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Duas criaturas fora do comum escapam de um sinistro e secreto laboratório do governo, e até mesmo seu próprio nome não pode ser sequer murmurado. Um era assassino; o outro de boa índole. Eram animais e foram transformados. Para os cientistas que os criaram, eles são o produto final de uma experiência de engenharia genética e de aumento da inteligência. As pessoas que com eles se relacionam encontram tanto a perdição quanto uma nova e emocionante espécie de amor.
Você, leitor, não deve olhar para trás. Alguém, ou alguma coisa perigosa pode estar observando, seguindo...
Pode ser um homem decente levado ao desespero...
Pode ser um adorável cão vira-lata, que não é o que parece...
Pode ser um matador profissional, verdadeiro gênio na arte de executar seu trabalho...
Pode ser uma linda mulher, de passado triste e assustador...
Pode ser um selvagem fugitivo de um pesadelo genético... Alguns são vítimas inocentes. Outros fazem as vítimas. E, à medida que traçam o seu destino rumo a uma violenta confrontação, até mesmo o inocente tem que aprender a se tornar perigoso para se proteger de um estranho e terrível inimigo...
1
Num dia 18 de maio, em que completava 36 anos, Travis Cornell já estava fora da cama às cinco da manhã. Ele calçou suas resistentes botas de alpinismo, vestiu a calça jeans e uma camisa axadrezada azul, de mangas compridas. Pegou a pickup e saiu de sua casa em Santa Barbara rumo ao sul, na direção do canyon Santiago, na divisa leste do condado de Orange, ao sul de Los Angeles. Levava apenas um pacote de biscoitos, um cantil grande com refresco e um revólver Smith & Wesson, calibre 38, carregado.
Durante as duas horas e meia de viagem ele não ligou o rádio, não falou baixo, nem assobiou ou cantarolou, como os homens fazem quando estão sozinhos. A costa do Pacífico ficava à direita, em boa parte do caminho. O mar pela manhã estava melancolicamente escuro no horizonte, carregado e frio, num cinzento azulado. E, mais perto da costa, a água estava clara e cintilante, refletindo uma mistura de cores de pétalas de rosa e ouro. Travis nunca se dera ao trabalho de apreciar o sol caindo sobre a água.
Era um homem magro e nervoso, com olhos profundos e castanhos, como seu cabelo. Tinha rosto estreito, nariz de nobre, a maçã do rosto acentuada e o queixo protuberante. Um rosto austero que ficaria melhor num monge de uma ordem sagrada em processo de autoflagelação, como que purificando a alma através do sofrimento. Deus sabe a cota de sofrimento que ele tinha. Mas também podia mostrar um rosto agradável, cordial e aberto. Seu sorriso já tinha cativado as mulheres, embora não recentemente. Ele não sorria há muito tempo.
Os biscoitos, o cantil e o revólver estavam numa pequena mochila verde com tiras brancas de náilon, bem ao seu lado. De vez em quando, ele olhava de relance para a mochila, e parecia enxergar, através dela, o revólver bem carregado.
Saiu da estrada do canyon Santiago, no condado de Orange, e entrou numa estrada secundária, dessas onde não falta areia e pó. Pouco depois das oito e meia, ele parou a pick-up vermelha no acostamento debaixo de um imenso galho de árvore.
Colocou a pequena mochila nos ombros e começou a caminhar próximo ao sopé das montanhas de Santa Ana. Desde criança ele conhecia cada declive, cada vale, as pequenas passagens e saliências do terreno. Seu pai tinha comprado uma cabana de pedras na parte superior do canyon Holy Jim, talvez o mais remoto e desabitado dos canyons. E Travis passara semanas explorando aquela terra selvagem, por muitos quilômetros ao redor.
Ele amava aquela terra inóspita. Quando era garoto, os ursos pretos vagavam pelos campos; mas eles não existiam mais. As corças ainda podiam ser encontradas, embora não em grande quantidade, como há vinte anos. Restou a beleza dos altos e baixos da terra, o mato variado e em profusão. E as árvores estavam lá, como ele as conhecia. Caminhou à sombra dos carvalhos e figueiras da Califórnia, por longos trechos.
Vez por outra ele passava por uma cabana, ou por um grupo delas. Os poucos moradores do canyon eram também os poucos sobreviventes que acreditavam que o fim da civilização estava próximo, mas que não tiveram a coragem de procurar lugares ainda mais distantes e proibidos. A maior parte compunha-se de pessoas comuns, cansadas do movimento da rica e próspera vida moderna, e viviam ali sem luz e sem água corrente nas casas.
Embora o canyon parecesse afastado, logo estaria dominado pelas populações crescentes dos subúrbios. Num raio de i20 quilômetros, aproximadamente, dez milhões de pessoas viviam circulando entre as comunidades de Orange e Los Angeles, e este crescimento não podia ser interrompido.
Mas, naquele momento, uma luz transparente e reveladora caiu sobre a terra bravia, quase tão real como a chuva. E tudo era claro e selvagem.
No topo de uma montanha, completamente sem árvores, onde a grama que crescera durante a curta temporada de chuva estava seca e queimada, Travis improvisou uma mesa, usando uma pedra, e tirou a mochila.
Uma cascavel de mais de um metro tomava banho de sol em outra pedra, nas proximidades. A serpente levantou a cabeça em forma Ce cuia para prestar atenção nele.
Quando garoto, ele matara dezenas de cobras naquelas colinas. Retirou o revólver da mochila e se levantou da pedra. Calmamente, deu alguns passos na direção da serpente, que se aprontou para dar o bote, fitando-o fixamente.
Travis deu mais um passo, aproximou-se ainda mais, colocando-se em posição de tiro, segurando firmemente o revólver.
A cascavel começou a se enroscar e, de repente, percebeu que não poderia atacar àquela distância. Começou então a recuar.
Embora Travis confiasse na sua pontaria, ficou atônito com a descoberta de que não poderia puxar o gatilho. Afinal, fora até as montanhas não somente para recordar uma época, quando sentia-se feliz por estar vivo, mas também para matar cobras, se as encontrasse. Mais tarde, a solidão e a falta de objetivo na vida, deixavam-no ora deprimido, ora irritado. Ele necessitava aliviar aquilo através de uma ação violenta, e matar algumas cobras parecia o remédio ideal para sua angústia. Entretanto, à medida que encarava a cascavel, concluía que a serpente tinha mais razão para viver do que ele: no seu ninho ecológico talvez encontrasse mais prazer na vida do que ele em muitos anos. Começou a tremer e a arma se desviou do alvo, indicando que não encontrava forças para abrir fogo, pois não se considerava digno de tirar a vida da cascavel. Desta forma, baixou a arma e voltou para a pedra onde deixara a mochila.
A serpente, naquele momento, desfrutava evidentemente de uma absoluta paz. Baixou a cabeça e continuou o seu repouso.
Pouco depois, Travis abriu o pacote de biscoitos, que aliás eram os seus favoritos da época de garoto. Há pelo menos quinze anos que não os saboreava. E eram quase tão deliciosos, quanto podia se lembrar. Tomou um gole de refresco no cantil mas não ficou satisfeito, como acontecera com os biscoitos. Para o seu gosto de adulto, aquilo estava longe de estar doce.
A inocência, o entusiasmo, as alegrias e o apetite da juventude podiam ser lembrados, mas jamais resgatados novamente, pensou ele.
Deixando a cascavel ao sol, Travis colocou a mochila nos ombros, mais uma vez, e desceu pelo sul das colinas, já à sombra das árvores na frente do canyon, onde o ar fresco se misturava com o cheiro agradável da primavera, com a vegetação que crescia. Agora, já no outro lado do canyon, ele tomou o rumo oeste, sentindo* uma tristeza profunda, e seguiu a trilha de uma corça.
Alguns minutos mais tarde, passando entre duas figueiras que se juntavam para formar um arco, chegou a um lugar onde os raios de sol penetravam e caíam dentro da floresta. No outro lado da clareira, a trilha da corça conduzia a outro ponto da mata onde as árvores cresciam coladas umas às outras, mais do que em qualquer outro ponto. Um pouco à frente começava o declive do terreno. Ele parou no limite em que o sol se infiltrava pelas árvores, mas as pontas de suas botas estavam na sombra. Olhando para baixo naquela precipitação profunda, ele podia ver somente uns quinze metros à frente, até que uma surpreendente escuridão tomasse conta da trilha.
Quando Travis estava pronto para se afastar da luz do sol e continuar, um cachorro saiu correndo ofegante de dentro do mato na direção dele. Pela aparência, era cão de caça dourado, de raça pura. Um macho. E, com certeza, não tinha mais de um ano. Embora já tivesse atingido quase o limite de crescimento, retinha alguns traços de filhote. Seu pêlo fino estava molhado, sujo, todo enroscado, cheio de espinhos, mato e folhas. O cachorro parou à frente dele, sentou-se, levantou a cabeça e fitou-o com inegável expressão de amizade.
Imundo como estava, ainda conseguia agradar. Travis se curvou para poder tocar-lhe a cabeça, fazendo carinho atrás das orelhas.
Estava na expectativa de encontrar o dono do cachorro, que poderia aparecer a qualquer momento, ofegante e furioso em conseqüência da provável corrida atrás do animal, que havia saído do mato. Mas ninguém apareceu. Quando Travis se lembrou de procurar pela coleira, ou pela identificação, ele a encontrou:
- Certamente você não é um cachorro selvagem... não é mesmo, garoto?
O cão de caça arquejava.
- Não, muito amigo para ser selvagem. Não está perdido, está? O cachorro lambeu-lhe a mão.
Travis percebeu sangue seco na orelha direita do animal, além do pêlo sujo e molhado. Sangue mais fresco podia ser visto nas patas dianteiras, como se ele tivesse corrido muito tempo por um terreno acidentado, até que as patas ficassem feridas.
- Parece que você fez uma viagem difícil, garoto.
O cachorro parecia concordar com o que Travis estava dizendo.
Continuou a afagar a cauda e a acariciar as orelhas do animal, mas, de repente, se deu conta de que estava procurando tirar do cachorro o que este não poderia lhe dar: sentido, propósito, alívio para a sua angústia.
- Agora siga o seu caminho. - Ele bateu levemente com a mão no lombo do animal e se levantou.
O cão de caça permaneceu na frente dele.
Travis avançou na direção do caminho estreito que conduzia à escuridão, lá embaixo.
O cachorro se lançou à frente dele, bloqueando-lhe o caminho da trilha de corça.
- Sai da frente, garoto.
O cão de caça mostrou-lhe os dentes e rosnou baixo. Travis franziu a testa.
- Mova-se! Você é um bom cachorro.
Quando tentou ultrapassar, o animal rosnou novamente e tentou morder-lhe as pernas.
Travis recuou dois passos.
- Ei, o que há com você?
O cachorro parou de rosnar, mas ficou arfando.
Ele voltou a avançar, mas o cão se lançou contra ele com mais ferocidade do que antes, não latindo, mas rosnando profundamente e tentando morder-lhe as pernas, forçando-o a voltar à clareira. Ele deu mais uns dez passos na direção de um amontoado de pequenos galhos de árvores, onde se sentou.
No momento em que Travis estava no chão, o cachorro se afastou dele e seguiu para a beira da encosta, desaparecendo, lá embaixo. As orelhas do animal estavam em pé, tanto quanto deviam estar atentas as orelhas de um caçador.
- Cachorro maldito! - exclamou Travis. Este não lhe deu a menor importância.
- Que diabo há com você, seu vira-latas?
Em plena sombra da floresta, o cão mantinha os olhos voltados para baixo, seguindo a trilha da corça, no meio da escuridão, entre as árvores da encosta do canyon. O rabo estava abaixado, quase entre as pernas.
Truvis catou algumas pedrinhas que estavam por perto, levantou-se e as atirou no cão. Ao ser atingido por uma delas, atiradas com força para machucar, não deu sinal de dor, mas fez um movimento rápido, de surpresa.
Agora, eu consegui, pensou Travis. Vou acabar com ele.
Mas o cachorro continuava a bloquear a entrada da trilha de corça, olhando-o de forma estranha, como que censurando-lhe as intenções.
Alguma coisa no comportamento humilde do animal, cujos olhos escuros e grandes pareciam falar, ou através de sua cabeça baixa, fez com que Travis se sentisse culpado por ter-lhe atirado pedras. O pobre do cachorro parecia desapontado com ele, e Travis se sentiu envergonhado.
- Ei, escuta aqui - disse ele. - Você começou tudo, você sabe. O animal simplesmente o encarava com olhar fixo.
Travis jogou fora o resto das pedras.
O cachorro olhou para as pedras, levantou os olhos mais uma vez, e Travis podia jurar que via um olhar de aprovação no animal.
Travis poderia ter voltado, ou encontrado outro caminho que o levasse à parte de baixo do canyon. Mas estava possuído por um desejo inexplicável de seguir em frente, para chegar, só Deus sabe, naquele ‘lugar’ onde queria chegar de qualquer maneira. Portanto, naquele dia, ele não iria ser impedido, ou atrasado, por algo tão sem importância, como um cachorro.
Levantou-se, fez um leve movimento com os ombros para arrumar a mochila, respirou profundamente o ar da montanha e entrou sem medo na clareira.
O caçador começou a rosnar, de forma ameaçadora. Os dentes estavam todos à mostra.
A cada passo que dava, Travis perdia a coragem; então, bem próximo do animal, optou por outra alternativa. Parou, balançou a cabeça e com todo o cuidado disse:
- Cachorro ruim. Você está sendo um cachorro muito ruim. Sabe disso? Afinal, o que você tem em mente... hã? Você não parece tão ruim, assim. Você parece um bom cachorro.
Na medida em que ele falava daquela forma tão carinhosa, o cachorro parava de rosnar, e começava a balançar o rabo peludo, uma, duas vezes, inseguro.
- Isto: Você é um bom garoto - disse ele, disfarçando, escondendo suas reais intenções, para persuadir o animal. - Agora está melhor. Você e eu podemos ser amigos, que tal?
O cachorro pareceu concordar, e de sua boca saíam aqueles sons conhecidos e característicos de todos os cachorros, quando desejam expressar o desejo de serem amados.
- Agora, vamos juntos até aonde tenho que ir - disse Travis, e deu mais um passo na direção ao caçador com a intenção de se abaixar e fazer-lhe um carinho.
Imediatamente, o cachorro pulou nele, rosnando, e o obrigou a voltar para a clareira. O animal prendeu os dentes com força na bainha de sua calça, balançando a cabeça, furiosamente. Travis o chutou para se soltar. Na medida em que Travis tentava recuperar o equilíbrio do movimento que tinha feito, o cachorro mordia a sua outra perna e o puxava com força. Ele procurava livrar-se desesperadamente de seu adversário, mas tropeçou e acabou caindo.
- Merda! - disse ele, sentindo-se profundamente humilhado. Ganindo de novo, adotando um comportamento mais amistoso, o cachorro lambeu-lhe a mão.
- Você é um esquizofrênico - disse Travis.
O animal voltou para a entrada da clareira. Permanecendo de costas para ele, olhava para a trilha da corça que seguia pelas frias sombras das árvores. De repente, o cachorro baixou sua cabeça e levantou o lombo. Os músculos da coxa e quadris estavam visivelmente tensos, como se ele estivesse se preparando para um movimento rápido.
- O que você está vendo? - Travis agora estava consciente de que o cachorro não se preocupava com a trilha, em si mesma, mas, talvez, com alguma coisa na trilha. - Um leão da montanha? - pensou Travis em voz alta, permanecendo firme onde estava. Quando ele era jovem, os leões da montanha, especialmente pumas, dominavam aqueles matos, e, quem sabe, alguns deles ainda poderiam estar por lá?
O caçador rosnou de novo, desta vez não para Travis, mas para aquilo que tinha chamado sua atenção. O som que ele fazia era baixo, quase inaudível. E para Travis parecia que o cachorro estava ao mesmo tempo furioso e com medo.
Coiotes? Uma infinidade deles habitava o sopé da montanha. Vários e esfomeados coiotes, juntos, poderiam alarmar um animal forte como aquele cão de caça.
Com um ganido de susto e de um pulo só, o cão se afastou da trilha da corça, à sombra das árvores. Correu na direção de Travis, passou rápido, e foi para o outro lado da clareira, dando a impressão de que iria desaparecer no meio dá floresta. Mas, justamente embaixo daquele arco formado pelas duas figueiras, por onde Travis passara alguns minutos antes, o cachorro parou e ficou olhando para trás, esperançoso. Com ar de frustração e ansiedade, correu na direção de Travis de novo, rapidamente o cercando. E mais uma vez começou a puxar a sua calça, forçando-o a voltar e a seguir com ele.
- Espere... espere... Está bem - disse Travis. - Está bem.
O caçador o largou. E deixou escapar um som grave e áspero da boca, na medida em que o ar passava com dificuldade pela sua garganta, e aquilo não chegava a ser um latido.
Obviamente - e surpreendentemente - o cachorro fizera de tudo para impedi-lo a prosseguir caminho abaixo, na trilha da corça, porque alguma coisa mais estava por lá. Alguma coisa perigosa. Agora o cachorro queria que ele corresse, porque aquela perigosa criatura estava cada vez mais perto.
Alguma coisa estava vindo. Mas o quê?
Travis não estava preocupado. Apenas, curioso. Qualquer coisa que estivesse se aproximando, poderia assustar um cachorro. Mas nada naquele mato, nem mesmo um coiote ou um puma, atacaria um homem. Ganindo impacientemente, o cachorro tentou morder a barra da calça de Travis uma vez mais. Aquele comportamento era fora do comum. Se o animal estava de fato com medo, por que não fugia de vez e o deixava para trás? Travis não era o seu dono. O cachorro não devia fidelidade. Nem mesmo afeição ou proteção. Os vira-latas não possuem senso de obediência para com estranhos, não têm perspectiva moral, nem consciência. O que aquele animal pensava que era, afinal de contas? Uma Lassie da vida?
- Está bem... está bem... - disse Travis, procurando ver-se livre do caçador, que puxava a sua calça e, ao mesmo tempo, acompanhava-o até o arco das figueiras.
O cachorro correu para a frente, pela trilha que subia na direção mais alta do canyon, por entre árvores mais finas, onde a luz do sol era mais forte.
Travis deteve-se nas figueiras. Apreensivo, olhava através da clareira banhada pelo sol, para aquele buraco na floresta, escuro como a noite, onde começava a parte descendente da trilha. O que estava vindo?
Os ruídos fortes das cigarras foram interrompidos como se alguém, na mesma hora, levantasse a agulha do toca-discos. A mata apresentava um silêncio que não era natural.
Travis, então, ouviu alguma coisa correndo lá dentro na trilha escura. Um ruído áspero, como o crepitar de pedras que estavam sendo movidas de seu lugar. Um som incerto de galhos secos. A coisa parecia mais perto do que na realidade estava, porque o som se amplificava através do túnel espesso das árvores. Apesar disso, a criatura estava se movendo rápido. Muito rápido. Pela primeira vez, Travis teve a sensação de que estava correndo um grave perigo. Ele sabia que nada na floresta era tão grande ou forte o suficiente para atacá-lo. Mas sua razão era dominada pelo instinto. E seu coração começava a bater forte.
Acima dele, na parte mais alta, o caçador percebera a hesitação de Travis e latia, agitadamente. Algumas décadas atrás, ele teria pensado que um urso-pardo estivesse correndo pela trilha, ferido ou doente. Mas os moradores das cabanas, e os alpinistas de fim de semana - fugitivos da civilização - já tinham expulsado os últimos e poucos ursos para muito longe dali.
Pelo som, aquela fera desconhecida estava para chegar a qualquer momento, em poucos segundos estaria no meio da clareira, entre a parte mais baixa e mais alta da trilha.
Travis sentiu mais do que um calafrio correndo pela espinha, era como neve derretida escorrendo pela vidraça.
Ele queria ver o que era aquela coisa, mas ao mesmo tempo estava paralisado pelo medo. Um medo puramente instintivo.
Mais para cima no canyon, o cão latia insistentemente.
Travis deu meia-volta e correu.
Ele estava em excelente forma. Nem sequer um quilo a mais no seu peso normal. Com o cão de caça à sua frente, Travis mantinha as mãos próximas ao corpo e subia pela trilha da corça, abaixando a cabeça para passar por alguns poucos galhos baixos que havia no caminho. A sola forte de sua bota de alpinismo lhe dava muita segurança. Deslizava em algumas pedras soltas e nas folhas escorregadias caídas dos pinheiros, mas se mantinha em pé. Na medida em que corria através daquele falso fogo de raios de sol cortando as sombras das árvores, um outro tipo de fogo começava a queimar os seus pulmões.
A vida de Travis Cornell fora cheia de perigo e tragédia, mas ele nunca recuara diante de nada. Nos piores momentos, calmamente enfrentava a privação, a dor e o medo. Mas agora, alguma coisa diferente estava acontecendo. Ele perdeu o controle. Pela primeira vez, em toda a sua vida, entrou em pânico. O medo tomou-lhe conta, atingindo-o muito, profundamente, como jamais tinha sentido. Ao correr, surgiu nele um arrepio na carne e um suor gelado, e não podia saber por que o seu desconhecido perseguidor desejava enchê-lo daquele terror absoluto.
Não olhou para trás. Inicialmente, não quisera tirar os olhos da trilha tortuosa, temendo cair em alguma armadilha do terreno. Quanto mais corria, mais o pânico aumentava, e, depois de correr uns cem metros, ficou claro em sua mente por que ele não queria olhar para trás - estava apavorado com o que pudesse ver.
Sabia que a resposta não teria lógica. Aquela sensação aflitiva atrás de seu pescoço, o frio no estômago, eram sintomas de um terror puramente supersticioso. Mas o educado e civilizado Travis Cornell tinha acabado de perder o controle para a primitiva criança assustada que vive no fundo de todo o ser humano - o espírito genético do que fomos no passado - e agora estava sendo difícil recuperar o autocontrole, embora estivesse consciente do absurdo do seu comportamento. O instinto animal governava o seu ser, e o instinto lhe dizia que devia correr, correr, parar de pensar. Fugir, simplesmente.
Perto da parte superior do canyon, a trilha seguia para a esquerda, marcando nitidamente uma curva que subia na direção norte, no rumo das montanhas. Travis seguiu, dobrou a esquerda, e ao ver um tronco de árvore caído no meio do caminho, pulou, mas acabou ficando com o pé preso, numa das cavidades da madeira. Deu com o peito no chão. Atordoado, mal podia respirar e ou se mover.
Estava na expectativa de ser atacado por alguma coisa, que lhe cortaria a garganta.
O cão de caça se precipitou trilha abaixo e pulou sobre Travis, caindo com as patas firmes no chão, como que para proteger a retaguarda. Latia furiosamente para o que os estivesse perseguindo. E o latido era mais assustador que antes, quando ameaçara Travis na clareira.
Travis rolou para o lado, sentou-se, respirando com muita dificuldade. Não via coisa alguma, abaixo. Então, compreendeu que o cão de caça não estava preocupado com algo naquela direção e permanecia de lado olhando fixo a vegetação rasteira a leste de onde estavam. Espalhava saliva por todos os lados e o latido era tão forte e alto que feria os ouvidos de Travis. O tom de fúria na voz do animal assustava, advertia o inimigo oculto para que permanecesse afastado.
- Calma, garoto - disse Travis com tranqüilidade. - Calma.
O cão parou de latir, mas não olhava para Travis. Estava com os olhos arregalados na direção do mato, deixando a descoberto sua mandíbula escura, contrastando com os dentes. Rosnava profundamente.
Ainda respirando mal, Travis levantou-se para olhar para o mato. Figueiras, sempre-vivas e alguns arbustos. As sombras no chão pareciam pedaços de pano escuro, presos firmemente por alfinetes dourados e agulhas também douradas, sob o efeito dos raios de sol. Sarças e parreiras. Algumas poucas rochas, que o tempo se encarregara de moldar na forma de dentes. Não enxergara coisa alguma de extraordinário.
Quando se abaixou para passar a mão na cabeça do cachorro, este parou de rosnar, como que atendendo um pedido. Travis respirou profundamente, e manteve o ar preso por alguns instantes, para poder ouvir algum ruído no mato.
As cigarras permaneciam em silêncio. Nenhum pássaro cantava nas árvores. A mata estava calma, como se o imenso e elaborado mecanismo do relógio do universo tivesse parado de uma hora para outra.
Estava certo de que não era ele a causa daquele silêncio repentino. Sua passagem pelo canyon não perturbara os pássaros nem as cigarras.
Alguma coisa estava ali. Um intruso que os animais da floresta claramente não aprovavam.
Ele tomou fôlego e novamente prendeu a respiração, tentando perceber o menor movimento na mata. Desta vez detectou um roçar na folhagem, o estalido de um galho quebrado, o ranger de folhas secas sendo pisadas
- e a respiração terrivelmente típica, forte e áspera de alguma coisa grande. O som parecia estar a uns dez metros de distância, mas Travis não podia precisar a sua localização exata.
Ao seu lado, o cão de caça estava petrificado, suas orelhas empinadas para a frente.
A respiração áspera do adversário desconhecido era de causar tantos arrepios - em parte devido ao efeito do eco pela floresta e pelo canyon - que Travis rapidamente tirou a mochila e pegou o seu 38.
O cachorro arregalou os olhos para a arma. Travis teve a misteriosa sensação de que o animal sabia o que ela representava e dava a sua aprovação.
Imaginando que aquilo que estava no mato fosse um homem, Travis gritou:
- Quem está aí? Chegue até aqui, para que eu possa vê-lo.
A respiração rouca no mato foi reforçada por um grunhido ameaçador. O som gutural e sinistro eletrificou Travis. Seu coração batia cada vez mais rápido, e ele estava tão gelado de medo, quanto o cão de caça ao seu lado. Por alguns intermináveis segundos não conseguiu compreender por que aquele ruído tinha-lhe provocado tal fluxo de medo. Então entendeu que a ambigüidade do som o deixava assustado: o grunhido era definitivamente o de um animal... mas havia também uma característica indescritível que denotava inteligência: o tom e a modulação, quase próximos da voz de um homem enfurecido. Quanto mais ouvia aquilo, mais ficava convencido de que não era necessariamente nem som animal, nem som humano. Mas se não era nenhum dos dois... então, o quê, porra, era aquilo?
Viu algumas folhas, as mais altas dos arbustos, se mover. Bem ali à sua frente. E alguma coisa estava vindo na sua direção.
- Pare! - disse Travis com determinação. - Não se aproxime.
Aquilo estava cada vez mais próximo.
Agora não mais do que trinta metros de distância.
Movimentando-se de forma mais lenta do que antes. De forma cautelosa, talvez. Mas se aproximando, sem dúvida.
De novo, o cão de caça começou a rosnar ameaçadoramente para a criatura que os perseguia. O animal estava visivelmente trêmulo e a sua cabeça balançava. Embora desafiasse o perigo que vinha do mato, estava profundamente temeroso de um possível confronto.
O medo que o cachorro sentia deixava Travis ainda mais nervoso. Os cães de caça eram conhecidos por sua audácia e coragem. Eram criados para ser os companheiros dos caçadores e seguidamente usados em perigosas operações de resgate. Que perigo ou ameaça poderiam afinal provocar tanto medo e ansiedade num cachorro forte e soberbo como aquele?
A criatura no mato continuava a se aproximar, agora, a pouco mais de cinco metros.
Embora nada visse de extraordinário, Travis foi tomado de terror, talvez provocado por superstição, o pressentimento de algo indefinido e misterioso. Continuava querendo convencer-se de que se tratava de um puma, nada mais do que um puma, que provavelmente estivesse mais assustado que ele mesmo. Mas aquele calafrio que começava a se alastrar pelo corpo agora intensificara-se. Suas mãos estavam tão molhadas de suor que temia que o revólver lhe escapasse por entre os dedos.
Agora, a três metros de distância.
Travis apontou o 38 para o ar e deu um tiro de advertência. O som do disparo se espalhou pela floresta e ecoou pelo canyon. O cão de caça não recuou de medo, mas a criatura no mato imediatamente se desviou e correu no sentido norte para a encosta, no limite do canyon. Travis não conseguia vê-la, mas podia perceber com clareza seu movimento rápido nos arbustos que balançavam e partiam-se à sua passagem.
Por alguns segundos ele respirou aliviado, pensando tê-la espaventado. Então, percebeu que a criatura não estava de fato fugindo, mas tomando posição no lado noroeste da curva que conduziria à trilha da corça, mais acima. Travis sentiu que estava sendo forçado a se afastar do canyon, pelo lado mais baixo, onde a criatura teria mais chance de atacar. Ele não entendeu como percebera aquilo; o fato é que tinha percebido.
Seu instinto natural de sobrevivência assumia o comando das ações e o colocava em movimento, sem a necessidade de pensar a respeito. Fez automaticamente o que era necessário. Há quase dez anos não experimentava aquele comportamento animal, desde sua experiência militar em combate.
Tentando manter os olhos fixos nos arbustos para antecipar qualquer movimento à sua direita, livrou-se da mochila para ficar só com a arma na mão. Correu pela trilha e o cão de caça correu atrás. Embora fosse veloz, não conseguia rapidez suficiente para sobrepujar o seu inimigo desconhecido. Quando se deu conta de que o vulto iria alcançá-lo, logo no caminho acima, deu mais um tiro de advertência, que desta vez não surtira efeito e a criatura não se abalou nem mudou de rumo. Atirou duas vezes na direção do mato, onde havia movimento, não se importando se havia um homem lá, e funcionou. Não acreditava que tivesse ferido o adversário, mas finalmente este se assustou e foi embora.
Continuou correndo. Travis estava impaciente para atingir o limite do canyon, onde as árvores eram mais finas ao longo do topo da encosta, onde havia menos arbustos e a luz do sol não permitia que houvesse sombras.
Quando chegou ao topo, alguns minutos mais tarde, mal podia respirar. Os músculos de suas pernas estavam extremamente doloridos. Seu coração batia com tanta força que ele não ficaria surpreso de ouvir suas batidas ecoando pelo canyon.
Estava agora exatamente no ponto onde tinha parado para comer alguns biscoitos, na outra vez. A cascavel que estava tomando banho de sol numa rocha, já tinha ido embora.
O cão de caça o seguira. Ofegante, colocou-se ao lado de Travis, estudando com cuidado a encosta que tinham acabado de subir.
Um pouco tonto, querendo sentar e repousar do cansaço, Travis também olhava para baixo na direção da trilha da corça para descobrir que misteriosas sombras os arbustos escondiam. Tinha consciência de que ainda não estava fora de perigo. Se o animal continuava no encalço deles, pelo menos, parecia mais discreto agora, subindo a ladeira sem ao menos balançar as folhas dos arbustos.
Ganindo e puxando o que restara da calça, jeans de Travis, o cachorro correu pelo topo da colina na direção de um declive por onde poderiam descer até o próximo canyon. O animal percebia claramente que não estavam a salvo, e deveriam continuar andando.
Travis tinha a mesma convicção. O medo constante - e a confiabilidade no instinto que o medo evocava - fez com que corresse junto com o cachorro para o lado oposto em meio às árvores de outro canyon.
2
Vincent Nasço estava esperando na garagem escura há várias horas. Não parecia saber esperar. Era alto e forte, cerca de cem quilos, muscu-loso, dava a impressão de estar com tanta energia, que poderia explodir a qualquer momento. Tinha um semblante calmo, mas inexpressivo. Parecia cara de vaca. Seus olhos verdes brilhavam de vitalidade. O olhar era nervoso e aguçado com uma ansiedade estranha, como algo que poderíamos esperar enxergar nos olhos de um gato selvagem. Mas jamais nos de um homem. Como um gato, apesar de sua grande força, ele era paciente. Poderia permanecer por horas a fio, sem esboçar o menor movimento, em completo silêncio, esperando pela presa.
O relógio marcava vinte para as dez, naquela manhã de terça-feira, bem mais tarde do que ele supunha. Nasço ouviu então o ruído do trinco da porta, entre a garagem e a casa. A porta foi aberta e o dr. Davis Weatherby acendeu as luzes e procurou pelo botão que abriria a porta da garagem.
- Fique parado aí - disse Nasço, levantando-se e colocando-se à-frente do Cadillac cinza do médico.
Weatherby arregalou os olhos para ele, surpreso:
- Que diabos você...
Nasço levantou sua pistola Walther P-38, munida de silenciador, e abriu fogo na fronte do médico.
Ssssnap.
Com a frase cortada ao meio, Weatherby caiu para trás, dentro da lavanderia. Ao cair, bateu com a cabeça na máquina de secar e projetou um carrinho de metal cheio de roupas contra a parede.
Vince Nasco não estava nem um pouco preocupado com o barulho porque Weatherby não era casado e vivia sozinho. Ele se abaixou perto do corpo, que mantinha a porta aberta e calmamente colocou a mão no rosto do médico.
A bala atingira Weatherby na testa, levemente acima do nariz. Havia pouco sangue porque a morte fora instantânea e o projétil não penetrara com suficiente força para atingir, outro lado do crânio. Os olhos castanhos de Weatherby permaneciam abertos. Parecia em estado de choque.
Vince alisou com os dedos o rosto quente de Weatherby, até próximo do pescoço, baixando a pálpebra do olho esquerdo e, em seguida, a do olho direito, embora soubesse que as reações musculares do morto poderiam provocar a abertura dos olhos em poucos minutos. Num tom de evidente superioridade em sua voz trêmula, Vince disse:
- Obrigado... obrigado, doutor. - E beijou os olhos fechados do morto. - Obrigado...
Tremendo de prazer, Vince apanhou as chaves do Cadillac, que estavam ao lado do corpo, voltou para a garagem e abriu o porta-malas do carro, tomando cuidado para não deixar impressão digital alguma. O porta-malas estava vazio. Ótimo... Carregou o corpo de Weatherby da lavanderia até a garagem e o colocou no porta-malas, verificando se tinha ficado bem fechado.
Vince fora recomendado de que o corpo do médico não devia ser descoberto antes do dia seguinte. Não sabia por que este pequeno detalhe de tempo era tão importante, mas se orgulhava de fazer um trabalho impecável. Logo em seguida, voltou à lavanderia, colocou o carro de metal cheio de roupas no lugar e olhou em torno procurando sinais de violência. Satisfeito, fechou a porta e a trancou com as chaves de Weatherby.
Apagou as luzes da garagem, deu alguns passos no escuro e saiu pela porta lateral, por onde havia entrado durante a noite, depois de tê-la aberto silenciosamente com um cartão de crédito. Usando também as chaves do médico, fechou de novo a porta e se afastou da casa.
Davis Weatherby morava em Corona Del Mar, de onde se podia ver as ondas do Pacífico. Vince deixara seu furgão Ford, quase novo, a três quadras da casa do médico. A caminhada de volta ao seu carro dava-lhe dando imenso prazer e era revigorante. Era um bairro abastado, com casas dos mais variados estilos de arquitetura; caríssimas mansões de estilo espanhol, com detalhes riquíssimos, que ninguém acreditaria se não os visse. O cenário era extremamente rico. Palmeiras e oliveiras embelezavam a calçada. As buganvílias contribuíam para completar a paisagem, com milhares de flores vermelhas, amarelas e alaranjadas. As copas das árvores estavam no seu esplendor. Para completar, sentia-se o cheiro de jasmim no ar.
Vincent Nasco estava exultando de felicidade. Tão forte. Tão poderoso. Tão vivo.
3
Às vezes o cachorro vinha à frente, às vezes Travis tomava a dianteira. Os dois fizeram um longo percurso, até que Travis percebesse claramente que se livrara daquele sentimento de perda e de desespero provocado pela solidão que o tinha levado às montanhas de Santa Ana.
Aquele cachorro grande e maltratado esteve com ele durante todo o percurso até a sua pickup, estacionada à margem da estrada de terra, à sombra de uma árvore enorme. O cachorro parou perto do carro e olhou na direção de onde tinham vindo. Atrás deles, alguns pássaros pretos riscavam o céu, contrastando com a clareza do dia; pareciam estar reconhecendo um possível feiticeiro da floresta. Uma fileira escura de árvores se assemelhava à muralha de um castelo sinistro.
Embora a mata estivesse repleta de sombras, numa semi-escuridão, a estrada de terra batida era banhada por um sol, que castigava a terra levemente parda e deixava escapar uma fina camada de poeira que se prendia nas botas de Travis, a cada passo que dava. Ele estava espantado que um dia lindo quanto aquele pudesse se transformar de repente num pesadelo de idéias malignas.
Estudando o ponto da floresta de onde tinham partido, o cachorro latiu pela primeira vez em meia hora.
- Ainda está vindo, não é? - perguntou Travis.
O cachorro olhou de relance para ele, tentando ocultar certa insegurança.
- É isso - disse Travis. - Também sinto o mesmo. Que coisa doida... também posso sentir. Mas o que é que tem lá, garoto? Hem? Porra... o que é que tem lá?
O cachorro tremeu de medo.
Cada vez que o animal sentia medo, Travis ficava apavorado.
Abriu a carroceria da pickup e disse:
- Venha. Vou te dar uma carona para sair deste lugar.
Num pulo só, o cachorro se acomodou na pickup.
Travis fechou a carroceria com força e contornou o carro. Quando puxou a porta para entrar, pensou ter visto um leve movimento num arbusto próximo. Não atrás, na floresta, mas no outro lado da estrada. Naquele ponto havia um pequeno campo atulhado de capim queimado, algumas moitas e arbustos com raízes suficientemente profundas para mantê-los verdes. Quando se dirigiu para o campo, não viu nenhum movimento, o tipo que percebera antes pelo canto dos olhos, mas tinha certeza de que não era obra da imaginação.
Mais apreensivo ainda, entrou na pickup e tratou de deixar o revólver à mão, bem ao seu lado. Partiu sem vacilar, dirigindo tão rápido quanto possível naquela estrada escorregadia, sem deixar de se preocupar com o seu passageiro peludo na traseira da camioneta.
Vinte minutos mais tarde, quando parou no meio da estrada do canyon Santiago, praticamente de volta à civilização, ainda estava se sentindo fraco e trêmulo. Travis ainda se mostrava um pouco amedrontado, mas o seu temor era diferente daquele que lhe envolvia na floresta. Seu coração não batia com tanta violência. Ele não estava mais suando frio, e já havia secado o suor das mãos e da testa. Não havia mais aquele arrepio indefinido pela cabeça e pela nuca, e as lembranças da experiência pareciam fruto de um sonho. Agora ele estava com medo não de um inimigo desconhecido, mas de seu próprio comportamento. Ao desfrutar da segurança fora do mato, não conseguia avaliar o grau de terror que havia experimentado. Entretanto, aquele tipo de comportamento parecia irracional.
Puxou o freio de mão e desligou o carro. Eram onze horas da manhã e o tráfego já não estava intenso; quase não passava carro por aquela estrada. Ele ficou na pickup, por um minuto, tentando convencer-se de que tinha sido bom, correto e confiável, agir seguindo os seus instintos.
Sempre se orgulhara da sua calma imperturbável e do uso da lógica.
Poderia permanecer absolutamente frio no meio de um tiroteio e tomar decisões difíceis sob pressão e ainda assumir as conseqüências.
Mas aqueles acontecimentos recentes constituíam exceção e tornava-se cada vez mais difícil aceitar que alguma coisa estranha o tivesse perseguindo na floresta. Questionava-se por ter interpretado mal o comportamento do cachorro e imaginado algum movimento no mato, buscando uma desculpa para fugir ao sentimento de autopiedade.
Saiu da pickup e caminhou para a parte de trás, onde deu de cara com o cão de caça, que estava lá, quieto. O cachorro virou a cabeça na direção dele, para lamber-lhe o pescoço e o queixo. Embora tivesse rosnado e latido anteriormente, mostrava-se afetuoso; e o fato de estar sujo, não lhe dava mal aspecto; parecia cômico, até. Travis tentou manter o animal à distância. Mas este se esforçava para a frente, quase subindo na lateral da carroceria, tentando lamber-lhe o rosto. Travis acabou rindo do comportamento do animal e eriçou-lhe os pêlos encaracolados.
O cão parecia alegre e abanava freneticamente o rabo. E isto provocou um efeito extraordinário sobre Travis. Sua mente ficara por muito tempo mergulhada em completa escuridão, alimentada por pensamentos de morte, culminando com a aventura daquele dia. A incomparável alegria do cachorro por estar vivo representava para Travis um foco de luz penetrando no mais fundo de sua tristeza, lembrando-lhe o lado mais bonito da vida, do qual se tinha afastado há muito.
- Afinal de contas, o que era aquilo lá atrás? - perguntou ao animal. O cão de caça parou de se lamber e abanar o rabo, olhando solenemente para Travis, que ficou maravilhado com os olhos castanhos do animal, cheios de calor e de afeição. Havia algo fora do comum naqueles olhos. Algo cativante. Travis estava meio hipnotizado e o cachorro parecia igualmente encantado. Do lado sul soprava uma brisa suave de primavera, enquanto ele procurava decifrar os olhos do cachorro, querendo saber de onde vinha aquele poder e magnetismo. Mas não encontrava explicação. Exceto... bem, os olhos eram mais expressivos do que costumavam ser os olhos de um cachorro. Eram mais inteligentes, mais atentos. Comparado com o período de atenção de um cão normal, o olhar fixo do cão de caça era fora do comum. O tempo estava correndo e os dois pareciam não se importar com este pormenor, especialmente Travis, mergulhado nos seus pensamentos e cada vez mais impressionado com o que via. Travis teve um arrepio, que não lhe provocou medo, mas deu-lhe a sensação de que algo misterioso estava acontecendo e que ele estava no limiar de uma terrível revelação.
O cachorro balançou a cabeça, lambeu a mão de Travis, e foi quebrado o encanto.
- De onde você vem, garoto?
O cachorro virou a cabeça, para a esquerda.
- Quem é o seu dono?
O cachorro virou a cabeça para a direita.
- O que devo fazer com você?
Como se fosse resposta, o cão de caça pulou a porta da carroceria, passou correndo por Travis na direção da cabine da pickup e entrou rapidamente. Enquanto Travis se questionava sobre aquilo, o cachorro sentava-se no banco de passageiro, olhando para a frente, através do pára-brisa. Depois, virou-se para Travis, rosnou levemente, como se não desejasse perder tempo, parecendo irritado com a moleza de seu dono adotivo.
Travis entrou na pickup, e escondeu o revólver sob o assento.
- Não pense que posso cuidar de você. É muita responsabilidade, companheiro. Isto não combina com os meus planos. Sinto muito.
O cachorro tinha um olhar de súplica.
- Você parece estar com fome, garoto. Ele rosnou de novo, levemente.
- Tudo bem, talvez possa ajudá-lo. Acho que há uma barra de chocolate no porta-luvas... além do mais há um McDonald’s não muito longe daqui, onde podemos conseguir alguns hambúrgueres. Mas depois disto... bem, ou eu te solto de novo ou te levo para o canil da prefeitura.
Ao mesmo tempo em que Travis estava falando, o cachorro levantou uma das patas da frente na direção do porta-luvas e apertou o botão com a pata. O porta-luvas se abriu.
- Ei! Que porra é essa?
O cão espichou o pescoço, colocou o focinho dentro de uma caixa aberta e segurou com os dentes uma barra de chocolate, de forma tão delicada, que a embalagem ficou intacta.
Travis estava surpreso.
O cão de caça se aproximou com o chocolate nos dentes, como que pedindo que o abrisse.
Espantado, Travis pegou-o, tirando-o da embalagem.
O animal olhava, lambendo os lábios.
Travis quebrou a barra em pedaços e deu para o cachorro, que comeu satisfeito e grato.
Travis parecia confuso, sem saber ao certo se aquilo era verdadeiramente fora do comum ou se tinha uma explicação razoável. Será que o cachorro tinha de fato entendido, quando dissera que havia chocolate no porta-luvas? Certamente fora isto.
Travis perguntou:
- Como você sabe apertar o botão e abrir o porta-luvas?
O cão passou a língua entre os dentes e aceitou outro pedaço de chocolate. Travis disse:
- Está bem... Está bem... Isso é um truque que alguém te ensinou. Embora isto não seja o tipo de coisa que alguém ensine a um cachorro, não é mesmo? Rolar no chão, fingir-se de morto, ganir para receber comida, até mesmo caminhar sobre as patas traseiras... sim! Tudo isso é ensinado aos cachorros. Mas não são treinados a abrir fechaduras e trincos.
O animal estava impaciente e não tirava os olhos do último pedaço de chocolate que Travis manteve na mão por um momento.
Nossa, o tempo parecia misteriosamente cronometrado. Dois segundos depois de que Travis se referiu ao chocolate, o cachorro avançou para ele.
- Você entendeu o que eu disse? - perguntou Travis, sentindo-se estúpido por suspeitar de que o cachorro possuísse habilidades de linguagem. Mas, mesmo assim, repetiu: - Você entendeu? Entendeu o que eu disse?
Relutantemente, o cachorro desviou os olhos do último pedaço. Os olhos dos dois se encontraram. Travis sentiu de novo que alguma coisa sobrenatural estava acontecendo. Teve arrepios de medo, como antes.
Travis hesitou e pigarreou disfarçadamente.
- Ei... estaria tudo bem para você se eu ficasse com este último pedaço?
O cão olhou para os dois lados do chocolate, ainda nas mãos de Travis. Rosnou como se lamentasse e ficou olhando através do pára-brisa.
- Maldição! - exclamou Travis. O cachorro voltou-se para ele.
Tomando todo o cuidado para não mover a mão sem largar o chocolate e sem chamar atenção para ele, procurando expressar-se só com palavras, Travis dirigiu-se de novo ao animal:
- Bem, talvez você precise mais do que eu, garoto. Se quiser, o último pedaço é seu.
O cão fitou-o com mais atenção.
Sem mover a mão, mantendo-a próxima do próprio corpo, como que mostrando que desejava ficar com o chocolate, disse:
- Se quiser, venha pegá-lo. Do contrário, vou atirá-lo fora.
O cão se movimentou no banco, ficou bem próximo e com todo o cuidado tirou-lhe o chocolate das mãos.
- Puta merda! - exclamou Travis.
O cachorro se levantou no banco até quase roçar a cabeça no teto da pickup. Olhou através do vidro traseiro da cabine e rosnou levemente.
Travis olhou pelo retrovisor, depois checou o espelho lateral, mas não viu coisa alguma fora do comum lá atrás. Apenas a estrada, a encosta do morro coberta de mato no lado direito.
- Você acha que devemos ir embora, não é isto?
O cachorro esqueceu a janela traseira e se voltou para Travis, acomodando-se novamente no banco e olhando direto para frente.
Travis ligou o motor e partiu pela estrada do canyon Santiago na direção norte. Olhando para o seu companheiro, disse:
- Você é realmente mais do que parece ser... ou estou ficando maluco? E se é mais do que aparenta, porra, o que é você?
No final da zona rural, na área Leste, seguindo a Chapman Avenue, tomou o caminho do McDonald’s, conforme prometera.
- Não posso libertá-lo agora Ou mesmo levá-lo para o canil da prefeitura - disse.
Um minuto mais tarde, Travis explicou o que estava querendo dizer:
- Se não ficar com você vou morrer de curiosidade, querendo saber mais a seu respeito.
Andaram por mais uns três quilômetros e Travis saiu da estrada procurando o estacionamento do McDonald’s.
- Podemos dizer que você é o meu cachorro, agora - disse Travis. O cão permaneceu em absoluto silêncio.
DOIS
1
Nora Devon estava com medo do técnico que tinha chamado para consertar o aparelho de televisão. Embora ele aparentasse ter uns trinta anos, possuía aquele ímpeto e o atrevimento de um adolescente. Quando ela atendera a porta, ele audaciosamente a olhou dos pés à cabeça então se identificou:
- Art Streck, da oficina de consertos Wadlow. - Olhou-a nos olhos e piscou um olho para ela. Era alto e magro, bem tratado, vestido de uniforme de calça e camisa brancas. Estava bem barbeado e tinha o cabelo louro, curto, bem penteado. Parecia um jovem bem nascido. Não um estuprador ou um psicopata. Mas, de alguma forma, Nora estava apreensiva, talvez por sua ousadia e imprudência destoarem de sua aparência.
- Você está precisando dos nossos serviços? - perguntara ele enquanto ela hesitava à entrada da porta.
Embora a pergunta parecesse inocente, a inflexão que ele colocou na palavra "serviço" sugeria claramente relação sexual. Ela não pensou que estivesse exagerando. Mas, de qualquer forma, pediu o conserto e não poderia mandar o técnico de volta sem uma explicação. Uma desculpa qualquer poderia levar a uma discussão e ela não era o tipo de pessoa para encarar situações desse tipo, então, permitiu que ele entrasse.
À medida que o acompanhara ao longo de um corredor largo e úmido que conduzia até a entrada da sala de estar, ela experimentava uma sensação de desconforto, percebendo que o largo sorriso dele era bem estudado, uma forma de esconder segundas intenções. E ele possuía reflexos como de um animal. Tinha um comportamento perturbador, que pouco a pouco a fazia perder a calma, a cada passo que ele dava dentro de casa.
Seguindo-a de muito perto, quase tocando o seu corpo por trás, Art Streck disse:
- É uma bela casa, sra. Devon. Muito bonita. Realmente gosto muito dela.
- Obrigada - respondeu ela friamente, não se importando de corrigir-lhe a observação, dizendo que era solteira.
- Um homem poderia ser feliz aqui... um homem poderia ser muito feliz.
A casa tinha uma arquitetura que alguns chamavam de estilo espanhol antigo de Santa Barbara: dois andares, paredes de estuque pintadas de creme com telhas vermelhas, as varandas, as sacadas em forma circular, evitando formar arestas e trepadeiras cobrindo parte da estrutura, com flores por todos os lados. O lugar era aprazível e bonito.
Nora odiava tudo aquilo.
Ela estava vivendo ali desde os dois anos de idade e a isto podemos acrescentar mais 28 anos, o tempo todo sob a vigilância quase ditatorial de sua tia Violet. Nora não tivera infância feliz e até mesmo agora poderia dizer que não tinha uma vida feliz. Violet Devon morrera há um ano. Mas na verdade, Nora ainda sentia a presença opressora da tia, que era como um marco odioso e indelével em sua memória.
Streck, chegando à sala de estar, colocou a caixa de ferramentas no chão, ao lado do aparelho de som, e observou cuidadosamente ao redor. Estava surpreso com a decoração.
O papel de parede, florido, era escuro e tétrico. O tapete persa não conseguia impressionar ninguém. A combinação de cores não dava vida ao ambiente - cinza, marrom, azul-real, com alguns toques de amarelo-claro. Móveis ingleses da metade do século XIX, pesados, talhados, esculpidos, com os pés em forma de patas. Sólidas poltronas, cômodas pequenas mesas com toalhas excessivamente decoradas. Algumas lâmpadas fracas provocavam sombras na sala, como os abajures todos em base de cerâmica. As cortinas eram também pesadas, em tecido já amarelado pelo tempo, impedindo que a luz do sol penetrasse no ambiente. Nada disso correspondia à arquitetura espanhola; Violet havia imposto seu mau gosto àquela linda casa.
- A decoração é sua? - perguntou Art Streck.
- Não. É de minha tia - disse Nora, que se colocara perto da lareira de mármore, o mais longe possível dele, sem sair da sala. - Esta casa era dela... Eu a recebi por herança.
- Se eu fosse você - disse ele -, jogaria fora tudo isto que está aqui. Poderia ser uma sala iluminada, alegre. Desculpe-me dizer isto, mas nada aqui tem a ver com você. Isto aqui poderia combinar muito bem com a sua tia solteirona... Não era uma tia solteirona? Sim... acho que sim. Poderia estar perfeito para uma tia solteirona... mas não para uma bonita senhora como você.
Nora desejou criticar sua insolência: quis dizer a ele para calar a boca e consertar a televisão. Mas não possuía experiência para tomar decisões por si mesma. Tia Violet a criara daquela maneira: para obedecer. Não para protestar.
Streck sorria para ela. O lado direito dos lábios dele tinha uma comissura que causava mal-estar. Inspirava deboche ou talvez intimidação. Fazendo esforço, ela disse:
- Gosto bastante.
- De verdade?
- Sim.
Ele sacudiu os ombros, como sinal de indiferença.
- Qual é o problema do aparelho?
- A imagem não pára no vertical e está cheia de estática, chuvisco. Ele afastou o televisor da parede, ligou o aparelho e ficou analisando as imagens. Então, conectou à tomada uma lâmpada portátil e a pendurou atrás da tevê.
O relógio de parede marcou um quarto de hora com uma única batida que ecoou por toda a casa.
- Você vê muito a televisão? - perguntou ele, enquanto retirava alguns parafusos da tevê.
- Não muito - respondeu Nora.
- Gosto de ver aqueles seriados como Dallas, Dinastia...
- Nunca assisti a esses.
- Nunca? Ei! Como não? Aposto como você já assistiu - riu ele maliciosamente. - Todos assistem. Até mesmo aqueles que não admitem. Não há nada mais interessante que aquelas histórias de intrigas, planos secretos, roubo, mentiras... e adultério. Você entende o que estou dizendo. As pessoas se sentam, vêem os programas, armam suas línguas, dizem "Oh, que coisa feia", e acabam fazendo o mesmo. Faz parte da natureza humana.
- Eu... tenho tarefas esperando por mim, na cozinha - disse ela nervosamente. - Grite por mim, quando terminar o conserto. - Ela deixou a sala e se dirigiu para a cozinha.
Estava trêmula. E consciente de sua fraqueza, admitia a facilidade com que se tinha entregue ao medo, mas não poderia contribuir para se modificar. Era o que era. Um camundongo.
Tia Violet costumava dizer: "Menina, há dois tipos de pessoas na mundo: gatos e camundongos. Os gatos vão onde desejam ir e pegam o que querem pegar. Os gatos são agressivos e auto-suficientes por natureza; os camundongos, por outro lado, não têm um pingo de agressividade. São vulneráveis, dóceis, tímidos, e são mais felizes quando mantêm suas cabeças baixas aceitando o que a vida lhes impõe. Você é um camundongo, minha querida. Não é ruim ser camundongo. Você pode ser perfeitamente feliz. Um camundongo pode não ter uma vida tão brilhante, quanto a de um gato, mas se ficar seguro na sua toca e mantiver o que tem, vai sobreviver mais do que o gato, numa vida quase sem confusão".
Agora mesmo havia um gato na sala, consertando a televisão e Nora estava sozinha, tomada por um pavor de camundongo. Não estava de fato cozinhando coisa alguma, como dissera a Streck. Por um momento, ficara perto da pia, com as mãos entrelaçadas - suas mãos pareciam estar sempre frias - procurando imaginar o que fazer enquanto Streck terminava o trabalho na sala. Então, decidiu fazer um bolo. Um bolo com cobertura de chocolate. O trabalho iria mantê-la ocupada, ajudando-a a desviar a mente das maliciosas observações de Streck.
Nora pegou potes, panelas, a batedeira elétrica, tirou fermento e outros ingredientes do armário da cozinha e começou. Aquela corriqueira atividade doméstica, fazia com que se acalmasse.
Tão logo acabara de virar a massa em duas fôrmas de bolo, Streck entrou na cozinha e disse:
- Você gosta de cozinhar?
Assustada, ela quase deixou cair tudo no chão. Entretanto, procurou segurar com firmeza. E com um barulho que denunciava a sua tensão colocou o copo da batedeira e a espátula na pia para serem lavados.
- Sim, gosto de cozinhar - respondeu.
- Não é lindo? Admiro uma mulher que gosta de fazer trabalhos de mulher. Você costura, faz crochê, bordados, coisas deste tipo?
- Faço tricô - disse ela.
- É ainda mais bonito.
- A tevê já está consertada?
- Quase.
Nora estava pronta para colocar o bolo no forno, mas não queria carregar as fôrmas sob o olhar de Streck, com medo de ficar tremendo. Ele poderia pensar que estava amedrontada e começar a agir com mais intimidade. Então, deixou as fôrmas em cima do balcão e começou a abrir a caixa com a cobertura gelada de chocolate.
Streck entrou ainda mais na cozinha, caminhando com naturalidade, descontraído, olhando para tudo com largo sorriso nos lábios.
- Poderia tomar um copo d’água?
Nora respirou quase aliviada, querendo acreditar que um copo d’água gelado era a única coisa que o trouxera ali.
- Oh, sim, claro - disse ela, pegando um copo no armário para servi-lo.
Quando se voltou para servir-lhe a água, ele estava bem próximo, atrás dela, quieto e silencioso como um gato. Ela tropeçou, involuntariamente, deixando cair um pouco da água no chão.
- Você...
- Aqui - disse ele, tirando-lhe o copo das mãos.
-...me assustou.
- Eu? - perguntou ele, sorrindo, olhando fixamente para os olhos azuis dela. - Não pretendia fazer isso. Desculpe. Sou desajeitado, sra. Devon. Sou mesmo. Tudo o que quero é um copo d’água. Você não pensou que eu queria alguma coisa a mais, pensou?
Era extremamente malicioso e petulante. Ela não poderia acreditar o quanto era malicioso, hábil com as palavras, frio e agressivo. Desejava esbofeteá-lo, mas estava com medo do que viesse a acontecer, depois. Bater nele, de algum modo, seria reconhecer suas ofensas, suas insinuações, e poderia encorajá-lo a uma atitude mais ofensiva, em vez de detê-lo.
Streck olhava bem para ela, com voracidade, com vigor, desejando-a ardentemente. E o sorriso dele era o de um caçador.
Nora concluiu que a melhor maneira de lidar com Streck era se fazer de inocente, aparentar unia estupidez monumental e ignorar-lhe as indiretas asquerosas de apelo sexual, como se não tivesse entendido nada. Devia, na verdade, lidar com ele da mesma forma que com um camundongo, ao enfrentar qualquer ameaça da qual não pudesse escapar. Fingindo que não via o gato, fazendo de conta que ele não estava presente, talvez o deixasse confuso e decepcionado pela falta de reação da vítima e fosse procurar outra presa em algum outro lugar.
Para fugir aos olhos dele, Nora abriu o armário ao lado da pia e apanhou vários pedaços de toalha de papel para secar a água que havia caído no chão. Mas no momento em que ela se inclinou à frente de Streck, deu-se conta de que tinha cometido um erro, porque ele não se afastara nem um milímetro e permanecia onde estava, com o olhar abrangendo-a toda enquanto ela esfregava o chão. A situação estava plena de símbolos eróticos. Quando ela concluiu que aquilo era uma forma de submissão a ele, levantou-se de novo e percebeu nele um sorriso mais enfático.
Envergonhada e confusa, Nora jogou as toalhas de papel numa cesta de lixo embaixo da pia.
Art Streck disse:
- Cozinhar, tricotar... sim, acho isso legal, muito legal. Que outras coisas você gosta de fazer?
- É só isso, suponho - disse ela. - Não tenho qualquer passatempo fora do comum. Não sou uma pessoa interessante e até mesmo não me considero inteligente.
Culpando-se por não ser capaz de expulsar aquele bastardo de sua casa, ela passou bem perto dele na direção do fogão para verificar se o forno já estava com a temperatura adequada, mas na verdade desejava escapar ao alcance de Streck.
Ele seguiu atrás dela, permanecendo bem perto.
- Quando estacionei em frente à casa, vi muitas flores. Você gosta de jardinagem?
Olhando para os botões do forno, ela disse:
- Sim... gosto de jardinagem.
- Aprovo isto - disse ele, como se ela se importasse com o fato de ele aprovar ou não. - Flores... está aí uma atividade pela qual uma mulher deve se interessar. Cozinhar, tricotar, cuidar do jardim... puxa, você é uma mulher prendada. Aposto que faz tudo bem, sra. Devon. Quero dizer... tudo o que uma mulher deve fazer. Aposto que você é uma mulher nota dez em tudo o que faz.
Se ele me tocar, vou gritar, pensou ela.
Mas os muros da velha casa não iam permitir que alguém lhe ouvisse os gritos, além do mais, os vizinhos estavam a certa distância. Ninguém ouviria ou viria em seu socorro.
Vou chutá-lo, pensou ela. Vou-me defender.
De fato, ela não estava muito certa se poderia lutar, se teria capacidade para tal. Ainda que tentasse se defender, ele era maior e mais forte.
- Sim, aposto que você é uma mulher nota dez em tudo que faz - repetiu ele, procurando ser mais insinuante do que antes.
Dando as costas para o forno, ela forçou uma risada.
- Meu marido vai ficar maravilhado ao ouvir isto. Não sou tão ruim assim ao fazer bolos, mas ainda não aprendi direito a fazer tortas, e quando asso alguma coisa ao forno, normalmente passa do ponto. O meu tricô também não é tão ruim, mas levo uma eternidade para terminar algum trabalho. - Ela passou de novo por ele e voltou para o balcão da cozinha. Estava impressionada consigo mesma ao se surpreender conversando, à medida que abria a caixa com a cobertura de chocolate. O desespero a fez falar como nunca. - Tenho algumas flores, das quais não sei cuidar direito. E se meu marido não me ajudasse, este lugar iria ficar horrível.
Ela achava que estava parecendo falsa. Até sentiu um toque de histeria na própria voz que devia ser evidente para ele. Mas a simples menção a um marido surtira efeito sobre Art Streck, que começou a pensar duas vezes antes de avançar com mais ímpeto. Enquanto Nora derramava a cobertura de chocolate em uma vasilha e media a quantidade de manteiga, Streck bebeu a água que ela lhe havia servido, depois caminhou na direção da pia, colocando o copo vazio no aparador, ao lado de vasilhas e pratos para lavar. Desta vez, ele não a pressionou.
- Bem... é melhor eu voltar ao trabalho - disse ele.
Ela balançou a cabeça, concordando, e o seu sorriso era estudado, escondendo o que pensava interiormente. Então começou a cantarolar, retomando sua tarefa na cozinha, como se nada tivesse acontecido.
Streck atravessou a cozinha, empurrou a porta, deixando-a aberta e disse:
- A sua tia gostava mesmo de lugares escuros, não é mesmo? Esta cozinha ficaria mais bonita, também, se você a clareasse.
Antes que ela pudesse responder, ele saiu, fechando a porta.
Apesar de Streck estar-se metendo onde não era chamado, opinando sem ser solicitado, parecia que acabou reconhecendo o seu devido lugar. E Nora estava satisfeita consigo mesma. Usando de alguns artifícios, como falar de um marido inexistente com admirável calma, ela acabou conseguindo tomar conta da situação. Esta não era a maneira exata como um gato agiria diante do inimigo, mas de longe não era também o comportamento tímido e assustadiço de um camundongo.
Ela olhou em torno de sua cozinha de teto alto e concordou que era muito escura. As paredes eram de um azul desbotado. Os globos que protegiam as lâmpadas eram opacos e tudo inspirava monotonia. Ela já estava planejando pintar as paredes e trocar os globos.
Só pensar em fazer grandes mudanças na casa de Violet Devon já era fascinante e a idéia a maravilhava. Nora tinha redecorado o quarto de dormir depois que Violet morrera e nada mais. E agora, pensar que poderia ir em frente e mudar tudo na casa dava-lhe um sentimento de rebelião. Talvez. Talvez pudesse. Se ela pôde defender-se de Streck, por que não conseguiria coragem para desafiar a tia morta?.
A sua auto-satisfação durou uns vinte minutos, tempo suficiente para colocar as fôrmas no forno e lavar alguns pratos e panelas. Então Streck voltou para dizer-lhe que tinha consertado a tevê e lhe apresentou a conta. Embora ela tivesse saído antes da cozinha, aparentando estar sob controle, ele se mostrava mais atrevido do que nunca, desta vez. Ele a olhava de cima abaixo, como que a imaginando nua, e a olhava nos olhos, de forma desafiadora.
Ela achou a conta muito alta, mas não argumentou porque desejava vê-lo fora da casa o mais rápido possível. Ao sentar-se à mesa da cozinha para assinar o cheque, ele adotou o já conhecido ardil de ficar bem próximo, tentando intimidá-la com sua masculinidade e seu tamanho. Quando ela se levantou para entregar-lhe o cheque, ele forçou uma maneira de apanhar o cheque das mãos dela, sugestivamente, tocando-lhe os dedos. Por todo o caminho ao longo do vestíbulo, Nora estava mais do que convencida de que ele, de repente, iria colocar no chão a sua caixa de ferramentas e atacá-la por trás. Mas ela conseguiu ultrapassar a porta e chegar à varanda. E o seu coração, que estava disparando, voltou a bater normalmente.
Ele hesitou por um momento, já no lado de fora da porta:
- O que faz seu marido?
A pergunta a deixou embaraçada. Era uma coisa que ele poderia ter perguntado antes, na cozinha, quando ela lhe falou do marido, mas agora sua curiosidade parecia fora de propósito.
Ela deveria dizer-lhe que aquilo não era da sua conta, mas ainda estava com medo dele. Percebeu que ele poderia facilmente ficar furioso e que para aguçar a violência nele não precisava de muita coisa. Então respondeu com outra mentira, do tipo que o faria ficar relutante em importuná-la mais ainda.
- Ele é policial.
Streck levantou as sobrancelhas.
- Mesmo? Aqui em Santa Barbara?
- Aqui mesmo.
- Mas que casa para um policial!
- Como disse? - perguntou ela.
- Não sabia que os policiais ganhavam tão bem.
- Sim, mas eu lhe disse que herdei esta casa de minha tia.
- É claro, me lembro agora. Você me disse. Está certo. Tentando reforçar a mentira, ela acrescentou:
- Morávamos em apartamento, quando minha tia morreu, então nos mudamos para cá. Você está certo... não teríamos condições de ter uma casa como esta, de outra maneira.
- Bem - disse ele -, estou feliz por você. Estou certo de que sim. Uma linda dama como você merece uma casa linda.
Ele se despediu e se dirigiu para a rua, onde estava estacionada a sua camioneta branca, bem ao lado da calçada. Ela fechou a porta e ficou observando através de uma pequena abertura oval, toda envidraçada, no meio da porta. Ele olhou de volta, percebeu-a junto à porta e acenou para ela. Nora se afastou para o lado e observou-o de forma que não fosse vista.
Sem dúvida, ele não acreditara nela. Ele sabia que o marido era uma mentira. Ela não deveria ter dito que era casada com um policial, pelo amor de Deus; era algo muito obvio para desarmá-lo. Podia dizer que era casada com um bombeiro, um médico, enfim, mas não com um policial. De qualquer maneira, Art Streck fora embora.
Ela não se sentiu segura até que a camioneta desaparecesse da vista. E mesmo depois de a camioneta ter desaparecido ela não se sentiu segura.
2
Depois de assassinar o dr. Davis Weatherby, Vince Nasco dirigiu seu furgão cinza para um posto de gasolina na Pacific Coast Highway. Entrou numa cabine telefônica, colocou algumas moedas e ligou para Los Angeles, - um telefone cujo número ele tinha decorado há muito tempo.
Um homem atendeu, repetindo o número que Vince tinha discado. Era uma das três vozes que costumavam atender as ligações e esta era uma voz suave, com um timbre profundo. Seguidamente, outro homem com voz forte também conversava com Vince.
Muito raramente, atendia uma mulher com voz sensual, ressonante, lembrando uma adolescente. Vince nunca a vira, mas sempre tentou imaginar como ela seria.
Agora, quando o homem de voz macia acabou de repetir o número, Vince disse:
- O trabalho está feito. Estou muito agradecido por você ter me chamado. Estarei sempre disponível para qualquer serviço. - Ele tinha certeza de que a pessoa no outro lado da linha reconhecera-lhe a voz também.
- Estou feliz em saber que tudo correu bem. Receba os nossos melhores cumprimentos por seu excelente trabalho. Agora, não se esqueça - disse o homem de contato, dando-lhe um novo número de telefone com sete dígitos.
Surpreso, Vince o repetiu. O contato disse:
- É o número de um telefone público em Fashion Island. É na rua, em frente à loja Robinson. Você pode estar lá em quinze minutos?
- Claro - respondeu Vince. - Em dez.
- Vou ligar em quinze minutos com todos os detalhes.
Vince desligou e voltou para o furgão, assobiando. Se eles o mandaram para outro telefone público para receber os detalhes’, não podia significar outra coisa além disto: já tinham trabalho para ele. Dois num só dia!
3
Mais tarde, depois que o bolo ficou pronto, Nora se retirou para o seu quarto de dormir, no canto direito do segundo andar.
Quando Violet Devon estava viva ali era o refúgio de Nora, apesar de a porta não ter fechadura. Como em todas as dependências da grande casa, havia móveis imensos e eram inúmeros, como se o lugar servisse de depósito, em vez de casa. E tudo era melancólico e enfadonho em todos os seus detalhes. Apesar disso, quando terminava as tarefas ou era liberada das intermináveis preleções da tia, Nora corria para o quarto, refugiando-se em livros ou em seus pensamentos.
Violet, sem avisar, pé ante pé para não fazer barulho, procurava inevitavelmente flagrar a sobrinha, invadindo o quarto na esperança de apanhá-la em práticas ou entretenimentos proibidos. Aquelas investidas repentinas foram muito freqüentes na infância de Nora e até mesmo durante o período de adolescência, aumentando de intensidade mais tarde, inclusive nos últimos dias de Violet Devon, quando Nora tinha 29 anos. Por causa do gosto de Violet por roupas escuras, do cabelo firmemente preso no coque e da falta de maquilagem no rosto pálido, com traços profundos, ela mais parecia homem do que propriamente mulher; assemelhava-se a um monge severo e implacável, envolto em roupas de penitência, percorrendo os corredores úmidos de um monastério medieval para fiscalizar o comportamento dos outros monges.
Se Nora fosse surpreendida divagando em sonhos, ou cochilando, era severamente repreendida e punida com trabalhos árduos. Sua tia não perdoava preguiça ou indolência.
Os livros eram permitidos - desde que Violet os aprovasse antes - por um único motivo: os livros educavam. Aliás, como dizia Violet, com freqüência: "Mulheres simples e domésticas, como você e eu, jamais levam vida de exuberância e nunca vão a lugares chamados da moda. Desta forma, os livros têm importância especial para nós. Podemos viver inúmeras experiências através deles. E isto não é ruim. Viver em meio aos livros é ainda melhor do que ter amigos e conhecer... homens".
Com ajuda e cumplicidade do médico da família, Violet Devon mantivera Nora bem distante da escola pública, alegando razões de saúde, dizendo que a sobrinha era muito doente. Ela foi educada em casa, assim os livros eram, da mesma forma, sua única escola.
Além do mais, por ter lido milhares deles até a idade de trinta anos, Nora tornara-se uma artista autodidata em pinturas a óleo, aquarela e gravuras. Desenhar ou pintar eram atividades que tia Violet aprovava. A arte era uma atividade com a qual Nora mantinha a mente ocupada, longe do mundo além dos limites da casa, ajudando-a a evitar contato com outras pessoas que com toda a certeza iriam rejeitá-la, machucá-la e desiludi-la.
Num canto do quarto de Nora, havia uma mesa para desenhos, um cavalete para pinturas e uma cômoda com pincéis, tintas e tudo do que precisasse. Para criar aquele pequeno espaço de trabalho, foi necessário arrastar alguns móveis, deixando-os colados uns aos outros, e o efeito era terrível, causando claustrofobia.
Muitas vezes, ao longo do tempo, especialmente durante a noite e até mesmo durante o dia, Nora era tomada pelo pavor de que o chão fosse desabar sob o peso de todos aqueles móveis e que ela iria cair no andar debaixo e morrer esmagada pela sua própria e imensa cama. Ao ser dominada por este medo incontrolável, corria para o jardim nos fundos da casa, onde procurava relaxar ao ar livre, abraçando-se a si mesma e tremia de medo. Aos vinte e cinco anos ela se deu conta de que os seus ataques de ansiedade não eram somente por causa do excesso de móveis e da decoração escura da casa, mas principalmente devidos à presença dominadora da tia.
Numa manhã de sábado, passados quatro meses, exatamente oito meses depois da morte de Violet Devon, Nora teve uma necessidade repentina e fez mudanças em seu quarto. Retirou os móveis menores, distribuindo-os pelas cinco outras abarrotadas salas do segundo andar. Os móveis mais pesados tiveram que ser desmontados e as peças devidamente ordenadas, e finalmente ela conseguiu com sucesso retirar quase tudo, permanecendo a sua cama de quatro colunas, uma única poltrona e o cavalete, e era tudo o que ela precisava. Então ela arrancou o papel da parede.
Por todo aquele desconcertado fim de semana, ela se sentiu como se tivesse chegado a mudança e que sua vida jamais seria a mesma. Mas, ao mesmo tempo em que redecorou o quarto, o espírito de rebelião desapareceu e ela deixou o resto da casa exatamente como estava.
O quarto passou a ser o único lugar da casa ensolarado e vibrante. As paredes foram pintadas de amarelo-claro. As cortinas desapareceram junto com aquele horrível tapete. No lugar das cortinas foram colocadas persianas que combinavam com a pintura e agora o lindo piso de carvalho estava brilhando.
Mais do que nunca, ali era o seu refúgio. Sempre que ultrapassava a porta e verificava a transformação que tinha feito, seu espírito se elevava, ajudando-a a vencer os problemas.
Depois da traumatizante visita de Streck, Nora estava calma como sempre, reconfortada pelo belo quarto de dormir. Ela se sentou à mesa de desenho e começou a fazer um esboço, um estudo preliminar de uma pintura a óleo que vinha planejando há algum tempo. Suas mãos tremiam a princípio e teve que parar por inúmeras vezes para recuperar o suficiente autocontrole e continuar a desenhar. Mas, com o passar do tempo, o temor desapareceu.
Agora ela já era capaz de pensar em Streck, durante o trabalho que estava realizando, e de tentar imaginar o que ele poderia ter feito de mais grave se ela não tivesse assumido o controle da situação, pondo-o para fora de casa. Recentemente, Nora estava analisando a forma pessimista com que Violet Devon via o mundo exterior, c se perguntava se era inteligente aquela concepção; embora fosse aquela a educação que tivera, Nora suspeitava de que aquela visão estivesse distorcida, ou mesmo fosse uma visão doentia. Mas, depois de ter-se deparado com Ari Streck, este lhe parecera uma prova clara dos argumentos de Violei, prova de que as relações intersociais no mundo exterior eram perigosas.
Pouco depois, quando o seu esboço estava quase pronto, Nora começou a pensar que podia ter interpretado mal tudo o que Streck dissera e fizera. Certamente, ele não lhe estivera fazendo propostas indecorosas. Não para ela.
Afinal de contas, ela era muito pouco atraente. Era uma mulher comum, dona-de-casa. Talvez, até feia. Nora sabia que isto era verdade porque, apesar dos defeitos de Violet, a velha mulher tinha algumas virtudes, entre as quais a sinceridade. Nora não era bonita, não havia sequer um ponto extraordinário nela, nada que impelisse alguém a agarrá-la, beijá-la ou acariciá-la. Isto era uma realidade da vida que tia Violet fez com que Nora entendesse cedo.
Embora repugnante nos gestos Streck possuía atributos físicos e até poderia escolher mulheres bonitas. Era ridículo admitir que estivesse interessado numa mulher como ela.
Nora ainda usava as roupas que Violet lhe comprara - vestidos e saias sem estilo definido, de cor escura, semelhantes às que a tia usava. Roupas mais claras e mais femininas poderiam chamar atenção para o seu corpo nada escultural, ou para as feições impróprias do rosto.
Mas por que Streck lhe disse que era bonita?
Bem, isto poderia ser facilmente explicado. Ele estava se divertindo com ela, talvez. Ou, com toda a certeza, estava sendo educado, gentil.
Quanto mais pensava a respeito, mais acreditava que fizera mal juízo do pobre homem. Aos trinta anos já era uma solteirona neurótica, dominada pelo medo, fruto da solidão.
Aquele pensamento a deixou um pouco deprimida por certo tempo. Mas se aplicou com mais interesse ao seu trabalho de desenhar, terminando-o, e começou outro escolhendo um ângulo diferente. À medida que a noite chegava, ela penetrava cada vez mais na sua arte.
Do seu quarto, ouvia as badaladas precisas do velho relógio de parede no andar de baixo na hora cheia, na meia-hora e aos quinze minutos.
O sol ao desaparecer ficava mais dourado, à medida que o tempo passava e, como o dia passado no quarto, intensificava o seu brilho. O ar parecia refletir esse brilho. Do outro lado da janela, uma palmeira balançava calmamente ao sabor da brisa de maio.
Por volta das quatro horas, estava calma, cantarolando, enquanto trabalhava.
Ficou assustada quando o telefone tocou.
Deixou o lápis e segurou o telefone.
- Alô?
- Engraçado... - disse a voz de um homem.
- Não entendi.
- Nunca ouviram falar dele.
- Desculpe - disse ela -, mas acho que o senhor ligou o número errado.
- É a sra. Devon que está falando? Agora reconhecia a voz.
Era ele: Streck.
Por um momento, não conseguiu falar.
- Nunca ouviram falar dele - continuou Streck. - Liguei para a central de polícia de Santa Barbara e pedi para falar com o policial Devon. Disseram que não tem nenhum Devon trabalhando lá. Não é estranho, sra. Devon?
- O que você deseja? - perguntou ela, descontrolada.
- Acho que houve um erro de computador - disse Streck, dando uma risadinha. - Sim, com certeza o computador tirou o nome do seu marido da lista de policiais. Creio que seria melhor dizer a seu marido o mais rápido possível, assim que ele chegar em casa, sra. Devon. Se ele não corrigir isto... porra, ele não poderá pegar o contracheque no fim de semana.
Streck desligou e o ruído do telefone fez com que ela se arrependesse de não ter desligado antes, batido com o telefone assim que ele disse ter ligado para a delegacia de polícia. Ela desejava não tê-lo encorajado nem mesmo a ter ficado ouvindo o que ele tinha a dizer ao telefone.
Ela caminhou por toda a casa, verificando todas as janelas e portas. Tudo estava bem fechado.
4
No McDonald’s, da East Chapman Avenue, Travis Cornell pediu cinco hambúrgueres para o cão de caça. Sentado no banco da frente da camioneta, o cachorro comeu toda a carne e dois pãezinhos, e quis mostrar-se agradecido lambendo o rosto de Travis.
- Você tem o hálito de um crocodilo com estomatite - protestou ele, mantendo o cachorro à distância.
A viagem de volta a Santa Barbara durou três horas e meia, porque as estradas estavam mais movimentadas do que de manhã. O tempo todo, Travis olhava repetidamente para o companheiro e falava com ele, na expectativa de encontrar as mesmas manifestações de inteligência que havia presenciado antes. Mas suas expectativas foram frustradas. O cão de caça procedeu como qualquer outro cachorro durante todo aquele percurso. De vez cm quando, sentava-se ereto, olhando firme através do pára-brisa ou da janela lateral, contemplando o cenário com interesse e atenção fora do comum. Mas na maior parte do tempo mantinha-se curvado dormindo no assento, fazendo ruídos durante os sonhos - ou então arfava e bocejava, de fastio.
Quando o cheiro do pêlo de cachorro se tornou insuportável, Travis abriu as janelas para ventilar e o animal aproveitou para colocar a cabeça ao vento. Com orelhas voltadas para trás na direção do vento, o pêlo esvoaçando, ele demonstrava seu contentamento com a mesma expressão encantadoramente tola de todos os cães que viajavam daquela forma.
Num centro comercial em Santa Barbara, Travis parou para comprar ração de cachorro, tigelas apropriadas para comida e água, banheira de metal, xampu para animais com uma substância especial para matar pulgas, escova para o pêlo, coleira e guia.
À medida que Travis colocava tudo isto na camioneta, o cachorro acompanhava todos os movimentos através da janela de trás da cabine, com o focinho colocado ao vidro.
Retomando seu lugar ao volante, Travis disse:
- Você está sujo, fedorento. Você não vai fazer estardalhaço para tomar banho, vai?
O cachorro abriu toda a boca.
Quando Travis alcançou a entrada da garagem de sua casa alugada, de quatro quartos na área nordeste de Santa Barbara, e desligou o motor, começou a questionar se o comportamento do cachorro naquela manhã fora tão surpreendente quanto pensou que fosse.
- Se você não me mostrar que é inteligente de novo - disse ele ao abrir a porta da frente da casa -, vou concluir que me enganei sobre você lá na mata: que estou doido; que tudo foi imaginação.
O cachorro colocou-se ao lado dele na varanda, fitando-o como se procurasse entender-lhe as palavras.
- Você quer ser o responsável por eu colocar dúvidas na cabeça sobre a minha sanidade mental? Hem?
Uma borboleta alaranjada e preta passou voando e assustou o cão de caça, que latiu e saiu correndo atrás de sua presa pulando fora do alpendre e seguindo no sentido oposto da garagem. Correndo por todos os lados do jardim, pulando alto, cortando o ar, sem conseguir apanhar a borboleta, quase colidiu com o tronco de uma tamareira, por pouco evitou um choque de cabeça numa banheira de concreto para pássaros, e foi de encontro a um canteiro de flores sobre as quais a borboleta voou em segurança. O cão rolou, ergueu-se e arremessou-se contra as flores.
Quando percebeu a derrota, voltou a Travis com uma expressão de embaraço nos olhos.
- Cachorro-maravilha - disse ele. - Bem feito.
Ele abriu a porta e o cão se antecipou entrando na frente. Logo começou a explorar os novos aposentos.
- É melhor que você seja eficiente! - gritou Travis.
Colocou a banheira, o saco plástico cheio de compras na cozinha. Depositou água e comida nas tigelas e guardou todo o resto do lado de fora da porta dos fundos. Colocou o saco na calçada do quintal, com a banheira ao lado, perto da torneira.
Voltou para dentro de casa, pegou uma bacia que estava embaixo da pia da cozinha, conseguiu a água mais quente que podia e levou para fora, derramando-a na banheira. Depois que Travis fez quatro viagens de ida e volta levando água, o cão de caça apareceu, pesquisando o quintal. Quando Travis já tinha enchido mais da metade da banheira, o cachorro começou a urinar em vários pontos do muro, como que definindo a linha de propriedade, ou demarcando o território.
- Quando você terminar de matar a grama. - Disse Travis -, é melhor estar pronto para o banho, seu fedorento.
O cão se voltou para ele, levantou a cabeça parecendo entender o que estava-lhe dizendo. Mas não parecia daqueles cachorros inteligentes que estamos acostumados a ver no cinema. Não parecia tê-lo entendido. Parecia um idiota. Assim que parou de falar, o cachorro deu uma pequena corrida ao longo do muro e urinou de novo.
Ao vê-lo, Travis também sentiu vontade de ir ao banheiro, onde trocou de roupa, vestindo uma velha calça jeans e uma camiseta já bem usada - roupas adequadas para o trabalho que tinha pela frente.
Quando Travis voltou ao quintal, o cachorro estava aguardando ao lado da banheira, com a mangueira presa aos dentes. De alguma forma, ele conseguira abrir a torneira e a água corria normalmente.
Era uma tarefa difícil para um cachorro manipular com êxito uma torneira. Travis imaginou que um teste equivalente para sua ingenuidade e habilidade seria tentar abrir um vidro de aspirina, daqueles com dispositivo de segurança para evitar que as crianças o abram, com uma das mãos para trás.
Profundamente surpreso, perguntou:
- A água está muito quente para você?
O cão colocou de lado a mangueira, deixando a água escorrer por todo o quintal, e entrou na banheira. Sentou-se e olhou para Travis, como que querendo dizer: Vamos logo com isto, seu pateta.
Ele se aproximou da banheira e ordenou:
- Mostre-me como você pode fechar a torneira. - O cachorro olhou para ele com ar estúpido. - Mostre-me - insistiu Travis.
O animal não lhe deu atenção e procurou acomodar-se melhor na banheira.
- Se você abriu a torneira, você pode fechá-la. Como o fez? Com os dentes? Tinha que ser com os dentes. Não poderia ser com as patas, porra! Mas, mesmo assim, há um truque qualquer, porque você poderia ter quebrado ura dente na torneira.
O cachorro espichou-se um pouco para fora da banheira, o suficiente para segurar a boca do saco plástico que continha o xampu.
- Você não vai fechar a torneira? - perguntou Travis. O cachorro simplesmente olhou para ele, enigmático. Travis suspirou e fechou a água.
- Está bem, está bem. Tente ser menos burro. - Tirou a escova e o xampu de dentro do saco e os levou na direção do cão. - Aqui está. Você provavelmente não precisa de mim. Você pode se esfregar, tenho certeza.
O cachorro deu um uivo longo, que foi até o fundo de sua garganta, e Travis teve a certeza de que o cão achava que ele é que era burro.
Cuidado agora, disse para si mesmo. Você está correndo perigo, Travis. O que você tem aqui é um maldito cachorro inteligente, mas ele não pode de fato estar entendendo o que você está dizendo e responder.
O cão se submeteu ao banho sem protestar, aproveitando e deliciando-se com a água. Depois de pedir que saísse da banheira, Travis passou uma hora escovando-lhe o pêlo. Tirou espinhos e pedaços de grama que não tinham saído com a água. O animal nem por um segundo demonstrara impaciência, e, às seis horas, estava completamente mudado.
Escovado, era um animal bonito. O pêlo era dourado na maior parte com algumas manchas mais claras nas patas traseiras, na barriga e junto ao rabo. Embaixo, era bem peludo para lhe dar calor e proteger-lhe da água. A parte externa do pêlo era macia, mas não tão espessa, e em algumas partes o pêlo longo era ondulado. O rabo fazia uma curva para cima, dando ao cachorro um ar de felicidade, o que era enfatizado pelo abanar contínuo do rabo.
O sangue seco atrás da orelha era de um pequeno ferimento já curado. O sangue nas patas não era coisa séria, apenas resultado de longa marcha em terreno difícil. Travis simplesmente fez um curativo com ácido bórico, que aplicou também nos ferimentos menores. Estava confiante em que o cachorro experimentasse só um pouco de desconforto - ou talvez não sentisse nada - e estaria completamente curado em poucos dias.
O cão parecia ótimo agora, mas Travis estava todo molhado, sujo, suando, com xampu por todos os lados. Estava impaciente para tomar um banho e vestir roupa limpa. Também estava com fome.
A única coisa que faltava era a coleira do cachorro. Mas quando tentou colocar-lhe a coleira, o animal rosnou baixo e procurou afastar-se.
- Calma. É só uma coleira, garoto.
O cachorro fitou a coleira vermelha, de couro, que estava nas mãos de Travis e continuou latindo.
- Você tem péssima recordação de coleiras, não é mesmo?
O cachorro parou de rosnar, mas permaneceu parado onde estava.
- Você foi maltratado? - perguntou Travis. - Deve ter sido. Talvez, eles o sufocaram com a coleira ou o prenderam com uma corrente pequena. - Foi alguma coisa assim?
O cão latiu, cruzou o quintal e se colocou bem distante no outro canto, olhando a coleira de longe.
- Você confia em mim? - perguntou Travis, permanecendo de joelhos, numa posição nada ameaçadora.
O cachorro desviou os olhos da coleira e prestou atenção em Travis, olhando-o nos olhos.
- Jamais vou maltratar você - disse Travis de forma solene, não se sentindo totalmente idiota por estar falando daquela maneira com um cachorro. - Você deve saber que eu não faria isto. Quero dizer, você sabe, por instinto, que não lhe vou fazer mal, não sabe? Siga seus instintos, garoto, e confie em mim.
O cachorro voltou do fundo do quintal e parou a uma distância em que Travis pudesse apanhá-lo. Olhou para a coleira e depois para ele, firmando os olhos de maneira misteriosa. Como da vez anterior, Travis experimentou um sentimento verdadeiramente insondável, tão insondável quanto indescritível.
- Escute aqui - disse Travis -, no futuro vão surgir oportunidades em que vou ter que levá-lo a alguns lugares onde você vai precisar de uma guia, que você vai necessitar de estar preso à coleira, não é mesmo? Esta é a única razão pela qual desejo que você tenha uma... desta forma, posso levá-lo a todos os lugares comigo. Para isso e para afugentar as pulgas. Mas se você não quiser se submeter não vou forçá-lo.
Ficaram se encarando por muito tempo, enquanto o cão parecia pensar sobre o assunto. Travis continuava a segurar a coleira como se fosse um presente e não uma exigência. E o cachorro permanecia fitando os olhos do seu novo dono. Finalmente, o animal se sacudiu, suspirou profundamente e começou a caminhar na direção de Travis.
- Isso, eu sei que você é um bom garoto - disse Travis, para estimular o animal.
Quando se aproximou de Travis, sentou-se com a barriga no chão, depois virou-se de costas, colocando as quatro patas para cima, como querendo dizer que agora estava tudo bem. Olhava para Travis com uma mistura de amor, confiança e um pouco de medo.
Travis sentiu um aperto na garganta e logo vieram-lhe lágrimas aos olhos. Então engoliu em seco, reteve as lágrimas e disse para si mesmo que estava sendo um bobo sentimental. Mas sabia, por que aquela submissão do cachorro o tinha afetado tão fortemente. Pela primeira vez, em três anos, Travis Cornell percebeu que alguém necessitava dele. Sentiu um envolvimento profundo com outro ser vivo. Pela primeira vez em três anos ele encontrava uma razão para viver.
Deixou escapar a coleira e começou a fazer carinho no animal, coçando-lhe a barriga.
- Preciso dar um nome para você.
O cachorro virou-se e ficou em pé novamente, com as orelhas eriçadas como que para ouvir como seria chamado.
Meu Deus do céu, pensou Travis, estou atribuindo a ele um caráter humano. É um cachorro muito especial, talvez, mas continua sendo somente um cachorro. Pode parecer que esteja esperando ouvir como será batizado, mas, porra, ele não entende a minha língua.
- Não consigo imaginar nenhum nome que lhe sirva - disse finalmente Travis. - Nós não temos pressa neste sentido. Mas vai ser o nome exato. Você não é um cachorro comum e eu tenho que pensar um pouco, até achar o seu nome certo.
Travis esvaziou a banheira, lavou-a e a deixou secar. Juntos, ele e o cachorro entraram na casa que agora dividiam.
5
A dra. Elisabeth Yarbeck e seu marido, Jonathan, um advogado, moravam em Newport Beach, numa casa imensa estilo colonial de um só andar, cercada por muros de estuque, com um caminho de pedras que conduzia até a porta, Os raios do sol brilhavam como cobre e rubi, refletindo nas pequenas janelas que havia ao lado da entrada principal da casa, dando a elas (o aspecto de enormes pedras preciosas.
Elisabeth atendeu a porta, quando Vince Nasco tocara a campainha. Ela aparentava ter cerca de cinqüenta anos. Estava bem vestida e era atraente, o cabelo louro prateado e os olhos azuis. Vince se identificou como John Parker, um agente do FBI, e que precisava falar com ela e com o marido sobre um caso que estava investigando.
- Um caso? Que caso? - disse ela.
- É relacionado a um projeto de pesquisa financiado pelo governo, no qual você estava tomando parte - disse Vince, como o haviam instruído.
Ela examinou a foto na credencial do FBI, com todo cuidado.
Ele não estava preocupado. A carteira de identidade falsificada fora feita pelas mesmas pessoas que o tinham contratado para este novo trabalho. Aquele documento já o tinha ajudado há dez meses atrás ao chegar a San Francisco e serviu muito bem em três outras situações.
Embora soubesse que a carteira de identidade teria a aprovação dela, Vince não estava certo de que ele próprio fosse aprovado. Ele usava terno azul escuro, camisa branca, gravata azul, os sapatos pretos estavam muito bem polidos - o perfil correto de um agente. O porte e as expressões faciais igualmente ajudavam a compor o papel que estava representando. O assassinato do dr. Davis Weatherby e a possibilidade de duas outras mortes nos próximos minutos, deixavam-no selvagemente excitado, enchendo-o de um prazer mórbido, quase incontrolável. Uma sensação de riso começou a tomar vulto na sua mente, e se tornava cada vez mais difícil de controlar naquele minuto. Quando ele estava dirigindo o carro, que acabara de roubar para aquele serviço, por várias vezes chegou a tremer ao volante, não por nervosismo, mas por intenso prazer, quase de natureza sexual. Foi obrigado a estacionar ao lado da estrada e a recostar-se por uns dez minutos, respirando profundamente, até se acalmar um pouco.
Agora, Elisabeth Yarbeck desviou os olhos da identidade falsificada e fitou Vince com evidente ar de desaprovação.
Ele tentou sorrir, embora isto fosse perigoso, afinal poderia descambar para um riso incontrolável, desmascarando-o totalmente. Tinha um sorriso de garoto, cujo contraste com o tamanho dele, poderia ajudar em certas ocasiões.
- Depois de um momento, a senhora Yarbeck também sorriu. Satisfeita, ela devolveu os documentos e o acolheu em sua casa.
- Preciso também conversar com o seu marido - lembrou Vince, ao mesmo tempo em que ela fechava a porta da casa.
- Ele está na sala, sr. Parker. Venha por aqui, por favor.
A sala era grande e arejada, toda acarpetada, e as paredes eram de cor creme. Os sofás eram verdes. Através das imensas janelas, podia-se ver com detalhes o resto da propriedade, com algumas casas na parte de baixo da colina.
Jonathan Yarbeck preparava-se para colocar fogo na lareira, apanhando um pouco de lenha que costumava guardar dentro da própria sala. Levantou-se esfregando as mãos e a sua mulher o apresentou a Vince:
-...John Parker, do FBI.
- FBI? - perguntou Jonathan, surpreso.
- Sr. Yarbeck - disse Vince -, se houver outros membros da família em casa, gostaria de conversar com eles, agora, para que não tenha de repetir o assunto.
Yarbeck, balançando a cabeça, respondeu que estava sozinho com a mulher e que os garotos estavam na universidade.
- Mas, afinal, o que está havendo?
Vince puxou a pistola com silenciador de dentro de seu casaco e atirou em Jonathan Yarbeck no peito. O advogado foi jogado para trás na direção de uma prateleira, onde ficou parado por um instante, como se pregado na parede. Então caiu sobre os utensílios da lareira.
Ssssnap.
Elisabeth Yarbeck ficou paralisada de terror e surpresa. Vince rapidamente se desviou para ela. Segurou-a com força colocando o braço dela para trás, com violência. Quando gritou de dor, ele encostou-lhe a pistola contra a cabeça e disse:
- Fique quieta, ou vou fazer voar a bosta dos seus miolos.
Ele a forçou a acompanhá-lo pela sala até perto do corpo do marido. Jonathan Yarbeck estava com o rosto para baixo, em cima de uma pá, que usava para colocar carvão na lareira. Estava morto. Mas Vince não queria correr riscos. Deu mais dois tiros à queima-roupa na cabeça do advogado.
Lis Yarbeck começou a soluçar, em meio a um som estranho e fino, como o miado de um gato.
Por causa da distância e da opacidade dos vidros, Vince sabia que os vizinhos não poderiam enxergar nada pelas janelas, mas queria estar com a mulher num lugar mais escondido. Puxou-a pela sala no sentido do fundo da casa, olhando pelas portas por onde passava, até encontrar o banheiro principal. Lá ele deu-lhe um empurrão e ela caiu no chão.
- Fique aí - disse.
Ligou as lâmpadas na mesa-de-cabeceira e foi direto para uma porta de vidro que dava para o quintal e cerrou as cortinas.
No momento em que virou as costas, a mulher se levantou e correu para a porta da rua. Ele a segurou, atirando-a, violentamente, contra a parede. Deu um soco em seu estômago, fazendo-a cair no chão. Levantando a cabeça dela pelos cabelos, ele a forçou a olhar nos olhos.
- Escute aqui, dona, não vou atirar em você. Vim aqui para pegar o seu marido. Apenas o seu marido. Mas se você tentar escapar de mim, antes da hora em que eu permitir, terei que matá-la também. Entendeu?
Ele estava mentindo, claro. Ela era a única pela qual estava sendo pago para matar, e o marido simplesmente foi eliminado porque se encontrava cm casa naquele momento. Entretanto, era verdade que Vince não iria atirar nela. Queria que ela cooperasse até que fosse possível amarrá-la para poder conversar com ela com mais calma. Os dois tiros já o tinham satisfeito e que ia matá-la lentamente. Às vezes, a morte podia ser saboreada como uma boa comida, degustada como um bom vinho, contemplada como um glorioso pôr-do-sol.
Lutando para respirar, soluçando, ela perguntou:
- Quem é você?
- Não é da sua conta.
- O que você deseja?
- Apenas que fique calada. Coopere. E vai sair disso com vida. Ela começou a orar desesperadamente, com as palavras correndo e se misturando, às vezes, com expressões incompreensíveis.
Vince acabou de fechar totalmente as cortinas.
Tirou o telefone da parede e arremessou-o no outro canto da sala. Pegando a mulher pelo braço novamente, levou-a para o banheiro. Procurou por gavetas e encontrou um estojo de primeiros socorros. O esparadrapo era tudo o que necessitava. Novamente no quarto, ele a forçou a ficar de costas na cama. Usou o esparadrapo para prender-lhe os tornozelos, assim como aos pulsos. Da gaveta de uma penteadeira, tirou uma das calcinhas que ela usava e a enfiou na boca. Para maior segurança, selou a boca com esparadrapo.
Ela tremia à beira do estado de choque, chorando e suando demais.
Vince saiu do quarto, foi até a sala e se ajoelhou ao lado do corpo do advogado e o virou para cima. Uma das balas que penetrara pela nuca saiu pela garganta, exatamente embaixo do queixo. A boca aberta estava cheia de sangue. Um dos olhos estava puxado para cima, de forma a aparecer somente o branco do olho.
Vince se fixou no olho aberto de Jonathan Yarbeck.
- Obrigado... - disse ele, com reverência e sinceridade. - Muito obrigado, sr. Yarbeck. - Baixou as pálpebras do morto e o beijou na testa. - Obrigado por tudo que você me deu.
Então foi para a garagem procurar uma caixa de ferramentas dentro dos armários. Escolheu um martelo que tinha um cabo de borracha, confortável de ser usado.
Quando voltou ao quarto e colocou o martelo sobre o colchão ao lado da mulher, os olhos dela se arregalaram quase de maneira cômica.
Ela começou a se contorcer, a se virar, numa tentativa inútil de libertar as mãos.
Vince começou a se despir.
A mulher olhava para ele com o mesmo pavor com que olhava o martelo.
- Não, por favor, não se preocupe, dra. Yarbeck. Não vou molestá-la. - Ele colocou o paletó no encosto de uma cadeira. - Não tenho interesse sexual em você. - Retirou os sapatos, as meias, as calças. - Não terá que sofrer este tipo de humilhação. Não pertenço ao grupo de homens que está pensando. Estou simplesmente tirando minhas roupas para evitar que elas fiquem sujas de sangue.
Nu, pegou o martelo e golpeou-lhe a perna esquerda, esmagando o joelho. Talvez depois de cinqüenta ou sessenta golpes de martelo, chegara o momento.
Ssssnap.
Uma repentina onda de energia percorreu-lhe o corpo. Ele se sentia com a percepção animal, extremamente sensível a tudo ao redor, formas e cores. Nunca se sentira tão forte em toda a sua vida. Era como se fosse Deus em um corpo de homem.
Então largou o martelo e caiu de joelhos ao lado da cama. Recostou a testa ao lençol coberto de sangue e respirou profundamente, várias vezes, sentindo um prazer indescritível.
Alguns minutos mais tarde, quando se recuperou, ajustando-se à sua nova e mais forte condição, levantou-se e caminhou na direção da mulher que já estava morta, enchendo-a de beijos no rosto. Em seguida, beijou-lhe cada palma das mãos.
- Obrigado...
Estava tão vividamente tomado pelo sacrifício que ela fizera por ele, que pensou que poderia chorar. Mas a alegria pela sua boa sorte era maior do que a piedade por ela. Então, as lágrimas não caíram.
No banheiro, desta vez tomou um banho rápido. À medida que a água quente escorria-lhe pelo corpo, pensava no quanto fora esperto em fazer da morte um excelente negócio para si próprio. Ser pago por algo que ele faria, de qualquer maneira, sem remuneração.
Depois de se vestir novamente, usou uma toalha para limpar tudo em que tocou desde que entrara naquela casa. Sempre se lembrava de todos os seus movimentos e nunca sofria preocupações posteriores por ter esquecido algum objeto com suas impressões digitais. Possuía memória perfeita, o que era parte integrante de todos os seus talentos.
E quando abandonou aquela casa, percebeu que a noite já tinha chegado.
TRÊS
1
Ao longo de boa parte do início da noite, o cão de caça não demonstrou nada de suas extraordinárias habilidades de comportamento que tanto impressionaram a imaginação de Travis. Ele ficou observando o cachorro, às vezes, diretamente, às vezes de soslaio, mas não conseguia ver nada fora do comum que satisfizesse à sua curiosidade.
Ele teve no jantar bacon, alface e sanduíche de tomate, e abriu uma lata de ração para o cachorro, que pareceu gostar, porque a devorou rapidamente, mas dava impressão de preferir a comida do dono. Sentou-se ao chão da cozinha ao lado da cadeira de Travis, olhando-o como se pedisse um pedaço dos sanduíches que Travis estava comendo. E, afinal, ele acabou dando ao cachorro dois pedaços de bacon.
Nada no comportamento do cachorro era fora do comum. Não estava agindo de forma excepcional. O animal simplesmente lambia suas patas e usava um repertório de movimentos conhecidos de todos os cachorros para mostrar que estava pedindo piedade e compaixão. Qualquer vira-latas agiria daquela maneira.
Mais tarde, na sala, Travis ligou a tevê e o cachorro pulou no sofá e recostou-se ao lado dele. Depois de um momento, o animal colocou a cabeça nas suas pernas, pedindo para ser acarinhado atrás das orelhas. Vez por outra, o cachorro olhava para a tevê, sem encontrar grande interesse nos programas.
Travis também não estava interessado na tevê. Estava unicamente intrigado com o cão. Queria observá-lo e encorajá-lo a executar mais truques. Embora pensasse em meios que o estimulassem a demonstrar sua excepcional inteligência, não podia apresentar testes confiáveis que determinassem a capacidade mental do animal.
Além do mais, Travis tinha a sensação de que o cachorro não iria cooperar num teste. Na maioria das vezes, parecia instintivamente esconder a sua inteligência. Ele lembrou da forma engraçada com que o cachorro perseguiu a borboleta, o que contrastava com a maneira habilidosa com que abriu a torneira de água. Embora fosse uma idéia maluca, Travis suspeitava de que o animal não queria despertar suspeita sobre si mesmo, o que revelava uma forma de inteligência que talvez só viesse à tona nos momentos de perigo, como nas montanhas, ou quando estivesse com muita fome, no caso de abrir o porta-luvas da camioneta para apanhar a barra de chocolate. Essa inteligência poderia se manifestar também quando ninguém estivesse olhando (quando ele abriu a torneira).
Era uma idéia absurda porque sugeria que o cachorro não era apenas inteligente, para um elemento de sua espécie, mas era consciente da extraordinária natureza de suas próprias habilidades. Cachorros, bem como todos os animais, na realidade, simplesmente, não possuiriam o alto grau de conhecimento próprio necessário à auto-analise, em comparação com outros de sua espécie. A análise comparativa seria uma faculdade restrita à espécie humana. Se um cachorro fosse capaz de agir com inteligência, executando tarefas extremamente hábeis, mesmo assim este não teria consciência de que era diferente dos outros cachorros. Admitir que este cachorro era diferente, e capaz de tal análise, era o mesmo que afirmar que o animal possuía uma inteligência impressionante, com capacidade para razão e lógica e com facilidade para julgamento racional superior aos instintos que governam as decisões de todos os outros animais.
- Você - disse Travis acariciando a cabeça do animal -, é um enigma envolto num mistério. E eu um candidato ao hospício.
O cachorro olhou para ele em sinal de resposta, fitou-lhe os olhos, suspirou profundamente - de repente levantou a cabeça e fitou as prateleiras de livros que estavam ao lado da porta que dividia a sala de estar e a sala de jantar. Houve uma transformação no olhar do animal que expunha o interesse agudo que Travis observara antes, algo que transcendia ao sentido normal de alerta dos animais.
Subindo pelo sofá, o cão se lançou contra os livros violentamente. Ia e voltava entre os livros e Travis, querendo indicar uma coleção de capa colorida, entre os vários volumes.
A casa que Travis alugara, por um preço bem barato, estava toda mobiliada, incluindo estofados, de vinil, cuidadosamente escolhidos para durar muito e em tecidos xadrez, para ocultar manchas irreversíveis. Não havia madeira, quase tudo o mais era fórmica. Ninguém poderia lascar, arranhar, ou queimar com cigarro. Entre tudo o que havia na casa, unicamente o que correspondia ao gosto pessoal de Travis Cornell, eram os livros que enchiam as prateleiras da sala.
O cão parecia de fato intensamente curioso a respeito de alguns livros, das centenas que estavam nas prateleiras.
Levantando-se, Travis disse:
- O que está havendo, garoto? Por que está abanando tanto o rabo? O cachorro começou a pular com as patas de trás e colocou as patas da frente em uma das prateleiras e começou a cheirar as lombadas dos livros. Olhou rapidamente para Travis e voltou a examinar com interesse aqueles volumes específicos.
Travis se dirigiu para onde estava o cachorro, retirou um dos livros que ele havia tocado com o focinho - A ilha do tesouro, de Robert Louis Stevenson.
- É neste aqui que você está interessado?
O cachorro ficou examinando o desenho de Long John Silver e de um barco pirata que havia na capa. Um pouco depois, o cachorro saiu de perto de Travis e passou para o outro lado da sala, farejando outros livros.
Travis recolocou A ilha do tesouro no lugar e foi atrás do cachorro. Ele agora estava apontando com o focinho para a coleção de romances de Charles Dickens. Travis pegou um dos livros - A história de duas cidades.
Novamente, o cachorro ficou examinando as ilustrações na capa do livro, como que tentando mostrar do que se tratava o livro, e olhou com expectativa para Travis.
- A Revolução Francesa. Guilhotinas. Decapitações. Tragédia e heroísmo. É... bem, é sobre a importância do valor do indivíduo sobre os grupos, é a respeito da necessidade de estabelecer um maior valor para a vida do homem e da mulher, independente do avanço da massa.
O cachorro voltou sua atenção para outros volumes, que começou a cheirar.
- Este é entusiástico - disse Travis, colocando no lugar A história de duas cidades. - Meu Deus do céu, o que estou fazendo mostrando estes livros para um cachorro?
Colocando as enormes patas dianteiras em outra prateleira, o animal começou a indicar livros em outra fileira. Quando Travis se negou a puxar um dos livros para que fosse examinado, o animal tentou com todo o cuidado apanhar um dos volumes com a boca para retirá-lo da estante.
- Ei, espere um pouco! - disse Travis, procurando pelo livro. - Pare de babar minhas encadernações, seu peludo. Este aqui é Oliver Twist. Outro livro de Charles Dickens. A historia de um órfão na Inglaterra vitoriana. Ele se envolveu com figuras estranhas, personagens do mundo do crime e eles...
O cão não lhe deu mais atenção e se dirigiu para outra estante de livros, onde da mesma forma continuou a farejar outras obras. Travis poderia jurar que o cachorro contemplava os livros com visível ansiedade e expectativa.
Travis seguiu o cachorro por mais uns cinco minutos, mostrando-lhe a capa de dezenas de livros e lendo uma ou duas linhas sobre o assunto de cada uma das obras. Tinha a premonição de que alguma coisa de grande importância estava para acontecer. Não tinha a menor idéia do que aquele cachorro precoce queria fazer com ele. Certamente, o animal não poderia entender o resumo de cada obra. Mesmo que ouvisse extasiado tudo o que ele falava. Travis sabia que devia estar interpretando mal o comportamento do cachorro, atribuindo-lhe intenções complexas, quando não as tinha. Mesmo assim, um sexto sentido lhe dizia alguma coisa. Esperava uma revelação extraordinária a qualquer momento, na medida em que mostrava os livros ao cachorro. E também se sentia um completo idiota.
Travis tinha um gosto variado por ficção. Entre os livros que tirou da estante estavam Something Wicked This Way Comes, de Bradbury, e The Long Goodbye, de Chandler. The Postman Always Rings Twice, de Cain, e The Sun Also Rises, de Hemingway. Dois livros de Richard Condon e um de Anne Tyler. Murder Must Advertise, de Dorothy Sayer, e 52 Pickup, de Elmore Leonard.
Finalmente o cachorro se afastou dos livros e foi para o meio da sala, onde começou a andar de um lado para o outro, claramente nervoso. Parou, olhou para Travis e latiu três vezes.
- O que há de errado, garoto?
O cachorro ganiu, olhou de novo para as prateleiras abarrotadas de livros, caminhou em círculos e se levantou na direção deles. Parecia frustrado, realmente muito frustrado.
- Eu já não sei mais o que fazer, garoto, eu não sei o que você procura e o que está tentando me dizer.
O cachorro bufou e se sacudiu todo. Baixou a cabeça em sinal de derrota e voltou resignadamente para o sofá, onde se deitou.
- É só isto? Estamos desistindo? - perguntou Travis.
Com a cabeça baixa no sofá, o cachorro olhava para ele com um olhar consternado.
Travis deixou o cachorro um pouco de lado e começou a passear os olhos pela estante, vagarosamente, imaginando que a informação contida nos livros talvez contivesse uma importante mensagem que não podia ser lida com facilidade. Ele ligava as lombadas coloridas a uma linguagem esquecida. Uma vez decifrada, poderia revelar segredos maravilhosos, mas ele não poderia decifrá-la.
Com certeza de que estava a ponto de ter uma grande revelação, Travis sentiu-se um pouco desanimado. Sua própria frustração era maior do que a do cachorro, mas Travis não poderia fazer o mesmo, ir para o sofá, deixar cair a cabeça e esquecer tudo o que tinha se passado.
- Puta que pariu! O que está acontecendo? O cachorro olhou para ele misteriosamente.
- Tudo isto o que aconteceu, o que tinha a ver com os livros? O cachorro continuava olhando para ele.
- Há alguma coisa especial com você ou eu fiquei completamente doido?
O cachorro estava perfeitamente calmo e relaxado, como se fosse fechar os olhos a qualquer momento para dormir.
- Vai pro inferno, seu cachorro, se você bocejar eu dou um chute no seu traseiro.
O cachorro bocejou.
- Seu filho da puta - disse Travis. Bocejou de novo.
- O que isto significa? Você está bocejando de propósito, por causa do que lhe falei, ou está fazendo hora comigo? Ou está simplesmente bocejando? Como vou interpretar tudo o que você faz? Como vou saber se tudo isto tem algum significado?
O cachorro suspirou.
Com um suspiro, Travis se dirigiu para uma das janelas da frente para apreciar a noite. As folhas da tamareira eram vagamente iluminadas pela luz amarelada dos postes da rua. Travis ouviu o cachorro sair do sofá e sair correndo da sala, mas ele se recusava a perguntar por quê. Não suportava mais ficar frustrado.
Havia muito ruído na cozinha, algo tilintando. Um crepitar suave. Travis pensou que fosse o cachorro bebendo água, na sua própria tigela.
Alguns segundos mais tarde, o cachorro voltou para o seu lado e ficou roçando em sua perna.
Olhou para baixo e, para sua surpresa, viu o cão segurando uma lata de cerveja nos dentes. Pegou a lata oferecida e verificou que estava gelada.
- Você a tirou do refrigerador?
O cachorro parecia estar sorrindo.
2
Nora Devon estava na cozinha fazendo o jantar, quando o telefone tocou novamente. Ela rezava para que não fosse ele. Mas era.
- Sei do que você precisa. Sei do que você precisa.
Ela queria responder que nem bonita era. Eu sou uma simples e vulgar dona-de-casa, o que você quer comigo? Eu estou protegida com relação ao seu interesse, porque não sou bonita. Você é cego? Tudo isto se passava em sua cabeça, mas ela não conseguia dizer nada.
- Você sabe do que precisa? - ele perguntou. Finalmente encontrando forças, ela disse:
- Vá embora.
- Sei do que você precisa. Você pode não saber, mas eu sei. Desta vez, ela desligou primeiro, batendo o telefone com tanta força que deve ter machucado o ouvido dele.
Mais tarde, por volta das oito e meia, o telefone tocou de novo. Ela estava recostada na cama, lendo Grandes esperanças e tomando sorvete. Estava tão assustada com a primeira ligação que a colher caiu de sua mão dentro do prato, quase derramando o sorvete.
Colocando a sobremesa e o livro de lado, ela ficou olhando ansiosamente para o telefone na mesa-de-cabeceira. Deixou tocar dez vezes. Quinze. Vinte. O som estridente do telefone enchia o quarto, ecoando pelas paredes da casa, parecendo furar sua cabeça.
Finalmente concluiu que estava cometendo um engano e que era um grande erro não atender. Ele sabia que ela estava lá e muito assustada para pegar o telefone, o que daria prazer a ele. O que ele mais desejava era o completo domínio da situação. Perversamente, a atitude tímida de Nora poderia encorajá-lo. Ela não tinha nenhuma experiência de confrontação, mas sabia que teria de aprender a ficar em pé, e o mais rápido possível. Depois de tocar mais de trinta vezes, ela atendeu o telefone.
- Não consigo tirá-la de minha mente. Nora não respondeu.
- Você tem cabelos lindos. Tão escuros. Quase pretos. Finos e macios. Quero passar minhas mãos por seus cabelos.
Nora tinha que dizer alguma coisa para colocá-lo no seu devido lugar, ou desligar. Mas não conseguia fazer nem uma coisa nem outra.
- Nunca vi olhos iguais aos seus - disse Streck, respirando pesado. - Cinzentos, mas diferente de quaisquer olhos cinzentos. Olhos profundos, calorosos, sensuais.
Nora estava completamente muda, paralisada.
- Você é muito bonita, Nora Devon. Muito bonita. E sei do que você precisa. Eu sei, Nora. Sei do que você precisa e vou lhe dar.
O corpo de Nora começou a tremer. Ela colocou o fone no lugar. Curvando-se para a frente, na cama, ela sentia que o corpo iria se quebrar em mil pedaços, até que os tremores lentamente desapareceram.
Não possuía arma alguma.
Nora começou a se sentir desprotegida, frágil, terrivelmente sozinha.
Ela se questionou se não deveria chamar a polícia. Mas o que iria dizer a eles? Que estava sendo alvo de um ataque sexual? Os policiais ficariam rindo dela. Ela? Um objeto sexual? Ela era uma velha dona-de-casa, tão simples quanto fria, nem remotamente o tipo de mulher que viraria a cabeça de um homem, provocando-lhe sonhos eróticos. A polícia poderia pensar que estava inventando tudo, ou era histérica. Ou poderiam admitir que ela interpretara mal a delicadeza de Streck, confundindo com interesse sexual, exatamente o que pensara da primeira vez.
Ela colocou um robe azul sobre o pijama masculino que estava vestindo e amarrou o cinto. Descalça, correu escada abaixo na direção da cozinha, onde hesitantemente pegou um facão que estava perto do fogão. A luz cintilava no fio da lâmina como se fosse brilho de diamante.
Quando Nora segurou a faca na mão, viu os seus olhos refletidos na lâmina. Ela ficou se olhando no aço da faca, perguntando a si mesma se seria capaz de usar aquela terrível arma contra outro ser humano, mesmo em legítima defesa.
Esperava nunca ter de descobrir.
Novamente, no primeiro andar da casa, ela colocou o facão na mesa-de-cabeceira, a uma distância fácil de pegar.
Tirou o robe e sentou-se à beira da cama, enrolando os braços no corpo, esforçando-se para não tremer mais.
- Por que eu? Por que ele quer me pegar?
Streck disse que ela era bonita, mas Nora sabia que não era verdade. Sua própria mãe a havia abandonado aos cuidados de tia Violet, e voltado apenas duas vezes para vê-la em 28 anos. Na última vez, Nora tinha seis anos. Ela nunca conhecera o pai, e nenhum outro parente da família Devon desejara tê-la perto, uma situação que Violet atribuía, claramente, à horrível aparência de Nora. Quando Streck lhe disse que era bonita, poderia não ser a ela que ele desejava. Não. O que pretendia era dominá-la pelo medo, ferindo-a. Havia este tipo de gente. Ela havia lido muito a respeito, em livros, e em jornais. Tia Violet fizera milhares de advertências de que se um homem se aproximasse dela com uma conversa mole e sorrisos, o que ele queria realmente era levantá-la, de modo que pudesse depois atirá-la no chão, de uma grande altura, deixando-a no pior estado.
Pouco depois, os tremores passavam. Nora voltou para a cama. O que havia restado do sorvete, derretera. Ela colocou o prato na mesa-de-cabeceira. Pegou um romance de Charles Dickens e tentou envolver-se com a leitura. Mas sua atenção, a todo o momento, se desviava para o telefone, para o facão - para a porta aberta e para a sala do segundo andar, onde imaginava ter visto movimento.
3
Travis entrou na cozinha, seguido pelo cachorro. Apontou para o refrigerador e disse:
- Me mostra. Faz de novo. Pega uma cerveja. Mostra como você fez. O cachorro não se moveu.
Travis começou a falar, sério:
- Escuta aqui, seu peludo, quem te tirou daquele mato, te livrando do que seja lá o quê te perseguia? Fui eu. E quem comprou hambúrgueres para você? Fui eu! Eu te dei um banho, alimento, uma casa para morar. Você me deve tudo isso. Agora deixa de timidez. Se você pode abrir aquela coisa, abra.
O cachorro se aproximou da antiga Frigidaire, abaixou a cabeça até o canto inferior da porta, prendeu o puxador da porta nos dentes e forçou para trás. A porta abriu quase sem fazer barulho. A geladeira permaneceu aberta. O cão rapidamente pulou na direção de uma das prateleiras, apoiando-se nas duas patas da frente.
- Maldição... - disse Travis, se aproximando.
O cão de caça vasculhou o segundo compartimento, onde Travis guardava as latas de cerveja, de Pepsi e de sucos. O cachorro pegou outra lata de cerveja, voltou para o chão, deixou a porta da geladeira fechar-se novamente e se dirigiu até Travis.
Ele pegou a cerveja. Com a lata numa das mãos, estudando as reações do cachorro, disse, mais para si mesmo do que para o animal:
- Então alguém te ensinou a abrir a porta do refrigerador. E, naturalmente, também te ensinou a reconhecer certa marca de cerveja e distingui-la das outras latas. E como carregá-la para ele. Mas ainda temos muito mistério por aqui. Será que a marca que você foi ensinado a reconhecer é a mesma que tenho no refrigerador? Possivelmente... mas não provavelmente. Além do mais, não te dei ordem alguma. Não te pedi para me entregar uma lata de cerveja. Você tomou a iniciativa, como que pensando que uma cerveja era exatamente o que eu estava necessitando naquele momento. E era.
Travis colocou uma das latas na mesa. Limpou a outra na camisa, abriu e tomou alguns goles. Não estava preocupado com o fato de ter estado na boca do cachorro. Estava excitado demais com o maravilhoso desempenho do cachorro, para se preocupar com germes. Além do mais, o cachorro a tinha segurado pela parte de baixo, como que preocupado com a higiene.
O cão observava-o tomar cerveja.
Quando já havia tomado um terço da bebida, Travis disse:
- Era quase como se você tivesse compreendido que eu estava tenso, nervoso, e que uma cerveja iria me deixar relaxado. Agora, é loucura ou não é? Estamos falando de senso analítico. Está certo que alguns cachorros podem perceber o estado de espírito dos donos, dezenas de vezes... Mas quantos cachorros sabem o que é uma cerveja, e quantos podem saber o que devem fazer para agradar a seus donos? De qualquer forma, como você sabia que havia cerveja na geladeira? Imagino que você poderia ter reparado durante a noite, quando eu preparava o jantar, mas mesmo...
As mãos dele estavam tremendo. Tomou mais um pouco de cerveja e a lata vibrava de leve nos dentes.
O cachorro deu a volta na mesa vermelha de fórmica na direção do armário que ficava sob a pia. Abriu uma das portas, colocou a cabeça no espaço escuro e pegou um saco de biscoitos para cachorro, levando-o diretamente para Travis.
Ele riu e disse:
- Bem, se posso tomar cerveja, acho que você merece ser tratado à sua própria maneira, não é mesmo?
Tirou o saco de biscoitos da boca do cachorro para abri-lo.
- Alguns biscoitos fazem você mais feliz, não é, peludo? - Colocou o saco aberto no chão. - Sirva-se. Tenho certeza de que você não vai passar da conta como um cachorro comum. - Riu novamente. - Porra, acho que posso confiar em você para dirigir o meu carro.
O cão tirou um biscoito do pacote com todo o cuidado e acomodou-se no sofá para saboreá-lo.
Travis puxou uma cadeira para sentar-se à mesa.
- Você me dá razões para acreditar em milagres - disse ele. - Sabia o que eu estava fazendo na mata, naquela manhã?
Trabalhando as mandíbulas, triturando mecanicamente o biscoito, o cachorro parecia ter perdido o interesse em Travis, por um momento.
- Fui lá por questões sentimentais, na esperança de recordar o prazer que eu tinha em Santa Ana, quando era garoto, e alguns dias antes... tudo se tinha tornado tão escuro. Eu queria matar algumas cobras como fazia quando era garoto há algum tempo... tudo se tornou muito aborrecido. Queria matar algumas cobras como fazia quando era garoto, caminhar pelos campos, explorar a mata como nos velhos tempos. Até agora, eu não me importava de viver ou morrer.
O cachorro parou de mastigar o biscoito, engoliu em seco e olhou firme para Travis.
- Ultimamente minhas depressões têm sido mais negras que a noite. Você entende alguma coisa de depressão?
Deixando os biscoitos, o cachorro se levantou na direção de Travis. Olhou para os seus olhos com a mesma intensidade da outra vez. Fitando os olhos do cachorro, ele disse:
- Não pensaria em suicídio. Fui educado como católico e, embora não assistisse a nenhuma missa durante muitos anos, ainda tinha alguma fé. E para um católico é um pecado mortal. É crime. Além do mais, sou muito teimoso para desistir, não importa o quão difícil as coisas pareçam.
O cachorro piscou, mas não deixou de encará-lo.
- Eu estava naquele momento à procura da felicidade que havia perdido. Então, nos encontramos.
O cachorro soltou um ruído, como se estivesse concordando. Travis pegou a cabeça do cão com as duas mãos, aproximou o rosto dele e disse:
- Depressão. Um sentimento de que a vida não tem objetivo. Como um cachorro pode saber destas coisas? Um cachorro não se preocupa com coisa alguma, não é mesmo? Para um cachorro todos os dias são dias de alegria. Você está entendendo mesmo o que estou falando, garoto? Por Deus, acho que você pode estar entendendo. Mas será que estou exagerando no grau de inteligência e de sabedoria, até mesmo para um cachorro mágico? Hem? Claro! Você é capaz de fazer alguns truques maravilhosos, mas isto não é o mesmo que entender o que estou dizendo.
O cachorro se livrou dele e voltou para o pacote de biscoitos. Segurou o pacote com os dentes e derramou no chão vinte ou trinta biscoitos.
- Olha aí você, novamente. Em dado momento, você é um cachorro semi-humano e um minuto depois não passa de um cachorro com interesses caninos.
Entretanto, o animal não estava apenas querendo fazer um lanche e começou a empurrar os biscoitos com a ponta preta do focinho, na direção do centro do chão da cozinha, um de cada vez, todos em ordem.
- Que porra é essa?
O cachorro havia posicionado os biscoitos em fila, virando gradualmente para a direita. Empurrou um sexto biscoito para enfatizar a curva.
Enquanto observava, Travis terminou rapidamente sua primeira cerveja e abriu a segunda. Sentiu que iria precisar.
O cachorro estudou a fila de biscoitos por um momento, como se não estivesse certo do que estava fazendo. Avançou e recuou várias vezes, claramente indeciso sobre a forma que estava criando e ajustou dois biscoitos. Olhou para Travis, contemplou sua criação e acertou no lugar o nono biscoito.
Travis tomou um gole de cerveja e aguardou, impaciente para ver o que ia acontecer em seguida.
O cachorro balançou a cabeça, parecendo frustrado; correu para o fundo da sala e ficou lá, a cabeça baixa. Travis procurava imaginar o que ele estava fazendo, então teve a idéia de que o cachorro foi para o canto da sala a fim de se concentrar melhor. Pouco depois, o cachorro voltou e empurrou o décimo biscoito e o décimo primeiro para os devidos lugares, aumentando o modelo criado.
Travis tinha certeza. A premonição de que alguma coisa extraordinária estava para acontecer. Ficou com os pêlos dos braços arrepiados.
Desta vez ele ficou desapontado. O cão de caça usou os dezenove biscoitos para fazer um sinal, embora grotesco, mas perfeitamente compreensível no chão da cozinha. E então levantou os olhos na direção de Travis.
Um ponto de interrogação.
Significado: por quê? Por que você está tão deprimido? Por que você sente que a vida não tem significado e é tão vazia?
O cachorro evidentemente entendeu o que ele tinha dito. Está bem, talvez não tivesse entendido a linguagem exatamente, não tenha acompanhado todas as palavras de Travis, mas percebeu o significado do que ele estava querendo dizer, ou isto tenha até aumentado o seu interesse e curiosidade.
Deus do céu, mas se o cachorro também entendeu o significado do ponto de interrogação, então era capaz de entender coisas abstratas. A compreensão de simples símbolos, como as letras do alfabeto, números, pontos de interrogação e exclamação - servindo de síntese para a comunicação de idéias complexas... bem, isto requer um pensamento abstrato. E pensamento abstrato era reservado para uma única espécie da face da Terra: o ser humano. O cão logicamente não era humano, mas alguma coisa dentro dele lhe dava habilidade intelectual que nenhum outro animal poderia ter.
Travis estava maravilhado. Mas nada havia de acidental a respeito do ponto de interrogação. Não estava bem-feito, mas não era acidental. O cachorro deve ter visto aquele símbolo em algum lugar e alguém devia ter ensinado o significado a ele. Especialistas em estatística dizem que certo número de macacos, equipados com certo número de máquinas de escrever, podem recriar eventualmente frases de grandes escritores, exclusivamente pelas chances do acaso. Travis concluiu que o cachorro ao formar um ponto de interrogação com aqueles biscoitos, em cerca de dois minutos, por casualidade, era tão ou mais improvável do que aqueles macacos imbecis, recriando peças de Shakespeare.
O cachorro o fitava com expectativa.
Ao se levantar, Travis sentiu que as pernas estavam um pouco trêmulas. Ele se aproximou do lugar onde estavam os biscoitos, cuidadosamente arrumados, espalhou-os pelo chão e voltou para a sua cadeira.
O cão, de acordo com a observação de Travis, estudou os biscoitos que tinham sido espalhados, farejou tudo novamente e pareceu frustrado.
Travis esperava para ver o que o cachorro iria fazer.
A casa tinha um silêncio que não era comum, como se o próprio tempo tivesse parado para todas as criaturas vivas, máquinas e objetos na face da terra - mas não para Travis, para o cachorro e para o que havia na cozinha.
Finalmente, o cachorro começou a empurrar os biscoitos com a ponta do focinho, como fizera antes. Em pouco mais de um minuto, ele formou um ponto de interrogação.
Travis tomou mais uns goles de cerveja. Seu coração batia forte. As mãos suavam. Estava ao mesmo tempo maravilhado e perplexo, com um sentimento de alegria e medo do desconhecido, simultaneamente atemorizado e confuso. Tinha vontade de dar risadas, porque nunca vira algo tão maravilhoso como aquele cachorro. Ele também queria chorar, porque horas antes estava achando a vida insuportável, aborrecida, sem significado. Mas não importava o quão dolorosa as vezes fosse a vida (dera-se conta Travis, agora) apesar disso, era preciosa. Realmente pensava que Deus havia colocado o cão em sua vida, para fazê-lo pensar, para que se lembrasse de que o mundo é cheio de surpresas e que o desespero não faz sentido, quando alguém não tem compreensão do propósito - e estranhas possibilidades - da vida. Travis queria rir, mas a risada não passava de soluço. E quando se entregou ao choro, este se transformou em riso. Quando tentou se levantar, sentiu que estava ainda mais trêmulo do que antes, muito trêmulo, de modo que fez a única coisa que poderia fazer: permaneceu em sua cadeira e tomou outro demorado gole de cerveja.
O cachorro virou a cabeça de um lado para o outro, parecendo um pouco cauteloso e olhou para Travis como se achasse que estivesse maluco. E ele realmente estava. Há meses. Mas agora sentia-se muito melhor.
Travis deixou de lado a cerveja, secou as lágrimas dos olhos com as próprias mãos e disse:
- Venha cá, seu peludo.
O cachorro hesitou, mas andou na direção dele. Travis passou a mão no pêlo do cachorro e fez-lhe carinho atrás das orelhas:
- Você me deixa maravilhado e me assusta. Não posso imaginar de onde você veio e como conseguiu chegar aonde está, mas é aqui que você é mais necessário. Um ponto de interrogação, hem? Puxa! Está bem. Você quer saber por que a vida para mim não tinha significado ou alegria? Vou te dizer. Por Deus que vou fazer isto, vou sentar aqui, tomar outra cerveja e conversar com um cachorro. Mas primeiro... vou dar um nome a você.
O cão deixou escapar um pouco de ar pelo focinho, como querendo dizer: "Bem, já era tempo."
Segurando a cabeça do cachorro, olhando direto para os olhos dele Travis disse:
- Einstein. De agora em diante, seu peludo, seu nome é Einstein.
4
Streck ligou novamente às nove e dez.
Nora segurou o fone ao primeiro sinal. Realmente determinada a dizer-lhe que caísse fora e a deixasse em paz. Mas por alguma razão ficou de novo paralisada e incapaz de dizer uma palavra.
Num tom de voz repulsivamente íntimo ele disse:
- Você sentiu saudades de mim, queridinha? Hem? Você não gostaria que eu estivesse com você, fosse o seu homem?
Ela desligou.
O que há de errado comigo? pensou Nora. Por que não posso mandá-lo para longe, para que ele pare de me incomodar?
Talvez sua mudez fosse fruto de um desejo íntimo de ouvir um homem - qualquer homem, mesmo um tipo detestável como Streck - que a chamasse de bonita. Embora ele não fosse capaz de manifestar ternura nem afeição, ela podia ouvi-lo e imaginar como seria se ela tivesse um homem bom a lhe dizer coisas agradáveis.
Bem, você não é bonita, disse ela para si mesma. E nunca vai ser. Então, pare de se lastimar. Na próxima vez que ele ligar, mande-o para aquele lugar.
Nora saiu da cama e foi para o banheiro, onde havia um espelho. Seguindo o exemplo de Violet Devon, Nora não tinha espelhos em lugar algum da casa, exceto no banheiro. Ela não gostava de olhar para si mesma, porque o que via era triste.
Naquela noite, entretanto, ela queria olhar para o seu rosto, por causa das palavras lisonjeiras de Streck que, embora frias e calculadas, despertaram a curiosidade dela. Não aquele tipo de esperança de descobrir uma qualidade que ela nunca havia visto antes. Não. Passar de patinho feio a cisne numa noite... era um sonho inútil, tolo. Ao contrário, ela queria confirmar que era feia. O interesse inusitado de Streck mexeu com Nora, porque ela se sentia confortável na sua vida doméstica, na sua solidão, e desejava ter certeza de que ele a estava enganando. Desejava acreditar que Streck não cumpriria suas ameaças e que o seu pacífico isolamento perduraria. Era o que Nora dizia para si mesma ao entrar no banheiro e acender a luz.
O banheiro era ladrilhado de azul-claro do chão ao teto, com ladrilhos brancos na borda. Havia uma banheira imensa, daquelas com porcelana branca e enfeites de metal. O enorme espelho também mostrava os sinais do tempo.
Ela olhou o cabelo, que Streck disse ser bonito, escuro, com brilho. Mas era fosco, sem brilho natural; para ela o cabelo não tinha brilho, era oleoso, embora ela o tivesse lavado pela manhã.
Olhou rapidamente para as sobrancelhas, para a maçã do rosto, nariz, para a linha do queixo e para os lábios. Passava a mão no rosto, delineando suas feições, e nada via ali que pudesse chamar atenção de um homem.
Finalmente, com relutância, ela se fixara nos olhos, que Streck disse serem adoráveis. Eram melancólicos, sem brilho. Ela não conseguia olhar para si mesma por mais alguns segundos. Os olhos confirmaram a sua própria opinião a respeito de sua aparência. Mas também... bem, ela viu nos próprios olhos uma raiva que crescia aos poucos, deixando-a perturbada, tirando-a de si mesma, uma raiva que ela mesma se permitia. Naturalmente, aquilo não fazia sentido de qualquer maneira, porque ela era o que a natureza fizera dela - um camundongo - e não havia como fugir àquilo.
Ao deixar o espelho de lado, Nora se sentiu um pouco desapontada, porque sua auto-analise não tinha revelado algo surpreendente. Imediatamente, entretanto, ficara chocada e espantada com a própria frustração. Permaneceu na entrada do banheiro, balançando a cabeça, assombrada com os seus pensamentos confusos.
Será que ela desejava ser atraente para Streck? Evidentemente, não. Ele era esquisito, mórbido, perigoso. A última coisa que desejaria era ser atraente para ele. Talvez não se importasse se algum outro homem a olhasse com desejo, mas não Streck. Ela deveria se ajoelhar e agradecer a Deus por tê-la criado do jeito que era, porque se realmente fosse atraente, Streck teria avançado. Ele viria à casa dela e a estupraria... talvez, até a matasse. Quem conheceria um homem assim? Quem saberia dos seus limites? Ela estava assustada porque os jornais noticiavam diversos casos assim.
Ela se deu conta de que era indefesa e correu de volta para a cama, onde havia deixado o facão.
5
A maioria das pessoas acredita que a psicanálise é a cura para a infelicidade. Estas pessoas estão certas de que podem superar todos os problemas e conseguir paz de espírito, desde que possam entender a sua própria psicologia, compreender as razões das atitudes negativas e dos comportamentos autodestrutivos. Mas Travis sabia que não era este o caso. Por longos anos estivera envolvido com analistas e já descobrira o motivo de sua solidão e de não fazer amigos. Entretanto, apesar desta compreensão, ele não foi capaz de mudar a conduta.
Agora, por volta da meia-noite, sentado na cozinha e tomando mais cerveja, contou a Einstein as razões do isolamento emocional auto-imposto. Einstein estava firme diante dele, sem se mexer. Nem ao menos abria a boca e parecia intensamente interessado na história.
- Já era solitário quando criança, desde o início, embora não fosse inteiramente sem amigos. A verdade é que sempre preferi a minha própria companhia. Imagino que seja da minha natureza. Imagino que na infância ainda não tinha decidido que minha amizade por alguém poderia ser perigosa para esta pessoa.
A mãe de Travis havia morrido quando ele nascera e ele sempre soube disso, desde os primeiros anos de vida. Talvez a morte da mãe fosse um presságio do que estava por vir. E assumiria então uma importância terrível, mais tarde. Na idade de garoto, ele não era importunado pelo sentimento de culpa.
Até que completasse dez anos. Foi a época em que o irmão, Harry, morreu. Harry era doze anos mais velho do que Travis. Numa manhã de segunda-feira, no mês de junho, Harry convidou Travis para irem à praia, embora o pai proibisse expressamente que fossem sozinhos. Era uma praia particular, sem salva-vidas, e os dois eram os únicos no mar.
- Harry foi levado pelo recuo das ondas - Travis contou a Einstein. - Estávamos juntos dentro d’água, a não mais do que três metros de distância um do outro, e a maldita onda o pegou, levando-o para longe, sem perigo para mim. Tentei ir atrás dele para salvá-lo, daí ter nadado na direção da mesma corrente que o puxou, mas acredito que mudou de lado assim que apanhou Harry, porque saí da água vivo. - Ficou olhando para o tampo da mesa da cozinha por longo tempo, mas não via coisa alguma além das ondas perigosas do mar azul e verde. - Eu amava meu irmão mais velho, mais do que qualquer outra pessoa.
Einstein choramingou baixo, em sinal de respeito.
- Ninguém me culpou pelo que aconteceu a Harry. Ele era o mais velho. Portanto, era quem devia ter mais responsabilidade. Mas me sentia culpado... bem preferia que a onda tivesse me levado também.
O vento na noite soprava do oeste, batendo as janelas da casa. Após tomar um gole de cerveja, Travis disse:
- No verão em que eu tinha quatorze anos, desejava ir para um acampamento onde o tênis era o esporte principal. Na época o tênis me deixava muito entusiasmado. O meu pai então me inscreveu num lugar perto de San Diego, um mês inteiro de completo treinamento. Ele me levou até lá de carro num domingo, mas nunca chegamos ao nosso destino. Um motorista de caminhão dormiu na direção, atravessou a pista e aconteceu o acidente. Meu pai morreu na hora. Pescoço quebrado, o crânio esmagado, as costelas quebradas. Eu estava no banco da frente ao lado dele e fui cuspido para fora, ficando com alguns arranhões e dois dedos quebrados.
O cachorro o observava atentamente.
- Foi o mesmo que aconteceu com Harry. Os dois deveríamos ter morrido, meu pai e eu, mas escapei. Não teríamos feito aquela maldita viagem se eu não fizesse tanta agitação a respeito do acampamento de tênis. Talvez eu não pudesse ser culpado pela morte de minha mãe, quando me deu à luz, o mesmo se poderia dizer com relação à morte de meu irmão. Mas a morte do meu pai... De qualquer forma, embora não fosse minha culpa, começou a ficar claro para mim que não era seguro para ninguém estar perto de mim. Quando eu amava alguém, realmente os amava, merda, eles todos morriam.
Somente uma criança poderia ser convencida de que era o motivo daqueles trágicos acontecimentos. E Travis era uma criança. Somente quatorze anos, e nenhuma outra explicação era tão correta. Era muito jovem para entender que a violência da natureza e o destino seguidamente não têm explicação. Aos quatorze anos, precisava de um sentido para enfrentar as situações. Então, disse a si mesmo que era amaldiçoado, e que se tivesse amigos muito próximos, poderia os estar sentenciando à morte prematura. Travis se tornou antes de mais nada introvertido, achava muito fácil voltar-se para dentro de si mesmo, fazendo-se companhia.
Na época em que ele se formara na faculdade, aos vinte e dois anos, era, assumidamente, um solitário, embora a maturidade lhe tivesse dado uma perspectiva mais sadia sobre as mortes de sua mãe, irmão e pai. Não se imaginava mais um amaldiçoado, culpando-se pelo que havia acontecido. Mas permaneceu introspectivo, sem amigos íntimos. Parcialmente, porque tinha perdido a habilidade de formar e manter um relacionamento normal com outras pessoas; também, porque não mais teria que sofrer com o luto se não tivesse mais amigos para perder.
- Hábito e autodefesa me mantêm emocionalmente isolado - disse ele a Einstein.
O cachorro se levantou e cruzou os poucos metros do chão da cozinha que os separava, procurando passar por entre as pernas de Travis para colocar a cabeça no colo dele.
Acariciando Einstein, Travis disse:
- Eu não tinha a menor idéia do que fazer, depois da universidade. Havia uma convocação militar e resolvi me apresentar, antes que me chamassem. Escolhi o Exército. Forças Especiais. Talvez, porque... bem: havia um senso de camaradagem, e eu era forçado a fazer amigos. Veja, eu não desejava ter muita aproximação com ninguém, mas precisava ter, porque me coloquei numa situação onde isso era inevitável. Decidi fazer uma outra carreira. Quando a Força Delta... o grupo antiterrorismo... foi formado, foi onde eu fui parar. Todos naquele grupo eram muito unidos, amigos de fato. Eles me chamavam "O Mudo" e "Harpo". Evidentemente, porque eu não era chegado a conversar, mas apesar disso, fiz amigos. Então, em nossa 11ª operação, o meu grupo foi enviado para Atenas, a fim de recuperar a embaixada norte-americana de um grupo de extremistas palestinos. Haviam matado oito funcionários da embaixada, e matariam mais outros, um a cada hora, ao longo das negociações. Atacamos em segredo e rapidamente - e foi um fiasco. Eles tinham armado uma verdadeira armadilha na embaixada. Nove companheiros do meu esquadrão morreram. Fui o único sobrevivente. Com uma bala na coxa. Uma metralhada na bunda. Mas um sobrevivente.
Einstein levantou a cabeça do colo de Travis. Travis pensou ter visto simpatia nos olhos do cachorro. Talvez, porque era isto o que queria ver.
- Isto foi há oito anos, quando eu tinha vinte e oito anos. Então, deixei o Exército. Voltei para a Califórnia. Consegui um registro como corretor de imóveis, porque esta era a atividade do meu pai, e eu não sabia fazer mais nada. Estava me dando muito bem, talvez porque não me importasse se as pessoas iriam ou não comprar as casas que eu mostrava, não forçava, não agia como homem de negócios. O fato é que trabalhei tão bem que me tornei um corretor profissional, abri meu próprio escritório e contratei outros corretores para trabalharem para mim.
Fora assim que conhecera Paula. Ela era bonita, alta, loura, inteligente. Paula era tão eficiente no trabalho que costumava brincar, dizendo que no outra encarnação ela havia representado os holandeses, quando estes compraram a ilha de Manhattan dos índios, com colares e bugigangas. Ela se apaixonou por Travis. Foi isso o que ela lhe disse: "Sr. Cornell, estou apaixonada. Penso que é por causa dessa sua maneira forte e taciturna. A melhor imitação de Clint Eastwood que já vi". Primeiramente, Travis resistiu. Não queria acreditar que poderia causar algum mal a ela. Travis não havia voltado àquele estado anterior de superstição da infância. Mas não queria correr o risco de sofrer novamente. Animada pela sua hesitação, Paula o perseguiu até Travis admitir que estava apaixonado por ela. Estava tão perdido de amor que contou a ela a respeito de suas experiências, e o jogo com a morte, coisa que não havia contado a ninguém, jamais. "Escute", dissera Paula, "vou sobreviver a você porque não sou do tipo de pessoa de reprimir sentimentos. Descarrego minhas frustrações sobre aqueles que me rodeiam, e desta forma estou pronta a eliminar uma década de sua vida".
Eles se casaram de maneira discreta e simples, há quatro anos, no verão, após Travis ter completado 32 anos. Ele a amava. Só Deus sabe como ele a amava.
Travis disse para Einstein:
- Não sabíamos na época, mas ela estava com câncer no dia do nosso casamento. Dez meses mais tarde, morreu.
O cachorro tornou a acomodar a cabeça no colo de Travis.
Travis não conseguiu falar por alguns instantes.
Tomou um pouco de cerveja.
Fez um carinho na cabeça do cachorro.
- Depois disto, tentei agir como de costume. Sempre me esforçando para prosseguir, enfrentando tudo, mantendo a cabeça erguida, tudo uma merda. Mantive o escritório da imobiliária funcionando por mais um ano. Mas nada daquilo me importava mais. Vendi tudo há dois anos. Livrei-me de todos os meus investimentos, transformei tudo em dinheiro e depositei no banco. Então, aluguei esta casa. Passei os últimos dois anos... bem, meditando. Então, me tornei excêntrico. Está surpreso, hem? Excêntrico pra cacete. Voltei a me sentir como se fosse criança novamente. Comecei a ter os mesmos pensamentos, de que eu era um perigo para todos os que se aproximassem de mim. Mas você me mudou, Einstein. Você me transformou em um dia. Juro, é como se houvesse sido mandado para me mostrar o mistério da vida, o desconhecido, cheio de maravilhas... e só um tolo permite se afastar, deixando tudo isto para trás.
Levantou a lata de cerveja, mas estava vazia.
Einstein foi até o refrigerador e apanhou outra.
Pegando a cerveja da boca do cachorro, Travis disse:
- Agora que já conhece toda esta história triste, o que acha de tudo isso? Você acha que é correto ficar à minha volta? Acha que é seguro?
Einstein bufou.
- Isto é um sim?
Einstein se deitou de costas e colocou as quatro patas para cima, da mesma forma, quando ele permitiu que Travis lhe pusesse a coleira. Colocando a cerveja de lado, Travis saiu da cadeira, acomodou-se no chão para acariciar a barriga do cachorro.
- Está bem... Está bem... Mas não se mate por mim. Não se atreva a se matar por mim.
6
O telefone de Nora Devon tocou novamente às onze horas. Era Streck.
- Você já está na cama, queridinha? Ela não respondeu.
- Você gostaria que eu estivesse aí com você?
Desde o telefonema anterior, ela havia pensado numa maneira de lidar com ele, através de uma série de ameaças que ela esperava que desse certo.
- Se não me deixar em paz, vou até a polícia - disse ela. - Nora, você dorme nua?
Ela estava sentada na cama. Firme, tensa, rígida.
- Vou até a polícia contar que você tentou... me forçar. Vou, juro que vou!
Ignorando as ameaças, ele continuou:
- Gostaria de te ver nua.
- Vou mentir. Vou dizer que você me estuprou.
- Gostaria que eu passasse as mãos nos seus seios, Nora?
Uma dor em seu estômago forçou-a a curvar-se para a frente na cama.
- Vou pedir à companhia telefônica para grampear a linha, gravar todas as chamadas, assim vou ter uma prova.
- Vou te beijar o corpo todo. Não seria ótimo?
As dores no estômago estavam aumentando. Ela também tremia, incontrolavelmente. O tom de voz variou repetidas vezes, até que fez a última ameaça:
- Tenho uma arma. Tenho uma arma.
- Esta noite você vai sonhar comigo, Nora. Estou certo de que vai. Vai sonhar comigo te beijando toda, por todo este corpo bonito. Ela bateu com o telefone.
Rolando na cama, encolheu os ombros, dobrou os joelhos e passou os braços pelo corpo. As dores no estômago não tinham causa física, eram reação emocional, gerada pelo medo, vergonha, raiva e uma enorme frustração.
Pouco a pouco a dor passou. Não sentia mais medo, apenas raiva.
Ela era tão inocente a respeito do mundo e de como este funcionava, tão desacostumada a lidar com pessoas que não podia agir normalmente a não ser dentro de sua própria casa, um mundo íntimo, privado, sem contato humano. Nada sabia a respeito de relacionamento social. Não fora sequer capaz de manter uma conversa educada com Garrison Dilworth, o advogado de tia Violet - seu advogado agora - durante as reuniões, para tratar da herança da casa. Respondera as perguntas dele da forma mais simples possível, sentara-se na presença dele com os olhos voltados para baixo, e as mãos geladas presas ao colo, extremamente tímida. Temerosa do próprio advogado! Se não tinha condições de estar com um homem como Garrison Dilworth, como poderia lidar com um animal como Art Streck? Não iria mais permitir ninguém fazendo serviços em sua casa, não importa o que estivesse estragado; teria que viver no mais absoluto declínio e ruína porque o próximo homem poderia agir como Streck - ou pior. Segundo a tradição estabelecida por sua tia, Nora tinha os alimentos de que necessitava entregues em casa, vindos de um supermercado próximo. Assim, não precisava sair para fazer compras, mas agora estava apreensiva de permitir que o garoto de entregas fosse até sua casa; ele nunca fora agressivo, insinuante, e de nenhuma forma se comportara mal, mas um dia poderia perceber a fraqueza que Streck havia visto...
Ela odiava tia Violet.
Por outro lado, Violet estava certa: Nora era um camundongo. Como todos os demais camundongos, o seu destino era correr, esconder-se, encolher-se nas sombras.
A sua raiva só foi embora, quando as eólicas desapareceram por completo.
A solidão substituía a raiva e Nora dormiu calmamente.
Mais tarde, sentada de costas na cabeceira da cama, limpando os olhos com lenço de papel e assoando o nariz, lutava bravamente para não se tornar reclusa. Teria que achar forças em algum lugar, coragem, para enfrentar o mundo, mais do que havia tentado antes. Conheceria as pessoas, tentaria entrar em contato com os vizinhos, que Violet mais ou menos evitava. Faria amigos. Por Deus, que ela os faria. Não permitiria que Streck a intimidasse. Aprenderia como lidar com outros problemas que também surgissem, e seria uma mulher diferente do que havia sido até agora. Era uma promessa para si mesma. Um voto sagrado.
Pensou em desligar o telefone para se livrar de Streck, mas receava que talvez precisasse fazer uma ligação. O que aconteceria se ela acordasse, ouvisse o ruído de alguém dentro de casa e não fosse capaz de conectar o telefone a tempo?
Antes de desligar as luzes e puxar as cobertas, fechou a porta do quarto e, em falta da chave, colocou uma cadeira para bloqueá-la. Na cama, no escuro, procurou pelo facão que havia colocado na mesa-de-cabeceira e sentiu-se segura de tê-lo à mão. Estava deitada de costas, de olhos bem abertos. A fraca luz da rua penetrava um pouco pela janela fechada. O teto tinha variações de cores, do escuro completo ao quase dourado, como se um enorme tigre estivesse se lançando sobre a cama num pulo que nunca terminava. Sentia que nunca iria dormir com facilidade.
Vasculhava a mente à procura de alguém que pudesse cuidar dela - e se preocupar com ela - lá, no mundo exterior, que ela desejava penetrar. Haveria alguém que poderia amar um camundongo e tratá-lo com delicadeza?
Bem distante, o apito de um trem cortava o silêncio da noite. Era um som grave, frio, um som tétrico.
7
Vince Nasco nunca estivera tão ocupado. Ou tão feliz.
Quando ligou para o já conhecido telefone em Los Angeles, a fim de prestar contas do sucesso na casa de Yarbeck, fora solicitado a procurar outro telefone público. Este agora ficava entre uma casa que vendia iogurte e um restaurante especializado em peixes, em Balboa Island, Newport.
Chegando lá, foi chamado pelo contato, que tinha uma voz bem sensual, uma voz ainda de garota. Ela hesitava falar de assassinato, nunca usando palavras que pudessem incriminá-lo; ao contrário, usava eufemismos exóticos que nunca teriam peso num julgamento. Ela estava ligando de outro telefone público, escolhido ao acaso, para evitar a mínima chance de que os dois fossem ouvidos por outras pessoas. Pertenciam a um mundo onde não se pode assumir riscos.
A mulher tinha um terceiro serviço para ele. Três, em apenas um dia.
Vince observava o tráfego, ao mesmo tempo em que a mulher - que ele não conhecia e nem imaginava o nome - deu-lhe o endereço do dr. Albert Hudston, em Laguna Beach. Hudston vivia com a mulher e um filho de dezesseis anos. Tanto ele quanto a sra. Hudston deviam ser mortos; entretanto, o destino do garoto estava nas mãos de Vince. Se o garoto pudesse ficar de fora, ótimo. Mas se visse Vince e pudesse servir como testemunha, também teria que ser eliminado.
- Fica a seu critério - disse a mulher.
Vince já sabia que tinha que acabar com o garoto, porque matar era mais útil para ele, mais estimulante, principalmente se a vítima fosse jovem. Já fazia muito tempo que ele havia realmente acabado com um garoto, e a perspectiva de nova experiência o deixava excitado.
- Só posso enfatizar - disse o contato -, que esta opção deve ser tentada rapidamente. Queremos o negócio concluído ainda esta noite. Amanhã, a concorrência vai saber o que estamos fazendo e vai se colocar no nosso caminho,
Vince sabia que "concorrência" era a polícia. Havia sido pago para matar três médicos, em uma única noite - doutores, quando ele nunca havia matado um antes. Sabia que havia algo que os unia, algo que os tiras iriam descobrir, quando achassem Weatherby no porta-malas do carro e Elisabeth Yarbeck na cama, espancada até a morte. Vince não sabia qual a ligação entre as mortes; nunca sabia nada a respeito das pessoas às quais era contratado para matar e, de fato, nem queria saber. Era mais seguro assim. Mas os tiras ligariam Weatherby a Yarbeck e ambos a Hudston, e se Vince não fosse a Hudston naquela noite mesmo, os policiais iriam tentar proteger o homem no dia seguinte. Vince disse:
- Quero saber... você deseja que a opção seja feita da mesma forma que com os outros dois negócios desta noite? Quer que eu siga o mesmo padrão? - Ele sugeria que talvez pudesse pôr fogo na casa de Hudston, com a finalidade de cobrir os assassinatos.
- Sim, desejamos que siga o mesmo padrão dos outros - disse a mulher. - Queremos que saibam que estamos muito ocupados.
- Compreendo.
Vince desligou e foi ao Jolly Roger, para jantar. Tomou sopa de legumes, comeu um hambúrguer, batatas fritas, cebola, salada de repolho e de sobremesa um bolo de chocolate com sorvete e torta de maça. Tudo isto ainda regado a cinco xícaras de café. Vince era habitualmente um glutão. Mas seu apetite aumentava dramaticamente após um trabalho. De fato, depois de ter comido a torta, não se sentiu satisfeito. O que era difícil de entender. Num dia muito ocupado absorvera e energia vital dos Yarbecks e de Davis Weatherby; estava com superforça, era uma "máquina envenenada". Seu metabolismo estava a mil por hora; necessitava de mais combustível, até que o corpo conservasse o excedente em baterias biológicas para uso futuro.
A habilidade de absorver a força vital das vítimas era o dom que o fazia diferente dos outros homens. Por causa deste dom, seria sempre forte, enérgico, vivo. Viveria para sempre. Vince nunca contaria a ninguém o segredo do dom esplêndido, nem mesmo à mulher de voz sensual para quem trabalhava. Poucas pessoas seriam imaginativas ou teriam a mente suficiente preparada para aceitar com seriedade tal dom sobrenatural. Vince mantinha aquilo para si, porque temia que pensassem que fosse louco. Permaneceu por um instante na calçada, bem diante do restaurante, respirando profundamente, desfrutando do agradável cheiro do mar. Um vento frio soprava vindo do porto, carregando pedaços de papel e flores de árvores, ao longo da rua.
Vince estava sentindo-se ótimo. E se achava como o vento e o mar.
De Balboa Island, seguiu na direção sul até Laguna Beach. Às 11:20 estacionou o furgão no outro lado da rua, evitando a casa de Hudston. A casa ficava numa elevação, era de um só pavimento, construída na encosta, de forma a tirar o melhor proveito da vista do mar. Percebeu que havia luz em duas das janelas.
Passou por entre os bancos e sentou-se na parte de trás do utilitário, fora da vista de alguém, para aguardar que todos os Hudstons fossem para a cama. Assim que deixou a casa dos Yarbecks, trocou o terno azul por calça cinza, camisa branca, um suéter marrom e uma jaqueta de náilon, azul-escura. Agora, em plena escuridão, ele não tinha mais nada para fazer, exceto tirar suas armas de dentro de uma caixa de papelão, onde estavam escondidas, debaixo de duas bisnagas de pão, quatro rolos de papel higiênico e outros produtos, que davam a impressão de que estava vindo do supermercado.
A pistola Walther P-38 estava carregada. Ao terminar o trabalho na casa dos Yarbeck, ele havia fixado um silenciador novo ao cano; era um modelo diferente do silenciador. Menor, mais eficiente, graças à revolução da alta tecnologia, a metade do tamanho de um silenciador comum. Deixou a arma de lado.
Possuía uma faca com doze centímetros de lâmina. Colocou-a no bolso direito da calça.
O arame que usava como garrote, para estrangular, após bem enrolado, foi colocado no bolso interno, no lado direito do paletó.
Não esperava usar nada daquilo. Apenas a arma. Entretanto, Vince gostava de estar preparado para qualquer eventualidade.
Em alguns trabalhos ele havia usado uma submetralhadora Uzi, ilegalmente convertida para tiro automático. Aquela missão não exigia armas muito pesadas.
Além de todas aquelas armas, Vince tinha um estojo de couro, da metade do tamanho de um barbeador, com algumas poucas ferramentas pequenas para abrir portas. E nem se dera ao trabalho de inspecioná-lo. Talvez não precisasse de ferramentas, porque, surpreendentemente, muitas pessoas não se importavam com a segurança de suas casas, deixando portas e janelas sem trancar durante a noite, como se vivessem num povoado quacre do século XIX.
Faltando dez minutos para a meia-noite, Travis se colocou entre os dois bancos do furgão para olhar a casa dos Hudston pelo vidro lateral. Todas as luzes estavam apagadas. Ótimo. Eles estavam na cama.
Para dar-lhes tempo de dormirem profundamente, voltou para o fundo do utilitário, comeu um pedaço de chocolate, e pensou numa forma de gastar os honorários substanciais que recebera pela manhã.
Desejou possuir uma daquelas máquinas maravilhosas de esqui, que possibilitavam a prática do esqui-aquático sem o uso de barco. Ele amava o oceano. Tudo o que vinha do mar o atraía. Sentia-se em casa, quando estava no mar, mais cheio de vida, de energia, ao misturar-se com grandes ondas. Adorava mergulho, windsurf, ou mesmo surfe. Passara a maior parte do tempo de sua adolescência mais na praia do que na escola. Vez por outra, ainda usava a sua prancha de surfe, quando o mar estava propício e com altas ondas. Agora, aos 28 anos achava o surfe um pouco enfadonho e já não o praticava com a mesma freqüência que antes. Desejava mais velocidade, algo mais forte. Ele se imaginava numa daquelas máquinas de esqui, voando sobre o mar azul-acinzentado, com o vento lhe batendo forte no corpo, sacudido por uma série infindável de impactos, andando sobre o Pacífico como um vaqueiro num rodeio...
À meia-noite e quinze, Vince deixou o furgão. Colocou a pistola na cintura e começou atravessar a rua deserta e silenciosa, na direção da casa dos Hudstons. Passou pelo portão da frente, que não estava chaveado, e entrou no pátio, iluminado apenas pela lua, que se infiltrava por entre as folhas de uma enorme árvore coral.
Parou um pouco para colocar as luvas de couro.
Refletindo a luz da lua, uma porta de correr, de vidro, ligava a frente da casa à sala de estar. Estava trancada. Vince tirou de dentro do saco de ferramentas uma lanterna do tamanho de uma caneta e verificou que uma barra de madeira impedia a porta de deslizar sobre o trilho.
A família Hudston tinha mais consciência sobre segurança do que a maioria das pessoas, mas Vince não estava preocupado. Colocou no vidro uma pequena borracha de sucção e cortou-o em círculo com uma ponta de diamante, retirando aquela parte com facilidade. Enfiou a mão pelo buraco e abriu a fechadura. Cortou mais um pedaço de vidro, na parte de baixo, e removeu a barra de madeira do trilho, ocultando-o sob a cortina.
Não tinha por que se preocupar com cachorros. A mulher com a voz sensual dissera-lhe que não havia cachorros na casa. Esta era uma das razões pelas quais gostava de trabalhar para aquelas pessoas: as informações eram sempre amplas e apuradas.
A porta se abriu com facilidade, e Travis passou por entre as cortinas, entrando na sala de estar. Aguardou por uns segundos até se acostumar com a escuridão e também ficou atento a ruídos. A casa estava mergulhada no maior silêncio.
Procurou primeiro o quarto do garoto, que estava iluminado apenas pela luz verde do radiorrelógio digital. O garoto dormia de lado, ressonando baixo. Tinha dezesseis anos. Muito jovem. Vince gostava deles bem jovens.
Caminhou em torno da cama, inclinando-se na direção do garoto, até ficar cara a cara com ele. Com ajuda dos dentes, tirou a luva de sua mão esquerda. Com a pistola na mão direita, tocou o queixo do garoto com o cano da arma.
O garoto acordou rápido.
Vince apoiou a palma da mão na testa dele ao mesmo tempo em que disparou a arma. A bala passou pelo queixo, penetrou no céu da boca e passou pelo cérebro, matando-o instantaneamente.
Ssssnap.
Uma carga intensa de energia vital saiu de dentro do jovem e tomou conta de Vince. Era uma energia tão forte e pura que ele quase chorava de prazer.
Por um momento, ficou sentado ao lado da cama sentindo pouca confiança para se mover. Extasiado. Mal podia respirar. Finalmente, na escuridão do quarto, beijou o garoto nos lábios e disse:
- Aceito. Obrigado. Aceito.
Movimentou-se rápido como gato e silenciosamente achou o quarto principal. Havia iluminação suficiente vinda de outro radiorrelógio digital e da porta do banheiro que estava com a luz acesa. O dr. Hudston e a mulher estavam dormindo profundamente. Vince a matou primeiro...
Sssnap.
...sem acordar o marido. Ela dormia sem roupa, e depois de sacrificada, ele colocou a cabeça entre os seios dela para ouvir o coração parar. Beijou a ponta dos mamilos e murmurou:
- Obrigado.
Vince contornou a cama, acendeu a luz da cabeceira e acordou o dr. Hudston. O homem estava confuso a princípio. Até que viu os olhos da mulher, fixos e sem vida. Então gritou e procurou segurar a arma de Vince, que se defendeu batendo-lhe duas vezes com a coronha na cabeça.
Vince puxou o médico, que estava desmaiado e também nu, para dentro do banheiro. Encontrou uma fita adesiva, com a qual poderia prender-lhe os pulsos e tornozelos.
Encheu a banheira com água fria e jogou o médico lá dentro. A água fria o acordou.
Apesar de estar preso, o médico tentou sair da água, tentou lançar-se na direção de Vince.
Vince bateu-lhe no rosto com a pistola e o lançou dentro d’água novamente.
- Quem é você? O que quer? - balbuciou Hudston ao recobrar o fôlego.
- Matei sua mulher e seu filho, e agora vou te matar.
Os olhos de Hudston pareciam desaparecer no rosto pálido.
- Jimmy? Não! Jimmy, não acredito.
- O garoto está morto - insistiu Vince. - Estourei os miolos dele.
Ao ouvir falar do filho, Hudston se entregou. Não chorou, não lamentou a morte do filho. Mas os olhos mostravam que estava acabado, como se uma luz se tivesse apagado de repente. Olhava para Vince, mas não havia mais medo ou raiva no rosto.
- Você tem duas chances: morrer logo, ou morrer sofrendo. Você me diz o que quero saber e eu o deixo morrer sem dor. E rapidamente. Se bancar o teimoso, posso prolongar sua morte por cinco ou seis horas.
O dr. Hudston tinha os olhos arregalados. Exceto pelas marcas de sangue fresco no rosto, estava branco, molhado e doentiamente pálido, como uma criatura que tivesse habitado durante toda a vida nas profundezas do oceano.
Vince esperava que o homem não fosse catatônico.
- O que desejo saber é o que você tem em comum com Davis Weatherby e Elisabeth Yarbeck.
Hudston pestanejou e olhou para Vince. Sua voz era rouca e trêmula.
- Davis e Liz? Do que está falando?
- Você os conhece?
Hudston fez um sinal afirmativo com a cabeça.
- Como você os conhece? Freqüentavam a mesma escola? Foram vizinhos?
Balançando a cabeça, Hudston respondeu:
- Trabalhávamos juntos no... Banodyne.
- O que é o Banodyne?
- Laboratório Banodyne.
- Onde fica isso?
- Aqui mesmo em Orange - disse Hudston. Deu um endereço de Irvine.
- O que faziam lá?
- Pesquisa. Mas deixei o trabalho há dez meses. Weatherby e Yarbeck ainda trabalham lá, mas eu não.
- Que tipo de pesquisa?
Hudston hesitou.
- Rápido e sem dor, ou lento e cruel? - disse Vince.
O médico lhe contou a respeito da pesquisa na qual estivera envolvido no laboratório. O Projeto Francis. As experiências. Os cachorros.
A história era incrível. Vince obrigou Hudston a discorrer sobre os detalhes três ou quatro vezes antes de ter certeza de que a história era verdade.
Quando concluiu que extraíra tudo o que precisava do homem, Vince disparou a pistola no meio da testa do médico - a morte rápida que havia prometido.
Ssssnap.
Dirigindo o furgão, descendo Laguna Hills, afastado da casa dos Hudstons, Vince pensava seriamente no passo perigoso que dera. Normalmente nada sabia dos objetivos. Era a maneira mais segura para ele e seus empregadores. Costumava não querer saber o que os pobres coitados haviam feito para merecer tanto castigo; se soubesse, isto lhe traria alguma forma de pesar. Mas agora não era uma situação comum. Fora pago para matar três doutores - não médicos, conforme descobrira, mas cientistas - todos destacados cidadãos, mais alguns membros das famílias deles que eventualmente estavam no meio do caminho. Extraordinário. Os jornais do dia seguinte não iriam ter espaço suficiente para todas as notícias. Algo de importante estava acontecendo, algo tão importante que só aparece uma vez na vida, com uma quantidade de dinheiro tão grande que ele precisaria de ajuda para contá-lo. O dinheiro poderia vir da venda do segredo que ele havia arrancado de Hudston... se ele pudesse descobrir quem quisesse comprá-lo... Mas o conhecimento não era só negociável; era também perigoso. Pergunte a Adão. Pergunte a Eva. Se os seus atuais contratantes, a mulher com a voz sensual e as outras pessoas em Los Angeles, soubessem que ele havia quebrado a regra mais elementar do negócio, se tomassem conhecimento de que havia interrogado uma das vítimas, iriam colocar a eu beca dele a prêmio.
O caçador viraria caça.
Claro, ele não se preocupava muito com a morte. Tinha muita vida estocada dentro de si. As vidas de outras pessoas. Mais vidas do que dez gatos juntos. Iria viver para sempre. Ele estava totalmente certo disso... Mas... bem, ele não sabia quantas vidas deveria absorver para lhe garantir a imortalidade. Às vezes achava que havia atingido um estado de invencibilidade, de vida eterna. Mas em outras ocasiões percebia que ainda estava vulnerável, e que havia necessidade de mais energia vital dentro de si para chegar ao ponto da imortalidade divina. Até que tivesse a certeza, sem qualquer sombra de dúvida, de que havia chegado ao Olimpo, o melhor a fazer era exercitar um pouco a prudência.
Banodyne.
O Projeto Francis.
Se Hudston dissera a verdade, o risco que Vince estava correndo seria muito bem recompensado, quando achasse o comprador certo para a informação. Iria tornar-se um homem rico.
8
Wes Dalberg morava há dez anos sozinho numa cabana de pedra na parte mais alta do canyon Holy Jim, no lado leste do município de Orange. A luz era de lampião e a única água corrente que havia tinha de ser bombeada manualmente na pia da cozinha. O vaso sanitário ficava numa casinha com um crescente entalhado na madeira da porta, a uns trinta metros dos fundos da casa.
Wes tinha 42 anos, mas aparentava mais idade. O rosto era marcado pelo vento e curtido pelo sol. Usava uma barba bem aparada, com muitos fios brancos. Embora aparentasse ser mais velho, sua condição física era de alguém com 25 anos de idade. Acreditava que sua boa saúde resultava de viver perto da natureza.
Numa noite de terça-feira, 18 de maio, sob a luz do lampião, ficou sentado à mesa na cozinha até uma da manhã, saboreando um vinho caseiro de ameixas, enquanto lia um romance de John MacDonald. Wes se achava "uma pessoa grosseira e anti-social que tinha nascido em século errado", com muito pouco gosto pela sociedade moderna. Mas gostava de ler as histórias de Travis McGee, porque McGee navegava naquela confusão, no sórdido mundo exterior e, nunca se deixara levar pelas correntes perigosas.
Quando terminou de ler o livro, à uma da manhã, Wes saiu para apanhar mais lenha para a lareira. Os galhos dos plátanos, batidos pelo vento, marcavam levemente sombras no chão, cortando o luar e as superfícies das folhas mal refletiam o brilho da lua. Os coiotes podiam ser ouvidos à distância, como se estivessem caçando um coelho ou outro animal pequeno. Os insetos faziam muito ruído no mato; o vento gelado corria através da parte mais alta da floresta.
O suprimento de lenha de Wes ficava empilhado num depósito ao longo de todo o lado esquerdo da cabana. Wes puxou o trinco das portas duplas. Estava tão familiarizado com a forma de arrumação que não precisou de luz para ajudá-lo a apanhar meia dúzia de achas de lenha. Trouxe para fora, colocou tudo no chão e voltou para fechar as portas.
Percebeu que os coiotes e os insetos de repente silenciaram. Só o vento ainda podia ser ouvido.
Intrigado, olhou com atenção para a floresta escura que cercava a pequena clareira onde havia construído a cabana.
Alguma coisa rosnou.
Com os olhos semicerrados, procurou vasculhar a mata coberta pela noite, que de uma hora para outra parecia menos iluminada pela lua do que antes.
O rosnado era profundo e furioso. Não se parecia com nada do que havia escutado antes, em dez anos de noites de solidão.
Wes estava curioso, até mesmo preocupado, mas não sentia medo. Permaneceu quieto, ouvindo. Passou-se um minuto e não ouviu mais nada.
Terminou de alinhar as portas do depósito, colocou o trinco, e voltou a apanhar a lenha do chão.
O rosnado novamente. Depois, o silêncio. A seguir o ruído de folhas e galhos secos quebrados, estalando, como se alguém os estivesse pisando.
A julgar pelo ruído, aquilo estava a uns trinta metros de distância, um pouco a oeste da casinha. Dentro da floresta.
A coisa rosnou de novo, mais alto desta vez. Mais perto, também. Não mais do que uns vinte metros de distância.
Wes ainda não conseguia enxergar o que causava aquele ruído. A lua continuava escondida atrás das nuvens.
Ao ouvir o rosnado forte, fora do comum, Wes de repente perdeu a calma. Pela primeira vez em dez anos de vida em Holy Jim, sentiu que estava correndo perigo. Carregando a lenha rápido, dirigiu-se apressado para os fundos, procurando a porta da cozinha.
O ruído no mato era cada vez mais alto. A criatura estava agora se movimentando com mais velocidade que antes. Caceta, estava correndo.
Wes começou a correr também.
O rosnado tornou-se muito forte e difícil de identificar: uma mistura de cachorro, porco, puma, um pouco humano, um pouco animal. Estava quase perto dele.
Quando Wes se aproximou da cabana, atirou a lenha onde pensou que estivesse o animal. Ouviu quando a madeira caiu no chão, junto com o recipiente onde a carregava, mas o rosnado estava mais forte, mais perto, e ele sentiu que não havia acertado.
Subiu apressado os três degraus dos fundos, projetou-se contra a porta da cozinha, entrou e bateu a porta atrás de si. Colocou o trinco, medida de segurança que ele usava há nove anos, desde que se acostumara à tranqüilidade do canyon.
Dirigiu-se à porta da frente da cabana e igualmente colocou o trinco. Listava surpreso com a intensidade do medo que o dominara. Mesmo que fosse um animal selvagem - talvez um urso enfurecido, vindo das montanhas - não poderia abrir portas e procurá-lo dentro da cabana. Não havia necessidade de usar as fechaduras das portas, ainda que se sentisse melhor em faze-lo. Estava sendo comandado pelo instinto de preservação e, como era um homem acostumado à natureza, sabia que o instinto devia ser levado a sério, mesmo que o resultado fosse um comportamento aparentemente irracional.
Muito bem, agora ele estava em segurança. Nenhum animal poderia abrir a porta. Certamente um urso não poderia, e tudo levava a crer que era um urso.
Mas o som não parecia ser de urso. Era exatamente isto que havia deixado Wes Dalberg tão intrigado: não parecia com nada, que possivelmente andasse vagando por aqueles matos. Ele estava familiarizado com os seus animais vizinhos, conhecia todos os uivos e ruídos que faziam.
A única luz na sala da frente era a da lareira, que não conseguia dissipar as sombras nos cantos da cabana. Os fantasmas refletidos pelo fogo pulavam por todos os lados nas paredes. Pela primeira vez Wes daria as boas vindas à eletricidade.
Tinha uma espingarda Remington 12, com a qual matava pequenos animais para complementar a dispensa de alimentos comprados no supermercado. Ela estava numa prateleira na cozinha. Achou melhor pegá-la para verificar se estava carregada, mas agora que se achava seguro dentro de casa, com todas as portas trancadas, começou a sentir um pouco de vergonha do pânico enorme que se apoderara dele. Estava agindo como um completo idiota. Se houvesse apenas gritado ou batido as mãos, teria assustado o animal que estava no mato. Mesmo que culpasse o instinto pelo seu comportamento, não estava agindo de acordo com a sua auto-imagem de homem rude, que habitava o canyon. Se pegasse a arma agora, quando nada o obrigava a tal atitude, perderia muito do auto-respeito, o que era muito importante, porque a única opinião que Wes Dalberg levava em consideração era a sua própria. Portanto, nada de armas.
Wes se aventurou a ir para a grande janela da sala de estar. Esta era uma das modificações feitas na cabana por alguém que cuidava do serviço florestal vinte anos atrás; a janela pequena e antiga havia sido substituída por outra imensa, para tirar vantagem da espetacular vista da floresta.
Algumas poucas nuvens pareciam brilhar ao luar, contrastando com a escuridão da noite. O luar rareava no quintal da frente, reluzia no capo e no pára-brisa do jipe de Wes e delineava o perfil das árvores nas proximidades. A princípio nada aconteceu, nada se moveu, a não ser algumas poucas folhas balançadas pelo vento.
Ele ficou vasculhando o mato por alguns minutos. Não ouvindo nem vendo coisa alguma de extraordinário, concluiu que o animal havia desaparecido. Respirando aliviado, ainda com sentimento de vergonha, deu as costas para a janela no momento em que percebeu um movimento perto do jipe. Fixou os olhos, mas não viu nada. Permaneceu olhando para fora por mais um minuto ou dois. Quando concluiu que havia imaginado o movimento, viu novamente: alguma coisa estava saindo detrás do jipe.
Wes chegou mais perto da janela.
Alguma coisa estava correndo pelo pátio na direção da cabana, bem rápido e baixo no chão. Ao contrário de revelar a natureza do inimigo, o luar tornava-o ainda mais misterioso e disforme. Aquela coisa já estava atingindo a cabana. De repente - meu Deus! - a criatura estava levitando! Voando estranhamente na direção em meio à escuridão. Wes gritou de pavor e um instante depois o animal se lançou janela adentro. Wes gritara novamente, e tornara a gritar, mas o grito lhe fora cortado.
9
Como Travis não era muito forte para bebidas, três cervejas bastavam para garantir-lhe que não teria insônia. Dormiu logo em seguida, assim que encostou a cabeça no travesseiro. Sonhou que era o mestre-de-cerimônias em um circo, onde todos os animais podiam falar, e depois de cada apresentação ele os visitava nas jaulas, quando cada animal lhe contava um segredo que o deixava atônito, muito embora esquecesse tão logo se aproximasse do animal seguinte e do próximo segredo.
Às quatro da madrugada, ele acordou e viu Einstein na janela do quarto. O cachorro havia colocado as patas dianteiras próximas do vidro, o focinho iluminado pelo luar, observando a noite, atento.
- O que há de errado, garoto?
Einstein virou-se para ele, mas em seguida voltou sua atenção para a noite, lá fora. Rosnou baixo e as orelhas ficaram em sinal de alerta.
- Alguém lá fora? - perguntou Travis, saindo da cama e vestindo suas calças jeans.
O cachorro se lançou ao chão e correu para fora do quarto.
Travis o seguiu até a outra janela, na sala de estar, olhando a noite daquele ponto da casa. Bem ao lado do cachorro, passando a mão no pêlo dele, Travis perguntou:
- O que está acontecendo, afinal?
Einstein pressionou o focinho ao vidro e começou a ganir nervosamente.
Travis não via nada de ameaçador no jardim da frente, nem mesmo na rua. Mas foi atacado por um pressentimento:
- Você está preocupado com o que estava te perseguindo na floresta, esta manhã?
Einstein fitou-o, compenetrado.
O que era aquilo na floresta?, Travis se perguntou.
Einstein ganiu de novo e tremeu de medo.
Ao lembrar-se do medo do cão - e do seu próprio medo - nos elevados de Santa Ana, Travis mais uma vez foi invadido por um calafrio, por causa da recordação de algo sobrenatural e misterioso que os perseguia. Ele olhava para dentro da noite à procura de alguma coisa. As linhas pontiagudas das palmeiras estavam definidas pelo amarelo-escuro da luz que vinha de um poste da rua. O vento irregular formava pequenos redemoinhos de poeira, folhas e pedaços de papel na calçada, levantava-os e depois os deixava descansando. Uma mariposa solitária bateu de encontro ao vidro da frente de Travis e de Einstein, evidentemente confundindo o reflexo da lâmpada na janela.
- Você está preocupado que ele ainda esteja à sua espreita? O cachorro suspirou, baixinho.
- Bem, não acho que seja, você sabe que estamos muito distantes de lá, Nós temos rodas e o animal teria que vir pelas suas próprias pernas, o que não é possível. Seja lá o que for, está bem longe de nós, Einstein, lá mesmo em Orange, sem fazer a menor idéia para onde nós fomos. Você não deve ficar preocupado. Está me entendendo?
Einstein aproximou o focinho da mão de Travis e a lambeu, mostrando segurança e gratidão. Mas olhou para fora novamente e emitiu um som que mal dava para ouvir.
Travis teve que persuadi-lo a voltar ao quarto. Chegando lá, o cachorro tentou se deitar na cama, ao lado do dono, o que Travis permitiu para acalmá-lo.
O vento parecia falar, por sobre o telhado da casa.
De vez em quando a casa vibrava com os barulhos comuns do meio da noite.
O barulho de motores, o barulho dos pneus no asfalto, um carro passando pela rua.
Exausto pela tensão física e emocional do dia, Travis adormeceu.
Próximo do nascer do dia, meio dormindo, percebeu que Einstein estava novamente na janela do quarto, observando. Chamou o cachorro pelo nome, batendo no colchão, para chamar-lhe a atenção. Mas Einstein permanecia de guarda e Travis voltou a dormir.
QUATRO
1
Um dia depois de ter encontrado Art Streck, Nora Devon saiu para dar uma longa caminhada, pretendendo explorar áreas da cidade que ela jamais havia visto. Costumava dar pequenos passeios, uma vez por semana, com Violet. Desde que Violet morrera, Nora continuava saindo, mas com menos freqüência, e jamais se afastando além de seis ou oito quadras de casa. Hoje ela iria bem mais longe. Era o primeiro e pequeno passo da longa jornada a caminho da libertação e do auto-respeito.
Antes de sair, decidira almoçar em algum restaurante escolhido ao acaso, no meio do caminho. Mas jamais havia freqüentado um restaurante. A perspectiva de ter que lidar com o garçom e comer na companhia de estranhos era assustadora. Em vez disso ela preparou um pequeno lanche com maçã, laranja, alguns biscoitos de aveia, e colocou tudo dentro de um saco de papel. Comeria a sós, num parque em algum lugar. Até isto seria revolucionário. Um passo de cada vez.
O céu estava claro. O ar, quente. As árvores se agitavam bonitas e verdes por causa da primavera; o vento era suficientemente forte para amenizar o efeito cáustico da luz forte do sol.
À medida que Nora passava por aquelas casas, todas bem cuidadas, a grande maioria de arquitetura espanhola, prestava atenção nas portas e janelas, com uma curiosidade nova, se perguntando sobre as pessoas que moravam ali. Será que eram felizes? Tristes? Apaixonadas? Que tipo de música ou livro preferiam? O que comiam? Estariam planejando férias a lugares exóticos, noites no teatro, ou espetáculos em casas noturnas?
Jamais havia tentado imaginar isto antes, porque sabia que não cruzaria com estas pessoas nunca. Portanto, pensar nelas seria perda de tempo. Mas agora...
Ao encontrar outras pessoas passando, mantinha a cabeça baixa e evitava o olhar delas, como sempre fizera antes, mas, pouco a pouco, foi-se animando a encarar algumas dessas pessoas. Ficava surpresa quando muitos sorriam para ela e a cumprimentavam. E ficou ainda mais surpresa, quando ouviu-se, respondendo as saudações.
Parou em frente ao prédio do foro para admirar as flores das iúcas, detendo-se diante de uma buganvília vermelha que subia pela parede de estuque do prédio, ramificando-se em torno das janelas.
Em frente à Missão de Santa Bárbara, construída em 1815, demorou-se um pouco mais, parada no início da escadaria, para observar a elegante fachada da velha igreja. Passeou pelo pátio, onde havia o jardim Sagrado, e subiu por uma das torres.
Aos poucos começara a entender por que, em alguns dos muitos livros que havia lido, Santa Bárbara era chamado de um dos lugares mais bonitos da Terra. Tinha vivido ali, por quase toda a vida, e só agora visitava a cidade pela primeira vez, e estava deslumbrada. Tudo isto lhe fora escondido quando vivia com Violet. Até mesmo quando saíam juntas, não via além dos próprios sapatos.
Já era uma da tarde, no Alameda Park, quando ela se sentou de frente para o lago, num banco perto de três antigas e imensas palmeiras. Os pés estavam doloridos, mas Nora não tinha vontade de voltar cedo para casa. Abriu o saco de papel e começou a fazer um lanche, saboreando uma maçã. Nada lhe parecera tão delicioso. Com muita fome, rapidamente comeu também a laranja, colocando a casca dentro do saco. Estava começando a comer o primeiro biscoito, quando Art Streck se sentou ao lado dela.
- Alô, queridinha.
Ele estava vestido apenas com calção azul de corrida, tênis e uma meia branca de esporte. Entretanto, não parecia ter corrido, pois não estava suado. Era musculoso, com um peito forte e bronzeado, extremamente másculo. E tinha o propósito de se exibir fisicamente. Nora evitou olhar.
- Assustada? - perguntou ele.
Ela não podia falar, porque estava com a boca seca e cheia de biscoitos. Sentia-se temerosa de se engasgar, caso engolisse o pedaço de biscoito inteiro. Também, não podia, simplesmente, cuspi-lo.
- Minha doce e tímida Nora.
Olhando para baixo, ela percebera que sua mão direita estava tremendo. O biscoito havia-se esfarelado entre os dedos e os pedaços caíram no chão entre os pés dela.
Disse para si mesma que sairia para um dia inteiro de caminhada, como um primeiro passo para conquistar a liberdade, mas agora era obrigada a admitir que havia uma outra razão para ficar fora de casa. Estava tentando evitar a atenção de Streck. Temia ficar em casa, por causa das repetidas ligações. Mas agora ele a encontrara ao ar livre, sem a proteção das janelas e portas fechadas, o que era pior do que o telefone. Infinitamente pior.
- Olhe para mim, Nora.
- Não.
- Olhe para mim.
O último dos biscoitos acabava de se esfarelar todo.
Streck pegou sua mão esquerda, ao que ela tentara resistir, mas Streck apertou firmemente os seus dedos e ela se rendeu. Ele colocou a mão dela em sua coxa. A perna de Streck estava firme e quente.
O estômago de Nora estava dando voltas, o coração aos pulos, porque ela não sabia o que deveria fazer primeiro - vomitar ou desmaiar.
Movimentando a mão dela lentamente para cima e para baixo na sua coxa nua, ele disse:
- Sou o que você precisa, queridinha. Posso tomar conta de você. Como se fosse cola, o biscoito acabou grudando na boca de Nora. Ela não podia falar. Mantinha a cabeça baixa, mas levantou os olhos, para enxergar por debaixo das sobrancelhas. Tinha esperança de encontrar alguém por perto, que pudesse socorrê-la, mas havia somente duas jovens senhoras com filhos pequenos. E, mesmo assim, encontravam-se muito distantes, para ajudar.
Levantando a mão dela de sua coxa e a colocando sobre o peito, Streck disse:
- Você está gostando do passeio? Gostou da Missão? Hem? Não achou bonitas as plantas lá no foro?
Continuou a fazer perguntas com aquela voz fria e pretensiosa, querendo saber sobre outras coisas que ela vira. Nora concluiu que Streck a tinha seguido por toda a manhã, tanto de carro quanto a pé. Ela não vira, mas não havia dúvidas de que ele estivera em todos os lugares junto com ela, pois conhecia todos os seus movimentos, desde que ela deixara a casa. Isto a deixou mais assustada e furiosa do que qualquer outra coisa que ele havia feito.
Nora respirava com dificuldade, e rápido, e às vezes sentia que ia lhe faltar ar. Os ouvidos zumbiam, mas mesmo assim conseguia ouvir cada palavra que ele dizia. Embora pensasse que pudesse reagir, arrancando-lhe os olhos, permanecia paralisada. No ponto de atacar, mas incapaz de fazê-lo. Sentia-se simultaneamente forte e com raiva, fraca e com medo. Queria gritar, não para pedir ajuda, mas para compensar uma profunda frustração.
- Agora - disse ele -, você já deu um lindo passeio, fez um lanche ótimo no parque, encontra-se relaxada. Sabe o que seria bom agora? Sabe o que tornaria este dia maravilhoso, queridinha? Um dia realmente muito especial? O que nós vamos fazer agora é pegar o meu carro, voltar para a sua casa, para o seu quarto amarelo, ir para a cama...
Ele havia estado no quarto dela! Ele devia ter feito isto no dia anterior. Quando ela pensava que ele estivesse na sala consertando a tevê, ele escapara escada acima, aquele sacana! Desrespeitando o seu lugar mais sagrado, invadindo o seu santuário, e remexendo nos pertences dela.
- Aquela grande e antiga cama... Vou tirar a sua roupa, querida, tirar a sua roupa e trepar com você.
Nora jamais saberia de onde estava vindo aquela repentina coragem, se do desrespeito por ele ter violado a sua intimidade, ou da obscenidade que havia dito pela primeira vez, ou de ambos os motivos. Ela ergueu a cabeça, olhou para ele e cuspiu-lhe na cara os restos de biscoito. Alguns pedaços ficaram presos no olho direito e na ponta do nariz. Streck ficou com biscoitos espalhados pelo cabelo e testa, também. Quando Nora percebeu que ele ficara furioso com a reação dela, ficou aterrorizada com o que havia feito. Ao mesmo tempo ela estava confiante, porque havia sido capaz de quebrar o medo que a deixava paralisada, mesmo que Streck desejasse se vingar da atitude dela.
Foi o que ele fez, rapidamente, com brutalidade. Streck ainda mantinha presa a mão de Nora, e ela não podia se libertar. Ele apertava firmemente, como havia feito antes, e os dedos da mão dela chegavam a estalar. Estava doendo muito. Mas ela não queria dar a ele a satisfação de vê-la gritar e estava determinada a não implorar que parasse. Trincou os dentes e resistiu. O suor escorria-lhe pelos olhos, e imaginava que iria desmaiar. Mas o pior não era propriamente a dor; o pior de tudo era ter que olhar para os olhos azuis, frios e perturbadores de Streck. Ao mesmo tempo em que apertava a mão dela, Streck tentava controlá-la, não somente com isto, mas através do olhar desprovido de calor humano e infinitamente misterioso. Pretendia intimidá-la para subjugá-la completamente. E estava conseguindo - por Deus, que estava, porque percebia nele uma loucura que ela nunca seria capaz de sobrepujar.
Quando ele sentiu que ela estava desesperada, o que evidentemente agradava mais a ele do que um grito de dor poderia fazer por ela, Streck diminuiu a pressão, contudo não a libertou.
- Você vai pagar por isto, por ter cuspido na minha cara. E vai gostar de pagar por isto.
Sem muita convicção, ela disse:
- Vou reclamar com seu patrão e você vai perder o emprego. Streck apenas sorriu. Nora queria saber por que Streck não tinha limpado os restos de biscoito que estavam grudados no rosto. Embora pensasse assim, desconfiava de que Streck iria obrigá-la a limpar o que fizera. Primeiro ele disse:
- Perder o meu emprego? Já me demiti da Wadlow TV. Saí de lá ontem à tarde. Assim eu teria tempo para você, Nora.
Ela baixou os olhos. Não poderia esconder o medo, que a fazia tremer a ponto dos dentes ficarem batendo.
- Nunca fico muito tempo num emprego. Um homem como eu, cheio de tanta energia fica aborrecido logo. Preciso me movimentar. Além do mais, a vida é muito curta para perdê-la trabalhando. Você não pensa da mesma forma? Assim, fico empregado por algum tempo, até economizar algum dinheiro. Aí aproveito o quanto puder. E de vez em quando procuro uma mulher como você, alguém que necessite muito de mim, alguém que está implorando por um homem como eu, aí eu presto o meu auxílio.
Nora dizia para si mesma: chute-o, morda-o, arranque os olhos dele.
Não fez nada disso.
A mão dela doía muito. Ela recordava como ele lhe havia apertado a mão, e como a dor era intensa.
A voz dele mudou, tornando-se mais suave, mais delicado, o que a deixou ainda mais apavorada.
- Vou ajudar você, Nora. Vai ser divertido. Você está um pouco nervosa comigo, é claro, eu entendo. Realmente entendo. Mas, acredite, é exatamente disto que você está precisando, garota. Isto vai virar a sua vida de cabeça para baixo e nada vai ser como antes, é a melhor coisa que poderia te acontecer.
2
Einstein adorou o parque.
Quando Travis soltou a coleira, o cachorro se dirigiu para o canteiro de flores mais próximo, cheio de cravos amarelos e enormes narcisos vermelhos, e circulou entre eles, obviamente fascinado. Procurou outro canteiro com exuberantes ranúnculos recém-floridos. E a cada nova experiência, abanava o rabo cada vez mais rápido. As pessoas costumam dizer que os cachorros só podem ver em preto e branco, mas Travis não apostava nisso, pois sabia que o seu tinha visão de todas as cores. Einstein cheirava tudo: flores, árvores, pedras, latas vazias, pedaços de papel, a base do bebedouro e cada metro do chão que conseguia pisar - sem a menor dúvida, fazia através do faro uma imagem de todas as pessoas e cachorros que haviam passado por ali antes. Imagens tão claras para ele quanto fotografias o seriam para Travis.
Por toda a manhã e no início da tarde, o cão de caça não fizera nada de extraordinário. De fato, seu comportamento tipo "eu sou apenas um estúpido cachorro comum" era tão evidente que Travis imaginava que a inteligência quase humana do animal somente se manifestasse por breves momentos, o equivalente a ataques epiléticos. Mas depois de tudo que acontecera na véspera, a natureza extraordinária de Einstein, embora raramente revelada, não era mais posta em dúvida.
Quando estavam próximos do lago, Einstein repentinamente ficou parado, levantou a cabeça, empinou as orelhas um pouco e ficou olhando um casal sentado num dos bancos do parque, a cerca de quarenta metros. O homem estava com short de corrida e a mulher com um vestido cinza: ele segurava a mão dela e os dois pareciam absortos conversando.
Travis começou a se afastar do casal, dirigindo-se para a parte mais verde do parque, permitindo-lhes mais privacidade.
Mas Einstein latiu e correu na direção do casal.
- Einstein! Aqui! Volte aqui!
O cachorro simplesmente o ignorou e, ao se aproximar do casal no banco, começou a latir furiosamente.
Na hora em que Travis chegou, o homem com roupa esportiva estava em pé. Seus braços, erguidos numa atitude defensiva e suas mãos estavam fechadas. Ele recuara um passo, diante do cachorro. Einstein!
O cão parou de latir, afastando-se de Travis antes que este lhe colocasse a coleira novamente, seguiu na direção da mulher no banco e colocou a cabeça no colo dela. A mudança de atitude de um cachorro agressivo para um delicado cachorro de estimação foi tão rápida que todos ficaram surpresos.
- Desculpe. Ele nunca... - Travis não conseguiu completar.
- Pelo amor de Deus! - disse o homem de short esportivo. - Você não pode permitir que um cachorro violento ande solto no parque.
- Ele não é violento - disse Travis. - Ele...
- Merda! - exclamou o homem, espalhando saliva. - Este demônio tentou me morder. Você gosta de ser processado ou coisas deste tipo?
- Não sei o que aconteceu com...
- Tire-o daqui - exigiu o homem.
Assentindo, com a cabeça, embaraçado, Travis se voltou para Einstein e viu que a mulher havia induzido o cachorro a subir no banco. Einstein estava sentado com ela, encarando-a, com as patas da frente no seu colo, e ela não estava simplesmente tratando-o bem. Ela o estava abraçando. De fato, havia um quê de desespero na maneira como ela segurava o cachorro.
- Tire-o daqui! - gritou o homem, furiosamente.
O homem era maior, com os ombros mais largos e o peito mais saliente do que Travis, e deu alguns passos para a frente na direção de Travis, utilizando o seu tamanho para intimidar. Agressivo, perigoso na aparência e nas atitudes, fazia e acontecia, a seu modo. Travis desprezava aquele tipo de gente.
Einstein virou a cabeça para a direção do homem, mostrou-lhe os dentes e começou a rosnar baixo.
- Escute aqui, companheiro - disse o homem com raiva. - Você é surdo ou o quê? Eu disse para colocar a coleira no cachorro e vejo que a coleira está em suas mãos. Então, que diabo está esperando?
Travis percebeu que alguma coisa estava errada. A raiva do homem era um pouco falsa, como se tivesse sido apanhado fazendo algo vergonhoso e tentasse esconder a culpa, agindo agressivamente e partindo para a ofensiva. O comportamento da mulher era característico. Ela não disse uma palavra, sequer. Estava pálida e as suas mãos finas tremiam. E a julgar pelo comportamento dela junto ao cachorro, não era a Einstein que ela temia. Travis também se perguntou por que um casal iria para o parque com roupas tão diversas, ele com roupas de corrida e ela com roupa comum de ficar em casa. Notou que ela olhava com medo para o homem, então, concluiu que os dois nada tinham a ver, um com o outro - pelo menos, pela vontade dela - e que o homem estava com profundo sentimento de culpa.
- Moça - disse Travis - você está bem?
- É claro que ela não está bem - respondeu o homem. - O demônio do seu cachorro veio latindo e atacando.
- Parece que não a está aterrorizando agora - disse Travis, encarando e mantendo o olhar do homem.
Pedaços do que parecia ser um biscoito de aveia estavam presos no rosto do homem. Travis notou que um biscoito havia caído do saco e estava ao lado da mulher e outro, mastigado, caído entre os pés dela. O que diabo estava acontecendo ali?
O homem fulminou Travis com os olhos e começou a falar. Mas olhou para a mulher junto de Einstein e evidentemente concluiu que a raiva não seria adequada. Então disse, calmamente:
- Bem... você deve estar com o demônio deste perdigueiro sob controle.
- Sim, acho que ele não vai incomodar mais ninguém agora - disse Travis, balançando a coleira. Foi apenas uma extravagância.
Um pouco furioso, mas inseguro, o homem olhou para a mulher e disse:
- Nora?
Ela não respondeu. Apenas ficou acariciando Einstein.
- Vejo você mais tarde - disse o homem se dirigindo a ela. Sem obter resposta, ele se virou para Travis, fixou-lhe os olhos e disse: - Se este perdigueiro se aproximar dos meus calcanhares...
- Não vai - interrompeu Travis. - Você pode aproveitar a sua corrida. Ele não vai perturbá-lo.
Ao mesmo tempo em que corria, lentamente, cruzando o parque em busca da saída mais próxima, o homem olhava várias vezes para trás, para onde estavam Travis e a mulher. Até que desapareceu.
Einstein continuava no banco, agora deitado calmamente com a cabeça no colo da mulher.
- Ele começou a gostar de você - disse Travis.
Sem se voltar para ele, acariciando levemente o pêlo de Einstein com uma das mãos, ela disse:
- Ele é um cachorro maravilhoso.
- Estou com ele, desde ontem. Ela não disse nada.
Travis se sentou na outra extremidade do banco, com Einstein entre eles.
- Meu nome é Travis.
Sem dar atenção, ela passou os dedos entre as orelhas de Einstein. O cachorro fez um ruído com a boca, manifestando agrado.
- Travis Cornell - disse ele.
Finalmente, ela levantou a cabeça e olhou para ele:
- Nora Devon.
- Muito prazer em conhecê-la. Ela sorriu, mas nervosamente.
Embora não cuidasse muito bem do cabelo e não estivesse maquiada, ela era muito atraente. O cabelo era negro e macio, a pele suave, e os olhos cinzentos eram acentuados por linhas verdes que pareciam brilhar sob o sol de maio.
Ao perceber que ele havia gostado dela, ficou assustada e Imediatamente desviou o olhar. Baixou a cabeça uma vez mais.
- Sra. Devon... há algo errado? - ele perguntou. Ela não respondeu.
Aquele homem... estava-lhe perturbando?
- Está tudo bem - disse ela.
Com a cabeça pendida e os ombros encolhidos, sentada no banco daquela maneira, ela parecia desprotegida, Travis não poderia simplesmente levantar-se, afastar-se, e deixá-la a sós com os problemas dela. Ele disse:
- Se aquele homem a estava importunando, acho que devemos procurar um guarda.
- Não - disse ela com delicadeza, mas com decisão. Deixou Einstein de lado e se levantou.
O cachorro pulou do banco e ficou ao lado da mulher, olhando-a com afeição. Levantando-se, Travis disse:
- Não quero me intrometer, é claro.
Ela se afastou dele rapidamente, caminhando na direção oposta à que o homem havia seguido.
Einstein começou a segui-la, mas parou e com relutância voltou quando Travis o chamou.
Confuso, Travis ficou observando-a até que desaparecesse.
Era uma mulher enigmática e cheia de problemas, com um vestido cinza, sem grande forma, como se fizesse parte de alguma congregação religiosa que a cobrisse de roupa para não causar tentação em ninguém.
Ele e Einstein continuaram o passeio pelo parque. Mais tarde foram até a praia, onde o cão parecia estonteado pela imensidão das ondas e pela espuma do mar, na areia. Repetidamente parava para olhar o oceano, e se divertia com as ondas. Um pouco depois, de volta à casa, Travis tentou chamar a atenção do cachorro para os livros, que o haviam deixado tão excitado na noite anterior, na esperança que desta vez Einstein lhe mostrasse o que estava procurando. O animal farejou sem grande vontade os volumes apresentados por Travis e acabou bocejando.
Por toda a tarde, a memória de Nora Devon voltara à mente de Travis com surpreendente freqüência e clareza. Ela não precisava de roupas bonitas para atrair a atenção de um homem. Aquele rosto e aqueles olhos cinza-esverdeados eram suficientes.
3
Depois de algumas poucas horas de sono profundo, Vincent Nasco pegou um avião para Acapulco, no México. Registrou-se num hotel imenso, com vista para a baía, num prédio grandioso mas pouco aconchegante, com muito vidro, muito concreto. Depois de trocar de roupa, colocando um sapato confortável, uma calça branca de algodão, e uma camisa Ban-Lon azul, saiu à procura do dr. Lawton Haines.
Haines estava de férias em Acapulco. Tinha trinta e nove anos, um metro e setenta, oitenta quilos, cabelo castanho escuro e achava-se parecido com Al Pacino, apesar do sinal vermelho do tamanho de uma moeda que possuía na testa. Procurava estar em Acapulco pelo menos duas vezes por ano, ficando sempre no elegante Hotel Las Brisas, na extremidade leste da baía, e freqüentemente desfrutava de um excelente almoço num restaurante ao lado do Hotel Caleta, que tinha sua preferência por causa do coquetel de tequila com suco de limão e da vista da praia de Caleta.
Já era meio-dia e vinte. Vince estava confortavelmente sentado numa cadeira de vime com almofadas não menos confortáveis, numa mesa perto da janela, no mesmo restaurante. Localizou Haines no momento que entrou. O médico procurou outra mesa também próxima à janela, a uma distância de três mesas de Vince, meio protegido por um vaso de palmas. Haines estava comendo camarões e tomando seu coquetel preferido. Ao lado de uma linda loura. Ela estava vestindo calça branca e frente única; a metade dos homens no restaurante olhava para ela.
Até onde Vince podia perceber, Haines mais parecia Dustin Hoffman que Pacino. Haines possuía aqueles traços firmes de Hoffman, incluindo o nariz. Além do mais, era exatamente como havia sido descrito. Estava usando calça rosa de algodão, camisa amarelo-claro e sandálias brancas, o que parecia na opinião de Vince um exagero para uma praia tropical.
No almoço Vince teve sopa de albondiga enchilhadas com frutos do mar e salsa verde, e margarita sem álcool. Pagou a conta na mesma hora em que Haines e a loura estavam prontos para sair.
A mulher estava ao volante de um Porshe vermelho. Vince foi atrás num Ford alugado, que parecia já ter muitos quilômetros rodados, vibrava com a exuberância da percussão de uma orquestra de mariachi e o carpete cheirava a mofo.
Ao chegar a Las Brisas, a loura deixou Haines no estacionamento, embora ficassem ao lado do carro por cinco minutos abraçando-se e beijando-se em plena luz do dia.
Vince estava desiludido. Esperava que Haines tivesse maior senso de propriedade. Além do mais, o homem tinha "doutorado". Se pessoas educadas não mantinham padrões tradicionais de conduta, quem o faria? Não se ensinavam mais boas maneiras nas universidades, naqueles dias? Não era à toa que o mundo estava-se tornando mais rude e mais sujo, a cada ano.
A loura acabou partindo no seu Porshe e Haines deixou o estacionamento numa Mercedes esporte. Com certeza, não era de locadora e Vince tentava imaginar onde o doutor a tinha conseguido.
Haines passou pela entrada do estacionamento de outro hotel e Vince também. Vince seguiu o médico até o saguão e finalmente até a praia, onde a princípio os dois pareciam estar desfrutando de um passeio não-programado. Mas Haines acabou sentando-se ao lado de uma maravilhosa garota mexicana que estava de tanga. Era morena, muito bem proporcionada, quinze anos mais jovem que o doutor. Estava tomando banho de sol numa cadeira de praia, de olhos fechados. Haines beijou-lhe o pescoço, surpreendendo-a. Evidentemente ela o conhecia, porque colocou os braços em torno dele, rindo.
Vince caminhava de um lado para outro na praia e sentou na areia atrás da garota e de Hames. Havia mais duas pessoas por perto. Não estava preocupado em ser notado por Haines. O doutor parecia só ter olhos para a anatomia feminina. Além do mais, apesar do seu tamanho, Vince Nasco sabia como se proteger ao fundo.
Na baía, um turista divertia-se num pára-quedas puxado por uma lancha. O sol estava forte, deixando dourada a areio e o mar.
Passaram-se vinte minutos. Haines beijou a garota na boca, na parte de cima dos seios e voltou pelo caminho que havia tomado. A garota gritou:
- Hoje às seis!
- Estarei lá - respondeu Haines.
Então Haines e Vince saíram para um excelente passeio. Primeiramente, Vince pensou que Haines tivesse um destino em mente, mas logo em seguida concluiu que estavam rodando sem rumo pela estrada da costa, apreciando o cenário. Passaram pela praia de Revolcadero e continuaram em frente: Haines na Mercedes branca e Vince logo atrás no Ford.
Próximo a um ponto onde a paisagem era extremamente linda, Haines saiu da estrada e estacionou o carro perto de outro, de onde saíram quatro turistas, excessivamente coloridos, com roupas espalhafatosas. Vince estacionou o carro também e caminhou até um anteparo de ferro. A vista dali era magnífica. Era possível vislumbrar toda a costa, onde as ondas quebravam-se furiosamente nas pedras, cerca de trinta metros lá em baixo.
Os turistas, todos vestindo camisas estampadas de papagaio incansáveis nos elogios à paisagem, tiraram as últimas fotos, jogaram um pouco de lixo fora e partiram, deixando Vince e Haines sozinhos. O tráfego não era intenso, só havia um carro se aproximando. Vince estava aguardando que o carro passasse para apanhar Haines de surpresa.
Ao contrário de passar por eles, o carro saiu da estrada e parou ao lado do Mercedes de Haines. Uma linda garota de vinte e cinco anos saiu dele e correu para Haines. Parecia mexicana, mas havia no rosto dela alguns traços de sangue chinês. Era muito exótica. Estava de bermuda branca e frente única também branca. Tinha as pernas mais lindas que Vince jamais vira. Ela e Haines caminharam juntos ao longo da amurada de ferro a uns dez metros de Vince e se abraçaram com tanta vontade que Vince ficara vermelho.
Nos minutos seguintes, Vince caminhou na direção deles, dependurando-se aqui e ali na amurada de ferro, protegendo-se dos pingos de água que chegavam até em cima - dizendo. "Que beleza, garoto!", quando a onda maior atingia as pedras - tentando fazer com que sua aproximação parecesse incidental.
Embora estivesse de costas para Vince, o vento levava uma ou outra palavra da conversa. A mulher parecia preocupada com que o marido soubesse que Haines estava na cidade e Haines forçava-a a aceitar um programa para o dia seguinte, à noite. O cara era um sem-vergonha.
A estrada estava sem carros novamente e Vince decidiu que talvez não tivesse outra oportunidade para pegá-lo. Caminhou os poucos metros que faltavam para chegar até a garota e, segurando-a pela nuca e pelo cinto da bermuda, levantou-a do chão, atirando-a sobre a grade de ferro. Gritando, ela foi de encontro às pedras, lá em baixo.
Isto aconteceu tão rápido que Haines não teve tempo de reagir. No momento em que a mulher estava caindo, Vince se virou para o espantado médico e deu-lhe dois socos na cara, abrindo-lhe os lábios, quebrando-lhe o nariz e deixando-o desmaiado.
Enquanto Haines caía ao chão, a mulher espatifava-se sobre as rochas e Vince recebia sua recompensa, mesmo à distância:
Ssssnap.
Ele bem que gostaria de ficar mais tempo na amurada de proteção, para se deliciar com o corpo dela estirado lá em baixo, mas infelizmente não tinha tempo a perder. A estrada não ia ficar sem tráfego o tempo todo. Carregou Haines de volta ao carro e o colocou no banco da frente, encostado à porta, como se estivesse dormindo. Vince procurou fazer com que a cabeça do médico ficasse caída para trás, para que o sangue do nariz escorresse pela garganta.
Vince abandonou a estrada da costa, sinuosa e freqüentemente em mal estado de conservação, o que não é comum numa via principal. Preferiu seguir por estradas secundárias, ainda menos pavimentadas, mais estreitas e em piores condições do que a outra, através de pedras e buracos, cada vez mais para dentro da floresta. Acabou chegando a uma estrada sem saída, diante de um verdadeiro muro formado pelas árvores e pela densa vegetação. Haines por duas vezes ao longo do percurso tentara recobrar os sentidos, mas Vince tratou de mantê-lo desmaiado, batendo com a cabeça dele contra o painel.
Vince o tirou do carro, arrastando-o por um atalho na mata até encontrar uma clareira entre os arbustos. Os pássaros da floresta fizeram silêncio, e alguns animais desconhecidos que estavam próximos se afastaram. Insetos enormes, incluindo um besouro do tamanho da mão de Vince, fugiam do caminho dele, a exemplo dos lagartos que buscavam o primeiro refúgio nos troncos.
Vince voltou ao carro para apanhar alguns instrumentos necessários para interrogar o médico. Um pacote de seringas e duas ampolas de pentotal, um anestésico também conhecido como o "Soro da Verdade", um pequeno aparelho que parecia o controle remoto de tevê, um saca-rolhas com punho de madeira, e um cassetete curto de cabo flexível.
Lawton Haines permanecia inconsciente quando Vince voltou à clareira. A sua respiração era dificultada pelo nariz quebrado.
Haines já deveria estar morto há 24 horas. As pessoas que haviam contratado Vince para três trabalhos, esperavam usar outro profissional que morava em Acapulco, mas que atuava em todo o México. No entanto, o homem havia morrido exatamente no dia anterior, de manhã, ao receber uma encomenda de marmelada, de Londres - dentro da caixa havia um quilo de explosivo plástico. O pessoal de Los Angeles, em desespero de causa, deu o trabalho para Vince, embora estivesse perigosamente com excesso de tarefas. Era uma excelente oportunidade para ele, pois Vince estava certo de que este médico devia saber algo sobre os laboratórios Banodyne e poderia lhe proporcionar detalhes a respeito do Projeto Francis.
Agora, explorando aquela área da floresta onde Haines estava deitado, Vince encontrou uma árvore caída e arrancou um pedaço de casca bem grossa, na forma de concha. Localizou um córrego cheio de musgos e algas e recolheu um pouco de água. Aquilo tudo parecia estar podre, repleto das mais diferentes bactérias. É claro que àquela altura a possibilidade de doença pouco importava para Haines.
Vince atirou a primeira concha de água no rosto de Haines. Um minuto depois voltou com mais água e forçou o médico a beber. Depois de cuspir, engasgar-se e vomitar, Haines estava aceso o suficiente para entender o que Vince lhe estava dizendo e responder com certa clareza.
Mostrando todo aquele equipamento de tortura que havia levado, incluindo o saca-rolhas, Vince explicou como usaria cada uma das peças caso Haines não cooperasse. O médico, um especialista em cérebro, provou que era mais inteligente do que patriota e revelou com facilidade todos os detalhes do ultra-secreto plano de defesa no qual estava envolvido no laboratório.
Quando Haines jurou que não havia mais nada para ser revelado, Vince preparou o soro pentotal. À medida que enchia a seringa, comentou em tom e ironia:
- Doutor, e a respeito das mulheres?
Haines, deitado de costas em cima de barro e musgo, deixou os braços pendidos, seguindo instruções, mas não entendera a mudança de assunto. Piscou os olhos, um pouco confuso.
- Tenho seguido você desde a hora do almoço e sei que tem pelo menos três mulheres na sua lista de Acapulco.
- Quatro - disse Haines, visivelmente orgulhoso, apesar de aterrorizado. - Aquela Mercedes que estou dirigindo pertence a Giselle, a mais doce.
- Você está usando o carro de uma mulher, passando-a para trás com três outras?
Haines assentiu e esboçou um sorriso, até o ponto de sentir uma nova onda de dor por causa do nariz quebrado.
- Sempre agi desta forma com as mulheres.
- Pelo amor de Deus, você ainda não percebeu que não estamos mais na década dos sessenta ou setenta? Amor livre é sinônimo de morte. Tudo tem um preço agora. Um preço muito caro. Você não ouviu falar de herpes, Aids e coisas desse tipo? - perguntou Vince ao aplicar o pentotal.
- Você deve ser portador de todas as doenças venéreas conhecidas.
Piscando freneticamente os olhos, Haines aparentemente não estava sofrendo o efeito da droga, mas acabou caindo num sono profundo. Agora completamente drogado, confirmou tudo o que havia dito anteriormente para Vince sobre o laboratório e o Projeto Francis.
Quando passou o efeito da droga, Vince usou aquele equipamento que parecia controle-remoto, apenas para se divertir, até que a pilha gastou.
O cientista se contorcia e esperneava, jogando-se para trás, desesperadamente cavando buracos naquele atoleiro, com os calcanhares, mãos e cabeça.
Quando o aparelho perdeu a utilidade, Vince desacordou o cientista batendo-lhe com o cassetete. Depois, matou-o com o saca-rolhas, que penetrou entre duas costelas, direto no coração.
Ssssnap.
Por todo o canto fez-se silêncio na floresta, mas Vince tinha a sensação de estar sendo observado por mil olhos, os olhos de animais selvagens. Acreditava que aqueles observadores secretos aprovavam o que havia feito a Haines, porque o estilo de vida do cientista era uma afronta à ordem natural das coisas, a ordem natural que as criaturas da floresta seguiam.
Vince agradeceu a Haines, mas desta vez não beijou a vítima. Nem na boca, nem da testa. A energia vital de Haines era revigorante como as outras, mas seu corpo e seu espírito eram impuros.
4
Nora saiu do parque e foi direto para casa. A atmosfera de aventura e o espírito de liberdade que haviam colorido a manhã é o início da tarde não poderiam ser vividos novamente. Streck havia acabado com tudo.
Fechando a porta da frente atrás de si, ela virou a fechadura e colocou o trinco de metal, sem esquecer naturalmente do ferrolho. Percorreu todas as dependências do andar térreo, puxando as cortinas para evitar que Arthur Streck olhasse para dentro, se por acaso andasse rodeando a casa. Mas não pôde suportar mais a escuridão resultante e acendeu todas as luzes, em todas as dependências. E verificou se a porta da cozinha estava bem fechada.
Seu contato com Streck não somente a deixara aterrorizada como a fizera sentir-se suja. Mais do que qualquer outra coisa, ela desejava um demorado banho quente.
Suas pernas estavam trêmulas e enfraquecidas, e ela fora invadida por uma onda de tontura, firmando-se na mesa da cozinha. Ela sabia que poderia cair se tentasse subir a escada e preferiu sentar-se, dobrando os braços sobre a mesa para apoiar a cabeça. Esperou até que passasse aquele mal-estar.
Quando o pior da tontura passou, lembrou-se da garrafa de conhaque que havia no refrigerador e imaginou que a bebida lhe faria bem. Havia comprado conhaque Remy Martin, depois que Violet morrera, porque a tia jamais aprovara qualquer bebida forte, nem mesmo cidra. Como um Resto de rebeldia, Nora servira a si mesma um copo de conhaque ao voltar pura casa depois do funeral da tia. Não gostou da experiência e derramou mais da metade do conhaque na pia. Mas naquele instante parecia que uma dose de conhaque a faria parar de tremer.
Primeiro se dirigira à pia para lavar as mãos inúmeras vezes, com a água mais quente que podia suportar, usando ao mesmo tempo sabão comum e sabão líquido para máquina de lavar. Esfregou as mãos o máximo que conseguiu para se livrar de qualquer resquício possível de Streck. Quando terminou, suas mãos estavam vermelhas e pareciam gastas.
Trouxe a garrafa de conhaque e um copo para a mesa. Ela havia lido livros, nos quais os personagens sentavam-se também à mesa, tendo por única companhia a bebida e o desespero, e usavam um para acabar com o outro. Às vezes isto funcionava e talvez funcionasse no caso dela. Se o conhaque pudesse melhorar-lhe o estado de espírito, mesmo que superficialmente, ela estava preparada para tomar todo o diabo daquela garrafa.
Mas seu desespero não era tão grande assim. Ela passou duas horas bebericando um único copo de Remy Martin. Quando tentou desviar a mente de Streck, foi atacada violentamente pela memória de tia Violet e quando tentou não pensar em Violet tinha Streck de novo na cabeça. Ao expulsar as duas imagens da mente, pensou em Travis Cornell, o homem do parque, mas a mudança para ele igualmente não foi confortável. Ele parecera bom - amável, educado, preocupado - e ele a livrou de Streck. Mas talvez fosse tão ruim quanto Streck. Se ela lhe desse oportunidade, Cornell talvez tirasse proveito da situação, da mesma forma que Streck. Tia Violet fora uma tirana, maníaca e doente, mas os acontecimentos recentes provavam cada vez mais que ela estava certa com relação aos perigos do relacionamento social.
Ah, mas o cachorro. Aquilo era outra história. Ela não ficou com medo do cachorro, nem mesmo quando ele disparou pelo parque na sua direção, latindo furiosamente. Nora sabia que o cão de caça - Einstein, como o dono o chamara - não estava latindo para ela, e que sua fúria era dirigida para Streck. Sentiu-se protegida ao agarrar-se ao cachorro, mesmo com Streck perto.
Talvez precisasse de um cachorro como Einstein. Violet abominava a idéia de animais domésticos. Mas a tia estava morta, morta para sempre. E não havia nada que impedisse Nora de ter o seu próprio cão. Exceto...
Bem, ela sabia que nenhum outro cachorro lhe proporcionaria o mesmo sentimento de segurança que Einstein lhe transmitira. Ela e Einstein haviam desfrutado de um breve instante de carinho.
É claro, pelo fato do cachorro tê-la livrado de Streck, estava atribuindo ao animal qualidades que ele não possuía. Naturalmente, ela o via como um salvador, seu valente guardião. E quanto mais se esforçava para se conscientizar de que Einstein era apenas um cachorro como outro qualquer, mais se convencia de que nenhum outro animal poderia lhe dar um grau de proteção e companheirismo como Einstein.
Apenas um copo de Remy Martin, consumido em mais de duas horas, e a lembrança de Einstein de fato fizeram com que ela se animasse. O mais importante: o conhaque e a memória do cachorro também lhe deram a coragem de ir até a cozinha, onde estava o telefone, com a determinação de ligar para Travis Cornell e fazer uma oferta para comprar o animal. Além do mais, ele dissera que estava com o cachorro há apenas um dia, o que significava que não estaria assim tão preso a ele. Portanto, poderia vendê-lo pelo preço correto. Ela procurou o nome no catálogo de telefones, achou o número de Cornell e ligou. O telefone tocou por duas vezes e ele atendeu.
- Alô?
Ao ouvir a voz dele, Nora concluiu que qualquer tentativa de comprar o cachorro faria com que Cornell se animasse a intrometer-se na vida dela. E havia esquecido que ele poderia ser tão perigoso quanto Streck.
- Alô? - repetiu. Nora hesitou.
- Alô? Quem está falando?
Ela desligou sem dizer uma só palavra.
Antes de falar com ele sobre o cachorro, ela necessitava achar a abordagem certa, que evitasse qualquer tentativa de uma maior aproximação da parte dele, se ele fosse de fato, como Streck.
5
Quando o telefone tocou alguns minutos antes das cinco, Travis estava esvaziando uma lata de ração na tigela de Einstein. O cão estava olhando com interesse, lambendo as patas, mas esperando até qua a última migalha de comida saísse da lata, mostrando autocontrole.
Travis foi atender o telefone, e Einstein tratou de comer. Quando ninguém respondeu no outro lado da linha, Travis insistiu novamente e o cachorro ficou olhando de longe. Não ouvindo ninguém, Travis perguntou quem estava no outro lado da linha, o que despertou a curiosidade de Einstein, que cruzou correndo a cozinha para olhar para o fone na mão de Travis.
Travis desligou e deu as costas para o telefone, mas Einstein permanecia lá, olhando para a parede do telefone.
- Provavelmente um engano.
Einstein olhou para ele e, novamente, para o telefone.
- Ou crianças pensando que são mais inteligentes. Einstein se queixou, tristemente.
- O que está havendo com você?
Einstein permanecia firme ao lado do telefone. Suspirando, Travis disse:
- Bem, já tive toda a confusão que podia suportar em apenas um dia. Se você vai agir misteriosamente, vai ter que fazê-lo sem mim.
Ele queria assistir primeiro às notícias, antes de preparar o jantar. Assim, pegou uma Pepsi no refrigerador, foi para a sala, ligou a tevê, sentou-se à cadeira e ouviu Einstein envolvido com alguma encrenca na cozinha.
- O que você está fazendo aí?
Ouviu uma série de ruídos na cozinha. O som das patas arranhando a parede podia ser percebido claramente. Depois, uma batida forte, seguida de outra.
- Seja lá o que for que você tenha estragado - advertiu Travis -, você vai ter que pagar. E como vai conseguir dinheiro? Talvez tenha que ir para o Alasca puxar trenó.
A cozinha foi invadida pelo silêncio. Mas apenas por um momento. Então, novamente, aqueles ruídos, arranhões, batidas e o som de patas na parede.
Travis estava intrigado. Usou o controle remoto para baixar o som da tevê.
Alguma coisa caiu no chão da cozinha.
Travis quase se levantou para ver o que estava acontecendo, quando Einstein apareceu. O inteligente animal estava carregando a lista telefônica na boca. Ele devia ter pulado várias vezes no balcão da cozinha, onde estava o catálogo, até que este caísse no chão. Einstein cruzou a sala e colocou o livro em frente da poltrona.
- O que você quer?
O cachorro tocou o catálogo com o focinho e olhou com expectativa para Travis.
- Quer ligar para alguém? Para quem você quer ligar? Einstein tocou de novo o catálogo com o focinho.
- Agora me diga para quem você quer ligar? Lassie, Rin-Tin-Tin? O cão virou-se para Travis com aqueles olhos negros, quase humanos mais significativos do que nunca, mas não o suficiente para traduzir o que o animal desejava.
- Escuta, você talvez possa ler a minha mente, mas eu não posso ler a sua.
Parecendo frustrado, o cachorro cruzou a sala correndo, desaparecendo num pequeno corredor que servia aos banheiros e aos dois quartos. Travis teve vontade de segui-lo, mas decidiu esperar para ver o que vinha a seguir.
Em menos de um minuto, Einstein voltou, carregando na boca uma fotografia com moldura dourada. Ele a deixou ao lado do catálogo de telefone. Era uma fotografia de Paula, que Travis guardava na cômoda do quarto. A foto era do dia do casamento, dez meses antes que ela morresse. Ela parecia bonita - e ilusoriamente sadia.
- Sem efeito, garoto. Não posso ligar para os mortos. Einstein deu um suspiro de desagrado, querendo dizer que Travis era um cabeça-dura. O cão foi até um porta-revista, jogou-o ao chão, espalhando tudo pela sala, e voltou com um exemplar da revista Times, que jogou ao lado da fotografia. Abriu a revista e foi passando as páginas, rasgando algumas, de passagem.
Sentando-se na beira da poltrona, inclinando-se para a frente, Travis olhava com interesse.
Einstein fazia pausas regulares para examinar as páginas da revista, continuando a procurar o que desejava. Finalmente achou o anúncio de um carro que apresentava uma linda modelo de cabelos castanhos. Olhou para Travis, olhou para a revista. Para Travis novamente.
- Não entendo você.
Virando as páginas com as patas, Einstein achou uma propaganda, na qual uma loura sorridente segurava um cigarro. Einstein bufou para Travis.
- Carros e cigarros? Você quer que eu compre para você um carro e um maço de Virgínia Slims?
Depois de voltar até o porta-revistas virado, Einstein pegou uma revista especializada em mercado imobiliário, que Travis costumava receber todos os meses, embora estivesse fora do negócio. O cachorro com ajuda das patas folheou a revista até achar uma outra propaganda com outra linda garota de cabelos castanhos, com uma jaqueta estilo Século XXI.
Travis olhou para a foto de Paula, para a loura com o cigarro, e para esta com a jaqueta, e lembrou-se da outra propaganda da garota com o carro, e perguntou:
- Uma mulher? Você quer que eu ligue para uma mulher? Einstein latiu.
- Quem?
Einstein segurou delicadamente o punho de Travis com a boca e tentou puxá-lo da poltrona.
- Está certo. Está certo. Eu sigo você.
Mas Einstein não estava se descuidado nem um pouco. Não largou o pulso de Travis, forçando-o a caminhar encurvado pela sala, sala de jantar, até chegar à cozinha, perto do telefone. Lá, então, largou Travis.
- Quem? - Travis perguntou novamente, mas de repente ele entendeu. Só havia uma mulher que tanto ele quanto o cachorro conheciam.
- Não é por acaso aquela que encontramos no parque, hoje de manhã?
- Einstein começou a balançar o rabo.
- E você pensa que foi justamente ela que nos ligou? O rabo de Einstein balançava mais rápido.
- Como poderia você saber quem estava na linha? Ela não falou uma única palavra. Além do mais, o que você está querendo fazer, agindo como cupido?
O cachorro balançou a cabeça duas vezes.
- Bem, ela era bonita, mas não o meu tipo, companheiro. Um pouco estranha, não acha?
Einstein latiu para ele, correu para a porta da cozinha e se lançou contra ela duas vezes, virou-se para Travis e latiu novamente, correndo em torno da mesa. Sempre latindo. Virou-se na direção da porta e pulou uma vez mais. Gradualmente, Travis concluiu alguma coisa estava perturbando o cachorro.
E isto tinha algo a ver com a mulher.
Ela estivera em dificuldades àquela tarde no parque. Travis se lembrou do sacana com roupa de corrida. Ele havia se oferecido para ajudar a mulher e esta recusara. Mas será que ela reconsiderou a decisão e ligou para ele alguns minutos atrás, somente para descobrir que não tinha coragem suficiente para explicar o seu problema?
- Você acha mesmo que ela tenha ligado? Novamente o rabo começou a abanar.
- Bem... mesmo que fosse ela, não é sábio ficar envolvido.
O caçador se lançou contra ele, abocanhou a bainha de sua calça jeans e a balançou furiosamente, quase desequilibrando Travis.
- Está bem. Vou telefonar. Traga-me aquele maldito catálogo. Einstein se afastou dele e correu para fora da sala, escorregando um pouco no assoalho. Voltou com a lista de telefones na boca. Quando Travis apanhara o livro, é que chegou à conclusão definitiva de que o cachorro era capaz de entender as suas ordens. A extraordinária inteligência do animal e suas habilidades eram coisas em que agora Travis acreditava.
Com surpresa, Travis também concluiu que o cachorro não teria trazido o catálogo se não soubesse para que servia.
- Pelo amor de Deus, peludo, o nome que te dei serviu como uma luva, não acha?
6
Normalmente Nora não jantava antes das sete, mas naquele dia ela sentia fome. O passeio pela manhã e o drinque de conhaque haviam-lhe dado um apetite que nem a lembrança de Streck podia estragar. Ela não estava com disposição para cozinhar, preparou um prato de frutas com queijo e colocou o croissant no forno para esquentar.
Nora normalmente jantava no quarto, em sua cama, lendo uma revista ou livro, porque ali era o local onde se sentia mais feliz. No momento em que se dirigia para o quarto o telefone tocou.
Streck.
Deve ser ele. Quem mais poderia ser? Ela recebia poucas chamadas.
Ficou paralisada ouvindo o telefone tocar. Quando parou de tocar, ela se apoiou na bancada da cozinha, sentindo-se fraca, esperando uma nova ligação.
7
Nora Devon não atendeu o telefone, e Travis estava pronto para voltar a assistir às notícias da noite na tevê, mas Einstein continuava agitado. O cão se atirava contra o balcão da cozinha, colocava as patas sobre o catálogo, até que o jogou no chão novamente, segurando-o com a boca e saiu da cozinha.
Curioso a respeito do que o cachorro faria a seguir, Travis o seguiu e encontrou-o junto à porta da frente com a lista na boca.
- E agora, de que se trata?
Einstein colocou uma das patas na porta.
- Você quer sair?
O cão suspirou, mas parecia atrapalhado com a lista na boca.
- O que vai fazer com este catálogo lá fora? Enterrá-lo como se fosse um osso? O que vai apresentar de novo, agora?
Embora Travis não recebesse resposta para nenhuma de suas perguntas, abriu a porta e deixou o cachorro sair. Einstein, iluminado pelo sol da tarde, correu direto para a pickup. Permaneceu ao lado da porta de passageiros, olhando para trás com ar de impaciência.
Travis se dirigiu para o carro e olhou para o cachorro!
- Desconfio que você quer ir a algum lugar e acho que não é na sede da companhia telefônica.
Einstein atirou o catálogo no chão e deu um pulo, apoiando-se com as patas dianteiras na porta da pickup, latiu e olhou para Travis.
- Você quer que eu procure o endereço de Devon no catálogo e vá até lá. Não é isto?
O cachorro fez um ruído com a garganta.
- Desculpe, eu sei que você gosta dela, mas não estou disponível no momento para assumir um compromisso com mulheres. Além do mais ela não é o meu tipo. Eu já te disse isto. Também não faço o gênero dela, para dizer a verdade. E sinto que ninguém faz o tipo dela.
O cachorro latiu.
- Não.
O cachorro voltou à posição normal, correu na direção de Travis e mordeu novamente a bainha da calça.
- Não - disse Travis, abaixando-se para segurar o animal pela coleira. - Não adianta morder minha roupa, eu não vou.
Einstein se livrou das mãos de Travis e correu direto para um canteiro, onde começou a cavar um buraco furiosamente, atirando pedaços de flores para trás.
- Pelo amor de Deus, o que você está fazendo agora?
O cachorro continuou cavando com toda a vontade. Lançando toda a força do corpo contra o canteiro, decidido a destruí-lo.
- Ei, pare com isso! - disse Travis, aproximando-se do animal. Einstein correu para a outra extremidade do jardim e começou a cavar outro buraco na grama.
Travis foi atrás.
Einstein escapou uma vez mais em direção de outro ponto do jardim, onde começou a cavar a grama novamente; depois partiu para cima de um bebedouro de pássaros, para destruí-lo, e finalmente correu para onde estavam as flores.
Incapaz de deter o cachorro, Travis parou para respirar e gritou:
- Chega, chega! É suficiente.
Einstein parou de cavar perto das flores e levantou a cabeça, com alguns pedaços de planta presos à boca.
- Está bem, vamos até lá.
Einstein deixou as flores de lado e voltou, cautelosamente.
- Estou falando sério - garantiu Travis. Se isto significa muito para você, então vamos ver a mulher. Mas só Deus sabe o que vou dizer a ela.
8
Com o prato do jantar numa das mãos e uma garrafa de Evian na outra, Nora cruzou o corredor do andar térreo, protegida por toda as luzes da casa. Ao chegar no andar superior, Nora acendeu a luz do corredor com o cotovelo. Ela deveria incluir uma série de lâmpadas na próxima lista de compras, porque desejava que tudo ficasse claro como o dia, no futuro.
Ainda sob o efeito do conhaque, ela começou a cantarolar, à medida que se aproximava do quarto:
- Moon River, wider than a mile...
Passou pela porta e encontrou Streck deitado na cama. Ele sorriu e disse:
- Alô, meu bem.
Por um instante pensou que fosse alucinação, mas quando ele falou ela concluiu que era Streck, em carne e osso, gritou e deixou cair o prato no chão, espalhando frutas e queijo por todos os lados.
- Meu Deus, que bagunça você fez! - disse Streck sentando-se na cama e virando o corpo para o lado. Ele estava com a mesma roupa de corrida, calção, meias e tênis, nada mais. - Mas não há necessidade de limpar nada agora. Temos que cuidar de um outro assunto, primeiro. Esperei muito tempo até que subisse até aqui. Esperando e pensando em você... para estar preparado... - Ele se levantou. - Agora é hora de ensinar o que você nunca aprendeu.
Nora não podia se mover. Não podia respirar.
Ele devia ter vindo direto do parque, chegando antes dela. Forçara a entrada sem deixar qualquer vestígio de arrombamento e ficara esperando na cama o tempo todo, inclusive quando ela estava na cozinha tomando conhaque.
O fato de estar esperando no quarto era mais horripilante do que qualquer outra coisa que havia feito. Ele estava se divertindo consigo mesmo, deitado na cama, na expectativa da presença dela, ouvindo todos os passos de Nora, que ignorava sua presença na casa.
Depois de satisfazer sua vontade, será que ele a mataria?
Nora se virou e correu na direção do corredor.
Ao preparar-se para descer a escada, percebeu que Streck estava atrás dela.
Ela começou a descer, dois a três degraus de cada vez, morrendo de medo de tropeçar e cair. Ao chegar no térreo, os joelhos quase dobraram, ela vacilou um pouco, mas continuou andando na direção do saguão. Streck a puxou pelos ombros, forçando-a a encará-lo.
9
Travis estacionou o carro em frente à casa de Nora. Einstein continuava no banco da frente, mas com as patas dianteiras na maçaneta da porta. O cachorro colocou todo o peso do corpo para abri-la. Outra prova da habilidade. Einstein saiu correndo na direção da casa, antes Travis tempo de puxar o freio de mão e desligar o motor.
Segundos mais tarde, Travis já estava na varanda, a tempo de ver o cachorro apertar a campainha com uma das patas. Ele chegou a ouvir o som da campainha.
Subindo os degraus, Travis disse:
- Que diabo há com você?
O cachorro apertou a campainha novamente.
- Calma, dá um tempo.
Quando Einstein apertou o botão uma terceira vez Travis ouviu a voz de um homem gritando de raiva e de dor. Depois, o grito de uma mulher pedindo socorro.
Latindo furiosamente, como havia feito no mato no dia anterior, Einstein se lançava contra a porta, como que imaginando que fosse capaz de passar através dela.
Apressado, Travis procurou olhar por uma pequena abertura de vidro na porta. Lá dentro, estava tudo iluminado. Pôde enxergar duas pessoas lutando.
Einstein estava latindo, rosnando. Estava ficando quase maluco.
Travis tentou abrir a porta, mas não conseguiu. Quebrou o vidro da porta com o cotovelo e procurou abrir a fechadura pelo lado de dentro. Entrou na casa no momento em que o homem de roupa esportiva havia empurrado a mulher para o lado, e se voltou para encará-lo.
Einstein não deu oportunidade para que Travis agisse. Disparou como um raio pelo corredor, na direção do homem.
O homem reagiu como qualquer outro que fosse atacado por um animal daquele tamanho: correu. A mulher tentou fazê-lo cair, desequilibrando-o, mas ele não caiu. No final do corredor, passou correndo por uma porta de mola e desapareceu de vista.
Einstein passou voando por Nora Devon na direção do homem. Travis podia ouvir o que estava acontecendo do outro lado da porta - na cozinha - latidos, rosnados, gritos. Alguma coisa caiu fazendo barulho, logo em seguida um barulho ainda maior, e o homem praguejou. Einstein rosnava de uma forma tão terrível que Travis ficou arrepiado.
Travis se aproximou de Nora, que estava se apoiando no corrimão da escada.
- Você está bem? - disse ele.
- Ele quase... quase...
- Mas ele não fez nada com você - supôs Travis.
- Não.
Ele tocou no rosto dela, onde havia sangue.
- Você está machucada.
- É sangue dele - disse ela, vendo sangue nos dedos de Travis. - Mordi aquele sacana. - Ela olhou na direção da porta de mola, que havia parado de balançar. - Não o deixe ferir o cachorro.
- Acho que é o contrário - disse Travis.
O barulho na cozinha foi interrompido, quando Travis passou pela porta. Duas cadeiras estavam caídas no chão. Um pote de cerâmica espatifara-se no chão, quebrando-se em pedaços, e havia biscoitos espalhados pela cozinha, alguns inteiros, outros quebrados e esmagados. O corredor estava sentado num canto, com as pernas nuas para cima, e as mãos no peito em posição defensiva. O homem havia perdido um dos tênis e Travis imaginava que fora o cachorro o autor da proeza. A mão esquerda do homem estava sangrando, o que evidentemente parecia ser obra de Nora Devon, e também estava sangrando na barriga da perna esquerda, parecendo o ferimento de uma mordida de cachorro. Einstein estava observando, a uma distância segura de um contra-ataque do homem, mas pronto a avançar na direção do corredor, se este fosse suficientemente louco para se levantar.
- Excelente trabalho - comentou Travis. - De fato, excelente. Einstein rosnou indicando que agradecia o elogio. Mas, quando o homem se moveu, o cachorro mudou de tom, rosnando de forma agressiva. Einstein se lançou na direção do homem, que se protegeu novamente, no canto da cozinha.
- Você já era - disse Travis para o homem.
- Ele me mordeu. Os dois me morderam. - Fúria e relutância. Perplexidade. Descrença. - Me morderam.
Como muitos fanfarrões, acostumados a levar a melhor na vida, este homem estava surpreso ao descobrir que podia ser machucado, vencido. A experiência havia mostrado que as pessoas sempre recuariam diante de sua força, ou se ele mantivesse aquele olhar de louco. Pensava que jamais perderia. Agora estava pálido, parecendo em estado de choque. Travis foi direto para o telefone e chamou a polícia.
CINCO
1
No final da manhã de quinta-feira, 20 de maio, Vince Nasco voltou do passeio de um dia em Acapulco e comprou o Times no aeroporto internacional de Los Angeles, antes de apanhar o lotação que o levaria até Orange. Ficou lendo o jornal durante todo o percurso até a sua casa na praia de Huntington e na página três viu a reportagem sobre o incêndio do laboratório Banodyne, em Irvine.
O fogo havia começado pouco depois das seis da manhã do dia anterior, quando Vince estava a caminho do aeroporto para tomar o avião para Acapulco. Um dos dois edifícios do laboratório fora destruído antes que os bombeiros conseguissem dominar o incêndio.
O grupo que havia contratado’Vince para matar Davis Weatherby, Lawton Haínes, os Yarbecks e os Hudstons certamente havia contratado também um incendiário para pôr fogo no laboratório.
Pareciam estar tentando eliminar todos os arquivos do Projeto Francis, tanto os existentes no laboratório Banodyne quanto as remanescentes na cabeça dos cientistas que haviam participado da pesquisa.
O jornal não fazia qualquer referência aos projetos de defesa do laboratório, que aparentemente não eram de domínio público. A reportagem mencionava o laboratório como "líder na indústria da engenharia genética, especializado no desenvolvimento de drogas revolucionárias derivadas de pesquisa do ADN".
Um guarda noturno tinha morrido no incêndio. O Times não explicou por que não fora capaz de escapar ao fogo. Vince concluiu que o homem foi morto antes e posteriormente incinerado, para despistar a polícia.
O lotação levou Vince até a porta de sua casa. As dependências da casa estavam frias e escuras. Seus passos eram ouvidos com nitidez no chão sem carpete, ecoando através dos aposentos quase vazios.
Ele morava naquela casa há quase dois anos, sem terminar de mobiliá-la, De foto, a sala de jantar, o pequeno escritório e os três quartos não tinham mais nada, exceto cortinas baratas para proporcionar privacidade.
Vince acreditava que era uma residência temporária, de onde se mudaria para uma casa na praia de Rincon, onde o surfe e os surfistas eram famosos, onde as vastas ondas enchiam a vida de todos. Mas o fato de estar morando naquela casa em caráter provisório não era o principal motivo por não ter comprado móveis. Simplesmente gostava de ver as paredes, o chão de concreto e as salas vazias.
Quando finalmente comprasse a casa dos seus sonhos, Vince tencionava colocar ladrilhos brancos no chão e nas paredes, em todas as grandes dependências. Não haveria madeira nem pedra nem tijolo, nada que proporcionasse aquele ambiente aconchegante do qual todos pareciam se orgulhar. Os móveis seriam fabricados de acordo com o seu gosto, todos com estofamento de vinil branco. A única concessão que faria, fugindo do visual todo branco e brilhante, seria usar vidro e aço inoxidável extremamente polido. Desta maneira, finalmente Vincent Nasco estaria se sentindo em paz, na sua própria casa, pela primeira vez na vida.
Agora, depois de desfazer a mala, foi direto à cozinha preparar o almoço. Atum, três ovos cozidos e meia dúzia de biscoitos de centeio, duas maçãs e uma laranja. E uma garrafa de laranjada.
Na cozinha havia uma pequena mesa com uma única cadeira no canto, mas ele comeu no quarto, no andar superior. Sentou-se em uma cadeira próxima à janela voltada para oeste. O oceano ficava apenas uma quadra de distância no outro lado da auto-estrada, onde havia uma praia. Ele podia ver as ondas de longe.
O céu estava parcialmente nublado e o mar salpicado de sombras e reflexos solares. Em algumas partes, a água parecia cromo derretido e em outros pontos poderia ser confundida com uma enorme massa de sangue escuro.
O tempo estava quente, embora aparentasse um dia frio de inverno.
Olhando para o oceano, ele sempre imaginava que o sangue que corria em suas veias e artérias se harmonizava com a maré.
Quando terminou de comer, ficou sentado em comunhão com o mar, cantarolando, olhando através do vidro como se observasse o vidro de um aquário, embora se sentisse dentro do oceano naquele momento, debaixo das ondas, num mundo de silêncio infinito.
Quase no final da tarde ele pegou o seu furgão e foi na direção de Irvine, onde estava localizado o laboratório Banodyne, com as montanhas de Santa Ana de pano de fundo. A empresa tinha dois prédios ocupando um terreno imenso, surpreendentemente grande, numa área onde o mercado imobiliário era muito valorizado: uma estrutura de dois andares em L e um outro prédio maior de um só pavimento na forma de V, com poucas janelas, mais parecendo uma fortaleza. Ambos os edifícios tinham arquitetura moderna, misturando superfícies planas e curvas sensuais, revestidos de mármore cinza e verde-escuro, muito atrativos. Os prédios, cercados por um estacionamento para empregados e pela grande quantidade de grama bem cuidada, eram na verdade maiores do que pareciam. A enorme área aberta em seu redor tornava-os maiores.
O fogo havia se limitado ao prédio na forma de V, onde ficavam os laboratórios. O único indício de destruição eram as poucas janelas quebradas e as marcas de fumaça no mármore acima das pequenas aberturas.
Não havia cerca nem muro em torno da propriedade e Vince teria entrado na área se o tivesse desejado, ignorando a guarita da guarda ao lado de um simples portão, à frente das três vias de entrada. Observando as armas da guarda e o aspecto do prédio de pesquisa sugerindo algo proibido, Vince suspeitou de que o jardim estava sendo monitorado eletronicamente e que à noite um sofisticado sistema de alarme avisaria os seguranças da presença de qualquer intruso. Pensando desta forma, não deu mais do que alguns passos através da grama.
O incendiário devia ter outras habilidades além de atear fogo; devia ter profundo conhecimento de sistemas de segurança.
Vince passou de carro na frente do lugar, deu a volta e mais uma vez passou pelos prédios em sentido contrário. Como se fossem fantasmas, as sombras das nuvens se moviam lentamente sobre a grama, subindo pelas paredes dos edifícios. Alguma coisa no ar dava ao laboratório Banodyne um ar sinistro e de mau presságio. E Vince não pensava que este ponto de vista sobre o laboratório fosse indevidamente provocado por seu conhecimento a respeito das pesquisas que ali eram feitas. Dirigiu-se para casa, na praia de Huntington. Vince havia ido até o laboratório na esperança de, ao ver o lugar, decidir o que fazer mas ficou completamente desapontado. Continuava sem saber qual seria sua atitude, nem para quem venderia a informação, por um preço que valesse o risco que estava correndo. Não seria para o governo americano: ele estava partindo de uma informação do governo. E também não seria para o governo soviético, o adversário natural, já que os soviéticos lhe pagaram para matar Weatherby e todos os outros.
É claro que não poderia provar estar trabalhando para os soviéticos. Foram inteligentes ao contratarem um matador independente, como Vince. Mas ele havia trabalhado para o mesmo grupo tantas vezes quanto para a Máfia. E, baseado em dezenas de indicações ao longo dos anos, decidira que os homens eram soviéticos. De vez em quando lidava com alguém mais, além dos contatos normais de Los Angeles e invariavelmente todos falavam com um sotaque característico dos russos. Além do mais, os alvos eram sempre políticos ou, até certo ponto, com objetivos militares - o caso Benodyne. A informação prestada por este grupo era sempre mais precisa e sofisticada do que a informação da Máfia, quando contratado por uma simples desavença de quadrilha.
Assim, quem mais pagaria pela informação, além de norte-americanos e soviéticos? Algum ditador do terceiro mundo procurando uma maneira de sobrepujar a capacidade nuclear das superpotências? O Projeto Francis daria a qualquer Hitler da vida esta vantagem, dando-lhe um verdadeiro puder mundial e o tal Hitler pagaria pela informação. Mas quem desejaria se arriscar a negociar com tipos como Kaddafi? Vince não o faria.
Além do mais, ele possuía a informação sobre a existência da pesquisa revolucionária do laboratório Banodyne e não tinha detalhes de arquivo, mostrando os milagres do projeto. Na realidade, não tinha tanto para vender, conforme pensara a princípio.
Entretanto, lá no fundo de sua mente, uma idéia estava nascendo. E começou no dia anterior. Agora, quando pensava na possibilidade de encontrar um comprador, a idéia tomava forma.
O cachorro.
De volta à casa, ele ficara sentado no quarto, observando o mar. E permanecera no mesmo lugar até que se fez noite e não era mais possível enxergar a água. E pensara a respeito do cachorro.
Hudston e Haines haviam falado tanto para ele a respeito do animal que Vince começou a pensar que o conhecimento do Projeto não era tão valioso e explosivo quanto o cachorro em si mesmo. O animal poderia ser explorado de várias formas: era uma máquina de fazer dinheiro que tinha um rabo. Por um lado, poderia vender o cachorro de volta para o governo ou para os soviéticos por um bom dinheiro. Se pudesse localizar o cachorro, seria capaz de conquistar sua independência financeira.
Mas como localizá-lo?
Uma procura silenciosa, quase secreta, ainda que gigantesca, devia estar em andamento por todo o sudeste da Califórnia. O Departamento de Defesa provavelmente estaria aplicado com toda a força de que fosse capaz na caçada. E se Vince cruzasse com estes homens, estes iriam perguntar quem era ele. Não, não poderia se dar ao luxo de chamar atenção sobre si. Além do mais, se ele próprio procurasse nas proximidades de Santa Ana, no pé da montanha, por onde os fugitivos deviam ter escapado, poderia encontrar o animal errado. Poderia perder o cachorro e achar o monstro. O que poderia ser perigoso. Fatal.
Do outro lado da janela do quarto, o céu da noite e o negro do mar se completavam numa escuridão absoluta.
2
Na quinta-feira, um dia depois que Einstein encurralou Arthur Streck na cozinha de Nora Devon, o homem enfrentava acusações de arrombamento, assalto, espancamento e tentativa de estupro. A fiança era altíssima, pois ele havia sido condenado há três anos de prisão por estupro, anteriormente. Como não pudesse localizar um fiador que confiasse nele, Streck parecia destinado a ficar na cadeia até que o seu caso fosse a julgamento, o que era um alívio para Nora.
Na sexta-feira ela saiu para almoçar com Travis Cornell.
E estava maravilhada consigo mesma ao ouvir-se aceitando o convite. Verdadeiramente Travis parecia estar chocado com a terrível experiência pela qual ela passara nas mãos de Streck. Também é verdade que ela devia a Travis a dignidade de não ter sido violentada. Não fosse ele, que chegara no minuto derradeiro, Nora poderia ter perdido a vida. O tempo todo de convívio com a paranóia de tia Violet não poderia ser esquecido em poucos dias, portanto havia um resíduo inexplicável de cautela e suspeita na mente de Nora. Ela poderia ficar aterrorizada ou até mesmo abalada se Travis de repente forçasse a barra com ela, mas não ficaria surpresa. Fora ensinada desde os primeiros anos de vida a esperar o pior das pessoas; surpresa teria se encontrasse bondade e compaixão nas pessoas.
Apesar de todas as apreensões, foi almoçar com ele. Primeiro, ela não sabia por quê.
Entretanto, ela não precisaria pensar muito tempo para encontrar a resposta: o cachorro. Desejava estar perto do cachorro, porque ele a fazia sentir-se segura e porque jamais havia sido alvo de um carinho tão grande, quanto o manifestado pelo animal. Ela jamais havia sido motivo de afeição de quem quer que seja e estava gostando, mesmo que esta afeição viesse de um animal. Além do mais, Nora sentia que Travis Cornell devia ser de absoluta confiança, porque Einstein confiava nele. E Einstein não parecia fácil de ser enganado.
Os dois almoçaram num restaurante que tinha algumas poucas mesas no lado de fora, num pátio de tijolos, protegidos por guarda-sóis listrados de branco e azul. O cachorro estava preso pela coleira, junto ao pé da mesa. Einstein se comportava muito bem, deitado tranqüilamente, a maior parte do tempo. Vez ou outra, ele levantava a cabeça para fitá-los com aqueles olhos extremamente sensíveis, até que eles atirassem alguns pedaços da refeição.
Nora não tinha muita experiência com cachorros, mas estava consciente de que Einstein era extremamente atento e curioso. Ele freqüentemente mudava de posição com o objetivo de observar os outros freqüentadores do restaurante, com os quais parecia intrigado.
Nora estava intrigada com tudo. Esta era a primeira vez que comia num restaurante, e embora houvesse lido em inúmeros romances sobre pessoas fazendo refeições em restaurante, estava maravilhada e encantada com iodos os detalhes. Com a simples rosa colocada no jarro branco. Os cardápios com o nome do restaurante gravado. A maneira como a manteiga havia sido servida, em rodelas com formas de flor, numa manteigueira com gelo picado. Com a rodela de limão na água gelada. O garfo gelado da salada tinha um toque especialmente maravilhoso.
Olhe isto - disse ela para Travis depois que o garçom servira as entradas e se retirou.
Ele olhou surpreso para o prato dela e perguntou:
Alguma coisa errada?
Não. Não. Quero dizer... estes legumes.
Pequenas cenouras, abobrinhas.
Onde conseguiram isto tão pequeno? E veja como cortaram este tomate. Tudo é tão bonito. Como eles conseguem tempo para fazer isto tão bonito?
Ela subiu que estas coisas que a deixavam deslumbrada, eram normais para ele, e Travis sabia que a surpresa dela revelava falta de experiência e sofisticação, fazendo-a parecer-se com uma criança. Nora freqüentemente ficava ruborizada; outras vezes, de fato, embaraçada, mas não podia evitar os comentários sobre o seu deslumbramento. Travis sorria para ela o tempo todo, mas graças a Deus não era um sorriso dominador; ele parecia estar realmente apreciando o prazer com que ela fazia novas descobertas.
Ao terminarem o cafezinho e a sobremesa - geléia de frutas para Nora, morangos e creme para Travis e um éclair de chocolate para Einstein, que não queria dividir com ninguém - Nora estava envolvida na mais longa conversa sobre a sua vida. Passaram duas horas e meia sem um minuto de silêncio, principalmente discutindo livros. Por causa da vida reclusa de Nora, os livros eram a única coisa que os dois tinham em comum. Isto e mais a solidão. Ele parecia vivamente interessado nas opiniões dela sobre escritores e ouviu fascinado comentários sobre as obras que mais a haviam impressionado. Ela riu mais naquela tarde do que durante todo um ano. E a experiência era tão excitante que às vezes ficava tonta, e à hora em que os dois deixaram o restaurante ela não podia lembrar precisamente o que tinham conversado. Ela estava enfrentando uma experiência de excesso de informações, semelhante a um indígena que fosse entrar na civilização a partir do centro da cidade de Nova York. Precisava de tempo para absorver e processar tudo o que estava acontecendo com ela.
Haviam caminhado da casa de Nora até o restaurante, e agora os dois estavam fazendo o mesmo percurso de volta, porque a pickup de Travis estava estacionada em frente da casa. Nora aproveitou para conduzir o cachorro pela guia. Einstein jamais tentou afastar-se dela, nunca permitindo que ela se atrapalhasse com a guia, mantendo o passo, ou ao lado de Nora, ou seguindo à frente. Vez por outra, Einstein olhava para ela com expressão de carinho, fazendo-a sorrir.
- É um bom cachorro - disse Nora.
- Muito bom - concordou Travis.
- Muito bem comportado.
- Normalmente.
- É tão inteligente.
- Não o deixe tão cheio de si.
- Você está temendo que ele se torne vaidoso?
- Ele já é vaidoso - disse Travis. - Se ele ficar mais vaidoso ainda, será impossível viver com ele.
O cachorro olhava Travis de cima a baixo, respirando pesada e ruidosamente, como se estivesse ridicularizando o comentário do dono. Nora riu.
- Às vezes ele parece entender cada palavra sua.
- Às vezes - admitiu Travis.
Quando chegaram à casa de Nora, ela quis convidá-lo a entrar. Mas não estava certa se o convite iria demonstrar muita audácia e temia que Travis a interpretasse mal. Sabia que estava sendo uma solteirona neurótica. Tinha consciência de que podia e devia confiar nele, mas de repente lembrou-se de tia Violet, com todas aquelas recomendações e advertências sobre os homens, e lembrou-se de que não podia se deixar levar pelo que achava certo. O dia fora perfeito e ela não desejava prolongar a experiência com medo que acontecesse alguma coisa que a deixasse com péssima recordação, assim, ela agradeceu pelo almoço e nem se deu ao trabalho de apertar a mão dele.
Entretanto, abaixou-se e abraçou o cachorro. Einstein apertou o focinho no pescoço dela e lambeu-a na altura da garganta, fazendo-a rir sozinha. Ela jamais rira assim anteriormente. Ficaria horas brincando com o cachorro, tal era o seu entusiasmo, evidenciando por outro lado que estava apreensiva com relação a Travis.
Com a porta da casa aberta, Nora viu quando Travis e o cachorro entraram na pickup e partiram.
Travis acenou para ela, que retribuiu o aceno.
A pickup aproximou-se da esquina e começou a dobrar à direita, desaparecendo, e Nora lamentou a sua covardia, desejando ter convidado Travis para entrar, por uns minutos. Quase correu atrás deles, quase gritou o nome de Travis. Mas assim que o carro desapareceu e ficou sozinha, ela novamente fechou a porta da frente, voltando ao seu mundo interior.
3
O helicóptero executivo cruzou rápido sobre as ravinas e picos das montanhas de Santa Ana. A sombra do helicóptero era projetada à frente dele no chão, porque o sol já estava no lado oeste naquela tarde de sexta-feira.
Ao aproximar-se do canyon Holy Jim, Lemuel Johnson olhou pela janela no compartimento de passageiros e viu quatro carros de polícia alinhados lá embaixo ao longo da pequena estrada. A camioneta do promotor é um jipe Cherokee, que provavelmente pertencera à vítima, estavam estacionados próximos à cabana de pedras. O piloto teve dificuldade de pousar na pequena clareira ao lado da cabana. Antes mesmo que parasse o motor, Lem já havia saído do helicóptero, correndo na direção da cabana, com o seu homem de confiança, Cliff Soames, pouco atrás dele.
Walt Gaines, o xerife do município, saiu da cabana com a aproximação de Lem. Gaines era um homem alto, com um 1,90m e quase cem quilos de peso, com ombros enormes e peito saliente. Os cabelos louros e olhos azuis lhe dariam aspecto de artista de cinema, se não tivesse o rosto tão largo e uma fisionomia vulgar. Tinha 55 anos, mas aparentava quarenta, e o cabelo era um pouco mais longo do que costumava ser quando servira nos fuzileiros navais.
Embora Lem Johnson fosse negro e Walt branco, embora fosse vinte centímetros mais baixo e tivesse menos trinta quilos do que Walt, embora fosse criado numa família negra de classe média alta enquanto os pais de Walt eram gente simples e pobre de Kentucky, e embora fosse dez anos mais velho do que o xerife, os dois eram amigos. Mais do que amigos: companheiros. Costumavam jogar bridge juntos, pescar em alto mar e sentiam um prazer recíproco em sentarem-se em cadeiras de jardim, no quintal da casa de um e de outro, para beber cerveja e resolverem todos os problemas do mundo. Suas mulheres também se tornaram as melhores amigas, o que segundo Walt era um verdadeiro "milagre, porque a mulher não gostara de mais ninguém que eu lhe tivesse apresentado em trinta e dois anos."
Para Lem, sua amizade com Walt Gaines era também milagre, porque ele não era homem de fazer amizade facilmente. Tinha mania de trabalho, e não lhe sobrava muito tempo para cultivar uma amizade mais profunda. É claro que não houve esta preocupação da parte de Walt; desde a primeira vez em que se encontraram, já haviam reconhecido atitudes e comportamentos semelhantes um no outro. Depois de seis meses de amizade, já tinham a impressão de que se conheciam desde garotos. Lem dava tanto valor à amizade deles quanto ao seu casamento com Karen. A pressão do seu trabalho seria dura demais de suportar, se não pudesse descontrair-se um pouco com Walt, de vez em quando.
Agora que as hélices do helicóptero não faziam mais barulho, Walt Gaines disse:
- Não consigo imaginar por que o assassino deste homem solitário do canyon poderia lhe interessar.
- Bom - disse Lem. - Você não é capaz de descobrir e você também não quer saber.
- De qualquer forma, eu não esperava que você viesse. Pensei que fosse mandar um de seus lacaios.
- Agentes da Segurança Nacional não gostam de ser chamados de lacaios - disse Lem.
Olhando para Cliff Soames, Walt disse:
- Mas é como ele trata vocês, companheiros, não é mesmo? Como lacaios?
- Ele é um tirano - confirmou Cliff, que tinha 31 anos, o cabelo ruivo e sardas na pele. Parecia mais um jovem pastor do que um dos homens da Agência de Segurança Nacional.
- Bem, Cliff - disse Walt Gaines -, você tem que admitir a origem de Lem. O pai dele era um homem de negócios fracassado, que jamais conseguira fazer mais do que duzentos mil dólares por ano. Desprezível, como você vê. Desta forma, Lem pensa que pode abusar destes garotos brancos, para compensar todos aqueles anos de brutal opressão.
- Ele nos obriga a chamá-lo "sinhô" - disse Cliff.
- Não duvido - respondeu Walt.
- Vocês são tão agradáveis quanto uma virilha machucada - comentou Lem. - Onde está o corpo?
- Por aqui, sinhô - disse Walt.
No momento em que o vento morno na tarde balançava as árvores do lugar, enquanto o silêncio do canyon dava lugar ao murmúrio das folhas, o xerife conduzia Lem e Cliff ao primeiro dos dois cômodos da cabana.
Lem entendeu logo por que Walt procurou ser tão jocoso. O humor forçado foi uma reação natural ao verdadeiro horror que havia dentro da cabana. Era como dar gargalhadas num cemitério à noite para afastar o nervosismo.
Duas cadeiras estavam atiradas ao chão, com o estofamento rasgado. As almofadas do sofá haviam sido dilaceradas e aparecia o enchimento do estojo. Pedaços de vidro da imensa janela reluziam em meio as ruínas. Livros foram derrubados de uma estante no canto, rasgados e espalhados por todo o quarto. As paredes estavam cheias de sangue, também havia muito sangue, já seco, no chão de pinho claro.
Como um par de corvos à caça de fibras para fazer seu ninho, dois técnicos do laboratório, de ternos escuros, faziam uma pesquisa detalhada nas ruínas do lugar. Ocasionalmente, um deles fazia um ruído qualquer com a boca e colocava o material selecionado dentro de um saco plástico, cuidadosamente, com uma pinça.
Evidentemente, o corpo já havia sido examinado e fotografado, antes de ser transferido para dentro de um saco plástico não-transparente; agora estava ao lado da porta, aguardando ser conduzido para o rabecão.
Olhando para o cadáver dentro do saco plástico, que vagamente lembrava uma forma humana, Lem perguntou:
- Qual era o nome dele?
- Wes Dalberg - respondeu Walt. - Vivia aqui há dez anos, talvez mais.
- Quem o encontrou?
- Um vizinho.
- Quando foi morto?
- Até onde podemos dizer, há cerca de três dias. Talvez na terça-feira à noite. Precisamos aguardar os resultados do laboratório para termos certeza. O tempo anda muito quente ultimamente, o que faz muita diferença para o grau de decomposição.
Terça-feira à noite... a fuga no laboratório Banodyne acontecera nas primeiras horas da manhã de terça-feira. Terça à noite. O monstro poderia ter chegado até aqui.
Lem ficou pensando a respeito e chegou a ter calafrios.
- Você está com frio? - perguntou Walt sarcasticamente.
Lem não respondeu. Eram amigos e ambos representantes da lei, um a nível local e outro a nível federal. Mas neste caso estavam servindo a interesses diferentes. O trabalho de Walt era encontrar a verdade e revelá-la para o público. Já a tarefa de Lem era encobrir o caso e mantê-lo em sigilo.
- Há um cheiro ruim por aqui - disse Cliff Soames.
- Você precisava ter sentido o cheiro antes que o colocássemos dentro do saco plástico - comentou Walt. - No ponto.
- Não exatamente... em decomposição - disse Cliff.
- Não - retrucou Walt, apontando para diversos pontos do quarto, onde havia manchas que não eram de sangue. - Urina e fezes, também.
- Da vítima?
- Acho que não - respondeu Walt.
- Já fizeram os testes? - perguntou Lem, tentando mostrar despreocupação. - Exame de microscópio no local?
- Não. Vamos mandar algumas amostras para o laboratório. Achamos que sejam desta coisa que entrou pela janela.
Desviando o olhar do saco plástico, Lem disse:
- Você quer dizer do homem que matou Dalberg?
- Não era um homem - disse Walt. - E acho que você sabe disto.
- Não era um homem? - perguntou Lem.
- No íntimo não era um homem como você ou eu.
- Então o que você pensa que seja?
- Eu lá sei, porra? - disse Walt, cocando atrás da cabeça, com uma de suas mãos grandes. - Mas, julgando pelo corpo, o matador tem dentes muito afiados, talvez garras. E muita disposição. Isto está se parecendo com o que você está procurando?
Por um momento ninguém falou.
Uma brisa entrava através da janela quebrada, purificando um pouco aquele ar viciado.
Um dos homens do laboratório disse, levantando algo com a pinça:
- Olhe.
Lem suspirou exausto. A situação não era boa. Eles não encontrariam o suficiente para informar o que havia matado Dalberg, embora tivessem evidências para deixá-los curiosos como o diabo. Entretanto, todos eles estavam lidando com interesses de segurança nacional e nenhum civil se arriscaria a aguçar sua curiosidade. Lem estava disposto a parar a investigação. Tinha esperança de que poderia intervir sem aborrecer Walt. Seria um verdadeiro teste para a amizade dos dois.
De repente, olhando para o saco plástico com o corpo. Lem concluiu que havia alguma coisa de errado com a forma do corpo.
- A cabeça não está aqui - disse ele.
- Vocês agentes federais não perdem nada, não é mesmo? - observou Walt.
- Ele foi decapitado? - perguntou Cliff Soames, um pouco agitado.
- Vamos por aqui - convidou Walt, encaminhando-os para a outra dependência. Era uma cozinha primitiva, grande, com uma bomba de água na pia, perto de um antigo fogão de lenha.
À exceção da cabeça, não havia outro sinal de violência na cozinha. É claro que a cabeça estava em situação horrível, no centro da mesa. Num prato.
- Puxa! - exclamou Cliff, baixinho.
Quando entraram na cozinha, um fotógrafo da polícia registrava várias fotografias de diversos ângulos. Deu um passo atrás para que conseguissem ter uma visão melhor.
Os olhos do homem morto haviam sido retirados. Havia dois buracos profundos no lugar deles.
Cliff Soames empalideceu, em compensação suas sardas queimavam no rosto como se fossem manchas de fogo.
Lem sentia náuseas, não apenas pelo que havia acontecido com Wes Dalberg, mas porque estava imaginando as próximas tragédias. Orgulhava-se de sua habilidade de investigação e de conduzir trabalhos difíceis e sabia que poderia levar avante este caso melhor do que nenhum outro. Mas era pragmático, incapaz de subestimar o inimigo ou achar que tudo terminaria logo e que o pesadelo iria acabar. Precisaria de tempo, paciência e sorte para seguir a trilha do matador. Enquanto isso, mais vítimas iriam-se amontoando.
Parecia que a cabeça do homem não fora precisamente cortada. Não havia nada que indicasse corte, pelo contrário, tudo levava a crer que o homem fora esmagado, mastigado e que a cabeça fora-lhe arrancada fora.
As palmas das mãos de Lem ficaram úmidas de repente.
Estranho... como as cavidades vazias do olho do homem o haviam transfigurado, como se ele tivesse olhos imensos, arregalados.
Uma única gota de suor lhe correu pela espinha. Estava mais assustado do que nunca em sua vida, ou como nunca imaginara poder estar, mas não queria que lhe tirassem fora do trabalho, por alguma razão. Era de vital importância para a segurança da nação e para a proteção do público que o trabalho fosse executado de forma correta e ele sabia que ninguém mais teria condições de fazê-lo. Não era apenas o ego que lhe falava. Todos diziam que ele era o melhor e sabia que os companheiros estavam certos; ele tinha um orgulho justificável, sem falsa modéstia. Este caso era dele e ele iria até o fim.
Seus familiares o haviam criado com senso agudo de obrigação e responsabilidade. "Um negro", costumava dizer seu pai, "tem que fazer o trabalho duas vezes melhor do que um branco, para obter credibilidade. E isto não tem nada de amargo, nada que valha a pena protestar. Apenas, um fato comum da vida. É o mesmo que reclamar que o dia está frio durante o inverno. Ao contrário de qualquer revolta, o que precisa ser feito é encarar os fatos, trabalhar dobrado o mais possível e chegar aonde se quer chegar. E você deve ser bem-sucedido porque carrega a bandeira para todos os seus irmãos." Como resultado deste estímulo, Lem era incapaz de deixar por menos no que dizia respeito ao seu desempenho em qualquer tarefa. Ele receava o fracasso, mas raramente o encontrava. Às vezes ficava tomado de pânico por semanas, quando achava que a resolução bem-sucedida de um caso lhe escapava das mãos.
- Posso conversar com você lá fora por um minuto? - perguntou Walt, caminhando na direção da porta dos fundos da cabana.
Lem concordou com a cabana e disse para Cliff:
- Fique aqui. E certifique-se de que ninguém... nem patologistas, fotógrafos ou policiais fardados... ninguém deixe este local até que eu converse com todos.
- Sim, senhor - concordou Cliff. - E seguiu rápido para a frente da cabeça a fim de informar a todos que eles estavam temporariamente retidos ali, e para se afastar da cabeça sem olhos.
Lem seguiu Walt Gaines até a clareira atrás da cabana, e notara um recipiente de metal e lenha espalhada pelo chão. Parou para estudar os objetos.
- Achamos que tenha começado aqui - disse Walt. - Talvez Dalberg estivesse recolhendo lenha para a lareira. Talvez algo tenha saído do meio do mato e ele lhe tenha atirado a lenha e corrido para casa.
Continuavam parados sob aquele sol alaranjado de final de tarde, nas proximidades das árvores, olhando cuidadosamente por entre as sombras e aberturas misteriosas da floresta.
Lem estava nervoso. Perguntava-se se os fugitivos do laboratório estavam ali perto deles, observando-os.
- E aí, o que mais? - perguntou Walt.
- Não posso dizer.
- Segurança Nacional?
- Exatamente.
Os galhos dos abetos, pinheiros e sicômoros farfalhavam com a brisa e Lem pensou ter visto alguma coisa se movendo furtivamente no mato.
Imaginação, é claro. Apesar disso, Lem deu uma olhada para saber se ambos estavam com suas pistolas à mão.
- Você pode manter-se calado se assim o desejar, mas não poderá me manter completamente no escuro. Posso descobrir uma série de coisas por mim mesmo. Não sou idiota - disse Walt.
- Nunca pensei que você o fosse.
- Na manhã de terça-feira, todos os malditos distritos policiais de Orange e San Bernardino receberam um pedido urgente de sua agência de Segurança Nacional, solicitando que todos estivessem preparados para participar de uma caçada humana. Os detalhes viriam depois. Isto nos colocou a todos em guarda. Sabemos que vocês são responsáveis pela segurança da pesquisa, mantendo estes russos mijadores de vodca longe de roubarem nossos segredos. E, desde que o Sul da Califórnia tem a metade destes trabalhos de pesquisa, penso que há muito para se roubar por aqui.
Lem manteve os olhos no mato e ficou calado.
- Desta forma - continuou Walt -, pensamos que íamos atrás de um agente russo com alguma coisa muito quente no bolso, e estávamos felizes com a oportunidade de auxiliar a chutar algumas bundas soviéticas para o Tio Sam. Mas ao meio-dia, em vez de conseguir detalhes, tivemos o pedido de ajuda cancelado. Não haveria nenhuma caçada humana. Seu escritório nos informou que estava tudo sob controle. O primeiro alerta foi um engano, você nos disse.
- Isso mesmo. - A agência concluíra que a polícia local não seria suficientemente controlada e, além do mais, não era digna de total confiança. Era um trabalho para os militares. - Foi um engano.
- Um puta engano. Na tarde deste mesmo dia, soubemos que helicópteros do corpo de fuzileiros navais de El Toro estavam sobrevoando as montanhas de Santa Ana. E, quarta-feira pela manhã, centenas de fuzileiros com equipamento altamente sofisticado estavam fazendo o trabalho de terra.
- Ouvi falar disso, mas nada tem a ver com a minha agência - observou Lem.
Walt evitou olhar para Lem, de propósito. Ficou observando o mato. Estava certo de que Lem mentia, que precisava mentir para ele. Pensou que seria abusar de Lem se olhasse fixamente para os olhos dele naquele momento. Embora parecesse rude e grosseiro, Walt Gaines era um homem externamente sensível, com raro talento para a amizade.
Mas ele também era o xerife do município e tinha por obrigação seguir em frente, embora soubesse que Lem não revelaria coisa alguma.
- Os fuzileiros nos disseram que era apenas um exercício - disse ele.
- Foi o que ouvi.
- Sempre somos informados de exercícios de treinamento com dez dias de antecedência.
Lem não respondeu. Pensou ter visto alguma coisa na floresta, um movimento de sombras, alguma coisa escura andando lá dentro.
- Desta forma, os fuzileiros passaram todo o dia de quarta-feira e a metade de quinta nas montanhas. Mas quando os jornalistas ouviram falar deste "exercício", e começaram a bisbilhotar, os fuzileiros logo o cancelaram, arrumaram suas coisas e voltaram para casa. Era como se o que estivessem procurando fosse tão horrível, tão secreto que nem mesmo eles pudessem descobri-lo, se isto significasse a imprensa ficar sabendo.
Olhando ainda mais para dentro da floresta, Lem se esforçava para enxergar entre as sombras profundas por entre as árvores, tentando localizar algum movimento, o mesmo que havia chamado sua atenção, um minuto antes.
Walt disse:
- Então, no dia anterior, à tarde, a Agência de Segurança Nacional solicitou que os policiais informassem sobre "fatos estranhos, ataques fora do comum e assassinatos excessivamente violentos". Pedimos um esclarecimento e não obtivemos.
Houve um movimento um pouco abaixo dos arbustos. A uns cem metros do início do mato, havia alguma coisa se movendo rapidamente, protegendo-se nas sombras. Lem colocou a mão direita dentro do casaco e procurou a pistola no coldre.
- Mas no dia seguinte - continuou Walt -, encontramos este pobre filho da puta do Dalberg em pedaços. E o caso é estranho pra cacete e também "excessivamente violento" como eu jamais pensava ver. Agora aqui está você, sr. Lemuel Asa Johnson, diretor do escritório da Agência de Segurança Nacional no Sul da Califórnia. E sei que você não veio de helicóptero até aqui só para perguntar se desejo comer sopa de cebola ou creme de abacate durante o jogo de bridge, amanhã à noite.
O movimento agora estava mais próximo, bem mais próximo. Lem estava confuso com as sombras das árvores, já não tão iluminadas pelo sol do final de tarde. Aquela coisa não estava a mais de oitenta metros, parecia mais próxima e, de repente, correu na direção deles, pulou sobre eles. Lem gritou, puxou a pistola do coldre e involuntariamente deu alguns passos para trás antes de tomar posição de atirar, ficando com as pernas bem abertas e as duas mãos na arma.
- É apenas um veado! - disse Walt Gaines. De fato era. Apenas um veado.
O veado parou a uns vinte metros de distância, sob os galhos pendentes de um abeto, olhando para eles com imensos olhos castanhos, arregalados de curiosidade. A cabeça estava bem erguida e as orelhas-voltadas para cima.
- Eles estão tão acostumados às pessoas do canyon, que quase podemos dizer que são domesticados - disse Walt.
Lem respirou aliviado ao mesmo tempo em que guardava a pistola. O veado, percebendo que estavam tensos, deu meia-volta e desapareceu.
Walt estava agora olhando duro para Lem.
- O que tem lá afinal, companheiro?
Lem não disse nada. Apenas enxugou o suor das mãos no paletó. O vento estava começando a ficar gelado. A noite estava a caminho, logo tudo estaria escuro.
- Nunca o vi reagir desta maneira antes - disse Walt.
- É a cafeína. Tomei muito café hoje.
- Merda.
Lem encolheu os ombros.
- Parece ter sido um animal que matou Dalberg, alguma coisa com muitos dentes, unhas, realmente selvagem - comentou Walt. - Mesmo assim, nenhum maldito animal colocaria a cabeça do homem cuidadosamente no centro da mesa da cozinha. Isto é humor negro. Animais não fazem humor, humor negro, ou qualquer outro. Seja lá o que tenha matado Dalberg... deixou a cabeça daquela forma para escarnecer de nós. Pelo amor de Deus, com o que estamos lidando, afinal?
- Você não quer saber. E você não precisa saber, porque estou assumindo o controle deste caso.
- Cacete...
- Eu tenho autoridade - disse Lem. - Isto agora é assunto federal, Walt. Estou recolhendo todas as evidências que o seu pessoal reuniu, todos os relatórios feitos até aqui. Você e seus homens não vão falar nada sobre o que viram aqui. Para ninguém. Vocês terão um arquivo sobre este caso, mas a única coisa que haverá nele será um memorando meu, afirmando a prerrogativa federal nas investigações. Você está fora, a partir deste instante. Não importa o que aconteça, ninguém vai culpá-lo, Walt.
- Merda!
- Deixa pra lá.
Walt franziu a testa e disse:
- Preciso saber...
- Deixa pra lá.
-...as pessoas na área da minha delegacia estão em perigo? Pelo menos diga-me isto e que se dane o resto.
- Estão sim.
- Em perigo?
- Sim.
- E se eu lutasse contra você e tentasse obter a primazia neste caso, haveria alguma coisa que eu pudesse fazer para diminuir este perigo, no sentido de garantir a segurança pública?
- Não. Nada - respondeu Lem.
- Assim, não há chance de desafiá-lo.
- Nenhuma - deixou claro Lem.
Ele começou a se afastar da cabana, porque o sol já estava desaparecendo e Lem não gostaria de estar perto do mato, durante a noite. Está certo, foi somente um veado. Mas e na próxima vez?
- Espere um minuto - pediu Walt. - Deixe-me dizer o que penso. E apenas escute. Você não tem que negar ou confirmar o que estou dizendo. Tudo o que tem a fazer é me ouvir.
- Prossiga - disse Lem, impaciente.
As sombras das árvores se arrastavam sobre a grama seca da clareira. O sol já estava caindo no horizonte.
Walt procurou sair da sombra para se posicionar no que restava de sol, com as mãos nos bolsos da calça, olhando para baixo, fixando a terra no chão, tentando ganhar tempo para colocar em ordem seus pensamentos. Então:
- Terça-feira à tarde alguém entrou numa casa em Newport Beach, matou um homem chamado Yarbeck e espancou sua mulher até a morte. Naquela noite alguém matou a família Hudston em Laguna Beach... marido, mulher e um garoto adolescente. A polícia em ambos os lugares usou o mesmo laboratório, de forma que não demorou muito para descobrir que a mesma arma fora usada nos dois casos. É exatamente o que a polícia nestes dois casos iria tentar descobrir, mas agora não vai ser possível, porque a Agência de Segurança Nacional assumiu o controle de tudo. No interesse da segurança nacional.
Lem não respondeu. Estava arrependido por ter concordado em ouvir. De qualquer forma, não estava assumindo o controle direto das investigações sobre os assassinatos dos cientistas, certamente planejados pelos soviéticos. Delegaria esta tarefa a outros homens, tendo assim tempo de sobra para concentrar sua atenção na procura do cachorro e do monstro.
A luz do sol se esvaía. As janelas da cabana emolduravam o reflexo daquele fogo que se apagava.
Walt disse:
- Está bem. Então há o dr. Davis Weatherby, de Corona Del Mar. Desaparecido desde de terça-feira. Esta manhã, o irmão de Weatherby encontrou o corpo do médico no porta-malas do carro. Mal deu tempo de os patologistas locais entrarem em cena, antes que os homens da agência de segurança aparecessem.
Lem estava impressionado com a rapidez com que o xerife recolheu e absorveu todas aquelas informações de outras comunidades que não faziam parte do município e que, portanto, não estavam sob sua jurisdição. Walt sorriu sem nenhuma vontade de fazê-lo.
- Você não esperava que eu tivesse todos estes contatos, né? Cada um desses crimes aconteceu em jurisdições policiais diferentes, mas até onde posso concluir, este município é praticamente uma cidade com dois milhões de habitantes, assim estou cumprindo minha obrigação ao entrar em contato com todos os departamentos.
- O que você acha de tudo isto?
- Acho que é extraordinário ter seis assassinatos de pessoas influentes na comunidade em apenas um dia. Isto aqui é o município de Orange, não Los Angeles. E o que é mais espantoso, ainda, é que todos os seis casos estão relacionados com assuntos urgentes que envolvem a segurança nacional. Isto despertou minha curiosidade. Comecei a verificar a vida destas pessoas, procurando algo que as ligasse...
- Walt, pelo amor de Deus.
-...e descobri que todos trabalham... ou trabalhavam... para alguma coisa chamada laboratório Banodyne.
Lem não estava com raiva. Ele não poderia perder a calma com Walt, eles eram mais unidos que irmãos. Mas os dentes caninos do homem começaram a ficar salientes. Lem disse:
- Escute aqui, você não tem o direito de conduzir as investigações.
- Sou o xerife, lembra-se?
- Mas nenhum destes crimes... exceto Dalberg que está aqui... é da sua conta - advertiu Lem. - E ainda que fosse... uma vez que a Agência de Segurança Nacional entrou no caso, você não teria mais direito de continuar. De fato, está expressamente proibido pela lei de continuar.
Ignorando-o, Walt disse:
- Desta forma, procuro o Banodyne, vejo que tipo de trabalho eles fazem e o que descubro? Que estão envolvidos com engenharia genética, fazendo novas combinações de ADN.
- Você é incorrigível.
- Não há nenhuma indicação de que o trabalho do Banodyne esteja relacionado com projetos de Defesa, mas isto não significa nada. Poderiam ser contratos por baixo do pano, projetos tão secretos que a verba não fosse do conhecimento público.
- Meu Deus! - disse Lem, muito irritado. - Você não entende que merda é ter que trabalhar tendo as leis de segurança nacional atrás de nós?
- Estou apenas especulando, agora - respondeu Walt.
- Você vai é especular sua bunda branca trancafiado no xadrez.
- Ora, Lemuel, não vamos fazer uma confrontação racial aqui.
- Você é incorrigível.
- Sim! E você está repetindo a mesma coisa. De qualquer forma, pensei muito a respeito e acho que os assassinatos dessas pessoas que trabalhavam para o laboratório devem estar relacionados com a caçada humana que os fuzileiros realizaram na quarta e na quinta. E também à morte de Wesley Dalberg.
- Não existe co-relação entre a morte de Dalberg e as outras.
- Claro que não. Não era o mesmo assassino. Sei disso. Os Yarbecks, os Hudstons e Weatherby foram mortos por um profissional, enquanto o pobre do Wes Dalberg foi feito em pedaços por um animal. Ainda assim há relação, meu Deus... ou você não está interessado? A conexão deve ser o Banodyne.
O sol estava desaparecendo. As sombras agora eram mais densas e abrangentes. Walt disse:
- Observe só o que acho: estavam trabalhando em algum projeto novo no laboratório, fazendo alterações genéticas, houve um acidente e alguém ficou contaminado, e isto não o tornou doente. O que aconteceu foi que o cérebro ficou sob o efeito de alguma droga, e alguém acabou tenho um comportamento selvagem, ou coisa parecida...
- O dr. Jekyll atualizado vivendo na era da alta tecnologia? - Lem interrompeu sarcasticamente.
-...assim, ele fugiu do laboratório antes que alguém descobrisse o que acontecera e foi para as montanhas, veio até aqui e atacou Dalberg.
- Você tem assistido a muitos filmes de terror ou a quê?
- Yarbeck e os outros foram eliminados porque sabiam o que havia acontecido, e corriam o risco de fazer vazar a informação.
Um animal estava uivando na direção do canyon. Provavelmente um coiote.
Lem queria sair dali, ficar distante da floresta. Mas sentiu que tinha que lidar com Walt Gaines e forçar o xerife a abandonar aquela linha de raciocínio.
- Deixe-me ir direto ao ponto, Walt! Você está querendo dizer que o governo dos Estados Unidos matou seus próprios cientistas para que estes não abrissem a boca?
Walt franziu a testa, reconhecendo que estava diante de uma situação improvável, melhor dizendo, impossível. Lem continuou:
- Será que a vida se resume a um romance de Ludlum? Matar nossa própria gente? É o Mês Nacional da Paranóia ou qualquer coisa desse gênero? Você acredita realmente nisto?
- Não - admitiu Walt.
- E como poderia o matador de Dalberg ser um cientista contaminado e com lesões no cérebro? Quero dizer... droga, você mesmo disse que foi um animal que matou Dalberg, alguma coisa com unhas e dentes lindos.
- Está bem, está bem, eu não havia considerado isso. Não completamente. Mas estou certo de que tudo está relacionado com a Banodyne. Não estou totalmente na pista errada... estou?
- Sim, você está - disse Lem. - Completamente!
- No duro?
- Claro. - Lem sentia-se mal mentindo para Walt, tentando manipulá-lo, mas o fez, de qualquer maneira. - Eu não deveria lhe dizer isto, que você está correndo atrás de algo errado, mas como amigo acho que devo dizer isto a você.
Outros sons selvagens podiam ser escutados no meio da floresta, confirmando que eram dos coiotes, embora Lem Johnson estivesse gelado, e com muita vontade de sair dali.
Cocando o pescoço com uma das mãos, Walt perguntou:
- Isso tudo não tem algo a ver com o Banodyne?
- Nada. É apenas uma coincidência Weatherby e Yarbeck terem trabalhado lá... e que Hudston tenha feito alguns serviços para o laboratório. Se insistir em relacionar os fatos estará na direção errada. E aí vai ser ótimo para mim.
O sol desapareceu, dando a impressão de que uma porta se abrira para dar passagem a um vento ainda mais frio, soprando através da escuridão do mundo.
Ainda cocando o pescoço, Walt disse:
- Não tem nada a ver com o Banodyne, né? - Ele suspirou e disse. - Eu o conheço muito bem, companheiro. Você tem um senso de responsabilidade muito grande e seria capaz de mentir para a própria mãe, se isto estivesse de acordo com os interesses nacionais.
Lem não disse nada.
- Está bem - disse Walt. - Desisto. O caso é seu, vá em frente. A menos que mais pessoas em minha jurisdição sejam mortas. Se isto acontecer... bem, posso desejar ter as coisas sob controle novamente. Não posso prometer que não estarei envolvido. Eu também tenho responsabilidades, você sabe.
Finalmente, os dois voltaram para a cabana.
O céu - escuro do lado leste, com ainda alguns clarões vermelhos e violetas no poente - parecia estar se fechando.
Os coiotes uivavam.
Alguma coisa no mato os estava importunando.
Um puma, pensou Lem, mas sabia que agora estava mentindo para si mesmo.
4
No domingo, dois dias depois do bem-sucedido almoço de sexta, Travis e Nora foram até Solvang, uma aldeia de estilo dinamarquês no vale de Santa Ynez. Era um ponto de atração turística com centenas de lojas que vendiam de tudo, desde cristais escandinavos até imitações de plástico dos canecos de cerveja dinamarqueses. A arquitetura das casas, as árvores bem alinhadas na rua, tudo servia para aumentar o prazer de olhar as vitrines das lojas.
Diversas vezes Travis sentiu vontade de pegar a mão de Nora, para que os dois pudessem passear de mãos dadas. Parecia natural, correto. Mas ele sentia que ela talvez não estivesse preparada para isto.
Ela estava usando outro vestido simples, azul-escuro. Desta vez, quase sem forma, como se fosse um saco. Sapatos, também simples. O seu cabelo escuro caía com naturalidade, não havia penteado especial.
Estar com ela era puro prazer. Ela possuía um temperamento ótimo, era uma pessoa sensível e agradável. Sua inocência era algo animador. Sua modéstia, embora excessiva, o agradava. Ela olhava a tudo com atenção, os olhos bem abertos. Travis gostava de surpreendê-la com objetos simples: uma loja que vendia só relógios cucos; outra que vendia só animais de pelúcia; uma caixa de música onde abria uma porta para deixar sair uma bailarina.
Ele comprou para ela uma camiseta com uma mensagem personalizada que ele não permitiria que ela visse até que estivesse pronta: Nora ama Einstein. Embora ela houvesse dito que jamais usaria uma camisa de malha, porque não fazia o gênero dela, Travis sabia que esta ela teria que usar, pois amava realmente o cachorro.
Talvez Einstein não pudesse ler o que estava escrito na camiseta, mas parecia entender o seu significado. Quando saíram da loja, e desprenderam a guia do cachorro, Einstein olhou para a mensagem na camisa com ar solene, enquanto Nora segurava a camisa para inspecionar. O cachorro não se conteve e começou a acariciar Nora.
O dia teve apenas um momento ruim para eles. Quando dobraram uma esquina e se aproximaram de outra vitrine. Nora parou de repente e olhou em torno para as pessoas na calçada - pessoas comendo sorvete em casquinhas de waffle feitas em casa - outros comendo tortas de maçã, embrulhadas em papel; homens com chapéu de vaqueiro, pessoas falando inglês, espanhol, japonês e vietnamita, e outras línguas que você poderia encontrar naquele ponto turístico do Sul da Califórnia - e então olhou para uma loja de presentes em forma de moinho, com três andares, naquela rua movimentada e sentiu-se um pouco tonta, perdida. Travis teve que ajudá-la a sentar-se num banco de um pequeno parque, onde ela permaneceu trêmula por alguns minutos, antes que pudesse explicar o que estava acontecendo de errado.
- Excesso de informações - disse ela finalmente com voz também trêmula. - Tantos... novos lugares... novos sons... tantas coisas diferentes de uma só vez. Eu lhe peço desculpas.
- Está bem... - disse ele, emocionado.
- Eu estava acostumada a ficar em minha casa, vendo somente objetos familiares. As pessoas estão olhando?
- Não, ninguém percebeu. Não há nada para olhar ou que chame atenção.
Ela estava sentada com os ombros encolhidos, com a cabeça pendida para a frente, as mãos firmes no colo - até que Einstein colocou sua cabeça nos seus joelhos. À medida que ela fazia carinho no cachorro, começou ai melhorar.
- Estava me divertindo - disse ela para Travis, embora não levantasse a cabeça. - Estava me divertindo, de fato, e pensei no quanto estava longe de casa...
- Não tanto assim. Em menos de uma hora chegaremos lá - garantiu ele.
- É muito distante, muito longe - observou Nora. Travis concluiu que para ela o percurso realmente era imenso. Ela disse:
- Quando me dei conta de que estava longe de casa e como tudo era diferente... comecei a sentir medo, como uma criança.
- Você gostaria de voltar para Santa Barbara, agora?
- Não! - disse ela, finalmente olhando para os olhos dele. - Ela balançou a cabeça e olhou em torno, observando as pessoas atravessando o pequeno parque perto da loja em forma de moinho. - Não. Quero ficar aqui, por enquanto. O dia todo. Quero jantar num restaurante aqui. Não no lado de fora, mas dentro, assim como fazem outras pessoas, e então voltar para casa, quando estiver noite. - Ela marcara e repetira aquelas palavras maravilhada: "quando estiver noite".
- Está combinado.
- A menos, é claro, que você deseje voltar logo.
- Não, não... - disse ele. - Planejei este passeio para o dia todo.
- Isto é muito gentil de sua parte. Travis levantou a sobrancelha:
- O que você quer dizer com isto?
- Você sabe.
- Desconfio que não.
- Ajudar-me a dar os primeiros passos no mundo -disse ela. - Dar um pouco de seu tempo para ajudar alguém... como eu. É muito generoso de sua parte.
Ele estava atônito.
- Nora, quero que você saiba que não é caridade, estou envolvido com tudo isto.
- Estou certo de que um homem como você tem coisas melhores para fazer numa tarde de domingo, em maio.
- Oh, sim - disse ele em tom de zombaria. - Eu poderia ter ficado em casa para engraxar todos os meus sapatos, com minha escova de dentes. Poderia contar quantos pedacinhos existem num pacote de macarrão.
Ela olhou para ele, incrédula.
- Meu Deus, você está séria - disse Travis. - Pensa que estou aqui só porque estou com pena de você.
Ela mordeu o lábio e disse:
- Está bem. - Ela olhou para baixo, na direção do cachorro. - Não me importo.
- Mas não estou aqui por causa de piedade. Meu Deus! Estou aqui por que gosto de estar com você. Realmente gosto. Gosto muito de você.
Mesmo com a cabeça baixa, o vermelho que tomou conta de seu rosto, podia ser visto facilmente.
Por um momento nenhum dos dois falou.
Einstein olhava com carinho para Nora, à medida que esta lhe cocava a cabeça. De vez em quando, o cachorro virava os olhos para Travis como querendo dizer, está bem, você abriu aporta da amizade, agora não fique sentado aí como um idiota, diga alguma coisa, siga em frente. Conquiste-a.
Ela passava os dedos atrás das orelhas de Einstein, mantendo-o perto de si por alguns minutos, e comentou:
- Estou bem agora.
Deixaram o pequeno parque e caminharam diante das lojas, novamente. Nora havia experimentado um momento de pânico ao ouvir a desajeitada declaração de amor de Travis, que afinal não aconteceu.
Travis tinha a impressão de que estava namorando uma freira. Acabou concluindo que a situação era ainda pior do que parecia. Desde a morte da mulher, três anos antes, levava uma vida de celibato. A possibilidade de um relacionamento sexual se apresentava de maneira muito estranha. Ele se comparava a um padre tentando conquistar uma freira.
Quase todas as quadras possuíam uma padaria; os produtos em exibição nas vitrines das padarias, pareciam cada um mais gostoso do que os outros. O ar ficava cheio dos mais diferentes aromas, todos misturados: canela, maçãs, amêndoas e chocolate, tudo num clima de primavera.
Einstein ficava impossível diante das padarias, e colocava as patas nas vitrines, ambicionando tudo o que via. Mas nunca entrava nas lojas e nunca latia. Quando implorava por atenção, gania baixinho, não desejando perturbar os turistas. Quando ganhava torta de maçã ou um bombom recheado, Einstein se acalmava.
Dez minutos mais tarde, o cachorro revelou sua extraordinária inteligência a Nora. Ele estava se comportando muito bem junto dela, manifestando-lhe carinho e afeição, fora a demonstração de invejável iniciativa ao dominar Arthur Streck. Mas nunca havia permitido que ela percebesse sua grande inteligência. E quando o fez, Nora, à primeira vista, não acreditou no que estava vendo.
Estavam diante da farmácia da cidade, que também vendia jornais e revistas, cujos exemplares estavam à mostra do lado de fora, numa prateleira junto a porta de entrada. Einstein surpreendeu Nora disparando subitamente na direção da farmácia, e ela acabou largando a guia, diante da força do cachorro. Antes que Travis e Nora dominassem a situação; Einstein usou os dentes para tirar uma das revistas da banca e a levou para eles, atirando-a nos pés de Nora. Era a Noiva moderna. Quando Travis tentou se aproximar dele, Einstein fugiu novamente e apanhou outro exemplar da Noiva moderna e o colocou aos pés do dono, na mesma hora em que Nora recolhia a revista para colocá-la no lugar.
- Você, seu bobo - disse ela. - O que é que há com você?
Já com a mão na guia, Travis cruzou a calçada e colocou o outro exemplar da revista numa altura onde Einstein não poderia alcançar. Sabia o que Einstein tinha em mente, mas não disse nada, temendo deixar Nora embaraçada e eles retomaram a caminhada.
Einstein olhava para tudo, cheirando todos os que passavam, e pareceu ter perdido o seu entusiasmo por revistas especializadas em matrimônio. Entretanto, haviam caminhado pouco mais de vinte metros, quando o cachorro se virou e correu por entre as pernas de Travis, que perdeu o controle da guia e quase caiu no chão. Einstein correu direto para a farmácia, pegou uma revista na banca e retornou,
Noiva moderna.
Nora ainda não havia compreendido a mensagem. Achava aquilo muito engraçado e parou para acariciar o cachorro.
- Este é o seu assunto predileto para leitura, seu bobo? Você lê a revista todos os meses? Você sabe. Aposto que sim. Você me trata com tanto romantismo.
Um casal de turistas percebeu o cachorro e sorriu, mas estavam no mesmo caso de Nora, sem imaginar o que acontecia.
Quando Travis se abaixou para pegar Noiva moderna, com a intenção de levá-la de volta à farmácia, Einstein chegou primeiro e segurou a revista com os dentes e balançou a cabeça com violência por um momento.
- Cachorro ruim - comentou Nora, surpresa, porque o cachorro havia se mostrado agressivo para com Travis.
Einstein deixou a revista de lado. Estava toda amassada e algumas das páginas rasgadas e cheias de saliva.
- Imagino que agora teremos que comprá-la - disse Travis. Respirando fundo, o cachorro se sentou na calçada, levantou a cabeça e olhou para Travis.
Nora permanecia inocente a tudo o que o cachorro estava tentando lhes dizer. É claro que ela não tinha nenhuma razão especial para fazer qualquer interpretação sofisticada do comportamento de Einstein. Não estava acostumada com o grau de genialidade do cachorro, e não esperava que este realizasse milagres de comunicação.
Olhando para o cachorro, Travis disse:
- Você pára com isto, seu peludo. Não faça mais isto. Você me entendeu?
Einstein rosnou.
Eles retomaram o passeio por Solvang, depois de pagarem a revista, e a colocarem num saco da própria farmácia. Mas antes de chegarem no final da quadra, o cachorro começou a elaborar a sua mensagem. Ele de repente pegou na mão de Nora, gentilmente, mas com firmeza e para a surpresa dela, puxou-a na direção de uma galeria de arte, onde um rapaz e uma moça estavam admirando uma pintura na vitrine. O casal estava conduzindo um bebê num carrinho, e era para a criança que Einstein estava chamando a atenção de Nora. Não largou a mão dela até forçá-la a tocar no braço do bebê.
Embaraçada, Nora se desculpou:
- Ele acha o bebê de vocês lindo, eu penso... e realmente é.
A mãe e o pai do garoto estavam preocupados com Einstein a princípio, mas depois verificaram que ele não era agressivo.
- Que idade tem a menina? - perguntou Nora.
- Dez meses - respondeu a mãe.
- Qual é o nome dela?
- Lana.
- É linda.
Finalmente, Einstein liberou a mão de Nora.
Alguns metros mais adiante, em frente a uma loja de antigüidades, que parecia ter sido transportada tijolo a tijolo da Dinamarca do século XVII, Travis parou, abaixou-se ao lado do cachorro e disse:
- Já é suficiente... Se você quiser comer a sua ração predileta, não faça mais isto.
Nora parecia intrigada.
- O que é que ele tem?
Einstein rosnou, e Travis sabia que estavam em dificuldade.
Nos próximos dez minutos, o cachorro pegou a mão de Nora duas vezes e a largava, quando chegavam perto de crianças.
Noiva moderna e bebês.
A mensagem parecia clara, agora. Duramente clara, até mesmo para Nora: Você e Travis pertencem um ao outro. Casem-se. Tenham filhos. Formem família. O que vocês estão esperando?
Ela estava ficando corada e parecia incapaz de olhar para Travis, que também estava embaraçado.
Finalmente, Einstein pareceu satisfeito ao comunicar a sua mensagem e parou de se comportar mal. Até agora, se perguntando a respeito, Travis teria dito que um cachorro não poderia parecer presunçoso.
Mais tarde, na hora do jantar, o dia ainda estava quente e Nora mudou de idéia e preferiu comer ao lado de fora numa das mesas da calçada de um restaurante, embaixo de um guarda-sol vermelho, protegido por um imenso carvalho. Travis percebeu que Nora não estava mais intimidada com a expectativa de jantar num restaurante, mas queria comer ao ar livre para que Einstein ficasse junto deles. Repetidamente ao longo do jantar, ela olhou para Einstein, às vezes de soslaio, e outras vezes abertamente para observá-lo melhor.
Travis não fez nenhuma referência ao que sucederá e tinha a intenção de esquecer totalmente o episódio. Mas quando Travis percebia o cachorro olhando para ele, e quando Nora estava distraída, ele dizia baixinho para o cachorro: "Você não vai mais comer torta de maçã. Coleira bem apertada. Focinheira. Vida de cachorro." Einstein aceitou todas as ameaças com calma, às vezes rosnando baixinho, ou soltando ar pelo focinho.
5
Domingo, no início da noite, Vince foi visitar Johnny "Arame" Santini. Johnny era chamado de "Arame" por várias razões, inclusive porque era alto e magro e porque parecia ter sido feito de arame. O cabelo era crespo e parecia cobre. Com a idade de quinze anos Johnny desejou agradar o tio, Religio Fustino, figura importante de uma das cinco famílias da máfia de Nova York. Johnny tomou a iniciativa de estrangular um traficante de cocaína que operava no Bronx sem a permissão da família. Johnny usou uma corda de piano para a tarefa. Aquela demonstração de iniciativa e dedicação aos princípios da máfia encheram don Religio de amor e de orgulho e prometera ao sobrinho o eterno respeito da família e uma boa posição nos negócios.
Agora Johnny Arame, tinha 35 anos e vivia numa casa de praia de um milhão de dólares em San Clemente. A casa de dez cômodos e quatro banheiros fora remodelada por um especialista em decoração de interiores que fora contratado para criar um autêntico e caro refúgio art-deco no mundo moderno. Tudo vinha em preto, prata, azul-escuro, com ênfase no turquesa e pêssego. Johnny comentava com Vince que escolhera o art-deco porque o estilo o fazia recordar os anos vinte, a era romântica dos lendários gângsteres.
Para Johnny Arame, o crime não era somente meio de ganhar dinheiro, ou de se rebelar contra a repressão da sociedade civilizada, ou mesmo compulsão genética, era também e principalmente uma tradição romântica magnífica. Ele via a si mesmo como irmão de todos os piratas que já haviam navegado pelo mundo atrás de riquezas, de todos os assaltantes de estrada, de todos os arrombadores, seqüestradores, estelionatários e assassinos de todos os tempos. Insistia na sua proximidade mística com Jesse James, Dillinger, Al Capone, os irmãos Dalton, Lucky Luciano e legiões de outros. Johnny amava-os a todos, legendários irmãos de sangue e de roubo.
Ao receber Vince na porta da frente, Johnny disse:
- Entre, entre, grandalhão. É bom vê-lo novamente.
Eles se abraçaram. Vince não gostava de abraços, mas havia trabalhado para o tio de Johnny em Nova York, cumprindo uma missão ou outra na costa oeste para a família Fustino, ou seja, os dois se conheciam há muito tempo, o que justificava o tratamento de carinho.
- Você parece ótimo - disse Johnny. - Vejo que está cuidando muito bem de si mesmo. Quero dizer, continua atacando como cobra?
- Como cascavel! - respondeu Vince, um pouco embaraçado por dizer coisa tão estúpida. Mas sabia que era o tipo de comportamento fora da lei que agradava Johnny.
- Eu não o via há tanto tempo, que pensei que os tiras o haviam pegado pelo rabo.
- Jamais dou chance - comentou Vince, querendo dizer que a cadeia não faria parte de seu destino.
Johnny entendeu que Vince só se entregaria morto, depois de muito tiroteio, e pareceu gostar da atitude de Vince.
- Toda vez que eles o encostarem na parede, acabe com quantos você conseguir, antes que o coloquem fora de combate. É a única maneira honesta de sucumbir.
Johnny Arame era um homem extremamente feio, o que provavelmente explicava sua necessidade de sentir-se parte de uma grande tradição romântica. Com o tempo, Vince percebera que os bandidos bem-apessoados nunca mitificavam o que faziam. Eles matavam a sangue frio porque gostavam de matar ou achavam necessário. Roubavam, extorquiam, porque gostavam de dinheiro fácil e este era o objetivo: não havia justificativas, nem autopromoção, o que era exatamente como que devia ser. Mas aqueles cujas caras pareciam ter sido modeladas no concreto - Quasímodo num dia de mau humor - bem, muitos deles tentavam compensar, agindo como James Cogney em O inimigo público.
Johnny estava vestido de macacão e tênis preto, porque ele pensava que isto o tornaria sinistro, em vez de feio, apenas.
Vince seguiu Johnny até a sala de estar, onde os móveis tinham o estofamento em preto e as mesinhas de canto eram laqueadas também de preto. Luminárias de cobre, enormes jarros art-deco em prata, um par de cadeiras antigas projetadas por Jacques Rohlmann. Vince conhecia a história de cada peça de decoração somente porque, em visitas anteriores, Johnny havia saído de sua casca de homem mau para discorrer sobre os seus tesouros de época.
Uma loura bonita estava recostada numa espreguiçadeira em preto e prata, lendo uma revista. Não tinha mais de vinte anos, e estava quase embriagada. O cabelo louro-prateado era curto como de um pajem. Ela vestia um pijama vermelho de seda, estilo chinês, que delineava muito bem os seios, e quando olhou para Vince, parecia estar tentando se parecer com Jean Harlow.
- Esta é Samantha - disse Arame. Para Samantha, comentou: - Este aqui, Toots, é um homem feito com quem ninguém brinca, uma lenda de seu próprio tempo.
Vince estava se sentindo como um completo imbecil.
- O que significa "homem feito"? - perguntou a loura num tom de voz obviamente copiado de um velho filme de Judy Holliday.
Colocando-se ao lado da loura, a quem acarinhava o seio por sobre a seda do pijama, Johnny observou:
- Ela não é iniciada no linguajar, Vince. Ela não faz parte da Fratellanza. É uma garota do vale, nova para a vida, e não conhece os nossos costumes.
- Ele quer dizer que não sou um carcamano de merda. Johnny a esbofeteou tão forte que a mulher quase caiu da cadeira.
- Cuidado com o que diz, sua puta!
Ela colocou a mão no rosto e começou a chorar com voz de menina.
- Desculpe, Johnny - ela falou.
- Puta! Imbecil! - praguejou ele.
- Não sei o que se passou na minha cabeça - argumentou a mulher. - Você é tão bom para mim, Johnny, e eu tenho ódio de mim mesma, quando faço uma coisa dessas.
Vince achou que era apenas encenação, mas acabou concluindo que devia ser comum aquele tipo de situação. Pelo brilho nos olhos de Samantha, Vince percebeu que ela havia gostado de apanhar; que ela fez uma gracinha para levar uma bofetada de Johnny. Por sua vez, Johnny também gostava de espancar a mulher.
Vince sentia repugnância.
Johnny a chamou de puta novamente, encaminhou Vince para fora da sala de estar e num enorme escritório, fechando a porta, Johnny piscou os olhos e comentou:
- Ela é um pouco arrogante mas é capaz de chupar o teu cérebro pelo cacete.
Meio enojado pela conversa de Johnny Santini, Vince se recusou a dar prosseguimento àquele tipo de assunto. Em vez disto, retirou um envelope do bolso do paletó:
- Preciso de informação.
Johnny pegou o envelope, olhou dentro, passou os dedos casualmente pelas notas de cem dólares e disse:
- Você vai obter - o que quiser.
Aquele escritório era a única parte da casa que não era art-deco. O estilo era estritamente high-tech. Mesas fortes de metal estavam alinhadas ao longo de três paredes com oito computadores de diferentes modelas e marcas. Cada terminal tinha sua própria linha de transmissão e todas as telas estavam acesas. Em algumas delas os programas estavam sendo executados. As cortinas nas janelas impediam a entrada da luz solar e a parca iluminação da sala era indireta para evitar o reflexo nos monitores. Isso fazia com que a luz predominante fosse o verde-eletrônico, o que dava a Vince a sensação de estar debaixo da água do mar. Três impressoras a laser estavam fazendo cópias, cujo ruído por alguma razão lembrava a Vince os peixes nadando pela vegetação no fundo do mar.
Johnny Arame havia matado meia-dúzia de homens, havia administrado apostas, planejado e executado assaltos a banco e joalherias. Envolvera-se com operações de droga da família Fustino, extorsão, seqüestro, corrupção em sindicatos de trabalhadores, falsificação de discos e vídeo-teipe, roubo de caminhões interestaduais, suborno político e pornografia infantil. Envolvera-se com tudo isto, passara por todas estas experiências e, embora não houvesse sofrido nenhum processo criminal, estava um pouco cansado, estafado. Durante os últimos dez anos, já que o computador havia oferecido excitantes novas oportunidades para o crime, Johnny conseguiu proezas como nenhum outro na história da Máfia, desbravando as fronteiras do banditismo eletrônico. Possuía talento especial para isso, e logo se tornou o número um da Máfia, na especialidade.
Bastava um pouco de tempo e motivação e ele poderia descobrir o sistema de segurança de qualquer computador e ter acesso à informação de agências do governo e de empresas privadas. Se você quisesse executar uma fraude na área de cartões de crédito, debitando um milhão de dólares de compras nas contas do American Express de outras pessoas, Johnny Arame poderia chupar alguns nomes e créditos de sua máquina TRW e você já esteja no novo negócio. Se você fosse um chefe mafioso, e estivesse a ponto de ser julgado por acusações e temeroso do testemunho de um de seus amigos íntimos, Johnny poderia invadir um dos mais bem guardados bancos de dados do Departamento de Justiça e descobrir a nova identidade que havia sido dada para a testemunha, e lhe dizer onde poderia ser encontrada, para ser morta. Johnny chamava a si mesmo de "O Feiticeiro do Silício", embora todos o continuassem chamando de Arame.
Por ser o hacker do bando, tinha, um valor inestimável para todas as famílias do país um valor tão imenso que ninguém se importou que ele houvesse se mudado para uma praia tão distante como San Clemente, onde poderia desfrutar dos prazeres da natureza ao mesmo tempo em que trabalhava para eles. Na era do microchip, Johnny dizia, o mundo havia se tornado uma pequena cidade e você poderia estar sentado em San Clemente - ou Oshkosh - e tocar no bolso de alguém em Nova York.
Johnny se acomodou confortavelmente numa cadeira de couro, toda preta e com rodas de borracha, o que lhe permitia seguir de um computador para outro.
- Muito bem! O que o Feiticeiro do Silício pode fazer por você?
- Você tem acesso ao computador da polícia?
- Facilmente.
- Preciso saber se, desde terça-feira, alguma delegacia de polícia no município fez algum registro sobre assassinatos particularmente estranhos.
- Quem eram as vítimas?
- Não sei. Estou apenas procurando por estranhos assassinatos.
- Estranhos, de que maneira?
- Não sei bem ao certo. Talvez... alguém com a garganta cortada. Alguém cortado em pedaços, ou mordido e esmagado por algum animal.
Johnny o olhou de forma característica.
- É estranho, tudo bem. Algo parecido poderia estar nos jornais.
- Talvez não - observou Vince, pensando no batalhão de agentes de segurança do governo fazendo de tudo para manter a imprensa afastada do Projeto Francis é esconder o que aconteceu na terça-feira no laboratório Hanodyne. - Os assassinatos podem estar nos jornais, mas os detalhes fundamentais foram suprimidos pela polícia, tornando os casos meros homicídios. Desta forma, as reportagens dos jornais não nos ajudam a localizar a vitima na qual estou interessado.
- Muito bem. Posso fazê-lo.
- Seria melhor também você pesquisar na Secretaria de Controle Animal para saber se houve algum registro sobre ataques de coiotes, pumas ou outro predador qualquer. Não somente ataques a pessoas, mas a rebanhos: vacas, ovelhas. Para ser mais exato, isto pode ter acontecido no lado leste do município, onde animais de estimação têm desaparecido ultima-mente ou encontrados dilacerados por alguma fera. Se você localizar isto, eu quero saber.
Johnny sorriu e disse:
- Você anda atrás de um lobisomem?
Era uma brincadeira: ele não esperava ou desejava resposta. Não perguntou por que Vince desejava aquele tipo de informação e jamais perguntaria, porque pessoas como Johnny não se metem nos negócios alheios. Poderia estar curioso, mas Vince sabia que Arame jamais iria procurar descobrir.
Vince ficou nervoso não por causa da pergunta, mas pelo sorriso. A luz verde das telas do computador brilhava nos olhos e nos dentes de Johnny, destacando igualmente o cabelo cor de cobre. Feio como era, e com aquela luz sinistra no rosto, mais parecia um defunto ressuscitado em algum filme de terror. Vince lhe chamou a atenção:
- Outra coisa. Preciso saber se alguma delegacia policial do município está realizando alguma investigação sigilosa sobre um cachorro de caça.
- Um cachorro?
- Sim.
- Os tiras normalmente não procuram cachorro perdidos.
- Eu sei - disse Vince.
- Este cachorro tem um nome?
- Não.
- Vou verificar. Alguma coisa mais?
- É só. Quando você tem as respostas?
- Vou ligar para você pela manhã, cedo, e dependendo do que você descobrir, posso precisar que você me forneça informações diárias sobre o caso.
- Fácil como um brinquedo de crianças - disse Johnny, balançando-se na cadeira de couro, e então levantando-se de repente com um sorriso. - Agora vou trepar com Samantha. Que tal? Você quer participar? Dois garanhões como nós, trepando com ela ao mesmo tempo, reduziríamos aquela porra a um monte de geléia, implorando perdão. Que tal a idéia?
Vince era grato pela tênue luz verde, que impediu que Johnny visse o rosto dele, que havia ficado branco como cera. A idéia de uma bacanal com aquela puta infectada já era suficiente para deixá-lo com náuseas. Vince se adiantou:
- Tenho um compromisso e não posso faltar.
- Péssimo - disse Johnny.
Vince, com muito esforço, conseguiu comentar:
- Seria divertido.
Talvez, na próxima oportunidade.
À idéia dos três numa cama... bem, fizera com que Vince se sentisse sujo.. Ele foi tomado pelo desejo de ir direto para uma chuveirada quente.
6
Domingo à noite, agradavelmente cansado do passeio em Solvang, Travis pensou que iria dormir logo, assim que encostasse a cabeça no travesseiro, mas isto não aconteceu. Não podia parar de pensar em Nora Devon. Aqueles olhos verdes com traços cinzentos. Aqueles cabelos pretos e lisos. A graciosa e fina linha de seu pescoço. O som musical de sua risada. O seu sorriso.
Einstein estava deitado no chão, sob a luz fraca que entrava pela janela e mal dava para iluminar parte do quarto. Travis passou uma hora se virando na cama, finalmente o cachorro foi até ele e colocou a imensa cabeça e patas no seu peito.
- Ela é tão doce, Einstein. Uma das pessoas mais meigas e adoráveis que conheci.
O cachorro permaneceu silencioso.
- E ela é muito inteligente. Tem um raciocínio ágil, mais ágil do que ela imagina. Vê coisas que não vejo. Tem uma maneira própria de descrever as coisas, que as torna atualizadas e novas. O mundo todo parece novo e revigorado quando estou com ela.
Embora estivesse em silêncio, Einstein não dormiu. Estava atento.
- Quando penso a respeito de toda aquela vitalidade, inteligência e um amor de vida, reprimidos por trinta anos, sinto vontade de chorar. Trinta anos dentro daquela velha casa escura. Cruzes! E quando penso, como ela enfrentou todo este tempo, sem se deixar ficar amargurada, desejo abraçá-la e dizer que mulher maravilhosa ela é: forte, corajosa. Uma mulher incrível.
Einstein continuava quieto.
Algumas recordações recentes invadiram a mente de Travis: o perfume do xampu de Nora, quando ela se aproximou dele em frente a vitrine da galeria em Solvang. Ele respirou fundo e poderia sentir o mesmo perfume novamente. Aquilo fez o seu coração bater mais rápido.
- Merda... - disse ele. -...só a conheço há alguns dias e não é que estou ficando apaixonado?
Einstein levantou a cabeça e suspirou, como dizendo que já era tempo de Travis admitir o que estava acontecendo. O cachorro estava feliz por tê-los aproximado e também queria dizer que Travis devia parar com qualquer indecisão e seguir a corrente.
Travis falou sobre Nora por mais um tempo, lembrando a maneira como ela era e como agia, sobre a sua voz doce, destacando sua maneira exclusiva de ver a vida, a sua maneira de pensar. Einstein ouvia a tudo com atenção. O genuíno interesse que era a marca registrada de um verdadeiro amigo. Ele conversou com o cachorro por mais uma hora, que lhe pareceu cheia de prazer. Travis nunca havia pensado que poderia se apaixonar por alguém novamente. Não. Ninguém. E certamente não com aquela intensidade. Menos de uma semana atrás, sua tremenda solidão parecia incontrolável.
Depois, exausto, física e emocionalmente, Travis dormiu.
Mais tarde, ainda no meio da noite, ficou entre o sono e a vigília, e tinha a vaga certeza de que Einstein estava perto da janela. O caçador estava com as patas dianteiras apoiadas na janela e o focinho contra o vidro. Estava vasculhando a noite, atento.
Travis percebeu que o cachorro estava preocupado.
Mas em seu sonho, ele estava segurando a mão de Nora sob o luar e não desejava ficar completamente acordado, com medo de não ser capaz de retomar àquela deliciosa fantasia.
7
Na manhã de segunda-feira, 24 de maio, Lemuel Johnson e Cliff Soames estavam visitando um pequeno zoológico - freqüentado principalmente pelas crianças - no meio do Parque Irvine, na região leste do município de Orange. O céu estava claro e o sol estava quente e brilhante. Os imensos carvalhos não perdiam uma folha sequer, pois não havia vento. Mas os pássaros voavam de galho em galho cantando.
Doze animais estavam mortos. Atirados numa verdadeira poça de sangue. Durante a noite, alguém ou alguma fera havia pulado o muro para matar três cabras, um veado com filhote, dois pavões, um coelho, um carneiro e duas ovelhas.
Um pônei também morreu, embora não apresentasse nenhum sinal de violência. Aparentemente o animal morreu de medo, ao atirar-se por várias vezes contra o muro na tentativa de escapar ao que atacava os outros animais. Ele estava de lado, com o pescoço para trás.
Os javalis selvagens não foram importunados. Movimentavam-se de um lado para outro em suas respectivas jaulas, procurando por pedaços de comida que possivelmente haviam sido atiradas aos animais no dia anterior, mas que eles não haviam ainda achado.
Os empregados do parque estavam agitados e foram reunidos pela polícia perto de um caminhão municipal cor de laranja e estavam conversando com dois agentes da Secretaria de Controle Animal e com um biólogo barbudo do Departamento de Vida Animal da Califórnia.
Lem estava examinando cuidadosamente as feridas do corço, até que não suportou mais o mau-cheiro que não era causado só pelos animais mortos. Havia indícios de que o matador depositara fezes e urina sobre as vítimas, como havia feito na casa de Dalberg.
Apertando um lenço no nariz, para filtrar o ar fétido, Lem se aproximou de um dos pavões mortos. A cabeça havia sido arrancada, assim como uma das pernas. A parte superior das asas estava quebrada e as penas todas ensangüentadas.
Ao ser chamado por Cliff Soames, Lem deixara o pavão de lado e passou por uma porta de serviço que conduzia à próxima jaula. Lá estava Cliff observando a carcaça de um carneiro.
Havia moscas. Estavam com fome e faziam um barulho intenso, pousando sobre o carneiro e debandando quando espaventadas.
Cliff estava pálido, mas não parecia tão chocado e com tantas náuseas como estava na última sexta-feira na cabana de Dalberg. Talvez esta matança não o tivesse afetado tanto porque as vítimas eram animais, em vez de seres humanos. Ou talvez estivesse conscientemente preparando a si mesmo para a extrema violência do adversário.
- Você terá que vir para este lado - disse Cliff do ponto onde estava. Lem contornou o carneiro e se colocou ao lado de Cliff. Embora a cabeça do carneiro estivesse na sombra, Lem percebeu que o olho direito do animal havia sido arrancado.
Sem fazer comentários, Cliff usou uma vara para levantar a cabeça do animal e verificou que o outro olho também havia sido retirado.
- Parece obra do nosso fugitivo - disse Lem... Tirando o lenço do nariz, Cliff disse:
- Ainda há mais. - Ele conduziu Lem a três outras carcaças - duas ovelhas e um dos cabritos - que também estavam sem os olhos. - Diria que isto é sem comentários. Esta maldita coisa que matou Dalberg na última terça-feira à noite, continuou correndo pela montanha e pelo canyon, cinco dias seguidos, fazendo...
- O quê?
- Só Deus sabe. Mas veio parar aqui de madrugada. Lem usou o lenço para limpar o suor do rosto.
- Estamos a poucos quilômetros a noroeste da cabana de Dalberg. Cliff concordou.
- Em que sentido você acha que o animal foi? Cliff deu de ombros.
- Isso mesmo - prosseguiu Lem. - Não há forma de saber para onde está indo. É impossível de imaginar, porque não sabemos nem de longe como aquilo pensa. Vamos rezar para que permaneça por aqui, na região menos habitada do município. Não posso nem pensar no que aconteceria se esta coisa decidisse entrar na área leste, onde estão os subúrbios de Orange Park Acres e Villa Park.
Ao saírem dali, Lem viu as moscas se concentrando em cima do coelho, cm grande quantidade, como se fosse um pedaço de pano escuro jogado sobre a carcaça, balançando sob a brisa.
* * *
Oito horas mais tarde, sete da noite de segunda-feira, Lem estava numa Imensa sala de reuniões da Base Naval em El Toro. Ele se dirigiu ao microfone, bateu nele com o dedo para certificar-se de que estava funcionando, e ouviu um ruído na caixa de som:
- Por favor, prestem atenção - disse.
Aproximadamente cem homens estavam sentados em cadeiras de metal. Eram todos jovens, fortes, aparentando muita saúde. Todos faziam parte de unidades de informações do Corpo de Fuzileiros Navais. Vinham de Pendleton e outra base da Califórnia. A maioria havia participado da busca no sopé da montanha de Santa Ana quarta e quinta, logo depois do incidente do laboratório Banodyne.
Ainda estavam procurando e acabavam de chegar de um dia inteiro de buscas pela montanha e pelo canyon. A operação era conduzida sem uniformes. Para enganar os repórteres e autoridades locais, haviam chegado ao local de busca em carros e pickups, espalhando-se pela área. Aventuraram-se no mato em grupos de três ou quatro, vestidos como montanhistas comuns. Calças jeans, camisetas ou camisas de safári. Usavam bonés ou chapéu de vaqueiro. Todos estavam muito bem armados, e escondiam as armas dentro das mochilas, ou debaixo das camisetas, se encontrassem montanhistas de verdade na área. Carregavam submetralhadores Uzi que podiam facilmente entrar em ação se encontrassem o adversário.
Cada homem na sala havia assinado um compromisso de que poderia ser sentenciado à prisão perpétua se divulgasse a verdadeira natureza da operação. Eles todos sabiam o que estavam caçando, embora Lem duvidasse de que todos acreditassem na existência daquela criatura. Alguns estavam assustados. Mas os outros, que haviam servido no Líbano ou na América Central, estavam suficientemente familiarizados com o terror e com a morte, para tremerem diante de sua atual missão. Alguns poucos veteranos participaram do último ano da guerra do Vietnã e diziam que a missão era fácil. Já tinha tido oportunidade de provar eficiência em outras ocasiões e tinham respeito pelo estranho inimigo que estavam à procura. E se o monstro pudesse ser achado eles o encontrariam.
Assim que Lem pedira a palavra, eles ficaram em silêncio, imediatamente.
- O general Hotchkiss me informou que vocês tiveram mais um dia sem resultado positivo e sei que vocês estão tão desiludidos quanto eu. Há seis dias que vocês têm trabalhado numa área agreste. Sei que todos estão cansados e se perguntam quanto tempo mais isto vai durar. Bem, nós vamos continuar a busca até encontrar o que estamos procurando. Até que possamos encurralar o monstro e matá-lo. Não podemos de maneira alguma parar e deixá-lo escapar. Não temos outra alternativa.
Ninguém na platéia manifestou discordância.
- Lembrem-se: também estamos procurando o cachorro.
Cada um na sala tinha provavelmente esperança de encontrar o cachorro, ficando para outro a tarefa de acabar com o monstro. Lem prosseguiu:
- Na quarta-feira, traremos mais reforços de tropas especiais dos fuzileiros, de bases mais distantes, e eles farão rodízio com vocês, para que todos tenham dois dias de folga. Mas amanhã todos estarão lá fora, bem cedo, e agora existe outra área para ser vasculhada.
Havia um mapa da região bem atrás dele, e Lem Johnson indicou o ponto com ajuda de um bastão: - Estaremos seguindo na direção norte- noroeste pela montanha e pelos canyons em torno de Irvine Park. - Narrou para todos o acontecido no dia anterior no pequeno zoológico e fez uma descrição das condições das carcaças, com o objetivo de chamar atenção dos homens para o grande perigo.
- O que aconteceu com aqueles animais poderá acontecer com qualquer um de vocês, se faltar atenção e estiverem em lugar e hora errados.
Os cem fuzileiros olharam para ele com grande seriedade, e nos olhos de cada um deles, Lem via cem versões de seu próprio medo controlada.
8
Terça-feira, à noite, dia 25 de maio, Tracy Leigh Keeshan não conseguia dormir. Estava tão excitada que parecia que iria explodir. Ela criou uma imagem mental de que era uma flor frágil, um dente-de-leão, que atacada pelo vento poderia se espalhar pelos quatro cantos do mundo e - puf! - Tracy Keeshan não existiria mais, destruída pela sua própria excitação.
Era jovem, treze anos de idade, mas tinha grande imaginação.
Deitada na cama em seu quarto escuro, ainda não havia fechado os olhos e já se imaginava no dorso de seu cavalo, Goodheart, disparando pela pista de corridas, deixando todos os outros cavalos para trás, a reta final a menos de 100 metros. (S público vibrava nas arquibancadas...
Na escola, ela normalmente conseguia boas notas, não porque fosse uma menina aplicada mas porque aprendia com facilidade e fazia tudo sem grande esforço. Não se importava muito com a escola. Era delgada, loura, com olhos precisamente da cor de um céu claro de verão, muito lindos. Os garotos viviam atrás dela, mas ela não perdia muito tempo pensando neles, assim como não se ocupava em demasia dos problemas escolares. As colegas eram fixadas nos garotos, mas de tal maneira que Tracy quase morria de tédio.
O que realmente importava para Tracy, profundamente, de todo o coração, eram os cavalos de corrida. Ela colecionava fotos de cavalos desde a idade de cinco anos e havia tido aulas de equitação desde os sete, embora os pais não tivessem condições financeiras de comprar-lhe o seu próprio cavalo. Durante os dois últimos anos, entretanto, os negócios de seu pai haviam prosperado e dois meses atrás eles se mudaram para uma nova e imensa casa numa área de dois acres em Orange Park Acres. Era uma comunidade de criadores de cavalos, com uma infinidade de pistas para cavalgar. Na parte de trás da propriedade deles haviam um estábulo para seis cavalos, embora só existisse um. Exatamente naquela terça-feira, 25 de maio, um dia de glória, que seria lembrado para sempre no coração de Tracy Keeshan, um dia que em que ela tivera a certeza da existência de Deus - finalmente ganhara o seu próprio cavalo, o esplêndido, maravilhoso e incomparável Goodheart.
Por isso ela não conseguia dormir. Ela foi para cama às dez horas, e à meia-noite estava mais desperta do que nunca. À uma hora da madrugada de quarta-feira ela não podia suportar mais. Tinha que ir até o está-bulo e olhar para Goodheart. Para ter certeza de que ele estava bem. Para certificar-se de que estava bem acomodado em sua nova casa. E ter certeza de que o cavalo era real...
Ela atirou o lençol para longe, junto com a colcha, e saiu silenciosamente da cama. Estava usando calcinha e uma camiseta do hipódromo de Santa Anita, assim simplesmente vestiu a calça jeans e calçou o tênis Nike azul. Abriu a maçaneta da porta com todo o cuidado, calmamente, e saiu para o saguão da casa, deixando a porta aberta.
A casa estava escura e quieta. Os pais e seu irmão de nove anos, Bobby, estavam dormindo.
Tracy passou pela sala de estar e pela sala, sem acender as luzes, baseando-se no luar para seguir seu caminho.
Na cozinha, ela abriu uma gaveta de uma das mesas e pegou uma lanterna. Abriu a porta dos fundos e saiu para o quintal, também deixando a porta aberta atrás de si, sem ainda fazer uso da lanterna.
A noite de primavera estava com uma temperatura baixa, mas não fazia frio. Algumas nuvens negras vez por outra cobriam a lua, parecendo imensos veleiros navegando no mar da noite. Ela ficou olhando para as nuvens, não por muito tempo, apreciando o momento. Queria aproveitar cada segundo daquele tempo extremamente especial. Além do mais, aquela era a primeira vez em que estaria a sós com o soberbo e nobre Goodheart, para que os dois desfrutassem de seus sonhos futuros.
Ela atravessou o quintal, contornou a piscina, cuja água clorada refletia o luar, e desceu pelo jardim. A grama úmida parecia tremeluzir ante os raios hesitantes da lua.
A propriedade era perfeitamente definida por uma cerca branca, que Ficava vagamente fosforecente ao luar. Nas cercarias, havia outras propriedades de no mínimo um acre, tão grandes quanto a de Keeshan. Os sons de grilos e rãs podiam ser ouvidos por toda a região de Orange Park Acres.
Tracy caminhou tranqüilamente na direção dos estábulos, no final do quintal, pensando nas vitórias que ela e Goodheart teriam. Ele não correria de novo. Ele fizera dinheiro em Santa Anita, Del Mar, Hollywood Park e outros hipódromos pela Califórnia. O cavalo havia-se machucado e não poderia mais se arriscar em disputas. Entretanto, ainda poderia servir de montaria. Além disso, no prazo de uma semana eles teriam no estábulo duas éguas e os animais poderiam ser levados para uma fazenda especializada, onde Goodheart se encarregaria de emprenhar as fêmeas. No ano seguinte, dois potros saudáveis já estariam nascendo e seriam colocados em treinamento perto da casa de Tracy, para que esta tivesse condições de visitá-los com freqüência. Ela também poderia ajudar no treinamento, aprendendo tudo o que deveria saber para a formação de um campeão, e então, bem, então ela e os filhos de Goodheart poderiam fazer história. Sim! Ela estava muito confiante de que poderia fazer história em corridas de cavalo...
Sua fantasia foi interrompida, quando, a cerca de quarenta metros do estábulo, pisou em algo mole e escorregadio e quase caiu. Imaginou que poderia ser obra de Goodheart, quando o levaram para o quintal no dia (interior. Sentindo-se um pouco estúpida, ela direcionou a lanterna para o chão e ao contrário de estrume o que havia era o que restara de um gato brutalmente mutilado.
Tracy ficou enojada e virou o foco da lanterna rapidamente. A vizinhança era condescendente com os gatos, em parte porque eles eram de grande utilidade para controlar os camundongos em torno do estábulo. Os coiotes regularmente vinham das montanhas à procura de caça. Embora os gatos fossem rápidos, os coiotes às vezes eram mais rápidos e espertos. Tracy pensou que um coiote havia passado por baixo da cerca e atacado aquele felino, que provavelmente estava à procura de roedores.
Mas um coiote teria comido o gato no próprio lugar onde o houvesse morto, deixando para trás pouco mais do que o rabo do animal e um pouco de pele. Os coiotes normalmente vivem com muita fome. Ou ele teria carregado o gato para consumi-lo em algum outro lugar. Aquele gato não parecia ter sido comido pela metade, foi simplesmente cortado em partes, ou alguma coisa ou alguém o matara por simples prazer.
Tracy tremeu de medo.
E se lembrou dos boatos sobre o zoológico.
Em Irvine Park, a poucos quilômetros de distância, alguém aparentemente matara vários animais no pequeno zoológico há duas noites passadas. Vândalos drogados. Uns bandidos. A história não passava de boato e ninguém era capaz de confirmar o que acontecera lá de fato, mas havia indícios de que fosse verdadeira. Alguns garotos foram até lá de bicicleta no dia anterior depois da escola e não viram a carcaça de nenhum animal, mas perceberam que havia menos animais do que de costume. E o pônei Shetland estava decididamente desaparecido. Os empregados do parque não queriam falar nada, quando procurados.
Tracy imaginava que o mesmo assassino andava agora por Orange Park Acres matando gatos e outros animais de estimação, o que era uma possibilidade macabra e sombria. De repente, ela se deu conta de que se alguém não ficasse satisfeito com os gatos, também mataria cavalos.
Um arrepio de medo a percorreu dos pés à cabeça, ao imaginar Goodheart sozinho no estábulo. Mal podia se mexer.
Em torno dela, a noite parecia mais quieta do que antes.
Estava mais calma, mais silenciosa. Os grilos não cantavam mais. As rãs também haviam silenciado.
Aquele veleiro no céu parecia ter lançado âncora e agora fazia frio.
Alguma coisa se moveu nos arbustos.
O resto da propriedade era cheia de grama. Um espaço aberto imenso, todo gramado, com algumas árvores bem localizadas. A maioria jacarandás o algumas outras árvores típicas da Califórnia.
Tracy ouviu nitidamente algo nos arbustos, movimentando-se rápido. Mas, quando lançou o foco de luz sobre o lugar, não conseguiu ver nada.
A noite estava silenciosa, novamente.
Calada.
Em expectativa.
Ela desejou voltar para casa, onde poderia acordar o pai e pedir que ele investigasse, ou poderia ir para a cama e esperar até qúe amanhecesse, para tentar descobrir por si mesma. Mas e se fosse apenas um coiote nos arbustos? Nesse caso, ela não estava correndo perigo. Um esfaimado coiote atacaria uma criança pequena, mas fugiria de qualquer outra com o tamanho de Tracy. Além disso, estava muito preocupada com o seu nobre Goodheart para perder mais tempo; ela queria ter certeza de que o cavalo estava bem.
Usando a lanterna para evitar outros gatos mortos que pudesse encontrar pela frente, Tracy foi direto ao estábulo. Deu apenas alguns passos, quando ouviu os ruídos novamente e o pior: um rosnado assustador de um animal, como jamais ouvira anteriormente.
Ela começou a se virar e poderia até correr para a casa, mas Goodheart dava manifestações de medo dentro do estábulo e batia com as patas nas paredes. Ela imaginou que o cavalo estava sendo submetido a alguma espécie de tortura por algum psicopata. Tracy quase não se preocupava com a própria segurança, o interesse maior dela era correr para auxiliar o seu bem-amado campeão dos campeões.
O pobre Goodheart começou a dar pancadas cada vez mais fortes no estábulo, desesperado, lançando as patas repetidamente contra a madeira, agora furiosamente. A noite parecia ecoar os trovões de uma tempestade que estava a caminho.
Ela estava a cerca de quinze metros do estábulo, quando ouviu um rosnado estranho de novo e percebeu que alguma coisa estava atrás de si. Agora, sobre a grama. Ela levantou o foco da lanterna.
Correndo na direção dela estava uma criatura que parecia ter fugido do inferno, deixando escapar pela boca sons cheios de loucura e fúria.
Apesar da lanterna, Tracy não conseguiu ter uma exata imagem do que estava vendo, Ela desviou a lanterna e a noite ficou mais escura ainda, com a lua escondida atrás das nuvens. Aquela besta continuava se movimentando com velocidade e Tracy estava assustada demais para entender o que era aquilo. No entanto ela viu o suficiente para concluir que não se parecia com nada do que vira antes. Teve a impressão de uma cabeça disforme e escura, com depressões e saliências irregulares, mandíbulas enormes e cheias de afiados dentes em curva, olhos amarelos que brilhavam à luz da lanterna, da mesma forma que brilhariam os olhos de um gato sob o efeito do farol de um carro.
Tracy gritou.
O atacante urrou de novo e se lançou sobre ela.
Ao ser atingida Tracy perdeu a respiração. A lanterna caiu de sua mão e deslizou pela grama. Ela caiu e a criatura foi para cima dela e ambos rolaram pelo chão. Ela batia desesperadamente no monstro com seus punhos pequenos e sentiu as garras penetrando no seu braço direito. A boca da criatura estava escancarada diante dela. E ela sentiu o seu hálito quente, cheirando a sangue e carniça. E o pior, sentiu que iria ser agarrada pela garganta - pensou: Estou morta, meu Deus, isso vai me matar, estou morta como o gato - e ela estaria morta em segundos, com toda a certeza, se Goodheart a menos de cinco metros de distância não houvesse saído do estábulo e disparado na direção deles em pânico.
O garanhão relinchou e empinou as patas quando os viu, como se fosse esmagá-los.
O monstro que atacou Tracy rosnou novamente, mais de surpresa do que de raiva. Parecia estar com medo e deixou a garota de lado para evitar as patas do cavalo.
Goodheart bateu as patas no chão, a poucos centímetros da cabeça de Tracy, e empinou o corpo novamente, movimentando os cascos no ar, relinchando e ela sabia que no desespero poderia ser esmagada pelo cavalo. Ela saiu do alcance das patas do cavalo, mais distante do monstro de olhos amarelos, que desaparecera na escuridão.
Goodheart ainda estava relinchando, Tracy gritando e os cachorros uivando por toda a vizinhança. Agora as luzes acenderam na casa, o que deu à menina um pouco de esperança de sobrevivência. Entretanto, ela sentiu que o atacante não havia desistido e que ainda estava cercando o cavalo com o objetivo de fazer nova investida contra ela. Ela conseguia ouvir o seu rosnado. Sabia que não poderia jamais atingir a casa sem que o animal caísse sobre ela novamente. Desta forma, ela se arrastou até o estábulo, entrando num dos compartimentos vazios. Ao mesmo tempo em que fazia isto ela se ouvia cantando, "Jesus, oh, Jesus, Jesus, Jesus..."
As duas metades da porta de madeira da baia estava aferrolhadas uma à outra. Um trinco mantinha toda a porta presa ao caixilho. Ela abriu este trinco, puxou a porta para abri-la e penetrou na escuridão com cheiro de feno. Fechou e manteve fechada a porta com toda a força de que era capaz, pois não havia trancas por dentro.
Um instante depois, o seu atacante se lançou contra o lado de fora da porta, tentando abri-la, mas a madeira do caixilho impedia. A porta só abriria para fora e Tracy tinha esperança de que a criatura de olhos amarelos não fosse inteligente a ponto de descobrir como funcionava.
Mas era inteligente o suficiente - (Deus do céu, por que esta criatura não é tão idiota, quanto feia?) - para depois de atingir a porta por duas vezes, começar a puxá-la ao contrário de empurrar. A porta estava quase abrindo, pois Tracy não tinha força para mantê-la fechada.
Ela queria gritar por socorro, mas precisava de toda a força para se manter de pé e tentar fechar a porta. Goodheart, felizmente continuava lá fora gritando e relinchando aterrorizado. O monstro também rosnava, fazendo um som animal e humano ao mesmo tempo - assim o pai dela não linha dúvida de onde vinha aquela confusão toda.
A porta abriu alguns centímetros.
Ela se esforçou e a fechou novamente.
Instantaneamente o atacante puxou e abriu de novo, tentando manter a porta entreaberta embora ela se esforçasse para mantê-la fechada. Ela estava perdendo. A porta abriu de novo. Ela viu os traços desfigurados daquela cara monstruosa, com as presas bem à mostra. Os olhos amarelos estavam bem mais visíveis agora e o monstro rosnava para ela e seu hálito estava mais forte com o cheiro do feno.
Desesperada, cheia de terror e frustração, Tracy puxou a porta com toda a sua força.
Mas abriu mais um centímetro.
E agora mais outro.
O coração da menina estava martelando no peito, forte suficientemente para encobrir o primeiro som de um tiro.
Ela não sabia o que havia escutado até que ouviu um segundo disparo ecoando pela noite, então sentiu que o pai estava armado do lado de fora da casa.
A porta da baia se fechou novamente, quando o monstro se assustou com os tiros e deixou o estábulo.
Então ela achou que talvez na confusão o pai dela pudesse pensar que Goodheart houvesse ficado louco ou coisa parecida. De dentro da baia ela gritou:
- Não atire em Goodheart! Não atire no cavalo.
Não houve mais disparos e Tracy imediatamente sentiu-se idiota por pensar que seu pai fosse matar Goodheart. O pai de Tracy era um homem cuidadoso, especialmente com armas carregadas e, a menos que tivesse certeza do que estava acontecendo, não atiraria em nada, só daria tiros de advertência, que teriam atingido no máximo alguns galhos no matagal.
Goodheart provavelmente estava bem e o atacante de olhos amarelos havia certamente fugido para as montanhas, para o canyon, ou voltado seja lá para de onde viera...
(O que era aquela criatura demoníaca?)
...e estava tudo terminado, graças a Deus.
Tracy escutou alguns passos, e seu pai chamando seu nome.
Ela empurrou a porta da baia e viu o pai correndo de encontro a ela, só de pijamas, de pés descalços, com a arma debaixo do braço. A mãe também estava ali com uma roupa de dormir amarela bem curta, correndo atrás do pai com uma lanterna.
Em cima da curva do jardim estava Goodheart, o pai dos futuros campeões. Sem pânico e sem ferimentos.
Tracy começou a chorar ao ver o garanhão que havia sobrevivido e saiu aos tropeços do estábulo, desejando vê-lo mais de perto. Depois do terceiro passo, sentiu uma dor forte no seu lado direito e ficou tonta. Caiu, colocou uma de suas mãos no ombro e sentiu que havia sangue. Lembrou-se das garras penetrando-lhe na carne pouco antes que o cavalo fugisse do estábulo para assustar o monstro, e de muito longe ela ouvia a si mesma dizer: "Grande cavalo... que cavalo maravilhoso."
O pai se ajoelhou ao lado dela:
- Querida, o que aconteceu aqui, o que há de errado? A mãe chegou perto, também.
O pai viu o sangue:
- Chame uma ambulância.
A mãe, sem hesitação e sem qualquer histeria em momentos de dificuldade, voltou para casa correndo para telefonar pedindo socorro.
Tracy estava cada vez mais tonta. Com a visão embaraçada, ela via manchas escuras que não faziam parte da escuridão da noite. Ela não estava assustada. E parecia dar graças a Deus por estar vendo aquilo.
- Querida... - disse-lhe o pai, colocando a mão nos ferimentos. Imaginando que ela estivesse delirando, Tracy disse:
- Você se lembra quando eu era bem pequena... apenas uma garotinha... e pensei em alguma coisa terrível... que vivia no meu guarda-roupa... de noite?
O pai parecia preocupado:
- Querida, seria melhor se você ficasse quieta, e calada.
Ao perder a consciência, Tracy ouviu-se dizendo com seriedade:
- Bem... acho que aquela criatura que vivia no guarda-roupa da outra casa... acho que talvez... ela era real... e voltou.
9
Às quatro e vinte da madrugada da quarta-feira, apenas algumas horas depois do ataque à casa de Keeshan, Lemuel Johnson chegou no quarto de Tracy Keeshan, no hospital em St. Joseph, em Santa Ana. Rápido como de costume, Lem descobriu que o xerife Walt Gaines chegara antes dele. Walt estava no corredor encarando de cima um jovem médico com uniforme verde de cirurgião; pareciam estar discutindo moderadamente.
A equipe da Agência de Segurança Nacional encarregada da crise do Banodyne estava controlando todas as delegacias de polícia no município, incluindo o departamento de polícia da cidade de Orange, em cuja jurisdição se incluía a casa de Keeshan. O chefe do turno da noite da equipe de agentes da ASN havia ligado para a casa de Lem contando as novidades sobre o caso, que se encaixavam no padrão esperado no que se relacionava com os incidentes do Banodyne.
- Você não está respeitando a jurisdição - lembrou Lem ao encontrar-se com o xerife e o médico em frente ao quarto da garota, cuja porta estava fechada.
- Talvez isto não seja parte do mesmo caso.
- Você sabe que é.
- Bem, esta determinação não havia sido dada.
- E foi feita de novo na casa de Keeshan, quando conversei com os seus homens.
- Está bem... vamos dizer que estou aqui apenas como observador.
- Ai, meu cacete - esbravejou Lem.
- O que tem o seu cacete? - perguntou Walt, sorrindo.
- Uma dor do cacete e o nome dela é Walter.
- Interessante... - observou Walt. - Você batiza as suas dores. Você dá nomes a dor de dente, ou a dor de cabeça, também?
- Também estou com dor de cabeça agora e o nome dela é Walter.
- Isso é muito confuso, meu amigo. Seria melhor chamar a dor de cabeça de Bert ou Harry, ou alguma coisa parecida.
Lem quase riu - ele adorava aquele sujeito - mas sabia que, apesar da amizade, Walt poderia interpretar a risada como uma chance para voltar ao caso. Desta maneira, Lem permaneceu impassível, embora obviamente Walt soubesse que Lem desejava rir. O jogo era ridículo, mas era preciso ser jogado.
O médico, Roger Selbok, parecia Rod Steiger quando jovem. Ele franziu a testa, quando os dois elevaram a voz, e sua presença tinha um pouco da força de Steiger também. A carranca foi suficiente para fazê-los calar.
Selbok disse que a garota estava sendo submetida a exames, foi tratada dos ferimentos e tomou analgésicos para tirar a dor. Estava cansada. Ele aplicou um sedativo para garantir que a menina repousasse e não pensava que seria uma boa idéia para policiais de qualquer nível ficar fazendo perguntas naquele instante.
O silêncio do hospital, cedo pela manhã, o cheiro de desinfetante que enchia o ar e a presença de uma enfermeira que passou rápido foram o suficiente para deixar Lem nervoso. De repente, ele ficou apreensivo que a garota estivesse em pior condição do que lhe fora informado e falou de sua preocupação para Selbok.
- Não, não. Está em boas condições - disse o médico. - Mandei os pais dela para casa e não teria feito isto se houvesse algo que me preocupasse. O lado esquerdo do rosto dela está ferido, o olho está arroxeado, mas não há nada de sério. Os ferimentos no lado direito do corpo exigiram trinta e dois pontos e precisamos tomar algumas medidas de precaução em relação à cicatrização. Ela passou por um grande susto. Entretanto, é uma menina inteligente, autoconfiante, portanto não penso que venha a sofrer de algum tipo de trauma. Na minha opinião, ela não deve sofrer qualquer tipo de interrogatório esta noite.
- Não seria interrogatório - disse Lem. - Apenas algumas perguntas.
- Cinco minutos - disse Walt.
- Menos - observou Lem.
Eles pressionaram Selbok e finalmente acabaram vencendo.
- Bem... imagino que vocês tenham um trabalho a fazer, e se prometerem que não vão ser muito insistentes com ela...
- Vou tratá-la como se fosse feita de bolhas de sabão - prometeu Lem.
Selbok disse:
- Apenas me diga... que diabo aconteceu com ela?
- Ela não lhe disse? -perguntou Lem.
- Bem, ela fala de ter sido atacada por um coiote...
Lem ficou surpreso e viu que Walt também se espantara. Talvez o caso não tivesse nada a ver com a morte de Wes Dalberg e com os animais mortos no zoo de Irvine.
- Mas - continuou o médico -, nenhum coiote atacaria uma menina do tamanho de Tracy. Os coiotes só são perigosos para crianças pequenas. Além do mais, não acredito que um coiote seria capaz de causar ferimentos daquele tipo.
Walt observou:
- Soube que o pai dela afastou a fera com uma arma. Será que ele não sabe o que atacou a filha?
- Não - respondeu Selbok. - Ele não podia ver o que estava acontecendo, era noite, e deu somente dois tiros de advertência. Ele contou que alguma coisa disparou pelo quintal, passou pela cerca, mas não pôde ver nenhum detalhe. Disse que Tracy lhe contara que era a criatura que costumava viver no guarda-roupa, mas Tracy estava delirando. Ela me disse que era um coiote. Então... você sabe afinal o que está acontecendo por aqui? Você tem como me dizer alguma coisa de que eu necessite saber para tratar da garota?
- Não posso - disse Walt. - Mas o sr. Johnson, aqui, sabe de todos os detalhes da situação.
- Muito obrigado - disse Lem. Walt apenas sorriu.
Dirigindo-se para Selbok, Lem prosseguiu:
- Sinto muito, doutor, mas não tenho autorização para discutir o caso. De qualquer forma, nada do que eu dissesse alteraria o tratamento que Tracy Keeshan está recebendo.
Quando Lem e Walt finalmente entraram no quarto de Tracy no hospital, deixando o dr. Selbok no corredor para controlar o tempo de visita, encontraram uma bela menina de treze anos seriamente ferida e branca como neve. Ela estava na cama com o lençol estendido até os ombros. Embora tivesse tomado analgésicos, ela estava ativa, tensa, deixando claro por que Selbok desejava administrar-lhe sedativo. Estava tentando não demonstrar, mas estava assustada.
- Gostaria que você saísse - pediu Lem a Walt Gaines.
- Se desejo fosse filé mignon, sempre comeríamos bem no jantar - respondeu Walt.
- Oi, Tracy, sou o xerife Walt Gaines e este aqui é Lemuel Johnson. Sou tão bom quanto falam, embora este Lem, aqui, seja um abutre... todos comentam isto... mas você não tem com que se preocupar, porque vou mantê-lo na linha e obrigá-lo a ser legal com você. Está bem?
Juntos, estimularam Tracy a conversar. Rapidamente descobriram que ela havia dito ao médico que foi atacada por um coiote, porque, embora soubesse que não era verdade, ela não acreditava que fosse capaz de fazer com que o médico - ou quem quer que fosse - aceitasse o que havia presenciado.
- Estava com medo de que pensassem que eu havia sido atingida com muita violência na cabeça, estivesse com o cérebro em alvoroço - disse ela - e me mantivessem aqui por muito mais tempo.
Sentando à beira da cama, Lem comentou:
- Tracy, você não deve se preocupar que eu vá pensar que você ficou doente da cabeça. Acredito no que você viu, sei o que é e tudo o que quero é uma confirmação.
Ela olhou para ele, incrédula.
Walt estava aos pés da cama, sorrindo para ela, como se fosse um imenso urso carinhoso. Ele disse:
- Antes de desmaiar, você disse a seu pai que fora atacada por uma criatura que costumava viver no seu guarda-roupa.
- Era certamente feio o suficiente, mas não se parecia com a criatura do guarda-roupa, penso eu.
- Diga-me - insistiu Lem.
Ela olhou para Walt, para Lem, e suspirou:
- Você me diz o que devo ter visto e, se coincidir, eu digo o que posso lembrar. Mas não quero começar, porque vocês vão pensar que fiquei doida.
Lem olhou para Walt sem esconder a frustração, concluindo que não havia maneira de evitar alguns fatos reais do caso. Walt sorriu largo, mostrando os dentes. Lem disse para a garota:
- Olhos amarelos.
Ela suspirou e ficou rígida.
- Sim! Você sabe, não é? Você sabe o que estava lá. - Ela começou a sentar-se, sentindo muitas dores porque os pontos estavam repuxando nos ferimentos. E acabou caindo de costas novamente na cama. - O que era aquilo, o que era aquilo?
- Tracy - disse Lem -, não posso dizer o que era. Assinei um termo de compromisso prometendo segredo. Se eu violar, posso ir para a cadeia. E o mais importante: não teria muito respeito por mim mesmo.
Ela franziu a testa e finalmente assentiu.
- Imagino que posso entender isto.
- Ótimo. Agora diga-me tudo o que você sabe sobre o monstro. Ela não havia visto muito, porque a noite estava escura e a sua lanterna havia iluminado o monstro um instante apenas.
- Grande demais para ser um animal... talvez, tão grande quanto eu. Os olhos amarelos. - Ela tremeu. - A cara dele era... estranha.
- Em que sentido?
- Torta... deformada - observou a garota. Embora estivesse pálida a princípio, agora estava branca e finas gotas de suor começavam a cair-lhe da linha onde começava o cabelo.
Walt continuava ao pé da cama, inclinando o corpo para frente. Não queria perder uma palavra sequer.
O vento típico de Santa Ana de repente começou a soprar, surpreendendo a menina. Ela parecia assustada ao olhar pela a janela, como que esperando que alguma coisa fosse se chocar com os vidros.
Lem lembrou-se que fora daquela forma que o monstro tinha matado Wes Dalberg.
Tracy engoliu em seco.
- A boca dele era enorme... e os dentes...
Ela não conseguia parar de tremer e Lem colocou a mão no ombro dela para acalmá-la.
- Está tudo bem, querida. Está tudo terminado. Tudo ficou para trás. Depois de uma pausa para recobrar o controle de si mesma, mas ainda trêmula, Tracy disse:
- Acho que era peludo... não estou certa, mas era muito forte.
- Com que espécie de animal se parece? - perguntou Lem.
- Não achei parecido com nada que eu conheça - disse ela balançando a cabeça.
- Mas se você tivesse que dizer que era parecido com outro animal, diria que se parecia com um puma, ou alguma coisa assim?
- Não. Não um puma.
- Com um cachorro?
- Talvez... um pouco parecido com um cachorro - disse ela, hesitante.
- Talvez um pouco parecido com um urso, também?
- Não.
- Com uma pantera?
- Não. Não se parecia com nenhum tipo de felino.
- Com um macaco?
Ela hesitou de novo e franziu a testa, pensando:
- Não sei por quê... mas, sim, talvez se pareça um pouco com um macaco. Exceto, pelo fato de que nenhum cachorro ou macaco tenha dentes como aqueles.
A porta do quarto abriu e o dr. Selbok entrou:
- Já se passaram os cinco minutos.
Walt começou a fazer sinal para o médico se afastar. Lem disse:
- Não, está bem. Nós terminamos. Falta meio minuto.
- Estou contando os segundos - advertiu o médico. Lem disse para a garota:
- Posso confiar em você?
Ela fixou os olhos nele e perguntou:
- Para ficar calada?
Lem confirmou com a cabeça. Ela respondeu:
- Sim. Não quero mesmo contar para ninguém. Meus pais pensam que dou muito adulta para minha idade. Mentalmente e emocionalmente adulta, penso eu. Mas se eu começar a contar histórias sobre... monstros, eles vão pensar que, afinal, não seja tão adulta assim. E, talvez cheguem à conclusão de que não tenho capacidade para cuidar de animais e suspendam os planos sobre a criação de cavalos. Não vou colocar isto em risco, sr. Johnson. Não, senhor. Na medida em que for importante para mim, foi um coiote louco. Mas...
- Sim?
- Você poderia me dizer... se há alguma chance de que ele volte?
- Acho que não. Mas seria prudente, por enquanto, você não sair à noite para o estábulo. Está bem?
- Está bem. - A julgar por sua expressão, ela ficaria dentro de casa pelas próximas semanas.
Eles deixaram o quarto, agradeceram a Selbok pela cooperação e desceram até a garagem do hospital. Seus passos ecoavam como se estivessem caminhando numa caverna. O lugar estava vazio e desolado.
Os carros estavam estacionados no mesmo andar e Walt acompanhou Lem até o carro dele, que não tinha qualquer identificação da Agência de Segurança Nacional. Enquanto Lem colocava a chave na porta, Walt olhava em torno para ter certeza de que estavam a sós, então disse:
- Diga-me.
- Não posso.
- Eu vou descobrir.
- Você está fora do caso.
- Então, leve-me até o juiz. Consiga um mandado de prisão.
- Eu poderia.
- Por colocar em perigo a segurança nacional.
- Seria uma acusação justa.
- Atire meu rabo na cadeia.
- Eu poderia - disse Lem, embora soubesse que não iria fazê-lo. Curiosamente, Lem se mostrava amável, embora a obstinação de Walt decepcionasse e até certo ponto irritasse. Tinha poucas amizades e Walt era seu melhor amigo. Sabia que a razão pela qual tinha poucos amigos era porque se mostrava algo seletivo, primando pelo alto padrão. Se Walt houvesse recuado totalmente, houvesse ele se submetido de vez à autoridade federal e se fosse fácil apagar-lhe a curiosidade como se apaga uma luz, ele ficaria um pouco diminuído aos olhos de Lem.
- O que lembra a você, uma mistura de cachorro com macaco que tenha olhos amarelos? - perguntou Walt. - Tirando sua mãe, é claro.
-- Ei, deixe minha mãe fora disto, branco azedo - disse Lem, enquanto entrava no carro, sorridente.
Walt manteve a porta aberta e abaixou-se para olhar para Lem.
- Pelo amor de Deus, o que escapou do Banodyne?
- Já disse que isto não tem nada a ver com o Banodyne.
- E o fogo no laboratório no dia seguinte... eles colocaram fogo para acabar com as provas do que estavam tramando?
- Não seja ridículo - disse Lem, dando partida no carro. - As provas podem ser destruídas de forma mais eficiente, não de uma maneira assim tão drástica. Se houvesse alguma coisa para destruir. E não havia. Porque o Banodyne nada tem a ver com isto.
Lem ligou o carro de novo, mas Walt não queria desistir. Mantinha a porta aberta e se aproximou ainda mais de Lem por causa do ruído do motor:
- Engenharia genética. Era com isto que o laboratório Banodyne estava envolvido, manipulando bactérias e vírus para fazer novos micróbios que conseguiam grandes avanços como a produção de insulina ou o controle da poluição do mar. Manipulando os genes de plantas também, imagino, para produzir milho especial em terra árida ou trigo que crescesse com metade da água necessária. Sempre pensamos na manipulação do gene sendo feita em pequena escala... plantas e germes. Mas será que poderiam estar lidando com um gene animal que houvesse originado uma nova e bizarra espécie? Foi isto o que fizeram? E foi isto o que escapou do laboratório?
Lem balançou a cabeça já desesperado.
- Walt, não sou um especialista em recombinação de ADN, mas não acho que a ciência seja tão sofisticada a ponto de operar num grau de segurança qualquer nesse tipo de coisa. E do que estaríamos falando, de qualquer forma? Está bem, apenas supondo que eles teriam capacidade de fazer um novo tipo de animal, a partir de uma estrutura genética já existente em outra espécie. Qual seria a finalidade? Quero dizer, além de servir para exibição em circo?
Walt apertou os olhos.
- Eu não sei. Você vai me dizer.
- Escute, a verba para pesquisa é sempre pouca e há uma competição feroz para pequenas ou grandes conquistas e ninguém faria pesquisa para uma coisa que não tivesse utilidade. Você me entendeu? Agora, porque estou envolvido, você pensa que é um assunto de defesa nacional e que o Banodyne estava esbanjando dinheiro do Pentágono nesta coisa.
- As palavras "esbanjar" e "Pentágono" às vezes são usadas na mesma frase - observou Walt, com rispidez.
- Caia na realidade, Walt. Uma coisa é o Pentágono permitir que um de seus conveniados gaste dinheiro na produção de um sistema de armas que necessita. Mas gastar dinheiro com experiências que sabidamente não tem objetivo de defesa é outro assunto. O sistema, às vezes, não funciona; às vezes há corrupção, mas o sistema nunca é estúpido por completo. De qualquer maneira, vou dizer mais uma vez: esta conversa toda não tem um fim em si mesma, porque nada tem a ver com o laboratório Banodyne.
Walt olhou para ele por um longo momento, suspirou e disse:
- Puxa, Lem, você é bom. E sei que você tem que estar mentindo para mim, mas estou quase certo de que você está dizendo a verdade.
- Eu estou dizendo a verdade.
- Você é bom. Portanto, diga-me: e Weatherby, Yarbeck e os outro? Você já localizou o matador?
- Não. - Na verdade, o homem ao qual Lem colocara encarregado do caso fizera um relatório, como se os soviéticos houvessem usado um matador fora de seu quadro de agentes e completamente fora do mundo deles. A Investigação parecia estar bloqueada. Mas tudo o que Lem disse foi: "Não".
Walt começou a fechar a porta do carro, baixou-se novamente e disse:
- Mais uma coisa, você percebeu que esta criatura tem uma certa direção?
- De que você está falando?
- Está se movimentando no sentido norte-noroeste, desde que saiu do laboratório - respondeu Walt.
- Mas não fugiu do Banodyne, porra!
- Do Banodyne para o canyon Holy Jim, de lá para Irvine Park e então para a casa de Keeshan à noite. Norte ou noroeste. Acho que você sabe o que pode significar para onde esta coisa está se dirigindo mas, é claro, eu não vou perguntar mais, ou você vai acabar me levando para a prisão e me deixar apodrecendo lá.
- Estou lhe dizendo a verdade sobre o Banodyne.
- Isto você diz.
- Você é impossível, Walt.
- Isto você diz.
- Assim todos dizem. Agora posso ir para casa? Estou morto. Sorrindo, Walt fechou a porta, finalmente.
Lem saiu com o carro da garagem do hospital e procurou logo a auto-estrada na direção de casa, em Placentia. Esperava estar na cama pouco depois de escurecer.
Enquanto dirigia o carro pelas ruas vazias pensava sobre o monstro que avançava para o Norte. Já havia chegado também a esta conclusão e igualmente estava convencido de que sabia o que a criatura estava procurando, embora não soubesse precisamente seu rumo. Desde o início, cachorro e monstro possuíam um instinto especial de reconhecimento um do outro, um instinto misterioso de verificação do comportamento e das atividades de cada um, mesmo que não estivesse no mesmo recinto. Davis Weatherby havia sugerido, e parecia não estar brincando, que havia um relacionamento telepático entre os dois, cachorro e monstro. Este último estava em permanente sintonia com o cachorro, seguindo-o através do sexto sentido.
E Lem orava a Deus para que aquilo não fosse verdade, para o bem do cachorro.
Era evidente, no laboratório, que o cachorro sempre tivera medo do monstro e com muita boa razão. Os dois representavam as duas faces da moeda do Projeto Francis: o sucesso e o fracasso; o bom e o mau. Assim como o cachorro era maravilhoso, correto e bom - bem, o monstro era exatamente o inverso: terrível, errado e demoníaco. E os pesquisadores descobriram que o monstro não só tinha medo do cachorro mas odiava-o de uma forma que ninguém seria capaz de entender. Agora, ambos estavam em liberdade e mais do que nunca o monstro desejava estraçalhar o cachorro.
Lem percebera que, devido à ansiedade, estava acelerando demais o carro e voava pela estrada. Diminuíra a pressão sobre o acelerador.
Onde quer que o cachorro estivesse, com quem estivesse o animal estava em perigo. E também aqueles que lhe haviam dado proteção estavam com a vida em jogo.
SEIS
1
Nora, Travis e Einstein permaneceram juntos quase todos os dias, na última semana de maio e no início de junho.
Inicialmente, ela estava preocupada com que Travis fosse perigoso, não tão perigoso como Art Streck, mas temível. No entanto ela logo ficou livre desta paranóia e passou a rir de si mesma, ao lembrar como havia sido ingênua com relação a Travis. Ele era bom e delicado. Precisamente, o tipo de homem que tia Violet dissera que não existia no mundo.
Como Nora havia dominado a paranóia de perseguição, estava convencida agora de que Travis continuava ao lado dela apenas por piedade. Por ser um homem bom ele jamais daria as costas a alguém que estivesse em perigo ou desespero. A maioria das pessoas que haviam encontrado Nora não a julgaria desesperada - talvez, estranha, tímida ou digna de pena, mas não desesperada. No entanto ela era desesperadamente incapaz de lidar com o mundo além das quatro paredes da sua casa, desesperadamente temerosa do futuro e desesperadamente só. Travis percebera tal desespero e reagiu. Gradualmente, à medida que se aproximava o verão e os dias mais quentes, mais bonitos, mais claros, Nora começou a considerar a possibilidade de que ele a estava ajudando não por piedade, mas porque gostava dela.
Mas não podia entender o que um homem como Travis poderia ver numa mulher como ela. Parecia não ter nada de extraordinário para oferecer.
Está bem, claro, ela tinha um problema de auto-imagem. Talvez não fosse tão insossa ou estúpida como pensava. Ainda que Travis merecesse - e certamente poderia ter - melhor companhia do que ela.
Ela decidira não questionar o interesse dele. O que devia fazer era relaxar e aproveitar.
Travis havia vendido sua imobiliária depois da morte da mulher e estava praticamente aposentado e, como Nora não tinha trabalho, os dois estavam livres para passar a maior parte do dia juntos. Visitavam galerias, procuravam livros para comprar, faziam longas caminhadas, passeavam de carro pelo maravilhoso vale de santa Ynez e pela bela costa do Pacífico.
Saíram duas vezes bem cedo, pela manhã, para Los Angeles, passando ali o dia todo. Nora ficou espantada com o tamanho da cidade e assustada com as atividades nas quais se envolveram: uma visita a um estúdio de cinema, um passeio no zoológico e o comparecimento a uma apresentação de um espetáculo musical, à tardinha.
Um dia Travis falou para ela cortar o cabelo e fazer um penteado. Levou-a a um salão de beleza que fora freqüentado por sua ex-mulher. Nora estava tão nervosa, que chegava a tremer diante da cabeleireira, uma loura de nome Melanie. Violet sempre cortava o cabelo de Nora em casa e depois da morte da tia era Nora quem cortava o próprio cabelo. Ir ao cabeleireiro era uma nova experiência, tão desconcertante como comer num restaurante pela primeira vez. Melanie cortou o cabelo de Nora bem curto, mas o deixou cheio. Não permitiram que Nora se olhasse no espelho, nem por um segundo, até que o cabelo estivesse seco e penteado. Então viraram a cadeira de Nora e a colocaram diante do espelho. Ela ficou maravilhada.
- Você está linda - disse Travis.
- Uma completa transformação - comentou Melanie.
- Você tem um rosto lindo - elogiou Melanie -, mas o cabelo longo a deixava em situação desfavorável. Este corte faz com que você tire melhor partido de suas linhas faciais.
Até mesmo Einstein parecia gostar da mudança. Quando deixaram o salão de beleza, o cachorro os esperava, preso a um parquímetro, onde os dois o haviam preso. Einstein quando a viu deu um pulo e colocou as patas da frente em Nora, cheirando-lhe ao mesmo tempo a face e o cabelo, parecendo feliz e abanando o rabo.
Ela odiou o penteado. Quando a colocaram frente a frente com o espelho, sentiu como se fosse uma mulher velha, tentando passar por uma garotinha nova e cheia de vida. O penteado não refletia sua personalidade, apenas, enfatizava que ela era apenas uma mulher sem atrativo algum. Jamais seria sensual, charmosa, e com tudo aquilo que o novo estilo de cabelo tentava sugerir. Era como tentar transformar um peru em pavão.
Ela não queria magoar Travis, e fingia estar gostando do que fora feito por ela. Mas naquela noite, ela lavou o cabelo e o escovou até desmanchar o penteado original. Não ficou como estava antes, mas fez o melhor que pôde.
No dia seguinte, quando Travis a foi apanhar para o almoço, ficou surpreso, porque ela estava com a aparência de sempre. Entretanto ele não comentara nada, e não perguntou nada a respeito. Ela estava tão embaraçada e temerosa de tê-lo magoado, que durante as primeiras horas não fora capaz de encará-lo por mais de um ou dois segundos de cada vez.
* * *
Apesar das repetidas e vigorosas recusas de Nora, Travis insistiu em que fossem a uma loja para que ela comprasse um novo vestido, colorido, alegre, próprio para o verão. Assim poderiam jantar no Talk of the Town, uni restaurante em West Gutierrez, onde ele disse que às vezes era possível ver algumas das celebridades que moravam na área, o segundo mais importante reduto de artistas do cinema, depois de Beverly Hills. Então foram a uma loja de luxo, onde ela experimentou uma série de vestidos, para ver a reação de Travis. A vendedora parecia estar verdadeiramente aprovando tudo o que Nora vestia, dizendo-lhe que era perfeita e tinha um manequim privilegiado. Nora achava que a mulher estava debochando dela. O vestido que Travis gostou mais era da coleção de Diane Freis. Nora não poderia negar que o vestido era de fato muito bonito: predominantemente vermelho e dourado e combinando no fundo com outras cores, o que era, a rigor, o estilo de Freis. Era extremamente feminino. Vestido por uma mulher bonita, faria verdadeiro sucesso. Mas não era para ela. Cores escuras, cortes sem forma, tecidos simples, sem quaisquer enfeites - isto era seu estilo. Tentou convencer Travis de que era melhor para ela, explicou que não poderia vestir algo como aquilo, mas ele se adiantou:
- Você está deslumbrante neste vestido. Realmente, deslumbrante. Ela permitiu que ele comprasse. Deus do céu, ela permitiu, mesmo.
Ela sabia que estava cometendo um erro, um grande erro, que aquilo estava errado e que jamais iria usá-lo. Enquanto embrulhavam o vestido, Nora se questionara por que ela o havia permitido. E o que mais a deixava fora de si era o fato de ter um homem se interessando por ela, por sua aparência e lhe comprando coisas. Nunca sonhara que alguma coisa assim pudesse acontecer consigo.
Não podia deixar de se sentir envergonhada. O coração batia forte. Ela estava tonta, mas era uma tonteira agradável.
Quando deixaram a loja, Nora descobriu que ele havia pago quinhentos dólares pelo vestido. Quinhentos dólares! Ela tencionava pendurá-lo no guarda-roupa para contemplá-lo por muito tempo e usá-lo como ponto de partida para sonhos maravilhosos. E por aquele preço ela teria que vesti-lo, mesmo que a fizesse sentir-se ridícula, como uma faxineira desejando parecer princesa.
Na noite seguinte, durante as duas horas que antecederam à chegada de Travis para que fossem jantar no Talk of the Town, ela colocou e tirou o vestido uma meia-dúzia de vezes. E tentou procurar entre suas roupas algo mais que pudesse substituir o presente. Mas não achou, porque jamais havia comprado roupa para freqüentar aquele tipo de restaurante. Olhando-se no espelho do banheiro, ela disse:
- Você parece Dustin Hoffman em Tootsie.
Ela riu de repente, porque sabia que estava sendo rigorosa demais consigo mesma. Mas não poderia ser mais condescendente. Estava-se Imaginando um homem vestido de mulher. Neste caso, os sentimentos eram mais importantes do que os fatos. Seu riso era agora um riso amargurado.
Nora chorou por duas vezes e pensou em ligar para Travis cancelando o compromisso. Mas queria mais do que nunca estar com ele, não importando a condição horrível e humilhante que tivesse que enfrentar à noite. Com ajuda de colírio, eliminou o vermelho dos olhos, vestiu a roupa novamente e a tirou.
Quando Travis chegou, passavam poucos minutos das sete horas. Ele estava muito elegante, de terno escuro.
Nora, com um vestido azul, simples e de sapato azul-escuro.
Ele disse:
- Eu espero. Nora perguntou:
- Hem?... Pelo quê?
- Você sabe - disse ele, sério. - Vá trocar-se.
As palavras começaram a sair nervosamente, à medida que ela se desculpava:
- Travis, sinto muito, isto é terrível, sinto muito, mesmo, mas deixei cair café no vestido.
- Vou ficar esperando - disse ele, caminhando na direção da sala de estar.
- Um bule inteiro de café - reforçou Nora.
- É melhor você se apressar. Fizemos reserva para as sete e meia. Dizendo para si mesma que a única opinião que contava era a de Travis,
Nora dominou o medo do ridículo ao defrontar-se com outras pessoas e acabou colocando o vestido da coleção de Diane Freis.
Desejou não ter desfeito o penteado de Melanie. Agora talvez, ajudasse.
Não. Talvez a fizesse ficar ainda mais ridícula.
Quando ela voltou novamente, Travis sorriu-lhe e disse:
- Você está adorável.
Ela não sabia se a comida do Talk of the Town era tão boa quanto costumavam dizer. Ela não sentia sabor em nada. Mais tarde, ela não poderia se lembrar claramente da decoração do lugar, embora o rosto dos outros fregueses - incluindo o ator Gene Hackman - estivessem vivos em sua memória, porque ela estava certa de que todos estavam olhando para ela com desprezo.
No meio do jantar, consciente do desconforto de Nora, Travis colocou na mesa o seu copo de vinho, inclinou-se na direção dela e disse:
- Você realmente está adorável, Nora, não importa o que você pense. Se você tivesse a experiênca dessas coisas, perceberia que a maioria dos homens no restaurante olha para você.
Mas ela conhecia a verdade e poderia senti-la. Se os homens estivessem de fato olhando para ela, não era porque fosse bonita. Seria natural que as pessoas olhassem para um peru tentando passar por pavão.
- Sem um pingo de maquilagem - disse ela -, você é mais bonita do que qualquer mulher neste lugar.
Sem maquilagem. Esta era a outra razão pela qual estavam olhando para ela. Quando uma mulher veste um traje de quinhentos dólares e é levada a um restaurante de luxo, procura ficar bonita com batom, sombra, delineador, blush, pó compacto, sabe lá Deus o que mais. Mas Nora nem pensara nisso.
A sobremesa de chocolate, embora, certamente gostosa, tinha sabor de grude e por repetidas vezes tinha ficado presa na garganta.
Ela e Travis haviam conversado por longas horas, durante as duas últimas semanas, descobrindo como era surpreendentemente fácil revelar sentimentos íntimos e pensamentos um para o outro. Ela ficou sabendo por que ele era solitário, apesar de sua boa aparência e saúde e aprendera também por que ela mantinha uma opinião depreciativa de si mesma. Assim, quando ela não conseguia mais comer a sobremesa e implorou a Travis para levá-la direto para casa, e ele disse serenamente:
- Justiça seja feita, Violet Devon deve estar suando no inferno, esta noite.
Perplexa com o que ouvira, Nora observou:
- Oh, não. Ela não era tão ruim assim.
No caminho de casa, por todo o percurso, ele permanecera em silêncio, refletindo.
Quando a deixou na porta de casa, insistiu para que marcasse uma entrevista com Garrison Dilworth, que fora o advogado da tia e agora cuidava dos interesses de Nora.
- Pelo que você me disse - observou Travis -, Dilworth conhecia sua tia melhor do que ninguém e o que você tem que fazer é ouvir o que ele tem a dizer sobre ela, e tenho certeza de que ele vai quebrar este maldito domínio de sua tia, até mesmo depois de morta.
- Mas não há grandes segredos a respeito de tia Violet. Ela era o que parecia ser. Era uma mulher muito simples, realmente. Um tipo de mulher triste.
- Triste o cacete! - disse Travis.
Ele insistiu, até que Nora concordou em marcar uma entrevista com Garrison Dilworth.
Mais tarde, já no quarto, quando tentou tirar o vestido de Diane Freis, ela descobriu que não queria fazê-lo. Toda a noite permanecera impaciente para se livrar daquela roupa. Mas agora, na sua lembrança, a noite lhe trazia boas recordações. Como uma garota sentimental, acabou dormindo com o vestido de quinhentos dólares.
* * *
O escritório de Dilworth era decorado de forma cuidadosa, para inspirar respeito, estabilidade e confiabilidade. Portas de carvalho entalhadas. Pesadas cortinas azul-real presas por argolas de metal. As prateleiras estavam repletas de livros sobre direito, todos luxuosamente encadernados. E uma imensa escrivaninha de carvalho.
O advogado, por si mesmo, era uma curiosa mistura de personificação da dignidade e honradez - e Papai Noel. Alto, já com o cabelo grisalho, mais de setenta anos e trabalhando a semana toda. Terno completo, colete, gravata - esta era a imagem dele. Apesar de estar por muitos anos na Califórnia, o seu tom de voz macio e profundo, denotando cultura, indicava claramente que Dilworth fazia parte do círculo fechado das famílias ricas do leste, onde nascera, crescera e se educara. Seus olhos tinham um brilho agradável. Sorria com facilidade, com doçura.
Ele não os manteve à distância, permanecendo atrás da escrivaninha. Mas sentou-se confortavelmente, com Nora e Travis, em três poltronas em torno de uma mesinha de café.
- Não sei o que você vai aprender de novo, vindo aqui. Não há segredos a respeito de sua tia. Não há grandes revelações que mudem a sua vida.
- Eu a conhecia muito bem - disse Nora. - Sinto muito se roubei o seu tempo.
- Espere - interrompeu Travis. - Deixe o sr. Dilworth terminar. O advogado continuou:
- Violet Devon era minha cliente e um advogado tem a responsabilidade de proteger os seus clientes, até mesmo mantendo segredos depois da morte destes. No mínimo, este é o meu ponto de vista, embora nesta profissão não seja isto uma obrigação definitiva. É claro, estou falando com a pessoa mais ligada a Violet e, igualmente, sua herdeira. Acredito que há pouca coisa que eu escolheria para esconder de você. Mas, de fato, não há segredos a revelar. E certamente não me sinto constrangido em expressar uma opinião honesta sobre sua tia. Até mesmo advogados, padres e médicos têm o direito de opinião sobre as pessoas. - Ele respirou, profundamente, e franziu a sobrancelha. - Jamais gostei dela. Achava que sua tia não possuía abertura mental. Vivia dentro de si mesma e era no mínimo levemente... bem, mentalmente instável. E a maneira como ela educou você foi criminosa, Nora. Não criminosa, no sentido da lei, mas criminosa de qualquer maneira. E cruel.
Até onde Nora poderia se lembrar, um imenso nó fora dado dentro de si, segurando firmemente os órgãos vitais, deixando-a tensa, restringindo a corrente sangüínea, forçando-a a um esforço extra, como se fosse máquina sem energia suficiente. De repente, as palavras de Garrison Dilworth desataram aquele nó, deixando passar uma completa e irrestrita corrente de vida, pela primeira vez.
Nora sabia o que Violet Devon fizera consigo. Mas, o puro conhecimento disto não era suficiente para que superasse aquela formação severa. E necessitava ouvir que uma outra pessoa condenasse a sua tia. Travis já havia denunciado Violet e Nora sentiu um pouco de alívio ao ouvir as observações dele. Mas não era suficiente para libertá-la, porque Travis não conhecia Violet e falava sem autoridade. Garrison conhecia muito bem Violet e as palavras dele a libertaram da escravidão.
Ela estava tremendo muito e as lágrimas começaram a cair-lhe pelo rosto. Nora não estava consciente de suas reações até que Travis se levantou da poltrona e colocou o braço em torno dela. Ela procurou rápido um lenço na bolsa.
- Sinto muito.
- Minha querida - disse Garrison -, não se desculpe por ter rompido aquela concha de ferro que você tem sido ao longo de sua vida. Esta é a primeira vez que a vejo mostrar uma emoção forte e é maravilhoso presenciar isto. - E virando-se para Travis, dando tempo para que Nora se recuperasse, ele disse: - O que mais você esperava que eu dissesse?
- Há algumas coisas que Nora não sabe, coisas que ela deve saber e que não acredito que possam ferir o seu código de ética.
- Que coisas, por exemplo?
- Violet Devon nunca trabalhou e mesmo assim vivia razoavelmente bem, nunca passando necessidades e deixou dinheiro suficiente para que Nora se mantivesse muito bem pelo resto da vida, no mínimo enquanto ficasse naquela casa e vivesse como reclusa. De onde vinha o dinheiro de Violet Devon?
- De onde? - perguntou surpreso Garrison. - Nora sabe disto, certamente.
- Mas ela não sabe - reafirmou Travis.
Nora levantou os olhos e viu Garrison Dilworth olhando para ela com perplexidade. Ele piscou os olhos e disse:
- O marido de Violet era moderadamente rico. Morreu muito moço e deixou tudo para ela.
Nora ficou boquiaberta, e quase não tinha fôlego para perguntar:
- Marido?
- George Olmstead - respondeu o advogado.
- Nunca ouvi este nome.
Garrison piscou os olhos novamente, como se houvesse entrado areia.
- Ela nunca lhe falou a respeito do marido?
- Nunca.
- Nem mesmo um vizinho mencionou isto?
- Não tínhamos contato com nossos vizinhos. Violet não aprovava.
- E, de fato - disse Garrison -, agora que estou pensando a respeito, pode ter havido vizinhos novos, em ambos os lados, desde que você foi morar com Violet.
Nora assoou o nariz e guardou o lenço. Ela ainda estava tremendo. Sua repentina libertação havia gerado emoções muito fortes, que Nora aprendeu a manter sob controle. No entanto, a curiosidade agora era maior.
- Você está bem? - perguntou Travis.
Ela fez que sim, com a cabeça, e olhou duro para ele:
- Você sabia, não é mesmo? Sobre o marido, quero dizer. É por isto que me trouxe até aqui?
- Eu suspeitava - disse Travis. - Se ela houvesse herdado alguma coisa dos pais, ela teria dito. Como sua tia nunca dissera de onde vinha o dinheiro... bem, pareceu a mim restar uma única possibilidade: um marido, ou alguém que lhe tivesse dado aborrecimentos. O que faz ainda mais sentido, quando você diz que ela vivia deprimida, não gostava de ninguém, especialmente de homens.
O advogado estava aflito e agitado e mal podia ficar sentado. Ele se levantou e caminhou passando por um globo aceso enorme, que parecia feito de pergaminho.
- Estou espantado. Você, de fato, nunca soube por que sua tia era tão amargamente anti-social e por que para ela todas as pessoas eram mal-intencionadas?
- Não - respondeu Nora. - Acho que não precisava saber por quê. Era simplesmente a sua maneira de ser.
Ainda caminhando, Garrison disse:
- Sim. É verdade. Estou convencido de que ela era paranóica, até mesmo na juventude. E então, quando descobriu que George a passara para trás com outra mulher, aí desandou de vez. Ficou muito pior, dali para a frente.
Travis perguntou:
- Por que Violet usava o nome de solteira, Devon, se ela havia se casado com Olmstead?
- Ela não quis mais usar o nome dele. Passou a odiar o nome. Pediu que George arrumasse as suas coisas e o correu de casa. Ela estava a ponto de se divorciar, quando ele morreu - disse Garrison. - Ela ficou sabendo das relações amorosas do marido, como já disse. Ficou furiosa. Envergonhada e furiosa. Devo dizer... não posso culpar inteiramente o pobre do George, porque não acho que ele tenha encontrado muito amor e afeição em casa. Ele sabia que o casamento fora um engano, um mês depois de casados.
Garrison fez uma pausa diante do globo antigo. Colocou a mão no seu topo, dando a impressão de estar mergulhado no passado. Não parecia ter aquela idade, mas agora os traços em seu rosto estavam mais destacados e o brilho dos olhos azuis não era tão intenso. Um pouco depois, balançou a cabeça e prosseguiu:
- De qualquer forma, eram outros tempos, uma época em que a mulher traída pelo marido era objeto de piedade, de escárnio. E até mesmo em nossos dias, penso que a reação de Violet seria exagerada. Ela queimou todas as roupas dele, trocou as fechaduras das portas... matou até mesmo o cachorro de estimação de George. Colocou veneno para o animal. E remeteu o corpo para ele pelo correio, dentro de uma caixa.
- Meu deus - surpreendeu-se Travis. Garrison continuou:
- Violet assumiu de novo o nome de solteira. O pensamento de carregar pelo resto da vida o nome de George Omstead a deixava horrorizada, disse-me ela, mesmo com ele já morto. Era uma mulher que não perdoava.
- Sim... - concordou Nora.
Garrison parecia não gostar do que estava se lembrando, e isto ficou claro no seu rosto:
- Quando George foi morto, ela não se preocupou em esconder o prazer.
- Morto? - Nora já estava esperando ouvir que Violet houvesse matado George Olmstead e niesmo assim escapado de um julgamento.
- Foi um acidente de carro, há quarenta anos - disse Garrison. - Ele perdeu o controle do volante na auto-estrada da costa, quando voltava de Los Angeles para casa, saindo fora da estrada. Naquela época não havia proteção na pista. O carro de George, um Packard preto, rolou várias vezes por um barranco de quarenta metros até ficar preso nas pedras, lá embaixo. Violet herdou tudo, porque embora houvesse iniciado o divórcio, George ainda não se decidira.
Travis observou:
- Assim, George Olmstead não somente traiu Violet, mas ao morrer, não deixou nenhum motivo de ódio para ela. Violet então dirigiu o ódio para o mundo, em geral.
- E para mim, em particular - completou Nora.
* * *
Naquela mesma tarde, Nora contou a Travis a respeito de suas pinturas. Ela nunca havia mencionado o seu lado artístico antes e Travis nunca havia entrado no quarto dela para ver todo o material de pintura. Não estava certa por que havia mantido em segredo este aspecto de sua vida. Ela havia comentado sobre o interesse em arte, motivo pelo qual os dois visitavam galerias e museus. Mas nunca falara de seus próprios trabalhos, temendo que ele não ficasse entusiasmado com as telas.
E se ele sentisse que ela não tinha, de fato, talento?
Depois dos livros, era exatamente a pintura o que mantivera Nora ocupada durante todos aqueles anos de solidão. Ela acreditava que era talentosa, muito talentosa. Mas não tinha coragem de revelar aquilo a ninguém. E se ela estivesse errada? E se não tivesse talento e pintasse só para passar o tempo? A sua arte era a forma de expressão por excelência de si mesma. Nora não tinha muito para sustentar sua fraca auto-imagem, então se prendia com todas as forças à crença de que era talentosa. A opinião de Travis significava mais para ela do que ela podia dizer e se a reação dele a sua pintura fosse negativa, ela ficaria arrasada.
Mas depois de deixar o escritório de Garrison Dilworth, Nora sabia que chegara a hora de correr o risco. A verdade sobre Violet Devon foi a chave que abrira a prisão emocional de Nora. Ela precisaria ainda de muito tempo para sair daquele cárcere onde vivia e ganhar o mundo, definitivamente. Mas a jornada com toda a certeza iria continuar. Entretanto, Nora teria que se expor a todas as experiências que a nova vida proporcionaria, Incluindo a terrível possibilidade de rejeição e um grande desapontamento. Sem risco, não haveria esperança de vitória.
De volta à casa, ela pensou em convidar Travis para subir ao primeiro andar para que este observasse algumas de suas mais recentes pinturas. Mas a idéia de ter um homem no seu quarto, ainda que as intenções fossem as mais inocentes, era impraticável. As revelações de Garrison Dilworth a libertaram de fato e seu mundo estava crescendo rapidamente, mas ela não se sentia absolutamente livre. Ao contrário, fez questão de que Travis e Einstein ficassem num enorme sofá na sala de estar, pára onde ela levaria os quadros. Acendeu todas as luzes, abriu as cortinas e disse:
- Volto num segundo.
Ao chegar no quarto, ficou indecisa sobre quais seriam os melhores quadros. Quais os dois melhores que deveria levar para Travis. Finalmente, escolheu quatro peças, embora fosse um pouco desagradável carregá-los todos de uma só vez. No meio do caminho, ela parou de repente e resolveu levá-los de volta para trocar por outros, tremendo muito. Depois de recuar quatro degraus, percebeu que poderia passar o dia inteiro naquela indecisão. Lembrando a si mesma de que nada poderia ser ganho sem assumir riscos, respirou fundo e desceu rapidamente as escadas levando os quatro trabalhos que escolhera.
Travis gostou deles. Mais do que isto. Ficou deslumbrado.
- Meu Deus, Nora, isto não é passatempo. Isto é pura arte.
Ela colocou os quadros em quatro cadeiras, mas ele não estava satisfeito de vê-los do sofá. Levantou-se para examinar mais de perto, saindo de um quadro para o outro e voltando ao primeiro.
- O seu estilo é extraordinariamente realista - comentou ele. - Está bem, não sou crítico de arte, mas, sério, você é tão habilidosa como Wyeth. Mas isto é outra coisa... esta qualidade sobrenatural em dois destes...
O elogio de Travis fez com que Nora ficasse com o rosto vermelho de vergonha e ela teve que engolir em seco para encontrar as palavras:
- Um toque de surrealismo.
Ela levara duas paisagens e duas naturezas-mortas. Um dos trabalhos era, de fato, uma pintura estritamente realista. Mas os outros dois estavam repletos de elementos surrealistas. Em uma das naturezas-mortas, por exemplo, diversos copos de água, jarra, colheres e um limão cortado estavam sobre uma mesa, pintados em todos os detalhes e à primeira vista tudo parecia muito realista; mas, olhando mais detidamente, você poderia notar que um dos copos estava derretendo na superfície onde fora pintado e que uma rodela de limão penetrava no lado do copo, como se este fosse formado a partir do limão.
- São brilhantes, são brilhantes mesmo - disse ele. - Você tem outros?
Ela realmente tinha outros!
Nora foi mais duas vezes ao quarto e voltou com mais seis pinturas.
O entusiasmo de Travis crescia a cada nova tela. Seu prazer era mesmo verdadeiro. Inicialmente, ela pensou que Travis estivesse brincando, mas logo teve a certeza de que ele não estava escondendo as suas verdadeiras reações.
Saindo de uma tela para a outra e voltando, novamente, ele disse:
- Você tem uma capacidade extraordinária de escolher as cores. Einstein acompanhava Travis por toda a sala e rosnava toda a vez que o seu dono fazia um comentário mais forte. O cachorro abanava o rabo freneticamente, concordando com os elogios de Travis.
- Há qualquer coisa de espiritual nestas peças.
Einstein rosnou de novo.
- O seu domínio sobre a técnica é impressionante. Não estou tendo a sensação de que vejo milhares de pinceladas. Ao contrário, parece que a imagem simplesmente apareceu na tela num passe de mágica.
Einstein novamente se manifestou.
- É difícil de acreditar que você não estudou numa escola de belas-artes.
Einstein rosnou mais forte.
- Nora, estes quadros podem ser vendidos com facilidade. Qualquer galeria os recolheria logo.
Einstein estava impossível.
- Você poderia não somente viver disso... acho que você poderia ficar famosa.
Como Nora jamais admitira que o seu trabalho de pintura fosse levado a sério, ela seguidamente pintou um quadro sobre o outro, na mesma tela. Conseqüentemente, muitas de suas peças desapareceram para sempre. Mas, no sótão, Nora havia guardado cerca de oitenta de suas melhores pinturas. Já que Travis insistia, os dois trouxeram algumas destas telas para a sala, tiraram o papel pardo que as envolvia e as dispuseram sobre os móveis. Pela primeira vez, desde que Nora podia lembrar, a triste sala da casa estava iluminada, aconchegante.
- Qualquer galeria teria interesse em fazer uma exposição com estes quadros - comentou Travis. - De fato, amanhã vamos colocar alguns deles no carro e levá-los para algumas galerias, para ouvir o que têm a dizer.
- Oh, não, não!
- Prometo, Nora, você não vai ficar desiludida.
Ela estava ficando com certa ansiedade. Embora animada pela possibilidade de uma carreira, também estava assustada pelo grande passo que estaria dando. Como caminhar à beira de um precipício.
- Ainda não. Em uma semana... ou um mês... nós levamos os quadros... não sei como assumir isto - procurou se desculpar Nora.
Ele sorriu para ela.
- Sobrecarga emocional, novamente?
Einstein se aproximou de Nora, roçando a perna dela e olhando para cima com uma expressão que a fez sorrir.
Cocando atrás das orelhas de Einstein, ela disse:
- Tanta coisa aconteceu e tão rápido que não posso assimilar. Tenho que lutar para não ficar tonta. Sinto-me como se estivesse num carrossel que estivesse girando cada vez mais rapidamente, fora de controle.
O que ela falou era verdade, até certo ponto. Mas esta não era a única razão pela qual Nora não queria sair em público com as telas. Ela também queria andar devagar, saboreando cada novo passo. Se corresse, poderia perder a perspectiva da transformação e sua entrada na vida normal poderia ser rápida demais. Ela desejava aproveitar cada momento daquela metamorfose.
Como um paralítico que fosse confinado desde o nascimento a uma sala escura, repleta de equipamentos para manter-lhe a vida, que, de uma hora para outra, houvesse sido curado; é desta forma que Nora estava-se sentindo, ao entrar com todo o cuidado neste novo mundo.
* * *
Travis não era o único responsável pela libertação de Nora. Einstein também tinha uma participação igual neste trabalho.
O cão tinha obviamente decidido que Nora poderia ser digna de confiança, para tomar conhecimento de sua extraordinária inteligência. Depois de Noiva moderna e o caso dos bebês, em Solvang, o cachorro começou a revelar-se cada vez mais.
Seguindo o exemplo de Einstein, Travis contou a Nora como ele havia encontrado o cachorro na floresta e como alguma coisa estranha - e nunca vista - os seguira. Narrou todas as proezas do cachorro, desde então. Também contou-lhe que Einstein tinha momentos de grande ansiedade durante a noite, ficando por muito tempo na janela olhando a escuridão, como se acreditasse que a criatura desconhecida fosse atacá-lo.
Ficaram horas sentados, numa noite, na cozinha da casa de Nora, tomando café e comendo bolo de abacaxi feito por ela, e trocando explicações para a misteriosa inteligência do cachorro. Quando não pedia pedaços de bolo, Einstein ouvia com interesse, como se nada lhe escapasse e como se entendesse tudo o que estavam dizendo sobre ele. Às vezes, rosnava com impaciência, frustrado, porque não era capaz de falar. Mas eles estavam perdendo tempo, pois não tinham explicações.
- Acredito que ele poderia nos dizer de onde veio, porque é bem diferente dos outros cachorros - disse Nora.
Einstein cortava rapidamente o ar com o rabo.
- Ó, estou certo que sim - disse Travis. - Ele percebe as coisas como se fosse humano. Sabe que é diferente e suspeito de que saiba por que e gostaria de nos dizer, se encontrasse maneira.
O cão latiu, correu até o fim da cozinha, voltou, olhou para eles, deu algumas voltas em torno de si, como faria qualquer ser humano num momento de frustração e finalmente deitou-se ao chão, rosnando.
Nora estava curiosa a respeito da história que Travis lhe contou sobre a noite em que Einstein ficou interessado na coleção de livros.
- Ele reconhece que os livros são um meio de comunicação - disse ela. - E talvez sinta que haja alguma forma de usar os livros para nos dizer alguma coisa.
- Como? - perguntou Travis, levantando o garfo com um pedaço grande de bolo.
Nora encolheu os ombros.
- Não sei. Mas talvez os seus livros não sejam os livros adequados. Romances, você disse?
- Sim. Ficção. Nora continuou:
- Talvez o que necessitamos sejam livros com gravuras, imagens que sugiram certa reação. Talvez se espalharmos livros e revistas no chão e trabalharmos com Einstein, quem sabe encontramos uma forma de comunicação?
O cão se levantou e seguiu na direção de Nora. Pela expressão do animal ela percebeu que aquele era o caminho. No dia seguinte, ela conseguiria dezenas de livros e revistas e colocaria o plano em execução.
- Vai ser preciso muita paciência - advertiu Travis.
- Tenho paciência para dar e vender.
- Você pensa que tem mas, às vezes, lidar com Einstein dá outro significado ao mundo.
Virando-se para Travis, o cachorro largou ar pelo focinho.
As primeiras tentativas para uma comunicação direta com o cachorro foram desanimadoras, na quarta e na quinta-feira, mas a grande descoberta estava a caminho. Na sexta-feira à noite, 4 de junho, eles encontraram o caminho e, a partir daquele ponto em diante, a vida deles não seria mais a mesma.
2
"-...informações de gritos numa área residencial ainda não acabada, Bordeaux Ridge."
Sexta-feira, 4 de junho, em menos de uma hora chegaria a noite, o sol se espalhava dourado sobre o município de Orange. Era o segundo dia que fazia calor forte e o calor acumulado do longo dia de verão emanava das ruas e edifícios. As árvores pareciam murchas. O ar estava parado. O som dos carros nas auto-estradas e nas ruas era abafado, como se o ar pesado filtrasse o ruído dos motores e das buzinas.
"-...repetindo, Bordeaux Ridge, em construção na extremidade leste."
Não havia quase movimento de carros no lado nordeste da montanha, numa área ainda não incorporada ao município, perto de Yorba Linda, onde começava o novo limite do subúrbio. O som ocasional de buzinas e freios não era meramente abafado pelo ar, mas se mostrava melancólico e tétrico.
Os auxiliares do xerife, Teel Porter e Ken Dimes estavam num carro-patrulha - Tell dirigindo, Ken segurando o fuzil - com o sistema de ventilação quebrado e, sem ar-condicionado, o carro deles parecia um forno, embora as janelas estivessem quebradas.
- Você fede como um porco morto - Teel Porter disse para o companheiro.
- É? - perguntou o outro. - Bem, você não só fede como parece um porco morto.
- É? Você tem casos com porcos mortos.
Ken sorriu, apesar do calor.
- É assim, é? Bem, a tua mulher me contou que você faz amor como um porco morto.
O mau-humor deles não poderia esconder o fato de que estavam cansados e desconfortáveis. E estavam atendendo a um chamado que prometia não ser muito excitante: provavelmente alguns garotos brincando; os garotos adoram brincar em área de construção. Os dois policiais tinham trinta e dois anos, eram fortes, costumavam jogar futebol no ginásio. Não eram irmãos - mas, companheiros há seis anos, eram irmãos.
Teel saiu do município e entrou numa estrada suja, que conduzia ao empreendimento imobiliário de Bordeaux Ridge. Cerca de quarenta casas estavam em vários estágios de construção. A maioria estava só com a estrutura, mas algumas já haviam recebido tijolo.
Ken comentou mal-humorado:
- Este é o tipo de merda que não entendo, por que as pessoas fazem isto. Quero dizer, porra, que tipo de nome afinal é Bordeaux, para uma área residencial no sul da Califórnia? Será que querem que você acredite que vai haver algum parreiral por aqui, algum dia? E chamam isto aqui de Ridge cordilheira, este pedaço de terra sem ondulação e entre morros. A propaganda deles promete serenidade. Talvez agora. Mas e quando colocarem aqui mais três mil casas, nos próximos cinco anos?
Teel disse:
- Sim, mas me parece que são "pequenas casas de campo". E que merda é "pequena casa de campo"? Ninguém, em sã consciência, vai pensar que isto seja casa de campo. Exceto os russos, que passaram a vida toda morando, doze, dentro de um apartamento.
Todas as ruas de Bordeaux Ridge tinham o meio-fio da calçada de concreto e esgotos, mas não havia calçamento ainda. Teel dirigia devagar, tentando não levantar muita poeira, mas levantava, de qualquer maneira. Ele e Ken olhavam para a direita e para a esquerda, entre as paredes das casas, procurando por garotos que estivessem brincando.
Algumas pessoas já estavam morando no lado oeste, no limite com a cidade de Yorba Linda e ao lado de Bordeaux Ridge. Foram estas pessoas que ligaram para a polícia de Yorba Linda dizendo que alguém estava gritando nas vizinhanças. Como aquela área não havia sido anexada à cidade, a reclamação acabou caindo no departamento do xerife.
No final da rua, os policiais viram uma pickup branca que pertencia à empresa proprietária de Bordeaux: Irmãos Tuleman. Estava estacionada em frente de três casas, quase prontas.
- Parece que há um capataz por aqui - disse Ken.
- Ou talvez seja o vigia noturno, que pegou mais cedo - comentou Teel. Estacionaram atrás da camioneta, saíram do carro-patrulha e permaneceram parados por um momento. Silêncio.
Ken gritou:
- Tem alguém aí?
- Sua voz ecoou de um lado para o outro, entre as ruas desertas.
- Quer dar uma olhada? - perguntou Ken.
- Merda, não - falou Teel. - Mas vamos verificar.
Ken ainda não acreditava que alguma coisa estivesse errada em Bordeaux Ridge. A pickup poderia ter sido deixada para trás no fim do dia. Além do mais, havia também outros equipamentos. Os gritos que tinham sido ouvidos naturalmente eram das crianças brincando.
Saíram do carro com duas lanternas, porque não havia lâmpadas nas casas em construção.
Ajeitaram o revólver na cintura, mais por hábito do que por estarem sentindo necessidade de usar arma. Caminharam até as casas mais próximas, sem procurar coisa alguma em particular, agindo de acordo com a rotina, como outros policiais o fariam.
Agora soprava uma brisa constante - a primeira do dia - levantando poeira dentro das casas. O sol estava se pondo rapidamente, mas ainda penetrava pelas madeiras do muro, projetando sombras no chão, que pareciam as grades de uma prisão. Os últimos raios de sol já não eram mais dourados. Haviam-se transformado em vermelho fosco, como se fosse a boca de um forno. O chão de concreto estava cheio de pregos, que brilhavam com a lanterna e faziam ruídos ao serem pisados.
- Por cento e oitenta mil dólares - comentou Teel, lançando o foco de luz pelos cantos escuros -, esperava que os quartos fossem um pouco maiores.
Respirando fundo aquele ar cheio de pó de serra, Ken disse:
- Porra, eu esperava salas tão grandes quanto a sala de espera de um aeroporto.
Caminharam até o quintal da casa, e desligaram as lanternas. A terra estava nua e seca, não havia jardim. O resto do quintal era um verdadeiro depósito de lixo, com tudo o que sobrara da obra: pedaços de madeira, restos de concreto, montes de arames retorcidos, canos de PVC sem utilidades, copos de refrigerante, embalagem Big Mac, latas vazias de Coca-Cola e muito mais que não podia ser identificado.
As casas não tinham cerca, o que lhes permitia observar o fundo das doze casas ao longo da rua. Algumas sombras avermelhadas cortavam o solo cheio de areia, mas podiam ver que não havia ninguém por ali.
- Não há sinal de ninguém ferido - falou Teel.
- Nenhuma donzela em apuros - acrescentou Ken.
- Bem, vamos, pelo menos, caminhar um pouco para observar entre as casas - sugeriu Teel. - Devemos uma satisfação aos contribuintes, pelo que pagam.
Duas casas adiante, no espaço entre duas paredes, encontraram o corpo de um homem.
- Diabos - desabafou Teel.
O corpo estava virado de costas, a maior parte dele na sombra. Só as pernas estavam iluminadas; por este motivo, os policiais não perceberam, à primeira vista, o estado terrível em que aquele homem havia ficado. Mas, quando se abaixaram ao lado do corpo, verificaram que a barriga do homem estava aberta.
- Nossa! Os olhos dele! - surpreendeu-se Teel.
Ken constatou igualmente que havia dois buracos no lugar dos olhos. Recuando para o quintal, Teel sacou o revólver.
Ken também se afastou do corpo e puxou a arma. Embora estivesse suando o dia todo, agora estava sentindo uma espécie diferente de suor: o suor frio e amargo do medo.
Droga, pensou Ken. Somente um babaca, completamente drogado, poderia ter feito aquilo...
O silêncio era completo em Bordeaux Ridge.
Não havia nenhum outro movimento além das sombras, que pareciam cada vez maiores.
- Algum maldito viciado fez isto - disse Teel. - Você quer procurar mais?
- Por Deus... Nós dois sozinhos... não! Vamos pedir ajuda pelo rádio.
Começaram a recuar, com todo o cuidado, olhando para todos os lados e não foram muito longe, até que ouviram ruídos. Algo sendo quebrado. Um barulho de metal e vidros caindo em pedaços.
Ken não tinha a menor dúvida de onde estava vindo todo aquele barulho. Vinha de dentro de uma das três casas que serviam como modelo para os vendedores.
Sem nenhum suspeito à vista, ou pistas a seguir, o que eles deveriam fazer era voltar ao carro e pedir reforços. Mas agora a situação era diferente e o treinamento e instinto exigiam que o procedimento fosse outro. Caminharam para o fundo da casa.
As paredes dos estábulos estavam revestidas de madeira compensada, ficando assim protegidas das intempéries, e um tela de arame fora afixada às placas de papel alcatroado. Algumas paredes estavam com madeira e outras já com estuque. De fato o cimento ainda estava mole, indicando que o trabalho havia sido inciado naquele dia. A maior parte das janelas já fora colocada no lugar; somente algumas aberturas permaneciam cobertas com plástico.
Novamente ouviram o barulho de algo se quebrando, agora de forma mais violenta.
Ken Dimes tentou correr a porta de vidro que ligava os fundos da casa aos aposentos da família. E não estava chaveada.
Teel ficou examinando a sala do outro lado do vidro. Embora alguma luz entrasse na casa, o interior continuava completamente escuro. Mas era possível ver que a sala estava deserta. Teel cruzou a porta. Numa das mãos a lanterna, na outra, bem firme, o Smith & Wesson.
- Você vai pela frente - falou em voz baixa para o companheiro. - Assim, aquele sacana não vai fugir por lá.
Abaixando-se para ficar protegido pela parede, Ken correu e contornou a esquina da casa até chegar à frente, na expectativa de alguém que fosse pular a janela em cima dele.
* * *
Os interiores receberam camadas de gesso em folha, assim como os forros dos tetos. A sala de estar tinha conexão com uma área menor, para pequenas refeições, ao lado da cozinha. Armários de carvalho já haviam sido instalados na cozinha, mas não havia piso. O ar cheirava a gesso e verniz de madeira.
Teel parou um instante para tentar ouvir mais ruídos.
Nada.
Se aquela casa fosse parecida com a maioria das casas da Califórnia, ele encontraria a sala de jantar à esquerda, depois da cozinha, depois, a sala de estar, o vestíbulo, na entrada e uma sala para estudos. Se caminhasse pelo corredor para sair da copa encontraria a lavanderia, o banheiro do andar térreo, um armário de roupas e o vestíbulo. Não via vantagem em seguir uma ou outra direção e resolveu verificar a lavanderia primeiro.
A lavanderia estava escura e não tinha janelas. A porta estava entreaberta e a luz da lanterna mostrou apenas armários abertos e os lugares reservados para as máquinas de lavar e secar. Entretanto, Teel queria olhar no espaço atrás da porta, onde imaginava que houvesse uma pia e uma mesa embutida. Abriu toda a porta e entrou rápido, virando a lanterna e arma naquela direção. Achou a pia e a mesa, como esperava, mas nada do assassino.
Nunca estivera tão tenso assim. Não podia impedir que a imagem do homem morto se afastasse do pensamento - com aqueles buracos impressionantes no lugar dos olhos.
Não apenas tenso, pensou ele. Na verdade, você está se borrando de medo.
* * *
Na parte da frente, Ken pulou uma pequena vala e se dirigiu para a porta de entrada, que estava fechada. Olhou em torno e não percebeu ninguém fugindo. Ao pôr-do-sol, Bordeaux Ridge não parecia área em construção. Aquilo tudo lembrava imagens de bombardeio. As sombras e a poeira criavam a ilusão de destroços.
* * *
Na lavanderia, Teel Porter se virou tencionando caminhar pelo corredor e à sua direita, onde havia uma série de armários, uma porta de 50cm de largura por 1,80m de altura abriu de repente e aquela coisa caiu sobre ele. Puxa, por um segundo ele estava certo de que era uma criança usando uma máscara de borracha assustadora. A lanterna não estava apontada para o atacante, de modo que não podia ver claramente o que estava acontecendo. Quando se deu conta, estava diante daqueles olhos que pareciam duas bolas de fogo e aquilo não era máscara coisa nenhuma. Ele abriu fogo, mas a coisa avançou na direção de onde estava. Tentou recuar, mas a coisa já estava sobre ele, sibilando feito cobra. Deu mais um tiro, para o chão, desta vez - o som era ensurdecedor naquele espaço fechado - foi atirado para trás contra a pia e a arma caiu de sua mão. Também perdera a lanterna. Tentou defender-se dando socos, mas sentiu uma dor terrível na barriga, como se alguém houvesse espetado inúmeros estiletes e soube num instante o que estava acontecendo com ele. Gritou várias vezes, diante daquela cara deformada que parecia máscara de borracha, com aqueles olhos amarelos faiscando. Gritou de novo e mais estiletes penetraram, desta vez, na sua garganta.
* * *
Ken Dimes estava a quatro passos da porta de entrada, quando ouviu os gritos de Teel. Gritos de surpresa, medo e dor.
- Merda.
Eram portas duplas, de carvalho. A da direita estava firmemente presa por trincos, a da esquerda poderia ser aberta - e não estava trancada. Ken correu para dentro, esquecendo de tomar qualquer cuidado, então parou.
Não havia mais gritos.
Ligou a lanterna. À direita, a sala estava vazia. Não havia nada na sala de estudos à esquerda. Uma escada conduzia ao segundo andar. Ninguém à vista.
Silêncio. Um silêncio perfeito.
Por um momento, Ken hesitou em chamar por Teel, temendo revelar a sua posição para o assassino. Então concluiu que a lanterna acesa o identificaria, mas sem ela não poderia prosseguir e acabou não se preocupando com o barulho.
- Teel!
O grito ecoou pelas salas vazias.
- Teel, onde está você? Não houve resposta.
Ele pensou: Teel deve estar morto. Meu Deus! Ele responderia se estivesse vivo.
Ou talvez estivesse ferido, ou inconsciente, ferido e morrendo. Neste caso, talvez fosse melhor voltar para o carro-patrulha e chamar uma ambulância.
Não. Não, se o companheiro estivesse numa situação desesperadora, Ken teria que encontrá-lo rápido para tentar os primeiros-socorros. Teel poderia morrer no momento em que fosse chamar por socorro. Um atraso seria fatal.
Além disso, o assassino teria que ser dominado.
Apenas uma vaga claridade entrava pela janela, já estava quase noite. Ken não tinha outra alternativa senão usar a lanterna, o que não era o ideal por causa das inúmeras sombras projetadas, criando falsas imagens. Os falsos atacantes poderiam distraí-lo, desviando sua atenção do perigo real.
Deixando a porta da rua aberta, correu pelo corredor estreito, que levava ao fundo da casa. Mantinha-se bem próximo à parede. Um de seus sapatos fazia ruído toda vez que dava um passo. Mantinha a arma bem levantada à sua frente, evitando o chão e o teto, sem seguir o maldito regulamento de segurança.
Havia uma porta aberta à sua direita. Um armário: vazio.
O cheiro do seu suor estava mais forte que os odores da casa. Entrou no lavatório à esquerda. Examinou rapidamente com a lanterna mas não viu coisa alguma de extraordinário, a não ser sua cara assustada no espelho.
Na parte dos fundos da casa, a sala de jogos, a copa, a cozinha - tudo isto à sua frente. À sua esquerda havia outra porta aberta. No foco da lanterna, que de repente começou a tremer violentamente em sua mão, estava o corpo de Teel, no meio da lavanderia. Havia tanto sangue que não seria possível imaginá-lo vivo.
Atrás do medo refletido no seu rosto, havia um misto de luto, raiva, ódio e um grande desejo de vingança.
Alguma coisa se mexeu atrás de Ken.
Ele gritou e virou o corpo para enfrentar fosse o que fosse.
Mas não viu nada.
O som veio da porta da frente da casa e ele sabia o que estava acontecendo - alguém fechara a porta.
Outro ruído quebrou o silêncio, não tão forte quanto o primeiro, mas ainda mais assustador: o trinco fora fechado.
Será que o assassino saiu e fechou a porta pelo lado de fora, usando a chave? Mas onde conseguiria uma chave? Será que pertencia ao capataz que matara? E por que pararia para fechar a porta?
Mais parecia que o assassino fechara a porta de dentro, não só para retardar a fuga de Ken, mas para lembrá-lo de que a caçada estava em andamento.
Ken pensou em desligar a lanterna, que o identificaria para o assassino, mas já era noite, tudo estava completamente escuro. Sem a lanterna ele ficaria cego.
- Porra, de que jeito o assassino conseguiu achar o caminho nessa escuridão? Seria possível um viciado em drogas melhorar sua visão noturna, tanto quanto sua força parecesse ser de dez homens?
A casa estava absolutamente em silêncio.
Ele permanecia de costas para a parede do corredor.
Ken podia sentir o cheiro do sangue de Teel. Um cheiro vagamente metálico.
Clic, clic, clic.
Ken ficou prestando atenção, mas não podia ouvir mais nada além daqueles três ruídos rápidos. Pareciam passadas ligeiras no chão de concreto, possivelmente alguém usando botas com salto de couro - ou sapatos sem salto de borracha.
Os ruídos começaram e pararam tão rapidamente, que ele não fora capaz de localizar de onde vinham. Então, ouviu novamente - clic, clic, clic, clic quatro passos desta vez, partindo do vestíbulo, na direção dele:
Imediatamente Ken se afastou da parede, para enfrentar o adversário, levantando ao mesmo tempo o revólver e a lanterna. Mas o corredor estava deserto.
Respirando pela boca para reduzir o ruído da própria respiração, para prestar mais atenção aos passos do inimigo, Ken caminhou pelo corredor e chegou ao vestíbulo. Nada. A porta da frente estava bem fechada. As salas de estar e de estudos e a escada estavam desertas.
Clic, clic, clic, clic.
Os ruídos agora chegaram de outro ponto, do fundo da casa. O assassino saíra silenciosamente do vestíbulo, cruzando a sala de estar, a sala de jantar e a cozinha, para chegar na copa fazendo uma volta pela casa, para se posicionar bem atrás de Ken. Agora, o sacana havia entrando no saguão de onde Ken saíra. Embora o assassino não fizesse ruído nas outras salas, agora podia ser escutado. Os ruídos eram estudados, feitos com o propósito de assustar Ken, como que dizendo: "Ei, estou atrás de você, agora lá vou eu".
Clic, clic, clic, clic.
Ken Dimes não era covarde. Era um bom policial e nunca fugira de confusão. Fora condecorado por bravura, duas vezes em sete anos. Mas este violento e insano filho de uma puta, se arrastando pela casa em plena escuridão, fazendo silêncio e ruído quando bem entendia o deixara assustado. E embora Ken fosse corajoso como qualquer outro policial, não era idiota.
E somente um idiota enfrentaria uma situação que não entendesse.
Em vez de voltar ao saguão para enfrentar o assassino, Ken seguiu para a porta da rua e procurou pela maçaneta, tentando abrir a maldita porta. Então, percebeu que além do trinco, havia um arame que prendia firmemente as duas portas. Ken perderia meio minuto para abrir.
Clic, clic, clic.
Ele abriu fogo na direção do corredor, sem mesmo olhar, e correu no sentido contrário, cruzando a sala de estar vazia. Ouviu o assassino atrás de si. Clic. Aproximando-se rapidamente na escuridão. Quando Ken chegou à sala de jantar, perto do corredor que levaria à cozinha, ouviu o ruído bem à sua frente. Estava certo de que aquela coisa o havia perseguido pela sala de visitas, mas agora vinha de outro lado, como se fosse um jogo. Um jogo maluco. Pelo som que o sacana fazia, estava a ponto de entrar na copa onde acabariam se encontrando. Ken decidiu ficar parado para mandá-lo para o inferno, no momento em que aparecesse no foco da lanterna.
Ouviu um guinchos, alguma coisa rosnando.
Ruídos no corredor, ainda fora de sua vista, mas seguindo em sua direção. Ken ouviu um grito que nenhum ser humano jamais daria. O som mais estranho que já escutara. Desistiu de pensar em qualquer confrontação, colocou a lanterna na cozinha para desviar a atenção do assassino e correu na direção oposta. Nem para a sala de estar, nem para nenhuma outra parte da casa, para acabar com aquele jogo de gato e rato. Saiu rápido pela sala de jantar, na direção de uma janela que deixava entrar vagamente a luz da rua.
Abaixou a cabeça, cruzou os braços no peito e se lançou de lado contra os vidros. A janela explodiu e ele caiu no pátio da casa, rolando entre pedaços de madeira. Ficou ferido nas costelas e nas pernas, por fragmentos de concreto. Levantou-se e descarregou o revólver na direção da janela quebrada, na eventualidade de o assassino estar atrás dele.
Não viu nenhum sinal do inimigo no meio da noite.
Concluindo que ainda não estava salvo, não podia perder tempo testando a sorte. Correu pelo lado da casa e saiu para a rua. Ken tinha que chegar até ao carro-patrulha para usar o rádio e pegar outra arma mais potente.
3
Nos dias 2 e 3 de junho, quarta e quinta-feira, Travis Nora e Einstein procuraram com dedicação uma fórmula eficaz de comunicação entre si e, no processo, os três quase demonstravam sinais de frustração. Entretanto, Nora provara ter mais paciência e confiança do que todos juntos. Quando a descoberta surgiu próximo do pôr-do-sol, na sexta-feira, quatro de junho, ela estava menos surpresa do que Travis e Einstein.
Os dois haviam comprado quarenta revistas, incluindo Time, Life e cinqüenta livros de arte e fotografia, que espalharam pela sala da casa de Travis. Os travesseiros no chão ajudavam a trabalhar ao nível do cachorro, mais confortavelmente.
Einstein olhava para os preparativos com interesse.
Sentada ao chão com as costas no sofá, Nora pegou a cabeça do cão com as duas mãos e aproximou do rosto, quase tocando o focinho e disse:
- Está bem, agora preste atenção, Einstein. Queremos saber tudo a seu respeito: de onde veio, por que é mais inteligente que os outros cachorros, por que estava assustado no mato no dia em que Travis te achou, por que fica olhando apavorado pela janela durante a noite. E muito mais. Mas você não pode falar, pode? Não. E até onde podemos deduzir, não sabe ler. E se pudesse ler, não poderia escrever. Assim temos que fazer isto com imagens, acho.
Do lugar onde estava, próximo de Nora, Travis vira que os olhos do cachorro não piscaram um segundo, enquanto Nora falava. Einstein estava rígido. O rabo estava caído sem se movimentar. Não somente parecia ter entendido o que Nora estava dizendo, como deu a impressão de estar achando a experiência fora de série.
Travis se perguntava o quanto aquele cachorro realmente entendia, e o quanto tudo aquilo era fruto de sua própria imaginação.
As pessoas têm tendência natural para humanizar as reações e intenções dos animais, quando não há coisa alguma de concreto nisto. No caso de Einstein, havia de fato uma inteligência extraordinária e a tentação de ver um significado mais profundo nas reações dele, era maior ainda.
- Vamos estudar todas estas fotografias, procurando por coisas que interessem a você, por coisas que nos vão ajudar a entender de onde você veio e como você se tornou o que é. Toda vez que você localizar algo que possa nos auxiliar neste quebra-cabeças, tem que nos chamar a atenção. Latindo, colocando a pata ou abanando o rabo - completou Nora.
- Isto é loucura - disse Travis.
- Está me entendendo, Einstein? - perguntou Nora. O cão rosnou levemente.
- Isto nunca vai funcionar - observou Travis.
- Vai sim - insistiu Nora. - Ele não pode falar, não pode escrever, mas nos pode mostrar muita coisa, indicando as fotos. Se ele apontar uma dúzia de imagens, poderemos imediatamente não entender o significado, mas com o tempo encontraremos um meio de chegar a uma completa compreensão, relacionando umas fotos com outras. E saberemos o que ele quer nos dizer.
O cachorro, com a cabeça presa às mãos de Nora, virou os olhos na direção de Travis e rosnou novamente.
- Está pronto? - perguntou Nora para Einstein. O cachorro olhou firme para ela e abanou o rabo.
- Muito bem - disse ela, largando a cabeça do animal. - Vamos começar.
Quarta, quinta e sexta-feira, por longas horas, passaram por dezenas de fotos, mostrando a Einstein o maior número possível de imagens, de todos os tipos, pessoas, árvores, cachorros, outros animais, máquinas, ruas, carros, navios, aviões, comidas, propagandas para milhares de produtos, na esperança de que encontrasse algo que o deixasse animado. Ele latiu, colocou a pata, rosnou e abanou o rabo por uma centena de vezes. As escolhas dele eram de tão grande variedade que Travis não conseguia achar um padrão definido. Não havia maneira de relacioná-las, de associá-las.
Einstein ficara fascinado com uma propaganda de carro, onde este era comparado a um tigre, preso na jaula de ferro. Se era o carro ou o tigre que lhe chamara a atenção, não ficou claro. Também reagira a muitas propagandas de computador, comida de cachorro e de um toca-fitas estéreo, portátil. Isto sem falar nas fotos de livros, borboletas, papagaio, de um homem abandonado numa prisão, quatro rapazes jogando bola na praia, de Mickey, de um violino e muitas outras coisas. Ele ficou atormentado com uma fotografia de outro cão de caça como ele e muito animado com outra foto de um cocker spaniel, mas curiosamente, não mostrara muito interesse por outras raças de cachorro.
A reação mais forte e intrigante, foi dada a uma foto de um artigo de revista sobre um filme que seria lançado pelo 20th Century-Fox. A história do filme era sobrenatural, com fantasmas e demônios que emergiam do inferno. Einstein ficou muito agitado ao ver uma imagem de um demônio com a boca espumante, dentes protuberantes e olhos reluzentes. O cachorro fora afetado por ela.
Latiu para a foto. Correu para trás do sofá e se encolheu no outro canto, como se pensasse que a criatura pudesse pular da revista. Ao ver o demônio pela segunda vez, Einstein rosnou de forma ameaçadora. Começou a bater com as patas na revista, até que esta ficasse completamente fechada.
- O que tem esta fotografia de tão especial? - Nora perguntou ao cachorro.
Einstein ficou apenas olhando para ela.
Pacientemente, Nora abriu a revista na mesma página.
Einstein a fechou, novamente.
Nora abriu.
Einstein a fechou uma terceira vez, espalhando as folhas com as patas, e retirou a revista da sala.
Travis e Nora seguiram o cão até a cozinha e viram que ele se dirigia para a lata de lixo. A lata de lixo tinha um pedal para ser apertado. Einstein colocou a pata no pedal e jogou a revista dentro da lata.
- Ei, mas o que é isto, afinal? - perguntou Nora, surpresa.
- Imagino que seja um filme que ele não quer ver por nada deste mundo.
- Nosso crítico cinematográfico de quatro patas.
Este incidente tinha acontecido na quinta-feira à tarde. No início da noite de sexta-feira, Travis e Einstein estavam visivelmente frustrados.
Às vezes Einstein exibia uma misteriosa inteligência, em outras o comportamento era o de um cachorro normal. As oscilações entre cachorro genial e cachorro idiota eram para tirar a paciência de qualquer um que tentasse compreender como Einstein podia ser tão inteligente. Travis começou a pensar que a melhor maneira era aceitá-lo como ele era: estar preparado para as suas genialidades, de vez em quando. Tudo levava a crer que o mistério da inteligência fora do comum do cachorro jamais seria revelado.
Entretanto, Nora permanecia paciente. Ela freqüentemente os lembrava de que "Roma não fora construída em um só dia" e que uma descoberta maravilhosa exigia determinação, persistência, tenacidade e tempo.
Quando ela se colocava a fazer preleções sobre persistência e dureza, Travis a olhava com ar cansado e Einstein bocejava.
Nora era imperturbável. Depois de examinarem as fotografias, em todos os livros e revistas, ela selecionou as fotos que Einstein havia respondido e espalhou-as pelo chão, encorajando o cachorro a fazer a relação de umas com as outras.
- Todas são fotografias de coisas que tiveram um papel importante no passado para ele - disse Nora.
- Não acredito que tenhamos certeza disto - observou Travis.
- Bem, foi o que pedimos que ele fizesse - disse ela. - Pedimos que ele apontasse as fotos que pudessem indicar de onde veio.
- Mas ele entende o jogo?
- Sim - respondeu ela com convicção. O cachorro rosnou.
Nora levantou a pata de Einstein colocando-a sobre a foto do violino:
- Você se lembra deste violino de algum lugar. Portanto, é importante para você.
- Talvez ele tenha tocado no Carnegie Hall - brincou Travis.
- Cale a boca. - Nora virou-se para o cachorro e disse: - Muito bem. Diga-nos se o violino pode ser relacionado com alguma outra foto. Há alguma relação com outras fotos que nos ajude a entender o que o violino significa para você?
Einstein olhou intensamente para ela por um momento como se estivesse pensando na questão. Então, atravessou a sala, caminhando cuidadosamente por entre as fotos, farejando, olhando de um lado para outro, até encontrar uma propaganda de um toca-fitas estéreo portátil. Colocou uma das patas sobre a foto e olhou novamente para Nora.
- Há uma relação evidente - comentou Travis. - O violino faz música e o aparelho reproduz. Como associação de idéias é impressionante para um cachorro, mas será que há algum outro significado, alguma coisa sobre o passado dele?
O cachorro olhou para ela. Nora disse:
- O seu antigo dono tem um aparelho igual àquele? O cachorro ficou olhando para ela.
Nora disse:
- Quem sabe o violinista gravasse a sua própria música no aparelho? Está bem. Há alguma outra foto aqui que você possa associar com o violino e o gravador?
Einstein olhou um pouco para a propaganda do gravador, caminhou mais pela sala e parou diante de uma revista com uma propaganda da Blue Cross, que mostrava um médico de jaleco branco do lado de uma parturiente que segurava o bebê nas mãos. A mulher e o médico estavam sorrindo e o bebê parecia calmo e tranqüilo como o menino Jesus.
Abaixando-se bem perto do cachorro, Nora perguntou:
- Esta foto te lembra a família a que você pertencia? O cachorro ficou olhando para ela.
- Na família havia a mãe, o pai, e o bebê, e você vivia com eles? O cachorro continuou olhando para Nora.
Ainda sentado no chão, com as costas apoiadas no sofá, Travis disse:
- Talvez tenhamos um caso real de reencarnação em nossas mãos. Einstein talvez se tenha lembrado de ter sido médico, mulher e bebê em outras vidas.
Nora não diria uma resposta àquele tipo de observação.
- Um bebê que toca violino - comentou Travis. Einstein não estava satisfeito.
Com mãos e joelhos no chão, numa posição de cachorro, Nora estava a alguns centímetros de Einstein, rosto e focinho, com ele.
- Está bem. Isto não vai nos levar a lugar algum. Precisamos ir além deste método de relacionar fotografias. Temos que ter a capacidade de fazer perguntas sobre as fotos e obter as respostas.
- Dê-lhe papel e lápis - sugeriu Travis.
- Isso é um assunto sério - disse Nora, impaciente com Travis, como nunca estivera com o cachorro.
- Sei que é sério - disse ele. - Mas também é ridículo.
Ela deixou cair a cabeça por um instante, como um cachorro que estivesse sofrendo de calor no verão, então virou-se para Einstein e disse:
- Queremos saber até onde você é inteligente. Quer provar que é gênio? Deseja ter nossa eterna admiração e respeito? Então aqui está o que você tem de fazer: aprender a responder minhas respostas com um simples sim ou não.
O cachorro olhava para ela com expectativa.
- Se a resposta às minhas perguntas for sim - abane o rabo - disse Nora. - Mas somente se a resposta for sim. Enquanto estivermos fazendo os testes, evite abanar o rabo por hábito, ou se ficar animado com alguma coisa. Quando desejar dizer não, você late uma vez. Apenas uma vez.
Travis disse:
- Dois latidos significariam, "eu preferia estar caçando gatos", três latidos, "por favor, uma cervejinha".
- Não o deixe confuso... - falou Nora, com veemência.
O cachorro nem ao menos olhou para Travis. Os olhos castanhos enormes permaneciam fixos em Nora, que explicava as respostas a serem dadas.
- Muito bem - disse ela. - Vamos tentar: Einstein, você entendeu o método de sinais?
O cão abanou o rabo cinco ou seis vezes, então parou.
- Coincidência - comentou Travis. - Isto não significa coisa alguma.
Nora hesitou por um momento, preparando a próxima pergunta, então disse:
- Você sabe o meu nome?
O rabo do cachorro estava parado.
- O meu nome é... Ellen? O cachorro latiu: "Não."
- O meu nome é Mary?
Um latido: "Não."
- O meu nome é Nona? - O animal a olhou como se a fulminasse com os olhos, percebendo a artimanha. Não abanou o rabo. Mas latiu.
- O meu nome é... Nora. Einstein agitou o rabo animadamente.
Vibrando de entusiasmo, Nora se aproximou do cachorro e o abraçou.
- Raios me partam! - desabafou Travis, aproximando-se dos dois. Nora apontou para a foto sobre a qual o cachorro ainda mantinha a pata:
- Você reagiu a esta foto, porque ela lembra a família à qual você pertencia?
Um latido: "Não". Travis perguntou:
- Você nunca morou com uma família? Um latido.
- Mas você não é um cão selvagem - comentou Nora. - Você deve ter vivido com alguém, antes de Travis te achar.
Estudando a propaganda da Blue Cross, Travis de repente descobriu que sabia as perguntas certas.
- Você reagiu a esta foto por causa do bebê? Um latido: "Não."
- Por causa da mulher? "Não."
- Por causa do médico de casaco branco?
O rabo abanou várias vezes: "Sim", "Sim", "Sim."
- Então ele vivia com um médico - disse Nora. - Talvez uni veterinário.
- Ou talvez um cientista - disse Travis, seguindo uma linha intuitiva de raciocínio que havia se apoderado dele.
Einstein abanou o rabo à simples menção dele de "cientista".
- Um pesquisador? - perguntou Travis. "Sim".
- Em um laboratório? - disse Travis. "Sim", "Sim", "Sim."
- Você é um cachorro de laboratório? - perguntou Nora. "Sim."
- Um animal de pesquisa? - perguntou Travis. "Sim."
"Sim."
- É por isto que você é tão brilhante? "Sim."
- Por causa de algo que lhe fizeram? "Sim."
O coração de Travis disparou. Estavam de fato se comunicando! Por Deus... e não era daquela forma anterior, espalhando no chão biscoitos de cachorro para formar um ponto de interrogação. Esta era uma comunicação precisa. Conversavam como se fossem três pessoas. Bem... estavam quase conversando e de repente nada seria como antes. Nada poderia ser o mesmo em um mundo onde homens e animais possuíssem a mesma inteligência, encarando a vida sob um mesmo ângulo, com direitos iguais, as mesmas esperanças e sonhos. Está bem... Está bem... talvez estivessem exagerando. Nem todos os animais haviam evoluído repentinamente a um nível de conscientização humana; aquilo era apenas um cachorro, um cachorro de laboratório, talvez o único desta espécie. Mas Jesus... Jesus... Travis olhou o cachorro com reverência e um calafrio percorreu-lhe o corpo. Mas não era medo. Era admiração.
Nora falou para o cachorro, com o mesmo respeito e admiração que haviam deixado Travis sem voz. Eles simplesmente deixaram você sair?
Um latido: "Não."
- Você fugiu? "Sim."
- Naquela manhã de terça-feira, na qual nós nos encontramos? - perguntou Travis. - Você já havia fugido?
Einstein não latiu nem abanou o rabo.
- Dias antes?
O cachorro ganiu.
- Ele provavelmente tem um senso de tempo - observou Nora, porque todos os animais seguem as mudanças, de dia e noite, não é mesmo? Têm relógios instintivos, relógios biológicos. Mas Einstein não tem nenhum conceito sobre dias em um calendário. Ele realmente não entende como nós dividimos o tempo em dias e semanas e meses. Assim, não tem como responder à sua pergunta.
- Aí está uma coisa que devemos ensinar a ele - disse Travis. Einstein abanou o rabo com força.
Pensando em voz alta, Nora disse:
- Foragido...
Travis sabia o que Nora devia estar pensando. Ele disse para Einstein:
- Eles estão à procura de você, não estão? O cachorro abanou o rabo.
Travis interpretou aquele sim com muita ansiedade.
4
Uma hora depois do pôr-do-sol, Lemuel Johnson e Cliff Soames, seguidos por dois carros sem identificação da Agência de Segurança Nacional, repletos de agentes, chegaram a Bordeaux Ridge. A rua sem pavimentação ficou alinhada de carros, a maioria preta e branca com a insígnia da delegacia de polícia na porta.
Lem não gostou de saber que a imprensa já havia chegado ao lugar. Repórteres e equipes de televisão eram mantidos à distância pelos policiais, a meia quadra do aparente local do crime. A Agência de Segurança Nacional havia feito uma campanha de desinformação, suprimindo detalhes da morte de Wesley Dalberg no canyon Holy Jim e dos cientistas assassinados. A agência conseguira manter os repórteres sem entender as relações que havia entre os crimes. Lem esperava que os policiais que estavam formando a barreira de proteção permanecessem em silêncio e não dessem nenhuma informação reveladora para os jornalistas.
Alguns cavaletes que estavam na rua foram levantados para deixar os carros da ASN passar.
Lem estacionou no final da rua, além da cena do crime. Deixou que Cliff Soames ficasse instruindo os policiais e seguiu para a casa que chamava a atenção de todos.
Os rádios da polícia enchiam o ar com os seus ruídos, misturados com códigos e gírias policiais.
A frente da casa fora iluminada para facilitar as investigações. Lem sentia-se como se estivesse no palco. As mariposas voavam na luz dos holofotes e projetavam suas sombras amplificadas no chão empoeirado.
Projetando a sombra imensa de seu corpo, Lem chegou até a porta da frente da casa. Lá dentro, mais refletores, cuja luz brilhava na parede, dois jovens policiais parecendo muito pálidos, o pessoal da perícia e os homens da Divisão de Investigações Científicas.
Um fotógrafo trabalhava na parte dos fundos da casa. Havia muita gente no corredor, o que obrigou Lem a seguir pela sala de estar, sala de jantar e cozinha.
Walt Gaines estava na copa, na penumbra anterior ao último dos focos de luz. Até mesmo na penumbra, a raiva e a dor eram visíveis. Ele estava em casa, quando soube da morte de um dos policiais. Gaines fora apanhado de surpresa e continuava vestindo um velho tênis de corrida e uma camisa quadriculada vermelha, de mangas curtas. Apesar do seu tamanho, o pescoço forte de touro, braços musculosos e enormes mãos, as roupas dele davam-lhe um aspecto de "menor abandonado".
Da copa Lem mal poderia ver os técnicos do laboratório passando na direção da lavanderia, onde estava o corpo.
- Sinto muito, Walt. Sinto muito, mesmo - disse Lem.
- O nome era Teel Porter. O pai dele, Red Porter, é meu amigo há vinte e cinco anos. Red se aposentou do Departamento no ano passado. Como vou dizer isto a ele? Meu Deus! E tenho que fazer isto, eu mesmo, sendo tão próximo dele. Não posso transferir esta responsabilidade para outra pessoa.
Lem sabia que Walt nunca passava esta tarefa para ninguém, quando um de seus homens era morto em serviço. Ele sempre visitava a família, pessoalmente, para dar aquele tipo de notícia.
- Quase perdi dois homens - disse Walt. - O outro está em péssimo estado.
- Como estava Teel...?
- Estripado como Dalberg. Decapitado. O monstro, pensou Lem. Não há dúvidas.
Mariposas batiam-se contra a lente de um dos refletores próximos a Lem e Walt.
Num tom de raiva Walt disse:
- Não acharam... a cabeça dele. Como vou dizer ao pai que a cabeça do filho está desaparecida.
Lem não deu resposta. Walt olhou duro para ele.
- Você não pode me deixar de fora agora. Não agora, que um de meus homens está morto.
- Walt, minha agência trabalha em bases sigilosas. Porra! Até mesmo o número de agentes na folha de pagamentos é uma informação secreta.
Mas o seu departamento é alvo de completa atenção da imprensa. Com o objetivo de saber qual o procedimento neste caso, o seu pessoal teria que saber detalhes, para ter uma idéia do que procurar. Isto significaria revelar segredos de defesa nacional paira um grande número de policiais.
- Todos os seus homens sabem o que está acontecendo - argumentou Walt.
- Sim, mas os meus homens assinaram um termo de compromisso e foram submetidos a uma extensa investigação sobre a vida deles e são treinados para manter as bocas fechadas.
- Os meus homens podem manter segredo também.
- Estou certo que sim - disse Lem, cuidadosamente. - Estou certo de que eles não saem comentando pela rua sobre casos comuns. Mas este não é um caso comum. Não. Este caso deve permanecer nas nossas mãos.
Walt disse:
- Os meus homens podem assinar termos de compromisso.
- Teríamos que fazer uma investigação completa de todos, no seu departamento. Não somente os policiais, mas os funcionários de arquivo. Isto levaria semanas. Até meses.
Olhando através da cozinha para a porta da sala de jantar, Walt percebeu que Cliff Soames e um membro da Agência de Segurança Nacional conversavam com dois policiais, na sala ao lado.
- Vocês dominaram a situação no momento em que chegaram aqui, não foi? Vocês conversaram comigo antes?
- Bem. Temos que ter a certeza de que o teu pessoal entenda que não pode falar coisa alguma sobre o que viu aqui esta noite. Nem mesmo para as mulheres deles. Estamos explicando para todos o que diz a lei, porque precisamos ter a certeza de que todos entendam os termos das penalidades correspondentes.
- Você está me ameaçando de prisão, novamente? - perguntou Walt. Mas não havia tom de pilhéria na voz dele, como antes, quando os dois conversaram na garagem do Hospital St. Joseph, depois de fazer perguntas e Tracy Keeshan.
Lem estava deprimido, não somente com a morte do policial, mas por causa das arestas que o caso estava criando entre os dois.
- Não quero que ninguém vá preso. É por isso que preciso ter a certeza de que eles estejam conscientes das conseqüências...
De forma ameaçadora, Walt disse:
- Venha comigo.
Lem o seguiu até a rua, para um carro de patrulha em frente à casa. Sentaram-se no banco da frente, Walt em frente ao volante, com as portas fechadas.
- Levante os vidros, assim teremos total privacidade.
Lem protestou, porque ficariam sufocados com o calor, pois ali não havia ventilação. Apesar da pouca luz, percebeu a raiva de Walt e sentiu que o amigo estava a ponto de explodir.
Lem levantou o vidro do seu lado.
- Pois bem - disse Walt -, estamos sozinhos. Aqui dentro não tem nem diretor de distrito da ASN nem xerife. Apenas velhos amigos. Companheiros. Assim, diga-me tudo a respeito.
- Porra, Walt! Não posso.
- Diga-me agora e ficarei fora do caso. Não vou interferir.
- Você terá que ficar fora do caso, de qualquer maneira. Você tem que ficar.
- Foda-se se eu tiver de ficar - disse Walt com raiva. - Eu posso caminhar agora mesmo na direção daqueles chacais. - O carro estava virado para Bordeaux Ridge, na direção dos cavaletes que impediam o trânsito na rua, onde os repórteres esperavam. E Walt apontou para eles, através do pára-brisa todo sujo de poeira. - Posso dizer a eles que o laboratório Banodyne estava trabalhando em um projeto de pesquisa, que escapou ao controle, dizer a eles que alguém ou alguma coisa estranha escapou do laboratório, apesar da grande segurança e que agora está solto, matando pessoas.
- Se você fizer isto - disse Lem -, você não somente vai para a cadeia. Você vai perder o emprego, arruinar toda a sua carreira.
- Não penso assim. No tribunal eu reclamaria ter escolhido não trair a confiança das pessoas que me elegeram xerife deste município, ao contrário de seguir as regras da Segurança Nacional. Reclamaria, diante do juiz, que num momento de crise como este fora preciso colocar a segurança pública acima das preocupações dos burocratas da Defesa, em Washington. Estou confiante de que nenhum tribunal me condenaria. Ficaria fora da cadeia. E na próxima eleição eu venceria, ainda com mais votos do que obtive na eleição passada.
- Merda - disse Lem, porque sabia que Walt estava certo.
- Se você me disser o que está acontecendo e me convencer de que o seu pessoal está mais bem preparado do que o meu para lidar com o caso, vou sair do seu caminho. Mas se você não me disser, vou revelar tudo a eles.
- Eu estaria quebrando o meu compromisso. Eu estaria colocando o meu pescoço na forca.
- Nunca ninguém vai saber o que você me disse.
- É? Bem, então Walt, pelo amor de Deus, por que você me colocou numa posição tão delicada só para satisfazer à sua curiosidade?
Walt parecia aflito.
- Não é uma vulgaridade, porra! Não é curiosidade!
- Então o que é?
- Um dos meus homens morreu!
Repousando a cabeça no assento do carro, Lem fechou os olhos e suspirou. Walt queria se vingar pela morte de um de seus homens. O senso de honra e de responsabilidade dele não o permitiriam recuar.
- Será que eu vou ter que ir lá falar com os repórteres? - perguntou Walt calmamente.
Lem abriu os olhos, passou a mão pelo rosto cheio de suor. Dentro do carro estava extremamente quente. Queria baixar o vidro. Mas, de vez em quando, os homens passavam perto do carro, entrando e saindo da casa, e ele não poderia correr o risco de que alguém estivesse escutando o que ele teria para dizer a Walt.
- Você está certo em se concentrar no laboratório Banodyne. Eles têm trabalhado por alguns anos em projetos relacionados com defesa.
- Guerra biológica? - perguntou Walt. - Usaram novas combinações de ADN para criar novos e terríveis vírus?
- Talvez, isto, também - respondeu Lem. - Mas guerra biológica não tem nada a ver com este caso. E eu só vou te falar sobre a pesquisa relacionada ao problema que temos aqui.
Os vidros do carro estavam embaçados. Walt deu partida no carro. Não havia ar-condicionado, e os vidros ficaram úmidos. Nem mesmo a brisa quente do vento ajudava.
Lem disse:
- Eles estavam trabalhando em vários projetos de pesquisa, com o nome de Projeto Francis, Francis vem de São Francisco de Assis.
Walt piscou os olhos, surpreso.
- Eles batizariam um projeto de guerra com o nome de um santo?
- O nome é oportuno - garantiu Lem. - São Francisco podia falar com os pássaros e com os animais. No laboratório Banodyne, o dr. Davis Weatherby estava encarregado de um projeto destinado a tornar possível esta comunicação entre homens e animais.
- Aprendendo a linguagem dos leões do mar, ou alguma coisa assim?
- Não. A idéia era aplicar os mais recentes conhecimentos da engenharia genética para a criação de animais com um nível de inteligência bem acima do normal, na sua espécie, animais capazes de pensar quase como seres humanos: animais com os quais nós poderíamos nos comunicar. - Walt olhava incrédulo, boquiaberto, para Lem, que continuou falando: - Havia várias equipes de cientistas trabalhando em diversas experiências diferentes, sob a denominação Projeto Francis. Todos os trabalhos foram iniciados há cinco anos. Havia inclusive os cachorros de Davis Weatherby...
O dr. Weatherby estivera trabalhando com esperma e óvulos de um tipo específico de cão de caça, que fora escolhido porque a espécie já havia evoluído muito em centenas de anos. Com este refinamento, ao longo do tempo, os mais puros da raça tiveram retirada a possibilidade de doença, através do código genético, o que garantiu a Weatherby os elementos sadios para realizar as experiências. Então, se os filhotes nascessem com defeitos, de qualquer tipo, ele tomaria medidas para que o fato não se repetisse, e aprendia com os erros cometidos. Com o tempo, procurando somente aumentar a inteligência da raça, sem causar mudanças físicas, Davis Weatherby chegou a fertilizar centenas de óvulos em laboratório, e os transferiu para o útero das cadelas. Estas cadelas ficavam com os filhotes em observação, para que Weatherby verificasse o aumento de inteligência.
- Teve uma porrada de fracassos - comentou Lem. - Aberrações físicas que foram destruídas. Filhotes que nasceram mortos. Filhotes que pareciam normais mas eram menos inteligentes que os demais. Weatherby estava fazendo experiências de cruzamentos e você pode imaginar quantas coisas horríveis aconteceram.
Walt olhava fixo para o pára-brisa, agora inteiramente embaçado. Ele franziu a testa e perguntou:
- Cruzamentos? O que você quer dizer?
- Bem, veja só, ele isolou elementos genéticos, determinantes da inteligência, de espécies que eram mais inteligentes que o cão de caça.
- Assim como os macacos? Eles são mais inteligentes do que os cachorros, não são?
- Sim. Macacos... e seres humanos.
- Meu Deus! - exclamou Walt.
Lem ajustou o quebra-vento do carro para permitir que circulasse o ar.
- Weatherby estava inserindo esses elementos genéticos estranhos no código genético do cão de caça, ao mesmo tempo em que eliminava os genes que limitavam a inteligência dos cachorros.
Walt protestou:
- Isto não é possível. Este material genético, como você chama, certamente não pode ser passado de uma espécie para outra.
- Acontece na natureza o tempo todo - explicou Lem. - O material genético é transportado de uma espécie para outra, através dos vírus. Vamos dizer que um vírus se desenvolveu nos macacos rhesus. O vírus absorve o material genético das células do animal. O genes do macaco se transforma em parte do próprio vírus. Mais tarde, contaminando um ser humano, este vírus tem a capacidade de deixar o material genético do macaco, no corpo deste ser humano. Considere o vírus da AIDS, por exemplo. Acreditava-se que a AIDS fosse uma doença de um certo tipo de macacos e de seres humanos, por décadas. Mas nenhuma das duas espécies ficava realmente doente, embora carregasse o vírus, quero dizer. Éramos portadores do vírus... mas nunca ficávamos doentes por causa disto. Mas, então, alguma coisa aconteceu com os macacos: uma mudança genética que, não somente os fazia portadores do vírus, como vítimas do vírus da AIDS. Os macacos começaram a morrer em conseqüência da síndrome. Então, quando o vírus passou para os seres humanos, trouxe consigo o elemento genético suscetível à doença. É assim que funciona a natureza. No laboratório isto é elaborado com mais eficiência.
Limpando um pouco a umidade do vidro, Walt perguntou:
- E Weatherby obteve sucesso em criar um cachorro com inteligência humana?
- Foi um longo e vagaroso processo. Mas gradualmente ele foi progredindo. E, há pouco mais de um ano atrás, o milagroso filhote nasceu.
- Pensa como ser humano?
- Não como ser humano, mas talvez bem próximo.
- E se parece com um cachorro comum?
- Era isto o que o Pentágono queria. O que tornou o trabalho de Weatherby ainda mais difícil. Aparentemente, o tamanho do cérebro tem alguma coisa a ver com a inteligência e Weatherby poderia ter feito sua descoberta um pouco mais cedo se tivesse sido capaz de desenvolver um cão de caça com cérebro maior. Mas um cérebro maior significaria algo remodelado e um crânio bem maior, o que tornaria o cachorro estranhamente diferente.
Todas as janelas do carro estavam embaçadas, agora. Nem Walt nem Glem tentavam limpá-las. Incapazes de ver o que se passava fora do carro, fechados que estavam, ali dentro. Os dois pareciam fora do mundo real, no tempo e no espaço, sob condição semelhante aos atos maravilhosos e extraordinários, criados pela engenharia genética.
Walt perguntou:
- O Pentágono queria um cachorro que se parecesse com cachorro, mas que pensasse como homem? Por quê?
- Imagine as possibilidades para espionagem - disse Lem. - Em tempos de guerra, os cachorros não teriam dificuldades de entrar no terreno inimigo, verificando as condições e a quantidade de tropas. Cachorros inteligentes, com os quais poderíamos nos comunicar, que retornariam à base com as informações que desejássemos e nos transmitiriam o que os inimigos estavam conversando.
- Você está querendo dizer que os cachorro poderiam falar como uma versão canina do mulo Francis? Não fode, Lem, fala sério!
Lem achava engraçado a dificuldade do amigo em absorver estas impressionantes possibilidades. A ciência moderna estava avançando tão rapidamente, com tantas descobertas revolucionárias para serem exploradas todos os anos, que as pessoas leigas iriam perceber cada vez menos a diferença entre ciência e magia. Poucas pessoas fora do mundo da ciência não acreditariam nas grandes transformações dos próximos vinte anos e em como tudo seria diferente. E tudo acontecendo rapidamente, com mais transformações do que ocorreram entre 1780 e 1980. As mudanças estavam ocorrendo a uma velocidade assustadora e incompreensível.
Lem comentou:
- De fato, um cachorro provavelmente pudesse ser alterado do ponto de vista genético para ser capaz de falar. Poderia até ser fácil, não sei. Seria necessário lhe dar um aparelho fonador adequado, o tipo certo de língua e lábios... o que alteraria a aparência do animal, fugindo do interesse do Pentágono. Assim, estes cachorros não falariam. A comunicação seria feita através da linguagem de sinais, de uma linguagem especialmente elaborada.
- Você não está rindo - observou Walt. - Essa porra deve ser piada... Por que você não está rindo?
- Pense a respeito - disse Lem, pacientemente. - Em tempo de paz... imagine o presidente dos Estados Unidos dando de presente ao líder soviético um cão de caça de um ano de idade, como uma deferência especial do povo norte-americano. Imagine o cachorro vivendo na casa e no escritório do líder soviético, privando das conversas mais íntimas e secretas sobre a vida das pessoas mais importantes do Partido. De vez em quando, toda a semana ou todo o mês, o cachorro poderia sair à noite, encontrar-se com um agente americano em Moscou para passar as informações.
- Passar as informações? Isso é loucura! - comentou Walt, rindo. Mas a sua risada tinha muito de nervosismo, indicando que a incredulidade do xerife não era tão grande assim, embora ele se esforçasse por mantê-la.
- Estou dizendo que é possível que este cachorro tenha sido de fato concebido em laboratório, alterado geneticamente e nascido por inseminação artificial. Depois de um ano preso no laboratório Banodiyne, o cachorro fugiu, bem cedo, pela manhã, no dia 17 de maio, uma segunda-feira. O animal conseguiu de forma brilhante iludir a segurança do laboratório.
- E agora o cachorro está solto?
- Sim.
- E é ele que anda matando por aí?
- Não - respondeu Lem. - O cachorro é inofensivo, carinhoso, um animal maravilhoso. Estive no laboratório de Weatherby, quando o mesmo estava trabalhando com o cachorro. Num certo sentido, me comuniquei com ele. Juro por Deus, Walt, quando você vir aquele cachorro em ação, quando vir o que Weatherby criou, você ficará com uma esperança enorme de que um dia nossa própria espécie melhore.
Walt olhava para ele, de maneira enigmática.
Lem procurava as palavras certas, para expressar o que sentia. Quando finalmente conseguiu dizer o que sentia sobre o cachorro, o seu peito se encheu de emoção.
- Bem... quero dizer, se podemos fazer estas coisas maravilhosas, se podemos criar algo tão fantástico para o mundo, então há algo de profundo valor, não importa o quão pessimista sejamos. Se podemos fazer isto, então temos o poder e, potencialmente, a sabedoria de Deus. Não somos simplesmente fabricantes de armas. Criamos vida. Se tivermos condições de tornar mais inteligentes outras espécies, conseguir companheiros para dividir o mundo... nossas crenças, filosofias, tudo seria transformado para sempre. Pelo simples fato de alterar o cão de caça, alteramos a nós mesmos. Colocando o cachorro num nível superior de entendimento, estamos inevitavelmente elevando o nosso próprio nível de compreensão e de inteligência.
- Meu Deus... Lem, você está falando como um pastor.
- Estou? Isto é porque eu tive mais tempo de pensar sobre o assunto do que você. Com o tempo, você vai entender o que estou dizendo. Também irá se sentir da mesma maneira, acreditando que a humanidade está no próprio caminho da deidade. E que merecemos chegar lá.
Walt Gaines olhava para o vidro embaçado, tentando ler alguma coisa de interesse naquelas formas criadas pela umidade. E comentou:
- Talvez o que você diz esteja certo. Talvez estejamos no limiar de um mundo novo. Mas, por agora, temos que viver e lidar com o mundo que está aí. Ou seja, se não foi o cachorro que matou meu auxiliar, quem foi?
- Alguma coisa mais escapou do laboratório Banodyne, na mesma madrugada que o cachorro - disse Lem, tendo sua euforia de repente temperada pela necessidade de admitir que o Projeto Francis tinha um lado negro. - Eles o chamam de o monstro.
5
Nora levantou a propaganda da revista que comparava o carro a um tigre e mostrava o carro numa jaula de ferro. Virando-se para Einstein, ela disse:
- Muito bem, vamos ver o que mais você poderá nos esclarecer. Que tal este aqui? O que interessa a você nesta fotografia? O carro?
Einstein latiu uma vez: "Não."
- O tigre? - perguntou Travis. Um latido.
- A jaula? - perguntou Nora. Einstein sacudiu o rabo: "Sim."
- Você escolheu esta foto, porque eles o mantinham numa jaula? - perguntou Nora.
"Sim."
Travis arrastou-se pelo chão até achar uma foto de um homem numa cela de prisão. Mostrando-a ao cão, indagou:
- Você escolheu esta porque uma cela se assemelha a uma jaula? "Sim."
- E porque o prisioneiro na foto lembra como você se sentia na jaula? "Sim."
O violino - perguntou Nora -, alguém no laboratório tocava violino para você? "Sim."
- Por que fariam isto? - perguntou Travis.
Era o que o cachorro não poderia responder com um simples sim ou não.
- Você gostava do violino? - perguntou Nora. "Sim."
- Você gosta de música em geral? "Sim."
- Você gosta de jazz!
O cachorro não latiu, nem abanou o rabo. Travis disse:
- Ele não sabe o que é jazz. Acho que eles nunca o permitiram ouvir coisa parecida.
- Você gosta de rock and rolP. - perguntou Nora. Um latido e simultaneamente uma abanada de rabo.
- O que significa isto? - perguntou Nora.
- Provavelmente significa que, "sim" e "não" - comentou Travis. - Ele gosta de algum tipo de rock, mas não de tudo.
Einstein abanou o rabo, confirmando a interpretação de Travis.
- Clássicos? - perguntou Nora. "Sim."
Travis comentou:
- Temos um cachorro pretensioso, hem?
"Sim." "Sim." "Sim."
Nora e Travis riram de satisfação e Einstein ficou-lhes lambendo as mãos.
Travis procurava outra fotografia e escolheu uma, onde um homem se exercitava num equipamento especial. Eles queriam mantê-lo em forma.
- É neste equipamento que eles exercitavam você?
"Sim."
Travis não poderia se sentir mais animado do que se sentia com tudo aquilo. Nem mesmo se pudesse estar conversando com um ser extraterrestre.
6
Não era fácil para Walt Gaines ouvir e compreender Lem Johnson. Este novo mundo de alta tecnologia de vôos espaciais, computadores domésticos, ligações telefônicas via satélite, fábricas operadas por robôs, e agora a engenharia biológica, pareciam profundamente fora da sua realidade, do mundo onde nascera e se criara. Pelo amor de Deus, ele era uma criança, durante a Segunda Guerra Mundial, quando nem mesmo havia aviões a jato. Ele vinha de uma vida de maior simplicidade, quando os telefones ainda eram de disco, em vez de botões; os relógios tinham ponteiros e não mostradores digitais; os automóveis Chrysler eram "rabos de peixe". Quando nascera, não havia televisão e a possibilidade de hecatombe nuclear era extremamente remota e ninguém poderia prevê-la. Ele sentia que havia atravessado uma barreira invisível, saindo do seu mundo particular para enfrentar outra realidade, num ritmo bem mais rápido. Este novo reino da alta tecnologia poderia ser maravilhoso ou assustador. E quem sabe ambos, ao mesmo tempo.
Como agora.
A idéia de um cachorro inteligente tocava fundo na criança que ainda vivia nele e o fazia sorrir.
Mas alguma coisa mais - o monstro - havia escapado daqueles laboratórios e o deixava assustado.
- O cachorro não tinha nome - comentou Lem Johnson. - E isto não é tão fora do comum. A maioria dos cientistas que trabalha com animais em laboratório jamais batiza com um nome as cobaias. Se você desse um nome para um animal, estaria evidentemente atribuindo-lhe uma personalidade e o seu relacionamento com este animal mudaria, prejudicando as observações que deveriam ser feitas. Desta maneira, o cachorro tinha somente um número, até que ficasse provado que a experiência fora bem-sucedida, como aconteceu, de fato, com o trabalho de Weatherby, que tinha se esforçado muito neste sentido. Mesmo quando tornou-se evidente que o cachorro não deveria ser destruído, por não ter fracassado, nenhum nome lhe fora dado. Todos o chamavam, simplesmente, "o cachorro", o que já era suficientemente claro para diferenciá-lo dos outros filhotes, que eram conhecidos por números. De qualquer forma, ao mesmo tempo, a dra. Yarbeck estava trabalhando em outra diferente pesquisa dentro do Projeto Francis e ela também teve algum sucesso.
O objetivo da dra. Yarbeck era criar um animal de extrema inteligência, que acompanhasse soldados numa batalha, assim como cães policiais acompanham os tiras em bairros perigosos da área urbana. A cientista procurou elaborar um animal que fosse tão inteligente quanto perigoso. Um verdadeiro terror no campo de batalha. Com capacidade de ser eficiente tanto no meio da selva quanto na cidade.
Não tão inteligente quanto seres humanos, é claro, nem tão esperto quanto o cachorro que Weatherby estava desenvolvendo. Seria uma verdadeira loucura criar um tipo de máquina de matar, que fosse tão inteligente quanto as pessoas que teriam de usá-lo e controlá-lo. Todos os que leram Frankenstein, ou assistiram aos velhos filmes de Boris Karloff, não subestimavam os perigos da pesquisa da dra. Yarbeck.
Ela escolheu macacos e chimpanzés para fazer suas experiências, por causa da inteligência natural destes animais. Como base para o projeto, ela selecionou babuínos, que são os mais inteligentes entre os primatas, uma boa matéria-prima. Eram combatentes perigosos e eficazes por natureza, com garras e presas impressionantemente afiadas, furiosamente motivados à luta por razões de território e ávidos para atacar os que consideravam inimigos.
- A primeira tarefa de dra. Yarbeck foi a alteração física dos babuínos, tornando-os maiores, suficientemente grandes para assustarem um homem adulto - comentou Lem. - Ela decidiu que o babuíno teria, no mínimo, um metro e meio, e pesaria sessenta quilos.
- Mas não é tão grande assim - protestou Walt.
- Grande o suficiente.
- Eu poderia derrubar um homem deste tamanho.
- Um homem, sim. Mas não esta coisa. Apenas músculos, nada de gordura, e muito mais rápido que um homem. Se um babuíno comum pode fazer picadinho de um homem, o que não faria este guerreiro da dra. Yarbeck.
O pára-brisa do carro parecia para Walt uma tela de cinema, na qual via projetadas imagens de homens brutalmente assassinados: Wes Dalberg, Teel Porter... Ele fechara os olhos, mas continuava vendo cadáveres.
- Está bem, sim, entendo o que você está dizendo. Sessenta quilos seriam suficientes, referindo-se a algo destinado a lutar e matar.
- Assim, a dra. Yarbeck criou uma raça de babuínos que teria um tamanho maior do que o normal. Ela começou a trabalhar alterando o esperaria e o óvulo de primatas gigantes, quer por seleção do próprio material genético destes animais, quer pela introdução de genes de outras espécies.
Walt comentou:
- O mesmo tipo de cruzamento, ponto por ponto, de espécies que levou ao cachorro inteligente.
- Não exatamente ponto por ponto. Mas na verdade as mesmas técnicas. A dra. Yarbeck desejava uma mandíbula maior no seu "guerreiro". Alguma coisa parecida com a de um pastor-alemão, ou até mesmo um chacal, pois haveria espaço para mais dentes e ela queria que os dentes fossem mais largos e mais afiados, levemente curvados, como se fossem ganchos. Significava que a dra. Yarbeck teria que aumentar a cabeça dos babuínos, alterando totalmente a estrutura do focinho, para que isso fosse possível. O crânio teria que ser aumentado, de qualquer forma, para permitir um cérebro maior. Ela não trabalhava seguindo os padrões de Davis Weatherby, que se preocupava em não mudar o tipo físico dos animais. De fato, a cientista estava convencida de que a imagem horrível deste animal serviria também para aterrorizar os inimigos.
Apesar do calor, Walt Gaines sentiu um frio na barriga, como se tivesse engolido pedaços de gelo.
- Pelo amor de Deus! Será que a cientista e outras pessoas não perceberam a imoralidade de tudo isto? Será que não leram A ilha do dr. Moreau? Lem, você tem a obrigação moral de deixar o público saber tudo sobre isto. Esclarecer as pessoas. E eu, também, devo fazê-lo.
- Não isto - argumentou Lem. - A idéia de que há o bem e o mal... bem, isto é um ponto de vista estritamente religioso. O comportamento pode também ser moral e imoral, sim, mas o conhecimento não pode ser classificado desta forma. Para um cientista, ou para qualquer homem ou mulher educados, todo o conhecimento é moralmente neutro.
- Mas, porra, a aplicação do conhecimento, no caso da dra. Yarbeck, não é moralmente neutra.
Sentados no quintal da casa de um ou de outro, nos fins de semana, tomando aperitivos e avaliando os problemas do mundo, para eles era um prazer falar sobre estes assuntos. Filósofos de fundo-de-quintal. Às vezes os dilemas sobre moralidade que discutiam nos fins de semana eram os mesmos que mais tarde surgiam na atividade profissional deles; entretanto, Walt não podia se lembrar de nenhuma outra discussão do tipo que estavam tendo naquele momento.
- Aplicar conhecimento faz parte do processo de aprender mais - disse Lem. - Os cientistas são obrigados a pôr em prática as suas descobertas para verificarem até onde cada experiência pode chegar. A responsabilidade moral está nos ombros daqueles que tiram a tecnologia dos laboratórios para usarem com fins imorais.
- Você acredita nesta bosta? Lem pensou um pouco:
- Sim, acho que sim. Se responsabilizarmos os cientistas pelas experiências malsucedidas, eles jamais irão trabalhar. Neste caso, não haveria progresso. E viveríamos nas cavernas, até hoje.
Walt puxou um lenço limpo do bolso e enxugou o rosto, dando para si mesmo um momento de reflexão. Não eram só o calor e a umidade que o afligiam. O que o preocupava era aquele "guerreiro da dra. Yarbeck" solto no município de Orange. Por isso ele estava suando.
Ele queria que o público tomasse conhecimento; desejava advertir a todos de que alguma coisa nova e perigosa andava à solta na face da Terra. Mas isto fatalmente cairia nas mãos de pessoas avessas ao progresso tecnológico que usariam o "guerreiro" paia gerar pânico entre a população, na tentativa de acabar com as experiências e pesquisas genéticas. As pesquisas já haviam levado a criação de um tipo de milho e de trigo, que poderiam crescer com menos água em solo árido, para ajudar no combate à fome no mundo. Também, há alguns anos, eles tinham desenvolvido um tipo de vírus que produzia insulina a baixo custo. Se ele levasse ao conhecimento do público a monstruosidade da dra. Yarbeck, ele poderia salvar algumas vidas a curto prazo, mas negaria ao mundo os benefícios miraculosos da recombinação do ADN.
Walt explodiu:
- Que merda, isto não é uma questão de brancos e pretos, é? Lem respondeu:
- Isto é o que torna a vida interessante. Walt sorriu amarelo.
- Agora mesmo, há um monte de outras coisas mais interessantes que me atrairiam. Está bem. Posso perceber a sabedoria de manter tudo isto em segredo. Além disso, se eu tornar o assunto público, teremos mil curiosos lá fora procurando pela coisa, e iam acabar virando vítimas, ou iam-se matar, mutuamente.
- Exato.
- Mas meus homens poderiam ajudar a manter silêncio, se uníssemos nossos grupos, na busca.
Lem lhe falou sobre os cem homens das unidades especiais dos fuzileiros navais, que ainda continuavam a procurar pelas montanhas, vestidos em trajes civis, usando equipamento ultra-sofisticado.
- Tenho mais homens agindo do que você poderia me fornecer. Já estamos fazendo o máximo de que somos capazes. Agora, você vai fazer a coisa certa? Vai ficar fora disto?
Walt respondeu:
- Por enquanto. Mas quero me manter informado. Lem concordou:
- Está bem. E eu tenho mais perguntas. Por que chamam aquela coisa de monstro?
- Bem, o cachorro foi a primeira descoberta. O primeiro a mostrar inteligência fora do comum. Esta coisa foi a segunda. Foram as duas experiências bem-sucedidas. O outro, na verdade, não se constituiu em um progresso da criação de Deus, como fora o cachorro. O monstro se tornou em algo completamente fora da criação, algo à parte.
- Por que não chamá-lo o babuíno?
- Porque... não se parece muito com um babuíno. E não se parece com nada que você conheça ou jamais viu... a não ser em pesadelo.
Walt não gostou da expressão do rosto escuro do amigo. Decidiu não pedir mais detalhes sobre o monstro; talvez fosse alguma coisa de que não necessitasse saber.
Em vez disso, perguntou:
- E o que você me diz de Hudston, Weatherby e Yarbeck? Quem está por trás dos assassinatos?
- Não conhecemos o homem que puxou o gatilho, mas sabemos que os soviéticos o contrataram. Eles também mataram outro cientista do laboratório que estava passando férias em Acapulco.
Walt sentiu que estava novamente atravessando uma daquelas barreiras invisíveis, penetrando num mundo cada vez mais complicado.
- Soviéticos? Estávamos falando dos soviéticos? Como é que eles entram nesta história?
- Não sabíamos que o Projeto Francis era do conhecimento deles
- comentou Lem. - Mas eles sabiam de tudo. Aparentemente, tinham um agente dentro do laboratório Banodyne que os informava de todos os progressos feitos. Quando o cachorro, e mais tarde, o monstro escaparam, o agente comunicou os soviéticos e evidentemente estes decidiram aproveitar da situação, do caos que se formara, trazendo-nos ainda mais prejuízos.
Mataram todos os líderes de projetos - Yarbeck, Weatherby e Haines
- além de Hudston, que também estava encarregado de um projeto mas já havia se desligado do laboratório. Pensamos que os soviéticos agiram desta forma por duas razões: primeiro, dar um ponto final ao Projeto Francis; segundo, tornar mais difícil a captura do monstro.
- Em que isto atrapalharia?
Lem abaixou-se no banco, como se o fato de falar da crise o tornasse mais consciente da responsabilidade que lhe pesava sobre os ombros.
- Ao eliminar Hudston, Haines e especialmente Weatherby e Yarbeck, os soviéticos nos tiraram a possibilidade de conversar com as únicas pessoas que poderiam nos contar como o monstro e o cachorro agiam e pensavam. Estes cientistas eram os únicos capacitados a nos orientar sobre a maneira correta de capturar os fugitivos.
- Você já pegou os soviéticos?
- Não totalmente - respondeu Lem. - Estou me concentrando primeiramente no cachorro e no monstro, mas temos todo um grupo na pista dos soviéticos que estão por trás dos assassinatos e das informações que estão sendo roubadas dos computadores do governo. Infelizmente, os soviéticos aparentemente usaram um matador profissional que não faz parte do serviço secreto. Não temos a menor idéia de quem seja este homem. Esta parte da investigação está difícil.
- E o incêndio no laboratório, um dia depois? - perguntou Walt.
- Incêndio criminoso. Outra obra dos soviéticos. Eles destruíram, todos os documentos e arquivos eletrônicos sobre o Projeto Francis. Havia, evidentemente, um arquivo-reserva, em outro lugar, é claro... mas a informação que estava contida no computador, foi completamente apagada.
- Também os soviéticos?
- Achamos que sim. Os líderes do Projeto Francis e todos os arquivos foram eliminados, deixando-nos completamente no escuro. Não podemos saber como o monstro e o cachorro pensam, onde poderiam ir, como podem ser recapturados.
Walt balançou a cabeça.
- Nunca pensei que um dia estivesse do lado dos soviéticos, mas colocar um fim neste projeto parece ser uma boa idéia. Eles estão longe de ser inocentes. Pelo que sei, têm um projeto similar em andamento nos laboratórios da Ucrânia. Não duvidaria se estivéssemos tentando destruir os arquivos e os cientistas deles, da mesma forma como agiram conosco. De qualquer jeito, os soviéticos não poderiam ter nada melhor do que o monstro atacando furiosamente em algum subúrbio pacífico de uma das nossas cidades, estripando donas de casa e mastigando a cabeça de criancinhas, porque se isto acontecer mais vezes, bem... então, tudo vai explodir na nossa cara.
- Mastigando as cabeças de criancinhas? Nossa! Walt encolheu os ombros e disse:
- Não está perto de acontecer?
- Não é bem assim. O monstro é agressivo pra cacete...pois foi programado para ser agressivo... e tem um ódio especial dos que participaram de sua criação. Com isto a dra. Yarbeck não contava e constituía algo que ela pretendia corrigir no futuro, através das novas gerações. O monstro sente grande prazer em nos matar. Mas é também inteligente. E sabe que a cada morte nos aproximamos mais dele. Desta forma, não vai exercer este ódio tão freqüentemente. O monstro vai permanecer distante das pessoas a maior parte do tempo, movimentando-se principalmente à noite. De vez em quando, poderá se aventurar por áreas residenciais, onde há mais população, a leste do município.
- Assim como agiu na propriedade dos Keeshan?
- Sim. Mas aposto que ele não foi lá para matar gente. Apenas, mera curiosidade. O monstro não deseja ser capturado antes de cumprir seu principal objetivo.
- Que objetivo?
- Descobrir e matar o cachorro - respondeu Lem. Walt ficou surpreso.
- Por que ele iria se preocupar com o cachorro?
- Realmente não sabemos. Mas no laboratório Banodyne, ele sentia verdadeiro ódio do cachorro, mais do que a qualquer pessoa. Quando Yarbeck trabalhou com ele, elaborando um método de comunicação para expressar idéias complexas, o monstro por diversas vezes deu a entender que desejava matar e mutilar o cachorro, mas nunca explicou a razão. Era obcecado pelo cacharro.
- Então, você acha que ele anda atrás do cachorro?
- Acho. Porque tudo leva a crer que foi o cachorro o primeiro a fugir do laboratório naquela noite de maio e a sua fuga enfureceu o monstro. Este último era mantido numa cela dentro do laboratório e tudo que pertencia a ele - lugar de dormir, objetos educacionais, brinquedos, tudo isto foi feito em pedaços. Aparentemente imaginando que o cachorro estaria fora do seu alcance para sempre, se não tentasse fugir também, o monstro começou a pensar sobre o problema e, juro, conseguiu escapar.
- Mas se o cachorro levou vantagem fugindo antes...
- Há uma misteriosa ligação entre os dois, que ninguém entende. Uma ligação mental. Eles se localizam por instinto. Não sabemos como isto funciona, mas não podemos descartar totalmente a possibilidade de que esta ligação seja forte o suficiente para vencer longas distâncias. É aparentemente um sexto sentido, uma propriedade adicional da técnica de aumentar a inteligência usada por Weatherby e Yarbeck. Mas estamos fazendo suposições. Não sabemos, com certeza. Há uma porrada de coisas que não sabemos.
Os dois homens ficaram em silêncio por instantes.
A umidade e o calor dentro do carro não estavam mais tão desagradáveis. Levando em consideração todos os perigos do mundo moderno, estar dentro do carro parecia seguro e confortável. Um verdadeiro paraíso. Finalmente, não desejando fazer mais perguntas, temendo as respostas que poderia ouvir, Walt, apesar disto, comentou:
- O laboratório Banodyne é um edifício com absoluta segurança. Foi projetado para impedir que pessoas não-autorizadas se aproximassem, mas deveria ser também difícil sair de lá. Tanto o cachorro como o monstro, apesar disso, escaparam.
- É verdade.
- E, evidentemente, ninguém nunca imaginou que eles pudessem conseguir. O que significa que os dois são mais inteligentes que qualquer um também poderia imaginar.
- Sim.
Walt observou:
- No caso de o cachorro... bem, se ele é mais inteligente do que podiam pensar, tudo bem...o cachorro é amigável, dócil.
Lem, que estava olhando fixamente para o pára-brisa embaçado, finalmente voltou-se para Walt:
- Certo. Mas se o monstro é mais inteligente do que pensávamos... é quase tão inteligente quanto um homem, então, pegá-lo vai ser ainda mais difícil.
- Quase... ou tão inteligente quanto um homem.
- Não! Impossível.
- Ou ainda mais inteligente - comentou Walt.
- Não. Não poderia.
- Não poderia?
- Não.
- Definitivamente não.
Lem suspirou, cocou os olhos, mas não disse nada. Não começaria a mentir novamente para o seu melhor amigo.
7
Nora e Travis experimentaram todas as fotografias, uma a uma, aprendendo um pouco mais sobre Einstein. Às vezes latindo ou abanando com força o rabo, o cachorro respondeu às perguntas de que era capaz, confirmando que havia escolhido o anúncio da revista sobre computadores, porque a foto lembrava os computadores do laboratório onde estava preso. A fotografia de quatro jovens brincando com uma bola de praia indicava que um cientista costumava usar bolas de diversos tamanhos para testar a inteligência de Einstein. Os dois não foram capazes de entender o interesse do cachorro no papagaio, nas borboletas, no Mickey e em muitas outras coisas, porque não podiam ir além das respostas de sim ou não, para obter os esclarecimentos.
Depois que centenas de perguntas foram feitas, sem qualquer resultado, os dois acabaram entusiasmados com algumas descobertas, o que tornou o método bem-sucedido. O único momento em que pareciam desanimar, foi quando perguntaram a Eisntein sobre uma foto da revista que mostrava uma figura demoníaca de um filme de horror. Ele ficou extremamente agitado. Colocou o rabo entre as pernas, mostrou os dentes e rosnou profundamente. Por diversas vezes, o cachorro fugiu da foto, escondendo-se atrás do sofá, refugiando-se em outra sala, onde permanecia por algum tempo e depois voltava indeciso e cauteloso, para responder a outras perguntas... O animal ficava todo arrepiado, a cada vez que lhe perguntavam sobre o demônio.
Finalmente, depois de tentar por dez minutos determinar a razão do medo do cachorro, Travis apontou para a foto que lhe causara tanto pânico e disse:
- Talvez você não entenda, Einstein. Isto não é uma foto de algo real, de algo verdadeiro. Isto é um demônio de brinquedo. Faz parte de um filme. Você me entende, quando digo que é de brinquedo?
- O cachorro abanou o rabo-: "Sim."
- Bem... Isto é um monstro de brinquedo. Um latido. "Não."
- De brinquedo. Falso. Irreal. Apenas um homem com roupa de borracha - disse Nora.
"Não."
- Sim - disse Travis. "Não."
Einstein tentou fugir para se esconder atrás do sofá novamente, mas Travis o pegou pela coleira.
- Você está querendo dizer que já viu alguma coisa assim?
O cachorro desviou o olhar da foto, olhou para Travis e tremeu todo. Segurando a coleira com uma das mãos e com a outra no lombo do animal, Travis passou a tremer também: O medo do cachorro passara para ele e ele pensava consigo mesmo: Meu Deus, ele viu realmente algo assim.
- O que há de errado? - perguntou Nora, percebendo a mudança em Travis.
Em vez de responder, ele repetiu a pergunta para o cachorro, porque este ainda não havia respondido.
- Você garante que viu alguma coisa assim? "Sim."
- Alguma coisa que se parece exatamente com este demônio? "Sim" e "Não."
- Alguma coisa que se parece um pouco com este demônio? "Sim."
Largando a coleira, Travis bateu levemente no lombo do cachorro, para tranqüilizá-lo, mas Einstein continuava a tremer.
- É por causa disto que você se mantém em guarda, durante a noite olhando pela janela?
"Sim."
Completamente confusa e alarmada pela situação do cachorro, Nora começou a acariciar o animal.
- Eu pensava que você estivesse preocupado que o pessoal do laboratório pudesse te encontrar.
Einstein latiu uma vez.
- Você não está com medo de que o pessoal do laboratório te encontre?
"Sim" e "Não."
- Mas você está mais preocupado com... esta outra coisa, e que esta te localize.
"Sim", "Sim", "Sim."
- Por acaso é a mesma coisa que estava na floresta naquele dia, a coisa que nos perseguia, a coisa em que eu disparei um tiro? - disse Travis.
"Sim", "Sim", "Sim."
Travis olhou para Nora. Ela estava desaprovando aquilo.
- Mas é apenas um monstro de cinema. Nada no mundo real se parece nem um pouco com este demônio.
Circulando através da sala, farejando algumas fotos, Einstein fez uma pausa diante de uma fotografia da Blue Cross que mostrava o médico, a mãe e o bebê em um quarto de hospital. O cachorro levou a revista para eles, atirando-a no chão. Colocou o focinho sobre a figura do médico, e ficou com certa expectativa.
- Quando começamos - comentou Nora -, você nos disse que o médico representava um dos cientistas do laboratório.
"Sim."
- Então, você está nos dizendo que o cientista que trabalhava com você sabe o que era esta coisa que te assustava na mata? - disse Travis.
"Sim."
Einstein examinou as fotografias novamente, e desta vez voltou com um dos anúncios que mostrava um carro na jaula. Tocou com o focinho a jaula; então, vacilando, ele indicou a foto com o demônio.
- Você está nos dizendo que a coisa da floresta pertence à jaula? - perguntou Nora.
"Sim."
- Mais do que isto - disse Travis -, acho que ele está nos dizendo que esta coisa estava na jaula, certa vez, e que a viu na jaula.
"Sim".
- No mesmo laboratório em que você estava preso? "Sim", "Sim", "Sim."
- Outro animal experimental de laboratório? - perguntou Nora. "Sim."
Travis olhou fixo para a fotografia do demônio, que tinha olhos amarelos, profundos, um focinho deformado com grandes presas. Finalmente ele disse:
- Era uma experiência... que saiu errada? "Sim" e "Não", disse Einstein.
Agora muito agitado, o cachorro cruzou a sala de estar na direção da janela da frente, pulou e colocou as patas dianteiras na borda da janela, para observar a noite em Santa Bárbara.
Nora e Travis permaneceram sentados no chão entre as revistas e livros abertos, felizes com o progresso que haviam obtido, começando a sentir um pouco de cansaço, que a excitação escondia - os dois se olhavam desorientados.
- Você acha que Einstein é capaz de mentir, inventar histórias de monstros como as crianças? - comentou Nora num tom de voz bem baixo.
- Eu não sei. Será que os cachorros podem mentir, ou isto é unicamente uma habilidade humana? - Ele riu da própria pergunta absurda. - Os cachorros podem mentir? Pode um alce ser eleito presidente da República? Será que as vacas podem cantar?
- Será que os patos podem dançar? - Nora ria de maneira infantil. Todas estas perguntas eram decorrência da dificuldade emocional e intelectual de lidar com um cachorro tão inteligente quanto Einstein, e Travis comentou:
- Vi certa vez um pato dançando.
- É mesmo?
- Sim, em Las Vegas.
- Em que hotel o pato estava se apresentando? - perguntou Nora, rindo.
- No Caesar’s Palace. Ele podia cantar, também.
- O pato?
- Sim. Você quer saber o nome dele?
- Sammy Davis Pato Jr... - disse Travis e os dois caíram na gargalhada. - Era um astro tão famoso que nem mesmo colocaram o nome dele nos luminosos do hotel, para que todos soubessem quem estava se apresentando.
- Eles só colocaram "Sammy", não foi?
- Não. Apenas "Jr."
Einstein voltou da janela e ficou olhando para eles. A cabeça estava ereta, tentando compreender por que os dois estavam agindo daquela forma. A expressão de espanto do cachorro foi vista por Travis e Nora como a coisa mais engraçada que jamais tinham visto. Eles se aproximaram, se abraçaram rindo, como dois bobos.
O cachorro acabou voltando para a janela.
À medida que os dois adquiriam autocontrole, as risadas iam cessando. Travis se deu conta de que estava segurando Nora e que a cabeça dela estava sobre o seu ombro e que aquele contato físico era o mais intenso até então. O cabelo de Nora cheirava a limpo, o aroma era agradável. Ele poderia sentir o corpo quente dela. De repente, a desejou desesperadamente e sabia que iria beijá-la, quando ela levantou a cabeça do ombro dele. E ele fez o que sabia que teria que fazer - a beijou - e ela o beijou. Por um segundo ou dois, ela parecia não saber o que estava acontecendo, o que aquilo tudo significava; um beijo breve e doce, profundamente inocente, não um beijo de paixão, mas de amizade e de grande afeição. Então, o beijo se prolongou e Nora se tornou mais amorosa. A respiração começou a ficar mais rápida, e ela segurou firme o ombro de Travis, tentando aproximá-lo. Um murmúrio de necessidade escapou-lhe por entre os lábios - e o som de sua própria voz a tornou mais consciente. Abruptamente se empertigou ao perceber Travis simplesmente como homem. Aqueles belos olhos estavam transbordando de fascínio - e medo - pelo que quase havia acontecido. Travis recuou instantaneamente, porque sabia por instinto que não era o momento certo, não era a hora exata. Quando finalmente eles fizessem amor, tudo deveria ser perfeito, sem hesitações ou distrações, porque pelo resto de suas vidas sempre se lembrariam da primeira vez e a lembrança seria linda, agradável. Isto teria valor imenso na medida em que os dois envelhecessem juntos. Embora não fosse o momento para colocar o futuro em palavras, Travis não tinha dúvidas de que ele e Nora Devon passariam a vida juntos, e percebera já estar consciente disto há alguns dias.
Depois de certo constrangimento ao se separarem, sem saber se deviam ou não comentar aquela mudança de relacionamento, Nora finalmente disse:
- Ele ainda está na janela.
Einstein apertou o focinho no vidro, examinando a noite.
- Poderia ele estar dizendo a verdade? - perguntou Nora. - Poderia alguma coisa mais ter escapado do laboratório, alguma coisa fora do comum?
- Se eles tinham um cachorro tão inteligente quanto Einstein, imagino que poderiam ter alguma coisa mais esquisita. E havia alguma coisa no mato, naquele dia.
- Mas não há perigo de esta coisa encontrar o cachorro, certamente. Não, depois que você o trouxe para tão distante de lá.
- Não há perigo - concordou Travis. - Não acredito que Einstein entenda que estamos muito distantes daquele local onde o encontrei. Seja lá o que havia no mato, não poderia segui-lo mais. Mas aposto que o pessoal do laboratório organizou uma equipe de captura. Estou preocupado com este pessoal. Einstein também. É exatamente por este motivo que ele finge ser um cachorro idiota em público, revelando sua inteligência só quando estamos na privacidade. Ele não quer voltar para o laboratório.
- Se o encontrarem... - interrompeu Nora.
- Eles não vão encontrá-lo.
- Mas se o fizerem, e então?
- Jamais o entregarei - disse Travis. - Nunca!
8
Por volta das onze horas da noite, os peritos removeram o corpo sem cabeça do policial e o corpo mutilado do capataz da construção, em Bordeaux Ridge. Aos repórteres que estavam próximos da barricada, foi contada uma história totalmente falsa; todos pareceram estar satisfeitos com a versão dos fatos; formularam perguntas, tiraram centenas de fotografias e as equipes de televisão gravaram várias horas de imagens que dariam pouco mais de um minuto, após editadas para o noticiário do dia seguinte. (Numa época de assassinato em massa e terrorismo, duas vítimas não mereciam mais do que dois minutos no telejornal. Dez segundos para a cabeça da matéria, um minuto e quarenta segundos para o vídeo-teipe, dez segundos para os bem penteados apresentadores passarem um tom grave e pesaroso no ar - depois, uma reportagem sobre um concurso de biquíni, ou de um homem que disse ter visto um disco-voador.) Os repórteres desapareceram, assim como todos os técnicos do laboratório e os policiais uniformizados. Já não estavam mais no local também os agentes de Lemuel Johnson, exceto Cliff Soames.
Algumas nuvens cobriam parcialmente a lua. Já não havia mais a iluminação especial da polícia. A única luz era dos faróis do carro de Cliff Soames. Ele virou o carro na direção do carro de Lem, que estava estacionado no fim da rua. Desta maneira, os dois não precisavam ficar caminhando no escuro. Fora do alcance dos faróis, o perfil das casas parecia esqueletos de animais pré-históricos.
Ao mesmo tempo em que caminhavam na direção de seu carro, Lem procurava sentir-se o melhor possível em face daquelas circunstâncias. Walt havia concordado com que as autoridades federais assumissem plenamente o caso, sem qualquer interferência da polícia local. Embora Lem houvesse transgredido uma dezena de leis e desrespeitado o juramento que havia feito de manter sigilo total, contando a Walt os detalhes do Projeto Francis, ele tinha certeza de que Walt poderia manter-se calado a respeito. O caso estava sendo mantido em sigilo pelas autoridades, sem o conhecimento da imprensa, com um pouco mais de informações do que antes, talvez, mas longe da verdade, de qualquer forma.
Cliff Soames chegou primeiro ao carro, abriu a porta e sentou-se no lugar dos passageiros e Lem, ao abrir a porta do motorista, ouviu Cliff dizer:
- Nossa! Meu Deus! - Cliff saíra correndo do carro, de um momento para outro, sendo observado por Lem, que então compreendeu a razão de tudo aquilo. Uma cabeça.
A cabeça de Teel Porter, sem dúvida.
Estava no banco da frente do carro, colocada de tal forma a ficar virada para Lem, quando este abrisse a porta. A boca estava aberta, num verdadeiro grito silencioso. Não havia olhos.
Lem saiu voando do carro e procurou a arma sob o paletó.
Walt Gaines já estava fora do carro, com a sua arma na mão, correndo na direção de Lem:
- Qual é o problema?
Lem apontou.
Ao chegar perto do carro da Agência de Segurança Nacional, Walt viu a cabeça através da porta, e deixou escapar um murmúrio de angústia.
Cliff se aproximou pelo outro lado do carro, segurando firme a arma. Ele apontava o cano bem para frente.
- Aquela coisa maldita estava aqui quando nós chegamos, enquanto estávamos na casa.
- Ainda poderia estar aqui - comentou Lem, procurando ansiosamente algum sinal no meio da escuridão, além do alcance dos faróis do carro.
- Chamaremos os meus homens e faremos uma busca completa - disse Walt, examinando detidamente as casas em construção.
- De maneira alguma - disse Lem. - A coisa vai fugir se perceber seus homens voltando... se já não foi embora.
Eles estavam exatamente no limite de Bordeaux Ridge. Depois, só havia quilômetros de área livre, morros e montanhas, de onde havia saído o monstro e para onde ele poderia ter voltado. As elevações, as escarpas, o canyon eram apenas vagas formas, no meio da noite, parcialmente iluminadas pela lua. E podiam ser mais sentidas do que vistas.
De algum lugar da rua completamente sem luz, ouviu-se um ruído de um monte de madeiras caindo do chão.
- Está aqui - disse Walt.
- Talvez - comentou Lem. - Mas nós não vamos procurar esta coisa no escuro. Apenas nós três, não. É isto o que este monstro quer.
Ficaram escutando. Nada mais se ouviu.
- Procuramos por todos os lados, antes que você chegasse - advertiu Walt.
Cliff comentou:
- A coisa deve ter ficado um passo à frente de você, brincando de esconder com os seus homens.
- A coisa queria deixar os agentes procurarem em meu lugar.
- Para ridicularizar você? - perguntou Walt.
- Para me ridicularizar.
Eles ficaram em silêncio, examinando a escuridão em volta das casas. O ar quente de junho estava completamente parado.
Por algum tempo o único barulho que podiam ouvir era o do motor do carro do xerife.
- Está nos observando - disse Walt.
Mais alguma coisa caiu no meio da construção. Mais perto desta vez. Os três ficaram gelados, cada um olhando para uma direção diferente, em guarda, contra um eventual ataque.
O silêncio seguinte durou perto de um minuto.
Quando Lem estava a ponto de falar alguma coisa, o monstro gritou. O grito era frio e assustador. Desta vez eles podiam identificar de onde viera aquele urro: do descampado, além de Bordeaux Ridge.
- Ele está fugindo agora - disse Lem. - Ele está decidido que não podemos nos aventurar numa procura agora, nós três. Está indo embora sem que tenhamos tempo de chamar por reforço.
O monstro gritou novamente, de mais longe. O grito era semelhante a garras penetrando na alma de Lem.
- Pela manhã - disse Lem -, nós vamos colocar em ação as equipes de fuzileiros no lado leste do morro. Vamos achar esta coisa maldita. Por Deus que vamos.
Voltando-se para o carro de Lem, Walt mostrava-se visivelmente contrariado com a tarefa que tinha pela frente: remover a cabeça mutilada de Teel Porter.
- Por que os olhos? Por que esta coisa sempre tira os olhos?
Lem respondeu:
- Parcialmente porque a criatura é por natureza terrivelmente agressiva e sangüinária. Isto tem razões genéticas. E por outro lado este monstro sente prazer em espalhar o terror, penso eu. Mas também...
- O quê?
- Gostaria de não me lembrar disto, mas não posso, está tudo muito claro na minha cabeça...
Em uma das suas visitas ao laboratório Banodyne, Lem ouvira uma conversa perturbadora entre a dra. Yarbeck e o monstro. A dra. Yarbeck e os assistentes dela haviam ensinado o monstro uma linguagem de sinais, semelhante a outra linguagem desenvolvida pelos pesquisadores que tentavam as primeiras experiências de comunicação com os primatas maiores, como os gorilas, em meados dos anos setenta. O caso mais bem-sucedido foi o de uma fêmea de gorila chamada Koko, que havia sido o centro de inúmeras reportagens na década passada. O animal desenvolveu um vocabulário de sinais de aproximadamente quatrocentas palavras. Quando Lem finalmente viu o monstro, este dera mostras de um vocabulário consideravelmente maior do que o dominado por Koko, embora fosse um primata. No laboratório da dra. Yarbeck, Lem observara como aquela criatura monstruosa era capaz de trocar complicados sinais de mão com os cientistas, enquanto um assistente traduzia os sinais. O monstro expressara uma feroz hostilidade contra todos e contra tudo, freqüentemente interrompendo o diálogo com a cientista para circular pela jaula numa fúria incontrolável, forçando as barras de ferro. Para Lem a cena fora assustadora e repelente, mas sentia igualmente tristeza e tinha piedade daquela criatura, presa, isolada do mundo, como nenhuma outra. Nem mesmo os cachorros de Wea-therby eram tão solitários. A experiência o havia impressionado de tal maneira que era capaz de lembrar de todas as trocas de sinais entre o monstro e a cientista e uma parte daquela incrível conversação voltara à mente dele.
A um certo ponto o monstro comunicou:
"Arrancar os teus olhos."
"Você quer arrancar os meus olhos?" A dra. Yarbeck perguntara por sinais.
"Arrancar os olhos de todo mundo."
"Por quê?"
"Assim não poderá me ver."
"Por que você não quer ser visto?"
"Feio."
"Você se acha feio?"
"Muito feio."
"De onde você tirou a idéia de que é feio?"
"Das pessoas."
"Que pessoas?"
"Todos os que me vêem a primeira vez."
"Como este senhor que está conosco, hoje?"
A dra. Yarbeck sinalizou indicando Lem.
"Sim. Todos me acham feio. Me odeiam."
"Ninguém te odeia."
"Todos."
"Nunca, ninguém disse que você é feio. Como você sabe o que as pessoas pensam?"
"Eu sei."
"Como sabe?"
"Eu sei, eu sei, eu sei!"
E saiu correndo pela jaula, depois segurou-se nas barras de ferro, ru-gindo. Encarou a dra. Yarbeck e disse por sinais:
"Arrancar os meus próprios olhos."
"Assim você não terá que olhar para si mesmo?"
"Assim não terei que olhar para as pessoas me olhando." Lem sentia piedade, mas aquilo não ajudava a diminuir o medo que sentia.
Agora, em plena noite quente de junho, ele fez o xerife Walt Gaines sentir arrepios, com toda aquela história.
- Meu Deus - exclamou Cliff Soames. - Esta criatura tem ódio de si mesma e odeia ainda mais os responsáveis por ela.
- E agora, já que você me contou isto - disse Walt -, estou surpreso por que nenhum de vocês tenha entendido por que o monstro odeia tanto o cachorro. Esta coisa maldita e o cachorro são os dois únicos sobreviventes do Projeto Francis. O cachorro é o filho predileto, o favorito, e o monstro sempre soube disto. O cachorro é o filho que os pais gostam de mostrar, enquanto o monstro é o filho que eles preferem manter preso a qualquer custo. Isto deixa a criatura ressentida e o ódio aumenta a cada dia.
- É claro - disse Lem -, você está certo. É claro.
- Isso também explica os dois espelhos quebrados nos banheiros da casa onde Teel Porter fora encontrado morto - disse Walt. - A coisa não pode encarar-se.
Agora já bem distante, alguma coisa gritava, algo que certamente não era criação de Deus.
SETE
1
Durante o resto do mês de junho, Nora pintava, passava muito tempo ao lado de Travis e tentava ensinar Einstein a ler.
Nenhum dos dois estava certo de que o cachorro, embora muito esperto, tivesse capacidade de aprender qualquer coisa, mas valia à pena tentar. Se ele podia entender o que se falava, como parecia ser o caso, então era provável que fosse capaz de aprender as palavras escritas.
Claro, eles não poderiam estar absolutamente certos de que Einstein entendia o que falavam, embora respondesse com reações específicas. Era remotamente possível que o cachorro não entendesse precisamente as palavras que eram ditas, mas apreendia o significado através de alguma forma de telepatia. Talvez pudesse ler as palavras na cabeça das pessoas.
- Mas acho que não é o caso - comentou Travis numa tarde, quando ele e Nora estavam sentados no quintal, bebendo vinho e observando Einstein brincar com o regador do jardim. - Talvez, porque eu não queira acreditar nisto. A idéia de que ele é tão inteligente quanto eu me impressiona. Mas telepatia é demais para mim. Se este for o caso, eu é que deveria estar usando a coleira e ele segurando a guia!
Foi um teste em espanhol que pareceu indicar que o animal não compreendia, de fato, por telepatia.
Na universidade, Travis estudara três anos de espanhol. Mais tarde, escolhendo uma carreira no exército e fazendo parte do grupo de elite Força Delta, fora encorajado a continuar o estudo de espanhol porque seus superiores acreditavam que a instabilidade política na América Central poderia exigir a presença da Força Delta para combater grupos terroristas. As operações em países de língua espanhola seriam freqüentes. Ele estava fora da Força Delta há muitos anos, mas o contato com a população hispânica da Califórnia o mantivera relativamente fluente.
Agora, quando dera ordens e fizera perguntas em espanhol, o cachorro olhava para ele completamente perdido, abanando o rabo, sem responder a nada. Travis insistiu no espanhol e o cachorro levantou a cabeça, como que desejando saber se aquilo era algum tipo de piada. Certamente, se o cachorro fosse capaz de ler imagens mentais que surgissem na cabeça da pessoa que estivesse conversando com ele, então seria capaz de compreender as mensagens independentemente do idioma.
- Ele não tem capacidade de ler a nossa mente - comentou Travis. - Há um limite para a sua genialidade, graças a Deus!
Dia após dia, Nora continuava sentada ao chão da sala na casa de Travis ou no quintal, explicando o alfabeto para Einstein e tentando aju-dâ-lo a entender como as palavras eram formadas a partir daquelas letras e como as palavras impressas eram relacionadas à palavra oral. De vez em quando, Travis assumia as aulas para que Nora repousasse, mas a maior parte do tempo ele ficava por perto, lendo, porque dizia "não ter paciência para ensinar."
Nora tinha um livro de anotações para auxiliá-la. Em cada página da esquerda ela colocava uma figura recortada de alguma revista, no lado direito escrevia em letras maiúsculas o nome do objeto correspondente: ÁRVORE, CARRO, HOMEM, MULHER, CADEIRA... Com Einstein sentado ao lado dela, olhando com atenção, ela poderia apontar, primeiro para a figura; depois para a palavra, pronunciando-a repetidamente.
No último dia de junho, Nora espalhou uma série de figuras sem identificação.
- É hora de prova novamente - disse ela para Einstein. - Vamos ver se você pode fazer melhor do que na segunda-feira.
Einstein estava sentado bem ereto, o peito estufado, a cabeça erguida demonstrando confiança em si mesmo.
Travis estava sentado em uma poltrona, observando. Ele disse:
- Se você falhar, peludo, vamos trocar você por um poodle que pode rolar pelo chão, fazer-se de morto e pedir por comida.
Nora ficou contente por Einstein simplesmente não ter dado ouvidos a Travis.
- Agora não é hora de brincadeira - advertiu ela.
Nora mostrou um cartão com a palavra ÁRVORE. O cão se dirigiu para a foto de um pinheiro e o tocou com o focinho. Quando ela mostrou outro cartão, onde estava escrito CARRO, o cachorro colocou uma das patas spbre a foto de um carro. Quando exibiu outro cartão escrito CASA ele farejou a foto de uma mansão colonial. Eles foram até a contagem de cinqüenta palavras e pela primeira vez o cachorro relacionou com precisão palavras e imagens. Nora estava extremamente entusiasmada com o progresso e Einstein não podia parar de abanar o rabo.
Travis disse:
- Bem, Einstein, você ainda está muito longe de ser capaz de ler Proust.
Desconhecendo a brincadeira de Travis, Nora disse:
- Ele está ótimo! Maravilhoso! Você não pode esperar que ele tenha o nível de leitura de um universitário, da noite para o dia. Ele está aprendendo mais rápido do que o faria uma criança.
- Tanto assim?
- Sim! Assim mesmo. Muito mais rápido do que uma criança o faria.
- Bem... então, talvez ele mereça alguns biscoitos de cachorro. Einstein correu imediatamente para a cozinha para pegar a caixa com a ração.
2
À medida que o verão passava, Travis estava cada vez mais maravilhado com o rápido progresso de Nora ao ensinar Einstein a ler.
Em meados de julho, os dois promoveram Einstein do be-a-bá caseiro para os livros ilustrados do dr. Seuss, Maurice Sendak, Phil Parks, Susi Bohdal, Sue Dreamer, Mercer Mayer e muitos outros. O cachorro parecia estar gostando de tudo, embora os seus favoritos fossem os livros de Parks, especialmente - por razões que eles não sabiam por quê - e os livros de Arnold Lobel, sobre a rã e o sapo. Levaram para casa dezenas de livros comprados numa livraria infantil.
Primeiro, Nora começou a ler em voz alta, cuidadosamente movendo o dedo para acompanhar cada palavra, o que era seguido atentamente pelos olhos de Einstein. Mais tarde, ela não mais lia em voz alta, mas abria o livro na frente do cachorro e virava a página, quando Einstein indicava - através de um rosnado ou coisa parecida - que ele já havia terminado de ler o texto, e estava pronto para seguir na próxima página.
O desejo de Einstein de ficar sentado por horas com os olhos fixos nos livros indicava que estava de fato lendo e não simplesmente vendo as figuras. Apesar disso, Nora decidiu testá-lo a respeito do conteúdo de um dos livros fazendo uma série de perguntas.
Depois que Einstein leu A rã e o sapo todo o ano, Nora fechou o livro e disse:
- Está bem. Agora, responda sim ou não para as seguintes perguntas. Eles estavam na cozinha, onde Travis estava preparando um prato de batatas com queijo para o jantar, Nora e Einstein estavam sentados em cadeiras, próximos da mesa. Travis fez uma pausa em sua atividade de cozinheiro para acompanhar o teste pelo qual passaria Einstein.
Nora disse:
- Primeiro, quando a rã veio para ver o sapo, num dia de inverno, o sapo estava na cama não quis sair. Isto está certo?
Einstein teve que sair da cadeira, para que fosse possível abanar o rabo. "Sim."
Nora disse:
- Mas finalmente a rã conseguiu com que o sapo saísse e os dois foram patinar no gelo.
Um latido, "Não."
- Eles saíram num trenó - disse ela. "Sim."
- Muito bem! Mais tarde, neste mesmo ano, no natal, a rã deu ao sapo um presente. Foi um suéter?
"Não".
- Um novo trenó? "Não."
- Um relógio para colocar na sala?
"Sim," "Sim," "Sim."
- Excelente! - disse Nora. - Agora o que devemos ler? Que tal este aqui? O fantástico senhor raposa?
Einstein abanou o rabo com intensidade.
Travis teria apreciado tomar uma parte mais ativa na educação do cachorro, mas podia constatar que trabalhar o tempo todo com o cachorro dava grande prazer à Nora e ele não queria interferir. Mas às vezes se fazia de rabugento, questionando a validade do que ela estava fazendo, tentando ensinar o cachorro a ler e brincava com Nora sobre o progresso obtido. Estas observações eram o suficiente para redobrar a determinação de Nora para continuar com as lições, para passar ainda mais tempo com o cachorro, para provar que Travis estava errado. Einstein nunca reagira àquelas observações negativas e Travis suspeitava de que o cachorro estivesse consciente do pequeno jogo de psicologia no qual Travis estava envolvido para estimular Nora.
Não estava suficientemente claro por que o ato de ensinar fazia Nora desabrochar para a vida. Talvez porque nunca tivesse convivido com pessoas, tido experiências de relacionamento social com ninguém - nem mesmo com Travis ou sua tia Violet - com tanta intensidade quanto com o cachorro e o mero processo de comunicação extensivo obrigava-a a sair de sua concha. Ou talvez proporcionar o dom da leitura ao cachorro fosse para ela extremamente gratificante. Ela por natureza possuía a capacidade de dar de si, e sentia prazer em compartilhar com os demais, já que havia passado toda a sua vida em reclusão, sem a oportunidade de expressar a personalidade de forma correta. Agora ela estava tendo a oportunidade de dar um pouco de si, era generosa com o próprio tempo e energia e encontrava alegria na sua própria generosidade.
Travis também suspeitara que, através do relacionamento dela com o cachorro, ela estava expressando um dom natural de maternidade. De fato, a paciência de Nora era típica de uma mãe tratando de um filho e ela seguidamente falava para Einstein de maneira tão carinhosa e cheia de afeição, como se o cachorro fosse realmente seu filho.
Qualquer que fosse a razão, Nora se tornou menos tensa, mais à vontade, à medida que trabalhava com Einstein. Aos poucos, foi substituindo os vestidos antiquados e sem forma por calças compridas, blusas coloridas, jeans e camisetas e parecia ter dez anos menos. O cabelo agora estava bem cuidado. Nora havia voltado ao cabeleireiro e desta vez não desmanchou o penteado. Ela estava rindo com mais freqüência, sentia-se mais participante de tudo. Ao conversar, olhava para Travis, fitando-lhe os olhos e raramente sentia-se envergonhada, como acontecia antes. Ela o tocava sem medo também, chegando a passar o braço pela cintura de Travis. Gostava de ser abraçada e os dois se beijavam com facilidade, embora o beijo ainda parecesse de dois adolescentes em início de namoro.
No dia 14 de julho, Nora recebeu novidades que a deixaram ainda mais entusiasmada. O promotor de Santa Bárbara telefonou-lhe para dizer que não seria necessária a presença dela no tribunal para testemunhar contra Arthur Streck. Diante da ficha criminal que tinha, Streck desistiu de afirmar que era inocente quanto à acusação de tentativa de estupro, assalto e arrombamento. Ele instruiu o advogado para negociar com o promotor. Como resultado, eliminaram todas as acusações, exceto o assalto, e Streck aceitou a pena de três anos de cadeia, com a previsão de que poderia ser posto em liberdade condicional depois de dois anos. Nora temia o julgamento. De repente, ela teve uma sensação de liberdade e, para comemorar, ficou um pouco embriagada, pela primeira vez na sua vida.
Naquele mesmo dia, quando Travis trouxe para casa novos livros para as aulas de Einstein, o cachorro descobriu que havia livros com a figura do Mickey, e revistas em quadrinhos. Einstein estava tão contente com isto como Nora ao saber do resultado dos tribunais. O entusiasmo do cachorro com Mickey, com o Pato Donald e o resto dos personagens de Disney permaneceu um mistério, mas era inegável. Einstein não conseguia parar de abanar o rabo e de agradar Travis, em sinal de gratidão.
Tudo poderia ter sido realmente agradável se, no meio da noite, Einstein não corresse de uma janela da casa a outra, olhando a noite lá fora, inegavelmente com medo.
3
Na manhã de quinta-feira, 15 de julho, quase seis semanas depois dos assassinatos em Bordeaux Ridge, dois meses depois de que o cachorro e o monstro escaparam do laboratório, Lemuel Johnson estava sentado a sós no seu escritório no andar superior de um edifício em Santa Ana, e sede do governo municipal de Orange. Ele olhava pela janela e lá fora o calor era insuportável. Suas obrigações não estavam limitadas à procura dos fugitivos do laboratório, mas este caso não lhe saía da mente ao lidar com outros trabalhos. Não era capaz de pensar em outra coisa, até mesmo na hora de dormir e ultimamente tinha de quatro a cinco horas de repouso por noite. Não podia suportar o fracasso.
Não, na realidade, a sua atitude era mais forte do que isto: ele estava obcecado pela idéia de evitar o fracasso. O seu pai, que começou a vida muito pobre e acabou desenvolvendo um negócio bem-sucedido, transmitiu-lhe a crença quase religiosa na necessidade de se realizar, de ter êxito, de atingir todos os objetivos possíveis. Não importa quantos sucessos você tenha, o pai sempre dizia, a vida pode puxar o seu tapete se você não for trabalhador. "É ainda pior para um negro, Lem. Para um negro o sucesso e como caminhar na corda bamba, sobre o Grand Canyon. Ele está de fato lá nas alturas e é agradável. Mas quando ele comete um erro, quando fracassa é uma queda de dois quilômetros no abismo. No abismo. Porque o fracasso significa ser pobre. E os olhos de muitas pessoas, até mesmo nesta idade da razão, um pobre e miserável negro fracassado não é um homem, é apenas um crioulo". Foi a única vez em que seu pai havia usado a palavra detestável. Lem havia crescido com a convicção de que qualquer sucesso obtido na vida era apenas uma tênue subida e mesmo assim ele estaria em permanente perigo de ser tirado daquele morro pelos ventos da adversidade, mas isto não diminuía sua determinação de movimentar-se rápido e subir até um platô mais amplo e seguro.
Ele não estava dormindo bem e seguidamente perdia o apetite. Quando comia, logo depois acabava sentindo dor de estômago. Jogar bridge, nem falar, Lem não era capaz de se concentrar nas cartas; nos jogos semanais com Walt e Audrey Gaines, a família Johnson acabava perdendo.
Ele sabia por quê: obcecado em solucionar satisfatoriamente todos os casos, não sabia no entanto como utilizar este conhecimento para modificar a obsessão.
Somos o que somos, pensava ele, e talvez, a única vez em que podemos mudar o que somos é quando a vida nos apresenta uma surpresa semelhante a um vidro de janela se partindo com a pancada de um taco de beisebol, como que rompendo com as cadeias do passado.
Então ele olhou fixamente o mormaço lá fora, com ar preocupado, naquele dia quente e úmido de julho.
Fazendo uma retrospectiva até maio, imaginava que alguém pudesse ter dado abrigo ao cachorro. Era um animal lindo, não restava dúvida, e se ele revelasse apenas um pouquinho de sua inteligência para qualquer pessoa, aí, sim, se tornaria irresistível. Entretanto, Lem sabia que localizar o cachorro era ainda mais difícil que seguir a trilha do monstro. Uma semana para localizar o monstro e provavelmente um mês para recapturar o cachorro.
Ele havia-se comunicado com todos os canis e clínicas veterinárias da Califórnia, Nevada e do Arizona, pedindo ajuda urgente para localizar o animal. A circular alegava que o cachorro fugira de um laboratório de pesquisas que realizava importantes trabalhos na área do câncer. Segundo a circular, a perda do animal significaria a perda de milhões de dólares que haviam sido investidos no trabalho de pesquisa, além do tempo enorme gasto pelos cientistas - e poderia impedir seriamente a descoberta da cura de certos tipos de câncer. O comunicado incluía a fotografia do animal e a informação de que no lado interno da sua orelha esquerda havia uma marca do laboratório: o número 33-9. Era solicitada não somente a colaboração, mas absoluto sigilo. A remessa da circular era feita pelo Correio e repetida a cada sete dias, desde que acontecera a fuga e dezenas de agentes não estavam fazendo mais nada, a não ser contactar os canis e centros veterinários nos três Estados, para terem a certeza de que a circular estava sendo lembrada e de que todos continuavam no trabalho de procura do cachorro com a marca na orelha.
Enquanto isso, a caçada ao monstro ficaria restrita a áreas ainda não desenvolvidas, porque este estava relutante em aparecer. E não havia chance de alguém achá-lo bonito e levá-lo para casa. Além disso, o monstro deixara uma trilha de morte que poderia ser seguida.
Depois dos assassinatos em Bordeaux Ridge, a leste de Yorba Linda, a criatura se refugiou em áreas desertas de Chino Hills. Estava tomando o rumo norte, cruzando a extremidade leste do município de Los Angeles, onde a sua presença fora detectada no dia 9 de junho, na região semi-rural de Diamond Bar. O Centro de Controle Animal do Município de Los Angeles havia recebido incontáveis e histéricos comunicados dos moradores de Diamond Bar, relacionados com ataques de animais selvagens a cachorro e gatos - muitos ficaram totalmente mutilados e a condição deles não deixava dúvidas que fora obra do monstro, embora as denúncias dessem conta de que fosse obra de algum demente.
Por mais de uma semana, os policiais perderam a pista até que na manhã de 18 de junho, quando dois jovens acampados no pé do pico Johns-tone, ao sul da imensa Angeles National Forest, relataram ter visto algo que insistiram em chamar "do outro mundo". Eles se prenderam dentro da camioneta e a criatura tentou insistentemente entrar para pegá-los, chegando a bater no vidro com uma pedra. Felizmente, os dois estavam armados com pistolas calibre 32 e um deles abriu fogo naquela coisa, afugentando-a. Os jornalistas os trataram como dois idiotas e a história fez o maior sucesso nos programas de notícias da noite em todos os canais de televisão.
Lem acreditava neste jovem casal. Com a ajuda de um mapa ele traçou a possível rota seguida pelo monstro, passando através de uma estreita área densamente povoada entre Diamond Bar e a região abaixo do pico Johns-tone; passando por San José Hills, através do Bonelli Regional Park, entre San Dimas e Glendora, até chegar em campo aberto. O monstro teria que cruzar ou passar por baixo de três autopistas que cortavam a área, mas se caminhasse durante a noite, quando o movimento de carros era fraco ou inexistente, poderia passar despercebido. Lem concentrou os cem homens do corpo especial dos fuzileiros naquele ponto da floresta, onde estes continuavam a caçada em trajes civis, sempre em grupos de três ou quatro.
Ele tinha a esperança de que o monstro tivesse sido atingido no mínimo por um tiro do casal de campistas. Mas não havia indícios de sangue.
Já começava a se preocupar com a possibilidade de que a criatura ficasse à solta ainda por muito mais tempo. Situando-se ao norte da cidade de Los Angeles, a Angeles National Forest era enorme o suficiente para desencorajar qualquer pessoa.
- Aproximadamente tão vasta quanto todo o Estado de Delaware - disse Cliff depois de medir a área no mapa que estava preso na parede do escritório de Lem. Cliff era de Delaware. Havia chegado há pouco tempo ao oeste e, como todos os que ali chegam pela primeira vez, estava maravilhado com a escala gigantesca de tudo naquela extremidade do continente. Também era jovem, com toda aquela disposição da juventude e tinha um otimismo quase que perigoso. A formação de Cliff era radicalmente diferente da de Lem e não se sentia na corda bamba ou exposto ao risco por ter a sua vida destruída por apenas um erro. Às vezes Lem o invejava.
- Se se refugiar nas montanhas de San Gabriel, alimentando-se de caça e ficando satisfeito com a solidão, aventurando-se raramente a atormentar as pessoas que moram na periferia desta reserva florestal... ele jamais poderá ser encontrado. - Lem agora estava prestando atenção nos cálculos de Cliff.
- Mas lembre-se - disse Cliff. - Ele odeia o cachorro mais do que aos homens. Ele quer o cachorro e tem a habilidade de localizá-lo.
- Assim pensamos nós.
- Ele poderia suportar a vida na floresta? Quero dizer, sim, ele tem uma parte selvagem, mas também é inteligente. Talvez inteligente demais para se limitar a viver naquela área abandonada do país.
- Talvez - disse Lem.
- Vão localizá-lo logo, ou ele vai fazer alguma coisa para nos mostrar onde se encontra - previu Cliff.
Isto foi no dia 18 de junho.
Quando não encontraram sinal algum do monstro nos dez dias seguintes, o custo financeiro de manter cem homens naquela captura parecia insuportável. No dia 29 de junho, Lem finalmente teve que dispensar os fuzileiros e mandá-los de volta às suas bases.
Dia após dia, Cliff estava impaciente pela falta de novidades, tudo estava parado, a ponto de ele começar a pensar que o monstro sofrerá algum acidente, que estivesse morto e que jamais ouviriam falar dele novamente.
Dia após dia, Lem ficava cada vez mais deprimido, acreditando ter perdido o controle da situação e que o monstro apareceria em grande estilo, tornando sua presença pública. Um verdadeiro fracasso.
A única esperança é que esta besta estivesse no município de Los Angeles fora da jurisdição de Walt Gaines. Se houvesse mais mortos, Walt poderia não tomar conhecimento, o que evitaria o esforço de convencê-lo novamente a ficar fora do caso.
No dia 15 de julho, uma quinta-feira, exatamente dois meses depois da fuga do laboratório Banodyne, quase um mês depois que o casal de campistas fora aterrorizado por um possível visitante extraterrestre, Lem estava convencido de que muito breve ele teria que considerar a possibilidade de mudar de carreira. Ninguém o havia culpado pela forma como tudo estava se encaminhando. Realmente, alguns de seus superiores perceberam a falta de informações da mesma forma que Cliff Soames. Mas nos momentos de maior pessimismo, Lem via a si mesmo trabalhando como agente de segurança, todo uniformizado, cuidando do turno da noite num depósito qualquer.
Sentado na cadeira de seu escritório, olhando pela janela para o calor insuportável do verão, ele disse em voz alta:
- Que se dane, eu fui treinado para lidar com criminosos comuns. Porra, como posso encarar um ser que fugiu de um pesadelo?
Ouviu alguém bater na porta e virou a cadeira naquela direção, quando a porta abriu. Cliff Soames entrou rapidamente, parecendo ao mesmo tempo excitado e fora de si:
- O monstro - disse ele. - Nós o localizamos, novamente... mas duas pessoas estão mortas.
* * *
Vinte anos atrás, no Vietnã, como piloto de helicóptero da Agência de Segurança Nacional, Lem aprendera tudo sobre a habilidade de pousar e levantar vôo nos terrenos mais acidentados. Agora, mantendo contato permanente por rádio com o xerife do município de Los Angeles e seus auxiliares, ele não tinha dificuldade de situar o local dos assassinatos, sem uso de instrumentos, orientando-se por pontos naturais do terreno. Passavam alguns minutos da uma hora, quando ele desceu sobre uma área em torno do canyon Boulder, na Angeles National Forest, a apenas cem metros de onde foram encontrados os corpos.
Quando Lem e Cliff saíram do helicóptero e correram por cima da elevação na direção dos agentes e dos guardas florestais, um vento quente bateu-lhes no rosto. Havia um aroma de pinho seco no ar. O sol forte de junho havia queimado quase toda a grama. Uma vegetação tipicamente de deserto marcava a parte superior do canyon; na parte inferior, havia árvores e uma vegetação mais verde.
Estavam a menos de cinco quilômetros de vôo ao norte da cidade de Sunland, vinte quilômetros ao norte de Hollywood e a trinta quilômetros do populoso centro da cidade de Los Angeles. Tinham, a impressão de que estavam a milhares de quilômetros da civilização. Os auxiliares do xerife pararam as suas camionetas a uns duzentos metros e chegaram ao local a pé. O helicóptero de Lem havia passado sobre aqueles carros e os policiais tiveram que escalar o monte com ajuda dos guias da floresta. Agora, reunidos em torno dos corpos havia quatro policiais, dois técnicos do laboratório local da polícia e três guardas florestais. Todos eles tinham a impressão de que estavam numa região remotíssima do mundo.
Quando Lem e Cliff chegaram, os auxiliares do xerife estavam terminando de recolher os pedaços dos corpos, colocando-os em sacos plásticos que ainda não estavam fechados e Lem percebeu que uma das vítimas era um homem e a outra uma mulher, ambos muito jovens, com roupas de alpinismo. Os ferimentos eram terríveis e ambos estavam sem os olhos.
O número de inocentes mortos se elevava a cinco e isto contribuía para aumentar o sentimento de culpa de Lem. Em momentos como aquele, ele desejava que seu pai o houvesse criado sem o menor senso de responsabilidade.
O policial Hal Bockner, alto e forte, e com uma surpreendente voz fina comunicou a Lem a identidade dos mortos e a condição das vítimas:
- Segundo a identidade que estava carregando, ó nome dele era Sidney Tranken, de vinte e oito anos, natural de Glendale. O corpo apresenta incontáveis marcas de mordidas e de garras. Foi degolado, como você viu. Os olhos...
- Sim - disse Lem, interrompendo para evitar estes detalhes macabros.
Os técnicos do laboratório fecharam os zíperes dos sacos plásticos. Foi um som frio, que cortou por um momento o ar quente de julho. O policial Bockner disse:
- Primeiro, pensávamos que Tranken fora morto a facadas por um maníaco. De vez em quando, temos um louco homicida à solta pela floresta, atacando os alpinistas. Assim, pensávamos... primeiro as facadas, e depois todas estas marcas de animais selvagens feitas provavelmente depois que o homem foi morto. Mas agora... não estamos tão certos assim.
- Não vejo sangue por aqui - disse Cliff Soames, denotando estar confuso. - Deveria haver muito sangue por aqui.
- Eles não foram mortos aqui - informou Bockner e seguiu contando o que sabia a respeito. - A mulher, vinte e sete anos, Ruth Kasavaris, também de Glendale. Igualmente apresenta marcas de mordidas. A garganta...
- Quando foram mortos? - perguntou Lem, cortando a explicação novamente.
- Sem os testes de laboratório, o máximo que posso dizer é que possivelmente foram mortos ontem à noite. Acreditamos que os corpos foram trazidos até aqui, porque seriam encontrados mais rapidamente do topo do monte. Temos aqui perto uma trilha muito popular usada pelos alpinistas. Mas os corpos não foram localizados por eles e sim por um avião que fazia um vôo de rotina para localizar focos de incêndio. O piloto conseguiu ver lá de cima os corpos atirados ao chão.
Aquela área elevada do canyon Boulder estava a mais de quarenta quilômetros a noroeste do pico Jonhstone, onde o jovem casal de campistas havia-se refugiado dentro da própria camioneta por causa do monstro. Haviam atirado nele com uma pistola 32 no dia 18 de junho, portanto haviam decorrido vinte e oito dias. O monstro estava seguindo no rumo noroeste por instinto e freqüentemente cruzava os canyons. Entretanto, naquela região de montanha, ele teria que caminhar cerca de cento e vinte quilômetros, para cobrir os cinqüenta quilômetros de vôo. Mesmo assim, a um ritmo de cinco quilômetros por dia, no máximo. O que aquela criatura estaria fazendo quando não caminhava, era o que Lem se perguntava.
- Você quer verificar onde estas duas pessoas foram mortas? - perguntou Bockner. - Já achamos o lugar e você quer ver também aquele covil?
- Covil?
- A toca - disse um dos guardas florestais. - A toca maldita. Os policiais, os guardas florestais, os técnicos do laboratório tratavam Lem e Cliff de maneira muito estranha, mas Lem não estava nem um pouco impressionado com aquilo. As autoridades locais sempre o viam com ar de suspeita e curiosidade, porquê não estavam acostumados a ter um agente da poderosa Agência de Segurança Nacional reclamando jurisdição sobre caso algum. Era uma raridade. Agora Lem concluiu que a curiosidade deles era de outro tipo e pela primeira vez sentiu que eles estavam com medo. Eles haviam encontrado alguma coisa. O covil ao qual se referiram. Aquilo lhes deu razão para pensar que o caso era muito estranho e, de repente, a presença da Agência de Segurança Nacional confirmava os temores.
De terno, gravata e sapatos bem polidos, tanto Lem como Cliff não estavam adequadamente vestidos para descer o canyon, mas nenhum dos dois hesitou quando os guardas florestais indicaram o caminho. Dois policiais, os homens do laboratório e um dos três guardas florestais ficaram para trás, para guardar os corpos. Os demais desceram por um canal feito pela própria chuva e entraram numa trilha, provavelmente de veados. Ao descerem até o fundo do canyon, viraram na direção sudeste e caminharam mais uns oitocentos metros. Lem começou a ficar suado, logo em seguida e já estava coberto de poeira, as calças e meias salpicadas de espinhos por todos os lados.
- Aqui é o local onde eles foram mortos - disse Bockner, ao chegarem a uma clareira cercada de pinheiros e arbustos.
A terra branca e a vegetação banhada pelo sol apresentavam marcas escuras. Sangue.
- É exatamente aqui atrás - disse um dos guardas florestais - é onde achamos o covil.
Era uma caverna na base do canyon, talvez de três metros de profundidade e seis metros de comprimento, não mais do que dez passos de onde os alpinistas foram mortos. A entrada da toca tinha cerca de dois metros, mas era baixa, obrigando Lem a inclinar o corpo para entrar. O lugar tinha um cheiro desagradável de mofo. Uma vez lá dentro, ele conseguiu ficar ereto, novamente, pois o teto da caverna era bem alto. O covil era iluminado pela entrada da frente e por um buraco no teto, feito pela água da chuva. A maior parte dele estava escura e uns vinte graus mais fria do que do lado de fora, no canyon.
Somente o policial Bockner acompanhava Lem e Cliff. Lem percebeu que os outros recuaram não somente porque pensavam que a caverna fosse pequena, mas porque sentiam certa intranqüilidade com o lugar.
Bockner tinha uma lanterna. Ele a ligou e jogou a luz para o interior da caverna, iluminando as sombras e espantando os insetos.
Em um dos cantos a grama seca fora amontoada formando um monte de quinze a vinte centímetros, como se fosse uma cama naquele chão de terra. Ao lado dessa cama, havia um balde com água relativamente fresca, que foi levada de um dos córregos das proximidades. Desta forma, quem estivesse dormindo ali poderia beber água durante a noite.
- Era aqui - disse Cliff, em voz baixa.
- Sim - concordou Lem.
Instintivamente, ele percebeu que fora o monstro quem fizera aquela cama. E a sua presença estranha, perturbadora podia ainda ser sentida naquela caverna. Ele olhou para o balde, imaginando onde a criatura havia conseguido aquilo. Dava a impressão de que, ao sair do laboratório, a criatura decidira que precisaria achar um lugar para se esconder por certo tempo e concluiu que seriam necessárias certas coisas para tornar a vida ao ar livre menos selvagem. Ao arrombar algum estábulo, algum galpão, ela teria roubado um balde e outras coisas que agora eram reveladas pela lanterna de Bockner.
Um cobertor de flanela para se proteger do frio. Um cobertor para cavalos, a julgar pela aparência. O que chamou a atenção de Lem era a forma correta como fora dobrado o cobertor e guardado em uma reentrância da parede.
Uma lanterna. Estava na mesma posição do cobertor. O monstro tinha uma boa visão noturna. Este era um dos principais requisitos com os quais a dra. Yarbeck estava trabalhando: no escuro, um guerreiro aprimorado geneticamente seria capaz de enxergar tão bem quanto um gato. Então, por que ele precisaria de uma lanterna? A menos que... talvez a criatura da noite às vezes tivesse medo da escuridão.
Este pensamento fez com que Lem tremesse e, de repente, ele teve piedade daquela besta, da mesma forma que tivera no laboratório, quando a viu se comunicar através de sinais, querendo dizer que desejava arrancar os próprios olhos, para que nunca mais pudesse se olhar.
Bockner moveu a lanterna e iluminou vinte embalagens de balas. Apa-rentemente, o monstro havia roubado dois pacotes grandes de balas ao longo do caminho. O estranho é que as embalagens não estavam amassadas, foram, pelo contrário, muito bem abertas e esticadas no chão junto à parede da caverna. Talvez o monstro gostasse das cores das embalagens, talvez as embalagens mantivessem viva a lembrança do prazer que as balas lhe haviam dado, uma vez que, acabada a festa, não haveria nenhum outro prazer naquela vida em que o haviam colocado.
No lado oposto da cama, no meio das sombras, havia uma pilha de ossos. Ossos de pequenos animais. Já que as balas tinham sido comidas, o monstro não teve outra alternativa senão caçar para não morrer de fome. Sem meios de fazer fogo, a criatura teve que comer tudo realmente cru. Talvez tivesse mantido os ossos na caverna, com medo de que alguém os visse, se fossem jogados do lado de fora. Dariam uma pista dele. Ao jogar os restos de comida no fundo da caverna, dava demonstração de que desejava limpeza e ordem. Algo civilizado. Mas para Lem, o monstro havia escondido tudo nas sombras envergonhado de sua própria selvageria.
O mais bizarro de tudo eram alguns objetos alinhados em um nicho na parede, como se fosse a cabeceira da cama. Não, concluiu Lem, não apenas guardados. Os objetos estavam cuidadosamente posicionados, como que enfeitando, da forma que um colecionador de artigos de cerâmica colocaria para valorizar a coleção. Havia um ornamento de vidro, desses que se penduram no quintal, que mostrava uma flor azul sobre um fundo amarelo-claro. Ao lado havia um vaso de cobre, que provavelmente tinha uma planta, no quintal de onde fora roubado. Ao lado do vaso havia dois objetos que certamente haviam sido tirados de dentro de alguma casa, talvez do mesmo lugar de onde o monstro havia roubado as balas: um par de cardeais pousados num galho, em porcelana e um pesa-papéis de cristal. Evidentemente ao lado da monstruosidade criada por Yarbeck, havia uma apreciação de beleza e um desejo de viver não como animal, mas como um ser pensante, num ambiente o mais próximo possível da civilização.
Lem estava deprimido com a solidão, a tortura e o ódio sobre si mesmo, naquela criatura que a dra. Yarbeck havia colocado no mundo.
E mais: o nicho acima da grama mostrava a figura do Mickey, num cofrinho de crianças para guardar moedas.
A piedade de Lem era mais intensa, porque ele sabia qual o significado do cofre para o monstro. No laboratório, foram feitas experiências para determinar a intensidade e a natureza da inteligência do monstro e do cachorro para descobrir semelhanças com o comportamento humano. Uma das experiências era destinada a provar a habilidade de diferenciar a fantasia da realidade. Em diversas ocasiões, o cachorro e o monstro separadamente assistiram a vídeo-teipes mostrando cenas de diversos filmes: algumas cenas de John Wayne, de Guerra nas estrelas, de George Lucas, noticiários, documentários - e velhos desenhos animados de Mickey. As reações do cachorro e do monstro foram filmadas e, mais tarde, ambos foram questionados para saber se haviam entendido tudo e se estavam conscientes do que era realidade ou ficção. Os dois aprenderam a separar a fantasia da realidade; mas, o que era mais estranho, ambos tinham grande atração pelo Mickey. Gostavam dos desenhos do Michey e de seus amigos. Depois de escapar do Banodyne, o monstro conseguiu apanhar o cofre de algum lugar, porque este lembrava a única coisa alegre do laboratório.
Alguma coisa na parede brilhava diante da luz da lanterna de Bockner. Era algo que havia sido colocado próximo do cofre e eles quase não viram. Cliff se dobrou por sobre a cama feita de capim para examinar o objeto bem de perto: era um pedaço de espelho.
O monstro se escondia naquele lugar, pensou Lem, para desfrutar de seus pequenos tesouros, tentando fazer da caverna, o mais que possível, um lar. De vez em quando, deveria pegar aquele pedaço de espelho para se olhar, talvez procurando por algo que lhe desse a esperança de não parecer tão feio, ou para reconhecer o que era de fato. E era um fracasso. Certamente um fracasso.
- Meu Deus - exclamou Cliff em voz baixa, porque o mesmo pensamento lhe passou pela cabeça. - Pobre bastardo miserável...
O monstro tinha ainda outra coisa: um exemplar da revista People. Na capa havia uma foto de Robert Redford. Com a garra, uma pedra afiada ou de outra forma, o monstro recortou os olhos de Redford.
A revista dava mostras de haver sido muito folheada, centenas de vezes, e agora Bockner a entregava para eles, sugerindo que folheassem mais uma vez. Ao fazê-lo, Lem viu que os olhos de todas as pessoas que apareciam nas fotos haviam sido recortados ou arranhados.
A eficácia desta mutilação simbólica - nenhuma foto havia sido poupada - era assustadora.
O monstro era horrível, sim, mas digno de pena.
E também causava medo.
Cinco vítimas - algumas estripadas, outras degoladas.
Os inocentes assassinados não deviam ser esquecidos, nem por um momento. Não seria o carinho pelo Mickey ou o amor à beleza que o redimiriam das mortes...
Mas Jesus...
A criatura tinha inteligência suficiente para captar a importância e os benefícios da civilização, até mesmo a aceitação e o significado da existência. Isto, apesar do desejo de violência, do instinto de matar que haviam sido colocados nele. Tratava-se de um matador inteligente, uma máquina de guerra, de carne e osso. Não importa quanto tempo ele tenha ficado em solidão pacífica naquela caverna do canyon, não importa o esforço de resistência contra a sua própria natureza violenta. O monstro jamais deixaria de ser o que era. A pressão cresceria dentro dele, até que não suportasse mais, até que a morte de pequenos animais não proporcionasse o devido alívio psicológico, então procuraria outras vítimas maiores e mais interessantes. Poderia condenar-se pela própria selvageria, poderia até desejar viver em harmonia com o resto do mundo, mas não tinha força suficiente para mudar o que era. Algumas horas antes, Lem havia pensado sobre como era difícil para ele se tornar um homem diferente e agir de maneira contrária à que seu pai o havia educado. Como realmente era duro para qualquer pessoa mudar o que a natureza havia proporcionado, mas no mínimo era possível, se houvesse determinação e força de vontade. E tempo. Entretanto, era impossível para o monstro mudar; o assassinato fazia parte de sua formação genética. Isto estava preso dentro dele e não havia esperança de ser recriado, ou salvo.
- Porra, o que é isto afinal? - perguntou Bockner, sem conseguir refrear a curiosidade.
- Acredite-me - disse Lem. - Você não vai querer saber.
- O que havia na caverna? - perguntou o policial.
Lem apenas abanou a cabeça. Se duas pessoas mais tiveram que morrer, era muita sorte que houvessem sido assassinados no meio da floresta. Era jurisdição federal, o que significava procedimentos mais simples e a Agência de Segurança Nacional poderia assumir total controle da investigação. Cliff Soames ainda olhava aquele pedaço de espelho, virando-o várias vezes e pensando a respeito.
Olhando em torno daquela gruta pela última vez, Lem Johnson fez uma promessa para si mesmo e para o seu perigoso inimigo: quando eu te encontrar, não pensarei duas vezes em deixá-lo vivo; nada de balas com sedativo, como os cientistas prefeririam. Ao contrário, vou te matar rápido.
Não era apenas o plano mais seguro. Seria também um ato de compaixão e piedade.
4
No dia primeiro de agosto, Nora vendeu todos os móveis da tia Violet e outros objetos. Ela havia telefonado para um homem que negociava antiguidades e móveis de segunda mão e este dera um preço só por todos os móveis, o que ela aceitou de bom grado. Agora - exceto pelos pratos, talheres e os móveis do quarto de dormir, que ela havia decorado a seu gosto - as salas estavam vazias de parede à parede. A casa parecia purificada, exorcizada. Todos os espíritos ruins foram expulsos e ela sabia que agora sentia desejos de redecorá-la inteiramente. Mas não queria mais morar ali. Então, telefonou para um corretor de imóveis e colocou a casa à venda.
Ela se desfez de suas velhas roupas, também. Todas elas. E passou a ter um novo guarda-roupas, com calças compridas, saias, blusas, jeans, como qualquer mulher normal. Às vezes não se sentia muito bem com cores claras, mas sempre resistia à tentação de voltar a usar roupas de cores escuras.
Ainda não havia encontrado coragem suficiente para expor os seus quadros numa galeria, para ter certeza de que sua obra tinha valor. Travis a estimulava neste sentido, vez por outra, às vezes até de forma sutil, mas ela ainda não estava pronta para submeter seu ego frágil a alguém que pudesse feri-lo. Em breve. Mas não, já.
Às vezes, ao se olhar no espelho, ou ao perceber o reflexo no vidro de alguma vitrine, ela concluía que era mesmo bonita. Não linda, talvez, nem maravilhosa como alguma atriz de cinema, mas suficientemente bonita. Entretanto, não parecia ser capaz de refrear por muito tempo esta descoberta, não por muito tempo, porque a cada dia ficava mais surpresa com o olhar que vinha do fundo do espelho.
No dia 5 de agosto, no final da tarde, Nora e Travis estavam sentados à mesa na cozinha e ela estava se sentindo bela. Há alguns minutos antes no banheiro, ela tivera outra de suas inúmeras revelações, ao se olhar no espelho. De fato, havia gostado de sua aparência, mais do que antes. Agora, sentada à mesa com Travis, estava se sentindo esperançosa, mais feliz, como jamais se sentira capaz de ser e travessa. Eles estavam fazendo um jogo de palavras e Nora começou a soletrar palavras sem sentido e as defendia, enquanto Travis protestava quanto à veracidade.
- Dofnup? - perguntou ele, encolhendo os ombros. - Não existe uma palavra como esta: dofnup.
- É um gorro triangular que os lenhadores usam - disse ela.
- Lenhadores?
- Como Paul Bunyan.
- Os lenhadores usam gorros de tricô, ou de pele com protetores de orelhas.
- Eu não estou me referindo ao que eles usam na floresta - explicou ela, pacientemente. - Dofnup é o nome do gorro que eles usam para dormir.
- Você está brincando comigo? - ele riu e balançou a cabeça.
- Não. É verdade - ela ficou séria!
- Os lenhadores usam gorro especial para dormir?
- Sim. Dofnup.
Ele não podia se acostumar com a idéia de que Nora iria brincar com ele, mas acabou fazendo o jogo dela:
- Dofnupl Por que eles o chamam assim?
- Tente descobrir - disse ela.
Einstein estava no chão, sentado de barriga, lendo um romance. Desde que fora promovido de forma tão rápida dos livros ilustrados para a literatura infantil, Einstein passava de oito a dez horas por dia lendo. Não havia livros que chegasse, ele devorava a todos. Dez dias antes, quando iniciara a obsessão do cachorro pela leitura e terminara a paciência de Nora de segurar e folhear livros, eles tentaram uma forma que tornasse possível manter um livro aberto na frente do cachorro de forma que este virassem a página quando necessário. Em uma empresa fornecedora de equipamento hospitalar, encontraram um aparelho destinado a pacientes que tinham os membros amputados. Era um aparador de metal, em que o livro era fixado; braços mecânicos que funcionavam com energia elétrica eram controlados por três botões, viravam e mantinha a página no lugar. Um paraplégico poderia operá-lo com um estilete entre os dentes; Einstein usava o focinho. O cachorro parecia ter adorado o invento. Agora que já lera um dos capítulos, apenas apertava o botão e a página virava.
Travis soletrou a palavra "Perverso", e ganhou mais alguns pontos no jogo. Como resposta, Nora soletrou "preru", e conseguiu ainda mais pontos do que ele.
- Preru? - perguntou Travis, duvidando.
- É a comida preferida pelos iugoslavos - respondeu Nora.
- É mesmo?
- Sim. A receita inclui presunto e peru, e é por isto que eles chamam assim. - Ela não conseguiu terminar a frase e acabou rindo.
- Você está brincando comigo. Você está brincando comigo! Nora Devon, o que aconteceu com você? Quando eu encontrei você pela primeira vez, disse para mim mesmo: "Esta é a mais séria garota que jamais vi." - Travis olhava para ela surpreso.
- E meio doida.
- Bem, não doida.
- Sim, doida - insistiu ela. - Você pensou que eu fosse doida.
- Está bem... sim. Pensei que você fosse doida a ponto de manter o sótão da casa cheio de nozes.
Sorrindo ela disse:
- Se Violet Devon e eu vivêssemos no Sul, estaríamos na linha de Faulkner, ou não?
- Misteriosa demais, até mesmo para Faulkner. Mas agora olhe para você. Construindo palavras bobas para enganar, desejando que eu acreditasse, porque eu jamais esperaria que Nora Devon, entre todas as pessoas, fosse capaz de fazer isto. Você realmente mudou muito nestes meses.
- Graças a você! - disse ela.
- Talvez você deva isto mais a Einstein do que a mim.
- Não. A você mais do que ninguém - disse ela, e repentinamente foi tomada de vergonha, como acontecia antes, paralisando-a. Ela desviou o olhar e baixou a cabeça, então, em voz baixa, comentou:
- Você mais do que ninguém. Eu jamais teria encontrado Einstein se não tivesse encontrado você. E você... tomou conta de mim... preocupou-se comigo... viu alguma coisa em mim que eu não poderia ver. Você me fez, novamente.
- Não - disse ela - Você me deu crédito demais. Você não teve que ser refeita. Esta Nora sempre existiu dentro de você. Como uma flor que está escondida na semente. Você simplesmente teve que ser encorajada a... bem, crescer e a florescer.
Ela não podia olhar para ele. Tinha a impressão de que alguém colocara uma imensa pedra sobre as suas costas, forçando sua cabeça para baixo, e já estava começando a ficar com o rosto vermelho. Mas encontrou coragem para dizer:
- É extremamente difícil florescer... mudar. Mesmo quando você deseja mudar, fazendo daquilo a coisa mais importante do mundo, não é fácil. O desejo de mudar não é suficiente. Ou o desespero. Nada disso pode ser feito sem... amor. - A voz dela foi baixando de tom até ficar apenas um sussurro, e não conseguia falar mais alto. - O amor é como a água e o sol, que fazem a semente desabrochar.
Travis disse:
- Nora, olhe para mim.
Aquela pedra atrás do pescoço dela devia pesar centenas de quilos. Talvez toneladas.
- Nora?
Pesava uma tonelada.
- Nora, eu também te amo.
Com muito esforço, ela levantou a cabeça e olhou para ele. Os seus olhos castanhos, escuros, quase negros, eram calorosos, afetivos e lindos. Nora amava os olhos dele. Ela amava os traços salientes do rosto de Travis.
- Já deveria ter dito isto a você - falou Travis. - Porque é mais fácil para mim dizê-lo, do que para você. Já deveria ter dito isto há dias atrás. Nora, por Deus, eu te amo! Mas não disse, porque temia. Toda a vez que me permiti amar alguém, perdi a todos, mas acho que desta vez vai ser diferente. Talvez você tenha mudado as coisas para mim, da maneira como eu te ajudei também. Acho que desta vez a sorte está do meu lado.
O coração disparou. Ela mal podia conter a respiração, mas disse:
- Eu te amo.
- Você quer se casar comigo?
Ela estava assombrada. Não sabia o que poderia acontecer, mas certamente, não isto. Apenas o fato de ouvi-lo dizer que a amava, e expressar o mesmo sentimento por ele já era suficiente para mantê-la feliz por semanas, meses. Ela esperava ter tempo para curtir aquele amor, como se fosse a mais recente descoberta de uma pirâmide, que deveria ser estudada cuidadosamente sob todos os ângulos, até que fosse de fato explorada.
- Você se casará comigo? - repetiu ele.
Fora rápido demais. Nora, mesmo sentada, já estava tonta como se andando em um carrossel e estava com medo também. Tentou dizer a ele que fosse devagar, que tinham muito tempo disponível para decidir. E para surpresa dela, se pegou dizendo:
- Sim... oh, sim...
Ele estendeu os braços e segurou as mãos dela.
Ela chorou, então, mas eram lágrimas de amor e felicidade.
Perdido em seu livro, Einstein não sabia o que estava se passando. Ele se aproximou da mesa, como que suspirando e se enroscou nas pernas deles, feliz.
Travis perguntou:
- Na próxima semana?
- Casados? Mas leva tempo para conseguir a licença, e tudo o mais.
- Não em Las Vegas. Posso telefonar para providenciar uma capela em Las Vegas. Podemos viajar na próxima semana e nos casarmos.
Chorando e rindo ao mesmo tempo, ela concordou:
- Está bem.
- Maravilhoso - disse Travis, sorrindo.
Einstein abanava o rabo, frenéticamente: "Sim," "Sim," "Sim," "Sim."
5
Na quarta-feira, 4 de agosto, trabalhando sob contrato para a família Tetragna, de San Francisco, Vince Nasco acabara com a vida de um miserável chamado Lou Pantangela. Este havia se tornado testemunha do governo e intimado a comparecer em setembro diante de um tribunal, o que comprometeria a organização criminosa da família Tetragna.
Johnny Santini, o Arame, responsável pela pirataria eletrônica a serviço da Máfia, usara sua habilidade de alta tecnologia para penetrar no centro de computação de dados do governo federal, localizando Pantangela. O miserável estava vivendo sob a proteção de dois policiais, numa casa bem protegida em Redondo Beach, ao sul de Los Angeles. Depois de testemunhar no tribunal, ele receberia nova identidade e teria vida nova em Connecticut. Mas, é claro, não viveria tanto assim.
Porque o trabalho seria difícil - Vince teria que provavelmente matar os dois delegados para pegar Pantangela - os Tetragna ofereceram a ele sessenta mil dólares. Estavam longe de saber que matar mais de uma pessoa era um prêmio para Vince; aquilo tornava seu trabalho mais - não menos - atrativo.
Ele vigiou a casa onde estava Pantangela por quase uma semana, usando um carro diferente a cada dia, para evitar ser identificado pelos guarda-costas. Eles não costumavam deixar Pantangela fora de casa, mas estavam muito confiantes sobre o esconderijo, mais do que deveriam, porque três ou quatro vezes por semana permitiam que Pantangela almoçasse fora de casa e o acompanhavam até um pequeno restaurante a quatro quadras da casa.
Os policiais haviam mudado a aparência de Pantangela, o mais possível. Antes, o cabelo preto e comprido caía-lhe sobre o colarinho, mas agora Pantangela estava com o cabelo cortado bem curto e pintado de castanho. Também usava bigode, mas os policiais o obrigaram a raspá-lo. Pantangela perdera os trinta quilos de excesso de peso, ao passar dois meses com os dois delegados. Apesar de tudo isto, Vince o reconhecera.
No dia 4 de agosto, quarta-feira, os policiais acompanharam Pantangela até o restaurante, à uma hora da tarde, como de costume. Quando passavam dez minutos da uma, Vince também resolveu almoçar.
O restaurante tinha somente oito mesas no meio e seis outras separadas por divisões ao longo da parede. Tudo parecia limpo, mas era demasiadamente italiano para o gosto de Vince: as toalhas de mesa eram quadriculadas em vermelho e branco; murais extravagantes retratavam as ruínas romanas; garrafas de vinho vazias serviam de candelabro; vários cachos de uvas plásticas caídas do teto tentavam - pelo amor de Deus! - transmitir a atmosfera de um parreiral de verdade. Como na Califórnia as pessoas têm o costume de jantar cedo, pelo menos é o padrão no leste dos Estados Unidos, eles também almoçavam cedo. A uma e dez já não havia mais quase ninguém no restaurante. Às duas horas, tinha-se a impressão de que os únicos fregueses eram Pantangela, os guarda-costas e Vince, que achava o local excelente para realizar o trabalho.
O restaurante era muito pequeno para que houvesse um mattre recepcionando a todos e um aviso na parede lembrava que os fregueses poderiam escolher os lugares para sentar. Vince caminhou até o fundo do restaurante, depois de passar por Pantangela, e escolheu uma pequena mesa atrás deles.
Vince gastara certo tempo escolhendo a roupa que deveria vestir naquele dia. Estava de sandálias, uma bermuda vermelha de algodão e uma camiseta branca com baleias azuis, um sol amarelo e as palavras "Another Califórnia Body". Os óculos escuros de aviador eram espelhados. Ele carregava consigo uma sacola de praia onde estava escrito "My Stuff". Se alguém olhasse dentro da sacola, enxergaria uma toalha dobrada, óleos de bronzear, um pequeno rádio, uma escova de cabelo, mas não veria a pistola automática Uzi, com silenciador, enrolada numa revista no fundo da sacola. A cor da pele de Vince ajudava no visual que desejava criar: um surfista um pouco passado da idade, mas ainda em forma; alguém à procura de lazer; um desocupado e certamente freqüentador assíduo da praia, querendo parecer jovem.
Ele olhou sem grande interesse para Pantangela e para os policiais, mas tomou o cuidado de ser percebido, para que não o identificassem como uma pessoa perigosa. Perfeito.
Do lugar onde Vince estava sentado, não era possível olhar para eles, pois havia uma divisão alta, entre cada mesinha da parede. Mas poderia ouvir aquele miserável conversar com os policiais. Os assuntos predominantes eram mulheres e beisebol.
Após uma semana de vigilância e de observação, Vince sabia que Pantangela jamais deixava o restaurante antes das duas e meia, normalmente três horas, porque ele insistia em um almoço completo: aperitivo, salada e o prato principal, além da sobremesa. Com isto, Vince tivera tempo de pedir também um prato caprichado.
A garçonete que atendia Vince tinha cerca de vinte anos, cabelo louro claro, era bonita, tão bronzeada quanto ele. Era descontraída como uma garota de praia e começou a se insinuar para Vince, enquanto ele fazia o pedido. Ele concluiu que ela era uma daquelas ninfetas da areia, com o cérebro tão queimado quanto a pele. Ela provavelmente passava todas as noites na praia, mostrando as pernas para todos que lhe agradassem - e a maioria talvez lhe agradasse, o que significava que não importava o quão sadia ela aparentava ser, deveria estar cheia de doença. Só a idéia de trepar com ela o fez ficar com nojo, mas tinha que desempenhar bem o papel que escolhera naquele dia e passou a dar atenção a ela, como se mal pudesse esperar para vê-la nua, debaixo dele.
Quando passavam cinco minutos das duas horas, Vince terminara o almoço, e os únicos fregueses no restaurante continuavam sendo Pantangela e os policiais. Uma das garçonetes já havia ido embora e as outras duas estavam na cozinha. Não poderia haver hora melhor.
A sacola de praia estava ao lado dele. Ele colocou a mão lá no fundo e retirou a pistola Uzi.
Pantangela e os delegados estavam discutindo as possibilidades de vitória dos Dodgers no campeonato de beisebol.
Vince se levantou, aproximando-se deles e abrindo fogo com a sua Uzi. O silenciador ultramoderno funcionou maravilhosamente e os tiros não faziam um ruído maior do que um homem gaguejando algumas palavras. Tudo aconteceu tão rápido que os policiais não tiveram tempo de procurar suas armas. Não tiveram nem tempo para se surpreender.
Ssssnap.
Ssssnap.
Ssssnap.
Pantangela e seus guardiões estavam mortos em três segundos.
Vince tremera de prazer recebendo aquela onda rica de energia vital que penetrava em seu corpo. Ele não podia falar. Então, com uma voz trêmula e seca, disse:
- Obrigado.
Quando se afastou da mesa, viu sua garçonete parada no meio do corredor, paralisada de pavor. Os olhos azuis dela estavam fixos nos corpos, mas lentamente foi olhando para Vince.
Antes que ela pudesse gritar, ele esvaziou o resto do pente da arma em cima dela. Talvez mais uns dez tiros e a garota caiu no chão numa verdadeira poça de sangue.
Ssssnap.
- Obrigado - disse ele, repetindo o agradecimento duas vezes, porque a garota era jovem e vital para ele, portanto, de grande utilidade.
Preocupado com a possibilidade de alguém mais sair da cozinha - ou poderiam passar pela porta do restaurante e ver o que estava acontecendo - Vince pegou rapidamente sua sacola de praia, escondeu a Uzi dentro da toalha, colocou os óculos escuros e saiu do restaurante.
Não estava nem um pouco temeroso de ter deixado impressões digitais. Os dedos estavam todos cobertos com uma camada de cola. Esta ficava transparente e não poderia ser percebida por ninguém, a não ser que ele virasse a palma da mão para cima para chamar atenção de alguém. A cola cobria as linhas dos dedos, impedindo que as impressões digitais ficassem gravadas em algum lugar.
Já na rua, caminhou até o final da quadra, virou a esquina e entrou no seu furgão, que estava estacionado junto à calçada. Até onde tinha certeza, ninguém olhara para ele duas vezes, desde que saíra do restaurante.
Foi para a praia, procurando passar algum tempo ao sol e nadar para manter a forma. Não lhe agradou a idéia de ficar na praia de Redondo, portanto, seguiu pela auto-estrada da costa, rumo sul, para Bolsa Chica, exatamente ao norte do lugar onde vivia, Huntington Beach.
Enquanto dirigia, pensava no cachorro. Ainda estava pagando a Johnny Arame para continuar na trilha do animal, entrando em contato com agências policiais e com qualquer um que levasse ao cachorro. Sabia da circular que havia sido distribuída pela Agência de Segurança Nacional para as clínicas veterinárias e centros de controle animal em três Estados e também sabia que o pessoal da ASN não tivera sorte, até aquele momento.
Talvez o cachorro tivesse sido atropelado por algum carro, ou morto pela criatura que Hudston chamava o monstro, ou pelos coiotes nos morros. Mas Vince não queria acreditar nesta possibilidade, porque isto seria o fim dos seus sonhos de ficar rico com o cachorro pedindo resgate ou vendendo o animal para uma casa de espetáculos, onde poderia se apresentar, ou encontrando algum meio de usar a inteligência secreta do cachorro para descobrir algum elemento que fosse útil aos seus propósitos de enriquecer.
Ele preferia acreditar que o cachorro fora encontrado por alguém e agora estivesse em alguma casa, tratado como um animal de estimação. Se pudesse pelo menos localizar a pessoa que o achou, poderia comprar o cachorro, matar o dono ou simplesmente roubar o animal.
Mas o diabo era por onde começar. Como poderia achar o caminho? Se fosse fácil, os policiais da ASN chegariam primeiro, com toda a certeza. Se o cachorro não estivesse morto, a melhor forma de chegar até ele era encontrar o monstro primeiro e deixar a besta conduzi-lo até o cachorro, conforme Hudston parecia acreditar ser possível. Mas não era uma tarefa fácil também.
Johnny Arame continuava ainda passando-lhe informações sobre ocorrências de mortes particularmente violentas no sul da Califórnia. Vince soube do acontecido entre Irvine Park, no pequeno zoológico, da morte de Wes Dalberg e dos homens em Bordeaux Ridge. Johnny conseguiu dados sobre animais domésticos estripados na área de Diamond Bar e Vince acompanhou pelo noticiário da tevê reportagens sobre o casal que dizia ter encontrado um ser extraterrestre nas florestas perto do pico Johnstone: fazia três semanas que dois alpinistas foram encontrados terrivelmente dilacerados na Angeles National Forest. Johnny confirmara posteriormente que a Agência de Segurança Nacional havia assumido o controle do caso, o que significava que aquilo era outro trabalho do monstro.
A partir daí, nada.
Vince ainda não estava a ponto de desistir. Era um homem de grande paciência. Paciência fazia parte do trabalho dele. Ele esperaria. Observaria. Manteria Johnny Arame trabalhando e mais cedo ou mais tarde conseguiria o que estava procurando. Ele estava absolutamente certo disto. Decidira que o cachorro, assim como a imortalidade, faziam parte de seu grande destino.
Na praia de Bolsa Chica, Vince ficou observando um pouco a imensa massa escura de água que estava à sua frente. Ele se sentia tão forte quanto o mar. Havia recebido a energia de muitas vidas. Ele não ficaria surpreso se de repente começasse a correr eletricidade por entre os seus dedos, a exemplo dos raios que saíam das mãos dos deuses da mitologia.
Finalmente, se lançou na água, nadando contra as fortes ondas que vinham em sua direção. Afastou-se um pouco da praia, nadando paralelo à costa primeiro no sentido sul, depois para o norte. E assim foi, até sentir-se cansado, exausto, acabando por permitir que a maré o levasse de volta à praia.
Adormeceu um pouco sob aquele sol quente da tarde. E sonhou com uma mulher grávida, a barriga grande e redonda e no sonho ele a matava por estrangulamento.
Freqüentemente sonhava estar matando crianças ou, ainda melhor, crianças ainda em gestação em mulheres grávidas, coisa que ele há muito tempo desejava fazer na vida real. O assassinato de uma criança, é claro, era muito mais perigoso. Era um prazer que ele não poderia se dar o luxo, embora a energia da vida de uma criança fosse a mais rica possível, a mais pura e de mais produtiva absorção. Mas, de longe, muito mais perigosa. Ele não poderia conduzir a si mesmo ao infanticídio, antes que tivesse a certeza de ter atingido a imortalidade, quando não mais teria que temer a polícia ou seja lá quem fosse.
Embora tivesse estes sonhos vez por outra, este último em Bolsa Chica tinha mais significado do que os outros do mesmo tipo. O sonho parecia... diferente. Profético. Ele estava agora sentado, piscando na direção do sol, fazendo de conta que não estava vendo as garotas de biquíni que olhavam para ele e dizia para si mesmo que este sonho era o início de um prazer que estava a caminho. Algum dia estaria de fato com suas mãos em torno da garganta de uma mulher grávida, como havia sonhado e receberia não somente a energia vital da mulher, mas a do bebê que estava no útero.
Sentindo-se extremamente feliz, voltou para o furgão e partiu para casa, tomou banho e saiu novamente para jantar perto da churrascaria de Stuart Anderson, onde escolheu como prato principal, filé mignon.
6
Einstein passou correndo por trás de Travis, saindo da cozinha para atravessar a pequena sala de jantar, desaparecendo na sala. Travis saiu à procura dele com a guia na mão. Einstein se escondera atrás do sofá. Travis disse:
- Escute, a guia não vai machucar você.
O cachorro ficou olhando para Travis, incrédulo.
- Temos que solucionar isto, antes de sairmos para Las Vegas. O veterinário vai aplicar uma ou duas injeções em você e vaciná-lo contra a raiva. É para o seu próprio bem e isto não vai doer. Realmente. Então conseguiremos uma licença para você, o que deveria ter sido feito há muito tempo.
Uma latida. "Não."
- Sim, nós vamos. "Não."
Segurando a guia para colocá-la na coleira, Travis deu um passo na direção de Einstein.
O cão afastou-se rapidamente. Correu para a poltrona e permaneceu naquele ponto de observação olhando para Travis com intensidade.
Aproximando-se do cachorro com cuidado, Travis disse:
- Agora, você vai me ouvir, peludo. Eu sou o teu dono... Uma latida.
Travis continuou:
- Ah, sim, sou o teu dono. Você pode ser um sacana de um cachorro esperto, mas você ainda é um cachorro e eu um homem e estou dizendo que vamos até e o veterinário.
Uma latida.
Encostada na parede do corredor da sala de jantar, com os braços cruzados, Nora disse sorrindo:
- Acho que ele está dando a você uma pequena demonstração de como são as crianças, no caso de decidirmos por ter crianças.
Travis investiu contra o cachorro.
Einstein saiu fora do alcance dele e já estava até na outra sala, quando Travis incapaz de segurá-lo, caiu sobre o sofá. Rindo, Nora disse:
- Isso é extremamente engraçado.
- Para onde ele foi? - perguntou Travis.
Ela apontou para o corredor que conduzia aos quartos e ao banheiro.
Travis encontrou o cachorro no quarto principal da casa, em cima da cama, olhando para o corredor.
- Você não pode me vencer - disse Travis. - Isso é para o seu próprio bem, porra, e você vai tomar aquelas injeções quer você queira ou não.
Einstein levantou uma das patas traseiras e urinou na cama. Sem saber o que fazer, Travis perguntou:
- Ei, que diabo é isto que você está fazendo?
Einstein parou de urinar, afastou-se da coberta que estava toda encharcada, e olhava de forma desafiadora para Travis.
Travis já havia escutado histórias semelhantes sobre cachorros e gatos que desejando manifestar desagrado, agiam da mesma maneira. Quando ainda tinha a imobiliária, uma de suas corretoras havia mandado o seu cachorro collíe para um canil, durante duas semanas e saiu de férias. Quando ela voltou, depois de pegar novamente o cachorro, este deu a devida resposta urinando tanto em sua cadeira favorita como na cama.
Mas Einstein não era um cachorro comum. Considerando sua impressionante inteligência, urinar era mais uma manifestação de raiva do que propriamente reação de um cachorro normal.
Travis agora estava aborrecido e caminhou na direção do cachorro.
- Isso é indesculpável.
Einstein pulou do colchão. Imaginando que o cachorro passaria perto delis para sair do quarto, Travis recuou um passo e fechou a porta. Impedido de sair, Einstein mudou de direção rapidamente e correu para o fundo do quarto, permanecendo lá.
- Vamos parar de tolice - disse Travis com seriedade, balançando a guia.
Einstein se protegeu no canto do quarto.
Abrindo os braços para impedir que o cachorro passasse, Travis finalmente conseguiu colocar a guia na coleira de Einstein.
Encostado na parede, Einstein deixou cair a cabeça e tremeu todo.
O sentimento de vitória de Travis durou pouco. Ele reparou com aflição a cabeça do cachorro que estava tremendo. Einstein deixou escapar um som quase inaudível de medo.
Passando a mão pelo cachorro, tentando consolá-lo, Travis disse:
- Isso é de fato para o seu próprio bem, você sabe, bronquite infecciosa e raiva são coisas que você tem que evitar. E não vai doer nada, amigo. Eu juro.
O cachorro não olhava para ele e se recusava a acreditar em suas palavras.
Nas mãos de Travis, o cachorro tinha a impressão que alguém o quebrara em pedaços. Travis olhou firme para o cachorro e disse:
- No laboratório... aplicaram muitas injeções em você? Feriram você com agulhas? É por isso que você tem medo de tomar vacina?
O cachorro apenas rosnou.
Travis puxou o vacilante cachorro do canto da parede, para que o rabo ficasse livre para responder. Largando a guia, Travis pegou a cabeça de Einstein com as duas mãos e o forçou a levantar o focinho, assim eles estavam olhando um para o outro.
- Machucaram você com agulhas no laboratório? "Sim."
- É por isto que você está com medo de ir ao veterinário? Embora não parasse de tremer o cachorro respondeu: "Não."
- Você foi ferido com agulhas de injeção, mas você não tem medo? "Não."
- Então, por que você está agindo desta forma?
Einstein apenas olhou para ele, e deixou escapar um som terrível de sofrimento.
Nora abriu a porta do quarto:
- Você já conseguiu colocar a guia nele, Einstein? - Fez uma pausa e perguntou de novo: - Ei, o que está acontecendo aqui?
Ainda segurando a cabeça do cachorro, olhando para os olhos dele, Travis respondeu:
- Foi uma atrevida manifestação de descontentamento dele.
- Atrevida - concordou Nora, aproximando-se da cama para remover a colcha, cobertor e lençóis.
Tentando entender a razão do comportamento do cachorro, Travis perguntou:
- Einstein, se você não tem medo de agulhas, então você tem medo é do veterinário, não é mesmo?
Uma latida.
"Não."
Frustrado, Travis tentou ganhar tempo para a próxima pergunta, enquanto Nora tirava o protetor do colchão da cama.
Einstein continuava tremendo.
De repente Travis compreendeu por que o cachorro apresentava-se contrariado e com medo. Ele praguejou contra a sua própria teimosia.
- Porra, é claro! Você não quer ir ao veterinário porque teme que alguém possa denunciar a sua presença.
Einstein parou de tremer um pouco, e abanou o rabo brevemente: "Sim".
- Se o pessoal do laboratório está atrás de você... e nós sabemos que eles devem estar te caçando furiosamente, porque você é a mais importante experiência animal da história... então, devem estar mantendo contato com todos os veterinários do Estado. Ou não? Todos os veterinários... e todos os canis... e em todas as agências que liberam licenças para cachorros.
O cachorro abanou o rabo novamente, e já quase não tremia mais. Nora se afastou da cama e ficou ao lado de Travis.
- Mas caçadores dourados são uma raça muito popular. Veterinários e funcionários que lidam com licenças tratam desses animais todos os dias, o tempo todo. Se o nosso genial cachorro se comportar bem, escondendo sua inteligência e agir como um cão estúpido...
- Aliás, o que ele sabe fazer muito bem.
-...e, não vão desconfiar que ele seja o cachorro fugitivo. "Sim", insistiu Einstein.
Travis, dirigindo-se para o cachorro, disse:
- O que você quer dizer com isto? Está dizendo que eles seriam capazes de identificar você?
"Sim."
- Como? - Nora quis saber. Travis perguntou:
- Algum tipo especial de marca?
"Sim."
- Em algum lugar debaixo do pêlo? - perguntou Nora. Uma latida. "Não".
- Então, onde? - insistiu Travis.
Livrando-se das mãos de Travis, Einstein sacudiu a cabeça com tanta força que as orelhas chegavam a fazer barulho.
- Talvez embaixo das patas - disse Nora.
- Não - disse Travis, quando Einstein latiu. - Quando eu o achei, as patas dele estavam sangrando de tanto andar e tive que cuidar dos ferimentos com ácido bórico. Teria notado alguma marca nas patas.
Einstein balançou de novo a cabeça, violentamente, abanando as orelhas.
Travis disse:
- Talvez em algum lugar na boca. Eles marcam os cavalos de corrida na parte interior dos lábios. Me deixe puxar os seus lábios para dar uma olhada, garoto.
Einstein latiu de novo. "Não." E balançou violentamente a cabeça.
Finalmente Travis entendeu. Olhou na orelha direita e não encontrou nada. Mas, na orelha esquerda, ele localizou algo. Insistiu para que o cachorro fosse com ele até perto da janela, onde havia mais luz e descobriu que a marca consistia em dois números, uma tatuagem feita com tinta cor de rosa: 33-9.
Olhando por cima do ombro de Travis, Nora disse:
- Eles provavelmente tinham vários filhotes que faziam parte das experiências e eram obrigados a identificar.
- Meu Deus. Se eu o levasse ao veterinário e se o veterinário houvesse recebido instruções para prestar atenção num caçador dourado com uma tatuagem na orelha...
- Mas ele tem que ser vacinado.
- Talvez ele já tenha recebido as injeções - disse Travis esperançoso.
- Não podemos nos arriscar. Ele era um cachorro de laboratório, em um meio ambiente controlado, onde talvez não houvesse necessidade de injeções. Ou, talvez, as vacinas interferissem com as experiências.
- Não podemos nos aventurar com um veterinário.
- Se eles o encontrarem - disse Nora -, simplesmente, não o entregamos.
- Eles podem nos obrigar - disse Travis preocupado.
- Duvido que possam.
- Duvido que não possam. O governo financiou toda a pesquisa, eles podem nos esmagar. Não podemos nos arriscar. Mais do que qualquer outra coisa, Einstein tem medo de voltar para o laboratório.
"Sim," "Sim," "Sim."
- Mas - disse Nora -, se ele contrair raiva, uma bronquite infecciosa ou...
- Daremos as injeções mais tarde - interrompeu Travis. - Mais tarde, quando a situação ficar mais tranqüila e ele não correr perigo.
O cão agora parecia feliz e procurava mostrar gratidão para com Travis. Franzindo as sobrancelhas, Nora disse:
- Einstein é o milagre número um do século XX. Você pensa realmente que a situação vai esfriar, que vão parar de procurar por ele?
- Talvez não parem de procurar por muitos anos - admitiu Travis, acariciando o cachorro. - Mas aos poucos eles irão perdendo o entusiasmo e procurando com menos intensidade. Até lá, teremos que evitar as vacinas, penso eu. É o melhor que temos a fazer. É a única coisa que podemos fazer.
Passando a mão no pêlo de Einstein, Nora disse:
- Espero que você tenha razão.
- Eu tenho.
- Espero que sim.
- Eu também.
* * *
Travis chegava a tremer com a possibilidade de expor Einstein ao perigo de um veterinário, o que tiraria a liberdade do cachorro. Talvez tudo estivesse acontecendo novamente. A vida de Travis havia mudado, ele se sentia mais feliz por causa de seu amor por Nora e pelo cachorro. E agora o destino com o qual havia sempre lidado de maneira tão hostil poderia tirar Nora e Einstein da vida dele.
Ele sabia que o destino era apenas um conceito mitológico. Não acreditava que houvesse realmente um panteão com deuses maus que estivessem planejando tragédias para a vida dele. Cada vez que dizia algo otimista sobre o futuro, acabava encontrando muita adversidade. No jantar, quando pegou no saleiro, imediatamente atirou um pouco de sal sobre os ombros, e acabou achado que aquilo que estava fazendo era uma tolice. Mas o seu coração começou a bater mais rápido e, tomado por uma ridícula superstição, não se sentiu melhor enquanto não jogou mais sal sobre os ombros.
Embora Nora estivesse a par do comportamento excêntrico de Travis, ela fez o favor de não dizer nada, mantendo-se calada. Ao contrário, procurou amá-lo cada minuto do dia, falando com alegria sobre a viagem para Las Vegas, mantendo o bom-humor, e sem bater na madeira.
Ela não sabia de nada sobre os pesadelos dele, porque Travis não havia contado nada nesse sentido. Era o mesmo sonho ruim, duas noites seguidas.
No sonho, ele estava na região dos canyons nas montanhas de Santa Ana, em Orange, na mesma floresta na qual havia encontrado Einstein. Lá estava ele com o cachorro novamente e mais Nora, desta vez. E havia perdido os dois. Travis se via percorrendo aquelas escarpas, subindo e descendo morros, passando pelo meio de arbustos, gritando desesperadamente por Nora e pelo cachorro. Às vezes, ouvia Nora respondendo ou o cachorro latindo e, pelo som, eles pareciam estar em dificuldade, então Travis procurava seguir na direção de onde partiam os gritos. Mas a cada vez que ouvia os gritos, Nora e o cachorro pareciam cada vez mais distantes, partindo seus gritos de diferentes lugares. Não importava o quão intensamente ele ouvisse, ou apressasse o passo entre a floresta, ele os estava perdendo, perdendo...
...até que acordou, sem respiração, o coração disparado, com um grito silencioso preso na garganta.
O 6 de agosto, uma sexta-feira, fora um dia demasiadamente cheio para que Travis tivesse tempo de se preocupar com o destino. A primeira coisa pela manhã: telefonar para uma capela em Las Vegas. Depois, fornecendo o número do seu cartão de crédito, providenciou a cerimônia para o dia 11 de agosto, uma quarta-feira, às onze horas. Tomado por uma onda de romantismo, ele disse para o encarregado da capela que desejava vinte dúzias de rosas vermelhas, vinte dúzias de cravos brancos, um bom organista (nada de música gravada) que pudesse tocar músicas tradicionais para a ocasião e um número suficiente de velas no altar para que não houvesse necessidade de luz elétrica, uma garrafa de Dom Perignom para o final da cerimônia e um fotógrafo de primeira classe para registrar o casamento. Depois de acertar todos estes detalhes, telefonou para o Circus Hotel em Las Vegas, que era um empreendimento que se orgulhava de possuir áreas de camping em sua propriedade, fazendo reserva na área de camping que funcionava atrás do hotel, a partir da noite de domingo, 8 de agosto. Com outro telefonema, fez reserva noutro camping em Barstow para sábado à noite, quando teriam que sair da estrada, já a meio caminho de Las Vegas. Depois foi a uma joalheria, olhou quase todas as peças que haviam em exposição. Acabou comprando um anel com um diamante grande de três quilates e uma aliança de casamento com várias pedras. Com os anéis escondidos debaixo do assento da camioneta, Travis e Einstein foram até a casa de Nora, para apanhá-la. Os dois tinham hora marcada com o advogado Garrison Dilworth.
- Vão se casar? Isto é maravilhoso! - disse Garrison, apertando firme a mão de Travis. Ele beijou Nora no rosto. E parecia, de fato, feliz com a notícia. - Eu andei por aí investigando sobre você, Travis.
Travis ficou surpreso.
- Verdade?
- Para o bem de Nora. - A declaração do advogado fez Nora corar de vergonha, mas Travis estava feliz porque Garrison havia-se preocupado com o bem-estar dela.
Encarando Travis com um olhar estudado, o advogado de cabelos grisalhos disse:
- Sei que você se deu muito bem com negócios imobiliários antes de vender a empresa.
- Sim, fui muito bem - confirmou Travis modestamente, como se estivesse conversando com o pai de Nora, tentando causar a melhor impressão.
- Muito bem - disse Garrison. - E, também soube que você investiu muito bem o seu dinheiro.
- Não estou falido - admitiu Travis. Sorrindo, Garrison disse:
- Também sei que você é um homem bom, de confiança, e muito generoso.
Foi a vez de Travis ficar corado de vergonha e encolher os ombros. Virando-se para Nora, Garrison disse:
- Minha querida, estou contente por você, mais feliz do que poderia me expressar.
- Obrigada. - Nora olhou para Travis de forma carinhosa, com amor, o que deu vontade em Travis de bater na mesa, pela primeira vez naquele dia.
Eles pretendiam uma lua-de-me! de uma semana ou de dez dias e Nora não desejava voltar apressadamente para Santa Bárbara, no caso de aparecer alguém interessado em comprar a casa de Violet Devon. Por este motivo, ela solicitou a Garrison Dilworth que fizesse uma procuração, autorizando-o a cuidar de todos os detalhes com referência à venda da casa em nome dela, durante a sua ausência. Isto foi feito em menos de meia hora, com as assinaturas de praxe, mais testemunha. Depois de mais uma rodada de congratulações e votos de felicidades, os dois foram direto comprar um trailer para viajar.
Planejavam levar Einstein com eles, não somente para a cerimônia de casamento em Las Vegas, mas durante a lua-de-mel. Achar bons motéis que aceitassem cachorros não seria fácil, então a melhor idéia era um motel sobre rodas. Além do mais, Travis e Nora não poderiam fazer amor com o cachorro no mesmo quarto.
Era como se tivessem uma outra pessoa com eles - disse Nora, ficando mais corada que uma maçã. - Ficando em motéis, teriam que alugar dois quartos - um para eles e outro para Einstein - o que não parecia muito adequado.
Em torno das quatro horas, acharam o que estavam procurando: um trailer de tamanho médio, com uma copa-cozinha, mesa de jantar, sala de estar, um quarto e um banheiro. Quando se retirassem para dormir, poderiam deixar Einstein na frente do trailer e fechar a porta do quarto. Como a pickup de Travis já era equipada com reboque para puxar o trailer, bastava fazer o encaixe, assim que o negócio fosse concluído.
O cachorro estava sentado entre os dois na pickup, e olhava com muito interesse pelo vidro traseiro, para o trailer, como que maravilhado com a ingenuidade das pessoas.
Travis e Nora compraram tudo para o trailer, cortinas, pratos de plástico, copos, comida para a despensa e outras coisas de que precisavam, antes de entrar na estrada. Ao voltarem para a casa de Nora, esta preparou omeletes para o jantar. Einstein não estava apresentando nada de especial, com relação à sua inteligência, estava simplesmente cansado.
Naquela noite, em casa, na sua própria casa, Travis teve um sono dos mais profundos e os sonhos das noites anteriores não se repetiram.
* * *
Sábado pela manhã, eles já haviam saído de viagem para Las Vegas, para o casamento. Travis deu preferência para dirigir nas largas e bem divididas auto-estradas, o que facilitaria puxar o trailer. Tomaram a estrada 101 na direção sul. Depois viraram para leste, já na estrada 134, na qual seguiram até que se tornasse rota interestadual 210, com a cidade de Los Angeles ao sul e a National Forest ao norte. Mais tarde, em pleno deserto de Mojave, Nora estava admirada com tanta beleza, com aquele panorama maravilhoso de areias, pedras e toda aquela vegetação típica da área. Observou que o mundo parecia repentinamente maior do que imaginava que o fosse e Travis sentia prazer com a admiração dela.
Barstow, Califórnia, era um buraco perdido naquela imensidão. Às três da tarde eles chegaram ao enorme acampamento. Frank e Mae Jordan, um casal de meia-idade que estava ocupando a área ao lado deles, era de Salt Lake e também viajava com um animal de estimação, um labrador preto, chamado Jack.
Para surpresa de Travis e de Nora, Einstein divertiu-se a valer com Jack. Eles corriam um atrás do outro, em volta dos trailers, davam-se pequenas mordidas de brincadeira, rolavam pelo chão e continuavam a corrida novamente. Frank Jordan atirou uma pequena bola de borracha vermelha para eles, e os cachorros correram atrás, disputando para saber quem era melhor caçador. Os dois animais também se envolveram numa brincadeira, onde um tentava roubar a bolinha do outro, procurando mantê-la o mais tempo possível. Travis estava exausto só de olhar.
Einstein era sem dúvida o cachorro mais esperto do mundo, o cachorro mais esperto de todos os tempos, um fenômeno, um milagre, tão inteligente quanto qualquer homem, mas era também um cachorro. Às vezes, Travis esquecia-se deste fato e ficava encantado toda a vez que Einstein fazia alguma coisa para recordá-lo disto.
Mais tarde, depois de dividir hambúrgueres grelhados e espigas de milho assado com os Jordans e tomar algumas cervejas, naquela noite clara em pleno deserto, Travis e Nora se despediram do casal de Salt Lake, e Einstein igualmente parecia estar dizendo adeus para Jack. Dentro do trailer, Travis bateu na cabeça de Einstein e disse:
- Foi muito legal de sua parte. - O cachorro levantou a cabeça na direção de Travis, como que desejando saber o que significava aquilo. - Você sabe do que estou falando, seu peludo.
- Também sei - disse Nora. - Ela abraçou o cachorro. - Quando estava brincando com Jack, você poderia tê-lo feito de bobo, se o desejasse, mas você permitiu que ele tivesse a parte dele, não foi?
Einstein concordou e parecia feliz.
Nora se dirigiu para o quarto de dormir, e Travis ficou no sofá-cama da sala de estar. Travis havia pensado em dormir com ela. Talvez Nora permitisse que ele fosse para a cama dela. Além do mais, estavam a quatro dias do casamento. Por Deus, que Travis a queria. Embora ela estivesse com um pouco de medo, por ser virgem, ela também o desejava; ele não tinha dúvidas a respeito. Cada dia eles estavam se tocando mais e se beijando com mais freqüência - e mais intimamente. O ar entre eles estava carregado de energia sexual. Mas por que não fazer as coisas de maneira certa e correta, desde que estavam tão próximos de se casarem? Por que não ir para o leito conjugai virgens? Ela, virgem por excelência, ele virgem para ela.
Naquela noite, Travis sonhou que Nora e Einstein estavam perdidos no deserto de Mojave. No sonho, ele estava por alguma razão sem pernas, forçado a procurá-los arrastando-se pelo chão. Era horrível e ele sabia que, onde quer que os dois estivessem, corriam perigo de ser atacados por... alguma coisa.
* * *
Domingo, segunda e terça em Las Vegas. Eles se prepararam para o casamento, observaram Einstein brincar com outros cachorros do acampamento e fizeram alguns passeios até Charleston Peak e Lake Mead. Durante a noite, Nora e Travis deixavam Einstein com seus livros, enquanto assistiam a espetáculos noturnos. Travis se sentia um pouco culpado por deixar o cachorro sozinho, mas por vários meios Einstein indicara que ele não queria que eles ficassem no trailer só porque os donos de móteis eram preconceituosos e se recusavam a permitir a presença de cachorros geniais e bem-comportados até mesmo em cassinos e salas de espetáculos.
Na quarta-feira de manhã, Travis estava de casaca e Nora com um vestidinho branco, com laços no punho e no pescoço. Eles se dirigiram para a cerimônia de casamento com Einstein no meio deles, no banco da pickup.
A capela não tinha nenhuma identificação de credos religiosos e era o lugar mais engraçado que Travis jamais vira. Pela arquitetura era até certo ponto romântica, solene. Nora achou-a engraçada, também. E ao entrarem os dois fizeram esforço para não rir. A capela estava espremida entre todos aqueles luminosos brilhantes e os altos hotéis na parte sul da avenida Las Vegas. Tinha apenas um pavimento, era feita de tijolos, pintada de rosa bem claro e com portas brancas. Escrito em metal acima da porta a legenda ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE... Ao invés de desenharem imagens religiosas nos vidros das janelas, havia cenas de famosas histórias de amor, incluindo Romeu e Julieta, Abelardo e Heloísa,...E o vento levou, Casablanca - e inacreditável - I Love Lucy.
Travis e Nora continuavam alegres, nada poderia estragar aquele dia. Até mesmo aquela capela escandalosa teria que ser abençoada, lembrando em todos os detalhes, para que pudessem recordar em todos os momentos de suas vidas. Afinal, era a capela do casamento deles, no dia deles, e de uma forma especial, totalmente fora do comum.
Não era permitida a presença de cachorros. Mas Travis já havia pago antecipadamente um bom dinheiro para garantir que o cachorro não só entrasse na capela, como também fosse bem recebido, como qualquer outra pessoa. O pastor, reverendo Dan Duprée - "Por favor, me chamem reverendo Dan" - era um sujeito barrigudo, de rosto corado, parecia um típico vendedor de carros usados. Ele estava acompanhado de duas testemunhas, que haviam sido pagas para tal - a mulher dele e a irmã - que estavam usando vestidos brancos.
Travis tomou o seu lugar na frente da capela.
A organista atacou de marcha nupcial.
Nora desejava, do fundo do coração, caminhar ao longo da nave central da capela para encontrar-se com Travis, que já estava no altar. Mais do que isto, ela queria "ser conduzida pelo braço", como acontecia com todas as noivas. Isto deveria ter sido feito pelo pai dela, é claro, mas Nora não tinha pai. Nem havia outras pessoas que tomassem o lugar do pai naquela tarefa. No início dava a impressão de que ela teria que caminhar sozinha ou conduzida por um estranho. Ainda na pickup, a caminho da cerimônia, ela chegara à conclusão de que Einstein estava disponível para isto, e ela decidira que não havia ninguém melhor no mundo do que o cachorro para acompanhá-la até ao altar.
Agora, que a organista já estava tocando, Nora começou a andar com o cachorro ao lado. Einstein estava plenamente consciente da grande honra de acompanhá-la e caminhava com todo o orgulho e dignidade de que era capaz, a cabeça ereta, os passos lentos em sincronia com os passos de Nora.
Ninguém parecia se importar - ou mesmo surpreso - com a presença do cachorro ao lado dela. Aquilo estava acontecendo, afinal de contas, em Las Vegas.
- Ela é uma das noivas mais adoráveis que já vi - comentou a mulher do reverendo Dan, falando ao ouvido de Travis, que percebeu que ela estava sendo sincera e que o cumprimento não era rotineiro.
Os fotógrafos não paravam um minuto com seus flashes, mas Travis estava demasiadamente envolvido e atraído por Nora, para ser perturbado com tanto movimento.
Os jarros cheios de rosas e cravos enchiam de perfume a capela, e cem velas davam conta da iluminação. Quando Nora finalmente chegou ao lado de Travis, ele estava alheio à decoração informal do lugar. O amor dele agindo como arquiteto havia remodelado inteiramente a realidade da capela, transformando-a em uma catedral tão grande como as maiores do mundo.
A cerimônia foi curta. Travis e Nora assumiram o compromisso matrimonial e trocaram alianças. As lágrimas que corriam pelo rosto de Nora brilhavam sob a luz das velas e Travis queria saber por que as lágrimas dela turvavam a sua própria visão e concluiu que estava a ponto de chorar também. Um acorde especial do órgão acompanhou-lhes o primeiro beijo como marido e mulher e era o beijo mais doce que ele jamais poderia imaginar.
O reverendo Dan abriu a garrafa de Dom Perignon na direção de Travis e serviu uma taça a cada um, incluindo a organista. Acharam um pires para Einstein. Fazendo um ruído com a boca, o cão se uniu ao grupo fazendo um brinde à vida, à felicidade e ao eterno amor.
* * *
Einstein passou a tarde na parte da frente do trailer, na sala de estar, lendo.
Travis e Nora passaram a tarde no outro lado do trailer, na cama.
Depois de fechar a porta do quarto, Travis colocara uma segunda garrafa de Dom Perignon no balde de gelo, não esquecendo de abastecer o compact-discplayer com quatro álbuns de músicas românticas, tocadas ao piano por George Winston.
Nora fechou a cortina da única janela e acendeu a luz de uma pequena lâmpada de cabeceira. A cor amarelada da luz enchia o quarto com uma atmosfera de sonho.
Permaneceram por algum tempo na cama, conversando, rindo, acariciando-se, beijando-se, então, conversando menos e beijando-se mais intensamente.
Aos poucos, Travis foi tirando a roupa dela. Ele nunca a vira antes despida, mas a achou ainda mais adorável e mais primorosamente bem proporcionada do que poderia imaginar. O pescoço fino, a delicadeza dos ombros, os seios generosos, a inclinação dos quadris, as nádegas atrevidamente moldadas, as longas, macias e flexíveis pernas - todas as linhas e ângulos do seu corpo o excitavam mas também o deixavam cheio de ternura.
Depois que Travis tirou a roupa, com paciência e grande delicadeza, ensinou-lhe a arte do amor. Com um profundo desejo de agradar, e sabendo que tudo era novo para ela, ele mostrou a Nora - às vezes importunando-a deliciosamente - todas as sensações possíveis que a língua, os dedos e a masculinidade poderiam proporcionar a ela.
Estava preparado para encontrá-la hesitante, embaraçada, até mesmo amedrontada, porque os trinta anos de vida solitária não haviam-lhe dado o devido preparo para enfrentar este grau de intimidade. Mas Nora não tinha traço algum de frigidez e se deixou levar a fazer tudo que pudesse gerar prazer para ambos. Os gemidos e sussurros dela ao ficar excitada, deixavam Travis encantado. Toda vez que ela atingia o clímax, tremia de êxtase. Travis ficava cada vez mais excitado, levando-o a um ponto onde ele jamais havia chegado antes, até que a necessidade se tornava quase dolorosa.
Quando finalmente conseguiu deixar dentro dela sua semente de amor, Travis encostou o rosto ao pescoço dela, dizendo que a amava, repetindo várias vezes aquela declaração de amor. Em um momento de repouso, que durou um longo tempo, Travis tinha a impressão de que ou que o tempo tinha parado, ou de que sua energia jamais iria acabar.
Depois de tudo, com o ato consumado, os dois ficaram abraçados por muito tempo em silêncio, sem necessidade de conversar. Ouviram música e, finalmente, começaram a expressar o que estavam sentindo, tanto física quanto emocionalmente. Beberam mais champanha e amaram-se uma vez mais. Outra vez mais.
Embora fosse sentida diariamente a presença de algo tétrico, os prazeres e alegrias da vida eram desfrutados com toda a intensidade.
* * *
Saíram de Las Vegas e pegaram a Route 95, através da imensidão deserta de Nevada. Dois dias mais tarde, em uma sexta-feira, 13 de agosto, chegaram ao lago Tahoe, estacionando o trailer para as conexões de água e luz num camping, já no estado da Califórnia.
Nora já não se deslumbrava mais com tanta facilidade diante das paisagens e das novas experiências. Entretanto, o lago Tahoe era um lugar extremamente bonito e Nora passou a se surpreender com o que via, reagindo alegremente como se fosse criança. Com trinta e dois quilômetros de comprimento por dezesseis de largura, com a serra Nevada do lado oeste, e as montanhas de Carson no lado leste, o Tahoe era conhecido como o lago com a água mais clara do mundo, uma pedra preciosa tremeluzente a irradiar tons de azul e verde.
Por seis dias, Nora, Travis e Einstein escalaram todas aquelas montanhas à volta, no Eldorado, no lago Tahoe e na Floresta Nacional de Toiyable. Alugaram um barco e exploraram recantos paradisíacos. Bronzearam-se ao sol, nadaram e Einstein costumava entrar na água com aquele entusiasmo e naturalidade próprios da espécie.
Nora e Travis faziam amor às vezes pela manhã, às vezes no final da tarde e com mais freqüência à noite. Ela estava surpresa com a própria necessidade sexual. Ela não podia tirar o suficiente dele.
- Amo o seu espírito e o seu coração - Nora disse para Travis. - Mas, valha-me Deus, amo o seu corpo quase da mesma forma. Será que sou alguma depravada?
- Deus do céu, não. Você é simplesmente uma mulher jovem e saudável. De fato, pela vida que você sempre levou, você é emocionalmente mais saudável do que o normal. Realmente, Nora, você me deixa tonto.
- Gostaria de abrir suas pernas.
- Talvez você seja depravada - disse ele, e riu.
Sexta-feira pela manhã, bem cedo, debaixo de um céu azul, eles partiram do lago Tahoe na direção do península de Monterey. Exatamente onde a terra encontra o mar, eles encontraram uma beleza natural, se possível, ainda mais impressionante do que em Tahoe. Ficaram ali por quatro dias, partindo para casa na tarde de quarta-feira, 25 de agosto.
A alegria do casamento era tão grande, que o milagre da inteligência de Einstein não ocupava mais a atenção deles como antes. Mas Einstein lembrou-lhes de sua natureza fora do comum, quando se aproximaram de Santa Bárbara no final da tarde. A sessenta ou oitenta quilômetros de casa, ele começou a ficar agitado. Mudava de posição seguidamente no banco, entre Travis e Nora. De repente, levantou a cabeça e a colocou no colo de Nora, então, levantou-se novamente. Começou a emitir um som estranho. A dezesseis quilômetros de casa, ele estava tremendo.
- O que há de errado com você, peludo? - perguntou Nora. Einstein, com aqueles olhos castanhos expressivos, tentou com todo o esforço transmitir alguma mensagem, mas ela não podia entendê-lo.
Meia hora antes de escurecer, quando chegaram à cidade, abandonando a auto-estrada, Einstein começou a gemer e a rosnar, alternadamente.
- O que há de errado com ele? - perguntou Nora. Franzindo as sobrancelhas, Travis disse:
- Não sei.
Ao chegarem na entrada da casa, depois que Travis estacionou a pickup embaixo de uma palmeira, o cão começou a latir. Nunca latira na camioneta, nem uma vez sequer, ao longo da viagem. Era de arrebentar o ouvido, no pequeno espaço da cabine, mas ele não parava de latir.
Quando eles saíram da camioneta, Einstein correu à frente deles e parou para impedir que eles fossem para casa, latindo sempre.
Nora caminhou na direção da porta da frente, mas Einstein partiu como uma flecha, e começou a puxá-la pela bainha da calça, tentando desequilibrá-la. Nora se esforçou para ficar em pé e o cachorro a largou.
- Ei, o que há com ele? - perguntou a Travis. Olhando pensativo na direção da casa, Travis comentou:
- Ele agia da mesma forma naquele dia na mata... quando tentava me impedir de todas as formas que eu seguisse a trilha escura.
Nora tentou atrair o cachorro para fazer-lhe um carinho. Mas Einstein não se deixava envolver. Quando Travis testou o cachorro desejando se aproximar da casa, Einstein rosnou e o forçou a recuar.
- Espere aqui - disse Travis para Nora. Ele caminhou até o trailer e entrou. Einstein andava de um lado para o outro em frente à casa, olhando para a porta e para as janelas, rosnando e gemendo.
O sol já começava a desaparecer, beijando a face do mar. A rua residencial onde Travis morava estava quieta, em paz, como se nada estivesse acontecendo de anormal. Mesmo assim, Nora sentia algo errado pairando no ar. O vento quente que soprava do mar provocava ruídos estranhos nas folhas das palmeiras, nas folhas dos eucaliptos. Eram sons que poderiam até ser agradáveis em qualquer outro dia mas naquele momento havia algo de sinistro neles. Nora também percebia que estavam sendo ameaçados de alguma forma, que ela não sabia explicar. À exceção do comportamento do cachorro, ela não tinha razão alguma para imaginar que estavam correndo algum tipo de perigo. A intranqüilidade de Nora não era racional, mas instintiva.
Ao voltar do trailer, Travis estava carregando um imenso revólver. Ele estivera guardado na gaveta do quarto de dormir, por todo o tempo da lua-de-mel. A arma permanecera descarregada, mas agora Travis tratou de enchê-la de balas.
- É necessário tudo isto? - perguntou Nora visivelmente preocupada.
- Havia alguma coisa na mata naquele dia - disse Travis. - Embora eu nunca o tivesse visto... bem, a coisa chegou a me arrepiar os cabelos. Sim, acho que a arma é necessária.
A reação de Nora diante dos ruídos das árvores, entre as sombras do entardecer, dava a ela uma demonstração do que Travis devia ter sentido no mato e teve que admitir que a arma a fez sentir-se um pouco mais segura.
Einstein parou de se movimentar e ficou em posição de guarda no caminho da entrada, impedindo que os dois se aproximassem da casa.
Travis, virando-se para o cachorro perguntou:
- Há alguém lá dentro?
O cachorro abanou rápido o rabo. "Sim."
- Os homens do laboratório? Um latido. "Não."
- O outro animal de laboratório, do qual você nos falou? "Sim."
- Está bem, vou entrar. "Não."
- - Sim - insistiu Travis. - Esta é minha casa, e nós não vamos fugir, seja lá que diabo for.
Nora se lembrou da foto da revista, que mostrava um monstro do cinema, do qual Einstein tivera medo. Ela não acreditava em nada que remotamente se parecesse com aquela criatura, nem pensava que pudesse existir. Ela imaginava que Einstein estava exagerando, ou que eles tivessem interpretado mal o que o cachorro tentara lhes dizer sobre a foto. Apesar disso, de repente desejou que eles não somente tivessem um revólver, mas um rifle.
- Isto é uma Magnun 357 - disse Travis para o cachorro. - Com apenas um tiro, e acertando a perna ou o braço, podemos derrubar o maior dos homens e mantê-lo no chão. Ele vai se sentir como que recebendo uma bala de canhão. Fui treinado por alguns dos melhores atiradores do país e tenho praticado tiro com regularidade para me manter em forma. Realmente sei o que estou fazendo e serei capaz de cuidar de mim lá dentro. Além do mais, não podemos chamar a polícia, podemos? Porque, não importa o que achem lá dentro, isto vai levantar suspeitas, vão fazer muitas perguntas. E, mais cedo ou mais tarde, vão te levar para aquele maldito laboratório, de novo.
Einstein estava vivamente triste com a determinação de Travis. O cachorro levantou as patas traseiras e olhou para trás como que tentando dizer: Está bem... está certo... Mas, eu não vou deixar você entrar lá sozinho.
Nora queria, também, entrar com eles, mas Travis foi inflexível e exigiu que ela ficasse do lado de fora. Ela aceitou ficar ali contra a vontade já que - Nora não tinha arma, nem habilidade para usá-la - não haveria nada que ela pudesse fazer para ajudar.
Carregando o revólver ao seu lado, Travis foi para perto de Einstein e colocou a chave na fechadura.
7
Travis abriu a fechadura, guardou a chave no bolso e empurrou a porta para dentro, apontando sua Magnun. Entrou cautelosamente com Einstein ao lado.
A casa estava em silêncio, como deveria estar, mas havia um horrível mau cheiro no ar, que não pertencia à casa.
Einstein rosnou baixo.
A luz fraca do sol ainda penetrava pelas janelas, embora muitas estivessem cobertas por cortinas. Havia claridade suficiente para que Travis percebesse que o sofá da sala estava rasgado. O estofamento fora puxado e havia pedaços espalhados pelo chão. Um porta-revistas de madeira fora quebrado, totalmente, ao que parecia, depois de jogado na parede. A tela da televisão fora quebrada com um abajur. Vários livros estavam fora da prateleira, todos rasgados, e havia pedaços deles por toda a sala.
Apesar do vento brando e fresco que entrava pela porta, o mau cheiro que havia ali dentro parecia estar mais forte.
Travis acendeu a luz na parede da sala. A iluminação não era muito intensa, mas era o suficiente para verificar mais detalhes. Parecia que alguém havia entrado na casa com uma serra elétrica, pensou ele.
A casa permanecia silenciosa.
Deixando a porta aberta, Travis deu mais alguns passos para o interior da sala e ficou com algumas páginas dos livros destruídos, presas sob os sapatos. Percebeu alguns traços escuros sobre alguns papéis e no estofamento e parou para olhar melhor: era sangue.
Segundos depois, localizou um corpo. Era o corpo de um homem alto, deitado de lado próximo ao sofá, parcialmente coberto pelas páginas e capas dos livros.
Einstein deu um rosnado profundo, significativo.
Aproximando-se do corpo, que estava a poucos metros da sala de jantar, Travis percebeu que era o senhorio da casa, Ted Hockney. Ao lado dele estava a sua caixa de ferramentas. Ted tinha uma chave da casa e Travis não fazia objeção alguma que ele entrasse para fazer alguns reparos. Ultimamente havia uma torneira vazando e uma máquina de lavar pratos que estava estragada. Evidentemente, Ted fora lá para arrumar alguma coisa. Agora, Ted estava também quebrado e não havia como consertá-lo. Por causa do mau cheiro, Travis pensara primeiro que o homem deveria ter sido morto há pelo menos uma semana. Mas olhando mais de perto, concluiu que não havia qualquer sinal de decomposição. Aquilo havia acontecido no máximo há um dia, talvez, menos. O mau cheiro tinha duas causas: o homem fora estripado; além do mais, o seu assassino tinha aparentemente defecado e urinado em torno do corpo.
Os olhos de Ted Hockney haviam desaparecido.
Travis começou a se sentir mal, não somente porque gostava de Ted.
Teria ficado enojado de qualquer maneira, fosse lá quem estivesse morto. Uma morte daquele tipo deixava a vítima sem qualquer dignidade, era sobretudo um desrespeito à espécie humana.
Os rosnados baixos de Einstein acabaram se transformando em latidos fortes e agudos.
Travis ficou nervoso de repente e o seu coração começou a bater mais forte. Ele se afastou do corpo e percebeu que o cachorro estava olhando para a sala de jantar. Tudo estava escuro para aquele lado, porque ambas as cortinas estavam fechadas e apenas uma luz tênue vinha da cozinha.
Vá, saia daí, retire-se!, dizia uma voz interior.
Travis não se moveu, não correu, porque jamais correra de coisa alguma em sua vida. Bem, isto não era totalmente verdade: ele estivera correndo da própria vida, naqueles últimos anos, quando deixou o desespero tomar conta de si mesmo. Seu desejo de isolamento fora uma covardia. Entretanto, isto já fazia parte do passado; ele era um homem novo, transformado por Einstein e Nora e não iria fugir, novamente.
Einstein estava rígido. Arqueou as patas traseiras, lançando a cabeça para baixo e para a frente, em posição de ataque. Latia tão furiosamente que saía saliva de sua boca.
Travis deu um passo na direção do corredor da sala de jantar.
O cachorro permanecia ao lado dele, latindo cada vez mais forte.
Mantendo o revólver à sua frente, tentando ganhar confiança, porque dispunha de poderosa arma, Travis deu mais um passo, pisando com cautela. Estava a dois ou três passos do corredor. Olhou com dificuldade a sala de jantar que estava na penumbra.
Os latidos de Einstein ressoavam por toda a casa, dando a impressão de que havia vários cachorros no seu interior.
Travis deu mais um passo. Então percebeu alguma coisa se movendo nas sombras da sala de jantar.
Ele gelou.
Nada. Nada se moveu. Teria sido imaginação sua.
Além do corredor, somente sombras, nada mais.
Não estava certo se vira algum movimento ou se era imaginação.
Recue, vá embora, agora!, ditava-lhe a voz interior.
Em ato de desafio, Travis levantou um pé, pretendendo passar pelo corredor.
A coisa na sala de jantar se moveu de novo. Desta vez, não havia dúvidas de sua presença, porque saíra rápido do mais fundo da escuridão e se dirigira para o seu lado, emitindo uma espécie de rugido. Travis viu dois olhos amarelos piscando no escuro, a uma altura aproximadamente de um homem que apesar da pouca iluminação - dava a impressão de estar deformado. Então a coisa começou a sair de detrás da mesa, na sua direção. Einstein se lançou para a frente para atacar, mas Travis tentou recuar para ganhar tempo para atirar. Ao mesmo tempo em que puxou o gatilho, escorregou nos livros que estavam caídos e foi jogado para trás. O revólver disparou, mas Travis sabia que errara o alvo, acertando o teto. Por um instante, no momento em que Einstein corria sobre o adversário, Travis viu aquela coisa com olhos de lanterna, mais claramente, viu suas garras de crocodilo, as mandíbulas enormes com dentes afiados.
- Einstein, não! - gritou ele, porque sabia que o cachorro seria estraçalhado numa briga com aquela criatura horrível a abriu fogo de novo, duas vezes seguidas, mesmo deitado no chão.
O grito de Travis não somente fez o cachorro parar, mas fez o inimigo pensar duas vezes antes de avançar contra um homem armado. A coisa recuou - era muito rápida, mais veloz que um gato - e cruzou a sala de jantar que estava às escuras, na direção da porta da cozinha. Ele tivera a impressão de que se tratava de algo que jamais poderia ficar de pé, mas estava ereto, de qualquer maneira, com uma cabeça duas vezes maior do que deveria ser, braços grandes demais, terminando em garras.
Travis atirou novamente e quase acertou. A bala tirou uma lasca de madeira da porta.
Dando um rugido, a besta desapareceu na cozinha.
Pelo amor de Deus, o que era aquilo? De onde teria vindo? Será que escapou do mesmo laboratório que produziu Einstein? Mas como conseguiram fazer aquela monstruosidade? E, por quê? Por quê?
Travis era um homem culto: de fato, nos últimos anos havia dedicado a maior parte do tempo à leitura, de maneira que começou a considerar algumas possibilidades. A pesquisa genética, era uma dessas possibilidades.
Einstein estava no meio da sala de jantar, latindo na direção do corredor, onde a coisa havia desaparecido.
Levantando-se, Travis chamou o cachorro de volta para seu lado e Einstein voltou rápido, ansioso por isto.
Travis ouviu Nora gritar o nome dele na frente da casa, mas não havia nada na cozinha.
Para tranqüilizar Nora, gritou:
- Estou bem! Estou legal! Não saia de onde está! Einstein tremia.
Travis podia ouvir o próprio coração batendo e poderia também quase ouvir o suor correndo pelo seu rosto, mas não podia escutar nada que identificasse aquele fugitivo de um pesadelo. Não pensava que aquela coisa houvesse saído pela porta dos fundos na direção do quintal. Imaginava que a coisa não gostava de ser vista por muitas pessoas e por isso saía somente à noite, movimentando-se exclusivamente na escuridão, até mesmo em uma cidade como Santa Bárbara, sem ser localizada. O dia ainda estava claro o suficiente para fazer com que aquela criatura evitasse sair à rua. Além do mais, Travis poderia sentir a sua presença em algum lugar, da mesma forma que sentia, às vezes, alguém o observando pelas costas, ou que uma tempestade estava a caminho, olhando para o céu escuro. A coisa estava lá, claro, esperando na cozinha, esperando atenta.
Travis voltou cautelosamente pelo corredor e entrou na sala de jantar semi-iluminada.
Einstein ficara colado a ele, sem rosnar nem latir. O cachorro parecia compreender que Travis necessitava de completo silêncio, para localizar qualquer movimento da coisa.
Travis deu mais dois passos.
Um pouco à frente, pela porta da cozinha, ele poderia ver o canto da mesa, a pia, parte do balcão e metade da máquina de lavar pratos. A luz do crepúsculo era mais intensa no outro lado da casa e a luminosidade na cozinha era fraca, sombria, não o ajudava a ver os movimentos do adversário. Este poderia estar aguardando do outro lado da porta, ou mesmo ter subido no balcão da cozinha, de onde se lançaria se Travis tentasse entrar.
Tentando enganar a criatura, na esperança de que esta reagisse sem qualquer hesitação ao primeiro sinal na porta de entrada, Travis colocou o revolver na cintura e, sem qualquer ruído, pegou uma das cadeiras da sala de jantar, que estava a um metro e meio da cozinha, e a jogou porta adentro. Sacou o revólver rapidamente e assumiu posição de tiro. A cadeira caiu sobre a mesa de fórmica e rolou para o chão, ficando encostada na máquina de lavar pratos.
A criatura de olhos de lanterna não se deixou enganar. Não se moveu. Depois que a cadeira parou de vibrar, a cozinha novamente ficou com um ar carregado de expectativa.
Einstein estava emitindo um som curioso, como se estivesse chorando e, pouco depois, Travis concluiu que aquilo era resultado da tremedeira incontrolável do cachorro.
Não havia a menor dúvida: aquela coisa era a mesma que havia perseguido Einstein pelo mato, há mais de três meses. Naquelas últimas semanas, a criatura se dirigira para o norte, através de uma área desolada, a leste da região mais desenvolvida do Estado, perseguindo implacavelmente o cachorro, por meios que Travis não entendia e por razões que não podia nem mesmo adivinhar.
Em resposta à cadeira que havia sido atirada, uma vasilha branca caíra no chão, um pouco além do corredor da cozinha, fazendo Travis pular para trás. A vasilha ao atingir o chão perdeu a tampa, espalhando farinha.
Silêncio, novamente.
O monstro respondera de maneira típica ao insulto de Travis, com inquestionável inteligência. Repentinamente, Travis concluiu que, ao sair do mesmo laboratório de pesquisas de Einstein e sendo igualmente um animal experimental, poderia ser tão inteligente quanto o cão. Isto explicaria o medo que o cachorro sentia. Se Travis ainda não aceitara completamente a idéia de um cachorro com inteligência humana, poderia também relutar na aceitação daquela besta com mais que inteligência animal; entretanto, os acontecimentos dos últimos meses o obrigaram a aceitar - e repentinamente se adaptar - a quase tudo.
Silêncio.
Havia apenas uma bala na arma.
Silêncio absoluto.
Ele ficou tão assustado com a vasilha de farinha, que não percebera de que lado ela fora atirada, nem poderia localizar a posição da criatura que a atirou. Travis ainda não estava certo se o monstro estava do lado direito ou no lado esquerdo do corredor.
Também já não estava certo de se ter preocupado com a localização do adversário. Mesmo com o revólver na mão, não achava prudente entrar na cozinha. Não com uma criatura tão inteligente quanto um homem. Seria como tentar lutar com uma serra elétrica que possuísse inteligência, pelo amor de Deus.
A claridade de um lado da cozinha estava quase desaparecendo. Já estava tudo completamente escuro na sala de jantar, onde estavam Travis e Einstein. A escuridão já quase tomara conta da sala de estar, atrás deles, apesar de portas e janelas abertas.
A criatura acabara de fazer um ruído alto na cozinha, um sibilo, como se fosse escapamento de gás, seguido de um clic, clic, clic, que poderia ser a batida das suas afiadas unhas dos pés contra uma superfície dura ou mesmo suas garras das mãos.
Travis começou a tremer da mesma forma que Einstein. Começou a sentir-se como uma mosca a ponto de ser apanhada pela teia de uma aranha.
Travis se lembrou do rosto esmagado, ensangüentado e sem olhos de Ted Hockney.
Clic, clic.
O treinamento antiterror que Travis havia recebido de perseguir homens poderia ajudá-lo naquela situação. Mas o problema é que a criatura de olhos amarelos talvez fosse tão inteligente quanto um homem, mas não se poderia esperar que pensasse como um homem. Travis não poderia ter a menor idéia de como o monstro agiria, como seriam suas reações a um ataque. Entretanto, não poderia subestimá-la, porque a natureza especial da criatura lhe dava uma vantagem mortal, através da surpresa.
Clic.
Travis deu um passo para trás, silenciosamente, afastando-se da porta da cozinha, e mais um passo, pisando com todo cuidado para que aquela coisa não percebesse que estava em retirada, porque só Deus sabe o que a besta faria se soubesse que estava fugindo ao seu alcance. Einstein também se movia em silêncio na sala de estar, igualmente desejoso de afastar-se do monstro.
Quando Travis se aproximou do corpo de Ted Hockney, procurou dar uma olhada para a porta da frente, preparando a fuga - e viu Nora ao lado da poltrona. Assustada com o tiroteio, ela se armara com uma faca que estava guardada na cozinha do trailer e queria saber se poderia ajudar.
Travis estava impressionado com a coragem dela, mas horrorizado em vê-la próxima da luz do abajur. De repente, teve a impressão de que o pesadelo que tivera sobre perder Nora e Einstein iria se concretizar, a maldição de Cornell novamente. Agora os dois estavam dentro da casa, ambos vulneráveis e à distância de um possível ataque daquela coisa que estava na cozinha.
Ela começou a falar.
Travis balançou a cabeça e colocou uma das mãos na boca.
Ela ficou em silêncio e desviou os olhos de Travis para o corpo do homem morto no chão.
À medida que Travis caminhava, um sexto sentido lhe dizia que o monstro havia saído pelos fundos da casa e estava agora caminhando pelo lado, na direção da porta da frente, arriscando-se ser visto pelos vizinhos à luz do crepúsculo. A criatura pretendia atacá-los por trás, numa operação rápida. Nora permanecia de pé entre a porta da frente e Travis, o que prejudicava a pontaria, se a besta entrasse por ali; porra, ele estaria sobre Nora um segundo após entrar pela porta. Tentando não ficar em pânico e procurando esquecer o rosto sem olhos de Hockney, Travis caminhou rápido pela sala de estar, fazendo algum barulho com os pés e esperando que a criatura não ouvisse, se ainda estivesse na cozinha. Ao atingir Nora, Travis puxou-a rapidamente pelo braço e a lançou perto da escada, olhando tanto para a esquerda, quanto para a direita, na expectativa de ver aquela coisa saída de um pesadelo entrar correndo pela porta.
Os tiros de Travis e os gritos de Nora haviam despertado a atenção dos vizinhos ao longo de toda a rua. Alguns saíram para a varanda e outros para o jardim de suas casas. Alguém certamente teria chamado a polícia. Por causa da situação de Einstein, quase como um fugitivo da justiça, a polícia parecia tão perigosa quanto a criatura de olhos amarelos.
Os três correram para a pickup. Nora trancou sua porta, o mesmo fazendo Travis. Ele ligou o motor e deu marcha à ré na direção da rua. Estava sabendo que os vizinhos olhavam.
Em alguns minutos não haveria mais luz do dia. A leste já era noite, praticamente, bem acima do céu estava cor de rosa, a oeste havia uma cor escura de sangue. Travis estava agradecido por estarem protegidos pela noite, embora soubesse que a criatura igualmente desfrutaria da mesma vantagem.
Ele dirigiu a pickup passando em frente aos vizinhos que jamais conhecera durante todos aqueles anos de solidão e dobrou na primeira esquina. Nora estava segurando-se firme em Einstein e Travis dirigia o mais rápido possível. O trailer pulava atrás com a velocidade da camioneta.
- O que aconteceu lá dentro? - perguntou Nora.
- Ele matou Hockney hoje cedo, ou ontem...
- Ele?
-...e estava aguardando que chegássemos em casa.
- Ele? - repetiu ela. Travis disse:
- Vou explicar mais tarde. - Ele mesmo se perguntava se poderia fazê-lo. Nenhuma descrição daquela criatura estaria próxima da verdade; não tinha as palavras necessárias para mostrar o que era aquilo.
Eles haviam se afastado cerca de oito quadras, quando começaram a ouvir os sons estridentes das sirenes dos carros da polícia. Travis dirigiu por mais quatro quarteirões e parou no estacionamento vazio de uma escola.
- E agora? - perguntou Nora.
- Abandonamos a pickup e o trailer - respondeu ele. - Eles estarão à procura de ambos.
Travis guardou o revólver na bolsa de Nora, que insistiu em deixar a faca de cozinha lá dentro, também.
Saíram da camioneta e seguiram pelo lado da escola, cruzaram o campo de atletismo na direção de uma rua residencial, com árvores plantadas.
Com a chegada da noite, a brisa começara a soprar mais forte e mais quente. Algumas folhas secas misturadas à poeira faziam redemoinhos na calçada.
Travis sabia que não estavam seguros, mesmo após terem abandonado a camioneta e o trailer. Os vizinhos diriam à polícia para que procurassem um homem, uma mulher e um caçador dourado - não era o mais comum dos trios.
A polícia desejaria fazer perguntas sobre a morte de Ted Hockney, e sairia à procura deles com toda a determinação. Teriam que desaparecer, rapidamente.
Travis não tinha amigos, aos quais pudesse recorrer para pedir ajuda. Depois da morte de Paula, havia abandonado os poucos amigos e não mais mantivera qualquer espécie de contato com os corretores imobiliários que costumavam trabalhar para ele. Nora não tinha amigos também, graças a Violet Devon.
As casas pelas quais eles passavam, a maioria apresentando acolhedoras luzes nas janelas, pareciam zombar deles.
8
Garrison Dilworth morava na divisa de Santa Bárbara com Montecito, numa área exuberante, com uma linda vista. A imponente casa em estilo Tudor parecia não combinar com a paisagem da Califórnia, mas complementava com perfeição o advogado. Quando ele atendeu à porta, estava vestindo sapatos pretos, calça cinza, paletó esporte azul-marinho, camisa branca de malha e óculos de leitura, por cima dos quais ficou olhando o casal com surpresa mas, felizmente, sem manifestar contrariedade:
- Bem, como estão os recém-casados?
- Você está sozinho? - perguntou Travis, ao mesmo tempo em que ele, Nora e Einstein entravam no largo vestíbulo com piso de mármore.
- Sozinho? Sim.
A caminho da casa do advogado, Nora havia dito a Travis que a mulher do advogado morrera há três anos e que agora quem cuidava da casa era uma governanta, a sra. Gladys Murphy.
- A sra. Murphy está? - perguntou Travis.
- Ela já foi para casa - respondeu o advogado, fechando a porta após entrarem. - Vocês parecem apavorados. O que está acontecendo de errado afinal?
- Precisamos de ajuda - respondeu Nora.
- Mas - advertiu Travis -, qualquer pessoa que estiver nos ajudando poderá ter problemas com a justiça.
Garrison levantou as sobrancelhas.
- O que vocês fizeram? A julgar pelo ar grave de vocês... eu diria que seqüestraram o presidente.
- Não fizemos nada de errado - assegurou Nora.
- Sim, fizemos - discordou Travis. - E continuamos agindo errado... estamos dando abrigo ao cachorro.
Confuso, Garrison olhou de forma estranha para o cachorro. Einstein choramingou, como se de fato estivesse precisando ser ajudado.
- E há um homem morto em minha casa - disse Travis.
- Um homem morto?
- Travis não o matou - garantiu Nora. Garrison olhou para o cachorro novamente.
- Também não foi o cachorro - disse Travis. - Mas serei procurado como testemunha, ou coisa parecida.
- Bem... o melhor é irmos até meu escritório para esclarecermos os fatos - disse Garrison.
O advogado os conduziu, através de uma enorme sala de estar. As poltronas e o sofá, tudo em couro, pareciam extremamente caros. A escrivaninha era grande e pesada. Sobre ela, em uma das pontas, o modelo de uma escuna, com todas as velas suspensas. A decoração era toda com motivos náuticos - o timão de um barco, um sextante de metal, seis tipos de lanternas, o sino do timoneiro e mapas marítimos. Travis vira fotografias de um homem e uma mulher em vários veleiros e o homem que aparecia nas fotos era Garrison.
Ao lado de uma poltrona, sobre uma mesinha, havia um livro aberto e um copo de scotch pela metade. Evidentemente o advogado estava fazendo um relax, quando bateram à porta. O advogado lhes ofereceu um drinque, e ambos aceitaram o que ele estava tomando.
Deixando o sofá para Travis e Nora, Einstein ficou na segunda poltrona. O cachorro estava de fato sentado, como se desejasse participar da conversa.
No bar, a um canto da sala, Garrison serviu dois copos de Chivas Regai, com gelo. Embora Nora não estivesse acostumada a beber uísque, ela surpreendeu Travis, tomando a bebida com apenas dois goles e pedindo mais. Ele decidira que aquela era a melhor idéia e seguiu o exemplo de Nora, levando o copo vazio até o bar, enquanto Garrison servia mais bebida à Nora.
- Gostaria de lhe contar tudo para que obtenhamos a sua ajuda -disse Travis. - Mas você deve entender que vai acabar ficando no lado errado da lei.
Colocando a tampa na garrafa de Chivas, Garrison disse:
- Você está falando como leigo, agora. Mas, como advogado, posso garantir a você que a lei não é uma marca riscada na pedra, imóvel, imutável ao longo do tempo, dos séculos. Ao contrário... a lei é como um barbante, preso nas duas pontas, mas com boa margem de manobra - a linha da lei é flexível - assim se você puxar em um sentido, ou em outro, teremos até mesmo um frio assassinato colocado do lado certo. Isto é algo assustador de se acreditar, mas é verdadeiro. Não tenho medo algum do que você possa me dizer e que me lance à prisão, Travis.
Meia hora mais tarde, Travis e Nora já haviam contado tudo sobre Einstein. Para um homem que havia completado há poucos meses setenta e um anos, a sua mente era rápida e aberta. Ele fez as perguntas certas, sem brincar uma única vez. Ao dar uma demonstração de dez minutos das extraordinárias habilidades de Einstein, nem por um momento o advogado protestou alegando que houvesse algum truque. Aceitou o que vira e adaptou suas idéias ao que lhe parecera possível e normal neste mundo. Exibira uma agilidade e flexibilidade mentais maiores que muito homem com a metade de sua idade.
Mantendo Einstein no colo e passando carinhosamente a mão no seu pêlo, Garrison disse:
- Se você procurar os meios de comunicação e convocar uma entrevista coletiva, tornando o assunto aberto para o público, então poderemos ser capazes de entrar com um pedido na justiça para que você mantenha a custódia do cachorro.
- Você acha mesmo que isto funcionaria? - perguntou Nora.
- Na melhor das hipóteses - admitiu Garrison -, teríamos uma chance de cinqüenta por cento.
- Não. Não podemos arriscar.
- O que você pretende fazer, então? - perguntou Garrison.
- Fugir - respondeu Travis. - Continuar correndo.
- O que vai conseguir com isto?
- Manter a liberdade de Einstein. O cachorro rosnou, concordando.
- Livre... mas por quanto tempo? - perguntou Garrison. Travis se levantou e começou a caminhar. Estava muito agitado para permanecer sentado muito tempo.
- Não vão parar de nos procurar - admitiu ele. - Pelo menos nos próximos anos.
- Talvez nunca parem - disse o advogado.
- Está bem. Vai ser duro, mas é a única coisa que poderemos fazer. Não vamos permitir que eles o peguem. Ele tem medo do laboratório. Além disso, ele praticamente me trouxe de volta à vida...
- E me salvou de Streck - disse Nora.
- Ele nos uniu - completou Travis.
- Mudou nossas vidas.
- Ele nos mudou, radicalmente. Agora faz parte de nós, como se fosse nosso próprio filho - disse Travis, que ficara emocionado ao fitar os olhos do cachorro. - Lutaremos por ele, como se lutássemos por nós mesmos. Somos uma família. Viveremos juntos... ou morreremos juntos.
Acariciando o cão dourado, Garrison disse:
- Não haverá somente o pessoal do laboratório atrás de vocês. E não apenas a polícia.
- Haverá a coisa - completou Travis. Einstein tremeu.
- Calma. Calma - disse Garrison tranqüilizando o cachorro. Virando-se para Travis perguntou: - O que você acha que seja esta criatura? Ouvi você descrevê-la, mas isto não ajuda muito.
- Seja lá o que for - disse Travis -, não é obra de Deus. Foram os homens que a fizeram. O que significa que é um produto de pesquisa genética e recombinação de ADN. Só Deus sabe por quê. Deus sabe o que eles tinham na cabeça, quando estavam fazendo este monstro. Por que criar uma coisa como esta? Mas eles o fizeram.
- E parece ter uma facilidade incrível de seguir você.
- De seguir Einstein - disse Nora.
- Desta forma, vamos continuar nos movimentando - disse Travis. - E o nosso caminho vai ser longo.
- Isto vai exigir dinheiro, e os bancos não estão abertos - disse Garrison. - Se vocês vão fugir, alguma coisa me diz que isto tem que ser feito agora à noite.
- Nesse ponto é que podemos ser ajudados por você - disse Travis. Nora abriu a bolsa e tirou dois talões de cheques, o de Travis e o dela.
- Garrison, o que gostaríamos de fazer é lhe passarmos cheques, transferindo o dinheiro de nossas contas, para a sua conta. Ele tem somente três mil dólares na conta dele, mas tem, igualmente, muito dinheiro na poupança no mesmo banco, e eles estão autorizados a transferir dinheiro para cobrir a falta de fundos, se for necessário. A minha conta funciona da mesma maneira. Se dermos a você um cheque de Travis de vinte mil dólares - com a data atrasada, pareceria ter sido assinado antes desta confusão toda - e um cheque meu de vinte mil dólares, você poderia depositar na sua conta. Tão logo fizessem a compensação, você compraria oito cheques administrativos no valor de cinco mil dólares cada e nos remeteria.
Travis disse:
- A polícia vai estar atrás de mim para fazer perguntas, mas eles vão saber que não fui eu que matei Ted Hockney, porque nenhum homem seria capaz de fazer aquilo. Assim, eles não vão bloquear minhas contas bancárias.
- Se o governo federal estiver por trás do trabalho de pesquisa que originou Einstein e esta criatura - disse Garrison -, estarão ávidos para colocar as mãos em você, e talvez bloqueiem as contas bancárias de vocês.
- Talvez. Mas, provavelmente, não com tanta rapidez. Você mora na mesma cidade, de forma que o teu banco poderá compensar o meu cheque até segunda-feira, o mais tardar.
- O que vocês vão fazer para conseguir dinheiro, enquanto isso, até que eu lhes possa remeter quarenta mil dólares?
- Temos algum dinheiro e mais cheques de viagem que sobraram de nossa lua-de-mel - disse Nora.
- E os meus cartões de crédito - acrescentou Travis.
- Eles podem seguir a pista de vocês através de cartões de crédito e cheques de viagem.
- Eu sei - disse Travis. - Assim, vou usá-los em uma cidade onde não tencionamos ficar, e sairemos o mais rápido que pudermos.
- Quando eu comprar os cheques para onde devo mandá-los?
- Manteremos contato por telefone - respondeu Travis, voltando para o sofá e sentando ao lado de Nora. - Combinaremos alguma coisa.
- E o resto do dinheiro de vocês?
- Nós nos preocuparemos com isto mais tarde - respondeu Nora. Garrison franziu as sobrancelhas.
- Antes que vocês saiam, Travis, você pode me autorizar a te representar em qualquer problema legal que surja. Se alguém tentar bloquear a sua conta bancária, ou de Nora, poderei agir no sentido contrário.
- A conta de Nora está segura, por enquanto. Só você sabe a respeito de nosso casamento. Os vizinhos vão dizer à polícia que saí em companhia de uma mulher, mas eles não vão ter condições de identificá-la. Você falou a nosso respeito para alguém?
- Apenas para a minha secretária, sra. Aschcroft. Mas ela não costuma fazer fofocas.
- Está bem, então - disse Travis. - Não acho que as autoridades vão descobrir que tiramos licença para casar, vão demorar um pouco até conseguir saber o nome de Nora. Mas quando isto acontecer, vão descobrir, também, que você é o advogado dela. Se verificarem minha conta bancária para saber por onde ando, vão localizar os vinte mil dólares que passei para você, e vão vir aqui até sua casa.
- Isto não me compromete em nada - disse Garrison.
- Talvez, não - disse Travis. - Mas tão logo me relacionem com Nora, e nós dois com você, vão manter uma vigilância grande. Assim que isto acontecer... na próxima vez que ligarmos, você terá que nos informar. Desligaremos e não entraremos mais em contato.
- Entendo perfeitamente - disse o advogado.
- Garrison - disse Nora -, você não tem que se envolver nisto. Estamos exigindo demais de você.
- Escute, minha querida, tenho quase setenta e dois anos. Ainda aprecio minha vida profissional e ainda saio a velejar... mas, na verdade, estou achando a vida um pouco vazia, nestes últimos dias. Este caso é exatamente o que estou precisando para esquentar um pouco o sangue nas minhas veias e fazê-lo circular mais rápido. Além do mais, acredito que vocês têm a obrigação de manter Einstein livre, não apenas pelas razões que vocês mencionaram, mas porque... a humanidade não tem o direito de aplicar a própria inteligência para criar outras espécies inteligentes e depois tratá-las como propriedades. Se já chegamos ao ponto de poder criar o que Deus criou, então temos que aprender a agir sob a justiça e a misericórdia de Deus. Neste caso, justiça e misericórdia significam que Einstein deve permanecer livre.
Einstein levantou a cabeça do colo de Garrison, expressando admiração, e então enfiou o seu focinho gelado debaixo do queixo do advogado.
* * *
Na garagem com vaga para três carros, Garrison mantinha uma Mercedes preta 560 SEL, nova, uma outra Mercedes branca 500 SEL, mais antiga, e um jipe verde, no qual ele costumava ir até a marina, onde mantinha o seu barco.
- O carro branco era de Francine, minha mulher - disse o advogado, ao conduzi-los até o carro. - Não o uso mais. Mas o mantenho em ordem e funcionando bem, e o dirijo de vez em quando, para evitar que os pneus se desintegrem. Deveria ter-me desfeito do carro, quando Francine morreu. Era o carro dela, afinal de contas. Mas... ela o amava muito, sua Mercedes branca, brilhante, e posso lembrar como ela se sentia atrás do volante... gostaria que ficassem com ele.
- Um carro de sessenta mil dólares? - perguntou Travis, passando a mão no lado da Mercedes. - Uma fuga em alto estilo.
- Ninguém vai procurar por ele - garantiu Garrison. - Mesmo que eles me relacionem com vocês, não vão saber que eu lhes dei um de meus carros.
- Não podemos aceitar uma coisa tão cara - disse Nora.
- Chamem a isto de empréstimo - disse o advogado. - Quando vocês tiverem resolvido o problema e conseguirem um carro novo, simplesmente estacionem este aí em algum lugar... no terminal de algum aeroporto, em alguma estação rodoviária... e liguem para mim dizendo onde está. Eu posso mandar alguém rebocá-lo.
Einstein colocou as patas da frente na porta do motorista da Mercedes e entrou pela janela. Olhou para Travis e para Nora e rosnou, querendo dizer que seriam uns tolos se não aceitassem a oferta.
9
Deixaram a casa de Garrison Dilworth, às dez e quinze da noite de quarta-feira. Com Travis ao volante, tomaram a estrada 101, na direção norte. À meia-noite e trinta, passaram por San Luis Obispo e à uma hora já estavam em Paso Robles. Às duas, pararam para abastecer num posto de gasolina do tipo self-service, a uma hora ao sul de Salinas.
Nora sentia-se inútil. Não era nem mesmo capaz de ajudar Travis a dirigir, porque não sabia. Até certo ponto a culpa era de Violet Devon, não de Nora, resultado daquele tipo de vida em absoluta reclusão e opressão. Não obstante, ela se sentia inútil e não satisfeita consigo mesma. De qualquer forma, não iria permanecer imprestável o resto da vida. Não iria mesmo. Iria aprender como dirigir carros, a usar armas e a lutar judô e caratê. Travis poderia-lhe ensinar. Era um bom professor. Ele havia feito um magnífico trabalho ensinando-lhe a arte de fazer amor. Esta lembrança a fez sorrir e pouco a pouco seu humor foi melhorando.
Nas duas horas e meia seguintes, no rumo norte a caminho de Salinas, e depois para San José, Nora cochilava. Quando despertava, sentia-se aliviada ao observar quantos quilômetros já haviam rodado. Em ambos os lados da auto-estrada, os campos das imensas fazendas pareciam-se perder no infinito sob o luar. No ocaso da lua, percorreram longos trechos em absoluta escuridão, encontrando ocasionalmente uma luz ou outra, nas fazendas ou nos restaurantes de estrada.
Aquela criatura de olhos amarelos havia seguido Einstein das montanhas da Santa Ana em Orange, até Santa Bárbara, percorrendo uma distância de cento e setenta quilômetros e provavelmente uns quatrocentos a pé, através do mato - em três meses. Não era tão rápida assim. Desta maneira, se percorressem quatrocentos quilômetros a norte em linha reta, de Santa Bárbara até San Francisco, talvez o monstro não os achasse antes de sete ou oito meses. Talvez, nunca. Como ele poderia localizar Einstein a uma distância tão grande? Certamente haveria um limite para a sua habilidade de localizar o cachorro. Certamente.
10
Às onze horas da manhã de quinta-feira, Lemuel Johnson se encontrava no quarto de dormir da pequena casa que Travis Cornell havia alugado em Santa Bárbara. O espelho do armário estava quebrado. O resto do quarto estava todo sujo, como se o monstro houvesse sentido ciúmes do cachorro, por este viver com todo o conforto, enquanto ele era forçado a uma vida selvagem, vivendo em condições primitivas.
No meio dos escombros no chão, Lem olhou quatro fotografias em molduras de metal que talvez enfeitassem a cômoda ou a mesa-de-cabeceira. Na primeira, estava Travis ao lado de uma loura bonita. Naquela altura Lem já sabia o suficiente sobre a vida de Travis e concluíra que aquela era a sua ex-mulher Paula. Na outra foto, em preto e branco, havia um casal sorrindo, provavelmente os pais de Travis. Em outra, um jovem de cerca de onze anos, também em branco e preto, poderia ser o próprio Travis, mas parecia mais o irmão que morrera.
A última das quatro fotos era de dez sorridentes soldados, posando no que parecia ser os degraus de madeira de um acampamento na selva.
Um deles era Travis Cornell. Presos aos uniformes, Lem percebeu o distintivo da Força Delta, o grupo de elite antiterror.
Preocupado com esta última foto, Lem colocou-a sobre a cômoda e voltou para a sala de estar, onde Cliff continuava examinando as marcas de sangue. Eles estavam procurando alguma coisa que poderia não significar nada para a polícia, mas para eles era importante.
A Agência de Segurança Nacional havia demorado a tomar conhecimento daquela última morte em Santa Bárbara e Lem não fora alertado até as seis horas daquela manhã. Como resultado, os detalhes macabros sobre a morte de Ted Hockney já haviam sido publicados pelos jornais. Os jornalistas estavam animados, especulando detalhes de todas as formas pelas quais Hockney teria morrido, centralizando-se na hipótese de que Cornell mantivesse um animal perigoso em casa, talvez uma pantera, e que este animal houvesse atacado o proprietário da casa. Os cinegrafistas de TV se deliciaram filmando as manchas de sangue sobre os livros espalhados. A matéria era do National Enquirer, o que não surpreendera a Lem, porque ele sabia que a tênue linha que separava a imprensa escandalosa dos meios de comunicação realmente sérios - especialmente a mídia eletrônica - vinha definhando mais do que os jornalistas se empenhavam em admitir.
Ele já havia planejado uma campanha de desinformação para alimentar ainda mais a histeria dos repórteres, sobre animais selvagens. Alguns informantes pagos pela ASN disseram aos jornalistas que conheciam Cornell e que ele de fato mantinha uma pantera dentro de casa, além de um cachorro. Outros, que jamais haviam-se encontrado com Travis, identificaram-se como amigos dele e relataram consternados que o haviam aconselhado a remover garras e presas da pantera, assim que esta atingisse a idade adulta. A polícia gostaria de interrogar Cornell - bem como à mulher não-identificada - sobre a pantera e seu paradeiro.
Lem estava confiante em que as providências tomadas iriam despistar a imprensa da verdadeira versão do caso.
É claro que Walt Gaines tomaria conhecimento do assassinato em Orange e desejaria fazer algumas perguntas para as autoridades locais de Santa Bárbara, e concluiria rapidamente que o monstro havia seguido o cachorro até ali. Lem estava tranqüilo porque já obtivera a cooperação de Walt.
Entrando na sala de visitas, onde se encontrava Cliff Soames, Lem perguntou:
- Você encontrou alguma coisa?
O jovem agente se levantou dos escombros, esfregou as mãos e disse:
- Sim. Está tudo lá na mesa da sala de jantar.
Lem o seguiu até lá, onde a única coisa que havia sobre a mesa era um livro de anotações. Quando Lem o abriu e folheou suas páginas, viu fotografias que tinham sido recortadas de revistas e coladas nas páginas da esquerda. No lado oposto de cada foto, nas páginas da direita, o nome de cada objeto estava escrito em letras maiúsculas: ÁRVORE, CASA, CARRO...
- O que você acha disto? - perguntou Cliff.
Lem continuou a folhear o livro e não respondeu. Ele sabia que aquilo era importante, mas não conseguia uma razão para explicá-lo. Então, descobriu:
- Você acha que eles devem saber que o cachorro é inteligente e que este deve ter-se revelado a eles? E assim eles... decidiram ensinar o cachorro a ler?
- Parece que sim - concordou Cliff, ainda sorrindo. - Meu Deus, você acha possível? Será que o cão poderia aprender a ler?
- Sem a menor dúvida - disse Lem. - De fato, ensinar o cachorro a ler fazia parte do programa do dr. Weatherby para o próximo outono.
Rindo baixo, Cliff comentou:
- Diabos me carreguem.
- Antes que você chegue a outras conclusões - disse Lem -, é melhor que considere certos aspectos. Este sujeito sabe que o cachorro é extraordinariamente genial. Ele pode ter obtido sucesso na tentativa de ensiná-lo a ler. Somos forçados a admitir que conseguiu uma forma de se comunicar com o animal. Ele sabe que se trata de um cachorro de laboratório. Ele deve saber que muitas pessoas estão à procura do cachorro.
Cliff, então, disse:
- Ele deve saber, também, da existência do monstro, porque o cachorro deve ter achado uma forma de dizer para ele.
- Sim. Sabendo de tudo isto, preferiu ficar no anonimato. Ele poderia ter vendido a reportagem por muito dinheiro. Mas não era possível. Se fosse um ativista, teria convocado a imprensa para denunciar o Pentágono por gastar dinheiro com este tipo de pesquisa.
- Mas ele não poderia - disse Cliff, franzindo o cenho.
- O que significa que decidiu manter o cachorro para si mesmo e impedir que ele seja recapturado.
Cliff comentou, concordando:
- Isto faz sentido e o que nós ouvimos dele é verdade. Quero dizer, este sujeito perdeu toda a família, quando jovem. Perdeu a mulher há menos de um ano. Perdeu todos os companheiros da Força Delta. Então, tornou-se um solitário e se afastou de todos os seus amigos. Não poderia ter-se sentido mais solitário. Então surgiu o cachorro.
- Exatamente - comentou Lem. - E para um homem que recebeu treinamento na Força Delta permanecer escondido não será difícil. E se nós realmente o encontrarmos, ele saberá como lutar para proteger o cachorro. Jesus, e como!
- Ainda não confirmamos esta informação sobre a Força Delta - comentou Cliff, esperançoso.
- Eu o fiz - disse Lem e descreveu a fotografia que vira no quarto de dormir.
Cliff suspirou:
- Agora estamos mergulhados na merda.
- Até o pescoço - disse Lem.
11
Eles chegaram em San Francisco às seis horas da manhã de quinta-feira e às seis e meia encontraram um motel adequado à situação deles - ocupava uma área grande e parecia limpo e moderno. O motel não aceitava cachorros, mas não foi difícil colocar Einstein para dentro do quarto.
Embora houvesse uma pequena chance de que a polícia expedisse uma ordem de prisão para Travis, ele se registrara no motel usando sua própria carteira de identidade. Não tivera outra alternativa, porque Nora não tinha nem cartões de crédito nem carteira de motorista. Os empregados de motéis aceitavam dinheiro, mas não permitiam ninguém sem identidade; o sistema de computação da rede de motéis exigia informação sobre os hóspedes.
Entretanto, ele não dera o número correto da placa do carro e por esta razão estacionara a uma distância que ninguém pudesse enxergar. Nora e Travis pagaram somente por um quarto e mantiveram Einstein com eles, porque não precisariam de privacidade para fazer amor. Exausto, Travis mal tinha forças para beijar Nora antes de cair em profundo sono. Sonhara com coisas de olhos amarelos, cabeças deformadas e bocas de crocodilo com dentes de tubarão.
Acordou cinco horas depois, ao meio-dia e dez, da tarde de quinta-feira.
Nora acordou antes dele, tomou banho e vestiu a única roupa que tinha no momento. O cabelo molhado caía sedutoramente sobre os ombros.
- A água é quente e forte - disse Nora para Travis.
- Eu também - disse ele, abraçando-a e beijando-a.
- Então é melhor você esfriar - disse ela, afastando-se dele. - Pequenas orelhas estão ouvindo.
- Einstein? Ele tem orelhas grandes.
Travis encontrou Einstein no banheiro bebendo água na pia, que fora enchida por Nora.
- Você sabe, seu peludo, para muitos cachorros a privada é o lugar perfeito para beber água.
Einstein não deu atenção a Travis, saindo rápido do banheiro. Travis não tinha como fazer a barba, mas decidira que daquela forma ficaria até melhor para desempenhar a tarefa que o aguardava à noite no distrito de Tenderloin.
Eles saíram do motel e almoçaram no primeiro McDonaWs que encontraram. Depois, se encaminharam para a agência local do Banco de Santa Bárbara, onde Travis tinha a sua conta. Travis usou o seu cartão magnético, mais o MasterCard e dois de seus cartões Visa para sacar uma soma total de mil e quatrocentos dólares. Em seguida, foram até um escritório do American Express e, usando um cheque de Travis, conseguiram mais quinhentos dólares em dinheiro e quatro mil e quinhentos dólares em cheques de viagem. Somando com os dois mil e cem dólares em dinheiro e mais os cheques de viagem que sobraram da lua-de-mel, eles tinham cerca de oito mil e quinhentos dólares disponíveis.
Passaram o resto do dia fazendo compras. Com os cartões de crédito, adquiriram um conjunto completo de malas e roupas suficientes para enchê-las. Compraram tudo o que precisavam para a higiene pessoal dos dois e um barbeador elétrico para Travis.
Travis comprou também um jogo de palavras e Nora disse:
- Você não está com o espírito animado para jogar, está?
- Não - respondeu Travis misteriosamente, apreciando a perplexidade de Nora, que não entendera a resposta. - Explico mais tarde.
Meia hora antes do pôr-do-sol, com todas as compras devidamente guardadas no porta-malas da Mercedes, Travis seguiu em direção do centro de San Francisco, até Tenderloin uma área da cidade um pouco abaixo da O’Farrel Street, na confluência da Market Street e a Van Ess Avenue. Aquela parte de San Francisco era conhecida por causa das inúmeras casas noturnas com dançarinas semidespidas e outras completamente nuas. Naquela área, os homens pagavam por minuto para sentarem-se ao lado de garotas nuas para conversarem sobre sexo e normalmente iam além disso.
Nora ficou chocada com a depravacão e começou a pensar se ela própria não teria atingido aquele tipo de sofisticação. Ela não estava preparada para o esgoto que era Tenderloin. Estava boquiaberta, diante dos luminosos anunciando espetáculos eróticos, mulheres praticando luta-livre na lama, termas só para gays e casas de massagem. Muitas vezes não entendia o significado da propaganda apresentada por algumas das piores casas. Confusa, ela perguntou:
- O que querem dizer com "Fique admirado com o Rosa"? Procurando por um lugar para estacionar, Travis respondeu:
- Isto quer dizer que as garotas que se apresentam naquele espetáculo estão completamente nuas e, durante a dança, arreganham a vagina para se mostrarem mais completamente.
- Não.
- Sim.
- Meu Deus. Não acredito. Quero dizer, sim, acredito... mas é inacreditável. O que significa "Em dose máximo"?
- As garotas dançam ao lado das mesas dos fregueses. A lei não permite que elas sejam tocadas, de qualquer forma elas dançam perto, balançando os seios despidos no rosto dos fregueses, os bicos dos seios ficam quase tocando os lábios deles.
No banco de trás Einstein bufou, desaprovando.
- Concordo, companheiro - disse Travis para o cachorro.
Eles passaram em frente a um lugar com aspecto extremamente doentio, com luzes vermelhas e amarelas, com um luminoso azul anunciando SHOW DE SEXO AO VIVO.
Sem saber mais o que dizer, Nora exclamou:
- Meu Deus, será que há algum espetáculo em que fazem sexo com os mortos?
Travis riu tão alto que quase bateu num carro lotado de acanhados universitários.
- Não. Não. Não. Há limites até mesmo em Tenderloin. Com sexo "ao vivo" querem dizer que não se trata de filme ou de vídeo-teipe. É possível assistir, também, só a filmes de pornografia nos cinemas especializados, mas aquele lugar estava prometendo sexo "ao vivo", no palco. Eu não sei se cumprem a promessa.
- Não me preocupo em verificar! - disse Nora, com um tom de voz que expressava muito bem como ela se sentia naquele bairro, surpresa e perdida. - O que estamos fazendo aqui?
- Isto é um lugar onde as pessoas vêm procurar coisas que não encontram fora daqui, como grandes quantidades de droga, por exemplo. Ou carteiras de motoristas falsas, ou outro tipo de carteira de identidade, também falsificada.
- Oh, sim, entendo - disse Nora. - Esta área é controlada pelo submundo, por pessoas como o don Corleone, de O poderoso chefão.
- Estou certo de que a maior parte pertence à Máfia - disse ele, manobrando a Mercedes para estacionar junto à calçada. - Mas não pense que os mafiosos reais são cheios de honra como Corleone.
Einstein concordou em ficar na Mercedes.
- Vou te dizer uma coisa, seu peludo. Se tivermos sorte - brincou Travis -, conseguiremos uma nova identidade para você. Vamos transformar você em poodle.
* * *
Nora ficou surpresa ao descobrir que a brisa que corria da baía ao cair da tarde era fria o suficiente para que usassem as jaquetas de náilon compradas na manhã daquele mesmo dia.
- Até mesmo no verão, as noites podem ser frias aqui - disse ele. - Logo teremos o nevoeiro, que é puxado da água pelo calor.
Travis teria vestido a sua jaqueta, de qualquer forma, para ocultar o revólver que levava na cintura.
- Há alguma chance de você realmente precisar da arma? - Nora perguntou quando se afastavam do carro.
- Não, completamente. Estou carregando a arma como carteira de identidade.
- Hem?
- Você vai ver.
Ela olhou de volta para o carro, onde estava Einstein na janela traseira, parecendo desamparado. Ficou triste ao ter que deixá-lo ali. Mas estava certa de que, mesmo que certas casas permitissem a entrada de animais, isto não estaria de acordo com os princípios morais de Einstein.
Travis parecia interessado somente nos bares cujas propagandas eram tanto em inglês quanto em espanhol, ou somente em espanhol. Alguns daqueles bares eram tão velhos que não podiam esconder a pintura que caía da parede e os tapetes sujos e bolorentos, enquanto outros usavam espelhos e luzes brilhantes, tentando esconder a verdadeira natureza daquelas espeluncas. Alguns eram de fato limpos e com decoração luxuosa. Em cada um deles Travis conversava em espanhol com os garçons, às vezes com os músicos que estavam de folga e, de vez em quando, dava gorjetas com nota de vinte dólares. Como Nora não falava espanhol, não podia entender por que ele dava dinheiro às pessoas.
Na rua, procurando por outro bar, ele explicou que o maior número de imigrantes ilegais era de mexicanos, salvadorenhos, nicaragüenses - pessoas desesperadas fugindo do caos econômico e da repressão política. Havia mais imigrantes latinos ilegais, procurando por documentos falsos, do que vietnamitas, chineses e todos os outros grupos juntos.
- Desta forma, a maneira mais rápida de conseguir alguém que forneça documentos falsos é através do submundo dos latinos.
- Você já tem alguma pista?
- Ainda não. Apenas informações muito gerais. E provavelmente noventa e nove por cento do que ouvi não faz o menor sentido, é pura mentira. Mas não se preocupe... nós vamos encontrar o que estamos procurando. É por isso que Tenderloin é um local onde o comércio é próspero: as pessoas que vêm aqui sempre encontram o que procuram.
As pessoas todas surpreendiam Nora. Nas ruas, nos bares com garotas de topless, em todos os locais. Asiáticos, latinos, brancos, pretos e até mesmo índios, bebendo juntos. Eles davam a impressão de que aquela harmonia racial era o lado bom da procura do pecado. Nora observava com atenção aqueles sujeitos arrogantes, desfilando com jaquetas de couro e calças jeans. Mas também havia homens com trajes executivos, jovens universitários bem vestidos, outros com roupas de vaqueiro, e alguns tipos com jeito de surfistas, como se tivessem saído de velhos filmes de Annette Funicello. Os mendigos ficavam espalhados pelas calçadas, pelas esquinas, com suas roupas esfarrapadas. Até mesmo aqueles sujeitos com ternos de executivo tinham alguma coisa no olhar, que fazia qualquer um se afastar. Mas a maior parte passaria por cidadãos bem-comportados em qualquer bairro decente. Nora estava atônita.
Não havia muitas mulheres nas ruas, ou na companhia de homens nos bares. Não, minto: havia mulheres para serem vistas e pareciam mais sensuais do que as dançarinas nuas. Poucas daquelas mulheres pareciam não estar à venda.
Em um inferninho de garotas de topless, chamado Hot Tips, cuja propaganda era em inglês e espanhol, a música era tão alta que Nora ficou com dor de cabeça. Seis moças, com os corpos perfeitos, de saltos altos, usando biquínis, dançavam sobre as mesas, rebolando e balançando os seios nos rostos suados dos fregueses que ficavam aplaudindo hipnotizados. Outras moças também com os seios de fora, serviam como garçonetes.
Enquanto Travis conversava em espanhol com o garçom no balcão, Nora percebeu que alguns dos fregueses a olhavam com interesse. Eles a deixavam intranquila e ela segurou o braço de Travis com firmeza. Não poderia ser afastada dele nem com o uso de um pé-de-cabra.
O cheiro de cerveja estragada, de suor, dos perfumes baratos e fumaça dos cigarros tornava o ar tão pesado como sauna a vapor, embora menos saudável.
Nora trincou os dentes e pensou: Não vou ter náuseas e fazer papel de idiota. Simplesmente não vou.
Depois de alguns minutos de rápido diálogo, Travis deu de gorjeta duas notas de vinte dólares ao garçom e foi direto para o fundo do bar, onde um sujeito tão forte quanto Arnold Schwarzenegger encontrava-se sentado em uma cadeira ao lado de um corredor, protegido por uma cortina de contas. O homem usava calças de couro e uma camiseta branca. Os braços pareciam mais largos do que três troncos de árvore. O rosto parecia feito de cimento e os olhos cinzas eram transparentes como vidro. Travis conversou com ele em espanhol e lhe deu também duas notas de vinte.
A música passou do estrondo tenebroso para um volume mais baixo. Uma mulher disse ao microfone:
- Está bem, rapazes, se vocês gostam do que estão vendo, então provem... comecem a rechear as gatinhas.
Nora ficou chocada e, como a música voltara ao normal de novo, ela percebeu o que significavam aquelas palavras: os fregueses foram convidados a colocar notas de cinco ou dez dólares nas calcinhas das dançarinas.
Aquele gigante com calça de couro se levantou e os conduziu até uma sala de três metros de largura por seis de comprimento onde havia mais seis outras mulheres, também de biquíni, prontas para substituir as outras que estavam lá fora. Elas verificavam com cuidado no espelho se estavam bem de acordo e faziam retoques com batom, ou simplesmente conversavam entre si. Nora percebeu que eram tão bonitas, quanto as outras que haviam acabado de dançar. Algumas tinham o rosto insensível, frio, apesar de belo e outras eram tão meigas como professorinhas de colégio. Todas correspondiam ao tipo que os homens provavelmente imaginavam quando falavam sobre mulheres.
O gigante conduziu Travis - que estava de mãos dadas com Nora - através do camarim até uma porta no outro lado. Uma das dançarinas de topless - uma loura linda - colocou a mão no ombro de Nora e caminhou ao lado dela.
- Você é nova aqui, querida?
- Eu? Não, eu não trabalho aqui.
A loura era realmente muito bem servida de corpo e disse para Nora:
- Você tem todas as armas, querida.
- Ah, não, - foi só que Nora conseguiu dizer.
- Você gosta das minhas armas? - perguntou a loura.
- Bem, você é muito bonita - disse Nora. Virando-se para a loura, Travis disse:
- Desista, irmãzinha, esta senhora não faz parte disto. A loura sorriu docemente:
- Se ela tentar, poderá gostar.
Passaram por uma porta, já fora do camarim, e caminharam por um corredor, ao mesmo tempo em que Nora chegara à conclusão de que fora cantada. Por uma mulher.
Nora não sabia se ria ou se tinha ânsia de vômito, provavelmente ambos.
O gigante os conduziu até um escritório no fundo do prédio e os deixou, dizendo:
- O sr. Van Dyne estará com vocês em um minuto.
Tudo era cinza naquela sala, as paredes, as cadeiras de metal e a escrivaninha já bem velha. As paredes estavam vazias, sem qualquer quadro ou calendário. Em cima da escrivaninha, igualmente, não havia canetas nem blocos para anotações. O lugar aparentava ser raramente usado.
Nora e Travis se acomodaram nas duas cadeiras de metal em frente à escrivaninha.
Podiam ouvir ainda a música do bar, mas era pouco definida. Quando finalmente conseguiu recuperar o fôlego, Nora perguntou:
- De onde elas vêm?
- Quem?
- Todas essas mulheres bonitas, com corpos e pernas perfeitas, todas elas querendo... fazer aquilo. De onde vem tanta mulher assim?
- Há uma fazenda de criação de mulheres perto de Modesto - respondeu Travis.
Nora olhou embasbacada para ele. Travis riu e disse:
- Sinto muito. Continuo esquecendo o quão inocente você é, sra. Cornell. - Ele a beijou no rosto. Os fios de barba a espetaram um pouco, mas era agradável. Embora estivesse vestido com a roupa do dia anterior e a barba por fazer, Travis parecia um bebê bem tratado, comparado com aquele tipo de gente que encontraram a caminho do escritório. Travis disse:
- Tenho que dar as respostas certas, porque você não sabe quando estou brincando.
Ela insistiu:
- Então não existe uma fazenda de criação de mulheres perto de Modesto?
- Não. Há muitas mulheres que fazem isto. Mulheres que desejam fazer sucesso no mundo artístico vão para Los Angeles tentando se transformar em estrelas de cinema. Não conseguindo, acabam em lugares assim em Los Angeles, ou para San Francisco, ou ainda tentam Las Vegas. A maior parte é constituída de jovens inocentes. Vêem isto como algo temporário. Podem fazer um bom dinheiro rápido. É uma forma de ganhar a vida, antes de tentar mais uma vez em Hollywood. Existem outras que o fazem como forma de castigo, maltratando-se a si mesmas. Outras fogem da casa dos pais e estão aqui por rebeldia. Há mulheres que fogem dos maridos... enfim: há de tudo. E algumas são prostitutas.
- As prostitutas encontram... os homens aqui? - perguntou Nora.
- Às vezes, às vezes. Algumas vezes dançam para justificar perante o imposto de renda, se houver investigação sobre a fonte de renda. Elas informam ao governo que são dançarinas, o que lhes dá melhor chance de esconder o que fazem na verdade.
- Isso é triste - comentou ela.
- Sim. Em alguns casos... em muitos casos, é terrivelmente triste. Impressionada com tudo aquilo, ela perguntou:
- Elas conseguem identidades falsas com Van Dyne?
- Acredito que sim.
Ela olhou para Travis com ar grave:
- Você realmente sabe o que está fazendo, não sabe?
- Você se importa que eu conheça lugares como este? Ela pensou um pouco e respondeu:
- Não. De fato, se uma mulher assume casar com um homem, ele deve ser capaz de agir em muitas situações. Isto me dá muita confiança.
- Em mim?
- Em você, sim, e confiança de que vamos conseguir sair desta, de que vamos conseguir salvar Einstein e a nós mesmos.
- Confiança é bom. Mas, na Força Delta, uma das primeiras coisas que você aprende é que confiança em demasia às vezes pode matar você.
A porta abriu e o gigante chegou acompanhado por um homem com a cara redonda, vestido com um terno cinza, camisa azul e gravata preta.
- Van Dyne - apresentou-se ele, mas não se ofereceu para apertar a mão. Deu uma volta pela sala e sentou. Tinha um cabelo louro bem fino e a pele da bochecha era fina como a de um bebê. Parecia aqueles corretores de bolsa de valores que costumam aparecer na televisão: eficiente, esperto, bem penteado e arrumado. - Quero falar com você, porque quero saber quem anda espalhando por aí falsidades a meu respeito.
Travis disse:
- Precisamos de novas carteiras de identidade... carteira de motorista, cartões da previdência social... tudo completo. E trabalho de primeira linha. Nada de lixo.
- É sobre isso que estou falando - disse Van Dyne. Levantou as sobrancelhas ironicamente: - Onde você ouviu, afinal, que eu lido com este tipo de negócio? Temo que esteja mal informado.
- Estamos precisando de documentos de primeira qualidade - repetiu Travis.
Van Dyne olhou para ele e para Nora.
- Deixe-me ver a sua carteira. E a sua bolsa, senhora. Colocando a carteira na escrivaninha, Travis disse a Nora:
- Não há problema.
Com relutância ela colocou a bolsa ao lado da carteira.
- Por favor, levantem-se e permitam que Caesar os reviste - disse Van Dyne.
Travis se levantou e fez sinal para que Nora também agisse da mesma forma.
Caesar, o gigante com cara de cimento, revistou Travis com constrangedora meticulosidade e encontrou a Magnum 357, colocando-a na escrivaninha.
Fora ainda mais minucioso com Nora, desabotoando a blusa, à procura de algum microfone, pilha ou gravadores. Ela não teria permitido esta intimidade, se Travis não lhe houvesse explicado o que Caesar estava procurando. Além do mais, Caesar permanecera frio, sem a menor emoção, agindo como se fosse máquina, sem o potencial para respostas eróticas.
Quando Caesar terminou, eles voltaram a sentar, enquanto Van Dyne examinava a carteira de Travis e a bolsa de Nora. Ela estava com medo de que fossem tomar tudo deles, sem lhes dar nada em troca, mas ele parecia somente estar interessado nas identidades e na faca de cozinha que Nora carregava.
Virando-se para Travis, Van Dyne disse:
- Está bem. Se você fosse um policial, não deixariam você carregar uma Magnum. - Verificou a munição: - Está carregada. Você pode ser preso com isto. - Sorriu para Nora: - Nenhuma policial carregaria uma faca de cozinha.
De repente, ela entendeu o que Travis estava querendo dizer, quando afirmou que levaria o revólver não como proteção, mas para identificar-se melhor.
Van Dyne e Travis regatearam, discutiram e finalmente aceitaram o preço de seis mil e quinhentos dólares pelas novas identidades de primeira linha.
Receberam de volta a arma e a faca. Nora e Travis saíram daquele escritório cinza e seguiram Van Dyne através de um estreito corredor, onde ele dispensou Caesar, e desceram uma escada de concreto para o porão da Hot Tips, onde o som de rock passava através do chão de concreto.
Nora não estava tão certa do que esperava encontrar no porão: talvez alguns homens parecidos com Edward G. Robinson, usando tapa-olhos, operando antigas máquinas de tipografia, produzindo não somente falsos documentos, mas imprimindo igualmente dinheiro falso. Pelo contrário, o que encontrou lá a surpreendeu.
A escada terminava em um depósito de dez por quinze metros. Tudo o que era necessário para o abastecimento do bar estava empilhado até o teto. Caminharam por um pequeno corredor entre caixas de uísque, cerveja, guardanapos até uma escada de incêndio de ferro no final. Van Dyne apertou um botão ao lado de uma porta e ouviu-se o ruído de uma câmera de tevê em circuito fechado que se movera na direção deles.
A porta foi aberta pelo lado de dentro e eles entraram em uma sala ainda menor, com luz bem fraca, onde dois jovens barbudos estavam operando dois dos sete terminais de computador alinhados nas mesas de trabalho ao longo da parede. O primeiro deles estava usando calça de safári, um cinto de tecido e uma camisa do tipo safári, de algodão. O outro estava com calça jeans e camiseta sem mangas com a figura dos três patetas estampada no peito. Pareciam gêmeos e ambos poderiam ser comparados a uma versão mais jovem de Steven Spielberg. Estavam tão profundamente envolvidos com a tarefa de computação que não se deram ao trabalho de olhar para Travis nem Nora. Os dois pareciam estar-se divertindo, conversando um com o outro, com as máquinas, em uma língua de alta tecnologia que não fazia o menor sentido para Nora.
Uma mulher de vinte anos aproximadamente também estava trabalhando na sala. Ela usava o cabelo louro curto e os olhos bonitos eram um pouco dourados. Enquanto Van Dyne conversava com os dois rapazes dos computadores, a mulher conduzia Nora e Travis ao final do corredor e fez suas fotos para as identidades falsas.
Quando a loura desapareceu na sala escura para revelar os filmes, Travis e Nora reencontraram Van Dyne junto aos computadores, onde os rapazes continuavam a trabalhar, demonstrando muita satisfação com o que estavam-fazendo. Nora os observou tendo acesso ao que parecia ser o centro de computação do Departamento de Trânsito da Califórnia e a Administração da Previdência Social, assim como de outras agências do governo municipal, estadual e federal.
- Quando eu disse ao sr. Van Dyne que precisava de uma carteira de identidade de primeira linha - explicou Travis -, eu estava querendo dizer que a carteira de motorista precisaria estar em condições de ser aprovada em uma inspeção policial, se algum patrulheiro a pedisse na estrada. As carteiras não têm a menor diferença das verdadeiras. Estes rapazes estão incluindo os nossos novos nomes no arquivo do Departamento de Trânsito, de fato registrando informações nos computadores da polícia.
Van Dyne comentou:
- Os endereços são falsos, é claro. Mas quando vocês se estabelecerem em algum lugar com os novos nomes, poderão requerer ao Departamento de Trânsito que troque os endereços de vocês, assim como manda a lei, então estarão perfeitamente legalizados. Estamos colocando um prazo de vencimento nos documentos para um ano. Depois, vocês poderão ir ao Departamento de Trânsito fazer um teste regular e conseguir outras carteiras, porque os nomes de vocês já estão nos arquivos.
- Quais são os nossos novos nomes? - desejou saber Nora.
- Veja você - disse Van Dyne, com a paciência e a segurança de um corretor da Bolsa explicando as possibilidades do mercado para um investidor novo -, temos que iniciar com as certidões de nascimento. Temos informações do nosso computador sobre a morte de crianças por todo o oeste dos Estados Unidos, que ocorreram até cinqüenta anos atrás. Já procuramos nas listas que contêm os nomes das crianças mortas na data do nascimento de vocês. Nosso objetivo é encontrar bebês que tivessem a mesma cor do cabelo e dos olhos de vocês... e o primeiro nome, também, porque é mais fácil não ter que trocar o nome e sobrenome juntos de uma só vez. Encontramos uma garota de nome Nora Jean Aimes, nascida no dia doze de outubro do mesmo ano em que você nasceu e morreu um mês depois, exatamente aqui em San Francisco. Temos uma impressora a raio laser com uma infinidade de tipos, de todos os tamanhos e estilos e já fizemos uma certidão de nascimento, do tipo que era usado naquela época em San Francisco, com o nome de Nora Jean Aimes. Faremos duas cópias xerox do documento e você receberá ambas. A seguir, incluímos vocês nos arquivos da Previdência Social, com um número adequado para Nora Jean Aimes, que nunca recebera qualquer número, e paralelamente providenciamos para que vocês possam provar que descontaram para a Previdência Social todos os impostos necessários. - Ele sorriu. - Você já contribuiu o suficiente para ter direito a uma pensão, quando se aposentar. Com relação ao imposto de renda, os registros do governo agora mostram que você trabalhou como garçonete em meia dúzia de cidades e que pagou os impostos rigorosamente em dia. Travis comentou:
- Com uma certidão de nascimento e o registro da Previdência Social, então são capazes de conseguir uma carteira de motorista com uma identidade real, conseqüentemente.
- Então, quer dizer que sou Nora Jean Aimes? Mas assim como a certidão de nascimento está registrada, da mesma forma está a certidão de óbito. Se alguém desejar verificar...
Van Dyne balançou a cabeça.
- Naquela época tanto a certidão de nascimento quanto a certidão de óbito eram apenas papéis e não eram incluídos em computadores. Isto porque o governo não desejou gastar dinheiro para transferir todos aqueles registros para a nossa época de computação. Portanto, se alguém suspeitar de você, não poderá procurar no computador a certidão de óbito. Vão ter que verificar nos cartórios da Justiça, pesquisar nos arquivos da medicina legal e finalmente encontrar a certidão de Nora Jean. Mas isto não vai acontecer, porque faz parte do nosso serviço acabar com esta prova e destruí-la, já que vocês assumiram esta nova identidade.
- Estamos verificando os arquivos da Agência de Proteção ao Crédito TRW - disse um dos rapazes parecido com Spielberg, demonstrando satisfação.
Nora viu as informações correrem na tela verde do terminal-vídeo, mas nada daquilo tinha significado para ela.
- Eles estão proporcionando boas informações de crédito para as novas identidades - Travis disse para Nora. - Quando nós nos fixarmos em algum lugar e solicitarmos mudança de endereço para a TRW, nossa caixa de correio vai ficar cheia com as propostas para cartões de crédito... Visa, MasterCard e provavelmente até mesmo American Express e Carte Blanche.
- Nora Jean Aimes - disse ela para si mesma, tentando compreender com que velocidade a vida deles havia mudado.
Exatamente porque não podiam localizar nenhuma criança que houvesse morrido no ano de nascimento de Travis, com o seu primeiro ano, eles tiveram que mudá-lo para Samuel Spencer Hyatt, que havia nascido em janeiro e morreu em março em Portland, Oregon. Esta morte igualmente seria eliminada dos registros públicos e a nova identidade de Travis poderia ser submetida a qualquer pesquisa por parte da polícia.
Apenas por brincadeira (disseram eles) os operadores das máquinas colocaram Travis com um passado militar, como se houvesse servido seis anos entre os fuzileiros e tendo recebido inclusive condecoração por bravura no Oriente Médio. Para a alegria deles, Travis pediu se poderiam criar um registro real de corretor de imóveis com o seu novo nome, e em vinte e cinco minutos providenciaram tudo isto, penetrando nos computadores dos outros.
- Rápido e rasteiro - disse um dos rapazes.
- Rápido e rasteiro - disse o outro. Nora franziu o cenho, não entendendo.
- Esta é uma tarefa fácil! - explicou um deles.
- É, realmente, muito fácil - disse o outro. Finalmente, Nora compreendeu.
A loura com olhos dourados voltou trazendo as carteiras de motoristas com as fotos de Travis e de Nora.
- Vocês são muito fotogênicos.
Duas horas e vinte minutos depois do encontro com Van Dyne, eles deixaram a casa noturna Hot Tips com dois envelopes contendo todos os documentos garantindo-lhes a nova identidade. Já na rua, Nora ficou um pouco tonta e teve que se apoiar em Travis para voltar até o carro.
O nevoeiro tomara conta da cidade, enquanto estavam no Hot Tips. As luzes de Tenderloin piscando no meio da noite não tinham tanta intensidade, mas se apresentavam com aspecto estranho. As ruas estreitas do bairro estavam envoltas em ar de mistério e de fascinação, por causa do nevoeiro, mas isto se alguém não visse o bairro à luz do dia.
Einstein aguardava pacientemente na Mercedes.
- Não tivemos condições de transformar você em poodle - disse Nora, colocando o cinto de segurança. - Mas tudo deu certo para nós. Einstein, cumprimente agora Sam Hyatt e Nora Aimes.
O cão colocou as patas sobre o banco da frente, olhou para ela, olhou para Travis, rosnou, querendo dizer que os dois não poderiam enganá-lo. Nora disse para Travis:
- O seu treinamento antiterror... foi lá que você aprendeu sobre lugares como Hot Tips, pessoas como Van Dyne? É onde terroristas conseguem novas identidades, quando conseguem entrar no país?
- Sim, alguns procuram tipos como Van Dyne, mas é difícil. Os soviéticos fornecem documentos para muitos terroristas. Van Dyne serve basicamente aos imigrantes ilegais. Evidentemente, não aos imigrantes pobres e criminosos desejando eliminar mandados de prisão.
Quando Travis deu a partida no carro, Nora disse:
- Mas se você foi capaz de localizar Van Dyne, as pessoas que andam atrás de nós também vão achá-lo.
- Talvez. Isto vai levar algum tempo, mas talvez consigam.
- Então vão saber tudo sobre as nossas novas identidades.
- Não - disse Travis, ligando o ar do carro e o limpador do pára-brisa para facilitar a visibilidade. - Van Dyne não mantém arquivos. Não deseja ser apanhado com as provas do que fez. Se a polícia chegar até lá, os agentes não vão encontrar nada nos computadores de Van Dyne, exceto a contabilidade e o arquivo de compras da Hot Tips.
Ao cruzarem a cidade na direção da ponte Golden Gate, Nora olhava as pessoas com admiração, não somente em Tenderloin, mas em outros bairros igualmente. Ela tentava imaginar quantas daquelas pessoas viviam com as identidades que haviam nascido e quantas haviam trocado de nome como ela e Travis.
- Em menos de três horas, mudamos completamente - comentou ela.
- Em que mundo nós vivemos, hem? Mais do que qualquer outra coisa, é isso o que a alta tecnologia significa. O mundo todo está se tornando mais rápido, mais maleável. A maior parte das transações financeiras é feita através de computador e o dinheiro corre rápido de Nova York até Los Angeles. Ou dando a volta no mundo, em segundos. O dinheiro cruza fronteiras em um piscar de olhos; não há mais necessidade de fazer contrabando pela alfândega. A maioria dos arquivos é constituída de sinais elétricos que somente os computadores conhecem. Assim, tudo muda. A identidade das pessoas muda. O passado muda.
Até mesmo a estrutura genética das espécies pode ser mudada desta maneira - enfatizou Nora.
Einstein rosnou, concordando.
- Assustador, não é? - perguntou Nora.
- Um pouco - respondeu Travis, quando já estavam se aproximando da entrada sul da ponte Golden Gate, cujas luzes laterais sinalizavam o caminho; a ponte estava totalmente escondida pelo nevoeiro. - Mas a velocidade com que isto se processa é basicamente uma coisa boa. Do ponto de vista social e financeiro, isto garante a liberdade. Acredito e espero que estejamos nos encaminhando para uma época em que os governos vão ter cada vez menos participação na vida das pessoas, porque será difícil controlar a vida delas, como era possível no passado. Os governos totalitários não vão ter condições de permanecer no poder.
- Como assim?
- Bem, como um governo ditatorial poderá controlar os cidadãos em uma sociedade que vive sob a influência da alta tecnologia? A única forma é impedir a entrada desta tecnologia, fechar as fronteiras, e viver inteiramente como na idade da pedra. Mas isto equivaleria a um suicídio nacional para qualquer país que tentasse a experiência. Eles não poderiam mais competir. Em poucas décadas estes países seriam os modernos aborígenes, primitivos e atrasados no que diz respeito aos padrões do mundo civilizado da alta tecnologia. Agora mesmo, por exemplo, os soviéticos tentam limitar o uso de computadores unicamente para fins industriais e isto não vai durar muito. Eles vão ser obrigados a estender a computação eletrônica para toda a área econômica e ensinar os cidadãos a manipular os computadores... então como o governo vai conseguir manter o controle absoluto, se os cidadãos conhecem os meios de manipular o sistema?
Não houve necessidade de pagar pedágio na entrada da ponte; no sentido norte não é cobrado. Travis dirigia a uma velocidade moderada, porque o limite de velocidade havia baixado muito, por razões de segurança, em face do nevoeiro.
Olhando para a estrutura da ponte, que brilhava por causa da umidade, Nora disse:
- Parece que você pensa que o mundo vai ser um paraíso em dez ou vinte anos.
- Não um paraíso - disse ele. - Menos complicado, mais rico, mais seguro, mais feliz. Mas não um paraíso. Além do mais, vão persistir todos os problemas da natureza humana e todas as doenças potenciais da mente humana. E o novo mundo vai nos trazer novos perigos, tanto quanto os benefícios.
- Assim como a coisa que matou o seu senhorio? - perguntou ela.
- É.
Einstein rosnou no banco traseiro.
12
Naquela tarde de quinta-feira, 26 de agosto, Vince Nasco foi até a casa de Johnny Arame Santini, em San Clemente, para tomar conhecimento do relatório de informações da semana anterior, justamente quando ele tomara conhecimento da morte de Ted Hockney, em Santa Bárbara. A condição do corpo, especialmente o desaparecimento dos olhos, ligava o caso ao monstro. Johnny havia garantido que a Agência de Segurança Nacional havia secretamente assumido o controle do caso, o que acabara de convencer Vince de que de fato estava relacionado com os fugitivos do laboratório.
Naquela noite, Vince comprara um jornal, e durante o jantar de enchilladas no Dos Equis, um restaurante mexicano, Vince leu sobre Hockney e sobre o homem que havia alugado a casa onde ocorrera o assassinato - Travis Cornell. Os jornais estavam informando que Travis, um ex-corretor de imóveis, fizera parte da Força Delta, mantinha uma pantera na casa e que o animal matara Hockney, mas Vince sabia que aquilo era mentira, apenas uma história para despistar. Os policiais disseram que desejavam conversar com Travis e com uma mulher não-identificada, que estava na companhia dele, embora não tivessem qualquer acusação formal.
A reportagem também fazia referência ao cachorro de Travis: "Cornell e a mulher talvez estivessem viajando com um caçador dourado".
Se eu puder achar Cornell, pensou Vince, vou achar o cachorro. Esta era a primeira pista que ele obtivera, o que confirmava o desejo de possuir o cachorro, como parte de seu grande destino.
Para comemorar, pediu ao garçom mais enchilladas e cerveja.
13
Travis, Nora e Einstein passaram a noite de quinta-feira em um motel de Marin, ao norte de San Francisco. Antes haviam passado em uma lanchonete para comprar galinha, biscoitos e salada de repolho e jantaram no quarto do motel, com as seis cervejas San Miguel adquiridas em outra loja.
Einstein apreciou a galinha e ficou muito interessado na cerveja.
Travis decidira derramar a metade da garrafa no novo prato de plástico amarelo de Einstein, que eles haviam comprado mais cedo naquele dia.
- Não mais do que meia garrafa, não importa o quanto você goste. Quero ver você bem sóbrio para algumas perguntas e respostas.
Depois do jantar, os três se acomodaram em uma imensa cama de casal e Travis abriu o jogo de palavras que comprara pela manhã. Colocou o tabuleiro virado para baixo no colchão, com a parte destinada ao jogo escondida e Nora ajudou a dispor as letras em vinte e seis montinhos.
Einstein observava atentamente sem se mostrar nem um pouco tonto com a metade da garrafa de cerveja que tomara.
- Está bem - disse Travis. - Preciso de respostas mais detalhadas do que você foi capaz de me dar. Parece-me que isto agora vai funcionar.
- Muito hábil - disse Nora. Virando-se para o cachorro, Travis disse:
- Depois que eu fizer a pergunta você indica as letras necessárias para formar as palavras, uma letra de cada vez, uma palavra depois da outra. Entendeu?
Einstein piscou os olhos para Travis, olhou para as letras, levantou os olhos para Travis, novamente, e mostrou os dentes. Travis disse:
- Muito bem. Você sabe o nome do laboratório de onde escapou? Einstein encostou o focinho na letra B.
Nora retirou a letra e a colocou na parte do tabuleiro que Travis havia reservado.
Em menos de um minuto, o cachorro formara:
BANODYNE.
- Banodyne - disse Travis pensativo. - Nunca ouvi este nome. Este é o nome completo?
Einstein hesitou por um momento e então começou a escolher outras letras até formar o nome completo:
LABORATÓRIOS BANODYNE.
Em um bloco de papel do motel, Travis anotou a resposta e voltou a colocar as letras na posição original.
- Onde fica este Banodyne?
IRVINE.
- Isto faz sentido - disse Travis. - Eu te achei no mato ao norte de Irvine. Está bem... eu encontrei você na terça-feira, no dia 18 de maio. Quando você escapou do laboratório?
Einstein olhou para as letras, choramingou, mas não escolheu letra alguma.
- Nas leituras que você fez - prosseguiu Travis -, você aprendeu sobre meses, semanas, dias e horas. Você tem um sentido de tempo, agora.
Olhando para Nora, o cachorro choramingou, novamente. Ela disse:
- Ele tem um sentido de tempo agora, mas não tinha quando escapou do laboratório, portanto é difícil lembrar quanto tempo ele esteve fugindo.
Einstein começou imediatamente a selecionar novas letras:
É ISTO MESMO.
- Você sabe os nomes dos cientistas do laboratório?
DAVIS WEATHERBY.
Travis anotou o nome.
- Lembra de outros?
Freqüentemente indeciso sobre as letras que deveria selecionar, Einstein finalmente formou:
LAWTON HANES, AL HUDSTON E ALGUNS MAIS.
Depois de anotar os nomes no bloco, Travis perguntou:
- Estas são algumas das pessoas que podem estar te procurando?
SIM. E JOHNSON.
- Johnson? - perguntou Nora. - É um dos cientistas?
- NÃO.
O caçador pensou um pouco, estudou as letras e continuou: SEGURANÇA.
- Ele era o Chefe da Segurança de Banodyne?
NÃO. MAIS.
- Provavelmente um agente federal - disse Travis para Nora, ao colocar as letras no lugar.
Nora disse para Einstein:
- Você sabe o primeiro nome de Johnson?
Einstein olhou para as letras e choramingou, e Travis estava a ponto de dizer que não importava o primeiro nome do agente, quando Einstein tentou formar:
LEMOOL.
- Não há nenhum nome parecido - disse Nora, retirando as letras. Einstein tentou novamente:
LAMYOULL.
E mais uma vez:
LIMUUL.
- Isto também não é um nome - disse Travis. E uma terceira vez:
LEMB YOU WILL.
Travis percebeu que Einstein estava tentando escrever o nome foneticamente. E escolheu, ele mesmo, seis letras e formou a palavra: LEMUEL.
- Lemuel Johnson - disse Nora.
Einstein se inclinou para a frente e esfregou o focinho no pescoço dela. O cachorro começou a se mexer todo de tanto prazer, afinal ele havia conseguido passar os nomes para eles.
No entanto, parou e acrescentou:
ESCURO LEMUEL.
- Escuro? - perguntou Travis. - Por que escuro? Você quer dizer que Johnson é mau?
NÃO. ESCURO.
Nora recolheu as letras e perguntou:
- Perigoso?
Einstein bufou como se estivesse rindo, e olhou para Nora e Travis como querendo dizer, às vezes, eles eram teimosos.
NÃO. ESCURO.
Eles ficaram sentados, por um momento pensando e finalmente Travis disse:
- Preto! Você quer dizer que Lemuel Johnson é negro. Einstein balançou a cabeça para cima e para baixo, balançou o rabo sobre o colchão. E selecionou novamente algumas letras dando a maior resposta até então:
AINDA HÁ ESPERANÇA PARA VOCÊ.
Nora riu.
Travis resmungou, mas estava feliz com os resultados obtidos. Eles vinham se comunicando com o cachorro por semanas, mas o jogo de palavras havia proporcionado os elementos necessários para maior eficiência. Mais do que nunca Einstein parecia ser filho deles. Mas havia um sentimento quase insuportável de terem ultrapassado todos os limites da barreira humana normal, algo transcendente. Einstein não era um cachorro comum, evidentemente, e a inteligência dele era mais humana do que propriamente canina, mas ele continuava sendo um cachorro - mais do que qualquer outra coisa, um cachorro - e a inteligência dele era de outro dom que o diferenciava de um ser humano, portanto havia um ar de mistério e de algo maravilhoso no diálogo entre espécies diferentes. Olhando para a frase:
AINDA HÁ ESPERANÇA PARA VOCÊ, Travis pensou que poderia haver outro significado na mensagem, que se relacionasse com toda a humanidade.
Eles continuaram questionando Einstein por mais meia hora e Travis registrara todas as respostas do cachorro. Em dado momento, abordaram o assunto daquela besta de olhos amarelos que havia matado Ted Hockney.
- O que é esta coisa maldita? - perguntou Nora.
O MONSTRO.
Então foi a vez de Travis:
- O monstro? O que você quer dizer?
É COMO ELES O CHAMAVAM.
- As pessoas do laboratório? - continuou Travis. - Por que eles o chamavam de monstro?
POR QUE NÃO FAZ PARTE DESTE MUNDO.
- Não entendo. - disse Nora.
DUAS EXPERIÊNCIAS BEM-SUCEDlDAS. EU E ELE. EU SOU UM CACHORRO. E ELE É UMA CRIATURA INQUALIFICÁVEL.
- É inteligente, também? SIM.
- Tão inteligente quanto você? TALVEZ.
- Nossa! - exclamou Travis, tremendo.
Einstein deixou escapar um som de infelicidade e colocou a cabeça no joelho de Nora, procurando a segurança que somente um carinho poderia proporcionar.
Travis perguntou:
- Por que criaram uma coisa como aquela? Einstein retornou a selecionar as letras:
PARA MATAR POR ELES.
Travis sentiu um arrepio penetrante correr a espinha.
- A quem eles queriam matar?
O INIMIGO.
- Que inimigo? - insistiu Nora.
EM CASO DE GUERRA.
Travis começou a sentir náuseas, ao começar a compreender, encostando-se na cabeceira da cama. Ele se lembrou que dissera a Nora que um mundo sem miséria e com liberdade universal estaria ainda muito longe do paraíso, por causa dos problemas da humanidade e da própria cabeça do homem, um ser potencialmente doente.
Virando-se para Einstein disse:
- Você está nos dizendo que o monstro é o protótipo de um soldado geneticamente fabricado. Um tipo de... cão policial muito inteligente e destinado a matar em campo de batalha.
ELE FOI FEITO PARA MATAR. ELE QUER MATAR.
Nora ficou apavorada depois de ler o que estava escrito.
- Mas isto é coisa de doido. Como uma coisa destas poderá ser controlada? Como alguém teria certeza de que não se viraria contra os seus donos?
Travis se afastou da cabeceira, inclinando-se para Einstein:
- Por que o monstro está atrás de você?
ELE ME ODEIA.
- Por que ele te odeia?
EU NÃO SEI.
À medida que Nora dispunha as letras no tabuleiro, Travis perguntou:
- Ele vai continuar à procura de você?
SIM. PARA SEMPRE.
- Mas como uma coisa daquelas pode se movimentar sem ser vista? À NOITE.
- Apesar disso...
COMO OS RATOS SE MOVIMENTAM SEM SER VISTOS.
Parecendo confusa, Nora perguntou:
- Mas como ele consegue te localizar?
ELE ME SENTE.
- Ele sente você? O que você quer dizer com isto? - perguntou ela. O cão ficara indeciso ao responder àquela pergunta, fazendo várias tentativas para começar a respondê-la e finalmente escreveu: NÃO POSSO EXPLICAR.
- Você pode senti-lo, também? - perguntou Travis.
ÀS VEZES.
- Você consegue senti-lo, agora?
SIM. MUITO DISTANTE.
- Muito... muito distante - concordou Travis. - algumas centenas de quilômetros. Ele pode realmente te localizar a uma distância tão grande?
ATÉ MESMO MAIS LONGE
- Ele está no teu rastro, agora?
ESTÁ VINDO.
Naquele momento Travis começou a ter calafrios.
- Quando ele vai te encontrar?
NÃO SEI.
O cachorro parecia desolado e começou a tremer, também.
- Logo? Ele vai encontrar o teu rastro, logo?
TALVEZ NÃO TÃO RÁPIDO.
Travis percebeu que Nora estava pálida. Colocando a mão no joelho dela, ele disse:
- Nós não vamos fugir dele o resto de nossas vidas. Não vamos, mesmo. Vamos achar um lugar para nos fixarmos e aguardar um lugar onde sejamos capazes de preparar uma defesa, e onde sejamos capazes de lidar com o monstro, quando ele chegar.
Tremendo, Einstein indicou mais letras com o focinho:
EU DEVO IR.
- O que você quer dizer? - perguntou Travis reposicionando as letras.
COLOCO VOCÊS EM PERIGO.
Nora jogou os braços em torno do cachorro, abraçando-o com força.
- Nem pense uma coisa destas. Você faz parte de nós. Você faz parte da família. Nós formamos uma família. Estamos nisto juntos e permaneceremos unidos. Porque é assim que fazem as famílias. - Ela parou de abraçar o cachorro para lhe segurar firme a cabeça com as duas mãos, cara à cara, e olhando bem para os olhos dele: - Se eu acordar uma dessas manhãs e descobrir que você nos deixou, isto vai partir o meu coração. - Os olhos de Nora ficaram cheios de lágrimas, e a voz trêmula. - Você está me entendendo, peludo? Eu ficaria desesperada se você fugisse.
O cachorro escapou das mãos de Nora e começou a selecionar mais letras, aguardando depois para ver qual seria a reação deles, olhando-os com ar solene, desejando ter certeza de que a mensagem havia sido compreendida:
EU MORRERIA DE SOLIDÃO.
PARTE DOIS
O Protetor
O amor é capaz de unir os seres humanos, completando-os,
realizando-os, aproximando a todos, através do que há de
mais profundo em cada um de nós.
- Pierre Teilhard de Chardin.
Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida
por seus amigos.
- O Evangelho Segundo São João 15.13
OITO
1
Na quinta-feira em que Nora foi de carro até o consultório do dr. Weingold, Travis e Einstein saíram para dar um passeio por uma colina verdejante e caminhar através do mato, atrás da casa que haviam comprado em uma área perto do mar na Califórnia, chamada Big Sur.
Não havia árvores no morro e as pedras eram banhadas pelo sol de outono, às vezes coberto pelas nuvens. A brisa que soprava do Pacífico produzia um som agudo e prolongado. O ar era agradável, não estava quente nem frio. Travis estava muito à vontade, de jeans, e uma camisa de manga comprida.
Travis levava consigo uma pistola Mossberg de cano cortado. Ele sempre andava armado ao sair para caminhar. Se alguém lhe perguntasse alguma coisa sobre a arma, ele diria que era para matar cascavéis.
Na parte em que havia árvores, a luz da manhã parecia um final de tarde, e o frio era suficiente para que Travis ficasse satisfeito que sua camisa fosse de flanela. Alguns pinheiros grandes e uma variedade de árvores, se encarregavam de filtrar os raios de sol, deixavam a maior parte da floresta permanentemente na penumbra. A mata às vezes se tornava espessa e impenetrável e as árvores muitas vezes eram cobertas por samambaias, que haviam crescido, por causa da umidade e do nevoeiro constante, que vinha do mar.
Einstein seguidamente achava o rastro dos pumas que viviam na região e insistia em chamar a atenção de Travis para as pegadas no solo molhado da floresta. Felizmente, o cachorro compreendia o perigo que representava caçar um leão da montanha e refreava a tendência natural de sair atrás deles.
Einstein se contentava unicamente em observar a fauna. Os cervos poderiam ser vistos com freqüência, subindo ou descendo as trilhas nas montanhas. Engraçado era observar os guaxinins, que apareciam em grande quantidade e, embora alguns fossem dóceis e amigáveis, Einstein sabia que eles poderiam se tornar perigosos, caso ficassem assustados; o cão escolhera manter uma respeitável distância.
Em outras caminhadas, Einstein ficara assombrado ao descobrir os esquilos, dos quais poderia se aproximar com segurança, mas fugiam aterrorizados com a sua presença. Eles ficavam por alguns momentos paralisados de medo, os olhos selvagens fixos e os corações batendo forte.
Certa noite o cachorro perguntara a Travis:
POR QUE OS ESQUILOS SE ASSUSTAM?
- Instinto - explicara Travis. - Você é um cachorro, e eles sabem, por instinto que os cachorros vão atacá-los e matá-los.
NÃO EU.
- Não. Não você - concordou Travis, passando a mão no cachorro. - Você não os machucaria. Mas os esquilos não sabem que você é diferente, não é? Para eles, você parece com cachorro, cheira a cachorro, portanto você tem que ser temido como cachorro.
GOSTO DE ESQUILOS.
- Infelizmente, eles não são espertos o suficiente para compreender.
Einstein, portanto mantinha distância dos esquilos e fazia todo o possível para não deixá-los aterrorizados, seguidamente disfarçando, virando a cabeça para o outro lado, como se não houvesse percebido a presença deles.
Naquele dia em particular, eles não estavam muito interessados em esquilos, cervos, pássaros ou guaxinins e nem tampouco nas árvores da floresta. O Pacífico, visto à distância, não lhes despertava a atenção. Aquele dia era diferente dos demais, eles estavam caminhando unicamente para matar o tempo e mantendo a imagem de Nora fora de seus pensamentos.
Travis olhava com freqüência para o relógio, e havia escolhido um caminho mais longo, que os levaria de volta à casa à uma hora, quando ele esperava que Nora já houvesse retornado.
Era o dia 21 de outubro, dois meses depois de terem obtido novas identidades em San Francisco. Depois de muito pensar, decidiram seguir rumo sul, reduzindo consideravelmente a distância que o monstro teria que andar, para conseguir apanhar Einstein. Não seriam capazes de assumir seus novos nomes até que a besta os achasse, até que eles o matassem; entretanto, Nora e Travis queriam que isso acontecesse o mais rápido possível, em vez de protelar a confrontação.
Por outro lado, não queriam se arriscar muito, aproximando-se em demasia de Santa Bárbara, porque o monstro poderia cobrir a distância mais rápido do que a distância percorrida no verão anterior, entre Orange e Santa Bárbara. Não poderiam estar certos de que aquela coisa continuaria mantendo a média de quatro a seis quilômetros diariamente. Se a coisa se movimentasse mais rápido, talvez atacasse antes que estivessem prontos para se defender. A área de Bug Sur era ideal para eles morarem, não havia muitas pessoas na região e estavam a trezentos quilômetros de Santa Bárbara. Se o monstro estivesse na trilha de Einstein e mantivesse o ritmo anterior, não chegaria até eles antes de cinco meses. Se dobrasse o passo, cruzaria rapidamente as regiões descampadas, as montanhas, evitando as áreas mais povoadas e os acharia em torno da segunda semana de novembro.
Já estava quase se aproximando aquela data, mas Travis estava satisfeito de ter tomado todas as medidas necessárias e já estava quase dando as boas-vindas ao monstro. Entretanto, segundo Einstein, o adversário não estava tão perigosamente perto. É claro que eles tinham muito tempo pela frente para testar a paciência, até que chegasse o dia.
Faltavam dez minutos para uma hora da tarde, quando eles chegaram ao final da caminhada, através dos montes e dos canyons, voltando ao quintal da nova casa. Esta nova casa de Travis tinha dois andares, paredes de madeira, da cor natural, o teto de cedro, e duas grandes chaminés de pedra, nos lados norte e sul. Havia duas varandas nos outros dois lados da casa, o que permitia que eles tivessem uma visão ampla das encostas arborizadas.
Por não haver possibilidade de nevar, o telhado era levemente inclinado, permitindo que se caminhasse sobre ele. Justamente aí Travis tomara a primeira iniciativa com objetos defensivos. Ao sair da floresta, ele poderia ver ao longe o que havia feito. Ele preparara o telhado de forma que fosse possível caminhar nele, mais facilmente, com mais segurança e com maior agilidade. Se o monstro chegasse durante a noite, não seria capaz de entrar pelas janelas do primeiro andar, porque eram todas reforçadas internamente, capazes de resistir a qualquer invasor, exceto, talvez um louco de posse de um machado. Se o monstro subisse no telhado das varandas, encontraria as janelas do segundo andar, igualmente, reforçadas. Enquanto isso, alertado por um sistema de alarme com raios infra-vermelhos, que havia sido instalado em torno da casa há três semanas, Travis iria para o telhado através de uma porta no sotão. Chegando lá, firmando os pés nos calços de madeira, anteriormente fixados, ele seria capaz de atingir a parte mais alta, olhar para baixo na direção do telhado da varanda ou para qualquer outro ponto do quintal, abrindo fogo sobre o monstro de um ponto que não poderia ser atingido.
Vinte metros para trás, na direção leste, havia um pequeno estábulo. A propriedade deles não dispunha de espaço para cultivar, e o dono anterior aparentemente construíra o estábulo para guardar no máximo dois cavalos e algumas galinhas. Travis e Nora decidiram usá-lo como garagem, porque a estrada de terra, de duzentos metros que saía da via principal, terminava exatamente ali.
Travis suspeitava que o monstro, quando chegasse, observaria a casa de algum lugar no mato, e depois do estábulo. A criatura poderia, inclusive, ficar esperando ali, na esperança de pegá-los de surpresa, quando saíssem para apanhar a pickup Dodge ou Toyota. Entretanto, Travis havia preparado algumas surpresas para o monstro na garagem.
Os vizinhos mais próximos - os quais eles haviam encontrado apenas uma vez - moravam a pouco mais de quatrocentos metros no sentido norte, fora da vista deles, por causa da floresta. A auto-estrada que estava bem próxima, não tinha muito movimento durante a noite, quando provavelmente o monstro atacaria. Se houvesse necessidade de muito tiroteio, os disparos ficariam ecoando entre a montanha e o mato de forma que as poucas pessoas na área - os vizinhos e os motoristas ocasionais - teriam dificuldade de localizar o ponto exato dos tiros. Ele teria que ser capaz de matar aquela criatura, e enterrá-la antes que aparecesse alguém para verificar.
Travis, no entanto, mais preocupado com Nora do que com o monstro, subiu os degraus do avarandado do quintal, abriu os dois trincos da porta e entrou na casa, com Einstein grudado a ele. A cozinha era grande o suficiente para servir de sala de jantar: as paredes de carvalho, teto de estuque, e os eletrodomésticos da melhor qualidade. A mesa grande, com quatro confortáveis cadeiras e a lareira de pedra, tornavam a cozinha o centro da casa.
Havia, também, cinco outras dependências - uma imensa sala de estar, com um pequeno escritório junto à entrada principal; três quartos de dormir no segundo andar - mais dois banheiros, um em cada andar. Um dos quartos era o do casal, o outro servia como uma espécie de sala de pintura para Nora e o terceiro estava vazio.
Travis acendeu as luzes da cozinha. Embora a casa parecesse isolada, eles estavam a duzentos metros da auto-estrada, e a rede de energia elétrica acompanhava a pequena estrada de terra até a casa deles.
- Vou tomar uma cerveja - disse Travis. - Você quer alguma coisa? Einstein se dirigiu até o seu prato de água que estava vazio, ao lado do prato de comida, e o levou até a pia.
Não esperavam que fosse possível adquirir tão cedo uma casa como aquela tão logo deixaram Santa Bárbara - especialmente depois da primeira ligação para Garrison Dilworth, quando o advogado lhes informara que a conta de Travis havia sido, de fato, bloqueada. Tiveram sorte em conseguir sacar os vinte mil dólares. Garrison havia convertido o dinheiro de Nora e de Travis em cheques ao portador, conforme o combinado, e remetido para o sr. Samuel Spencer Hyatt (a nova identidade de Travis), aos cuidados do motel de Marin County, onde ficaram hospedados por uma semana. Mas, alegando ter vendido a casa de Nora por um preço respeitável de mais de cem mil dólares, o advogado enviara mais cheques, dois dias depois, para o mesmo Motel.
Conversando com eles de um telefone público, Nora comentou:
- Mas mesmo que você a vendesse, não teria recebido o dinheiro tão rápido.
- Não - admitiu Garrison. - O negócio vai ser fechado dentro de um mês. Vocês precisam de dinheiro. Portanto, estou fazendo um adiantamento.
Eles haviam aberto duas contas em um banco de Carmel, cinqüenta quilômetros ao norte de onde estavam morando, atualmente. Ao comprarem uma nova pickup, deixaram a Mercedes de Garrison ao norte do aeroporto de San Francisco, para que o advogado a mandasse apanhar. Ao voltarem no sentido sul, passando por Carmel e ao longo da costa, procuraram uma casa na área de Big Sur. Ao encontrarem aquela casa, foram capazes de fazer o negócio à vista. Era mais sábio comprar do que alugar e igualmente mais inteligente efetuar o pagamento em dinheiro, do que obter financiamento, quando algumas perguntas teriam que ser respondidas.
Travis estava certo de que sua nova carteira de identidade serviria, mas não via necessidade de testar a eficiência dos documentos preparados por Van Dyne. Além do mais, depois da compra da casa eles seriam mais respeitáveis; a compra acrescentava mais veracidade aos novos nomes.
Enquanto Travis retirava uma garrafa de cerveja do refrigerador, abria a tampa, tomava um demorado gole e colocava um pouco no prato de Einstein, o cachorro foi até a despensa. A porta estava entreaberta, como sempre, e ele não teve dificuldade em abri-la totalmente. Colocara a pata em um pedal especialmente adaptado por Travis, e acendeu a luz do interior.
Além das prateleiras de produtos enlatados e garrafas, a enorme despensa continha um aparelho complexo que Travis e Nora haviam desenvolvido para facilitar a comunicação com o cachorro. O aparelho fora colocado na parede dos fundos: vinte e oito tubos de plástico foram alinhados, lado a lado, em uma moldura de madeira; cada tubo tinha quarenta centímetros de altura, aberto em cima, com um pedal na parte de baixo. Nos primeiros vinte e seis tubos foram colocados letras de seis jogos de palavras, para que Einstein tivesse letras suficientes para formar longas mensagens. Em frente a cada tubo, fora desenhada a letra indicando o conteúdo: A, B, C, D etc. Os dois últimos tubos foram reservados para vírgulas e pontos de interrogação. (Eles combinaram que poderiam decidir até onde os períodos poderiam ir). Einstein era capaz de liberar as letras dos tubos, colocando uma das patas nos pedais; daí poderia formar as palavras no chão, com ajuda do focinho. Decidiram colocar aquele aparelho escondido na despensa, para evitar ter que dar explicações aos vizinhos, que aparecessem inesperadamente.
À medida que Einstein acionava os pedais e ordenava as letras no chão, Travis levava a garrafa de cerveja e a tigela de água do cachorro para fora, na varanda, onde ficariam sentados à espera de Nora. Quando Travis voltou, Einstein acabara de formar uma mensagem.
POSSO COMER ALGUNS HAMBÚRGUERES?
Travis respondeu:
- Vou almoçar com Nora, quando ela chegar em casa. Você não quer esperar e comer conosco?
O caçador pensou um pouco. Então, observou as letras que já havia anteriormente colocado no chão e empurrou algumas para o lado, formando uma nova mensagem:
OK. MAS, ESTOU MORRENDO DE FOME.
- Você vai sobreviver - comentou Travis, juntando todas as letras e as colocando de volta nos tubos.
Travis saiu atrás da sua arma que costumava guardar perto da porta dos fundos e a levou para a varanda, colocando-a perto de sua cadeira. Ouvira Einstein desligar a luz da despensa a seguir atrás dele.
Eles ficaram sentados, aguardando com ansiedade. Travis na sua cadeira, e Einstein no chão.
Os pássaros cantavam com a brisa fresca de outubro.
Travis saboreava aos poucos a cerveja, enquanto Einstein procurava de vez em quando a tigela de água, mas a preocupação de ambos era olhar para a pequena estrada de terra, através das árvores, na direção da auto-estrada que eles não podiam ver.
Nora mantinha uma pistola calibre 38 no porta-luvas do Toyota. Travis a ensinara a dirigir e a se tornar auto-suficiente com armas, desde que saíram de Marin. Nora já sabia lidar com a pistola automática Uzi e com a espingarda. Naquele dia ela só mantinha consigo o 38, mas a viagem até Carmel não oferecia perigo. Além disso, mesmo que o monstro entrasse na área sem o conhecimento de Einstein, ela não seria atacada; ele queria o cachorro. Portanto, ela estava em perfeita segurança.
Mas onde ela estaria?
Travis gostaria de ter ido com ela. Mas, depois de trinta anos de isolamento e medo, viajar sozinha até Carmel era uma das formas que Nora encontrara de ganhar e testar sua resistência, independência e autoconfiança. Ela não permitiria ser acompanhada por ele.
Em torno de uma e trinta, quando Nora já estava atrasada meia-hora, Travis começou a ter maus pressentimentos.
Einstein começou a caminhar em círculos, preocupado.
Cinco minutos mais tarde, o cão foi o primeiro a ouvir o carro fazendo a volta para entrar na estrada de acesso à casa. Ele desceu correndo as escadas da varanda e permaneceu esperando ao lado da estrada.
Travis não desejava que Nora percebesse que estivera excessivamente preocupado, o que poderia indicar falta de confiança na capacidade de Nora cuidar de si mesma, uma habilidade que ela possuía e da qual se orgulhava. Ele permaneceu sentado, com a garrafa de cerveja na mão.
Quando o Toyota azul finalmente apareceu, ele respirou aliviado. Ao chegar em casa, ela apertou a buzina. Travis a recebeu com naturalidade, sem manifestar a ansiedade que sentira minutos antes.
Einstein foi até a garagem para recepcionar Nora e um minuto mais tarde os dois reapareceram. Ela estava de calça jeans e uma camisa amarela quadriculada, mas Travis a enxergava com outros olhos, achando que ela estivesse suficientemente bem vestida para dançar valsas, entre princesas.
Nora caminhou até Travis e o beijou. Ela estava com os lábios quentes.
- Você sentiu muito minha falta? - perguntou ela.
- Quando você não está aqui, não há sol, os pássaros não cantam, não há alegria. - Ele tentou dizer aquilo com ironia, mas o tom de voz acabou sendo muito solene e sério.
Einstein se roçava nas pernas de Nora, querendo atenção, então levantou as patas dianteiras e rosnou suavemente como que perguntando: "Você está bem?"
- Ele está certo - disse Travis -, você não está sendo justa. Não, nos deixando aqui em expectativa.
- Eu estou - disse ela.
- Você está?
Ela sorriu.
- Estou grávida.
- Oh, meu Deus! - exclamou ele.
- Uma criança. Grávida. Mãe daqui a alguns meses.
Ele se levantou e abraçou Nora, puxando-a para bem próximo de si; beijando-a, disse:
- O dr. Weingold não poderia ter errado?
- Não, ele é um bom médico. Travis perguntou:
- Ele deve ter dito para quando, não é?
Nora respondeu:
- Podemos aguardar o bebê para a terceira semana de junho. Travis perguntou sem refletir:
- Junho do ano que vem? Nora riu, dizendo:
- Não pretendo carregar este bebê um ano a mais que o normal. Einstein, finalmente, resolveu ter uma chance para expressar sua alegria esfregando o focinho em Nora.
- Trouxe uma espumante garrafa de champanha gelada para comemorar - disse Nora, balançando uma sacola de papel nas mãos.
Quando Travis tirou a garrafa de dentro da sacola na cozinha, viu que era uma garrafa de sidra, que não tem álcool. Então, disse:
-- Você não acha que esta comemoração merece o melhor champanha?
Retirando as taças do armário, Nora disse:
- Talvez esteja sendo ingênua, ganhando a taça mundial de preocupação... mas não posso correr riscos. Nunca pensei que fosse capaz de ter um bebê, nunca sonhei com isto e agora algo me diz que devo tomar todas as precauções, caso contrário poderei perder a criança, se não fizer tudo certo. Assim, não vou beber qualquer coisa de álcool até ter a criança. Não posso comer muita carne e vou dar preferência aos legumes. Nunca fumei, portanto não há com o que me preocupar. Devo engordar exatamente o que o dr. Weingold recomendou. E vou fazer ginástica para ter o bebê mais perfeito que o mundo jamais conheceu.
- Você está certa - disse Travis, enchendo as taças de sidra, e colocando um pouco no prato de Einstein.
- Nada vai sair errado - disse Nora.
- Nada - disse ele.
Eles fizeram um brinde ao bebê e a Einstein, que seria um maravilhoso padrinho, tio, avô e anjo de guarda. Ninguém se lembrara do monstro.
* * *
Mais tarde naquela noite, na cama, protegidos pela escuridão do quarto, depois de fazerem amor, os dois continuavam abraçados, ouvindo os corações de ambos baterem a um só tempo. Travis quebrou o silêncio:
- Talvez não devêssemos receber o bebê exatamente agora, diante do que nos aguarda.
- Silêncio - disse Nora.
- Mas...
- Não planejamos esta criança - afirmou Nora. - Na realidade, tomamos algumas medidas para evitá-la. Mas de qualquer forma ela veio. Há algo especial no fato de ela ter vindo, a despeito de nossas precauções. Você não pensa assim? Apesar do que eu disse antes, talvez não desejando a criança... bem, é apenas a velha Nora falando. A nova mulher que há dentro de mim diz que devo ter o bebê e que será uma benção para nós - assim como foi Einstein.
- Mas considerando o que estamos aguardando...
- Isto não importa - arrematou ela. - Nós vamos enfrentar. Vamos conseguir sair disto muito bem. Estamos preparados. Então, teremos o bebê e realmente começaremos nossa vida juntos. Eu te amo, Travis.
- Eu te amo - disse Travis. - Por Deus, que eu te amo. Travis percebera a grande transformação de Nora, que já não era mais aquela frágil mulher que conhecera em Santa Bárbara, na última primavera. Nora estava uma mulher forte, determinada, tentando ajudá-lo a vencer os seus temores.
Ela, de fato, obtivera sucesso naquela tentativa. Travis estava se sentindo melhor. Ao pensar no bebê, ele sorria no escuro, com o rosto encostado no pescoço de Nora. Embora soubesse que agora estavam em jogo a vida de três pessoas - Nora, o bebê e Einstein - ele estava com o espírito mais pronto, mais forte do que em qualquer época que pudesse se lembrar. Nora havia acalmado os temores dele.
2
Vince Nasco se acomodou em uma cadeira italiana, cuidadosamente entalhada, envernizada com todo o cuidado, e que havia adquirido uma extraordinária aparência, depois de duzentos polimentos.
À direita dele havia um sofá e mais duas cadeiras e uma mesa baixa muito elegante, colocada em frente a uma estante com livros de capa de couro que jamais foram lidos. Ele sabia que ninguém havia lido os livros, porque Mario Tetragna, a quem pertencia aquele apartamento, certa vez apontara para a estante com orgulho, afirmando "estes livros são caros e se apresentam tão bons como no dia em que foram feitos, porque nunca foram lidos. Nunca. Por ninguém."
Na frente dele estava uma imensa escrivaninha, na qual Mario Tetragna examinava os relatórios dos gerentes, escrevia memorandos sobre as novas operações e ordenava que as pessoas fossem mortas. O mafioso estava no escritório, naquele momento, esparramado na cadeira de couro, de olhos fechados. Ele possuía o aspecto de alguém que morrera por causa do entupimento de artérias no coração, mas estava apenas pensando no pedido de Vince.
Mário Chave de Fenda Tetragna, um respeitável patriarca de sua família, temido chefe da família Tetragna, controlava o tráfico de drogas, jogo, prostituição, agiotagem, pornografia e outras atividades do crime organizado em San Francisco. Tetragna tinha um metro e setenta e três, pesava cento e trinta quilos e a cara gorda e oleosa. Era difícil acreditar que este espécime rotundo fosse capaz de planejar alguma operação criminosa. Ele tinha a aparência de um homem que fora gordo por toda a vida. Os dedos roliços lembravam a Vince as mãos de um bebê. Mas aquelas eram as mãos que manipulavam todo o império da família.
Quando Vince olhou bem para os olhos de Mário Tetragna, concluiu, na hora, que a aparência do mafioso não tinha a menor importância. Os olhos eram de réptil - pequenos, frios, duros e observadores. Se alguém não tomasse o devido cuidado e o desagradasse, ele seria capaz de hipnotizar com aqueles olhos, fazendo com que a pessoa agisse como um camundongo sob o controle de uma cascavel; ele iria estrangular e depois devorar a vítima.
Vince admirava Tetragna. Sabia que se tratava de um homem importante e gostaria de lhe dizer que também era um homem com destino. Mas aprendera a jamais falar da condição de imortalidade porque, certa vez, no passado, fizera um papel ridículo diante de um homem que ele pensou ser capaz de entender.
De repente, don Tetragna abriu aqueles olhos de réptil e disse:
- Deixe-me ver se entendo. Você está procurando um homem. Isto não faz parte dos negócios da família. É um negócio particular.
- É isso mesmo, senhor - concordou Vince.
- Você acredita que este homem possa ter comprado documentos falsificados e estar vivendo agora com nome falso. Ele saberia como obter tais documentos, embora não seja membro da família, não seja um mafioso?
- Sim - confirmou Vince. Ele tem um passado... que permitiria fazê-lo.
- E você acha que ele tenha conseguido estes documentos em Los Angeles ou aqui - disse don Tetragna, apontando na direção da janela e da cidade de San Francisco, com sua mão macia e vermelha.
Vince continuou o relato:
- No dia 25 de agosto ele fugiu, saindo de Santa Bárbara de carro, porque por várias razões ele não poderia tomar um avião. Acredito que ele tentou obter nova identidade tão logo fosse possível. Primeiramente, acreditava que tivesse ido na direção sul, procurar documentos falsificados em Los Angeles, por causa da proximidade. Mas passei a maior parte do tempo dos últimos dois meses falando com os falsificadores de Los Angeles, Orange e até mesmo San Diego. Todos que tinham capacidade de fazer um trabalho de qualidade me disseram não tê-lo visto. Portanto, se ele não foi para o sul, ele veio para o norte, onde também poderia conseguir o tipo de documento de que estava precisando...
- Aqui em nossa linda cidade - disse don Tetragna apontando novamente na direção da janela, sorrindo.
Vince pensara que ele sorria com ternura para sua cidade. Mas não era um sorriso terno. Era um sorriso mesquinho. Don Tetragna concluiu:
- E você gostaria que eu te fornecesse os nomes das pessoas que têm a minha autorização para negociar documentos, como os que este homem precisava.
Vince respondeu:
- Se puder sentir em seu coração que mereço este favor, ficaria imensamente agradecido.
- Elas não mantêm arquivo.
- Sim, o senhor tem razão, mas eles podem se lembrar de alguma coisa.
- Eles estão no negócio de não se lembrar de coisa alguma.
- Mas, don Tetragna, a mente humana nunca esquece. Não importa o esforço que seja feito, ninguém se esquece das coisas totalmente.
- Isto é verdade. E você jura que o homem que procura não faz parte de qualquer família que seja?
- Eu juro.
Don Tetragna fechara os olhos novamente, mas daquela vez não por muito tempo. Ao abrir os olhos, deu um largo sorriso, como sempre, mas era um sorriso amarelo, sem graça alguma. Ele era o homem gordo menos alegre que Vince havia encontrado em toda a sua vida.
- Quando o teu pai se casou com uma sueca, que não fazia parte do meio, a família dele ficou desesperada e esperava o pior. Mas a tua mãe era uma boa esposa, não fazia perguntas e era obediente. E eles fizeram você... o mais elegante dos filhos. Mas você é mais do que elegante. Você é um bom soldado, Vince. Você tem se saído muito bem, efetuando trabalhos de limpeza para as famílias de Nova York e Nova Jersey: para o pessoal de Chicago, e também para nós. Inclusive, há pouco tempo, você me fez o favor de esmagar aquela barata do Pantangela.
- Pelo que recebi o mais generoso pagamento, don Tetragna. O Chave de Fenda fez um gesto com a mão, discordando:
- Todos somos pagos pelos nossos trabalhos. Mas não estamos falando de dinheiro. A lealdade e os bons serviços que você tem prestado nestes últimos anos valem mais do que dinheiro. Portanto, você merece este favor.
- Obrigado, don Tetragna.
- Você vai receber os nomes daqueles que lidam com tais documentos nesta cidade e vou providenciar para que todos sejam avisados com antecedência de sua visita. Eles vão cooperar.
- Se diz que vão cooperar, eu acredito - fez Vince, levantando-se e curvando a cabeça em sinal de agradecimento - sei que é verdade.
O mafioso fizera um sinal para que ele permanecesse sentado:
- Antes que você termine este caso particular, eu gostaria que você nos fizesse outro serviço. Há um homem em Oakland, que está me causando muito aborrecimento. Ele pensa que não posso atingi-lo, porque tem bons contatos políticos e recebe boa proteção. O nome dele é Ramon Velasquez. Vai ser um trabalho difícil, Vincent.
Vince disfarçou cuidadosamente sua frustração e descontentamento. Ele não tinha vontade alguma de fazer aquele tipo de trabalho sujo, no momento. Queria se concentrar na busca de Travis Cornell e do cachorro. Mas sabia que um serviço para Tetragna era mais uma ordem do que uma oferta. Para conseguir os nomes dos falsificadores, teria primeiro que acabar com Velasquez.
Vince comentou:
- Ficaria honrado de esmagar qualquer inseto que o perturbe. E não precisarei ser pago desta vez.
- Oh, mas eu insisto em pagar a você, Vincent. Vince sorriu e disse:
- Por favor, don Tetragna, deixe-me fazer este favor. Isto vai me dar muito prazer.
Tetragna parecera considerar a proposta, embora fosse exatamente aquilo o que desejava - matar o homem de graça, em troca da ajuda a Vince. Ele colocara as duas mãos em sua imensa barriga, batendo levemente:
- Sou um homem de sorte. Para qualquer lado que eu me vire as pessoas querem me fazer favores, gentilezas.
- Não é sorte, don Tetragna - disse Vince cansado da conversa que estavam tendo. - Aqui se colhe, aqui se planta e se você colhe gentileza é por causa das grandes sementes de gentileza que você tem largamente plantado.
Radiante, Tetragna aceitou a oferta de eliminar Velasquez, gratuitamente. As narinas dele se abriram como se estivesse cheirando algo delicioso para comer e disse:
- Mas, agora me diga... só para satisfazer a minha curiosidade, o que você vai fazer com aquele outro homem, quando você o encontrar, aquele com quem você tem uma vendeta particular?
Explodir a cabeça dele e roubar o cachorro, pensou Vince.
Mas ele sabia que tipo de comentário Chave de Fenda queria ouvir, o mesmo comentário que todos os tipos como ele sempre desejam ouvir do matador de aluguel favorito:
- Don Tetragna, pretendo cortar o saco dele, arrancar as orelhas, cortar-lhe a língua... e só então enfiar um picador de gelo no coração dele para acabar com o relógio.
Os olhos daquele homem gordo ficaram brilhando de satisfação. As narinas se abriam de prazer.
3
Até o Dia de Ação de Graças, o monstro não achara a casa de madeira em Bi Sur.
Todas as noites, Travis e Nora colocavam a proteção nas janelas, pelo lado de dentro. As portas eram cuidadosamente trancadas. Ao se retirarem para o segundo andar, dormiam com as espingardas ao lado da cama e os revólveres na mesa-de-cabeceira.
Às vezes, pouco depois da meia-noite, eram acordados por estranhos ruídos no quintal e no telhado da varanda. Einstein saía de janela em janela, farejando com toda a força, mas sempre indicava que não havia nada a temer. Mais tarde, Travis vinha a saber que se tratava de um guaxinim ou de outros animais da floresta.
Travis apreciou mais o Dia de Ação de Graças do que imaginou que fosse capaz, diante daquelas circunstâncias. Ele e Nora prepararam o prato tradicional para os três: peru assado com tempero de castanha, mariscos, cenoura, milho cozido e doce de abóbora.
Einstein gostou de tudo, porque havia desenvolvido um paladar bem mais sofisticado do que qualquer outro cachorro. Continuava sendo um cachorro, mas a única coisa de que ele não gostava era da salada de pimentas, preferindo comer peru. Naquela tarde, ele passara muito tempo ao lado dos cilindros com as letras.
Com o passar do tempo, Travis observara que, como a maioria dos cachorros, Einstein ia ao quintal de vez em quando para comer um pouco de grama, embora desse a impressão de estar fazendo alguma espécie de brincadeira. Ele voltou a fazer isto no Dia de Ação de Graças, e quando Travis lhe perguntou se gostara da grama, Einstein respondeu que não.
- Então, por que você tenta comê-la de vez em quando? PRECISO DELA.
- Por quê?
NÃO SEI.
- Se você não sabe, por que precisa dela? Ou como você sabe que precisa dela? Por instinto?
SIM.
- Apenas instinto?
NÃO ME INCOMODE.
Naquela noite, os três se acomodaram em algumas almofadas na sala de estar, em frente da imensa lareira de pedra, para ouvir música. O pêlo de Einstein se mostrava lustroso e grosso sob o fogo. Com um braço em torno de Nora e com a outra mão acariciando o cachorro, Travis pensava que comer grama seria uma boa idéia, porque Einstein parecia sadio e robusto. Einstein espirrava várias vezes e depois começou a tossir. Mas parecia ser uma reação normal ao excesso de comida pela passagem do Dia de Ação de Graças. Travis não estava preocupado, naquele momento, com a saúde do cachorro.
4
Na tarde de sexta-feira, 26 de novembro, um dia depois do de Ação de Graças, Garrison Dilworth estava a bordo de seu amado veleiro de doze metros de comprimento, o Amazing Grace no porto de Santa Bárbara. Ele estava ocupado polindo as partes metálicas da embarcação e não notou a aproximação de dois homens vestidos com ternos de executivo. Ele os olhou no momento em que estavam a ponto de se apresentar. Garrison sabia quem eles eram - não os nomes, para quem deviam trabalhar - mesmo antes de mostrarem as credenciais.
Um deles se chamava Johnson.
O outro era Soames.
Aparentando estar confuso e interessado, ele os convidou para bordo.
Já dentro do barco, Johnson disse:
- Gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas, sr. Dilworth.
- Sobre o quê? - perguntou Garrison, limpando as mãos em um pedaço de pano.
Johnson era um negro de estatura normal, um pouco lúgubre e desfigurado, mas ainda impondo respeito. Garrison perguntou:
- Agência de Segurança Nacional, você disse? Certamente, você não acha que estou a serviço da KGB?
Johnson esboçou um pequeno sorriso.
- Você fez algum serviço para Nora Devon?
Ele levantou as sobrancelhas e perguntou, surpreso.
- Nora? Você está falando sério? Bem, eu posso garantir que Nora não é o tipo de pessoa para se envolver...
Johnson insistiu:
- Você é o advogado dela?
Garrison olhou rapidamente para o mais jovem dos dois, Soames, e novamente levantou as sobrancelhas, como que desejando saber se Johnson era sempre frio daquele jeito. Soames permaneceu impassível, seguindo o exemplo do chefe.
Ai, meu Deus, estamos em maus lençóis com estes dois, pensou Garrison.
* * *
Depois do frustrado e malsucedido interrogatório a Garrison, Lem encarregou Cliff Soames de uma série de tarefas: tomar as primeiras providências para conseguir permissão judicial para colocar microfones tanto na casa, como no escritório do advogado; localizar três cabines telefônicas mais próximas do escritório e três outras mais próximas da casa e nelas instalar microfones igualmente; conseguir com a companhia telefônica os registros de ligações interurbanas feitas por Dilworth; trazer mais agentes do escritório de Los Angeles para uma vigilância de vinte e quatro horas em torno da vida de Dilworth.
Enquanto Cliff se ocupava daquelas atividades, Lem caminhava lentamente pelas docas no porto, na expectativa de que o ruído do mar o ajudasse a desanuviar a mente para resolver os problemas. Deus estava de prova, como ele estava necessitando desesperadamente de uma luz. Já haviam decorridos seis meses, desde a fuga do monstro e do cachorro do Banodyne, e Lem já perdera oito quilos, de tanto trabalhar. Há meses que não sabia o que era dormir bem, comer bem e até mesmo os seus interesses sexuais estavam prejudicados.
Quando nos esforçamos terrivelmente, pensou consigo mesmo, isto nos causa um bloqueio mental.
A auto-repreensão não funcionava. Estava tão bloqueado, quanto um cano cheio de concreto.
Há três meses, desde que o trailer de Cornell fora encontrado no estacionamento da escola, um dia depois da morte de Hockney, Lem sabia que Cornell e a mulher estavam voltando, naquela noite de agosto, de uma viagem a Las Vegas, Tahoe e Monterey. Foram encontrados no trailer cartões de casas noturnas de Las Vegas, recibos de cartões de crédito fornecidos por postos de gasolina, traçando todo o percurso deles. Ele não sabia a identidade da mulher, embora houvesse chegado à conclusão de que se tratava da namorada de Travis, nada mais do que isto. Só recentemente, quando um de seus agentes fora a Las Vegas para se casar, Lem finalmente descobrira que Cornell e a mulher poderiam ter ido fazer o mesmo. De repente, a viagem ganhou um aspecto de lua-de-mel. Em poucas horas confirmara o casamento de Travis no município de Clark, Nevada, no dia 11 de agosto, com Nora Devon, de Santa Bárbara.
Procurando a mulher, ele descobrira que a casa dela fora vendida há seis meses, depois de ter desaparecido com Cornell. Investigando a operação de venda, descobrira que Nora fora representada pelo advogado Garrison Dilworth.
Ao bloquear a conta de Cornell, Lem pensara ter prejudicado a fuga, mas agora descobrira que Dilworth tivera participação no saque de vinte mil dólares da conta de Cornell e que todo o dinheiro da venda da casa fora transferido para a mulher, em algum lugar. Nora, através de Dilworth, fechara a sua conta no banco local e aquele dinheiro também estava com ela. Nora, o marido e o cachorro tinham recursos suficientes para permanecerem escondidos por muitos anos.
Parado nas docas, Lem olhava para o mar banhado pelo sol. O bater pausado das ondas já lhe causava náuseas.
Ele observava o vôo alto das gaivotas mas, ao contrário de se acalmar com a presença delas, ficou ainda mais nervoso.
Garrison Dilworth era inteligente, esperto, um lutador. Agora que fora envolvido com os Cornell, Dilworth prometera processar a ASN para que os bens de Travis não ficassem por mais tempo bloqueados. Dilworth havia dito: "Vocês não têm acusação alguma contra o homem. Que tipo de juiz afinal deu permissão para que os bens de Travis fossem bloqueados? Vocês manipularam a lei com o objetivo de prejudicar um cidadão inocente."
Lem poderia ter apresentado uma série de acusações contra Travis e Nora, por violarem todo o tipo de leis destinadas a preservar a segurança nacional e agindo assim teria impedido que Dilworth continuasse mandando dinheiro para os fugitivos. Mas através das acusações, viriam os curiosos repórteres. Então, talvez toda aquela história sobre a pantera de Cornell - talvez todo o esforço da Agência para abafar o caso - acabasse ruindo como uma casa de papel no meio da tempestade.
A única esperança de Lem era que Dilworth tentasse entrar em contato com Travis para comunicar que a polícia sabia do relacionamento do advogado com eles. Com um pouco de sorte, Lem conseguiria localizar os Cornell através do número do telefone. Não tinha muita esperança, entretanto, de que tudo corresse facilmente. Dilworth não era bobo.
Lem tentava relaxar, olhando para o porto de Santa Barbara, porque sabia que necessitava estar descansado para vencer o velho advogado. Havia centenas de barcos nas docas, alguns com as velas levantadas e outros ancorados, balançando levemente na maré. Muitos veleiros seguiam na direção do alto-mar, com as pessoas no convés bronzeando-se ou tomando aperitivos. As gaivotas cortavam o branco e o azul do céu, enquanto outras pessoas pescavam junto ao quebra-mar. Lem Johnson não poderia se identificar com todo aquele quadro de prazer. Para ele, muito lazer era uma perigosa distração, tirando-o do frio mundo da realidade, do mundo competitivo. Qualquer momento de lazer que durasse mais do que uma hora já o deixava nervoso, ansioso para voltar ao trabalho. Naquele local, o lazer era medido em dias, semanas e passeios de barco com a duração de um mês, ao longo da costa. Tanto prazer assim fazia Lem ficar suando, e o deixava com vontade de gritar.
Ele tinha o monstro para deixá-lo permanentemente ocupado. Não havia sinais dele, desde que Travis Cornell tentara atingi-lo na sua casa alugada, no final de agosto. Isto há três meses. O que aquela criatura estaria fazendo durante todo aquele tempo? Onde teria se escondido? Continuaria atrás do cachorro? Estaria morta?
Talvez aquela coisa houvesse sido picada por uma cascavel, no meio do mato, ou caído de um penhasco.
Meu Deus, pensou Lem, por favor, que esta coisa esteja morta, que eu não me preocupe mais com isto. Que ela permaneça morta.
Mas ele sabia que o monstro não estava morto, porque assim seria fácil demais. Nada na vida seria tão fácil. Aquela maldita coisa estava lá fora, perseguindo o cachorro. O monstro talvez estivesse se contendo para não matar mais vítimas inocentes, porque sabia que cada morte revelaria a sua posição, atraindo Lem e os outros agentes. A criatura não desejava ser localizada antes de matar o cachorro. Quando a besta estraçalhasse os Cornell e o cachorro, então se voltaria com toda a fúria para as outras pessoas e cada nova vítima pesaria na consciência de Lem Johnson.
Enquanto isso, a investigação sobre as mortes dos cientistas do Banodyne estava completamente paralisada. De fato, esta segunda linha de ação havia sido interrompida. Obviamente, os soviéticos contrataram um estranho para fazer o trabalho e não havia maneira de descobrir quem eles haviam escolhido para matar os cientistas.
Um sujeito profundamente bronzeado, de bermuda branca e tênis, passou por Lem e disse:
- Que dia maravilhoso!
- Como o inferno - acrescentou Lem.
5
No dia seguinte ao do Dia de Ação de Graças, Travis caminhara até a cozinha para apanhar um copo de leite e vira Einstein espirrando, mas não dera muita importância. Nora, que normalmente se preocupava mais com o bem-estar do cão, também não ligara para o fato. Durante a primavera e o outono, o ar da Califórnia permanece com muito pólen. Por causa do clima, entretanto, o ciclo das flores dura o ano todo e nenhuma estação está livre de pólen. A situação é ainda pior, para os que moram perto da floresta.
Naquela noite, Travis fora acordado por um ruído que não conseguira identificar. O sono desaparecera no ato, ao ficar alerta. Procurou pela espingarda no chão, ao lado da cama. Empunhando a arma, ficou em silêncio para ouvir melhor e um minuto depois ouviu novamente: no corredor do segundo andar.
Saiu da cama sem acordar Nora, e passou cautelosamente pela porta. O vestíbulo, como todas as outras dependências da casa, possuía uma luz noturna e na penumbra Travis viu que o ruído vinha do cachorro. Einstein estava próximo ao topo da escada, tossindo e balançando a cabeça.
- Você está bem?
Um rápido aceno com o rabo:
"Sim."
Ele se abaixou e passou a mão no pêlo de Einstein.
- Você está seguro disto?
"Sim."
Por um momento o cachorro fez pressão contra o corpo de Travis, apreciando o carinho. Então se afastou, tossindo várias vezes e foi para o térreo da casa.
Travis o seguiu. Na cozinha, encontrou Einstein tomando água.
Depois de esvaziar a tigela de água, o cão foi até a despensa e acendeu a luz e começou a tirar letras dos tubos.
SEDE.
- Você tem certeza de que está passando bem?
ESTOU BEM. APENAS SEDE. UM PESADELO ME ACORDOU. Surpreso, Travis perguntou:
- Você sonha?
VOCÊ NÃO?
- Sim. Muito.
Travis encheu novamente a tigela com água e Einstein a esvaziou. Travis colocou mais água, uma segunda vez. Naquele momento, o cachorro já bebera o suficiente. Travis esperava que Einstein fosse para fora urinar, mas o cachorro subiu para o segundo andar, colocando-se deitado no corredor ao lado da porta do quarto, no qual Nora continuava dormindo.
Travis sussurrou:
- Escute, se você quiser entrar e dormir ao lado da cama, não há problema.
Era o que Einstein desejava. Ele se deitou no chão ao lado de Travis. No escuro, Travis poderia tocar facilmente tanto a arma, quanto o cachorro. Ele estava mais seguro com a presença do cachorro, do que com a arma.
6
No sábado à tarde, dois dias depois do Dia de Ação de Graças, Garrison Dilworth pegou sua Mercedes e se afastou de casa, sem imprimir velocidade ao carro. Duas quadras à frente ele confirmara que a Agência de Segurança Nacional ainda estava atrás dele. Era um Ford verde, provavelmente o mesmo que o seguira na noite anterior. Eles mantinham boa distância, sinal de que eram discretos, mas Dilworth não era cego.
Ele ainda não havia ligado para Nora e Travis. Por estar sendo perseguido, suspeitava de que os telefones de sua casa estivessem grampeados, também. Poderia ter procurado uma cabine telefônica, mas temia que os agentes ouvissem a conversa com o microfone direcional ou com outro equipamento qualquer de alta tecnologia. E se gravassem o som produzido pelas teclas do telefone ao fazer a ligação, poderiam facilmente transformar aquilo em dígitos e descobrir o número de Travis em Big Sur. O advogado teria que se resignar em não fazer contato com Travis e Nora, com absoluta confiança.
Sabia que deveria agir logo, antes que Travis e Nora telefonassem para ele. Naqueles dias, com a tecnologia disponível, a Agência de Segurança Nacional poderia saber de onde partira a ligação tão rápido quanto Garrison seria capaz de adverti-los de que a linha estava grampeada.
Em torno das duas horas de sábado à tarde, seguido pelo Ford verde, ele foi até a casa de Delia Colby, em Montecito, para levá-la até o barco Amazing Grace para um passeio ao sol. No mínimo, era isto o que dissera a ela ao telefone.
Delia era a viúva do juiz Jack Colby. Ela e Jack eram os melhores amigos de Garrison e de Francine, por vinte e cinco anos, até que a morte interrompeu aquela amizade. Jack morrera um ano antes de Francine. Delia e Garrison permaneceram muito próximos; eram apenas velhos amigos que tinham a felicidade - ou o infortúnio - de sobreviverem a quem eles mais amavam e precisavam um do outro para lembrar os bons momentos do passado, pois não tinham mais ninguém para desfrutar daquelas reminiscências. Um ano antes, ao se surpreenderem juntos na cama, ficaram atônitos, sentindo-se, ambos, culpados. O sentimento era de traição, embora Jack e Francine houvessem morrido já há vários anos. O sentimento de culpa foi superado, é claro, e os dois eram gratos pelo companheirismo e pela paixão, que repentinamente surgira-lhes no final da vida.
Ao seguir o caminho da garagem de Delia, esta saiu de casa, fechou a porta da frente e correu para o carro de Garrison. Ela estava vestindo tênis, calça branca e um suéter quadriculado azul e branco. Embora ela tivesse 69 anos e o cabelo curto fosse grisalho, parecia quinze anos mais jovem.
Ele saiu da Mercedes, abraçou-a, beijou-a e disse:
- Podemos ir no seu carro? Ela piscou os olhos surpresa.
- Você está tendo algum problema com o seu carro?
- Não - disse ele. - Apenas prefiro ir no seu.
- Certamente.
Ela tirou o carro da garagem e Garrison sentou-se ao lado dela. Quando já estavam na rua, ele comentou:
- Temo que o meu carro tenha algum tipo de microfone e não desejo que escutem o que tenho para te dizer.
A expressão dela era impagável. Rindo, ele disse:
- Não, não fiquei senil da noite para o dia. Se você prestar bem atenção no espelho retrovisor, perceberá que estamos sendo seguidos. São muito espertos, muito sutis, mas não são invisíveis.
Ele deu tempo para que ela verificasse por si mesma, e depois de algumas quadras ela perguntou:
- É um Ford verde, não é?
- São eles.
- Em que você se meteu, meu querido?
- Não vá direto para o porto. Dirija na direção dó mercado, onde possamos comprar algumas frutas. Então, vá até uma casa especializada em bebidas para comprarmos uma garrafa de vinho. Depois eu te conto tudo.
- Há algum segredo na sua vida, que eu ainda não conheça? - perguntou ela, sorrindo. - Você é algum James Bond gagá, por acaso?
* * *
No dia anterior, Lem Johnson havia reaberto o quartel-general de operações, em uma sala diminuta do tribunal de Santa Bárbara. A sala tinha apenas uma janela estreita. As paredes eram escuras e a iluminação tão precária que havia sombras pelos cantos, como se fossem espantalhos. Os móveis, emprestados, saíram de outros escritórios. Ele trabalhara naquele lugar no dia seguinte à morte de Hockney, mas o fechara uma semana depois, pois não havia mais nada a fazer na área. Agora, na esperança de que Dilworth o levasse até Cornell, Lem retomara o QG, instalara novos telefones para aguardar o desenrolar do caso.
Ele dividia o escritório com o seu assistente - Jim Vann - sério e dedicado demais, para um jovem de vinte e cinco anos.
Naquele momento Cliff Soames estava chefiando uma equipe de seis agentes em Santa Bárbara e também coordenando a vigilância de Garrison Dilworth, com ajuda da guarda-costeira. Aquele velho astuto aparentemente havia percebido que estava sendo seguido, portanto Lem esperava o momento em que o advogado tentasse falar com Travis. A maneira mais lógica para Garrison fugir da vigilância era sair para alto-mar, velejando ao longo da costa, para um lado ou para o outro, e fazendo a ligação de algum porto, antes que fosse possível localizá-lo. Mas ele seria surpreendido, porque um barco da guarda-costeira, também o seguiria.
Às três e quarenta, Cliff telefonou para relatar que Dilworth e a sua companheira estavam sentados ao convés do Amazing Grace, comendo frutas e bebendo vinho, contando histórias do passado e rindo um pouco.
- Pelo que podemos ouvir, através do microfone direcional, e pelo que podemos ver, temos a impressão de que eles não vão a lugar algum. Exceto, talvez, para a cama. Já devem se conhecer há muito tempo, com certeza.
- Permaneça com eles - disse Lem. - Não confio nele.
Um outro agente ligou para Lem, informando que haviam penetrado secretamente na casa de Dilworth, minutos depois que ele deixara a casa. E não encontraram nada que estivesse relacionado com o cachorro, ou com os Cornell.
O escritório do Dilworth também fora cuidadosamente revistado na noite anterior. Uma pesquisa sobre as ligações telefônicas do advogado não havia, igualmente, revelado o telefone dos Cornell; se o advogado tivesse ligado para eles, o teria feito de um telefone público. Não havia coisa alguma registrada na Companhia Telefônica. Portanto, se tivesse usado uma cabine telefônica, a conta seria paga por Travis, para que nada fosse descoberto. O que não era um bom sinal. Obviamente, Dilworth fora excessivamente cauteloso, até mesmo antes de saber que estava sendo seguido.
* * *
Travis manteve Einstein sob observação no sábado, temendo que ele houvesse pegado um resfriado. Mas o cão espirrou duas ou três vezes, não teve acessos de tosse e parecia estar em forma.
Uma empresa de transportes fez a entrega de dez caixas grandes, contendo todas as telas de Nora, que haviam ficado em Santa Bárbara. Há cerca de duas semanas, usando o endereço de um amigo como remetente, para garantir que não houvesse ligação entre ele e Nora "Aimes", Garrison Dilworth despachara todas as pinturas para a nova casa deles. Agora, abrindo os caixotes e criando pilhas de papel na sala, Nora parecia estar viajando no espaço. Travis sabia daquilo, e que por muitos anos a pintura mantivera Nora interessada na vida, e ele percebia que o retorno dos quadros não somente era uma alegria como também um estímulo para que ela retomasse o trabalho com entusiasmo redobrado.
- Você quer ligar para Garrison e agradecer? - perguntou Travis.
- Sim. É claro! - respondeu Nora. - Mas, primeiro, vamos abrir todas as caixas para nos certificarmos de que nenhuma ficou danificada.
* * *
Cliff Soames e outros agentes da ASN faziam-se passar por iatistas e pescadores, enquanto observavam Dilworth e Delia Colby, ouvindo igualmente a conversa do casal, através dos aparelhos eletrônicos. O sol já estava se pondo, sem qualquer indicação de que sairiam para o mar. A noite chegou e o advogado e a mulher continuavam no mesmo lugar.
Meia hora depois de escurecer, Cliff Soames já estava cansado de fingir que pescava na popa do Cheoy Lee, um iate esportivo, de quinze metros, ancorado a uma distância de quatro vagas de Dilworth. Ele subiu uma escada, foi até a cabine do capitão e tirou os fones de Hank Gorner, o agente que estava monitorando a conversa do casal pelo microfone direcional. E ficou ouvindo por si mesmo:
- Aquela vez em Acapulco, quando Jack alugou um barco pesqueiro...
- Sim, os tripulantes todos pareciam uns piratas!
- Nós pensávamos que teríamos nossas gargantas cortadas e que seríamos jogados no mar...
- Mas acabamos descobrindo que todos eram estudantes de teologia.
- Estudando para serem missionários... e Jack disse... Devolvendo os fones, Cliff comentou:
- Continuam as reminiscências.
O outro agente balançou a cabeça, concordando. A luz da cabine estava apagada e Hank era iluminado apenas por uma pequena lâmpada colocada sobre a mesa, deixando-o com uma fisionomia estranha.
- É assim que eles ficaram todo o dia. No mínimo, têm grandes histórias para contar.
- Vou até o banheiro - disse Cliff, aborrecido. - Volto logo.
- Demore umas dez horas, se você quiser. Eles não vão a lugar algum. Alguns minutos mais tarde, quando Cliff voltou, Hank Gorner tirou os fones do ouvido e disse:
- Estão na parte de baixo do convés.
- Alguma novidade?
- Não o que esperávamos. Eles agora vão trepar.
- Oh.
- Cliff, não quero ouvir isto.
- Escute - insistiu Cliff.
Hank colocou apenas um fone no ouvido.
- Meu Deus, estão tirando a roupa um do outro e são tão velhos quanto nossos avós. Isto é terrível!
Cliff suspirou.
- Agora estão quietos - disse Hank, parecendo estar com nojo. - Em um segundo eles vão começar a gemer, Cliff.
- Escute - insistiu Cliff. - Ele pegou uma jaqueta que estava sobre a mesa e saiu novamente, assim não precisaria ouvir o que se passava lá.
Cliff retomou sua posição na popa do iate, fazendo de conta que estava pescando.
Naquela noite fazia frio bastante para justificar o uso da jaqueta, mas por outro lado não poderia ser melhor. O ar estava limpo e agradável, com uma leve maresia. Não havia lua, mas o céu estava cheio de estrelas. As ondas batiam sonolentamente contra as docas, balançando os barcos atracados. Em algum ponto das docas, em outro barco, alguém ouvia canções românticas da década de 1940. Um motor começou a funcionar - rum, rum, rum - até nisto havia um toque de romantismo. Cliff começou a imaginar como seria bom possuir um barco e dar um belo passeio pelo Pacífico Sul em direção às ilhas cheias de palmeiras...
De repente, o motor que funcionava em marcha lenta acabou acelerando e Cliff concluiu que era o Amazing Grace. Ao levantar-se da cadeira, deixando cair a vara de pesca, ele viu que o barco de Dilworth estava disparando como o diabo. Tratava-se de um veleiro e Cliff não poderia esperar que o barco navegasse com as velas baixas, mas, o veleiro tinha motores auxiliares; eles sabiam e estavam preparados para aquilo, mas mesmo assim Cliff ficara surpreso. Correu de volta para a cabine para falar com o outro agente.
- Huck, entre em contato com a patrulha do porto. Dilworth está saindo.
- Mas eles estão trepando.
- O cacete que estão! - Cliff correu para a proa e viu que Dilworth já havia direcionado o Amazing race para sair do porto. Não havia luzes na popa, apenas um pequeno farol apontado para a frente próximo à cabine do comando. Nossa, ele estava realmente escapando.
* * *
Eles estavam morrendo de fome, depois de abrir todos os caixotes com cem quadros, pendurar alguns e guardar os outros no quarto que Nora usava como sala de pintura.
- Garrison deve estar jantando também - disse Nora. - Não desejo interrompê-lo. Vamos ligar para ele depois de comermos.
Einstein estava na despensa, retirando as letras do tubos para formar uma mensagem:
ESTÁ ESCURO. FECHEM AS JANELAS PRIMEIRO.
Surpreso com a própria desatenção para com este aspecto de segurança, Travis correu de aposento em aposento fechando os protetores das janelas, colocando trincos em tudo. Fascinado com as pinturas de Nora e com o prazer que ela demonstrara quando da chegada dos quadros, Travis não notara a chegada da noite.
* * *
Já na metade do caminho que conduzia à saída do porto, confiante na distância e no barulho dos motores que prejudicariam os aparelhos de escuta, Dilworth disse:
- Leve-me próximo da extremidade norte do quebra-mar, ao longo da borda do canal.
- Tem certeza? - Delia perguntou com apreensão. - Você não é um adolescente.
Ele deu umas pancadinhas no traseiro dela e disse:
- Sou melhor.
- Sonhador.
Ele a beijou no rosto e se alinhou junto ao parapeito do barco, tomando posição para pular. Estava vestindo um calção azul-escuro. Ele deveria ter uma roupa de mergulho, porque a água estaria gelada. Mas pensava que deveria nadar até o quebra-mar, afastando-se do lado norte, onde estava fora de vista do porto, isto em poucos minutos, antes que a temperatura da água tirasse o calor do seu corpo.
- Temos companhia! - gritou Delia da cabine de comando.
Ele olhou para trás e viu o barco-patrulha saindo das docas no sentido sul, na direção deles.
Não vão nos parar, pensou ele. Não têm este direito.
Mas ele teria que sair pelo lado, antes que a patrulha tomasse posição atrás deles. Naturalmente, poderiam vê-lo pulando do barco. O Amazing Grace disfarçaria a saída dele, a esteira de água atrás do barco daria uma proteção de alguns segundos para que o advogado chegasse até a margem, antes que as atenções se voltassem para ele.
O barco avançava na maior velocidade possível, para a tranqüilidade de Delia, obrigando Garrison a segurar-se firme. Apesar disto, pareciam cruzar o quebra-mar em uma irritante lentidão e o barco-patrulha estava cada vez mais perto. Mas Garrison esperava porque não queria se jogar na água a mais de cem metros do ancoradouro. Se pulasse logo, não seria capaz de nadar até o ponto necessário; ao contrário, ele teria que nadar direto para o quebra-mar e subir pelo lado, à vista de todos. O barco-patrulha estava a cem metros deles. Garrison não poderia esperar por muito mais tempo, não poderia...
- O ponto! - gritou Delia, da cabine.
Ele se jogou por cima do parapeito do barco, desaparecendo na água escura, ficando longe do Amazing Grace.
O mar estava gelado, abalando a respiração dele. Ele afundou, não podia voltar à tona, entrou em pânico, tremeu todo, debateu-se repetidas vezes, mas acabou subindo, ofegante.
O Amazing Grace estava surpreendentemente perto. Ele sentia que havia permanecido embaixo da água por um minuto ou mais, mas não deve ter sido por mais de dois ou três segundos, porque o barco não se havia distanciado muito. O barco-patrulha também estava aberto. Garrison decidiu que a esteira do barco não lhe daria muita proteção e mergulhou novamente, permanecendo submerso o mais que podia. Quando subiu à tona de novo, tanto um barco quanto o outro já haviam ultrapassado a saída do ancora-douro e ninguém poderia vê-lo agora.
Estava sendo puxado rapidamente pela força da maré, afastando-se do ponto norte do quebra-mar, um paredão com pedras imensas e rochas, elevando-se a cinco metros acima da linha do mar, uma verdadeira muralha negra e cinza, dentro da noite. Não somente teve que nadar em torno do final daquela barreira, como vencer a resistência da água para chegar até as pedras. Sem perder tempo, começou a nadar, querendo saber por que, diabos, pensara que aquilo seria uma tarefa fácil.
Você tem quase setenta e dois anos, disse para si mesmo, ao nadar próximo da pedra, que era um ponto de referência e estava iluminada por um farol de navegação. O que te passou pela cabeça para bancar o herói?
Mas ele sabia a razão: a crença profunda na idéia de que o cachorro deveria permanecer em liberdade e não poderia ser tratado como propriedade do governo. "Se já chegamos longe demais em poder criar o que Deus criou, então temos que aprender a agir sob a justiça e a misericórdia de Deus." Foi o que havia dito a Nora e Travis - e para Einstein - naquela noite em que Ted Hockney fora morto. E acreditava em todas as palavras que havia pronunciado.
A água salgada irritava-lhe os olhos, prejudicando a visão. A água também entrara pela boca, queimando-lhe um pequeno ferimento no lábio inferior.
Ele lutava contra a corrente que o arrastava para além do ponto do quebra-mar fora da visão do porto, até ser lançado na direção das pedras. Finalmente, segurou firme a primeira rocha que encontrara, ofegante, sem forças ainda de sair da água.
Nas semanas seguintes, desde que Nora e Travis haviam fugido, Garrison tivera muito tempo para pensar sobre Einstein e acreditava realmente que seria um ato de injustiça manter em cativeiro uma criatura inteligente, sem absolutamente culpa de coisa alguma, mesmo que esta criatura fosse um cachorro. Garrison havia dedicado toda a sua vida à justiça, fazendo o que era possível pelas leis da democracia e a manutenção da liberdade, fruto direto da justiça. Quando um homem idealista decide que está velho demais para arriscar tudo o que acredita ser certo, então já não é mais um homem de ideais. Talvez não seja mais nem mesmo um homem. Esta verdade o levara, apesar da sua idade, a fazer aquela tentativa noturna. Engraçado - toda uma vida de idealismo é colocada em jogo depois de sete décadas, em um teste supremo para salvar a vida de um cachorro.
Mas que cachorro!
E que admirável mundo novo estamos vivendo, pensou ele. A tecnologia genética poderia até ser chamada de "arte genética", porque existe arte em qualquer ato de criação e nenhum outro ato de criação é mais lindo e maravilhoso do que criar uma mente inteligente.
Ao recuperar o fôlego e conseguir sair completamente da água, posicionou-se no lado norte do quebra-mar. Aquela muralha se estendia até o porto e ele começou a caminhar na direção da costa, através das pedras, com o mar a sua esquerda. Levara consigo uma pequena lanterna à prova dágua, presa ao calção, a qual usava para caminhar com precaução, evitando escorregar em alguma rocha e quebrar a perna ou o tornozelo. Podia ver ao longe as luzes da cidade, algumas centenas de metros à frente e vagamente a linha prateada da praia.
Estava gelado, mas não tanto quanto a água. O coração batia rápido, mas não como antes.
Ele iria conseguir.
* * *
Lem Johnson saiu do carro do QG provisório, no tribunal da cidade, para encontrar-se com Cliff nas docas, perto do local onde o Amazing Grace estava amarrado. O vento soprava forte. Centenas de barcos ao longo do ancoradouro balançavam ao sabor do vento e poderia ouvir-se o ruído das cordas de velas, batendo de encontro aos mastros dos veleiros. As luzes do porto e as lanternas dos barcos próximos piscavam fracamente sobre a água oleosa onde estava atracado o barco de Dilworth.
- E a patrulha do porto? - perguntou Lem, preocupado.
- Eles o seguiram até o alto-mar. Parecia que estava seguindo para o norte, na extremidade do quebra-mar, mas depois seguiu para o sul.
- Dilworth percebeu a presença da patrulha?
- Ele tinha que ter percebido. Conforme você vê... não há nevoeiro e o céu está limpo, cheio de estrelas.
- Ótimo. Quero que ele seja observado. E a guarda-costeira?
- Estive em contato com o barco-patrulha - garantiu Cliff. - Eles estão no local, acompanhando o Amazing Grace a uma distância de cem metros, navegando rumo sul, ao longo da costa.
Tremendo por causa do vento frio, Lem perguntou:
- Eles sabem que Dilworth poderá atingir a costa em um bote?
- Sabem disso - garantiu Cliff. - Ele não poderá fazer isto debaixo do nariz de nosso pessoal.
- A guarda-costeira tem certeza de enxergá-los?
- Eles estão tão iluminados quanto uma arvore de Natal.
- Ótimo. Quero que ele saiba que não tem qualquer chance. Se pudermos impedir que ele avise os Cornell, eles vão ligar mais cedo ou mais tarde... aí vamos pegá-los. Mesmo que liguem para Dilworth de uma cabine pública, saberemos aproximadamente onde estão.
A Agência de Segurança Nacional, além de grampear os telefones da casa e do escritório de Dilworth, havia instalado equipamentos especiais para identificar a linha a ser usada para o telefone e manter esta informação, mesmo depois que o telefone fosse desligado. Desta forma, os agentes descobririam com facilidade o número de quem estava ligando e o endereço. Mesmo que Dilworth, ao reconhecer a voz de Travis, solicitasse que este desligasse, seria tarde demais. A única forma de evitar os aparelhos da ASN seria não atender as ligações. Até assim não seria bom, porque depois de o telefone tocar por seis vezes, a ligação seria "atendida" automaticamente pelos equipamentos da Agência de Segurança, que abririam as linhas à procura da procedência da ligação.
- A única coisa que pode nos foder agora - disse Lem - é se Dil-worth procurar um telefone público que não tenhamos grampeado para avisar aos Cornell para não ligar.
- Isso não vai acontecer - garantiu Cliff. - Estamos com ele preso.
- Gostaria que você não dissesse isto - observou Lem, parecendo preocupado. Com o vento forte, um grampo de metal de um dos barcos bateu forte no casco, obrigando Lem a dar um pulo, assustado.
- Meu pai sempre dizia que o pior acontece, quando você menos espera. Cliff balançou a cabeça.
- Com o devido respeito, senhor, quanto mais o escuto falar de seu pai, mais penso que talvez tenha sido o mais triste dos homens.
Olhando para os barcos na água cortada pelo vento, Lem tinha a impressão de estar em movimento, ao contrário de estar parado em um mundo em movimento, sentindo-se um pouco tonto, e disse:
- Sim... meu pai era um grande sujeito, mas à maneira dele, ele era também impossível.
De repente, ouviu-se o grito de Hank Gorner:
- Ei! - Ele corria ao longo do cais vindo do Checy Lee, onde ele e Cliff haviam permanecido por todo aquele dia. - Acabei de manter contato com a guarda costeira. Eles estão jogando a luz dos faróis sobre o Amazing Grace, tentando intimidar Dilworth e me disseram não tê-lo visto. Apenas a mulher.
- Cruzes, ele está guiando o barco - exclamou Lem.
- Não - discordou Gorner. - Não há luzes no Amazing Grace, mas o pessoal da guarda costeira focalizou os faróis por todos os lados do barco, e afirmam que vêem só a mulher navegando.
- Está bem. Ele está na parte inferior do convés - comentou Cliff.
- Não - disse Lem, já com o coração disparado. - Não poderia estar escondido na cabine, com um tempo como este. Ele estaria observando o barco da guarda costeira, decidindo se continuaria em frente ou voltaria. Ele não está no Amazing Grace.
- Mas tem que estar lá. Ele não saiu do barco, desde que partiram do porto.
Lem olhou para o setor norte do quebra-mar, auxiliado pela boa visibilidade do ancoradouro, naquela noite, e disse:
- Você falou que aquele barco maldito se aproximou do quebra-mar pelo lado norte, dando a impressão que navegaria no rumo norte e que de repente virou para o sul.
- Merda! - exclamou Cliff.
- Foi onde ele pulou - observou Lem. - Na extremidade norte do quebra-mar. Sem bote de borracha. Por Deus, nadando.
- Ele é muito velho para este tipo de coisa - protestou Cliff.
- É claro que não. Ele nadou até o outro lado a procura de um telefone, numa daquelas praias da zona norte. Temos que pegá-lo. E rápido.
Cliff colocou as duas mãos em torno da boca e gritou pelo nome dos quatro agentes que estavam espalhados por outros barcos no ancoradouro.
Os homens responderam ao chamado e correram ao encontro dele. Lem já estava à procura do seu carro no estacionamento.
"O pior acontece quando você menos espera."
* * *
Enquanto Travis lavava alguns prato, Nora disse:
- Olhe para isto.
Ele se virou e viu que Nora estava ao lado da comida de Einstein e da tigela com água. Ele tomara toda a água, mas não comera a metade da comida.
- Quando você o viu deixar o resto da comida? - perguntou Nora.
- Nunca. - Franzindo a testa, Travis secou as mãos na toalha da cozinha. - Nos últimos dias... pensei, talvez, estivesse gripado, ou alguma coisa assim, mas ele diz que está bem. E hoje não espirrou nem tossiu como antes.
Eles se dirigiram para a sala de estar, onde o cão estava lendo Black Beauty, com a ajuda de sua máquina de virar páginas.
Ajoelharam-se ao lado dele, que se virou para olhá-los. Nora perguntou:
- Você está doente, Einstein?. O cachorro latiu apenas uma vez. "Não."
- Você tem certeza?
O rabo abanou rapidamente.
"Sim."
- Você não terminou o jantar - disse Travis. Einstein bocejou, de forma estudada.
- Você está tentando nos dizer que está um pouco cansado? - perguntou Nora.
"Sim."
- Se você estiver se sentindo doente, deve nos dizer, está certo, peludo? - perguntou Travis.
"Sim."
Nora insistiu em examinar os olhos de Einstein, a boca, os ouvidos, para tentar localizar algum sinal de inflamação e finalmente disse:
- Nada. Ele parece bem. Imagino que até mesmo um supercão tem o direito de ficar cansado, de vez em quando.
* * *
O vento surgira de repente. Estava fazendo frio, e por causa do vento as ondas iam até mais alto do que deveriam, em dias normais.
Arrepiado de frio, Garnson atingiu a extremidade norte do porto. Ele estava mais tranqüilo e aliviado, por ter deixado para trás todas aquelas pedras, para pisar na areia macia da praia. Estava certo de ter machucado ambos os pés e aquilo o obrigava a caminhar com dificuldade.
Primeiramente, permaneceu perto das ondas, afastado de um parque arborizado que ficava atrás da praia. Seria mais facilmente localizado se caminhasse para lá, por causa dos postes de iluminação. Não pensava que alguém o estivesse procurando. Estava certo de que havia enganado a todos. De qualquer maneira, não queria chamar atenção de ninguém.
As rajadas de vento lançavam um pouco de espuma do mar no rosto de Dilworth, ele tinha a impressão de estar correndo através de uma teia de aranha. Estava com os olhos ardendo e acabou sendo forçado a se afastar das ondas, caminhando um pouco mais para dentro, próximo à grama, mas ainda protegido da iluminação.
Encontrou alguns casais de namorados perambulando pela praia escura, vestidos adequadamente para enfrentar o frio da noite: abraçados e protegidos por cobertores; pequenos grupos fumando maconha e ouvindo música. Oito ou dez rapazes estavam reunidos em torno de dois bugres, com aqueles pneus imensos, o que não era permitido na areia durante o dia e provavelmente, também, à noite. Estavam tomando cerveja ao lado de um buraco que haviam cavado na areia, para esconder as garrafas, se os tiras aparecessem; eles conversavam animadamente sobre garotas, deliciando-se com brincadeiras de mau-gosto. Ninguém deu mais do que apenas uma olhada para Garrison, quando este passou, como se estivesse fazendo uma corrida diária. Na Califórnia, os fanáticos por exercícios e comida natural eram tão comuns quanto os homens de negócios de Nova York e se um velho quisesse tomar um banho gelado depois correr pela praia, durante a noite, não seria mais comum do que um padre na igreja.
Caminhando para o norte, Garrison circundava o parque à procura de uma cabine telefônica. Aliás deveriam estar aos pares, iluminadas, protegidas por concreto ao lado das calçadas, ou talvez próximas dos mictórios públicos.
Já estava começando a ficar desesperado, certo de que já deveria ter passado por algum telefone que não fora capaz de ver, quando encontrou o que estava procurando. Duas cabines telefônicas, extremamente iluminadas. Elas estavam localizadas a trinta metros da praia, a meio caminho entre a praia e a estrada, ao lado do parque.
Virando de costas para o mar, com dificuldade para recuperar a respiração, ele caminhou pela grama, debaixo de três palmeiras. Ele estava a quinze metros do telefone, quando viu um carro em alta velocidade, que travou violentamente, fazendo um ruído com os pneus, e finalmente parou ao lado da calçada. Garrison não sabia de quem se tratava, mas decidira não perder tempo. Apressou o passo protegido por uma imensa palmeira, e felizmente a iluminação era fraca. Conseguia ver os telefones, através das outras árvores, e o carro estacionado ao lado da calçada.
Dois homens saíram do carro. Um deles seguiu pelo lado do parque, olhando para dentro, à’procura de alguma coisa.
O outro correu parque adentro. Quando este chegou na parte iluminada perto dos telefones, Garrison ficou chocado com o que vira.
Lemuel Johnson.
Escondido atrás de uma palmeira, Garrison procurou manter as pernas e braços bem próximos do corpo, confiando na proteção que escolhera. Johnson foi até o primeiro aparelho e levantou o fone, tentando arrancá-lo da caixa de moedas. O fone estava preso por um daqueles fios flexíveis de metal, e ele não conseguia tirá-lo. Finalmente, segurando o fone com firmeza, conseguiu ficar com ele na mão, solto, e o atirou para dentro do parque. Então, destruiu o segundo fone.
Por um momento, quando Johnson se afastou das cabines telefônicas e começou a caminhar na direção de Garrison, o advogado pensou que havia sido localizado. Mas Johnson simplesmente parou depois de alguns passos e olhou para a praia. Nem por um momento sequer olhou para a palmeira, atrás da qual se escondera Garrison.
- Vai pro inferno seu velho sacana - gritou Johnson e voltou para o carro.
Ainda atrás da palmeira, Garrison sorriu, porque sabia a quem o agente da Agência de Segurança estava se referindo. O advogado não se importava com o vento frio que soprava atrás dele vindo da praia.
Velho sacana ou James Bond Gagá, fosse o que fosse, ele continuava sendo um homem digno de respeito.
* * *
Os agentes Rick Olbier e Denny Jones estavam no subsolo da companhia telefônica monitorando os aparelhos da Agência de Segurança Nacional que controlavam as linhas dos telefones de Garrison. Era um trabalho monótono e eles jogavam cartas para passar o tempo. Jogavam qualquer coisa, menos pôquer.
Quando o telefone de Dilworth tocou na casa dele, às 8:14, Olbier e Jones ficaram mais animados, porque estavam desesperados por algum tipo de ação. Olbier deixou cair as cartas no chão e Jones as deixou sobre a mesa. Ambos procuraram os respectivos fones, como se ainda fosse a Segunda Guerra Mundial e tentassem ouvir uma conversa ultra-secreta entre Hitler e Gôring.
O equipamento deles estava programado para abrir a linha depois que o telefone de Dilworth tocasse seis vezes. Como sabiam que o advogado não estava em casa e que o telefone não seria atendido, Olbier alterou o programa, o que permitia abrir a linha depois da segunda chamada.
Eles poderiam ver escrito na tela do computador:
DANDO SINAL.
No outro lado da linha alguém disse:
- Alô!
- Alô! - disse Jones em seu microfone.
O número do telefone de quem estava ligando aparecera na tela, ao lado do endereço de Santa Barbara. Este sistema era semelhante ao usado pelo telefone de emergência da polícia, proporcionando identificação imediata de quem liga. Acima do endereço na tela, apareceu o nome de uma empresa:
COMPRAS POR TELEFONE.
Respondendo a Denny Jones, alguém no outro lado da linha disse:
- Senhor, é com prazer que informo que o senhor foi sorteado para receber de graça uma fotografia oito por dez e outras dez três por quatro.
Jones perguntou:
- Quem está falando?
O computador naquele momento verificava a quem pertencia o telefone de onde partira a ligação. A voz ao telefone respondeu:
- Bem, estou ligando em nome de Olin Mills, senhor, um estúdio fotográfico, onde as fotografias são da maior qualidade...
- Espere um pouco - disse Jones.
O computador verificou a identidade do assinante do telefone: Dil-worth havia feito algumas compras, nada mais do que isto.
- Não quero nada disto - disse Jones, secamente, e desligou.
- Merda! - exclamou Olbier.
- Vamos jogar uma biriba? - convidou Jones.
* * *
Além dos seis agentes que estavam trabalhando no porto, Lem havia solicitado reforço de quatro outros, que estavam no QG, em Santa Bárbara.
Ele colocara cinco ao longo do parque, ao lado do mar, a uma distância de cem metros, um do outro. Eles tinham por responsabilidade vigiar a imensa avenida, que separava o parque do distrito comercial, onde havia muitos motéis e restaurantes, bares, lojas e outras casas comerciais. Em todas elas havia telefones, é claro, e até mesmo em alguns motéis se poderiam encontrar telefones públicos no hall de recepção; através de um daqueles telefones o advogado poderia alertar Cornell. Naquele momento, sábado à noite, algumas lojas estavam fechadas, mas os restaurantes permaneciam abertos. Dilworth não deveria atravessar a rua.
O vento que soprava do mar era mais forte e mais gelado. Os homens escondiam as mãos nos bolsos dos paletós, as cabeças baixas, tremendo de frio.
As folhas das palmeiras vibravam sob o efeito do vento. Os pássaros nas árvores ficavam em alvoroço, mas depois se acomodavam.
Lem ordenou que outro agente fosse para a esquina sudoeste do parque, na base do quebra-mar, que separava a praia pública do porto, no outro lado. O trabalho dele era evitar que Dilworth voltasse para o quebra-mar, subisse nele e tentasse seguir para o outro lado do ancoradouro, tentando telefonar de qualquer maneira.
Um sétimo agente ficou colocado próximo às ondas, na esquina noroeste do parque, para impedir que Dilworth seguisse para o norte, à procura das praias particulares, ou de áreas residenciais, onde poderia persuadir alguém a deixá-lo telefonar.
Sobravam Lem, Cliff e Hank para examinarem o parque e a praia em frente, à procura do advogado. Ele sabia que não dispunha de muitos homens para aquela tarefa, mas aqueles dez agentes - mais Olbier e Jones na companhia telefônica - eram os únicos com quem poderia contar na cidade. Não havia como solicitar que mais agentes viessem de Los Angeles; quando eles chegassem, Dilworth já teria sido localizado, ou telefonado para os Cornell.
* * *
O bugre sem capota estava equipado com um "santo-antônio". O carro tinha dois assentos rebaixados, atrás dos quais havia espaço para passageiros, ou para grande quantidade de equipamentos.
Garrison estava de bruços, sob um cobertor, atrás dos bancos. Dois rapazes estavam sentados na frente e outros dois na parte de trás, sobre Garrison, como se estivessem sentados em nada menos do que uma pilha de cobertores. Eles tentavam poupar Garrison da maior parte do peso deles, mas ele se sentia um pouco esmagado.
O ruído do motor parecia o de uma vespa furiosa: um zumbido alto e desafinado. O som era ensurdecedor para Garrison, porque o seu ouvido direito estava sobre o chão do carro, que amplificava cada vibração do motor.
Felizmente o carro rodava suave pela areia.
O carro parou, acelerando o motor, depois reduziu-se o ruído.
- Merda - sussurrou um dos garotos para Garrison. - Há um cara bem à nossa frente com uma lanterna, fazendo sinais para nós.
Apesar do ruído do motor, Garrison ouviu o homem perguntar:
- Garotos, aonde vocês vão?
- Vamos para a praia.
- Aquilo é uma propriedade particular. Vocês têm permissão para chegar até lá?
- É onde nós moramos - respondeu Tommy, que estava ao volante.
- É verdade?
- Por acaso parecemos um bando de garotos ricos e mimados? - perguntou um deles, querendo se fazer de engraçadinho.
- O que vocês andaram aprontando? - perguntou o homem, suspeitando de alguma coisa.
- Passeando na praia, curtindo. Mas agora está muito frio.
- Vocês beberam?
Seu idiota, pensou Garrison, ouvindo todo aquele interrogatório. Você está conversando com adolescentes, pobres criaturas, condicionadas a uma espécie de rebeldia contra qualquer tipo de autoridade pelos próximos dois anos. Eu tenho a simpatia deles, porque estou fugindo dos tiras, e os jovens passaram para o meu lado sem desejar saber o que fiz de errado. Se você desejar a cooperação deles, jamais irá obtê-la com intimidação.
- Beber? Cruzes... não! - disse o outro garoto. Verifique o isopor aí atrás. Você só vai encontrar refrigerante.
Garrison, que estava espremido contra o isopor, rezava para que o homem não olhasse a parte de trás para verificar se era verdade. Se aquilo acontecesse, ele chegaria à conclusão de que havia algo parecido com um ser humano protegido pelos cobertores, sobre os quais os garotos estavam sentados.
- Refrigerante, hã? Que espécie de cerveja havia ali, até que vocês bebessem tudo?
- Escuta aqui, cara - disse Tommy. - Por que está nos pressionando desse jeito? Você é um tira, ou o quê?
- Sim, de fato, eu sou um tira.
- Onde está o seu uniforme? - perguntou um dos garotos.
- É um trabalho secreto. Escutem, estou disposto a deixá-los seguir em frente, sem verificar se beberam ou não. Mas preciso saber de uma coisa: vocês viram um homem velho, de cabelos grisalhos, hoje à noite, na praia?
- Quem é que quer saber de velhos? - perguntou um deles. - Estamos atrás é de mulheres.
- Vocês teriam notado este tipo, se o vissem. Ele provavelmente estaria vestindo um calção de banho.
- Hoje à noite? - perguntou Tommy. - Estamos quase em dezembro, cara. Sente o vento.
- Talvez ele estivesse vestido com alguma coisa mais.
- Não o vimos - disse Tommy. - Nenhum cara velho de cabelos grisalhos. Algum de vocês viu?
Os outros três também responderam não terem visto ninguém que correspondesse àquela descrição, e receberam permissão para seguir em frente, no sentido norte, entrando na área residencial, com casas de frente para o mar, e praias particulares.
Depois de contornarem um pequeno morro, fora da vista do homem que os havia parado, puxaram o cobertor de cima de Garrison, que finalmente ficou sentado de maneira confortável.
Tommy deixou os três companheiros em suas casas e levou Garrison consigo, porque os pais iriam passar a noite fora. Ele vivia numa casa que mais parecia um navio, com vários níveis de convés.
Seguindo Tommy até o vestíbulo da casa, Garrison deu uma rápida olhada no espelho. Ele não estava se parecendo em nada com aquele famoso advogado de cabelos grisalhos, conhecido de todos no tribunal da cidade. O cabelo estava molhado e sujo. O rosto também estava todo sujo: areia, grama e o que mais podia haver. Ele sorriu diante daquela figura.
- Há um telefone aqui - disse Tommy, da saleta da casa.
* * *
Nora e Travis prepararam o jantar, comemoraram, deixaram tudo limpo e foram dar atenção a Einstein, esquecendo-se totalmente da ligação que tinham de fazer para Garrison, agradecendo por tudo o que ele havia feito, encaixotando e remetendo os quadros. Estavam sentados diante da lareira, quando Nora se lembrou. Anteriormente, quando tinham que ligar para Garrison, sempre o fizeram de uma cabine pública em Carmel. Acabaram achando que aquilo tudo era desnecessário. Naquela noite, nenhum dos dois estava disposto a pegar o carro para ir até a cidade.
- Poderíamos esperar até amanhã e ligarmos de Carmel - disse Travis.
- Vai ser mais seguro, se nós telefonarmos daqui - comentou Nora.
- Se eles tivessem ligado você a Garrison, ele teria nos avisado.
- Ele poderia não saber que a polícia havia descoberto a nossa ligação
- disse Travis. - Poderia não saber que a polícia o estivesse observando.
- Garrison saberia - afirmou ela com segurança. Travis fez um sinal com cabeça, concordando.
- Sim, estou certo de que ele saberia.
- Portanto, não há problema algum em ligarmos.
Ela estava a meio caminho do telefone, quando este tocou. A telefonista disse:
- Tenho uma ligação a cobrar para qualquer pessoa que conheça o sr. Garrison Dilworth, em Santa Bárbara. Posso completar a ligação?
Poucos minutos antes das dez horas, depois de procurar cuidadosamente pelo parque e pela praia, Lem admitiu com certa relutância que Garrison Dilworth o havia enganado. Ordenou que seus homens fossem para o QG e para o porto.
Ele e Cliff também voltaram de carro para o porto, procurando o iate que servira de ponto de observação para vigiar Dilworth. Ao entrarem em contato com o barco da guarda costeira que acompanhava o Amazing Grace, ficaram sabendo que a mulher do advogado havia mudado a direção do barco perto de Ventura e agora estava navegando ao longo da costa na direção norte, de volta a Santa Bárbara.
Às 10:36 ela entrou no porto.
Lem e Cliff, encolhidos por causa do frio, observavam a mulher que manobrava o barco, calmamente, fazendo-o atacar na vaga de Dilworth, no ancoradouro. Era um lindo barco, magnificamente conduzido.
Ela teve o descaramento de gritar para eles:
- Ei, não fiquem aí parados! Segurem as cordas e me ajudem a amarrá-lo.
Eles obedeceram, porque estavam na verdade ansiosos para falar com ela, o que não poderia ser feito, a menos que o Amazing Grace estivesse definitivamente atracado.
Depois de prestarem a ajuda, os dois foram até o barco. Cliff estava usando um Top-Sider, como parte de seu disfarce, mas os sapatos de Lem eram comuns e não serviam para pisar no convés com segurança, principalmente porque o barco estava balançando um pouco.
Antes que pudessem dizer qualquer coisa para a mulher, uma voz atrás deles disse:
- Desculpem-me cavalheiros...
Lem se virou e viu Garrison Dilworth iluminado por um poste perto do porto, preparando-se para subir no barco. Ele estava vestido com algumas roupas que alguém lhe emprestara. A calça era larga demais na cintura, presa com cinto e curta demais embaixo, deixando aparecer os calcanhares brancos. A camisa era imensa.
-...por favor, desculpem-me, mas preciso de algumas roupas mais quentes, e que sejam minhas, e uma xícara de café...
- Meu Deus - exclamou Lem.
-...para descongelar estes velhos ossos.
Depois de ficar com a respiração suspensa, tal a surpresa, Cliff Soames deu uma gargalhada e olhou para Lem.
- Desculpe.
O estômago de Lem ardia e doía com um início de úlcera. Ele não manifestou qualquer indício de mal-estar, não se dobrou, nem ao menos colocou a mão na barriga, pois aquilo daria maior prazer a Dilworth. Lem apenas olhou para o advogado, para a mulher, então foi embora sem dizer palavra.
- Aquele maldito cachorro - disse Cliff resignado com a derrota, ao lado de Lem, no porto -, certamente inspira uma puta lealdade.
Mais tarde, ao deitar-se em uma cama de motel, porque estava demasiadamente cansado para voltar para casa em Orange, Lem Johnson pensou no que Cliff dissera: "Lealdade". Digno de uma puta "lealdade".
Lem se perguntava, se algum dia teria sentido este tipo de lealdade para com alguém, como os Cornell e Garrison Dilworth aparentemente se mostravam com relação ao cachorro. Lem tossia e se virava na cama, incapaz de conciliar o sono, e finalmente admitiu que não poderia descansar até que se convencesse de que seria capaz do mesmo grau de lealdade e dedicação que vira nos Cornell e no advogado.
Ele ficou sentado no escuro, recostado à cabeceira da cama.
Bem, é claro, ele era extremamente leal a seu país, o qual amava e honrava. À mulher. Ele era leal a Karen em todos os aspectos - coração, mente e físico. Amava Karen. Ele a amava há quase vinte anos.
- Sim - disse em voz alta no quarto vazio do motel, às duas horas da madrugada -, sim, se você é tão leal a Karen, por que não está com ela esta noite?
Mas não estava sendo justo consigo mesmo. Além do mais, tinha um trabalho para fazer, um trabalho importante.
- Este é o problema - resmungou ele - Você está sempre, sempre com um trabalho para fazer.
Ele dormia fora de casa mais de cem noites por ano, uma em cada três. E quando permanecia em casa, sua atenção estava desviada para o trabalho, a mente ligada ao último caso. Karen certa vez lhe disse que desejava ter filhos, mas Lem adiara a decisão de aumentar a família, alegando que não teria capacidade de cuidar das crianças até que tivesse certeza de que sua carreira estivesse garantida.
- Garantida? - perguntou ela. - Cara, você herdou todo o dinheiro do papai. Você começou a vida melhor do que a maioria das pessoas.
Se ele fosse leal a Karen como aqueles sujeitos eram ao cachorro, sua dedicação a ela deveria significar satisfazer primeiro as necessidades da mulher. Se Karen desejava uma família, então a família seria colocada antes da carreira dele, certo? No mínimo ele deveria ter feito isto, quando ambos tinham pouco mais de trinta anos. Entre os vinte e os trinta anos ele teria se dedicado só às atividades profissionais e, depois dos trinta, à criação dos filhos. Lem já estava com quarenta e cinco anos, quase quarenta e seis e Karen, quarenta e três. O tempo para formar uma família já havia passado.
Lem foi tomado de grande solidão.
Saiu da cama, dirigiu-se ao banheiro, acendeu a luz e encarou-se firmemente no espelho. Os olhos estavam profundos, vermelhos. Ele perdera tanto peso com este último caso, que o rosto estava ficando cadavérico.
Começou a ter dores de estômago e curvou-se, segurando-se na borda da pia, com o rosto para baixo. Já há um mês que ele estava se sentindo mal, mas a sua condição parecia bem pior. A dor levara muito tempo para cessar.
Ao olhar-se no espelho de novo, ele disse:
- Você não tem sido leal nem a você mesmo, seu olho do eu. Você está se matando, trabalhando até a morte e você não pode parar. Não está sendo leal a Karen, nem leal a você mesmo. Não há lealdade para com o seu país ou para com a Agência. Porra; você tem sido unicamente fiel à esta visão doida de vida, como um homem velho, caminhando na corda bamba.
Maluco.
Aquela palavra parecia ecoar dentro do banheiro, muito tempo depois que a pronunciara. Ele havia amado e respeitado o pai, jamais dizendo qualquer coisa que o ofendesse. Hoje, admitira diante de Cliff que seu pai fora "impossível". E agora, uma visão de sua loucura. Ainda amava o seu pai e ao mesmo tempo rejeitava completamente os ensinamentos dele.
Há um ano, há um mês e mesmo há alguns dias passados, ele teria dito que seria impossível manter-se preso ao amor do pai e ter vida própria. E naquele momento, por Deus, parecia não somente possível, mas essencial que ele separasse o amor que tinha pelo pai da influência recebida, também do pai, com referência à obstinação pelo trabalho.
O que está acontecendo comigo?... pensou.
Liberdade? Finalmente a liberdade, aos 45 anos?
Olhando de revés para o espelho, ele disse:
- Quase quarenta e seis.
NOVE
1
No domingo, Travis percebeu que Einstein estava cada vez comendo menos, quase sem apetite mas, na segunda-feira, 29 de novembro, o cachorro parecia bem. Na segunda e terça, Einstein não deixara absolutamente qualquer resto de comida na tigela e leu novos livros. Espirrou somente uma vez e não tossiu mais. Bebeu mais água do que o normal, embora não excessivamente. Passava mais tempo junto à lareira, caminhando pouco pela casa... bem, o inverno estava se aproximando rapidamente, e os animais mudam de comportamento com as estações do ano.
Na livraria em Carmel Nora comprou o Manual veterinário do dono de cachorro e começou a procurar o significado para os sintomas de Einstein. Ela descobriu que a apatia, perda parcial de apetite, espirros, tosse e sede excessiva podiam indicar uma centena de doenças ou doença nenhuma.
- A única coisa que não pode ser é resfriado - comentou Nora. Os cachorros não ficam resfriados da mesma forma que nós. - Mas na hora em que segurou o livro para ler, os sintomas que Einstein manifestara haviam desaparecido totalmente e Nora concluiu, então, que ele estava com boa saúde.
Einstein usando o aparelho da despensa, construiu a seguinte mensagem:
EM FORMA.
Abaixando-se ao lado do cachorro, passando-lhe a mão no pêlo, Travis disse:
- Imagino que você deva saber melhor do que ninguém.
POR QUE SE DIZ EM FORMA?
Colocando novamente as letras nos tubos, Travis respondeu:
- Bem, porque quer dizer... sadio.
MAS POR QUE SIGNIFICA SADIO?
Travis ficou pensando a respeito da metáfora - em forma - e chegou à conclusão de que não estava tão certo do real significado. Perguntou a Nora, que apareceu na porta da despensa, dizendo não ter explicação para a frase.
Retirando mais letras dos tubos, empurrando-as com o focinho, o cão perguntou:
POR QUE SE DIZ SOA COMO DÓLAR.
- Soa como dólar quer dizer sadio, confiável - respondeu Travis. Abaixando-se ao lado do cachorro, Nora disse:
- Isto é mais fácil. O dólar norte-americano era antigamente a moeda mais estável e confiável do mundo. Ainda o é, suponho. Por muitas décadas o dólar não tem sofrido ataques terríveis de inflação como outras moedas e não há razão para perdermos a fé no dólar. Por este motivo, as pessoas dizem "sou tão confiável, quanto o dólar". É claro. O dólar não se apresenta mais como nos velhos tempos, e a frase não tem tanta relação como antes, mas ainda se usa.
POR QUE AINDA SE USA?
- Porque... costumávamos usá-la - respondeu Nora, encolhendo os ombros.
POR QUE SE DIZ SADIO COMO UM CAVALO? OS CAVALOS NUNCA FICAM DOENTES?
Recolhendo as letras para colocá-las nos tubos, Travis disse:
- Não, de fato, os cavalos são animais muito delicados, apesar do tamanho. Ficam doentes com muita facilidade.
Einstein parecia estar ansioso para que Nora ou Travis lhe falassem mais alguma coisa.
Nora tentou explicar:
- Nós provavelmente dizemos que somos sadios como cavalos, porque os cavalos parecem fortes, dando a impressão de nunca ficarem doentes, embora adoeçam o tempo todo.
- Observe o seguinte - Travis disse para o cachorro -, nós, humanos, falamos muitas coisas, o tempo todo, muitas vezes sem sentido.
Com ajuda de mais letras que tirara do tubo, Einstein formou mais uma mensagem:
VOCÊS SÃO MUITO ESTRANHOS.
Travis olhou para Nora e os dois riram muito.
Embaixo de VOCÊS SÃO MUITO ESTRANHOS, o cão escreveu:
MAS EU GOSTO DE VOCÊS, DE QUALQUER FORMA.
A curiosidade e o senso de humor de Einstein pareciam, mais do que nunca, que, embora Einstein pudesse ter estado doente, agora encontrava-se bem.
Aquilo tudo acontecera na terça-feira.
Na quarta-feira, 1º de dezembro, enquanto Nora pintava no segundo andar, Travis dedicava o dia a inspecionar o sistema de segurança e a limpar as armas.
Todas as dependências tinham armas cuidadosamente escondidas sob os móveis, atrás de cortinas ou armários, mas sempre ao alcance da mão. Eles tinham duas espingardas Mossberg, quatro Smith & Wesson Modelo 19, duas pistolas calibre 38, que levavam na pickup e no Toyota, uma carabina e duas pistolas Uzi. Poderiam ter adquirido todo aquele arsenal legalmente, em alguma casa de armas, uma vez que eram proprietários de uma casa e haviam estabelecido residência no município, mas Travis não dispunha de muito tempo. Desejava ter as armas desde a primeira noite na nova casa.. Para isto, através de Van Dyne, em San Francisco, ele e Nora entraram em contato com um negociante ilegal de armas, obtendo tudo do que necessitavam. É claro, que não poderiam ter comprado determinados acessórios de conversão para as Uzi, em uma loja autorizada. Mas compraram três equipamentos especiais em San Francisco, tornando a carabina e as pistolas Uzi completamente automáticas.
Travis verificou em todos os compartimentos da casa, procurando ter certeza de que as armas estavam adequadamente posicionadas, sem poeira, ou se estavam precisando de lubrificação e se estavam carregadas. Sabia que tudo deveria estar em ordem, mas sentia-se mais tranqüilo através daquele trabalho regular de inspeção.
Pegou uma Mossberg e saiu para dar um pequeno passeio com Einstein em torno da casa. Ele parava perto de cada censor infravermelho, quando era possível. Os censores haviam sido cuidadosamente instalados, protegidos por rochas, plantas e ao lado de um tronco podre de pinheiro. Tudo fora comprado no mercado paralelo em San Francisco. Os aparelhos não representavam o que havia de mais moderno no setor, não eram o estado da arte da tecnologia de segurança, mas ele os havia escolhido porque eram semelhantes aos equipamentos usados na época em que servia na Força Delta e eram bons para aquele propósito. As linhas dos censores eram subterrâneas e seguiam até uma caixa colocada em um dos armários da cozinha. Quando o sistema era ligado durante a noite, nada maior do que um guaxinin poderia se aproximar a menos de dez metros da casa ou entrar no estábulo, sem que o alarme fosse acionado. Neste caso, não haveria campainhas, sirenas ou qualquer outra coisa barulhenta que alertasse o monstro, fazendo-o fugir. Não desejavam ter que sair atrás dele, caçando-o. Entretanto, quando o sistema era acionado, ligava todos os aparelhos de radiorrelógio que haviam sido regulados com o volume baixo, para não assustar o invasor, mas com som suficiente para chamar atenção de Travis e Nora.
Naquele dia, todos os censores estavam colocados em seus devidos lugares, como sempre. Tudo o que ele teria que fazer, era tirar a poeira acumulada no vidro dos aparelhos.
- O fosso do palácio está em boas condições, senhor - disse Travis.
Einstein rosnou, aprovando.
No estábulo, Travis e Einstein examinaram o equipamento que, esperavam, proporcionaria uma terrível surpresa para o monstro.
No canto noroeste, completamente escuro, à esquerda da porta, havia sido fixado um botijão de aço na prateleira da parede. No canto oposto, em diagonal, no fundo do estábulo, atrás da pickup, Travis colocara outro botijão semelhante. Os recipientes que eram parecidos com botijões de gás que as pessoas costumam usar em cabanas, durante o verão. Mas aqueles não continham gás de cozinha. Pelo contrário, foram cheios com uma substância conhecida como oxido nitroso, que às vezes era incorretamente chamada de "gás hilariante". Alguém poderia sentir vontade de rir, no início, mas depois da segunda inalação, era queda na certa antes que a risada pudesse ser dada. Dentistas e cirurgiões freqüentemente usavam este tipo de gás como anestésico. Travis o comprara de um fornecedor de material cirúrgico em San Francisco.
Depois de ligar as luzes do estábulo, Travis verificou a pressão dos botijões. Completamente cheios.
Além da enorme porta na parte da frente, o estábulo também tinha outra porta menor, nos fundos. Eram as duas únicas entradas. Travis havia feito duas pequenas janelas no sotão. Durante a noite, depois que o sistema de alarme era colocado em ação, a porta dos fundos era mantida sem chave, na esperança de que o monstro entrasse, com o objetivo de observar a casa. Quando ele abrisse a porta e penetrasse no estábulo, o sistema seria acionado, fechando automaticamente a porta atrás dele. A porta da frente chaveada pelo lado de fora impediria que a criatura fugisse.
Simultaneamente ao movimento da porta que fecharia, os tanques liberariam todo o gás em menos de um minuto, porque Travis providenciaria válvula de emergência de alta pressão, conectadas com o alarme. Ele não esqueceu de vedar todos os buracos possíveis do estábulo, evitando que o gás escapasse até que as portas fossem abertas.
O monstro não poderia se refugiar na pickup, porque o carro estaria devidamente fechado. Nenhum espaço dentro do celeiro estaria livre de gás. Em menos de um minuto a criatura cairia no chão. Travis havia considerado a possibilidade de usar algum tipo de gás venenoso, que pudesse ser adquirido no mercado negro, mas optou pela outra alternativa porque, se algo desse errado, o perigo seria enorme para ele, Nora e Einstein.
Uma vez que o gás fosse liberado, derrubando o monstro, Travis poderia simplesmente abrir a porta, deixar que o gás se espalhasse, e então entrar com uma carabina Uzi para matar a criatura. Na pior das hipóteses, mesmo que o monstro voltasse a si, ele estaria tonto, desorientado e, portanto, fácil de ser abatido.
Depois de concluírem que tudo estava funcionando bem no estábulo, Travis e Einstein voltaram para o quintal atrás da casa. O dia estava frio, mas não havia vento. As árvores na floresta estavam em silêncio, não moviam uma folha sequer.
Travis perguntou:
- O monstro ainda está te procurando? Abanando rapidamente o rabo, Einstein respondeu: "Sim."
- Está perto?
Einstein farejou a ar gelado de inverno, andou um pouco até próximo do mato, e farejou novamente levantando a cabeça, olhando intensamente para dentro da floresta. Repetiu todo aquele ritual na extremidade sul da propriedade.
Travis teve um pressentimento de que Einstein não estava na verdade usando os olhos, ouvidos, nem o faro, para tentar localizar o monstro. Ele tinha uma propriedade toda especial de entrar em contato com aquela criatura, diferente dos meios pelos quais ele pudesse farejar um puma ou um esquilo. Travis tinha a certeza de que o cachorro estava empregando um inexplicável sexto sentido - algo mediúnico ou quase mediúnico.
Finalmente, Einstein voltou para junto de Travis, rosnando curiosamente.
- Está perto? - perguntou Travis.
Einstein farejou na direção da floresta, observando atentamente o escuro entre as árvores e pareceu indeciso na resposta.
- Einstein, há alguma coisa errada? Finalmente o caçador latiu: "Não."
- O monstro está chegando perto?
Einstein mais uma vez ficou indeciso, então respondeu: "Não."
- Você está certo? "Sim."
- Certo, mesmo? - "Sim."
Já de volta à casa, enquanto Travis abria a porta, Einstein se afastou dele para verificar mais uma vez se tudo corria bem. O cachorro parou um pouco junto ao degrau superior da varanda dos fundos, dando uma olhada final para a silenciosa floresta que circundava a casa. Depois, levemente arrepiado, seguiu Travis, entrando em casa.
Durante aquela tarde, na inspeção dos sistemas de segurança, Einstein havia-se mostrado mais carinhoso do que nunca, esfregando-se nas pernas de Travis, aconchegando-se, procurando por todos os meios receber atenção especial. Naquela noite, enquanto assistiam à televisão, e durante o jogo de palavras no chão da sala, o cachorro continuava desejando receber carinho. Colocava a cabeça no colo de Nora e depois no colo de Travis, repetidas vezes. Einstein parecia desejar que lhe fizessem carinho até o próximo verão.
Desde o dia em que fora encontrado nos contrafortes de Santa Ana, Einstein evoluíra de maneira excepcional, passando do comportamento de um cachorro comum, quando era difícil acreditar no que ele de fato era, a ter atitudes tão inteligentes quanto de um homem. Naquela noite, Einstein apresentava-se no seu primeiro estágio. Apesar da vivacidade no jogo de palavras - no qual os seus resultados só eram ultrapassados por Nora e em que formava palavras que faziam referências furtivas à gravidez dela - Einstein mostrava-se mais cachorro do que nunca.
Nora e Travis decidiram terminar a noite com leitura - histórias policiais - mas Einstein não queria que eles se preocupassem adaptando um livro na máquina de mudar páginas. Ao contrário, deitou-se no chão na frente da poltrona de Nora e adormeceu.
- Ele ainda parece estar meio mole - disse Nora para Travis.
- No jantar ele não deixou nada no prato. E tivemos um dia longo. A respiração do cachorro, enquanto dormia, apresentava-se normal, e Travis não se preocupou. Realmente, ele se mostrava mais animado do que nunca, com relação ao futuro deles. A inspeção de todo o equipamento de segurança deu-lhe redobrado ânimo e a certeza de que os preparativos estavam corretos. Travis acreditava ser capaz de lidar com o monstro, quando chegasse. E graças à coragem de Garrison Dilworth e a sua dedicação à causa de Einstein, o governo havia fracassado, em tentar localizá-los. Nora voltou a pintar com renovado entusiasmo e Travis decidiu colocar em uso a licença de corretor de imóveis, com o nome de Samuel Hyatt, tão logo o monstro fosse posto fora de combate. Embora Einstein estivesse um pouco cansado... bem, ele havia mostrado estar bem-disposto, e certamente voltaria ao normal no dia seguinte.
Naquela noite Travis dormiu, mas não teve nenhum sonho.
Pela manhã, acordou antes de Nora. Ela se levantou somente depois que Travis tomou banho e se vestiu. A caminho do banheiro, ela o beijou, mordendo-lhe o lábio com carinho e murmurando sonolentamente declarações de amor. Os olhos dela estavam inchados, o cabelo em desordem e o hálito azedo. Apesar disso, Travis a teria puxado de volta à cama, se ela não tivesse dito:
- Tente hoje à tarde, Romeu. Agora, a única coisa que meu coração está pedindo são ovos, bacon, torradas e café.
Travis desceu até o primeiro andar para tirar a proteção das janelas, permitindo a entrada da luz matinal. O céu estava cinzento como no dia anterior, e ele não ficaria surpreso se chovesse até o final da tarde.
Na cozinha, ele percebeu que a porta da despensa estava aberta e a luz acesa. Olhou para dentro procurando por Einstein, mas o único sinal do cachorro era uma mensagem, que houvera escrito durante a noite.
NÃO ESTOU BEM. NADA DE MÉDICO. POR FAVOR. NÃO QUERO VOLTAR PARA O LABORATÓRIO. MEDO. MEDO.
- Que merda, meu Deus. Travis saiu da despensa gritando:
- Einstein!
Não havia latidos, nem o ruído das patas no chão.
A cozinha ainda estava com as janelas protegidas e a luz da despensa não chegava a iluminar a sala. Travis acendeu as luzes.
Einstein não estava lá.
Travis correu para o outro lado da cozinha. O cachorro também não estava lá.
Com o coração batendo, quase a ponto de doer o peito, Travis subiu até o segundo andar, pulando os degraus de dois em dois, procurou no quarto de hóspedes e depois no quarto que Nora usava como estúdio de pintura, onde ele procurara desesperadamente. Por um momento, não poderia imaginar onde teria ido parar o cachorro e fez uma pausa, ouvindo Nora cantar no chuveiro - ela não fazia a menor idéia do que se passava - e ele já ia entrar no banheiro para dizer a ela que havia alguma coisa errada, terrivelmente errada, quando saiu correndo na direção do banheiro do primeiro andar, quase caindo na escada. Ao chegar lá, encontrara o que tanto temia.
O banheiro estava impregnado de mal cheiro. O cachorro, sempre atencioso, vomitara no vaso sanitário, mas não tivera forças para dar descarga. Einstein estava deitado no chão do banheiro, de lado. Travis ajoelhou-se ao lado dele. Einstein estava inconsciente, não morto, estava respirando; o ar entrando e saindo pelas narinas fazia um ruído dissonante. Ele tentou levantar a cabeça, quando Travis falou com ele, mas não tinha forças para se mover.
Os olhos dele! Cristo! Os olhos dele!
Sempre com todo cuidado, Travis levantou a cabeça do cão e verificou que os olhos dele, sempre maravilhosamente expressivos, estavam brancos como leite. Um líquido amarelo corria-lhe dos olhos, fixando-se no pêlo. Aquele mesmo líquido pingava nas narinas.
Colocando uma das mãos no pescoço do cachorro, Travis sentiu que os batimentos cardíacos eram irregulares.
- Não! - exclamou Travis. - Ah, não, não vai ser assim, garoto. Eu não vou permitir que isto aconteça.
Deixou a cabeça do cachorro repousar novamente no chão, levantou-se, encaminhou-se na direção da porta. Einstein gemeu quase que de forma imperceptível, como pedindo para não ser deixado a sós.
- Já volto! Já volto! - prometeu Travis. - Segura firme, garoto. Eu já volto.
Correu escada acima, mais rápido do que nunca. O coração batia com tanta força, que ele imaginava que fosse rasgar ao meio. Estava ofegante. Nora estava saindo do banheiro, nua, toda molhada. As palavras de Travis saíram rapidamente, em pânico:
- Vista-se rápido, temos que ir ao veterinário. Rápido, pelo amor de Deus!
- O que aconteceu? - perguntou Nora, perplexa.
- Einstein! Rápido! Acho que ele está morrendo.
Ele pegou um cobertor da cama, deixou Nora se vestindo e correu para o banheiro onde estava Einstein. A respiração do cachorro parecia ter piorado durante aquele breve período. Ele dobrou o cobertor em dois, e cobriu o cachorro.
Einstein teve uma manifestação de dor, ao ser tocado por Travis.
- Calma! Calma! Tudo vai ficar bem - Travis tentou tranqüilizá-lo. Nora surgiu apressadamente na porta ainda abotoando a roupa, que estava molhada, porque ela não tivera tempo de secar o corpo. O cabelo molhado espichava-se ao longo do rosto.
- Oh, peludo, não, não! - disse Nora, com a voz carregada de emoção. Ela desejou se abaixar para abraçar o cachorro, mas não havia tempo a perder. Travis disse:
- Traga a pickup para perto da casa.
Enquanto Nora corria para o estábulo, Travis enrolava Einstein em torno do cobertor o mais que podia, deixando do lado de fora a cabeça e o rabo do cachorro. Tentando evitar qualquer sofrimento maior para o animal, Travis levantou-o nos braços e o tirou do banheiro, saindo de casa depois de passar pela cozinha. Travis fechou a porta mas deixou-a sem chave, sem dar a menor importância à segurança naquele momento.
O tempo estava frio. Não estava bom como no dia anterior. Os arbustos faziam um ruído estranho, batidos pelo vento, os galhos das árvores se curvavam.
Nora já havia ligado a pickup e o motor rugia.
Travis desceu calmamente as escadas da varanda na direção da camioneta, caminhando como se estivesse carregado de porcelana antiga chinesa. O vento forte deixou o cabelo de Travis todo para cima, as pontas do cobertor a bater sem cessar e o pêlo da cabeça de Einstein ondulado, como se fosse um vento maligno que desejasse tirar o cachorro de seus braços.
Nora manobrou a pickup na direção da saída, parando onde Travis aguardava com o cachorro. Nora dirigiria a camioneta.
Era verdade o que se comentava: às vezes, em determinadas situações de crise, de grande agitação emocional, as mulheres são mais capazes de manter o controle do que muitos homens. Travis sentou-se ao lado de Nora, segurando o cachorro, delicadamente. Ele não estava em condições de dirigir, porque o corpo todo tremia. Descobrira que havia estado chorando, desde o momento em que encontrou o cachorro no banheiro. Ele enfrentara no passado experiências difíceis no Exército e não se lembrava de ter entrado em pânico, ou de ser paralisado pelo medo, em momento algum durante as perigosas atividades da Força Delta. Aquele momento era diferente, ele estava com Einstein, era o filho dele. Se precisasse dirigir, com toda a certeza iria de encontro a uma árvore, ou sairia da estrada, caindo em um barranco. Havia lágrimas também nos olhos de Nora, mas ela não se entregava. Mordia os lábios e dirigia como se fosse treinada para o difícil trabalho de substituir artistas de cinema em cenas perigosas. No final da estrada de terra, eles dobraram a direita na auto-estrada da Costa do Pacífico, na direção de Carmel, onde tinham certeza de encontrar, pelo menos, um veterinário.
Durante a viagem, Travis conversava com Einstein, tentando encorajá-lo:
- Tudo vai ficar em ordem. Tudo vai estar bem. Não é tão sério assim quanto parece, você vai ficar tão bem quanto antes.
Einstein rosnou fracamente nos braços de Travis e este teve a certeza de que o cachorro estava ouvindo. Ele estava apreensivo que o veterinário visse a tatuagem na orelha de Einstein, o que significaria que o cachorro voltaria para o Banodyne.
- Não se preocupe com isto, peludo. Ninguém vai tirá-lo de nós. Por Deus que não vão conseguir. Vão ter que passar primeiro por cima de mim, e não vão conseguir isto, de forma alguma.
- De forma alguma - concordou Nora, sorrindo.
Einstein estava tremendo, encostado no peito de Travis... que se lembrava das palavras no chão da despensa:
NÃO ESTOU BEM... MEDO... MEDO.
- Não tenha medo - disse ele ao cachorro. - Não tenha medo. Não há motivo para isso.
Apesar da garantia de Travis, Einstein tremia muito e estava assustado - e Travis também.
2
Ao parar num posto de gasolina perto de Carmel, Nora achou o endereço do veterinário no catálogo de telefones e ligou para ele, para ter certeza de encontrá-lo no consultório. O dr. James Keene atendia na Dolores Avenue, na extremidade sul da cidade. Ela estacionou a pickup em frente ao consultório poucos minutos antes das nove.
Nora estava esperando encontrar uma clínica veterinária típica, e ficara surpresa de descobrir que o dr. Keene fazia a sua própria casa de consultório. Era um prédio de dois andares, estilo inglês, uma mistura de pedra e reboco, com a madeira sobressaindo-se na beira do telhado.
Eles apressavam o passo levando Einstein, e o dr. Keen abriu a porta antes mesmo que se aproximassem, como se os aguardasse. Uma tabuleta indicava que a entrada do consultório era pelo lado da casa, mas o veterinário os atendeu pela porta da frente. Ele era um homem alto, com o rosto tristonho e a pele extremamente pálida. Os olhos castanhos expressavam certa tristeza, mas o sorriso se mostrava afetuoso e suas maneiras educadas.
- Tragam-no por aqui, por favor - disse o dr. Keene, fechando a porta.
Ele os conduziu rapidamente pelo vestíbulo, cujo chão de carvalho era protegido por um pequeno tapete oriental. À esquerda, através de uma passagem em arco, havia uma sala de estar muito bem decorada, o que dava à casa um ar habitável, com lâmpadas de leitura, uma estante abarrotada de livros, algumas colchas de crochê sobre algumas poltronas, em caso de fazer frio durante à noite. Havia outro cachorro na sala, um labrador preto, que os olhava com ar grave, como se entendesse a gravidade da situação.
O veterinário os conduziu até os fundos daquela imensa casa, onde no lado esquerdo havia o consultório. Ao longo das paredes, os armários brancos de metal estavam cheios de remédios, soros, cápsulas e uma variedade imensa de outros medicamentos que compunham aquela estranha farmácia do dr. Keene.
Travis colocou Einstein com todo o cuidado em uma mesa para ser examinado, retirando o cobertor de cima do cachorro.
Nora estava consciente de que ela e Travis pareciam um tanto quanto desesperados, como se estivessem levando um filho em estado muito grave para o médico. Os olhos de Travis estavam vermelhos e, embora não estivesse chorando naquele momento, ele freqüentemente fungava. Quando Nora estacionou a pickup em frente à casa e puxou o freio de mão, não conseguiu mais conter o choro. Ela estava no lado oposto da mesa com o braço sobre Travis, chorando em silêncio.
O veterinário estava aparentemente acostumado a reações emocionais fortes apresentadas pelos outros donos de cachorros e não olhara nem uma vez para Nora ou Travis, sem indicar de forma alguma que julgava a atitude deles exagerada.
Com ajuda do estetoscópio, o dr. Keene ouviu o coração de Einstein, apalpou o abdômen, examinou os olhos com um aparelho de oftalmologia. Einstein não reagiu, como se estivesse paralisado. A única forma que indicava que Einstein estava vivo era a respiração irregular.
Não é tão sério quanto parece, disse Nora para si mesma, enxugando os olhos com lenço de papel.
Virando-se para eles, o dr. Keene perguntou:
- Qual é o nome dele?
- Einstein - respondeu Travis.
- Há quanto tempo vocês o têm?
- Há apenas alguns meses.
- Ele tomou todas as vacinas?
- Não - respondeu Travis. - Diabos me carreguem, mas não.
- Por que não?
- É... complicado - respondeu Travis. - Há muitas razões, pelas quais ele não recebeu as vacinas.
- Nenhuma razão é boa o suficiente para isto - disse Keene, desaprovando. - Não tem licença, não foi vacinado. É irresponsável da parte de vocês, deixar o cachorro sem ser devidamente vacinado.
- Eu sei - disse Travis sentindo-se o pior dos homens. - Eu sei.
- O que há de errado com ele? - perguntou Nora. Interiormente ela queria ouvir: Não é tão sério o quanto parece.
- Cinomose - respondeu Keene, batendo de leve no cachorro.
* * *
Einstein fora removido para um canto do consultório e colocado num colchão do tamanho adequado, protegido por uma capa de plástico. Para evitar que se movimentasse em determinado momento, quando tivesse forças para tal, fora preso por uma pequena guia fixada na parede. O dr. Keene dera uma injeção em Einstein.
- Antibiótico - explicou ele. - Nenhum antibiótico é capaz de combater a cinomose, mas evita que o animal tenha outros tipos de infecção.
O veterinário também colocou uma agulha numa das veias, da perna de Einstein, para lhe proporcionar alimento, através do soro.
Quando tentou colocar uma focinheira em Einstein, tanto Travis, quanto Nora protestaram.
- Não estou com medo de que ele me morda - explicou o veterinário.
- É para o próprio bem dele, para evitar que retire a agulha. Se ele tiver forças, vai fazer o que todos os cachorros fazem diante de um ferimento... lamber e morder a parte irritada.
- Não este cachorro - disse Travis. - Este é diferente. - Passou por Keene e desamarrou as patas de Einstein.
O veterinário começou a protestar, mas também achou que ficava melhor assim.
- Está bem. Por enquanto. Ele está muito fraco agora, de qualquer maneira.
Tentando fugir à verdade, Nora perguntou:
- Como pode ser assim tão sério? Ele apresentou apenas alguns leves sintomas e depois de alguns dias ficou bom.
- Metade dos cachorros que contraem cinomose não apresenta qualquer sintoma - disse o veterinário, ao repor um vidro de antibiótico no armário e jogar fora uma seringa descartável. - Outros ficam levemente adoentados. Os sintomas aparecem e somem no dia seguinte. Alguns, como Einstein, ficam de fato muito doentes. A doença pode vir gradualmente ou passar de leves sintomas para... isto aí. Mas há esperança.
Travis estava curvado sobre Einstein, num ponto que o cachorro pudesse vê-lo, sem levantar a cabeça ou virar os olhos, para que soubesse que estava sendo atendido, recebendo tratamento e carinho. Quando ouviu Keene falar de esperança, Travis olhou para o veterinário ansiosamente:
- Que esperança? O que o senhor quer dizer?
- A condição do cachorro, antes de contrair a doença, freqüentemente determina o desenvolvimento da moléstia, que pode ser mais grave em animais que não recebiam bom tratamento. Está claro para mim que Einstein era bem tratado.
- Nós o alimentávamos muito bem e tratávamos para que se exercitasse adequadamente - assegurou Travis.
- Nós lhe dávamos banho e o esfregávamos com freqüência - disse Nora.
Sorrindo, e balançando a cabeça em sinal de aprovação, o dr. Keene disse:
- Então temos uma chance. Há uma esperança real.
Nora olhou para Travis, que a encarou rapidamente, logo voltando os olhos para o cachorro. A pergunta crucial ficou reservada para Nora:
- Ele vai ficar bom, não é doutor? Ele não vai morrer, vai? Evidentemente, o dr. James Keene estava consciente de que sua atitude taciturna e grave era uma resposta àquela pergunta, tendo uma expressão no rosto que inspirava pouca confiança. No entanto, ele desenvolvera um sorriso cheio de calor humano e um tom de voz suave que transmitia segurança. Era um comportamento paternal, talvez calculado, mas parecia autêntico e ajudava a compensar aquele ar triste que Deus lhe dera. Ele se aproximou de Nora, colocou as mãos nos ombros dela e disse:
- Minha querida, você ama este cachorro como um bebê, não é mesmo?
Ela mordeu os lábios e balançou a cabeça.
- Então tenha fé. Tenha fé em Deus, que cuida do bem-estar de pequenos pardais que vivem ao relento, como se diz, e tenha um pouco de fé em mim. Acredite se quiser. Sou muito bom no que faço e mereço sua fé.
- Acredito que o senhor seja competente - respondeu Nora. Ainda ao lado de Einstein, Travis perguntou, secamente.
- Mas quais são as chances? Diga-me abertamente. Deixando Nora, Keene se virou para Travis:
- Bem, o líquido que está escorrendo dos olhos e do focinho não é tão grosso quanto deveria ser. Não há infecção do abdômen. Vocês disseram que ele vomitou, mas não teve diarréia, teve?
- Não, apenas vômito - respondeu Travis.
- A febre está alta, mas não perigosamente alta. - Ele tem babado muito?
- Não - respondeu Nora.
- Ele tinha acessos de balançar a cabeça e morder o ar, como se algo desagradável lhe enchesse a boca?
- Não - responderam Travis e Nora, simultaneamente.
- Vocês perceberam se ele corria em círculos, ou caía no chão, sem razão aparente? Você o viram deitar de lado e espernear violentamente como se estivesse correndo? Circulando sem direção através de uma sala, batendo pelas paredes, vacilando, tropeçando, ou alguma coisa parecida?
- Não, não - respondeu Travis.
- Meu Deus, ele poderia ter estado assim? - perguntou Nora.
- No segundo estágio da doença é assim - respondeu Keene. - Há comprometimento cerebral. Ataques epilépticos. Encefalite.
Travis tremia ao olhar para Keene. Ele estava pálido. Os olhos cheios de medo.
- Envolvimento cerebral? Se ele se recuperar, haverá alguma deficiência cerebral?
Nora estava sentindo náuseas. Ela imaginava Einstein com o cérebro atingido pela doença - tão inteligente quanto um homem, inteligente bastante para se lembrar de que fora especial e que alguma coisa se perdera com a moléstia e que iria ter uma vida opaca, estúpida, diferente do que era. Tonta de medo, Nora foi obrigada a se apoiar na mesa onde estava Einstein.
Keene comentou:
- A maioria dos cachorros no segundo estágio da doença não sobrevive. Mas, se ele o conseguiu, certamente haverá algum problema cerebral. Nada que exija que ele seja posto a dormir. Ele poderá ter coréia, o resto da vida, o que significa caminhar com dificuldade, repuxando-se, mas não paralisia. Mas ele poderá ser relativamente feliz com isto, sendo capaz de levar uma vida sem dor, Einstein ainda será um bom cachorro.
Travis quase gritou com o veterinário:
- Para o inferno se ele vai continuar sendo um bom cachorro, ou não.
Não estou preocupado com os efeitos físicos do comprometimento cerebral. E a mente dele?
- Bem, ele vai saber quem são vocês e mostrará afeição. Não haverá problema. Ele poderá dormir muito. E passará por períodos de apatia. Mas certamente ficará descuidado. Poderia esquecer aquele treinamento...
- Que se dane se ele vai mijar a casa toda, desde que continue pensando.
- Pensando? - perguntou o dr. Keene, visivelmente perplexo. - O que você quer dizer exatamente? Ele é acima de tudo um cachorro.
O veterinário aceitara a ansiedade deles e a profunda aflição e abatimento, como comportamentos normais de donos de cachorro. Mas naquele momento o veterinário já começara a olhar para o casal de maneira estranha.
Para mudar de assunto e tentar desviar a suspeita do veterinário, Nora perguntou:
- Está bem, mas Einstein está no segundo estágio da doença?
- Até onde posso ver, ele ainda está no primeiro. E agora que o tratamento começou, se não constatarmos sintomas mais violentos nas próximas vinte e quatro horas, acho que temos uma boa chance de mantê-lo neste primeiro estágio e fazer regredir a doença.
- E não há comprometimento cerebral, no primeiro estágio? - perguntou Travis, com tal insistência que o veterinário franziu a testa novamente.
- Não. Não neste primeiro estágio.
- E se a doença não evoluir, ele pode se salvar? - perguntou Nora. Da maneira mais educada possível, e com a voz mais suave do que o normal James Keene respondeu:
- Bem, agora as chances são muito boas, para que ele se recupere deste primeiro estágio sem deixar mazelas no organismo. Quero que vocês entendam que as probabilidades de recuperação são de fato muito altas. Mas ao mesmo tempo, não quero lhes dar uma falsa esperança. Isto seria cruel. Mesmo que a doença não evolua para um estágio mais avançado, Einstein poderá morrer. O percentual de sobrevivência está do lado da vida, mas a morte é possível.
Nora estava chorando, novamente. Ela pensara que tivesse adquirido controle sobre si mesma e que pudesse se considerar uma mulher forte. Mas naquele momento estava chorando. Ela se dirigiu para Einstein, sentou-se ao lado dele, no chão, e colocou a mão sobre a cabeça do cachorro, apenas para que Einstein tivesse certeza de que ela estava por perto.
Keene estava começando a ficar um pouco impaciente com a reação emocional tumultuada diante das más notícias. Com um tom de voz frio, ele disse:
- Escutem, tudo o que podemos fazer é dar a ele um tratamento de primeira qualidade e ter esperança no melhor. Ele vai ter que permanecer aqui, é claro, porque o tratamento de cinomose é um tanto complexo e há necessidade de uma observação veterinária permanente. Vou ter que mantê-lo recebendo antibióticos, soro, estas coisas, na veia... e precisarei aplicar sedativos se ele tiver algum ataque.
Einstein tremia sob a mão de Nora, como que respondendo as boas possibilidades de cura.
- Está bem, sim, está bem - disse Travis -, obviamente se ele tem que ficar aqui no seu consultório, nós vamos ficar com ele.
- Não há necessidade... - começou a falar Keene.
- Certo, sim, não há necessidade - disse Travis rapidamente -, mas nós desejamos permanecer, vai ser bom para ele, podemos dormir aqui no chão, ao lado dele.
- Oh, temo que isto não seja possível - disse Keene.
- Sim, é possível, perfeitamente possível - disse Travis, insistindo em convencer o veterinário.
- Não se preocupe conosco, doutor. Nós nos arrumamos. Einstein precisa de nós aqui e vamos ficar com ele. O importante é que estejamos ao lado dele. Naturalmente, vamos lhe pagar por este inconveniente.
- Mas eu não sou gerente de hotel!
- Devemos ficar - disse Nora com firmeza. Keene continuou:
- Realmente, sou um homem compreensivo, mas...
Travis segurou a mão direita do veterinário com força, surpreendendo Keene.
- Escute, dr. Keene, por favor, deixe-me tentar explicar. Eu sei que isto é um pedido especial. Sei que estamos parecendo um casal de doidos, mas temos nossas razões e posso garantir que são muito boas. Este cachorro não é comum, dr. Keene. Ele salvou a minha vida...
- E salvou também a minha vida - acrescentou Nora. - Em situações separadas.
- Ele me aproximou da minha mulher - disse Travis. - Sem Einstein nós jamais teríamos nos conhecido, casado, e provavelmente estaríamos mortos.
Perplexo, Keene olhava de um para o outro.
- Vocês querem dizer que ele salvou a vida de vocês... literalmente? E em duas ocasiões diferentes?
- Exatamente - disse Nora.
- E ele aproximou vocês?
- Sim - confirmou Travis. - Mudou nossas vidas totalmente, mais do que somos capazes de explicar.
Segurando firme nas mãos de Travis, o veterinário olhou para Nora, baixou os olhos cheios de carinho para Einstein, balançou a cabeça e disse:
- Sou louco por histórias heróicas deste tipo. Esta eu gostaria de ouvir, com toda a certeza.
- Nós vamos lhe contar tudo - prometeu Nora. Mas pensou: Tudo será contado numa versão cuidadosamente elaborada.
- Quando eu tinha cinco anos - disse James Keene -, fui salvo de morrer afogado por um labrador preto.
Nora lembrou-se do maravilhoso labrador preto que vira na sala de o si ar e quis saber se era descendente do outro que o salvara ou se era apenas uma homenagem ao labrador.
- Está bem - disse Keene. - Vocês podem ficar.
- Obrigado - disse Travis com a voz embargada. - Obrigado. Livrando-se das mãos de Travis, Keene disse:
- Mas teremos que esperar no mínimo quarenta e oito horas antes de termos certeza de que Einstein vai sobreviver. Vai ser duro.
- Quarenta e oito horas não são nada - disse Travis. - Duas noites de sono no chão não significam nada para nós.
Keene prosseguiu.
- Tenho um pressentimento de que duas noites vão significar uma eternidade para vocês, diante das atuais circunstâncias. - olhou para o seu relógio de pulso e disse: - O meu assistente vai chegar dentro de dez minutos, e pouco depois vai abrir o consultório para as atividades da manhã. Eu não posso tê-los aguardando no sofá por enquanto, porque estou esperando outros clientes. Além do mais, vocês não desejariam ficar na sala de espera dos cachorros, observando outras pessoas ansiosas com seus animais doentes. Isto os deixaria deprimidos. Vocês podem esperar na sala de estar, e quando fecharmos o consultório no final da tarde, podem retornar para o lado de Einstein.
- Podemos dar uma olhadinha nele durante o dia? - perguntou Travis. Sorrindo, Keene respondeu:
- Está bem. Mas só uma olhadinha.
Debaixo da mão de Nora, Einstein finalmente parou de tremer. Ele estava menos tenso, mais tranqüilo, como se compreendesse que o veterinário havia permitido a presença deles.
* * *
A manhã custou a passar, os minutos se arrastavam. Na sala de estar do dr. Keene havia um aparelho de televisão, livros, revistas, mas Travis e Nora não estavam interessados.
A cada meia hora eles atravessavam o saguão para dar uma olhadinha em Einstein. Ele não parecia pior, mas também não parecia melhor.
De repente, apareceu Keene que lhes disse:
- A propósito, sintam-se em casa para usar o banheiro. Temos refrigerantes na geladeira, se o desejarem. Façam café, se preferirem. - Ele sorriu para o labrador preto ao lado. - Este aqui é Pooka. Ele é capaz de amá-los até a morte, se o permitirem.
Pooka era, de fato, um dos cachorros mais dóceis que Nora jamais vira. Sem que se lhe ordenasse ele dava cambalhotas, fazia-se de morto, sentava-se sobre as patas traseiras, então se aproximava, farejando, abanando o rabo e pedindo que se lhe fizessem algum tipo de carinho.
Por toda a manhã, Travis ignorou o cachorro, como se agradar Pooka fosse trair Einstein e garantir que este morresse.
Entretanto, Nora sentiu-se confortada pelo cachorro e lhe deu atenção.
Ela disse para si mesma que tratando bem Pooka agradaria aos deuses, e estes tratariam de curar Einstein. O desespero dela produziu um tipo tão forte de superstição, quanto a Travis, embora de natureza diferentes.
Travis caminhava de um lado para o outro na sala. Depois sentou-se na cadeira com a cabeça para baixo, apoiada nas mãos. Por muito tempo permaneceu em uma das janelas observando a rua, mas na verdade não conseguia observar o que havia diante dos olhos, tinha apenas uma visão autodepreciativa de si mesmo. Estava-se culpando pelo acontecido e nada poderia aliviar aquele sentimento.
Olhando pela janela, com os braços em torno do corpo, como se estivesse resfriado, Travis perguntou bem baixo:
- Você acha que ele viu a marca na orelha?
- Não sei. Talvez, não.
- Você acredita que haja uma descrição de Einstein circulando pelas clínicas veterinárias? Será que Keene sabe o significado da marca?
- Talvez, não - respondeu ele. - Talvez estejamos um pouco paranóicos a este respeito.
Depois que receberam aquele telefonema de Garrison, que lhes contou sobre o verdadeiro aparato montado para evitar que fossem avisados, eles começaram a imaginar quantas pessoas estariam envolvidas na procura do cachorro. Portanto, não havia nada daquilo de "paranóia".
* * *
Do meio-dia até as duas horas, o dr. Keene fechara o consultório para almoço. Convidou Travis e Nora para comerem com ele na cozinha. Ele era um celibatário que sabia cuidar muito bem de si mesmo, tinha um freezer com diversas comidas congeladas que ele mesmo preparara. Ele descongelou três lasanhas e com ajuda de Travis e Nora preparou uma salada. A comida era boa, mas nenhum dos dois estava com apetite.
Quanto mais Nora conhecia James Keene, mais gostava dele. Keene era muito alegre, apesar da aparência tímida. O amor dele pelos animais dava-lhe um toque todo especial ao caráter. Os cachorros eram na realidade toda a sua vida, todo o seu grande amor e quando falava sobre eles o entusiasmo era tão grande que ele se transformava num homem bonito, atraente.
O veterinário lhes contou sobre o labrador preto, King, que o salvara de morrer afogado, quando era criança. Depois encorajou Nora e Travis a falarem sobre a experiência deles com Einstein. Travis inventou uma história pitoresca sobre alpinismo e como quase foi morto por um urso furioso. Contou como Einstein afugentara o animal, saindo em sua perseguição. Nora contou uma história bem próxima da verdade: foi atacada por um maníaco sexual, que só não foi mais longe por causa da intervenção de Einstein.
Keene estava impressionado.
- Ele é um herói.
Nora sentiu que as histórias sobre Einstein haviam impressionado tanto o veterinário que se ele descobrisse a marca e soubesse seu significado talvez permitisse que fossem embora em paz, sem comunicar nada à polícia, se Einstein se recuperasse.
Mas, quando estavam recolhendo os pratos Keene disse:
- Sam, eu tenho me perguntado por que a sua mulher o chama de "Travis".
Eles estavam preparados para aquilo. Desde que assumiram as novas identidades, estavam conscientes de que seria mais fácil e mais seguro para Nora continuar chamando-o de Travis, ao contrário do novo nome e, num momento decisivo, trocar a identidade. Podiam dizer que Travis era apelido, fruto de uma brincadeira particular entre eles; através de trejeitos e sorrisos, poderiam demonstrar que havia qualquer coisa erótica em torno do apelido, o que ficaria desagradável para explicar. Foi desta forma que trataram a pergunta de Keene, mas não estavam muito dispostos a sorrir da maneira que deveria ser. Se fato, Nora imaginou que se tentasse algo mais descontraído, aumentariam as suspeitas de Keene, se ele as tivesse.
* * *
Um pouco antes de começar o horário de atendimento à tarde, Keene recebera um telefonema da sua assistente, comunicando que estava com uma forte dor de cabeça e com enjôo de estômago. O veterinário teria que atender a todos os pacientes sozinho, e recebeu uma proposta de ajuda de Travis e Nora.
- Não temos experiência como veterinários, é claro. Mas podemos executar as tarefas mais corriqueiras - disse Travis.
- Certo - concordou Nora -, desde que nos mostre como fazer. Passaram a tarde toda segurando gatos, cachorros, papagaios e toda a sorte de outros bichos, enquanto Jim Keene os tratava. Auxiliaram nos curativos, retirando medicamentos dos armários, lavando e esterilizando material veterinário, fizeram cobranças de honorários e passaram recibos. Alguns dos animais, atingidos por vômitos e diarréia, deixaram a sala em estado deplorável, o que também exigiu cuidados especiais de Travis e Nora, que cuidavam daquilo com absoluta naturalidade.
Eles tinham dois motivos para toda aquela atividade: primeiro a chance de permanecer no consultório com Einstein, durante a tarde inteira. Entre um e outro atendimento, ficavam fazendo companhia ao cão, animando-o com palavras de coragem e confiança e tendo a certeza de que ele não estava piorando. O lado ruim de ficar em torno de Einstein continuamente era saber que ele também não estava apresentando qualquer melhora.
O outro motivo para ajudar o veterinário era fazer com que o dr. Keene ficasse agradecido pela ajuda e não reconsiderasse a decisão de permitir que passassem a noite com Einstein.
O dia estava com mais clientes do que o normal, segundo Keene, e este não poderia fechar o consultório antes das seis horas. O cansaço e a ajuda prestada pelo casal haviam criado um clima de camaradagem. Enquanto preparavam o jantar, e durante a refeição, Jim Keene contou-lhes histórias divertidas sobre animais, e eles estavam se sentindo quase tão à vontade com ele, como se o conhecessem há muitos meses, e não somente um dia.
Keene preparou o quarto de hóspedes para eles e lhes deu alguns cobertores com os quais poderiam forrar o chão do consultório. Travis e Nora combinaram que cuidariam de Einstein por turnos, permitindo a cada um deles dormir um pouco no quarto oferecido por Keene.
O primeiro turno foi de Travis, das dez da noite às três da manhã. Apenas uma lâmpada fora deixada acesa num dos cantos da sala. Travis passava um tempo sentado e outro tanto acariciando o cachorro.
As vezes Einstein acordava e o som de sua respiração era mais normal, menos assustador. Mas dormia logo em seguida e a respiração ficava difícil, parecendo gemer de dor e - Travis o sabia - de medo. Enquanto Einstein permanecia acordado, Travis conversava com ele, relembrando algumas experiências do passado, os bons momentos e a felicidade dos últimos seis meses, e o cão parecia mais aliviado ouvindo a voz de Travis.
Incapaz de se movimentar, o cachorro urinou por algumas vezes no colchão protegido por um plástico. Resignado, com o mesmo carinho e compreensão que um pai teria para com um filho doente, Travis deixava tudo limpo novamente. Curiosamente, Travis até ficava satisfeito de fazê-lo, porque toda a vez que Einstein urinava, demonstrava que ainda estava vivo, com suas funções orgânicas, de certa forma, normais.
Choveu durante a noite, e a água batendo no telhado tinha um som macabro, como tambores de um funeral.
Duas vezes durante o primeiro turno, Jim Keene apareceu de pijama e de robe. Na primeira vez ele examinou Einstein cuidadosamente e mudou o soro. Na segunda, depois de examiná-lo, aplicou-se uma injeção. Em ambas as ocasiões, dissera a Travis que não estava observando sinais de melhora. Naquele momento, no entanto, era tranqüilizador saber que igualmente não havia qualquer indicação de que a doença estivesse avançando. Freqüentemente durante a noite, Travis caminhava até o outro lado da sala para ler as palavras impressas em um quadro na parede sobre a pia:
TRIBUTO A UM CÃO
O único amigo absolutamente desinteressado que um homem pode ter neste mundo egoísta, aquele que nunca o abandona e que jamais se mostra ingrato ou traiçoeiro, é o seu cão. O cão está ao lado do seu dono na pobreza e na riqueza; na saúde e na doença. Ele dorme no chão frio, castigado, furiosamente, pelo vento e pela neve, como único companheiro ao lado do seu dono. Beija as mãos que não têm nada para lhe oferecer; lambe as feridas e as cicatrizes deixadas pelo mundo. Vigia o sono do seu pobre dono, como se protegesse a um príncipe. Quando todos os amigos abandonam o seu dono, ele permanece. Quando a riqueza e a reputação caem por terra, em mil pedaços, ele é tão constante no seu amor como o sol que diariamente ilumina a terra.
-Senador George Vest - 1870.
Cada vez que lia o tributo, Travis ficava renovadamente maravilhado com a existência de Einstein. Que outra fantasia de criança poderia ser mais fantástica do que aquele cachorro, tão inteligente e sábio quanto qualquer adulto? Que bênção de Deus poderia ser mais maravilhosa do que ter o cachorro da família capaz de se comunicar como ser humano e desfrutar da vitórias e tragédias com um completo entendimento do seu significado e importância? Que milagre poderia trazer mais alegria, e Travis passou a ter mais respeito pelos mistérios da natureza e mais entusiasmo pelas maravilhas da vida. Seja como for, a combinação da inteligência humana com a personalidade do cachorro, em uma só criatura, era a concretização do sonho de uma espécie ainda mais abençoada do que a humanidade, por ser mais nobre e de maior valor. E qual fantasia de homens adultos poderia ser melhor do que esta, encontrar uma outra espécie inteligente para trocar experiências neste mundo frio e, através deste convívio, ter aliviada a nossa incrível solidão e desespero na face da terra?
E que outra perda poderia ser mais devastadora do que a morte de Einstein, primeira esperança evidente de que a humanidade carregaria dentro de si a semente da grandeza e da bondade?
Travis não podia dominar tais pensamentos, que o faziam tremer dos pés à cabeça, deixando-o um pouco deprimido. Culpando-se por estar naquele estado emocional lastimável, ele caminhou até a outra sala, onde Einstein não perceberia, e talvez ficasse assustado com as suas lágrimas.
* * *
Nora tomou o lugar de Travis às três horas da madrugada. Ela teve que insistir com ele para cuidar de Einstein, pois Travis não queria sair do consultório de maneira alguma.
Exausto, mas protestando que não conseguiria dormir, Travis caiu na cama e dormiu.
Sonhou que estava sendo perseguido por uma criatura com os olhos amarelos, com garras afiadas e mandíbulas de jacaré. Estava tentando proteger Nora e Einstein, empurrando-os, estimulando-os a correr, correr, correr. Mas de alguma forma, o monstro acabou aparecendo, passou por Travis, dilacerou Einstein e se atirou furiosamente sobre Nora - era a maldição de Cornell que não poderia ser evitada pela simples troca de nome para Samuel Hyatt - e finalmente Travis parou de correr e caiu de joelhos e baixou a cabeça; depois de perder Nora e o cachorro, desejava a própria morte e ouvia a coisa se aproximando - clic, clic, clic, - e ele estava com medo, mas não se importava de morrer.
Nora o acordou pouco antes das cinco horas da manhã.
- Einstein! - disse ela. - Ele está tendo convulsões.
* * *
Quando Nora conduziu Travis até o consultório, com suas paredes brancas, Jim Keene estava já tratando de Einstein. Os dois não podiam ajudar em nada, apenas ficar fora ao caminho do veterinário, dando-lhe espaço para trabalhar.
Ela e Travis mantinham-se abraçados, ansiosos.
Depois de alguns minutos, o veterinário se levantou. Parecia preocupado e não tinha mais no rosto o sorriso fácil, que o caracterizava, nem tentou tranqüilizá-los.
- Apliquei nele mais uma dose para combater a convulsão. Acho... que ele vai ficar bem, agora.
- Ele já entrou no segundo estágio? - perguntou Travis.
- Talvez, não - respondeu o veterinário.
- Ele poderia ter convulsões e mesmo assim permanecer no primeiro estágio?
- É possível - respondeu Keene.
- Mas não provável.
- Não provável - concordou Keene -, mas... não impossível. Segundo estágio da cinomose -, pensou Nora.
Ela apertava Travis cada vez mais em seus braços. Segundo estágio. Comprometimento cerebral. Encefalite. Coréia. Cérebro prejudicado. Cérebro comprometido.
* * *
Travis não queria mais voltar para a cama. Permaneceu ao lado de Nora e de Einstein pelo resto da noite.
Eles acenderam mais uma luz na sala, sem no entanto perturbar Einstein. Observavam o cachorro mais atentamente, procurando sinais de evolução da doença: aqueles movimentos involuntários dos quais Keene havia falado.
Embora Einstein não apresentasse tais sintomas, Travis não conseguia ficar esperançoso, de qualquer forma. Mesmo que Einstein permanecesse no primeiro estágio da doença, ele parecia estar morrendo.
* * *
No dia seguinte, 3 de dezembro, sexta-feira, a assistente de Jim Keene continuava passando mal e não iria trabalhar, portanto, Travis e Nora ajudaram o veterinário novamente.
Em torno da hora do almoço a febre de Einstein ainda nãÔ havia baixado. Aquele líquido amarelo ainda escorria dos olhos e das narinas. A respiração de Einstein não parecia tão difícil quanto antes. Nora no seu desespero já começava a pensar que a respiração dele estava mais suave, porque o cachorro não fazia mais esforço para puxar o ar e, portanto, entregava pouco a pouco suas forças.
Ela perdera totalmente o apetite. Lavava e passava tanto as roupas dela quanto as de Travis, enquanto usavam dois robes do dr. Keene, grandes demais para os dois.
O consultório apresentava-se, igualmente, muito movimentado naquela tarde. Nora e Travis não paravam um minuto sequer e para ela era ótimo manter-se ocupada.
Quando faltavam vinte minutos para as cinco, Nora teve uma experiência que não esqueceria pelo resto de sua vida. Pouco depois de ajudar Keene a cuidar de um setter irlandês, Einstein ganiu duas vezes do colchão onde estava sendo tratado, num canto da sala. Nora e Travis voltaram-se rapidamente, ofegantes, apreensivos, esperando o pior porque eram os primeiros sons que ouviam de Einstein, além dos gemidos, desde que haviam chegado à clínica veterinária. Mas o cachorro levantou a cabeça - foi a primeira vez que teve forças para tal - e conseguiu piscar para eles; ele os olhava de forma curiosa, como se desejasse saber onde, diabos, estava.
Jim ajoelhou-se ao lado do cachorro e, enquanto Travis e Nora aguardavam com expectativa ao lado, submeteu Einstein e um completo exame.
- Olhem os olhos dele. Estão esbranquiçados, sim, mas não tanto quanto antes. E não se vê mais aquela secreção amarela. - Com uma toalha úmida ele limpou uma crosta que havia em torno dos olhos e do focinho; as narinas se apresentavam mais secas do que antes. Com auxílio de um termômetro, Keene verificou com alegria a queda de temperatura:
- Baixou. Exatamente dois graus.
- Graças a Deus - exclamou Travis.
E Nora descobriu que os seus olhos estavam cheios de lágrimas, novamente.
Jim comentou:
- Ele ainda não está fora de perigo. As batidas cardíacas são mais regulares, menos aceleradas, mas não é o que se deseja. Nora, pegue um daqueles pratos que estão ali em cima e encha-o de água.
Nora voltou da pia um minuto depois colocando o prato com água ao lado do veterinário.
Jim empurrou para Einstein.
- O que você acha da idéia, companheiro?
- Einstein levantou a cabeça do colchão e olhou para o prato. A língua estava seca, coberta com uma substância pegajosa. Ele gemeu e começou a lamber as mandíbulas.
- Talvez - disse Travis -, se nós ajudarmos.
- Não - disse Keene. - Vamos deixá-lo à vontade. Ele vai saber se tem forças para isto. Não podemos forçá-lo a beber água, o que provocaria vômito mais tarde. Ele vai saber instintivamente se já é hora de tomar água.
Gemendo um pouco, Einstein mudou de posição no colchão, virando para o outro lado, ficando quase de barriga para baixo. Colocou o focinho perto do prato, farejou a água, colocou a língua numa primeira tentativa, como que provando, gostou e repetiu a tentativa duas vezes, depois deitou-se novamente.
Passando a mão no pêlo do animal, Keene disse:
- Ficaria muito surpreso se ele não se recuperasse, completamente refeito da doença, em tempo.
* * *
Em tempo.
Travis não gostou daquela expressão.
Quanto tempo Einstein precisaria para se recuperar? Quando o monstro finalmente chegasse, seria bom para todos se Einstein já houvesse recuperado toda a força, com todos os sentidos funcionando normalmente. Se os raios infravermelhos do sistema de segurança não funcionassem, Einstein seria o primeiro a dar o sinal de alerta.
Depois que o último paciente se retirou às cinco e meia, Jim Keene desapareceu misteriosamente por meia hora e quando retornou trazia consigo uma garrafa de champanha:
- Não sou um homem de beber, mas certas ocasiões exigem um brinde especial.
Nora havia prometido que não tomaria bebida alguma de álcool durante sua gravidez, mas até mesmo a mais solene promessa não teria valor diante daquelas circunstâncias.
Apanharam as taças e brindaram juntos no consultório, bebendo à saúde de Einstein, que os ficou observando por alguns minutos. Depois, exausto, adormeceu, novamente.
- Um sono natural - observou Keene. - Sem qualquer sedativo.
- Quanto tempo vai necessitar para se recuperar? - perguntou Travis.
- Para se livrar da cinomose, mais alguns dias, uma semana. Gostaria de mantê-lo aqui mais dois dias, pelo menos. Vocês podem voltar para casa, se o desejarem, mas são bem-vindos se quiserem permanecer. Vocês me ajudaram muito.
- Vamos ficar - disse Nora.
- Mas depois que vencermos a cinomose - perguntou Travis - ele vai ficar enfraquecido?
- A princípio, muito fraco - respondeu Jim. - Mas, aos poucos, vai recuperar, se não toda, boa parte de sua antiga força. Estou certo agora, já que ele não entrou na segunda fase da doença, apesar das convulsões. Assim, talvez, no primeiro dia do ano já esteja em forma de novo, sem maiores problemas, sem tremores, nada disso.
Primeiro dia do ano.
Travis esperava que a recuperação fosse mais rápida.
* * *
Novamente, Travis e Nora passaram a noite trocando de turnos. Travis foi o primeiro a ficar acordado e às três da madrugada chegou a vez de Nora. A cidade de Carmel estava coberta pelo nevoeiro, que se aproximava da janela insistentemente.
Einstein estava dormindo, quando Nora chegou:
- Ele tem ficado acordado?
- Sim - respondeu Travis. - De vez em quando.
- Você... conversou com ele?
- Sim.
- E aí?
A expressão de Travis era grave, um pouco conturbada.
- Eu lhe fiz algumas perguntas, que poderiam ser respondidas com sim e não.
- E então...
- Ele não as respondeu. Simplesmente piscava os olhos ou gemia e voltava a dormir.
- Ainda está muito cansado - disse Nora, buscando desesperadamente uma desculpa para a não-comunicação do cachorro. - Ele não tem força suficiente nem para responder sim ou não.
- Talvez. Eu não sei... - disse Travis, pálido, obviamente deprimido -, mas, acho que ele está confuso.
- Ainda não se recuperou da doença - disse ela. - Ele ainda permanece com cinomose, lutando contra moléstia, ainda não se libertou. É normal que Einstein se mostre um pouco bobo.
- Confuso - repetiu Travis.
- Isto vai passar.
- Sim - concordou ele. - Isto vai passar.
Mas deixou escapar no tom de voz não acreditar que Einstein voltasse a ser o mesmo novamente.
Nora sabia o que Travis estava pensando: era a maldição de Cornell de novo, que ele dizia não existir mais. No entanto, o medo tomava conta de seu coração. Todos os que ele amava estavam condenados a sofrer e a ter morte prematura. Todos os que ele amava foram afastados dele.
Aquilo tudo não fazia sentido, é claro, e Nora não acreditava naquela possibilidade. Mas ela sabia como era difícil esquecer o passado, para encarar somente o futuro. Nora tinha um carinho muito grande por Travis e perdoava a sua falta de otimismo. Ela também sabia que não poderia fazer nada por ele, auxiliando-o a se livrar daquela angústia - nada, exceto beijá-lo, abraçá-lo por um momento e levá-lo até a cama para que dormisse um pouco.
Ao ficar sozinha, Nora sentou-se no chão ao lado de Einstein e disse:
- Há algumas coisas que preciso te dizer, peludo. Imagino que você esteja dormindo e não possa me ouvir, e mesmo que você estivesse acordado não entenderia o que tenho para falar. Talvez você jamais venha a entender e é por isso que estou falando todas estas coisas, porque tenho esperança de que a sua mente esteja intacta.
Ela fez uma pausa, respirou fundo e olhou em torno da sala do consultório, onde a luz fraca conseguia brilhar sobre os equipamentos de aço inoxidável e nos vidros dos armários. Às 3:30 da manhã era lugar solitário.
A respiração de Einstein às vezes sibilava. Ele não fazia qualquer movimento. Nem o rabo ele agitava.
- Pensava em você como meu guardião, Einstein. É assim que o chamei, quando você me salvou de Arthur Streck. Meu guardião. Você não somente me libertou daquele homem horrível. Você também me libertou da solidão e do desespero. Você tirou Travis daquele mundo escuro, no qual ele habitava, aproximou-se dele, e por dezenas de motivos você é um protetor tão perfeito quanto qualquer anjo da guarda desejaria ser. Neste seu coração puro e bom, você jamais desejou algo em troca pelo que estava fazendo. Nunca pensou em retribuição. Alguns biscoitos de cachorro, de vez em quando, alguns pedaços de chocolate. Mas você teria agido da mesma forma, ainda que recebesse só comida de cachorro. Você agia daquela forma, porque tinha amor no coração e ao receber amor já era uma recompensa suficiente para você. E por ser exatamente como você é, peludo, ensinou-me uma grande lição, uma lição que não posso traduzir em palavras...
Impossibilitada de falar, por um momento, Nora permaneceu sentada no escuro ao lado do seu amigo, seu filho, seu professor e guardião.
- Mas que se dane - finalmente disse -, tenho que achar as palavras certas, porque talvez esta seja a última vez em que eu tenha a oportunidade de imaginar que você ainda é capaz de entender... você me ensinou que eu também sou sua guardiã, que sou a guardiã de Travis, e que ele igualmente me protege e a você. Temos a responsabilidade de proteger um ou outro, somos todos sentinelas, todos nós, sentinelas com os olhos bem abertos na noite. Você me ensinou que todos podemos ser de alguma utilidade, ajudar e auxiliar até mesmo àqueles que pensam que não temos valor algum, que sejamos estúpidos e inúteis. Se amarmos e permitirmos que sejamos amados... bem, alguém que ama é o maior milagre que pode haver no mundo, valendo mais que todas as fortunas do passado. É isto o que você ensinou, peludo, e por sua causa jamais vou ser a mesma pessoa.
Einstein permaneceu sem fazer movimento algum, dormindo todo o resto da noite.
* * *
No sábado, Jim Keene abriu o consultório só na parte da manhã. Ao meio-dia, fechou a porta da clínica, que ficava ao lado da imensa casa.
Pela manhã, Einstein manifestara alguns sinais de melhora. Bebeu mais água e deitou-se sobre a barriga, em vez de ficar de lado. Levantou a cabeça, interessado naquela atividade do consultório do dr. Keene. Até mesmo provou de uma mistura de suco de carne cozida com ovos, que o veterinário colocou-lhe na frente, tomando quase tudo sem vomitar depois. Agora não mais recebia alimentação intravenosa.
Passava a maior parte do tempo cochilando. Quando Travis e Nora se dirigiam a ele, reagia como um cachorro comum.
Depois do almoço, sentados à mesa da cozinha com Jim, tomando um cafezinho, Travis e Nora viram o veterinário suspirar e depois dizer:
- Bem, não vejo como isto pode ser adiado por mais tempo. - disse e tirou uma folha de papel dobrada, que guardava no bolso interno do paletó, e a colocou sobre a mesa na frente de Travis.
Por um momento, Nora pensou que se tratava da conta pelos serviços prestados. Mas quando Travis abriu o papel, verificou tratar-se de uma circular remetida pelo pessoal do governo, que andava à procura de Einstein.
Os ombros de Travis ficaram caídos.
Sentindo o coração pesado, Nora se levantou e se aproximou de Travis para que os dois pudessem ler juntos o boletim. A data era a da semana anterior. A descrição de Einstein incluía os três números da marca na orelha, informando que o cachorro poderia estar acompanhado de um homem chamado Travis Cornell e de uma mulher, Nora, provavelmente com nomes trocados. As descrições - e fotografias - de Nora e Travis estavam na parte inferior do papel.
- Há quanto tempo você sabia disso? - perguntou Travis.
- Uma hora depois que acabei de examinar o cachorro, quinta-feira pela manhã. Tenho recebido boletins semanais, atualizados, há seis meses. Já recebi, inclusive, três telefonemas do Instituto Federal do Câncer, para que não me esquecesse de examinar todos os caçadores dourados e verificar se tinham a marca do laboratório, fazendo um imediato contato com eles, assim que descobrisse.
- E você já os informou sobre Einstein? - perguntou Nora.
- Ainda não.
- Você vai avisá-los agora? - perguntou Travis.
O veterinário pareceu mais carrancudo do que nunca e disse:
- De acordo com o Instituto do Câncer, este cachorro faz parte de uma experiência extremamente importante, que poderá levar à cura do câncer. Eles dizem que milhões de dólares que foram investidos na pesquisa podem resultar em nada se o cachorro não for encontrado e retornar ao laboratório, para que as experiências sejam completadas.
- Isso tudo é mentira - disse Travis.
- Vamos deixar uma coisa bem claro - advertiu o veterinário, ajeitando-se na cadeira e colocando as imensas mãos em torno da xícara de café. - Eu amo os cachorros até os ossos. Dediquei a minha vida aos animais. E amo os cachorros mais do que qualquer coisa. Mas temo não ser nem um pouco simpático à idéia de que devemos interromper qualquer experiência com animais. Não gosto de pessoas que pensam que os avanços da medicina que ajudam a salvar vidas não compensam o mal que fazemos a alguma cobaia, como um porquinho-da-índia, um gato, um cachorro. Não aprovo arrombar laboratórios para roubar animais, estragando anos de pesquisa... gente assim me causa náuseas. É bom e certo amar a vida e todas as suas formas. Mas estas pessoas não amam a vida, elas a destroem, o que é uma atitude selvagem, ignorante.
- Mas não é nada isso - disse Nora. - Einstein nunca foi usado em pesquisa de câncer. Isto é uma história que foi inventada. O Instituto do Câncer não está à procura de Einstein. É a Agência de Segurança Nacional que o deseja ter de volta. - Ela olhou para Travis e perguntou: - O que devemos fazer agora?
Travis deu um sorriso amarelo e respondeu:
- Bem, certamente não posso matar Jim aqui para impedi-lo... O veterinário ficou estupefato.
-...assim o que vou tentar fazer é persuadi-lo - finalizou Travis.
- A verdade? - perguntou Nora.
Travis olhou para Keene por um longo período e finalmente disse:
- Sim. A verdade. É a única coisa que poderá convencê-lo a jogar aquela circular no lixo.
Respirando fundo, Nora disse:
- Jim, Einstein é tão inteligente quanto eu, você ou Travis.
- Mais inteligente, às vezes, acho - completou Travis. O veterinário olhou para os dois sem compreender nada.
- Vamos preparar mais um pouco de café - disse Nora. - Vamos ter uma tarde muito longa.
* * *
Muitas horas depois, quando passavam dez minutos das cinco horas, naquele sábado, Nora e Travis, acompanhados de Jim Keene, se alinharam diante do colchão onde estava Einstein.
O cachorro tomou mais um pouco de água, e olhou para eles também com interesse.
Travis tentava imaginar se aqueles imensos olhos castanhos ainda possuíam aquela misteriosa capacidade de atenção que costumavam ter antes. Droga. Ele não podia ter certeza e aquilo o assustava.
Jim examinara Einstein: os olhos estavam normais e sua temperatura continuava em declínio.
- O coração parece que bate melhor, também - comentou o veterinário.
Cansado de tanto ser examinado, Einstein virou de lado dando um longo suspiro e voltou a cochilar. O veterinário disse:
- Não se parece em nada com um cachorro genial.
- Ele está doente ainda - disse Nora. - Tudo de que precisa é um pouco mais de tempo de recuperação.
- Quando você imagina que ele estará de pé? - perguntou Travis. Jim pensou um pouco a respeito e respondeu:
- Talvez, amanhã. Ele vai tremer um pouco, inicialmente, mas talvez amanhã. Vamos aguardar.
- Quando estiver de pé - comentou Travis -, quando ele recuperar o senso de equilíbrio e estiver interessado em se movimentar, isto deve indicar que ele está pensando melhor. Quando acontecer, então, vamos mostrar a você como ele é inteligente.
- Está bem - concordou Jim.
- E se ele provar que é inteligente - disse Nora -, você não vai devolvê-lo?
- Devolvê-lo para aquelas pessoas que criaram o monstro, do qual vocês me falaram? Devolvê-lo para aqueles mentirosos que inventaram esta circular idiota? Nora, que tipo de homem você pensa que sou?
- Um homem bom - respondeu Nora.
* * *
Vinte e quatro horas mais tarde, no domingo à noite, Einstein tentava dar os primeiros passos, de forma claudicante, ao se recuperar da doença.
Nora o acompanhava de joelhos, dizendo-lhe como ele era maravilhoso e bravo, encorajando-o a continuar. Ela vibrava a cada passo que ele dava, como se estivesse ensinando seu filho a caminhar. O que mais a deixava feliz era a maneira como o cachorro a olhava, manifestando um pouco de contrariedade pelo fato de haver ficado doente, mas era um olhar também bem-humorado, como se desejasse perguntar: Ei, Nora. Estou parecendo ridículo ou sou um espetáculo!
No sábado à noite Einstein recebeu comida de verdade e no domingo igualmente deliciou-se com tudo o que o veterinário lhe dava. Estava tomando muita água e o mais encorajador sinal de melhora era a insistência em sair de casa para fazer suas necessidades na rua. Ele não podia permanecer em pé por muito tempo e de vez em quando recuava um pouco para sentar-se; entretanto, não batia contra as paredes, nem andava em círculos.
No dia anterior, Nora havia saído para fazer algumas compras, e trouxera três jogos de palavras. Travis separou as letras em 26 grupos no chão da sala do consultório, onde havia espaço suficiente.
- Estamos prontos - disse Jim Keene, sentando-se no chão ao lado de Travis, com as pernas para trás, no estilo indígena.
Pooka estava deitado ao lado de seu dono, observando tudo com aqueles olhos negros.
Nora conduziu Einstein pela sala até o lugar do jogo. Colocando as mãos firmes na cabeça do cachorro e olhando firme nos olhos dele, ela disse:
- Está bem, peludo. Vamos provar ao dr. Jim que você não é um animal piegas de laboratório envolvido em pesquisas do câncer. Vamos mostrar a ele o que você realmente é e provar o que aquelas pessoas sórdidas desejam de você.
Ela tentou acreditar que estava vendo sinais de vivacidade nos olhos do cachorro, como antigamente.
Visivelmente amedrontado, Travis perguntou:
- Quem faz a primeira pergunta?
- Eu faço - disse Nora sem hesitar. - Virando-se para Einstein ela perguntou: - Como está a forma?
Eles explicaram a Jim Keene a mensagem que Travis encontrara na manhã em que Einstein ficara doente - FORA DE FORMA - então, o veterinário entendeu a pergunta.
Einstein piscou os olhos, e se voltou para as letras, piscou novamente, farejou tudo, e quando Nora já sentia o estômago revoltado, o cachorro começou a formar uma frase.
FORA DE SINTONIA.
Travis estremeceu como se recebesse uma descarga elétrica, tirando-o fora de si por alguns instantes e exclamou:
- Graças a Deus, graças a Deus! - E riu de felicidade.
- Puta merda! - exclamou por sua vez Jim Keene.
Pooka levantou a cabeça bem alto e empinou as orelhas, ciente de que alguma coisa de importante estava se passando, mas não tinha certeza, nem conhecimento do que fosse.
O coração de Nora estava aliviado e cheio de amor. Ela tornou a colocar as letras em posição e perguntou:
- Einstein, quem é o seu dono? Diga-nos o nome dele.
O cão olhou para ela, voltou-se para Travis, e deu uma resposta à altura.
DONOS, NÃO. AMIGOS.
Travis riu.
- Meu Deus! Por esta eu não esperava. Ninguém pode ser o seu dono, mas qualquer um pode ter orgulho de ser seu amigo.
Engraçado, aquela prova de capacidade intelectual fez com que Travis risse desenfreadamente, pela primeira vez em muito tempo, mas fez Nora chorar, aliviada.
Jim Keene ficou maravilhado, sorrindo ingenuamente.
- Eu estou me sentindo como uma criança que tenha descido as escadas na véspera de Natal e encontrado o Papai Noel colocando presentes junto à árvore - disse ele.
- Agora é a minha vez - disse Travis, arrastando-se no chão para colocar a mão sobre a cabeça de Einstein. - Jim mencionou o Natal, aliás está bem próximo. Em vinte dias já será Natal. Diga-me, Einstein, o que você deseja que Papai Noel lhe traga?
O cão tentou por duas vezes formar a resposta, mas em ambas as tentativas ele tinha segundas intenções. Ele se afastou um pouco e sentou-se e percebeu que todos estavam impacientes. Portanto, levantou-se e deu a resposta a Travis.
VÍDEOS DE MICKEY MOUSE.
* * *
Eles não se recolheram antes das duas horas da madrugada, porque Jim Keene estava um pouco embriagado, não de cerveja, vinho ou uísque. Mas com a inteligência de Einstein.
- Sim, com a inteligência de um homem, mas como um cachorro, como um cachorro, maravilhosamente parecido e ao mesmo tempo diferente do pensamento de um homem, pelo pouco que vi.
Mas Jim não exigiu mais do que uma dezena de exemplos sobre a inteligência do animal e foi o primeiro a dizer para que não cansassem o paciente dele. Continuava maravilhado. Tão excitado que mal podia conter-se.
Travis não teria ficado surpreso se o veterinário, de repente, explodisse.
Na cozinha, Jim lhes pediu para que contassem mais histórias sobre Einstein: o caso da Noiva moderna, em Solvang; a maneira como Einstein se comportou durante o primeiro banho quente de banheira, acrescentando mais água fria e muitas outras histórias. Jim, por sua vez, também contou novamente algumas histórias, como se Nora e Travis não as conhecessem, mas eles estavam felizes em agradá-lo.
Com um gesto largo, o veterinário arrancou da mesa aquela circular sobre Einstein, acendeu um fósforo e queimou o papel na pia. Jogou água sobre as cinzas, que desapareceram no ralo.
- Para o inferno todas estas mentes medíocres que mantinham uma criatura como esta maltratada, espezinhada e estudada. Podem ter tido o gênio para fazer Einstein, mas não entendem o significado do que eles mesmos fizeram. Não entendem a grandeza disto, porque se entendessem não desejariam trazê-lo aprisionado.
Finalmente, quando Jim Keene relutantemente concordou que todos precisavam dormir, Travis carregou Einstein (já dormindo) para o quarto de hóspedes. Prepararam um lugar confortável com ajuda de um cobertor no chão ao lado da cama deles.
- Agora tudo vai ficar bem - disse Nora.
- Ainda temos problema pela frente - disse Travis. - Ele estava sentindo que a recuperação de Einstein enfraquecera a maldição das mortes prematuras que o perseguia por toda a vida. Mas ele ainda não estava preparado para ter a esperança de acreditar que aquela maldição desaparecera de fato. O monstro ainda estava lá, em algum lugar... a caminho.
DEZ
1
Na terça-feira, 7 de dezembro, quando levaram Einstein de volta para casa, Jim Keene estava relutante em deixá-los partir. Ele os acompanhou até fora de casa, postando-se ao lado da pickup, lembrando a Travis e Nora o tratamento que deveriam aplicar a Einstein nas próximas semanas, enfatizando que precisaria examinar o cão uma vez por semana, pelo menos por um mês, mas deixou claro que gostaria de vê-los não somente por causa de Einstein, mas para jantarem, beberem e conversarem.
Travis sabia que o veterinário estava tentando lhe dizer que desejava continuar participando da vida de Einstein e desfrutar de sua magia.
- Jim, acredite-me, voltaremos. E antes do Natal você vai até nossa casa para passar alguns dias conosco.
- Eu gostaria.
- Nós, também - disse Travis com sinceridade.
A caminho de casa, Nora levava Einstein no colo, enrolado num cobertor, mais uma vez. O cachorro ainda não havia recuperado o antigo apetite, e continuava fraco. O seu sistema de defesa havia sido severamente atingido, e ficaria mais suscetível às doenças do que o normal, por enquanto. Ele teria que ser mantido na casa tanto quanto possível e mimado até que recuperasse o antigo vigor - segundo Jim Keene isto aconteceria provavelmente depois do primeiro dia do ano.
O céu estava cheio de nuvens escuras. O oceano Pacífico estava tão sólido e cinzento, que parecia formado por bilhões de cacos de louças e ladrilhos continuamente agitados por movimentos geológicos no fundo da Terra.
O tempo frio não podia abalar o alto astral deles. Nora sentia-se radiante e Travis assobiava. Einstein observava a paisagem com grande interesse, claramente avaliando cada maravilhosa sombra daquele quase descolorido dia de inverno. Talvez não esperasse enxergar o mundo do lado de fora do consultório de Jim Keene, de novo, e portanto até mesmo um mar com jeito de pedras misturadas e um céu cinzento eram paisagens preciosas.
Quando chegaram em casa, Travis deixou Nora na pickup com Einstein e entrou na casa sozinho, pela porta dos fundos, levando consigo a pistola 38, que costumava manter na camioneta. As luzes ainda continuavam acesas na cozinha, desde que tinham saído às pressas na semana anterior. Ele imediatamente procurou a pistola automática Uzi, que escondera no armário, deixando de lado a arma menor. Agia com toda a cautela, seguindo de sala em sala, procurando por detrás de todos os móveis e armários.
Não havia qualquer sinal de arrombamento, e igualmente não contava com isto. Aquela área rural era relativamente livre de crimes. Alguém poderia deixar a porta de casa sem chavear por muitos dias, numa época em que os ladrões, sem qualquer risco, podiam levar tudo de uma casa.
Estava preocupado com o monstro: não com os arrombadores.
A casa estava deserta.
Travis verificou o estábulo, antes de entrar com a pickup, mas também estava escuro.
Ao chegar dentro de casa, Nora colocou Einstein no chão e retirou o cobertor. O cão se movimentou pela cozinha, vacilando muito, trôpego, farejando o que encontrava. Na sala, ele olhou para a fria lareira e inspecionou sua máquina de virar páginas.
Voltou para a despensa, acendeu a luz com a pata, pressionando o pedal, retirou algumas letras do tubo.
LAR.
Travis abaixou-se ao lado do cachorro e perguntou:
- É bom estar aqui, não é?
Einstein meteu o focinho no pescoço de Travis e o lambeu.
O pêlo dourado estava macio e com cheiro de limpo, porque Jim Keene dera um banho no cachorro no consultório, sob condições de controle muito especiais; ele parecia cansado e estava mais magro, também, tendo perdido alguns quilos, em menos de uma semana.
Retirando mais letras do tubo, Einstein formou a mesma palavra novamente, como que enfatizando o seu prazer:
LAR.
Colocando-se do lado da porta da despensa, Nora disse:
- O lar é onde o amor está, e há muito amor nesta casa. Ei! Vamos jantar cedo e comer na sala de estar, enquanto colocamos o vídeo A canção de Natal do Mickey. Você gostaria?
Einstein agitou o rabo com vontade. Travis perguntou:
- Você acha que está em condições de ter a sua comida predileta? Einstein lambeu-se todo e selecionou mais letras com as quais manifestou-se entusiasmado com a sugestão de Travis.
LAR É ONDE TEMOS A COMIDA PREDILETA.
* * *
Quando Travis despertou no meio da noite, Einstein estava na janela do quarto, apoiando-se com as duas patas dianteiras no parapeito. Ele mal poderia ser visto com a fraca iluminação que vinha do banheiro ao lado. A proteção do lado de fora da janela estava colocada bem firme, o que impedia que o cachorro enxergasse o pátio da frente. Mas talvez para detectar o monstro, a visão fosse o único sentido que ele menos precisaria.
- Alguma coisa lá fora, garoto? - perguntou Travis com voz baixa, não desejando acordar Nora sem necessidade.
Einstein saiu da janela e foi para o lado da cama onde estava Travis e colocou sua cabeça no colchão.
Fazendo um carinho no cachorro, Travis sussurrou:
- Está a caminho?
Einstein respondeu choramingando e deitou-se no chão ao lado da cama e tornou a dormir.
Em poucos minutos, Travis também dormiu.
Acordou novamente próximo do amanhecer e encontrou Nora sentada ao lado da cama brincando com Einstein:
- Volte a dormir - disse ela para Travis.
- O que há de errado?
- Nada - respondeu Nora, sussurrando. - Acordei e o vi na janela, mas não é nada. Volte a dormir.
Ele tentou dormir uma terceira vez, mas sonhou que o monstro fora suficientemente esperto para aprender a usar ferramentas nos últimos seis meses à procura de Einstein, e naquele momento a criatura de olhos amarelos brilhantes penetrava através da proteção da janela com um machado.
2
Eles deram os remédios de Einstein no horário certo e o cachorro atendeu com obediência. Nora e Travis explicaram que ele precisava se alimentar para recuperar as forças. O cão tentava, mas o apetite ainda não era muito forte. Precisaria de mais algumas semanas para ganhar peso novamente e recobrar a velha vitalidade. Mas dia a dia eles podiam notar que a saúde do cachorro melhorava.
Na sexta-feira, 10 de dezembro, Einstein parecia forte o suficiente para se aventurar a um pequeno passeio fora de casa. Ele ainda tropeçava um pouco aqui e ali, mas não como antes. Ele havia tomado todas as vacinas na clínica; não havia chance de pegar raiva depois da cinomose que havia tido.
O tempo estava mais agradável do que costumava estar nas últimas semanas, com temperaturas em torno de vinte e cinco graus, e sem vento. As escassas nuvens eram brancas e o sol, quando não estava encoberto, caía sobre a pele trazendo energia.
Einstein acompanhou Travis na inspeção dos censores infravermelhos em torno da casa e nos botijões de oxido nitroso no estábulo. Eles Circularam mais lentamente do que na vez anterior, quando haviam feito a mesma inspeção juntos, mas Einstein parecia satisfeito de estar "na ativa" novamente. Nora estava no seu estúdio, trabalhando com dedicação cm novo quadro: um retrato de Einstein. O cachorro não estava ciente de que era modelo do próximo quadro. O retrato pretendia ser um dos presentes de Natal e somente seria entregue no dia, para ser colocado na sala de estar sobre a lareira.
Quando Travis e Einstein voltaram do estábulo, entrando no quintal ele perguntou:
- Está se aproximando?
Ao ouvir a pergunta, Einstein seguiu a rotina normal sem o emprego de muitos recursos, sem farejar e sem investigar as sombras no mato. Voltando-se para Travis o cachorro ganiu ansiosamente.
- Está lá? - perguntou Travis.
Einstein não deu resposta. Apenas investigou a floresta, novamente, intrigado.
- Está se aproximando? - perguntou Travis. O cachorro não respondeu.
- Está mais próximo do que antes?
Einstein se movimentou em círculo, farejou o chão, farejou o ar, empinou a cabeça para um lado, para o outro. Finalmente voltou para casa e parou diante da porta olhando para Travis, que esperava pacientemente.
Já dentro de casa Einstein seguiu direto para a despensa.
ATORDOADO.
Travis olhou para a palavra no chão, perguntando:
- Atordoado?
Einstein selecionou mais letras e as colocou em posição. ABAFADO. ATORDOADO.
- Você está se referindo à habilidade de perceber o monstro? Ele abanou o rabo rapidamente: "Sim".
- Você não pode percebê-lo mais? Um latido: "Não."
- Você pensa que ele esteja morto. NÃO SEI.
- Ou talvez este sexto sentido que você tem não funciona, quando você está doente, ou enfraquecido conforme agora?
TALVEZ.
Travis juntou novamente as letras e as colocou dentro dos tubos, refletindo um pouco. Acabou tendo maus pensamentos. Pensamentos nervosos. Eles tinham um sistema de alarme em torno da casa, sim, mas num certo sentido dependiam de Einstein para que os avisasse com mais antecedência. Travis deveria se sentir seguro com as precauções que havia tomado, utilizando sua própria habilidade como ex integrante da Força Delta para matar o monstro. Mas estava atormentado pela idéia de que havia deixado alguma falha no sistema e num momento de crise necessitaria de Einstein com toda a sua capacidade e força para ajudá-lo a lidar com o imprevisível.
- Você vai ter que ficar bom o mais rápido possível - disse Travis ao cão. - Você vai ter que comer, mesmo que não tenha apetite. Você vai ter que dormir o mais que puder, dando ao seu organismo uma chance de se fortalecer e não passe a metade da noite nas janelas, preocupado.
SOPA DE GALINHA.
Rindo, Travis comentou:
- Também poderíamos tentar isto.
UM BOILERMAKER MATA GERMES.
- De onde você tirou esta idéia?
LIVRO. O QUE É UM BOILERMAKER?
Travis respondeu:
- Um pouco de uísque misturado num copo de cerveja. Einstein pensou naquilo por um momento.
MATA OS GERMES MAS TAMBÉM FICA BÊBADO.
Travis riu e passou a mão no pêlo de Einstein:
- Você faz piadas à toda hora, peludo.
TALVEZ EU DEVESSE TENTAR LAS VEGAS.
- Aposto que sim.
EU SERIA MANCHETE.
- Certamente seria.
EU E PIAZADORA.
Ele abraçou o cachorro e ambos sentaram-se na despensa, rindo, cada um à sua maneira. Apesar da piada, Travis sabia que Einstein estava profundamente preocupado com a perda da habilidade de sentir o monstro. As piadas eram um mecanismo de defesa, uma forma de varrer o medo.
Naquela tarde, exausto por ter saído à rua, Einstein dormiu enquanto Nora pintava com toda a energia no estúdio. Travis sentou-se diante de uma das janelas da frente, olhando para o mato, pensando repetidas vezes no sistema de defesa, procurando um buraco.
* * *
No domingo, 12 de dezembro, Jim Keene foi até à casa deles, à tarde e ficou para o jantar. Examinou Einstein, ficando satisfeito com a melhora.
- Parece muito lento para nós - disse Nora, impaciente.
- Eu falei que iria demorar - disse Jim.
Ele trocou alguns remédios de Einstein e deixou novos vidros de comprimidos.
Einstein divertiu-se fazendo demonstrações com a sua máquina de virar páginas e com o aparelho de selecionar letras, na despensa. Ele aceitou elogios pela sua habilidade segurando um lápis entre os dentes para manipular a tevê e o videocassete sem pedir ajuda a Travis ou Nora.
Nora estava primeiramente surpresa, ao ver que o veterinário estava com os olhos menos tristes e pesarosos do que antes. Mas ela decidira que a expressão dele era a mesma; a única coisa que havia mudado era a maneira através da qual ela o enxergava. Conhecendo-o melhor, e tornando-se um amigo de primeira linha, Nora observava não somente os traços tristes do rosto, mas a bondade e o humor por detrás daquele rosto sombrio. Durante o jantar, Jim disse:
- Tenho feito algumas pesquisas sobre tatuagem, para ver se consigo remover os números da orelha dele.
Einstein estava deitado no chão, ouvindo a conversa. Ele se levantou, parou por um instante, então correu para a cozinha e pulou sobre uma das cadeiras vazias. Ficou sentado bem ereto olhando para Jim com expectativa.
- Bem - disse o veterinário, baixando o garfo cheio de galinha, que quase levara à boca -, a maioria, não todas, pode ser retirada. Se eu descobrir qual foi o tipo de tinta usada e qual o método usado, poderei tirá-la.
- Isto vai ser maravilhoso! - exclamou Nora. - Mesmo que eles nos encontrem e tentem levar Einstein de volta, não poderiam provar.
- Haveria ainda alguns traços de tatuagem que apareceriam com uma análise mais detalhada - observou Travis.
Einstein tirou os olhos de Travis e olhou para Jim Keene, tentando dizer:
Sim, e está aqui!
- A maioria dos laboratórios coloca apenas uma etiqueta nos animais de pesquisa - comentou Jim. - Para este tipo de tatuagem eles podem ter usado dois tipos de tinta. Eu seria capaz de removê-la sem deixar qualquer vestígio, a não ser uma pequena mostra de carne. Uma pesquisa microscópica não revelaria a tatuagem, o que torna o trabalho mais fácil. Ainda estou pesquisando as técnicas, mas em poucas semanas nós podemos tentar, se Einstein não se importar com um certo desconforto.
O cachorro deixou a mesa e entrou na despensa. Eles podiam ouvir as letras sendo removidas da máquina.
Nora foi ver qual a mensagem de Einstein.
EU NÃO QUERO TER MARCA. EU NÃO SOU VACA.
O desejo dele de se livrar da marca era maior do que Nora poderia imaginar. Ele queria que removessem a marca para não ser identificado pelas pessoas do laboratório. Mas evidentemente ele odiava ter de carregar aqueles três números na orelha, porque eles o marcaram puramente como propriedade, uma condição que era uma afronta à sua dignidade e violação dos seus direitos como uma criatura inteligente.
LIBERDADE.
- Sim - disse Nora, respeitosamente, colocando a mão na cabeça de Einstein -, entendo que você é uma... pessoa, e uma pessoa com... - Esta era a primeira vez, que ela pensava naquele aspecto da questão. - Uma alma.
Seria uma blasfêmia pensar que Einstein tivesse alma? Não. Ela não acreditava que isto tivesse alguma coisa a ver com blasfêmia. Os homens fizeram o cachorro; entretanto, existindo um Deus, Este evidentemente aprovou Einstein, não apenas pelo seu discernimento, mas por sua capacidade de amar, sua coragem e bondade que o colocaram mais perto da imagem de Deus do que qualquer ser humano na face da terra.
- Liberdade - disse Nora. - Se você tem alma... e sei que você tem... então você nasceu com livre arbítrio e o direito de autodeterminação.
O número na sua orelha e um insulto e nós vamos livra-lo dele.
Depois do jantar, Einstein claramente desejava acompanhar e participar da conversa, mas ficou cansado e acabou dormindo.
Depois de um pouco de conhaque e café, Jim Keene ouviu a explicação de Travis sobre o sistema de defesa para receber o monstro. Encorajado a buscar falhas nos preparativos, o veterinário não podia pensar em nada mais do que na vulnerabilidade da energia elétrica.
- Se esta coisa for inteligente interromperá a linha de transmissão que vem da auto-estrada e poderá deixá-los sem luz no meio da noite e o alarme vai ficar sem utilidade alguma. E sem energia todos aqueles mecanismos de surpresa no celeiro não vão fechar a porta atrás da besta e liberar o gás.
Nora e Travis o levaram até o portão, nos fundos da casa para que Jim visse o gerador de emergência. O gerador funcionava com um tanque de oitenta litros de gasolina, enterrado no quintal, capaz de restabelecer a energia elétrica na casa e no estábulo com um atraso de apenas dez segundos, depois do corte de energia elétrica.
- Até onde posso ver - disse Jim - vocês pensaram em tudo.
- Assim também penso eu - disse Nora. Mas Travis franziu a testa:
- Eu queria saber...
* * *
Na quarta-feira, 22 de dezembro, eles foram de carro até Carmel. Deixaram Einstein com Jim e passaram o dia fazendo compras de Natal, a árvore de Natal, enfeites para a casa e para a árvore. Com a ameaça do monstro cada vez mais perto, parecia inútil fazer planos para o feriado. Mas Travis disse:
- A vida é curta. Você nunca sabe quanto tempo ainda tem pela frente, portanto não podemos deixar passar o Natal sem celebrar, não importa como. Além disso, nos últimos anos o Natal para mim não tem sido tão maravilhoso. E pretendo que neste ano seja.
- Tia Violet não acreditava no Natal como grande acontecimento. Ela não acreditava na troca de presentes e em arrumar uma árvore de Natal.
- Ela não acreditava na vida - disse Travis. - E esta é mais uma razão para comemorarmos de forma correta o Natal. Vai ser o seu primeiro Natal bom, assim como o de Einstein.
Para começar, ano que vem, pensou Nora, vai haver um bebê na casa com a qual desfrutar da festa e não vai ser maravilhoso!
Apesar de um breve mal-estar pela manhã e alguns quilos a mais, Nora ainda não demonstrara estar grávida. A barriga ainda não havia crescido, e segundo o dr. Weingold, de acordo com o biotipo de Nora, ela é uma daquelas mulheres cujo abdômen sofre pouca diferença. Ela esperava que aquilo fosse uma sorte, porque depois do nascimento, entrar em forma novamente seria mais fácil. É claro, o bebê só viria em seis meses, o que lhe dava muito tempo ainda para ficar tão grande quanto uma vaca-marinha.
Ao voltarem de Carmel com a pickup cheia de presentes e mais uma árvore de Natal - Einstein dormia com a metade do corpo no colo de Nora. Ele estava cansado, pois passara o dia cheio com Jim e Pooka. Eles tinham chegado em casa a menos de uma hora do pôr-do-sol. Einstein seguiu à frente deles na direção da casa...
...mas, de repente, parou e ficou olhando para os lados, curiosamente. Ele farejava o ar gelado, cruzou o quintal com o focinho no chão, como que seguindo o rastro.
Dirigindo-se para a porta dos fundos com os braços cheios de pacotes, Nora não percebeu nada de extraordinário no comportamento do cachorro, mas notou que Travis havia parado e encarava Einstein friamente. Ela perguntou:
- O que é isso?
- Espere um pouco.
Einstein cruzou o quintal até o limite da mata no lado sul. Ficou firme com a cabeça espichada para a frente, depois sacudiu-se e continuou beirando a mata. Parou várias vezes, ficando imóvel cada vez que parava. Em poucos minutos, ele deu toda uma volta. Quando o cão voltou, Travis perguntou:
- Alguma coisa?
Einstein abanou o rabo intensamente e latiu: "Sim" e "Não." Dentro de casa, na despensa, Einstein deixara uma mensagem.
SENTI ALGUMA COISA.
- O quê? - perguntou Travis.
NÃO SEI.
- O monstro?
TALVEZ.
- Perto?
NÃO SEI.
- Você já readquiriu o seu sexto sentido? - perguntou Nora. NÃO SEI. APENAS SENTI.
- Sentiu o quê? - perguntou Travis.
O cachorro preparou uma resposta depois de uma considerável pausa para pensar.
GRANDE ESCURIDÃO.
- Você sente uma grande escuridão? SIM.
- O que você quer dizer com isto? - perguntou Nora, impacientemente.
NÃO POSSO EXPLICAR MELHOR. APENAS SENTI.
Nora olhou para Travis e viu que este estava preocupado e talvez enxergasse nele o próprio reflexo de sua preocupação.
A grande escuridão estava lá, em algum lugar, e estava a caminho.
3
O Natal foi alegre, ótimo.
Pela manhã, sentado em torno da árvore toda iluminada, tomando leite e comendo biscoitos feitos em casa, eles abriram os presentes. A título de brincadeira, o primeiro presente que Nora deu a Travis foi uma caixa de cuecas. Ele deu para ela um vestido amarelo, obviamente do tamanho adequado para uma mulher de cento e trinta quilos.
- Em março, quando você estiver grande demais para qualquer outra coisa. É claro! Em maio você vai estar bem maior.
Também trocaram presentes sérios - jóias, suéteres e livros.
Mas Nora, assim como Travis, sentia que o dia era de Einstein mais do que de ninguém. Ela lhe deu o retrato, no qual havia estado trabalhando todo o mês, e o cão parecia estar maravilhado pelo fato de Nora tê-lo imortalizado numa tela. Ele ganhou três fitas novas de vídeo do Michey, um par de tigelas de metal para comida e água com o seu nome gravado nelas, para substituir as tigelas de plástico, um pequeno relógio movido à pilha, que ele poderia levar para qualquer lugar da casa (ele estava demonstrando um incrível interesse pelo tempo) e diversos outro presentes, mas Einstein olhava inúmeras vezes para o retrato, que fora encostado à parede para ser melhor apreciado. Mais tarde, quando afixaram o quadro sobre a lareira, Einstein levantou-se para olhar melhor a pintura, agradecido e orgulhoso.
Como qualquer criança, Einstein gostava de brincar com caixas vazias, com o papel que sobrara dos presentes, com as fitas e com os próprios presentes. Um dos favoritos, era um presente de brincadeira: um chapéu vermelho de Papai Noel, com um pompom na ponta, preso à cabeça por um elástico. Nora o colocou na cabeça de Einstein. Quando o cachorro se enxergou no espelho, estava tão impressionado com a aparência que não aceitou ficar sem o chapéu, quando alguns minutos mais tarde Nora tentou tirá-lo dele. Ele ficou daquela forma pelo resto do dia.
Jim Keene e Pooka chegaram no início da tarde e Einstein os conduziu direto para a sala de estar para que olhassem o retrato na parede. Por uma hora, observado por Jim e Travis, os dois cachorros brincaram juntos no pátio dos fundos. Einstein estava precisando dormir um pouco, depois de excitação dos presentes pela manhã e da brincadeira com Pooka. Desta forma, eles voltaram para dentro de casa, onde Jim e Travis ajudavam Nora a preparar a ceia de Natal.
Depois de dormir um pouco, Einstein tentou interessar Pooka em desenhos animados de Mickey, mas Nora viu que ele conseguia apenas um pouco de sucesso. Pooka não prestava atenção suficiente em Donald, ou Pluto para entender que eles queriam dar aborrecimentos a Mickey. Em respeito ao QI mais baixo do companheiro, e para que este não se aborrecesse com a companhia, Einstein desligou a tevê e passou a se dedicar a atividades estritamente caninas: um pouco de luta-livre, sem ninguém se machucar, ou deitar-se no chão, focinho com focinho, permanecendo assim por longo tempo, comunicando um para o outro preocupações de cachorro.
No início da noite, a casa ficou impregnada com o cheiro de peru, milho cozido e outros pratos. Eles ouviam canções de Natal. Apesar de instalados os protetores das janelas, das armas à mão e da demoníaca presença do monstro em suas mentes, Nora jamais sentira tanta felicidade.
Durante o jantar, conversaram sobre o bebê e Jim perguntou se Nora e Travis já haviam pensado em nomes para a criança. Einstein, que comia alguma coisa no canto ao lado de Pooka, ficou instantaneamente intrigado com a idéia de participar contribuindo para dar nome ao bebê. Correu para a despensa e formou a sua sugestão.
Nora saiu da mesa para ver que nome o cachorro julgava conveniente.
MICKEY.
- Absolutamente, não - exclamou Nora. - Não vamos batizar o nosso bebê com o nome de um camundongo de desenho animado.
DONALD.
- Não, não um pato.
PLUTO.
- Pluto? Você está falando sério, peludo?
PATETA.
Nora o impediu firmemente de selecionar mais letras, juntou-as e as colocou nos tubos, desligou a luz da despensa e foi para a mesa de novo.
- Vocês poderão pensar que é engraçado - disse Nora para os dois, que estavam rindo -, mas ele está sendo sério.
Depois do jantar, sentados em torno da árvore de Natal na sala de estar, conversaram sobre muitas coisas, incluindo a intenção de Jim de conseguir outro cachorro.
- Pooka precisa ter uma companheira de sua espécie - disse o veterinário. - Ele tem quase um ano e meio e chego a crer que a companhia humana não é suficiente para eles, depois que passam da fase de filhotes. Eles ficam solitários como nós. E desde que vou lhe conseguir companhia, que seja uma fêmea com pedigree, para termos ótimos filhotes para vender mais tarde. E ele não somente vai ter uma amiga, mas uma companheira.
Nora não percebera que Einstein estava mais interessado em uma parte da conversa do que em outra. Entretanto, depois que Jim e Pooka saíram, Travis encontrou uma mensagem na despensa e chamou Nora para ver.
COMPANHEIRA. UMA COMPANHEIRA. PARCEIRA. A FÊMEA DE UM PAR.
O cão havia estado esperando por eles e aparecera por trás de Travis c Nora, olhando-os ironicamente.
Nora perguntou:
- Você gostaria de uma companheira?
Einstein passou entre eles e entrou na despensa, mexendo nas letras para dar uma resposta.
VALE A PENA PENSAR A RESPEITO.
- Mas escuta aqui, peludo - disse Travis. - Você é o único de sua espécie. Não há nenhum outro cachorro igual a você, com o seu QI.
O cão considerou aquela observação mas não desistiu.
A VIDA É MAIS DO QUE INTELECTO.
- É verdade - disse Travis. - Mas acho que você precisa pensar muito a este respeito.
VIDA É SENTIMENTO.
- Está certo - disse Nora. - Vamos pensar a respeito.
A VIDA É COMPANHIA. COMPARTILHAR.
- Prometemos pensar a respeito e então discutiremos juntos em outra oportunidade - disse Travis. - Agora está ficando tarde.
Einstein rapidamente lhes passou mais uma mensagem.
BEBÊ MICKEY.
- Decididamente, não - disse Nora.
* * *
Naquela noite, na cama, depois que Travis e Nora fizeram amor, Nora disse:
- Aposto que ele está se sentindo solitário.
- Jim Keene?
- Bem, sim, aposto que ele esteja solitário, também. É um homem maravilhoso e poderia fazer alguém muito feliz como marido. Mas as mulheres se preocupam tanto com aparência quanto os homens. E não procuram maridos com cara de perdigueiro. Elas se casam com os de boa aparência e a metade do tempo os tratam como propriedade. Mas não estou me referindo a Jim. Estou falando de Einstein. Ele deve se sentir solitário, de vez em quando.
- Estamos com ele o tempo todo.
- Não, não estamos. Eu pinto e você se envolve em atividades das quais Einstein não participa. E se você voltar à atividade de venda de imóveis, Einstein vai ficar muito tempo sozinho.
- Ele tem os livros. Ele ama os livros.
- Talvez os livros não sejam o suficiente - disse ela.
Eles ficaram em silêncio por tanto tempo que ela pensara que Travis estivesse dormindo. Então, ele disse:
- Se Einstein tivesse uma companheira e produzisse filhotes, como eles seriam?
- Você quer dizer que seriam tão inteligentes quanto ele?
- Fico imaginando... parece-me que há três possibilidades. Primeiro: a sua inteligência não foi herdada, assim os filhotes seriam cachorros comuns. Segundo: a inteligência seria herdada, mas os genes da sua companheira neutralizariam a inteligência, dos filhotes que seriam inteligentes, mas não como o pai. E, a cada geração, os filhotes seriam cada vez menos inteligentes, até que se tornassem cachorros comuns.
- Qual é a terceira possibilidade?
- Que a inteligência possa ser transmitida, e seja geneticamente dominante.
- Em tal caso os filhotes seriam tão inteligentes quanto ele.
- E os filhotes deles, e assim, sucessivamente, até que se tivesse uma dinastia de caçadores dourados, milhares deles através do mundo.
Eles ficaram novamente em silêncio. Finalmente, ela exclamou:
- Puxa!
- Ele está certo - disse Travis.
- O quê?
- É um caso a pensar.
4
Vince Nasco nunca poderia imaginar em novembro, que levaria um mês para matar Ramon Velazquez, o sujeito de Oakland que don Mário Tetragna queria eliminar. Até que eliminasse Velazquez, não teria os nomes das pessoas em San Francisco que lidavam com identidade falsa e que poderia auxiliar na localização de Travis Cornell, a mulher e o cachorro. Portanto, tinha a necessidade urgente de transformar Velazquez num pedaço de carne podre.
Mas Velazquez era difícil de se deixar pegar. O homem não dava um passo sem os dois guarda-costas ao lado, o que o tornava ainda mais suspeito. Entretanto, ele conduzia o negócio de droga e jogo desrespeitando o território de Tetragna em Oakland, agindo furtivamente como Howard Hughes. Procurava escapar mudando de carro, nunca tomando o mesmo caminho dois dias seguidos, nunca fazendo reuniões no mesmo lugar, nunca usando a rua como escritório, nunca se expondo muito tempo num lugar, para ser marcado, seguido. Era um paranóico que acreditava que todos estavam na rua para pegá-lo. Vince não podia fixar o rosto do homem o tempo suficiente para comparar com a foto que Tetragna lhe dera. O homem sumia como fumaça.
Vince só conseguiu pegá-lo no dia de Natal, e foi um inferno quando isto aconteceu. Ramon estava em casa acompanhado de muitos parentes. Vince foi até a propriedade de Velazquez, vindo pela casa que ficava nos fundos, pulando um enorme muro. Caminhando no outro lado, ele viu Velazquez e outras pessoas em torno da churrasqueira no pátio perto da piscina, onde assavam um enorme peru - será que as pessoas faziam churrasco de peru em outro lugar que não fosse a Califórnia? - e eles perceberam a presença de Vince a pouca distância. Ele viu os guarda-costas procurando as armas no paletó e não teve outra alternativa senão abrir fogo indiscriminadamente com a Uzi, atingindo todo mundo, eliminando Velazquez, os dois seguranças, uma senhora de meia-idade que devia ser a mulher dele e uma senhora idosa, que deveria ser avó de alguém.
Ssssnap.
Ssssnap.
Ssssnap.
Ssssnap.
Ssssnap.
Todos os demais, dentro e fora da casa, gritavam e se deitavam no chão, procurando se proteger. Vince teve que pular o muro de volta para a outra casa, onde não havia ninguém, graças a Deus. Quando ele estava em cima do muro, um grupo de pistoleiros, todos com cara de latinos, abriram fogo. Ele conseguiu escapar ileso.
No dia seguinte ao Natal, Vince estava preocupado, quando apareceu em um restaurante de San Francisco, de propriedade de don Tetragna para se encontrar com Frank Dicenziano, um mafioso que só obedecia a Tetragna. Os mafiosos tinham um código a respeito de assassinato. Diabos, eles tinham um código a respeito de tudo - provavelmente até dos movimentos intestinais - e levavam aquilo a sério, mas o que dizia respeito a assassinato era mais sério ainda. A primeira regra do código era: você não pode atirar num homem na companhia de sua família, a não ser que não possa matá-lo de outra forma. Vince sentia-se seguro a este respeito. Mas outra regra dizia que você não poderia atirar em mulheres e crianças para pegar alguém. Qualquer pistoleiro que fizesse isto acabaria morto pelo próprio grupo que o contratasse. Vince esperava convencer Frank Dicenziano do que Velasquez fora um caso especial, nenhum outro caso teria tomado tanto tempo assim e o que acontecera em Oakland no dia de Natal era lamentável, mas inevitável.
Dicenziano e, igualmente, Tetragna estava furioso demais para ouvir qualquer explicação. Vince estava preparado com mais de uma arma. Ele sabia que se quisessem matá-lo, teriam primeiro que lhe tirar a arma antes que pudessem usá-la. Desta forma, havia levado explosivo plástico e mandaria tudo para o espaço, acabando com todo o restaurante, se tentassem eliminá-lo.
Vince não estava certo de sobreviver à explosão. Ele havia absorvido a energia vital de tanta gente, que pensava estar próximo da imortalidade que procurava. Não poderia imaginar o quão forte seria, a não ser que se colocasse à prova. Se sua escolha fosse entre ficar no centro de uma explosão... ou deixar que dois pistoleiros lhe enchessem com uma centena de balas e o atirassem no fundo da baía... ele decidira que a primeira alternativa era melhor, e talvez oferecesse a ele uma chance maior de sobrevivência.
Para a sua surpresa, Dicenziano, que parecia um esquilo com bolas de carne no rosto, estava feliz pela maneira como o trabalho havia sido feito. Ele disse que Tetragna tinha o maior apreço por ele. Ninguém revistou Vince quando entrara no restaurante. Em um reservado no canto da sala, como os homens mais importantes presentes, ele e Frank receberam pratos especiais, fora do cardápio. Beberam vinho Cabernet Sauvignon de trezentos dólares, um presente de Mario Tetragna.
Quando Vince cautelosamente levantou a questão da senhora de meia-idade e da avó que foram mortas, Dicenziano disse:
- Escute aqui, amigo, nós sabíamos que o trabalho seria difícil e que as regras teriam quebradas. Além do mais, aquelas pessoas não faziam parte do nosso grupo. Eles não fazem parte do nosso negócio. Se eles forçam a entrada, não podem esperar que a nossa resposta siga as regras.
Aliviado, Vince foi até o banheiro masculino e desarmou o detonador. Ele não queria que a bomba detonasse por acidente, agora que a crise passara.
Ao final do almoço, Frank deu a Vince a lista. Nove nomes.
- Estas pessoas, que não fazem parte da Família, pagam uma quantia a don Tetragna pelo direito de operar o negócio de identidade em nosso território. Em novembro, antecipando-me ao êxito de sua missão, conversei com estes homens e eles vão se lembrar que o don deseja que eles cooperem de todas as formas possíveis.
Vince partiu naquela tarde mesmo à procura de alguém que lhe desse uma pista de Travis Cornell.
Inicialmente ele ficou frustrado. Dois dos primeiros quatro homens da lista não podiam ser achados. Eles haviam fechado o negócio por causa das festas de fim de ano. Vince achava errado que o submundo entrasse de férias, como se fossem professores de colégio. Mas o quinto da lista, Anson Van Dyne, trabalhava no porão da sua casa noturna. Van Dyne olhou para a foto de Travis Cornell, que Vince obtivera de um arquivo de jornal em Santa Barbara.
- Sim, eu me lembro dele. É alguém inesquecível. Não é um estrangeiro pretendendo ser instantaneamente um cidadão americano, como a metade dos meus fregueses. E não é o tipo de perdedor que precisa mudar de nome para livrar a cara. Ele não é um sujeito grande, nem se apresentou com brutalidade, mas você tem a impressão de que ele é capaz de explodir com qualquer um que lhe atravesse o caminho. Muito autoconfiante. Observador. Eu não poderia esquecê-lo.
- O que você não poderia esquecer - disse um dos auxiliares barbudos -, era a coisinha maravilhosa que estava com ele.
- Por ela... até um morto se levantaria - disse o outro auxiliar.
- Sim, até um morto. Fácil, fácil - acrescentou o primeiro barbudo. Vince estava ao mesmo tempo ofendido e confuso com as observações, portanto ele os ignorou e disse para Van Dyne:
- Há alguma chance de você se lembrar dos novos nomes que você lhes deu?
- É claro. Nós os temos no arquivo - respondeu Van Dyne. Vince não poderia acreditar no que estava ouvindo.
- Eu pensava que as pessoas no seu tipo de negócio não mantivessem arquivo. Mais seguro para você e essencial para os clientes.
Van Dyne observou:
- Fodam-se os clientes. Talvez algum dia os agentes federais ou os tiras da cidade nos peguem, tirando-nos fora do negócio. Talvez eu necessite de algum dinheiro para pagar os advogados. O que poderia ser melhor do que ter uma lista de dois mil sujeitos vivendo com nomes falsos, que desejariam se livrar do embaraço do que começar tudo de novo?
- Chantagem? - perguntou Vince.
- Uma palavra feia - disse Van Dyne -, mas pertinente, acho eu. De qualquer forma, tudo o que importa é que estejamos seguros e que nenhum arquivo aqui nos comprometa. Nós não mantemos os dados neste computador. Assim que proporcionamos a alguém nova identidade, transferimos as informações para outra linha, para um computador que mantemos em outro lugar. Pela maneira como o outro computador é programado, os dados não podem ser solicitados por aqui; a informação segue apenas um caminho de ida. Portanto, estamos seguros de que os tiras não podem ter acesso aos nossos arquivos, através deste terminal. Diabos, eles nem ao menos sabem que os arquivos existem.
Vince ficou tonto diante daquele mundo do crime com alta tecnologia. Até mesmo don Tetragna, um homem com infinita esperteza para o crime, pensaria que aqueles homens não mantivesse arquivos e não poderia imaginar como os computadores tornavam tudo mais seguro. Vince pensou sobre o que Van Dyne lhe dissera, perguntando:
- Você poderia me levar até o outro computador para descobrir a nova identidade de Cornell?
- Para um amigo de don Tetragna - disse Van Dyne -, eu faço qualquer coisa. Venha comigo.
* * *
Van Dyne foi de carro com Vince até um movimentado restaurante chinês em Chinatown. O restaurante deveria ter lugar para cerca de 150 pessoas e todas as mesas estavam ocupadas, a maioria não era de asiáticos. Embora fosse enorme e decorado com lanterna de papel, dragões pintados na parede, filamentos de metal na forma de ideogramas chineses, o local lembrava a Vince o restaurante italiano em que havia matado o miserável do Pantangela e dos dois delegados federais, em agosto. Qualquer tipo de decoração, da chinesa à italiana, da polonesa à irlandesa, era basicamente igual, na essência.
O proprietário era um chinês com pouco mais de trinta anos, que fora apresentado a Vince apenas como Yuan. Com garrafas de Tsingtao, fornecidas por Yuan, Van Dyne e Vince foram até ao escritório do proprietário no subsolo, onde havia dois computadores, colocados sobre duas mesas. Um deles no centro da sala e o outro a um canto. O computador do canto estava ligado, embora ninguém o estivesse operando.
- Este é o meu computador - disse Van Dyne. - Ninguém aqui jamais operara nele. Eles nem ao menos o tocam, exceto para abrir a linha colocando-a em funcionamento todas as manhãs e para desligá-lo, à noite. Os meus computadores em Hot Tips estão ligados a este.
- Você confia em Yuan?
- Emprestei a ele o dinheiro para começar este negócio. Ele deve a mim toda a sua fortuna. E foi um empréstimo honesto, nada que pudesse se relacionar com os meus negócios, ou com don Tetragna. Portanto, Yuan continua sendo um cidadão honesto, sem chamar a atenção dos tiras. Tudo o que ele faz por mim é permitir que o computador fique aqui.
Sentado em frente ao terminal, Van Dyne começou a manipulá-lo. Em dois minutos, obteve o nome de Travis Cornell: Samuel Spencer Hyatt.
- E aqui - disse Van Dyne referindo-se a outro dado na tela do computador -, temos a mulher que estava com ele. O nome verdadeiro dela é Nora Louise Devon, de Santa Bárbara.
- Agora, tire-os do arquivo - disse Vince.
- O que você quer dizer?
- Apague-os. Elimine os nomes dos computadores. Eles não pertencem a você mais. Eles são meus. De mais ninguém. Só meus.
* * *
Um pouco depois, eles já estavam de volta a Hot Tips, um lugar decadente que deixava Vince enojado.
No subsolo, Van Dyne deu os nomes de Hyatt e Aimes para os dois barbudos que pareciam viver em torno dos equipamentos vinte e quatro horas, como dois bonecos.
Primeiramente, eles entraram em contato com o Departamento de Trânsito. Queriam saber se naqueles três meses, desde que adquiriram as novas identidades, Hyatt e Aimes haviam comunicado a mudança de endereço para o outro estado.
- Acertei - disse um dos barbudos.
Um endereço apareceu na tela e o operador barbudo fez sair o papel impresso.
Anson Van Dyne tirou o papel fora e o deu para Vince.
Travis Cornell e Nora Devon, agora Hyatt e Aimes, estavam vivendo numa área rural próxima à auto-estrada da costa do Pacífico, ao sul de Carmel.
5
Na quarta-feira, 28 de dezembro, Nora dirigiu o carro até Carmel, sozinha, para uma consulta com o dr. Weingold.
O céu estava nublado e o dia tão escuro que as gaivotas, contrastando com as nuvens escuras, eram tão brilhantes como luzes fluorescentes. O tempo não havia mudado desde o Natal, mas a chuva que aguardavam nunca veio.
Naquele dia, entretanto, a chuva era torrencial, exatamente quando acabara de estacionar atrás do escritório do dr. Weingold. Ela estava vestindo uma jaqueta de náilon com um capuz, apenas se fosse necessário, e acabou sendo: ela o puxou para a cabeça, antes de correr para o prédio do médico.
O dr. Weingold fez os exames de praxe e afirmou que estava em "forma", o que Einstein teria achado divertido.
- Nunca vi uma mulher com três meses de gravidez tão bem quanto você - disse o médico.
- Quero que seja um bebê sadio, um bebê perfeito.
- Vai ser.
O médico pensava que o nome dela fosse Aimes e do marido, Hyatt, mas nunca pareceu desaprovar a condição dela, de solteira. A situação deixava Nora embaraçada, mas ela supunha que o mundo moderno, que a acolhera ao sair da casa da tia não se importava com aquelas minúcias.
O dr. Weingold sugeriu, como ele havia feito anteriormente, que ela fizesse um teste para verificar o sexo do bebê e, como antes, ela não aceitou. Ela queria que fosse surpresa. Além disso, se descobrissem que teriam uma menina, Einstein começaria a fazer sua campanha para batizá-la com o nome de "Minnie".
Depois de tratar com a recepcionista sobre o próximo dia de consulta, Nora colocou novamente o capuz na cabeça e saiu para caminhar debaixo do temporal, que formava enormes poças. Ela teve que atravessar um riacho formado pela chuva, antes de chegar à pickup. E, em poucos segundos, os tênis estavam encharcados.
Ao chegar na camioneta, ela viu um homem saindo de uma Honda vermelha estacionada ao lado da pickup. Ela não lhe deu muita atenção, apenas notou que era um sujeito grandalhão num carro pequeno, e que não estava vestido para a chuva. Pobre homem... vai ficar molhado até os ossos, pensara ela. Nora abriu a porta da camioneta e começou a entrar no carro. Agora ela estava vendo o homem aproximar-se, vestido de jeans e suéter azul. Ele a empurrou para dentro do carro e sentou-se ao volante.
- Se você gritar, sua puta, vou arrebentar as suas tripas.
Ela imaginou que ele estivesse com um revólver ao lado dela. Quase gritou de qualquer forma, involuntariamente, e por pouco não tentou sair pela outra porta. Mas alguma coisa na voz dele, algo brutal, a fez ficar indecisa. Ele parecia ser capaz de atirar pelas costas para evitar que ela escapasse.
Ele bateu a porta no lado do motorista e agora estavam isolados dentro da camioneta, longe de qualquer ajuda, virtualmente isolados do mundo pela chuva que continuava caindo, embaçando os vidros.
Ele era um homem enorme, musculoso, mas não era o tamanho dele que assustava. O rosto era plácido, sem expressão; aquela serenidade completamente fora de propósito, diante das circunstâncias, assustava Nora. Os olhos eram piores. Olhos verdes e frios.
- Quem é você? - perguntou ela, tentando esconder o medo, certa de que a demonstração de terror pudesse excitá-lo. - O que quer comigo?
- Quero o cachorro.
Ela pensou: um ladrão, um estuprador, ou um criminoso psicopata. Mas não imaginou, nem por um momento, que poderia se tratar de um agente do governo. Quem mais poderia estar atrás de Einstein? Ninguém mais sabia da existência do cachorro.
- Do que você está falando? - perguntou ela.
Ele empurrou o cano do revólver na direção dela, encostando no corpo até machucá-la.
Ela pensou no bebê que estava gerando dentro de si.
- Está bem, está certo, obviamente você sabe a respeito do cachorro, portanto, não vamos brigar.
- Não há como - falou ele tão baixo que ela mal poderia ouvi-lo com todo aquele ruído de água caindo sobre o teto do carro e batendo contra o pára-brisa.
Ele tirou o capuz da cabeça de Nora, abriu o fecho da jaqueta e colocou o revólver debaixo dos seios, sobre a barriga. Por um momento, ela estava temerosa de que ele, mais que tudo, quisesse estuprá-la.
Ao contrário, ele disse.
- Este Weingold é obstetra e ginecologista. Portanto, qual é o seu problema? Você tem alguma maldita doença venérea ou está grávida?
Ele quase cuspia as palavras "doença venérea", como se, ao pronunciá-la, ficasse enojado.
- Você não é um agente do governo - disse ela, instintivamente.
- Eu lhe fiz uma pergunta, piranha - disse ele, com uma voz pouco mais alta do que um sussurro. Ele ficou mais próximo, colocando o revólver no lado dela novamente. O ar dentro do carro estava úmido. O ruído da chuva combinado com o ar viciado, criava uma atmosfera de claustrofobia, quase intolerável. Ele perguntou:
- O que você pegou? Herpes, sífilis, gonorréia ou outra coisa qualquer, ou você está grávida?
Pensando que a gravidez iria evitar que ele agisse com violência, ela respondeu:
- Eu vou ter um bebê. Estou grávida de três meses.
Alguma coisa aconteceu nos olhos dele. Uma mudança rápida, como o movimento de um caleidoscópio. Como se fossem pedaços de vidro com o mesmo padrão verde. Nora sabia que admitir a gravidez era a última coisa que ela deveria ter dito, mas ela não sabia por qual razão.
Ela pensou na pistola 38 guardada no porta-luvas. Ela não poderia abrir o compartimento, pegar a arma e atirar antes que ele puxasse o gatilho. Ela teria que esperar por uma oportunidade, por uma distração dele, que lhe desse uma chance de apanhar a arma.
De repente, ele começou a subir sobre ela e de novo ela pensou que ele a iria estuprar em plena luz do dia, protegido pela chuva que caía, formando uma cortina em torno do carro, mas ainda dia. Então, concluiu que estava apenas trocando de lugar com ela, colocando-a atrás do volante, e ficando por sua vez, no lugar do passageiro, mantendo o cano do revólver no corpo dela o tempo todo.
- Dirija - mandou ele.
- Para onde?
- De volta a sua casa.
- Mas...
- Mantenha-se calada e dirija.
Ela estava naquele momento na outra extremidade, longe do porta-luvas. Para abri-lo, teria que se dobrar na frente dele. Ele jamais permitiria aquilo.
Determinada a controlar o medo, naquele momento também precisava dominar o desespero.
Ela deu partida no carro e saiu do estacionamento, dobrando à direita na rua.
O limpador de pára-brisa batia tão rápido quanto o coração dela. Nora não estava certa se aquele som opressivo vinha do impacto da chuva no carro ou do seu próprio sangue nos ouvidos.
Quadra por quadra, Nora procurava um policial, embora não tivesse a menor idéia do que deveria fazer se encontrasse algum. Ela não teve como descobrir, porque não havia policiais para serem vistos.
Assim que saíram de Carmel e entraram na auto-estrada da costa do Pacífico, o forte vento não somente jogava água contra o pára-brisa, como lançava folhas e pequenos galhos de árvores. No sentido sul, ao longo da costa, numa área cada vez mais deserta, não havia árvores à beira da estrada, e o vento do oceano atingia o carro com toda a força. Nora freqüentemente sentia a força do vento no volante. A chuva caindo diretamente sobre eles, parecia bater no carro a ponto de deixar marcas na lataria.
Depois de cinco minutos de silêncio, que pareciam ser uma hora, ela não conseguiu mais obedecer a sua ordem de manter-se calada.
- Como você nos achou?
- Fiquei mais de um dia observando a casa de vocês - disse ele com aquela voz calma e fria, combinando com o rosto sereno. - quando você saiu esta manhã, eu segui você, até que eu tivesse uma oportunidade.
- Não... quero dizer, como você descobriu onde morávamos? Ele sorriu.
- Van Dyne.
- Aquele traidor sujo.
- Circunstâncias especiais - garantiu ele. - o manda chuva em San Francisco devia-me um favor, portanto colocou Van Dyne sob pressão.
- Mandachuva?
- Tegragna.
- Quem é ele?
- Você não conhece nada, conhece? - perguntou ele. - Exceto fazer bebês, hem? Disso você entende, não é?
O tom de voz não era meramente sugestivo: era mais estranho e terrível do que tudo o mais. Ela estava tão assustada, que quando ele tocava em assunto sexual, ela não respondia.
Quando começou o nevoeiro, ela acendeu os faróis. Ela mantinha sua atenção na auto-estrada toda molhada pela chuva, que se esforçava em ver através do vidro cheio de água.
- Você é muito bonita. Se eu tivesse que trepar com alguém, eu treparia com você.
Nora mordeu o lábio.
- Mas mesmo bonita como você é - disse ele -, você é como todas as outras. Eu aposto. Se enfiasse em você, eu apodreceria e cairia, porque você é doente como todas as outras... ou não? Sim. Você é. Sexo é morte.
Pareço um dos poucos a ver isto, embora a prova esteja por todos os lados. Sexo é morte. Mas você é muito bonita...
A garganta se apertava, ao ouvi-lo. Ela estava tendo dificuldade em respirar profundamente.
De repente, a calma desapareceu. Ele começou a falar rápido, mas ainda com voz macia, considerando as coisas malucas que estava dizendo, mas muito rápido:
- Vou ser maior do que Tetragna, mais importante. Tenho inúmeras vidas dentro de mim. Absorvi a vida de mais pessoas do que você possa imaginar. É a minha bênção. Quando Tetragna morrer e sumir, eu estarei aqui. Quando todos estiverem mortos, eu estarei aqui, porque eu sou imortal.
Ela não sabia como responder. Ele tinha vindo de algum lugar e descoberto sobre Einstein, e era maluco, e parecia que ela não poderia fazer nada. Ela estava mais furiosa diante daquilo do que com medo. Eles haviam feito cuidadosos preparativos para o monstro, e tomado todo o cuidado com o governo, mas como poderiam imaginar que deviam estar preparados para aquilo? Não era justo.
Silêncio novamente, quando ele a fitou por um minuto ou mais, parecendo uma eternidade. Ela poderia sentir o olhar gelado dele, como se fosse o contato com a mão fria de alguém.
- Você não sabe do que estou falando, sabe? - perguntou ele.
- Não.
Talvez porque tenha achado Nora bonita, ele resolveu explicar.
- Eu contei somente para uma pessoa antes e esta pessoa me ridicularizou. O nome dele era Danny Sloicz. Ambos trabalhávamos para a família Carramanza de Nova York, a maior das cinco famílias de mafiosos. Pouco esforço muscular, matando algumas pessoas, de vez em quando, em caso de necessidade.
Nora estava se sentindo mal, pois ele não era só doido, nem meramente um pistoleiro, era um pistoleiro profissional doido.
Sem observar a reação dela, desviando os olhos da estrada banhada pela chuva, ele continuou:
Veja, nós estávamos jantando naquele restaurante, Danny e eu, mexilhões com Valpolicella, quando expliquei a ele que estava destinado a ter vida longa por causa da minha habilidade de absorver a energia vital das pessoas que mato. Eu disse para ele: "Veja, Danny, as pessoas são como baterias, baterias que andam, cheias desta misteriosa energia que chamamos vida. Quando eu termino com alguém, a energia desta pessoa passa para mim e fico mais forte. Eu sou um touro, Danny. Olhe para mim, eu sou um touro ou o quê? E eu tenho que ser um touro, porque tenho esta bênção de ficar com a energia de alguém". E você sabe o que Danny disse?
- O quê? - perguntou ela.
- Bem, Danny era bom de garfo e prestava atenção no seu prato, cara na comida, até que pegou mais alguns mexilhões. Então ele levantou a cara, todo lambuzado de molho de mexilhão e disse: "Sim, Vince, onde você aprendeu este truque, hem? Onde você aprendeu a absorver esta energia toda?" Eu repondi: "Bem... é a minha bênção". Ele perguntou: "Você quer dizer, de Deus?" Tive que pensar a respeito, então respondi: "Quem sabe de onde vem? É uma bênção assim como a voz do Sinatra." E Danny continuou: "Diga-me... suponha que você mate um sujeito que é eletricista. Depois que você absorvesse a energia dele você de repente saberia como colocar fios em uma casa?" Eu não pensei que ele estivesse me gozando. Pensei que fosse uma pergunta séria, então expliquei como absorveria aquela energia: "Não a personalidade, ou o que o sujeito soubesse fazer, apenas a energia." Então Danny disse: "Depois de matar um desses estripadores de galinhas você não sente uma vontade irresistível de arrancar também cabeça de galinhas?" Naquele momento tive certeza de que Danny pensava que eu estava bêbado ou maluco, assim comi mais mexilhões e parei de falar sobre a minha bênção, e aquela foi a última vez que falei a alguém sobre isto. Agora eu falo para você.
Ele havia chamado a si mesmo de Vince e Nora sabia então o seu nome. Ela não conseguia imaginar como seria bom para ela saber o nome dele.
Ele contou toda aquela história sem qualquer indício de estar ciente do terrível e doido humor negro que ela continha. Ele era um homem extremamente sério. A menos que Travis pudesse tomar conta dele, aquele sujeito não iria deixá-los vivos.
- Desta forma - continuou Vince -, eu não poderia correr o risco de ter Danny contando para todo mundo o que lhe dissera porque ele iria dar mais colorido, tornando tudo mais engraçado e todos pensariam que eu fosse louco. Os poderosos chefões não contratam pistoleiros malucos. Querem sujeitos lógicos e frios, para fazerem um trabalho bem-feito. E é isto o que sou, frio e equilibrado. Mas Danny teria continuado a pensar de outra maneira. Assim, naquela noite cortei a garganta dele, o levei para uma fábrica deserta e o dilacerei, depois joguei ácido sulfúrico sobre ele. Ele era o sobrinho favorito do chefão, portanto, eu não poderia correr o risco de permitir que achassem um corpo e que o ligassem a mim. Então, fiquei com a energia de Danny em mim, ao lado de muitas outras.
A arma estava no porta-luvas.
Havia alguma esperança no fato de saber que a arma estava no porta-luvas.
* * *
Enquanto Nora estava visitando o dr. Weingold, Travis preparou alguns doces de chocolate com biscoitos com manteiga de amendoim. Vivendo sozinho, ele aprendera a cozinhar, mas nunca tivera prazer naquilo. Durante os últimos meses, entretanto, Nora havia melhorado as habilidades culinárias dele a tal ponto que Travis passou a apreciá-las. Especialmente quando usava o forno.
Einstein costumava ficar por perto, durante todo o tempo que Travis cozinhava, na expectativa de provar alguma coisa, antes que a massa ficasse pronta. O cachorro estava agitado, movimentando-se pela casa de janela em janela, olhando para a chuva.
De vez em quando Travis julgava importante perguntar se alguma coisa estava errada.
Einstein respondia na despensa.
EU ME SINTO UM POUCO ESTRANHO.
- Doente? - perguntou Travis, preocupado com uma recaída. O cão estava se recuperando muito bem. O seu sistema imunológico não estava em condição de enfrentar outro grande desafio.
NÃO DOENTE.
- Então, o quê? Você está sentindo... o monstro?
NÃO. NÃO COMO ANTES.
- Mas você está sentindo alguma coisa?
UM DIA RUIM.
- Talvez seja a chuva.
TALVEZ.
Aliviado, mas ainda preocupado, Travis voltou para a cozinha.
* * *
A auto-estrada brilhava como prata na chuva.
O nevoeiro ficava mais espesso ao longo da costa azul, obrigando Nora a reduzir a velocidade para sessenta quilômetros por hora, cinqüenta, em alguns trechos.
Usando o nevoeiro como desculpa, seria possível reduzir a velocidade o suficiente para que ela pudesse abrir a porta e pular? Não. Provavelmente não. Ela teria que reduzir a menos de oito quilômetros por hora para evitar se machucar ou ao seu futuro bebê, e o nevoeiro não era assim tão forte. Além disso, Vince mantinha um revólver apontado para ela enquanto falava e abriria fogo pelas costas, quando ela tentasse fugir.
Os faróis da pickup e dos carros que vinham em sentido contrário atravessavam a neblina. Círculos luminosos e arco-íris cintilantes apareciam e desapareciam, abrindo caminho por entre a cortina do nevoeiro.
Nora pensou em jogar o carro fora da estrada, em locais onde conhecia a margem, de forma a garantir sua segurança. Mas ela temia cometer algum engano e deixar o carro cair num abismo a sessenta metros de altura no meio das rochas. Mesmo que ela soubesse o ponto certo, um acidente premeditado poderia deixá-la inconsciente e ela queria sair viva daquela situação, com o bebê que havia dentro dela.
Vince começou a falar e não conseguira parar. Por muitos anos ele mantivera bem guardados os seus segredos os sonhos de poder e imortalidade, mas o seu desejo de falar desta suposta grandeza jamais diminuíra, desde o vexame que passara com Danny Slowicz. Era como se ele tivesse reprimido as palavras que desejava falar para as pessoas, mantendo-as gravadas em fita cassete. E, naquele momento, as reproduzia em alta velocidade, colocando para fora toda aquela loucura que deixava Nora amedrontada.
Ele contara a Nora que ficara sabendo sobre Einstein, através dos cientistas que estavam encarregados dos vários programas do Projeto Francis no Banodyne. Soube do monstro, também, mas não estava com medo dele. Estava, conforme dissera, à beira da imortalidade e se conseguisse ficar com o cachorro, seria o último passo a ser dado no caminho do seu destino. Ele e o cachorro estavam destinados a ficarem juntos, porque cada um deles era o único no mundo. Apenas um dentro de cada espécie. Uma vez que Vince atingisse o seu destino, nada poderia pará-lo, nem mesmo o monstro.
Nora não entendia a metade do que ele dizia. Ela imaginava que se procurasse entender seria tão louca quanto ele evidentemente o era.
Embora não entendesse o significado, Nora sabia o que Vince pretendia com ela e Travis, assim que conseguisse o cachorro. A princípio, ela estava com medo de falar sobre o destino dela, como se colocá-lo em palavras o tornasse irreversível. Finalmente, quando eles estavam a não mais do que sete quilômetros da estrada de terra que conduzia a casa deles, ela disse:
- Você não vai nos deixar ir embora assim que você tiver o cachorro, não é mesmo?
Ele olhou para ela com desdém.
- O que você acha, Nora?
- Acho que você vai nos matar.
- É claro.
Ela ficara surpresa que a confirmação de seus temores não a deixaram mais aterrorizada. Ela apenas ficou furiosa com a resposta que ele dera, temendo a não-realização de seus melhores sonhos.
Ela sabia que era uma mulher completamente diferente daquela Nora do mês de maio, que teria ficado reduzida a um incontrolável pavor diante da auto-afirmação do homem.
- Eu poderia jogar este carro fora da estrada, e lançar a sorte num acidente.
- No momento em que você virasse o volante - disse ele -, eu teria que matar você e assumir o controle.
- Não. Talvez você não pudesse. Talvez você morresse, também.
- Eu? Morrer? Talvez. Mas não numa coisa tão pequena como num acidente de tráfego. Não, não. Tenho muitas vidas dentro de mim para morrer assim, tão facilmente. E não acredito que você vá tentar, de qualquer forma. No fundo do seu coração, você acredita que o seu marido vai salvar a todos, inclusive o cachorro. Você está errada, é claro, mas você não pode parar de pensar nele. Ele não vai fazer nada porque estará temeroso de feri-la. Eu vou entrar lá com uma arma na sua barriga e isto o fará ficar imobilizado o tempo suficiente para que eu acabe com ele. É exatamente por isto que peguei um revólver. É tudo de que preciso. Ele se preocupa com você, o medo de machucá-la vai matá-lo.
Nora decidiu que era muito importante não deixá-lo perceber a sua fúria. Ela devia mostrar estar apavorada, fraca, extremamente insegura. Se ele a subestimasse, ele poderia se descuidar, dando a ela uma pequena vantagem.
Tirando os olhos da estrada por breves segundos, ela olhou para Vince e viu que o olhar dele não era de um psicopata, como ela poderia esperar, nem com aquela placidez usual, mas tinha qualquer coisa de afeição c talvez gratidão.
- Sonhei por muito tempo em matar uma mulher grávida - disse ele, e aquilo não era um objetivo não menos ambicioso do que construir um império alimentar a quem tem fome ou curar um doente. - Jamais estive numa situação onde o risco de matar uma mulher grávida fosse tão baixo, para justificá-lo. Mas na casa isolada de vocês, depois de acabar com Cornell, as condições serão ideais.
- Por favor, não - disse ela, tremendo, fazendo-se de fraca, embora a sua voz trêmula fosse verdadeira.
Ainda falando calmamente, mas com um traço de emoção ainda maior do que antes, ele disse:
- Vai haver a sua energia, forte e jovem, mas no instante em que você morrer eu também vou receber a energia da criança. E esta vai ser perfeitamente pura, não utilizada ainda, uma vida não-contaminada por este mundo doente. Você é a primeira mulher grávida que vou matar e jamais esquecerei de você.
Algumas lágrimas começaram a correr pelo canto dos olhos, o que não era de todo falso. Embora ela acreditasse de fato que Travis seria capaz de lidar com aquele homem, ela temia que no meio da confusão ela e Eins-ein morressem.
- Não fique desesperada, Nora - disse Vince. - Você e o seu bebê não vão parar inteiramente de existir. Vocês vão se tornar partes de mim e viverão... para sempre.
* * *
Travis girou a primeira bandeja de biscoitos e a colocou a esfriar... Einstein chegou farejando tudo e Travis disse:
- Ainda estão muito quentes.
O cachorro voltou para a sala de estar para olhar pela janela para a chuva lá fora.
Um pouco antes de Nora deixar a auto-estrada da Costa, Vince abaixou-se no banco, fora da vista da janela. Ele mantinha a pistola em Nora.
- Vou tirar este bebê da sua barriga com um tiro se você fizer o menor movimento suspeito.
Ela seguiu as instruções dele.
Entrando na estrada de terra, cheia de barro e escorregadia, Nora subiu o morro na direção da casa. As árvores laterais impediam que a chuva caísse com força, mas a água que ficava nos galhos caía no chão com pingos grossos. Ela viu Einstein na janela da frente da casa, e tentou fazer algum sinal que significasse "problema", e que o cachorro entendesse rapidamente. No entanto, ela não podia pensar em nada. Olhando para ela, Vince disse:
- Não vá até o estábulo. Pare ao lado da casa.
O plano dele era óbvio. No canto da casa, na confluência da despensa com as escadas do porão não havia janelas. Travis e Einstein não seriam capazes de ver o homem saindo da camioneta com Nora. Vince poderia empurrá-la até a varanda dos fundos e entrar na casa antes que Travis percebesse que alguma coisa estava errada.
Talvez o instinto animal de Einstein detectasse a presença do perigo. Talvez. Mas... Einstein havia estado muito doente.
* * *
Einstein entrou na cozinha, excitado. Travis perguntou:
- É a camioneta de Nora?
"Sim."
O cão se encaminhou até a porta dos fundos, impaciente, agitando-se muito. Finalmente ficou parado, com a cabeça levantada.
* * *
O lance de sorte de Nora veio quando ela menos esperava.
Quando ela estacionara ao lado da casa, puxara o freio de mão e desligara o motor, Vince a segurou firme, puxando-a através do banco, para que ela não fosse vista da janela. Ao sair da camioneta, ele continuava puxando Nora pelo braço, olhando em torno para certificar-se de que Travis não estava por perto; distraído, ele não mantinha o revólver tão perto de Nora como antes. Quando ela escorregou pelo banco, abriu o porta-luvas e pegou o 38. Vince deve ter escutado alguma coisa, porque se voltou para ela, mas era tarde demais. Ela encostou o 38 na barriga dele, e antes que Vince pudesse levantar a sua arma e disparar, Nora puxou o gatilho. Três vezes.
Com um olhar de espanto, ele caiu contra a parede da casa a apenas um metro atrás dele.
Ela estava maravilhada com a própria frieza. Concluíra que ninguém era tão perigoso quanto a mãe protegendo um filho, mesmo que esta criança ainda não tivesse nascido e outra fosse um cachorro. Ela atirou mirando para o peito dele.
Vince caiu duro no chão, batendo primeiro com o rosto.
Ela se afastou do corpo e correu. Ao dobrar o canto da casa, ela quase se chocou com Travis que saía da varanda com uma Uzi na mão.
- Eu o matei - disse ela, com um tom histérico na voz, tentando se dominar. - Eu atirei nele quatro vezes. Eu o matei, meu Deus!
Travis estava confuso. Nora se abraçou a ele, colocando a cabeça sobre o peito dele. Nora tentava se proteger da chuva fria, esquentando-se no corpo dele.
- Quem? - perguntou Travis.
Atrás de Nora, Vince, quase sem respirar, tentou dar um grito e, rolando de costas, atirou neles. A bala atingiu Travis no ombro, atirando-o para trás. Se o tiro fosse trinta centímetros mais à direita, teria atingido Nora na cabeça.
Ela quase se desequilibrou, quando Travis caiu, porque ela o estava abraçando. Mas ela se movimentou rápido para a esquerda, protegendo-se da linha de tiro atrás da camioneta. Ela olhou rapidamente para Vince, que segurava o revólver com uma das mãos e a outra no estômago, tentando se levantar.
Naquele momento em que olhou, tentando se proteger, ela não viu sinal de sangue no homem.
O que estaria acontecendo, afinal? Ele não poderia ter sobrevivido a três tiros no estômago e um no peito. A menos que fosse realmente imortal.
Quando Nora fugiu em busca de proteção, Travis estava sentado na lama. O sangue corria pelo ombro, espalhando-se pelo peito, deixando a camisa empapada. Ele ainda tinha a Uzi na mão direita, que ainda estava em condições de atirar, apesar do ferimento. Quando Vince deu o segundo tiro, Travis abriu fogo com a Uzi. A posição dele não era melhor do que a de Vince. As balas batiam na casa, ricochetando na camioneta.
Travis parou de atirar.
- Merda! - exclamou ele, levantando-se. Nora perguntou:
- Você o pegou?
- Ele foi para a frente da casa - respondeu Travis, dirigindo-se naquele sentido.
* * *
Vince estava achando que se encontrava próximo da imortalidade, quase chegando lá, se já não houvesse chegado. Necessitava - no máximo - mais algumas vidas, e a sua única preocupação era que o impedissem disso quase próximo de atingir o seu destino. Como resultado, ele tomou certas precauções. Como por exemplo: o mais caro e mais recente modelo de colete à prova de balas Kevlar. Ele estava usando por debaixo da camisa, o que lhe deu proteção contra os quatro tiros disparados por aquela puta. As balas bateram no colete, não havia sinal de sangue. Mas o tinham acertado. O impacto o lançara contra a parede da casa, deixando-o sem respiração. Ele tinha a impressão de estar deitado numa bigorna gigante com alguém lhe batendo repetidamente com um martelo de ferreiro.
Curvando-se de dor, cambaleando na direção da frente da casa, ele tentava fugir daquela maldita Uzi, estando certo de que seria morto pelas costas. Mas, de qualquer maneira, conseguiu subir as escadas da varanda, escapando à linha de tiro de Cornell.
Vince estava satisfeito por ter ferido Cornell. Livre do elemento surpresa ele agora se preparava para uma batalha final. Diabo, a mulher parecia tão formidável quanto Cornell - uma amazona maluca.
Ele poderia jurar que havia qualquer coisa de subserviente naquela mulher, que fazia parte de sua natureza se submeter aos outros. Obviamente, ele fizera um julgamento precipitado a respeito dela e aquilo o deixara assombrado. Vince Nasco não estava acostumado a cometer tal tipo de erro; os erros eram para os homens comuns! Não para o filho do destino.
Cruzando a varanda, certo de que Cornell o seguia rapidamente, Vince decidiu entrar na casa, ao contrário de fugir para o mato. Eles esperavam que ele corresse para a floresta, assumisse posição de defesa, considerando a estratégia. Ao contrário, ele entrou direto na casa para encontrar uma posição em que pudesse ver tanto a frente, quanto os fundos da casa.
Ele estava passando por uma janela, na direção da porta da frente, quando alguma coisa explodiu no vidro.
Vince deu um grito por causa da surpresa e abriu fogo, mas o tiro atingiu o teto da varanda, e o cachorro - Jesus, aquilo era o cachorro atingindo-o com toda a força. O revólver escapou das mãos dele, e os dentes firmes no ombro. A grade da varanda se desintegrou. Eles rolaram para o jardim, no meio da chuva.
Gritando, Vince batia no cachorro com os seus punhos imensos, até conseguir libertar-se. Então o cão pulou na garganta dele, e Vince mal teve tempo de desviá-lo, evitando ser degolado.
Ele ainda sentia dores na barriga, mas correu rápido para a varanda, procurando sua arma. Mas acabou se encontrando com Cornell. Sangrando, Travis estava na varanda, olhando-o.
Vince sentiu uma onda de autoconfiança selvagem. Ele sabia que estava se dando bem, sabia que era invencível, imortal, porque podia olhar direto para a Uzi sem sentir medo, sem qualquer medo, e abriu um imenso sorriso para Cornell:
- Olhe para mim, olhe! Sou o pior pesadelo que você já teve. Travis retrucou:
- Nem perto disso. - E abriu fogo.
* * *
Travis estava sentado em uma cadeira na cozinha, com Einstein ao seu lado, enquanto Nora cuidava dos ferimentos e contava o que havia apurado a respeito do homem que invadira o seu carro.
- Que sujeito maldito - disse Travis. - Não havia jeito de sabermos que ele estava lá fora.
- Espero que ele seja o único amaldiçoado a vir aqui. Tremendo de dor por causa do álcool e do iodo, Travis também estremeceu quando Nora colocou gaze por baixo de sua axila:
- Não se preocupe em fazer um serviço bem-feito. A hemorragia não é tão grande e nenhuma artéria foi atingida.
A bala atravessara o ombro, deixando um buraco à sua saída, fazendo Travis sofrer demais, mas, por enquanto, ele estava em pé. Ele teria que procurar assistência médica mais tarde, talvez a de Jim Keene para evitar perguntas que qualquer médico insistiria em fazer. Por enquanto ele estava preocupado somente que o ferimento estivesse protegido, pra que pudesse fazer desaparecer o corpo de Vince.
Einstein também estava ferido. Felizmente não se cortara quando pulou pela janela da frente. Parecia não ter quebrado osso algum, mas estava com um aspecto horrível. Cheio de barro, molhado, dolorido. Ele também precisava ser levado a Jim Keene.
No lado de fora, a chuva era mais forte do que nunca, batendo no telhado e escorrendo ruidosamente pelas calhas. Chovia, através da janela quebrada, mas eles não tinham tempo para se preocupar com prejuízos materiais.
- Graças a Deus que está chovendo - disse Travis. - Ninguém na área deve ter escutado o tiroteio por causa do barulho da chuva.
Nora perguntou:
- Onde vamos atirar o corpo?
- Estou pensando. - E era difícil de pensar claramente, porque a dor no ombro era muito forte. A cabeça também lhe doía muito.
Nora disse:
- Poderíamos enterrá-lo aqui mesmo no mato.
- Não. Sabíamos sempre que o corpo estaria lá. Estaríamos preocupados que os animais selvagens cavassem a terra à procura dele e poderia ser achado por montanhistas. Melhor... há alguns locais ao longo da auto-estrada da costa, onde podemos estacionar, esperar que não passe carro, e colocá-lo ao lado da pickup. Se escolhermos um lugar onde a água do mar possa atingir, as ondas vão levá-lo, antes que alguém note a presença dele.
Quando Nora terminou o curativo, Einstein se levantou, de repente. Ele farejou qualquer coisa no ar, e correu para a porta traseira, permanecendo lá parado por alguns instantes, desaparecendo depois na sala de estar.
- Temo que ele esteja mais ferido do que pareça estar - disse Nora, aplicando um último esparadrapo.
- Talvez - disse Travis. - E talvez não. Ele tem agido de maneira especial o dia todo, desde que você saiu pela manhã. Ele me disse que cheirava a dia ruim.
- Ele tinha razão - comentou Nora.
Einstein voltou da sala correndo e foi direto para a despensa, acendendo as luzes e acionando os pedais para que liberassem letras.
- Talvez ele tenha alguma idéia sobre onde devemos deixar o corpo. Enquanto Nora recolhia o iodo, o álcool e a gaze que haviam sobrado,
Travis colocava a camisa, sentindo muita dor, e foi até a despensa para ver o que Einstein tinha a dizer.
O MONSTRO ESTÁ AQUI.
* * *
Travis colocou mais um pente de balas na carabina Uzi, e outro no bolso, dando a Nora uma das pistolas Uzi que mantinha na despensa.
Observando a urgência de Einstein, eles concluíram que não tinham tempo de percorrer a casa para colocar proteção nas janelas.
O inteligente plano de fazer o monstro adormecer com o gás havia sido elaborado na certeza de que ele se aproximasse durante a noite. O plano se tornara sem qualquer utilidade, com a chegada daquela criatura durante o dia.
Eles permaneceram na cozinha, ouvindo, mas nada poderia ser escutado além do barulho da chuva.
Einstein não era capaz de dar informações mais precisas sobre a localização do adversário. O sexto sentido dele ainda não estava funcionando cem por cento. Eles tiveram sorte pelo fato de Einstein ter anunciado a presença da besta, de qualquer maneira. A ansiedade do cachorro durante a manhã não estava relacionada com qualquer pressentimento sobre o homem que voltara para casa com Nora e, sim com o monstro.
- Para cima - disse Travis. - Vamos lá.
Permanecendo onde estavam, a criatura poderia entrar pelas portas ou janelas. E talvez pudessem colocar os protetores sobre eles. Nora subiu as escadas com Einstein. Travis vinha um pouco atrás, caminhando de costas, e mantendo a Uzi na direção do primeiro andar. A subida o fez ficar tonto. Ele estava ciente de que a dor do seu ombro estava se espalhando por todo o corpo, como se fosse tinta se espalhando pelo papel.
Já no segundo andar, no topo da escada, ele disse:
- Se nós o ouvirmos entrando, podemos recuar, até que ele comece a subir na nossa direção. Então avançamos para pegá-lo de surpresa, e matá-lo.
Ela fez um sinal com a cabeça, concordando.
Eles tinham que permanecer em silêncio, permitindo que o monstro entrasse e concluísse que estavam no segundo andar, dando-lhe condições de adquirir confiança para se aproximar da escada com segurança.
A luz de um relâmpago - o primeiro da tempestade - brilhou na janela no fim da sala, seguida do trovão. O céu parecia estar se rachando por causa do trovão, deixando cair toda a água de uma só vez.
No final do corredor, um dos quadros de Nora se desprendeu da parede e caiu no chão.
Nora gritou de surpresa, e por um instante os três olharam estupidamente para a pintura caída no chão, imaginando que aquilo acontecera por causa do trovão e do relâmpago.
Uma segunda pintura saiu voando do estúdio, atingiu a parede, e Travis viu que o quadro estava todo rasgado.
O monstro já estava na casa.
Eles estavam na extremidade da pequena sala. O quarto de dormir estava à esquerda e o estúdio de Nora à direita.
Mais uma pintura voou para o corredor.
Encharcado da chuva, cheio de lama, ferido e ainda enfraquecido da luta contra a cinomose, Einstein latiu furiosamente, tentando afugentar o monstro.
Segurando a Uzi, Travis deu um passo à frente na sala.
Nora segurou o seu braço:
- Não. Vamos sair daqui.
- Não. Nós temos que encará-lo.
- De acordo com as nossas condições - disse ela.
- Estas são as melhores condições que podemos ter.
Mais duas pinturas voaram do estúdio caindo com muito barulho sobre os outros quadros rasgados.
Einstein não estava mais latindo, mas rosnando profundamente.
Eles caminharam juntos ao longo da sala, na direção da porta aberta. A experiência de Travis e o seu treinamento lhe diziam que deveriam avançar, atacar, ao contrário de servirem de alvo. Mas não se tratava da Força Delta. E o inimigo não era nenhum terrorista. Se eles se separassem perderiam um pouco da coragem de que necessitavam para enfrentar aquela coisa. Juntos eles tinham força.
Eles estavam a meio caminho da porta do estúdio, quando o monstro rosnou. Era um som frio, que deixou gelados os ossos de Travis. Ele e Nora pararam, mas Einstein seguiu mais um pouco em frente e parou.
O cachorro tremia violentamente.
Travis concluíra que estava tremendo também. E os tremores deixavam-no com mais dor no ombro.
Afastando o medo, ele entrou pela porta aberta pisando os quadros que estavam pelo chão, abrindo fogo para dentro do estúdio. O recuo da arma, embora mínimo, agia como um formão sobre o seu ferimento.
O chão estava cheio de pinturas rasgadas, misturadas com o vidro quebrado da janela, pela qual a criatura havia entrado depois de subir pelo telhado da varanda da frente.
Travis ficou parado em pé, as pernas separadas, aguardando. Ele segurava a arma com as duas mãos. O suor corria-lhe pelos olhos. Tentando ignorar a terrível dor no ombro direito. Ele esperava.
O monstro devia estar do lado esquerdo da porta, atrás dela ou à direita, abaixado, pronto para atacar. Se Travis lhe desse tempo, talvez a criatura ficasse cansada de esperar e o atacasse e ele o acertaria no meio do corredor.
Não. Ele é tão inteligente quanto Einstein, Travis disse para si mesmo. Seria Einstein tão estúpido a ponto de correr atrás de mim num corredor estreito? Não. A criatura vai fazer algo mais inteligente, inesperado.
O céu explodia com trovões tão fortes que fazia vibrar as janelas, fazendo tremer a casa. Os relâmpagos se encadeavam à luz do dia.
Venha para fora seu sacana, mostre-se, pensava Travis, que olhou para Nora e Einstein. Ambos permaneciam a poucos passos dele, com o quarto principal de um lado e o banheiro de outro, e as escadas atrás deles.
Ele olhou de novo através do corredor para os vidros quebrados da janela que estavam no chão. De repente ele teve a certeza de que o monstro não estava mais no estúdio, que havia saído pela janela, passando por cima do telhado da varanda, e que estaria vindo ao encontro deles de outra parte da casa, por outra parte, talvez saindo de outro quarto, ou do banheiro - ou talvez aparecesse na frente deles no topo da escada, rosnando.
Ele empurrou Nora para a frente, ao seu lado:
- Dê-me cobertura.
Antes que ela pudesse fazer qualquer objeção, ele caminhou pelo corredor, entrou no estúdio, caminhando abaixado. Quase caiu sobre os destroços, mas permaneceu se movendo e olhando em torno, pronto para abrir fogo se a criatura se jogasse sobre ele.
Ela não estava mais lá.
A porta do armário estava aberta. Não havia nada lá dentro.
Ele se dirigiu até a janela quebrada e olhou cuidadosamente para o telhado cheio dágua. Nada.
O vento soprava forte através dos vidros pontiagudos que haviam sobrado da janela.
Começou a recuar no sentido da sala do segundo andar. Ele poderia ver Nora olhando para ele, assustada, segurando corajosamente a sua Uzi. A porta do quarto que estava reservado para o futuro bebê se abriu e a criatura estava lá, com aqueles olhos amarelos como se fossem de fogo. O monstro escancarou a boca, cheia de presas, mais afiadas do que os vidros da janela que havia sido quebrada.
Nora o tinha visto e começou a afastar-se, mas a criatura não lhe deu tempo e atacou, tirando a Uzi de suas mãos.
Ele não teve tempo para feri-la, embora Nora estivesse desarmada, porque Einstein atacou, rosnando. Com uma agilidade de gato, o monstro voltou sua atenção para o cachorro, lançando seus imensos braços sobre Einstein, como se os braços tivessem vários cotovelos. Ele segurou o cachorro com firmeza com suas terríveis mãos.
Cruzando o estúdio na direção da sala, Travis não tinha meios de atirar no monstro, porque Nora estava entre ele e aquela figura odiosa. Quando Travis chegou no corredor, gritou para que ela se atirasse ao chão, dando-lhe oportunidade de uma linha de tiro, o que ela de fato fez, porém tarde demais. O monstro carregou Einstein para dentro do quarto e fechou a porta, como se fosse um pesadelo.
Einstein gania e Nora correu para a porta do quarto.
- Não! - gritou Travis, empurrando-a para o lado.
Ele mirou a carabina automática na direção da porta fechada e esvaziou o resto do pente, abrindo no mínimo trinta buracos na parede. Travis trincou os dentes por causa da dor que sentia no ombro. Havia risco de atingir Einstein, mas o caçador ficaria em situação mais perigosa se Travis não abrisse fogo. Quando a arma parou de cuspir balas, ele abriu a arma e colocou mais um pente que guardava no bolso. Então chutou a porta do quarto e entrou.
A janela estava aberta, com as cortinas voando ao vento.
O monstro não estava mais lá.
Einstein estava no chão, contra uma das paredes, inerte, coberto de sangue.
Nora deu um grito de desespero quando viu o cachorro.
Travis percebeu que havia sangue escorrendo pela janela e caindo do teto da varanda. A chuva se encarregava de lavai o amiguei.
O movimento lhe chamou atenção e Travis olhou na direção do celeiro onde o monstro desaparecera através da imensa poria. Baixando-se ao lado do cachorro, Nora disse:
- Meu Deus, Travis, meu Deus! Depois de tudo pelo que ele phsnou, Einstein teria que morrer deste jeito?!
- Vou atrás daquele sacana filho da puta - disse Travis furiosamente. - Ele está no estábulo.
Ela se movimentou através da porta, protestando.
- Não - disse ele. - Chame Jim Keene, e fique com Einstein, fique com Einstein.
- Mas é você quem precisa de mim. Você não pode ir atrás dele sozinho.
- Einstein precisa de você
- Einstein está morto - disse ela cheia de lágrimas.
- Não diga isto - gritou Travis para ela. Ele estava ciente de que sua atitude era irracional, acreditando que Einstein não estaria de fato morto, até que eles confirmassem, mas não podia controlar-se - Não diga que ele está morto. Fique aqui com ele, porra. Eu já feri aquele maldito fugitivo de um pesadelo, ele está muito ferido, está sangrando e posso acabar com ele por mim mesmo. Chame Jim Keene e fique com Einstein.
Ele também estava temeroso de que toda aquela atividade fizesse com que Nora abortasse, se já não tivesse acontecido. Assim eles perderiam não somente Einstein, mas o bebê.
Ele deixou o quarto em disparada.
Você não está em condições de ir até o estábulo, disse Travis para si mesmo. Você tem que descansar um pouco. Ele deveria ter Nora ao seu lado, não pedir que ligasse para o veterinário e permanecesse ao lado de Einstein... Não era bom. Ele permitiu que a raiva e o desejo de vingança tomassem conta dele. Até mesmo na Força Delta, o inimigo era tão descaracterizado - devido à imensa horda de maníacos e fanáticos dentro do terrorismo internacional - que a vingança proporcionava pouca satisfação. Mas ele estava lidando com um maldito inimigo sem igual, digno do nome, e o faria pagar pelo que fizera com Einstein.
Ele correu pelo corredor, desceu as escadas pulando os degraus de dois em dois, e foi acometido de tonteira e náuseas e quase caiu. Agarrou-se ao corrimão da escada para não cair. Procurou afirmar-se com o braço errado, sentindo uma dor lancinante no ombro. Largando a balaustrada ele perdeu o equilíbrio e caiu no chão.
Segurando firme a Uzi, se levantou novamente e seguiu para a porta dos fundos, entrou na varanda e desceu a escada que conduzia ao quintal. A chuva fria o deixou mais desperto, e ele ficou parado por um momento no jardim, permitindo que a chuva lhe tirasse a tonteira.
A imagem de Einstein todo ferido, com o corpo ensangüentado, lhe invadia a mente. Ele imaginava que não teria mais aquelas mensagens divertidas no chão da despensa, e pensava que passaria o próximo Natal sem a presença de Einstein circulando com o capuz de Papai Noel. Travis também pensava nos filhotes geniais que nunca nasceriam, e o peso de toda aquela perda quase o atirou no chão.
Ele usava a dor para aumentar a sua raiva, deixando sua fúria afiada até o limite.
Então, seguiu para o estábulo.
O lugar estava cheio de sombras. Ele permaneceu com a porta aberta, deixando a chuva cair-lhe na cabeça, olhando com atenção para o estábulo, vasculhando a escuridão a procura daqueles olhos amarelos.
Nada.
Passou pela porta, enraivecido, e procurou pelo interruptor para acender as luzes. Mesmo com as luzes acesas não podia ver o monstro.
Procurando vencer a tonteira, trincando os dentes de dor, cruzou o espaço reservado ao carro, passou por trás do Toyota, caminhando lentamente.
O sótão.
Ele deveria sair daquela posição dando alguns passos para trás. Se a criatura estivesse lá, poderia voar sobre ele. Aquela possibilidade mostrou-se sem fundamento. O monstro estava nos fundos do celeiro, na frente do Toyota, caído no chão de concreto, gemendo e com os braços em torno de si. Havia sangue por toda a sua volta.
Travis permaneceu ao lado do carro por quase um minuto, a dez metros da criatura, estudando aquele ser com nojo, medo, horror e uma fascinação macabra. Ele acreditava estar vendo o corpo de um macaco, talvez um babuíno, alguma coisa da família dos símios, de qualquer maneira. Mas não poderia ser identificado como pertencente a qualquer espécie isolada, sendo uma verdadeira miscelânea de partes reconhecíveis de vários animais. O conjunto tinha uma individualidade assustadora: a cara enorme, os imensos olhos amarelos, a mandíbula desfigurada fumegando, longos dentes curvos, as costas arqueadas, o pêlo fosco e braços excessivamente grandes.
A criatura estava olhando para ele, na expectativa.
Levantando a cabeça, movimentando as mandíbulas, emitiu um som dissonante, quebrado, impreciso, mas ainda compreensível, apesar do ruído da tempestade:
- Dor.
Travis estava mais horrorizado do que maravilhado. A criatura não fora programada para falar, embora tivesse a inteligência de aprender línguas e desejasse se comunicar. Evidentemente que durante aquele período em que perseguiu Einstein, aquele desejo crescera o suficiente para concretizar o que pretendia, apesar das limitações físicas. A criatura havia tentado falar, buscando uma forma de tirar algum som compreensível de sua boca defeituosa. Travis estava aterrorizado não por aquela criatura maldita estar falando, mas pelo desesperado esforço de tentar uma forma de comunicação com alguém, com qualquer um. Ele não queria sentir piedade, porque desejava sentir-se bem, varrendo aquela coisa da face da Terra.
- Vim de longe. Está feito - disse a criatura com tremendo esforço, como se cada palavra saísse rasgada da boca.
Os olhos eram estranhos demais para causar empatia, e cada parte de seu corpo era, sem sombra de qualquer dúvida, um instrumento de morte. Afastando um dos braços do corpo, a criatura pegou alguma coisa que estava ao seu lado, e que Travis não percebera até aquele momento: uma das fitas de Mickey que Einstein ganhara de Natal. A foto do famoso camundongo aparecia do lado de fora da fita, com a mesma roupa que se vestia, com aquele sorriso que todos conhecem, acenando.
- Mickey - disse o monstro, transmitindo um sentimento de perda e solidão. - Mickey.
Então deixou cair a fita, envolvendo-se novamente com os braços, virando-se de um lado para o outro, agonizante.
Travis deu mais um passo à frente.
A horrível cara do monstro era tão repulsiva que havia qualquer coisa de misterioso em torno dele. A sua extrema feiúra era inesperada e estranhamente sedutora.
Quando trovejou novamente, as luzes do celeiro piscaram e quase apagaram. Levantando a cabeça de novo, falando com aquela mesma voz arranhada, mas com frieza, ele disse.
- Matar cachorro, matar cachorro, matar cachorro. - E concluiu com um som que poderia ser uma risada.
Travis quase o cortou em pedaços, a bala. Mas antes que pudesse puxar o gatilho, o que parecia ser uma risada do monstro se transformou em soluço. Travis estava hipnotizado.
Encarando Travis com aqueles olhos de lanterna, a criatura disse:
- Matar cachorro, matar cachorro, matar cachorro. - Mas daquela vez ele parecia estar sofrendo, como se tivesse compreendido a magnitude do crime que fora geneticamente compelido a cometer.
O monstro olhou para a foto de Mickey e a fita cassete. Finalmente, suplicando, disse:
- Mate-me.
Travis não sabia se estava agindo mais por raiva do que por piedade, quando puxou o gatilho e esvaziou a arma no monstro.
O que um homem começou, um homem terminou.
Travis sentia-se exaurido.
Largou a arma no chão e saiu. Não tinha forças para voltar para casa. Sentou-se na grama, encolhendo-se por causa da chuva, todo molhado.
Ainda estava chorando, quando Jim Keene entrou com o seu carro na estrada cheia de barro, saindo da rodovia principal.
ONZE
1
Na quinta-feira, na parte da tarde, 13 de janeiro, Lem Johnson deixou Cliff Soames e três outros agentes no início da estrada de terra, no entroncamento com a auto-estrada da costa do Pacífico. Foram dadas instruções para que ninguém passasse, a não ser a chamado de Lem.
Cliff Soames parecia pensar que aquela era uma maneira estranha de conduzir as coisas, mas não seguia suas objeções.
Lem explicara que Travis Cornell fizera parte da Força Delta, possuindo incrível habilidade de combate, e que todos deveriam tomar cuidado com ele.
- Se chegarmos de repente, ele vai saber quem somos nós, assim que perceber nossa aproximação, poderá reagir violentamente. Se eu for sozinho, serei capaz de convencê-lo a conversar comigo, e talvez possa persuadi-lo a desistir.
Era uma explicação superficial para um procedimento nada ortodoxo, e não conseguia aliviar a carranca de Cliff.
Lem não estava nem um pouco preocupado com a cara de mau de Cliff. Ele pegou um dos carros e dirigiu sozinho pela estrada, estacionando em frente à casa.
Os pássaros estavam cantando nas árvores. O inverno era temporariamente menos rigoroso na costa norte da Califórnia, e o dia estava quente.
Lem subiu as escadas e bateu na porta da frente.
Travis Cornell foi atender a porta e olhou para ele através da cortina, antes de dizer:
- Penso que seja o sr. Johnson.
- Como você... oh, sim, é claro, Garrison Dilworth deve ter conversado com você a meu respeito naquela noite em que ele me ligou.
Para surpresa de Lem, Cornell abriu a porta.
- Pode entrar.
Travis estava usando uma camiseta sem mangas, aparentemente por causa do ferimento no ombro direito. Ele conduziu Lem pela sala da frente na direção da cozinha, onde encontrou a esposa sentada à mesa, descascando maçãs para fazer uma torta.
- Sr. Johnson - disse ela. Lem sorriu e disse:
- Sou extremamente popular, pelo que vejo.
Cornell sentou-se à mesa e levantou uma xícara de café. Ele não ofereceu café a Lem.
Olhando embaraçadamente por um momento, Lem acabou sentando-se com eles à mesa e disse:
- Bem, é inevitável, você sabe. Tínhamos que pegar você mais cedo ou mais tarde.
Nora continuou a descascar maçãs e não respondeu coisa alguma.
O marido dela olhava para o café.
O que será que há de errado com eles?, pensou Lem.
Aquilo nem de perto era o ambiente que ele imaginara. Ele estava preparado para pânico, raiva, desalento, e muitas outras coisas, mas não para aquela apatia. Eles não pareciam se importar pelo fato de terem sido localizados. Ele comentou:
- Vocês não estão interessados em saber como nós os localizamos? A mulher balançou a cabeça.
Cornell disse:
- Se você deseja realmente nos dizer, vá em frente e divirta-se. Lem franziu a sobrancelha, confuso, e disse:
- Bem, foi simples. Sabíamos que o sr. Dilworth teria que ligar para você de alguma residência ou casa de comércio, a algumas quadras daquele pequeno porto. Portanto, conectamos todos os nossos computadores aos arquivos da companhia telefônica... com a permissão deles, é claro... colocamos alguns agentes para examinarem todas as ligações interurbanas feitas numa área de três quadras em torno do parque. Nada indicou a sua localização. Então, concluímos que a ligação quando é ao contrário, quando a cobrança não é feita para o telefone usado para ligação, aparece nos arquivos da pessoa que aceita a ligação, neste caso, você. E também aparece num arquivo especial da companhia, que nos indicou uma casa ao longo da costa, no norte, exatamente neste número aqui. Quando fomos falar com as pessoas indicadas, a família Essembly, conversamos com o filho deles, um adolescente de nome Tommy, e embora demorasse um pouco nos asseguramos de que fora Dilworth quem usara o telefone. A primeira parte do trabalho foi terrível, mas depois... um brinquedo de criança.
- Você quer uma medalha, ou o quê? - perguntou Cornell.
A mulher pegou outra maçã, e cortou em dois, e começou a tirar a casca.
Eles não estavam tornando o trabalho nada fácil para ele, porque a intenção dele era diferente do que pudera esperar anteriormente. Não poderiam ser criticados por estarem sendo tão frios com Lem, quando nem ao menos sabiam que ele fora até a casa deles como amigo. Ele disse:
- Escutem, deixei todos os meus homens no início da estrada. Eu lhes disse que você poderia entrar em pânico, fazer algo estúpido, se nos visse entrando em grupo. Mas o motivo pelo qual eu vim sozinho é para lhes fazer uma proposta.
Ambos olharam para ele, finalmente, com interesse. Ele disse:
- Estou caindo fora deste maldito trabalho, quando chegar a primavera. Por que estou saindo... vocês não têm obrigação de saber ou se interessar. Vamos dizer que é uma mudança de maré. Aprendi a lidar com o fracasso e isto não me assusta mais. - Ele suspirou e encolheu os ombros - De qualquer forma, o cachorro não pertence a uma jaula. Eu não dou a mínima para o que eles possam dizer, para o que eles querem. Eu sei o que é certo. Eu sei que é estar preso. Eu estive numa cadeia a maior parte da minha vida, até recentemente. O cachorro não deve voltar para lá. O que eu vou sugerir, é que você o tirem daqui, agora, sr. Cornell, levem-no para o mato, deixem-no em algum lugar que seja seguro, depois volte para contar uma história. Digam que o cachorro fugiu alguns meses atrás, em algum lugar, e que vocês imaginam que ele esteja morto agora. E ainda vai continuar havendo o problema do monstro, de que vocês têm ouvido falar, mas podemos fazer um plano para lidar com ele, assim que se aproximar colocarei alguns homens para vigiarem a casa e, depois de algumas semanas, vou retirá-los. Digamos que seja uma causa perdida.
Cornell levantou-se e caminhou na direção da cadeira de Lem. Com sua mão esquerda ele segurou a camisa de Lem e o levantou, dizendo:
- Você está dezesseis dias atrasado, seu filho da puta.
- O que quer dizer?
- O cachorro está morto. O monstro o matou. E eu matei o monstro. A mulher colocou de lado a faca e um pedaço de maçã. Ele protegeu o rosto com as mãos e debruçou-se sobre a mesa, com os ombros curvados, deixando escapar expressões de tristeza.
- Meu Deus! - exclamou Lem.
Cornell afastou-se dele. Embaraçado, deprimido. Lem ajeitou a gravata e desapertou o nó, alisando a camisa.
- Meu Deus! - repetiu ele.
Cornell concordou de boa vontade em conduzi-los até o lugar na floresta onde enterrara o monstro.
Os homens de Lem cavaram até encontrar o corpo da criatura enrolado num plástico, mas não havia necessidade de retirá-lo para concluir que se tratava da criação de Yarbeck.
O tempo havia permanecido frio deste que a criatura fora morta, mas o corpo já estava cheirando mal.
Cornell não lhes diria onde o cachorro fora enterrado.
- Ele nunca teve muita oportunidade de viver em paz - disse Travis de forma triste. - Mas, por Deus, ele vai descansar em paz agora. Ninguém vai submetê-lo a autópsia, cortando-o todo. De forma alguma.
- No caso da segurança nacional estar em jogo, você pode ser forçado...
- Deixe-os - disse Cornell. - Se eles me levarem na presença de um juiz, obrigando-me a dizer onde enterrei Einstein, vou contar toda essa história para a imprensa. Mas se deixarem Einstein em paz, e também me deixarem em paz, permanecerei calado. Não pretendo voltar para Santa Bárbara, para reassumir a identidade de Travis Cornell. Sou Hyatt agora, e é assim que vou continuar. Minha vida passada terminou para sempre. Não há razão para voltar. E se o governo for inteligente, vai permitir que eu seja Hyatt e vai sair fora do meu caminho.
Lem ficou encarando Travis por algum tempo. Então disse:
- Sim, se eles forem inteligentes, acho que vão fazer exatamente isto.
* * *
Mais tarde, naquele mesmo dia, quando Jim Keene preparava o jantar, o seu telefone tocou. Era Garrison Dilworth, a quem ele nunca havia encontrado, mas ouvira falar a respeito na semana anterior, servindo como ligação entre o advogado e Travis. Garrison estava ligando de uma cabine telefônica em Santa Bárbara.
- Eles já apareceram? - perguntou o advogado.
- No início da tarde - respondeu Jim. - Aquele Tommy Essembly deve ser um bom garoto.
- Não é ruim, realmente. Mas ele não veio para me falar de sua bondade.
Ele é um rebelde contra a autoridade. Quando o pressionaram para admitir que eu fiz uma ligação da casa dele naquela noite, ele se ofendeu. Como acontece inevitavelmente com os cabritos nas montanhas, batendo a cabeça contra a cerca, Tommy veio me procurar direto.
- Eles levaram embora o monstro.
- E o cachorro?
- Travis disse que não lhes mostraria onde o cachorro fora enterrado. Ele os fez acreditar que chutaria a bunda de muita gente e faria cair a casa na cabeça de muitos outros, se eles o pressionassem.
- Como está Nora? - perguntou Dilworth.
- Ela não vai perder a criança.
- Graças a Deus. Isto deve ser um grande conforto.
2
Oito meses mais tarde, em setembro, no fim de semana em que se comemorava o Dia do Trabalho, as famílias Johnson e Gaines se reuniram para um churrasco na casa do xerife. Jogaram bridge a maior parte do tempo, durante a tarde. Lem e Karen ganharam mais do que perderam, o que não era comum, porque Lem não se dedicava ao jogo com aquela necessidade fanática de ganhar, como era do seu estilo.
Ele havia deixado a Agência de Segurança Nacional em junho. Desde então, vivia do dinheiro que herdara do pai.
Na primavera seguinte, ele esperava estar-se dedicando a outro tipo de trabalho, no qual seria o seu próprio patrão, capaz de controlar as próprias horas de trabalho.
No final da tarde, enquanto as mulheres preparavam salada na cozinha, Lem e Walt permaneciam no quintal cuidando do churrasco.
- Quer dizer que você continua conhecido na Agência como o homem que acabou com a crise do Banodyne?
- É como vou ser conhecido até o final dos tempos.
- Você ainda tem a pensão - disse Walt.
- Bem, contribuí por vinte e três anos.
- Não parece certo, que o homem que poderia solucionar o maior caso do século caísse fora aos quarenta e seis anos, ganhando pensão total.
Três quartos de pensão.
Walt respirou fundo diante da fumaça que saía do churrasco.
- Para onde está indo nosso país? Em tempos menos liberais, sujeitos como você teriam sido açoitados e espancados, no mínimo - Ele deu um suspiro e disse: - Conte-me mais uma vez sobre aquele momento na cozinha com eles. Lem já havia contado aquela história umas cem vezes, mas Walt nunca ficava cansado de Ouvir de novo.
- Bem, o lugar era limpo, tudo brilhava. E tanto Cornell, quanto a mulher dele também eram muito limpos e arrumados. Eles eram pessoas bem vestidas. Então eles me disseram que haviam enterrado o cachorro há duas semanas. Cornell expressou sua raiva levantando-me da cadeira pela camisa, como se fosse tirar minha cabeça fora. Quando ele me deixou, eu arrumei minha gravata, alisei minha camisa... olhei para minhas calças, como de hábito, e percebi alguns pêlos dourados. Pêlos de cachorro. Pêlos de um cão caçador dourado, com certeza. Poderiam aquelas pessoas ótimas preencher o vazio de suas vidas, desviando a mente daquela tragédia? Eles não tiveram tempo de limpar a casa em mais de duas semanas?
- Havia pêlo em toda sua calça - disse Walt.
- Centenas de pêlos.
- Como se o cachorro houvesse sentado ali alguns minutos antes que você chegasse.
- Como se eu tivesse chegado dois minutos antes e sentado no próprio cachorro.
Walt virou o churrasco na grelha.
- Você é um homem muito observador, Lem. Não entendo como você, com todo o seu talento, conseguiu destruir o caso Banodyne tão completamente.
Os dois riram como sempre.
- Apenas sorte, acho - disse Lem, conforme costumava dizer sempre e riu novamente.
3
Quando James Garrison Hyatt comemorou os seus três anos, no dia 28 de junho, a sua mãe estava grávida de um bebê que seria sua irmã. Eles organizaram uma festa naquela casa nas encostas cheias de árvores acima do Pacífico. A família Hyatt estava se mudando para uma casa maior um pouco mais acima na costa e a festa servia para lembrar não somente um aniversário, mas registrar a despedida de uma casa que primeiramente os acolheu como uma família.
Jim Keene foi até a casa deles vindo de Carmel e levando consigo Pooka e Sadie, os seus dois labradores pretos e o jovem cão de caça dourado, Leonardo, costumeiramente chamado Leo. Alguns poucos amigos da empresa imobiliária onde Sam - "Travis" para todos - trabalhava em Carmel e da galeria onde Nora colocava em exposição os quadros e os vendia. Todos os amigos levaram os seus caçadores dourados, também, todos de uma segunda ninhada de Einstein com a sua companheira Minnie.
Apenas Garrison Dilworth não estava presente. Ele morrera durante o sono no ano anterior.
Todos tiveram um dia maravilhoso. Foi uma grande festa, não somente porque eram amigos e por estarem juntos, mas porque dividiam um segredo maravilhoso que os manteria unidos para sempre como uma grande família.
Todos os membros da primeira ninhada também estavam presentes: Mickey, Donald, Margarida, Huguinho, Zezinho e Luisinho.
Os cachorros aproveitaram mais que as pessoas, brincando no jardim, fazendo o jogo de esconde-esconde nos matos, e assistindo aos vídeos na sala.
O patriarca dos cães participava de algumas brincadeiras, mas passava a maior parte do tempo com Travis e Nora, como sempre, perto de Minnie. Ele se movia com dificuldade - e assim seria pelo resto de sua vida - porque sua pata direita havia sido esmagada cruelmente pelo monstro, e ficaria totalmente imprestável, se o veterinário não tivesse se dedicado a sua restauração parcial.
Travis seguidamente imaginava que o monstro depois de atirar Einstein com toda a força contra a parede, imaginara que ele estivesse morto. Ou, naquele momento, em que ele tivera a vida do caçador nas mãos, talvez tivesse sentido um pouco de piedade, que os cientistas não haviam programado, mas que poderia haver, de qualquer forma.
Talvez, ele houvesse se lembrado de algum bom momento que os dois desfrutam no laboratório - os desenhos animados. Ao lembrar disto, talvez tivesse, pela primeira Vez, encarado a si mesmo, na esperança de possuir, um determinado potencial para ser como qualquer outro ser vivo. Ao ver-se como os outros, talvez não encontrasse vontade para matar Einstein como pretendia e julgava ser fácil. Além do mais, poderia ter estripado Einstein apenas com a ponta de uma de suas garras.
Einstein: havia perdido a marca na orelha, graças a Jim Keene. Nunca mais alguém poderia provar, que aquele era o cachorro do Banodyne e Einstein poderia se fazer passar por um "cachorro idiota".
Durante o aniversário de Jimmy, que completava três anos, Minnie olhava para o seu companheiro e filhotes, desnorteada, perplexa com a atitudes extravagantes deles. Embora ela nunca pudesse entendê-los nenhuma cadela jamais recebeu tanto amor como ela recebia daqueles que havia colocado no mundo. Ela os observava, e eles igualmente observavan a mãe, numa proteção mútua.
No final do dia, quando as visitas foram embora, quando Jimmy dormia no quarto, Minnie e a primeira ninhada se preparavam para dormir: Einstein, Travis e Nora se reuniram na despensa.
Já não havia mais a máquina com as letras. No lugar dela eles haviam colocado um computador IBM. Einstein segurou um estilete na boca manipulou o teclado. A mensagem apareceu na tela:
ELES CRESCEM RÁPIDO.
- Sim, eles crescem - disse Nora. - Os seus ainda mais rápidos do que os outros.
UM DIA ELES ESTARÃO POR TODOS OS LUGARES.
- Um dia, com o tempo e com muitas ninhadas - disse Travis eles vão estar por todo o mundo.
LONGE DE MIM. É UMA TRISTEZA.
- Sim, é - concordou Nora. - Mas todos os filhotes voam do ninho mais cedo ou mais tarde.
E QUANDO EU FOR EMBORA?
- O que você quer dizer com isto? - perguntou Travis, abaixando se para passar a mão no pêlo de Einstein.
ELES VÃO SE LEMBRAR DE MIM?
- Claro, peludo - respondeu Nora, ajoelhando-se para abraçá-lo. Desde que continuem existindo cachorros e pessoas dispostas a tratar deles todos vão se lembrar de você.
Dean R. Koontz
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