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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


INSÔNIA - P.3 / Stephen-King
INSÔNIA - P.3 / Stephen-King

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

INSÔNIA

Terceira Parte

 

O REI SANGÜINÁRIO

 

SOMOS SETE VETERANOS. CADA UM DE NÓS SEGURA UMA NAVALHA FECHADA

Robert Lowell Walking ín the Blue

 

HOUVE apenas uma troca de palavras entre os dois enquanto o Oldsmobile subia a rua do hospital, e foi breve.

- Ralph?

Ele desviou a atenção para ela mas voltou-a rapidamente para o trânsito. O cleque sob o capo recomeçara, mas Lois ainda não dissera nada. Ele torceu para que ela não o fizesse agora.

- Acho que sei onde ele está. Ed, quero dizer. Já tinha certeza mesmo lá no telhado, quando reconheci aquele prédio velho e mal cuidado que eles nos mostraram.

- Que prédio? Onde?

- E uma garagem de aviões. Como é mesmo que se diz? Um hangar.

- Ah meu Deus - exclamou Ralph. - A Coastal Air, na estrada do Bar Harbor?

Lois confirmou com a cabeça.

- Eles têm vôos charter, tours em hidroaviões, coisas desse género. Um sábado em que saímos para dar um passeio, o Sr. Chasse entrou e perguntou ao homem que trabalhava lá quanto cobraria para nos levar num vôo sobre as ilhas. O homem disse que seriam quarenta dólares, o que era muito mais do que podíamos dispor para um passeio de fim de semana e, com certeza, se fosse verão o homem teria se mantido irredutível, mas era abril, e o Sr.

Chasse conseguiu pechinchar e fechar por vinte dólares. Achei que ainda era muito para um passeio que não durava nem uma hora, mas fiquei contente de ter ido. Tive medo, mas foi lindo.

- Como as auras - comentou Ralph.

- É, como... - Sua voz fraquejou. Ralph olhou e viu as lágrimas escorrendo lentamente pelo seu rosto redondo - ... como as auras.

- Não chore, Lois.

Ela procurou um lenço de papel na bolsa e enxugou os olhos.

- Não consigo me conter. Aquela palavra em japonês no cartão significa kamikaze, não é, Ralph? Vento divino. - E fez uma pausa, com os lábios trêmulos. - Piloto suicida.

Ralph confirmou. Apertava o volante com muita força.

- E. E isso que quer dizer. Piloto suicida.

A ESTRADA 33 - conhecida na cidade como avenida Newport - passava a quatro quarteirões da Avenida Harris, mas Ralph não tinha nenhuma intenção de quebrar seu longo jejum no lado oeste de Derry. A razão era tão simples quanto irretorquível: ele e Lois não podiam se dar o luxo de serem vistos por nenhum velho amigo, parecendo quinze ou vinte anos mais novos do que na segunda-feira anterior.

Será que um desses velhos amigos já teria comunicado o desaparecimento deles à polícia? Ralph sabia que era possível, mas achava que havia uma razoável esperança de não terem despertado muito interesse e preocupação, pelo menos em seu círculo de amigos; Faye e o resto do pessoal que fazia ponto na área de piqueniques junto à Extensão estariam muito perturbados com a passagem não de um, mas de dois velhos Coroas, para gastarem muito tempo imaginando onde Ralph Roberts, com aquele rabo magro, teria se metido.

Bill e Jimmy teriam sido chorados, encomendados e enterrados a essa altura, ele pensou.

- Se temos tempo para o café da manhã, Ralph, descubra um lugar bem depressinha: estou tão faminta que seria capaz de comer um cavalo com couro e tudo!

Achavam-se a um quilômetro e meio do hospital agora bastante longe para Ralph se sentir razoavelmente seguro – e ele viu o Derry Diner logo adiante. Ao sinalizar e entrar no estacionamento, deu-se conta de que não vinha ali desde que Carol adoecera... no mínimo há um ano, talvez mais.

- Chegamos - anunciou a Lois. - E não vamos apenas comer, vamos comer tudo que pudermos. Talvez a gente não tenha outra oportunidade hoje.

Ela riu como uma colegial.

- Você acabou de descobrir um dos meus grandes talentos, Ralph. - Ela se torceu um pouquinho no banco do carro. - E também vou ter de gastar um centavo.

Ralph assentiu. Nem comida e nem ida ao banheiro, desde terça-feira.

Lois poderia gastar seu centavo; ele pretendia correr para o banheiro masculino e despejar alguns dólares.

- Vamos - convidou, desligando o motor e silenciando aquele cleque incómodo sob o capo. - Primeiro aos banheiros, depois à comilança.

A caminho da lanchonete, ela comentou (num tom que Ralph achou um tanto displicente) que não achava que Mina ou Simone tivessem comunicado seu desaparecimento, pelo menos não até aquele momento. Quando Ralph virou a cabeça para lhe perguntar o porquê, riu-se admirado de ver que ela se ruborizara.

- As duas sabem que tenho uma queda por você há anos.

- Você está brincando?

- Claro que não - retrucou, parecendo um pouquinho desapontada. – E Carolyn também sabia. Algumas mulheres teriam se importado, mas ela compreendia que era uma atracção inofensiva.

Que eu era inofensiva. Ela era um amor, Ralph.

- Era mesmo.

- Em todo caso, elas provavelmente vão supor que nós... sabe...

- Tiramos umas feriazinhas à francesa? Lois riu-se.

- E por aí.

- Você gostaria de tirar umas feriazinhas à francesa, Lois? Ela ficou nas pontas dos pés e deu uma mordidinha na orelha dele.

- Se escaparmos dessa com vida, é só me convidar.

Ele beijou-a no canto da boca antes de empurrar a porta do Derry Diner.

- Pode contar com o meu convite, senhora. Seguiram em direcção aos banheiros e, quando tornaram a se juntar, Lois tinha um ar pensativo e um pouco abalado.

- Não posso acreditar que seja eu - disse em voz baixa. - Quero dizer, devo ter passado pelo menos dois minutos de olhos arregalados diante do espelho, e continuo sem acreditar. Os pés-de-galinha em torno dos meus olhos desapareceram, e Ralph... meus cabelos... - Os olhos ibéricos de Lois se ergueram para ele, cintilando de assombro. - E você. Nossa, duvido que você tivesse uma aparência tão boa aos quarenta anos.

- Não tinha, mas você devia ter-me visto aos trinta. Eu era um animal.

Ela reprimiu o riso.

- Vamos, seu bobo, vamos nos sentar e estraçalhar umas calorias.

- LOIS?

Ela ergueu os olhos do menu que fisgara de uma colecçãozinha arquivada entre o saleiro e o pimenteiro.

- Quando eu estava no banheiro, tentei fazer as auras aparecerem. Não consegui.

- Para que você queria auras, Ralph?

Ele sacudiu os ombros, sem querer descrever a sensação de paranóia que o acometera quando, parado diante da pia do banheiro, lavava as mãos e espiava seu rosto estranhamente jovem no espelho salpicado de água.

Subitamente lhe ocorrera que talvez não estivesse ali sozinho. E pior, que Lois talvez não estivesse sozinha no banheiro feminino ao lado.

Átropos poderia estar se aproximando sorrateiramente por trás, invisível de todo, os brincos de brilhantes cintilando nos lóbulos minúsculos...

o bisturi em riste...

Então, em vez dos brincos de Lois e do panamá de McGovern, ele conjurou mentalmente a corda de pular que Átropos estava usando quando o descobrira (three-six-nine hon the goose drank wine)

no terreno baldio entre a padaria e o salão de bronzeamento, a corda de pular que um dia fora o brinquedo favorito de uma garotinha que tropeçara durante uma brincadeira de pegar, caíra pela janela do segundo andar, e morrera ao fraturar o pescoço (que acidente terrível, a criança tinha uma vida inteira pela frente, se Deus existe por que deixa tais coisas acontecerem, e assim por diante, para não repetir todo o

blá-blá-blá).

Ele dissera a si mesmo que parasse, que as coisas já andavam bem ruins para se cultivarem fantasias macabras em que Átropos cortava o fio de balão de Lois, mas não adiantou muito... principalmente porque ele sabia que Átropos talvez estivesse realmente ali no restaurante, e podia lhes fazer o que quisesse. Simplesmente o que quisesse.

Lois esticou o braço por cima da mesa e tocou as costas da mão de Ralph.

- Não se preocupe. As cores vão voltar. Voltam sempre.

- Suponho que sim. - Ele puxou um menu da colecção, abriu-o e deu uma olhada no que havia para o café da manhã. Sua impressão inicial era que queria uma porção de cada coisa.

- A primeira vez que você viu Ed agir como maluco, ele estava saindo do aeroporto de Derry - falou Lois. - Agora sabemos a razão. Estava tomando aulas de pilotagem, não estava?

- Claro que estava. Durante a carona que Trig me deu até a Avenida Harris, ele chegou a mencionar que é preciso ter um passe para sair por aquele portão de serviço. Ele me perguntou se eu sabia como Ed obtivera um, e respondi que não. Devem dar passes aos alunos de pilotagem da Aviação Geral.

- Você acha que Helen sabia desse passatempo do marido? - Lois perguntou. - Provavelmente não, não é?

- Tenho certeza de que não sabia. E aposto que ele mudou para a Coastal Air logo depois que bateu no cara da West Side. Vai ver o episódio o convenceu de que estava se descontrolando, e que seria melhor transferir as aulas para mais longe de casa.

- Ou talvez tenha sido Átropos quem o convenceu - disse Lois sombriamente.-Átropos ou até alguém mais acima.

A ideia não agradou a Ralph, mas, mesmo assim, parecia correcta.

Entidades, pensou, e estremeceu. O Rei Sangüinário.

- Eles estão manipulando Ed como se ele fosse um fantoche, é isso? perguntou Lois.

- Você está se referindo a Átropos?

- Não. Átropos é um sacaninha perverso, mas sob outros aspectos acho que não é muito diferente de Cloto e Láquesis, mão-de-obra subalterna, talvez apenas um degrau acima do operariado sem qualificação no grande esquema do universo.

- Zeladores.

- Bem, é, talvez-Lois concordou.-Zeladores e serventes. Átropos provavelmente foi quem fez a maior parte do trabalho em Ed, e aposto um boi como adora esse tipo de trabalho, mas aposto uma boiada que recebe ordens de cima. Acha que estou mais ou menos no caminho certo?

- Acho que sim. Provavelmente nunca ficaremos sabendo até que ponto ele era desequilibrado antes disso tudo começar, ou quando foi que Átropos cortou o fio de balão dele, mas a coisa que me provoca mais curiosidade neste momento é bem terrena. Gostaria de saber como foi que ele conseguiu pagar a fiança de Charlie Pickering e a droga do curso de pilotagem.

Antes que Lois pudesse responder, uma garçonete aproximou-se, puxando um bloco e uma caneta esferográfica do bolso do avental.

- Posso anotar seu pedido?

- Eu queria uma omelete de queijo e cogumelos - disse Ralph.

- Hum-hum. - Ela passou o chiclete que mascava de um lado da boca para o outro. - Dois ovos ou três, querido?

- Quatro se puder ser.

Ela ergueu ligeiramente a sobrancelha e anotou no bloco.

- Por mim pode, se puder para você. Algum acompanhamento?

- Quero. Um copo grande de suco de laranja, uma porção de bacon, uma porção de salsichas, e uma porção de batatas fritas. E melhor pedir duas porções de batatas fritas. - Fez uma pausa, pensou e em seguida riu. - Ah, vocês ainda têm pão doce?

- Acho que ainda temos um com queijo e outro com maçã. - Ergueu os olhos para ele. - Pelo jeito está com muita fome, querido!

- Tenho a sensação de que não como há uma semana - respondeu Ralph. Quero o de queijo. E café para começar.

Muito café puro. Anotou tudo?

- Ah, anotei, querido. Só quero ver como vai estar na hora de sair daqui. - Olhou para Lois. - E a senhora?

Lois sorriu meigamente.

- Vou querer o mesmo que ele. Querida.

RALPH olhou para o relógio de parede por cima da garçonete que se retirava. Eram apenas sete e dez, o que era bom. Poderiam chegar aos pomares Barrett em menos de meia hora e, com seus lasers mentais concentrados em Gretchen Tillbury, era possível que o discurso de Susan Day fosse cancelado - abortado, se preferirem-ainda naquela manhã, às nove horas. No entanto, ao invés de alívio, ele sentia uma ansiedade torturante e inexorável. Era como sentir um comichão num lugar que os dedos não conseguem alcançar direito.

- Muito bem - falou. - Vamos juntar o que sabemos. Acho que podemos presumir que Ed há muito tempo se preocupa com o aborto, e que, provavelmente, participa do pró-vida há anos. Então começa a ter insónia... ouvir vozes...

- ... ver homenzinhos carecas...

- Bem, um deles-Ralph concordou. - Átropos se torna seu guru, e enche sua cabeça com o Rei Sangüinário, os Centuriões, e toda essa história.

Quando Ed me falou do rei Herodes...

- ... ele estava pensando em Susan Day - concluiu Lois. - Átropos andou... como é que dizem na TV... fazendo sua cabeça. Transformou-o num míssil teleguiado. Onde é que você acha que Ed arranjou aquele cachecol?

- Átropos - disse Ralph. - Aposto como Átropos tem uma porção de coisas do género.

- E que carga você acha que ele pôs no avião que vai pilotar hoje à noite? - A voz de Lois tremia. - Explosivos ou gás venenoso?

- Explosivos seriam a escolha mais provável se está realmente planejando atingir todo o mundo; um vento forte poderia criar problemas para ele caso usasse gás. - Ralph tomou um gole de água e estranhou que sua mão estivesse tão firme. - Por outro lado, não sabemos que surpresas poderá ter inventado em seu laboratório, não é mesmo?

- E - concordou Lois com uma vozinha fraca. Ralph descansou o copo na mesa.

- O que ele está planeando usar não me interessa muito.

- O que lhe interessa, então?

A garçonete voltou com café fresco e só o cheiro pareceu iluminar os nervos de Ralph como néon. Ele e Lois pegaram cada um sua xícara e começaram a beber assim que a moça se afastou. O café estava forte e quente o bastante para queimar os lábios de Ralph, mas foi o paraíso.

Já tomara metade do café, quando repôs a xícara no pires. Sentia um calorzinho gostoso na barriga, como se tivesse engolido brasas. Lois fitava-o séria por cima da beirada da xícara.

- O que lhe interessa - Ralph respondeu - somos nós. Você disse que Átropos transformou Ed num míssil teleguiado. E está certa; era exactamente isso que os pilotos kamikazes da segunda guerra mundial eram. Hitler tinha a V-2; Hiroíto o seu Vento Divino. O dado que me perturba é que Cloto e Láquesis fizeram o mesmo conosco. Nos cumularam de poderes especiais e nos programaram para voar até High Ridge no meu Oldsmobile para deter Susan Day. Eu só queria saber o porquê.

- Mas nós sabemos - ela protestou. - Se não interferirmos, Ed Deepneau vai cometer suicídio hoje à noite durante o discurso de Susan e levar com ele duas mil pessoas.

- E - concordou - e vamos fazer o possível para impedi-lo, Lois, não se preocupe. - Terminou o café e descansou a xícara outra vez. Seu estômago estava inteiramente desperto agora, e furiosamente faminto. Não poderia ficar parado esperando Ed matar aquela gente, da mesma forma que não poderia ficar parado esperando alguém me acertar a cabeça com uma bola. O problema é que não tivemos a chance de ler o parágrafo impresso em letrinha miúda no fim do contrato, e isto me apavora. Hesitou um momento. - E também me deixa pau da vida.

- De que é que você está falando?

- De sermos tratados como um casal de otários. Sabemos por que vamos tentar impedir Susan Day de falar; não podemos suportar a ideia de um lunático matar duas mil pessoas inocentes. Mas não sabemos por que eles querem que a gente faça isso. Essa é a parte que me apavora.

- Teremos a oportunidade de salvar duas mil vidas. Você está me dizendo que isso basta para nós mas não para eles?

- É o que estou lhe dizendo. Não creio que esses caras se impressionem muito com números; eles apagam gente, não às dezenas e centenas de milhares mas aos milhões. E estão habituados a ver o Acaso e o Desígnio nos exterminarem em lotes.

- Catástrofes como o incêndio em Cocoanut Grove - lembrou Lois. - Ou a inundação aqui em Derry há oito anos.

- É, mas mesmo desastres desse tipo são café pequeno quando comparados ao que pode acontecer, e acontece, todo ano no mundo. A inundação de

1985 aqui em Derry matou umas duzentas e vinte pessoas, mas na primavera passada houve uma inundação no Paquistão que matou três mil e quinhentas pessoas e o último grande terramoto na Turquia matou mais de quatro mil. E aquele acidente com o reactor nuclear na Rússia? Li em algum lugar que a estimativa modesta é de setenta mil mortos. Há muitos chapéus-panamás e cordas de pular e pares de... óculos, Lois. - Ele se horrorizou de quase ter dito pares de brincos.

- Pare - ela pediu estremecendo.

- Também não me agrada pensar nisso, mas temos de pensar, ainda que seja apenas porque aqueles dois caras estavam tão ansiosos para nos impedir de fazer exatamente isso. Está entendendo aonde quero chegar? Você precisa entender. As grandes tragédias sempre foram tarefas do Acaso; o que faz essa tão diferente?

- Não sei - respondeu Lois -, mas foi bastante importante para nos recrutarem, e tenho a impressão de que isso foi um passo gigantesco.

Ralph concordou. Sentiu a cafeína atingi-lo agora, excitar seu cérebro, fazer seus dedos estremecerem levemente.

- Não duvido que tenha sido. Agora volte ao telhado do hospital. Você algum dia viu em sua vida dois caras explicarem tanto sem explicar nada?

- Não entendi - falou Lois, mas seu rosto indicava outra coisa; que não queria entender o que ele dizia.

- O que estou dizendo remete a uma ideia central: talvez eles não possam mentir. Suponhamos que não. Se você tem uma informação que não quer revelar, mas você não pode mentir, que é que você faz?

- Fico enrolando para evitar a zona de perigo - respondeu Lois. - Ou as zonas.

- Bingo! E não foi o que eles fizeram?

- Bem, acho que ficaram enrolando, mas também acho que você deixou muita margem para isso, Ralph. Aliás, fiquei impressionada com a quantidade de perguntas que você fez. Acho que passei a maior parte do tempo naquele telhado tentando me convencer de que aquilo estava realmente acontecendo.

- Certo, fiz perguntas, muitas perguntas, mas... - Ele parou, sem saber como expressar o conceito que tinha em mente, um conceito que parecia ao mesmo tempo complexo e infantilmente simples. Fez um esforço para subir de nível, procurando na cabeça aquela piscadela, sabendo que, se conseguisse alcançar a mente de Lois, poderia mostrar-lhe uma imagem cristalina. Nada aconteceu e ele tamborilou os dedos na mesa, frustrado.

- Fiquei tão admirado quanto você - falou finalmente. - Se a minha admiração se manifestou por meio de perguntas é porque os homens, pelo menos os de minha geração, foram ensinados que não fica bem fazerem ohs e ahs. Isto é coisa para mulheres quando estão escolhendo cortinas.

- Machista. - Ela sorriu ao dizer isso, mas foi um sorriso que Ralph não conseguiu retribuir. Estava se lembrando de Barbie Richards. Se Ralph tivesse se dirigido à moça, ela certamente teria apertado o botão de alarme sob a mesa, mas deixara Lois se aproximar, porque absorvera em excesso aquela conversa de somos do mesmo sexo.

- É - respondeu baixinho. - Sou machista, sou antiquado e por vezes isto me deixa mal.

- Ralph, não quis dizer...

- Sei o que quis dizer, e não me ofendi. O que gostaria de fazer você entender é que fiquei tão admirado... tão aturdido... quanto você. Por isso fiz perguntas, e daí? Foram boas perguntas? Perguntas úteis?

- Acho que não.

- Bem, talvez não tivesse começado tão mal. Pelo que me lembro, a primeira coisa que perguntei, quando finalmente chegamos ao telhado, foi quem eram eles e o que queriam. Eles desconversaram com um monte de bobagens filosóficas, mas imagino que fiz os dois suarem um pouquinho a nuca por alguns instantes. Depois nos contaram toda aquela história sobre o

Desígnio e o Acaso... fascinante, mas nada que realmente precisássemos para ir até High Ridge persuadir GretchenTillbury a cancelar o discurso de Susan Day. Droga, teria sido melhor, e poupado mais tempo, se nos dessem informações sobre as estradas que tivemos que extrair da sobrinha de Simone. Lois parecia espantada.

- É, é verdade!

- É. E enquanto rolava toda aquela conversa, o tempo estava voando como acontece quando se sobe de nível. E eles só observando o tempo voar, pode crer. Faziam a marcação do tempo da peça, de modo que, quando terminassem de nos dizer o que tínhamos de saber, não sobraria tempo para as perguntas que não interessavam a eles responder. Acho que queriam passar a ideia de que estavam nos pedindo um serviço público, que seu objectivo era apenas salvar todas aquelas vidas, mas não podiam dizer isso abertamente, porque...

- Porque seria uma mentira, e talvez eles não possam mentir.

- Certo. Talvez não possam mentir.

- Então o que é que eles querem, Ralph? Ele sacudiu a cabeça.

- Não tenho a menor ideia, Lois. Nem mesmo um palpite.

Ela terminou o café, repôs a xícara delicadamente no pires, examinou as pontas dos dedos por um instante, então encarou-o. Mais uma vez ele sentiu o impacto da beleza de Lois - era esmagador.

- Eles eram bons - ela falou. - Eles são bons. Tive essa sensação forte, e você não?

- Tive - concordou quase relutante. Claro que sentira o mesmo. Eles eram tudo que Átropos não era.

- E seja o que for que queriam, você vai tentar deter Ed... você disse que não poderia deixar de tentar como não poderia deixar de se abaixar se alguém atirasse uma bola de beisebol em sua cabeça. Não foi?

- Foi - respondeu ainda mais relutante.

- Então você devia deixar o resto para lá - ela concluiu calmamente, fitando os olhos azuis de Ralph com os seus olhos negros. - Só serve para tomar espaço em sua cabeça, Ralph. Entulhar.

Era verdade o que Lois dizia, mas ele continuava a duvidar que pudesse simplesmente abrir a mão e deixar aquela parte sua se libertar. Talvez a pessoa precisasse viver até os setenta anos para poder reconhecer como era difícil alguém se libertar de sua formação. Ele era um homem que começara a aprender a ser homem antes de Adolf Hitler subir ao poder, e continuava prisioneiro de uma geração que ouvira H.V.

Kaltenborn e as Andrews Sisters pelo rádio - uma geração de homens que acreditava em tomar um drinque à noite e andar mais de um quilómetro para comprar um Camel. Tal formação praticamente negava os pequenos questionamentos morais sobre quem estava trabalhando para o bem e quem estava trabalhando para o mal; o importante era não deixar os valentões chutarem areia em sua cara. Não se deixar conduzir pelo nariz como gado.

É mesmo? Carolyn perguntou achando graça. Que fascinante. Mas me permita será primeira a lhe revelar um segredinho, Ralph: isso é tudo bobagem.

Já era bobagem antes mesmo de Glenn Miller desaparecer no horizonte e continua a ser bobagem agora. A ideia de que um homem tem que fazer o que tem que fazer, bem... talvez haja alguma verdade nisso, ainda hoje.

Em todo o caso, é longa a viagem de volta ao paraíso, não é, querido?

É. Uma viagem muito longa de volta ao paraíso.

- Por que está sorrindo, Ralph?

Salvou-o da obrigação de responder a chegada da garçonete com uma enorme bandeja de comida. Pela primeira vez, ele reparou que havia um button preso no babado de seu avental. A VIDA NÃO É UMA OPÇÃO, dizia.

- Você vai ao comício no centro cívico hoje à noite? - Ralph lhe perguntou.

- Estarei lá - ela respondeu descansando a bandeja na mesa desocupada ao lado, para liberar as mãos. - Do lado de fora. Carregando um cartaz.

Andando em círculos.

- Você é Amiga da Vida? - Lois perguntou, quando a garçonete começou a servir as omeletes e os acompanhamentos.

- Estou viva? - a garçonete perguntou.

- Está, me parece bem viva - Lois disse gentilmente.

- Então, acho que isso faz de mim uma Amiga da Vida, não é mesmo? Matar alguém que poderia um dia escrever um grande poema ou descobrir a cura da AIDS, ou do câncer, para mim é uma coisa totalmente errada. Portanto vou agitar o meu cartaz e garantir que as feministas tipo Norma Kamali e os liberais tipo Volvo possam ver o que está escrito nele: CRIME. Eles odeiam essa palavra. Nunca usam ela nos coquetéis e nas festas para angariar dinheiro. Precisam de ketchup?

- Não - Ralph respondeu. Não conseguia despregar os olhos da moça. Um brilho verde pálido começara a se espalhar à sua volta, parecia quase sair de seus poros. As auras estavam voltando, readquirindo total radiosidade.

- Será que saiu uma segunda cabeça no meu corpo ou outra coisa do género enquanto me distraí? - a garçonete perguntou. Estourou a bola do chiclete, passando-o para o outro lado da boca.

- Estava encarando você? - Ralph sentiu o sangue esquentar seu rosto. Desculpe-me.

A garçonete encolheu os ombros socados, produzindo um movimento lento e fascinante na parte superior de sua aura.

- Procuro não me exaltar com essa história, sabe? Na maioria dos dias, simplesmente faço meu trabalho e fico de boca calada. Mas também não abandono a causa. Sabe há quantos anos participo de manifestações diante daquele matadouro de tijolos aparentes, em dias quentes de fritar traseiro e noites frias de congelar?

Ralph e Lois sacudiram a cabeça.

- Desde 1984. Nove anos. Sabe o que me irrita mais nos opcionistas?

- O quê?

- Eles são os mesmos que querem que as armas sejam banidas para que as pessoas não se matem, os mesmos que dizem que a cadeira eléctrica e a câmara de gás são inconstitucionais porque aplicam um castigo cruel e fora de uso. Dizem essas coisas e depois saem para apoiar leis que permitem aos médicos... médicos!... enfiarem tubos de vácuo nos úteros das mulheres e sugarem aos pedaços os filhos que iam nascer, isso é o que mais me irrita.

A garçonete disse tudo isso - que dava a sensação de um discurso repetido muitas vezes antes - sem erguer a voz ou revelar o menor sinal de raiva exterior. Ralph escutou-a apenas com metade da atenção; a metade maior estava concentrada na aura verde-clara que a cercava. Só que não era toda verde-clara.

Uma mancha preto-amarelada girava lentamente pela parte inferior do lado direito como uma roda suja de carroça. O fígado, Ralph pensou. Ela tem um problema no fígado.

- Você não gostaria realmente que acontecesse alguma coisa a Susan Day, gostaria? - Lois perguntou, lançando à garçonete um olhar aflito.-Você parece uma pessoa muito boa e tenho certeza de que não desejaria isso.

A garçonete soltou um suspiro pelo nariz, produzindo dois jactos de um fino borrifo verde.

- Não sou tão boa quanto pareço, querida. Se Deus fizesse alguma coisa a ela, eu seria a primeira a levantar as mãos para os céus e dizer "Seja feita a sua vontade", pode crer. Mas se você está se referindo a algum maluco, então a conversa é outra. Atitudes extremadas nos puxam para baixo, nos deixam no mesmo nível que as pessoas que queremos deter. Os malucos não pensam como nós. São os coringas do baralho.

- E - concordou Ralph. - E exactamente o que são: coringas do baralho.

- Acho que não quero realmente que aconteça nada de mal àquela mulher disse a garçonete -, mas pode acontecer. Realmente pode. E na minha opinião, se acontecer, a culpa será toda dela. Ela anda com lobos... e mulheres que andam com lobos não devem se surpreender quando levam dentadas.

RALPH não tinha mais certeza se ainda queria continuar a comer depois dessa conversa, mas por fim seu apetite mostrou ter sobrevivido muito bem às opiniões da garçonete sobre o aborto e Susan Day. As auras ajudaram; a comida nunca tivera um sabor tão bom, nem mesmo quando era adolescente, quando seria capaz de comer cinco ou seis refeições por dia, se as conseguisse.

Lois acompanhou-o em cada garfada, pelo menos por algum tempo.

Finalmente empurrou para o lado a sobra das batatas fritas e as duas últimas tiras de bacon. Ralph prosseguiu sozinho e animadamente até a recta de chegada.

Embrulhou o último pedacinho de salsicha no último naco de torrada, meteu tudo na boca, engoliu e recostou-se na cadeira com um imenso suspiro.

- Sua aura ficou dois tons mais escura, Ralph. Não sei se quer dizer que você finalmente satisfez sua fome ou que vai morrer de indigestão.

- Quem sabe as duas coisas - respondeu. - Você está vendo as auras de novo, hein?

Ela confirmou.

- Sabe de uma coisa? De tudo que existe no mundo, o que mais gostaria agora era tirar um cochilo. - Verdade. Agora que se sentia aquecido e alimentado, os últimos quatro meses de longas noites mal dormidas pareciam tê-lo atingido como um saco de pesos de cortina. Suas pálpebras pareciam ter mergulhado em cimento.

- Acho que no momento seria uma má ideia - comentou Lois, em tom assustado. - Uma péssima ideia.

- Suponho que sim - Ralph concordou.

Lois começou a erguer a mão para pedir a conta, mas tornou a baixá-la.

- E se você ligasse para o seu amigo da polícia? Leydecker, não é esse o nome? Será que não poderia nos ajudar? Será que ia querer nos ajudar?

Ralph pesou a sugestão com a acuidade que sua mente sonolenta permitia, então relutantemente abanou a cabeça.

- Não tenho coragem. Que poderíamos contar a ele sem nos comprometer? E isso é apenas uma parte do problema. E se ele interferisse... mas da maneira errada... poderia piorar as coisas ao invés de melhorá-las.

- Tudo bem. - Lois acenou para a garçonete. - Vamos rodar com as janelas escancaradas, e dar uma parada no Dunkin'Donuts em Old Cape para beber enormes xícaras de café, tamanho económico. Por minha conta.

Ralph sorriu. Pareceu-lhe um sorriso grande, tolo e desconexo - quase um sorriso de bêbado.

- Sim senhora.

Quando a garçonete se aproximou e colocou a conta de face para baixo diante dele, Ralph reparou que o button que dizia A VIDA NÃO É UMA ESCOLHA não estava mais preso ao babado do seu avental.

- Olhem-ela começou com uma sinceridade que Ralph achou quase dolorosamente comovente-Sinto muito se ofendi os dois. Vocês vieram aqui para tomar café da manhã e não para ouvir sermão.

- Você não nos ofendeu - disse Ralph. Olhou para Lois que concordou.

A garçonete deu um breve sorriso.

- Obrigada por dizerem isso, mas me excedi com vocês. Qualquer outro dia, não teria agido assim, mas vamos fazer o nosso comício hoje às quatro horas da tarde, e vou apresentar o Sr. Dalton. Eles disseram-me que poderia falar três minutos, e acho que foi o tempo que ensaiei com vocês.

- Não faz mal - disse Lois dando-lhe uma palmadinha na mão. - Verdade.

O sorriso da garçonete foi mais caloroso e sincero desta vez, mas quando ela ia se afastando, Ralph viu a expressão agradável de Lois vacilar.

Seu olhar fixava a bolha preto- amarelada que flutuava logo acima do quadril direito da garçonete.

Ralph puxou a caneta que guardava presa no bolso da camisa, virou a toalhinha de papel, e escreveu rapidamente no verso, algumas palavras em letra de imprensa. Quando terminou, tirou a carteira e colocou uma nota de cinco dólares logo abaixo do que escrevera. Quando a garçonete apanhasse a gorjeta, não poderia deixar de ver o bilhete.

Apanhou a conta e acenou-a para Lois.

- Nossa primeira saída de verdade e acho que vamos ter de rachar a despesa - falou.- Me faltam três dólares se deixar estes cinco para a garçonete. Por favor não me diga que está dura.

- Quem, a rainha do pôquer de Ludlow Grange? Não seja bobo, querido. - E entregou a Ralph uma maçaroca de notas que tirou da bolsa. Enquanto ele separava o necessário, Lois leu o que estava escrito na toalhinha de papel:

"Moça:

Você está sofrendo de insuficiência hepática e devia procurar imediatamente o médico. Sugiro que fique longe do centro cívico hoje à noite."

- • Muito idiota, eu sei - disse Ralph.

Lois deu-lhe um beijinho na ponta do nariz. - Tentar ajudar os outros nunca é uma idiotice.

- Obrigado. Mas ela não vai acreditar. Vai pensar que estamos pau da vida por causa do button e do sermão apesar do que dissemos. O que escrevi é apenas um jeito estranho de nos vingarmos.

- Talvez haja outra maneira de convencê-la.

Lois fixou o olhar na garçonete - parada com o quadril enviesado para um lado, junto ao passa-pratos da cozinha, ela conversava com o cozinheiro, enquanto tomava uma xícara de café - com uma expressão de sombria concentração. Quando Lois fez isso, Ralph viu sua aura normal cinza-azulada escurecer e encolher, transformando-se numa espécie de cápsula ajustada ao corpo.

Não tinha muita certeza do que estava ocorrendo... mas sentia a coisa.

Os pêlos de sua nuca se eriçaram; seus braços cobriram-se de arrepios.

Ela está concentrando energia, ele pensou, ligando todos os interruptores, acionando todas as turbinas, e fazendo isso por uma mulher que nunca viu antes e provavelmente nunca voltará a ver.

Passado um momento, a garçonete também sentiu a coisa. Virou-se para olhar os dois como se tivesse ouvido alguém chamá-la pelo nome. Lois sorriu displicentemente, fez um movimento ondulado com os dedos, mas, quando se dirigiu a Ralph, sua voz tremia com o esforço.

- Estou quase... quase conseguindo.

- Quase conseguindo o quê?

- Não sei. O que preciso. Não vai demorar nada. O nome dela é Zoe, com trema no e. Vá pagar a despesa. Distraia a moça. Procure impedir que olhe para mim. Assim fica mais difícil.

Ralph obedeceu e foi razoavelmente bem sucedido, apesar da insistência com que Zoe procurava olhar para Lois por cima de seu ombro. Da primeira vez em que tentou registrar a despesa na caixa, Zoe obteve um total de US$234.20. Anulou a soma com uma batida impaciente do dedo e, quando ergueu os olhos para Ralph, seu rosto estava pálido e os olhos perturbados.

- Que é que há com sua mulher? - indagou a Ralph. - Pedi desculpas, não pedi? Então por que não pára de olhar para mim daquele jeito?

Ralph sabia que Zoe não podia ver Lois, porque ele estava praticamente dançando para servir de biombo entre as duas, mas também sabia que a moça tinha razão - Lois estava com os olhos concentrados nela. Ele tentou sorrir.

- Não sei do que...

A garçonete sobressaltou-se e lançou um olhar cheio de irritação para o cozinheiro.

- Pare de bater com essas panelas! - gritou, embora o único som que Ralph tivesse ouvido na cozinha fosse o de um rádio tocando música ambiental. Zoe virou-se para Ralph.

- Pombas, parece a guerra do Vietnã. Agora se você puder dizer à sua mulher que é falta de educação...

- Encarar as pessoas? Ela não está encarando ninguém. Não está mesmo. Ralph deu um passo para o lado. Lois tinha ido até a porta e espiava a rua, de costa para os dois. - Está vendo?

Zoè não respondeu por alguns segundos, embora continuasse a olhar para Lois.

Finalmente voltou-se para Ralph.

- Claro. Estou vendo. Agora por que vocês dois não desaparecem daqui?

- Tudo bem: continuamos amigos?

- Como quiser - respondeu Zoè, mas sem querer encará-lo.

Quando Ralph tornou a se juntar a Lois, viu que sua aura voltara ao estado anterior mais difuso, porém estava mais clara do que jamais fora.

- Ainda cansada, Lois? - perguntou-lhe baixinho.

- Não. Aliás, estou me sentindo óptima agora. Vamos. Ralph começou a abrir a porta para ela, mas parou.

- Você apanhou minha caneta?

- Ih, não: acho que continua em cima da mesa.

Ralph voltou para pegá-la. Abaixo de seu bilhete, Lois acrescentara um P.S. em letra cursiva:

Em 1989 você teve um bebé e o entregou para adoção. No hospital Saint Anne, em Providence, estado de Rhode

Island. Procure o médico antes que seja tarde demais, Zoè. Não é brincadeira. Nem armação. Sabemos o que estamos dizendo.

- Nossa! - Ralph exclamou ao se juntar a Lois. - Ela vai levar um susto dos diabos com aquilo.

- Não faz mal, desde que vá ao médico antes que o fígado dela capote.

Ele concordou e os dois saíram.

- VOCÊ descobriu essa informação sobre a criança quando mergulhou na aura dela? - Ralph perguntou ao atravessarem o estacionamento atapetado de folhas.

Lois confirmou com a cabeça. Para além do estacionamento, todo o lado leste de Derry brilhava com uma luz trémula e caleidoscópica. Retornava com força total agora aquela luminosidade secreta que subia em espirais. Ralph estendeu a mão para tocar a lateral do carro. A sensação era a mesma de provar pastilha para tosse, bem lisa, com gosto de anis.

- Não acho que tenha tirado muito daquilo... dela-falou Lois -, mas é como se eu tivesse engolido a moça inteira.

Ralph lembrou-se de algo que lera numa revista científica há pouco tempo.

- Se cada célula contém uma planta completa de nosso corpo - disse ele por que cada pedacinho da aura não conteria uma planta completa do nosso ser?

- Não me parece nada científico, Ralph.

- Suponho que não.

Lois apertou seu braço, sorrindo.

- Mas que parece certo, parece. Ele retribuiu seu sorriso.

- Você precisa captar um pouco de energia também - ela comentou. Continuo a achar errado, como roubar, mas se você não fizer isso, acho que vai desmaiar de repente.

- Assim que puder. No momento, a única coisa que quero é chegar a High Ridge. - Mas assim que se sentou ao volante, sua mão soltou a chave de ignição quase no momento em que a tocou.

- Ralph? Que foi?

- Nada... tudo. Não posso dirigir neste estado. Vamos acabar enganchados num poste telefônico ou dentro da sala de estar de alguém.

Ele olhou para o céu e viu um daqueles enormes pássaros, este transparente, encarapitado em uma antena parabólica no telhado de um apartamento do outro lado da rua. Uma névoa fina cor de limão subia de suas asas pré-históricas que repousavam fechadas.

Você está vendo aquilo? uma parte de sua mente perguntava insegura. Tem certeza, Ralph? Tem realmente certeza?

Estou vendo sem dúvida alguma. Felizmente ou infelizmente, estou vendo tudo... mas se existe uma hora certa para ver tais coisas, não deve ser esta.

Ele se concentrou, e sentiu a piscadela bem no fundo da mente. O pássaro desapareceu como uma imagem fantasma na tela da TV. A paleta de cores que refulgiam calidamente no ar da manhã perdeu a vibração. Ele continuou a perceber aquela outra parte do mundo o tempo suficiente para ver as cores convergirem e criarem a névoa clara azul-acinzentada que ele começara a perceber no dia em que entrara no Day Break, Sun Down para tomar café com torta em companhia de Joe Wyzer, e então a névoa desapareceu também. Ralph sentiu uma necessidade quase esmagadora de se enroscar, fazer o braço de travesseiro e ir dormir. No entanto, começou a respirar longa e lentamente, cada vez mais no fundo dos pulmões, e então virou a chave da ignição. O motor pegou na hora e seu ronco veio acompanhado do tal cleque. Estava muito mais forte agora.

- Que é isso? - Lois perguntou.

- Não sei - mas achava que sabia: ou era uma biela ou um pistão.

Qualquer que fosse o caso, estariam fritos se a peça partisse.

Finalmente o ruído começou a diminuir e Ralph passou a alavanca para marcha. - Me dê um cutucão se eu começar a cabecear, Lois.

- Pode contar comigo - ela garantiu. - Agora vamos.

 

A DUNKIN' Donuts da avenida Newport era um alegre templo de confeitos numa vizinhança de construções urbanas e desbotadas. A maioria fora construída no mesmo ano, 1946, e agora começavam a desmoronar. Aqui era a Old Cape de Derry, onde carros velhos com os silenciosos presos por arames e pára-brisas rachados exibiam adesivos do tipo A CULPA NÃO É MINHA: VOTEI EM PEROT e ESTOU COM N.R.A E NÃO ABRO, onde nenhuma casa estava completa sem ter, no mínimo, uma enorme roda espetada no meio do gramado sem tracto, onde as meninas praticamente explodiam de sexualidade aos dezesseis anos e com muita frequência se transformavam em mães de três filhos, com grandes traseiros e olhos mortiços aos vinte e quatro anos.

Dois garotos em bicicletas fluorescentes com extravagantes guidons retorcidos faziam círculos no estacionamento, cruzando e descruzando o caminho do colega, com uma destreza que sugeria uma sólida formação em videogames e a possibilidade de um futuro bem remunerado como controladores de vôo... isto é, se conseguissem se manter afastados da coca e dos acidentes de carro. Os dois usavam bonés com a aba para trás.

Ralph perguntou-se por um instante por que não estavam na escola numa manhã de sexta-feira, ou pelo menos a caminho da escola, e concluiu que não lhe interessava. Provavelmente a eles tão pouco.

De repente as duas bicicletas, que tinham se evitado com facilidade até aquele momento, colidiram. Os meninos caíram ao chão, mas se puseram de pé quase instantaneamente. Ralph ficou aliviado ao ver que nenhum dos dois se machucara; suas auras sequer piscaram.

- Seu bundão! - o que usava uma camiseta do Nirvana gritou indignado para o amigo. Tinha talvez uns onze anos. - Qual é a sua? Anda de bicicleta como se fosse um velho trepando!

- Ouvi alguma coisa - respondeu o outro, tornando a ajeitar cuidadosamente o boné nos cabelos louro-encardidos. - Um estouro. Você está me dizendo que não ouviu nada! Porra!

- Não ouvi merda nenhuma-o Nirvana Boy respondeu. Estendeu as palmas das mãos agora sujas (ou apenas mais sujas), onde o sangue brotava de dois ou três arranhões.-Olhe só pra isso: seu porra louca!

- Vai morrer por causa disso? - retrucou o amigo.

- Não, mas... - o Nirvana Boy reparou em Ralph que, encostado na sua baleia enferrujada, observava os dois com as mãos nos bolsos.

- Qual é, porra? Tá olhando o quê?

- Você e seu amigo - disse Ralph. - Só.

- Só é?

- É... e mais nada.

O Nirvana Boy olhou para o amigo e voltou a encarar Ralph. Seus olhos luziram de suspeita, o que, na experiência de Ralph, só ocorria ali em Old Cape.

- Está com algum problema?

- Eu não - respondeu Ralph. Inalara um grande sorvo da aura castanho-avermelhada do Nirvana Boy e agora se sentia meio Super-homem voando a toda pelo ar. Sentia-se também como um tarado que molestava crianças.-Estava aqui pensando que quando éramos crianças não falávamos feito você e seu amigo.

O Nirvana Boy olhou-o com insolência.

- Ah é? E falavam feito o quê?

- Não me lembro muito bem - respondeu Ralph -, mas sei que não parecia que tínhamos titica de galinha na cabeça. - E afastou-se quando ouviu a porta de tela bater. Lois saiu do Dunkin' Donuts com um enorme copo de café em cada mão. Os meninos, nesse meio tempo, pularam em cima das bicicletas fluorescentes e se mandaram, o Nirvana Boy lançando a Ralph um último olhar desconfiado por cima do ombro.

- Será que você consegue beber e dirigir ao mesmo tempo? - Lois perguntou, entregando-lhe o café.

- Acho que sim, mas acho também que não preciso mais disso. Estou óptimo, Lois.

Ela seguiu os garotos com o olhar e assentiu.

- Vamos, então.

O MUNDO parecia em chamas a sua volta na estrada 33 a caminho dos antigos pomares Barrett e não precisaram sequer passar para um nível mais elevado, para percebê-lo. Deixaram a cidade para trás e seguiram por entre matas replantadas que o Outono colorira de vermelhos, amarelos e castanhos. O céu era uma alameda azul por cima da estrada, e a sombra do Oldsmobile corria pelo lado, tremulando entre as folhas e galhos.

- Nossa, que beleza - exclamou Lois. - Não é uma beleza, Ralph? - Só é.

- Sabe o que eu gostaria? Mais do que qualquer coisa no mundo?

Ele balançou a cabeça.

- Que pudéssemos encostar o carro, descer e caminhar pela mata um pouco.

Procurar uma clareira, sentar ao sol e espiar as nuvens. Você diria:

"Olhe aquela, Lois, parece um cavalo". E eu diria: "Olhe lá adiante, Ralph, é um homem segurando uma vassoura".

Não seria óptimo?

- Seria - concordou. A mata abria-se à esquerda num corredor estreito;

postes de força desciam perfilados pela encosta íngreme como soldados.

Linhas de alta tensão reluziam como prata ao sol da manhã ligando um poste a outro, finos como teias de aranhas. Tinham as bases fincadas no morro flamejante de sumagres; quando Ralph olhou para o alto da trilha, viu um gavião planando numa corrente de ar, tão invisível quanto o mundo das auras.

- É - repetiu. - Seria óptimo. Quem sabe a gente até vai ter oportunidade de fazer isso um dia. Mas...

- Mas o quê?

- "Cada coisa que faço, faço-a depressa para poder fazer mais outra." disse Ralph.

Ela olhou-o um pouco espantada.

- Que ideia terrível!

- E. Acho que a maioria das verdades são terríveis. Essa é de um livro de poemas chamado Cemitery Nights. Um presente de Dorrance Marstellar no mesmo dia em que entrou no meu apartamento e colocou a lata de spray no bolso do meu blusão.

Ele ergueu os olhos para o espelho retrovisor e divisou pelo menos três quilômetros da estrada 33 para trás, uma faixa negra cortando a mata encandescida. O sol refletiu-se em metal. Um carro. Talvez dois ou três. E pareciam vir em alta velocidade.

- O velho Dor - ela disse pensativa.

- É. Sabe, Lois, acho que ele também está metido nessa história.

- Talvez. E se Ed é um caso especial, vai ver o Dorrance também é.

- Esse pensamento também me ocorreu. O mais interessante nele, no velho

Dor, quero dizer, não no Ed, é que acho que Cloto e Láquesis não sabem que ele existe. É como se ele pertencesse a outra esfera completamente diferente.

- Que é que você está querendo dizer?

- Não tenho muita certeza. Mas o Sr. Cloto e o Sr. Láquesis nunca mencionaram o Dor e isso... isso parece...

Ele tornou a espiar pelo retrovisor. Agora havia um quarto carro atrás dos outros, deslocando-se em velocidade ainda maior, e ele reparou nas luzes azuis piscando no teto dos primeiros três. Carros de polícia. A caminho de Newport? Não, provavelmente de outro local mais próximo.

Talvez estejam atrás da gente, Ralph pensou. Talvez a sugestão de Lois para fazer a Richards esquecer que estivemos lá não tenha durado muito.

Mas será que a polícia mandaria quatro carros atrás de dois sobreviventes da idade de ouro montados num calhambeque? Ralph achava que não. O rosto de Helen lampejou inesperadamente em sua mente. Ele sentiu um frio no fundo do estômago, enquanto manobrava o carro para o acostamento.

- Ralph? Que... - Então ela ouviu o uivo crescente das sirenes e virou-se no banco, arregalando os olhos, apreensiva.

As três primeiras radiopatrulhas passaram roncando, no mínimo a cento e trinta quilómetros por hora, fustigando o carro de Ralph com saibro e fazendo as folhas secas rodopiarem como monges muçulmanos.

- Ralph! - ela quase gritou. - E se for em High Ridge? Helen está lá!

Helen e a neném!

- Eu sei - falou Ralph, e quando o quarto carro passou por eles tão disparado que sacudiu o velho Oldsmobile nos amortecedores, ele sentiu a piscadela interior acontecer outra vez. Ia levando a mão à alavanca de marcha, mas parou-a no ar, a meio palmo da peça. Seus olhos fixaram-se no horizonte. A mancha escura diante dele era menos espectral do que o obsceno cogumelo negro que tinham visto sobre o centro cívico, mas Ralph sabia que se tratava da mesma coisa: um saco mortuário.

- MAIS depressa! - Lois gritou. - Vá mais depressa, Ralph!

- Não posso-respondeu. Seus dentes estavam cerrados, e as palavras saíam como que espremidas. Estou dando o máximo! - E mais, não acrescentou, isto é o mais rápido que já dirigi em trinta e cinco anos, e estou morto de medo.

O ponteiro oscilava um nadinha acima dos cento e trinta quilómetros no marcador; a mata passava por eles como um borrão de vermelhos, amarelos e magentas; sob o capo, o motor deixara de produzir simples cleques, martelava como um pelotão de ferreiros de porre. Apesar disso, o novo trio de radiopatrulhas que Ralph viu pelo espelho ia alcançá-lo sem o menor esforço.

A estrada fazia uma curva fechada logo adiante, à direita. Contrariando todos os seus instintos, Ralph manteve o pé longe do freio. Aliviou o acelerador ao entrarem na curva... e tornou a pisar fundo ao sentir a traseira do carro ameaçar se soltar. Debruçou-se sobre o volante, os dentes superiores apertando o lábio inferior, os olhos muito atentos esbugalhados sob o emaranhado de sobrancelhas grisalhas. Os pneus traseiros do sedan cantaram, e Lois foi jogada contra ele enquanto procurava se firmar com as mãos nas costas do assento. Ralph segurou-se no volante com os dedos suados e esperou que o carro virasse. O Oldsmobile, porém, era um dos últimos monstros estradeiros fabricados por Detroit, largo, baixo e pesado. Venceu a curva e ao fim dela Ralph viu a casa vermelha de fazenda à esquerda. Tinha dois galpões atrás.

- Ralph, é ali que viramos!

- Já vi.

A nova fornada de radiopatrulhas já os alcançara e preparava-se para ultrapassá-los. Ralph encostou o mais que pôde para a direita, rezando para nenhum deles lhe bater por trás àquela velocidade. Nada aconteceu;

os carros passaram chispando numa formação pára- choque contra pára-choque, viraram à esquerda, e começaram a subir o longo aclive que conduzia a High Ridge.

- Segure-se, Lois.

- É o que estou fazendo.

O Oldsmobile quase derrapou quando Ralph entrou à esquerda na estrada que ele e Carolyn sempre chamaram de estrada do pomar. Se aquele caminho de roça fosse asfaltado, o carrão provavelmente teria capotado como num show de acrobacias. Mas não era e, em vez de rolar sobre a porta e o teto, o velho Oldsmobile simplesmente derrapou com exagero, levantando nuvens de poeira. Lois soltou um gritinho abafado e Ralph lhe deu uma olhadela rápida.

- Continue! - Ela apontou para a estrada adiante, com impaciência, e naquele momento pareceu tão estranhamente com Carolyn que Ralph quase pensou estar vendo um fantasma.

Pôs-se a imaginar o que Carolyn, que praticamente fizera carreira de lhe mandar andar depressa nos últimos cinco anos de vida, teria achado desse passeio campestre.

- Não se incomode comigo, fique de olho na estrada!

Mais radiopatrulhas surgiram na estrada do pomar. Quantas eram ao todo?

Ralph não sabia; perdera a conta. Talvez umas doze. Ele encostou o Oldsmobile até as rodas da direita estarem correndo pela crista de uma vala perigosa, e os reforços - três carros com os dizeres POLÍCIA DE

DERRY impressos em dourado nas laterais e dois da polícia estadual passaram voando e lançando novas saraivadas de terra e saibro. Por um instante, Ralph vislumbrou um policial fardado debruçar-se para fora de um carro de Derry, e acenar, e então o Oldsmobile foi engolido por uma nuvem de poeira amarela. Ralph sufocou um novo impulso ainda mais forte de pisar no freio ao pensar em Helen e Nat. No momento seguinte, já conseguia enxergar - pelo menos alguma coisa. A última fornada de carros já se encontrava na metade da subida.

- Aquele tira estava acenando para você, não estava? - Lois perguntou.

- Claro.

- Não vão nos deixar nem chegar perto. - Ela contemplava a mancha escura no alto do morro com olhos arregalados, cheios de tristeza.

- Vamos chegar tão perto quanto precisarmos - Ralph verificou se havia mais tráfego pelo retrovisor e não viu nada além da poeira pairando no ar.

- Ralph?

- Que foi?

- Você subiu de nível? Está vendo as cores?

Ele deu uma olhada rápida em Lois. Ela continuava linda, e maravilhosamente jovem, mas Ralph não via sinal de sua aura.

- Não - respondeu. - E você?

- Não sei. Ainda vejo aquilo. - Ela apontou através do pára-brisa para a mancha escura no alto do morro. - Que é aquilo? Se não é um saco mortuário, então é o quê?

Ele abriu a boca para responder que era fumaça e só havia uma coisa lá em cima que poderia estar em chamas, mas, antes que dissesse uma palavra, ouviram um fantástico estouro vindo do motor do Oldsmobile. A tampa se ergueu com a pressão, como se um punho raivoso a tivesse socado por dentro. O carro deu um único salto para a frente num soluço; as luzes vermelhas acenderam e o motor parou.

Ralph conduziu o Oldsmobile para o acostamento fofo e quando a beirada cedeu sob as rodas do lado direito e o carro caiu na vala, ele teve uma forte e clara intuição de que completara sua última jornada como operador de veículos motores. Tal ideia não foi acompanhada de absolutamente nenhuma tristeza.

- Que aconteceu? - Lois quase gritou.

- Estourou a biela. Parece que vamos ter de fazer o resto da subida a pé, Lois. Saia pelo meu lado para não meter os pés na lama.

BATIA uma brisa fria de oeste. Fora do carro, o cheiro de fumaça do alto do morro tornou- se muito forte. Começaram a subir os últimos quatrocentos metros calados, caminhando de mãos dadas e depressa. Na altura em que avistaram o carro da polícia estadual atravessado no alto da estrada, a fumaça se erguia em nuvens acima das árvores e Lois respirava com dificuldade.

- Lois? Você está bem?

- Estou óptima - ofegou. - É só que sou muito pesa... Pam-pam-pam: tiros de pistola para além do carro que bloqueava a estrada. Seguiu-se um som rouco e rápido como uma tosse que Ralph identificou facilmente pelas reportagens de TV sobre as revoluções em países do terceiro mundo e sobre os tiroteios nas cidades americanas de terceiro mundo: uma arma automática atirando sem parar.

Ouviram-se mais tiros de pistola e depois o estampido mais forte e áspero de uma escopeta. Acompanhou-os um berro de dor que fez Ralph se encolher e querer tapar os ouvidos. Achou que era um grito de mulher e subitamente lembrou-se de uma coisa que vinha lhe escapando: o nome da mulher que John Leydecker mencionara. McKay. Sandra McKay.

A ocorrência deste pensamento então encheu-o de desarrazoado horror.

Tentou se convencer de que o autor do grito poderia ter sido qualquer um - até mesmo um homem, às vezes os homens gritavam como mulheres quando eram feridos -, mas ele sabia que não era verdade. Era ela. Eram eles. Os malucos do Ed. Tinham preparado um ataque a High Ridge.

Mais sirenes às suas costas. O cheiro de fumaça, mais denso agora. Lois fitava-o com uma expressão de desalento e medo, ainda respirando mal.

Ralph olhou para o topo do morro e viu uma caixa de correio prateada a um lado da estrada. Não tinha nome, naturalmente; as mulheres que dirigiam High Ridge tinham feito o possível para serem discretas e manter o anonimato, o que não lhes rendera benefício algum hoje. A bandeirinha da caixa de correio estava erguida. Alguém colocara na caixa uma carta para o carteiro levar. Ralph lembrou-se da carta que Helen lhe enviara de High Ridge - uma carta cautelosa, mas cheia de esperanças.

Mais tiroteio. O silvo de um ricochete. Vidro partido. Um urro que poderia ter sido de raiva, mas provavelmente expressava dor. O crepitar voraz das chamas altas engolindo madeira seca. O trinado de sirenes. E os negros olhos ibéricos de Lois fixos nele porque ele era o homem e ela fora condicionada a acreditar que os homens sabiam o que fazer em tais situações.

Então faça alguma coisa! gritou para si mesmo. Pelo amor do bom Deus, faça alguma coisa!

Mas o quê? O quê?

- PICKERING! - uma voz amplificada pelo megafone berrou do ponto em que a estrada cedia lugar a um arvoredo de pequenos abetos usados como árvores de Natal. Ralph agora distinguia fagulhas vermelhas e línguas alaranjadas na fumaça que subia espessa da mata de abetos. - PICKERING, HÁ MULHERES AÍ DENTRO! NOS DEIXE SALVAR AS MULHERES!

- Ele sabe que há mulheres-Lois murmurou.-Será que não entendem que ele sabe disso? Será que são imbecis, Ralph?

Um berro estridente e trêmulo respondeu ao tira com o megafone e Ralph levou alguns segundos para perceber que a resposta era uma espécie de risada. Ouviu-se o matraquear de tiros de automática. Foi revidado com uma barragem de tiros de pistola e de escopeta.

Lois apertou a mão dele com os dedos gelados.

- Que vamos fazer, Ralph? Que vamos fazer agora?

Ele observou a grande nuvem cinza-escura se elevar sobre as árvores e depois as radiopatrulhas que subiam o morro desembestadas - mais de meia dúzia desta vez - e finalmente o rosto pálido e tenso de Lois. Sua cabeça clareou um pouco - não muito, mas o suficiente para deixá-lo perceber que realmente só havia uma resposta àquela pergunta.

- Vamos subir - falou.

PLIM! e as chamas que se projectavam do arvoredo de abetos mudaram do laranja para o verde. Os estalidos das chamas tornaram-se abafados como o barulho de fogos disparados dentro de uma caixa fechada. Ainda segurando a mão de Lois, Ralph a fez dar a volta ao pára-choque dianteiro do carro de polícia que fechava a estrada.

Os carros recém-chegados paravam atrás dessa barreira. Antes mesmo de parar, despejavam homens fardados de azul. Vários carregavam rifles de cano curto e a maioria usava coletes pretos acolchoados. Um policial saltou por dentro de Ralph como uma rajada de vento morno antes que ele conseguisse se desviar: chamava-se David Wilbert e imaginava que a mulher talvez tivesse um caso com o chefe na imobiliária onde trabalhava como secretária. O problema com a mulher, porém, passara a segundo plano (pelo menos temporariamente) diante da necessidade quase avassaladora que David Wilbert sentia de urinar e da cantilena constante e assustadora que envolvia seus pensamentos como uma serpente:

- Você não vai se desgraçar, você não vai se desgraçar, você não vai, você não vai, você não vai.

- PICKERING! - atroou a voz amplificada, e Ralph descobriu que podia até sentir as palavras em sua boca, como pequenas drágeas prateadas. – SEUS AMIGOS ESTÃO MORTOS, PICKERING! JOGUE SUA ARMA NO CHÃO E SAIA PARA FORA! NOS DEIXE SALVAR AS MULHERES!

Ralph e Lois contornaram o canto da casa, invisíveis aos homens que corriam à sua volta, e se depararam com uma confusão de radiopatrulhas estacionadas no local em que a estrada se transformava em um caminho margeado de jardineiras com flores vistosas.

O valor do toque feminino, pensou Ralph.

O caminho desembocava no jardim de entrada de um casarão branco de fazenda, de uns setenta anos, no mínimo. Tinha três andares, duas alas e uma longa varanda acompanhando toda a fachada que descortinava uma fabulosa vista para oeste, onde se erguiam pálidas montanhas azuis à luz da manhã. A casa de vista tranquila abrigara em tempos a família Barrett e o seu negócio de maçãs e, mais recentemente, dezenas de mulheres surradas e cheias de medo, mas uma olhada foi suficiente para Ralph saber que não abrigaria mais ninguém amanhã a essa hora. A ala sul encontrava-se em chamas, e aquele lado da varanda começava a arder; línguas de fogo saíam pelas janelas e lambiam lascivamente os beirais, arremessando para o alto pedaços de telha incandescentes. Ralph viu uma cadeira de balanço de vime queimando numa ponta da varanda. Um cachecol que alguém tricotava pendia de um braço da cadeira; as agulhas refulgiam incandescidas no ar. Em algum lugar, sininhos de vento tocavam uma melodia desvairada e repetitiva.

Uma mulher de uniforme verde de combate e blusão militar esparramava-se morta no chão, com a cabeça caída nos degraus da varanda, olhando fixamente para o céu através das lentes ensangüentadas dos óculos.

Havia terra em seus cabelos, uma pistola na mão, e um buraco negro e irregular na altura do estômago. Um homem tombara sobre a grade do lado norte da varanda com um pé calçado de bota apoiado num aparador de grama. Usava também roupa de combate e blusão militar. Um rifle de assalto com o pente curvo espetado para fora caíra num canteiro. O sangue escorria de seus dedos e pingava pelas unhas. Na visão aguçada de Ralph, as gotas pareciam negras e mortas.

Felton, pensou. Se a polícia ainda está berrando para o Charlie Pickering - se o Pickering estiver lá dentro -, então este deve ser o Frank Felton. E Susan Day? Ed está em algum ponto da costa - Lois parecia segura disso, e achaque tem razão -, mas se Susan Day estiver lá? Nossa, será possível.

Supunha que era, mas as possibilidades não importavam - não agora. Helen e Natalie certamente estavam lá dentro, e Deus sabe quantas outras mulheres aterrorizadas, e isso importava.

Ouviu-se um ruído de vidros se partindo no interior da casa após uma explosão abafada - quase um sopro. Ralph viu novas chamas saltarem por trás dos vidros da porta da rua.

Coquetéis molotov, pensou. Charlie Pickering finalmente arranjou uma oportunidade para atirá-los. Que bom para ele.

Ralph não sabia quantos tiras havia entrincheirados atrás dos carros no caminho junto à casa - pareciam no mínimo trinta -, mas distinguiu de pronto os dois que tinham prendido Ed Deepneau. Chris Nell achava-se agachado atrás do pneu dianteiro do carro da polícia de Derry mais próximo da casa, e John Leydecker apoiava-se sobre um joelho ao lado dele. Era Nell quem segurava o megafone e quando Ralph e Lois se acercaram da barricada da polícia, ele olhou para Leydecker. Leydecker balançou a cabeça, apontou para a casa e ergueu as palmas das mãos para Nell num gesto que Ralph não teve dificuldade em decifrar: Calma e tenha cuidado. Decifrou também algo mais perturbador na aura de Chris Nell - o rapaz estava demasiado excitado para ter cuidado. Demasiado ligado. E naquele instante, quase como se o pensamento de Ralph o provocasse, a aura de Nell começou a mudar de cor.

Passou de azul-claro para cinza-escuro e preto-morte com sinistra velocidade.

- ENTREGUE-SE, PICKERING! - Nell gritou, inconsciente de que era um morto respirando.

A coronha de um rifle de assalto estilhaçou a vidraça de uma janela no andar térreo na ala norte e desapareceu no interior da casa. No mesmo instante, a bandeira da porta de entrada explodiu, despejando uma chuva de vidro na varanda. As chamas irromperam pela abertura. Um segundo depois, a própria porta se abriu num arranco, como se fosse empurrada por uma mão invisível. Nell esticou-se para a frente, talvez acreditando que o atirador finalmente caíra em si e pretendia se entregar.

Ralph gritou: - Puxe-o para trás, Johnny! PUXE-O PARA TRÁS!

O rifle tornou a aparecer, desta vez pelo cano.

Leydecker levou a mão ao colarinho de Nell, mas foi demasiado lento. O rifle automático disparou suas séries de tossidas rápidas e Ralph ouviu o tliml tlim! tlim! metálico das balas furando a chapa fina de aço da radiopatrulha. A aura de Chris Nell enegrecera completamente agora transformara-se num saco mortuário. Ele se contorceu para um lado ao ser atingido por uma bala no pescoço, desgarrou-se da mão de Leydecker em seu colarinho e tombou esparramado no jardim sacudindo um pé espasmodicamente. O megafone caiu de sua mão emitindo um breve grasnido. Um tira atrás de outro carro soltou uma exclamação de surpresa e horror. O grito de Lois foi muito mais alto.

Mais balas pipocaram pelo chão na direcção de Nell e abriram furinhos negros nas pernas de sua farda azul. Ralph via indistintamente o homem dentro do saco mortuário que o sufocava; ele lutava às cegas para rolar o corpo e se levantar. Havia alguma coisa particularmente horrível em seus esforços - parecia a Ralph observar uma criatura apanhada numa rede afogando-se em águas rasas e imundas.

Leydecker saltou de trás do carro e, quando seus dedos desapareceram na membrana negra que envolvia Chris Nell, Ralph ouviu o velho Dor dizer, Eu não tocaria mais nele se fosse você, Ralph - não consigo ver suas mãos.

Lois: Não! Não, ele está morto, ele já está mortal A arma que saía pela janela começara a se deslocar para a direita. Girava sem pressa na direcção de Leydecker, o homem que a empunhava não se intimidara - nem se ferira - com a saraivada de balas que os outros policiais lhe dirigiram. Ralph ergueu a mão direita e baixou-a naquele gesto de caratê mas, desta vez, ao invés de uma cunha luminosa, seus dedos produziram algo semelhante a uma grande lágrima azul. Ela se espalhou pela aura cor de limão de Leydecker na hora em que o rifle que apontava da janela abriu fogo. Ralph viu duas balas se cravarem na árvore à direita de Leydecker, lançando lascas do tronco no ar e abrindo furos negros na camada branco- amarelada do lenho exposto. Uma terceira atingiu a película azul que cobrira a aura de Leydecker - Ralph vislumbrou um lampejo vermelho escuro à esquerda da têmpora do detective e ouviu um zumbido grave quando a bala ricocheteou ou saiu saltando como uma pedra chata pela superfície da água.

Leydecker puxou Nell de volta para trás do carro, olhou-o, e em seguida abriu com um tranco a porta do carro e se atirou no assento do motorista. Ralph já não o via, mas o escutava berrar com alguém pelo rádio, perguntando onde tinham se metido as porras dos carros de socorro.

Mais vidros partidos, enquanto Lois puxava freneticamente o braço de Ralph, apontando para alguma coisa - um tijolo que rolava para o jardim.

Caíra de uma das janelas baixas e estreitas na base da ala norte. Essas janelas ficavam quase ocultas pelos canteiros que contornavam a casa.

- Socorro!-gritou uma voz pela vidraça partida, na hora em que o homem do rifle de assalto disparava instintivamente no tijolo que rolava, levantando nuvens de poeira vermelha e partindo-o em três pedaços irregulares. Nem Ralph nem Lois jamais tinham ouvido aquela voz gritar, mas ambos reconheceram-na imediatamente; era a voz de Helen Deepneau.

- Socorro, por favor! Estamos no porão! Temos crianças conosco! Por favor não nos deixem morrer queimadas, TEMOS CRIANÇAS CONOSCO!

Ralph e Lois trocaram um único olhar, os olhos arregalados, então correram para a casa.

DOIS vultos fardados, parecendo mais jogadores de futebol americano do que tiras com seus volumosos coletes, avançaram de trás de uma radiopatrulha, e correram em direcção à varanda com os rifles de cano curto em posição de tiro. Ao cruzarem o jardim em diagonal, Charlie Pickering debruçou-se para fora da janela, ainda gargalhando desvairadamente, os cabelos grisalhos mais cómicos que nunca. A barragem de fogo disparada contra ele foi tão fantástica, que despejou sobre ele uma chuva de lascas da janela e até derrubou uma calha de água enferrujada - a peça bateu na varanda com um baque sonoro -, mas nem uma única bala o atingiu.

Como é que eles podem não atingi-lo? pensou Ralph enquanto galgavam a varanda em direcção às chamas cor-de-visgo que agora se enfunavam pela porta da frente aberta. Deus dos céus, estão atirando quase à queima-roupa, como é possível não atingi-lo?

Mas ele sabia como... e o porquê. Cloto contara que tanto Átropos quanto Ed Deepneau tinham sido cercados por forças malignas que os protegiam. Não era possível que essas forças agora cuidassem de Charlie Pickering, da mesma forma que Ralph cuidara de Leydecker quando ele abandonara a cobertura da radiopatrulha para recolher o colega moribundo?

Pickering abriu fogo contra os soldados da tropa estadual, disparando sem parar. Mirava baixo procurando evitar a protecção dos coletes que os soldados usavam e atingia-os nas pernas, derrubando-os. Um deles tombou num amontoado silencioso; o outro retrocedeu de rastros pelo caminho que viera, berrando que fora baleado, fora baleado, ah porra, fora baleado para valer.

- Churrasco! - Pickering berrou pela janela naquele tom de galhofa. - Churrasco!

Churrasco! Piquenique no campo! Queimem as piranhas! O fogo de Deus! O fogo sagrado de Deus!

Ouviam-se mais gritos agora, que pareciam vir por baixo dos pés de Ralph e, quando ele olhou, viu uma cena terrível: uma mistura de auras infiltrava-se por entre as tábuas do piso da varanda como vapor, a variedade de cores empanada pelo fulgor vermelho-sangue que subia ao mesmo tempo... e as envolvia. Essa forma vermelho-sangue não era igual à nuvem escura que se formara sobre as cabeças do Menino Verde e do Menino Laranja no estacionamento do mercadinho, mas Ralph achava que era muito semelhante; a única diferença era que a forma presente nascera do medo ao invés da raiva e da agressão.

- Churrasco! - Charlie Pickering gritava, e acrescentara alguma coisa sobre a morte das bocetas do demónio. Subitamente Ralph odiou-o mais do que qualquer coisa na vida.

[- Vamos, Lois: vamos pegar aquele cretino.] E tomou-a pela mão, puxando-a para o interior da casa em fogo.

A PORTA da varanda abria para um corredor central que ligava a frente aos fundos da casa, e toda a sua extensão estava agora tomada pelas chamas. Aos olhos de Ralph, pareciam verde-berrantes e, quando as atravessaram, ele e Lois sentiram frio - foi como passar por camadas de gaze embebidas em mentol. O crepitar da casa em fogo era abafado; os tiros tinham se tornado tão fracos e insignificantes quanto uma trovoada para alguém nadando debaixo de água... e era essa a melhor descrição, concluiu Ralph - estavam debaixo de água.

Ele e Lois eram seres invisíveis nadando em um rio de fogo.

Ele apontou para uma porta à direita e lançou um olhar de dúvida para Lois que confirmou com um aceno de cabeça. Ralph levou a mão à maçaneta e fez uma careta de desgosto ao ver seus dedos atravessarem-na. Antes assim, é claro; se tivesse conseguido agarrá-la, teria deixado pelo menos duas camadas da pele dos dedos penduradas na maçaneta de latão como tiras grelhadas na brasa.

- Temos de atravessá-la, Ralph!

Avaliou Lois com o olhar, sentiu grande medo e preocupação em seus olhos, mas nenhum pânico, e retribuiu o aceno. Atravessaram a porta juntos na hora em que o lustre a meio caminho do corredor despencava com um estrondo dissonante de pingentes de vidro e corrente de ferro.

Encontraram uma sala de visitas do outro lado, e o que viram ali fez o estômago de Ralph se contrair de horror. Duas mulheres tinham sido encostadas contra a parede abaixo de um grande cartaz de Susan Day vestindo jeans e camisa estilo faroeste (NÃO DEIXE ELE CHAMÁ-LA DE BONECA A NÃO SER QUE VOCÊ QUEIRA QUE ELE A TRATE COMO TAL, alertava o cartaz). As duas tinham sido mortas com tiros na cabeça, à queima-roupa; miolos, retalhos de escalpo e lascas de ossos espalhavam-se pelo papel de parede florido e as botas de vaqueiro pespontadas de Susan Day. Uma das mulheres estava grávida. A outra era Gretchen Tillbury.

Ralph lembrava-se do dia em que Gretchen estivera em sua casa em companhia de Helen para preveni-lo e lhe entregar a lata de um produto chamado Guarda-Costas; naquele dia ele a achara linda... mas naturalmente naquele dia sua cabeça bem-feita ainda estava intacta e metade de seus bonitos cabelos louros não tinham sido queimados por um disparo de rifle à queima-roupa. Quinze anos depois de ter escapado por um triz de morrer nas mãos de um marido violento, outro homem encostara uma arma na cabeça de Gretchen Tillbury e a mandara para o espaço. Ela nunca mais contaria a outra mulher como arranjara aquela cicatriz na coxa esquerda.

Por um momento terrível, Ralph pensou que ia desmaiar. Concentrou-se e controlou as emoções pensando em Lois. Sua aura ficara vermelho-escura com o choque. Ziguezagues negros a percorriam e atravessavam. Lembravam o eletrocardiograma de alguém sofrendo um ataque cardíaco fatal.

[- Ah Ralph! Ah, Ralph, meu Deus!]

Alguma coisa explodiu na ala sul da casa com força suficiente para arrombar a porta que tinham acabado de atravessar. Ralph calculou que deviam ser os cilindros de gás... não que isso fizesse muita diferença àquela altura. Pedaços de papel de parede em chamas voavam vindos do corredor e ele viu as cortinas da sala, e o que restava dos cabelos de Gretchen Tillbury, voarem em direcção à porta sugados pelo fogo com o ar da sala que o alimentava.

Quanto tempo levaria para as chamas transformarem em torresmos as mulheres e crianças no porão? Ralph não sabia e suspeitava que não fazia muita diferença, tampouco; as pessoas presas lá em baixo morreriam por sufocamento ou inalação de fumaça muito antes de começarem a torrar.

Lois contemplava horrorizada as mulheres mortas. As lágrimas escorriam pelo seu rosto. A luz espectral cinza-clara emitida pelas pegadas que tinham deixado ao passar lembravam vapor de gelo seco. Ralph conduziu Lois ao outro extremo da sala em direcção a uma grande porta fechada, deteve-se um instante para tomar fôlego, enlaçou-a pela cintura e atravessaram juntos a porta.

Houve um momento de escuridão em que não apenas o nariz mas todo o seu corpo pareceu se impregnar do aroma doce de serragem, e então saíram em outro cómodo, a sala no extremo norte da casa. Talvez tivesse sido um escritório, mas fora há muito tempo convertida em sala de terapia de grupo. No centro, mais ou menos uma dúzia de cadeiras desmontáveis achavam-se dispostas em círculo. As paredes estavam cobertas de placas com dizeres do género: NÃO POSSO ESPERAR QUE NINGUÉM ME RESPEITE ATÉ EU MESMA ME RESPEITAR. Em um quadro-negro a um lado da sala, alguém escrevera em letra de imprensa SOMOS UMA FAMÍLIA, TODAS AS MINHAS IRMÃS ESTÃO COMIGO. Agachado próximo ao quadro, junto a uma das janelas que se abriam para leste sobre a varanda, metido também num colete acolchoado sobre a camiseta de Snoopy, que

Ralph teria reconhecido em qualquer lugar, encontrava-se Charlie Pickering.

- Façam churrasco dessas mulheres atéiasl - ele gritava. Uma bala passou assoviando pelo seu ombro; outra cravou-se na moldura da janela à sua direita e arremessou uma lasca de madeira contra a lente de seus óculos de aros de tartaruga. A ideia de que Charlie recebia protecção especial recorreu a Ralph, desta vez com força de convicção.

- Piquenique de lésbicas! Façam elas provarem do remédio que receitam para as outras!

Façam elas sentirem o que é bom!

[- Fique aí, Lois - no nível onde está.]

[- Que é que você vai fazer?]

[- Cuidar dele.]

[- Não mate o cara, Ralph! Por favor não o mate!]

Por que não?-pensou Ralph com amargura. Faria um favor ao mundo. O que sem dúvida era verdade, mas não era hora para discussões.

[- Tudo bem, Lois, não vou matá-lo! Agora fique aí, Lois - tem bala demais voando para a gente se arriscar a descer.]

Antes que ela pudesse responder, Ralph se concentrou, ordenou a piscadela, e voltou ao nível dos Vidas-Curtas. Aconteceu tão depressa e com tanta intensidade desta vez que deixou-o sem fôlego, como se tivesse saltado de uma janela do primeiro andar para um piso duro de concreto. A cor desapareceu parcialmente do mundo e os ruídos tomaram o seu lugar: o crepitar abafado do fogo, agora forte e próximo; a explosão de tiros de pistola disparados em rápida sucessão. O ar tinha gosto de fuligem, e a sala escaldava. Alguma coisa que pareceu a Ralph um insecto passou zumbindo pelo seu ouvido. Ele teve a impressão de que era um insecto calibre 45.

É melhor andar depressa, querido, aconselhou. Quando as balas atingem você neste nível elas matam, esqueceu-se?

Não se esquecera.

Ralph correu abaixado em direcção às costas de Pickering. Seus pés esmagaram estilhaços de vidro e lascas de madeira, mas Pickering não se virou. Além da arma automática que empunhava, tinha um revólver no quadril e uma pequena mochila verde junto ao pé esquerdo. A sacola estava aberta e Ralph viu dentro uma quantidade de garrafas de vinho.

As bocas tinham sido arrolhadas com trapos molhados.

- Mate as piranhas! - Pickering gritou, varrendo o jardim da entrada com outra saraivada de balas. Ao encaixar um novo pente, sua camiseta levantou, revelando outros três ou quatro metidos sob o cinto. Ralph enfiou a mão na mochila aberta, agarrou pelo gargalo uma das garrafas cheias de gasolina, e vibrou-a contra o lado da cabeça de Pickering. No movimento descobriu por que o cara não ouvira sua aproximação: estava usando protectores de ouvido para atiradores. Antes que Ralph tivesse tempo de reflectir sobre a ironia de um homem em missão suicida se preocupar em proteger a audição, a garrafa explodiu contra a têmpora de Pickering, cobrindo-o com um líquido de cor âmbar e cacos de vidro verde. Ele cambaleou para trás e levou a mão à cabeça, ferida em dois lugares. O sangue jorrou por entre seus dedos longos-dedos que deviam ter pertencido a um pianista ou a um pintor, pensou Ralph - e escorreu pelo seu pescoço. Ele se virou, os olhos arregalados, expressando surpresa por trás das lentes borradas dos óculos, os cabelos eriçados para o alto, fazendo-o parecer um homem que acabou de receber uma tremenda descarga elétrica em um desenho animado.

- Você! - exclamou. - Centurião a mando do diabo! Matador ateu de bebés!

Ralph pensou nas duas mulheres na sala ao lado e mais uma vez se sentiu engolfado pela raiva... só que raiva era uma palavra muito fraca, fraca demais. Sentiu os nervos arderem sob a pele. E o pensamento que martelou sua mente foi que uma delas estava grávida então quem era o matador de bebés, uma delas estava grávida então quem era o matador de bebéês, uma delas estava grávida então quem era o matador de bebés.

Mais um insecto de grosso calibre zumbiu pelo seu rosto. Ralph nem reparou. Pickering tentava erguer o rifle com que certamente matara Gretchen Tillbury e a amiga grávida.

Ralph arrebatou-lhe a arma das mãos e apontou-a para ele. Pickering guinchava de medo.

Esse som enfurecia Ralph ainda mais, e ele se esqueceu da promessa que fizera a Lois.

Ergueu o rifle com a firme intenção de esvaziá-lo no homem que agora se encolhia desprezivelmente contra a parede (no calor do confronto, não ocorreu a nenhum dos dois que não havia pente no rifle), mas, antes que pudesse puxar o gatilho, distraiu-o uma luz fulgurante que surgiu no ar ao seu lado. A princípio não tinha forma definida, um fabuloso caleidoscópio cujas cores tinham escapado da bisnaga que deveria contê-las, e então assumiu a forma de uma mulher com uma longa e etérea fita cinzenta saindo da cabeça.

[- Não o mate.]

Ralph, por favor não o mate!

Por um instante, ele vislumbrou o quadro-negro e leu através da mulher a citação escrita a giz, mas as cores foram se transformando em roupas, cabelos e pele quando ela acabou de descer. Pickering encarou-a com os olhos vesgos de terror. Guinchou outra vez, e a entreperna de suas calças de combate escureceu. Ele enfiou os dedos na boca, como se quisesse sufocar o som que produzia.

- Um fantasma! - ele gritou com a boca cheia de dedos. - Um centurião e um fantasma!

Lois não lhe deu atenção e agarrou o cano do rifle.

- Não o mate, Ralph! Não!

Repentinamente Ralph enfureceu-se contra ela também.

- Você não está entendendo, Lois? Não percebeu? Ele tem consciência do que está fazendo! Em algum nível, ele sabe: vi isso em sua maldita aura.

- Não importa - ela contrapôs, ainda empurrando o cano do rifle de forma a apontá-lo para o chão. - Não importa o que ele sabe ou não sabe. Não devemos fazer o que os outros fazem. Não devemos nos igualar a eles.

- Mas...

- Ralph, quero largar este cano. Está quente. Está queimando meus dedos.

- Tudo bem - respondeu, largando o rifle ao mesmo tempo em que ela. A arma caiu no chão entre os dois, e Pickering, que escorregava lentamente pela parede com os dedos ainda na boca e os olhos brilhantes e vidrados em Lois, precipitou-se para apanhá-lo com a velocidade de uma cascavel.

O que Ralph fez então, foi sem premeditação nem raiva - agiu puramente por instinto: esticou as mãos para Pickering e agarrou-o pelos lados do rosto. Nesse momento, algo faiscou em sua mente, algo que lembrava as lentes de uma potente luneta. Ele subiu vários níveis de chofre, atingindo em uma fração de segundo um nível onde nenhum dos dois jamais estivera. No fim da subida, sentiu uma força terrível relampejar em sua cabeça e explodir pelos seus braços. Então, ao descer, ele ouviu um estouro, um som oco mas enfático, inteiramente diferente do ruído das armas que continuavam a atirar do lado de fora.

O corpo de Pickering contorceu-se galvanizado, e suas pernas se esticaram para a frente com tal força, que um dos sapatos voou longe. As nádegas se ergueram retesadas e bateram no chão. Os dentes se fecharam sobre o lábio inferior e o sangue esguichou de sua boca. Por um instante, Ralph teve quase certeza de ver minúsculas faíscas azuis soltarem-se das pontas de seus cabelos de palhaço. Então desapareceram e Pickering desmontou contra a parede.

Fitava Ralph e Lois com um olhar de onde sumira toda a preocupação.

Lois berrou. A princípio Ralph pensou que estivesse berrando pelo que ele fizera a

Pickering, e então viu que ela dava tapas na cabeça. Um pedaço de papel de parede incandescente caíra em seus cabelos ateando-lhes fogo.

Ele passou um braço pelo corpo dela, apagou as chamas com a mão, e protegia-a com o próprio corpo quando uma nova saraivada de balas de rifle e escopeta atingiu a ala norte.

Ralph apoiara a mão livre na parede, e viu um buraco de bala aparecer entre o terceiro e o quarto dedos como num passe de mágica.

- Suba, Lois! Suba [agora mesmo!]

Subiram juntos, virando fumaça colorida diante dos olhos vagos de Pickering... e desapareceram.

- QUE foi que você fez com ele, Ralph? Por um segundo você desapareceu, subiu, e então... e então ele... que foi que você fez?

Lois contemplava Charlie Pickering paralisada de horror. Pickering continuava sentado contra a parede numa posição quase idêntica a das duas mulheres mortas na sala ao lado.

Enquanto Ralph o observava, uma grande bolha de saliva rosada apareceu entre seus lábios frouxos, cresceu e espocou.

Ralph virou-se para Lois, tomou-a pelos braços acima dos cotovelos e formou uma imagem em seu cérebro: a caixa do disjuntor no porão de sua casa na Avenida Harris. Mãos abriram a caixa, e em seguida desligaram - todos os circuitos de uma vez. Não tinha bem certeza se a imagem era correcta - tudo se passara depressa demais para certezas -, mas achava que estava bem próxima.

Os olhos de Lois se arregalaram um pouco, mas em seguida ela confirmou que compreendera com um aceno de cabeça. Olhou para Pickering e depois para Ralph.

[- Foi ele quem provocou, não foi? Você não fez de propósito.]

Ralph confirmou e então ouviram-se novos gritos que vinham de baixo, gritos que ele seguramente não captava com os ouvidos.

[- Lois?]

[- Claro, Ralph: agora mesmo.]

Ele escorregou as mãos pelos braços dela e por suas mãos, como os quatro tinham feito no hospital, só que desta vez eles desceram ao invés de subir, submergindo pelo chão de tábuas como se fosse uma piscina. Ralph mais uma vez teve a sensação do fio de escuridão passando diante de seus olhos, até que saíram num porão, pousando lentamente no piso de cimento sujo. Ele viu as sombras dos canos da caldeira, pretos de fuligem, um removedor de neve coberto por um grande plástico transparente e empoeirado, ferramentas de jardinagem enfileiradas contra um cilindro pouco visível que era provavelmente o aquecedor de água, e caixas de papelão empilhadas contra uma parede de tijolos aparentes - sopas, feijões, molho de espaguete, café, sacos de lixo, papel higiénico. Todas essas coisas tinham uma aparência ligeiramente alucinatória, como se não estivessem ali, e a princípio Ralph pensou que fossem o efeito colateral da passagem de um nível para outro. Então percebeu que era apenas a fumaça que invadia rapidamente o porão.

Havia dezoito ou vinte pessoas amontoadas a um canto de uma sala comprida e escura, na maioria mulheres. Ralph também viu um menininho de uns quatro anos agarrando-se aos joelhos da mãe (o rosto da Mamãe tinha marcas de hematomas antigos que poderiam ter sido acidentais mas provavelmente eram intencionais), uma menininha uns dois anos mais velha com o rosto escondido na barriga da mãe... e viu Helen. Ela segurava Natalie nos braços e soprava o rosto da neném, como se assim pudesse dispersar a fumaça do ar. Nat tossia e gritava em espasmos sufocados e desesperados. Atrás das mulheres e crianças, Ralph avistou uma escada empoeirada, cujo topo desaparecia na escuridão.

[- Ralph? Temos de descer agora, não?]

Ele confirmou, produziu aquela piscadela mental e, de repente, estava tossindo também procurando expelir dos pulmões a fumaça acre. Materializaram-se bem em frente ao grupo junto à escada, mas apenas o menininho abraçado aos joelhos da mãe reagiu. Naquele momento, Ralph teve certeza de que já o vira antes, mas não fazia ideia de onde-o dia de fim de verão em que avistara o menino jogando bola com a mãe no parque Strawford não podia estar mais longe de seus pensamentos naquele momento.

- Olhe, Mamãe! - o menino chamou, apontando em meio a um acesso de tosse. - Anjos!

Mentalmente Ralph ouvia Cloto dizer Não somos anjos, Ralph, e acto contínuo ele se adiantou para Helen em meio à fumaça espessa, sem largar a mão de Lois. Seus olhos já estavam ardendo e lacrimejando, e ele ouvia Lois tossir. Helen o fitava aturdida, sem reconhecê-lo - fitava-o do mesmo jeito que o fizera em agosto, quando Ed a espancara tão brutalmente.

- Helen? - Ralph!

- Essa escada, Helen! Aonde vai dar?

- Que está fazendo aqui, Ralph? Como chegou a... - Ela teve um acesso de tosse e se dobrou. Natalie quase caiu de seus braços e Lois aparou a criança aos berros antes que Helen a largasse.

Ralph olhou para a mulher à esquerda de Helen, constatou que parecia ainda mais inconsciente do que ocorria, então agarrou Helen de novo e sacudiu-a.

- Aonde vai dar essa escada? Ela espiou por cima do ombro.

- É o acesso externo ao porão - respondeu. - Mas não adianta. Está... - Dobrou-se tossindo secamente. O som era estranhamente parecido com os disparos da arma de Charlie

Pickering. - Está trancado - Helen terminou. - A mulher gorda trancou. Tinha um cadeado no bolso. Vi quando passou o cadeado na porta. Por que ela fez isso, Ralph? Como é que sabia que viríamos para cá?

Que outro lugar vocês tinham para ir? Ralph se perguntou amargurado, então voltou-se para Lois.

- Veja o que pode fazer, por favor.

- Vou ver. - Ela lhe entregou a criança que continuava a gritar e a tossir e abriu caminho pelo pequeno ajuntamento de mulheres. Susan Day não se encontrava ali, pelo que Ralph pôde ver. No outro extremo do porão, uma seção do piso superior desabou com um jorro de fagulhas e uma onda de calor de fornalha. A menina com o rosto escondido na barriga da mãe começou a gritar.

Lois subiu quatro degraus, então estendeu as mãos espalmadas, como um pastor dando uma bênção. À luz das fagulhas que rodopiavam, Ralph distinguiu fracamente a sombra inclinada do acesso ao porão. Lois empurrou com as mãos a porta do alçapão. Por um instante, nada aconteceu, então ela desapareceu momentaneamente num arco-íris de cores. Ralph ouviu uma forte explosão que lhe lembrou uma lata de aerossol explodindo no fogo, e em seguida Lois retornou. Ao mesmo tempo, ele pensou ter visto um lampejo de luz branca pouco acima de sua cabeça.

- Que foi isso, Mamãe? - perguntou o menininho que chamara Ralph e Lois de anjos. Que foi isso? - Antes que a mãe pudesse responder, uma pilha de cortinas sobre uma mesa de jogo a uns seis metros pegou fogo, colorindo os rostos das mulheres presas com cruas tintas de Halloween, preto e laranja.

- Ralph! - Lois chamou. - Me ajuda!

Ele passou por entre as mulheres aturdidas e subiu as escadas.

- O que foi? - Sua garganta lhe dava a impressão de ter gargarejado querosene. - Você não consegue abrir o cadeado?

- Consegui, senti o cadeado partir... mentalmente... mas a droga da porta é pesada demais para mim! Você terá de cuidar disso. Me dá a neném.

Ralph deixou-a retomar Natalie, então ergueu os braços e experimentou a porta do alçapão.

Era pesada mesmo, mas Ralph estava funcionando com adrenalina pura e quando meteu os ombros nela e empurrou, a porta se abriu de chofre. Um jorro de luz e ar fresco varreu a escada estreita. Nos filmes de que Ralph tanto gostava, esses momentos eram em geral recebidos com gritos de triunfo e alívio, mas a princípio nenhuma das mulheres presas ali embaixo fez o menor ruído. Continuaram paradas em silêncio, os rostos inexpressivos contemplando o rectângulo de céu azul que Ralph fizera aparecer no tecto da sala, que a maioria aceitara por sepultura.

E o que dirão depois? - ele se perguntou. - Se realmente sobreviverem a isto, que dirão?

Que um sujeitinho magro com sobrancelhas grossas e uma senhora meio grande (mas com belos olhos ibéricos) materializaram-se no porão, partiram o cadeado na porta de acesso externo e as fizeram sair sãs e salvas?

Ele olhou para baixo e viu o garotinho estranhamente familiar retribuir o seu olhar com olhos sérios e arregalados. Havia uma cicatriz em forma de gancho na ponta de seu nariz.

Ralph teve a impressão de que esse menino era o único que realmente os vira, mesmo depois de terem descido ao nível dos Vidas-Curtas, e Ralph sabia muito bem o que ele diria:

os anjos tinham vindo, um anjo homem e um anjo mulher e tinham salvo todos. Deve dar uma chamada interessante no noticiário de hoje à noite, pensou Ralph. Certamente Lisette Benson e John Kirkland iriam adorar.

Lois bateu com a mão em uma das vigas de sustentação.

- Vamos pessoal! Vamos saindo antes que o fogo chegue aos tanques de óleo da caldeira!

A mulher com a menininha foi a primeira a se mexer. Ergueu a criança em prantos nos braços e subiu as escadas com esforço, tossindo e chorando. As outras começaram a seguila. O menininho olhou para Ralph com admiração quando passou por ele com a mãe e agradeceu:

- Falou, cara.

Ralph sorriu para ele - não conseguiu se conter -, então virou-se para Lois e apontou as escadas.

- Se eu não estiver completamente desorientado, esse acesso dá para os fundos da casa.

Não deixe as mulheres seguirem já para a frente. Os tiras são bem capazes de abater metade delas antes de perceberem que estão atirando nas pessoas que vieram salvar.

- Está bem-Lois concordou: sem perguntas nem outras palavras, e Ralph a adorava por isso. Ela subiu as escadas imediatamente, parando apenas para trocar Nat de lado e amparar pelo cotovelo uma mulher que tropeçava.

Agora restaram apenas Ralph e Helen Deepneau.

- Aquela era a Lois? - ela perguntou.

- Era. - Com Natalie? - Hum-hum.

Mais um grande pedaço do tecto do porão cedeu, mais fagulhas rodopiaram e línguas de fogo correram agilmente pelas traves do tecto em direcção à caldeira.

- Você tem certeza? - Ela agarrou-o pela camisa e fitou-o com olhos nervosos e inchados.

- Você tem certeza que Lois levou Nat?

- Absoluta. Vamos agora.

Helen olhou a toda volta e pareceu contar mentalmente. Pareceu alarmada.

- Gretchen! - exclamou. - E Merrilee! Temos de ir buscar Merrilee, Ralph, ela está no sétimo mês de gestação!

- Ela está lá em cima - disse Ralph, agarrando-a pelo braço quando Helen fez menção de querer abandonar a escada e voltar ao porão em chamas. - Ela e Gretchen, as duas. As outras estão aqui?

- Acho que sim.

- Óptimo. Vamos. Vamos embora daqui.

RALPH E HELEN emergiram do porão envoltos em uma nuvem de fumaça escura, parecendo o grande final de um truque de mágica de classe internacional. Achavam-se realmente nos fundos da casa, perto dos varais de roupa. Vestidos, calças compridas, roupa íntima, lençóis e fronhas sacudiam à brisa fresca. Enquanto Ralph observava, uma telha em chamas caiu sobre um lençol e ateou-lhe fogo. Mais chamas saíam das janelas da cozinha. O calor era intenso.

Helen recostou-se nele, não por distracção, mas por cansaço. Ralph amparou-a pela cintura para impedi-la de cair no chão. Ela arranhou fracamente sua nuca, tentando dizer alguma coisa sobre Natalie. Então viu-a nos braços de Lois e tranquilizou-se um pouco. Ralph segurou-a melhor e afastou-a do acesso do porão, ao mesmo tempo arrastando-a e carregando-a. Ao fazer isso, viu o que restara de um cadeado aparentemente novo, caído, ao lado do alçapão. Estava partido em dois e estranhamente retorcido, como se mãos imensamente fortes o tivessem arrancado.

As mulheres estavam reunidas a uns dez metros de distância, junto a uma quina da casa.

Lois, de frente para elas, falava, impedindo-as de prosseguir. Ralph achou que com alguma preparação e um pouco de sorte nada lhes aconteceria quando avançassem - o tiroteio que partia da barricada da polícia não parará, mas diminuíra consideravelmente.

- PICKERING! - Parecia a voz de Leydecker, embora amplificada pelo megafone fosse impossível saber com certeza. - POR QUE NÃO BANCA O ESPERTO UMA VEZ NA VIDA E SAI ENQUANTO PODE?

Mais sirenes se aproximavam, e entre elas o gargarejo de uma ambulância. Ralph conduziu Helen para junto das outras mulheres. Lois lhe devolveu Natalie, então virou-se na direcção da voz amplificada e pôs as mãos em concha em torno da boca.

- Alô! - gritou. - Alô vocês aí fora, podem... - Parou, tossindo com tanta força que quase vomitou, o corpo dobrado, as mãos apoiando-se nos joelhos e as lágrimas saltando dos olhos irritados com a fumaça.

- Lois, você está bem? - Ralph perguntou. Pelo canto do olho, viu Helen cobrir de beijos o rosto de Sua Majestade a Neném. - Óptima - respondeu, enxugando o rosto com os dedos. - E só a droga da fumaça. - E tornou a levar as mãos em concha à boca. - Vocês podem me ouvir?

O tiroteio reduziu-se a uns poucos tecos de pistola. Ainda assim, Ralph pensou, bastava um daqueles tecos na direcção errada para fazer uma mulher inocente morrer.

- Leydecker! - ele berrou, pondo também as mãos em concha em torno da boca. - John

Leydecker!

Houve uma pausa, e então a voz amplificada deu uma ordem que alegrou o coração de Ralph.

- CESSAR FOGO.

Mais um tiro, em seguida o silêncio interrompido apenas pelos ruídos da casa em chamas.

- QUEM ESTÁ FALANDO COMíGO? IDENTIFIQUEMSE!

Mas Ralph achou que já tinha problemas suficientes.

- As mulheres estão aqui nos fundos! - berrou, agora tendo de combater a vontade de tossir. - Estou mandando todas para a frente da casa!

- NÃO, NÃO FAÇA ISSO! - Leydecker respondeu. - TEM UM HOMEM ARMADO NA ÚLTIMA SALA DO ANDAR TÉRREO! ELE JÁ ACERTOU VÁRIAS PESSOAS!

Uma das mulheres gemeu ao ouvir isto e cobriu o rosto com as mãos.

Ralph limpou a garganta ardida o melhor que pôde - no momento acreditava que teria trocado todo o seu fundo de aposentadoria por uma garrafa geladinha de Coca-Cola - e gritou em resposta. - Não se preocupe com Pickering! Pickering está...

Mas exactamente como estava Pickering? Era uma pergunta e tanto, não era?

- O Sr. Pickering está inconsciente! É por isso que parou de atirar! - Lois gritou ao lado dele. Ralph não achava que "inconsciente" fosse uma boa descrição, mas teria de servir. - As mulheres vão dar a volta pelo lado da casa com as mãos para o alto! Não atirem! Confirmem que não vão atirar!

Houve um momento de silêncio. E em seguida:

- NÃO VAMOS ATIRAR, MAS ESPERO QUE A SENHORA SAIBA O QUE ESTÁ

DIZENDO, DONA.

Ralph fez sinal para a mãe do garotinho.

- Vá, agora. Vocês dois podem abrir o desfile.

- O senhor tem certeza de que não vão machucar a gente?

- Os hematomas desbotados no rosto da jovem senhora (um rosto que Ralph também achou vagamente familiar) indicavam que as perguntas sobre quem iria ou não machucar o filho e ela faziam parte vital de seu cotidiano. - O senhor tem certeza?

- Temos - Lois falou, ainda tossindo e lacrimejando. - É só pôr as mãos para o alto.

Você sabe fazer isso, não sabe, garotão?

O garoto levantou as mãos com o entusiasmo de um actor veterano de filmes de polícia e ladrão, mas seus olhos brilhantes não se despregavam do rosto de Ralph.

Cor-de-rosa, Ralph pensou. Se eu pudesse ver a aura dele, seria essa a cor. Não estava muito seguro se era intuição ou memória, mas sabia que tinha razão.

- E os outros dentro da casa? - uma mulher perguntou.

- E se eles atirarem? Eles tinham armas: e se atirarem?

- Ninguém mais vai atirar de dentro da casa - Ralph tranquilizou-a. - Agora, vão.

A mãe do menininho lançou mais um olhar hesitante a Ralph, depois olhou para o filho.

- Está pronto, Pat?

- Pronto! - Pat confirmou sorrindo.

A mãe acenou com a cabeça e ergueu uma mão. A outra, passou-a pelos ombros dele num gesto precário de protecção que enterneceu o coração de Ralph. Contornaram o lado da casa assim.

- Não atirem em nós! - ela gritou. - Estamos com as mãos para o alto e meu filhinho está comigo, por isso não atirem!

As outras aguardaram um momento e, então, a mulher que levara as mãos ao rosto seguiuos. A que estava com a menininha juntou-se a ela (a criança ia segura no colo, mas, ainda assim, mantinha as mãos obedientemente no alto). As outras acompanharam, a maioria tossindo, todas com as mãos desocupadas erguidas para cima. Quando Helen ia entrar no fim da fila, Ralph tocou-a no ombro. Ela o olhou, seus olhos vermelhos expressando uma tranquila indagação.

- É a segunda vez que você está presente quando Nat e eu precisamos de ajuda. Você é o nosso anjo da guarda, Ralph?

- Talvez. Quem sabe? Olhe, Helen, não há muito tempo. Gretchen morreu.

Ela acenou com a cabeça e começou a chorar.

- Eu sabia. Não queria saber, mas sabia assim mesmo.

- Sinto muito.

- Estávamos nos divertindo tanto quando eles chegaram, quero dizer, estávamos nervosas, mas havia muitas risadas e muita conversa descontraída, íamos passar o dia nos preparando para o discurso de hoje à noite. O comício e o discurso de Susan Day.

- E sobre hoje à noite que quero lhe perguntar - disse Ralph, falando o mais suavemente possível. - Você acha que ainda...

- Estávamos fazendo o café da manhã quando eles chegaram. - Ela continuou como se não o tivesse ouvido; Ralph supôs que realmente não tivesse. Nat espiava por cima do ombro de Helen e, embora ainda tossisse, parará de chorar. Segura nos braços da mãe, olhava de Ralph para Lois e de novo para Ralph com viva curiosidade.

- Helen... - Lois começou.

- Olhe! Está vendo ali? - Helen apontou para um velho Cadillac castanho estacionado junto a um barraco desconjuntado, que fora o engenho de cidra no tempo em que Ralph e Carolyn vinham ocasionalmente ali; provavelmente servira de garagem a High Ridge. O Cadillac estava em mau estado: o pára-brisa rachado, as portas amassadas, o vidro de um farol preso com fita adesiva. O pára-choque, coberto de adesivos pró-vida.

- Aquele é o carro em que vieram. Eles contornaram a casa como se tencionassem guardar o carro na garagem. Acho que foi isso que nos enganou. Foram directo para os fundos como se pertencessem ao abrigo. - Ela contemplou o carro por um momento, então voltou os olhos infelizes e vermelhos de fumaça para Ralph e Lois. - Alguém devia ter prestado atenção aos adesivos naquele maldito calhambeque.

Ralph de repente lembrou-se de Barbara Richards na WomanCare - Barbie Richards, que tinha se sentido segura quando Lois se aproximara. Não se inquietara que Lois tivesse a mão dentro da bolsa à procura de alguma coisa; só lhe interessara que Lois era mulher. Sandra Mckay estava ao volante daquele Cadillac; Ralph nem precisava perguntar a Helen para saber. Tinham visto uma mulher e não deram atenção aos adesivos no pára-choque. Somos uma família; todas as minhas irmãs estão comigo.

- Quando Deanie avisou que tinha gente descendo do carro com roupas de combate e armas nas mãos, pensamos que era piada. Todas nós, isto é, menos Gretchen. Ela nos mandou para o porão o mais depressa possível. Então seguiu para a sala. Para chamar a polícia, suponho. Eu devia tê-la acompanhado.

- Não - Lois falou enroscando um cacho dos finos cabelos ruivos de Natalie nos dedos.

- Você tinha essa menininha para cuidar, não é mesmo? E ainda tem.

- Acho que sim - disse inexpressiva. - Acho que tenho. Mas ela era minha amiga, Lois.

Minha amiga.

- Eu sei, querida.

O rosto de Helen torceu-se como se fosse um trapo, e ela começou a chorar. Natalie encarou a mãe por um instante, com uma expressão de cómica surpresa, e então começou a chorar também.

- Helen-Ralph falou. - Helen, escute aqui. Tenho uma coisa para lhe perguntar. É importantíssima. Você está me ouvindo?

Helen confirmou com a cabeça, mas continuou a chorar. Ralph não fazia ideia se realmente ela estava ou não ouvindo. Ele olhou para o canto da casa, perguntando-se quanto tempo a polícia ia demorar a aparecer ali, e então respirou fundo.

- Você acha que ainda há possibilidade de manterem o comício de hoje à noite? Por menor que seja? Você era a mais próxima de Gretchen. Me dê sua opinião.

Helen parou de chorar e encarou-o com os olhos quietos, arregalados, como se não pudesse acreditar no que acabara de ouvir. Então seus olhos se inundaram de uma fúria terrível.

- Como pode perguntar uma coisa dessas? Como pode sequer perguntar?

- Bem... porque... - Ralph parou, incapaz de prosseguir. Agressividade era a última coisa que esperara.

- Se eles nos imobilizarem agora, ganham a parada - disse Helen. - Você não está vendo? Gretchen está morta, Merrilee está morta. High Ridge está totalmente queimado com todos os pertences dessas mulheres, e se eles nos imobilizam agora ganharão a parada.

Uma parte da mente de Ralph - uma parte profunda - estabeleceu uma terrível comparação. Outra parte, a que amava Helen, adiantou-se para bloqueá-la, mas chegou demasiado tarde. Os olhos dela pareciam os de Charlie Pickering, sentado ao lado de Ralph na biblioteca, e não havia como argumentar com uma cabeça que podia comandar aquela expressão nos olhos.

- Se nos imobilizarem agora eles ganham a parada! - ela berrou. Em seus braços, Natalie começou a chorar com mais força. - Você não entende? Porra você não ENTENDE? Não vamos deixar isso acontecer nunca! Nunca! Nunca! Nunca!

Bruscamente ela levantou a mão que não estava ocupada carregando a neném e deu a volta no prédio. Ralph tentou detê-la, mas só conseguiu tocar as costas da blusa com as pontas dos dedos. E foi só.

- Não atirem em mim! - Helen gritava para a polícia do outro lado da casa. - Não atirem em mim, sou uma das mulheres! Sou uma das mulheres! Sou uma das mulheres.

Ralph precipitou-se atrás dela - sem pensar, instintivamente - e Lois agarrou-o pelo cinto.

- É melhor não ir para lá, Ralph. Você é homem e eles podem pensar...

- Alô, Ralph! Alô, Lois!

Os dois se viraram na direcção da voz. Ralph reconheceu-a imediatamente, e se sentiu ao mesmo tempo surpreso e não surpreso. Parado para além do varal com a sua carga de lençóis e roupas em chamas, estava Dorrance Marstellar, trajando calças desbotadas de flanela e um velho par de óculos emendados com fita isolante. Seus cabelos, finos como os de Natalie (mas brancos ao invés de ruivos), esvoaçavam em volta da cabeça ao vento de Outubro que alisava o topo do morro. Como sempre, trazia um livro nas mãos.

- Venham, vocês dois - convidou-os, acenando sorridente. - Andem logo. Não temos muito tempo.

ELE os conduziu por um caminho pouco usado e coberto de mato que se afastava da casa sinuosamente para oeste. Primeiro contornava uma horta de bom tamanho, da qual tudo fora colhido excepto as abóboras e abobrinhas, depois passava por um pomar carregado de maçãs quase maduras, em seguida atravessava um silvado de amoreiras cujos espinhos pareciam se esticar para todo lado para se enganchar na roupa deles. Ao saírem do silvado para as sombras de velhos pinheiros e abetos, ocorreu a Ralph que agora deviam estar na vertente de Newport.

Dorrance caminhava rápido para um homem de sua idade, e o sorriso tranquilo jamais deixava seu rosto. O livro que carregava era For Love, Poems 1950-1960, de autoria de um certo Robert Creeley. Ralph nunca ouvira falar nele, mas supunha que o Sr. Creeley também nunca ouvira falar em Elmore Leonard, Ernest Haycox ou Louis L'Amour, tampouco. Só tentou falar com o velho Dor uma vez, quando os três finalmente chegaram à base da encosta que as agulhas de pinheiro tornavam escorregadia e traiçoeira. Um pouco adiante, um riachinho corria espumante e frio.

- Dorrance, que é que você está fazendo aqui? Aliás, como foi que chegou aqui? E aonde estamos indo?

- Ah, quase nunca respondo a perguntas - disse o velho Dor com um largo sorriso. Ele examinou o riacho, ergueu um dedo e apontou para a água. Uma pequena truta castanha saltou no ar, sacudiu gotas brilhantes da nadadeira, e tornou a mergulhar na água. Ralph e Lois se entreolharam com a mesma expressão, Será que vi o que achei que vi?

- Não, não - Dor continuou, passando da margem para uma pedra molhada. - Quase nunca. Difícil demais. Possibilidades demais. Níveis demais... hein, Ralph? O mundo está cheio de níveis. Como vai, Lois?

- Óptima - ela respondeu mecanicamente, observando Dorrance atravessar o riacho pisando em algumas pedras convenientemente situadas. Fez isso com os braços abertos para os lados, uma postura que o fazia parecer o acrobata mais velho do mundo. Assim que alcançou a outra margem, ouviram um violento deslocamento de ar no morro atrás deles não chegou a ser uma explosão.

Lá se vão os tanques de óleo, pensou Ralph.

Na margem oposta, Dor virou-se para eles, exibindo aquele sorriso tranquilo de Buda. Ralph subiu desta vez sem a menor consciência de fazê-lo e sem a sensação de piscadela mental.

As cores inundaram o mundo, mas ele mal notou; toda a sua atenção fixara-se em Dorrance, e por um lapso de quase dez segundos esqueceu-se de respirar.

Ralph vira auras de muitas tonalidades no último mês, mas nada nem remotamente semelhante ao esplêndido envoltório do velho que Don Veazie certa vez descrevera como "gente muito fina, mas na verdade meio bobo". Era como se a aura de Dorrance tivesse sido peneirada por um prisma... ou por um arco-íris. Ele irradiava luz em arcos ofuscantes: ao azul seguia-se o magenta, ao magenta, o vermelho, ao vermelho, o rosa, ao rosa, o branco amarelado e cremoso de uma banana madura.

Ralph sentiu a mão de Lois procurar a dele e segurou-a.

[- Nossa, Ralph, você está vendo?

Está vendo como ele é bonito?]

[-Se estou.]

[- Que é que ele é? É humano?]

[-Não...]

[- Parem com isso, os dois. Desçam.]

Dorrance estava sorrindo, mas a voz que ouviram mentalmente não tinha nenhuma vagueza.

E antes que Ralph pudesse comandar sua descida, sentiu que o empurravam para baixo. As cores e a acuidade dos sons sumiram na mesma hora.

- Não temos tempo para isso agora - falou Dor. - Ora, já é meio-dia.

- Meio-dia? - Lois estranhou. - Não pode ser! não eram nem nove horas quando chegamos, e não pode ter passado mais de meia hora!

- O tempo passa mais depressa quando se sobe - disse o velho Dor. Falou sério, mas seus olhos cintilavam.-Pergunte a qualquer pessoa que esteja bebendo cerveja e ouvindo música sertaneja num sábado à noite. Vamos! Apressem-se! O relógio não pára de correr! Atravessem o riacho!

Lois adiantou-se, pisando cautelosamente de pedra em pedra com os braços abertos, imitando Dor. Ralph seguiu-a com as mãos nos quadris, pronto para segurá-la se ela desse sinais de vacilar, mas foi ele quem quase acabou caindo dentro de água. Conseguiu evitar o tombo, mas somente à custa de encharcar um pé até o tornozelo. Pareceu-lhe que, em algum ponto remoto de sua mente, ouvia o riso alegre de Carolyn.

- Não pode nos dizer alguma coisa, Dor? - perguntou quando chegaram ao outro lado.

- Estamos nos sentindo bastante perdidos aqui. - E não falo apenas mentalmente ou espiritualmente tampouco, pensou. Nunca estivera naquela mata em sua vida, nem mesmo para caçar perdizes ou cervos quando rapaz. Se o caminho que seguiam terminasse, ou se o velho Dor perdesse o que quer que usasse para se orientar, e aí?

- Posso - Dor respondeu prontamente. - Posso lhe dizer uma coisa, e é absolutamente verdadeira.

- O quê?

- Estes são os melhores poemas que Robert Creely já compôs - declarou o velho Dor, erguendo o exemplar de For Love, e antes que qualquer dos dois pudesse reagir, ele virou as costas e recomeçou a trilhar o caminho mal definido que cortava a mata para oeste.

Ralph olhou para Lois. Ela retribuiu seu olhar, igualmente perdida. Depois, sacudiu os ombros.

- Vamos, companheiro - disse. - E melhor não perdermos Dor de vista. Eu não trouxe o meu miolo de pão.

ELES subiram outro morro, e, do topo, Ralph pôde ver que o caminho que trilhavam descia até uma velha estrada dividida por uma faixa de capim. Terminava numa pedreira a uns quarenta e poucos metros adiante. Havia um carro com o motor ligado na entrada da pedreira, um modelo de Ford recente e absolutamente padronizado que, no entanto, Ralph pensou conhecer. Quando a porta se abriu e o motorista desceu, tudo se encaixou. Claro que conhecia o carro; vira-o da janela da sala de Lois na terça-feira à noite. Ficara um bom tempo atravessado no meio da Avenida Harris com o motorista ajoelhado à luz dos faróis... junto ao cachorro moribundo que atropelara. Joe Wyzer ouviu-os chegando, olhou e acenou.

 

- Ele disse que queria que eu dirigisse-Wyzer explicou, enquanto fazia cuidadosamente a volta na entrada da pedreira.

- Para onde? - Lois perguntou. Achava-se sentada no banco traseiro com Dorrance.

Ralph, no banco dianteiro com Joe Wyzer, que não parecia muito seguro quanto ao lugar onde estava ou sequer quem era. Ralph subira de nível, um tiquinho à toa, ao apertar a mão do farmacêutico, querendo dar uma espiada na aura de Wyzer. Tanto a aura quanto o fio de balão estavam lá, e ambos pareciam perfeitamente saudáveis... mas o amarelo-laranja vivo parecia ligeiramente neutralizado. Ralph imaginou que provavelmente isso se devia à influência do velho Dor.

- Boa pergunta - respondeu Wyzer. E deu uma risadinha, constrangida. - Realmente não faço a menor idéia. Este foi o dia mais estranho de toda a minha vida, não resta dúvida.

A estrada da mata terminava num entroncamento com uma estrada asfaltada de duas pistas.

Wyzer parou, espiou o tráfego, em seguida virou à esquerda. Logo depois, passaram por uma placa que dizia PARA 1-95, e Ralph supôs que Wyzer fosse virar para o norte assim que chegassem ao pedágio. Agora sabia onde estavam - a uns três quilómetros ao sul da estrada 33. Dali poderiam regressar a Derry em menos de meia hora e Ralph não duvidava que era para lá que se dirigiam.

Abruptamente ele começou a rir.

- Ora, ora, aqui vamos nós - disse. - Três caras felizes saindo para dar um passeio ao meio-dia. Digamos, quatro. Seja bem-vindo ao maravilhoso mundo da hiper-realidade, Joe.

Joe lhe lançou um olhar severo, depois se descontraiu num sorriso.

- E isso que é? - E antes que Ralph ou Lois pudessem responder. - É suponho que é.

- Você leu aquele poema? - Dorrance perguntou às costas de Ralph. - Aquele que começa com "Cada coisa que faço, faço-a depressa para poder fazer mais outra"?

Ralph virou-se e viu que Dorrance conservava o seu sorriso largo e plácido.

- Li, sim, Dor...

- Não é demais? E tão bom. Stephen Dobyns me lembra um Hart Crane despretencioso.

Ou talvez eu queira dizer Stephen Crane, mas acho que não. Naturalmente ele não tem a musicalidade de um Dylan Thomas, mas será que isso é um defeito? Provavelmente não. A poesia moderna não fala de música. Fala de coragem: quem tem e quem não tem.

- Nossa! - exclamou Lois, girando os olhos.

- Ele provavelmente poderia nos dizer o que precisamos saber se subíssemos alguns níveis - falou Ralph - mas você não quer que a gente faça isso, não é, Dor? Porque o tempo passa mais depressa quando estamos mais alto.

- Bingo - respondeu Dorrance. As placas azuis que assinalavam as entradas norte e sul para o pedágio reluziram adiante.

- Você terá de subir mais tarde, imagino, você e Lois, por isso é muito importante ganhar o máximo de tempo possível agora. Ganhar... tempo. - Ele fez um gesto estranhamente evocativo, baixando o polegar e o indicador nodosos no ar, ao mesmo tempo em que os juntava, como se quisesse indicar uma passagem estreita.

Joe Wyzer ligou o pisca-pisca, virou à esquerda, e desceu a rampa que seguia para o norte em direcção à Derry.

- Como foi que você se envolveu nisso, Joe? - Ralph perguntou. - De todas as pessoas no lado oeste, porque Dorrance convocou você para servir de motorista?

Wyzer balançou a cabeça e, quando o carro alcançou o pedágio, saiu imediatamente para a pista de passagem. Ralph esticou a mão rápido e corrigiu o curso, lembrando-se que Joe provavelmente não andava dormindo muito nos últimos tempos. Ficou satisfeitíssimo ao ver que a auto-estrada estava praticamente deserta, pelo menos a essa distância da cidade. Pouparia alguma ansiedade, e Deus sabe que levaria o que encontrasse nesse departamento hoje.

- Nós estamos todos ligados pelo Desígnio - Dorrance disse abruptamente. - Isto tem o nome ka-tet, ou seja, um formado por muitos. Da mesma maneira que muitos versos compõem um só poema. Entende?

- Não - Ralph, Lois e Joe disseram ao mesmo tempo, num coro perfeito, sem ensaio, e então riram juntos, nervosamente. Os Três Insones do Apocalipse, pensou Ralph. Deus nos acuda.

- Tudo bem-falou o velho Dor abrindo aquele seu largo sorriso. - Podem acreditar no que digo. Você e Lois... Helen e a filhinha... Bill... Faye Chapin... Trigger Vachon... eu!

Todos pertencemos ao Desígnio.

- Isto é ótimo, Dor - disse Lois - mas onde é que o Desígnio está nos levando agora? E o que é que espera que a gente faça quando chegar lá?

Dorrance se curvou para a frente e cochichou no ouvido de Joe Wyzer, escondendo a boca com a mão inchada e manchada de velhice. Então recostou-se novamente, parecendo imensamente satisfeito consigo mesmo.

- Ele diz que vamos ao centro cívico - anunciou Joe.

- O centro cfoicol - Lois exclamou, parecendo alarmada. - Não, deve haver algum engano! Aqueles homenzinhos disseram...

- Esqueçam os homenzinhos no momento - disse Dorrance. - Lembrem-se apenas do que falamos: coragem. Quem tem e quem não tem.

FEZ-SE silêncio no Ford de Joe Wyzer durante quase dois quilómetros. Dorrance abriu o livro de poemas de Robert Creeley e começou a ler um, acompanhando a leitura de uma linha para outra com a unha amarelada de um dedo extremamente velho. Ralph recordou-se de uma brincadeira que às vezes faziam na infância - não era muito agradável. Caça de tocaia, era o nome que lhe davam. Reuniam-se uns garotos mais novinhos e muito mais bobos, contava-se uma história absurda sobre uma caça mítica, entregavam-se sacos de aniagem a eles e mandava-os passar uma tarde extenuante nos baixios e alagados, à procura de pássaros inexistentes. A brincadeira também era chamada caça ao ganso selvagem, e subitamente ele teve a sensação inexorável de que Cloto e Láquesis tinham feito essa brincadeira com ele e Lois no telhado do hospital.

Virou-se no banco e encarou o velho Dor. Dorrance dobrou o canto superior da página que estava lendo, fechou o livro e retribuiu o olhar de Ralph com educado interesse.

- Eles nos disseram que não devíamos nos aproximar nem de Ed Deepneau nem do Dr. n-3 - disse Ralph. Falou lentamente e com grande clareza. - Disseram especificamente que sequer devíamos pensar em fazer isso, porque a situação investira os dois de grande poder e era provável que fôssemos abatidos como moscas. Na realidade, acho que Láquesis disse que, se tentássemos nos aproximar de Ed ou de Átropos, poderíamos acabar recebendo uma visita de um dos chefões dos níveis superiores... alguém que Ed chama de Rei Sanguinário. E pelo que ouvimos dizer não é um cara nada simpático.

- E - concordou Lois com uma voz fraquinha. - Foi o que nos disseram no telhado do hospital. Disseram que tínhamos de convencer as mulheres da coordenação a cancelarem a visita de Susan Day. Essa foi a razão para irmos a High Ridge.

- E vocês conseguiram convencê-las? - Wyzer perguntou.

- Não. Os malucos do Ed chegaram antes, puseram fogo no abrigo, e mataram pelo menos duas mulheres. A tiros. Uma era a mulher com quem realmente queríamos falar.

- Gretchen Tillbury - falou Ralph.

- É - Lois confirmou. - Mas com certeza não precisamos mais fazer isso... Não posso acreditar que vão prosseguir com o comício. Quero dizer, como poderiam? Deus do céu, há no mínimo quatro pessoas mortas! Provavelmente mais! Elas têm que cancelar o discurso ou pelo menos adiá-lo. Não é verdade?

Nem Dorrance nem Joe responderam. Nem Ralph, tampouco - ele estava pensando nos olhos vermelhos e furiosos de Helen. Como pode sequer perguntar? Se eles nos imobilizarem agora, ganharão a parada.

Se nos imobilizarem agora, ganharão a parada.

Haveria alguma maneira legal da polícia poder detê-las? Provavelmente não. O Conselho Municipal, então? Talvez. Quem sabe pudessem convocar uma reunião especial e revogar a permissão para a WomanCare realizar o comício. Mas será que fariam isso? Se houvesse duas mil mulheres enraivecidas e enlutadas se aglomerando em torno da prefeitura aos gritos de Se nos imobilizarem agora, eles ganharão a parada, será que o conselho iria querer revogar a permissão?

Ralph começou a sentir um frio profundo no estômago.

Helen claramente considerava o comício de hoje à noite mais importante que nunca, e não seria a única. A questão já não se restringia apenas à opção e a quem tinha o direito de decidir o que a mulher fazia com o seu corpo; tratava-se agora de definir quais as causas por que valia a pena morrer e de homenagear as amigas que tinham acabado de fazer isso. Não estavam mais falando apenas de política, mas de uma espécie de réquiem secular pelas mortas.

Lois segurara seu ombro e o sacudia com força. Ralph despertou para o aqui e o agora, mas lentamente, como um homem que desperta no meio de um sonho incrivelmente real.

- Elas vão cancelar o comício, não vão? E mesmo se, por alguma razão idiota, não cancelarem, a maioria das pessoas não vai comparecer, certo? Depois do que aconteceu em High Ridge, terão medo de comparecer!

Ralph considerou essa ideia e em seguida sacudiu a cabeça.

- A maioria das pessoas vai pensar que o perigo passou. O noticiário vai informar que dois radicais que atacaram High Ridge estão mortos, e o terceiro, catatónico, ou coisa parecida.

- Mas Ed! E Ed? - ela exclamou. - Foi ele que os mandou atacar, pelo amor de Deus!

Foi ele que os mandou lá, para começar!

- Pode ser verdade, provavelmente e verdade, mas como iríamos provar isso? Você sabe o que acho que os tiras vão encontrar no lugar onde Charlie Pickering anda dormindo? Um bilhete dizendo que foi tudo ideia dele. Um bilhete isentando Ed de toda culpa, provavelmente num tom de acusação... dizendo que Ed os desertou na hora de maior necessidade. E se não encontrarem um bilhete desses no quarto que Charlie aluga, vão encontrá-lo no de Frank

Felton. Ou no de Sandra McKay.

- Mas isso... isso é... - Lois emudeceu, mordendo o lábio inferior. Então olhou para

Wyzer com os olhos cheios de esperança. - E Susan Day? Onde ela está? Alguém sabe?

Você sabe? Ralph e eu vamos ligar para ela e...

- Ela já está em Derry - disse Wyzer - embora eu duvide que mesmo a polícia saiba com certeza o seu paradeiro. Mas o que ouvi no noticiário, enquanto o velho e eu estávamos a caminho de High Ridge, é que o comício vai se realizar hoje à noite... e segundo disseram a informação vinha directamente dela.

Claro, pensou Ralph. Claro que sim. O espectáculo continua, o espectáculo tem que continuar, e ela sabe disso. Alguém que tem cavalgado a crista do movimento feminista todos esses anos-diabos, desde a convenção de Chicago em 1968 - reconhece um verdadeiro divisor de águas quando encontra um. Ela avaliou os riscos e os considerou aceitáveis. Ou isso ou avaliou a situação e decidiu que seria inaceitável a perda de credibilidade que decorreria de uma retirada. Talvez as duas coisas. Em todo o caso, ela é tão prisioneira dos acontecimentos - do ka-tet - quanto todos nós.

Alcançaram a periferia de Derry. Ralph divisava o centro cívico no horizonte.

Lois voltou-se para o velho Dor.

- Onde é que ela está? Você sabe? Não faz diferença quantos seguranças existem em volta; Ralph e eu podemos ficar invisíveis quando queremos... e somos muito bons em fazer as pessoas mudarem de ideia.

- Mas mudar a ideia de Susan Day não mudaria nada - disse Dor. Ele continuava a exibir aquele sorriso largo e enlouquecedor. - As pessoas irão ao centro cívico hoje à noite apesar de tudo. Se encontrarem as portas trancadas, vão arrombá-las, entrar, e fazer o comício do mesmo jeito. Para mostrar que não têm medo.

- O feito não pode ser desfeito - disse Ralph monotonamente.

- Certo, Ralph! - Dor apoiou animado, dando-lhe Palmadinhas no braço.

cinco minutos depois, Joe passou com seu Ford pela horrenda estátua de plástico de Paul

Bunyan erigida diante do centro cívico e virou numa entrada onde havia uma placa

SEMPRE HÁ ESTACIONAMENTO GRATUITO NO SEU CENTRO CÍVICO!

Os quatro mil metros quadrados de estacionamento situavam-se entre o prédio do centro cívico propriamente dito e o prado de corridas de Bassey Park. Se o evento daquela noite fosse um concerto de rock ou a inauguração de um salão náutico ou uma luta livre, o estacionamento seria todo deles àquela hora; mas era evidente que o programa desta noite ia deixar um amistoso de basquete ou uma das animadas corridas de caminhão, frequentes no local, a anos-luz de distância. Já havia sessenta ou setenta carros estacionados, e pequenos grupos aqui e ali, observando o prédio. Na maioria, mulheres. Algumas traziam cestas de piqueniques, muitas choravam, e quase todas usavam braçadeiras de luto. Ralph viu uma mulher de meia idade com um rosto cansado e inteligente e uma farta cabeleira grisalha, distribuindo as braçadeiras que tirava de uma saca. Usava uma camiseta com o rosto de Susan Day estampado no peito e as palavras VENCEREMOS TODOS OS OBSTÁCULOS.

A área de circulação diante do conjunto de portas do centro cívico estava ainda mais movimentada do que o estacionamento. Nada menos que seis caminhões de TV tinham parado ali e várias equipes técnicas reuniam-se sob uma cobertura triangular de cimento em grupinhos, discutindo como iam cobrir o evento daquela noite. E pela faixa desfraldada na cobertura de cimento, que balançava levemente à brisa, ia ser um acontecimento. O COMÍCIO JÁ COMEÇOU lia-se em grandes letras tremidas feitas com tinta spray. OITO DA NOITE. VENHA DEMONSTRAR SUA SOLIDARIEDADE EXPRESSAR SUA INDIGNAÇÃO CONSOLAR SUAS IRMÃS.

Joe estacionou o Ford, então virou-se para o velho Dor, de sobrancelhas erguidas. Dor fez um sinal com a cabeça e Joe olhou para Ralph.

- Acho que é aqui que você e Lois desembarcam, Ralph. Boa sorte. Ficaria com vocês se pudesse, cheguei a pedir, mas ele disse que não estou equipado.

- Tudo bem - respondeu Ralph. - Agradecemos tudo que você tem feito, não é mesmo, Lois?

- Claro - disse Lois.

Ralph levou a mão à maçaneta, e tornou a largá-la. Virouse de frente para Dorrance.

- Afinal qual é o caso? Quero dizer, de verdade. Não é salvar as duas mil e tantas pessoas que Cloto e Láquesis disseram que estarão aqui hoje à noite, disso tenho certeza. Para o tipo de forças Eternas a que eles se referiram, duas mil vidas provavelmente são uma gotinha de óleo na caldeira. Então qual é o caso, Alfie? Por que estamos aqui?

O sorriso de Dorrance finalmente desaparecera; e com isso ele pareceu mais jovem e estranhamente formidável.

- Jó fez a mesma pergunta a Deus - falou - e não recebeu resposta. Você também não vai receber, mas vou lhe dizer o seguinte: você se tornou o pivô de grandes acontecimentos e forças gigantescas. A obra do universo superior praticamente parou, enquanto os membros do Acaso e do Desígnio acompanham interessados o seu progresso.

- Legal, mas continuo sem entender - disse Ralph, demonstrando mais resignação do que raiva.

- E eu também, mas duas mil vidas são razão suficiente para mim - disse Lois calma. Nunca poderia conviver com a idéia de que sequer tentei impedir o que está para acontecer.

Sonharia o resto da minha vida com o saco mortuário que cobre este prédio. E mesmo que só dormisse uma hora por noite ainda sonharia com ele.

Ralph pesou o que Lois acabara de dizer e fez um gesto de concordância. Abriu a porta e pôs um pé para fora.

- É um bom argumento. E Helen estará presente. Talvez até traga Natalie. Talvez, para Vidas-Curtas mixurucas como nós, isso seja suficiente.

E talvez, pensou, eu queira uma revanche com o Dr. "33.

Ah, Ralph, Carolyn lamentou. Clint Eastwood? De novo?

Não, não é Clint Eastwood. Nem Sylvester Stallone nem Arnold Schwarzenegger, tampouco. Nem mesmo John Wayne. Ele não era nenhum herói nem astro de cinema; era simplesmente Ralph Roberts da Avenida Harris. Isto porém não tornava o rancor que sentia pelo Dr. do bisturi enferrujado menos real. E agora na factura daquele rancor havia muito mais do que um simples cachorro vira-la ta e um professor de história aposentado que morara no térreo nos últimos dez anos. Ralph não conseguia esquecer a sala de High Ridge e as mulheres encostadas na parede debaixo do pôster de Susan Day. Não era no ventre grávido de Merrilee que sua mente se fixava, mas nos cabelos de Gretchen Tillbury - aqueles lindos cabelos louros que foram quase todos queimados pelo tiro de rifle à queima-roupa que lhe tirara a vida. Charlie Pickering puxara o gatilho, e talvez Ed Deepneau tivesse posto a arma em suas mãos, mas era Átropos que ele culpava, Átropos o ladrão pulador de corda, Átropos o ladrão de chapéus, Átropos o ladrão de pentes. Átropos o ladrão de brincos.

- Vamos, Lois - disse. - Vamos...

Mas ela pôs a mão em seu braço e sacudiu a cabeça.

- Ainda não: volte aqui e bata a porta.

Ralph fitou-a atentamente, então atendeu o pedido. Ela fez uma pausa, organizando os pensamentos e, quando falou, olhou directamente para o velho Dor.

- Continuo sem entender por que fomos mandados para High Ridge. Eles nunca falaram abertamente o que devíamos fazer, mas sabemos, não sabemos Ralph, que era isso que esperavam de nós. E quero entender. Se tínhamos que vir para cá, por que tivemos de ir para lá? Quero dizer, salvamos algumas vidas, e fico muito feliz, mas acho que Ralph tem razão: um punhado de vidas não significa muito para o pessoal que está dirigindo este espectáculo.

Fez-se silêncio por um instante e então Dorrance falou:

- Cloto e Láquesis realmente lhe pareceram oniscientes e sábios, Lois?

- Bem... eles eram inteligentes, mas não creio que fossem génios - ela respondeu após um momento de reflexão. - Num determinado momento, eles se referiram a si mesmos como operários hierarquicamente muito inferiores aos directores executivos que tomavam as decisões.

O velho Dor concordava e sorria.

- Cloto e Láquesis são quase Vidas-Curtas no grande esquema das coisas. Têm medos próprios e bloqueios mentais. E também são capazes de decidir mal... mas, no fim, não faz muita diferença, porque também servem ao Desígnio. E ao ka-tet.

- Eles eram de opinião que levaríamos a pior se batêssemos de frente com Átropos, não é ?

- Ralph perguntou. - Por isso se convenceram de que poderíamos realizar o que queriam usando a porta dos fundos... a porta dos fundos, no caso, era High Ridge.

- É - disse Dor. - É isso.

- Legal-exclamou Ralph.-Adoro um voto de confiança. Principalmente quando...

- Não - interrompeu Dor. - Não é isso. Ralph e Lois trocaram um olhar intrigado.

- De que é que você está falando?

- São as duas coisas ao mesmo tempo. Muitas vezes é assim que as coisas são na esfera do Desígnio. Sabem... bem... - Ele suspirou. - Detesto todas essas perguntas. Quase nunca respondo perguntas, não lhes disse isso?

- Disse - Lois confirmou. - Disse.

- Pois bem. E agora, bingo! Todas essas perguntas. Chatas! E inúteis!

Ralph olhou para Lois, e ela retribuiu seu olhar. Nenhum dos dois fez qualquer movimento para se retirar. Dor deu um grande suspiro.

- Muito bem... mas esta é a última coisa que vou dizer, portanto prestem atenção. Cloto e Láquesis podem ter mandado vocês a High Ridge pelas razões erradas, mas o Desígnio mandou vocês lá pelas razões certas. E vocês cumpriram sua tarefa.

- Salvamos as mulheres - Lois disse. Mas Dorrance sacudiu a cabeça.

- Então o que foi que fizemos? - ela quase gritou. - O quê? Será que não temos o direito de saber que parte desse maldito Desígnio realizamos?

- Não - Dorrance respondeu. - Pelo menos por ora. Porque vão ter que fazer isso outra vez.

- Isso é coisa de maluco - Ralph disse.

- Não é, não - Dorrance retrucou. Segurava agora o For Love apertado contra o peito, dobrando-o para diante e para trás, e olhava sério para Ralph.-O Acaso é que é maluco. O Desígnio não.

Muito bem, pensou Ralph, que foi que fizemos em High Ridge além de salvar as pessoas no porão?

E John Leydecker, é claro - acho que Pickering o teria matado como matou Chris Nell se eu não tivesse interferido. Seria alguma coisa relacionada com Leydecker?

Ele supunha que era, mas não parecia fazer muito sentido.

- Dorrance, será que não podia nos dar mais alguma informação? Quero dizer...

- Não - respondeu o velho Dor sem rispidez. - Chega de perguntas, não temos mais tempo. Faremos uma boa refeição juntos quando tudo isso terminar... isto é, se ainda estivermos por aqui.

- Você realmente sabe animar um cara, Dor. - Ralph abriu a porta. Lois fez o mesmo e os dois começaram a descer para o estacionamento. Ele se curvou e olhou para Joe Wyzer. Mais alguma coisa? Alguma coisa de que se lembre?

- Não, acho que não...

Dor se curvou para a frente e cochichou em seu ouvido. Joe escutou franzindo a testa.

- Então? - Ralph perguntou quando Dorrance se recostou. - Que foi que ele disse?

- Ele disse para não se esquecer do meu pente - falou Joe. - Não tenho a mínima ideia do que está falando, mas isso não é novidade.

- Tudo bem - Ralph respondeu com um sorrisinho. - É uma das poucas coisas que eu realmente entendi. Vamos, Lois: vamos dar uma espiada no pessoal. Circular um pouco.

A MEIO caminho do estacionamento, Lois lhe deu uma cotovelada tão forte nas costelas, que Ralph cambaleou.

- Olhe! - ela sussurrou. - Bem ali! Aquela não é a Connie Chung?

Ralph olhou. Era; a mulher de casaco bege parada entre dois técnicos com o logotipo da CBS nos blusões era quase com certeza Connie Chung. Admirara seu rosto bonito e inteligente e seu sorriso simpático, durante muitos jantares, para ter muita dúvida.

- Se não é ela é uma irmã gémea - respondeu.

Lois parecia ter esquecido tudo sobre o velho Dor, High Ridge e os doutorezinhos carecas; naquele momento era mais uma vez a mulher que Bill McGovern gostava de chamar de "Nossa Lois".

- Essa não! Que é que ela está fazendo aqui?

- Bem - Ralph começou, e então cobriu a boca para esconder um bocejo de destroncar o queixo. - Acho que agora o que acontece em Derry é notícia de interesse nacional. Ela deve estar aqui para fazer uma tomada ao vivo no centro cívico para o noticiário da noite.

Em todo o caso...

Repentinamente, sem o menor aviso, as auras refluíram. Ralph perdeu o fôlego.

- Caramba! Lois, você está vendo isso?

Mas ele achava que não. Se estivesse, Connie Chung não teria sequer merecido uma menção honrosa no programa de atenções de Lois. Conceber sequer tal ideia era terrível e pela primeira vez Ralph compreendeu totalmente que mesmo o mundo luminoso das auras tinha o seu lado escuro, que faria uma pessoa comum cair de joelhos e agradecer a Deus por ter uma percepção reduzida.

E isso sem ter subido de nível, pensou. Pelo menos, acho que não. Estou apenas dando uma olhada no mundo lá fora, como um homem que espia pela janela. Não faço realmente parte dele.

Nem tampouco queria. Só olhar para uma coisa dessas era quase suficiente para uma pessoa desejar ser cega.

Lois franzia a testa para ele.

- O que, as cores? Não. Devo tentar vê-las? Há algum problema com elas?

Ele tentou responder, mas não conseguiu. Um instante depois, sentiu a mão de Lois aplicar em seu braço um doloroso beliscão acima do cotovelo e viu que não era necessário qualquer explicação. Para melhor ou para pior, Lois agora estava vendo com os próprios olhos.

- Nossa - ela gemia numa vozinha engasgada que beirava as lágrimas. - Nossa, nossa, puxa vida.

Do telhado do hospital de Derry, a aura sobre o centro cívico parecera um vasto e frouxo guarda-chuva - o logotipo da companhia de seguros Travelers pintado de preto com um creiom infantil, talvez. Parados ali no estacionamento, era como se estivessem dentro de um enorme mosquiteiro indescritivelmente nojento, tão velho e malcuidado que o filó fora obstruído com mofo preto-esverdeado. O radioso sol de Outubro transformava-se, reduzido a um turvo círculo de prata oxidada. O dia ganhava um ar sombrio, enevoado que fez Ralph pensar em imagens da Londres no fim do século dezenove. Não estavam simplesmente olhando para o saco mortuário do centro cívico, não mais; estavam enterrados vivos dentro dele. Ralph sentia-o impor-se vorazmente, tentando engolfá-lo com sentimentos de perda, desespero e tristeza.

Por que se incomodar? perguntou a si mesmo, observando, apático, o Ford de Joe Wyzer retornar à rua Principal com o velho Dor sentado no banco traseiro. Quero dizer, no duro, de que adianta? Não podemos alterar nada, não há a menor possibilidade. Talvez tenhamos feito alguma coisa em High Ridge, mas a diferença entre o que ocorreu lá e o que está ocorrendo aqui é a mesma entre uma manchinha e um buraco negro. Se tentarmos nos intrometer nessa história, vamos ser esmagados.

Ele ouviu soluços ao seu lado e se deu conta de que Lois chorava. Reunindo sua energia diminuída, ele a abraçou pelos ombros.

- Aguente firme, Lois - disse. - Podemos enfrentar esse desafio. - Mas tinha suas dúvidas.

- Estamos respirando esse ar! - ela choramingou. - E como se estivéssemos chupando a morte! Ah, Ralph, vamos embora daqui! Por favor, vamos embora daqui!

A ideia lhe parecia tão boa quanto a da água devia parecer a um homem que estivesse morrendo de sede no deserto, mas ele balançou a cabeça.

- Duas mil pessoas vão morrer aqui hoje à noite, se não fizermos alguma coisa. Estou bastante confuso quanto ao resto desta história, mas pelo menos isso consegui entender sem nenhum problema.

- Está bem - ela sussurrou. - Então continue me abraçando assim, para eu não rachar a cabeça no chão se desmaiar.

Era irónico, pensou Ralph. Eles agora tinham rostos e corpos de pessoas entrando numa meia-idade vigorosa, mas se arrastaram pelo estacionamento como um casal de velhotes cujos músculos tivessem virado barbantes e cujos ossos tivessem virado vidro. Ele ouvia a respiração de Lois, rápida e ofegante, como a respiração de uma mulher que tivesse acabado de sofrer um grave ferimento.

- Levo você de volta se quiser - ofereceu-se Ralph, e estava sendo sincero. Levaria Lois de volta ao estacionamento, ele a levaria até o banco laranja do ponto de ônibus que se via dali. E quando o ônibus chegasse, embarcar e voltar à Avenida Harris seria a coisa mais simples do mundo.

Ele sentia a aura assassina que cercava o lugar comprimido, tentar sufocá-lo como um plástico de tinturaria, e lembrou-se de uma coisa que McGovern dissera sobre o enfisema de May Locher - era uma doença que ocorria o tempo todo. E agora ele achava que fazia uma boa ideia do que May Locher sentira nos últimos anos. Não fazia diferença a força com que inspirava o ar negro ou a profundidade com que o tragava; o ar não satisfazia. Seu coração e sua cabeça palpitavam, produzindo a sensação de que estava sofrendo a pior ressaca da vida.

Ia abrindo a boca para repetir que levaria Lois de volta, quando ela rompeu o silêncio, falando em pequenos ofegos.

- Acho que posso aguentar... mas espero... que não seja por muito tempo. Ralph, como é que podemos sentir uma coisa tão ruim, com tanta intensidade, sem nem ao menos vermos as cores? E por que eles não? - Ela apontou para o pessoal da imprensa circulando no centro cívico. - Será que nós VidasCurtas somos tão insensíveis? Detestaria que fôssemos.

Ele balançou a cabeça, indicando que não sabia, mas achou que talvez as novas equipes, os técnicos de vídeo e os seguranças que se agrupavam junto às portas e sob a faixa pintada com spray que pendia da cobertura de cimento sentissem alguma coisa. Observou muitas mãos segurando copos descartáveis de café, mas não via ninguém bebendo. Havia uma caixa de rosquinhas sobre o capo de uma camionete, mas a única de que alguém se servira encontrava-se abandonada sobre um guardanapo após uma única mordida. Ralph correu os olhos por duas dezenas de rostos sem ver um único sorriso. Os jornalistas faziam o seu trabalho - procuravam ângulos para filmar, marcavam os pontos onde as cabeças falantes dariam entrevistas, estendendo os cabos protegidos por tubos sobre o cimento - mas faziam isso sem a animação que Ralph imaginava que acompanharia uma reportagem com a envergadura que esta assumira.

Connie Chung saiu de uma cobertura com uma simpático câmera barbudo – MICHAEL ROSENBERG informava o crachá no blusão da CBS-e então ergueu as mãos pequenas num gesto de enquadramento, mostrando-lhe como queria que filmasse a faixa pendurada ali. Rosenberg assentia. O rosto de Chung estava pálido e grave; num dado momento da conversa com o câmera barbudo, Ralph a viu parar e levar a mão insegura à fronte, como se tivesse perdido o fio do pensamento ou talvez se sentisse tonta.

Parecia haver uma semelhança subjacente em todas as expressões que Ralph via - um acorde comum - e ele achou que sabia o que era: todos estavam sofrendo daquilo que na sua infância chamavam de melancolia, e melancolia era apenas uma palavra difícil para a depressão.

Ralph lembrou-se das vezes na vida em que atingira o equivalente emocional de uma corrente fria ao nadar, ou de uma turbulência de ar claro ao voar. A pessoa ia atravessando o dia, às vezes sentindo-se óptima, outras, apenas razoável, mas tocando para a frente e dando conta de suas tarefas... e então, sem nenhuma razão palpável, a pessoa se incendiava e despencava do céu. Uma sensação de Para que tudo isso, droga? a invadia independente de qualquer ocorrência real naquele momento mas, mesmo assim, incrivelmente forte - e a pessoa tinha vontade de voltar correndo para a cama e esconder a cabeça debaixo das cobertas.

Talvez seja isso que provoca tais sentimentos, ele pensou. Talvez seja topar com uma coisa dessas - a iminência de muitas mortes ou de luto, aberta como um toldo de banquete feito de teias e lágrimas ao invés de lona e corda. Não o vemos, não no nosso nível Vida-Curta, mas o sentimos. Ah, isso sentimos. E agora...

E agora a sensação tentava lhes sugar a vida. Talvez eles não fossem vampiros, como ambos recearam, mas essa coisa era. O saco mortuário tinha uma vida viscosa, semi-sensível, e os deixaria secos se pudesse. Se eles permitissem.

Lois esbarrou em Ralph, que fez o impossível para impedir que os dois se estatelassem no chão. Então ela ergueu a cabeça (lentamente, como se seus cabelos estivessem embebidos em cimento), levou a mão em concha à boca e inspirou com força. Ao mesmo tempo, oscilou ligeiramente. Em outras circunstâncias, Ralph teria desprezado a oscilação como uma ilusão visual, mas não agora. Ela subira de nível. Só um tantinho. O suficiente para se alimentar.

Ralph não vira Lois mergulhar na aura da garçonete, mas desta vez tudo estava acontecendo diante de seus olhos. As auras dos jornalistas lembravam pequenas lanternas vivamente coloridas, brilhando indómitas numa enorme caverna escura. Agora um fino raio de luz violeta partiu de um deles - na realidade, de Michael Rosenberg, o câmera barbudo de Connie Chung. Dividiu-se ao meio a um dedo do rosto de Lois. O raio superior tornou a dividir-se em dois e penetrou suavemente pelas narinas; o inferior entrou na boca pelos lábios entreabertos. Ralph viu-o luzir fracamente por dentro das faces de Lois como a luz de vela em uma abóbora de Halloween.

Ela afrouxou a mão que o segurava e, de repente, o peso de seu corpo contra o dele desapareceu. Um momento depois, o raio de luz violeta desapareceu. Ela virou o rosto para Ralph. A cor - não muita, mas alguma - voltava ao seu rosto acinzentado.

- Assim está melhor: muito melhor. Agora você, Ralph!

Ele relutou - continuava a achar que era furto - mas tinha que fazê-lo se não quisesse simplesmente desmontar ali; podia quase sentir o resto da energia que pedira emprestada ao Nirvana Boy esvair-se pelos poros. Fechou a mão em torno da boca como fizera no estacionamento do Dunkin' Donuts àquela manhã e virou-se ligeiramente para a esquerda, procurando um alvo. Connie Chung recuara vários passos e se achava mais próxima deles; continuava com os olhos fixos na faixa pendurada na cobertura, conversando com Rosenberg (que não parecia nada pior em consequência do empréstimo que Lois fizera) sobre a tomada. Sem perder tempo, Ralph inalou com força pelo canudo formado por seus dedos.

A aura de Chung era do mesmo marfim bonito de vestido de noiva que envolvia Helen e Nat no dia em que vieram ao seu apartamento com Gretchen Tillbury. Ao invés de um raio de luz, uma espécie de fita longa e recta projetou-se da aura de Chung. Ralph sentiu a energia invadi-lo quase imediatamente, e banir o cansaço doloroso de suas juntas e músculos.

Voltou a pensar claramente, como se tivessem acabado de lavar uma grande camada de lama de seu cérebro.

Connie Chung parou de falar, olhou para o céu um instante, então retomou a conversa com o câmera. Ralph olhou ao redor e viu Lois observando-o ansiosa.

- Melhorou? - ela sussurrou.

- De um modo geral, sim, mas ainda me sinto fechado num saco mortuário.

- Acho... - começou Lois, quando seus olhos se fixaram em alguma coisa à esquerda das portas de entrada do centro cívico. Ela gritou e se encolheu contra Ralph, os olhos tão arregalados que pareciam que iam saltar das órbitas. Ele acompanhou seu olhar e sentiu a respiração prender na garganta. Os arquitectos tinham procurado suavizar as fachadas laterais do prédio feitas de tijolos aparentes, plantando folhagens a toda volta. Estas ou tinham recebido pouco trato ou as tinham intencionalmente deixado crescer, até se entrelaçarem e ameaçarem tampar completamente a estreita faixa de grama que as separava da calçadinha de concreto ao longo do caminho para carros.

Enormes insectos, que lembravam trilobites pré-históricos, entravam e saíam por entre as plantas em grande quantidade, trepando uns sobre os outros, batendo as cabeças, por vezes levantando-se nas patas traseiras e golpeando-se mutuamente com as dianteiras como veados trançando os chifres durante a temporada de acasalamento. Não eram transparentes, como o pássaro na antena parabólica, mas possuíam igualmente um ar fantasmagórico e irreal. Suas auras piscavam febrilmente (e descerebradamente, supôs Ralph) percorrendo todo o espectro de cores; eles eram tão luminosos, mas ao mesmo tempo tão etéreos, que era quase possível pensar nos insectos como estranhos bichos-relâmpago.

Só que não é o que elessão. Você sabe o que eles são.

- Ei! - Era Rosenberg, o câmera de Chung, que os chamava, mas a maioria das pessoas diante do prédio estava olhando para os dois. - Ela está bem, companheiro?

- Está - Ralph respondeu. Ainda trazia a mão enroscada em torno da boca e baixou-a depressa, sentindo-se meio idiota. - Foi só que ela...

- Vi um camundongo! - Lois falou, dando um sorriso débil e radioso... um sorriso bem "Nossa Lois" se é que Ralph já vira um. Teve muito orgulho dela. Ela apontou para as folhagens à esquerda da porta com um dedo quase firme. - Entrou por ali. Puxa, era bem gordinho! Você viu, Norton!

- Não, Alice.

- É só ficar por aqui - disse Michael Rosenberg - que a senhora vai ver todo tipo de fauna hoje à noite. - Ouviram-se risos desencontrados, quase forçados, e todos retomaram suas tarefas.

- Puxa vida, Ralph - cochichou Lois. - Aqueles... aquelas coisas...

Ele segurou sua mão e apertou-a.

- Firme, Lois.

- Eles sabem, não é? É por isso que estão aqui. São como urubus.

Ralph confirmou. Enquanto espiava, diversos insectos saíram do alto das plantas e começaram a extravasar erraticamente parede acima. Moviam-se com um lento aturdimento - como moscas contra uma vidraça em Novembro - e deixavam rastros viscosos e coloridos ao caminharem. Esses esmaeciam e sumiam em seguida. Outros insectos saíam por baixo das folhagens e invadiam estreita faixa de grama.

Um dos comentaristas locais começou a andar na direcção da área infestada e, quando virou a cabeça, Ralph viu que era John Kirkland. Conversava com uma mulher bonitona, vestida com um desses "trajes de negócio" de executiva que Ralph achava - em circunstâncias normais, pelo menos - extremamente sexy. Calculou que fosse a produtora de Kirkland, e imaginou se a aura de Lisette Benson ficaria verde quando a mulher se aproximasse.

- Eles estão indo na direcção dos insectos! - Lois sussurrou transtornada - Temos que impedi-los, Ralph: simplesmente precisamos!

- Não vamos fazer merda nenhuma.

- Mas...

- Lois, não podemos começar a delirar a respeito de insectos que mais ninguém vê. Vamos acabar no hospício se agirmos assim. Além do mais, os insectos não existem para eles. Parou e acrescentou: - Espero que não.

Os dois observaram Kirkland e a colega bonitona caminharem pelo gramado... e entrar em um bolo de trilobites que se contorciam e rastejavam. Um espécime subiu pelo mocassim reluzente de Kirkland, aguardou o rapaz parar de andar um segundo, então trepou pela perna de sua calça.

- Não ligo a mínima para a Susan Day, não sou contra nem a favor - Kirkland ia dizendo.

- A notícia aqui não é ela, é a WomanCare: criancinhas chorosas usando braçadeiras de luto.

- Cuidado John - a mulher disse secamente. - Está deixando sua sensibilidade transparecer.

- Estou? Merda.-O insecto na perna de sua calça pareceu tomar o rumo da virilha. Ocorreu a Ralph que se Kirkland adquirisse subitamente o poder de ver o que dentro de instantes estaria rastejando pelo seu saco, ele provavelmente piraria.

- Tudo bem, mas não se esqueça de falar com as mulheres que dirigem o grupo de pressão local - a produtora recomendava. - Agora que a Tillbury morreu, as que interessam são Maggie Petrowsky, Barbara Richards e a Dra. Roberta Harper. Harper é quem vai apresentar a Grande Feiticeira hoje à noite, acho... - A mulher deu um passo para fora do caminho e o seu salto alto espetou um insecto colorido e pesadão. Um arco-íris de vísceras espirrou dele, e uma substância branca e cerosa que lembrava puré de batatas azedo. Ralph imaginou que a substância branca devia ser as ovas.

Lois apertou o rosto contra seu braço.

- E fique atento para uma mulher chamada Helen Deepneau - continuou a produtora, se aproximando mais um passo do prédio. O insecto grudado em seu salto se sacudia e contorcia enquanto ela andava.

- Deepneau - Kirkland repetiu. Bateu com os nós dos dedos na testa. - Tem um alarme tocando bem aqui dentro.

- Que nada, é só o ruído de sua última célula cerebral girando-falou a produtora.-Ela é a mulher de Ed Deepneau. Estão separados. Se você quiser lágrimas, é com ela mesma. Ela e Tillbury eram muito amigas. Talvez mais do que amigas, se entende o que quero dizer.

Kirkland deu um sorriso maldoso - uma expressão tão alheia à sua máscara televisiva que Ralph se sentiu ligeiramente confuso. Entrementes, um dos insectos coloridos conseguira chegar ao bico do sapato da mulher e subia penosamente por sua perna. Em impotente fascinação, Ralph observou-o desaparecer sob a bainha da saia. Acompanhar o calombinho móvel subir pela perna dela era o mesmo que ver um gatinho andando debaixo de uma toalha de banho. E tal como antes, pareceu que a colega de Kirkland sentiu alguma coisa; pois enquanto discutia com ele as entrevistas a serem feitas durante o discurso de Day, ela baixou a mão e distraidamente coçou o calombinho, que por essa altura percorrera todo o caminho até o seu quadril direito. Ralph não ouviu o barulhinho seco que a coisa frágil e flácida fez ao espocar, mas pôde imaginá-lo.

Aparentemente não foi capaz de refrear a imaginação. E visualizou as entranhas do bicho escorrerem como pus pela perna vestida de náilon. Permaneceria ali até o banho da noite, invisível, despercebido, insuspeitado.

Agora os dois começaram a discutir a melhor maneira de cobrirem a manifestação pró-vida daquela tarde... isto é, presumindo que fosse realmente se realizar. A mulher era de opinião que nem mesmo os Amigos da Vida seriam suficientemente idiotas de aparecer no centro cívico depois do que acontecera em High Ridge. Kirkland respondeu que era impossível subestimar a idiotice dos fanáticos; gente que era capaz de usar tanto poliéster em público era sem dúvida uma força a ser respeitada. Durante todo o tempo em que conversavam, trocavam piadinhas, ideias e fofocas, mais insectos multicoloridos e inchados enxameavam por suas pernas e troncos. Um pioneiro chegara até a gravata vermelha de Kirkland, e aparentemente rumava para o seu rosto.

Um movimento à direita atraiu o olhar de Ralph. Virou-se para as portas em tempo de ver um técnico cutucando um colega e apontando para ele e Lois. Ralph subitamente percebeu claramente o que eles estranhavam: duas pessoas sem razão aparente para estarem ali (não usavam braçadeira de luto e obviamente não pertenciam à mídia), parados a uma extremidade do estacionamento. A mulher, que já gritara uma vez, tinha o rosto escondido no braço do homem... e o homem em questão estava boquiaberto como um tolo, não se sabia com o quê.

Ralph falou baixinho pelo canto da boca, como um prisioneiro discutindo a fuga num velho épico da Warner Bros.

- Levante a cabeça. Estamos atraindo mais atenção do que podemos.

Por um instante, não acreditou que ela pudesse realmente atender ao seu pedido... então Lois se controlou e levantou a cabeça. Olhou para os arbustos plantados ao longo das paredes pela última vez - uma olhadela involuntária e horrorizada - e voltou sua atenção resolutamente para Ralph e somente para Ralph.

- Você está vendo algum sinal de Átropos, Ralph? É por isso que estamos aqui, não é...

para descobrir o rastro dele?

- Talvez. Quem sabe? Ainda nem olhei, para lhe dizer a verdade: coisas demais acontecendo. Acho que devíamos chegar mais perto do prédio. - Não que quisesse fazer isso, mas lhe parecia muito importante fazer alguma coisa. Sentia o saco mortuário à volta deles, uma presença sinistra e sufocante que passivamente se opunha a qualquer movimento.

Era contra essa força que precisavam lutar.

- Muito bem - disse Lois. - Vou pedir o autógrafo de Connie Chung, e vou fazer isso entre risadinhas feito uma boba. Dá para você aguentar? - Dá.

- Óptimo. Porque isso significa que se estiverem olhando para alguém, estarão olhando para mim.

- Parece uma boa ideia.

Ralph deu uma última espiada em John Kirkland e na produtora. Discutiam agora que tipo de acontecimento poderia ganhar espaço ao vivo no noticiário nocturno da rede, totalmente alheios aos trilobites pesadões que rastejavam pelos seus rostos. Naquele instante, um deles contorcia-se lentamente para dentro da boca de John Kirkland.

Ralph desviou depressa os olhos e deixou Lois puxá-lo até o lugar onde a Sra. Chung parará com Rosenberg, o câmera barbudo. Ele viu os dois observarem Lois, depois se entreolharem. O olhar que trocaram revelava uma parte de riso e três partes de resignação

- lá vem um deles - e então Lois deu um apertãozinho na mão dele que dizia: Não se importe comigo, Ralph, você cuida dos seus afazeres e eu dos meus.

- Desculpe, mas a senhora não é Connie Chung? - Lois perguntou naquele seu tom exuberante tipo mas nãoé mesmo maior-barato. - Vi a senhora ali e na hora perguntei a

Norton: "Aquela não é a colega de Dan Rather, ou estou variando?" E então...

- SOM Connie Chung e tenho muito prazer em conhecê-la, mas estou me preparando para o noticiário de hoje à noite, por isso se a senhora me der licença...

- Ah, é claro, nem sonharia em importunar a senhora, só queria o seu autógrafo, só um rabisquinho rápido, porque sou sua fã número um, pelo menos no Maine.

A Sra. Chung olhou para Rosenberg. Ele já sacara uma caneta para lhe oferecer, como um bom instrumentador que já tem na mão o instrumento de que o cirurgião vai precisar antes mesmo que ele o peça. Ralph voltou sua atenção para a área diante do centro cívico e aumentou um tantinho a sua percepção.

O que viu diante das portas foi uma substância escura e semitransparente que a princípio o intrigou. Tinha uns dois dedos de espessura e lembrava muito uma formação geológica. Não podia ser, porém... podia? Se o que ele estava contemplando fosse real (da maneira como os objectos são reais no mundo dos Vidas-Curtas, pelo menos), a coisa teria impedido as portas de se abrirem, o que não acontecia. Enquanto Ralph observava, dois técnicos de TV passaram com a coisa até os tornozelos como se ela não tivesse mais concretude do que uma névoa junto ao chão.

Ralph se lembrou das pegadas de aura que as pessoas deixavam ao passar - aquelas que lembravam as lições de dança de Arthur Murray - e de repente achou que compreendia. Os rastros se dissolviam no ar como fumaça de cigarro... só que a fumaça de cigarro realmente não desaparecia; deixava um resíduo nas paredes, nas janelas e nos pulmões.

Aparentemente, as auras humanas deixavam um resíduo próprio. Provavelmente não o suficiente para ser observável quando as cores desbotassem, ao menos em se tratando de uma só pessoa, mas este era o maior local de reuniões públicas na quarta maior cidade do Maine. Ralph pensou em todas as pessoas que teriam entrado e saído por essas portas todos os banquetes, convenções, espectáculos a preços populares, concertos, torneios de basquetebol - e entendeu aquele depósito semitransparente. Era o equivalente da leve depressão que por vezes se observava no meio dos degraus muito usados.

Não se preocupe com isso agora, amor - cuide do seu trabalho.

Ali perto, Connie Chung rabiscava seu nome no verso da conta de electricidade de Lois do mês de Setembro. Ralph olhou para aquele resíduo no piso de cimento diante das portas, procurando um vestígio de Átropos, algo mais perceptível como cheiro do que como imagem, um aroma carnoso e desagradável, que lembrasse o beco nos fundos do açougue do Sr. Huston quando Ralph era criança.

- Muito obrigada! - Lois borbulhava. - Bem que disse ao Norton: ela é igualzinha à imagem que aparece na televisão, igualzinha a uma boneca chinesa. Foram exactamente as minhas palavras.

- Foi um prazer - Chung respondeu - mas realmente tenho que voltar ao meu trabalho.

- Claro que sim. Por favor dê um abraço no Dan Rather por mim, sim? Diga que estou mandando uma força.

- Pode ficar tranquila. - Chung sorria e acenava com a cabeça ao devolver a caneta a Rosenberg. - Agora se a senhora me der licença...

Se está presente, deve estar num nível mais elevado que eu, pensou Ralph. Vou ter que subir mais um pouquinho.

Sim, mas teria que agir com cautela, e não somente porque o tempo se tornara uma mercadoria extremamente valiosa. O facto é que, se subisse demais, desapareceria do mundo dos Vidas-Curtas, e este tipo de ocorrência poderia até distrair o pessoal da imprensa da iminente manifestação pró-vida... pelo menos por algum tempo.

Ralph concentrou-se, mas, quando o espasmo indolor ocorreu em sua cabeça, desta vez, não se manifestou como uma piscadela, mas como um suave pestanejar. A cor floresceu silenciosamente no mundo; todas as coisas ganharam destaque com radiosidade exclamativa.

Contudo a cor mais forte, o acorde opressivo, era o negro do saco mortuário, a negação de todas as outras. A depressão e aquela sensação de fraqueza debilitante engolfou-o de novo, penetrando em seu coração como as unhas de um martelo. Compreendeu que, se tinha alguma coisa a fazer ali, era melhor fazê-la depressa e voltar correndo para o nível dos Vidas-Curtas, antes que fosse totalmente despojado de sua força vital.

Tornou a olhar na direcção das portas. Por um momento, continuou sem notar nada, excepto as auras desbotadas dos Vidas-Curtas como ele próprio... e então o que ele procurava repentinamente tornou-se claro, visível como uma mensagem escrita com suco de limão quando exposta à luz de uma vela.

Esperara alguma coisa que tivesse o aspecto e o cheiro das tripas podres nos latões de lixo no fundo do açougue do Sr. Huston, mas a realidade foi ainda pior, possivelmente porque o pegou de surpresa. Havia leques de uma substância sangrenta e mucosa nas portas marcas que Átropos fizera com seus dedos inquietos, talvez - e uma nojenta poça da mesma gosma que se afundava nos resíduos endurecidos diante das portas. Havia algo tão terrível nesse muco - tão estranho - que fazia os insectos coloridos parecerem, em comparação, quase normais. Era como uma poça de vômito deixada por um cão acometido de alguma espécie nova e perigosa de raiva. Partia da poça uma trilha da substância, a princípio em coágulos e salpicos quase secos, depois em respingos menores como os de tinta derramada. Mas é claro, pensou Ralph. É por isso que tínhamos que vir aqui. O sacaninha não consegue ficar longe deste lugar. É como a cocaína para um viciado.

Podia imaginar Átropos parado bem ali onde ele, Ralph, se achava agora, olhando...

sorrindo... depois avançando e apoiando as mãos nas portas. Acariciando-as. Criando aquelas marcas sujas e transparentes. Podia imaginar Átropos extraindo força e energia do próprio negrume que estava roubando a Ralph sua vitalidade.

Ele tem outros lugares para ir e outras coisas para fazer, naturalmente - cada dia é sem dúvida um dia atarefado quando se trata de um psicótico sobrenatural como ele - mas deve ser duro para ele se manter muito tempo afastado deste lugar, por mais ocupado que esteja. E qual é a sensação que o lugar lhe traz? A de uma trepada espremidinha numa tarde de verão, é isso aí.

Lois puxou-o pelas costas da manga e ele se virou. Ela continuava a sorrir, mas a intensidade febril dos olhos fazia a expressão de seus lábios parecerem suspeitamente com um grito. Atrás dela, Connie Chung e Rosenberg caminhavam de volta ao prédio.

- Você tem que me tirar daqui - Lois sussurrou. - Não aguento mais. Tenho a sensação de que estou enlouquecendo.

[- Tudo bem: não tem problema]

Não consigo ouvi-lo, Ralph, e acho que estou vendo o sol brilhar através do seu corpo.

Nossa, e estou mesmo!

[-Ah...espere..]

Ele se concentrou e sentiu o mundo deslizar ligeiramente ao seu redor. As cores desbotaram; a aura de Lois reintegrou-se à sua pele.

- Melhor?

- Bem, pelo menos mais sólido. Ele deu um breve sorriso.

- Óptimo. Vamos.

Ralph tomou-a pelo cotovelo e começou a conduzi-la de volta ao ponto onde Joe Wyzer os deixara. Era a mesma direcção dos salpicos sangrentos.

- Você encontrou o que estava procurando?

- Encontrei.

Ela se animou na mesma hora.

- Que óptimo! Vi você subir, sabe: foi muito estranho, você parecia estar se transformando numa fotografia em sépia. E depois... achei que estava vendo o sol atravessar o seu corpo...

que coisa mais esquisita. - Ela o encarou com severidade.

- Ruim, não é?

- Não... não foi bem ruim. Só esquisito. Agora aqueles insectos... eram péssimos. Ai!

- Sei o que quer dizer. Mas acho que ficaram todos lá.

- Talvez, mas é longa a caminhada para sair da floresta,

não é?

- É... uma longa caminhada até o Paraíso, diria Carolyn.

- Fique perto de mim, Ralph Roberts, e não se perca.

- Ralph Roberts? Nunca ouvi falar. Meu nome é Norton. É isso, ele se alegrou de ver, fez Lois rir.

 

ELES caminharam sem pressa pelo estacionamento asfaltado com a sua malha de vagas demarcadas em amarelo com tinta spray. Hoje à noite, Ralph sabia, a maioria dessas vagas estaria ocupada. Venha, veja, ouça, seja visto... e, o mais importante, mostre à sua cidade e a todo o país que o assiste que você não se deixa intimidar pelos Charlie Pickering do mundo. Até a minoria que o medo manteria afastada do comício seria substituída pelos curiosos mórbidos.

Ao se aproximarem da pista de corridas de cavalos, chegaram também à borda do saco mortuário. Ele era mais denso ali, e Ralph percebeu uma espiral movendo-se vagarosamente, como se o saco mortuário fosse composto de partículas minúsculas de matéria carbonizada.

Lembrava um pouco o ar sobre um incinerador destampado, tremeluzindo com o calor e os fragmentos queimados de papel.

Ouvia dois ruídos, um sobrepondo-se ao outro. O mais alto era um suspiro metálico. O vento poderia produzir um som igual, pensou Ralph, se aprendesse a chorar. Era um som assustador, mas o outro, o subjacente, era vivamente desagradável - um som salivoso de mastigação, como se ali perto uma gigantesca boca desdentada estivesse ingerindo uma grande quantidade de comida pastosa.

Lois parou quando se acercaram da pele escura, salpicada de partículas do saco mortuário e lançou um olhar apavorado e contrito a Ralph. Quando falou, foi com uma vozinha infantil:

- Acho que não aguento atravessar aquilo. - Fez uma pausa, lutou consigo mesma, e finalmente desabafou o resto: - Está vivo, sabe. O saco todo. E pode vê-los. - Lois virou o polegar por cima do ombro para indicar as pessoas no estacionamento e as equipes da imprensa mais próximas do prédio - Isso é ruim, mas a coisa também vê a gente, o que é pior ainda... porque sabe que nós o vemos. E ele não gosta de ser visto. Sentido, talvez, mas não visto.

Agora o som mais surdo - o de mastigação salivosa - parecia quase articular palavras e, quanto mais atenção Ralph prestava, tanto mais se convencia de que era realmente o caso.

[Fora daqui. Se manda. Chispa.]

Ralph... - Lois cochichou. - Você ouviu?

[Odeio você. Mato você. Como você.]

Ele confirmou com a cabeça e segurou-a pelo cotovelo outra vez.

- Vamos, Lois.

- Vamos...? Onde ?

- Descer. Até embaixo.

Por um instante, ela apenas olhou para ele, sem compreender; então fez-se a luz e ela concordou com um aceno. Ralph sentiu a piscadela-mais forte do que o pestanejar de há poucos instantes - e de repente o dia à sua volta clareou. A barreira nevoenta e escura à sua frente foi-se dissolvendo e desapareceu. Ainda assim, eles fecharam os olhos e prenderam a respiração, ao se aproximarem do lugar onde sabiam estar a borda do saco mortuário. Ralph sentiu a mão de Lois apertar a sua ao cruzar rapidamente a barreira invisível e, quando ele próprio a cruzou, um nódulo escuro de memórias confusas - a morte lenta de sua mulher, a perda de um cachorro na infância, a visão de Bill McGovern curvando-se e apertando o peito com a mão - pareceu primeiro rondar levemente e, em seguida, abater-se sobre sua mente como uma garra de ferro. Seus ouvidos foram invadidos por soluços metálicos, contínuos e deprimentes em sua inutilidade: a voz chorosa de um idiota congénito.

Então chegaram ao outro lado.

ASSIM que passaram sob o arco de madeira no fim do estacionamento (ESTAMOS INDO ÀS CORRIDAS DE BASSEY PARK! lia-se na curva do arco), Ralph puxou Lois para um banco e a fez sentar, embora ela insistisse com veemência que se sentia óptima.

- Que bom, mas eu estou precisando de uns dois segundos para me recompor.

Ela afastou uma mecha de cabelos da têmpora de Ralph e sapecou-lhe um beijinho no vinco abaixo.

- Gaste todo o tempo que precisar, coração.

Foram uns cinco minutos. Quando ele se sentiu razoavelmente confiante de que poderia se levantar sem falsear os joelhos, tomou de novo a mão de Lois e se ergueram juntos.

- Você encontrou, Ralph? Encontrou o rastro dele? Ele acenou com a cabeça. •

- A gente só consegue ver subindo uns dois níveis. No princípio, tentei subir apenas o bastante para ver as auras, porque aparentemente isto não muda a velocidade das coisas, mas não funcionou. Tem-se que subir um pouquinho mais.

- Tudo bem.

- Mas é preciso cuidado. Porque quando podemos ver...

- Podemos ser vistos. Isso. E também não podemos perder a noção do tempo.

- De jeito nenhum. Você está pronta?

- Quase. Acho que preciso de mais um beijo primeiro. Um pequenininho já serve.

Sorrindo, ele a beijou.

- Agora estou pronta.

- Muito bem: vamos lá. Plím!

AS MANCHAS vermelhas que formavam o rastro levaram-nos a atravessar a área de terra batida que servia de rua central durante a semana da feira municipal, e depois a pista de corrida, onde os cavalos marchadores competiam de maio a Setembro. Lois parou um instante junto à cerca que lhe chegava ao peito, deu uma espiada a sua volta para se certificar de que não havia ninguém na tribuna principal, e, em seguida, içou o corpo com os braços. Inicialmente foi o movimento gracioso e ágil de uma jovem, mas, depois que passou a perna por cima da cerca e se firmou, ela parou. Em seu rosto havia uma expressão que revelava ao mesmo tempo surpresa e desânimo.

[- Lois? Você está bem?]

[- Claro. É a droga da minha roupa íntima velha! Acho que perdi peso, porque ela não quer parar no lugar! Que droga!]

Ralph se deu conta de que podia ver não só a barra rendada da anágua de Lois como também uns dez centímetros do náilon rosa. Sufocou um sorriso ao vê-la montada na prancha larga que encimava a cerca, puxando a roupa. Pensou em lhe dizer que parecia mais fofinha do que paina mas decidiu que talvez não fosse uma boa ideia.

[- Vire de costas enquanto conserto essa droga de anágua, Ralph. E aproveite para tirar esse sorrisinho da cara.]

Ele deu as costas a Lois, deparando-se com o centro cívico. Se houvera um sorrisinho em seu rosto (achava mais provável que Lois o tivesse visto em sua aura), a visão daquele saco mortuário escuro que girava lentamente cuidou de desfazê-lo bem depressa.

[- Lois, você talvez se sentisse bem melhor se simplesmente tirasse a anágua.]

[- Você vai me desculpar, Ralph Roberts, mas não fui ensinada a tirar minha roupa íntima e largá-la em prados de corridas, e se você algum dia conheceu uma moça que fizesse isso, espero que tenha sido antes de encontrar Carolyn. Eu só queria ter um...]

A imagem difusa de um reluzente alfinete de segurança na cabeça de Ralph.

[- Suponho que você não tenha um, tem, Ralph?]

Ele balançou a cabeça e enviou em resposta a imagem de areia escorrendo em uma ampulheta.

[- Está bem, está bem, entendi a mensagem. Acho que dei um jeito para ela aguentar mais um pouquinho. Pode virar de frente agora.]

Ele obedeceu. Lois descia pelo outro lado da cerca de madeira, inteiramente confiante, mas sua aura empalidecera consideravelmente, e Ralph reparou que havia olheiras escuras sob seus olhos outra vez. A Revolta das Roupas Essenciais, porém, fora sufocada, pelo menos por ora.

Ralph deu impulso no corpo, passou uma perna sobre a cerca, e saltou para o outro lado.

Gostou da sensação produzida pelo movimento - pareceu despertar lembranças muito antigas em seus ossos.

[- Vamos precisar recarregar e não vai demorar muito, Lois.]

Ela concordou preocupada:

[- EM sei. Vamos, vamos andando.]

ELES seguiram pela trilha que cruzava o prado, pularam outra cerca de madeira no extremo oposto, e desceram uma encosta coberta de mato até a rua Neibolt. Ralph viu Lois, séria, segurando a anágua por cima da saia do vestido enquanto faziam a descida acidentada, pensou mais uma vez em lhe perguntar se não se sentiria melhor jogando fora a droga da anágua, e mais uma vez decidiu não se meter onde não fora chamado. Se o problema se tornasse bastante incómodo, ela faria isso sem precisar de seus conselhos.

A maior preocupação de Ralph-que o rastro de Átropos simplesmente desaparecesse provou-se inicialmente infundada. As marcas rosadas conduziam directamente à superfície remendada e esburacada da rua Neibolt, entre prédios descascados que deviam ter sido demolidos há anos. Roupa limpa rasgada esvoaçava em cordas bambas; crianças sujas com narizes escorrendo observavam a passagem deles pelas entradas de terra batida. Da porta de uma casa, um menino de uns três anos de idade e lindos cabelos louros lançou a Lois e Ralph um olhar cheio de desconfiança, depois meteu a mão entre as pernas e usou a outra para sacudir o pinto na direcção dos dois.

A rua Neibolt terminava nos pátios da antiga ferrovia e ali Ralph e Lois perderam momentaneamente o rastro. Pararam junto a um cavalete que bloqueava uma antiga entrada rectangular de portão - tudo que restava da velha estação ferroviária -e correram o olhar por um grande semicírculo de terra baldia. Trilhos de desvio, vermelhos de ferrugem, refulgiam do fundo de emaranhados de girassóis e ervas espinhosas; cacos de centenas de garrafas quebradas cintilavam ao sol da tarde. Pintado com tinta spray rosa berrante lia-se na lateral precária de um velho depósito de óleo diesel a frase SUZY CHUPOU MEU PAU. Tal declaração sentimental fora inscrita num friso de suásticas dançantes.

Ralph:

[- Diabos, para onde terá ido?]

[- Ali embaixo, Ralph, está vendo?]

Ela apontava na direcção do que fora a linha principal até 1963, e a única linha até 1983, e que agora não passava de mais um par de trilhos de aço enferrujados e cobertos de mato que não levavam a parte alguma. Até mesmo a maioria dos dormentes tinha desaparecido, queimada em fogueiras nocturnas pelos paus-de-água locais ou pelos bóias-frias que passavam a caminho das plantações de batatas de Aroostook, ou dos pomares de maçãs e embarcações de pesca dos Maritimes. Em um dos poucos dormentes restantes, Ralph identificou salpicos do resíduo rosa. Pareciam mais frescos do que os que tinham seguido na rua Neibolt.

Seu olhar acompanhou os trilhos semicobertos, tentando lembrar-se. Se sua memória não o enganasse, aquela linha circundava o campo municipal de golf retornando ao... bem, retornando ao lado oeste. Ralph raciocinou que deviam ser os mesmos trilhos abandonados que corriam ao longo do aeroporto e passavam pela área de piqueniques onde Faye Chapin poderia estar agora mesmo estudando a distribuição dos competidores no Clássico da Pista 3.

Fizemos um grande círculo, pensou. Levamos quase três dias infernais, mas acho que ao fim e ao cabo vamos retornar ao ponto de partida... não o Paraíso, mas a Avenida Harris.

- Ei, pessoal! Como tem passado?

Era uma voz que Ralph quase pensou ter reconhecido, e essa sensação foi reforçada pela primeira espiada que deu no homem que falava. Achava-se parado atrás deles, no trecho em que a calçada da rua Neibolt finalmente morria. Parecia ter uns cinqüenta anos, mas Ralph calculou que talvez fosse cinco ou dez anos mais jovem. Usava uma camiseta e um velho par de jeans rasgado. A aura que o cercava era verde como um copo de cerveja no dia de São Patrício. Foi o que finalmente avivou a memória de Ralph. Era o beberrão que abordara ele e Bill no dia em que deparara com o amigo no parque Strawford, chorando pelo seu antigo colega Bob Polhurst... que, no fim, acabara por sobreviver a ele. A vida, às vezes, era mais engraçada do que Groucho Marx.

Um estranho fatalismo começou a dominar Ralph, junto a uma compreensão intuitiva das forças que agora os envolviam. Podia ter passado sem ela. Pouco lhe importava se as forças eram benignas ou malignas, Acaso ou Desígnio; eram gigantescas, isso é que importava, e transformavam em piada as coisas que Cloto e Láquesis tinham dito a respeito da escolha e do livre arbítrio. Sua sensação era que ele e Lois estavam amarrados aos raios de uma imensa roda - uma roda que não parava de girá-los de volta ao ponto de origem, ao mesmo tempo em que os mergulhava cada vez mais fundo naquele túnel medonho.

- Tem uns trocados para mim, chefe?

Ralph desceu um pouco para ter certeza de que o beberrão o ouviria quando ele falasse.

- Aposto que o seu tio ligou para você de Dexter - disse Ralph. - E disse que você poderia retomar o seu trabalho na usina... mas só se chegasse lá hoje. Acertei?

O beberrão piscou os olhos cautelosamente surpreso.

- Bem... é. Mais ou menos isso. - E repassou a história, em que ele próprio provavelmente acreditava mais do que outro qualquer a quem a tivesse contado nos últimos tempos, reencontrando o fio esfarrapado da meada. - É um bom trabalho, sabe? E posso ser contratado de novo. Tem um ônibus Aroostook-Bangor às duas horas, mas a passagem custa cinco dólares e cinqüenta e até agora só consegui dois dólares e vinte e cinco...

- Setenta e seis centavos é o que você tem - disse Lois. - Duas moedas de vinte e cinco centavos, duas de dez, uma de cinco e uma de um. Mas, considerando o que você bebe, sua aura tem um aspecto extremamente saudável, diga-se em seu favor. Você deve ter a constituição de um cavalo.

O beberrão lançou-lhe um olhar intrigado, deu um passo para trás e limpou o nariz com a palma da mão.

- Não se preocupe - Ralph tranquilizou-o - minha mulher vê auras em toda parte. Ela é uma pessoa muito espiritual.

- É mesmo, quem diria...

- Hum-hum. Ela é também muito generosa, e acho que vai lhe dar bem mais do que uns trocados. Não vai, Alice?

- Ele vai beber tudo - ela respondeu. - Não tem nenhum emprego em Dexter.

- Não, provavelmente não - disse Ralph encarando-a - mas a aura dele parece de fato extremamente saudável. Extremamente.

- O senhor também tem o seu lado espiritual, imagino.

- Os olhos do homem continuavam a se mover cautelosos de Ralph para Lois, mas havia neles um brilho de contida esperança.

- Sabe que o senhor tem razão? - concordou Ralph. - Recentemente é que a coisa se manifestou.-Contraiu os lábios, como se um pensamento interessante tivesse acabado de lhe ocorrer, e inalou. Um raio verde-vivo escapou da aura do mendigo, cruzou os dois metros e meio que o separavam de Ralph e Lois, e entrou pela boca de Ralph. O gosto foi claro e prontamente identificável: cidra Boone's Farm. Era áspera e meio ordinária, mas, mesmo assim, agradável... possuía a vitalidade do trabalhador. Com o sabor, veio a sensação da força que retornava, o que era bom, e uma clareza aguda de pensamento, o que era ainda melhor.

Entrementes, Lois estendia uma nota de vinte dólares. O beberrão, porém, não a viu logo; olhava de cara franzida para o céu. Naquele instante, outro raio verde-vivo separou-se de sua aura. Atravessou a clareira coberta de mato rasteiro ao lado da entrada do portão como o foco de uma potente lanterna e entrou pela boca e o nariz de Lois. A nota em sua mão tremeu por um instante.

[- Nossa, como é bom!]

- Que diabo, esses caubóis da base aérea de Charleston!

- O beberrão exclamou em tom de censura. - Eles não têm nada que quebrar a barreira do som antes de deixarem o litoral! Quase molhei as minhas... - Seu olho bateu na nota entre os dedos de Lois, e a carranca aumentou. - Olhe aqui, que brincadeira é essa que acham que estão aprontando comigo? Não sou burro não, sabiam? Pode até ser que beba umas e outras, mas burro não sou não.

É só dar tempo ao tempo, pensou Ralph. Que logo será.

- Ninguém está pensando que o senhor é burro - disse Lois. - Não é nenhuma brincadeira. Tome o dinheiro, meu senhor.

O vagabundo tentou insistir na carranca desconfiada, mas depois de dar uma boa olhada em Lois (e uma mais rápida e de esguelha em Ralph), substituiu-a por um grande e simpático sorriso. Adiantou-se para Lois, estendendo a mão para apanhar o dinheiro, de que ficara credor sem sequer saber o porquê.

Lois ergueu a mão um instante antes que ele pudesse agarrar a nota.

- Não deixe de comer alguma coisa quando for beber. E poderia também se questionar se anda satisfeito com a sua maneira de viver.

- A senhora está absolutamente certa! - exclamou o beberrão entusiasmado. Seus olhos não se desviaram da nota entre os dedos de Lois. - Absolutamente, madame! Eles têm um programa do outro lado do rio, desintoxicação e reabilitação, sabe. Venho pensando nisso.

Verdade. Penso nisso todo santo dia. - Mas seus olhos continuavam pregados nos vinte dólares e ele chegava quase a babar. Lois lançou a Ralph um olhar breve e cheio de dúvidas, em seguida encolheu os ombros e deixou a nota passar dos seus dedos para os do homem.

- Muito obrigado! Muito obrigado, minha senhora! - Seu olhar transferiu-se para Ralph.

- A senhora é uma verdadeira dama! Só espero que o senhor saiba disso!

Ralph brindou Lois com um olhar carinhoso.

- Para falar a verdade, eu sei - respondeu.

MEIA hora mais tarde, os dois caminhavam entre os trilhos de aço enferrujado no trecho em que contornavam suavamente o campo municipal de golfe... só que iam um pouco mais alto do que o mundo dos Vidas-Curtas depois do encontro com o beberrão (talvez porque ele mesmo estivesse um pouco alto), e caminhar não era bem o que estavam fazendo. Por um lado, despendiam pouco ou nenhum esforço e, embora seus pés se movessem, a Ralph eles pareciam deslizar. Por outro, ele não tinha muita certeza de serem visíveis ao mundo dos Vidas-Curtas; esquilos saltavam alegremente entre seus pés, ocupados em recolher alimentos para o inverno que se aproximava, e uma vez Ralph viu Lois se abaixar bruscamente quando uma cambaxirra quase partiu seus cabelos ao meio. O pássaro desviou-se para a esquerda e para o alto, como se percebesse, no último instante, que havia um ser humano em sua rota de voo. Os golfistas não lhes prestaram a menor atenção, tampouco. A opinião de Ralph sobre golfistas é que eram obsessivamente absortos em si mesmos, mas, ainda assim, achou sua falta de interesse um pouco exagerada. Se ele tivesse avistado um casal de adultos bem vestidos passeando por uma linha de trem abandonada em pleno dia, achava que provavelmente faria uma breve pausa para tentar adivinhar o que estavam pretendendo fazer e onde poderiam estar indo. Acho que sentiria particular curiosidade em descobrir por que a senhora não parava de resmungar "Fique no lugar, porcaria velha", e repuxava a saia, Ralph pensou sorrindo. Mas os golfistas sequer olharam para eles, embora um grupo de quatro, que seguia para o nono buraco, passasse tão perto que Ralph chegou a ouvir seus comentários preocupados sobre uma debilidade crescente no mercado de títulos. A ideia de que ele e Lois tivessem se tornado de novo invisíveis - ou quase - começou a lhe parecer cada vez mais plausível. Plausível... e inquietante. O tempo passa mais rápido quando se está alto, dissera o velho Dor.

O rastro se tornava mais fresco à medida que caminhavam para oeste, e Ralph gostava cada vez menos dos pingos e respingos que o formavam. Onde caíra sobre os trilhos de aço, o resíduo comera a ferrugem como ácido corrosivo. Onde caíra sobre o mato rasteiro, deixara-o negro e morto - até as espécies mais resistentes tinham morrido. Quando passaram pelo terceiro campo de golfe e se embrenharam num matagal de árvores raquíticas e capim, Lois puxou-o pela manga. Apontou mais adiante. Grandes manchas do resíduo de Atropos brilhavam como uma tinta enauseante nos troncos das árvores que agora se adensavam junto à estrada de ferro, e formara poças em algumas depressões entre os velhos trilhos - onde antes houvera dormentes, supunha Ralph.

[- Estamos chegando perto do lugar onde ele mora, Ralph.]

[- Acho que sim.]

[- E se ele volta e nos encontra na casa dele, que faremos?]

Ralph sacudiu os ombros. Ele não sabia nem tinha muita certeza se lhe fazia diferença. Que as forças que os moviam como peões num tabuleiro - aquelas que o Sr. C. e o Sr. L. chamavam de Superior Desígnio - se preocupassem com isso. Se Atropos aparecesse, Ralph tentaria arrancar a língua do sacaninha careca e estrangulá-lo com ela. Se entornasse o caldo para alguém, que se danasse. Ele não podia assumir a responsabilidade de planos grandiosos nem de negócios dos Longas-Vidas; sua tarefa agora era cuidar de Lois, que estava correndo um risco, e tentar impedir a carnificina que iria ocorrer não muito longe dali dentro de algumas horas. E quem sabe? No caminho poderia até encontrar um tempinho extra para proteger a sua própria pele rejuvenescida. Era o que tinha de fazer e, se o merdinha o atrapalhasse, um dos dois ia sobrar. Se isso não se encaixava nos planos dos chefões, tanto pior.

Lois estava captando a maior parte desses pensamentos diretamente de sua aura percebeu-o em sua aura quando ela tocou seu braço e ele se virou para olhar.

[- Que quer dizer com isso, Ralph? Que vai tentar matá-lo se ele o atrapalhar?}

Ele refletiu um instante e confirmou com a cabeça.

[- E, é exatamente o que quero dizer.}

Ela pensou na resposta e em seguida concordou.

[-Ralph?]

Encarou-a, com as sobrancelhas erguidas.

[- Se for preciso fazer isso, eu o ajudarei}

Ele ficou absurdamente comovido com esse oferecimento... e fez o possível para lhe esconder os demais pensamentos: que a única razão por que ela estava ali era a necessidade de mantê-la sob sua vigilância e proteção. Tal pensamento levou-o aos brincos roubados, mas ele afastou a imagem, pois não queria que ela a visse em sua aura - nem sequer desconfiasse.

Os pensamentos de Lois, entrementes, tinham tomado uma direção diferente e marginalmente mais segura.

[- Mesmo se entrarmos e sairmos sem encontrá-lo, ele saberá que alguém es teve lá, não ? E provavelmen te saberá quem foi também.]

Ralph não podia negá-lo, mas não via que diferença iria fazer; suas opções tinham se afunilado para uma única, pelo menos temporariamente. Podiam dar um passo de cada vez e ficar torcendo para que, quando o sol se erguesse no dia seguinte, eles ainda estivessem vivos para vê-lo. Mas, se me dessem escolha, eu provavelmente iria preferir estar dormindo, Ralph pensou, e um sorrisinho melancólico tocou os cantos de sua boca. Nossa, parece que faz anos que não durmo. Sua mente passou instantaneamente dali para o ditado favorito de Carolyn, aquele de que era longa a viagem de volta ao paraíso.

Parecia-lhe nesse momento que o paraíso talvez fosse simplesmente dormir até o meio-dia... ou talvez uns minutinhos mais.

__ Ele tomou Lois pela mão e recomeçaram a seguir o rastro de Atropos.

A UNS quinze metros da cerca de tela que definia os limites do aeroporto, os trilhos enferrujados terminaram. O rastro de Atropos, no entanto, prosseguia, embora pouco além; Ralph tinha quase certeza de estar vendo o ponto onde terminava, e a imagem dos dois amarrados aos raios de uma jjrande roda recorreu à sua mente. Se tivesse razão, a toca de Atropos achava-se apenas à distância de uma pedrada do lugar em que Ed batera no sujeito gordo com os barris de fertilizante na caçamba da picape.

O vento soprava em rajadas, trazendo às suas narinas um cheiro ruim muito próximo, e, de mais longe, a voz de Faye Chapin, discorrendo para alguém sobre o seu assunto preferido:

"... o que sempre digo! O majong é como o xadrez, o xadrez é como a vida, portanto, se você sabe jogar qualquer um dos dois..."O vento amainou. Ralph ainda conseguia ouvir a voz de Faye se apurasse os ouvidos, mas não distinguia mais as palavras em si. Mas não fazia mal; já ouvira aquela palestra suficientes vezes para conhecer exatamente o seu conteúdo.

[- Ralph, esse fedor está horrível! E ele, não é?}

Ralph confirmou com um aceno de cabeça, mas não achava que Lois tivesse visto. Ela apertava a mão dele com força, olhando em frente com os olhos bem abertos. O rastro de respingos que começara nas portas do centro cívico terminou na base de um carvalho morto, que se inclinava ebriamente a uns sessenta metros. A causa da morte da árvore e de sua posição inclinada era evidente: um lado da venerável relíquia tinha sido descascada como uma banana por um raio. Os sulcos, rachaduras e nós de sua casca cinzenta pareciam formar, em baixo relevo, rostos que gritavam silenciosamente, e a árvore abria os galhos desfolhados contra o céu como um sinistro ideograma... que apresentava - pelo menos na imaginação de Ralph - uma desconfortável semelhança com os ideogramas japoneses para kamikaze. O raio que matara a árvore não tivera êxito em derrubá-la, mas certamente fizera o possível. A parte do extenso raizame virada para o aeroporto tinha sido completamente arrancada do chão. As raízes que se estendiam sob a cerca de arame tinham-na deslocado para cima e para fora dando-lhe a forma de um sino, o que fez Ralph pensar, pela primeira vez em anos, em um conhecido de infância chamado Charles Engstrom.

"Não vá brincar com Chuckie", a mãe de Ralph costumava recomendar. "Ele é um menino indecente." Ralph não sabia se Chuckie era ou não indecente, mas que não batia muito bem da bola, não havia dúvida. Chuckie Engstrom gostava de se esconder atrás da árvore no jardim de sua casa com uma vara comprida que ele chamava de Varinha Metida. Quando passava uma mulher de saia rodada, Chuckie acompanhava-a pé ante pé, metia a varinha sob a barra da saia e a levantava. Frequentemente ele conseguia verificar a cor da roupa íntima da mulher (a cor da roupa íntima das mulheres era sua grande fascinação) antes que ela percebesse o malfeito e desse uma corrida no menino, que ria às gargalhadas, até sua casa, ameaçando fazer queixa à sua mãe. A cerca do aeroporto, puxada para fora e para o alto junto às raízes do velho carvalho, lembraram a Ralph as saias das vítimas de Chuckie quando ele as erguia com a sua Varinha Metida.

[-Ralph?]

Ele olhou para Lois.

[- Quem éjuan Indecente? E por que você está pensando nele agora?]

Ralph caiu na gargalhada.

[- Você viu isso na minha aura?]

[-Acho que vi... mas não sei muito mais que isso. Quem é ele?]

[- Um dia desses lhe conto. Vamos]

Segurou-a pela mão e caminharam vagarosamente até o carvalho, onde terminava o rastro de Atropos, e aumentava o cheiro de decomposição que era o cheiro dele.

 

ELES pararam junto ao tronco do carvalho, olhando para baixo. Lois mordia obsessivamente o lábio inferior.

[- Será cue temos realmente de descer aí, Ralph? Realmente?]

[- Temos.]

[- Mas por quê? Que e'que vamos fazer aí? Recuperar alguma coisa que ele roubou? Matar

Atropos? O quê?]

Além de recuperar o pente de Joe e os brincos de Lois, ele não sabia... mas tinha certeza de que, quando chegasse a hora, ele saberia, os dois saberiam.

[- Acho que por enquanto o melhor e continuarmos andando, Lois.]

O raio agira como uma mão de ferro, empurrara a árvore violentamente para um lado e abrira um grande buraco em sua base no outro. A um homem ou mulher com a visão dos

VidasCurtas, aquele buraco sem dúvida pareceria escuro - e talvez um tantinho assustador, com os lados desmoronando e as raízes mal discerníveis revirando-se nas sombras densas como cobras - mas de outro modo não tinha nada incomum.

Uma criança com uma boa imaginação veria mais, pensou Ralph. Aquele oco escuro na base da árvore poderia fazê-la pensar em tesouros de piratas... esconderijos de bandidos... tocas de anões malvados...

Mas Ralph achava que mesmo uma criança Vida-Curta imaginativa não teria sido capaz de enxergar a luz fraca e vermelha que se filtrava pelas raízes da árvore até a superfície, ou de perceber que aquelas raízes retorcidas eram na realidade degraus toscos que levavam a um lugar desconhecido (e sem dúvida desagradável).

Não - mesmo uma criança imaginativa não veria essas coisas... mas poderia senti-las.

Certo. E em seguida, alguém dotado de cérebro daria meia-volta e correria como se todos os demónios do inferno o perseguissem. Como teriam feito ele e Lois, se tivessem um pingo de juízo. Se não fosse pelos brincos de Lois. Se não fosse pelo pente de Joe Wyzer. Se não fosse pelo lugar que ele perdera no Desígnio. E, naturalmente, se não fosse por Helen (e possivelmente por Natalie) e pelas duas mil pessoas que iriam ao centro cívico hoje à noite.

Lois tinha razão. Deviam fazer alguma coisa e, se recuassem agora, seria irremediável.

E assim era a vida, pensou. A vida em que os poderes que existem amarram os pobres e confusos Vidas-Curtas na sua roda.

Agora via Cloto e Láquesis por uma lente clara de ódio e lhe ocorreu que, se os dois estivessem ali naquele momento, teriam trocado um daqueles olhares constrangidos e em seguida se afastado alguns passos.

E estariam certos em agir assim, pensou. Muito certos.

[- Ralph? Que foi que houve? Por que está tão zangado?}

Ele levou sua mão aos lábios e beijou-a.

[- Não é nada. Vamos. Vamos antes que a gente perca a coragem.]

Ela o fitou por mais um instante e concordou. Quando Ralph se sentou, enfiando as pernas pela boca escancarada e forrada de raízes na base da árvore, ela estava bem ali ao lado dele.

RALPH escorregou sobre as costas pela árvore abaixo, protegendo o rosto com a mão livre para impedir que entrasse terra em seus olhos abertos. Tentou não se alarmar quando os nós das raízes acariciaram seu pescoço e empurraram seus rins. O cheiro repugnante sob a árvore que lembrava a jaula de um macaco dava-lhe vontade de vomitar. Ainda foi capaz de prosseguir se enganando que se habituaria àquilo até chegar ao fundo do buraco sob o carvalho, mas então a brincadeira acabou. Apoiou-se sobre um cotovelo, sentindo as raízes menores espetarem seu couro cabeludo e pedaços de cortiça pendurados fazerem cócegas em suas bochechas, e pôs para fora todo o café da manhã que restava em seu estômago. Ouviu Lois fazer a mesma coisa à sua esquerda.

Uma tonteira horrível passou por sua cabeça como uma onda quebrando. O mau cheiro era tão intenso que era praticamente mastigável, e ele viu o resíduo vermelho que tinham rastreado até aquele lugar de pesadelo sob a árvore espalhar-se por suas mãos e braços.

Olhar para aquela coisa já fora bastante ruim; mas ver-se mergulhado nela, meu Deus!

Alguma coisa tacteou em direcção à sua mão e ele quase entrou em pânico até perceber que era Lois. Entrelaçou seus dedos nos dela.

[- Ralph, suba um pouquinho! É melhor! Dá para respirar!

Ele compreendeu imediatamente o que Lois queria dizer, e teve de se refrear, puxar-se para baixo, no último instante. Caso contrário, teria subido a escala da percepção como um foguete a toda velocidade.]

O mundo oscilou e, de repente, parecia haver um pouquinho mais de luz no buraco fétido...

e um pouquinho mais de espaço também. O cheiro não desapareceu, mas se tornou tolerável. Agora era como estar numa pequena barraca fechada e apinhada de gente de pés sujos e suvacos suados - uma coisa nada agradável, mas com que se podia conviver, pelo menos por algum tempo.

Repentinamente Ralph imaginou o mostrador de um relógio de bolso com ponteiros que se moviam demasiado rápido. Melhorara sem aquele cheiro horrível tentando adentrar sua garganta e sufocá-lo, mas o lugar continuava a ser perigoso - suponha que saíssem dali na manhã seguinte, e não tivesse sobrado nada do centro cívico excepto um buraco fumegante na rua Principal? E isso podia acontecer. Manter a noção do tempo ali embaixo - tempo vida-curta, vida-longa ou vida-eterna - era impossível. Ele deu uma espiada no relógio, mas não adiantou nada. Devia tê-lo acertado antes, mas se esquecera.

Deixa para lá, Ralph - não há nada que você possa fazer, então deixa para lá.

Tentou e, ao tentar, ocorreu-lhe que o velho Dor tinha estado cem por cento certo no dia em que Ed colidira com a picape da firma de jardinagem do West Side; era melhor não se intrometer em assuntos de longa data. No entanto, ali estavam, o Peter Pan mais velho do mundo e a Wendy mais velha do mundo, escorregando pelo oco de uma árvore mágica até um submundo pegajoso que nenhum dos dois queria ver.

Lois olhava para ele, o rosto pálido iluminado por aquela luz vermelha doentia, os olhos expressivos cheios de medo. Ele viu fios escuros em seu queixo e se deu conta de que era sangue. Ela parará de apenas mordiscar o lábio, passara a arrancar pedacinhos dele.

[- Ralph, você está bem?]

[- Consigo me enfiar no oco de um velho carvalho com uma moça bonita e você ainda pergunta?

Estou óptimo, Lois. Mas acho que é melhor nos apressarmos.]

[- Certo.]

Ralph tacteou mais abaixo com o pé e firmou-o numa raiz nodosa. Ela aguentou seu peso e ele escorregou por uma rampa rochosa, espremendo-se sob outra raiz e trazendo Lois pela cintura. A saia subiu até as coxas e Ralph pensou mais uma vez, brevemente, em Chuckie Engstrom e sua Varinha Metida. Achou graça mas, ao mesmo tempo, se exasperou de ver Lois tentando puxar a saia para baixo.

[- Sei que uma senhora tenta manter a saia composta sempre que possível, mas acho que a regra vai para o espaço quando se está escorregando pela escada de um anão no oco de um carvalho.

Certo?]

Ela lhe respondeu com um sorrisinho constrangido e amedrontado.

[- Se tivesse adivinhado o que iríamos fazer, teria vestido calças compridas. Pensei que só íamos até o hospital.]

Se eu tivesse adivinhado o que íamos fazer, pensou Ralph, teria vendido os meus títulos, assustasse ou não o mercado, e estaríamos num avião rumando para o Rio, minha querida.

Sentiu o caminho com o outro pé, muito consciente de que, se escorregasse, provavelmente iria acabar em algum lugar fora do alcance da defesa civil de Derry. Pouco acima de seus olhos, uma minhoca vermelha meteu a cabeça para fora da terra e deixou cair uns grãozinhos na testa de Ralph.

Por um tempo que lhe pareceu uma eternidade, ele não sentiu nada, então seu pé encontrou madeira lisa-não era uma raiz desta vez, mas algo parecido com um degrau de verdade. Ele se deixou escorregar, ainda segurando Lois pela cintura, e esperou para ver se o lugar em que firmara o pé aguentaria ou se partiria sob o peso dos dois.

Aguentou e era suficientemente largo para Lois e ele. Ralph olhou para baixo e descobriu que estavam no primeiro degrau de uma escada estreita que descia em curva para a escuridão avermelhada. Fora construída para - e talvez por - uma criatura bem mais baixa que os dois, o que os obrigava a se curvar, mas ainda era melhor do que o pesadelo dos últimos minutos.

Ralph olhou para a cunha irregular de luz solar no alto, os olhos espiando de um rosto manchado de suor e terra com uma expressão de mudo desejo. A luz do dia nunca lhe parecera tão gostosa e distante. Virou-se para Lois e fez um sinal com a cabeça. Ela apertou sua mão e retribuiu o aceno. Curvados, encolhendo-se cada vez que uma raiz batia em seus pescoços e costas, começaram a descer a escada.

A DESCIDA pareceu interminável. A luz vermelha tornouse mais clara, o mau cheiro de Á tropos, mais forte, e Ralph sabia que os dois estavam "subindo" enquanto desciam; ou então estavam sendo esmagados pelo cheiro. Continuou a dizer a si mesmo que estavam fazendo o que tinham de fazer, e que devia haver um apontador numa operação dessa envergadura alguém que lhes desse um toque se e quando o tempo estivesse terminando - mas, ainda assim, ele não parava de se preocupar. Porque talvez não houvesse um apontador, ou um juiz, ou uma equipe de banderinhas de camisas listradas. Não se aceitam mais apostas, dissera Cloto.

Nem bem Ralph começara a imaginar se a escada desceria até o inferno, ela terminou. Um corredorzinho revestido de pedra, que não tinha mais de um metro de altura e seis de comprimento, levava a um portal em arco. Para além, a luz vermelha pulsava e se intensificava como o reflexo luminoso de um forno aberto.

[- Vamos, Lois, mas prepare-se para o que der e vier. Prepare-se para ele.]

Ela concordou com um aceno, repuxou a anágua torta, e caminhou ao seu lado pela passagem estreita. Ralph chutou algo que não era uma pedra e abaixou-se para pegá-lo. Era um cilindro vermelho de plástico, mais largo numa ponta do que na outra. Levou um instante para perceber o que era: o punho de uma corda de pular. Three-six-nine, hon, the goose drank wine.

Não se meta no que não é de sua conta, Vida-Curta, Átropos dissera, mas ele se metera, e a razão não fora apenas o que os doutorezinhos carecas chamavam de ka, tampouco. Deixara-se envolver porque as coisas que Átropos andava tramando eram de sua conta, ainda que o sacaninha pensasse o contrário. Derry era sua cidade, Lois Chasse era sua amiga, e Ralph descobriu em seu íntimo um sincero desejo de fazer o Dr. n^S se arrepender de um dia ter visto os brincos de brilhantes de Lois.

Atirou longe o punho da corda de pular e recomeçou a andar. Logo em seguida, ele e Lois cruzaram o arco e simplesmente estacaram ali, contemplando o apartamento subterrâneo de Átropos. Com os olhos muito abertos e as mãos dadas, pareciam mais que nunca crianças num conto de fadas - não Peter Pan e Wendy, mas João e Maria, diante da casa de açúcar da feiticeira, depois de passar dias vagando perdidos pela floresta.

[- Ah, Ralph. Meu Deus, Ralph... você está vendo?]]

[- Psiu,Lois. Psiu.]

Bem à sua frente, havia um cómodo apertado que parecia ser uma combinação de cozinha e quarto de dormir. O lugar era ao mesmo tempo sórdido e arrepiante. No centro do cómodo, havia uma mesa baixa e redonda que Ralph concluiu ser a metade de um barril. Sobre a mesa, os restos de uma refeição - um mingau cinzento e azedo que lembrava miolos liquefeitos congelando em uma sopeira. Havia uma única cadeira desmontável, suja. À direita da mesa, um vaso sanitário primitivo formado por um tambor de aço enferrujado e um assento equilibrado em cima. O cheiro que subia da peça era incrivelmente repugnante.

A única decoração do apartamento era um espelho de corpo inteiro com moldura de latão preso a uma parede, a superfície tão escurecida pelo tempo, que o Ralph e a Lois que ele reflectiu pareciam boiar em uns três metros de água.

À esquerda do espelho, achava-se um leito tosco improvisado com um colchão imundo e um saco de juta cheio de palha ou penas. O travesseiro e o colchão rescendiam os suores nocturnos da criatura que os usava. Os sonhos guardados naquele travesseiro de saco me levariam à loucura, pensou Ralph. Em algum lugar, só Deus sabia quantos metros mais para o fundo da terra, uma água pingava produzindo um ruído oco.

No extremo oposto do apartamento, havia outro arco, mais alto, pelo qual se divisava uma área surreal de armazenamento. Ralph chegou a piscar duas ou três vezes para se certificar de que realmente estava vendo o que imaginava estar vendo.

Não resta dúvida de que e'aqui, Ralph pensou. Seja lá o que viemos buscar, está aqui.

Lois começou a se aproximar do segundo arco como se estivesse hipnotizada. Sua boca tremia de desânimo, mas seus olhos estavam cheios de irresistível curiosidade - era a mesma expressão, não havia dúvida, que havia no rosto da mulher do Barba-azul quando usou a chave para abrir a porta do quarto que q marido lhe proibira. Ralph subitamente teve a certeza de que Átropos se encontrava escondido logo à entrada do arco, brandindo o bisturi enferrujado. Precipitou-se atrás de Lois e a deteve antes que pudesse entrar.

Agarrou-a pelo braço, depois levou um dedo aos lábios e sacudiu a cabeça negativamente antes que ela pudesse falar.

Agachou-se com os dedos de uma mão apoiados no chão de terra batida, numa pose de corredor que aguarda o tiro de partida. Então atravessou o arco de um salto (sentindo prazer na pronta resposta de seu corpo mesmo num momento como aquele), caiu sobre o ombro e rolou. Seu pé bateu numa caixa de papelão derrubando-a e despejando uma mistura de objectos: luvas e meias desencontradas, livros velhos, um par de bermudas, uma chave de fenda manchada de castanho-avermelhado - talvez tinta, talvez sangue - na haste de aço.

Ralph ficou de joelhos e olhou para Lois, às suas costas, que continuava parada no arco, observando-o com as mãos fechadas sob o queixo. Não havia ninguém do outro lado do arco, e realmente não havia espaço para mais ninguém. Havia, sim, mais caixas empilhadas de cada lado. Ralph leu os dizeres impressos com uma certa perplexidade e admiração: Jack Daniel's. Gilbey's, Smirnoff, J&B. Átropos, ao que parecia, gostava tanto de caixas de bebidas quanto qualquer pessoa que não suportava a ideia de jogar nada fora.

[- Ralph? Estamos seguros?]

A palavra era uma piada, mas ele confirmou com a cabeça e lhe estendeu a mão. Lois correu para ele, ao mesmo tempo repuxando a anágua com força, mais uma vez, espiando a toda volta com crescente assombro.

Parado do outro lado do arco, no apartamentinho deprimente de Átropos, o depósito parecera grande. Agora ali dentro, Ralph descobriu que se estendia muito além; áreas daquelas dimensões em geral eram chamadas armazéns. Havia corredores entre grandes pilhas precárias de sucata. Somente o material junto à porta estava em caixas; o restante fora empilhado de qualquer jeito, criando um espaço que era dois quintos labirinto e três quintos arapuca. Ralph concluiu que mesmo armazém era uma palavra demasiado restrita - isto era um subúrbio subterrâneo e Átropos podia estar escondido em qualquer lugar... e se estivesse, provavelmente estaria à espreita. Lois não perguntou o que estavam vendo; Ralph leu em sua expressão que ela já sabia. Quando falou, foi num tom sonhador que disparou um calafrio pelas costas de Ralph.

[- Ele deve ser muito velho, Ralph.]

É. Muito velho.

Entrando uns vinte metros pelo armazém, que estava iluminado pela mesma luz fraca, vermelha e difusa da escada, Ralph viu uma grande roda com raios em cima de uma cadeira de espaldar de vime que, por sua vez, se assentava sobre uma velha prensa de passar roupa.

A visão daquela roda produziu nele um calafrio mais profundo; era como se a metáfora para qual sua mente apelara a fim de compreender o conceito de ka tivesse se materializado.

Reparou na fita de ferro enferrujado que contornava a circunferência externa da roda e percebeu que provavelmente pertencera a uma daquelas bicicletas do fim do século passado, com aparência de velocípedes exageradamente grandes.

E uma roda de bicicleta, sim, e deve ter no mínimo uns cem anos, pensou. A constatação o levou a pensar no número de pessoas - milhares ou dezenas de milhares - que morrera em Derry e arredores desde que Átropos trouxera aquela roda ali para baixo. E desses milhares, quantas teriam sido mortes do Acaso?

E até que época do passado ele remontaria? A quantas centenas de anos?

Naturalmente não havia como calcular, talvez até ao início dos tempos, quando quer que tivesse sido. Durante todo esse tempo, ele tirara uma lembrancinha de cada pessoa com quem interferira... e ali estavam.

Todas.

[-Ralph!]

Ele se virou e viu que Lois tinha as mãos estendidas. Em uma, segurava o chapéu-panamá faltando uma meia-lua na aba. Na outra, o pentinho preto, do tipo que se comprava em qualquer loja de conveniências por um dólar e vinte e nove centavos. Aderia ao pente um fantasmagórico brilho laranja, o que não surpreendeu a Ralph. Cada vez que o dono o usara, o pente devia ter atraído um pouco daquela luminosidade tanto da aura quanto do fio de balão, como se fosse uma caspa. Tampouco lhe surpreendeu encontrar o pente com o chapéu de McGovern; a última vez que vira os dois objectos, estavam juntos. Lembrava-se do sorriso sarcástico de Átropos ao tirar o chapéu com um gesto largo e fingir pentear a cabeça pelada.

Então ele deu um salto no ar e bateu os calcanhares.

Lois estava apontando para uma velha cadeira de balanço com o pé quebrado.

[- O chapéu estava bem ali no assento. Com o pente por baixo. É do Sr. Vfyzer, não é?]

Ela o entregou imediatamente a Ralph.

[- Tique com ele. Não sou tão amalucada quanto Bill sempre pensou, mas às vezes perco as coisas. E se perdesse isso, nunca mais me perdoaria.]

Ralph aceitou o pente, começou a metê-lo no bolso traseiro, então lembrou-se da facilidade com que Átropos o roubara do mesmo lugar. Fora mais fácil do que escorregar no gelo.

Guardou-o no bolso dianteiro das calças, e voltou-se outra vez para Lois, que contemplava o chapéu mordido de McGovern com a admiração pesarosa de um Hamlet contemplando o crânio do velho amigo Yorick.

Quando ergueu a cabeça, Ralph viu lágrimas em seus olhos.

[- Ele adorava esse chapéu. Achava que lhe dava um ar galante e jovial. Não dava - ele continuava com ar de Bill - mas ele achava que dava, e isso é o que importava. Você não concorda, Ralph?] [- Concordo.]

Ela atirou o chapéu de volta ao assento da cadeira de balanço e virou-se para examinar uma caixa de roupas com aspecto de usadas. Assim que virou as costas para Ralph, ele se agachou para espiar debaixo da cadeira, na esperança de vislumbrar um brilho facetado na obscuridade. Se o chapéu de Bill e o pente de Joe estavam ali, quem sabe os brincos de Lois...

Não havia nada sob a cadeira de balanço, excepto poeira e uma botinha de bebé de tricô rosa.

Devia ter imaginado que seria fácil demais, pensou Ralph, pondo-se de pé outra vez.

Sentiu-se subitamente exausto. Tinham encontrado o pente de Joe sem nenhum problema, o que era bom, mais do que bom, Ralph, porém, receava que fora um caso extraordinário de sorte de principiante. Ainda tinham os brincos de Lois com que se preocupar... e seja lá o que tinham vindo fazer ali, é claro. E o que seria? Ele não sabia, e se alguém lá em cima estava mandando instruções, não estava captando nada. [- Lois, você tem alguma ideia...]

[- Psiu!]

[- Que foi? Lois, é ele?]

[- Não! Fique quieto, Ralph! Fique quieto e escute!] Ele escutou. A princípio não ouviu nada, então a sensação de contracção - a piscadela - manifestou-se em sua cabeça. Desta vez foi muito lenta, muito cautelosa. Subiu um pouquinho, leve como uma pena soprada por uma corrente morna de ar. Percebeu um gemido baixo, como uma porta que não parasse de ranger. Havia algo familiar no gemido - não no som em si, mas nas associações que provocava. Era como...

... um alarme contra roubos, ou um dectetor de fumaça. Está nos dizendo onde se encontra.

Está nos chamando.

Lois agarrou sua mão com dedos gelados. [- É isso, Ralph: é isso que estamos procurando. Você está ouvindo?]

Claro que estava. Mas, fosse o que fosse, não tinha a menor relação com os brincos de Lois... e sem os brincos de Lois ele não abandonaria este lugar.

[- Vamos, Ralph! Vamos! Temos que encontrá-lo.]

Ralph deixou que ela o conduzisse mais para o fundo do armazém. As lembranças de Atropos empilhavam-se no mínimo um metro acima de suas cabeças, na maior parte dos lugares. De que maneira um molusco como ele conseguira fazer isso, Ralph não fazia ideia - talvez por levitação - mas o resultado prático é que ele não demorou a perder o senso de direcção enquanto giravam, viravam e ocasionalmente pareciam retroceder. Só o que sabia ao certo é que o volume do gemido não parava de crescer em seus ouvidos; quando começaram a se aproximar de sua origem, transformou-se num zumbido de insecto que Ralph achou cada vez mais desagradável. Esperou virar um canto e deparar com um gafanhoto gigante, encarando-o com inexpressivos olhos castanho-escuros do tamanho de uma laranja.

Embora as auras individuais dos objectos que enchiam o armazém tivessem enfraquecido como o aroma de pétalas comprimidas entre as páginas de um livro, elas continuavam presentes sob o cheiro desagradável de Átropos - e no presente nível de percepção, com todos os sentidos requintadamente despertos e aguçados, era impossível não sentir as auras e ser afectado por elas. Os despojos mudos dos mortos pelo Acaso eram ao mesmo tempo terríveis e patéticos. O lugar era mais do que um museu ou uma toca de ratazana, Ralph compreendeu; era uma igreja profana onde Atropos tomava sua versão da comunhão - a tristeza era o pão e, as lágrimas, o vinho.

Este percurso hesitante pelos corredores em ziguezague era uma experiência horripilante, quase destrutiva. Cada virada não de todo ao acaso apresentava uma nova centena de objectos que Ralph desejava nunca ter visto nem ter que guardar na lembrança; cada um emitia o seu gritinho de surpresa e dor. Nem precisava se perguntar se Lois sentia o mesmo - ela soluçava baixinho e continuamente ao seu lado.

Ali se encontrava o trenó danificado de uma criança, com a corda de puxar ainda pendurada no volante. O menino a quem pertencia morrera de convulsões num dia gelado de Janeiro de 1953.

Ali, a batuta de uma baliza enrolada em espirais roxas e brancas de papel crepe - as cores da Grant Academy. Fora estrupada e golpeada com uma pedra até morrer no Outono de 1967. Seu assassino, que jamais fora apanhado, escondera seu corpo numa pequena gruta onde seus ossos - juntamente com os ossos de outras duas infelizes - ainda jaziam.

Ali, o camafeu de uma mulher que fora atingida por um tijolo, quando seguia pela rua Principal para comprar o último número da Vogue; se tivesse saído de casa trinta segundos antes ou depois, não teria lhe acontecido nada.

Ali, o facão de caça de um homem morto num acidente durante uma caçada em 1973.

Ali, a bússola de um escoteiro que caíra e quebrara o pescoço, quando excursionava pelo monte Katahdin.

O tênis de um garotinho chamado Gage Creed, atropelado por um caminhão-tanque que passava em alta velocidade pela Estrada 15 em Ludlow.

Anéis e revistas; chaveiros e guarda-chuvas; chapéus e óculos; chocalhos e rádios. Pareciam objectos diversos, mas Ralph achou que na realidade se assemelhavam: a voz fraca e doída de gente que se vira cortada da peça no meio do segundo ato, quando ainda estavam aprendendo as falas para ensaiar o terceiro; gente que fora removida antes de terminar seu trabalho ou cumprir suas obrigações; gente cujo único crime fora nascer no Acaso... e ter atraído o olhar de um lunático com um bisturi enferrujado.

Lois, soluçando:

[- Tenho ódio dele! Tenho tanto ódio dele!]

Ralph entendia o que ela queria dizer. Uma coisa era ouvir Cloto e Láquesis dizer que Átropos também fazia parte do cenário geral, e podia até servir a um Desígnio Superior, outra bem diferente era ver o boné desbotado dos Boston Bruins, cujo dono, um garotinho, caíra pelo acesso coberto de mato de um porão e morrera no escuro, morrera em agonia, morrera sem voz depois de passar seis horas gritando pela mãe.

Ralph esticou o braço e tocou brevemente o boné. O nome do garoto era Billy Weatherbee.

Seu último pensamento fora um sorvete.

A mão de Ralph apertou a de Lois.

[- Ralph, que e? Posso ouvir seus pensamentos... tenho certeza que posso... mas é o mesmo que ouvir alguém sussurrando baixinho.]

[- Estava pensando na vontade que sinto de arrebentar a cara daquele filho da puta, Lois. Talvez pudéssemos lhe ensinar o que é passar a noite acordado. Que é que você acha?]

Ela apertou com mais força a mão de Ralph. Concordou com um aceno de cabeça.

CHEGARAM a um lugar onde o estreito corredor por onde seguiam ramificava-se em dois caminhos. O zumbido baixo e contínuo vinha do caminho da esquerda e, pelo som, não vinha de muito longe, tampouco. Agora tornou-se impossível os dois prosseguirem lado a lado e, à medida que andavam em direcção ao fim, a passagem se estreitava ainda mais. Ralph finalmente foi obrigado a andar de lado.

O resíduo avermelhado que Átropos deixava por onde passara era muito copioso ali, pingava das pilhas desordenadas de lembranças e formava pequenas poças no chão sujo.

Lois segurava a mão de Ralph num aperto quase doloroso, mas ele não se queixou.

[- É como no centro cívico, Ralph. Ele passa muito tempo aqui.]

Ralph assentiu. A pergunta era com quem o Sr. A. vinha se encontrar neste corredor?

Estavam quase chegando ao fim, que uma sólida parede de trastes bloqueava, impedindo-o de ver o que produzia aquele ruído. O zumbido agora começava a enervá-lo; era como ter uma mutuca presa na cabeça. Ao se aproximarem do fim da passagem, sentiu uma certeza crescente de que a coisa que procuravam se achava do outro lado da barreira de trastes portanto teriam que retroceder e procurar outro caminho, ou estourar a parede. As duas opções talvez consumissem mais tempo do que dispunham. Ralph sentiu o desespero lhe morder o fundo da mente.

Mas o corredor não terminava; do lado esquerdo, havia uma passagem por baixo de uma mesa de jantar atulhada de pratos e pilhas de papel verde e...

Papel verde? Não era bem isso. Pilhas de dinheiro. Notas de dez, vinte e cinqüenta dólares empilhadas descuidada e profusamente sobre os pratos. Havia uma maçaroca de notas de cem numa molheira rachada e um rolo de notas de quinhentos espreitando ebriamente de um empoeirado cálice de vinho.

[- Ralph! Meu Deus, tem uma fortuna aqui!]

Ela não estava olhando para a mesa, mas para a outra parede da passagem. O último metro e meio fora erguido com maços fechados de notas verde-cinza à guisa de tijolos.

Encontravam-se numa passagem literalmente feita de dinheiro, e Ralph descobriu que agora podia responder à outra pergunta que incomodava: onde Ed arranjava grana. Era Átropos quem nadava em grana... mas Ralph tinha a impressão de que nem assim o carequinha filho da mãe conseguia arranjar namoradas.

Curvou-se um pouco para espiar melhor a passagem sob a mesa. Aparentemente havia mais um aposento do outro lado, muito pequeno. Ali uma luz vermelha aumentava e diminuía lentamente de intensidade como o pulsar de um coração, produzindo reflexos irregulares em seus sapatos.

Ralph apontou, então olhou para Lois. Ela assentiu. Ele se ajoelhou e engatinhou por baixo da mesa carregada de dinheiro, até o santuário que Átropos erguera em torno da coisa no chão, ao centro. Era o que tinham vindo buscar, não restava a menor dúvida em sua mente, mas não fazia ideia do que era. O objecto, do tamanho da bolinha de gude que as crianças chamam de bilha, encontrava-se envolto em um saco mortuário tão impenetrável quanto o miolo de um buraco negro.

Oh, fantástico - maravilhoso. E agora?

[- Ralph! Você está ouvindo alguém cantar? Muito baixinho.]

Ele a olhou duvidando, depois espiou a toda volta. Já estava odiando aquele lugar apertado e, embora não fosse claustrofóbico por natureza, começava agora a sentir uma vontade desesperada de sair dali, infiltrar-se em seus pensamentos. Uma voz muito clara falou dentro de sua cabeça. Não é só o que quero, Ralph; e'do que preciso. Farei o máximo para acompanhá-lo, mas se você não terminar logo seja lá o que veio fazer aqui, não vai fazer a menor diferença o que você ou eu desejamos, vou simplesmente assumir o comando e correr feito louca.

O terror controlado daquela voz não o surpreendeu, porque o lugar era realmente horrível - não era um aposento mas o fundo de um longo poço cujas paredes circulares eram feitas de refugos e objectos roubados: torradeiras, banquinhos, rádiosrelógios, máquinas fotográficas, livros, engradados, sapatos, ancinhos. Balançando quase diante dos olhos de Ralph, havia um saxofone velho num tirante corroído com a palavra JAKE impressa em pedrinhas embaçadas de poeira. Ralph esticou o braço para agarrá-lo, querendo afastar aquela droga de seu rosto. Mas logo imaginou a remoção desse único objecto provocando uma avalanche que faria as paredes desabarem sobre eles, soterrando-os vivos. Recolheu a mão. Ao mesmo tempo, abriu a cabeça e os sentidos o máximo que pôde.

Por um instante, pensou ter ouvido realmente alguma coisa - um suspiro baixo, como um sussurro do oceano em uma concha mas em seguida passou.

[- Se há vozes aqui, não consigo ouvi-las, Lois. Aquela droga está abafando tudo!]

Ele apontou para o objecto no meio do círculo - de um negror que ultrapassava qualquer concepção anterior de negro, um saco mortuário que era a apoteose de todos os sacos mortuários. Mas Lois sacudia a cabeça.

[- Não está abafando. Está secando tudo.]

Ela olhou para a coisa negra e barulhenta com nojo e horror.

[- Aquela coisa está sugando a vida de tudo que há empilhado à sua volta... e está tentando sugar a vida da gente, também.]

Claro que está. Agora que Lois o expressara em voz alta, Ralph podia sentir o saco mortuário - ou o objecto que ele continha-puxando algo bem no fundo de sua mente, tentando arrancá-la, torcendo-a, sacudindo-a... tentando extraí-la como um dente de seu alvéolo rosado.

Tentando sugar a vida deles? Chegara perto, mas ainda não era isso. Ralph não achava que eram suas vidas que a coisa dentro do saco mortuário queria, nem suas almas... não era bem isso. Era a sua energia vital que aquilo queria. O seu ka.

Os olhos de Lois se arregalaram quando ela captou este pensamento... e então se desviaram para um ponto pouco além do seu ombro direito. Ela se curvou para a frente de joelhos e esticou o braço.

[- Lois eu não faria isso - você poderia desmoronar tudo à nossa...]

Tarde demais. Ela puxou alguma coisa, contemplou-a com horror e então estendeu-a para Ralph.

[- Ainda está vivo: tudo que está aqui ainda está vivo. Não sei como pode ser, mas é... de alguma forma é. Mas debilitados. Por que estão assim?]

O que ela lhe estendia era um pequeno ténis branco de mulher ou de criança. Quando Ralph o recebeu, ouviu-o cantar baixinho numa voz distante. O canto era solitário como o vento de novembro numa tarde nublada, mas, ao mesmo tempo, incrivelmente doce - um antídoto para o zurro interminável da coisa negra no chão.

E era uma voz conhecida. Ele tinha certeza disso.

Havia uma mancha marrom na ponta do ténis. Ralph a princípio pensou que era leitechocolatado, então reconheceu o que realmente era: sangue seco. Naquele instante, viu-se de novo do lado de fora do mercadinho amparando Nat antes que Helen a deixasse cair.

Lembrava-se do jeito com que Helen trocara os pés; como tropeçara para trás, e se apoiara na porta do mercadinho como um bêbado em um poste, estendendo as mãos para ele. Dá meu be-ê... dá a Na-li.

Ele conhecia a voz porque era a voz de Helen. O ténis estivera em seu pé naquele dia, e os respingos de sangue na ponta tinham caído do nariz amassado de Helen ou de sua face dilacerada.

O objecto cantava sem parar, sua voz não chegava a desaparecer sob o zunido da coisa no saco mortuário, e agora que os ouvidos de Ralph - ou o que desempenhasse tal função no mundo das auras - estavam inteiramente abertos, ele podia ouvir as outras vozes de todos os outros objectos. Cantavam como um coro perdido.

Vivos. Cantando.

Eles podiam cantar, todas as coisas que enchiam essas paredes podiam cantar, porque seus donos podiam cantar.

Seus donos continuavam vivos.

Ralph reergueu a cabeça, e desta vez reparou que, enquanto alguns objectos que via eram velhos - o saxofone, por exemplo - muitos eram novos; não havia rodas de bicicletas do fim do século nesta pequena alcova. Viu três rádios-relógios, todos três digitalizados. Um aparelho de barbear que parecia quase sem uso. Um batom que ainda conservava a etiqueta de preço da Rite Aid.

[- Lois, Átropos tirou essas coisas das pessoas que vão estar no centro cívico hoje à noite. Não foi?]

[- Foz. Com toda certeza.]

Ele apontou para o casulo negro berrando no chão, quase abafando a cantoria a toda volta...abafando-as enquanto se alimentava delas.

[- E seja qual for o conteúdo daquele saco mortuário, ele tem alguma relação com o que Cloto e Láquesis chamaram de cordão-mestre. E a coisa que une todos esses diferentes objectos, todas essas diferentes vidas.]

[- Que as torna ka-tet. É isso mesmo.]

Ralph devolveu o ténis a Lois.

[- Isto vai conosco quando formos. É da Helen.]

[- Eu sei.]

Lois contemplou-o por um instante, então fez uma coisa que Ralph achou extremamente inteligente: desfez duas laçadas dos cordões e amarrou o ténis no pulso esquerdo como se fosse um bracelete.

Ele se aproximou um pouco mais do saquinho mortuário e se curvou. Aproximar-se foi penoso, e se manter próximo ainda mais-era o mesmo que colocar o ouvido contra a carcaça do motor de uma perfuratriz funcionando com toda a estridência ou encarar uma luz forte sem apertar os olhos. Desta vez, o zunido pareceu encerrar palavras, as mesmas que ouvira ao se aproximarem da borda do saco mortuário em torno do centro cívico. Fora daqui. Se manda. Chispa.

Ralph tapou os ouvidos com as mãos por um momento, o que naturalmente não adiantou nada. Os sons na realidade não vinham de fora. Ele baixou as mãos e olhou para Lois.

[- Que é que você acha? Alguma ideia sobre o próximo passo?]

Não sabia exactamente o que esperava dela, mas decerto não era a resposta rápida e positiva que obteve.

[- Abra o saco e tire o que está dentro - e faça isso depressa. Essa coisa é perigosa.

Além do mais, pode estar chamando Átropos, já pensou nisso? Dando com a língua nos dentes sobre Joãozinho, como fez a galinha na história do pede feijão mágico.]

Ralph de fato chegara a considerar a possibilidade, embora não o tivesse feito em termos tão veementes. Certo, pensou. Abra o saco e retire o prémio. Só tem uma coisa: como é que se faz isso?

Lembrou-se do raio que lançara contra Atropos quando o desgraçadinho tentara atrair Rosalie para o outro lado da rua. Um bom truque, mas uma coisa daquelas poderia fazer mais mal do que bem ali; e se ele volatilizasse a coisa que deveriam levar?

Acho que você não pode fazer isso.

Certo, muito justo, aliás ele também não achava que o pudesse fazer... quando se está cercado de pertences de gente que poderia estar morta ao raiar do sol no dia seguinte, assumir riscos parecia uma péssima ideia. Uma ideia insensata.

Não estou precisando de um raio mas de um bom par de tesouras, como as que Cloto e Láquesis usam para...

Ele arregalou os olhos para Lois, admirado com a clareza da imagem.

[- Não sei o que foi que você acabou de pensar, mas ande logo e faça isso.]

RALPH baixou os olhos para a mão direita - uma mão da qual as rugas e as primeiras deformações da artrite agora tinham desaparecido, uma mão que estava envolta em uma luminosa coroa de luz azulada. Sentindo-se um pouco tolo, dobrou os dois últimos dedos contra a palma e esticou os dois primeiros, pensando numa brincadeira que costumava fazer na infância - pedra quebra tesoura, tesoura corta papel, papel cobre pedra.

Que seja tesoura, pensou. Preciso de uma tesoura. Me ajude.

Nada. Olhou para Lois e viu que ela o observava com uma serenidade que por alguma razão o aterrorizava. Ah, Lois, se você ao menos soubesse, pensou, e então varreu o pensamento de sua mente. Porque tinha sentido alguma coisa, não tinha? Tinha. Alguma coisa.

Desta vez, ele não formou palavras em sua mente, mas uma imagem: não a tesoura que Cloto usara para despachar Jimmy V., mas a tesoura de aço do costureiro de sua mãe lâminas longas e estreitas que afinam até as pontas quase tão afiadas quanto a de uma faca.

Ao intensificar sua concentração, conseguiu ver até as duas palavrinhas minúsculas gravadas no metal abaixo do pino central: SHEFFIELD STEEL. E agora sentia de novo a coisa em sua mente, não era uma piscadela desta vez mas um músculo - imensamente forte flexionando-se devagarinho. Ele fixou o olhar nos dedos e mentalmente fez a tesoura abrir e fechar. Ao mesmo tempo, abriu e fechou lentamente os dedos, formando um V que aumentava e diminuía. Sentiu então a energia, que tirara do Nirvana Boy e do vagabundo nos pátios da ferrovia, primeiro convergir para sua cabeça e depois descer pelo braço direito até os dedos como uma cãibra.

A aura que envolvia os dois primeiros dedos da mão direita que ele esticara começou a se adensar... e a se alongar. Assumiram a forma fina de lâminas. Ralph esperou até eles crescerem uns dez centímetros além das unhas e então experimentou movimentá-los. As lâminas abriram e fecharam.

[- isso, Ralph! Corte!]

Certo - não podia se dar o luxo de demorar fazendo experiências. Sentia-se como a bateria de um carro do qual se exige que accione um motor muito maior do que a sua capacidade.

Sentia toda a sua energia - a que pedira emprestada e a própria - correr pelo seu braço direito até as lâminas. Não poderia durar muito.

Ele se curvou para a frente, os dedos juntos num gesto de quem aponta, e mergulhou a ponta da tesoura no saco mortuário. Concentrara-se com tanto empenho para criar e manter a tesoura que parará de ouvir aquele zumbido rouco e constante - pelo menos conscientemente - mas, quando a ponta da tesoura mergulhou na pele negra, o saco mortuário repentinamente reciclou-se e emitiu um som agudo em que se mesclavam a dor e o medo. Ralph viu respingos de uma gosma grossa e escura escorrer do saco para o chão.

Parecia catarro de gente doente. Ao mesmo tempo, ele sentiu a demanda de energia dentro dele praticamente dobrar. Percebeu que podia vê-la: sua própria aura descia pelo braço direito e pelas costas da mão em ondas lentas e peristálticas. E podia senti-la enfraquecer em torno do resto do corpo, à medida que sua protecção essencial afinava.

[- Depressa, Ralph! Ande logo!]

Ele fez um esforço sobre-humano para abrir os dedos. As lâminas de brilho azulado também abriram, produzindo um pequeno rasgo no ovo negro. O saco berrou, e dois relâmpagos vermelhos riscaram sua superfície. Ralph juntou os dedos e observou a tesoura fechar as lâminas e cortar um tecido denso e negro que era parte casca, parte carne. Ele soltou uma exclamação. Não era bem dor que sentia, mas uma sensação de terrível cansaço. Sangrar até morrer deve ser assim, pensou.

Alguma coisa dentro do saco produziu um reflexo dourado.

Ralph reuniu todas suas forças e tentou abrir os dedos para fazer outro corte. A princípio pensou que não conseguiria - os dedos pareciam estar colados com araldite - então eles se afastaram, aumentando o talho. Agora ele podia quase ver o objecto lá dentro, algo pequeno, redondo e brilhante. Na realidade só pode ser uma coisa, ele pensou, e então repentinamente seu coração disparou no peito. As lâminas azuis piscaram.

[- Lois! Me ajude!]

Ela segurou seu pulso. Ralph sentiu a energia rugir dentro dele em volts renovados.

Observou, perplexo, a tesoura tornar a se solidificar. Agora apenas uma das lâminas era azul. A outra era cinza-pérola.

Lois gritava dentro de sua cabeça:

[- Corte! Corte agora!]

Ele tornou a juntar os dedos e, desta vez, as lâminas cortaram o saco mortuário de fora a fora. O saco emitiu um último grito vacilante, ficou totalmente vermelho e desapareceu. As tesouras que se projectavam das pontas dos dedos de Ralph sumiram de vez. Ele fechou os olhos por um momento, repentinamente consciente de que grandes gotas mornas de suor escorriam pelo seu rosto como lágrimas. No campo escuro por trás de suas pálpebras, ele via imagens disparatadas que pareciam lâminas dançantes.

[- Lois? Você está bem?]

[- Estou - mas esgotada. Não faço a menor ideia de como vou voltar àquela escada debaixo da árvore, e muito menos subi-la. Não tenho sequer certeza se vou conseguir ficar em pé'.]

Ralph abriu os olhos, levou as mãos às coxas acima dos joelhos, e curvou-se mais uma vez para a frente. No chão onde estivera o saco mortuário, havia a aliança de um homem. Dava para ler facilmente a gravação na parte interna: HD-ED 5.8.87.

Helen Deepneau e Edward Deepneau. Casados em 5 de agosto de 1987.

Era isso que tinham vindo buscar. Era o símbolo de Ed. Agora só faltava apanhá-la... metêla no bolsinho da calça... encontrar os brincos de Lois... e se mandar dali.

AO ESTENDER a mão para o anel, um poema lampejou em sua mente - desta vez o autor não era Stephen Dobyns mas J.R.R. Tolkien, que criara os hobbits, a imagem que ocorrera a Ralph na sala pequenina e cheia de fotos de Lois. Fazia quase trinta anos que lera as histórias de Frodo, Gandalf e Sauron e do Senhor Negro, narradas por Tolkien - histórias que, pensando bem, continham um símbolo muito semelhante àquele - mas por um momento os versos surgiram tão nítidos quanto as lâminas da tesoura minutos antes:

Um Anel para dominá-los. Um Anel para encontrá-los, Um Anel para reuni-los e nas trevas acorrentá-los. Na Terra de Mordor onde param as Sombras.

Não serei capaz de apanhá-lo, pensou. Estará firmemente preso à roda do ka como eu e Lois, e não conseguirei apanhá-lo. Ou isso, ou será o mesmo que tocar num fio de altatensão, e estarei morto antes mesmo de saber o que está ocorrendo.

Só que realmente não acreditava que qualquer das duas coisas fosse acontecer. Se o anel não estava ali à sua disposição, então por que fora protegido por um saco mortuário? Se o anel não estava ali à sua disposição por que as forças que protegiam Cloto e Láquesis – e Dorrance, não podia esquecer Dorrance - tinham despachado ele e Lois nessa jornada?

Um Anel para dominá-los, Um Anel para encontrá-los, pensou Ralph, e fechou os dedos em torno da aliança de casamento de Ed. Por um momento, sentiu uma dor profunda e fina na mão, no pulso e no antebraço; simultaneamente, o canto suave dos objectos que Átropos entesourara ergueu-se num grito imenso e harmónico.

Ralph emitiu um som-talvez um grito, talvez apenas um gemido - e ergueu o anel, firmemente seguro em sua mão direita. Uma sensação de vitória vibrou em suas veias como vinho, ou como...

[- Ralph.]

Ele se virou para Lois, mas ela mirava o lugar onde a aliança de Ed estivera, seus olhos negros expressando medo e confusão.

Onde a aliança de Ed estivera; onde a aliança de Ed ainda estava. Continuava exactamente no mesmo lugar, um círculo de ouro reluzente - com a inscrição HD-ED 5.8.87 na parte interna.

Ralph teve um momento de desorientação e aturdimento e controlou-o com esforço. Abriu a mão, de certa forma esperando que o anel tivesse sumido, contrariando a informação dos seus sentidos, mas ele continuava na palma de sua mão sobre a bifurcação que formavam as linhas do amor e da vida, refulgindo à triste luz vermelha desse lugar horrível. HD-ED 5.8.87.

As duas alianças eram idênticas.

UMA em sua mão; a outra no chão; não havia diferença. Pelo menos, nenhuma que Ralph pudesse distinguir.

Lois estendeu a mão para a aliança que substituíra a que Ralph erguera, hesitou e em seguida apanhou-a. Enquanto olhavam, um ouro fantasmático brilhou pouco acima do chão da câmara, então solidificou-se numa terceira aliança de casamento.

À semelhança das anteriores, trazia na parte interna a gravação HD-ED 5.8.87.

Ralph viu-se pensando em mais outra história - não a longa narrativa de Tolkien sobre o Senhor dos Anéis, mas uma história do Dr. Seuss que ele lera para os sobrinhos de Carolyn na década de cinqüenta. Fora há muito tempo, mas não a esquecera completamente, porque era mais complexa e sinistra do que as bobagens habituais do Dr. Seuss sobre ratos, morcegos e gatos travessos. Intitulava-se: "Os quinhentos chapéus de Bartholomeu Cubbins", e Ralph achava que realmente não era de admirar que a história lhe ocorresse agora.

O pobre Bartholomeu era um matuto que tivera a má sorte de se encontrar em uma cidade grande quando o Rei passava por lá. As pessoas deviam tirar o chapéu diante de São Augusto personagem, e Bartholomeu bem que tentou, mas sem sucesso;

cada vez que tirava o chapéu, aparecia sob aquele um outro, idêntico ao anterior.

[- Ralph, que está acontecendo? Que significa isto?]

Ele balançou a cabeça sem responder, os olhos correndo do anel na palma de sua mão para o outro na de Lois e para o terceiro no chão, num círculo sem fim. Três anéis, os três idênticos, como os chapéus que Bartholomeu Cubbins não parava de tirar. O coitado continuou tentando mostrar boas maneiras diante do Rei. Ralph lembrava-se que, mesmo quando o carrasco o fazia subir a escada curva que levava ao local da decapitação pelo crime de desrespeito...

Só que a história não era bem assim, porque depois de algum tempo os chapéus na cabeça do pobre Bartholomeu começaram a se transformar, a se tornar cada vez mais fabulosos e rococós.

É o que está acontecendo com os anéis, Ralph? Você tem certeza?

Não, ele achava que não. Quando apanhara o primeiro, sentira uma dor profunda e momentânea espalhar-se pelo seu braço como um reumatismo, mas Lois não demonstrara nenhum sinal de dor quando apanhara o segundo.

E as vozes - não as ouvira gritar quando Lois apanhara o dela.

Ralph curvou-se para a frente e agarrou o terceiro anel. Não houve espasmo de dor nem grito dos objetos que formavam as paredes da câmara - eles continuaram a cantar baixinho.

Entrementes, um quarto anel se materializou onde os outros três tinham estado, exactamente como os chapéus na cabeça do infeliz Bartholomeu Cubbins, mas Ralph não lhe deu atenção. Olhou para o primeiro anel, que segurava entre a linha da vida e a do amor na palma da mão direita.

Um Anel para dominá-los, pensou. Um anel para acorrentá-los. E acho que é você, belezinha. Acho que os outros são apenas hábeis falsificações.

E talvez houvesse uma maneira de verificar. Ralph levou os dois anéis aos ouvidos. O da mão esquerda era silencioso; o da mão direita, o que estivera dentro do saco mortuário quando ele o abrira, ainda emitia um eco fraco e enregelante do grito final do seu invólucro.

O da mão direita estava vivo.

[- Ralph?]

A mão de Lois em seu braço estava fria e ansiosa. Ralph olhou-a e em seguida atirou longe o anel da mão esquerda. Ergueu o outro e espiou, por dentro dele, o rosto tenso e estranhamente jovem de Lois, como se fosse uma luneta.

[- É este. Os outros são apenas marcadores de lugar, acho: como os zeros num complicado problema matemático.]

[- Você quer dizer que não contam?]

Ele hesitou, inseguro quanto à resposta... porque na realidade contavam, esse é que era o problema. Ele simplesmente não sabia como expressar sua intuição em palavras. Enquanto os falsos anéis continuassem a aparecer nessa camarazinha horrível, como os chapéus na cabeça de Bartholomeu Cubbins, o futuro representado pelo saco mortuário sobre o centro cívico continuaria a ser o único futuro verdadeiro. Mas o primeiro anel, o que Átropos roubara do dedo de Ed (talvez enquanto ele dormia ao lado de Helen no chalezinho que agora estava vazio), poderia alterar tudo.

As réplicas eram símbolos que preservavam a forma do ka, da mesma maneira que os raios que saíam de um cubo preservavam a forma de uma roda. O original, porém...

Ralph pensou que o original era o cubo. Um Anel para acorrentá-los.

Ele apertou com firmeza o anel de ouro, sentindo aquela forma dura vincar sua palma e seus dedos. Então meteu-o no bolsinho do relógio.

Havia uma coisa sobre o ka que eles não nos contaram, pensou. É fugidia. Fugidia como um peixe velho que não quer sair do anzol mas continua a dar rabanadas na mão da gente.

E lembrava também a escalada de uma duna de areia - escorregava-se um passo para trás a cada dois que se conseguia dar para a frente. Eles tinham ido até High Ridge e realizado alguma coisa - exactamente o quê, Ralph não sabia, mas Dorrance lhes garantira que sim;

segundo ele, cumpriram sua missão no abrigo. Agora tinham vindo aqui e recuperaram a aliança de Ed, mas isso ainda não era suficiente, e por quê? Porque o ka era como um peixe, o ka era como uma duna de areia, o ka era como uma roda que não queria parar, e sim, continuar girando sempre, esmagando o que por acaso encontrasse em seu caminho. Uma roda de muitos raios.

Mas principalmente, talvez, porque o ka era como um anel.

Como uma aliança de casamento.

Ele de repente compreendeu o que toda a conversa no telhado do hospital e todos os esforços de Dorrance não tinham conseguido explicar: a condição indeterminada de Ed, somada ao fato de Átropos ter localizado o pobre sujeito confuso, concendera-lhe um tremendo poder. Abrira-se uma porta, um demónio chamado Rei Sangüinário entrara em cena, alguém mais poderoso que Cloto, Láquesis, Átropos, ou qualquer outro. E ele não pretendia ser paralisado por um velho Coroa de Derry como Ralph Roberts.

[- Ralph?]

[- Um Anel para dominá-los, Lois. Um Anel para encontrá-los.]

[- De que é que você está falando? Aonde está querendo chegar?]

Ele deu um tapinha na bolso das calças, sentindo o volume pequeno mas importante da aliança de Ed. Então estendeu os braços e segurou Lois pelos ombros.

[- Os substitutos - os anéis falsos - são os raios, mas este é o cubo da roda. Tire-se o cubo e a roda não pode girar.]

[- Você tem certeza?]

Tinha certeza absoluta. Só não sabia como fazer isso.

[- Tenho. Agora vamos: vamos sair daqui enquanto podemos.]

Primeiro Ralph empurrou-a por baixo da mesa de jantar sobrecarregada, ajoelhou-se e seguiu-a. Parou a meio caminho e olhou por cima do ombro. Viu uma coisa estranha e terrível: embora o zumbido não tivesse retornado, o saco mortuário refazia-se em volta da aliança substituta. E o ouro reluzente já se embaçara transformando-se num círculo fantasmático.

Contemplou-o por alguns segundos, fascinado, quase hipnotizado, então desviou os olhos com esforço e começou a engatinhar atrás de Lois.

RALPH receou que perdessem um tempo precioso tentando navegar de volta pelo labirinto de corredores que cruzavam o armazém de lembranças de Átropos, mas isso não foi problema. Suas próprias pegadas, desbotadas mas ainda visíveis, continuavam ali para guiá-los.

Ralph começou a recuperar as forças, quando deixaram o quartinho para trás, mas agora Lois estava baqueando. Na altura em que alcançaram o arco entre o armazém e o apartamento imundo de Atropos, ela estava apoiada nele. Ralph lhe perguntou se estava bem. Lois conseguiu encolher os ombros e dar um sorrisinho cansado.

[- Meu maior problema é estar neste lugar. Não importa o nível a que subimos, continua repugnante e odioso. Depois que eu pegar um ar fresco, acho que vou melhorar.

Sinceramente.]

Ralph torceu para que ela estivesse certa. Quando se abaixou sob o arco para atravessar o apartamento de Átropos, tentou pensar num pretexto para mandar Lois prosseguir sem ele.

Isto lhe daria a oportunidade de dar uma busca rápida no lugar. Se não encontrasse os brincos, teria que presumir que Átropos continuava a usá-los.

Ele reparou que a anágua de Lois voltara a aparecer por baixo da bainha do vestido, abriu a boca para dizer-lhe, mas vislumbrou um movimento pelo canto do olho esquerdo.

Compreendeu que tinham sido muito menos cautelosos na viagem de volta - em parte, porque se sentiam exaustos - e agora talvez tivessem que pagar um preço alto por terem baixado a guarda.

[- Lois, cuidado!]

Tarde demais. Ralph sentiu o braço dela ser violentamente puxado quando a criatura furiosa, de túnica suja, agarrou-a pela cintura e arrastou-a para trás. A cabeça de Atropos chegava apenas à axila de Lois, mas lhe permitiu brandir seu bisturi enferrujado sobre sua cabeça.

Quando Ralph atirou-se instintivamente contra ele, Átropos baixou a lâmina até tocar o cordão cinza-pérola que subia da cabeça de Lois. Arreganhou os dentes para Ralph num sorriso indizível.

[Nem mais um passo, Coroa... nem um!]

Bem, pelo menos não precisava mais se preocupar com os brincos errantes de Lois. Eles produziam um reflexo

rosa-avermelhado e sombrio nos lóbulos das orelhas de Átropos. Foi mais a visão dos brincos do que o berro que fizeram Ralph parar onde estava.

O bisturi se afastou um pouquinho - mas só um pouquinho.

[Agora, Coroa: você acabou de tirar uma coisa minha, não foi? Não tente negar; eu sei. E vai me devolver agora mesmo.]

O bisturi voltou para o fio de balão de Lois; Átropos acariciou-o com a face da lâmina.

[Ou você me devolve ou essa vaca vai morrer aqui diante de seus olhos: você pode ficar aí observando o saco empretecer. Então, o que me diz, Coroa? Passe para cá.]

 

O SORRISO de Átropos irradiou-se, cheio de repulsivo triunfo, e cheio de...

Cheio de medo. Ele apanhou você, Ralph, com as calças na mão, tem o bisturi encostado no fio de balão de Lois e a mão na garganta dela, no entanto, continua morto de medo.

Por quê?

[Ande logo! Pare de perder tempo, seu merdinha! Me dê esse anel!]

Ralph levou a mão vagarosamente ao bolsinho do relógio e apertou o anel, perguntando-se por que Átropos não matara Lois de cara. Certamente não pretendia deixá-la - ou deixá-los - partir.

Está com medo que eu o ataque com um daqueles golpes de caraté telepáticos. E isso é só o aperitivo. Acho que também está com medo de estragar tudo. Com medo da coisa - da entidade - que lhe dá as ordens. Com medo do Rei Sanguinário. Você está com medo do chefe, não estáamiguinho imundo?

Ralph ergueu o anel entre o polegar e o indicador da mão direita e espiou por dentro dele mais uma vez.

[- Vem buscar, por que você não vem? Não se acanhe.]

O rosto de Átropos contraiu-se de raiva. A expressão transformou o seu sorriso insolente e exultante numa careta de desenho animado.

[Vou matá-la, Coroa, você não me ouviu ? É isso que você quer?]

Ralph ergueu lenta e deliberadamente a mão esquerda. Fez no ar um gesto de quem serra e ficou satisfeito de ver Átropos se encolher quando o lado da mão virou momentaneamente em sua direcção.

[- Se você chegar a encostar nela com essa lâmina, vou-lhe dar tanta porrada que você vai precisar de um canivete para retirar seus dentes da parede. É uma promessa.]

[Me dá o anel, Coroa.]

Eles não podem mentir, lembrou-se Ralph subitamente. Não me lembro bem se alguém chegou a me dizer isso ou se eu mesmo intuí, mas tenho certeza de que é um fato - eles não podem mentir.Mas eu posso.

[- Vou-lhe fazer a seguinte proposta, Sr. A. - o senhor faz um trato comigo e lhe entrego o anel.]

Átropos lhe lançou um olhar apertado em que se mesclavam a dúvida e a suspeita.

[Um trato? Que é que você chama de trato?]

[- Ralph, não!]

Ralph olhou para ela, e depois para Átropos. Ele ergueu a mão esquerda para esfregar o rosto sem considerar o efeito que o seu gesto produziria no doutorzinho careca.

Imediatamente ele empurrou o bisturi contra o fio de balão de Lois, desta vez com força suficiente para vincá-lo e produzir uma mancha escura no ponto de contacto. Pareceu uma bolha de sangue. Grandes gotas de suor brotaram na testa de Átropos e, quando ele falou, sua voz era um guincho de pânico.

[E não venha com os seus raios baratos para cima de mim! A mulher morre se você fizer isso!]

Ralph baixou depressa a mão, em seguida, escondeu as duas mãos nas costas como uma criança arrependida. A aliança de Ed continuava segura e agora, quase sem pensar, ele a meteu no bolso traseiro das calças. Foi nesse momento que teve plena certeza de que não pretendia devolver a aliança. Mesmo que custasse a vida de Lois - a vida dos dois - não pretendia devolvê-la.

Mas talvez a coisa não chegasse a tanto.

[- Um trato significa que cada um vai para o seu lado, Sr. A. - eu lhe dou o anel, o senhor devolve minha amiga. E promete que não vai machucá-la. O que me diz?]

[- Não, Ralph, não!]

Átropos não respondeu nada. Seus olhos reluziram para Ralph, revelando uma impotência temerosa e odienta. Se algum dia em sua longa vida ele tivesse desejado poder mentir, Ralph supunha que era agora. Bastaria responder Tudo bem, trato feito, e a bola voltaria para o campo de Ralph. Mas ele não podia dizer tal coisa, porque não podia cumpri-la.

Ele sabe que está numa enrascada, pensou Ralph. Não faz a menor diferença se ele corta o cordão de Lois ou se a deixa ir - deve pensar que de toda maneira pretendo fritá-lo com um raio, e tem toda razão.

Qual é o dano que você pode realmente causar a ele, querido? Carolyn perguntou hesitante do lugar que ocupava em sua cabeça. Quanta energia ainda lhe resta depois de abrir o saco mortuário que envolvia a aliança?

A resposta infelizmente era: muito pouca. Talvez o suficiente para chamuscar a careca de Átropos, mas provavelmente não seria suficiente para cozinhá-la. E...

Então Ralph viu algo que lhe desagradou: a pontinha de pânico no sorriso de Átropos começava a se transformar numa cautelosa segurança. E sentiu seus olhos desvairados mediremno com avidez - seu rosto, seu corpo, mas principalmente sua aura. Ralph teve a súbita e clara visão de um mecânico usando a vareta para verificar quanto óleo ainda havia no motor do automóvel.

faça alguma coisa, Lois suplicou-lhe com os olhos. Por favor, Ralph.

Mas ele não sabia o que fazer. Estava completamente vazio de ideias.

O sorriso de Átropos assumiu novamente aquele ar desagradável e exultante.

[Você está descarregado, Coroa, não está? Puxa, que pena.]

[- Machuque minha amiga e vai descobrir, seu toquinho de merda.]

O sorriso de Átropos continuou a se alastrar.

[Você não poderia nem esquentar as patas de um rato com o que tem aí. Por que não banca o bonzinho e me entrega o anel antes que eu...]

[- Seu filho da puta!]

Era Lois. Ela não estava mais olhando para Ralpfyolhava para o outro extremo do quarto, para o espelho onde Átropos sem dúvida comprovava a elegância dos seus últimos adereços.

O lenço de Rosalie, digamos, ou o panamá de Bill McGovern. Tinha os olhos arregalados e enfurecidos, e Ralph percebeu exactamente o que ela descobrira.

[- São MEUS, seu ladrãozinho infecto!]

Ela deu um violento empurrão para trás, usando a sua vantagem de peso para lançar Átropos contra a face do arco. Um grunhido de espanto escapou da boca do careca. A mão que segurava o bisturi voou para o alto; a lâmina arrancou escamas de sujeira da parede.

Lois virou-se para ele, o rosto contorcido num trejeito de raiva - uma expressão tão alheia^ à Nossa Lois que McGovern desmaiaria se a visse. Ela agarrou Átropos pelo rosto, tentando alcançar suas orelhas. Enterrou-lhe um dedo na bochecha. Átropos ganiu como um cachorro que levasse um pisão na pata, mas logo agarrou-a de novo pela cintura e virou-a de costas.

Virou então a lâmina do bisturi para dentro, preparandose para golpear. Ralph sacudiu o dedo indicador da mão direita para o bisturi num gesto de censura. Um relâmpago de luz tão pálido que era quase invisível projetou-se de sua unha e atingiu a ponta do bisturi, desviando-o momentaneamente do fio de balão de Lois. E foi só o que aconteceu; Ralph pressentiu que seu arsenal pessoal agora se esgotara.

Átropos arreganhou os dentes para ele por cima do ombro de Lois, enquanto ela se debatia e se contorcia em seus braços. Não estava, no entanto, procurando se soltar; tentava se desvirar para atacá-lo. Os pés de Lois saltaram no ar quando ela mais uma vez jogou todo o peso contra ele, tentando esmagá-lo contra a parede e, sem sequer pensar no que pretendia, Ralph atirou-se para a frente e caiu de joelhos com as mãos estendidas. Parecia um namorado devairado fazendo um penoso pedido de casamento, e um dos pés que Lois sacudia por pouco não lhe acerta um chute na garganta. Ele deu um puxão na barra da anágua de Lois que se soltou numa escorregadia onda de náilon rosa. Enquanto isso, Lois continuava a gritar.

[- Ladrãozinho miserável! Olha aqui para você! Gostou?]

Átropos soltou um guincho de dor e, quando Ralph levantou a cabeça, viu que Lois cravara os dentes em seu pulso direito. A mão esquerda, a que segurava o bisturi, golpeava às cegas o fio de balão de Lois, errando o alvo por menos de um dedo. Ralph se pôs de pé num salto e, ainda sem ter uma ideia clara do que fazia, cobriu a mão atacante de Átropos... e sua cabeça com a anágua rosa de Lois.

[- Afaste-se dele, Lois! Corra!]

Ela cuspiu a pequena mão branca e cambaleou em direcção à mesinha de barril que havia no centro do quarto, limpando o sangue de Atropos de sua boca com um nojo atávico... mas a expressão dominante em seu rosto continuava a ser a fúria. O próprio Atropos, no momento apenas uma forma que berrava e se contorcia debaixo de uma anágua rosa, tentou alcançá-la com a mão livre. Ralph desviou-a com um tapa e tornou a empurrá-lo contra a lateral do arco.

[- Não vai, não, amizade - não vai mesmo.]

Me solte! Me solte, seu filho da puta! Você não pode fazer isso!

E o mais curioso é que ele realmente acredita que não posso, pensou Ralph. Ele fez o que quis durante tanto tempo que esqueceu por completo o que os Vidas-Curtas são capazes de fazer. Acho que posso dar um jeito nisso.

Ralph lembrou-se de Atropos cortando o fio de balão de Rosalie depois da cachorra ter lambido a mão dele e seu ódio pela criatura arrogante, desdenhosa, demente explodiu repentinamente em sua cabeça como um sinalizador luminoso de estrada. Pegou um lado da anágua de Lois, enrolou-a duas vezes no pulso num gesto violento, e puxou-a com tanta força que as feições de Atropos saltaram modelando uma máscara mortuária de náilon rosa.

No momento em que a lâmina do bisturi atravessou o tecido e começou a cortá-lo, Ralph girou Atropos rapidamente, usando a anágua, como um homem usaria uma funda para lançar uma pedra, e arremessou-o pelo arco. O dano teria sido menor se Atropos tivesse caído, mas ele não caiu; seus pés bateram um contra o outro mas não chegaram a se cruzar.

Ele bateu na pedra que faceava o arco com um baque seco, soltou um grito abafado de dor e caiu de joelhos. Manchas de sangue floresceram na anágua de Lois como pétalas de flor. O bisturi desaparecera pela abertura que fizera no pano. Ralph saltou sobre Atropos na hora em que o bisturi reaparecia e aumentava o corte inicial, livrando a cara incrédula do careca.

Seu nariz sangrava; e também sangravam a testa e a têmpora direita. Antes que ele pudesse começar a se levantar, Ralph agarrou os volumes rosados e escorregadios que formavam seus ombros.

[Pare! Estou-lhe avisando, Coroa! Vou fazer você se arrepender de ter nascido...]

Ralph não ligou para a ameaça sem sentido e empurrou Atropos para a frente com toda a força. Os braços do anão continuavam enredados na anágua e ele bateu de cara no chão.

Seu guincho em parte denotava surpresa, mas principalmente dor. Inacreditavelmente, Ralph sentiu Lois no fundo de sua mente, dizer-lhe que já bastava, que não o machucasse de verdade - não machucasse o psicótico nanico que acabara de tentar matá-la. Atropos procurou rolar o corpo. Ralph deu-lhe uma joelhada no meio das costas e tornou a achatá-lo contra o chão.

[- Não se mexa, amizade. Gosto de você assim.]

Ergueu os olhos para Lois e viu que sua surpreendente fúria se fora tão rapidamente quanto viera - como um fenómeno meteorológico anormal. Um tornado, talvez, que desce não se sabe de onde, arranca o telhado de um galpão e desaparece como veio.

Ela apontava para Atropos.

[- Ele roubou meus brincos, Ralph. Esse ladrãozinho maligno roubou meus brincos. E está usando eles!]

[- Eu sei. Já vi.]

Um lado da cara furiosa de Atropos emergiu pelo corte no náilon como se fosse o rosto do bebé mais feio do mundo na hora do nascimento. Ralph sentiu os músculos das costas da criatura tremerem sob o joelho que o prendia, e lembrou-se de um provérbio que lera em algum lugar... talvez na ponta do barbante de um saquinho de chá: Quem apanhou um tigre pelo rabo, não ouse largá-lo. Agora, nessa toca absurda debaixo do chão, sentindo-se personagem de um conto de fadas inventado por um doido, Ralph achou que chegara a uma espécie de compreensão divina do provérbio. Pela combinação da fúria súbita de Lois com uma sorte filha da mãe, ele acabara, pelo menos temporariamente, por cima desse seboso. A questão - e por sinal bastante premente - era o que fazer a seguir.

A mão que segurava o bisturi subiu de repente, mas o golpe foi fraco e cego. Ralph evitou-o com facilidade. Soluçando e xingando, sem demonstrar medo ainda que dominado,xmas obviamente machucado e consumido de raiva impotente, Atropos atacou-o de novo.

[Me deixa levantar, seu Vida-Curta sacana! Velho babaca! Maracujá de gaveta!]

[- Minha cara não anda tão ruim assim ultimamente, amizade. Você não reparou?]

[Veado! Vida-Curta veado e burro! Vou fazer você se arrepender! E muito.]

Bem, pensou Ralph, pelo menos ele não está suplicando. Pensei que a essa altura ia começar a suplicar.

Átropos continuou a golpear debilmente com o bisturi. Ralph evitou dois ou três desses golpes sem dificuldade, então escorregou a mão em direcção à garganta da criatura debaixo dele.

[- Ralph! Não! Não faça isso!]

Ele sacudiu a cabeça para Lois, sem saber se estava expressando aborrecimento, confirmação ou ambos. Tocou a pele de Átropos e sentiu-o estremecer. O doutor careca soltou um grito sufocado de repugnância, e Ralph entendeu exactamente o que ele sentia. Era nojento para os dois, mas ele não retirou a mão. Ao contrário, tentou fechá-la em torno da garganta de Átropos e não se surpreendeu muito ao descobrir que não conseguia. Mas não fora Láquesis que dissera que somente os Vidas-Curtas podiam se opor à vontade de Átropos? Achava que sim. A pergunta era: como?

Debaixo dele, Átropos deu uma risada maldosa.

[- Por favor, Ralph! Por favor, só apanhe meus brincos e vamos embora!]

Átropos girou os olhos em direcção a Lois, então virou-os para Ralph.

[Você achou que podia me matar, Coroa ? Muito bem, tente outra vez.]

Não, não achara isso, mas precisava se certificar.

[A vida é uma meretriz, não concorda, Coroa? Por que você não me devolve o anel? Eu vou recuperá-lo mais cedo ou mais tarde, posso lhe garantir.]

[Vá tomar no eu, seu fuinha.]

Falava grosso, mas falar era fácil. A questão mais urgente continuava sem resposta: Que diabo devia fazer com esse monstro?

Seja o que for, você não será capaz com Lois parada aí observando, uma voz objectiva que não era bem a de Carolyn aconselhou-o. Ela foi óptima quando estava furiosa, mas não está mais furiosa agora.

E tem o coração muito mole para o que possa acontecer a seguir, Ralph. Você precisa tirála daqui.

Ralph virou-se para Lois. Tinha os olhos semicerrados. Parecia prestes a desmontar ao pé do arco e dormir.

[- Lois, quero que você saia daqui. Agora. Suba a escada e espere por mim debaixo da árvore...]

O bisturi subiu num movimento rápido e desta vez quase arrancou a ponta do nariz de Ralph. Ele se desviou e seu joelho escorregou no náilon. Átropos corcoveou violentamente e por pouco não sai de debaixo de Ralph. No último segundo, ele achatou a cabeça do homenzinho no chão com o punho - isso, pelo jeito, era permitido pelo regulamento - e tornou a firmar o joelho.

[Anil Anil Parei Você está me matando!] Ralph fingiu não ouvir e olhou para Lois. [Anda, Lois! Sobe! Vou te encontrar assim que puder!] [- Acho que não consigo subir sozinha - estou cansada demais!]

[- Claro que pode. Você precisa subir, e pode subir.] Átropos tornou a sossegar - pelo menos por ora - um motorzinho resfolegante sob o joelho de Ralph. Mas isso era muito pouco. O tempo estava passando lá em cima, passando depressa, e neste instante o tempo é que era o verdadeiro inimigo, e não Ed Deepneau. t-Meus brincos...]

[- Eu levo os brincos quando subir, Lois. Prometo.] Parecendo fazer um esforço supremo, Lois se aprumou e encarou Ralph solenemente.

[- Você não devia machucá-lo, Ralph, não se não for preciso. Isso não é cristão.]

Não, não é nem um pouco cristão, uma criaturinha travessa concordou lá no fundo da cabeça de Ralph. Não é cristão, porém... mal posso esperar para começar.

[- Vamos, Lois. Deixe ele comigo.] Ela o fitou com tristeza.

[- Não ia adiantar nada eu pedir para você prometer não machucá-lo, ia?]

Ele reflectiu e em seguida sacudiu negativamente a cabeça.

[- Não, mas lhe prometo o seguinte: não será pior do que ele fizer com que seja. Está bem assim?]

Lois considerou demoradamente a resposta e em seguida concordou.

[- E, acho que está bem. E talvez eu consiga subir, se andar devagar sem me esforçar muito... mas e você?]

[- Vou ficar bem. Me espere debaixo da árvore.]

[- Pode deixar, Ralph.]

Ele observou Lois atravessar o quarto imundo com o tênis de Helen balançando no pulso.

Ela se abaixou para atravessar o arco entre o apartamento e a escada e vagarosamente começou a subir. Ralph esperou até que seus pés desaparecessem de vista, então voltou sua atenção para Átropos.

[- Muito bem, amizadinha, cá estamos: dois velhos companheiros juntos. Que vamos fazer? Brincar? Você gosta de brincar, não é?]

Átropos imediatamente renovou sua resistência, simultaneamente brandia o bisturi acima da cabeça e tentava atirar Ralph longe.

[Chega! Tire as mãos de mim, seu veado velho!] Átropos se contorcia tão violentamente, que ajoelhar em cima dele era o mesmo que ajoelhar em cima de uma cobra. Ralph não se incomodou com a gritaria, nem com os sacolejões, nem tampouco com o bisturi que golpeava às cegas. A cabeça inteira de Átropos estava fora da anágua, o que facilitava muito as coisas. Ralph agarrou os brincos de Lois e puxou. Eles continuaram no mesmo lugar, mas Átropos reagiu com um forte grito de dor. Ralph inclinou-se para a frente, dando um sorrisinho.

[- São para orelhas furadas, não é mesmo, companheiro?]

[São! Merda!]

[- Como você diz, a vida é uma meretriz, não é mesmo?]

Ralph agarrou os brincos de novo e arrancou-os. Brotaram dois pequenos leques de sangue quando os furos das orelhas de Átropos se rasgaram. O berro do careca foi agudo como o ruído de uma perfura triz nova. Ralph sentiu uma mistura inquietante de pena e desprezo.

O sacaninha está acostumado a machucar os outros, mas não a ser machucado. Talvez nunca tenha sido machucado. Pois bem, descubra como o outro lado vive, companheiro.

[Pare! Pare! Você não pode fazer isso comigo!]

[- Pois tenho uma novidade para você, amizadinha... Já estou fazendo. Agora por que não se liga no programa?]

[Que é que você acha que vai conseguir com isso, Coroa? Vai acontecer de qualquer jeito, sabe. Toda aquela gente no centro cívico vai dar tchauzinho para a vida, e levar o anel não vai impedir isso.]

E eu não sei! - pensou Ralph.

Átropos ainda resfolegava, mas parara de se debater. Ralph pôde desviar sua atenção por instantes e correr os olhos pelo apartamento. Supunha que procurava realmente uma inspiração - um simples lampejinho seria o suficiente.

[- Posso fazer uma sugestão, Sr. A? Como seu novo companheiro de brinquedos? Sei que anda ocupado, mas devia arranjar um tempinho para dar um jeito em sua casa. Não estou exigindo que a decore para sair na revista House Beautiful nem nada do género, mas puts!

Que chiqueiro!]

Átropos falou, ao mesmo tempo emburrado e cauteloso:

[Não estou nem aí para o que você acha, Coroa.]

Ralph só conseguiu pensar em uma maneira de continuar. Não gostava muito, mas ia tocar para a frente assim mesmo. Precisava tocar; havia uma imagem em sua cabeça que o obrigava a isso. Era a imagem de Ed Deepneau voando do litoral para Derry num avião leve, carregando um engradado de explosivos ou um tanque de gás tóxico no nariz do avião.

[- Que vou fazer com o senhor, Sr. A? Alguma ideia?]

A resposta foi imediata e inequívoca. [Me soltar. É a resposta. A única resposta. Deixo você em paz, os dois. Devolvo vocês ao Desígnio. Viverão mais uns dez anos. Diabos, talvez até vinte, não é impossível. E a única coisa que você e a mocinha precisam fazer é dar o fora.

Voltem para casa. E quando tudo explodir, assistam pelo noticiário da TV.]

Ralph tentou aparentar que considerava sinceramente a proposta.

[- E você vai nos deixar em paz? Você promete nos deixar em paz?]

[Isso!]

O rosto de Átropos assumira uma expressão esperançosa e Ralph percebeu os primeiros vestígios de uma aura surgirem em torno do desgraçadinho. Era o mesmo vermelho-escuro e desagradável da luz pulsante que iluminava o apartamento.

[- Sabe de uma coisa, Sr. A?]

Átropos, parecendo mais esperançoso que nunca:

[Não, o quê?]

Ralph levou a mão rapidamente à frente, agarrou o pulso esquerdo de Atropos, e torceu-o com força. Atropos berrou de dor. Seus dedos se afrouxaram no punho do bisturi, e Ralph arrancou-o de sua mão com a facilidade de um ladrão veterano ao bater uma carteira.

[- Acredito no senhor.]

[DEVOLVE isso! Devolve isso! Devolve isso! Devolve is...]

Em sua histeria, Atropos teria continuado a berrar a mesmo coisa horas a fio, por isso Ralph lhe deu um basta da maneira mais directa que conhecia. Inclinou-se para a frente e deu um golpe de bisturi raso e vertical na parte de trás da grande careca que saía pelo rasgo da anágua de Lois. Nenhuma mão invisível tentou impedi-lo, e sua própria mão moveu-se com destreza. Sangue - em quantidade chocante - vazou do corte. A aura em torno de

Atropos assumiu um tom vermelho-escuro e funesto de uma ferida infectada. Ele berrou outra vez.

Ralph curvou-se mais e falou amigavelmente em seu ouvido.

[- Talvez não possa matá-lo, mas com certeza posso ferrar você, não posso? E nem preciso estar carregado de fluido psíquico para fazer isso. Esta gracinha é mais do que suficiente.]

Ele usou o bisturi para cruzar o primeiro corte, riscando um té em caixa-baixa na cabeça de Atropos. Atropos berrou e começou a se debater violentamente. Ralph sentiu desgosto ao descobrir que aquele lado dele - o diabrete travesso - estava se divertindo a valer.

[- Se quiser que continue a cortar você, é só continuar a estrebuchar. Se quiser que pare, então é melhor você parar.]

Atropos aquietou-se na mesma hora.

[- Muito bem. Agora vou-lhe fazer umas perguntinhas. Acho que vai descobrir que será mais interessante para você respondê-las.]

[Me pergunte qualquer coisa! O que quiser saber! Só não me corte mais!]

[- É uma atitude muito sensata, amizadinha, mas acho que sempre há uma margem para aperfeiçoamentos, não acha? Vejamos.]

Ralph fez um novo corte, desta vez abriu um longo sulco no lado do crânio de Atropos.

Uma aba de pele soltou-se como papel de parede mal colado. Atropos urrou. Ralph sentiu uma cãibra de repugnância no fundo do estômago e chegou a se aliviar... mas quando falou com Átropos, ou pensou, usou de extrema cautela para não demonstrar o que sentia.

[- Muito bem, essa é a minha palestra de motivação, Doutor. Se tiver que repeti-la, o senhor vai precisar de araldite para impedir que o vento carregue o tampo de sua cabeça. Entendeu bem?]

Entendi! Entendi!

[- E acredita no que estou dizendo?]

[Acredito! Seu velho podre, ACREDITO!]

[- Então óptimo. Lá vai a minha primeira pergunta, Sr. A.: Se o senhor faz uma promessa, fica obrigado a cumpri-la?]

Átropos demorou a responder, um sinal animador. Ralph encostou a lâmina do bisturi no rosto dele para apressá-lo. Foi recompensado com outro grito e instantânea cooperação.

[Fico! Fico! Só não me corte outra vez! Por favor, não me corte outra vez!]

Ralph afastou o bisturi. A sombra da lâmina encandecia no rosto liso da criaturinha como uma marca de nascença.

[- Muito bem raiozinho de sol, escute aqui. Quero que prometa que vai deixar a mim e a Lois em paz ate'terminar o comício do centro cívico. Nada de perseguição, nada de golpes de bisturi, nada de sacanagem. Prometa.]

[Vá sefoder! Pegue a sua promessa e enfie no eu!]

Ralph não se aborreceu com o xingamento; seu sorriso, pelo contrário, alargou-se. Porque Átropos não dissera não prometo, e o que era ainda mais importante, Átropos não dissera não posso prometer. Dissera apenas não. Em outras palavras, apenas um pequeno contratempo, e facilmente remediável.

Insensibilizando-se, Ralph correu o bisturi de alto a baixo pelo meio das costas de Átropos.

A anágua se abriu, a túnica branca e suja sob a anágua se abriu, e o mesmo aconteceu com a pele sob a túnica. O sangue escorreu num fluxo nojento, e o berro choroso e torturado bateu forte nos ouvidos de Ralph.

Ele se inclinou e tornou a murmurar na pequena orelha, fazendo uma careta e evitando se sujar de sangue o melhor que pôde.

[- Não estou gostando de fazer isso, amizadinha, na verdade, mais dois cortes e vou vomitar outra vez, mas quero que você saiba que posso fazer e vou continuar a fazê-lo até você me prometer o que quero ou até que a força que me impediu de esganá-lo interfira outra vez. Acho que se você ficar esperando isso acontecer, vai se transformar numa unidade de dor. Então o que me diz? Você quer me prometer ou quer que eu o descasque como se faz com uma uva?]

Átropos debulhava-se em lágrimas. Era um som repugnante e horrível.

[Você não compreende! Se você conseguir interromper o que foi iniciado - as chances são mínimas, mas não é impossível - serei castigado pela criatura que você chama de Rei

Sanguinário!]

Ralph cerrou os dentes e retalhou Átropos de novo, os lábios tão comprimidos, que sua boca parecia uma cicatriz há muito curada. A lâmina do bisturi encontrou uma pequena resistência ao cortar uma cartilagem, e em seguida a orelha esquerda de Átropos caiu no chão. O sangue esguichou do buraco aberto do lado de sua careca, e seu grito desta vez foi suficientemente alto para ferir os ouvidos de Ralph.

Estão muito longe de serem deuses, não estão? Pensou Ralph. Sentia-se doente de horror e desalento. A única diferença real entre eles e nós é que vivem mais tempo e são menos visíveis. E acho que não dou para ser soldado - só de olhar para essa sangueira me dá von tade de desmaiar. Merda.

[Está bem, prometo! Mas pare de me cortar. Chega. Por favor, chega!]

[- Já é um começo, mas você vai ter que ser mais explícito. Quero ouvir você dizer que promete ficar longe de mim e da Lois, e do Ed, também, até terminar o comício do centro cívico.]

Ele esperou mais rodeios e desmentidos, mas Átropos surpreendeu-o.

[Prometo1. Prometo ficar longe de você, e da vaca com quem você anda...]

[- Lois. Diga o nome dela. Lois.]

[Sei, sei, dela - Lois Chasse! Concordo em ficar longe dela e de Deepneau, também. De todos vocês, desde que você não me corte mais. Está satisfeito? É suficiente, seu desgraçado?]

Ralph deu-se por satisfeito... ou tão satisfeito quanto um homem pode ficar quando se sente profundamente enauseado com os próprios métodos e atos. Não acreditava que houvesse nenhuma arapuca na promessa de Átropos; o carequinha sabia que poderia pagar um preço muito alto mais tarde por ter cedido agora, mas, no final das contas, esta ameaça não sobrepujava a dor e o terror que Ralph lhe infligira.

t- Muito bem, Sr. A., acho que é suficiente.]

Ralph escorregou de cima de sua pequena vítima com o estômago embrulhado e uma sensação - tinha que ser falsa, não? - de que sua garganta se abria e fechava como a concha de um mexilhão. Contemplou o bisturi sujo de sangue por um momento, então deu um impulso com o braço e atirou-o longe com toda a força que pôde. O bisturi atravessou o arco girando e desapareceu no armazém.

Que o diabo o carregue, pensou Ralph. Pelo menos, não respingou muito em mim. E chega. Já não sentia vontade de vomitar. Agora sentia vontade de chorar.

Átropos levantou-se vagarosamente nos joelhos e olhou à volta com a expressão atordoada de um homem que sobreviveu a um furacão assassino. Viu a orelha caída no chão e recolheu-a. Revirou-a nas mãos pequenas e examinou os fios de cartilagem que saíam por trás. Ergueu o rosto para Ralph. Seus olhos estavam marejados de lágrimas de dor e humilhação, mas havia outra coisa neles também - uma raiva tão profunda e mortal, que Ralph se encolheu. Todas as suas precauções pareciam frágeis e tolas diante daquela raiva.

Ele deu um passo vacilante para trás e apontou para Átropos com o dedo trémulo.

[- Lembre-se de sua promessa!]

Átropos arreganhou os dentes num sorriso horrendo. A aba de pele pendurada de um lado do rosto balançava para lá e para cá, como uma vela frouxa, e a carne viva sob a pele dessorava e escorria.

[Claro que vou lembrar - como poderia esquecer? Na verdade, ate'gostaria de lhe fazer mais uma promessa. Duas pelo preço de uma, por assim dizer.]

Átropos fez o gesto que Ralph lembrava bem do telhado do hospital: abriu os dois primeiros dedos da mão direita em V e lançou-os para o alto, produzindo um arco no ar. Dentro dele, Ralph viu uma figura humana. Mais além, indistinto, como se fosse visto através de uma névoa sangrenta, estava o mercadinho. Ele ia perguntar quem era a figura no primeiro plano, no meio-fio da Avenida Harris... e então, subitamente, adivinhou. Olhou para Átropos com os olhos chocados.

[- Meu Deus, não! Você não pode!]

O sorriso no rosto de Átropos continuou a se alargar.

[Sabe, isso é o que vivia pensando sobre você, Vida-Curta. Só que estava enganado. E você, também. Veja.]

Átropos abriu um pouco mais os dedos. Ralph viu alguém, usando o boné de beisebol do Boston Red Sox, sair do mercadinho e, desta vez, ele reconheceu imediatamente quem via.

A pessoa chamou outra do lado oposto da rua, e então algo horrível começou a acontecer.

Ralph desviou o olhar, enauseado com a visão no arco sangrento do futuro entre os dedinhos de Átropos.

Mas ouviu o seu ruído.

[A que lhe mostrei primeiro pertence ao Acaso, Coroa, em outras palavras, a mim. E agora minha promessa: se você continuar a se meter no meu caminho, o que acabei de lhe mostrar vai acontecer. Não há nada que você possa fazer, nem aviso que você possa dar, que tenha o poder de impedir o que vai acontecer. Mas se você sair de cena agora, se você e a mulher simplesmente se afastarem e deixarem os acontecimentos seguirem seu curso então conterei minha mão.]

As vulgaridades que formavam unia parte tão grande do discurso habitual de Átropos tinham ficado para trás como uma fantasia descartada, e pela primeira vez Ralph teve uma percepção clara da idade avançada e da sabedoria malévola deste ser.

[Lembre-se do que os viciados dizem, Coroa: morrer é fácil, viver é que é difícil. É um ditado verdadeiro. Ninguém sabe disso melhor que eu. Então o que acha? Está reflectindo?]

Ralph permaneceu parado no apartamento imundo, com a cabeça baixa e as mãos cerradas.

Os brincos de Lois queimavam em uma delas como brasas vivas. O anel de Ed também parecia queimar contra o seu corpo, e ele sabia que não havia nada nesse mundo que o impedisse de apanhá-lo e atirá-lo do outro lado do aposento como fizera com o bisturi.

Lembrou-se então de uma história que lera na escola há mil anos. A dama ou o tigre? chamava-se, e agora ele compreendia o que era possuir um poder tão terrível... e fazer uma escolha tão terrível.

Na superfície parecia bastante fácil; o que era afinal uma vida contra duas mil?

Mas aquela vida...

Mas, na realidade, ninguém precisaria jamais saber, pensou friamente. Ninguém excepto Lois, talvez... e Lois aceitaria minha decisão. Carolyn poderia não aceitar, mas elas são mulheres muito diferentes uma da outra.

Verdade, mas será que tinha esse direito?

Átropos também leu isso em sua aura - dava arrepios o quanto a criatura via.

[Claro que tem, Ralph - nisso consistem essas questões de vida ou morte: quem tem o direito. Desta vez é você. Então o que me diz?]

[- Não sei o que dizer. Não sei o que pensar. Só o que sei é que gostaria que vocês três tivessem ME DEIXADO EM PAZ, PORRA!]

Ralph Roberts ergueu a cabeça para o teto da toca de Átropos, juncado de raízes, e deu um berro.

 

Cinco minutos mais tarde, Ralph pôs a cabeça para fora das sombras sob o velho carvalho tombado. Imediatamente viu Lois. Estava ajoelhada diante dele, e espiava, ansiosa, por entre o emaranhado de raízes, o seu rosto erguido. Ralph estendeulhe uma mão suja e manchada de sangue que Lois segurou com firmeza, enquanto ele galgava os últimos degraus - raízes nodosas que mais pareciam os paus de uma escada de mão.

Ralph esgueirou-se para fora da árvore e jogou o corpo para trás, aspirando o ar fresco em grandes golfadas. Achou que o ar nunca tivera um gosto tão bom em toda sua vida. Apesar de tudo, sentia uma enorme gratidão por estar ao ar livre. Por estar livre.

[- Ralph ? Você está bem ?]

Ele virou a mão de Lois e depositou um beijo na palma, depois pousou os brincos no lugar onde seus lábios tinham tocado.

[- Estou. Óptimo. São seus.]

Ela contemplou os brincos curiosa, como se nunca os tivesse visto - nem esses, nem outros - antes de guardá-los no bolso do vestido.

[- Você viu os brincos pelo espelho, não foi, Lois?]

[- Foi e me deu raiva... mas acho que bem lá no fundo não fiquei realmente surpresa.]

[- Porque já sabia.]

[- É, acho que sim. Talvez desde que vimos Átropos usando o chapéu deMcGovern.

Alguma coisa ficou registrada... sabe... no fundo de minha cabeça.]

Ela o observava atentamente, como se o avaliasse.

[- Mas vamos deixar os brincos para lá: que aconteceu lá embaixo? Como foi que você conseguiu sair?]

Ralph receou que, se ela continuasse a observá-lo com atenção por muito tempo, veria coisas demais. E também tinha a impressão de que, se não se mexesse logo, talvez não conseguisse mais se mexer; seu cansaço era tão imenso agora que parecia um grande objecto encrustrado dentro dele - talvez um grande transatlântico naufragado - lá no fundo, chamando-o, tentando puxá-lo para baixo. Levantou-se. Não podia permitir que nenhum dos dois fosse puxado para baixo, não agora. As notícias que se liam no céu não eram tão ruins quanto poderiam ser, mas também não eram boas - eram no mínimo seis horas da tarde.

Por toda Derry, gente que não tinha nenhum interesse na questão do aborto (a grande maioria, em outras palavras) sentava-se para comer a refeição quente da noite. No centro cívico, as portas já estariam abertas e iluminadas pelos reflectores de TV de 10-K; e as minicâmeras estariam transmitindo ao vivo cenas da chegada dos primeiros defensores da opção, que passavam diante de Dan Dalton e de seus manifestantes pró-vida agitando cartazes. Não muito longe dali, haveria gente gritando o slogan favorito de Ed Deepneau, aquele Ei, Ei, Susan Day, assassina de bebés! O que quer que ele e Lois fizessem, teria que ser nos próximos sessenta ou noventa minutos. O relógio não parava de correr.

[- Vamos, Lois. Temos que ir andando.]

[- Vamos voltar para o centro cívico?]

[- Não, ainda não. Acho que para começar, devíamos...]

Ralph descobriu que simplesmente não conseguiria esperar pelo que ia dizer. Onde achava que deviam ir para começar? Voltar ao hospital Derry Home? Ao mercadinho? A casa dele?

Onde se ia quando se precisava encontrar uns caras bem intencionados, mas nem tão oniscientes, que tinham metido você e seus poucos amigos íntimos num mundo de dor e confusão? Ou seria razoável esperar que eles viessem ao seu encontro?

Talvez eles não queiram encontrá-lo, querido. Na verdade, talvez estejam se escondendo de você.

[- Ralph, você tem certeza que está...]

De repente ele pensou em Rosalie e soube a resposta.

[- O parque, Lois, o parque Strawford. E aonde temos de ir. Mas precisamos parar um instante no caminho.]

Eles saíram costeando a cerca do aeroporto, e não tardaram a ouvir o som de várias vozes ao mesmo tempo. Ralph sentiu também o cheiro de cachorro-quentes assando na brasa e, depois de experimentar o mau cheiro da toca de Átropos, achou o aroma divino. Uns dois minutos depois, ele e Lois chegaram ao início da área de piqueniques, próxima à Pista 3.

Dorrance achava-se lá, parado no centro de sua fantástica aura multicolorida, observando um aviãozinho se aproximar da pista para pousar. Atrás dele, Faye Chapin e Don Veazie sentavam-se a uma mesa de piquenique com um tabuleiro de xadrez entre os dois e meia garrafa de Blue Nun à mão. Stan e Georgina Eberly bebiam cerveja e reviravam os garfos com cachorros-quentes impalados no calor tremeluzente - para Ralph aquele calor tinha um estranho tom rosa-seco, como areia cor de coral - da churrasqueira da área de piqueniques.

Por um momento, Ralph simplesmente estacou, extasiado com a beleza - a beleza efêmera e impressionante que era, a seu ver, a característica vital dos Vidas-Curtas.

Ocorreu-lhe o verso de uma canção, que tinha no mínimo vinte e cinco anos: Nós somos poeira de estrelas, nós somos dourados. A aura de Dorrance era diferente - fabulosamente diferente- mas mesmo a mais trivial entre as demais refulgia como pedras raras e infinitamente desejáveis.

[- Ah, Ralph, você está vendo? Está vendo como são lindas?]

[- Estou.]

[- Que pena que eles não sabem.]

Mas seria? À luz de tudo que acontecera, Ralph não tinha tanta certeza assim. E era sua impressão - uma intuição vaga mas forte, que ele nunca poderia ter expressado em palavras - que talvez a verdadeira beleza fosse algo irreconhecível pelo eu consciente, uma obra em contínuo processo de criação, uma coisa do ser e não do ver.

- Vamos, panaca, faça o seu lance-disse uma voz. Ralph despertou bruscamente, primeiro achando que a voz se dirigia a ele, mas era Faye que falava com Don Veazie. - Você é mais mole que uma lesma.

- E daí? - respondeu Don. - Estou pensando.

- Pois pense até o inferno congelar, Sabichão, porque vai levar um cheque mate em seis lances.

Don serviu o vinho num copo de papel e revirou os olhos.

- Oh, grande mestre! - exclamou - Não tinha reparado que estava jogando xadrez com Boris Spassky! Pensei que era simplesmente o velho Faye Chapin! Mil perdões.

- Assim você me mata de rir, Don. Com um número cómico desses, se fosse você, saía excursionando pelo país e faturava bem um milhão de dólares. E não precisa nem esperar muito, não: pode embarcar daqui a seis lances.

- Você é tão sabido - Don retrucou. - Você só não sabe quando...

- Psiu! - Georgina exclamou energicamente. - Que foi isso? Pareceu uma explosão!

"Isso" era Lois sugando um rio de vibrante verde-floresta da aura de Georgina.

Ralph ergueu a mão direita, enroscou-a formando um canudo em torno dos lábios e começou a inalar uma torrente semelhante do azul-claro vivo da aura de Stan Eberly. Sentiu a energia fresca inundá-lo prontamente; como lâmpadas fluorescentes se acendendo em seu cérebro. Mas aquele enorme navio naufragado, que era nada mais nada menos que quatro meses de noites maldormidas, continuava ali e continuava tentando sugá-lo para baixo onde jazia.

A necessidade de tomar uma decisão também continuava ali - não a tomara para um lado nem para o outro, apenas a adiara.

Stan também espiava intrigado para os lados. Qualquer que tivesse sido a quantidade de aura retirada por Ralph (e pelo jeito retirara um bocado), a fonte conservava o denso colorido de sempre. Aparentemente a informação sobre os reservatórios quase inesgotáveis de energia, que cercavam cada ser humano, fora literal e exactamente verdadeira.

- Bom - comentou Stan - eu ouvi alguma coisa...

- Não ouvi nada - falou Faye.

Claro que não, você é surdo como uma porta-retrucou Stan. - Pare de interromper só por um minuto, sim? Estava começando a dizer que não foi um tanque de combustível, porque não houve nem fumaça nem fogo. Também não foi o Don peidando, porque nenhum esquilo caiu duro dos galhos das árvores com o pêlo chamuscado. Acho que deve ter sido o escape de um daqueles caminhões enormes da guarda aérea nacional. Não se preocupe, querida, eu te protejo.

- Aqui que você me protege - disse Georgina dando uma banana para ele. Mas sorria.

- Olha só, gente! - disse Faye. - Dêem uma espiada no velho Dor.

Todos se voltaram para Dorrance, que sorria e acenava em direcção à Extensão da avenida

Harris.

- Quem é que você está vendo, velho? - Don Veazie perguntou com um sorriso.

- Ralph e Lois - Dorrance respondeu, sorrindo radiante. - Estou vendo Ralph e Lois.

Acabaram de sair de debaixo do velho carvalho!

- Sei - Stan falou. Protegeu os olhos com a mão e apontou directamente para os dois. Isto produziu um tranco no sistema nervoso de Ralph que só diminuiu quando ele percebeu que

Stan estava apontando para o mesmo ponto para o qual Dorrance estava acenando. - E olhe só pessoal! O Glenn Miller vem saindo logo atrás deles! Pó, incrível!

Georgina deu uma cotovelada em Stan que se esquivou, ágil e sorridente.

[- Alô, Ralph! Alô, Lois!]

[- Dorrance! Estamos indo para o parque Strawford! Estamos no caminho certo?]

Dorrance, sorrindo feliz:

[- Nas sei, agora o assunto e'com os Longas-Vidas, e para mim chega. Vou voltar daqui a pouco para casa e ler Walt Whitman. Vai ser uma noite ventosa, e VMiitman é sempre melhor ao som do vento.]

Lois com a voz quase frenética:

[- Dorrance, nos ajude!]

O sorriso de Dor vacilou, e ele a encarou sério.

[- Não posso. Já saiu das minhas mãos. O que for feito terá de ser feito por você e Ralph agora.]

- Hum - Georgina exclamou. - Detesto quando ele fica com o olhar parado desse jeito.

A gente chega quase a acreditar que ele está realmente vendo alguém. - Apanhou o garfo comprido de churrasco e recomeçou a assar seu cachorro-quente. - Por falar nisso, alguém tem visto Ralph e Lois?

- Não - respondeu Don.

- Eles devem ter-se mudado para um desses motéis baratos no litoral com uma caixa de cerveja e um vidro de óleo Johnson para bebés - comentou Stan. - Tamanho econômico.

Já lhe disse isso ontem.

- Velho indecente-falou Georgina, desta vez lhe dando uma cotovelada mais forte e mais certeira.

Ralph:

[- Dorrance, você não pode nos dar nenhuma ajudinha? Pelo menos nos dizer se estamos no caminho certo?]

Por um momento, ele teve certeza de que Dor ia responder. Então ouviu-se o zunido alto e monótono de um motor que se aproximava e o velho ergueu a cabeça. Seu sorriso bonito e aluado reapareceu.

- Olhe!-exclamou!-Um velho Grumman! Que beleza! - Dor correu até a cerca de tela para observar o aviãozinho amarelo pousar, dando as costas para os dois.

Ralph tomou Lois pelo braço e tentou sorrir. Vida dura - pensou que nunca se sentira tão amedrontado e confuso em toda a vida - mas reagiu com a velha animação dos tempos de universidade.

[- Vamos, querida. Vamos andando.]

RALPH lembrou-se de ter pensado - enquanto andavam pela ferrovia abandonada que acabara por levá-los de volta ao aeroporto-que caminhar não era bem o que estavam fazendo; pareciam mais estar planando. Foram da área de piqueniques no fim da Pista 3 até o parque Strawford do mesmo jeito, só que agora planavam mais acentuada e rapidamente.

Era como se fossem transportados por uma esteira rolante invisível.

Para experimentar, ele parou. As casas e lojas continuaram a passar suavemente por ele.

Olhou para os pés para conferir, é, estavam completamente imóveis. Parecia que a calçada se movia, e ele não.

Aí vinha o Sr. Dugan, chefe do departamento de empréstimos do Derry Trust, com o seu habitual terno completo e os óculos sem aros. Como sempre, pareceu a Ralph que era o único homem do mundo a nascer sem eu. Uma vez recusara um pedido de empréstimo seu, o que, Ralph imaginava, explicava alguns dos sentimentos negativos que alimentava com relação ao homem. Agora ele via que a aura de Dugan era o cinza-uniforme e fosco de um corredor de hospital de veteranos e Ralph concluiu que isto não o surpreendia muito. Apertou o nariz como um homem forçado a atravessar a nado um canal poluído e passou pelo bancário sem se deter. Dugan sequer piscou.

Era meio divertido, mas, quando Ralph olhou para Lois, seu divertimento acabou na hora.

Viu a preocupação em seu rosto e as perguntas que queria lhe fazer. Perguntas para as quais não tinha respostas satisfatórias.

Adiante estava o parque Strawford. Quando Ralph olhou, as lâmpadas da rua se acenderam de repente. A área de recreação onde ele e McGovern - e Lois, também, na maioria das vezes - paravam para ver as crianças brincarem estava quase deserta. Dois garotos de escola secundária sentavam-se lado a lado nos balanços, fumando cigarros e conversando, mas as mães e as criancinhas que frequentavam ali durante o dia já tinham ido embora.

Ralph pensou em McGovern - na sua tagarelice incessante e mórbida, na sua autoridade, tão difícil de alguém perceber logo que o conhecia, tão difícil de não perceber depois que se convivia um pouco com ele, as duas circunstâncias atenuadas e transformadas em algo melhor pelo espírito irreverente, pelos gestos impulsivos e surpreendentes de bondade - e sentiu uma profunda tristeza invadi-lo. Os Vidas-Curtas podiam ser poeira de estrelas, e podiam ser dourados, também, mas, quando desapareciam, lembravam as mães e os bebês que vinham brevemente ali para brincar nas tardes ensolaradas de verão.

[- Ralph, que é que estamos fazendo aqui? O saco mortuário está no centro cívico e não no parque Strawford!]

Ralph levou-a até o banco do parque onde a encontrara há séculos, chorando por causa de uma briga que tivera com o filho e a nora... e da perda dos brincos. No pé do morro, as duas portas de banheiro reflectiam a luz poente.

Ralph fechou os olhos. Estou a caminho da loucura, pensou, e estou viajando de trem expresso e não de trem parador. Qual é que vai ser? A dama... ou o tigre?

[-Ralph, temos que fazer alguma coisa. Aquelas vidas... aqueles milhar es de vidas...]

Na escuridão por trás de suas pálpebras fechadas, Ralph viu alguém saindo do mercadinho.

Uma figura usando calças de cotelê escuro e um boné do Red Sox. Logo a coisa terrível recomeçaria a acontecer e porque não queria vê-la, abriu os olhos e fixou-os na mulher ao lado dele.

[- Toda vida é importante, Lois, concorda? Cada vida]

Não sabia o que ela via em sua aura, mas obviamente estava apavorada.

[- Que aconteceu lá embaixo depois que saí? Que foi que ele fez com você ou lhe disse?

Me conte, Ralph! Me conte logo!]

Então qual ia ser? Uma ou muitas? A dama ou o tigre? Se ele não escolhesse rápido, a escolha lhe seria arrebatada pela simples passagem do tempo. Então qual era? Qual?

- Nenhuma... ou ambas - disse roucamente, inconsciente, em sua terrível inquietação, de que falava alto, e em muitos níveis diferentes ao mesmo tempo. - Não vou escolher nem uma nem outra. Não vou. Está me ouvindo?

E levantou-se do banco de um salto, olhando para os lados desvairado.

- Esfa' me ouvindo? - gritou. - Me recuso a fazer uma escolha dessas! Ou serão AS DUAS ou não será NENHUMA!

Em uma das alamedas para o norte, um bêbado que andava catando os latões de lixo, à procura de latas e garrafas retornáveis, deu uma espiada em Ralph, virou as costas e correu.

Vira um homem que parecia em chamas.

Lois levantou e segurou seu rosto entre as mãos.

[- Ralph, o que foi? Quem é? Eu? Você? Porque se sou eu, se você está fazendo segredo por minha causa, não quero...]

Ele inspirou profundamente e encostou a testa na dela, fitando-a dentro dos olhos.

[- Não é você, Lois, nem eu. Se fosse um de nós, talvez pudesse escolher. Mas não é, e nem por um cacete vou continuar a bancar o peão.]

Soltou as mãos dela e recuou. Sua aura faiscava com tanto brilho que ela teve de levar a mão aos olhos para

protegê-los; era como se de alguma maneira ele estivesse explodindo.

Quando ele falou, sua voz ecoou na cabeça de Lois como um trovão.

[- CLOTO! LÁQUESIS! VENHAM AQUI, POMBAS! E VENHAM JÁ!]

ELE deu mais dois ou três passos e parou olhando mais abaixo no morro. Os dois meninos de escola secundária sentados nos balanços observaram-no com idênticas expressões de susto e medo. Levantaram-se e sumiram no momento em que os olhos de Ralph se voltaram para eles, correndo desabalados em direcção ao sinal de tráfego da rua Witcham como dois antílopes, largando os cigarros acesos na vala cavada pelos pés sob os balanços.

[- CLOTO! LÁQUESIS!]

Ralph incandescia como um arco voltaico, e repentinamente toda a força se esvaiu das pernas de Lois como água. Ela deu um passo para trás e desmontou no banco do parque.

Sua cabeça rodava, seu coração se enchia de terror - permeando tudo, havia aquela imensa exaustão. A Ralph, ela parecia um navio naufragado; Lois sentia como se houvesse um poço que era forçada a rodear em espirais sempre mais fechadas, um poço no qual finalmente cairia.

[- CLOTO! LÁQUESIS! ÚLTIMA CHANCE! E FALO SÉRIO!]

Por um momento, nada aconteceu, até que as portas dos banheiros ao pé do morro se abriram absolutamente ao mesmo tempo. Cloto saiu da que estava marcada HOMENS, Láquesis da que estava marcada MULHERES. Suas auras, o auriverde brilhante das libélulas, refulgiram à luz acinzentada do fim do dia. Eles se moveram juntos até suas auras se sobreporem, então caminharam, assim, lentamente até o topo do morro, com os ombros vestidos de branco quase se tocando. Pareciam duas crianças assustadas.

Ralph voltou-se para Lois. A aura dele continuava a queimar em labaredas.

[- Fique aqui.]

[-Está bem, Ralph]

Lois deixou-o descer até a metade do morro, então reuniu coragem e gritou para ele.

[- Mas vou tentar deter Ed, se você não for. Falo sério.] Claro que falava, e o coração de

Ralph comoveu-se com aquela coragem... mas ela não sabia o que ele sabia. Não vira o que ele vira.

Ralph contemplou-a por um momento, depois desceu até onde os dois doutorezinhos carecas o aguardavam com olhares luminosos e assustados.

LÁQUESIS, nervoso: [Nós não mentimos para você - não mentimos.]

Cloto, ainda mais nervoso (se é que era possível): [Deepneau está a caminho. Você precisa detê-lo, Ralph, pelo menos precisa tentar.]

O fato é que não preciso fazer nada, está escrito em suas caras, pensou. Virou-se para Láquesis, e ficou satisfeito de ver o carequinha se constranger com seu olhar e baixar os olhos escuros, sem pupilas.

[- É mesmo? Quando estávamos no telhado do hospital, o senhor nos disse para ficarmos longe de Ed, Sr. L. e foi bastante enfático.]

Láquesis trocava de pés pouco à vontade e brincava com as mãos.

[Eu... ou melhor... nós... podemos cometer erros. Foi o que aconteceu desta vez.]

Só que Ralph sabia que erro não era a melhor palavra para descrever o que tinham feito; engano seria melhor. Queria censurá-los por isso - ah, sejamos francos, queria censurá-los para começar por metê-lo nessa merda de confusão - e descobriu que não conseguia.

Porque, segundo o velho Dor, até o seu engano servira ao Desígnio; o passeio a High Ridge de alguma forma não fora bem um passeio. Ele não compreendia o porquê ou o como, mas pretendia descobrir, se fosse possível.

[- Vamos esquecer essa parte por ora, cavalheiros, e discutir as razões por que tudo isto está acontecendo. Se querem ajudar a mim e a Lois, acho melhor me contarem.]

Eles se entreolharam, com aqueles olhos enormes e assustados que em seguida voltaram para Ralph.

Láquesis: [Ralph, você duvida que todas aquelas pessoas vão realmente morrer? Porque se for esse o caso...]

[- Não, mas estou cansado de me atirarem essas mortes na cara. Se tivessem programado para esta área um terremoto que servisse ao Desígnio e a factura do carrasco chegasse a dez mil, ao invés de apenas dois mil e poucos, vocês nem piscariam um olho, não é mesmo? Então o que é que esta situação tem de especial? Me digam!]

Cloto: [Ralph, somos tão responsáveis pelas regras quanto você. Pensamos que tinha compreendido isso.]

Ralph suspirou.

[- Vocês estão se esquivando de novo, e só quem está perdendo tempo com isso são vocês.]

Cloto, sem graça: [Muito bem, talvez o quadro que pintamos para vocês não fosse totalmente claro, mas o tempo era curto e estávamos assustados. E você não pode deixar de entender, apesar de tudo, que aquelas pessoas vão morrer se você não detiver Ed Deepneau!]

[-Não vamos falar delas agora; só estou interessado em uma pessoa neste momento: a que pertence ao Desígnio e não pode ser passada adiante só porque um fulano indeterminado aparece com a cabeça cheia de parafusos frouxos e um avião carregado de explosivos. Quem é que vocês acham que não podem entregar ao Acaso? Quem? E a Day, não é? Susan Day.]

Láquesis: [Não. Susan Day faz parte do Acaso. Ela não nos interessa, não nos preocupa.]

[- Quem, então?]

Cloto e Láquesis trocaram mais um olhar. Cloto acenou ligeiramente com a cabeça, e os dois voltaram a atenção para Ralph. Mais uma vez Láquesis abriu os dois dedos da mão direita para o alto, criando um leque luminoso como uma cauda de pavão. Não foi

McGovern que Ralph viu desta vez, mas um menininho de cabelos louros, franja e uma cicatriz em forma de anzol na ponta do nariz. Ralph localizou-o imediatamente - o garoto do porão de High Ridge, o que tinha a mãe machucada. O que chamara ele e Lois de anjos.

E uma criancinha os conduzirá, ele pensou assombrado. Ah meu Deus. E olhou incrédulo para Cloto e Láquesis.

[- Será que estou entendendo direito? Tudo isso foi por causa do menininho?]

Ele esperou mais evasivas, porém a resposta de Cloto foi simples e directa: [Foi, Ralph.]

Láquesis: [Ele está no centro cívico agora. A mãe, cuja vida você e Lois também salvaram hoje de manhã, recebeu um telefonema da babá há menos de uma hora, dizendo que se cortou num pedaço de vidro e afinal não vai poder tomar conta do menino à noite. Por essa altura, é tarde demais para arranjar outra babá, claro, e a mãe já resolveu há semanas ir ver Susan Day... apertar sua mão, lhe dar um abraço, se possível. Ela idolatra a Day.]

Ralph, que se lembrava dos hematomas descoloridos no rosto da moça, achou que era capaz de compreender aquela idolatria. E compreendia outra coisa ainda melhor: o corte na mão da babá não fora acidental. Alguma coisa estava decidida a colocar o menininho de cachos louros, e olhos avermelhados pela fumaça, no centro cívico, e se dispunha a mover céus e terra para tanto. A mãe o levara, não por ser descuidada, mas por estar sujeita a uma natureza humana como todo o mundo. E por não querer perder sua única oportunidade de ver Susan Day, só isso.

Não, não e'só isso, pensou Ralph. Ela também o levou porque calculou que estaria seguro, com Pickering e os malucos do Pão-de-Cada-Dia mortos. Deve ter-lhe parecido que, na pior das hipóteses, hoje à noite só precisaria proteger o filho de um bando de manifestantes pró-vida agitando cartazes, e que não era possível que o raio fosse cair em cima deles duas vezes no mesmo dia.

O olhar de Ralph estivera longe, na direcção da rua Witcham. Agora voltou-se para Cloto e Láquesis.

[- Vocês têm certeza de que ele está lá? Absoluta?]

Cloto: [Temos. Sentado no balcão superior, do lado norte,ao lado da mãe, com um cartaz do McDonald's para colorir e alguns livros de historinhas. Você se surpreenderia se eu lhe dissesse que uma das historinhas éOs quinhentos chapéus de Bartholomeu Cubbins?]

Ralph sacudiu a cabeça. A essa altura, nada o surpreenderia.

Láquesis: [É no lado norte do centro cívico que o avião de Ed Deepneau vai bater. O menininho será morto instantaneamente caso não se tomem providências para impedir... e não se pode deixar isso acontecer. O menino não pode morrer antes da hora designada.]

LÁQUESIS fitava Ralph com uma expressão intensa. O leque de luz verde-azulada entre seus dedos desaparecera.

[Não podemos continuar conversando assim, Ralph: ele já está no ar, a menos de cento e sessenta quilómetros daqui. Logo será tarde demais para impedi-lo.]

Isto fez Ralph se sentir muito nervoso, mas nem assim ele arredou pé. Nervoso, afinal, era como queriam que ele se sentisse. Como queriam que os dois se sentissem.

[- Estou-lhe dizendo que nada disso terá importância até compreender o que está em jogo. Não vou permitir que tenha importância.]

Cloto: [Escute, então. De tempos em tempos, surge uma pessoa cuja vida vai afectar não apenas aqueles que a cercam, ou mesmo todos aqueles que vivem no mundo dos VidasCurtas, mas também todos os que vivem nos muitos níveis acima e abaixo do mundo dos Vidas-Curtas. Elas são as Grandes, e suas vidas sempre servem ao Desígnio. Se são levados prematuramente, tudo se altera. Os pratos da balança se desequilibram. Você pode imaginar, por exemplo, como o mundo seria diferente hoje, se Hitler tivesse se afogado na banheira quando criança? Você talvez creia que o mundo estaria mais bem servido, mas posso lhe afirmar que o mundo sequer existiria se isso tivesse acontecido. Suponha que Winston Churchill tivesse morrido de envenenamento alimentar antes de chegar a primeiro-ministro? Suponha que César Augusto tivesse nascido morto, estrangulado pelo cordão umbilical? Contudo a pessoa que queremos que vocês salvem é muito mais importante do que qualquer uma dessas.]

[- Pombas, Lois e eu já salvamos esse garoto uma vez! Será que isso não encerrou a conta e o devolveu ao Desígnio?]

Láquesis, pacientemente: [Devolveu, mas ele não está livre de Ed Deepneau, porque Deepneau não é determinado nem pelo Acaso nem pelo Desígnio. De todas as pessoas no mundo, somente Deepneau pode fazer-lhe mal antes da hora designada. Se Deepneau falhar, o menino estará novamente seguro - cumprirá seu tempo tranquilamente até a hora de subir ao palco e desempenhar o seu papel pequeno, mas crucial.]

[- Então uma vida significa tanto assim?]

Láquesis: [Significa. Se a criança morre, a Torre da existência desaba, e as consequências desse desabamento ultrapassam a sua compreensão. E a nossa, também.]

Ralph examinou os sapatos por um momento. Sentia a cabeça pesar uma tonelada. Havia uma ironia nisso tudo, que ele pôde perceber facilmente apesar do cansaço. Átropos aparentemente pusera Ed em movimento, incensando algum complexo messiânico que talvez já existisse... uma decorrência de sua condição indeterminada, talvez. O que Ed não percebeu - e jamais acreditaria se lhe dissessem - era que Átropos e seus chefes nos níveis superiores pretendiam usá-lo não para salvar o Messias, mas para matá-lo.

Ele tornou a encarar os rostos ansiosos dos dois doutorezinhos carecas.

[-Tudo bem, não sei como devo deter Ed, mas vou tentar.]

Cloto e Láquesis se entreolharam, abrindo-se em sorrisos largos e idênticos (e muito humanos) de alívio. Ralph ergueu um dedo sinalizando comedimento.

[- Esperem. Vocês ainda não ouviram tudo.]

Os sorrisos desbotaram.

[- Em troca, quero uma coisa de vocês. Uma vida. Troco a vida do seu menino de quatro anos pela de...]

LOIS não ouviu o fim da frase; a voz de Ralph caiu abaixo do seu nível de audição por um instante, mas, quando ela viu, primeiro Cloto, e depois Láquesis começarem a sacudir a cabeça, seu coração parou.

Láquesis: [Entendo a sua aflição, e claro, Átropos sem dúvida pode cumprir a ameaça que fez. Mas você naturalmente compreende que essa vida não tem a mesma importância que...]

Ralph: [-Mas eu acho que tem, vocês não percebem? Acho que tem. O que vocês dois precisam meter na cabeça é que para mim, as duas vidas são igualmente...]

Ela perdeu a conclusão da frase de novo, mas não teve problema em escutar Cloto; no fundo de sua angústia, ele quase chorava.

[Mas é diferente! A vida desse menino é diferente!]

Agora ela ouviu claramente Ralph falar (se é que aquilo era falar) com uma lógica corajosa e insistente que lembrou a Lois seu pai.

[- Todas as vidas são diferentes. Ou todas têm importância ou nenhuma tem importância.

Claro que é apenas a minha opinião míope de Vida-Curta, mas acho que vocês vão ter que engoli-la, porque eu é que estou segurando o porrete. Sintetizando: faço uma troca pau a pau. A vida que interessa a vocês pela que me interessa. Basta vocês aceitarem e fechamos negócio.]

Láquesis: [Ralph, por favor! Por favor, compreenda que realmente não devemos!]

Houve um longo momento de silêncio. Quando Ralph voltou a falar, sua voz estava baixa mas audível. Foi, porém, a última coisa inteiramente audível que Lois ouviu da conversa.

[- Há um mundo de diferença entre não podemos e não devemos, vocês não concordam?]

Cloto disse alguma coisa, mas Lois só apanhou uma frase isolada [troca teria possibilidade de ser]

Láquesis sacudiu a cabeça violentamente. Ralph respondeu e Láquesis replicou fazendo um gesto de tesoura com os dedos.

Surpreendentemente, Ralph treplicou com uma gargalhada e um aceno de cabeça.

Cloto descansou a mão no braço do colega e conversou seriamente com ele antes de voltar a Ralph.

Lois apertava as mãos no colo, torcendo para que eles chegassem a algum acordo. Qualquer acordo que impedisse Ed Deepneau de matar toda aquela gente enquanto eles ficavam ali tagarelando.

Subitamente a encosta do morro inundou-se de uma radiosa luz branca. A princípio, Lois pensou que a luz viesse do céu, mas apenas porque a religião lhe ensinara a acreditar que o céu era a fonte de todas as emanações sobrenaturais. Na realidade, a luz parecia vir de todos os lados - das árvores, do céu, do chão, e até dela mesma, desprendendo-se de sua aura como fitas de névoa.

Ouviram uma voz, então... ou melhor a Voz. Disse apenas três palavras, mas elas ecoaram na cabeça de Lois como sinos de ferro.

[PODE SER ASSIM.]

Ela viu Cloto, seu rosto pequeno uma máscara de assombro e terror, meter a mão no bolso traseiro e puxar a tesoura. Atrapalhou-se e quase a deixou cair, uma bobagem debitada ao nervosismo que fez Lois sentir uma real afinidade por ele. Em seguida, Cloto a empunhou com as lâminas abertas.

Ouviram-se as três palavras novamente:

[PODE SER ASSIM.]

Desta fez foram acompanhadas de um clarão tão forte, que por um instante Lois acreditou que ficara cega. Levou as mãos aos olhos mas viu-no último instante em que pôde ver alguma coisa - que a luz focalizara a tesoura que Cloto empunhava como um pára-raios bifurcado.

Não havia refúgio contra aquela luz; ela transformava suas pálpebras, e as mãos que erguera para protegê-las, em vidro. O clarão traçava os contornos dos seus dedos como lápis de raios-x ao atravessar sua carne. Vinda de muito longe, ela ouviu uma voz suspeitamente igual a de Lois Chasse, berrar em sua cabeça a plenos pulmões:

[-Apague a luz! Deus, por favor, apague a luz antes que ela me mate!]

Finalmente, quando lhe pareceu que não conseguia mais suportar, a luz começou a enfraquecer. Quando desapareceu - excepto por uma forte pós-imagem azul que flutuava na nova escuridão como uma tesoura fantasma - ela reabriu devagarinho os olhos. Por alguns instantes, continuou a não ver nada, excepto aquela cruz azul brilhante e pensou que, de fato, ficara cega. Então, a princípio indistinto como uma fotografia que vai se revelando, o mundo começou a ressurgir. Ela viu Ralph, Cloto e Láquesis baixando as mãos e espiando para os lados com o assombro cego de uma ninhada de toupeiras desentocadas, espreitando pela grade de um arado.

Láquesis olhava para a tesoura nas mãos do colega como se nunca a tivesse visto antes, e Lois estava disposta a apostar que ele nunca a vira no estado em que estava agora. As lâminas ainda reluziam, despendendo uma luz encantada em gotículas de névoa.

Láquesis: [Rnlph! Era o...]

Ela perdeu o resto da frase, mas o tom era o de um camponês que atende a porta de seu casebre e descobre que o Papa parou ali para dizer uma oração e ouvir sua confissão.

Cloto continuava a olhar fixamente para as lâminas da tesoura. Ralph também, mas por fim ergueu os olhos para os doutorezinhos carecas.

Ralph: [... a dor?]

Láquesis falando como um homem que saísse de um sono profundo: [É... não vai levar muito tempo... a agonia é intensa... mudou de ideia, Ralph?]

Subitamente Lois sentiu medo da tesoura reluzente. Queria gritar para Ralph, dizer-lhe que esquecesse a vida que queria, que simplesmente desse a ele a deles, o menininho. Queria lhe dizer para fazer o que fosse preciso para eles guardarem aquela tesoura outra vez.

Mas as palavras não saíam de sua boca nem de sua mente.

Ralph: f-... pelo menos... só queria saber o que esperar.]

Cloto:... pronto?... deve estar...

Diga a eles que não, Ralph!-Lois enviou-lhe o pensamento. Diga a eles que NÃO!

Ralph: [... pronto.]

Láquesis: [Compreende... termos que ele... e o preço?]

Ralph, impaciente agora: [Compreendo, compreendo. Podemos esperar somente...]

Cloto, com imensa seriedade: [Muito bem, Ralph. Pode ser assim.]

Láquesis passou um braço pelos ombros de Ralph: ele e Cloto o conduziram mais para baixo do morro, até o local onde as crianças menores iniciavam a descida de trenó durante o inverno. Havia uma pequena área plana ali, de forma circular, mais ou menos do tamanho de um palco de boate. Quando chegaram, Láquesis fez Ralph parar, então virou-o de modo que ele e Cloto ficassem de frente um para o outro.

Lois de repente queria fechar os olhos e descobriu que não podia. Podia apenas olhar e rezar para que Ralph soubesse o que estava fazendo.

Cloto cochichou-lhe algo. Ralph concordou com a cabeça e tirou a suéter de McGovern.

Dobrou-a e depositou-a, sem desarrumá-la, na grama juncada de folhas. Quando se endireitou de novo, Cloto tomou o seu pulso direito e esticou seu braço para a frente. Então fez sinal para Láquesis, que desabotoou o punho da camisa de

Ralph e enrolou sua manga até o cotovelo em três rápidas dobras. Feito isto, Cloto girou o braço de Ralph, virando a parte interna do pulso para cima. O fino rendilhado de veias azuis sob a pele de seu antebraço estava nitidamente visível, iluminado por delicados lampejos de aura. Era tudo horrivelmente familiar a Lois: era como observar um paciente num seriado hospitalar da TV, sendo preparado para uma operação.

Só que aquilo não era televisão.

Láquesis curvou-se para a frente e tornou a falar. Ainda que continuasse a não ouvir as palavras que diziam, Lois sabia que estavam dizendo a Ralph que aquela era sua última chance.

Ralph acenou com a cabeça e, embora sua aura agora denunciasse que ele estava aterrorizado com o que o aguardava, ele conseguiu até sorrir. Quando se dirigiu a Cloto, não parecia buscar apoio mas, ao contrário, oferecia uma palavra de consolo. Cloto tentou retribuir o sorriso de Ralph, mas não conseguiu.

Láquesis segurou o pulso de Ralph com a mão, mais para firmar seu braço (ou assim pareceu a Lois) do que para imobilizá-lo. Lembrava uma enfermeira ajudando um paciente que precisa tomar uma injeção dolorosa. Trocou então um olhar receoso com seu parceiro e deu o sinal com a cabeça. Cloto imitou-o, inspirou e se inclinou sobre o braço exposto de Ralph com a sua árvore fantasmatica de veias azuis refulgindo sob a pele. Parou um instante, até que lentamente abriu as mandíbulas da tesoura com que ele e seu velho amigo trocavam a vida pela morte.

LOIS pôs-se de pé com dificuldade e ficou oscilando com a sensação de que suas pernas pesavam como troncos de madeira. Queria vencer a paralisia que a mergulhara nesse silêncio tão cruel, gritar com Ralph e lhe dizer para parar - dizer que ele não sabia o que pretendiam fazer com ele.

Só que ele sabia. Estava estampado na palidez de seu rosto, nos olhos semicerrados, nos lábios dolorosamente comprimidos. E principalmente nas malhas vermelhas e negras que

Iampejavam por sua aura como meteoros, e na própria aura, que se reduzira a uma dura casca azul.

Ralph acenou para Cloto, que desceu a lâmina inferior da tesoura até encostar em seu antebraço, pouco abaixo da dobra do cotovelo. Por um instante, a pele apenas vincou, depois uma bolha lisa e escura de sangue formou-se no lugar do vinco. A lâmina deslizou pela bolha. Quando Cloto apertou os dedos, fechando as lâminas da tesoura, a pele de cada lado do corte abriu-se para trás com a rapidez de uma cortina de enrolar. A gordura subcutânea brilhou como gelo se derretendo ao forte brilho azul da aura de Ralph. Láquesis firmou melhor o pulso dele, mas, pelo que Lois pôde ver, ele sequer fez um movimento instintivo para puxar o braço, apenas baixou a cabeça e sacudiu no ar o punho esquerdo fechado, como se fizesse uma saudação Black Power. Ela observou os tendões em seu pescoço saltarem grossos como cabos. Ralph não deixou escapar um único som.

Agora que a operação terrível realmente começara, Cloto procedeu com uma velocidade que era ao mesmo tempo brutal e piedosa. Abriu a linha mediana do braço de Ralph até o pulso, usando a tesoura como se abrisse um embrulho fechado com um excesso de fita adesiva, orientando as lâminas com os dedos e pressionando-as com o polegar. No braço de Ralph, os tendões tinham um brilho de filé mignon. O sangue escorria como um riachinho de água doce, e um fino borrifo vermelho espalhava-se no ar cada vez que uma artéria ou veia era seccionada. Leques de respingos não tardaram a enfeitar as túnicas brancas dos dois homenzinhos, fazendo-os parecer mais que nunca dois doutorezinhos.

Quando finalmente as lâminas cortaram os braceletes da fortuna no pulso de Ralph (a "operação" levou menos de três segundos mas para Lois pareceu durar uma eternidade), Cloto retirou a tesoura pingando sangue e entregou-a a Láquesis. O braço de Ralph fora aberto do cotovelo ao pulso num sulco escuro. Cloto pinçou com as mãos o ponto de origem do sulco e Lois pensou: Agora o outro vai apanhar a suéter de Ralph e usá-la como tom iquete. Mas Láquesis não fez nenhum movimento nesse sentido; meramente segurava a tesoura e observava.

Por um momento, o sangue continuou a fluir por entre os dedos de Cloto, mas logo estancou. Lentamente ele correu as mãos pelo braço de Ralph, e a carne que surgiu após esse alisamento estava inteira e firme, embora marcada por um grosso cordão de cicatrização.

[Lois... Lo-isssss...]

A voz não vinha de dentro de sua cabeça, nem da encosta do morro; vinha de suas costas.

Uma voz suave, quase bajuladora. Átropos? Não, de jeito nenhum. Ela olhou para baixo e viu uma luz verde e de certa forma baixa fluindo a sua volta - espalhava-se em raios pelos espaços entre seus braços e seu corpo, entre suas pernas, até entre seus dedos. Fazia ondear sua sombra à frente, ossuda e torta, como a sombra de uma mulher enforcada. Acariciava-a com dedos sem calor da cor de barba de velho.

[Vire-se, Lo-iss..]

Naquele momento, a última coisa na terra que Lois queria fazer era se virar e olhar para a fonte daquela luz verde.

[Vire-se, Lo-isss... me veja, Lo-isss... entre na luz, Lo-isss... entre na luz... me veja e entre na luz...]

Não era uma voz que se pudesse desobedecer. Lois virou-se lentamente como uma bailarina de brinquedo cujo mecanismo enferrujou, e seus olhos pareceram se inundar de fogo-fátuo.

Lois entrou na luz.

 

CLOTO: [Você já tem o seu sinal visível, Ralph: Está satisfeito? Ralph examinou o braço. A agonia que o tragara como a baleia fizera com Jonas agora lhe parecia um sonho ou uma miragem. Supunha que era esse o tipo de distanciamento que permitia às mulheres terem muitos bebés, fazendo-as esquecer a violenta dor física e o esforço do parto a cada vez que davam à luz com sucesso. A cicatriz parecia um pedaço de barbante branco, acompanhando o volume dos seus músculos magros.

[- Estou. Vocês foram corajosos e muito rápidos. Agradeço aos dois.]

Cloto sorriu, mas nada respondeu.

Láquesis: [ Ralph, você está pronto? O tempo agora está muito curto.]

[-Estou...]

[-Ralph! Ralph!]

Era Lois que, parada no alto da encosta, acenava para ele. Por um momento, ele pensou que sua aura tivesse mudado do cinza-claro usual para outra cor mais escura, mas logo esta impressão, sem dúvida causada pelo choque e cansaço, passou. Ele subiu a encosta com esforço, indo ao seu encontro.

Os olhos de Lois estavam distantes e atordoados, como se tivesse acabado de ouvir uma dessas palavras surpreendentes que mudam a vida de uma pessoa.

[- Lois, que foi? Algum problema? Foi o meu braço? Porque se é por causa dele, não se preocupe. Olhe! Está como novo!]

Mostrou-lhe o braço para que ela pudesse ver com os próprios olhos, mas Lois nem olhou.

Ao invés disso, encarou-o, e então Ralph percebeu a profundidade do seu choque.

[- Ralph, um homem verde esteve aqui.]

Um homem verde? Ele segurou suas mãos instantaneamente preocupado.

[- Verde? Tem certeza? Não foi Átropos ou...]

Ele não terminou o pensamento. Não precisou.

Lois sacudiu a cabeça lentamente.

[- Foi um homem verde. Se há lados nessa história, não sei qual era o... dessa pessoa. Ele parecia bom, mas posso ter-me enganado. Não pude vê-lo. A aura dele era demasiado brilhante. Ele me disse para lhe devolver isso.]

Ela estendeu a mão para Ralph, deixando cair dois objectos pequenos e brilhantes na palma da mão dele: seus brincos. Ele notou um pontinho vermelho escuro em um deles e supôs que fosse o sangue de Átropos. Começou a fechar a mão e fez uma careta ao sentir uma alfinetadinha de dor.

[- Você esqueceu as tarraxas, Lois.]

Ela respondeu no tom lento e irrefletido de uma mulher que sonha.

[- Não, não esqueci: joguei-as fora. O homem verde me ordenou. Cuidado. Ele parecia...

caloroso... mas realmente não sei, não é? O Sr. Chasse sempre me dizia que eu era a mulher mais crédula do mundo, sempre pronta a acreditar no que alguém tem de melhor.

Isso com qualquer um.]

Ela estendeu as mãos vagarosamente e segurou os pulsos de Ralph, fitando-o ansiosa todo o tempo.

- Não sei.

O ato de verbalizar um pensamento pareceu despertá-la, e Lois ficou piscando para ele.

Ralph supôs que era possível - mas muito difícil - que ela tivesse dormido e sonhado com o tal homem verde. Mas talvez fosse mais sensato simplesmente aceitar os brincos. Talvez não significassem nada, mas, por outro lado, levar os brincos de Lois no bolso não poderia fazer mal...isto é, a não ser que ele se espetasse.

Láquesis: [Ralph, que foi? Algum problema?]

Ele e Cloto tinham ficado para trás e perdido a conversa de Ralph com Lois. Ralph sacudiu a cabeça, virando a mão para esconder os brincos dos dois. Cloto apanhara a suéter de McGovern e limpara as poucas folhas coloridas que tinham agarrado na lã. Entregou-a a Ralph, que discretamente meteu os brincos sem as tarraxas em um bolso antes de tornar a vesti-la.

Era hora de ir andando, e a linha de calor que subia pelo seu braço direito - ao longo da cicatriz - lhe disse por onde começar.

[-Lois?]

[- Que foi, querido?]

[- Preciso pedir um empréstimo de sua aura, e vai ser grande. Compreende?]

[- Compreendo.]

[- Você não se importa?]

[- Claro que não]

[- Não tenha medo: não vai demorar nada.]

Ele passou os braços pelos seus ombros e cruzou as mãos em sua nuca. Ela copiou o gesto, e se inclinaram lentamente até suas testas se tocarem e seus lábios chegarem a menos de três dedos. Ele sentiu o perfume que ainda restara - exalando talvez da pequena e doce depressão atrás de suas orelhas.

[- Pronta, querida?]

Ele achou o que recebeu em troca ao mesmo tempo estranho e reconfortante.

[- Pronta, Ralph. Me veja. Venha para a luz. Venha para a luz e receba a luz.]

Ralph comprimiu os lábios e começou a inalar. Uma faixa de brilho esfumaçado começou a fluir da boca e do nariz de Lois para ele. Sua aura começou a clarear instantaneamente, e não parou até se transformar numa coroa ofuscante ao seu redor. Ainda assim ele continuava a inalar, inspirando de uma forma que transcendia a respiração, sentindo a cicatriz no seu braço esquentar cada vez mais até parecer um filamento eléctrico enterrado em sua carne. Ele não teria conseguido parar nem que quisesse... e não queria.

Lois oscilou. Ele viu seus olhos perderem o foco e sentiu suas mãos afrouxarem por um momento na nuca dele. Então seus olhos, grandes e brilhantes, repletos de confiança, voltaram a fixar os seus, e suas mãos se firmaram novamente. Enfim, quando aquele influxo colossal de ar atingiu o auge, Ralph percebeu que a aura de Lois empalidecera tanto, que mal conseguia discerni-la. Seu rosto estava cor de leite e o cinza voltara a pintar seus cabelos de tal forma, que quase não havia mais fios pretos. Ele tinha que parar, precisava parar, ou ia matá-la.

Ralph conseguiu descruzar as mãos, parecendo interromper algum tipo de circuito; pôde então se afastar dela. Lois cambaleou e teria caído, se Cloto e Láquesis, lembrando um pouco os liliputianos das Viagens de Gulliver, não a tivessem amparado pelos braços e a sentado cuidadosamente no banco.

Ralph ajoelhou-se diante dela. Estava fora de si de medo e culpa e, ao mesmo tempo, sentia-se inundado por uma sensação de força tão grande, que parecia que, se alguém esbarrasse nele, poderia fazê-lo explodir, como uma garrafa cheia de nitroglicerina. Agora sentia-se capaz de derrubar um prédio com aquele golpe de caraté - talvez com uma série de golpes.

Porém, machucara Lois. Talvez seriamente.

[- Lois! Lois, você está me ouvindo? Me desculpei]

Ela ergueu os olhos para Ralph ainda tonta, uma mulher que passara violentamente dos quarenta para os sessenta em questão de segundos... e dali para os setenta, como um foguete ultrapassando o alvo programado. Ela tentou sorrir, mas não teve muito sucesso.

[- Lois, sinto muito. Não sabia, e depois que comecei, não consegui parar.]

Láquesis: [Se você pretende ter ao menos uma chance, Ralph, você precisa ir agora. Ele está quase chegando.]

Lois concordava com a cabeça.

[- Vá, Ralph. Estou apenas fraca, só isso. Não se preocupe. Vou ficar sentada aqui até recobrar minhas forças.]

Seu olhar voltou-se para a esquerda e Ralph acompanhouo. Viu o bêbado que tinha assustado mais cedo. Voltara para inspeccionar os latões de lixo no alto do morro à procura de latas e garrafas retornáveis e, embora sua aura não parecesse tão saudável quanto a do sujeito que tinham encontrado nos pátios da velha ferrovia naquela tarde, Ralph calculou que serviria numa emergência... que, definitivamente, era a condição de Lois.

Cloto: [Vamos fazer ele vir para cá, Ralph. Não temos muito poder sobre os aspectos físicos do mundo dos Vidas-Curtas, mas acho que podemos dar um jeito pelo menos nisso.]

[- Você tem certeza?]

[Tenho.]

[- Então, óptimo.]

Ralph correu os olhos de relance pelos dois homenzinhos, reparou em sua expressão ansiosa e assustada e concordou. Curvou-se e beijou a face fria e enrugada de Lois. Seu sorriso foi o de uma vovó velha e cansada.

Fui eu quem fiz isso com ela, pensou. Eu.

Então é melhor garantir que não tenha feito isso à toa, ouviu a voz de Carolyn responder causticamente.

Ralph deu aos três - Cloto e Láquesis agora flanqueavam Lois protectoramente no banco um olhar final, e recomeçou a descer a encosta.

Quando chegou aos banheiros, parou entre os dois um instante e encostou a cabeça no que estava marcado MULHERES. Não ouviu nada. Quando inclinou a cabeça para a parede de plástico azul dos HOMENS, porém, ouviu uma vozinha monótona, que cantava.

"Who beliei>es that my wildest dreams And my craziest schemes will come true? You, baby, nobody but you."

Puts, ele é completamente pirado.

E isso é novidade, querido?

Ralph supunha que não. Contornou o banheiro até a porta e abriu-a. Agora podia ouvir também o zunido distante de um motor de avião, mas não havia nada à vista em que não tivesse reparado dezenas de vezes antes: a tampa do vaso rachada e posta de viés sobre o assento, um rolo de papel higiénico volumoso, estranho e agourento e, à esquerda, o mictório que parecia uma gota de lágrima plástica. As paredes eram uma floresta de pichações. A maior - e mais exuberante - tinha sido impressa em letras vermelhas de trinta centímetros sobre o mictório: TONY BOYNTON TEM A BUNDINHA MAIS APERTADINHA DE DERRY! Um desodorizante com um aroma pegajoso de pinho sobrepunha-se aos odores de merda, urina e peidos de bêbados, como maquilhagem no rosto de um cadáver. Á voz que ele ouvia parecia vir de um buraco no meio do banco do banheiro, ou talvez se infiltrasse pelas paredes.

 

  1. Trad. Livre: "Quem acredita que meus sonhos mais desvairados/e meus planos mais loucos podem se realizar/Você, boneca, só você e mais ninguém."

 

"From the time I fali asleep

Until the morning comes

I dream about you, baby, nobody but you."

Onde é que ele está! Ralph se perguntou. E, diabos, como é que vou chegar até ele?

Inesperadamente sentiu um calor contra o quadril; era como se alguém tivesse escorregado um carvão quente em seu bolsinho do relógio. Ele começou a franzir a testa e lembrou-se do que havia ali. Enfiou o dedo no bolsinho, apalpou a aliança de ouro e fisgou-a. Depositou-a na palma da mão, no ponto em que a linha do amor e da vida se bifurcavam e tocou-a desajeitado. Esfriara outra vez. Ralph descobriu que isso não o surpreendia.

HD-ED 5.8.87.

- Um Anel para dominá-los. Um Anel para acorrentá-los - Ralph murmurou, enfiando a aliança de casamento de Ed no dedo anular de sua mão esquerda. Coube perfeitamente.

Empurrou-a até tilintar levemente contra a aliança de casamento que Carolyn pusera em seu dedo há quarenta e cinco anos. Então ergueu os olhos e viu que a parede dos fundos do banheiro desaparecera.

O QUE ele viu, emoldurado pelas paredes que sobraram, foi apenas um céu crepuscular e uma faixa campestre do Maine, dissolvendo-se contra um fundo de névoa cinza-azulada.

Calculou que observava de uma altura de uns dez mil pés. Viu os lagos e poços cintilantes e vastas extensões de matas verde-escuras que chegavam até o banco do banheiro e depois desapareciam. Lá longe - na direcção do teto do cubículo - Ralph viu um aglomerado de luzes brilhantes. Provavelmente era Derry, agora a menos de dez minutos de distância. No quadrante inferior esquerdo de seu campo de visão, Ralph identificou parte de um painel de instrumentos. Colado acima do altímetro,

 

  1. Trad. Livre: "Desde a hora em que adormeço até o dia amanhecer sonho com você, boneca, com você mais ninguém."

 

havia uma pequena foto colorida que lhe tirou o fôlego. Era Helen, impossivelmente feliz e impossivelmente bela. Aninhada em seus braços Sua Majestade a Neném, com uns quatro meses de idade, profundamente adormecida.

Ele quer que as duas sejam a última imagem que vai ver deste mundo, pensou Ralph. Ele se transformou num monstro, mas acho que nem os monstros esquecem o que é amar.

Alguma coisa no painel de instrumentos disparou um bip. Surgiu uma mão e ligou um interruptor. Antes de tornar a sumir, Ralph notou uma linha branca no dedo anular daquela mão, pálida mas ainda visível, onde a aliança de casamento estivera no mínimo seis anos.

Notou mais uma coisa: a aura que envolvia a mão era a mesma do bebé fulminado por um raio no elevador do hospital, uma membrana turbulenta que se movia rapidamente e parecia tão alienígena quanto a atmosfera de um gigantesco astro gasoso.

Ralph olhou para trás uma vez mais e ergueu a mão. Cloto e Láquesis retribuíram com acenos. Lois jogou-lhe um beijo. Ralph fez um gesto de aparar, virou-se e entrou no banheiro.

ELE hesitou um instante, pensando o que fazer com o banco, mas logo lembrou-se da maca hospitalar que deveria ter esmagado o crânio deles, mas não o fizera, e se dirigiu para o fundo do cubículo. Cerrou os dentes, preparando-se para bater a canela - o que sabia era uma coisa, o que acreditava após setenta anos de topadas era outra muito diferente - e atravessou o assento do banco como se fosse feito de fumaça... ou talvez Ralph é que fosse.

Teve uma apavorante sensação de imponderabilidade e vertigem e, por um momento, teve a certeza de que ia vomitar. Seguiu-se um esgotamento, como se grande parte da energia que recebera de Lois estivesse agora se esgotando. Supunha que estava. Afinal, experimentava uma forma de teletransporte, fenómeno fabuloso de ficção científica, e uma coisa dessas tinha que consumir muita energia.

A vertigem passou, mas foi substituída por uma percepção ainda pior - a de que, por alguma razão, seu corpo se dividira na altura do pescoço. Percebeu que agora tinha uma vista inteiramente desobstruída de uma vasta seção do mundo.

Minha nossa, que aconteceu comigo? Qual é o problema?

Seus sentidos relutantemente informavam que não havia problema algum, apenas alcançara uma posição que deveria ser impossível. Tinha mais de um metro e oitenta e cinco de altura; e a cabine de pilotagem do avião, um metro e cinqüenta do chão ao teto. Isto significava que pilotos mais altos que Cloto e Láquesis tinham que se curvar para se sentar no posto de pilotagem. Ralph, porém, entrara no avião não somente durante o voo mas em pé, e continuava em pé, ligeiramente atrás e entre, os dois assentos de pilotagem. O motivo por que tinha uma visão desobstruída era ao mesmo tempo simples e terrível: sua cabeça projetava-se para fora do teto do avião.

Ralph teve uma imagem de pesadelo de seu velho cachorro, Rex, que gostava de viajar com a cabeça para fora da janela do carro com o vento soprando para trás os pêlos de suas orelhas. Fechou os olhos.

E se eu cair? Se posso enfiar a cabeça por dentro da merda do teto, o que é que me impede de escorregar pelo piso abaixo-e cair até o solo? Ou quem sabe atravessar o solo, e até mesmo o globo terrestre?

Mas isto não estava acontecendo, nem iria acontecer, não naquele nível - só precisava se lembrar da facilidade com que tinham atravessado os andares do hospital e a tranquilidade com que ficaram parados no telhado. Se mantivesse essas experiências em mente, ficaria bem. Ralph tentou se concentrar nessa ideia; quando sentiu que conseguira se controlar, reabriu os olhos.

Abaixo dele o pára-brisa do avião curvava-se para fora. Mais abaixo, o nariz terminava num borrão de mercúrio produzido pela hélice. O aglomerado de luzes que observara da porta dos banheiros estava mais próximo agora.

Ralph dobrou os joelhos, e sua cabeça atravessou suavemente o teto da cabine. Por um instante, sentiu um gosto de óleo na boca e os pelinhos de seu nariz pareceram se eriçar como que electrificados; em seguida, pôde se ajoelhar entre as poltronas do piloto e do copiloto.

Ele não sabia o que esperava sentir ao rever Ed depois de tanto tempo, e em circunstâncias tão extravagantemente estranhas, mas a pontada de mágoa - não apenas de pena, mas de mágoa - que lhe sobreveio foi uma surpresa. Como naquele dia do verão de 92, quando Ed colidira com a pick-up da firma de jardinagem, ele estava usando uma camiseta velha, ao invés de uma camisa social. Perdera muito peso - Ralph calculava quase uns vinte quilos - o que produzira um efeito extraordinário, pois não o deixara abatido, mas quase heróico, à maneira gótico-romântica. Ralph não pôde deixar de se lembrar do poema que Carolyn mais gostava: O salteador de estradas de Alfred Noyes. A pele de Ed estava cor de papel, seus olhos verdes, ao mesmo tempo escuros e claros (como esmeraldas ao luar, pensou Ralph) por trás dos pequenos óculos redondos à John Lennon, os lábios tão vermelhos que pareciam ter batom. Amarrara o cachecol branco de seda com caracteres japoneses em torno da testa, de modo que a franja nas pontas caía pelas suas costas. Em meio às espirais relampejantes da aura, o rosto inteligente e expressivo de Ed estampava um terrível arrependimento e uma determinação inabalável. Estava belo - belo - e Ralph foi tomado por uma sensação de déjà vu. Agora ele sabia o que vislumbrara no dia em que procurara apartar Ed e o homem da firma de jardinagem; via o mesmo agora. Contemplar Ed dentro de uma aura turbulenta sem fio de balão, era como contemplar um valioso vaso Ming que alguém atirara contra a parede e se estilhaçara.

Pelo menos, ele não pode me ver neste nível. Pelo menos, acho que não pode.

Como se respondesse a tal pensamento, Ed virou-se e encarou Ralph. Seus olhos estavam arregalados e expressavam uma cautela demente; os cantos de sua boca bem moldada tremiam e reluziam com bolhinhas de saliva. Ralph encolheuse, momentaneamente certo de estar visível, mas Ed não reagiu ao seu gesto brusco de recuo. Ao contrário, lançou um olhar desconfiado à cabine de quatro lugares, como se tivesse ouvido os movimentos furtivos de um passageiro clandestino. Ao mesmo tempo, estendeu o braço para além de Ralph e pousou a mão direita numa caixa de papelão presa com o cinto na poltrona do copiloto. Sua mão acariciou a caixa brevemente, depois subiu até sua testa e deu uma ajeitada no cachecol que lhe servia de testeira. Feito isso, retomou sua cantoria... só que desta vez a música era diferente, e fez um tremor ziguezaguear pelas costas de Ralph: "One pill makes you bigger, One pill makes you small, And the ones Mother gives you Don't do anything at ali...

Certo, pensou Ralph. Pergunte só a Alice quando ela atingir três metros de altura.

O coração disparara em seu peito. O fato de Ed ter-se virado assim inesperadamente o apavorara de um modo, que se ver voando a dez mil pés de altitude com a cabeça para fora do avião não conseguira. Ed não o vira, Ralph tinha quase certeza disto, mas quem dissera que os sentidos dos doidos eram mais aguçados do que os dos sãos devia saber o que dizia, porque Ed certamente sentira que havia alguma coisa diferente. O rádio deu sinal de vida, fazendo os dois homens pularem.

- Mensagem para o Cherokee sobrevoando South Haven. Você está se aproximando do espaço aéreo de Derry numa altitude que exige um plano de vôo aprovado. Repetimos, você vai entrar em espaço aéreo controlado sobre uma área municipal. Suba imediatamente para dezesseis mil pés, Cherokee, aproe para 170, uno, sete, zero. Nesse meio tempo, por favor, se identifique e declare...

Ed fechou o punho e começou a socar o rádio. Voaram cacos de vidro; logo começou a voar sangue também. Respingou no painel de instrumentos, na foto de Helen e Natalie e na camiseta cinzenta e limpa de Ed. Ele não parou de socar até que a voz no rádio começou a sumir em meio a um ruído crescente de estática e em seguida emudeceu de vez.

- Muito bem - exclamou Ed no tom baixo e suspirante de um homem que fala muito sozinho. - Agora está muito melhor. Detesto todas essas perguntas. Só ser...

Reparou na mão que sangrava e parou. Ergueu-a no alto, examinou-a mais atentamente, e tornou a fechá-la. Havia um estilhaço de vidro espetado no dedo mindinho, pouco abaixo da terceira junta. Ed arrancou-o com os dentes, cuspiu displicentemente para um lado, e fez algo que gelou o coração de Ralph: passou o lado sangrento do punho primeiro na bochecha ll.Trad. Livre: "Uma pílula faz você crescer,/Outra faz você encolher,JE as que mamãe lhe dáJNão fazem efeito nenhum..." esquerda, depois na direita, deixando duas marcas vermelhas. Levou a mão a uma bolsa plástica na parede da esquerda, tirou um pequeno espelho, usando-o para apreciar a pintura de guerra que improvisara. O efeito pareceu tê-lo agradado, porque sorriu e balançou a cabeça antes de devolver o espelho à bolsa.

- Não se esqueça do que disse o rato - Ed aconselhou a si mesmo naquele tom baixo e suspirante, e então empurrou o manche. O nariz do Cherokee baixou e o altímetro começou lentamente a girar ao contrário. Ralph viu Derry bem à sua frente agora. A cidade parecia um punhado de opalas espalhadas sobre veludo azul-escuro.

Havia um furo no lado da caixa presa à poltrona do co-piloto. Dele saíam dois fios.

Levavam a uma campainha doméstica presa ao braço da poltrona de Ed. Ralph calculou que assim que ele visse o centro cívico e iniciasse realmente sua arrancada suicida, Ed poria o dedo no botão branco no centro do rectângulo de plástico marrom. Pouco antes do avião bater, ele o apertaria. Blim-blom. Avon chama!

Corte esses fios, Ralph! Corte-os!

Uma excelente ideia, mas havia um pequeno obstáculo: não seria capaz de cortar um fio de teia de aranha enquanto estivesse naquele nível. Isto significava voltar ao país dos Vidas-Curtas, e preparava-se para fazer exatamente isso quando uma voz suave e familiar à sua direita chamou-o pelo nome.

(Ralph.]

A sua direita? Impossível. Não havia nada à direita excepto a poltrona do co-piloto, a lateral do avião e quilómetros de crepúsculo nos céus da Nova Inglaterra.

A cicatriz ao longo de seu braço começou a vibrar como um filamento num aquecedor eléctrico.

Ralph!

Não olhe. Não preste atenção. Não ligue.

Mas ele não conseguiu. Uma força enorme com a solidez de um tijolo pressionou-o, e sua cabeça começou a virar. Ele resistiu, consciente de que o ângulo de descida do avião aumentava o tempo todo, mas não adiantou.

[Ralph, olhe para mim - não tenha medo.]

Ele fez um último esforço para desobedecer à voz, mas sucumbiu. Sua cabeça continuou a girar, e Ralph subitamente se viu diante de sua mãe, que morrera de câncer no pulmão há vinte e cinco anos.

BERTHA Roberts encontrava-se sentada em sua cadeira de balanço, a aproximadamente um metro e meio de onde estivera a parede lateral da cabine do Cherokee, tricotando e se balançando para lá e para cá em pleno ar, a uns dois quilómetros do solo. As chinelas que

Ralph lhe dera de presente em seu qüinquagésimo aniversário-forradas de pele de marta verdadeira, imagine - estavam em seus pés. Trazia um xale rosa jogado sobre os ombros.

Um velho botom político - VENÇA COM WILLKIE! - prendia as pontas do xale.

Isso mesmo, pensou Ralph. Ela o usava como bijuteria - era sua afectaçãozinha. Já tinha me esquecido.

A única nota discordante (além de que ela estava morta e aparecera se balançando a seis mil pés de altitude) era a manta vermelho-viva em seu colo. Ralph nunca vira a mãe tricotar, nem mesmo tinha certeza de que soubesse fazê-lo, mas, mesmo assim, ela estava tricotando sem parar. As agulhas reluziam e cucavam ao tecerem as malhas.

[-Mãe? Mamãe? É você mesma?]

As agulhas pararam quando ela ergueu os olhos da manta vermelha em seu colo. É, era sua mãe - pelo menos a versão que Ralph se lembrava da adolescência. O rosto magro, a testa alta, os olhos castanhos, e um coque de cabelos grisalhos preso na nuca. Era sua boca pequena, que parecia mesquinha e pouco generosa... isto é, até ela sorrir.

[Ora, Ralph Roberts! Fico surpresa que precise fazer uma pergunta dessas!]

Mas isso não é realmente uma resposta, e - pensou Ralph. Ia abrindo a boca para comentar, mas decidiu que seria mais sensato - pelo menos por ora - se calar. Uma forma leitosa flutuava agora no ar à direita dela. Quando Ralph olhou, ela escureceu e se solidificou num porta-revistas cor de cerejeira que fizera para a mãe, no primeiro ano da escola secundária de Derry. Estava cheia de exemplares das revistas Reader's Digest e Life.

E agora o solo lá embaixo começou a se transformar num quadriculado de marrons e vermelho-escuros que se espalhavam desde a cadeira de balanço num círculo que se ampliava, como ondas em um laguinho. Ralph reconheceu-o imediatamente: o linóleo da cozinha de sua casa na rua

Richmond, em Mary Mead, onde crescera. A princípio, via o solo através do linóleo, a geometria das fazendas e, não muito longe, o rio Kenduskeag correndo por dentro de Derry, mas logo a imagem se solidificou. Uma forma fantasmagórica como uma grande moita de paina-de-sapo virou o velho gato angora de sua mãe, Futzy, enroscado no peitoril da janela, espiando as gaivotas que voavam em círculos sobre o antigo vazadouro na tundra. Futzy morrera na época em que Dean Martin e Jerry Lewis tinham parado de fazer filmes juntos.

[Aquele velho tinha razão, moleque. Você não tinha que se meter em assuntos dos Longas-Vidas. Preste atenção à sua mãe e fique fora do que não é de sua conta. Escute bem o que digo.]

Preste atenção à sua mãe... escute bem o que digo. Aquelas palavras praticamente resumiam a opinião de Bertha Roberts sobre a arte e ciência de criar filhos, não era? Fosse uma ordem para esperar uma hora depois de comer para ir nadar ou ficar de olho no velho ladrão do Butch Bowers para ele não colocar um monte de batatas podres no fundo da cesta que ela mandara Ralph buscar, o prólogo (Preste atenção à sua mãe) e o epílogo (Escute bem o que digo), eram sempre os mesmos. E se você não prestasse atenção, se você não a escutasse, teria que enfrentar a Ira da Mãe, e que Deus o ajudasse.

Ela retomou as agulhas e continuou a tricotar, passando as malhas vermelhas com os dedos que pareciam levemente avermelhados também. Ralph supunha que isso fosse apenas uma ilusão. Ou talvez a cor não fosse firme, e estivesse manchando os dedos dele.

Dedos dele? Que engano mais bobo. Os dedos dela.

Só que...

Bem, havia uns fios de bigode nos cantos da boca de sua mãe. E longos. Que coisa feia. E estranha. Ralph lembrava-se de um buço fino que sombreava seu lábio superior, mas bigodes? De jeito nenhum. Isso era coisa nova.

Nova? Nova? Que é que você está pensando? Ela morreu dois dias depois do assassinato de Robert Kennedy em Los Angeles, como é que pode haver alguma coisa nova nela?

Duas paredes convergentes tinham desabrochado de cada lado de Bertha Roberts, criando o canto da cozinha onde passava tanto tempo. Numa delas havia um quadro que Ralph lembrava muito bem. Mostrava uma família à mesa - Papai, Mamãe, dois filhos. Passavam a batata e o milho e pareciam estar falando sobre o dia que tiveram. Nenhum reparava que havia uma quinta pessoa na cozinha - um homem de vestes brancas, barba loura e cabelos longos. Achava-se parado no canto observando-os. CRISTO O VISITANTE INVISÍVEL, dizia a plaquinha sob o quadro. Só que o Cristo que Ralph lembrava parecia, ao mesmo tempo, bondoso e um tanto constrangido de estar espreitando. Nesta versão, porém, ele parecia friamente pensativo... avaliativo... julgador, talvez. E muito corado, quase colérico, como se tivesse ouvido algo que o deixara furioso.

[-Mamãe? Você está...]

Ela descansou novamente as agulhas na manta vermelha - aquela manta vermelha estranhamente brilhante - e ergueu a mão para interrompê-lo.

[Chega de Mamãe isso, Mamãe aquilo, Ralph: preste atenção e me escute, fique fora disto. É tarde demais para suas confusões e intromissões. Você só pode piorar as coisas.]

A voz estava correcta, mas a cara, errada, e a cada instante ficava mais errada. Principalmente a pele. Lisa e sem rugas, a pele fora a única vaidade de Bertha Roberts. A pele da criatura na cadeira de balanço era áspera... mais do que áspera, na verdade. Era escamosa. E havia dois calombos (ou seriam feridas?) dos lados do pescoço. Ao vê-los, uma lembrança horrível (tira isso daqui Johnny ah por favor TIRA ISSO DAQUI)

começou a acordar bem no fundo de sua mente. E...

Bem, a aura. Onde estava a aura de sua mãe?

[Esqueça a minha aura e esqueça aquela vaca gorda com quem você tem andado... embora eu seja capaz de apostar que Carolyn deve estar se revirando na cova}

A boca da mulher (mulher? aquela coisa não é uma mulher)

na cadeira deixara de ser pequena. O lábio inferior se alargara e estufara para fora e para baixo. A boca em si adquirira um esgar com os cantos caídos. Um esgar negativo estranhamente familiar.

(Johnny ele está me mordendo ele está ME MORDENDO!)

Algo medonhamente familiar nos bigodes nos cantos da boca também.

(Johnny por favor os olhos pretos dele)

[Johnny não pode ajudá-lo, moleque. Não o ajudou naquele dia e não pode ajudá-lo agora.]

Claro que não podia. Seu irmão mais velho, Johnny, morrera há seis anos. Ralph carregara o seu caixão no enterro. Johnny morrera de ataque cardíaco, possivelmente obra do Acaso como o que fulminara Bill McGovern, e...

Ralph olhou para a esquerda, mas o lado do piloto na cabine também desaparecera e, com ele, Ed Deepneau. Ralph viu o velho fogão de gás e lenha em que sua mãe cozinhara na casa da rua Richmond (uma tarefa que a desgostava e que toda a vida executara mal) e o arco que levava à sala de jantar. Viu a mesa de jantar em madeira de bordo. Havia uma jarra de vidro no centro. Dentro da jarra, um molho de sinistras rosas vermelhas. Cada flor parecia ter rosto... um rosto ofegante vermelho sangue...

Mas isto está errado, pensou. Tudo errado. Ela jamais trazia rosas para casa-era alérgica à maioria das flores, e a rosas mais ainda. Costumava espirrar como louca quando chegava perto de flores. A única coisa que a vi colocar na mesa de jantar em toda a minha vida foi o que chamava de buquê indiano, e que era simplesmente um molho de capins de Outono. Vejo rosas porque...

Tornou a olhar para a criatura na cadeira de balanço, para os dedos vermelhos que agora se fundiam em apêndices que tinham quase a aparência de nadadeiras. Contemplou a manta escarlate sobre o colo da criatura, e a cicatriz ao longo de seu braço recomeçou a formigar.

Por Deus o que é que está acontecendo aqui?

Mas é claro que ele sabia; bastava comparar a coisa vermelha na cadeira de balanço com o quadro pendurado na parede, com a estampa do Jesus de rosto vermelho e malévolo observando a família jantar, para confirmar sua intuição. Ralph não se encontrava na antiga casa de Mary Mead, e não se encontrava exactamente no avião que sobrevoava Derry, tampouco.

Encontrava-se na corte do Rei Sanguinário.

 

SEM pensar por que fazia tal gesto, Ralph meteu a mão no bolso do suéter e segurou de leve um dos brincos de Lois. Sentia a mão distante, como se pertencesse a outra pessoa.

Percebia algo interessante: nunca se sentira apavorado na vida até agora. Nem uma vez.

Pensara ter sentido pavor, naturalmente, mas fora ilusão - a única vez em que chegara mais próximo fora na biblioteca pública de Derry, quando Charlie Pickering enfiara a faca em sua axila, dizendo que espalharia suas entranhas no chão. Aquilo, porém, não passara de um momento de leve desconforto perto do que sentia agora.

Veio um homem verde... Ele parecia bom, mas eu podia estar enganada.

Torceu para que ela não estivesse; torceu sinceramente para que não estivesse. Porque o homem verde era praticamente o que lhe restava agora.

O homem verde e os brincos de Lois.

[Ralph! Pare de sonhar! Olhe para sua mãe quando ela está falando com você! Setenta anos na cara e ainda se comporta como se tivesse dezesseis anos e um forte comichão no pau!]

Ralph voltou à coisa de nadadeiras vermelhas, derreada na cadeira. Ela agora apresentava apenas uma ligeira semelhança com sua finada mãe.

[- Você não é minha mãe e eu ainda estou no avião.]

[Não está, moleque. E não cometa o erro de pensar que está. Dê um passo fora de minha cozinha e o que vai conseguir é uma longa queda até o solo.]

[- É melhor parar agora. Posso ver quem você é]

A coisa falou com uma voz borbulhante e sufocada que transformou a espinha de Ralph numa fina linha de gelo.

[Não pode. Talvez até pense que pode, mas não pode. E não quer. Nem mesmo quer me ver sem os meus disfarces. Me acredite, Ralph, você não quer.]

Ele percebeu com crescente horror que a coisa-mãe se transformara num enorme cascudofêmea, um peixe voraz do fundo do rio, com dentes rombudos reluzindo por entre os beiços pêndulos e os bigodes que chegavam quase à gola do vestido que ainda usava. As guelras no pescoço abriram-se e fecharam-se como cortes de navalha, revelando uma carne vermelha e turva. Os olhos se arredondaram e arroxearam e, enquanto Ralph observava, as órbitas começaram a se distanciar uma da outra. O processo continuou até os olhos se esbugalharem para os lados, ao invés de ficarem na frente da cara escamosa da criatura.

[Não mexa sequer um músculo, Ralph. Você provavelmente vai morrer na explosão qualquer que seja o nível em que esteja, as ondas de choque se transmitem aqui como em qualquer construção, mas esta morte ainda será muito melhor do que a minha.]

O cascudo abriu a boca. Os dentes rodeavam uma goela sanguínea cheia de estranhas vísceras e tumores. Parecia rir-se dele.

[- Quem é você? O Rei Sanguinário?]

[É o nome que Ed me dá, devíamos ter um outro só para nós, não acha? Vejamos. Se você não quer que eu seja a Mamãe Roberts, por que não me chama de Papa-terra? Lembra-se do Papa-terra do rádio, não lembra?]

Naturalmente que lembrava... mas o verdadeiro Papa-terra nunca estivera no programa de

Amos 'n' Andy, e nunca fora papa-terra nenhum. O verdadeiro Papa-terra fora uma papa-terra que habitava a tundra.

NUM dia de verão, aos sete anos de idade, Ralph fisgara um enorme cascudo no Kenduskeag, quando pescava com o irmão, John - naquela época, ainda era possível comer o que se apanhava na tundra. Ralph pedira ao irmão mais velho para tirar o bicho, que se debatia convulsivamente, do anzol e colocá-lo no balde com água que tinham deixado na beira do rio junto deles. Johnny se recusara, citando com ar de superioridade o que chamara de Credo do Pescador: o bom pescador prepara o próprio anzol, desenterra a própria minhoca, e retira do anzol o que pescou. Somente mais tarde Ralph se deu conta de que Johnny talvez estivesse tentando esconder o medo que lhe inspirava a enorme criatura, de certa forma alienígena, que o irmão mais novo guindara das águas lamacentas e, naquele dia, mornas feito pipi.

Ralph finalmente fora convencido a segurar o corpo palpitante do cascudo, que era também escorregadio, escamoso e espinhento. Johnny então aumentara o seu temor dizendo-lhe, num tom baixo e agourento, para ter cuidado com os bigodes. São venenosos. Bobby

Therriault me disse que se a gente se especta num espinho desses pode ficar paralítico. E passar o resto da vida numa cadeira de rodas. Por isso, cuidado, Ralphie.

Ralph revirara o bicho para um lado e para o outro, tentando soltar sua boca escura e molhada do anzol, sem aproximar demais a mão dos bigodes (ao mesmo tempo acreditando e não acreditando de todo na história de Johnny sobre o veneno), mas estranhamente consciente das guelras, dos olhos, do cheiro desagradável que parecia se infiltrar mais profundamente em seus pulmões cada vez que respirava.

Finalmente, ouvira uma cartilagem se romper dentro do peixe e sentiu o anzol começar a se desprender. Mais filetes de sangue escorreram dos cantos da boca flácida e moribunda.

Ralph soltou um suspiro de alívio - prematuramente, conforme descobriu. O cascudo deu uma trementa rabanada, quando o anzol saiu. A mão que Ralph estivera usando para tirá-lo escorregou, e de repente a boca sangrenta do cascudo fechou sobre seus dois primeiros dedos. Quanta dor sentira? Muita? Alguma? Talvez nenhuma? Ralph não conseguia se lembrar. Lembrava-se do berro sinceramente horrorizado de Johnny e da sua própria certeza de que o cascudo ia fazê-lo pagar com os dois dedos da mão direita por lhe arrebatar a vida.

Lembrava-se também de gritar, sacudir a mão e suplicar a Johnny que o ajudasse, mas

Johnny recuava, o rosto branco, a boca contorcida de repugnância. Ralph sacudia a mão em grandes arcos, mas o cascudo aferrava-se como louco, os bigodes (bigodes envenenados vão me botar numa cadeira de rodas para o resto da vida)

batendo e sacudindo contra o pulso de Ralph, os olhos pretos arregalados para ele.

Finalmente Ralph brandira-o contra uma árvore próxima e lhe partira a espinha dorsal. O peixe caíra no capim, ainda rabeando, e Ralph calcara-o com um pé, provocando o horror final. Um despejo de entranhas escapou de sua boca e, do lugar que Ralph o esmagara com o calcanhar, saiu uma torrente viscosa de ovas sangrentas. Foi então que percebeu que o papa-terra era na realidade uma papa-terra, a dois dias da desova.

Ralph desviara a vista daquela nojeira para a própria mão, cheia de escamas e sangue, e uivara como uma alma penada. Quando Johnny tocara em seu braço numa tentativa de acalmálo, Ralph fugira. Não parara de correr até chegar em casa e se recusara a sair do quarto pelo resto do dia. Levara quase um ano para voltar a comer peixe, e nunca mais quisera conversa com cascudos.

Isto é, até agora.

[-RALPH!]

Era a voz de Lois... mas longe! Tão longe!

[- Você tem que fazer alguma coisa imediatamente! Não deixe que ele o detenha!]

Ralph agora compreendia que o que tomara por uma manta no colo de sua mãe era na verdade um tapete de ovas sangrentas no colo do Rei Sanguinário. Ele se curvava para

Ralph por cima da manta pulsante, com os beiços tremendo, numa paródia de preocupação.

[Algum problema, Ralphie? Onde é que está doendo? Diga para Mamãe.]

[- Você não é minha mãe.]

[Não - sou a Rainha do rio! Falo alto e com altivez! Domino a fala e o movimento! Na realidade, posso ser o que quiser. Você talvez não saiba, mas em Derry o transformismo é um costume consagrado pelo tempo.]

[- Conhece o homem verde que Lois viu?]

[Naturalmente! Conheço todo o pessoal da vizinhança!]

Mas Ralph percebeu uma expressão de momentânea perplexidade naquela cara escamosa.

O calor ao longo de seu antebraço subiu mais um risquinho na escala, e Ralph teve uma súbita percepção: se Lois estivesse ali agora, não seria capaz de vê-lo. A Rainha-cascuda estava emitindo uma luz pulsante e cada vez mais forte, que o envolvia gradualmente. A luz era vermelha ao invés de preta, mas ainda assim era um saco mortuário, e agora ele sabia o que era se sentir do lado de dentro, preso numa teia formada pelos seus piores temores e suas experiências mais traumáticas. Não havia como bater em retirada nem abrir caminho, como fizera com o saco mortuário que envolvia a aliança de Ed.

Se vou escapar, pensou Ralph, será avançando com tanta força e rapidez que irrompo pelo outro lado.

O brinco continuava em sua mão. Agora ele o revirou de modo a que o pino exposto do brinco se projectasse por entre os dois dedos que, há sessenta e três anos anos, o cascudo tentara engolir. Então rezou uma breve oração, não à Lois mas ao homem verde de Lois.

O CASCUDO inclinou-se mais para a frente, com um esgar de desenho animado espalhando-se por sua cara sem nariz. Os dentes por trás daquele sorriso flácido pareciam mais longos e pontiagudos agora. Ralph viu gotas de um líquido incolor se acumularem nas pontas dos bigodes e pensou, Veneno. Passar o resto de sua vida numa cadeira de rodas.

Cara, estou com tanto medo. Porra, estou morrendo de medo.

Lois gritava de muito longe:

[- Depressa, Ralph! VOCÊ TEM QUE ANDAR DEPRESSA!]

Um menininho gritava de algum lugar bem mais próximo; gritava e sacudia a mão direita, sacudia o peixe agarrado aos seus dedos, enterrados na garganta do monstro prenhe que não queria largá-lo.

O cascudo inclinou-se para mais perto ainda. O vestido que usava farfalhou. Ralph sentiu o perfume de sua mãe, Saint Elena, obscenamente misturado ao cheiro desagradável, lodoso de peixe que se alimenta de detritos no fundo do rio.

[- pretendo que a missão de Ed Deepneau seja bem-sucedida, Ralph; pretendo que o menino de quem seus amigos falaram morra nos braços da mãe, e quero ver isso acontecer. Trabalhei arduamente aqui em Derry, e acho que não estou pedindo muito, mas isso significa que tenho de eliminar você já. Eu...]

Ralph aproximou-se mais um passo do cheiro de podridão da coisa. E começou a ver uma forma por trás da de sua mãe, por trás da forma da Rainha-peixe. Começou a ver um homem com cor, um homem vermelho com olhos frios e uma boca cruel. Este homem lembrava o Cristo que ele vira há poucos instantes... mas não aquele que realmente ficava pendurado no canto de cozinha de sua mãe.

Uma expressão de surpresa surgiu nos olhos pretos e desprovidos de pálpebras da Rainha-peixe... e nos olhos frios do homem vermelho por trás.

[Que é que você pensa que está fazendo? Afaste-se de mim! Quer passar o resto de sua vida numa cadeira de rodas?]

[- Sou capaz de imaginar coisas piores, amizade - meus dias de jogador de beisebol definitivamente terminaram.]

A voz se elevou, transformando-se na voz de sua mãe quando se zangava.

[Preste atenção a mim, moleque! Preste atenção e escute o que estou dizendo!]

Por um momento as velhas ordens, emitidas numa voz tão sobrenaturalmente igual à de sua mãe, levaram-no a hesitar. Então ele recomeçou a avançar. A Rainha-peixe recuou na cadeira, o rabo subindo e descendo sob a barra do velho vestido caseiro.

[Que é que você pensa que está fazendo?]

[- Não sei; talvez só esteja querendo dar um puxão nos seus bigodes. Verificar se são verdadeiros.]

E, usando toda a sua força de vontade para não gritar e fugir, Ralph avançou a mão direita.

O brinco de Lois parecia um seixinho morno dentro dela. A própria Lois parecia estar muito próxima, e Ralph concluiu que isso não o surpreendia, considerando a quantidade de sua aura que aspirara. Talvez ela até fizesse parte dele agora. A sensação de sua presença era profundamente reconfortante.

[Não, você não se atreveria! Ficará paralisado!] - Cascudos não são venenosos - isso foi conversa fiada de um menino de dez anos que talvez estivesse ainda mais apavorado do que eu.

Ralph avançou a mão para os bigodes ocultando nela o espinho de metal, e a cabeça maciça e escamosa da criatura se desviou, como em parte Ralph sabia que ela faria. Então começou a ondear, a se transformar, e sua temível aura vermelha foi-se tornando visível. Se a doença e a dor fossem coloridas, pensou Ralph, seriam assim. Antes que a metamorfose prosseguisse, antes que aquele homem que ele agora via alto, de uma beleza fria com seus cabelos louros e olhos vermelhos rutilantes - pudesse atravessar o brilho da ilusão que produzira, Ralph enterrou o pino afiado do brinco em um de seus olhos pretos e esbugalhados de peixe.

O PEIXE emitiu um terrível zumbido - como o de uma cigarra, pensou Ralph - e tentou recuar. Seu rabo, agitando-se velozmente, produzia o ruído de um ventilador que apanhara um pedaço de papel nas pás. Ele escorregou da cadeira de balanço, que agora virava um móvel semelhante a um trono esculpido em pedra fosca cor-de-laranja. E então o rabo desapareceu, a Rainha-peixe desapareceu, e surgiu o Rei Sanguinário ali, seu rosto bonito contorcido numa careta de dor e assombro. Um olho refulgia com a vermelhidão de um lince à luz da fogueira; o outro fora tomado pelo brilho multifacetado de diamantes.

Ralph meteu a mão esquerda na bolsa de ovas e rompeu-a, e não viu nada excepto escuridão do outro lado do aborto. O outro lado do saco mortuário. A saída.

[Você foi avisado, seu Vida-Curta filho da mãe! Você acha que pode me fazer de idiota?

Muito bem, vamos ver! Vamos só ver!]

O Rei Sanguinário curvou-se para a frente no trono, a boca escancarada, o olho restante encandescido e vermelho. Ralph lutou contra a vontade de puxar para si a mão direita agora vazia. Ao contrário, ele a jogou contra a boca do Rei Sanguinário, que abriu-se num grande bocejo para engoli-la, como aquele cascudo de sua infância fizera um dia na tundra. *

Coisas - e não carne - primeiro se retorceram e esbarraram em sua mão, então começaram a mordê-la como mutucas. Ao mesmo tempo Ralph sentiu dentes de verdade não, presas - cravarem em seu braço. Em um momento, dois no máximo, o Rei Sanguinário cortaria seu pulso com os dentes e engoliria sua mão inteira.

Ralph fechou os olhos e encontrou imediatamente aquele padrão de pensamento e concentração que lhe permitia moverse entre níveis - sua dor e seu medo não foram empecilho. Só que desta vez ele não pretendia se mover, mas disparar. Cloto e Láquesis tinham plantado uma armadilha em seu braço, e chegara a hora de acioná-la.

Ralph sentiu aquela sensação de piscadela dentro da cabeça. No mesmo instante, a cicatriz em seu braço ficou incomodamente em brasa. O calor não queimou Ralph, mas espalhou-se pelo seu corpo como uma onda crescente de energia. Ele teve consciência de um poderoso lampejo verde, tão brilhante que, por um momento, era como se a cidade de Esmeraldas de Oz tivesse explodido a sua volta. Alguma coisa ou alguém berrava. Aquele som agudo e irregular o teria enlouquecido se durasse muito tempo, mas não. Foi seguido de uma vasta explosão surda, que fez Ralph pensar na vez que acendera uma cabeça-de-negro e a jogara num bueiro.

Um fluxo repentino de força passou sob a forma de um golpe de vento e de luz verde em dissolução. Ele viu de relance o Rei Sanguinário, não mais belo e jovem, mas velhíssimo e encarquilhado, menos humano do que a mais estranha criatura, passar batendo as asas ou dando saltos pelo nível dos Vidas-Curtas. Algo abriu-se sobre eles, revelando uma escuridão pontilhada de espirais e raios de cor. O vento parecia impelir o Rei Sanguinário para o alto naquela direcção, como uma folha por uma chaminé. As cores começaram a se avivar e Ralph virou o rosto, erguendo uma das mãos para proteger os olhos. Compreendeu que se abrira um conduto entre o nível em que se achava e os níveis inimagináveis empilhados acima; também compreendeu que se olhasse por muito tempo aquela luminosidade crescente, aquelas (clarabóias) espirais coloridas, a morte não seria a pior coisa que poderia lhe acontecer, mas a melhor.

Ele não apertou apenas os olhos para fechá-los; apertou também a mente para fechá-la.

Um instante depois, tudo desaparecera - a criatura que se identificara para Ed como o Rei Sanguinário, a cozinha na velha casa da rua Richmond, a cadeira de balanço de sua mãe.

Ralph estava ajoelhado no ar a menos de dois metros à direita do nariz do Cherokee, as mãos erguidas como uma criança frequentemente espancada faria antes a aproximação de um pai cruel e, quando espiou entre os joelhos, viu o centro cívico e o estacionamento anexo directamente abaixo dele. A princípio, pensou que seus olhos se enganavam com uma imagem ilusória, porque as lâmpadas de sódio davam a impressão de estarem se afastando umas das outras. Chegavam a parecer um ajuntamento de gente muito alta e magra começando a se dispersar porque o motivo de alvoroço, qualquer que fosse, se extinguira. E o terreno do estacionamento em si parecia estar... bem... se expandindo.

Não se expandindo mas se aproximando, Ralph pensou friamente. Ed está descendo. Começou o seu mergulho kamikaze.

POR um momento, Ralph ficou imóvel onde estava, encantado com sua assombrosa condição. Tornara-se uma criatura meio mítica, obviamente não era nenhum deus (nenhum deus poderia se sentir tão cansado e aterrorizado quanto ele naquele momento) mas obviamente tampouco era uma criatura presa à terra como um homem. Isto é que era realmente voar; ver a terra de cima, sem limites. Isto...

[-RALPH.]

O grito dela foi como um tiro de espingarda disparado junto ao seu ouvido. Ralph encolheu-se e, no instante em que seu olhar abandonou a imagem hipnótica da terra crescendo em sua direcção, ele conseguiu se mexer. Pôs-se de pé e voltou ao avião. Fez isso com a facilidade e a normalidade com que um homem anda pelo corredor de sua casa. Nenhum vento lhe fustigou o rosto, nem soprou seus cabelos para trás e, quando seu ombro esquerdo atravessou a hélice do Cherokee, as pás em movimento o afectaram tanto quanto teriam afectado uma fumaça. Por um momento, observou o rosto pálido e atraente de Ed - o rosto de um salteador de estrada que cavalgara até a porta da velha estalagem no poema que sempre fizera Carolyn chorar - e seu sentimento anterior de pena e mágoa foi substituído pela raiva. Era difícil ficar realmente enfurecido com Ed - afinal, ele era apenas mais uma peça de xadrez no tabuleiro - porém o alvo de seu avião era um prédio cheio de gente de verdade. Gente inocente.

Ralph percebeu algo obstinado, infantil e voluntarioso na expressão de apática alienação no rosto de Ed e, quando passou pela fina parede da cabine, pensou: Acho que em algum nível, Ed, você sabia que o diabo entrara em seu corpo. Acho que poderia até tê-lo expulsado... o Sr. C. e o Sr. L. não disseram que sempre há uma escolha? Se há, então você tem que assumir sua responsabilidade nisso, seu desgraçado.

Por um momento, a cabeça de Ralph ficou para fora do teto como acontecera antes, e ele se ajoelhou. Agora o centro cívico ocupava todo pára-brisa do avião e ele compreendeu que era demasiado tarde para impedir que Ed fizesse alguma coisa.

Já soltara a fita adesiva que prendia a campainha. Segurava-a na mão.

Ralph meteu a mão no bolso e agarrou o segundo brinco, firmando-o, mais uma vez, entre os dedos com o pino em riste. Fez um canudo com a outra mão envolvendo os fios que ligavam a caixa de papelão à campainha. Fechou os olhos e se concentrou, criando aquela sensação de flexão no centro de sua mente. Seguiu-se uma repentina sensação de frio na barriga e ele ainda teve tempo de pensar: óh! Estou num elevador expresso!

Então chegou ao nível dos Vidas-Curtas onde não havia deuses nem demônios, nem doutores carecas com tesouras mágicas e bisturis, nem tampouco auras. Aqui embaixo onde atravessar paredes e se afastar caminhando de um acidente de avião era uma impossibilidade.

Aqui embaixo no nível dos Vidas-Curtas onde podiam vê-lo... e, Ralph percebeu, era exactamente o que Ed estava fazendo.

- Ralph? - Era a voz arrastada de um homem que acabara de despertar do sono mais saudável da vida. - Ralph Roberts? Que é que você está fazendo aqui?

- Ah, estava na vizinhança e pensei em dar uma passada aqui - Ralph falou. - Puxar uma pedra, por assim dizer. - Ao dizer isso, fechou a mão em canudo e arrancou os fios da caixa.

- NÃO! - Ed gritou. - Não, não faça isso, você vai estragar tudo!

Com toda certeza, Ralph pensou, esticando a mão por cima do colo de Ed para lhe tomar o manche do Cherokee. O centro cívico encontrava-se agora a uns mil e duzentos pés abaixo deles, talvez menos. Ralph ainda não sabia ao certo o que havia na caixa amarrada ao assento do co-piloto, mas tinha a impressão de que provavelmente era o explosivo plástico que os terroristas sempre usam nos filmes de artes marciais estrelados por Chuck Norris e Steven Seagal. Era considerado razoavelmente estável-ao contrário da nitroglicerina do Salário do medo de Clouzot - mas não era hora de confiar no Evangelho da Cinelândia.

Mesmo um explosivo estável poderia disparar sem detonador, se o atirassem de uma altura de três quilómetros.

Ralph virou o manche para a esquerda o mais que pôde. Abaixo deles, o centro cívico começou a girar enjoativamente, como se tivesse sido montado sobre a ponta de um gigantesco pião.

- Não, seu filho da puta! - Ed berrou, e alguma coisa que parecia a cabeça de um pequeno martelo bateu nas costelas de Ralph, quase paralisando-o de dor, impossibilitando sua respiração. Quando Ed tornou a golpeá-lo, desta vez na axila, sua mão deixou escapulir o manche. Ed retomou o controle e virou o manche violentamente no sentido oposto. O centro cívico, que começara a deslizar para o lado do pára-brisa, recomeçou a voltar para o centro.

Ralph procurou agarrar o manche. Ed meteu o punho em sua testa, empurrando-o para trás.

- Por que você não ficou fora disso? - rosnou. - Por que teve de se meter? - Tinha os dentes à mostra, os lábios repuxados para trás num esgar ciumento. A aparição de Ralph na cabine deveria tê-lo paralisado pelo choque, mas tal não acontecera.

Claro que não, ele é pirado, Ralph pensou, e subitamente elevou sua voz interior num berro de pânico:

[- Cloto! Láquesis! Pelo amor de Deus, me ajudem!]

Nada. O grito não parecia ter chegado a parte alguma. E por que chegaria? Descera ao nível dos Vidas-Curtas, o que significava estar sozinho.

O centro cívico achava-se a apenas oitocentos ou novecentos pés abaixo agora. Ralph podia distinguir cada tijolo, cada janela, cada pessoa parada do lado de fora - quase podia dizer quais as que carregavam cartazes. Elas olhavam para o alto, tentando descobrir o que aquele avião doido pretendia. Ralph não podia ver o medo em seus rostos, ainda não, mas dentro de dois ou três segundos...

Atirou-se contra Ed de novo, desprezando a dor no lado esquerdo, e empurrou o punho direito, usando o polegar para deslizar o pino do brinco, o máximo possível, para a ponta dos dedos.

O velho truque do brinco funcionara no Rei Sanguinário, mas Ralph estava num nível mais alto então, e tivera mais segurança escorado no elemento surpresa. Desta vez mirou no olho também, mas Ed desviou a cabeça no último momento. O pino cravou-se em sua face pouco acima do maxilar. Ed deu um tapa no brinco como se quisesse afastar um mosquito, ao mesmo tempo em que mantinha o manche firme com a mão esquerda.

Ralph avançou para o manche outra vez. Ed atacou-o. O punho de Ed atingiu Ralph acima do olho esquerdo, empurrando-o para trás. Um som único, puro e metálico, inundou os ouvidos de Ralph. Era como se houvesse um grande diapasão entre eles, e alguém o tivesse tocado. O mundo se tornou cinza e granulado como uma foto de jornal.

[- Ralph depressa/]

Era Lois, e agora estava aterrorizada. Ralph sabia a razão; o tempo praticamente se esgotara. Restavam-lhe talvez dez segundos, vinte no máximo. Ele avançou novamente, desta vez não na direcção de Ed, mas na da foto de Helen e Nat presa sobre o altímetro.

Arrancou-a, segurou-a no alto... e amassou-a entre os dedos. Não sabia muito bem que reacção esperar, mas a que veio excedeu suas mais fantásticas esperanças.

- ME DÊ ELAS DE VOLTA! - Ed berrou. Esqueceu-se do manche e tentou alcançar a foto. Ao fazer isso, Ralph viu novamente o homem que vislumbrara no dia em que Ed espancara Helen, um homem desesperadamente infeliz e temeroso das forças que tinham se libertado dentro dele. Havia lágrimas não somente em seus olhos, mas elas escorriam também pelo rosto, e Ralph pensou confuso: Será que ele esteve chorando o tempo todo?

- ME DÊ ELAS DE VOLTA! - berrou outra vez, mas Ralph já não tinha certeza de ser o interlocutor daquele grito; achou que seu antigo vizinho provavelmente se dirigia ao ser que entrara em sua vida, dera uma olhada em volta para se certificar se era aquilo mesmo, e então simplesmente o dominara. O brinco de Lois brilhava na face de Ed como um ornamento funerário bárbaro.

- ME DÊ ELAS DE VOLTA, ELAS SÃO MINHAS! Ralph segurava a foto amassada fora do alcance das mãos que Ed agitava. Ed saltou, o cinto mordeu sua virilha, e Ralph deu-lhe um soco na garganta com toda a força, sentindo uma indescritível mistura de satisfação e repugnância quando o golpe atingiu o caroço duro e áspero do pomo de Adão de Ed. Ele bateu de costas contra a parede da cabine, os olhos esbugalhados de dor, desânimo e perplexidade, e levou as mãos à garganta. Um som engrolado saiu lá do fundo. Parecia uma peça quebrando os dentes da engrenagem.

Ralph atirou-se por cima do colo de Ed e viu o centro cívico agora saltar em direcção ao avião. Virou o manche todo para a esquerda e abaixo dele - exactamente abaixo - o centro cívico começou a girar para o canto do pára-brisa do Cherokee prestes a desaparecer... mas o avião obedeceu com angustiante lentidão.

Ralph percebeu que havia um cheiro diferente na cabine - um aroma ao mesmo tempo doce e conhecido. Antes que pudesse imaginar o que seria, viu uma coisa que o distraiu totalmente. Era o carrinho de sorvetes que às vezes passava pela avenida Harris, tocando sua alegre sineta.

Meu Deus, pensou Ralph, sentindo mais assombro do que medo. Acho que vou acabar no congelador em companhia dos picolés e das caixinhas de sorvete.

O cheiro gostoso ficou mais forte e, quando sentiu mãos segurarem repentinamente seus ombros, Ralph se deu conta de que era o perfume de Lois Chasse.

- Suba! - ela gritou. - Ralph, seu burro, você tem que...

Ele não raciocinou; simplesmente agiu. Tudo encaixou em sua cabeça, a piscadela ocorreu, e ele ouviu o resto do que ela tinha a dizer daquela forma estranha e penetrante que se aproximava mais do pensamento do que da fala.

[...Suba! Empurre com os pésl]

Tarde demais, pensou, mas fez o que ela dizia, plantou os pés contra a base do painel de instrumentos todo inclinado e empurrou com toda a força. Sentiu Lois subindo com ele pela coluna da existência quando o Cherokee mergulhou nos últimos cem pés que os separavam do solo, e, ao subirem violentamente, ele sentiu uma explosão repentina de energia, Lois envolvê-lo e arrancá-lo para trás como um elástico de bagageiro. Teve uma breve e nauseante sensação de estar voando em duas direcções ao mesmo tempo.

Ralph captou um último vislumbre de Ed Deepneau prostrado contra a parede da cabine, mas num sentido muito real não o viu. A aura cinza amarelada fulminada por um raio desaparecera. Ed também, enterrado num saco mortuário negro como a meia-noite no inferno.

Ele e Lois estavam caindo, ao mesmo tempo em que voando.

 

POUCO antes de ocorrer a explosão, Susan Day, parada sob um escaldante holofote diante do centro cívico, e agora vivendo os últimos segundos de sua vida fabulosa e provocante, dizia:

- Não vim a Derry para curar vocês, nem incitar vocês, mas para prantear com vocês...

esta é uma situação que ultrapassou de muito as considerações políticas. Não há direito na violência nem refúgio no farisaísmo. Estou aqui para pedir que deixem de lado as suas convicções e a sua retórica e ajudem uns aos outros a encontrar uma maneira de se ajudarem mutuamente. Que virem as costas às atracções...

As janelas altas alinhadas do lado sul do auditório repentinamente se iluminaram com um clarão branco e ofuscante e estouraram para dentro.

O CHEROKEE errou o carrinho de sorvetes, mas isto não o poupou. O avião deu uma última meia-volta no parafuso que descrevia no ar e mergulhou no asfalto do estacionamento a uns oito metros da cerca, onde, mais cedo, Lois parara para repuxar a anágua incômoda. As asas se partiram. O posto de comando entrou instantânea e violentamente na cabine de passageiros. A fuselagem explodiu com a fúria de uma garrafa de champanhe dentro de um forno microondas. Voaram estilhaços de vidro. A cauda dobrou por cima da fuselagem como o ferrão de um escorpião moribundo e se empalou no teto de uma caminhonete

Dodge com as palavras PROTEJA O DIREITO DE ESCOLHA DAS MULHERES! pintadas na lateral. Ouviu-se um ruído de metal amassado que lembrava a queda de uma pilha de ferrovelho.

- Puta q... - começou a exclamar um dos tiras postado na periferia do estacionamento, e então o C-4 dentro da caixa de papelão voou como um grande e viscoso catarro cinza, batendo nos restos do painel de instrumentos onde vários fios ainda activos o espetaram como agulhas de seringas. O explosivo plástico explodiu com um baque de estourar os tímpanos, flambando o prado de Bassey Park e transformando o estacionamento em um furacão de luz branca e estilhaços. John Leydecker que estivera parado sob a cobertura de cimento do centro cívico, conversando com um tira estadual, foi lançado pelas portas abertas do centro até o saguão. Bateu na parede do fundo e caiu inconsciente sobre os vidros partidos da caixa de troféus de montaria. Teve mais sorte do que o homem com quem conversava: o tira estadual foi atirado contra a viga entre as portas abertas e fatiado em dois.

As fileiras de carros de certa forma protegeram o centro cívico dos piores efeitos da explosão, mas tal bênção só seria reconhecida mais tarde. Dentro, mais de duas mil pessoas a princípio permaneceram sentadas em estado de choque, incertas quanto ao que fazer e, ainda mais incertas, quanto ao que a maioria acabara de ver: a mais famosa feminista americana decapitada por um pedaço de vidro que voara. Sua cabeça foi parar na sexta fileira como uma estranha bola branca de boliche encimada por peruca loura.

As pessoas não entraram em pânico até as luzes se apagarem.

SETENTA e uma pessoas morreram pisoteadas na corrida desembestada em direcção às saídas, e o News de Derry do dia seguinte alardearia a ocorrência com uma medonha manchete de 48 pontos, chamando-a de terrível tragédia. Ralph Roberts poderia ter-lhe esclarecido que, considerando as circunstâncias, tinham tido sorte. Muita sorte, mesmo.

A MEIO caminho do balcão norte, uma mulher chamada Sónia Danville - uma mulher com o rosto marcado pelos hematomas da última surra que um homem lhe daria - sentava-se abraçando o filho Patrick pelos ombros. O pôster do McDonald's que Patrick levava, mostrando Ronald e o Prefeito McCheese e o ladrão Hamburg dançando o Boot-Scootin Boogie do lado de fora de um drive-thru, estava em seu colo, mas ele só chegara a colorir os arcos dourados antes de virar o cartaz para o lado em branco. Não porque tivesse perdido o interesse, mas simplesmente porque tivera uma idéia para um desenho, e tais idéias costumavam lhe ocorrer com a força de uma compulsão. Ele passara a maior parte do dia pensando no que acontecera no porão de High Ridge - a fumaça, o calor, as mulheres assustadas e os dois anjos que tinham aparecido para salvá-los - mas sua ideia esplêndida expulsara esses pensamentos perturbadores, e ele se pôs a trabalhar em silencioso entusiasmo. Não demorou muito e Patrick começou a se sentir quase como se estivesse vivendo no mundo que desenhava com os seus lápis-cera.

Ele já era um artista surpreendentemente hábil, mesmo com quatro anos ("Meu geniozinho", por vezes Sónia o chamava), e seu desenho era muito melhor do que o do cartaz para colorir no verso da folha. O que conseguira fazer antes das luzes se apagarem era algo que um talentoso calouro de arte teria orgulho de apresentar. No meio da folha do cartaz, uma torre de pedras escurecidas de fuligem erguia-se contra um céu azul enfeitado por gordas nuvens brancas. A toda volta havia um campo de rosas tão vermelhas que chegavam quase a berrar.

Parado de um lado, encontrava-se um homem de blue jeans desbotados. Dois cinturões cruzavam sua cintura magra; um coldre pendia abaixo de cada lado dos quadris. No alto da torre, um homem de vestes vermelhas contemplava o pistoleiro com uma expressão mesclada de ódio e medo. Suas mãos, que seguravam o parapeito, pareciam também vermelhas.

Sónia estivera hipnotizada pela presença de Susan Day que, sentada atrás do pódio, escutava alguém apresentá-la, mas por acaso dera uma espiada no desenho do filho pouco antes de terminar a apresentação. Ela sabia, há dois anos, que Patrick era o que os psicólogos infantis chamavam de prodígio, e por vezes dizia a si mesma que se acostumara com os seus desenhos sofisticados e a série de esculturas de massa a que ele dera o nome de Família Barro. Talvez estivesse acostumada até certo ponto, mas este desenho lhe provocara um calafrio estranho e profundo que ela não podia debitar na conta das emoções daquele dia longo e tenso.

- Quem é esse? - perguntou, pondo o dedo na figura minúscula que espiava invejoso do alto da torre escura.

- O Rei Vermelho - disse Patrick.

- Ah, sim, o Rei Vermelho. E quem é o homem com as pistolas?

Quando ele abriu a boca para responder, Roberta Harper, a mulher no pódio, ergueu o braço esquerdo (que exibia uma braçadeira de luto) em direção à mulher sentada às suas costas.

- Meus amigos, a Sra. Susan Day exclamou, e a resposta de Patrick Danville à segunda pergunta da mãe se perdeu na tempestade de aplausos.

E Roland, Mamãe. Sonho com ele, às vezes. Ele é rei, também.

AGORA mãe e filho estavam sentados no escuro com as orelhas retinindo, e dois pensamentos giravam pela mente de Sónia como ratos correndo um atrás do outro numa roda de moinho: será que o dia de hoje não vai terminar nunca, eu sabia que não devia ter trazido ele, será que o dia de hoje não vai terminar nunca, eu sabia que não devia ter trazido ele, será que o dia...

- Mamãe, você está amassando o meu desenhai - reclamou Patrick. Parecia um pouco ofegante e Sônia percebeu que o devia estar amassando também. Afrouxou um pouco o abraço. Um fluxo fragmentado de gritos, berros e perguntas confusas subia do poço abaixo deles, onde as pessoas suficientemente abastadas para desembolsarem "doações" de quinze dólares tinham se acomodado em cadeiras desmontáveis. Um urro áspero de dor cortou essa mistura de sons, sobressaltando Sónia.

O estrondo surdo que se seguiu à explosão inicial tinha comprimido dolorosamente seus tímpanos e sacudido o prédio.

Por comparação, as detonações que se seguiram - provocadas pelos carros que explodiam como cabeças-de-negro no estacionamento - soavam fracas e inconsequentes, mas Sónia sentia Patrick se encolher contra ela a cada estouro.

- Fique calminho, Pat. Alguma coisa ruim aconteceu, mas acho que foi lá fora. - Porque seu olhar fora atraído pelo clarão nas janelas, Sônia felizmente deixara de assistir à cabeça de sua heroína voar dos ombros, mas sabia que, por alguma razão, o raio tinha caído duas vezes no mesmo lugar (não devia ter trazido ele, não devia ter trazido ele) e que pelo menos algumas pessoas lá embaixo tinham entrado em pânico. Se ela entrasse em pânico, ela e o Jovem Rembrandt iam se meter em sérios apuros.

Mas não vou deixar isso acontecer. Não saí daquele túmulo hoje de manhã para entrar em pânico agora. Nem por um cacete.

Ela procurou a mão de Patrick e segurou-a - a mão que não apertava o desenho. Estava muito fria.

- Você acha que os anjos vão vir nos salvar outra vez, Mamãe? - ele perguntou com a voz ligeiramente trémula.

- Não. Acho que desta vez teremos que nos salvar sozinhos. Mas faremos isso. Quero dizer, estamos bem agora, não estamos?

- Estamos - ele concordou, mas desabou contra o corpo dela. Sônia passou por um momento de aflição, imaginando que ele tivesse desmaiado e que teria de retirá-lo do centro cívico nos braços, mas logo ele se endireitou. - Meus livros estavam no chão - falou. Não queria sair sem meus livros, principalmente aquele do menino que não pode tirar o chapéu. Estamos indo embora. Mamãe?

- Estamos. Assim que as pessoas pararem de correr para todos os lados. Têm luzes nos corredores, dessas que funcionam com pilhas, mesmo que as daqui continuem apagadas.

Quando eu disser, vamos nos levantar e andar - andei - e suba as escadas até a porta.

Não vou carregar você no colo, mas vou ficar bem atrás com as duas mãos nos seus ombros. Entendeu direitinho, Pat?

- Entendi, Mamãe.-Sem perguntas. Sem choro. Apenas entregou os livros, para ela guardar. Ele mesmo segurou o cartaz. A mãe lhe deu um abraço rápido e um beijo na bochecha.

Aguardaram ainda cinco minutos nos assentos, segundo a lenta contagem de Sónia até 300.

Ela sentiu que a maioria dos seus vizinhos próximos já tinham saído antes de chegar aos cento e cinquenta, mas se controlou. Podia agora enxergar um pouco, o suficiente para levá-la a acreditar que alguma coisa queimava furiosamente do lado de fora, mas no outro extremo do prédio. O que era muita sorte. Ela ouvia as sirenes dos carros de polícia, bombeiros e das ambulâncias. Sónia se levantou.

- Vamos. Fique bem na minha frente.

Pat Danville saiu para o corredor com os ombros seguros firmemente nas mãos da mãe. Ele a conduziu pelas escadas que subiam em direcção às fracas luzes amarelas que indicavam o corredor do balcão da ala norte, parando apenas uma vez, quando o vulto escuro de um homem passou correndo. As mãos de sua mãe apertaram seus ombros ao puxá-lo para o lado.

- Pró-vidas desgraçados! - exclamou o homem que corria. - Forras de donos da verdade! Gostaria de matar todos!

Ele se foi e Pat recomeçou a subir as escadas. Ela sentia o filho calmo agora, uma ausência de medo concentrada, que comoveu seu coração com amor e uma certa escuridão estranha também. Seu filho era tão diferente, tão especial... mas o mundo não gostava de indivíduos assim. O mundo tentava erradicá-los da terra, como se fossem ervas daninhas num jardim.

Finalmente desembocaram no corredor principal. Algumas pessoas, em profundo estado de choque, iam e vinham, os olhos vidrados e as bocas abertas, como zumbis num filme de horror. Sónia mal lhes prestou atenção, continuou a empurrar Pat na direcção da escadaria.

Três minutos depois saíram para a noite iluminada pelas chamas, sãos e salvos e, em todos os níveis do universo, os negócios do Acaso e do Desígnio retomaram seus cursos previstos.

Mundos que haviam tremido por um momento nas órbitas agora se estabilizaram, e em um desses mundos, em um deserto que era a apoteose de todos os desertos, um homem chamado Roland virou-se em seu saco de dormir e voltou a adormecer sossegado sob constelações desconhecidas.

DO OUTRO lado da cidade, no parque Strawford, a porta do banheiro marcada HOMENS abriu-se violentamente. Lois Chasse e Ralph Roberts passaram por ela voando de costas, mergulhados em fumaça, agarrando-se um ao outro. De dentro ouviu-se o barulho do Cherokee batendo e, depois, do explosivo plástico explodindo. Houve um clarão branco e as paredes azuis dos banheiros estufaram para fora, como se um gigante as tivesse socado com os punhos. Um segundo depois eles ouviram nova explosão; desta vez retumbou pelo céu. A segunda versão foi mais fraca, no entanto, de certa forma, mais real.

Os pés de Lois fraquejaram e ela caiu com um baque surdo no gramado na base da encosta, com um grito que em parte expressava alívio. Ralph aterrissou ao seu lado, e ergueu-se até ficar sentado. Contemplou incrédulo o centro cívico, onde um punho de fogo se agitava no horizonte. Um calombo roxo do tamanho de uma maçaneta crescia em sua testa, no ponto em que Ed o golpeara. Seu lado esquerdo ainda latejava, mas ele achou que as costelas talvez estivessem apenas fissuradas, e não partidas.

[- Lois, você está bem?]

Ela fitou-o sem compreender por um momento, então começou a apalpar o rosto, o pescoço e os ombros. Havia algo tão perfeitamente, docemente Nossa Lois nesse exame que Ralph soltou uma risada. Não pôde reprimi-la. Lois sorriu hesitante. [- Acho que estou óptima. Na verdade, tenho certeza que estou.] [-Que é que você estava fazendo lá?

Você poderia ter morrido!] Lois, parecendo mais rejuvenescida (Ralph imaginava que o beberrão do parque tinha alguma coisa a ver com isso), encarou-o nos olhos.

[- Eu talvez seja antiquada, Ralph, mas se você acha que vou passar os próximos vinte anos desmaiando e me alvoroçando como a melhor amiga da heroína naqueles romances franceses que minha amiga Mina está sempre lendo, é melhor você escolher outra mulher para conviver.]

Ralph ficou boquiaberto por um momento, então ajudou-a a se levantar e abraçou-a. Lois retribuiu o abraço. Estava incrivelmente quente, incrivelmente presente. Ralph refletiu por instantes nas semelhanças entre a solidão e a insónia - como ambas eram traiçoeiras, acumulativas e divisórias, amigas do desespero e inimigas do amor - mas logo afastou esses pensamentos e beijou-a.

Cloto e Láquesis, parados no alto do morro, observaram os dois com a ansiedade de operários que apostaram o abono de Natal no cara que sempre perde a luta, e correram para eles que, mais uma vez, tinham as testas coladas e os olhos nos olhos como adolescentes apaixonados. No extremo da tundra, o som das sirenes ecoava como vozes que se ouvem em pesadelos. A coluna de fogo que marcava o túmulo da obsessão de Ed Deepneau estava agora demasiado ofuscante para se observar sem apertar os olhos. Ralph ouvia o estouro distante dos carros que explodiam, e pensou no seu carro, abandonado no fim do mundo. Decidiu que não se importava. Estava velho demais para dirigir.

CLOTO: [Vocês dois estão bem?]

Ralph: [- Estamos óptimos. Lois me puxou de volta. Ela salvou minha vida.]

Láquesis: - [Vimos ela entrar. Foi um acto de coragem.]

E também muito intrigante, certo, Sr. L? pensou Ralph. O senhor viu e o senhor admirou... mas acho que não faz a menor ideia de como ou por que ela fez isso. Acho que, para o senhor e seu amigo, o conceito de resgate deve parecer quase tão estranho quanto a ideia de amor.

Pela primeira vez, Ralph sentiu uma espécie de pena dos doutorezinhos carecas, e compreendeu a principal ironia de suas vidas: estavam conscientes de que os Vidas-Curtas, cuja existência tinham sido mandados podar, viviam vidas interiores intensas, mas não tinham a menor compreensão da realidade dessas vidas, das emoções que as impeliam, ou das acções - por vezes nobres, por vezes tolas - que delas resultavam. O Sr. C. e o Sr. L. tinham estudado seus tutelados como certos ingleses ricos, mas tímidos, estudaram os mapas trazidos pelos exploradores da era vitoriana, exploradores que, em muitos casos, eram financiados por esses mesmos homens ricos e tímidos. Com suas unhas aparadas e seus dedos macios, os filantropos desenharam rios de papel em que jamais navegariam e florestas de papel que jamais atravessariam num safari. Viviam em temerosa perplexidade que faziam passar por imaginação.

Cloto e Láquesis tinham convocado os dois e usaram-nos com uma certa eficiência crua, mas não compreendiam nem o prazer do risco nem a tristeza da perda-o máximo que tinham alcançado em termos de emoção era um medo persistente de que Ralph e Lois tentassem enfrentar directamente o pesquisador favorito do Rei Sanguinário e fossem abatidos como duas moscas velhas por tentarem. Os doutorezinhos carecas tinham vidas longas, mas Ralph suspeitava que, apesar das auras brilhantes de libélulas, eram vidas sem cor. Observou seus rostos lisos e estranhamente infantis do abrigo seguro dos braços de Lois e lembrou-se do terror que sentira quando os vira, pela primeira vez, saindo da casa de May Locher de manhãzinha. Um terror, ele descobrira desde então, que não sobreviveria ao simples convívio, quanto mais ao conhecimento e agora ele experimentara ambos.

Cloto e Láquesis retribuíram seu olhar com uma inquietação, que Ralph descobriu que não tinha a menor vontade de aliviar. Parecia-lhe de certa maneira muito certo que eles se sentissem como ele e Lois se sentiam.

Ralph: [- Foi, ela é muito corajosa e eu a amo muito, acho que seremos muito felizes juntos até...]

Ele parou, e Lois se mexeu em seus braços. Percebeu com uma mescla de graça e alívio que ela estivera semi-adormecida.

[- Até o que, Ralph?]

[- Até o que você quiser. Acho que há sempre um até, quando se é um Vida-Curta, e talvez isso seja o certo.]

Láquesis: [Bem, acho que aqui nos despedimos.]

Ralph riu sem querer, lembrando-se do programa de rádio The Lone Ranger, onde quase todo episódio terminava com uma variante desta frase. Estendeu a mão para Láquesis e achou uma certa graça marcada de amargura ao ver o homenzinho procurar evitá-lo.

Ralph: [- Esperem um instante... não precisamos ter tanta pressa, companheiros.]

Cloto, com uma pontinha de apreensão: [Há algum problema?]

[- Acho que não, mas depois de levar uma pancada na cabeça, outra nas costelas, e quase morrer assado, acho que tenho o direito de me certificar se tudo realmente acabou.

Acabou? O seu menino está salvo?]

Cloto, sorrindo e visivelmente aliviado: [Está. Você não sente? Daqui a dezoito anos, pouco antes de morrer, o menino vai salvar a vida de dois homens que do contrário morreriam... e um desses homens não deve morrer, para que não se rompa o equilíbrio entre o Acaso e o Desígnio.]

Lois: [- Vamos deixar isso para lá. Só quero saber se podemos voltar a ser Vidas-Curtas normais.]

Láquesis: [Não só podem, Lois, como devem. Se você e Ralph continuassem aqui em cima por mais tempo, não poderiam mais descer.]

Ralph sentiu Lois chegar mais para junto dele.

[- Não ia gostar disso.]

Cloto e Láquesis viraram-se um para o outro e trocaram um olhar de sutil perplexidade como é que alguém pode não gostar daqui? perguntava o olhar - antes de voltarem para Ralph e Lois.

Láquesis: [Realmente precisamos ir agora. Lamento, mas...] Ralph: [- Esperem aí, vizinhos-por enquanto vocês não estão indo a parte alguma]

Eles o olharam apreensivos, enquanto Ralph levantava lentamente a manga da suéter - o punho da manga agora endurecera com um líquido, talvez sangue de cascudo, em que nem queria pensar - e mostrou-lhes a cicatriz branca e grossa no antebraço.

[- Podem parar de fazer cara de constipação, caras. Só quero lembrar que vocês empenharam sua palavra. Não se esqueçam.]

Cloto, com evidente alívio: [Pode confiar, Ralph. O que foi a sua arma agora é o nosso innculo. A promessa não será esquecida]

Ralph estava começando a acreditar que tudo realmente terminara. Por mais doido que parecesse, parte dele lamentava que fosse assim. Agora era a vida real - a vida que transcorria nos andares abaixo deste nível - que parecia quase uma miragem, e ele compreendia o que Láquesis quisera dizer ao lembrar que nunca seriam capazes de retomar suas vidas normais se ficassem muito tempo ali em cima.

Láquesis: [Precisamos realmente ir. Adeus, Ralph e Lois. Nunca esqueceremos o serviço que nos prestaram]

Ralph: [- E em algum momento tivemos escolha? Realmente?]

Láquesis, muito gentilmente: [Nós lhe dissemos isso, não foi? Os Vidas-Curtas sempre têm escolha. Achamos assustador... mas achamos lindo, também]

Ralph: [- Por falar nisso, companheiros, vocês cumprimentam ou se despedem com um aperto de mão?]

Cloto e Láquesis se entreolharam, espantados, e Ralph sentiu um diálogo rápido disparando entre eles numa espécie de taquigrafia telepática. Quando voltaram a encarar Ralph, tinham os mesmos sorrisos nervosos - sorrisos de meninos adolescentes que decidiram que, se neste verão não conseguirem arranjar coragem para andar na montanha-russa gigante do parque de diversões, nunca serão homens de verdade.

Cloto: [Observamos este costume muitas vezes, naturalmente, mas não, não damos apertos de mão.]

Ralph olhou para Lois e viu que ela sorria... mas pensou ter visto também um brilho de lágrimas em seus olhos.

Ele ofereceu a mão a Láquesis primeiro, porque o Sr. L. parecia marginalmente menos nervoso que o seu colega.

[- Dê a mão aqui, Sr. L]

Láquesis ficou olhando tanto tempo a mão de Ralph, que Ralph começou a pensar que ele não ia conseguir realmente

apertá-la, embora fosse visível a sua vontade de fazê-lo. Então, timidamente, ele estendeu sua mãozinha e permitiu que a mão maior de Ralph a envolvesse.

Ralph sentiu um formigamento na pele quando suas auras se mesclaram e, em seguida, se fundiram... e nessa fusão viu uma série de desenhos prateados, belos e fugazes. Lembraram-lhe os caracteres japoneses no cachecol de Ed.

Sacudiu a mão de Láquesis duas vezes, lenta e formalmente, então soltou-a. O olhar de apreensão de Láquesis fora substituído por um sorriso abobado. Virou-se para o parceiro.

[A força dele fica quase completamente desprotegida durante esta cerimônia! Eu a senti! É maravilhoso!]

Cloto estendeu a mão devagarinho ao encontro da de Ralph e, um instante antes de tocá-la, o Sr. C. fechou os olhos como um homem que espera uma injecção dolorosa. Entrementes,

Láquesis estava apertando a mão de Lois, rindo como um sapateador de vaudeville executando um bis.

Cloto pareceu se preparar, então agarrou a mão de Ralph. Sacudiu-a uma vez com firmeza.

Ralph riu.

[- Devagar com a moça, Sr. C.]

Cloto retirou a mão. Pareceu procurar a resposta correcta.

[Obrigado, Ralph, vou traçá-la como puder. Certo?]

Ralph caiu na gargalhada. Cloto, virando-se para apertar a mão de Lois, sorriu intrigado para Ralph, que retribuiu com uma palmadinha nas costas.

[- O senhor entendeu certo, Sr. C.: absolutamente certo.]

Passando o braço pelas costas de Lois, lançou aos doutorezinhos carecas um último olhar curioso.

[- Vou ver vocês outra vez, não vou?]

Cloto: [Vai, Ralph.]

Ralph: [- Que óptimo. Daqui a uns setenta anos estaria bem para mim; por que vocês, caras, não anotam na sua agenda?]

Eles responderam com sorrisos de políticos, o que não o surpreendeu muito. Ralph fez uma pequena reverência para os dois, abraçou Lois e observou o Sr. C. e o Sr. L. descerem lentamente o morro. Láquesis abriu a porta ligeiramente empenada marcada com HOMENS;

Cloto parou à porta aberta do banheiro das MULHERES. Láquesis sorriu e acenou. Cloto ergueu suas tesouras de longas lâminas numa estranha saudação.

Ralph e Lois retribuíram o aceno.

Os doutores carecas entraram e fecharam as portas.

Lois enxugou os olhos molhados de lágrimas e virou-se para Ralph.

[- Acabou? Acabou, não é?]

Ralph confirmou com a cabeça.

[- Que vamos fazer agora?]

Ele estendeu o braço.

[- Posso levá-la em casa, minha senhora?]

Sorrindo, ela segurou seu braço abaixo do cotovelo.

[-Muito obrigado, meu senhor. Pode]

Saíram assim do parque Strawford, voltando ao nível dos Vidas-Curtas ao desembocarem na Avenida Harris, e tornarem a se encaixar em seu lugar normal no esquema das coisas, sem confusões nem incómodos na verdade, sem mesmo se darem conta do que faziam até o terem feito.

DERRY gemia de pânico e transpirava de excitação. As sirenes uivavam, as pessoas gritavam das janelas de segundo andar para os amigos nas calçadas em baixo, em cada esquina gente se aglomerava para apreciar o incêndio do outro lado do vale.

Ralph e Lois não deram a menor atenção ao tumulto e ao alarido. Subiram lentamente a Ladeira-Acima, cada vez mais conscientes de sua exaustão; parecia que ia se empilhando sobre eles como sacos de areia atirados de mansinho. O círculo de luz branca que marcava o estacionamento do mercadinho parecia estar a uma distância impossível, embora Ralph soubesse que eram apenas três quarteirões, e dos pequenos.

Para piorar, a temperatura caíra bem uns dez graus desde aquela manhã, o vento soprava com força, e nenhum dos dois estava vestido para enfrentar aquela mudança de tempo.

Ralph desconfiou que esse fosse o bordo de ataque do primeiro grande temporal de Outono e que, em Derry, tinham terminado os últimos dias quentes do ano.

Faye Chappin, Don Veazie e Stan Eberly desceram a ladeira correndo ao seu encontro, obviamente a caminho do parque Strawford. Os binóculos, que por vezes Dor usava para observar os aviões taxiarem, pousarem e decolarem, balançavam no pescoço de Faye. Com Don, que era pesadão e começava a ficar careca, no meio, a semelhança deles com um trio mais famoso era evidente. Os três patetas do apocalipse, pensou Ralph, e sorriu.

- Ralph! - Faye exclamou. Respirava depressa, quase ofegante. O vento soprava seus cabelos nos olhos e ele os penteava para trás impacientemente.

- A droga do centro cívico explodiu! Alguém lançou uma bomba de um aviãozinho.

Ouvimos falar que tem umas mil pessoas mortas!.

- Ouvi mais ou menos a mesma coisa-concordou Ralph sério. - De fato, Lois e eu estamos voltando do parque onde fomos dar uma olhada. De lá pode-se ver todo o vale até o outro lado, sabe.

- Ora, eu sei disso, morei aqui a vida inteira, ou acha que não? Aonde é que você pensa que estamos indo? Venha com a gente!

- Lois e eu estávamos a caminho da casa dela para ver as notícias na TV. Talvez a gente vá se encontrar com vocês mais tarde.

- Tudo bem, nós... putsgrila, Ralph, que foi que você arranjou na cabeça?

Por um momento Ralph não entendeu - o que arranjara na cabeça? - e em seguida, numa imagem instantânea de pesadelo, ele reviu a boca distorcida e os olhos desvairados de Ed. Ah, não, não vai não, Ed gritara para ele. Você vai estragar tudo.

- Estávamos correndo à procura de uma posição melhor para ver o incêndio e Ralph bateu numa árvore - disse Lois. - Ele tem sorte de não estar no hospital.

Don riu da brincadeira, mas com o jeito distraído de um sujeito que tem coisas mais importantes a fazer. Faye não estava prestando nenhuma atenção aos dois. Mas Stan Eberly estava, e Stan não riu. Observava-os com uma curiosidade meticulosa e intrigada.

- Lois - ele falou.

- Que foi?

- Você sabia que está com um tênis amarrado no pulso? Ela olhou para o tênis. Ralph olhou para o tênis. Então Lois ergueu a cabeça e deu a Stan um sorriso ofuscante de fritar os olhos.

- Estou! - respondeu. - Não fica interessante? Uma espécie de... pulseira-amuleto de tamanho normal!

- É - retrucou Stari. - Claro. - Mas não estava mais olhando para o tênis; olhava agora para o rosto de Lois. Ralph se perguntou como é que iriam explicar sua aparência amanhã, quando não houvesse sombras entre lâmpadas de rua para escondê-los.

- Vamos! - Faye gritou impaciente. - Vamos de uma vez!

Eles se apressaram (e Stan ainda lançou a Ralph e Lois um último olhar desconfiado). Ralph procurou escutar o que diziam, esperando Don Veazie fazer algum comentário.

- Nossa, dei uma explicação tão idiota-disse Lois-mas precisava dizer alguma coisa, não é mesmo?

- Você esteve óptima.

- Bom, quando abro a boca, parece que sempre deixo cair alguma coisa - justificou. - É um dos meus dois grandes talentos, o outro é a capacidade de comer uma caixa inteira de bombons enquanto assisto a um filme de duas horas na TV - Ela desamarrou o tênis de Helen e examinou-o. - Ela está segura, não está?

- Está - Ralph confirmou, estendendo a mão para o tênis. Só então percebeu que já tinha uma coisa na mão esquerda. Seus dedos tinham passado tanto tempo fechados que estavam endurecidos e relutavam em abrir. Quando finalmente se abriram, ele viu as marcas das unhas na palma da mão. A primeira coisa que percebeu foi que, enquanto a sua aliança de casamento continuava no lugar de sempre, a de Ed desaparecera. Ajustara-se perfeitamente, mas pelo visto escorregara do dedo em algum momento, durante a última meia hora.

Talvez não, uma voz sussurrou, e Ralph achou graça ao perceber que não era a de Carolyn.

Desta vez a voz em sua cabeça pertencia a Bill McGovern. Talvez tenha apenas desaparecido. Sabe, puf.

Mas ele achava que não. Tinha a impressão de que a aliança de Ed talvez tivesse sido investida com poderes que não morreriam necessariamente com Ed. O Anel que Bilbo Baggins encontrara e entregara com relutância ao seu neto, Frodo, tinha um jeito de ir onde queria... e quando queria. Talvez a aliança de Ed não fosse muito diferente.

Antes que pudesse aprofundar tal ideia, Lois trocou o tênis de Helen pelo que ele segurava na mão: uma bolinha amassada de papel. Lois alisou-a para ver o que era. A curiosidade foi cedendo lugar à seriedade.

- Lembro-me desta foto - disse. - A grande ficava no console da lareira na sala de estar deles, numa moldura dourada. Num lugar de destaque.

Ralph assentiu com a cabeça.

- Esta deve ser a que ele carregava na carteira. Estava presa no painel de instrumentos do avião. Até eu tirá-la, ele estava me batendo, sem sequer alterar a respiração. Arrancar a foto foi a única coisa em que consegui pensar. Quando fiz isso, a atenção dele mudou do centro cívico para a mulher e a filha.

A última coisa que ouvi Ed dizer foi "Me dê elas de volta, elas são minhas".

- E estava falando com você quando disse isso? Ralph meteu o tênis no bolso traseiro das calças e sacudiu a cabeça.

- Não. Acho que não.

- Helen foi ao centro cívico esta noite, não foi?

- Foi. - Ralph pensou na aparência de Helen em High Ridge: o rosto pálido e queimado de fumaça, os olhos lacrimejantes. Se nos imobilizarem agora, eles ganham a parada, dissera. Você não entende isso?

E agora ele entendia.

Tirou a foto da mão de Lois, amassou-a de novo, e foi até a lixeira instalada na esquina da Avenida Harris com a travessa Kossuth.

- Arranjaremos outra foto deles depois, uma que a gente possa pôr em cima do nosso console. Uma coisa menos formal. Mas essa daí... eu não quero.

E atirou a bolinha de papel na lixeira, uma cesta fácil, no máximo a meio metro de distância, mas o vento escolheu aquele instante para soprar e a foto amassada de Helen e Natalie, que estivera presa ao altímetro do avião de Ed, foi carregada pelo sopro frio. Os dois a observaram subir rodopiando para o céu, quase hipnotizados. Foi Lois quem desviou o olhar primeiro. Olhou para Ralph com um vestígio de sorriso curvando seus lábios.

- Ouvi de passagem uma proposta de casamento sua, ou estou apenas cansada? perguntou.

Ele abriu a boca para responder, mas outra rajada de vento fustigou-os com tanta força que os fez se contraírem e fecharem os olhos. Quando Ralph reabriu os dele, Lois já começara a subir a ladeira de novo.

- Tudo é possível, Lois - ele respondeu. - Agora sei disso.

Cinco minutos depois, a chave de Lois retiniu na fecha dura de sua porta de entrada. Ela fez Ralph entrar e fechou-a com firmeza, deixando de fora a noite controversa e ventosa. Ele a acompanhou até a sala de estar e teria parado ali, mas Lois nem hesitou. Ainda segurando-o pela mão, embora não chegasse a puxá-lo (mas talvez essa fosse a intenção, se ele começasse a remanchar), ela o levou até seu quarto de dormir.

Ralph olhou para ela. Lois retribuiu calmamente o seu olhar... e de repente ele sentiu a piscadela acontecer de novo. Viu a aura de Lois desabrochar à sua volta como uma rosa cinzenta. Ainda estava reduzida, mas já crescendo, tecendo-se, curando-se.

[- Lois, você tem certeza de que é o que você quer?]

[- Claro que é! Você achou que ia lhe dar um tapinha na cabeça e mandá-lo para casa depois de tudo que passamos juntos?]

Inesperadamente ela sorriu - um sorriso muito maroto.

[- Além do mais, Ralph - você acha que realmente está a fim de transar hoje à noite?

Me diga a verdade. Melhor ainda, não me lisonjeie.]

Ele pensou um pouco, então deu uma risada e puxou-a para seus braços. A boca de Lois era doce e ligeiramente úmida como a pele de um pêssego maduro. Aquele beijo pareceu vibrar por todo o seu corpo, mas a sensação concentrava-se mais na boca, onde era quase um choque eléctrico. Quando seus lábios se separaram, sentiu-se mais excitado que nunca... mas também estranhamente esgotado.

[- E se disser que estou, Lois? E se disser que estou a fim de transar?]

Ela recuou, examinando-o criticamente, como se quisesse decidir se ele pensava realmente o que dissera ou se era apenas o costumeiro blefe masculino. Ao mesmo tempo suas mãos procuraram os botões de seu vestido. Quando Lois começou a desabotoá-los, Ralph reparou em algo maravilhoso: ela parecia jovem outra vez. Não chegava aos quarenta nem forçando a imaginação, mas certamente não ultrapassava os cinquenta... e uns cinquenta bem jovens.

Fora o beijo, naturalmente, e o engraçado é que ele achava que Lois não fazia a menor ideia de que acrescentara um reforço dele ao reforço anterior tirado do beberrão. E que mal havia nisso?

Ela terminou a inspecção, curvou-se para a frente e beijou seu rosto.

[- Acho que teremos muito tempo para transar mais tarde, Ralph: hoje a noite é para dormir.]

Ele achava que Lois tinha razão. Há cinco minutos sentira-se mais do que disposto sempre apreciara o amor físico, e já fazia muito tempo. No momento, porém, a centelha se apagara. Ralph não lamentava nem um pouco. Sabia, afinal, aonde tinha ido parar.

[- Muito bem, Lois: hoje a noite é para dormir.]

Ela entrou no banheiro e abriu o chuveiro. Alguns minutos mais tarde, Ralph ouvi-a escovar os dentes. Era bom saber que ainda os possuía. Durante os dez minutos em que ela se ausentou, ele conseguiu despir parte da roupa, embora as costelas latejassem, tornando a tarefa vagarosa. Finalmente conseguiu se desvencilhar da suéter de McGovern e sacudir fora os sapatos. Em seguida, foi a vez da camisa, e ainda lutava sem sucesso com a fivela do cinto, quando Lois saiu com os cabelos presos na nuca e o rosto brilhando. Ralph ficou atordoado com sua beleza, e de repente sentiu-se demasiado grande e idiota (e ainda por cima velho) para seu gosto. Ela vestia uma longa camisola de seda rosa e dava para sentir o cheiro da loção que usara nas mãos. Era gostoso.

- Deixe que eu faço isso - ela se ofereceu e desafivelou o cinto antes que ele pudesse dizer qualquer coisa a favor ou contra. O gesto não teve nada de erótico; ela se movimentava com a eficiência de uma mulher que muitas vezes ajudara o marido a se vestir e a se despir em seu último ano de vida.

- Descemos outra vez-ele falou.-Desta vez, nem senti quando aconteceu.

- Eu desci no chuveiro. Fiquei até satisfeita. Tentar lavar os cabelos através da aura é uma operação complicada.

O vento soprava lá fora, fazendo estremecer a casa e tirando uma nota longa e trémula ao passar pela boca de uma calha. Os dois olharam na direcção da janela e, embora estivessem de volta ao nível dos Vidas-Curtas, Ralph teve a súbita certeza de que Lois pensava no mesmo que ele. Neste momento, Átropos estava lá fora em algum lugar, desapontado com o rumo dos acontecimentos, mas não se sentia vencido: sangrava, mas mantinha a cabeça erguida, caíra, mas não estava fora de combate. De agora em diante, vão poder chamá-lo de O velho Orelheta, pensou Ralph com um arrepio.

Imaginou Átropos balançando-se imprevisível em meio à população excitada e receosa da cidade, como um asteróide errante, espreitando e se ocultando, furtando lembranças e cortando fios de balão...em outras palavras, procurando consolo em seu trabalho. Ralph achava quase impossível acreditar que estivera montado naquela criatura, cortando-o com o seu próprio bisturi, não fazia muito tempo. Onde fui buscar coragem? perguntou-se, mas achava que sabia. Os brincos de diamantes que o monstrinho usava forneceram a maior parte. Será que Átropos sabia que aqueles princos tinham sido o seu maior erro?

Provavelmente não. A seu modo, o Dr. N-3 se provara ainda mais ignorante a respeito das motivações dos Vidas-Curtas do que Cloto e Láquesis. Ralph se virou para Lois e segurou-lhe as mãos.

- Perdi seus brincos novamente. Desta vez, acho que se foram para sempre. Sinto muito.

- Não se desculpe. Eles já estavam perdidos, lembra-se? E não estou mais preocupada com Harold e Jan, porque agora tenho um amigo para me ajudar, quando as pessoas não me tratarem direito, ou quando estiver com medo. Não tenho?

- Tem. Claro que tem.

Ela passou os braços em torno dele, abraçou-o e beijou-o mais uma vez. Aparentemente

Lois não esquecera nadinha do que aprendera em matéria de beijos, e Ralph teve a impressão de que ela aprendera um bocado.

- Agora vá para o chuveiro. - Ele começou a dizer que achava que iria dormir no momento em que metesse a cabeça debaixo de uma corrente de água morna, mas ela acrescentou uma coisa que o fez mudar de ideia bem depressa. - Não fique ofendido, mas você está com um cheiro esquisito, principalmente nas mãos. É o mesmo cheiro com que meu irmão Vic chegava em casa depois de passar o dia limpando peixe.

Dois minutos depois, Ralph estava no chuveiro ensaboado até a cabeça.

QUANDO ele saiu, Lois estava submersa em dois fofos edredons. Só deixara fora o rosto, e assim mesmo do nariz para cima. Ralph atravessou o quarto rápido, só de cuecas e penosamente consciente de suas pernas finas e da barriguinha estufada. Puxou as cobertas e entrou rápido debaixo delas, ofegando um pouquinho quando os lençóis frios deslizaram por sua pele aquecida.

Lois escorregou na mesma hora para o seu lado, abraçando-se com ele. Ralph encostou o rosto nos cabelos dela e deixou-se descansar assim. Era muito bom estar com Lois debaixo das cobertas, enquanto o vento uivava e soprava em rajadas do lado de fora, por vezes com tanta força que sacudia as telas de tempestade nas molduras. Era, na verdade, o paraíso.

- Graças a Deus tem um homem na minha cama - Lois disse sonolenta.

- Graças a Deus sou eu - respondeu Ralph, e ela riu.

- Suas costelas estão bem? Você quer que vá buscar uma aspirina para você?

- Não. Tenho certeza de que vão voltar a doer amanhã de manhã, mas no momento a água quente parece ter descontraído todos os meus músculos. - A menção do que poderia ou não acontecer pela manhã levantou uma pergunta em sua mente... que provavelmente estivera ali todo o tempo à espera. - Lois?

- Hummmm?

Mentalmente Ralph se viu despertando no escuro, profundamente cansado mas sem um pingo de sono (o que era sem dúvida um dos paradoxos mais cruéis do mundo), enquanto os números do relógio digital mudavam tediosamente de 3h47 para 3h48. A noite escura da alma, de F. Scott Fitzgerald, em que cada hora era bastante longa para se construir a grande pirâmide de Quéops.

- Você acha que vamos dormir até amanhã? - ele perguntou.

- Acho - ela respondeu sem hesitar. - Vamos dormir optimamente.

Um instante depois era o que Lois estava fazendo.

Ralph continuou acordado, talvez mais uns cinco minutos, apertando-a em seus braços, aspirando a mistura de perfumes que se desprendia de sua pele morna, regalando-se com o acetinado macio e sensual sob suas mãos, maravilhando-se mais com o estar ali do que com os acontecimentos que o tinham trazido ali. Estava mergulhado em uma emoção simples e profunda, que reconhecia mas não conseguia nomear de pronto, talvez porque estivesse ausente de sua vida há tanto tempo.

O vento soprava em rajadas e gemia do lado de fora, produzindo outra vez aquele som cavo de pio de coruja, na ponta da calha - como se o maior Nirvana Boy do mundo estivesse soprando na boca da maior garrafa de refrigerante do mundo - e ocorreu a Ralph que talvez não houvesse nada melhor na vida do que deitar numa cama macia com uma mulher dormindo em seus braços, enquanto o vento de outono rugia do lado de fora do seu abrigo seguro.

Só que havia uma coisa melhor - pelo menos uma coisa - e era a sensação de adormecer, de entrar suavemente por aquela boa noite, sair deslizando pelo desconhecido do jeito que uma canoa se afasta do ancoradouro e desliza pela corrente de um rio largo e manso num claro dia de verão.

De todas as coisas que compõem a nossa existência de Vidas-Curtas, o sono é certamente a melhor, pensou Ralph.

O vento tornou a soprar do lado de fora (o seu ruído agora parecia vir de uma grande distância) e, quando sentiu a correnteza do grande rio levá-lo, ele finalmente foi capaz de identificar a emoção que vinha experimentando desde que Lois pusera seus braços em volta dele e adormecera com a facilidade de uma criança confiante. Era conhecida por muitos nomes - paz, serenidade, satisfação - mas agora, quando o vento soprava e Lois fazia algum ruído surdo de satisfação onírica no fundo da garganta, parecia a Ralph que era uma das raras coisas que são conhecidas mas essencialmente indizíveis: uma textura, uma aura, talvez um nível inteiro do ser naquela coluna de existência.

Era o castanho-avermelhado suave do descanso; era o silêncio que se segue à realização de alguma tarefa árdua mas necessária.

Quando o vento soprou de novo, trazendo no bojo o som de sirenes distantes, Ralph não o ouviu. Adormecera. Uma vez sonhou que se levantara para usar o banheiro, e supunha que isto talvez não tivesse sido sonho. Outra vez sonhou que ele e Lois tinham feito amor, lenta e docemente, e isto talvez não tivesse sido sonho, tampouco. Se tinha havido outros sonhos ou momentos de vigília, ele não se lembrava, e desta vez não houve nenhum despertar brusco às três nem às quatro horas da manhã. Eles dormiram - por vezes separados, mas a maior parte do tempo juntinhos - até pouco depois das sete horas da noite de sábado; umas vinte e duas horas ao todo.

Lois preparou um café da manhã ao pôr-do-sol - waffles esplendidamente fofos, bacon e batatas fritas. Enquanto ela cozinhava, Ralph tentava exercitar aquele músculo enterrado no fundo de sua mente-criar aquela sensação de piscadela. Não conseguiu. Quando Lois tentou, também não foi capaz, embora Ralph pudesse jurar que, por um instante, ela piscara, e ele vira o fogão através dela.

- Tanto melhor - declarou ela, trazendo os pratos para a mesa.

- Também acho - concordou Ralph, mas ainda sentia que teria preferido perder a aliança que Carolyn lhe dera ao invés da que tirara de Átropos, como se um objeto pequeno mas essencial tivesse rolado para fora de sua vida com uma piscadela e um reflexo de luz.

não a teria feito há muito tempo, naquela época de sua vida em que não havia fios brancos em seus cabelos e ele ainda acreditava, no fundo do coração, que a velhice era um mito, ou um sonho, ou uma coisa reservada às pessoas menos especiais que ele.

APÓS mais duas noites de sono saudável e ininterrupto, as auras tinham começado a esmaecer, também. Na semana seguinte, tinham desaparecido, e Ralph começou a questionar se talvez a coisa toda não fosse apenas um sonho estranho. Ele sabia que não fora, mas ficava cada vez mais difícil acreditar no que realmente sabia. É claro que havia a cicatriz entre o cotovelo e o pulso do seu braço direito, mas ele chegou a se perguntar se...

 

DANDO CORDA NO RELÓGIO DA MORTE

Se espio por cima do ombro vejo seu vulto e sigo caminhando, como alguém no mato ouve à noite o som de passos que se aproximam e pára para escutar: então, ao invés do silêncio ouve uma criatura que tenta ser silente.

Que mais pode fazer senão correr? Foge às cegas pelo caminho, tropeça, bate-se contra os galhos secos; e o outro sempre mais próximo, mas realmente não chega a acelerar nem perde o fôlego, apenas acossa a presa.

- Stephen Dobyns

 

Caça

Se eu tivesse asas, te levaria a voar;

Se eu tivesse dinheiro, te daria a porra da cidade

Se eu tivesse força, te ajudaria na necessidade;

Se eu tivesse uma lanterna, iluminaria teu caminhar,

Se eu tivesse uma lanterna, iluminaria teu caminhar.

- Michael McDermott

 

Lanterna

EM 2 de Janeiro de 1994, Lois Chasse tornou-se Lois Roberts. Seu filho, Harold, levou-a ao altar. A mulher de Harold não compareceu à cerimónia; ficou em Bangor pretextando, na opinião de Ralph, um suspeitíssimo caso de bronquite. Mas guardou as suspeitas para si, pois não sentia o menor desapontamento com a ausência de Jan Chasse. O padrinho do noivo foi o detective John Leydecker, que ainda trazia o braço direito gessado mas não exibia outras marcas da missão que quase o matara. Tinha passado quatro dias em coma, mas sabia a sorte que tivera; além do polícia estadual ao seu lado na hora da explosão, mais seis tiras haviam morrido, dois deles membros da equipe que Leydecker escolhera a dedo.

A madrinha da noiva foi sua amiga Simone Castonguay e, na recepção, quem fez o primeiro brinde foi um sujeito que gostava de dizer que antigamente se chamava Joe Wyze, mas agora estava mais velho e mais sábio, portanto, Wyzer. Trigger Vachon secundou-o com um brinde em inglês estropiado, mas sincero, que concluía fazendo votos de que "Esses dois vivam até cento e cinqüenta anos, sem ter um só dia de reumatismo ou prisão de ventre!"

Quando Ralph e Lois deixaram o salão de recepção, com os cabelos ainda cheios de grãos de arroz atirados principalmente por Faye Chapin e os outros velhos Coroas da Avenida Harris, um velho com um livro na mão e uma tênue nuvem de cabelos brancos flutuando em torno de sua cabeça veio ao encontro dos noivos. Tinha um largo sorriso no rosto.

- Felicidades, Ralph - falou. - Felicidades, Lois.

- Obrigado, Dor - respondeu Ralph.

- Sentimos sua falta - comentou Lois. - Você não recebeu nosso convite? Faye prometeu que o entregaria.

- Ah, ele entregou, sim. Claro que sim, entregou, mas não vou a festas em lugares fechados. Muito abafado. Os enterros são ainda piores. Tome, trouxe isso para vocês. Não embrulhei para presente, porque a artrite nos dedos está muito forte agora para fazer isso.

Ralph recebeu o presente. Era um livro de poemas chamado Concurring Beasts. O nome do poeta, Stephen Dobyns, provocou-lhe um friozinho estranho, mas ele não teve muita certeza do porquê.

- Obrigado - agradeceu a Dorrance.

- Não é tão bom quanto suas últimas obras, mas é bom. Dobyns é muito bom.

- Vamos lê-lo um para o outro na lua-de-mel - disse Lois.

- É um bom momento para se ler poemas - concordou Dorrance. - Talvez o melhor momento. Tenho certeza de que os dois serão muito felizes juntos.

Ele começou a se afastar, então olhou para trás.

- Vocês fizeram um grande trabalho. Os Longas-Vidas ficaram muito satisfeitos.

E foi-se embora.

Lois olhou para Ralph.

- De que é que ele estava falando? Você sabe?

Ralph sacudiu a cabeça. Não sabia, não com certeza, embora sentisse que devia saber. A cicatriz em seu braço começou a formigar como às vezes fazia, uma sensação que era quase como um comichão antigo.

- Vidas-Longas-ela falou pensativa.-Talvez estivesse se referindo a nós, Ralph: afinal de contas não somos nenhum franguinho, não é mesmo?

- É, provavelmente é o que ele quis dizer - concordou Ralph, mas sabia que não... e os olhos de Lois diziam que, lá no fundo, ela também sabia que não.

NAQUELE mesmo dia, e no mesmo instante em que Ralph e Lois diziam o sim, um certo beberrão de aura verde-viva - que realmente tinha um tio em Dexter, embora o tio não visse esse sobrinho imprestável, há cinco anos ou mais - andava perambulando pelo parque Strawford, apertando os olhos para se proteger do formidável reflexo do sol na neve.

Procurava latas e garrafas retornáveis. Suficientes para comprar meio litro de uísque seria legal, mas meio litro de vinho Night Train também servia.

Não muito longe do banheiro marcado HOMENS, ele divisou um forte brilho metálico.

Provavelmente era apenas o sol reflectindo-se numa tampinha de garrafa, mas tais coisas precisavam ser verificadas. Poderia ser uma moeda de dez centavos... embora para um beberrão a coisa realmente parecesse ter um brilho de ouro. Ela...

- Caramba! - exclamou, apanhando a aliança de ouro caída misteriosamente sobre a neve.

Era um anel largo, certamente de ouro. Inclinou-o para ler a gravação do lado de dentro:

HD-ED 5.8.87.

Meio litro? Que nada. Esta gracinha ia lhe garantir um litro. Muitos litros. Possivelmente uma semana de litros.

Quando atravessou correndo o cruzamento da Witcham com a Jackson, a mesma em que uma vez Ralph Roberts quase desmaiara, o beberrão não chegou a ver o ônibus que se aproximava. O motorista o viu, meteu o pé no freio, mas o ônibus deslizou numa placa de gelo.

O beberrão jamais soube o que o atingiu. Num momento debatia se devia comprar Old Crow ou Ôld Grand-Dad; no momento seguinte, fizera a passagem para as trevas que aguardam todos nós. O anel rolou para dentro de um bueiro, e lá permaneceu durante muito, muito tempo. Mas não para sempre. Em Derry, as coisas que desaparecem pelo sistema de esgotos têm um jeito - muitas vezes inoportuno - de reaparecer.

Ralph e Lois não viveram felizes para sempre.

Na realidade não há "para sempres" no mundo dos VidasCurtas, sejam felizes ou não, um fato que Cloto e Láquesis, sem dúvida, conheciam muito bem. Mas o casal realmente viveu feliz por muito tempo. Nenhum dos dois queria declarar francamente que aqueles eram os anos mais felizes de suas vidas, porque se lembravam dos primeiros cônjuges com amor e afeição, mas, no íntimo, ambos consideravam aqueles os mais felizes. Ralph não tinha muita certeza se o amor de Outono seria o mais rico, mas acabou acreditando piamente que era o mais ameno e satisfatório.

Nossa Lois, ele dizia muitas vezes, e dava risadas. Lois fingia se irritar com a frase, mas tal irritação nunca passou de fingimento; ela via a expressão dos olhos de Ralph quando dizia aquilo.

Na primeira manhã de Natal como marido e mulher (ele se mudou para a casinha ordeira de Lois e pôs o seu rinoceronte branco à venda), Lois deu a Ralph uma cachorrinha beagle.

- Gostou? - perguntou apreensiva. - Por pouco não a comprei, Dear Abby diz que jamais se deve dar bichos de presente, mas a bichinha tinha um ar tão meigo na vitrine... e tão triste... se você não gostar dela, ou não quiser passar o resto do inverno tentando treinar um filhote a não fazer pipi no chão, é só dizer. Arranjaremos alguém...

- Lois - ele respondeu, tentando dar à sobrancelha aquele arqueado irônico especial de Bill McGovern - você está se atropelando.

- Estou?

- Está. É uma coisa que faz quando está nervosa, mas pode parar de se sentir nervosa agora. Adorei essa mocinha. - E não era exagero; apaixonara-se pela cadelinha beagle, preta e conhaque, quase à primeira vista.

- Que nome vai dar a ela? - Lois perguntou. - Já tem ideia?

- Claro que tenho. Rosalie.

OS QUATRO anos seguintes foram, de um modo geral, bons para Helen e Nat Deepneau, também. Moraram modestamente num apartamento do lado leste da cidade durante algum tempo, sobrevivendo com o salário de bibliotecária de Helen, mas sem fazerem muito mais que isto. O chalezinho na rua de Ralph fora vendido, mas ela gastara a maior parte do dinheiro no pagamento de contas atrasadas. Então, em Junho de 1994, recebeu uma dádiva inesperada da companhia de seguros... só que o promotor dessa dádiva foi John Leydecker.

Primeiramente a companhia de seguros recusara-se a pagar a apólice de seguro de vida de Ed Deepneau, alegando que ele se suicidara. Depois de muito palavrório e reclamação, a companhia ofereceu um bom acordo. Foram convencidos por um companheiro de pôquer de John Leydecker, chamado Howard Hayman. Quando não estava jogando variantes do pôquer, Hayman era um advogado que gostava de comer às custas das companhias de seguros.

Leydecker reencontrara Helen na casa de Ralph e Lois em fevereiro de 1994, ficara absolutamente fascinado por ela ("Nunca foi realmente amor," ele confessou a Ralph e Lois depois, "o que provavelmente foi uma sorte, considerando-se o rumo que as coisas tomaram"), e a apresentara a Hayman, perque achou que a companhia de seguros estava tentando passá-la para trás. "Ele era louco e não, suicida" - Leydecker falou e manteve essa opinião até muito depois de Helen ter-lhe entregado o chapéu e apontado a porta da rua.

Confrontada com um processo judicial em que Howard Hayman ameaçava fazer a companhia de seguros parecer o vilão Snidely Whiplash amarrando Little Nell aos trilhos do trem, Helen recebeu um cheque de setenta mil dólares. Em fins do Outono de 1994, ela usou a maior parte do dinheiro para comprar uma casa na avenida Harris, um pouco acima de sua casa antiga e bem defronte da de Harriet Benningan.

- Nunca fui realmente feliz no lado leste - ela comentou com Lois num dia de Novembro daquele ano. As duas voltavam de um passeio no parque e Natalie desmontara profundamente adormecida no carrinho; sua presença era pouco mais que a pontinha cor-derosa do nariz e o vapor da respiração sob uma grande touca de esquiar que a própria Lois tricotara. - Costumava sonhar com a avenida Harris. Não é uma maluquice?

- Acho que os sonhos nunca são maluquices-respondeu Lois.

Helen e John Leydecker namoraram quase todo aquele verão, mas nem Ralph nem Lois ficaram particularmente surpresos quando o namoro terminou abruptamente, depois do feriado de Setembro, ou quando Helen começou a usar um discreto alfinete com um triângulo rosa nas blusas discretas de bibliotecária. Talvez não se surpreendessem porque eram suficientemente velhos para terem visto de tudo pelo menos uma vez, ou talvez, em algum nível mais profundo, continuassem a vislumbrar as auras que rodeavam as coisas, o portal colorido que dava acesso a uma cidade secreta de significados ocultos, motivações encobertas e agendas dissimuladas.

Ralph e Lois serviam de babá para Natalie, com freqüência, depois que Helen voltara para a avenida Harris, e apreciavam imensamente tais oportunidades. Nat era a criança que seu casamento poderia ter produzido se tivesse ocorrido trinta anos antes; o dia de inverno mais frio e escuro se aquecia e clareava quando Natalie entrava com seus passinhos inseguros, parecendo uma versão anã do dirigível da Goodyear no seu macacão cor-de-rosa, acolchoado para neve, com as luvas penduradas nos punhos, e gritava alegremente: "Oi, Walf! Oi, Roliss! Vim bisitar ocês!"

Em Junho de 1995, Helen comprou um Volvo recondicionado. Na traseira, colou um adesivo com os dizeres: UMA MULHER PRECISA DE HOMEM COMO UM PEIXE PRECISA DE BICICLETA. Tal sentimento tampouco surpreendeu particularmente a Ralph, mas a visão do adesivo sempre o fazia infeliz. As vezes, ele pensava que a pior herança que Ed deixara à sua viúva estava resumida nessa ideia amargurada que não chegava a ter graça e, quando a via, Ralph frequentemente se lembrava da aparência de Ed naquela tarde de verão, em que ele saíra do mercadinho para enfrentá-lo. Ed estava sentado, sem camisa, sob a chuva produzida pelo regador automático de jardim. Havia uma gota de sangue em uma lente dos seus óculos. Ele se curvara para a frente, encarando Ralph com seus olhos sérios e inteligentes, e dissera que, quando a burrice atingia determinado nível, tornava-se difícil conviver com ela.

Depois daquilo, começaram a acontecer coisas, Ralph por vezes pensava. Que coisas exatamente, ele já não conseguia lembrar, e talvez fosse melhor assim. Mas este lapso de memória (se é que era isso) não mudava sua crença de que Helen fora tapeada, que de uma forma pouco clara... um destino mal-humorado amarrara uma lata em seu rabo e ela nem sabia disso.

UM mês depois que Helen comprou o Volvo, Faye Chappin sofreu um ataque cardíaco enquanto compunha uma lista preliminar de competidores para o Clássico de Xadrez da Pista 3. Foi levado para o Derry Home, onde faleceu sete horas mais tarde. Ralph visitou-o pouco antes do fim e, quando viu os números na porta - 315 - foi engolfado por uma forte sensação de déjà vu. Primeiro pensou que fosse porque Carolyn terminara sua última doença logo adiante naquele corredor, e então se lembrou que Jimmy V. morrera naquele mesmo quarto. Ele e Lois tinham-no visitado pouco antes do fim e Ralph achava <jue Jimmy reconhecera os dois, embora não tivesse certeza; suas lembranças da época em que realmente começara a prestar atenção em Lois eram confusas e vagas em sua mente.

Supunha que parte disso se devia ao amor, e outro tanto provavelmente à passagem dos anos, mas a maior parte provavelmente se devia à insónia - passara por um grande sofrimento nos meses que se seguiram à morte de Carolyn, embora o problema se resolvesse com o tempo, como tantas vezes acontece. Contudo, parecia-lhe que alguma coisa ([alô mulher alô homem estávamos à sua espera])

muito extraordinária acontecera naquele quarto, e quando tomou a mão seca e mole de Faye e sorriu para seus olhos atemorizados e confusos, ocorreu-lhe um estranho pensamento:

Eles estão parados bem ali no canto nos observando.

Então espiou. Não havia ninguém no canto, naturalmente, mas por um instante... apenas por um instante...

A VIDA entre os anos de 1993 e 1998 transcorreu como transcorre a vida em lugares como Derry: a brotação de Abril se transformou nas folhas quebradiças e esvoaçantes de Outubro; as árvores de Natal foram levadas para casa em meados de Dezembro e despejadas nas caçambas de lixo, com os fios de papel prateado ainda pendurados tristemente em seus galhos, durante a primeira semana de Janeiro; os bebés chegaram pela porta de entrada e os velhos foram embora pela porta de saída. Por vezes gente no auge da vida ia embora pela porta de saída, também.

Em Derry houve cinco anos de cortes de cabelos e permanentes, tempestades e festas de formatura, cafés e cigarros, jantares de filé mignon no Parker's Cove e cachorros-quentes no campo da Liga Mirim. Moças e rapazes se apaixonaram, bêbados caíram dos carros, as saias curtas caíram de moda. As pessoas renovaram seus telhados e recimentaram as entradas das garagens. Velhos vagabundos perderam as eleições para cargos públicos; novos vagabundos os substituíram. Foi a vida, muitas vezes insatisfatória, frequentemente cruel, em geral chata, por vezes linda, ocasionalmente estimulante. As coisas fundamentais continuaram a vigorar durante o tempo que passou.

No início do Outono de 1996, Ralph se convenceu de que tinha um câncer no colo do intestino. Começara a encontrar mais do que vestígios de sangue em suas fezes e, quando finalmente foi consultar o Dr. Pickard (o substituto alegre e descabelado do Dr. Litchfield) foi com visões de camas de hospital e sessões de quimioterapia dançando sombriamente na cabeça. Ao invés de câncer, o problema era uma hemorróida que na frase memorável do Dr. Pickard tinha "dado a louca". Ele prescreveu supositórios, que Ralph levou à Rite Aid mais abaixo na rua. Joe Wyzer leu a receita, e sorriu animado para Ralph.

- Que merda - falou - mas acaba com o câncer de colo, você não concorda?

- A ideia de um câncer jamais passou pela minha cabeça - Ralph respondeu secamente.

Um dia, durante o inverno de 1997, Lois resolveu que queria escorregar por sua encosta preferida no parque Strawford, no trenó de plástico, tipo disco voador, de Nat Deepneau.

Ela "desceu mais rápido do que porco besuntado em calha de transporte" (a frase foi de Don Veazie; por acaso estava lá naquele dia, apreciando o movimento) e colidiu com a lateral do banheiro marcado MULHERES. Lois contundiu o joelho e torceu a coluna e, embora Ralph soubesse que isso não se faz - porque é, no mínimo, antipático - rolou de rir durante quase todo o trajecto até o pronto-socorro. O fato de Lois também rir às gargalhadas apesar da dor não ajudou Ralph a se controlar. Riu até as lágrimas rolarem de seus olhos e chegou a pensar que ia ter um enfarto. Ela parecera tão Nossa Lois descendo a encosta naquela coisa, girando sem parar de pernas cruzadas, como aqueles iogues do Misterioso Oriente, e quase derrubara o banheiro na colisão. Estava inteiramente curada na altura em que a primavera chegou, embora aquele joelho sempre doesse nas noites chuvosas e ela se agastasse ao ouvir Don Veazie perguntar, quase sempre que a via, se tinha mergulhado em mais alguma latrina ultimamente.

APENAS a vida, transcorrendo como sempre - ou seja, principalmente nas entrelinhas e nas margens. É o que acontece enquanto fazemos nossos planos, segundo um sábio desses, e se a vida foi excepcionalmente boa para Ralph Roberts naqueles anos, talvez fosse porque ele não fizera outros planos. Cultivou a amizade de Joe Wyzer e John Leydecker, mas seu melhor amigo durante aqueles anos foi sua mulher. Iam a quase toda parte juntos, não tinham segredos um para o outro, e brigavam tão raramente, que se poderia dizer que nunca brigavam. Ele também tinha Rosalie, a beagle, a cadeira de balanço que herdara do Sr. Chasse, e as visitas quase diárias de Natalie (que passara a chamá-los de Ralph e Lois ao invés de Walf e Roliss, uma mudança que nenhum dos dois considerara um progresso). E gozava de boa saúde, o que talvez fosse o melhor de tudo. Era apenas a vida, cheia dos prémios e percalços Vidas-Curtas, e Ralph viveu-a com satisfação e serenidade até meados de Maio de 1998, quando acordou certa madrugada, olhou para o relógio digital ao lado da cama e viu que eram 5h49.

Continuou deitado quieto, junto de Lois, sem querer levantar-se para não perturbá-la, intrigado com o que o teria acordado.

Então ouviu.

Você sabe o quê, Ralph.

Não, não sei.

Sabe, sim. Escute.

Então ele escutou. Escutou com toda a atenção. E, decorrido algum tempo, começou a ouvir a coisa nas paredes: o tiquetaquear baixo e suave do relógio da morte.

Ralph acordou às 5h47 na manhã seguinte, e às 5h44 na seguinte àquela. Seu sono foi sendo desbastado, minuto por minuto, enquanto o inverno lentamente afrouxava sua garra sobre Derry e permitia à primavera encontrar o caminho de retorno. Pela altura de Maio, ele estava ouvindo o tiquetaquear do relógio da morte por toda parte, mas compreendia que vinha de um único lugar, de onde apenas se projectava, como um bom ventríloquo é capaz de projectar a voz. Antes, vinha de Carolyn. Agora, vinha dele mesmo.

Não sentiu o terror que o assaltara quando teve a certeza de estar com câncer, nem tampouco o desespero que vagamente lembrava ter sentido no período anterior de insónia.

Cansava-se mais depressa e começava a achar difícil se concentrar e se lembrar das coisas mais simples, mas aceitava calmamente o que estava lhe acontecendo.

- Você está dormindo bem, Ralph?-Lois perguntou-lhe um dia. - Está com olheiras enormes debaixo dos olhos.

- São as drogas - respondeu Ralph.

- Muito engraçado, seu velho paspalho. Ralph tomou Lois nos braços, e abraçou-a.

- Não se preocupe comigo, querida: estou dormindo tudo que preciso.

Uma semana depois, ele acordou às 4h02, com um fio de calor profundo latejando no braço - latejando em perfeita sincronia com o som do relógio da morte que era, é claro, nada mais nada menos que as batidas do seu próprio coração. Mas a coisa não era o seu coração, ou pelo menos Ralph achava que não era; dava a impressão de um filamento eléctrico embutido na carne de seu antebraço.

E a cicatriz, ele pensou, e em seguida: Não, é a promessa. Chegou a hora de cumprir a promessa.

Que promessa, Ralph? Que promessa?

Ele não sabia.

UM dia, no início de Junho, Helen e Nat apareceram para fazer uma visita e para contar a

Ralph e Lois a visita que tinham feito a Boston com a "tia Melanie", uma caixa de banco de quem Helen se tornara amiga íntima. Helen e tia Melanie tinham ido a uma espécie de convenção feminista, enquanto Natalie entrava em rede com um bilhão de amiguinhos novos na creche diurna, depois tia Melanie viajara para outras actividades feministas em Nova Iorque e Washington. Helen e Nat continuaram em Boston mais uns dias, fazendo turismo.

- Fomos ao cinema ver um desenho animado - contou Natalie.

- Era uma história de bichos na floresta. E eles falavam! - Pronunciou esta última palavra com uma grandiosidade shakespeariana.

- Filmes em que os bichos falam são legais, não são? - Lois perguntou.

- São! E também ganhei este vestido novo!

- É um vestido muito bonito! - Lois comentou. Helen observava Ralph.

- Você está bem, amigo velho? Parece abatido e até agora não disse nenhuma palavra.

- Nunca me senti melhor - ele respondeu. - Só estava aqui admirando como vocês duas ficam engraçadinhas com esses bonés. Comprarara em Fenway Park?

Helen e Nat estavam usando bonés do Boston Red Sox. Eram muito comuns na Nova Inglaterra durante o calor ("mais comum que titica de gato", diria Lois), mas a visão dos bonés na cabeça das duas evocou em Ralph um sentimento ressonante, profundo... e ligado a uma certa imagem, que ele não conseguiu compreender: a frente do mercadinho.

Nesse meio tempo, Helen tinha tirado o boné e o examinava.

- Compramos - respondeu. - Fomos até lá, mas só assistimos a três tempos. Homens lançavam bolas e apanhavam bolas. Acho que ultimamente não ando com muita paciência para os homens e suas bolas... mas gostamos desses bonés Bosox, maneiros, não é, Natalie?

- É! - Nat concordou com vivacidade, e quando Ralph acordou na manhã seguinte às 4h01, a cicatriz vibrava seu fiozinho de calor dentro do seu braço e o relógio da morte quase parecia ter adquirido voz, uma voz que sussurava sem parar um nome estranho, de som alienígena: Átropos... Átropos... Átropos.

Conheço esse nome.

Conhece mesmo, Ralph?

Era um cara com um bisturi enferrujado e um tremendo mau caráter, um cara que me chamava de Coroa, um cara que levou... levou...

Levou o quê, Ralph?

Ralph estava se habituando a essas discussões silenciosas; pareciam ocorrer em alguma faixa de rádio mental, uma frequência pirata que operava somente de madrugada, nas horas em que ele ficava acordado ao lado da mulher adormecida, esperando o sol se levantar.

Levou o quê? Você se lembra?

Ele não esperava se lembrar; as perguntas que aquela voz lhe fazia quase sempre ficavam sem resposta mas, desta vez, inesperadamente a resposta não tardou.

O chapéu de Bill McGovern, naturalmente. Átropos levou o chapéu de Bill McGovern, e uma vez deixei-o tão enfurecido que ele arrancou às dentadas um pedaço da aba do chapéu.

Quem é ele? Quem é Átropos?

Disso não tinha muita certeza. Só sabia que havia alguma ligação entre Átropos e Helen, que agora possuía um boné do Boston Red Sox, de que parecia gostar muito, e que ele era dono de um bisturi enferrujado.

Em breve, pensou Ralph Roberts deitado no escuro, escutando o tiquetaquear leve e constante do relógio da morte nas paredes. Em breve saberei.

DURANTE a terceira semana daquele Junho de assar os miolos, Ralph recomeçou a ver as auras.

QUANDO Junho escorregou para Julho, Ralph viu-se tendo acessos de choro com frequência e, em geral, sem nenhuma razão discernível. Era estranho: não se sentia deprimido nem insatisfeito mas, às vezes, olhava para alguma coisa - talvez um pássaro voando solitário no céu - e seu coração vibrava com um sentimento de tristeza e perda.

Está quase no fim, a voz interior disse. Já não pertencia a Carolyn nem a Bill, nem mesmo a um Ralph mais jovem; tornara-se independente, a voz de um estranho, embora não fosse necessariamente má. E por isso que você está triste, Ralph.

É perfeitamente normal se entristecer quando as coisas começam a descambar.

Não está nada no fim! - Ralph gritou em resposta. Por que estaria? No meu último checkup médico, o Dr. Pickard disse que eu Estava vendendo saúde! Estou óptimo! Nunca estive melhor na vida!

A voz interior silenciou. Mas era um silêncio de quem sabe das coisas.

- MUITO bem - Ralph exclamou em voz alta, certa tarde quente de fins de Julho. Achava-se sentado em um banco, não longe do lugar onde se erguera a velha chaminé de Derry até 1985, quando aquele grande temporal a derrubara. Na base do morro, junto ao banho dos passarinhos, um rapaz (um sério observador de pássaros, a julgar pelos binóculos que usava e a grossa pilha de livros que havia ao seu lado na grama) fazia anotações meticulosas no que parecia uma espécie de diário. - Muito bem, me diga por que está quase no fim. Me diga apenas isso.

Não houve resposta imediata, mas Ralph não se importou; estava disposto a esperar. Fizera uma boa caminhada até ali, o dia estava quente e ele, cansado. Agora andava acordando por volta das três e meia todos os dias. Recomeçara a fazer longas caminhadas, mas sem esperar que o ajudassem a dormir melhor ou por um tempo maior; imaginava-se fazendo peregrinações, visitando todos os lugares de Derry de que gostava, pela última vez. Despedindo-se.

Porque chegou a hora de cumprir a promessa, a voz respondeu, e a cicatriz recomeçou a vibrar com o seu calor fino e profundo. A que foi feita a você e a que você fez em troca.

- Qual foi? - ele perguntou agitado. - Por favor, se fiz uma promessa, por que não consigo me lembrar dela?

O sério observador de pássaros escutou isso e olhou para o alto do morro. O que viu foi um homem sentado num banco de jardim, aparentemente falando sozinho. Os cantos da boca do sério observador de pássaros despencaram de desgosto e ele pensou: Espero morrer antes de ficar velho assim. Juro que espero. Então voltou sua atenção para o banho de passarinhos e retomou suas anotações.

Lá no fundo da cabeça de Ralph, de repente, sobreveio aquela sensação de aperto - aquela piscadela - e embora ele não se mexesse no banco, sentiu-se impulsionado velozmente para o alto... mais depressa e mais longe que nunca.

De jeito nenhum - a voz disse. Uma vez você esteve muito mais alto que isso, Ralph, e Lois, também. Mas falta pouco para chegar lá. Logo você estará pronto.

O observador de pássaros, que vivia, sem sequer saber, no centro de uma linda aura dourada, espiou cautelosamente a toda volta, talvez para se certificar de que o velho senil, sentado no banco no alto do morro, não estaria se aproximando dele furtivamente com um instrumento rombudo na mão. O que ele viu, fez a linha contraída e afetada de sua boca suavizar-se de assombro. Seus olhos se arregalaram. Ralph percebeu repentinos raios azulanil na aura do sério observador de pássaros e concluiu que estava diante de um efeito de choque.

Que aconteceu com ele? Que é que está vendo?

Mas a pergunta estava errada. Não era o que o observador de pássaros via; era o que ele não via. Ele não via Ralph, porque Ralph subira suficientemente alto para desaparecer do seu nível de percepção - tornara-se o equivalente visual de uma nota soprada num apito de cachorro.

Se eles estivessem aqui agora, poderia vê-los facilmente.

Quem, Ralph? Se quem estivesse aqui? TOO Cloto, Lcíquesis. E Átropos.

Instantaneamente as peças começaram a se juntar em sua mente, como peças de um quebracabeça que parecera muito mais complicado do que realmente era.

Ralph, sussurrando: [- Ah meu Deus. Ah meu Deus.

Ah meu Deus.]

SEIS dias depois, Ralph acordou às três e quinze da manhã e soube que chegara a hora de cumprir sua promessa.

- ACHO que vou dar uma saída até o mercadinho e comprar uma caixa de sorvete Ralph anunciou.

Eram quase dez horas da manhã. Seu coração batia acelerado demais e seus pensamentos estavam difíceis de localizar sob o ruído branco e constante de terror que o invadira. Nunca sentira menos vontade de comprar sorvete na vida, mas era uma desculpa razoável para uma ida ao mercadinho; era a primeira semana de Agosto, e a meteorologia previra que a coluna de mercúrio provavelmente atingiria trinta e dois graus no início da tarde, com aguaceiros ao anoitecer.

Ralph pensou que não teria de se preocupar com os aguaceiros.

Havia uma estante apoiada sobre folhas de jornal junto à porta da cozinha. Lois pintava-a de vermelho-galpão. Agora levantou-se, apoiou as mãos nos rins e se espreguiçou. Ralph ouviu os estalinhos minúsculos de sua coluna alongando-se.

- Vou com você. Minha cabeça vai doer hoje à noite, se eu não me afastar dessa tinta um pouco. Nem sei por que inventei de pintar num dia tão feio, para começar.

A última coisa que Ralph queria era a companhia de Lois para ir ao mercadinho.

- Não precisa, querida; trago um daqueles picolés de coco de que você gosta. Não pretendo nem levar Rosalie, está tão abafado. Por que não descansa um pouco na varanda dos fundos?

- Qualquer picolé que você trouxer de uma loja num dia como hoje estará despencando do pauzinho quando chegar aqui - Lois argumentou. - Vamos, vamos logo, enquanto ainda tem sombra deste lado da...

Mas não terminou. O sorriso estampado em seu rosto desapareceu. Foi substituído por um ar de desalento, e o cinza de sua aura, que só escurecera ligeiramente durante os anos em que Ralph não a via, agora começou a refulgir com fiapos incandescentes rosa-rubros.

- Ralph, que está acontecendo? Que é que você vai realmente fazer lá?

- Nada - ele respondeu, mas a cicatriz refulgia dentro de seu braço e o tiquetaquear do relógio da morte estava por toda parte, alto e onipresente. Dizia-lhe que tinha um encontro marcado. Uma promessa a cumprir.

- Está, e está acontecendo nos últimos dois ou três meses, talvez há mais tempo. Sou uma mulher boba, sabia que havia alguma coisa, mas não consegui me decidir a encará-la de frente. Porque tive medo. E tinha razão para ter medo, não tinha? Eu estava certa.

- Lois...

De repente ela cruzou a sala até ele, depressa, quase aos pulos, sem que o velho problema da coluna a retardasse em nada, e antes que Ralph pudesse impedi-la, ela agarrou seu braço direito, e o estendeu, olhando-o fixamente.

A cicatriz tinha um brilho forte e vermelho.

Ralph teve apenas um instante para torcer que aquilo fosse um brilho estritamente da aura e que ela não pudesse vê-lo. Então Lois ergueu os olhos arregalados e cheios de terror. Terror e mais alguma coisa. Ralph achou que essa mais alguma coisa era reconhecimento.

- Ah meu Deus - ela susssurrou. - Os homens no parque. Aqueles de nomes engraçados... Cloro e Lascas ou qualquer coisa assim... e um deles abriu o seu braço. Ah Ralph, ah meu Deus, que é que você tem que fazer?

- Vamos, Lois, não fique assim...

- Não se atreva a me dizer para não ficar assim! - ela gritou na cara dele. - Não se atreva! Não se ATREVA!

Depressa, a voz interior sussurrou. Não M tempo para você ficar aqui discutindo; em algum lugar a coisa já começou a acontecer, e o relógio da morte que você ouve talvez não bata só para você.

- Tenho que ir. - Virou-se e saiu desatinado em direcção à porta. Na agitação, nem reparou num certo detalhe sherlockiano que compunha a cena: o cachorro que devia ter latido - um cachorro que sempre latia em severa censura quando ouvia vozes se altercando em casa - não se manifestara. Rosalie não se achava em seu posto habitual junto à porta de tela... e a porta estava entreaberta.

Rosalie não podia estar mais distante do pensamento de Ralph naquele momento. Sentia-se como que mergulhado em melado até os joelhos, e achou que seria um feito chegar até a varanda, e outro ainda maior até o mercadinho na subida da rua. Seu coração socava e derrapava no peito; seus olhos ardiam.

- Não! - Lois berrou. - Não, Ralph, por favor! Por favor não me deixe!

Correu atrás dele, agarrou-o pelo braço.. Ainda trazia na mão o pincel, e os borrifos vermelhos que caíram em sua camisa pareceram sangue. Ela chorava agora, e sua expressão de absoluta e abjecta tristeza quase partiu o coração de Ralph. Ele não queria deixá-la naquele estado; não tinha certeza de poder deixá-la naquele estado.

Virou-se e segurou-a pelos braços.

- Lois, eu tenho que ir.

- Você não tem dormido bem - ela balbuciou. - Eu sabia, e sabia que só podia significar problemas, mas não faz diferença, vamos embora, podemos partir agora mesmo, é só apanhar a Rosalie e as escovas de dentes e ir...

Ralph apertou seus braços e ela parou, erguendo para ele os olhos lacrimejantes. Seus lábios tremiam.

- Lois, escute aqui. Eu tenho que fazer isso.

- Eu perdi Paul, não posso perder você também! - ela choramingou. -Não poderia suportar mais isso! Ah Ralph, eu não poderia suportar!

Você arranjará forças, ele pensou. Os Vidas-Curtas são bem mais fortes do que parecem.

Têm que ser.

Ralph sentiu lágrimas escorrerem pelo rosto de Lois. Suspeitou que brotassem mais do cansaço do que do pesar. Se ele conseguisse fazê-la ver que sua revolta não mudaria nada, apenas tornaria mais penoso o que ele tinha de fazer...

Afastou-a à distância dos braços. A cicatriz latejava com maior intensidade que nunca, e a sensação do tempo a se esgotar inapelavelmente se tornara avassaladora.

- Me acompanhe uma parte do caminho, se quiser - falou. - Talvez você possa até me ajudar a fazer o que preciso fazer. Eu vivi minha vida, Lois, e foi uma boa vida. Mas ela realmente ainda não viveu nada, e por nada no mundo vou deixar aquele filho da puta levála só porque tem uma conta a acertar comigo.

- Que filho da puta, Ralph, de quem é que você está falando?

- Estou falando de Natalie Deepneau. Ela deverá morrer esta manhã, só que não vou deixar isso acontecer.

- Nat ? Ralph, por que alguém iria querer fazer mal a Nat? Ela encarava-o perplexa, muito

Nossa Lois... mas será que não haveria algo mais sob aquele exterior abobado? Algo cauteloso e calculista? Ralph achava que sim. Ralph tinha a impressão de que Lois não sentia nem metade da perplexidade que fingia. Enganara Bill McGovern durante anos com aquele número - e ele também, pelo menos parte do tempo - e essa era apenas mais uma variação (e até brilhante) do velho golpe.

O que estava realmente tentando fazer era segurá-lo ali. Amava Nat profundamente, mas, para Lois, escolher entre o marido e a menininha que morava ali adiante não era uma escolha. Ela não achava que fosse uma questão de idade ou de justiça. Ralph era seu homem, e para Lois só isso importava.

- Não vai funcionar-ele falou, sem dureza. Desembaraçou-se dela e recomeçou a andar em direcção à porta. - Fiz uma promessa, e estou em cima da hora.

- Quebre a promessa, então! - ela gritou, e a mescla de terror e fúria em sua voz chocouo. - Não me lembro muito bem daquele tempo, mas me lembro que nos envolvemos com coisas que quase nos mataram, e por motivos que sequer conseguíamos compreender.

Portanto, quebre-a, Ralph! Antes a sua promessa do que o meu coração!

- E a menina? E Helen? Nat é a vida dela. Será que Helen não merece de mim nada melhor que uma promessa quebrada?

- Não me interessa o que ela merece! O que qualquer das duas merece! - gritou, e então seu rosto enrugou. - Está bem, suponho que me interessa. Mas e nós, Ralph? Nós não contamos? - Seus olhos ibéricos, escuros e eloquentes, suplicaram. Se os fitasse muito tempo, tudo terminaria em choro, por isso Ralph virou o rosto.

- Pretendo cumprir a promessa, querida. Nat vai receber o que você e eu já tivemos...

outros setenta e tantos anos de dias e noites.

Ela olhou para ele desamparada, mas não fez nenhuma tentativa de detê-lo. Ao invés disso, começou a chorar.

- Velho tolo! - murmurou. - Velho tolo e voluntarioso!

- Acho que sou-respondeu, erguendo o queixo de Lois. - Mas sou um velho tolo e voluntarioso de palavra. Venha comigo. Eu gostaria que viesse.

- Está bem, Ralph. - Ela mal conseguia ouvir a própria voz, e sua pele estava fria como argila. Sua aura avermelhara quase inteiramente. - O que é? O que vai acontecer com ela?

- Ela vai ser atropelada por um Ford sedan verde. A não ser que eu a substitua, seu corpo vai se espalhar por toda a Avenida Harris... e Helen vai presenciar isso.

QUANDO subiam a avenida em direção ao mercadinho (a princípio Lois ficava para trás, depois dava uma corridinha para alcançá-lo, mas parou de fazer isso quando viu que não iria retardá-lo com um expediente tão simples), Ralph lhe contou o pouco mais que podia. Lois lembrava vagamente de ter estado sob a árvore atingida pelo raio, junto à Extensão - uma lembrança que acreditara, pelo menos até esta manhã, fazer parte de um sonho - mas naturalmente ela não estivera presente durante o confronto final de Ralph com Átropos.

Ralph contou-lhe agora da morte acidental que Átropos pretendia que Nat sofresse se ele continuasse a atrapalhar seus planos. Contou-lhe que extraíra uma promessa de Cloto e Láquesis para que a ameaça de Átropos fosse anulada e Nat salva.

- Tenho a impressão de que... a decisão foi tomada... muito perto do topo desse edifício doido... dessa Torre... a que eles não paravam de se referir. Talvez... no topo mesmo. - Ofegava ao falar e seu coração batia mais acelerado que nunca, mas ele achou que isso se devia principalmente à caminhada rápida e ao dia escaldante; seu medo acalmara um pouco. Conversar com Lois produzira esse efeito.

Agora ele já podia ver o mercadinho. A Sra. Perrine estava no ponto do ônibus, meio quarteirão acima, empertigada como um general passando em revista as tropas. Trazia a sacola de compras pendurada no braço. Havia um abrigo no ponto, e sombra debaixo dele, mas a Sra. Perrine, imperturbável, desprezava sua existência. Mesmo com um sol ofuscante, Ralph podia ver que sua aura era o mesmo cinza-academia-militar daquela noite de Outubro em 1993. De Helen e Nat ainda não havia sinal.

- CLARO que sabia quem ele era - Esther Perrine conta depois ao repórter do News de Derry. - Eu lhe pareço incompetente, rapazinho? Ou senil? Conheço Ralph Roberts há mais de vinte anos. Um bom homem. Não era da mesma classe que sua primeira esposa, é claro-Carolyn era uma Satterwaite, dos Satterwaites de Bangor - mas um homem correcto. Reconheci o motorista daquele carro Ford, também, na hora. Pete Sullivan entregou jornal na minha porta durante seis anos, e trabalhava bem. O novo, o menino dos Morrison, sempre atira o jornal nos meus canteiros ou no telhado da varanda. Pete estava ao volante em companhia da mãe, tinha uma carteira de aprendiz, pelo que entendi. Espero que ele não vá ficar muito traumatizado com o que aconteceu, porque é um bom menino, e realmente não foi culpa dele. Vi tudo o que aconteceu e posso jurar.

- Suponho que você pense que estou fugindo do assunto. Não precisa negar; posso ler em sua cara como se estivesse impresso no seu jornal. Mas não me importo, já disse praticamente tudo que queria dizer. Soube que foi Ralph na hora, mas tem uma coisa que você não vai entender mesmo que publique em sua reportagem... o que provavelmente não fará. Ninguém viu de onde ele surgiu para salvar aquela menininha.

Esther Perrine fixa o jovem repórter respeitosamente calado com um olhar formidável fixa-o como um lepidopterista fixaria uma borboleta com um alfinete depois de lhe dar clorofórmio.

- Não estou dizendo que parece que ninguém viu de onde ele surgiu, rapazinho, embora possa apostar que é isso que você vai escrever.

Ela se inclina para o repórter, sem tirar os olhos de seu rosto, e repete.

- Ninguém viu de onde ele surgiu para salvar aquela menininha. Você está me entendendo?

Ninguém viu.

O ACIDENTE foi parar na primeira página do News de Derry na manhã seguinte. Esther Perrine fez comentários suficientemente pitorescos para merecer um box e, Tom Matthews, o fotógrafo da equipe, bateu uma foto para ilustrar o texto, que a fazia parecer a Ma Joad no filme Vinhas da Ira. A chamada do box era: "PARECE QUE NINGUÉM VIU DE ONDE ELE SURGIU" INFORMA TESTEMUNHA OCULAR DA TRAGÉDIA.

Quando a Sra. Perrine leu a notícia, não se surpreendeu nem um pouco.

- NO fim consegui o que queria - disse Ralph - mas somente porque Cloto e Láquesis, e seja lá quem for o patrão deles nos níveis superiores, estavam desesperados para deter Ed.

- Níveis superiores? Que níveis superiores? Que edifício? -Não faz diferença. Você já se esqueceu, mas lembrar não vai mudar nada. A questão é justamente esta, Lois: eles não queriam deter Ed porque milhares de pessoas iam morrer se ele batesse em cheio no centro cívico. Queriam detê-lo porque havia uma pessoa cuja vida queriam preservar a qualquer preço... pelo menos, nos cálculos deles. Quando finalmente consegui convencê-los que eu sentia pela minha criança o mesmo que eles sentiam pela deles, tomaram providências.

- Foi aí que lhe cortaram, não foi? E você fez a promessa. Aquela de que você costumava falar quando dormia.

Ralph lançou a Lois um olhar arregalado, cheio de espanto, e dolorosamente infantil. Ela apenas retribuiu o seu olhar.

- Foi - respondeu enxugando a testa. - Acho que foi. - O ar em seus pulmões parecia limalha de metal. - Uma vida por uma vida, foi esse o trato: a de Natalie pela minha. E...

[Et! Pare de querer escapar! Pare com isso, Rover, ou vou lhe dar um chute de deixar seu eu quadrado!]

Ralph se interrompeu ao ouvir aquela voz aguda, fanfarrona e horrivelmente familiar - uma voz que nenhum ser humano na avenida Harris conseguia ouvir a não ser ele - e olhou para o outro lado da rua.

- Ralph? Que...

- Psssiiu!

Ralph puxou Lois para trás contra a cerca queimada pelo sol de verão da casa dos

Applebaums. Ele não transpirava educadamente agora; seu corpo inteiro formigava com um suor malcheiroso, pesado como óleo de máquina, e sentia cada glândula de seu corpo injectando uma carga quente em seu sangue. Sua roupa de baixo estava tentando entrar pela racha das nádegas e desaparecer pelo eu a dentro. Sua língua tinha gosto de fusível queimado.

Lois acompanhou a direcção do seu olhar.

- Rosalie! - ela chamou. - Rosalie, sua cachorrinha feia! Que é que você está fazendo aí?

A beagle preta e conhaque que ela dera de presente a Ralph em seu primeiro Natal juntos estava do outro lado da rua, parada (só que encolhida era realmente uma palavra mais própria) na calçada diante da casa onde Helen e Nat tinham morado até Ed endoidar. Pela primeira vez em todo o tempo que a tinham, a beagle lembrou Lois de Rosalie nel. Rosalie n-2 parecia estar completamente sozinha ali, mas isso não afastou o súbito terror de Lois.

Ah, que foi que eu fiz? ela pensou. Que foi que eu fiz?

- Rosalie! - ela gritou. - Rosalie, passe já para aqui!

A cachorra ouviu, Lois percebeu que ouvira, mas não se mexeu.

- Ralph? Que está acontecendo do outro lado?

- Psssiu! - ele repetiu e, então, um pouco acima na avenida, Lois viu uma coisa que lhe tirou o fôlego. Sua última esperança muda de que tudo aquilo estivesse acontecendo apenas na imaginação de Ralph, de que fosse apenas uma espécie deflashback de suas experiências anteriores, desapareceu, porque agora a cachorrinha tinha companhia.

Segurando uma corda de pular enrolada no braço direito, Nat Deepneau, com seus seis aninhos, parou de caminhar e olhou para uma casa em que sequer lembrava de ter morado, para o gramado em que seu pai sem camisa, um jogador indeterminado por nome Ed Deepneau, certa vez se sentara entre arcos-íris que se entrecruzavam, ouvindo o conjunto Jefferson Airplane, enquanto um gota de sangue secava em seus pequenos óculos à John Lennon. Natalie espiou rua abaixo e sorriu alegremente para Rosalie, que resfolegava e a observava com o olhar medroso e infeliz.

ÁTROPOS não está me vendo, pensou Ralph. Está absorto em Rosie... e em Natalie, é claro... e não me vê.

Tudo evoluíra com uma espécie de horrenda perfeição. A casa estava ali, Rosalie estava ali, e Átropos também estava ali, usando um chapéu puxado para trás, com aquele ar de repórter sabichão de filmes B da década de 50 - talvez algo dirigido por Ida Lupino. Só que desta vez não era um panamá a que faltava um pedaço na aba; desta vez era um boné do Boston Red Sox e era demasiado pequeno até para Átropos, porque a tira de ajuste tinha sido puxada até o último furo. Só assim pôde assentar direito na cabeça da menininha, sua dona.

Só precisamos agora de Peie, o entregador de jornais e o espectáculo estará perfeito, pensou Ralph. A cena final de Insónia, ou Vidas-Curtas na avenida Harris: uma tragicomédia em três actos. Todos se despedem com uma reverência e saem pela coxia direita.

A cachorra tinha medo de Átropos, exatamente como a Rosalie nsl, e a razão principal do doutorzinho careca não ter notado Ralph nem Lois era que estava tentando impedir que Rosalie fugisse antes que ele estivesse preparado. E lá veio Nat, descendo pela calçada em direcção ao cachorro que mais gostava no mundo, a Rosie de Ralph e Lois. Trazia a corda de pular (three-six-nine hon the goose drank wine) pendurada no braço. Parecia impossivelmente linda e impossivelmente frágil com sua camisa marinheira e seus shorts azuis. As marias-chiquinhas balançando.

Está acontecendo depressa demais, pensou Ralph. Tudo está acontecendo depressa demais.

[De jeito nenhum, Ralph! Você se saiu esplendidamente há cinco anos; e se sairá esplendidamente agora.]

Parecia a voz de Cloto, mas não havia tempo para olhar. Um carro verde descia lentamente a Avenida Harris vindo do aeroporto, e deslocava-se com uma espécie de cuidado angustiante, que em geral indicava um motorista muito velho ou muito jovem. Cuidado angustiante ou não, era sem dúvida o carro; uma membrana suja cobria-o como uma mortalha.

A vida é uma roda, pensou Ralph, e ocorreu-lhe que não era a primeira vez que tal ideia lhe surgia. Mais cedo ou mais tarde tudo que você pensou ter deixado para trás torna a aparecer. Para o bem ou para o mal, torna a aparecer.

Rosie fez uma nova tentativa frustrada de recuperar a liberdade e, quando Átropos a releve com violência deixando cair o chapéu, Nat ajoelhou-se diante dela e a acariciou.

- Você se perdeu, garota? Saiu sozinha? Não faz mal, levo você para casa. – Abraçou Rosie, entrelaçando seus bracinhos nos braços de Átropos, o rostinho bonito a menos de um palmo daquela careta sorridente. Então ela se levantou. - Vamos, Rosie! Vamos, fofa.

Rosalie começou a descer a calçada nos calcanhares de Nat, deu uma espiada no homenzinho sorridente atrás dela e ganiu inquieta. Do outro lado da avenida Harris, Helen saiu do mercadinho, e o último lance da visão que Átropos mostrara a Ralph se completou.

Helen trazia uma fôrma de pão na mão. O boné Red Sox na cabeça.

Ralph arrebatou Lois nos braços e beijou-a com ardor. - Eu a amo de todo o coração.

Lembre-se disto, Lois.

- Sei que ama - ela respondeu calmamente. - E eu também o amo. Por isso, não posso deixar você prosseguir.

Ela o agarrou pelo pescoço, seus braços parecendo tiras de ferro, e Ralph sentiu seus seios pressionarem-no com força quando ela inspirou todo o ar que seus pulmões podiam conter.

- Vá embora, seu filho da puta nojento! - ela berrou. - Não posso vê-lo, mas sei que está aí! Vá embora! Vá embora e nos deixe em paz!

Natalie parou instantaneamente e olhou para Lois com os olhos arregalados de surpresa.

Rosalie parou ao seu lado, as orelhas em pé.

- Não atravesse a rua, Nat! - Lois berrou para ela. - Não...

Então suas mãos que tinham estado cruzadas na nuca de Ralph, não seguravam mais nada; seus braços, que prendiam os ombros dele num aperto mortal, estavam vazios.

Ele desaparecera como fumaça.

Átropos olhou na direção do grito de alerta e viu Ralph e Lois parados, do outro lado da avenida Harris. E, mais importante, viu que Ralph o via. Seus olhos se arregalaram; seus lábios se entreabriram num rosnado odioso. Levou uma mão à careca - riscada de velhas cicatrizes, vestígios dos cortes feitos com seu próprio bisturi - num gesto instintivo de defesa com um atraso de cinco anos.

[Foda-se, Coroa! A cadelinha é minha!]

Ralph viu Nat, observando Lois incerta e surpresa. Ouviu Lois gritando para a menina, dizendo-lhe para não atravessar a rua. Então ouviu a voz de Láquesis, falando de muito perto.

[Suba, Ralph! O mais que puder! Depressa!]

Ele sentiu o aperto no centro da cabeça, sentiu a breve vertigem no estômago e, de repente, o mundo inteiro clareou e se encheu de cores. Ele viu ao mesmo tempo que sentiu os braços e as mãos de Lois caírem no vazio, onde seu corpo estivera momentos antes, e, então, estava se afastando dela - não, estava sendo afastado dela. Sentiu-se atraído por uma forte torrente e compreendeu, de maneira vaga, que, se havia o tal Superior Desígnio, acabara de juntar-se a ele e logo seria arrebatado em seu bojo rio abaixo.

Natalie e Rosalie encontravam-se agora bem em frente à casa que um dia Ralph dividira com Bill McGovern, antes de vendê-la e se mudar para a casa de Lois. Nat olhou indecisa para Lois, então lhe acenou insegura.

- Ela está bem, Lois: olhe, está bem aqui. - Acariciou a cabeça de Rosalie. - Vou atravessar ela direitinho, não se preocupe. - Então, quando desceu para a rua, gritou para a mãe. - Não consigo encontrar o meu boné de beisebol! Acho que alguém roubou ele!

Rosalie continuou na calçada. Nat virou-se para ela impaciente: - Vamos, garota!

O carro verde deslocava-se em direcção à menina mas muito lentamente. A princípio, não parecia lhe oferecer muito perigo. Ralph reconheceu o motorista, imediatamente, e não duvidou de seus sentidos nem suspeitou que estivesse delirando. Naquele instante, parecia muito certo de que o sedan que se aproximava fosse dirigido pelo seu antigo entregador de jornais.

- Natalie! - Lois berrou. - Natalie, não!

Átropos precipitou-se para a frente e deu uma palmada na anca de Rosalie n-2.

[Fora daqui, vira-lata! Chispa! Antes que eu mude de ideia!]

Átropos lançou a Ralph um último esgar quando Rosie latiu e disparou pela rua... no caminho do Ford dirigido por Pete Sullivan de apenas dezesseis anos.

Natalie não viu o carro; olhava para Lois, cujo rosto estava vermelho e apavorado.

Finalmente ocorrera a Nat que Lois não estava gritando por causa de Rosalie, mas por outra razão completamente diferente.

Pete registrou o beagle correndo; foi a menininha que ele não viu. Deu uma guinada para evitar Rosalie, uma manobra que deixou o Ford apontado directamente para Natalie. Ralph viu dois rostos amedrontados por trás do pára-brisas quando o carro se desviou, e achou que a Sra. Sullivan estava gritando.

Átropos pulava para cima e para baixo, numa dança de marinheiros, obscenamente alegre.

[Taí, Vida-Curta! Velho idiota! Eu disse que te ferrava!]

Em câmera lenta, Helen largou a fôrma de pão que segurava.

- Natalie, CUIDAAAAAADO! - berrou.

Ralph correu. Mais uma vez teve a clara sensação de se mover em pensamento apenas. Ao se aproximar de Nat, mergulhou com as mãos estendidas, consciente do carro que avultava além da menina, e disparava de dentro do escuro saco mortuário, flexas brilhantes de sol em seus olhos, ele apertou a mente e se transportou de volta ao mundo dos Vidas-Curtas pela última vez.

Caiu num cenário que ressoava de gritos entrecortados: os de Helen mesclados com os de Lois mesclados com os dos pneus do Ford. Entremeando-os como uma trepadeira desgrenhada, o som dos apupos de Átropos. Ralph teve um breve vislumbre dos grandes olhos azuis de Nat, então empurrou-a no peito e na barriga com toda a força, arremessando-a de costas com as mãos e os pés estirados para a frente. Ela aterrissou sentada na sarjeta, esfolando o bumbum no meio-fio, mas inteira. De algum lugar distante, Ralph ouviu Átropos grasnir de fúria e incredulidade.

As duas toneladas de Ford, ainda se deslocando a trinta e poucos quilómetros por hora, chocaram-se contra Ralph e a trilha sonora emudeceu. Ele foi atirado para cima e para trás descrevendo um arco raso e lento-pelo menos visto de dentro parecia lento - e levou o enfeite do capo do Ford impresso na bochecha como uma tatuagem e uma perna fracturada arrastando-se atrás do corpo. Teve tempo para ver sua sombra escorregar abaixo dele pela rua, formando um X; teve tempo para ver um borrifo vermelho se erguer no ar e pensar que Lois devia ter respingado mais tinta nele do que pensara. E teve tempo de ver Natalie sentada na beira da rua, chorando mas sã e salva... e de sentir Átropos, na calçada atrás dela, sacudindo os punhos no ar e sapateando de raiva.

Acho que foi um tremendo desempenho para um velhote como eu, Ralph pensou, mas agora acho que realmente gostaria de tirar um cochilo.

Então voltou à terra com uma pancada terrível e fatal e rolou - o crânio rachou, as costas se partiram, os pulmões foram perfurados pelos estilhaços dos ossos quando a caixa toráxica explodiu, o fígado se transformou em polpa, os intestinos deslizaram para fora e em seguida se romperam.

E nada doeu.

Nadinha.

LOIS jamais esqueceu o medonho baque que foi à volta de Ralph à Avenida Harris, nem as manchas de sangue que ele deixou pelo caminho até parar de rolar. Queria gritar mas não se atrevia; alguma voz profunda e verdadeira lhe dizia que se fizesse isso, a combinação do choque, horror e calor de verão a derrubariam inconsciente na calçada e, quando recuperasse os sentidos, Ralph estaria fora do seu alcance.

Correu ao invés de gritar, perdeu sapato, meio consciente de que Pete Sullivan estava desembarcando do Ford, que tinham parado exactamente no mesmo ponto em que o carro de Joe Wyzer - também um Ford - parará no dia em que Joe atropelara Rosalie n-1 há alguns anos. Estava também meio consciente de que Pete gritava.

Ela alcançou Ralph e caiu de joelhos ao lado dele, registrando que seus contornos tinham sido de alguma forma alterados pelo Ford verde, que o corpo dentro das calças de sarja e da camisa respingada de tinta era fundamentalmente diferente do corpo que tivera contra o seu, há menos de um minuto atrás. Mas os olhos dele estavam abertos, estavam brilhantes e conscientes.

- Ralph?

- Que foi? - Sua voz respondeu clara e forte, intocada pelo atordoamento ou pela dor. Que foi, estou lhe ouvindo, Lois.

Ela começou a passar os braços em torno dele mas hesitou, lembrando que não se devia mexer com uma pessoa que tivesse sofrido lesões graves, porque se podia fazê-la piorar ou até matá-la. Tornou a olhá-lo, o sangue escorrendo dos cantos de sua boca e o jeito com que a parte inferior de seu corpo parecia ter desengonçado da parte superior, e concluiu que seria impossível fazer Ralph piorar mais do que já estava. Abraçou-o, então, inclinando-se sobre ele, sobre os cheiros do desastre: o do sangue e o de acetona, agridoce, que a queima da adrenalina libera na expiração.

- Desta vez você conseguiu, não foi? - Lois perguntou. Beijou o rosto de Ralph, as sobrancelhas empapadas de sangue, a testa sangrenta onde uma aba de pele pendia arrancada do crânio. E começou a chorar. - Olhe só para você! A camisa rasgada, as calças rasgadas... você acha que roupa dá em árvores?

- Ele está bem? - Helen perguntou às suas costas. Lois não se virou, mas viu as sombras na rua: Helen com o braço em torno dos ombros da filha em lágrimas, e Rosie parada junto à perna direita de Helen. - Ele salvou a vida de Nat e nem vi de onde ele saiu. Por favor, Lois, diga que ele está bem...

Então as sombras se mexeram quando Helen trocou de lugar para ver Ralph melhor, e puxou o rosto de Nat contra a blusa e começou a chorar.

Lois achegou-se para junto de Ralph, acariciando seu rosto com as palmas das mãos, querendo lhe dizer que pretendera acompanhá-lo - pretendera, sim, mas afinal ele fora demasiado rápido para ela. Afinal deixara-a para trás.

- Te amo, querida-Ralph disse. Ergueu o braço e imitou o gesto dela com a mão. Tentou erguer a mão esquerda também, mas ela continuou caída na rua e apenas mexeu.

Lois apanhou sua mão e beijou-a.

- Te amo também, Ralph. Sempre. Tanto!

- Eu precisava fazer isso. Entende?

- Entendo. - Não sabia se entendia, não sabia se jamais entenderia... mas sabia que ele estava morrendo. - Entendo, sim.

Ele suspirou roucamente-o cheiro adocicado de acetona subiu até as narinas dela outra vez - e sorriu.

- Sra. Chasse? Sra. Roberts, quero dizer? - Era Pete falando aos gaguejos. - O Sr.

Roberts está bem? Por favor, me diga que não machuquei ele!

- Se afaste, Pete - ela respondeu, sem se virar. - Ralph está óptimo. Só rasgou um pouco as calças e a camisa... não foi, Ralph?

- Foi - ele confirmou. - Isso aí. Você só vai ter que me bater para...

Interrompeu o que ia dizendo e olhou para a esquerda de Lois. Não havia ninguém ali, mas Ralph sorriu mesmo assim.

- Láquesis! - exclamou.

Estendeu a mão direita trémula e suja de sangue e, enquanto Lois, Helen e Pete Sullivan observavam, a mão se ergueu e desceu duas vezes no ar. Os olhos de Ralph se mexeram de novo, desta vez para a direita. Devagar, muito devagarinho, ele estendeu a mão naquela direcção. Quando falou, sua voz estava começando a sumir.

- Oi, Cloto. Agora se lembrem: isto... não... dói. Certo? Ralph pareceu escutar e em seguida sorriu.

- E - murmurou - do jeito que você puder traçar.

A mão subiu e desceu no ar outra vez, então caiu sobre o seu peito. Ele olhou para Lois, com seus olhos azuis-clarinhos.

- Escute - ele começou, falando com grande esforço. Seus olhos porém reluziam e retinham os dela. - Todo dia em que acordei ao seu lado foi como acordar jovem e ver... tudo renovado. - Tentou levar a mão até o rosto dela, mas não conseguiu. - Todo dia.

- Para mim também foi assim, Ralph: como acordar jovem.

- Lois?

- Que foi?

- O tique-taque - ele falou. Engoliu em seco e repetiu, enunciando as palavras com grande esforço. - O tique-taque.

- Que tique-taque?

- Não importa, parou - disse com um sorriso radioso. Então Ralph parou, também.

CLOTO e Láquesis ficaram parados, vendo Lois chorar o homem que jazia morto na rua.

Em uma das mãos, Cloto segurava a tesoura; levou a outra até o nível dos olhos e examinou-a pensativo.

Ela brilhava e refulgia com a aura de Ralph.

Cloto: [Ele está aqui... aqui dentro... que coisa maravilhosa!]

Láquesis ergueu a mão direita. Como a esquerda de Cloto, parecia que alguém tinha vestido uma luva azul sobre a aura auriverde normal que a envolvia.

Láquesis: [É. Ele era um homem maravilhoso.]

Cloto: [Vamos dá-lo para ela?]

Láquesis: [E podemos?]

Cloto: [Há uma maneira de descobrir.]

Eles se aproximaram de Lois. Cada um colocou a mão que

Ralph apertara em uma face de Lois.

- MAMÃE! - Natalie Deepneau chamou. Em sua agitação, reverteu ao tatibitate da primeira infância. - Quem são os anõezinhos? Por que estão tocando Roliss?

- Quietinha, querida - falou Helen, e enterrou o rosto de Nat contra seu peito outra vez.

Não havia homens, nem pequenos nem grandes, junto a Lois Roberts; ela estava ajoelhada sozinha na rua, ao lado do homem que salvara a vida de sua filha.

LOIS ergueu os olhos de repente, arregalou-os surpresa, sua tristeza esquecida enquanto uma sensação fantástica de (luz azul luz) calma e paz a invadiam. Por um instante, a Avenida Harris desapareceu. Encontrou-se num lugar escuro, impregnado com cheiros campestres de feno e vacas, um lugar escuro cortado por centenas de raios de luz. Ela jamais esqueceu a violenta alegria que explodiu dentro dela naquele momento, nem a certeza de que estava vendo a representação de um universo que Ralph queria que ela visse, um universo onde havia luz ofuscante por trás das trevas... não é o que ela estava vendo pelas frestas?

- Será que a senhora vai poder me perdoar? - Pete soluçava. - Ah meu Deus, será que a senhora vai poder me perdoar?

- Vou sim, acho que sim - respondeu Lois calmamente. Ela passou a mão pelo rosto de Ralph, fechando seus olhos, e então apoiou sua cabeça no colo, esperando a polícia chegar... Parecia a Lois que Ralph tinha adormecido. E, reparou, a longa cicatriz branca em seu antebraço direito sumira.

 

                                                                                             Stephen-King

 

                      

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