilga. É seu lugar predileto para punir pessoas impertinentes. Há uma tampa para impedir que os porcos caiam ali, mas, naturalmente, muita sujeira se infiltra no local. Eu só estive uma vez lá. Moira, várias, até aprender a lição de não con­testar papai de maneira tão direta.

Mungan inclinou-se na borda da mesa, encarando Una.

— Seu pai colocou você num buraco no solo e a deixou no meio da sujeira dos porcos?

— Apenas uma vez — ela reiterou, entre dois bocados da deliciosa comida. — Ele não permitia banhos nos dois dias subsequentes ao castigo. O cheiro do corpo me dava engulhos. Enfim, era melhor do que as outras punições.

— De fato — Moira murmurou, entristecida por suas lembranças a ponto de agarrar com força a mão de Tavig. — Pelo menos, a tampa ficava aberta e podíamos ver o céu.

— Confesso que estou surpreso — confessou ele — por você não ter se amedrontado dentro daquela escura prisão no vilarejo.

— Sou assim — Moira replicou, já sorrindo com discrição. — Preocupava-me com os seus ferimentos e, de qualquer modo, não estava sozinha.

— Estiveram presos? — Una quis saber.

Quando Moira se prontificou a responder, Tavig tocou-lhe os lábios com um dedo.

— Coma, querida. Há dias não fazemos uma refei­ção quente e saborosa. Eu já terminei e posso explicar tudo a sua prima.

Na verdade, Una não parava de mastigar, mas ar­regalou os olhos com interesse e senso de diversão. Durante o relato, diversas vezes ela interrompeu Tavig com dúvidas e exclamações. Moira notou que a pri­ma tocava constantemente o corpo de Mungan, e este lhe dava leves palmadinhas na mão.

Ao terminar o jantar, estava convencida de que sua prima e o parente de Tavig eram amantes. Isso expli­caria a animosidade de Una contra ela, vendo-a talvez como uma rival. O que Moira não conseguia enten­der era por que Mungan a queria como noiva. Numa comparação, Una levava vantagem: era mais bonita de rosto, mais provida de curvas, e dona de um dote respeitável. Para Moira, Mungan desejá-la por esposa não fazia nenhum sentido.

— Bem, vejo que você passou por maus momen­tos para trazer minha noiva. — disse ele, franzindo a testa quando Una reagiu, batendo os talheres contra a mesa.

— Ela não é sua noiva! — Tavig protestou. — Já falei que estamos unidos pelo destino!

— Admito que fiquei um tanto zangado por você ter se deitado com Moira, mas não conhece meus pla­nos, e por isso eu o perdôo. Apenas terá de interromper o relacionamento...

— Mungan! Seu teimoso e estúpido! — Una o agrediu.

— Esperem! — implorou Moira. — Antes de dis­cussões e insultos, sir Mungan, pode me explicar por que está decidido a se casar comigo?

— Deveria estar claro para qualquer idiota — foi a resposta, mas Tavig também pediu esclarecimentos, e Mungan acatou. — Não se trata de entregar meu coração a ela, que é magra demais para o meu gos­to. Entretanto, não posso pôr as mãos nas terras dela sem me casar.

— Minhas terras? Mas não tenho dote em dinheiro ou propriedades — ela explicou, ainda incrédula.

— Não? Venha ver daqui. — Mungan rumou à ja­nela. Moira forçou-se a segui-lo, escoltada por Tavig e Una. Não disfarçava a própria confusão, pois as coisas estavam ficando complicadas.

— Esse é um belo campanário, sir Mungan — ela falou. — Mas o que a torre tem a ver comigo?

— É sua.

— Deve estar enganado. Nada possuo nada!

— Você tem isso e muito mais, embora eu não saiba dizer o quanto. O que me aflige é ver essa maldita tor­re que paira acima de minhas terras. Tentei comprá-la quando seus pais morreram, mas sir Bernard não quis negociar. Propus casamento com você, embora deteste a idéia de forçar uma mulher a partilhar minha cama. Robertson riu da oferta. Foi então que concebi um plano para raptá-la e me casar com você. Isso faria o gordo suíno parar de rir.

— Insisto em que não tenho nada de meu — Moira declarou, quase em desespero.

— Um momento! — Tavig pediu e pousou o bra­ço nos ombros dela. — Mungan, tem certeza de que o prédio da torre pertence a Moira? Por herança dos pais?

— Duas vezes sim — o primo assentiu. — Lembra-se de como meu pai era excêntrico? Mais do que eu? Pois ele conheceu os pais de Moira e encantou-se tanto com o casal, que o presenteou com essa coluna de pedras.

— Presenteou? Ele pediu nenhuma quantia pela construção?

— Nem um centavo. Foi quando eu ainda não passava de um rapazinho inocente.

— Mungan, você nunca foi inocente — Tavig ironizou.

— Bem, na época não consegui impedir a inicia­tiva. Mais tarde, me opus a várias outras fantasias de meu pai. O velho teria deixado a família na miséria, se concretizasse alguns de seus negócios. Essa torre foi a última coisa que ele perdeu. O restante do patri­mônio, consegui segurar, mas não há negociação pos­sível com Robertson, que tem a tutela das proprieda­des e do dinheiro de Moira.

— Como assim? Desde jovem, Moira foi informada de que não possuía nada.

— Ah, Robertson é um contador de mentiras. Seu administrador, porém, parece confiável. Eu o pa­guei para saber tudo sobre as terras e posses de seu patrão. — Mungan deu uma risada forte. — Aquele covarde sentiu-se feliz por me detalhar os segredos de Robertson.

— Significa que, se você agredir e machucar o administrador, Robertson ficará ciente de que sabe da vida dele.

— Por que eu atacaria o homem que tanto me aju­dou? Antes de chegarmos a um acordo, ele deve ter imaginado que eu iria assá-lo na fogueira. Mas me contou tudo, e eu o deixei ir em paz. Não há motivo para Robertson suspeitar dele, mas caso o administra­dor falasse algo a respeito, certamente teria o pescoço cortado.

— Então se tenho terras e dinheiro — Moira inter­veio com voz rouca e débil —, sir Bernard vem men­tindo para mim há anos.

— Acredite, é verdade. —Tavig beijou-lhe a face.

— Por que papai resolveu mantê-la na ignorância? — Una indagou. — Poderia ter emancipado Moira para cuidar de si própria. Ela o irritava tanto, que faria mais sentido utilizar o dote dela num bom matrimônio e ver-se livre de aborrecimentos.

— Faria sentido — ecoou Mungan —, se o seu pai não fosse o patife ambicioso que é.

— Ah, ele pretendia ficar com os bens de Moira para si. Isso, sim, é o retrato de papai.

— Preciso me sentar um pouco e tomar água — Moira avisou ao voltar à mesa.

Ela retomou sua cadeira e bebeu uma caneca de água, em seguida, tomou um bom gole de cerveja. Os outros a acompanharam. Tavig parecia preocupado, e Moira percebeu que ele desejava contar-lhe algo, porém não se prestou a ouvi-lo. Suas emoções eram conflitantes, a mente estava confusa, graças a pensa­mentos tumultuados.

Na verdade; tinha vontade de chorar. Queria con­frontar sir Bernard com sua descoberta. Queria matá-lo!

— Sente-se melhor? — Tavig perguntou, segurando-a pelo pulso.

— Não sei. — Suspirando fundo, Moira tentou acal­mar-se e raciocinar com clareza. — Preciso de tem­po para compreender as mentiras que descobri, desde que meus pais faleceram.

— Não pretendia perguntar, mas pode ser impor­tante: quando e como eles morreram?

— Há dez anos. Estávamos retornando de uma festa popular no vilarejo mais próximo. Fomos abordados por ladrões. Eles mataram mamãe, papai e minha avó materna. Os assaltantes acabaram vistos e mortos pelos guardas locais. Eu fiquei sozinha, abandonada, até que uma velha senhora surgiu e cuidou de mim. Semanas depois, ela passou a procurar algum parente meu. Sir Bernard apareceu e me levou com ele. — Moira percebeu que Mungan e Tavig trocavam olhares signi­ficativos. — Vocês acham que meu tio matou ou man­dou matar minha família?

— É uma possibilidade, mas difícil de provar após dez anos. Agora que sabe possuir um bom patrimô­nio, poderá deixar a casa do patife quando quiser — Tavig sugeriu.

— Moira não precisa se preocupar. Robertson nun­ca porá as mãos gananciosas em qualquer coisa que pertença a minha futura esposa. Tão logo nos case­mos... — prometeu o outro.

— Mungan, você não vai se casar com Moira! — Tavig insistiu, à beira de um surto de ira.

— Por favor — ela implorou. — Acabo de saber que dez anos de minha vida foram uma farsa. Concedam-me algum tempo para planejar meu futuro.

Tavig a abraçou e massageou suas costas, aliviando-lhe a tensão. Ela não foi insensível ao gesto carinhoso, mas o cansaço e o conhecimento da verda­de a haviam fragilizado.

— Primo, precisamos dormir. — Tavig fitou Mungan, ao mesmo tempo que erguia Moira no colo, já sonolenta.

— Ah, sim! A criada lhes indicará os quartos. Separados, obviamente.

Una fez uma careta, julgando que era tarde demais para separar uma dupla que tinha viajado dias por lugares inóspitos e, por certo, haviam praticado rela­ções íntimas.

— Não aceito que se deite com minha noiva — Mungan explicou mais uma vez, golpeando com a mão a mesa em que repetia vorazmente a refeição.

— Ela ainda não é sua noiva — Tavig disse por entre os dentes. — Enquanto não aprovar a idéia, Moira me pertence.

— E ela por acaso se declarou a você, primo? —, Mungan foi esperto e rápido na resposta.

— Dividiu um cobertor comigo. Para uma moça como ela, a aprovação de uma pessoa segue outros padrões. Agora, aonde fica o quarto?

Resmungando sem parar, Mungan conduziu pessoal­mente o casal até um dormitório na torre, que era habitável e estava arrumada para receber hóspedes. Tavig fitou o primo enquanto depositava Moira na cama.

— Não compreendo, Mungan, por que não se apro­priou da torre durante os últimos dez anos.

— Tentei duas ou três vezes, depois pensei melhor e desisti. Tomar a torre significaria pôr em risco a vida de meus soldados, diante de uma represália por parte de meus inimigos.

— Moira jamais será sua inimiga — opinou Tavig.

— Não posso colocar meu destino nas mãos de uma mocinha magra.

— Então, ponha-o nas minhas.

— O que quer dizer com isso? — Mungan fechou a carranca.

— Sabe muito bem. Eu serei o marido dela. O des­tino nos uniu.

— Mas ela não disse que aceitava se casar com você, disse?

No íntimo, Tavig amaldiçoou a esperteza do primo.

— Não, porque teme que a superstição das pessoas se transforme numa caça a nós dois, como já aconte­ceu. Falta-me convencê-la que ela está exagerando.

— Talvez não consiga, primo, e a jovem de cabe­lo cor de fogo estará livre para escolher. — Mungan foi se retirando e Tavig contemplou Moira, a dormir pacificamente. Considerou a hipótese de deixá-la descansar sozinha, mas seria desconfortável fazer isso totalmente vestida.

Moira agitou-se um pouco quando sentiu duas mãos a apalpá-la, e abriu parcialmente os olhos. Per­cebeu que Tavig a estava despindo. Flexionou as pernas e, com um golpe no peito dele, lançou-o até a porta, cambaleante.

— Desculpe-me, não pretendia acordá-la. — Ele preferiu esquecer a pancada que sofrerá.

— Imagino que não — ela murmurou. Vendo que já estava sem sua camisola, Moira bocejou, cobriu-se com uma manta de lã e procurou adormecer de novo, mas Tavig tirou a própria roupa e deslizou para a cama.

— Temos um pequeno problema — disse ao deitar-se ao lado dela.

— Problemas sempre são muitos aborrecidos , e grandes — Moira comentou. — A qual deles você se refere? Seja qual for, não gostaria de falar disso agora.

— Só um pouco — ele pediu. — Devemos com­binar algumas coisas, para não haver confronto nesta casa.

— Fala da insistência de Mungan em me conside­rar sua noiva?

— Exatamente. — Tavig acolheu-a em seus braços. Ela se acostumara a adormecer contra o peito dele, — Meu primo é obstinado. Disse a ele que estáva­mos predestinados, mas ainda não éramos marido e mulher. Mungan me respondeu que, sendo assim, você era livre para escolher.

— Livre? — A contrariedade superou a fadiga. — Quanta gentileza! E Una? É claro que ela se tornou amante de Mungan, e ele gosta dela.

— Tem razão, porém Una não é a proprietária des­ta torre. Meu primo cobiça a construção, mas quer ganhá-la legalmente, por meio de matrimônio. Temo que vá persegui-la enquanto você estiver solteira.

— Bem, nunca serei uma inimiga dele.

— Pois eu lhe disse a mesma coisa. Mungan acha que você, por ser tão jovem, é influenciável. A tra­ma de seu tutor o convenceu disso. Só vai sossegar quando se casar de papel passado e tudo.

— Você não vai permitir, vai?

— Não, mas Mungan também pode nos armar al­guma cilada. Ele é surpreendentemente esperto. E não se esqueça de que Bernard Robertson ainda é seu guardião legal. Logo estará aqui, para resgatar Una e conceder você a meu primo. Tentarei evitar, mas Mungan tem a possibilidade de me deter, em lugar fechado, até a situação se resolver.

— Você não pode ser descoberto aqui — Moira lembrou, com um arrepio. — É procurado por homi­cídio. Julga que Mungan o entregaria a Iver, para tirá-lo do caminho?

— Não, jamais! — afirmou Tavig sem hesitação, pressionando ainda mais o corpo contra o de Moira. — Mungan não suporta Iver. Ele esteve em Drumdearg, conhecia os dois homens que Iver mandou matar e deseja vingança. Não, meu primo não nos fará mal no intuito de obter o que quer. Agirá à maneira dele, porém existe uma solução que acabará com a teimosia dele: casarmo-nos oficialmente.

— E Mungan respeitará minha decisão, nesse caso?

— Sim, porque cuidarei de você e nunca serei um inimigo.

— Todos os outros nos verão como adversários de Mungan — ponderou Moira, que raciocinava bem apesar do sono.

— Minha querida, você sempre exagera muito — Tavig contrapôs, beijando a face dela.

— Preciso pensar. — Ela bocejou de novo, recean­do a insônia diante de tanta coisa importante a discu­tir. Sua exaustão, no entanto, não podia ser ignorada.

— Só não demore muito tempo. Mungan é obstina­do e seus parentes estão a caminho.

— Amanhã eu decido — ela prometeu. — Não tenho condições de pensar no assunto agora.

— Durma bem, querida. — Ele a beijou de leve na boca e acomodou-a melhor em seu tórax.

Moira fechou os olhos. Magoava-a o fato de Tavig propor casamento sem exprimir palavras de amor. Ainda receava que as crendices populares os prejudi­casse, se vivessem juntos, mas agora saberia enfren­tar as adversidades, desde que contasse com o amor de Tavig. Faltava comprovação, porém ela que aquele homem não a amava.

Uma noite de repouso era vital em termos de ava­liar tudo sensatamente. O sono veio rápido.

— São para você. — Mungan passou a Moira um ramalhete de flores.

Eram margaridas, algumas amassadas, conforme constatou. Como estavam fora de época, e conside­rando o estado precário do buquê, Moira imaginou que Mungan enviara seus rudes colaboradores ao campo, a fim de encontrá-las.

— Obrigada. São muito bonitas. — Ela suspirou. — Mas, se me der licença, vou visitar o bebê.

— Ele está sendo bem cuidado — assegu­rou Mungan, levando-o pelo braço ao pátio exter­no do castelo. — Meus homens apanharam alguns dos mercenários de Iver, e Tavig se encarregou de interrogá-los.

— Não deveria juntar-se a ele? Se pretende aju­dar Tavig no combate a Iver, seria bom ouvir tudo e conhecer detalhes sobre o inimigo.

— Tavig me contará o que for importante, não preciso interferir agora. Pensei em mostrar a você mi­nhas terras, enquanto ele lhe dá uma folga. Bem, aí está a oficina do armeiro.

Na hora em que Mungan terminou a ronda pela propriedade, apresentando a Moira cada construção e cada pessoa à vista, ela se achava sem fôlego. Desabou à mesa na entrada do saguão, onde comida e bebi­da estavam postas para atender a pedintes, monges e viajantes.

Mungan era rico, além de bonito à maneira dele, mas sobretudo era bondoso. Não havia nenhuma tra­gédia em ser pretendida por aquele homem, exceto por ele cobiçar suas terras, e não sua pessoa. Também a aborrecia o modo como ele a arrastava, segurando-a como se fosse uma frágil boneca.

— Então, moça, viu quanto eu tenho a lhe oferecer? — ele inquiriu.

— Sim, sir Mungan, e é uma bela propriedade. Parece que a vem administrando como um grande lorde inglês.

— Bem... — Ele mostrou-se obviamente envaideci­do. — Não quero me gabar, mas é maior e mais bonita do que a fazenda Drumdearg, pertencente a Tavig.

— É provável — disse Moira. — Não conheço Drumdearg, mas pode haver lá alguma coisa que me agrade mais. Obrigada por tudo. Vou descansar um pouco, no quarto.

Mungan cocou seu queixo quadrado com a enor­me mão.

— Você se cansou? Julguei-a mais forte, afinal sobreviveu à viagem com meu primo.

— Nós caminhamos — ela esclareceu, já na base da escada. Intimamente, decidiu repousar menos do que precisaria e empregar o tempo restante num encontro com Adair.

Sentia falta do bebê. No castelo, apenas o via de passagem, nos braços de uma ou outra criada. Tudo acontecera tão rápido que ela teve a sensação de que o menino lhe fora roubado. Além disso, era essencial conferir os cuidados que ele recebia, e como estava se alimentando.

Ao entrar no quarto cedido a ela e a Tavig, depa­rou com Una perambulando ali, em meio a resmungos inaudíveis. Moira relanceou o olhar à prima, jogou o buquê de margaridas numa cadeira e deitou-se, com o rosto para cima.

— É verdade que esteve passeando com Mungan, lá fora? — Una começou, empertigada à beira do leito.

— Sim, como você pôde concluir vendo meu cansaço.

— Eu os avistei de minha janela. Ele cortejava você.

— Apenas me guiava de um ponto a outro. Precisei correr para seguir o ritmo.

— Você deve aprender como lidar com Mungan e como retardá-lo. Homem é grande, dá passadas grandes...

— Mas ele compete com um cavalo a galope... — Moira complementou, enquanto a prima acenava a mão em discordância.

— Percebi como você flertava com ele e admirava a fazenda.

— Una, eu mal conseguia ficar em pé. Se caísse, Mungan nem notaria, ocupado em me apressar pelas trilhas. Quanto a apreciar a propriedade, sim, gostei, mas só conheci uma pequena parte.

— Mas ele lhe deu flores — falou a prima em tom acusador, apanhando o ramalhete a fim de examiná-lo e depois balançá-lo diante de Moira. — Você pisou nelas?

— Não, já as ganhei assim — rebateu Moira. — Outra prova de que sir Mungan Coll não tem talento para namorar. Enfim, você deve saber melhor...

— Não compreendo o que fala. — Una empurrou a perna da prima e sentou-se na beirada da cama. — Vim aqui para dizer que eu quero Mungan para mim. — Ela fixou o olhar na outra. — Já somos amantes.

— Não! — Moira fingiu espanto. — Estou chocada!

— Pare com isso. Logo ao chegar, você adivinhou o que havia entre mim e Mungan. Por que se colocou no meio de nosso caminho?

— Você, Una, é que não vê o que existe de fato no caminho. Não sou eu. É aquela maldita casa da torre.

— Ah, mas tenho a solução para esse problema. Se você me doar a propriedade, então Mungan vai querer se casar comigo e deixará você em paz. Não é simples?

Moira recostou-se na cabeceira da cama e encarou Una de frente. Em seguida, falou pausadamente:

— Escute bem. Vivi sob a tirania de seu pai por dez anos. Mais do que ninguém, você sabe que tipo de vida levei. Só a suportei por pensar que não havia outra saída, exceto ser dependente de Bernard Robertson. Agora, descobri que sempre tive escolha, mas que seu pai me escondeu isso. Faz idéia da frustração, da mágoa que sinto?

Pela expressão da prima, Moira concluiu que se­ria difícil ela entender alguma coisa, sobretudo a parte referente a sentimentos.

— Suponho que você tem o direito de ficar brava, mas o que isso tem a ver com a casa da torre?

— Ela é minha, assim como o dinheiro que Bernard me roubou. Mas ele não poderá subtrair uma pilha de pedras e colocá-la no bolso. Então, aquela torre representa minha liberdade. Jamais eu a daria a você, para atrair Mungan até o altar.

— Oh! — Una saltou do colchão. — Como você é egoísta! Essa conversa sobre liberdade é absurda. Você quer tirar o meu homem.

— Sinceramente, não quero. — Moira voltou a deitar-se. — Também não entendo o motivo de você querer suborná-lo com a posse da torre, só para ter um marido. Onde está o seu orgulho?

— Poderia perguntar a mesma coisa. Você atra­vessou a Escócia com um assassino, a quem entregou sua castidade.

— Tavig não matou ninguém — Moira desmen­tiu, mas não completou sua defesa porque a prima já abria a porta para sair.

— Dê-me a casa da torre! — Una gritou, confir­mando que encarava a valiosa construção como um brinquedo de criança.

A porta foi batida com estrondo.

 

Tudo o que Tavig havia previsto começava a se tornar real. Mungan apenas iniciara seu assédio, pensou, certa de que isso aconteceria.

Agora, Una se mostrava rancorosa e ciumenta, e isso era algo que tendia a piorar a cada investida de Mungan em relação a ela. Elas não eram propriamente amigas, mas alguns laços tinham se formado depois do que haviam passado nas mãos de sir Bernard.

A situação era incômoda, mas existia uma saída rápida e simples para aquele absurdo: o casamento com Tavig.

No entanto, ela refletiu, havia recriminado Una pela idéia de comprar um marido com a casa da torre, e ela própria considerava agora a possibilidade de desposar Tavig, na tentativa de se livrar das tolices de Una e Mungan.

Embora estivesse decidida a não se unir a Tavig por motivos de segurança, os fatos a empurravam cada vez mais para perto dele. Parecia que as forças do desti­no, tão caras ao amante, plantavam nela uma série de razões favoráveis ao matrimônio. Seria ou não o melhor a fazer, racionalmente falando?

Moira encontrou alívio para seu dilema na busca por Adair. Estava com tempo e, mais tarde, voltaria a pensar na solução para o problema.

Entrou no berçário do castelo, como uma criada ha­via indicado, e logo deparou com o bebê. Riu e correu, a fim de erguê-lo no colo, comovendo-se quando ele sorriu para ela. Entre beijos na conta de que, a despei­to de qualquer boa intenção, Adair se tornara sua mais forte razão para um arriscado casamento com Tavig MacAlpin.

 

Tavig fitou Mungan com ar carrancudo. O primo se esparramava em sua ampla poltrona estofada, de madeira exageradamente esculpida, bebia cerveja e vigiava as outras pessoas presentes na sala como se fosse o dono do mundo. Erguendo o jarro da mesa, ele encheu a caneca c tomou vários goles na vã tentativa de esfriar o ânimo. Pensava em fazer planos para um confronto com Iver e queria que Mungan desistisse da idéia de desposar Moira.

Mas o dia já findava, e nenhum progresso tinha sido feito.

— Maldição, Mungan — ele alfinetou, por fim. — Vamos brincar de cortesãos até que Iver mande um exército derrubar suas muralhas?

— Você é temperamental, meu caro, e gosta de testar a paciência de um homem. Estou tão ansio­so quanto você para ver Iver pagar pelo assassinato de seus amigos.

— Já me preparei para ir atrás desse nosso paren­te infame. Evitei aborrecê-lo com tais providências, mas você sabe o que deve ser feito na iminência de uma batalha. Por que perder tempo discutindo essas coisas?

— Concordo. Apenas não acho que falar de outros assuntos seja perda de tempo. As informações obtidas dos colaboradores de Iver nos ajudarão a conceber algum plano de ataque. Por mim, preferia acabar com aquele porco assassino, Andrew MacBain, mas ele nos é útil.

— É verdade — argumentou Tavig. — Falta definir de quantos soldados precisaremos. Você sabe que não gosto de planos muito minuciosos, pois mudanças rá­pidas podem ocorrer em minutos entre o imaginário e o real. Logo estarão de volta os homens que enviei em busca de mais dados sobre nosso primo traidor. Assim que tivermos o relatório, somado às declarações dos comparsas detidos no castelo, a luta contra Iver pode­rá ser detalhada. Há uma vantagem em conhecermos Drumdearg tão bem quanto Iver.

Após o discurso inflamado, Tavig relaxou, embora aborrecido com a excessiva calma de Mungan. Estava determinado a prender e acusar Iver, recuperando assim a propriedade de Drumdearg. Não seria fácil, mas Tavig iria se concentrar na batalha como se esta fosse impessoal.

— Temos outro trunfo — complementou. — O povo de Drumdearg ficará do nosso lado. Iver paga pela lealdade de seus soldados, mas deve saber que é odiado pelos aldeões. Por isso mesmo prepara-se para a nossa visita.

— Sim, e meus homens se valerão dessa vanta­gem. — Mungan sorriu na direção da porta . — Ah, as damas estão chegando.

Tavig praguejou, certo de que nenhuma conver­sa sobre guerra prosperaria dali por diante.

Observou Moira e Una. Era claro o distanciamento físico entre as duas. Pouco havia falado com a primei­ra naquele dia, porém era evidente que ela sofria com algum dilema. Embora solidário com a amante, ele renovou a esperança de que Moira houvesse se decidi­do favoravelmente ao casamento.

Após receber um beijo na face, Moira sentou-se a seu lado. Una também beijou Mungan e se postou perto dele.

— Parece contente por me ver — Una debochou.

— Tem toda a razão. Agora, podemos jantar.

Moira suspirou ao perceber o olhar enviesado de Una. Como se ela fosse responsável pelo comporta­mento grosseiro do anfitrião...

— Passou bem o dia? — perguntou a Tavig.

— Aqueles mercenários foram lentos demais em suas declarações, porém se revelaram úteis. Mungan enviou um pelotão para colher mais dados e, na volta, vamos finalizar os planos de ataque às bases de Iver.

— Partirá para a batalha? — Moira tentou disfar­çar sua apreensão.

— Não se perturbe, querida. — Tavig beijou-lhe a mão. — Posso vencer.

As criadas entraram a fim de pôr a mesa, espalhan­do travessas de comida apetitosa o que a fez controlar sua angústia.

— Detesto a idéia de que homens saudáveis se matem a golpes de espada — comentou, antes de abas­tecer o prato.

— Esteve com Adair? — inquiriu Tavig, impondo uma mudança de assunto.

— Sim, ele está bem cuidado e parece ótimo. Até engordou um pouco. Mas o que você ignora é que seu primo Mungan me arrastou para conhecer a proprie­dade. Queria mostrar o quanto tem a me oferecer no caso de haver uma união entre nós.

— Ah, por isso ele me deixou sozinho no interro­gatório dos mercenários a serviço de Iver. Reservou algum tempo para cortejar você.

— Acho que pode chamar isso de um assédio bem-intencionado.— Ela resolveu omitir do amante a insistência de Mungan em convencê-la. Após o pas­seio, o anfitrião a havia caçado pelo castelo, obrigando-a a se esconder.

— É por isso sua prima loira está zangada com você — ele deduziu.

— Una acredita que eu desejo roubar o homem dela. Não faz nenhum sentido. Pediu-me para lhe doar a casa da torre, com o objetivo de apressar uma pro­posta de casamento por parte de Mungan. Claro que não farei isso. Mas, se você disser que tinha previsto tudo, sou capaz de lhe dar um tapa.

— Apenas para impedir que um homem como eu se vanglorie de estar certo.

— Já basta aqueles dois como motivo de incômo­do. — Com um gesto de cabeça, ela indicou Mungan e Una que, na outra extremidade da mesa, devoravam os alimentos.

Tavig riu sob o olhar reprovador da amante.

— Mungan pode cobiçar minha propriedade — Moira asseverou —, mas não me deseja como esposa. Ele quer Una, e ela também o deseja.

— Compreendo meu primo. Deve estar obcecado como eu fiquei por reaver meus bens e me vingar de Iver. Esse objetivo, quando domina uma pessoa, sem­pre é temerário. A questão é: Mungan percebe com clareza o que vem propondo?

— Creio que não. E é difícil que mude de atitude.

— Concordo, porém você se esquece de que sir Bernard Robertson logo estará aqui.

Moira rogou uma praga em silêncio e deu mais atenção a seu prato. Continuava com dor de cabeça, presa no dilema de um casamento como solução de seus problemas. Tavig falava disso como se todos os males fossem desaparecer, se e quando o desposasse.

Ele tinha razões menos materiais do que Mungan, também candidato a sua mão, no entanto ela consi­derava estranho Tavig dar um passo tão importante na vida para satisfazer um capricho do que chamava de destino.

A verdade era que gostaria muito de passar algum tempo sozinha a fim de descansar da dupla pres­são. Talvez, quando se instalasse a guerra entre os feudos...

Ignorando a presença de Tavig e de Una, ao fi­nal do jantar Mungan veio convidar Moira para um passeio ao ar livre. Tavig estudou a perturbação da mulher loira. O fato era que Moira não encoraja­va Mungan a nada, nem merecia a raiva da prima. Infelizmente, Una evitaria contrariar seu homem, porque o amava.

— Vamos conhecer a muralha? — Mungan sugeriu.

— Não — Moira foi categórica. — Ainda estou cansada do passeio anterior.

— Não sabia que era tão frágil... Como conseguiu chegar ao castelo?

— Caminhando, Mungan. Subindo e descendo colinas, e vadeando córregos.

— É verdade, primo — Tavig enfatizou. — Sem falar da chuva que enfrentamos.

— Entendo. Moira deve repousar e amanhã estará recuperada. Então veremos. — Mungan olhou para Una com expressão inocente. — Gostaria de me acompanhar?

Tavig represou o riso até que o par saísse da sala. Ao ver Moira admirada, a risada explodiu.

— É inacreditável! — ela exclamou. — Mungan me corteja e, quando digo "não", recorre a Una, que sempre diz "sim". Será que minha prima perdeu todo o orgulho?

— Ela ama aquele brutamontes sem talento para namorar — explicou Tavig.

— Sei disso. Mas ele gosta e cuida dela? Não va­mos nos esquecer de que Mungan a seqüestrou. E, ainda assim, talvez por ter se livrado do pai, Una não demonstra nenhum medo dele.

— Juro, querida, que Mungan se preocupa com sua prima. É difícil explicar, mas eu o conheço há tem­pos. No momento, ele acha mais importante impedir que a casa da torre caia em mãos inimigas. Também sofre com as lembranças do pai, mas acredita que Una o compreenda. Como não é falso, não fez segre­do do fato de cobiçar a construção de pedras para si tampouco se envergonhou de pedir você em casamen­to, a fim de tomar posse da torre.

— Tem toda a razão. Não se pode dizer que Mungan esteja enganando Una; daí ela se voltar contra mim, e não contra ele. Seria o caso de admitir que os dois são sinceros e honestos.

— Apenas lembre-se de que Una tem um históri­co de agressões como vítima do próprio pai, e pode pedir ajuda a ele.

— Una nunca iria me machucar ou recorrer a sir Bernard. Aprendeu com o sofrimento. Nunca bateu no rosto de uma criada, por exemplo. Ela acha que a violência é um território masculino. Mungan deve lhe parecer um santo.

— Há uma solução para tudo isso — Tavig quis retomar seu velho discurso.

— Não se repita. Já conheço sua proposta. Mas este é nosso segundo dia aqui, e o anfitrião me vê como uma pessoa fraca, convalescente. Talvez abandone a idéia de trocar a casa da torre por uma mulher tão frágil.

A sombra de dúvida no olhar de Tavig a devolveu ao impasse que enfrentava. Ela desejara amenizá-lo na companhia do amante, mas este o havia intensifi­cado. Embora conhecesse pouco a personalidade de Mungan Coll, pressentiu que ele precisaria de um sinal de Deus para mudar de opinião.

Moira ansiou por que isso ocorresse.

— Mais um dia — murmurou, como se falasse com sua caneca de bebida.

— O quê? — perguntou Tavig.

— Vou dar mais um dia para as coisas voltarem ao lugar.

O sorriso dele foi mais irônico do que encorajador.

 

— Você tem sido muito teimosa — resmungou Mungan, contrafeito. Moira preferiu dispensar o eventual apoio de Tavig, que permaneceu ao lado do primo enquanto ela senta­va-se num pequeno banco à porta do estábulo.

Removeu os sapatos e massageou os pés doloridos. Mungan havia insistido em lhe mostrar outra parte de suas terras, incluindo um vilarejo próximo. Apesar da presença entediante de Tavig, que fizera questão de acompanhá-los, tinha instalado Moira na garupa de um cavalo e a conduzira, na mesma sela, aos limites de suas propriedades. E depois até o povoado. Ali, ele desmontara, obrigando-a a segui-lo para todo lado.

— A moça tem o direito de avaliar os fatos — protestou Tavig, também saltando de uma égua.

— Por quanto tempo ela vai fazer isso? — Mungan rebateu. — Já apresentei tudo o que tenho e fiz minha proposta. Falta somente que ela diga "sim".

— Ou não — atalhou Moira, sem ganhar a atenção de nenhum dos homens.

— Por que não desiste, primo? — Tavig meneou a cabeça, inconformado. — Sabemos que você prefere se casar com Una.

— Una seria uma boa companheira, mas não possui a casa da torre. E esta jovem — apontou Moira — não quer doá-la à prima. Talvez eu precise forçá-la ao matrimônio.

— E espera que eu fique apenas olhando enquanto você a arrasta para o altar? — O tom de Tavig foi de quem lutava contra o destempero.

Mungan estreitou os olhos para fitar o primo.

— Você pode ser detido até que a cerimônia termine.

— Não conseguirá obrigar Moira a nada. Nós dois estamos comprometidos.

— O quê? — A voz de Moira soou aguda. — Do que está falando, Tavig MacAlpin?

— Em Craigmoordun, e depois em Dalnasith, eu a chamei de mulher e você me chamou de marido pe­rante testemunhas. Isso representa um compromisso reconhecido pela lei.

— Só por um ano e um dia — esclareceu Mungan. — Depois disso, a lei exige que tenham um filho e que a mulher concorde em oficializar a união na igreja.

— Quer dizer que você vai nos atormentar por um ano e um dia? — Tavig contrapôs.

Moira ficou surda ao restante da discussão. Sentada, dobrou as pernas e encolheu os joelhos, procurando manter o controle sem gritar com os dois.

Alguns minutos depois, desistiu, levantou-se e bateu no braço de Tavig.

— Moira! — Ele teve de esfregar o ombro.

— Já me preveniu contra a astúcia de Mungan, mas é você o esperto. Escondeu seu jogo debaixo de um manto de preocupação, dizendo que era necessário ficarmos seguros.

— Foi exatamente o contrário. Você é que argumentava assim. — Tavig se aproximou com a intenção de aplacar a raiva de Moira, porém ela estapeou a mão que tentava lhe tocar o rosto.

— Está tentando me confundir — retrucou.

— Cansou-se de falar a Mungan sobre me dar uma chance, e agora ficou claro que nunca desejou isso. — Incapaz de raciocinar direito; virou o corpo e partiu de volta para o castelo a pé. — Por mim, vocês dois podem apodrecer!

Tavig pensou em ir atrás dela e lhe oferecer o lom­bo da égua, mas foi retardado por uma escandalosa risada de Mungan.

— O que é tão divertido? — interrogou.

— Não imaginava que você fosse tão ladino.

— Preferi não decepcionar Moira — murmurou Tavig. — Ela acredita em meu poder de premonição, contudo se recusa a aceitar que estamos predestinados um ao outro. Se a lei concede um prazo, terei mais tempo para convencê-la. — Ele deslizou os dedos pela cabeleira negra. — Por todos os santos, nunca desejei tanto uma mulher quanto desejo Moira.

— Bem, deve ser penoso para um cortesão de fala mansa como você reconhecer que fracassou.

— Não houve fracasso.

Tavig explicou ao primo os temores de Moira, admitindo que eram reais, mas afirmando que estes não deveriam reinar sobre a vida deles.

— Ela está com muita raiva, no momento — ale­gou Mungan. — Não sei se conseguirá acalmá-la. No entanto, se você apelar para o benefício da lei, dentro de um ano eu poderei me casar com ela.

— Cale-se! —Tavig se mostrou furioso.

E assim ficaria até que conversasse com Moira.

 

Moira entrou no quarto bem na hora em que as cria­das enchiam a tina com água quente. Sabia estar sen­do observada, mas, plena de rancor, não se importou. Permanecia chocada com a trama de Tavig. Logo que as empregadas saíssem, ela se livraria de toda a roupa e reduziria as tensões com um banho reconfortante.

Uma vez mais calma, dentro da tina, decidiu que ele devia ter um bom motivo para encenar aquela tra­paça. Era improvável que a enganasse simplesmen­te com a intenção de ficar livre e tomar seu próprio rumo. Talvez, ouvindo uma justificativa forte, ela pudesse perdoá-lo.

Quando já ia secar-se, a porta do quarto se abriu com estrépito. Com um grito de surpresa, ela procu­rou ocultar o corpo nu atrás da toalha. Esperava ver Tavig, mas quem entrou foi Una.

— Preciso muito falar com você — falou a moça. Moira não queria confronto com Una, nem com ninguém.

— É tão grave assim para justificar essa invasão? A outra fechou a porta suavemente.

— Ficou difícil encontrá-la disponível. Mungan e Tavig estão sempre esvoaçando em torno de você.

— Exagero seu. Tavig já me acompanhava quando cheguei aqui, e não faz o papel de namorado inconve­niente. Mungan quis me mostrar de novo como é rico e como sonha com a casa da torre.

— É tudo o que ele quer de você — Una emendou.

— Eu sei.

— Ele continuará procurando a minha cama. Mesmo que você se case com Mungan, eu nunca sairei daqui, para a alegria dele. É homem demais para você.

Moira passou a se vestir, lamentando ter de ou­vir detalhes sobre o relacionamento íntimo de Una com Mungan, o que continuou até que começasse a escovar os cabelos úmidos.

— Está vendo? Ele não quer trocar de amante — finalizou a prima.

— Eu não quero nada de Mungan Coll — ela redarguiu, o tédio evidente na voz. — Também não quero mais escutar o que vocês fazem na intimidade. Isso foge ao meu interesse.

— Então pare de brincar e diga claramente a ele que não o aceita.

— Isso dificilmente vai dar certo, prima, como você deve saber.

— Então, passe a mim a propriedade da maldita casa da torre! — Una foi enfática.

— Nunca! Seu pai a escondeu de mim, fazendo-me pensar que eu era pobre. Seu amante também não a terá, porque a torre é a minha chance de escapar das garras de Bernard Robertson.

— Mas você pode escapar dele se casando com Tavig. Ele a deseja. Não entendo por que o rejeita.

— Tenho minhas razões, Una, as quais não precisa conhecer.

— Voltaremos a falar, Moira. — Una retirou-se depressa do quarto.

— Incrível! — Moira pensou em voz alta, logo que a porta foi fechada. — Talvez eu esteja sendo punida por alguma coisa, porém não creio que tenha cometido um pecado tão grande para merecer isto!

Suspirou enquanto amarrava os cabelos com uma fita larga e azul.

Voltou a pensar nos pormenores contados pela prima sobre os encontros íntimos com seu amante. Barrar o assédio de Mungan já não lhe parecia um plano fácil. Além da persistência dele, teria agora de suportar a raiva de Una.

Alisou a saia com os dedos. Concluiu que, enquan­to não se mostrasse completamente inacessível e não fizesse Mungan desistir da casa da torre, o impasse continuaria, levando-a a aceitar a solução proposta por Tavig.

Casar-se com ele sob pressão, contudo, não era o que desejava. Tomara pudesse se assegurar de que aquela união lhes traria segurança e, quem sabe, um pouco de felicidade. Ansiava por ouvir uma palavra de amor, uma declaração de que Tavig se importava com ela. Na verdade, precisava garantir que, se o casamen­to resultasse em perigos e problemas, ele não a odiaria por isso.

— Você deveria amaldiçoar esses pensamentos — disse a si mesma, ao deixar o quarto para se encontrar com Tavig.

Uma das coisas que pediria ao amante seria uma explicação sobre sua trama a respeito do casamento provisório de um ano e um dia. Queria que Tavig ju­rasse que, se ela optasse por partir ao fim desse prazo, ele não levantaria obstáculos. E de fato ela tomaria tal decisão caso ela é Tavig se vissem ameaçados pelas crendices do povo sobre seus dons especiais.

Deparou com Tavig ao lado de Mungan, no pátio do castelo. Ambos, sem camisa, estavam rodeados por guerreiros e treinavam lutas.

O som das espadas em contato a afligiu. Os espec­tadores torciam ora por um, ora por outro.

Sem demora, Tavig foi declarado vencedor, pois a graciosidade e a rapidez de seus movimentos supera­ram a maior força física do primo. Os dois saíram le­vemente machucados do exercício, com alguns cortes na pele.

Moira aguardou até que Tavig ficasse sozinho e se acercou dele.

— Ainda está zangada comigo — ele murmurou quando a amante não retribuiu seu sorriso.

— Já me acalmei — ela respondeu.

— Mas não me perdoou.

— Até este momento, não. Espero que suas explica­ções facilitem isso.

Ele limpou a garganta da poeira do pátio.

— Queria ter certeza de que você viria a Drumdearg comigo, para que eu pudesse comprovar que exagera em seu temor às superstições do povo. Nunca acre­ditou em mim quando eu dizia que lá seria diferente dos outros vilarejos. Daí a idéia de testar nossa segu­rança, por meio de um casamento provisório.

— Faltou você ouvir minha opinião — ela lembrou, magoada.

— Pretendi apenas fazer uma experiência real antes de nos unirmos em definitivo.

— Foi um excelente plano — comentou Mungan ao retornar ao pátio e bater nas costas do primo, cumprimentando-o pela vitória no confronto de espadas.

— Excelente? — Moira lançou a Tavig um olhar desgostoso. — Pois para mim ficou claro que ele não é o único matreiro nessa família.

Mungan franziu a testa.

— Ela não deixa de ter razão, primo — contempo­rizou Tavig —, mas este caso não lhe diz respeito. Sua interrupção não me ajuda em nada.

Mungan se afastou, taciturno, porém ficou rondan­do o local.

— Nada do que disser tornará seu truque menos ofensivo — prosseguiu Moira. — Entretanto, embo­ra eu não concorde com os motivos que apresentou, eles são suficientes.

— Estou perdoado, então?

— Não perdoado, mas compreendido. Gostaria de discutir agora o que decidi. — O tom conciliador de Moira animou Tavig.

— É um progresso termos algo a resolver juntos.

— Aceito me casar com você. É a única solução, admito. Um dia a mais não fará diferença. — Ela fixou o olhar no dele, depois acrescentou, visando Mungan, o qual havia se reaproximado: — Algumas pessoas são tão teimosas que não têm a inteligência de desistir na hora certa...

Tavig avançou e a tomou nos braços.

— Repreensão assimilada. Quando vamos nos casar?

— Precisamos de um momento de privacida­de para conversar sobre os detalhes. — Desta vez, a censura foi destinada somente a Mungan, que simplesmente sorriu.

— Então, haverá casamento — ele observou. — A notícia não é tão boa quanto se Moira aceitasse se casar comigo, porém ficarei tranqüilo sabendo que você conservará as terras, Tavig. Não se preocupe com nada, primo. Providenciarei o padre e tudo o mais para uma pequena festa e uma cerimônia dupla. — Mungan esfregou as mãos e retomou a marcha até o castelo. — Preciso contar a Una. Ela está inquieta com a idéia de eu querer desposar Moira. Aquele canalha, Bernard Robertson, terá uma grande surpresa quando chegar e vir a filha casada com o próprio raptor.

No minuto em que Mungan saiu de cena, Moira safou-se do abraço de Tavig. Ainda estava zangada pela maneira como ele a enganara, e também por ser pressionada pelas circunstâncias a fazer algo que, no fundo, não queria.

Se ela e Tavig fossem pessoas comuns, haveria pouca coisa mais emocionante do que ter por mari­do um homem atraente, gentil e relativamente rico; sobretudo quando o amava. Até mesmo o fato de Tavig não lhe ter falado de amor a deteria.

Mas existia uma dificuldade que poderia tornar piores os problemas que encarava.

— Não está me parecendo uma noiva feliz — queixou-se Tavig, colocando a camisa.

— Tenho sido manipulada a ponto de me ver sem opção. A cabeça de Mungan é tão dura quanto as pedras da preciosa casa da torre. Ele não irá desistir, nem Una. Ela esteve me contando suas intimidades com o amante, recheadas de detalhes pessoais que eu preferia não ouvir. Ficou claro que o novo plano dela para conseguir a doação da torre ou me tirar do al­cance de Mungan consiste em me escandalizar com os pormenores do comportamento dos dois na cama. — Moira fez uma careta de asco diante de Tavig e ele riu. — Acha engraçado?

— Receio que sim. — A risada se estendeu por mais um momento, antes que fosse controlada. — Perdão, eu estava tentando imaginar uma mulher como Una a falar romanticamente de um homem como Mungan. Estão os dois no âmbito das emoções rústicas, das sensações mais primitivas.

— Nem tente fazer isso, a menos que tenha estô­mago forte. — Moira serviu-se de um pouco de água num poço próximo, enquanto Tavig trazia um peque­no banco para sentar-se ao lado dela.

— Você exigiu privacidade a fim de me falar das peripécias sexuais de Mungan e Una? Ele com certeza não se aborreceria com a divulgação de seus momen­tos íntimos. Ao contrário: iria se gabar deles.

— Suspeito que sim, mas não pedi privacidade para isso — alegou Moira.

Tavig acariciou os cabelos da amante, correndo os dedos pelas madeixas avermelhadas.

— Então está pensando em estabelecer algumas regras, certo?

— É entediante que você possa adivinhar o que vou fazer ou dizer — Moira rebateu, desconfiada. — Consegue ler os pensamentos dos outros?

— Não, não leio a mente das pessoas. Apenas foi fácil pressentir o que você desejava debater comigo. Eram poucas as opções.

— Está bem. Queria mesmo combinar uma ou duas regras. Primeira: para nos afastarmos de Mungan, teremos de nos casar. Ele desposará Una, e grande par­te dos problemas serão solucionados. Não todos, como esclareci quando recusei sua proposta de casamento. — Moira impediu Tavig de apartear, segurando e bei­jando a mão que ele havia erguido no ar. — Segunda: iremos juntos a Drumdearg, onde você pretende provar que meus receios são tolos.

— Isso mesmo — ele confirmou.

— Pois não irei discutir com você. O que lhe peço é que, se o meu medo de ser vista como bruxa for confirmado, você não considere nosso casamento como indissolúvel, de modo a nos prender a uma vida repleta de perigos.

— Está propondo que eu a deixe ir embora, sem resistência, quando você assim resolver? — Tavig não a hostilizou, mas sentiu-se rejeitado por antecipação.

Moira ficou um pouco ruborizada ante o olhar firme que recebeu. Não podia decifrar claramente a expres­são adotada por Tavig, o que a tornou inquieta e pouco à vontade. Devia ter pesado suas palavras cuidadosa­mente, mas sabia não ser boa nisso.

Suspirou, ansiando por conhecer o que ele sentia ou pensava.

— Só porque concordei em me casar, não significa que julgo seguro ou sábio esse nosso casamento. Ele nos foi imposto pela necessidade e preciso contar cora a hipótese de uma separação. Enfim, preciso continuar tendo alternativas. Em nosso caso, isso pode se trans­formar numa questão de vida ou morte.

— Você pensa demais em coisas que podem acon­tecer — Tavig retrucou, voltando a acariciar a pele macia de Moira.

— Um de nós tem de pensar. Se os riscos forem somente uma fantasia de minha parte, tanto melhor.

— Mas precisa considerar que também correrá perigo longe de mim.

— Sei disso. Quero apenas sua promessa de que não vai tentar me deter se eu resolver partir.

— E se eu não prometer? O que você fará? — Tavig procurou afastar a sensação de dignidade ferida.

— Pouca coisa, na verdade. Poderia esperar por Mungan. Ele aceitou um casamento provisório comi­go, e assim eu ganharia um ano. Talvez, casado com a proprietária da casa da torre, após doze meses de convívio ele iria sossegar, vendo-me como aliada, e não como inimiga. Seria humilhante suportar Mungan como esposo, além da raiva de Una. Mas isso seria menos deprimente do que nós dois vivendo juntos por algum senso de honra, pela necessidade de obe­decer às leis, pela crença de um povo ingênuo em um ou outro poder que tenhamos.

— Você teme a bondade do povo? — Tavig estranhou.

— Como qualquer criatura sensível — ela respon­deu. — Tenho ou não sua promessa?

— Detesto não ter alternativa, mas concordo. — Nem um débil sorriso se estampou no rosto bonito. — Mas saiba que estragou um casamento repleto de esperanças.

Moira buscava um modo de compensar Tavig, quando Una surgiu correndo e sorrindo. Abraçou a prima, cumprimentando-a pelo noivado, e Tavig não pôde deixar de comparar as duas mulheres. Una se mostrava tão feliz que falava sem parar. Moira apenas ouvia, esboçando um sorriso.

Ocasionalmente, esta também cumprimentou Una por sua futura união com Mungan. A prima loira es­tava cheia de planos, enquanto Moira parecia uma condenada à forca avançando até o cadafalso.

Procurou ser compreensivo, pois os temores que Moira havia expressado eram reais. Para ela, ao menos.

Tal conclusão não minimizou seu pesar, contudo. Sentia-se ferido em sua vaidade, porém decidiu que, perante as circunstâncias, seria pior se cultivasse uma atitude negativa.

— Mungan disse que o padre virá dentro de uma hora — Una anunciou.

— Tão depressa?... — balbuciou Moira.

— Ele não vê motivo para espera. E meu pai pode­rá chegar a qualquer momento. Mungan prefere que tudo esteja terminado antes disso.

— Tem razão — Tavig comentou. — Sir Bernard tentaria impedir meu casamento com Moira por sa­ber que vou cobrar cada centavo do dinheiro que ele subtraiu dela.

— Oh, papai não agiria assim. — Surpreen­dentemente, Una o defendeu. — Vamos entrar, prima. Resta pouco tempo para os preparativos de dois casamentos.

Tavig observou as jovens que se retiravam. Balançando a cabeça, contrariado, ele as seguiu.

Ao menos conseguira uma coisa: Moira iria a Drumdearg. Infelizmente, mantê-la ali, a seu lado, despontava como um grande problema. Só podia orar para que, com habilidade e paciência, suprimisse de uma vez os receios de sua noiva.

Moira ajudou Una a amarrar o corpete. Para si pró­pria, pouco havia a fazer em matéria de aparência, além de um retoque na maquiagem.

— Você não parece uma noiva — a prima senten­ciou, sem saber que ela, embora não apostasse muito na duração de seu casamento, gostaria de se apresen­tar melhor.

— Minhas roupas estão todas velhas e gastas. Ganhei este vestido folgado de uma senhora do vilare­jo de Craigmoordun, mas não tive tempo de ajustá-lo. — Ela relanceou o olhar para a prima, admirando o belo traje azul, bordado, que ela acabava de vestir.

— Sei disso, mas não são apenas as roupas. Você aparenta infelicidade. Como é a amante de Tavig, pensei que o adorava.

— Eu o amo, mas não conte a ele ou vai se arre­pender. A verdade é que estou menos feliz do que você, mas seria demorado explicar. Temos algumas... dificuldades. Com franqueza, Una, vou me casar com Tavig para Mungan me deixar em paz e seu pai não poder mais me bater. O restante, veremos depois.

— É por causa de seu dom especial ou do dele? Moira tardou meio minuto em compreender. De hábito, Una não era tão perspicaz.

— Você sabe a respeito da minha dádiva?

— Claro. Convivemos por dez anos. Como eu poderia ignorar? Eu e Nicol fomos socorridos por você várias vezes quando usou seu dom para curar ferimentos produzidos por nosso pai.

— Oh, e eu julguei que disfarçava bem.

— Você só poderá manter o segredo se não ajudar mais ninguém. Tavig tem o poder da premonição, e isso não é mistério por aqui. Por que ele implicou com o seu dom de cura?

— Não implicou porque o desconhece. Nada con­tei e talvez nunca conte. Portanto, peço-lhe a maior discrição possível.

— Está me pedindo para guardar muitos segredos... — Una replicou, brincando.

— Apenas dois. Não é hora de descermos até o saguão principal? — Moira verificou as fitas que usa­va nos cabelos e foi andando.

— O que você acha que meu pai fará ao descobrir que nós duas nos casamos? — Una apertou o passo a fim de alcançar a prima.

— Vai ralhar e fazer ameaças, só que em vão. Não tenha medo. Mungan Coll é bastante capacitado para lidar com sir Bernard. Depois que você pronunciar seus votos perante o padre, estará livre dele.

— Vou demorar a acreditar nisso — Una falou em tom conformado.

No saguão, Moira sentiu-se desconfortável. Mungan estava elegante na vestimenta preta. Una, ao lado do noivo, parecia delicada e sensual ao mesmo tempo.

Tavig, bonito como sempre, vestia um traje obvia­mente novo. Ao dar-lhe a mão, Moira imaginou onde e de que maneira ele havia conseguido comprar aquela roupa azul-escura.

Suspirou. Não seria a cerimônia de seus sonhos, mas, ao menos após o casamento, poderia renovar o guarda-roupa, pois o dinheiro não seria mais um problema.

— Você parece triste — censurou Tavig, mesmo beijando a mão da noiva. — Os convidados vão pensar que a estou forçando a se casar comigo. Esqueceu-se de que me resta um pouco de vaidade?

— Sua vaidade não está em jogo aqui — ela se so­brepôs à crítica com altivez. — Logo cuidarei melhor de mim, na condição de rica herdeira. No entanto, confesso estar deprimida.

— Isso é evidente e pouco estimulante, querida.

— A tristeza não tem a ver com você, mas lamen­to a rapidez dos acontecimentos. Com mais tempo, eu poderia me apresentar melhor, realizando o sonho de toda mulher, que é o de se casar bonita. Sinto muito pelos meus farrapos.

— Você é naturalmente bonita — Tavig contem­porizou e a tocou nos cabelos. — Eu é que fui tolo, exibindo-me com uma roupa fina. — Ele a enlaçou pelos ombros e a beijou na face. — Acho que está muito bem.

— Cuidado para não tirar minhas fitas do lugar — ela alertou.

— Vou tirá-las de qualquer modo, no quarto, assim que o padre encerrar a cerimônia.

Moira sorriu a fim de ocultar seu choque. Mungan e Una se juntaram a eles, pois o sacerdote já dava início aos ritos.

Foi quando ela teve de controlar um repentino pânico. Desejava se casar com Tavig, levar com ele uma vida normal, criar o menino Adair. Mas nada dis­so parecia possível. O noivo repetia que o destino lhes reservara a união conjugal, porém ela pensava, com igual certeza, que ambos estavam condenados.

Cruel, o destino os brindara com dons capazes de realizar o bem, mas que despertavam medo ou malda­de nas pessoas.

Pouco depois, o padre os declarou marido e mulher. Mungan e Una, já casados, trocavam beijos ardentes sob a ovação dos criados do castelo e da fazenda.

Moira decidiu retribuir com vigor o casto beijo ce­rimonial do marido, fingindo, por um instante, que o matrimônio com Tavig seria real e duradouro.

A tosse do padre a despertou da ilusão e a deixou embaraçada.

— Agora, vamos festejar! — conclamou Mungan. — Todos ao salão.

— Como teve tempo de preparar uma festa? — Tavig abordou o primo, trazendo Moira consigo.

— Não tive. A festa já estava pronta, só não pen­sei que seria de casamento. — Mungan riu da própria esperteza. — A partida para a batalha contra Iver será em breve, questão de dias. Os soldados também são glutões, daí eu ter encomendado a melhor comida e muita cerveja. Se celebrarmos agora, os homens fica­rão contentes e mais dispostos à luta.

Tavig admirou a inteligência prática de seu primo, depois deu atenção a Moira. Como ela se dizia famin­ta, adiou a fuga ao quarto.

Enquanto ambos se alimentavam, introduzin­do petiscos carinhosamente na boca um do outro, Moira decidiu que não seria difícil esquecer seus temores e preocupações por algum tempo. Alguns dias de merecida felicidade não a demoveriam da idéia de abandonar Tavig, se necessário, nem tornariam maior a dor da partida.

Para sua surpresa, Una a pegou pela mão e a fez subir ao quarto.

— Oh, Una, onde conseguiu isso? — Sobre a cama na qual passaria sua noite de núpcias, Moira viu uma adorável camisola branca, de seda e renda.

— Era da mãe de Mungan. A meu pedido, uma criada a lavou e passou, depois a trouxe até mim.

— Não agüento de ansiedade. Posso experimentá-la?

— Claro, mas já sei que é do seu tamanho.

— A mãe de Mungan era franzina como eu? Quantos filhos criou?

— Cinco homens e uma menina. Não os conheço, mas Mungan garante que são todos fortes e saudáveis.

— Jura que seu marido não se importa de eu usar a peça?

— Não. Ele próprio quis doar todas as roupas da mãe, mas eu guardei algumas. Bom proveito. Agora, preciso ir para o meu quarto. Mungan pode me procurar.

— Você gosta mesmo dele, Una?

— Sim, mas julguei que você sabia disso.

— Sabia, porém nunca a ouvi externar seu senti­mento. Imaginei, por um instante, que estava se casan­do simplesmente porque ele não bate em você.

— Num primeiro momento, foi o que me encantou nele. Depois, eu o testei com provocações e insul­tos, mas Mungan nunca me castigou. Resistiu a tudo, mostrando-se magoado, mas sem recorrer à violência.

— Tavig é igual — observou Moira.

— Por isso me apaixonei por Mungan. Preciso ir, prima, e me preparar para uma noite especial...

Logo que Una a deixou, Moira passou a se despir. A despeito do longo banho anterior, lavou-se cuidado­samente antes de colocar a fina camisola. Nunca ha­via vestido algo tão bonito e delicado. Estranhou que uma simples peça de roupa fizesse tanta diferença em sua disposição de amar Tavig pela noite inteira.

 

Tavig aprumou as costas ao adentrar o quarto. Arrependia-se de ter proposto um casamento provisó­rio, pois odiava a perspectiva de que Moira pudesse abandoná-lo.

Pior: lamentava ter induzido a amante àquela solu­ção e sentia-se culpado.

Controlou-se a fim de não revelar tais preocupações.

Moira estava muito bonita, de pé junto à cama. Sorria e tinha um leve rubor nas faces. Os cabelos avermelhados cascateavam sobre uma camisola que ele não conhecia. A luz da lareira e das velas devassa­va suas curvas discretas, porém tentadoras.

— Está tão atraente que não sei o que dizer — murmurou, sincero.

— Não diga nada. Apenas pegue o que é seu de direito.

Moira se arrepiou antes mesmo de a boca de Tavig se aproximar de seu pescoço. Nos olhos dele, viu um calor incomum, e sua pulsação já rápida se acelerou ainda mais.

— Nenhum homem jamais teve uma noiva tão bela — ele sussurrou, desfazendo os laços da camisola.

Uma vez nua, Moira não soube como responder ao galanteio, e apenas se ofereceu às carícias do marido.

Uma renitente voz interior a alertava de que seria tolice desfrutar prazeres que talvez pouco durassem. Porém ela a ignorou, disposta a se aproveitar das ha­bilidades de Tavig.

Quando ele se pôs desnudo e os olhares se cru­zaram, ela não hesitou. Avançou até que as peles se tocassem. Estremeceu, e Tavig aceitou o implícito convite, levando-a no colo até a cama.

Levada por uma profunda emoção, Moira retribuiu cada carícia, cada beijo dele com igual enlevo, e ou­sou acariciá-lo por inteiro, exultando com o efeito de seu toque. Já se conheciam intimamente, mas ela não conseguiu superar a sensação de que aquela primeira noite como casados seria única.

Ousada, deslizou a mão pelo ventre de Tavig até fechar os dedos em torno do membro rijo. Ao vê-lo fechar os olhos e gemer, descobriu que o deleite do marido alimentava o seu próprio.

Após correr os lábios pelas coxas da esposa, Tavig passou a sugar-lhe a região mais sensível. Moira agi­tou-se, incapaz de permanecer estática ante a sensação proporcionada pela língua quente. Quase em estado de choque, porém com o coração acelerado, ela se viu rendendo ao contato íntimo, desmanchando-se de prazer até ser sacudida por um violento êxtase.

Enlevado, Tavig a possuiu com desesperado vigor. Ela o recebeu de bom grado, murmurando palavras doces, mergulhando os dedos nos cabelos fartos até vê-lo se perder na mesma e maravilhosa sensação que a tinha exaurido.

 

Moira ergueu a cabeça do peito de Tavig e afagou-lhe os cabelos escuros. Ele a segurava tão ternamente que ela se permitiu relaxar e espantar suas incertezas.

Saciada, aninhou-se de novo junto ao tórax largo.

— Existe alguma chance de acordo com seu pri­mo Iver? — perguntou, após beijar os músculos que a acolhiam.

— Não. Ele se mostra cego de ganância e inveja. Acho que demorei demais a reagir às suas ameaças. Dois amigos morreram por causa disso, e perdi meses fugindo e me escondendo. Iver não se importa em le­vantar a espada contra um parente. Ele sentiu minha hesitação e se aproveitou dessa fraqueza.

— Você não tem culpa pelo duplo assassinato. Esse fardo é Iver quem tem de carregar. Também não é fraqueza esperar lealdade de um parente. — Moira o beijou novamente no peito e foi descendo, ousada. — Rezo para que não haja uma batalha; muito menos uma carnificina.

Tavig se arrepiou ao sentir os lábios quentes no baixo ventre.

— Receia que eu morra pela espada de Iver?

— Às vezes, você faz perguntas idiotas, sir Tavig MacAlpin. — Querendo retribuir a carícia que recebe­ra, Moira usou a boca por alguns segundos e sentiu-se gratificada com o gemido que escutou.

— Um homem aprecia saber que fará falta — ele completou, rouco, pouco depois.

— Ah, consegui mexer com sua vaidade.

— Entre outras coisas. — Tavig riu e desfrutou mais dos toques ousados de Moira. — Nem eu nem Mungan queremos perder a vida. Mas, no momento, não estou interessado na luta contra Iver.

— No quê, então? — ela perguntou, voltando a se aninhar junto ao peito dele.

— Na minha noite de núpcias.

Tavig nunca vira Moira tão excitada e excitante. Era patente que desejava repetir o ato de amor.

— Fazer sexo fortalece um guerreiro — comple­tou, fechando os olhos de prazer quando a esposa distribuiu pequenos beijos por seu abdômen. — Mas eu não tinha idéia de que poderia me atormentar tanto!...

— A paciência é uma virtude.

— Nunca fui virtuoso. Se não me tomar na boca novamente, vou enlouquecer!

Tavig lutava para controlar o desejo que o abrasava, porém desistiu quando ela o atendeu e esquentou seu sangue com os lábios. Um momento depois, ele a trouxe para cima do corpo.

O instintivo talento de Moira ditou-lhe o que fazer. Ela poupou o marido de qualquer movimento, encai­xou-se no lugar certo e iniciou um meneio de quadris que, em pouco tempo, o levou à loucura.

Enquanto ambos desfrutavam o glorioso ápice do prazer, nela intensificado pela nova posição, ocorreu a Tavig que havia um modo de manter Moira para sempre a seu lado.

Correu as mãos pelo corpo escultural sobre o dele com um sorriso nos lábios: poderia dar a ela um filho.

 

Tavig emitiu um leve gemido, libertou-se do abra­ço de Moira e esfregou a testa. Tinha acordado com uma batida violenta à porta, mas levou um minuto para perceber que o barulho não se originara em sua cabeça.

Colocou-se de pé e vestiu o calção íntimo, ob­servando a porta que estremecia com uma segunda batida.

Ele a abriu e, permitindo-se um esgar de aborreci­mento, deparou com Mungan.

— Por que não ficou deitado com sua esposa? — repreendeu o anfitrião.

— Porque estamos prestes a receber visitas. Ele rogou uma praga, depois bocejou.

— Robertson já está aqui?

— Vai cruzar minhas muralhas em cerca de uma hora —

— Eu tinha a vã esperança de que ele demorasse mais alguns dias.

— Considerando todos os acontecimentos, foi bom para você e para mim que o pai de Una não esti­vesse presente.

— É verdade. Vou me aprontar e estarei a seu lado quando Robertson aparecer. As mulheres devem ser avisadas? Terão de cumprimentar o canalha?

— Sim, mas foi difícil convencer Una. Devo enviá-la para falar com a prima?

Olhando para trás, Tavig viu que Moira, desperta, encontrava-se sentada no meio da cama. Embrulhada no lençol, ela fixava nele um olhar apavorado.

— Não será necessário. Moira estará onde for preciso.

Com a saída de Mungan, Tavig rumou até a bacia de louça provida de água para a higiene matinal. Lavou-se e depois foi ao guarda-roupa.

Embora também apreensivo, irritou-se ao encon­trar Moira plantada no mesmo lugar. Esperava que ela já tivesse se lavado e começado a se vestir, prepa­rando-se para o confronto com Robertson.

— Tem de descer para recebê-lo, querida — disse, desdobrando uma camisa branca.

— Por quê? Você e Mungan não podem dar conta disso? Terão de contar-lhe tudo, e sir Bernard ficará furioso.

— Ele não ousará machucá-la — Tavig garantiu ao sentar-se na cama, ao lado da mulher, e tomar-lhe a mão. — Mungan e eu nunca permitiremos isso.

— Eu sei, ou melhor, uma boa parte de mim sabe.

Entretanto, dentro dela também residia uma criança aterrorizada, que não escutava a voz da razão e ape­nas insistia em dizer que sir Bernard estava vindo, e que teria um ataque de raiva.

— Sem dúvida, Una sente o mesmo, mas vai enca­rar o pai. E conta com você, firme ao lado dela, como apoio. Afinal, você é a única entre nós que pode com­preender o que Una irá experimentar quando olhar para o pai e enfrentar sua fúria.

Moira suspirou. Tavig tinha razão. A prima não só a aguardava, como precisava dela. E se Una conse­guia ficar face a face com Robertson, ela seria a mais desprezível covarde se não a escoltasse.

Rapidamente, ela passou a se arrumar. A expectativa do confronto com sir Bernard lhe preenchia a mente de tal modo, que não se envergonhou em se lavar e vestir-se na frente do marido.

Deu pela presença dele no instante em que ten­tou amarrar os cabelos e necessitou de ajuda. Tavig se aproximou e apanhou a fita azul. Moira mostrou-se grata, pois não conseguiria sozinha considerando como tremia.

— Pense nesta ocasião como uma despedida, um sonoro adeus ao patife — recomendou Tavig.

— Posso tentar.

Laço pronto, ele a virou para ficarem de frente. Abraçou-a e deu-lhe um beijo terno.

— Queria poder preservá-la da dor de ver seu tutor de perto, mas é impossível. Eu enfrentaria Robertson sozinho, porém o medo que ele criou em você continuaria vivo. Vou me sentir inútil se você não lidar com esse trauma.

Apesar dos receios que lhe reviravam as entranhas, Moira sorriu ante a preocupação genuína na face de Tavig. Viveu um pequeno momento de desforra.

— E você odeia sentir-se inútil, não? — Estendeu a mão a fim de tocá-lo no queixo.

— Nenhum homem gosta. Modéstia à parte, sem­pre me considerei uma pessoa capaz de resolver qualquer problema. — Como fazia quando estava nervoso, Tavig correu os dedos pelos cabelos. — Nestes últimos meses, porém, fui negligente. Não solucionei o problema com Iver tampouco consegui apagar o que sir Bernard fez a você.

— Creio que essa fase vai passar e irá resolver muito bem a pendência com seu primo cruel. Quanto a mim... Não chegarei a tirar completamente o medo de meu coração, mesmo com sua ajuda, Tavig. De qualquer modo, você me ensinou a ser menos medro­sa. — Moira deu um suspiro triste. — Se meu pavor ceder um pouco, já será uma vitória. Por certo, quin­ze dias atrás eu não seria capaz de encarar meu tutor, ainda que você insistisse. Continuaria agindo como a criança aterrorizada que vive dentro de mim e fugiria. E claro que sofreria com a certeza de que Robertson iria me achar e castigar.

Ela se moveu até a porta, então olhou para o marido.

— Se está pronto, é melhor descermos ao saguão antes que o visitante chegue e eu me renda à minha fraqueza.

Tavig sorriu e se apressou a tomá-la pela mão.

— Você é mais corajosa do que pensa.

No saguão, Moira almejou, de coração, que Tavig estivesse certo. Assediada pelo temor, sentia náuseas, o que não evidenciava bravura.

Mas não poderia deixar o marido sozinho no con­fronto com Robertson. Havia assuntos que só pode­riam ser decididos entre o tutor e ela. Caso tencionasse conservar a posse da casa da torre, após uma eventual separação de Tavig, tinha de informar sir Bernard que nunca mais permitiria que ele a despojasse de um direito legal. Se não conseguisse enfrentar seu guar­dião cercada de homens dispostos a protegê-la de qualquer infâmia, nunca convenceria Mungan de que ela seria uma forte aliada sua.

Procurou Una pelo saguão e a identificou perto da porta principal. No momento em que viu a prima pá­lida, os olhos parados, soltou-se da mão de Tavig e correu até ela.

Una parecia à beira de um colapso nervoso e isso, surpreendentemente, fez brotar nela uma certeza: se ambas se mostrassem trêmulas e lacrimosas diante de sir Bernard, só fariam crescer sua tirania. Mas ele se surpreenderia, deduziu Moira, com uma centelha de raiva.

— Una, fique tranqüila. — Moira sinalizou a um pajem para trazer uma taça de vinho.

— Pensei que esbanjaria calma — murmurou a moça, apanhando a bebida na bandeja e tomando um farto gole. — Agora tenho um marido e ele é forte. Imaginei que isso me bastasse, mas, ao contrário, sinto-me aterrorizada.

— Mesmo sendo grande e forte, prima, Mungan não pode curar o medo que está entranhado em você desde que nasceu.

— Venham, senhoras — chamou Mungan da ca­beceira da mesa, ao lado de Tavig. — Sentem-se conosco.

— Se não se importa, preferimos encarar sir Bernard de pé. — Moira replicou.

---Verdade — aderiu Una. — Assim será mais fácil fugir correndo.

— Estaremos todos juntos para receber o ilustre visitante — Tavig ironizou, enquanto Moira dava atenção à apavorada prima.

— Tome mais vinho e se acalme. Como sabe, have­rá pelo menos dois homens fortes, de espada na mão, ao nosso lado. E podemos contar com uma dúzia de outros espalhados pelo saguão e pela sala.

— Sim, eu sei — murmurou a outra. — Gostaria de ser tão valente quanto você.

— Valente? Tenho medo e sinto enjôos. Sou capaz de esvaziar o conteúdo de meu estômago nas botas de sir Bernard. — Moira sorriu quando Una esboçou uma risada. Em seguida retirou do bolso da saia um lenço de linho destinado a secar suas lágrimas.

— Também me sinto estranha. Ele é meu pai, Moira, ainda que não o veja há meses. Deveria estar ansiosa para contar-lhe de meu casamento e apresen­tar Mungan. No entanto, rogo para que ele sofra um acidente na estrada, antes de alcançar nossos portões, o que é no mínimo triste. Devo ser a filha mais ingrata do mundo.

Moira a balançou pelos ombros.

— Exatamente o que sir Bernard deseja que você pense. Casou-se com um homem bom, que a ama e é amado, Una. Qualquer pai normal saudaria uma alian­ça com Mungan. Mas se você teme seu pai, a culpa é dele. Nada tem a lhe agradecer, exceto não tê-la matado de uma vez.

— Eu sei.

Tensa, Moira ouviu sons de patas e cavaleiros se aproximando do castelo. A hora decisiva tinha chegado.

— Calma, prima, fique firme — conclamou, con­tendo o próprio temor.

Tavig e Mungan se colocaram junto às duas quan­do, escoltados pelos vigias da muralha, sir Bernard e seu filho Nicol despontaram no saguão do castelo.

Moira lançou ao marido um olhar de alívio quando ele segurou Mungan pelo braço e ambos avançaram.

Tavig não queria dar a sir Bernard a impressão de que elas se abrigavam às suas costas, mas, com isso, nenhuma das duas correria riscos.

A coragem de Moira tornou-se pó, entretanto, no exato momento em que sir Bernard olhou para ele, pa­recendo surpreso e irritado por encontrá-la viva. Um rosto familiar, todo vincado, surgiu mais atrás, e ela tentou sorrir para a velha Annie, sua ama e guardiã. A mulher se adiantou, a fim de abraçá-la, chorando muito.

— Pensei que tinha morrido e que jazia no fundo do mar!

— Como pode ver, estou seca e saudável — ela respondeu, antes de se desvencilhar dos braços ossu­dos e consultar Tavig com os olhos. — Pode servir a ela um pouco de vinho?

— Sim — Mungan respondeu por ele, e tomou a mulher pelo braço. — Eu a servirei enquanto trocam cumprimentos com seus parentes.

Annie acompanhou Mungan de bom grado até a mesa da sala, onde ele lhe encheu uma taça.

— Percebo que já dispõe do resgate pedido, sir Mungan — disse Bernard, entrando na sala. — Nossos outros negócios chegarão a um bom resultado.

Moira atentou para o rosto colérico de Bernard e a expressão não muito diferente de Nicol. Olhou depois para a fileira de homens armados, postados no saguão, e compreendeu que, por mostrar-se pouco hospitalei­ro, cercando-se de segurança, Mungan insultava os Robertson.

Moira almejou que Mungan soubesse exatamente o que fazia. Em reforço à ofensa, ele ainda era solíci­to com a velha Annie. Além do mais, esquivando-se de discutir o assunto do resgate, também demonstrava ao fidalgo que detinha o poder nas mãos.

E era verdade. Mungan possuía o dinheiro do res­gate e a vítima do rapto. Daí o rubor que coloria a face de Bernard.

Moira se alegrou intimamente, porém não con­seguiu evitar um leve tremor quando seu torturador a fitou nos olhos.

Por via das dúvidas, Tavig acercou-se dela, entre­tanto Moira o afastou com sutileza.

O clima na sala do castelo tornou-se tenso. Una parecia à beira do desmaio, e restava ainda o anúncio de dois casamentos.

— Se tivesse ficado na cabine do navio, não teria caído no mar — Bernard rosnou. — Mas preferiu ir ao convés e se oferecer a esse renegado!

Era espantoso que, naquelas circunstâncias, sir Bernard Robertson se julgasse autorizado a apontar um dedo para Tavig.

Com o braço, Moira impediu o marido de reagir ao insulto.

— E você deveria ter me contado que eu era o resgate exigido por Una. Talvez isso me inspirasse a tomar mais cuidado.

Curiosamente, o olhar furioso de Bernard já não lhe parecia assustador. Superado o primeiro momen­to de tensão, tudo transcorreria bem, Moira imaginou, mesmo percebendo os punhos cerrados de seu tutor.

— Já tem o seu resgate, Coll. Devolva minha filha — ele pediu a Mungan, que, sem pressa, dividia a jarra de vinho com Annie.

— Moira não serve mais como resgate, Robertson — afirmou Tavig. — Ela é minha esposa.

— Sua o quê? — Incrédulo, o fidalgo congelou Mungan com o olhar. — Você deixou esse assassino se casar com Moira? Não era você quem a desejava, a ponto de tentar raptá-la?

— É verdade — a resposta veio firme. — Mas o meu objetivo era ver aquela maldita casa da torre longe de suas mãos. E agora a coluna de pedras está tão segura com Tavig como estaria comigo. Além dis­so, não posso ter duas esposas, assim decidi-me por Una, que combina melhor com meu modo de ser.

— Você se casou com Una? — A respiração de Bernard tornou-se pesada, e sua ira tão pronunciada que sua voz soou aguda.

Moira segurou o ar quando o tutor as fitou e Una retrocedeu um passo. Distraída, perdeu o início do ataque de Bernard. Viu o punho dele apenas no ins­tante em que este já atingia sua cabeça. Com o golpe, foi arremessada para trás, levando Una junto com ela.

Aturdida com a dor, não se moveu, sentindo a prima ampará-la. Foi então que divisou uma figura familiar se lançar contra Bernard.

Dessa vez, nada poderia impedir Tavig de dar àquele monstro uma lição.

Embora zonza, ainda conseguiu impedir Mungan, que partiu para cima de Nicol.

— Nicol não irá machucar ninguém! — gritou, a cabeça ainda latejando, ao mesmo tempo que fran­zia o cenho diante do pedaço de pano sujo que Annie lhe aplicava sobre o lábio fendido.

— Não deveria ajudar Tavig? — Una perguntou a Mungan, que havia soltado o filho de Bernard.

— Ele vai me agredir se eu o interromper. — De braços cruzados, acompanhou a luta, marcada inicial­mente por socos e pontapés.

Tavig se livrou da chave de braço do adversário e pulou sobre ele, descendo os punhos incessantemen­te sobre o rosto redondo. Bernard foi recuando até ficar de joelhos.

— Nosso rapaz logo dominará o canalha. — Mungan percebeu Una atenta e se retratou: — Perdão, querida, esqueci-me de que ele é seu pai.

— Não se desculpe, marido. Apenas segure Tavig antes que ele mate Bernard.

— Só farei isso porque estamos casados há apenas um dia. É cedo demais para você perder parentes. — Sorriu para a esposa, despertando o riso dos outros.

Quem caiu ao chão e deslizou até perto do grupo foi Tavig, atingido por um murro de Bernard. Moira fez menção de ajudá-lo a se erguer, mas foi contida por Una e Annie.

Não insistiu porque ainda se achava tonta com o golpe sofrido e Tavig já se pusera de pé. Libertando-se dos braços da prima e da antiga ama, Moira virou-se na direção da mesa da sala e se surpreendeu ao depa­rar com Nicol sentado enquanto o pai era esmurrado por Tavig.

— Não vai auxiliar seu pai? — perguntou, enquanto devolvia o olhar à arena e constatava que seu marido continuava marcando vantagem sobre o adversário.

— Por que eu deveria? Esta é a primeira vez em que ele recebe o que merece.

Apesar de suas antigas suspeitas, Moira ficou cho­cada ao confirmar a impressão de que sir Bernard Robertson conseguira a façanha de perder o amor e o respeito de ambos os filhos. Una visivelmente se en­tristecia com isso, mas nem ela nem Nicol exibiam qualquer preocupação com os possíveis ferimentos do pai, sua derrota e, sobretudo, sua humilhação em público.

Moira prestou mais atenção à contenda, agora que estava praticamente definida a vitória de Tavig. Mas a visão do marido ferido, com marcas de sangue no ros­to e na cabeça, era mais do que conseguia suportar.

Quando Bernard foi ao solo e ali permaneceu, imó­vel, ela emitiu um longo suspiro de alívio. Sorriu a Tavig quando ele veio a seu encontro mancando.

O sorriso dela se desvaneceu quando, por estar de frente, viu a sombra de um movimento do homem caído. Com o grito preso na garganta, ela apenas murmurou um alerta: sir Bernard Robertson havia retirado de sua bota um punhal escondido, levanta­ra-se com inesperada agilidade e agora aproximava a lâmina das costas de Tavig.

Prevenido, ele só gastou um segundo para virar o corpo, porém Mungan foi ainda mais rápido: segu­rou Bernard pelo pulso, anulando o ataque covarde, e torceu-lhe o braço até a arma cair, tilintando.

Moira escutou o estalido de um osso quebrado e o subsequente grito de dor do fidalgo vencido. Com um sonoro soco no queixo, Mungan silenciou Bernard, empurrando o homem, já desfalecido, para o chão.

— Sinto muito, Una — disse, marchando até a esposa e fazendo-lhe um afago nos cabelos. — Receio ter fraturado o pulso de seu pai. É uma contusão que nem sempre sara completamente... Ele pode perder a força na mão direita, justamente aquela que segura uma espada ou um punhal.

E que bate em pessoas indefesas, Moira refletiu.

Ao observar a reação dos primos, comprovou que eles fitavam o sorridente Mungan com a mesma con­sideração que ela sentia. O marido de Una poderia ter desarmado o inimigo, mas, de propósito, havia quase aleijado o homem.

Moira focalizou Tavig e viu o olhar satisfeito que ele dirigiu ao primo, antes de tocar com emoção sua face pálida e ferida.

— Você tem muito mais ferimentos do que eu — ela se afligiu.

— Não são graves — Tavig a tranqüilizou.

— Os dois precisam de cuidados: curativos e chás contra a dor — decidiu Annie, tomando o casal pelo braço a fim de guiá-los até a mesa da sala.

— E quanto a sir Bernard? — Moira se preocupou. — Ele começou a acordar.

— Então bati menos forte do que pretendia... — Mungan deplorou, enquanto ocupava sua poltrona predileta, ladeado por Una. — Angus! — chamou um de seus servidores de confiança. — Esse Robertson precisa passar algum tempo numa cela.

— Preciso é de um médico! — berrou o tutor de Moira, a voz entrecortada por gemidos. — Nicol, meu filho, por que acompanha nossos inimigos?

— Ambos são nossos parentes, agora — afirmou o rapaz, dando de ombros.

— Traidor! — Bernard acusou, vendo-se arrastado por dois homens saguão afora. — Todos são traido­res e pagarão por isso! E você também, maldito Nicol, porque sou seu pai!

Nicol, Tavig e Mungan se mostraram irritados, e Moira temeu um novo confronto. Rogou para que as atenções de Annie para com Tavig o mantivessem sentado. Bernard podia estar com o pulso ferido, mas isso não o impedia de reagir, dada a violência com que se debatia, mesmo preso pelos homens do castelo.

Quando Tavig já tencionava se atracar de novo com Bernard, Mungan se levantou e foi até Bernard, diri­gindo-se a ele em voz baixa. O homem empalideceu, e finalmente cedeu à força física dos dois guardas. Nenhuma palavra lhe escapou da boca enquanto era conduzido aos subterrâneos.

Mungan retornou à mesa, beijou o topo da cabeça de Una e sentou-se.

— O que disse a ele? —Tavig quis saber, empur­rando Annie de leve após garantir que estava bem. — Falou algo que drenou toda a energia do canalha. Do que se trata?

— Também estou curiosa — confessou Una, fitan­do o marido com admiração.

Sorridente, Mungan não tardou a explicar:

— Disse que, caso ele desaparecesse da face da Terra, ninguém daria por sua falta, e mencionei que não me lembrava da última vez em que mantive um prisioneiro nos calabouços do castelo. Também falei que barulho demais me causava dor de cabeça a pon­to de eu agir sem pensar, e que os soldados, em meu benefício, não hesitariam em silenciá-lo, já que eram especializados em torturas. Parece que sir Bernard julgou preocupantes esses relatos.

— Aposto que sim — murmurou Tavig. — Mas ele perceberá seu jogo quando vir que nada de grave o atingiu.

— Não permitirei que adivinhe meu jogo. Não vou torturar o canalha; não muito. Porém o suficien­te para ele acreditar em minhas palavras. — Mungan bateu amorosamente na mão de Una. — Nada de preocupações, querida. Seu pai será deixado vivo. Mas, quando eu deixá-lo partir, será um homem bem diferente do facínora que é agora.

— Como conseguirá? — Una afligiu-se. — Ele sempre foi assim, a vida inteira.

— Por quê? Está em seu sangue? — Mungan olhou desconfiado para Nicol.

— Não creio. — Una procurou apoio no irmão. — É alguma herança maldita?

— Não — Nicol atalhou enfaticamente. — Nossos aldeões costumavam me contar que Bernard Robertson era o único a se comportar com violência. Ele apren­deu, ainda jovem, que podia despertar o medo nas pessoas dessa forma, e gostou disso. O pai o protegia por ele ser seu filho único, e não colocou um freio em sua brutalidade. Quando o velho morreu, ele se tornou ainda pior e mais agressivo. Terá dificuldade para mudá-lo, Mungan.

— Sei como ser paciente — rebateu o dono do castelo. — A questão é: onde você vai morar?

— Com minha irmã e minha prima, espero. Afinal agora somos parentes, Mungan.

— Proposta aceita. Você protegerá as mulheres enquanto eu e Tavig viajamos para combater Iver.

— E quando será isso? — Nicol surpreendeu-se.

— Amanhã, bem cedo.

Tavig tossiu e quase derramou o vinho que bebia. Apesar dos laços fortes que o ligavam ao primo, optou por confrontá-lo.

— Amanhã? E só me contou agora?

— Em tempo, suponho — redarguiu Mungan.

— Por que sair logo pela manhã para enfrentar Iver? Não estávamos esperando a volta dos homens que foram fazer o reconhecimento do terreno?

— Eles já chegaram, nesta madrugada. Conver­samos, e eu os mandei descansar e aguardar novas ordens.

— Era sua noite de núpcias, Mungan! — Tavig fitou Una com ar piedoso, e ela enrubesceu, voltando a se concentrar no prato de comida.

— Meus soldados não sabiam que eu havia me casado ontem — Mungan tentou explicar. — Era impossível deixar de ouvir o que eles descobri­ram. Algo muito importante, por sinal. Iver não con­ta com o apoio de nenhum civil, seja homem, mulher ou criança. Ele só tem mercenários.

— E, que eu saiba, essa tropa não chega a trinta homens. Força pouco considerável, mas muito expe­riente, e que está segura atrás das muralhas. Podem facilmente permanecer sitiados, pois possuem água e alimento para meses de resistência.

— Sim, primo, mas cabe a nós evitar a lenta carnificina de um cerco. Alguns de nossos batedores eram espiões treinados, conseguiram infiltrar-se nas hostes de Iver e o convenceram de que desejavam desertar minhas tropas para jurar lealdade a ele. Por isso, não retornaram. Estão à nossa espera, para nos introduzir em Drumdearg.

— Será fácil assim derrotar Iver? — Tavig duvidou.

— Mais fácil do que empreender um cerco ao castelo — complementou Mungan. — Isso não exclui uma eventual batalha, mas temos o fator surpresa a nos­so favor. Atualmente, Iver chefia cinquenta homens e aguarda mais dez, segundo boatos.

— E nós, temos quantos?

— Vinte e oito, bem preparados.

— E falta tempo para recrutar e treinar mais gente. Significa que enfrentaremos Iver com trinta homens!

— Trinta e um — emendou Nicol.

— Vai participar da missão? — indagou Tavig, surpreso.

— Somos parentes e eu tenho meus brios. Se al­guns vigilantes e soldados vão permanecer aqui, eles darão conta de resguardar o castelo.

— Bem-vindo então, cunhado. — Tavig leu preo­cupação nos olhos de Moira e se adiantou em lhe tomar a mão, consolando-a. — Talvez você e Una devam subir, deixando-nos sozinhos para discutir essas coisas.

— Essa conversa me aborrece, sim, mas prefiro ficar — ela afirmou. — Quero saber exatamente o que me espera nesta vida.

Moira sorriu, contente por ver que Una meneava a cabeça, concordando com ela.

Bastou um olhar rápido para os três homens para deduzir que a discussão iria longe. Com um suspiro, ela se serviu de uma taça de vinho. Nicol, Mungan e Tavig logo descobririam que ela podia ser tão obsti­nada quanto qualquer um deles.

 

— De uma mulher se espera que obedeça ao marido.

Moira sorriu para Tavig enquanto trotava a seu lado, após um galope extenso. Ele não havia levado muito a sério seus argumentos para participar, junto com Una, da incursão aos domínios de Iver.

Ambas tinham recorrido a meios discutíveis para obter o que queriam. Nem Tavig nem Mungan come­teriam o desatino de encarcerá-las no porão já habita­do por sir Bernard. Porém, ela e Una haviam deixa­do claro que essa seria a única maneira de impedi-las de cavalgar com a tropa armada.

— Serei muito obediente pelo resto desta aventu­ra, prometo. — Moira riu ao ouvir Tavig praguejando mais uma vez.

— A maioria dos homens não toleraria tanta insu­bordinação de suas esposas.

— Você não é como a maioria dos homens. — Ela observou Nicol e Una, que flanqueavam Mungan em seus cavalos e riam de alguma coisa que ele dissera. — Não compreendo tanta mudança nas atitudes de meus primos.

— Está querendo trocar de assunto — acusou Tavig, antes de olhar na mesma direção. — Eles se sentem seguros, com o pai preso, e isso os deixou de cora­ção mais leve. Mungan se tornou um herói aos olhos deles. Espero que consiga transformar sir Bernard, como antecipou. Caso contrário, Mungan irá proteger Una, mas Nicol pagará caro se o pai for solto. Temo que, diante de um retorno de sir Bernard a suas velhas maldades, Nicol possa matá-lo.

— Para ficar com o sangue do próprio pai nas mãos? Nicol nunca se libertaria dessa culpa. — Moira balançou a cabeça, descrente, e acomodou-se melhor na sela, pois o dia inteiro de cavalgada já lhe causa­va dor nos quadris. — Acredita que Mungan possa domar a brutalidade de meu tutor?

— Se tal façanha for possível, Mungan é a pessoa certa. Ele falou a Bernard das mais apavorantes tortu­ras com uma amabilidade que faria qualquer homem forte tremer de medo. Conheço bem Mungan, e sei que ele não cumpriria as ameaças; mas eu mesmo me assustei.

Montado, Tavig admirou os cabelos de Moira ao vento e prosseguiu:

— Bernard instila medo nos mais fracos e subser­vientes. Mungan também conhece o valor do medo, porém brinca com isso e zomba dos temores normais em todo homem. Claro, alguém poderia derrotá-lo nesse jogo, se ousasse fazê-lo cumprir suas ameaças. Mas, assim como seu tutor, quem governa com os punhos é, no fundo, um grande covarde. — Tavig balançou a cabeça, sinalizando inconformismo. — Homens iguais a Bernard gostam de causar dor, mas não têm coragem de suportá-la em si próprios.

— Só espero que Mungan tenha êxito e acabe com a maldade de Bernard. Pelo menos até que Nicol as­suma o poder e entenda que ele não é um covarde, sentimento que às vezes o deprime. Não gosto de ouvir que sou medrosa, mas isso deve ser ainda mais penoso para alguém que anseia por ser corajoso e honrado em função disso.

— Você não é covarde, Moira.

— Não? — Ela sorriu timidamente. — Quase desmaiei de medo quando encarei sir Bernard. Todos viram.

— Sim, mas você o encarou a despeito do medo. Isso é muito positivo. — Tavig escutou um chama­do. — Ah, Mungan me convoca. Estamos perto de Drumdearg e precisamos decidir se acampamos e aguardamos o amanhecer, ou avançamos durante a noi­te. — Ele esporeou o cavalo e tomou o lugar de Una ao lado de Mungan.

Enquanto a moça retrocedia para se juntar a Moira, esta meditou sobre o que Tavig dissera. Você o enca­rou a despeito do medo. Não era pouca coisa, admi­tiu, embora o temor a houvesse nauseado durante todo o tempo do encontro. Certamente, não era coragem o que tinha sentido ao, tremer diante de seu tutor.

— Está com uma sombra de aflição no rosto, prima. — falou Una logo que se aproximou.

— É por causa de Adair — mentiu Moira.

— O menino ficará bem com Annie. Ela é velha, mas ainda uma excelente ama e enfermeira.

— Sim, exceto pelas palavras duras que me diri­giu, a respeito da origem de Adair, das imoralidades dos homens e da carga pesada das mulheres forçadas a cuidar do fruto dessas "indecências"... — Moira relembrou os comentários da mulher, ponderando se deveria tomá-los a sério, em vez de encolher os om­bros e descartá-los como sendo implicâncias de uma senhora idosa e puritana.

— Isso enquanto não se cansava de acarinhar o bebê com beijos na face e afagos na cabeça. Convenhamos, Moira, você sabe que Annie tem uma língua afiada, mas duas mãos abençoadas. Ela chorou muito quan­do você caiu no mar, chamando-a de imprudente por ter ido ao convés no meio de uma tempestade. — Una guardou uma pausa. — Depois, chorou ainda mais ao descobri-la viva e ilesa. É o jeito dela. Creio que você não saiba, porém o pequeno Adair sorri e brinca muito com Annie. Ele já a reconhece.

Moira sorriu, um pouco constrangida. E certamente enciumada.

— Tem razão. Tavig respeita Annie e não vê pro­blemas em deixar o filho aos cuidados dela.

— Você foi muito forte assumindo Adair e perdoan­do a imprudência de Tavig — disse Una. — Não sei se eu seria tão nobre nessa situação.

—Tavig nem sequer me conhecia quando conce­beu Adair. Como poderia lhe atribuir alguma culpa ou descontar meu ressentimento na criança? Fiquei de­sesperada ao saber da existência do menino, mas logo superei minha mágoa. Felizmente, estávamos ocu­pados demais fugindo de Dalnasith para conversar a respeito.

— Também perdoa Tavig pela maneira como sua antiga amante tentou queimar você na fogueira como uma bruxa?

— Tão facilmente quanto perdôo Adair por ter nascido daquela mulher horrível. Assim como o bebê não escolheu seus pais, Tavig não pode ser recrimi­nado por abandonar a amante sem saber de sua gra­videz. De qualquer modo, ele não lhe havia feito nenhuma promessa.

— Mas fez a você. — Una firmou a visão na prima. — E você ainda pretende quebrar os votos pronun­ciados na cerimônia de casamento.

— Eu o preveni disso antes de nos ajoelharmos perante o padre.

— Adoraria ser mais letrada e encontrar pala­vras para persuadi-la a permanecer ao lado de Tavig MacAlpin. — Una suspirou. — Você ama esse homem, talvez mais do que imagina.

— A barreira existente entre mim e Tavig não se rompe com simples palavras. Mas não quero falar dis­so agora. Melhor me fazer de tola e fingir que nosso único problema é Iver.

Um sorriso brincou no rosto bonito de Una.

— Esse é justamente o assunto que eu preferia ignorar, se possível. O nome Iver significa uma bata­lha e muitos homens mortos ou feridos.

— Eu sei, mas sinto que não vamos perder a con­tenda, nem os homens que nos importam.

— Por acaso teve uma visão? — Una agitou-se.

— Não. É um pressentimento, baseado em fatos. Mungan e Tavig conhecem bem o terreno, o inimi­go e o tipo de homens que vão combater. O povo que Iver tenta governar apoia os invasores. Tudo somado, creio em nossa vitória. Fico a imaginar se Iver tem ou teve a mesma certeza, porque armou uma cilada para eliminar Tavig antes que este conseguisse apoio.

— Pois eu acho muito provável que Tavig, mental­mente, tenha visto alguma coisa.

— Ele nada mencionou, embora esteja confiante. Prefiro pensar que, por trás disso, exista mais do que uma fanfarronice. Veja... Parece que Tavig e Mungan chegaram a um acordo sobre o que fazer em seguida.

Pouco depois, Moira se viu ajudando na instalação do acampamento. Ouviu trechos de conversas entre os soldados, mas insuficientes para saber exatamente qual era o plano de ataque.

Quando Mungan enviou três espiões a Drumdearg, ela lamentou sua ignorância. No instante em que sen­tou-se ao redor do fogo com Tavig, Mungan, Nicol e Una, decidiu tomar conhecimento de tudo.

— O que estão planejando? — perguntou a Tavig ao receber dele um cantil com vinho.

— Ficaremos aqui até pouco antes do nascer do sol, e então deslizaremos para dentro de Drumdearg.

Moira bebeu um longo gole e passou o cantil a Nicol.

— É uma boa hora para atacar?

— Tão boa como qualquer outra. Teremos alguma luz para enxergar, e também sombras para nos ocul­tarmos. Nesse horário, os defensores do castelo esta­rão menos atentos, porque Iver troca o turno durante a aurora. Com sono, devem pensar mais em suas camas do que em invasores.

— Mandei três homens para lá, com o intuito de alertar nossos aliados no interior de Drumdearg — informou Mungan, aproximando-se.

— Eles são confiáveis? — Moira inquiriu, preocu­pada. — Se um deles revelar seus planos a Iver, este terá tempo de preparar alguma armadilha.

Tavig rodeou com o braço os ombros da mulher, aprovando o interesse demonstrado, e a beijou na face.

— Dou minha vida por eles, querida. Ainda que Iver desconfie de alguma coisa, nunca arrancará a verdade deles. São parentes de pessoas que Iver mandou ma­tar. Mesmo que não fossem leais a mim e a Mungan, fariam de tudo para se vingar.

— Será que Iver não desconfia de que os parentes de suas vítimas representam perigo?

— Creio que sim, mas jamais se interessou pelos habitantes do povoado. Os mais próximos dos sacrifi­cados sumiram do lugar, e Iver não pensou que a vin­gança seria cogitada por outras pessoas. Ignorou o fato de os mortos terem famílias grandes, além de pai, mãe, filhos... — Tavig olhou para Moira, cheio de certeza. — As terras que ele me roubou abrigavam meus tios, primos e demais parentes, porém ele sempre pareceu indiferente ao perigo que isso comporta.

— Considerando que ele não tem escrúpulos nem mesmo em matar os próprios parentes, não deve se importar mesmo com vinganças, especialmente por parte de gente pobre. — Moira apreciou sua argúcia.

— É verdade. Iver vive cercado de cavalheiros, homens ricos e bem-nascidos. O restante das pessoas, ele vê como bestas de carga, destinadas a trabalhar até a morte. Sem seguidores, contrata mercenários para guerrear. Toma o que quer, inclusive mulheres. Julga todos os aldeões como covardes ou idiotas, incapazes de barrá-lo. Não tem nenhum senso de família.

— Como pôde agir assim, após morar tanto tempo em Drumdearg? — Moira se compadeceu das pobres vítimas.

— É que nunca conheceu o povo que governa. Nunca o respeitou, exceto como servidores de suas ambições. — Tavig cofiou o queixo. — Eu deveria ter banido esse homem daqui anos atrás, mas consegui refrear seus piores instintos e achei que era o bastan­te. Como minha família é pequena, quis poupá-la da execração de um primo meu.

— Você não pode se culpar pela tentativa de evitar a desgraça de um homem — disse Mungan. — Mas agora Iver decidiu que um de vocês tem de morrer. Já procurou levar você à forca, mas fracassou. Jamais confiei nele. Não hesitaria em cortar-lhe a garganta, embora, como lembrou Tavig, nosso clã seja peque­no. Lamento muito, porém Iver não nos deixou outra escolha.

Os detalhes do iminente confronto passaram a ser debatidos pelos homens, enquanto Moira sofria com as possíveis conseqüências, que estariam presentes mesmo em caso de vitória. Uma vez iniciada a bata­lha, Mungan e Tavig ganhariam o reforço de muitos cidadãos do vilarejo. Aqueles que viviam foragidos provavelmente voltariam em tempo de participar da luta. Seriam úteis por conhecer os atalhos que levavam ao interior da propriedade.

Mungan designou três voluntários para fazerem a segurança de Moira e Una. Racionalmente, Moira definiu que tudo sairia bem, mas seu coração receava alguma terrível infelicidade.

Quando Tavig a levou à barraca no meio da flores­ta, não resistiu ao apelo da paixão. Mesmo sabendo que poderiam ser vistos ou ouvidos pelos soldados ao derredor, desejou ficar sozinha com o marido e pre­miá-lo por sua coragem.

— Você teve algum pressentimento do que vai acontecer? — perguntou, abrindo o acolchoado que lhes serviria de cama.

— Quer dizer, uma visão? — Ele sentou-se e a trouxe para o colo.

— Eu tinha a esperança de que seu dom viesse a alertá-lo ou então tranquilizá-lo. Não viu nada?

— Vi Iver morto.

— Você não parece acreditar nessa profecia.

— Ignoro se é uma profecia. Sempre quis vê-lo sem vida desde que ordenou a morte de meus amigos. Mas só percebi a imagem de Iver agonizante. Usualmente, recebo mais dados, mais avisos. Por ser apenas uma imagem, posso tê-la inserido em minha mente. Não me atrevo a agir em função de uma crença baseada em minha vontade pessoal.

— Tavig, Iver não tem o dom, tem?

— Você receia que ele me veja planejando o ata­que e se previna contra mim? — Ele desmanchou-lhe as trancas avermelhadas e as penteou com os dedos.

— Se você é dotado de premonição, por que um parente não poderia ser?

— Provavelmente, outra pessoa da família é, mas não Iver. Na verdade, ele sempre se ressentiu por eu ter esse dom, que consiste numa estranha mistura de dádiva e maldição. A maioria dos que conheço apenas teme ou aceita o dom da premonição. Já Iver sonha com isso. Inveja-me, mesmo sabendo que meu poder é incompleto e nem sempre me mostra o que está por acontecer. — Por meio de um abraço firme, Tavig tombou Moira na cama improvisada e, sem perda de tempo, puxou-a para cima dele. — Basta. Não viemos aqui para falar sobre Iver.

— Não? — Moira introduziu a mão sob o saiote escocês de Tavig sedutoramente, e tocou-lhe a coxa. — Então, para quê?

— Outra de suas perguntas tolas...

Moira riu, mas após o beijo recebido de Tavig a diversão se converteu em desejo. Estava ávida por fazer amor. Recusava-se a pensar na possibilidade de perder o marido na batalha e ansiava por passar as poucas horas restantes em seus braços. A paixão varreria para longe suas eventuais preocupações. E deixaria doces e sensuais lembranças de um momento especial.

 

O guarda gritou de dor, praguejou e saiu do alcan­ce do chicote que Iver acabara de vibrar sobre suas costas.

— Por que fez isso? Eu não estava dormindo.

— Mas poderia estar, idiota. Eu o vi observando a muralha. Meu primo não virá por ali.

— Por onde, então? — O servil mercenário gemeu em meio à escuridão.

— Tem conhecimento dos planos de Tavig? — Iver falou em tom ameaçador.

— Não, mas ele vem fugindo há meses, para se manter vivo. Não teve tempo de formar um exército nem possui dinheiro capaz de comprar os serviços de mercenários. — O homem cocou a barriga. — Mesmo com a ajuda de Mungan Coll, seu primo precisa de uma tropa suficiente para derrubar esta fortaleza.

— Você tem opinião, soldado, mas acho que perdi dinheiro ao contratá-lo. — Iver sorriu maldosamente enquanto o vigilante tentava explicar seu valor. — Meu primo Tavig virá, é uma questão de tempo. Devia tê-lo matado eu mesmo, em vez de criar uma situação em que a morte dele parecesse casual. — Iver pousou as mãos ossudas no espesso muro e estreitou os olhos, tentando enxergar alguma coisa em meio às sombras. — Tavig foi um tolo ao me dar as costas, mas eu fui mais tolo ainda por deixá-lo escapar.

— É um mistério como ele fez isso — aparteou o soldado.

— Idiota! O homem tem o poder da premonição, da vidência, seja lá o que for. Assim, confiou em que obteria a ajuda dos amigos. O alerta que recebeu do além foi eficiente o bastante para ele deduzir que estava caindo numa armadilha. Maldito! Eu é que merecia possuir o dom.

— Entendo, pois saberia com antecedência onde e quando Tavig tentaria retomar suas terras.

— Sim. — Iver balançou o chicote no ar. — Como não tenho tal poder, você precisa ser meus olhos. Espero que os mantenha abertos, ou me sentirei compelido a fechá-los para sempre.

Iver afastou-se da muralha, marchando até o salão principal do castelo. Jogou o chicote na mesa grande e se acomodou na poltrona de carvalho que perten­cera a Tavig, ordenando a um pajem nervoso que lhe trouxesse vinho.

Tinha certeza de que o primo e Mungan se encon­travam próximos, mas onde e como?

Amaldiçoou sua incapacidade de saber e destilou sua fúria sobre o pajem, que saiu assustado da sala.

— Sei que está vindo, primo — murmurou para si mesmo. — Eu devia ter acabado com você, antes. Sem truques nem ciladas, apenas cortando seu maldi­to pescoço. Pois bem, então venha. Você iludiu meus homens por meses, mas agora caminha para sua morte.

 

Moira estremeceu e sentou-se no chão para olhar em torno. Nada viu, apenas escutou um leve ruído no acampamento. O arrepio de medo que a transpassara ainda persistia.

Olhou mais uma vez e então tornou a deitar-se, à procura do peito acolhedor de Tavig. Não se espantou ao descobri-lo acordado, observando-a de perto.

— Um sonho ruim? — ele indagou, antes de pren­dê-la num abraço e beijá-la no alto da cabeça.

— Não me recordo.

— Você está com medo, é isso. Mesmo nesta penumbra, consigo notar seu pavor. O grito que deu foi de puro medo.

— Reconheço. — Ela nem se lembrava de ter grita­do. — Fui tomada por um medo profundo e aterrador. Nenhum sonho, nenhuma visão. Somente medo. Foi repentino, mas completo. Valeu por um balde de água fria. — Moira tremeu novamente. — Acha que signi­fica alguma coisa?

— Como um sinal? — Ele a tocou no queixo, afa­gou-lhe a face e aplicou um beijo na boca úmida. — Não. Você só está ansiosa com o cerco e a bata­lha. Tenta rechaçar essa emoção desde que chegamos ao castelo de Mungan. Mas, quando dorme, reduz a vigilância e logo o medo a esmaga por dentro.

— Talvez tenha razão. Sinto muito. Não pretendia perturbar você com minhas preocupações.

— Não faz mal, querida. Ao menos, tomo conhe­cimento de que você se importa comigo. — Ele de­parou com a expressão desgostosa de Moira e a retri­buiu com um sorriso.

Enquanto deslizava a mão pelo corpo tão desejado de Tavig, ela pensou na explicação que ouvira sobre seu súbito ataque de temor. Fazia sentido, mas não a satisfazia por inteiro. Nunca havia experimentado, antes, a desagradável sensação. Não naquela intensi­dade. Por certo, carregava bastante medo, dos anos vividos com sir Bernard Robertson, porém havia luta­do e vencido o trauma. Parecia-lhe ilógico ser arranca­da de um sono pacífico.

— Moira, vejo que ainda está intrigada — disse Tavig, com os lábios a caminho de seu pescoço.

— Sim, estou. — Acabou relatando a ele os moti­vos que. — Há alguma coisa diferente.

— Talvez porque minha vida esteja em perigo, ou você creia nisso.

Moira percebeu uma dose de questionamento na frase de Tavig. A voz e o olhar dele eram sorrateiros. O marido tentava induzi-la a confessar seus sentimen­tos por ele, direta ou indiretamente. Era envaidece-dor que se interessasse pelo estado de seu coração e recorresse a uma artimanha a fim de desvendá-lo.

— Tavig, aprendi a dar valor a minha vida, pois, durante meu convívio com sir Bernard, temi morrer nas mãos dele. Era um medo contínuo, às vezes paralisante. Eu o combati com todas as forças, e nunca des­pertei assustada de meu sono. Tem certeza de que você não recebeu outra visão especial, talvez sem sentir?

— Não. Jamais deixo de perceber quando acontece. Se minha vida corre perigo, o alerta pode ser vago ou simplesmente nulo. No entanto, caso fôssemos per­der a batalha, acho que eu receberia um aviso, porque você e Mungan também estariam em risco. Meu dom iria me prevenir. No entanto, não houve nada, nem um lampejo.

— Acredita que seu poder interior faria a gentile­za de prenunciar a vitória? Sempre lhe trouxe boas notícias? — Moira falou como se não admitisse uma negativa.

— Ele me avisou sobre você.

— Não. Apenas previu que eu me afogaria se você não saltasse no mar revolto em meu socorro. Eu não chamaria isso de boa notícia. E desista de me adular para que eu esqueça o motivo de minha preocupação.

— Jamais conseguiria ser tão calculista, querida — ele protestou, roçando o nariz nas dobras de sua orelha.

— Ah, consegue sim, sir Tavig.

— Está me magoando. — Em vez de afastar-se, ele pressionou-lhe o ventre com o corpo ainda mais e saboreou a maneira como ela instintivamente roçou nele, — Penso que agora me deva uma compensa­ção. Deseja me mandar para a batalha sentindo dor na alma?

A despeito da paixão que nublava seus pensamen­tos, Moira riu, deliciada com o absurdo.

— Você não presta, Tavig MacAlpin.

— Agora eu não presto! — Havia um fingido la­mento em seu tom. — Terá de trabalhar duro para curar minha vaidade ferida, lady MacAlpin.

— Sua vaidade sempre estará inflada, bela e facei­ra, ainda que todos os cavaleiros da Escócia venham a pisar nela.

Ele a deitou gentilmente e se acomodou sobre ela. A disputa verbal tinha lhe agradado muito, por dar a medida precisa de quanto Moira se sentia à vontade em sua companhia. Aparentemente, a adorável ruiva ainda não havia notado isso, mas confiava no mari­do o bastante para falar livremente, sem temor de ser punida por suas palavras, mesmo as mais indelicadas.

Por outro lado, a situação o entristecia, pois rara­mente a conversação saía dos limites da rotina. Moira se mantinha esquiva, omitindo dele seus reais senti­mentos. Isso o frustrava a ponto de, às vezes, querer sacudi-la pelos ombros, até que confessasse o que lhe ia à mente e, sobretudo, no coração.

No entanto, sempre se controlara para não ado­tar tal atitude, apesar de sua urgência em saber; pois forçá-la demais poderia empurrá-la para longe dele agora que a tinha por perto, ao alcance da mão.

Enquanto a excitava com promissores beijos na boca, Tavig viu que a paixão escurecia os olhos de Moira e suavizava suas feições. Não duvidava nem um pouco do lado passional da esposa ou da semelhan­ça entre os desejos de ambos, que geravam um bom entendimento na cama. Ela era livre e selvagem nos braços dele, a despeito de sua completa inocência.

Deu na mulher um beijo longo e profundo, infla­mado pelo modo como ela o retribuía.

— Minha bela Moira... Sabe que incendeia os sen­tidos de um homem? — A boca escorregou de novo até o pescoço macio.

— Faço isso?

Impossível definir se a pergunta era ingênua ou fortemente maliciosa. Ela correu as mãos pelas costas largas, os dedos macios traçando a linha da coluna.

— Sim, incendeia, encanta e confunde. Você é a própria inocência, da cabeça aos pés. — Ele desceu o corpo até poder tocar e beijar cada um dos dedos de Moira. — Mas, quando brilha sua paixão, você se transforma numa espécie de animal sedento de prazer. — Retornando, Tavig contemplou fixamente os olhos dela. — Você lamenta sua suposta covardia, contu­do encarou o homem que alimentou seus medos pela brutalidade, percorreu comigo trilhas tortuosas por quinze dias sem vacilar, salvou minha vida, e agora insiste em cavalgar até a cena de uma batalha campal. Como pode negar que confunde as pessoas e me intri­ga? Creio que um homem precisaria de mais do que o tempo de uma vida para decifrar o enigma que é você. E nem tenho certeza de que isso seria suficiente.

Moira suprimiu a idéia de perguntar se o marido aceitaria tal desafio. Assim, desistiu de saber exata­mente por quanto tempo ele estava disposto a ficar com ela. Conhecer o prazo a magoaria muito mais quando tivesse a necessidade de deixá-lo. Seria mais fácil honrar o casamento provisório e depois partir, se permanecesse em dúvida a respeito de quem já lhe prometera tudo o que mais desejava.

— Não me considero tão enigmática — sussurrou, movimentando levemente um dos pés sobre a virilha de Tavig. — Neste momento, penso que você me co­nhece muito bem, e sabe o que quero e o que sinto.

No mesmo segundo, ela se deu conta de como era perigosa aquela afirmação. Esperou uma resposta, mas, antes que Tavig pudesse formulá-la, colheu o rosto dele entre as mãos e o beijou com.fervor. Como já havia constatado, a paixão era a saída perfeita para qualquer impasse.

Moira gritou, alarmada, quando Tavig a empurrou abruptamente e lhe cobriu o corpo com o seu, como medida de proteção. Apanhou a espada que jazia no chão, perto do acolchoado, e empunhou a arma, fazen­do seu coração disparar.

A última coisa de que ela se lembrava era estar aconchegada ao peito do marido, repleta de prazer, saciada em seu desejo e pronta para dormir. Agora, via Tavig preparado para uma luta.

— Calma, primo. Sou eu — disse Mungan, despontando de entre as sombras.

Tavig continuou escudando Moira, até que ela se cobrisse com a manta.

— Já está na hora?

— Sim — reiterou o primo. — Mas vou deixá-los sozinhos para que se arrumem.

Logo que Mungan se afastou, Moira fitou Tavig, que também a olhava ansiosamente,

— Bem... Vamos à batalha — ela declarou com um suspiro.

— Vamos à vitória — conclamou ele.

Tomara ele estivesse certo, Moira pensou em silêncio.

 

Esfregando os braços para combater o frio da ma­nhã, Moira espiou o lado de fora da barraca. Tavig e os outros tinham partido do acampamento fazia poucos minutos, em meio às sombras que se estendiam pelo terreno. Mas era cedo demais para ela sentir-se tão tensa, tão preocupada.

Três jovens imberbes haviam sido encarregados por Mungan de tomar conta dela, de Una e dos cava­los, e as espadas que pendiam de suas cinturas eram muito grandes para o tamanho de seus corpos. Os rostos soturnos, porém, revelavam que eles ansiavam por usá-las e se ressentiam profundamente de ser dei­xados para trás.

Suas respectivas mães, no entanto, ficariam tran­qüilas por seus filhos terem sido forçados a perma­necer na retaguarda, a uma distância segura da luta armada.

— Moira — murmurou Una, ao deparar com a pri­ma descansando sob uma árvore —, está tão nervosa que posso sentir isso de longe.

— Estou aflita, sim. Sua serenidade me dá inveja.

— Não me acho completamente serena — Una respondeu.

— Mas parece.

— É puro cansaço. Mungan alegou que dormir era perda de tempo antes de um confronto e me manteve bastante... ocupada.

— Previsível, — Moira corou ligeiramente, recor­dando o apetite sensual de Tavig, tão forte como o seu próprio.

— Também não gosto de sofrer de medo e aflição por coisas que não posso mudar. Tentei convencer Mungan a desistir, mas ele me afagou o rosto e fa­lou que era próprio de uma esposa importar-se com o marido. Agora, só me resta esperar o desfecho desta aventura.

— Penso que a espera é a pior parte — Moira opinou.

Una ajustou a capa ao redor do corpo e adicionou em tom sonolento:

— Eles voltarão. É inimaginável que algo de ruim aconteça a Mungan. Nada de grave, pelo menos. Ele se mostrou bastante vivo e forte na última noite.

Moira suspirou e pediu que a prima voltasse a dor­mir na barraca. Não conhecia Mungan muito bem, mas suspeitou de sua obsessão por fazer amor a noite inteira, quando até mesmo Tavig havia se permitido uma soneca. Era provável que Mungan se comportas­se assim na véspera de toda batalha cruenta... ou en­tão pretendera deixar Una exausta, sem forças para se preocupar ou cometer alguma estupidez.

Moira almejou, por um instante, que Tavig tivesse feito isso com ela, depois deu de ombros. O estratage­ma não funcionaria com ela. Não importava o quan­to estivesse cansada: nunca dormiria em paz sabendo que o marido enfrentaria um inimigo mortal.

Com os braços em torno dos joelhos, procurou aquecer-se. Apesar da neblina que gelava o ar, conse­guiu avistar Drumdearg ao longe. Logo mais, os sons de espadas tilintando chegariam até ela, e já antecipa­va o sofrimento gerado por algum golpe que atingisse Tavig ou o ferisse mortalmente.

Estremeceu. Aquele seria o dia mais longo de sua vida.

Tavig murmurou uma praga ao ajoelhar-se, imitan­do Mungan, e sentir tufos de grama lhe espetando as canelas. Após o longo e tedioso rastejamento até os muros externos do castelo, ansiava por alguma ação. Impaciente, esperava a volta dos espiões que Mungan havia infiltrado ali, a fim de saber se eles já podiam deslizar muralhas adentro.

— Fique calmo, primo — solicitou Mungan, a boca quase tocando o ouvido de Tavig para evitar que os vigilantes inimigos o escutassem. — Logo iremos en­carar àquele patife asqueroso, recuperar tudo o que ele roubou e vingar seus dois amigos assassinados.

— Parece que a pequena distância que nos separa dele se tornou torturante, pois nada podemos fazer no momento. — Tavig notou o sorriso compreensivo do primo. — Eu daria preferência a desafiar Iver direta­mente, em vez de me esgueirar para dentro do castelo como um ladrão.

— Este lugar não é muito adequado a confrontos diretos. Ah, aí vem Randal, um de meus batedores. — Quando a figura magra se agachou ao lado deles, na penumbra, Mungan questionou: — Nossos aliados vão fazer o que prometeram?

— Sim — resumiu Randal, olhando temeroso para o alto da muralha, onde diversas sentinelas iam e vi­nham sem cessar. — Precisamos rodear a muralha. Nossos homens estarão aguardando na parte dos fun­dos. O portão foi aberto o suficiente para passarmos ao interior da propriedade.

— É uma maneira lenta e perigosa demais de en­trar — afirmou Tavig. — Podemos ser vistos antes que todos os soldados cruzem o portão.

— Os vigilantes que vemos daqui cuidam apenas dos portões. Assim que o dia clarear, haverá uma tro­ca da guarda. Teríamos tempo para alcançar as torres menores, uma de cada lado, mas, já que seus defen­sores estão a postos, será possível agirmos imediata­mente — propôs Randal.

— Sim — confirmou Tavig. — Mandaremos pri­meiro aqueles que possam tomar as torres, Devem estar preparados para subir as escadas até a muralha no momento em que o último vigilante for rendido.

— A muralha precisa ser tomada o mais rápido pos­sível — Mungan murmurou sua aprovação. — Diga a nossos aliados para que subam imediatamente, Randal — O espião olhou para os dois invasores, as­sustado, e saiu de cena. — Nós iremos por último.

— Por último? Esta é a minha batalha, mais do que a de qualquer outro — protestou Tavig. — Não fosse pela necessidade de liberar a muralha, eu seria o pri­meiro a entrar.

— Se não desse certo, seria o primeiro a ser capturado ou morto, e Iver cantaria vitória. Por isso irei atrás dos meus colaboradores, embora tal cuidado me aborreça. Iver não quer que eu viva por muito tem­po, sabendo que o farei pagar por seus crimes. Caso ele tenha armado uma cilada para nós, é melhor que um guerreiro ou um espião seja apanhado. Nós dois continuaríamos livres para comandar a invasão.

— Tem razão, Mungan. Concordo com seu racio­cínio, apenas não gosto da situação. — Tavig ouviu o som abafado dos passos de um guarda na muralha, logo acima de sua cabeça. Silenciou e se colou à pa­rede de pedras até o ruído cessar. — Também anseio por ver esses traidores fora da minha fortaleza.

— Em pouco tempo você terá Drumdearg de volta.

— É verdade — sussurrou uma voz rascante, às costas de Tavig.

Ele girou com a mão no punhal. Mas não havia ameaça nos movimentos do grupo que, assim como ele, tinham rastejado até os limites da muralha.

Perscrutando entre as sombras que os envolviam dos, Tavig discerniu um rosto enrugado e familiar.

— Velho Ennis! — exclamou, aliviado. Tratava-se de um líder dos moradores do povoado. — Quem está com você?

— Uma dúzia de voluntários armados. Outros vão aderir. Estamos treinados e prontos a guerrear.

— Pensei que tinha fugido para não ser morto a mando de Iver.

— Fiz isso, mas não fui longe. Apostei que você voltaria a Drumdearg e precisaria de nós.

Em nova pausa, todos esperaram o guarda passar no alto da muralha.

— Lamento que tenha de lutar contra um parente — prosseguiu o aldeão.

— Iver não me deixou outra escolha. Não hesite em tratá-lo como inimigo, Ennis. Mesmo que eu pudesse celebrar uma trégua com Iver, o que não é o caso, ele deve pagar pelos crimes que cometeu. — Tavig viu o homem menear a cabeça, concordando. — Alguém no vilarejo acredita na acusação dele contra mim?

— Muito poucos. A população errou ao suportar por anos as crueldades praticadas por sir Iver. Mas, com o passar do tempo, ficou revoltada e agora suspeita dele, não de você, pelo duplo assassinato de que o acu­sam. Nada do que ele diz vai mudar nossa opinião.

Apertando o casaco acolchoado contra o corpo, Tavig arriscou-se a um afastamento da muralha, a fim de observar melhor o que acontecia às costas do velho Ennis. Avistou mais que uma dúzia de combatentes.

Veterano de várias guerras, Ennis conhecia bem as manobras militares. Tinha reunido e treinado aquela gente. Era bom ter homens assim do seu lado, pensou Tavig, satisfeito.

— Melhor irmos — falou Mungan.

— Não seremos os últimos a entrar — preveniu Tavig, correndo o olhar pelo pequeno batalhão. — Nunca é ruim ter bons guerreiros em nossos flancos.

Mungan começou a se mover ao longo do gran­de muro de pedra, e sinalizou para que os demais o seguissem, colados à muralha. A arma principal dos invasores, naquele instante, consistia nos ouvidos atentos à movimentação das sentinelas.

A luz das tochas, no pátio do castelo, infiltrava-se pela fresta aberta no portão dos fundos. Era surpre­endente que os guardas não houvessem notado o vão. Mungan teve mais dificuldade em passar do que os outros devido a seu tamanho, porém assumiu a dian­teira do grupo e, como não deu nenhum grito de alerta, Tavig e os demais o seguiram.

Uma vez dentro da construção, um homem de bar­ba grande, que Tavig reconheceu como sendo Graeme, um bom amigo e primo distante, tomou-o pelo braço, guiando-o até a escada da torre que ficava à esquerda dos portões principais, e empurrou o velho Ennis atrás dele.

Tavig captou o sinal de Mungan que já se encontra­va na base da segunda torre, à direita. Abrindo cami­nho entre alguns guerreiros, alcançou um dos espiões de Mungan, postado nos estreitos degraus que leva­vam ao alto do muro.

Sentiu e partilhou a tensão que dominava os vo­luntários. Também detestava estar ali, emparedado naquele ambiente sufocante. O lugar se parecia muito com uma armadilha.

— Passe a senha — ele ordenou, e Graeme obe­deceu. —Você deve subir na frente e manter todos o mais perto possível do topo. No momento em que vir alguém, um dos guardas da muralha vai gritar por ajuda.

— O ideal é tentarmos derrubá-lo antes de sermos vistos.

— Certo, mas, se for assim, permaneça quieto no lugar do guarda. Os outros pensarão que tudo está bem. Precisamos nos esgueirar junto às paredes um a um. Quando um vigilante for anulado e substituído, o seguinte dos nossos entra e abate outro adversário. Duvido que esse plano sirva para limpar a muralha toda, porém tomaremos a maior parte dela.

— Compreendido.

Com as costas apoiadas na parede fria e úmida, Tavig escutou o espião passando as instruções adiante. A ação em constante sigilo era enervante e exaustiva, mais do que uma batalha normal.

Desceu a escada contra a corrente humana que avançava. O velho Ennis e vários de seus amigos tinham sido inapelavelmente empurrados para cima.

Quando Tavig pisou na base dos degraus, deparou com Graeme parado na porta, bloqueando a entrada de soldados recém-chegados.

— Na hora em que um grito for ouvido a partir da muralha, ou que algum vigilante sair, nós subire­mos — instruiu Graeme.

— Mais espera! — reclamou um jovem guerreiro.

Graeme sorriu para Tavig e retomou a vigilância das paredes internas ao topo da fortaleza, o que não o impediu de falar em tom baixo e queixoso:

— Você aguarda apenas o começo desta batalha... Nós, ao contrário, esperamos por você desde que Iver o expulsou daqui e sentou o traseiro na poltrona que lhe pertence.

— Lamento ter desaparecido, mas não existia outra maneira de defender minha vida dos conluios de Iver. Naquele momento, fugir era imperioso.

— Ninguém o culpa por ter deixado Drumdearg. Seria um homem morto se ficasse, e isso não traria nenhum benefício ao povoado. O que nos surpreendeu foi não ter percebido a hora certa de parar de fugir.

— Sim. Quando minha capacidade de premonição seria mais útil, ela me falhou. Enxerguei apenas o necessário para me conservar vivo.

— Foi o bastante. — Graeme franziu a testa, fitan­do a muralha. — Acabo de ver um de seus homens trazendo um guarda para baixo.

— Logo mais os outros vigilantes notarão o que se passa. Devemos estar atentos. Aliás, Andrew MacBain está aqui?

— Retornou ontem.

— Ele é um dos que degolaram meus amigos. Iver ordenou o crime e tem tanta culpa como se tivesse em­punhado a lâmina, mas foi Andrew quem realmente praticou o delito. Eu adoraria matá-lo, porém preci­so dele vivo para testemunhar em meu favor. Iver me denunciou formalmente, por isso necessito de provas para apresentar à justiça.

— Darei o melhor de mim para que ao menos um desses facínoras sobreviva.

O brado de alarme que todos esperavam finalmente rasgou o silêncio dominante. Tavig moveu-se depres­sa, embora pressionado pelos combatentes amontoa­dos na frente e atrás dele.

Após uma pausa para direcionar os homens, Tavig e Mungan correram pelos degraus acompanhados por uma pequena escolta. O choque das espadas e os gri­tos dos que lutavam pela vida seriam seus precursores, pensou Tavig, livre de qualquer receio.

No acampamento, Moira assustou-se e suspirou de medo quando o distante tilintar das lâminas perturbou seu repouso. Deu-se conta de que tinha cochilado, apesar da preocupação com o destino de Tavig.

Desperta, ergueu-se e caminhou até o limite arborizado da clareira em que estavam as barracas. O dia começava a nascer, e a suave claridade permitia ver a muralha a distância, a despeito da neblina.

Embora a distância não fosse grande e uma bata­lha estivesse em andamento, lamentou não poder ver o que acontecia ali e quem atacava quem.

— Não vai durar muito tempo —: sentenciou James, o menos jovem dos vigias do acampamento, acercando-se dela.

— Você transmite certeza demais — ela comen­tou. — Iver foi capaz de dominar Drumdearg. Por que julga que não será capaz de manter a propriedade?

— Ele vai lutar por falta de alternativa. No entanto, uma vez iniciada a batalha, muitos aldeões, até mesmo mulheres e crianças, virão em socorro de Tavig.

— Iver não tem aliados?

— Apenas os que ele comprou. Talvez dois ou três idiotas passem para o lado dele, mas ninguém irá chorar quando ele morrer, eu garanto.

— Gostaria de ter essa mesma confiança, mas não consigo — Moira confidenciou.

— Mungan Coll é o melhor cavaleiro de toda a Escócia — o soldado falou com admiração. — Tavig MacAlpin também é muito bom. Juntos, certamente poderão derrotar um patife como sir Iver.

Ela sorriu para James antes de centrar a atenção no ponto que mais a interessava. O rapaz venerava seu patrão, Mungan. Embora ela também não duvidasse da destreza e da bravura de Tavig, Moira tinha uma visão mais realista dos fatos. Por vezes, coragem e talento não eram suficientes para assegurar a vitória.

Estava prestes a perguntar a James se podiam se deslocar para mais perto da muralha, quando o som de alguém pisando em folhas e esmagando arbustos roubou-lhe a atenção. Rapidamente, o rapaz empu­nhou sua espada e se posicionou entre Moira e os três homens corpulentos que irromperam na borda da cla­reira. Deviam ser contratados de Iver desertando de sua armada, porém ela respiraria melhor se tivessem escolhido outra rota de escape.

Enquanto James se juntava aos dois amigos que já lutavam contra os intrusos, Moira correu até a barraca de Una. A prima apenas despertava, e logo se mos­trou em pânico ao saber da invasão, obrigando Moira a agarrá-la e impedi-la de sair para o descampado.

Após soltá-la, Moira lhe esfregou um dos pulsos e a abraçou até sentir que se acalmava.

— Vão nos matar ou estuprar! — preconizou Una, aterrorizada, o que levou Moira a sacudi-la vigorosa­mente pelos ombros.

— Lembre-se de que agora é a esposa de sir Mungan Coll, Una! O que ele pensaria de uma mulher que, ao primeiro sinal de perigo, corre para a floresta, gritando?

Os olhos da moça se dilataram em meio a um longo suspiro, e Moira foi tirando as mãos da prima.

— Você tem razão. Preciso merecer Mungan. — Pelo vão da lona, Una espiou o combate em curso. — O que podemos fazer? Somos apenas duas mulheres!

— Temos de encontrar um meio de ajudá-los — rebateu Moira. — Os rapazes não conseguirão recha­çar três mercenários robustos e treinados por muito tempo.

Um instante depois, tais palavras se revelaram proféticas: o vigilante mais franzino gritou, com um ferimento profundo no braço que segurava a espada, e cambaleou, fora de combate.

— Depressa, Una! Encontre algo que possa servir como arma.

Ambas empreenderam uma busca nas imediações da barraca. Moira achou um galho grosso, caído, rela­tivamente fácil de manusear, e nem se preocupou em ver se a prima tinha descoberto outro objeto melhor. Apressou-se na direção do jovem ferido e de seu opo­nente. Este desferia seguidos golpes de espada contra o rapaz, que se desviava, rolando no chão. A qualquer momento, acabaria atingido de maneira fatal.

O mercenário viu Moira se aproximar, brandindo o galho. Distraiu-se o bastante para que o rapaz, mais resistente do que parecia, se levantasse e se defen­desse com a espada na mão esquerda. Como era des­tro, seus movimentos se mostravam descontrolados. Talvez não constituísse mais uma ameaça, e Moira entendeu que devia agir depressa na tentativa de evitar que ele fosse morto.

Tentar era uma coisa. Conseguir, outra. A cada in­vestida de Moira com o galho, o invasor gingava e desviava o corpo. Aparentemente, a ação se destinava somente a adiar o fim do jovem soldado.

Então ela notou: a parte do intruso que se mexia pouco quando este se esquivava, era o braço que em­punhava a espada, pois ele a mantinha apontada para o jovem guerreiro. Quando o mercenário pulou de novo, livrando as costas de um dos golpes que ela desferia, Moira mudou a direção do ataque e bateu a madeira com força no braço da espada.

O som de um osso se quebrando a afligiu. O ser­vidor de Iver gritou e largou a arma no chão. Depois, cambaleou em sua direção e caiu a seus pés com o rosto contorcido de dor. Tentou reaver a espada com a outra mão, porém o jovem atacou, espetando-lhe o coração num único e limpo golpe. Moira ecoou o ge­mido do mercenário quando ele se estirou no chão, morto. Ficou olhando, desconcertada, até ver o rapaz cair também.

— Ajude os outros! — ele pediu, rouco, quando ela se agachou a seu lado.

A dupla restante de mercenários pressionava peri­gosamente James e seu companheiro. Una girava em torno dos guerreiros, portando um galho semelhante ao dela, porém nada fazia. Faltava-lhe habilidade e Coragem.

Os invasores perceberam isso e lhe deram pouca atenção. Resoluta, Moira ergueu o bastão improvisa­do e se aproximou, esperando tirar vantagem de sua arrogância.

Assim que ela se postou ao lado do homem que en­frentava James, ele acusou o perigo de sua presença. Um olhar de terror marcou-lhe a face quando Moira desceu o pesado galho em seu braço. O som da espa­da tombando competiu com o do osso fraturado, des­ta vez bem mais apavorante. James avançou, e Moira resolveu que já tinha visto demais. Livrou-se do ga­lho salvador, correu até Una e a conduziu para longe dos lutadores que restavam.

— Fui de pouca utilidade — deplorou a prima, também largando o pedaço de madeira. Estremeceu quando James cortou seu oponente e o gemido ago­nizante do homem ressoou na clareira.

— Você tentou, e é isso que importa. — Moira a levou ao local em que jazia o jovem ferido e se agachou ao lado dele. — Como você se chama?

— Malcolm — ele disse num fio de voz. Pareceu reanimar-se, contudo, quando viu, a distância, o ter­ceiro e último mercenário encontrar a morte na lâmi­na do colega chamado Robbie. — Vencemos! E vocês nos prestaram grande ajuda.

— É verdade. — James se acercou do grupo, sor­ridente, junto com o outro jovem. — Afinal, estáva­mos combatendo homens mais fortes e capazes do que nós.

Moira balançou a cabeça devagar.

— Esses mercenários tinham anos de experiên­cia com guerras e lutas, mas logo vocês serão como eles. — Ela sorriu, depois se concentrou no que fa­zia. — Una, rasgue duas ou três tiras de sua saia de baixo. Vou improvisar uma atadura e uma tipóia para Malcolm. Um balde de água, James, por favor.

Sem demora, ele atendeu ao pedido e ficou estu­dando o rosto pálido do amigo.

— Malcolm corre perigo?

— Não sofreu nada que não tenha conserto — ela garantiu. — Agora, por gentileza, tire o casaco e a camisa dele.

A face do jovem ferido tornou-se mais branca a despeito dos cuidados recebidos. Moira procurou não lhe aumentar a dor enquanto limpava o corte no bra­ço e depois o costurava com material trazido de sua barraca.

Una colocou uma manta dobrada sob a cabeça do rapaz que, estoicamente, esperou Moira terminar a aplicação das bandagens.

Ao dar tudo por encerrado, ela ainda molhou um pano na água e gentilmente banhou o rosto suado de Malcolm. Era possível avaliar a dor que ele sentia, mas sua coragem havia superado o medo.

Moira respirou fundo ao perceber o que teria de fazer. Pousou as mãos no braço machucado. Talvez não o curasse, mas podia aliviar a dor do rapaz, que a fitou com uma mistura de espanto, temor e esperança.

Sorrindo, ela se deu conta de que seu dom já pro­duzia sua mágica. Nos olhares de James e de Robbie, estampava-se a comprovação de que algo de inusitado ocorria ali.

Quando terminou, ergueu as mãos do lugar ferido e cambaleou, surpreendendo-se por ver Una às suas costas, pronta a ampará-la.

— O que ela fez comigo? — sussurrou Malcolm, movimentando o braço com cautela.

— Apenas amenizou sua dor — disse a moça enquanto ajudava a prima a beber água fresca.

— Você possui o toque da cura?! — James quis saber.

Tensa, Moira receou que sua boa ação lhe trouxes­se problemas. Mirou fundo nos olhos de James, mas não viu medo nem condenação, somente espanto e curiosidade.

— Cura não é o termo correto — explicou, re­cuperando a energia gasta no exercício de seu dom. — Posso suavizar a dor, ajudar uma pessoa a dormir, aplacar uma febre... Tudo isso tende a facilitar a cura, mas por minhas mãos eu não curo ninguém.

Com os olhos brilhantes, Moira percebeu que todos sorriam para ela. Esquecido de qualquer formalidade, James a tocou no braço.

— Perdão, milady, mas isso é simplesmente maravilhoso!

— Maravilhoso? Nunca ninguém deu esse nome ao que faço.

— Mas é inegável. Não vê? Agora, os MacAlpin e os Coll podem se gabar da existência da premonição e do toque de cura dentro de suas famílias. Nenhum outro clã da Escócia tem condição de fazer o mesmo.

— Bem, fico contente por terem gostado. — Moira pôs-se de pé, seguida por Una. — Creio que é melhor irmos ao vilarejo.

— Mas fomos escalados para permanecer aqui, cuidando dos cavalos e das damas.

— Essa ordem data de quando todos pensavam que a clareira era um lugar seguro. Não é, como ficou pro­vado pela invasão desses desertores. Foram apenas três, de início, porém serão muitos mais se a batalha pender para a vitória de Tavig. O povo de Drumdearg parece ter aderido a ele, portanto os inimigos não se arriscarão a passar pela vila.

— É razoável — James concordou. — No entanto, acho que sir Tavig não gostará disso.

Ponderando que seu segredo já não existia, e que seu marido logo saberia de tudo, Moira afirmou com tranqüilidade:

— Desconfio de que, quando esta batalha chegar ao fim, sir Tavig descobrirá uma porção de coisas de que não vai gostar...

 

Tavig espetou o guarda que bloqueava a entrada para o grande salão principal do castelo de Drumdearg inexoravelmente, e deu pouca atenção ao grito de pa­vor do segundo vigilante, enquanto Mungan lhe tira­va a vida. Com a espada erguida, pronta para anular qualquer ataque, ordenou a seus homens que arrom­bassem aporta.

Era uma porta grande de carvalho esculpido, que tinha sido o orgulho de seu pai. A marreta usada pe­los soldados causaria sérios danos na madeira.

Ao primeiro som da queda da madeira, ficou ten­so, certo de que seu primo Iver estava escondido ali e ansioso por eliminá-lo. Ele, Mungan e os combaten­tes hesitaram em entrar, prevendo uma investida dos inimigos ainda invisíveis.

Ninguém apareceu dentro dos limites do amplo sa­lão, contudo. Tavig e Mungan sinalizaram para que os homens os seguissem, e entraram juntos.

Tavig praguejou quando viu Iver empertigado nos fundos, ladeado por uma dúzia de mercenários, incluindo Andrew MacBain e seus três inseparáveis comparsas.

— Bom dia, primo — Iver arrastou a voz. — O espírito de seu pai ficará inquieto pela destruição de sua adorada porta.

— Mas sentirá prazer quando eu o cortar ao meio. — O tom de Tavig soou impregnado de raiva.

— Pretende derramar o sangue de um parente por causa de um mal-entendido?

— Você tem as mãos manchadas do sangue de dois inocentes, Iver. Isso não pode ser perdoado.

— Não há nenhum sangue em meus dedos. Não levantei o punhal contra ninguém.

— Porém, ordenou os assassinatos. Não foi o exe­cutor, mas o mandante do crime. É a mesma coisa.

— A maioria dos escoceses pensa que você é o as­sassino. — Iver estreitou os olhos castanhos e cur­vou os lábios finos num sorriso de desdém. — Jamais conseguirá remover essa nódoa de seu nome, primo.

— Eu deveria ter cortado sua língua quando ainda era um rapaz e já mentia descaradamente — interveio Mungan, fitando Iver com desgos­to. — Sempre foi invejoso e desleal. Erramos todos ao pensar que você honraria, pelo menos, os laços de parentesco.

— Pare com essa conversa fiada e me enfrente de homem para homem, Iver! — Tavig rugiu, impa­ciente. — Vamos terminar isto aqui e agora.

— Julga-me um tolo? — Por meio de um gesto, Iver autorizou o avanço de seus homens.

Sem surpresa, Tavig praguejou. Como o covarde que era, Iver não iria encarar um simples julgamen­to antes de mandar eliminar o maior número possível de adversários.

Mungan soltou seu grito de guerra, um som tão alto e aterrador que Iver vacilou por um momento. Logo depois, a luta começou, feroz.

Havia paridade no número de combatentes, contudo Tavig só tinha Iver como alvo. Ele se protegera atrás da linha dos mercenários presentes no salão, bradan­do que matassem Tavig, Mungan e qualquer outro que contrariasse suas malévolas vontades.

— Disse que viríamos ao povoado, milady, não à fortaleza local! — James protestou, embaraçado por tocar o braço de Moira, procurando deter seu avanço até o castelo de Drumdearg.

— Olhe à sua volta, James — ela respondeu. — A batalha acabou.

Moira observou os grupos de cidadãos espalhados na rua. Eles conversavam entre si, mas não tiravam os olhos do castelo. Pareciam calmos, estranhamente felizes. Ninguém agia como se seu destino pendesse numa balança.

Alguns homens retornavam do castelo, as espadas embainhadas. Por certo, tinham participado do apoio a Tavig e Mungan.

O que mais lhe chamou a atenção, entretanto, foram os feridos, transportados em macas. Não eram muitos, porém ela suspeitou de que encontraria mais vitimas da luta dentro da fortaleza. Sofriam dores, enquanto amigos e familiares praticavam desajeitadas manobras na tentativa de lhes estancar o sangue e cobrir os feri­mentos. A arte da cura, obviamente, não havia chega­do aos habitantes de Drumdearg.

— Parece que a batalha ainda não terminou — disse James. — Se nos aproximarmos demais, estare­mos em perigo.

— Eu não pretendo circular em meio aos combates — Moira o tranqüilizou.

— Sendo assim, permaneça aqui e espere por sir Tavig.

— Não, James. As pessoas me requisitam. Há feridos que precisam de minhas habilidades.

— Suas famílias cuidarão deles.

— Cuidarão mal. Se existia algum médico ou bom enfermeiro nestas paragens, foi embora e não dei­xou nenhum aprendiz. Posso ajudar essa gente, e não estou me referindo a meu toque.

— Sir Tavig vai me esfolar vivo caso algo lhe aconteça.

— Se isso o tranqüiliza, fique a meu lado. Robbie e Malcolm podem ficar e tomar conta dos cavalos. — Ela olhou para Una. — E você pode voltar ao acampa­mento, se preferir.

— Não, vou ficar e ajudá-los — Una decidiu sem vacilar.

Ouvindo mais um resmungo de James atrás de si, Moira retomou as passadas com Una a seu lado. Parou defronte a um galpão de madeira para onde os homens feridos eram levados, entrou e, num rápido exame, viu que apenas cinco feridos jaziam em maças, nenhum deles com ferimentos fatais, desde que recebessem os cuidados adequados. Gentil, porém firmemente, Moira pediu às mulheres ali presentes que lhe trouxessem os materiais dos quais necessitava.

Enquanto trabalhava na limpeza das feridas e na aplicação de ataduras, tentou isolar-se dos sons de guerra. Imaginou Tavig sofrendo com a mesma inten­sidade dos homens de quem agora tratava, e não demo­rou a pensar nele morto, colhido por um golpe fatal, machucado de tal modo que nenhum socorro pudesse reverter sua agonia...

Omitiu seu drama de Una e dos jovens guerrei­ros, sabendo que precisava se ocupar dos feridos para distrair a mente e não se amargurar com a eventual perda do marido.

Ao ver todos atendidos, alguns com suturas pre­cárias, Moira decidiu utilizar seu toque especial para amenizar as dores. Não viu desprezo nem medo nos rostos dos beneficiados, amigos e admiradores de Tavig; somente deslumbramento e a mesma expressão orgulhosa que James havia revelado.

Seu marido sempre estivera certo. Em Drumdearg, ela não precisava temer crendices e superstições.

Com as energias drenadas por seu procedimento, desabou no chão do galpão e foi amparada por duas mulheres que lhe molharam a face, afrouxaram sua roupa e a ajudaram a engolir uma beberagem forte.

No íntimo, estava cheia de dúvidas. Encontrara aceitação e reconhecimento naquele povoado, exa­tamente como Tavig prometera, mas isso talvez não mudasse muito as coisas. Ele era um cavaleiro e, se requisitado, sairia do claustro entre as paredes do castelo para viajar, lutar, fazer negócios, freqüentar a corte. Seria impraticável mantê-la segura o tem­po todo, já que em muitos desses deslocamentos não poderia levá-la com ele.

Os problemas iriam aflorar, pensou, amargurada. Não podia se deixar iludir pela segurança e pelo aco­lhimento de Drumdearg. Caso contrário, nunca conse­guiria que Tavig acreditasse em seus temores.

Também não podia lhe contar que seu amor era tudo de que precisava para permanecer ao lado dele. Ou ele lhe oferecia esse amor espontaneamente, ou de nada adiantaria.

No entanto, aquilo era o que faltava para que ela confiasse mais em seu futuro. Julgava que pessoas do­tadas de poderes especiais sempre levariam uma vida cheia de problemas, mas, com um amor partilhado, talvez houvesse condições de superar as adversidades.

Com cautela, Moira levantou-se. Suspirou de alivio ao perceber que não estava mais zonza. Sua energia vital tinha retornado, e o passo seguinte consistiria em saber como Tavig havia se saído na luta contra Iver. Até conhecer o resultado da batalha, ela prestaria auxílio onde fosse necessário.

Aprumou as costas, tomou Una pela mão e mar­chou rumo aos portões do castelo.

No momento em que pisou no pátio interno, Moira deparou com Nicol.

— Ganharam a batalha? — perguntou, quase em tom de afirmação.

— Não completamente — informou o primo, afas­tando da testa suada uma mecha de cabelos. — Tavig e Iver ainda precisam resolver suas pendências. Vão esgrimir no salão principal. — Ele segurou Moira com firmeza quando ela fez menção de se deslocar até aquele setor. — Não vá... Tavig não pode se distrair.

— Tenho de ficar esperando enquanto ele luta pela própria vida?

— Sim. Nada deve perturbá-lo nesse confronto de­cisivo, pois qualquer desatenção pode ser fatal. Mas, se isso ajuda a acalmá-la, prima, nenhum de nossos homens duvida de que ele irá vencer.

— Ajuda, de fato. Mas, na verdade, eu entrei aqui para socorrer os feridos. —Ela parou de forçar passagem pelo flanco de Nicol.

— Decidiu revelar seu segredo? — Nicol franziu a testa.

— Não tive outra chance. Você sabe que não su­porto ver alguém machucado quando posso amenizar as dores. Onde estão os feridos?

Nicol conduziu Moira e Una até uma enfermaria improvisada.

— Muitos morreram? — Ouviu da prima no caminho.

— Somente alguns das tropas de Mungan e Tavig. Mas poucos mercenários de Iver sobreviveram. Diversos homens dele desertaram quando a batalha ficou acirrada.

— Sabemos disso — murmurou James, que se con­servara quieto, perto das duas. — Encontramos três desses cães sarnentos. — Diante do olhar curioso de Nicol, James relatou em detalhes o episódio ocorri­do na clareira, e depois complementou: — É aflitivo termos sido salvos por duas mulheres...

— Nada disso, rapaz — Nicol bateu em suas cos­tas. — Nem mesmo nossos melhores soldados enfren­taram os mercenários de Iver sem sofrer pelo menos um arranhão. E até os grandes guerreiros têm sempre alguém na retaguarda. Ainda bem que as moças esta­vam lá para ajudá-los. Até porque elas teriam muito a perder caso vocês três morressem. — Nicol apontou a oficina do armeiro. — Eis os feridos, Moira. Dois ou três são gente de Iver. Não precisa ser gentil com eles, mas os homens serão úteis se sobreviverem.

— Eu sei — Moira concordou. — Tavig tem de provar que as acusações de Iver contra ele são falsas.

Quando ela correu o olhar pelo deprimente local, a vontade de ver Tavig a assaltou com maior força.

Nicol notou sua ansiedade e a virou para que não testemunhasse tanto sofrimento.

Todavia, Moira suspirou e pôs-se a trabalhar, ciente de que o primo tinha razão. Tavig não necessitava dela no salão, nem ela poderia colaborar com o marido. Ele lutava pela vida, e somente ele próprio poderia definir seu destino.

O derradeiro guarda-costas de Iver tombou sob o fio de uma espada, enquanto os homens de Mungan cercavam Andrew MacBain, também ferido, certificando-se de que o criminoso viveria tempo suficiente para provar a inocência de Tavig.

O próprio Mungan vigiava toda a cena de braços cruzados, a uma distância que permitia ao primo fina­lizar o confronto.

Iver mantinha-se firme, mas na face, pontilhada de marcas de varíola, o suor escorria.

Para Tavig, foi surpresa notar que Iver o temia. Seu execrável primo possuía destreza e força apesar do corpo magro. Também estava descansado, pois não lutara contra ninguém, enquanto ele...

A dúvida que pairava no ar era se isso constituía uma real vantagem.

— Agora somos apenas eu e você, primo — anun­ciou por entre os dentes.

— E espera que eu entre de bom grado numa disputa com alguém que já conhece o futuro? — desdenhou Iver.

— Sabe muito bem que meu dom é inconstan­te. Só o que sei é que devemos lutar — ele mentiu, considerando injusto contar ao primo que o havia visto agonizando. Iver acreditava piamente naquele poder especial, e isso o amedrontava e enfraquecia. — Vou lhe conceder a chance de se render.

— Para ser levado à forca? Não, obrigado. — Iver apertou o maxilar.

— Eu não queria matá-lo, mas você me deixa sem alternativa.

Iver ignorou o discurso e atacou seu rival.

No início, Tavig apenas se desviou dos golpes do primo. Não esgrimia com ele desde a adolescência. Era importante estudá-lo e descobrir seu ponto fraco.

Isso pouco tardou. Iver era bom espadachim, mas se habituara a depender de artimanhas a fim de vencer. A contragosto, Tavig sentiu-se pressionado a tirar a vida do parente, e revidou o ataque.

A habilidade de Iver para se defender foi maior que sua destreza, mas, numa fração de segundo, Tavig viu seu alvo desguarnecido. Barrando a tendência de lhe dar mais uma oportunidade, acertou Iver com uma estocada profunda no peito.

Ele morreu sem um suspiro.

Tavig arrancou a espada do lugar e seguiu com os olhos a queda do primo até o chão.

— Belo golpe! — elogiou Mungan, avançando para fechar as pálpebras do homem sem vida.

— Ele poderia ter se rendido.

Num emblemático ritual de vitória, Tavig enxu­gou o sangue da lâmina no casaco do próprio Iver. Sentia-se pesaroso apesar de tudo, e Mungan o con­solou com palmadas nas costas antes de lhe servir um copo de vinho no canto da sala. Em seguida, distribuiu garrafas da bebida aos soldados que vigiavam Andrew MacBain.

— Um de vocês, avise a todos que a batalha termi­nou. — Mungan se voltou para o primo. — Sente-se aqui em sua antiga poltrona, meu rapaz. Vou buscar nossas esposas.

Tavig deu um longo suspiro. Ansiava pela compa­nhia de Moira.

Mas, à medida que o povo foi ocupando o caste­lo, a celebrar o feliz desfecho, a alegria das pessoas o contagiou.

Para Moira, os sinais de riqueza e conforto da sala principal do castelo de Drumdearg não compensaram a desolação da cena: vestígios de sangue por toda parte, objetos revirados, cadeiras fora do lugar.

Tavig havia dito que sua propriedade, agora reto­mada, não era tão grande quanto a de Mungan, mas a verdade era que seu marido era um homem rico. Certamente, merecia alguém melhor do que ela com quem se casar em definitivo.

Havia chegado a hora de partir, e ela decidiu agir depressa, antes que Tavig pudesse impedi-la e a convencesse a ficar,

— Não vai festejar com seu homem? — Mungan a interpelou, abraçado a Una.

— Ele já está cercado de admiradores. Prefiro sair e retornar ao acampamento.

— Receia que ele a censure por ter mantido se­gredo sobre o seu dom?

— Alguém contou a Tavig? — Moira se aborreceu.

— É impossível que você exerça sua dádiva de curar e ninguém comente. Os feridos cuja dor você amenizou não param de lhe tecer elogios. Deveria ter contado a seu marido antes.

— Acostumei-me a guardar sigilo. É difícil mudar os hábitos numa situação dessas.

— Não faz mais sentido fugir da realidade e escon­der os fatos, prima. Tenho certeza de que Tavig irá compreender.

Moira suspirou, ciente de que teria de confrontar o marido. O mais importante agora era garantir que Mungan não alertasse o primo de que ela iria embora e abriria mão de sua união.

— Mungan, prometa não dizer nada a Tavig — solicitou, amargurada por ter de tomar tal atitude num momento tão festivo.

— Prometo fechar a boca, mas muitos outros estão falando de você.

— Não se trata do meu segredo. — Ela engoliu em seco. — É que pretendo abandonar meu marido.

— O quê?! Levou uma pancada na cabeça? — retrucou Mungan, atônito.

— Farei o que é certo e o que já estava previsto. — Moira resumiu seus motivos.

— Se pretendia fazer isso desde o princípio, por que se casou com Tavig?

— Para impedir você de me assediar e levá-lo a desposar quem você realmente amava: Una.

Com surpresa, Moira identificou um largo sorriso no rosto de Mungan.

— Você é mesmo dona de um temperamento forte — ele concluiu. — Acho errado o que está fazendo, mas não me cabe proibi-la. Apenas não me peça para ajudar.

— Seria desnecessário. E pode parar de se preo­cupar com a casa da torre. Nunca deixarei que caia em mãos inimigas.

— Já não tenho essa preocupação faz algum tempo.

Moira se afastou na companhia de uma confusa Una.

Mas ela também se encontrava inquieta, pois a fa­cilidade com que Mungan a havia liberado lhe pro­vocara suspeitas. Preocupada, lembrou-se de como Tavig se referia ao primo como um homem astucioso.

Deixando Una para trás, ela correu até o acampa­mento, indo direto para o estábulo.

Tavig vestia uma camisa limpa enquanto escutava, de James e Robbie, o relato do ataque dos três mer­cenários na clareira da floresta. Acabara de banhar-se e remover do corpo a poeira e o sangue acumulados durante a batalha.

Foi então que ouviu de James o relato de como Moira tinha aplicado as mãos sobre os ferimentos de Malcolm e praticamente anulado a dor em seu braço.

— Ela tocou o local e eliminou as dores? — perguntou, assombrado, e o jovem combatente con­firmou. — Tem certeza de que Moira não usou nenhum unguento na palma da mão?

— Tenho. Ela só havia posto uma tala no braço ferido e colocado ataduras. Quando lhe perguntamos se tinha o dom da cura, sua esposa assentiu. Não foi, Robbie?

O colega o apoiou com um gesto de cabeça.

— Pensei que o senhor já soubesse.

— Não. Moira nunca me falou a respeito disso.

Nervosos, os dois jovens se entreolharam.

Tavig reprimiu a decepção e a raiva nascente. Na sala, outras pessoas tinham ouvido a conversa e se acercaram para confirmar que, ali mesmo em Drumdearg, Moira havia utilizado seu poder na redução do sofrimento de outros feridos.

Transtornado, ele se lembrou de quando, em Craigmoordun, um único toque dela em sua testa suprimira sua dor de cabeça. Se fosse menos tolo, teria adivinhado.

Viu Mungan entrar com Una e sentar-se à mesa, e os soldados cedendo cadeiras aos seus líderes. Contrariado, notou o ar de superioridade do primo: o mesmo que desde a juventude se estampava em sua face sempre que ele tinha conhecimento de algo que ele ignorava.

Com os olhos fechados, Tavig viu imagens estra­nhas. Encontrava-se no alto da muralha de Drumdearg e, ao mesmo tempo, cavalgava para longe dali. Dentro da visão, pôde sentir o perfume discreto de Moira e reconhecer que a imagem de si mesmo tinha cabelos acobreados, não negros. Então, compreendeu: Moira o estava deixando!

— Onde ela está?— exigiu de Mungan, aproxi­mando-se da mesa. — Não tente me enganar, primo. Acabo de ter uma visão.

— Se for rápido para selar seu cavalo e tomar a estrada, não precisará ir muito longe para encontrar Moira.

— Mungan! — Una protestou. — Você prometeu que nada contaria a Tavig!

— Eu disse que manteria sigilo, mas não que fica­ria sem responder às perguntas dele.

Una suspirou, refém do ardil do marido.

— Essa foi boa, não? — Mungan gabou-se de sua esperteza. — Sua mulher, primo, guarda idéias estra­nhas naquela bonita cabeça.

— Dispenso seus comentários — rebateu Tavig, mal-humorado. — Pensei que Moira fosse permanecer comigo em Drumdearg ao menos até que eu tivesse um julgamento justo. Nossa separação já era prevista... O que não entendo é por que ela omitiu de mim seu dom de cura.

— Por que não pergunta a ela? — Mungan sugeriu. Apertando os lábios, Tavig saiu apressadamente da sala.

— Aonde pensa que vai? No estábulo do acampamento, Moira continuava atrapalhada com as correias que prenderiam a sela ao cavalo. Postado na abertura da lona, Tavig pareceu-lhe ainda mais bonito do que da última vez em que o vira; mas também mais furioso.

A um só tempo, ela ficou alegre e triste. Alegre por ele ter vindo atrás dela, triste por ser a hora de lhe dar o doloroso adeus que vinha tentando evitar.

— Resolvi partir, conforme combinamos, mas tenho dificuldade em selar uma montaria.

— Ainda bem. Eu odiaria ter de caçar minha pró­pria mulher pelo roubo de um animal.

— Uma esposa não rouba nada de seu marido — Moira defendeu-se.

— Rouba, sim. A lei diz que posso conservar tudo o que tenho, mas o que é seu também é de minha propriedade.

— Acho injusto — Moira contrapôs, ressentida com o tom frio que ele imprimira às palavras.

Considerando o que ela planejara fazer, a conversa parecia tola, como se Tavig não tivesse vindo detê-la, apenas reclamar um bem material que ela levaria na fuga.

— Como soube que eu estava aqui? — inquiriu, pois o tinha visto entretido com os festejos da vitó­ria e julgara que isso lhe daria tempo suficiente para escapar. — Foi Mungan, não foi?

— Mungan não traiu você. Somente respondeu a uma pergunta minha.

Tavig andou até o cavalo, afastando Moira gentil­mente para o lado. Removeu a sela parcialmente atada e a descartou. Suas emoções pesavam com intensida­de em seu íntimo. Por isso, levou o animal para fora dali, com a intenção de ganhar um minuto a fim de se controlar.

A dor na alma o tornara rancoroso. A frustração também o assaltava, e ele listou mentalmente tudo o que poderia dizer a Moira para ela ficar.

Todavia, quando expressou sua vontade, viu que a mulher continuava disposta a deixá-lo.

Desesperançado, concluiu que transmitir a raiva que sentia não resolveria nada.

— Quando concordei em me casar, você afirmou que não precisaria ser para sempre. Garantiu-me a liberdade de mudar de idéia, no prazo de um ano e um dia, como reza a lei.

— Eu menti.

— Tavig! — Moira foi tomada de surpresa.

— Maldição, Moira! Por que está fugindo? Sei que se importa um pouco comigo. Compartilhamos uma paixão que vai além das palavras. E também tenho certeza de que ama Adair. Então, por que desistir de tantas coisas boas?

— Pelos motivos que já cansei de expor, desde que percorremos as trilhas. Agora você sabe que existem ainda mais razões do que as conhecidas. Eu carrego uma dose de superstição maior do que você aceitaria dividir.

— Ah, suas mãos que curam... É inaceitável que tenha ocultado esse segredo, especialmente de mim. — Tavig pareceu confiante em sua argumentação.

— Foi pelas mesmas razões que você invoca para não sair contando a todo o povo que possui o poder da premonição — ela retrucou com calma.

— Em algum momento imaginou que eu abando­naria você? — Tavig elevou a voz. — O homem que compreende melhor do que qualquer outro o peso que você suporta?

— Há em mim uma parte racional que qualifica meus temores como tolos e sem base real. Porém, o medo se origina no lado irracional, não menos ver­dadeiro. — Moira se expressou incrivelmente bem, a ponto de desarmar Tavig.

— Isso ficou evidente diversas vezes — foi tudo o que ele conseguiu verbalizar.

Moira conteve uma reação mais incisiva ao que lhe havia soado como um insulto. Captou no ar a raiva de Tavig, e soube que ele estava furioso com sua decisão. Por isso mesmo, tinha tentado fugir era segredo, sem avisar.

— Não importa — ela se manifestou. — Você pre­cisa compreender por que devo partir. Talvez essa última revelação não seja capaz de elevar a supers­tição popular a um nível ameaçador, mas juntar um vidente e uma curandeira certamente pode despertar temores e reações adversas.

— Quando o povo se beneficiou de seu dom, al­guém a intimidou ou chamou de feiticeira? — Tavig considerou forte esse argumento.

— Não — ela admitiu, um tanto irrequieta. — Mas uma batalha campal não é o melhor cenário para julgar fatos inusitados.

— No entanto, Moira, a batalha acabou e você não quer ficar aqui tempo suficiente para ver se as coisas mudaram.

— Aprendi em Craigmoordun que as coisas podem mudar muito depressa, indo da estranheza à ameaça, e desta ao risco de morte. Não fugi daquele vilarejo porque tiraria a chance de você escapar.

— Então, decidiu por mim? Não lhe ocorreu que sou um homem capaz de enfrentar os perigos da vida?

Porque Tavig tinha razão, Moira ficou embaraça­da. De fato, nunca lhe perguntara como ele se sentia a respeito das eventuais conseqüências de sua união conjugai. Os riscos haviam ficado claros para ela, não para Tavig. O marido nunca fora consultado sobre aceitar ou não a existência de perigos.

Segundos depois, Moira expulsou tais sentimentos de seu íntimo. Os riscos eram reais e Tavig não via assim. Um dos dois precisava cultivar o bom-senso e evitar os perigos.

— É verdade que não o consultei — acedeu a con­tragosto. — Mas você nunca concordou comigo sobre os perigos de estarmos juntos, sujeitos à manifestação desses poderes que causam tanto temor nas pessoas... É natural que se disponha a enfrentar adversidades, mas sua vida será bem mais simples se eu for embora,

— Mais simples? — Tavig avançou um passo e a segurou pelo braço, como que desejando despertá-la. — Como, se eu perder a metade de mim? Talvez meu erro tenha sido tratá-la com excesso de amabilidade. Talvez tenha falado demais sobre o destino, dando a você a impressão de que sou guiado por uma mão invisível e vivo sem livre-arbítrio. Acha que sou fraco de vontade?

Gentilmente, ele colheu o rosto delicado entre as mãos e roubou um beijo caloroso.

Moira tentou resistir, ciente de que um ato passio­nal debilitaria sua determinação. Descobriu, então, que não conseguia furtar-se ao que poderia ser o úl­timo beijo. O gesto meigo de Tavig prometia amor, mais do que paixão carnal.

Mas era difícil para ela acreditar que o marido, por fim, lhe daria o que esperava havia tanto tempo.

— Não sei o que mais posso fazer, mulher — ele murmurou em tom rouco. — Você não parece dispos­ta a crer em mim, nas minhas palavras ou ações. Do contrário, digo que preciso muito de você, e não só em minha cama. Um desejo louco nos une, mas basta um sorriso seu para que me coloque a seus pés. Por que pensa que agi daquela forma quando Jeanne quase teve êxito no plano de queimar você numa fogueira? Por que, ao saber de sua partida, senti como se uma faca rasgasse meu ventre? Bem, o que faço agora?

Moira pestanejou, comovida e confusa, reconhe­cendo o sentimento presente na fala de Tavig.

De repente, ele atinou com o que devia fazer. Curvou-se e ergueu a esposa até o ombro esquerdo, segurando-lhe as pernas, saindo do estábulo em pas­sadas largas.

— O que é isso?! Para onde me leva?

— Para o castelo. Quero me trancar com você em nosso novo quarto, que já mandei arrumar.

Não era uma questão de sexo. Ele pretendia conver­sar em paz com Moira, até convencê-la de suas boas intenções.

Tavig marchou em ritmo seguro para fora do acam­pamento e assim continuou, até a travessia do vilarejo. Ruborizada e constrangida, Moira ouviu os comentá­rios maliciosos do povo que seguia a cena, entendendo-a como a atitude firme de um marido que domava a própria esposa, carregando-a para casa como um saco de arroz.

Na entrada do castelo, mais mortificação a espera­va. Havia gente aglomerada ali, vendo tudo.

Sem dar atenção a ninguém, Tavig persistiu em sua caminhada. Parou somente ao deparar com Mungan, Una e Nicol no saguão principal, à frente de um grupo de criados. Una pareceu chocada, no entanto Mungan e Nicol se divertiram.

— Vejo que encontrou sua dama — ironizou Mungan, rindo alto.

— Sim. Vou levá-la ao quarto para uma longa con­versa destinada a limpar as tolices de sua cabeça.

— Aproveite, meu rapaz — Mungan maliciou.

— Aproveitar?! — Moira soou escandalizada, mesmo com o fôlego e a voz alterados. — Ponha-me no chão, seu grande idiota!

Tavig a ignorou e subiu a escada. Com uma das mãos, abriu a porta do quarto e, com um pé, a fechou. Finalmente estacou à beira da grande cama, na qual lançou Moira, certo de que ela não se machucaria por conta do grosso colchão. Também não podia fazer nada senão jazer ali, à espera dos acontecimentos.

Assim, esparramou-se ao lado dela com um suspiro.

Moira contemplou o marido, sentindo-se presa en­tre a frustração e a excitação. Tavig havia agido de modo estranho. Somente um homem tomado de inten­sa emoção faria o que ele fizera.

Moira o fitou, e um rico leque de promessas se fez ver em nos olhos dele.

— Sobre o que quer falar comigo? — ela o incitou.

— Na verdade, eu estava à espera de que manifes­tasse seu alegado medo.

— O que quer dizer?

— Eu a suspendi, joguei-a sobre meu ombro, carre­guei você por mais de meia hora, e seu único temor foi o de cair de cabeça no chão. Somente minha conduta a assustou, nada mais.

Moira aguardou que seu cérebro assimilasse as pa­lavras, relembrando as inúmeras vezes em que havia enfurecido ou insultado Tavig com seus temores.

Agora, a despeito da maneira rude como tinha sido tratada, sentia o gosto da libertação daquilo que a assombrara durante anos: a sombra de sir Bernard, o estigma de bruxa ou feiticeira, o castigo imposto por pessoas supersticiosas.

— Tavig... Estou livre. É maravilhoso!

— Então, poderá permanecer aqui comigo, feliz e segura. — Ele sorriu, radiante. — Apenas não en­tendo por que não me falou de seu poderoso toque. Você o utilizou quando fui golpeado na cabeça, em Craigmoordun e mentiu para mim.

— Não foi mentira. Apenas decidi guardar sigilo.

— Por que tanto segredo? Sempre fui aquele em que você podia confiar.

— E aquele que eu não queria ver longe — ela emendou num fio de voz. — Compreenda, por favor. Era uma questão de segurança, potencializada pelo medo de ser punida.

— Mas eu lhe contei sobre o meu dom. — Aos poucos, Tavig a prendeu nos braços.

— Você é mais corajoso do que eu. — Ela se dei­xou tombar sobre o peito que adorava. — Na Escócia, a vidência e a premonição são mais aceitos do que o poder de cura pela imposição das mãos. Eu precisava me cuidar.

— Ficou provado que meu povo não a hostiliza por causa de seu dom. Daí ser este o lugar mais seguro da Escócia para você. Drumdearg tem uma longa história de tolerância aos que são diferentes da maioria.

— Você me convenceu, Tavig. Já decidi permane­cer. Mas não poderemos nos esconder do mundo para sempre. Você é um cavaleiro, terá de viajar comigo algumas vezes, e lá fora vamos deparar com os mes­mos e velhos perigos.

— Pois insisto num ponto: você não é covarde, nem eu. Juntos, teremos mais força para enfrentar qualquer dificuldade. Faça-me saber do que você precisa.

— Preciso ouvir menos conversa sobre destino, sina ou fatalidade — volveu Moira em tom suave.

Depois do desabafo, ela não mais se sentiu nervosa ou tímida. Tinha o direito de conhecer melhor o uni­verso interior do marido. Não demandaria palavras de amor, porém gostaria de ver repetidas as emoções fortes que ele havia revelado no estábulo. Laços mais intensos com Tavig justificariam o enfrentamento dos perigos que pudessem surgir.

— Compreendo. — Ele meneou a cabeça. — Você não devia estar tão insegura.

— Sua língua perde a sabedoria quando você se atem ao misticismo.

Tavig a segurou pelo rosto e deu nela um demorado beijo, cheio de vigor e promessas.

— E agora? Consegui dizer alguma coisa?

— Sim. Disse que me quer, que me deseja.

— Não, querida... — Ele a beijou novamente, de modo profundo e sensual. — Este é um beijo de dese­jo, que fala de minha paixão por você. Talvez eu tenha ocultado o que vai em meu coração, mas mostrei meu sentimento de outras maneiras, Moira. Então não me casei com você?

— Você sempre atribuiu isso a uma obra do destino. E só me desposou para que Mungan não o fizesse.

— Pura verdade. Pois, se eu não me importasse com você, deixaria o caminho livre para Mungan. Também me referi à mão do destino... mas assim você me põe confuso. Pensava compreender as mulheres e saber o que elas querem ouvir. — Ele tocou o rosto suave. — Se você falar primeiro, ganharei coragem para me exprimir. Do fundo do coração.

— Está sendo injusto, Tavig MacAlpin, mas vá lá... Eu o amo profundamente.

Ele sorriu, radiante.

— Que bom, minha doce Moira! — Ele selou os lábios rosados com a boca, antes que a esposa pudes­se estender ou retificar a confissão.

Era doloroso para Moira que Tavig não respondesse no mesmo estilo, dizendo amá-la, porém tinha tanta emoção naquele beijo que ela pôs de lado a decepção e se agarrou ao corpo de seu amado.

Sua mágoa extinguiu-se por completo sob as carícias de Tavig, que redundaram num ardente ato de intimidade. Enquanto ela se despia, Tavig premiava cada novo pedaço de pele exposta com toques e bei­jos. Como denominar aquilo? Ele não havia dado um nome aos sentimentos que o consumiam, mas pelo menos sua paixão era intensa e evidente em seus olhos cintilantes.

Ela gemeu de prazer ao acolhê-lo dentro de si.

— Tavig! — exclamou, comovida, à espera dos movimentos sensuais que a transportariam ao clímax, como de costume, porém ele não se mexeu.

— Fale de novo, Moira, enquanto ficamos o mais perto possível para um homem e uma mulher.

— Chantagem — ela acusou, embora disposta a atender à súplica.

— Ah, como uma pessoa desesperada pode agir de modo pouco honroso, às vezes... Vamos, diga!

— Eu o amo, Tavig MacAlpin.

— Você não imagina o quanto ansiei por ouvir isso, Moira. Se envelhecermos juntos, vamos discutir qual amor é mais forte: o seu por mim ou o meu por você.

Aquilo parecia um avanço, porém Moira não teve chance de assimilar as declarações do marido. Tavig se moveu sabiamente, alcançando suas profundezas até vê-la subir às alturas e depositar nela sua seiva.

Permaneceram abraçados, a desfrutar o momento. A força dos sentidos havia nublado a mente de Moira, mas ela estava certa de que Tavig finalmente havia dito que a amava. Com o coração pleno de expectati­va, cobrou confirmação.

— Você me ama ou não? — exigiu, surpresa com o próprio atrevimento.

— Ainda tem dúvidas? — Ele arregalou os olhos.

— Você não falou claramente. Preciso saber.

— Eu a amo, Moira Robertson MacAlpin, agora e sempre.

Os olhos dela marejaram de felicidade, enquan­to Tavig proclamava que preferia ações a palavras, daí seu silêncio sobre algo tão importante para uma mulher. Era o primeiro homem de Moira, ele sabia, e queria ser o único. E compreendia sua frustração por ele não ter assumido que a amava.

— Com o que você disse, sinto-me muito mais co­rajosa — ela confessou, emocionada, e recebeu um terno beijo do homem confortavelmente instalado sobre ela.

— Eu amo você — Tavig repetiu, impressiona­do com o poder de uma confissão de amor. — Era o que precisava escutar para ficar comigo e encarar o futuro?

— Sim. — Ela sorriu. — Somos abençoados, mas fatalmente surgirão desentendimentos e conflitos. Para superá-los, necessitamos estar unidos por algo maior que a paixão e a crença no destino. — Moira se arrepiou com os toques do marido em sua pele. — Eu temia a superstição e os perigos que ela traz. Sem o vínculo c a força do amor, nós dois poderíamos ser sacrificados e foi por isso que tentei fugir.

— Jamais você pensará de novo em me abandonar, porque juntos seremos imbatíveis contra os percal­ços da vida.

— Assim espero. — Ela acariciou afetuosamente o rosto amado. — Será o nosso desafio, por muitos e muitos anos.

 

 

                                                                  Hannah Howell

 

 

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