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Inventário do Irremediável foi meu primeiro livro publicado. Antes dele, havia um volume de contos chamado Três Tempos Mortos, cujos originais acabaram se perdendo depois de ganharem, em 1968, uma Menção Honrosa no Prêmio José Lins do Rego, da Livraria José Olympio Editora. Em 1970, Carlos Jorge Appel editou apenas 500 exemplares pela Editora Movimento, lançados em noite de autógrafos na lendária Livraria Coletânea, do meu maior incentivador (com Madalena Wagner, que nunca mais voltou da Alemanha), o escritor Arnaldo Campos. Em 1982, Pedro Paulo de Sena Madureira propôs reeditá-lo pela Nova Fronteira. Praticamente rescrevi-o todo nessa época, a artista plástica Magliani fez uma linda capa mas Pedro Paulo desligou-se da editora, eu viajei, entrei em novos projetos e a coisa acabou não andando.
Por que retomá-lo agora, 25 anos depois? Primeiro, ainda acredito nele. Segundo, é praticamente um novo livro. Da primeira edição foram eliminados oito contos, os restantes reescritos, e até o título mudou, passando da fatalidade daquele irremediável (algo melancólico e sem saída) para ir-remediável (um trajeto que pode ser consertado?). Terceiro: acho que se deve insistir na permanência de tudo aquilo que desafia Cronos, o deus- Tempo cruel, devorador dos próprios filhos. Esta reedição fica, assim, como uma espécie de comemoração das minhas, digamos, bodas de prata com a literatura ...
Estes contos foram escritos entre 1966, entre Santiago do Boqueirão, onde eu costumava passar as férias na casa de meus pais; Porto Alegre da época da faculdade São Paulo dos primeiros loucos tempos de 1968, AI-5 e ebulição cultural, e finalmente a Casa do Sol, de Hilda Hilst, em Campinas. Foi na casa de Hilda que dei forma final aos textos, inscrevendo-os no Prêmio Fernando Chinaglia para autores ainda inéditos em livro.
Creio que o mais perigoso neste Inventário é a excessiva influência de Clarice Lispector, muito nítida em Histórias como Corujas ou Triângulo Amoroso: Variação Sobre o Tema. Mas há ainda outras influências: a do nouveau roman francês de Robbe-Grillet, Natalie Sarraute e Michel Butor, num conto como Ponto de Fuga, e também do realismo-mágico latino-americano (em O Ovo ou O Mar Mais Longe Que eu Vejo), vagas alegorias sobre a ditadura militar do País. Há meros exercícios de forma e estilo, além de textos demasiado pessoais, que soam mais como trechos de cartas ou diário íntimo.
Seja como for, com todas as suas irregularidades e muitas pretensões (freqüentemente é demasiado literário), sem dúvida Inventário do Irremediável foi uma das bases de todos os livros que vieram depois. Quem sabe isso talvez possa interessar, além de mim mesmo, a alguns leitores? Gostaria muito que sim.
OS CAVALOS BRANCOS DE NAPOLEÃO
A princípio os cavalos eram mansos. Inofensivos como moças antigas fazendo seu footing na tarde de domingo. Foi só depois de certa convivência, ganhando intimidade, que começaram a tornar-se perigosos, passando da mansidão à secura e da secura à agressividade. Quando isso aconteceu, já tudo estava perdido. Na verdade talvez estivesse desde sempre, pois convenhamos, ver cavalos, e ainda por cima brancos -não é muito normal. E quem sabe a doçura do início fosse apenas um estratagema: se de imediato os cavalos tivessem se mostrado como realmente eram, é provável que Napoleão não os recebesse. E onde eles, pobres cavalos brancos rejeitados, encontrariam outro alguém para seduzir e atormentar? Outra hipótese é que não teriam sido propriamente um mal: Napoleão os teria trazido consigo, latentes, desde o útero materno, e só de repente vieram à tona. Como se aguardassem circunstâncias mais propícias para atacar. Pois eram inteligentes. E prudentes, também.
Antes, antes de tudo, Napoleão era advogado. Carregava consigo um sobrenome tradicional e as demais condições não menos essenciais para ser um bom profissional. Sua vida se arrastava juridicamente, como se estivesse destinado à advocacia. Em sua própria casa, à hora das refeições, todos dias sempre se desenrolavam movimentadíssimos julgamentos.
Dos quais ele era o réu. Acusado de não dar um anel de brilhantes para a esposa nem um fusca para o filho nem uma saia maryquantiana para a filha. Eventuais visitas faziam corpo de jurados, onde às vezes colaboravam criados mais. Íntimos, sempre concordando com a esposa, promotora tenaz e capciosa. Treinado desse jeito, diariamente e com a vantagem de estar na doce intimidade do dulcíssimo lar, não era de admirar que fosse advogado competente. Sobretudo, experiente. Entre papéis de defensor e acusado, dividia-se em paciência. Nome nos jornais, causas vitoriosas, vezenquando faziam-no sorrir gratificado, pensando que, enfim, nem tudo estava perdido, ora. Mas estava. Embora ele não soubesse. Ou quem sabe estava tudo achado e não perdido, de tal maneira estão bem e mal interligados? O fato é que ele não sabia. Não sabendo, não podia lutar. Não podendo lutar, não podia vencer. Não podendo vencer, estava derrotado. Um derrotado em potencial, pois ele viu pela primeira vez.
Deu-se nas férias, na praia, quando olhou para as nuvens. E o fato de ter visto exatamente cavalos ainda mais exatamente, brancos -talvez tivesse mesmo a ver com seu nome, como mais tarde insinuaram os psiquiatras. Se se chamasse Ali ou Mustafá, provavelmente teria visto camelos? ou touros, se seu nome fosse Juan ou Pablo? Mas na primeira visão isso não teve importância. Simplesmente viu, com a simplicidade máxima que há no primeiro movimento do ato de ver. Tão natural achou que cutucou a esposa deitada ao lado, apontando, olha só, Marta, cavalos brancos nas nuvens. Não havia espanto nem temor nas suas palavras. Apenas a reação espontânea de quem vê o belo: mostrar. Marta disse não enche, Napoleão, coisa chata cutucar com este calor.
Como ele insistisse, afastou os raybans e deu uma espiada. Achou que as nuvens tinham mesmo certo jeito de cavalos. Tranqüilizada, passou um pouco mais de bronzeador argentino nas coxas. O que ela não percebia é que os animais estavam além (ou aquém) das nuvens. E entre elas passavam, ora galopantes, ora trotando, uma brancura, uma pureza tão grande equinidade absoluta nos movimentos. Tanta que Napoleão piscou, comovido. E começou a afundar. Porque ver é permitido, mas sentir já é perigoso. Sentir aos poucos vai exigindo uma série de coisas outras, até o momento em que não se pode mais prescindir do que foi simples constatação. Em breve os cavalos se diluíram no azul. Napoleão voltou à sua Agatha Christie.
Nesse dia, nuvens dissipadas, no céu de um azul sem mágoa não havia mais espaço para os cavalos. Só no nublado da manhã seguinte eles voltaram a aparecer. Desta vez, já com o egoísmo de quem intui que a coisa começa a significar, Napoleão não quis dividi-los com ninguém. Afundou neles, corpo despregado i da areia, levíssima levitação, confundindo-se com as nuvens, tão macias as carnes reluzentes, as crinas sedosas, os cascos marmóreos, relinchos bachianos brotando das modiglianescas gargantas, ricos como acordes barrocos. Estendeu as mãos para tocá-los, mas eles se esquivaram pudicos e desapareceram. De volta à areia, Napoleão olhou com certa superioridade para a esposa, achando-a vulgar naquela falsa moreneza tão oposta à brancura dos cavalos.
Começou a cultivá-los. Percebendo-os tímidos, passou a fazer longas caminhadas solitárias pela praia. Percebendo-os líricos, escolheu a hora do pôr-do-sol para seus furtivos encontros. E eles vinham. Agora se deixavam afagar, focinhos abaixados com sestro e brejeirice. Variavam em quantidade, nunca de cor. Como moças-de-respeito, jamais o encontravam sozinhos, embora, imaculadamente brancos. Brancos ou brancas? Éguas ou garanhões? Na verdade Napoleão jamais saberia especificar-lhes o sexo. E que importância tinha? Embora apaixonado, não pretendia dormir com eles(as), portanto era indiferente sua sexualidade. Afagava-os como afagaria uma rosa, vivesse metido em jardins ao invés de tribunais. Como antigos vasos de porcelana, tapetes persas, preciosidades às quais apenas se ama, na tranqüilidade de nada exigir em troca. Tranqüilo, então, ele os(as) amava. Voltava banhado em paz, rosto descontraído, sorrindo para os animais alojados no fundo de suas próprias pupilas. Mulher, filhos, criados, visitas, vizinhos surpreendiam-se ao vê-lo crescer dia a dia em segurança e força. Os habituais júris não mais o perturbavam. Pairava agora infinitamente acima de qualquer penalidade ou multa. Tanto que a esposa chegou a pensar seriamente em perguntar-lhe: o que é a Verdade? pois dessa nem Cristo escapara ileso. Calou -um pouco por ser demasiado católica, medrosa do sacrilégio, mas principalmente por senti-lo ainda além daquela pergunta, embora, orgulhosa, não o confessasse a si mesma.
Voltando à cidade, fim de férias, ele temeu que os cavalos o tivessem abandonado. Realmente, durante dois dias eles desapareceram. Napoleão esqueceu júris, processos, representações, dedicado somente à ausência dos amigos, ponto branco dolorido no seu taquicárdico coração. Fez então o primeiro reconhecimento: eles haviam assumido vital importância. Não podia mais viver sem os cavalos. Dessa certeza, partiu para uma segunda: eram a única coisa realmente sua que jamais tivera em toda a vida.
Mas eles voltaram. Entraram pela janela aberta do tribunal num dia em que ele estava especialmente inflamado na defesa de um matricida. A princípio ainda tentou prosseguir, fingiu não os ver, traição, opção terrível, entre o amor e a justiça, como na telenovela a que sua mulher assistia. Eles não estavam doces. Depois de entrarem pela janela, instalaram-se ríspidos entre os jurados. De onde observavam, secos, inquisidores. Sem sentir, Napoleão começou a falar cada vez mais baixo, mais lento, até a voz esfarelar-se num murmúrio de desculpas, em choque como murmúrio de revolta crescendo dos parentes do réu. Napoleão olhou ansioso para os cavalos, que não fizeram nenhum gesto de aprovação ou ternura. Rígidos, álgidos: esperavam.
O quê? foi a pergunta que ele se fez em pânico escavando o cérebro. Sem resposta, manteve-se encolhido e quieto até o final do julgamento. Estariam zangados?
Por que oh meu Deus, por quê? Mesmo assim acompanharam-no até a porta de casa instalados no banco traseiro do automóvel. Mudos. Napoleão entrou devagar na sala quase escura, criados indecisos entre aproveitar a luz mortiça do entardecer ou acender a luz elétrica. Confuso, enterrou a cabeça nas [1]mãos. Nesse instante, a luz acendeu e um amigo, também advogado, entrou acompanhado de Marta.
AMIGO (carinhoso e complacente) -Não há de ser nada, Napoleão. Isso acontece até com os melhores. Você não deve se desesperar. As coisas voltam a ser como antes.
MARTA A (pousando a mão no ombro de Napoleão) -Afinal, foi a primeira vez, meu bem.
NAPOLEÃO (encarando-os, agradecido) –Vocês viram, então? Viram? Ah, eu não sei como explicar Parecia tudo tão bem, tão completo. Eu não entendo o que houve.
AMIGO - Isso acontece, Napoleão.
MARTA - Não se desespere, querido.
AMIGO - Você não teve culpa.
MARTA - Você estava nervoso.
NAPOLEÃO (obsessivo) - Mas vocês repararam na atitude deles? Repararam mesmo?
AMIGO (conciliador) - Natural que ficassem revoltados, Napoleão. Afinal, são parentes, clientes, pagaram os tubos. Queriam um serviço bem feito.
MARTA - Claaaaaro. E, enfim, o cara pegou só sete anos. Não é tanto assim, você pode apelar, pedir o tal de habeas-corpus.
NAPOLEÃO (erguendo-se brusco da poltrona) - Parentes? Clientes? Réu? Habeas-corpus? Mas eu estou falando é dos cavalos, entendem? Dos cavalos, caralho! Os parentes, os réus, os jurados, que se fodam, entendem? Que se fodam. Sem vaselina! O que me interessa são os cavalos!
Marta e o amigo se surpreenderam. E revezaram-se em desculpas, a cólera de Napoleão crescendo, meu Deus, ficou perturbado com o fracasso, Maria, traz um copo d'água, o coração, Napoleão, olha o infarto, uma aspirina, minha filha, calma, Napoleão, pelo amor de Deus, criatura!
Acalmou-se. Pelo menos até os cavalos voltarem, no dia seguinte. Ainda indiferentes remotos. A ira cresceu de novo, medo de perder seu único motivo, seu único apoio. Chamaram o médico. Deu-lhe injeções, calmantes, barbitúricos. Entre períodos de inércia e desespero, Napoleão se dividia. Veio psiquiatra. Devassou a sua vida, fazendo-o corar de vergonha e raiva e indignação. Nunca pensou em dormir com sua mãe? Já teve relações homossexuais? Em caso afirmativo, ativas ou passivas? Já pensou em estrangular a sua esposa? E em dormir com sua filha? Que sensação experimenta quando está defecando? Gosta de sentir dor? Em caso afirmativo, provocada por homem ou mulher?
Complexos de Édipo, Orestes, Agamemnon, Jocasta, Hipólito, Ifigênia, Prometeu, Clitemnestra -toda a mitologia grega foi colocada em função de sua doença.Em apenas dois dias, foi obrigado a ler toda a obra de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes para descobrir quando devia ou não se ofender. Rótulos como sadomasoquista, pederasta, esquizofrênico, paranóico, comunista, ateu, hippie, narcisista, psicodélico, maconheiro, anarquista, catatônico, traficante de brancas (ou brancos?) foram-lhe impostos sucessivamente pelos psicanalistas.
Paciente, passivo, aceitava tudo sem sequer tentar compreender. Da psicoterapia individual passou à de grupo, e desta ao psicodrama, sonoterapia, eletrochoques -submetendo-se inclusive a um novíssimo método: a cavaloterapia, criado especialmente para ele.
Consistia em permanecer durante duas horas diárias no meio de cavalos reais. Exclusivamente pretos, e os mais cavalares possíveis, isto é, malcheirosos, despudorados, arrogantes, etc. Nada conseguia curá-lo. Passava de psicólogo a psiquiatra, a psicanalista; de sanatório a casa de saúde, a hospício. E nada. Enquanto isso, os cavalos mostravam-se cada vez mais agressivos, chegando mesmo à ousadia de investir contra ele. Melancólico, chorava noites inteiras, buscando explicações para a atitude cada vez mais inexplicável de seus antigos companheiros. Os psiquiatras, a esposa, os filhos, os criados, os colegas -todos cresciam em exigências, magoando-o com dúvidas e perguntas suspeitas. Napoleão diminuía em ânimo e saúde. Nervos à flor da pele, recusava-se a comer ou beber e, nos últimos tempos, inclusive em responder às perguntas dos analistas.
Numa noite, deu-se o desfecho. Que, aliás, se armara inevitável desde o princípio. Mais arde, os enfermeiros comentaram terem ouvido risos, segundo alguns, ou lágrimas, segundo outros. Mas ao certo mesmo, ninguém ficou sabendo como Napoleão morreu. Quando o médico entrou no quarto pela manhã, deparou com o corpo dele rígido sobre a cama. Parada-cardíaca-provocada-por-inanição, atestou logo entre alívio e piedade. Mandou chamar a esposa, filhos, colegas, criados, que vieram em tardias lágrimas inÚteis. Sobre a mesinha de cabeceira, em tinta azul, ficava sua última (ou talvez primeira) exigência. Queria ser conduzido para o cemitério num coche puxado por sete cavalos. Brancos, naturalmente. Foi. Culpada, a esposa gastou no enterro quase todo o seguro prévia e prudentemente feito. Sete palmos, Napoleão foi enterrado. Tivessem aberto o caixão, talvez notassem qualquer coisa como um vago sorriso transcendendo a dureza dos maxilares para sempre cerrados. Ninguém abriu. Tempos depois o zelador espalhou pelas redondezas que vira um homem estranho, nu em pêlo, cabelos ao vento, galopando em direção ao Crepúsculo montado em amáveis cavalos. Brancos, naturalmente.
A QUEM INTERESSAR POSSA
Eu não tenho culpa não fui eu quem fez as coisas ficarem assim desse jeito que não entendo que não entenderia nunca você também não tem culpa vou chamá-lo de você porque ninguém nunca ficará sabendo nem era preciso a culpa é de todos e não é de ninguém não sei quem foi que fez o mundo assim horrível às vezes quando ainda valia a pena eu ficava horas pensando que podia voltar tudo a ser como antes muito antes dos edifícios dos bancos da fuligem dos automóveis das fábricas das letras de câmbio e então quem sabe podia tudo ser de outra forma depois de pensar nisso eu ficava alegre quem sabe quem sabe um dia aconteceria mas depois pensava também que não ia adiantar nada e tudo começaria a ficar igual de novo no momento que um homem qualquer resolvesse trocar duas pedras por um pedaço de madeira porque a madeira valia mais e de repente outra vez iam existir essas coisas duras que vejo da janela na televisão no cinema na rua em mim mesmo e que eu ia como sempre sair caminhando sem saber aonde ir sem saber onde parar onde pôr as mãos os olhos e ia me dar aquela coisa escura no coração e eu ia chorar chorar durante muito tempo sem ninguém ver é verdade tenho pena de mim e sou fraco nunca antes uma coisa nem ninguém me doeu tanto como eu mesmo me dôo agora mas ao menos nesse agora eu quero ser como eu sou e como nunca fui e nunca seria se continuasse me entende eu não conseguiria não você não me entendeu nem entende nem entenderia você nem sequer soube sabe saberá amanhã você vai ler esta carta e nem vai saber que você poderia ser você mesmo e ainda que soubesse você não poderia fazer nada nem ninguém eu já não acredito nessas coisas por isso eu não te disse compreende talvez se eu não tivesse visto de repente o que vi não sei no momento em que a gente vê uma coisa ela se torna irreversível inconfundível porque há um momento do irremediável como existem os momentos anteriores de passar adiante tentando arrancar o espinho da carne há o momento em que o irremediável se torna tangível eu sei disso não queria demonstrar que li algumas coisas e até aprendi a lidar um pouco com as palavras apesar de que a gente nunca aprende mas aprende dentro dos limites do possível acho não quero me valorizar não sou nada e agora sei disso eu só queria ter tido uma vida completa elas eram horríveis mas não quero falar nisso podia falar de quando te vi pela primeira vez sem jeito de repente te vi assim como se não fosse ver nunca mais e seria bom que eu não tivesse visto nunca mais porque de repente vi outra vez e outra e outra e enquanto eu te via nascia um jardim nas minhas faces não me importo de ser vulgar não me importa o lugar-comum dizer o que outros já disseram não tenho mais nada a resguardar um momento à beira de não ser eu não sou mais tudo se revelou tão inútil à medida em que o tempo passava tudo caía num espaço enorme amar esse espaço enorme entre mim e você mas não se culpe deixa eu falar como se você não soubesse não se culpe por favor não se culpe ainda que esse som na campainha fosse gerada pelos teus dedos eu não atenderia eu me recuso a ser salvo e é tão estranho o entorpecimento começa pelos pés aquela noite eu ainda esperava quase digo sem querer teu nome digo ou escrevo não tem importância vou escrevendo e falando ao mesmo tempo com o gravador ligado é estranho me desculpa saí correndo no parque e me joguei na água gelada de agosto invadi sem ter direito a névoa dos canteiros destaquei meu corpo contra a madrugada esmaguei flores não nascidas apertei meu peito na laje fria do cimento a névoa e eu o parque e eu a madrugada e eu costurado na noite cerzido no escuro porque me dissolvia à medida em que me integrava no ser do parque e me desintegrava de mim mesmo preenchendo espaços aqueles enormes espaços brancos terrivelmente brancos e você não teve olhos para ver que o parque era você a água você a névoa você a madrugada você as flores você os canteiros você o cimento você não teve mãos para mim só aquela ternura distraída a mesma dos edifícios e das ruas mas eles me desesperavam você me desesperava eu não quero falar nelas mas elas estão na minha cabeça como os meus cabelos e as vejo a todo instante cantando aquela canção de morte a minha carne dilacerada e eu ridículo queria ter uma vida completa você não se parecia com Denise tinha os olhos de mangaba madura os mesmos que tive um dia e perdi não sei onde não sei por que e de repente voltavam em você nos cabelos finos muito finos finos como cabelos finos 'minto que me bastaria tocá-los para que tudo fosse outra vez mas não toquei eu não tocaria nunca na carne viva e livre eles me rotularam me analisaram jogaram mil complexos em cima de mim problemas introjeções fugas neuroses recalques traumas e eu só queria uma coisa limpa verde como uma folha de malva aquela mesmo que existiu ao lado do telhado carcomido do poço e da paineira mas onde me buscava só havia sombra eu me julgava demoníaco mas não pense que estou disfarçando e pensando como-eu-sou-bonzinho-porque-ninguém-me-ama eu me achava envilecido me sentia sórdido humilhado uma faixa de treva crescia em mim feito um câncer a minha carne lacerada estou dentro dessa carne lacerada que anda e fala inútil a carne conjunta das xifópagas e o vento um vento que batia nos ciprestes e me levava embora por sobre os telhados as cisternas as varandas os sobrados os porões os jardins o campo o campo e o lago e a fazenda e o mar eu quero me chamar Mar você dizia e ria e ríamos porque era absurdo alguém querer se chamar Mar ah mar amar e você dizia coisas tolas como quando o vento bater no trigo te lembrarás da cor dos meus cabelos você não vai muito além desses príncipes pequenos suas palavras todas não tenho culpa não tenho culpa eram de quem pedia cativa-me eu já não conseguiria bem lento eu não conseguiria eu não sei mais inventar. a não ser coisas sangrentas como esta a minha maneira de ser um momento à beira de não mais ser não me permite um invento que seja apenas um entrecaminho para um outro e outro invento mesmo a destruição tem que ser final e inteira qualquer coisa tem que ser a última uma era inteira e a outra nascia da cintura e existia só da cintura para cima como um ipsilone mole esponjosa uma carne vil uma carne preparada por toda uma estrutura de guerras epidemias pestes ódios quedas eu me sentia culpado ao vê-las assim nosso podre sangue a humanidade inteira nelas que não riam e cantavam aquela sombria canção de morte brutalmente doce elas cantavam e minhas costas doíam como se eu sozinho as sustentasse e não uma à outra mas eu eu com este sangue apodrecido que assassina crianças de fome droga adolescentes bombardeia cidades e também você e todos nós grudados indissoluvelmente grudados nojentos mas me recuso a continuar ninguém sofrerá por mim sem mim chorar ninguém entende nem precisa nem você nem eu o anel que tu me deste sobre a folha que me contém sem compreender sem compreender que você carrega toda uma culpa milenar e imperdoável a História como concreto sobre os teusmeusnossos ombros Cristo sobre nossos ombros todas as cruzes do mundo e as fogueiras da inquisição e os judeus mortos e as torturas e as juntas militares e a prostituição e doenças e bares e drogas e rios podres e todos os loucos bêbados suicidas desesperados sobre os teus meus nossos ombros leves os teus porque não sabes sim sim eu tenho culpa não é de ninguém esse desgosto de lâmina nas entranhas não é de ninguém esse sangue espantado e esse cosmos incompreensível sobre nossas cabeças não posso ser salvo por ninguém vivo e os mortos não existem a fita está acabando começo a ficar tonto a dormência chegou quem sabe ao coração talvez eu pudesse eu soubesse eu devesse eu quisesse quem sabe mas não chore nem compreenda te digo enfim que o silêncio e o que sobra sempré como em García Lorca solo resta el silêncio un ondulado silêncio os espaço de tempo a nos situar fragmentados no tempoespaçoagora não sei onde fiquei onde estive onde andei nada compreendi desta travessia cega a mesma névoa do parque outra vez a mesma dor de não ser visto elas gritam sua canção de morte este sangue nojento escorrendo dos meus pulsos sobre a cama o assoalho os lençóis a sacada a rua a cidade os trilhos o trigo as estradas o mar o mundo o espaço os astronautas navegando por meu sangue em direção a Netuno e rindo não não quebres nunca os teus invólucros as tuas formas passa lentamente a mão do anel que eu te dei e era vidro depois ri ri muito ri bêbado ri louco ri ate te surpreenderes com a tua não dor até te surpreenderes com não me ver nunca mais e com a desimportancia absoluta de não me ver nunca mais e com minha mão nos teus cabelos distante invisível intocada no vento.
Perdida a minha mão de espuma abrindo de leve esta porta assim.
CORUJAS
Tinham um olhar dentro, de quem olha fixo e sacode a cabeça, acenando como se numa penetração entrassem fundo demais, concordando, refletidas. Olhavam fixo, pupilas perdidas na extensão amarelada das órbitas, e concordavam mudas. A sabedoria humilhante de quem percebe coisas apenas suspeitas pelos outros. Jamais saberíamos das conclusões a que chegavam, mas oblíquos olhávamos em tomo numa desconfiança que só findava com algum gesto ou palavra.
Nem sempre oportunos. O fato é que tínhamos medo, ou quem sabe alguma espécie de respeito grande, de quem se vê menor frente a outros seres mais fortes e inexplicáveis. Medo por carência de outra palavra para. melhor definir o sentimento escorregadio na gente, de leve escapando para um canto da consciência de onde, ressabiado, espreitaria. E enveredávamos então pelo caminho do fácil, tentando suavizar o que não era suave. Recusando-lhes o mistério, recusávamos o nosso próprio medo e as encarávamos rotulando-as sem problema como "irracionais", relegando-as ao mundo bruto a que deviam forçosamente pertencer. O mundo de dentro do qual não podiam atrever-se a desafiar-nos com o conhecimento de algo ignorado por nós. Pois orgulhos, não admitiríamos que vissem ou sentissem além de seus limites. Condicionadas a seus corpos atarracados, de penas cinzentas e três garras quase ridículas na agressividade forçada -condicionadas à sua precariedade, elas não poderiam ter mais do que lhe seria permitido por nós, humanos.
Vieram de manhã cedo, a casa adormecida recusando-se preguiçosa a admiti-las em seu cotidiano.
Apenas a empregada levantou-se entre resmungos para abrir a porta. Aceitou-as impassível em sua sonolência, dentro da gaiola em que estavam. O homem que as trouxera exigira apenas um sabonete em troca. Não sei se chegaram, a saber, disso -talvez não, pois quem sabe a troca mesquinha faria oscilar o orgulho delas, amenizando-lhes a ousadia no encarar-nos. Sobre a mesa, uma encolhida contra a outra, massa informe, cinzenta e tímida, onde ainda não se distinguia o grito amarelo dos olhos, aguardaram pacientes que o sol subisse e as gentes acordadas viessem cercá-las de espantos e sustos. Meu pai no entanto não lhes deu atenção. Constatou-as e passou adiante, em direção ao banheiro. Minha mãe sorriu-lhes, tentando a primeira carícia, recusada talvez por inexperiência de afeto. Contudo, não as penetrou fundo, anexando-as inofensivas em seu esparramar de bondade sem precauções.
Foram as crianças as primeiras a hesitar, num recuo que seria de ofensa se pertencesse à gente grande. Crianças trocaram assombros frente à estranheza dos bichos nunca antes vistos. Por terem menos tempo de existência eram talvez as mais vulneráveis ao mistério. O viver constante demorado e desiludido dos outros, acostumados a dureza, não podena por caminhos diretos render-se à solicitação dos olhos delas. Mas a inexperiência das crianças levava-as ao extremo oposto de desrespeitá-las em sua individualidade, trazendo-as sem cerimônias para seu mundo de brinquedos. Perguntaram o nome dos bichos à empregada atarefada em passar café.
Coruja - foi a resposta seca, desinteressada, como se se tratassem de um saco de açúcar.
Aparentemente satisfeitas, compenetraram-se em cercá-las de uma ternura meio brusca. Aquela mesma dispensada às bonecas novas, que em pouco tempo restavam espatifadas em braços e pernas pelo quintal. Essa ternura bruta que destrói por excesso inábil de amor. Restou-me o consolo de ter sido o primeiro a identificá-las como realmente eram. Ou como eu as via, duvidando que a visão dos outros fosse mais correta, profunda ou corajosa.
O sol já alto da manhã as fizera abrir os olhos, investigando o ambiente. Creio que a brancura dos azulejos da cozinha as surpreendeu, pois em breve voltaram a encolher-se, alheias. Acostumadas como estavam aos vastos céus e campos percorridos dias inteiros preferiam buscar as coisas perdidas no calor dos corpos uma da outra. Prática, minha mãe informava: eram boas para comer baratas. E conscientes de sua liberdade interrompida, elas esperavam pela tarefa que lhes era destinada.
Logo caminhavam pela casa inteira, desvendando segredos. As crianças seguravam-nas, embalando-as como nenéns. Sem esperar, de repente, agente deparava com o olhar amarelo fixo duma -perturbando, interrogando, confundindo. A acusação muda fazia com que me investigasse ansioso, buscando erros. E punha-me em dia comigo mesmo, para me apresentar novamente a elas de banho tomado, unhas cortadas, rosto barbeado, cabelo penteado -na ilusão de que a limpeza externa arrancasse um aceno de aprovação. Mas eu sabia -embora, obstinado, recusasse a convicção até o último minuto -, sabia que seu olhar ultrapassava roupa, pele, carne, músculos e ossos para fixar-se num compartimento remoto, cujo conteúdo eu mesmo desconhecesse. Admitia-as envergonhado, mas hesitava em mostrar-me, criminoso negando o crime até a evidência dos fatos. Observava os olhares desviados dos adultos, e desviava também o meu, cirandando com eles na mesma negação.
As crianças disputavam a posse, é minha, não, é minha, manhê, a Claudia quer se adornar das corujas, mas elas passavam adiante, sabendo-se para sempre impossuídas, indecifráveis. Disputavam também a primazia de batizá-las, ignorando que o anonimato fazia parte de sua natureza. Nessa ignorância, chamaram nas Tutuca e Telecoteco. Pisquei um olho para elas, rindo da ingenuidade, tentando penetrar em sua intimidade, cada vez mais e mais negada. Ofélia e Hamlet, sugeriu um leitor óbvio de Shakespeare. Mas recusei-os ainda. Secretamente, reivindicava para mim seu batismo e posse, investigava almanaques em busca do nome que melhor assentasse. Chamá-las de alguma coisa seria dar um passo no caminho de seu conhecimento, como se sutilmente as fosse amoldando à minha maneira de desejá-las. Finalmente achei. Eram nomes de criaturas estranhas, indecifráveis como elas, já perdidas no tempo, misteriosas até hoje. Rasputin e Cassandra. Calei a descoberta, ocultei o batizado, apropriando-me cada vez mais de sua natureza, embora inconscientemente soubesse da inutilidade de tudo. Rasputin era menor, mais ágil, caminhava lento pelo parquê, os olhos sempre abertos, inesperadamente alcançando o encosto das cadeiras num vôo raso. Cassandra procurava os cantos escuros, os olhos constantemente semicerrados, uma perna encolhida, atitude de rosto-pendido-e-ar-pensativo.
Passados os primeiros dias, principiaram a entrar na rotina. Vezenquando ainda me surpreendia a encará-las num duelo de mistérios. Eu, ocultando cuidadoso o meu, feroz na defesa, embora fosse sempre o primeiro a desviar os olhos. Recusei tocá-las. A maciez de seus corpos passava quente, impassível, de mão em mão, quando havia visitas. E só nessas ocasiões elas voltavam a espantar. Cumpriam honestamente sua tarefa de devorar baratas, mas recusavam qualquer outro alimento. O homem que as trouxera informara a minha mãe de seu orgulho: feridas em liberdade faziam greve de fome até a morte. Com a iminência de seu suicídio, planejamos soltá-las no campo. Quase podia vê-las erguendo-se de leve num vôo contido, experimentando forças, as asas abrindo-se aos poucos numa subida lenta. Fundidas em azul, subindo, subindo.
As asas cortadas, porém, exigiam tempo para crescer novamente. Éramos obrigados a esperar. Desejei comunicá-las sua próxima libertação, mas a ineficiência de gestos e palavras isolou-me num mutismo para elas incompreensível. Éramos definitivamente incomunicáveis. Eu, gente; elas, bichos. Corujas, mesmo batizadas em segredo. Cassandra e Rasputin. Ofélia e Hamlet. Tutuca e Telecoteco. Qualquer nome não modificaria a sua natureza. Nunca. Corujas para sempre.
Mas a greve de fome persistia. Tão bem cumpriram seu serviço de comer baratas que em breve, creio, não restava mais nenhuma. Orgulhosas, passeavam seus estômagos vazios pela casa toda, a gente se olhando culpado, as mãos desertas de soluções. Não nos restava mais nada a fazer senão esperar. Por sua morte ou sua capitulação. Quem as visse, convictas em seu dês ilar faminto, poderia facilmente imaginá-las carregando cartazes de protesto. Contra quê? Contra quem? perguntávamos temerosos da resposta óbvia.
Num começo de manhã ainda sem sol, igual a que as tinha trazido, Rasputin foi encontrado morto. O corpo pequeno e cinzento, já rígido, sobre os mosaicos frios da cozinha. Desviei os olhos sem dar nome ao sentimento que me invadia. Encolhida em seu canto, Cassandra diminuía cada vez mais. Olhos cerrados com força, eu tinha impressão que vezenquando seu corpo oscilava, talo de capim ao vento, quase quebrado.Até que morreu também. Digna e solitária, quem sabe virgem. Enterraram-na no fundo do quintal, uns jasmins jogados por cima da cova rasa, feita com as mãos.
Não fui ver a sepultura. Não sei se me assustava o mistério adensado ou para sempre desfeito.
APEIRON
Aquela matéria de bondade se reorganizara dentro dele. No espelho encontraria num susto a mesma limpidez de olhar, os mesmos cabelos ao vento, ainda que rigidamente armados em torno da cabeça as mãos leves como se segurassem algo doce e um tanto enjoativo -todo um ser de antigamente, reestruturado, o encararia meigo do fundo do vidro. Apenas nas fotografias antigas lembrava da mesma limpidez,a limpidez não de quem experimentou e venceu, mas a claridade que vinha duma isenção, como se nunca tivesse entrado no mundo. A limpeza de quem nunca tomou banho por nunca ter suado ou apanhado poeira. Seria de novo o-que-dá-conselhos, o-que ampara, o-que-tem-mãos-para-todo-mundo? E seria possível voltar a um estágio anterior, já disperso em inúmeras passagens através de outros e outros estágios? Pois se já experimentara a maldade, a devassidão, a frieza, o cálculo, o vício, o cinismo, a agressão e experimentara não como formas de ser, nem como opções. Experimentá-los tinha sido simplesmente ser o que o caminho exigia que se fosse, não desvios, nem atalhos. Agora já não havia marcas, as marcas onde estavam?
Mesmo imóvel, pressentia a recuperação de um jeito de sorrir que tivera, fechar os olhos, jogar os cabelos para trás, roer unhas, caminhar devagar olhando vitrines sem olhar vitrines: molécula por molécula, célula por célula, recuperava integralmente todo um ser antigo. Como se nunca houvesse saído dele. E mais que gesto, mais que movimento ou forma: aquele brilho escorregando dos olhos, aquele calor, não, calor não -tepidez, isso: aquela tepidez que faria com que as pessoas se aconchegassem lentas, tangíveis, ao alcance da mão.
Ele, meu Deus, ele que tinha sido siroco ardente ou minuano gélido, ele brisa, agora. Ou nem brisa: ausência de ventos. Não compreendia. Tocava apele dos braços buscando as asperezas, as brusquidões do rosto, aquele vinco amargo no canto da boca, a pálpebra trêmula, a carne flácida das olheiras, as entradas fundas no cabelo, os dedos grossos, os pêlos dos dedos grossos, as calosidades das palmas das mãos de dedos grossos -onde haviam ficado? Seus dedos lisos deslizavam mansos numa superfície doce, assim mesmo, com todos os adjetivos suaves, Não mais as bruscas paradas, como se tivesse esquinas e becos e encruzilhadas pela face. E o ventre raso. Os pés sem calos. O pescoço sem rugas. As coxas sem flacidez. E tudo, tudo voltava a ser antigo, e no entanto novo, compreende? Experimentou sentir ódio, lembrar pessoa, coisas e fatos desagradáveis, apalpar novamente a tessitura sombria do que vivera, a massa espessa de que era feita a mágoa, e todos os desencontros que tinha encontrado, e todos os desamores desilusões desacatos desnaturezas não, não, já nem ódio queria, que encontrasse ao menos a tênue melancolia, aquele como-estar-debruçado-na-sacada-num-fim-de-tarde, a tristeza, a solidão, a paixão: qualquer coisa intensa como um grito.
Mas seu centro havia-se tornado gentil e um pouco ausente, como ilustração de romance antigo para moças. Nada nele feria. Tinha campinas verdes pelo cérebro e colinas suaves e palmeiras esguias e um céu cor-de-rosa encobrindo um lago azul no quieto coração. Já não era mais uma reorganização, não era sequer um processo: estava consumado e além, muito além de qualquer coisa. Sem asperezas. Envernizado. Puro. Álgido. Inatingível. Definitivo. Sólido na sua meiguice. Havia ultrapassado todos os lítios, todas as procuras, as crenças, perdões e espantos.
Atingira a bondade absoluta. Meu Deus, isso é horrível, é horrível, quis gritar. Já não podia. O padre fechava rapidamente a tampa do caixão. Em breve viriam os vermes.
O OVO
Minha vida não daria um romance. Ela é muito pequena. Mas é meio sem sentido ficar pensando em jeitos de escrever se ninguém nunca vai ler. Talvez eles me impeçam até mesmo de contar o que se passou. Mas há dias está tudo escuro e a luz da vela em cima da minha mesa não vai acordar ninguém.
Bem, acho que todas as narrativas desse tipo começam com um nasci no dia tal em tal lugar, coisa profundamente idiota, porque se o sujeito está escrevendo é mais do que evidente que nasceu. Pois eu também nasci, determinado dia, determinado lugar. O quando eu não lembro, mas onde foi aqui mesmo.
Nunca saí daqui. Nem vou sair mais, eu sei. A cada dia tudo se torna um pouco mais difícil. Por isso é quase impossível que isto aqui se torne uma história interessante. As pessoas gostam de aventura, de viagens, trepações loucas. E eu nunca tive nem fiz essas coisas. Queria escrever qualquer coisa grande, ou muito triste ou muito escura, mas qualquer coisa de muito, e que alguém, se descobrisse, publicasse e procurasse castigá-los. Mas vai sair tudo parecido comigo: desinteressante, miúdo, turvo.
Bom, então nasci. Depois que nasci, cresci e tive uma infância. Houve um tempo em que eu não sabia de nada, nem as outras crianças. Os adultos sim, todos sabiam. Mas dissimulavam tão bem que nunca nenhum de nós teve qualquer espécie de dúvida. Então, a verdade dos adultos era a minha verdade. E depois, eu era criança. Desinteressantezinha, miudinha, turvinha, diminutiva. Minha mãe era dessas gordas que fazem tricô e crochê, depois colocam toalhinhas sobre os móveis e quando chega visita pedem desculpas porque a-casa-é-de-pobre. Meu pai era desses gordos que aos domingos lêem o jornal de pijama e chinelos, bebendo cerveja. Tudo múito chato, muito igual. Não me culpem por eu não fazer uma descrição minuciosa de como eles eram e o que faziam. Se eu me estendesse mais neles, só diria mentiras, porque eram apenas e exatamente isso. E de resto, não tiveram nenhuma importância em tudo que acontece agora. Só que podiam ter me avisado.
Eu brincava com as crianças, as crianças brincavam comigo. Como todo o mundo vezenquando a gente brigava, pisava caco de vidro, roubava laranja, fugia pra tomar banho no rio. Uma vez também uma menina segurou no meu pinto. Ela era loira, gorda, tinha um tranção até a cintura. Depois ela casou com um soldado da brigada, prendeu as tranças em volta da cabeça, mas continuou gorda. Dessas gordas que à tardinha se debruçam na janela sobre uma almofada de cetim rosa. Toda vez que eu vinha do emprego passava em frente à casa dela e olhava exatamente como quem pensa você uma vez segurou no meu pinto. Lógico, ela não me cumprimentava. Acho que não é muito comum as meninas que seguram nos pintos dos meninos cumprimentarem eles depois que crescem e casam.
Quando eu tinha uns treze anos arranjei uma na morada que namorei até os dezessete. Essa nunca segurou no meu pinto, e era diferente, dessas pra casar -pelo menos naquela época eu pensava assim. Só há pouco tempo, depois que vim para cá, é que me convenci de que são todas umas vacas. E os homens, uns cães. Todos eles sabendo e fingindo que não sabem. A mãe da minha namorada ficava a noite inteira sentada com a gente na sala, só levantava para trazer doce de leite, de abóbora ou de batata-doce. A menina vezenquando tocava piano, mal para burro, diga-se de passagem. Mas eu nem ouvia direito. É que quando ela sentava um pedaço da saia levantava e apareciam umas coxonas muito brancas e grossas. Eu olhava discreto, o máximo que fazia era derrubar alguma coisa no chão pra ver melhor. Eu era um moço de respeito.
Quando tinha dezoito anos, ela casou. Com um soldado da brigada. Foi então que pensei seriamente em entrar para a brigada, já que duas mulheres da minha vida tinham casado com soldados. Parecia que eu estava destinado a sempre perdê-las para eles. Só que eu achava horrível aquela roupa, os coturnos, o casquete -tudo. Mas se eu queria casar- e naquele tempo eu queria -, tinha que ser soldado. Até que descobri uma solução melhor. Perto da minha casa morava um soldado da brigada. A minha mãe era madrinha dele, a mãe dele era viúva. Quando crianças, nós brincávamos muito, mas era um guri esquisito como o diabo. Todo delicado, cheio de não-me-toques, loirinho,com uns olhos claros, uma cor que eu nunca mais consegui lembrar depois que ele se matou. Todos os sábados de manhã ele ia visitar mamãe, levava umas frutas ou doce qualquer que a mãe dele tinha feito e ficava conversando na sala, feito moça. Logo que minha namorada casou eu nem olhava pra ele, de tanto ódio. Depois comecei a armar uma vingança. Quando ele chegava eu ficava passando na sala sem camisa, às vezes até sem calças, só de cuecas. Ele ficava todo perturbado e desviava os olhos. Eu sentava perto, encostava a perna, piscava um olho pra ele na hora de apertar a mão. Um dia convidei-o pra fazer uma pescaria comigo. Levamos uma barraca, cobertores, pinga, duas dessas camas de armar. E de noite eu comi ele. Com gosto. Como se estivesse com o pau na bunda de todos os soldados da brigada do mundo. Ele nunca mais foi lá em casa, a minha mãe reclamava, parava ele na rua para perguntar por quê. Até que ele tomou formicida e morreu.
Aí nasceu o meu irmão. Não tem nada a ver uma coisa com a outra, mas não posso fazer nada se meu irmão nasceu mesmo quando ele morreu. Nasceu direitinho e tudo, mas quando tinha uns seis meses começou a definhar, definhar, e morreu de caganeira verde. Foi bom. Senão seria mais um filho da puta.
Ou soldado da brigada, o que dá no mesmo. Mas no dia em que ele morreu, eu não pensei assim. Subi em cima da montanha e fiquei olhando o mundo. Agora eu penso que se ele não tivesse morri do eu não teria subido na montanha, e se não tivesse subido na montanha não teria visto o que vi. Mas as coisas são porque têm que ser, não adianta nada a gente querer que sejam de outro jeito.
Então ele morreu, eu subi na montanha e vi. O mundo. Mas além do mundo, uma parede branca. Eu não conhecia geografia nem astronomia nem nada, nem sabia o que havia além do horizonte, podia mesmo até ser uma parede branca. Mesmo assim, a coisa me surpreendeu. Então voltei pra casa e esqueci.
Comecei a trabalhar na prefeitura, porque a minha mãe já estava ficando velha pra fazer toalhas de crochê e tricô, e o dinheiro que dava o armazém de meu pai era uma mixaria. Eu trabalhava o dia inteiro e tinha uma namorada. Essa era viúva e muito puta. As coisas que ela fez comigo eu acho que nunca ninguém fez com ninguém, até tenho vergonha de contar. Eu não ia casar com ela nem nada, mesmo assim a minha mãe ficava triste porque queria que eu casasse com a moça magrinha da casa em frente, que depois morreu tuberculosa. A tal viúva ficou esperando um filho meu, mas eu não queria ter um filho -de qualquer maneira, esse seria mesmo um filho da puta. Aí ela foi tirar o filho e morreu.
Um domingo que saí a caminhar, me lembrei da montanha. Subi até lá e de novo vi a parede. Parecia mais clara, mais perto. Voltei pra casa e disse mãe tem uma parede branca além do horizonte. Eu já tinha uns vinte e dois anos, mas ela chamou meu pai e mandou eu repetir o que tinha dito. Eu repeti e ele me deu uma bofetada na cara. A mãe começou a chorar e pediu pra eu nunca contar a ninguém que tinha visto a parede. Mas eu estava uma fera. Chamei meu pai de filho da puta, disse que ele só me batia na cara porque era um velho e era meu pai e sabia que eu não era filho da puta ao ponto de bater num velho que ainda por cima era meu pai. Arrumei minhas coisas e saí de casa.
Fui pra uma pensão. Eu dormia com a dona e pedia dinheiro para um velho fresco que gostava de me chupar. A dona da pensão tinha uns peitos caídos e uma pele cor de terra que era mais sujeira que qualquer outra coisa. Eu ia à montanha todos os domingos, e a parede lá estava, cada vez mais próxima.
Eu não queria contar a ninguém, iam pensar que eu era louco. Então comecei a ler uns livros pra ver se a tal parede era uma coisa natural. Mas nos livros de geografia não havia paredes brancas. Falava de terras, mares. Os de astronomia de estrelas, cometas. De paredes, nada. Os outros livros que eu lia também não. O máximo de estranheza que contava era dum sujeito que se transformou em barata -ele devia ser soldado da brigada.
Um dia eu comecei a andar em direção à parede.Ela estava muito longe. Caminhei quase um dia inteiro, até que ficou noite e tive que pedir carona a um menino carroceiro. Quando cheguei na pensão procurei o velho fresco, que já foi puxando a carteira do bolso pra me dar mais dinheiro. Mas eu disse que não era nada daquilo, e contei da parede. Aí o velho fresco começou a gritar até que veio todo o mundo da pensão. Ele apontava pra mim com ar de pavor e berrava ele viu, ele viu! Ninguém perguntou o que eu tinha visto. Só mandaram pegar as minhas coisas e dar o fora antes que chamassem a polícia. Daí eu coloquei os troços na mala e fui saindo. Quando cheguei à praça, disposto a passar a noite num banco, olhei para o horizonte e vi a parede. Estava muito perto, era muito branca.
Era domingo, a praça cheia de gente passeando, os rapazes tomando cerveja no quiosque, as mocinhas caminhando de braços dados. Subi num banco, chamei todo o mundo para mostrar a parede. Ficou cheio de gente em volta de mim, um silêncio desses horríveis, havia uma porção de caras, eu olhava uma por uma buscando um sinal qualquer de reconhecimento, mas os olhos de todos estavam enormes, as bocas pareciam costuradas, as sobrancelhas unidas.
De repente uns me seguraram enquanto os outros iam chamar os três.
Os três vieram. De branco, da mesma cor da parede: uma mulher com um chifre no meio da testa, um homem com três olhos e outro com vários braços, como um polvo. O de vários braços me segurou pelas costas enquanto o de três olhos ia abrindo caminho e a mulher me empurrava com o chifre. As gentes falavam palavrões e me cuspiam enquanto eu ia saindo. Eu caminhava devagar, via a parede atrás da igreja, dos campos, olhei para cima e também lá estava a parede, escondendo as estrelas. Antes de eles me jogarem no caminhão, olhei para trás e vi minha mãe e meu pai muito velhinhos, de braços dados. Pedi pra eles me salvarem, mas eles sacudiram com ódio a cabeça, o meu pai me mostrou o punho fechado e minha mãe escarrou no meu rosto. Os três me jogaram dentro do caminhão, a mulher de chifre dirigia, os dois outros me seguravam. Então me trouxeram para cá.
Todos os dias a mulher de chifre me traz as refeições, ao mesmo tempo em que o de vários braços me segura, o de três olhos coloca uns fios na minha cabeça e eu sinto uma coisa estranha, um tremor em todo o corpo, depois caio num sono pesado e só acordo à tarde. Saio na janela espio. E vejo a parede.
Cada dia mais próxima.
Eu queria contar toda a minha vida para se alguém lesse visse que não sou louco, que sempre foi tudo normal comigo, que eu fiz e disse as coisas que todo o mundo faz e diz, e que a coisa mais estranha da minha vida foi só aquela menina que segurou no meu pinto e aquela outra que eu namorei terem casado com soldados da brigada. Que eu via a parede e que todos os outros também viam, tenho certeza, só que eles não queriam ver, não sei por que, e prendiam quem via. Ontem chamei o de três olhos, que parece o mais simpático, mostrei a parede, perguntei se ele não via. Falei devagar, sem me exaltar nem nada. Aí ele ficou quieto e baixou a cabeça, acho que sentiu vergonha de fazer o que está fazendo, porque ele também vê. E ela está cada vez mais perto.
Só ontem cheguei à conclusão de que se trata de um enorme ovo. Que estamos todos dentro dele. Mas é um ovo que diminui cada vez mais, cada vez mais, nós vamos ser todos esmagados por ele. Não sei por que os homens não se armam de paus e pedras para furar a parede. Seria muito fácil, a casca de um ovo é tão frágil.
Ele já está meio azulado de tão próximo, não se vê mais as estrelas, nem a lua, nem o sol. A escuridão em que passamos o dia todo é meio azulada também. O silêncio é imenso, como se houvesse um grande vácuo aqui dentro. A cada dia o movimento do ovo fica mais rápido. Ontem, já havia ultrapassado o muro, estava a uns cem metros da minha janela. Amanhã vai estar do lado da janela, talvez já esteja, não ouço mais os passos da mulher de chifre caminhando pelos corredores com as chaves penduradas na cintura e -agora lembro -o de três olhos e o de muitos braços não me deram choques hoje. Acho que eles estão fora do ovo, e só eu dentro. Talvez cada um tenha o seu próprio ovo. E este é o meu.
Olho para o meu corpo. Será que ele cabe dentro de um ovo? Será que não vai doer?
Eu não sei. Tenho tanto medo. Estou esperando, cansei de escrever, a vela está quase apagando. Vou deitar. Estou ouvindo o rumor do ovo se aproximando cada vez mais. É um barulho leve, leve. Quase como um suspiro de gente cansada. Está muito perto. Tão perto que ninguém vai me ouvir se eu gritar.
O MAR MAIS LONGE QUE EU VEJO
Meu corpo está morrendo. A cada palavra, meu corpo está morrendo. Cada palavra é um fio de cabelo a menos, um imperceptível milímetro de ruga a mais -uma mínima extensão de tempo num acúmulo cada vez mais insuportável. Esta coisa terrível de não saber a minha idade, de não poder calcular o tempo que me resta, esta coisa terrível de não haver espelhos nem lagos, das águas do mar serem agitadas e não me permitirem ver a minha imagem. Perdi todas as minhas imagens: as das fotografias, dos espelhos, dos lagos. Se meus olhos fossem câmeras cinematográficas eu não veria chuvas nem estrelas nem lua, teria que construir chuvas, inventar luas, arquitetar estrelas. Mas meus olhos são feitos de retinas, não de lentes, e neles cabem todas as chuvas estrelas lua que vejo todos os dias todas as noites.
Chove todos os dias aqui, não tenho relógio nem rádio, mas sei que deve ser por volta das três horas, porque é pouco depois que o sol está no meio do céu e eu senti fome. Então começa a subir um vapor da terra, e as nuvens, há as nuvens que se amontoam e depois explodem em chuva, e depois da chuva são as estrelas e a lua. Não há uma manhã, uma tarde, uma noite: há o sol abrasador queimando aterra e a terra queimando meus pés, depois a chuva, depois as estrelas e a lua. No começo eu achava que não havia tempo. Só aos poucos fui percebendo que se formavam lentos sulcos nas minhas mãos, e que esses sulcos, pouco mais que linhas no princípio imperceptíveis, eram rugas. E que meus cabelos caíam. Meus dentes também caíam. E que minhas pernas já não eram suficientemente fortes para me levar até aquela elevação, de onde eu podia ver o mar e o mar que fica mais além do mar que eu via da praia. Antes, eu ia e voltava da elevação no sol abrasador depois eu só conseguia sair daqui no sol abrasador e voltar na chuva e, depois ainda só nas estrelas e na lua. Agora são necessárias muitas chuvas, muitas estrelas, muitas luas e muitos sóis para ir e voltar. E isso é o tempo, muito mais tarde descobri que isso era o tempo. Fico aqui o dia inteiro, não há ninguém, não há nada. Fico aqui na gruta o dia inteiro, sem saber mais quando é sol abrasador, quando é chuva ou lua e estrelas, eu não sei mais.
No começo eu pensei também que houvesse outros, índios talvez, animais, formigas, baratas. Não havia ninguém, nada. Da elevação eu podia ver o todo, e o todo era só a areia e os coqueiros que me alimentam. O todo não tinha ninguém, não tinha nada. Eu chorava, no começo eu chorava e não entendia, apenas não entendia, e não entender dói, e a dor fazia com que eu chorasse, no começo. Eu sentia saudade, no começo, uma saudade apertada de gente, principalmente de gente. Não me lembro mais qual era o meu sexo, agora olho no meio das minhas pernas e não vejo nada além de uma superfície lisa e áspera, mas no começo eu sabia, eu tinha um sexo determinado, e a saudade que eu tinha de gente fazia com que eu rolasse horas na areia do sol abrasador, abraçando meu próprio corpo, inventando um prazer que eu precisava para me sentir vivendo talvez, porque eu não tinha medos nem preocupações nem mágoas nem nada concreto nem expectativas, as minhas células amorteciam, eu sentia que ia acabar virando uma palmeira, os meus pés agora parecem raízes, mas ainda tenho mãos, então eu rolava na areia quente enquanto meus dentes faziam marcas fundas roxas nos meus braços, nas minhas pernas e de repente todas as minhas células explodiam em vida, exatamente isso, em vida, eu tinha dentro de mim todo aquele sol todo aquele mar tudo aquilo que eu conhecera antes, que conheceria depois, se não estivesse aqui. Eu ficava amplo, na areia, abraçado a mim mesmo.
Talvez, sim, talvez eu fosse mulher, porque pensava no príncipe, a minha mão direita era a minha mão e a minha mão esquerda era a mão do príncipe, e a minha mão direita e a minha mão esquerda juntas eram as nossas mãos. Apertava a mão do príncipe sem cavalo branco, sem castelo, sem espada, sem nada. O príncipe tinha uns olhos fundos, escuros, um pouco caídos nos cantos e caminhava devagar, afundando a areia com seus passos. O príncipe tinha essa coisa que eu esqueci como é o jeito e que se chama angústia. Eu chorava olhando para ele porque eu só tinha ele e ele não falava nunca, nada, e só me tocava com a minha mão esquerda, e eu cantava para ele umas cantigas de ninar que eu tinha aprendido antes, muito antes, quando era menina, talvez tenha sido uma menina daquelas de tranças, saia plissê azul-marinho, meias soquete, laço no cabelo, talvez. Sabe, às vezes eu me lembro de coisas assim, de muitas coisas, como essa da menina -como se houvesse uma parte de mim que não envelheceu e que guardou. Guardou tudo, até o príncipe que um dia não veio mais. Não, não foi um dia que ele não veio mais, foram muitos dias, em muitos dias ele não veio mais, a água do mar salgava a minha boca, o sol queimava a minha pele, eu tinha a impressão de ser de couro, um couro ressecado, sujo, mal curtido. E havia essa coisa que também esqueci o jeito e que se chamava ódio. De vez em quando eu pensava eu vou sentir essa coisa que se chama ódio. E sentia. Crescia uma coisa vermelha dentro de mim, os meus dentes rasgavam coisas. Devia ser bom, porque depois eu deitava na areia e ria, ria muito, era um riso que fazia doer a boca, os músculos todos, e fazia as minhas unhas enterrarem na areia, com força.
Tenho um livro comigo, não é um livro, era um livro, mas depois ficou só um pedaço de livro, depois só uma folha, e agora só um farrapo de folha, nesse farrapo de folha eu leio todos os dias uma coisa assim: "Tem piedade, Satã, desta longa miséria". Só isso.
Fico repetindo:
tempiedadesatãdestalongamisériatempiedadesatãdestalongamisériatempiedade" tempo, tempo. Aí sinto essa coisa que ainda não esqueci o jeito e que se chama desespero.
Havia outras pessoas, sim. Não aqui, mas lá, bem para lá do mar que eu avistava de cima da elevação e que é o mar mais longe que eu vejo. Mais longe ainda tinha gente, a gente que me trouxe para cá. Só não lembro mais por quê. Verdade, eu tinha qualquer coisa assim como andar de costas, quando todos andam de frente. Qualquer coisa como gritar quando todos calam. Qualquer coisa que ofendia os outros, que não era a mesma deles e fazia com que me olhassem vermelhos, os dentes rasgando as coisas, eu doía neles como se fosse ácido, espinho, caco de vidro. Então eles me trouxeram. Por isso, me trouxeram. Lembro, sim, eu lembro que havia coisas escuras que eles faziam e que eu não fazia, correntes, sim, sim, eu lembro: havia correntes e fardas verdes e douraduras e cruzes, havia cruzes, cercas de arame farpado, chicotes e sangue, havia sangue, um sangue que eles deixavam escorrer sem gritar enquanto eu gritava, eu gritava bem alto, eu mordia defendendo meu sangue.
A gruta é úmida escura fria. Não tenho roupa, não tenho fome, não tenho sede. Só tenho tempo, muito tempo, um tempo inútil, enorme, e este farrapo de folha de livro. Não sei, até hoje não sei se o príncipe era um deles. Eu não podia saber, ele não falava. E, depois, ele não veio mais. Eu dava um cavalo branco para ele, uma espada, dava um castelo e bruxas para ele matar, dava todas essas coisas e mais as que ele pedisse, fazia com a areia, com o sal, com as folhas dos coqueiros, com as cascas dos cocos, até com a minha carne eu construía um cavalo branco para aquele príncipe. Mas ele não queria, acho que ele não queria, e eu não tive tempo de dizer que quando a gente precisa que alguém fique a gente constrói qualquer coisa, até um castelo.
Acho que não passo da lua desta noite, talvez não passe nem da chuva ou do sol abrasador que está lá fora. São muitas palavras, tantas quanto os fios de cabelo que caíram, quanto as rugas que ganhei, muito mais que os dentes que perdi. Esta coisa terrível de não ter ninguém para ouvir o meu grito. Esta coisa terrível de estar nesta ilha desde não sei quando. No começo eu esperava, que viesse alguém, um dia. Um avião, um navio, uma nave espacial. Não veio nada, não veio ninguém. Só este céu limpo, às vezes escuro, às vezes claro, mas sempre limpo, uma limpeza que continua além de qualquer coisa que esteja nele. Talvez tudo já tenha terminado e não exista ninguém mais para lá do mar mais longe que eu vejo. O mar que com este sol abrasador fica vermelho, o mar fica vermelho como aquela coisa que eu esqueci o nome, faz muito tempo. Aquela coisa que se eu lembrasse o jeito poderia ser minha matéria de salvação. Talvez olhando mais o vermelho eu lembre, o mar dilacera coisas com os dentes, enterra as unhas na areia, o mar tem aquela coisa que o príncipe também tinha, o mar de repente parece que. Não, não adianta, o vapor está subindo. Pela entrada da gruta vejo as primeiras nuvens se formando, não adianta, o mar está escurecendo, as nuvens aumentam, aumentam, é muito tarde, tarde demais. Daqui a pouco vai começar a chover .
DA SOLIDÃO
Depois, tu sairias aéreo pisando no cascalho. Como ser aéreo ao pisar com força a terra? talvez te perguntasses. Mas ao mesmo tempo em que a pergunta nasceria do teu interior, projetada em surpresa num impacto que te faria deter os passos -ao mesmo tempo olharias para além da linha do horizonte, ao mesmo tempo para além da areia seca, da areia molhada, do quebrar das ondas depositando formas vivas e mortas na praia, para o primeiro quebrar de onda, espatifado em espuma debaixo do sol, ou talvez do céu escuro, mas se fosse luz, se houvesse luz, a onda quebraria num tremor, espalhada em gotas no ar, no vento, ao mesmo tempo -e tu olharias para o último quebrar de onda, para as ondas que já não quebram mais, para onde já nem existem ondas, para onde só resta o verdeverdeverde inexplicável na sua simplicidade de cor-de-mar-em-dia-claro, ao mesmo tempo olharias para o ponto de encontro entre o mar e o céu. E seria o além. Então procurarias sôfrego por uma palavra, em pânico escavando dentro de ti, pesquisando letras, letras despidas de significado ou significante, letras como um objeto. Das letras reunidas uma a uma, formarias uma palavra para definir esta ânsia de vôo subindo desde o chão até os olhos. Formarias uma palavra, esta: aéreo. No primeiro momento, serias a palavra, tu serias a coisa, ainda que ali, estático e terreno, pisando sobre o cascalho. Serias aéreo no momento exato em que a palavra se cumprisse em tua boca. Como algo que apenas por um ato de crença, um movimento de fé, se confirma e se consuma -aéreo.
Só depois desse primeiro momento, nenhum segundo, nem uma fatia mínima de tempo: um instante ínfimo em sua pequenez, máximo na sua amplitude e incompreensão, porque só o incompreensível é infinito -só depois desse primeiro momento é que te dobrarias para ti mesmo, a palavra latejando na memória, no corpo inteiro, nas mãos contidas, e te perguntarias lúcido -aéreo? Alado, talvez. Pensarias outras palavras, buscando já sonoridades, ressonâncias, ritmos, mas nenhuma delas, por mais lapidada que fosse, seria maior que aquela primeira. Nenhuma. Todo perdido dentro do nascido involuntário dentro de ti caminharias confuso pisando o cascalho.
O cascalho - farelos de pedra espalhados sobre a areia. O caminho de cascalho, nascido na areia, do começo da praia, passando entre o muro de pedras brancas e a estrutura incompleta do edifício, erguendo a nudez dos tijolos para o céu, misturando-se à grama, derramado sobre os valos e as lajes carcomidas das calçadas. O caminho de cascalho até o fim da rua plana, no ponto onde já não haveria mais rua, não haveria mais céu. Um vago encontro, onde mesmo o mar teria se dissolvido.
O mar e o céu.
O ponto.
E tu.
A rua e o céu.
O ponto.
Suspenso entre dois encontros, tu caminharias desencontrado. Como se fosse para sempre, pesado, os ombros curvos, esmagados pela solidão. Mas de repente haveria uma praça. Exatamente assim, como no poema, só que uma praça, no meio do caminho. Inesperada. Suspenderias os passos sem compreender, em desejar compreender -tomado unicamente de espanto, nenhum outro sentimento secundário: o espanto exato de ter encontrado uma praça. Passado o instante da posse -a coisa achada tomando conta de ti por inteiro, tu feito na coisa, tu: a própria coisa -, teu olhar se estenderia manso, procurando pontos de referência, traços em comum com outras praças encontradas em outras situações. Bancos, árvores, canteiros, talvez estátuas, quem sabe um lago-praça.
Não haveria nenhum lago nessa praça. Somente uma estátua, num dos cantos. Um homem na atitude de jogar um dardo, duas asas nos pés, corpo branco e nu, rosto de feições devastadas pela erosão. As árvores seriam baixas e poucas, as folhas de um verde sujo, arenoso. Caminhando, tu segurarias com raiva um galho -sem compreenderes a própria raiva e sem compreenderes a projeção dela no galho a poeira fina e densa ficaria flutuando no ar até que a ultrapassasses para tocar num banco com a mão. O banco seria de mármore, mármore amarelado pelo tempo, carcomido pelos inúmeros ventos. O banco não guardaria sequer nomes de namorados gravados num outro tempo, nem um palavrão, nem um desenho- só a carne lisa, como se tivesse retomado a um anterior estado de pureza depois de muitas marcas.
Mas essa pureza seria só aparência. Novamente deterias os passos para investigar o exterior limpo. Purificado? Não. A vida inteira vivida pelo banco teria permanecido em alguma escondida dimensão de seu ser, E a vida poluía. Carne gasta, já inatingível por qualquer palavra de ódio ou de amor, qualquer revolta ou qualquer alegria -o banco imundo.
Sentada no chão, encontrarias a moça vestida de azul. Pela terceira vez, tu serias invadido pela imagem. Desta vez, a moça. Tu: vindo de um caminho conhecido, em passadas às vezes lentas, leves, outras pesadas de espantos, quedas, quebras, tu: vindo por um caminho determinado, um caminho definido em pedaços de pedras, sobre as quais tu pisavas. Era o teu caminho: um caminho de pedras desfeitas desde a praia até a moça. A moça.
E a moça? De que lugar teria vindo? Que caminhos teria pisado? Que insuspeita das descobertas teria feito? Tu olharias a moça mas, as perguntas não acorrendo, o mistério que a envolveria seria desfeito -uma moça vestida de azul, sentada no chão de uma praça sem lago. Não poderias saber nada de mais absoluto sobre ela, a não ser ela própria. Fazendo perguntas, tu ouvirias respostas. Nas respostas ela poderia mentir, dissimular, e a realidade que estava sendo, a realidade que agora era, seria quebrada. pois, não fazendo perguntas, tu aceitarias a moça completamente. Desconhecida, ela seria mais completa que todo um inventário sobre o seu passado. Descobririas que as coisas e as pessoas só o são em totalidade quando não existem perguntas, ou quando essas perguntas não são feitas. Que a maneirar mais absoluta de aceitar alguém ou alguma coisa seria justamente não falar, não perguntar -mas ver! Em silêncio.
Tu verias a moça.
A moça ver-te-ia?
Sentarias no chão, ao lado dela, tentarias descobrir nos olhos ou na boca ou em qualquer outro traço um sinal não de reconhecimento, mas de visão E pensarias que o que faz nascer as perguntas não é uma necessidade de conhecimento, mas de ser conhecido. Porque tu não saberias se a moça sentia a tua presença. Falando, ouvirias a tua própria voz, solta na praça, e terias a certeza de que a moça te ouvia. Ainda que não te visse, na visão completa que terias acabado de descobrir.
Suspensa a voz num primeiro momento, tu voltarias atrás, desejando ser visto. Mas para teres a certeza de ser visto, terias que ter a certeza de que eras ouvido. A moça não falaria. Nem se movimentaria. Teria, já, descoberto o silêncio como forma mais ampla de comunicação? Estenderias a mão e a tocarias no seio, e a moça ainda não se movia. Afastarias o vestido, as tuas mãos desceriam pelos seios, pelo ventre, as tuas mãos atingiriam o sexo com dedos ávidos, o teu corpo iria se curvando numa antecipação de posse, o corpo da moça começaria aceder, a pressão de teu corpo sobre o dela se faria mais forte: a moça deitaria de costas na areia, tão leve como se aquilo não fosse um movimento. Tu farias atua afirmação de homem sobre a entrega dela. Mas os movimentos seriam só teus, vendo um céu talvez escuro, talvez iluminado, uma extensão de praça parecendo imensa vista em perspectiva. E uma estátua carcomida. Assim: teu membro explodiria dentro dela enquanto olharias fixo e firme para um rosto de pedra branca despido de feições.[2]
Depois sairias caminhando devagar, vencendo a praça, voltando ao caminho de cascalho. Mas desta vez pisarias muito suave. Seria leve o toque de teus pés, seria verde o teu olhar no gesto de virar a cabeça para ver o mar, seriam mansos os teus movimentos em direção ao ponto de fuga onde mergulharia a rua. Na esquina olharias pela segunda vez para trás e veria um caminho, uma praça e o mar. Um caminho, uma praça e o mar. E no meio da praça, uma moça. Bancos de mármore, árvores sujas, canteiros vazios, nenhum lago, uma estátua devastada e, muito recuada, uma moça. Sem movimentos, uma moça. Sem salvação, uma moça. Sem compreender, uma moça.Uma moça e uma tarde. Quase noite.
PAIXÃO SEGUNDO O ENTENDIMENTO
Despido e solitário, organizou o prazer no banheiro, enquanto o mundo não lhe entregava aquela mulher predestinada desde o início dos tempos. Uma sensação de estranheza de seu corpo múltiplo e concentrado em um único ponto rijo de fogo, as mãos atarefadas conduzindo os movimentos. Envolto em vidro numa atmosfera ao mesmo tempo quente e delicada, como as concavidades da mulher ignorada. E de repente assim, já não vendo as próprias coxas onde o líquido tecia desenhos, de repente tendo outra vez oito anos na surpresa de perceber a mente infantil aprisionada num corpo adulto e satisfeito. Antes, o vidro ameaçava ceder a um matagal de veludo, qualquer coisa áspera e intensa: o vidro quebrado e os pesados reposteiros sobre ele, num vôo.
A mão suspensa exausta. E só após -a incompreensão da própria carne. O cérebro por segundos esvaziado de pensamentos cedia lugar unicamente ao gesto, o cérebro posto em repouso voltava a funcionar. Não, não eram recriminações: uma perplexidade distraída de não ter controlado o que era seu e, mais além, o medo de não controlando o que era seu não poder controlar jamais o que era alheio. O que seria alheio, corrigiu-se pensando na fêmea que lhe era destinada. Ajustou-se ao que voltara a ser, admitindo que já não conseguia tocar-se: havia-se formado como que uma aura em torno do corpo.
Não uma aura de santidade, nem de irradiações, mas de desnecessidade de tocar-se. O corpo tresandava exaustão. Não, já não era preciso tocar-se, e isso não doía. Doía apenas quando o gesto se impunha, e antes do toque, apenas antes. Vigoroso, olhou-se no espelho e sorriu como um animal, sem compreender que o sorriso não era para si próprio, mas para um outro -ainda não suspeitava da possibilidade de encontro de criaturas de mesma força, numa relação diversa da dominante-dominado que esperava. E mesmo que suspeitasse, não admitiria, pois em qualquer parte do mundo havia uma fêmea feita para ele, acreditava. Uma fêmea côncava em que, convexo e sem espanto, se acomodaria. Não, não suspeitava que asperezas e saliências pudessem se encontrar em violência e fogo, num círculo intenso, oculto. Admirou-se, a masculinidade expressa no olhar arrogante substituindo o instrumento exausto. A luz coada da tarde impunha um reflexo fantasmagórico no liso da pele e, sem entender, admitiu.
Por um momento, uma suspeita o fez oscilar precário: que estava se passando? A mão deslizou mansa na pele, num toque novamente além da aura, mas diferente, apenas isso, diferente. Nem mais nem menos profundo. Então, como no começo do mundo, começou a se fazer a luz. Atravessou seis dias anexando a si o claro e o escuro e o sim e o não e o amor e a guerra e as pestes e os sorrisos e as mãos dadas e os plátanos perdendo as folhas e novamente recuperando e os desertos e as planícies e os oásis e as chuvas e os ventos e as praças e as grandes extensões de nada e as galáxias e cada um dos grãos de areia do fundo dos oceanos e os animais e as pedras e o acúmulo de pedras formando templos e as estradas e as portas e as varandas e as ondas e as cidades de ferro e metal e organdi e o silêncio todos os silêncios e os gritos e os muros e os porões e as chaves. Mas no sétimo dia, no sétimo dia tremeu e hesitou, imediatamente cobrindo-se com toalha, expulso do que descobrira e que, por inexperiência de lidar com as coisas, poderia transmutar-se de paraíso em inferno. Não houve tempo de escolher nem paraíso nem inferno: preferia a segurança de um gesto...
De hoje em diante comerás o fruto de teu próprio suor- ainda ouviu, sim, sim: era preciso dar sangue e pão e carne a um evento para que não morresse. Era preciso sentir nos ombros as garras do que inventara. Então vestiu-se demorado, reconstruindo aos poucos o que não sabia se se ampliara ou fora destruí do, reassumindo-se no que era simplesmente, a sua demarcação com fronteiras e limites, obscuras negações. A firmeza e o conhecimento do que constituía seu próprio terreno, e que fechava a qualquer tentativa de modificações. Jamais teria sido guerreiro ou explorador de novas coisas ou um descobridor ou um cientista ou um astronauta: seu heroísmo residia na defesa, não no ataque. O máximo que pediria a Deus, se acreditasse nele -e acreditava- seria não permitir jamais que saísse de si próprio, nem avançasse além do que, descuidado, já avançara. Pois que, avançando, era obrigado a anexar o que descobrira, e não tinha forças nem vontade de reformular todos os dias o seu ser de cada dia. E olhando fora de si, pressentia avisos, seculares avisos de sangue de que o que o esperava não tardaria. A isso chamava, amável, de uma esperança. Em nenhum momento permitiria a si mesmo duvidar da concretização das esperanças, do que chamava esperanças.
Sim, sim, confirmou olhando-se no espelho, quase vestido. A mulher havia colocado a mão no seu ombro, dizendo: eu sou bonita. Mas ele fora além e respondera: eu sou. O prazer que sentia era quase o mesmo de quando jogava tênis e conseguia interceptar uma bola impossível para marcar pontos. Apenas, o esforço dos músculos doía depois. Uma dor imprecisa, ao mesmo tempo generalizada e concentrada, num ponto inatingível. Sim, repetiu uma outra vez, e já não doía, nada mais doía. Pensou numa fórmula matemática -ele era engenheiro -a mãe esperando para jantar -ele era órfão de pai -nos talheres de prata -ele era rico: conseguindo situar-se. Sim, sim, delimitar-se, sim, sabia o que era, quem era, sim. Aparou cuidadoso o bigode e, recomposto, desceu triunfante as escadarias de mogno envernizado.
FOTOGRAFIA
Sentada aqui, desde não sei quando, olho à esquerda, olho em frente, em cimaolho quase tonta de não encontrar, olham também da mesa ao lado, já perguntei as horas duas vezes, não, três, o cara respondeu direito da primeira vez, da segunda me olhou oblíquo, na terceira comentou qualquer coisa com a mulher, deve ter dito coitada, levou o bolo, me dá nojo, não exatamente nojo, que é uma coisa de estômago que se derrama viscosa pelos outros, atingindo tudo em torno, esverdeada, não, nem ódio, que é grande demais, não cabe dentro de mim, da minha arquitetura frágil de mulher magra, as pernas finas suportando não sei como os ombros e o tamanho dos olhos, o ódio seria demais, eu tropeçaria toda atrapalhada com meu próprio peso, a raiva é mais mansa e eu me sinto capaz de suportá-la, a raiva cabe em mim porque não permanece, e as coisas só adentram em mim quando podem escapar em seguida, eu sufoco, sei bem, sufoco e quase esmago as coisas, as gentes também, apenas ultrapassam numa, rapidez de quem não olha para trás e vai seguindo em frente, fraca demais para ser barreira, transparente, porosa feito cortina de fumaça, não, não exata mente, a fumaça ao menos faz os olhos ficarem vermelhos, provoca tosse, eu não consigo abalar ninguém, um plástico, material sintético, teve pena certa, eu não quero que tenham pena de mim, dói mais que tudo os outros olhando de cima, constatando a fraqueza nossa, a nossa inferioridade, quero que me olhem do mesmo plano, se ele quer comentar alguma coisa com sua companheira que diga lembra? Uma vez que eu também esperei por você assim, você não vinha, não vinha nunca, eu fumava, eu bebia, eu esperava e você não vinha, mas acabou vindo e está aqui, agora, vendo uma moça que espera como eu esperei você naquele dia, parece que daqui a pouco ele vai me dizer as horas sem eu perguntar, não como se estivesse se dobrando num jeito de amigo, mas como se me agredisse lançando a espera inútil no meu rosto, esqueci completamente as horas, não sei se estou aqui desde ontem, desde sempre, parece que já choveu, já fez vento e garoa, que o amarelo das folhas sobre a calçada é do outono passado, não deste, parece que já é inverno gelando agente por dentro, que o verão pesa nas pálpebras tornando lentos os gestos, dessa preguiça no andar como se a cada instante agente morresse, mas esse salto por dentro é primavera impulsionando para um verde renascido, garoa morna, fina, quieta nesse jeito de colocar os olhos longe, um longe despido de barreiras, ah essa toalha azul axadrezada de branco, o círculo úmido do copo onde uma mosca se debate, a minha bolsa, o maço quase vazio de cigarros, duas garrafas vazias de coca-cola, o cinzeiro cheio de pontas, essa música indefinida machucando por dentro, como se estivesse desde sempre aqui, escorregando devagar, as notas feito pingos de chuva na vidraça abaixada, vontade de dizer um palavrão, esses dois me olhando, assim, gozando, rindo da minha espera, mesmo o garçom de paletó branco, um dente de ouro na frente, vai escurecendo, trinta e duas tábuas no teto, gente saindo, passando, tivesse ao menos um jornal para disfarçar, não adianta, que horas serão, meu Deus, não quero perguntar outra vez, vai ficar muito evidente, já mudei mil vezes de posição na cadeira, não encontro o jeito, seria necessário um jeito específico de esperar, é medo o que eu tenho? Não sei, de repente me encolho toda; um movimento interior de defesa eriçado por um sentimento que desconheço, da mesa ao lado eles levantam, vão saindo, indo embora lentos, o garçom desaparece ao lado do balcão, começa a anoitecer, todos os relÓgios estão parados, não sei se é ontem, se hoje ou amanhã, se é sempre, se nunca mais, estou solta aqui, completamente só, não há relógios, não há relógios e o tempo avança liberto, sem fronteiras nem limitaçÕes, uma bola de arame farpado, o sentimento vai se adensando em mim, transborda dos olhos, das mãos, sai pela boca em forma de fumaça, sinto meus lábios ressequidos, machucados, o gosto amargo, a bola cresce estendendo tentáculos, no meio dela eu me encolho cada vez mais, presa num círculo que cresce até explodir na vontade contida de gritar bem alto, bem fundo, rouca, exausta, correndo, esmagando as folhas de um outro outono, de um outro tempo, ainda este, o tempo, o outono, a tarde, o mundo, a esfera, a espera em que estou para sempre presa.
ITINERÁRIO
De repente, estou só. Dentro do parque, dentro do bairro, dentro da cidade, dentro do estado, dentro do país, dentro do continente, dentro do hemisfério, do planeta, do sistema solar, da galáxia -dentro do universo, eu estou só. De repente. Com a mesma intensidade estou em mim. Dentro de mim e ao mesmo tempo de outras coisas, numa seqüência infinita que poderia me fazer sentir grão de areia. Mas estar dentro de mim é muito vasto. Minhas paredes se dissolvem. Não as vejo mais, e por um instante meu pensamento se expande, rompendo limites num percurso desenfreado. Nesse rápido espraiar, meu ser anexa a si as coisas externas. O parque, as árvores., o sol, as gentes deixam de ter existência privada e, dentro de mim, estão sob meu domínio. Como membros de meu corpo, ou pensamentos já feitos ou palavras já formuladas -eles se aninham em mim, fazendo parte do meu ser. Me torno em parque, em árvore, sol, em gentes. O processo é tão breve que sequer tenho tempo de regozijar-me com ele. Porque subitamente tudo volta.
E sou apenas um homem no parque –reduzido somente a minha condição de homem no parque Espio para fora de mim e vejo as coisas que não são mais minhas. As árvores debaixo das quais estou, esta folha que há pouco deslizou pelo meu chapéu, escorregou por ombro, atingindo a mão onde a esmago, esta gente para quem sou um homem no parque. Na minha mão o contato da folha ferida é áspero. Mas não fere. Frente a meus olhos: hirta, seca, amarelada, é uma folha do inverno. As ramificações se expandem em mil caminhos até as bordas, na tentativa já inútil de levar a seiva aos pontos mais recuados, e ela é uma coisa morta. O pequeno talo vibra entre meus dedos como um ser vivo e agonizante num último espasmo. Olho as pontas reviradas e, num gesto, torno a esmagá-la. Já não é folha, já não é nada -somente um punhado de poeira que escorrega incômoda manga adentro do casaco. No entanto, não sou um assassino: sou um homem no parque! quase grito para que as outras pessoas escutem e olhem para mim e vejam como sou inteiramente normal trivial banal e até vulgar dentro deste terno escuro, antiquado -preciso que tomem consciência do meu ser e preciso eu mesmo tomar consciência do que sou e do que significo nesta brecha de tempo. Por isso baixo os olhos e, subindo-os desde o bico dos sapatos, vistorio todo o conjunto que forma o meu ser em exposição. Calças, casaco, chapéu eu sou um homem no parque! novamente quase grito porque a realidade de repente oscila, ameaçando quebrar-se em fatias que ferem. Apoiado em minha segurança, que se revela precária, eu luto.
E eis que a luta finda. Eu cedo. Novamente as coisas se dissolvem e torno a escorregar para dentro de mim. Mas estar em mim já não é vasto. Minha extensão reduziu-se a este círculo acinzentado que é meu pensamento. Minha extensão é tão mínima que sufoco dentro dela. Tudo se resume a esta extensão. Não há mais nada fora de mim. Impossível a fuga. Meus membros se encolhem como um tecido ordinário, recém-levado, estendido ao sol. Tudo se comprime em torno de mim. Este círculo acinzentado apertando cada vez mais, repleto de arestas, de pontas aguçadas. Neste círculo estou em rotação. Meu ser vai girando, girando num lento corrupio, num movimento que é quase dança, quase ciranda. As arestas ferem leve, com jeito de carícia, as pontas apenas afagam enquanto o pensamento se esquiva, na esperança de sair ileso. Então tudo cessa.
E volta o parque com suas gentes passando, com aquela série de coisas que constituem o ser de um parque. Acendo um cigarro, minha mão treme, devolvida à segurança que em relação às coisas de fora novamente se revela eficiente. Nas minhas calças, o pó da folha é a lembrança do crime sem júri nem juiz, nem poluição. A meus pés, o trabalho das formigas é intenso neste outono quase inverno, repleto de folhas caídas. A longa fila se encaminha lenta, desviando-se de meus sapatos, folhas equilibradas sobre as cabeças, ultrapassando os pés do homem a meu lado, as pernas vagamente tortas daquela mulher mais adiante, as meias azuis daquela adolescente. Até o formigueiro, onde as despensas devem estar abarrotadas. Mas as cigarras já não cantam.
Tudo volta. Procuro retomar a meu último pensamento: tinha relação com infância e livro, eu sei. E busco. Por entre essa infinidade de formas, de signos desfeitos com que são construídos os pensamentos por entre esse amontoado de lembranças feitas de imagem incompletas como retratos rasgados; por entre essas idéias a que faltam braços, pernas, cabeças por entre os retalhos dessa caótica colcha de que é tecido o cérebro de um homem no parque, eu busco. Sem encontrar. A segurança das coisas fáceis e simples desliza entre meus dedos recusando fixar-se. E há o cigarro: essa tonalidade azulada é apenas a fumaça subindo em lentas espirais, cada vez mais densa, tomando conta de mim, eu sei, deve ser, porque as coisas não sendo o que são outra vez me jogarão num mundo de procuras e espantos.
E de novo estou em mim. Ainda preso nas engrenagens do círculo. Que desta vez não ferem. Dentro da minha pequena extensão me são permitido o movimento e o investigar. Movimento e investigar vãos, porque é tudo tão ínfimo que nem há mistérios pelos cantos. Não há perspectiva na espera de serem pressentidas. Não há sequer vértices nesta superfície despida de arestas: só a leve chama, em aceno trêmulo por entre o vazio. Mas eu não quero. Seria preciso abdicar de todas as minhas verdades essas estrutura das lentamente, dia após dia, quase minuto a minuto, suavizando os contornos da realidade quando esta se torna áspera. Seria preciso abdicar de meu ser cotidiano, construído em longo labor. Seria preciso abdicar de minha segurança, e eu a acumulei em paciência em tédio, mas a fiz forte, e se agora periclita é porque todos nós temos o nosso momento de queda. E este é o meu.
No vácuo de mim eu me despenco. Porque seria preciso também abdicar de mim mesmo para novamente reconstruir-me. Tornar a escolher os gestos, as palavras, em cada momento decidir qual dos meus seus assumir. Já esfacelei meu ser, já escolhi as porções que me são convenientes, esquecendo deliberado as outras. E são elas -serão elas? -que agora se movimentam revoltadas, pedindo passagem em gritos mudos, na ânsia de transcender limites, violentar fronteiras, arrebentando para a manhã de sol. O tremular da chama é um aceno, convite para chegar à verdade última e íntima de cada coisa.
Não quero. Não posso restar nu, despojado de mim mesmo. Não posso recomeçar porque tudo soaria falso e inútil. As minhas verdades me bastam, mesmo sendo mentiras. Não é mais tempo de reconstruir.
Em luta, meu ser se parte em dois. Um que foge, outro que aceita. O que aceita diz: não. Eu não quero pensar no que virá: quero pensar no que é. Agora. No que está sendo. Pensar no que ainda não veio é fugir, buscar apoio em coisas externas a mim, de cuja consistência não posso duvidar porque não a conheço. Pensar no que está sendo, ou antes, não, não pensar, mas enfrentar e penetrar no que está sendo é coragem. Pensar é ainda fuga: aprender subjetivamente a realidade de maneira a não assustar. Entrar nela significa viver .
Sôfrego, torno a anexar a mim esse monólogo rebelde, essa aceitação ingênua de quem não sabe que viver é, constantemente, construir, não derrubar. De quem não sabe que esse prolongado construir implica em erros, e saber viver implica em não valorizar esses erros, ou suavizá-los, distorcê-los ou mesmo eliminá-los para que o restante da construção não seja abalado. Basta uma pausa, um pensamento mais prolongado para que tudo caia por terra. Recomeçar é doloroso. Faz-se necessário investigar novas verdades, adequar novos valores e conceitos. Não cabe reconstruir duas vezes a mesma vida numa única existência. Por isso me esquivo, deslizo por entre as chamas do pequeno fogo, porque elas queimam. queimar também destrói.
Perplexidade, recusa e medo feitos em palavra fazem tudo recuar. O círculo abandona meus membros, a chama se apaga. A luta vai-se tornando lassidão. Revolta sufocada são rumores que abafo lentamente, com a delicadeza monstruosa de quem estrangula uma criança dormindo.
Eis que começo a voltar. Não de uma galáxia distante, de outro planeta, sequer de uma cidade ou um parque. De mim, volto. Em torno as árvores principiam a ganhar consistência, negativo aos poucos revelado, água escorrendo da capa de obscuridade. São verdes, as árvores. Seus troncos nascem da terra, se alongam em braços recobertos pelas folhas que o outono amarelou. Troncos rugosos, feito de pequenos pedaços ásperos, de cor indefinida. Mas elas são verdes. Todos as vêem verdes, mesmo agora, com as folhas amareladas, com a cor-sem-cor de seus caules. O céu azul. Mesmo sendo cinzento ou incolor o ar que o faz. É preciso dar cor e forma às coisas porque desnudas elas apavoram.
Respiro. Fecho os olhos. O ar penetra as narinas abrindo caminhos pelo corpo num automatismo que não terá fim enquanto eu viver .
Estou de volta. Minhas mãos sobre os joelhos, os joelhos cobertos pelo pano preto das calças, o pano afunilando até os pés metidos em meias listradas de azul e branco, dentro do marrom dos sapatos. Tudo me diz que estou de volta. Aceito. Suspenso no meu pulso, o tempo tiquetaqueia no ritmo do relógio. Onze horas. Preciso ir andando. Há mulher há filhos há trabalho há a prestação da televisão que passará um bangue-bangue legal e pensando como qualquer homem neste ou noutro hoje à noite e eu gosto de bangue-bangue como um menino gosta de sorvete metido no meu pijama de bolinhas nas minhas chinelas às quais se amoldam meus pés como dentro de uma fôrma e a minha poltrona funda e o cachimbo e o jornal do lado. Tudo tão simples. Já vi mil vezes cenas iguais em filmes e livros e revistas. Tanto e tanto que duvido delas. Mas dúvida faz escorregar. E no fundo, depois do longo deslizar, no fundo é Úmido e frio, apesar da chama. Faz-se necessário testar, apalpar as massas que recusam definições. Faz-se necessário avançar. Mas tudo impede o avanço. E dói.
Não.
E eis então que caminho para rua, chamo um táxi, entro nele. Eis aí que olho pela janela, vejo o parque, o banco, as pipocas que não comprei. Eis assim que encosto a cabeça no banco, apanho um cigarro e trago longamente. Eis depois que solto a fumaça de um jeito que não sei se é sopro ou suspiro. Eis.
O CORAÇÃO DE ALZIRA
Pois que ele era uma pessoa e ela outra, descobriu de repente, afastando as cortinas. E eu que quis fazer de mim algo tão claro como um rio sem profundidade, disse para si mesma, em distração colocando em movimento os átomos de poeira. Curvou-se até o chão para apanhar um grampo. Quando se curvava assim, o cabelo caindo no rosto, assumia um ar humilde de coisa grande que se curva.
Ela era toda grande, de mãos e pés e olhos e busto, mas um grande que não se impunha, não feria. Um grande que pousava como quem já vai embora. Ela parecia levantar vôo, no surpreendente de que ao elevar-se não deslocasse o ar em torno nem provocasse ventania. Até mesmo seu coração era grande. Era coração, aquele escondido pedaço de ser onde fica guardado o que se sente e o que se pensa sobre as pessoas das quais se gosta? Devia ser. Para tornar mais fácil o desenrolar do pensamento, ela concordava. E argumentava de si para si, lembrando músicas e poemas vagamente vulgares que falavam em coração: pois se alguém fazia uma música ou um poema forçosamente devia ser mais inteligente do que ela, que nunca fizera nada. Alguém mais inteligente certamente saberia o lugar exato onde ficam guardadas essas coisas. Coração, então, repetiu para si, consumando a descoberta. E acrescentou: mas ele está tão longe. Podia dar um tom de desalento ao que pensava, mas podia também solicitar, agredir exigir. Qualquer coisa que doesse.
Ai, a necessidade que tinha de doer em alguém, como se já estivesse exausta de tanto ser grande e boa. Por um instante conteve um movimento, toda concentrada no desejo de ser pequena e má e vil e mesquinha. Até mesmo um pouco corcunda ou meio vesga de tanta ruindade. Ou continuar a ser grande, mas sem aquela bondade que pesava, para tornar-se lasciva. Obscena. Mas o máximo de obscenidade que conseguia era entrar de repente no banheiro quando o marido tomava banho, afastando as cortinas para entregar a ele um sabonete ou perguntar qualquer coisa sem importância. O importante era que o motivo não fosse importante. Justamente aí estava o obsceno. Depois saía toda corada, pisando na ponta dos pés rindo um risinho de virgem. Virgem. Ai, estava tudo tão mudado que as meninas não davam mais importância à virgindade, andavam de calça comprida, cortavam os cabelos curtinho, fumavam, até fumavam, meu deus. E os rapazes, então, cabelos imensos, colares, roupas coloridas. Meu deus, ela repetia para si e para os outros que não sabia mais distinguir um jovem de uma jovem, e que isso a perturbava como se tivesse um filho ou uma filha e não soubesse dizer se era mesmo filho ou filha. Ai, era terrível. Espiou o marido nu, as cobertas afastadas por causa do calor. Ai, era tão moço ainda, tão não-sei-como que dava uma vontade meio bruta de machucá-lo só porque era assim daquele jeito. Sentou na poltrona à beira da cama, espiando o dia. Mas ele é uma pessoa, eu sou outra, repetiu, repetiu, recusando a claridade que entrava pela janela para se encolher dentro dela, toda sem problemas nem angústias. De manhã bem cedo.
- Jorge - chamou, a voz ressoando estranha no silêncio. E desejou que ele abrisse os olhos e sorrisse dizendo: Alzira.
Mas ele não abriu os olhos, não sorriu nem disse. Então ela pensou e esta empregada que não chega. Era de manhã-bem-cedo e a empregada só chegava de manhã-bem-tarde. A dor que sentia de ser assim tão como era. Sorriu devagar, prosseguindo na doçura que sempre fora o seu caminho. O marido tinha cabelos no peito, pernas grossas, braços fortes. Ela era gorda, mole, grande. O marido tinha olhos azuis. Ela, pretos. Pretos como a noite, ele escrevera num poema antes de casarem. O marido tinha mãos quadradas, dedos compridos. Ela grandes, redondas, gordas, acolchoadas. Leves como as de uma fada –o poema era o mesmo, mas as mãos também seriam? Precisava encerar o chão, mandar as cortinas para a lavanderia, fazer café. Ah, era domingo. Só agora ela lembrava. A empregada não viria. Era dia do marido dormir até tarde. Era dia dela mesma ficar na cama até as dez. Era dia de tantas coisas diferentes dos outros dias que ela conteve a respiração, abalada no que estivera construindo e preparando para um dia que não seria mais.
Vagou inquieta pelo quarto. Era domingo. Se fumasse, acenderia agora um cigarro para ficar com ar de pessoa distraída. Mas assim tão sem vícios e portanto sem ter sobre o que derramar a distração que desejava, ai -assim ficava tão solta. Perdi até o sono, suspirou, como se o sono fosse a sua última reserva de segurança. Nem de ler eu gosto, acrescentou. E estou com preguiça de trabalhar e tenho vontade de falar um palavrão, que merda também. Sem sentir conseguira a distração que procurava. Mas agora que chegava a ela, consciente de que chegara, a distração se esgotava. Fazia-se necessário ir adiante. Mas o que vinha depois de uma distração? Não tinha em que nem como se concentrar. Nunca tivera instrumentos para forçar a atenção num determinado ponto. Era tão pobre. Tão.
Ai.
Caminhou até o banheiro, afogou a agitação abrindo três torneiras ao mesmo tempo. A água escorrendo gerava uma espécie de paz dentro dela. Molhou as pontas dos dedos, passou-as devagar pelo rosto. O espelho refletia um rosto amassado de pessoa em estado de desordem interna e externa. Começou a escovar os cabelos, fechou a gola do robe amarelo, deu dois beliscões nas faces para torná-las mais coradas. Voltou ao quarto. O marido mudara de posição: encolhido feito feto, mãos cruzadas sobre o peito. Alzira sentou na beira da cama. Espreitou o dia avançando, o medo avançando. Estendeu a mão num experimento de ternura. Retraiu-se. A lembrança da discussão do dia anterior barrava qualquer gesto. Que fazer, que fazer, que fazer, perguntou-se lenta, sem entonação. Não havia resposta. Engoliu algo parecido com um soluço. A cabeça encostada no travesseiro, espiava o dia crescendo. De repente deu com o olhar do marido fixo nela. Aprumou-se inteira, preocupada em afetar uma naturalidade de pessoa surpreendida em meio à higiene íntima.
- Hoje é domingo - disse.
- Pois é - concordou o marido.
E ela queria tanto mas tanto tanto que ele dissesse o nome dela assim bem devagarinho Al-zi-ra como se as sílabas fossem uma casquinha de sorvete quebrada entre os dentes e quase perguntava como é mesmo o meu nome? você lembra do meu nome? mas não adiantaria ele apenas a olharia surpreendido e se dissesse seria um dizer mecânico não aquele dizer denso lindo fundo e ela não queria isso não queria. Então falou:
- Dia de dormir até tarde.
E dormiu.
DOMINGO
Sobre a mesinha, ao lado da pilha de livros, o cinzeiro cheio de resíduos, bolinhas de papel, pontas de cigarro.
Recostado na mesa, o corpo, na ponta do corpo a mão, na ponta da mão os dedos avançando até o maço. Vazio. Revira o cinzeiro, um peso na cabeça, escolhe a ponta maior. Um último palito de fósforo na caixa. A chama. Azulada. Traga lento, depois solta a fumaça pela boca num jato, fica olhando o fio longo sugado pelo vento da janela aberta. Pela janela aberta, o silêncio do domingo impresso num céu sem cor. Na rua deserta de rumores: domingo. Abre um livro. Os dedos circundam as letras, a unha do indicador amarelada pelo fumo, os dedos acariciam as letras como se fossem carne. Carne desconhecida, sem interesse. Um pouco fria. Letras que não dizem nada, gesto cansado, dedos que voltam à posição anterior mas, inquietos, sobem pela camisa, libertam o último botão da calça. Dedos que entram no peito, passam na pele, alcançando o pescoço, o rosto onde a barba não feita fere de leve. De um apartamento ao lado o vento rouba uma música do rádio e a traz para junto de seus ouvidos. Um samba. Gosto desse samba, pensa distraído, liga o rádio, coincidência, exatinho na mesma estação, dedos agora acompanham o ritmo batendo na colcha, mas o pano não faz som, é preciso bater na mesinha, madeira sambando, a melodia escorrega devagar pelo lado do cinzeiro, se espalha no chão. A voz acompanha baixinho a letra melancólica, amor, flor. Esmaga a ponta do cigarro na parede, atira-a sobre assoalho, a mãe vai reclamar, nunca viu tanto relaxamento nem tanta preguiça num corpo só.
Dezoito anos e um metro e oitenta de solidão. Desliza a mão pela parede, fechando os olhos o verde deixa de ferir, as granulações miúdas do cimento parecem prometer alguma coisa, Mexe os pés sem meias de encontro à colcha, a consistência fria, um pouco viscosa, coloca arrepios na pele. Abre os olhos e encontra o verde da parede, o azul da colcha: domingo espreitando na moldura da janela. Reduzido a ele mesmo, miseravelmente, sobre a cama. Nem sono tem. Já fechou os olhos, tentou dormir mas tanta preguiça que nem sono tem. Apaga o rádio. Detesto tango argentino, nem sabe se é argentino, pode ser até brasileiro, sueco ou esquimó mas fala em navalhada, cabaré & traição, mulher de cabelo tingido, talho na saia preta mostrando a coxa, piteira, pálpebras machucadas: tango. Coisa mais cafona. A indolência aumenta com a mudez do rádio. Gosto daqueles sambas mais antigos, a batida leve, mansinho, a voz fraca do cantor dizendo bem baixinho coisas bonitas e tristes. Ou então guitarras amplificador cabelos crespos berros brilhos oh yeah! No canto do quarto, o toca-discos: uma possibilidade, Mas seria preciso levantar, escolher o disco, passar lentamente o feltro, colocá-lo no prato, apertar um botão, dois botões, aumentar o volume, diminuir o volume. Ouvir. Deitar de novo, fechar os olhos, corpo abandonado na maciez da cama lembrança chegando de qualquer coisa, de preferência bem enfossante, quanto mais melhor. Obrigação de sentir, se possível, chorar. Larga de novo o corpo sobre as cobertas, que merda essa carteira de cigarros vazia, podia levantar, ir até a sala, e pedir ao noivo da irmã, um saco, descer até o bar, encontrar os carinhas pelo caminho, com o violão, na certa, sentados sobre o motor do fusca, não sei como o pobre aguenta aquela porção de bundões em cima dele, como é, vamos dar uma volta? Não quero, estou na fossa. Ou não dizer nada, são uns animais, não iriam entender, perguntariam por que, ela te chutou? não iriam entender que vezenquando a gente fica triste sem motivo, ou pior ainda, sem saber sequer se está mesmo triste. Mas podia aceitar, entrar no carro, vamos até à praia? deitar a cabeça nos braços, apoiar os braços na janela aberta, vento entrando, remexendo nos cabelos, no rosto, jeito de lagrima querendo rolar .
A réstia de sol encolhe no chão: tempo. Só esse sol sem cor neste dia sem cor nem jeito de domingo. Idiotice: por que domingo precisa ter um jeito especial, mania de esperar que as coisas sejam um jeito determinado, por isso a gente se decepciona e sofre. Na mesa, os livros oferecem consolo. Vontade de ler um troço decente. Mas é preciso passar por uma porção de besteiras até chegar ao que interessa. Vontade de ter um pensamento bem profundo, desses que fazem a gente se surpreender que tenham saído da nossa cabeça mesmo, naquela modéstia que só se tem quando se está distraído -desses pensamentos que nas revistas em quadrinhos aparecem em forma de lâmpada sobre a cabeça do cara. Mas o quê? Sobre a vida, um combate que aos fracos abate e aos fortes e aos bravos só pode exaltar? Sobre o amor ,que é isso que você está vendo hoje beija amanhã não beija depois de amanhã é domingo e segunda feira ninguém sabe o que será? Ou sobre a cultura e a civilização, elas que se danem eu não contanto que me deixem ficar na minha? Tudo já foi pensado: vida, amor, cultura, civilização, liberdade, anticoncepcionais, comunismo, esterilização na Amazônia, exploração das potências estrangeiras, mais que nunca é preciso cantar, guerra fria e vem quente que eu estou fervendo. Tudo a mesma merda. Pudesse abrir a cabeça, tirar tudo para fora, arrumar direitinho como quem arruma uma gaveta. Tomar um banho de chuveiro por dentro.
Em um metro e oitenta, dezoito anos, e em dezoito anos, seis meses, quatro dias, dezesseis horas e vinte minutos (em breve vinte e um). Nesse amontoado de características, sessenta quilos de magreza e solidão. Encosta o corpo na cama, a mão passando de leve no xadrez do cobertor dobrado a seus pés, o rosto na parede que o acolhe com o sem compromisso de sua impessoalidade, a mão passa sobe desce e de leve, de leve começa a chorar.
DO AMOR
- Você não compreende, não consegue compreender.
No meio do rio, eu via a pedra. A única naquela extensão azul de água, o pico negro erguido em inesperada fragilidade na solidão. Eu não tinha instrumentos para caminhar até ela, a pedra, tomá-la nos braços, por um instante debruçar minha ternura sobre seu isolamento num absurdo desejo de que em sua insensibilidade de coisa ela se fizesse sensível e, assim suavizada, contivesse o desespero amparando-se em mim. Por que ela se perdia assim e assim se assumia e se cumpria em pedra, dona de si mesma, dispensando qualquer afeto, qualquer comunicação? Ela se bastava. Parecia já ter ido além da própria estrutura num lento inventariar do mundo ao redor, como se seu pico tivesse olhos e esses olhos projetassem indagações em torno, avançando nas descobertas, constatações se fazendo certeza. E como se seu isolamento fosse deliberado, como se já não acreditasse em mais nada e tivesse escolhido o amparo apenas das águas, a precária proteção do azul como se tivesse escolhido o vento, a erosão, os vermes, os musgos que a roíam devagar. Assim, da mesma forma como outros escolhem o apoio das pessoas ou a nudez do campo, ela escolhera o desafio da entrega. O despojamento de ser, insolucionada e completa em suas fronteiras: pedra porque pedra fora era e seria num sempre que a sustentava, frágil e absoluta.
- Veja, os meus cabelos estão molhados, caminhei horas pela chuva querendo e não querendo procurar você.
Frágil e absoluta em sua camação de mineral, as raízes, se as tivesse, encravadas no fundo do rio. A sua base por onde escorregam peixes, cobras, onde a lama se acumulava lenta tentando cobri-la por completo. Ondas frágeis de rio e, atrás, a ilha espalhada em verde contra o céu quase negro do entardecer. O sol além do rio, e o céu quase todo desfeito em cores que em breve afundariam no escuro. As cores morreriam, o claro se faria treva e a pedra mergulharia em sombras, impressentida -quem veria jamais uma pedra emergindo do negro que cobriria o rio? E re... nasceria, depois. Em cada amanhecer, renovada e sempre a mesma, endurecida em sua natureza. A pedra. Por que me doía e pesava por dentro, como se eu jamais conseguisse atingi-la? Ah meus gestos incompletos, meu olhos que não ultrapassavam o que viam -e ela me encarava, alheia ao meu espanto, inatingível quem sabe para sempre. E não seria apenas uma forma, uma silhueta de coisa nascendo da água, projetada contra o espaço, cercada de vazio, um pedra? Que espécie de dureza havia nela, negando a penetração? A compreensão mesma de sua incompreensão -por que se fechava tanto, e tanto se esquivava, e sem se esquivar nem se fechar, feita em si - apenas um pedra?
- Podia esperar de qualquer um essa fuga, esse fechamento. Mas não em você, se sempre foram de ternura nossos encontros e mesmo nossos desencontros não pesavam, e se lúcidos nos reconhecíamos precários, carentes, incompletos. Meras tentativas, nós. Mas doces. Por que então assim tão de repente e duro, por quê?
Uma pedra. Igual a si mesma, como só o são as naturezas inertes. As pessoas escorregam e, se num momento foram, no seguinte já não mais o são; a possibilidade de ser se reduz, contrai, escapa, ou num repente aumenta para explodir inesperada. As coisas se afirmam nelas mesmas em cada segundo de cada minuto. E em cada segundo futuro, serão ainda elas mesmas, sem se acrescentarem ou diminuírem. Para sempre, uma pedra será uma pedra. E por que então, enfim, esta palidez minha? Por que a encarava e pensava, e a constatava em sua permanência despida de mistérios e, no entanto, hesitava? Deveria compreendê-la no passar de olhos e ir adiante sem esperar. Contudo, esperava. De uma pedra -o quê? Se me machucava por dentro e quase tombava, meio aniquilado, impossível prosseguir. Derramar de ternura do vazio de minhas mãos, meus olhos quase verdes de tanto amor recusado, emoções informuladas pelo silêncio de noturna precisão -tudo convergindo para a pedra. Uma fatalidade, o inumano atingir o humano assim, de brusco? A nudez de meus pés devassava o frio. O vidro do rio, a lâmina do vento, a morte do sol. E a pedra. Inatingível.
- Compreenda, eu só preciso falar com você. Não importam as palavras, os gestos, não importa mesmo se você continua a fugir e se empareda assim, se olha para longe e não me ouve nem vê ou sente. Eu só quero falar com você, escute .
Inatingível. Escorregava em torno dela, percorrendo consciente uma trajetória de impossível. Em torno da pedra um círculo de repulsão que me jogava longe no momento da aproximação de seu centro. Cansaço pesando em mim, baixei a cabeça. As minhas mãos perdidas sobre a areia suja da beira do rio, as minhas mãos fremiam de fadiga. Círculos dourados percorriam o espaço, penetravam concêntricos em minhas órbitas, os círculos nascidos em torno da pedra. Pelos descaminhos, meu rumo se perdia, eu tornava a buscar, recomeçava- e novamente errava, e novamente insistia, Túrgido de ternura, me encarei. E [3]baixei a cabeça com vergonha. A pedra prescindia de mim. Eu, que me projetava num tempo desconhecido, prescindir de tudo e, impotente, me projetava na pedra, lúcido de que não seria jamais o que ela estava sendo. Eu que não conseguia alcançar o que ela alcançara e para sempre me perderei entre as pessoas, vagando sem encontrar, sem saber sequer o que busco, o que buscarei. A pedra me agredindo com seu ser completo.
- É esse gelo por dentro que eu não consigo entender. Você se doou tanto quando eu não pedia, e no momento em que pela primeira vez pedi, você negou, você fugiu. É esse seu bloqueio de aço encouraçando o silêncio, eu não consigo entender.
Completo. Seria possível o absoluto em algo ou alguém às vésperas da destruição? Eu não sabia nem sei, ainda. Escurecia cada vez mais, a silhueta da pedra já se dissolvera talvez na noite, mas a sua imagem permanecia em minhas retinas. E no escuro, ela deixaria de ser? No escuro as coisas esquecem de si mesmas para se tornarem apenas coisas, desligadas de qualquer suspeita que se possa ter sobre elas? A imobilidade do rio com suas ondas fracas, feito um reafirmar de inércia. E eu. Que era eu naquele momento exato, jogado na areia, cheio de movimentos subterrâneos? Que era eu, com o incompleto de minhas tentativas que não se cumpriam, e permaneciam vagando num ritmo de espanto? O rio era o rio, o céu era o céu, a areia era a areia, mas a pedra recusara meu pensamento e se fizera unicamente em pedra. E eu que escorregava, me perdendo em corredores de luz filtrada, pelas varandas entrecobertas de samambaias, por solares arquitetados sobre pântanos, pelos pântanos mesmo de água pútrida e serpentes entrelaçadas em tronco de árvores viscosas - eu que me reconhecia ao longe e não ia além do gesto para me conhecer. Mas se o rio tinha peixes e lama e musgo no fundo, e tinha mistérios; e se o céu estava repleto de mundos formando o cosmos e o desconhecido infinito das galáxias, e tinha mistérios; se a areia onde haviam restado detritos e sulcos, onde vicejava uma grama rala, tinha também mistérios. Somente a pedra, até o fundo de si pedra, das nascentes ao topo, nada contendo além de seu ser.
- Seria isso, então? Você só consegue dar quando não é solicitado, e quando pedem algo você foge em desespero. Como se tivesse medo de ficar mais pobre, medo de que se alcance seu centro e nesse centro exista alguma coisa que você não quer mostrar nem dar ou dividir. Contido, dissimulado, você esconde essa coisa, será assim?
Ser. Já nada mais restava. Apenas a noite e, dentro dela, o meu silêncio de incompreensão. Meus passos afundavam na areia deixando uma esteira de poças que conteriam as estrelas, não fosse o imenso escuro de tudo. Cada vez mais lento eu caminhava. Para longe do rio. Para longe da pedra. Para longe do medo. Para longe de mim.
TRIÂNGULO AMOROSO: VARIAÇÃO SOBRE O TEMA
Era uma menina. Embora não quisesse, quase desvairada na negação indireta, recusando atitudes e palavras que, justamente por afastadas, sublinhavam a sua condição. Aos olhos dos parentes, alheios a seu profundo - mais profundo ainda talvez porque inconsciente, resultante quem sabe de alguma remota frustração, como ia dizendo, seu profundo ressentimento tomava forma como em todas as meninas: algo meio vago, quase informe, acentuado vezenquando por lacinhos e babadinhos, como se as frescuras no vestir pudessem compensar o que lhe faltava: a forma. Ah como recusavam a sua densidade, como supunham ultrapassá-la quando, na verdade, sequer chegavam à sua periferia. Principalmente: como erravam ao tentar acertar, suas;atitudes de curva até o centrozinho dela (que eles ignoravam todo áspero e espinhento) fazendo-se queda lenta, desequilibrada, mesmo grotesca -irremediável queda. Ela era, pois, o ser mais só daquela casa. Isso equivale a dizer que era também o mais só do mundo, já que seu ambiente limitava-se àqueles dois pais e àqueles quatro irmãos equilibrados precários em pares de longuíssimas pernas, que serviam para lançar no rosto da menina a sua pequenez. Ah como eles eram herméticos. Mesmo amigos com quem trocasse desditas, amigos miúdo-gigantescos como ela, não os tinha. Vivia num apartamento desses enganchados em edifícios cinzentos, tão vazio de cores quanto de crianças. Além disso, ainda não havia apreendido o grande desencontro das palavras -portanto não poderia comunicar-se de maneira adulta, posto que a maneira-adulta-de-comunicar-se trata-se de um constante dizer o que não se quer, pedir o que se tem e dar o que não se possui. Também nos gestos, ela ainda não conseguira precisar-se, adquirindo aquela dureza que não assusta aos outros. Toda inexperiente de membros, ela enrolava-se em braços e pernas, enredada em movimentos que absolutamente descontrolava. Subjetiva e objetivamente, a menina era tremendamente solitária.
Foi quando apareceu o gato. A natureza dos gatos é parecida com a das meninas: também eles possuem aquela ferocidade mansa, toda contida e dissimulada ao pedir leite roçando as costas contra as pernas das pessoas. A menina só era amorosa quando faminta, fazendo-se lânguida, quase erótica. Saciada, tanto se lhe dava estar com aquela família alta e magra ou outra, baixa e gorda. Como ponto de contato, havia ainda aquela lucidez desesperada, portal de loucura, nas noites de lua cheia. Ela chorava, ele miava. Incompreensão da própria angústia, uniam-se no ultrapassar de seus limites, iam além, muito além, completamente sós dentro do apartamento - quem sabe do universo -, ela gritava, luzes acendiam, gestos precisos acariciavam lugares imprecisos; ele miava carente de carícias, de tentativas de compreensão, incompreendido, incompreensível. O berro uníssono fazia as paredes incharem, prenhes.
Os olhos castanhos dela encontraram os olhos verdes dele numa manhã de chuva. Todo sujo de lama, ele fora encolher-se exatamente em frente à porta onde havia uma espera em branco. Comunicaram-se. Ela não tinha palavras. Ele tinha unhas afiadas. Ela tinha dentes nascendo, sua arma em gestação contra o mundo. Ah como se amaram violentos e ternos em unhadas de paixão, dentadas de lascívia, mão sobre o pêlo amarelo, cabeças unidas -ele estacionado em evolução no ponto onde ela estava, mas ultrapassaria. Desde o início, ela fora em potencial maior do que ele. Tinha perspectivas, ao passo que ele estava para sempre confinado às quatro patas, ao rabo, às duas orelhas, aos seis ou oito fios de bigode.
Mas inconscientes desse desencontro, doavam-se inteiros, ignorados, ignorantes - brutais e absolutos em sua posse calada.
Até que chegou a gata. Os pais tiveram o raciocínio lógico de que um gato, mais que qualquer coisa no mundo, precisa de uma gata. E a trouxeram. Ela insinuou-se fêmea, gata de loja de animais, guizos, laçarotes, miando esquiva roçava o corpo contra as paredes, delicadíssima no arquear do dorso, formando uma curva tão sutilmente prometedora que a menina se espantava toda de tanto cinismo caramelado. E começou a disputa. Desde o início, a menina estava derrotada - ah como os parentes não a compreendiam. Ela -indefinida, meio tosca -insabia que para conquistar era necessário ser dissimulada como a gata. Ela era completamente objetiva nos seus desejos: se queria agarrar o gato, não se perdia em tramas e atitudes –ia lá e agarrava a meta. Que se esquivava, agora, mais propenso às ternuras menos ostensivas da gata.
Findo o período de namoro, o cio chegou e a gata e o gato possuíam-se despudorados pelos cantos, a menina incompreendendo que ela mesma não era uma gata, e que só poderia, assim mesmo futuramente, e talvez, possuir naturezas como a sua. O problema é que ela nunca tinha visto um menino. Sua única oportunidade de amar fora o gato. Que se tornara absoluto como jamais pirulito ou boneca haviam sido.
Mais só ainda - ela chegou então à atitude extrema. Talvez por influência da gata, aprendeu a dissimular, e aproximou-se toda meiga do gato que tomava leite. Foi tudo premeditado, ou tão espontâneo que a preparação estava implícita. E apertou. De uma só vez. Mais com a força que teria, propriamente, do que com a que dispunha no momento. Ele não miou nem estrebuchou.
Apenas morreu. Sem adjetivos.
Ela ficou olhando o corpo mole, desafiando-se com a gata que farejava o companheiro. Havia uma réstia de sol sobre o tapete. A menina encaminhou-se para lá e começou a brincar com uns cubos coloridos. Não descobriram o autor do crime. Ela não chorou. No mesmo dia, disse a primeira palavra: ato. Depois começou a crescer crescer crescer. Até que casou, teve três filhos, comprou um automóvel, um apartamento de cobertura no Guarujá e uma casa em Poços de Caldas.
MEIO SILÊNCIO
Águas de vidro à luz doentia da madrugada. Um vidro verde e fino refletindo longe o tremor das luzes da cidade. Aproxima lento o próprio dedo da ponta acesa do cigarro até senti-lo retrair-se num afastamento involuntário. O rosto do outro também parece feito de vidro. Um vidro ainda mais frágil que o da madrugada. Tem a impressão que se sair caminhando o ar irá quebrar-se em ruídos e estilhaços. A lua está tão bonita que dói por dentro, fala. Depois retrai-se como o dedo não queimado. Sempre o medo de chegar perto demais, de não poder voltar atrás, pensa, e solta devagar a fumaça pelas narinas.
"Quer ouvir música? meus dedos avançam até o rádio. Um gesto e três palavras para encher o silêncio. Que de tão repleto não cabe em si mesmo. Mas ele diz não. Sua resposta me enche de uma brusca vergonha. Como se tivesse descido mais fundo do que eu, dispensando as facilidades que também são fuga. A luz da lua bate nas pedras, elas brilham feito mil luas brancas, mil luas ásperas, mil luas à beira de um céu-rio sem estrelas. Está tudo quieto - há quanto tempo? - e meus ouvidos já não descosturam do silêncio o rumor dos carros passando distantes na estrada."
Olham-se, mas não se vêem. A escuridão não é uma parede, mas o silêncio os imobiliza na busca da palavra maior. Os dois fumam. As pontas acesas desvendam o escuro, e por instantes colocam um brilho avermelhado nas pupilas de ambos.
Perguntou se eu queria ouvir música. Não, eu disse sem pensar. Então ele calou como se tivesse ficado ofendido por eu recusar alguma coisa sua. Desconhecidos: como isso é, a um só tempo, terrivelmente bom e terrivelmente assustador. Pensar que eu estava só, no bar, esperando nem sei que, nem sei sequer se esperando: de repente os olhos me buscando no balcão em frente. Verdes. No primeiro momento foi a única coisa que percebi. Verdes, os olhos, atrás da fumaça, no meio das gentes, na frente do espelho. E o espelho refletindo o meu espanto. Depois vi os cabelos, a boca, os ombros. Mas era nos olhos, só nos olhos, que se fixava aquele mudo apelo, aquele grito. Nem sei. Aquela clara maldição. Saí, saiu. Não dissemos nada. Eu só tenho esperas. Ele traz a tranqüilidade de mais nada esperar.
"Um menino. Aquele ar espantado. Um pouco trêmulo. Cigarro atrás de cigarro. Tenho medo de tocá-lo. De quebrá-lo."
Eu disse: a lua está tão bonita que dói por dentro. Ele não entendeu. É tudo tão bonito que me dói e me pesa. Fico pensando que nunca mais vai se repetir, é só uma vez, a única, e vai me magoar sempre. Não sei, não quero pensar. Neste espaço branco de madrugada e lua cheia, preciso falar, e mais do que falar, preciso dizer. Mas as palavras não dizem tudo, não dizem nada. O momento me esmaga por dentro. O espanto esbarra em paredes pedindo exteriorização.
Você vê? as pedras parecem luas também. Ou estrelas, ele diz. Chão de estrelas. Vamos pisar nos astros distraídos? Ele ri. Nesse segundo cheio de riso alguma coisa se adensa. Nossos pés pisam em pedras. Mas por cima dos sapatos, sinto que são frias e duras, e sei que seu significado está em nós, não nelas. Uma vontade que a manhã não venha nunca. Vai voltar a grande busca. As noites vazias. Amargura de estar esperando. Repetir mil vezes: não quero esperar. E a certeza de que esse não querer já traz implícitas as longas caminhadas, o olhar devassando os bares, a náusea, os olhares alheios, a procura, a procura: seus ombros largos, um jeito de quem pisa mesmo em luas, não em pedras.
As sombras se projetam alongadas na praia deserta. Rumor de carros e faróis que devassam a noite sem achar. Pára de súbito, o corpo ferido por um sentimento indefinível. Precisa falar, precisa dizer.
Afinal, não foi para enfiar pérolas que você me trouxe aqui: eu digo. Ele está a meu lado. Então me olha sério, por um instante abalado, depois ri e diz: desista.
Positivamente o cinismo não fica bem em você. E se com essa citação só quer mostrar que já leu Sartre, eu também já li. Por que feri? Por que feriu? Por que estamos dizendo coisas que não sentimos nem queremos?
"Um menino assustado querendo mascarar o medo com a agressividade. Um menino. Curvo-me para ele. Tão esguio que meus braços o rodeariam por completo. Por um instante ele ficaria inteiro preso dentro dos meus limites."
O rosto dele próximo do meu. Mais adivinho do que vejo o verde dos olhos deslizando pelas órbitas. A sua mão toca no meu ombro, sobe pelo pescoço, me alcança a face, brinca com a orelha, alcança os cabelos. O seu corpo cola-se ao meu. A sua boca vem baixando devagar, vencendo barreiras, colando-se à minha, de leve, tão de leve que receio um movimento, um suspiro, um gesto, mesmo um pensamento. Estou em branco como a noite. Ele me abraça. Ele está perto.
Ergue o braço lentamente, afunda as mãos nos cabelos de outro. E de súbito um vento mais frio os faz encolherem-se juntos, unidos no mesmo abraço, na mesma espera desfeita, no mesmo medo. Na mesma margem.
AMOR
Do corredor os rumores chegavam diluídos, cobertos de cinza caindo mansa sobre os objetos. Vezenquando um rosto desavisado espiava na porta. Ficavam a encarar-se, e nesse duelo -quem saía perdendo? Enquanto examinava o rosto, guardava dentro de si um pensamento intenso, mas inafirmado em gesto ou palavra. Tinha consciência de estar sendo lento em seu exame, do movimento da mão baixando os óculos, do cigarro batido nas bordas do cinzeiro. E do olhar do outro, também parado, como se dissessem mutuamente me vês? e o que vês em mim? e em que essa visão te acrescenta ou diminui? te causa ódio ou amor ou que outra espécie de sentimento velado? Concordavam mudos, mas não saberiam ir além da primeira pergunta. Não saberiam definir a que espécie de quebrar interior se sujeitavam. Mas sabiam que um ser humano jamais atravessa incólume o círculo magnético de outro. Sabiam, mas sabiam também que, por condicionamento ou medo de verem periclitar a segurança fragilmente estruturada, atenuavam a carga de espanto oferecendo um cigarro ou perguntando se estava tudo bem. Fingindo-se imperturbáveis, não seriam obrigados a reinventar cada encontro ou desencontro. Por mais corajoso que fosse, por mais que se permitisse a queda, o desconhecimento, ainda assim não saberia precisar o movimento. Seria necessário um rótulo qualquer para pacificar-se. E os movimentos nunca vinham puros, em essência: era uma mansa piedade, quebrantada por um vislumbre de amor, ou um ódio com toques de desespero, ou ainda um simples dobrar-se, uma identificação de humano para humano, sem sequer um nome aproximado.
Assim, ele estava no escritório, cumprimentara há pouco a secretária que estava de aniversário, dizendo você é de Virgem, não? é o signo regido por Mercúrio, o planeta da inteligência, as pessoas de Virgem sempre conseguem o que querem embora no começo pareça tudo muito difícil. A moça sorria indefesa, querendo dizer que não tinha culpa nenhuma de estar de aniversário. Para disfarçar, dissera que o relatório estava pronto. De repente se olharam tão desesperadamente sós no corredor cheio de gente, uma ternura quase de cão brincando nos olhos, ele olhou para a ponta dos sapatos, ela batucou de leve na máquina, ele imaginou-a morando numa pensão barata, chegando do trabalho para lavar calcinhas na pia, indo ao cinema com o noivo, contando a ele as miudezas do dia -imagine, hoje o chefe me cumprimentou e até perguntou o meu signo, ele, que nunca tinha falado comigo. Não suportando mais, perguntou-lhe quantas primaveras, colocando um acento meio trágico na voz. Vinte e quatro, ela respondeu de olhos baixos. E quando chegaram ao ponto de precisar fazer qualquer coisa para quebrar o insuportável momento de ternura, disse brusco você está dispensada por hoje. Seco, praticamente jogando-lhe no rosto a sua bondade esmagadora, voltou as costas e saiu pisando duro corredor afora.
Na mesa, abriu a gaveta para encontrar um velho pacote de bolachas, uma fotografia rasgada e um carretel de linha. Em instantes como esse gostaria de te no rosto uma expressão de ódio tão compacta e definida que ninguém suportasse encará-lo por mais de um segundo. Espiou o vulto refletido na vidraça. Impossível: havia nos olhos tal carga de espanto e indagação que causavam sempre um baixar de olhos, qual quer coisa assim como quem esconde a si própria com medo de ser descoberto. Distraído, tentava aproximações, mas tão inábeis que os outros se encolhiam, medrosos da segunda intenção que ignorava inexistente. Como chegar para alguém e dizer de repente eu te amo para depois explicar que esse amor independia de qualquer solicitação, que lhe bastava amar, como uma coisa que só por ser sentida e formulada se completa e se cumpre? Pois se ninguém aceitaria ser objeto de amor sem exigências.
Agora esperava o empregado entrar, ouvira a conversa no corredor. A felicidade do outro esperando o momento quase certo, chego pra ele e digo assim eu preciso que o senhor me dê um aumento. Mergulhou na compreensão do sentimento do empregado quase, quase se sentiu pobre, assim, como cinco olhos, um pedindo um bicicleta, outro pedindo um livro, outro pedindo. ..pedindo. ..uma côdea de pão! era assim que lia antigamente nos livros que falavam dos pobrezinhos. E nada o comovia tanto quanto a expressão uma côdea. Imaginava um pobrezinho, a não estendida à espera da casca toda roída. Arrepia-se todo de amor pela humanidade. Quase não importando a si mesmo de tanto amor represado, saía o corredor e dava um berro para o primeiro que saisse. As paredes quase oscilavam, e ninguém, mas ninguém percebia que a sua raiva era um amor muito bem disfarçado, para que ninguém risse, para que ninguém o olhasse surpreso com a grandeza de seu coração. Preparava-se para levantar e berrar quando bateram à porta:
- Entre - disse.
O operário era magro, os maxilares agudos furando as faces, quase bonito teria sido talvez num outro tempo, sem a mulher e os cinco filhos, bebendo e rindo nos puteiros com os companheiros. Puteiro, não -bórdel, corrigiu-se rápido. Bebendo cerveja, naturalmente, e rindo nos bordéis com os companheiros. Ou prostíbulos. As palavras muitas vezes usadas, sem o toque cínico e carregado de sugestões, mesmo um pouco melancólicas no seu ridículo, provocavam uma ternura maior. Piscou para si mesmo. Ah como conhecia as suas próprias fraquezas, como sabia apelar ao que lhe machucava o coração executivo.
Mandou o operário sentar, ofereceu-lhe um cigarro americano, filtro branco. E escutou atento a estória que já conhecia. Batucou nervoso na mesa, esperando que o homem falasse. ..agora. ..já. ..uma côdea de pão. Por inexperiência de lidar com palavras ou por conhecimentos carentes da psicologia dos chefes, o homem manteve-se discreto e objetivo nos fatos. Explicou tudo com muita concisão, o cigarro sublinhando sem melodrama os detalhes mais amargos. Olhava-o pensando no que ele pensaria de si. O homem terminou de falar e encarou-o. Uma pausa de espera estabeleceu-se incômoda entre as paredes. Confiante, o operário percebia suas feições comovidas, o ar exato de quem vai concordar e dar um aumento. Até se atreveu a largar um pouquinho de cinza no chão. Alguém gritou no corredor. Os estilhaços de som vieram arrancá-lo das escuras favelas onde andava compassado, distribuindo côdeas de pão a mil pobres bem pobrezinhos, de bracinhos finos e barrigas estufadas feito criancinhas de Biafra.
Olhou o homem bem nos olhos, bateu o cigarro no cinzeiro -ah se pudesse ver a si mesmo assim, carregado, insuportável de amor, de tanto amor, de puro amor. E disse bem devagar:
- O senhor está despedido.
AMOR E DESAMOR
Inesperada, encarou-o pedindo. Dentro do ônibus que corria para um destino com a segurança dos que sabem para onde vão, ela de repente se assumiu em fêmea e simplesmente pediu. Seu primeiro movimento veio marcado de espanto, pois que pedia pura, motivada apenas pelo desejo de receber. Depois adentrou em si, recusando, negando a solicitação no Ônibus superlotado de fim de tarde -e, no entanto ainda pedia, mas dissimulada, tornando-se pouco apouco cínica na maneira esquiva de olhar.
Espiou pela janela, curvando-se um pouco, quase a tocá-lo. A natureza de fora do ônibus escorria cinzenta, meio amorfa, desfeita em tons que não chegavam a se afirmar em cores. Dentro, escorria também, sem conseguir a nitidez de qualquer palavra. Subira no ônibus tão despreparada, disse baixinho, procurando encontrar a exclamação que não existia. E súbito, o homem estava ali. De óculos, entradas fundas no cabelo, olhando perdido pela janela. Era bonito? Sacudiu a cabeça em negativa de indecisão, como explicar, como formular que ele apenas era, sem adjetivos, era, estava sendo, embora sem saber, sem esforço algum -era. E ela pedia. Quebrava-se toda por dentro num movimento entre pudor e medo, voltando a cabeça para espiá-lo a seu lado, as mãos postas em repouso sobre as calças beges claro. Ah como doía solicitar tanto e ir-se tornando cada vez mais lúcida dessa solicitação.
Tentou voltar ao primeiro susto, mas percebeu que este jamais se bastaria em si. Era o desassustado começo do medo e o resto se faria caminhada lenta de olhar para trás, para os lados, a ver se não estava sendo vigiada. Impossível, pois, voltar ao impacto primeiro, que era um nada de exigência não-doída porque desconhecia a si mesma. A compreensão que atingindo, doía. Nesse doer, ela começava a soer, imprecisa e vaga. Suspirou ajeitando os cabelos que prendera na nuca, preguiçosa de pentear-se porque não previra o encontro.
Impassível, o homem ao lado. E já não mais era capaz de defini-lo: ele se transformara no que ela sentia. Ia além dessa compreensão, percebendo sábia que o seu sentir era tão dentro -e vago como as coisas interiores -que ela não poderia jamais sabê-lo em lucidez completa. Conseguia adivinhar o externo, mas o interno se perdia indefinido em sombras. O ônibus escorria no asfalto, o tempo escorria no relógio. Tudo ia em frente, ela se comprimindo cada vez com mais ardor. Ultrapassara o susto mas, temerosa te sofrer por amor, caíra na paixão. Absurda e mexicana e encerrada em si e independente do que a despertara: paixão. Pelo homem que era o objeto mais à não, com a mesma intensidade com que amaria o único coqueiro da ilha onde estivesse náufraga.
De repente, se alguém a olhasse, ela perturbaria com sua turgidez ampla de fêmea em ritual de amor. Os olhos se haviam agradado, a boca fremia num aparente mistério, porque jamais alguém conseguiria compreendê-la ou aceita-la em sua quase obscenidade. Ela avançara rápido demais, e agora já não cabia dentro de si. Perdera-se completamente, os lábios mordidos e o frio do suor nas palmas das mãos a complicavam ainda mais. Irritava-se com as pequenas coisas que tentavam afastá-la de sua danação –a peruca loira da mulher em frente, os solavancos do ônibus, o vento que entrava pela janela aberta. Então quase odiava o que não contribuía para o amor desesperado gritando dentro dela.
Foi aí que o ônibus parou e ela desceu. Não sabia se antes ou depois ou no lugar exato onde devia. Não sabia ainda se fugira ou se aceitara. Um carro passou, molhando-a da água da chuva que caíra à tarde. Era noite. Assoou o nariz. Esbarravam nela, o choque fazendo-a enrijecer-se numa tentativa de decifração. O ônibus ia longe, dobrando a esquina, a silhueta do homem confundida com as outras, não conseguia mais ligar os pensamentos, recordar em que caíra, e como caíra, e porque caíra. Enveredou lenta pela galeria, alcançou a escada rolante. Foi no meio da subida, o espelho refletindo seu rosto, que ela descobriu um ponto branco latejando vivo num lugar desconhecido. Preciso cortar os cabelos, pensou sem compreender. Ou sem querer compreender. Ou sem querer, apenas.
APENAS UMA MAÇÃ
Nascendo das minhas pupilas, círculos dourados se estendem até o infinito. A maçã ofega em cima da mesa. A primeira percepção é um grito de luz sobre o branco, a presença da maçã, contornos imprecisos contra a janela. Os círculos ampliados concentricamente contêm átomos de poeira em passeio pela manhã. É manhã? Não sei: é silêncio apenas. Fecho os olhos. Somente a memória fala: porque é certo que as pessoas estão sempre crescendo e se modificando, mas estando próximas uma vai adequando seu crescimento e a sua modificação ao crescimento e à modificação da outra; mas estando distantes, uma cresce e se modifica num sentido e outra noutro completamente diferente, distraídas que ficam da necessidade de continuarem as mesmas uma para a outra. O corpo ao lado, vestido, e o movimento que pressinto de recusa. Mas ela não fala. Apenas olha. As pupilas cheias de pequenos pontos dourados. Pontos de fogo, de ouro, de luz. pontos de: não.
- Não vou perguntar por que você voltou, acho que nem mesmo você sabe, e se eu perguntasse você se sentiria obrigado a responder, e respondendo daria uma explicação que nem mesmo você sabe qual é. Não há explicação, compreende? Eu também não queria perguntar, pensei que só no silêncio fosse possível construir uma compreensão, mas não é, sei que não é, você também sabe, pelo menos por enquanto, talvez não se tenha ainda atingido o ponto em que um silêncio basta? É preciso encher o vazio de palavras, ainda que seja tudo incompreensão? Só vou perguntar por que você se foi, se sabia que haveria uma distância, e que na distância a gente perde ou esquece tudo aquilo que construiu junto. E esquece sabendo que está esquecendo.
Pede um cigarro, um objeto nas mãos torna mais fácil uma conversa dessas, compreende? A fumaça sobe devagar, já não existem os círculos dourados, agora são apenas cinza -a fumaça. Em torno, nada mudou. Até a água esverdeada do aquário parece a mesma. Espero. O peso na cabeça se dissolve aos poucos em contato com o dia.
- Não quero complicar nada. Nunca quis. Também não queria falar. Mas eu não podia simplesmente receber você com a cara de ontem.
Sentada na poltrona ao lado da janela, uma cara de hoje, o cabelo preso na nuca, o casaco do pijama escondendo as pernas, os pés descalços aparecendo. Movimento o corpo sob o lençol, sinto o contato do pano em toda a pele. Estou nu e ela adivinha o meu pensamento. Sorri:
- Não houve nada. Você não precisa se preocupar pelo que não houve. Você estava bêbado demais para qualquer coisa.
O cigarro, a maçã nas mãos: o tempo colocou na testa uma ruga que antes não havia.
De repente sinto medo. Um medo antigo, o mesmo que sentia o menino escondido embaixo da escada, esperando castigos. Um medo e um frio que nascem de alguma zona escondida no cérebro, nas lembranças, nas coisas que o tempo escondeu ao avançar, como se recuando súbito pusesse a descoberto todos os cantos invisíveis, todas as teias de aranha recobrindo velhos muros, os mesmos que tantas vezes tentei escalar sem que houvesse nada depois, nenhum caminho, nenhuma casa. Nada.
EU - Mas detesto analista amador.
ELA - Campo ou bosque ou deserto, qualquer coisa assim, compreende? O importante é que seja ao ar livre. Colabora, imagina. É só um teste.
EU - Um deserto, então.
ELA - Sem nada?
EU - Nada.
ELA - Mas nem uma palmeira?
EU - Nenhuma.
ELA - Um rio, qualquer coisa?
EU - Nada. Só areia.
ELA - E árvores?
EU - Nada.
ELA - Bichos?
EU - Nada.
ELA - Vento?
EU - Nada.
ELA - Água?
EU - Nada.
ELA - E a chave?
EU - Não encontro chave.
ELA - E o muro?
EU - Muro tem.
ELA - E como é o muro?
EU - Antigo, feio, todo descascado, tijolos aparecendo, um pouco de limo, enorme.
ELA - Você sobe?
EU - Tento subir. Várias vezes. Mas caio, arranho os pulsos, sai sangue. Dói muito. Sempre tento subir, sempre caio outra vez. Mas sei que um dia eu consigo.
ELA - E depois?
EU - Depois o quê?
ELA - Depois do muro, o que tem?
EU - Nada.
ELA - Nada?
EU - Absolutamente nada.
ELA - E você, o que você faz, no nada?
EU - Não sei, me desintegro, acho.
ELA - E não dói?
Eu - Não. Não dói.
(silêncio)
ELA - Você já tentou o suicídio alguma vez?
EU - Três, por quê?
ELA - O muro que você tenta subir. O muro é a morte.
EU - Ah.
(silêncio)
ELA - Você agora me vai achar piegas, mas deixa eu perguntar .
EU - Pergunte.
ELA - Você não acredita em amor?
EU - Acho que não. Como é que você sabe?
ELA - Não existe água. A água é o amor.
EU - Ah. Que mais?
ELA - Nada.
EU - Nada?
ELA - É. Nada. Você não acredita em nada. Acha tudo estéril. Vazio. Seco. Um deserto. Nem problemas você tem.
EU - Problemas?
ELA - É. Os bichos.
EU - Ah.
ELA - Nem ideais. Com o perdão da palavra.
EU - Ideais?
ELA - É. As árvores.
EU - E daí?
ELA - Daí, nada.
(silêncio)
EU - Pronto: mergulhou no silêncio oceânico.
(silêncio)
ELA - Você não passa dum puto dum niilista. O diabo é que eu gosto de você paca...
Não mais. Ela apanha o cigarro, joga o toco pela janela aberta. Apanha a maçã.
- Eu ia pintar essa merda. Mas acho que não há mais nada a dizer sobre a droga duma maçã. Nada ao fazer, também A não ser comê-la. .
- É, comê-la. Mas esta está velha.
- Porque eu, meu filho, eu só tenho fome. E esse jeito instável de pegar uma maçã no escuro- sem que ela caia.
- Que saco, hein? Estava demorando.
- O quê?
- A citação. Quem é?
- Clarice Lispector.
Ela não sorri. Houve um tempo em que tive um rio por dentro, mas acabou secando.
EU - É possível um rio secar completamente?
ELA - Claro que é.
EU - Mas será que ele não enche depois? Nunca mais?
ELA - Alguns sim, outros não.
EU - Mas nunca mais?
ELA - Sei lá, acho que não.
EU - Você tem certeza?
ELA - Certeza eu não tenho. Só estou dizendo que acho. Afinal não sou nenhuma especialista em matéria de rios, secos ou não.
EU - Sabe?
ELA - O quê?
EU - Eu tinha esperança que o rio voltasse a encher um dia.
O dia avança lento. Quem pode deter o avanço do tempo? Alguma coisa vai ser dita ou feita, o tempo prepara meus ouvidos e meu corpo para as palavras ainda em gestação. Levanto as duas mãos, veias estendidas sob a tessitura clara da pele, dedos desertos como se segurasse uma palavra intangível. Anêmona. Varanda. Circunlóquio. Hipérbole. Cantata. Coleóptero. Fazendo um gesto, talvez. Ou falando. Como dói o deserto de dedos desassombrados. Entre eles, a revista, a ilustração: uma orquestra sinfônica. Merda para todas as orquestras sinfônicas. Nos banquinhos, as bundas assentadas, violinos, fagotes. Gozado fagote, não é? Parece um cavalo galopando em cima de nozes, oboés, contrabaixos. E contracimas, não tem, hein? Sopé. E girândolas. Gôndolas girando? Mas se eu tivesse ficado, teria sido diferente? Melhor interromper o processo em meio: quando se conhece o fim, quando se sabe que doerá muito mais -por que ir em frente? Não há sentido: melhor escapar deixando uma lembrança qualquer, lenço esquecido numa gaveta, camisa jogada na cadeira, uma fotografia –qualquer coisa que depois de muito tempo a gente possa olhar e sorrir, mesmo sem saber por quê. Melhor do que não sobrar nada, e que esse nada seja áspero como um tempo perdido. Não digo. Atrás do aquário, os dois olhos confundidos com os peixes. Será que peixe gosta de maçã? Mas se tivesse ido até o fim, teria voltado? Voltar não será como ir até fim, não st:?fá prolongar o processo em vez de abreviá-lo? Nunca soube a cor exata de seus olhos. Quando os via muito de perto, minha única preocupação era observar o movimento dos pontinhos dourados no fundo das pupilas.
Mas em que cor estavam contidos esses pontinhos, boiando em castanho, em azul, em verde, em negro? O cigarro queima os dedos, fumado até o fim. O sol ilumina um remendo na cortina. A mancha encolhe lentamente.
EU - Você gosta de mar?
ELA - Gosto. Parece uma coisa que eu sinto às vezes por dentro e nem sei bem como é. Nem o que é. Acho que se um dia eu me matasse seria no mar. Queria ir entrando na água bem devagarinho, vestida de branco, descalça, cabelos soltos.
EU - Poesia fácil.
ELA - Vá à merda.
Atira a maçã para cima, recebe-a de novo, indecisa, num movimento que quase descobre os seios. As pernas compridas, um pouco brancas demais. Os olhos talvez meio estrábicos. Mas a cor? Que cor? O gesto antigo de afastar um fio de cabelo inexistente.
- Vá embora -ela diz.
Visto a roupa devagar. Começo a descer as escadas. Não olho para trás. De que adiantaria olhar? De que adianta não olhar?
Vou desviando das poças sujas da chuva de ontem. O asfalto esburacado. O céu cheio de fumaça. E de repente uma maçã espatifada contra o cimento. A carne madura demais espalhada em torno. Não há nada a dizer sobre ela, não passa de uma maçã morta.
DO ESPANTO
Assim: do lado direito, um casal de velhos; do lado esquerdo, uma mulher com duas crianças atrás, dois rapazes de ar indefinido à frente, a toalha vermelha da mesa ampliando-se em perspectiva até a janela aberta para a noite. O ar ressecado estrangula os movimentos, depositado como poeira sobre as faces desfeitas de feições, expressões escorrendo em suor ao calor inesperado sobrevindo depois da chuva. Um rato caminha sobre uma das vigas de sustentação. Ele olha o rato, e o rato não o vê. Olha o rato, mas as outras pessoas não sabem que seu olhar olha o rato. Sozinho naquele bar, naquela rua, em todos os bares em todas as ruas do mundo, no mundo inteiro -sozinho: ele e o rato, natureza cinza equilibrada sobre quatro patas.
- Você prefere lasanha ou ravióli?
- O meu dia só existe porque você existe dentro dele.
- Garçom, por favor .
- Vou-me embora, não suporto mais este bar, este calor, esta mesa. Não suporto mais você.
- Eu quero batatinha frita.
- Hoje existir me dói feito uma bofetada.
- Sem cebola, por favor.
Quando partiu, levava as mãos no bolso, a cabeça erguida. Não olhava para trás, porque olhar para trás era uma maneira de ficar num pedaço qualquer para partir incompleto, ficado em meio para trás. Não olhava, pois, e, pois não ficava. Completo, partiu. Não vê, mas pode sentir o toque áspero da pele recoberta de pêlos em suas mãos que seguram o garfo e a faca, e o toque é quase uma carícia -uma nauseante carícia de bicho à procura de qualquer coisa. Mas o rato está em cima; ele estava em baixo, o sexo enrijecido, a mulher se movimentando sobre ele. Uma lassidão de coisa cujo destino é possuir, mas submetida à posse, quem sabe ampliada no escuro. Expandia-se dentro de si num movimento de revolta e nojo. Muito próximo do seu, o rosto da mulher aberto numa quase careta de gozo, os dentes manchados de cigarro espiando por entre os beiços cobertos de batom que as gotas de suor faziam escorrer. Apertou-a contra si, as mãos comprimidas na bunda áspera. O sexo explodiu numa chuva densa, enquanto olhava estupidamente para o fio de luz coado pela janela.
- Não posso comer massa, meu bem, engordo horrores.
- Porque se você não vem é como se o tempo fosse passado em branco, como se as coisas não chegassem a se cumprir porque você não soube delas.
- Infelizmente o camarão acabou.
- Estou completamente cheio.
- Bem molezinha, com bastante sal.
- Mas este prato está sujo, que absurdo!!!
- Tudo dói, e eu já nem sei mais para onde ir nem o que fazer, se ao menos – você me amasse um pouco, não estaria aqui e agora, neste bar, sozinho, longe de você e de mim.
O rato, agora, em passos hesitantes, a cauda enroscando-se em madeiras. Esfarela devagar um pedaço de pão, o miolo escorre por entre os dedos, feito água, feito vento, feitos todas as coisas que passam e não marcam em nada, em nenhum recanto do corpo físico além de memória. Aqui e agora, pedindo mais uma cerveja ao garçom vestido de branco, bigodes retorcidos para baixo. Cercou-o devagar: um cuidadoso exame de comprador investigando a mercadoria, a medir de cima abaixo, da cabeça aos pés, a largura do tórax, a grossura das coxas, as mãos de dedos grossos nas juntas, os olhos escondidos debaixo das sobrancelhas, a barba forte azulando o rosto -como se conseguisse ir além da calça azul e da camisa branca limitando a carne. O sexo: ponto de chama entre as pernas. Estende a mão, mas o rato foge num movimento brusco.
- Prefiro carne, ao menos não engorda tanto.
- E se você vem, fica tudo maior, mais amplo, sei lá mas é como se eu existisse dum jeito mais completo, compreende?
- Temos peixe. Filé de peixe, serve?
- De repente parece que todo mundo vai começar a morder agente.
- Feijão não, eu odeio feijão.
- Uma merda, tudo. Uma grande merda.
Súbito escorrega para uma região desconhecida, onde tudo se dilui em sombra, em silêncio. Na sombra e no silêncio, o rato desliza manso, subindo a parede até alcançar novamente a viga que o sustenta. A mulher o encarou ofendida: se você gosta de homem, o problema é seu, meu filho, não tenho nada com isso. Insistiu. O guarda o soltou e ele saiu caminhando de cabeça baixa, depois de ter jogado o cartaz na sarjeta: "O povo passa fome". Jamais olhava para trás, jamais: o que estava feito, estava feito, estava consumado, estava para sempre imutável, inamoldável, fechado em si mesmo, estanque: o tempo. Ela sorriu de lado, a língua metida na falha entre os dois dentes. Concordou. Meteu a mão no bolso, procurando a carteira, e sentou o quase toque nos seus sapatos. Cerrou os dentes, o sexo latejava, estendeu a mão e tocou. Imóvel -o homem. O indecifrável dos olhos, do vinco marcando a boca, espreitando o, tenso. Eu pago, disse. Mas o rato voltou, sem que ninguém o veja.
- Tudo bem, um bife, mas bem pequenininho, bem passado e sem molho, hein?
- Ninguém toma de ninguém esse tipo de coisa, ninguém.
- Temos sopas, também. Madame é quem sabe.
- Me deixa ir embora. Eu não quero mais te ver. Nunca mais.
- Arroz? Mas eu só queria batatinha.
- E a faca? Será que é preciso comer com as mãos?
- Se ao menos dessa revolta, dessa angústia, saísse alguma coisa que prestasse.
Qualquer coisa: eu teria ao menos algo em que me segurar, qualquer coisa. O extremo da revolta seria a coisa feita, pronta para que segurassem nela. Eram vermelhos? Ou seriam azuis? Nunca vira os olhos de um rato bem de perto. Só a cauda, estendendo-se de elo em elo, até o final pontudo, como uma serpente. Não suportaria encarar um animal, qualquer que fosse. Aquela inconsciência de si mesmo, a ausência de indagações, de marcas- a isenção o deixava paralisado, como uma ferocidade inesperada: um animal, o homem nu, estendido sobre a cama. Tocava o sexo, e o sexo vibrava. A cama vibrava. A noite vibrava. O mundo vibrava. Alinhou um a um os farelos na esquina, formando um nome com o líquido da urina. A mão machucada de sustentar o grito do cartaz, os pés sob a revolta, os ombros doídos embaixo da contestação. Foi de repente que começou acorrer para longe daquilo, esmagado pela exigência, pelo espanto de estar pedindo alguma coisa que nem para si era. Pedir exigia uma participação íntima que ele não tinha, e seus gritos ressoariam falsos por todas as esquinas, seus ombros curvariam ao peso acumulado, a cabeça baixa, rabo entre as pernas. O susto do rato com a bolinha de pão jogada sobre a cabeça.
- Imagine, ele falou que tinha achado o chapéu detestável.
- Só eu sei que cheguei à humildade máxima que um ser humano pode atingir: confessar a outro ser humano que precisa dele para existir.
- Quem sabe uma feijoada?
- Daqui a pouco vai começar a chover de novo.
- Tá bem, mas só se vier um sorvete depois.
- Quer fazer o favor de me alcançar o copo?
- Mas não sai nada. Nada. Nem uma lágrima.
Aproxima-se. Os olhos agrandaram na procura consumada em encontro, as patas avançaram para o objeto - o cinzento arrastando-se sobre o amarelo dos tapetes.
- Inveja, pura inveja, conheço demais essa gente.
- E no momento em que se confessa a precisão, perde-se tudo, eu sei.
- Não? Quem sabe então um... um... um...
- Não adianta insistir. Agora eu vou.
- De creme, não. Quero de morango.
- E essa coca-cola que não vem?
- Sei lá, vou dormir que é melhor.
Agrandava-se. Senhora dona Cândida, coberta de ouro e prata, descubra o seu rosto, quero ver a sua graça. Descobria-se. Afastava o ouro, a prata, as mãos que escondiam o rosto e dentro -o que havia? Contém-se e começa a contar-se baixinho: Era uma vez: assim: do lado direito, um casal de velhos; do lado esquerdo, uma mulher com duas crianças; atrás, dois rapazes de ar indefinido; à frente, a toalha vermelha da mesa ampliando-se em perspectiva até a janela aberta para a noite". E o rato. Quis gritar, mas era tão tarde, era muito tarde, era sempre tarde. Viu o garçom arrumando os pratos sobre a mesa, a fumaça elevando-se da comida quente. Mas a vidraça ainda não refletia a cor exata dos olhos. Baixou a cabeça para o prato, apoiado nas quatro patas cinzentas, o focinho fino, as pessoas esfarelando pães e jogando-lhe pedaços, espantou-se da delicadeza de sua próprias garras, da leveza de seu próprio corpo, agora apertam sua cauda entre os pés, e ele foge, tenta fugir, mas alguém sopra em seus ouvidos algo parecido com uma canção de ninar. Ou uma canção de guerra, de ódio, de nojo, de sangue, uma cantiga de roda, ou simplesmente um grito estridente, agudo, trêmulo, incompreensível. Um grito humano.
MADRUGADA
Desconhecidos - mas somente antes do encontro. Que acontecera no bar. Então, unidos pela mesma cerveja, pelo mesmo desalento, deixaram que o desconhecimento se transmutasse naquela amizade um pouco febril dos que nunca se viram antes. Entre protestos de estima e goles de cerveja depositavam lentos na mesa os problemas íntimos. Enquanto um ouvia, os olhos molhados não se sabia se de álcool ou pranto contido, o outro pensava que nunca tinha encontrado alguém que o compreendesse tão completamente. Era talvez porque não trocavam estímulos, apenas ouviam com ar penalizado, na sabedoria extrema dos que têm consciência de não poder dar nada. Uma mão estendida áspera por entre os copos era o consolo único que se poderiam oferecer.
Com a lucidez dos embriagados, haviam-se reconhecido desde o primeiro momento. Ou talvez estivessem realmente destinados um ao outro, e mesmo Sem o álcool, numa rua repleta saberiam encontrar-se. O fulgor nos olhos e a incerteza intensificada nos passos fora a pergunta de um e a resposta de outro.
O primeiro estava ali sentado há duas horas, mas lá fazia parte do ambiente. Um pouco porque seu emo era de cor igual às paredes do fundo, mas principalmente porque ele era todo bar. Na forma, no conteúdo. Mais exatamente, aquele bar em especial, que tinha uma coruja no nome e nos desenhos da parede. Ave que ele imitava involuntário, nos ombros contraídos, no olhar verrumante. Olhar que lançou sobre o outro no momento da entrada. Este vinha ainda incerto, como se buscasse. E sua imprecisão atingiu o paroxismo quando no choque de olhares. Vacilou sobre as pernas, a roupa parecendo mais amarrotada, subitamente um braço se descontrolou atingindo a mesa mais próxima, varrendo-a quase com doçura. A doçura dos que de repente encontraram sem estar de sobreaviso. A loura oxigenada deu um grito e o homem que a acompanhava aprumou-se em ofensa, pronto a atacar, macho pré-histórico protegendo a fêmea em perigo. Ainda perdido no espanto, o segundo bêbado não reagiu. Suas mãos estavam cheias apenas de perplexidade, não de ódio. Nesse momento, o primeiro bêbado enristou seu metro e noventa de altura, até então diluído no encolhimento de coruja em que se mantinha. Sem dizer palavra encaminhou-se para o amigo -pois que seus olhares haviam sido tão fundos que dispensavam ritos preparatórios antes de empregar o substantivo e tomando-o pelo braço, levou para a mesa. O acompanhante da loura acalmou-se de imediato, enquanto esta ficava ainda mais oxigenada no despeito.
E os dois, satisfeitos com a inesperada oportunidade para a comunicação, foram objetivos ao assunto. Estavam sós. A mulher de um estava viajando; o outro não tinha mulher. Mas tinha noiva, e desconfiava que ela o andava traindo. O outro maravilhou-se com a coincidência, pois tinha quase certeza ser a viagem da mulher apenas um pretexto para encontrar com o amante. Unidos na mesma dor-de-cotovelo, sua amizade esquentou a razão de cem graus por segundo. Ambos estavam insatisfeitos nos respectivos empregos. Operários, planejaram greves, piquetes, sindicatos, falaram mal do governo. Um deles, que tinha lido uma frase de Marx num almanaque, citou-a com sucesso. E o engajamento era outro elo a reforçar a corrente já sólida que os unia. De elo em elo, ligavam-se cada vez mais. A tal ponto que simplesmente não cabiam mais em si mesmo. Os copos colocavam-se em pé, oscilantes como se estivessem em banho-maria, os cabelos despenteados, rostos vermelhos, olhos chispantes -furiosos e agressivos no diálogo. Nas outras mesas, seres provavelmente frustrados no desencontro farejaram briga e ergueram as cabeças, espreitando. Não sabiam que, por deficiência de vocabulário, a amizade não raro se descontrola e pode levar ao crime. Apenas os dois pressentiram isso, tão sensíveis haviam-se tornado no investigar sem palavras do terreno que ora pisavam. Tudo neles era recíproco -e o medo de se ferirem cresceu junto para explodir num silêncio súbito. Então se encararam, mais desgrenhados do que nunca, e com tapinhas nas costas voltaram à delicadeza dos primeiros momentos.
Mas os frustrados que enchiam o bar estavam achando aquilo um grande desaforo. Não era permitido a duas pessoas se encontrarem num sábado à noite e, ostensivas, humilharem a todos com sua infelicidade dividida. O desespero não repartido dos outros era uma raiva grande, expressa nos gestos de quem não suporta mais. Com a sutileza dos donos de bar, o dono deste sentiu a hostilidade crescente. E medroso de que o choque resultasse em prejuízos para si, colocou-se sem hesitação ao lado da maioria.Dirigiu-se aos dois operários e pediu-lhes que se retirassem. Apoiado em seu metro e noventa, um deles quis reagir. Mas o outro mais fraco e, portanto menos heróico e mais realista, advertiu-o da inconveniência da reação. E olharam ambos os outros desencontrados pelas mesas -subitamente encontrados no mesmo ódio -formando uma muralha indignada. O mais alto, menos por situação financeira do que por força, caindo em si fez questão absoluta de pagar todos os gastos. De braço dado, saíram para a ma drogada.
Fora depararam com o frio e o brilho desmaiado das luzes de mercúrio. Encolheram-se devagar, as desgraças mútuas morrendo em calafrios. O domingo vinha vindo. Eles não sabiam o que fazer das mãos cheias de amizade e lembranças das mulheres ausentes. Bêbados como estavam, a única solução seria abraçarem-se e cantarem. Foi o que fizeram. Não satisfeitos com o gesto e as palavras, desabotoaram as braguilhas e mijaram em comum numa festa de espuma. Como no poema de Vinícius que não tinham lido nem teriam jamais. Depois calaram e olharam para longe, para além dos sexos nas mãos. Nas bandas do rio, amanhecia.
A CHAVE E A PORTA
Falávamos de caracóis, mas no vidro se refletiam as mãos em movimentos descontrolados de acender cigarros, a madeira da parede suportando papéis, fotografias, cartazes, e eu já não tinha nada além de palavras formuladas em perguntas despidas, apenas letras, estátuas de sal, de gelo, de pedra.
Era um silêncio muito grande e os dois falavam de caracóis. Súbito, sentia uma alegria interna quase como uma primavera. E a alegria crescia, expandindo-se em muitas direções, tomando conta das mãos, dos olhos, já transcendia o pensamento para se apossar do corpo inteiro. Mas de repente tudo já não cabia mais só dentro dele; precisava de um acontecimento externo que justificasse toda aquela largueza de dentro. A coisa externa não acontecia. E, se acontecia, não justificava. Por que não se render ao avanço natural das coisas, sem procurar definições? Como uma primavera, em mim. Mas se não havia justificativa, a queda era lenta e longa. No fundo do poço: baixou a cabeça, espiou-o por baixo das sobrancelhas. Tinha os olhos claros. Falava de caracóis.
Subi em cima da mesa e comecei a acenar para as aves de rapina que inventavam podridões no cimento. Pois se em breve todas as estátuas cairiam sobre a sombra desdobrada do casarão antigo, e como num medo muito grande eu subiria em cima da mesa, gritando sem ninguém ouvir, acenando com mãos que não se desprenderiam dos ombros. Protegia a si mesmo daquela primavera surgida brusca no meio do dia revestido de luz. Na sala ao lado, alguém cantava uma música antiga enquanto um telefone chamava sem que ninguém atendesse, sem que ninguém entendesse. Um estranho e triste apelo sem resposta partido no ar em fatias de aço. Que bom se fôssemos cavalos e corrêssemos por um campo de trigo, com papoulas nas margens.
Encarou-o tenso, colocando no olhar o desafio: eu te vejo mais fundo do que você me vê, porque eu te invento nesse olhar, porque você se torna o meu invento, porque depois de olhar muito dentro eu prescindo da imagem e o meu olhar repleto se basta, como se eu fosse cego, mas tivesse guardado todas as imagens: um cego vê mais que um homem comum porque não precisa olhar para fora de si, porque o que ele deseja ver está completamente dentro e é inteiramente seu. Mas os olhos claros barravam o inventário. Não ia além da cor, não ia além das pupilas contraídas pela luz. O máximo que distinguia era um rosto perto do seu. Um rosto muito perto do seu falando de caracóis. Suspirou, num reconhecimento de fraqueza. Se meu olhar não te desvenda é porque você me vê mais fundo, mas você não pode ver mais fundo porque o meu fundo está cheio de musgo, porque o meu fundo é verde como um muro antigo, roído como mármore de cemitério, denso como uma floresta onde eu ando lento, as árvores barrando meus passos e a transparência de seus olhos barrando os meus.
Você já tomou gim com mariscos? Não, porque eu tenho nojo e medo: eu não conseguiria provar a carne mais íntima de um objeto ou de um animal. Tome logo, você não sabe o que está perdendo. Não, não seria madrugada, não seria noite vestida de noite nem manhã de branco nem tarde de verde, não seria tempo nenhum; não seria sequer a sexta-feira mais intensa que qualquer outro dia, por ser véspera de tudo, embora o tudo resulte em nada, na segunda; não seria nem véspera de sábado, não seria sequer o sábado. Eu te falo: seria uma névoa cinzenta e o edifício deserto erguido às margens do rio sujo. Fantasmas lentos, nós entraríamos no edifício, o rio estaria dentro de nós, e eu não seria mais eu, seria o rio, e você não seria mais você, seria o rio. O rio riscado de encontro.
O telefone continuava chamando no momento em que ele riscou a parede com a mão aberta. Perfurava a carne de madeira, fazendo nascer espantos dissolvidos na fumaça do cigarro que subia para o teto esbranquiçado, cheio de furinhos de onde um dia talvez começasse a brotar um fino gás que asfixiaria a todos. Por dentro, aquele gosto ardido de areia, aquele gosto seco de poeira, de bolo antigo, dissolvia-se de grão em grão, escorregando pela boca em palavras que já não eram forjadas, escorregando pelas mãos em gesto não mais endurecidos, escorregando pelos olhos que novamente olhavam como se vissem. Mas eu resistia ainda em usar a palavra. Espantou-se com o intervalo inesperado, ponto branco no meio de pensamento. E a leveza que descia feito o gás que desceria do teto: vestido de leveza, os olhos antigos de ternura, a morte implícita. Já era tarde, começava a chover, os pingos batiam fortes no vidro onde ninguém mais desenhava figuras ou escrevia nomes vadios. Na terra agora molhada não havia mais cirandas, do céu não caíam mais balões, na sala ao lado o samba antigo morrera no fundo da garganta. Só as máquinas a bater bater bater e o telefone gritando sem que ninguém atendesse. Ele continuava sentado na mesa, os olhos claros, a camisa verde, as mãos brancas. Pouco a pouco, como se experimentasse um vôo, curvou-se para a mesa, as asas cortadas. E o medo. Depois de limpar bem toda a terra, a gente coloca eles na panela e eles vão cozinhando devagar. Vivos? Claros, vivos. Tem uns que ainda tentam se segurar nas bordas, escapar, mas morrem todos. Todos acabam morrendo. Muito devagar. Os círculos de tédio desciam concêntricos da lâmpada, estendia o braço e sentia a carne inerte, os sentidos adormecidos, pouco mais que um objeto, eu. O mesmo bar, a mesma lâmpada, a mesma carne, mas todos em vibração, os sentidos multiplicados, intensos, elétricos, o coração quase parando de espanto, o espanto de ter encontrado no meio do deserto uma palmeira, uma palmeira de olhos claros, camisa verde, mãos brancas. Ter encontrado um cravo branco entre os caixotes de lixo atapetando a rua. Ter encontrado o espaço de silêncio dentro de um grito. Ter encontrado um ponto de apoio para o cansaço. Você não me vê, eu não te vejo, mas tenho o coração pálido, as mãos suspensas no meio de um gesto, a voz contida no meio de uma palavra, e você não vê o meu silêncio nem meu movimento dentro dele. A primavera se quebrava brusca em espinho, ferro. Já não sei desde quando estamos aqui, desde quando falamos de caracóis, desde quando invento teu silêncio igual ao meu. Por que estranha alquimia passavam as palavras dele para vará-lo assim, nessa tão remota dimensão do ser? A visão tardia de encontrar a chave depois da porta ter-se tornado inexistente. A chave inútil pesando em fogo nas mãos e o gesto há muito tempo preparado transformado subitamente em cansaço e desencanto de não ter visto antes. Os dois sentados um frente ao outro, pela tarde a transformar-se lenta em noite, em madrugada, em cinza. Não virá nunca.
Véspera de sábado, na sala ao lado o telefone grita para ouvidos distraídos. Sua mão esfaqueia a parede, as palavras caem como frutos podres, como flores colhidas, como crianças mortas. Nas mãos, a chave achada muito tarde, muito tarde. Tarde demais.
METAIS ALCALINOS
Não sabia dominar um privilégio. E metais alcalinos eram os metais do subgrupo I e subgrupo IA da classificação periódica dos elementos: lítio, sódio potássio, rubídio e césio. Era isso, permitiu-se enquanto os alunos copiavam rápidos. Observou os três rostos confiantes enquanto ditava, e uma liberdade até então ignorada, a consciência dessa liberdade aflorou, pois que podia pensar e falar ao mesmo tempo, independente do pensamento ser a palavra ou da palavra ser o pensamento. Os olhos azuis pintados da menina de quatorze anos desfilavam pela tampa escura da mesa, mas isso tornava a sua liberdade quase grosseira. Não, grosseira não. Desonesta, isso. Apalpou de leve a palavra e acumulou contradições que, por assim dizer, cerceavam a sua capacidade de pensar e não-dizer, ou vice-versa. Mas mal suportando a alegria da descoberta, imediatamente pensou em dispensar os alunos e entregar-se. Entregar-se a que, homem de deus? agrediu-se quase ríspida, pois. Era preciso adequar -adequar uma necessidade íntima a uma necessidade externa? Então estendeu a tabela para que copiassem. E uniu braços e pernas num movimento de quem se levanta. Cortado em meio, o gesto prendeu-o ao lugar que ocupava. Do lugar que ocupava, o campo de visão era restrito: as cabeças baixas dos três alunos, lado alado, a parede por trás. A parede branca, as cabeças escuras, concentradas. A janela, à esquerda. E o gato. Sempre aquele enorme gato branco sobre o muro do vizinho.
Seguiu atrás do primeiro pensamento, mas não conseguiu recordar. A lucidez vinha sempre assim tão rápida e ofuscante que vivia toda uma vida naquela brevidade, sem deixar marcas, era isso? Era. A existência da lucidez era talvez longa para a lucidez, compreende? aquele menos que um segundo, menos que um grito ou uma iluminação, menos que qualquer coisa que atinja os sentidos -aquilo, pois não havia uma palavra exata para defini-lo, aquilo cumpria a necessidade da coisa. Mas a sua necessidade era mais ampla, reconheceu, por isso não se encontravam, em termos de tempo, a sua necessidade era mais ampla, não que tivesse um raciocínio difícil, mas porque havia todo um processo de despir-se de conceitos anteriores, de barreiras e resistências, para poder compreender. Isso levava horas. Levava horas o despir-se.
Que mais, professor. Os olhos pintados e a exigência da menina de quatorze anos. Estamos no começo, estamos no começo, repetiu várias vezes até reassumir-se. Em tudo precisava de tempo, muito tempo para que as coisas fossem bem-feitas, e não houvesse, não houvesse... Ditou pausado um exercício, não, não havia perigo de ser surpreendido. Os três alunos eram informes em seus invólucros de adolescente. Toda uma estrutura ainda não solidificada, imprecisa, hesitante. Uma natureza que, por incompreensão ou falta de meios para atingir a compreensão, recusava medrosa qualquer aproximação: não lucrariam nada em surpreendê-lo. E mesmo que, independentemente de suas três vontades, o conseguissem, seria só uma coisa brusca e meio espástica como eles próprios -não saberiam o que fazer daquilo e iriam embora sem formular. Era essa a raiz aos poucos ele se sorria, entendendo os próprios processos. Não saberiam formular. E não saber formular uma coisa compreendida é o mesmo que não compreender. Pelo menos para aqueles três, limitou rápido, pois tinha medo de qualquer afirmação. Como explicar a eles que uma coisa pode trazer no seu ser o seu próprio não-ser, ao mesmo tempo e, desculpem, con-co-mi-tan-te-men-te, eles não compreenderiam, e não havia interesse em explicar-lhes, não havia nem mesmo interesse em observá-los: nenhum deles continuaria sendo o que agora era. Aqueles três corpos descobririam de repente a sua força oculta, e apoiados nessa força é que se construiriam em massas sólidas, bem delineadas. Por enquanto, os contornos apenas ameaçavam. Ninguém poderia impor uma definição antes dessa definição impor-se por si mesma: seria como tentar forçar uma natureza a ser aquilo que ela só seria se quisesse.
Era verdade, não sabia dominar um privilégio. Mais além, não sabia dominar. Imediatamente após uma descoberta, um reconhecimento de força, impunha-se uma alegria tão descontrolada que o próximo passo seria um rompimento do processo. Não um concretizar, mas uma destruição. Curvou o corpo, tentando segurar, segurar, segurar. Conseguia. Mas precisava voltar atrás para sintetizar tudo. O processo natural: um reconhecimento de força sobre alguma coisa, o emprego da força sobre essa coisa e as conseqüentes vantagens -era isso? O processo interrompido: um reconhecimento de força sobre alguma coisa, a alegria frenética que isso lhe dava e a destruição não só da força em relação à coisa, mas da força em relação a si mesma, isto é, da própria força. Entendo, suspirou exausto. E olhou o gato lá fora. Mas olhar o gato cansava. Não tinha nada a ver com aquela existência, a menos que começasse a elaborar uma aproximação através de gestos e palavras cotidianos. Havia ainda outro ponto: era preciso descobrir se a força agindo sobre a coisa lhe daria alguma vantagem. Ou desvantagem. Ou nem mesmo vantagem nem desvantagem: nada. Se agisse sobre o gato, o gato lhe daria algo? Algo além do calor de seus pêlos, da dissimulação implícita em seus olhos verdes, do roçar em suas pernas, talvez uma unhada ocasional? O gato não lhe daria nem isso, daria apenas isso ou mais que isso? Mas a menos que tornasse o gato numa coisa que o gato não era, não teria nada.
Os olhos azuis pintados da menina de quatorze anos. Estava certa, sim. Quase mulher, a menina olhou vitoriosa sobre os dois rapazes, ainda curvados sobre a mesa, em cálculos e testas franzidas. Nesse silêncio criado pelo que a menina chamaria, secreta e despudorada, de: uma superioridade -nesse silêncio, era preciso dizer alguma coisa. Então disse estou com um pouco de dor de cabeça. Ah, sim, tenho um comprimido na minha bolsa. Aceitou o comprimido, colocou-o na boca. Sem água? , perguntou a menina. É, sem água. Engoliu. Com isso permitia-se uma extravagância, e a menina provavelmente diria a seus pais na hora do jantar: imaginem, o professor toma comprimidos sem água. E além de ser um professor, passaria a ser também um professor que tomava comprimidos sem água. O que não deixava de ser uma intromissão na sua intimidade. Tentou reassumir a postura omissa, mas os olhos azuis pintados da menina olharam-no dum jeito que seria o mesmo se ela não tivesse olhos azuis pintados. E sorriram, os olhos sorriram, por sobre a boca imóvel. Eu não permito, pensou ele, e deu as costas à menina. Anoitecia, a necessidade de acender a luz concedia um gesto no momento exato.
Acendeu a luz. As coisas tornadas mais claras feriram por um momento. Pareciam os três mais firmes, mais precisos e o sorriso, o sorriso era perigoso. No entanto, as coisas se acumulavam para salvá-lo: os dois rapazes estenderam os cadernos ao mesmo tempo e, ainda bem, um dos exercícios estava errado. O lítio, o sódio e o potássio são os únicos metais menos densos que a água, esclareceu, e o rapaz fez ah! a voz tremida como numa emoção. Olhou-o com curiosidade. O rapaz tremeu mais ainda. Era o mais vago dos três. E por ser o mais vago, justamente o mais perigoso, pois a sua precisão poderia explodir súbita, não anunciada por sinais externos: a sua neblina não permitia uma exploração cuidadosa, e ele podia vir a ser finalmente o que todos temiam. Mas o outro, o outro, procurou amedrontado com os olhos. Ah, o outro tinha pômulos salientes que esticavam a pele dominando todos os movimentos, o outro tinha uma cara lisa, limpa, de pômulos salientes, e o professor não conseguia ir além do rosto sem espinhas, arado. Inesperado olhou os três e não conteve um desespero varrendo pensamento. Disse assim bruto por hoje estamos prontos e, de repente, o professor chorou.
VERBO TRANSITIVO DIRETO
Que era uma mulher e amava essas as considerações de nível geral repetidas todas as manhãs, antes de descer às minúcias cotidianas. Depois vinham os problemas. As perguntas. Que era uma mulher não havia dúvida, embora o ser despenteado e vagamente sujo recém-desperto a olhasse um tanto assexuado do fundo do espelho. Concretizada a primeira afirmação (ou fato, como diria mais tarde aos alunos do segundo ano primário) -concretizada a primeira afirmação, como ia dizendo, ela afirmava-se e cumpria-se em mulher, passando em seguida à segunda. Que amava. Liberta do entorpecimento do sono que a perseguia até então, encarava-se antipatizada consigo mesma. Que amava? Pedra no caminho, a interrogação afazia tropeçar um pouco despeitada. Não com a pedra nem com o tropeção, que pedras sempre havia e tropeções eram fatais, mas com não poder passar adiante, sacudindo a poeira do vestido e acariciando prováveis arranhões. Lavava o rosto, fazendo-se mais e mais inteligente à medida que se despia dos acessórios do sono. Resíduos nos olhos, fios de cabelo fora do lugar, gosto ruim na boca – com sabonete, água, pasta e escova de dentes ela os eliminava um a um. E em sagacidade, crescia. Cabelos erguidos num coque, quase gênio, voltava à afirmação. Que amava. Pois afirmara e não apenas, modesta, indagara. Passava a outras operações. Matinais, femininas. No corpo, aquela quase idiota sensação de sujeira que o sono deixava. Sentia-se imoral ao acordar. Incestuosa. Principalmente quando sonhava consigo mesma. Ah houvesse um jeito de dormir completamente só, sem a companhia sequer de si mesma. Não havia. Incestuosamente, então, deitava-se às dez da noite para acordar às seis da manhã. Oito horas exatinhas. Às vezes detinha-se e pensava: antilunar o meu sistema. Quando deitava, a lua ainda não tinha vindo; quando acordava, já fora embora. Carregava pesada e magoada uma lua vista apenas por dentro. Que amava a lua? Obsessiva, voltava à pedra. Talvez descobrindo que lhe entrara no sapato. Por que não jogá-la longe de vez? Que amava? Em resposta, mirava-se triunfante no espelho, boca pintada, cabelo penteado, seios empinados, e totalmente assumida em mulher. Vagamente desgostosa triunfo murchando na vistoria do corpo -aqui entre nós, dizia-se, quase indecente na intimidade consigo mesma -aqui entre nós, um tanto passado. Franzia as sobrancelhas, disfarçava a raiva espiando pela janela.
O sol ainda não viera. E sem lua nem sol ela estava sozinha no banheiro. Esta revelação a fez baquear um pouco. Meio tonta com a solidão e a brancura do momento. Trôpega, buscou apoio na extremidade da pia, que respondeu fria e asséptica ao pedido de ajuda. Olhou para a porta, e se então tivesse saído teria escapado. Mas ficou. Ferindo a si mesma e por si mesma sendo ferida. Com o pretexto de lavar as mãos, molhou os pulsos, sem admitir a tontura – que às vezes tinha esses pudores íntimos.
Recuperada, voltou à pergunta. Que amava? Com fricotes de namorada, fingia não querer responder, não querer saber -que amava? Didática, explicou-se: amar, verbo transitivo direto: quem ama, ama alguma coisa. Ou alguém, completou. Analisou-se, voltando à afirmação do início -que era uma mulher e amava: 1) Que era uma mulher; 2) Que amava: a) alguma coisa ou b) alguém. O pronome indefinido colocou-lhe um arrepio definido e melancólico na espinha. Teve que substitui-lo por outro: ninguém. Havia, certo, vagos e avermelhados professores do colégio onde lecionava. Havia vizinhos? e homens? E vizinhos e homens, havia. E principalmente um namorado de adolescência a quem, preguiçosa, esquecera de amar -possibilidade de algum sofrimento relegada em fotografia à última gaveta da escrivaninha. E contudo, amava. Leviana, objetiva, espalhava seu amor sobre os móveis polidos com cuidado, o assoa lho encerado, as cortinas lavadas, que sua casa era um brinco. A imagem lembrou-lhe as argolas de ouro há tempos esquecidas. Vou botar hoje, decidiu.
E encarou-se. Implícito no olhar, o pedido de desculpas por permitir-se àquela extravagância. Pedido de desculpas logo transformado em olhar de revolta. Afinal, não tenho o direito de usar o que é meu? Teatral: e por que raios não saio logo deste maldito banheiro? Acrescentou o adjetivo para ver se sentia um pouco de raiva. Mas o banheiro, branco, limpo, com azulejos, sais e sabonetes enfileirados nas prateleiras -o banheiro não era nada odiável. Com seu ódio recusado pesando por dentro, interrogou-se: que-que eu tenho hoje. A pergunta soou sem ponto de interrogação. Respirou fundo e repetiu em voz alta: que-que eu tenho hoje?
Então viu. Antes que tivesse tempo de terminar a pergunta, ela viu. Tentou disfarçar lembrando que seu nome -Irene -era de origem grega e significava "Mensageira da Paz", vira no Almanaque Mundial de Seleções na noite anterior, antes de dormir. Lindo lindo lindo -adjetivou três vezes em lento pânico. Tão lento que não atinou com despir-se inteira do que até então vira para sair nua e cega do banheiro. O pensamento dava voltas devagar, ela julgou ouvir um canto de criança longe. Tão longe que poderia ser também uma canção de ninar. Boba, sorriu. Toda enleada na viscosidade dos pensamentos, exatamente como uma mosca se debatendo bêbada, deliciada e aflita, numa armadilha de mel. Mas os minutos passavam enquanto sua possibilidade de libertação diminuía cada vez mais. Alheia à própria perdição ela afundava, Irene, embevecida. E se não saísse agora, já, exatamente nesta nota deste canto naquele passarinho daquela árvore ali de fora, se não saísse agora estaria perdida. Imóvel, Irene não ouviu o apelo do pássaro. E sem ter outro remédio, relegada a si própria, Irene viu.
Redonda, amarela, tentadora - a espinha brilhava na ponta do nariz. Passado o primeiro espanto, o gesto foi de pudor. Como se sua face exibisse uma obscenidade, um outro órgão sexual ainda mais cabeludo e mais oculto. Como se a quieta presença da espinha violentasse alguma coisa no dia. Mas corrigiu esse primeiro gesto, e contemplou-a novamente. O segundo movimento foi de orgulho. Como nascera de si espinha tão perfeita? Examinou-se conscienciosa da cabeça aos pés, e quando tornou a erguer os olhos o maravilhamento foi ainda maior. Era realmente uma bela espinha. De uma beleza geométrica: exata na circunferência, discreta na cor, formando dois ângulos de quarenta e cinco graus com as aberturas do nariz. Irene lembrou-se de compará-las às outras espinhas de sua vida. Mas aquelas, além de poucas, tinham seu habitat natural em suas costas, lugar inacessível aos olhos. Logo também o deslumbramento desestruturou-se, rolando em indagações pelo rosto abaixo. Como? Quando? Por quê? Na noite anterior, ao lavar o rosto, não vira sequer anúncio da espinha. E hoje, minutos afio recompondo-se, ainda não percebera nada. E seu rosto sempre limpo, prevenindo acontecimentos dessa espécie. E sua idade madura, superando esses problemas adolescentes. Todas as perguntas tinham resposta. Mas a espinha continuava. Alheia às investigações, atenta apenas a seu próprio amadurecer. Teria crescido durante a noite? Seria apenas uma espinha? Seria um ferimento inflamado? Seria? Novamente Irene amaldiçoou as espinhas de outrora, nascidas sempre nas costas, e, portanto negando-lhe um eventual preparo para enfrentá-las.
Então, esgotadas as dúvidas, as hipóteses, as perguntas; esgotada sua própria resistência, ela caiu no círculo profundo que desde o início evitara. Dentro de si, olhou para trás e viu às suas costas os dias anteriores acumulados. Uma pilha inútil, discos fora de moda, revistas velhas, badulaques. E viu dias agrupando-se em semanas, em meses, em semestres, em anos, em décadas de cima daquela pirâmide quarenta anos a contemplavam. Tentou ver-lhes as faces, curvou-se um pouco, e mais, e mais ainda. Desnecessário esforço. As massas informes não possuíam feições. Não haviam passado por elas as coisas que geram rugas, vincos, sorrisos, expressões. Cheiros não haviam feito vibrar aquelas narinas. Sabores nos atingiam aqueles paladares, imagens passavam incógnitas pelos olhares fixos, sons desfaziam-se em choque e poeira contra ouvidos pétreos, contatos perdiam o sentido àqueles dedos frios. Quarenta monstrengos formados cada um de infinidades de outros a observavam, inertes. Tentou descobrir um vislumbre de ódio nas expressões. Nem isso. Sem solicitações ou expectativas, eles aguardavam. O que, deus, o quê? Pois se amava. Pois se distribuía seu amor por todas as coisas com que convivia. Pois se sofria. Pois se vezenquando chorava sem saber por quê.
Pois se não via a lua. Pois se tinha pena das crianças pobres na escola. Pois se encarara a espinha. Intensa na própria defesa acumulava atenuantes, justificando-se aflita. Contou desculpas nos dez dedos das mãos abertas em frente ao espelho. Não satisfeita, recorreu aos dos pés. Recorreria a outros, se mais tivesse. As desculpas se acumulavam me entende, eu não quis, eu não quero, eu sofro, eu tenho medo, me dá a tua mão, entende, por favor. Eu tenho medo, merda!
Devagarinho, deixou os ombros caírem. Com a mão, afastou da testa os cabelos molhados. O grito ressoara forte no banheiro, ecoando pelos azulejos para calar o pássaro lá fora. O pássaro que havia pouco fora sua possibilidade de salvação. Recusada. Sacudiu a cabeça, furiosamente afastando pensamentos. Que era uma mulher e amava, que era uma mulher e amava, queeraumamulhereamavaqueeraumamulhereamavaqueeraumamulhereamava foi repetindo e repetindo até libertar-se de tudo. Abriu os olhos, encarou-se. Feminina, amorosa, delicada, levou os dois indicadores até o nariz e suavemente espremeu a intrusa. Depois caminhou até a cozinha e servindo-se de chá na xícara rosada olhou com espanto o relógio. -Como é tarde, meu deus! Preciso me apressar! Apressou-se então, a boca cheia de pão com manteiga, ao mesmo tempo em que se imaginava na roda do cafezinho contando: -Imagina, Clotilde, hoje me aconteceu uma coisa tão engraçada!
Mas tão engraçada, repetiu em voz alta no meio da neblina, argolas douradas nas orelhas, a rua vazia. Saiu correndo para pegar o bonde. Sentada, acariciou medrosa a ponta do nariz.
Não ficara nenhum sinal.
FUGA
Eles tinham seis anos de idade e iam fugir juntos. Lento, o menino enfiou o pião no bolso, sua única posse, e encaminhou-se para a porta. De dentro chegou a voz da mãe num prenúncio de reclamação está quase na hora do jantar, onde é que você vai? Não respondeu. Em silêncio, começou a concretizar o que há dois dias se desenrolava dentro dele. A segurança da coisa construída em imaginação durante horas de quietude emprestava a seus passos um precisão até então inédita, permitindo-lhe a audácia de não responder, ignorando eventuais palmadas. O trinco quase machucou a mão no ato de fechar a porta, mas ele já começava a criar das coisas que formavam "o que ficava". E o que ficava era tanto que praticamente não tinha nada além de: um pião no bolso e uma idéia na cabeça.
O morrer do sol colocava uma cor também de fuga nas casas, nas coisas, nas pessoas que cruzavam numa melancolia de anoitecer. Em breve as sombras se afirmariam em escuro e ele não estaria mais ali. A idéia poderia quebrá-lo por dentro, porque era duro de repente não estar mais num lugar. Mas ele nem se machucava, há tanto já adivinhara os movimentos interiores prevenindo os receios, precavendo-se contra a série de sentimentaloidices que se amontoariam bruscas sobre seu coração de seis anos de vida. Por tanto, estava preparado. Dentro do tempo que vivera, dois dias era uma longa preparação de esquecimento que se impusera com método, recusando ternuras, comida na boca, cafuné antes de dormir. Estava todo delineado. E fugia.
Caminhava devagar, a coisa remexendo-se com gosto dentro dele. Num esquecimento de que era insípida, quase estalava a língua de puro prazer. Mãos nos bolsos, cabeça baixa, ah nunca se sentira tão definitivo. Era seu primeiro crime, e tão longamente premeditado que não havia espanto nem temor. Como um profissional da fuga, ia indo pela calçada comprida, rente ao muro. O sol espichava sua sombra para trás, vezenquando ele se voltava para ver se ela ainda o acompanhava. Ainda. Expressava seu alívio em forma de suspiro, e prosseguia. Permitia-se apenas esse medo, o de estar sozinho. Mas aquela sombra imensa e achatada contra o cimento não deixava de ser uma segurança, embora disforme.
Pegou uma pedrinha branca e começou a riscar o calçamento. Depois enfiou-a no bolso, numa sabedoria de coisa decidida: poderiam segui-lo através do risco fino, irregular. Ainda mais seguro, olhou quase vesgo de satisfação para uma senhora com a bolsa grávida de compras. A mulher encarou-o com desconfiança. Ele parou, o medo se transformando em desafio nos olhos que meio furavam a natureza da mulher. Suspensos no meio da tarde, mediam-se expectantes. Pensou em correr, depois riu um risinho cínico que aprendera na televisão -ela não sabia de seu crime. Então esperou. Até que a mulher abriu a bolsa e estendeu-lhe dois biscoitos. Balbuciou um agradecimento de espanto com tanta inocência humana e enfiou-os no bolso, junto com a pedrinha branca. A silhueta da mulher morria na esquina quando ele se interrogou, numa primeira incompreensão. Saíra de casa apenas com o pião, agora já tinha dois biscoitos, uma sombra, uma pedrinha branca e um acontecimento. Fugir não era então ir se despojando de coisas? Não entendeu, mas o poste que marcava longe o lugar do encontro suspendeu a dúvida. Preocupado, encaminhou-se para lá.
Não via a menina. Correu para o poste, investigou as pessoas que passavam mas nenhuma tinha jeito-de-menina-que-ia-fugir. Coçou a cabeça. Num desânimo, esperar. Acomodou a irritação no meio-fio, tirou as posses do bolso. Começava por um biscoito, depois brincava com o pião, depois o outro biscoito, depois desenhava no chão com a pedrinha branca, depois pensava na coisa acontecida. Detestava a improvisação, por isso ficou um pouco abalado com a ausência da menina e teve que planejar ações em que não havia pensado. Começava a desconfiar seriamente da honestidade do sexo oposto. Acumulou um série de queixas que abalaram o prestígio da menina, e preparava-se para pensá-las quando o biscoito sobre a calça fez um jeito fascinante, assim meio pedindo para ser comido. Havia-se recusado tantas coisas nos últimos dois dias que guardava mesmo um pouco de fome formando um espaço branco no estômago. Rompendo com o planejamento, devorou voraz os dois biscoitos, depois misturou pedaços de unhas aos farelos restantes. Quase saciado, girou o pião de leve no cimento. Um menino que passava olhou fixo, invejando. Lembrou da impontualidade da menina e perguntou objetivo:
- Quer fugir comigo?
Inexperiente dessas coisas, o outro arregalou os olhos:
- Quê?
- Quer fugir comigo?
- Pra onde?
- Não sei ainda. Qualquer lugar.
- Pode ser Vênus?
- Pode.
- E Gotham City?
- Pode.
- E. ..e. ..(a geografia falhava).
- Quer ou não quer?
- Não sei, o que é que você me dá se eu fugir com você? .
O menino investigou as posses desfalcadas. Percebeu o brilho de cobiça nos olhos do outro:
- O pião. Quer?
O outro fez cara de dúvida:
- Sei não. Isso presta?
- Quer ou não quer? ("É pegar ou largar", dizia o gangster na televisão).
- Quero.
Estendeu a mão. O menino fez um movimento esquivo de dissimulação.
- Agora não. Só depois que a gente chegar lá.
- Lá onde?
- No lugar, ora.
- Que lugar?
- O lugar para onde agente vai fugir .
- Mas você não disse que não sabe onde é?
- Disse.
- Então pode levar anos.
- E daí?
- Dai que eu quero o pião agora.
Desacostumado a argumentar, estendeu o pião. Antes que pudesse fazer qualquer gesto, o outro já ai longe, risada dobrando a esquina, o pião roubado, a promessa não cumprida. Todo magoado com a desonestidade alheia voltou a pensar na menina. Encaminhou-se para a casa dela. Bateu devagar na porta. A mãe da menina espiou pela janela.
- A Lucinha está?
- Não. Foi no aniversário da menina aqui ao lado.
Meio que tropeçou no inesperado da coisa. Devia ter ficado pálido, porque a mãe-da-menina-que-ia-fugir dobrou-se para ele, perguntando se estava sentindo alguma coisa. Estava. Mas como desconhecia aquela onda verde bem claro que se quebrava incompleta dentro dele, não teve palavras para explicar.
Disse não, não tenho nada, e foi saindo de cabeça baixa. Já não só duvidava da menina, mas principalmente de si próprio. Parecia-lhe um pouco culpa sua aquele amontoado de desencontros. De dez minutos para cá aconteciam coisas tão incompreensíveis que estava quase desistindo. Por uma questão de dignidade, bateu na porta da casa de menina-que-estava-de-aniversário, que apareceu de vestido cor-de-rosa perguntando se ele tinha trazido presente. Ele desentendeu um pouco mais, ainda assim fez voz firme e pediu para falar com a menina-que-ia-fugir. Com o maior cinismo do mundo, ela brotou de repente duma nuvem de babadinhos, a cara limpa, o cabelo penteado com uma fita -ela, a falsa, que vivia com os fios na boca. Mais grave: um copo de guaraná e uma cocada nas mãos. Nunca a vira tão Lucinha em toda a sua vida.
Teve vontade de dar um tiro nela. Mas estava tão desarmado que só conseguiu perguntar com voz meio irregular:
- Você não ia fugir comigo?
- Ia -disse a menina mordendo a cocada. E ai! O espaço branco da fome cintilou dentro dele.
- Esperei você até agora. Por que que você não foi?
- Por causa do aniversário, ué.
- E o que que tem isso?
- Tem que fugir a gente pode todos os dias, mas aniversário é só de vezenquando.
Tinha selecionado uma porção de adjetivo pejorativos para jogar em cima dela, mas o pretexto era de uma lógica tão irrecusável que ele ficou parado uma porção de tempo, sentindo o tudo que preparara lento em dois longos dias de meditação ir-se desfazendo como a cocada na boca da menina.
Ela olhava para ele, ele pensava na frase, pensava, pensava, ai, o espaço branco aumentando por dentro, uma baita raiva da menina, da mulher que dera os biscoitos, do moleque que fugira com o pião, vontade de bater neles todos ou, na impossibilidade, sapatear até ficar roxo e a mãe chamar o médico num susto. Mas os barulhos da festa cresciam lá dentro, o sol morrendo dourava ainda mais o guaraná, o espaço em branco aumentava até o não-suportar-mais. Indeciso ainda, virou o pé leve no chão. Até que deixou de lado o pudor e perguntou:
- Será que ela deixa eu entrar sem presente?
INVENTÁRIO DO IR-REMEDIÁVEL
Foi de repente que o cigarro queimou os cabelos dele. Levantamos os olhos, nos encaramos tensos, quase em ódio, quase em amor, naquela repressão à beira de alguma coisa que poderia conduzir a qualquer gesto, mesmo ao homicídio. Mas sorrimos, e foi depois que tudo quebrou. Jamais voltamos à entrega mesma de antes e à ausência de solicitações e à aceitação sem barreiras. Foi de um de nós que partiu a morte, ou ela já nascia involuntária como a madrugada por trás dos vidros?
Olha em torno, o vazio do olhar fundindo-se com o vazio da sala. As pessoas, máscaras penduradas em corpos, o colorido das roupas gritando alto como se pudesse emprestar alguma individualidade ao que não era sequer sombra. O ar pesado de fumaça dos cigarros. Aperta nas mãos a caixa de fósforos vazia. Deixara o telefone do bar, o endereço, a hora que estaria ali. Um detalhado roteiro, feito dissesse dissimulado estou esperando, você pode me encontrar. Ah como doía manter-se assim disponível, completamente em branco para a procura. Não consegue fixar-se em nada. As faces inexpressivas, as paredes brancas onde não há sequer quadros, a toalha vermelha da mesa -tudo em ordem atrás da aparente desordem. Uma ordem interna, imutável, solidificada. Quase odeia os risos que brotam súbitos dos cantos. Por que lhe é negada essa possibilidade de entrega ao que está sendo? Por que a espera, se a espera não o cabe mais? Só o ar denso, azulado de cigarros fumados. E o vazio da caixa de fósforos. Examina o relógio, mas não vê as horas, não vê nada. Seu pensamento lateja preso numa imagem determinada. Quase não pode projetá-la para fora de si, concretizá-la em visão. E o vê abrindo lento a porta,investigando em tomo, de repente erguendo as sobrancelhas num gesto de quem reconhece. Então se encaminharia devagarinho até a mesa, vestido de azul -não sabe por que, nunca o viu de azul, não sabe mesmo se existe aquele casaco jogado sobre os ombros. Só vê uma mancha azul e o rosto destacado em indagação. Os olhos. Como se dissessem: fala. Falaria? O quê? A porta se abre, cortando o pensamento. Dobra-se em ânsia, quase vira os copos: uma mulher de verde, nariz grande, ar de psicóloga em busca de material. Vira para a outra mesa, pede um fósforo.
Eu não procurei, não insisti. Contive tudo dentro de mim até que houvesse um movimento qualquer de aceitação. Quando houve, cedi. A sua cabeça pesava no meu braço. Ele estava bêbado? Estava cansado? Eu era apenas um braço onde ele debruçava a sua exaustão? Ele se indagava se eu o recebia como receberia qualquer cansaço humano ou sabia que eu estava tenso, na espreita, dilacerado? Os outros dois dançavam no meio da sala. Não viam ou não queria, ver ou não havia nada para ver? O corpo de Lídia era agudo como uma flecha. Aquele contato era premeditado ou ocasional?
As indagações pesavam sem resposta, e numa lucidez desesperada eu num repente assimilava todos os detalhes, dissecava o que acontecia em torno como se tivesse mil olhos, envelhecia como a noite lá fora, virando madrugada, a luz fraca -eu tudo compreendia, tudo sabia. Menos aquela cabeça pesando no meu braço. Que espécie de busca o levara àquele gesto? Me quebrava por dentro, a cabeça afundando cada vez mais no meu corpo, eu negava, fugia, tenso, o cigarro morto nas mãos, a cinza caindo sobre o tapete.
Eles dançavam há muito tempo, muito tempo. E eu morria. A cabeça dele se movimentava, sua boca esmagava meu braço. Fechei os olhos e afundei os dedos nos seus cabelos.
Ergue-se de um salto ouvindo o toque do telefone. Espreita a secretária levando o fone ao ouvido. Lentamente, acompanha os olhos da secretária vagando em torno, inexpressivos. Depois ela chama por outro nome. Não o seu. O tampo verde da mesa recebe os seus braços e o peso da cabeça. Abre uma gaveta à toa, papéis misturados, envelopes, cartas que não dizem nada, não trazem nada.
Espalma as mãos sobre o teclado da máquina. Bate, leve. Podia escrever um poema. Não. Recusa mesmo essa espécie de alívio. Não quer a cor. Prefere o dilaceramento cada vez mais intenso, mais insolucionado. Precisa sofrer e morrer muitas vezes por dia para sentir-se vivo. Chegara à constatação de que era só, Único, e que devia bastar-se a si mesmo, e justamente por isso precisava de uma outra pessoa. Os grãos de areia nunca se tocam. Mesmo quando juntos há entre eles uma espécie de carapaça que não os deixa tocarem se. Jamais um núcleo toca outro núcleo. A terra é azul, os olhos eram azuis, ele vestiria azul -dentro de muitos azuis concêntricos, ele voltaria a se perder. Um certo prazer em saber-se assim solto, assim perdido entre as coisas, assim contendo um mal-estar que ninguém saberia de quê. O tic-tac das máquinas de escrever. O sol coado pelas persianas. Uma brecha de luz em cima da mesa. A sombra de seu perfil na parede. Amassa várias folhas de papel, joga-as no chão, gesto brusco. Você sabe que vai ser sempre assim. Que essa queda não é a última. Que muitas vezes você vai cair e hesitar no levantar-se, até uma próxima queda. Prefere jogar-se numa atitude que seria teatral, não fosse verdadeira, sentir os espinhos rasgando carne, as pedras entrando no corpo, o rosto espatifado contra o fim desconhecido. Precisa ir até o fundo.
Guardou vários dias o perfume dos cabelos dele nos pêlos do próprio braço. Como um adolescente. Agora só vê um braço deserto, a pulseira preta do relógio sublinhando a zona do pulso. A parede em frente cheia de fotografias. Arranca todas, vai picando em pedaços cada vez e cada vez menores. Solta devagar no cesto de lixo. Guarda um entre os dedos. Espia. Num fundo indeciso, resta um olho a observá-lo. Azul.
Foi na segunda vez que sentei no chão. Carlos dormia. Lídia desenhava. O copo estava quase vazio. Foi então que ele sentou perto de mim. As mãos sustentavam a cabeça. A posição devia ser incômoda -o corpo apoiado em meio sobre o assoalho, a cabeça no ar, os pés no ar. Eu tremia? Não. Sentia minhas próprias unhas furando as palmas das mãos, mas meu corpo estava seguro, em riste. O primeiro toque foi dele. As mãos comprimiram minhas pernas. Depois, uma das mãos libertou-se avançando em forma de ternura. Nos seus cabelos, as minhas mãos iam e vinham, adivinhando a tessitura. Era noite, ainda. O ritual já fora cumprido. Puxou-me para si, os nossos corpos opostos no assoalho, duas lanças apontando uma para a outra. E de repente nos ferimos. Com a boca. Senti seus lábios nos meus, os dentes se chocando, as mãos que seguravam meu rosto, investigavam meus traços, eu nascia por dentro, quase gritava, tentávamos desvendar um ao outro, mas não íamos além da tentativa, , que já se fazia angústia em suas mãos como espinhos, subindo por meu corpo inteiro, busca tensa. Não, não era amor, não foi amor. Tudo explodia num plano muito mais alto, muito mais intenso. Nos desvendávamos com a fúria dos que antecipadamente sabem que não vão conseguir jamais.
Alguma coisa morria em mim naquela procura de meta inatingível, desconhecida -e num tempo mesmo algo nascia de repente, puxado não sei de que desvão, de que sombra oculta, de que arca fechada, coberta de poeira, abriam-se portas em mim, janelas quebravam, estilhaços saltavam, pedaços de vidro me cortavam sem piedade, já não via a noite, o dia, o tempo, o espaço onde estávamos, vagávamos no cosmos ou estávamos presos numa esfera conhecida? eu não sabia, eu morria, eu nascia sucessivamente, em desespero, eu compreendia súbito. Não, não era amor. Era terror.
Desce do ônibus, alcança a escada rolante. O dia morre no fim da avenida que se espalha nas nascentes da galeria. Os degraus subindo em lenta ascensão. Vai além deles, corre vencendo a máquina. A rua apinhada de gente e carros. As buzinas em loucura. Os anúncios luminosos começam a acender, indecisos. As luzes dos postes. Atravessa a rua correndo. O automóvel freia. Pessoas param, suspensas, atentas a um acontecimento que quebraria súbito o estático do momento. Junta os livros no chão, alcança a calçada, quase corre, esbarra, vira a esquina, ofega, a subida põe gotas de suor no seu rosto. Entra no edifício. O zelador lê uma fotonovela. Alguma coisa para mim? pergunta. Quê? Alguma coisa para mim. Não pergunta mais, afirma, sabe que tem. Ah sim, uma carta. Estende o envelope pesado de que angústia, de que explicação, de que riso talvez? Olha o remetente, amassa em desalento o apoio que não quer, que não busca, que não espera.
Ninguém me procurou? Não. Ninguém. Aperta o botão do elevador. Pelo corredor vai desabotoando a camisa, tira o paletó, a gravata, afrouxa o cinto. Abre a porta. Espia, os olhos meio estrábicos no medo de ver o bilhete que não existe sobre o assoalho vazio. Joga as roupas numa cadeira. Apóia o corpo na janela. Acende um cigarro. Espia a rua, as pessoas, a noite que se cumpre mais uma vez. Liga o rádio. Não ouve a música. Os olhos se turvam, por dentro uma coisa aperta num jeito de quem estrangula. Não pode gritar. As paredes se dobram, fremem, prenhes de ironia.
Suspira. Exausto.
Não queria, desde o começo eu não quis. Desde que senti que ia cair e me quebrar inteiro na queda para depois restar incompleto, destruído talvez, as mãos desertas, o corpo lasso. Fugi. Eu não buscaria porque conhecia a queda, porque já caíra muitas vezes, e em cada vez restara mais morto, mais indefinido -e seria preciso reestruturar verdades, seria preciso ir construindo tUdo aos poucos, eu temia que meus instrumentos se revelassem precários, e que nada eu pudesse fazer além de ceder. Mas no meio da fuga, você aconteceu. Foi você, não eu, quem buscou. Mas o dilaceramento foi só meu, como só meu foi o desespero. Que espécie de coisa o cigarro queimou, além dos cabelos? Sei que foi mais fundo, mais dentro, que nessa ignorada dimensão rompeu alguma coisa que estava em marcha. Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu. A noite ultrapassou a si mesma, encontrou a madrugada, se desfez em manhã, em dia claro, em tarde verde, em anoitecer e em noite outra vez. Fiquei. Você sabe que eu fiquei. E que ficaria até o fim, até o fundo. Que aceitei a queda, que aceitei a morte. Que nessa aceitação, caí. Que nessa queda, morri. Tenho me carregado tão perdido e pesado pelos dias afora. E ninguém vê que estou morto.
Abre devagar o armário do banheiro. O espelho reflete uma face de barba não feita, olheiras fundas, leve contração nas sobrancelhas. Abre o pacote de lâminas, retira uma, vai amassando aos poucos o papel. Senta na beira da cama, o aço nas mãos.
Examina a cicatriz já antiga, um simples fio no pulso. Aperta.
Sente as pulsações. O frio da lâmina entre os dedos. A cicatriz, lembrança de uma outra queda. Do apartamento ao lado chegam os sons desfeitos de algo que devia ser música. Um vento indeciso de madrugada entra pela janela. Está sentado na cama, corpo nu, pés descalços, costas curvas. A lâmina vibra entre os dedos. Nenhum pensamento. Só espera. Atenção fixa em si mesma. Dobra os ombros, como se chorasse. E não corta. Joga a lâmina pela janela, vai-se curvando para si mesmo. Os braços se cruzam, enlaçam os joelhos, a cabeça afunda entre as pernas. Não chora sequer. No cinzeiro, o cigarro esquecido queima. Um fino fio de fumaça sobe aos poucos indeciso, adensando o ar que se enche de olhos, de mãos, de gestos incompletos, vozes veladas, palavras não formuladas. Sem compreender, vaga entre a fumaça e tomba. Como um cego, vendo apenas para dentro.
Caio Fernando Abreu
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