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INTENÇÃO CRIMINOSA - P.2 / Robin Cook
INTENÇÃO CRIMINOSA - P.2 / Robin Cook

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

INTENÇÃO CRIMINOSA

Segunda Parte

 

Sentindo-se nervoso e abatido, voltou à direita em Beacon Street ! voltou ao Buli Finch Pub. Não percebia por que é que se sentia tão inquieto. Na realidade esperara ficar excitado com a violência, como lhe acontecia quando via as reposições de Miami Vice.

Enquanto ia andando, dizia para consigo mesmo que Gail não era particularmente atraente. Talvez mesmo bastante feia. Devia ser essa a razão por que a nudez dela não o excitara. Era magra de mais e quase não tinha peito. A única coisa de que Trent tinha a certeza era de não ser homossexual. A Marinha é que tinha usado isso como pretexto, por ele não se dar bem com os médicos.

Para provar a si mesmo como era normal, Trent fez questão de se apresentar a uma secretária morena e petulante que estava sentada ao bar. Também não se podia dizer que fosse muito atraente. Mas não tinha importância. Enquanto conversavam, Trent percebeu que a rapariga se sentia impressionada com o corpo dele. Chegara mesmo a perguntar-lhe se fazia exercício físico. Que pergunta mais estúpida, pensou. Qualquer homem que se preocupasse consigo próprio fazia exercício físico. Os únicos que não pensavam nisso eram aqueles mariconços de braços moles que Trent encontrava ocasionalmente em Cambridge Street, quando saía à procura de alguém com quem brigar.

Não foi preciso muito tempo para Jeffrey pôr o átrio de cirurgia tão limpo como ninguém o via há anos. Os serviços de limpeza tinham um armário no corredor, mesmo à saída do átrio. Aí Jeffrey encontrou um aspirador. Serviu-se dele para aspirar não só a sala, mas também a área de distribuição de serviço e o espaço que ia até aos elevadores. A seguir, atacou a pequena cozinha que ficava ao lado do átrio da cirurgia. Sempre a achara sujíssima. Soube-lhe bem ter a possibilidade de a limpar. Limpou também o frigorífico, o fogão e o lava-loiça.

David ainda não tinha voltado. Dirigindo-se à sala dos cacifos, Jeffrey compreendeu a razão. O modus operandi de David consistia em trabalhar durante cinco ou dez minutos e depois fazer um intervalo de cinco ou dez minutos para fumar um cigarro. Por vezes fazia mesmo uma pausa para um cigarro e um café.

David não pareceu satisfeito por Jeffrey já ter limpo tanta coisa em tão pouco tempo. Disse a Jeffrey que abrandasse o ritmo senão podia ter um “esgotamento”. Mas para Jeffrey era mais difícil andar por ali sem fazer nada do que trabalhar.

Logo que David desistiu da ideia de ter de andar a supervisioná-lhe, entregou a Jeffrey um conjunto de chaves. E disse-lhe que fosse andando para o bloco operatório.

— Eu vou ficar por aqui e acabar a sala dos cacifos — disse. — Depois vou lá ter para o ajudar. Comece pelo corredor. Não se esqueça do quadro grande. Aliás, é melhor começar por aí. O director dos serviços de enfermagem tem um ataque cada vez que nos esquecemos de lavar o quadro. Depois trate das salas de operações que já foram usadas esta noite. As outras devem ter sido limpas pelo turno da tarde.

Jeffrey teria preferido ir direito à patologia para poder consultar o relatório sobre Patty Owen, mas sentiu-se satisfeito por entrar no bloco operatório. Pôs o fato como lhe tinham ensinado. Quando olhou para o espelho, ficou alarmado por ver que, à excepção da nova cor de cabelo e do lábio superior rapado, parecia-se bastante consigo próprio. Pôs rapidamente a máscara cirúrgica, conforme tinha planeado.

—Não precisa de andar com a máscara—disse David logo que deu com os olhos nele.

— Estou a ficar constipado — explicou Jeffrey. — Acho que eles devem querer que eu a ponha.

David fez que sim com a cabeça.

— Boa ideia.

Empurrando o carrinho diante dele, Jeffrey atravessou as portas do Bloco Operatório. Não entrava ali desde que o hospital o suspendera, mas tudo parecia exactamente na mesma. Tanto quanto Jeffrey se apercebeu, nada tinha mudado.

Seguindo as instruções de David, Jeffrey tratou primeiro do grande quadro preto. Alguns membros do pessoal foram e vieram enquanto Jeffrey trabalhava. Alguns conhecia-os de nome, mas nenhum deles lhe prestou a menor atenção. Jeffrey foi forçado a acreditar que a sua actividade de empregado da limpeza não protegia menos a sua identidade que as modificações que introduzira no seu aspecto físico. Decidiu nunca se afastar muito do carrinho e da esfregona enquanto trabalhava.

Mesmo assim, quando a apendicectomia de urgência que estava a decorrer quando ele entrara no bloco chegou finalmente ao fim e a equipa médica saiu da sala, Jeffrey fez questão de se manter de costas voltadas para o grupo. O anestesista e o cirurgião eram ambos bons amigos seus.

Depois de as portas se terem fechado sobre a equipa que saía, o silêncio desceu sobre o Bloco Operatório. Jeffrey conseguiu distinguir o som fraco de um rádio vindo dos lados do Depósito Central. Conduziu a esfregona até ao balcão da recepção do bloco.

Tratava-se de um balcão comprido, com várias divisões para as Pessoas se sentarem. Servia de posto de comando para movimentar as Pessoas que entravam ou saíam das salas de operações, para telefonar a mandar trazer os doentes dos quartos ou da zona intermédia de espera e para coordenar a movimentação do pessoal. Sob a parte central havia várias gavetas de arquivo. Uma delas tinha a indicação “marcações”.

Jeffrey olhou para um lado e outro do corredor, para ter a certeza de que estava realmente deserto. Depois abriu a gaveta. Dado que as marcações estavam arquivadas segundo as datas, Jeffrey não tardou a encontrar as que tinham sido destinadas ao dia fatídico: 9 de Setembro. Passou em revista todos os casos daquele dia, à procura de alguma anestesia epidural que pudesse ter justificado o uso de Marcaína a 0,75%, mas não encontrou nada. Havia diversos casos espinais, mas no caso de terem usado a Marcaína seria a do orau espinal, não a variedade de 30 cm3 utilizada nas epidurais ou bloqueios localizados.

Voltando à gaveta, Jeffrey retirou as marcações do dia 8 de Setembro. Embora o recipiente do lixo da máquina de anestesia fosse despejado diariamente, havia sempre a hipótese de isso não ter sido feito, por alguma razão. Mas as marcações do dia 8 também não adiantaram mais que as do dia 9. Jeffrey foi obrigado a pôr-se mais uma vez a questão se não teria lido mal a etiqueta da Marcaína usada na anestesia de Patty Owen. De outra forma, como é que se poderia explicar o frasco vazio de Marcaína a 0,75% que tinha sido encontrado?

Quando estava quase a terminar, as portas de mola abriram-se de par em par. Jeffrey agarrou na esfregona e pôs-se a limpar freneticamente o chão. Por momentos, não ousou levantar os olhos. Mas quando se tornou evidente que ninguém se ia aproximar dele, levantou a cabeça a tempo de ver uma equipa cirúrgica transportando com certa pressa um paciente numa mesa de rodas, em direcção à sala que estava preparada para casos de emergência. Suspensos, agarrados à mesa, viam-se vários conjuntos de sangue para transfusão. Jeffrey concluiu que o paciente devia ter sido vítima de um acidente de automóvel.

Só depois de restabelecida a calma é que Jeffrey voltou às marcações. Colocou-as nas ranhuras respectivas e fechou a gaveta. A emergência que acabava de dar entrada fê-lo pensar. As emergências não podiam aparecer nas fichas de marcação de um Bloco Operatório. O mesmo se podia dizer de um caso como o de Patty Owen. Ninguém sabia que ela iria fazer uma cesariana. Como é que podia ter sido feita uma marcação? Jeffrey passou a consultar o livro de marcações do ano anterior. Era o livro que continha uma lista de todos os casos relativos ao bloco operatório, incluindo emergências e operações que podiam ter sido marcadas, acabando por ser anuladas ou adiadas.

Além das cesarianas, a anestesia epidural não era correntemente usada em emergências. Jeffrey sabia-o, mas resolveu mesmo assin consultar o livro, por uma questão de segurança. Havia excepções. Viu primeiro os registos relativos ao dia 8, percorrendo a lista com o dedo. Não era fácil de ler, pois as inscrições eram feitas à mão e em caligrafias diferentes. Não encontrou nada que lhe pudesse interessar, mesmo de uma forma remota. Voltou a página para o dia 9 e começou a percorrer a lista. Não precisou procurar muito. Na sala de operações número 15, a mesma em que estivera Patty Owen, tinha sido feita a reconstituição de uma córnea lacerada, às cinco da manhã. As pulsações de Jeffrey aceleraram-se. Uma emergência oftálmica era uma hipótese prometedora.

Jeffrey rasgou uma folha de um bloco que estava em cima do balcão e anotou rapidamente o nome do paciente. Depois fechou o livro e voltou a colocá-lo na prateleira. Empurrando o balde sobre as suas rodas pouco firmes, Jeffrey seguiu pelo corredor até aos gabinetes de anestesia. Abriu a porta e acendeu a luz. Correu para a gaveta de arquivo das anestesias e puxou o registo referente ao paciente em questão.

—Bingo!—sussurrou Jeffrey. O registo da anestesia indicava que o paciente recebera anestesia retrobular com Marcaína a 0,75%! Jeffrey pôs o registo novamente no lugar e fechou a gaveta. Kelly tinha razão. Quase não conseguia acreditar. Começou imediatamente a sentir-se melhor consigo próprio e mais confiante no seu raciocínio. Sabia que aquilo que acabava de descobrir não teria muito significado perante o tribunal, mas para ele significava tudo. Não se enganara ao verificar a etiqueta da Marcaína!

Quando chegou a hora do intervalo da refeição, David veio à procura de Jeffrey. Jeffrey tinha acabado o corredor principal do Bloco Operatório e limpara ainda as duas salas que tinham sido usadas para casos de emergência. Estava a trabalhar no Depósito Central quando David o encontrou.

—Eu preferia continuar a trabalhar—disse Jeffrey.—Não tenho fome. Acho que vou directamente para os laboratórios e começo a limpá-los.

—Você tem de ter calma—disse David num tom ligeiramente menos amigável do que a princípio. —Vai deixar os outros mal colocados.

Jeffrey fez um sorriso embaraçado.

— Acho que isto é por ser o primeiro dia. Não se preocupe que eu hei-de acalmar.

—Espero que sim—murmurou David. Depois deu meia volta e foi-se embora.

Jeffrey acabou o que estava a fazer no Depósito Central, depois empurrou o carrinho ao longo do corredor até às portas giratórias e saiu. Envergando de novo o uniforme das limpezas, encaminhou o carrinho Para o departamento de patologia. Queria tirar partido do facto de David e o resto do pessoal estarem a comer.

Experimentou as chaves que lhe tinham dado na porta que levava a secção administrativa dos serviços de patologia. Aterceira chave que experimentou abriu a porta. Jeffrey estava espantado onde o uniforme e as chaves o conseguiam levar.

A secção estava deserta. As únicas pessoas que se encontravam naquela parte do hospital eram os técnicos dos laboratórios de química, hematologia e microbiologia. Jeffrey não perdeu tempo. Encostando a esfregona aos ficheiros, procurou a ficha patológica de Patty Owen. Encontrou-a facilmente.

Pôs a pasta em cima de uma das secretárias e abriu-a. Folheando-a, encontrou cópias do relatório da autópsia do Médico Legista. Procurou a secção de toxicologia, que tinha gráficos dos resultados da cromatografia gasosa e espectrofotometria de massa do sangue, do líquido do cérebro-espinal e da urina. O único composto que figurava como tendo sido encontrado era a bupivacaína, nome genérico da Marcaína. Nenhum outro produto químico tinha sido encontrado nos fluidos do corpo da jovem, pelo menos nenhum que os testes tivessem detectado.

Jeffrey estudou o resto do dossier, percorrendo com os olhos todas as páginas. Ficou surpreendido por encontrar uma série de fotografias de oito-por-dez. Puxou-as para fora. Eram micrografias electrónicas feitas no Boston Memorial. Isso despertou a curiosidade de Jeffrey: não se faziam micrografias electrónicas em todas as autópsias. Lamentou não ser mais versado na interpretação das secções microscópicas electrónicas. Assim, teve dificuldade até para decidir qual era a parte de cima e a parte de baixo. Depois de estudar cuidadosamente as micrografias, acabou por compreender que estava a olhar para imagens ampliadas de células de gânglios nervosos e axónios.

Ao ler as descrições na parte de trás de cada uma das fotografias, Jeffrey ficou a saber que as micrografias electrónicas mostravam destruição acentuada da arquitectura intracelular. Sentiu-se intrigado. Aquelas fotos não tinham sido exibidas durante a a instrução do processo. Estando o hospital envolvido como réu no mesmo caso que Jeffrey, o departamento de patologia não agira tendo em vista os melhores interesses de Jeffrey. Este nem sequer tinha sido informado da existência de tais fotografias. Se ele e Jeffrey tivessem sido informados, poderiam tê-las citado, embora, na altura do julgamento, Jeffrey não estivesse particularmente interessado numa possível degenerescência dos axónios.

Vendo essa anomalia evidenciada nas micrografias electrónicas, Jeffrey foi levado a recordar-se da degenerescência dos axónios que Chris Everson descrevera na autópsia do seu paciente. O que tornava a degenerescência tão significativa em ambos os casos era o facto de os anestésicos locais não poderem ter sido responsáveis por ela. Tinha de haver uma outra explicação.

Jeffrey levou o dossier até à copiadora e reproduziu aquilo que achou que lhe iria ser necessário, incluindo os relatórios das micrografias, mas não as fotografias em si. Incluiu também a secção de toxicologia com os gráficos da cromatografia gasosa e da espectrafotometria de massa. Para conseguir decifrá-los correctamente, ia ter de passar mais algum tempo na biblioteca.

Quando acabou de fazer as cópias, descobriu um grande sobrescrito de papel castanho onde as guardou. Depois repôs os originais na pasta e arquivou-a. Jeffrey meteu o sobrescrito com as cópias na prateleira inferior do carrinho, debaixo dos rolos de papel higiénico.

A seguir, Concentrou novamente as atenções nas limpezas. Sentia-se entusiasmado com o que tinha encontrado. A ideia de um contaminante continuava a ser uma hipótese viável. Na realidade, tendo em vista os resultados das micrografias electrónicas, era quase uma certeza.

À medida que a noite avançava, a energia de Jeffrey foi diminuindo. Quando o céu começou a aclarar, ele estava completamente exausto. Havia horas que se estava a mover à custa da própria energia nervosa. Às seis e um quarto, aproveitou a oportunidade de se lhe deparar um telefone num gabinete vazio dos serviços sociais para ligar para Kelly. Se tinha que sair de casa às seis e quarenta e cinco, com certeza já estava a pé.

Logo que Kelly atendeu, Jeffrey narrou-lhe, cheio de entusiasmo, a urgência oftalmológica na manhã do dia do desastre de Patty Owen e que tinha sido utilizada a Marcaína a 0,75%.

— Kelly, tu tinhas razão. Não compreendo porque é que ninguém pensou em verificar essa possibilidade. O Randolph não pensou e eu também não. — A seguir falou-lhe das micrografias electrónicas.

— E isso sugere a presença de um contaminante? — perguntou Kelly.

— Torna-a quase certa. A etapa seguinte é tentar descobrir o que Possa ser e por que razão não aparece no relatório toxicológico.

— Tudo isto me assusta — disse Kelly.

—Amim também—concordou Jeffrey. A seguir perguntou-lhe se conhecia alguém em patologia no Valley Hospital. . — Em patologia não—respondeu Kelly. — Mas ainda conheço vários anestesistas. Hart Ruddock era o melhor amigo do Chris. Tenho a certeza que deve conhecer alguém em patologia.

— Podes ligar para ele? — perguntou Jeffrey. —Vê se estaria disposto a arranjar cópias de tudo o que o departamento de patologia tiver sobre Henry Noble. Interessar-me-iam particularmente os estudos de electromagnetismo ou histologia dos tecidos nervosos.

— Que é que lhe hei-de dizer se me perguntar porque é que quero esse material?

— Não sei. Diz-lhe que estás interessada, que estiveste a ler as notas do Chris e que viste lá que havia degenerescência dos axónios. Isso deve espevitar-lhe a curiosidade.

— Está bem — disse Kelly. — Agora o melhor é voltares para casa e veres se dormes um bocado. Deves estar a dormir em pé.

—Estou exausto—admitiu Jeffrey. — Fazer limpezas é bem mais cansativo que fazer anestesia.

Nessa manhã, cedo, Trent avançou pelo corredor do Bloco Operatório de St. Joseph’s Hospital com o frasco “preparado” novamente dentro das cuecas. Fez os mesmos movimentos que na manhã anterior, tomando particular cuidado em se certificar de que não havia ninguém nas imediações do Depósito Central, antes de entrar para trocar as ampolas. Como agora só havia duas ampolas de Marcaína a 0,5% na caixa aberta, as hipóteses de a “sua” ampola ser usada naquele dia eram boas, especialmente com dois casos de epidural inscritos no quadro preto. Claro que não havia a certeza de recorrerem à Marcaína, e ainda menos à Marcaína a 0,5%. Mas as hipóteses eram boas. Os casos que tinham sido marcados eram a recessão de uma hérnia e uma laparoscopia. Se pudesse escolher, Trent preferiria que a sua ampola fosse para a laparoscopia. Nesse caso seria perfeito; era aquele idiota do Doherty que estava escalado como anestesista.

Passando casualmente pela sala dos cacifos, Trent escondeu a ampola intacta no seu cacifo. Fechando a porta à chave, pensou em Gail Schaffer. O tratamento que lhe dera não tinha sido tão divertido como esperava, mas de certa forma sentia-se grato pela experiência. Ofacto de Gail o ter notado chamara-lhe a atenção para a necessidade de se manter sempre vigilante. Não se podia dar ao luxo de agir descuidadamente. Estava muita coisa em causa. Se fizesse asneira ia ser o diabo. Trent não podia deixar de sentir que as autoridades seriam a menor das suas preocupações.

O rádio despertador ficara ligado para as seis e quarenta e cinco e sintonizado em WBZ. O volume estava tão baixo que Karen acordou a pouco e pouco. Finalmente, abriu os olhos.

Rolou para o lado e sentou-se na beira da cama. Ainda se sentia drogada com o medicamento que o Dr. Silvan lhe dera para a ajudar a dormir. O Dalmane actuara melhor do que ela esperava.

— Já estás de pé? —perguntou Marcia através da porta fechada

—Estou—respondeu Karen. Pôs-se de pé, vacilante. Sentindo-se um pouco tonta, agarrou-se aos pés da cama para se firmar. Depois foi para a casa de banho.

Apesar de a boca lhe saber a algodão e de ter a garganta seca, Karen teve o cuidado de não beber nada. O Dr. Silvan prevenira-a que não devia beber. Nem sequer engoliu água quando lavou os dentes.

Só desejava que o dia estivesse a terminar e não a começar. Nessa altura já a intervenção estaria terminada. Sabia que era uma patetice, mas sentia-se apreensiva. ODalmane não conseguia impedir isso. Fez todos os possíveis por ocupar o pensamento com o duche e a toilette.

Quando chegou a altura de ir para o hospital, foi Marcia quem tomou o volante. Durante a maior parte do percurso fez por manter a conversa. Mas Karen ia demasiado absorta para responder. Quando finalmente entraram no estacionamento do hospital, já há algum tempo que iam em silêncio.

—Estás um bocado assustada, não estás?—disse finalmente Marcia.

— Não consigo evitar — admitiu Karen. — Eu sei que é um disparate.

—Não é disparate nenhum — entrepôs Márcia.—Mas também te posso garantir que não vais sentir nada. O desconforto só vem depois. Mas mesmo nessa altura vai ser mais fácil do que pensas. Esta é a pior parte de todo o processo: o receio.

—Espero bem que sim — disse Karen. Não lhe agradava o facto de o tempo ter mudado. Estava outra vez a chover. O céu mostrava-se tão sombrio como ela própria.

Havia uma entrada especial para as pequenas intervenções. Karen e Marcia estiveram um quarto de hora à espera juntamente com mais uma dezena de pessoas. Era fácil identificar quem eram os pacientes no meio de toda aquela gente. Em vez de lerem as suas revistas, limitavam-se a folheá-las.

Karen já tinha olhado para três revistas quando finalmente foi chamada à recepção, onde uma enfermeira a saudou. Esta analisou a Papelada para ver se tudo estava em ordem. Karen tinha lá estado na véspera para fazer análises ao sangue e um electrocardiograma. A autorização já tinha sido preenchida e autenticada. A pulseira de indentificação estava pronta. A enfermeira ajudou Karen a pô-la.

Foi-lhe entregue uma camisa do hospital e um robe, depois levaram-na a um gabinete para mudar de roupa. Sentiu uma ligeira onda de pânico quando subiu para a marquesa e foi conduzida a uma antecâmara. Nessa altura, Marcia teve autorização de ir para junto dela Durante uns momentos.

Marcia tinha na mão o saco com a roupa de Karen e tentou fazer humor, mas esta estava demasiado tensa para reagir. Um auxiliar de enfermagem aproximou-se e, depois de controlar a papeleta que estava nos pés da marquesa e a identificação de Karen, disse:

— Está na hora.

— Eu fico à espera — gritou Marcia enquanto levavam Karen. Karen acenou-lhe e depois deixou cair a cabeça na almofada. Pensou em dizer ao homem que parasse para ela poder sair. Podia voltar ao gabinete, pegar na roupa que ficara com Márcia, vestir-se e ir-se calmamente embora. A endometrite não estava assim tão mal. Tinha vivido com ela até ali.

Mas não fez nada. Era como seja tivesse sido apanhada numa sequência de acontecimentos inevitável, que se desenrolariam até ao fim, fizesse ela o que fizesse. Algures durante o processo de decisão da laparoscopia, ela tinha perdido a liberdade de escolha. Estava prisioneira do sistema. As portas do elevador fecharam-se. Sentiu-se puxada para cima e a última hipótese de fuga foi-lhe cortada.

O auxiliar deixou Karen numa outra área de espera, com mais uma dezena de marquesas iguais à dela. Deitou uma olhadela aos outros pacientes. A maior parte descansava confortavelmente, com os olhos fechados. Outros olhavam em volta, como ela, mas não pareciam tão receosos.

— Karen Hodges? — chamaram.

Karen voltou a cabeça. Um médico, vestido para operar, estava ao lado dela. Aparecera tão depressa que a rapariga não tinha chegado a ver de onde saíra.

— Sou o Dr. Bill Doherty — disse ele. Era mais ou menos da idade do pai de Karen. Usava bigode e os olhos eram castanhos e bondosos. — Vou ser o seu anestesista.

Karen fez que sim com a cabeça. O Dr. Doherty reviu uma vez mais a história clínica dela. Não levou muito tempo; também não havia muito que saber. Fez as perguntas habituais sobre alergias e doenças anteriores. Depois explicou que o médico pedira uma anestesia epidural.

—Está familiarizada com a anestesia epidural?—perguntou o Dr. Doherty.

Karen disse-lhe que o médico dela lhe explicara tudo. O Dr. Doherty fez um sinal de assentimento, mas à cautela explicou-lhe outra vez o processo, acentuando os benefícios específicos que teria no caso dela.

— Este tipo de anestesia proporciona um grande relaxamento muscular, o que irá ajudar o Dr. Silvan no seu exame — esclareceu. - Além disso, a epidural é mais segura que uma anestesia geral.

Karen fez que sim com a cabeça. Depois perguntou:

— Tem a certeza de que vai resultar e que eu não vou sentir mesmo nada quando andarem com as sondas cá dentro?

O Dr. Doherty apertou-lhe ligeiramente o braço, num gesto tranquilizador.

—Tenho a certeza que resulta. E quer saber uma coisa? Toda a gente sente essa preocupação quanto à eficácia da anestesia quando a fazem pela primeira vez. Mas resulta sempre. Portanto não se preocupe. Okay?

— Posso fazer mais uma pergunta?

— Todas as que quiser — replicou o Dr. Doherty.

— Já alguma vez leu o livro Coma? O Dr. Doherty riu-se:

— Li, e também vi o filme.

— Nunca acontece uma coisa daquelas, pois não?

— Não! Nunca acontece uma coisa daquelas — tranquilizou-a.

— Mais alguma pergunta? Karen abanou a cabeça.

— Então pronto — disse o Dr. Doherty. — Vou mandar dar-lhe uma pequena injecção, para acalmá-la. Depois, quando soubermos que o seu médico já se está a vestir, mando levá-la para a sala de operações. Olhe, Karen, você não vai sentir mesmo nada. Acredite em mim. Já fiz isto um milhão de vezes.

— Eu acredito em si — disse Karen. Conseguiu mesmo sorrir-lhe.

O Dr. Doherty deixou a sala de espera e atravessou as portas giratórias para entrar no bloco operatório. Escreveu a prescrição para o tranquilizante de Karen e depois dirigiu-se ao gabinete de anestesia para ver quais os narcóticos que iria usar nesse dia. Em seguida dirigiu-se ao Depósito Central.

Aqui, pegou nalguns líquidos endovenosos e, brincando com os frascos, meteu a mão na caixa aberta que continha a Marcaína a 0,5%, “e onde retirou uma ampola. Sempre cuidadoso com essas coisas, verificou o rótulo. Tratava-se realmente de Marcaína a 0,5%. Aquilo que o Dr. Doherty não notou foi a ligeira irregularidade na parte de cima, aquela que ele iria partir quando estivesse para recolher o medicamento.

Annie Winthrop sentia-se mais cansada que o costume quando se

Proximou da entrada do prédio. Tinha o chapéu de chuva aberto para se proteger do aguaceiro. A temperatura baixara para menos de dez graos centígrados, fazendo pensar mais num regresso do Inverno que

a aProximação do Verão.

Que noite: três paragens cardíacas na unidade de cuidados intensivos. Um autêntico recorde em relação aos últimos quatro meses. Fazer a reanimação dos três e ao mesmo tempo tomar conta dos outros doentes deixara toda a gente exausta, sem forças — e sem paciência. Aquilo que lhe apetecia era tomar um bom duche quente e em seguida meter-se na cama.

Ao chegar à porta do apartamento pôs-se à procura das chaves e acabou por as deixar cair. O cansaço tornava-a desajeitada. Apanhando o molho, pôs a que competia na fechadura. Quando ia dar-lhe a volta, percebeu que a porta não estava fechada à chave.

Annie fez uma pausa. Ela e Gail tinham sempre a porta fechada à chave, mesmo quando estavam no apartamento. Era uma regra que as duas tinham discutido especificamente entre si.

Com um leve sentimento de apreensão, Annie deu a volta ao puxador e empurrou a porta, abrindo-a. As luzes da sala comum estavam acesas. Annie perguntou a si própria se Gail estaria em casa.

A intuição de Annie fê-la hesitar antes de entrar. Qualquer coisa a prevenia de que havia perigo. Mas não se ouvia qualquer som. O apartamento estava mergulhado num silêncio mortal.

Annie abriu mais a porta. Tudo parecia estar em ordem. Logo que pôs os pés na sala sentiu um cheiro terrível. Como enfermeira, pensou que sabia o que era.

—Gail?—chamou. Normalmente Gail estava a dormir quando ela chegava. Annie encaminhou-se para o quarto de Gail e espreitou para dentro, através da porta aberta. Aí a luz também estava acesa. O cheiro tornou-se pior. Chamou mais uma vez o nome de Gail e depois entrou. A porta do quarto de banho estava aberta. Gail aproximou-se e olhou lá para dentro. Soltou um grito.

O serviço de Trent para esse dia consistia em circular na sala quatro, onde estavam marcadas uma série de biópsias ao peito. Pensou que ia ser um dia fácil, a menos que alguma das biópsias saísse positiva, mas não estavam a contar com isso. Estava satisfeito com o serviço porque lhe deixava pulso livre para vigiar o seu frasquinho de Marcaína, coisa que não conseguira fazer na véspera.

A primeira biópsia estava apenas a começar quando a enfermeira anestesista pediu a Trent que lhe fosse buscar mais um litro de Lactacto de Ringer. Trent teve o maior prazer em lhe ser útil.

Havia vários membros do pessoal no Depósito Central quando Trent entrou. Sabia que ia ter de ser particularmente circunspecto quando olhasse, à procura do seu frasco. Mas ninguém lhe prestou atenção. Estavam ocupados a organizar o material cirúrgico que iria substituir o utilizado naquele dia. Trent dirigiu-se para a área onde se encontravam os fluidos endovenosos. As drogas não narcóticas ficavam à esquerda.

Trent tirou o frasco de lactacto da prateleira. Pela abertura sem porta que dava entrada àquela secção do Depósito Central, podia observar os outros, enquanto contavam os instrumentos cirúrgicos.

Sempre com os outros enfermeiros debaixo de olho, Trent meteu a mão na caixa aberta da Marcaína. Sentiu um arrepio de satisfação. Só lá restava uma ampola, e a sua parte de cima era arredondada e macia. A ampola que ele “preparara” já tinha desaparecido.

Mal conseguindo conter a excitação, Trent saiu do Depósito Central e regressou à sala quatro. Deu a garrafa de lactato à enfermeira anestesista. Depois perguntou à enfermeira circulante se precisava de alguma coisa. Ela disse-lhe que não. Estava a correr tudo bem. A biópsia já tinha sido enviada à secção de congelação e estavam a fechar. Trent respondeu que voltava já.

Saindo da sala quatro, Trent foi rapidamente ao quadro das marcações. Ficou deliciado com aquilo que viu: a única epidural marcada para as sete e meia era a laparoscopia, e Doherty era o anestesista! A hérnia era para mais tarde. O seu frasco tinha de ter sido levado para a laparoscopia.

Trent verificou a localização da laparoscopia. Tinha-lhe sido atribuída a sala doze. Avançou apressadamente pelo corredor e entrou no gabinete de anestesia da sala doze. Doherty estava presente e a paciente também. Pousada numa mesinha de aço inoxidável estava a sua ampola de Marcaína.

Trent nem conseguia acreditar na sorte que tivera. Não só o anestesista era Doherty, mas a doente era uma rapariga jovem e saudável. As coisas não se podiam ter proporcionado melhor.

Não querendo ser visto a vaguear por aqueles lados, Trent não se demorou. Voltou para a sala onde estava de serviço, mas sentia-se tão agitado que não conseguia ficar quieto. Pôs-se a andar de um lado Para o outro com tal impetuosidade que o cirurgião que estava a fazer a biópsia teve de lhe pedir que se sentasse ou saísse da sala.

Normalmente, uma ordem daquelas por parte de um médico teria deixado Trent furioso. Mas não naquele dia. Estava excitado de mais a pensar no que estava prestes a acontecer e naquilo que tinha que fazer. Sabia que ia ter de voltar à sala onze quando começasse a confusão e retirar o frasco aberto. Essa tarefa era sempre um bocado preocupante para Trent, embora das vezes anteriores o pandemónio geral causado pela reacção tivesse sempre absorvido as atenções gerais. Mesmo assim, era o elo mais frágil de toda a operação. Trent não queria que ninguém o visse tocar no frasco.

Levantou os olhos para o relógio e ficou a ver o ponteiro dar a volta ao mostrador. Tudo ia acontecer dentro de alguns minutos. Um arrepio de prazer percorreu-lhe a espinha. Adorava aquela expectativa!

 

                               5.a feira, 18 de Março de 1989, 7:52

Com as sirenes a apitar, a ambulância que transportava Gail Schaffer entrou na área das emergências do St. Joseph’s Hospital e encostou em marcha atrás à plataforma de descarga. Os maqueiros já tinham telefonado pelo caminho para alertar o serviço de urgência sobre o caso que ia dar entrada, pedindo apoio cardíaco e neurológico.

Quando tinham chegado ao apartamento de Gail, em resposta ao telefonema de AnnieWinthrop, tinham deduzido rapidamente aquilo que se passara. Gail Schaffer tinha sofrido um ataque violento quando estava a tomar duche. Calcularam que ela tivesse previsto de alguma forma o ataque pois a amiga insistia em que a água tinha sido fechada. Infelizmente Gail não conseguira sair da banheira com a rapidez necessária e tinha batido repetidas vezes com a cabeça nas torneiras e na banheira. Apresentava diversos ferimentos no couro cabeludo e na cara, especialmente uma enorme brecha na testa, junto ao cabelo.

A primeira coisa que os maqueiros fizeram foi retirar Gail da banheira. Ao fazê-lo, notaram a ausência total de tónus muscular, como se ela estivesse completamente paralisada. Tinham notado também uma acentuada anormalidade no bater do coração. O ritmo era totalmente irregular. Tentaram estabilizá-la começando a ministrar-lhe soro por via endovenosa e dando-lhe oxigénio a 100%.

Logo que as portas da ambulância se abriram, Gail foi levada rapidamente para uma das unidades de traumatologia dos Serviços de Urgência. Graças ao telefonema dos maqueiros, um estagiário de neurologia e outro de cardiologia estavam já a postos quando ela chegou.

A equipa lançou mãos ao trabalho de maneira febril. Era evidente, Jjue Gail estava presa à vida por um fio muito ténuo. O sistema de condução eléctrica do coração, responsável pela coordenação dos batimentos, estava severamente afectado. O neurologista corroborou rapidamente a impressão inicial dos maqueiros: Gail sofria de uma paralisia flácida quase total que abrangia os nervos cranianos. O que era particularmente estranho nessa paralisia era que alguns grupos de músculos ainda tinham um certo comportamento reflexo, mas não parecia haver qualquer esquema regular que permitisse identificá-los. Funcionavam ao acaso.

O consenso que em breve se estabeleceu foi o de que Gail sofrera um ataque violento em consequência de um derrame intracraniano e/ou tumor cerebral. Este foi o diagnóstico preliminar, apesar de o líquido cerebroespinal se apresentar límpido. Uma das estagiárias de medicina interna discordou. Era de opinião que todo aquele episódio era devido a uma intoxicação aguda provocada por uma droga qualquer. Insistiu em que colhessem uma amostra de sangue para análise, com incidência particular nos tipos mais recentes de drogas sintéticas.

Um dos estagiários de neurologia tinha também certas reservas quando ao diagnóstico preliminar. Na sua ideia, uma lesão central não explicaria o problema da paralisia. Acompanhava a estagiária de medicina interna na sua suspeita de intoxicação aguda. Mas não levava as suas hipóteses mais por diante enquanto não tivesse os resultados dos novos testes.

Todos concordaram quanto ao trauma da cabeça. As provas físicas eram bem claras. A radiografia da veia porta fez estremecer toda a gente. O corte junto à linha do cabelo tinha fracturado uma das cavidades frontais. Mas acharam que mesmo um traumatismo tão grave não chegava para explicar o quadro geral.

Apesar da precária situação cardíaca de Gail, foi marcado um NMR de emergência. O estagiário de neurologia conseguira ultrapassar as formalidades burocráticas e facilitar as coisas. Com vários estagiários atrás, Gail foi levada para a radiologia e colocada na enorme máquina redonda. Todos estavam um bocado receosos de que o campo magnético pudesse afectar-lhe o sistema de condução cardíaca, já de si tão instável, mas a urgência de chegar a um diagnóstico intracraniano ultrapassava todas as outras preocupações. Todas as pessoas envolvidas no caso ficaram grudadas ao ecrã logo que apareceram as primeiras imagens.

Bil Doherty levantou a seringa de vidro de 5 cm3 de encontro no gabinete de anestesia e bateu-lhe levemente na parte de fora. AS poucas bolhas de ar que estavam aderentes aos lados flutuaram Para a superfície. A seringa continha 2 cm de Marcaína de grau espina com epineMna.

O Dr. Doherty já ia bastante avançado na anestesia epidural contínua de Karen Hodges. Tudo estava a correr sem problemas e confor’ me as previsões. A picada inicial não lhe causara a mais ligeira dor

A agulha de Touhey portara-se maravilhosamente. Conseguira demonstrar de maneira inteiramente satisfatória que a agulha de Touhey se encontrava no espaço epidural, dada a falta de resistência no êmbolo da pequena seringa de vidro na altura em que o premira. A dose de teste que ministrara também confirmava esse facto. E por fim o pequeno catéter tinha deslizado para o seu lugar com toda a facilidade. Só restava confirmar que o catéter estava no espaço epidural. Feito isso, poderia continuar com a dose terapêutica.

— Como é que vai isso?—perguntou a Karen ao Dr. Doherty. Karen estava deitada sobre o lado direito, com as costas voltadas para ele. Depois de lhe ministrar a anestesia, ia pô-la de costas.

— Acho que estou bem — disse Karen. — Já terminou? Continuo a não sentir nada.

— Também não está previsto que sinta — disse o Dr. Doherty. Injectou-lhe a dose de teste e depois começou a insuflar a banda de

medição da tensão arterial. A tensão não se modificou e o mesmo aconteceu com o pulso. Enquanto esperava, preparou uma pequena ligadura para pôr em volta do catéter. Passados alguns minutos tentou de novo a tensão arterial. Não mudara. Testou-lhe a sensação na parte inferior das pernas. Não havia anestesia, o que significava que o catéter não estava seguramente no espaço onde era dada a anestesia espinal. Sentia-se satisfeito. O catéter tinha de estar no espaço epidural. Tudo estava pronto para a injecção principal.

— Sinto as pernas perfeitamente normais — queixou-se Karen. Continuava preocupada que a anestesia não resultasse nela.

— Nem deviam estar de outra maneira neste momento — garantiu-lhe o Dr. Doherty. — Lembre-se daquilo que lhe disse quando começámos. — Tinha tido o cuidado de dizer a Karen aquilo que devia esperar. Mas não estava surpreendido por ela se ter esquecido. Foi paciente com ela, sabia que estava apreensiva.

— Como é que vamos?

O Dr. Doherty levantou os olhos. Era o Dr. Silvan, já vestido para a operação.

— Daqui a dez minutos estamos prontos — disse o Dr. Doherty. Voltou à mesa de aço inoxidável, pegou na ampola de 30 cm3 de Marcaína e verificou novamente o rótulo. —Vou injectar agora o epidural

disse.

- Está óptimo — disse o Dr. Silvan. — Vou-me lavar e a seguir Podemos começar. Quanto mais depressa começarmos mais depressa estaremos despachados. — Deu uma palmadinha no braço de Karen, tendo o cuidado de não deslocar o lençol esterilizado que o Dr. Doherty colocara. — Descontraia-se, ouviu? — disse para Karen.

O Dr. Doherty partiu a parte de cima da ampola. Recolheu a Marcaína com uma seringa. Levado pela força do hábito, bateu nos lados da seringa para lhe tirar quaisquer bolhas de ar, embora a entrada de ar no espaço epidural não tivesse constituído problema. Era um movimento executado pela força do hábito.

Inclinando-se ligeiramente, o Dr. Dohei injectou a seringa ao catéter epidural. Começou uma injecção seguida. A pequena secção do catéter oferecia uma certa resistência, por isso tinha de empurrar o êmbolo com firmeza. Mal acabou de despejar a seringa, Karen mexeu-se.

— Não se mexa ainda! — repreendeu o Dr. Doherty.

— Tenho uma cãibra horrível — gritou Karen.

— Onde? — perguntou o Dr. Doherty. — Nas pernas?

— Não, no estômago — disse Karen. Gemeu e esticou as pernas. O Dr. Doherty estendeu-lhe a mão para o quadril para a segurar.

Uma enfermeira que estava ali ao pé para dar assistência aproximou-se e agarrou os tornozelos de Karen.

Apesar das tentativas do Dr. Doherty para a segurar com a mão que tinha livre, Karen voltou-se de costas. Levantou-se apoiada num cotovelo e olhou para o médico. Os olhos dela estavam dilatados pelo terror.

— Ajude-me — gritou desesperada.

O Dr. Doherty estava confuso. Não fazia ideia do que era que estava a correr mal. À sua primeira ideia foi que Karen tivesse pura e simplesmente entrado em pânico. Largou a seringa. Com as duas mãos, agarrou Karen pelos ombros e tentou forçá-la a deitar-se de novo na marquesa. Por seu lado, a enfermeira agarrou-lhe com mais força os tornozelos.

O Dr. Doherty resolveu ministrar-lhe uma dose de diazepam, mas antes que tivesse tempo de a ir buscar o rosto de Karen distorceu-se com os espasmos ondulantes dos músculos faciais. Ao mesmo tempo, a saliva gorgolejava-lhe da boca e as lágrimas escorriam-lhe dos olhos. A pele ficou instantaneamente molhada de transpiração. A respiração tornou-se estertorosa e obstruída pelo catarro.

O Dr. Doherty foi buscar atropina. Quando estava a ministrá-la> o dorso de Karen arqueou-se. O corpo tornou-se rígido e a seguir explodiu numa série de ataques convulsivos. A enfermeira correu para junto de Karen para impedir que ela se atirasse ao chão. Apercebendo-se da azáfama, o Dr. Silvan deixou o lavatório e aproximou-se para ajudar.

O Dr. Doherty tomou uma porção de succinilcolina e injectou-a Por via endovenosa. Depois injectou diazepam. Abriu o fluxo de oxigénio e segurou a máscara sobre o rosto de Karen. O electrocardiograma começou a registar irregularidades de condução.

Quando a notícia se espalhou começou a chegar auxílio. Empurraram a marquesa para a sala para ter mais espaço. A succinilcolina controlou o ataque. O Dr. Doherty entubou-a. Verificou a tensão arterial e constatou que estava a descer. O pulso mostrava-se irregular.

O Dr. Doherty injectou mais atropina. Nunca vira tanta salivação nem tanto lacrimejar. Ligou-lhe um monitor ao pulso. Nessa altura o coração de Karen parou.

Chamaram mais pessoal para dar assistência. Quando o número de pessoas em volta da paciente já ultrapassava os vinte, eram pessoas a mais para que alguém pudesse notar quando uma mão, cá fora, no gabinete, pegou no frasco de Marcaína, meio cheio, e despejou o conteúdo num lavatório ali próximo, dando sumiço ao frasco vazio.

Kelly pousou o telefone, na unidade de cuidados intensivos. A chamada deixara-lhe um sentimento de mágoa profunda. Acabava de ser informada que iam receber um doente vindo dos serviços de urgência. Mas não era isso que a tinha entristecido. O que a incomodava era que a doente era Gail Schaffer, uma das enfermeiras do Bloco Operatório. Uma amiga. Kelly conhecia Gail há bastante tempo. Gail andara com um dos estagiários de anestesia de Valley Hospital que era aluno de Chris. Gail costumava sempre estar presente no jantar anual que Kelly organizava na sua própria casa para os estagiários de anestesia. Quando Kelly mudara para o St. Joe’s, Gail tivera a amabilidade de a apresentar a uma série de gente.

Kelly tentou não deixar que os seus sentimentos pessoais interferissem. Era vital que mantivesse todo o seu profissionalismo. Dirigiu-se a outra das enfermeiras que iria ajudar a instalar a nova paciente, dizendo-lhe que preparasse a cama três para a ocupante que ia chegar.

Um grupo de pessoas trouxe Gail para a unidade de cuidados intensivos e ajudou a instalá-la, com um monitor e um respirador. Os seus Próprios esforços respiratórios não eram satisfatórios para manter os gases do sangue em valores normais. Enquanto trabalhavam, explicaram a Kelly toda a situação.

Ainda não havia diagnóstico, o que tornava Gail mais difícil de tratar. Q exame radiológico fora negativo, à excepção da fractura da cavidade central. Isto excluía a hipótese do tumor e, ou derrame intracraniano. Gail ainda não recuperara a consciência e o seu estado de paralisia agravara-se em vez de desaparecer. Mas o mais grave de tudo e a ameaça mais imediata era a instabilidade cardíaca. E mesmo isso tinha- se agravado. Nos serviços de radiologia, tinha assustado toda a gente com acessos de taquicardia ventricular que faziam com que se receasse uma paragem. Era quase milagre isso não ter acontecido.

Depois de Gail estar instalada naUCI, vieram os resultados do teste de cocaína. Negativo. Uma busca mais lata de outras drogas estava ainda presente, mas Kelly tinha quase a certeza de que Gail não era consumidora de drogas.

A equipa que a levara à UCI ainda lá estava quando se deu a paragem. O contra choque ao coração eliminou a fibrilação mas resultou numa assístole, o que significava que não havia actividade eléctrica. Umpacemaker ligado ao coração por um corte na virilha restabeleceu os batimentos, mas não de forma satisfatória. Aprognose não era boa.

— Já tenho tido que aguentar muita coisa neste meu trabalho — disse Devlin, furioso.—Pistolas, facas, canos de chumbo. O que eu não esperava era que me acertassem no rabo com uma flecha envenenada da Amazónia. E ainda por cima um tipo algemado.

Michal Mosconi limitou-se a sacudir a cabeça. Devlin era o caçador de recompensas mais eficiente que conhecia. Já tinha deitado a mão a vendedores de droga, assassinos contratados, bons mafiosos e ladrões de meia tijela. Como era possível que estivesse a ter tantos problemas com aquele doutorzeco era uma coisa que Mosconi não conseguia compreender. Talvez Devlin estivesse a perder a garra.

— Deixe-me cá ver se entendo — disse Mosconi. — Você tinha-o no seu carro, algemado? — Parecia uma história louca.

—É o que lhe digo, ele injectou-me com uma porcaria qualquer que me deixou paralisado. Num momento estava bem e de repente não podia mexer nem um músculo. Não podia fazer absolutamente nada. O tipo tem a medicina moderna a favor dele.

—Isso faz-me pensar—murmurou Mosconi com irritação. Passou a mão nervosa pelo cabelo raso. —Talvez você devesse pensar em mudar de trabalho. Que tal ser vigilante numa escola?

— Muito engraçado — disse Devlin, mas era nítido que não achara graça nenhuma.

— Como é que acha que se vai aguentar com um criminoso a sério se não consegue deitar a mão a um anestesista magrizela? — disse Michael. — Isto é uma chatice danada. Cada vez que o telefone toca eu fico cheio de palpitações, com medo que seja o tribunal a dizer que confiscaram a garantia. Você dá-se conta da gravidade da situação. Bom, não aceito mais desculpas. Quero que você apanhe esse gajo —Eu apanho-o—prometeu Devlin. —Já mandei seguir a mulherMas mais importante ainda, pus-lhe uma escuta no telefone. Ele tem de acabar por telefonar, mais tarde ou mais cedo.

— Tem de fazer mais que isso — insistiu Michael. — Estou cheio de medo que a polícia se desinteresse de impedir a saída dele da cidade. Devlin, não posso perder esse gajo. Não podemos deixá-lo escapar.

— Não creio que ele vá a lado nenhum.

— Oh? — interrogou Michael. — Isso é alguma nova intuição que você desenvolveu ou está a confundir os seus desejos com a realidade?

Devlin pôs-se a estudar Michael do seu assento no sofá desconfortável deste último. O sarcasmo de Michael começava a complicar-lhe com os nervos. Mas não disse nada. Em vez disso inclinou-se para a frente para meter a mão no bolso de trás das calças. Tirou de lá um maço de papéis. Pondo-os em cima da mesa, desdobrou-os e alisou-os.

—O doutorzeco deixou estes papéis no quarto do hotel—disse, empurrando-os na direcção de Michael. — Não creio que ele vá para lado nenhum. Aliás, acho é que ele está a preparar alguma. É isso que está a retê-lo aqui. Que é que lhe parecem estes papéis?

Michael pegou numa folha com as notas de Chris Everson.

— Isto é uma data de palavreado científico. A mim não me parece nada.

—Algumas coisas estão escritas com a letra do doutor—disse Devlin. — Mas a maior parte não. Penso que tenha sido escrito por esse tal Christopher Everson, seja ele quem for. O nome dele está em alguns dos papéis; esse nome significa alguma coisa para si?

— Não — disse Michael.

— Deixe-me ver a lista telefónica — disse Devlin.

Michael passou-lha. Delvin procurou a página onde vinham os Eversons. Havia bastantes, mas nenhum Chris. O que mais se aproximava era um tal K. C. Everson, em Brookline.

— O nome dele não vem na lista — disse Devlin. — Teria sido fácil de mais.

— Talvez também seja médico — sugeriu Michael. — É possível que o seu nome não venha na lista.

Devlin fez que sim com a cabeça. Era uma boa possibilidade. Abriu a lista nas páginas amarelas e procurou em médicos. Não havia nenhum Everson. Fechou a lista.

—A questão — disse Devlin—é que o doutor está a trabalhar nestes assuntos científicos enquanto anda fugido e foi-se esconder Daquele viveiro de pulgas daquele hotel. Não faz sentido. Ele está a Preparar alguma, mas eu não sei o que seja. Acho que vou ter de encontrar esse tal Everson e perguntar-lhe.

— E — disse Mosconi, perdendo a paciência. — Mas não leve quatro anos para chegar à escola médica. O que eu quero são resultados, se não consegue entregar a mercadoria, eu arranjo outra pessoa.

Devlin pôs-se a pé. Pousou a lista telefónica em cima da mesa de Michael e pegou nos apontamentos de Jeffrey e de Chris Everson.

—Não se preocupe—disse. —Eu encontro-o. Agora está a tornar-se uma questão pessoal.

Deixando o gabinete de Michael, Devlin saiu para a rua. Chovia com mais força que quando ele chegara. Felizmente estava estacionado perto de uma arcada, por isso bastava-lhe dar uma pequena corrida para abrir a porta do carro. Estacionara numa zona de carregamento, em Cambridge Street. Um dos benefícios de que gozava por ter estado na polícia era poder estacionar em qualquer lado. A polícia de trânsito fazia vista grossa. Era uma deferência profissional.

Metendo-se no carro, Devlin deu a volta a State House para entrar em Beacon Street. O caminho era tortuoso e complicado, como a maior parte dos itinerários de Boston. Voltou à esquerda, em Exeter, e estacionou junto da boca de incêndio mais próxima da Biblioteca Pública de Boston. Saindo do carro, correu como uma flecha para a entrada.

Na secção de referência, consultou as listas de Boston e de todas as localidades vizinhas. Havia bastantes Eversons, mas nenhum Christopher Everson. Fez uma lista dos Eversons que encontrou.

Dirigindo-se à cabina mais próxima, marcou primeiro o número de K. C. Everson em Brookline. Embora lhe parecesse que as iniciais eram de uma mulher, mesmo assim resolveu tentar. Ao princípio teve uma certa esperança: foi uma voz de homem sonolenta que atendeu a chamada.

— Christopher Everson? — perguntou Devlin. Houve uma pausa.

— Não — disse a voz. — Quer falar com a Kelly? Ela está... Devlin desligou o telefone. Tinha razão. K. C. Everson era uma mulher.

Percorrendo a sua lista de Eversons, pôs-se a ver qual seria o segundo mais prometedor. Era difícil de dizer. Nem sequer havia mais nenhum com a inicial C. Isso queria dizer que ia ter de começar a bater de porta em porta. Era um processo demorado, mas não via outra maneira. Um dos Eversons devia conhecer esse tal Christopher Everson. Devlin tinha um pressentimento de que aquela era a sua melhor pista.

Cansado como estava, Jeffrey não conseguiu mesmo assim voltar a adormecer depois de ter sido acordado pelo telefone. Se estivesse completamente acordado quando ele tocou, o mais provável era Que não tivesse atendido. Não chegara a discutir com Kelly como fazer no caso de haver alguma chamada, mas devia ser mais seguro não responder.

Deitado na cama, Jeffrey sentia-se vagamente perturbado. Quem é que poderia ter ligado a perguntar por Chris? A sua primeira ideia foi que se tratasse de uma brincadeira cruel. Mas também podia ser alguém a tentar vender alguma coisa. Alguém que tivesse tirado o nome de Chris de uma lista qualquer. Talvez fosse melhor nem falar nisso a Kelly. Detestava estar a remexer no passado, quando ela estava a começar a deixar ficar certas coisas para trás.

O espírito de Jeffrey pôs-se a analisar outra vez a teoria do contaminante, em vez de se preocupar com a chamada misteriosa. Estendendo-se de costas, passou em revista os detalhes. Depois, resolveu levantar-se, tomar duche e fazer a barba.

Enquanto fazia o café, começou a pensar se a sua complicação anestésica e a de Chris seriam episódios isolados ou se teriam ocorrido outros episódios semelhantes na área de Boston. E se o assassino tivesse adulterado a Marcaína noutras ocasiões para além daquelas duas que Jeffrey já conhecia? Se assim fosse, era de esperar que os relatórios sobre reacções tão bizarras já tivessem sido comentados de alguma forma. Por outro lado, bastava ver o que sucedera com ele e com Chris. Ambos tinham sido servidos instantaneamente com processos por incúria médica. Nessa altura, a defesa do caso assumiria importância primordial, em detrimento de outras questões.

Recordando-se de que o papel da Ordem dos Médicos do estado de Massachusetts fora alargado, por disposição estatuária, de forma a manter o registo de todos os “acidentes importantes” ocorridos nos estabelecimentos de assistência hospitalar, Jeffrey ligou para a Ordem.

Depois de várias tentativas, foi posto em linha com um membro do Comité de Análise de Assistência a Pacientes. Explicou qual o tipo de incidentes em que estava interessado. Ele deixou-o ficar à espera durante alguns minutos.

— Disse que estava interessado em casos de morte durante uma anestesia epidural? — perguntou ela, voltando a aparecer em linha.

— Exactamente — replicou Jeffrey.

—Encontro aqui quatro—disse a funcionária.—Todos eles no decorrer dos últimos quatro anos.

Jeffrey estava espantado. Quatro parecia-lhe muito. As fatalidades durante a anestesia epidural eram extremamente raras, especialmente depois de a Marcaína a 0,75% ter sido retirada dos casos de obstetrícia. O facto de se terem verificado quatro durante os últimos quatro anos devia ter feito levantar algumas bandeiras vermelhas.

— Está interessado em saber onde se verificaram? — perguntou ela.

— Sim, por favor.

Houve um no ano passado no Boston Memorial.

Jeffrey tomou nota “Memorial, 1988”. Devia ter sido o caso dele.

— Houve outro no Valley Hospital em 1987. Jeffrey tomou nota, devia ter sido o caso de Chris.

— Depois temos o Commonwealth Hospital em 1986 e Suffbk General em 1985. É isso.

“E é bastante”, pensou Jeffrey. Estava também espantado por todos os episódios terem sido em Boston.

— A ordem fez alguma coisa quanto a esses casos? — perguntou.

—Não, não fizemos—respondeu a mulher. — Se tivessem ocorrido todos na mesma instituição, teríamos feito uma inspecção. Mas como estiveram envolvidos quatro médicos diferentes e quatro hospitais diferentes, não nos pareceu que devêssemos envolver-nos. Além disso, está aqui indicado que qualquer dos quatro levou a que fossem instaurados processos por incúria médica.

— Quais são os nomes dos médicos envolvidos no Commonwealth e no Suffolk? — perguntou Jeffrey. Queria discutir os casos detalhadamente com os médicos em questão, para ver se as experiências deles eram semelhantes à sua. Muito especialmente, queria saber se tinham usado Marcaína de uma ampola de 30 cm3 como anestésico local.

— Os nomes dos médicos? Desculpe, mas essa informação é confidencial — disse ela.

Jeffrey ficou um momento a pensar e depois perguntou:

— E os nomes dos pacientes ou dos queixosos em ambos os casos? Pode indicar-mos?

Pediu-lhe mais uma vez que esperasse. Entretanto Jeffrey continuava a admirar-se de ter havido em Boston quatro mortes durante a anestesia epidural e ele sem saber de nada. Não compreendia como é que uma tal série de complicações não se tornara um tópico de conversa e uma fonte de preocupação. Depois compreendeu que a explicação tinha de estar na circunstância infeliz de todos esses casos terem resultado em processos de incúria médica. Jeffrey sabia que um dos efeitos incidiosos de tais litígios era o secretismo em que os respectivos advogados insistiam. Lembrava-se que o seu próprio advogado, Randolph, lhe tinha dito logo de início que não devia discutir o caso com ninguém.

—Ninguém parece estar informado quanto a essa questão de confidencialidade — disse a mulher quando voltou a estar em linha. Mas parece-me que é um assunto do domínio público. Os dois pacientes eram Clark DeVries e Lucy Havalin.

Jeffrey anotou os nomes, agradeceu e desligou. No quarto de hóspedes que Kelly pusera à disposição dele, Jeffrey retirou o saco de Pano de debaixo da cama e extraiu de lá algumas notas de cem dólaires. Ia ter de arranjar tempo para comprar roupa para o lugar daquela Que deixara no Essex Hotel. Por momentos, perguntou a si próprio o que é que a Pan Am teria feito com a sua mala, embora se tratasse de uma questão que não poderia investigar, por questões de segurança.

A seguir chamou um táxi. Achava que não haveria perigo em utilizar esse meio de transporte, desde que não se tornasse suspeito aos olhos do condutor. O tempo não melhorara desde que tinha saído do hospital nessa manhã, portanto Jeffrey pôs-se à procura de um chapéu de chuva no armário da entrada. Quando o táxi chegou, já ele estava à espera, do lado de fora da porta, de chapéu de chuva na mão.

O primeiro objectivo de Jeffrey era comprar um novo par de óculos de vidro simples com aros escuros. Deixou o táxi à espera enquanto foi a um oculista, pelo caminho. O seu destino final era o tribunal. Era uma sensação esquisita entrar num edifício onde havia apenas alguns dias o júri o declarara culpado de homicídio em segundo grau.

Ao passar pelo detector de metais, a sua ansiedade aumentou. A situação recordava-lhe com demasiada intensidade os seus episódios no aeroporto. Fez os possíveis por se mostrar calmo. Sabia que se desse a perceber o seu nervosismo só conseguiria atrair as atenções. No entanto, apesar destes propósitos bem intencionados, tremia visivelmente quando entrou no escritório do primeiro andar do velho edifício.

Esperou ao balcão pela sua vez. A maior parte das pessoas que estavam aí à espera tinham tipo de advogados, de fato escuro, com as pernas das calças curtas de mais. Quando uma das mulheres que estavam atrás do balcão finalmente olhou em direcção a ele e disse “A seguir”, Jeffrey avançou e perguntou como é que poderia obter os registos de uma causa específica.

— Arrumada ou pendente?

— Arrumada — disse Jeffrey.

A mulher apontou por cima do ombro de Jeffrey.

Tem de ter o número de registo do ficheiro dos Queixosos e Réus — disse ela, com um bocejo. — São esses livros de folhas soltas. Quando tiver o número traga-mo cá. Qualquer um de nós lhe tira o processo da cave.

Jeffrey fez sinal que sim com a cabeça e agradeceu-lhe. Dirigiu-se Para as prateleiras que ela tinha indicado. Os casos estavam lançados Por ordem alfabética, ano por ano. Jeffrey começou com o ano de 1986 e procurou o nome de Clark DeVries como queixoso. Quando descobriu o cartão referente ao caso, compreendeu que a informação que queria estava toda ali; não precisava do registo completo.

O cartão de informação continha os nomes do réus, dos queixosos 6 dos advogados. Naquele caso, o anestesista era um Dr. Lawrence Mann.

Jeffrey usou uma máquina de copiar para fazer uma cópia do cartão, caso precisasse de referir o número de arquivo mais tarde.

Fez o mesmo com o cartão que encontrou em nome de Lucy Havalin. O caso dela fora contra uma anestesista de nome Dr.s Madaline Bowman. Jeffrey tivera alguns contactos profissionais com Bowman, mas havia anos que não sabia nada dela.

Ao retirar o papel da copiadora, olhou a ver se estava bem legível. Nessa altura, notou que o nome do advogado era Matthew Davidson.

Jeffrey estremeceu. A cópia quase lhe caiu das mãos. Matthew Davidson era o advogado que o tinha processado por incúria médica em representação de Patty Owen.

Jeffrey sabia, racionalmente, que era ridículo odiar o homem. Afinal, Davidson estava apenas a fazer o seu trabalho e os herdeiros de Patty Owen tinham o direito de ser representados legalmente. Jeffrey conhecia todos esses argumentos. Mas era o mesmo. Davidson arruinara-o, trazendo a tribunal o problema menor e irrelevante de uma ligeira dependência de que Jeffrey sofrera anteriormente. Fora uma jogada desleal, usada unicamente como manobra calculada para ganhar o caso. A justiça e a verdade não tinham sido os verdadeiros motivos; não houvera incúria alguma. Jeffrey estava seguro disso, agora que eliminara as suas dúvidas e que estava cada vez mais convencido do envolvimento de um contaminante.

Mas Jeffrey tinhamais que fazer naquele momento do que rever injustiças passadas. Mudando de ideias, resolveu apesar de tudo analisar os registos do tribunal. Às vezes, uma pessoa não sabia o que andava a procurar até encontrar o que queria, disse Jeffrey para consigo próprio. Voltando ao balcão onde estivera inicialmente, deu os números à mulher com quem falara antes.

— Tem de preencher um daqueles pedidos que estão naquele balcão ali — disse ela.

“Burocracia típica”, pensou Jeffrey com irritação, mas fez o que lhe disseram. Depois de preencher os impressos, foi pela terceira vez para afila de espera. Desta vez atendeu-o outra empregada. Quando recebeu os dois pedidos, sacudiu a cabeça, dizendo:

— Vai levar uma hora, pelo menos.

Enquanto esperava, Jeffrey foi à procura de umas máquinas de vendas que vira à entrada. Comprou um sumo de laranja e uma sanduíche de atum. Depois instalou-se num banco, na rotunda, e ficou a ver pessoas que entravam e saíam do tribunal. Havia tantos polícias de uniforme que Jeffrey acabou por se habituar a encarar com eles. Foi uma espécie de terapia comportamental que muito contribuiu para lhe reduzir a ansiedade.

Depois de ter passado mais de uma hora, Jeffrey voltou ao escritório.

Os registos em que estava interessado tinham-lhe sido trazidos dos arquivos. Jeffrey pegou nas capas de papel pardo e dirigiu-se para um balcão lateral onde teria o espaço necessário para manusear os documentos. Havia muita coisa. Parte do material que ali se encontrava apresentava uma linguagem jurídica tão densa que lhe seria difícil absorver-lhe o sentido, mas estava interessado em ver tudo quanto havia. Encontrou páginas e páginas de testemunhos ali registados, bem como grande variedade de outros documentos.

Jeffrey folheou o testemunho. Queria descobrir qual o anestésico local que estava envolvido no caso. Percorreu primeiro os papéis que diziam respeito ao caso do Suffolk General. Tal como suspeitava, o anestésico local era a Marcaína. Agora que já sabia onde procurar exactamente a informação que queria, não tardou a encontrar o que pretendia saber sobre o caso do Commonwealth Hospital. Também aí o anestésico local fora a Marcaína. Se a teoria de Jeffrey sobre uma contaminação deliberada fosse verdadeira, isso significava que o assassino, o Dr., Sr. ou Miss X, já atacara quatro vezes. Se ao menos conseguisse descobrir alguma prova antes de ele desferir novo golpe.

Jeffrey preparava-se para repor no sobrescrito os papéis relativos ao caso do Commonwealth quando deu com os olhos na verba fixada como indemnização. Sacudiu a cabeça, consternado. Tal como no seu próprio caso, a verba atingira os milhões de dólares. Que desperdício, pensou. Verificou a indemnização do outro caso. Era ainda mais elevada.

Jeffrey colocou os processos num cesto destinado a devoluções. Parara finalmente de chover, mas o céu continuava encoberto e fazia frio; tudo indicava que ia chover de novo dentro de minutos.

Apanhou um táxi na Cambridge Street e disse ao condutor que o levasse à Countway Medicai Library. Recostou-se no assento e descontraiu-se. Pensava com prazer na tarde de chuva que ia passar na biblioteca. Uma das coisas que queria fazer era ler alguma coisa sobre toxicologia. Queria pôr-se em dia com as duas principais armas de diagnóstico nessa área: a cromatografia gasosa e a espectrofotometria de massa.

 

                                   5.a feira, 18 de Maio de 1989, 16:07

Kelly deu a volta à chave na fechadura e empurrou a porta com o pé. Tinha as mãos cheias, com o chapéu de chuva, um pequeno saco da mercearia e um sobrescrito grande.

—Jeffrey — chamou, pondo o sobrescrito e o saco em cima da mesa da entrada, ao mesmo tempo que empurrava para o lado o serviço de chá de prata. Pôs a sombrinha no chão de ladrilho do pequeno toilette e depois foi fechar a porta principal. —Jeffrey — chamou de novo, perguntando a si mesma se ele estaria em casa ou não. Quando se voltou outra vez para dentro, não conseguiu reprimir um ligeiro grito de surpresa. Jeffrey estava parado junto do arco que conduzia à sala de jantar. —Assustaste-me — disse, com a mão a comprimir-lhe o peito.

— Não me ouviste? — perguntou ele. — Estava lá dentro na sala pequena e respondi-te quando me chamaste.

— Pfff... — disse Kelly, recompondo-se. — Estou satisfeita por estar em casa. Tenho uma coisa para ti. — Pegou no sobrescrito que deixara em cima da mesa e meteu-o na mão de Jeffrey. — Também tenho muito que contar — acrescentou. Pegou no saco da mercearia e levou-o com ela para a cozinha.

— Que é isto? — perguntou Jeffrey, seguindo-a com o sobrescrito na mão.

— É uma cópia do exame patológico de Henry Noble feito em Vailey Hospital — disse Kelly por cima do ombro.

—Já? — Jeffrey estava impressionado. — Como é que conseguiste isso tão depressa?

— Foi fácil. O Hart Rudock mandou-mo logo. E nem perguntou para que é que eu o queria.

Jeffrey fez passar os papéis para fora do sobrescrito, enquanto ia andando. Não havia micrografias electrónicas, mas também não esperava que houvesse. Não faziam parte de uma autópsia de rotina. Mesmo assim o processo parecia-lhe insuficiente. Entretanto deparou - se-lhe uma anotação referindo que havia mais material arquivado no gabinete do Médico Legista. Então estava tudo explicado.

Kelly tirou as compras do saco, enquanto Jeffrey se instalava no sofá da sala pequena com os papéis. Encontrou um resumo do relatório da autópsia que se encontrava no gabinete do Médico Legista. Numa leitura rápida, constatou que a pesquisa toxicológica fora feita, mas não revelara nada de suspeito. Viu também que na secção microscópica tinham sido encontrados vestígios de destruição histológica das células nervosas dos glânglios da raiz dorsal, bem como do músculo cardíaco.

Kelly foi sentar-se ao pé de Jeffrey, no sofá. Jeffrey percebeu que ela tinha qualquer coisa de grave para lhe dizer.

— Hoje houve mais uma complicação anestésica grave no St. Joe’s — disse. —Ninguém queria adiantar muito, mas segundo ouvi dizer acho que envolveu um caso de epidural. A paciente era uma jovem chamada Karen Hodges.

Jeffrey sacudiu tristemente a cabeça.

— Que foi que aconteceu? — perguntou.

— A paciente morreu.

— Marcaína? — inquiriu novamente Jeffrey.

—Não tenho a certeza—replicou Kelly. —Mas hei-de saber, provavelmente amanhã. A pessoa que me falou no caso achava que era Marcaína.

— Vítima número cinco — suspirou Jeffrey.

— Que é que queres dizer com isso?

Jeffrey descreveu-lhe os frutos da sua pesquisa naquele dia, começando com o telefonema para a Ordem dos Médicos.

— Acho que o facto de as mortes terem ocorrido em hospitais diferentes aumenta as probabilidades de uma adulteração criminosa. Estamos perante alguém que é suficientemente esperto para saber que mais de uma morte durante a anestesia epidural, na mesma instituição, levantaria suspeitas e levaria provavelmente a um inquérito oficial.

— Quer dizer que estás mesmo convencido de que alguém... uma pessoa qualquer... está por detrás de tudo isto?

— Cada vez mais — disse Jeffrey. — Tenho quase a certeza de que há um contaminante envolvido nestes casos. Estive hoje na biblioteca e, entre outras coisas, quis ter a certeza absoluta de que os anestésicos locais em geral e a Marcaína em particular não afectam as células tal como se descreve na autópsia de Henry Noble ou como é revelado nas micrografias electrónicas de Patty Owen. A Marcaína não produz um efeito desses. Ou antes, a Marcaína só por si.

— Então o que poderia ter sido?

—Ainda não tenho a certeza — disse Jeffrey. — Li bastante sobre toxicologia e venenos na mesma ida à biblioteca. Estou convencido de que não podia ter sido nenhum veneno tradicional, pois esses teriam aparecido na pesquisa toxicológica. O que sou levado a pensar é que teria de ser antes uma toxina.

— E não é a mesma coisa?

— Não — replicou Jeffrey. — Veneno é um termo geral. Aplica-se a qualquer coisa que danifique as células ou interrompa a função celular. Normalmente, quando alguém pensa num veneno pensa em mercúrios ou nicotina ou estricnina.

— Ou arsénico — acrescentou Kelly.

— Exactamente — continuou Jeffrey. — Todos eles são produtos químicos inorgânicos ou elementos. Uma toxina, por outro lado, embora seja um tipo de veneno, é produto de uma célula viva. Como a toxina que provoca a síndroma de choque tóxico. Provém de uma bactéria.

— Todas as toxinas provêm de bactérias? — perguntou Kelly. —Nem todas—disse Jeffrey.—Há toxinas de grande potência que

provêm de vegetais, como o rícino que provém da carrapateira. Mas as pessoas estão mais familiarizadas com as toxinas que vêm na forma de venenos, como o das cobras, dos escorpiões e de certas aranhas. Fosse o que fosse que misturaram com a Marcaína, tinha de ser de grande potência. Tinha de ser uma coisa que pudesse ser fatal em doses diminutas e ao mesmo tempo assemelhar-se largamente aos anestésicos locais. De outra forma, ter-se-ia suspeitado da sua presença. A diferença, claro, seria a sua capacidade de destruição das células nervosas, enquanto os anestésicos locais se limitam a bloqueá-las.

“Portanto, se foi injectada juntamente com a Marcaína, por que é que não foi detectada no teste toxicológico?

“Por duas razões. Primeiro porque provavelmente é utilizada em quantidades tão diminutas que a quantidade existente na amostra de tecido se torna praticamente indetectável. Em segundo lugar, porque é um composto orgânico que se pode esconder no meio dos milhares de compostos orgânicos que existem normalmente em qualquer amostra de tecido. O aparelho usado num laboratório toxicológico para separar todos os compostos é um instrumento chamado cromatógrafo gasoso. Mas este instrumento não separa tudo com nitidez. Há sempre sobreposições. Aquilo que se obtém no final é um gráfico que apresenta uma série de picos e depressões. Esses picos podem reflectir a presença de diversas substâncias. É o espectrofotómetro de massa que revela realmente quais os compostos existentes numa amostra. Mas uma toxina pode estar por assim dizer obscurecida num dos picos da cromatografia gasosa. Amenos que se suspeite da sua presença e se saiba especificamente o que procurar, não se consegue encontrá-la.

—Bom, nesse caso, se há alguém por detrás disto, tem de ser uma pessoa que saiba o que está a fazer. Quer dizer, tinha de ser alguém que estivesse familiarizado com a toxicologia básica, não achas? — comentou Kelly.

Jeffrey fez um sinal de assentimento.

—Pensei bastante no caso quando vinha a caminho de casa, depois de sair da biblioteca. Acho que o assassino tem de ser um médico, alguém com uma boa formação em fisiologia e farmacologia. Um médico teria igualmente acesso a diversas toxinas e aos frascos de Marcaína. Para te dizer a verdade, o meu suspeito ideal seria provavelmente um dos meus colegas mais próximos: um anestesista.

—E tens alguma ideia por que é que um médico iria fazer uma coisa dessas? — perguntou Kelly.

—É possível que nunca se venha a saber—disse Jeffrey. —Por que razão o Dr. X matou aquela gente toda? Por que é que alguém pôs o veneno nas cápsulas de Tylenol? Não creio que ninguém saiba exactamente. O que é óbvio é que se tratava de pessoas instáveis. Mas essa afirmação contém mais perguntas que respostas. Provavelmente as razões estão dentro da mente irracional de um psicopata que está furioso com o mundo ou furioso com os médicos ou com os hospitais e que, na sua maneira de pensar distorcida, está convencido de que esta é uma maneira apropriada de exercer vingança.

Kelly estremeceu.

—Apavora-me pensar que anda um médico desses por aí à solta.

— A mim também — concordou Jeffrey. — Essa pessoa pode até conservar-se normal durante a maior parte do tempo e sofrer de episódios psicóticos. Ele ou ela pode ser a última pessoa de quem se iria suspeitar. E seja quem for, é uma pessoa que tem de ocupar um lugar de confiança, para ter acesso às salas de operações de tantos hospitais.

—Há muitos médicos que tenham esse privilégio em tantos hospitais diferentes? — perguntou Kelly. Jeffrey encolheu os ombros.

— Não faço a menor ideia, mas provavelmente o que há a fazer a Seguir é verificar isso mesmo. Tens a possibilidade de arranjar uma lista de todo o pessoal especializado do St. Joseph’s?

— Não vejo porque não — disse Kelly. — Sou muito amiga da Povy Arnsdorf, a directora dos serviços de enfermagem. Queres também a lista de todos os empregados?

— Por que não? — replicou Jeffrey. A pergunta dela fê-lo pensar no acesso extraordinário que ele próprio tinha dentro do Boston Memorial, graças ao lugar que ocupava nos serviços de limpeza. Jeffrey estremeceu ao aperceber-se da magnitude da vulnerabilidade de um hospital.

—Tens a certeza de que não deveríamos ir à polícia?—perguntou Kelly.

Jeffrey sacudiu a cabeça.

—Ainda não—respondeu. —Por muito convincente que tudo isto pareça de momento, não nos podemos esquecer de que não temos qualquer prova para apoiar a nossa teoria. Até aqui, trata-se de pura especulação da nossa parte. Logo que tenhamos qualquer prova de autenticidade, podemos recorrer às autoridades. Se deveria ser a polícia ou não, ainda não sei.

—Mas quanto mais tempo esperarmos, mais hipóteses existem de que o assassino volte a atacar.

— Eu sei — disse Jeffrey. — Mas sem termos qualquer prova ou uma leve ideia de quem possa ser o assassino, não estamos em posição de o deter.

— Ou de a deter — disse Kelly com ar sombrio. Jeffrey fez que sim com a cabeça.

— Ou de a deter.

— Que é que podemos fazer para apressar um pouco as coisas?

— Quais são as hipóteses de arranjares uma lista do pessoal especializado e dos empregados que trabalham em Valley Hospital? Seria o ideal que essa lista se referisse ao período em que Chris perdeu a sua paciente.

Kelly soltou um leve assobio.

— É uma incumbência difícil. Posso telefonar outra vez ao Hart Ruddock ou então tentar as enfermeiras-chefes que eu ainda conheço por lá. De uma maneira ou de outra, eu trato disso amanhã.

— E eu vou tentar arranjar o mesmo, no Memorial—disse Jeffrey. Não fazia ideia em que secção do hospital poderia encontrar tal lista. — Quanto mais depressa tivermos esta informação, melhor.

—Eu vou mas é falar já à Polly—sugeriu Kelly, olhando para o relógio. — Ela costuma ficar no serviço até por volta das cinco.

Enquanto Kelly se dirigia à cozinha para telefonar, Jeffrey ficou a pensar em todo o horror de mais um desastre epidural no St. Joe’s, naquele mesmo dia. Só servia para confirmar a sua teoria do contaminante. Estava mais convencido que nunca de que andava um Dr. X à solta na área de Boston.

Embora Jeffrey pensasse que um médico era o perpetrador mais provável, não podia deixar de reconhecer que qualquer pessoa que tivesse experiência farmacêutica poderia ter adulterado a Marcaína; não tinha de ser um indivíduo licenciado em Medicina. O problema era o acesso à droga, e isso levava-o a pensar em alguém da secção de farmácia.

Desligando o telefone, Kelly foi juntar-se de novo a Jeffrey. Não se sentou.

—Polly diz que me pode arranjar a lista, que não tem qualquer problema. Disse mesmo que se eu quisesse ir lá buscá-la agora também podia. E eu aceitei.

—Magnífico—disse Jeffrey.—Só espero que encontremos o mesmo espírito de colaboração nos outros hospitais. —Pôs-se de pé.

— Onde vais? — perguntou ela.

— Vou contigo.

—Isso é que não vais. Ficas aqui a descansar. Estás com um aspecto terrível. Hoje devias ter vindo dormir um bocado e em vez disso foste para a biblioteca. Fica aqui. Eu não me demoro nada.

Jeffrey fez o que ela disse. Kelly tinha razão, estava exausto. Estendeu-se no sofá e fechou os olhos. Ouviu Kelly pôr o carro em andamento e arrancar, depois ouviu a porta eléctrica da garagem a fechar. A casa ficou mergulhada em silêncio, só se ouvia o tiquetaque do relógio de pé na sala. Um pisco soltou o seu grito agudo lá fora no jardim.

Jeffrey abriu os olhos. Era-lhe impossível dormir: estava demasiado agitado. Levantou-se e foi à cozinha telefonar. Ligou para o gabinete do médico legista para se informar acerca de Karen Hodges. Tratando-se de uma complicação anestésica, o caso devia ter ido parar às mãos do médico legista.

O secretário disse-lhe que a autópsia de Karen Hodges estava marcada para a manhã seguinte.

Depois Jeffrey ligou para as informações para pedir os números do Commonwealth Hospital e do Suffolk General. Ligou primeiro para o Commonwealth. Quando atenderam, pediu o departamento de anestesia. Depois de feita a ligação, perguntou se o Dr. Mann ainda estava no hospital.

— O Dr. Lawrence Mann?

— Precisamente — disse Jeffrey.

— Já não trabalha cá há mais de dois anos.

— Pode dizer-me onde é que ele trabalha? — inquiriu Jeffrey.

— Não sei exactamente, mas é algures em Londres. Só que ele já não pratica Medicina. Acho que negoceia em antiguidades.

“Mais uma vítima de processo por incúria médica”, pensou Jeffrey. Já ouvira falar de outros médicos que tinham desistido de exercer por terem sido processados, independentemente da frivolidade dos motivos. Que desperdício de formação e de talento.

A seguir fez uma chamada para o departamento de anestesia do Suffolk General Hospital. Uma voz feminina cantante atendeu a chamada na secção.

—ADr.- Madaline Bowman ainda trabalha nesse hospital?—perguntou Jeffrey.

— Quem fala?—perguntou a mulher, mas já sem o tom cantante.

— Dr. Webber — ripostou Jeffrey, inventando um nome.

— Lamento muito, Dr. Webber — disse a mulher. — Daqui fala a Dr.9 Asher. Não quis ser desagradável, mas a sua pergunta apanhou-me de surpresa. Ultimamente já ninguém nos pergunta pela Dr.6 Bowman. Ela cometeu suicídio há uns anos atrás.

Lentamente, Jeffrey pousou o auscultador. As vítimas do assassino não eram só as que se encontravam na mesa de operações, pensou Jeffrey tristemente. Quanta destruição no seu rasto! Quanto mais pensava no assunto, mais se convencia de que havia alguém por detrás desta cadeia de desastres clínicos, aparentemente isolados: alguém que tinha acesso aos Blocos Operatórios dos Hospitais envolvidos e alguém que estivesse familiarizado, pelo menos, com as bases da toxicologia. Mas quem? Jeffrey estava mais determinado que nunca a ir até ao fundo da questão.

Atravessando a casa, Jeffrey entrou no estúdio de Chris. Pegou no texto de toxicologia que vira aquando da sua primeira visita a Kelly e levou-o com ele para a sala pequena. Estendendo-se no sofá e descalçando os sapatos, abriu o livro no índice. Queria ver quais os nomes indicados na secção sobre Toxinas.

Devlin aproximou-se da casa e estacionou. Inclinando-se para a frente, deitou uma vista de olhos à fachada. Era uma casa de tijolo, incaracterística, como tantas outras na área de Boston. Olhou novamente para a lista. A casa estava indicada como a residência em Brighton de um tal Jack Everson.

Devlin já tinha visitado as residências de sete Eversons. Até ali não tivera qualquer sorte e começava a perguntar a si mesmo se o esquema iria resultar. Mesmo que conseguisse localizar esse tal Chris Everson, quem é que lhe garantia que o homem conseguisse levá-lo ate Rhodes? Podia não passar de tempo perdido.

Devlin estava também a chegar à conclusão de que os Eversons eram na realidade um clã muito pouco cooperativo. Até parecia que lhes andava a fazer perguntas sobre a sua vida sexual e não apenas sobre se conheciam algum Christopher Everson. Devlin perguntava a si mesmo o que seria que tornava a maior parte das pessoas na área de Boston tão paranóicas.

Numa das casas tivera literalmente que agarrar o homem, pouco asseado e com barriga de cerveja, e dar-lhe uma boa sacudidela. Isso fez aparecer a mulher, ainda mais feia que ele, o que Devlin pensou que era difícil de conseguir. Parecendo uma figura de banda desenhada, ela trouxe na mão o rolo da massa e ameaçou Devlin com ele, se não largasse o marido. Devlin teve de agarrar o rolo e atirá-lo para o quintal do lado, onde havia um pastor alemão grande e mal-humorado.

Depois desse episódio tinham acalmado e dito a Devlin com ar sombrio que não conheciam nenhum Christopher Everson. Devlin perguntou a si mesmo por que diabo não teriam começado por ali.

Devlin saiu do carro e espreguiçou-se. Não valia a pena adiar o inevitável, pensou, por muito que lhe apetecesse. Subiu as escadas e tocou à campainha, observando a vizinhança enquanto esperava. As casas não tinham nada de espampanante, mas os jardins estavam bem cuidados.

Olhou novamente para a porta que tinha uma protecção de alumínio e dois grandes vidros. Só esperava não estar a olhar para a sua segunda casa vazia. Isso significava que ia ter de lá voltar, se não conseguisse saber nada sobre Christopher Everson noutro sítio qualquer. Devlin já encontrara outra casa vazia. Fora em Watertown.

Voltou a tocar à campainha. Já se preparava para se ir embora quando avistou alguém a olhar para ele através da janela de vidro à direita da porta. O homem era outra beleza, com um perfil de barriga de cerveja. Tinha uma camisola interior decotada que não lhe cobria toda a superfície do abdómen. Tufos de cabelo negro saíam-lhe de debaixo de cada braço. A cara estava coberta com uma barba de cinco dias.

Devlin gritou que queria fazer-lhe uma pergunta. Ele abriu a porta interior, alguns centímetros apenas.

—Boa tarde—gritou Devlin através da porta de protecção.—Desculpe incomodar...

— Ponha-se a mexer — disse o homem.

— Bom, isso não é o que se chama hospitalidade — comentou Devlin. — Eu só queria perguntar...

— Que é que se passa... você é surdo?—perguntou o homem. —Já lhe disse que se ponha a mexer senão há sarilho.

— Sarilho? — perguntou Devlin.

O homem fez um gesto como que para fechar a porta. Devlin perdeu a paciência. Um golpe rápido, estilo karaté, desfez o vidro de cima da porta de protecção. Um pontapé ligeiro com a bota fez desaparecer o vidro de baixo e empurrou a porta interior.

Num abrir e fechar de olhos, Devlin atravessou a porta de alumínio e agarrou o homem pelo pescoço. Os olhos pareciam querer saltar

— Quero fazer-lhe uma pergunta — repetiu Devlin. — Aí vai. Estou à procura de Christopher Everson. Conhece-o?—Largou a garganta do outro. O homem tossiu e cuspiu.

— Não me faça esperar — preveniu Devlin.

— O meu nome é Jack — disse o homem com voz rouca. — Jack Everson.

—Isso já eu sabia — respondeu Devlin, retomando a compostura. — E Christopher Everson? Conhece-o? Alguma vez ouviu falar dele? É possível que seja médico.

— Nunca ouvi falar — repetiu o homem.

Contrariado com a sua sorte, Devlin voltou para o carro. Riscou o nome de Jack Everson e procurou o nome seguinte na sua lista. Era K. C. Everson, em Brookine. Estendeu o braço e pôs o carro em andamento. Pela chamada que fizera antes sabia que K correspondia a Kelly. Perguntava a si mesmo a que corresponderia o C.

Fez uma volta em “U” para ir para Washington Street. Essa ia dar a Chestnut Hill Avenue e depois a Brookline. Pensava estar diante da casa de K. C. Everson dentro de cinco minutos, o máximo dez, se houvesse trânsito em Cleveland Circle.

—ASr.s Arnsdorf vai recebê-lo—disse o secretário. Este devia ser dois ou três anos mais novo que Trent, foi o que este último pensou. E era bem-parecido. Tinha o ar de quem fazia culturismo. Trent perguntou a si mesmo porque seria que a directora dos serviços de enfermagem era secretariada por um indivíduo do sexo masculino. Devia ser para marcar uma posição qualquer, uma afirmação de poder da parte dela. Trent não gostava de Polly Arnsdorf.

Levantou-se da cadeira onde estava sentado e espreguiçou-se indolentemente. Não ia precipitar-se para o gabinete depois de ela o ter feito esperar meia hora. Atirou a revista Time, com mais de uma semana, para cima da mesa. Olhou para o secretário e viu-o a olhá-lo fixamente.

— Algum problema? — perguntou Trent.

— Se quer falar com a Sr.a Arnsdorf sugiro que vá direito ao gabinete — disse o secretário. — Ela tem muitas marcações.

“Vai-te lixar”, pensou Trent. Perguntava a si mesmo por que seria que todas as pessoas ligadas à administração achavam que o seu tempo era mais valioso que o dos outros. Gostaria de ter dito qualquer coisa de acutilante ao secretário, mas controlou-se. Em vez disso, dobrou-se, tocou nos pés e esticou os tendões das pernas.

— Uma pessoa fica entorpecida de estar para aí sentado — disse

Endireitou-se e fez estalar os dedos. Por fim, dirigiu-se ao gabinete da Sr.a Arnsdorf.

Trent não pôde deixar de sorrir quando a viu. Todas as enfermeiras supervisoras tinham o mesmo ar — ar de regateiras. Não conseguiam decidir-se quanto àquilo que queriam ser: enfermeiras ou funcionárias administrativas. Odiava-as a todas. Como só permanecia em cada hospital uns oito meses, já tinha visto espécimes desses a mais para o seu gosto e no espaço de poucos anos. Mas o encontro de hoje era daqueles que sempre lhe agradavam. Adorava criar problemas à direcção. Com a enorme falta de pessoal de enfermagem, ele sabia exactamente como consegui-lo.

— Sr. Harding — disse a Sr.- Arnsdorf—, em que posso ajudá-lo? Desculpe tê-lo feito esperar, mas com o problema que tivemos hoje no Bloco Operatório tenho a certeza que compreende.

Trent sorriu para si próprio. Claro que compreendia o problema que tinham tido no Bloco Operatório. Se ela soubesse como ele compreendia.

— Queria informar que vou deixar o St. Joseph’s Hospital—disse Trent. —A partir desta data.

A Sr.a Arnsdorf estava sentada na sua cadeira, direita como um fuso. Trent sabia que lhe captara a atenção. Era uma situação que ele adorava.

— Lamento ouvir isso — disse a Sr.a Arnsdorf. — Haverá algum problema que nós possamos discutir aqui?

— Não acho que esteja a ser usado em todo o meu potencial — disse Trent. — Como sabe, fui treinado na Marinha e gozei aí de uma autonomia significativamente maior.

— Talvez o pudéssemos mudar para outro departamento — sugeriu a Sr.- Arnsdorf.

— Receio que não seja essa a resposta — replicou Trent. — Sabe, eu gosto do Bloco Operatório. O que fui levado a pensar é que talvez me sentisse melhor num ambiente mais académico, como o Boston City Hospital. Tenciono procurar emprego lá.

— Tem a certeza de que não vai reconsiderar? — perguntou a Sr.s Arnsdorf.

— Receio bem que não. Além disso, há outro problema. Eu nunca me entendi lá muito bem com a supervisora do Bloco Operatório, a Sr.- Raleigh. Só aqui entre nós, ela não sabe governar o barco, não sei se está a ver o que eu quero dizer.

— Não tenho bem a certeza.

Trent desfiou então a lista que preparara daquilo que ele via como sendo os problemas da organização e funcionamento do Bloco Operatório. Sempre desprezara a Sr.a Raleigh e esperava que aquela conversa com a directora dos serviços de enfermagem lhe pudesse causar alguns desgostos.

Quando saiu do gabinete da Sr.s Arnsdorf, Trent sentia-se óptimo. Pensou em parar e dar dois dedos de conversa ao secretário para descobrir onde é que o tipo fazia ginástica, mas havia mais alguém na sala de espera querendo falar com a directora. Trent reconheceu-a. Era a superintendente do dia à U.C.I.

Menos de meia hora depois da sua entrevista com a Sr.a Arnsdorf, Trent saiu do hospital com todos os artigos de toilette que costumava guardar no cacifo, dentro de uma almofada. Poucas vezes se tinha sentido tão bem. Tudo se passara melhor ainda do que ele poderia esperar. Enquanto se encaminhava para a Linha Laranja do trolley, perguntava a si mesmo se deveria ir directamente ao Boston City pedir emprego. Olhando para o relógio verificou que era tarde de mais. Amanhã também estava bem. Depois pôs-se a pensar para onde iria depois do Boston City. Lembrou-se de São Francisco. Tinha ouvido dizer que São Francisco era um sítio onde um tipo se podia divertir.

Quando a campainha da porta soou pela primeira vez, o espírito de Jeffrey quase conseguiu integrá-la no sonho que estava a ter. Jeffrey estava outra vez na faculdade, perante um exame final, num curso que se esquecera que tinha tirado e a cujas aulas nunca fora. Era um sonho aterrador para Jeffrey e a fronte começou a cobrir-se-lhe de suor. Sempre fora consciencioso nos estudos, até mesmo receoso de falhar. No sonho, a campainha da porta tornou-se na campainha da escola.

Jeffrey adormecera profundamente e tinha o pesado livro de toxicologia em equilíbrio em cima do peito. Quando a campainha da porta tocou pela segunda vez, pestanejou, abriu os olhos e o livro caiu para o chão, ruidosamente. Confuso, por momentos, quanto ao sítio onde se encontrava, sentou-se muito direito e olhou em volta. Só nessa altura conseguiu orientar-se.

A princípio, esperou que Kelly fosse abrir a porta. Mas depois lembrou-se de que ela saíra para ir ao St. Joe’s. Pôs-se de pé, mas fê-lo depressa de mais. Um sono breve por cima do estado de exaustão em que se encontrava deixou-o subitamente estonteado. Teve de pôr a mão no braço do sofá para não cair. Levou bem um minuto a orientar-se antes de conseguir atravessar, em meias, a cozinha e a sala de jantar, para chegar à porta principal.

Agarrando o puxador, Jeffrey preparava-se para abrir quando viu o ralo. Inclinando-se para afrente, espreitou. Ainda meio estonteado, tinha o espírito bastante confuso. Quando deu consigo a olhar directamente para o nariz bulboso de Devlin, os seus olhos vermelhos e aguados, o coração bateu-lhe desordenadamente.

Jeffrey engoliu em seco e, cautelosamente, olhou pela segunda vez. Não havia dúvida de que era Devlin. Não podia existir outra pessoa tão feia como ele.

A campainha da porta soou de novo. Jeffrey desviou-se do ralo e deu um passo para trás. O terror comprimiu-lhe a garganta. Para onde é que podia ir? Que é que podia fazer? Como é que Devlin teria conseguido descobri-lo? Estava apavorado com a ideia de ser apanhado ou de levar algum tiro, especialmente agora que ele e Kelly já tinham conseguido alguma coisa. Se não conseguissem descobrir a verdade agora, quem é que seria capaz de dizer quando o demoníaco responsável por tanta morte e sofrimento poderia ser apanhado e ainda menos detido?

Para maior susto de Jeffrey, o puxador da porta começou a rodar. Estava bastante confiante que a tranca se encontrava no sítio, mas também sabia por experiência própria que quando Devlin queria uma coisa, se podia apostar em como iria consegui-la. Jeffrey ficou a olhar enquanto o puxador começava a rodar na direcção oposta. Deu mais um passo para trás e roçou pelo serviço de chá em prata.

Tanto a leiteira de prata como o açucareiro caíram no chão com um barulho tremendo. O coração de Jeffrey saltou-lhe dentro do peito. A campainha da porta tocou várias vezes de seguida. Jeffrey começava a recear que estivesse tudo acabado. Era o fim. Devlin não podia deixar de ter ouvido o barulho.

Depois viu Devlin encostar a cara a um dos vidros que havia aos lados da porta. Pela parte de dentro, havia uma cortina de renda, por isso Jeffrey não fazia ideia do que o outro conseguia ver. Rapidamente, Jeffrey passou através do arco para a sala de jantar.

Como que antecipando o movimento de Jeffrey, Devlin apareceu a seguir em frente da janela da sala de jantar. No momento em que Devrin punha as mãos em concha em volta dos olhos e encostava a cara ao vidro, Jeffrey deixou-se cair com os joelhos e as mãos no chão e rastejou para trás da mesa da casa de jantar. Depois, movendo-se como uma espécie de caranguejo, fugiu para a cozinha.

O coração de Jeffrey batia desordenado. Ao chegar à cozinha, pôs-se de pé. Sabia que precisava de se esconder. Notou a porta da despensa meio aberta. Precipitou-se para dentro da escuridão aromática. Quando entrou, num movimento desastrado, fez cair uma esfregona que estava encostada à parede, do lado de dentro da porta. A esfregona caiu ruidosamente no chão da cozinha.

As pancadas fortes na porta da frente pareceram abanar toda a casa. Jeffrey estava meio surpreendido por Devlin não dar um tiro na fechadura para entrar. Entretanto fechou a porta da despensa. Sentia-se preocupado com a esfregona e perguntava a si mesmo se não valeria a pena arriscar-se a abrir a porta para a puxar outra vez para dentro, mas decidiu não o fazer. E se Devlin andasse à volta da casa e o visse por uma das janelas das traseiras?

Qualquer coisa se roçou na perna de Jeffrey. Ele deu um salto e bateu com a cabeça numa prateleira de enlatados. Algumas latas caíram no chão. O resultado foi um miau agudo. EraDalila, a gatinha tigrada que estava grávida. Que mais é que lhe poderia correr mal, pensou Jeffrey?

Depois de as pancadas fortes na porta terem cessado, o silêncio desceu sobre a casa. Jeffrey, a suar, esforçava-se por ouvir qualquer coisa que lhe pudesse dar uma indicação sobre aquilo que Devlin estava a fazer.

De repente, ouviram-se passos pesados no terraço que se estendia nas traseiras da casa. Depois outra porta foi sacudida com uma veemência que prometia arrancá-la dos gonzos. Jeffrey calculou que Devlin devia estar junto da porta do terraço que dava para a sala do fundo. Tinha a certeza que iria ouvir a todo o momento os vidros partidos a assinalar que Devlin acabava de entrar.

Em vez disso, o silêncio voltou, depois da última sacudidela à porta do terraço. Passaram-se dois minutos, depois três. Jeffrey não tinha a certeza do tempo que passara depois disso. Podiam ter sido dez minutos, até ao momento em que ele afrouxou a pressão enorme que exercia sobre o painel interior da porta da despensa. Parecia-lhe uma eternidade.

Dalila mostrava-se desejosa de atenção. Não parava de se esfregar na perna dele. Jeffrey só esperava que ela se mantivesse silenciosa. Dobrou-se para lhe fazer festas. Quando começou a afagá-la, o animal arqueou as costas em agradecimento e espreguiçou-se. Passado um bocado, Jeffrey perdeu totalmente a noção do tempo. Só sentia o bater do coração nos ouvidos. Não via nada no meio daquele negrume total. O suor escorria-lhe pela parte de trás do pescoço. Na despensa minúscula, a temperatura não parava de subir.

De repente, ouviu-se outro barulho. Jeffrey pôs-se à escuta. Receava bem que fosse o som da porta da frente a abrir-se! Depois ouviu um som que reconheceu nitidamente: a porta da frente bateu, ao fechar-se, com uma força que sacudiu a casa.

Os dedos exaustos de Jeffrey cravaram-se na porta de madeira. Devlin tinha conseguido entrar! Talvez tivesse forçado a fechadura. Jeffrey não precisou de ouvir a porta bater para saber que o outro estava zangado.

Começou outra vez a ficar preocupado com a esfregona, estupidamente caída no chão da cozinha, como uma seta a apontar para a despensa. Devia tê-la puxado para dentro assim que ela caíra. A única esperança de Jeffrey era que Devlin subisse ao primeiro andar, dando-lhe uma oportunidade de fugir pela porta das traseiras.

Passos ligeiros deram rapidamente a volta ao rés-do-chão, por fim entraram na cozinha e pararam abruptamente. Jeffrey conteve a respiração. Em pensamento via Devlin observando a esfregona que apontava para a despensa e coçando a cabeça. Com o que ainda lhe restava de força nos dedos, Jeffrey enterrou mais as unhas na porta. Talvez Devlin tentasse abri-la e pensasse que estava fechada à chave.

Os braços de Jeffrey estremeceram quando sentiu vibrar a porta da despensa. Devlin agarrara o puxador do lado de fora e estava a fazer força. Jeffrey esforçava-se o mais que podia, mas mesmo assim a porta mexeu. Depois da primeira sacudidela houve um puxão forte que fez abrir a porta cerca de dois centímetros antes de se fechar de novo.

O puxão seguinte foi surpreendente. Fez abrir a porta e arrancou Jeffrey do interior da despensa. Ele tropeçou para dentro da cozinha, levantando as mãos para proteger a cabeça...

Recuando com o susto, Kelly levou a mão ao peito e soltou um gemido breve e agudo. Deixou cair a esfregona que apanhara do chão, juntamente com o sobrescrito que acabava de trazer do St. Joe’s. Dalila disparou através da porta da despensa e desapareceu na casa de jantar.

Ficaram um minuto parados a olhar um para o outro. Kelly foi a primeira a recompor-se.

— O que é isto, uma espécie de jogo para me assustar cada vez que eu entro em casa? — perguntou. — Venho por aí dentro em bicos de pés, a pensar que estivesses a dormir.

Jeffrey mal conseguiu pedir desculpa; não tencionara assustá-la. Agarrou-a pela mão e puxou-a de encontro à parede que separava a sala de jantar da cozinha.

— Que é que estás a fazer agora? —perguntou, alarmada. Jeffrey pôs um dedo nos lábios para a fazer calar.

— Lembras-te do homem de quem te falei? Aquele que disparou sobre mim? Devlin — sussurrou.

Kelly fez que sim com a cabeça.

— Ele esteve aqui. Bateu à porta principal. Deu mesmo a volta e tentou a porta do terraço.

— Ninguém estava lá fora quando eu cheguei.

— Tens a certeza?

— Estou convencida disso — disse Kelly. — Mas vou ver. Preparava-se para sair, quando Jeffrey a agarrou pelo braço. Só nessa altura é que Kelly se apercebeu até que ponto ele estava aterrorizado.

— Esse indivíduo pode estar armado.

— Queres que chame a polícia?

— Não — disse Jeffrey. Não sabia o que queria que ela fizesse. —Por que é que não voltas para a despensa que eu vou dar uma vista de olhos? — sugeriu Kelly.

Jeffrey fez que sim com a cabeça. Não gostava da ideia de deixar Kelly enfrentar Devlin sozinha, mas era ele que o homem procurava, por isso pensou que não iria fazer-lhe nada a ela. Fosse como fosse, tinham de verificar se Devlin ainda andava por ali à espreita. Jeffrey meteu—se outra vez na despensa.

Kelly dirigiu-se à porta principal e observou a parte da frente da casa. Olhou rua acima e rua abaixo. Depois, dando a volta pelas traseiras, verificou o que havia na parte de trás. Encontrou algumas pegadas com lama no terraço, mas mais nada. Voltou para dentro e fez sair Jeffrey da despensa. Logo que ele saiu, Dalila enfiou-se outra vez lá dentro.

Ainda pouco convencido, Jeffrey deu por sua vez uma volta à casa, com todo o cuidado, primeiro no interior, depois no exterior. Kelly foi andando atrás dele. Estava verdadeiramente confuso. Por que é que Devlin se teria ido embora? Não que ele quisesse pôr em causa um tal golpe de sorte.

Voltando para dentro, Jeffrey disse:

— Como raio é que ele me descobriu? Eu não disse a ninguém que estou aqui... tu disseste?

— A ninguém.

Jeffrey foi direito ao quarto de hóspedes e puxou o saco de pano do seu esconderijo debaixo da cama. Kelly estava parada, de pé, à porta.

— Que é que estás a fazer? — perguntou.

— Tenho de me ir embora antes que ele volte — respondeu.

—Espera um minuto. Vamos lá falar — disse Kelly. — Talvez pudéssemos analisar a situação antes de resolveres ir-te embora. Julgava que estávamos nisto juntos.

— Não posso estar aqui quando ele voltar — afirmou Jeffrey.

— Pensas mesmo que Devlin sabe que estás aqui?

— Penso — disse Jeffrey, irritado. — Ou pensas que ele anda por aí a bater a todas as portas em Boston?

— Não precisas de ser sarcástico — disse Kelly pacientemente.

— Desculpa — atalhou Jeffrey. — Quando fico aterrorizado sou pouco diplomata.

— Acho que há uma razão para ele vir aqui tocar a campainha — disse Kelly. — Tu deixaste os apontamentos de Kelly no quarto do Hotel. O nome do Chris estava bem visível nesses papéis. O mais provável é que ele tenha seguido a pista e me queira fazer algumas perguntas.

Jeffrey semicerrou os olhos, estudando a possibilidade.

— Achas? — perguntou, encorajado com a ideia.

— Quanto mais penso no caso, mais me parece que deva ser essa a explicação mais plausível. De outra forma, por que é que ele se teria ido embora? Se soubesse que estavas aqui, plantava-se lá fora até tu apareceres. Teria sido mais persistente.

Jeffrey fez que sim com a cabeça. Os argumentos de Kelly faziam sentido.

—Acho que é póssível que ele volte — continuou Kelly. — Mas não creio que saiba que tu estás aqui. A única coisa que isso significa é que temos de ser ainda mais cautelosos e que temos de pensar numa explicação para o facto de tu teres os apontamentos do Chris em teu poder, caso ele me faça a pergunta.

Jeffrey acenou novamente com a cabeça.

— Algumas sugestões? — perguntou ela. Jeffrey encolheu os ombros.

—Somos ambos anestesistas. Podias dizer que o Chris e eu fizemos algumas pesquisas juntos.

—Talvez possamos arranjar coisa melhor — comentou Kelly. —É uma ideia. De qualquer forma, tu não te vais embora, ficas aqui, portanto põe lá o saco outra vez debaixo da cama.—Depois deu meia volta e saiu do quarto de hóspedes.

Jeffrey suspirou aliviado. A verdade é que não tinha vontade nenhuma de ir. Atirou novamente o saco para debaixo da cama e foi atrás de Kelly.

A primeira coisa que Kelly fez foi fechar os cortinados da sala de jantar, da cozinha e da sala pequena. Depois foi à cozinha e meteu a esfregona dentro da despensa. Estendeu a Jeffrey o sobrescrito do St. Joe’s. Tinha uma lista do pessoal especializado e dos empregados do St. Joe’s.

Jeffrey levou o sobrescrito até ao sofá e abriu-o. Retirou de lá a folha de computador e desdobrou-a. Havia uma série de nomes. Aquilo que Jeffrey estava interessado em fazer era analisar o pessoal especializado, para ver se alguma das pessoas que ele conhecia do Memorial tinha alguma coisa a ver com St. Joe’s.

— Vamos pensar em jantar? — disse Kelly..

— Se calhar... —replicou ele, levantando os olhos. Depois do episódio na despensa não tinha a certeza se seria capaz de comer. Meia hora antes nunca teria pensado que àquela hora estaria estendido no sofá, a pensar em jantar.

 

                                       5.a feira, 18 de Maio de 1989, 18:30

— Queira desculpar — começou Devlin. Uma mulher de uns sessenta e tal anos, de cabelo branco, abrira-lhe a porta da sua residência, em Newton. Estava impecavelmente vestida com uma saia de linho branco, um sweater azul e uma simples fiada de pérolas. Enquanto tentava focar o olhar em Devlin, estendeu a mão para os óculos, que estavam suspensos de uma corrente de ouro em volta do pescoço.

—Palavra de honra, meu caro jovem—disse, depois de olhar Devlin de cima a baixo. —Você parece que pertence aos Anjos do Inferno.

— Já me disseram isso antes, mas para falar verdade, minha senhora, nunca estive em cima de uma motorizada. São perigosas como o diabo.

—Então por que é que se veste dessa maneira tão esquisita?—perguntou ela, obviamente espantada.

Devlin olhou-a nos olhos. Parecia genuinamente interessada. A recepção que lhe estava a fazer não tinha qualquer semelhança com as que encontrara em casa dos outros Eversons.

— Quer mesmo saber? — perguntou.

— Estou sempre interessada nas motivações dos jovens.

O facto de ser considerado um jovem foi direito ao coração de Devlin. Aos 48 anos, há muito que ninguém lhe chamava jovem.

— Descobri que esta maneira de vestir me ajuda no meu trabalho — replicou.

— E diga-me então por favor qual é o trabalho que faz e que exige que se apresente com um ar tão... — a mulher fez uma pausa, à procura da palavra certa. —... tão intimidante.

Devlin riu-se, depois tossiu. Sabia que devia deixar de fumar.

— Sou um caçador de prémios. Deito a mão aos criminosos que estão a tentar fugir à lei.

— Que interessante! — disse ela. — É tão louvável.

— Não sei se é louvável. Eu faço-o por dinheiro.

— Toda a gente tem de ganhar a vida — rematou a mulher. — E o que o traz à minha porta?

Devlin falou-lhe de Christopher Everson, acentuando que não se tratava de um fugitivo, mas de uma pessoa que podia ter algumas informações sobre um fugitivo.

— Não há ninguém na nossa família chamado Christopher — disse. —Mas parece-me ter ouvido falar num Christopher Everson há alguns anos. Acho que a pessoa em quem estou a pensar era médico.

—Isso parece-me interessante—disse Devlin. —Eu tinha a ideia que Christopher Everson era médico.

— Talvez eu possa perguntar ao meu marido quando ele chegar a casa. Ele conhece melhor o lado Everson da família. Sempre é o lado dele. Há alguma maneira de eu poder entrar em contacto consigo?

Devlin deu o nome dele e o telefone do escritório de Michael Mosconi. Disse-lhe que podia deixar recado. Depois agradeceu-lhe a ajuda e voltou para o carro.

Devlin sacudiu a cabeça enquanto desenhava um círculo em volta do nome de Ralph Everson. Pensava que podia valer a pena voltar a passar por lá, se não descobrisse nada melhor.

Pôs o carro em andamento e avançou para a rua. A próxima localidade na lista era Dedham. Aí havia dois Eversons. O seu plano era dar a volta pelo sul da cidade para apanhar Dedham, Canton e Milton antes de voltar para Boston propriamente dita.

Devlin meteu pela Rua Hammond até Tremont e por fim na velha Estrada Um que o levaria directamente ao centro de Dedham. Enquanto rodava, ria-se para consigo mesmo da variedade de experiências que estava a ter. Ia de um extremo ao outro. Pensou no episódio em casa de Kelly Everson. Tinha a certeza de que estava alguém em casa, pois ouvira o barulho de qualquer coisa a cair no chão, mesmo ao pé da porta. Amenos que fosse animal de estimação. Tinha posto também um círculo em volta desse endereço. Se não encontrasse nada mais prometedor noutro sítio, voltava lá.

Encontrar aquele doutorzinho não era mesmo nada fácil, ao contrário do que Devlin pensara a princípio. Pela primeira vez deu consigo a pensar quais seriam as circunstâncias que envolviam a condenação de Jeffrey por homicídio em segundo grau. Normalmente não se preocupava muito em saber grande coisa quanto à natureza do crime envolvido, a menos que isso sugerisse a potência de fogo de que viria a precisar. A culpa ou inocência de alguém nada tinha a ver com Devlin, nem o preocupava.

Mas Jeffrey Rhodes estava a tornar-se um mistério e ao mesmo tempo um desafio. Mosconi não lhe dissera grande coisa acerca dele, excepto o necessário para lhe explicar a situação da fiança e que não lhe parecia que o comportamento de Rhodes fosse o de um criminoso típico. E todos os pedidos de informações de Devlin, que ele pusera a circular através da sua rede de ligações no submundo, tinham vindo em branco. Ninguém sabia o que quer que fosse acerca de Jeffrey Rhodes. Ao que parecia nunca fizera nada errado, uma situação única na experiência de Devlin como caçador de prémios. Então porquê aquela fiança enorme? O que teria feito o Dr. Jeffrey Rhodes, exactamente? Devlin sentia-se também desconcertado com o comportamento de Rhodes desde que tentara fugir para o Rio. Agora Rhodes parecia completamente diferente. Não agia como o fugitivo habitual que andasse a monte. De facto, desde que Devlin lhe tirara o bilhete para a América do Sul, Jeffrey já não parecia estar a querer fugir para lado nenhum. Jeffrey andava a preparar qualquer coisa — Devlin tinha a certeza disso. Sentia que os papéis que encontrara no Essex provavam isso mesmo. Devlin perguntou a si próprio se serviria de alguma coisa pedir a um dos cirurgiões da polícia que olhasse para esse material. Uma vez que os Eversons não estavam a dar nada, bem podia tentar outro ângulo.

Apesar da insistência de Kelly para que não o fizesse, Jeffrey ajudou-a a lavar a loiça depois do jantar de peixe espada com alcachofras. Ela pôs-se ao lava-loiça a limpar os pratos e Jeffrey foi-os trazendo da mesa, na sala do fundo por detrás da cozinha.

— O Bloco Operatório não foi o único sítio onde houve uma tragédia hoje — disse Kelly, ao mesmo tempo que tentava limpar a testa com a parte de trás do braço que estava a descoberto acima das luvas de borracha. —Também tivemos problemas na UCI.

Jeffrey pegou numa esponja para limpar a mesa.

— Que foi que aconteceu? — perguntou distraidamente. Estava ocupado com os seus próprios pensamentos. Preocupava-o a inevitável próxima visita de Devlin.

— Morreu uma das enfermeiras do hospital — disse Kelly. — Era uma boa amiga e uma boa enfermeira.

— Estava a trabalhar quando isso aconteceu?

— Não, ela fazia o turno da noite no Bloco — respondeu Kelly. Deu entrada esta manhã de ambulância, por volta das oito.

— Acidente de carro?

Kelly sacudiu a cabeça e recomeçou a limpar as travessas.

—Náo. Por aquilo que conseguiram perceber, ela tinha tido um ataque em casa.

Jeffrey parou de limpar a mesa e endireitou-se. A palavra “ataque” evocava a recordação de toda sequência com Patty Owen. Via, como se tivesse sido na véspera, o rosto da jovem voltado para ele, a pedir ajuda, momentos antes de começarem as convulsões.

— Foi horrível — continuou Kelly. — Teve o ataque ou lá o que foi quando estava na banheira. E bateu desalmadamente com a cabeça. A ponto de ter fracturado o crânio.

— Que horror — comentou Jeffrey. — E foi isso que a matou? —Pelo menos não ajudou nada — disse Kelly. — Mas não foi isso

que a matou. Desde que os maqueiros chegaram ao pé dela que o coração estava muito irregular. O sistema de condução do coração estava completamente em baixo. Morreu de paragem cardíaca na unidade. Conseguimos aguentá-la mais um bocado com umpacemaker. Mas o coração estava fraco de mais.

— Espera aí — disse Jeffrey. Estava surpreendido com as semelhanças entre a descrição de Kelly sobre a sequência dos acontecimentos e a sequência da reacção de Patty Owen à Marcaína na sua desastrosa cesariana. Jeffrey queria ter a certeza de que percebera tudo bem.

— Uma das enfermeiras do Bloco foi trazida para o hospital na sequência de um ataque e de um problema cardíaco qualquer?—perguntou.

— Precisamente — disse Kelly. — Abriu a porta da máquina de lavar loiça e começou a meter lá dentro a loiça suja. — Foi tão triste. Foi como ver morrer uma pessoa de família.

— E o diagnóstico? Kelly sacudiu a cabeça.

—A princípio pensaram num tumor no cérebro mas não encontraram nada do NMR. Devia ter qualquer problema cardíaco congénito. Foi o que me disse um dos estagiários da medicina interna.

— Como é que ela se chamava?

— Gail Schaffer.

— Sabes alguma coisa da vida privada dela?

— Um bocado — respondeu Kelly. — Como te disse, era uma amiga.

— Então conta-me o que sabes.

— Gail era solteira, mas acho que tinha um namorado fixo.

— Conheces o namorado?

— Não. Só sei que era estudante de Medicina — esclareceu Kelly. Olha lá, porquê a lavagem ao cérebro?

— Não sei bem — disse Jeffrey, mas logo que começaste a descrever o caso, não pude deixar de pensar em Patty. A sequência foi a mesma. Ataque e problemas com o sistema de condução cardíaca.

— Não estás a sugerir... — Kelly não conseguiu acabar a frase. Jeffrey sacudiu a cabeça.

— Eu sei. Eu sei. Estou a começar a parecer um daqueles maníacos que vêem uma conspiração por detrás de tudo o que acontece. Mas é uma sequência tão invulgar. Acho que estou a ficar hipersensível a tudo o que possa parecer, mesmo remotamente, suspeito.

Por volta das onze da noite, Devlin achou que eram horas de parar. Era tarde de mais para esperar que as pessoas abrissem as portas a um desconhecido. Além disso, já trabalhara bastante para um dia e estava exausto. Perguntava a si mesmo se a sua intuição de que Chris Everson se encontrava na área de Boston estaria correcta. Já procurara todos os Eversons nos subúrbios a sul de Boston, sem qualquer resultado apreciável. Uma outra pessoa disse que já ouvira falar num Dr. Christopher Everson, mas que não sabia onde é que o homem trabalhava ou vivia.

Uma vez que estava Boston, Devlin resolveu ir fazer uma visita a Michael Mosconi. Sabia que era tarde, mas não se importou. Seguiu para North End e estacionou em segunda fila, como toda a gente, em Hanover Street. Daí seguiu a pé pelas ruas estreitas até Unity Street, onde Michael tinha uma casa modesta com três andares.

— Espero que isto queira dizer que tem boas notícias para mim — disse Michael quando abriu a porta a Devlin. Michael vestia um robe depolyester castanho, acetinado, e tinha enfiadas nos pés umas chinelas de peleja bastante velhas. Até a Sr.s Mosconi apareceu ao cimo das escadas para ver quem era o visitante tardio. Estava com um robe de algodão vermelho. Trazia o cabelo em rolos, uma coisa que Devlin pensava que tinha desaparecido nos anos 50. Pusera também um produto gorduroso qualquer na cara, que Devlin calculou que fosse destinado a retardar o inevitável processo de envelhecimento. Que Deus tivesse piedade de qualquer assaltante que lhe entrasse inadvertidamente em casa, pensou. Bastava que entrevisse a Sr.a Mosconi na escuridão para morrer de terror.

Mosconi encaminhou Devlin para a cozinha e ofereceu-lhe uma cerveja que Devlin aceitou com entusiasmo. Mosconi dirigiu-se ao frigorífico e entregou-lhe uma garrafa de Rolling Rock.

— Não há um copo? — perguntou Devlin, sorrindo. Mosconi franziu o sobrolho.

— Não exagere.

Devlin bebeu uma boa golada antes de limpar a boca às costas da mão.

— Então? Apanhou-o? Devlin sacudiu a cabeça.

— Ainda não.

— Então o que é isto? Uma visita de cortesia? — perguntou Michael, com o seu sarcasmo habitual.

—Negócios—replicou Devlin. — Qual é o motivo por que este Jeffrey Rhodes foi condenado?

— Cristo, dá-me paciência — disse Michael, levantando os olhos ao céu e fingindo que rezava. Depois, olhando novamente para Devlin, acrescentou: —Já lhe disse, homicídio em segundo grau. Foi condenado por homicídio em segundo grau.

— E ele cometeu-o?

—Como rai’ é que eu posso saber?—retorquiu Michael, exasperado. — O homem foi condenado. Para mim isso basta. Que rai’ de diferença é que isso faz?

— Este caso não é um mar de rosas — disse Devlin. — Preciso de mais informações.

Mosconi soltou um suspiro de desespero.

— O tipo é médico. A condenação teve qualquer coisa a ver com incúria e com droga. Mais que isso não sei. Devlin, que diabo é que se passa com você? Que diferença é que isso faz? Eu quero o Rhodes, entendeu?

— Preciso de mais informações — repetiu Devlin. —Acho que se eu soubesse mais sobre a condenação dele, conseguia compreender melhor o que o tipo anda a preparar.

— E eu acho que se calhar devia arranjar reforços — disse Mosconi. —Talvez um bocadinho de concorrência amigável entre, digamos, meia dúzia de caçadores de prémios trouxesse resultados melhores.

Concorrência não era o que Devlin desejava. Havia demasiado dinheiro envolvido naquilo. Pensando rapidamente, disse:

— A única coisa que temos a nosso favor neste momento é o facto de o doutorzinho não ter saído de Boston. Se quer pô-lo a fugir para a América do Sul, por exemplo, para onde ele tencionava ir quando eu o impedi, então traga esses seus reforços.

—A única coisa que quero saber é quando é que você o mete na cadeia.

— Dê-me uma semana — disse Devlin. — Uma semana ao todo. Mais cinco dias. Mas tem de me arranjar as informações de que eu preciso. Este doutor anda a preparar qualquer coisa. Assim que eu conseguir descobrir o que é, encontro-o.

Devlin saiu de casa de Mosconi e regressou ao carro. Mal conseguiu manter os olhos abertos até chegar ao seu apartamento de Charlestown. Mas ainda tinha de entrar em contacto com Bill Bartley, o indivíduo que contratara para vigiar Carol Rhodes. Ligou do telefone do carro.

A ligação não estava grande coisa. Devlin teve de gritar para se fazer ouvir por cima dos ruídos.

— Alguma chamada do doutor? — berrou Devlin para o aparelho.

— Nem uma — disse Bill. Dava a impressão de que estava a falar da Lua. — A única conversa vagamente interessante foi uma chamada que pareceu ser de um apaixonado. Um agente da bolsa de L. A. Sabia que ela vai viver para L. A.?

— Tem a certeza de que não era o Rhodes? — gritou Devlin.

— Não me parece — disse Bell. —Eles até disseram algumas piadas em relação ao doutor e não eram lá muito lisonjeiras.

“Magnífico”, pensou Devlin depois de desligar. Não admirava que Mosconi achasse que eles não eram propriamente um casal de apaixonados. Tudo indicava que se iam separar. Tinha a impressão de que estava a deitar dinheiro pela janela fora mantendo Bill ao seu serviço, mas também não queria arriscar-se a não a mandar seguir. Por enquanto, não.

Enquanto subia os degraus do prédio onde vivia e que deitava para Monument Square, Devlin sentia as pernas pesadas como chumbo, parecia-lhe que tinha estado na batalha de Bunker Hill. Não se lembrava da última vez que se estendera na cama. Sabia que ia adormecer antes mesmo de pousar a cabeça na almofada.

Acendeu a luz e ficou parado à porta. Aquele apartamento era uma barafunda completa. Havia revistas e garrafas de cerveja vazias espalhadas por toda a parte. Cheirava a bafio, a casa fechada. Inesperadamente, começou a sentir-se só. Cinco anos antes tinha tido uma mulher, dois filhos, um cão. Depois a tentação tinha aparecido. “Vamos lá, Dev. Que é que se passa contigo? Não me digas que não te faziam jeito os cinco mil. Basta que fiques de boca calada. Ora, todos nós fazemos isso. Praticamente toda a gente na polícia.”

Devlin atirou o blusão de ganga para cima do sofá e atirou para o lado as botas de cowboy. Depois foi à cozinha buscar uma lata de Bud. Quando voltou à sala, sentou-se num dos meiplos gastos e usados. A lembrança do passado deixava-o sempre meio abatido.

Tinha sido uma armadilha, tudo preparado. Devlin e uma série de outros polícias foram acusados e expulsos da corporação. Devlin fora apanhado em flagrante, com o dinheiro na mão. Ia dar o sinal para uma casinha de campo no Maine, para os miúdos puderem sair da cidade no Verão.

Devlin acendeu um cigarro e inspirou fortemente o fumo. Depois foi acometido de uma tosse violenta. Dobrando-se sobre si próprio, esmagou o cigarro no chão e atirou-o para um canto da casa. Bebeu mais uma golada de cerveja. A bebida fresca ajudou a suavizar-lhe a garganta irritada.

As coisas sempre tinham corrido mal entre ele e Sheila, mas no passado sempre tinham arranjado forma de se entenderem. Pelo menos até à história do suborno. Então ela pegara nos miúdos e voltara para Indiana. Tinha havido grande disputa por causa dos poderes paternais, mas Devlin não conseguira nada. Com uma condenação daquelas e ainda uma breve estada em Walpole.

Devlin interrogava-se quanto a Jeffrey Rhodes. A vida dele, como a de Devlin, parecia ter rebentado pelas costuras. Devlin perguntava a si mesmo com que espécie de tentação Jeffrey se vira confrontado, qual o erro que ele cometera. Incúria médica e droga era uma combinação estranha e Devlin não achava que Jeffrey tivesse ar de drogado. Sorriu para consigo mesmo. Talvez Mosconi tivesse razão. Talvez estivesse a ficar brando de mais.

Jeffrey fazia as suas limpezas com muito menos entusiasmo que na noite anterior, o que agradou imensamente a David. Este começou mesmo a tratá-lo com a mesma simpatia que lhe mostrara no início. E mostrou-lhe algumas artimanhas astuciosas que encurtavam o trabalho de limpeza, mas que estavam um pouco acima do lixo varrido para debaixo do tapete.

Perante a visita de Devlin, Jeffrey começou a encarar a ida para o trabalho como uma provação. Tinha a certeza de que Devlin andava lá fora, à espera, para lhe deitar a mão logo que ele saísse das vizinhanças sossegadas da casa de Carol. Devlin sentia-se tão apreensivo que considerara a hipótese de dar parte de doente.

Kelly arranjara a solução perfeita. Gentilmente, ofereceu-se para o ir levar ao trabalho. Jeffrey preferia isso, de longe, a tentar viajar nos transportes públicos ou a apanhar um táxi. Mesmo assim, sentira relutância em pôr a vida de Kelly em risco. Mas acabou por decidir que ela estaria em segurança desde que ele se escondesse na parte de trás do carro antes de saírem da garagem. Dessa forma, mesmo que Devlin estivesse à espreita, pensaria que Jeffrey tinha ficado em casa. Portanto ele encolhera-se no banco de trás do carro e Kelly tapara-o com um cobertor, para maior segurança. Só depois de se terem afastado uns dois ou três quilómetros é que ele se levantou e passou para o banco da frente.

Por volta das três da manhã, David anunciou que eram horas do *almoço”. Jeffrey mais uma vez disse que não lhe apetecia comer, o que lhe conquistou, por parte de David, um longo olhar de reprovação. Depois de David e os outros terem ido embora para a pequena sala onde o pessoal das limpezas tomava as refeições, Jeffrey foi com o seu Carrinho até ao primeiro andar.

Empurrando-o diante dele, passou pela entrada principal, depois voltou à esquerda pelo corredor do meio. Havia umas quantas pessoas nos corredores, quase todos empregados do hospital, que se dirigiam à cafetaria para o “almoço”. Como de costume, ninguém prestou atenção a Jeffrey, apesar do barulho que o carro fazia quando em movimento.

Jeffrey parou em frente dos gabinetes do serviço de pessoal. Não tinha a certeza se as suas chaves abririam a porta. Quando se oferecera para fazer as limpezas naquela secção, David tinha-lhe dito que toda a área dos serviços administrativos do hospital era limpa pelo pessoal da tarde.

Esperando que não lhe aparecesse ninguém que estivesse familiarizado com a rotina dos serviços de limpeza, Jeffrey tentou as diversas chaves que tinha no porta-chaves que David lhe dera. Não tardou muito a encontrar uma que servia.

Todas as luzes estavam acesas. Jeffrey empurrou o carrinho para o interior e fechou a porta atrás dele. Empurrando o carro de gabinete para gabinete certificou-se de que o local estava deserto. Finalmente entrou no gabinete de Cari Bodanski.

O primeiro sítio onde procurou foi na secretária dele. Rebuscou todas as gavetas. Jeffrey não tinha a certeza de que a lista que procurava existisse e ainda menos onde poderia estar guardada. Aquilo que queria era uma lista do pessoal especializado e dos outros empregados, relativa a Setembro de 1988.

A seguir, tentou o terminal do computador de Bodanski e andou às voltas com ele durante um quarto de hora. Mas não teve sorte. Jeffrey estava familiarizado com o computador do hospital naquilo que dizia respeito aos registos dos pacientes, mas não sabia nada dos sistemas usados pelas secções de pessoal e administrativa. Devia haver chaves de código e contra-senhas, mas sem as conhecer tinha poucas hipóteses de conseguir as informações correctas. Acabou por desistir.

Voltou depois as atenções para um conjunto de gavetas-ficheiro instaladas numa das paredes do gabinete. Jeffrey abriu uma delas, escolheu ao acaso e tirou a pasta para fora. Foi nessa altura que ouviu alguém abrir a porta principal da secção.

Jeffrey mal teve tempo para atravessar a sala como uma flecha e ir esconder-se atrás da porta do gabinete de Bodanski, que estava aberta. Ouviu quem quer que fosse que tinha entrado atravessar a outra sala e sentar-se na cadeira da secretária de Bodanski.

Espreitando pela frincha que ficava entre a porta e a ombreira, Jeffrey só viu a silhueta da figura inclinada sobre a mesa.

A seguir ouviu alguém pegar no telefone e logo depois o trinar da marcação dos números. Por fim veio a voz: “Alo, Mãe! Como é que tem passado? E como é que está esse magnífico tempo do Havai?” A cadeira rangeu e a pessoa recostou-se, ficando visível para Jeffrey. Era David Arnold.

Jeffrey teve de esperar vinte minutos enquanto David se punha em dia com as novidades de casa. Finalmente desligou e saiu do departamento. Ligeiramente aborrecido com a interrupção, Jeffrey voltou para junto da gaveta que tinha aberto. Continha uma ficha individual para cada empregado, arquivadas por departamentos e depois por ordem alfabética.

Abrindo a gaveta seguinte, Jeffrey percorreu as tiras de plástico que serviam de indicadores. Preparava-se para fechar a gaveta, quando reparou numa pasta que dizia “Fundos”.

Puxou-a para fora e abriu-a em cima de uma mesa próxima. Lá dentro havia pastas separadas para os últimos seis anos. Jeffrey pegou naquela que dizia respeito a 1988. Ele sabia que o hospital fechava o seu ano económico em Outubro. Ainda não se estava em Setembro, mas também não faltava muito. No dossier encontravam-se listas dos empregados do hospital, bem como do pessoal especializado.

Levando a lista até à copiadora, Jeffrey fez uma cópia para ele. Em seguida, depois de ter reposto a pasta exactamente onde a encontrara, enfiou a cópia numa prateleira do carrinho. Momentos depois estava no corredor principal.

Jeffrey não voltou logo ao Bloco Operatório. Primeiro, levando o carrinho diante dele, passou os serviços de emergência e dirigiu-se à farmácia. Levado por um impulso momentâneo, resolveu ver até onde o podia levar o uniforme dos serviços de limpeza.

A farmácia tinha um balcão onde eram fornecidos os medicamentos requisitados pelos diferentes departamentos. Quase parecia uma farmácia de venda a retalho. Ao lado do balcão, havia uma porta fechada. Largando o carrinho, Jeffrey pôs-se a experimentar as chaves. Uma delas abriu a porta.

Jeffrey sabia que estava a correr um risco, mas mesmo assim empurrou o carrinho através da porta e do corredor principal que lhe ficava em frente. A esquerda e à direita do corredor, havia filas e filas de prateleiras de metal que iam até ao tecto. Nas extremidades das prateleiras viam-se cartões nos quais se indicava o que elas continham.

Jeffrey foi avançando devagar com o seu carrinho, lendo cuidadosamente cada um dos cartões. Procurava os anestésicos locais.

Uma das farmacêuticas do turno da noite apareceu de repente, saída de detrás de uma das prateleiras, e avançou na direcção de Jeffrey. Trazia um braçado de frascos. Jeffrey estacou, à espera de ter de justificar a sua presença, mas amulher limitou-se afazer-lhe um aceno com a cabeça, à guisa de saudação, e continuou na sua vida, a caminho do balcão que comunicava com o corredor principal.

Surpreendido outra vez com a mobilidade que a posição nos serviços de limpeza lhe permitia, Jeffrey continuou em busca dos anestésicos locais. Encontrou-os finalmente lá mais para o fundo. Estavam numa prateleira baixa. Havia numerosas caixas de Marcaína, em doses com diferentes tamanhos, incluindo o de 30 cm3. Jeffrey notou como estavam acessíveis. Qualquer dos farmacêuticos podia facilmente ter tido a oportunidade de colocar um frasquinho adulterado no meio do stock existente. E um farmacêutico disporia igualmente dos conhecimentos necessários.

Jeffrey suspirou. Parecia-lhe que estava a alargar o campo dos possíveis suspeitos, não a estreitá-la. Como é que podia ter esperanças de alguma vez encontrar o criminoso? De qualquer forma, tinha de estar atento à farmácia. Aquilo que, no entanto, afastava de certo modo a hipótese de o culpado ser alguém da farmácia era que um farmacêutico não tinha o mesmo tipo de mobilidade que um médico. Embora lhe fosse possível ter acesso às reservas de um dado hospital, era pouco provável que gozasse de facilidades semelhantes numa outra instituição.

Dando a volta ao carrinho, Jeffrey saiu da farmácia. Enquanto caminhava, reconheceu que não só tinha de prestar atenção à farmácia como não podia deixar de considerar os serviços de limpeza. Dada a liberdade de que ele próprio estava a usufruir naquele seu segundo dia de trabalho no hospital, podia deduzir como seria fácil para qualquer membro dos mesmos serviços introduzir-se na farmácia, tal como ele o tinha feito. O único problema com o pessoal das limpezas era a falta da preparação necessária em fisiologia ou farmacologia. Era possível que tivessem o acesso, mas faltava-lhes o conhecimento.

De repente, Jeffrey parou de empurrar o carrinho. Pensou novamente nele próprio. Ninguém sabia que ele era um anestesista, com uma vasta gama de conhecimentos. Que é que podia impedir que uma outra pessoa igualmente conhecedora arranjasse trabalho nos serviços de limpeza, tal como ele fizera? A gama de suspeitos aumentou de novo.

Quando finalmente eram quase sete horas, Jeffrey começou a pensar de novo em Devlin, receoso de que ele pudesse voltar e assustar Kelly. Se alguma coisa acontecesse a Kelly, nunca se perdoaria a si próprio. Às seis e meia, ligou para ela, para ver como estava e para saber se tinha havido sinais de Devlin.

— Não o vi nem ouvi nada durante toda a noite — garantiu-lhe Kelly.—Quando me levantei, há meia hora, olhei lá para fora para ter a certeza de que ele não andava por aí. Não vi nenhum carro desconhecido nem nenhuma pessoa.

— Talvez seja melhor eu ir para um hotel para maior certeza. —Não, prefiro que continues aqui — disse Kelly. —Estou certa de

que é seguro. Para te dizer a verdade, sinto-me mais segura contigo aqui. Se estás preocupado com a ideia de entrar pela porta principal, eu deixo a porta de trás no trinco. Vem de táxi e sai na rua que passa por detrás da casa. Depois vem a pé pelo meio das árvores.

Jeffrey sentiu-se tocado por Kelly querer, tanto como ele próprio, que continuasse lá em casa. Tinha de admitir que preferia infinitamente ficar em casa dela do que ir para um hotel. A verdade é que preferia a casa de Kelly à sua própria casa.

—Eu deixo os cortinados corridos. Se não responderes à porta nem ao telefone, ninguém vai saber que estás cá.

— Okay, okay — disse Jeffrey. — Eu fico.

— Mas tenho uma coisa a pedir-te — continuou Kelly.

— Diz o que é.

— Não saias da despensa para me assustares quando eu chegar logo à tarde.

Jeffrey riu-se.

— Prometo—respondeu com uma risada. Perguntava a si mesmo quem é que teria assustado quem naquele episódio.

Às sete da manhã Jeffrey levou o carrinho para a secção de limpezas. Fechou os olhos enquanto o elevador descia. Sentia-os como se estivessem cheios de areia. Estava tão cansado que quase lhe dava náuseas.

Arrumou o carrinho e foi à sala de cacifos para tirar o uniforme e vestir a roupa da rua. Pôs as listas que tinha copiado na algibeira de trás.

Fechando o cacifo e dando uma volta ao botão do segredo, endireitou—se. David entrou na sala e dirigiu—se para ele.

— Tenho um recado — disse, olhando para Jeffrey pelo canto do olho, com um ar cheio de suspeitas. — Para ir já falar com o Sr. Bodanski.

— Eu? — Jeffrey sentiu um estremecimento de medo. Seria que o seu disfarce tinha sido descoberto?

David pôs-se a estudar Jeffrey, com a cabeça inclinada.

— Há qualquer coisa de esquisito em você, Frank — disse. — Você é algum espião da administração para nos controlar no nosso trabalho?

Jeffrey soltou uma risada breve e nervosa.

— Que ideia — disse. Nunca lhe ocorrera a possibilidade de David suspeitar de uma coisa daquelas.

— Então como é que se explica que o director dos serviços de pessoal queira falar consigo às sete da manhã? Normalmente ele só costuma chegar depois das oito.

— Não faço a menor ideia — disse Jeffrey. Passando ao lado de David saiu porta fora. David seguiu-o. Subiram as escadas juntos.

— Por que é que você não come à hora do almoço como toda a gente? — perguntou David.

— Porque não tenho fome, só isso — replicou Jeffrey. Mas as suspeitas de David eram o que menos o preocupava. Preocupavam-no sim as razões por que Bodanski o teria mandado chamar. A princípio Jeffrey convenceu-se de que tinham descoberto a verdadeira identidade dele. Mas, sendo assim, não fazia sentido ser Bodanski a mandá-lo chamar. Seria mais provável que tivessem mandado a polícia.

Jeffrey chegou ao primeiro andar e abriu a porta que dava para o corredor principal do hospital. Podia ter dado meia volta e saído pura e simplesmente pela porta principal, se David não continuasse atrás dele com a mesma lenga-lenga que Jeffrey andava a espiá-los por conta da administração. Jeffrey virou em direcção ao serviço de pessoal.

Depois teve outra ideia. Talvez alguém o tivesse visto lá na secção nessa manhã, talvez mesmo quando se tinha servido da copiadora. Ou talvez alguém tivesse dito que o vira na farmácia. Mas se qualquer das duas coisas fosse verdade, não teriam antes participado o caso a David, o encarregado do turno? Ou a José Martinez, o chefe dos serviços de limpeza? Não seria natural que recebesse uma repreensão ou mesmo que fosse despedido por um deles?

Jeffrey estava confuso. Respirou fundo e empurrou aporta dos serviços de pessoal. A sala parecia tão vazia como às três e meia da madrugada, com todas as secretárias desocupadas. As máquinas de escrever estavam silenciosas. Os ecrãs dos computadores mostravam uma superfície escura. O único som vinha das proximidades da copiadora, onde uma cafetaria de café assobiava baixinho.

Quando se dirigia para a porta do gabinete de Bodanski, Jeffrey viu-o sentado à secretária. Bodanski tinha uma folha de computador diante dele e um lápis encarnado na mão. Jeffrey bateu duas vezes na porta aberta. Bodanski levantou os olhos.

—Ah, Sr. Amendola — disse Bodanski, pondo-se rapidamente de pé como se Jeffrey fosse um visitante importante. — Obrigado por ter vindo até aqui. Sente-se, por favor.

Jeffrey sentou-se, cada vez mais confuso quanto aos motivos por que fora convocado. Bodanski perguntou-lhe se queria café. Como Jeffrey recusasse, sentou-se também.

—Em primeiro lugar quero dizer-lhe que todas as informações indicam que o senhor já se tornou um valioso colaborador do Boston Memorial Hospital.

— Fico contente em saber isso.

— Teremos muito prazer em que fique connosco todo o tempo que quiser — continuou Bodanski. — Aliás, espero sinceramente que fique. — Pigarreou e começou a brincar com o lápis vermelho.

Jeffrey sentia nitidamente que Bodanski estava ainda mais nervoso que ele.

—Suponho que deve perguntar a si mesmo por que razão eu o chamei aqui esta manhã. É um bocado cedo para mim, mas queria ter a certeza de que o apanhava antes de ir para casa. Deve estar cansado e desejoso de ir dormir.

“Desembucha”, pensou Jeffrey.

— Tem a certeza de que não quer café? — perguntou novamente Bodanski.

— Para dizer a verdade, o que eu queria era ir para casa para a cama. Talvez me possa dizer agora porque é que queria falar comigo.

— Sim, claro — disse Bodanski. Depois pôs-se de pé e começou a andar de um lado para o outro no pequeno espaço atrás da secretária. — Eu não sirvo para estas coisas—acrescentou.—Se calhar devia ter pedido ajuda à psiquiatria ou pelo menos aos serviços sociais. Francamente, não gosto de me meter na vida das pessoas.

Uma bandeira vermelha surgiu no espírito de Jeffrey. Estavam a cai ninho de qualquer coisa desagradável: sentia-o.

— Exactamente o que é que está a tentar dizer-me? — perguntou Jeffrey.

— Bom, digamos que eu já sei que o senhor tem andado escondido. Jeffrey sentiu a boca secar-se-lhe. “Ele sabe”, pensou, “ele sabe.”

— Compreendo que tem tido problemas, mas eu pensei que talvez pudesse ajudá-lo, por isso telefonei para a sua mulher.

Jeffrey agarrou os braços da cadeira, ao mesmo tempo que inclinava o corpo para a frente.

— Telefonou à minha mulher? — perguntou, incrédulo.

—Vamos, tenha calma — disse Bodanski, estendendo as mãos na direcção dele com as palmas voltadas para baixo. Já sabia que aquilo iria perturbar o indivíduo.

“Calma”, pensou Jeffrey alarmado. A razão que levara Bodanski a telefonar para Carol era uma coisa que ele não entendia.

—A verdade é que a sua mulher está aqui—disse Bodanski. Apontou para a porta. — Ela está ansiosa por falar consigo. Eu sei que ela tem coisas importantes a discutir com o senhor, mas preferi avisá-lo da sua presença em vez de a deixar aparecer-lhe de surpresa.

Jeffrey sentiu a ira crescer dentro dele. Estava furioso com aquele director intrometido e com Carol. Precisamente quando as suas investigações estavam a progredir bem é que isto tinha de acontecer.

—Ligou para a polícia?—perguntou. Estava a tentar preparar-se para o pior.

—Não, claro que não—disse Bodanski, aproximando-se daporta.

Jeffrey seguiu-o. A pergunta que lhe bailava no espírito era se seria capaz de deter aquela catástrofe. Bodanski abriu uma das portas, depois deu um passo para o lado, para deixar Jeffrey passar. O rosto dele tinha um daqueles sorrisos protectores que ainda o deixou mais irritado. Jeffrey atravessou a porta e entrou numa sala de conferências com uma mesa comprida rodeada de cadeiras.

Pelo canto do olho, Jeffrey viu uma figura precipitar-se para ele. Instantaneamente, decidiu que se tratava de uma armadilha. Não era Carol que ali estava e sim Devlin! Mas a figura que se lançava sobre ele era uma mulher. Caiu-lhe em cima, apertando-o nos braços. Enterrou-lhe a cabeça no peito. Soluçava.

Jeffrey voltou a olhar para Bodanski, pedindo ajuda. Não havia dúvida que não era Carol. Esta mulher devia pesar três vezes mais. Tinha o cabelo emaranhado, mais parecendo palha descorada.

Os soluços da mulher começaram a acalmar. Com uma das mãos soltou Jeffrey e chegou um lenço de papel ao nariz. Assoou-se ruidosamente e depois levantou os olhos.

Jeffrey ficou a olhar-lhe para o rosto largo. Os olhos dela, que inicialmente reflectiam uma certa alegria, logo chisparam de rancor. As lágrimas pararam tão rapidamente como tinham começado.

—Você não é o meu marido — disse com ar intrigado. E empurrou Jeffrey para longe dela.

— Não sou? — perguntou Jeffrey, tentando compreender o que se estava a passar.

—Não! — gritou a mulher, deixando-se novamente dominar pela emoção. Avançou para Jeffrey com os punhos cerrados. Lágrimas de frustração inundaram-lhe os olhos e escorreram-lhe pelo rosto.

Jeffrey recuou para trás da mesa de conferências, enquanto o director, chocado, tentava vir em seu auxílio.

Nessa altura, a mulher despejou o seu veneno sobre Bodanski, gritando que ele a tinha enganado. Mas passado um minuto foi subjugada pelas lágrimas e caiu nos braços dele. Era mais do que um homem podia aguentar, mas, com um esforço hercúleo, ele conseguiu deslocar aquela montanha de mulher até junto de uma das cadeiras, onde ela se deixou cair numa massa soluçante.

Um Bodanski muito confuso tirou o lencinho branco da algibeira de cima do casaco e limpou a boca no sítio onde a mulher lhe batera. Um pouco de sangue manchou o tecido de seda.

— Eu nunca devia ter alimentado esperanças — gemeu a mulher. —Já devia saber que o Frank nunca ia arranjar um trabalho de limpeza num hospital.

Jeffrey compreendeu finalmente a situação. Aquela era a Sr.- Amendola, a mulher do homem com o fato esfarrapado. Agora que descobrira o que se passava, Jeffrey não compreendia porque é que não pensara logo nisso. Também lhe veio à ideia que Bodanski não ia demorar muito tempo a adivinhar a situação. Nessa altura, podia fazer questão de contactar a polícia. Jeffrey ia ver-se atrapalhado para sair desta.

Enquanto o director tentava consolar a Sr.a Amendola, Jeffrey foi recuando até aporta. Bodanski gritou-lhe que esperasse, mas Jeffrey ignorou-o. Saindo da secção de pessoal, correu para a entrada principal, confiante de que Bodanski se sentisse na obrigação de ficar com a Sr.a Amendola.

Uma vez fora do hospital, Jeffrey abrandou o passo. Não queria que o pessoal da segurança se sentisse na obrigação de o seguir.

Caminhando com passo vivo, Jeffrey dirigiu-se à paragem dos táxis e entrou no primeiro carro vazio. Pediu ao condutor que o levasse a Brookline. Só depois de o táxi começar a virar à direita em Beacon Street é que Jeffrey se arriscou a olhar para trás. A entrada do hospital parecia tranquila. A corrida matinal dos doentes para as clínicas ainda não começara e Cari Bodanski não tinha aparecido.

Depois de atravessar Kenmore Square, o motorista olhou para Jeffrey através do retrovisor e disse:

— Vai ter de ser mais específico. Brookline é muito grande.

?) Jeffrey deu-lhe o nome da rua por detrás da casa de Kelly. Disse que não sabia o número, mas que era capaz de reconhecer a casa.

Com a preocupação de que Devlin pudesse estar nas imediações da casa de Kelly, Jeffrey não conseguiu refazer-se da confrontação com a Sr.a Amendola. Sentia no estômago um nó apertado e doloroso e perguntava a si mesmo até quando o seu corpo ia conseguir aguentar a tensão a que andava sujeito havia quatro ou cinco dias. A anestesiologia tinha os seus momentos de terror, mas eram breves. Jeffrey não estava habituado a uma ansiedade tão prolongada. E ainda por cima sentia-se exausto.

Explicando que não era de Boston e que só tinha estado naqueles sítios uma vez, Jeffrey conseguiu levar o taxista a passar devagar diante da casa de Kelly. Sub-repticiamente afundou-se no assento para não ser visto do exterior. Ao mesmo tempo, ficou à espreita a ver se via Devlin. Mas não havia sinais do homem. Apenas viu algumas pessoas que saíam de suas casas para apanhar um transporte público para ir trabalhar. Não havia nenhum carro estacionado nas proximidades da casa de Kelly. A casa parecia convidativamente sossegada.

Jeffrey acabou por pedir ao motorista que o deixasse à porta da casa que ficava por detrás da de Kelly. Depois de o táxi se ter afastado e dobrado a esquina, Jeffrey contornou a casa e meteu-se no pequeno massiço de árvores que a separavam da propriedade de Kelly. Abrigado com as árvores, ficou alguns minutos a observar a casa antes de atravessar o quintal e entrar pela porta que Kelly deixara aberta para ele entrar.

Jeffrey ficou um momento à escuta, antes de inspeccionar cuidadosamente toda a casa. Só nessa altura fechou a porta das traseiras e deu a volta à chave.

Na esperança de acalmar o estômago conturbado, Jeffrey foi buscar leite e cereal. Levou as duas coisas para a mesa da sala do fundo, juntamente com a folha de computador que Kelly trouxera do St. Joe’s. Pegando na lista que conseguira nessa noite no Boston Memorial, colocou-as lado a lado.

Enquanto comia, Jeffrey comparou as duas listas de pessoal. Estava ansioso por ver quais os médicos que gozavam de privilégios em ambos os hospitais. Ficou desencorajado quando se apercebeu do elevado número que havia nessas condições. Numa folha à parte, Jeffrey começou a sua própria lista de nomes que apareciam duas vezes. Preocupava-o ver que acabou por abranger mais de trinta. Trinta e quatro pessoas era um número demasiado elevado para poder ser investigado em profunidade, especialmente na sua situação actual. Tinha de arranjar forma de diminuir o número. E isso significava que tinha de arranjar listas de outros hospitais. Dirigindo-se ao telefone, ligou para o St. Joe’s e pediu para falar com Kelly.

—Ainda bem que telefonaste—disse ela com vivacidade. —Tiveste algum problema à chegada a casa?

—Absolutamente nenhum—replicou Jeffrey.—Só telefonei para te lembrar a chamada para o Valley Hospital.

—Já a fiz—disse Kelly.—Não sabia com quem havia de falar, por isso liguei para várias pessoas, incluindo o Hart. Ele é um amor.

Jeffrey contou-lhe da lista de trinta e quatro médicos que tinham privilégios tanto no hospital dela como no Memorial. Kelly compreendeu imediatamente o problema.

—Espero ter notícias do Valley ainda esta tarde—acrescentou. — Isso já deve ajudar a limitar um pouco as possibilidades. Deve haver menos pessoas com privilégios no St. Joe’s, Memorial e Valley.

Jeffrey já ia desligar quando se lembrou de pedir a Kelly que repetisse o nome da amiga que tinha morrido na véspera.

— Gail Schaffer — disse ela. — Por que é que perguntas?

— Durante o dia de hoje tenciono ir ao gabinete do médico legista para saber alguma coisa acerca de Karen Hodges. Enquanto lá estou, vou ver se consigo indagar o que há com respeito a Gail Shaffer.

— Estás outra vez a assustar-me.

— E a assustar-me a mim próprio.

Depois de desligar, Jeffrey voltou ao que restava do cereal com leite. Quando acabou, pôs o prato no lava-loiça. Em seguida, aproximou-se novamente da mesa para estudar mais uma vez a lista do hospital. Para fazer as coisas como devia ser, pensou que tinha de comparar também as listas dos empregados. Isto era mais difícil porque o pessoal especializado estava por ordem alfabética, mas os nomes dos empregados tinham sido organizados de maneira diferente. Alista do St. Joe’s indicava os nomes por departamentos, a do Memorial conforme o salário, provavelmente por ter sido elaborada com a finalidade de arranjar contribuições.

Para poder compará-las com maior exactidão, Jeffrey precisava de as pôr a ambas por ordem alfabética. Quando chegou ao “E”, já tinha as pálpebras inchadas. A primeira descoberta que fez despertou-o. Reparou que uma tal Maureen Gallop tinha trabalhado em ambos os hospitais.

Jeffrey procurou na lista do St. Joe’s o nome de Maureen Gallop. Descobriu que trabalhava actualmente nos serviços de limpeza do St. Joe’s.

Esfregou os olhos, pensando uma vez mais em como tinha sido simples para ele passear-se na farmácia do hospital. Acrescentou o nome de Maureen Gallop à lista dos que tinham privilégios nos dois hospitais.

Galvanizado pela descoberta inesperada, Jeffrey continuou com a ordem alfabética. Logo na letra seguinte encontrou outro caso semelhante: Trent Harding. Pegando novamente na lista de St. Joe’s, procurou Trent Harding. Encontrou o nome no departamento de enfermagem. Jeffrey inscreveu o nome logo abaixo do de Maureen Gallop.

Jeffrey estava surpreendido. Não esperara encontrar nomes de empregados do hospital num lado e noutro. Pensou que era uma grande coincidência. Mais desperto agora, concluiu a morosa operação, mas não encontrou mais nenhum caso. Maureen Gallop e Trent Harding eram os únicos nomes que apareciam nas duas listas de pessoal.

Quando acabou a comparação das listas, Jeffrey estava tão cansado que apenas conseguiu transferir-se damesa para o sofá, onde caiu num sono profundo e sem sonhos. Nem se mexeu quando Dalila saiu da despensa e saltou para o sofá para se enroscar ao lado dele.

 

Havia qualquer coisa no Boston City Hospital que agradou a Trent assim que passou a porta. Pensou que devia ser a atmosfera viril de um hospital em pleno coração da cidade. Ali não devia haver falinhas mansas como nos luxuosos hospitais suburbanos. Trent tinha a certeza de que não ia ver-se envolvido em pequenas intervenções disfarçadas de grande cirurgia, para garantir a participação do seguro. Tinha a certeza que em vez disso ia haver alguns verdadeiros rasgões de balas e facadas. Ia estar nas trincheiras, enfrentando os resultados do terror urbano à maneira de Don Johnson, num estilo Miami Vice.

Havia uma fila de pessoas no gabinete de atendimento, mas isso era só para quem procurava empregos na cozinha e nas limpezas. Como enfermeiro, Trent foi enviado directamente à secção. E também sabia porquê. Como todos os hospitais, eles estavam desesperados para arranjar mais enfermeiros, sobretudo do sexo masculino. Ele estava portanto numa posição particularmente benéfica. Havia sempre lugar para um homem nas áreas onde o serviço de enfermagem requeria alguém com bons músculos, como nas emergências. Mas Trent não queria os serviços de emergência. Queria o Bloco Operatório.

Depois de preencher o pedido de admissão, foi-lhe concedida uma entrevista. Perguntou a si mesmo porque é que eles se davam àquele trabalho todo. Já se sabia qual ia ser o resultado. Pelo menos estava a divertir-se. Agradava-lhe aquela sensação de ser desejado, de precisarem dele. Em criança, o pai sempre lhe dissera que ele era um maricas, que não servia para nada, especialmente depois de se ter recusado a jogar na equipa de futebol de juniores que o pai tinha ajudado a organizar na base militar de Sant António.

Trent ficou a observar a expressão da mulher enquanto lia o boletim que ele acabava de preencher. O cartão com o nome que estava em cima da secretária dizia: SR.a DIANE MECKLENBURG, enfermeira diplomada, supervisora.

Supervisora, uma treta, pensou Trent. Estava convencido de que ela nem sabia distinguir o próprio traseiro de uma fenda na parede. Era isso que geralmente queria dizer supervisora, segundo a experiência de Trent. Provavelmente tinha tirado o diploma no tempo em que ainda se usava o uísque como anestésico. Desde essa altura devia ter feito uma data de cursos, como “A Enfermagem nas Sociedades Complexas”. Trent era capaz de apostar cem dólares em como ela não sabia a diferença entre um par de tesouras Mayo e um “clamp” de Metzenbaum. E numa sala de operações devia ser tão eficiente como um orangotango.

Trent já antecipava o dia em que iria ter o prazer de vir ter com ela e entregar-lhe o seu pedido de demissão, estragando assim o dia à Sr.a Meclenburg.

— Sr. Harding — disse a Sr.s Meclenburg desviando a atenção da ficha de inscrição para o inscrito. Tinha o rosto oval parcialmente encoberto por uns grandes óculos redondos. — Menciona na sua ficha que já trabalhou em mais quatro hospitais de Boston. Isso é um bocado invulgar.

Trent sentiu-se tentado a gemer em voz alta. Esta Sr.- Mecklenburg parecia disposta a levar o jogo da entrevista às últimas consequências. Embora achasse que poderia dizer não importa o quê e ainda assim ser contratado, decidiu ir pelo seguro e cooperar. Estava sempre preparado para aquele tipo de perguntas.

— Cada um dos hospitais representou uma oportunidade diferente em termos de formação profissional e de responsabilidade — disse Trent. —A minha finalidade tem sido melhorar a minha experiência. Dediquei-me a cada uma dessas instituições durante perto de um ano. Agora cheguei finalmente à conclusão de que aquilo que preciso é o estímulo de um ambiente académico como o do Boston City.

— Estou a ver — disse a Sr.a Mecklenburg. - Trent ainda não tinha acabado. Acrescentou: - Estou confiante que poderei dar-lhes uma contribuição válida. O trabalho não me assusta e estou disposto a aceitar os desafios inerentes. Mas tenho uma única exigência. Quero trabalhar no Bloco Operatório.

—Não creio que isso seja um problema—disse a Sr.a Mecklenburg. - A questão é, quando é que pode começar? Trent sorriu. Era tão fácil.

O dia, para Devlin, não fora melhor que o anterior. Estava na Costa Norte e já tinha visitado duas famílias Everson em Peabody, uma

i em Salem e ia agora a caminho para tentar uma outra em Marblehead Neck. Tinha o porto à sua esquerda e o oceano à direita. Pelo menos

O tempo e o cenário davam-lhe prazer.

Felizmente, em cada uma das suas paragens tinha encontrado as pessoas em casa. Esta última rodada de Eversons mostrara-se minimamente cooperativa, ainda que cautelosa. Mas ninguém ouvira falar num Christopher Everson. Devlin começava mais uma vez a questionar a intuição que lhe dissera que Christopher Everson era da região de Boston.

Ao chegar à Avenida do Porto, Devlin virou à esquerda. Lançou um olhar admirado à fileira de casas sumptuosas. Perguntava a si mesmo qual seria a sensação de ter o dinheiro necessário para viver numa casa daquelas. Tinha ganho dinheiro a sério nos últimos anos, mas estoirara-o em Vegas ou Atlantic City.

A primeira coisa que Devlin tinha feito nessa manhã fora ir à esquadra de polícia de Berkeley Street e visitar Sawbones Bromlley. O Dr. Bromlley estava ligado à polícia de Boston desde o século XIX, pelo menos era o que dizia a lenda. Recomendava exercício físico aos agentes e tratava constipações simples e pequenos ferimentos não muito fundos. Não se podia dizer que inspirasse muita confiança.

Devlin tinha-lhe mostrado os apontamentos que retirara do quarto de hotel de Rhodes e perguntara-lhe do que é que tratavam. O resultado assemelhara-se ao abrir de uma torneira. O médico tinha-se lançado numa dissertação de vinte minutos sobre o sistema nervoso e o facto de ele constar de duas partes. Uma para fazer as coisas que queríamos fazer, tal como beber ou tocar qualquer coisa, outra para fazer as coisas em que não queríamos pensar, como por exemplo respirar ou digerir um bife.

Até ali, Devlin tinha-o acompanhado sem problema. Mas depois Bromlley dissera que a parte do sistema nervoso que fazia as coisas em que nós não queríamos pensar tinha duas partes. Uma era chamada o sistema nervoso simpático, a outra o parassimpático. Estas duas partes lutavam uma contra a outra, como quando uma fazia dilatar a pupila e a outra a tornava pequena; uma provocava diarreia e a outra fazia parar.

Até mesmo com aquilo Devlin se tinha aguentado, mas Bromlley continuou a falar de como os nervos funcionavam e como os anestésicos lhes trocavam as voltas.

A partir daí, Devlin teve grande dificuldade em seguir, mas também pensou que, como o seu interesse não ia para além dos papéis em si, não tinha grande importância. Bromlley adorava amarrar a audiência, por isso Devlin deixou-o continuar. Quando parecia que o médico tinha chegado ao momento da conclusão, Devlin recordou-lhe a pergunta inicial.

— Estupendo, Doutor, estupendo! Mas voltemos um instante aos apontamentos. Há alguma coisa aqui que lhe pareça surpreendente ou suspeito?

O médico parecera ficar desconcertado. Pusera-se a estudar novamente as notas, analisando-as através das bifocais espessas. Por fim dissera um simples não; tudo parecia absolutamente claro e quem tinha rabiscado aquela descrição do sistema nervoso tinha-o feito correctamente. Devlin agradeceu e saiu. A visita tinha sido útil na medida em que estava mais convencido do que nunca de que, tal como Rhodes, Christopher Everson era médico.

Em Marblehead Neck, Devlin parou junto de uma casa em estilo de ranchq. Verificou o número na lista. Era aquela que ele queria. Saiu do carro e espreguiçou-se. A casa não ficava propriamente à beira da água, mas via-se esta brilhar por entre as árvores que orlavam a alameda que levava ao cais.

Devlin aproximou-se da porta e tocou à campainha. Uma loura atraente, mais ou menos da idade de Devlin, foi quem veio abrir. Logo que deu com os olhos nele tentou voltar a fechá-la, mas Devlin introduziu rapidamente a biqueira da bota de cowboy na frincha da porta, obrigando-a a ficar entreaberta. A mulher baixou os olhos.

— Parece-me que a sua bota está a prender a minha porta — disse calmamente. Depois olhou-o frente a frente. — Deixe-me adivinhar: o senhor anda a fazer um peditório para a quermesse da sua paróquia.

Devlin riu-se e sacudiu a cabeça, incrédulo. Nunca conseguia adivinhar as reacções das pessoas. Mas uma das coisas que mais apreciava fosse em quem fosse era o sentido de humor. O daquela mulher lhe agradava-lhe.

- Desculpe-me por ter tomado uma atitude tão mal-educada - disse. — Eu só queria fazer-lhe uma pergunta muito simples. Só uma pergunta. E receei que fosse fechar-me a porta na cara.

- Sou cinturão negro em karaté — replicou a mulher. —Não precisa ser violenta—continuou Devlin.—Ando à procura E de um tal Christopher Everson. Como esta morada aparece registada [em nome de um Everson, pensei que havia uma possibilidade remota de alguém aqui ter ouvido falar dele. i — Por que é que quer saber? — perguntou ela.

Depois de Devlin ter explicado, ela deixou de empurrar a porta.

— Parece-me que li no jornal qualquer coisa acerca de um Chris’ topher Everson—respondeu a mulher, franzindo atesta. —Pelo menos estou absolutamente certa de que o último nome era Everson.

— Num jornal de Boston? — perguntou Devlin. Ela fez que sim com a cabeça.

— O Globe. Já foi há tempos. Há um ano ou mais. Chamou-me a atenção por causa do nome, como é evidente. Não há assim tantos Eversons por aqui. O meu marido e a família dele são do Minnesota.

Devlin não podia concordar com ela quanto à escassez de Eversons naquela área, mas resolveu não discutir.

— Lembra-se do que é que tratava o artigo?

— Sim. Foi na necrologia. O homem tinha morrido.

Devlin voltou o carro, furioso consigo mesmo. Aideia de que Christopher Everson já tivesse morrido nunca lhe ocorrera. Pondo o carro em andamento, fez inversão do sentido de marcha e voltou para Boston. Sabia exactamente onde queria ir a seguir. O percurso demorou meia hora. Estacionando em frente de uma boca de incêndio em West Street, dirigiu-se para Tremont e entrou no Departamento de Saúde Pública.

A secção de Registos e estatísticas ficava no primeiro andar. Devlin preencheu um impresso para obter a certidão de óbito de Christopher Everson. No ano, pôs 1988. Sabia que esse dado poderia ser alterado, se necessário. Pagou cinco dólares ao balcão e sentou-se à espera. Não demorou muito. O ano não era 1988, afinal era 1987. Apesar disso, dentro de vinte minutos Devlin ia a caminho do carro com a certidão de óbito de Christopher Everson.

Em vez de pôr o carro em andamento, Devlin ficou a estudar o papel. A primeira informação que lhe pareceu digna de nota foi o facto de Everson ter sido casado. A viúva chamava-se Kelly Everson.

Devlin lembrava-se de ter ida a casa dela. Fora aí que ouvira um barulho esquisito, como o de latas vazias a caírem num chão de ladrilho, mas ninguém aparecera à porta. Pegou na sua lista de Eversons na qual tinha feito um círculo em K. C. Everson para uma segunda visita. Comparou o endereço com o da certidão de óbito, era o mesmo.

Devlin continuou a ler a certidão. Christopher Everson era médico. Olhando para a causa da morte, viu que estava indicada como suicídio. A causa técnica tinha sido paragem respiratória, mas mais abaixo havia uma nota dizendo que esta se verificara na sequência de uma dose, autoministrada, de succinilcolina.

Numa fúria repentina, Devlin amarrotou a certidão de óbito e atirou-a para o banco de trás. Succinilcolina era a mesma porcaria com que Jeffrey Rhodes o injectara a ele. Era para admirar não o ter morto.

Pondo novamente o carro em andamento, Devlin misturou-se com o trânsito em Tremont Street. Mais uma vez se sentia desejoso de pôr finalmente as mãos em Jeffrey Rhodes.

O trânsito do meio-dia fê-lo perder bastante tempo. Demorou mais a chegar do centro de Boston a Brookline do que antes para vir de Marblehead até à cidade. Era quase uma da tarde quando entrou na rua de Kelly Everson e se aproximou da casa dela. Não viu qualquer actividade, mas notou pelo menos uma mudança. Todas as cortinas do rés-do-chão estavam corridas. Na véspera encontrara-as abertas. Lembrava-se de ter posto as mãos em concha em volta dos olhos para espreitar para a sala de jantar. Devlin sorriu. A sua opinião era que não precisava de ser um génio para perceber que se passava qualquer coisa.

Depois de terfeito inversão de marcha a meio do quarteirão seguinte, Devlin passou novamente diante da casa, tentando chegar a uma decisão quanto àquilo que havia de fazer. Fez nova inversão de sentido de marcha e depois encostou o carro e estacionou. Estava duas portas mais à frente da casa dos Eversons, do outro lado da rua. Nos primeiros instantes não conseguiu decidir-se quanto à melhor iniciativa a tomar. Sabia por experiência própria que naquelas circunstâncias o melhor era sempre não fazer nada.

 

                                       6.a feira, 19 de Maio de 1989, 11:25

— Guarde o troco — disse Jeffrey para o taxista, quando saiu em frente da morgue. O condutor disse qualquer coisa que ele não ouviu. Inclinou-se para ficar mais perto.

— Desculpe, não ouvi o que disse.

— Eu disse que rai’ de gorgeta é esta? — E para provar aquilo que sentia atirou o troco pela janela fora e arrancou com os pneus a guinchar.

Jeffreyficouaver asmoedas rolarem no passeio. Sacudiu a cabeça. Aqueles taxistas de Boston eram um caso à parte. Baixou-se e apanhou o dinheiro. Depois olhou para a fachada da morgue de Boston.

Era um edifício antigo, coberto com uma patina de sujidade que datava do tempo em que o carvão era a principal fonte de calor na cidade. O edifício estava adornado com motivos egípcios estilizados, mas o efeito não era exactamente principesco. A estrutura parecia mais fazer parte do cenário de Hollywood para um filme de terror do que de uma casa de ciência médica.

Jeffrey atravessou a porta principal e subiu um lanço de escadas, seguindo as indicações que apontavam o caminho para o gabinete do médico legista.

— Posso ajudá-lo? — perguntou uma mulher com ar de matrona, quando Jeffrey se aproximou do balcão. Atrás dela havia cinco secretárias antiquadas, em metal, dispostas ao acaso. Cada uma dela estava apinhada de cartas, impressos, sobrescritos e manuais. Jeffrey sentia-se como se tivesse recuado vinte anos no tempo. Os telefones, todos de um negro sombrio, eram redondos.

— Sou médico do St. Joseph’s Hospital — disse Jeffrey. — Estou interessado num caso que, segundo creio, estava previsto ser autopsiado hoje. O nome é Karen Hodges.

Em vez de responder a Jeffrey, a mulher pegou num bloco de mola e percorreu a lista com o dedo. Ia a meio da página quando disse:

— Esse é um dos casos do Dr. Warren Seibert. Não tenho a certeza onde é que ele está. Provavelmente lá em cima na sala de autópsia.

— Onde é que isso fica? — perguntou Jeffrey. Embora praticasse medicina em Boston havia quase vinte anos, nunca tinha estado na morgue local.

— Pode tomar o elevador, mas não o aconselho — disse a mulher. — Passe aí a esquina do corredor e suba a escada. Quando chegar lá acima, vire à direita e depois à esquerda. Não tem nada que enganar.

Jeffrey fez como lhe disseram. Já ouvira muitas vezes a frase “Não tem nada que enganar”. Desta vez era verdade. Antes mesmo de chegar perto da sala de autópsia já lhe sentia o cheiro.

A porta estava entreaberta. Timidamente, Jeffrey espreitou para dentro, receoso de entrar. Era uma sala com cerca de doze metros por seis. Uma das paredes era ocupada por vitrinas geladas. O ar fétido era agitado por uma ventoinha rotativa à antiga, colocada em cima do armário-ficheiro de metal.

As mesas de autópsia eram de aço inox. Três delas estavam ocupadas por corpos nus. Dois dos corpos eram homens, o terceiro era uma mulher. A mulher era jovem e loura, tinha a pele cor de marfim mas com um tom ligeiramente azulado.

Em cada uma das mesas trabalhava uma equipa de duas pessoas. Na sala ressoavam múltiplos ruídos como rasgar, cortar, serrar, e ainda as conversas abafadas. Jeffrey pensou que eram todos homens, mas não tinha a certeza. Estavam todos vestidos com batas e cobertos com aventais de borracha. No rosto, além das máscaras cirúrgicas tinham grandes óculos de Plexiglas e nas mãos pesadas luvas de borracha. Num canto havia uma grande pia de pedra com a água a correr continuamente. Um rádio, equilibrado no rebordo da pia, tocava uma música rock, suave e incongruente. Jeffrey perguntou a si mesmo o que pensaria Billy Ocean se pudesse ver aquela cena.

Ficou quase um quarto de hora à porta antes que um dos homens que estava na sala desse por ele. Este passou diante de Jeffrey, a caminho da pia de pedra com uma coisa que parecia um fígado, para lavar na água corrente. Logo que viu Jeffrey, parou.

— Que deseja? — perguntou, desconfiado.

—Procuro o Dr. Seibert—respondeu Jeffrey comumaligeira sensação de náusea. Nunca gostara de patologia. Na escola médica, as autópsias eram sempre um sacrifício.

— Eh, Seibert, tens visitas — gritou por cima do ombro.

Um dos homens que estava de pé junto do corpo da mulher levantou os olhos e depois olhou para Jeffrey. Segurava um bisturi numa das mãos. A outra estava mergulhada no torso do cadáver.

— Posso ajudá-lo?—perguntou. O tom era bastante mais cordial que o do primeiro.

Jeffrey engoliu em seco. Sentia-se um bocado estonteado.

— Sou médico e pertenço ao St. Joseph’s — disse. — Sou do departamento de anestesia. Estou interessado em saber o que encontraram em relação a uma paciente de nome Karen Hodges.

O Dr. Seibert afastou-se da mesa, depois de fazer um aceno de cabeça para o seu assistente, e veio ao encontro de Jeffrey. Tinha uns bons cinco centímetros a mais que este, provavelmente um metro e oitenta e cinco.

—Foi o senhor quem a anestesiou? — inquiriu. Continuava com o bisturi na mão. A outra estava ensanguentada. Jeffrey não conseguia olhar mais baixo que as omoplatas do outro. Tinha o avental de borracha incrivelmente sujo e salpicado. Jeffrey concentrou-se nos olhos de Seibert. Eram de um azul vivo e chamavam a atenção.

— Não, não fui — admitiu Jeffrey. — Mas ouvi dizer que o problema ocorreu durante uma anestesia epidural. O meu interesse no caso vem do facto de terem havido pelo menos quatro casos semelhantes nos últimos quatro anos, que eu saiba. O medicamento envolvido no caso de Keren Hodges era a Marcaína?

—Ainda não sei—replicou Seibert —, mas a ficha está no meu gabinete... ao fundo do corredor, à esquerda, a seguir à biblioteca. Esteja à sua vontade. Eu despacho-me daqui dentro de quinze a vinte minutos.

— O caso em que está a trabalhar não é por acaso uma Gail Shaffer, pois não? — perguntou.

—Precisamente—disse Seibert.—É a primeira vez durante a minha carreira que apanho duas jovens bem parecidas uma a seguir à outra. É o meu dia de sorte.

Jeffrey ignorou o comentário. Nunca se sentira à vontade com o humor típico das pessoas de patologia.

— Alguma pista quanto à causa da morte?

— Chegue aqui — disse Seibert, agitando no ar a mão ensanguentada; depois encaminhou-se novamente para a mesa.

Jeffrey seguiu-o, hesitante. Não queria aproximar-se muito.

— Vê isto aqui? — perguntou Seibert, depois de ter apresentado Jeffrey ao assistente, Harold. Apontou com o cabo do estilete para a brecha na testa de Gail. —Foi uma pancada dos diabos. Fracturou o crânio até à cavidade central.

Jeffrey fez que sim com a cabeça. Começou a respirar pela boca. Não aguentava o cheiro. Harold estava ocupado a remover as entranhas.

— Seria possível que esse golpe a tivesse morto? — perguntou Jeffrey.

— Possivelmente — disse Seibert —, mas o exame radiológico foi negativo. Quando se tirar o cérebro para fora logo se vê. Parece que ela também teve uma complicação cardíaca, embora não houvesse antecedentes. Portanto vamos ver o coração com todo o cuidado.

— Vai fazer testes de drogas?

— Com certeza — disse Seibert. — Fazemos uma pesquisa toxicológica completa no sangue, FSC, bílis, urina e até mesmo ao que lhe aspirámos do estômago.

— Espera, eu ajudo — disse Seibert para o assistente, quando viu que Harold já tinha conseguido libertar os órgãos abdominais. Seibert pegou numa espécie de tacho comprido e estendeu-lho, enquanto Harold erguia a massa de órgãos escorregadios e os colocava no recipiente.

Jeffrey desviou o olhar por um momento. Quando olhou de novo, o corpo tinha sido esvaziado. Harold ia a caminho da pia de lavagem com os órgãos. Seibert remexia com toda a naturalidade no interior da cavidade abdominal.

— Temos de estar sempre atentos ao inesperado. Nunca se sabe o que se pode encontrar aqui dentro.

— E se eu lhes sugerisse que estas duas mulheres foram envenenadas? —disse de repente Jeffrey. —Fariam alguma coisa diferente? Outros testes?

Seibert parou repentinamente. Nesse momento, tinha a mão direita enluvada bem enterrada no pélvis de Gail. Ergueu a cabeça, lentamente, para olhar melhor para Jeffrey, quase como se quisesse refazer a sua opinião sobre o homem.

— O senhor sabe alguma coisa que eu devesse saber também? — perguntou, num tom bastante sério.

— Digamos que ponho envenenamento como uma hipótese — disse Jeffrey evasivo. —Ambas tiveram ataques e problemas cardíacos sem que nem uma nem outra tivessem antecedentes... ou pelo menos foi isso que consegui apurar.

Retirando a mão, Seibert endireitou-se e ficou a olhar para Jeffrey através da carcassa vazia do corpo de Gail Shaffer. Ficou um momento a pensar e depois baixou os olhos para a morta.

— Não, não iria fazer nada diferente — replicou. — Não há realmente qualquer diferença entre o auto-envenenamento, eufemisticamente conhecido como uso de drogas recreativas, ou a absorsão de um veneno ministrado por outra pessoa... pelo menos do ponto de vista patológico. Ou o veneno está no organismo da vítima ou não está. Por outro lado, se me dissessem que tinha havido recurso a um veneno específico, isso iria influenciar a maneira de processar alguns tecidos. Há certas manchas para certos venenos.

— E se se tratasse de uma toxina? — perguntou Jeffrey. Seibert soltou um assobio.

—Agora está afalar de coisas sérias. Está a pensar em fitotoxinas ou tetrodotoxinas. Já ouviu falar em tetrodotoxinas, não? Encontra-se num peixe, o baiacu. E pensar que estão a dar alvarás a uma série de bares sushi para servirem essa porcaria. Eu é que não lhe tocava.

Jeffrey compreendeu que penetrara num campo de grande interesse para Seibert. Era evidente o entusiasmo do homem em relação às toxinas.

—As toxinas são fenomenais—continuou Seibert.—Caramba, se eu quisesse desembaraçar-me de alguém, não tenho a menor dúvida de que usaria uma toxina. A maior parte das vezes, ninguém pensa em procurar vestígios delas. A causa da morte parece natural. Olhe, lembra-se daquele diplomata turco que despacharam em Paris? Foi com certeza uma toxina. Estava escondida na ponta de um chapéu de chuva e alguém passou, simplesmente, ao lado dele e deu-lhe uma pequena estocada no traseiro. Bingo, o tipo ficou a torcer-se no chão e daí a minutos estava morto. E alguém conseguiu descobrir o que tinha sido? Não, co’os diabos. Identificar toxinas é o diabo.

— Mas é possível detectá-las? — perguntou Jeffrey. Seibert sacudiu a cabeça, na incerteza.

— É por isso que usaria uma delas se quisesse desembaraçar-me de alguém: são lixadas de descobrir. E quanto à possibilidade de as detectar, eu diria sim e não. O grande problema é que uma quantidade mínima de qualquer destas toxinas produz um efeito bombástico. Bastam algumas moléculas para fazerem o seu trabalho sujo. Refiro-me a moléculas de um bilionésimo. Isso quer dizer que a nossa velha sentinela, o cromatógrafo gasoso, combinada com o espectrofotómetro de massa, muitas vezes não consegue isolar a toxina no meio de todos os outros compostos orgânicos, juntos na mistura da amostra. Mas quando se sabe aquilo que se procura, como por exemplo a tetrodotoxina, num caso em que o falecido, digamos, caiu fulminado numa festa de sushi, nessa altura há anticorpos monoclonais marcados, quer com fluorescina, quer com um marcador radioactivo, que conseguem apanhar o que se pretende. Mas sempre lhe digo que não é nada fácil.

— Isso quer portanto dizer que, em certos casos, não se consegue encontrar a toxina a menos que se saiba especificamente do que se trata — disse Jeffrey, subitamente desencorajado. — É uma verdadeira armadilha.

— É por isso que pode constituir o crime perfeito.

Harold voltou, com o tabuleiro dos órgãos já lavados. Jeffrey aproveitou para estudar o tecto do laboratório.

— Harold, quer tirar o cérebro? — perguntou Seibert ao assistente. Este fez que sim com a cabeça, pousou o tabuleiro numa ponta da mesa e depois aproximou-se da cabeça.

—Peço desculpa de estar a interromper o seu trabalho—disse Jeffrey.

—Não há qualquer problema — replicou Seibert. — Interrupções deste tipo não me aborrecem. Esta treta das autópsias torna-se um bocado monótona com o tempo. O prazer deste trabalho está na análise. Nunca gostei de arranjar peixe quando ia à pesca e não há muita diferença entre esse trabalho e o que fazemos aqui na autópsia. Além disso, posso até dizer-lhe que espicaçou a minha curiosidade. Por que é que me está a fazer todas essas perguntas sobre toxinas? Um homem ocupado como o senhor não veio até aqui para brincar às perguntas e respostas.

— Já lhe disse que houve pelo menos mais quatro mortes durante a anestesia epidural. Isso não é comum. E, pelo menos no que diz respeito a duas delas, os sintomas iniciais apresentavam algumas diferenças subtis em relação àquilo que se poderia esperar de uma reacção a um anestésico local.

— Como assim? — perguntou Seibert.

Um dos outros patologistas levantou a cabeça e gritou:

— Eh, Seibert, vais fazer desse caso o trabalho da tua vida só por ela ter um bom corpo?

— Ainda acabo antes de ti — ripostou Seibert por cima do ombro. Depois, voltando-se para Jeffrey, acrescentou. —Ele está é ciumento por me terem calhado duas de seguida, mas eu já pago isso. A seguir vem-me provavelmente algum alcoólico de 60 anos que andou três semanas a flutuar no porto de Boston. Devia ver como eles vêm. Brrr! Com os gases que deitam podia-se arranjar combustível para o carro durante uma semana.

Jeffrey tentou sorrir, mas era difícil. As imagens mentais que esses homens evocavam quando falavam eram quase piores que a realidade.

Reagindo ao comentário do outro patologista, Seibert pegou num material de sutura espesso enfiado numa agulha forte e começou a coser o “Y” do corte da autópsia de Gail Shaffer.

— Onde é que nós estávamos? — disse. —Ah, sim. Em que é que os sintomas diferiam?

—Logo a seguir a ser ministrada a Marcaína, os pacientes tiveram uma reacção parassimpática repentina e surpreendente, com dores abdominais, salivação, suores e mesmo pupilas mióticas. Isso durou apenas uns segundos, depois entraram em convulsões violentas.

Harold fizera um corte em volta da cabeça de Gail com um bisturi. Depois, com um som horrível de tecido rasgado, puxou o couro cabeludo para cima da cara. O crânio ficou exposto. Jeffrey tentou voltar a cabeça para o lado, para não ver.

— Não aparece esse tipo de sintomas no caso de uma reacção tóxica aos anestésicos locais? — perguntou Seibert. Puxava a agulha acima da cabeça, como um sapateiro, depois de cada ponto, para esticar o fio.

— Sim e não — respondeu Jeffrey. — As convulsões sim. As pupilas mióticas também são descritas nos manuais, embora, palavra de honra, eu não encontre uma explicação fisiológica para isso e foi uma reacção que nunca encontrei. Mas a salivação, os suores e a lacrimação são sintomas que eu nunca sequer encontrei nos livros.

—Acho que estou a perceber—disse Seibert. Ouviu-se um ranger repentino e o corpo de Gail começou a vibrar. Harold estava a servir-se de uma serra mecânica para lhe serrar o alto da cabeça. Não tardaria a retirar-lhe o cérebro. Seibert teve que falar mais alto para se fazer ouvir. — Se bem me recordo, os anestésicos locais bloqueiam a transmissão nas sinapses. Qualquer estimulação inicial que se possa obter é devida ao facto de as fibras inibidoras poderem ser bloqueadas primeiro. O que eu disse está correcto?

— Estou impressionado — disse Jeffrey. — Continue.

—E o bloqueio resulta de os iões de sódio serem impedidos de atravessar as membranas, estou certo?

— Deve ter arrancado um vinte em neurofisiologia na escola médica.

— Ah, são coisas que me interessam — replicou Seibert. — Estive a rever tudo isto por causa de um caso de “myasthenia gravis”. Também vinham num artigo que eu li sobre a terodotoxina. Sabia que essa toxina reproduz os efeitos dos anestésicos locais? Aliás, algumas pessoas começaram a pôr a hipótese de se tratar de um anestésico local natural.

Jeffrey lembrava-se vagamente de ter lido qualquer coisa a esse respeito, agora que Seibert mencionava o facto.

O guinchar da serra mecânica parou de repente. Jeffrey não queria assistir à fase seguinte, por isso voltou-se completamente para o outro lado.

—Seja como for—disse Seibert—, do que eu me lembro é que, com a anestesia epidural, qualquer operação que se possa esperar tem a ver com o sistema do simpático, nunca com o parassimpático, dado o risco de se injectar inadvertidamente o líquido na área correspondente à anestesia espinal. Está certo?

— Certíssimo — declarou Jeffrey.

— Mas também me parece que a preocupação principal é a possibilidade de, por engano, injectar o agente anestésico directamente na corrente sanguínea, não é verdade?

— Exactamente — disse Jeffrey. — E é aí que entram em cena os problemas das convulsões e da toxicidade cardíaca. Mas não há hipótese de encontrar uma explicação para uma estimulação parassimpática repentina e acentuada. Isso leva-nos a pensar no possível envolvimento de uma outra droga. Qualquer coisa que provoque não apenas as convulsões e a toxicidade do coração, mas também, durante uma fase breve, a estimulação do parassimpático.

— Caramba! — exclamou Seibert. — Isso é um caso à minha medida. É assim como uma coisa concebida por um patologista.

— É possível — disse Jeffrey. — Para falar a verdade, eu estava a pensar num anestesista.

—Não há competição possível — comentou Seibert, acenando com uma pinça dentada. — O patologista está muito mais qualificado para engendrar a melhor maneira de matar pessoas.

Jeffrey ia argumentar, mas depois parou, consciente do ridículo de uma discussão sobre qual a especialidade que gerava o assassino mais sofisticado.

— Há mais um aspecto nesses dois casos de que estou a falar. Na autópsia, ambos revelaram destruição das células nervosas e dos axónios. Num dos casos foram mesmo feitas micrografias electrónicas que mostravam a destruição acentuada da ultra-estrutura de nervos e músculos.

—Palavra?—disse Seibert. Interrompeu a sua costura. Jefrey viu que ele estavafascinado. Portanto o que temos afazer é descobrir uma toxina a que provoque convulsões e toxicidade cardíaca destruindo células nervosas e musculares, além de causar uma acentuada estimulação parassimpática, pelo menos inicialmente. Sabe uma coisa? Você tem razão. Isto parece uma pergunta de um teste de exame do primeiro ano de fisiologia. Vou ter de pensar muito bem no assunto.

— Sabe se Karen Hodges teve o mesmo tipo de sintomas iniciais? — perguntou Jeffrey.

Seibert encolheu os ombros.

—Ainda não. O meu modus operandi habitual é estudar a ficha do caso detalhadamente, depois de feita a autópsia. Gosto de conservar o espírito aberto. Desse modo é menos provável que me escape alguma coisa.

—Não se importa que eu dê uma vista de olhos na ficha?—perguntou Jeffrey.

—Claro que não! Já lhe disse antes, esteja à sua vontade. Eu já não demoro muito.

Contente por escapar ao odor opressivo da sala de autópsia, Jeffrey encaminhou-se para o escritório minúsculo de Seibert. Era a dependência mais acolhedora que Jeffrey encontrara na morgue, cheia de toques pessoais. A secretária tinha uma pasta de couro com mata-borrão, um cesto para os documentos que entravam e saíam, um conjunto com caneta e lápis e uma moldura. Na moldura via-se uma fotografia de Seibert ao lado de uma mulher atraente, com um corte de cabelo moderno, e duas crianças sorridentes. Vestidos com traje de esqui, a família tinha sido fotografada com uma montanha branca e invernosa ao fundo.

No meio da pasta da secretária havia duas fichas. A de cima era a de Gail Shaffer. Jeffrey pô-la de lado. A de baixo era a de Karen Hodges. Pegou nela e sentou-se numa cadeira de vinil. O registo da anestesia era o que mais lhe interessava.

O nome do anestesista era William Doherty. Jeffrey conhecia-o vagamente de jornadas médicas. Olhando ao longo da página certificou-se de que o anestésico fora realmente a Marcaína a 0,5%. A julgar pela dose, Jeffrey deduziu que Doherty usara a ampola de 30 cm3. A seguir consultou o relato sucinto dos acontecimentos. O resumo trouxe-lhe imediatamente à ideia a recordação do desastre de Patty Owen. Jeffrey estremeceu enquanto lia. Karen Hodges sofrera inicialmente os mesmos sintomas parassimpáticos desconcertantes, antes de começarem as convulsões.

Jeffrey sentiu uma empatia profunda em relação a Doherty. Sabia bem de mais aquilo que ele estava a passar. Num impulso repentino, serviu-se do telefone de Seibert para ligar para o St. Joseph’s Hospital. Pediu os serviços de anestesia e depois esperou pelo Dr. Doherty.

Quando Doherty pegou no aparelho, Jeffrey disse-lhe como lamentava a experiência que ele tinha tido na véspera, acrescentando que compreendia bem a sua angústia: ele próprio já passara pelo mesmo.

— Quem é que está ao telefone?—perguntou o Dr. Doherty antes que Jeffrey conseguisse dizer mais qualquer coisa.

— Jeffrey Rhodes — disse Jeffrey, usando, pela primeira vez nos últimos dias, o seu verdadeiro nome.

— Dr. Jeffrey Rhodes, do Memorial? — perguntou Doherty.

—Sim—replicou Jeffrey. —Queria fazer-lhe uma pergunta sobre o caso. Quando deu a dose de teste...

— Desculpe — atalhou o Dr. Doherty —, mas tenho ordens explícitas do meu advogado para não discutir o caso com ninguém.

— Compreendo — disse Jeffrey. — Já deu entrada alguma acção de incúria médica?

— Não, ainda não — disse Doherty. —Mas infelizmente estamos todos à espera que isso aconteça. Desculpe mas não posso continuar a discutir o caso. Agradeço-lhe muito a sua chamada. Muito obrigado.

Jeffrey desligou, frustrado por não ter podido beneficiar da experiência recente do Dr. Doherty. Mas compreendia os motivos que o levavam a ser tão cauteloso. Jeffrey recebera a mesma proibição do seu advogado em relação ao caso de Patty Owen.

—Já tenho cá umas ideias—dise Seibert irrompendo pelo gabinete, vestido com uma bata e calças lavadas. Sem o avental, a máscara e o boné de cirurgião, Jeffrey conseguiu observá-lo à vontade pela primeira vez. Seibert tinha uma constituição atlética. O cabelo era de um louro-claro, os olhos azuis. Tinha um rosto angular e bem parecido. Jeffrey calculou que deveria ter pouco mais de 30 anos.

Seibert passou para o outro lado da secretária e sentou-se. Recostando-se, levantou os pés e apoiou-os num canto da secretária.

— Estávamos a falar num bloqueante despolarizador histotóxico. Isso provocaria uma sacudidela inicial se se injectasse uma dose de acetilcolina em todas as sinapses gangliónicas e placas das extremidades motoras. É imediato: surgem os sintomas parassimpáticos antes de se gerar a grande confusão na sequência da destruição das células nervosas e músculos. O único problema é que iriam surgir também estremecimentos dos músculos.

— Mas houve espasmos musculares! — disse Jeffrey com um interesse crescente. Parecia que Seibert estava a seguir uma ideia qualquer.

— Não me surpreende nada — comentou. Depois tirou as pernas de cima da mesa e inclinou-as para a frente, olhando para Jeffrey. — E esta última paciente? Karen Hedges teve o mesmo tipo de sintomas de que temos estado a falar?

— Exactamente os mesmos — replicou Jeffrey.

—E tem a certeza de que não poderiam ter sido causados por anestésicos locais?

Jeffrey confirmou com um sinal de cabeça.

— Bom, vai ser interessante ver os resultados da toxicologia.

— Vi os relatórios das autópsias de dois dos outros casos de morte durante a epidural. Em ambos a toxicologia era negativa.

— Quais eram os nomes dos quatros casos? — perguntou Seibert puxando de uma caneta e um bloco.

—Patty Owen, Henry Noble, Clark DeVries e Lucy Havalin—disse Jeffrey. — Li os relatórios dos casos Owen e Noble.

— Não estou ao corrente de nenhum desses casos. Tenho de procurar para ver o que há nos ficheiros.

— Qualquer hipótese de ainda haver fluidos corporais de algum deles? — perguntou Jeffrey.

— Guardamos amostras congeladas de alguns casos durante cerca de um ano. Qual foi o mais recente?

—Patty Owen—replicou Jeffrey. —Na eventualidade de ter o soro poderia fazer alguns testes de toxinas?

— Da maneira como fala, parece tudo muito fácil — comentou Seibert. — Como já lhe disse é muito difícil encontrar uma toxina, a menos que se tenha a sorte de dispor da antitoxina específica devidamente marcada. Não se pode tentar uma série de antitoxinas à sorte e esperar que tudo corra pelo melhor.

— Há alguma maneira de limitar a gama de possibilidades?

—Talvez—disse Seibert.—Mas é possível que valesse a pena atacar o problema de um outro ângulo. No caso de haver uma toxina, como é que os pacientes teriam entrado em contacto com ela?

— Isso é um problema completamente diferente — admitiu Jeffrey. Sentia relutância em chamar a atenção para a sua teoria do Doutor X, pelo menos por enquanto. — Deixemos isso de momento. Quando entrou aqui há instantes, pensei que tinha qualquer coisa de específico na ideia.

— E tenho — confirmou Seibert. —Estava a pensar numa categoria de toxinas que têm dado com alguns toxicólogos em doidos. São provenientes das glândulas da pele das rãs dendrobátidas da Colômbia, na América do Sul.

—E estão dentro das especificações das toxinas misteriosas que temos estado a discutir?

—Tenho de ler umas coisas para poder ter a certeza—admitiu Seibert. — Mas tanto quanto me lembro, acho que sim. Foram descobertas mais ou menos ao mesmo tempo que o curare. Os índios costumavam triturar essas rãs e usar o extracto nas suas setas envenenadas. Olhe, se calhar é o que nós temos aqui: um desses índios colombianos que vai a caminho da guerra. — Seibert riu-se.

— Pode dar-me algumas referências? — perguntou Jeffrey. — Gostaria de ler também qualquer coisa.

—Claro—disse Seibert. Dirigiu-se para o seu ficheiro, mas depois parou e deu meia volta. — Esta conversa levou-me a pensar no cocktail para um crime perfeito. Se eu tivesse que escolher o que havia de pôr num anestésico local, servia-me do veneno de sushi, a tetrodotoxina.

Uma vez que tem os mesmos efeitos aparentes que os anestésicos locais, ninguém ia suspeitar de nada. São os sintomas parassimpáticos transitórios que o preocupam a si. Com a tetrodotoxina isso não teria acontecido.

— Está a esquecer-se de uma coisa — disse Jeffrey. — Segundo creio, a tetrodotoxina é reversível. Paralisa a capacidade de respirar, mas durante a anestesia isso não tem importância. Pode respirar-se pelo paciente.

Seibert fez estalar os dedos, decepcionado.

— Tem a razão, esqueci-me. Tem de destruir as células ao mesmo tempo que lhes bloqueia a função.

Seibert continuou em direcção ao armário do ficheiro e tirou para fora a gaveta de cima.

—Onde diabo é que eu pus aquilo?—murmurou. Ficou alguns minutos à procura no meio dos diferentes dossiers, nitidamente frustrado. — Ah, aqui está — disse triunfante, tirando uma pasta da gaveta. — Arquivei-o em “rãs”. Que idiota!

A pasta continha uma série de artigos copiados de vários jornais, alguns dos quais eram publicações correntes, como a revista Science. Outras eram mais isotéricas, como, por exemplo, Advances in Cytopharmacology. Os dois homens ficaram momentos em silêncio enquanto folheavam os diversos artigos.

— Como é que tudo isto lhe veio parar às mãos? — perguntou Jeffrey.

— Dentro da minha especialidade, tudo o que causa morte é interessante, especialmente uma coisa que o faz com tanta eficácia como estas toxinas. E como é que se pode resistir a esses nomes? Aqui está uma: a histrionicotoxina. — Seibert colocou um artigo diante de Jeffrey. Este pegou-lhe e começou a ler.

— Aqui está um mimo — continuou Seibert, pegando num artigo e batendo com a mão aberta na folha. — Esta é uma das substâncias mais tóxicas conhecidas da humanidade: a batraqueotoxina.

—Deixe-me ver essa—disse Jeffrey. Lembrava-se do nome, entre muitos que encontrara no capítulo sobre toxinas do livro de toxicologia de Chris. Jeffrey pegou no artigo e leu o resumo. Parecia prometedor. Tal como Seibert sugerira, funcionava como um agente despolarizador nas ramificações dos nervos. Dizia também que causava danos profundos na ultra-estrutura das células dos músculos e nervos.

Levantando os olhos da leitura, Jeffrey estendeu o artigo na direcção de Seibert.

— E que tal procurar esta no soro de alguns destes casos?

—Não seria brincadeira nenhuma—disse ele. —Tem uma potência dos diabos. É uma lacalóide esteroidal, o que quer dizer que se pode ocultar facilmente nos lípidos e esteróides da célula. Talvez uma amostra de tecido muscular fosse melhor que o soro, uma vez que a toxina actua nas placas das extremidades motoras. Provavelmente a única forma de localizar qualquer coisa como a batraqueotoxina é descobrir uma maneira de a concentrar numa amostra.

— E como é que se faz uma coisa dessas?

—Na sua qualidade de esteróide, seria metabolizada glutonatada no fígado e expelida pela bílis — esclareceu Seibert. — Logo, uma amostra de bílis estaria mais indicado, a não ser por causa de um pequeno factor.

— Qual é esse factor? — perguntou Jeffrey.

— A toxina mata tão depressa que o fígado não chega a ter tempo de a processar.

—Um dos casos não morreu tão depressa como os outros—atalhou Jeffrey, pensando em Henry Noble. — Ao que parece, recebeu uma dose menor e ainda viveu uma semana. Acha que isso levaria a alguma coisa?

— Se tivesse que me deitar a adivinhar, diria que sim — respondeu Seibert. — O mais provável é que a bílis dele tenha acumulado a mais alta concentração de todo o corpo.

—O indivíduo morreu há quase dois anos. Não creio que haja qualquer hipótese de ainda terem por cá o seu fluido corporal? Warren sacudiu a cabeça.

— Nenhuma hipótese. O nosso espaço de congelação é limitado.

— E se exumássemos o corpo, isso levaria a alguma coisa? — perguntou Jeffrey.

— É possível — disse Seibert. — Tudo dependeria do estado de decomposição. Se o corpo estivesse num estado razoável, digamos se tivesse sido enterrado num sítio abrigado do sol e razoavelmente embalsamado, talvez resultasse. Mas exumar um corpo não é uma coisa fácil. É preciso conseguir autorização e isso nem sempre é facilitado. É necessária uma ordem do tribunal ou a autorização do parente mais próximo. Como pode imaginar, nem os tribunais nem os parentes estão muito dispostos a isso.

Jeffrey olhou para o relógio. Já passava das duas. Sacudiu no ar o artigo que tinha na mão.

— Alguma possibilidade de me emprestar isto? — perguntou.

—Desde que mo traga de volta—replicou Seibert.—Também posso fazer-lhe um telefonema e dar-lhe os resultados da toxicologia de Karen Hodges e da amostra do soro de Patty Owen. O único problema é que eu não sei o seu nome.

— Desculpe — disse Jeffrey. — Chamo-me Peter Webber. Mas é tão difícil localizarem-me lá no hospital, que provavelmente será melhor ser eu a ligar para si. Quando é que acha que ligue?

— E se fosse amanhã? Quando estamos atrapalhados, trabalhamos aos fins-de-semana. Vou ver se consigo apressar um bocado as coisas, já que está tão interessado.

Depois de deixar a morgue, Jeffrey teve de ir a pé até ao Boston City Hospital para arranjar um táxi. Depois de se sentar, disse ao condutor que o levasse ao St. Joseph’s. A ideia dele era preencher o dia de forma a ir para casa juntamente com Kelly. Na sua qualidade de surpervisora, ela tinha o direito de estacionar dentro do hospital.

Durante o percurso, Jeffrey conseguiu passar os olhos sobre a batraqueotoxina. A leitura tornava-se difícil porque o artigo era extremamente técnico. Mas ficou a saber que a toxina causava, sem sombra de dúvida, danos irreversíveis nas células dos nervos e dos músculos e, embora não dissesse especificamente que provocava a salivação, lacrimação e pupilas mióticas, sugeria-o fortemente. Dizia ainda que a toxina estimulava o sistema parassimpático e produzia espasmos musculares.

No St. Joe’s, Jeffrey encontrou Kelly no local habitual, no posto das enfermeiras da unidade de cuidados intensivos. Estava muito ocupada. A UCI acabava de receber um novo paciente e era a hora da mudança de turno.

— Só tenho um segundo — disse ela. — Esqueci-me de te dar isto. — E entregou-lhe um sobrescrito do St. Joseph’s Hospital.

—O que é?—perguntou Jeffrey, quando Kelly já regressava ao seu trabalho.

—São as listas do Valley Hospital. Foi novamente o Hart. Mandou-as pelo fax esta tarde. Mas desta vez já estava um bocado curioso.

— Que foi que lhe disseste? — perguntou Jeffrey.

— Disse-lhe a verdade — replicou Kelly. — Que ainda havia uma coisa no caso do Chris que continuava a incomodar-me. Mas eu não posso contar-te mais nada agora, Jeffrey. Vai para a sala lá de trás. Daqui a uns minutos já acabo.

Jeffrey foi para a salinha estreita e sentou-se. Num contraste acentuado com a actividade da UCI, o único barulho que se ouvia ali era o do compressor de um pequeno frigorífico e da omnipresente cafeteira do café. Jeffrey abriu o sobrescrito e retirou de lá o fax.

Havia duas folhas separadas. Uma era uma lista dos médicos a quem tinham sido entregues autocolantes para o estacionamento no ano de 1987 e era organizada pelo departamento. A outra era uma folha de pagamentos relativa ao mesmo ano e referindo todos os empregados do hospital.

Ansiosamente, Jeffrey puxou da lista que ele próprio elaborara e da qual constavam trinta e quatro médicos que tinham privilégios tanto no Memorial como no St. Joseph’s. Analisando os diferentes no mês, Jeffrey conseguiu reduzir os trinta e quatro nomes para seis. Um dos seis eram a Dr.- Nancy Bennett. Pertencia ao departamento de anestesia do Valley Hospital. De momento, a Dr.s Bennett tornou-se a principal suspeita de Jeffrey. Agora tinha que arranjar listas semelhantes no Commonwealth Hospital e no Suffolk General. Depois disso tinha a confiança que a lista ficasse ainda mais reduzida. Na realidade, a sua esperança era de que ela ficasse reduzida a um só indivíduo.

A porta da UCI abriu-se e Kelly entrou. Via-se que estava tão cansada quanto Jeffrey se sentia. Aproximou-se e foi sentar-se ao lado dele.

—Mas que dia! — suspirou. — Cinco pessoas deram entrada só no nosso turno.

— Tenho notícias encorajadoras — disse Jeffrey com entusiasmo. —Com a lista do Valley, acabámos por ficar reduzidos a seis médicos. Agora precisamos é de arranjar maneira de conseguir listas dos outros dois hospitais.

— Aí não me parece que te possa ajudar — disse Kelly. — Não conheço absolutamente ninguém nem no Commonwealth nem no Suffolk.

— E se tu fosses pura e simplesmente até lá e visitasses o gabinete de enfermagem?

—Espera aí!—exclamou Kelly de repente. —A Amy trabalhou lá, na UCI.

— Quem é a Amy? — perguntou Jeffrey.

— É uma das minhas enfermeiras — replicou Kelly. — Deixa-me ver se ela já saiu. — Kelly saltou da cadeira e desapareceu pela porta da UCI.

Os olhos de Jeffrey voltaram-se novamente para a lista de seis médicos e depois para a lista dos trinta e quatro. Era na realidade um progresso encorajador. Seis já era um número bastante razoável. Depois reparou nos dois nomes que estavam à direita da lista dos médicos. Tinha-se esquecido dos empregados. Voltando-se para a lista do Valley Hospital, começou a procurar o nome de Maureen Gallop. Tal como esperava, não o encontrou. A seguir viu o de Trent Harding. Com grande espanto seu, estava também na segunda lista. Ele trabalhara ali, no departamento de enfermagem, em 1987!

O coração de Jeffrey bateu acelerado. O nome parecia destacar-se da página. Trent Harding tinha trabalhado no Valley Hospital, no Memorial e no St. Joseph’s.

Calma, aconselhou Jeffrey a si próprio, sentindo o entusiasmo crescer dentro dele. Provavelmente não passava de uma coincidência. Mas era um diabo de uma coincidência e bastante mais difícil de explicar que o facto de um médico aparecer nas listas dos diversos hospitais.

A porta da UCI abriu-se e Kelly apareceu de novo. Deixou-se cair na cadeira, ao mesmo tempo que passava a mão pela testa afastando o cabelo para trás.

—Já não a apanhei—disse, decepcionada.—Mas vejo-a amanhã. Nessa altura pergunto-lhe.

— Não tenho a certeza se valerá a pena — comentou Jeffrey. — Olha o que encontrei. Colocou a lista dos empregados do Valley diante dela e apontou para o nome de Trent Harding. — Este indivíduo estava a trabalhar nos três hospitais nos três momentos críticos — disse. —Sei que não passa de um indício circunstancial, mas é difícil acreditar que o facto de ele ter estado em cada um dos três na altura precisa seja mera coincidência.

— E agora está aqui no St. Joseph’s?

— Segundo a lista que tu me deste, está.

— Sabes onde?

—Não sei qual o serviço, mas sei o departamento — disse Jeffrey. — É precisamente o teu: enfermagem. A respiração de Kelly acelerou-se.

— Não! — exclamou.

— É o que está indicado na lista. Conhece-lo? Kelly sacudiu a cabeça.

—Nem nunca tinha ouvido o nome dele, mas também não conheço toda a gente.

— Temos de descobrir onde é que ele trabalha — disse Jeffrey.

— Vamos falar com Polly Arnsdorf— sugeriu Kelly, levantando-se rapidamente.

Jeffrey agarrou-a pelo braço.

— Espera aí. Temos de ter cuidado. Não quero que Polly Arnsdorf o assuste. Não te esqueças de que não temos provas. É tudo circunstancial. Se esse tal Harding desconfiar que estamos atrás dele, pode desaparecer e isso é a última coisa que nós queremos. Além disso, não podemos referir o meu verdadeiro nome. Ela pode reconhecê-lo.

—Mas se Harding for o assassínio, não podemos deixá-lo andar a passear por aí.

— O intervalo entre as diversas complicações anestésicas tem sido de oito meses e mais — atalhou Jeffrey. — Dois ou três dias não fazem diferença.

— E Gail? — perguntou Kelly.

— Ainda não sabemos nada de concreto sobre a morte dela.

— Mas tu deste a entender... — começou Kelly.

— Disse que estava desconfiado — interrompeu Jeffrey.

- acalma-te. Estás a ficar mais excitada que eu. Não te esqueças que a única coisa que sabemos ao certo é que esse tal Harding esteve a trabalhar nos três hospitais na altura em que se verificaram as complicações anestésicas. Vamos precisar de muito mais para podermos falar com certezas. E pode mesmo ser que estejamos errados. Não estou a querer dizer que não devêssemos falar com Polly. Só que temos de ver o que é que lhe vamos dizer. Mais nada.

—Está bem—disse Kelly. — Como é que eu te hei-de apresentar?

—Tenho estado a usar o nome de Webber, mas não creio que tenha sido muito consistente quanto ao primeiro nome. Digamos que me chamo Dr. Justin Webber. E no que diz respeito ao tal Harding, podemos dizer que estamos preocupados com a competência dele.

Desceram a escada juntos e dirigiram-se ao gabinête da administração. Quando chegaram diante da porta de Polly Arnsdorf, foi-lhes dito que ela estava a fazer uma chamada para fora. Sentaram-se na sala de espera até ela poder recebê-los. Pela actividade que reinava em volta do gabinete, era nítido que estava bastante ocupada.

Quando finalmente puderam entrar, Kelly apresentou Jeffrey como sendo o Dr. Justin Webber, conforme o combinado.

—E em que é que eu os posso ajudar?—perguntou Polly. O seu tom era amigável mas profissional.

Kelly deitou um olhar breve a Jeffrey e depois começou:

—Queríamos algumas informações sobre um dos nossos enfermeiros. O nome dele é Trent Harding.

Polly fez que sim com a cabeça e esperou. Como Kelly não dissesse mais nada, ela perguntou:

— E que é que queriam saber?

— Em primeiro lugar, estamos curiosos quanto ao serviço em que ele trabalha — perguntou Jeffrey.

—Trabalhava — corrigiu Polly. — O Sr. Harding despediu-se ontem.

Jeffrey sentiu uma profunda decepção. Oh não, pensou, seria que ia perder aquele homem depois de ter chegado tão perto. No entanto, como elemento positivo, o facto de Harding se ter despedido logo a seguir à complicação anestésica mais recente era outra informação que o incriminava circunstancialmente.

— Onde é que ele trabalhava? — perguntou Jeffrey.

—No Bloco Operatório —replicou Polly. Olhava de um para outro. O instinto dizia-lhe que se passava qualquer coisa, qualquer coisa de grave.

— Em que turno? — perguntou Kelly.

— Durante o primeiro mês trabalhou à noite, depois passou para o turno de dia. Continuou a trabalhar de dia até ontem.

— O despedimento dele foi uma surpresa? — perguntou Jeffrey.

— Não propriamente — disse Polly. — Se não houvesse tanta falta de bons enfermeiros, eu próprio já o teria convidado a demitir-se. Ele tem toda uma história de problemas disciplinares no que diz respeito ao relacionamento com os superiores, não só aqui, mas nos outros sítios onde trabalhou. A Sr.s Raleigh via-se aflita com ele. Harding estava sempre a dizer-lhe como havia de dirigir o Bloco Operatório. Mas como enfermeiro era excelente. Extremamente inteligente, posso dizer-lhes.

— Em que outros sítios é que ele já trabalhou? — perguntou Jeffrey.

— Trabalhou na maior parte dos hospitais de Boston. Creio que o unico grande hospital onde ele ainda não esteve é o Boston City.

— Esteve no Commonwealth e no Suffolk? — inquiriu Jeffrey. Polly fez que sim com a cabeça.

— Recordo-me que sim.

Jeffrey mal conseguia dominar-se.

— Seria possível ver a ficha dele?

— Isso não posso permitir — esclareceu Polly. —As nossas fichas são confidenciais.

Jeffrey fez que sim com a cabeça. Já calculava que assim fosse.

— E uma fotografia? Isso não deve pôr problemas.

Polly usou o intercomunicador para falar com a secretária e pedir-lhe que arranjasse uma fotografia de Trent Harding. Depois inquiriu:

— Posso perguntar-lhes porquê todo esse interesse no Sr. Harding?

Jeffrey e Kelly começaram a falar ao mesmo tempo. Depois Jeffrey fez-lhe sinal que continuasse.

— É uma questão quanto às credenciais e à competência dele.

—Não seria essa parte que eu poria em causa — disse Polly quando a secretária entrou com a fotografia. Polly pegou nela e estendeu-a a Jeffrey. Kelly inclinou-se para ver também.

Jeffrey tinha visto o homem muitas vezes no bloco operatório do Memorial. Reconheceu-lhe o cabelo muito louro, cortado a poucos centímetros da cabeça, e a figura sólida. Jeffrey nunca falara com ele directamente, que se lembrasse, mas recordava a sua maneira reverente e conscienciosa. Não havia dúvida que nada nele fazia pensar num assassino. Tinha um ar muito americano que fazia pensar num jogador de futebol de uma universidade do Texas.

Levantando os olhos do retrato, Jeffrey perguntou:

— Tem alguma ideia dos planos dele?

— Ah, sim — disse Polly. — O Sr. Harding foi muito específico.

Disse que tencionava ir para o Boston City porque queria um programa mais académico.

— Outra coisa — continuou Jeffrey. —Poderia dar-nos a morada e o telefone de Trent Harding?

— Não vejo nenhum inconveniente — replicou Polly. — Com certeza que vem na lista telefónica. — Pegou num lápis e num papel e depois, tirando a fotografia da mão de Kelly, voltou-a, copiou-lhe a informação na parte de trás e em seguida entregou o papel a Jeffrey.

Jeffrey agradeceu a Polly o tempo que lhes dispensara e Kelly fez o mesmo. Em seguida saíram dos serviços administrativos. Saindo pela porta principal, dirigiram-se ao carro de Kelly.

—É bem possível que tenhamos acertado!—disse Jeffrey cheio de excitação, quando já não podiam ser ouvidos. —Trent Harding pode muito bem ser o assassino!

— Concordo — disse Kelly. Tinham chegado junto do carro e olhavam um para o outro por cima do tejadilho. Kelly ainda não abrira a porta.

— Mas também acho que temos obrigação de procurar imediatamente a polícia. Temos de o fazer parar antes que ele ataque de novo. Se for ele o homem, deve ser um louco.

—Não podemos ir à polícia — disse Jeffrey com um certo desespero. — E as razões são as mesmas que citei da última vez. Por muito incriminadora que achemos que possa ser esta informação, continua a ser circunstancial. Não te esqueças de que não temos qualquer prova. Nem uma! Não temos sequer a prova de que os pacientes tenham sido envenenados. Pus o médico Legista à procura de uma toxina, mas há poucas hipóteses de ele conseguir isolá-la. Há limites para a capacidade toxicológica.

—Só que a ideia de que uma pessoa dessas possa andar por aí à solta me aterroriza — disse Kelly.

— Está bem, eu concordo contigo... mas o que é verdade é que a questão está num ponto em que as autoridades não poderiam fazer nada, mesmo que acreditassem em nós. Pelo menos, de momento, ele não está no hospital.

Com relutância, Kelly abriu a porta do carro. Ambos entraram.

— Do que nós precisamos é de uma prova — disse Jeffrey. — E a primeira coisa a fazer é assegurarmo-nos de que o indivíduo ainda se encontra por cá.

— Como é que vamos fazer isso? — perguntou Kelly. Jeffrey desdobrou a folha que Polly lhe dera.

—Vamos ao apartamento dele, para nos certificarmos de que ainda está ocupado.

— Tu não vais falar com ele, pois não?

—Por enquanto não—replicou Jeffrey.—Mas é possível que a dada altura tenha de o fazer. Vamos. O endereço é Garden Street, em Beacon Hill.

Kelly fez o que ele disse, embora não lhe agradasse a ideia de se aproximar da casa daquele ser demoníaco. Com ou sem provas, ela já estava convencida da culpabilidade de Harding. Que outra razão poderia haver para a sua presença em cada um dos respectivos hospitais no momento certo?

Kelly meteu por Sorrow Drive, depois virou à direita em Revere Street, o que a levou directamente a Beacon Hill. Em Garden Street viraram na direcção de Cambridge Street. Não disseram palavra enquanto não chegaram ao endereço. Kelly estacionou em segunda fila. Puxou o travão de emergência. A rua era bastante inclinada.

Jeffrey baixou-se sobre os joelhos de Kelly para olhar para o prédio. Em contraste com os que lhe ficavam à volta, aquele em que vivia Harding era de tijolo amarelo e não vermelho. Mas, tal como os outros, era um edifício de cinco andares. Por causa da inclinação da rua, a linha dos telhados descia de um prédio para outro, formando como que uma escada gigante. Aquele onde Trent tinha o seu apartamento estava encimado por um parapeito decorativo, forrado a cobre, que entretanto adquirira a patina esverdeada habitual. O efeito poderia ser agradável se o canto direito não tivesse estalado, apresentando agora um grande pedaço caído. A porta de entrada, a escada de emergência e todos os ornamentos estavam bastante necessitados de reparação e, tal como os que lhe ficavam ao lado, o prédio tinha um aspecto bastante delapidado.

—Não tem o ar de ser um bairro muito próspero—disse Kelly. Havia lixo espalhado na rua. Os carros estacionados nas imediações eram velhos e estavam em mau estado, à excepção de um: um Corvette vermelho.

— Eu volto já — disse Jeffrey, preparando-se para abrir a porta. Kelly agarrou-lhe o braço.

— Tens a certeza de que deves fazer isso?

—Sugeres alguma coisa melhor?—retorquiu Jeffrey. —Além disso, vou só ver se na entrada figura o nome dele. Volto já.

Apreocupação de Kelly levou Jeffrey aponderar. Ficou um momento parado na rua, perguntando a si mesmo se faria bem. Mas precisava ter a certeza de que Harding continuava em Boston. Erguendo a cabeça, atravessou pelo meio dos carros estacionados e experimentou a porta exterior do prédio amarelo. Aporta abriu-se, deixando ver um pequeno vestíbulo.

Jeffrey entrou. O interior era ainda mais miserável que a parte exterior. Suspenso do tecto via-se um suporte de lâmpada, barato, pendurado de um fio. A dada altura, a porta interior devia ter sido forçada com um pé-de-cabra e nunca fora reparada. Um saco de lixo em plástico, rasgado, tinha sido atirado para um canto. O lixo caíra pelo rasgão, espalhando no ar um odor característico e desagradável.

Havia seis apartamentos indicados ao lado do intercomunicador. Jeffrey concluiu que devia haver um apartamento em cada piso, incluindo a cave. O nome de Trent Harding encimava a lista. O nome dele figurava igualmente numa das caixas do correio. Jeffrey reparou que todas as fechaduras das caixas estavam partidas. Estendeu a mão e abriu a que tinha o nome de Harding para ver se havia perigo. Logo que a mão dele tocou na caixa, a porta interior de acesso aos apartamentos abriu-se.

Jeffrey deu consigo frente a frente com Harding. Já não se lembrava que ele tivesse um aspecto tão forte. Tinha também um certo ar de crueldade que Jeffrey nunca apreciara quando o via no Bloco Operatório do Memorial. Os olhos eram azuis e frios e como que enterrados sob as sobrancelhas espessas. Harding tinha ainda uma cicatriz, que Jeffrey esquecera e que não era visível na fotografia.

Jeffrey conseguiu retirar a mão da caixa do correio precisamente a tempo de Harding não o ver. A princípio, receou que Harding o reconhecesse. Mas com uma expressão que mais parecia um sorriso de desdém, passou rudemente por ele sem parar.

Jeffrey respirou fundo. Encestou-se um momento à parede que tinha as caixas do correio, para se recompor. O encontro breve e inesperado causara-lhe uma perturbação momentânea. Mas pelo menos conseguira o que pretendia. Agora sabia que Trent Harding não saíra da cidade. Podia ter deixado o St. Joe’s, mas estava em Boston.

Saindo do prédio, Jeffrey atravessou pelo meio dos carros estacionados e subiu novamente para o carro de Kelly. Esta estava lívida.

— O tipo acabou de sair do prédio! — atalhou ela. — Eu sabia que não devias ter ido lá dentro. Eu sabia!

—Não aconteceu nada—tranquilizou-a Jeffrey.—Pelo menos, já sabemos que não fugiu da cidade. Mas tenho de admitir que me assustei. Não posso ter a certeza se é ele o assassino ou não, mas não é uma pessoa agradável de se ver de perto. Tem uma cicatriz por baixo do olho, que não se via na fotografia, e o olhar tem qualquer coisa de bravio.

— Tem de ser louco, se é ele que anda a pôr toxinas no anestésico — disse Kelly chegando-se para a frente e pondo o motor em funcionamento.

Jeffrey inclinou-se e pôs-lhe a mão no braço.

— Espera — disse.

— Que é que há agora? — perguntou Kelly.

—É só um instante.—Saltou novamente do carro e foi até à esquina de Revere Street. Olhando rua abaixo, viu a figura de Harding desaparecer ao longe.

Voltou para junto de Kelly, mas em vez de se meter no carro aproximou-se da janela do lado do condutor.

—Esta oportunidade é boa de mais para ser desperdiçada—disse.

— Que é que queres dizer com isso? — Fosse o que fosse, Kelly já tinha a certeza de que não ia gostar.

—Aporta interior está aberta. Acho que vou dar uma vista de olhos pelo apartamento dele. Talvez encontre uma prova qualquer que confirme as nossas suspeitas.

—Não me parece que seja boa ideia — atalhou Kelly. — Além disso, como é que vais entrar no apartamento?

Jeffrey apontou para o telhado. Kelly estendeu o pescoço.

— Vês aquela janela ao lado da escada de emergência, no último andar? — disse Jeffrey. — Está aberta. Trent Harding vive no último andar. Eu posso ir até ao telhado, descer pela escada de emergência e entrar.

— Acho que devíamos mas era sair daqui — respondeu Kelly. —Ainda há poucos minutos eras tu que estavas preocupada por esse tipo andar aí à solta — disse Jeffrey. — Se eu conseguir arranjar a prova de que precisamos para o fazer parar, não achas que vale a pena o risco? Não me parece que devamos desperdiçar esta oportunidade.

— E se o Sr. Músculo volta enquanto tu ainda estás lá dentro? Ele : é capaz de te fazer em pedaços.

— Eu vou ser muito rápido—replicou Jeffrey. —Além disso, se se der o caso, pouco provável, de ele voltar enquanto eu ainda lá estiver, deixa-o entrar. Espera cinco segundos, depois vai lá dentro e toca a campainha. O nome dele está mesmo ao lado do botão. Se eu ouvir a campainha, saio novamente pela janela e para o telhado.

— Pode alguma coisa não correr bem — acrescentou Kelly, sacudindo a cabeça.

— Vai correr tudo bem — disse Jeffrey. — Confia em mim.

Antes que Kelly tivesse tempo de concordar ou de discordar, Jeffrey bateu-lhe ao de leve no braço e dirigiu-se novamente para o prédio de apartamentos. Entrou no vestíbulo e empurrou a porta interior. Havia uma escada estreita à direita. Uma lâmpada sem qualquer protecção iluminava cada patamar. Olhando para cima, Jeffrey via a luz baça do céu.

Subiu rapidamente as escadas. Quando chegou à casinha do telhado, estava sem fôlego. Precisou de um certo jeito para abrir a porta, mas acabou por conseguir.

O telhado era de alcatrão e cascalho. Em volta, havia uma parede de cerca de metro e meio que o separava do telhado da casa a seguir. E o mesmo com a outra casa. Cada prédio tinha a sua casinha no telhado. Algumas estavam pintadas e pareciam em bom estado. Outras estavam delapidadas, com as portas fora das dobradiças. Alguns telhados estavam armados em terraços, com móveis de jardim ferrugentos.

Aproximando-se da orla do telhado e olhando cá para baixo, para a rua, Jeffrey viu o carro de Kelly. Nunca gostara muito de alturas e teve que reunir toda a sua coragem para passar a grelha metálica que estava ligada à saída de emergência. Por entre os pés via, cinco andares mais abaixo, o passeio de tijolo.

Movendo-se com cuidado, Jeffrey desceu o lanço de escadas que ia até ao patamar, do lado de fora da janela de Trent. Sentia-se exposto e começou a preocupar-se se algum dos vizinhos o estaria a ver. A última coisa que lhe convinha era que alguém chamasse a polícia.

Jeffrey ainda teve que lutar com o velho estore antes de ter o caminho livre para entrar. Depois de passar, chegou-se de novo à janela e fez sinal a Kelly, com o polegar erguido, que tudo estava bem. Depois voltou-se para o interior da casa.

Trent olhou para a revista Playgirl que estava no expositor. Pensou em pegar nela e folheá-la, para ver o que era que agradava às raparigas num corpo masculino. Mas não o fez. Estava no Gary’s Drug Store, em Charles Street, e sabia que o proprietário se encontrava por detrás do balcão, à sua esquerda. Trent não queria que ele ficasse com uma ideia errada dos motivos que o pudessem levar a interessar-se pela revista Playgirl, Em vez dessa, pegou numa revista sobre viagens que trazia uma reportagem sobre férias em São Francisco.

Aproximando-se do balcão, Trent pousou a revista e pôs-lhe em cima um exemplar do Globe. Depois pediu dois maços de Camel sem filtro, a sua marca habitual. Já que fumava, Trent achava que mais valia escolher qualquer coisa com uma certa força.

Depois de pagar o que comprou, saiu para a rua. Pensou em ir até à agência de viagens, Beacon Hill Travei, para tratar de uma ida a São Francisco, numas pequenas férias. Antes de arranjar um novo emprego, tinha tempo para isso e também tinha dinheiro para queimar. Mas sentia uma certa preguiça. Podia ir à agência no dia seguinte. Em vez disso, deu meia volta, atravessou a rua entrou numa loja de bebidas. Queria comprar cerveja.

E acabou por decidir ir até casa dormir a sesta. Assim já se podia deitar mais tarde. Talvez fosse primeiro ao cinema e depois ia à procura de homossexuais para os chatear.

Jeffrey, ainda de pé junto da janela, percorreu a sala com o olhar, para tirar as suas conclusões. Observou o mobiliário desemparelhado, as garrafas de cerveja vazias, o cartaz daHarley-Davidson. Não tinha de todo a certeza daquilo que procurava nem do que esperava encontrar; era uma busca ao acaso. Embora, para tranquilizar Kelly, tivesse fingido que a sua ida ao apartamento era a coisa mais fácil do mundo, sentia-se bastante mais nervoso do que dera a entender. Não conseguia deixar de perguntar a si mesmo se algum dos vizinhos não teria chamado a polícia. Receava que, de um momento para o outro, as sereias dos carros da polícia se começassem a ouvir ao longe.

A primeira coisa que fez foi dar uma volta rápida ao apartamento. Ocorrera-lhe que o melhor seria verificar se não havia ninguém lá dentro. Quando de certificou de que estava sozinho, voltou à sala e começou a examinar tudo com mais atenção.

Em cima da mesa do café viu diversos jornais mercenários e sensacionalistas e algumas revistas pornográficas. Havia também um par de algemas com a chave na fechadura. Encostada à parede que dava para o quarto, havia uma estante de madeira. Os livros eram na sua maior parte de química, fisiologia e manuais de enfermagem, mas havia também alguns volumes sobre o Holocausto. Ao lado do sofá via-se um aquário de grandes dimensões com uma enorme jibóia lá dentro. Jeffrey achou o pormenor interessante.

Encostada a uma das paredes, estava uma secretária. Em contraste com o resto do apartamento, tudo o que estava em cima dela encontrava-se escrupulosamente arrumado. Havia ali também alguns livros de referência, cuidadosamente arrumados entre dois suportes de latão com o feitio de mochos, e ainda um gravador de chamadas telefónicas.

Jeffrey aproximou-se da secretária e abriu a gaveta do meio. Lápis e papel estavam cuidadosamente arrumados. Havia uma pilha de cartões, um livro de endereços e outro de cheques. Folheou o livro de endereços. Numa inspiração momentânea, resolveu guardá-lo. Meteu-o na algibeira. Depois pegou no livro de cheques e folheou-o também. Ficou surpreendido com o saldo. Harding tinha mais de dez mil dólares na conta. Voltou a pôr o livro de cheques no mesmo sítio.

Inclinando-se, abriu uma das gavetas laterais. Nesse momento, o telefone tocou. Jeffrey ficou imóvel. Depois de tocar algumas vezes, o gravador entrou no circuito com um dique. Jeffrey recuperou a calma e continuou a sua busca. A gaveta tinha pastas de papel manilha. Cada uma tinha uma etiqueta relativa a um assunto diferente, tal como Enfermagem Cirurgia, Anestesia para Enfermeiros, etc. Jeffrey começava a perguntar a si mesmo se não teria tirado conclusões precipitadas sobre o indivíduo.

Depois de o gravador ter enviado a mensagem, a máquina produziu novo estalido e Jeffrey ouviu a voz da pessoa que tinha ligado transmitir o seu recado.

“Alo, Trent! Daqui Matt. Liguei só para dizer que estou muito satisfeito. Você é fantástico. Eu volto a ligar. Passe bem.”

Jeffrey interrogou-se vagamente sobre quem seria Matt e o que era que o deixava tão satisfeito. Passou ao quarto. A cama estava por fazer. O quarto, escassamente mobilado, tinha uma mesa-de-cabeceira, uma cómoda e uma cadeira. Aporta do armário estava aberta. Jeffrey viu uma série de uniformes da Marinha, todos engomados e prontos a servir. Jeffrey apalpou o tecido, perguntando a si mesmo porque seria que Harding os tinha.

Havia uma televisão em cima da cómoda. Espalhados ao pé da televisão havia cerca de uma dúzia de vídeos, quase todos do tipo sadomasoquista. As caixas estavam decoradas com homens e mulheres acorrentados. Em cima da mesa-de-cabeceira, ao pé da cama, havia um livro brochado, intitulado Gestapo. Na capa via-se a fotografia de um indivíduo corpulento, de barba e com uniforme Nazi, inclinado sobre uma mulher nua acorrentada.

Jeffrey abriu a gaveta de cima da cómoda e encontrou uma peúga cheia de marijuana. Encontrou também uma série de peças de roupa interior, de mulher. Um tipo equilibrado, pensou Jeffrey, sarcástico. Junto da roupa interior, Jeffrey viu uma pilha de Polaroide. Eram instantâneos do próprio Trent. Pareciam ter sido tirados por ele próprio. Estava em pose sobre a cama e fora-os tirando à medida que se despia. Em algumas, parecia estar usando peças da mesma roupa interior que vira na gaveta. Jeffrey ia pô-las no mesmo sítio quando teve uma ideia. Escolheu três e meteu-as na algibeira. Depois arrumou as restantes e fechou a gaveta.

Em seguida, foi até à casa de banho e acendeu a luz. Dirigiu-se ao armário dos medicamentos e abriu a porta de espelho. Havia o fornecimento habitual de aspirina, Pepto-Bismol, pensos rápidos, etc. Nada de invulgar, como, por exemplo, ampolas de Marcaína.

Fechando o armário dos medicamentos, Jeffrey afastou-se da área do quarto e dirigiu—se para a cozinha. Começou a ver os armários, um por um.

Kelly tamborilava com os dedos no volante. Aquela espera não lhe agradava nem um bocadinho. Ela não tinha querido que Jeffrey fosse ao apartamento de Harding. Nervosa, levantou os olhos para a janela do quinto andar, que estava aberta. Umas cortinas azuis, saídas da janela, batiam com o vento. A velha persiana estava levantada de encontro ao tijolo, como Jeffrey a deixara.

Kelly olhou ao longo de Garden Street. Via passar o trânsito lá em baixo, em Cambridge Street. Mudou de posição e olhou para o relógio do tablier. Havia perto de vinte minutos que Jeffrey entrara no apartamento. Que estaria ele a fazer?

Incapaz de continuar quieta mais um minuto que fosse, Kelly preparou-se para sair do carro. Tinha a porta aberta e o pé em cima do passeio, quando avistou Trent Harding. Estava de volta! A duas portas de distância do prédio e dirigindo-se para lá. Não restavam dúvidas: ia a caminho de casa.

Kelly estacou. O homem vinha na direcção dela. Viu-lhe no olhar a expressão que Jeffrey descrevera. Pareciam os olhos de um gato na sua fixidez intensa. Parecia estar a olhá-la directamente, embora não abrandasse o passo. Chegou diante da porta do prédio onde vivia e abriu-a com um puxão. Depois desapareceu no interior.

Passaram alguns segundos antes que Kelly conseguisse romper o efeito paralisante que lhe causara a aparição do indivíduo. Tomada de pânico, abriu para trás a porta do carro saltou para a rua. Foi direita ao prédio e deitou a mão à porta para a abrir para trás. Mas não o fez, pensando que Trent talvez ainda não tivesse tido tempo de passar do vestíbulo. Ao fim de mais um segundo de hesitação, abriu uma frincha da porta e espreitou. Vendo que o vestíbulo estava deserto, entrou rapidamente e procurou como louca o nome de Trent na placa do intercomunicador. Depois de a encontrar, mesmo em cima, estendeu o indicador, a tremer, e premiu o botão.

— Oh, não! — exclamou Kelly. Lágrimas de frustração encheram-lhe os olhos. O botão nem mexeu. Olhando melhor, viu que a campainha tinha sido desligada há muito. O fio cortado estava bem visível. O botão ficara definitivamente encravado para dentro. Se o fio não tivesse sido cortado, a campainha não pararia de tocar no apartamento de Trent. Kelly bateu com o punho fechado no painel do intercomunicador. Tinha que pensar em qualquer coisa. Considerou as suas opções. Não eram muitas.

Correu novamente para fora e colocou-se no meio da rua. Pondo as mãos em concha em volta da boca, gritou na direcção da janela aberta: “Jeffrey!” Não houve qualquer resposta. Depois gritou ainda mais alto, repetindo duas vezes o nome dele.

Se a tinha ouvido, Jeffrey não deu qualquer sinal disso. Kelly não sabia o que fazer. Estava desesperada. Imaginava Harding a subir as escadas. Já estava provavelmente diante da porta naquele momento. Correndo para junto do carro, Kelly entrou e pôs-se a carregar na buzina.

Jeffrey endireitou-se e depois espreguiçou-se. Já passara em revista a maior parte dos armários inferiores da bancada e não encontrara nada de fora do vulgar, a não ser uma colónia de baratas bastante numerosa. Ao longe, ouviu a buzina de um carro tocar insistentemente. Perguntou a si mesmo qual seria o problema. Fosse o que fosse, o condutor era bastante insistente.

Jeffrey estava convencido de que naquela altura já teria descoberto qualquer coisa de incriminador no apartamento de Trent, mas nada disso sucedera. A única conclusão a que conseguira chegar era que se tratava de uma personalidade estranha e possivelmente violenta, combinada com graves problemas de identidade sexual. Mas isso sem dúvida que não fazia dele um assassino inveterado que se dedicava a adulterar frascos de anestésicos locais.

Jeffrey começou a abrir as gavetas da cozinha. Não havia nada de invulgar, apenas os utensílios habituais, facas, abre-latas e garrafas e coisas semelhantes. A seguir, dirigiu-se para o lava-loiça e abriu o armário que lhe ficava por baixo. Encontrou um caixote do lixo, uma caixa de almofadados, um maço de jornais velhos e um maçarico a gás propano.

Jeffrey tirou o maçarico do armário e olhou-o com atenção. Era o tipo usado pelos canalizadores amadores. Um tripé portátil estava dobrado de encontro à parte lateral. O primeiro pensamento de Jeffrey foi se aquele maçarico não teria sido usado para “mexer” nos frascos de Marcaína. Lembrou-se da sua própria experiência improvisada com o fogão de Kelly. Um maçarico como aquele permitiria um melhor aproveitamento do calor. Mas embora o maçarico pudesse ter sido usado para esse fim, a sua presença em si não constituía prova de que fosse essa a razão por que Trent o tinha no armário por baixo do lava-loiça. Um maçarico a gás podia servir para muita coisa, além de adulterar ampolas médicas em vidro.

O coração de Jeffrey sofreu um sobressalto. Chegou-lhe aos ouvidos o som de passos a subirem a escada. Rapidamente, voltou a pôr o maçarico de propano no seu lugar e fechou as portas do armário. Depois dirigiu-se para a sala, para o caso de ter de fazer uma retirada precipitada. Não ouvira a campainha, mas mesmo assim achava melhor estar preparado para a eventualidade pouco provável de Harding ter entrado sem que Kelly o visse.

O som de uma chave a deslizar para dentro da fechadura deixou-o paralisado. A janela aberta estava a uns seis metros dele, a seguir à porta que dava para o corredor. Jeffrey sabia que não ia conseguir lá chegar a tempo. A única coisa que podia fazer era espalmar-se de encontro à parede da cozinha e esperar que não dessem por ele.

Com o coração a bater acelerado, Jeffrey ouviu o bater da porta e o som das revistas a serem atiradas para cima da mesinha baixa, seguidos dos mesmos passos pesados a atravessarem a sala. A vibração profunda e percussiva de uma música rock não tardou a encher o apartamento.

Jeffrey perguntava a si mesmo o que é que podia fazer. A janela da cozinha deitava para um pátio, mas não havia saída de emergência desse lado. Era uma queda livre de cinco andares até ao chão. A sua única fuga possível era pela janela da frente, a menos que tivesse tempo de chegar à porta de entrada. Não lhe parecia que conseguisse, mas mesmo que lá chegasse teria que se haver com o complicado sistema de fechaduras. Nunca conseguiria abri-las com a rapidez necessária. Tinha de fazer qualquer coisa. Era apenas uma questão de tempo até Trent se aperceber de que a persiana não estava na posição habitual.

Antes mesmo que Jeffrey tivesse tempo de pensar no que iria fazer, Trent surpreendeu-o de novo, passando mesmo em frente dele em direcção ao frigorífico. Levava na mão uma embalagem com seis cervejas.

Sabendo que iria ser descoberto dentro de alguns segundos, Jeffrey aproveitou o momento e lançou-se através da porta em direcção à janela aberta.

O movimento brusco sobressaltou Trent, mas apenas por momentos. Soltando uma onda de impropérios, largou a cerveja que caiu ruidosamente em cima do linóleo e lançou-se atrás de Jeffrey.

Jeffrey só tinha uma coisa em vista: sair pela janela. Quando chegou junto dela, quase mergulhou para o outro lado, batendo com o quadril no parapeito. Agarrando-se à balaustrada de ferro forjado da escada de emergência, tentou puxar as pernas para fora, mas não foi suficientemente rápido. Trent agarrou-lhe a perna direita, pela altura do joelho, e começou a puxar.

Os dois homens rugiam e arfavam, mas Jeffrey tinha menos força que o homem mais novo. Compreendendo que estava prestes a ser puxado para dentro de casa, Jeffrey dobrou a perna que tinha livre e deu um pontapé com quanta força tinha no peito de Trent.

A pancada obrigou-o a largar-lhe a perna. Com um segundo pontapé, Jeffrey ficou livre. Atravessou o parapeito e subiu de gatas para a saída de emergência.

Trent debruçou-se da janela para ver Jeffrey subir. Decidido a chegar à rua primeiro que ele, enfiou-se outra vez para dentro para usar a escada principal. Antes de sair, pegou num martelo de orelhas que tinha sempre em cima da estante.

Jeffrey nunca se mexera tão depressa em toda a sua vida. Depois de chegar ao telhado, não perdeu tempo. Correu directamente para a parede da casa vizinha e saltou para o telhado. Correu para a cabina de acesso à escada e abanou freneticamente a porta. Estava fechada à chave! Correndo para a parede seguinte ouviu abrir a porta no telhado do prédio de Trent, indo bater violentamente de encontro à parede.

Jeffrey olhou para trás a tempo de ver Trent avançando sobre ele com o rosto contorcido pela ira. Notou que trazia um martelo apertado na mão.

Jeffrey chegou à segunda entrada, dois prédios mais acima do de Trent. Deu um puxão à porta. Com grande alívio seu, esta abriu-se. Num segundo, ele estava lá dentro, fechando a porta atrás dele e puxando pelo fecho, que estava partido. Mas havia um gancho que ia prender numa argola. As mãos de Jeffrey tremiam tanto que teve dificuldade em meter o gancho na argola. Conseguiu finalmente, no mesmo instante em que Trent se atirava de encontro à porta, do outro lado.

Trent sacudiu furiosamente a porta, tentando abri-la. Jeffrey afastou-se, esperando que o gancho frágil aguentasse. Quando Trent deu largas à sua frustração batendo na porta com o martelo, alguns desses golpes penetraram na placa fina com um barulho de madeira estilhaçada. Jeffrey voltou-se e fugiu escada abaixo. Já tinha descido dois lances, quando ouviu que a porta cedera.

Ao dar a volta ao terceiro patamar, Jeffrey tropeçou com a pressa. Se não fosse ter-se agarrado ao corrimão, teria acabado por cair. Felizmente, conseguiu recuperar o equilíbrio e continuar a descida.

Ao chegar ao rés-do-chão, atravessou velozmente as duas portas. Kelly estava de pé junto do carro.

— Vamos! —gritou Jeffrey, correndo para a viatura. Quando ele entrou, Kelly já tinha posto o motor em funcionamento. Nesse instante Harding apareceu também, com o martelo apertado na mão. Kelly arrancou. Ouviu-se um baque surdo no tejadilho do carro. Trent tinha atirado o martelo.

Jeffrey segurou-se ao tablier enquanto Kelly acelerava ao longo de Garden Street. Os pneus guincharam quando ela travou ao fundo da descida. Sem parar, virou para Cambridge Street, com o seu trânsito denso, e dirigiu-se para a parte baixa de Boston.

Nenhum dos dois disse palavra até que foram obrigados a parar num semáforo em New Chardon Street. Nessa altura Kelly voltou-se para Jeffrey. Estava furiosa.

—Vai correr tudo bem. Confia em mim — disse ela, parodiando as palavras confiantes de Jeffrey antes de ir para o apartamento de Trent. — Eu bem te disse que não fosses! — gritou.

—Mas eu tinha-te pedido que tocasses a campainha!—gritou Jeffrey, ainda ofegante.

— Eu tentei — atalhou Kelly. — Mas tu não verificaste se a campainha funcionava, pois não? Claro que não, isso era pedir de mais. Pois bem, a campainha estava estragada e tu podias ter sido morto lá em cima naquele apartamento. Aquele idiota tinha um martelo. Por que é que eu te deixei ir? — gemeu, batendo na testa com a palma da mão.

A luz mudou. Seguiram em frente. Jeffrey ficou calado. Que é que podia dizer? Kelly tinha razão. Ele provavelmente não devia ter ido ao apartamento de Trent. Mas parecera-lhe uma oportunidade ideal.

Fizeram mais alguns quilómetros em silêncio. Depois Kelly perguntou:

— Ao menos encontraste alguma coisa que justifique o risco? Jeffrey sacudiu a cabeça.

— Não propriamente — disse. — Encontrei um maçarico a gás, mas não se pode dizer que isso seja uma prova.

— Não havia frascos com veneno em cima da mesa da cozinha? — perguntou, sarcástica.

—Receio bem que não—disse Jeffrey, começando a sentir-se zangado consigo próprio. Sabia que Kelly ficara abalada e que tinha razões para estar irritada com as suas investigações de amador, mas parecia-lhe que de qualquer forma estava a exagerar um bocado. Além disso, ele é que tinha arriscado a pele, não era ela.

—Acho que já é tempo de chamarmos a polícia, com provas ou sem elas. Um louco que atira um martelo já é prova suficiente para mim. Apolícia é que devia estar no apartamento daquele patife, não eras tu.

—Não! — gritou Jeffrey. Desta vez a sua irritação era a sério. Não queria passar outra vez pela mesma discussão. Mas logo que levantou a voz, arrependeu-se. Depois de tudo aquilo que passara por causa dele, Kelly merecia um tratamento melhor. Jeffrey suspirou. Ia explicar-lhe mais uma vez.

— A polícia nem ia conseguir arranjar um mandato de busca com base em pura especulação.

Seguiram em silêncio até à casa de Kelly, em Brookline. Quando se aproximavam, Jeffrey disse:

—Desculpa ter-te gritado. Aquele tipo assustou-me a valer. Nem quero pensar no que ele me teria feito se me conseguisse apanhar.

—Os meus nervos também estão um bocado à flor da pele — admitiu Kelly. — Fiquei aterrorizada quando o vi entrar no prédio, especialmente depois de constatar que não ia conseguir prevenir-te. Senti-me desesperada. Depois, quando te vi a lutar na saída de emergência, fiquei de cabeça perdida. Como é que conseguiste escapar?

— Sorte — disse Jeffrey, compreendendo enfim o perigo que tinha corrido. Estremeceu, tentando varrer do espírito a imagem de Trent a avançar para ele com o martelo de orelhas na mão.

Quando entraram na rua de Kelly, Jeffrey pensou no seu outro problema: Devlin. Lembrou-se de saltar para o banco de trás, mas já não havia tempo. Em vez disso, deixou-se escorregar no assento, de forma a ficar com os joelhos encostados ao tablier.

Kelly viu a manobra pelo canto do olho.

— Agora o que é que há?

— Quase me esqueci do Devlin — explicou Jeffrey enquanto Kelly virava para a entrada da casa. Carregou no botão de abertura automática da porta da garagem e, assim que entraram, fechou-a de novo. A porta cerrou-se atrás deles.

— O que mais me convinha neste momento era que Devlin aparecesse para aí de repente — disse Jeffrey enquanto saía do carro. Não sabia quem é que receava mais, se Trent se Devlin. Entraram em casa juntos.

— E que tal uma tisana? — sugeriu Kelly. — Talvez nos acalme a ambos.

—Acho que o que eu preciso é de uns 10 mgs de Valium na veia — disse Jeffrey—, mas contento-me com o chá. Aliás, acho que me ia saber muito bem. Talvez possas juntar-lhe um bocadinho de conhaque, para ajudar.

Tirando os sapatos, Jeffrey instalou-se no sofá da salinha a seguir à cozinha. Kelly pôs a água ao lume.

—Temos de arranjar outra maneira de descobrir se TrentHarding é ou não o culpado — disse Jeffrey. — O problema é que eu tenho pouco tempo. Devlin vai acabar por me descobrir mais cedo ou mais tarde. Provavelmente mais cedo do que tarde.

— Há sempre a polícia — disse Kelly. Quando Jeffrey se preparava para protestar, ela acrescentou. — Eu sei, eu sei. Não podemos ir à polícia, etc., etc. Mas não te esqueças que tu és um fugitivo. Eu não. Talvez eles me dessem ouvidos a mim.

Jeffrey ignorou-a. Se mesmo assim ela continuava a não compreender, também não ia tentar explicar-lhe mais uma vez. Enquanto não tivessem uma prova concreta era ridículo irem procurar as autoridades. Jeffrey queria manter uma posição totalmente realista.

Pondo os pés em cima da mesinha do café, Jeffrey enterrou-se no sofá. Ainda estava a tremer, depois da sua experiência com Trent Harding. A visão do homem a avançar para ele com o martelo ia persegui-lo até ao fim da vida.

Jeffrey tentou rever em que ponto estava com as suas investigações. Embora não tivesse provas da presença de um contaminante na Marcaína, o instinto dizia-lhe que ele estava lá. Não havia outra explicação para os sintomas que todos os pacientes tinham revelado. Não tinha grandes esperanças de que o Dr. Seibert encontrasse alguma coisa, mas a conversa que tivera com ele deixara-o relativamente seguro de que um tipo qualquer de toxina, talvez batraqueotoxina, estava envolvido no caso. E pelo menos o Dr. Seibert estava suficientemente interessado para a procurar.

Jeffrey estava também razoavelmente convencido de que Harding era o assassino. O facto de ele ter trabalhado nos cinco hospitais envolvidos era coincidência a mais. Mas Jeffrey tinha de ter a certeza. Se fosse apenas uma coincidência, era preciso tratar de arranjar as listas de pessoal dos dois hospitais que faltavam.

— Talvez devesses telefonar-lhe — disse Kelly da cozinha.

— Telefonar a quem? — perguntou Jeffrey.

— Ao Harding.

— Ah, também acho! — disse Jeffrey, levantando os olhos ao céu. —A dizer o quê? Olá, Trent! Você é o tipo que tem andado a pôr veneno na Marcaína?

— Não é uma ideia mais estúpida que a tua ida ao apartamento dele — disse Kelly, tirando a chaleira do lume.

Jeffrey voltou-se para olhar para Kelly e para se certificar se ela estava a falar a sério. Kelly levantou as sobrancelhas, como que a desafiá-lo a discordar da sua última afirmação. Jeffrey virou-se de novo e ficou a olhar para o jardim. Em pensamento, pôs-se a ensaiar uma conversa telefónica com Trent Harding. Afinal talvez a sugestão não fosse tão estúpida como parecia.

—É evidente que não podias fazer-lhe a pergunta directamente— disse Kelly, aproximando—se do sofá com o chá. — Mas talvez pudesses fazer algumas sugestões indirectas e ver se ele se comprometia.

Jeffrey fez que sim com a cabeça. Por muito que lhe custasse a admitir, Kelly era capaz de ter razão.

— Encontrei uma coisa na gaveta da mesa-de-cabeceira dele que pode ter algum interesse nesse sentido — comentou Jeffrey.

— E o que foi?

— Uns Polaroids esquisitos. Fotografias de nus.

— De quem?

—Dele mesmo - disse Jeffrey.—E havia outras coisas lá no apartamento.. . algemas, roupa interior, vídeos de pornografia e violência, o que me levou a pensar que, além de assassino inveterado, o enfermeiro Harding tem um problema de identidade sexual, misturado com tendências duvidosas. Houve qualquer coisa que me disse que eu devia trazer alguns desses Polaroids comigo. Talvez os possamos usar agora.

— Como?

— Não tenho a certeza — disse Jeffrey. — Mas não parece que ele queira que sejam vistos por muita gente. O indivíduo é capaz de ser um bocado vaidoso.

— Achas que ele é homossexual? — perguntou Kelly.

—Acho que é possível—replicou Jeffrey. —Mas desconfio que ele não tem bem a certeza. É como se estivesse confuso e lutasse contra isso. Pode ser esse problema que o leva a fazer coisas horríveis. Se é que as está a fazer, claro.

— Deve ser um tipo encantador — comentou Kelly.

— O tipo de filho de quem só a mãe é capaz de gostar — concluiu Jeffrey. Meteu a mão na algibeira à procura dos Polaroids. Quando as encontrou estendeu-as a Kelly. — Espreita — disse.

Kelly pegou nas fotografias. Deu uma olhadela e devolveu-as a Jeffrey.

— Brrr! — foi o único comentário.

—Agora a questão é saber se uma gravação seria aceitável em tribunal, no caso de termos sorte. É capaz de ser a altura de eu ligar para o velho Randolph.

— Quem é o Randolph?—perguntou Kelly. Espreitou a ver se a tisana já estava bem macerada e depois encheu duas chávenas.

— O meu advogado.

Jeffrey foi até à cozinha e ligou para o escritório de Randolph. Depois de se identificar, pediram-lhe que esperasse. Kelly trouxe-lhe uma chávena de chá e pousou-a no balcão. Jeffrey bebeu uma golada. Estava muito quente.

Quando Randolph apareceu em linha, não se mostrou particularmente cordial.

— Onde é que você está, Jeffrey? — perguntou abruptamente.

— Continuo em Boston.

— O tribunal sabe da sua tentativa de fuga para a América do Sul —disse Randolph.—Está à beira de perder a fiança. Insisto veementemente consigo para que se entregue.

—Randolph, neste momento estou preocupado com outras coisas.

— Não me parece que compreenda a gravidade da sua situação — disse Randolph. —Foi passado um mandato formal para a sua captura e detenção.

— Cale-se um minuto, está bem, Randolph!—gritou Jeffrey. — E deixe-me que lhe diga uma coisa. Desde o primeiro dia que eu tenho a noção exacta da gravidade do caso. Se alguém se enganou a esse respeito, foi o senhor e não eu. Vocês, os advogados, acham que tudo isto não passa de um jogo, mais um dia de trabalho. Pois bem, deixe-me dizer-lhe uma coisa: é a minha vida que está em jogo. E deixe-me que lhe diga mais uma coisa. Não tenho passado estes dias na praia de Ipanema, a gozar a vida. Acho que estou à beira de qualquer coisa que pode contrariar potencialmente a minha condenação. De momento, a única coisa que pretendo é fazer-lhe uma pergunta de ordem legal e talvez ganhar alguma coisa com todo o dinheiro que gastei consigo. Houve um silêncio momentâneo. Jeffrey receou que o outro tivesse desligado.

— Ainda aí está, Randolph?

— Qual é a pergunta?

—Uma gravação pode ser aceite como prova num tribunal?—perguntou Jeffrey.

— A pessoa sabe que está a ser gravada? — inquiriu por sua vez Randolph.

— Não — respondeu Jeffrey. — Não sabe.

— Então não é aceite.

— Mas por que diabo não?

— Tem a ver com o direito à privacidade — esclareceu Randolph, começando a explicar a lei a Jeffrey.

Este, desconsolado, desligou.

—Continuamos na estaca zero — disse para Kelly. Entretanto pegou no chá e foi sentir-se no sofá ao lado dela.

—Aquele indivíduo, não dá para acreditar—comentou Jeffrey. — Não consegue resolver uma, para variar.

— Não foi ele que fez a lei.

— Não tenho essa certeza — retorquiu Jeffrey. — Parece-me que a maior parte dos legisladores são advogados. É como um clube privado. Eles fazem as suas próprias regras e torcem o nariz aos outros.

— E qual é o problema de não poderes gravar? — interrompeu Kelly. — Eu posso ouvir a conversa na extensão. Eu não sou nenhum gravador e certamente posso ir a tribunal. Posso figurar como testemunha.

Jeffrey ficou a olhá-la, cheio de admiração.

— É verdade... não tinha pensado nisso. Agora no que temos de pensar é naquilo que eu vou dizer ao Trent Harding.

 

                                     6.a feira, 19 de Maio de 1989, 19:46

Devlin foi sacudido do seu estado de indecisão pelo telefone do carro. Continuava sentado lá dentro, duas portas mais abaixo da casa de Kelly Everson. Vinte e cinco minutos antes, vira o carro aproximar-se de casa e desaparecer dentro da garagem. Ainda vira de relance a pessoa que ia a conduzir: uma morena graciosa de cabelos compridos. Calculara que se tratasse de Kelly.

Antes já se tinha aproximado da casa e tocado a campainha, mas ninguém viera abrir. A casa parecia estar vazia. Não ouvira sequer o cair de um alfinete, não era como da primeira vez. Devlin resolvera ir para o carro esperar. Mas agora que Kelly voltara para casa, não sabia se devia ir até lá e falar com ela ou ficar ali sentado mais algum tempo, para ver se ela recebia alguma visita ou se ia a algum lado. Incapaz de tomar uma decisão, continuou ali sentado, o que, sabia-o, já era uma decisão em si. Uma coisa era certa: ela não tinha aberto uma única cortina. E isso não parecia normal.

A chamada era de Mosconi. Devlin teve de segurar o aparelho com o braço estendido enquanto Michael falava. A fiança estava em vias de ser confiscada.

— Por que é que você ainda não encontrou o doutor? — perguntou Mosconi quando o seu monólogo histérico começou a abrandar.

Devlin disse-lhe que a semana ainda não terminara, mas o comentário caiu em orelhas moucas.

— Já entrei em contacto com outros caçadores de prémios.

— Por que é que fez uma coisa dessas? — perguntou Devlin. — Eu disse-lhe que o apanhava e vou apanhar. Já fiz algum progresso. Por isso diga aos outros que já não são precisos.

— Você promete-me alguma coisa dentro das próximas vinte e quatro horas?

— Tenho uma boa pista. Tenho mesmo um pressentimento que ainda vou ver o doutor esta noite.

—Não respondeu à minha pergunta—disse Michael.—Quero resultados dentro de vinte e quatro horas. Se não perco o emprego.

— Está bem — disse Devlin. — Vinte e quatro horas.

— Não me está a contar balelas, só para me contentar, pois não, Devlin?

— Eu seria capaz de uma coisa dessas?

— Sempre — replicou Michael. —Mas desta vez vou amarrá-lo à sua promessa. Entendido?

— Conseguiu saber mais alguma coisa sobre o julgamento dele? — perguntou Devlin. Nessa mesma tarde Mosconi já tinha contado a Devlin os aspectos essenciais do caso. Ao ouvir a história, Devlin sentira uma certa simpatia por Rhodes. Ter cometido um erro a dada altura com uma coisa como a morfina e depois deixar-se disso e atirarem-lhe tudo à cara assim que alguma coisa correu mal, parecia-lhe injusto. Sabendo que espécie de “assassino” era o Dr. Rhodes, Devlin até se sentiu mal por ter disparado contra ele no Essex. Uma das razões por que Devlin tinha jogado tão forte era por pensar que estava a lidar com um verdadeiro criminoso — um autêntico mauzão do tipo engravatado que Devlin não suportava. Mas quando ficou mais bem informado sobre a natureza do crime, Devlin começou a sentir que era apenas mais uma vaga do oceano de azar que já andava a atormentar o tipo.

De qualquer forma, Devlin não ia deixar que essa empatia o fizesse perder o controlo. Tinha que agir como um profissional, disse para si próprio. Tinha que ser. Havia de apanhar o Dr. Jeffrey Rhodes, mas queria ter a certeza de que o apanhava vivo e não morto.

— Deixe de se preocupar com a condenação do homem — atalhou Mosconi. — Traga-me esse patife, se não arranjo outra pessoa. Está a ouvir-me?

Devlin desligou o telefone do carro. Havia ocasiões em que Mosconi lhe bulia com os nervos e esta era uma delas. Devlin não queria de forma nenhuma perder a recompensa em causa e detestava que o ameaçassem com essa possibilidade. Também detestava ter sido amarrado a uma promessa a que talvez não conseguisse corresponder. Ia fazer os possíveis. Mas agora já não lhe era permitido o luxo de esperar que as coisas acontecessem. Tinha de as fazer acontecer. Pôs o carro em andamento e aproximou-se da casa de Kelly. Quando chegou, foi direito à porta principal e tocou à campainha.

Jeffrey estava mergulhado nos seus pensamentos quando a campainha soou e assustou-se. Kelly levantou-se e foi direita à porta. Jeffrey inclinou-se sobre as costas do sofá e disse:

— Vê primeiro quem é.

Kelly parou à porta da casa de jantar.

—Eu vejo sempre quem é—disse, com uma certa aspereza na voz.

Jeffrey fez que sim com a cabeça. Lamentava que ambos estivessem a ficar com os nervos em franja. Talvez ele devesse fazer um favor a Kelly e mudar-se para um hotel. A situação gerava uma tensão maior que aquela que se podia esperar que ela fosse capaz de aguentar. De momento concentrou de novo os pensamentos em Trent Harding e naquilo que poderia dizer-lhe ao telefone. Tinha de haver uma maneira de o engodar. Se ao menos conseguisse fazê-lo falar...

Nessa altura Kelly voltou em bicos de pés.

— É a porta — disse. — Não é ninguém que eu conheça. Penso que é capaz de ser esse tal Devlin. Rabo de cavalo, roupa de ganga, brinco com a cruz de Malta. Acho que devias ir ver.

— Oh, não! — exclamou Jeffrey enquanto se levantava do sofá e seguia atrás de Kelly pela sala de jantar e até ao vestíbulo. Não se sentia preparado para nova confrontação. Precisamente quando chegaram junto da porta, a campainha voltou a tocar, numa sucessão rápida. Jeffrey avançou cauteloso e encostou o olho ao ralo da porta.

O sangue gelou-lhe nas veias. Era Devlin, sem tirar nem pôr! Jeffrey afastou-se da porta e fez sinal a Kelly para que o seguisse até à sala de jantar.

— É mesmo o Devlin — sussurrou. — Talvez se ficarmos muito quietos ele pense que não está ninguém em casa e se vá embora, como fez da última vez.

— Mas nós acabámos de chegar — disse Kelly. — Se ele viu o carro, sabe que está gente em casa. Se fingirmos o contrário, ele vai adivinhar que estamos cá.

Jeffrey olhou-a com uma admiração renovada.

— Por que é que eu tenho esta ideia de que tu és melhor nisto do que eu? — perguntou.

— Não podemos deixá-lo criar suspeitas — continuou Kelly. Dirigiu-se novamente para a porta. — Esconde-te que eu vou falar com ele, mas não o deixo entrar.

Jeffrey fez que sim com a cabeça. Que mais podia fazer? Kelly tinha razão. Devlin devia ter estado a vigiar a casa. Só esperava ter-se baixado o suficiente dentro do carro para que Devlin não o visse.

Procurou, frenético, um lugar para se esconder. Não queria ir outra vez para a despensa. Desta vez meteu-se no armário da entrada, que ficava por debaixo das escadas, e enfiou-se no meio dos casacos.

Kelly aproximou-se da porta e gritou:

— Quem é?

— Desculpe incomodá-la, minha senhora — disse Devlin através da porta. — Eu trabalho com as forças da lei e procuro um indivíduo perigoso, um condenado. Gostava de lhe dar uma palavrinha.

—A ocasião é que não é boa—replicou Kelly. — Saí agora mesmo do banho e estou sozinha em casa. Não gosto de abrir a porta a desconhecidos. Espero que compreenda.

— Compreendo, sim — disse Devlin. — Especialmente com o meu aspecto. O homem que eu procuro chama-se Jeffrey Rhodes, embora tenha usado nomes falsos. A razão por que lhe quero falar é que alguém me disse declaradamente que os viu juntos há pouco tempo.

— Oh! — disse Kelly, atrapalhada por alguém ter dito isso a Devlin. —Quem foi que lhe disse uma coisa dessas?—gaguejou. Kelly tentou adivinhar com quem é que Devlin poderia ter estado a falar. Um vizinho? Polly Arnsdorf?

—Não posso dizer-lhe—replicou Devlin. —Mas o que é um facto é que o conhece, não é verdade?

Kelly retomou rapidamente o domínio de si própria, compreendendo que Devlin estivera a tentar apanhá-la, levando-a a comprometer-se, tal como ela e Jeffrey pensavam fazer com Trent Harding.

— Conheço esse nome — disse Kelly. — Há uns anos atrás, antes de o meu marido morrer, acho que fez alguns trabalhos com um Jeffrey Rhodes. Mas não o vejo desde o funeral do meu marido.

— Nesse caso, desculpe tê-la incomodado — disse Devlin. —Talvez o meu contacto não seja de confiança. Sabe o que eu vou fazer? Vou meter-lhe um número de telefone por baixo da porta. Se vir Jeffrey Rhodes ou se ouvir falar dele, ligue para mim.

Kelly baixou os olhos e viu o cartão deslizar por debaixo da porta.

— Apanhou-o?

—Sim. Fique descansado que se eu o vir telefono-lhe.—Kelly desviou a cortina de renda que cobria o vidro ao lado da porta e ficou a ver Devlin descer os poucos degraus que havia em frente da casa. Entretanto deixou de o ver. Depois começou a ouvir o motor de um carro. Um Buick Regai preto foi até à rua em marcha atrás e desapareceu, acelerando. Kelly esperou um momento, depois saiu e espreitou à esquina da casa. Viu o carro perder-se na distância, em direcção a Boston. Correndo novamente para dentro da casa, fechou à chave a porta principal. Depois abriu a porta do armário do vestíbulo. Jeffrey estava lá bem ao fundo, debaixo das escadas. Quando saiu para a luz, piscou os olhos.

Devlin não pôde deixar de sorrir. As vezes até mesmo as pessoas inteligentes podiam ser tão pouco espertas. Ele percebera perfeitamente que Kelly tinha ficado aflita ao ouvi-lo dizer que tinha sido vista com Jeffrey Rhodes. Acabara por se recompor, mas já era tarde de mais. Devlin sabia que ela tinha mentido, o que queria dizer que estava atentar esconder alguma coisa. Além disso, tinha-a visto espreitar à esquina da casa do momento em que ele se afastava.

Quando teve a certeza de já não poder ser visto de casa de Kelly, retrocedeu rapidamente e meteu pelas ruazinhas transversais até se aproximar de novo pelo lado oposto. Devlin meteu o carro na entrada de cascalho de uma casa que lhe pareceu abandonada e desligou o motor. De onde estava, tinha um bom ângulo de visão sobre a casa de Kelly através de um massiço de faias.

A julgar pela forma como ela agira, Devlin estava certo de que ela sabia alguma coisa. A questão era “até onde”. Devlin pensava que havia boas hipóteses de ela entrar em contacto com Jeffrey para o prevenir da visita de Devlin. Só era pena não ter tido tempo de lhe pôr uma escuta no telefone. Pensou em voltar lá pelas traseiras e descobrir a caixa do telefone, mas não podia meter-se nisso em plena luz do dia. Tinha de esperar que escurecesse para fazer esse tipo de habilidade.

Com um bocadinho de sorte, e Devlin achava que estava com direito a ela, Kelly acabaria por ir visitar Jeffrey, onde diabo o tipo estivesse escondido. Havia também uma vaga hipótese de ser o doutorzinho a aparecer à porta de Kelly. Devlin ia ficar à espera até ver. Acontecesse o que acontecesse, uma coisa era certa: da próxima vez que se cruzasse com ele, o doutorzinho não ia fugir-lhe.

— Não ouviste o que ele disse? — perguntou Kelly.

— Não — respondeu Jeffrey —, ouvia-te a ti, mas a ele não.

— Disse que alguém lhe tinha contado que nos viram juntos. E eu disse-lhe que não sabia nada de ti desde o funeral do Chris. Ele deixou o nome e o número de telefone, para o caso de eu vir a saber alguma coisa. Tenho a certeza de que ele não sabe que estás aqui. Caso contrário, não ia desistir com tanta facilidade e não se teria dado ao trabalho de deixar o número de telefone.

— Mas já é a segunda vez que ele cá vem — comentou Jeffrey. — Deve saber alguma coisa, se não, não se dava ao trabalho de voltar. Até aqui temos tido sorte. Ele anda armado e não se ensaia nada de disparar se lhe der na gana.

— Ele anda só a atirar o barro à parede — disse Kelly, confiante. — Acredita no que eu te digo, ele não sabe que tu estás aqui. Confia em mim!

—Eu só não confio no Devlin. Aquilo não é flor que se cheire. E sinto-me culpado por pôr em risco a tua segurança.

— Tu não estás a pôr em risco a minha segurança. Eu é que estou a pôr em risco a minha segurança. Tenho uma parte activa em tudo o que se está a passar. Não és tu que me vais assustar a ponto de eu desistir, como também não vão ser o Devlin nem o Harding. Além disso —concluiu, agora num tom ligeiramente mais suave—tu precisas de mim.

Jeffrey pôs-se a estudar o rosto de Kelly. Olhou-lhe bem no fundo dos olhos castanhos-escuros, vendo neles pequenas centelhas douradas. Pela primeira vez, quase sentiu que tudo o que passara nos últimos dias valera a pena só para poder ter aquele momento com ela. l Sempre a achara atraente; de repente, parecia-lhe verdadeiramente bela. Bela, carinhosa, interessada e tão feminina. ] Estavam sentados no sofá de algodão às riscas, para onde tinham

Vindo depois de Kelly ter arrancado Jeffrey das profundidades do armário da entrada. Com as cortinas da pequena sala ainda corridas, o único sítio por onde entrava a luz do fim da tarde eram as janelas por cima do lava-loiça, com as suas barras verticais. A iluminação da sala era suave e regular. No pátio das traseiras ouviam-se cantar os pássaros.

- Apesar do perigo, queres mesmo que eu fique? — inquiriu Jeffrey. Tinha um dos braços sobre as costas do sofá. - Às vezes és tão casmurro—disse Kelly com um sorriso.—Ésho

- és homem e basta. - Soltou uma risada com o seu riso cristalino. Os olhos e os dentes dela brilharam sob a luz branda. —Pronto, está decidido — disse. Com ar de brincadeira, encostou a cabeça ao braço de Jeffrey e estendeu a mão. Suavemente, tocou-lhe na ponta do nariz e depois na ponta do lábio superior.—Faço uma ideia de como te deves ter sentido só nestes últimos tempos. E sei-o porque também já senti o mesmo. Vi-o nos teus olhos naquela noite em que vinhas do aeroporto. - Era assim tão evidente?—perguntou Jeffrey. Mas também não esperava resposta. Era uma pergunta meramente retórica, ao mesmo tempo que sentia qualquer coisa mudar dentro dele. O universo tornava-se mais pequeno. De repente, só a sala existia. Inclinando-se suavemente, Jeffrey beijou a boca de Kelly, voltada para ele. Como se tudo acontecesse au relentim, abraçaram-se, cheios de ternura e emoção, famintos de amor. A princípio a sua união foi lenta, depois ansiosa e por fim ávida. Foi uma união cheia de alegria, enquanto a necessidade mútua era apaziguada em gratificação mútua.

Por fim o cantar dos pássaros entrou de novo no seu consciente. A seguir à maneira irresistível e inesperada como tinham feito amor, a realidade apresentou-se-lhes de novo, a pouco e pouco. Por breves instantes, eles tinham sido as únicas pessoas à face da terra e o espaço e o tempo tinham-se quedado imóveis. Com um certo embaraço, próximo de uma perda da inocência, afastaram-se o suficiente para se olharem nos olhos. Soltaram uma risada feliz. Sentiam-se como dois adolescentes.

— Bom — disse Kelly, rompendo finalmente o silêncio. —Ficas? Riram-se os dois.

— Fico — concordou Jeffrey.

— E que tal se jantássemos?

— Mmmm, que transição — disse Jeffrey. — Não tenho pensado muito em comida. Tens fome?

— Tenho sempre fome — admitiu Kelly, libertando-se. Fizeram o jantar juntos, Kelly tratava das coisas principais e dava a Jeffrey pequenas tarefas, como lavar e secar a alface.

Jeffrey espantava-se por se sentir tão calmo. Continuava a sentir medo de Devlin, mas agora conseguia controlá-lo. Com Kelly a seu lado, não se sentia só. Além disso, decidiu que ela tinha razão. Devlin não podia saber que ele estava ali. Se soubesse, teria entrado pela porta dentro, mesmo que Kelly não abrisse.

Depois de ter visto as horas, Jeffrey interrompeu o que estava a fazer para ligar para o gabinete do Médico Legista. Esperava que o Dr. Warren Seibert ainda lá estivesse. Queria perguntar-lhe se tinha conseguido identificar algumas toxinas.

— Até agora, nada — disse Seibert, logo que atendeu. — Submeti as amostras de Karen Hodges, Gail Shaffer e mesmo de Patty Owen ao cromatógrafo gasoso.

— Agradeço-lhe que tenha tentado — respondeu Jeffrey. — Mas, por aquilo que me disse esta manhã, parece que não é para admirar. E só porque não conseguiu encontrar nenhuma toxina, isso não quer dizer que ela não esteja lá. Certo?

— Certo — replicou Seibert. — Embora eu não a tenha encontrado, ela pode estar escondida num dos máximos. Entretanto liguei para um patologista da Califórnia que tem andado afazer pesquisas sobre a Batraqueotoxina e a respectiva família de toxinas. Espero que ele volte a entrar em contacto comigo para me dizer onde é que ela poderá sair da coluna do gráfico. Quem sabe, talvez ele me diga onde podemos arranjar uma antitoxina marcada. Fiz mais algumas leituras e, com todas as informações que me deu sobre estes casos, estou convencido de que a batraqueotoxina é o candidato privilegiado.

— Estou muito grato pela sua ajuda — concluiu Jeffrey.

— Ah, não há problema nenhum — disse Seibert. — Este é o tipo de coisa que me levou a dedicar-me a este campo. Estou interessadíssimo. Se as suas suspeitas estiverem certas, temos aqui um material espantoso. Podemos fazer um estudo fantástico.

Quando Jeffrey desligou, Kelly perguntou-lhe:

— Então?

Jeffrey sacudiu a cabeça.

—Ele está interessadíssimo, mas não encontrou nada. É frustrante estar tão perto da verdade e mesmo assim não ter qualquer prova, quer do crime quer do papel do principal suspeito.

Kelly aproximou-se e abraçou Jeffrey.

—Não te preocupes, havemos de conseguir, de uma maneira ou de outra.

— Espero bem que sim — disse Jeffrey. — E espero que o consigamos antes de Devlin ou a polícia me apanharem. Se calhar é melhor fazermos a tal chamada para Trent Harding.

—Depois do jantar—atalhou Kelly.—Cada coisa a seu tempo. Entretanto, podias abrir uma garrafa de vinho. Acho que nos vai fazer bem.

Jeffrey tirou do frigorífico uma garrafa de chardonnay e pôs-lhe a rolha a descoberto.

— Se chegarmos à conclusão de que o responsável é esse tal Trent, sempre gostava de saber alguma coisa sobre a infância dele. Tem de haver uma explicação, por mais irracional que seja.

— O problema é que ele tem um ar tão normal—disse Kelly. — Há uma certa intensidade no olhar dele, mas o resto pode ser imaginação nossa. Por outro lado, ele faz-me lembrar o capitão da equipa de futebol da minha escola.

— O que mais me incomoda é a natureza indiscriminada das mortes — comentou Jeffrey enquanto tirava a rolha à garrafa. — Matar uma pessoa já é bastante mau, mas adulterar medicamentos e matar à toa é tão doentio que me é difícil conceber tal coisa.

— Se for ele o culpado, pergunto a mim mesma como consegue funcionar tão bem quanto ao resto — disse Kelly.

Com um grunhido, Jeffrey fez saltar a rolha da garrafa de vinho.

— Especialmente tornar-se enfermeiro. Deve ter tido qualquer motivação de carácter altruísta. Os enfermeiros, ainda mais que os médicos, têm de ser motivados por um desejo de ajudar as pessoas de uma forma autêntica, directa. E ele não pode deixar de ser inteligente. Se se confirmar que o contaminante é qualquer coisa como essa batraqueotoxina, a escolha é diabolicamente engenhosa. Eu nunca teria pensado num contaminante se não fossem as suspeitas do Chris.

— É simpático da tua parte dizeres isso — comentou Kelly.

— Bom, acontece que é a pura da verdade. Mas se Trent for o culpado, o que eu não posso dizer é que alguma vez chegarei a compreender as motivações dele. A psiquiatria nunca foi um dos meus pontos fortes.

—Se já abriste o vinho, que tal irmos pôr a mesa?—perguntou Kelly. Depois inclinou-se e ligou o fogão.

Ojantar estava delicioso e embora Jeffrey não tivesse reparado que estava com fome, comeu e repetiu o linguado de Dover com pão ralado e bróculos cozidos em vapor.

Servindo-se de salada pela segunda vez, disse:

—Se o Seibert não conseguir isolar uma toxina em nenhum dos corpos em que está a trabalhar, já falámos em exumar Henry Noble.

— Mas ele está morto e enterrado há quase dois anos. Jeffrey encolheu os ombros.

— Eu sei que parece um bocado sinistro, mas a verdade é que ele ainda viveu uma semana depois da reacção à Marcaína e isso pode ajudar-nos. Uma toxina como essa batraqueotoxina concentra-se no fígado e é expelida com a bílis. Se foi isso que Harding usou, o melhor sítio para o descobrir é a bílis de Henry Noble.

— Mas dois anos depois?

— Seibert disse que se o corpo tivesse sido razoavelmente embalsamado e enterrado num local sombrio, talvez ainda fosse possível encontrar vestígios.

— Brrr — disse Kelly. — Vamos falar de outra coisa, pelo menos enquanto não acabarmos de jantar? Vamos pensar antes naquilo que vamos dizer ao Trent Harding.

—Acho que temos de ser directos. Deixá-lo perceber as nossas suspeitas. E não consigo deixar de pensar que podemos usar asPolaroids a nosso favor. Ele não pode querer deixar fotografias dessas a circular por aí.

— E se isso só servir para o enfurecer? — perguntou Kelly, lembrando-se do martelo atirado com fúria. O tejadilho do carro dela tinha uma amolgadela do tamanho de uma bola de basebol.

— Espero bem que sim. Se ele se zangar, talvez diga alguma coisa que o incrimine.

—Ameaças, por exemplo? — sugeriu Kelly, duvidosa.—Qualquer coisa como: “Já matei antes e estou disposto a matar de novo”?

— Eu sei que é uma hipótese um bocado rebuscada, mas que outra coisa podemos fazer?

Kelly sacudiu a cabeça. Valia a pena tentar. Não tinham nada a perder.

— Eu trago uma extensão para aqui — disse ela. — Há uma ficha de telefone mesmo por cima da televisão. — E saiu para a ir buscar.

Jeffrey tentou preparar-se para a chamada. Tentou pôr-se no lugar de Trent. Se estivesse inocente, o mais provável era que desligasse logo o telefone. Se fosse culpado, mostrar-se-ia nervoso e ia querer descobrir o que é que o outro sabia. Mas tudo isso eram simples conjecturas. O facto de Trent continuar a atender a chamada certamente não podia ser classificado como prova da sua culpabilidade.

Kelly voltou à cozinha, trazendo um telefone vermelho e poeirento.

—Pensei que seria adequado usarmos o telefone do estúdio do Chris — disse. Depois inclinou-se e ligou a ficha. Pegando no aparelho, certificou-se de que tinha sinal de marcar.

— Queres usar este telefone ou o da cozinha? — perguntou.

— O da cozinha—disse Jeffrey, não porque fizesse muita diferença. Falasse de onde falasse, a chamada ia ser dura.

Jeffrey puxou do papel que Polly Arnsdorf lhe dera, com o endereço e o número de telefone de Trent. Marcou o número e depois fez um sinal a Kelly para que pegasse no auscultador logo que começasse a ouvir-se o toque.

O telefone tocou três vezes antes de Trent atender. A voz dele era bastante mais suave do que Jeffrey pensava. Disse:

—Alò... Matt? — antes mesmo que Jeffrey tivesse tempo de dizer o que quer que fosse.

— Não é o Matt — replicou Jeffrey.

— Quem fala? — perguntou Harding. A voz dele tornou-se fria, mesmo zangada.

— Um admirador do seu trabalho.

— Quem?

— Jeffrey Rhodes.

— Eu conheço-o?

— Tenho a certeza que conhece — disse Jeffrey. — Eu era anestesista no Boston Memorial, mas fui suspenso por causa de um problema. Um problema no Bloco Operatório. Isto não lhe diz nada?

Houve uma pausa. Depois Harding vociferou. —Mas por que diabo é que você me está a telefonar? Eu já não trabalho no Boston Memorial. Saí de lá há quase um ano.

— Eu sei — continuou Jeffrey. — Depois foi para o St. Joseph’s, de onde saiu há pouco tempo. Eu sei umas coisas a seu respeito, Trent. E também sei aquilo em que você tem andado metido.

— Mas de que rai’ é que você está a falar?

— Patty Owen, Henry Noble, Karen Hodges — enunciou Jeffrey. — Esses nomes fazem-lhe lembrar alguma coisa?

— Não sei de que é que você está a falar, homem!

— Ora, você sabe muito bem, Trent. O que está é a ser modesto, só isso. Além disso, não me custa nada a acreditar que não queira que haja muitas pessoas ao corrente. Afinal, você teve tanto trabalho para escolher a toxina mais indicada. Percebe o que eu quero dizer?

— Oh, homem, eu não faço ideia do que você está a falar. E também não faço a menor ideia por que é que me está a telefonar.

— Mas sabe quem eu sou, não sabe, Trent? — perguntou Jeffrey.

— Sim, eu conheço-o. Lembro-me de si do Boston Memorial e li o seu caso nos jornais.

—Eu já calculava—comentou Jeffrey. — Você leu tudo a meu respeito. Só que talvez não falte muito para que se comece também a ler coisas a seu respeito.

— O que quer dizer com isso?

Jeffrey sabia que estava a perturbá-lo e o facto de Trent ainda não ter desligado era encorajador.

— Estas coisas acabam sempre por ser descobertas — continuou Jeffrey.—Mas tenho a certeza que não estou a dizer nada que você não saiba já.

— Não faço ideia de que é que você está a falar — disse Trent. — De qualquer maneira, está a falar com o tipo errado.

—Não.não—disse Jeffrey.—Estou a falar com o tipo certo. É como eu lhe disse, de uma maneira ou de outra, você vai ser notícia. Tenho umas fotografias comigo que ficavam óptimas se fossem impressas. Imagine cópias dessas fotografias espalhadas por toda a cidade de Boston. Os seus colegas ficariam encantados em conhecer uma nova faceta sua.

— De que fotografias é que você está a falar? — perguntou Trent. —Achei-as uma delícia—continuou Jeffrey, ignorando-o completamente —, e ao mesmo tempo uma grande surpresa.

— Continuo a não saber de que é que está a falar—afirmou Trent.

— Polaroids — disse Jeffrey. — Fotografias a cor da sua pessoa e pouco mais. Veja na gaveta da sua cómoda, mesmo ao lado do saquinho do haxixe. Acho que vai descobrir que lhe faltam fotografias.

Trent proferiu algumas pragas por entre dentes. Jeffrey pensou que o ouvira pousar o telefone. Daí a poucos minutos, Trent estava de volta, gritando para o auscultador:

—Então foi você que entrou aqui, Rhodes. Pois bem, eu estou a preveni-lo... quero as fotografias de volta.

— Acredito que queira — replicou Jeffrey. — Elas são bastante... reveladoras. Linda roupa de baixo. Gostei especialmente das calcinhas cor-de-rosa.

Kelly deitou a Jeffrey um olhar de desaprovação.

— Que é que você quer? — perguntou Trent.

— Gostava de me encontrar consigo — replicou Jeffrey. — Falar consigo pessoalmente. —Era evidente para Jeffrey que não ia conseguir arrancar-lhe nada pelo telefone.

— E se eu não quiser encontrar-me consigo?

—Está no seu direito — disse Jeffrey. —Mas se não conseguirmos chegar à fala pessoalmente, não posso garantir-lhe nada sobre os sítios onde as cópias destas fotografias irão parar.

— Isso é chantagem.

—Óptimo—disse Jeffrey. —Agrada-me ver que nos estamos a entender. Bom, marcamos um encontro ou não?

— Claro que marcamos — disse Trent, mudando repentinamente de tom. —Por que é que não vem até cá? Sei que não preciso dizer-lhe onde é que moro.

Kelly sacudiu os braços e desenhou com os lábios a palavra “Não”.

— Por muito que me agrade a ideia de qualquer coisa de íntimo e pessoal — continuou Jeffrey —, não creio que sentisse que era bemvindo ao seu apartamento. Sentir-me-ia mais confortável no meio de mais gente.

— Indique o local — disse Trent.

Jeffrey começava a perceber que conseguira levar a melhor. Ficou um momento a pensar. Onde é que havia um lugar público, seguro, onde se pudessem encontrar? Lembrou-se de quando andara a vaguear nas margens do rio Charles. Havia sempre muita gente à volta, e ao mesmo tempo muito espaço. — Que tal a esplanada, junto ao rio Charles? — sugeriu Jeffrey.

— E como é que o vou reconhecer? — perguntou Trent.

— Não se preocupe — disse Jeffrey. — Eu reconheço-o a si. Mesmo vestido. Olhe, também podemos fazer uma coisa. Procure-me no palco do Hatch Shell. Que tal?

— Diga a hora — concluiu Trent. Mal conseguia conter a ira.

— Que tal às nove e meia?

— Presumo que irá sozinho?

— Actualmente não tenho muitos amigos — disse Jeffrey. — E a minha mãe tem que fazer.

Harding não se riu.

— Só espero que não tenha andado para aí a espalhar as suas histórias sem pés nem cabeça. Não estou disposto a aturar calúnias.

“Claro que não”, pensou Jeffrey.

— Vemo-nos na Esplanada — e desligou antes que Trent pudesse dizer o que quer que fosse.

— Tu endoideceste? — perguntou Kelly, furiosa, logo que desligaram. — Não podes ir encontrar-te com esse lunático. Isso não estava previsto no plano.

— Tive de improvisar — esclareceu Jeffrey. — O tipo é esperto. E eu não estava a conseguir nada. Se falar com ele pessoalmente posso ver-lhe a cara, avaliar as suas reacções. Há muito mais hipóteses de ele se implicar.

— O tipo é maníaco. Veio atrás de ti com um martelo.

— Isso era uma situação diferente. Apanhou-me dentro do apartamento dele. Tinha o direito de ficar furioso.

Kelly olhou para o tecto, espantada.

— Agora deu-lhe para defender o assassino!

— Ele quer as fotografias de volta — disse Jeffrey. — Não me vai fazer nada enquanto eu as tiver. E eu nem sequer as vou levar. Deixo-as aqui.

—Acho que devíamos retomar a ideia de exumar Henry Noble. Deve ser um piquenique comparado com um encontro frente a frente com este louco.

— O facto de se encontrar uma toxina em Henry Noble, serviria para resolver o caso do Chris e para limpar o nome dele, mas não chegava para implicar Trent. Trent é a chave de todo este caso tenebroso.

—Mas é um perigo... e não me digas outra vez que vai correr tudo bem. Eu sei que não é bem assim.

—Admito quehá um certo perigo. Seria um disparate negá-lo. Pelo menos, vamos encontrar-nos em público. Não creio que Trent vá tentar fazer alguma coisa em público.

— Estás a esquecer-te de uma grande diferença. Tu estás a pensar racionalmente. O Harding não.

— Até aqui ele tem agido com astúcia — recordou Jeffrey.

— E agora pode começar a ficar desesperado. Sabe-se lá o que ele poderá tentar.

Jeffrey puxou-a para ele.

— Olha — disse. — Seibert não conseguiu nada. Eu tenho de tentar. É a nossa única esperança. E não tenho muito tempo.

—E como é que eu posso ouvir a conversa? Mesmo que tenhas a sorte de o Harding confessar, continuas sem poder provar nada. Jeffrey suspirou.

— Não tinha pensado nisso.

— Não pensaste numa série de coisas — disse Kelly por entre lágrimas de frustração.—Não pensaste, por exemplo, que eu não te quero perder.

— Mas perdes-me se eu não conseguir provar que o Harding é o nosso homem—disse Jeffrey.—Temos que pensar numa maneira de tu poderes ouvir a nossa conversa. Talvez se eu levar o Harding a dar um passeio... —A voz dele foi baixando. Realmente não tinha nenhuma ideia.

Ficaram os dois sentados num silêncio cheio de melancolia.

— Já sei — disse Kelly, por fim. — Pelo menos, é uma ideia.

— O que é?

—Bom, não te rias mas há um aparelhómetro que eu vi, quando estava a folhear o catálogo da Sharper Image. É uma coisa que se chamaListenaider (Auxiliar de Audição). Parece um Walkman, mas o que aquilo faz na verdade é captar sons e ampliá-los. Caçadores e ornitologistas fazem uso disso. Também há quem o use no teatro. Pode servir-nos perfeitamente quando estiveres no palco de Hatch Shell.

— Parece-me uma ideia fantástica — exclamou Jeffrey, cheio de um entusiasmo repentino. — Qual é a loja mais próxima?

— Há uma em Copley Place.

- Óptimo — disse Jeffrey . — Podemos comprar um no caminho.

— Ainda temos um problema.

— Qual?

— A tua segurança!

—Quem não arrisca não petisca—disse Jeffrey com um sorriso um tanto forçado.

— Estou a falar sério — disse Kelly.

— Okay, eu levo qualquer coisa por baixo do casaco, para o caso de ele sair dos eixos.

— Qualquer coisa, o quê? Uma espingarda de caçar elefantes? —Não me parece—respondeu Jeffrey.—Tens um ferro de mudar

pneus no teu carro?

— Não faço a menor ideia.

—Tens que ter—disse Jeffrey.—Eulevo o ferro. Assim já vou com “qualquer coisa na manga”, e se ele se tornar violento posso safar-me dali para fora. Mas palavra que não creio que o Harding tente o que quer que seja em público.

— E se tentar?

— Não vamos preocupar-nos com isso. Não podemos eliminar todos os riscos. Mas se ele tentar, até pode ser positivo para nós e ajudar-nos a estabelecer uma prova. Agora. Não há muito tempo. Temos de estar no Hatch Shell às nove e meia e ainda vamos parar em Copley Place.

—Rai’s parta! —berrou Trent. Flectiu o braço e cerrou o punho, depois lançou-o como um bate-estacas de encontro à parede, por cima do telefone. Com um estalido que o surpreendeu, o punho atravessou a parede de estuque e argamassa. Retirando a mão do buraco, pôs-se a olhar para os nós dos dedos, a ver se se tinha magoado. Mas não se via sequer um arranhão.

Voltando-se para a sala, aplicou um valente pontapé na mesinha baixa, partindo-lhe uma das pernas e atirando o resto através da sala, até embater ruidosamente na parede. Revistas, algemas e diversos livros voaram pelos ares.

Olhando em volta à procura de mais qualquer coisa em que pudéss dar largas à sua fúria, deu com os olhos numa garrafa de cerveja vazia. Agarrou-a e atirou-a de encontro à parede da cozinha, com quantas forças tinha. Ela estilhaçou-se, espalhando falhas de vidro pelo chão. Só então Trent começou a retomar o controlo de si próprio.

Como é que aquilo teria acontecido? Perguntava a si mesmo. Fora tão cuidadoso. Considerara todos os ângulos possíveis. Primeiro tinha sido a maldita enfermeira e agora aquele estúpido daquele médico. Como diabo podia ele saber tanto? E agora tinha na mão as tais fotografias. Trent sabia que nunca as deveria ter tirado. Fora uma patetice. Só tinha querido saber como é que ficava... Claro que ninguém ia compreender. Tinha de tirar as fotografias ao maldito doutor. Nem conseguia acreditar que o tipo tivesse tido o descaramento de ir revistar o apartamento dele.

Trent estacou repentinamente. Outro pensamento horrível lhe ocorreu. Tomado por um novo surto de pânico, precipitou-se para a cozinha. Abriu violentamente a porta do armário ao lado do frigorífico e tirou os copos da prateleira, num gesto brusco. Alguns partiram-se ao tombar em cima do balcão.

Com os dedos a tremer, retirou o fundo falso e espreitou para o esconderijo. Nada parecia ter sido mexido. Soltou um suspiro de alívio.

Estendendo a mão, Trent retirou de lá a sua amada pistola calibre .45. Limpou-lhe o cano à parte da frente da camisa. A arma estava limpa, oleada e pronta para o trabalho. Metendo novamente a mão no esconderijo, tirou o pente das balas. Depois de se certificar de que estava devidamente carregado, enfiou-o no lugar até ouvir um estalido.

A maior preocupação de Trent era se Jeffrey teria falado a alguém naquilo que sabia. Mas o tipo andava fugido, portanto Trent pensou que isso era pouco provável. Mas tinha de tentar saber a certeza. Fosse como fosse, Rhodes tinha de desaparecer. Trent riu-se. Rhodes não fazia mesmo ideia com quem estava a lidar.

Voltando ao seu cofre fingido, Trent retirou de lá uma pequena seringa de 5 cm/3 e, tal como fizera para Gail Shaffer, recolheu uma porção mínima de líquido amarelo e diluiu-o em água esterilizada. A seguir pôs novamente o frasco no sítio. Já via, em pensamento, Jeffrey Rhodes acometido de ataque violento no palco de Hatch Shell. A imagem trouxe-lhe um sorriso aos lábios. Ia ser um grande espectáculo.

Pegando no pedaço de contraplacado, Trent ajustou-o cuidadosamente à parte de trás do armário e repôs na prateleira os copos que não se tinham partido. O resto deixou ficar como estava; depois limpava tudo, quando voltasse da esplanada.

Tendo concluído todos os preparativos, Trent viu as horas. Ainda tinha hora e meia antes do encontro. Deslocando-se até à sala, olhou para o telefone e perguntou a si mesmo o que deveria fazer. A actuação de Rhodes era o tipo de interferência potencial contra a qual Trent fora advertido. Ficou a debater consigo mesmo se deveria ou não telefonar. Por fim, levantou o auscultador. Ia ligar, conforme lhe tinham recomendado, disse para si próprio enquanto marcava o número, para informar, não para pedir ajuda.

 

                                 6.a feira, 19 de Maio de 1989, 20:42

—Ah, cá vamos nós—sussurrou Devlin para si próprio quando viu que a porta da garagem de Kelly começava a subir. O Honda de Kelly estremeceu quando o motor se pôs em funcionamento. Depois o carro avançou até à rua, em marcha atrás, a uma velocidade que era bem o dobro do que se podia esperar. Deixando as marcas da borracha no asfalto, disparou em direcção a Boston.

Devlin teve alguma dificuldade em meter a chave na ignição. Não esperara que ela saísse tão depressa. Quando finalmente pôs o carro em andamento, o de Kelly já quase tinha desaparecido. Devlin teve de acelerar bem o Buick para não a perder.

—Bem, bem! — disse Devlin quando já estavam a algumas milhas da casa de Kelly. Uma segunda cabeça tinha surgido misteriosamente no banco de trás. Depois uma figura tinha trepado por cima do banco e fora juntar-se a Kelly no assento da frente.

Devlin chamou a atenção a si próprio para não se excitar demasiadamente com aquele acontecimento inesperado mas bastante interessante. Também não valia a pena ter-se incomodado, pois quando Kelly parou em frente da entrada do Centro Comercial Copley Place, JeffreyxRhodes saltou do carro e correu para o interior.

— Óptimo, óptimo—disse Devlin, deliciado, passando à frente de Kelly e encostando ao passeio. A sua sorte mudara finalmente. Jeffrey já ia a meio caminho na escada rolante quando Devlin desligou o motor e deslizou lateralmente no banco da frente. Preparava-se para sair do carro, quando reparou que a janela ficara repentinamente tapada com um quadrado azul-escuro. Via-se também um cinto de couro negro e um coldre com uma Smith and Wesson calibre .38.

— Tenho muita pena, mas aqui não pode estacionar — disse o polícia.

Devlin olhou-o nos olhos. Parecia ter uns 18 anos. Um novato, pensou Devlin, mas também quem é que ia apanhar uma ronda daquelas numa noite de sexta-feira? Devlin procurou o cartão que lhe permitia estacionar em qualquer lado dentro da cidade, mas o novato recusou-se a olhar.

— Siga — disse, já com menos cordialidade.

—Mas eu... — Devlin começou a explicar quem era. Mas já não valia a pena. Jeffrey tinha desaparecido.

— Não me interessa que seja o governador Dukakis em pessoa — declarou o jovem polícia. — Não pode estacionar. Vamos, siga! — E apontou em frente com o bastão luminoso.

Resignado com a eventual mudança de planos, Devlin deslizou novamente para o seu lugar e pôs o carro em andamento. Rapidamente, deu a volta à esquina. Quando viu de novo o carro de Kelly, deixou de se preocupar. A breve confrontação com o polícia talvez tivesse tido o seu lado positivo. Talvez tivesse evitado que ele perdesse Jeffrey no meio da multidão dos compradores. Em vez disso, encostou o carro meio quarteirão atrás do carro de Kelly e desligou novamente o motor. E os dois — Devlin no carro dele e Kelly, sem dar por nada, sentada no dela — ficaram à espera que Jeffrey voltasse.

Pondo os auscultadores nos ouvidos, o vendedor disse a Jeffrey que ligasse o aparelho. Jeffrey deu a volta ao pequeno botão. Depois o vendedor disse—lhe que se voltasse para um casal que estava na outra ponta da loja. Jeffrey fez o que lhe disseram.

—Não achas que fazia um vistão em cima da nossa mesa baixa? — perguntou o homem para a mulher. Estavam parados diante de uma esfera de vidro que parecia um dos adereços de um velho filme de Frankenstein. A esfera continha um plasma que emitia luz como se fossem relâmpagos de uma trovoada azul.

— Sim — disse a mulher —, mas olha só para o preço. Com esse dinheiro comprava eu um par de sapatos Ferragamo.

Jeffrey ficou impressionado. Ouvira também o murmúrio abafado de outras vozes periféricas, mas fora capaz de compreender, palavra por palavra, a conversa do casal.

— Conhece Hatch Shell, na Esplanada? — perguntou Jeffrey ao vendedor.

— Perfeitamente.

— Que é que acha que se poderá ouvir com este aparelho lá atrás ao pé do quiosque?

— O cair de um alfinete.

Jeffrey comprou o aparelhómetro, depois voltou em passo de ginástica para o carro de Kelly. Estava no mesmo sítio onde a tinha deixado.

— Conseguiste? — perguntou Kelly enquanto ele fechava a porta. Jeffrey mostrou-lhe o embrulho.

—Está tudo em ordem. Isto funciona mesmo. Fizeram-me uma demonstração.

Kelly pôs o carro em andamento e dirigiu-se para a Esplanada.

Nenhum dos dois olhou para trás. Não se aperceberam de que um Buick Regai negro os seguia, três carros mais atrás.

Kelly meteu por Storrow Drive para chegar a Beacon Hill. Pouco depois de terem emergido de uma passagem subterrânea, Jeffrey avistou momentaneamente a área relvada em frente de Hatch Shell, na Esplanada. O Sol já se tinha posto, mas ainda havia luz de dia e Jeffrey viu que havia muitas pessoas saboreando aquele tempo de Primavera. Isso fê-lo sentir-se um pouco mais à vontade.

Viraram à direita para Revere Street e depois outra vez para Charles. Passaram a maior parte das lojas de Charles Street e viraram novamente à direita em Chestnut. Estacionaram ao fundo de Chestnut Street e saíram do carro.

Durante os últimos minutos do percurso nenhum deles dissera palavra. A excitação dos preparativos e do caminho estava a desaparecer e era substituída pela ansiedade em saber se tudo iria correr conforme estava planeado. Jeffrey quebrou o silêncio ao pedir para ficar com as chaves do carro. Kelly fez-lhas chegar por cima do tejadilho do carro. Acabava de fechar as portas.

— Não esquecemos nada? — perguntou.

— O ferro dos pneus — disse Jeffrey. Foi à mala do carro e abriu-a. Não havia ferro nenhum. Havia sim uma combinação de chave inglesa para os parafusos de orelhas e um braço para o macaco. Tratava-se de uma vara de aço com cerca de trinta centímetros de comprimento. Jeffrey bateu com ela na palma da mão. Em caso de necessidade servia. Uma boa vergastada nas canelas fazia acalmar qualquer pessoa. De qualquer forma, esperava que as coisas não chegassem a esse ponto.

Atravessaram para a Esplanada, usando a ponte para peões que tinha o nome de Arthur Fiedler. Estava um fim de dia de Primavera muito agradável. Jeffrey reparou nas velas coloridas de alguns barquitos que se dirigiam para os respectivos “yacht clubs”. Ao longe, um comboio da carreira regular atravessava ruidosamente a Ponte de Longfellow.

Devlin praguejou. Até mesmo em frente de uma boca de incêndios em Beacon Hill era difícil arranjar um espaço livre para estacionar. Quando encontrou finalmente um sítio de estacionamento proibido que não estava ocupado, à entrada de Storrow Drive, Jeffrey e Kelly estavam a atravessar a ponte para peões em direcção à Esplanada.

Devlin agarrou nas algemas que tinha no carro e correu para a base da ponte.

Sentia-se muito baralhado quanto ao que se estava a passar. Parecia-lhe que um fim de tarde na Esplanada era um comportamento estranho para um criminoso condenado e em fuga que sabia que andava a ser perseguido por um caçador de prémios. Com a rapariga pela mão, Jeffrey parecia que andava a passear com a namorada. Devlin tinha fortes suspeitas de que qualquer coisa estava prestes a acontecer. A curiosidade dele estava bem desperta. Lembrava-se de ter dito a Mosconi que lhe parecia que Jeffrey andava a preparar qualquer coisa. Talvez tivesse chegado o momento.

Atravessando a ponte, Devlin desceu a rampa e parou em cima da faixa de relva fresca e verde. Não lhe parecia que tivesse que se apressar para apanhar Jeffrey. A localização era perfeita. Jeffrey estava encurralado com o rio Charles de um lado e Storrow Drive do outro. Além disso, a Prisão da Rua Charles estava convenientemente situada a poucos metros dali, logo a seguir a Charles Circle. Por isso Devlin não se importou de dar largas à sua curiosidade durante alguns minutos, para tentar perceber aquilo que Jeffrey andava a preparar.

Pelo canto do olho, Devlin viu qualquer coisa vir direito a ele, por detrás e sobre a direita. Instintivamente, desviou-se para a esquerda, num movimento giratório que o deixou acocorado. Levou rapidamente a mão ao blusão de ganga e à coronha da pistola que trazia no coldre, suspenso do ombro.

Devlin sentiu-se corar até à raiz dos cabelos quando um disco de plástico do jogo conhecido comoFrisbee passou ao lado dele, seguido de perto por um labrador preto que o apanhou antes de ele tocar no chão.

Devlin endireitou-se e encheu o peito de ar. Não se tinha apercebido de que estava tão tenso.

Na Esplanada viam-se duas ou três dezenas de pessoas, todas ocupadas com diversas coisas naquele fim de dia. Além dos lançadores de discos Frisbee, havia pessoas que jogavam uma espécie de futebol e um grupo estava aos pontapés a um Hacky Sack. Precisamente do outro lado do relvado, no pavimento que ficava em frente de Hatch Shell, um grupo de patinadores movia-se ao ritmo de um enorme gravador portátil; no passeio alcatroado estavam os ciclistas e os joggers.

Devlin observou o conjunto, perguntando a si mesmo o que seria que tinha levado Jeffrey e Kelly até ali. Nenhum deles estava a participar em qualquer daquelas actividades. Pelo contrário, estavam de pé, a conversar um com o outro por entre as sombras das árvores que rodeavam o quiosque fechado. Devlin conseguiu distinguir Jeffrey ajudando Kelly a colocar os auscultadores de um gravador tipo Walkman.

Devlin pôs as mãos nas ancas. Mas que diabo estava a acontecer? Enquanto olhava, viu Jeffrey fazer outra coisa inesperada. Viu-o inclinar-se e beijar Kelly. “Ah, maroto”, sussurrou. Por momentos, Jeffrey e Kelly ficaram de mãos dadas, com os braços estendidos. Por fim, Jeffrey largou-a. Em seguida, baixou-se e apanhou do chão uma varinha fina.

Com a varinha na mão, Jeffrey começou a correr apressadamente por cima da relva, em direcção ao palco. Devlin preparava-se para o seguir, receoso de que Jeffrey pudesse desaparecer do outro lado do Hatch Shell, mas parou quando Rhodes correu para o palco e subiu pelo lado direito.

Sob o olhar de Devlin, cuja curiosidade não parava de aumentar, Jeffrey foi directamente para o meio do palco. Pondo-se de frente para o quiosque, começou a falar. Devlin não conseguia ouvir o que ele dizia, mas via que mexia os lábios.

Do sítio onde se encontrava, junto do quiosque, Kelly levantou enfaticamente o polegar na direcção de Rhodes. Que é que se estava a passar?, perguntava Devlin a si próprio. O tipo estaria a declamar Shakespeare? E se estava, qual era o papel de Kelly? Ela tinha o Walkman. Devlin pôs-se a coçar a cabeça. Aquele caso estava cada vez mais esquisito.

Trent Harding enfiou a sua automática de calibre 45 dentro do cinto, tal como fizera quando saíra à procura de Gail Shaffer. Pôs a seringa, devidamente tapada, na algibeira da frente, do lado direito. Viu as horas. Pouco passava das nove. Horas de ir andando.

Trent foi a pé até Charles Circle, pela Rua Revere. Depois, para chegar às margens do rio Charles, tomou a ponte de peões a oeste da ponte de Longfellow.

Já começava a anoitecer quando ele atravessou a passagem ladeada por balaústres de granito. Por cima havia um docel cerrado de folhas recém-desabrochadas. O rio Charles brilhava, reflectindo a luz rosada daquele céu de fim de dia. O Sol tinha-se posto cerca de meia hora antes.

A princípio, Trent sentira-se nervoso e preocupado com a avançada de Jeffrey Rhodes por não saber aquilo que ele queria. A ameaça de chantagem tinha tanto de inesperada como de chocante. Mas agora que estava preparado, a ansiedade de Trent diminuíra consideravelmente. Queria reaver as fotografias e queria ter a certeza de que Rhodes agira por conta própria. Para além disso, não estava interessado no homem e tencionava dar-lhe a injecção. Depois de ver o efeito que tivera em Gail Shaffer, sabia que actuava depressa e com eficácia. Alguém ia chamar uma ambulância e pronto.

Dois indivíduos que andavam a fazer jogging passaram na penumbra ao lado de Trent e fizeram-no dar um salto. Apeteceu-lhe puxar da pistola e abater os dois estupores. Fá-lo-ia como em Miami Vice: com as pernas bem afastadas, os braços esticados e a arma segura com as duas mãos.

À frente vislumbrava-se o enorme hemisfério do Hatch Shell. Trent aproximava-se do palco pela traseira convexa. Sentiu uma excitação momentânea enquanto a adrenalina lhe percorria o sistema. Estava impaciente por se encontrar com o Dr. Jeffrey Rhodes. Metendo a mão por dentro do blusão, apertou o punho da pistola calibre .45. O dedo deslizou em volta do gatilho. Sentia—se optimamente. Rhodes ia ter uma surpresa dos diabos.

Trent parou. Tinha de tomar uma decisão. Deveria dar a volta pelo lado direito ou pelo lado esquerdo do Hatch Shell? Tentou lembrar-se da disposição do palco, para ver se havia alguma diferença. Por fim, decidiu que preferia estar de costas para Storrow Drive. Depois de tratar do Jeffrey, se fosse obrigado a fugir, dava uma corrida para a auto-estrada.

Cheio de nervosismo, Jeffrey andava de um lado para o outro, sem sair do lado direito do palco. Os patinadores que se tinham juntado no pequeno espaço alcatroado entre o palco e a relva estavam também do lado direito e Jeffrey queria ficar o mais perto deles possível, sem no entanto levar Trent a desconfiar que eles pudessem ouvir. A princípio os patinadores tinham olhado para Jeffrey com ar desconfiado. Mas passados alguns minutos tinham começado a ignorá-lo.

O que surpreendera Jeffrey no aparelho de audição era a capacidade de isolar a música dos patinadores. Jeffrey partia do princípio de que devia ter que ver com o facto de o leitor de cassettes estar colocado mais para o lado e portando fora do raio acústico da vasta superfície côncava do Hatch Shell. Devia acontecer o mesmo com o barulho do trânsito que passava tão perto, em Storrow Drive.

A luz desvanecia-se agora rapidamente. O céu continuava de um azul claro e prateado, mas as estrelas tinham começado a aparecer e as sombras por baixo das árvores eram agora de um púrpura-escuro. Jeffrey deixara de ver Kelly. Amaior parte dos jogadores, com os seus discos e bolas, tinham interrompido os jogos e iam-se embora. Mas ainda restavam algumas pessoas na relva. E havia também alguns joggers no caminho de alcatrão, à direita, além de um ciclista ocasional.

Jeffrey olhou para o relógio. Eram nove e meia, a hora a que Harding deveria chegar. Quando já passava um pouco da meia hora, Jeffrey começou a pensar naquilo que faria se Trent não aparecesse. Por alguma razão, até àquele momento nem sequer considerara essa hipótese.

Jeffrey disse para si próprio que tinha de se acalmar. Trent viria. Por mais perturbado que se sentisse, devia estar a morrer por recuperar as fotos. Jeffrey parou de andar de um lado para o outro e pôs-se a olhar para o relvado em frente do palco. Se Trent resolvesse tornar-se violento, Jeffrey tinha muito para onde correr. E também tinha a chave do carro de Kelly escondida sob a manga direita. Podia fazer-lhe muito jeito, mesmo que a usasse apenas como ameaça.

Jeffrey semicerrou os olhos para ver melhor ao longe. Por mais que tentasse, não conseguia ver Kelly no meio das árvores, junto do quiosque. Isso queria dizer que Harding também não a veria. Não havia qualquer hipótese de Trent desconfiar que tinham uma testemunha para a sua conversa.

Uma sereia, à distância, assustou Jeffrey. Conteve a respiração e ficou à escuta. O som aproximava-se. Seria a polícia? Tê-los-ia Harding alertado? As sereias soaram mais fortes, à medida que se aproximavam, mas entretando Jeffrey apercebeu-se do que era: uma ambulância corria ao longo de Storrow Drive.

Jeffrey suspirou. A tensão estava a destruí-lo. Começou novamente a andar de um lado para o outro, depois parou de repente. Trent Harding estava a olhar para ele dos degraus do palco, à esquerda. Tinha uma das mãos ao longo do corpo, a outra atrás das costas, por baixo do blusão de couro.

A valentia de Jeffrey desapareceu assim que pôs os olhos em Trent que, de momento, estava imóvel. Trent vestia um blusão de couro leve, negro, sem gola, ejeans lavados com ácido. À luz fraca do crepúsculo, o cabelo dele parecia ainda mais louro, quase branco. Os olhos fixos pareciam flamejantes.

Jeffrey ficou parado a olhar para o homem que ele suspeitava culpado de, pelo menos, seis assassinatos. Mais uma vez se interrogou sobre as motivações dele. Pareciam insondáveis. Apesar do ferro que trazia escondido na manga e de todas as testemunhas potenciais, Jeffrey sentiu-se repentinamente cheio de medo. Trent Harding era uma carta em branco. Não se podia prever a reacção dele perante o expediente da chantagem.

Trent subia lentamente os degraus do palco. Antes de transpor o último degrau, que o poria ao mesmo nível que Jeffrey, olhou em volta. Aparentemente satisfeito, pousou o olhar em Jeffrey. Aproximou-se num passo arrogante e cheio de confiança, exibindo no rosto uma expressão de desdém.

—Você é que é Jeffrey Rhodes?—perguntou, quebrando finalmente o silêncio.

— Não se lembra de mim do Memorial? — disse Jeffrey com a voz pouco firme. Pigarreou.

— Lembro-me sim — disse Trent. — Agora o que eu quero saber é porque me anda a incomodar.

O coração de JefFrey batia desordenado.

— Digamos que estou curioso — replicou. — Eu é que vou pagar pelas suas habilidades. Já é um caso arrumado. Tenho duas condenações. Só gostava de conhecer um pouco as motivações. - Jeffrey sentia-se como uma corda de piano esticada ao máximo. Tinha os músculos tensos e estava preparado para fugir de um momento para o outro.

— Não sei de que é que você está a falar.

—E suponho que também não sabe nada acerca das tais Polar’oids.

— Essas quero-as de volta. Quero que mas dê. Já.

—Temos tempo. Cada coisa a seu tempo. Por que é que não me fala primeiro de Patty Owen ou de Henry Noble? — insistiu Jeffrey. — Por favor, fala comigo. Fala.

— Quero saber a quem é que você falou dessas suas teorias idiotas. —A ninguém —replicou Jeffrey.—Eu sou um proscrito. Ando fugido à justiça. Não tenho amigos. A quem é que eu poderia falar?

— E trouxe as fotos consigo?

—Não foi por causa disso que viemos até aqui?—disse Jeffrey, tentando ganhar tempo.

— Era só isso que eu queria saber — concluiu Harding.

Com leveza, mas também com grande rapidez, Trent retirou a mão de detrás das costas e brandiu a pistola. Agarrando a arma com as duas mãos, como fazia Crockett em Miami Vice, apontou para a testa de Jeffrey.

Este estacou. O coração quase lhe parou. Não esperava que o outro viesse armado. Olhou aterrorizado para o buraco negro e escuro do fundo do cano. A chave de rodas era uma brincadeira, comparada com uma arma daquelas.

— Vire-se — ordenou Trent. Jeffrey estava como que paralisado.

Trent procurava a seringa no bolso, sempre com a arma apontada a Rhodes.

Trent mudou a arma da mão direita e puxou uma seringa da algibeira. Jeffrey olhou para ela, aterrorizado. E depois, vindo da escuridão, ouviu-se um grito. Era Kelly! “Oh, meu Deus”, pensou Jeffrey, imaginando-a a correr pelo relvado, em direcção ao palco.

— Julgava que você tinha vindo só — rosnou Trent. Deu um passo para a frente e encostou o revólver ao braço. Jeffrey viu o dedo mover-se lentamente sobre o gatilho.

Antes que Jeffrey pudesse reagir, ouviu-se o disparo de uma arma, seguido pelos gritos dos patinadores que fugiram aos tropeções para todos os lados.

As pernas de Jeffrey perderam a força. A chave de rodas caiu-lhe da manga com estrondo. Mas ele não sentia qualquer dor. Pensava que lhe tinham dado um tiro, mas o buraco da bala apareceu na fronte de Trent. O homem cambaleou. Depois ouviu-se uma segunda rajada, mais prolongada, de tiros múltiplos e rápidos. Jeffrey apercebeu-se de que o som tinha vindo de detrás do ombro dele, sobre a direita.

Trent foi atirado para trás pela segunda rajada, que o atingiu mesmo no peito. Jeffrey olhou para baixo, mudo com o choque, enquanto a pistola de Trent escorregava ao longo do palco e ia parar depois de bater nos pés dele. A seringa saltou no chão de madeira e ficou parada. Eram coisas a mais para conseguir apreender tudo. Jeffrey olhou para Trent. Sabia que ele estava morto. Tinha a parte de trás da cabeça meio desfeita.

Logo que se ouviu o tiro de espingarda e que o tipo louro cambaleou como se lhe tivessem acertado, Devlin deitou-se na relva. Nessa altura, ia mais ou menos a meio do relvado. Quando vira o tipo louro puxar da pistola, tinha-se dirigido para o palco. Tivera o cuidado de se manter dobrado, o mais inclinado possível, para apanhar os dois de surpresa. Ouvira o grito de Kelly mas tinha-o ignorado. Depois fora aquela série de tiros adicionais. Pela sua experiência dos tempos em que pertencia à Polícia, mas sobretudo no Vietname, conhecia bem um tiro de espingarda, especialmente uma automática de alto calibre, tipo assalto.

Devlin não reconhecera o indivíduo louro. Partira do princípio de que devia ser o tal talento de fora da cidade que Mosconi andara a ameaçar meter no caso. Devlin estava decidido a não deixar que lhe levassem o dinheiro da recompensa. Havia de dizer umas coisas a Mosconi quando voltasse a vê-lo. Mas primeiro tinha que se ocupar do que se estava a passar diante dele, e que estava a transformar-se num verdadeiro carnaval na sua complexidade. Aquela história da espingarda queria dizer que havia um terceiro caçador de prémios no meio daquilo tudo. Devlin já tivera que suportar concorrências ferozes, mas não fazia a menor ideia que mesmo o mais duro dos filhos da mãe dos paçadores de prémios alguma vez abatesse um concorrente sem mais nem aquelas.

Do sítio onde estava estendido na relva, Devlin levantou a cabeça espreitou para o palco. Daquele ângulo não conseguia ver o tipo louro. Rhodes continuava ali de pé, como um idiota, de boca aberta. )evlin teve de se controlar para não lhe gritar que se baixasse. Mas não queria atrair as atenções sem saber mais qualquer coisa sobre a origem dos tiros de espingarda.

Soltando novo grito e sem se preocupar com a sua segurança, Kelly refez-se do tiroteio e passou a correr ao lado de Devlin, em direcção ao : palco. Devlin levantou os olhos ao céu. Mas que dois! Perguntava a si mesmo qual deles iria conseguir ser abatido primeiro.

Mas pelo menos os gritos de Kelly pareceram arrancar Rhodes do seu transe. Voltou-se para ela e, levantando a mão, gritou-lhe que parasse. Ela obedeceu. Devlin levantou-se, ficando acocorado na relva. Nessa posição, via o tipo louco caído por terra na parte central do palco.

A seguir Devlin viu dois homens saírem da sombra e subirem as escadas do palco. Um deles levava uma espingarda. Ambos vestiam fato completo, escuro, com camisas brancas e gravatas de tipo conservador. Como se tivessem todo o tempo do mundo, aproximaram-se calmamente do médico, que se voltou, ficando de frente para eles. Devlin : pensou que, para caçadores de prémios, o seu estilo era pouco usual, mas tinha tanto de eficaz como de cruel. Era evidente que procuravam Jeffrey Rhodes.

Puxando da sua própria arma do coldre e agarrando-a com as duas mãos, Devlin correu em direcção ao palco.

— Alto! — gritou com autoridade, apontando a arma ao peito do homem que levava a espingarda de assalto. — Rhodes pertence-me! Eu é que vou entregá-lo, entenderam?

Os dois homens estacaram, evidentemente apanhados de surpresa pela aparição de Devlin.

—Eu também fiquei surpreendido ao vê-los—murmurou Devlin, meio para si próprio, meio para os homens de fato escuro.

Os homens estavam apenas a uns seis metros de distância. Directamente em frente dele. Jeffrey estava mais para a direita, na periferia do ângulo de visão de Devlin. De repente, reconheceu um dos homens. Não era nenhum caçador de prémios.

O coração de Jeffrey quase lhe saltava pela boca e ao mesmo tempo tinha a garganta tão seca que nem conseguia engolir. Sentia as pulsações martelarem-lhe nas fontes. A aparição repentina de Devlin surpreendera-o tanto como a dos dois homens de fato completo.

Se ao menos Kelly tivesse tido o bom senso de se manter afastada do que quer que era que se estava a preparar. Para começar, ele nunca devia mas era tê-la envolvido naquela trapalhada toda. Mas também não era a altura de estar a incriminar-se. Os homens de fato completo tinham estacado. Agora as suas atenções estavam concentradas em Devlin, que surgira na orla do palco segurando a pistola com as duas mãos. Devlin fitava os dois homens com grande intensidade. Ninguém falava e ninguém se mexia.

—Frank? — disse finalmente Devlin.—Frank Feranno... que rai’ é que se está a passar?

— Não me parece que você devesse interferir, Devlin—disse o homem da espingarda. — Isto não tem nada a ver consigo. Nós só queremos o doutor.

— O doutor pertence-me a mim.

— Lamento muito — disse Frank.

E os dois homens começaram a andar devagar, cada um para seu lado.

— Que ninguém se mexa! — berrou Devlin.

Mas os homens ignoraram-no. Continuaram a afastar-se.

Jeffrey começou a recuar. A princípio apenas um passo de cada vez. Mas quando viu que, pelo menos de momento, os três homens estavam a vigiar-se mutuamente, decidiu aproveitar-se disso. Naquele instante, não era ele o alvo. Logo que chegou às escadas, deu meia volta e largou a correr.

Por cima do ombro, Jeffrey ouviu Devlin ordenar aos homens que não se mexessem, se não disparava. Correu para o relvado e foi juntar-se a Kelly, que tinha parado no sítio onde o relvado se juntava à parte alcatroada. Agarrou-a pela mão e juntos correram para a ponte Arthur Fiedler.

Chegados à rampa, correram por ela acima, contornando várias curvas. Disparos repentinos vindos do lado do palco fizeram-nos estremecer, mas não olharam para trás. Ao princípio, ouviu-se apenas um tiro, mas seguiu-se-lhe imediatamente o som rápido e contínuo da espingarda automática. Jeffrey e Kelly atravessaram velozes Storrow Drive e desceram a rua pelo outro lado. Ofegantes, alcançaram o carro de Kelly. Ela começou a procurar as chaves, frenética, enquanto Jeffrey batia no tejadilho com a palma da mão aberta.

— Tu é que as tens! —gritou Kelly, lembrando-se de repente. Jeffrey puxou as chaves da algibeira. Atirou-as para o outro lado.

Kelly abriu as portas e ambos saltaram lá para dentro. Kelly pôs o carro em movimento e lançaram-se em frente, virando para Storrow Drive. Ela levou rapidamente o carro aos cento e vinte. Quando chegaram ao fim de Storrow, numa questão de minutos, Kelly meteu-se por um labirinto de pequenas ruelas.

— Afinal o que é que se está a passar? — perguntou Kelly depois de terem conseguido recuperar o fôlego.

—Também gostava de saber!—articulou Jeffrey com certa dificuldade. — Não faço a menor ideia. Acho que estavam a lutar por minha causa!

— E eu deixei-me convencer mais uma vez — disse Kelly com irritação. — Eu devia mas era ter dado ouvidos à minha intuição.

— Nós nunca podíamos ter previsto aquilo que aconteceu — disse Jeffrey. — O plano não era mau. Está a passar-se qualquer coisa de muito esquisito. Nada disto faz sentido, a não ser que a única pessoa que era capaz de me fazer recuperar a minha vida está agora morta. —Jeffrey estremeceu ao lembrar a imagem sinistra de Trent Harding ao levar um tiro na cabeça.

— Agora temos de ir à polícia — disse Kelly.

— Não podemos.

— Mas nós vimos matar um homem!

— Eu não posso ir, mas se tu quiseres ir sozinha é o que tens a fazer — disse Jeffrey. — Tanto quanto sei,ainda me vão incriminar pela morte do Trent Harding. Essa seria a ironia máxima.

— Então que é que vais fazer? — perguntou Kelly.

—Provavelmente aquilo que já tenteifazer há alguns dias atrás — declarou Jeffrey. — Sair do país. Ir para a América do Sul. Agora que Trent morreu, não me parece que tenha muito por onde escolher.

—Vamos para casa e lá pensamos melhor—sugeriu Kelly.—Neste momento nenhum de nós está em estado de tomar decisões dessa importância.

— Não me parece que possamos voltar para lá — disse Jeffrey. — Devlin deve ter-nos seguido a partir da tua casa. Ele deve saber que eu tenho lá estado. Acho que seria melhor deixares-me num hotel.

— Se tu vais para um hotel, então eu vou contigo—declarou Kelly.

— Ainda queres ficar comigo depois do que acaba de acontecer?

— Comprometi-me a acompanhar o caso até ao fim.

Jeffrey sentiu-se comovido, mas sabia que não podia deixá-la correr mais riscos que os que já correra. Ao mesmo tempo queria-a perto dele. Havia apenas uns dois dias que estavam juntos, mas já não sabia o que havia de fazer sem ela.

Kelly tinha razão numa coisa: ele não estava em forma para tomar uma decisão. Fechou os olhos. Sentia-se em estado de choque. Tinham acontecido coisas de mais. Estava esgotado emocionalmente.

— E se saíssemos da cidade e fôssemos para uma pequena estalagem?

—sugeriu Kelly, quando viu que Jeffrey não fazia nenhuma sugestão.

— Óptimo — ele já estava distraído, o pensamento levava-o involuntariamente aos momentos horríveis e tensos que vivera no palco. Lembrava-se de Devlin quando ele reconhecera um dos homens. Chamara-lhe Frank Feranno. Jeffrey pensava que fossem todos caçadores de prémios, lutando sofregamente pela recompensa alta prometida pela sua cabeça. Mas porquê terem morto Harding? Não fazia sentido, a menos, claro, que pensassem que também era um caçador de recompensas. Mas mesmo assim parecia estranho que se matassem uns aos outros.

Jeffrey abriu os olhos. Kelly avançava pelo meio do trânsito de sexta-feira à noite.

— Sentes-te em estado de poder conduzir? — perguntou Jeffrey.

— Estou óptima.

— Se houver algum problema, eu posso guiar.

— Depois daquilo por que acabas de passar, acho que devias era tentar acalmar-te um bocado —replicou Kelly.

Jeffrey fez que sim com a cabeça. Não podia dizer que não fosse verdade. A seguir contou-lhe a sua ideia, que os homens de fato completo deviam ser caçadores de prémios como Devlin, e que tinham lutado por ele por causa do dinheiro.

— Não me parece — disse Kelly. — A princípio, quando vi os dois homens, pensei que estivessem com o Trent. Aparecerem logo atrás dele. Mas depois, enquanto observava a cena, apercebi-me de que eles vinham realmente atrás do Trent Harding e não com ele. Dispararam deliberadamente. Não precisavam de lhe ter dado aqueles tiros. Mas quiseram fazê-lo. O alvo não eras tu.

—Mas porquê matar o Trent?—perguntou Jeffrey. —Não faz sentido. — Suspirou. — Bom, de certa maneira, faz sentido. Há um certo benefício. Estou convencido de que Trent Harding era o assassino, embora não tenhamos provas disso. O mundo fica bem melhor sem ele.

Jeffrey soltou uma risada repentina.

—A que é que tu ainda consegues achar graça?—perguntou Kelly.

— A minha própria ingenuidade. A eu alguma vez ter podido pensar que seria capaz de levar Harding a implicar-se, pelo simples facto de me encontrar com ele. Pensando melhor, aposto que ele viu logo que seria mas era uma oportunidade de me matar a mim. Ainda não te tinha dito, mas ele tinha uma seringa. Penso que não tencionava matar-me com uma bala. Ia sim atacar-me com a toxina.

Kelly carregou de repente nos travões e encostou o carro à direita.

— Que é que se passa? — perguntou Jeffrey, alarmado. Parecia esperar ver Devlin erguer-se no meio da noite. As aparições dele eram sempre tão repentinas.

— Acabo de pensar numa coisa — disse Kelly com grande excitação.

Jeffrey ficou a olhá-la na semi-obscuridade. Outras viaturas passavam por eles, enchendo—lhes momentaneamente o carro de luz. Kelly voltou-se para Jeffrey.

— Talvez a morte de Trent tenha uma vantagem escondida.

— De que é que estás a falar?

— Talvez a morte dele nos dê uma pista que nunca teríamos tido se ele não tivesse sido morto.

— Não estou a perceber — declarou Jeffrey.

—Esses homens de fato completo estavam ali para matar Harding, não a ti. Tenho a certeza disso. E não o fizeram num gesto humanitário. Isso diz-nos qualquer coisa. — Kelly mostrava-se cada vez mais entusiasmada.—Isso quer dizer que alguém achava que Harding era uma ameaça. Talvez não quisessem que ele falasse contigo. Na minha opinião, aqueles dois homens eram assassinos profissionais. — Respirou fundo. —Parece-me que toda esta história pode ser bem mais complicada do que nós imaginávamos.

— Queres dizer que te parece que Harding não seria apenas um indivíduo louco a agir por conta própria?

— É exactamente isso que eu quero dizer — ripostou Kelly. — O que aconteceu esta noite faz-me pensar numa espécie de conspiração. Talvez tenha alguma coisa a ver com os hospitais. Quanto mais penso no caso, mais se me afigura que tem de haver outra dimensão que nos escapou completamente ao concentrarmo-nos na ideia de um psicopata solitário. Não me parece que ele estivesse sozinho nisto.

Os pensamentos de Jeffrey concentraram-se na troca de palavras entre Frank Feranno e Devlin. Frank tinha dito:

— Isto não tem nada a ver contigo, nós só queremos o doutor. — Eles queriam Jeffrey, mas queriam-no vivo. Tinham tido oportunidade de atirar sobre ele, juntamente com Harding.

—E as companhias de seguros?—perguntou Kelly. Sempre detestara companhias de seguros, especialmente depois do suicídio de Chris.

— Bom, de que é que estás a falar agora? Com tudo aquilo por que passara, tinha o raciocínio um bocado embotado. Não conseguia acompanhá-la.

— Alguém beneficia com estes crimes — disse Kelly. — Não te esqueças de que os hospitais foram processados, juntamente com os médicos. No caso do Chris, o seguro do hospital pagou tanto, se não mais, que o seguro do Chris. Mas a companhia era a mesma.

Jeffrey ficou um momento a pensar.

—Parece-me uma ideia um bocado rebuscada. É claro que as companhias de seguros beneficiam, mas em última instância. À partida, perdem e não é pouco. Só a longo prazo poderiam recuperar os custos de pagamentos tão extravagantes se aumentassem os prémios dos seguros dos médicos.

— Mas sempre acabariam por beneficiar — disse Kelly. — E se as companhias de seguros beneficiam, acho que devemos considerá-las como estando envolvidas em tudo isto.

— É uma ideia — disse Jeffrey, pouco convencido. — Detesto não corresponder ao teu entusiasmo, mas com Trent fora de jogo é uma especulação puramente académica. O que eu quero dizer é que continuamos a não ter provas nenhumas sobre o que quer que seja. Não só não temos provas de que o Trent estivesse envolvido, como nem sequer temos provas da existência de uma toxina. E apesar do interesse de Seibert podemos nunca chegar a ter.

Jeffrey lembrou-se da seringa com que Trent o ameaçara quando estavam no palco. Se ao menos nessa altura tivesse tido a presença de espírito necessária para a apanhar. Assim Seibert já teria a quantidade indicada para os seus testes. Mas Jeffrey sabia que estava a ser demasiado severo consigo próprio. Afinal, naquele momento sentia-se aterrorizado com a ideia de que o outro estivera prestes a acabar com ele.

Nesse instante, Jeffrey lembrou-se do apartamento de Trent.

— Por que é que eu não pensei nisto antes? — disse, excitado, batendo com o punho na testa. —Ainda nos resta uma possibilidade de provar o envolvimento de Trent nas mortes e a presença de uma toxina. O apartamento! Algures naquele apartamento tem de haver uma prova incriminatória.

— Ah, não! — exclamou Kelly, abanando lentamente a cabeça. — Diz-me, por favor, que não estás a sugerir que voltemos ao apartamento dele!

— É a nossa única hipótese. Vá lá... vamos! Pelo menos não temos que nos preocupar em encontrarmos o Trent. Amanhã as autoridades já devem andar por lá. Temos de ir ainda hoje. Quanto mais cedo, melhor.

Kelly sacudiu a cabeça, sem conseguir acreditar, mas pôs o carro em andamento e afastou-se do passeio.

Frank Feranno sentia-se mesmo mal. Pela sua parte, aquela fora a pior noite que jamais tivera. E tinha começado de forma tão prometedora. Ele e Tony iam meter ao bolso dez mil por despacharem um rapazito loiro chamado Trent Harding e drogarem um médico de nome Jeffrey Rhodes. Depois só tinham que pegar no carro e ir até ao Aeroporto de Logan e metê-lo num Learjet que estava lá à espera. Ia ser tudo tão simples, o rapaz e o doutor iam encontrar-se no Hatch Shell, na esplanada, às nove e meia. Dois coelhos de uma só cajadada. Não podia ser mais fácil.

Mas as coisas não tinham corrido como estava planeado. Não estavam a contar de todo que Devlin aparecesse por lá.

Frank saiu do Phillips Drugstore, em Charles Circle, dirigiu-se para o seu Lincoln Town Car preto e instalou-se. Usou o espelhinho do lado de dentro da pala para se ver enquanto limpava a esfoladela da têmpora esquerda com o álcool que acabava de comprar. Ardia-lhe a valer e teve de morder a língua. Devlin quase o apanhara. Só de pensar que estivera tão perto, sentia o estômago às voltas.

Quebrou o selo da sua outra aquisição, um frasco de Maalox, e meteu dois comprimidos na boca. Depois, pegando no telefone do carro, ligou para o seu contacto em St. Louis.

Havia um certo ruído quando um homem atendeu.

— Matt — disse Frank —, sou eu, Feranno.

— Só um minuto — disse Matt.

Frank ouviu Matt dizer à mulher que ia atender na outra sala e que desligasse logo que ele levantasse o auscultador. Um minuto depois, Frank ouviu-o pegar na extensão. A seguir Matt disse à mulher que já tinha atendido. Houve um estalido quando ela desligou.

—Que rai’ é que está a acontecer?—disse Matt.—Não devias ligar para este número, a menos que surgisse alguma complicação. Não me digas que vocês lixaram tudo.

— Houve um problema — adiantou Frank. — Um problema dos grandes. Acertaram no Tony. E mataram-no. Você esqueceu-se de nos dizer uma coisa, Matt. Esse tal doutor deve ter a cabeça a prémio. Apareceu-nos lá um dos caçadores de prémios mais safados que há por aí e ele de certeza que não estava lá se não houvesse dinheiro em jogo.

— E o enfermeiro? — perguntou Matt.

— Já passou à história. Esse foi fácil. Apanhar o doutor é que foi o diabo. Quanto é que ele representa?

— A fiança foi fixada em meio milhão. Frank soltou um assobio.

— Sabe, Matt, isso não é um detalhe insignificante. Devia ter-nos prevenido. Se soubéssemos, tínhamos tratado o caso de outra forma. Não sei até que ponto o doutor é importante para si, mas tenho de lhe dizer que entretanto o meu preço subiu. Acho que, pelo menos, vai ter de se equiparar à recompensa. E há mais, perdi um dos meus melhores homens. Não posso deixar de lhe dizer que estou muito decepcionado, Matt. Pensava que havia um entendimento entre nós. Devia ter-me falado dessa fiança logo de início.

—Nós vamos compensá-lo, Frank—disse Matt. — O doutor é importante para nós. Não tão importante como ver-mo-nos livres de Trent Harding, mas mesmo assim é importante. Vamos combinar uma coisa... se você nos conseguir deitar a mão ao doutor, subimos o pagamento para setenta e cinco mil. Que é que lhe parece?

— Setenta e cinco mil soa bem. E soa-me a que esse doutor é bastante importante. Alguma ideia onde é que eu o posso encontrar?

—Não, mas essa é uma das razões por que estamos dispostos a pagar tanto dinheiro. Você já me disse que é bom nisto... agora tem oportunidade de o provar. E o corpo do Harding?

— Fiz como me pediu — disse Frank. — Felizmente ainda acertei no Devlin depois de ele ter morto Tony, mas não sei como ele ficou. Também não tinha muito tempo. Mas o corpo está limpo. Não tem qualquer identificação. E você tinha razão: havia uma seringa. Tenho-a comigo. Vou metê-la no avião.

—Excelente, Frank — disse Matt. — E quanto ao apartamento do Harding?

— Vai a seguir.

— Não se esqueça. Quero-o passado a pente fino — disse Matt. — E não se esqueça do esconderijo no armário ao lado do frigorífico. Tire tudo de lá e meta isso também no avião. E procure o livro de endereços dele. Era de tal maneira burro que é capaz de ter escrito lá alguma coisa. Se o encontrar, ponha-o no avião com as outras coisas. Depois escavaque tudo por lá. Faça parecer que foi assaltado e roubado. Tem as chaves?

— Sim, tenho — disse Frank. — Não vai haver problema para entrar no apartamento.

— Perfeito — disse Matt. — Sinto muito pelo Tony.

- Bom, a vida é um risco — disse Frank. Sentia-se melhor agora, ao pensar nos setenta e cinco mil. Frank desligou e em seguida fez outra chamada.

— Nicky, daqui é o Frank. Preciso de ajuda. Nada de especial, é só para revolver um apartamento. Vale umas notas. Eu apanho-te em Hanover Street, diante do Via Veneto Café. Traz o brinquedo, para o que der e vier.

Virando à esquerda para Garden Street, Kelly teve uma sensação desagradável de déjà vu. Ainda tinha diante dos olhos a imagem de Trent Harding, avançando para eles de martelo na mão. Chegou-se à direita e estacionou em segunda fila. Inclinando-se da janela do carro, olhou para cima, para o apartamento de Trent.

— Ah-ha — exclamou. — As luzes estão acesas.

— Foi provavelmente o Trent que as deixou, pensando que só se demoraria uma meia hora.

— Tens a certeza? — perguntou Kelly.

—Claro que não tenho a certeza—disse Jeffrey—, mas parece-me uma dedução razoável. Não me faças ficar mais nervoso com a ideia de ir lá acima do que eu já estou.

— Talvez seja a polícia.

— Não consigo imaginar que a polícia já tenha chegado a Hatch Shell, quanto mais aqui. Eu tenho cuidado. Ponho-me à escuta antes de entrar. Se a polícia aparecer enquanto eu estiver lá em cima, carrega na buzina e depois dá a volta para Revere Street. Se as coisas chegarem a esse ponto, eu vou por cima dos telhados e saio por um dos prédios desse lado.

— Da última vez eu tentei avisar-te buzinando — disse Kelly.

— Desta vez eu fico à escuta.

—E que é que vais fazer se descobrires alguma coisa de incriminatório?

—Deixo lá ficar tudo e telefono ao Randolph—disse Jeffrey.—Ele deve poder entrar em contacto com a polícia e vir com um mandato de busca. Nessa altura, acho que devo deixar as investigações para os peritos. O sistema legal que prossiga na sua marcha lenta. Entretanto eu acho que estarei melhor fora do país. Pelo menos até ser ilibado.

— Pela maneira como falas, parece tudo muito fácil.

— E vai ser, se eu encontrar a toxina ou qualquer coisa equivalente — disse Jeffrey. — Outra coisa, Kelly, se eu deixar o país gostava que pensasses em vir ter comigo.

Kelly preparava-se para falar, mas Jeffrey fê-la parar.

— Pensa nisso — repetiu.

— Mas eu gostava de ir — disse Kelly. — Sinceramente. Jeffrey sorriu.

— Depois falamos melhor. Por agora, deseja-me sorte.

— Boa sorte — disse Kelly. — E despacha-te!

Jeffrey saiu do carro e olhou para a janela aberta no apartamento de Trent. Viu que o estore não tinha sido reposto no sítio. Óptimo. Sempre poupava tempo.

Atravessou a rua e entrou pela porta principal. Passou também a porta interior sem qualquer dificuldade. Havia um cheiro a cebola frita e ouvia-se o som de vários aparelhos estereofónicos ao mesmo tempo. Enquanto subia a escada coberta de lixo, as suas apreensões aumentaram. Mas sabia que não havia tempo para ter medo. Enchendo - se de coragem e decisão, foi até ao telhado e desceu pela escada de emergência.

Jeffrey enfiou a cabeça pela janela da sala e ficou à escuta. Apenas se ouvia um som abafado de música como já ouvira na entrada. Convencido de que o apartamento estava vazio, Jeffrey entrou.

Notou imediatamente que estava tudo muito mais desarrumado que na tarde anterior. A mesinha baixa, sem uma perna, estava virada ao contrário. Tudo aquilo que ela tinha em cima ficara espalhado pelo chão. Ao pé do telefone havia um buraco redondo na parede de estuque. Pedacinhos de vidro encontravam-se espalhados pelo chão, junto à porta da cozinha. No meio dos destroços, Jeffrey notou uma garrafa de cerveja.

Em movimentos rápidos, certificou-se de que não havia ninguém lá dentro. Depois, dirigindo-se à porta do corredor, pôs a corrente de segurança na porta. Não queria correr o risco de ser surpreendido. Depois de realizadas estas tarefas preliminares, começou a busca. O que planeava fazer em primeiro lugar era ver se havia alguma correspondência. Não tencionava lê-la ali, mas sim levá-la para a ler com vagar.

O sítio mais provável para encontrar correspondência era em cima da secretária, mas antes de ir até lá entrou na cozinha, para ver se encontrava um saco qualquer onde pudesse metê-la. Aí encontrou mais vidros partidos.

Jeffrey ficou a olhar para os vidros. Estavam em cima do balcão, ao lado do frigorífico. Pareciam ser dois ou três copos limpos que tivessem sido partidos deliberadamente. Aproximando-se do balcão, abriu o armário que ficava por cima. Lá dentro, na primeira prateleira, havia mais copos iguais. Na prateleira de cima estavam os pratos.

Jeffrey interrogava-se sobre o que se teria passado no apartamento antes de Trent sair. Nessa altura notou que havia uma discrepância na profunidade do armário. A parte onde estavam os copos tinha metade da profundidade daquela onde se encontravam os pratos.

Metendo a mão dentro do armário, Jeffrey afastou os copos e bateu com os nós dos dedos na parte de trás. Quando o fez, a madeira deslocou-se. Tentou tirar para fora a parede de fundo do armário, mas ela não se moveu. Mudando de táctica, tentou empurrá-la para dentro. Quando carregou no canto direito, o painel de madeira rodou. Jeffrey segurou-o pela outra ponta e tirou-o para fora.

—Aleluia! — exclamou Jeffrey ao dar com os olhos numa caixa intacta de ampolas de 30 cm3 de Marcaína, uma caixa de charutos, uma porção de seringas e um frasquinho com rolha de borracha contendo um líquido amarelo e viscoso. Jeffrey olhou em volta, à procura de uma toalha. Encontrou uma, pendurada no manípulo do frigorífico, e usou-a para pegar no frasco. Parecia ser de fabrico estrangeiro. Jeffrey reconheceu-o como sendo do tipo usado para conter certos medicamentos injectáveis.

Servindo-se da mesma toalha, Jeffrey retirou a caixa de charutos do sítio e pousou-a em cima do balcão. Depois, levantou-lhe a tampa. Lá dentro, havia uma pilha de notas de cem dólares novas. Comparando-as com o seu próprio monte de notas de cem dólares, Jeffrey calculou que a caixa de charutos devia conter entre vinte a trinta mil dólares.

Jeffrey repôs tudo no sítio. Limpou mesmo o fundo de madeira e os copos em que tinha tocado, para não deixar impressões digitais. Sentia-se excitado e estimulado. Não tinha dúvidas de que o líquido amarelo dentro do frasco era a toxina fantasma e que a análise da mesma iria revelar aquilo que Seibert teria de procurar no líquido extraído a Patty Owen. A própria presença do dinheiro o entusiasmou. Via-o como prova evidente de que a ideia de Kelly quanto a uma espécie de conspiração estava certa.

Afogueado com o êxito, Jeffrey estava ansioso de encontrar mais coisas. Em qualquer canto do apartamento tinha que haver uma prova que indicasse a natureza da conspiração. Revistando rapidamente os restantes armários da cozinha, Jeffrey acabou por encontrar aquilo que procurava de início: um saco de compras.

Voltando à sala, procurou rapidamente na escrivaninha e encontrou uma série de cartas e facturas. Pôs tudo no saco. Depois, dirigindo-se para o quarto, começou com a cómoda. Na segunda gaveta encontrou um esconderijo de revistas Playgirl. Deixou-as ficar. Na terceira gaveta, depararam-se-lhe várias cartas, mais do que esperara. Puxando uma cadeira, começou a escolhê-las rapidamente.

Kelly tamborilava nervosamente com os dedos no volante e não parava quieta no banco. Um carro que saíra deixara livre um lugar para estacionar, duas portas abaixo do prédio de Trent, e ela passara alguns minutos a recuar até lá. Erguendo os olhos para a janela aberta de Trent, perguntou a si mesma o que seria que estava a demorar Jeffrey. Quando mais tempo passava, mais nervosa ela se sentia. Quanto tempo seria preciso para passar uma busca num apartamento com uma sala e um quarto?

Garden Street não tinha muito movimento, mas enquanto Kelly esperava uma meia dúzia de carros passou por ela, vindos de Revere Street. Portanto não ficou surpreendida quando um novo par de faróis apareceu de repente, à esquina de Revere Street, e avançou para ela. O que lhe chamou a atenção foi o carro ter parado mesmo em frente do prédio de Trent e estacionado em segunda fila. Os faróis apagaram-se e acenderam-se as luzes de estacionamento.

Kelly virou-se a tempo de ver um homem com umpullover escuro sair do lugar ao lado do condutor e dirigir-se para o passeio. Depois espreguiçou-se enquanto o condutor saía também. Este vestia uma camisa branca com as mangas enroladas para cima. Levava uma pasta. Os dois homens riram-se de qualquer coisa. Não pareciam ter pressa. O mais novo acabou de fumar um cigarro e deitou a beata para a sarjeta. Depois entraram juntos no prédio.

Kelly olhou para o carro. Era um grande Lincoln Town Car, preto e lustroso, com a parte de trás eriçada por várias antenas. O carro parecia totalmente deslocado ali e suscitou-lhe um mau presságio. Perguntou a si mesma de deveria carregar na buzina, mas também pensou que detestava alarmar Jeffrey desnecessariamente. Fez um movimento para sair do carro e depois resolveu deixar-se ficar. Levantou os olhos para a janela de Trent, como se esse gesto só por si pudesse trazer Jeffrey em segurança de lá para fora.

— Se me conseguires provar que posso contar contigo, tenho grandes planos a teu respeito, Nicky — disse Frank enquanto subiam as escadas. — Agora que o Tony desapareceu, tenho uma falha na minha organização. Percebes o que eu quero dizer?

— Basta que me digas uma vez e o serviço já está feito — replicou Nicky.

Frank perguntava a si mesmo como diabo iria encontrar o tal doutor. Ia precisar de alguém que desse uma porção de voltas. Nicky seria perfeito para isso, embora fosse um bocado estúpido.

Chegaram ao quinto andar. Frank estava ofegante.

—Tenho de comer menos massas—disse, enquanto puxava do bolso as chaves de Harding. Olhou para a fechadura e tentou descobrir qual seria a chave. Incapaz de chegar a uma conclusão, meteu a primeira na fechadura e tentou dar-lhe a volta. Nada. Tentou a segunda e desta vez conseguiu. Empurrou a porta mas ela deteve-se abruptamente, retida pela corrente.

— Mas que raio...? — questionou Frank.

Jeffrey ouvira a primeira chave raspando na fechadura. Sentara-se muito direito, paralisado pelo terror. A sua primeira ideia foi totalmente irracional: Trent não tinha sido morto. Quando Frank tentou a segunda chave, Jeffrey correu para a sala, tomado de pânico.

Quando Nicky, depois de ter forçado a porta, entrou de roldão, Jeffrey já estava junto da janela.

— É o doutor! — Jeffrey ouviu uma voz gritar dentro de casa.

Saltou o parapeito da janela como se estivesse afazer uma corrida de obstáculos. Desta vez passou-o de um salto. Em poucos segundos, já ia pela escada acima.

Ao chegar ao telhado, seguiu o percurso anterior, saltando de um telhado para o outro. Mas desta vez não usou a entrada que utilizara na véspera, receando que o fecho ainda estivesse como o deixara. Atrás dele, ouvia o barulho dos passos dos perseguidores. Jeffrey calculava que os desconhecidos fossem os mesmos dois homens que tinham aparecido em Hatch Shell, homens que Kelly pensava serem assassinos profissionais. Quando pensara ir ao apartamento de Trent, não se tinha lembrado deles.

Jeffrey tentou freneticamente diversas entradas nos diversos telhados, mas todas as portas estavam bem seguras. Só quando chegou ao prédio da esquina é que encontrou uma entreaberta. Precipitando-se para o interior da casinha, Jeffrey atirou com a porta e procurou uma maneira de a fechar. Mas não havia nenhuma. Voltou-se e começou a correr pela escada abaixo. Os homens atrás dele tinham ganho terreno. Quando ia a chegar à rua, apercebeu-se de que eles também já não estavam longe.

Uma vez na rua, Jeffrey tomou uma decisão rápida. Sabia que não ia ter tempo de alcançar Kelly e meter-se no carro antes de os homens o apanharem, por isso deu meia volta e correu ao longo de Revere Street. Não ia pôr em risco a segurança de Kelly, mais do que já tinha posto. Ia tentar desorientar os perseguidores antes de voltar para junto dela.

Atrás dele, ouviu um homem chegar cá abaixo e começar a persegui-lo. Não sabia muito bem para onde ia. Jeffrey voltou à esquerda em Cedar e passou a correr diante de uma lavandaria e de uma loja de utilidades. Havia umas quantas pessoas no passeio. Jeffrey começou a distinguir as passadas do mais rápido dos seus perseguidores. Um deles parecia estar em muito melhor forma que o outro e aproximava-se cada vez mais.

Virando de novo em Pickney Street, Jeffrey correu pela colina abaixo. Não estava muito familiarizado com Beacon Hill. Só rezava para não acabar por se meter nalgum beco sem saída. Mas Pinckney Street ia desembocar na Praça Louisburg.

Jeffrey apercebeu-se de que ia ter que arranjar uma forma de se esconder se queria fugir aos seus perseguidores. De outra maneira nunca conseguiria fugir-lhes. Vendo a vedação de ferro forjado que rodeava a zona verde a meio da Praça Louisburg, correu directamente para lá e transpôs as lanças que lhe davam pela altura do peito. Do outro lado, os sapatos enterraram-se-lhe na relva. Precipitando-se em frente, enfiou-se de cabeça num massiço de arbustos e estendeu-se na terra húmida. Depois susteve a respiração, à espera.

Jeffrey ouviu os homens descerem Pinckney Street. O som dos pés deles a baterem no pavimento ecoavam nas fachadas dos prédios elegantes, de tijolo. Um dos dois não tardou a aparecer, correndo. Tendo perdido de vista a sua presa, abrandou o andamento e acabou por parar. O outro veio juntar-se-lhe passados alguns momentos. Falaram durante breves segundos, com a respiração ofegante.

À luz dos candeeiros de gás que rodeavam a praça, Jeffrey viu de relance os dois homens, no momento em que se separaram. Um foi para a direita, o outro para a esquerda. Jeffrey reconheceu o que estava na parte mais alta como sendo um dos que vira no palco do Hatch Shell. O outro era um desconhecido e tinha uma pistola na mão.

Os homens procuraram metodicamente todas as entradas e vãos de escada e mesmo debaixo dos carros, à medida que atravessavam a praça. Jeffrey não se mexeu, nem depois de os ter perdido de vista. Receava que qualquer movimento lhes chamasse a atenção.

Quando calculou que os homens estivessem na extremidade oposta da praça, considerou a possibilidade de escalar novamente a vedação e correr para junto de Kelly. Mas decidiu-se contra. Receava que o vissem facilmente ao passar o gradeamento.

O miar próximo de um gato fê-lo dar um salto. A meio metro da cara dele estava um felino cinzento listrado. A cauda dele pusera-se direita como um fuso. O gatou miou de novo e aproximou-se mais, para se esfregar de encontro à cabeça de Jeffrey. Depois começou num ronronar sonoro. Lembrou-se do susto queDalila lhe pregara na despensa de Kelly. Antes, os gatos nunca lhe tinham prestado muita atenção; agora pareciam aparecer cada vez que ele tentava esconder-se!

Voltando a cabeça e espreitando pelo meio dos arbustos, Jeffrey viu os dois homens falando um com o outro ao fundo da praça, do lado de Mount Vernon. Um peão solitário seguia ao longo do passeio. Jeffrey pensou em gritar por socorro, mas o homem entrou numa das casas e desapareceu rapidamente. Jeffrey ainda pensou em gritar mesmo assim, mas desistiu, pensando que pouco mais conseguiria do que fazer com que se acendessem algumas luzes. Mesmo que alguém tivesse a presença de espírito para ligar para a polícia, eles tardariam dez a quinze minutos a chegar, na melhor das hipóteses. Além disso, Jeffrey não tinha a certeza de querer a polícia.

Os dois homens separaram-se de novo, voltando na direcção de Pinckney Street. À medida que caminhavam, começaram a espreitar a área relvada. Jeffrey sentiu de novo o pânico apoderar-se dele.

Especialmente com o gato a insistir na sua chamada de atenção, compreendeu que não podia ficar ali. Tinha de fugir.

Encolhendo as pernas de maneira a ficar com os pés debaixo do corpo, correu para a vedação. Trepou-a com a mesma velocidade que da primeira vez, mas quando aterrou no empedrado, do outro lado, torceu o tornozelo direito. Uma dor aguda percorreu-lhe a coluna.

Sem prestar atenção ao tornozelo, Jeffrey largou a correr pela Pinckney Street abaixo. Atrás dele ouviu um dos homens gritar para o outro. Em breve o som dos passos deles encheu a rua. Jeffrey passou West Cedar e correu para Charles. Procurando desesperadamente que o ajudassem, correu para o meio da rua e tentou fazer parar os carros, mas nenhum condutor se mostrou disposto a isso.

Com os seus perseguidores a aproximarem-se rapidamente ao longo de Pinckney Street, Jeffrey atravessou a rua Charles e continuou até Brimmer, onde voltou à esquerda. Correu até ao fim do quarteirão. Infelizmente, o mais rápido dos dois perseguidores estava a ganhar terreno de forma notória.

Desesperado, Jeffrey dirigiu-se para a Igreja do Advento, na esperança de poder esconder-se algures lá dentro. Ao chegar junto da porta espessa com o seu arco gótico, deitou a mão ao punho pesado e sacudiu. Aporta nem se mexeu. Estava fechada à chave. Jeffrey voltou para a rua, no momento em que um dos homens apareceu - o que tinha a arma. Passados alguns minutos, chegou o outro, mais esbaforido que o primeiro. Era o mesmo que Jeffrey já tinha visto antes. Juntos avançaram lentamente em direcção a ele.

Jeffrey voltou para junto da porta da igreja e pôs-se a bater, com um sentimento de frustração. Depois sentiu o cano da arma encostado à cabeça. Ouviu o indivíduo que estava mais ofegante dizer:

— Adeus, Doutor!

Kelly bateu com as mãos no tablier.

— Não posso acreditar! — disse em voz alta. Por que é que Jeffrey estaria a demorar tanto? Levantou os olhos para a janela de Trent, pelo que lhe parecia ser a centésima vez. Ainda não havia sinais de Jeffrey.

Saindo do carro, encostou-se ao tejadilho e pensou naquilo que poderia fazer. Podia usar a buzina, mas sentia relutância em o interromper só por se sentir ansiosa e apreensiva. Para ele se demorar tanto tempo era porque tinha descoberto alguma coisa. Quase sentia vontade de subir também até ao apartamento, mas receava que, ao bater à porta, assustasse Jeffrey, obrigando-o a fugir.

Kelly estava a ficar desesperada quando o Lincoln preto e luzidio voltou. Havia menos de dez minutos, Kelly vira um dos homems vir buscar o carro. Só que ele tinha subido a rua, não viera do prédio de Trent. Kelly ficou a ver o carro estacionar em segunda fila, no mesmo sítio onde estava antes. Depois, os mesmos dois indivíduos saíram lá de dentro e voltaram a entrar para o prédio.

Cheia de curiosidade, Kelly endireitou-se, desencostando-se do carro, e avançou até junto do Lincoln para dar uma vista de olhos. Ao aproximar-se pôs as mãos nas algibeiras, na esperança de parecer uma vulgar transeunte, caso algum dos homens aparecesse de repente. Quando já estava ao lado do Lincoln, percorreu a rua com o olhar, de um lado e do outro, como se estivesse a fazer alguma coisa de mal ao satisfazer a sua curiosidade. Depois inclinou-se e olhou para o tablier. O carro tinha um telefone móvel, mas à parte isso parecia normal. Dando mais dois passos, olhou par a parte de trás, perguntando a si mesma para que serviriam tantas antenas.

Kelly endireitou-se rapidamente. Havia alguém enroscado, a dormir, no banco de trás. Inclinando-se devagar, olhou mais uma vez. O homem tinha uma das mãos torcida de maneira esquisita, atrás das costas. Santo Deus, pensou Kelly, era Jeffrey!

Num frenesi, tentou a porta. Estava fechada. Tentou as outras. Nenhuma abria. Desesperada, procurou uma coisa pesada, uma pedra, por exemplo. Arrancou um tijolo do passeio. Correndo novamente para junto do Lincoln, atirou o tijolo de encontro ao vidro da porta de trás. Teve de lhe bater várias vezes até ele se desfazer finalmente num milhão de vidrinhos do tamanho de bocados de cascalho. Metendo a mão dentro do carro, abriu a porta.

No momento em que se inclinava lá para dentro e tentava acordar Jeffrey, ouviu alguém gritar lá de cima. Partiu do princípio de que devia ser um dos homens que tinham saído do carro. Deviam ter ouvido a janela a partir-se.

—Jeffrey! Jeffrey! —gritou. Tinha de o tirar do carro. Ao ouvir chamarem-no pelo nome, ele mexeu-se. Tentou falar, mas tinha a voz entaramelada. Ergueu ligeiramente as pálpebras, ao mesmo tempo que enrugava a fronte com o esforço.

Kelly sabia que dispunha de pouco tempo. Agarrando-o pelos pulsos, puxou-o para si. As pernas dele estavam inertes, caídas para o chão. O corpo era um peso morto. Parecia ter desmaiado. Largando-lhe os pulsos, Kelly agarrou-o em volta do peito, num abraço de urso, e arrastou-o para fora do carro.

—Tenta pôr-te de pé, Jeffrey! — suplicou. Ele parecia uma boneca de trapos. Sabia que se o largasse ele escorregaria para o chão. Era como se o tivessem drogado.

— Jeffrey! — gritou. — Anda! Tenta andar!

Reunindo todas as suas forças, Kelly arrastou Jeffrey pela rua. Ele tentava ajudar, mas era como se tivesse ficado quadriplégico. Parecia não poder aguentar nenhum peso nas pernas e ainda menos pôr-se de pé.

Quando chegaram junto do carro, Jeffrey já conseguia equilibrar-se um pouco, mas ainda estava demasiado confuso para perceber o que se estava a passar. Kelly encostou—o ao carro, segurando—o com o próprio corpo. Abriu a porta de trás e depois conseguiu empurrá-lo para dentro. Kelly verificou se ele estava todo lá dentro, antes de a fechar de novo.

Abrindo a porta do condutor, saltou para dentro do carro. Entretanto ouviu a porta do prédio abrir-se violentamente, indo de encontro ao batente. Kelly pôs o motor em andamento, rodou o volante todo para a esquerda e acelerou. Embateu no carro dafrente com força suficiente para atirar Jeffrey do banco abaixo.

Engatando a marcha atrás, Kelly recuou, amachucando o carro que estava atrás. Entretanto um dos homens já tinha chegado ao pé deles. Abriu-lhe a porta antes que ela tivesse tempo de pensar em a fechar e agarrou-a pelo braço com brutalidade.

— Mais devagar, minha menina — rosnou-lhe ao ouvido.

Com a mão que tinha livre, Kelly engatou o carro e pôs o acelerador a fundo. Agarrou o volante, ao mesmo tempo que se sentia arrastada para o lado esquerdo pelo brutamontes que estava do lado de fora. O carro disparou em frente, passando a poucos centímetros do que estava parado na frente. Kelly fez rodar o volante para a esquerda, raspando com a porta aberta nos carros estacionados do outro lado da rua. O homem que momentos antes a agarrava pelo braço, gritou de dor ao ficar esmagado entre um carro estacionado e a porta de Kelly, que balouçava aberta.

Kelly manteve o acelerador a fundo. Precipitou-se ao longo de Garden Street, sempre com a porta aberta. Calcou o travão mesmo a tempo de evitar meia dúzia de peões que atravessavam o movimentado cruzamento das ruas Garden e Cambridge. As pessoas fugiram enquanto o carro de Kelly se inclinava sobre o lado, com os pneus a guinchar, e não apanhava ninguém por uma questão de centímetros.

Kelly fechou os olhos, esperando o pior. Quando os abriu, tinha parado, mas o carro descrevera um ângulo de cento e oitenta graus. Estava virada ao contrário em Cambridge Street, enfrentando uma fila de condutores furiosos. Alguns já tinham saído dos carros e aproximavam-se. Kelly pôs o carro em marcha atrás e, fazendo-o rodar, conseguiu retomar a direcção correcta. Foi nesse momento que avistou o Lincoln preto descendo Garden Street a toda a velocidade para ir colocar-se directamente atrás dela. O carro ficou a poucos centímetros do pára-choques traseiro do carro de Kelly.

A sua única esperança era conseguir despistar o enorme Lincoln nas ruazinhas estreitas de Beacon Hill, onde o pequeno Honda seria mais manobrável. Virou na primeira à esquerda em Cambridge Street. Ao fazer a curva, passou inadvertidamente sobre o passeio e bateu num recipiente de lixo. A porta abriu para trás e em seguida bateu, fechando-se. Kelly acelerou encosta acima. Chegando ao fim, travou o suficiente para virar à esquerda para a estreita Myrtle Street. Quando olhou pelo retrovisor, viu que o seu plano estava a resultar. O Lincoln ficara para trás. Era demasiado grande para se meter numa curva estreita àquela velocidade.

Tendo vivido em Beacon Street durante vários anos antes de casar, Kelly conhecia bem o labirinto das pequenas ruas de sentido único. Virando à direita contra o trânsito em Joy Street, Kelly conseguiu chegar a Mount Vernon. Em Mount Vernon, virou novamente à direita e começou a descer em direcção a Charles. O plano dela era atravessar a Praça Louisburg e depois desaparecer no meio do trânsito pela Pinckney acima. Mas depois de travar à entrada da praça viu que ambas as ruas estavam temporariamente bloqueadas. Uma com um táxi, a outra com um carro, para sair uma pessoa.

Mudando de ideias, Kelly continuou a descer Mount Vernon. Mas a pausa saíra-lhe cara. Pelo retrovisor, viu o Lincoln outra vez colado atrás dela. Olhando em frente, Kelly percebeu que não ia conseguir apanhar a luz verde em Charles Street. Em vez disso, virou à esquerda em West Cedar.

Virando depois à direita em Chestnut Street, Kelly acelerou. A luz em frente, à entrada de Charles, passou a laranja, mas ela não abrandou. Entrando a toda a velocidade no cruzamento, viu um táxi avançar sobre ela, da direita. O condutor vinha a aproveitar as luzes. Kelly travou e forçou novamente o carro a derrapar. Em vez de uma colisão directa, Kelly foi sacudida por um simples toque de raspão. O motor nem sequer se foi abaixo.

Kelly não parou, apesar de o motorista ter saído do táxi, aos gritos e a sacudir o punho, furioso. Continuando a descer Chestnut, chegou a Brimmer e virou à esquerda. No momento em que dava a volta, viu o Lincoln desviando-se do táxi parado.

Kelly sentiu o pânico apoderar-se dela. O plano não estava a resultar como previra. O Lincoln continuava a segui-la. O condutor parecia conhecer Beacon Hill.

Kelly compreendeu que tinha de pensar em qualquer coisa fora do vulgar. Voltando à direita, entrou em Byron Street e depois, virando à esquerda, meteu na garagem de Brimmer Street. Passou em frente da cabina de vidro do recepcionista, descreveu uma curva apertada para a direita e enfiou directamente num elevador de automóveis.

Os dois empregados que tinham ficado a olhar de boca aberta enquanto ela disparava por ali dentro, correram para o elevador. Antes que eles abrissem a boca, Kelly gritou-lhes:

— Estou a ser perseguida por um homem com um Lincoln preto. Têm de me ajudar! Ele quer matar-me!

Os dois empregados olharam espantados um para o outro. Um deles ergueu as sobrancelhas, o outro encolheu os ombros e saiu do elevador. O que ficou, levantou o braço e puxou o cordão. As portas do elevador fecharam-se como se fossem as mandíbulas de um tubarão. O elevador subiu com um gemido.

O empregado aproximou-se da janela do carro.

— Como é que alguém pode querer matá-la? — perguntou calmamente.

— Se eu lhe contasse, não me acreditava — replicou Kelly. — E o seu amigo? Ele corre com o homem se ele aparecer por aí?

—Acho que sim—disse o empregado. — Não é todas as noites que se tem a oportunidade de salvar uma dama em apuros.

Kelly fechou os olhos, aliviada, encostando a cabeça ao volante.

— E que é que se passa com esse tipo aí atrás? — perguntou o empregado. Kelly nem abriu os olhos.

— Bêbado — disse simplesmente. — Cocktails a mais.

Quando Frank ligou pela segunda vez, teve de esperar enquanto Matt fazia a mesma trapalhada com a mudança de extensão do telefone. Frank estava sentado em casa na altura e a ligação ficou bastante melhor que quando tinha ligado do telefone do carro.

—Mais problemas?—perguntou Matt.—Não estou muito encantado consigo, Frank.

— Não tínhamos podido prever o que aconteceu—disse Frank. — Quando Nicky e eu chegámos ao apartamento do Trent, estava lá o doutor.

— E as coisas que havia no armário? — perguntou Matt.

—Não há problema — replicou Frank. — Estava tudo no sítio, intacto.

— E apanharam o doutor?

—Esse é que foi o problema — disse Frank.—Andámos atrás dele por todas as ruas de Beacon Hill. Mas apanhámo-lo.

— Excelente! — disse Matt.

— Nem por isso. Voltámos a perdê-lo. Drogámo-lo com aquela coisa que mandou no avião e foi uma maravilha. Depois metemo-lo no meu carro enquanto fomos tratar do apartamento e buscar as coisas para lhe mandar. Pensámos, para quê ir duas vezes a Logan? Bom, a rapariga dele apareceu e arrombou-me o carro. Estilhaçou o vidro da janela com um tijolo. Claro que nós corremos logo pela escada abaixo para a impedir, mas o apartamento do rapaz era no quinto piso. Nicky, um dos meus homens, correu para a rua para a fazer parar, mas ela escapou-se antes de ele conseguir. Ainda partiu um braço ao Nicky. Eu persegui-a de carro, mas perdi-a.

— E o apartamento?

—Quanto a isso não há problema—disse Frank.—Eu voltei atrás, parti tudo e pus as coisas que me pediu no avião. Portanto está tudo em ordem, menos o doutor. Mas acho que conseguimos lá chegar se você usar a sua influência. Eu tenho a matrícula do carro da rapariga. Acha que me pode arranjar o nome e a morada dela?

— Isso é fácil — disse Matt. — Digo-lhos pelo telefone, amanhã logo de manhã.

 

                                       Sábado, 20 de Maio de 1989, 8:11

Jeffrey retomou a consciência por fases, recordando sonhos estranhos e bravios. Tinha a garganta tão seca que lhe doía quando respirava, e sentia dificuldade em engolir. Sentia o corpo pesado e rígido. Abriu os olhos e começou a olhar em volta para se orientar. Estava num quarto desconhecido, com as paredes azuis. Depois reparou no sistema de venoclise. Sobressaltado, tocou na mão esquerda. Fosse o que fosse que acontecera na noite anterior, ele acabara numa endovenosa!

À medida que o espírito se lhe tornava mais claro, Jeffrey rolou sobre si mesmo. O Sol da manhã jorrava através das persianas. Ao lado dele havia uma mesa-de-cabeceira com um jarro e um copo. Ávido, Jeffrey bebeu.

Sentando-se, observou o quarto. Era um quarto de hospital, completo, com a cómoda de metal habitual, a calha no tecto, por cima da cama, para a cortina, e no canto uma cadeira de braços, de aspecto desconfortável, forrada a vinil. Kelly estava sentada na cadeira, enroscada e dormindo profundamente. Um dos braços pendia ao lado da cadeira. Por baixo da mão, parecendo ter sido deixado cair por ela ao adormecer, havia um jornal.

Jeffrey fez rodar as pernas sobre o lado da cama, pensando levantar-se e ir para junto de Kelly, mas o sistema de venoclise não o deixava. Olhando para trás, viu que era apenas água esterilizada e que quase não corria.

Com um sobressalto, recordou de repente a fuga diante dos dois homens em Beacon Hill. O terror voltou com uma nitidez espantosa. Lembrava-se de o terem comprimido de encontro à porta da Igreja do Advento, com uma arma apontada à cabeça. Depois tinha sido injectado na parte de trás da coxa. Não se lembrava de mais nada. A partir desse momento, tudo era escuridão.

— Kelly — chamou suavemente. Kelly murmurou qualquer coisa, mas não acordou. Jeffrey chamou mais alto. — Kelly!

Ela pestanejou e abriu os olhos. Pestanejou ainda mais algumas vezes, depois saltou da cadeira e correu para Jeffrey. Segurou-o pelos ombros e ficou a olhá-lo no rosto.

— Oh, Jeffrey, graças a Deus que estás bem. Como é que te sentes?

— Óptimo — disse Jeffrey. — Estou óptimo.

— A noite passada tive tanto medo. Não fazia ideia do que te tinham dado.

— Onde é que eu estou? — perguntou Jeffrey.

— No St. Joe’s. Eu não sabia o que haver de fazer. Trouxe-te para os serviços de urgência. Tinha receio que te acontecesse alguma coisa, que tivesses falta de ar, por exemplo.

— E eles deixaram-me entrar sem fazer perguntas?

— Eu improvisei um bocado. Disse que eras o meu irmão que vive fora. Ninguém me fez perguntas. Eu conheço todos aqui no serviço, tanto médicos como enfermeiras. Despejei-te as algibeiras, até mesmo a carteira. Não houve qualquer problema, excepto quando o laboratório disse que tinhas tomado Kelamina. Tive de improvisar mais um bocado. Disse-lhes que eras anestesista.

— Que diabo aconteceu a noite passada? — perguntou Jeffrey. — Como é que eu fui parar ao pé de ti?

— Foi uma questão de sorte — disse Kelly. Sentando-se na beira da cama, Kelly contou-lhe tudo o que acontecera a partir do momento em que ele tinha desaparecido no prédio de Trent até que dera entrada nos serviços de urgência do St. Joe’s.

Jeffrey estremeceu.

— Oh, Kelly, eu nunca devia ter-te envolvido nisto. Não sei o que foi que me deu... —A voz dele apagou-se.

— Eu própria é que me envolvi — replicou Kelly. — Mas isso não tem importância. O que é importante é que ambos estamos bem. Como é que te saíste do apartamento do Harding?

— Muito bem, até eles aparecerem. Encontrei aquilo de que tenho andado à procura. Dei com um esconderijo secreto de Marcaína, seringas, uma porção de dinheiro e a toxina. Estava tudo atrás de um fundo falso, num dos armários da cozinha. Agora já não restam dúvidas quanto às nossas suspeitas sobre o Trent Harding. É a prova que nós desejávamos.

— Dinheiro? — perguntou Kelly.

—Eu sei exactamente o que estás apensar—disse Jeffrey.—Logo que vi o dinheiro, pensei na tua teoria sobre uma conspiração. Harding tinha de trabalhar para alguém. Céus! Quem me dera que ele não tivesse morrido. Nesta altura, talvez ele pudesse esclarecer tudo. Devolver-me a vida que eu perdi—Jeffrey sacudiu a cabeça.—Só nos resta trabalhar com aquilo que temos. Podia ser melhor, mas também já foi pior.

— E que é que fazemos a seguir?

— Vamos ter com Randolph Bingham e contamos-lhe tudo. Ele tem de levar a polícia ao apartamento de Trent Harding e eles que se preocupem com a história da conspiração.

Rodando para o outro lado da cama, onde estava suspenso o sistema de venoclise, Jeffrey pôs os pés no chão e levantou-se. Ficou estonteado por momentos enquanto tentava ajustar ao corpo a bata do hospital. Não estava amarrada nas costas. Vendo-o vacilar, Kelly aproximou-se e estendeu-lhe a mão.

Recuperando o equilíbrio, Jeffrey olhou para Kelly e disse:

— Estou a começar a pensar que preciso de ti constantemente ao meu lado.

— Acho que precisamos um do outro — disse Kelly.

Jeffrey limitou-se a sorrir e a sacudir a cabeça. Na sua opinião, Kelly precisava tanto dele como de ser atropelada por um camião. Que é que ele lhe tinha trazido a não ser problemas? Só esperava poder ainda compensá-la de tudo isso.

— Onde é que está a minha roupa? — perguntou.

Kelly foi direita ao armário. Abriu a porta. Jeffrey retirou a fita que colava o tubo e depois retirou a agulha com um ligeiro estremecimento. Em seguida foi juntar-se a Kelly. Ela passou-lhe a roupa.

—O meu saco!—exclamou surpreendido. Estava pendurado num dos ganchos do armário.

— Fui a casa de manhã cedo — disse Kelly. — Trouxe roupa para mim, dei de comer aos gatos e trouxe-te o saco.

—Foi arriscado teres ido a casa—comentou Jeffrey. —E o Devlin? Estava alguém a vigiar a casa?

— Também pensei nisso — respondeu Kelly. — Mas quando comprei o jornal esta manhã, achei que não ia haver problema.—Foi apanhar o Globe que estava caído no chão ao pé da cadeira. Quando chegou junto dele, apontou para uma notícia breve.

Pegando no jornal, Jeffrey leu uma descrição do incidente em Hatch Shell. Dizia que um enfermeiro recentemente admitido no St. Joseph’s Hospital tinha sido morto a tiro por uma figura notória do submundo do crime, Tony Marcello. Um ex-agente da polícia de Boston, Devlin O’Shea, tinha disparado contra o atacante, matando-o, mas ficara gravemente ferido durante o tiroteio que se seguira. Devlin tinha dado entrada no Boston Memorial Hospital e o seu estado era considerado estacionário. Diziam depois que a polícia de Boston estava a investigar o incidente, que se julgava fosse um caso de droga.

Pondo o jornal em cima da cama, Jeffrey tomou Kelly nos braços e apertou-a de encontro a si.

— Lamento sinceramente ter-te metido em tudo isto — disse. — Mas acho que estamos próximos do fim.

Soltando-a, Jeffrey encostou-se para trás e disse:

— Vamos ao escritório do Randolph. Depois devíamos tentar ir para qualquer lado. Talvez de carro até ao Canadá e daí tomar o avião para um sítio sossegado, enquanto durarem as investigações.

— Não sei se me poderei ir embora — disse Kelly. — Quando estive em casa reparei que a Dalila está a chegar ao fim do tempo.

Jeffrey ficou a olhar para ela, incrédulo.

— Eras capaz de ficar para trás por causa de um gato?

—Bom, não posso deixá-la fechada na despensa — disse Kelly. — Ela vai ter os filhos por estes dias.

Jeffrey compreendeu como ela estava ligada aos gatos.

—Está bem, está bem—disse, cedendo rapidamente.—Havemos de pensar em qualquer coisa. Por agora temos é que ir falar com Randolph. Que é que é preciso fazer para eu sair daqui? E talvez seja melhor dizeres-me qual é o meu nome.

—Richard Widdicomb—esclareceu Kelly.—Espera aqui. Eu vou até à recepção preparar as coisas.

Depois de Kelly sair, Jeffrey acabou de se vestir. A não ser por uma vaga dor de cabeça, sentia-se óptimo. Perguntava a si mesmo que porção de Ketamina lhe teriam injectado. Com um sono tão profundo como o que se apoderara dele, era natural que lhe tivessem misturado qualquer coisa, como, por exemplo, Innovar.

Abrindo o saco de pano, Jeffrey encontrou os seus artigos de toilette, alguma roupa interior, o dinheiro, umas quantas páginas escritas à mão com os apontamentos que tomara na biblioteca, as informações que copiara dos arquivos do tribunal, a carteira e um pequeno livro de capa preta.

Pôs a carteira na algibeira e pegou no livro de capa preta. Abriu-o e por momentos não conseguiu perceber o que ele fazia dentro do saco. Era nitidamente um livro de endereços, mas não lhe pertencia.

Kelly voltou, trazendo com ela um médico estagiário.

—Este é o Dr. Sean Apple — disse.—Tem de te observar antes de poderes sair.

Jeffrey deixou o jovem médico auscultar-lhe o tórax, medir-lhe a tensão arterial e fazer um exame neurológico sumário que incluía fazê-lo caminhar em linha recta através do quarto, pondo um pé directamente em frente do outro.

Enquanto o médico o observava, Jeffrey interrogou Kelly acerca do livrinho de capa preta.

— Estava na tua algibeira — disse Kelly.

Jeffrey ficou calado até o Dr. Apple o declarar em condições de se ir embora, após o que saiu do quarto.

— Este livro não é meu — disse Jeffrey, com o livro de endereços espetado na mão. De repente, lembrou-se. Era o livro de endereços de Trent Harding. Com tudo o que tinha acontecido, esquecera-se. Disse-o a Kelly, e juntos passaram algumas páginas em revista.

— Isto pode ter importância — disse Jeffrey.—É melhor entregá-lo ao Randolph. — Meteu o livro na algibeira. — Já podemos ir?

— Tens de assinar o teu nome na recepção — disse Kelly. — Não te esqueças, tu és Richard Widdicomb.

A saída do hospital foi tão fácil como ele poderia ter desejado. Ao ombro, levava o saco de pano. Kelly tinha também um pequeno saco com as coisas dela. Meteram-se no carro. Jeffrey começou a dar-lhe as indicações necessárias logo que saíram do estacionamento. Já iam a meio caminho do escritório de Randolph quando Jeffrey, de repente, se voltou para ela. A expressão do rosto dele assustou-a imediatamente.

— Que é que há? — perguntou.

— Disseste que esses homens voltaram ao apartamento depois de me terem atirado para o carro? — perguntou Jeffrey.

—Não sei se eles voltaram ao apartamento, mas voltaram a entrar no prédio.

—Meu Deus—exclamou Jeffrey.—A razão por que entraram com tanta facilidade quando eu lá estava era porque tinham as chaves. É evidente que iam com uma finalidade específica.

Jeffrey voltou-se para Kelly.

— Primeiro, temos de voltar a Garden Street.

—Não vamos outra vez ao apartamento do Trent?—Kelly não conseguia acreditar no que ouvia.

—Tem de ser. Temos de ter a certeza que a toxina e a Marcaína ainda lá estão. Caso contrário, voltámos à estaca zero.

—Jeffrey, não! —gritou Kelly. Não podia acreditar que ele quisesse lá voltar pela terceira vez. Cada vez que lá entrara tinham-se defrontado com um novo perigo. Mas Kelly começava a conhecer Jeffrey bastante bem. Sabia que não havia argumento nenhum que o demovesse daquela terceira visita ilícita. Sem mais palavras de protesto, limitou-se a tomar o rumo de Garden Street.

— É a única forma — disse Jeffrey, tanto para convencer Kelly como para se convencer a si próprio.

Ela parou algumas portas mais abaixo do prédio de tijolo amarelo. Depois deixaram-se ficar os dois sentados durante alguns momentos a ordenar as ideias.

—A janela ainda está aberta?—perguntou Jeffrey. Olhou em volta cuidadosamente, para ver se estava alguém a vigiar o prédio ou se se avistava alguma pessoa que parecesse deslocada. Agora começava a preocupar-se com a polícia.

— A janela continua aberta — informou Kelly.

Jeffrey ia a dizer que estaria de volta dentro de dois minutos, mas Kelly interrompeu-o.

— Eu não vou ficar aqui à espera — afirmou, num tom que não admitia discussão.

Sem uma palavra, Jeffrey fez que sim com a cabeça.

Atravessaram a porta principal, depois a porta interior. O prédio estava mergulhado num silêncio lúgubre até ao terceiro andar. Aí, através de uma porta fechada, ouvia-se a balbúrdia dos desenhos animados de sábado de manhã.

Ao chegarem ao quinto andar, Jeffrey fez sinal a Kelly para que fizesse o menos barulho possível. A porta de Harding estava entreaberta. Aproximou-se e ficou à escuta. Apenas se ouviam os sons da cidade que entravam pela janela aberta.

Jeffrey empurrou a porta. A cena que se lhe deparou não era encorajadora. O apartamento estava pior que nunca, muito pior. Tinha sido virado de pernas ao ar. Tudo fora brutalmente despejado para o meio da casa. Todas as gavetas da secretária tinham sido tiradas.

— Rai’s parta! — disse Jeffrey por entre dentes. Depois entrou e precipitou-se para a cozinha. Kelly ficou junto da porta a analisar os estragos.

Ele não demorou um minuto. Kelly não precisou perguntar-lhe nada. O rosto de Jeffrey reflectia aquilo que tinha encontrado.

— Desapareceu tudo — disse, quase em lágrimas. — Até o fundo falso do armário desapareceu.

— Que é que vamos fazer? — perguntou Kelly, pousando-lhe no braço uma mão consoladora.

Jeffrey passou os dedos por entre o cabelo. Continuava a refrear as lágrimas.

— Não sei — replicou. — Com o Trent morto e o apartamento saqueado... — Não conseguiu continuar.

—Agora não podemos desistir—disse Kelly. — Da última vez que falámos, eras tu que me estavas a convencer. Parecias cheio de esperança. Que é feito da tua convicção de que temos que trabalhar com aquilo de que dispomos?

— Tens razão — admitiu Jeffrey, tentando controlar-se. — Há uma hipótese. Vamos até ao gabinete do Médico Legista. Acho que é a altura de contar tudo a Warren Seibert.

Kelly conduziu até à Morgue.

— Achas que o Dr. Seibert está cá num sábado de manhã? — perguntou quando saíam do carro.

—Ele disse que quando tinham muito que fazer trabalhavam praticamente todos os dias — replicou Jeffrey, segurando a porta de entrada da morgue para ela entrar.

Kelly olhou para os motivos egípcios que decoravam o átrio.

— Faz-me pensar nos Contos da Cripta — comentou.

O escritório principal estava fechado. Tudo parecia deserto. Jeffrey conduziu Kelly ao andar de cima.

— Há um cheiro esquisito.

—Isto não é nada—disse Jeffrey.—Espera até chegarmos lá acima.

Subiram as escadas sem terem visto ninguém. A porta da sala de autópsias estava aberta, mas não se encontrava lá ninguém, nem vivo nem morto. O cheiro não era tão mau como quando da primeira visita de Jeffrey. Continuando pelo corredor, passaram a biblioteca poeirenta. Quando espreitaram para o gabinete do Dr. Seibert, viram-no inclinado à secretária, com uma grande caneca de café ao lado e uma pilha de relatórios de autópsia diante dele.

Jeffrey bateu na porta aberta. Seibert deu um salto, mas quando viu quem era espalhou-se na cara um sorriso aberto.

— Dr. Webber... o senhor assustou-me. Jeffrey pediu desculpa.

— Eu sei que devíamos ter telefonado — disse.

—Não tem importância—replicou Seibert. —Mas ainda não recebi notícias da Califórnia. Nem conto receber antes de segunda-feira.

— Não foi propriamente por causa disso que viemos — disse Jeffrey. Em seguida interrompeu-se para apresentar Kelly. Seibert levantou-se e apertou-lhe a mão.

—Por que é que não vamos até à biblioteca?—disse Seibert. —Este gabinete nem sequer tem espaço para três cadeiras.

Depois de instalados, Seibert voltou-se para eles, dizendo:

— Ora bem, em que é que posso ajudá-los? Jeffrey respirou fundo.

— Primeiro, o meu nome é Jeffrey Rhodes.

Em seguida, Jeffrey contou a Seibert toda a sua incrível história. Kelly ajudou-o em certos pormenores. Levaram quase meia hora.

—Agora compreende o nosso problema. Não dispomos de qualquer prova e eu sou um fugitivo. Também não dispomos de muito tempo. A nossa última esperança parece ser Henry Noble. Temos que descobrir a toxina para podermos provar a sua presença em qualquer destes casos.

—Deus do Céu!—exclamou Seibert. Foram as primeiras palavras que pronunciou depois de Jeffrey ter começado o seu relato. —Achei este caso interessante logo desde o início. Neste momento, é o mais interessante que jamais se me deparou. Bom, vamos lá trazer o velho Henry à superfície e ver o que se pode fazer.

— Quanto ao tempo, quanto lhe parece que isso pode demorar? — perguntou Jeffrey.

—Bom, temos de arranjar umalicença de exumação e depois outra para o voltar a enterrar, do departamento de Saúde — disse Seibert.

— Como médico legista não tenho dificuldade em obter qualquer das duas. Por uma questão de deferência, deveríamos informar os parentes mais próximos. Acho que conseguimos isso no espaço de uma ou duas semanas.

—É tempo de mais—replicou Jeffrey. —Temos de actuar imediatamente.

—Julgo que seria possível arranjar uma ordem do tribunal—continuou Seibert —, mas mesmo isso levaria uns três ou quatro dias.

— Ainda é muito tempo — suspirou Jeffrey.

— Mas não vejo outra maneira mais rápida — disse Seibert.

—Vamos tentar saber onde é que ele está enterrado—sugeriu Jeffrey, mudando de assunto. — Disse-me que tinha essa informação.

— Temos o relatório da autópsia e devemos ter uma cópia da certidão de óbito — esclareceu Seibert.—Essa informação deve lá estar.

— Empurrou a cadeira para trás. —Vou buscar os documentos. Seibert saiu da sala. Kelly olhou para Jeffrey.

— Já percebi que tens uma ideia qualquer — disse.

— É muito simples — replicou Jeffrey. — Acho que o que temos a fazer é ir até lá e desenterrar o tipo. Dadas as circunstâncias, não estou com muita paciência para todo este circo burocrático.

Seibert voltou, com uma cópia da certidão de óbito de Henry Noble. Pô-la em cima da mesa, diante de Jeffrey, e inclinou-se sobre o ombro dele.

— Aqui está — disse, apontando para a parte central do documento. — Pelo menos não foi cremado.

— Nem tinha pensado nisso — admitiu Jeffrey.

— Edgartown, Massachusetts — leu Seibert. — Estou cá há relativamente pouco tempo, ainda não conheço bem o estado. Onde é que fica Edgartown?

—É em Martha’s Vineyard — disse Jeffrey. — Mesmo na ponta da ilha.

—Esta é a agência—disse Seibert.—Boscowaney Funeral Home, Vineyard Haven. O proprietário é Chester Boscowaney. Isto é importante saber-se porque ele vai ter o seu papel nisto tudo.

— Como assim? — perguntou Jeffrey. Queria que as coisas fossem o mais simples possível. Se fosse necessário, iria lá ele próprio, a meio da noite, com uma pá e um pé-de-cabra.

— Ele é que tem de confirmar que se trata da urna e do corpo certos —disse Seibert.—Como podem imaginar, tem havido chatices, especialmente quando são funerais de urnas fechadas.

— Coisas que tu desconheces — entrepôs Kelly.

— Como é que são essas autorizações de exumação? — perguntou Jeffrey.

— Nada de complicado — retorquiu Seibert. — Por acaso, tenho aqui uma em cima da minha mesa, diz respeito a um caso em que a família estava preocupada se tinham tirado os órgãos do filho. Quer vê-la?

Jeffrey fez que sim com a cabeça. Enquanto Seibert ia buscar o documento, Jeffrey inclinou-se para Kelly e sussurrou-lhe.

— Sabia-me bem um bocado de ar do mar, e a ti?

Seibert voltou e pôs um papel diante de Jeffrey. Estava escrito à máquina, como qualquer documento legal.

— Não me parece nada de muito especial — comentou Jeffrey.

— Que é que quer dizer? — perguntou Seibert.

— E se eu aparecer aqui com um documento desses e lhe pedir que me faça a exumação de um corpo e verifique umas coisas em que estou interessado? — perguntou Jeffrey. — Que é que diria?

—Todos nós fazemos algum trabalho por conta própria de tempos a tempos. Dir-lhe-ia que isso custava dinheiro.

— Quanto? — perguntou Jeffrey. Seibert encolheu os ombros.

— Não há nenhuma tabela. Se não fosse muito complicado, talvez uns dois mil.

Jeffrey puxou do saco de pano e tirou para fora um dos maços de notas. Contou dois mil em notas de cem. Pô-las em cima da mesa, diante de Seibert. Depois disse:

— Se me emprestar uma máquina de escrever, daqui a uma hora temos uma dessas autorizações de exumação.

— Não pode fazer isso — atalhou Seibert. — É ilegal.

— Sim, mas sou eu que vou correr o risco, não é o senhor. Aposto que nunca verifica se as autorizações são autênticas. Naquilo que lhe diz respeito, esta também é. Eu é que estarei a infringir a lei e não o senhor.

Seibert ficou um momento parado, a morder no lábio.

— Isto é uma situação única — disse. Depois pegou no dinheiro. — Está bem, eu faço o que me pede, mas não por dinheiro. Faço-o porque acredito naquilo que me contou. Se aquilo que me diz é verdade, então não há dúvida de que é o do interesse público seguirmos até ao fim.

—Atirou o dinheiro para o regaço de Jeffrey. —Vamos — disse.

— Eu vou abrir o escritório lá em baixo para poder fazer-nos a autorização de exumação. E enquanto está com a mão na massa, faça também uma autorização para se voltar a enterrar o corpo. Eu, pela minha parte, vou ligar para o Sr. Boscowaney e dizer-lhe que reúna o pessoal e que trate de ver se o coveiro não anda para aí a vadiar.

— Quanto tempo é que tudo isto vai levar? — perguntou Kelly.

— Sempre leva um bocado — disse Seibert. Olhou para o relógio.

— E uma sorte se eu sair daqui pelo meio da tarde. Se conseguirmos arranjar alguém com uma escavadora, ainda conseguimos despachar-nos esta noite. Mas só bastante tarde.

— Então é melhor pensarmos em passar lá a noite — disse Kelly. —Há uma pousada em Edgartown, a Charlotte Inn. E se eu fizesse as reservas?

Jeffrey disse que achava uma boa ideia.

Seibert levou Kelly até ao gabinete de outro colega, para ela poder telefonar. Depois levou Jeffrey até à secretaria e deixou-o em frente da máquina de escrever.

Kelly ligou para a Charlotte Inn e conseguiu reservar dois quartos. Pareceu-lhe um começo auspicioso para a sua demanda. Não lhe agradava nada admiti-lo, mas a única coisa que a preocupava em toda esta aventura era Dalila. E se ela entretanto tivesse os filhotes? A última vez que Dalila tinha tido gatinhos, entrara em choque de cálcio. Tivera que ser levada de urgência ao veterinário.

Pegando novamente no telefone, ligou para Kay Buchanan, que vivia na casa ao lado. Kay tinha três gatos. Já por várias vezes tinham trocado uma com a outra serviços de assistência a felinos.

— Kay, tencionas ficar por aí durante o fim-de-semana? — perguntou Kelly.

—Sim, sim—replicou Kay. — O Harold tem trabalho. Não vamos sair. Queres que dê de comer aos teus pequenos monstros?

— Receio que não seja só isso — disse Kelly. —Eu tenho de ir para fora e a Dalila está a chegar ao fim do tempo. é capaz de ter os gatinhos um dia destes.

— Ela quase morreu da última vez — disse Kay, preocupada.

— Eu sei — replicou Kelly. — Eu ia mandá-la operar, mas ela não me deu tempo. Preferia não ter de a deixar agora, mas não depende de mim.

— Posso entrar em contacto contigo, se houver algum problema?

— Claro. Vou estar em Charlotte Inn, Martha’s Vineyard. — Kelly deu-lhe o número de telefone.

— Na primeira altura eu cobro-te — disse Kay. — Há bastante comida para gatos lá em casa?

— Bastante — replicou Kelly. — Tens de deixar entrar o Samsão. Ele anda na rua.

—Isso sei eu. Ele acaba de ter uma discussão com o meu birmanès. Fica descansada. Eu trato de tudo.

— Fico-te muito agradecida — respondeu Kelly. E desligou, com um sentimento de gratidão por ter uma amiga assim.

—Alò? — disse Frank ao telefone, mas sem ouvir nada em resposta. Os miúdos estavam a ver os desenhos animados de sábado de manhã, com o som muito alto, e isso dava-lhe cabo do juízo.—Espere um momento — disse, pousando o auscultador. Foi até à porta da sala comum. — Eh, Donna, esses miúdos que façam menos barulho, senão a televisão vai pela janela fora.

Frank fechou a porta de correr. O volume ficou reduzido a metade. Frank arrastou os pés até junto do aparelho. Estava vestido com o roupão de belbutina azul e chinelas de tecido aveludado.

—Quem fala?—disse para o telefone quando pegou novamente no auscultador.

—É o Matt. Já tenho a informação que me pediu. Levou mais tempo do que eu esperava. Tinha-me esquecido que era sábado.

Frank tirou um lápis da gaveta.

— Óptimo, diga lá.

— A matrícula que você me deu está registada em nome de Kelly C. Everson — disse Matt. — O endereço é 418 Willard Street, em Brookline. E longe de si?

—Fica mesmo ao virar da esquina—replicou Frank. —Isso é uma boa ajuda.

— O avião ainda aí está — disse Matt. — Quero o doutor.

— Vai tê-lo — ripostou Frank.

— Eu não me irrito com facilidade—disse Devlin para Mosconi. — Mas deixe-me preveni-lo que agora estou furioso. Há qualquer coisa a respeito desse Dr. Jeffrey Rhodes que você não me contou. Qualquer coisa que eu deveria saber.

—Eu disse-lhe tudo—replicou Michael. —Já lhe contei mais coisas acerca deste caso do que sobre qualquer outro em que tenhamos estado envolvidos juntos. Por que é que eu haveria de lhe esconder alguma coisa? Responda-me lá com franqueza. Sou eu que estou à beira de ficar sem trabalho.

—Então como é que o Frank Feranno e um dos seus sequases apareceram em Hatch Shell?—perguntou Devlin. Estremeceu ao mudar de posição na sua cama de hospital. Tinha um trapézio suspenso de uma armação por cima da cama, que usava para se levantar. — Que eu saiba, ele nunca foi caçador de prémios.

—Como diabo é que eu hei-de saber?—ripostou Mosconi.—Oiça, eu não vim até aqui para ouvir as suas reprimendas. Vim ver se você estava tão mal como diziam nos jornais.

— Tretas — disse Devlin. — Você veio mas foi para ver se eu estava incapacitado para apanhar o doutor como lhe prometi.

—Como é que você está?—perguntou Mosconi, olhando para o ferimento por cima da orelha direita de Devlin. Tinham-lhe rapado quase todo o cabelo daquele lado da cabeça para suturar a laceração. À ferida tinha mau aspecto.

— Não tão mal como você vai ficar se me estiver a mentir — disse Devlin.

— É verdade que apanhou três balas? — Mosconi olhou para a ligadura complicada que cobria o ombro esquerdo de Devlin.

— A que me raspou a cabeça falhou — disse Devlin. — Graças a Deus. Senão estava feito. Mas deve-me ter feito perder os sentidos. Houve uma que me apanhou no peito, mas o colete aparou-a. Essa só me deixou uma dor nas costelas. A que acertou no ombro é que entrou. O Frank tinha uma maldita espingarda de assalto. Pelo menos as balas que ele estava a usar não eram explosivas.

—Há uma certa ironia em eu já o ter mandado atrás de assassinos perigosos e você voltar sem um arranhão sequer e agora que eu o mando apanhar um doutorzeco que foi condenado por ter um problema qualquer durante uma anestesia, você quase acaba por ser morto.

— E é por isso mesmo que eu acho que há mais qualquer coisa por detrás deste caso. Qualquer coisa que envolvia esse rapaz que o Tony Marcello limpou. Quando vi o Frank aparecer, pensei que você o tivesse chamado.

— Nunca — replicou Mosconi. —Esse tipo é um assassino. Devlin deitou um olhar a Mosconi, com ar de “quem é que está a

brincar com quem”.

— Eu deixo passar essa — disse. — Mas se o Frank está envolvido no caso, é porque há qualquer coisa em grande escala no meio disto tudo. O Frank Feranno nunca se mete, a menos que haja dinheiro a sério ou jogadores de peso. Geralmente as duas coisas.

Com um estrépito que surpreendeu Mosconi, a barra lateral da cama caiu. Devlin tinha-a soltado. Estremecendo, Devlin usou o braço são para se erguer até ficar na posição de sentado. Depois fez rodar as pernas sobre o lado da cama. Tinha um sistema de venoclise ligado às costas da mão esquerda, mas ele agarrou no tubo e puxou tudo para fora. A agulha soltou-se, com a sua fita adesiva, e começou a esguichar para o chão.

Mosconi estava horrorizado.

— Que diabo está você a fazer? — perguntou, recuando.

— Que diabo lhe parece que eu estou a fazer? — disse Devlin, pondo-se de pé. — Vou buscar a minha roupa que está no armário.

— Você não pode ir-se embora.

— Então veja se posso ou não posso. Que é que eu estou aqui a fazer? Já levei a injecção contra o tétano. Como lhe disse, estou furioso. Além disso, prometi-lhe o doutor dentro de vinte e quatro horas. Ainda tenho algum tempo.

Meia hora depois, Devlin já tinha assinado a sua saída do hospital, contra a vontade dos médicos.

— O senhor assume a responsabilidade total — dissera-lhe uma enfermeira empertigada.

— Dê-me os antibióticos e os comprimidos para as dores e deixe o sermão.

Michael levou-o até Beacon Hill para ele poder ir buscar o carro. Continuava na zona de estacionamento proibido, mesmo ao fundo da colina.

— Vá preparando a mão para escrever o cheque — preveniu Devlin enquanto saía do carro de Mosconi. — Não tardará a receber notícias minhas.

— Continua a achar melhor eu não chamar mais ninguém?

— Seria uma perda de tempo. Além disso, podia ficar furioso consigo, além do Frank Feranno.

Devlin meteu-se no carro dele. O seu primeiro destino foi a esquadra da polícia de Berkeley Street. Queria a pistola de volta e sabia que devia estar lá. Depois de arrumada essa questão, ligou para o detective que tinha contratado para vigiar Carol Rhodes na altura em que pensava que ela o levaria até Jeffrey. Desta vez pediu-lhe que fosse até Brookline e vigiasse a casa de Kelly Everson.

—Quero saber tudo o que acontecer por lá, entendeu?—disse para o homem.

— Não vou conseguir lá chegar senão ao fim da tarde — disse o outro.

— Vá o mais cedo que puder.

Depois de resolvido este assunto, Devlin foi até North End. Depois de estacionar em segunda fila, entrou no Via Veneto Café.

Logo que Devlin entrou, houve um arrastar de pés ao fundo da casa, mesmo atrás do mural que representava uma parte do Fórum Romano. Uma cadeira de costas metálicas caiu ao chão. Devlin ouviu as enfiadas de uma cortina de contas baterem umas nas outras.

Sem perder tempo, Devlin ganhou rapidamente a rua. Passou com destreza pelo meio dos peões até alcançar Bennet Street e voltou à esquerda. Metendo por uma rua estreita, avançou para um homenzinho baixo e careca, de cara redonda.

O homem tentou escapar a Devlin, mas este agarrou-o pelo casaco antes de ele conseguir dar dois passos. Ainda a debater-se, o homem tentou escorregar para fora do casaco, mas Devlin encostou-o à parede.

— Não estás lá muito feliz por me ver, pois não Dominic? — disse Devlin. Dominic era um pequeno elo da cadeia de informadores de Devlin. Devlin estava agora particularmente interessado em falar com ele, por causa da sua velha associação com Frank Feranno.

— Não tive nada a ver com os tiros que o Frank lhe pregou — disse Dominic, tremendo visivelmente. Ele e Devlin também já tinham um relacionamento antigo.

—Se eu pensasse que tinhas, não estaria aqui a falar contigo—disse Devlin com um sorriso que Dominic compreendeu imediatamente.

— Mas estou interessado em saber o que é que o Frank anda a fazer actualmente. Calculei que tu serias a pessoa indicada para me dizeres.

— Eu não lhe posso dizer nada acerca do Frank — disse Dominic.

— Por favor, já sabe aquilo que me acontecia.

—Isso é só se eu disser alguma coisa a alguém. Eu alguma vez disse alguma coisa a teu respeito? Nem sequer à polícia! Dominic não respondeu.

— Além disso — continuou Devlin —, de momento Frank é uma preocupação hipotética. Neste minuto, eu é que sou a tua preocupação. E deixa-me que te diga, Dominic, que não sou nada bom de assoar. — Devlin levou a mão ao blusão e puxou da arma. Sabia que ia produzir o efeito desejado.

— Eu não sei grande coisa — disse Dominic, nervoso. Devlin meteu novamente a arma no coldre.

—Aquilo que pode parecer sem importância para ti pode significar muito para mim. Para quem é que ele está a trabalhar? Quem foi que o mandou limpar aquele rapaz ontem à noite na Esplanada?

— Não sei.

Devlin levou novamente a mão à arma.

—Matt—disse Dominic.—É a única coisa que sei. Tony disse-mo antes de irem para a Esplanada. Ele está a trabalhar para um tipo chamado Matt. De St. Louis.

— E de que é que se tratava? Droga ou qualquer coisa assim?

— Não sei. Mas não creio que fosse droga. Eles tinham de matar o rapaz e mandar o doutor para St. Louis.

—Não me estás a dar a volta, pois não, Dominic?—perguntou Devlin, ameaçador. Tudo aquilo estava muito longe do que tinha imaginado.

— Estou a dizer a verdade — afirmou Dominic. — Para que é que eu ia mentir?

— E Frank sempre mandou o doutor para St. Louis?—perguntou Devlin.

— Não, eles perderam-no. Frank levou o Nicky com ele depois de o Tony ter sido morto. Desta vez, a namorada do doutor apanhou-o com o carro e partiu-lhe um braço.

Devlin sentia-se impressionado. Pelo menos, já não era o único profissional a ter problemas com o doutor.

— Então o Frank continua metido no caso? — perguntou Devlin. —Sim, tanto quanto eu sei—replicou Dominic. — Acho que ele falou com Vinnie d’Agostino. Parece que há muito dinheiro em causa.

— Quero informações sobre esse tipo de St. Louis — disse Devlin. — E quero saber o que é que o Frank e o Vinnie andam a fazer. Usa os números habituais. Escuta, Dominic, se não telefonas vou ficar ofendido. E tu sabes como é que eu sou quando estou ofendido. Não me parece que tenha de te mostrar como é.

Devlin largou Dominic. Voltou-se e saiu da ruela sem olhar para trás. O tipo bem podia apresentar alguma coisa. Devlin não estava com disposição para andar a perder tempo e, além disso, estava decidido a descobrir em que é que Frank Feranno andava metido.

A euforia de Frank evaporou-se quando deu com os olhos na casa de Kelly. Tinha um ar deserto, com todas as cortinas corridas. Frank suspirou. Os tais setenta e cinco mil estavam mais longe do que ele pensara.

Durante cerca de meia hora, deixou-se ficar ali sentado a vigiar a casa. Ninguém entrou nem saiu. Não havia sinais de vida, para além do gato siamês indolentemente estendido no relvado do lado da rua, como se tudo aquilo fosse dele.

Finalmente, Frank saiu do carro. Primeiro deu a volta pelo lado da casa, para ver se havia alguma janela na garagem. Havia. Pondo as mãos em concha, espreitou lá para dentro. Nada de Honda Accord vermelho como o que ele perseguira na noite anterior em BeaconHill. Voltando à parte da frente da casa, Frank resolveu tocar à campainha e ver o que acontecia. Por uma questão de segurança, tacteou a arma. Depois tocou.

Como não acontecesse nada, encostou a orelha à porta e carregou de novo no botão. Ouvia o toque ressoar no interior, portanto a campainha funcionava. Usando novamente as mãos em concha, olhou pelos vidros laterais. Não se via grande coisa por causa da cortina de renda.

“Rai’s parta”, pensou, voltando-se para a rua. O siamês continuava estendido no meio do relvado.

Atravessando o relvado, Frank inclinou-se e fez uma festa ao gato. Samson olhou-o desconfiado, mas não fugiu.

— Gostas, einh, gatinho? — disse Frank. Nessa altura, uma mulher saiu da casa ao lado e avançou para ele.

— Tens um amigo, Samson? — perguntou.

—O gatinho é seu, minha senhora?—perguntou Frank no seu tom mais amável.

— Não propriamente — disse a mulher, dando uma risada. — É mas é o inimigo mortal do meu birmanês. Mas, sendo vizinhos, temos de aprender a entender-nos.

— É um belo gato—declarou Frank, endireitando-se. Preparava-se para perguntar por Kelly Everson, quando a mulher se dirigiu para a porta de entrada.

— Vamos, Samson — chamou, dirigindo-se ao siamês. — Vamos ver a Dalila.

— Vai para casa de Kelly? — perguntou Frank.

— Vou, sim.

—Óptimo—replicou Frank, e aproximou-se dela.—O meu nome é Frank Cárter, sou primo da Kelly. Resolvi vir até cá, esperando poder encontrá-la.

—Eu sou Kay Buchanan—disse a mulher, estendendo-lhe a mão. — Sou vizinha da Kelly e às vezes faço de ama de gatos. Mas parece-me que vai ter muito que esperar. A Kelly foi passar o fim-de-semana fora.

—Bolas — disse Frank, fazendo estalar os dedos. —A minha mãe é que me deu o endereço para eu a vir visitar. Não vivo cá. Vim só por dois dias, em negócios. Quando é que ela volta?

— Não disse — replicou Kay. — Mas que pena.

—Especialmente hoje que eu não tenho praticamente nada que fazer. Faz ideia para onde é que ela foi?

—Martha’sVineyard. Julgo que para Edgartown—informou Kay. —Ela disse que não podia deixar de ir. Cá para mim, acho que foi uma aventura romântica. Mas não achei mal. Para a falar verdade, até fiquei contente por ela. A Kelly precisa de sair mais. Já chega de luto, não acha?

— Sem dúvida nenhuma — disse Frank, na esperança de que os comentários não passassem dali.

—Bom, tive muito prazer em conhecê-lo—disse Kay. —Tenho de ir tratar dos gatos. A outra é que me dá preocupações. Se acha que o Samson é grande, devia ver aDalila. Pode-se dizer que ela dá um sentido novo à expressão “gato gordo”. Está para dar à luz. Olhe, talvez pudesse passar por cá na segunda-feira. Se ainda estiver em Boston. Calculo que a Kelly já esteja de volta nessa altura. E acho bem que esteja. Não vou servir de ama a uma ninhada completa!

— Talvez eu possa ligar para ela — disse Frank. Agradava-lhe a ideia da tal viagem romântica. Isso provavelmente queria dizer que o doutor tinha ido com ela. — Faz ideia onde é que está hospedada?

—A Kelly falou-me em Charlottelnn—esclareceu Kay. —Vamos, Samson, vem.

Frank ofereceu a Kay um dos seus sorrisos mais sinceros enquanto ela se dirigia para a porta da frente e retirava a chave da lanterna. Frank voltou para o carro.

Depois de o ter posto em movimento, deu a volta sobre si mesmo. Uma das coisas que ele resolvera em relação aos setenta e cinco mil era que não ia dizer nada à Donna. Havia de o esconder em qualquer lado. Talvez fizesse uma viagem às Caraíbas.

A ideia de uma pequena excursão adicional a Martha’s Vineyard também lhe agradava. E entretanto teve uma ideia brilhante. Já que tinha de meter o doutor no avião de Matt, por que não levar o avião até à ilha? Era o que se chamava ter sentido prático, disse para consigo próprio.

Enquanto rolava em direcção à cidade, Frank começou a pensar quem é que havia de levar com ele, caso não conseguisse encontrar Vinnie d’Agostino. Não havia dúvidas que ia sentir a falta de Tony. Era uma pena aquilo que acontecera. Frank pensou também em Devlin e se deveria ir visitá-lo no hospital para lhe dizer que não lhe tinha rancor. Mas decidiu não ir. Não tinha tempo.

Descendo Hanover Street, Frank estacionou em terceira fila em frente do Via Veneto Café. Carregou na buzina. Não tardou a que alguém saísse do café e tirasse um dos carros, deixando espaço para Frank. O trânsito que se acumulara em Hanover Street começou a avançar. Alguns dos carros buzinaram-lhe por os ter feito esperar. “Vai-te lixar!” gritou Frank pela janela. Era espantoso como certas pessoas tinham falta de consideração pelos outros, pensou.

Frank entrou no café e apertou a mão ao proprietário que saíra de detrás da caixa registadora para o cumprimentar. Frank instalou-se numa mesa, perto do balcão, que tinha um pequeno cartão com a palavra “reservada”. Pediu um café duplo e acendeu um cigarro.

Quando os seus olhos já estavam habituados à luz fraca do café, virou-se e passou revista à sala. Não viu Vinnie, mas viu Dominic. Frank fez sinal ao proprietário. Disse-lhe que pedisse a Dominic para ir falar com ele.

Momentos depois, um Dominic muito nervoso aproximou-se da mesa de Frank.

— Que é que tu tens? — perguntou Frank, olhando para ele.

— Nada — disse Dominic. — Acho que bebi café a mais.

— Sabes do Vinnie?

— Está em casa — disse Dominic. — Esteve aqui há meia hora.

— Vai-lhe pedir que venha cá. Diz-lhe que é importante. Dominic fez que sim com a cabeça e desapareceu pela porta da frente.

— E que tal uma sanduíche? — disse Frank para o proprietário. Enquanto comia, tentou lembrar-se onde em Edgartown ficava Charlotte Inn. Só lá estivera umas duas vezes. A cidade não era grande, pelo menos segundo aquilo de que se lembrava. Aliás, o que tinha de maior era o cemitério.

Vinnie chegou com Dominic. Vinnie era um tipo novo e musculoso que achava que todas as mulheres andavam atrás dele. Frank sempre tivera um certo receio de trabalhar com ele, por o achar um bocado temerário, sempre a tentar evidenciar-se. Mas agora que Tony morrera e com Nicky incapacitado, Frank não tinha muito mais a quem recorrer. Sabia que não podia usar Dominic. Era um pedaço de asno. Sempre fora extremamente nervoso. Era um problema, especialmente se alguma coisa não corresse bem.

Frank aprendera isso à sua própria custa.

— Senta-te Vinnie — disse. — Que tal uma viagem de borla a Charlotte Inn, em Edgartown?

Vinnie pegou numa cadeira e sentou-se ao contrário, inclinando-se para a frente por cima do espaldar para fazer sobressair os músculos das costas. Frank pensou que ele tinha muito que aprender.

— Dominic — disse Frank —, e se fosses dar uma volta? Dominic saiu pelas traseiras do café e correu para a doçaria em

Salem Street. Havia um telefone público ao fundo da casa. Puxou dos números de telefone de Devlin e marcou o primeiro. Quando Devlin apareceu em linha, Dominic pôs as mãos em conha em volta do auscultador antes de começar a falar. Não queria que ninguém ouvisse.

 

                                     Sábado, 20 de Maio de 1989, 19:52

—Ainda bem que não tentámos vir de avião—disse Kelly para Jeffrey enquanto um jacto se fazia ouvir à distância. —Ainda cá não estávamos, com certeza. Parece que o nevoeiro só agora é que começou a levantar.

—Pelo menos parou de chover—disse Jeffrey. Olhou para a pá da escavadora que se enterrava na terra macia.

Tinham atravessado para a ilha no barco de carreira que partia de Woods Hole. Era uma sorte terem levado a viatura oficial de Seibert, de Médico Legista, com o selo oficial na porta e tudo. Não teriam conseguido arranjar lugar no barco se não fosse Seibert insistir que estava em serviço oficial. Como iam na carrinha e não no Honda de Kelly, tinha sido mais fácil convencê-los. Mesmo assim, com certa relutância. E fora o último carro a entrar.

A viagem decorrera sem incidentes. Entre o nevoeiro e alguma chuva miudinha, tinham passado a maior parte do tempo no interior do barco, à procura de um canto de não fumadores para se sentarem. Jeffrey e Kelly tinham-se dedicado a estudar o livro de endereços de Trent, mas não encontraram nenhuma pista.

A única coisa que chamara a atenção de Jeffrey era um Matt que aparecia nos “D’s”. Jeffrey perguntava a si mesmo se seria o mesmo Matt que deixara a mensagem telefónica quando Jeffrey entrara no apartamento pela primeira vez. O código de zona era o 314.

— Onde é o 314? — perguntou Jeffrey a Kelly.

Kelly não sabia. Jeffrey perguntou a Seibert, que estava mergulhado numa revista da especialidade que trouxera para o caminho.

— Missouri — disse Seibert. — Tenho uma tia em St. Louis. Depois de chegarem a Vineyard Haven, a cidade maior de Martha’s

Vineyard, tinham ido directamente para a Agência Funerária, a Boscowaney Funeral Home. Graças ao telefonema de Seibert nessa manhã, Chester Boscowaney estava à espera deles.

Chester era um homem de cinquenta e muitos anos, com excesso de peso e as bochechas tão coradas que pareciam pintadas. Vestia um fato escuro, completo, com colete, relógio de bolso e corrente com berloque. Tinha uns modos untuosos, mesmo servis. Agarrara o maço de notas de cem dólares que Jeffrey lhe oferecera a conselho de Seibert com a avidez de um cão faminto.

— Está tudo preparado — disse num murmúrio, como se estivessem no meio de um funeral. —Encontro-me lá convosco.

Kelly, Jeffrey e Warren tinham seguido de carro para Edgartown, onde se instalaram em Charlotte Inn. Kelly e Jeffrey registaram—se como o Sr. e a Sr.a Everson.

Aúnica dificuldade tinha sido ohomem que trabalhava com a escavadora, Harvey Tabor. Encontrava-se em Chappaquiddick a escavar uma fossa para uma casa de praia e não podia estar no cemitério antes das quatro. E mesmo às quatro não tinha podido aparecer. Explicara que a mulher tinha feito um almoço especial por causa do aniversário da filha e que só depois é que podia ir ter com eles ao cemitério.

Tinham conseguido pôr as coisas em andamento um pouco depois das sete. A primeira coisa que Jeffrey fez notar a Seibert era que ninguém tinha pedido para ver as autorizações. Boscowaney nem sequer tinha perguntado se as tinham. Seibert respondera que, mesmo assim, era bom tê-las à mão.

—As coisas nunca estão acabadas enquanto não chegam ao fim — comentou.

O coveiro do cemitério era um tipo chamado Martin Cabot. Tinha o rosto marcado, a figura magra. Parecia mais um marinheiro curtido pela intempérie do que um encarregado de cemitério. Tinha ficado um minuto a observar Seibert antes de comentar:

— É novo de mais para ser médico legista.

Warren disse-lhe que tinha conseguido saltar o terceiro ano, de forma que tirara o curso mais depressa. Também lhe disse que era um clínico, e não apenas médico legista. Jeffrey ficou a pensar que Warren devia ser sensível a esse aspecto.

O coveiro e o homem da escavadora não pareciam entender-se lá muito bem. Martin não parava de dizer a Harvey onde devia colocar-se e aquilo que devia fazer. Harvey respondeu a Martin que já trabalhava com aquela máquina há tempo suficiente e que não precisava de conselhos.

O chão tinha sido escavado já depois das sete e meia, por detrás da pedra tumular em granito na qual se via o nome de Henry Noble. Era um sítio agradável, debaixo de um bordo frondoso.

— Isto é encorajador — disse Seibert. — Com esta sombra toda, deve haver menos deterioração e putrefacção.

Kelly sentira o estômago dar uma volta.

Ouviu-se um rangido vindo do chão.

— Cuidado! — gritou Martin. — Vai rebentar a tampa da cripta. —Uma linha de cimento manchado apareceu no meio da terra fresca.

— Cala a boca, Martin — disse Harvey, ao mesmo tempo que descia a pá para o buraco. Bateu ao de leve no cimento. Harvey puxou a pá para ele e depois para cima. Uma grande parte da tampa da cripta ficou à vista.

— Não partas as pegas — gritou Martin.

Kelly, Seibert e Jeffrey estavam de um dos lados do túmulo, Chester e Martin do outro. O Sol ainda era bem visível, embora já estivesse baixo e fosse obscurecido por algumas nuvens de chuva. Franjas de nevoeiro rodopiavam sobre o cemitério, levadas pela brisa marítima. Martin tinha enrolado um pedaço de corda em volta de um dos ramos do bordo. A visão da corda recordou a Jeffrey um nó de carrasco, embora a única coisa que estava suspensa dele fosse uma lâmpada solitária. A luz incidia directamente na trincheira que a escavadora estava a abrir.

Kelly estremeceu, mais pelo empreendimento que de frio, embora o ar estivesse a ficar cada vez mais fresco. O quarto confortável com o seu papel de parede vitoriano, em Charlotte Inn, parecia-lhe bem longe dali. Estendeu o braço e segurou na mão de Jeffrey.

Foram precisos mais quinze minutos para afastar o resto da terra que cobria a placa de cimento. Quando ficou a descoberto, Harvey e Martin desceram para cima dela, para retirar às pazadas o resto de terra que ainda havia no túmulo.

Depois Harvey instalou-se novamente na escavadora e colocou a pá por cima da placa de cimento. Ele e Martin meteram-se no buraco para passar os cabos de aço entre os punhos da placa e os dentes da pá.

— Está bom, Martin, salta lá para fora — disse Harvey, contente por dar uma ordem a Martin, para variar. Subiu para a máquina. Depois, olhando para Jeffrey, Kelly e Seibert, disse:

— Vocês têm de sair daí. Vou rodar a parte de cima para o vosso lado. — Os três fizeram o que ele disse. Depois de se terem desviado, Harvey retomou o trabalho.

O motor da escavadora grunhiu e gemeu. Depois, com um ruído semelhante ao saltar de uma rolha de garrafa, a tampa da cripta deslocou-se. Jeffrey viu que tinha sido selada com uma substância semelhante ao alcatrão. A pá da escavadora fez rodar a lage de cimento e pousou-a no chão.

Todos se chegaram para a beira da cova. No interior da cripta havia uma urna de prata.

— Não é uma beleza? — disse Chester Boscowaney. — É um dos melhores que temos. Não há nada melhor que um caixão Millbronne.

— Não há água na cripta — disse Seibert. — É bom sinal.

Os olhos de Jeffrey percorreram o cemitério. Era uma visão sinistra. A noite caía rapidamente. As lápides desenhavam sombras estreitas e purpúreas ao longo do chão.

— Bom, que é que o senhor quer que a gente faça, Doutor? — perguntou Martin a Seibert. — Quer que tiremos o caixão para fora ou quer ir lá abaixo e abri-lo ali mesmo?

Jeffrey compreendeu que Seibert estava a tentar chegar a uma conclusão.

—Nunca gostei de me meter nessas criptas—disse. — Mas se vamos trazer o caixão para fora leva mais tempo. A minha opinião é que quanto mais depressa despacharmos isto, melhor. Já estou a sonhar com um bom jantar.

O estômago de Kelly deu outra volta.

— Posso ajudá-lo? — perguntou Jeffrey. Seibert olhou para ele.

— Já alguma vez fez um trabalho destes? É um bocado sinistro e não posso garantir-lhe como vai ser o cheiro, especialmente se houver água lá dentro.

— Não há problema — disse Jeffrey, apesar das suas apreensões.

— Isso é um caixão Millbronne—disse ChesterBoscowaney cheio de orgulho. Tem um vedante de borracha a toda a volta. Não há água com certeza.

—Já ouvi isso em qualquer lado — sussurrou Seibert. — Bom, vamos a isto.

Jeffrey e Seibert desceram para a orla de cimento e depois desceram novamente, um para cada lado do caixão. Seibert colocou-se aos pés, Jeffrey, à cabeça.

— Deixe-me ver a alavanca — disse Seibert. Chester passou-lha.

Seibert tacteou com a mão até encontrar o sítio certo. Depois, inserindo o ferro no orifício, tentou virá-lo. Teve de lhe aplicar o peso do corpo para ele mexer. Por fim, deu a volta com um guincho de agonia. Kelly estremeceu.

O selo do caixão cedeu com um ruído sibilante.

— Ouvem aquele ar? — disse Chester Boscowaney. — Não vai haver água nenhuma lá dentro, reparem no que eu lhes digo.

— Ponha os dedos por baixo do rebordo — disse Seibert para Jeffrey — e puxe para cima.

A tampa abriu-se com um estalido. Toda a gente olhou lá para dentro. A cara e as mãos de Henry Noble estavam cobertas com uma teia fina de bolor branco. Por baixo, a pele era de um cinzento escuro. Estava vestido com um fato azul-escuro, camisa branca, gravata com cornucópias. Os sapatos pareciam novos e luzidios. No cetim branco do interior havia uma cultura de míldio verde.

Jeffrey tentava respirar pela boca para evitar o cheiro, mas com grande surpresa sua não era assim tão mau. Era um cheiro mais a bailo que a decomposição, como o de uma cave que não fosse aberta há muito.

— Parece em muito bom estado — disse Seibert. — Os meus parabéns à agência. Não há sequer vestígios de água.

— Obrigado — disse Boscowaney.—E posso garantir-lhe que estão a olhar para o corpo de Henry Noble.

— Que é aquela teia branca? — perguntou Jeffrey.

— Um fungo qualquer — explicou Seibert. Pediu a Kelly que lhe passasse o seu estojo. Kelly estendeu-lhe o saco preto.

Seibert avançou pelo lado do caixão. Mal tinha onde pôr os pés. Pousando o saco sobre as coxas de Henry Noble, abriu-o e tirou de lá um par de pesadas luvas de borracha. Depois de ter calçado as luvas, começou a desabotoar a camisa do homem.

— Que é que quer que eu faça? — perguntou Jeffrey.

—Por enquanto, nada—replicou Seibert. Expôs a sutura feita por ocasião da autópsia. Retirando uma tesoura do saco, cortou as suturas, depois afastou os bordos da ferida. O tecido estava seco.

Jeffrey endireitou-se. O cheiro tornava-se agora mais insuportável, mas Seibert parecia indiferente.

Seibert abriu a ferida, depois meteu a mão dentro da cavidade toráxica e tirou para fora um pesado saco de plástico transparente. O conteúdo apresentava-se escuro. O saco continha bastante líquido. Erguendo o saco de encontro à luz, Seibert rodou-o lentamente, examinando o que havia lá dentro.

—Eureka! — exclamou por fim. —Aqui está o fígado. —Apontou, mostrando o saco a Jeffrey.

Jeffrey não tinha a certeza se queria olhar, mas resolveu fazer um comentário agradável.

— Aposto que ainda tem a vesícula agarrada.

Seibert pousou o saco sobre o tronco de Henry Noble e retirou-lhe o atilho. Um odor bastante desagradável encheu o ar húmido da noite. Seibert meteu a mão no saco e tirou de lá o fígado. Voltando-o, mostrou a Jeffrey a vesícula.

— Perfeito — disse. — Ainda está húmido. Receava que estivesse seco.—Apalpou o pequeno órgão. —Também tem algum fluido lá dentro. Pondo o fígado e a vesícula em cima do saco de plástico, Seibert foi novamente ao saco preto e tirou de lá uma seringa e vários frascos para amostras.

Todos observavam tão atentamente os esforços do Dr. Seibert que não se aperceberam de nada do que se passava em volta. Não notaram que um Chevrolet Celebrity azul, de aluger, tinha entrado no cemitério com as luzes apagadas. Não ouviram o abrir das portas nem o som de dois homens a aproximarem-se.

Para Frank a tarde mais uma vez não fora fácil. Mais uma vez aquilo que ele pensava que iria ser uma operação simples acabara por se transformar numa forte dor de cabeça. Estava todo entusiasmado com a ideia de fazer a viagem num jacto particular, uma coisa que nunca experimentara antes. Mas depois de se meter no avião e de ter apertado o cinto, acometera-o uma crise de claustrofobia. Nunca se apercebera de como aqueles aviões particulares eram pequenos. Depois, para tornar as coisas piores, não tinham conseguido descolar imediatamente por causa do volume de trânsito de chegadas que havia em Logan. E ainda por cima o tempo tinha mudado.

Aprincípio, um banco de nevoeiro tinha envolvido o Cabo e as ilhas, a seguir uma forte trovoada avançara do oeste, chicoteando a cidade com uma chuva de pedra do tamanho de berlindes. Frank tinha saído do avião para aguardar o fim da tempestade no terminal geral. Quando finalmente lhes tinha sido dada autorização para descolarem e a visibilidade era suficientemente boa para aterrarem em Vineyard, já eram quase seis da tarde.

Depois, para tornar as coisas ainda piores, o voo tinha sido um autêntico pesadelo. Com toda a turbulência que havia, o avião balançava que nem uma rolha de cortiça ao sabor da corrente. Frank acabara por enjoar e teve de vomitar num saco de papel. Entretanto, Vinnie não se cansava de dizer que o avião era uma maravilha. Tinha mastigado amendoins e batatas fritas durante toda a viagem.

Quando chegaram a Martha’s Vineyard, Frank estava sem forças. Mandara Vinnie à agência de aluguer de carros, enquanto ele ficava na casa de banho dos homens. Só depois de ter comido algumas bolachas de água e sal e ter bebido uma Coca-Cola é que começou a sentir-se novamente em forma.

Tinham ido directamente para Charlotte Inn. Na recepção perguntaram por Kelly Everson. Frank usou a mesma artimanha de se dizer parente dela, mas agora tinha melhorado um pouco a história, dizendo que queria fazer uma surpresa à prima. Ele e Vinnie tinham trocado algumas piscadelas de olhos perante a pequena manha. Não havia dúvida que planeavam uma surpresa. Ambos estavam armados, com as pistolas discretamente escondidas em coldres que usavam ao ombro, e Frank tinha mais uma dose de tranquilizante na algibeira.

Mas afinal de contas a surpresa acabara por ser para Frank. A mulher que estava na recepção em Charlotte Inn disse-lhes que achava que os Eversons estavam no cemitério de Edgartown. Acrescentou que o Sr. Everson estivera algum tempo ao telefone, ali mesmo ao lado da recepção, a tentar marcar um encontro com Harvey Talbor, o homem que trabalhava com uma escavadora.

De volta ao carro, Frank dissera para Vinnie:

— O cemitério? Não estou a gostar nada disto.

Primeiro tinham dado a volta ao cemitério. Era grande, mas via-se facilmente o grupo, ao centro. Havia uma luz numa árvore que iluminava as quatro pessoas alinhadas em frente de uma escavadora.

— Que é que quer que eu faça? — perguntou Vinnie. Era ele que ia ao volante.

— E que diabo pensas tu que eles estão a fazer? — perguntara Frank.

— Parece-me que estão a desenterrar alguém — respondera Vinnie, com um riso macabro. — É como nos filmes de terror.

— Isto não me agrada nada — disse Frank. — Primeiro é o Devlin que aparece na Esplanada, agora o doutor está num cemitério à noite, a desenterrar pessoas. Isto não me parece que esteja a bater certo. E além disso até me arrepia.

Frank tinha dito a Vinnie que desse a volta ao cemitério pela segunda vez, enquanto ele pensava no que havia de fazer. Fora uma boa decisão. Do lado oposto, tinham conseguido ver que havia mais duas pessoas junto do túmulo aberto. Por fim, Frank disse:

—Vamos despachar isto. Apaga a luzes e aproxima o carro até meio caminho. Depois vamos a pé.

Devlin também não tivera muito mais sorte que Frank. Tinha tomado um avião comercial e passara a maior parte do tempo sentado, na pista em Boston. Mesmo depois de o avião se ter posto a caminho, tinham feito uma paragem em Hyannis que durara quarenta minutos. Devlin só conseguira chegar a Vineyard depois das sete. Depois de chegar tivera de esperar pela arma que a segurança do aeroporto tinha impedido que ele transportasse dentro do avião. Quando chegou a Charlotte Inn eram quase nove horas.

— Desculpe — disse à mulher que trabalhava na recepção. Ela estava a ler à luz de um candeeiro de latão antigo.

Devlin sabia que ainda estava com pior aspecto que o habitual, com a ferida suturada na cabeça. Com todo o cabelo que lhe tinham cortado, não conseguira fazer o rabo de cavalo do costume. Em vez disso, tentara pentear o cabelo para o outro lado da cabeça, cobrindo a sutura. O resultado era, no mínimo, bastante inquietante.

A mulher levantou os olhos e teve um movimento de recuo quando viu Devlin. Além de tudo o mais, Devlin estava certo de que não entravam muitos clientes na Charlotte Innn que usassem um brinco com a cruz de Malta.

— Gostava que me informasse sobre alguns dos seus clientes — começou. — Infelizmente, é possível que se tenham registado com nomes falsos. Um deles é uma mulher ainda nova, de nome Kelly Everson. — Devlin descreveu-a. — O outro é um homem de uns 40 anos. Chama-se Jefrey Rhodes e é médico.

— Lamento muito, mas não damos informações sobre os nossos clientes—respondeu a mulher secamente. Tinha-se levantado da cadeira e dera um passo para trás como se receasse que Devlin a agarrasse e a sacudisse para conseguir as suas informações.

—É uma pena — replicou Devlin. — Mas talvez me possa dizer se um tipo grande e gordo, de cabelos escuros e com os olhos um bocado inchados e encovados não esteve aqui a perguntar pelas mesmas pessoas. O nome dele é Frank Feranno, mas ele não faz questão quanto ao nome que usa quando está a trabalhar.

— Talvez seja melhor falar com o gerente — disse ela. —Basta-me falar consigo — disse Devlin. — Esse homem esteve

cá? E mais ou menos desta altura. — Devlin esticou a mão para indicar a altura de Frank.

Amulher estava visivelmente perturbada e cedeu, na esperança de conseguir que Devlin se fosse embora.

—Quem esteve aqui foi um tal Frank Everson, primo da Sr.a Everson — disse ela. — Mas não veio nenhum Frank Feranno. Pelo menos desde que eu aqui estou.

—E que foi que disse a este pretenso primo? — perguntou Devlin. — Isso não quereria dizer que me estava a dar uma informação sobre um cliente, pois não?

— Disse-lhe que os Eversons deviam estar no cemitério.

Devlin piscou os olhos. Ficou um momento a estudar o rosto da mulher, para ver se vacilava, mas ela aguentou-lhe o olhar com firmeza. O cemitério? Devlin não achava que a mulher estivesse a mentir. Seria esta mais uma faceta bizarra daquele caso já tão estranho?

— Qual é o caminho mais rápido para o cemitério? — perguntou Devlin. Fosse o que fosse que estava a acontecer, tinha o pressentimento de que não havia tempo a perder.

— Siga por esta rua e volte na primeira à esquerda — disse a mulher —, não tem nada que enganar.

Devlin agradeceu e correu para o carro o mais depressa que o braço entrapado lhe permitia.

Jeffrey ficou a ver Seibert equilibrar o fígado de Henry Noble na mão esquerda. Segurando-o com o braço esticado para que o líquido de embalsamar não lhe pingasse a roupa, abriu o saco de plástico que continha os restantes órgãos internos de Henry Noble, já em decomposição. Jeffrey estremeceu quando Seibert, sem cerimónias, deixou cair o fígado outra vez dentro do saco e o amarrou bem para que o fluido não se derramasse.

Seibert preparava-se para repor o saco no seu lugar primitivo dentro do corpo de Henry Noble, quando uma voz disse:

— Que diabo está a acontecer aqui?

Juntamente com os outros, Jeffrey olhou para cima, na direcção de onde viera a voz. Um homem avançou para o círculo iluminado. Vestia calças escuras, camisa branca, uma camisola e um blusão escuro. Na mão tinha uma arma.

— Santo Deus! — exclamou Frank enojado. Estava pasmado com a visão macabra do túmulo aberto. A náusea que sentia antes voltou, e com maior intensidade.

Jeffrey reconheceu-o imediatamente como sendo o homem que tinha visto na Esplanada e à porta da Igreja do Advento. Como é que ele teria conseguido encontrá-los? E que era que ele queria?

Jeffrey desejou ter uma arma, um meio qualquer de se defender. Da última vez, não se tinham poupado a esforços para conseguir drogá-lo.

Frank teve um vómito perante a visão horrenda e o cheiro insuportável. Tapou a boca com a mão que estava livre e voltou-se de frente para Kelly, Chester e Martin. Com um aceno da arma, ordenou a Jeffrey e Seibert que saíssem do túmulo.

Seibert trepou cá para fora, perguntando a si mesmo se o intruso seria algum parente de Henry Noble.

— Eu sou o Médico Legista — disse, na esperança de dar à situação um ar oficial e assumir o controlo dos acontecimentos. Seibert já tinha tido que enfrentar parentes furiosos noutras ocasiões. Ninguém gostava de autópsias, especialmente os parentes. Foi colocar-se entre Frank e os outros.

Jeffrey notara a reacção de Frank ao ver Henry Noble e tinha-o visto voltar a cara. Estendendo o braço, pegou no saco de plástico que continha os órgãos de Noble. Devia pesar uns dezoito a vinte quilos. Saindo da cripta para o relvado, segurou o saco de lado, ligeiramente para trás.

—Não estou interessado em ti—disse Frank para Warren, empurrando-o rudemente para o lado. — Chegue aqui, Dr. Rhodes.

Frank passou a arma para a outra mão, depois procurou qualquer coisa na algibeira, até que finalmente apareceu com uma seringa.

— Vire-se — ordenou a Jeffrey. — Vinnie, cobre...

Jeffrey rodou o saco de plástico com as duas mãos, fazendo-o passar por cima da cabeça para ir cair com toda a força directamente em cima de Frank. O saco estoirou com o impacte, obrigando Frank a cair de joelhos com as mãos no chão. A seringa saltou para a pilha de terra; a arma deslizou para o túmulo, caindo com uma pancada seca em cima da lage e depois dentro do caixão.

A princípio, Frank ficou meio estonteado, sem perceber o que lhe tinha acertado. Depois olhou com horror para aquilo que estava espalhado por cima dele e à sua volta no chão. Reconhecendo o cérebro e as curvas enegrecidas do intestino, vomitou violentamente. Por entre os vómitos, tentou sacudir os pedacinhos que tinha em cima da cabeça e dos ombros.

Jeffrey ainda tinha na mão o saco de plástico vazio quando Vinnie saiu para a esfera da luz, vindo da periferia não iluminada. Tenso e nervoso, segurava a arma com as duas mãos.

—Que ninguém se mexa!—gritou.—Quem se mexer é um homem morto! —Fez rodar a arma, com movimentos bruscos, de uma pessoa para outra.

Jeffrey não tinha visto o cúmplice de Frank. Se tivesse, talvez não se arriscasse a atacá-lo.

Sempre com a arma apontada ao grupo, Vinnie aproximou-se de Frank, que se levantara a cambalear. Estava agora de pé, com os braços esticados, a sacudir o fluido das mãos.

— Você está bem, Frank? — perguntou Vinnie.

— Onde raio está a minha arma?—foi a única coisa que Frank disse, à guisa de resposta.

— Foi parar dentro da cova — respondeu Vinnie.

—Vai buscá-la! — ordenou Frank. Correu o fecho do blusão e despiu-o cuidadosamente, depois atirou-o para o chão.

Vinnie aproximou-se da cova e espreitou, nervosamente, tentando localizar a arma. Estava bem à vista, entre os joelhos do cadáver. Henry Noble parecia que estava a olhar para ele.

— Nunca estive dentro de um túmulo — disse Vinnie.

— Vai buscar a arma! — berrou Frank. Deitou um olhar furioso a Jeffrey e disse: — Seu patife. Acha que o vou deixar escapar depois desta sua habilidade?

— Que ninguém se mexa! — disse Vinnie. Chegou-se mesmo à beira da sepultura. Desviando o olhar um momento, saltou lá para baixo. Voltou imediatamente a olhar para trás. A cabeça dele ainda estava acima do nível do chão. A arma de Vinnie apontava directamente para Chester, que se encontrava, com os joelhos a tremer, entre Kelly e Martin. Harvey estava à esquerda de Martin. Jeffrey estava mais próximo de Frank, e Seibert entre Frank e os outros.

Quando Vinnie se inclinou para pegar na arma, Jeffrey apostou em duas coisas: uma, que conseguiria desaparecer na escuridão com a rapidez suficiente para fugir a Vinnie, outra que, visto que era ele que os dois homens procuravam, o mais provável era que fossem ambos atrás dele e deixassem os outros em paz. Só acertou na primeira.

Enquanto corria em direcção à parte mais escura, ouviu Frank gritar:

— Atira-me a arma, cretino!

Saindo do círculo de luz, Jeffrey foi imediatamente envolvido pela escuridão. Os olhos levaram uns momentos a adaptar-se. Quando conseguiram, apercebeu-se de que não estava tão escuro como julgara. Reflexos das luzes da cidade circundante reverberavam na relva húmida. As silhuetas das pedras tumulares eram como que um aviso sinistro de que aquela era a casa dos mortos.

De repente, surgiu diante de Jeffrey um carro preto, estacionado. Parou o tempo suficiente para ver se havia chaves na ignição, mas não as encontrou. Olhando para trás para o ponto de luz por cima do túmulo de Henry Noble, Jeffrey conseguiu distinguir o vulto de Frank que avançava em direcção a ele. Vinnie ficara para trás, a vigiar os outros.

Jeffrey passou o carro a grande velocidade, mergulhando na noite. Lembrava-se que o volume de Frank era bastante enganador, o homem era surpreendentemente ágil e rápido. Jeffrey não estava muito confiante em conseguir fugir-lhe. Tinha de pensar em qualquer coisa. Um plano. Seria que ia ser capaz de alcançar o centro da cidade? Num sábado à noite devia haver bastante actividade em Edgartown, embora ainda não fosse a época turística.

Atrás dele, Jeffrey ouviu o estalido mortal de uma arma a disparar. Frank tinha feito fogo contra ele. Jeffrey ouviu uma bala passar a assobiar rente à sua cabeça. Mudou de direcção, dirigindo-se para a esquerda e saindo da rua principal do cemitério.

Agachando-se, rente ao chão, Jeffrey começou a andar por entre as lápides. Não queria servir de alvo fácil. Tinha a sensação angustiante de que Henry já não queria apanhá-lo vivo. Agora que saíra do caminho, o piso era mais irregular. Pedras e lages atrasavam-lhe a fuga. A certa altura, tropeçou e quase perdeu o equilíbrio. Só conseguiu aguentar-se de pé abraçando um obelisco de Granito. O obelisco oscilou sobre a base, ameaçando cair. Foi nessa altura que Frank disparou pela segunda vez.

A bala embateu no obelisco, mesmo abaixo do braço de Jeffrey. Este recuou um passo. Olhando na direcção do cano da arma, apercebeu-se de que Frank vinha em direcção a ele. E estava a ganhar terreno!

Jeffrey deitou a correr, sentindo o pânico aumentar dentro dele. A respiração tornara-se-lhe ofegante e sentia uma picada de lado. Estava perdido no meio dos túmulos. Não sabia em que direcção devia ir. Já não tinha a certeza de estar a avançar para a cidade.

Pelo canto do olho, Jeffrey viu as silhuetas de um conjunto de edifícios de um só andar que concluiu deverem ser mausoléus. Resolveu dirigir-se para lá. Voltando nessa direcção, entrou num dos muitos caminhos de cascalho do cemitério. Quando chegou junto dos mausoléus, enfiou-se no meio dos dois primeiros. Passando por detrás deles, deslocou-se ao longo da fila, depois voltou para trás pelo mesmo caminho de cascalho e em seguida virou para o caminho principal. Olhando numa curva, procurou Frank.

Ele estava a menos de quinze metros. Tinha parado em frente do primeiro mausoléu. Hesitara um momento e depois pusera-se a caminhar em direcção a Jeffrey. Este preparava-se para dar meia volta, quando Frank de repente passou por entre dois túmulos e desapareceu do seu raio de visão.

Jeffrey tentou pensar no que havia de fazer. Um movimento errado e estaria à mercê de Frank. Lembrando-se da expressão dele quando o atingira com o saco de órgãos em decomposição, Jeffrey não esperava que Frank se mostrasse compassivo.

Mesmo em frente de onde Jeffrey se encontrava, havia um mausoléu de mármore que parecia mais antigo que os outros. Apesar da escuridão, apercebeu-se de que a porta de ferro estava ligeiramente aberta.

Depois de ver mais uma vez que no caminho não havia sinais de Frank, precipitou-se para a porta. Empurrou-a o suficiente para penetrar no interior frio. Tentou fechá-la atrás de si, mas quando empurrou, a porta raspou no chão. Parou imediatamente. Não podia arriscar-se a fazer barulho. Aporta continuava aberta uns trinta centímetros, ligeiramente menos que quando a vira pela primeira vez.

Analisando o interior exíguo, Jeffrey apercebeu-se de que a única luz vinha de uma pequena janela elíptica colocada na parede do fundo.

Pôs-se a tactear em direcção à janela, avançando lentamente com o pé direito e levantando o esquerdo a cada passo que dava. Sentiu que havia reentrâncias quadradas na parede e concluiu que eram destinadas aos caixões.

Quando chegou junto da parede do fundo, agachou-se no canto. À medida que os olhos se habituaram à escuridão, começou a distinguir a faixa estreita de luz vertical que entrava pela porta entreaberta.

Esperou. Não se ouvia um som. Depois do que lhe pareceu serem cinco minutos, começou a pensar quanto tempo ficaria à espera antes de se aventurar a sair de novo.

Depois, num guinchar agonizante de metal contra a rocha, a velha porta foi empurrada para trás. Embateu ruidosamente na parede de pedra. Jeffrey levantou-se de um salto.

Um isqueiro acendeu-se e iluminou o rosto gorducho de Frank. Segurava o isqueiro com o braço esticado. Jeffrey viu-o piscar os olhos e depois sorrir.

—Ora bem—disse Frank.—Então não vem mesmo a calhar? Agora até já está numa cripta. — Tinha a camisa manchada e o cabelo empapado com o líquido de embalsamar. O sorriso sardónico de Frank transformou-se numa expressão de desdém. Avançou pelo mausoléu com a arma numa das mãos e o isqueiro na outra.

Quando estava a cerca de metro e meio, parou. Apontou a arma à cara de Jeffrey. À luz da pequena chama, as feições de Frank eram grotescas. As órbitas encovadas pareciam vazias. Os dentes tornavam-se amarelos.

—Eu devia mandá-lo vivo para St. Louis—rosnou Frank. —Mas depois de me ter batido com aquela porcaria mal-cheirosa mudei de ideias. Vai na mesma para St. Louis, mas numa caixa de pinho, meu caro.

Pela segunda vez na sua vida e no espaço de dois dias, Jeffrey era obrigado a olhar desesperado para a ponta de uma arma que avançava para ele e abanava ligeiramente quando faziam pressão no gatilho.

— Frank! — chamou uma voz áspera. O nome ecoou no compartimento diminuto.

Frank rodou sobre si mesmo, desviando-se de Jeffrey. A arma acompanhou o movimento do corpo. Um tiro abalou a câmara minúscula. Depois um segundo tiro ecoou no interior do mausoléu. Jeffrey deitou-se no chão. O isqueiro de Frank apagou-se. Instalou-se um silêncio pesado e uma escuridão total.

Jeffrey deixou-se ficar, perfeitamente imóvel, com as mãos por cima da cabeça e a cara colada ao chão frio de pedra. Depois ouviu o raspar de uma pedra de isqueiro.

Jeffrey levantou a cabeça, lentamente, aterrorizado com a ideia daquilo que iria ver. Frank estava mesmo diante dele, estendido no chão, com a cara para baixo. Tinha a arma no chão, diante dele, mas num sítio onde não lhe podia chegar. Por detrás de Frank havia um par de pernas. Levantando mais a cabeça, Jeffrey deu com os olhos na cara de Devlin O’Shea.

— Mas que surpresa — disse Devlin. — Ora vejam só, o meu médico preferido. — Tinha um isqueiro numa das mãos e uma arma na outra, tal como Frank.

Jeffrey levantou-se do chão. Devlin foi até junto de Frank e fez rolar o corpo. Acocorando-se, procurou sentir-lhe o bater da carótida.

—Rai’s parta — disse. —Tenho uma pontaria boa de mais. A verdade é que não queria matá-lo. Pelo menos, acho que não queria. — Devlin endireitou-se e aproximou-se de Jeffrey.—Agora nada de setas envenenadas — preveniu-o.

Jeffrey recuou de encontro à parede. Devlin parecia mais ameaçador que Frank.

— Gosta do meu novo penteado? — perguntou Devlin, consciente da reacção de Jeffrey. — E graças a esse malandro que está aí estendido. — Fez um gesto na direcção de Frank. — Oiça, doutor — disse. —Tenho boas e más notícias para lhe dar. Quais quer ouvir primeiro?

Jeffrey encolheu os ombros. Sabia que estava tudo acabado. Só lamentava que Devlin tivesse aparecido quando estavam à beira de conseguir a tão desejada prova.

— Vamos lá — disse Devlin. — Não temos a noite toda. Ainda está um jovem valentão lá fora, de arma apontada aos seus amigos. Quer ouvir as boas notícias ou as más?

— As más — replicou. Perguntava a si mesmo se Devlin iria responder disparando sobre ele directamente. As boas notícias, que ele não ia viver o tempo suficiente para ouvir, eram que, pelo menos, ia ter uma morte rápida.

—E eu até era capaz de apostar forte que havia de preferir as boas notícias primeiro. Considerando o que tem passado ultimamente, acho que está a precisar de boas notícias. Mesmo assim, as más são que eu vou levá-lo para a cadeia. Quero receber o prémio do Mosconi. Mas deixe-me dar-lhe agora as boas notícias. Consegui descobrir umas informações que vão provavelmente mudar a sua condenação.

— De que é que você está a falar? — perguntou Jeffrey, espantado com aquela revelação.

—Não creio que este seja o momento nem o local indicado para uma conversa amigável — disse Devlin. — Ainda temos lá fora esse cretino do Vinnie D’Agostino com uma arma de fogo. Agora vou fazer um acordo consigo. Quero que colabore comigo. Isso quer dizer que não vai fugir, não me vai espetar agulhas nem bater-me com a pasta. Eu encarrego-me do Vinnie para não acontecer mal a ninguém, se quiser ter a bondade de criar uma pequena diversão. Depois de eu ter deitado a mão à arma do Vinnie, algemo-o à placa da cripta que está lá no chão. Depois ligamos para a polícia de Edgartown. Isto vai ser o acontecimento mais excitante que eles tiveram desde que deram à costa aqueles preservativos todos lá na Ilha de Chappaquiddick. Em seguida vamos todos jantar. Que é que acha?

Jeffrey quase não conseguia falar, de tal forma estava espantado e confuso.

—Vamos lá, Doutor!—disse Devlin. —Não temos a noite toda. Fazemos o acordo ou não fazemos o acordo?

— Sim — disse Jeffrey. — Está combinado.

A Charlotte Inn tinha um restaurante muito agradável que dava para um pequeno pátio interior, com uma fonte. As mesas tinham toalhas brancas e as cadeiras eram confortáveis. Uma equipa de criados e criadas sempre atentos satisfaziam todas as necessidades dos clientes.

Se tempos antes alguém tivesse descrito a Jeffrey a cena que ele desfrutava naquele momento, ter-se-ia rido, classificando-a de impossível. Havia quatro pessoas à mesa. À direita de Jeffrey estava Kelly. Ainda mostrava uma certa ansiedade, mas estava com um ar radiante. A esquerda de Jeffrey encontrava-se Seibert. Também não se sentia particularmente calmo, preocupado com os documentos falsos para a exumação e com o facto de o episódio no cemitério ir ser investigado. Em frente de Jeffrey estava Devlin, o único do grupo que parecia completamente descontraído. Em vez de vinho bebia cerveja e já ia na quarta.

— Doutor! — disse Devlin para Jeffrey. — O senhor é um homem paciente. Ainda não me fez nenhuma pergunta sobre essa informação libertadora que eu mencionei há bocado lá no mausoléu.

— Tive medo de perguntar — confessou sinceramente Jeffrey. — Tive medo de quebrar o encantamento em que tenho estado desde que saímos de lá.

Tudo acontecera tal como Devlin tinha dito. Jeffrey fizera uma grande chinfrineira, como se ele e Frank estivessem a ter uma luta de morte ao pé do carro de aluguer. Quando Vinnie se aproximou para ver se podia ajudar o patrão, Devlin tinha-se aproximado por detrás e desarmara—o num abrir e fechar de olhos. Depois tinham vindo as algemas.

O único desvio em relação ao plano original fora Devlin não ter algemado Vinnie à tampa da cripta. Em vez disso, algemara-o directamente a uma das pegas do caixão.

— Você e o Henry podem fazer companhia um ao outro — dissera ao rapaz aterrorizado.

Depois, os outros tinham seguido para Charlotte Inn, onde, fiel à sua palavra, Devlin tinha telefonado à polícia de Edgartown. Embora fossem convidados para jantar, Chester, Martin e Harvey recusaram delicadamente, pois preferiam ir acalmar os ânimos cada um na sua casa, depois da provação do cemitério.

— Então eu vou contar-lhe, quer me pergunte quer não — disse Devlin. —Mas deixe-me fazer primeiro alguns comentários à guisa de prefácio. Em primeiro lugar, quero pedir desculpa por ter atirado contra si lá naquele viveiro de pulgas daquele hotel. Nessa altura, eu estavafurioso e julgava-o um verdadeiro criminoso. Uma espécie que eu aprendera a odiar. Mas com o passar do tempo vim a saber mais sobre o seu caso, pouco a pouco. O Mosconi também não ajudou muito, por isso não foi fácil. De qualquer forma, eu sabia que havia qualquer coisa quando deixou de agir como o fugitivo habitual. Depois, quando Frank entrou em cena, tive a certeza de que se estava a passar qualquer coisa de esquisito, especialmente depois de ter sido informado que ele ia receber setenta e cinco mil para o despachar para St. Louis. Isso não fazia sentido, até que soube que as pessoas que tinham contratado o Frank estavam interessadas em o interrogar a si por causa de qualquer coisa que tinha descoberto.

“Nessa altura resolvi indagar quem eram esses perdulários de fora da cidade. Pelas quantias que estavam envolvidas, pensei que tivesse alguma coisa a ver com droga. Mas depois descobri que não. Agora aqui tem a parte que eu descobri e que vai achar interessante. Que é que vai pensar se eu lhe disser que o tipo que contratou Frank Feranno é um tipo chamado Matt Davidson? Um tal Matt Davidson de St. Louis?

Jeffrey deixou cair a colher em cima da mesa. Olhou para Kelly.

— O Matt do livro de endereços de Trent Harding — disse ela.

— Mais do que isso — continuou Jeffrey. Puxou o saco de pano de debaixo da mesa. Procurou lá dentro alguns papéis e mostrou finalmente as duas cópias do processo de acusação/defesa que fizera no tribunal. Pô-las em cima da mesa para todos poderem ver.

Jeffrey apontou para o nome de Matthew Davidson que aparecia como advogado de acusação no caso de incúria médica no Suffolk General Hospital.

—Matthew Davidson foi também o advogado de acusação do meu caso — disse-lhes Jeffrey.

Kelly abriu o outro caderno, que continha a informação sobre o processo do Commonwealth.

— O advogado de acusação neste caso, Sheldon Faber, foi o mesmo que no caso do meu marido. E agora que penso nisso, lembro-me que ele era de St. Louis.

—Deixa-me ver uma coisa — disse Jeffrey, levantando-se da mesa. E acrescentou para Devlin. —Deixe-se estar quieto, eu volto já. — Devlin ia segui-lo. Jeffrey deixou o grupo para ir ao telefone público.

Ligando para as informações de St. Louis, pediu os telefones do escritório de cada um dos dois advogados. O número era o mesmo!

Jeffrey voltou para a mesa.

—Davidson e Faber são sócios. Trent Harding andava a trabalhar para eles. Kelly, tinhas toda a razão. Era uma conspiração. Toda esta trapalhada estava a ser orientada por dois advogados, criando a sua própria clientela e os seus próprios casos!

— Foi mais ou menos isso que eu calculei — disse Devlin. Riu-se. —Já ouvi falar em tipos que andam atrás das ambulâncias, mas estes criam os seus próprios acidentes. Inútil será dizer que acho que tudo isto vai ter um efeito positivo no seu recurso.

— Isso põe o fardo em cima de mim. De mim e do meu cromatógrafo gasoso. Estes advogados de casos de incúria devem ter recrutado Trent Harding para contaminar ampolas de Marcaína e colocá-las nas reservas de aprovisionamento das Salas de Operações. A única coisa que posso dizer é que espero que Henry Noble se aguente bem nesta. Tenho de isolar a tal toxina.

— Pergunto a mim mesmo se estes advogados estarão envolvidos noutras cidades? — perguntou Kelly. — Qual será o seu raio de manobra?

—Estou só a especular—disse Jeffrey—, mas penso que isso também depende do número de psicopatas como Trent Harding que eles conseguirem arranjar. — Sacudiu a cabeça.

— Nunca gostei de advogados — disse Devlin.

—Kelly—acrescentou Jeffrey de repente, subitamente emocionado. — Sabes o que isso significa? Kelly sorriu:

— Adeus América do Sul.

Jeffrey tomou-a nos braços. Nem conseguia acreditar. Afinal sempre lhe estava a ser devolvida a sua vida. E a tempo de a viver com a mulher que amava.

— Eh! — disse Devlin para um dos criados. — Traga-me outra Bud, e que tal uma garrafa de champanhe para os apaixonados?

 

                                       2.a feira, 29 de Maio de 1989, 11:30

Randolph ajustou os óculos para poder ler. Pigarreou. Jeffrey estava sentado em frente de uma mesa simples de carvalho, mesmo diante dele, a tamborilar com os dedos sobre a superfície irregular. A pasta de couro de Randolph estava aberta em cima da mesa, à direita de Jeffrey. Via-se que continha um par de calças de squash, bem como diversos papéis legais e impressos.

Jeffrey vestia uma camisa de ganga azul-clara e calças de algodão azuis-escuras. Tal como prometera, Devlin tinha levado Jeffrey de volta para Boston, onde o entregara às autoridades.

Jeffrey não tinha apreciado o tempo que passara na prisão, mas fizera o possível para o aligeirar. Consolava-se recordando continuamente a si próprio que essa estada era apenas temporária. Arranjara mesmo tempo para começar a jogar basquetebol, uma coisa que não fazia desde os tempos da escola médica.

Jeffrey entrara em contacto com Randolph ainda em Charlotte Inn, depois do jantar com Devlin. Randolph tinha deitado logo mãos ao caso, ou pelo menos assim o disse. Isso já tinha sido há mais de uma semana e agora Jeffrey começava a perder a paciência.

— Eu sei que pensa que isto devia ser feito de um dia para o outro —disse Randolph —, mas a realidade é que as rodas da justiça são lentas a girar.

— Diga-me qual a última coisa.

— A última foi eu já ter apresentado formalmente três moções — disse Randolph. —A primeira e a mais importante é a que diz respeito a novo julgamento do processo de crime. O pedido foi feito ajuíza Janice Maloney, para que ponha de lado o veredicto com base em erros ocorridos no julgamento...

— Quem é que está interessado nos erros de julgamento? — exclamou Jeffrey, exasperado. — Não é muito mais importante o facto de toda a situação ter sido provocada por dois advogados de acusação que estavam a encher os seus cofres?

Randolph tirou os óculos.

—Jeffrey, permite-me que acabe? Eu sei que está impaciente e que tem boas razões para isso.

— Vá direito ao fim — disse Jeffrey tentando arranjar paciência, dentro do possível.

Randolph pôs novamente os óculos, depois olhou para os papéis. Pigarreou.

— Como eu estava a dizer — continuou —, dei entrada de uma moção com base em erros de julgamento e com base em provas recém-descobertas que justificam a revisão.

—Meu Deus!—exclamou Jeffrey. —Por que é que não diz isso claramente? Porquê todo esse rodear do assunto?

—Jeffrey, por favor—disse Randolph.—Há trâmites a seguir neste tipo de situações. Não se pode pedir novo julgamento com base em qualquer tipo de prova. Eu tenho que tornar bem claro que estas novas provas não são uma coisa de que eu pudesse ter tido conhecimento com um mínimo de diligência. Eles não concedem novos julgamentos por incúria dos advogados. Posso continuar? — inquiriu.

Jeffrey fez que sim com a cabeça.

— A segunda moção é para rectificação do recurso do julgamento por incúria médica — esclareceu Randolph. Trata-se de uma Petição de Indulto Equitativo Extraordinário, devido a provas recém-descobertas.

Jeffrey levantou os olhos ao céu.

— A terceira moção refere-se a uma revisão da fiança. Falei com ajuíza Maloney para explicar que não houvera vontade criminosa da sua parte e que não fugira à fiança, mas andava simplesmente a conduzir uma investigação louvável e eventualmente coroada de êxito, que levara à descoberta das novas provas.

—Acho que eu teria conseguido pôr isso numa linguagem bastante mais simples—comentou Jeffrey.—E a juíza, que foi que ela disse?

— Que consideraria a moção — replicou Randolph.

— Óptimo — disse Jeffrey, sarcástico. — Enquanto eu apodreço aqui na prisão, ela vai considerar a moção. Magnífico. Se todos os advogados se tornassem médicos, os pacientes morriam antes de eles despacharem a papelada.

— Tem de ser paciente — disse Randolph, acostumado aos sarcasmos de Jeffrey. — Penso já ter notícias da revisão da fiança amanhã. Mais um ou dois dias e você estará lá fora. As outras moções vão demorar um pouco mais. Os advogados, tal como os médicos, não podem dar garantias, mas eu estou convencido de que você vai ser completamente ilibado.

— Obrigado — disse Jeffrey. — E esse tal Davidson e companhia?

— Receio que isso seja uma outra história — acrescentou RandoIph com um suspiro. — Claro que vamos cooperar com o Promotor Público de St. Louis, que nos garantiu que vai proceder a uma investigação. Mas receio que ele ache que existem poucas hipóteses de haver uma acusação formal. Além do que se diz, não há provas concretas de qualquer ligação comercial entre Davidson e Trent Harding. A única prova de associação é a inscrição do nome dele no livro de endereços de Trent Harding, que não permite demonstrar ou provar a natureza dessa mesma associação. Dentro da mesma ordem de ideias, não existem provas que permitam associar directamente Trent Harding com a batraqueotoxina que o Dr. Warren Seibert encontrou em todos os casos, depois de a ter isolado a partir do fígado de Henry Noble. Com o Sr. Frank Feranno morto e qualquer possível associação entre ele e Davidson igualmente baseada em rumores, pode dizer-se que, até aqui, o caso contra Davidson e Faber não é muito consistente.

— Não posso acreditar — disse Jeffrey. — Nesse caso, Davidson e os seus colegas em breve voltarão ao trabalho, como até aqui, embora provavelmente fora de Boston.

— Bom, quanto a isso não sei — disse Randolph. — Tal como lhe disse, vai haver investigação. Mas se não descobrirem novas provas convincentes, suponho que Davidson pode muito bem tentar de novo. Não restam dúvidas de que a sua firma está muito bem cotada no campo da incúria médica, que continua a ser um campo altamente lucrativo. Mas talvez para a próxima ele cometa algum erro. Quem sabe?

— E o meu divórcio? Deve ter boas notícias.

— Receio bem que daí também possam vir problemas — declarou Randolph metendo os papéis na pasta.

— Porquê? — perguntou Jeffrey. — Eu e a Carol não temos qualquer desentendimento. E um divórcio amigável e de comum acordo.

— E possível que tenha sido — disse Randolph, — Mas antes de a sua mulher ter escolhido Hyram Clark para seu advogado no processo de divórcio.

— Que diferença faz quem é que ela escolhe para advogado?

—Hyram Clark costuma sugar o sangue das vítimas — esclareceu Randolph. —Pode contar que ele vá mencionar a prata que você tiver nos dentes na lista dos seus bens. Temos de estar preparados e arranjar alguém com a mesma agressividade.

Jeffrey soltou um gemido.

— Talvez nos devêssemos casar um com o outro, Randolph. Pelo que oiço, nunca mais nos vamos separar.

Randolph riu-se, com o seu ar controlado de brâmane bostoniano. —Falemos de coisas mais agradáveis—disse. — Quais são os seus planos, de uma maneira geral?

Entretanto Randolph pusera-se de pé. Jeffrey mostrou-se mais alegre.

—Logo que eu sair daqui, Kelly e eu vamos fazer umas férias. Num lugar ao sol. Talvez nas Caraíbas. — Jeffrey pôs-se também de pé.

— E quanto à medicina? — perguntou Randolph.

—Já falei com o chefe dos serviços de anestesia do Memorial—disse Jeffrey. —Eles trabalham mais depressa que as rodas da justiça. Vou ser reintegrado em breve.

— Então vai voltar para lá?

—Duvido—replicou Jeffrey. — Kelly e eu estamos mais ou menos decididos a ir para outro estado.

— Ah? Parece ser uma relação muito firme.

— Sem dúvida nenhuma — disse Jeffrey. —A mais séria possível.

— Então óptimo — replicou Randolph. — Talvez eu deva tratar do acordo pré-nupcial?

Jeffrey olhou-o incrédulo, mas depois viu os cantos daboca de Randolph repuxarem-se num sorriso.

— É uma brincadeira — disse Randolph. — Onde é que anda o seu sentido de humor?

 

                                                                                Robin Cook  

 

                      

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