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Biblio VT

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 40


Na manhã seguinte, Reilly foi para o trabalho saindo da casa de seus pais com o estômago cheio: suco de laranja fresco, dois pães caseiros de canela, uma xícara de café e uma fatia e meia de bacon que furtara do prato de seu pai.

Quando estacionou o carro nos fundos da delegacia, cada grama daquela refeição deliciosa revirou dentro dela: a moto de Veck estava parada próxima ao edifício. Era óbvio que tinha se entregado e estava sendo interrogado.

Olhando para cima, observando a lateral dos fundos de onde trabalhava, ficou tentada em voltar ao seu carro, ligar o motor e ir... a qualquer lugar. Mas não fugiu. Nunca fizera isso. Nunca o faria.

Ao sair, piscou um pouco diante do sol brilhante e desejou que Deus apagasse as luzes: em vez de animá-la, aquele dia alegre e primaveril levava-a mais ainda para o fundo do poço.

– Lindo dia, não? – alguém disse em voz alta.

Olhando por cima do ombro, disse: – Bom dia, Bails.

O detetive passava pelos carros, caminhonetes e suvs. Estreitou os olhos ao observá-lo, pois a luz atingiu-a em cheio de repente.

Parecia o início de uma enxaqueca.

– Você está bem? – perguntou.

– Nem um pouco. E você?

Ao aproximar-se, Bails tirou os óculos escuros.

– Estou na mesma – assentiu em direção à moto de Veck. – Então, ele está aqui.

Reilly esfregou os olhos.

– Sim, está.

– Onde estão seus óculos? – disse, dando uma leve batida em seus grandes óculos de sol. – O verão está chegando e a catarata também.

Quando Bails colocou as lentes escuras outra vez, Reilly inclinou a cabeça e olhou para ele. A luz em torno do cara era tão brilhante que parecia ser feito de algum material cromado.

Certo, ela estava enlouquecendo, ficando completamente gagá. Só faltava aparecer no trabalho com um vestido feito de carne.

– Eu disse... vai assistir ao interrogatório?

Balançando a cabeça, murmurou: – Meu Deus, não. Desculpe, estou meio estranha hoje.

Colocou o braço sobre os ombros dela como um amigo faria, nada mais.

– Entendo. Vamos lá, vamos entrar e fingir que estamos trabalhando.

– Boa ideia.

Entraram juntos, passaram pela recepção e chegaram às escadas. No patamar do segundo andar, viram que o pessoal da administração não ocupava as mesas como de costume, mas estava agrupado ao fundo. Assim que um deles viu Reilly, todos olharam para trás.

Abaixando a cabeça, ela murmurou um “até mais” e correu para o seu departamento. Nos Assuntos Internos, mais olhos observaram-na, mas, ao menos ali, seus colegas aproximaram-se para dizer bom dia e reconheciam a situação delicada: estranho, mas era melhor que sussurros... E as pessoas pareciam apoiá-la.

Aliás, a maioria das pessoas, vez ou outra, passa por sérios problemas. Basta apenas respirar para que isso aconteça.

Quando as conversas diminuíram, sentou-se em sua mesa, ligou o computador e ficou ali... um minuto e meio. Saiu do seu departamento. Percorreu o corredor. Entrou no Departamento de Homicídios. E, como se estivesse destinado a acontecer, a primeira pessoa que encontrou foi De la Cruz.

– Eu estava me perguntando se você não iria aparecer – disse ele, aproximando-se e estendendo uma das mãos.

Depois de apertar a mão dele, limpou a garganta.

– Como estão as coisas?

– Acabaram de começar. Quer assistir?

– Sim – disse ela com voz rouca.

– Venha comigo – enquanto ele a guiava pelas mesas ergueu a xícara de café. – Acabei de pegar um pouco de café, está servida?

– Já estou bem agitada... mas obrigada.

As salas de interrogatório percorriam um corredor estreito com uma entrada própria, mas havia um atalho nos fundos do departamento e De la Cruz segurou a porta para ela.

– Tem um monitor aqui.

A sala de conferência minúscula tinha um tapete velho, mas uma mesa redonda nova – onde uma tela exibia imagens em preto e branco de uma sala de três metros de largura por quatro de comprimento. A câmera estava focada em Veck, sentado numa cadeira ao canto, e Reilly sentiu um choque físico ao vê-lo. Cara, ele era grande, especialmente ao exibir toda sua agressividade fria: seus braços estavam cruzados sobre o peito, a expressão dos olhos era séria ao observar o detetive que o interrogava. Como se o cara fosse um alvo de dardos.

Reilly puxou uma cadeira e sentou-se, sentia pouca firmeza nas pernas.

– Aqui, me deixe ligar o som – De la Cruz disse ao sentar-se também e inclinar-se para frente.

–...não plantei aquele brinco como prova – Veck respondeu. – Você tem o vídeo. Assista a maldita gravação. Não plantei o maldito...

– Mas esteve na seção de provas de Kroner...

– Assim como qualquer outro detetive da delegacia poderia ter feito.

– A oficial Reilly indicou que você esperava encontrar alguma coisa que ligasse tudo ao caso Barten.

Veck não mostrou reação alguma ao ouvir o nome dela.

– Sim. Mas como isso pode estar relacionado em plantar alguma coisa?

O outro detetive – seu nome era Browne, se Reilly não estivesse enganada – inclinou-se sobre seu bloco de anotações.

– Sua mão entrou e saiu do bolso várias vezes.

– Já ouviu falar em troco? Moedas, trocados, níquel?

– Você esteve no quarto de Sissy Barten.

– Assim como outros estiveram. Não sou o único representante deste departamento que passou por aquela casa.

– Olha, Veck, apenas me diga o que aconteceu.

Veck inclinou-se também, o rosto cheio de fúria.

– Fui até a casa de Sissy para conversar com a mãe dela. Subi as escadas, sim, claro, mas não tirei nada de lá e não plantei evidência alguma. Você já provou que não machuquei Kroner. Por que eu enquadraria o cara num assassinato que, aliás, eu não cometi?

– Não tenho certeza do que conseguimos provar com Kroner.

Veck encostou-se outra vez.

– Está brincando comigo?

– Talvez tenha encenado o ataque minuciosamente para conseguir colocar a culpa do assassinato Barten sobre os ombros dele.

– Então, acha que eu costumo andar com leões treinados ou alguma coisa assim? Além disso, era Kroner quem sabia onde o corpo estava naquela pedreira, não eu.

– Pelo contrário, Kroner apenas mencionou a pedreira. Você encontrou o corpo.

– Não, não encontrei. Foi...

– Quem?

Com isso, enfiou a mão no bolso da blusa que vestia e tirou um maço de cigarros.

Ah, então, havia mentido sobre parar de fumar também.

O outro detetive balançou a cabeça.

– É proibido fumar aqui dentro.

Veck murmurou alguma coisa ao guardar o pacote outra vez.

– Olha, quer saber o que tenho para declarar? É simples. Não fiz nada disso: o assassinato, o brinco, nada disso. Alguém está tentando me incriminar.

– Pode provar isso, Veck?

Deus, Reilly quase pôde sentir uma rajada de ar frio quando Veck respondeu: – A questão vai além. Trata-se de saber se você pode provar isso.

– Ele a matou – Reilly disse asperamente. – Oh, meu Deus, ele a matou, não?

Veck sabia como o sistema funcionava, sabia como escapar de um assassinato... Era um detetive, afinal. Foi treinado nos limites da lei. Sabia como lidar com provas e evidências.

De la Cruz olhou para ela.

– Não vou mentir. Isso não parece bom, nada bom.

Lembrou-se da pedreira, de Jim Heron, de Veck encontrando o corpo... era o cenário perfeito.

E Kroner? É possível que Veck tivesse ido até aquela floresta planejando matar o cara, mas um animal selvagem o deteve. A sorte, afinal, não jogava apenas a favor dos justos.

Se Kroner tivesse falecido naquele hotel como deveria, e o brinco tivesse sido plantado com sucesso, e Bails não tivesse visto os registros dos antecedentes juvenis, Veck teria passado incólume pelo assassinato, exatamente como seu pai. E teria matado outra vez. Era assim que psicopatas como ele agiam.

A mão de Reilly rastejou até a garganta. E pensar que poderia ter se apaixonado por um assassino... assim como aconteceu com a mãe de Veck.

– O mais importante – ouviu-se dizer – é que não se retirem as acusações contra ele. Não podemos deixar alguém assim solto nas ruas... ou a história do pai se repetirá.

– Vamos precisar de evidências mais concretas. Neste momento, tecnicamente, ele é apenas um suspeito.

– Temos que entrar na casa dele.

– Estamos esperando o mandado ser aprovado.

Reilly voltou a olhar para a tela.

– Quero estar lá.

Sentado “do outro lado” da mesa de interrogatórios, Veck estava prestes a cometer um ato de violência.

Alguém, ou alguma coisa, tentava derrubá-lo e, cara, tinha feito todo o dever de casa. E era isso: em meio à condição do corpo de Sissy, daquela baboseira sobre o brinco e da conexão com seu pai, viu-se realmente numa encruzilhada. Porém, não havia escolhas.

Era como se o piloto automático da sua vida tivesse recalculado o curso do avião para atingir em cheio a lateral de uma montanha, e Veck não conseguia assumir o controle de volta. O pior de tudo? Era que seu colega do outro lado da mesa, detetive Stan Browne, usava todas as técnicas de interrogatório. Que inferno, Veck podia ter escrito aquele diálogo, pois conhecia todos os truques: como o entrevistador poderia confundir as coisas ou sugerir a verdade, mesmo quando houvesse pontos obscurecidos. Então, não tinha como saber com certeza se possuíam provas concretas contra ele.

Nesse ponto, tinha apenas uma coisa a favor dele: era inocente de verdade e a lei favorecia homens inocentes.

– Não se incomode em obter um mandado – Veck disse ao pegar as chaves da casa e colocá-las sobre a mesa. – Vá até minha casa. Examine a porcaria toda. Não vai encontrar nada que me relacione a Sissy Barten ou a Kroner.

Isto se quem estivesse atrás dele não tivesse plantado uma versão do brinco em forma de pomba na casa. Droga.

Browne estendeu a mão e pegou as chaves.

– Quer um conselho?

– Não preciso. Porque isto não vai dar em nada.

O outro detetive coçou a sobrancelha com a ponta do polegar.

– Parece ter muita certeza disto.

– Tenho.

– Então, como explica que o brinco não esteja contabilizado na lista que fizeram logo após apreenderem e revistarem a caminhonete de Kroner, e que apareceu depois que você esteve na sala de provas?

– Como eu disse, quantas pessoas entraram e saíram dali nos últimos dias? Já assistiu a todos os arquivos das câmeras de segurança?

– Vamos assistir. Estamos apenas começando as investigações.

– Bem, é melhor fazer isso logo. Porque não vejo nada de concreto contra mim.

– Por enquanto.

– Nunca haverá.

– Faria um teste com o detector de mentiras?

Veck conteve-se neste ponto. E se perguntassem se pretendia machucar Kroner naquela noite? Como lidaria com isso?

– Sim. Claro.

Browne virou a página de seu bloco de notas, mas tendo rabiscado apenas alguns círculos na parte de cima.

– Certo, muito bom. E agradeço sua permissão para entrarmos em sua casa.

Como se Veck tivesse escolha. Conseguiriam a permissão de um juiz de qualquer maneira. O que realmente queria saber era quem, diabos, colocara-o nessa...

Reilly, pensou. Conversaram sobre isso na noite passada... já deveria tê-lo entregue naquele ponto. Ou isso, ou estava prestes a entregar.

Mas por que pensar que ele pegou o tal brinco? E estava com ele na pedreira quando Jim mostrou onde Sissy estava. Os dois foram surpreendidos.

A menos que não tenha acreditado em nada daquilo. E se for assim, em que ponto ocorreu toda a reviravolta? Dane-se... pensando assim só continuaria a se perguntar quem havia influenciado tudo.

– Poderia fazer o teste com o detector de mentiras agora?

A mensagem subentendida era: enquanto revistamos sua casa?

Será que Reilly irá com eles? – perguntou-se. Provavelmente. Era como agiria se estivesse no lugar dela.

Veck ergueu os olhos para a câmera focada nele... e soube que ela estava do outro lado.

– Traga a máquina – Veck disse para as lentes.

Browne levantou-se.

– Vai levar um tempo para configurá-la. Fique aqui enquanto isso.

– Como se eu tivesse escolha.

– Café?

– Não, obrigado.

Quando Browne saiu, Veck continuou encarando o pequeno olho preto no suporte amarelado no canto da parede.

Em câmera lenta, murmurou: – Estão... armando... para mim.

Sabia muito bem que ela não acreditaria, mas não deixaria de lutar. E, depois desse recado mudo, voltou a encarar a porta. Não precisava de uma bola de cristal para saber que não sairia daquela sem uma carta de advertência ou uma bela mancha nos arquivos do Departamento de Assuntos Internos. Sua carreira na Segurança Pública havia acabado, mesmo se fosse inocentado. E, considerando como as coisas estavam, isso não era nada.

Enquanto tentava digerir esta nova realidade, a fúria, aquela fúria obscura e cruel, foi acionada em seu peito. Cada vez mais forte.

– Então, o que acha, Jim? – disse suavemente.

O anjo estava parado do outro lado da sala o tempo todo, bem atrás de Browne – tanto que, quando o detetive sentou-se, olhou por cima do ombro como se sentisse a presença.

A voz de Jim ecoou em sua cabeça: Isso é só o começo A questão é: aonde isso vai nos levar? Precisará mentir no teste. Se disser que foi até aquela floresta para matar Kroner, está ferrado... Não vão deixar você sair daqui e isso tornará o meu trabalho ainda mais difícil.


No silêncio que se seguiu, a fúria multiplicou-se ainda mais no fundo do peito de Veck. Num momento de plena clareza, percebeu ser capaz de matar alguém. Bem ali. Naquele momento. Com a cadeira sobre a qual estava sentado. Com aquela caneta azul e dourada do Departamento de Polícia de Caldwell que Browne havia deixado para trás por engano. Com as próprias mãos.

E não seria um assassinato do tipo “foi um instinto animal, perdi a cabeça, reconsiderem” – aliás, imaginava que era isso o que acontecia com Kroner. Seria um assassinato muito bem calculado, algo que lhe permitiria manter o controle sobre si mesmo e sobre a vítima. Seria algo que o conduziria da fúria impotente à sensação de controle divino.

Não foi à toa que seu pai ficara viciado nisso. E pessoas fracas como Kroner ansiavam por algo assim. O ápice do poder era tirar a vida de alguém, vê-lo implorar, ter nas mãos o futuro de outra pessoa, de sua família e de sua comunidade... e, em seguida, esmagar tudo. O medo era o mestre e a dor a arma.

No estado em que Veck encontrava-se, mesmo com o anjo bem atrás dele, vigilante e leal, estava a um passo de seguir os caminhos que seu pai trilhou.

Aliás, a sensação era indescritível.


CAPÍTULO 41

 

Enquanto Reilly seguia em direção à casa de Veck com mais uma dúzia de outros oficiais, estava disposta a deixar seus colegas fazerem todo o trabalho. Ela estava em modo de observação e continuaria assim: olhos abertos, mas com as mãos nos bolsos. Na verdade, teve sorte em receber permissão para ir junto com eles.

Quando os vários carros estacionaram na calçada de Veck, parecia uma convenção policial e, quando Reilly saiu do carro, avistou um casal de vizinhos espiando atrás das cortinas. Porém, a reputação dele diante do bairro não era o que a preocupava. Sua preocupação era manter aquelas pessoas em segurança, livres dele.

Quando a porta da frente foi aberta com as chaves do próprio Veck, a conversa de seus colegas desapareceu no ar como se fosse música de fundo, tudo foi se afastando de sua percepção quando entrou atrás deles.

A primeira coisa que fez foi olhar para o sofá. Havia um travesseiro num dos cantos, como se Veck tivesse passado a noite ali, mas nada de cobertores, mesmo tendo feito muito frio durante a madrugada. Um cinzeiro cheio de bitucas, juntamente com dois pacotes amassados de cigarros e um isqueiro no chão... no local exato onde Veck havia colocado a carteira há três noites.

Reilly afastou com rapidez aquela cena de sua mente e dirigiu-se para a cozinha, não por ter planejado, mas apenas porque seus pés conduziram-na até ali.

Soltando um palavrão em voz baixa, sabia que deveria assumir o papel de detetive. Caixas... onde estariam as caixas que foram armazenadas na mudança?

– Este é o porão? – alguém perguntou enquanto abriam a porta que dava para o banheiro do corredor.

Ela quase apontou para o cara a direção certa, mas se conteve. A última coisa que precisava mostrar era o quanto conhecia a casa.

– É bem aqui – alguém respondeu quando abriram uma porta diferente e acionaram o interruptor.

Reilly aproximou-se e seguiu aquele oficial escada abaixo. Quando atingiu o piso de concreto, o ar mofado fez cócegas em seu nariz e o frio fez com que puxasse o casaco contra o peito.

– E eu que pensei que o andar de cima estava vazio – o oficial murmurou... a voz ecoando no ambiente.

– Acertou em cheio – Reilly concordou.

Além do mecanismo de aquecimento da casa e do aquecedor de água, parecia não haver nada no porão.

Mesmo assim, andaram pelo local. Separados, procuraram em espaços diferentes e Reilly ficou de lado quando o detetive pegou uma lanterna para examinar o que havia por trás do sistema de aquecimento.

– Nada? – Reilly perguntou.

– Nada.

Após retornarem ao primeiro andar, ela ficou na cozinha e deu uma olhada em todos os armários que Veck não usava, em todas as gavetas vazias e no pequeno armário onde poderia pendurar alguns casacos do dia a dia, mas ali também não havia nada. Os oficiais tiravam fotos de todo aquele vazio e havia sons de pessoas andando no andar de cima.

Deus, será que esteve mesmo com aquele homem? – perguntou-se.

Não – pensou. Esteve com a imagem que desejava que ela visse.

Com um arrepio, subiu as escadas e olhou para a suíte principal. A cama estava toda bagunçada e havia outro maço de cigarros e um cinzeiro sobre o criado-mudo. Viu duas mochilas no canto. Foi até lá e cutucou uma delas que se abriu com o toque de seu pé. Roupas de couro. Uniformes. Algo que parecia ser uma camiseta do ac/dc. Meias pretas.

O tipo de coisa que se levava para passar a noite em algum lugar, só que ela nunca vira Veck vestir nada disso antes... Mas que importância isso tinha?

Franzindo a testa, passou pelos outros oficiais e entrou no banheiro. Duas escovas de dente sobre o balcão junto com um tubo de creme dental. Uma terceira escova num copo.

Quem mais ficava ali? E por que havia uma toalha sobre o espelho...?

Quando uma das lâmpadas foi acesa, iluminou a janela por onde tinha observado Veck na primeira noite. Triste, saiu do quarto e foi para o corredor. Passou por mais dois outros quartos vazios e um banheiro.

– Já foram ao sótão? – perguntou aos outros oficiais. Quando negaram com a cabeça, Reilly ergueu uma das mãos enluvadas e puxou as escadas dobráveis.

Afastando-se, deixou um dos colegas subir primeiro com uma lanterna. Deus, com tanto espaço vazio, ninguém se daria ao trabalho de armazenar coisas no terceiro andar, mas Bails dissera que tinha subido escadas para guardar as caixas e, além disso, não havia outro lugar para verificar.

– Nada – ouviu a voz masculina vinda de cima.

Reilly puxou os degraus da escada, apoiando as mãos e, depois, os pés. No sótão, o outro oficial tinha acendido uma lâmpada que balançava e produzia sombras por entre as vigas. Depois de olhar em volta, ajoelhou-se e passou o dedo sobre uma das tábuas de madeira que faziam parte do isolamento térmico. Poeira. Muita poeira.

Franzindo a testa, inspecionou o piso em volta da abertura pela qual passaram. Seus passos e os do outro oficial deixaram uma marca distinta na camada espessa e intocada de partículas.

Mas que droga é esta? – pensou.

Não era só uma questão de não haver nada ali. Nunca houve, mesmo antes de Veck ter se mudado.

– Com licença – murmurou, antes de descer as escadas dobráveis.

Entrou no primeiro quarto que examinou. Dentro, havia apenas marcas de pegadas no carpete... Nenhuma indicação de caixas empilhadas e retiradas dali por algum motivo. Dentro do armário? Mais do mesmo: tapete liso, sem marcas, como se tivessem acabado de passar um aspirador de pó e estivessem dando um tempo para não gastar as fibras. Erguendo-se na ponta dos pés, olhou as prateleiras. Nenhuma marca de algo que pudesse ter sido puxado ou removido. A mesma coisa no outro quarto.

No andar de baixo, foi até a cozinha, passou pelo armário de casacos e saiu na garagem. Nenhum cortador de grama ou ferramentas ou sementes. Apenas duas caixas de lixo, as duas tampadas.

– Quando o lixo é recolhido? – perguntou, sem esperar qualquer resposta.

Era importante saber e, sem dúvida, logo alguém descobriria.

Voltando à cozinha, parou em frente aos armários e gavetas abertas. Estava claro que Veck havia dado permissão para que revistassem a casa por ter plena certeza de que não encontrariam nada... E Reilly já havia se dado conta disso no caminho.

Mas tinha a impressão de que nunca houvera nada naquele local. Não tinha visto nenhuma caixa quando esteve ali antes, mas o ponto principal era: parecia não existir qualquer evidência de que uma mudança foi recebida naquela casa. Sim, claro, teve umas doze horas para se livrar de tudo... Mas não tinha como produzir coisas como camadas de poeira e tapetes sem marcas.

Talvez Veck tivesse feito os documentos caírem de propósito... e depois jogou-os fora. Mas do que diabos Bails estava falando quando se referiu a caixas? E por que teria mentido? Os dois eram conhecidos por serem amigos e o cara parecia genuinamente abalado. Deus, havia lacunas demais, em toda parte.

Checou o relógio e, então, pegou o telefone e discou para De la Cruz. O detetive tinha ficado na delegacia e, quando a secretária eletrônica a atendeu, não se preocupou em deixar uma mensagem. Ele sabia o que Reilly procurava.

Fora da casa, entrou no carro e sentou-se atrás do volante. Em dado momento, olhou para a casa. Sob a luz do sol, as sombras que o local projetava eram muito escuras... O celular tocou e ela atendeu sem nem sequer olhar quem era.

– Reilly.

– Estou com os resultados do polígrafo – De la Cruz parecia tão cansado quanto ela. – Acabou de chegar... e acho que foi por isso que ligou.

– Foi. Pode me dizer o resultado?

– Ele passou em tudo... tudo mesmo.

– O quê?

– Você me ouviu.

– Como isso é possível? – só que, no instante em que perguntou, percebeu ser uma bobagem. Um bom mentiroso, um mentiroso excepcional, poderia enganar a máquina. Era raro, mas não impossível.

Com um gemido, esfregou a ponta do nariz.

– Espere um pouco, só para ficar claro, perguntaram a ele sobre a visita à casa dos Barten, sobre o brinco, sobre a sala de evidências...?

– Tudo.

– E ele negou tudo, e a máquina indicou que estava dizendo a verdade?

– Sim. Exceto por uma questão.

Então, era mesmo um mentiroso espetacular...

– Espere, ele falhou numa questão?

– Não, apenas não negou uma coisa. O examinador perguntou se tinha a intenção de matar Kroner naquela noite, no hotel. E ele disse que tinha sim.

Reilly balançou a cabeça.

– Isso não faz sentido. Por que ele admitiu apenas isso?

Se estava mentindo sobre tudo, por que não encobrir esse ponto também?

– Não sei – De la Cruz murmurou. – Não tenho resposta para essa pergunta.


CAPÍTULO 42


– Será que não poderiam ter fechado os malditos armários?

Quando Adrian parou na cozinha de Veck, observou aquelas coisas vazias e abertas, enquanto o pobre coitado fechava tudo com mãos firmes.

De alguma maneira, era difícil ficar entusiasmado – não só por ver as gavetas, armários e balcões de alguém todos abertos por terem sido revistados, mas com a guerra em geral. A única coisa que poderia chamar sua atenção era se Devina aparecesse outra vez, mas parecia que o demônio tinha se escondido. E isso nunca era bom.

Jim também permanecia parado ao lado dele, deixando Veck arrumar a casa. Quando o detetive subiu as escadas, o salvador ergueu o olhar.

– É melhor Devina fazer logo o próximo movimento ou a cabeça dele vai explodir.

Ad resmungou concordando.

– Mas não há muito o que possamos fazer sobre isso.

Ficaram com ele durante o questionário inicial, ao longo do teste com o detector de mentiras e no interrogatório que houve em seguida, até Ad ficar convencido de que nunca mais sairiam daquela delegacia. Porém, no final, Veck foi liberado. Tudo o que os policiais tinham contra ele era circunstancial e, com os resultados do polígrafo, não havia mais nada que fosse suficiente para acusá-lo, muito menos para detê-lo durante 48 horas.

De alguma maneira, eram boas notícias – melhor confrontar Devina longe daqueles policiais. Mas o detetive fora pressionado até o limite, e Adrian sabia muito bem como era isso.

De repente, sentindo-se incapaz de ficar parado, foi até a geladeira e abriu-a. Não havia muito lá dentro – nenhuma surpresa – mas, mesmo que houvesse um monte de comida chinesa, não estava com a menor vontade de comer.

Naquele momento, até mesmo respirar era algo que fazia apenas por força do hábito. Na verdade, já tinha ouvido falar que havia fases para o luto. Será que estava em depressão? Com certeza não estava mais tão furioso quanto se sentira num primeiro momento após a morte de Eddie... mas não importava. Agora, a sensação era de uma gaiola de dor ao redor de seus pulmões e a impressão de que arrastava uma balsa atrás de si.

Balançando a cabeça, tentou tirar aquilo de sua mente. A introspecção não seria uma boa amiga naquele momento... Pena que a resolução não durou muito. Olhando para Jim, disse: – Acha que ele está bem sozinho?

– Veck precisa de espaço.

– Não estou falando dele.

– Está falando de Eddie? – Jim cruzou os braços e soltou um palavrão. Depois de um momento, disse: – Na verdade, sim, acho que ele vai ficar bem. Devina não vai fazer nada de errado contra ele, pois, enquanto estiver conosco, será uma ferida aberta, impossível de cicatrizar. Se ela levar o corpo ou comprometê-lo de alguma forma? Seria apenas uma ação de curto prazo.

Ad andou até a janela e olhou para fora... cinco da tarde, e a luz do dia já estava começando a desaparecer do céu.

Então, ficou nervoso de repente.

– Ela deve saber onde Eddie está.

– Mas eu protegi a porta. Ninguém consegue entrar lá – o cara bateu no peito com o punho. – Se isso acontecer, eu vou ficar sabendo.

Ad andou um pouco ao redor, sentindo como se houvesse formigas em sua pele. Finalmente, murmurou: – Olha, vou até lá para ver como ele está. Volto já...

Jim colocou-se na frente dele.

– Eddie está bem. E preciso de você aqui. Algo de ruim está prestes a acontecer.

– Dez minutos.

– É exatamente o que ela quer. Você precisa entender isso.

Adrian não queria discutir com o cara. Já tinham se exaltado o suficiente graças à atitude agressiva de Veck – e Ad tinha bom senso suficiente para entender que o cara estava instável, capaz de explodir por qualquer coisa.

Contudo, não conseguia impedir a necessidade repentina de voltar àquela garagem.

– Olha, volto já. Prometo – encontrou os olhos do salvador. – Juro pela alma de Eddie.

– Maldição – Jim murmurou.

– Concordo plenamente.

Sem esperar por mais uma rodada de desacordo, Ad saiu com cuidado da casa. Assim que tomou forma no gramado em frente à garagem, soube que fez a coisa certa: havia outra presença no interior do apartamento com Eddie.

Assumiu uma atitude de luta instantaneamente, tirou sua adaga e...

– Que inferno – murmurou, abaixando a arma.

Naquele momento, Colin abriu a porta no topo da escada e surgiu no patamar.

– Na verdade, é “céu”, muito obrigado.

O arcanjo não usava roupas brancas efeminadas, mas algo com que poderia lutar: calças largas e camiseta justa. E estava sozinho, ao menos até onde Ad conseguia sentir.

– O que está fazendo aqui? – Ad perguntou, mesmo sabendo que havia apenas uma explicação.

– Assistindo TV.

Adrian terminou de subir as escadas.

– Jim não tem TV a cabo.

– Então, pode imaginar o quanto estou insatisfeito.

– Nigel deixou você protegê-lo?

– Ele sabe que estou aqui, sim...

De repente, o vento mudou de direção, passando a vir do leste... E trazia más notícias consigo: pairando nas correntes de ar invisíveis, voando dentre as rajadas de vento, havia o som sutil de um gemido.

– Maldita. Vadia – Adrian encarou Colin. – Fique aqui com Eddie.

– Agradeço a ordem – Colin disse em tom ríspido. – Mas foi por isso que vim.

– Sim. Desculpe.

Não havia mais tempo para conversa: quando o vento ficou mais intenso e os sons de gemidos transformaram-se em gritos, Ad não apenas amaldiçoou Devina e seus senhores da guerra – também teve vontade de dar um soco em si mesmo. Era exatamente o que Jim havia dito que aconteceria ao se separarem: Ad lutaria contra um bando de mortos-vivos, enquanto Jim sem dúvida lidava com a verdadeira encruzilhada.

Jogou-se nas mãos do demônio. E permaneceria assim. Não sairia dali de jeito nenhum: Colin era poderoso, mas havia limites... E já tinham perdido Eddie uma vez. Isso não aconteceria novamente.

Movendo-se com rapidez, Adrian apareceu na garagem. Na caminhonete, havia uma mochila cheia de roupas de couro e logo vestiu um par de luvas, que também envolviam o braço, e o casaco preto que Eddie usava nas viagens de moto mais longas.

Saindo dali, passou por uma forquilha – e voltou para pegá-la. Era bem possível que tivesse que destrinchar algo – e já vira o quanto ferramentas de jardinagem podiam ser divertidas.

Quando saiu outra vez, Colin não estava mais à vista, o que era bom no momento e exatamente o que queria: havia demônios surgindo das sombras por toda parte, assumindo a forma de assassinos sem olhos contra quem Ad desejava lutar.

Adrian inflou os pulmões ao máximo e, em seguida, soltou um grito de guerra que abalou os galhos das árvores ao redor da garagem, atingidos com tanta força que alguns chegaram a se quebrar. Então, iniciou a investida contra os inimigos.

Apertando forte a alça gasta de madeira, saltou para frente, cravando a ferramenta no intestino do demônio mais próximo antes de dobrá-la para cima... até erguê-lo pelo tronco. Quando as garras prenderam-se à criatura, Ad começou a movimentá-la como se o bastardo fosse um fardo de feno. Então, firmou o cabo debaixo do braço para golpear o traseiro do filho da mãe.

Adrian virou-se, puxou a ferramenta e mirou a cabeça, afundando as pontas curvas no desgraçado. As garras penetraram a face e percorreram a criatura até a cavidade torácica, reduzindo o lutador de Devina a uma poça de lama. O grito foi muito satisfatório.

Desvencilhando-se dele outra vez, Adrian endireitou-se e posicionou-se de modo que os dois demônios que tentavam tirar sua atenção pensaram ter conseguido: com a cabeça erguida, conseguia observá-los com a visão periférica. Podia apostar que vinha um terceiro por trás. Era óbvio demais.

Flexionando os joelhos, atirou-se para o ar contra aquele cuja presença tinha apenas imaginado... Então, esfaqueou-o e torceu a criatura com força. Quando o impacto foi registrado, o demônio começou a ter um espasmo, o sangue ácido começou a voar pelos ares ao ponto de Ad ter que se afastar e soltá-lo um pouco. Mergulhando contra a lateral da coisa, abaixou-se e rolou sobre o chão. Quando se ergueu outra vez, estava pronto para acabar com os outros dois.

Em vez disso, enfrentou um exército. Surgiram demônios de cada sombra que havia no pátio, e eles cercavam-no, eram muitos e podiam ser vistos dentre as árvores que envolviam o local. Devia ter uns trinta, quarenta, cinquenta.

Diante da força esmagadora, uma calma tremenda inundou-o, como se estivesse sangrando. Eddie ficaria bem: Colin se certificaria disso. E Ad daria tempo e espaço suficiente para o arcanjo dar o fora dali, levando Eddie consigo.

Quanto a ele? Não sairia dali vivo e não tinha problemas com o local para onde iria. Era assim que se devia morrer: defendendo seu território, levando vários inimigos para a sepultura. Digno de honra.

Quando Adrian preparou-se para investir, pensou que, por ser a última vez, desejava que seu amigo ainda estivesse com ele. Porém, ao menos não permaneceriam mais separados por muito tempo.

Na delegacia, Reilly viu-se na iminência de sair e ir para casa. Durante mais ou menos uma hora e meia. Não havia nada para fazer. Ainda não tinham lhe atribuído um novo caso. Já havia encerrado os outros que lhe foram designados recentemente, e Deus era testemunha de que estava fora do caso Veck. E, mesmo assim, estava sentada em sua mesa como se alguém tivesse passado supercola na cadeira, seus colegas tinham terminado o expediente há algum tempo.

Infelizmente, não olhava apenas para o nada. Estava de volta ao perfil do pai de Veck no Facebook, como se fosse uma maluca viciada.

Clicando na parte de links, acessou alguns sites, mas nenhum deles mostrou o que procurava. Porém, nada que começasse com www poderia ajudá-la: as respostas do por que Veck seduzira-a, por que ela tinha se apaixonado e por que ele era como o pai não estavam na internet. Acessou os vídeos. Deus, aquelas coisas eram repulsivas, a maioria destacava os protestos dos fãs...

Ela franziu a testa e inclinou-se em direção à tela. Um dos mais novos havia sido produzido nos últimos dois dias, na frente da prisão onde DelVecchio pai estava. Sob o brilhante sol, os sinais eram bem visíveis e as palavras de ordem eram ridículas. Até rimavam.

Execução. Perseguição. Que original.

Reilly assistiu ao vídeo outra vez. E mais uma vez. E de novo. Até memorizar os cartazes e cenas expostos no vídeo de dois minutos, bem como o momento em que aquele flash disparou por trás do...

Espere.

Não era um flash.

Voltou o arquivo e observou mais uma vez. Na fila de trás, parado na lateral, havia um homem... com óculos de sol espelhados. Não tinha como ampliar. Então, ela apenas repetiu.

– Oh... Deus...

Mais uma repetição.

– Oh... meu... Deus.

Era... Bails?

Tinha que ser... em pé entre os devotos insanos. Quando a câmera passou por ele, Reilly viu que conversava com o cara ao lado... Até perceber que estava sendo filmado, afastando-se.

Voltou ao mural. Pesquisar os membros da comunidade virtual foi inútil: não só por não ter como filtrar os dados, também porque ela não sabia ao certo o que procurar em termos de um nome. Na verdade, quando digitou John Bails na busca do Facebook, o resultado mostrou um cara de sessenta anos morador do Arizona, alguém no Novo México de dezessete e outras três pessoas que não combinavam em nada com quem ela conhecia.


Num impulso paranoico, fez uma pausa no vídeo e olhou por cima do ombro. Ninguém atrás dela... ou mesmo no departamento.

De volta ao vídeo.

Enquanto assistia várias vezes, não conseguia ter certeza se era ele. Afinal, havia milhares de óculos escuros espelhados no mundo. Mas o cabelo... a estrutura física... a cor da pele... combinavam perfeitamente.

De repente, pensou nas “caixas” que tinha comentado... e também no fato de Veck ter passado no teste do detector de mentiras. Sim, era possível enganar a máquina e, considerando como Veck era frio, parecia um candidato perfeito a este grupo seleto de mentirosos. Mas por que, então, admitira sua intenção de ferir Kroner? Não fazia sentido.

A menos que, claro... ele tenha dito a verdade.

Reilly verificou todos os vídeos que havia ali... e viu mais duas vezes o homem que parecia ser Bails. Sempre usava óculos escuros, mesmo à noite, mas não exclusivamente os espelhados. Recostou-se contra a cadeira. Impulsionou-a com o pé e viu o mundo girar. Será que Bails tinha alguma relação com o pai de Veck?

Porém, Bails não precisa conhecer de fato o cara para fazer parte da legião de fãs daquele homem maluco. Mas por que incriminar Veck? Quando o movimento da cadeira diminuiu, viu-se observando a página virtual outra vez e pensou: Óbvio!

Se o pai fosse executado, como manter aquele amor? Simples: criando a ilusão de que alguém manteria a tradição familiar. Talvez mandando Veck para a cadeia. Talvez incitando-o a matar.

Pensou no polígrafo e considerou a ideia de que Veck tinha mesmo um impulso assassino. Era possível alguém se levantar e agir de maneira fora do comum se o pressionassem com força suficiente, se o colocassem sob uma situação muito estressante. Era por isso que o Departamento de Polícia possuía a Divisão de Homicídios.

Quanto ao que aconteceu na floresta? Veck pode ter ido até lá com a ideia de matar Kroner, mas, se pensasse em como ele se comportara com o paparazzo, era possível que tenha se aproximado do cara para tentar uma retaliação por tudo o que o assassino tinha feito – se chegasse a praticar o ato, ainda seria ilegal, imoral e injustificável, mas era diferente de escolher uma mulher inocente e acabar com ela. Aliás, foram 25 mulheres inocentes. Além disso, Veck não tinha, de fato, prejudicado Kroner. Na verdade, ligou para a emergência.


Pensou em como Veck ficou perto dela, a maneira como conversou, agiu e a tocou. Então, lembrou-se de Bails no carro, parecendo desamparado e traído por seu “melhor amigo”. Psicopatas poderiam ser muito convincentes. Era a essência de todo o dano que causavam. A pergunta era: qual destes dois homens estava mentindo?

Quando pensou melhor na grande revelação de Bails naquele carro em frente ao hospital, teve de se perguntar... Como ele sabia sobre a divergência com o brinco? Havia centenas de evidências no relatório preliminar. Centenas. Como detetive participante das investigações sobre o caso, deve ter examinado a lista uma vez, talvez duas. Difícil acreditar que se lembrasse de um item tão específico.

O que o levou a comparar as duas listas observando esse objeto em particular? Seria o fato de Veck ter reconhecido o brinco como sendo o de Sissy Barten? Ou talvez por ser Bails quem estivesse tentando incriminá-lo? Havia apenas uma maneira de saber com certeza. Infelizmente, não era legal.

Reilly levantou-se e caminhou ao longo do departamento, andou por todos os lugares e observou todas as salas de reuniões, então, foi até a entrada principal e verificou a recepção antes de espiar outra vez o escritório da sua chefe, mesmo sabendo que a mulher já tinha ido embora.

De volta à sua mesa, pegou o telefone e discou para a única pessoa que poderia ajudá-la. Quando a ligação foi atendida, disse suavemente: – Preciso de ajuda, mas teremos que cruzar alguns limites.

A voz de De la Cruz soou firme.

– Que tipo de limite?

– O único que importa.


CAPÍTULO 43

 

Adrian Vogel era um lunático sanguinário. O arcanjo Colin avaliava o campo de batalha ao olhar a paisagem pela janela panorâmica sobre a garagem. Antes, o local não passava de um pedaço de terra com um gramado rasteiro. Porém, no momento em que os demônios mostraram sua face oleosa, a situação mudou, e, agora, Adrian enfrentava uma legião de bastardos pertencentes a Devina.

A catástrofe era evidente: mesmo Colin não tendo o menor respeito pelos habitantes do covil do demônio, sabia que eram muito perigosos, especialmente se fossem muitos. E aquele filho da mãe idiota enfrentava-os com nada além de um casaco de couro fino e uma ferramenta agrícola.

Colin fechou os olhos por um breve momento e soltou um palavrão. O anjo não conseguiria sair desta. Era um lutador extraordinário – tão bom quanto o salvador, que era mestre nisso. Mas a quantidade de criaturas que enfrentava? Era um enxame.

Só que não havia como deixar Eddie e descer até lá para ajudar. Devina desejava que o corpo ficasse indefeso por um motivo, e Jim tinha apenas lançado um feitiço de notificação com o sangue que deixara derramar de uma das mãos. Se algo acontecesse ali? Tão somente seria enviado um sinal ao salvador – e ninguém precisava afastar Jim de seu trabalho com a alma em questão.

Além disso, se Colin se dispusesse a lutar e descesse até aquele campo, teria de lidar com Nigel por interferir – e quanto menos confrontos naquele momento, melhor. Só que não dava para ficar de lado e apenas assistir ao massacre, não é mesmo?

Colin levantou-se e foi até a porta, então, abriu a barreira frágil e inútil. Imediatamente, o aroma ácido de sangue flutuou pelo seu nariz e os gritos e grunhidos feriram seus ouvidos.

Adrian era surpreendente, empunhava a forquilha de feno com destreza, mesmo o inimigo pressionando com força e limitando seus movimentos ao cercá-lo. Lançava golpes à frente, à direita e à esquerda, voltava ao centro e retalhava os demônios com tal habilidade que, por um momento, Colin teve que reconsiderar o resultado iminente.

Mas, então, um dos subordinados de Devina, protegendo outro companheiro, veio por baixo enquanto Adrian lutava bem erguido. O desgraçado estava prestes a atacar os pés do anjo, na tentativa de tirar seu equilíbrio e, em seguida, jogá-lo ao chão – com isso, assumiriam o controle e iriam dominá-lo como um cão.

Colin virou-se e olhou ao redor da casa. Espelho. Precisava de um espelho. Com o rápido levantamento do que havia nas instalações, encontrou o objeto que pairava sobre a pia do banheiro. Infelizmente, fazia parte de um armário embutido na parede, não era algo pendurado a um gancho e fácil de ser removido. Contudo, poderia dar um jeito.

Concentrando-se no dedo indicador, reuniu uma massa fria sobre a ponta dele, em seguida, passou a intensificar aquela energia, estruturando-a e deixando-a mais forte.

Quando fez contato com o vidro, o painel despedaçou-se, mas conservou o espelho dentro da moldura. Surgiram algumas rachaduras no local onde tocou. Olhando ao redor, achou uma revista sobre automóveis atrás do vaso sanitário. Ao pegá-la, colocou a brochura embaixo do local que havia lascado.

Com a força do pensamento, convocou alguns cacos, fixando-os temporariamente sobre a capa da revista. Quando tirou o papel, os pedaços prenderam-se como se tivessem sido colados, alguns que sobraram caíram sobre a pia branca tinindo e cintilando por toda parte. Foi muito ágil ao atravessar outra vez o apartamento e posicionar-se no patamar das escadas externas.

Adrian estava praticamente cercado. Porém, fizera um trabalho incrível. Com apenas uma humilde forquilha de feno, incapacitou vários inimigos; o gramado e o caminho de terra pareciam o percurso de uma corrida de obstáculos, de tantos corpos negros se contorcendo. O vapor que subia do couro quando era atingido com o sangue corrosivo produzia uma sombra nebulosa ao redor dele quando se erguia para golpear e fazer outros movimentos.

Com a revista em mãos, Colin fez com que os cacos do espelho se erguessem e voassem, enviando-os agrupados para Adrian. Quando chegaram ao seu destino, giraram como um todo de modo que a superfície ficasse diante dele e circulasse ao seu redor, captando sua imagem... e projetando-a em outros lugares.

Um Adrian transformou-se em dois. Dois transformaram-se em quatro. Quatro tornaram-se dezesseis. Dezesseis transformaram-se num exército incontável para atender à força finita do Adrian original. Cada um deles vestia um casaco de couro. Cada um empunhava uma forquilha. Todos eles eram assassinos profissionais.

Todos eram clones de Adrian, reproduções perfeitas que lutavam e pensavam exatamente como ele. E, quando olhou ao redor para o grande batalhão de si mesmo, perdeu o ritmo por um momento ao perceber que recebia uma ajuda inesperada.

Porém, não era uma pessoa que perdia tempo em meio ao calor da batalha e, quando se recuperou, as reproduções de si posicionaram-se para a luta. Em seguida, começaram a agir, envolvendo os demônios.

– Agora está justo – Colin murmurou ao fechar-se na garagem e reassumir seu posto na janela.

Observou a confusão de corpos lá embaixo, era uma guerra com dimensões de força adequadas e combatentes que disputavam com bastante igualdade. Os demônios estenderam seus membros, suas presas brancas surgiram no rosto negro e inexpressivo enquanto buscavam dominar os braços e as pernas do anjo. Em contrapartida, os Adrians empenharam-se com altivez, aquela humilde ferramenta agrícola transformou-se numa verdadeira arma. Com o tempo, a brigada de anjos foi dominando o território, impedindo qualquer possibilidade de um ataque por trás, e começaram a controlar os inimigos, pressionando-os contra o chão ao golpeá-los na lateral de seus corpos, deixando-os contorcidos aos seus pés.

É tão gratificante assistir, mas fazer parte disso seria ainda melhor – Colin pensou com inveja.

No céu, aquela guerra era de grande importância, sim, mas não tinham a dimensão do quanto era visceral. Ali... aquele era o local onde tudo acontecia. Aquele era o local onde desejava estar.

De repente, pensou em Nigel e imaginou se o arcanjo não estaria certo. Colin sempre viu a si mesmo como um ser lógico, sublimando qualquer emoção – era um elemento que definia boa parte de seu ser. No entanto, havia paixão dentro dele. Rios profundos cheios daquela sensação. E isso dava-lhe vontade de lutar, não de atuar como testemunha. Verdade seja dita: seu desejo era estar no lugar de Adrian...


CAPÍTULO 44

 

Quando Reilly sentou à sua mesa e encarou o telefone, não achava que De la Cruz atenderia seu pedido. Sim, era a única pessoa que ela poderia pensar ser capaz de ter acesso a um arquivo de processo juvenil lacrado há quinze anos e, sem dúvida, enterrado no porão de algum subúrbio na cidade de Nova York. Era uma tarefa difícil, mesmo para um operador de milagres como ele.

Por um motivo: “lacrado” significava “assim vai perder seu emprego”. Outro motivo: a maioria dos arquivos antigos eram jogados fora após alguns anos, já que computadores não eram predominantes nos anos 1990, especialmente em distritos pequenos. E, por fim, o cara não trabalhava em Manhattan há muitos anos. Talvez não tivesse mais nenhum contato por lá.

Ainda assim, era um alívio desabafar com o detetive, até mesmo quanto ao que encontrou sobre Bails: não queria se sentir maluca sozinha. Ao menos ele não deixou transparecer se achou que suas suspeitas eram totalmente infundadas.

Olhando o relógio do outro lado do escritório, sabia que o detetive não voltaria para ajudá-la naquela mesma noite... Então, provavelmente, era hora de ir para casa antes de criar raízes na cadeira.

Levantando-se, espreguiçou-se com força – e o gesto era menos para relaxar o corpo que uma desculpa para olhar para trás. De novo. Percebe-se que a paranoia está avançando quando é preciso criar desculpas a si mesmo.

Depois de desligar o computador, pegou o casaco, vestiu e puxou a bolsa. Antes de sair do Departamento de Assuntos Internos, checou a arma no coldre sob o braço e pegou o celular. Só para prevenir.

Ao sair para o corredor, olhou para os dois lados e prestou atenção a fim de perceber se ouvia alguma coisa. Ao longe, no Departamento de Homicídios, ouviu o barulho de um aspirador de pó e, no saguão, alguém usava uma enceradeira. Olhou para trás. Não havia ninguém por perto.

Andando rápido em direção à escadaria principal, lembrou-se de que, mesmo sendo tarde, as luzes ainda estavam acesas em toda parte e havia uma equipe de vinte ou trinta pessoas atuando no turno da noite naquele edifício.

Quando o telefone tocou, quase deixou o maldito cair. E quase deixou cair outra vez quando viu que era De la Cruz. Aceitando a ligação, sussurrou: – Não me diga que encontrou o registro?

– Foi o que me pediu para fazer.

Seus pés diminuíram a velocidade.

– Meu Deus...

– Na verdade, foi o marido da prima do meu cunhado.

– E aí?

– Evasão escolar. É isto.

Ela parou no topo da escada e manteve a voz baixa.

– O que quer dizer com “é isto”?

– Os registros da polícia da cidade de Garrison têm apenas uma única ocorrência em 1996 com o nome de Thomas DelVecchio Jr. Foi enquadrado por faltar demais às aulas.

– Não há outra referência? Nenhuma avaliação psicológica? Nenhuma...

– Nada. Os casos foram digitalizados em 2005... e salvaram dez anos de arquivos, então, estamos dentro de uma zona segura de informações. DelVecchio tinha catorze anos quando fizeram o registro e, se teve passagens anteriores pelo sistema judiciário, estariam notificadas nesse arquivo.

– E não há nada depois disso?

– Nada.

Houve um longo silêncio. Então, sentiu-se obrigada a perguntar: – Não tem como alguma informação ter se perdido?

– Se por algum motivo ele teve problemas em outra jurisdição, então, sim. Mas os registros imobiliários indicam que a mãe dele possuía uma casa na mesma cidade há vinte anos e, uma vez que o currículo de Veck já foi examinado, sei que lá consta que se formou no colégio da cidade de Garrison em 2000. Então, acho que podemos concluir com segurança que ele permaneceu nessa área.

Reilly colocou uma das mãos na cabeça enquanto sua mente oscilava.

– Estão armando para ele.

– Claro que sim.

– Maldição.

Agora, ela movia-se, descia as escadas rapidamente, seus sapatos produziam um som alto sobre o mármore.

– Outra coisa – disse De la Cruz. – Enquanto esperava uma resposta ao meu pedido, entrei no link da página do Facebook que você me enviou.

– Viu Bails?

– Sim, também acho que seja ele. Onde você está?

– Saindo da delegacia. Vou à casa de Veck agora mesmo.

Ao passar pela equipe de limpeza, prestou atenção ao andar sobre o mármore molhado e, em seguida, disparou pelo corredor.

– Só tem um problema – De la Cruz disse. – Não podemos usar os arquivos juvenis para provar nada. Jamais poderíamos ter acesso a essa informação.

Empurrou a barra da porta dos fundos e saiu com tudo pela noite.

– Tenho as imagens de Bails no Facebook... dei um print screen e salvei tudo no caso de retirarem o vídeo da rede por algum motivo e também descobri o apelido que ele usa. Acho que temos o suficiente para conseguir um mandado solicitando que o Facebook forneça detalhes da conta e do provedor de serviços. Podemos relacioná-lo ao caso dessa maneira.

– Provar que ele é fã de DelVecchio pai não é suficiente.

– É um começo.

– Concordo, mas temos que ter algo mais. E, antes que pergunte, sim, vou ligar para o sargento... a menos que você mesma queira fazer isso.

– Vou me ocupar com Veck. Talvez ele tenha alguma ideia do que esteja acontecendo.

– Entendido.

– Não sei como conseguiu isso.

– Oficialmente, não consegui nada.

– Bem, fico devendo uma. Você é um salva-vidas.

Ela finalizou a ligação e tirou da bolsa as chaves do carro...

– Na verdade, não são bem essas as palavras que eu usaria.

Reilly não teve sequer a chance de se virar. A mão de alguém agarrou-a por trás da cabeça e bateu seu rosto contra o carro, a parte superior da porta atingiu em cheio sua sobrancelha.

Quando as luzes apagaram-se para ela e seus joelhos dobraram-se, tudo o que ouviu foi a voz de Bails soando em seu ouvido: – Deveria ter olhado para trás.

Adrian dizimou o último demônio ao passar o arco de cima para baixo, a forquilha perfurou o peito negro e oleoso, como faca cortando manteiga. Ao menos... pensou ter sido ele mesmo.

Quando o corpo caiu com uma pancada abafada pelo solo úmido, olhou em volta... para todos os outros Adrians. Que, na mesma hora, voltaram-se e olharam em sua direção.

Girou a forquilha no ar e fincou-a no chão... e as outras dezenas de Adrians fizeram a mesma coisa num piscar de olhos depois.

Se Eddie estivesse aqui – pensou – com todos estes demônios, ele teria ficado muito animado. Eram criaturas demais precisando de uma boa surra.

Droga, Eddie... por que não fora ele o anjo escolhido para ter sete vidas?

Naquele momento, o rosto de todos os Adrians ficaram tensos, aquelas bocas que conhecia tão bem esticaram-se, as sobrancelhas cheias de piercings baixaram... até ficar cercado, literalmente, pela própria dor.

O som de palmas lentas fizeram seus rostos se erguerem e olharem ao redor. Colin tinha saído do apartamento e estava parado no topo das escadas.

– Muito bem, rapaz, muito bem.

– Tive ajuda.

Hum. Nenhum dos outros Adrians falaram, então, aquele deveria ser ele mesmo – que alívio. Pelo amor de Deus, aquilo o deixaria louco.

– Gostaria de ter me juntado a você – disse Colin ao flutuar escada abaixo e, em seguida, atravessar o solo cheio de manchas negras e de vapor. – Mas, como mencionou antes, estou aqui para cuidar do nosso saudoso ente querido.

– Eddie está bem?

– Sim.

Ad balançou a cabeça.

– Graças a Deus você estava aqui.

– Certamente.

Enquanto andava entre os restos mortais de todos aqueles demônios, as botas de Colin permaneciam imaculadas, mesmo com tanta sujeira e desordem no chão.

Ele e os outros Adrians ficaram impressionados. Então, percebeu que estavam soltando vapor: tentáculos de fumaça surgiam dos ombros e das costas de cada Adrian, o sangue corrosivo infiltrava-se no couro e escorria na pele. Com isso... Adrian arrancou o casaco...

Uma fração de segundo depois, ouviu-se um conjunto de sons como se um bando de gansos tivesse batido as asas e levantado voo. Todos os Adrians jogaram seus casacos ao chão, assim como ele tinha feito.

Colin parou na frente deles.

– Gostaria de continuar com seus amiguinhos?

Adrian olhou ao redor para as várias cópias de si.

– São uma ótima ajuda... Será que eles fazem serviços gerais e limpam a casa também? Desculpe perguntar, mas como fez isso?

Colin estendeu a mão. Com algum tipo de comando, a superfície de lodo escuro que cobria a garagem e o gramado começou a vibrar, em seguida, aqui e ali, pequenos objetos ergueram-se encharcados de...

Quando o líquido característico dos demônios escorreu por completo, Adrian percebeu que eram cacos de vidro. Vidro... Não, espelho.

– Bem pensado, bem pensado – Ad murmurou.

– Diga adeus à sua equipe, companheiro.

Olhou ao redor. E percebeu que desejava agradecer... Em perfeita sincronia, todos os outros Adrians colocaram as palmas das mãos direita em seus corações, e as cabeças abaixaram-se num gesto de reverência e seriedade. Então, partiram, juntamente com seus casacos.

– Posso tê-los de volta se precisar? – Ad perguntou. – Caso eu tenha que instalar um carpete ou mudar um piano de lugar?

– Sabe onde me encontrar.

– Sei – estendeu a mão, mas recuou quando viu o estado das luvas. – Tenho que saber uma coisa.

– O quê?

– Por que fez isto?

– Você ia perder.

– Vai contar a Nigel?

– Provavelmente. Acredito que seja melhor pedir desculpas que permissão.

– Sei bem como é.

Houve um momento de silêncio.

– Obrigado – Adrian disse um tanto rude.

O arcanjo curvou-se com graça.

– Foi um prazer. Agora, acho que devemos limpar isso tudo. Não tem muitos vizinhos em volta, mas seria difícil explicar, não acha?

Bem lembrado: se fosse um conflito menor, não havia razão para se preocupar com toda a sujeira grudenta. Deus era testemunha de que os humanos faziam muita bagunça e também deixavam substâncias oleosas para trás ao brigarem, mas tudo desaparecia com um pouco de sol. Já aquilo?

– A única opção – murmurou – seria dizer às pessoas que um navio petroleiro explodiu no jardim.

– O petroleiro não precisaria de uma autorização ou algo assim para circular por aqui?

– Provavelmente. Assim como o acesso a um monte de pólvora – balançou a cabeça. – Maldição, vamos precisar de muito...

Produto de limpeza era o termo que usaria, mas começou a pensar na quantidade de detergente necessária para dar um jeito naquilo tudo. Um caminhão de bombeiros com o reservatório cheio do produto seria suficiente.


Contudo, Colin cuidou de tudo: fazendo um gesto circular com a mão, fez desaparecer qualquer resquício da tremenda luta.

Adrian assoviou baixinho.

– Não está disponível para um segundo emprego, está?

Colin sorriu com um toque de mistério.

– Isso seria contra as regras, meu caro.

– E Deus nos livre de quebrar as regras.

Adrian arrancou uma de suas luvas e observou a expressão cínica do arcanjo quando as palmas de suas mãos se encontraram e apertaram uma a outra com força.

– Jim provavelmente está esperando por mim – Ad murmurou, olhando em direção à garagem.

– Neste momento, não tenho nada melhor para fazer.

O alívio de que Eddie não estaria sozinho foi tão profundo que ficou tentado a abraçar o filho da mãe.

– Então, vou voltar ao trabalho.

– Eu também.

Quando Adrian assentiu e lançou-se pelo ar, estava preparado para enfrentar Devina de uma maneira que nunca esteve antes.

E acabou sendo algo muito bom, considerando o que viu ao chegar à casa de Veck.


CAPÍTULO 45

 

Quando o telefone de Veck tocou às 20h45, estava tão tenso que quase não atendeu a porcaria. Andava pela casa agitado, esperando alguma coisa acontecer, qualquer coisa, alguma atitude de Heron... Veck movimentava-se tanto que o chão quase vibrava. Todo seu circuito elétrico interno estava acionado, mas não tinha nada a que se conectar.

– Não vai atender? – Jim perguntou do outro lado da cozinha. O anjo fumava em silêncio numa cadeira, como se estivesse ali há dias. Certo, não foram dias. Aqueles momentos sem nada acontecendo pareciam décadas.

Quando o telefone tocou novamente, Veck olhou para o objeto. Tinha jogado o celular no balcão e acionado o modo silencioso; assim, ele se aproximava da borda cada vez que vibrava. Ficaria contente em deixar a porcaria se movimentar à vontade até despencar em queda livre. Só que, então, viu que a tela exibia uma palavra: Reilly.

Veck quase mergulhou sobre o balcão.

– Alô! Alô? Alô?!

Não fazia ideia do por que ela ligaria, mas não tinha importância. Talvez tivesse discado por engano ou talvez quisesse o número da pizzaria que ele costumava ligar. Ou, caramba, mesmo se quisesse apenas xingá-lo, estava pronto para...

– Parece tão reprimido, DelVecchio.

Franziu a testa ao som da voz masculina.

– Bails?

– Já disse o quanto adoro seu nome? DelVecchio... – o cara pronunciou as sílabas lentamente. – Hummm, só o som já me deixa eufórico.

– Do que diabos está falando?

– DeeelVeeecchiooo.

De repente, Veck sentiu uma agressividade cega de ódio atingi-lo no coração.

– Por que está com o telefone da Reilly?

Claro que poderia deduzir. Deus, lá estava outra vez, pensou. Outra traição de alguém em quem achava que poderia confiar... Mas, desta vez, estava apavorado com as consequências.

Olhou para Heron, que havia colocado o cigarro no cinzeiro e levantado... como se estivesse esperando por isso o tempo inteiro.

– Por que, Bails?

Houve um gemido e um ruído de algo sendo arranhado... O tipo de som que os pés produzem quando arrastados sobre um chão de terra.

– Desculpe, eu estava movendo o corpo.

Veck apertou o telefone com tanta força que uma das teclas produziu um rangido.

– Mato você se machucá-la...

Ouviu o som de um tapa. Em seguida, um gemido.

– Acorde, vadia. Quero que fale com ele.

– Reilly – certo, Veck arrancaria a cabeça de Bails dos ombros e jogaria boliche com ela. Então, iria estripar o corpo e cortar os braços e pernas em pedacinhos. Mas primeiro castraria o filho da mãe.

– Reilly...

– Sinto... muito... – uma voz fraca disse.

Veck fechou os olhos.

– Reilly, vou resgatar você...

– Eu não... acreditei em você... desculpe...

As palavras arrastaram-se, como se a boca estivesse inchada, ou talvez – que Deus a livrasse – tivesse alguns dentes quebrados.

– Vou sair e resgatar você. Não se preocupe... eu vou...

Ela o interrompeu.

– Eu sei... eu não devia... ter feito isso... Bails... mentiu...

O grito dela soou tão alto que Veck precisou afastar o telefone do ouvido.

– Reilly! – Veck gritou, sua voz ressoava pela cozinha – Reilly...

– Desculpe – Bails o interrompeu. – Tive que apresentá-la à minha namorada. Vão se divertir juntas... ao menos até você se juntar a nós.

– Diga-me onde você está, seu filho da puta.

– Ah, eu vou dizer, mas estou com alguém aqui que quer te cumprimentar primeiro. Mas não quer conversar com você. Ela pediu para passar o telefone para Heron agora.

– Vá se foder...

Houve um ruído e, em seguida, uma mulher entrou na linha.

– Olá, pequeno Tommy.

Ah, droga, tinha alguma coisa errada com aquela... voz. Como se alguém tivesse instalado um daqueles filtros no gancho que distorcia as palavras pronunciadas. Mas não era o único problema. Seu pai o chamava assim quando era criança.

– Agora ouça, Tommy, quero que dê o telefone ao cara grande e bonito que está em pé do outro lado da sua cozinha. Então, quero que pegue seu casaco, se arrume e se arme – estou falando de suas armas, facas, o que quiser. Quando voltar ao local onde esteve andando tão agitado nas últimas horas, Heron vai te dizer aonde ir.

– Quem é você? – disse rangendo os dentes.

– Sabe exatamente quem eu sou – o riso que se seguiu foi como uma lâmina afiada. – Aliás, só mais uma coisa: sabe aquelas toalhas que você usa para cobrir as coisas? Podem te impedir de me ver, mas o contrário não acontece. Sempre estive de olho em você.

Veck olhou para Jim. O anjo balançava a cabeça de um lado a outro devagar, como se soubesse muito bem o que estava sendo dito mesmo com o celular colado na orelha de Veck.

– Antes de passar o telefone para Jim – a mulher, ou seja lá o que era aquilo, disse: – Deve saber que, se mais alguém vier com você, eu mato ela. Pego a faca que tenho aqui comigo agora, nas minhas mãos, e começo pelo rosto. Tem consciência de quanto tempo alguém pode sobreviver sem a boca? Muito tempo. Sem as orelhas? Os dentes? Ela pode continuar viva, mas rezando para morrer, se é que me entende. Não vou parar por aí... Vou descer para os dedos. Primeiro as juntas. Sou boa em seguir algumas regrinhas práticas para manter a pessoa viva enquanto eu quiser... Quem você acha que ensinou ao seu pai todos aqueles truques?

– Se tocar nela...

– Quem disse que já não toquei? Agora, seja um bom garoto e passe o telefone.

– Toma – Veck bradou ao jogar a coisa.

Não esperou para ver se cairia num local seguro. Correu para as escadas, subindo de três em três degraus, as solas do sapato rangiam, especialmente quando virou no patamar do andar de cima.

O armário em seu quarto estava cheio de armamentos. Armas de fogo, munição, facas... como aquela vadia sabia de tudo aquilo, não queria nem pensar...

– Droga! – gritou ao abrir as portas.

As prateleiras estavam vazias.

Mas é claro. A polícia estivera ali e devia ter levado tudo o que tinha como evidências.

– Não vai precisar disso.

Virou-se... e recuou. Parado na porta do quarto, o parceiro de Heron, Adrian, era uma confusão total: sua camiseta estava gasta em alguns lugares e... Cristo, que cheiro era aquele?

Não importa, pensou, o cara estava bem vivo e, pensando na situação como um todo, essa era a única informação que contava.

– Armas não vão funcionar – Adrian disse.

– Até parece que não.

Saindo rápido do quarto, Veck empurrou o homem ao passar, seus olhos lacrimejavam por causa do mau cheiro ácido. No andar de baixo, verificou os dois outros lugares óbvios onde guardava as automáticas: embaixo da pia da cozinha e embaixo do sofá. Nada. Só restava mais um lugar.

Quando a voz furiosa de Jim Heron veio da cozinha, Veck entrou na área de serviço entre a garagem e a casa. A lavadora e secadora estavam atrás de uma porta dupla de persianas, e Veck abriu com força as duas partes antes de se agachar. A secadora tinha caído na última mudança, com isso, o painel ficou meio solto, assim, se soubesse onde mexer... saía, por inteiro.

E lá estavam. As duas nove milímetros com carga completa, tudo envolvido em embalagens plásticas para não entrar fiapos.

– Obrigado, Deus.

– Não é disso que precisamos.

Veck ergueu o olhar. Jim estava em pé perto dele, o celular em uma das mãos. O anjo estava tão irritado que havia uma vermelhidão ao longo do pescoço e que subia ao rosto, mas não era o único brilho emanando dele: havia uma luz forte ao redor de seu corpo, como se fosse uma lâmpada acesa.

Veck levantou-se, a imagem de Reilly sendo desfigurada dava-lhe uma ideia muito precisa do que era necessário. Tirando as armas das embalagens, verificou duas vezes suas funções e, em seguida, examinou as duas cargas extras.

– Onde ela está? – perguntou enquanto carregava os bolsos.

– Se entrar nessa despreparado, vai escolher o caminho errado.

– Dane-se, estou muito bem preparado – pegou as armas e tirou Heron do caminho.

Seu coldre estava pendurado num dos cabides atrás da porta e deslizou as alças sobre os ombros. As duas armas encaixaram-se perfeitamente, em seguida, um blusão cobriu o show de armas.

– Onde ela está? – rosnou.

– Precisamos conversar.

– Não está na minha lista de coisas a fazer. Desculpe.

Com isso, tirou as automáticas do coldre e apontou uma delas para o peito de Jim Heron e outra para o de Adrian.

– Agora, onde está a minha mulher?


CAPÍTULO 46


Certo, aquilo era ótimo, pensou Jim, quando encarou o cano da nove milímetros.

– Diga onde ela está – Veck exclamou – ou eu atiro.

O cara não estava brincando: estava pronto a fazer isso com a frieza de sempre, uma geladeira. Algo que inspirava respeito. Só que Veck não estava raciocinando direito, não é mesmo?

– Se me matar – informou Jim – não poderei dizer aonde ir. E se matar ele – apontou com a cabeça para Ad – vou estrangular você com o seu intestino.

Houve uma breve pausa e, então, a arma apontada deslocou-se menos de um milímetro para a esquerda de Jim. O filho da mãe puxou o gatilho e disparou uma bala que passou raspando pelo ouvido do anjo.

– Quem falou em matar? – Veck abaixou a arma sutilmente. – A dor faz maravilhas em lábios que insistem em ficar fechados. Além disso, aposto que se eu retornar a ligação eles viriam até me buscar.

Analisando o caminho que a próxima bala seguiria, Jim temeu ser obrigado a iniciar uma carreira cantando em falsete – e não queria ter certeza se, como anjo, aquelas balas o atingiriam ou não. Ao menos não era o traseiro de Adrian na mira – já que o cara não cantava nada bem.

– Pense bem, Jim – o outro anjo murmurou. – Sabemos que o cara tem boa mira.

Jim balançou a cabeça.

– Não sabe no que está entrando, Veck.

– Já mencionei que o tempo está passando? Só Deus sabe o que está acontecendo com ela.

– Verdade, mas não é ela que me preocupa – Jim olhou para Ad. – E preciso ir com ele. Faz ideia de como posso fazer isso?

O outro anjo soltou um palavrão em voz baixa.

– Esse era o departamento de Eddie.

– Ninguém vem comigo – Veck bradou. – Ou aquela mulher vai matá-la. Vai parar de perder tempo ou...

– Devina não vai fazer nada com ela! Precisa de você lá, e Reilly viva é a única maneira de garantir que você apareça. Agora vai me dar um momento para pensar, seu idiota?

Quando Jim começou a andar, Veck começou a gritar, muito.

– Pare de se mover ou eu atiro – mas Jim ignorou o rapaz...

O segundo tiro atingiu o chão aos pés de Jim e deteve-o. Encarando com raiva o maldito filho da puta metido a Clint Eastwood, disse: – Passou a um centímetro da minha bota, cara.

– O próximo será no seu maldito tornozelo.

– Melhor que nas bolas – Ad comentou.

Jim virou-se para encarar o detetive, pronto para descrever um verdadeiro retrato de Devina... foi então que passou os olhos pela sombra duplicada do cara no chão. Aqueles dois desenhos escuros pareciam duas árvores na floresta...

E era possível esconder-se atrás de árvores, não? Poderia ficar bem atrás delas. Camuflar-se para dar a impressão de que fazia parte do ambiente de tal forma que qualquer pessoa como, por exemplo, seu inimigo, poderia olhar ao redor... e não ver nada.

Afinal, Devina sugeriu que não conseguia encontrá-lo – mas será que Jim desejava mesmo arriscar com algo que mal tentou conquistar?

Mas, então, pensou na experiência pela qual passou com aquele distintivo e a tentativa de entrar na mente de Veck. Ficou claro que quase se dividiu ao meio com aquilo, mas tinha outra opção? A não ser enviar aquele filho da mãe armado e furioso sozinho para a luta final?

– Tenho que entrar em você – disse Jim com voz profunda.

Veck franziu a testa com força.

– Desculpe, não faz o meu tipo.

– Poderíamos colocar uma peruca e um vestido nele – Adrian sugeriu. Ao olhar os outros dois na sala, o anjo deu de ombros. – Claro que teriam que arrumar alguma coisa do tamanho de uma lona, certo?

– E pensar que estou feliz em ver que aquele cara sabichão está voltando – Jim murmurou antes de olhar outra vez para Veck. – Tenho que ir com você... E ela não pode saber que estou lá. Então, se me der licença...

Jim fechou os olhos e, instintivamente, deixou sua parte corpórea se desvanecer, derramando seu traje de pele e ossos até não ser nada além da fonte de luz que animava aquele corpo.

Dissolveu-se sem problemas... Exatamente como havia feito com Devina, mas não tinha sido capaz de se controlar naquele covil ao explodir em fúria contra ela.

– Prepare-se, garotão – disse no ar.

Ficou claro que Veck ouviu-o, pois recuou, seus olhos reviraram como ervilhas com a perspectiva de ser possuído. Mas aquela era a única maneira de protegê-lo, e Veck deve ter entendido, pois não recuou.

Já que Jim não tinha ideia do que diabos estava fazendo, aproximou-se com cuidado. A última vez em que fizera aquilo, tinha explodido Devina ao meio... E esse não era exatamente o final feliz que desejavam.

Boas notícias – pensou. Ao pressioná-lo, Veck parecia uma peneira, mostrando uma resistência passageira. Dentro da concha? Jim lutou por um pouco de espaço na paisagem metafísica que não tinha nada a ver com as moléculas que o constituía como homem e tudo a ver com o espaço entre elas. E, como pode imaginar, entendeu claramente por que Eddie disse que um exorcismo não adiantaria em nada. Veck parecia uma bolacha recheada, tudo era meio a meio: cada centímetro de sua alma tinha um elemento yin e outro yang, o bem o mal estavam entrelaçados. Não tinha como operá-lo e remover o que fosse preciso. Isso o destruiria.

Só que duas pessoas poderiam jogar: por instinto, Jim inundou o interior do homem, tornando-se uma névoa que resultou numa situação com três elementos. Cara, aquilo parecia sujo. Mas o importante era que, assim como o dna de Devina penetrava, Jim conseguiu fazer o mesmo – e não se escondeu atrás do lado bom, mas do lado mal. Conseguiria se ocultar melhor assim.

Hum. Naquele ponto, conseguiu olhar pelos olhos de Veck.

– Como estou? – Jim perguntou com a própria voz... Ei, conseguia falar com a boca do bastardo também.

Do outro lado, Adrian deu de ombros.

– Muito bem... não consigo te sentir. Mas preciso perguntar... Querem um cigarro? Ou devo oferecer dois?

– Vá se foder– Jim e Veck responderam ao mesmo tempo.

Parado na área de serviço, Veck sentia-se um pouco enjoado, como se tivesse comido um lanche de dois dias atrás, tomado cerveja morna e uma raspadinha de cereja de sobremesa: estava tão cheio que mal conseguia se movimentar.

E quanto a ouvir a voz de Jim saindo dos próprios lábios? Podia passar sem essa, muito obrigado.

– Então, aonde vamos? – perguntou.

Bem, aquilo dava um novo significado ao que chamavam de “conversar sozinho”.

– À pedreira.

– À pedreira? Pelo amor de Deus, vai levar uma eternidade para...

– Pegue os cigarros – Jim falou.

– Dane-se isto, precisamos da minha moto... vamos levar meia hora para...

– Vamos, relaxe. Pegue os cigarros... eu cuido dos preparativos da viagem.

Soltando um palavrão, foi até a mesa da cozinha, pegou o maço de cigarros, o isqueiro e guardou tudo junto com a munição das armas.

– E pegue isto – Adrian disse, desembainhando o que parecia ser uma faca de vidro.

– Sem ofensa, vou continuar com as balas.

– Sub-humano idiota – o anjo empurrou o punhal no cinto de Veck. – Pode apertar o gatilho do que quiser. Isto aqui é para Jim.

– Diga que não é permanente.

– Não, vai ter que devolver a minha arma no final.

Muito engraçado.

– Estou falando de Jim.

– Não, não é – o anjo respondeu com a boca de Veck. – Posso sair com a mesma facilidade com que entrei.

– Tem certeza?

– Não.

– Fabuloso – Veck olhou ao redor para encarar os olhos de Heron e percebeu que seria inútil se não tivessem um espelho por perto. – Então, como vai nos levar...?

Próxima parada: pedreira. Literalmente.

E não havia nenhum ônibus, trem ou carro com o qual pudesse comparar: num momento Veck estava em sua casa e, no seguinte, estava no centro da longa encosta da pedreira.

Não se dirija a mim em voz alta – disse Jim em sua mente.

É assim que os esquizofrênicos devem se sentir – Veck pensou.

Não sei dizer. Se contenha, só isso.

– Como se eu tivesse escolha com você aqui dentro – Veck murmurou, ao olhar em volta.

Espere, antes de entrar – houve uma pausa. – Veck, este show é seu. Só vou me certificar de que você viva tempo suficiente para conseguir aproveitar uma boa oportunidade – mas está tudo em você. Não vou interferir ou interceder. Estamos entendidos? Vai ter que se decidir sozinho. Mas tem que fazer a coisa certa, seja lá o que for.

– Sim. Claro.

Só para lembrar: geralmente, o mal mostra o caminho mais fácil. E estamos lidando com o seu destino e o de mais ninguém.

Com isso, um brilho emanou da entrada de uma das cavernas pouco mais de cem metros à direita.

Chega de conversa.

Sacando as duas armas, Veck moveu-se rápido como o vento, saltando de pedra em pedra, aterrissando, escalando, pulando. Enquanto seu corpo estava a todo vapor no sentido de resgatar Reilly, seus olhos permaneciam fixos naquela luz. A cada obstáculo que ultrapassava, visões horríveis percorriam sua mente, aqueles pesadelos sangrentos, tenebrosos, faziam seu peito queimar com uma fúria que aumentava suas forças para além de suas limitações físicas.

A caverna em questão tinha uma entrada grande e larga o suficiente para que ele não precisasse nem se abaixar ou se espremer para passar. Então, viu que o corredor esculpido pela natureza à sua frente seguia em direção às profundezas da terra.

Abaixou-se e correu o mais rápido que pôde em direção ao brilho intermitente.

Em volta dele, as paredes eram úmidas e ásperas, do teto gotejava algo, o chão era irregular. Em pânico, tentou filtrar o som dos próprios passos e ouvir alguma outra coisa: gritos? Respiração pesada? Gemidos de dor? Nada. Estava tudo silencioso demais.

Então, virou-se para um dos cantos mais ao fundo. A caverna abriu-se para o que parecia ser um espaço com muros baixos do tamanho de uma sala grande. Contudo, era impossível ter uma ideia exata das suas dimensões, pois o local estava iluminado apenas por velas; fora isso, não havia nada além de escuridão.

No centro, havia um corpo pendurado pelos braços, a partir do teto. Não era Reilly. Parecia ser um homem com cabelos curtos e loiros de tom areia. Veck olhou ao redor procurando Bails e aquela vadia. Mas tudo o que havia... era o corpo. E o rosto estava voltado contra a parede.

Parecia que usava... um avental de hospital? – pensou ao avançar, mantendo as armas erguidas.

– Reilly! – gritou.

O eco despertou quem estava pendurado e, quando essa pessoa tentou virar a cabeça, o som de algo sendo arranhado pairou pelo ar úmido e rarefeito. O homem virava lentamente, usando as pontas dos pés descalços e enlameados para mudar de posição.

Quando Veck viu quem era, soltou um palavrão: a identidade da vítima era clara, apesar do cara ter recebido vários socos no rosto recentemente: sua testa estava inchada e cheia de hematomas, mas os traços eram bem conhecidos.

– Kroner... – Veck murmurou, pensando em como o bastardo fora levado até ali. Porém, raptos em hospitais eram improváveis, mas não impossíveis.

O serial killer esforçou-se para levantar o queixo, a boca funcionava com lentidão. Estava tentando falar alguma coisa, mas Veck não deu a menor importância ao que o bastardo tinha a dizer.

– Reilly! – ele gritou, esperando que a escuridão além das velas abrigasse outro ambiente onde ela poderia estar...

Alguém aproximou-se dele vindo das sombras. Ele piscou um pouco para melhorar o foco da visão, mas, quando isso não aconteceu, percebeu que era, na verdade, uma mulher. Contudo, o que alguém como ela estava fazendo ali...?

– Olá, Veck – era a voz do telefone, ao vivo e em cores. – Bem-vindo à festa.

A morena fazia Angelina Jolie parecer uma bibliotecária: era exuberante e perigosa, algo selvagem, vestida com uma saia curta e de salto alto. Poderia estar num café no centro da cidade ou num elegante clube particular... qualquer lugar, menos naquela caverna fedida.

– Você veio sozinho? – ela perguntou, os lábios espessos e suculentos contraíram-se.

– Sim.

– Bom – movia-se ao redor dele, circulava, sorria. – Você é igualzinho ao seu pai: segue todas as instruções.

– Onde está Reilly?

– Sua devoção a essa mulher é... – a voz ficou tensa – invejável. E como eu posso imaginar o quanto está ansioso para encontrá-la, acho que estou preparada para te responder.

– Então, faça isso.

Ela olhou as armas.

– Acha mesmo que isso vai funcionar contra mim? – sua risada tinha a beleza de uma brisa... bonita... mas, mesmo assim, soava falsa aos ouvidos. – E, oh, veja só isso, eles te deram uma adaga também. Suponho que a esperança seja a última que morre. Aliás, Jim te contou que ele era um assassino?

– Não dou a mínima para o que ele era.

– Certo, certo, o que importa é a garota – a voz soou amarga outra vez. – Como é sortuda. E ela deveria saber o que sente, não acha?

Veck olhou para as sombras.

– Eu te amo, Reilly! Estou aqui!

– Que romântico – a morena disse em tom seco.

Quando a mulher voltou sua atenção ao serial killer, Veck decidiu apostar em alguma coisa: abaixou uma das armas... e pegou a adaga de vidro que lhe fora dada. Nada daquilo fazia sentido... o que dava mais credibilidade ao conselho de Adrian.

– Onde diabos ela está? – rosnou.

– Vou dizer... mas tem que fazer uma coisa para mim.

– O quê?

A morena sorriu e afastou-se de Kroner.

– Mate-o.

Veck estreitou os olhos em direção à mulher.

Em resposta, ela exibiu um sorriso ainda mais profundo.

– É o que você iria fazer mesmo, afinal. Esperou por ele na floresta, aguardou o tempo que foi necessário até ele aparecer entre as árvores próximas àquele hotel. Estava prestes a agir... mas sua chance lhe foi negada.

Ao olhar para ela, o corpo de Veck começou a vibrar, aquela raiva que sentiu na delegacia começou a envolver seu tronco, enrijecendo os músculos.

– Este é o meu presentinho para você, pequeno Tommy. É só matá-lo que eu te mostro onde sua mulher está. É o que você quer. É por isso que está aqui. É o seu destino.

Do nada, uma luz atravessou a escuridão, dispersando um pouco as sombras e revelando... Bails.

O cara estava sentado no chão da caverna, recostado contra a parede. Havia a marca de um tiro entre seus olhos ainda abertos, uma linha muito fina de sangue escorria até o nariz. A boca estava frouxa e a pele exibia uma palidez cinza.

– Não se preocupe com ele – a morena disse com desdém. – Não era nada, apenas um peão. Você, por outro lado... é o prêmio. E tudo o que tem a fazer é agir. Mate-o... e garanto que verá sua garota.

De repente, Veck percebeu de onde vinha a fonte de luz. Tinha erguido uma das mãos e a adaga de vidro refletiu o brilho de uma das velas, que já parecia manteiga derretida, enviando a luz ao longo da caverna até atingir seu suposto amigo.

– O tempo está passando, pequeno Tommy. Vamos fazer isso logo, para que possamos sair daqui. Ouça seus instintos. Faça o que acha ser certo. Atire neste monte de lixo, assassino sem moral, e encontre o que procura. É um caminho tão óbvio, uma troca tão simples... tudo o que Reilly representa, por este louco assassino. Está tudo em suas mãos...

– Reilly está viva? – ouviu-se dizer.

– Está.

– Vai nos deixar sair daqui vivos?

– Provavelmente. Depende do que você fizer, não é mesmo? – a voz da morena tornou-se um sussurro sedutor. – Poderá vê-la no momento em que terminar o negócio. Juro. Está tudo em suas mãos...


CAPÍTULO 47

 

Pendurada no teto da caverna, Reilly não conseguia acreditar na imagem que mostrava para Veck: o avental de hospital, o peito liso e as pernas balançando não eram seus.

Mesmo assim, mesmo com a dor lancinante em sua cabeça, mesmo com a confusão e o pânico que sentia, conseguiu mover os membros que não eram seus, conseguia respirar através de uma garganta que não conhecia, conseguia encher os pulmões de outra pessoa.

Tudo isso deu credibilidade ao que Veck pensava estar vendo. E, por isso, iria matá-la – ela pensou, com horror e descrença.

Esforçando-se para falar, sussurrou com a voz rouca que não lhe pertencia: – Sou... eu... por favor...

–...é um caminho tão óbvio, uma troca tão simples... tudo o que Reilly representa, por este louco assassino. Está tudo em suas mãos...

A morena que falava não era uma mulher de verdade. Reilly tinha visto o que era aquela coisa... sua essência vil fora mostrada enquanto Bails falava com Veck ao telefone. E foi por isso que gritou.

Em seguida, pareceu ter entrado na mente de Bails e fez com que o cara voltasse a arma contra si mesmo. O grande mentiroso, pensou. Quem diria que aquilo ficasse tão verdadeiro com relação ao diabo.

– Veck... – Reilly tentou reunir um pouco mais de fôlego, arrastando o ar disponível ao longo daquela caixa torácica fria. – Veck... não...

Mas sua voz não o alcançava... e não alcançaria: quanto mais alto falava, mas parecia ser Kroner, como se as cordas vocais dele tivessem substituído as dela. E estava perdendo a pouca força que tinha: Bails arrastou-a encosta abaixo na pedreira; assim, suas pernas sofreram sérias contusões. Tinha certeza de que tinha perdido sangue. Também estava certa de ter sofrido uma concussão e ficava cada vez mais fraca por estar pendurada há uma quantidade de tempo que só Deus poderia dizer.

Uma lágrima quente deslizou em sua face, em seguida, outra... e, então, começou a derramar várias. Num momento ou outro, como a maioria das pessoas, viu-se entretida em pensamentos mórbidos sobre quando e como a morte a esperava: uma doença de lenta expansão? Um rápido acidente de carro? Alguma fragilidade genética que gerava uma predisposição a cardiopatia? Ou o ataque de um criminoso, no qual ela revidava e, talvez, atirasse no bandido ao mesmo tempo em que ele atirasse nela. Algo assim, glorioso. O que acontecia naquela caverna fria e úmida? Não tinha nada a ver.

Olhando para o rosto frio e furioso de Veck, começou a ver tudo duplicado, seus olhos eram incapazes de unir as duas partes dele... Então, teve a oportunidade de observar bem que não havia nenhuma compaixão, emoção ou dúvida em sua expressão...

Quando a adaga de cristal brilhou ao ser erguida, percebeu que olhava para o rosto do pai dele. Era o filho vivenciando o legado do pai.

Imagens de seus pais fizeram as lágrimas caírem com mais intensidade. Não teve chance de se despedir. De dizer a eles uma última vez que os amava e que transformaram não só sua vida, mas a de muitas pessoas... e não pôde dizer a Veck corretamente que acreditava nele, que sabia que era inocente... e que o amava. Claro, a grande ironia é que ele estava prestes a matá-la sob o pretexto de salvá-la.

– Sei que não fez aquilo – disse ela num sussurro difícil que não chegou muito longe. – A evidência... foi Bails...

Pensando na quantidade de tempo que ainda lhe restava, por que era tão importante dizer aquilo? Não fazia ideia. Aquelas palavras pareciam não ter importância alguma. Melhor dizer logo.

– Eu... te amo...

Então, fechou os olhos, virou a cabeça e se preparou. Ele atingiria o coração. Com um punhal... era a maneira mais eficiente... Veck não perderia tempo sabendo que sua vida estava por um fio.

O terror sufocou-a e seu corpo começou a tremer. A boca se abriu quando começou a soluçar. As lágrimas escorriam... assim como seu sangue faria em breve.

Algumas noites atrás, naquela floresta, perto daquele hotel, Veck estava pronto para acabar com aquele lixo chamado Kroner.

Claro, não seria em benefício da sociedade... apesar de estar disposto a dizer que sim. Depois que a oportunidade havia chegado e partido em seguida, ficou aliviado em não ter feito aquilo.

Agora? Possuía a única justificava que importava de fato: sua Reilly. Não dava a mínima se ela pensava que tinha violado aquela prova ou se não teria qualquer coisa com ele depois de tudo isso. Salvar a vida dela era suficiente. A morena estava certa, era uma troca bem simples.

Veck observou sua vítima. Pendurado no teto da caverna, Kroner movia os lábios e, considerando as lágrimas despejadas de seus olhos, sem dúvida implorava por misericórdia, o assassino mendigava por tudo o que não havia concedido a suas presas.

Cristo, era tão patético, a roupa de hospital estava manchada de sangue, como se tivesse sido puxado pela cabeça encosta abaixo, a pele estava tão esbranquiçada que já parecia neve e o rosto estava todo distorcido de inchaço.

Veck sentiu um desejo passageiro de se livrar do punhal e socar o cara até o filho da mãe ter um infarto. Suas vítimas morreram devagar... Estavam conscientes enquanto ele tirava pedaços delas... Parecia carma fazer com que ele soubesse intimamente como era estar fora de controle, com dor e à mercê de outra pessoa. Mas a vida de Reilly estava em jogo.

Veck ergueu o braço acima do ombro e apontou a adaga de cristal em direção ao peito de Kroner. Uma facada precisa era tudo o que precisava e Deus era testemunha de que Veck possuía a força necessária para isso...

Assim que a arma atingiu o ápice do gesto, apenas um segundo antes de investir seu corpo com um impulso para baixo, uma das faces da adaga captou a luz de uma vela e projetou-a contra o rosto de Kroner.

Veck franziu a testa quando teve uma visão clara daqueles traços raquíticos: Kroner tinha fechado os olhos e virado o rosto, seu corpo frágil tremia enquanto preparava-se para a morte.

– Qual é o problema? – a morena vociferou. – Faça isso. E terá sua garota.

Não posso tirar uma vida que não é minha – Veck pensou com uma convicção inexplicável e repentina.

– Faça!

Não posso... tirar uma vida que não é minha.

Seu pai... Kroner... homens assim... achavam que todas as vidas, de todas as pessoas e de todas as coisas, eram deles e que, por isso, podiam tomá-las, e era um capricho do destino quem decidiam escolher, quem seria o próximo prêmio a ser conquistado. O troféu era uma maneira de manter uma fatia daquele momento no qual sentiam todo o poder, um momento no qual possuíam o controle, no qual pensavam ser como Deus – pois, assim como um orgasmo, aquele prazer era fugaz e apenas lembrar-se daquilo não era uma experiência real. E por isso repetiam tais atos, várias e várias vezes.

Quanto a ele? De alguma maneira, parecia ser o início perfeito, a irritação cutânea causada por uma hera venenosa a qual, se coçasse, aumentaria e tomaria conta de todo seu corpo.

Não posso tirar uma vida que não é minha.

– Apenas faça isso! – a morena exigiu.

Veck olhou para a mulher. Seus olhos negros diziam muito mais que as palavras que pronunciava, apresentavam a tentação de fazer coisas além da caverna, além daquela fração de segundo, estavam prestes a...

– Reilly ou ele – ela sussurrou. – Escolha agora.

O braço de Veck começou a tremer, seus fortes músculos mostravam-se preparados para atacar, mas incapazes de suportar a tensão entre decisão e ação.

– Não acredito em você – Veck ouviu-se dizer.

– O quê?

Veck abaixou a arma. Com a voz rouca, disse: – Não confio em você. E não vou... – teve que limpar a garganta para continuar. – Não vou matá-lo.

Bails já estava morto e não havia outros sons na caverna. E aquela mulher... ou seja lá o que fosse... era uma mentirosa: Reilly esteve viva em certo ponto – era a voz dela ao telefone, com certeza – mas não havia mais ninguém respirando naquele buraco úmido e não tinha como Reilly ter fugido sozinha, sua voz estava muito fraca naquela ligação. Havia grandes chances de já estar morta.

E apesar de aquilo enlouquecê-lo de dor e de desejo de vingança, Kroner, naquelas condições, não faria jus ao ato.

– Seu bosta miserável – a mulher vociferou. – Seu patético do caralho, covarde. Seu pai não hesitou... anos atrás, quando foi a vez dele, aproveitou a maldita chance que eu lhe dei.

Por alguma razão, Veck pensou no jantar que teve com os pais verdadeiros de Reilly, os que a assumiram e a criaram para a vida adulta: não tinham o mesmo sangue, mas foram melhores para ela do que aqueles que a trouxeram ao mundo.

– Não sou meu pai – disse em tom áspero.

Quando as palavras foram registradas por seus ouvidos, sentiu-se mais forte: – Não sou meu pai.

Sentiu uma brisa quente atingi-lo como se a morena fosse um aquecedor trabalhando a todo vapor.

– Está dizendo que isto – apontou para Kroner – vale mais que a mulher que você ama?

– Não. Estou dizendo que não vou matá-lo. Não acho que Reilly esteja... – sua voz falhou, mas recuperou-se rapidamente. – Não acho que ela esteja viva. E não sei por que diabos quer que eu o mate, mas se a última coisa que eu fizer nesta vida for irritar você, por mim tudo bem. Vadia.

Um rugido soou de maneira tão violenta que Veck foi lançado para trás, seu corpo atravessou o ar e bateu contra a parede da caverna atrás dele. Ao cair, conseguiu ficar em pé apenas por uma fração de segundo e pôde sentir a terra tremendo sob seus pés, em seguida, ouviu as pedras da encosta acima dele vibrarem enquanto terra e pedregulhos caíam do teto. Num impulso, protegeu a cabeça, pois era tudo o que podia fazer...

As velas apagaram-se de uma só vez. Então, na profunda escuridão, uma ventania surgiu do nada, a rajada violenta produziu um barulho cruel, ensurdecedor. Em meio àquela fúria, pedras cada vez mais pesadas começaram a cair, até Veck encolher-se por completo... Cara, não sairia desta vivo. De jeito nenhum.

Ao longe, ouviu rochas maiores se deslocarem, mas sabia que, na realidade, não deviam estar tão distantes assim. A terra provavelmente abafava os sons: a pedreira como um todo parecia um queijo suíço, um campo minado cheio de corredores subterrâneos, incapazes de suportar aquela explosão...

De repente, o furacão foi sugado da caverna, levando o ruído estridente consigo. Depois disso, conseguiu ouvir soluços suaves em meio aos sons surdos da encosta. Soluços femininos. Não tinha nada a ver com Kroner.

– Reilly? – ele gritou. – Reilly!

Veck deu um salto.

– Droga! – murmurou ao bater a cabeça em alguma coisa.

Esfregando a cabeça, agachou-se para não atingir o teto outra vez. Colocou a adaga de volta no cinto e tateou os bolsos à procura de sua lanterna. Droga. Não tinha trazido.

Soltando um palavrão, tentou se concentrar nos sons que vinham dela.

– Fale comigo, Reilly! Me ajude a te encontrar!

– Estou... bem... aqui...

– Reilly! – gritou, estendendo os braços para frente e movimentando-os em todas as direções em meio à escuridão...

Subitamente, sentiu seu próprio terremoto, seu corpo descontrolou-se quando Jim Heron separou-se e saiu dele, revelando-se em sua forma corpórea.

Foi perfeito: de repente a caverna se encheu de luz, a forma do anjo brilhou muito ao sair de Veck.

Por um momento, tudo o que Veck conseguiu fazer foi encarar a cena que passou a enxergar. Droga, não fazia sentido. Reilly estava pendurada no teto, exatamente onde Kroner estava, com os braços esticados sobre a cabeça e os pés mal tocando o chão. Seu rosto estava inchado, as pernas sangravam, a meia-calça tinha rasgado, a saia estava suja de lama e só Deus sabia onde estariam os sapatos.

– Reilly? – sussurrou.

Ela fez um esforço para erguer a cabeça. Atrás dos cabelos endurecidos de sujeira, os olhos dela, cuja visão ainda estava embaçada, buscavam os de Veck.

– Sou... eu...

Uma chuva de fragmentos rochosos começou a cair do teto e fez Veck entrar em ação. Não era hora de questionar nada. Tinha que tirá-la dali antes que a encosta desabasse sobre eles. Graças a Deus havia a luz de Heron, que o orientava.

Veck utilizou-se da luz para se aproximar de Reilly. Só que, quando conseguiu examinar o que a pendurava, viu que estavam em apuros: os elos de ferro foram fixados no teto rochoso e as grossas algemas estavam presas às malditas correntes com grandes parafusos.

Caramba, não era a primeira vez que a caverna fora usada, não é?

– Droga – murmurou enquanto tentava encontrar um jeito de libertá-la.

– Use a adaga – disse Jim.

– É apenas vidro...

– Use a maldita adaga.

Veck pegou a lâmina e colocou-a contra os elos. Não esperava muita coisa... a não ser a “arma” se despedaçando...

O metal rompeu-se completamente com o cristal, não apenas dividiu-se em duas partes mas despedaçou-se sozinho: quase não houve tempo de pegar Reilly e evitar sua queda.

Ao apertá-la contra si, sentiu o tremor de seu corpo e permitiu-se um breve momento de felicidade ao ver que estava viva e, em seguida, empenhou-se em tirá-la dali.

Com Reilly nos braços de Veck, Jim liderou o caminho ao longo do corredor sinuoso com sua luz. Quando se aproximaram de Bails, Veck teve que parar.

– Vamos deixá-lo aí – Jim falou.

– Está certo – só Deus sabia de verdade quem era aquele seu “amigo”, mas uma coisa estava clara: não importava. Qualquer um que sequer fechasse Reilly no trânsito estava em sua lista negra. Colocar sua vida em risco? O bastardo tinha sorte de já ter levado um tiro na cabeça...

Atrás deles, o teto começou a ruir. Com isso, o aumento da intensidade dos sons, as pedras caindo e o ar frio impulsionaram Veck a dar o fora dali o mais rápido possível.

Ele começou a correr, seu corpo avançava numa velocidade vertiginosa. Quando a rampa por onde corriam começou a desabar sob seus calcanhares, era como algo saído de um filme do Indiana Jones, só que bem real. Merda, a saída não parecia estar tão longe...

Veck irrompeu do túnel para o ar livre, quase perdendo o equilíbrio ao saltar sobre uma rocha diante dele. Não havia tempo para agradecer a Deus ou a Heron ou a qualquer pessoa. Se a caverna desmoronasse, havia uma grande possibilidade de cair uma avalanche.

Serpenteando com movimentos bruscos ao longo de um caminho à esquerda, não se preocupou em medir a distância que tinham que percorrer para chegar até a borda da pedreira. Não perdeu tempo olhando para trás para observar os pedaços de quartzo do tamanho de carros se soltarem. Tiraria Reilly daquela maldita pedreira, mesmo se aquilo o matasse.

Iria salvá-la – e todas as dificuldades por conta dos obstáculos diante dele, do percurso de quase um quilômetro de subida que precisava fazer e da extrema exaustão que queimava seu peito e suas coxas não o deteriam.

Teve a oportunidade de vender sua alma e conseguiu se afastar da mesa de negociação. Aquele triunfo era nada comparado ao que sentiria ao certificar-se de que Sophia Reilly veria o nascer do sol na manhã seguinte.


CAPÍTULO 48

 

Reilly deve ter perdido a consciência depois que Veck libertou-a das correntes que a prendiam naquela caverna, pois, quando acordou, havia luzes vermelhas piscando ao redor dela e estava deitada sobre algo relativamente macio.

– Veck...?

– Senhora?

Aquela não era a voz de Veck, definitivamente. Franzindo a testa, forçou os olhos a entrarem em foco... e conseguiu visualizar a imagem borrada de um paramédico inclinado sobre ela.

– Senhora? Qual é o seu nome?

Ele conseguiu – pensou. De alguma maneira, Veck tirou-a dali.

– Senhora? Pode me ouvir?

– Reilly. Sophia... Reilly.

– Sabe em qual ano estamos? – depois que respondeu, ela ouviu mais umas duas perguntas que fizeram para saber quantos neurônios tinha perdido.

– Onde está... Veck? – por que seus olhos não funcionavam...?

Uma luz brilhante explodiu em um de seus olhos.

– Ei!

– Só estou verificando de novo suas pupilas, senhora.

Lutou para erguer uma das mãos e viu que tinham colocado um cateter numa das veias do braço.

– Gostaríamos de levá-la para o Hospital São Francisco – o homem disse. – Está em estado de choque, pode precisar de uma transfusão e tem uma concussão.

– Onde está...?

Virou a cabeça... e lá estava ele.

Veck estava em pé ao seu lado, quase fora do alcance da luz projetada pela ambulância. Com os braços cruzados na frente do peito, olhava para o chão aos seus pés. Parecia ter acabado de sair de uma guerra, havia grandes manchas de suor em sua camisa, a calça estava salpicada de sujeira e rasgada em alguns lugares e seu cabelo estava todo espetado para cima. Vagamente, Reilly perguntou-se onde seu blusão fora parar.

Um oficial de polícia com um bloco de anotações estava parado ao lado dele. Sem dúvida, coletando um depoimento, e havia vários membros da equipe de resgate preparando-se para descer a pedreira. Para resgatar Bails, sem dúvida.

Veck balançava a cabeça. Assentia. Depois falava. Lágrimas brotaram nos olhos de Reilly ao vê-lo. Ele carregara-a para fora da caverna. Fizera a coisa certa... não era um assassino.

Como se tivesse sentido seu olhar, Veck ergueu os olhos e encontrou os dela: imediatamente, Reilly voltou àquela floresta, quando se viram pela primeira vez ao lado do corpo de Kroner. Quando ele pareceu hesitar, incerto se ela o queria ou não, Reilly tentou alcançá-lo com uma das mãos.

– Veck...

Deu um passo adiante. E mais outro. O policial o deixou e o paramédico saiu do caminho. Com isso, aproximou-se dela com pressa, envolvendo sua mão com um pouco de força que logo desvaneceu-se, restando apenas um toque muito suave.

– Como você está? – Veck perguntou com voz áspera, como se tivesse gritado muito ou talvez se cansado ao subir aquela encosta com ela como um cavalo de corrida.

– Cabeça... – tentou erguer uma das mãos e descobriu que seu braço pesava uns duzentos quilos. – Você? Você está...

– Tudo bem.

Não parecia bem. Parecia pálido e abatido. De fato, se fosse qualquer outro homem, teria dito que estava... perdido.

– Bails – ela disse, depois tentou engolir a saliva. A garganta estava tão seca, que era como se tivesse passado por um incêndio na floresta e respirado a fumaça. – Ele atirou em si mesmo.

– Não se preocupe com...

– Não – agora era ela quem apertava a mão dele. – Ele armou tudo... contou... sobre os antecedentes juvenis... o Facebook...

– Shhh...

– Ele estava na frente da prisão. Por seu pai. Ele era...

Certo cinismo eclipsou a exaustão de Veck.

– Um dos fãs daquela legião.

– Eu sei... não plantou o brinco. Bails... deve ter sido ele. Atirou em si mesmo... na minha frente...

– Nada disso importa...

– Desculpe – as malditas lágrimas voltaram, mas não fez nada para contê-las. – Eu sinto tanto...

– Shhh – Veck colou o dedo indicador sobre os lábios dela. – Vamos tirar você daqui.

– Já fez isso.

– Ainda não foi o suficiente.

Por um longo momento, apenas se entreolharam.

– Vou ligar para os seus pais – esfregou o cabelo para trás. – E dizer que te encontrem no hospital.

– E quanto a você...?

– Vou me certificar de que estejam lá – Veck recuou e olhou para o paramédico. – É melhor ir.

Não era um pedido. Era uma ordem.

– Veck...? – ela sussurrou.

Seus olhos evitaram os dela.

– Vou ligar para os seus pais.

– Veck.

Quando ela começou a fazer uma tentativa de se sentar, o paramédico começou a deslizar a maca para dentro do veículo. Enquanto isso, Veck apenas deu mais um passo para trás.

Houve outro impacto e um deslizar suave quando terminou de ser instalada dentro da ambulância.

– Eu te amo – gritou o mais alto que pôde. Não era muito.

A última coisa que viu antes de as portas se fecharem foi a expressão de dor de Veck... e, em seguida, sua cabeça assentindo lentamente.

Com isso, percebeu que não era preciso dizer adeus para que houvesse uma verdadeira despedida.

Veck respirou a fumaça de óleo diesel quando a ambulância começou a se mover e pegou a estrada de terra que conduzia para longe da pedreira. O motor roncou alto ao ser acionado e, em seguida, passou a emitir um zumbido suave que foi desaparecendo aos poucos.

– Detetive? – seu colega do Departamento de Polícia disse atrás dele. – Só tenho mais algumas perguntas.

Boa sorte – pensou. Pois não tinha certeza se conseguia sequer lembrar-se do idioma que falava.

– Quando chegou, Bails tinha prendido a oficial Reilly...

– Ela estava amarrada – disse com raiva. – Pelos pulsos.

– E o que aconteceu? Depois que chegou?

Certo, como explicar tudo aquilo.

– Fui incitado... a matá-la.

– A oficial Reilly?

– Sim.

– Mas por quê?

Sobre isso poderia dizer a verdade.

– Porque, como todo mundo... ele se perguntava o quanto sou parecido com meu pai. Mas eu o decepcionei. Muito.

Poderia muito bem deixar a mulher de fora. É óbvio que não existia de verdade... Ao menos, não no plano convencional, 3D, do tipo que podia ser relatado num depoimento policial.

– Disse que Bails estava morto quando deixou a caverna.

– Estava morto quando eu cheguei lá. Um tiro na cabeça.

– Quem atirou?

– Reilly disse que fez isso sozinho.

O oficial assentiu e fez algumas anotações.

Cara – Veck pensou – estou farto de assumir esta posição diante da lei.

– Bem, é isso por enquanto – o oficial olhou para cima. – Imagino que queira ir para o hospital. Quer uma carona?

Veck balançou a cabeça.

– Estou indo para casa.

Só que, merda, como conseguiria? Já que Jim Heron trouxera-o até ali daquela maneira? E onde estava o cara, afinal?

Nesse momento, um carro sem identificação estacionou perto dele, do qual saiu o detetive De la Cruz, o vento forte soprou entre os cabelos e o casaco do cara.

– Certo, detetive – o outro oficial disse. – Cuide-se. Sem dúvida outros colegas seus de departamento vão fazer mais perguntas.

– Acho que um deles acabou de chegar.

Quando o policial caminhou até sua viatura, De la Cruz aproximou-se balançando a cabeça.

– Precisamos parar de nos encontrarmos assim – De la Cruz estendeu uma das mãos. – Como está?

Veck apertou brevemente a mão que lhe foi oferecida e percebeu que estava ficando com frio.

– Estou bem.

– Parece mesmo – disse o cara um tanto seco. – Precisa de uma carona até a cidade?

– Sim – como explicaria como tinha chegado até ali?

Ah, alguém se importa, afinal? – pensou.

– Então, Reilly foi para o hospital? – ele disse.

– Foi o que ouvi. Também ouvi dizer que você a salvou.

Na verdade, foi mais ela quem o salvou. Não que alguém ligasse para isso.

– Aliás, foi ela que... – De la Cruz continuou: – Foi ela quem descobriu sobre Bails. Achamos que foi por isso que ele a fez de alvo. Ela o encontrou nas coisas de seu pai na página do Facebook. Em seguida, verificou uma informação sobre seu passado, que acabou se mostrando uma mentira... Conseguiu checar isso com uma pequena ajuda de outra pessoa.

Considerando a luz misteriosa que brilhou nos olhos do detetive, não precisava sequer perguntar qual havia sido o papel do cara naquilo tudo.

– Obrigado – disse Veck suavemente.

De la Cruz fez um gesto casual com os ombros.

– Não saberia dizer quem foi, claro.

– Claro.

– Ouça, liguei para os pais dela vindo para cá. Informei que estava indo para o São Francisco.

– Que bom – isso significava que não precisaria incomodá-los. – Quer fazer algum interrogatório comigo?

Os olhos cansados do detetive encontraram os dele.

– Quero levá-lo ao hospital. Está tremendo, caso não tenha notado.

– Estou?

– Vamos lá, o Hospital São Francisco tem um estetoscópio esperando por você.

– Reilly não precisa me ver agora. Ou nunca mais.

– Não acha que isso deve ser uma escolha dela?

Nem um pouco. Havia muita coisa que não poderia ser explicada... E a imensa lacuna de informações não se tratava apenas de pó de pirlimpimpim, unicórnios ou duendes. Aquilo envolvia demônios e sombras duplicadas. Era o que vira nos espelhos ao longo de toda sua vida. Não gostaria que alguém que realmente amasse percebesse essas coisas, muito menos que estivesse por perto quando acontecessem.

– Importa-se de entrarmos no seu carro, detetive? Acho que você está certo, eu comecei a congelar de repente.

– Sim, claro.

Bom plano. Só que quando Veck tentou andar, os músculos pesados de suas pernas prenderam-se contra os ossos, a cãibra não só começou a comprometer sua capacidade de andar mas desafiava sua tolerância à dor.

– Suas pernas estão doendo? – De la Cruz perguntou ao avaliar o quanto mancava.

– Não, estão ótimas.

De la Cruz riu.

– Como eu disse, precisa de um hospital.

– Nada que um bom alongamento e alguns analgésicos não resolvam. Apenas me leve para casa, certo?

Os dois entraram no carro e, assim que De la Cruz ligou o motor, o bom detetive acionou o aquecedor. O que, de alguma forma, fez com que o frio que Veck sentia dentro de si piorasse ainda mais.

– Que f-f-foda – murmurou, agarrando os braços.

– Por isso não fico impressionado de não querer voltar com sua moto.

– Hum?

De la Cruz engatou o carro e dirigiu lentamente ao virar a primeira curva da pista... e lá estava a moto de Veck. Estacionada em segurança do outro lado.

– Espere – Veck disse rispidamente. – Quero pegar a chave.

– Deve ter se distraído quando chegou.

– Acho que sim.

Quando Veck saiu, uma rajada de vento frio diminuiu a sensação de congelamento que sentia em seus ossos... Provavelmente por estar prestes a ter uma hipotermia... E para proteger o outro homem daquela ventania, fechou a porta atrás de si.

Com certeza, a chave estava na ignição da moto.

– Bem lembrado, Heron – sussurrou, olhando em volta.

À esquerda, um brilho suave iluminava as árvores que já brotavam com o início da primavera. Veck respirou fundo.

– Aí está você. Pensei que já tinha dado o fora daqui.

– Geralmente, é assim que eu faço – Heron aproximou-se e Veck franziu a testa quando um cãozinho de pelo desgrenhado e manco avançou com ele. – Porém, estou fazendo uma exceção no seu caso.

– Como sou sortudo – Veck moderou a resposta com um pequeno sorriso. – É o seu cão?

– Ele é de todo mundo.

Veck assentiu com a cabeça, mesmo sem uma pergunta para responder.

– Então, acho que preciso te agradecer.

– De jeito nenhum. Como disse antes, foi tudo você, cara.

– Acho que passei. Naquela coisa toda de encruzilhada.

– Passou sim. Com louvor – o anjo estendeu um maço de cigarros. – Cigarro?

– Obrigado, meu caro – Veck pegou um e inclinou-se em direção ao isqueiro de Heron. – Oh, cara... isto é melhor que um casaco.

– Sim. Olha, sem ofensa, mas seus lábios estão azuis.

– É só a maquiagem. Queria ficar bonito para você.

Heron sorriu.

– Vai tomar no cu.

– Na verdade – Veck exalou –, vou procurar um novo emprego em breve, pensei em fazer um teste para ser mascote da Michelin. Acha que preciso de um pouco mais de maquiagem?

– Sim. Com certeza – o anjo ficou sério. – Está livre agora. Pode deixar tudo isso para trás. Ela nunca mais vai te incomodar.

É óbvio que este “ela” não se tratava de Reilly.

– O que era aquela morena?

– Um diabo de mulher.

– Acho que acertou em cheio.

– Bem, agora precisa ir ver sua Reilly – a frase foi dita com um tom de o que você está esperando, idiota?

Veck olhou para a ponta incandescente do cigarro.

– Acho que ela já teve uma dose suficiente de tudo isto.

– Você está livre.

– Ela também.

Jim soltou um palavrão baixinho.

– Olhe para baixo.

– Como? – quando o outro anjo apontou para o chão de terra, Veck viu-se obrigado a se virar... apenas para revirar os olhos quando não viu nada atrás de si. – O que foi, afinal?

– Atrás de você, idiota.

Veck murmurou algum palavrão e olhou sua... no chão, estendida atrás dele... estava uma única sombra.

– Como eu disse, você está livre.

Veck ficou olhando para aquela situação tão normal por tanto tempo que pensou terem se passado anos. Em seguida, voltou a observar o anjo.

– Meu pai... ele acha que a execução vai ser detida. Ele me disse que iria viver.

– Eu não apostaria nisso – Jim balançou a cabeça. – Talvez se você tivesse feito uma escolha diferente, mas, graças à maneira como tudo aconteceu... acho que vai gostar do que será publicado nos jornais muito em breve. É como meu chefe sempre diz... Não existem coincidências.

– Pensei que você era o chefe.

– Quem dera.

– Veck? Com quem está falando?

Veck olhou para De la Cruz, que tinha saído do carro.

– Ah... – quando olhou para trás, Heron tinha desaparecido, como se nunca tivesse aparecido por ali. O pequeno animal também. – Ah... com ninguém.

– Olha, não me importo de você fumar no carro. Especialmente se isso for te salvar de um congelamento total.

Veck olhou para onde Jim estivera. O cara havia partido, o brilho havia desaparecido... E, ainda assim, ele estava ali de alguma maneira.

Vá ficar com sua mulher, seu idiota – Jim declarou em sua cabeça.

– Veck? – De la Cruz disse. – Vamos, pode fumar lá dentro.

– Não – Veck respondeu depois de um momento. Então, apagou o que restava do cigarro na sola de seu sapato. – Acho que vou parar.

– De novo.

Veck pegou a chave da moto e voltou para o carro sem identificação. Quando ele e o outro homem fecharam as portas, Veck olhou para fora.

– Acredita em Deus, detetive?

De la Cruz fez o sinal da cruz sobre o peito.

– Com toda certeza.

– Então, isso significa que os demônios existem?

– O inferno é real. A menos que tenha se esquecido da garota que encontramos naquele hotel. Ou do que aconteceu com Sissy Barten.

– Não me esqueci.

De la Cruz assentiu e começou a se afastar do local.

– Mas sim, eu tenho fé. E acredito que os pecadores vão para a sala de estar de Satanás por toda eternidade e que os justos vão para o céu que o Senhor todo poderoso oferece. Vou à missa com a minha família toda semana, e o bom livro – bateu no porta-luvas, a porta abriu-se e uma pequena Bíblia vermelha foi exposta sob a luz interna do compartimento – está sempre comigo. Se tem uma coisa que a vida me ensinou é que Deus cuida de nós, meu caro.

– Então, acha que... as pessoas podem ser salvas?

– Não, tenho certeza. E, uma vez que se tem fé... não importa qual seja... ela te transforma. Não tem volta e nada nem ninguém pode tirar isso de você. Quando abre seu coração e deixa isso entrar, tem a certeza de que tudo vai dar certo, mesmo nas piores situações.


Veck assentiu e permaneceu em silêncio enquanto olhava para fora pela janela da frente. Juntos, passaram pela pista de terra, saíram para a marginal e permaneceram à esquerda para pegar a autoestrada. Depois que já estavam na estrada em direção a Caldwell, Veck disse: – É pra valer.

– Hum?

– Vou parar, agora é pra valer.

De la Cruz olhou para ele.

– Sabe...? Desta vez, acredito em você.

– Me leve para o hospital.

– Para a emergência ou para o setor de internação?

Veck sorriu um pouco.

– Para onde minha parceira estiver.

De la Cruz sorriu e deu uma leve batida no peito de Veck.

– Agora estou sentido firmeza, cara. Agora o que você diz faz sentido.


CAPÍTULO 49

 

Muito acima da terra, no céu, Jim parou aos pés da mansão de almas, olhou para a segunda bandeira agitando-se preguiçosamente sobre o parapeito e pensou...

Faltam mais duas.

Se conseguisse erguer mais duas bandeiras daquela em cima do muro, poderia parar com aquilo tudo. Sua mãe estaria segura para sempre e Sissy estaria livre. Se não conseguisse ajudá-la antes.

– Bom trabalho.

O sotaque inglês autocrático de Nigel já não parecia tão irritante.

– Sim, mas não posso parar por aqui.

– Nisto você está certo.

Jim assentiu e olhou para seu chefe. O cara vestia um terno muito bem cortado, desta vez, preto com risca de giz. De fato, parecia um gangster elegante ao ficar em pé ao lado de uma mesa muito bem posta cheia de porcelanas e pratos luxuosos. Dois dos outros arcanjos e o cão wolfhound irlandês estavam sentados. Estava claro que esperavam com paciência o sinal verde para comerem a sobremesa já servida.

– Bem – Jim murmurou. – Vou descer. A próxima rodada vai começar em breve.

Ao menos, esperava que fosse assim.

– Não gostaria de ficar para a sobremesa? Temos um lugar para você.

– Obrigado – disse Jim. – Tenho que ver uma pessoa.

– Muito bem.

Porém, quando já ia desaparecer, Nigel chamou-o de canto, fora do alcance dos ouvidos dos outros.

– Não terminamos, você e eu.

– Desculpe, não estou com fome.

– Com relação àquele acordo que fez com Devina...

– Está se referindo ao que fiz para saber quem era a alma?

O arcanjo limpou a garganta.

– Sim, isso mesmo. Gostaria de te avisar que...

Jim bateu nas costas do cara e ignorou o brilho que surgiu nos olhos dele como reação ao gesto.

– Já entendi, Nigel. Pode confiar em mim.

Quando exibiu um meio sorriso, os olhos estranhos e muito claros de seu chefe estreitaram-se.

– Às vezes me pergunto se isso seria sábio.

– Confiar em mim? Bem, você me escolheu.

– Lembro-me bem disso – o anjo pegou o braço de Jim. – Mas gostaria de te dizer uma coisa.

– Blá-blá-blá...

– A próxima alma. Vai reconhecê-la como sendo um velho amigo e um velho inimigo, ultimamente, você até o tem visto. O caminho não poderia ser mais óbvio, mesmo se estivesse cheio de sinais iluminados indicando a direção.

Jim revirou os olhos.

– Ótima dica, Nigel. Como sempre, seu ponto forte é deixar tudo muito “claro”.

– Confie em mim.

Quando Jim ergueu uma das sobrancelhas, uma das laterais da boca do arcanjo exibiu um sorriso. Jim teve que rir.

– Sabe? Não entendo por que não nos damos melhor?

– Tenho que concordar.

Com isso, Nigel enviou-o de volta, e a viagem foi mais fácil que nas primeiras duas vezes que precisou subir aos céus e descer novamente. Pelo menos desta vez não precisou morrer para que sua passagem fosse carimbada.

Assumindo sua forma corpórea em frente à garagem de onde vivia outra vez, olhou para cima. As janelas do apartamento estavam escuras e, por não haver iluminação externa, a noite estendia-se pelo quintal, adentrava pela floresta e saía para os campos mais distantes. Mas nem tudo estava escuro. Ao longe, as duas luminárias da varanda da casa branca estavam acesas, projetando uma luz cor de pêssego, como se a estrutura estivesse um tanto corada.


Cara, estava muito frio. Nada de luar. Parecia que ia nevar.

– Então, você venceu.

Virando-se, saudou a chegada de Devina com um largo sorriso.

– Pois é, “outra vez”. Veio observar como comemoro minha vitória?

– Não.

– Que pena, é um tremendo espetáculo. Vou até te dar um intervalo caso queira pegar mais pipoca.

Como sempre, ela parecia ótima, como uma nota de dinheiro recém-fabricada. Toda produzida com uma de suas roupas tão apelativas que um cara não precisava sequer dar asas à imaginação para visualizar várias coisas: naquela noite, suas curvas estavam envolvidas num tecido apertado vermelho e brilhante.

– Sabe por que estou aqui – ela disse.

– Não tem outro lugar melhor para ir, hum? Que triste.

– Nosso acordo, Heron – agora, ela sorria. Ao aproximar-se, seus quadris moviam-se como se estivesse pronta para que alguém cavalgasse sobre ela. – Mantive minha parte no acordo. Apesar do que pensa de mim, disse quem era a alma... não menti. Então, agora você vem comigo.

Jim permitiu que vagasse um pouco ao redor dele. Dando-lhe um pequeno momento de satisfação. E, quando ela posicionou-se bem na frente dele, deixou que se aproximasse e apalpasse entre suas pernas. Mas, quando ela abriu a boca, ele interrompeu-a.

– Não.

Ela riu, um som encantador que sugeria que, em sua mente, já estavam transando.

– Acho que, na tradição do casamento humano, a resposta é “sim”. Foi o que quis dizer, meu amor?

Tirou a mão dela sutilmente.

– Eu menti, Devina – inclinou-se e colocou a boca junto à orelha dela. – Mentira. Mentirinha. Lorota. Sabe muuuito bem do que estou falando, não? Então, como é estar do outro lado, vadia?

Quando ele recuou, a confusão no rosto de Devina era algo digno de ser registrado em livros de História. Se ao menos tivesse uma câmera...

– Preciso desenhar? – Jim murmurou.

De repente, a expressão dela mudou, suas feições ficaram obscuras ao ponto da violência.

– A intenção é irrelevante – ela disse em voz baixa. – Você foi muito claro.

– Ah, achei que você acreditava que a intenção era tudo. Não pode levar o que não é seu, e não vou te deixar entrar em mim... enganei você.

– Seu... bastardo – ela vociferou.

– No amor e na guerra, vale tudo. E não finja não ser a autora dessa cartilha.

Ela recuou um pouco e deu um tapa no rosto de Jim.

– Não se esqueça de qual é o seu lugar.

Jim riu.

– Nem por um minuto – então, ele ficou sério. – Mas, Devina, você e eu precisamos deixar uma coisa clara: se voltar atrás e abusar... de alguém... pode ter certeza de que nunca mais vai tirar qualquer proveito de mim outra vez.

– Já sei que não cumpre suas promessas.

– Isto é um voto – bateu sobre o peito e, em seguida, colocou o dedo indicador entre os seios dela. – De mim... para você. Se machucar qualquer pessoa, nunca mais vou transar com você.

Por um segundo, a máscara dela caiu, aquele rosto monstruoso com a pele podre e os ossos salientes foi exposto. Jim ergueu a cabeça.

– Sabe, demônio, a fúria combina com você. Perfeitamente.

Houve um longo momento de um silêncio tenso e, então, pareceu que Devina voltou a assumir o controle sobre si mesma, a beleza falsa encobriu o mal outra vez.

– Nunca mais confio em você – anunciou.

– Por mim tudo bem – ergueu uma das mãos e acenou. – Tchau, Devina.

– Isso não acabou.

– Que despedida mais previsível. Era isso mesmo o que eu esperava de você.

Jim tinha consciência de que estava abusando da sorte, mas, na empolgação de ter ganho mais uma rodada, não deu a mínima.

Contudo, parece que Devina não queria mais brincar. Abaixou o queixo e olhou sob as sobrancelhas esculpidas com cuidado.

– Vejo você em breve, Heron.

E, com isso, saiu dali, desvanecendo-se no ar.

Depois disso, Jim pegou um cigarro de seu maço e acendeu. Ao exalar, ele riu outra vez, apreciando o zumbido que sentia dentro dele. Era como se tivesse acabado de fazer sexo... do bom.

Virando-se para a garagem, caminhou até as escadas, imaginando que encontraria Adrian antes mesmo de... quando exalou, franziu a testa e se perguntou se estava ouvindo coisas. Mas não. Aquele rádio que não tinha estava tocando outra vez... Uma versão à capela de “Calling All Angels”, do Train.

– Que porra é essa?

Subindo as escadas rapidamente, colocou o cigarro entre os lábios e empurrou a porta... Sentado no chão, de costas contra a porta de entrada daquele espaço apertado, Adrian tinha a cabeça entre as mãos. Com tom suave e perfeito, entoava a letra de maneira lenta e linda... como se tivesse nascido para ter um microfone nas mãos.

– Pensei que não conseguia cantar – Jim falou.

Adrian não levantou a cabeça, mas parou e deu de ombros.

– Eu só fazia aquilo para encher o saco dele. O seu também, na verdade.

Jim exalou um fluxo de fumaça constante.

– Tem uma bela voz.

Engraçado, mas preferia aquele tom desafinado, irritante. Quando não houve resposta, disse ao anjo: – Vai ficar bem se eu cumprir uma tarefa rápida?

– Sim. Estamos bem. Vou ficar aqui sentado com ele.

Jim assentiu mesmo sem contato visual.

– Precisa de alguma coisa?

– Não. Estamos bem.

Olhando para a enorme figura do anjo – as pernas estavam encolhidas e os braços fortes descansavam levemente sobre os joelhos – Jim sentiu-se mais que pronto para a próxima rodada: por um momento, ao longo daquela noite, Adrian pareceu vivo outra vez, animado, engajado. Aquele silêncio resoluto, por outro lado, estava próximo demais à condição de Eddie.

– Volto logo.

– Fique o tempo que precisar.

A separação não era boa, mas Jim tinha que fazer isso. Algumas coisas eram resultado de escolhas... outras, quando se tinha alguma honra dentro de si, eram uma questão de necessidade.

Virando-se, saiu do jeito que chegou, fechando a porta em silêncio atrás de si. Antes de sair, colocou uma das mãos na parede da garagem e fechou os olhos.

Com profunda concentração, pensou em Adrian e Eddie naquele quarto no hotel Marriott, os dois discutindo e trocando ofensas. Imaginou os dois fazendo aquilo outra vez, pensou nos olhos vermelhos de Eddie encarando o dramático Adrian, enquanto o outro anjo erguia os braços exasperado. Estavam juntos outra vez naquela visão que criou em sua mente. Estavam sãos e salvos. Estavam vivos.

Quando abriu os olhos outra vez, havia um brilho sutil ao redor de todo o edifício, era uma iluminação fosforescente sutil que nem sequer projetava sombras, mas era mais poderosa que todas as luzes de um estádio de futebol acesas.

Assim que Jim tirou sua mão, o primeiro floco de neve caiu do céu... Era o momento de desaparecer no ar fino e gélido.


CAPÍTULO 50

 

Passaram-se duas horas e meia depois que Veck chegou ao Hospital São Francisco até, finalmente, ser liberado para ver Reilly... duas horas e meia!

Mas até que fazia sentido: quando De la Cruz estacionou na emergência para deixá-lo ali, Veck abriu a porta do carro e descobriu que não conseguia ficar em pé. Um problema que não era pequeno.

Então, em vez de passar pelas portas giratórias do setor de internação e se dirigir até o quarto de Reilly – aliás, conseguiu o número graças a uma ligação para o setor de informações do hospital – acabou ficando na emergência mesmo. Onde, claro, não lhe dariam quaisquer detalhes sobre ela ou sua condição. Malditas regras hospitalares.

E, cara, fizeram de tudo nele. Depois de ter sido picado, cutucado e radiografado, tentaram sugerir que precisava de um cateter para receber alguns fluídos, mas descartou aquela ideia e informou que estava indo embora. Por via das dúvidas, envolveram a coxa dele com uma atadura, o que doeu muito, colocaram outro curativo no tornozelo oposto e disseram-lhe para ir para casa e esperar sentir-se pior no dia seguinte.

– Obrigado, doutor.

Contudo, a bengala foi útil. E, quando o elevador chegou ao sétimo andar e ele entrou no setor de internação, usou a coisa para auxiliá-lo a andar pelo corredor.

Olhou para os dois lados. Não fazia ideia de onde ir. Aleatoriamente, escolheu ir para a direita e descobriu que, em algum momento, teria que recorrer a algum funcionário ou a um mapa para encontrar a unidade que procurava.

Enquanto mancava, olhou para suas roupas. Imundas. Suadas. Rasgadas. Um visual horrível, mas não tinha tempo de voltar para casa e se trocar.

Quando chegou à sessão de enfermagem, não tinha a menor intenção de ser importunado com alguma abordagem do tipo “o horário de visitas já acabou. Volte mais tarde”.

Reilly disse que o amava. E ele fechara a porta diante dela. Certo, tudo bem, não foi ele quem de fato bateu a porta na cara dela – tecnicamente, foram os paramédicos. Mas ele deixou-a ir... e esse era o tipo de erro que se tentava corrigir assim que tivesse uma oportunidade. Mesmo se precisasse de uma bengala para chegar lá e estivesse com uma aparência que só um banho com uma mangueira de bombeiros daria jeito.

Virando, encarou um longo corredor que tinha instruções em inglês e espanhol, várias setas e um mapa. Pena que nada daquilo fazia sentido – e não só por que estava exausto. Será que dificultavam a localização de pacientes de propósito? No final do corredor, surgiu uma figura enorme e obscura que começou a andar em direção a ele. Mais perto.

Mais perto. Mais perto ainda. Até Veck conseguir distinguir as calças de couro, as botas de combate e o casaco preto. De repente, sentiu uma pontada em seu cérebro. Ao ponto de se perguntar se não tinha surgido um coágulo por ter corrido tanto ao subir a encosta daquela pedreira. Só que... quando olhou aquele rosto enrijecido, soube quem era. Era...

Veck soltou um palavrão e apoiou-se na parede enquanto os golpes em sua cabeça dizimavam qualquer pensamento. Enquanto isso, o homem apenas aproximava-se. Até parar bem em frente a Veck. Quando ele conseguiu enxergar aquele rosto inacreditável através da dor, soube que nunca o esqueceria.

– Vou consertar as coisas – o homem disse com um sotaque estrangeiro que não era bem francês, nem húngaro. – Não se preocupe, meu amigo.

Deus, a pronúncia dos “erres” era muito agradável de ouvir, tinha um toque suave e aristocrático muito curioso. Então, Veck percebeu sobre quem o cara estava falando: – Kroner...

Assentindo com a cabeça de maneira elegante, o estrangeiro retomou sua caminhada. Se não tivesse visto o cara, Veck teria pensado que o som dos passos que as botas produziam era uma sentença de morte. Em seguida, no meio do corredor, a figura desapareceu... como um fantasma.

Porém, era mais possível que tivesse virado em outro corredor. Para encontrar Kroner... caramba. Veck esfregou os olhos, pensou na caverna e percebeu que tinha perdido alguma coisa: tinha visto o serial killer pendurado na frente dele, mas tinha sido uma miragem, não? Uma miragem projetada sobre sua Reilly.

Era a única explicação. Pois foi ela quem surgiu pendurada nas algemas depois que a poeira baixou, e Deus era testemunha de que não houve tempo para trocar os dois.

Sentindo uma fraqueza repentina, apoiou-se com força sobre a bengala ao se dar conta do que havia acontecido exatamente. Ou melhor, do que poderia ter acontecido. Se tivesse esfaqueado quem acreditava ser Kroner... teria matado Reilly. Aquilo não havia lhe ocorrido em meio à correria e ao pânico que vieram em seguida.

Cristo, a escolha que fez naquela encruzilhada tinha salvo os dois, não tinha? Pois nunca teria se recuperado se tivesse feito o contrário.

Quanto a Kroner... virando a cabeça sobre o ombro, Veck olhou na direção em que aquela figura mortal havia passado. O serial killer ainda devia estar vivo sobre uma das camas daquele hospital... E poderia apostar que seu quarto estava em algum lugar próximo dali.

Para todos os efeitos, a vida de Kroner ainda não era de Veck para que pudesse tomá-la. Mas isso não significava que iria impedir o que estava prestes a acontecer. Droga... anjos, demônios, cãezinhos mancos... o mundo estava cheio de coisas das quais se ouvia apenas rumores. Assim, se pensasse em tudo o que sabia agora? Aquele era o Ceifeiro da Morte em pessoa... e, nesse caso, a vida de Kroner seria levada da maneira certa.

Só para ter certeza, Veck mancou até ficar sob uma das luzes no teto e verificou sua sombra – mesmo sentindo-se um tolo. Apenas uma.

– Pronto para deixar isso para trás? – murmurou para si mesmo. – Toootalmente pronto.

Enfim, encontrou a ala certa e, felizmente, talvez porque a enfermeira teve pena dele, ninguém tentou impedi-lo por não ser horário de visitas. Foi orientado a passar por mais cinco portas e ainda disseram que, se precisasse de alguma coisa, era só chamar. Como se esperassem que ele tivesse algum mal súbito a qualquer momento.

Quando chegou ao quarto de Reilly, não entrou todo apressado para não incomodá-la se estivesse dormindo. Apenas inclinou-se um pouco para que pudesse espiar pela porta.

Sob o brilho fraco da luz que vinha do banheiro, ficou evidente que ela estava dormindo: mesmo com a cabeça virada para a direção dele, a respiração era muito profunda e estável, o corpo parecia pequeno e estava imóvel sob os cobertores. Tinha um cateter numa das mãos e havia um monitor ligado a ela que emitia um sinal sonoro regular. Provavelmente, era o coração dela que...

A cabeça dela moveu-se sobre o travesseiro e, em seguida, fez uma careta enquanto uma das mãos se erguia até a testa.

– Veck...

Aproximou-se com rapidez e disse: – Você está bem? – que pergunta idiota, pensou.

– Você está aqui – então, obviamente; viu a pulseira que foi dada a Veck. – Você está bem?

– Só não me peça para correr numa maratona amanhã – quando ela tentou se sentar, Veck puxou uma cadeira para perto da cama. – Não, não, fique deitada. Vou ficar bem aqui.

– Achei que não viria – ela disse.

Enquanto ele pensava numa resposta, ela murmurou: – Nem você achava que viria, hum?

Ele negou com a cabeça.

– Eu... – Deus, por onde começar? – Sabe? Desde o primeiro momento em que te conheci, só trouxe coisas ruins para a sua vida. E quase te matei esta noite...

– Não, não matou. Nós dois fomos enganados por Bails e aquela... o que era aquela mulher?

– Não sei. Mas posso dizer uma coisa: ela não vai voltar – acreditava em Jim. – Nunca mais.

– Você cuidou disso, não foi?

– Acho que sim.

– Não fiz menção a ela quando fui interrogada.

– Nem eu.

Breve pausa. Então, Veck limpou a garganta, ansioso para dizer alguma coisa, qualquer coisa diferente do que acontecera na caverna. Talvez mais tarde, com o tempo, pudessem entender o que tinha acontecido, mas não na mesma noite.

– Seus pais vieram?

– Perguntaram onde você estava.

– Mas não falou nada sobre mim, certo?

– Oh, contei tudo para eles. Como tentaram incriminá-lo, como você veio atrás de mim...

– Eu te amo.

Aquilo deteve-a. Ao ponto de Veck se perguntar se não deveria pedir desculpas. Só que, em seguida, ela começou a chorar e estendeu uma das mãos até o rosto dele.

– Eu também te amo.

Inclinando-se para que Reilly pudesse tocá-lo com mais facilidade, murmurou: – Só quero fazer tudo certo com você. É tudo o que sempre quis para nós.

– Então, como você mesmo disse – a voz dela estava rouca –, nada de correr amanhã. Nem nunca.

– Foi o que um amigo meu disse.

– Jim... – quando ele assentiu, ela sussurrou: – Aquele homem é um anjo.

– É mesmo.

Veck não queria invadir o espaço dela, mas, de alguma forma, acabou se aproximando da cama e deitando ao lado dela. Ela encaixava-se nele de um modo tão perfeito e, quando a abraçou, estremeceu. Quase perderam aquilo... não apenas com tudo que havia acontecido na caverna, mas com todo o resto da história envolvendo Bails e sua tentativa de incriminá-lo.

Inclinando-se, Veck beijou-a com cuidado e, em seguida, olhou em seus olhos por um bom tempo. Nunca teve a oportunidade de iniciar nada assim, do zero. Nem sequer quando nasceu. Mas naquele momento? Viu o tão inesperado novo começo nos pequenos pontos cor de avelã que havia naqueles olhos verdes e perfeitos.

Foi então que percebeu que o peso havia desaparecido. Tinha vivido com uma carga tão grande, há tanto tempo, que nem se dava conta. Agora, porém, ao sentir a ausência daquela pressão dentro de cada centímetro de si, sentia-se... livre. Novo. Renascido.

O único problema era que aquela síndrome de “sou um novo homem” o fazia pensar que algumas coisas malucas fossem totalmente razoáveis.

Acariciando os belos cabelos ruivos de Reilly, disse suavemente: – Seu pai me fez uma pergunta naquela noite quando jantamos todos juntos.

Reilly sorriu.

– Foi? Só me lembro dele dizendo que sabia fazer os procedimentos de primeiros socorros.

– Foi um pouco antes disso – ele sussurrou. – Acha que posso responder um dia?

Reilly prendeu um pouco a respiração. Em seguida, uma alegria brilhou em seu rosto.

– Se estou entendendo bem o que está dizendo, acho que precisará perguntar algo a ele primeiro.

– Seus pais estão livres para jantarmos juntos amanhã à noite?

Ela começou a rir e Veck também.

– Acho que consigo providenciar isso.

– Perfeito – ele ficou sério. – Você é simplesmente... perfeita.

Embalando-a contra o peito, Veck deixou-se levar pela exaustão calma que sentia: estava tudo certo em seu mundo. Tinha sua mulher, sua vida e sua alma de volta. Não havia nada melhor que isso.

No céu, os pés de Nigel faziam um passeio ao redor do castelo. Não caminhava para admirar a graça desfraldada da última vitória de Jim. Nem para verificar se estava tudo bem nos arredores. Nem para respirar um pouco de ar fresco.

Contudo, se alguém perguntasse por que andava, ofereceria todas essas mentiras como resposta. De fato, talvez ele e Jim fossem mais parecidos do que imaginava.

Ainda assim, se tivesse proferido tais explicações a qualquer pessoa ou cão, o que segurava em suas mãos teria anunciado suas mentiras: carregava um prato com um guardanapo cor de damasco cobrindo o que havia sob o fino tecido, um bolinho de groselha, dois biscoitos e um morango fresco.

À medida que caminhava com as guloseimas, sentia em seu coração uma vaga aversão por aquela atividade servil. No entanto, precisava de um pretexto tangível para seguir ao seu destino, não só para responder às mentes questionadoras, mas também ao destinatário do que havia naquele prato. Pensou, ainda, que não era apenas uma questão de adoçar a boca de alguém. Tinha notícias para compartilhar.

Aproximando-se da tenda de Colin, sentiu-se um verdadeiro idiota, mas o carcanjo não tinha se apresentado para dar seu relatório da batalha, por assim dizer. Além disso, deveria estar com fome depois de ter passado um tempo fora.

Desculpas, desculpas... Nigel precisava vê-lo. Eram dois malditos. E já estava farto daquela distância. Na entrada, limpou a garganta.

– Colin.

Enquanto aguardava uma resposta, ergueu o guardanapo cor de damasco para verificar se ainda cobria as guloseimas.

– Colin.

Ah, chega de toda aquela moderação educada. Entrou e parou. Sobre a modesta cama, havia três ternos, cada um com uma gravata, meias e sapatos combinando entre si.

A combinação do meio, de cores preto e cinza-claro, foi a que mais agradou Nigel. Apoiando o prato, estendeu uma das mãos para acariciar o fino tecido das mangas. Estranho o arcanjo ter alinhado aquelas roupas em cima da cama. Colin não se preocupava muito com suas vestes.

Virando-se, Nigel observou os livros encadernados em couro. O baú. A lâmpada a óleo que queimava emitindo uma luz suave. Aonde o anjo iria vestido daquela maneira?

Então, lembrou-se: Colin estivera lá embaixo com Edward e, onde quer que Edward estivesse, lá estaria Adrian também.

O anjo cabeça-dura com seu fetiche por piercings nunca fora conhecido por se envolver com seres do mesmo sexo, mas Nigel não se envolvia em detalhes assim da vida de seus subordinados. Além disso, Colin era irresistível. O que afundava Nigel naquela terrível posição.

Como sou tolo – Nigel pensou. – Como sou tolo.

Saiu dali, mas fechou a aba da tenda suavemente atrás de si. A última coisa que precisava era ser pego...

Um assovio alegre chamou sua atenção. Movendo-se furtivamente atrás da barraca, sua respiração ficou ofegante. Em meio à suave correnteza, Colin apoiava as costas num banco de areia e passava um pano macio sobre os ombros, formando um rastro de espuma que escorria entre seus músculos do tronco, assumindo uma trajetória descendente...

A cabeça de Colin virou-se e, em seguida, seu tronco. Nigel engoliu em seco quando seus olhos se encontraram. O macho produzia a mesma visão de sempre e, ainda assim, parecia algo novo.

– Boa noite – disse o outro arcanjo, antes de voltar a ensaboar o peito.

Quando ele voltou a limpar a pele, não se virou novamente. Em vez disso, continuou a movimentar aquele pano macio cada vez mais para baixo de seu corpo.

– Vai a algum lugar? – disse Nigel em tom amargo.

– Sim.

– Aonde?

O arcanjo ergueu-se por completo... E, observando o corpo do macho, Nigel teve vontade de soltar um palavrão. Os ternos. Aquele banho. Ignorar a refeição como se estivesse se preparando para algo especial. Aquele pênis rijo.

Se não fosse Adrian, seria algum pretendente humano? Ou uma alma que habitava o lado seguro das muralhas do castelo?

– Tenho novidades – Nigel esforçou-se para dizer as palavras com suavidade. – Na verdade, fiz um comunicado durante a sobremesa.

– Desculpe, eu não estava lá.

– De fato.

Enquanto conversavam, a visão periférica de Nigel provava ser muito eficiente: embora se concentrasse no rosto de Colin, tinha plena consciência da atenção que o arcanjo prestava aos órgãos de sua masculinidade. E pensar que a limpeza era uma virtude. Parecia mais uma tortura.

– Nigel?

– Também perdeu a bandeira de vitória e a aparição de Jim.

– Pelo que peço desculpas – Colin assoviou um pouco, com prazer, e, em seguida, pareceu voltar a prestar atenção em Nigel. – Agora, diga, quais são suas novidades.

– O Criador decretou quem será a próxima alma por quem os sinos dobrarão. Não é quem nos foi comunicado no princípio.

Isso chamou a atenção do arcanjo – e congelou os movimentos daquele maldito pano.

– Pensei que todas as almas estivessem combinadas antes de o jogo começar.

– E foram. E se acreditava... ao menos eu pensava assim... que seriam apenas seis, pois um dos lados acabaria vencendo mais cedo.

– E agora?

– Ah, essa alma foi aprovada. Só não se sabia que haveria uma segunda rodada com ela.

A surpresa de Colin foi satisfatória, ao menos provou que Nigel ainda conseguia produzir alguma reação nele.

Com um forte impulso, o arcanjo mergulhou suavemente nas águas e saiu do rio em seguida. Quando emergiu, pingando e ainda ereto, Nigel ofereceu gentilmente a toalha que o macho havia pendurado sobre o galho mais próximo de si... Porém, não foi para evitar que o arcanjo contraísse um resfriado. Mas porque Nigel não precisava incendiar o local.

No entanto, apesar de Colin ter se secado, o bastardo apenas pendurou a coisa em volta da nuca quando terminou.

– Não vai se vestir? – Nigel perguntou.

– Sim.

– Agora? – por favor.

– Quem é a alma?

– Matthias.

Colin franziu a testa.

– Então, o Criador está desconsiderando a vitória de Devina?

– A decisão é de que a vitória dela permanecerá, mas Jim terá uma segunda chance de influenciá-lo.

– Isso não tem precedentes.

– O jogo não tem precedentes.

Quando os dois se entreolharam, o coração de Nigel doeu ao ponto de sentir algo real. Era o momento de partir, não era?

– De qualquer forma, achei que gostaria de saber – disse rapidamente. – Então, adeus e... boa noite. Está claro de que a intenção é essa.

– É mesmo – as pálpebras de Colin abaixaram. – Na verdade, preciso disso.

Nigel assentiu com firmeza e caminhou sem muito charme em direção à sua tenda. Ao passar pela mesa de chá que já tinha sido limpa, ficou feliz que os outros dois e o grande cão tivessem retornado aos seus aposentos. Não desejava sequer que o olhar canino de Tarquin testemunhasse aquela caminhada de humilhação pessoal.

Havia preparado um pequeno presente e ido até lá apenas para presenciar os preparativos de um encontro que, obviamente, não o envolvia.

Estúpido.

Tolo.

Em seus aposentos, Nigel despiu-se, mas não para tomar banho – havia memórias demais. Em vez disso, vestiu um roupão de cetim que nunca havia usado na presença de Colin e deitou-se sobre o divã, observando os acessórios de luxo.

Mesmo com todas aquelas cortinas coloridas e a cama confortável, parecia um lugar muito vazio.

Ao lado dele, a chama de uma vela flutuava à deriva, e Nigel invejou o seu trabalho fácil. Infelizmente, o objeto oferecia muito pouco em termos de companhia, então, apenas observou a autodestruição em silêncio, as lágrimas de cera escorriam lentamente ao longo do corpo cada vez mais reduzido.

Que deprimente: mesmo algo tão romântico como a luz de uma vela dava brechas para que interpretasse tudo em termos de perda...

– Este bolinho é fantástico.

Nigel olhou para cima. Colin estava parado na entrada da tenda, seu braço forte segurava a cortina para um lado, sua forma alongada e delgada preenchia o espaço. Usava o terno preto e cinza.

Nigel recuou para observar melhor à luz da vela.

– Fico feliz que tenha gostado.

– Muito gentil de sua parte – o arcanjo aproximou-se enquanto terminava de comer. – Sabe? Ficou um bom tempo sem me visitar.

Na verdade, tinha feito uma visita muito recentemente, mas não poderia mencioná-la.

– Não vai sair? – Nigel murmurou.

– Ah, sim – quando Nigel olhou para ele, Colin deu uma volta em torno de si de uma maneira muito viril. – Gosta?

– Das roupas? – Nigel acenou com uma das mãos. – Não cabe a mim julgar isso.

– Vesti para você.

Os olhos de Nigel fixaram-se nele.

– Por que está sendo tão cruel?

– Cruel? – o arcanjo disse com uma confusão sincera. – Para quem mais eu vestiria um traje tão inútil?

Nigel franziu a testa.

– Pensei que talvez fosse para Adrian ou...

A risada de Colin foi imediata. E soou um tanto estridente.

– Acha que aquele anjo... e eu...?

– Ele está em forma.

– Sim. Mas não é quem eu quero.

Nigel engoliu em seco e, olhando em volta, tentou esconder sua reação.

– Isto... é... para mim?

– Sim. Então, o que me diz, amado meu?

Finalmente, encontrou os olhos de Colin e os dois observaram-se por um longo tempo. Em seguida, Nigel sentou-se e acariciou os cabelos para trás com uma das mãos trêmulas: o desejo de manter a compostura não venceu, não ali, naquele aposento particular. Não com Colin. Temia nunca conseguir isso com o arcanjo.

Estendendo uma das mãos para o seu amor, Nigel disse com voz rouca: – Eu digo que... eu teria escolhido este.

O arcanjo aproximou-se com um sorriso.

– E foi por isso – Colin murmurou – que o vesti.


CAPÍTULO 51

 

Na Terra, num belo subúrbio de Caldwell, Susan Barten estava sentada em sua sala, bem acordada, apesar de serem quatro horas da manhã. No andar de cima, seu marido e a filha que lhe restava dormiam em suas respectivas camas e tudo em volta, acima e abaixo dela, repousava em silêncio.

Estava acostumada àquela sessão de silêncio profundo e doloroso. A última noite de descanso ininterrupto que teve foi na noite anterior... de ter acontecido “aquilo”.

Como de costume, sentou-se na poltrona ao lado do sofá, com os olhos voltados para a porta da frente. Aquela era sua posição de vigília, o ramo sobre o qual fixou seus pés para ver os ventos do destino soprarem fortes contra seus entes queridos, arrancando camadas dela, do que era sua família e da maneira como esperava que seus dias passassem sobre a Terra.

Sempre observava a porta pela qual Sissy havia saído e entrado tantas e tantas vezes – e Susan fez isso mesmo depois das primeiras noites, quando a esperança inicial havia sangrado, sem deixar nada além de um medo paralisante para trás. Ainda era verdade até mesmo agora, quando havia uma razão concreta para crer que sua filha nunca, jamais, voltaria para casa outra vez.

Deus, e pensar que se sentia afortunada por haver algo para enterrarem. Com isso, lágrimas brotaram do canto de seus olhos, e viu-se pensando no livro do dr. Seuss, que foi tão importante na formatura do colegial, aquele que tinham comprado para Sissy junto com os brincos, o colar e o bracelete em formato de pomba.

Ah, os lugares aonde você irá!

Uma morte prematura não era o destino que haviam imaginado. Por que não a faculdade de medicina? Ou a Europa? Ou a cidade de Nova York? Ou simplesmente um salão de cabeleireiro no centro de Caldwell, ou uma clínica veterinária, ou uma escola primária onde pudesse lecionar? Por que o destino não pôde lhe conceder o que havia concedido a todos os seus colegas de classe? Por que teve de ir ao supermercado naquela noite em particular?

Susan estava prestes a enlouquecer quando pensou nas centenas de caminhos diferentes que se apresentavam à sua filha mais velha... E perguntou-se mais uma vez por que os dados do destino tinham imposto aquele resultado.

Um grito irrompeu de sua boca sem nem perceber que emitia algum som, e aconteceu o mesmo com suas pernas... Ergueu-se da cadeira e colocou-se atrás do móvel antes que pudesse sequer se conscientizar do movimento.

Um homem passou pela porta. Um homem loiro, enorme, entrou na casa sem abrir a porta e, agora, estava parado no hall de entrada. Olhando para ela. Espere... ela conhecia-o. Fora para ele que tinha dado aquele colar. Era ele quem parecia arrasado assim como ela. E ainda estava arrasado.

– O que está fazendo aqui? – perguntou suavemente, com a estranha sensação de que não importava como ele havia entrado, não estava ali para machucá-la ou para ferir o que restou de sua família. – Por que você veio?

O homem apenas olhou-a sem responder, o rosto rígido estava tão triste que parecia estar à beira do mesmo abismo que ela.

Sentindo perder o equilíbrio, Susan andou em volta da poltrona e jogou-se sobre ela. Então, colocou as mãos sobre os joelhos e começou a balançar o corpo lentamente para frente e para trás.

– Já sei que a encontraram – ela disse. – Sei que encontraram... minha filha...

O homem aproximou-se quando Susan começou a soluçar, e, depois de tentar enxugar os olhos, viu que ele havia agachado aos seus pés.

– Você disse que ia trazer a minha filha de volta – disse, sufocada.

Quando ele assentiu, parecia que ainda tinha a intenção de cumprir a promessa, mas, com certeza, ela sabia que tal coisa era impossível de ser feita.

– Estou feliz por ter vindo – ela murmurou, pensando em voz alta.

Ele permaneceu em silêncio e, quando Susan observou aqueles olhos estranhos, expressou a culpa que não teve coragem de dizer a ninguém: – Eu matei minha filha. Mandei que ela fosse até aquele mercado. Pedi isso a ela... e, se ela não tivesse ido... não teria...

Não havia mais o que fazer quando ela começou a chorar. Enquanto chorava com toda a força de seu coração, o grande guerreiro ficou com ela, compartilhando dor, solidão e arrependimentos, uma de suas grandes mãos repousou sobre o ombro de Susan e confortou-a, sua presença era um bálsamo sobre as queimaduras que cobriam sua pele apesar de, aparentemente, ela estar intacta.

Quando se acalmou um pouco, ele colocou suas mãos sobre as dela. Com o contato, um calor mágico entrou nela e viajou ao longo de seus braços, sentia que algo mudava no abismo que havia em seu peito, preenchendo-a.

Foi então que viu que o homem tinha asas. Asas grandes e leves que se erguiam sobre seus ombros e resplandeciam, mesmo com as luzes da casa todas apagadas.

– Você é um anjo – sussurrou, paralisada. – Você é... um anjo...

Ele não mostrou qualquer reação, apenas continuou observando-a. Mesmo sentada, os belos olhos e o toque restaurador do visitante elevaram-na.

Enfim, ele retirou as mãos, mas o calor permaneceu no corpo de Susan.

– Precisa ir? – disse de maneira triste.

Ele assentiu, mas, antes de se erguer, puxou a camiseta para baixo. Sobre sua garganta, havia o colar delicado que Susan havia dado à filha, a pomba da paz estava suspensa na fina corrente.

Ela estendeu uma das mãos e tocou aquela corrente que se revelou quente contra a pele reluzente.

– Sei que vai cuidar dela.

Ele assentiu uma vez... e, então, partiu. Instantaneamente.

Com movimentos bruscos, Susan pulou da cadeira e correu para a porta da frente. Destrancando-a e abrindo-a com força, saiu em direção ao frio concreto da varanda. Nenhum sinal dele. Mas esteve ali. Ainda sentia dentro de si o calor que lhe dera.

Quando olhou para cima, viu que estava nevando: pequenos flocos brancos desciam lentamente dos céus, percorrendo caminhos sinuosos como o destino das pessoas, sempre mudando, nunca os mesmos, movendo-se em meio aos obstáculos visíveis e invisíveis.

Ao deixar a cabeça cair para trás, Susan sentiu os pequenos pontos na testa e nas bochechas, como se fossem mãos pequeninas e gentis enviadas para secar suas lágrimas.

– O anjo voltará –- pensou. E Sissy, onde quer que estivesse, não estava sozinha.

Passou-se um longo tempo antes de Susan voltar a entrar em casa, fechar a porta e caminhar em silêncio até a cama que ela e seu marido dividiam há décadas. Ao deslizar para dentro dos lençóis, ele despertou.

– Você está bem?

– Temos um anjo – ela disse. – Ele está cuidando de nós. De Sissy.

– Acha mesmo?

– Não – disse, aproximando-se dos braços do marido e fechando os olhos de exaustão. – Eu sei.

E, com isso, caiu num profundo e longo sono...


EPÍLOGO


Duas semanas depois de Reilly ter saído do hospital, parou em frente à escrivaninha do quarto e se perguntou se era moralmente errado usar uma lingerie provocante sob as roupas, já que estava indo à casa de seus pais para um jantar de domingo. Talvez devesse usar uma renda preta. Sensual, mas nada exagerado...

– O que está fazendo? – Veck disse ao aproximar-se por trás e colocar os braços ao redor dela.

Estava nu, como sempre, e muito satisfeito em vê-la... como sempre. Olhando por cima do ombro, ela sorriu e segurou o sutiã em questão.

– O preto. Estava pensando no preto. O que me diz?

– Boa escolha. É um dos conjuntos que mais gosto de tirar de você.

Quando a beijou lenta e profundamente e esfregou aquele pau duro contra o roupão de banho, Reilly entregou-se – mas apenas por um momento.

Afastando-se um pouco, ela balançou a cabeça.

– Já estamos atrasados.

– Não vai demorar muito – murmurou, colocando as mãos sobre o laço frontal do roupão. – Prometo.

– Mas vou ter que dar uma explicação ao meu pai do por que nos atrasamos para o jantar.

Veck recuou rapidamente. Pigarreou. E ficou olhando para trás de si, como se o pai dela estivesse no quarto com eles.

– Meu Deus, por que não está vestida ainda, mulher? Vamos lá, mexa-se!

Ela riu quando Veck dirigiu-se até uma mala que havia num canto e começou a jogar roupas pelo quarto como se a casa estivesse pegando fogo.

Seu parceiro ainda era o cara durão, decidido e sensual por quem tinha se apaixonado: era o mesmo detetive obstinado. Sempre alerta e cheio de cuidados com ela. Alguém que nunca desistia, recuava, cedia e que, ainda assim, conseguia satisfazê-la. Mas, se havia alguém na face da Terra que conseguia intimidá-lo, era seu pai.

Veck e o Grande Tom, era assim que Veck chamava-o, tinham muitas afinidades, mas Veck nunca ultrapassava os limites e sempre comportava-se da melhor maneira possível. E o fato de os dois se darem tão bem era apenas mais um motivo para amar como amava os dois homens de sua vida.

– Ainda está de roupão, Reilly? – exclamou enquanto vestia as calças.

– Amo você, sabe disso, não?

Ele não fez sequer uma pausa, continuou com os movimentos rápidos ao abotoar a camisa.

– Isso é bom, querida. Agora, vamos, vista-se.

Reilly riu outra vez, pegou um conjunto de lingerie da Victoria’s Secret e reproduziu no banheiro sua versão daquela agitação toda de Veck ao vestir-se.

Era incrível como as coisas haviam mudado tanto... e tão pouco. O corpo de Bails fora encontrado nos escombros da pedreira três dias depois e a morte foi considerada suicídio, uma vez que a arma que havia usado ainda estava em suas mãos frias quando o acharam. Kroner tinha acordado morto: a equipe médica do hospital concluiu que, na mesma noite em que ocorrera o colapso na pedreira, Kroner parou de respirar e não conseguiram mais reanimá-lo. Não foi surpresa, considerando a gravidade de seus ferimentos.

Quanto a Sissy Barten, sua morte foi colocada, não oficialmente, sobre os ombros de Bails: o corpo dela não permitiu uma coleta apropriada de DNA que indicasse algum tipo de contato entre eles, mas os especialistas de investigação forense se conectaram aos vários computadores do cara e encontraram uma série de tramas e loucuras – tudo girando em torno de Veck e de seu pai. Acabaram encontrando algumas postagens de Bails afirmando que gostaria de assassinar alguém como Sissy da maneira como ela fora morta, usando exatamente as mesmas técnicas e marcações, como uma forma de homenagear o pai de Veck.


Desnecessário dizer, mas Veck foi inocentado de todas as suspeitas. Na verdade, uma auditoria nos arquivos das câmeras de segurança da sala de evidências mostrou que o sistema ficou fora do ar por um tempo entre a chegada do material relacionado a Kroner e o momento em que Bails divulgou sua falsa acusação. A premissa de que Bails havia arquitetado tudo aquilo era óbvia.

E... era isso.

Depois de tudo, Veck não falou muito sobre o que aconteceu... Nem sequer fez alguma observação sobre o fato de seu pai ter sido executado de acordo com o que havia sido programado. Também não comentou sobre o momento na caverna quando a decisão errada poderia ter acabado com a vida dos dois. Mas passaram noites suficientes juntos a ponto de Veck dizer alguma coisa aqui e ali. Reilly estava dando tempo ao tempo, mas não tinha a impressão de que ele escondia ou esconderia algo dela.

Se Deus ajudasse, teriam os próximos cinquenta anos para conversarem.

– Estamos prontos? – ele gritou do quarto.

– Sim! Estou indo!

Uma rápida escovada nos cabelos, uma borrifada do perfume que Veck gostava e ela saiu correndo do banheiro para...

No centro do quarto, ao lado da cama que compartilhavam, ele estava de joelhos, com uma caixa de veludo sobre a palma de uma das mãos estendida.

Pense em alguém se movendo em câmera lenta, como num filme.

Reilly colocou uma das mãos sobre o coração que batia forte e ficou confusa por um momento.

– Duas chances para adivinhar o que vou te perguntar – ele murmurou, abrindo a tampa da caixinha.

Por um longo momento, ela simplesmente ficou ali parada em estado de choque. Porém, em seguida, conseguiu entender o que acontecia, mas tudo ao redor de Veck ainda flutuava.

Olhando para baixo, viu um anel solitário delicado com um diamante pequeno e perfeito sobre ele.

– Só para que saiba – Veck murmurou – perguntei, ao seu pai há uma semana. Ele deu permissão... e jurou me bater até me transformar em patê de sangue e me enterrar no jardim de rosas da sua mãe se eu fizer algo de errado com você.

Reilly ajoelhou-se junto dele, as lágrimas embaçavam tudo.

– É... é bem a cara dele dizer isso.

Os dois riram.

– Sim. Então – Veck limpou a garganta –, Sophia Maria Reilly, quer ser minha esposa? Por favor?

Reilly assentiu com a cabeça, pois não confiava em sua voz... E, esquecendo-se da pedra, jogou seus braços ao redor dele e abraçou-o com força.

– Eu te amo...

Veck apertou-a contra si e depois recuou. Com mãos que tremiam levemente, tirou o anel do compartimento de veludo... e deslizou-o sobre o dedo de Reilly.

– Serviu perfeitamente.

Ela levou um tempo admirando o brilho que piscava reluzente. A pedra exibia um estilo firme, preciso e impressionante.

– Não é grande – disse Veck –, mas é impecável. Isso é importante para mim. Queria te dar algo... impecável.

Ela apertou seus lábios contra os dele.

– Você já me deu algo assim. E não foi nada que pudesse comprar numa joalheria.

Veck retribuiu o beijo por um bom tempo... que pareceu eterno, e que mal foi suficiente para ela. E, então, ainda com a boca contra a dela, Veck sussurrou: – Agora, se importa de entrar no carro e ultrapassar alguns limites de velocidade? Por mais que eu ame o jardim de sua mãe, prefiro não servir de adubo, especialmente numa noite como esta.

Rindo, Reilly levantou-se e ajudou seu... meu Deus, seu noivo... a se levantar também.

– Sabe o que acabei de perceber? Tratamos um ao outro pelo sobrenome.

– E nenhum de nós sabe cozinhar.

– Viu? – disse enquanto desciam as escadas lado a lado. – Estávamos destinados a ficar juntos.

Na metade do caminho, Veck deteve-a, puxou-a contra os seus braços e beijou-a outra vez.

– Amém, meu amor. Amém.

Um último beijo... e só então saíram pela porta...

Para seguir por um longo futuro juntos.

 

                                                                  J. R. Ward

 

 

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