Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Invasão Espacial
A energia humana e a tecnologia superior dos arcônidas uniram-se num super-poder conhecido como a Terceira Potência.
E não foi sem razão que lhe deram esse nome. Pois essa Terceira Potência, chefiada por Perry Rhodan, já conseguiu evitar as piores catástrofes para a Terra.
Mas agora os velhos inimigos dos arcônidas, os Deformadores Individuais, penetram no sistema solar. A Terceira Potência vê-se diante duma ameaça contra a qual nem mesmo os cientistas do planeta Árcon conhecem qualquer defesa...
Subitamente os olhos daquele homem se arregalaram numa expressão de horror, como se tivessem enxergado uma coisa inconcebível. Mas fitavam o vazio, o azul infinito do céu que se espelhava na superfície do pequeno lago escondido no mato. Logo tornaram-se rígidos e apáticos.
A mão que segurava a vara de pescar não tremia. Parecia petrificada. Não reagiu quando a bóia foi arrastada abruptamente para o fundo. Só a vara envergou sob a tração pela qual Sammy Derring esperara em vão a manhã inteira. E agora nem reagiu.
Quem pudesse contemplar seus olhos naquele instante recuaria horrorizado. O pavor infinito misturou-se com o espanto. Isso durante cinco segundos.
Nesses cinco segundos ninguém reconheceria naquele homem o estatístico; Sammy Derring, funcionário, já há alguns anos, do Ministério da Defesa do Bloco Ocidental. Era solteiro. Nos fins de semana ia invariavelmente ao pequeno lago situado no meio da floresta, para pescar trutas que entregava à dona da casa em que ocupava um quarto. Não gostava de peixe, mas era de opinião que o esporte da pesca acalmava os nervos e fazia bem à saúde. Mais adiante. à margem duma estradinha, achava-se estacionado seu carro, que era o segundo hobby de Sammy. Não conhecia outras paixões
Por cinco segundos Sammy Derring estava praticamente morto.
Seu espírito, sua inteligência, ou sua alma, conforme o termo que se prefira usar abandonara o corpo. Mas não o abandonara voluntariamente. Fora forçado. Alguma coisa mais forte que ele, alguma coisa inconcebível apossara-se de seu cérebro, penetrara nele e expelira o que antes se encontrava em seu interior.
Durante esses segundos inconcebíveis Sammy Derring via a si mesmo sentado à margem do lago. Invisível, flutuou a alguns metros de altura e olhou para seu corpo. Não compreendeu, mas viu. E também viu que estava morto, mas continuava sentado no mesmo lugar. Ele, ou melhor, seu corpo, deveria ter caído. Mas continuou sentado e nem se interessou pelo peixe que mordera a isca.
No espírito de Sammy surgiu o desejo de levantar o caniço, mas o corpo que se encontrava ali embaixo já não obedecia ao seu comando. Além disso, não havia mais tempo. Os cinco segundos tinham chegado ao fim. O quadro bucólico do lago desvaneceu-se diante dos olhos de Sammy — será que ele ainda tinha olhos? — e desapareceu.
Uma força invisível arrastou-o. As cores tremeluziram. Por um instante julgou ver uma esfera imensa abaixo de si. Logo após sentiu-se envolvido pela escuridão. Percebeu que estava sendo arrastado para dentro de alguma coisa. Subitamente os reflexos físicos retornaram. Sentiu os membros. Pôde movê-los.
Apesar da escuridão conseguiu enxergar. Notou que a escuridão não era completa; uma luminosidade fraca enchia o espaço no qual se encontrava. A pergunta de como tinha chegado até ali surgiu vagamente em seu espírito, mas logo se desinteressou pela resposta. Sofrera um esgotamento total e encontrava-se num hospital. Não havia outra explicação.
Estava doente. O cansaço envolveu-o e apoderou-se de todo o seu ser. Por que ninguém cuidava dele? Desconfiou de que devia haver alguém por perto. Esforçou-se para erguer o corpo, mas não conseguiu. Será que o tinham encontrado junto ao lago e o trazido até ali? Não se vira a si mesmo, sentado junto à margem do lago? Seus olhos já se haviam acostumado à semi-escuridão; voltara a enxergar. Mas o cansaço tornava-se cada vez mais forte. Sentiu que iria adormecer. Mas alguma coisa remoía no seu cérebro e não lhe dava sossego. Constatara algo. Mas preciosos segundos se passaram até que a percepção atingisse sua consciência e se transformasse em realidade. Os dedos... as pernas. Reunindo as últimas energias, abriu os olhos uma última vez e, apavorado, fitou as extremidades dos quatro braços presos ao seu corpo. Viu garras bem afiadas, com ventosas.
Depois olhou para o corpo. Era um corpo de marimbondo, coberto duma fina penugem, que se estreitava no centro. O monstro terrível em que se transformara subitamente era tão irreal que Sammy deu um suspiro de alívio, fechou os olhos negros e esticou as pernas.
Era claro que tudo não passava de um sonho. Como não pensara nisso antes?
Quando se deu conta do fato de que jamais o homem, enquanto sonha, percebe que se encontra nesse estado, já era tarde.
Seu espírito, aprisionado num organismo extraterreno, mergulhou num sono profundo.
Decorridos os cinco segundos, Sammy Derring recolheu a vara de pescar. Contemplou sem maior interesse a truta de quase um quilo e, depois de ligeira hesitação, tirou-a do anzol e voltou a atirá-la à água. Colocou a vara distraidamente no gramado e, em passos um tanto inseguros, como se tivesse estado de cama por algumas semanas, dirigiu-se ao carro. Mais uma vez hesitou ligeiramente. Mas logo o centro de memória do intelecto que antes habitara aquele corpo forneceu-lhe as informações desejadas.
Sammy Derring, que já não era o verdadeiro Sammy Derring, deu partida no motor do carro e, guiando cautelosamente pelo caminho esburacado, conduziu-o em direção à rodovia. Lançou um olhar ligeiro sobre as placas indicativas. Logo disparou em direção à cidade.
A senhora Sarah Wabble admirou-se de ver seu inquilino de volta antes da hora de costume. Sua admiração cresceu bastante quando Sammy se limitou a cumprimentá-la com um ligeiro movimento de cabeça e se trancou no quarto. Nenhuma palavra nada de trutas.
O ser que já fora Sammy Derring sentiu-se aliviado ao perceber que a porta trancada o separava dos homens. Sua experiência no comando de organizações estranhas ainda deixava a desejar. Além disso os habitantes deste planeta dispunham de uma boa dose de inteligência que não era fácil excluir nem conservar. Teria sido fácil eliminar aquele homem, mas as ordens do comandante tinham de ser cumpridas.
Esse comandante não se encontrava na Terra. Bem longe, no espaço cósmico, urn objeto oval que emitia um brilho metálico percorria, em queda livre, sua órbita era torno da Terra sem que ninguém pudesse perceber seus movimentos. Essa nave não fora concebida pelo cérebro de qualquer homem, nem construída por mãos humanas. Garras de inseto e patas de ventosa que não eram humanas, mas nem por isso menos hábeis que as mãos dos homens, haviam executado o serviço. A inteligência que comandava os movimentos dos membros de seis articulações daqueles insetos de quase dois metros de comprimento, cujo aspecto lembrava ligeiramente o das vespas, não ficava a dever nada à dos homens.
Uma faculdade permitia ao espírito desses seres extraterrenos abandonar seu próprio corpo e apossar-se de um organismo estranho. Com isso realizava-se uma verdadeira troca. Felizmente ainda desta vez a natureza cuidara para que houvesse um ponto fraco. O espírito que habitava o corpo no qual pretendiam penetrar só poderia ser banido e aprisionado enquanto ficasse encerrado no corpo da própria vespa. Só assim os DI adquiriam liberdade de ação e conseguiam realizar qualquer movimento com o corpo que passavam a habitar. Se o hospedeiro falecesse antes que abandonassem seu corpo, a vespa teria que falecer com ele. E a destruição do corpo do inseto que encerrasse o espírito humano também se tornaria fatal.
Aqueles que conheciam os insetos chamavam-nos de Deformadores Individuais, ou simplesmente DI, isso por causa de suas qualidades terrificantes.
Os DI haviam encontrado a Terra. Esse planeta totalmente desconhecido, situado nos confins da Via Láctea, transformara-se de uma hora para outra no centro duma série de acontecimentos cujas conseqüências ainda eram imprevisíveis. Os DI foram atraídos pelos sinais de socorro de um cruzador espacial dos arcônidas, que dominavam um imenso império espacial e eram os inimigos natos das “vespas”. Não havia a menor possibilidade de vitória na luta contra elas, a não ser que conseguissem localizar e destruir suas naves. Uma dessas naves exploradoras devia ter realizado um pouso de emergência no sistema solar. No entanto, uma surpresa estava reservada aos DI. A Terra era habitada por uma raça inteligente, que já chegara mesmo a ultrapassaros primeiros estágios da navegação espacial.
Estava na hora de cuidar dos terrenos antes que os arcônidas o fizessem.
Fora só por esse motivo que o comandante dos DI ordenara a infiltração no planeta Terra. Tinha certeza absoluta de conquistar em pouco tempo as posições-chaves da ciência e da política terrena.
Decidira levar a efeito a invasão.
Os homens não desconfiavam de nada. Sabiam que nas proximidades da órbita lunar surgira uma nave espacial desconhecida, que fora destruída, mas não sabiam que os DI possuíam mais de uma nave. E. mais do que isso, com exceção de umas poucas pessoas, não sabiam quem eram os DI e quais eram suas intenções.
Quando Sammy Derring entrou no escritório na segunda-feira de manhã e cumprimentou seus colegas, ninguém percebeu a transformação que havia experimentado. Remexeu os papéis e subitamente chamou a secretária.
A jovem entrou e segurou o bloco de ditado. Sammy sacudiu a cabeça e disse em tom sério:
— Traga-me todos os documentos relativos à defesa terrestre. Além disso desejo examinar os relatórios sobre os progressos alcançados nos setores da pesquisa espacial e da tecnologia dos foguetes. Estou interessado principalmente na eficiência da nossa defesa. Por que me olha desse jeito? Vamos logo, mexa-se!
A secretária engoliu em seco e ficou com o rosto vermelho.
— Mas, senhor Derring...
— Não entendeu o que eu disse?
A secretária quis dizer mais alguma coisa, mas logo viu a expressão nos olhos de Sammy. Essa expressão era tão estranha, tão distante, que a fez estremecer. Ficou sem saber o que dizer. Com um aceno de cabeça saiu da sala. Deixou para trás um Sammy Derring muito satisfeito. Ou melhor, o aspecto externo de Sammy Derring.
A secretária fechou a porta e ficou parada por um instante. Depois sacudiu a cabeça e tomou uma decisão: dirigiu-se ao seu chefe de seção, um certo John Mantell.
Mantell ouviu em silêncio o que aquela linda jovem tinha a dizer. Em sua testa surgiram algumas rugas. Parecia refletir intensamente. Depois de algum tempo sacudiu a cabeça.
— Tem certeza absoluta de que Sammy não estava gracejando?
— Absoluta. Estava falando sério. Além disso, aquela expressão nos seus olhos. Nunca vi uma expressão dessas no rosto de ninguém.
Mantell contemplou-a com olhos perscrutadores.
— Isso é muito estranho! Quer os dados relativos à defesa nacional. Deve saber perfeitamente que só o ministro da defesa tem acesso a eles. Não irão entregá-los a qualquer funcionariozinho. Será que ficou megalomaníaco?
Pela primeira vez a secretária sorriu.
— Lembro-me de que certa vez, em brincadeira, o senhor Derring disse que seu nome era parecido com o do ministro da defesa. Disse que um dia poderia ser confundido com ele.
— O ministro Samuel Daring não teria gostado disso nem um pouco — conjeturou Mantell. — A semelhança de nomes não justifica esse tipo de brincadeira. Falarei com Derring. Diga-lhe que se apresente no meu escritório às onze horas.
A secretária hesitou.
— O que devo dizer-lhe agora?
— Diga o que quiser. E agora deixe-me em paz; tenho muito que fazer.
A secretária foi saindo devagar, mas não voltou à sua mesa. Ficou indecisa por alguns instantes; depois pediu que a anunciassem ao encarregado dos serviços de defesa.
O senhor Smith ficou surpreso ao saber do incidente. Levou o caso muito mais a sério que John Mantell, que provavelmente já o havia esquecido. Pediu à secretária que aguardasse na ante-sala. Mal a porta fechou-se atrás dela, começou a desenvolver uma atividade intensa. Retirou um telefone trancado num cofre, discou um número e esperou impaciente. Teve de repetir o número duas vezes. Finalmente a pessoa com que desejava falar respondeu ao chamado.
— Aqui fala Smith, do Ministério da Defesa. Aconteceu uma coisa estranha, senhor. É totalmente incompreensível, a não ser que se trate de uma brincadeira. Acontece que há poucos dias recebi instruções do senhor no sentido de observar qualquer pessoa que revele um comportamento anormal e...
A voz interrompeu-o. Formulou uma pergunta precisa. Smith encolheu-se e assumiu um porte mais rígido na poltrona. Seu interlocutor devia incutir-lhe um respeito fora do comum.
— Perfeitamente, senhor. O funcionário Sammy Derring exige que lhe entreguem os planos secretos da defesa nacional. Além disso, quer ser informado sobre os detalhes do nosso programa espacial. Manifestou esse desejo com toda a seriedade. Sua secretária afirma que nunca viu tamanha determinação em sua pessoa. Além disso, ela declara ter notado uma expressão muito estranha nos olhos dele.
Houve outra pergunta lacônica, mas desta vez em voz bastante alta:
— Qual é o nome do funcionário?
— Sammy Derring, senhor.
— E como é o nome do ministro da defesa?
— Senhor?!
— Quero saber como se chama o ministro da defesa.
— Samuel Daring, senhor. Mas o senhor já sabia disso...
— Obrigado, Smith. Anote minhas instruções. Não deixe que ninguém desconfie de nada. A secretária entregará os documentos a Derring. É claro que lhe entregará documentos já superados. Derring não deve suspeitar de nada. Entendido?
— Perfeitamente, senhor. Mais alguma coisa?
— Não fale sobre isso com ninguém, ouviu? Dentro de duas horas estarei aí.
— O senhor pretende vir pessoalmente? A voz de Smith falhou. Era uma coisa nunca vista. Allan D. Mercant, o chefe todo-poderoso dos serviços de defesa do Ocidente, se daria ao incômodo dessa viagem. E ainda por cima tratava-se duma bagatela. Por certo acabariam por descobrir que o tal do Sammy Derring se permitira um gracejo, já que seu nome era semelhante ao do ministro da defesa.
— Sim, irei pessoalmente. E não se esqueça: o sigilo deve ser absoluto! Avise a secretária.
Smith voltou a colocar o telefone no cofre. Quando chamou a jovem, parecia pensativo. Pediu-lhe que sentasse. Depois falou em tom indiferente:
— Não fale com ninguém sobre o incidente. Ao que parece, Sammy está... Bem, está doente. Provavelmente se trata de um tipo de alucinação. Daqui a dez minutos lhe mandarei um monte de documentos, que você entregará ao seu chefe. Compreendeu?
— Compreendi, mas...
— Não há nenhum mas! Diga a Sammy que já solicitou os documentos ao arquivo. E não fale com ninguém sobre o assunto.
A secretária lembrou-se do chefe de seção. Já contara alguma coisa a ele. Mas Mantell parecia não se interessar por isso. Talvez até acabasse esquecendo. Acenou com a cabeça.
— Muito bem, senhor Smith. Avisarei o senhor Derring. Tomara que não volte a olhar-me de forma tão estranha. Tenho medo dele.
— Que tolice...
— Thompson. Clara Thompson.
— Não há nada a recear, Clara. Acredito que Derring esteja sofrendo de uma perturbação psíquica passageira. Ontem fez muito calor; quem sabe se não passou muito tempo no sol.
Para Clara Thompson isso não justificaria o fato de que subitamente alguém se julgasse o ministro da defesa em pessoa. No entanto, achou preferível não responder. Despediu-se com um aceno de cabeça e voltou à sua mesa. Não se lembrou mais de Mantell.
Quando bateu na porta, Sammy levantou os olhos.
— Ah, está trazendo os documentos?
— Ainda não, senhor. Devem chegar dentro de dez minutos.
— Obrigado. Quando chegarem, não me faça perder mais tempo.
— Perfeitamente, senhor.
Clara sentiu-se feliz quando pôde fechar a porta atrás de si. Sammy Derring tinha uma aparência normal. O brilho estranho dos olhos desaparecera. Mas aquela ordem estúpida sobre os documentos secretos continuava de pé.
Dali a dez minutos os documentos foram trazidos. Estavam guardados numa pasta vermelha, na qual se liam as palavras Estritamente confidencial.
Clara fitou a pasta. Sentia-se muito importante ao carregá-la nas mãos, embora soubesse quão pouco importante devia ser seu conteúdo. Por que Smith estaria entrando nessa brincadeira infantil? Haveria algo mais que um simples capricho atrás de tudo isso?
Pegou a pasta vermelha, bateu à porta da sala de Derring e entrou ao ouvir a voz dele. Sem dizer uma palavra, colocou os documentos sobre a mesa e fitou-o. Notou que em seus olhos surgiu um brilho de triunfo. E viu mais alguma coisa, que não conseguiu interpretar. Havia algo de distante, de infinito. Teve a impressão de olhar num abismo tão profundo que através dele poderia precipitar-se para a eternidade. Saiu perturbada e voltou à sua mesa.
Sammy Derring esperou que a porta se fechasse antes de abrir a pasta e examinar os documentos. Logo percebeu que sua missão fora bem sucedida. Ali estavam os maiores segredos deste mundo, ou ao menos os segredos de uma das superpotências. Outros DI seriam bem sucedidos em várias partes do mundo. No dia seguinte o comandante saberia quais os meios de defesa dos homens e em que lugar a invasão poderia ser lançada com maiores possibilidades de êxito. Não bastava apossar-se do corpo desses bípedes desajeitados. Deviam conservar sua independência, mesmo que estivessem submetidos às ordens de outro chefe.
Enquanto examinava os documentos e constatava que haviam superestimado os recursos dos terráqueos, o tempo passava inexoravelmente. Os ponteiros do relógio aproximavam-se da marca das onze horas.
Algumas salas adiante John Mantell lembrou-se duma palestra que tivera com Clara Thompson. Por um instante a idéia de deixar as coisas como estavam e não perder tempo com uma brincadeira parecia impor-se à sua mente, mas o sentimento do dever acabou vencendo. Era bem possível que uma brincadeira dessas acabasse em complicações bastante desagradáveis. Comprimiu um botão do interfone. Dentro de poucos segundos ouviu-se uma voz feminina.
— Clara? Como está Derring? Já lhe disse que desejo falar com ele?
Clara, que quase chegara a esquecer-se de Mantell, balbuciou:
— Acho que seria preferível que o senhor não se incomodasse mais com este incidente, senhor Mantell. Deve ter sido uma brincadeira do senhor Derring. É melhor não ligar e...
— Nesse caso não deveria ter falado comigo. Quer fazer o favor de avisar Sammy de que desejo falar com ele.
— Eu, eu...
Com uma expressão de espanto no rosto, Mantell desligou. Ergueu-se de chofre e saiu. Dez segundos depois encontrou-se com Clara na porta da ante-sala. A secretária assustou-se.
— O que houve? Aonde o senhor vai? — sentia-se cada vez mais confusa. — Eu queria falar com o senhor. Gostaria de pedir-lhe que agora não perturbasse o senhor Derring. Ele está ocupado num trabalho muito importante...
Mantell, surpreso, ergueu as sobrancelhas.
— Ah, é? Tem trabalho importante para fazer? Bem, vejamos.
Passou junto a Clara e abriu a porta da sala de Sammy sem bater. Viu que seu subordinado estava debruçado sobre um montão de documentos. Levantou os olhos bastante contrariado e fitou o recém-vindo com uma expressão de perplexidade. Levou perto de cinco segundos antes de reconhecer seu interlocutor.
— Ora, senhor Mantell. Posso ser-lhe útil em alguma coisa?
Mantell apoiou os punhos sobre a mesa.
— Diga-me uma coisa, Sammy. Será que você enlouqueceu? Desde quando se permite brincadeiras desse tipo com nosso pessoal? Anda solicitando os documentos mais secretos como quem pede papel higiênico! Faz de conta que é o ministro da defesa. E nem ele tem o direito de, sem mais esta nem aquela... O que houve com você?
Sammy passara por uma transformação apavorante. De início seus olhos perplexos fitavam o chefe de seção enfurecido, depois tornaram-se vazios e apáticos. Quando o brilho retornou, ele se desenhava sobre um fundo implacável. A voz áspera de Sammy perguntou:
— Como é o nome do ministro da defesa?
Mantell respirava com dificuldade. Não compreendia mais nada.
— Sammy! Você está maluco! Não vá me dizer que esqueceu o nome de nosso chefe!
— Esqueci, sim. Como é o nome dele?
— Daring. Samuel Daring. Você devia saber, Sammy, pois a semelhança com seu nome já deu causa a alguns enganos bem desagradáveis. Mas nem por isso...
Calou-se. Sammy saltou sobre os pés. Apontou para o monte de documentos que havia em sua mesa.
— Se não sou o ministro da defesa, por que me deram os documentos que pedi?
Mantell lançou os olhos sobre os documentos. Não sabia. Antes que fizesse alguma observação menos acertada, a porta abriu-se atrás dele. Smith entrou, seguido por Clara Thompson. Logo compreendeu a situação. Em seu rosto via-se uma expressão de contrariedade. Mantell assustou-se. Sabia que Smith com seu aspecto despretensioso possuía uma soma muito maior de poderes que ele. Teria cometido algum erro?
— O que está acontecendo por aqui? — perguntou Smith, embora imaginasse o que estava havendo. Dirigiu-se a John Mantell. — Clara não o avisou de que devia abster-se de qualquer providência?
— Ele não quis dar-me atenção — interveio Clara.
— Ela veio me dizer que Sammy se havia permitido um gracejo — defendeu-se Mantell. — Ia pedir a ele que no futuro se abstivesse desse tipo de brincadeira. A semelhança de seu nome com o do ministro da defesa não deve levá-lo a...
Ninguém estava prestando atenção a Sammy Derring, que voltara a sentar-se. Subitamente toda vida desapareceu de seus olhos. Estava sentado atrás da escrivaninha, mantendo a cabeça numa posição rígida. Os olhos inexpressivos fitavam o vazio, tal qual no dia anterior haviam contemplado o céu, onde não havia nada para ver. Tudo isso não demorou mais que cinco segundos. Depois disso a vida retornou àquele par de olhos.
Nesses cinco segundos repetiram-se exatamente os mesmos acontecimentos do dia anterior, apenas em sentido inverso. Depois de reconhecer seu engano, o DI saíra precipitadamente do corpo em que se hospedara. Agiu num estado de pânico; se tivesse usado alguma habilidade, poderia ter corrigido seu erro. Mas preferiu retornar ao seu corpo adormecido e libertar o intelecto que se achava preso no mesmo. O espírito de Sammy voltou ao corpo que lhe pertencia. Perdera toda a lembrança do que havia acontecido, a não ser alguns detalhes sem importância que lhe pareciam um sonho.
Ainda há pouco estivera sentado junto ao lago, segurando a vara de pescar, e agora estava acomodado atrás de sua mesa. Via diante de si Mantell, o chefe de seção, Smith, e mais atrás Clara Thompson, que o encarava um tanto perplexa.
O que havia acontecido nesse meio tempo?
— O que desejam, cavalheiros? — perguntou em tom indiferente.
Seus olhos caíram sobre os documentos que se abriam diante dele. Examinou a pasta vermelha. Estupefato, contemplou seus interlocutores.
— Como isso veio parar aqui?
Smith interveio antes que Mantell pudesse dar expressão à sua fúria plenamente justificada. Seu raciocínio cristalino fez com que reagisse instantaneamente. Não conhecia todos os detalhes da situação, mas lembrou-se de que seu chefe Allan D. Mercant estava a caminho. E também isso não acontecia sem um motivo muito poderoso. Havia muito mais coisa atrás daquele incidente aparentemente inofensivo do que qualquer um dos presentes poderia suspeitar.
— Trata-se de alguns relatórios antigos, já superados. Gostaria que você os examinasse, Sammy. O ministro pediu-nos que confiássemos esse serviço a um funcionário de toda confiança.
Sammy ainda parecia perplexo, mas confirmou com um movimento de cabeça.
— Agradeço ao senhor e ao ministro a confiança com que me distinguiram. Até quando devo terminar o serviço?
— Não se apresse, Sammy. Venha, John. Você também, Clara. Não vamos perturbar Sammy.
Arrastou Mantell, que não compreendia mais nada, e fechou a porta atrás de Clara. Depois suspirou aliviado.
— Ainda tivemos sorte. Mantell. Você quase faz uma tremenda tolice. Não sei o que há atrás disso, mas o senhor Mercant está a caminho daqui.
— O chefe dos serviços de defesa do Ocidente? — disse Mantell com a voz espantada. — Não é possível!
— Acontece que é verdade. Você vai voltar ao seu escritório e não se preocupará mais com Sammy Derring. É uma ordem. O ministro da defesa não deve ser informado sobre o incidente. Você, Clara, também vai ficar com a boca calada. Hoje vamos jantar juntos, e então explicarei tudo.
— Mas...
— Às oito, no dancing do Pedro. Combinado?
— Bem...
— Ótimo! E agora você vai sentar bonitinha atrás da sua mesa e fazer de conta que não houve nada. E, de fato, não aconteceu nada, não é mesmo?
Enquanto o avião-foguete que decolara da Groenlândia aproximava-se em velocidade supersônica da sede do Ministério da Defesa, e enquanto o cérebro de Mercant examinava e rejeitava as hipóteses mais fantásticas, Sammy Derring estava debruçado sobre documentos inválidos e não sabia o que fazer com tanta tolice.
Pelo que se lembrava, há poucos instantes se encontrara junto ao lago, aproveitando o fim de semana. Não sabia explicar como viera parar subitamente no escritório. Lembrou-se de que acontecera uma coisa muito esquisita. Tinha a impressão de que sonhara acordado. Essa caverna enorme e estranha com... Sim, com quê? Ah, sim! Com um monstro que parecia uma enorme vespa. E ele mesmo fora o monstro.
Teria perdido o juízo? Mas nesse caso não estaria ali, e não mereceria a confiança de seus chefes.
Suspirou e resolveu não pensar mais naquele mistério. Qualquer pergunta seria inútil e só despertaria suspeitas. O ministério não teria lugar para um colaborador que se encontrasse à beira da loucura. De qualquer maneira devia ter dormido, pois não se lembrava de que alguém lhe tivesse trazido aqueles documentos.
Uma coroa de cabelos castanho-dourados e ralos rodeava a calva de brilho fosco daquele homem incrivelmente jovem, cujo rosto tranqüilo poderia pertencer a um jardineiro. Não era nada disso. Tratava-se de um dos homens mais temíveis do Bloco Ocidental, cujo nome até poucas semanas atrás fazia tremer todos os agentes do Bloco Oriental e da Federação Asiática.
Allan D. Mercant, chefe do Conselho Internacional de Defesa, preparava-se para uma entrevista com o homem cujo corpo fora ocupado por um DI. Não seria seu primeiro contato com uma pessoa dessas. Há poucos dias um DI, encarnado num dos seus colaboradores mais chegados, tentara pô-lo fora de combate. Só se salvara graças à sua reação instantânea e a um princípio de capacidade telepática de que era dotado.
Afinal, já começara a invasão de que poucos homens desconfiavam. Começara inesperadamente, mas não de surpresa. A contradição aparente podia ser explicada: há pouco tempo uma nave espacial dos DI fora avistada e destruída nas proximidades da órbita lunar; segundo se acreditava, era a única nave invasora que havia penetrado no sistema solar. Assim os homens se preparavam para novos ataques, mas não contavam com eles.
Mercant sabia perfeitamente que, se não fosse a Terceira Potência, a Terra estaria perdida. A primeira nave lunar tripulada, chefiada pelo major Perry Rhodan, encontrara no satélite da Terra uma expedição malograda de uma raça extraterrena muito inteligente, que se encontrava em franca decadência. O chefe científico da expedição, de nome Crest, fora acometido de leucemia. Recorrendo a um especialista, o Dr. Haggard, Rhodan conseguira curá-lo. Os arcônidas, era este o nome dos seres ex-traterrenos, vinham de um sistema planetário situado a trinta e quatro mil anos-luz da Terra, e estavam à procura do planeta legendário da vida eterna. Aliaram-se a Rhodan e criaram no deserto de Gobi uma potência que em poucos meses conseguira unir os três blocos antagônicos da Terra. Seguiu-se o primeiro ataque vindo do espaço. Os DI haviam captado os sinais emitidos pelo cruzador dos arcônidas, que fora destruído na superfície lunar, e acorreram às pressas para desferir o golpe final em seu inimigo. Mas encontraram a resistência denodada dos terráqueos, e foram destruídos. Era esta a situação. Mercant sabia perfeitamente que Perry Rhodan era o único homem que poderia salvar a Terra. Embora os três blocos de superpotências ainda nutrissem certa desconfiança por ele, o medo dos DI e das armas dos arcônidas controladas por Rhodan era mais forte. E havia outro detalhe, conhecido de pouquíssimas pessoas além de Mercant”. Perry Rhodan conseguira reunir alguns dos mutantes produzidos pelas explosões nucleares levadas a efeito na Terra. Esses mutantes, cujas qualidades extraordinárias ainda foram aperfeiçoadas, formavam o núcleo de um exército dedicado à proteção de Perry Rhodan. O próprio Mercant, dotado de capacidade telepática, também pertencia a esse exército. Só ele mesmo e Rhodan tinham conhecimento desse fato, além dos outros membros do exército secreto dos mutantes.
O aparelho pousou. Um carro veloz levou Mercant à sede do Ministério da Defesa. Foi conduzido imediatamente à presença de Smith, que já o aguardava.
— Então, Smith, o que houve? Onde está o homem?
— Ele não sabe de nada. Quer que o leve à presença dele?
— Quero, sim.
Smith ficou muito espantado ao ver que Mercant engatilhou sua pistola e a enfiou no bolso da túnica. Ia avisá-lo de que não havia ninguém que fosse mais inofensivo que Sammy Derring, mas preferiu calar-se. Calado, foi andando à frente do outro. Mercant seguiu-o, também sem dizer uma palavra.
Derring ergueu os olhos quando a porta se abriu subitamente, sem qualquer aviso. Havia uma expressão de espanto em seu rosto. Conhecia Smith, mas não sabia quem era aquele homem de rosto pacato. Mas logo percebeu que ele não devia ser tão pacato assim. Aqueles olhos pareciam espreitá-lo.
— O senhor é Sammy Derring? — perguntou o desconhecido. — Fique sentado bem quieto e responda às minhas perguntas. E responda sem demora. Ao menor sinal de um movimento suspeito eu lhe dou um tiro. Meu nome é Mercant.
Sammy ficou estupefato; seu rosto assumiu uma expressão idiota. Deixou cair o queixo e, sem compreender o que se passava, encarou a pistola que Mercant lhe apontava. Com grande esforço gaguejou:
— O que, o que deseja de mim?
— Por que pediu aqueles documentos aos quais só o ministro da defesa tem acesso?
— Os documentos? Santo Deus! O senhor Smith e o senhor Mantell acabam de trazê-los. Querem que os examine. Eu os pedi? É impossível.
— Quer dizer que os trouxeram? Você nega tê-los pedido?
— Não sei de mais nada. Tudo isso é muito estranho. Até parece que estou sonhando.
— Explique-se — ordenou Mercant, inclinando-se para a frente.
Parecia muito interessado no que seu interlocutor iria dizer. Não tirou os olhos dele. Smith continuava a seu lado.
Sammy hesitou. Tudo aquilo lhe pareceu muito estranho.
— Eu estava pescando — principiou. Ao ver a expressão de espanto no rosto de Mercant, apressou-se em acrescentar: — Estava pescando no lago onde costumo ir nos fins de semana. Deve ter sido ontem. Subitamente tive uma sensação estranha. Parecia que seria capaz de abandonar meu corpo. E foi o que fiz. Alguns segundos depois encontrava-me numa enorme caverna. Por um instante acreditei ver a Terra bem abaixo de mim. Foi um sonho maluco. Ao despertar vi-me sentado neste escritório. O senhor Smith acabara de trazer estes documentos. Posso afirmar que é a pura verdade, embora não compreenda. Não sei o que houve de ontem para hoje.
Mercant confirmou com um movimento de cabeça.
— São coisas que acontecem — confirmou em tom cortês. — Mas no seu caso seria conveniente se descobríssemos.
— A dona da casa em que moro... poderíamos perguntar a ela.
— Faremos isso.
Mercant deu algumas instruções a Smith. Este foi à ante-sala e falou com Clara, que neste meio tempo havia voltado à sua mesa. Dali a cinco minutos voltou.
— Sammy passou a noite em casa. Voltou do seu passeio ao lago ontem de tarde, antes da hora de costume, mas não trouxe nenhum peixe, coisa que nunca acontecera. A senhora Wabble fez questão de ressaltar este ponto. Parecia mudado; foi para a cama imediatamente. Hoje de manhã não notou nada de estranho nele.
Mercant olhou para Sammy Derring.
— Você seria capaz de jurar que é você mesmo?
Sammy fitou-o sem compreender.
— Jurar o quê?
— Quero saber se já se encontra em condições normais. É evidente que há uma lacuna em sua memória. De ontem de tarde até duas horas atrás você andou dizendo e fazendo coisas de que não sabe mais nada. Alguém apossou-se de seu corpo e fez de conta que era você.
— Não é...
— É possível, sim. É verdade que nenhum ser humano seria capaz disso. Mas você já deve ter ouvido falar que no universo existem outros seres além dos homens.
— Ouvi, sim. São os arcônidas.
— Estou me referindo aos DI, uma raça assemelhada aos insetos, que sabe transplantar seu espírito para outro corpo. No seu caso, o DI cometeu um erro fundamental. Achou que você era o ministro da defesa, cujo nome é semelhante ao seu. Não conhecemos os meios de comunicação deles, mas ao que tudo indica são acústicos. E na língua inglesa o nome Derring é pronunciado da mesma forma que Daring. O ser extraterreno enfiou-se no corpo do homem errado. É só isso. Sammy. Você prestou um serviço inestimável à humanidade. Por causa de seu nome.
Mercant já voltara a guardar a arma. Percebera que o DI já abandonara o corpo em que se havia instalado. Sammy Derring tinha um aspecto sadio e normal. Isso significava que a idéia de que ninguém conseguia sobreviver a esse processo de troca não era verdadeira. Logo se deu conta de que o próximo ataque seria dirigido contra o ministro da defesa, cujo nome era Daring. O mesmo devia ser submetido imediatamente a uma rigorosa vigilância. Além disso, Perry Rhodan devia ser avisado, antes que ocorressem novos ataques.
Deu algumas instruções a Smith. O agente retirou-se para tomar as providências necessárias. Não compreendia o que havia atrás daquilo, mas estava acostumado a executar prontamente as ordens que lhe eram dadas, mesmo que não as compreendesse.
Smith dirigiu-se imediatamente a Miller, secretário particular de Daring. Miller estava muito ocupado. Transmitia ordens pelos aparelhos de intercomunicações, mensageiros traziam envelopes lacrados, pastas com documentos eram retiradas dos cofres. Miller mostrou-se contrariado quando Smith se atreveu a interrompê-lo:
— Deixe-me em paz. Volte mais tarde. O chefe não tem tempo.
— Não me conhece mais?
— Claro que o conheço, mas no momento isto não importa. Será que quer prender o senhor Daring?
— Quem sabe? — respondeu Smith e sorriu ao ver que Miller quase engasgou de raiva. — Não fique nervoso. Apenas gostaria de formular algumas perguntas.
— Vamos depressa!
— Que azáfama é essa? Por que estão carregando todos esses documentos?
— São ordens do chefe. Pediu toda a documentação sobre os serviços de defesa e a pesquisa espacial. Afinal, o homem não pode carregar tudo isso na cabeça.
— Será? — observou Smith e desapareceu antes que Miller compreendesse o que havia acontecido.
Nesse meio tempo Mercant obtivera uma ligação com seu quartel-general situado na Groenlândia. De lá o ligaram com a base de operações de Perry Rhodan, situada no deserto de Gobi. Era ali que ficava o centro da Terceira Potência, formado num espaço de poucos meses. Estava abrigado sob uma cúpula energética invisível.
Mercant ficou sabendo que não seria possível falar com Perry Rhodan. É que este se encontrava em Vênus.
No momento em que Smith entrou, Mercant desligou. Levantou os olhos. Depois disse em tom grave:
— Aconteça o que acontecer, Smith, teremos de resolver tudo sozinhos. Pode comunicar logo que Samuel Daring, ou melhor, aquilo em que Samuel Daring acaba de transformar-se, solicitou todos os documentos secretos. Não foi o que descobriu?
Perplexo, Smith confirmou com um movimento de cabeça.
O enorme bloco de pedra jazia em meio à planície desértica. Os raios de sol o fustigavam. O ar quente tremeluzia, mas não soprava a menor brisa que o espalhasse.
Subitamente aconteceu uma coisa inacreditável.
O bloco de pedra moveu-se, como se uma mão invisível o tivesse levantado. Subiu ao ar com uma lentidão incrível.
Se alguém pudesse assistir ao espetáculo, seus cabelos se teriam arrepiado. O bloco pesava pelo menos duas toneladas, mas comportava-se como se a lei da gravidade não se aplicasse a ele. Subiu que nem um balão de gás, deslocou-se ligeiramente na lateral e subitamente despencou para a terra com um ruído tremendo. Até parecia que a mão invisível o soltara. Aos poucos a poeira foi-se assentando.
O bloco de pedra jazia imóvel, como se nunca tivesse saído do lugar. Os raios de sol voltaram a atingi-lo, aquecendo a face que antes ficara na sombra.
Mas a calma não durou muito. O bloco de pedra não teve sossego. Voltou a mover-se, desta vez com maior rapidez e segurança. Subiu a dez metros de altura deslocou-se para o lado. Aproximava-se inexoravelmente das margens de um lago salgado, cuja superfície lisa não era perturbada pela menor brisa. Só quando o bloco de pedra despencou no lago e desapareceu sob a água formaram-se algumas ondas que se deslocaram em círculo e foram morrer nas margens.
A dois quilômetros dali alguns homens estavam reunidos e olhavam em direção ao lago. O mais idoso deles, um gigante de cabelos claros, quase brancos, e crânio alongado, demonstrou sua satisfação com um aceno de cabeça. Perto dele estava uma jovem, que também fez um gesto de aprovação. O japonesinho a quem eram dirigidos os louvores limitou-se a dar de ombros. Parecia embaraçado.
— Sou um fracasso — confessou, sem dar-se conta de que estava fazendo pouco de suas extraordinárias capacidades. — Não consigo, Anne.
A jovem Anne Sloane dirigiu-se ao homem de cabelos brancos.
— Não podemos fazer nada, Crest. Tama Yokida é muito modesto. O detector de freqüência mental apontou-o como um mutante, e não há dúvida de que realmente o é. Conseguiu levantar uma pedra de algumas toneladas a dois quilômetros de distância, e isso exclusivamente com a força mental. Possui o dom da telecinese, muito embora o mesmo ainda se encontre no estágio inicial. Afinal, levei muitos anos para atingir a perfeição nesse terreno. Tama, se você for um aluno persistente, também conseguirá.
O cientista dos arcônidas, que participara da expedição malograda que ficara presa na Lua e atualmente era colaborador de Rhodan e dominava as instalações técnicas, voltou a confirmar com um movimento de cabeça.
— Não desanime, Tama. Só lhe falta treino. Não se perturbe pelo fato de Anne ter alcançado uma perfeição muito maior que você. Afinal, ela vem treinando há anos, enquanto você só há pouco tempo teve conhecimento de seu dom. Ficará admirado com o que daqui a alguns anos fará com a maior naturalidade. Tenha paciência!
Como sempre, Tama Yokida respondeu com um sorriso de modéstia.
— Concordo com você, Crest. Devo agradecer à natureza pelo dom com que me presenteou. Quer prosseguir logo no treinamento?
Crest lançou um olhar pensativo sobre a superfície do lago salgado, que voltara à calma. Confirmou com um movimento lento de cabeça. Ao falar, olhou para Anne Sloane.
— Anne, você fez a rocha cair na água. Suas forças telecinéticas são espantosas. Será que Tama conseguirá exercer uma influência telecinética sobre a rocha a partir daqui?
Anne olhou para o japonês.
— Não sei. Sei que eu conseguiria fazer o bloco de pedra subir ao ar a qualquer momento. Será que Tama conseguiria alcançá-lo no lugar em que se encontra agora? O lago não é muito fundo.
— Qual é a profundidade? — perguntou Tama. — Preciso saber desse detalhe.
Crest ligou um aparelho que trazia preso ao braço.
— Dr. Haggard? Será que você pode nos mandar Ishi Matsu? Sim, é para o treinamento.
Anne Sloane compreendeu.
— Não é aquela japonesinha que sabe olhar através de objetos opacos?
Crest sorriu.
— Anne, você está exagerando. Ishi Matsu não sabe olhar através da matéria opaca. É uma telecineta, nada mais. É diferente de você porque sabe realizar um rastreamento telecinético mesmo com os olhos fechados, tal qual um cego faria com a bengala. Infelizmente essa sensibilidade tática diminuirá à medida em que Ishi dominar a telecinese propriamente dita.
Tama sorriu.
— Minha coleguinha e eu completamo-nos muito bem. Quando nosso trabalho tiver sido coordenado, não haverá poder no mundo que nos possa resistir.
— Hoje já é assim — disse Crest.
Olhou para o complexo de edifícios baixos que rodeavam a nave espacial Stardust, pousada há alguns meses. Acima de tudo estendia-se, num raio de dez quilômetros, uma cúpula energética invisível, alimentada pelos reatores inesgotáveis dos arcônidas.
Uma figura franzina veio em direção ao grupo.
— O caso é que nosso exército terá de enfrentar não apenas as forças humanas — prosseguiu Crest. — Antes de mais nada, deverá estar em condições de fazer face a inimigos extraterrenos. Os sinais de emergência emitidos por nosso cruzador, destruído na lua terrestre, atrairão outras raças de astronautas. Receio que o isolamento do planeta Terra tenha chegado ao fim. Ali vem Ishi.
A bela japonezinha usava jeans e blusa branca, que realçava sua figura delicada e bem formada. Tama Yokida lançou um olhar de admiração para a colega. Até um cego notaria que algo estava se preparando entre os dois.
— Mandou chamar-me, Crest? — perguntou com a voz gentil e aveludada.
— Mandei, embora por hoje seu treinamento já esteja concluído. Tama fez uma proposta muito interessante sobre a coordenação das capacidades dos mutantes. Está vendo o lago salgado? Pois no lugar em que está aquele arbusto seco. a uns duzentos metros da margem, há uma pedra de cerca de duas toneladas no fundo da água. Peço-lhe que procure determinar a profundidade do lago naquele lugar. Seu amigo Tama precisa desse dado para solucionar seu problema. Compreendeu?
A moça fez que sim. Deu um sorriso animador ao patrício e colocou-se numa posição tal que seu rosto apontava para o lugar indicado. Fechou os olhos. A concentração de seu espírito projetou rugas profundas sobre a testa normalmente lisa. Tama Yokida estava parado bem junto a ela. Quase chegou a tocá-la. Mas a proximidade dele parecia não distrair Ishi; pelo contrário. Ela deu um passo para o lado e segurou seu braço. Cravou os dedos nele como se procurasse apoiar-se. Subitamente...
— Sinto a pedra! — exclamou Tama. Arregalou os olhos e fitou o lago. — Sinto-a. Está em meio a outras pedras. A profundidade é de vinte metros, no máximo.
Crest fez um gesto de aprovação.
— Muito bem, Ishi! Vejo que os mutantes podem completar-se uns aos outros. Tama, vamos ao trabalho. Tire a pedra da água e volte a colocá-la em terra, em qualquer lugar. Já conhece a posição dela.
Tama compreendeu o que Crest desejava. O treinamento dos mutantes cabia aos arcônidas. Perry Rhodan confiara seu exército especial a Crest, porque este reunia todas as qualidades para ensinar alguma coisa a gente como os mutantes.
O grupo ficou imóvel. Passaram-se cinco minutos. Dez minutos.
Quinze minutos.
Subitamente um esguicho subiu no lugar em que a pedra havia desaparecido. As ondas foram-se afastando em círculo para morrer na margem do lado. Algumas se perderam na imensidão de sua superfície. Alguns segundos depois a pedra subiu acima da água, flutuou por algum tempo, voltou a firmar-se, depois de oscilar ligeiramente, e deslocou-se lentamente em direção à margem. Ali despencou para o solo.
— Excelente! — exclamou Crest. — Melhorou bastante. Meus parabéns, Tama.
— Não fale nisso, Crest — disse Tama Yokida em tom modesto.
Crest estava a ponto de prosseguir, quando foi interrompido por um ligeiro zumbido. Vinha do aparelho em seu braço.
— Alô! É Crest.
Era o Dr. Frank M. Haggard, médico australiano que havia descoberto o soro antileucêmico que curara Crest. Falava da Stardust.
— Crest, temos notícias desagradáveis de Mercant. Os DI voltaram a agir.
— Já previa isso. Onde foi?
— Nos Estados Unidos houve um caso. Apossaram-se do ministro da defesa. No último instante Mercant conseguiu evitar o pior, mas nada pode fazer nos casos que ainda nâo chegaram ao seu conhecimento. Ele quer saber se podemos ajudar em alguma coisa.
Crest franziu a testa.
— É claro que vamos ajudar. Mas é uma pena que Perry ainda não esteja de volta. Tem tido contato com ele?
— Desde a última mensagem radiofônica não tive mais. Já devem ter iniciado a viagem de volta.
— Tente estabelecer contato com a nave Good Hope. Se conseguir, avise Rhodan. Talvez consiga localizar e destruir a nave oval dos DI. Tako Kakuta está com ele.
Tako Kakuta era um teleportador. Certa vez já conseguira transferir-se com uma bomba para o interior de uma nave oval do inimigo e destruí-la. Tal qual acontecera com os outros mutantes, também no seu caso as radiações intensas provocadas pelas explosões nucleares de Hiroshima e Nagasaki, durante a Segunda Guerra Mundial, haviam provocado uma modificação da estrutura cerebral e despertado potencialidades até então não reveladas.
— Manterei o receptor ligado, e ao mesmo tempo emitirei o sinal de chamada. Mas devemos fazer alguma coisa enquanto não conseguirmos estabelecer contato.
Crest lançou um olhar para Anne Sloane.
— Devemos, sim. Afinal, para que serve o exército de mutantes? Acho que chegou a hora dele dar prova da sua eficiência.
Os pântanos fumegantes de Vênus foram-se desvanecendo; o planeta transformou-se na foice prateada cujo brilho excedia o do Sol. Evidentemente tratava-se de uma ilusão ótica, pois na realidade o Sol emitia uma luminosidade mais intensa. Mas a espessa camada de nuvens refletia a luz solar com tamanha intensidade que se tornava quase impossível contemplar Vênus com o olho desguarnecido.
O vulto esguio mantinha-se imóvel diante das telas. Seus olhos sonhadores contemplavam o planeta que ia recuando, e que acabara de ser incluído nos seus planos. Perry Rhodan compreendera que a Terra se tornara pequena para ele, e que precisava dum mundo exclusivamente seu para construir seu império.
Eric Manoli, que já de si era um homem calado, estava sentado numa poltrona perto de Perry. Sua figura mirrada quase desaparecia atrás do encosto. Também dedicava toda a atenção ao planeta que ia mergulhando no infinito, e que tanto se parecia com aquilo que a Terra devia ter sido há cem milhões de anos.
O terceiro homem que se encontrava na sala de comando da nave Good Hope parecia menos impressionado. Todo encolhido, Reginald Bell, engenheiro de bordo da nave Stardust, jazia no leito dobrável. Seus olhos cor de gelo deslizavam rápidos sobre as linhas do livro que estava lendo. Notava-se perfeitamente que seus cabelos se arrepiavam, como se estivesse lendo uma história de fantasmas. Às vezes um sorriso irônico passava pelo rosto largo. Não parecia interessar-se pelo planeta que ia recuando na tela.
Foi ele que rompeu o silêncio compenetrado que reinava naquele recinto. Sacudiu a cabeça, fechou o livro e deitou sobre a volumosa barriga. A capa do livro ficou à vista. Nela se via a paisagem selvática de um pantanal. Num dos pântanos via-se uma nave esguia, que afundara até a metade. Um homem parado numa das comportas de ar defendia sua vida com um fuzil de radiações contra alguns monstros horrendos que pareciam dinossauros.
— Este sujeito devia ser preso — declarou com um profundo suspiro. — A meu ver isso é uma fantasia doentia.
Perry Rhodan não tirou os olhos da tela. Sem virar a cabeça, perguntou:
— Quem devia ser preso?
— O sujeito que cometeu o crime de escrever este romance.
— Que romance?
Reginald Bell voltou a suspirar.
— Este aqui: “Base em Vênus”. É um romance utópico. Imagine que foi escrito há dez anos. Naquela época ninguém teria pensado em fazer uma viagem a Vênus. E esse camarada vai escrevendo sem mais aquela, faz alguém construir uma nave e instala-se confortavelmente em Vênus, depois de ter atolado com sua nave. Trava lutas heróicas contra o calor e os dinossauros, até que seu amigo aparece com outra nave e o liberta. É inacreditável!
Perry Rhodan girou a poltrona e fitou o rosto de Bell. Sempre se admirava com o aspecto ingênuo do mesmo. Todavia, não havia ninguém que tivesse um QI tão elevado como ele e Bell. Deviam isso ao treinamento hipnótico dos arcônidas, através do qual lhes foi ministrado em poucos dias um volume de saber superior ao de toda a humanidade. As conquistas de uma cultura e de uma civilização milenar estavam armazenadas nos cérebros daqueles homens. A aparência de Bell não revelava nada disso. Muitas vezes Perry sentia-se tentado a subestimá-lo, quando olhava aquele rosto inocente. Mas sabia perfeitamente o que havia atrás de seus olhos cor de gelo.
— Não vejo nada de inacreditável nisso. O escritor não tem razão? Em Vênus não existem pântanos e dinossauros? E por acaso não faz calor?
Reginald Bell parecia decidido a exprimir suas emoções através de suspiros.
— Pois é justamente isso! O que aquele sujeito escreve é verdade. Até dá para desconfiar que já esteve aqui antes de nós. — Ergueu o corpo e apoiou-se no cotovelo direito. — Isso é uma baixeza!
Um sorriso condescendente esboçou-se no rosto de Perry.
— Você está com inveja; o problema é este. Você não se conforma em saber que há dez anos o autor desse livro já tenha experimentado em sua fantasia a vivência de coisas que só hoje realizamos. Andou à frente do tempo, e isso deixa você furioso.
— Mas esse fuzil de radiações é uma verdadeira tolice. Há dez anos não se conheciam sequer os fundamentos teóricos de uma arma desse tipo, isso sem falar nos raios laser e maser.
— De qualquer maneira, ontem essa arma nos serviu para espantar aquele bicho teimoso que pensou que a Good Hope fosse uma maça e pretendia devorá-la.
Bell parecia desolado.
— Santo Deus! Não fomos nós que inventamos essa arma de radiações!
— Que importa? Dispomos dela, embora a tenhamos recebido dos arcônidas. Se não a tivéssemos não estaríamos aqui, pois nesse caso a Good Hope não existiria mais.
Bell desistiu.
— Está bem, não vamos brigar por isso. Aquele escrevinhador foi um gênio, andou à frente do seu tempo, criou obras imortais e esteve mais adiantado que nós. Ao menos poderia ter cometido um engano, pintando Vênus como um planeta coberto de pó. Mas não! Sua descrição é exata nos menores detalhes. Onde já se viu? Isso me deixa nervoso! Não teremos nada para contar aos homens.
— Se isso o aborrece tanto, por que lê essa história?
Bell não soube o que responder. Nem teria tido tempo. Subitamente o ar treme-luziu por uma fração de segundo entre ele e Perry, e um homem surgiu no lugar em que antes não havia nada. Mais uma vez o mutante japonês Tako Kakuta resolvera materializar-se sem se fazer anunciar, isso porque era tão preguiçoso que não queria percorrer como um homem normal os poucos metros que separavam a sala de comando do posto de radiotelefonia.
Mas não seria correto chamar o local de trabalho de Tako um simples posto de radiotelefonia. A Good Hope era uma nave auxiliar do gigantesco cruzador espacial dos arcônidas, que fora destruído na Lua pela união das superpotências da Terra. Thora, comandante do cruzador e única mulher arcônida da expedição, conseguira salvar a nave auxiliar e fugira para a Terra onde encontrara proteção junto a Rhodan. Essa nave auxiliar era muito grande, se aplicássemos os padrões terrenos. Seu diâmetro era de sessenta metros, tinha forma esférica e desenvolvia velocidade superior à da luz. Os neutralizadores gravitacionais eliminavam os efeitos da inércia, motivo por que a nave podia ser acelerada à vontade. O armamento excedia tudo que o espírito humano poderia imaginar. No entanto, o raio de ação, segundo asseverara Crest, atingia apenas quinhentos anos-luz, ficando abaixo do mínimo vital dos arcônidas. Com essa nave não poderiam atingir seu planeta natal, ou qualquer base do império arconídico.
O “posto de radiofonia” da nave era uma gigantesca central de comunicações. Tako só compreendia o funcionamento de pequena parte dela. Contentou-se em lidar com o pequeno aparelho de rádio, que captava e transmitia ondas das faixas normais. Com ele, conseguia manter contato com a Terra. Levaria meses para aprender o significado dos outros aparelhos e instrumentos.
A comunicação com a base de Gobi estivera interrompida por algum tempo. Mas agora os sinais emitidos pelo Dr. Haggard tornaram-se tão fortes que não poderiam deixar de ser ouvidos.
Foi por isso que o japonês se teleportou para a sala de comando.
Como sempre, Bell levou um tremendo susto. Não havia nenhum motivo para isso, mas não era qualquer um que conseguia ficar impassível ao ver um homem surgir do nada.
— Com mil diabos! Será que nunca poderemos evitar que esse gafanhoto apareça constantemente sem ser anunciado?
Tako deu um sorriso amável.
— Da próxima vez anunciarei minha chegada por carta. Combinado?
Perry interrompeu a discussão.
— Estabeleceu contato com o Gobi?
— Foi por isso que vim — confirmou o japonês. O sorriso desaparecera; parecia muito sério. — Há horas Haggard está tentando entrar em contato conosco. Temos más notícias, Rhodan. A invasão dos DI já começou. Mercant relatou vários casos em que os DI se apossaram dos corpos de personagens importantes. Mas, segundo informa Haggard, essa descoberta não serve de nada. Os DI retiraram-se e procuram outra vítima.
Reginald Bell afastou o livro ao qual há poucos segundos dedicara tanta atenção. Assumiu uma posição ereta. Em seus olhos surgiu um brilho metálico.
— A invasão? Pois destruímos a nave dos atacantes.
— Nesse caso deviam ter duas naves. — Perry dirigiu-se a Manoli. — Deixemos Venus de lado, Eric. Faça a Terra surgir nas telas. Aceleração máxima.
A imagem das telas modificou-se. Uma estrela verde-azulada surgiu e ao seu lado um minúsculo ponto luminoso, a Lua. Enquanto olhavam, os dois objetos iam aumentando quase imperceptivelmente.
Perry voltou a dirigir-se a Tako.
— Mais alguma coisa?
— Crest pede que retornemos imediatamente ao Gobi. Quer recorrer ao exército dos mutantes; não vê outra possibilidade de enfrentar a invasão. Deseja falar com você.
— Vamos — confirmou Perry e foi saindo.
Tako lançou um olhar ligeiro para Bell. Um sorriso esboçou-se em seu rosto e logo desapareceu. Quando Perry entrou na sala de radiofonia, o japonês já estava esperando junto aos aparelhos.
— Aqui fala Rhodan.
— Aqui é Haggard. Um instante. Crest quer falar com você.
Perry esperou.
— É Crest. Ouça, Rhodan. A situação é muito séria. Mercant está desesperado. Pediu socorro. Achei preferível não fazer nada sem você. Dentro de quanto tempo poderá estar aqui?
— Dentro de duas ou três horas. Espero que a nave agüente.
— Quanto a isso não se preocupe, Rhodan. Se avistar a nave dos DI, destrua-a. Peça a Tako que se teleporte para o interior dela com uma carga de explosivo.
— Desta vez serão mais cautelosos. Crest. Estão prevenidos. Tomara que não tenham trazido reforços.
— É impossível. Os princípios dos DI não lhes permitem estabelecer entendimentos com outras raças. Acham que os poderes de que são dotados lhes permitem liquidar qualquer inimigo. Quase chego a achar impossível que possamos conquistar uma vitória total sobre eles.
— Crest, mais uma vez você nos subestima. Aliás, encontrei um local adequado em Vênus. É lá que instalaremos nossa base; vamos intensificar o treinamento dos mutantes.
— Isso tem tempo. Em primeiro lugar temos de repelir a invasão. Os homens nem desconfiam do que os espera. Receio que os DI disponham de uma base fixa na Terra, e que estejam operando a partir dela. Seria muito complicado se tivessem de usar uma base móvel montada numa nave.
— Não há nenhum indício quanto a isso?
— Nenhum. Fale com Mercant; talvez ele lhe possa dar alguma informação. Afinal, manteve contato com homens que foram possuídos pelos DI e voltaram a ser liberados.
Perry ficou estupefato.
— Sempre pensei que um homem que fosse possuído pelos DI tivesse de morrer. Houve alguma modificação?
— Estávamos enganados. As pessoas atingidas não dão mostras de qualquer conseqüência prejudicial.
— Excelente! É um ponto favorável. Mais uma coisa, Crest. Acho que não preciso encarecer a necessidade de jamais sacrificarmos nossa situação proeminente face às potências mundiais. A união dos países da Terra foi devida à nossa existência. Se um dia deixar de existir a “ameaça” representada pela Terceira Potência, o mundo voltará a mergulhar no caos dos conflitos que mal acabam de ser superados. Por isso acho que a vitória imediata sobre o invasor constitui uma necessidade vital. Se não a conseguirmos, nosso prestígio terá chegado ao fim.
Quase se chegava a ver o sorriso de Crest, quando respondeu:
— Não será só nosso prestígio que terá chegado ao fim, mas toda a humanidade. E nós também O cérebro positrônico diz que nos encontramos numa situação crítica.
— E o que diz sobre as nossas chances?
— São de cinqüenta por cento. Já é alguma coisa.
Perry refletiu por um instante. Depois disse:
— O raio de ação da Good Hope é de quinhentos anos-luz. Será que não poderíamos atacar os DI em seu próprio terreno?
Crest suspirou.
— Rhodan, você está revelando um grau de atividade assustador. Mais tarde talvez poderíamos cogitar dessa alternativa, mas acredito que nas condições atuais ela não teria a menor chance. Os DI evitam o confronto aberto, porque não têm necessidade de recorrer a ele, mas costumam manter suas instalações de defesa em boas condições. Você não conseguirá nada enquanto dispuser apenas da Good Hope.
— Bem, veremos. — Perry ainda não havia desistido da idéia. — Por enquanto procure entrar em contato com Mercant. Quero encontrar-me com ele, ou com um representante seu, assim que tornar à nossa base. Mais alguma coisa?
— No momento não. Thora se comporta como uma pessoa sensata.
Perry deu de ombros.
— Ainda bem. Até logo mais.
Voltou à sala de comando depois de ter ordenado a Tako que mantivesse o receptor ligado. Parecia pensativo. Parou por um instante na porta da sala. Thora! Era uma mulher extraordinária, embora estivesse impregnada dos preconceitos doentios de uma raça superior. No entender dela, os homens não passavam de uns semi-selvagens. Só consentira em colaborar com Rhodan por ter sido forçada a isso. Sabia perfeitamente que encalhara num sistema solar estranho, e que sem o auxílio dos homens nunca conseguiria voltar à sua terra. Sua própria raça, que era altamente civilizada, mas decadente, não mexeria um dedo para procurá-la, muito menos para salvá-la. Era bem possível que a perda do cruzador de pesquisa científica nem fosse notada.
Thora era de uma beleza envolvente. Perry quase chegava a acreditar que poderia amá-la, se não a odiasse tanto. Mas seria verdade que ele a odiava, ou procurava apenas convencer-se a si mesmo de que era assim? Ainda bem que Crest se encontrava a seu lado, e tantas vezes lhe explicava a motivação psicológica das atitudes incompreensíveis de Thora.
Perry Rhodan deu de ombros e entrou na sala de comando.
Na tela já se viam os continentes do planeta Terra. Dali a pouco aterrizariam.
Mercant não viera pessoalmente. A responsabilidade pela segurança do Bloco Ocidental representava um encargo tão pesado que preferiu não abandonar mais a fortaleza situada sob os gelos da Groenlândia. Era a partir dali que dirigia a atuação dos órgãos que se achavam submetidos ao seu comando e engajava seus homens.
Um desses homens era o capitão Klein, um dos funcionários mais competentes do serviço de defesa, e também um aliado de Rhodan. Mercant designara-o como elemento de ligação com este último.
A cúpula energética abriu-se para deixar o capitão Klein passar. Dentro de poucos minutos viu-se diante de Perry Rhodan.
Crest e Thora mantinham-se em silêncio, sentados num sofá nos fundos da sala. Bell e Manoli também se encontravam ali, e ainda o Dr. Haggard, e o telepata John Marshall, que era membro do exército dos mutantes.
Perry fez um sinal ao capitão Klein.
— Relate o que houve. Suponho que Mercant lhe tenha conferido plenos poderes, e que esteja informado sobre a situação. É muito grave?
— É bastante grave, embora ainda não possamos prever as conseqüências da invasão que está sendo levada a efeito às escondidas. Os DI vão aprendendo cada vez mais. No início agiram com pouca habilidade, o que facilitou sua descoberta. Se bem que isso não adiantou muito, pois nesse caso logo abandonavam o respectivo corpo e lhe restituíam seu pensamento próprio. A pessoa atingida ficava sem a menor recordação do que tinha acontecido no meio tempo. Enquanto isso os DI procuravam outra vítima. Hoje podemos afirmar sem receio de erro que agem com tamanha habilidade que a descoberta se tornou quase impossível. E quando essa descoberta ocorre... Bem, nesse caso temos de matar imediatamente o homem de que o DI se apossou, pois só assim podemos eliminar este. Não vemos outra saída.
— Existe outra saída — disse Perry em tom sério. — Os DI têm uma base na Terra, onde seus corpos descansam. Nesses corpos são aprisionados os espíritos dos homens. É neles que ficam encerrados os intelectos que foram substituídos pelos dos DI. Se conseguirmos descobrir essa base e destruirmos os corpos, os espíritos dos DI não nos poderão causar mais nenhum prejuízo; É que precisam manter contato com seu corpo para poderem subsistir. É uma história complexa, mas temos provas irrefutáveis de que realmente é assim.
Perry calou-se por um instante. Atrás dele Thora cochichava insistentemente ao ouvido de Crest. Seus olhos vermelho-dourados emitiam um brilho suspeito. Estaria disposta mais uma vez a instigar Crest contra os homens? Perry sentiu-se tomado pela raiva, mas conseguiu controlar-se. Um dia ainda mostraria a essa mulher quanto ela precisava dos homens.
— Prossiga, Klein. Qual é a sugestão de Mercant?
— Uma vigilância constante sobre todos os personagens importantes, para que desse lado não possa haver qualquer infiltração. É a única sugestão que formulou.
— Não é muito — reconheceu Perry. Crest levantou-se atrás dele. — Quer dizer alguma coisa, Crest?
Todos os olhares se dirigiram para o cientista, em cujos olhos surgiu um brilho estranho, que nunca antes se observara. Falou com a voz débil:
— Thora conseguiu convencer-me que qualquer luta contra os DI será inútil. Já fizemos experiências com eles. Até hoje conquistaram qualquer sistema solar que conseguiram encontrar. Se nosso império galático não estivesse cercado de um complexo de instalações defensivas que destroem qualquer nave oval que dele se aproxime, o mesmo já teria deixado de existir. Nenhum poder do universo consegue deter os DI.
Perry franziu a testa.
— E daí? Por que resolveu contar-nos isso, Crest? Foi por sugestão de Thora?
Crest lançou um olhar desajeitado para trás. Thora veio em seu auxílio. Levantou-se de um salto. Parecia uma deusa da vingança, com os olhos dourados chamejantes. Seu cabelo claro mal se destacava da pele, que só aos poucos adquiria um tom amorenado sob os efeitos do sol terrestre. Era bela, duma beleza extraterrena.
— Sim, foi por sugestão minha, Perry Rhodan. Você sabe perfeitamente que a longa enfermidade de que padeceu enfraqueceu-o bastante. Se continuarmos na Terra para travar uma luta sem chances contra os DI, desperdiçaremos nossas últimas energias. Sugeri a Crest que deixemos este sistema para procurar outro que ainda não foi descoberto pelos DI. Crest concordou com minha proposta. Está decidido.
Perry lançou um olhar de advertência para Bell. O engenheiro e técnico eletrônico às vezes tornava-se muito impulsivo. Estava prestes a mover-se em direção a Thora.
— Quer dizer que pretende abandonar a Terra — constatou Perry em tom indiferente. — A mesma Terra que se dispôs a ajudá-la.
— Quem ajudou quem? — fungou a comandante num acesso de raiva.
— Houve reciprocidade em tudo. Se não fôssemos nós, Crest já estaria morto.
— E se não fossem vocês, a tripulação do cruzador, que foi sacrificada no ataque traiçoeiro à Lua, ainda estaria viva. Estamos quites.
— Ainda não, Thora. Vou formular uma pergunta, e gostaria que você respondesse com toda sinceridade. Esses DI estão classificados numa categoria mais elevada que a dos arcônidas? Costumam ser avaliados em nível mais alto?
O rosto de Thora ficou rubro de raiva.
— Como se atreve a formular uma pergunta dessas? É claro que os DI, que não passam duns insetos, pertencem a uma raça primitiva, que não merece habitar o universo.
— Apesar disso pretende fugir deles? — interrompeu Perry em tom irônico. — É espantoso! Isso não ofende seu orgulho, Thora?
Um sorriso perpassou pelo rosto de Crest. Era evidente que a situação era muito penosa para ele, e que se sentia satisfeito com o golpe que acabara de ser desferido contra Thora.
— A necessidade obriga-nos a isso. Aqui não dispomos das armas necessárias para vencer os DI.
— Nesse caso temos de vencê-los sem as armas necessárias. Criaremos armas adequadas. De qualquer maneira nós, os habitantes do planeta Terra, não estamos dispostos a encarar a invasão dos DI como um fato inevitável. Vamos defender-nos e acabaremos expulsando esses seres. E você vai nos ajudar, Thora.
— Você não pode obrigar-me.
— Posso, sim — disse Perry em tom tranqüilo. — Sem a nave Good Hope você não pode fazer nada. E a partir deste instante nem você nem qualquer dos seus robôs entrará na Good Hope. E não abandonará seus alojamentos situados no interior desta base.
— Quer prender-me? — disse Thora em tom furioso. Seus olhos chispavam de raiva. — Você não se atreverá.
— Não quero prendê-la. Apenas pretendo repelir a invasão dos DI, e adoto as medidas que julgo necessárias. Certa vez Crest disse que em certo ponto os terráqueos se parecem com os arcônidas da antigüidade. Tem razão. Sabemos ser duros e implacáveis quando temos um objetivo diante dos olhos. E meu objetivo consiste em livrar-me dos DI de uma vez por todas, e em encontrar uma arma que possa ser usada contra eles, e que um dia também possa ser útil aos arcônidas. E não será você que vai me impedir. E também não vai desertar com a Good Hope. Compreendeu? Ou será que terei de explicar melhor?
Thora lançou-lhe um olhar odiento. Mas não era só ódio que havia nesse olhar. Perry sentiu um calafrio ao reconhecer o sentimento que se desenvolvia no subconsciente dessa mulher, e que seus olhos acabavam de revelar. Tratava-se de admiração, e de um pouquinho de dedicação ou amor.
Perry sentiu-se perturbado, mas não deixou que ninguém o percebesse. Mais tarde teria tempo de analisar esse paradoxo. Por enquanto havia coisa mais importante a fazer. Não suspeitava de que nesse mesmo instante também Crest tomara uma decisão. De uma hora para outra o chefe científico da expedição dos arcônidas, que conhecia muitas raças do universo e com elas mantinha ligações, deu-se conta de uma realidade patente: um belo dia os homens se tornariam herdeiros do império galático. E não sentiu o menor pesar quando essa realidade se impôs ao seu espírito.
O capitão Klein aproveitou a pausa para dizer:
— O tenente Li Shai-tung, que é nosso aliado da Federação Asiática, está desaparecido. Mercant supõe que se encontre em poder dos DI.
Isso foi um choque inesperado mesmo para Perry Rhodan.
O tenente Li era um dos principais agentes da Federação Asiática. Quando recorreram a ele para combater Perry Rhodan, foi um dos primeiros homens da Terra a reconhecer que só a união de todos proporcionaria uma chance de enfrentar com sucesso o poder dos arcônidas. Quando essa união se estabeleceu, passou a compreender os objetivos de Rhodan e a sentir estima pelo antigo piloto espacial do Ocidente. Juntamente com seu colega Kosnow, do Bloco Oriental, e Klein, do Bloco Ocidental, passou-se para a Terceira Potência. Da mesma forma que Klein era o elemento de ligação entre Rhodan e Mercant, Li desempenhava as funções de elo de ligação entre Rhodan e o Serviço Secreto da Federação Asiática.
E agora os DI se haviam apoderado desse homem. Com isso Perry Rhodan sofria o primeiro ataque direto, afora alguns episódios de menor importância ocorridos durante o primeiro ataque.
— Desaparecido? Ora essa! Li não pode ter desaparecido sem mais aquela.
— O fato é que Li desapareceu da Groenlândia, e voltou à China sem que tivesse ordem para isso. Mercant acredita que os DI pretendem arruinar as grandes potências uma por uma.
— Será que para isso precisam justamente dos elementos de ligação?
Perry lançou um olhar desconfiado para Klein. O capitão percebeu o que se passava na cabeça de seu interlocutor.
— Se acredita que os DI me agarraram, sinto decepcioná-lo, de forma agradável, espero — disse sacudindo a cabeça. — Você não tem nenhuma possibilidade de constatar a presença de um DI?
— O que está imaginando?
— Não estou imaginando coisas alguma, mas pensei que talvez com os recursos técnicos de que dispõe...
— O detector de freqüência — interveio Bell em tom indiferente.
Perry confirmou com um movimento de cabeça. Procurou não demonstrar a contrariedade que sentia por não se ter lembrado disso. Era claro que havia essa possibilidade. Esse aparelho ultra-sensível captava e registrava a freqüência das vibrações do cérebro humano. Distinguia perfeitamente entre um cérebro normal e o de um mutante, embora nesse caso a diferença fosse insignificante. A diferença entre a freqüência do cérebro de um homem e de um DI devia ser muito maior.
— Isso mesmo, Bell. Isso nos dá a possibilidade de identificar qualquer indivíduo de que os DI se tenham apossado. Resta saber o que devemos fazer quando isso tiver acontecido. Não podemos matar esse indivíduo, se houver uma possibilidade de salvar sua vida. E pouco nos adiantará tanger os DI de um corpo humano para outro.
Crest voltou a mexer-se nos fundos da sala. Sem dar a menor atenção a Thora, que prosseguia no seu mutismo obstinado, disse:
— O corpo do DI deve ser destruído. Com isso o intelecto humano voltará ao corpo a que pertence, enquanto o intelecto do DI morre com o respectivo corpo. É o único ponto fraco que podemos aproveitar.
— Como faremos para seguir as pegadas do seu intelecto?
Crest esboçou um sorriso significativo.
— A experiência ensinará. Afinal, para que temos os mutantes? Quem sabe se não conseguem construir uma ponte entre o corpo e o espírito dos DI?
— Talvez — confirmou Perry em tom pouco confiante. Acreditava ser impossível seguir uma substância imaterial num caminho percorrido à velocidade da luz. O espírito era energia, e por isso sem dúvida constituía uma forma de matéria. Podia-se identificá-la, mas não segui-la. Ou será...
Klein esperou até que se fizesse uma pausa na palestra. Depois disse:
— Rhodan, Mercant lhe pede que se ponha no encalço de Li. Sozinho ele não consegue. Li pode provocar um verdadeiro desastre. Na opinião de Mercant os DI farão tudo para que a discórdia volte a reinar sobre a Terra, para facilitar o jogo deles. É uma coisa que não pode acontecer.
— Li está na China?
— Foi lá que o localizamos pela última vez. Supomos que se encontre em Pequim.
Perry olhou para Bell.
— Bell, traga Ernst Ellert. Depressa!
O engenheiro retirou-se sem dizer uma palavra. Só Crest ergueu as sobrancelhas brancas.
— O que deseja de Ellert? — perguntou em tom admirado.
Perry sorriu ligeiramente. Como Klein nunca tivesse ouvido falar de Ellert, dispôs-se a dar uma explicação.
— Ernst Ellert é um mutante. Suas faculdades excedem tudo que o cérebro humano já concebeu. É um teletemporário. Sabe transportar-se em espírito para o futuro e contemplar o passado que corresponde ao nosso presente. Talvez consiga localizar o esconderijo dos DI
— Um teletemporário? — resmungou Klein sem que tivesse compreendido. Deu de ombros e não disse mais nada. Perry Rhodan devia saber o que estava fazendo.
Quem visse Ellert entrar não conseguiria disfarçar uma certa decepção. Aquele alemão tinha um aspecto absolutamente normal; nada indicava a presença de um dom extraordinário. Apenas em seus olhos notava-se um brilho tranqüilo e constante. Eram olhos que tinham contemplado um trecho da eternidade, assim pensava Perry toda vez que os contemplava.
— Estamos em conselho de guerra — disse Perry a título de cumprimento. — Os DI iniciaram a invasão. Apossaram-se do tenente Li, agente dos serviços de defesa da Federação Asiática. Tako Kakuta lhe fornecerá informações pormenorizadas, e também o acompanhará. Faço votos que sua missão seja coroada de êxito. Antes de partir, receberá dois detectores de freqüência, e obterá instruções mais precisas. — Perry hesitou um instante. Depois deu um impulso à sua mente. — Sempre relutei em recorrer aos seus dons, Ernst. Mas peço-lhe que me responda uma pergunta reservada: em espírito você já esteve no futuro mais de uma vez. Aliás, o fato de você ser capaz de abandonar o corpo à vontade e voltar a ele, coloca-o no mesmo nível dos DI, ou mesmo em nível superior, já que seu espírito não está preso ao presente. Compreende por que resolvi lançar mão de você na luta contra os DI? Se existe um homem que pode representar um perigo real para eles, este homem é você. Mas voltemos à pergunta que pretendo formular: você já esteve no futuro por mais de uma vez, Ernst. Encontrou algum indício de que a Terceira Potência existe nesse futuro? Seremos bem sucedidos na luta contra os invasores?
Uma sombra passou pelo rosto de Ernst Ellert.
— Sinto decepcioná-lo. Não é o que você pensa. Acontece que o futuro não é uma coisa concreta. Existem muitos caminhos que conduzem para o futuro. Ou melhor, não existe um único futuro. O presente é real, é uma resultante do passado perfeitamente determinado. Mas o futuro é irreal e incerto. O acontecimento mais insignificante do presente pode modificá-lo por completo. Por isso nunca penetrei num futuro imutável. Compreende o que quero dizer? — Quando notou que Perry confirmava com um leve movimento de cabeça, prosseguiu. — Existem milhares de futuros. Futuros com e sem Perry Rhodan. Mas só uma dessas alternativas se transformará em realidade. Sei que deve estar decepcionado, mas o fato é que minha capacidade de transportar-me para o futuro não tem o menor valor. Posso inserir-me num fluxo temporal incorreto e, em conseqüência, transmitir-lhe informações falsas.
— Como ficou sabendo disso? E por que nunca me falou a respeito antes? — disse Perry com um ligeiro tom de censura.
— Não sabia — confessou Ellert ligeiramente embaraçado. — Nos últimos dias realizei várias experiências e verifiquei que vários mundos coexistem simultaneamente no mesmo segmento da linha do tempo. Só um deles se transformará em realidade. Não tenho elementos para saber qual será este mundo.
— Quer dizer que como profeta você não vale nada — disse Perry Rhodan em tom grave.
Ellert confirmou com um gesto desolado. Mas o brilho do saber continou aceso em seus olhos. Estaria mentindo? Perry lançou um olhar de indagação ao telepata Marshall. Este sacudiu a cabeça: Ellert não estava mentindo. Dizia a verdade. Por que seria tão vidente?
— Como profeta pode não valer nada, mas como inimigo dos invasores vale muito — prosseguiu Perry. — Pode abandonar seu corpo e sair em perseguição dos DI.
— Juntamente com Tako procurarei solucionar o problema — confirmou Ellert. Hesitou ligeiramente. Depois acrescentou:
— Segundo uma das alternativas que se abrem para o futuro, dentro de poucas semanas estarei morto. Mas, como acabo de dizer, isso é apenas uma das alternativas. Pode ser verdadeira, tanto quanto a outra, segundo a qual num futuro muito distante ajudarei você a consolidar o grande império galáctico.
Sem dizer uma palavra, Perry seguiu-o com os olhos quando ele deixou a sala de conferências juntamente com Tako, o teleportador japonês.
Outra sala de conferências.
Mais de três mil metros abaixo da superfície da calota de gelo que cobre a Groenlândia os presidentes dos três grandes blocos da Terra encontravam-se reunidos. Desta vez não se tratava de elaborar planos para uma ação conjunta contra Rhodan, mas de encontrar um meio de repelir a invasão. Mercant estava presente. Perry Rhodan participou da conferência pela televisão. Uma das paredes do pequeno recinto estava coberta por uma tela. Perry aparecia em tamanho natural. Os participantes da conferência viam-no e ouviam-no, da mesma forma que ele os via e ouvia. Nem parecia que se encontravam separados por milhares de quilômetros.
Depois de uma breve introdução, Mercant pediu a Perry Rhodan que expusesse a situação estratégica.
— Cavalheiros — principiou Perry sem rodeios — se não agirmos imediatamente, estaremos perdidos. Felizmente conseguimos a união definitiva dos povos, de maneira que a Terra se transformou num só planeta. Praticamente todas as fronteiras foram eliminadas. Os senhores, que são os presidentes dos três grandes blocos, governam o mundo, se abstrairmos de mim e do poder dos arcônidas. Também no terreno econômico uma coordenação mais estreita está em vias de ser formada. Devo pedir-lhes que permitam aos meus subordinados que se desloquem livremente nos seus países. O que quero dizer é que devem ter livre acesso aos órgãos governamentais e às repartições dos serviços de defesa. Incumbi meus subordinados de exercerem uma vigilância ininterrupta sobre as pessoas importantes da Terra, para que qualquer apossamento por parte dos DI possa ser detectado imediatamente. Para isso precisamos de plenos poderes. Peço-lhes que nos concedam.
Seguiu-se um silêncio embaraçoso. Ninguém atreveu-se a repelir frontalmente a exigência de Perry Rhodan. Mercant interveio:
— É evidente que os senhores presidentes não deixarão de reconhecer a necessidade premente desse procedimento extraordinário e transmitirão as instruções correspondentes. Não era o que pretendiam dizer?
O presidente do Bloco Ocidental confirmou com um aceno de cabeça. Depois duma ligeira hesitação o presidente da Federação Asiática e o do Bloco Oriental seguiram seu exemplo. Não viram outra saída. Perry respirou aliviado. O primeiro round estava ganho.
— Obrigado, cavalheiros. Com isso não precisarão preocupar-se mais com a defesa contra a invasão. Creio que com os meus homens darei conta do recado. Assim que localizarmos a nave espacial dos invasores, ela será destruída. Passemos ao segundo ponto. Conforme sabem, criei uma potência econômica conhecida pelo nome General Cosmic Company. O diretor comercial do truste é Homer G. Adams, o conhecido gênio financeiro de memória fotográfica. Nossas usinas estão sendo montadas em todos os pontos da Terra. Atualmente o capital da empresa é de trinta e cinco bilhões de dólares. Se estiverem dispostos a prestar-nos sua colaboração oficial também neste terreno, estarei pronto a adiantar a soma de trinta bilhões de dólares para o projeto que temos em perspectiva.
O presidente da Federação Asiática inclinou-se para a frente.
— A que projeto está se referindo? — perguntou numa atitude de espreita.
Perry Rhodan sorriu.
— Trata-se de uma frota espacial. A Terra precisa de uma frota espacial.
— Para quê?
— Existem muitos motivos para isso, senhor presidente. Um deles é de natureza puramente econômica. Já nâo é segredo que as guerras e as atividades armamentistas são responsáveis por boa parte do bem-estar material dos povos. Isto pode parecer cínico, mas não passa duma constatação objetiva. Por isso devemos continuar a guiar nossa atuação por esse princípio consagrado, com a única diferença de que nossos esforços não mais serão dirigidos aos preparativos para a guerra, mas a um objetivo inteiramente diferente: a frota espacial. A economia mundial pode beneficiar-se com um empreendimento desse tipo. Novas indústrias surgirão, todos os homens encontrarão trabalho. Será necessário criar fábricas e usinas, e teremos de encontrar meios de produzir matérias-primas e peças até então desconhecidas. É aí que residem as vantagens de natureza puramente econômica. Acontece que ainda existe um motivo estratégico para construir uma frota espacial. Os senhores destruíram o cruzador dos arcônidas, que se encontrava estacionado na Lua. Um dispositivo automático provocou a emissão do sinal de socorro, que vem sendo transmitido para todas as partes do cosmos a uma velocidade superior à da luz. Os sinais vêm sendo captados por inúmeras raças. A invasão que está sendo levada a efeito é uma das conseqüências desse fato. Os sinais podem despertar a curiosidade de outras raças, que talvez se desloquem para cá. O planeta Terra deverá estar em condições de repelir outras invasões. Para isso precisamos de uma frota espacial. Espero que a lógica irrefutável destes fundamentos não deixe de convencê-los.
Os participantes da conferência convenceram-se da validade dos fundamentos expostos por Rhodan. A proposta foi aprovada por unanimidade. Mas Rhodan ainda não havia chegado ao término da exposição. Passou a enfatizar a necessidade de que os três presidentes que ali se encontravam pensassem seriamente na maneira de formar um governo comum, que administrasse o planeta Terra. Concluiu com uma sugestão concreta:
— Temos de obter uma garantia definitiva de que nunca mais surgirá uma dissensão entre as nações. A formação da frota espacial incrementará a idéia da união mundial. Mas o espírito de união também deve ser estimulado por atos externos. O governo mundial, que ainda é considerado um sonho de utopistas ridicularizados, deve ser transformado em realidade. Nunca a situação se apresentou tão favorável a esse intento como hoje. O perigo comum e os esforços conjuntos para a construção da frota espacial constituirão fatores positivos. Peço-lhes que iniciem quanto antes negociações dirigidas a esse fim. É isso, meus senhores. Acho que poderão prosseguir na conferência sem a minha presença. Não tenho nada a ver com as questões internas. Mercant me informará sobre os pontos essenciais que forem debatidos. Agradeço-lhes pela confiança que vêm depositando em mim. Não os decepcionarei.
A tela apagou-se.
Mercant rompeu o silêncio:
— Senhores presidentes, os objetivos estão definidos. Para alcançá-los dependemos dos senhores. Achei conveniente convocar o homem que poderá assessorar-nos nas questões econômico-financeiras, a fim de que ainda hoje possamos alcançar um resultado palpável. Apresento-lhes o senhor Homer G. Adams, diretor comercial da General Cosmic Company.
Num quarto de hotel de Pequim, Ernst Ellert e Tako Kakuta realizaram seu conselho de guerra.
— Você é capaz, sim — disse Ellert em tom insistente. — Lembre-se de que destruiu a nave oval dos DI. Teleportou-se com a bomba para junto do inimigo. Se conseguiu transportar uma bomba, também deve estar em condições de carregar um homem. Sabe perfeitamente que pode teleportar a matéria com que entra em contato.
— É possível que você tenha razão — disse o japonês com um sorriso de cortesia.
— Tenho de experimentar. Para falar com franqueza, ainda não pensei nessa possibilidade.
— Pois vamos experimentar. De qualquer maneira o exército de mutantes só se consolidará através da experiência.
— Que tal se me levasse com você numa viagem para o futuro? — perguntou o japonês em tom sério. — Assim cada um de nós estaria retribuindo a gentileza do outro.
O rosto de Ellert alargou-se num sorriso.
— Então é nisso que consiste a coordenação de nossas forças? — ironizou. — Se Crest soubesse disso...
Subitamente o rosto de Tako assumiu uma expressão séria. Parecia lembrar-se da missão que lhes fora confiada.
— Encontramos Li — declarou. — O que faremos com ele? Como poderemos saber se anda fazendo alguma tolice? Não podemos prevenir os homens da Federação Asiática, pois não sabemos quem entre eles já pertence aos DI.
Nesse instante seus aparelhos de comunicação emitiram um zumbido. Comprimiram o botão de recepção. A voz de Ras Tshubai, outro teleportador pertencente, ao grupo, fez-se ouvir:
— Ouçam, temos trabalho. Li acaba de ir ao aeroporto onde adquiriu passagem para o Stratoliner com destino a Batang. Parte amanhã, às seis e trinta e cinco.
— Tão cedo! — gemeu Ellert, que gostava de dormir até tarde. — O que será que esse sujeito resolveu fazer justamente em Batang?
— Não faço a menor idéia. Não falou sobre a finalidade da viagem ao funcionário que lhe vendeu a passagem.
— Nem poderia ser de outra forma. Acho que você virá até aqui. Até amanhã de manhã Li não nos escapará. A que hora chegará a Batang?
— O tempo de vôo é de duas horas. Quer dizer que deverá chegar pelas oito e meia.
— Nós o receberemos em Batang — disse Ellert. — Não se preocupe mais com Li, mas dê um pulo...
Dentro de um segundo o africano corpulento se materializou naquele quarto de hotel. Quando viu que Tako e Ellert estremeceram, deu um largo sorriso. Ninguém, nem mesmo um teleportador, jamais se acostumaria a ver um homem surgir do nada.
— Você faz alguma idéia do que nosso amigo pretende fazer justamente no Tibet? — perguntou o japonês. — Se não me engano, Batang fica ali pelo Tibet.
— Você não se engana — confirmou Ras. — São mais de dois mil quilômetros. Isso representa um belo salto. Como poderemos executá-lo?
— Pegamos Ellert pelos braços, e lá vamos nós. Acho que conseguiremos.
Ras revirou os olhos.
— Pegá-lo pelos braços? Não vá me dizer que poderemos levá-lo conosco.
— Por que não? — disse o japonês. — Afinal, ele é mais leve que uma bomba de tamanho médio...
O aparelho pousou na hora prevista. Li desceu e dirigiu-se ao edifício do aeroporto, sem olhar para os lados. Parecia sentir-se muito seguro. Tako incumbira-se da vigilância direta, já que naquelas plagas um japonês não daria na vista. O minúsculo radiotransmissor que trazia no pulso mantinha-o em contato permanente com seus companheiros.
Li não trazia bagagem. Em compensação tinha consigo uma soma considerável em dinheiro. Ninguém, provavelmente nem mesmo o próprio Li, saberia dizer como conseguira pôr a mão nele. Alugou um quarto no hotel mais caro da cidade, pagou três diárias adiantadas e não apareceu mais na manhã daquele dia. Tako estava sentado num bar que servia vinho de arroz, situado do lado oposto da rua, e procurava matar o tédio. Se não o revezassem logo poderia acontecer que deslizasse para baixo da mesa e mergulhasse num sono feliz.
Pelo meio-dia Ras ocupou seu lugar. Tomou um gole de vinho tinto e asseverou que teria muito prazer em ficar ali até o anoitecer. No íntimo o japonês tinha suas dúvidas. Saiu do bar e dirigiu-se ao hotel, onde Ellert já o esperava.
— O que será que Li veio fazer neste lugar horrível?
Ellert estava deitado, lendo um livro. Quando Tako entrou, interrompeu a leitura e formulou a pergunta que mantivera sua mente ocupada por toda a manhã. Na verdade, não esperava nenhuma resposta. E não a recebeu.
— Não faço a menor idéia — gemeu Tako e mergulhou na poltrona mais próxima. — Não ficaria bem perguntarmos a ele. Você não poderia dar uma espiada no futuro para descobrir as intenções de Li?
— Como saberei se me encontro apenas num plano de probabilidades do futuro, ou na realidade? Felizmente não estou preso ao corpo. Posso transformar-me em intelecto desmaterializado e deslocar-me livremente, até mesmo em sentido diagonal ao fluxo do tempo. Mas nunca sei se realmente acontecerá aquilo que vejo.
— Pois tente! — sugeriu Tako, que não tinha uma idéia exata do problema. — Enquanto você dorme, cuido do seu corpo.
Ellert fez um gesto de assentimento e ficou deitado.
— Isso não pode fazer mal — reconheceu. — Mas não sei quanto tempo demorará. Não deixe ninguém entrar no quarto. Entendido?
Tako levantou-se e trancou a porta. Quando voltou, Ellert já estava imóvel na cama. O japonês inclinou-se sobre ele. Subitamente sobressaltou-se. Ellert deixara de respirar. Ou será que tudo não passava de uma ilusão? O pulso era muito fraco. Tako deu um beliscão nas bochechas do teleportador, que não reagiu.
O japonês também se deitou e logo adormeceu. Não houve nada que perturbasse o sossego daquele fim de tarde.
Enquanto isso, Li estava sentado num quarto de hotel, a poucas quadras de distância.
O ser imaterial que se apossara de seu corpo mantinha contato telepático com a neve de comando estacionada no espaço. As mensagens eram precisas e impessoais.
— Temos que desistir do plano de defender nossa base situada na Terra. O homem chamado de Li tornou-se suspeito. Apesar disso não convém procurar outro corpo, pois com isso teríamos de recomeçar todo o trabalho. Além disso, os terráqueos suspeitam de Li, mas não têm certeza. Li permanecerá em Batang por mais dois dias, depois pegará o Clíper com destino aos Estados Unidos. Oportunamente forneceremos novas instruções.
Dali em diante Li passou a mover-se sem destino. Tomava suas refeições, dava passeios pela cidade sem preocupar-se cora os homens que o seguiam e agia como um funcionário aposentado. Depois de três dias comprou uma passagem para Hong Kong, e dali para Carson City, em Nevada, Estados Unidos.
Conforme era de esperar, a tentativa de Ellert não produziu o menor resultado. Abandonara o presente e penetrara no futuro. Seu espírito pairara sobre Li, enquanto esse viajava de Hong Kong para Carson City. Um deslocamento lateral no fluxo do tempo revelou outra possibilidade. Viu o mesmo avião, sem Li. Qual seria a realidade?
Ellert desconfiou de que seu dom valia muito pouco. O presente representava a encruzilhada, a partir da qual se podia penetrar no futuro por inúmeros caminhos. Só o presente podia determinar a configuração do futuro. Dessa forma a visão do futuro representava a percepção de milhões de alternativas, e ninguém sabia qual dessas alternativas se transformaria em realidade.
Face a isso não havia como modificar os acontecimentos do passado.
Em compensação teve uma idéia de cujo alcance só começava a suspeitar. Teria de falar com Perry Rhodan. Se sua teoria fosse exata, os dias dos DI sobre a Terra estariam contados.
Perry Rhodan cumprimentou Ernst Ellert com um movimento da cabeça. Os dois homens estavam a sós na velha sala de comando da Stardust. Por uma espécie de sentimentalismo, Perry gostava de recolher-se a esse recinto sempre que desejava ficar a sós. Ali sentia-se tranqüilo e foi ali que sua carreira fantástica teve início.
Depois de um ligeiro preparo mental, Ellert começou a falar.
— Deixamos que Li viajasse sozinho aos Estados Unidos, pois conhecemos seu destino. A esta altura John Marshall já deve estar cuidando dele. Pelo que sei, Anne Sloane também se encontra em Carson City. Isso parece confirmar sua suposição de que o próximo objetivo dos DI será a base de Nevada Fields.
— Acredito que sim — confirmou Perry em tom tranqüilo.
— Enquanto abandonei meu corpo para vigiar Li, constatei um fato bastante estranho. Os DI comunicam-se por via telepática. Até consegui acompanhar parte das mensagens que trocaram entre si. Sem o entrave do corpo nosso intelecto realiza um trabalho muito mais perfeito e amadurecido. Acho que, se necessário, poderia manter contato direto com os DI, mas a meu ver isso não é recomendável. É preferível que nunca saibam dessa possibilidade. Mas há outra coisa. Estou convencido de que será possível seguir um DI que abandonou seu corpo. E qualquer teleportador poderá fazer isso. Ao movimentar-se, um teleportador transfere seu corpo para outra dimensão e faz com que o mesmo se materialize em outro ponto do espaço. Transforma-se em espírito, e com isso assemelha-se bastante aos DI. Acredito que nessas condições Tako ou Ras, ou mesmo eu, estaremos em condições de seguir um DI no momento em que ele abandonar o corpo de um ser humano para retornar ao seu próprio corpo.
Perry Rhodan escutara com muita atenção. Seu cérebro genial examinou as possibilidades, pesou as oportunidades e registrou todos os dados como se fosse um robô eletrônico. Valeu-se do saber imenso que lhe fora transmitido pelos arcônidas. Os centros de memória forneceram informações.
Depois de algum tempo acenou com a cabeça.
— Ernst você tem razão. Tem toda razão. Não deixaremos de fazer uma tentativa. Li deve ter ido a Nevada com uma incumbência especial. Anne Sloane me deixará informado sobre cada passo que ele der. Mas há outro assunto sobre o qual gostaria de falar com você. Sabe perfeitamente que nunca me vali de seus dons de teletemporador. De início me senti impedido por motivos de ordem ética. Além disso, chegamos à conclusão de que as múltiplas áreas de probabilidades não lhe permitem uma visão nítida do futuro. Todavia, devo pedir-lhe que faça uma exceção. Tivemos um acontecimento muito estranho...
Ernst Ellert parecia bastante interessado. Inclinou-se para a frente e segurou o jornal que Perry lhe estendeu. O título parecia saltar nos seus olhos. Começou a ler com muita atenção.
O artigo era o seguinte:
MENINA DE SEIS ANOS MATA O PAI COM UM TIRO DE PISTOLA
Assassinato Misterioso Praticado por Criança
Mesilla, Novo México, 17-2-72.
Notícia especial.
Um dos crimes de morte mais estranhos do século ocorreu ontem em Mesilla, N.M. A pequena Betty Toufry tirou a pistola do pai, que a segurava no colo, e o matou. A criança nunca tivera nas mãos uma arma desse tipo, e não sabia como manejá-la.
No citado artigo ainda se salientava que Allan G. Toufry era um cientista dedicado à pesquisa nuclear. Tivera participação decisiva nos últimos aperfeiçoamentos das armas nucleares e era um dos responsáveis pelas experiências realizadas no deserto. O redator da notícia ainda acrescentava em tom de ceticismo que a criada afirmava peremptoriamente ter visto que poucos instantes antes da tragédia a criança correra alegremente ao encontro do pai, mas de repente estacara. Logo após a pistola parecia voar às mãos da pequena. Naturalmente era o relato de uma pessoa que se encontrava à beira de um ataque de histeria não podia ser levado a sério, tinha ressalvado o repórter. De qualquer maneira, o ato de uma criança de seis anos que mata o pai é tão estranho que requer um minucioso exame psicológico.
Ellert levantou a cabeça e fitou os olhos indagadores de Perry.
— Então? Que acha?
Ellert deu de ombros.
— Não compreendo! O relato da empregada dá o que pensar. Não acredito que esteja mentindo.
— Também não acredito — confirmou Perry. — Tenho minhas desconfianças. Mas gostaria de ter certeza. Peço-lhe que se ocupe com a criança. Preciso saber o que será feito dela. Será que você poderia verificar?
— Até certo ponto, sim. Seja qual for o caminho do futuro, isso não altera a personalidade. Pouco importará a área de probabilidades em que me deslocarei, desde que a menina continue viva.
— Era o que eu imaginava, Ellert. Você terá que viajar ao Novo México, ou será possível fazê-lo a partir daqui?
— Seria conveniente ir até lá. Além disso estarei perto de Carson City.
Perry Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.
— Está bem. Pegue o avião imediatamente. E transmita-me suas informações assim que chegar lá. Estou muito interessado na menina.
Um telepata estava em condições de identificar imediatamente os estranhos padrões ideológicos dos DI. O cerco em torno desses seres estava sendo apertado cada vez mais, mas não seria possível completá-lo sem perigo.
O porto espacial de Nevada era o campo de pouso das astronaves do Ocidente.
O cordão de isolamento que cercava a área impedia a penetração de qualquer pessoa estranha. Infelizmente tais medidas não tinham qualquer eficácia contra os DI, que a qualquer momento poderiam cruzar a faixa de segurança, sob o disfarce de um corpo humano.
Por isso era indispensável que os homens de Rhodan mantivessem uma vigilância ininterrupta no interior da zona bloqueada.
O capitão Burners, do serviço de segurança, não gostava disso, mas não lhe restava outra alternativa senão cumprir à risca as ordens de seu chefe supremo, Allan D. Mercant. Muitas dessas ordens tornavam-se incompreensíveis a esse homem acostumado a pautar seu procedimento por uma série de normas bastante simples. Quem não tivesse nada que fazer na base espacial lá não entraria. Era muito simples. Mas agora qualquer sujeito estranho podia intrometer-se em assuntos com os quais nada tinha que ver.
Era, por exemplo, o caso do tal do Marshall. Esse sujeito andava com um sorriso impertinente na cara sempre que falava com os outros. Fazia de conta que sabia de tudo. Mas não sabia de coisa alguma. Ao menos era o que Burners pensava. Pois bem. Afinal, era um dos homens de Rhodan, e este metia o nariz em tudo.
John Marshall, o homem que graças às suas capacidade telepáticas conseguira frustrar um assalto de banco na Austrália e por isso se unira a Rhodan, podia movimentar-se livremente no porto espacial de Nevada. Era perfeitamente compreensível que aproveitava a oportunidade para conhecer as vastas instalações da base. Conhecia o general Pounder, chefe da Força Espacial dos Estados Unidos, bem como seu ajudante, o major Maurice. Mantinha relações amistosas com o Dr. Fleet, médico-chefe da Força Espacial dos Estados Unidos, bem como com o Dr. Lehmann, dirigente do projeto científico e diretor da Academia de Tecnologia Espacial da Califórnia. Era claro que também conhecia o capitão Burners.
Por enquanto não localizara nenhum DI. Parecia estranho, mas era verdade. John ficou matutando sobre se o fato era intencional ou não passava de puro acaso, mas não encontrou nenhuma resposta. Ficava de olho nas pessoas mais importantes, falava com elas diariamente e examinava seus pensamentos. Não descobriu nada de extraordinário.
Hoje o Dr. Lehmann convidara-o para um jogo de xadrez.
Tratava-se de um cavalheiro de idade um tanto avançada, que era um adepto apaixonado do xadrez e sentia-se satisfeito por ter encontrado um parceiro digno de medir-se com ele. Evidentemente não sabia que John lia seus pensamentos e assim conhecia antecipadamente seus lances.
— Xeque-mate! — disse em tom de triunfo e recolheu a dama a uma posição que lhe parecia decisiva. Todo satisfeito remexeu o cachimbo, espalhando um cheiro pouco aromático.
— Será mesmo? — perguntou o australiano. — Pensa que não estou vendo o cavalo? Está enganado. Pronto! E agora?
Lehmann, perplexo, fitou o tabuleiro. Realmente pensara que seu parceiro tivesse esquecido o cavalo, já que estava há dez minutos no mesmo lugar, totalmente cercado e sem ser notado, mas infelizmente também numa posição inatingível.
John acendeu um cigarro, para fugir à fedentina do cachimbo de Lehmann, que acabara de segurar uma dama, erguendo-a num gesto pensativo. Estacou em meio ao movimento.
John, que sorria de si para si ao perceber que seu adversário pretendia deslocar a dama para uma posição que representava certo perigo para seu cavalo, subitamente sentiu-se chocado, pois o fluxo dos pensamentos de Lehmann sofreu uma interrupção abrupta.
O professor apresentava o aspecto de uma figura estarrecida. Os olhos vidrados fitavam o vazio. A mão que segurava a figura de xadrez ficou suspensa sobre o tabuleiro, imóvel e sem o menor tremor. Nem mesmo as pestanas se moviam.
John sentiu que algo de estranho se introduzia no espaço que ainda há pouco era ocupado pelos pensamentos do professor. Retirou-se apressadamente, limitando-se a manter um contato ligeiro, a fim de não impedir a penetração do DI.
Esforçou-se para não despertar a menor suspeita, pois sabia perfeitamente que dentro de poucos segundos um dos invasores o contemplaria através dos olhos de Lehmann. Dentro de cinco segundos aproximadamente, segundo afirmara Mercant.
Realmente. Uma vez decorrido esse lapso, o Dr. Lehmann voltou a mover-se. Num gesto automático colocou a dama numa posição em que não serviria para coisa alguma. A vida retornou àqueles olhos estarrecidos, que contemplaram John num gesto indagador.
— Então?
John procurou concentrar-se. Nunca se vira numa situação tão difícil. Quem dera que pudesse penetrar nos pensamentos do DI. Mas isso não era tão simples. Os invasores também dispunham de algumas capacidades telepáticas. Perceberiam logo. E isso não podia acontecer em hipótese alguma.
— O lance não foi bom, professor. Se quiser, posso colocá-lo em xeque-mate. Mas acredito que estivesse distraído. Por isso quero dar-lhe mais uma chance.
Pegou seu cavalo e colocou-o numa situação muito perigosa. Lehmann poderia eliminá-lo imediatamente. Mas não o fez. Provavelmente o DI precisava de algum tempo, para absorver as informações armazenadas na memória de sua vítima. O lance que executou não preenchia qualquer finalidade e infringia as regras do jogo.
John fez de conta que não percebia nada. Executou um lance apressado e procurou aproximar-se do espírito desconhecido. Mas esbarrou numa barreira mental que não pôde ser vencida. Absteve-se de recorrer a um processo mais violento, pois não quis despertar a atenção do inimigo. Mas já sabia que os DI podem envolver seus pensamentos com uma capa protetora. Era impossível adivinhar as intenções deles. Talvez a capa se tornasse porosa se permanecessem em contato por algum tempo. Teria de verificar.
O jogo assumiu uma feição arrepiante, embora o DI aprendesse depressa. John deixou-o ganhar e despediu-se com algumas palavras indiferentes. Ao concluir, disse:
— Espero que sua promessa continue de pé, doutor.
— Que promessa?
— A experiência. Será que já se esqueceu disso? O senhor disse que eu poderia assistir ao teste da câmara de combustão, que será realizado dentro de poucos dias.
— Ah, sim. É claro que poderá estar presente.
— Boa noite, doutor.
— Boa noite.
Assim que chegou ao seu quarto, John abriu a mala e tirou um transmissor pequeno, mas muito potente. Dali a poucos minutos estava falando com Rhodan, que não ficou nada satisfeito ao ter que afastar-se da companhia de Crest e dos outros mutantes logo de manhã. Quando, porém, ouviu a voz de John, a contrariedade cessou por completo.
Esperou até que John terminasse. Depois disse:
— Fique de olho em Lehmann. Recebi notícias de Anne Sloane. Li está a caminho de Nevada Port. Oficialmente viaja a mando de Mercant. Deverá encontrar-se com Lehmann. É possível que os dois pretendam executar algum plano que vise à paralisação da pesquisa espacial. Toda vigilância é pouca. Entre em contato com Anne assim que ela chegar aí. Assim que Ernst terminar a missão atual, ele lhe será enviado como reforço. Acho que o porto espacial de Nevada será o ponto crítico da invasão.
Rhodan nem desconfiava de que sua suposição seria totalmente confirmada pelos fatos.
Ernst Ellert não teve a menor dificuldade em seguir o caminho da pequena Betty Toufry através do fluxo do tempo. Numa faixa de cinco anos, situada no futuro, descobriu as melhores possibilidades de pesquisar sua personalidade. Houve uma estranha coincidência entre os mundos paralelos que se abriam diante dele.
Quando pairou invisível sobre a menina e procurou penetrar seus pensamentos, teve uma surpresa chocante.
Betty Toufry era telepata.
Voltou ligeiramente a cabeça, como se estivesse escutando. Logo um sorriso de autoconfiança passou pelo seu rosto. Estava sentada na varanda da casa em que vivia com o pai há cinco anos atrás, quando acontecera aquele fato inexplicável.
— Quem é você? — perguntou sem emitir qualquer som. Ellert compreendia perfeitamente. Decidiu abandonar todo e qualquer disfarce. Não adiantaria fingir diante dela, pois logo percebeu que as capacidades telepáticas da menina eram mais fortes que as suas.
— Meu nome é Ernst Ellert. Sou um dos colaboradores de Perry Rhodan.
— E daí? — disse a menina em tom de espanto. — Vem a mando dele?
Essa reação deixou Ellert estupefato.
— O que quer dizer com isso?
A menina parecia refletir. Subitamente um sorriso iluminou seu rosto.
— Ah, sim, Ernst. Quase me esqueço. Há cinco anos você me falou sobre sua excursão ao meu futuro. Foi graças ao encontro que ora estamos tendo que há cinco anos Perry Rhodan me admitiu no seu serviço. Desde então trabalho no exército dos mutantes. Nosso encontro de hoje só está ocorrendo para que nossa reunião se torne possível. Compreendeu?
— Só em parte — respondeu Ellert perplexo. — Quer dizer que você trabalha para Rhodan?
— Preste atenção, Ernst. Sou uma mutante nata. Minhas especialidades principais são a telecinese e a telepatia. Aos seis anos meu quociente intelectual já atingia o dobro do de um adulto normal. Em todas as partes do mundo estão nascendo mutantes. O novo homem está surgindo imperceptivelmente. Um dia ele tomará o lugar do homo sapiens.
— Isso é uma perspectiva terrível.
— Por quê? Só porque uma época está chegando ao fim? Não vejo nada de mau em tudo isso. O herdeiro do império galático não será o homo sapiens, mas o homo superior.
Ellert sentia-se cada vez mais confuso. Aquela menina, cujo quociente intelectual era muito superior ao seu, falava sobre coisas que na base só eram mencionadas em cochichos. No entanto, quase se esquecia de que se encontrava num futuro situado dali a cinco anos. E tudo indicava que se movia na dimensão da realidade.
— Você poderia responder a uma pergunta, Betty?
— Com todo prazer.
— Por que matou seu pai daquela vez?
Seus pensamentos hesitaram um pouco, mas logo surgiram com toda nitidez:
— No fundo tudo não passou de um ato instantâneo. Desde que sei pensar, li os pensamentos dele. Minha mãe morreu durante o parto, por isso dediquei-lhe todo o amor. Quando chegou em casa naquele dia, meus pensamentos correram ao seu encontro, mas esbarraram numa capa, que só pude penetrar com um esforço enorme. Quando consegui, deparei-me com o invasor. Foi uma experiência tão apavorante, que fiquei imóvel. Meu pai, aliás, o ser que naquele dia chegou em casa, já não era meu pai. Tomou-me no braço e me cumprimentou. Depois sentou. Captei seus pensamentos, e esses pensamentos ocupavam-se com a destruição do mundo. Pretendia fazer detonar no dia seguinte os depósitos subterrâneos de armas nucleares, a fim de destruir nosso continente. Naquela época ninguém teria acreditado numa criança. Meu ato foi quase automático. A arma que sempre trazia consigo veio ter às minhas mãos, impelida pela energia telecinética de que sou dotada. Depois... bem, depois aconteceu.
Ellert não respondeu logo. Seu pesar encontrou expressão em pensamentos de compaixão, que fluíam suavemente em torno da menina. Esta ergueu a cabeça e lançou os olhos para o céu azul, onde devia encontrar-se o espírito invisível de Ellert.
— Ernst, agora volte para junto de Rhodan e conte-lhe o que acaba de saber. Posso dizer-lhe uma coisa: a invasão dos Deformadores Individuais fracassará. A Terra os vencerá. Quanto a você...
Seus pensamentos extinguiram-se.
— Quanto a mim? O que haverá comigo, Betty?
— Não posso contar. Esqueça-se disso.
— Por que não pode contar?
— Não devo. Não me martirize. Você representa o ponto de transição da história da humanidade. Seu destino está ligado estreitamente ao império galáctico do futuro. Se desconfiasse do que vai acontecer, poderia tentar escapar ao seu destino. E isso não deve acontecer. Siga o caminho que foi traçado para você, para que Perry Rhodan possa atingir seu objetivo. Nós dois nunca mais nos veremos, Ernst...
— E dentro de cinco anos, agora? O que será? onde estarei?
— Dentro de cinco anos? Meu caro Ernst, daqui a cinco anos você verá a aurora de uma nova era da história da humanidade. E você a verá de um posto cuja posição ultrapassa tudo que nossa imaginação pode conceber. Agora deixe-me só, por favor.
Ellert sentiu que Betty Toufry se afastava dele. Não conseguiu penetrar mais no seu ser. Permaneceu indeciso por alguns segundos. Depois abandonou-a, retornando ao presente.
Sabia perfeitamente o que devia fazer...
— Então você tem certeza de que a base terrena dos invasores se encontra em algum ponto localizado no Tibet?
Perry confirmou com um aceno de cabeça. Crest estava sentado perto dele. Segurava os últimos relatórios da General Cosmic Company, segundo os quais Homer G. Adams fazia erguer novas fábricas em todas as partes do mundo. A construção de uma frota espacial terrena havia sido iniciada. Ao menos nesse ponto as barreiras nacionais haviam sido demolidas.
— Tenho certeza, Bell. Os DI querem fazer com que Li se dirija a essa base. Infelizmente não sabemos o que deverá fazer lá. Os DI só modificaram seus planos quando sentiram o contato mental de Ellert, que agiu com certa falta de cautela. De qualquer maneira não desistiram da pessoa de Li. Ele viajou para o porto espacial de Nevada, onde se encontrou com o professor Lehmann. Estou convencido de que os dois receberam ordens de desferir um golpe grave contra a pesquisa espacial.
— Não sei como poderíamos impedir isso — interveio Crest. Parecia continuar a duvidar de que alguém pudesse estar em condições de resistir aos Deformadores Individuais. Sua raça decadente tornara-se tão indolente que não poderia lançar-se num combate contra os DI. — Esses seres subjugaram grandes impérios cósmicos, sem que ninguém conseguisse impedi-los.
— Pois nós os impediremos — retrucou Rhodan em tom áspero e enérgico. — E dispomos de meios para isso. Aquelas desastrosas bombas atômicas também tiveram seu lado bom. As radiações emitidas por elas produziram uma aceleração enorme da evolução natural. O homem já realizou algumas das transformações que normalmente só alcançaria dentro de algumas dezenas de milênios. Os membros do exército dos mutantes são os precursores do homem normal que surgirá dentro de uns dez mil anos. E isso aconteceu na hora exata. Se não pudéssemos contar com os mutantes, estaríamos à mercê dos DI.
Crest encarou Rhodan. Nos olhos avermelhados que se viam por baixo da testa alta, ardia um fogo igual ao que Perry já vira em outra oportunidade, quando falara com o arcônida sobre o futuro da Terra e do império galático. Lia-se nele uma expressão de admiração, alegria e confiança, misturada com uma certa preocupação. Por trás dele lia-se o saber imenso de uma raça antiguíssima, que assistira à formação e à morte de vários sistemas solares.
— Nas últimas semanas fiquei pensando muito sobre se o universo é governado pelo acaso ou pelo destino — disse em tom tranqüilo. — Quase chego a dar a primazia ao destino. Como não deve ser imenso e inconcebível o ser que move os fios...
Bell mudou o assunto, falando naquilo que mais o comovia:
— O que está acontecendo em Nevada?
Perry Rhodan esboçou um sorriso de superioridade.
— Estamos colocando uma armadilha e esperamos que os DI caiam nela. Se isso acontecer, e tudo indica que será assim, saberemos dentro em breve se estaremos em condições de repelir a invasão, ou se a batalha está perdida. Tudo depende da exatidão da teoria de Ernst Ellert.
— Acha que nossos teleportadores podem perseguir os DI desmaterializados, desde que eles abandonem sua vítima num estado de pânico?
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça em direção a Crest.
— É isso mesmo. Só assim poderemos localizar a base deles. O resto não será difícil. Talvez consigamos capturar mesmo alguns DI autênticos, isto é, seres dessa espécie na sua forma primitiva. Neste ponto Ellert teve uma idéia formidável. Tudo depende do resultado da experiência que será realizada em Nevada.
— Seria muita gentileza da sua parte — resmungou Bell — se nos contasse o que deve acontecer em Nevada.
— Isso pode ser resumido em poucas palavras, meu caro. Crest, convém que também você preste muita atenção. O que acontecerá é o seguinte...
O novo elemento reunia todas as qualidades que poderiam fazer dele o combustível ideal para as naves espaciais. No estado sólido ocupava um espaço muito reduzido; era esta sua maior vantagem. Além disso, era absolutamente seguro enquanto não fosse exposto a um tipo de radiações inofensivas, que poderiam ser geradas a qualquer momento por meio de instrumentos extremamente simples. Uma vez atingido por essas radiações, o elemento sofria modificações em sua estrutura atômica, e estas dependiam da intensidade das radiações. Na prática essas radiações desempenhavam uma espécie de função catalítica, sem a qual o novo elemento não passava de uma peça de matéria inútil.
As experiências ainda não haviam sido concluídas.
O professor Lehmann conseguira criar o novo elemento, que era tão barato que uma viagem a Marte não custaria mais que um passeio de bonde, abstraídas as despesas de financiamento da nave. Com as radiações podia-se liberar à vontade a quantidade exata de energia que se tornasse necessária. Seria o tipo ideal de propulsão à base da luz.
Evidentemente tudo não passava de teoria. Mas Lehmann aferrara-se à idéia, e ninguém conseguiria demovê-lo.
Hoje seria levada a efeito uma das últimas experiências.
Li Shai-tung, na qualidade de enviado oficial de Mercant, tinha livre acesso a todas as dependências do campo de prova. Quem menos objeções tinha a fazer contra isso era Lehmann, que sabia perfeitamente que, da mesma forma que ele, Li também era um DI. Os invasores pretendiam desencadear uma reação em cadeia através da exposição excessiva do novo elemento às radiações, e essa reação não poderia ser controlada, acabando por destruir todo o centro de pesquisas. Após isso os dois DI abandonariam os corpos de Lehmann e Li, que já não teriam a menor utilidade para eles, e procurariam novas vítimas.
Era justamente nesse ponto que deveria ocorrer uma modificação.
Ellert afirmara que o DI só poderia ser perseguido quando posto em fuga numa situação de pânico e irreflexão, pois assim seu intelecto não teria tempo para preparar-se para a fuga. Na sua opinião, a pressa excessiva não daria ao DI oportunidade de levantar um anteparo mental que lhe permitisse apagar a pista que conduzia para outra dimensão. Tudo isso parecia confuso, mas não deixava de ser convincente.
Era por isso que a catástrofe planejada por Li e Lehmann teria de ser desencadeada com uma rapidez fulminante, para ser detida com igual rapidez. Isso, porém, apenas quando os dois DI se tivessem lançado na fuga precipitada, que teriam de empreender se não quisessem morrer juntamente com os corpos de que se haviam apossado.
Quando Lehmann entrou na sala dos reatores em companhia de Li, não suspeitou de nada. Os assistentes, que eram seus conhecidos, cumprimentaram-no com toda amabilidade e logo voltaram a dedicar-se aos seus afazeres. Mal chegou a notar dois ou três elementos novos. O que menos lhe chamou a atenção foi Ellert, o novo eletricista que manipulava algumas chaves secundárias que ficavam perto do gigantesco painel de comando. Também Anne Sloane, a peça mais importante do plano, estava postada nos fundos da sala, numa posição em que mal se notava sua presença.
A pesada porta de chumbo, que constituía o único acesso ao centro de reatores, fechou-se com um baque surdo. Lehmann sabia que seria possível abri-la do lado de dentro. Uma vez iniciada a reação em cadeia, haveria tempo para colocar-se em segurança. Os dois DI só pretendiam retornar aos corpos que lhes pertenciam quando se encontrassem no recesso dos seus gabinetes.
O professor aproximou-se da câmara de chumbo, acompanhado de Li e Marshall. Apontou para um bloco metálico do tamanho de um tijolo, que emitia um brilho suspeito atrás de uma lâmina de quartzo.
— Este é o novo elemento, cavalheiros. Acima da câmara os senhores vêem as antenas de saída das radiações elétricas, que sofrem um desvio na parte inferior. Essas radiações atravessam o novo elemento, provocando a alteração de sua estrutura atômica. Ainda não estamos em condições de utilizar plenamente a energia liberada, que se transforma em calor. Esta escala registra a temperatura. No interior da câmara de chumbo existe um revestimento térmico, capaz de resistir a milhares de graus centígrados. Bem, os senhores são leigos no assunto; não compreenderão o progresso enorme representado por esta peça singela de metal. A energia nela contida basta para fazer com que uma nave espacial atravesse metade do universo à velocidade da luz.
Lehmann aproximou-se do quadro de comando. Lançou um olhar perscrutador sobre Ellert. Este, vestido de capa branca, fez de conta que conhecia o professor há muito tempo, mas sabia perfeitamente que um homem tão importante não poderia lembrar-se de qualquer funcionário. O mesmo pensamento devia ocupar o DI que dominava o corpo de Lehmann.
— As instalações estão em ordem? — perguntou o cientista.
— Foram testadas e encontradas em perfeitas condições — respondeu Ellert, que só conhecia as funções de uma das chaves, a que regulava o suprimento de eletricidade, que por sua vez determinava a intensidade das radiações.
— Muito bem. Ligue o mínimo.
A chave descansou no primeiro entalho.
Havia vinte entalhos. Ninguém se atreveria a utilizar a posição máxima. Nem mesmo Lehmann. Nesse caso, a transformação da estrutura atômica seria tão rápida que provavelmente a câmara de chumbo derreteria assim que o processo tivesse início.
Nada se modificou atrás da lâmina de quartzo. O termômetro começou a subir. Lehmann acenou com a cabeça. Parecia satisfeito.
— O elemento está gerando calor. A temperatura começa a subir. A primeira posição seria suficiente para suprir um continente de eletricidade por vários séculos. É incrível!
Li permanecia calado. Por que falar? A comunicação entre ele e Li ou melhor, entre os dois DI, realizava-se pelo caminho do pensamento. John Marshall não teve a menor dificuldade em examinar cautelosamente aqueles pensamentos que iam e vinham de um lado a outro. Tinha de agir com prudência, pois por enquanto não deveria despertar nenhuma suspeita. Seus conhecimentos científicos eram muito reduzidos para permitir-lhe que compreendesse toda a extensão da experiência que estava sendo realizada.
Mas entendeu a pergunta do DI que se abrigara em Li.
Em que posição começa a catástrofe?
Na posição sete, respondeu Lehmann por via telepática. Falando em voz alta, disse:
— Técnico, coloque na segunda posição.
O plano estava à vista. Lehmann iria intensificando as radiações, até que na posição sete tivesse início a destruição lenta mas inevitável. Poderia sair calmamente do laboratório em companhia de Li, a fim de realizar a transferência para seu próprio corpo. No reator as energias liberadas iniciariam a obra calamitosa.
Anne Sloane sabia que seu trabalho estava para começar. Ellert, que continuava junto ao quadro de comando, não podia ser distraído. Teria de concentrar-se nos dois DI, tal qual John Marshall, a fim de persegui-los na fuga precipitada. Ellert abandonaria o corpo, mas permaneceria na dimensão do presente. John identificaria o instante em que os DI resolvessem pôr-se em fuga. Enquanto isso o homem que se encontrava fora da vista dos outros se desmaterializaria para seguir os seres estranhos, juntamente com os dois companheiros. Tako Kakuta, o teleportador, encontrava-se atrás de um enorme gerador e não tirava os olhos de Marshall, que lhe daria o sinal convencionado.
Tudo daria certo, desde que não se tivessem esquecido de nenhum detalhe. Mas será que não tinham esquecido nada?
Ernst Ellert afastou-se ligeiramente do quadro de chumbo.
Lehmann observava o termômetro. Nos seus olhos via-se um brilho fanático. Já não se esforçava muito para guardar as aparências. Li permanecia impassível.
— Coloque a chave na posição sete — disse Lehmann.
Estava na hora.
Anne Sloane aproximou-se um pouco. Seus olhos grudaram-se na chave que fora manipulada por Ellert. Devagar no início, mas logo depois num movimento cada vez mais rápido, foi descendo, passou pela posição número sete, para cair subitamente na posição final. Todas as reservas de energia dos geradores atravessaram os condutos, foram irradiadas pelas antenas e atravessaram o novo elemento que voltou a captar a corrente, fazendo com que reiniciasse seu ciclo. Anne sabia que esses processo poderia desenvolver-se por vinte segundos. Só após teria início uma reação irreversível em cadeia. Ninguém escaparia a ela se o único caminho da salvação não fosse utilizado em tempo.
Voltou-se e dirigiu os olhos para a pesada porta de chumbo. A energia invisível de seu espírito atravessou o metal e empurrou o trinco do lado de fora. Ninguém poderia abrir a porta do lado de dentro. Todos se encontravam presos num inferno que logo desencadearia suas fúrias.
Restavam-lhes vinte segundos, nem um segundo a mais.
O professor Lehmann virou-se num movimento instantâneo. Por um instante perdeu o autocontrole, quando viu que a chave deslizou para a posição vinte, como que movida por mão invisível. Segundos preciosos foram perdidos, antes que pudesse retirar as informações necessárias que se encontravam armazenadas na memória. Ficou sabendo que dispunha de vinte segundos. Mas antes que pudesse saltar para junto do quadro de comando e colocar a chave numa posição segura, o circuito elétrico esfacelou-se sob o efeito da sobrecarga. Faíscas saltavam e, formando raios fulminantes, passavam por cima dos fusíveis destruídos. Lehmann, apavorado, recuou ao ver que a chave se deformava, derretida pelo calor imenso. O cheiro acre da borracha queimada e do metal derretido queimava-lhe o nariz. Um cheiro de ozônio enchia o ar.
Li permanecia imóvel. Palestrou apressadamente com Lehmann que, todo confuso, não lhe dava atenção. Ainda procurava a solução do enigma da chave deslocada por uma mão invisível. Não chegou a qualquer resultado. Levou algum tempo para compreender que só a fuga precipitada poderia salvá-lo. Nem se lembrou de que ainda poderia dispor de cinco segundos para retirar-se em boa forma.
Não conseguiu abrir a pesada porta de chumbo.
Quinze segundos se tinham passado. A catástrofe parecia inevitável.
Dezesseis segundos. Era tarde para abrir o caminho que conduzia a uma nova dimensão. Os DI sabiam que não lhes restava outra alternativa senão abandonar os corpos humanos, se não quisessem perecer com eles. Retiraram-se sem os necessários preparativos, transportando-se violentamente para o mundo reservado aos intelectos desmaterializados. Os corpos inanimados ficaram para trás. Imobilizados, aguardaram que seus donos retornassem. Mas isso só aconteceria no vigésimo primeiro segundo. E então seria tarde.
John Marshall fez um sinal a Tako. O japonês desmaterializou-se e desapareceu. Inseriu-se no fluxo imaterial dos fugitivos, deixando-se conduzir a um destino desconhecido. A perseguição foi mais fácil do que acreditaria.
Dezessete segundos.
Anne Sloane concentrou-se na chave incandescente. Empenhou todas as reservas de energia para recolocá-la na posição inicial. Não teve êxito. Alguns pingos de metal derretido haviam caído e endurecido. Sua força não foi suficiente para vencer o obstáculo. Não compreendeu. Sabia que seu espírito era capaz de mover toneladas, mas viu-se obrigada a entregar os pontos diante de uma chavezinha. O esforço fora excessivo; sentia-se esgotada.
Dezoito segundos.
— Ellert, olhe a chave. Não consigo movê-la.
Dezenove segundos. Um segundo separava-os da eternidade.
Ellert agiu imediatamente. Saltou para junto do quadro de comando e procurou forçar a chave com todo o peso de seu corpo. Alguma coisa chiou; a pressão súbita rompeu os metais fundidos. Num movimento leve a chave retornou à posição zero. O circuito elétrico, cuja intensidade ia diminuindo, encontrou um caminho mais fácil, que não o obrigava a percorrer os condutos interrompidos em vários pontos. A faísca elétrica branco-azulada desprendeu-se de um ponto brilhante e desapareceu no corpo de Ellert.
O teletemporador caiu ao solo. O toco de seu braço queimado espalhava um cheiro horrível.
A catástrofe fora evitada.
A chave voltara à posição zero antes que decorressem vinte segundos.
No vigésimo primeiro segundo Lehmann e Li começaram a mover-se. A vida retornou aos seus corpos. Estupefatos, lançaram os olhos em torno. Maior foi o espanto de Li, que nunca estivera num centro de pesquisas como aquele. Reconheceu John Marshall e Anne Sloane. Logo viu Ernst Ellert, que jazia inerme. Abaixou-se instintivamente, embora não compreendesse nada do que estava acontecendo.
A reação de Lehmann foi diferente.
Não sabia explicar como tinha sido transportado tão de repente de junto do seu tabuleiro de xadrez para aquele lugar, mas reconheceu o local em que costumava trabalhar. Tinha conhecimento da experiência que preparara por tanto tempo. E conhecia John Marshall.
— O que houve? — perguntou com a voz tranqüila. — Não me lembro...
— Deixemos isso para mais tarde, professor — interrompeu John. — Aconteceu muita coisa. Você saberá. No momento temos coisa mais importante a fazer. Existe algum perigo, Lehmann? O bloco que se encontra sob as antenas ficou exposto durante dezenove segundos às radiações de intensidade máxima. Isso dará origem a uma reação em cadeia?
Lehmann fitou-o estupefato.
— Dezenove segundos na posição vinte? Quem deu ordens para fazer uma coisa dessas?
— Responda à minha pergunta, professor.
Ainda estarrecido, Lehmann sacudiu a cabeça.
— O limite de estabilidade fica em pelo menos vinte segundos.
— Muito bem. Nesse caso temos tempo para cuidar de Ellert. Anne, vá buscar um médico.
O Dr. Fleet parecia ser dotado dum sexto sentido. Mal Anne Sloane afastou o fecho da porta de chumbo, o médico precipitou-se para o interior da sala dos reatores.
— Dizem que os instrumentos de medição registraram grandes oscilações da corrente...
— Um dos homens foi imprudente — interrompeu-o John Marshall. — A corrente passou pelo seu corpo.
Ellert não se mexia mais. O teletemporador jazia estendido no chão. Só agora notaram que seu braço direito fora destruído pelas queimaduras até a altura do cotovelo.
A lesão não era mortal. A não ser que o choque elétrico...
O Dr. Fleet inclinou-se sobre Ellert e começou a examiná-lo. John explicou ao professor estupefato o que havia ocorrido. Li escutava com uma expressão de dúvida no rosto. Não compreendia mais nada.
Anne Sloane encontrava-se perto do Dr. Fleet, numa atitude de expectativa. Sentia-se responsável pelo que acontecera a Ellert. Se não tivesse falhado, tudo teria sido diferente. Ainda não sabia explicar por que sua energia telecinética não conseguira mover a chave. Será que se distraíra por causa do nervosismo? O Dr. Fleet ergueu-se.
— É estranho! — resmungou com a voz entrecortada. — Este homem está vivo.
John Marshall voltou-se. Anne Sloane disse:
— Está vivo. Graças a Deus! Não vejo nada de estranho nisso.
— Foram dez mil volts! — ponderou Lehmann. Fitou o corpo imóvel de Ellert. — É muito estranho que tenha resistido a isso.
O Dr. Fleet sacudiu a cabeça.
— Você não compreendeu bem. O homem está vivo, isso é uma verdade biológica. Mas sob o ponto de vista biológico também está morto.
— Um homem não pode estar vivo e morto ao mesmo tempo — disse o professor Lehmann, que sentiu despertar o interesse científico, que lhe fez esquecer o que havia acontecido. — Isso seria um paradoxo.
— Pelas leis da lógica você tem razão — reconheceu o médico. Percebia-se que procurava disfarçar a confusão em que se encontrava. — Mas será que aquilo que está acontecendo atualmente ainda tem algo a ver com a lógica? Estes invasores podem ser conciliados com ela? Não vêm de um universo que subverte nossas leis naturais? Não estou nada admirado em ter diante de mim um morto vivo.
— O que lhe deu essa idéia?
O Dr. Fleet apontou para Ernst Ellert, que continuava imóvel no chão.
— Este homem não respira e as pulsações de seu coração cessaram. O sangue está parado em suas veias. Há quanto tempo aconteceu?
John olhou para o relógio.
— Faz cerca de dez minutos.
— A temperatura do sangue já deveria ter baixado. Mas ainda não aconteceu nada disso. Aposto que amanhã a temperatura de seu corpo ainda será de trinta e sete graus, talvez um pouquinho menos.
— Mas isso é...
— Sinto não poder dar-lhe qualquer explicação. Só posso constatar o fato. Ellert não está morto, mas também não está vivo. Parece que seu espírito abandonou o corpo.
John Marshall olhou para Anne Sloane. Entre os presentes só ela, Li e ele mesmo conheciam as condições de Ellert. Quem sabe se o teleportador não efetuara um salto no tempo, a fim de salvar a vida. Quando retornasse...
— Acho que Perry Rhodan dará a última palavra — interveio Anne Sloane. — Avisarei a ele imediatamente do que ocorreu.
O professor Lehmann tirou os olhos de Ellert.
— O que houve com os DI que fugiram dos nossos corpos?
— Logo saberemos — respondeu John Marshall e saiu em companhia de Li Shai-tung e Anne Sloane. O Dr. Fleet permaneceu em companhia do professor Lehmann, que estava muito indeciso.
Tako Kakuta foi arrastado num verdadeiro torvelinho.
Sentiu a corrente em que se encontrava. Era a primeira vez que tomava consciência do estado que das outras vezes só durara uma fração de segundo, e que transferia seu corpo desmaterializado de um lugar para outro. Não via nem ouvia nada, apenas sentia.
Talvez estivesse escuro em torno dele, e por isso não enxergasse. Não teve muito tempo para refletir sobre o estranho fenômeno, pois voltou a materializar-se.
Pelos seus cálculos tinham-se passado cinco segundos.
Ainda era escuro, mas sentia o corpo. Encontrava-se em meio a uma escuridão que se ia desvanecendo aos poucos. O brilho débil parecia vir das paredes que o cercavam. Devia encontrar-se num salão. A temperatura era fresca.
Alguma coisa se moveu bem diante de seus pés. Seus olhos, que já se haviam acostumado à semi-escuridão, reconheceram os objetos de formato alongado que jaziam sobre o chão de rocha.
Levou alguns segundos até que a certeza o penetrasse como um choque.
O que via diante dele era a longa fileira dos corpos sem espíritos dos membros do exército de invasão. Só dois deles deviam ter sido reativados, os que pertenciam aos seres que ainda há pouco ocupavam os corpos do professor Lehmann e do tenente Li.
Não havia um segundo a perder.
Tako desmaterializou-se e logo se viu em meio a uma planície pedregosa. Os cumes do Himalaia pareciam cumprimentá-lo de longe. Procurou avaliar a direção do salto bem calculado que acabara de dar. O salão em que se encontravam os corpos dos DI ficava a cinco quilômetros dali, no rumo exato do sul. Naquele ponto havia um monte muito alto, mas bastante maciço.
Era uma caverna natural. Bem que poderia ter imaginado.
Pôs-se a manipular alguma coisa no pulso. Alguns segundos depois ouviu a voz de Rhodan:
— Então nossa suposição era exata. Fica no Tibet. Qual é sua posição, Tako? Encontro-me na Good Hope, a dez quilômetros acima do Himalaia.
— Não sei, Rhodan. Não poderia usar o radiogoniômetro?
— Um instante. Bell está ligando as telas. Dentro de poucos segundos deveremos localizá-lo. Encontrou a base?
— Tudo saiu de acordo com as previsões de Ellert. Por que ele não veio comigo?
Depois de um breve silêncio Perry falou:
— Houve um imprevisto. Ellert sofreu uma forte descarga elétrica. Está morto. Seu corpo está a caminho da base de Gobi.
Tako não respondeu. Esperou. Finalmente Perry falou:
— Talvez tenha acontecido coisa diferente, e Ellert nem esteja morto. Ainda não sabemos. Bell acaba de localizar você. Estamos a duzentos quilômetros daí. Nos encontraremos em poucos minutos.
O japonês deu alguns passos e sentou num grande bloco de pedra. O crepúsculo ia descendo no poente; dali a pouco escureceria. Não sabia quais eram os planos de Perry Rhodan. A defesa contra a invasão transformara-se num empreendimento mundial. Um fator integrava-se no outro, e ninguém sabia qual era o papel que desempenhava. Só um homem possuía a visão global. Era Perry Rhodan.
A gigantesca nave pousou praticamente sem ruído. O raio antigravitacional incidiu em Tako e elevou-o antes que tivesse tempo de teleportar-se para o interior da nave. Numa espécie de jocosidade permitiu que Bell o transportasse para a sala de comando por esse meio convencional. Perry Rhodan já o esperava.
— Graças a você localizamos a base do inimigo, Tako. Agora só falta colocá-la fora de combate. Thora concordou em prestar-nos ajuda irrestrita. Ela sente um medo terrível dos Deformadores Individuais. Compreendo por quê. Crest está em sua companhia, na sala de comando de fogo. Eu assumi a direção e a coordenação. Onde fica a caverna?
O japonês apontou para a tela.
— É naquele morro achatado. Fica uns vinte metros abaixo da superfície.
— Uma caverna natural no Himalaia! — disse Perry com um sorriso amargo. — Logo devia ter pensado nisso. Esses tipos só poderiam ter escolhido um lugar desses.
A Good Hope ergueu-se, livre da força da gravidade, e flutuou em direção ao morro. Parou a pouca altura acima dele. Perry transmitiu algumas instruções a Thora. Depois dirigiu-se a Tako e Bell, que se encontravam na soleira da porta, numa atitude de expectativa.
— Dentro de trinta segundos iniciaremos o ataque. Thora evaporará a parte do morro que fica acima da caverna. Se tivermos sorte localizaremos a entrada, senão os cadáveres dos DI serão queimados. Gostaria de pegar alguns deles vivos.
Tako sacudiu a cabeça.
— Isso não é possível. Eles se apossariam imediatamente do nosso corpo.
Perry Rhodan concluiu o conselho de guerra com estas palavras:
— Se utilizar o projetor mental, não.
O projetor mental era uma das armas mais inofensivas dos arcônidas. Tratava-se de um aparelho capaz de impor a qualquer homem a vontade de seu possuidor e de transmitir-lhe ordens pós-hipnóticas, que são executadas sem a menor resistência. Perry fazia votos de que seus efeitos também atingissem os DI.
Subitamente uma forte ventania desabou sobre o cume do morro. As massas de ar frio precipitaram-se de todos os lados para a zona de baixa pressão gerada pelo calor, sendo arrastadas para cima. A pedra nua desmanchou-se em gases invisíveis e subiu para o alto. A eficácia dos raios energéticos era tamanha que a transição do estado sólido para o gasoso se fazia com tal rapidez que não havia tempo de passar pelo estado líquido.
A uma profundidade de vinte metros surgiu uma abertura.
— É o acesso à caverna! — exclamou Perry e mandou cessar o ataque de radiações. A nave desceu. Pousou. Alguns segundos depois a comporta abriu-se e Perry, Bell, Crest e Thora correram para fora. Tako já os esperava. Preferira recorrer ao transporte mais confortável, o da teleportação.
A limitação do campo de ação do desagregador energético era tão nítida que já não se sentia quase nada do calor. O japonês desapareceu por um segundo e retornou.
— É aqui — anunciou. — A poucos metros de distância. Apresse-se Rhodan. Dois desses seres começam a se mover. São horríveis.
Perry Rhodan correu na frente dos outros. O bastão prateado do projetor mental reluzia em sua mão. Abaixou-se para penetrar na abertura e continuou a avançar. Os outros seguiram-no mais devagar. Especialmente Bell sentiu dificuldade em evitar que seus ombros largos colidissem com a rocha. Crest e Thora mantiveram-se mais atrás.
De repente a caverna abriu-se diante de Perry. Seus olhos logo se acostumaram à semi-escuridão. As paredes emitiam uma ligeira fosforescência. Sentiu-se uma corrente de ar, vinda não se sabe de onde. Devia haver outra entrada para a caverna.
Bell parou pouco atrás de Perry. Acendeu a lanterna que trazia na mão e iluminou a grande caverna. A primeira coisa que viram foi uma fileira de corpos imóveis, pouco maiores que os dos homens, mas completamente diferentes. O formato de inseto era inconfundível.
De repente Bell soltou um grito de pavor. A mão que segurava a lanterna começou a tremer.
Perry teve de esforçar-se para superar o choque no espaço de poucos segundos. Estava preparado para um encontro pessoal com os Deformadores Individuais, mas a realidade era muito pior que a imaginação.
Bem à frente dele, a menos de dois metros de distância, estavam dois dos monstros extraterrenos, cujo objetivo era a conquista da Terra. Não, nem era isso. Destruiriam a Terra sem a menor contemplação, já que não precisavam dela. Simplesmente não toleravam a existência de qualquer outra raça. Seus atos eram comandados pelo instinto da destruição.
As duas feras tinham o aspecto de gigantescas vespas. Havia o estreitamento na região da cintura, e os seis membros também se encontravam presentes. Dois deles serviam de pernas, pois mantinham a posição ereta. Os grandes olhos emitiam um brilho traiçoeiro. Duas antenas brilhantes executavam movimentos nervosos por cima da cabeça pontuda. A couraça que cobria o peito parecia dura e firme.
Perry não refletiu.
Dirigiu o projetor mental contra os dois monstros e ordenou-lhes que se pusessem de costas para ele. Esperava que a tentativa fosse coroada de êxito, mas não pôde deixar de suspirar aliviado quando notou que os dois DI executaram a ordem sem hesitar. Isso significava que sua estrutura cerebral era semelhante à dos homens. Essa circunstância representava o fator decisivo na guerra entre os homens e os Deformadores Individuais.
— Saiam da caverna e obedeçam às ordens de Tako Kakuta — continuou, transmitindo logo suas instruções ao japonês. — Esperem lá fora até que eu chegue.
Quando Tako passou perto de Bell com os dois inimigos reduzidos à impotência, o engenheiro geralmente destemido não pôde evitar um calafrio. Teve a impressão de que a morte acabara de roçar em seu corpo.
— Nunca conseguimos aproximar-nos tanto destes seres — disse Crest numa débil tentativa de justificar os fracassos de sua raça na luta contra os DI. — Nunca acreditamos que o projetor mental pudesse agir sobre eles.
— Pois eu acreditei, mas não sabia — disse Perry, ressaltando uma diferença fundamental entre os terrenos e os arcônidas. — A transformação da crença em saber exige certa dose de energia, de que os arcônidas não dispõem mais.
Thora lançou um olhar de nojo para a fileira de corpos imóveis. O radiador energético tremia em sua mão. Perry adivinhou suas intenções.
— Ainda não, Thora — advertiu. — Com isso criaríamos um perigo tremendo. Se destruirmos estes corpos, em número de vinte e dois, tangeremos vinte e dois homens desmaterializados para o nada. Só poderão retornar aos seus corpos se os DI os abandonarem. E estes nunca fariam isso, pois não teriam outro lugar para abrigar-se. Só poderemos destruir o corpo de um DI quando seu espírito tiver retornado a ele. Quando isso acontecer, não deveremos perder tempo.
— Vinte e dois homens? — respondeu Thora, esticando as palavras. — Será que uma batalha ganha não vale vinte e dois homens?
— Da minha parte não hesitaria em sacrificá-los — respondeu Perry em tom soturno. — Mas não se trata disso. E não há necessidade de praticarmos um ato dessa espécie. Quero impedir que vinte e dois DI sem corpo façam das suas sobre a Terra. Compreendeu? Alguém deve ficar aqui, para observar o retorno dos DI. Assim que perceber que um destes corpos se move, deve destruí-lo.
Thora confirmou com um lento aceno de cabeça. Estava compreendendo. A expressão de nojo apagou-se em seus olhos, sendo substituída por algo diferente, que Perry já havia observado nela. Era uma espécie de admiração e respeito.
“Respeito por quem?”, perguntou Perry de si para si. Dele mesmo ou da humanidade? Isso seria um progresso enorme, muito maior que aquele representado pela batalha ganha contra os invasores. Mas era possível que a luz pouco intensa da caverna produzisse uma ilusão. De qualquer maneira era bem possível que Thora modificasse sua opinião. Afinal, a retificação de um erro constitui privilégio das criaturas inteligentes, e não havia dúvida de que Thora era inteligente.
— Quem vai ficar aqui? — perguntou em tom hesitante.
Perry sorriu.
— Acho que Bell seria o homem indicado.
Não pôde prosseguir. Bell soltou um grito apavorante e apontou para um dos vultos que começava a mover-se. O ser monstruoso ergueu-se ligeiramente e seus olhos brilhantes lançaram um olhar inexpressivo para a luz ofuscante da lanterna trêmula de Bell. Perry tocou no braço de Thora.
— Se desejar pode destruí-lo, Thora. Lembre-se de que os DI são inimigos mortais de sua raça. Se não conseguirmos detê-los, acabarão penetrando em todo o império dos arcônidas para derrubá-los de sua posição de mando. Não hesite em matar esse monstro. Há poucos minutos você não desejava outra coisa.
Num gesto lento a arcônida ergueu a arma e dirigiu-a para a vespa gigante cujos olhos negros fitavam a luz com uma expressão estúpida. A visão transmitia tanto pavor e perigo que Thora não demorou em transformar sua intenção em realidade.
O raio ligeiramente violeta da arma, que não fora regulada para a potência plena, atingiu o corpo do monstro. A dor súbita arrancou o DI da letargia inicial. Mas qualquer iniciativa teria de vir tarde. O monstro nem teve tempo de transmitir uma mensagem de advertência à nave oval estacionada além da atmosfera terrestre.
Um furo incandescente surgiu na couraça do peito e o corpo insetiforme desabou. Thora baixou o radiador.
— Então? — perguntou Perry em tom indiferente.
— Foi... foi horrível — confessou Thora, entregando a arma a Perry. — Não conseguiria fazer isso mais uma vez.
— Pois isso terá de ser feito mais vinte e uma vezes — disse Perry, e passou a arma a Bell, que a recebeu com um visível desagrado. — Bell, você sabe o que tem que fazer.
— Não fico aqui sozinho! — protestou Bell.
— Tako ficará com você — tranqüilizou-o Perry.
— É um consolo muito fraco — resmungou Bell. — Quando ele sentir o chão esquentar embaixo dos pés, dará um dos seus pulos para pôr-se do lado de fora.
Pegou o radiador com uma cara furiosa. Na outra mão segurou a lanterna, deixando a luz deslizar sobre os insetos imóveis.
— Nossa missão ainda não está concluída — disse Perry, antes de sair da caverna. — Ainda existem pelo menos vinte e um DI investidos nos corpos de homens influentes, que estão empenhados em atirar a Terra no caos e na destruição. Temos de localizá-los. Uma vez que conhecemos todos, não haverá problema. Acho que poderei vir apanhá-lo hoje de noite ou amanhã de manhã, Bell. Vou transmitir instruções a Mercant e ao exército dos mutantes. Divirta-se! Tako o ajudará a espantar o tédio.
No instante em que Ernest Ellert tocou a chave fatídica, uma coisa estranha aconteceu. O mais estranho foi que percebeu tudo, pois não perdeu a consciência por um segundo sequer.
Uma dor terrível atravessou seu corpo, mas logo passou. A sala mergulhou num vazio sem fim. Reflexos coloridos rodeavam-no, aproximando-se e afastando-se. Sons indefinidos, abstratos e pouco melódicos, chegaram-lhe aos ouvidos — ou aquilo que os substituía. As impressões sucediam-se numa seqüência rítmica, como se ele tivesse penetrado nas pulsações do universo.
Acima e abaixo dele só existia o vazio. Não encontrou nada em que pudesse apoiar-se. Teve a impressão de que a grande distância passava um sol cercado por planetas turbilhonantes. Vias lácteas giravam lentamente em torno do seu próprio eixo e desapareciam no espaço.
Numa velocidade inconcebível Ernst Ellert atravessava o fluxo do tempo. Perdera todo o controle sobre o mesmo. Numa queda desabalada precipitou-se no infinito, que nada tinha a ver com a matéria. O presente ficou atrás dele tal qual a Terra fica atrás de um raio de radar que corre para o espaço. Apenas a uma velocidade muito maior.
Não havia nada que pudesse deter a queda para o futuro.
Subitamente sentiu chão firme sob os pés. A materialização foi tão abrupta e inesperada que caiu ao solo e perdeu a consciência. Nunca saberia dizer por quanto tempo ficou estendido. Mas ao acordar sentiu seu corpo. Teria voltado ao presente, ou será que transportara o corpo para o futuro? Logo abandonou a indagação.
Milhões de anos deviam ter decorrido, pois assistira à formação e à destruição de segmentos completos do universo. Nunca poderia viver tanto.
Mas possuía um corpo.
Sentiu a pelica sedosa e assustou-se. Quando resolveu abrir os olhos, encontrou a confirmação das suposições mais ousadas. Seu espírito, atirado para o futuro mais longínquo, encontrara um novo abrigo. Mas não fora acolhido num corpo humano.
O monstro possuía quatro pernas e um grau reduzido de inteligência, que cabia facilmente naquele crânio, ao lado do intelecto de Ellert. Um pêlo macio cobria o corpo.
“Sou um urso”, pensou Ellert, todo confuso. Mas logo reconheceu seu engano.
Subitamente uma voz fez-se ouvir dentro dele.
— Sou Gorx — disse a voz em tom apático. — Quem é você?
Ellert levou um tremendo susto, mas seu pensamento logo respondeu:
— Sou Ellert. Você não se admira de me ver aqui?
— Por quê? Não é a primeira vez que recebemos a visita de gente vinda do universo.
— Onde estou?
— Nosso mundo é chamado de Gorx — foi a resposta.
— E como é o nome do sol de vocês?
— Gorx.
Ellert não compreendia.
— Aqui tudo se chama de Gorx?
— Tudo se chama de Gorx, porque tudo é Gorx.
Esta explicação levou Ellert à beira da loucura. Como poderia saber para onde tinha sido tangido pelo destino? Ou seria esta a Terra que existiria dentro de milhões de anos? Devia apurar ao menos isso. Mas desistiu antes de tentar. Sabia que o choque produzido pela morte orgânica não o tinha atirado apenas através da dimensão do tempo, mas também através do espaço.
Concentrou-se e abandonou o corpo de Gorx.
Viu abaixo de si um ser desajeitado que rastejava sobre o chão granítico. Na parede vertical da rocha havia entrada negras que davam para cavernas.
Ali não obteria resposta às suas indagações. Ali não!
Voltou a concentrar-se. O mundo desapareceu aos seus pés, cedendo lugar ao infinito. Voltou a precipitar-se pela torrente do tempo, desta vez para trás. Quando parou, flutuava no nada.
Como poderia orientar-se?
Não havia nenhum ponto de referência. Não passava de uma minúscula gota no oceano, e deveria encontrar um ponto bem definido em qualquer parte do litoral de um dos seis continentes, e isso num instante determinado, medido em termos de segundos.
O que importava não era tanto a questão de onde se encontrava, mas a pergunta angustiante de quando se encontrava.
E não havia nenhuma resposta a esta pergunta.
Talvez um dia a eternidade lhe daria essa resposta.
E foi assim que Ernest Ellert, o prisioneiro da eternidade, começou sua busca de milhões de anos, à procura do presente.
Os robôs tinham terminado o trabalho. O poço de cinqüenta metros de profundidade penetrava no solo pedregoso do deserto de Gobi. A matéria endurecida nas paredes do poço, que tinha a consistência do aço, protegeria o mesmo para todo o sempre contra a ação das intempéries. O lençol subterrâneo de água jamais penetraria no mesmo. No fundo do poço Rhodan mandou escavar uma câmara retangular, onde foram armazenadas reservas de oxigênio, material de informações, instruções e câmaras reservatórios de energia. Um dispositivo automático de alarma garantiria a pronta atuação em caso de necessidade.
No centro da câmara havia um leito. Um dispositivo de alarma ligado a ele tinha o aspecto de um mecanismo complicado. Esse mecanismo, uma vez ligado, entraria em ação assim que no interior da câmara um homem começasse a respirar.
Esse homem era Ernst Ellert.
Colocaram-no sob uma série de instrumentos eletrônicos. Grampos metálicos envolviam os tornozelos e o pulso esquerdo. Um capacete cobria a cabeça. Perto da sua boca havia um tipo de espelho conectado com células anímicas. Qualquer sopro da boca bastaria para acionar todo o mecanismo.
Rhodan erigira um mausoléu para Ellert como jamais homem algum o havia recebido. Mas desconfiava de que Ellert não era um simples mortal na acepção comum do termo. Bem no seu íntimo nutria a convicção de que algum dia, num futuro próximo ou distante, ainda se encontraria com o teletemporador.
Era bem possível que Ellert retornasse espontaneamente. Se isso acontecesse, encontraria seu corpo intacto. Tanto o Dr. Fleet como o Dr. Manoli afirmavam que esse corpo jamais entraria em decomposição. Era verdade que todas as funções daquele organismo haviam cessado, mas a temperatura se mantinha constante ao nível de vinte e cinco graus centígrados. Não baixou mais que isso.
Depois de lançar um último olhar sobre Ellert, que jazia imóvel, Rhodan mandou que a câmara funerária fosse fechada. Dez minutos depois o poço encheu-se de concreto, que logo endureceu. Não havia nada neste mundo que pudesse perturbar o repouso do morto. Nada a não ser o dispositivo aparentemente inofensivo preso ao teto da câmara, pronto para ser acionado a qualquer momento. Se Ellert despertasse, poderia libertar-se dentro de meia hora. O que encontraria quando isso acontecesse? Uma Terra que descrevesse sua órbita nas proximidades de um sol rubro no qual poderia precipitar-se? Ou um planeta no qual uma invasão do espaço houvesse eliminado toda forma de vida?
Era possível que jamais houvesse uma resposta.
Com o rosto pensativo, Perry Rhodan contemplou os robôs que colocaram um bloco em forma de pirâmide no lugar em que se encontrava o túmulo. Lá no horizonte luzia a esfera gigantesca da Good Hope.
Quando Bell chegou no seu planador a Gobi City, nome que dava à base, suas feições eram sombrias e fechadas. Nas últimas vinte e quatro horas extinguira a vida de vinte e um seres. Procurava tranqüilizar sua consciência, lembrando que não se tratava de vidas humanas. Mas eram vidas. Teria o direito de destruí-los?
Tivera tempo de discutir o assunto com Tako, mas não chegaram a qualquer conclusão definida. Sem dúvida haviam agido em legítima defesa. Se não tivessem destruído rapidamente os DI que retornavam ao seu corpo, eles teriam alarmado a nave oval que realizava evoluções bem acima da Terra. Ou então se teriam apossado dele e de Tako.
Rhodan não tinha razão. Não convinha usar a menor contemplação, e a mesma se tornaria muito perigosa. Ao atacarem a Terra os invasores assumiram um risco. Uma vez que foram derrotados, deviam suportar as conseqüências. Nem por isso teriam que desistir da luta.
A nave oval causava preocupações a Bell. Perry Rhodan tinha sua opinião a respeito:
— Com o projetor mental consegui reduzir os prisioneiros a um estado de sono hipnótico. Manoli e Haggard examinaram-nos. Pelo que soube, os dois médicos descobriram diferenças extraordinárias em relação ao corpo humano. Os DI não conhecem o uso da língua no sentido humano.
São telepatas. Uma parte considerável de seu cérebro consiste num complicado emissor e receptor orgânico. Receamos que estejam em condições de manter contato a distância de muitos anos-luz.
— Conseguiu falar com eles? Em sentido figurado, quero dizer.
— Consegui manter contato com esses seres através de Marshall.
— Qual foi o resultado? — perguntou Bell em tom de expectativa.
— Não conseguimos muita coisa — respondeu Perry. — Eles são estúpidos. Só o projetor mental fez com que relatassem algo, mas não poderíamos descobrir mais do que eles sabem. Pretendiam destruir a Terra. É isso mesmo: tinham a intenção de destruir nosso planeta. Não têm qualquer interesse político ou econômico por nós, e muito menos foram guiados por um motivo desse tipo. Apenas não toleram quem quer que seja ao seu lado. É uma concepção muito simples e drástica, não é? Não precisamos carregar nenhum escrúpulo moral se resolvermos golpear com a mesma violência. Serão eles ou nós, a questão é esta.
— Mais alguma coisa?
— Fiz com que se colocassem em contato com o comandante de sua nave, evidentemente sob vigilância contínua, para que o informassem sobre a invasão malograda. Marshall inseriu-se na conversa telepática e entendeu todos os detalhes. O comandante ordenou-lhes que se libertassem imediatamente. Quando lhe disseram que isso era impossível em virtude da influência hipnótica a que estavam submetidos, ordenou-lhes que se suicidassem. Naturalmente impedi isso através de uma contra-ordem imediata. Dessa forma ainda consegui descobrir que a nave deles pousou em algum ponto na Lua e pretende permanecer por lá. Os DI aguardam reforços. Acho que seria inútil procurá-los na Lua. Se tiverem o cuidado de não se expor, nunca os encontraremos. Mas jamais devemos reduzir nossa vigilância. De qualquer maneira, acredito que por enquanto eles nos deixarão em paz.
— Será a calma antes da tempestade — ponderou Bell. Evidentemente não estava satisfeito com o resultado da batalha. No seu entender a vitória não fora completa. — Um belo dia ajustarão contas conosco.
— Até lá teremos aperfeiçoado nossas armas defensivas e apurado nossos métodos de luta. Não se preocupe, Bell. Ellert apontou-nos o caminho certo de lidar com eles. Antes de mais nada devemos observar esta regra: quem encontrar um DI na sua forma natural deverá matá-lo imediatamente.
Bell inclinou a cabeça.
— Quem vai matar os dois prisioneiros?
Perry Rhodan deu um sorriso indiferente.
— Usei o projetor mental para evitar a execução da última ordem do comandante. Assim que terminou o interrogatório, libertei os dois.
— E então?
— Executaram prontamente a ordem de seu comandante. Sabe que num ponto têm uma semelhança extraordinária com as vespas? Possuem um ferrão muito venenoso...
Mercant só abandonava sua fortaleza subterrânea da Groenlândia em caso de necessidade extrema, e isso mesmo a contragosto. Geralmente a saída daquele abrigo seguro prenunciava acontecimentos bastante desagradáveis.
Hoje o caso era diferente. Ao entrar no avião pequeno, mas muito veloz e transmitir suas instruções ao piloto, tinha a impressão de estar partindo para uma viagem de férias. Esse sentimento não o abandonou quando andou pela Quinta Avenida de Nova Iorque na direção norte e parou em meio ao torvelinho de gente, para contemplar o arranha-céu de vinte e dois andares que se encontrava do lado oposto da rua.
Entre o sétimo e o nono andar viam-se três letras gigantescas, G, C e C. Então a sede da General Cosmic Company ficava atrás dessas janelas? Se quisesse ser sincero consigo mesmo, Mercant teria de reconhecer que se sentia decepcionado. Esperava que Rhodan ao menos já tivesse adquirido o edifício inteiro. Bem, talvez seus conhecimentos em questões de negócios fossem muito reduzidos para que pudesse formular qualquer juízo a este respeito.
No elevador a sensação de férias foi substituída por uma pressão desagradável no estômago. Deu-se conta de que mais uma vez teria de carregar a responsabilidade em dois ombros diferentes. Bem no íntimo sentia-se ligado aos princípios e objetivos de Perry Rhodan, mas seu dever profissional obrigava-o a cumprir a missão que lhe fora confiada pelo governo de seu país, fazendo uma visita à GCC, que correspondia a um ato de espionagem.
Quando disse seu nome à secretária Lawrence, o brilho amável que surgiu nos olhos da jovem quase o fez vacilar na execução do seu projeto. Mas logo se lembrou de que o bom êxito do empreendimento só dependia dele. Se não gostasse ou alguma coisa o contrariasse, diria a verdade a Homer G. Adams, ou de preferência ao próprio Rhodan.
O diretor da poderosa empresa era um homem magro e pequeno, que recebeu Mercant com uma cortesia extrema. A essa hora ninguém desconfiaria de que ele saíra recentemente de uma prisão inglesa, onde fora parar em virtude das enormes falcatruas que praticou. Era o que dizia a sentença condenatória.
Mercant apertou a mão de Homer e sentou na poltrona que este lhe ofereceu. Aceitou o charuto e agradeceu, embora detestasse charutos. Homer reclinou-se confortavelmente.
— O que me dá o prazer dessa visita inesperada, Mercant? Foi o chefe que o enviou?
São três coisas ao mesmo tempo, pensou Mercant, admirando a formulação hábil que Adams sabia dar às perguntas. De início perguntara sobre o motivo da visita. Ao mesmo tempo Homer exprimiu sua estranheza porque Mercant não se fizera anunciar em tempo. Por fim havia uma pergunta-armadilha: se Rhodan estava a par do encontro. Era claro que Rhodan teria avisado Homer se tivesse conhecimento da visita. Mercant sentiu que teria de usar muita cautela para não cair em uma armadilha.
— Rhodan não sabe que estou aqui — disse, mantendo-se fiel à verdade. — Vim a pedido do governo de meu país. Gostaria de receber algumas informações. — Era conveniente mostrar logo as cartas. Afinal, o governo do Bloco Ocidental e Perry Rhodan já não se encontravam em estado de guerra. — Trata-se da construção da frota espacial conjunta.
Homer ajustou os óculos de aros de ouro, que lhe davam um aspecto grotesco e antiquado.
— A frota espacial? Acho que o tema já foi vasculhado pelos peritos. Para ser franco, não entendo muito do assunto. Só estou interessado nos aspectos financeiros do projeto.
— Não vim para importuná-lo com perguntas sobre as minúcias do mecanismo propulsor — disse Mercant com um sorriso condescendente. — Este ponto não me interessa, porque sobre essa matéria devo entender tanto quanto você. Como sabe, nosso governo contribuiu com a importância de dezoito bilhões de dólares para o financiamento das fases iniciais do projeto. Em quanto importou a contribuição dos outros governos?
Homer ergueu as sobrancelhas.
— O capital total atinge a cifra de setenta bilhões de dólares — disse no tom de quem fala na importância de cinqüenta centavos.
Mercant não conseguiu disfarçar o espanto.
— Tanto? — disse em tom admirado. — Não esperávamos.
— Eu também não esperava — confessou Homer sem rodeios. — O fato é que a execução do projeto já foi iniciada. Em todo mundo estão surgindo novas usinas e centros de produção. Nossos homens trabalham dia e noite nos escritórios. E ao falar em nossos homens refiro-me aos homens do Ocidente, do Oriente e da Ásia. Pela primeira vez na história os habitantes de nosso planeta estão empenhados na solução de um problema comum. A invasão dos insetos, que acaba de ser repelida, deixou patente a importância da cooperação de todos. Qualquer homem que se deixasse envolver por motivos nacionalistas, mesmo que só em pensamento, seria um criminoso perante a humanidade. A tolice de um único homem pode abalar a união que finalmente foi alcançada. De qualquer maneira alguns decênios se passarão antes que toda a desconfiança seja eliminada. Mercant, sei que você está conosco, mas acho que devia romper as últimas amarras que o constrangem a uma atitude contrária às suas próprias convicções. Compreendeu o que quero dizer?
Mercant fez que sim.
— Compreendi perfeitamente. Já falei com Rhodan sobre o assunto. Acontece que ele é de opinião que por enquanto devo permanecer no meu cargo, já que não sabemos quem o ocupará depois de mim. O mal menor sempre é preferível.
— É verdade — admitiu Homer sem pestanejar. — Mas prossigamos. Nosso complexo científico remete pedidos a todo o mundo. As grandes usinas, que em alguns casos receberam conjuntos laminadores inteiramente novos, já estão produzindo peças da futura frota espacial. Sem que o saibam, os homens estão construindo canhões de radiação. Aqui se fabrica uma parte, ali outra. Só depois de montados constituem uma arma; enquanto separadas as peças não passam de fragmentos desconexos, que ninguém consegue identificar. A mesma coisa acontece com as naves. Posso assegurar-lhe que dentro de seis meses estaremos em condições de montar em poucos dias nada menos que dez destróieres espaciais capazes de atingir a velocidade da luz. A esta altura já deve ter notado o que a colaboração de toda a humanidade pode realizar. É claro que por enquanto ninguém sabe disso, e seria conveniente que você também não passasse adiante as informações que ora lhe estou transmitindo.
Mercant respondeu com um ligeiro aceno de cabeça. Homer observava-o atentamente. Atrás dos óculos, os olhos astutos emitiram um brilho zombeteiro. Parecia ter consciência do dilema moral em que acabara de precipitar Mercant. E isso parecia dar-lhe um prazer secreto.
— Além disso fornecemos as máquinas-ferramenta que ainda não são conhecidas na Terra — prosseguiu em tom despreocupado, fornecendo informações que Mercant só esperava conseguir com grande esforço. — Elas são construídas segundo nossas instruções, em usinas situadas em outros continentes. Ainda há os materiais que Rhodan foi buscar na Lua. Como sabe, a grande nave exploradora dos arcônidas só foi destruída na parte externa. Os compartimentos de carga situados no interior dela permaneceram intactos. E é ali que se encontram os segredos da técnica dos arcônidas.
Mercant voltou a acenar com a cabeça. Homer acabara de tocar no ponto básico. Na Lua havia tesouros incomensuráveis, mas o Bloco Ocidental não dispunha de nenhuma nave com que pudesse buscá-los.
Ou será que dispunham?
Mercant sabia que no porto espacial de Nevada se desenvolvia uma atividade febril. Era a primeira vez que o serviço de segurança do general Pounder impedia a entrada até mesmo dos encarregados de Mercant. Naquele lugar se passava alguma coisa de que o mundo não devia ter conhecimento.
Subitamente tudo parecia clarear no espírito de Mercant. Raciocinou com uma rapidez incrível. Ligou sua incumbência, aparentemente inofensiva, com aquilo que Homer acabara de dizer. E compreendeu que o governo do Bloco Ocidental não cumpria o acordo celebrado com Rhodan tão estritamente como seria de esperar.
O general Pounder e o major Maurice caminhavam pelos campos de provas do porto espacial de Nevada. Aproximaram-se de um dos gigantescos pavilhões que brilhavam numa extensa fila sob o sol escaldante do meio-dia.
A atividade febril que pouco antes se notava ali, cessara quase por completo. Não se via quase ninguém. Aqueles dois homens não conseguiram fugir à impressão de serem os últimos elementos destinados a uma deportação em massa.
Era ali que fora construída a Stardust, e mais tarde o foguete que destruíra o cruzador espacial dos arcônidas estacionado na Lua.
Ao chegar à linha de montagem, Pounder percebeu que as aparências enganavam. O pavilhão não possuía uma única janela, ao contrário dos edifícios próximos, que lembravam gigantescas estufas. Ali a luz solar penetrava desimpedidamente. Mas aquele pavilhão fora isolado quase que hermeticamente do mundo exterior.
Depois de um exame demorado dos documentos, a sentinela abriu a porta apenas o necessário para que os dois homens pudessem passar.
Uma vez lá dentro, sentiram-se ofuscados por um instante. No pavilhão não havia nenhuma divisão. Abria-se diante dos dois em toda a sua extensão de duzentos metros de comprimento e quase cinqüenta de altura. Os andaimes e os guindastes permitiam o acesso a todos os pontos. As talhas transportadoras mergulharam no ligeiro declive de um túnel, que não vinha à tona do lado de fora.
Ao contrário da calma indolente que reinava no terreno do porto espacial, ali notava-se uma atividade febril. O isolamento não deixava escapar o menor ruído para o lado de fora.
Homens passavam apressadamente sem dispensar-lhes a menor atenção. Peças metálicas polidas e reluzentes transportadas em vagonetas desapareciam no interior das construções que se erguiam no centro do pavilhão. Era ali que se localizavam também os escritórios dos técnicos.
O general Pounder, que pela primeira vez levava seu ajudante àquele pavilhão, parou de repente. Maurice, que se afastara ligeiramente para dar passagem e uma pessoa, levantou os olhos. Teria parado, mesmo que Pounder não se encontrasse no seu caminho.
Lá adiante um torpedo prateado jazia em posição inclinada sobre uma rampa baixa. As vigias redondas enfileiravam-se ao longo da linha do centro, e um guindaste acabara de mergulhar as chapas de um tanque cilíndrico na escotilha de carga da parte superior.
A menos de cinqüenta metros viram a réplica exata da Stardust, a nave espacial que conduzira Perry Rhodan, o primeiro homem que pisou na Lua.
E não havia ninguém no mundo que soubesse da sua existência.
Só quatro meses mais tarde, Perry Rhodan teve certeza de que por enquanto os DI não se arriscariam a novo ataque. Quase chegara a esquecê-los, pois o mundo vivia sob o signo da General Cosmic Company. Em todos os lugares do mundo surgiam enormes fábricas que iniciavam a produção segundo as instruções dos engenheiros e técnicos em planejamento.
Homer, sentado em seu escritório de Nova Iorque, parecia uma enorme aranha envolvida na sua teia. As paredes estavam cobertas de mapas nos quais haviam sido fincadas bandeirinhas com inscrições ininteligíveis. Homer quase só vivia junto ao aparelho de rádio e ao televisor. Vez ou outra até chegava a ir para a cama com eles.
O poderio do complexo por ele levantado crescia a cada dia. Não parecia estar muito distante o dia em que um certo Benjamim Wilder anunciaria que o mundo lhe pertencia, porque ele o havia financiado. É que Benjamim Wilder estava atrás da GCC, e ninguém suspeitava de que Benjamim Wilder apenas era o nome suposto de Perry Rhodan.
Crest não chegou a entender muito bem essa evolução vertiginosa. Subestimara o dinamismo da natureza humana, embora a julgasse capaz de alguma coisa. Quando pouco antes do pôr do sol deixaram os bangalôs residenciais para respirar um pouco de ar puro, andou à frente de Rhodan quase sem dizer palavra. Bell juntou-se a eles. Também não disse muita coisa.
Num gesto quase inconsciente dirigiram seus passos para a pirâmide de três facetas que se erguia no deserto, abrigando um corpo humano que aguardava o momento de ser chamado novamente à vida.
De longe viram um vulto esbelto diante da construção alta e esguia.
Bell estreitou os olhos.
— Macacos que me mordam! — anunciou em tom ligeiramente dramático. — Alguém quer depositar flores no túmulo de nosso amigo.
Ao reconhecer o vulto, Crest fez que sim. Perry Rhodan não conseguiu reprimir uma exclamação de surpresa.
— É Thora! — disse. — O que está fazendo por aqui?
— Pergunte a ela — sugeriu Crest.
Sentia-se feliz pela distração. As conferências ininterruptas representavam uma carga pesada para seus nervos.
Thora olhou para eles. Seus olhos encontraram os de Rhodan. Pela primeira vez este não descobriu nenhum traço de ironia e desprezo nos mesmos. Neles havia uma pergunta titubeante, que talvez ela se tivesse formulado poucos instantes antes. Sentiu o embate de uma série de sensações estranhas, mas nenhuma delas era de natureza negativista.
Foi ela que rompeu o silêncio assim que os três chegaram ao lugar em que se encontrava.
— É estranho que nos encontremos aqui fora, mas talvez não seja nenhum acaso. Perry Rhodan, com você não acontece o mesmo que se dá comigo? Às vezes tenho a impressão de que Ellert ainda se encontra entre nós, invisível.
Perry respondeu com um aceno de cabeça. Não sabia explicar como também ela tivesse sentido a mesma coisa. Certa vez Bell manifestara a opinião de que o espírito de Ellert não estivesse em condições de retornar ao corpo que lhe pertencia, e por isso vagasse sem destino pela dimensão do presente. Rhodan e Crest, porém, estavam de acordo em que, se Ellert ainda existisse em estado consciente, não devia encontrar-se no presente. Quando procurou fugir à morte orgânica, o choque elétrico o atirara a uma outra dimensão, da qual não havia nenhum caminho de volta. Não havia como conjeturar sobre se essa dimensão se localizava no passado, no presente ou no futuro, mas se estivesse situado no presente. Ellert poderia ter estabelecido contato com eles. Os dons dos mutantes ofereciam possibilidades amplas para isso.
— Só em sentimento ele se encontra entre nós, Thora — disse Perry com a voz tranqüila. — Um dia o alcançaremos, se é que o fluxo do tempo não o arrastou para muito longe. Aliás, por que está interessada no destino de Ellert? Afinal, era apenas um ser humano.
Thora procurou ocultar o embaraço.
— Rhodan, o reconhecimento de um erro constitui o privilégio das raças inteligentes. E os arcônidas são inteligentes. Dessa forma meu comportamento se ajusta ao meu nível mental, se reconheço que subestimei os habitantes deste planeta. Mas nem por isso os reconheço como seres com direitos iguais aos nossos.
— Ninguém vai exigir isso de você. Ao menos por enquanto — disse Perry em tom sério. — A revisão de sua atitude hostil já representa um grande progresso. O fato é que lutamos e vencemos em comum. Isso constitui um elemento de ligação.
Crest deu alguns passos e parou perto de Thora.
— Agradeço-lhe pelo que você acaba de dizer, Thora. Com essas palavras você construiu uma ponte dourada que um dia, num futuro distante, representará o único caminho que conduz à conservação do império galático dos arcônidas. É bem possível que ainda chegue o dia em que Rhodan também tenha que passar por ela.
— Se a ponte é de ouro, quero estar por aí nesse dia — observou Bell sem o menor dramatismo. — O problema é se conseguirei viver até lá.
— Não vejo por que não podemos prosseguir nas pesquisas com a Good Hope — disse Crest em tom sério. — É verdade que já não dispomos do grande cruzador. Mas mesmo que a Good Hope não nos permita retornar à pátria, talvez possamos encontrar o planeta da vida eterna. Se tivermos sorte.
Seguiu-se um silêncio constrangedor, que foi rompido por Rhodan.
— Temos tarefas mais urgentes, ao menos por enquanto — disse, sacudindo a cabeça. — Os mutantes têm de ser treinados. Para isso pretendo construir uma base em Vênus. Nossa próxima tarefa é esta. Nos próximos dias viajarei para Vênus a fim de preparar o acampamento pioneiro. Nossas primeiras observações levam à conclusão de que por lá não encontraremos qualquer forma de vida inteligente. Quando tudo estiver em ordem na Terra teremos tempo de partir em busca da vida eterna. Mas, para falar com franqueza, não acredito que tenhamos êxito nisso.
— O planeta existe! — afirmou Thora. O fogo de um entusiasmo que quase chegava a ser fanático ardia em seus olhos. — Os participantes de expedições que retornaram de lá relatam isso. Mas o segredo é guardado a sete chaves. Se encontrarmos o mundo da imortalidade, teremos de enfrentar uma luta feroz.
— Só acredito quando tiver a prova diante de mim.
— Mas seria muito bom se pudéssemos livrar-nos do medo do túmulo — interveio Bell. — De qualquer maneira não comunicaria nada à companhia em que fiz meu seguro de vida, se me tornasse imortal.
Ninguém riu. Bell virou-se, um tanto ofendido. Em atitude pensativa contemplou a pirâmide, envolta pelos raios dourados do Sol que entrava no ocaso.
Perry aproximou-se de Crest e Thora. Estendeu a mão à mulher.
— Será que daqui em diante podemos ser amigos? — perguntou com a voz um tanto insegura.
Por um segundo a arrogância costumeira brilhou nos olhos frios daquela mulher, mas finalmente apertou a mão que lhe era oferecida.
— Perry Rhodan, eu o admiro, por mais que o tema. Mas você há de compreender que um sentimento desse tipo não pode gerar uma verdadeira amizade. Sei que precisamos de você; temos de completar-nos mutuamente. Será que uma situação destas pode servir de base a uma verdadeira amizade? Além de tudo, Crest me constrange. Pelo que vê, só aperto sua mão porque sou obrigada a fazê-lo. Está satisfeito?
Perry fez que sim.
— Por enquanto estou. Ainda chegará outra oportunidade em que você terá que apertar minha mão, e então os motivos serão diferentes. Até lá tenho de ficar satisfeito com aquilo que você me oferece. E fico. Permite que lhe agradeça?
Por um instante os olhares das duas criaturas fundiram-se, e suas mãos congregaram-se numa unidade. Talvez fosse um momento solene, se nesse instante preciso Bell, com um profundo suspiro, não tivesse murmurado uma palavra:
— Amém...
Aquela palavra retirou toda a solenidade ao pacto que acabara de ser concluído. Talvez apenas porque havia sido pronunciada por Bell.
O sol mergulhou sob a linha do horizonte. Subitamente a luminosidade do túmulo apagou-se. Parecia que uma chama invisível fora apagada no metal de que era feita a pirâmide.
No céu a primeira estrela começou a espalhar sua luminosidade.
Sem que tivesse consciência disso, Perry Rhodan enxergou naquele signo um prognóstico otimista para o futuro distante.
Clark Darlton
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