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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


INVERNO DO MUNDO - P.3 / Ken Follett
INVERNO DO MUNDO - P.3 / Ken Follett

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

INVERNO DO MUNDO

Terceira Parte

 

            No primeiro dia de 1942, Daisy recebeu uma carta do ex-noivo, Charlie Farquharson.

           Quando a abriu, tomava o desjejum sentada à mesa na casa de Mayfair, sozinha a não ser pelo mordomo idoso que lhe servia o café e pela criada de 15 anos que lhe trazia torradas quentes da cozinha.

           Charlie não lhe escrevera de Buffalo, mas de Duxford, uma base aérea da RAF localizada no leste da Inglaterra. Ela já ouvira falar desse lugar: ficava perto de Cambridge, onde ela conhecera tanto o marido, Boy Fitzherbert, quanto o homem que amava, Lloyd Williams.

           Gostou de receber notícias de Charlie. É claro que sentira ódio dele quando foi rejeitada, mas tudo isso já fazia muito tempo. Daisy agora era outra pessoa. Em 1935, era uma rica herdeira americana chamada Srta. Peshkov. Agora era uma aristocrata inglesa, a viscondessa de Aberowen. Mesmo assim, agradou-lhe que Charlie ainda pensasse nela. Uma mulher prefere sempre ser lembrada a ser esquecida.

           Charlie escrevera a carta com uma caneta preta grossa. Tinha uma caligrafia ruim, de letras grandes e irregulares. Daisy leu:

            

           Antes de mais nada, preciso lhe pedir desculpas pela forma como a tratei lá em Buffalo. Sempre que penso nisso, chego a estremecer de vergonha.

            

           Meu Deus, pensou Daisy, ele parece ter amadurecido.

            

           Como éramos esnobes, todos nós, e como fui fraco por deixar minha falecida mãe me intimidar a ponto de fazer eu me comportar tão mal.

            

           Ah, pensou Daisy: falecida mãe. Quer dizer que a vaca velha morreu. Talvez isso explique a mudança em Charlie.

            

           Entrei para o Esquadrão Águia nº 133. Nós pilotamos Hurricanes, mas estamos esperando a chegada de Spitfires a qualquer momento.

            

           Os Esquadrões Águia eram três unidades da RAF formadas por voluntários americanos. Aquilo deixou Daisy espantada: não imaginava que Charlie fosse para a guerra de livre e espontânea vontade. Na época em que os dois conviviam, ele só se interessava por cães e cavalos. Tinha mesmo amadurecido.

            

           Se você for capaz, do fundo de seu coração, de me perdoar pelo que fiz, ou pelo menos de esquecer o passado, adoraria encontrá-la e conhecer seu marido.

            

           A referência ao marido era uma forma educada de ele dizer que não tinha intenções românticas, imaginou Daisy.

            

           Estarei de licença em Londres no próximo fim de semana. Posso convidar vocês dois para jantar? Por favor, diga sim.

           Com afeto,

           Charles B. Farquharson

            

           Boy não estaria em casa naquele fim de semana, mas Daisy aceitou o convite. Como muitas mulheres de Londres durante a guerra, ansiava por companhia masculina. Lloyd tinha ido para a Espanha e desaparecera. Dissera que seria adido militar na embaixada britânica em Madri. Daisy desejava que ele fosse mesmo ter uma função tão segura assim, mas não acreditava nisso. Quando lhe perguntara por que o governo mandaria um jovem oficial em condições de lutar para ocupar um cargo burocrático num país neutro, ele lhe explicara que era muito importante dissuadir a Espanha de entrar na guerra ao lado dos fascistas. No entanto, dissera isso com um sorriso triste que claramente avisava a Daisy que não se deixasse enganar. Ela temia que, na verdade, ele estivesse cruzando a fronteira para trabalhar com a Resistência francesa, e tinha pesadelos nos quais ele era preso e torturado.

           Fazia mais de um ano que não o via. Sua ausência era como uma amputação: algo que a acompanhava 24 horas por dia. No entanto, a oportunidade de sair à noite com um homem a deixou feliz, mesmo que esse homem fosse o desajeitado, sem graça e gordo Charlie Farquharson.

           Charlie reservou uma mesa no Grill Room do Hotel Savoy.

           No lobby, enquanto um garçom a ajudava a tirar o casaco de mink, ela foi abordada por um homem alto de smoking bem-cortado que lhe pareceu vagamente familiar. Estendendo-lhe a mão, ele falou, tímido:

           – Oi, Daisy. Que prazer rever você depois de tantos anos.

           Ao ouvir sua voz, Daisy percebeu que aquele era Charlie.

           – Meu Deus! – exclamou. – Como você está diferente!

           – Emagreci um pouco – reconheceu ele.

           – Com certeza. – Uns vinte quilos, calculou ela. Isso o deixara mais bonito. Seus traços agora pareciam marcados, e não feios.

           – Você está igualzinha – disse ele, olhando-a de cima a baixo.

           Daisy tinha feito um esforço para se vestir bem. Por causa das restrições da guerra, fazia muitos anos que não comprava uma roupa nova, mas, para esse jantar, tirara do armário um vestido de noite de seda azul-safira da Lanvin, que deixava seus ombros à mostra, adquirido em sua última viagem a Paris antes da guerra.

           – Vou fazer 26 anos daqui a alguns meses – falou. – Não posso acreditar que esteja igual a quando tinha 18.

           Ele baixou os olhos para o decote do seu vestido, corou e disse:

           – Mas está, acredite.

           Os dois entraram no restaurante e se sentaram.

           – Fiquei com medo de que você não viesse – confessou ele.

           – Meu relógio parou de funcionar. Desculpe o atraso.

           – Foram só vinte minutos. Eu teria esperado uma hora.

           Um garçom perguntou se eles gostariam de um drinque.

           – Este é um dos poucos lugares da Inglaterra onde se pode tomar um martíni decente – informou Daisy.

           – Dois, então, por favor – pediu Charlie.

           – O meu sem gelo, com azeitona.

           – O meu também.

           Ela o estudou, intrigada com quanto ele havia mudado. Sua antiga falta de jeito, agora mais suave, transformara-se numa encantadora timidez. Ainda era difícil imaginá-lo como piloto de caça, derrubando aviões alemães. De toda forma, a Blitz de Londres chegara ao fim seis meses antes, e não havia mais batalhas aéreas nos céus do sul da Inglaterra.

           – Que tipo de voo você faz? – perguntou ela.

           – Principalmente operações Circus no norte da França.

           – O que são operações Circus?

           – Ataques de bombardeiro com forte escolta de caças. O principal objetivo é atrair aviões inimigos para uma batalha aérea na qual eles estejam em desvantagem numérica.

           – Odeio bombardeiros – comentou ela. – Sobrevivi à Blitz.

           Ele ficou surpreso.

           – Eu imaginaria que você fosse querer dar aos alemães um gostinho de seu próprio veneno.

           – De jeito nenhum. – Daisy já havia pensado muito nesse assunto. – Chorei por todas as mulheres e crianças inocentes que foram queimadas e mutiladas em Londres... E não ajuda em nada saber que mulheres e crianças alemãs estão passando pela mesma coisa.

           – Nunca pensei dessa forma.

           Eles pediram o jantar. O regulamento de tempos de guerra os limitava a três pratos, e a refeição não podia custar mais de cinco xelins. O cardápio incluía receitas especiais para o período de austeridade, como Falso Pato – feito com linguiças de porco – e Torta Woolton, um empadão sem carne.

           – Você nem imagina como é bom ouvir uma garota falar inglês com sotaque americano de verdade – disse Charlie. – Gosto das inglesas, cheguei até a namorar uma delas, mas tenho saudades do jeito de falar das americanas.

           – Eu também – concordou Daisy. – Esta agora é a minha cidade e acho que nunca voltarei aos Estados Unidos, mas sei como você se sente.

           – Fiquei com pena de não conhecer o visconde de Aberowen.

           – Ele está na Força Aérea, como você. Treina pilotos. De vez em quando consegue vir para casa... Mas não neste fim de semana.

           Daisy voltara a dormir com Boy durante suas visitas ocasionais. Havia jurado nunca mais fazer isso depois de surpreendê-lo com aquelas mulheres horríveis em Aldgate, mas ele a pressionara. Dissera que os combatentes precisavam de consolo ao voltar para casa, e prometera nunca mais procurar prostitutas. Embora não acreditasse muito em suas promessas, ela cedeu, ainda que a contragosto. Afinal de contas, disse a si mesma, eu me casei com ele para a alegria e para a tristeza.

           Infelizmente, porém, não sentia mais prazer algum no sexo com o marido. Podia ir para a cama com Boy, mas não podia se apaixonar por ele de novo. Era obrigada a usar um creme para lubrificação. Tentara recuperar o afeto que um dia nutrira por ele, quando o julgava um jovem e empolgante aristocrata com o mundo inteiro a seus pés, muito divertido e que sabia gozar a vida plenamente. Mas agora percebia que Boy na verdade não era empolgante: era apenas um homem egoísta e um tanto limitado com um título de nobreza. Quando ele estava em cima dela, tudo em que conseguia pensar era que poderia estar sendo contaminada por alguma infecção nojenta.

           – Tenho certeza de que você não vai querer falar muito sobre a família Rouzrokh... – disse Charlie, cauteloso.

           – Não mesmo.

           – ... Mas soube que Joanne morreu?

           – Não! – Daisy ficou chocada. – Como?

           – Em Pearl Harbor. Ela estava noiva de Woody Dewar. Tinham ido visitar o irmão dele, Chuck, que está lotado lá. Eles estavam dentro de um carro que foi metralhado por um Zero, um caça japonês. Ela foi atingida.

           – Que coisa horrível. Pobre Joanne. Pobre Woody.

           O prato chegou, acompanhado de uma garrafa de vinho. Eles passaram algum tempo comendo sem dizer nada. Daisy descobriu que Falso Pato não tinha muito gosto de pato.

           – Joanne foi uma das 2.400 pessoas que morreram em Pearl Harbor – explicou Charlie. – Nós perdemos oito encouraçados e dez outras embarcações. Aqueles malditos japas sorrateiros.

           – As pessoas daqui ficaram contentes pelo fato de os Estados Unidos finalmente terem entrado na guerra. Só Deus sabe por que Hitler cometeu a burrice de declarar guerra aos Estados Unidos. Mas os britânicos acham que agora têm uma chance de ganhar, com a Rússia e o nosso país do seu lado.

           – O ataque a Pearl Harbor deixou os americanos muito zangados.

           – As pessoas aqui não entendem por quê.

           – Porque os japoneses seguiram com as negociações até o último minuto... Provavelmente muito depois de terem decidido nos atacar. Isso é má-fé.

           Daisy franziu o cenho.

           – Parece-me uma atitude sensata. Se algum acordo tivesse sido feito na última hora, poderiam ter cancelado o ataque.

           – Mas eles não declararam guerra!

           – E isso teria feito alguma diferença? Estávamos esperando que eles atacassem as Filipinas. Pearl Harbor teria nos pego de surpresa mesmo depois de uma declaração de guerra.

           Charlie abriu os braços num gesto de incompreensão.

           – Mas por que eles precisavam nos atacar, afinal de contas?

           – Porque roubamos o dinheiro deles.

           – Não, nós congelamos seus bens.

           – Para eles não há diferença. E também interrompemos o seu fornecimento de petróleo. Eles estavam contra a parede, à beira do colapso. O que poderiam ter feito?

           – Deveriam ter cedido e concordado em sair da China.

           – É, deveriam mesmo. Mas, se fossem os Estados Unidos que estivessem sendo intimidados, com algum outro país lhes dizendo o que fazer, você teria querido que cedêssemos?

           – Talvez não. – Ele sorriu. – Eu falei que você não tinha mudado. Tenho que retirar o que disse.

           – Por quê?

           – Você não falava desse jeito. Antigamente, jamais discutiria política.

           – Se você não se interessa, o que acontece é culpa sua.

           – Acho que todos nós aprendemos isso.

           Eles pediram a sobremesa.

           – Charlie, o que vai acontecer com o mundo? – perguntou Daisy. – A Europa inteira agora é fascista. Os alemães conquistaram a maior parte da Rússia. Os Estados Unidos são uma águia com a asa quebrada. Às vezes fico feliz por não ter filhos.

           – Não subestime nosso país. Estamos feridos, não derrotados. O Japão agora é quem dá as cartas, mas há de chegar o dia em que o povo japonês vai derramar lágrimas amargas de arrependimento por causa de Pearl Harbor.

           – Tomara que você esteja certo.

           – E os alemães não estão mais conseguindo tudo o que querem. Não conseguiram tomar Moscou e agora estão recuando. Você entende que a batalha de Moscou foi a primeira verdadeira derrota de Hitler?

           – Terá sido mesmo uma derrota ou apenas um contratempo?

           – Seja como for, é o pior resultado militar que ele já teve. Os bolcheviques deram uma surra nos nazistas.

           Charlie tinha tomado gosto pelo Porto de safra, um hábito tipicamente britânico. Em Londres, os homens só bebiam depois de as senhoras se levantarem da mesa, regra de etiqueta cansativa que Daisy tentara abolir na própria casa, sem sucesso. Eles beberam um copo cada um. Somado ao martíni e ao vinho, o Porto fez Daisy se sentir levemente embriagada e feliz.

           Os dois trocaram reminiscências sobre sua adolescência em Buffalo e riram das coisas bobas que eles e outros tinham feito.

           – Você disse a todos nós que iria para Londres dançar com o rei – lembrou Charlie. – E veio mesmo!

           – Espero que elas tenham ficado com inveja.

           – Se ficaram! Dot Renshaw quase teve um troço.

           Daisy riu, satisfeita.

           – Que bom que nós retomamos contato – disse Charlie. – Eu gosto muito de você.

           – Também estou contente.

           Os dois saíram do restaurante e pegaram os casacos. O porteiro do hotel chamou um táxi.

           – Eu a levo em casa – disse Charlie.

           Quando estavam passando pela Strand, ele pôs o braço em volta dela. Daisy estava prestes a protestar, mas pensou: Que se dane. E então aninhou-se junto a ele.

           – Como eu sou bobo – comentou Charlie. – Queria ter me casado com você quando pude.

           – Você teria sido um marido melhor do que Boy Fitzherbert – disse ela.

           Mas, nesse caso, ela nunca teria conhecido Lloyd.

           Deu-se conta de que não dissera uma palavra sequer sobre Lloyd durante toda a noite.

           Quando o táxi entrou em sua rua, Charlie lhe deu um beijo.

           Era agradável estar nos braços de um homem e beijar sua boca, mas ela sabia que era o álcool que a fazia se sentir assim. Na verdade, o único homem que ela queria beijar era Lloyd. Apesar disso, só afastou Charlie quando o táxi parou.

           – Que tal uma saideira? – sugeriu ele.

           Por um instante, ela sentiu-se tentada. Já fazia muito tempo que não tocava o corpo rígido de um homem. Mas não sentia desejo por Charlie.

           – Não – falou. – Desculpe, Charlie, mas amo outra pessoa.

           – Não precisamos ir para a cama – sussurrou ele. – Mas se pudéssemos, você sabe, dar uns amassos...

           Ela abriu a porta do carro e desceu. Estava se sentindo uma desmancha-prazeres. Ele arriscava a vida diariamente em seu nome, e ela nem ao menos era capaz de lhe proporcionar um pouco de emoção barata.

           – Boa noite, Charlie, e boa sorte – falou.

           Antes que mudasse de ideia, bateu a porta do carro e entrou em casa.

           Subiu direto para o primeiro andar. Alguns minutos depois, sozinha na cama, sentiu-se arrasada. Havia traído dois homens: Lloyd, por ter beijado Charlie; e Charlie, por tê-lo mandado embora insatisfeito.

           Passou o domingo quase inteiro deitada, de ressaca.

           Na segunda à noite, recebeu um telefonema.

           – Meu nome é Hank Bartlett – disse a voz jovem de um americano. – Sou amigo de Charlie Farquharson em Duxford. Ele me falou da senhora, e achei seu número no caderno de telefones dele.

           O coração dela parou de bater.

           – Por que está me ligando?

           – Infelizmente, tenho más notícias. Charlie morreu hoje. Foi abatido quando sobrevoava Abbeville.

           – Não!

           – Era a primeira missão dele no Spitfire.

           – Ele me falou sobre isso – disse ela, atordoada.

           – Pensei que a senhora deveria saber.

           – Sim, obrigada – respondeu ela num sussurro.

           – Ele a achava o máximo.

           – É mesmo?

           – A senhora precisava tê-lo ouvido falar sobre quanto era incrível.

           – Eu sinto muito – disse ela. – Sinto tanto.

           Então não conseguiu mais falar, e desligou o telefone.

 

           Chuck Dewar olhou por cima do ombro do tenente Bob Strong, um dos critptógrafos. Alguns deles eram muito desorganizados, mas Strong era do tipo metódico, e tudo o que havia sobre a sua mesa era uma folha de papel na qual ele tinha escrito:

            

           YO-LO-KU-TA-WA-NA

             

           – Não entendo – disse Strong, frustrado. – Se a decodificação estiver correta, aqui está escrito que eles atacaram yolokutawana. Mas isso não quer dizer nada. Essa palavra não existe.

           Chuck ficou olhando as seis sílabas japonesas. Tinha certeza de que deveriam significar alguma coisa para ele, embora conhecesse pouco o idioma. No entanto, não conseguiu entender e foi continuar seu trabalho.

           O clima no Antigo Prédio Administrativo estava soturno.

           Durante muitas semanas após o ataque, Chuck e Eddie encontraram cadáveres inchados dos navios afundados boiando na superfície suja de óleo de Pearl Harbor. Ao mesmo tempo, as informações de inteligência que eles recebiam davam conta de agressões japonesas ainda mais devastadoras. Apenas três dias depois de Pearl Harbor, aviões do Japão atacaram a base norte-americana de Luzon, nas Filipinas, e destruíram todo o estoque de torpedos da Frota do Pacífico. No mesmo dia, no mar da China Meridional, afundaram dois encouraçados da Grã-Bretanha, Repulse e Prince of Wales, deixando os britânicos indefesos no Extremo Oriente.

           Parecia impossível detê-los. Não paravam de chegar más notícias. Nos primeiros meses do novo ano, o Japão derrotou as forças americanas nas Filipinas e as britânicas em Hong Kong, Cingapura e Rangum, capital da Birmânia.

           Muitos dos nomes desses lugares eram desconhecidos até mesmo para marinheiros como Chuck e Eddie. Para o povo americano, deviam soar como planetas distantes numa história de ficção científica: Guam, Wake, Bataan. Todos, entretanto, conheciam o significado das palavras retirada, submissão e rendição.

           Chuck estava pasmo. Será que o Japão conseguiria mesmo derrotar os Estados Unidos? Ele mal podia acreditar.

           Quando o mês de maio chegou, os japoneses haviam alcançado seu objetivo: tinham agora um império que lhes fornecia borracha, estanho e – o mais importante – petróleo. As informações que vazavam indicavam que estavam governando esse império com uma brutalidade que teria deixado o próprio Stalin encabulado.

           Mas havia uma mosca na sopa, e era a Marinha dos Estados Unidos. Pensar nisso enchia Chuck de orgulho. Os japoneses tinham esperado riscar Pearl Harbor do mapa e assumir o controle do Pacífico, mas não conseguiram isso. Porta-aviões e pesados cruzadores americanos continuavam a navegar. Informações de inteligência sugeriam que os comandantes japoneses estavam furiosos com o fato de os americanos não se renderem. Depois das perdas de Pearl Harbor, eles estavam em desvantagem numérica e tinham menos munição que o inimigo, mas ainda assim não fugiam para se esconder. Em vez disso, haviam passado a lançar ataques-relâmpago contra embarcações japonesas, causando danos leves, mas levantando o moral do povo e deixando os japoneses com a incômoda sensação de ainda não terem vencido. Então, em 25 de abril, aviões decolaram de um porta-aviões e bombardearam o centro de Tóquio, infligindo um golpe terrível ao orgulho das Forças Armadas japonesas. No Havaí, as comemorações foram intensas. Chuck e Eddie se embebedaram nessa noite.

           No entanto, um confronto decisivo estava por vir. Todos com quem Chuck conversava no Antigo Prédio Administrativo diziam que os japoneses fariam um ataque maciço no começo do verão para incitar os navios americanos a revidar todos ao mesmo tempo, no que seria a batalha final. Eles esperavam que a indubitável superioridade de sua Marinha se mostrasse um fator decisivo, e que a frota americana do Pacífico fosse dizimada. O único jeito de os americanos vencerem era se preparando e obtendo informações de inteligência de melhor qualidade – tinham que ser mais rápidos e mais espertos.

           A Estação HYPO passou esses meses trabalhando dia e noite para tentar decifrar o JN-25b, o novo código da Marinha Imperial japonesa. Em maio, haviam conseguido fazer alguns progressos.

           A Marinha americana tinha estações de interceptação telegráfica espalhadas por toda a orla do Pacífico, de Seattle até a Austrália. Um grupo de homens conhecido como a Gangue do Telhado ficava sentado, com fones de ouvido e receptores, escutando o tráfego de rádio japonês. Eles vasculhavam as ondas e anotavam o que ouviam em bloquinhos.

           Os sinais eram transmitidos em código Morse, mas os pontos e traços da linguagem naval formavam grupos numéricos de cinco dígitos, cada um representando uma letra, palavra ou frase de um manual de código. Aparentemente aleatórios, os números eram transmitidos por cabos seguros para impressoras situadas no subsolo do Antigo Prédio Administrativo. Só então começava a parte mais difícil: decifrar o código.

           Os criptógrafos sempre começavam com coisas pequenas. A última palavra de qualquer mensagem muitas vezes era OWARI, que significava “fim”. O analista então procurava outras ocorrências desse grupo na mesma mensagem, e escrevia “FIM?” acima de todos eles.

           Os japoneses os ajudaram cometendo um erro descuidado e pouco característico.

           Houve um atraso na entrega dos novos manuais do código JN-25b para algumas unidades remotas. Assim, durante algumas semanas cruciais, o alto-comando japonês enviou algumas mensagens nos dois códigos. Como os americanos tinham decifrado boa parte do JN-25, conseguiram traduzir as mensagens enviadas no antigo código, compará-las com as mensagens cifradas pelo código novo e destrinchar o significado de seus grupos de cinco dígitos. Por algum tempo, seu progresso foi notável.

           Depois de Pearl Harbor, os oito criptógrafos originais receberam como reforço alguns dos músicos da banda do encouraçado California, que havia afundado. Por motivos que ninguém entendia, músicos eram muito bons em decifrar códigos.

           Todas as mensagens eram conservadas; e todos os textos decodificados, arquivados. A comparação era uma parte crucial daquele trabalho. Um analista podia querer ver todas as mensagens de um determinado dia, enviadas a um determinado navio, ou todas as que mencionassem o Havaí. Chuck e os outros auxiliares desenvolviam sistemas cada vez mais complexos de indexação cruzada para ajudá-los a encontrar tudo de que precisassem.

           A unidade previu que, na primeira semana de maio, os japoneses atacariam Port Moresby, base dos Aliados em Papua. Estavam certos, e a Marinha americana conseguiu interceptar a frota invasora no mar de Coral. Ambos os lados cantaram vitória, mas os japoneses não tomaram Port Moresby. E o almirante Nimitz, comandante supremo da Frota do Pacífico, começou a confiar em seus criptógrafos.

           Os japoneses não usavam nomes normais para se referir às localidades do oceano Pacífico. Cada lugar importante tinha um nome em código composto por duas letras – na verdade, dois kanas, que eram os caracteres do alfabeto japonês, embora os criptógrafos em geral usassem equivalentes em caracteres romanos, de A a Z. Os homens do subsolo davam duro para entender o significado de cada um desses codinomes de dois kanas. Seu progresso era lento: MO significava Port Moresby, AH era Oahu, mas muitos ainda eram um mistério.

           Em maio, acumulavam-se rapidamente indícios de que os japoneses fariam um ataque importante num local que chamavam de AF.

           O melhor palpite da unidade era que AF significava Midway, atol localizado na extremidade ocidental da cadeia de ilhas com quase 2.500 quilômetros de extensão que começava no Havaí. Midway ficava a meio caminho entre Los Angeles e Tóquio.

           É claro que um palpite não bastava. Levando em conta a superioridade numérica da Marinha japonesa, o almirante Nimitz precisava ter certeza.

           Dia após dia, os colegas de Chuck iam construindo um retrato assustador das diretrizes de batalha do Japão. Os porta-aviões inimigos receberam novos planos. Uma “força de ocupação” foi embarcada: os japoneses planejavam ocupar todos os territórios que conquistassem.

           Aquela parecia ser a batalha decisiva. Mas quando aconteceria o ataque?

           Os homens do subsolo tinham um orgulho todo especial de ter decodificado uma mensagem da frota japonesa solicitando a Tóquio, com urgência, “a entrega imediata de uma mangueira de abastecimento”. Estavam satisfeitos em parte por causa da linguagem especializada, mas principalmente porque a mensagem comprovava a iminência de uma manobra de longo alcance no meio do oceano.

           No entanto, o alto-comando americano achava que o ataque poderia ocorrer no Havaí, enquanto o Exército temia uma invasão na Costa Oeste dos Estados Unidos. Até mesmo a equipe de Pearl Harbor tinha uma desconfiança insistente de que o alvo talvez fosse Johnson Island, uma pista de pouso pouco mais de 1.500 quilômetros ao sul de Midway.

           Eles precisavam ter certeza absoluta.

           Chuck tinha uma ideia sobre como poderiam proceder, mas hesitava. Os criptógrafos eram muito inteligentes, ele não. Nunca fora bom aluno na escola. Na segunda série, um colega o chamara de Chucky Cabeça de Vento. Ele havia chorado, e isso fizera o apelido pegar. Ainda pensava em si mesmo assim, Chucky Cabeça de Vento.

           Na hora do almoço, ele e Eddie pegaram sanduíches e café na cantina e foram se sentar à beira do cais, com vista para o porto. Pearl Harbor estava voltando ao normal. A maior parte do óleo havia sido retirada; e alguns dos destroços, recolhidos.

           Enquanto eles comiam, um porta-aviões avariado surgiu atrás de Hospital Point e adentrou o porto devagar, soltando vapor pela chaminé e arrastando uma mancha de óleo que se estendia até alto-mar. Chuck identificou o navio: era o Yorktown. Seu casco estava negro de fuligem, e havia um enorme rombo no convés de pouso, provavelmente feito por uma bomba japonesa na batalha do mar de Coral. Sirenes e apitos tocaram uma fanfarra em comemoração à entrada do porta-aviões no estaleiro, e rebocadores se juntaram para fazê-lo passar pelos portões abertos do Dique Seco no 1.

           – Ouvi dizer que esse navio precisaria de três meses de reparos – comentou Eddie. Ele trabalhava no mesmo prédio que Chuck, só que no escritório de inteligência naval, no andar de cima, por isso ouvia mais fofocas. – Mas vai zarpar novamente daqui a três dias.

           – Como eles vão conseguir isso?

           – Já começaram. O chefe de engenharia naval da Marinha veio de avião receber o navio... e já está a bordo com uma equipe. E olhe só para o dique seco.

           Chuck viu que o dique já parecia um formigueiro de homens e equipamentos: nem conseguiu contar quantas máquinas de solda aguardavam na beira do cais.

           – Mesmo assim, só vão conseguir remendá-lo um pouco – prosseguiu Eddie. – Vão consertar o convés de pouso e possibilitar sua volta aos mares. Todo o resto, porém, vai ter que esperar.

           Alguma coisa no nome daquele porta-aviões incomodou Chuck. Ele não conseguiu se livrar dessa sensação. O que significava Yorktown? O cerco a Yorktown fora a última grande batalha da Guerra de Independência Americana. Será que isso significava alguma coisa?

           O capitão Vandermeier passou por eles.

           – Voltem ao trabalho, seus maricas – provocou.

           – Qualquer dia desses vou dar um soco nesse cara – disse Eddie entredentes.

           – Depois da guerra, Eddie – aconselhou Chuck.

           Ao voltar para o subsolo e ver Bob Strong sentado diante de sua mesa, Chuck percebeu que havia solucionado o problema do colega.

           Tornou a espiar por cima do ombro do criptógrafo e viu a mesma folha de papel com as mesmas seis sílabas japonesas:

            

           YO-LO-KU-TA-WA-NA

             

           Com muito tato, tentou fazer parecer que o próprio Strong houvesse encontrado a solução.

           – Tenente, o senhor conseguiu! – falou.

           Strong não entendeu.

           – Consegui?

           – É um nome em inglês, então os japoneses o soletraram foneticamente.

           – Yolokutawana é um nome em inglês?

           – Sim, tenente. É assim que os japoneses pronunciam Yorktown.

           – O quê? – Strong parecia desconcertado.

           Por alguns terríveis instantes, Chucky Cabeça de Vento perguntou a si mesmo se poderia estar redondamente enganado.

           Então Strong falou:

           – Ah, meu Deus, tem razão! Yolokutawana é Yorktown pronunciado com sotaque japonês! – Ele riu, feliz. – Obrigado! – comemorou. – Muito bem!

           Chuck hesitou. Tivera outra ideia. Será que deveria dizer em voz alta o que estava pensando? Seu trabalho não era decifrar códigos. Mas os Estados Unidos estavam a um passo de serem derrotados. Talvez devesse arriscar.

           – Posso fazer outra sugestão? – perguntou.

           – Vá em frente.

           – É sobre a sigla AF. Precisamos de uma confirmação definitiva de que ela se refere a Midway, certo?

           – Certo.

           – Não poderíamos mandar uma mensagem sobre Midway que os japoneses tivessem que retransmitir em código? Assim, quando interceptássemos a versão cifrada, descobriríamos como eles estão codificando o nome Midway.

           Strong pareceu refletir.

           – Pode ser – falou. – Talvez tivéssemos que mandar nossa mensagem aberta, sem código, para nos certificarmos de que eles entenderiam.

           – É, pode ser. Teria que ser algo não muito confidencial, como, por exemplo, “Epidemia de doença venérea em Midway, favor enviar remédios”, ou algo do gênero.

           – Mas por que os japas iriam retransmitir uma coisa dessas?

           – Certo, então teria que ser alguma coisa com significado militar, mas que não fosse altamente confidencial. Algo como a previsão do tempo.

           – Hoje em dia, até os boletins meteorológicos são secretos.

           O criptógrafo da mesa ao lado deu uma sugestão:

           – Que tal um racionamento de água? Se eles estão planejando ocupar o lugar, seria uma informação importante.

           – Caramba, pode dar certo! – Strong estava ficando animado. – Suponhamos que Midway mande uma mensagem aberta para o Havaí dizendo que houve uma pane na sua estação de dessalinização.

           – E o Havaí responde dizendo que vamos mandar um navio-pipa – emendou Chuck.

           – Se os japoneses estiverem mesmo planejando atacar Midway, com certeza vão retransmitir isso. Precisariam providenciar água doce.

           – E eles retransmitiriam em código, para não nos alertar sobre seu interesse por Midway.

           As mensagens foram enviadas no mesmo dia.

           No dia seguinte, uma mensagem de rádio japonesa informou um racionamento de água em AF.

           O alvo era Midway.

           O almirante Nimitz começou a montar uma armadilha.

 

           Nessa noite, enquanto mais de mil operários se ocupavam do conserto do porta-aviões Yorktown, realizando os reparos sob lâmpadas de arco voltaico, Chuck e Eddie foram ao The Band Round the Hat, um bar situado num beco escuro de Honolulu. Como sempre, o lugar estava lotado de marinheiros e moradores da cidade. Apesar de haver alguns casais de enfermeiras, quase todos os clientes eram homens. Chuck e Eddie gostavam desse bar porque todos eram iguais a eles. As lésbicas, por sua vez, iam lá porque os homens não davam em cima delas.

           Nada era explícito, é claro. Era possível ser expulso da Marinha e preso por atos homossexuais. Apesar disso, o lugar era descontraído. O líder da banda usava maquiagem. A cantora havaiana era um homem vestido de mulher, mas, de tão convincente, algumas pessoas não percebiam. O dono do estabelecimento não poderia ser mais gay. Homens podiam dançar juntos, e ninguém chamava de bunda-mole quem pedisse um vermute.

           Desde a morte de Joanne, Chuck tinha mais certeza do amor que sentia por Eddie. É claro que sempre soubera que, em tese, seu namorado poderia morrer; mas o perigo nunca lhe parecera real. Depois do ataque a Pearl Harbor, não passava um dia sequer sem recordar a imagem daquela linda moça caída no chão, ensanguentada, e do irmão soluçando ao seu lado. Poderia muito bem ter sido ele ajoelhado junto a Eddie, sentindo aquela dor insuportável. Naquele 7 de dezembro, os dois tinham escapado da morte por um triz, mas agora estavam em guerra, e a vida não valia nada. Cada dia que passavam juntos era um presente, porque poderia ser o último.

           Chuck estava apoiado no bar com uma cerveja na mão, enquanto Eddie estava sentado num banco alto. Os dois riam de um piloto da Marinha chamado Trevor Paxman – mais conhecido como Trixie –, que falava sobre a ocasião em que tentara fazer sexo com uma garota.

           – Fiquei horrorizado! – disse ele. – Pensei que lá embaixo fosse ser tudo limpinho e fofo, como as moças das pinturas... Mas ela era mais peluda que eu! – Todos riram com vontade. – Parecia um gorila!

           Então, com o canto do olho, Chuck viu a figura atarracada do capitão Vandermeier entrar no bar.

           Poucos oficiais frequentavam bares de alistados. Não que fosse proibido: era só um sinal de descaso e falta de bom senso, como usar botas sujas de lama para ir ao restaurante do Ritz-Carlton. Eddie se virou, torcendo para que Vandermeier não o visse.

           Mas não teve sorte. O capitão foi direto até onde eles estavam e falou:

           – Ora, ora... Todas as moças estão reunidas, é?

           Trixie se virou e desapareceu no meio dos outros clientes.

           – Para onde ele foi? – perguntou Vandermeier.

           O capitão já estava embriagado a ponto de enrolar a língua.

           Chuck viu o semblante de Eddie ficar sombrio.

           – Boa noite, capitão – falou, rígido. – Aceita uma cerveja?

           – Uísque com gelo.

           Chuck pegou a bebida. Vandermeier tomou um gole e disse:

           – Então, ouvi dizer que aqui tudo acontece por baixo dos panos... É isso mesmo? – Ele olhou para Eddie.

           – Não faço ideia – respondeu este, frio.

           – Ora, vamos – disse Vandermeier. – Fica entre nós.

           Então deu um tapinha no joelho de Eddie, que se levantou abruptamente, empurrando o banco do bar para trás.

           – Não toque em mim – falou.

           – Calma, Eddie – pediu Chuck.

           – A Marinha não tem nenhum regulamento dizendo que tenho que deixar essa bichona me patolar!

           – Do que você me chamou? – perguntou Vandermeier com a voz arrastada.

           – Se ele tocar em mim outra vez, juro que arranco essa cabeça horrorosa dele – ameaçou Eddie.

           – Capitão Vandermeier, eu conheço um lugar bem melhor do que este – disse Chuck. – Gostaria de ir até lá?

           Vandermeier pareceu não entender.

           – Ahn?

           Chuck improvisou:

           – Um lugar menor, mais tranquilo... Igual a este, só que mais discreto. Entende o que quero dizer?

           – Parece ótimo! – O capitão esvaziou o copo.

           Chuck segurou Vandermeier pelo braço direito e acenou para Eddie segurar o esquerdo. Os dois conduziram o capitão embriagado para fora do bar.

           Por sorte, um táxi aguardava na penumbra do beco. Chuck abriu a porta.

           Nessa hora, Vandermeier beijou Eddie.

           O capitão envolveu seu subordinado com os braços, pressionou os lábios nos dele e disse:

           – Eu te amo.

           O coração de Chuck se encheu de medo. Agora não havia mais como aquilo terminar bem.

           Eddie desferiu um soco na barriga do capitão, com força. Vandermeier grunhiu e arquejou. Eddie o acertou de novo, dessa vez no rosto. Chuck se interpôs entre os dois. Antes de Vandermeier cair, ele o fez entrar no banco traseiro do táxi.

           Inclinou-se na janela e entregou ao motorista uma nota de dez dólares.

           – Leve-o para casa, e pode ficar com o troco – falou.

           O táxi foi embora.

           Chuck olhou para Eddie.

           – Rapaz, agora estamos mesmo encrencados.

 

           No entanto, Eddie Parry nunca foi acusado de agressão a um oficial.

           Na manhã seguinte, o capitão Vandermeier apareceu no Antigo Prédio Administrativo com um olho roxo, mas não fez nenhuma acusação. Chuck entendeu que a carreira do capitão seria arruinada caso ele admitisse ter se envolvido numa briga no The Band Round the Hat. Apesar disso, não se falava em outra coisa que não seu olho roxo.

           – Ele disse que escorregou numa poça de óleo na garagem de casa e bateu com o rosto no cortador de grama, mas acho que a mulher deu um soco nele – comentou Bob Strong. – Vocês já viram a cara dela? É igualzinha a Jack Dempsey.

           Nesse dia, os criptógrafos do subsolo informaram ao almirante Nimitz que os japoneses iriam atacar Midway no dia 4 de junho. Mais especificamente, às sete horas da manhã as forças japonesas estariam 280 quilômetros ao norte do atol.

           Sua confiança era quase tão grande quanto davam a entender.

           Eddie, por sua vez, estava pessimista.

           – O que podemos fazer? – perguntou ao se encontrar com Chuck na hora do almoço. Como também trabalhava para a inteligência naval, sabia o que os criptógrafos tinham descoberto sobre a força dos japoneses. – Os japas estão com 200 navios no mar, praticamente a Marinha deles inteira... E nós? Quantos navios temos? Trinta e cinco!

           Chuck não estava tão cético.

           – Mas a força de ataque deles é só um quarto desse número. O restante são as forças de ocupação, distração e reserva.

           – E daí? Um quarto desse total ainda é mais do que toda a nossa Frota do Pacífico!

           – Na verdade, a força de ataque deles tem só quatro porta-aviões.

           – Mas nós temos apenas três. – Eddie apontou com o sanduíche de presunto que tinha na mão o porta-aviões encardido de fumaça parado no dique seco e coberto por um enxame de operários e acrescentou: – Incluindo o Yorktown avariado.

           – Bom, sabemos que eles vão chegar, e eles não sabem que nós estamos à sua espera.

           – Tomara que isso faça tanta diferença quanto Nimitz acredita.

           – Tomara mesmo.

           Ao voltar para o subsolo, Chuck recebeu a notícia de que não trabalhava mais lá. Tinha sido transferido... para o Yorktown.

           – É o modo que Vandermeier encontrou para me punir – disse Eddie, choroso, nessa noite. – Ele acha que você vai morrer.

           – Não seja pessimista – falou Chuck. – Talvez nós ganhemos a guerra.

           Alguns dias antes do ataque, os japoneses substituíram seus manuais de código por novos. Os homens do subsolo suspiraram e começaram tudo de novo do zero, mas conseguiram reunir poucas informações antes da batalha. Nimitz teve que se contentar com o que já tinha e torcer para que o inimigo não mudasse todo o plano na última hora.

           Os japoneses esperavam tomar Midway de surpresa e ocupar o atol com facilidade. Torciam para que os americanos então atacassem com força total para tentar recuperá-lo. Nessa hora, a frota japonesa de reserva entraria em ação para dizimar toda a frota americana. O Japão dominaria o Pacífico.

           E os Estados Unidos pediriam para negociar a paz.

           Nimitz planejava cortar o mal pela raiz, montando uma armadilha para a força de ataque antes que ela tomasse Midway.

           Chuck agora fazia parte dessa armadilha.

           Ele preparou sua bolsa, despediu-se de Eddie com um beijo e os dois foram juntos até o cais.

           Lá, cruzaram com Vandermeier.

           – Não deu tempo de consertar os compartimentos estanques – informou-lhes o capitão. – Se abrirem um rombo no navio, ele vai afundar feito um caixão de chumbo.

           Chuck levou a mão ao ombro de Eddie para contê-lo e perguntou:

           – Como vai o olho, capitão?

           A boca de Vandermeier se contorceu num esgar maldoso.

           – Boa sorte, veado. – Então ele se afastou.

           Chuck apertou a mão de Eddie e subiu a bordo.

           Esqueceu Vandermeier na mesma hora, pois seu desejo finalmente acabara de ser realizado: ele estava no mar, e embarcado num dos mais grandiosos navios já fabricados.

           O Yorktown era a embarcação líder da classe dos porta-aviões. Com comprimento superior a dois campos de futebol, sua tripulação era de mais de dois mil homens. O navio tinha capacidade para transportar noventa aeronaves: antigos bombardeiros Douglas Devastator de asas dobráveis; bombardeiros de mergulho Douglas Dauntless, mais recentes; e, para escoltá-los, caças Grumman Wildcat.

           Quase tudo no porta-aviões ficava abaixo do convés, com exceção da ilha de dez metros de altura que se erguia no convés de pouso. Ela abrigava o comando e o centro de comunicações do navio: a ponte de comando, a sala de rádio logo abaixo, a sala dos mapas e a sala de preparação dos pilotos. Atrás da ilha ficava um imenso duto para expelir a fumaça, formado por três chaminés uma dentro da outra.

           Quando o Yorktown deixou o dique seco e saiu de Pearl Harbor soltando vapor, alguns dos operários continuavam a bordo, terminando seu trabalho. A vibração dos motores colossais quando o porta-aviões ganhou o mar deixou Chuck empolgado. No momento em que chegaram a alto-mar e o navio começou a subir e descer junto com as ondas do Pacífico, ele teve a sensação de que estava dançando.

           Chuck foi posto na sala de rádio, escolha sensata que aproveitava sua experiência na manipulação de mensagens.

           O porta-aviões navegou até um ponto de encontro a nordeste de Midway. Seus remendos recém-soldados rangiam como sapatos novos. Havia uma lanchonete a bordo, conhecida como Gedunk, que servia sorvete fabricado diariamente. Ali, na primeira tarde, Chuck encontrou Trixie Paxman, que tinha visto pela última vez no The Band Round the Hat. Ficou feliz por ter um amigo a bordo.

           Na quarta-feira, 3 de junho, véspera do dia previsto para o ataque, um hidroavião da Marinha em missão de reconhecimento a oeste de Midway detectou um comboio de navios japoneses de transporte de tropas – provavelmente trazendo a força de ocupação que deveria tomar o atol após a batalha. A notícia foi divulgada a todas as embarcações americanas, e Chuck, na sala de rádio do Yorktown, foi um dos primeiros a ficar sabendo. Aquilo era uma confirmação sólida de que seus colegas do subsolo tinham razão, e ele ficou aliviado por eles terem acertado. Percebeu que aquilo era uma ironia: ele não estaria correndo tanto perigo se eles houvessem cometido um erro e os japoneses estivessem em outro lugar.

           Já fazia um ano e meio que Chuck estava na Marinha, mas ainda não participara de nenhuma batalha. Reparado às pressas, o Yorktown seria alvo de torpedos e bombas japonesas. Estava navegando em direção a pessoas que fariam todo o possível para afundá-lo – e com Chuck dentro. Era uma sensação esquisita. Na maior parte do tempo, ele se sentia estranhamente calmo, mas de vez em quando tinha o impulso de saltar a amurada e começar a nadar de volta para o Havaí.

           Nessa noite, escreveu para os pais. Se morresse no dia seguinte, ele e a carta provavelmente naufragariam com o navio, mas escreveu mesmo assim. Não comentou nada sobre o motivo da transferência. Pensou em confessar que era homossexual, mas logo descartou essa ideia. Disse aos pais que os amava e que era grato por tudo o que tinham feito por ele. “Se eu morrer lutando por um país democrático e contra uma ditadura militar cruel, minha vida não terá sido em vão.” Ao reler a carta, achou a frase meio pomposa, mas deixou como estava.

           A noite foi curta. As tripulações dos aviões receberam o chamado para o desjejum à uma e meia. Chuck foi desejar boa sorte a Trixie Paxman. Como recompensa por terem madrugado, os soldados que iriam tripular os aviões comeram bife com ovos.

           Os aviões foram trazidos dos hangares sob o convés nos imensos elevadores do navio, depois manobrados até os pontos de estacionamento no convés para serem abastecidos e municiados. Alguns pilotos partiram para localizar o inimigo. O restante ficou sentado na sala de instruções, já equipado para o combate, à espera de notícias.

           Chuck começou o trabalho na sala de rádio. Logo antes das seis, captou a transmissão de um hidroavião de reconhecimento:

            

           MUITOS AVIÕES INIMIGOS INDO PARA MIDWAY

             

           Alguns minutos depois, recebeu uma transmissão parcial:

            

           PORTA-AVIÕES INIMIGOS

             

           Pronto. Havia começado.

           No minuto seguinte, quando a informação completa chegou, ficaram sabendo que a força de ataque inimiga estava quase no ponto exato previsto pelos criptógrafos. Chuck sentiu orgulho – e medo.

           Os três porta-aviões americanos – Yorktown, Enterprise e Hornet – estabeleceram um curso que levasse seus aviões a uma distância da qual pudessem atacar os navios japoneses.

           Na ponte de comando estava o almirante Frank Fletcher, um veterano de 57 anos que tinha o nariz comprido e ganhara a Cruz da Marinha na Primeira Guerra Mundial. Quando foi levar uma mensagem até lá, Chuck o ouviu dizer:

           – Não vimos nenhum avião japonês até o momento. Isso significa que eles ainda não sabem que estamos aqui.

           Chuck estava ciente de que esta era a única vantagem dos americanos: eles tinham informações melhores.

           Os japoneses sem dúvida pretendiam pegar Midway desprevenido, numa repetição do que acontecera em Pearl Harbor, mas, graças aos criptópgrafos, isso não iria acontecer. Os aviões americanos de Midway não seriam alvos fáceis parados nas pistas. Quando os japoneses chegaram, já estavam todos no ar prontos para a briga.

           Os oficiais e soldados na sala de rádio do Yorktown escutavam, tensos, o tráfego de transmissões coalhado de estática vindo de Midway e dos navios japoneses, e não tinham dúvida de que uma terrível batalha aérea estava sendo travada acima do minúsculo atol. No entanto, não sabiam quem estava vencendo.

           Pouco depois, os aviões americanos que estavam em Midway foram atrás do inimigo e atacaram os porta-aviões japoneses.

           Em ambas as batalhas, pelo que Chuck pôde entender, a artilharia antiaérea levara a melhor. A base de Midway sofreu apenas danos leves, e quase todas as bombas e torpedos disparados contra a frota japonesa erraram o alvo. Nos dois confrontos, porém, muitas aeronaves foram abatidas.

           O placar parecia empatado – o que preocupava Chuck, pois os japoneses tinham mais aviões de reserva.

           Pouco antes das sete, o Yorktown, o Enterprise e o Hornet deram meia-volta e passaram a navegar para sudeste. Esse curso infelizmente os levava para longe do inimigo, mas seus aviões precisavam do vento sudeste para decolar.

           Todos os cantos do Yorktown estremeciam com o estrondo das aeronaves à medida que os seus motores eram acelerados ao máximo e elas avançavam pelo convés a toda a velocidade, uma após outra, e ganhavam o ar. Chuck reparou que o Wildcat tendia a erguer a asa direita e puxar um pouco para a esquerda ao acelerar pelo convés, característica da qual os pilotos reclamavam muito.

           Às oito e meia, os três porta-aviões americanos já tinham mandado 155 aeronaves atacarem a força inimiga.

           As primeiras chegaram ao alvo na hora exata, quando os japoneses estavam ocupados reabastecendo e rearmando seus aviões que tinham voltado de Midway. Os conveses de pouso estavam coalhados de munição espalhada em meio a um verdadeiro ninho de serpentes de mangueiras de abastecimento, tudo pronto para explodir num segundo. Devia ter sido uma carnificina.

           Mas não foi.

           Quase todos os aviões americanos da primeira leva foram abatidos.

           Os Devastators eram antiquados. Os Wildcats que os escoltavam, embora pouco melhores, não eram páreo para os Zeros japoneses, velozes e fáceis de manobrar. Os aviões que restaram para lançar seus projéteis foram dizimados pela devastadora artilharia antiaérea dos porta-aviões.

           Lançar uma bomba de um avião em movimento sobre um navio também em movimento ou soltar um torpedo de forma que este atingisse um navio eram feitos extraordinariamente difíceis, sobretudo para um piloto que estivesse sendo alvejado.

           A maioria dos tripulantes desses aviões perdeu a vida tentando.

           E nenhum deles conseguiu acertar um tiro sequer.

           Nenhuma bomba ou torpedo americano atingiu o alvo. As primeiras três levas de aviões, despachadas cada uma de um porta-aviões, não infligiram qualquer dano à força de ataque japonesa. A munição de seus deques não explodiu, as mangueiras de combustível não pegaram fogo. Os navios saíram ilesos.

           Ao ouvir as mensagens transmitidas pelo rádio, Chuck começou a se desesperar.

           Viu com uma clareza renovada a genialidade do ataque a Pearl Harbor, sete meses antes. Os navios americanos ancorados eram alvos estáticos, próximos uns dos outros, relativamente fáceis de acertar. Os caças que poderiam tê-los protegido foram destruídos nas pistas. Quando os americanos conseguiram se armar e fazer uso da artilharia antiaérea, o ataque já estava quase no fim.

           No entanto, aquela batalha ainda estava em curso e nem todos os aviões americanos tinham chegado à zona-alvo. Chuck ouviu um oficial gritar no rádio do Enterprise:

           – Ataquem! Ataquem!

           Um piloto respondeu, lacônico:

           – Positivo, assim que conseguir encontrar os malditos.

           A boa notícia era que o comandante japonês ainda não despachara aviões para atacar os navios americanos: estava se atendo ao plano e concentrando-se em Midway. A essa altura, já devia ter entendido que estava sendo atacado por aeronaves transportadas em porta-aviões, mas era possível que não tivesse certeza quanto à localização das embarcações inimigas.

           Apesar dessa vantagem, os americanos não estavam ganhando.

           Então a situação mudou. Uma frota de 37 bombardeiros de mergulho Dauntless lançada pelo Enterprise avistou os japoneses. Os Zeros que protegiam as embarcações tinham descido até quase o nível do mar para combater os atacantes da leva anterior. Assim, os bombardeiros se viram acima dos caças e puderam descer na direção deles contra o sol. Minutos depois, mais 18 bombardeiros Dauntless do Yorktown chegaram ao local. Um dos pilotos era Trixie.

           O rádio explodiu com mensagens animadas. Chuck fechou os olhos e se concentrou para tentar destrinchar os sons distorcidos. Não conseguiu identificar a voz de Trixie.

           Então, por trás das vozes, começou a ouvir o silvo característico de bombardeiros mergulhando. O ataque tinha começado.

           De repente, pela primeira vez, ouviram-se gritos de triunfo dos pilotos.

           – Peguei você, seu puto!

           – Cacete, deu até para sentir a explosão!

           – É isso aí, seus filhos da puta!

           – Na mosca!

           – Olhem só como eles queimam!

           Os homens da sala de rádio comemoraram animados, mas não sabiam ao certo o que estava acontecendo.

           Tudo terminou em poucos minutos, mas um relatório claro demorou a chegar. A alegria da vitória deixou os pilotos incoerentes. Aos poucos, à medida que eles se acalmavam e começavam a voltar aos porta-aviões, a situação se esclareceu.

           Trixie Paxman estava entre os sobreviventes.

           Como da vez anterior, a maioria de suas bombas tinha errado o alvo, mas umas dez haviam acertado em cheio, e essas poucas foram suficientes para causar danos enormes. Três imensos porta-aviões japoneses estavam pegando fogo: Kaga, Soryu e a nau capitânia, Akagi. O inimigo agora só tinha um único porta-aviões, o Hiryu.

           – Três de quatro navios! – exultou Chuck. – E eles ainda nem chegaram perto dos nossos!

           Mas isso logo mudou.

           O almirante Fletcher despachou dez bombardeiros Dauntless à procura do último porta-aviões japonês. No entanto, o radar do Yorktown captou uma frota de aviões a oitenta quilômetros, provavelmente vinda do Hiryu, e se aproximando cada vez mais. Ao meio-dia, Fletcher despachou 12 Wildcats para enfrentar os aviões inimigos. O restante das aeronaves foi arrumado para não estar em posição vulnerável no convés quando o ataque começasse. Enquanto isso, as mangueiras de abastecimento do Yorktown foram enchidas com dióxido de carbono, como precaução anti-incêndio.

           A frota de atacantes era formada por 14 “Vals”, bombardeiros de mergulho Aichi D3A, e caças Zero de escolta.

           É agora, pensou Chuck: minha primeira batalha. Sentiu ânsia de vômito. Engoliu com força.

           Antes mesmo de os aviões japoneses aparecerem, a artilharia do Yorktown começou a disparar. O porta-aviões tinha quatro pares de grandes canhões antiaéreos, com canos de 12,5 centímetros de diâmetro capazes de lançar seus projéteis a vários quilômetros de distância. Depois de localizar a posição do inimigo com o auxílio do radar, os oficiais de artilharia dispararam uma salva de gigantescos projéteis de 25 quilos na direção dos aviões que se aproximavam, ajustando os timers para que eles explodissem ao atingir o alvo.

           Os Wildcats subiram mais alto que os aviões inimigos e, segundo as informações transmitidas pelos pilotos no rádio, conseguiram derrubar seis bombardeiros e três caças.

           Chuck correu até a ponte de comando com uma mensagem avisando que o restante da força de ataque estava a caminho. O almirante Fletcher respondeu, calmo:

           – Bem, já pus meu capacete de metal... Não posso fazer mais nada.

           Chuck olhou pela janela e viu os bombardeiros de mergulho surgirem zunindo no céu, vindo em sua direção num ângulo tão inclinado que pareciam estar despencando. Resistiu ao impulso de se jogar no chão.

           O porta-aviões deu uma guinada repentina a bombordo, virando o leme ao máximo. Qualquer tentativa de fazer os aviões inimigos se desviarem da rota valia a pena.

           O convés do Yorktown tinha também quatro Chicago Pianos – canhões antiaéreos menores, de curto alcance, com quatro canos cada um. Estes abriram fogo, e a artilharia dos cruzadores que escoltavam o porta-aviões fez o mesmo.

           Enquanto Chuck olhava da ponte de comando, aterrorizado e sem poder fazer nada para se defender, um dos artilheiros do convés acertou a mira e atingiu um Val. O avião pareceu se partir em três pedaços. Dois deles caíram no mar e um terceiro foi se espatifar contra a lateral do navio. Então outro Val explodiu. Chuck vibrou.

           Mas ainda restavam seis bombardeiros.

           O Yorktown deu uma guinada brusca para estibordo.

           Os Vals enfrentaram a barragem mortal da artilharia antiaérea do convés para perseguir o porta-aviões.

           Quando chegaram mais perto, as metralhadoras localizadas nas passarelas de ambos os lados do convés de pouso também abriram fogo. As armas antiaéreas do Yorktown começaram a tocar uma sinfonia letal: os estrondos graves dos canhões de 12,5 centímetros, os sons médios dos canhões de quatro canos, os tiros acelerados das metralhadoras.

           Chuck viu a primeira bomba cair.

           Muitas bombas japonesas tinham um fusível de retardo. Em vez de explodir com o impacto, demoravam ainda um ou dois segundos. A ideia era que perfurassem o convés e fossem explodir bem no interior do navio, causando o maior estrago possível.

           Mas essa bomba rolou pelo convés.

           Tomado por um misto de fascínio e terror, Chuck não conseguiu desgrudar os olhos do artefato. Por alguns instantes, pareceu que a bomba talvez não fosse causar dano algum. Então ela explodiu com um estrondo e um clarão de fogo. Os dois canhões antiaéreos de quatro canos que ficavam na popa foram destruídos na mesma hora. Pequenos incêndios começaram no convés e nas torres.

           Para assombro de Chuck, os homens à sua volta permaneceram tão calmos quanto se estivessem assistindo a uma simulação de guerra numa sala de reuniões. Mesmo cambaleando por causa do tremor do piso na ponte de comando, o almirante Fletcher continuou a gritar ordens. Instantes depois, equipes de controle de danos já corriam pelo convés de pouso com mangueiras de incêndio, enquanto maqueiros recolhiam os feridos e os carregavam por escadas de tombadilho muito íngremes para os postos médicos localizados no interior do navio.

           Não houve nenhum incêndio de grandes proporções: o dióxido de carbono das mangueiras de abastecimento os evitara com sucesso. Tampouco havia no convés avião armado com bombas que pudesse explodir.

           Instantes depois, outro Val desceu silvando em direção ao Yorktown, e uma bomba acertou a chaminé. A explosão fez o imenso porta-aviões balançar. Uma gigantesca cortina de fumaça preta oleosa se ergueu dos dutos. Chuck percebeu que a bomba devia ter danificado os motores, pois o navio perdeu velocidade de imediato.

           Outras bombas erraram o alvo e foram cair no mar, levantando verdadeiros gêiseres que molhavam o convés, onde a água do mar se misturava ao sangue dos feridos.

           O Yorktown foi perdendo velocidade até parar de vez. Então os japoneses acertaram uma terceira bomba, que entrou pelo elevador da proa e explodiu em algum lugar sob o convés.

           De uma hora para outra, o confronto acabou, e os Vals sobreviventes subiram pelo límpido céu azul do Pacífico e desapareceram.

           Ainda estou vivo, pensou Chuck.

           O navio não estava perdido. Equipes de combate a incêndios começaram a trabalhar antes mesmo de os japoneses sumirem de vista. Sob o convés, os engenheiros afirmaram que haviam conseguido religar os boilers em menos de uma hora. Equipes de reparos remendaram o rombo no convés de pouso usando tábuas de pinho de 1,80m x 1,20m.

           O equipamento de rádio, porém, fora destruído: agora o almirante Fletcher estava cego e surdo. Junto com seu Estado-Maior, ele se transferiu para o cruzador Astoria e passou o comando tático para o almirante Spruance, do Enterprise.

           – Vá se foder, Vandermeier... Eu sobrevivi – disse Chuck entre dentes.

           Mas ele cantou vitória antes do tempo.

           Com um estremecimento, os motores tornaram a ganhar vida. Agora sob o comando do capitão Buckmaster, o Yorktown voltou a singrar as ondas do Pacífico. Alguns dos aviões que haviam decolado de seu convés já tinham ido se abrigar no Enterprise, mas outros continuavam no ar. Então o navio se virou na direção contrária à do vento, para que eles começassem a pousar para reabastecer. Como o porta-aviões não tinha mais rádio, Chuck e seus colegas viraram uma equipe de sinalização, e passaram a se comunicar com os outros navios usando bandeiras antiquadas.

           Às duas e meia, o radar de um cruzador que escoltava o Yorktown detectou aviões se aproximando pelo oeste – provavelmente uma frota de ataque vinda do Hiryu. O cruzador transmitiu a informação para o porta-aviões. Buckmaster despachou 12 Wildcats para interceptar os japoneses.

           Mas os caças não devem ter conseguido deter o ataque, pois dez torpedeiros sugiram no mar, avançando por entre as ondas e seguindo, certeiros, em direção ao Yorktown.

           Chuck pôde ver os aviões com nitidez. Eram Nakagimas B5N, que os americanos chamavam de Kates. Cada um deles transportava, preso sob a fuselagem, um torpedo com quase metade do comprimento da própria aeronave.

           Os quatro cruzadores pesados que escoltavam o porta-aviões começaram a fazer disparos no mar, levantando uma barreira de água e espuma, mas os pilotos japoneses não se deixaram deter com tanta facilidade, e passaram direto por esse obstáculo.

           Chuck viu o primeiro deles soltar seu torpedo. O projétil comprido caiu na água, com a ponta virada para o Yorktown.

           O avião passou pelo navio chispando, tão perto que Chuck pôde ver a cara do piloto. Além do capacete, ele também usava uma bandana vermelha e branca na cabeça. Num gesto de triunfo, agitou o punho fechado para a tripulação no convés. Então desapareceu.

           Outros aviões passaram rugindo. Torpedos eram lentos, e às vezes os navios conseguiam se esquivar, mas o avariado Yorktown era grande demais para navegar em zigue-zague. Um tremendo baque se fez ouvir, sacudindo o porta-aviões: torpedos também eram bem mais potentes do que bombas normais. Chuck teve a impressão de que haviam sido atingidos na popa, a bombordo. Uma segunda explosão veio logo depois, e dessa vez chegou a levantar o navio, jogando no chão metade da tripulação que estava no convés. Então, os potentes motores ratearam.

           Novamente, as equipes de reparos começaram a trabalhar antes mesmo de os aviões inimigos desaparecerem. Dessa vez, porém, não conseguiram dar conta das avarias. Chuck foi se juntar às equipes que operavam as bombas-d’água e viu que o casco de aço do imenso porta-aviões estava rasgado como uma lata de conservas. Uma cachoeira de água do mar entrava pelo rombo. Em poucos minutos, Chuck sentiu que o convés havia se inclinado. O Yorktown estava adernando a bombordo.

           As bombas não conseguiram conter o fluxo de água, sobretudo porque os compartimentos estanques da embarcação tinham sido danificados no mar de Coral e não puderam ser consertados durante os reparos feitos às pressas no estaleiro.

           Quanto tempo o porta-aviões demoraria para naufragar?

           Às três da tarde, Chuck ouviu a ordem:

           – Abandonar navio!

           Marinheiros lançaram cordas por cima da alta amurada do convés inclinado. No hangar, tripulantes puxaram fios para liberar milhares de coletes salva-vidas de compartimentos no teto, fazendo-os cair como uma chuva. As embarcações que formavam a escolta do porta-aviões se aproximaram e soltaram seus botes. A tripulação do Yorktown tirou os sapatos e começou a se atropelar para pular a amurada. Por algum motivo, deixaram os sapatos arrumados no convés em fileiras perfeitas, centenas de pares, como uma espéce de sacrifício ritual. Feridos eram baixados em macas para baleeiras que aguardavam no mar. Chuck se viu dentro d’água, nadando o mais rápido que podia para se afastar do Yorktown antes que ele emborcasse. Uma onda o pegou de surpresa e levou sua boina. Ele agradeceu o fato de aquele oceano ser o Pacífico, cujas águas eram quentes. No Atlântico, poderia ter morrido de frio enquanto esperava o resgate.

           Foi recolhido por um bote salva-vidas, que seguiu pegando outros marinheiros. Dezenas de outros botes faziam o mesmo. Muitos homens desciam do convés principal, mais baixo do que o convés de pouso. Inexplicavelmente, o Yorktown conseguiu permanecer na vertical.

           Quando toda a tripulação estava em segurança, eles foram acolhidos a bordo das embarcações que formavam a escolta do porta-aviões.

           Chuck ficou em pé no convés, olhando para a água, enquanto o sol caía atrás do Yorktown e o navio afundava lentamente. Ocorreu-lhe que, durante o dia inteiro, ele não vira uma embarcação japonesa sequer. Toda a batalha fora travada no ar. Pensou se aquela teria sido a primeira batalha naval de um novo tipo. Nesse caso, os porta-aviões seriam as embarcações mais importantes do futuro. Nenhuma outra teria muita relevância.

           Trixie Paxman apareceu ao seu lado. Chuck ficou tão feliz por ver o amigo vivo que o abraçou.

           O piloto lhe contou que a última frota de bombardeiros de mergulho Dauntless que decolara do Enterprise e do Yorktown tinha conseguido incendiar e destruir o Hiryu, último porta-aviões japonês.

           – Quer dizer que todos os porta-aviões japoneses estão fora de combate? – perguntou Chuck.

           – Sim. Nós pegamos todos eles, e só perdemos um dos nossos.

           – Então nós ganhamos? – continuou Chuck.

           – Sim – respondeu Trixie. – Acho que sim.

 

           Depois da batalha de Midway, ficou claro que a guerra no Pacífico seria vencida por aviões transportados em navios. Tanto o Japão quanto os Estados Unidos deram início a programas para construir porta-aviões o mais rápido possível.

           Em 1943 e 1944, o Japão fabricou sete imensas e caras embarcações desse tipo.

           No mesmo período, os Estados Unidos fabricaram noventa.

             

1942 (II)

            A enfermeira-chefe Carla von Ulrich entrou na sala de material empurrando um carrinho e fechou a porta atrás de si.

           Tinha que agir depressa. Se fosse flagrada, poderia ser mandada para um campo de concentração.

           Pegou dentro de um armário vários curativos diferentes, um rolo de atadura e um pote de creme antisséptico. Então destrancou o gabinete de remédios. Separou morfina para aliviar a dor, sulfonamida para combater infecções e aspirina para baixar a febre. Pegou também uma seringa hipodérmica nova, na embalagem.

           Ao longo de algumas semanas, já havia falsificado os registros para fazer parecer que o que estava roubando tinha sido usado de forma legítima. Fizera isso antes de pegar as coisas, para que qualquer verificação pontual revelasse excesso de material – sugerindo um mero descuido –, não falta dele, que indicaria roubo.

           Já fizera tudo isso duas vezes, mas ainda sentia o mesmo medo.

           Ao empurrar o carrinho para fora da sala, torceu para que parecesse inocente: uma enfermeira transportando material médico até o leito de um paciente.

           Entrou na enfermaria. Para sua consternação, viu que o Dr. Ernst estava ali, sentado junto a um leito, medindo o pulso de um doente.

           Todos os médicos deveriam estar almoçando.

           Agora era tarde para mudar de ideia. Tentando adotar uma expressão de confiança, que era o oposto do que realmente sentia, levantou a cabeça bem alto e passou pelo meio da enfermaria, empurrando o carrinho.

           O Dr. Ernst ergueu os olhos e sorriu.

           Berthold Ernst era o sonho de todas as enfermeiras. Cirurgião de talento, de modos afáveis, era alto, bonito e solteiro. Segundo os boatos do hospital, já saíra com a maioria das enfermeiras bonitas e fora para a cama com muitas delas.

           Carla meneou a cabeça para o médico e passou depressa.

           Empurrou o carrinho para fora da enfermaria e então fez uma curva repentina, entrando no vestiário das enfermeiras.

           Sua capa de chuva estava pendurada num gancho. Debaixo dela, uma cesta de compras continha um velho lenço de seda, um repolho e uma caixa de toalhas higiênicas dentro de um saco de papel pardo. Carla esvaziou a cesta e transferiu rapidamente o material médico do carrinho para o saco. Escondeu-o com o lenço, um modelo de estampa geométrica azul e dourada que sua mãe devia ter comprado nos anos 1920. Pôs o repolho e as toalhas higiênicas por cima, pendurou a cesta num gancho e arrumou a capa de modo a cobri-la.

           Consegui, pensou. Percebeu que estava tremendo um pouco. Respirou fundo, controlou-se, abriu a porta – e deu de cara com o Dr. Ernst em pé do lado de fora.

           Será que ele a havia seguido? Estaria prestes a acusá-la de roubo? No entanto, seu comportamento não era hostil; na verdade, ele parecia simpático. Talvez ela tivesse mesmo conseguido.

           – Boa tarde, doutor – falou. – Posso ajudá-lo em alguma coisa?

           Ele sorriu.

           – Como vai, enfermeira Von Ulrich? Tudo está correndo bem?

           – Sim, perfeitamente, eu acho. – A culpa a fez completar a resposta com uma frase aduladora: – Mas quem deve dizer se as coisas estão correndo bem é o senhor, doutor.

           – Ah, não tenho do que reclamar – disse ele, com naturalidade.

           Então que história é essa?, pensou Carla. Será que ele só está brincando comigo, adiando sadicamente a hora de me acusar?

           Não disse nada, mas ficou esperando, tentando não tremer de tão nervosa.

           O Dr. Ernst baixou os olhos para o carrinho.

           – Por que trouxe isso para o vestiário?

           – Queria pegar uma coisa – respondeu ela, improvisando. – No bolso da minha capa. – Tentou reprimir o tremor de medo na voz. – Um lenço. – Pare de tagarelar, disse ela a si mesma. Ele é médico, não agente da Gestapo. Mas a assustava do mesmo jeito.

           Ele pareceu achar graça, como se o fato de ela estar nervosa fosse divertido.

           – E o carrinho?

           – Vou pôr de volta no lugar.

           – Organização é fundamental. E uma enfermeira tão boa como a senhorita... Fräulein Von Ulrich... ou será Frau?

           – Fräulein.

           – Deveríamos conversar mais.

           A forma como ele sorriu deixou claro que aquilo não tinha nada a ver com roubo de material médico. Ele estava prestes a convidá-la para sair. Caso ela aceitasse, seria alvo da inveja de dezenas de outras enfermeiras.

           Mas Carla não tinha o menor interesse no doutor. Talvez por ter se apaixonado por um libertino cheio de estilo, Werner Franck, e ele ter se revelado um covarde egoísta. Deduzia que Berthold Ernst fosse parecido.

           No entanto não queria correr o risco de contrariá-lo, por isso apenas sorriu, sem dizer nada.

           – A senhorita gosta de Wagner? – perguntou ele.

           Ela podia ver aonde aquela conversa iria chegar.

           – Não tenho tempo para música – respondeu, firme. – Eu cuido da minha mãe idosa. – Na verdade, Maud tinha 51 anos e uma saúde perfeita.

           – Tenho dois ingressos para um recital amanhã à noite. Vão tocar o Idílio de Siegfried.

           – Música de câmara! – comentou ela. – Que raro. – A maior parte da obra de Wagner era mais grandiosa.

           O médico pareceu satisfeito.

           – Estou vendo que entende de música.

           Ela desejou não ter dito aquilo. Só servira para incentivá-lo.

           – Minha família é bem musical... minha mãe dá aulas de piano.

           – Neste caso, a senhorita deveria vir. Tenho certeza de que alguém pode ficar com sua mãe por uma noite.

           – Não dá mesmo – respondeu Carla. – Mas muito obrigada pelo convite.

           Ela viu uma expressão de raiva nos olhos dele: o médico não estava acostumado a ser rejeitado. Virou-se para começar a empurrar o carrinho para fora do vestiário.

           – Uma outra vez, quem sabe? – disse ele enquanto ela saía.

           – O senhor é muito gentil – retrucou ela sem diminuir o passo.

           Teve medo de que ele a seguisse, mas a resposta ambígua à sua última pergunta pareceu fazê-lo desistir. Quando ela olhou por cima do ombro, ele já havia ido embora.

           Ela guardou o carrinho e conseguiu respirar melhor.

           Voltou a seus afazeres. Verificou todos os pacientes de sua enfermaria e atualizou os prontuários. Então chegou a hora de passar o plantão para a equipe da noite.

           Vestiu sua capa de chuva e pendurou a cesta no braço. Agora precisava sair do prédio levando o material que tinha roubado, e seu medo tornou a aumentar.

           Frieda Franck estava indo embora na mesma hora, e as duas saíram juntas. Sua amiga não fazia a menor ideia de que Carla estava contrabandeando material. Elas seguiram até a parada do bonde sob o sol do mês de junho. Carla só usava a capa para manter o uniforme limpo.

           Acreditava estar passando uma impressão convincente de normalidade até Frieda lhe perguntar:

           – Está preocupada com alguma coisa?

           – Não, por quê?

           – Você parece nervosa.

           – Estou bem. – Para mudar de assunto, apontou para um cartaz. – Olhe só aquilo.

           O governo tinha inaugurado uma exposição no Lustgarten, o parque que ficava em frente à catedral de Berlim. “Paraíso Soviético” era o título irônico da mostra que retratava a vida sob o regime comunista, qualificando o bolchevismo de truque dos judeus e os russos de eslavos sub-humanos. No entanto, os nazistas não estavam mais alcançando todos os seus objetivos, e alguém tinha percorrido a cidade colando um cartaz fictício que dizia:

            

           Instalação Permanente

            O PARAÍSO NAZISTA

            Guerra Fome Mentiras Gestapo

            Por quanto tempo ainda?

 

            Um desses cartazes estava pregado no abrigo da parada do bonde, e Carla sentiu uma onda de satisfação.

           – Quem será que cola esses cartazes? – perguntou.

           Frieda deu de ombros.

           – Seja quem for, são pessoas de coragem – comentou Carla. – Se fossem pegos, seriam mortos. – Então se lembrou do que trazia na cesta. Ela também seria morta caso fosse pega.

           – Com certeza – respondeu Frieda.

           Dessa vez foi sua amiga que pareceu um pouco nervosa. Seria ela uma das pessoas que colavam aqueles cartazes? Era pouco provável. Mas talvez seu namorado Heinrich fosse. Ele era bastante impetuoso e idealista, propenso a fazer esse tipo de coisa.

           – Como vai Heinrich? – perguntou Carla.

           – Ele quer se casar.

           – E você, não?

           Frieda baixou a voz:

           – Não quero ter filhos. – Era um comentário subversivo: as moças supostamente deveriam, de boa vontade, produzir filhos para o Führer. Frieda meneou a cabeça para o cartaz ilegal. – Não gostaria de trazer uma criança para este paraíso.

           – Acho que eu também não – concordou Carla. Talvez por isso houvesse recusado o convite do Dr. Ernst.

           Um bonde chegou, e as duas subiram. Carla pousou a cesta no colo de modo casual, como se esta não contivesse nada mais suspeito que um repolho. Examinou os outros passageiros. Ficou aliviada por não ver ninguém de uniforme.

           – Venha comigo até minha casa – disse Frieda. – Vamos ouvir jazz. Podemos pôr os discos de Werner.

           – Adoraria, mas não posso – respondeu Carla. – Tenho que dar um telefonema. Você se lembra da família Rothmann?

           Frieda olhou em volta, cautelosa. Rothmann podia ou não ser um nome judeu. Mas ninguém estava por perto para escutá-las.

           – É claro. Ele era nosso médico.

           – Ele não deveria mais exercer a profissão. Eva Rothmann foi para Londres antes da guerra e se casou com um soldado escocês. Mas os pais dela, é claro, não conseguem sair da Alemanha. O filho deles, Rudi, fabricava violinos... Parece que era um mestre nisso. Só que perdeu o emprego e agora conserta instrumentos e afina pianos. – Ele ia à casa dos Von Ulrich quatro vezes por ano para afinar o Steinway de cauda. – Enfim, eu disse que passaria hoje à noite para lhes fazer uma visita.

           – Ah – respondeu Frieda. Era o “ah” longo de quem tinha acabado de entender alguma coisa.

           – Ah, o quê? – indagou Carla.

           – Agora percebo por que você está segurando essa cesta como se contivesse o Santo Graal.

           Carla ficou pasma. Frieda tinha descoberto o seu segredo!

           – Como você sabe?

           – Você disse que ele não deveria praticar. Dando a entender que ele ainda pratica.

           Carla se deu conta de que havia denunciado o Dr. Rothmann. Deveria ter dito que ele não podia praticar. Felizmente, só revelara o segredo a Frieda.

           – O que mais ele poderia fazer? – indagou. – As pessoas batem à sua porta implorando ajuda. Ele não pode mandar os doentes embora! Não que ganhe algum dinheiro com isso... Todos os seus pacientes são judeus ou pobres, e lhe pagam com umas poucas batatas ou um ovo.

           – Não precisa defendê-lo para mim – disse Frieda. – Eu o considero corajoso. E você é uma verdadeira heroína por roubar material do hospital e levar para ele. É a primeira vez?

           Carla fez que não com a cabeça.

           – Terceira. Mas me sinto uma tola por ter deixado você descobrir.

           – Você não é tola. É que eu a conheço bem demais.

           O bonde se aproximou do ponto de Carla.

           – Deseje-me sorte – pediu ela, e desceu.

           Ao entrar em casa, ouviu notas hesitantes vindas do piano que ficava no andar de cima. Maud estava com um aluno. Carla ficou contente. Dar aulas alegrava sua mãe e lhe rendia algum dinheiro.

           Ela tirou a capa de chuva e entrou na cozinha para cumprimentar Ada. Quando Maud havia anunciado que não podia mais pagar seu salário, a criada perguntara se poderia ficar mesmo assim. Agora tinha um emprego à noite, como faxineira num escritório, e trabalhava na casa dos Von Ulrich em troca de casa e comida.

           Carla tirou os sapatos debaixo da mesa e esfregou os pés um no outro para aliviar a dor. Ada lhe preparou uma xícara de Ersatz.

           Maud entrou na cozinha com os olhos brilhando.

           – Um aluno novo! – falou. Mostrou a Carla um maço de notas. – E ele quer ter uma aula por dia!

           Maud o deixara treinando escalas, e seu dedilhar de iniciante ecoava ao fundo como se um gato estivesse andando sobre o teclado.

           – Que ótimo – comentou Carla. – Quem é?

           – Um nazista, claro. Mas precisamos do dinheiro.

           – Qual é o nome dele?

           – Joachim Koch. É bem jovem e tímido. Se conhecê-lo, por favor, morda a língua e seja educada.

           – Claro.

           Maud saiu da cozinha.

           Carla bebeu com gosto o arremedo de café. Como quase todo mundo, já tinha se acostumado com o sabor de cereais queimados.

           Passou alguns minutos batendo papo com Ada. A criada, outrora rechonchuda, estava magra. Poucas pessoas eram gordas na Alemanha desses tempos. Mas havia algo errado com ela. A morte de Kurt, seu filho deficiente, fora um golpe e tanto. Ada tinha um aspecto letárgico. Era competente no que fazia, mas depois passava horas sentada olhando pela janela, com uma expressão vazia. Carla tinha carinho por ela e podia sentir sua angústia, mas não sabia como ajudá-la.

           O som do piano cessou e, pouco depois, Carla ouviu duas vozes no hall de entrada, a da mãe e a de um homem. Supôs que Maud estivesse acompanhando Herr Koch até a porta. Instantes depois, ficou horrorizada ao vê-la entrar na cozinha seguida de perto por um homem vestido com um impecável uniforme de tenente.

           – Esta aqui é minha filha – apresentou Maud, alegre. – Carla, este é o tenente Koch, meu novo aluno.

           Koch era um rapaz atraente, de 20 e poucos anos, e parecia tímido. Tinha um bigode louro que fez Carla se lembrar das fotos do pai quando jovem.

           Seu coração disparou de medo. A cesta com o material médico roubado estava em cima da cadeira da cozinha ao seu lado. Será que ela sem querer revelaria seu segredo para o tenente Koch, do mesmo jeito que fizera com Frieda?

           Quase não conseguiu falar.

           – Pr-pr-prazer em conhecê-lo – articulou, por fim.

           Maud olhou para a filha com um ar curioso, surpresa por vê-la tão nervosa. Queria apenas que Carla fosse simpática com seu novo aluno, na esperança de que ele continuasse com as aulas. Não via mal nenhum em convidar um oficial do Exército para entrar em sua cozinha. Nem desconfiava que Carla estivesse carregando material roubado na cesta de compras.

           Koch fez uma mesura formal e disse:

           – O prazer é todo meu.

           – E esta é Ada.

           Ela lançou ao tenente um olhar hostil, mas ele não percebeu: não reparava em criadas. Apoiou o peso do corpo em uma das pernas e postou-se meio de lado, tentando parecer à vontade, mas passando a impressão contrária.

           Koch se comportava como se fosse mais jovem. Tinha um ar inocente que sugeria uma criança superprotegida. Mesmo assim, era uma ameaça.

           Mudando de posição, ele apoiou as mãos no encosto da cadeira sobre a qual Carla havia posto a cesta.

           – Estou vendo que a senhorita é enfermeira – falou.

           – Sim.

           Carla tentou pensar com calma. Será que Koch tinha alguma ideia sobre quem eram os Von Ulrich? Talvez fosse jovem demais para saber o que era um social-democrata. Já fazia nove anos que o partido era ilegal. E era possível que a infâmia da família tivesse sido esquecida com a morte de Walter. Koch parecia considerá-las uma família alemã respeitável, que só era pobre porque havia perdido o homem que a sustentava, situação na qual se encontravam muitas mulheres bem-criadas.

           Não havia motivo algum para que ele olhasse o que havia na cesta.

           Carla forçou-se a ser agradável.

           – Como está se saindo no piano?

           – Acho que estou progredindo depressa! – Ele olhou de relance para Maud. – Pelo menos é o que diz minha professora.

           – Ele já mostrou que tem talento, mesmo no começo – disse Maud.

           Ela sempre dizia isso para incentivar os alunos a pagarem uma segunda aula. No entanto, Carla achou que a mãe estava sendo mais encantadora do que de hábito. É claro que Maud tinha o direito de flertar; já fazia mais de um ano que era viúva. Mas não era possível que tivesse algum interesse romântico por um homem com metade da sua idade.

           – Mas resolvi não contar nada aos meus amigos antes de ter dominado o instrumento – prosseguiu Koch. – Depois poderei surpreendê-los com meu talento.

           – Que divertido vai ser! – disse Maud. – Por favor, tenente, sente-se. Se tiver alguns minutos. – Ela apontou para a cadeira sobre a qual estava a cesta.

           Carla estendeu a mão para pegá-la, mas Koch foi mais rápido. Ergueu a cesta dizendo:

           – Permita-me. – Olhou rapidamente para o conteúdo. – Seu jantar, imagino? – comentou ao ver o repolho.

           – Sim – respondeu Carla. Sua voz saiu como um guincho.

           Koch se acomodou na cadeira e pousou a cesta no chão aos seus pés, do lado mais distante de Carla.

           – Sempre imaginei que pudesse ter talento musical. Agora decidi que é hora de averiguar se isso é verdade. – Ele cruzou e descruzou as pernas.

           Carla se perguntou por que ele estava tão nervoso. Não tinha nada a temer. Ocorreu-lhe que talvez o nervosismo fosse de cunho sexual. Ele estava sozinho com três mulheres solteiras. O que estaria lhe passando pela cabeça?

           Ada pôs uma xícara de café sobre a mesa diante do tenente. Ele pegou cigarros. Fumava como um adolescente, como se estivesse experimentando. Ada lhe deu um cinzeiro.

           – O tenente Koch trabalha no Ministério da Guerra, na Bendlerstrasse – disse Maud.

           – Isso mesmo!

           Era lá que ficava a sede do Estado-Maior. Seria mesmo melhor que Koch não falasse a ninguém do ministério sobre as aulas de piano. Aquele prédio abrigava todos os grandes segredos das Forças Armadas alemãs. Ainda que o próprio Koch não soubesse, alguns de seus colegas talvez se lembrassem de que Walter von Ulrich tinha sido antinazista. E isso seria o fim das aulas de piano com Frau Von Ulrich.

           – É um grande privilégio trabalhar lá – acrescentou o tenente.

           – Meu filho está na Rússia – disse Maud. – Estamos mortas de preocupação.

           – Nada mais natural quando se é mãe, claro – respondeu Koch. – Mas não seja pessimista, por favor! A recente contraofensiva russa foi fortemente repelida.

           Isso era mentira. A máquina de propaganda do regime não conseguia esconder o fato de que os russos tinham vencido a batalha de Moscou e obrigado os alemães a recuar mais de 150 quilômetros.

           – Agora estamos em condições de retomar nosso avanço – prosseguiu o tenente.

           – Tem certeza? – Maud tinha uma expressão ansiosa, e Carla sentia a mesma coisa. O temor do que poderia acontecer com Erik as torturava.

           Koch tentou abrir um sorriso de quem sabe das coisas.

           – Frau Von Ulrich, pode acreditar em mim: eu tenho certeza. Naturalmente não posso revelar tudo o que sei. No entanto, posso lhe garantir que uma nova e muito agressiva operação está sendo planejada.

           – Claro. Estou certa de que nossos soldados têm tudo de que precisam: comida suficiente, essas coisas. – Ela pousou a mão no braço de Koch. – Mesmo assim, fico preocupada. Sei que não deveria dizer isto, tenente, mas sinto que posso confiar no senhor.

           – É claro que pode.

           – Há meses não tenho notícias do meu filho. Não sei se ele está vivo ou morto.

           Koch levou a mão ao bolso para pegar um lápis e um bloco de notas.

           – Com certeza posso descobrir para a senhora – falou.

           – Pode mesmo? – perguntou Maud com os olhos arregalados.

           Carla pensou que talvez fosse esse o motivo do flerte.

           – Ah, sim – respondeu Koch. – Faço parte do Estado-Maior, a senhora sabe... mesmo que meu cargo seja humilde. – Ele tentou aparentar modéstia. – Posso perguntar sobre...

           – Erik.

           – Erik von Ulrich.

           – Seria maravilhoso. Ele é ordenança médico. Estava estudando medicina, mas ficou impaciente para lutar pelo Führer.

           Isso era verdade. Erik era um nazista fervoroso – embora suas últimas cartas para casa tivessem demonstrado um tom mais brando.

           Koch anotou o nome.

           – O senhor é um homem maravilhoso, tenente Koch – disse Maud.

           – Não por isso.

           – Fico tão feliz que estejamos prestes a contra-atacar no front oriental... Mas o senhor não deve me dizer quando esse ataque vai começar. Mesmo que eu esteja desesperada para saber.

           Maud estava tentando obter informações. Carla não entendeu por quê. Sua mãe não teria como usá-las.

           Koch baixou a voz, como se um espião pudesse ouvi-lo pela janela aberta da cozinha.

           – Será muito em breve – falou.

           Então correu os olhos pelas três mulheres. Carla viu que ele estava se deleitando com a atenção que recebia. Talvez fosse raro ter mulheres sorvendo suas palavras daquele jeito. Para prolongar o instante, ele arrematou:

           – A Operação Azul vai começar muito em breve.

           Maud olhou para ele, e seus olhos chisparam.

           – Operação Azul... que emocionante! – falou, com o mesmo tom que uma mulher usaria se um homem a convidasse para passar uma semana no Ritz de Paris.

           – No dia 28 de junho – sussurrou ele.

           Maud levou a mão ao peito.

           – Mas já? Que notícia maravilhosa.

           – Eu não deveria ter dito nada.

           Maud cobriu a mão do tenente com a sua.

           – Mas estou muito feliz que tenha dito. O senhor me fez sentir muito melhor.

           Koch ficou encarando a mão dela. Carla percebeu que o tenente não estava acostumado a ser tocado por mulheres. Ele ergueu os olhos da mão de Maud para seus olhos. A mãe abriu um sorriso caloroso – tão caloroso que Carla quase não acreditou que fosse completamente falso.

           Maud retirou a mão. Koch apagou o cigarro e se levantou.

           – Preciso ir andando – falou.

           Graças a Deus, pensou Carla.

           Ele se inclinou para ela.

           – Prazer em conhecê-la, Fräulein.

           – Até logo, tenente – respondeu Carla, indiferente.

           Maud o acompanhou até a porta dizendo:

           – Amanhã à mesma hora, então.

           Ao voltar para a cozinha, falou:

           – Que achado! Um menino bobo que trabalha no Estado-Maior!

           – Não entendo por que você está tão entusiasmada – disse Carla.

           – Ele é muito bonito – comentou Ada.

           – Ele nos deu informações secretas! – continuou Maud.

           – E de que elas nos servem? – desdenhou Carla. – Não somos espiãs.

           – Agora sabemos a data da próxima contraofensiva. Com certeza podemos dar um jeito de informar os russos.

           – Não sei como.

           – Dizem que estamos cercados por espiões.

           – Isso não passa de propaganda. Tudo que dá errado é atribuído à subversão de agentes secretos judeus-bolcheviques, e não à imperícia dos nazistas.

           – Mas deve haver alguns espiões de verdade.

           – E como entraríamos em contato com eles?

           Sua mãe pareceu refletir um pouco.

           – Eu falaria com Frieda.

           – Por que está dizendo isso?

           – Intuição.

           Carla se lembrou daquele instante na parada do bonde, quando fizera um comentário sobre quem pregava os cartazes antinazistas e Frieda havia ficado calada. Tinha a mesma intuição da mãe.

           Mas esse não era o único problema.

           – Mesmo se conseguíssemos, queremos trair nosso país?

           A resposta de Maud foi enfática:

           – Precisamos derrotar os nazistas.

           – Detesto os nazistas mais do que qualquer pessoa, mas continuo sendo alemã.

           – Entendo o que você está dizendo. Não gosto da ideia de me tornar uma traidora, mesmo tendo nascido na Inglaterra. Mas só vamos nos livrar dos nazistas se perdermos a guerra.

           – Mas imagine que déssemos um jeito de transmitir aos russos informações que garantissem a derrota alemã. Erik poderia morrer nessa batalha! Seu filho... meu irmão! Nós poderíamos ser responsáveis pela morte dele.

           Maud abriu a boca para responder, mas não conseguiu falar. Em vez disso, começou a chorar. Carla se levantou e abraçou a mãe.

           Um minuto depois, Maud sussurrou:

           – Ele pode morrer de qualquer forma. Pode morrer lutando pelo nazismo. Melhor que seja perdendo uma batalha do que ganhando.

           Carla não tinha tanta certeza.

           Ela soltou a mãe.

           – De toda forma, gostaria que você me avisasse antes de trazer uma pessoa assim para dentro da cozinha – falou, pegando a cesta do chão. – Foi uma sorte o tenente Koch não ter examinado isto aqui mais a fundo.

           – Por quê? O que há dentro dessa sua cesta?

           – Remédios para o Dr. Rothmann, roubados do hospital.

           Maud deu um sorriso orgulhoso por entre as lágrimas.

           – Essa é a minha menina!

           – Quase morri quando ele pegou a cesta.

           – Desculpe.

           – Você não tinha como saber. Mas vou me livrar destas coisas agora mesmo.

           – Boa ideia.

           Carla tornou a vestir a capa por cima do uniforme e saiu.

           Andou rapidamente até a rua em que os Rothmann moravam. A casa não era tão grande quanto a dos Von Ulrich, mas era uma residência urbana de boas proporções, com cômodos agradáveis. As janelas, porém, estavam fechadas com tábuas, e uma placa grosseira na porta informava: “Consultório fechado”.

           Os Rothmann já haviam sido uma família próspera. O Dr. Rothmann tinha um bem-sucedido consultório, com muitos pacientes ricos. Também atendia os pobres por preços mais módicos. Agora, porém, restavam apenas os pobres.

           Carla deu a volta até os fundos, como faziam os pacientes.

           Na mesma hora percebeu que havia algo errado. A porta estava aberta e, quando entrou na cozinha, viu um violão com o braço quebrado caído no chão de ladrilhos. Não havia ninguém ali, mas ela ouviu ruídos vindos de outro lugar da casa.

           Atravessou a cozinha e chegou ao hall de entrada. Havia dois cômodos principais no térreo. Antigamente, eram a sala de espera e a de consultas. Agora, a primeira estava disfarçada de sala de estar; e a segunda fora transformada em ateliê para Rudi: uma bancada, ferramentas para trabalhar a madeira e meia dúzia de bandolins, violinos e violoncelos em estágios variados de conserto. Os equipamentos médicos costumavam ficar guardados em armários trancados, escondidos.

           Só que não mais, constatou Carla ao entrar.

           Os armários tinham sido abertos; e seu conteúdo, jogado para fora. O chão estava coalhado de vidro quebrado e comprimidos, pós e líquidos diversos. Em meio aos destroços, Carla viu um estetoscópio e um medidor de pressão. Partes de vários instrumentos estavam espalhadas, obviamente derrubadas da mesa e pisoteadas.

           Carla sentiu choque e repulsa. Quanto desperdício!

           Então espiou dentro do outro cômodo. Rudi Rothmann estava caído num canto. Era um rapaz de 22 anos, alto, de porte atlético. Tinha os olhos fechados e gemia de dor.

           Hannelore, sua mãe, estava ajoelhada ao seu lado. Outrora uma loura atraente, Hannelore agora estava grisalha e magra.

           – O que houve? – perguntou Carla, temendo a resposta.

           – A polícia – respondeu Hannelore. – Eles acusaram meu marido de tratar pacientes arianos. Levaram-no embora. Rudi tentou impedi-los de destruir tudo. Eles... – Ela engasgou.

           Carla pousou a cesta no chão e foi se ajoelhar ao lado de Hannelore.

           – O que eles fizeram?

           Hannelore recuperou a voz:

           – Quebraram as mãos dele.

           Foi então que Carla viu. As mãos de Rudi estavam vermelhas e terrivelmente deformadas. A polícia parecia ter quebrado seus dedos um a um. Não era de espantar que ele estivesse gemendo. Carla ficou enjoada. No entanto, via horrores como aquele todos os dias, e sabia reprimir os próprios sentimentos para prestar auxílio prático.

           – Ele precisa de morfina – falou.

           Hannelore apontou para a bagunça no chão.

           – Se tínhamos alguma, não temos mais.

           Carla sentiu uma onda de raiva. Até mesmo os hospitais estavam trabalhando com estoques limitados, e ainda assim a polícia tinha desperdiçado remédios preciosos numa orgia de destruição.

           – Eu trouxe morfina.

           Ela pegou na cesta uma ampola de líquido transparente e a seringa nova. Com gestos rápidos, tirou a seringa da caixa e a encheu com o líquido. Então aplicou a morfina em Rudi.

           O efeito foi quase instantâneo. Os gemidos cessaram. Ele abriu os olhos e olhou para Carla.

           – Você é um anjo – falou. Então fechou os olhos e pareceu adormecer.

           – Temos que tentar pôr os dedos dele no lugar – disse Carla. – Para os ossos se calcificarem na posição certa.

           Ela tocou a mão esquerda de Rudi. Não houve reação. Segurou a mão e a levantou. O rapaz continuou sem se mexer.

           – Nunca consertei ossos na vida – disse Hannelore. – Mas já vi isso ser feito várias vezes.

           – Eu também – disse Carla. – Mas é melhor tentarmos. Eu faço a mão esquerda, e a senhora cuida da direita. Temos que terminar antes que o efeito do remédio passe. Deus bem sabe que ele já vai sentir dor suficiente.

           – Está bem – concordou Hannelore.

           Carla ainda aguardou mais alguns instantes. Sua mãe tinha razão. Elas precisavam fazer tudo o que pudessem para pôr fim àquele regime, mesmo que isso significasse trair seu país. Não tinha mais dúvida alguma em relação a isso.

           – Vamos lá – falou.

           Com muita delicadeza e cuidado, as duas começaram a endireitar as mãos quebradas de Rudi.

 

           Toda sexta-feira à tarde, Thomas Macke ia ao bar Tannenberg.

           O lugar não era lá grande coisa. Numa das paredes havia a fotografia emoldurada do proprietário, Fritz, 25 anos mais jovem e sem a barriga de cerveja, usando um uniforme da Primeira Guerra Mundial. Ele alegava ter matado nove russos na batalha de Tannenberg. O bar tinha poucas mesas e cadeiras, mas todos os clientes regulares se sentavam ao balcão. O cardápio com capa de couro era quase todo fictício: os únicos pratos servidos eram linguiça com batata ou linguiça sem batata.

           No entanto, o bar ficava em frente à delegacia de Kreuzberg, e por isso era muito frequentado por policiais. Isso significava que o estabelecimento podia infringir todas as regras. A jogatina corria solta, prostitutas faziam sexo oral nos banheiros e os inspetores de saúde da prefeitura de Berlim jamais entravam na cozinha. O bar abria quando Fritz acordava e fechava quando o último cliente ia para casa.

           Anos atrás, antes de os nazistas assumirem o poder e darem uma chance a homens como ele, Macke era um modesto funcionário da delegacia de Kreuzberg. Alguns de seus ex-colegas ainda bebiam no Tannenberg, e ele podia ter certeza de cruzar com um ou dois rostos conhecidos. Ainda gostava de conversar com velhos amigos, embora agora estivesse bem acima deles na carreira, uma vez que se tornara inspetor e membro da SS.

           – Você se saiu bem, Thomas, ninguém pode negar – comentou Bernhardt Engel, que, em 1932, era o sargento superior a Macke na delegacia e até hoje mantinha a mesma patente. – Boa sorte, filho – disse, levando aos lábios a caneca de cerveja que Macke lhe trouxera.

           – Não vou discordar – retrucou Macke. – Mas posso dizer que o superintendente Kringelein é bem pior como chefe do que você.

           – Eu era muito molenga com os rapazes – reconheceu Bernhardt.

           Outro ex-colega, Franz Edel, riu com sarcasmo.

           – Eu não diria exatamente molenga!

           Olhando pela janela, Macke viu uma moto encostar em frente ao bar, conduzida por um rapaz que usava o casaco azul-claro curto com cinto de um oficial da Aeronáutica. O jovem lhe pareceu conhecido: Macke já o vira em algum lugar. Tinha cabelos ruivos, meio compridos demais, que caíam sobre uma testa aristocrática. Ele atravessou a calçada e entrou no Tannenberg.

           Macke então se lembrou do nome do rapaz. Aquele era Werner Franck, filho mimado de Ludi Franck, o fabricante de rádios.

           Werner foi até o bar e pediu um maço de cigarros Kamel. Que previsível, pensou Macke: o playboy fumava cigarros de estilo americano, mesmo que fossem uma imitação alemã.

           Werner pagou, abriu o maço, sacou um cigarro e pediu fogo a Fritz. Quando se virou para ir embora, com o cigarro pendurado na boca num ângulo provocante, seu olhar encontrou o de Macke e, após refletir por alguns instantes, falou:

           – Inspetor Macke.

           Todos os clientes do bar olharam para Macke para ver o que ele iria dizer.

           Ele meneou a cabeça num gesto casual.

           – Como vai, jovem Werner?

           – Muito bem, inspetor, obrigado.

           O tom respeitoso agradou Macke, mas também o deixou surpreso. Ele se lembrava de Werner como um rapaz impertinente e arrogante, sem o devido respeito pelas autoridades.

           – Acabo de voltar de uma visita ao front oriental com o general Dorn – continuou Werner.

           Macke sentiu que os policiais no bar começaram a prestar atenção na conversa. Um homem que visitara o front oriental merecia respeito. Macke não pôde evitar uma certa satisfação por ter deixado todos eles impressionados com os altos círculos que frequentava.

           Werner estendeu o maço de cigarros para Macke, que aceitou um.

           – Uma cerveja – disse Werner para Fritz. Então virou-se novamente para Macke. – Posso lhe oferecer uma bebida, inspetor?

           – A mesma coisa para mim, obrigado.

           Fritz encheu duas canecas de cerveja. Werner ergueu a sua até junto da de Macke e disse:

           – Quero lhe agradecer.

           Outra surpresa.

           – Por quê? – indagou Macke.

           Todos os seus amigos escutavam com atenção.

           – Um ano atrás, o senhor me passou um tremendo sermão – disse Werner.

           – Você não pareceu muito grato na época.

           – E peço desculpas por isso. Mas pensei muito sobre o que o senhor me disse e acabei me dando conta de que o senhor tinha razão. Eu havia deixado meus sentimentos pessoais prejudicarem meu julgamento. O senhor me fez ver a luz. Nunca me esquecerei disso.

           Macke ficou tocado. Tinha antipatizado com Werner e sido ríspido com ele. O rapaz, no entanto, prestara atenção no que ele dissera e tomara juízo. Macke sentiu uma onda de contentamento por ter feito tanta diferença na vida de um jovem.

           – Na verdade, pensei no senhor outro dia mesmo – continuou Werner. – O general Dorn estava falando sobre pegar espiões e perguntou se poderíamos localizá-los por meio de suas mensagens de rádio. Temo não ter sido capaz de lhe dar muitas informações.

           – Deveria ter me perguntado – falou Macke. – Essa é a minha especialidade.

           – É mesmo?

           – Venha, vamos nos sentar.

           Os dois levaram as bebidas até uma mesa suja.

           – Todos os homens aqui são policiais – explicou Macke. – Mesmo assim, não se deve falar em público sobre esses assuntos.

           – Claro. – Werner baixou a voz: – Mas sei que posso confiar no senhor. O fato é que alguns dos comandantes do campo de batalha disseram achar que o inimigo muitas vezes conhece nossas intenções com antecedência.

           – Ah! – exclamou Macke. – Eu já temia isso.

           – O que posso dizer a Dorn sobre a interceptação de mensagens de rádio?

           – O termo correto é radiogoniometria.

           Macke pareceu ordenar os pensamentos. Aquela era a sua oportunidade de impressionar um general influente, ainda que de forma indireta. Ele precisava ser claro e insistir na importância do que estava fazendo, mas sem exaltar muito seu sucesso. Imaginou o general Dorn comentando casualmente com o Führer: “Há um agente muito bom na Gestapo. Seu nome é Macke. Por enquanto é só um inspetor, mas faz um trabalho bem impressionante...”

           – Nós temos um instrumento que nos informa a direção de onde a mensagem está vindo – começou ele. – Se conseguirmos obter três leituras de locais bem afastados um do outro, podemos desenhar três linhas no mapa. O ponto em que as linhas se cruzam corresponde à localização do transmissor.

           – Que fantástico!

           Macke ergueu uma das mãos num gesto de cautela.

           – Em tese – falou. – Na prática, é mais complicado. O pianista, que é como chamamos o operador de rádio, em geral não fica no local por tempo suficiente para podermos encontrá-lo. Um pianista cuidadoso nunca transmite mensagens do mesmo lugar duas vezes. E nosso instrumento fica dentro de uma caminhonete com uma antena no teto que chama bastante atenção, então eles podem nos ver chegando.

           – Mas vocês já tiveram sucessos.

           – Ah, sim. Mas talvez você devesse sair na caminhonete conosco uma noite dessas. Então poderia observar todo o processo... e fazer um relatório em primeira mão para o general Dorn.

           – Boa ideia – disse Werner.

 

           Moscou em junho estava ensolarada e quente. Era a hora do almoço, e Volodya esperava Zoya junto a um chafariz nos Jardins de Alexandre, atrás do Kremlin. Centenas de pessoas, entre elas muitos casais, passeavam pelo parque para aproveitar o bom tempo. A vida andava difícil, e a água do chafariz fora desligada para poupar energia. Apesar disso, o céu estava azul; as árvores, repletas de folhas; e o Exército alemão, estacionado a mais de 150 quilômetros da capital.

           Sempre que pensava na batalha de Moscou, Volodya se enchia de orgulho. O temido Exército alemão, mestre da Blitzkrieg, chegara aos portões da cidade – e fora repelido. Os soldados russos haviam lutado como leões para salvar sua capital.

           Infelizmente, o contra-ataque russo perdera fôlego em março. Tinham conseguido reconquistar muito território e fazer os moscovitas se sentirem mais seguros, mas os alemães haviam lambido suas feridas e estavam se preparando para atacar outra vez.

           E Stalin continuava no comando.

           Volodya viu Zoya vindo na sua direção em meio à multidão. Ela estava com um vestido quadriculado vermelho e branco. Andava com energia, e os cabelos louro-claros pareciam se mover a cada passo. Todos os homens olhavam para ela.

           Volodya já tinha saído com algumas mulheres bonitas, mas o fato de estar namorando Zoya lhe causava surpresa. Ela passara muitos anos tratando-o com uma indiferença fria, e só conversando com ele sobre física nuclear. Então, um belo dia, para seu espanto, convidara-o para ir ao cinema.

           Fora pouco depois do motim no qual o general Bobrov morrera. A atitude da moça para com ele havia mudado nesse dia, embora ele não soubesse muito bem por quê. De alguma forma, essa experiência compartilhada criara uma intimidade entre eles. Os dois tinham ido assistir ao filme George’s Dinky Jazz Band, comédia rasgada estrelada por um inglês tocador de ukulele chamado George Formby. Muito popular, o filme estava em cartaz em Moscou havia meses. A história não poderia estar mais distante da realidade: sem que George soubesse, seu instrumento estava enviando mensagens para submarinos alemães. Era tudo tão bobo que os dois morreram de rir.

           Desde então, vinham saindo regularmente.

           Nesse dia, haviam combinado almoçar com o pai dele. Volodya marcara de encontrar Zoya antes, no chafariz, a fim de passar alguns minutos sozinho com ela.

           Zoya o presenteou com seu sorriso radiante e ficou na ponta dos pés para beijá-lo. Era uma mulher alta, mas Volodya era ainda mais alto. Ele saboreou aquele instante. Sentiu o contato macio e úmido dos lábios dela nos seus. O beijo foi curto demais.

           Ainda não estava totalmente seguro em relação a Zoya. Os dois estavam “se conhecendo”. Beijavam-se muito, mas ainda não tinham dormido juntos. Não eram mais tão jovens: ele tinha 27 anos e ela, 28. Apesar disso, Volodya sentia que Zoya só iria para a cama com ele quando estivesse pronta.

           Parte dele ainda não acreditava que fosse possível passar a noite com aquela mulher dos sonhos. Ela lhe parecia demasiadamente loura, inteligente, alta, segura de si e sensual para se entregar a um homem. Não era possível que ele um dia fosse vê-la tirar a roupa e que tivesse a chance de admirar seu corpo nu, tocar cada centímetro de sua pele, deitar-se sobre ela...

           Os dois atravessaram o parque longo e estreito. Em um dos lados passava uma rua movimentada. Do outro lado, as torres do Kremlin encimavam um muro alto que percorria toda a sua extensão.

           – Olhando para essas torres, a impressão que se tem é que nossos líderes são mantidos prisioneiros pelo povo russo – comentou Volodya.

           – É mesmo – concordou Zoya. – E não o contrário.

           Ele olhou para trás, mas ninguém os havia escutado. Mesmo assim, era imprudente falar daquele jeito.

           – Não é de espantar que meu pai ache você perigosa.

           – Eu pensava que você fosse igual ao seu pai.

           – Quem me dera. Ele é um herói. Invadiu o Palácio de Inverno! Não acho que eu algum dia vá mudar o curso da história.

           – Ah, eu sei, mas a cabeça dele é tão fechada, ele é tão conservador... Você não é assim.

           Volodya pensou que era bastante parecido com o pai, mas não iria discutir.

           – Está livre hoje à noite? – perguntou ela. – Eu gostaria de cozinhar para você.

           – Claro! – Era a primeira vez que ela o convidava para ir à sua casa.

           – Consegui um pedaço de carne.

           – Que ótimo!

           Mesmo na casa privilegiada de Volodya, carne de boa qualidade era um manjar.

           – E os Kovalev viajaram – acrescentou Zoya.

           Essa notícia era ainda melhor. Como muitos moscovitas, Zoya morava na casa de outra família. Tinha dois cômodos para si, e dividia a cozinha e o banheiro com o Dr. Kovalev, cientista como ela, sua esposa e o filho. Mas eles estavam fora da cidade, então Zoya e Volodya teriam o apartamento para si. A pulsação dele se acelerou.

           – Devo levar minha escova de dentes? – perguntou.

           Ela lhe deu um sorriso enigmático e não respondeu.

           Os dois saíram do parque e atravessaram a rua até um restaurante. Muitos estavam fechados, mas o centro tinha vários escritórios cujos funcionários precisavam almoçar em algum lugar, e alguns cafés e bares haviam sobrevivido.

           Grigori Peshkov estava sentado diante de uma mesa na calçada. Havia restaurantes melhores dentro do Kremlin, mas ele gostava de ser visto em locais frequentados por russos comuns. Queria mostrar que o fato de usar um uniforme de general não o tornava superior ao povo. Mesmo assim, tinha escolhido uma mesa bem afastada das outras, para que ninguém ouvisse sua conversa.

           Apesar de não gostar de Zoya, Grigori não era imune ao seu charme e levantou-se para beijá-la no rosto.

           Eles pediram panquecas de batata e cerveja. As únicas outras opções eram arenque defumado e vodca.

           – General, hoje não vou falar com o senhor sobre física nuclear – disse Zoya. – Continuo acreditando em tudo o que disse da última vez que conversamos sobre o assunto, mas não quero deixá-lo entediado.

           – Que alívio – comentou Grigori.

           Ela riu, mostrando os dentes brancos.

           – Em vez disso, o senhor pode me dizer por quanto tempo ainda vamos ficar em guerra?

           Volodya balançou a cabeça com um desespero fingido. Zoya sempre tinha que enfrentar o pai dele. Se não fosse uma linda jovem, Grigori já teria mandado prendê-la há muito tempo.

           – Os nazistas estão derrotados, mas não admitem – disse o general.

           – Todo mundo em Moscou está se perguntando o que vai acontecer neste verão... Mas vocês dois devem saber – disse Zoya.

           – Se eu soubesse, com certeza não poderia contar para a minha namorada, por mais que seja louco por ela – retrucou Volodya. No mínimo, isso poderia fazer com que ela fosse fuzilada, pensou, mas não disse em voz alta.

           As panquecas de batata chegaram, e os três começaram a comer. Como sempre, Zoya atacou o prato com vontade. Volodya adorava o entusiasmo com o qual ela devorava as refeições. Ele mesmo, contudo, não gostou muito das panquecas.

           – Estas batatas estão com um gosto bem suspeito de nabo – comentou.

           Seu pai lhe lançou um olhar de reprovação.

           – Não que eu esteja reclamando – acrescentou Volodya depressa.

           Quando eles terminaram o almoço, Zoya foi ao toalete. Assim que ela já estava longe o bastante, Volodya falou:

           – Consideramos a ofensiva alemã iminente.

           – Concordo – respondeu seu pai.

           – Nós estamos prontos?

           – Claro – respondeu Grigori, embora parecesse nervoso.

           – Eles vão atacar no sul. Querem os campos de petróleo do Cáucaso.

           Grigori fez que não com a cabeça.

           – Eles vão voltar para Moscou. Nada mais importa.

           – Stalingrado é uma cidade igualmente simbólica. Tem o nome do nosso líder.

           – Que se dane o simbolismo – bradou o general. – Se eles tomarem Moscou, a guerra terá acabado. Caso contrário, terão perdido. As outras conquistas não importam.

           – O senhor está apenas dando um palpite – disse Volodya, irritado.

           – Você também.

           – Pelo contrário, tenho provas. – Ele olhou em volta, mas não havia ninguém por perto. – O codinome da ofensiva é Operação Azul. Está marcada para 28 de junho. – Soubera disso graças à rede de espiões de Werner Franck em Berlim. – E encontramos detalhes parciais na pasta de um oficial alemão que se acidentou com um avião de reconhecimento ao tentar pousar perto de Kharkov.

           – Oficiais em missões de reconhecimento não carregam planos de batalha em pastas – disse Grigori. – O camarada Stalin acha que isso é uma farsa para nos enganar, e eu concordo. Os alemães querem que enfraqueçamos nossa frente central deslocando forças para o sul, para o que irá se revelar uma simples distração.

           Era esse o problema com o serviço de inteligência, pensou Volodya, frustrado. Mesmo quando você tinha a informação, velhos teimosos continuavam acreditando no que queriam.

           Viu Zoya voltando, atraindo todos os olhares para si ao atravessar a esplanada.

           – O que poderia convencê-lo? – perguntou Volodya ao pai antes de ela chegar.

           – Mais provas.

           – Por exemplo?

           Grigori pensou por alguns instantes, levando a pergunta a sério.

           – Consiga o plano de batalha para mim.

           Volodya suspirou. Werner Franck ainda não conseguira pôr as mãos no documento.

           – Se eu conseguir, Stalin vai reconsiderar?

           – Se você conseguir, pedirei a ele que faça isso.

           – Combinado – concluiu Volodya.

           Estava sendo precipitado. Não fazia ideia de como poderia conseguir um documento desses. Werner, Heinrich, Lili e os outros já estavam correndo muitos riscos. No entanto, teria que pressioná-los ainda mais.

           Zoya chegou à mesa, e Grigori se levantou. Como cada um tomaria uma direção diferente, despediram-se ali mesmo.

           – Nos vemos à noite – disse Zoya a Volodya.

           Ele lhe deu um beijo.

           – Chegarei às sete horas.

           – Leve a escova de dentes – completou ela.

           Ele foi embora feliz.

 

           Uma garota sempre percebe quando sua melhor amiga tem um segredo. Pode não saber o que é, mas tem certeza de que ele existe, como um móvel impossível de identificar escondido debaixo de um lençol. Com base em respostas desconfiadas e relutantes a perguntas inocentes, percebe que a amiga está saindo com alguém que não devia e, embora não saiba seu nome, pode supor que o amante proibido seja um homem casado, um estrangeiro de pele escura, ou então outra mulher. Admira o colar novo da amiga e sabe, por sua reação muda, que ele tem ligação com algo vergonhoso, embora talvez leve anos para descobrir que foi roubado da caixa de joias de uma avó senil.

           Era essa a impressão que Carla tinha com relação a Frieda.

           Ela guardava um segredo, e tinha a ver com a resistência aos nazistas. Talvez estivesse profundamente envolvida em alguma atividade criminosa; talvez vasculhasse todas as noites a pasta do irmão, Werner, copiasse documentos secretos e entregasse as cópias para algum espião russo. O mais provável, porém, era que não fosse nada tão radical assim: talvez ajudasse a imprimir e distribuir os cartazes e folhetos ilegais que criticavam o governo.

           Dessa forma, Carla decidira contar a Frieda sobre Joachim Koch. Só não teve uma oportunidade imediata. Carla e Frieda eram enfermeiras num grande hospital, cada uma trabalhava num setor e tinham escalas diferentes, por isso não se viam todos os dias.

           Enquanto isso, Joachim ia à casa dos Von Ulrich diariamente para ter aulas de piano. O tenente não fez mais nenhuma revelação indiscreta, mas Maud continuava flertando com ele.

           – Você acredita que tenho quase 40 anos? – Carla ouviu a mãe dizer certo dia, embora na verdade Maud tivesse 51.

           Joachim estava totalmente fascinado por ela. Maud se alegrava por ainda ter o poder de fascinar um rapaz atraente, mesmo que muito ingênuo. Ocorreu a Carla a ideia de que a mãe talvez estivesse desenvolvendo sentimentos mais profundos por aquele rapaz de bigode louro que lembrava um pouco Walter quando jovem; mas isso lhe pareceu ridículo.

           Joachim estava louco para agradar Maud e não demorou a lhe trazer notícias do filho. Erik estava vivo e gozando de boa saúde.

           – A unidade dele está na Ucrânia – disse Joachim. – É tudo o que posso lhe dizer.

           – Seria tão bom se ele conseguisse uma licença para vir para casa... – disse Maud, em tom sonhador.

           O jovem oficial hesitou.

           – Preocupação de mãe é coisa séria – disse ela. – Se ao menos eu pudesse vê-lo, mesmo que só por um dia, seria um grande consolo para mim.

           – Eu talvez consiga arranjar isso.

           Maud fingiu surpresa:

           – É mesmo? Você é tão influente assim?

           – Não tenho certeza, mas poderia tentar.

           – Obrigada por ao menos tentar. – Ela beijou a mão do tenente.

           Uma semana se passou antes de Carla encontrar Frieda de novo. Quando a viu, contou-lhe sobre Joachim Koch. Falou como se estivesse apenas compartilhando uma novidade interessante, mas teve certeza de que a amiga não iria interpretar aquilo como uma informação inocente.

           – Imagine só! – exclamou. – Ele nos disse o codinome de uma operação e a data do ataque! – Esperou para ver como Frieda iria reagir.

           – Ele poderia ser executado por isso – disse a amiga.

           – Se conhecêssemos alguém capaz de entrar em contato com Moscou, poderíamos mudar o curso da guerra – continuou Carla, como se ainda estivesse falando sobre a gravidade do crime de Joachim.

           – É, pode ser – disse Frieda.

           Aquilo era uma prova irrefutável. A reação normal de Frieda a uma história como aquela incluiria expressões de surpresa, um grande interesse e mais perguntas. No entanto, ela se ateve a expressões neutras e grunhidos vagos. Carla foi para casa e disse à mãe que sua intuição estava certa.

           No dia seguinte, no hospital, Frieda entrou na enfermaria de Carla com ar de desespero.

           – Preciso falar com você. É urgente – anunciou.

           Carla estava trocando o curativo de uma moça que havia sofrido graves queimaduras na explosão de uma fábrica de munição.

           – Vá para o vestiário – falou Carla. – Irei assim que puder.

           Cinco minutos depois, encontrou Frieda no cômodo apertado, fumando junto a uma janela aberta.

           – O que houve? – perguntou.

           Frieda apagou o cigarro.

           – É sobre o tenente Koch.

           – Pensei mesmo que fosse.

           – Você tem que descobrir mais coisas sobre ele.

           – Tenho? Que história é essa?

           – Ele tem acesso a todo o plano de batalha da Operação Azul. Já sabemos algumas coisas sobre a operação, mas Moscou precisa dos detalhes.

           Frieda estava partindo de vários pressupostos, mas Carla entrou no jogo:

           – Posso perguntar a ele...

           – Não. Você tem que fazer com que ele leve o plano até sua casa.

           – Não tenho certeza se isso vai ser possível. Ele não é completamente burro. Você não acha...

           Mas Frieda nem sequer estava ouvindo.

           – Então você tem que fotografar os planos – prosseguiu. Ela tirou do bolso do uniforme uma caixinha de aço inox mais ou menos do tamanho de um maço de cigarros, só que mais comprida e mais estreita. – Isto aqui é uma câmera em miniatura especialmente projetada para fotografar documentos. – Carla reparou na palavra “Minox” escrita na lateral. – Cada filme tira onze fotos. Aqui tem três filmes. – Ela sacou três cartuchos com o formato de halteres de ginástica, só que pequenos o suficiente para caberem na pequena câmera. – É assim que se põe o filme. – Frieda lhe mostrou. – Para tirar a foto, você olha por este visor aqui. Se não estiver segura, leia este manual.

           Carla nunca imaginou que Frieda fosse tão mandona.

           – Preciso pensar melhor.

           – Não há tempo para isso. Esta capa é sua, não é?

           – É, mas...

           Frieda enfiou a câmera, os filmes e o manual de instruções no bolso da capa. O fato de não estar mais com essas coisas pareceu deixá-la aliviada.

           – Tenho que ir – disse Frieda e se encaminhou para a porta.

           – Mas, Frieda!

           Por fim, ela parou e encarou Carla.

           – O que foi?

           – Bem... Você não está se comportando como amiga.

           – Isso é mais importante que amizade.

           – Você me encurralou.

           – Quem criou essa situação foi você, ao me falar sobre Joachim Koch. Não venha fingir que achou que eu não tomaria nenhuma atitude em relação à informação que me deu.

           Era verdade. A própria Carla criara aquela situação. No entanto, não havia previsto que as coisas fossem se desenrolar daquela forma.

           – E se ele disser não?

           – Nesse caso, você provavelmente vai passar o resto da vida sob o jugo dos nazistas. – Frieda saiu do vestiário.

           – Droga – resmungou Carla.

           Ficou parada lá dentro, pensando. Não poderia nem se livrar da pequena câmera sem correr riscos. O aparelho estava no bolso de sua capa, e ela não poderia jogá-lo fora em uma das lixeiras do hospital. Teria que sair do prédio com a câmera no bolso e tentar encontrar um lugar onde pudesse jogá-la fora sem que ninguém visse.

           Mas queria mesmo fazer isso?

           Por mais ingênuo que Koch fosse, parecia-lhe improvável que pudesse ser convencido a tirar uma cópia do plano de batalha do Ministério da Guerra e levá-la para mostrar à mulher por quem estava apaixonado. No entanto, se havia alguém capaz de convencê-lo, essa pessoa era Maud.

           Mas Carla estava com medo. Se fosse pega, teria um destino inclemente. Seria presa e torturada. Pensou em Rudi Rothmann, gemendo de dor por causa dos ossos quebrados. Lembrou-se do pai ao ser solto da prisão, tão brutalmente espancado que acabara morrendo. Seu crime seria pior que o deles; sua punição, bestial. Ela seria executada, é claro – mas só depois de muito tempo.

           Disse a si mesma que estava disposta a correr esse risco.

           O que não conseguia aceitar era arriscar-se a ajudar a matar o próprio irmão.

           Erik estava no front oriental. Joachim tinha confirmado isso. Seu irmão devia estar envolvido na Operação Azul. Se Carla ajudasse os russos a vencer essa batalha, Erik poderia morrer. E isso ela não podia suportar.

           Voltou ao trabalho. Estava distraída e cometeu alguns erros, mas, por sorte, os médicos não perceberam, e os pacientes não sabiam a diferença. Quando seu plantão finalmente acabou, ela foi embora depressa. A câmera parecia queimar no bolso da capa, mas ela não viu nenhum lugar seguro para descartá-la.

           Perguntou-se onde Frieda arrumara o aparelho. Sua amiga possuía bastante dinheiro e poderia muito bem ter comprado a câmera; mas para isso teria sido obrigada a inventar uma justificativa para precisar de um aparelho assim. O mais provável era ter conseguido a câmera com os russos antes de eles fecharem sua embaixada, um ano antes.

           Quando Carla chegou em casa, a câmera continuava em seu bolso.

           Não ouviu o barulho do piano lá em cima: Joachim devia ter aula mais tarde nesse dia. Sua mãe estava sentada à mesa da cozinha. Quando Carla entrou, Maud sorriu, radiante, e exclamou:

           – Olhe quem está aqui!

           Erik.

           Carla encarou o irmão. Ele estava muito magro, mas aparentemente ileso. Tinha o uniforme encardido e rasgado, mas havia lavado o rosto e as mãos. Levantou-se e abraçou a irmã.

           Ela o apertou com força, sem se importar em sujar o uniforme imaculado.

           – Você está vivo! – exclamou.

           Erik estava tão magro que ela pôde sentir seus ossos através do tecido fino: costelas, quadris, ombros, coluna.

           – Estou vivo, por enquanto – respondeu ele.

           Ela o soltou.

           – Como você está?

           – Melhor do que a maioria.

           – Não é possível que tenha suportado o inverno russo usando esse uniforme fino.

           – Roubei um sobretudo de um russo morto.

           Carla sentou-se à mesa. Ada também estava lá.

           – Você tinha razão em relação aos nazistas. Tinha razão – disse Erik.

           Ela ficou satisfeita, mas não entendeu direito o que o irmão estava querendo dizer.

           – Razão em que sentido?

           – Eles matam pessoas. Você me disse isso. Papai também me disse, e mamãe. Lamento ter duvidado. Desculpe-me, Ada, por não ter acreditado que eles mataram seu pobre Kurt. Agora sei a verdade.

           Aquilo era uma mudança e tanto.

           – O que fez você mudar de ideia? – perguntou Carla.

           – Eu vi com meus próprios olhos lá na Rússia. Eles reúnem todas as pessoas importantes da cidade, porque decerto são todas comunistas. E pegam os judeus, também. Não só os homens, mas mulheres e crianças igualmente. E velhos tão frágeis que são incapazes de fazer mal a uma mosca. – A essa altura do relato, lágrimas já escorriam por seu rosto. – Quem mata não são os soldados normais... há grupos especiais para isso. Eles levam os prisioneiros para fora da cidade. Às vezes há uma pedreira, ou algum outro tipo de vala. Ou então eles obrigam os mais jovens a cavarem um grande buraco. Aí...

           Ele engasgou, mas Carla tinha que ouvir a história toda.

           – Aí, o quê?

           – Eles matam 12 pessoas de cada vez. Seis pares. Às vezes os maridos e mulheres descem a encosta de mãos dadas. As mães carregam os bebês no colo. Os soldados armados com fuzis esperam os prisioneiros chegarem ao lugar certo. Então atiram. – Erik enxugou as lágrimas com a manga suja do uniforme.

           Um longo silêncio caiu sobre a cozinha. Ada chorava. Carla estava horrorizada. Apenas Maud mantinha um semblante impassível.

           Depois de algum tempo, Erik assoou o nariz e tirou os cigarros do bolso.

           – Fiquei espantado ao receber a licença e uma passagem para casa – falou.

           – Quando você precisa voltar? – perguntou Carla.

           – Amanhã. A licença é só de 24 horas. Mesmo assim, todos os meus colegas ficaram com inveja. Eles dariam tudo para passar um dia em casa. O Dr. Weiss disse que eu devo ter amigos muito bem situados.

           – E tem mesmo – disse Maud. – O nome dele é Joachim Koch, um jovem tenente que trabalha no Ministério da Guerra e tem aulas de piano comigo. Pedi a ele que lhe conseguisse uma licença. – Ela olhou de relance para o relógio. – Ele deve chegar em alguns minutos. Afeiçoou-se a mim... acho que deve estar precisando de uma figura materna.

           Figura materna o caramba, pensou Carla. Não havia nada de maternal na relação de Maud com Joachim.

           – Ele é muito inocente – prosseguiu Maud. – Disse-nos que vai haver uma ofensiva no front oriental, marcada para o dia 28 de junho. Chegou até a nos revelar o codinome da ofensiva: Operação Azul.

           – Ele vai acabar sendo fuzilado – comentou Erik.

           – Joachim não é o único que pode ser fuzilado – disse Carla. – Contei para uma pessoa o que tinha ouvido. Agora me pediram que convencesse Joachim, não sei como, a me trazer o plano de batalha.

           – Meu Deus do céu! – Erik estava abismado. – Isso é alta espionagem... Você está correndo mais perigo do que eu no front!

           – Não se preocupe, duvido muito que Joachim faça isso – disse Carla.

           – Não tenha tanta certeza – disse Maud.

           Todos olharam para ela.

           – Talvez ele faça isso por mim... se eu souber pedir.

           – Ele é tão ingênuo assim?

           Maud assumiu um ar desafiador.

           – Ele está apaixonado por mim.

           – Ah...

           Pensar na mãe envolvida em um relacionamento amoroso deixou Erik constrangido.

           – Seja como for, não podemos fazer isso – disse Carla.

           – Por que não? – indagou Erik.

           – Porque, se os russos ganharem a batalha, você pode morrer!

           – Provavelmente vou morrer, de qualquer jeito.

           Carla ouviu a própria voz ficar mais agitada e aguda:

           – Mas estaríamos ajudando os russos a matarem você!

           – Mesmo assim, quero que vocês façam isso – disse Erik, de um ímpeto.

           Ele baixou os olhos para o linóleo xadrez que cobria a mesa da cozinha, mas a cena que via estava a mais de mil quilômetros dali.

           Carla estava muito dividida. Se o irmão queria que ela fizesse aquilo...

           – Mas por quê? – perguntou ela.

           – Fico pensando naquelas pessoas descendo a encosta da pedreira, de mãos dadas. – Sobre a mesa, apertou as próprias mãos, uma na outra, com força suficiente para deixar a pele marcada. – Se pudermos dar um fim a isso, estou disposto a arriscar minha vida. Quero arriscar... Vou me sentir melhor em relação a mim mesmo e ao meu país. Por favor, Carla, se puder, transmita esse plano de batalha para os russos.

           Ela ainda estava hesitante.

           – Tem certeza?

           – Eu lhe imploro.

           – Então vou transmitir – disse ela.

 

           Thomas Macke disse a seus homens – Wagner, Richter e Schneider – para se comportarem da melhor forma possível.

           – Werner Franck é só um tenente, mas trabalha para o general Dorn. Quero que ele tenha a melhor impressão possível da nossa equipe e do nosso trabalho. Nada de palavrões, piadas, comida em serviço nem violência, a menos que seja realmente necessário. Se capturarmos um espião comunista, podem dar uns chutes nele. Mas, se não pegarmos ninguém, não quero que vocês arranjem outro qualquer só por diversão.

           Em geral, ele deixava passar esse tipo de coisa, pois ajudava a manter as pessoas temerosas de desagradar os nazistas. Mas Franck talvez fosse um rapaz sensível.

           Werner chegou pontualmente, de moto, à sede da Gestapo na Prinz-Albrecht-Strasse. Todos entraram na caminhonete de vigilância, equipada com uma antena giratória no teto. Havia tanto equipamento de rádio lá dentro que o espaço era apertado. Richter assumiu o volante, e eles saíram pela cidade naquele início de noite, horário preferido pelos espiões para mandar mensagens para o inimigo.

           – Por que será? – indagou Werner.

           – A maioria dos espiões tem um emprego regular – explicou Macke. – Faz parte do seu disfarce. Então passam o dia trabalhando em algum escritório ou fábrica.

           – Claro – disse Werner. – Nunca pensei nisso.

           Macke estava preocupado com a possibilidade de não captar nada nessa noite. Morria de medo de ser responsabilizado pelos revezes sofridos pelo Exército alemão na Rússia. Tinha feito o melhor que podia, mas, no Terceiro Reich, esforços não rendiam prêmios.

           Às vezes acontecia de a unidade não interceptar mensagem alguma. Em outras ocasiões, captava duas ou três, e Macke tinha que escolher qual delas seguir e quais ignorar. Tinha certeza de que havia mais de uma rede de espionagem na cidade, e elas provavelmente ignoravam a existência umas das outras. Ele estava tentando fazer um trabalho impossível com ferramentas inadequadas.

           Estavam perto da Potsdamerplatz quando captaram uma mensagem. Macke reconheceu o som característico.

           – É um pianista – falou, aliviado. Ao menos poderia provar a Werner que o equipamento funcionava. Alguém estava transmitindo números de cinco algarismos, um depois do outro. – A inteligência soviética usa um código no qual pares de algarismos representam letras – explicou Macke a Werner. – Por exemplo, 11 pode ser um A. Transmitir sinais em grupos de cinco algarismos é só uma convenção.

           O operador de rádio, um engenheiro elétrico chamado Mann, leu em voz alta um conjunto de coordenadas, e Wagner usou um lápis e uma régua para traçar uma linha num mapa. Richter engatou a marcha da caminhonete e tornou a andar.

           O pianista continuou a transmitir a mensagem, e os bipes ecoavam bem alto dentro da caminhonete. Fosse quem fosse aquele operador, Macke o detestava.

           – Comunista imundo – bradou. – Um dia ele vai estar no nosso subsolo, implorando para que eu o deixe morrer e acabe logo com a dor.

           Werner perdeu a cor. Não estava acostumado com o trabalho da polícia, pensou Macke.

           Em poucos instantes, o rapaz recuperou o controle.

           – Do jeito que o senhor descreve, o código soviético não parece muito difícil de quebrar – falou, pensativo.

           – Correto! – Macke estava satisfeito por Werner ter entendido tão depressa. – Mas eu estava simplificando. Eles têm alguns refinamentos. Depois de codificar a mensagem como uma série de algarismos, o pianista escreve uma palavra-chave debaixo dela repetidas vezes... Uma palavra como Kurfürstendamm, digamos... E depois a codifica também. Então subtrai os segundos algarismos dos primeiros e transmite o resultado.

           – Ou seja, é quase impossível decifrar o código sem conhecer a palavra-chave!

           – Exatamente.

           Eles tornaram a parar perto do prédio incendiado do Reichstag e traçaram uma segunda linha no mapa. As duas linhas se cruzavam em Friedrichshain, a leste do centro.

           Macke ordenou ao motorista que seguisse para nordeste, aproximando-os do local provável, para lhes proporcionar uma terceira linha de um ângulo diferente.

           – A experiência mostra que é melhor fazer três medições – disse Macke a Werner. – O equipamento trabalha com aproximação, e as medições suplementares reduzem a margem de erro.

           – Vocês sempre pegam o espião? – perguntou Werner.

           – De forma alguma. Na maioria dos casos, não o pegamos. Muitas vezes simplesmente não conseguimos ser rápidos o bastante. Ele pode mudar de frequência no meio da transmissão, então nós o perdemos. Há ocasiões em que ele para a transmissão no meio e retoma de outro lugar. Também pode ter algum cúmplice vigiando, que nos vê chegar e o alerta para fugir.

           – Vários empecilhos possíveis.

           – Mais cedo ou mais tarde, porém, acabaremos pegando o pianista.

           Richter parou a caminhonete, e Mann fez a terceira medição. As três linhas traçadas a lápis no mapa de Wagner se encontravam formando um pequeno triângulo perto da estação do Leste. O pianista estava em algum lugar entre a ferrovia e o canal.

           Macke informou a localização a Richter e acrescentou:

           – O mais rápido que puder.

           Reparou que Werner estava suando. Talvez estivesse mesmo quente dentro da caminhonete. Além do mais, o jovem tenente não devia estar acostumado a ver muita ação. Estava aprendendo como era a vida na Gestapo. Melhor assim, pensou Macke.

           Richter seguiu para o sul pela Warschauer Strasse, atravessou a linha do trem e entrou num bairro industrial de armazéns, depósitos e pequenas fábricas. Um grupo de soldados carregava bolsas militares em frente a uma das entradas dos fundos da estação; deviam estar embarcando para o front oriental. E, em algum lugar deste mesmo bairro, um conterrâneo está fazendo o que pode para traí-los, pensou Macke, zangado.

           Wagner apontou para uma rua estreita que saía da estação.

           – Ele está nos primeiros cento e poucos metros da rua, mas pode ser de qualquer um dos lados – falou. – Se levarmos a caminhonete até mais perto, talvez ele nos veja.

           – Certo, pessoal, vocês sabem o que fazer – disse Macke. – Wagner e Richter vão pela esquerda. Schneider e eu vamos pela direita. – Os quatro empunharam martelos de cabo comprido. – Franck, venha comigo.

           Havia algumas pessoas na rua – um homem de boina de operário seguia depressa em direção à estação; uma velha de roupas esfarrapadas caminhava pela rua, decerto indo fazer faxina em algum escritório. Todos os passantes se afastaram apressados, sem querer atrair a atenção da Gestapo.

           Os dois grupos de agentes foram entrando nos prédios um após outro, cada parceiro se alternando para seguir na frente. A maioria dos estabelecimentos já estava fechada, por isso precisaram acordar alguns zeladores. Quando estes demoravam mais de um minuto para chegar à porta, eles a derrubavam. Uma vez lá dentro, percorriam o prédio depressa, verificando todas as salas.

           O pianista não estava no primeiro quarteirão.

           O primeiro prédio do lado esquerdo do quarteirão seguinte tinha um cartaz desbotado que informava: “Moda em Peles”. Era uma fábrica de dois andares que se estendia até a rua lateral. Parecia abandonada, mas a porta da frente era de aço, e as janelas, gradeadas: uma fábrica de peles precisava mesmo de muita segurança.

           Macke conduziu Werner pela rua lateral, à procura de uma entrada. O prédio ao lado, em ruínas, fora danificado por bombas. O entulho tinha sido retirado da rua, e uma placa pintada à mão dizia: “Perigo – Entrada Proibida”. Os restos de um letreiro identificavam o local como um armazém de móveis.

           Eles passaram por cima de uma pilha de pedras e tábuas cheias de farpas, tentando avançar o mais depressa possível, mas sendo obrigados a tomar cuidado. Uma parede remanescente ocultava os fundos do prédio. Macke foi até a parte de trás e encontrou um buraco que conduzia à fábrica contígua.

           Tinha a forte sensação de que o pianista estava lá dentro.

           Passou pelo buraco, e Werner o seguiu.

           Eles se viram dentro de um escritório vazio. Havia uma velha escrivaninha de aço, sem cadeira, e um arquivo na outra ponta. O calendário preso à parede era do ano de 1939, provavelmente o último em que os berlinenses tinham podido pagar por frivolidades como casacos de pele.

           Macke ouviu um passo no piso do andar de cima.

           Sacou a arma.

           Werner estava desarmado.

           Eles abriram a porta do escritório e chegaram a um corredor.

           Macke reparou em várias outras portas abertas. Havia também uma escada e, debaixo dela, uma porta que talvez levasse ao subsolo.

           O inspetor caminhou na ponta dos pés pelo corredor em direção à escada, então percebeu que Werner estava verificando a passagem para o subsolo.

           – Acho que ouvi um barulho vindo lá de baixo – disse o rapaz.

           Ele girou a maçaneta, mas o trinco da porta era frágil. Deu um passo para trás e ergueu o pé direito.

           – Não... – disse Macke.

           – Sim... posso ouvi-los! – disse Werner, abrindo a porta com um chute.

           O estrondo ecoou pela fábrica vazia.

           Werner entrou correndo pela porta e sumiu. Uma luz se acendeu, revelando uma escada de pedra.

           – Não se mexa! – gritou Werner. – Você está preso!

           Macke desceu a escada atrás dele.

           Quando chegou ao subsolo, encontrou Werner de pé no fim da escada, com uma expressão de quem não estava entendendo.

           Não havia ninguém ali.

           Do teto pendiam varais nos quais provavelmente deviam ficar pendurados os casacos de pele. Em pé num dos cantos via-se um imenso rolo de papel pardo, decerto para embrulhar as roupas. Mas não havia nenhum rádio, tampouco nenhum espião transmitindo mensagens para Moscou.

           – Seu imbecil de merda – disse Macke a Werner.

           O inspetor deu meia-volta e tornou a subir a escada correndo. Werner foi atrás. Os dois atravessaram o saguão da fábrica e se dirigiram ao andar de cima.

           Existiam três filas de mesas de trabalho sob um teto de vidro. Antigamente, aquela sala devia viver cheia de mulheres operando máquinas de costura. Agora não havia ninguém ali.

           Uma porta de vidro conduzia a uma saída de incêndio, mas estava trancada. Macke olhou para fora e não viu ninguém.

           Guardou a arma. Ofegante, apoiou-se numa das bancadas.

           No chão, reparou em duas guimbas de cigarro, uma delas suja de batom. Não pareciam muito antigas.

           – Eles estavam aqui – disse a Werner, apontando para o chão. – Eram dois. O barulho da porta os alertou, e eles fugiram.

           – Fui um tolo – disse Werner. – Desculpe-me. Não estou acostumado com esse tipo de coisa.

           Macke foi até a janela do canto. Na rua, viu um rapaz e uma moça se afastando apressados. O homem carregava uma pasta de couro bege. Enquanto ele olhava, os dois desapareceram na estação de trem.

           – Merda – praguejou.

           – Não acho que eles fossem espiões – disse Werner. Ele apontou alguma coisa no chão, e Macke viu que era um preservativo amassado. – Usado, mas vazio – comentou o rapaz. – Acho que os pegamos no flagra.

           – Espero que esteja certo – falou Macke.

 

           No dia em que Joachim Koch prometeu levar o plano de batalha, Carla faltou ao trabalho.

           Provavelmente poderia ter cumprido seu plantão da manhã e ainda assim chegado em casa a tempo – mas “provavelmente” não bastava. Sempre havia o risco de algum grande incêndio ou um acidente na estrada a obrigarem a ficar depois do horário por causa do excesso de vítimas. Assim, ela passou o dia em casa.

           No fim das contas, Maud nem precisara pedir a Joachim que levasse os planos. O tenente lhe dissera que tinha que cancelar uma das aulas; então, sem conseguir resistir à tentação de se gabar, explicara que precisava levar uma cópia do plano até o outro lado da cidade.

           – Passe aqui no caminho, para a aula – sugerira Maud; e ele havia concordado.

           O almoço foi tenso. Carla e Maud comeram uma sopa rala feita com o osso de um presunto e ervilhas secas. Carla não perguntou o que a mãe tinha feito, ou prometido fazer, para convencer Koch. Talvez houvesse lhe dito que ele estava evoluindo bastante, mas não podia se dar ao luxo de faltar a uma aula. Talvez tivesse lhe perguntado se ele possuía um cargo tão baixo no Ministério a ponto de ser monitorado o tempo todo: um comentário assim iria ferir seus brios, já que ele vivia fingindo ser mais importante do que de fato era, e poderia facilmente fazer com que ele fosse até lá só para mostrar que ela estava errada. No entanto, a estratégia de sucesso mais provável era justamente aquela em que Carla não queria pensar: sexo. Sua mãe flertava com Koch abertamente, e ele retribuía com uma devoção digna de um escravo. Carla desconfiava que fosse essa a irresistível tentação que tinha feito Joachim ignorar a vozinha em sua mente que dizia: “Não seja tão burro.”

           Ou talvez não. Quem sabe ele não cairia em si? Talvez aparecesse nessa tarde não com uma cópia em papel carbono dentro da bolsa, mas com um esquadrão da Gestapo e um par de algemas.

           Carla carregou um dos filmes na máquina Minox, em seguida guardou a câmera e os dois filmes restantes na primeira gaveta do armário baixo da cozinha, sob uns panos. O armário ficava ao lado da janela, onde a luz era forte. Ela fotografaria o documento sobre o tampo do armário.

           Não sabia como o filme exposto chegaria a Moscou, mas Frieda lhe garantira que chegaria, e Carla imaginava algum mascate – um vendedor de produtos farmacêuticos, talvez, ou de Bíblias em alemão – com autorização para fazer comércio na Suíça que pudesse entregar o filme discretamente a alguém da embaixada soviética em Berna.

           A tarde foi longa. Maud foi para o quarto descansar. Ada lavou roupa. Carla ficou sentada na sala de jantar, que ela e a mãe agora raramente usavam, e tentou ler um livro, mas não conseguiu se concentrar. O jornal só publicava mentiras. Ela precisava estudar para uma prova de enfermagem que faria em breve, mas as expressões médicas do manual se embaralhavam diante de seus olhos. Estava lendo um exemplar antigo de Nada de novo no front, um sucesso de vendas alemão sobre a Grande Guerra, agora proibido por sua honestidade excessiva em relação às agruras dos soldados. No entanto, só conseguiu ficar segurando o livro, olhando pela janela para o sol de junho que aquecia a cidade poeirenta.

           Por fim, o tenente apareceu. Carla ouviu passos no caminho que conduzia à casa e pulou para olhar pela janela. Não viu nenhum esquadrão da Gestapo, apenas Joachim Koch de uniforme passado e botas engraxadas, com seu rosto de galã de cinema iluminado pela mesma expectativa ansiosa de uma criança que chega a uma festinha de aniversário. Como sempre, trazia a bolsa de lona pendurada no ombro. Teria mantido a promessa? Será que aquela bolsa continha uma cópia do plano de batalha da Operação Azul?

           Ele tocou a campainha.

           Daquele momento em diante, Carla e Maud haviam planejado cada um de seus movimentos. Seguindo o combinado, Carla não atendeu. Instantes depois, viu a mãe atravessar o hall vestida com um robe de seda roxa e calçando chinelos de salto alto – praticamente uma prostituta, pensou Carla, cheia de vergonha e constrangimento. Ouviu a porta da frente se abrir, depois tornar a se fechar. Um farfalhar de seda acompanhado de sussurros carinhosos vindos do hall sugeriu um abraço. Então o robe roxo e o uniforme cinza passaram pela porta da sala de jantar e desapareceram no andar de cima.

           A prioridade de Maud era se certificar de que ele havia trazido o documento. Devia lê-lo, fazer algum comentário de admiração e, em seguida, deixá-lo de lado. Conduziria Joachim até o piano. Então arrumaria algum pretexto – Carla tentou não pensar em qual seria – para conduzir o rapaz pela porta dupla que levava ao escritório contíguo, um cômodo menor e mais íntimo, com cortinas de veludo vermelho e um grande sofá já meio deformado. Assim que os dois estivessem lá dentro, Maud daria o sinal.

           Como era difícil prever a coreografia exata de seus movimentos, havia vários sinais possíveis, mas todos significavam a mesma coisa. O mais simples era que Maud bateria a porta com força suficiente para que o barulho ecoasse pela casa inteira. Ou então usaria a sineta de puxar que ficava ao lado da lareira e fazia soar uma campainha na cozinha, parte do sistema para chamar os criados que já não era mais usado. Mas as duas haviam decidido que qualquer outro barulho também poderia servir: em caso de desespero, ela derrubaria no chão o busto de mármore de Goethe, ou então quebraria um vaso “por acidente”.

           Carla saiu da sala de jantar e ficou em pé no hall, olhando para o alto da escada. Não ouviu nada.

           Espiou dentro da cozinha. Ada estava lavando a panela na qual havia preparado a sopa, e a esfregava com uma energia sem dúvida gerada pela tensão. Carla lhe lançou o que torceu para ser um sorriso encorajador. Ela e Maud teriam preferido não compartilhar toda aquela história com Ada, não por não confiarem nela – muito pelo contrário: sua hostilidade em relação aos nazistas beirava o fanatismo –, mas porque o simples fato de saber a tornava cúmplice de traição e passível da mais severa punição. As três, porém, eram próximas demais para que fosse possível manter um segredo assim, e Ada sabia de tudo.

           Carla ouviu o retinir distante da risada de Maud. Conhecia aquele som. A risada tinha um traço artificial, e indicava que sua mãe estava esticando ao máximo seus poderes de sedução.

           Será que Joachim tinha mesmo trazido o documento?

           Um ou dois minutos depois, Carla ouviu o piano. Não havia dúvida de que era Joachim tocando. A melodia era uma canção infantil simples sobre um gato na neve: A.B.C., Die Katze lief im Schnee. Seu pai cantara essa música para ela uma centena de vezes. Ao pensar nisso, sentiu um nó na garganta. Como os nazistas se atreviam a cantar músicas assim quando deixavam tantas crianças órfãs?

           De repente, a música parou no meio. Alguma coisa havia acontecido. Carla apurou os ouvidos – tentou detectar vozes, passos, qualquer coisa –, mas não ouviu nada.

           Um minuto se passou, depois outro.

           Algo dera errado – mas o quê?

           Olhou para Ada pela porta da cozinha. A criada parou de esfregar a panela e abriu os braços no gesto de quem diz: Não faço a menor ideia.

           Carla precisava descobrir.

           Subiu a escada sem fazer barulho, pisando com cuidado no carpete puído.

           Postou-se em frente à porta da sala de estar. Continuou sem ouvir coisa alguma: nem o som do piano, nem qualquer movimento ou voz.

           Abriu a porta o mais silenciosamente que pôde.

           Espiou lá para dentro. Não viu ninguém. Entrou na sala e olhou em volta. Estava vazia.

           Não havia nem sinal da bolsa de lona de Joachim.

           Então olhou para a porta dupla que conduzia ao escritório. Uma das folhas estava entreaberta.

           Carla atravessou a sala pé ante pé. Não havia tapete sobre os tacos de madeira encerada, e seus passos não foram totalmente silenciosos; mas ela precisava arriscar.

           Quando se aproximou, ouviu sussurros.

           Chegou à porta. Colou-se à parede e arriscou uma olhada para dentro do escritório.

           Os dois estavam de pé, abraçados, aos beijos. Joachim estava de costas para a porta e para Carla: sua mãe devia ter tomado cuidado para deixá-lo nessa posição. Enquanto Carla os observava, Maud interrompeu o beijo, olhou por cima do ombro do tenente e seus olhos encontraram os da filha. Largou o pescoço de Joachim e apontou com urgência para alguma coisa.

           Carla viu a bolsa de lona em cima de uma cadeira.

           Na mesma hora entendeu o que dera errado. Quando Maud convencera Joachim a ir até o escritório, ele não havia facilitado a vida delas deixando a bolsa na sala, mas, nervoso, a levara consigo.

           E agora Carla tinha que pegá-la.

           Com o coração aos pulos, entrou no escritório.

           – Ah, sim, continue fazendo isso, meu doce menino – murmurou Maud.

           – Amo você, querida – grunhiu Joachim.

           Carla deu dois passos à frente, pegou a bolsa de lona, virou as costas e saiu do escritório sem fazer barulho.

           A bolsa estava leve.

           Ela atravessou depressa a sala de estar e desceu correndo a escada, ofegante.

           Na cozinha, pôs a bolsa em cima da mesa e abriu as fivelas. Lá dentro, viu a edição do dia do jornal berlinense Der Angriff, um maço fechado de cigarros Kamel e uma pasta simples de cartolina parda. Com as mãos trêmulas, pegou a pasta e a abriu. Era a cópia em papel carbono de um documento.

           O cabeçalho da primeira página dizia:

            

           DIRETRIZ Nº 41

             

           Na última página havia uma linha pontilhada para uma assinatura. O documento ainda não estava assinado, sem dúvida por se tratar de uma cópia, mas o nome datilografado junto à linha pontilhada era Adolf Hitler.

           Entre essas duas páginas estava o plano da Operação Azul.

           Carla sentiu o coração se encher de júbilo, misturado à tensão que ela já sentia e ao terrível pavor de ser descoberta.

           Pôs o documento em cima do armário baixo junto à janela da cozinha. Abriu a gaveta com um puxão e pegou a câmera Minox e os dois rolos de filme. Posicionou o documento com cuidado e começou a fotografar cada página.

           Não demorou muito. Eram só dez folhas. Nem precisou trocar o filme. Pronto. Tinha roubado o plano de batalha.

           Esta foi por você, pai.

           Tornou a guardar a câmera na gaveta, fechou-a com um empurrão, recolocou o documento dentro da pasta de cartolina, pôs a pasta dentro da bolsa e a afivelou.

           Caminhando o mais silenciosamente possível, tornou a levar a bolsa até o andar de cima.

           Quando entrou na sala de estar pé ante pé, ouviu a voz da mãe. Maud falava de forma clara e distinta, como quem quer ser ouvido, e Carla sentiu na hora que aquilo era um alerta.

           – Por favor, não fique assim – dizia Maud. – É que você estava excitado demais. Nós dois estávamos.

           Joachim respondeu com uma voz baixa e envergonhada:

           – Sinto-me um tolo. Foi só você tocar em mim e tudo acabou.

           Carla pôde adivinhar o que havia acontecido. Não tinha nenhuma experiência no assunto, mas as moças conversavam, e as conversas das enfermeiras chegavam a ser brutais de tão detalhadas. Joachim devia ter tido uma ejaculação precoce. Frieda lhe contara que o mesmo havia acontecido com Heinrich várias vezes no começo do namoro, e que ele tinha morrido de vergonha, mas logo esquecido. Era sinal de nervosismo, explicara ela.

           O fato de as carícias de Maud e Joachim terem acabado tão cedo criava uma dificuldade para Carla. Joachim agora estaria mais atento, e não cego e surdo a tudo o que acontecia à sua volta.

           Ainda assim, Maud devia estar fazendo o possível para mantê-lo de costas para a porta. Se Carla conseguisse entrar no escritório por apenas um segundo, para recolocar a bolsa na cadeira sem que Joachim a visse, elas conseguiriam se safar.

           Com o coração batendo feito um tambor, Carla atravessou a sala e parou junto à porta aberta.

           – Isso acontece... – disse Maud, tentando reconfortá-lo. – O corpo fica impaciente. Não é nada.

           Carla passou a cabeça pela porta.

           Os dois continuavam de pé no mesmo lugar, muito próximos. Maud espiou por trás de Joachim e viu a filha. Levou a mão ao rosto do tenente para impedi-lo de olhar na direção de Carla e disse:

           – Beije-me outra vez e diga que não me odeia por causa desse pequeno incidente.

           Carla entrou no escritório.

           – Preciso de um cigarro – disse Joachim.

           Antes que ele se virasse, Carla tornou a sair depressa.

           Ficou esperando junto à porta. Será que ele estava com os cigarros no bolso, ou iria procurar o maço fechado na bolsa?

           A resposta veio um segundo depois.

           – Onde está minha bolsa? – perguntou ele.

           Carla sentiu o coração parar.

           A voz de Maud soou distinta:

           – Você deixou na sala de estar.

           – Não deixei, não.

           Carla atravessou a sala, largou a bolsa em cima da cadeira e saiu. Então parou no patamar da escada para escutar.

           Ouviu os dois saírem do escritório e entrarem na sala.

           – Ali está, como eu disse – falou Maud.

           – Eu não a deixei aqui – rebateu Joachim, teimoso. – Jurei não deixar esta bolsa longe dos meus olhos. Mas foi isso que fiz... quando a estava beijando.

           – Querido, você está chateado por causa do que aconteceu entre nós. Tente relaxar.

           – Alguém deve ter entrado na sala enquanto eu estava distraído...

           – Que ideia mais absurda.

           – Eu não acho.

           – Vamos nos sentar ao piano, bem juntinhos, como você gosta – disse ela, mas sua voz estava começando a soar desesperada.

           – Quem mais está em casa?

           Adivinhando o que iria acontecer em seguida, Carla desceu correndo a escada e entrou na cozinha. Ada a fitou, alarmada, mas não houve tempo para explicações.

           Ela ouviu as botas de Joachim na escada.

           Instantes depois, o tenente entrou na cozinha. Trazia na mão a bolsa de lona. Tinha uma expressão zangada no rosto. Olhou para Carla e para Ada.

           – Uma de vocês duas olhou dentro desta bolsa! – exclamou.

           Carla falou com a voz mais calma de que foi capaz:

           – Não sei por que você acha uma coisa dessas, Joachim.

           Maud surgiu atrás do tenente e passou por ele para entrar na cozinha.

           – Vamos tomar um café. Ada, por gentileza – falou, alegre. – Joachim, por favor, sente-se.

           Ele a ignorou e correu os olhos pela cozinha. Seu olhar se deteve no tampo do armário baixo junto à janela. Para seu horror, Carla constatou que, embora tivesse guardado a câmera na gaveta, esquecera os dois rolos de filme do lado de fora.

           – São rolos de filme de oito milímetros, não são? – perguntou Joachim. – Você tem uma câmera em miniatura?

           De repente, ele não parecia mais tão infantil.

           – É para isso que servem essas coisas? – indagou Maud. – Bem que eu estava me perguntando. Outro aluno as esqueceu aqui. Um oficial da Gestapo, na verdade.

           Foi uma improvisação inteligente, mas Joachim não se deixou enganar.

           – E será que ele também esqueceu a câmera? – perguntou, abrindo a gaveta.

           A pequena câmera de aço inox estava sobre um pano branco, tão visível quanto uma mancha de sangue.

           A expressão de Joachim era de puro choque. Talvez ele realmente não acreditasse que tinha sido vítima de traição e estivesse apenas fazendo um cena para compensar o vexame sexual, mas agora estava encarando a verdade pela primeira vez. Qualquer que fosse o motivo, passou alguns instantes atônito. Ainda segurando o puxador da gaveta, ficou encarando a câmera como se estivesse hipnotizado. Nesse breve instante, Carla viu que o sonho de amor de um rapaz fora despedaçado e que sua ira seria enorme.

           Por fim, ele levantou o rosto. Olhou para as três mulheres à sua volta e seu olhar se cravou em Maud.

           – Você fez mesmo isso – falou. – Você me enganou. Mas vai ser punida. – Pegou a câmera e os rolos de filme e os guardou no bolso. – Frau Von Ulrich, a senhora está presa. – Dando um passo à frente, ele a segurou pelo braço. – Vou levá-la para a sede da Gestapo.

           Maud soltou o braço e deu um passo para trás.

           Joachim lhe deu um soco, com toda a sua força. Era um homem alto, forte e jovem. O soco acertou Maud no rosto e a derrubou no chão.

           Joachim ficou de pé ao seu lado.

           – Você me fez de bobo! – gritou, com voz aguda. – Você mentiu, e eu acreditei! – Ele estava fora de si. – Vamos ser torturados pela Gestapo, os dois, e merecemos isso!

           Então começou a chutá-la. Ela tentou rolar para longe, mas esbarrou no fogão. A bota direita dele a atingiu nas costelas, na coxa e na barriga.

           Ada correu até Joachim e arranhou seu rosto com as unhas. Ele a enxotou com um movimento do braço. Então deu um chute na cabeça de Maud.

           Isso fez Carla agir.

           Ela sabia que as pessoas podiam se recuperar de vários tipos de trauma, mas que um golpe na cabeça muitas vezes causava danos irreparáveis. Esse pensamento, entretanto, não chegou a ser consciente. Ela agiu sem premeditação. Pegou sobre mesa da cozinha a pesada panela de sopa que Ada havia esfregado com tanta determinação. Segurando-a pelo cabo comprido, ergueu-a bem alto e baixou-a com toda a força na cabeça de Joachim.

           O tenente cambaleou, aturdido.

           Carla tornou a bater, dessa vez com mais força ainda.

           Joachim desabou no chão, inconsciente. Maud saiu da frente para não ser atingida pelo corpo dele e sentou-se apoiada na parede, segurando o próprio peito.

           Carla tornou a erguer a panela.

           – Não! Pare! – gritou Maud.

           Carla pousou a panela sobre a mesa da cozinha.

           Joachim se mexeu, tentando se levantar.

           Então Ada agarrou a panela e tornou a bater no tenente com fúria. Carla tentou segurar seu braço, mas a criada estava louca de raiva. Golpeou a cabeça do rapaz inconsciente inúmeras vezes, até ficar exausta, e então deixou a panela cair no chão com um clangor de metal.

           Com dificuldade, Maud se ajoelhou e encarou Joachim. O tenente tinha os olhos arregalados e fixos. Seu nariz estava torto. O crânio parecia deformado. Sangue escorria da orelha. Ele não parecia estar respirando.

           Carla se ajoelhou ao seu lado e levou a ponta dos dedos ao pescoço à procura de pulso. Não encontrou.

           – Ele está morto – falou. – Nós o matamos. Ah, meu Deus.

           – Seu pobre menino tolo – disse Maud, chorando.

           – O que vamos fazer agora? – perguntou Ada, ainda ofegante por causa do esforço.

           Carla se deu conta de que precisavam se livrar do corpo.

           Maud levantou-se com esforço. O lado esquerdo de seu rosto já começava a inchar.

           – Meu Deus, que dor – reclamou, segurando a lateral do corpo.

           Carla deduziu que estivesse com uma costela quebrada.

           Ada baixou os olhos para Joachim e disse:

           – Poderíamos escondê-lo no sótão.

           – Sim, até os vizinhos começarem a reclamar do cheiro – retrucou Carla.

           – Então vamos enterrá-lo no quintal.

           – E o que as pessoas vão pensar quando virem três mulheres cavando um buraco de dois metros de comprimento no quintal de uma casa em Berlim? Que estamos procurando ouro?

           – Poderíamos cavar de noite.

           – E isso por acaso iria parecer menos suspeito?

           Ada coçou a cabeça.

           – Temos que levar o corpo para algum lugar e jogá-lo fora – disse Carla. – Num parque ou num canal.

           – Mas como vamos carregá-lo? – perguntou Ada.

           – Ele não é muito pesado – disse Maud com tristeza. – Tão magro e forte.

           – O problema não é o peso – disse Carla. – Ada e eu podemos carregá-lo. Mas temos que dar um jeito de fazer isso sem levantar suspeitas.

           – Queria que tivéssemos um carro – falou Maud.

           Carla fez que não com a cabeça.

           – Ninguém consegue gasolina.

           Elas se calaram. Lá fora, a noite caía. Ada pegou uma toalha e envolveu a cabeça de Joachim para impedir que o sangue sujasse o piso. Maud chorava baixinho, e lágrimas rolavam por seu rosto contorcido de angústia. Carla queria reconfortar a mãe, mas primeiro tinha que resolver aquele problema.

           – Poderíamos colocá-lo dentro de uma caixa – falou.

           – A única caixa desse tamanho é um caixão – comentou Ada.

           – Que tal um móvel? Um aparador?

           – Pesado demais. – Ada pareceu refletir. – Mas o guarda-roupa do meu quarto não pesa tanto.

           Carla assentiu. Partia-se do princípio de que uma empregada não tinha muitas roupas nem precisava de móveis de mogno, pensou, constrangida. O quarto de Ada tinha apenas um cabideiro estreito feito de pinho barato.

           – Vamos pegar o guarda-roupa – falou.

           Antigamente, Ada morava no subsolo, mas esse cômodo agora tinha virado um abrigo antiaéreo, e ela dormia no andar de cima. Carla e ela subiram. Ada abriu o armário e tirou todas as suas roupas de dentro. Não eram muitas: dois conjuntos de uniforme, alguns vestidos, um sobretudo de inverno, todos velhos. Dispôs as roupas com esmero sobre a cama de solteiro.

           Carla inclinou o guarda-roupa para avaliar seu peso, e então Ada segurou a outra ponta. O móvel não era pesado, mas era grandalhão, e elas levaram algum tempo para conseguir fazê-lo passar pela porta e descer a escada.

           Por fim, deitaram o armário no hall com a porta virada para cima. Carla o abriu. O móvel agora parecia um caixão com tampa de dobradiça.

           Carla voltou à cozinha e abaixou-se junto ao cadáver. Tirou a câmera e os filmes do bolso de Joachim e tornou a guardá-los na gaveta da cozinha.

           Então segurou o corpo pelos braços. Ada pegou as pernas e, juntas, o ergueram. Carregaram-no para fora da cozinha até o hall e o puseram dentro do guarda-roupa. Embora o sangramento já tivesse parado, Ada rearrumou a toalha em volta da cabeça do tenente.

           Será que deveriam despir seu uniforme, perguntou-se Carla? Isso tornaria o corpo mais difícil de identificar – mas geraria dois problemas de eliminação de indícios em vez de um. Resolveu que era melhor não.

           Pegou a bolsa de lona e a jogou dentro do armário, com o corpo.

           Fechou a porta do armário e girou a chave para garantir que ele não se abrisse por acidente. Guardou a chave no bolso do vestido.

           Foi até a sala de estar e olhou pela janela.

           – Está escurecendo – falou. – Isso é bom.

           – O que as pessoas vão pensar? – indagou Maud.

           – Que estamos transportando um móvel... Para vender, quem sabe, e conseguir dinheiro para comprar comida.

           – Duas mulheres transportando um guarda-roupa?

           – Mulheres fazem esse tipo de coisa o tempo todo agora que tantos homens morreram ou estão no Exército. Afinal de contas, não podemos chamar um caminhão de mudanças... Eles não conseguiriam comprar gasolina.

           – Por que vocês estariam fazendo isso ao anoitecer?

           Carla deixou a frustração aflorar:

           – Não sei, mãe. Se alguém perguntar, vou ter que inventar uma desculpa. Mas o cadáver não pode ficar aqui.

           – Quando encontrarem o corpo, vão saber que ele foi assassinado. Vão examinar os ferimentos.

           Carla também estava preocupada com isso.

           – Não há nada que possamos fazer.

           – Eles podem tentar investigar os lugares aos quais ele foi hoje.

           – Ele disse que não contou a ninguém sobre as aulas de piano. Queria surpreender os amigos com sua habilidade. Com sorte, ninguém saberá que ele esteve aqui. – E sem sorte, pensou Carla, estamos todas mortas.

           – O que será que vão imaginar que motivou o assassinato?

           – Eles vão encontrar vestígios de sêmen na roupa de baixo dele?

           – Sim – disse Maud, olhando para outro lado, constrangida.

           – Nesse caso, partirão do pressuposto de que foi um encontro sexual, talvez com outro homem, que terminou em briga.

           – Tomara que você tenha razão.

           Carla não tinha certeza nenhuma, mas não conseguia pensar em nada que pudessem fazer a respeito.

           – Vamos jogá-lo no canal – disse ela.

           Mais cedo ou mais tarde, o corpo flutuaria e seria encontrado, e haveria uma investigação de assassinato. Tudo o que podiam fazer era torcer para que esta não conduzisse até elas.

           Carla abriu a porta da frente.

           Ficou em pé diante do armário, à esquerda, e Ada se posicionou atrás, à direita. As duas se abaixaram.

           A criada, sem dúvida mais experiente em carregar peso do que as patroas, deu as instruções:

           – Incline um pouco o guarda-roupa e ponha as mãos por baixo.

           Carla obedeceu.

           – Agora levante um pouquinho o seu lado.

           Carla assim o fez.

           Ada pôs as mãos sob o seu lado e disse:

           – Dobre os joelhos. Segure o peso. Agora levante.

           Elas ergueram o guarda-roupa até a altura dos quadris. Ada então se abaixou e pôs o ombro debaixo do móvel. Carla a imitou.

           As duas ficaram de pé.

           Ao descerem os degraus da porta da frente, o peso tombou para o lado de Carla, mas ela aguentou firme. Quando chegaram à rua, viraram na direção do canal, que ficava a alguns quarteirões dali.

           Agora escurecera por completo e não havia lua, apenas umas poucas estrelas que emitiam uma luz débil. Com o blecaute, havia uma boa chance de que ninguém as visse jogar o guarda-roupa no canal. A desvantagem era que Carla mal conseguia ver um palmo à sua frente. Ficou morta de medo de tropeçar, cair e de o guarda-roupa se espatifar, revelando o homem morto lá dentro.

           Uma ambulância passou, com os faróis tapados por protetores. Provavelmente se dirigia ao local de algum acidente. Havia muitos, por causa do blecaute. Isso significava que haveria carros de polícia por perto.

           Carla se lembrou de um caso de assassinato que fora sensação no início do blecaute. Um homem havia matado a mulher, enfiado o corpo dentro de um caixote e atravessado a cidade com o caixote no selim da bicicleta, no escuro, antes de jogá-la no rio Havel. Será que a polícia se lembraria do caso e desconfiaria de qualquer um que estivesse transportando um objeto volumoso?

           No momento em que pensava isso, um carro de polícia passou. Um policial olhou pela janela para as duas mulheres carregando o guarda-roupa, mas o carro não parou.

           O peso pareceu aumentar. A noite estava quente, e em pouco tempo Carla ficou coberta de suor. A madeira do guarda-roupa machucava seu ombro, e ela desejou ter pensado em pôr um lenço dobrado dentro da blusa para servir de proteção.

           Ao dobrar uma esquina, elas viram o acidente.

           Um caminhão articulado de quatro eixos carregado de madeira havia batido de frente com um Mercedes sedã que ficara seriamente amassado. Os faróis do carro de polícia e da ambulância iluminavam o acidente. Na pequena poça de luz fraca, um grupo de homens estava reunido em volta do carro. A batida devia ter acontecido poucos minutos antes, pois ainda havia pessoas dentro do carro. Um dos funcionários da ambulância, com o corpo debruçado pela porta traseira, devia estar examinando os ferimentos dos passageiros para ver se estes podiam ser retirados do veículo.

           Por um instante, Carla foi dominada pelo pânico. A culpa a petrificou, e ela parou onde estava. Mas ninguém as tinha visto carregando o armário, e em poucos instantes ela entendeu que bastava sair de fininho dali, recuar e pegar outro caminho até o canal.

           Começou a se virar. Nesse exato momento, porém, um policial mirou a lanterna na sua direção.

           Seu impulso foi largar o guarda-roupa e sair correndo, mas ela se conteve.

           – O que vocês estão fazendo? – perguntou o policial.

           – Transportando um guarda-roupa, senhor – respondeu ela. Recuperando a presença de espírito, fingiu uma curiosidade macabra para disfarçar o nervosismo e a culpa: – Que acidente foi esse? – indagou. – Alguém morreu? – completou, para garantir.

           Sabia que os profissionais não gostavam desse tipo de curiosidade mórbida – ela mesma era uma profissional. Conforme previa, o policial reagiu com descaso.

           – Não é da sua conta – respondeu ele. – Só não atrapalhem. – Dando-lhes as costas, ele virou a lanterna para o carro acidentado.

           A calçada do lado da rua mais perto delas estava livre. Carla tomou uma decisão rápida e seguiu direto. Ela e Ada foram carregando o guarda-roupa com o tenente morto bem na direção do acidente.

           Carla manteve os olhos pregados no pequeno grupo de funcionários de emergência que trabalhavam dentro do restrito círculo de luz. Estavam todos muito concentrados, e ninguém ergueu os olhos quando elas passaram.

           Chegar ao final do caminhão de quatro eixos pareceu levar uma eternidade. Então, quando finalmente chegaram à parte traseira, Carla teve uma inspiração.

           Parou.

           – O que foi? – sibilou Ada.

           – Por aqui. – Carla desceu para a rua, junto à traseira do caminhão. – Ponha o guarda-roupa no chão – sussurrou. – Não faça barulho.

           Delicadamente, as duas pousaram o guarda-roupa na rua.

           – Vamos deixar aqui? – sussurrou Ada.

           Carla tirou a chave do bolso e destrancou a porta do armário. Ergueu os olhos: até onde podia ver, os homens continuavam reunidos em volta do carro, a uns sete metros de onde elas estavam, na outra ponta do caminhão.

           Ela abriu a porta do guarda-roupa.

           Joachim Koch apareceu: olhos vazios a fitá-las do chão, cabeça envolta numa toalha ensanguentada.

           – Vamos desová-lo – falou. – Perto das rodas.

           Elas inclinaram o guarda-roupa e o corpo rolou para fora, indo parar perto dos pneus.

           Carla pegou o pano sujo de sangue e o jogou dentro do armário. Deixou a bolsa de lona caída junto ao cadáver: ficou feliz em se livrar dela. Fechou e trancou a porta do guarda-roupa; então as duas tornaram a suspender o móvel e saíram andando.

           Era fácil carregá-lo agora.

           Quando estavam a uns cinquenta metros, já na parte escura, Carla ouviu uma voz distante dizer:

           – Meu Deus, mais uma vítima... parece que um pedestre foi atropelado!

           As duas dobraram uma esquina, e Carla foi engolfada por uma onda de alívio. Ela havia se livrado do corpo. Se conseguisse chegar em casa sem chamar mais atenção – e sem ninguém olhar dentro do guarda-roupa e ver a toalha suja de sangue –, estaria segura. Não haveria investigação nenhuma de assassinato. Joachim havia se transformado num pedestre morto num acidente causado pelo blecaute. Se de fato houvesse sido arrastado pela rua calçada com paralelepípedos, talvez tivesse tido ferimentos parecidos com aqueles causados pela pesada panela de sopa de Ada. Um bom médico legista poderia até ver a diferença – mas ninguém julgaria necessário fazer uma necrópsia.

           Carla pensou em jogar fora o guarda-roupa, mas achou melhor não. Mesmo sem o pano, havia manchas de sangue em seu interior, e isso poderia gerar um inquérito policial. Melhor levar o móvel de volta e limpá-lo bem.

           As duas chegaram em casa sem cruzar com mais ninguém.

           Puseram o guarda-roupa no chão do hall. Ada pegou a toalha, levou-a para a pia da cozinha e abriu a torneira de água fria. Carla sentiu um misto de exultação e tristeza. Tinha roubado o plano de batalha dos nazistas, mas para isso precisara matar um rapaz que era mais tolo do que mau. Passaria muitos dias pensando nisso, anos talvez, antes de saber o que sentia a respeito. Por ora, estava cansada demais para pensar.

           Contou à mãe o que tinham feito. O lado esquerdo do rosto de Maud estava tão inchado que o olho quase não abria. Ela pressionava o flanco esquerdo como quem tenta aliviar uma dor. Tinha um aspecto lastimável.

           – Você foi muito corajosa, mãe – disse Carla. – Eu a admiro muito pelo que fez hoje.

           – Não me sinto digna de admiração – retrucou Maud, cansada. – Estou morta de vergonha. Tenho desprezo por mim mesma.

           – Porque não o amava? – indagou Carla.

           – Não – respondeu Maud. – Pelo contrário: porque amava.

             

1942 (III)

            Greg Peshkov formou-se em Harvard com a menção summa cum laude, a maior de todas as honras. Sem dificuldade alguma, poderia ter começado um doutorado em física, sua principal matéria, e assim evitado o serviço militar. Mas ele não queria ser cientista. Tinha ambição de exercer um tipo diferente de poder. Além do mais, quando a guerra terminasse, um histórico militar seria uma enorme vantagem para um jovem político em ascensão. Portanto, alistou-se.

           Por outro lado, não queria realmente ter que lutar.

           Enquanto acompanhava a guerra na Europa com interesse crescente, começou a pressionar todos os seus conhecidos de Washington – que eram muitos – para conseguir um cargo na sede do Departamento de Guerra.

           A ofensiva de verão alemã havia começado em 28 de junho e conseguira avançar depressa em direção ao leste, encontrando uma oposição relativamente leve até chegar à cidade de Stalingrado, antiga Tsaritsyn, onde fora interrompida pela feroz resistência russa. Agora os alemães estavam paralisados, com linhas de abastecimento excessivamente esticadas, e parecia cada vez mais que o Exército Vermelho os atraíra para uma armadilha.

           Greg estava no treinamento básico havia pouco tempo quando foi convocado à sala do coronel.

           – O Corpo de Engenheiros do Exército precisa de um jovem e brilhante oficial em Washington – disse o coronel. – Embora já tenha estagiado na capital, você não seria minha primeira escolha... Não consegue nem manter o uniforme limpo, veja só. Mas o trabalho exige conhecimento de física, e nossas alternativas são limitadas.

           – Fico grato, coronel – disse Greg.

           – Se tentar usar esse tipo de sarcasmo com seu novo chefe, vai se arrepender. Você vai trabalhar como assistente do coronel Groves. Nós estudamos juntos em West Point. Ele é o maior filho da puta que já conheci, dentro ou fora do Exército. Boa sorte.

           Greg ligou para Mike Penfold, na assessoria de imprensa do Departamento de Estado, e descobriu que, até recentemente, Leslie Groves era o principal responsável pelas obras de todas as Forças Armadas americanas, e comandara a construção do novo quartel-general de Washington, o imenso prédio de cinco lados que as pessoas estavam começando a chamar de Pentágono. Mas Groves havia sido transferido para um novo projeto sobre o qual ninguém sabia muita coisa. Alguns diziam que o coronel ofendia seus superiores com tanta frequência que na verdade fora rebaixado; segundo outros, porém, aquele novo cargo era ainda mais importante, altamente sigiloso. Num ponto, pelo menos, todos concordavam: o coronel era um sujeito cheio de si, arrogante e implacável.

           – Quer dizer que todo mundo odeia esse cara? – perguntou Greg.

           – Ah, não – respondeu Mike. – Só quem o conhece.

           Foi com muita ansiedade que o tenente Greg Peshkov chegou à sala de Groves no impressionante prédio novo do Departamento de Guerra, um palacete art déco bege-claro situado na esquina da Rua 21 com a Virginia Avenue. Não demorou a descobrir que fazia parte de um grupo chamado Distrito de Engenheiros de Manhattan. O nome intencionalmente pouco informativo camuflava uma equipe que tentava criar um novo tipo de bomba usando urânio como explosivo.

           Greg ficou intrigado. Sabia que o isótopo mais leve do urânio, o U-235, continha uma energia imensurável, e já lera vários artigos sobre o assunto em publicações científicas. Mas as notícias sobre a pesquisa haviam cessado alguns anos antes, e agora ele entendia por quê.

           Ficou sabendo que o presidente Roosevelt achava que o projeto estava avançando muito lentamente, e que Groves fora escolhido para estalar o chicote.

           Greg chegou seis dias depois de o coronel ser transferido. Seu primeiro trabalho para Groves foi ajudá-lo a prender estrelas no colarinho de sua camisa cáqui: ele acabara de ser promovido a general de brigada.

           – É mais para impressionar todos os cientistas civis com os quais temos que trabalhar – rosnou Groves. – Tenho uma reunião na sala do secretário de Guerra daqui a dez minutos. É melhor vir comigo, assim ficará informado.

           Groves era um homem pesado. Com 1,80m de altura, devia ter mais de 120 quilos. Usava a calça do uniforme bem alta na cintura, e sua barriga pulava sob o cinto de tecido grosso. Tinha cabelos ruivos que talvez ficassem encaracolados se ele os deixasse crescer. Tinha testa estreita, bochechas rechonchudas, e o queixo se prolongava numa papada. Usava um bigodinho praticamente invisível. Não era um homem atraente sob nenhum aspecto, e a ideia de trabalhar para ele não deixou Greg muito animado.

           Junto com um séquito que incluía Greg, o general saiu do prédio e desceu a Virginia Avenue até o National Mall. No caminho, Groves lhe disse:

           – Quando me deram este cargo, disseram que ele talvez possa ganhar a guerra. Não sei se é verdade, mas pretendo agir como se fosse. Aconselho você a fazer o mesmo.

           – Sim, senhor – respondeu Greg.

           O secretário de Guerra ainda não tinha se mudado para o Pentágono, cuja obra não fora concluída, e a sede do Departamento de Guerra continuava no antigo Prédio de Munições, estrutura “temporária” comprida, baixa e antiquada situada na Constitution Avenue.

           O secretário de Guerra, Henry Stimson, era republicano e fora nomeado pelo presidente para impedir seu partido de prejudicar o esforço de guerra, criando problemas no Congresso. Aos 75 anos, Stimson era um político experiente, um garboso senhor de bigode branco, mas o brilho da inteligência ainda luzia em seus olhos.

           Todos os oficiais presentes à reunião trajavam uniformes de gala, e a sala estava lotada de homens importantes, incluindo George Marshall, chefe do Estado-Maior do Exército. Greg ficou nervoso e pensou, com admiração, que Groves parecia surpreendentemente calmo para alguém que até a véspera não passava de um coronel.

           Seu chefe abriu a reunião enfatizando como pretendia pôr ordem nas centenas de cientistas civis e dezenas de laboratórios de física envolvidos no Projeto Manhattan. Não fez nenhuma tentativa de se mostrar deferente para com os detentores de cargos importantes ali presentes, que poderiam muito bem ter achado que assumiriam o controle da situação. Expôs seus planos sem se dar o trabalho de usar expressões subservientes como “com a sua permissão” ou “se os senhores estiverem de acordo”. Greg imaginou se o general por acaso estaria tentando ser demitido.

           Foram tantas informações novas que Greg quis tomar notas, mas ninguém mais estava fazendo isso, então concluiu que não ficaria bem.

           Quando Groves terminou de falar, um dos participantes disse:

           – Imagino que estoques de urânio sejam cruciais para o projeto. Nós temos urânio suficiente?

           Foi o próprio Groves quem respondeu:

           – Há 1.250 toneladas de pechblenda num depósito de Staten Island. A pechblenda é o mineral que contém o óxido de urânio.

           – Então deveríamos comprar um pouco desse mineral – disse o participante.

           – Já comprei tudo na sexta-feira, senhor.

           – Sexta-feira? Um dia depois da sua nomeação?

           – Positivo.

           O secretário de Guerra reprimiu um sorriso. O espanto de Greg com a arrogância de Groves começou a se transformar em admiração por sua ousadia.

           Um oficial com uniforme de almirante falou:

           – E qual é o grau de prioridade desse projeto? O senhor precisa do sinal verde do Conselho de Produção de Guerra.

           – Estive com Donald Nelson no sábado – disse Groves. Nelson era o civil responsável pelo Conselho. – Pedi a ele que aumentasse nossa prioridade.

           – E o que ele respondeu?

           – Não.

           – Isso é um problema.

           – Não mais. Eu disse a ele que teria de recomendar ao presidente que o Projeto Manhattan fosse abandonado porque o Conselho de Produção de Guerra não queria colaborar. Então ele nos pôs na categoria AAA.

           – Ótimo – disse o secretário de Guerra.

           Greg ficou novamente impressionado. Groves era mesmo uma metralhadora giratória.

           – Então, continuando – retomou Stimson –, o senhor será supervisionado por um comitê que irá se reportar a mim. Nove integrantes já foram sugeridos...

           – Nem pensar – interrompeu Groves.

           – Como é? – retrucou o secretário de Guerra.

           Dessa vez Groves tinha ido longe demais, pensou Greg.

           – Senhor secretário, não posso me reportar a um comitê de nove pessoas – contestou Groves. – Nunca vou conseguir me desvencilhar dele.

           Stimson sorriu. Parecia velho demais para se ofender com aquele tipo de conversa.

           – E que número o senhor sugeriria, general? – perguntou, afável.

           Greg viu que Groves queria responder “nenhum”, mas em vez disso falou:

           – Três seria perfeito.

           – Está bem – respondeu o secretário de Guerra, para assombro de Greg. – Mais alguma coisa?

           – Vamos precisar de uma área grande, algo em torno de 24 mil hectares, para uma fábrica de enriquecimento de urânio e construções anexas. Há um local apropriado em Oak Ridge, no Tennessee. É uma região de vales estreitos delimitados por longas cadeias de montanhas, assim, se houver algum acidente, a explosão será contida.

           – Acidente? – perguntou o almirante. – Isso é provável?

           Groves não escondeu sua opinião de que aquela era uma pergunta idiota.

           – Pelo amor de Deus, estamos produzindo uma bomba experimental – respondeu. – Uma bomba tão potente que promete aniquilar uma cidade de porte médio com uma única detonação. Seria burrice ignorar a possibilidade de um acidente.

           O almirante pareceu prestes a protestar, mas Stimson tornou a intervir:

           – Prossiga, general.

           – A terra no Tennessee é barata – disse Groves. – A energia elétrica também. E nossa fábrica vai usar muita energia.

           – Então o senhor está propondo comprar essas terras.

           – Estou propondo visitá-las hoje. – Groves olhou para o relógio. – Na verdade, preciso sair agora para pegar o trem para Knoxville. – Ele se levantou. – Se me dão licença, cavalheiros, não quero perder tempo.

           Os outros homens que estavam na sala ficaram boquiabertos. Até mesmo Stimson pareceu surpreso. Ninguém em Washington sonhava em sair da sala de um secretário antes que este encerrasse a reunião. Aquilo era uma tremenda quebra de protocolo. Mas Groves não parecia se importar.

           E conseguiu se safar.

           – Muito bem – disse Stimson. – Não queremos atrasá-lo.

           – Obrigado, secretário – disse Groves, e saiu.

           Greg se apressou a segui-lo.

 

           A secretária civil mais bonita do Novo Edifício do Gabinete de Guerra chamava-se Margaret Cowdry. Tinha grandes olhos escuros e uma boca larga, sensual. Quando ela erguia o rosto e sorria, sentada atrás de sua máquina de escrever, a sensação que se tinha era de já estar fazendo amor com ela.

           O pai de Margaret havia transformado a arte de fazer pão numa indústria de produção em massa: “Biscoitos Cowdry, tão fresquinhos quanto os da sua mãe!” Ela não precisava trabalhar, mas estava fazendo a sua parte pelo esforço de guerra. Antes de convidá-la para almoçar, Greg se certificou de que ela soubesse que ele também era filho de um milionário. Uma rica herdeira em geral preferia sair com rapazes abastados: assim podia ter certeza de que ele não estava atrás do seu dinheiro.

           Era outubro, e fazia frio em Washington. Margaret estava usando um elegante sobretudo azul-marinho, com ombreiras e cintura marcada. A boina no mesmo tom tinha um ar militar.

           Os dois iam almoçar no Ritz-Carlton, mas, ao chegar lá, Greg viu o pai com Gladys Angelus. Não queria uma refeição a quatro. Quando explicou isso a Margaret, ela disse:

           – Não faz mal. Vamos almoçar no Clube Universitário Feminino, aqui do lado. Sou sócia de lá.

           Greg nunca tinha ido a esse clube, mas teve a sensação de que já ouvira falar dele. Passou alguns instantes tentando se lembrar, mas não conseguiu, então esqueceu o assunto.

           No clube, Margaret tirou o sobretudo e revelou um vestido de caxemira azul-royal que moldava suas curvas de forma sedutora. Manteve o chapéu e as luvas, como faziam todas as mulheres de classe ao comerem fora.

           Como sempre, Greg saboreou a sensação de entrar num recinto de braços dados com uma linda mulher. Havia poucos homens no restaurante do Clube Universitário Feminino, mas todos o invejaram. Embora não admitisse isso para ninguém, apreciava esse sentimento tanto quanto levar as mulheres em questão para a cama.

           Pediu uma garrafa de vinho. Margaret diluiu o seu com água mineral, ao estilo francês, dizendo:

           – Não quero passar a tarde inteira corrigindo meus próprios erros de digitação.

           Greg lhe contou sobre o general Groves:

           – Ele sabe o que quer e vai atrás. De certa forma, é uma versão malvestida do meu pai.

           – Todo mundo o detesta – comentou Margaret.

           Greg assentiu.

           – Ele não faz a menor questão de ser simpático.

           – Seu pai também é assim?

           – Às vezes, mas em geral usa o charme.

           – O meu é igualzinho! Talvez todos os homens de sucesso sejam assim.

           O almoço passou depressa. O serviço nos restaurantes de Washington estava mais acelerado. O país estava em guerra, e as pessoas tinham coisas urgentes a fazer.

           A garçonete lhes trouxe o cardápio de sobremesas. Greg olhou para ela, e ficou surpreso ao reconhecer Jacky Jakes.

           – Olá, Jacky! – falou.

           – Oi, Greg – respondeu ela, com a familiaridade encobrindo o nervosismo. – Como tem passado?

           Greg lembrou que o detetive lhe dissera que Jacky trabalhava no Clube Universitário Feminino. Era essa a lembrança que havia lhe escapado antes do almoço.

           – Bem – respondeu. – E você?

           – Muito bem.

           – Tudo na mesma? – Ele queria saber se ela ainda estava recebendo mesada de seu pai.

           – Praticamente.

           Greg deduziu que algum advogado devia estar lhe pagando e que Lev se esquecera por completo daquele assunto.

           – Que bom – comentou.

           Jacky se lembrou do trabalho.

           – Vão querer sobremesa?

           – Sim, por favor.

           Margaret pediu uma salada de frutas e Greg, um sorvete.

           Quando Jacky se afastou da mesa, Margaret comentou:

           – Ela é muito bonita. – Então fez cara de quem espera uma resposta.

           – É, acho que sim – disse Greg.

           – E não está de aliança.

           Greg deu um suspiro. Como as mulheres eram observadoras.

           – Você está se perguntando como posso ser amigo de uma bela garçonete negra solteira – falou. – É melhor eu contar a verdade: tivemos um caso quando eu tinha 15 anos. Espero que não fique chocada.

           – É claro que estou chocada – retrucou Margaret. – Estou moralmente indignada. – Ela não estava nem falando sério nem brincando, mas algo entre as duas coisas. Não chegava a estar escandalizada, mas talvez não quisesse passar a impressão de que encarava o sexo de forma casual, ao menos não em seu primeiro almoço juntos.

           Jacky trouxe as sobremesas e perguntou se eles queriam café. Não havia tempo para isso – o Exército não aceitava almoços demorados –, então Margaret pediu a conta.

           – Convidados não podem pagar aqui – explicou. Quando Jacky se afastou, ela arrematou: – O interessante é que você tem muito carinho por ela.

           – Tenho? – Greg ficou surpreso. – Acho que tenho boas recordações. Bem que gostaria de voltar a ter 15 anos.

           – Mas mesmo assim ela tem medo de você.

           – Não tem, não!

           – Medo, não. Pânico.

           – Acho que não.

           – Acredite em mim. Os homens são cegos, mas uma mulher vê esse tipo de coisa.

           Greg examinou Jacky com atenção quando ela trouxe a conta e percebeu que Margaret tinha razão. Jacky continuava assustada. Toda vez que via Greg, ela se lembrava de Joe Brekhunov e de sua navalha.

           Isso deixou Greg zangado. A moça tinha o direito de viver em paz.

           Ele teria que tomar alguma providência.

           Sagaz feito uma águia, Margaret falou:

           – Acho que você sabe por que ela está com medo.

           – Meu pai a ameaçou. Estava com medo de que eu me casasse com ela.

           – Seu pai é um homem que mete medo?

           – Ele gosta que tudo corra como ele quer.

           – O meu é igualzinho – disse ela. – Uma flor de pessoa, até você o contrariar. Aí ele vira uma fera.

           – Que bom que você entende.

           Os dois voltaram ao trabalho. Greg passou a tarde inteira zangado. De alguma forma, a ameaça de seu pai ainda pairava sobre a vida de Jacky como uma influência maligna. Mas o que ele podia fazer?

           O que seu pai faria? Esse era um bom jeito de considerar a questão. Lev ficaria completamente obcecado por reverter a situação a seu favor, e não se importaria com quem fosse preciso ferir para conseguir isso. O general Groves agiria de forma parecida. Também posso ser assim, pensou Greg, afinal sou filho dele.

           Um plano começou a se formar em sua mente.

           Ele passou a tarde lendo e resumindo um parecer provisório do Laboratório de Metalurgia da Universidade de Chicago. Um dos cientistas da instituição era Leo Szilard, primeiro a descrever o conceito de reação nuclear em cadeia. Judeu húngaro, Szilard estudara na Universidade de Berlim até o fatídico ano de 1933. A equipe de pesquisadores de Chicago era chefiada por Enrico Fermi, físico italiano cuja esposa judia havia deixado a Itália quando Mussolini publicara o Manifesto da raça.

           Greg ficou imaginando se os fascistas percebiam que seu racismo provocara tamanha debandada de cientistas brilhantes para o lado inimigo.

           Ele entendia perfeitamente o conceito físico em questão. A teoria de Fermi e Szilard era que, quando um nêutron se chocava com um átomo de urânio, a colisão podia produzir dois nêutrons. Esses dois nêutrons, por sua vez, podiam colidir com outros átomos de urânio para se transformar em quatro, depois oito, e assim por diante. Szilard batizara esse fenômeno de reação em cadeia – uma ideia genial.

           Assim, uma tonelada de urânio era capaz de produzir a mesma energia de três milhões de toneladas de carvão – pelo menos em tese.

           Na prática, isso nunca tinha sido feito.

           Fermi e sua equipe estavam montando uma pilha de urânio no Stagg Field, estádio de futebol americano desativado que pertencia à Universidade de Chicago. Para que o material não explodisse de forma espontânea, enterraram o urânio em grafite, para absorver os nêutrons e impedir a reação em cadeia. Seu objetivo era aumentar gradualmente a radioatividade até um nível em que mais nêutrons fossem criados do que absorvidos – o que provaria a existência da reação em cadeia – e, em seguida, diminuí-la depressa, antes que ela explodisse a pilha, o estádio, o campus e, possivelmente, toda a cidade de Chicago.

           Até agora, não haviam obtido sucesso.

           Greg escreveu uma avaliação positiva do parecer, pediu a Margaret Cowdry que a datilografasse na mesma hora e, em seguida, levou-a para Groves.

           O general leu o primeiro parágrafo e perguntou:

           – Vai funcionar?

           – Bem, general...

           – A porra do cientista é você. Vai funcionar?

           – Sim, general, vai funcionar – respondeu Greg.

           – Ótimo – disse Groves, e jogou o resumo na lixeira.

           Greg voltou para sua mesa e passou algum tempo sentado encarando a reprodução da Tabela Periódica na parede à sua frente. Tinha quase certeza de que a pilha nuclear iria funcionar. Estava mais preocupado em como forçar o pai a retirar a ameaça feita a Jacky.

           Mais cedo, havia decidido lidar com aquele problema da mesma forma que Lev teria lidado. Agora estava começando a pensar nos detalhes práticos. Precisava assumir uma posição radical.

           Seu plano começou a tomar forma.

           Mas será que ele teria peito para enfrentar o pai?

           Às cinco da tarde, encerrou o expediente.

           No caminho de casa, parou numa barbearia e comprou uma navalha dobrável, do tipo em que a lâmina fica encaixada no cabo.

           – Com a sua barba, o senhor vai ver que funciona melhor do que uma gilete – comentou o barbeiro.

           Mas Greg não iria usar a navalha para se barbear.

           Estava morando na suíte permanente do pai no Hotel Ritz-Carlton. Quando chegou, Lev e Gladys tomavam drinques.

           Lembrou-se de ter encontrado Gladys pela primeira vez naquele quarto, sete anos antes, sentada no mesmo sofá de seda amarela. Ela agora era uma estrela de cinema ainda mais famosa. Lev a fizera protagonizar uma série de filmes de guerra descaradamente aventurescos, nos quais ela desafiava nazistas mal-encarados, derrotava japoneses sádicos graças à sua inteligência e velava a convalescença de másculos pilotos americanos. Não era mais tão bonita quanto aos 20 anos, observou Greg. A pele do rosto já não tinha a mesma textura lisa e perfeita; os cabelos não pareciam tão fartos; e ela estava usando um sutiã, peça que sem dúvida devia desprezar naquele tempo. No entanto, ainda tinha os mesmos olhos azul-escuros que pareciam irradiar um convite irresistível.

           Greg aceitou um martíni e se sentou. Será que iria mesmo desafiar o pai? Nunca tinha feito isso nos sete anos desde que apertara a mão de Gladys pela primeira vez. Talvez já estivesse na hora.

           Vou agir exatamente como ele agiria, pensou.

           Tomou um gole da bebida e pousou o corpo sobre uma mesinha lateral de pernas finas. Em tom casual, disse a Gladys:

           – Quando eu tinha 15 anos, meu pai me apresentou a uma atriz chamada Jacky Jakes.

           Os olhos de Lev se arregalaram.

           – Acho que não a conheço – disse Gladys.

           Greg tirou a navalha do bolso, mas não a abriu. Segurou-a na mão, como se avaliasse seu peso.

           – Eu me apaixonei por ela.

           – Por que está desencavando essa história agora? – perguntou Lev.

           Gladys sentiu a tensão no ar e assumiu uma expressão aflita.

           – Meu pai teve medo de que eu quisesse me casar com ela – prosseguiu Greg.

           Lev deu uma risada zombeteira.

           – Aquela piranha vagabunda?

           – Ela era uma piranha vagabunda? – perguntou Greg. – Achei que fosse atriz. – Olhou para Gladys. A ofensa velada a fez corar. Greg prosseguiu: – Meu pai fez uma visita a ela e levou um colega, Joe Brekhunov. Você o conheceu, Gladys?

           – Acho que não.

           – Sorte sua! Joe tem uma navalha igual a esta. – Greg abriu a navalha com um estalo, exibindo a lâmina afiada e reluzente.

           Gladys soltou um arquejo.

           – Não sei que brincadeira você acha que está fazendo... – começou Lev.

           – Só um instante – interrompeu Greg. – Gladys quer ouvir o resto da história. – Sorriu para ela, que estava apavorada. – Meu pai disse a Jacky que, se ela tornasse a me ver, Joe Brekhunov cortaria seu rosto.

           Ele fez um movimento brusco com a navalha, bem pequeno, e Gladys soltou um gritinho.

           – Chega dessa história – disse Lev, dando um passo em direção ao filho.

           Greg ergueu a mão que segurava a navalha. Lev parou.

           Greg não tinha certeza se seria capaz de ferir o pai. Mas Lev também não tinha.

           – Jacky mora aqui em Washington – disse Greg.

           – Você está trepando com ela outra vez? – perguntou-lhe o pai, grosseiro.

           – Não. Não estou trepando com ninguém no momento, mas tenho planos para Margaret Cowdry.

           – A herdeira dos biscoitos?

           – Por quê? Vai fazer Joe ameaçá-la também?

           – Não seja idiota.

           – Jacky hoje em dia é garçonete... Nunca conseguiu o papel no cinema que esperava. Às vezes esbarro com ela na rua. Hoje ela me serviu o almoço num restaurante. Sempre que me vê, ela acha que Joe virá atrás dela.

           – Essa mulher está louca – disse Lev. – Eu nem me lembrava dela até cinco minutos atrás.

           – Posso dizer isso a ela? – indagou Greg. – Acho que a esta altura ela tem direito a um pouco de paz.

           – Pode dizer a ela o que quiser, porra. Para mim ela não existe.

           – Maravilha – disse Greg. – Ela vai gostar de saber.

           – Agora guarde essa droga dessa navalha.

           – Só mais uma coisa. Um aviso.

           Lev fez cara de bravo.

           – Você está me dando um aviso?

           – Se alguma coisa ruim acontecer com Jacky... qualquer coisa... – Greg moveu a navalha para um lado e para outro, só um pouquinho.

           – Não me diga que vai cortar a cara de Joe Brekhunov – zombou Lev com desdém.

           – Não.

           Lev exibiu uma pontinha de medo.

           – Vai cortar a minha?

           Greg fez que não com a cabeça.

           – O que vai fazer então, pelo amor de Deus? – perguntou Lev, irritado.

           Greg olhou para Gladys.

           A mulher levou alguns instantes para entender aonde ele queria chegar. Então se encolheu na poltrona estofada de seda, levou as duas mãos às faces como se quisesse protegê-las e soltou outro gritinho, dessa vez mais alto.

           – Seu babaquinha – disse Lev ao filho.

           Greg fechou a navalha e se levantou.

           – Era assim que você teria agido, pai – falou, e então saiu do quarto.

           Bateu a porta e recostou-se na parede, ofegante como se tivesse corrido. Nunca sentira tanto medo na vida. No entanto, também estava triunfante. Havia enfrentado o pai usando as táticas do próprio Lev, e chegara até a lhe meter um pouco de medo.

           Enquanto andava até o elevador, guardou a navalha no bolso. Sua respiração se normalizou. Ele virou a cabeça para olhar o corredor do hotel, quase esperando ver o pai sair correndo atrás dele. Mas a porta da suíte permaneceu fechada. Greg entrou no elevador e desceu até o lobby.

           Entrou no bar do hotel e pediu um dry martíni.

 

           No domingo, Greg decidiu visitar Jacky.

           Queria lhe dar a boa notícia. Lembrava-se do endereço – a única informação pela qual já precisara pagar um detetive particular. A menos que ela houvesse se mudado, morava do outro lado da Union Station. Ele lhe prometera que nunca iria lá, mas agora podia explicar a ela que essa cautela já não era mais necessária.

           Foi de táxi. Enquanto atravessava a cidade, pensou que ficaria feliz em deixar definitivamente seu caso com Jacky para trás. Tinha um carinho especial pela primeira moça com quem fora para a cama, mas não queria ter qualquer envolvimento em sua vida. Seria um alívio tirá-la da consciência. Então, da próxima vez que se esbarrassem, ela talvez não ficasse morrendo de medo. Poderiam se cumprimentar, conversar um pouco e seguir cada um o seu caminho.

           O táxi o levou até um bairro pobre de casas de um andar só, com cercas de arame baixas em volta de pequenos pátios. Ele se perguntou como seria a vida de Jacky agora. Qual seria sua ocupação durante aquelas noites que fazia tanta questão de ter livres? Decerto ia ao cinema com as amigas. Será que assistia às partidas de futebol americano do Washington Redskins, ou acompanhava o time de beisebol do Nats? Quando ele lhe perguntara sobre namorados, sua resposta fora enigmática. Talvez fosse casada e não tivesse dinheiro para comprar uma aliança. Pelos seus cálculos, Jacky estava com 24 anos. Se andasse à procura do homem certo, a essa altura já deveria tê-lo encontrado. Mas em momento algum ela mencionara um marido, nem o detetive.

           Ele pagou o táxi em frente a uma casa pequena e bem-conservada, com vasos de flores no pátio cimentado da frente – um lugar mais ajeitado do que ele imaginara. Assim que abriu o portão da cerca, ouviu um cachorro latir. Fazia sentido: uma mulher que morava sozinha talvez se sentisse mais segura tendo um cachorro. Subiu os degraus que levavam à porta e tocou a campainha. Os latidos aumentaram. Pelo barulho, parecia um cachorro grande, mas Greg sabia que essas impressões podiam ser enganadoras.

           Ninguém atendeu.

           Quando o cão parou de latir para tomar fôlego, Greg ouviu o silêncio característico de uma casa vazia.

           Havia um banco de madeira na pequena varanda. Ele se sentou e esperou por alguns minutos. Ninguém apareceu, nem mesmo um vizinho prestativo para lhe informar se Jacky tinha saído por alguns minutos, pelo dia inteiro ou por duas semanas.

           Ele andou alguns quarteirões, comprou a edição dominical do Washington Post e voltou a se sentar no banco para ler o jornal. O cão continuou latindo de forma intermitente, ciente de que ele ainda estava ali. Era 1o de novembro, e Greg sentia-se grato por ter posto o sobretudo e a boina verde-oliva do uniforme militar: fazia um tempo invernal. As eleições legislativas seriam realizadas na terça-feira seguinte, e o Post previa uma derrota acachapante dos democratas por causa de Pearl Harbor. Esse incidente havia transformado os Estados Unidos, e Greg se espantou ao constatar que o ataque ocorrera menos de um ano antes. Agora, americanos da mesma idade que ele morriam numa ilha da qual ninguém nunca ouvira falar: Guadalcanal.

           Ouviu o portão estalar e ergueu os olhos.

           De início, Jacky não notou sua presença, e ele teve alguns instantes para observá-la. Tinha uma aparência sem graça e respeitável: usava um sobretudo escuro e um chapéu de feltro simples, e carregava um livro de capa preta. Se não a conhecesse tão bem, Greg teria pensado que ela estava voltando da missa.

           Junto com ela vinha um menininho. De sobretudo e boina de tweed, ele segurava sua mão.

           O menino foi o primeiro a ver Greg, e disse:

           – Olhe ali, mamãe, um soldado!

           Jacky olhou para Greg e imediatamente levou a mão à boca.

           Greg se levantou enquanto os dois subiam os degraus até a varanda. Um filho! Ela havia guardado esse segredo. Isso explicava por que precisava estar em casa à noite. Greg nunca pensara nisso.

           – Eu disse para você nunca vir aqui – falou ela, pondo a chave na fechadura.

           – Eu queria lhe dizer que não precisa mais ter medo do meu pai. Não sabia que você tinha um filho.

           Ela e o menino entraram na casa. Greg ficou junto à porta, em compasso de espera. Um pastor alemão rosnou para ele, e então ergueu o focinho para Jacky, à espera de instruções. Ela encarou Greg com raiva, obviamente cogitando bater a porta na cara dele. Depois de alguns instantes, porém, deu um suspiro irritado e virou as costas, deixando a porta aberta.

           Greg entrou e estendeu a mão esquerda para o cachorro. O animal a cheirou com cautela e lhe concedeu uma aprovação temporária. Greg seguiu Jacky até uma pequena cozinha.

           – Hoje é dia de Todos os Santos – disse ele. Embora não fosse religioso, tinha sido obrigado a decorar as datas de todas as festas cristãs quando estudava no colégio interno. – Por isso vocês foram à igreja?

           – Nós vamos todo domingo – respondeu ela.

           – Hoje é mesmo um dia de surpresas – murmurou Greg.

           Ela tirou o casaco do menino, sentou-o à mesa e lhe deu um copo de suco de laranja. Greg sentou-se em frente a ele e perguntou:

           – Qual é o seu nome?

           – Georgy.

           O menino falou em voz baixa, mas seu tom foi confiante: não era uma criança tímida. Greg o estudou. Era bonito como a mãe, com a mesma boca em forma de arco de cupido, mas tinha a pele mais clara, mais da cor de café com leite, e olhos verdes, um traço raro em negros. Fez Greg se lembrar um pouco da meia-irmã, Daisy. Enquanto isso, Georgy encarava Greg com um olhar intenso, quase intimidador.

           – Quantos anos você tem, Georgy? – perguntou Greg.

           O menino olhou para a mãe, pedindo ajuda. Jacky encarou Greg com uma expressão estranha e disse:

           – Ele tem 6 anos.

           – Seis anos! – repetiu Greg. – Mas então você já é um menino crescido. Ora...

           Um pensamento bizarro lhe passou pela cabeça, e ele se calou. Georgy tinha nascido havia seis anos. Greg e Jacky tinham sido amantes sete anos antes. Seu coração pareceu falhar por um instante.

           Ele fitou Jacky.

           – Não pode ser – falou.

           Ela assentiu.

           – Ele nasceu em 1936 – disse Greg.

           – No mês de maio – completou ela. – Oito meses e meio depois de eu ter ido embora do apartamento de Buffalo.

           – Meu pai sabe?

           – Caramba, não. Isso teria dado a ele ainda mais poder sobre mim.

           Toda a sua hostilidade havia sumido, e ela agora parecia apenas vulnerável. Em seu olhar Greg viu uma súplica, embora não tivesse certeza do que ela estava suplicando.

           Olhou para Georgy com outros olhos: a pele clara, os olhos verdes, a estranha semelhança com Daisy. Você é meu filho?, pensou. Será possível?

           Mas ele sabia que era.

           Seu coração foi inundado por uma estranha emoção. De repente, pareceu-lhe que Georgy era absurdamente vulnerável, uma criança indefesa num mundo cruel, e Greg precisava tomar conta dele, garantir que nenhum mal lhe acontecesse. Teve um impulso de tomar o menino nos braços, mas percebeu que isso poderia assustá-lo, então se conteve.

           Georgy pousou o copo de suco na mesa. Desceu da cadeira e deu a volta até junto de Greg. Com um olhar surpreendentemente direto, perguntou:

           – Quem é você?

           É sempre assim, pensou Greg: crianças sempre fazem a pergunta mais difícil. O que ele iria responder? A verdade era demais para um menino de 6 anos assimilar. Sou só um velho amigo de sua mãe, pensou. Estava só passando por aqui e resolvi dizer oi. Não sou ninguém especial. Talvez veja você de novo, provavelmente não.

           Olhou para Jacky, e viu que a expressão de súplica tinha se intensificado. Então compreendeu o que passava pela cabeça dela: estava morrendo de medo de que ele fosse rejeitar Georgy.

           – Vamos fazer assim – disse Greg, pegando o menino do chão e sentando-o em seu colo. – Por que não me chama de tio Greg?

 

           Greg tremia de frio na galeria de espectadores de uma quadra de squash sem calefação. Ali, debaixo da arquibancada oeste do estádio vazio, na extremidade do campus da Universidade de Chicago, Fermi e Szilard tinham montado sua pilha atômica. Greg estava impressionado e assustado.

           A pilha era um cubo feito de tijolos de grafite que ia até o teto da quadra e terminava a poucos centímetros da parede dos fundos, com centenas de manchas deixadas pelas bolas de squash. A pilha havia custado um milhão de dólares e poderia explodir a cidade inteira.

           O grafite, a matéria-prima dos lápis, soltava uma poeira suja que cobria o chão e as paredes. Todo mundo que passava algum tempo ali saía com o rosto encardido como o de um carvoeiro. Ninguém conseguia manter limpo seu jaleco.

           O material explosivo não era o grafite – muito pelo contrário: ele estava ali para eliminar a radioatividade. No entanto, alguns dos tijolos da pilha estavam furados com estreitos buraquinhos recheados de óxido de urânio, o material que irradiava os nêutrons. Atravessando a pilha havia dez dutos para barras de controle. Estas tinham quatro metros de comprimento e eram feitas de cádmio, um metal que absorvia os nêutrons com mais voracidade ainda que o grafite. No momento, as barras mantinham a situação tranquila. Somente quando fossem removidas da pilha a diversão começaria de verdade.

           O urânio já emitia sua radiação fatal, mas o grafite e o cádmio a absorviam. A radiação era monitorada por medidores que emitiam cliques ameaçadores e por um gravador cilíndrico a caneta que, felizmente, não fazia barulho. A profusão de controles e medidores junto a Greg era a única fonte de calor do recinto.

           Greg foi visitar o experimento a 2 de dezembro, uma quarta-feira de vento e frio intenso em Chicago. Nesse dia previa-se que a pilha fosse atingir um estado crítico pela primeira vez. Greg estava lá para observar a experiência como representante de seu chefe, o general Groves. A quem perguntasse ele dava a entender, em tom alegre, que Groves temia uma explosão e por isso mandara Greg arriscar a vida em seu lugar. Na verdade, sua missão era mais sinistra: ele devia fazer uma avaliação inicial dos cientistas para decidir qual deles poderia ser uma ameaça.

           A segurança do Projeto Manhattan era um pesadelo. Os principais cientistas eram estrangeiros. A maioria era de esquerda, comunista ou liberal com amigos comunistas. Se todos os suspeitos fossem demitidos, quase não sobrariam mais cientistas. Então Greg tentava entender quais deles representavam os maiores riscos.

           Enrico Fermi tinha cerca de 40 anos. Baixo, já meio careca e de nariz comprido, exibia um sorriso cativante ao supervisionar seu experimento ameaçador. Estava bem-vestido, de terno e colete. A manhã já ia adiantada quando ele ordenou o início do teste.

           Primeiro, instruiu um dos técnicos a retirar todas as barras de cádmio da pilha, menos uma.

           – Como assim, todas de uma vez? – perguntou Greg. Isso lhe parecia assustadoramente precipitado.

           – Já fomos até esse ponto ontem à noite – disse o cientista de pé ao seu lado, Barney McHugh. – Deu tudo certo.

           – Bom saber – comentou Greg.

           McHugh, barbado e gordo, ocupava uma posição muito baixa na lista de suspeitos de Greg. Era americano e não tinha interesse nenhum por política. A única mancha em sua ficha era ter uma esposa estrangeira, inglesa – o que nunca era um bom sinal, mas também não constituía prova de traição.

           Greg imaginava que houvesse algum mecanismo sofisticado para pôr e tirar as barras, porém era tudo muito simples. O técnico apenas encostou uma escada na pilha de tijolos, subiu até a metade e as retirou com a mão.

           Com um tom de voz descontraído, McHugh comentou:

           – Originalmente faríamos este teste na floresta de Argonne.

           – Onde fica isso?

           – Pouco mais de trinta quilômetros a sudoeste de Chicago. Um lugar bem isolado. Menor risco de acidentes.

           Greg estremeceu.

           – Por que mudaram de ideia e decidiram conduzir a experiência aqui mesmo, na Rua 57?

           – Os operários que contratamos entraram em greve, então nós mesmos tivemos que montar a droga da pilha, e não podíamos ficar tão longe dos laboratórios.

           – Então resolveram correr o risco de dizimar a população de Chicago.

           – Não acreditamos que isso vá acontecer.

           Greg tampouco acreditava, mas agora, a poucos metros da pilha, já não estava tão certo.

           Fermi estava comparando os monitores a uma previsão dos níveis de radiação em cada etapa do experimento, estabelecida previamente. Ao que parecia, o estágio inicial correu de acordo com o esperado, pois ele ordenou que a última barra de cádmio fosse removida até a metade.

           Havia algumas medidas de segurança. Uma barra lastreada, suspensa acima da pilha, estava pronta para ser baixada automaticamente caso o nível de radiação subisse demais. Se isso não funcionasse, havia uma barra semelhante presa a uma corda no guarda-corpo da galeria onde Greg estava, e um jovem físico, de pé com um machado na mão – parecendo sentir-se um pouco bobo –, mantinha-se a postos para cortar a corda em caso de emergência. Por fim, três outros cientistas, chamados de “o esquadrão suicida”, estavam posicionados perto do teto do estádio, em pé sobre a plataforma do elevador usado para montar a pilha, e despejariam sobre ela grandes jarros de solução de sulfato de cádmio, como se estivessem apagando uma fogueira.

           Greg sabia que a geração de nêutrons se multiplicava em milésimos de segundo. Fermi, porém, afirmava que alguns nêutrons levavam mais tempo, talvez vários segundos. Se ele estivesse certo, não haveria problema. Se estivesse errado, porém, o esquadrão com os jarros e o físico que segurava o machado seriam pulverizados num piscar de olhos.

           Greg ouviu os cliques se acelerarem. Nervoso, olhou para Fermi, que fazia contas com uma régua de cálculo. O italiano parecia satisfeito. De qualquer modo, pensou Greg, se algo der errado, tudo provavelmente vai acontecer tão depressa que nem sequer nos daremos conta.

           O ritmo dos cliques se estabilizou. Fermi sorriu e mandou que a barra fosse removida mais 15 centímetros.

           Outros cientistas chegavam e subiam até a galeria, usando roupas pesadas, apropriadas para o inverno de Chicago: sobretudos, chapéus, cachecóis, luvas. Greg ficou pasmo com a falta de segurança. Ninguém checava credenciais: qualquer um daqueles homens poderia estar espionando para os japoneses.

           Entre os recém-chegados, Greg reconheceu Szilard, muito alto e corpulento, de rosto redondo e grossos cabelos cacheados. Leo Szilard era um idealista: acreditava que a energia nuclear fosse libertar a raça humana do fardo do trabalho. Fora com o coração pesado que entrara para a equipe encarregada de produzir a bomba atômica.

           A barra saiu mais 15 centímetros, e o ritmo dos cliques aumentou.

           Greg olhou para o relógio. Eram onze e meia da manhã.

           De repente, ouviu-se um barulho muito alto. Todos se assustaram.

           – Cacete! – praguejou McHugh.

           – O que houve? – perguntou Greg.

           – Ah, agora entendi – respondeu o cientista. – O nível de radiação ativou o mecanismo de segurança e liberou a barra de emergência, só isso.

           – Estou com fome – anunciou Fermi. – Vamos almoçar.

           Como eles conseguiam pensar em comida? No entanto, ninguém reclamou.

           – Nunca se sabe quanto tempo uma experiência vai levar – disse McHugh. – Às vezes demora o dia inteiro. É melhor comer quando temos a chance.

           Greg teve vontade de gritar.

           As barras de controle foram recolocadas na pilha e presas no lugar, e todos saíram do estádio.

           A maioria foi comer num bandejão do campus. Greg pediu um queijo quente e sentou-se ao lado de um físico solene chamado Wilhelm Frunze. A maioria dos cientistas se vestia mal, mas Frunze se destacava nesse quesito. Usava um terno verde com detalhes em camurça bege: casas de botão, debrum do colarinho, cotoveleiras, abas dos bolsos. Frunze ocupava um lugar bem alto na lista de suspeitos de Greg. Era alemão, embora tivesse deixado o país em meados da década de 1930 e emigrado para Londres. Embora fosse antinazista, não era comunista: seu posicionamento político era social-democrata. Havia se casado com uma artista americana. Ao conversar com ele durante o almoço, Greg não viu motivo para desconfiança. Frunze parecia gostar da vida nos Estados Unidos e se interessava por pouca coisa além do trabalho. Ainda assim, era impossível ter certeza quanto à verdadeira lealdade dos estrangeiros.

           Depois do almoço, Greg foi até o estádio abandonado. Olhando para as arquibancadas vazias, começou a pensar em Georgy. Não havia contado a ninguém que tinha um filho – nem mesmo a Margaret Cowdry, com quem agora estava tendo um relacionamento deliciosamente carnal –, mas ansiava por contar à mãe. Sentia-se orgulhoso, mesmo que não houvesse motivo para isso. Afinal, sua única contribuição para trazer Georgy ao mundo tinha sido fazer amor com Jacky, provavelmente a coisa mais fácil que ele já havia feito na vida. De todo modo, estava animado. Aquele era o início de uma espécie de aventura. Georgy iria crescer, aprender, mudar, e um dia se tornaria um homem. E Greg estaria lá para assistir e se maravilhar.

           Os cientistas voltaram a se reunir às duas da tarde. Agora havia cerca de quarenta pessoas apinhadas na galeria junto aos aparelhos de monitoramento. A experiência foi cuidadosamente repetida até o ponto em que havia sido interrompida, sem que Fermi parasse de conferir seus instrumentos.

           Então ele disse:

           – Desta vez, removam a barra trinta centímetros.

           Os cliques aumentaram. Greg esperou o ritmo se estabilizar como das outras vezes, mas isso não aconteceu. Pelo contrário: os cliques foram se acelerando cada vez mais até se transformarem num rugido constante.

           Ao perceber que a atenção de todos os presentes tinha se voltado para o medidor cilíndrico, constatou que o nível de radiação já havia ultrapassado o máximo previsto. A escala do medidor era ajustável. O nível foi aumentando, então a escala mudou, depois mudou outra vez, e mais outra.

           Fermi levantou a mão. Todos se calaram.

           – A pilha atingiu um nível crítico – disse ele. Sorriu... e não pronunciou mais nenhuma palavra.

           Greg sentiu vontade de gritar: Então desliguem essa porra! Mas Fermi continuou calado e imóvel, observando a caneta do medidor cilíndrico. Tinha tanta autoridade que ninguém o confrontou. A reação em cadeia estava acontecendo, só que num ambiente controlado. Ele deixou que ela prosseguisse por um minuto, depois dois.

           – Meu Deus – murmurou McHugh.

           Greg não queria morrer. Queria se tornar senador. Queria ir para a cama com Margaret Cowdry outra vez. Queria ver Georgy entrar para a faculdade. Ainda não vivi nem metade da minha vida, pensou.

           Por fim, Fermi ordenou que as barras fossem recolocadas.

           O barulho dos medidores voltou a se transformar numa série de cliques que, aos poucos, foram diminuindo de ritmo até pararem.

           Greg tornou a respirar normalmente.

           McHugh estava eufórico.

           – Conseguimos, está provado! A reação em cadeia existe!

           – E o que é mais importante: é possível controlá-la – disse Greg.

           – É, imagino que isso seja o mais importante, de um ponto de vista prático.

           Greg sorriu. Havia estudado em Harvard e sabia que os cientistas eram assim mesmo: para eles, teoria era realidade e o mundo não passava de um modelo inexato.

           Alguém apareceu com uma garrafa de vinho italiano e alguns copos de papel dentro de uma cesta de palha. Cada cientista tomou um golinho. Aquele era mais um motivo para Greg não ser cientista: eles não entendiam nada sobre como se divertir.

           Alguém pediu a Fermi que autografasse a cesta. Ele acatou o pedido, e então todos os outros assinaram também.

           Os técnicos desligaram os monitores. Todos começaram a sair. Greg ficou no estádio, observando. Depois de algum tempo, percebeu que estava sozinho na galeria com Fermi e Szilard. Viu os dois gênios se cumprimentarem com um aperto de mãos. Szilard era grandão e tinha um rosto redondo; Fermi parecia um duende. Embora esse pensamento não fosse condizente com a situação, Greg se lembrou de o Gordo e o Magro.

           Então ouviu Szilard dizer:

           – Meu amigo, acho que esta data ficará marcada como um dia negro na história da humanidade.

           O que será que ele quer dizer com isso?, pensou Greg.

 

           Greg queria que seus pais aceitassem Georgy.

           Não seria fácil. Com certeza tanto o pai quanto a mãe achariam estranho saber que tinham um neto cuja existência fora escondida deles durante seis anos. Talvez se zangassem. Além do mais, poderiam demonstrar desprezo por Jacky. Mas nenhum dos dois tinha o direito de assumir uma postura moralista, pensou Greg com ironia. Afinal, haviam gerado um filho ilegítmo – ele próprio. Mas as pessoas não são racionais.

           Não sabia ao certo que diferença faria o fato de Georgy ser negro. Os pais de Greg eram tranquilos em relação à questão racial e nunca se referiam com maldade a crioulos ou judeuzinhos, como faziam algumas pessoas da sua geração. Mas talvez mudassem de ideia ao saber que havia um negro na família.

           Deduziu que seu pai seria o mais difícil. Por isso falou primeiro com a mãe.

           Conseguiu alguns dias de folga no Natal e foi visitar Marga em Buffalo. Ela morava num grande apartamento no melhor prédio da cidade. Passava a maior parte do tempo sozinha, mas tinha uma cozinheira, duas criadas e um motorista. Tinha também um cofre recheado de joias e um closet do tamanho de uma garagem para dois carros, repleto de roupas. Só lhe faltava um marido.

           Lev também estava em Buffalo, mas, por tradição, sempre saía com Olga na véspera do Natal. Continuava casado com ela, embora fizesse muitos anos que não passava uma noite sequer em sua casa. Até onde Greg sabia, Olga e Lev se detestavam; mas, por algum motivo, encontravam-se uma vez por ano.

           Nessa noite Greg e a mãe jantaram juntos no apartamento. Para agradá-la, ele vestiu um smoking. “Adoro quando meus homens se vestem bem”, costumava dizer Marga. Tomaram sopa de peixe e comeram frango assado; a sobremesa foi a favorita de Greg na infância: torta de pêssego.

           – Tenho novidades, mãe – disse ele, nervoso, enquanto a criada servia o café.

           Estava com medo de que ela se zangasse. Não temia por si mesmo, mas por Georgy, e imaginou que ser pai era isso: preocupar-se mais com outra pessoa do que consigo mesmo.

           – Novidades boas? – indagou ela.

           Embora houvesse engordado com o tempo, aos 46 anos Marga continuava glamourosa. Se havia algum fio grisalho em seus cabelos, era cuidadosamente camuflado pelo cabeleireiro. Nessa noite, usava um vestido preto simples e uma gargantilha de brilhantes.

           – Muito boas, mas um pouco surpreendentes, acho. Então, por favor, não se exalte.

           Ela arqueou uma das sobrancelhas, mas não disse nada.

           Greg levou a mão ao bolso do paletó e pegou uma fotografia. A imagem mostrava Georgy montado numa bicicleta vermelha com uma fita em volta do guidom. A roda traseira da bicicleta era equipada com rodinhas, para dar estabilidade. A expressão no rosto do menino era de puro êxtase. Greg estava ajoelhado a seu lado, com ar orgulhoso.

           Entregou a foto à mãe.

           Marga estudou-a com atenção. Um minuto depois, falou:

           – Imagino que você tenha dado uma bicicleta de Natal para esse menininho.

           – Isso mesmo.

           Ela ergueu os olhos.

           – Está me dizendo que tem um filho?

           Greg assentiu.

           – O nome dele é Georgy.

           – Você está casado?

           – Não.

           Ela jogou a foto sobre a mesa.

           – Pelo amor de Deus! – exclamou, zangada. – Qual é o problema com os homens da família Peshkov?

           Greg ficou arrasado.

           – Não sei do que você está falando!

           – Mais um filho ilegítimo! Mais uma mulher criando uma criança sozinha!

           Greg entendeu que ela via Jacky como uma versão mais jovem de si mesma.

           – Mãe, eu tinha 15 anos...

           – Por que você não pode ser normal? – vociferou ela. – Pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, o que há de errado em ter uma família como as outras?

           Greg baixou os olhos.

           – Nada.

           Estava envergonhado. Até aquele momento, acreditava ter um papel passivo naquela história, ou até mesmo de vítima. Tudo o que havia acontecido fora responsabilidade do pai e de Jacky. Sua mãe, porém, não via as coisas desse jeito, e Greg agora entendia que ela estava certa. Não pensara duas vezes antes de ir para a cama com Jacky; não a questionara quando ela afirmara, sem dar muita importância ao fato, que ele não precisava se preocupar com métodos anticoncepcionais; e não enfrentara o pai quando Jacky desaparecera. Era muito jovem, sim. No entanto, se tinha idade suficiente para trepar com ela, também tinha idade suficiente para arcar com as consequências.

           Sua mãe continuava irada:

           – Você não se lembra de como reclamava? “Cadê meu pai? Por que ele não dorme aqui? Por que não podemos ir com ele à casa de Daisy?” E depois as brigas que tinha na escola quando os outros meninos chamavam você de bastardo. E como ficou zangado quando não o deixaram ser sócio daquele maldito Iate Clube.

           – É claro que me lembro.

           Com sua mão cheia de anéis, ela deu um soco na mesa, fazendo os copos de cristal balançarem.

           – Então como pode fazer outro menino passar pela mesma tortura?

           – Até dois meses atrás eu nem sabia que ele existia. Meu pai ameaçou a mãe dele e a fez ir embora.

           – Quem é ela?

           – Jacky Jakes. Ela é garçonete – disse Greg, pegando outra foto.

           Marga suspirou.

           – Que negra bonita.

           Estava começando a se acalmar.

           – Ela queria ser atriz, mas acho que desistiu quando Georgy nasceu.

           Marga assentiu.

           – Um bebê faz mais estragos na carreira do que pegar gonorreia.

           Greg notou que a mãe acreditava que atrizes tinham que ir para a cama com as pessoas certas a fim de progredir na carreira. Como ela sabia de uma coisa dessas? Pensando bem, no entanto, Marga era cantora de boate quando seu pai a conhecera...

           Mas ele não queria enveredar por essa seara.

           – O que você deu para ela de Natal? – perguntou Marga.

           – Um seguro-saúde.

           – Bom presente. Melhor do que um ursinho de pelúcia.

           Greg ouviu passos no hall. Seu pai havia chegado. Às pressas, falou:

           – Mãe, você aceita conhecer Jacky? Vai reconhecer Georgy como seu neto?

           Marga levou a mão à boca.

           – Meu Deus, eu sou avó! – Não sabia se ficava chocada ou feliz.

           Greg se inclinou para a frente.

           – Não quero que meu pai rejeite o menino. Por favor!

           Antes que Marga pudesse responder, Lev entrou na sala.

           – Oi, querido. Como foi sua noite? – indagou ela.

           Lev sentou-se à mesa com um ar mal-humorado.

           – Bem, ouvi explicações detalhadas sobre os meus defeitos, então acho que me diverti bastante.

           – Coitadinho de você. Comeu bem? Posso mandar fazer um omelete num instante.

           – A comida estava boa.

           As duas fotos continuavam em cima da mesa, mas Lev ainda não havia reparado nelas.

           A empregada entrou e disse:

           – Aceita um café, Sr. Peshkov?

           – Não, obrigado.

           – Traga a vodca, para o caso de o Sr. Peshkov querer um drinque mais tarde – pediu Marga.

           – Sim, senhora.

           Greg notou como Marga era solícita em relação ao conforto e ao prazer de Lev. Imaginou que esse fosse o motivo pelo qual o pai estava ali naquela noite, e não na casa de Olga.

           A empregada trouxe uma bandeja com uma garrafa e três copinhos. Lev ainda bebia vodca à moda russa: quente e pura.

           – Pai, você conhece Jacky Jakes... – começou Greg.

           – Ela outra vez? – interrompeu Lev, irritado.

           – Sim, porque há uma coisa sobre ela que você não sabe.

           Isso chamou sua atenção. Lev detestava imaginar que os outros soubessem coisas que ele desconhecia.

           – O quê?

           – Ela tem um filho. – Greg empurrou as fotografias pela mesa encerada.

           – Um filho seu?

           – O menino tem 6 anos. O que você acha?

           – Ela soube ficar de bico calado.

           – Estava com medo de você.

           – O que ela achou que eu fosse fazer? Cozinhar o bebê e comer?

           – Sei lá, pai... Você é especialista em assustar os outros.

           Lev lançou-lhe um olhar duro.

           – E você está aprendendo depressa.

           Ele estava se referindo à cena da navalha. Talvez isso seja verdade, pensou Greg.

           – Por que está me mostrando essas fotos? – perguntou Lev.

           – Achei que você fosse gostar de saber que tem um neto.

           – Com uma atriz de quinta categoria que esperava arrumar um homem rico!

           – Querido! – interrompeu Marga. – Não se esqueça, por favor, que eu era uma cantora de quinta categoria querendo arrumar um homem rico.

           A expressão de Lev tornou-se furiosa. Encarou Marga por alguns instantes, com raiva. Então seu semblante mudou.

           – Sabem do que mais? Vocês têm razão. Quem sou eu para julgar Jacky Jakes?

           Greg e Marga o fitaram, estupefatos com aquela súbita demonstração de humildade.

           – Sou igualzinho a ela. Antes de me casar com Olga Vyalov, filha do meu patrão, eu era um vagabundo saído dos barracos de São Petersburgo.

           Greg olhou para a mãe, e Marga reagiu com um dar de ombros quase imperceptível que dizia apenas: A vida é uma caixinha de surpresas.

           Lev tornou a olhar para a foto.

           – Tirando a cor, o moleque é igualzinho ao meu irmão, Grigori. Isto, sim, é uma surpresa. Até agora, eu achava que esses pretinhos fossem todos iguais.

           Greg mal conseguia respirar.

           – Você aceita ver o menino, pai? Aceita vir comigo conhecer seu neto?

           – Caramba, sim.

           Lev abriu a garrafa, serviu vodca nos três copinhos e entregou dois deles ao filho e à mulher.

           – Qual é o nome dele?

           – Georgy.

           Lev ergueu o copo.

           – A Georgy, então.

           Todos beberam.

             

1943 (I)

            Lloyd Williams seguia no fim de uma fila indiana formada por fugitivos desesperados que subiam uma estreita trilha na montanha.

           Não estava ofegante: já havia se acostumado com aquilo. Atravessara os Pireneus várias vezes. Calçava alpercatas de sola de corda, que proporcionavam mais aderência ao chão pedregoso. Por cima do macacão azul, usava um sobretudo pesado. O sol agora estava forte, mas depois, quando o grupo chegasse a altitudes maiores e a noite caísse, a temperatura ficaria abaixo de zero.

           À sua frente seguiam dois pôneis robustos, três moradores da região e oito fugitivos exaustos e maltrapilhos, todos carregados com bagagens. Três deles eram pilotos americanos – a tripulação sobrevivente de um desastre com um bombardeiro Liberator B-24, que tivera de fazer um pouso de emergência na Bélgica. Dois outros eram oficiais britânicos fugidos do campo de prisioneiros Oflag 65, perto de Estrasburgo. Os demais eram um comunista tcheco, uma violinista judia e um inglês misterioso chamado Watermill, “moinho d’água”, que devia ser espião.

           Todos tinham percorrido um longo caminho e enfrentado várias dificuldades. Aquela era a última etapa da viagem – e também a mais perigosa. Se fossem pegos agora, seriam torturados até traírem os homens e as mulheres valentes que os haviam ajudado a fugir.

           Teresa liderava o grupo. A subida era árdua para quem não estava acostumado, mas era preciso manter um ritmo forte a fim de minimizar o tempo durante o qual ficariam expostos. Lloyd descobrira que os refugiados tinham menos tendência a ficar para trás quando eram conduzidos por uma mulher mignon e lindíssima.

           A trilha ficou plana e se abriu para uma pequena clareira. De repente, uma voz alta ecoou, falando francês com sotaque alemão:

           – Parem!

           A fila estacou abruptamente.

           Dois soldados alemães surgiram de trás de uma pedra. Estavam armados com fuzis de repetição Mauser, cada um com cinco tiros.

           Por reflexo, Lloyd levou a mão ao bolso do sobretudo no qual trazia sua Luger 9mm carregada.

           Fugir do continente europeu tinha ficado mais difícil, e o trabalho de Lloyd se tornara ainda mais perigoso. No fim do ano anterior, os alemães haviam ocupado a metade sul da França, ignorando com desdém o governo francês de Vichy como a farsa mambembe que sempre fora. Uma zona proibida de dezesseis quilômetros de largura fora delimitada ao longo da fronteira com a Espanha. Era nessa zona que Lloyd e seu grupo estavam agora.

           Teresa falou com os soldados em francês:

           – Bom dia, senhores. Como vão?

           Lloyd, que a conhecia bem, pôde ouvir o tremor do medo em sua voz, mas torceu para que os guardas não percebessem.

           Havia muitos fascistas e alguns comunistas entre os policiais franceses, mas todos eram preguiçosos, e nenhum estava disposto a perseguir refugiados pelos desfiladeiros gelados dos Pireneus. Os alemães, no entanto, eram diferentes. Soldados alemães haviam se instalado em cidadezinhas da fronteira e começaram a patrulhar os caminhos e trilhas nas montanhas usados por Lloyd e Teresa. Esses ocupantes não faziam parte da nata militar: os melhores soldados estavam lutando na Rússia, onde recentemente haviam desistido de invadir Stalingrado após uma longa e sangrenta batalha. Muitos dos alemães que estavam na França eram ou velhos, ou muito jovens, ou feridos de guerra. Mas isso parecia torná-los ainda mais decididos a provar seu valor. Ao contrário dos franceses, raramente faziam vista grossa.

           O mais velho dos soldados, um homem de magreza cadavérica e bigode cinza, perguntou a Teresa:

           – Para onde estão indo?

           – Para o vilarejo de Lamont. Temos mantimentos para o senhor e seus colegas.

           Uma unidade alemã havia se mudado para um vilarejo isolado na montanha e expulsara os moradores locais. Só então percebera como era difícil abastecer tropas naquele local. Levar comida para os alemães – e ainda obter um lucro interessante com isso – tinha sido uma ideia genial de Teresa e ainda lhes rendera uma autorização para circular pela zona proibida.

           O soldado magro olhou com desconfiança para os homens de mochila.

           – Tudo isso é para soldados alemães?

           – Sim – respondeu Teresa. – Não há nenhum outro comprador lá em cima. – Ela tirou do bolso um pedaço de papel. – Aqui está a ordem, assinada pelo seu sargento Eisenstein.

           O soldado leu o bilhete com cuidado e o devolveu. Então olhou para o tenente-coronel Will Donelly, um piloto americano gordo.

           – Ele é francês?

           Lloyd levou a mão à pistola que trazia no bolso.

           A aparência dos fugitivos era um problema. Os franceses e espanhóis daquela região costumavam ser baixos e morenos. E todos eram magros. Tanto Lloyd quanto Teresa correspondiam a essa descrição, assim como o tcheco e a violinista judia. Os dois britânicos, porém, eram pálidos e louros, e os americanos eram imensos.

           – Guillaume nasceu na Normandia – respondeu Teresa. – Toda aquela manteiga...

           O mais novo dos dois soldados alemães, um rapaz pálido e de óculos, sorriu para Teresa. Era fácil sorrir para ela.

           – Vocês trouxeram vinho? – perguntou ele.

           – Claro.

           Os dois soldados ficaram visivelmente animados.

           – Vão querer um pouco agora? – perguntou Teresa.

           – Este sol dá sede – disse o mais velho.

           Lloyd abriu um dos cestos carregados pelos pôneis, pegou quatro garrafas de vinho branco de Roussillon e as entregou aos alemães. Os soldados empunharam duas garrafas cada. De repente, todos começaram a sorrir e se cumprimentar.

           – Podem passar, amigos – disse o soldado mais velho.

           Os fugitivos prosseguiram. Lloyd não achava mesmo que fosse haver problemas, mas nunca se podia ter certeza, e ficou aliviado por ter passado pelo posto de vigia.

           Levaram mais duas horas para chegar a Lamont. O povoado paupérrimo, com um punhado de casas de construção primitiva e alguns currais de ovelhas vazios, ficava nos limites de uma pequena chapada na montanha, sobre a qual o capim novo da primavera começava a despontar. Lloyd teve pena das pessoas que moravam ali antes. Tinham tão pouco e até isso lhes fora tirado.

           O grupo foi até o centro do vilarejo e, com alívio, tirou dos ombros o carregamento que trazia. Então foi cercado por soldados alemães.

           Aquela era a hora mais perigosa, pensou Lloyd.

           O sargento Eisenstein tinha sob seu comando um pelotão de 15 a vinte homens. Todos ajudaram a descarregar os mantimentos: pão, linguiça, peixe fresco, leite condensado, comida enlatada. Os soldados ficavam felizes em receber mantimentos e gostavam de ver caras novas. Animados, tentavam puxar conversa com seus benfeitores.

           Os fugitivos tinham que falar o mínimo possível. Era muito fácil se denunciarem nessa hora; bastava um simples deslize. Alguns alemães falavam francês bem o suficiente para detectar sotaque inglês ou americano. Mesmo os que tinham pronúncia razoável, como Teresa e Lloyd, podiam se entregar caso cometessem um erro de gramática. Era muito fácil trocar sur la table por sur le table, mas esse era um erro que francês nenhum jamais cometeria.

           Para compensar, os dois verdadeiros franceses do grupo se esforçavam para se mostrar falantes. Sempre que um soldado começava a conversar com um fugitivo, um deles se intrometia.

           Teresa entregou uma conta ao sargento, que levou muito tempo para conferir os números e depois para contar o dinheiro.

           Por fim, eles puderam ir embora, com as mochilas vazias e o coração mais leve.

           Desceram a montanha por quase um quilômetro na mesma direção da qual tinham vindo, depois se separaram. Teresa seguiu em frente com os franceses e os pôneis. Lloyd e os fugitivos pegaram uma trilha que subia.

           A essa altura, os dois soldados alemães da clareira já deviam estar embriagados demais para reparar que o grupo que descia era menor que aquele que subira antes. No entanto, caso fizessem perguntas, Teresa diria que alguns integrantes do grupo tinham começado uma partida de carteado com os soldados e que desceriam depois. Então haveria uma troca de turno dos vigias e os alemães perderiam o controle dos fatos.

           Lloyd fez seu grupo caminhar por duas horas, depois permitiu dez minutos de descanso. Todos haviam recebido garrafas d’água e pacotinhos de figos secos, para dar energia. Tinham instruções para não trazer mais nada: Lloyd sabia, por experiência própria, que livros estimados, prataria, enfeites e discos sempre acabavam ficando pesados demais e sendo jogados num barranco cheio de neve antes de os viajantes chegarem ao ponto mais alto da montanha, com os pés cheios de bolhas.

           Aquele era o trecho mais difícil. Dali em diante, o caminho ficaria mais escuro, mais frio e mais pedregoso.

           Pouco antes de onde a neve começava, Lloyd instruiu os fugitivos a encherem suas garrafas com água de um riacho frio e cristalino.

           Quando a noite caiu, eles prosseguiram. Era perigoso deixar que os fugitivos dormissem: podiam morrer congelados. Todos estavam cansados e escorregavam e cambaleavam nas pedras cobertas de gelo. Era inevitável que seu ritmo diminuísse. Lloyd não podia deixar a fila se espalhar muito: os retardatários podiam se perder, e os distraídos corriam o risco de cair em desfiladeiros íngremes. Mas ele nunca tinha perdido ninguém... até agora.

           Muitos dos fugitivos eram oficiais, e era naquele momento que às vezes contestavam Lloyd, discordando quando ele os mandava prosseguir. Por conta disso Lloyd fora promovido a major, para ter mais autoridade.

           No meio da noite, quando o moral dos fugitivos estava mais baixo, Lloyd anunciou:

           – Vocês agora estão na Espanha, um território neutro!

           Apesar de cansados, todos comemoraram. Na verdade, ele não sabia exatamente onde ficava a fronteira, e sempre fazia esse anúncio quando o grupo mais precisava de uma injeção de ânimo.

           Os fugitivos voltaram a se animar quando o dia raiou. Ainda faltava uma parte do caminho, mas a estrada agora descia, e suas pernas e seus braços frios foram se aquecendo aos poucos.

           Quando o sol saiu, eles margearam uma pequena cidade com uma igreja cor de terra no alto de uma colina. Logo depois da cidade, chegaram a um grande celeiro junto à estrada. Lá dentro havia um caminhão Ford com a caçamba coberta por uma lona suja. Era grande o suficiente para transportar todo o grupo. Ao volante estava o capitão Silva, um inglês de meia-idade e ascendência espanhola que trabalhava com Lloyd.

           Lloyd ficou surpreso ao encontrar também o major Lowther, encarregado do curso de inteligência em Tŷ Gwyn, que exibira uma atitude esnobe e reprovadora em relação à sua amizade com Daisy – ou talvez fosse apenas inveja.

           Lloyd sabia que Lowther tinha sido transferido para a embaixada britânica em Madri e imaginava que trabalhasse para o MI6, o Serviço Secreto de Inteligência, mas não esperava encontrá-lo assim tão longe da capital.

           O major usava um terno caro de flanela branca, amarrotado e sujo. Postado junto ao caminhão, tinha um ar de autoridade.

           – Eu assumo a partir daqui, Williams – disse ele. Olhando para os fugitivos, perguntou: – Qual de vocês é Watermill?

           Watermill podia ser um nome de verdade ou um codinome.

           O inglês misterioso deu um passo à frente e apertou a mão de Lowther.

           – Eu sou o major Lowther. Vou levá-lo direto para Madri. – Ele se virou para Lloyd antes de completar: – Infelizmente, o restante do grupo vai ter que se dirigir para a estação de trem mais próxima.

           – Espere um instante – disse Lloyd. – Este caminhão pertence à minha organização. – Ele havia comprado o veículo com dinheiro do MI9, departamento que ajudava prisioneiros a fugirem. – E o motorista trabalha para mim.

           – Não posso fazer nada – disse Lowther depressa. – Watermill tem prioridade.

           O Serviço Secreto de Inteligência sempre achava que tinha prioridade.

           – Não concordo – disse Lloyd. – Não vejo motivo para não podermos ir todos até Barcelona no caminhão, como planejado. Depois você pode levar Watermill até Madri de trem.

           – Não pedi sua opinião, garoto. Obedeça e fim de papo.

           O próprio Watermill interveio, em tom conciliador:

           – Não tenho problema nenhum em dividir o caminhão.

           – Deixe que eu cuido disso, por favor – pediu Lowther.

           – Esses homens acabaram de atravessar os Pireneus – argumentou Lloyd. – Eles estão exaustos.

           – Então é melhor descansarem antes de continuar.

           Lloyd fez que não com a cabeça.

           – É perigoso demais. A cidade que fica no alto da colina tem um prefeito simpático à causa... por isso o ponto de encontro é aqui. Mais embaixo no vale, porém, a política é outra. Há agentes da Gestapo por toda parte, como você bem sabe... e a maioria dos policiais espanhóis está do lado deles, não do nosso. Meu grupo estará correndo sério risco de ser preso por entrar no país ilegalmente. Você sabe como é difícil tirar alguém das prisões de Franco, mesmo um inocente.

           – Não vou perder meu tempo discutindo com você. Sou seu superior hierárquico.

           – Não é, não.

           – O quê?

           – Também sou major. Portanto, nunca mais me chame de “garoto”, a menos que queira levar um soco no nariz.

           – Minha missão é urgente!

           – Então por que não trouxe o seu próprio veículo?

           – Porque este estava disponível!

           – Não estava, não.

           Will Donelly, o americano gordo, deu um passo à frente.

           – Concordo com o major Williams – falou com seu sotaque arrastado. – Ele acabou de salvar a minha vida. Já o senhor, major Lowther, não fez merda nenhuma.

           – Isso não vem ao caso – retrucou Lowther.

           – Bem, a situação aqui me parece bem clara – continuou Donelly. – O caminhão é do major Williams. O major Lowther quer o caminhão, mas não vai ter. Fim de papo.

           – Fique fora dessa história – disse Lowther.

           – Eu sou tenente-coronel, portanto superior a vocês dois.

           – Mas esta aqui não é a sua jurisdição.

           – Nem a sua, pelo visto. – Donelly virou-se para Lloyd. – Vamos indo?

           – Eu insisto! – esbravejou Lowther.

           Donelly virou-se para ele outra vez.

           – Major Lowther, cale a porra da boca. Isto é uma ordem!

           – Muito bem, pessoal... todos a bordo – disse Lloyd.

           Lowther lançou-lhe um olhar de ira e esbravejou:

           – Você ainda me paga, seu galesinho de merda.

 

           Os narcisos já tinham começado a florir em Londres quando Daisy e Boy foram fazer exame médico.

           A consulta tinha sido ideia de Daisy. Estava farta de Boy culpá-la por não conseguir engravidar. Ele vivia comparando-a à mulher do irmão, May, que tinha três filhos.

           – Deve haver algo de errado com você – dissera ele, agressivo.

           – Eu já engravidei uma vez.

           Ela estremeceu ao se lembrar da dor do aborto; então, recordando-se de como Lloyd tinha cuidado dela, sentiu uma dor diferente.

           – Alguma coisa pode ter acontecido de lá para cá e tornado você estéril – dissera Boy.

           – Ou você.

           – Como assim?

           – Pode muito bem haver algo de errado com você – respondera Daisy.

           – Não diga bobagem.

           – Olhe, eu proponho um acordo. – Ocorreu-lhe que estava negociando como seu pai, Lev. – Eu aceito fazer um exame... se você também fizer.

           Isso o deixara surpreso, e ele hesitara antes de dizer:

           – Está bem. Mas você vai primeiro. Se eles disserem que não há nada de errado, eu vou.

           – Não – insistira ela. – Quem vai primeiro é você.

           – Por quê?

           – Porque não confio em você no que diz respeito a manter promessas.

           – Tudo bem, então. Vamos juntos.

           Daisy não sabia muito bem por que estava fazendo aquilo. Havia tempo que já não amava Boy. Estava apaixonada por Lloyd Williams, que ainda não tinha voltado da Espanha, onde cumpria uma missão sobre a qual não podia falar muito. No entanto, era casada com Boy. Ele havia sido infiel, é verdade – e com diversas mulheres. Mas ela também cometera adultério, mesmo que com um homem só. Não tinha nenhum embasamento moral para reclamar; consequentemente, estava paralisada. Sentia apenas que, se cumprisse a sua função de esposa, talvez conseguisse manter os últimos resquícios de autoestima que lhe restavam.

           O consultório do médico ficava na Harley Street, não muito longe de sua casa, mas num bairro menos rico. Daisy achou a consulta desagradável. O médico reclamou por ela ter chegado dez minutos atrasada. Fez muitas perguntas sobre seu estado de saúde geral, seus ciclos menstruais e o que chamou de suas “relações” com o marido. Em nenhum momento olhou para ela, mas tomava notas com uma caneta-tinteiro. Em seguida enfiou uma série de instrumentos frios dentro de sua vagina.

           – Faço isso todos os dias, não precisa se preocupar – disse ele, lançando-lhe um sorriso que dizia o contrário.

           Quando Daisy saiu da consulta, esperou que Boy fosse romper o acordo e desistir da sua. No entanto, ele entrou, mesmo de cara feia.

           Enquanto aguardava, Daisy releu uma carta do meio-irmão, Greg. Ele descobrira que tinha um filho, fruto de um caso com uma garota negra quando ele estava com 15 anos. Para espanto de Daisy, seu irmão playboy estava encantado com o menino e disposto a participar de sua vida, mesmo que não como pai, mas como tio. E o que era ainda mais surpreendente: Lev tinha conhecido o neto e dito que ele era inteligente.

           Que ironia, pensou ela. Greg tinha um filho, mesmo que nunca tivesse querido ser pai, e Boy não tinha nenhum, embora ansiasse loucamente por um herdeiro.

           Seu marido saiu da sala do médico uma hora depois. O doutor lhes prometeu os resultados para dali a uma semana. Eles foram embora do consultório ao meio-dia.

           – Depois dessa, preciso de um drinque – disse Boy.

           – Eu também – concordou Daisy.

           Eles olharam para os dois lados da rua, repleta de casas idênticas.

           – Este bairro parece um deserto. Nenhum mísero pub à vista.

           – Eu não vou a um pub de jeito nenhum – disse Daisy. – Quero um martíni, e ninguém sabe preparar martíni em pubs.

           Ela sabia do que estava falando. Certa vez pedira um martíni no King’s Head, em Chelsea, e tinham lhe servido um copo de vermute quente absolutamente intragável.

           – Vamos ao Hotel Claridge, por favor – pediu ela. – Fica só a cinco minutos a pé daqui.

           – Ótima ideia!

           O bar do Claridge estava cheio de pessoas conhecidas. Regras rígidas regulavam as refeições que os restaurantes podiam servir, mas o Claridge encontrara uma brecha: não havia restrição nenhuma quanto à distribuição de comida, de modo que eles ofereciam um bufê gratuito e cobravam apenas pelas bebidas, praticando seus preços já naturalmente salgados.

           Daisy e Boy se acomodaram em meio àquele esplendor art déco e bebericaram dois drinques perfeitos. Ela começou a se sentir melhor.

           – O médico me perguntou se eu tive caxumba – disse Boy.

           – Mas você teve.

           A caxumba era uma doença típica da infância, mas Boy a contraíra havia apenas uns dois anos. Ficara acantonado por um breve período numa igreja de East Anglia e pegara a infecção dos três filhos pequenos do vigário. Sentira muita dor.

           – Ele explicou por quê?

           – Não. Você sabe como são esses caras. Nunca dizem droga nenhuma.

           Daisy pensou que já não era mais tão alegre e descontraída quanto antigamente. Nos velhos tempos, jamais teria se preocupado daquele jeito com seu casamento. Sempre gostara das palavras de Scarlett O’Hara em ...E o vento levou: “Pensarei nisso amanhã.” Porém, não era mais assim. Talvez estivesse amadurecendo.

           Boy pedia um segundo drinque quando Daisy olhou para a porta do bar e viu o marquês de Lowther entrar, usando um uniforme amarrotado e manchado.

           Não gostava daquele homem. Desde que ele desconfiara de seu relacionamento com Lloyd, passara a tratá-la com uma familiaridade pegajosa, como se os dois compartilhassem um segredo que os tornasse íntimos.

           Lowther sentou-se à mesa com eles sem ser convidado, deixou cair a cinza do charuto na calça cáqui e pediu um manhattan.

           Daisy logo viu que as intenções dele não eram boas. Seus olhos tinham um brilho de deleite maldoso que não podia ser explicado apenas pela expectativa de um bom drinque.

           – Já faz mais ou menos um ano que não o vejo, Lowthie – disse Boy. – Por onde tem andado?

           – Estava em Madri – respondeu Lowther. – Não posso falar muito a respeito. Informação sigilosa, sabe como é. E você?

           – Passo muito tempo treinando pilotos, mas ultimamente voei em algumas missões, depois que intensificamos os bombardeios à Alemanha.

           – Uma ótima providência. Precisamos dar aos alemães um gostinho de seu próprio veneno.

           – Você pode até achar isso, mas os pilotos andam reclamando bastante.

           – É mesmo? Por quê?

           – Porque toda essa conversa sobre alvos militares é uma grande balela. De nada adianta bombardear fábricas na Alemanha, porque eles simplesmente as reconstroem. Então agora estamos atacando grandes áreas habitadas por uma densa população de classe trabalhadora, pois eles não conseguem substituir os operários com a mesma rapidez.

           Lowther assumiu uma expressão chocada.

           – Então a nossa política é matar civis.

           – Exatamente.

           – Mas o governo está nos garantindo...

           – O governo está mentindo – disse Boy. – E as equipes dos bombardeiros agora sabem disso. Muitos não se importam, é claro, mas alguns se sentem mal. Segundo eles, se estivermos fazendo a coisa certa, devemos dizer isso claramente. Por outro lado, se estivermos fazendo a coisa errada, devemos parar.

           Lowther pareceu pouco à vontade.

           – Não acho que deveríamos estar tendo esta conversa aqui.

           – Tem razão – concordou Boy.

           A segunda rodada de drinques chegou. Virando-se para Daisy, Lowther perguntou:

           – E a esposinha? A senhora deve estar fazendo algum trabalho de guerra. Como diz o ditado: cabeça vazia, oficina do diabo.

           Daisy respondeu em tom neutro e casual:

           – Agora que a Blitz acabou, eles não precisam mais de mulheres para dirigir ambulâncias, então estou trabalhando para a Cruz Vermelha. Temos um escritório em Pall Mall. Fazemos o possível para ajudar os americanos que estão servindo aqui.

           – Homens sedentos por um pouco de companhia feminina, não é mesmo?

           – Em geral, só sentem saudades de casa. Gostam de ouvir sotaque americano.

           Lowthie olhou para ela com lascívia.

           – Imagino que a senhora tenha muito talento para consolar esses soldados.

           – Eu faço o que posso.

           – Aposto que sim.

           – Lowthie, você está bêbado? – indagou Boy. – Porque essa sua conversa está muito inconveniente.

           A expressão de Lowther foi tomada por desdém.

           – Ah, Boy, por favor, não me diga que você não sabe. Por acaso é cego?

           – Boy, vamos para casa, por favor – pediu Daisy.

           Mas seu marido a ignorou e dirigiu-se a Lowther:

           – Que história é essa?

           – Pergunte a ela sobre Lloyd Williams.

           – Se você não me levar, irei para casa sozinha – disse Daisy.

           – Você conhece algum Lloyd Williams? – perguntou-lhe Boy.

           Ele é seu irmão, pensou Daisy. Sentiu um forte impulso de revelar o segredo e deixar o marido pasmo de surpresa, mas resistiu.

           – Você também conhece – falou. – Ele estudou em Cambridge com você. Levou-nos a uma casa de espetáculos no East End, anos atrás.

           – Ah! – disse Boy, lembrando. Então, intrigado, tornou a se dirigir a Lowther: – Aquele cara? – Era difícil para Boy ver Lloyd como um rival. – Um homem que não tem dinheiro nem para comprar a própria casaca? – disse, cada vez mais incrédulo.

           – Três anos atrás, ele fez o meu curso de inteligência em Tŷ Gwyn. Daisy estava morando na mansão na época – contou Lowther. – Se bem me lembro, você estava arriscando a vida na França em um Hawker Hurricane. Enquanto ela se engraçava com aquele espertinho galês... na casa da sua própria família!

           O rosto de Boy estava ficando vermelho.

           – Lowthie, se você estiver inventando isso, juro que quebro a sua cara.

           – Pergunte à sua mulher! – retrucou Lowther com um sorriso confiante.

           Boy virou-se para Daisy.

           Ela não havia dormido com Lloyd em Tŷ Gwyn. Isso só acontecera em sua cama de solteiro, na casa da mãe dele, durante a Blitz. Mas não podia explicar isso a Boy na frente de Lowther. De toda forma, era um mero detalhe. A acusação de adultério era verdadeira, e ela não iria negar. O segredo tinha sido revelado. Tudo o que ela queria agora era conservar pelo menos uma aparência de dignidade.

           – Boy, vou contar tudo o que você quiser saber... mas não na frente desse porco malicioso – falou.

           Ele ergueu a voz de tanto espanto:

           – Quer dizer então que você não nega?

           As pessoas da mesa ao lado se viraram, parecendo constrangidas, e tornaram a prestar atenção em seus próprios drinques.

           Então foi a vez de Daisy levantar a voz:

           – Eu me recuso a ser interrogada no bar do Claridge.

           – Então você confessa? – gritou Boy.

           O salão ficou em silêncio.

           Daisy se levantou.

           – Não vou admitir nem negar nada aqui. Contarei tudo a você em particular, em casa, que é onde casais civilizados tratam desse tipo de assunto.

           – Meu Deus, você fez mesmo isso, foi para a cama com ele! – vociferou Boy.

           Até os garçons pararam de trabalhar e ficaram imóveis, assistindo à briga.

           Daisy foi até a porta.

           – Sua puta! – gritou Boy.

           Daisy não sairia deixando essa frase sem resposta. Virou-se para ele outra vez:

           – De putas você entende bem, não é mesmo? Tive o desprazer de conhecer duas das suas, lembra? – Ela correu os olhos pelo salão. – Joanie e Pearl – falou, com desdém. – Quantas esposas iriam tolerar uma coisa dessas?

           Então ela saiu do bar antes que ele pudesse responder.

           Entrou num táxi que estava parado diante do hotel. Quando o carro estava se afastando da calçada, viu Boy surgir na rua e entrar no táxi seguinte da fila.

           Daisy disse o endereço ao taxista.

           De certa forma, estava aliviada com o fato de a verdade ter vindo à tona. Mas também sentia-se muito triste. Sabia que algo havia terminado.

           Sua casa ficava a menos de 500 metros do hotel. Quando ela chegou, o táxi de Boy encostou logo atrás.

           Ele entrou atrás dela no hall.

           Não podia mais ficar naquela casa com ele. Aquilo estava acabado. Nunca mais iria compartilhar sua casa nem sua cama.

           – Pegue uma mala para mim, por favor – pediu ela ao mordomo.

           – Pois não, milady.

           Daisy olhou em volta. A casa era uma residência urbana do século XVIII, de proporções perfeitas, com uma escadaria curva elegante. Mas na verdade não estava triste por deixá-la.

           – Para onde você vai? – perguntou Boy.

           – Para um hotel, eu acho. Provavelmente não o Claridge.

           – Para encontrar seu amante!

           – Não, ele está no exterior. Mas sim, eu o amo. Sinto muito, Boy. Você não tem o menor direito de me julgar... Suas ofensas são piores do que as minhas. Mas eu julgo a mim mesma.

           – Para mim chega – disse ele. – Vou me divorciar de você.

           Ela percebeu que essas eram as palavras pelas quais estava esperando. Agora tinham sido ditas, e estava tudo acabado. Sua nova vida começava naquele instante.

           Daisy suspirou.

           – Graças a Deus.

 

           Daisy alugou um apartamento em Piccadilly. Tinha um banheiro grande com chuveiro, ao estilo americano. E havia um lavabo separado, só para os convidados – uma extravagância que, aos olhos dos ingleses, beirava o ridículo.

           Por sorte, dinheiro não era problema para Daisy. Seu avô Vyalov a deixara rica, e desde os 21 anos ela controlava a própria fortuna, toda em dólares americanos.

           Como era difícil comprar móveis novos, saiu à cata de antiguidades, das quais havia muita oferta a preços bons. Pendurou quadros modernos para dar ao apartamento um ar alegre e jovem. Contratou uma lavadeira idosa e uma moça para fazer a faxina, e achou fácil administrar a casa sem mordomo ou cozinheira, sobretudo porque não tinha um marido para paparicar.

           Os criados da casa de Mayfair empacotaram todas as suas roupas e as enviaram para o apartamento num pequeno caminhão de mudanças. Daisy e a lavadeira passaram uma tarde inteira abrindo as caixas e arrumando tudo.

           Ela havia sido ao mesmo tempo humilhada e libertada. No fim das contas, achava que estava melhor assim. A ferida da rejeição iria cicatrizar, e então ela estaria livre de Boy para sempre.

           Uma semana depois, começou a se perguntar qual teria sido o resultado dos exames. O médico naturalmente devia ter entrado em contato com Boy, que era o marido. Daisy não queria perguntar a ele. Além do mais, aquilo não parecia ter importância agora, e ela esqueceu o assunto.

           Estava gostando de organizar a casa nova. Durante algumas semanas, ficou entretida demais para socializar. Depois de arrumar o apartamento, decidiu rever todos os amigos que vinha ignorando.

           Tinha vários amigos em Londres. Fazia sete anos que morava na cidade. Durante os últimos quatro, Boy passara mais tempo fora de casa do que nela, e ela frequentara festas e bailes sozinha. Assim, estar sem marido não faria muita diferença em sua vida, pensou. Sem dúvida seria riscada da lista de convidados da família Fitzherbert, mas eles não eram os únicos integrantes da alta sociedade londrina.

           Comprou caixas de uísque, gim e champanhe, passando um pente fino em Londres atrás do que ainda havia de mercadorias legítimas e adquirindo o restante no mercado negro. Então enviou convites para uma festa de inauguração do novo apartamento.

           As respostas chegaram com uma prontidão assustadora, todas negativas.

           Aos prantos, ela telefonou para Eva Murray.

           – Por que ninguém quer vir à minha festa? – gemeu.

           Dez minutos depois, Eva estava na porta de sua casa.

           Veio acompanhada dos três filhos e de uma babá. Jamie estava com 6 anos, Anna com 4, e a pequena Karen com 2.

           Daisy lhe mostrou o apartamento e em seguida pediu um chá, enquanto Jamie transformava o sofá em tanque, usando as irmãs como equipe.

           Num inglês com uma mistura de sotaques alemão, americano e escocês, Eva disse:

           – Daisy, meu bem, isto aqui não é Roma.

           – Eu sei. Tem certeza de que está confortável?

           Eva estava no final da gravidez do quarto filho.

           – Você se importa se eu puser os pés para cima?

           – É claro que não.

           Daisy foi buscar uma almofada.

           – A sociedade londrina é respeitável – prosseguiu Eva. – Não pense que eu concordo com isso. Já fui excluída em várias ocasiões, e o pobre Jimmy às vezes é esnobado por ter se casado com uma alemã filha de judeu.

           – Que horror!

           – Seja qual for o motivo, eu não desejaria isso para ninguém.

           – Às vezes eu odeio os ingleses.

           – Está se esquecendo de como são os americanos? Não se lembra que me dizia que todas as garotas de Buffalo eram esnobes?

           Daisy riu.

           – Isso parece fazer tanto tempo...

           – Você deixou seu marido – disse Eva. – E fez isso de um jeito indiscutivelmente espetacular, gritando insultos para ele no bar do Hotel Claridge.

           – E olhe que eu só tinha tomado um martíni.

           Eva sorriu.

           – Como eu queria ter estado lá!

           – Acho que eu preferiria não ter estado.

           – Não preciso nem dizer que, durante as últimas três semanas, não se falou em outra coisa na alta roda de Londres.

           – Acho que eu deveria ter previsto isso.

           – Agora, infelizmente, acho que qualquer um que aparecer na sua festa será visto como alguém que aprova o adultério e o divórcio. Nem eu gostaria que minha sogra soubesse que estive aqui e tomei chá com você.

           – Mas é tão injusto... Boy me traiu primeiro!

           – E você achou que as mulheres fossem tratadas como iguais?

           Daisy lembrou que Eva tinha muito mais coisas com que se preocupar do que ser esnobada socialmente. Sua família continuava na Alemanha nazista. Fitz fizera perguntas por meio da embaixada suíça e descobrira que seu pai, que era médico, estava agora em um campo de concentração, e que seu irmão que fabricava violinos fora espancado pela polícia e tivera as mãos quebradas.

           – Quando penso nos seus problemas, tenho até vergonha de reclamar – falou.

           – Não precisa ter vergonha. Mas cancele essa festa.

           Daisy cancelou, mas ficou arrasada. O trabalho na Cruz Vermelha preenchia seus dias; à noite, porém, não tinha para onde ir nem o que fazer. Ia ao cinema duas vezes por semana. Tentou ler Moby Dick, mas achou o livro entediante. Num domingo, foi à missa. A igreja de St. James, que fora projetada pelo arquiteto Christopher Wren e ficava em frente ao seu prédio em Piccadilly, tinha sido bombardeada, por isso ela foi a St. Martin in the Fields. Boy não estava lá, mas Fitz e Bea sim, e Daisy passou a missa inteira olhando a parte de trás da cabeça do ex-sogro, pensando que tinha se apaixonado por dois filhos daquele homem. Boy tinha a aparência da mãe e o egoísmo obstinado do pai. Lloyd tinha a beleza de Fitz e o coração generoso de Ethel. Por que demorei tanto para perceber isso?, perguntou-se Daisy.

           A igreja estava cheia de conhecidos seus, mas nenhum deles falou com ela depois da missa. Daisy estava sozinha e quase sem amigos, num país estrangeiro, no meio de uma guerra.

           Certa noite, pegou um táxi até Aldgate e bateu à porta da casa dos Leckwith. Quando Ethel abriu, ela disse:

           – Vim pedir a mão do seu filho em casamento.

           Ethel deu uma sonora risada e a abraçou.

           Daisy havia levado um presente: uma lata de presunto americano que recebera de um navegador da Força Aérea dos Estados Unidos. Esse tipo de coisa era um luxo para as famílias inglesas, sujeitas ao racionamento de guerra. Sentada na cozinha com Ethel e Bernie, ficou ouvindo canções no rádio. Os três cantaram “Underneath the Arches”, de Flanagan e Allen.

           – Bud Flanagan nasceu aqui mesmo, no East End – disse Bernie com orgulho. – O nome verdadeiro dele era Chaim Ruben Weintrop.

           Os Leckwith estavam animados com o Relatório Beveridge, documento do governo que havia se tornado um sucesso de vendas.

           – O texto foi encomendado por um primeiro-ministro conservador e escrito por um economista liberal – disse Bernie. – Apesar disso, propõe justamente o que o Partido Trabalhista sempre quis! Em política, você sabe que está ganhando quando o adversário rouba suas ideias.

           – A proposta é que todos os cidadãos com idade para trabalhar paguem um seguro semanal para receber benefícios quando ficarem doentes, desempregados, aposentados ou viúvos – explicou Ethel.

           – É uma iniciativa simples, mas vai transformar nosso país – afirmou Bernie, entusiasmado. – Do berço até o caixão, ninguém nunca mais vai ficar desamparado.

           – E o governo aceitou? – perguntou Daisy.

           – Não – respondeu Ethel. – Clem Attlee pressionou Churchill, mas o primeiro-ministro não aprovou o relatório. O Tesouro acha que vai sair caro demais.

           – Temos que ganhar uma eleição antes de conseguir implementá-lo – completou Bernie.

           Millie, filha de Ethel e Bernie, apareceu para uma visita.

           – Não posso ficar muito tempo – falou. – Abie está cuidando das crianças por meia hora.

           Millie estava desempregada: as inglesas não compravam mais vestidos caros, nem quando tinham dinheiro; felizmente, porém, o negócio de couros de seu marido ia muito bem. O casal tinha dois filhos bebês, Lennie e Pammie.

           Os quatro tomaram chocolate quente e conversaram sobre o rapaz que adoravam. Tinham poucas notícias de Lloyd. A cada seis ou oito meses, Ethel recebia uma carta no papel timbrado da embaixada britânica em Madri dizendo que ele estava bem e fazendo a sua parte para derrotar o fascismo. Fora promovido a major. Nunca tinha escrito para Daisy por medo de que Boy visse as cartas, mas agora isso não era mais problema. Daisy deu a Ethel o endereço de seu novo apartamento e anotou o de Lloyd, um número do Correio das Forças Armadas Britânicas.

           Ninguém fazia ideia de quando ele teria uma licença para ir para casa.

           Daisy lhes contou sobre Greg e seu filho, Georgy. Sabia que os Leckwith não iam julgar seu meio-irmão e se alegrariam com a notícia.

           Contou também a história da família de Eva em Berlim. Bernie era judeu, e ficou com os olhos marejados ao ouvir sobre as mãos quebradas de Rudi.

           – Eles deveriam ter lutado contra os malditos fascistas nas ruas, quando tiveram oportunidade – falou. – Foi o que nós fizemos.

           – Ainda tenho nas costas as cicatrizes de quando a polícia nos empurrou contra a vitrine da Gardiner’s – disse Millie. – Antes tinha vergonha delas... Abie só viu minhas costas depois de seis meses de casados. Mas disse que tem orgulho de mim.

           – Essa briga na Cable Street foi bem feia – comentou Bernie. – Mas demos um basta naquela bobajada violenta. – Ele tirou os óculos e enxugou os olhos com o lenço.

           Ethel passou um braço em volta dos ombros do marido.

           – Eu disse às pessoas que ficassem em casa naquele dia – falou. – Eu estava errada, e você estava certo.

           Ele deu um sorriso triste.

           – Isso não é muito frequente.

           – Mas foi a Lei de Ordem Pública promulgada depois de Cable Street que acabou com os fascistas britânicos – continuou Ethel. – O Parlamento proibiu o uso de uniformes políticos em público. Isso foi o fim deles. Sem poder se pavonear pelas ruas de camisa preta, eles não eram nada. Quem fez isso foram os conservadores... é preciso reconhecer seu mérito.

           Os Leckwith eram uma família politizada e já estavam planejando a reforma da Grã-Bretanha pelo Partido Trabalhista depois da guerra. O líder do partido, o brilhante e discreto Clement Attlee, era agora vice-primeiro-ministro de Churchill, e o herói sindicalista Ernie Bevin era ministro do Trabalho. A visão desses dois homens deixava Daisy animada em relação ao futuro.

           Millie foi embora, e Bernie foi se deitar. Quando as duas ficaram sozinhas, Ethel perguntou a Daisy:

           – Você quer mesmo se casar com o meu Lloyd?

           – Mais do que tudo neste mundo. A senhora acha que vai dar certo?

           – Acho. Por que não daria?

           – Porque temos origens muito diferentes. Vocês são pessoas tão boas... O serviço público é seu objetivo na vida.

           – Exceto para nossa Millie. Ela é igual ao irmão de Bernie... só pensa em ganhar dinheiro.

           – Mas até ela tem cicatrizes nas costas por causa da batalha da Cable Street.

           – É verdade.

           – Lloyd é igual à senhora. A política não é apenas mais uma das coisas que ele faz, como se fosse um hobby... É o centro da vida dele. No entanto, sou apenas uma milionária egoísta.

           – Acho que existem dois tipos de casamento – disse Ethel, compreensiva. – O primeiro é uma parceria confortável, na qual duas pessoas compartilham as mesmas esperanças e medos, criam os filhos juntos, se apoiam e se reconfortam. – Daisy percebeu que ela estava se referindo ao próprio casamento com Bernie. – O outro é uma paixão avassaladora, é loucura, alegria e sexo. Talvez aconteça com alguém totalmente inadequado, uma pessoa que você não admira e de quem nem gosta realmente. – Daisy teve certeza de que agora ela estava pensando em seu caso com Fitz. Prendeu a respiração. Sabia que Ethel estava lhe contando a verdade nua e crua. – Eu tive sorte, porque vivi as duas coisas. E meu conselho para você é: se tiver a chance de viver esse amor louco, agarre-a com todas as forças, e que se danem as consequências.

           – Uau! – exclamou Daisy.

           Ela foi embora alguns minutos mais tarde. Sentia-se privilegiada por Ethel ter lhe proporcionado aquele vislumbre de sua alma. Quando voltou para o apartamento vazio de Piccadilly, porém, sentiu-se deprimida outra vez. Preparou um drinque e o jogou fora. Pôs a chaleira no fogo e tornou a tirar. A programação do rádio acabou. Ela se deitou entre os lençóis frios e desejou que Lloyd estivesse ali.

           Comparou a família de Lloyd com a sua. Ambas tinham histórias atribuladas, mas Ethel havia formado uma família unida e solidária a partir de um material desfavorável, coisa que a mãe de Daisy não conseguira fazer – embora mais por culpa de Lev do que de Olga. Ethel era uma mulher notável, e Lloyd tinha muitas de suas qualidades.

           Onde estaria ele agora? O que estaria fazendo? Qualquer que fosse a resposta, certamente estava correndo perigo. Será que iria morrer justo agora, quando Daisy finalmente estava livre para amá-lo sem entraves, e até mesmo para se casar com ele? O que ela faria se ele morresse? Seria o fim da sua vida: sem marido, sem amante, sem amigos, sem país. O dia já estava amanhecendo quando ela enfim adormeceu, depois de tanto chorar.

           No dia seguinte, acordou tarde. Ao meio-dia, estava tomando café na pequena sala de jantar, usando um roupão de seda preta, quando sua empregada de 15 anos entrou e disse:

           – O major Williams está aqui, senhora.

           – O quê?! – exclamou ela. – Não pode ser!

           Então Lloyd cruzou a porta com a bolsa de lona pendurada no ombro.

           Tinha um ar cansado e uma barba de vários dias. Era óbvio que havia dormido com aquele uniforme.

           Ela se atirou nos braços dele e beijou seu rosto áspero. Ele retribuiu seus beijos, um pouco inibido por não conseguir parar de sorrir.

           – Eu devo estar fedendo – falou entre os beijos. – Faz uma semana que não troco de roupa.

           – Você está com o mesmo cheiro de uma fábrica de queijo – disse ela. – E eu adoro.

           Ela o puxou até o quarto e começou a tirar suas roupas.

           – Vou tomar uma ducha rápida – disse ele.

           – Não – retrucou ela. Então o empurrou de costas na cama. – Estou com muita pressa.

           O desejo que sentia por ele era ardente. E a verdade era que ela estava gostando daquele cheiro forte. Deveria ter sentido repulsa, mas o efeito foi justamente o contrário. Aquele era Lloyd, o homem que ela achara que pudesse estar morto, e era o cheiro dele que estava lhe enchendo as narinas e os pulmões. Ela poderia ter chorado de tanta alegria.

           Tirar a calça dele exigiria que tirasse antes suas botas, e ela pôde ver que isso seria muito complexo, então nem se deu o trabalho. Simplesmente desabotoou a braguilha. Jogou longe o roupão de seda preta e levantou a camisola até a cintura, sem desgrudar os olhos gulosos e felizes do pênis muito branco que despontava do tecido cáqui grosseiro. Então sentou-se sobre ele e abaixou o corpo devagar, curvando-se para a frente para beijá-lo.

           – Meu Deus – disse ela. – Você nem imagina quanto tenho desejado isto.

           Ficou deitada em cima dele sem se mexer muito, beijando-o sem parar. Ele segurou seu rosto com ambas as mãos e a encarou.

           – Isto aqui é real, não é? – indagou. – Não é só mais um sonho feliz?

           – É real, sim – respondeu ela.

           – Ótimo. Não gostaria de acordar agora.

           – Quero ficar assim para sempre.

           – Boa ideia, mas não vou conseguir ficar parado por muito tempo mais.

           Ele começou a se mexer debaixo dela.

           – Se você fizer isso, vou ter um orgasmo – disse Daisy.

           E de fato teve.

           Depois do sexo, eles passaram um longo tempo deitados, conversando.

           Lloyd tinha 15 dias de licença.

           – Fique aqui – disse Daisy. – Pode visitar seus pais todos os dias, mas quero você à noite.

           – Eu não iria querer estragar sua reputação.

           – Já está estragada. Eu já fui excluída da alta sociedade londrina.

           – Eu sei.

           Ele havia telefonado para Ethel da estação de Waterloo, e sua mãe lhe contara sobre a separação de Daisy e Boy e lhe dera o endereço do apartamento em Piccadilly.

           – Precisamos usar algum método anticoncepcional – disse ele. – Vou arranjar uns preservativos. Mas talvez seja bom você colocar alguma coisa. O que acha?

           – Você quer ter certeza de que eu não vou engravidar? – perguntou ela.

           Percebeu que sua voz tinha uma pontinha de tristeza, e Lloyd também a notou.

           – Não me entenda mal – disse ele, apoiando-se sobre o cotovelo. – Sou filho bastardo. Ouvi mentiras sobre minha origem e tive um choque terrível quando descobri a verdade. – A voz dele estremeceu de leve por causa da emoção. – Nunca vou fazer meus filhos passarem por isso. Nunca.

           – Não precisaríamos mentir.

           – E diríamos a eles que não somos casados? Que você na verdade é casada com outra pessoa?

           – Por que não?

           – Pense nas zombarias que eles teriam que ouvir na escola.

           Daisy não estava convencida, mas aquela questão claramente era importante para ele.

           – Então qual é o seu plano? – perguntou.

           – Quero ter filhos com você. Mas só quando estivermos casados. Um com o outro.

           – Isso eu já entendi – disse ela. – Então...

           – Vamos ter que esperar.

           Os homens eram lentos para entender indiretas.

           – Não sou uma garota muito apegada às tradições – disse ela. – Mas ainda assim existem algumas coisas...

           Ele finalmente entendeu aonde ela estava querendo chegar.

           – Ah! Tudo bem. Só um instante. – Ele se ajoelhou na cama. – Daisy, querida...

           Ela deu uma gargalhada. Lloyd estava hilário: ainda de uniforme, com o pênis agora flácido pendurado para fora da braguilha.

           – Posso tirar uma foto de você assim? – perguntou ela.

           Ele olhou para baixo e viu do que ela estava falando.

           – Ah, desculpe.

           – Não... nem se atreva a guardá-lo! Fique assim mesmo e diga o que ia dizer.

           Ele abriu um sorriso.

           – Daisy, querida, você aceita ser minha esposa?

           – Sem pestanejar – respondeu ela.

           Os dois tornaram a se deitar, abraçados.

           O cheiro dele logo deixou de ser uma novidade interessante. Os dois entraram no chuveiro juntos. Ela o ensaboou inteiro, divertindo-se com o seu constrangimento ao ter as partes mais íntimas do corpo lavadas. Passou xampu em seus cabelos e esfregou seus pés imundos com uma escova.

           Quando ele estava limpo, insistiu em dar banho nela, mas só conseguiu chegar aos seios antes que precisassem fazer amor outra vez. Transaram ali mesmo, de pé no chuveiro, com a água quente escorrendo por seus corpos. Ele obviamente havia esquecido momentaneamente sua aversão à gravidez indesejada, e ela não se importou.

           Em seguida, ele fez a barba em pé diante do seu espelho. Ela se enrolou numa toalha grande e sentou-se na tampa da privada para observá-lo.

           – Quanto tempo vai demorar para você se divorciar? – perguntou ele.

           – Não sei. É melhor eu falar com Boy.

           – Mas hoje não. Quero você só para mim o dia inteiro.

           – Quando você vai visitar seus pais?

           – Amanhã, talvez.

           – Então irei falar com Boy amanhã também. Quero resolver isso o quanto antes.

           – Ótimo – disse ele. – Combinado, então.

 

           Daisy se sentiu estranha ao entrar na casa em que havia morado com Boy. Um mês antes, aquilo tudo lhe pertencia. Ela era livre para ir e vir quando quisesse; para entrar em qualquer cômodo sem pedir licença. Os criados obedeciam a todas as suas ordens sem questioná-la. Agora, era uma estranha naquela casa. Não tirou as luvas nem o chapéu e teve que seguir o velho mordomo até a sala íntima.

           Boy não apertou sua mão nem a beijou no rosto. Parecia tomado por uma indignação justificada.

           – Ainda não contratei um advogado – disse Daisy, sentando-se. – Queria falar com você pessoalmente antes. Espero que possamos fazer isso sem nos odiar. Afinal de contas, não há filhos para disputarmos a guarda, e nós dois temos dinheiro de sobra.

           – Você me traiu! – exclamou ele.

           Daisy suspirou. Era óbvio que aquilo não iria correr do jeito que ela esperava.

           – Nós dois cometemos adultério – falou. – Você primeiro.

           – Eu fui humilhado. Todo mundo em Londres sabe!

           – Tentei impedi-lo de fazer papel de bobo lá no Claridge... mas você estava ocupado demais tentando me humilhar! Espero que tenha dado uma surra naquele marquês detestável.

           – Como eu poderia ter feito uma coisa dessas? Ele me fez um favor.

           – Poderia ter feito um favor maior ainda conversando com você discretamente no clube.

           – Não entendo como você pôde se apaixonar por um pé-rapado sem classe como aquele Williams. Descobri algumas coisas sobre ele. A mãe dele era uma criada!

           – Ela provavelmente é a mulher mais impressionante que já conheci.

           – Espero que você esteja ciente de que ninguém sabe direito quem é o pai dele.

           Aquilo era o cúmulo da ironia, pensou Daisy.

           – Eu sei quem é o pai dele – falou.

           – Quem?

           – Com certeza não vou lhe contar.

           – Então pronto.

           – Isso não vai nos levar a lugar nenhum, não acha?

           – Acho.

           – Talvez seja melhor eu pedir a um advogado que lhe escreva. – Ela se levantou. – Eu amei você um dia, Boy – falou, com tristeza. – Você era divertido. Sinto muito se não fui suficiente para satisfazê-lo. Desejo que seja feliz. Espero que se case com uma mulher mais adequada, e que ela lhe dê muitos filhos. Eu ficaria feliz se isso acontecesse.

           – Só que não vai acontecer – retrucou ele.

           Ela já tinha se virado para a porta, mas deu meia-volta.

           – Por que está dizendo isso?

           – Recebi o resultado daqueles exames que fizemos.

           Ela havia esquecido a consulta com o médico. Com o fim do casamento, isso lhe parecera irrelevante.

           – E qual foi o resultado?

           – Não há nada de errado com você... Pode ter uma ninhada de filhotes. Mas eu, não. Caxumba em adultos às vezes causa infertilidade. – Ele deu uma risada amarga. – Todos aqueles malditos alemães atirando em mim durante anos, e fui derrubado pelos três pirralhos de um vigário.

           Daisy ficou triste por ele.

           – Ah, Boy, sinto muito por isso.

           – E vai sentir mais ainda, porque não vou me divorciar de você.

           De repente, ela congelou.

           – Como assim? Por que não?

           – Para quê? Não quero me casar de novo. Não posso ter filhos. O filho de Andy vai herdar o título.

           – Mas eu quero me casar com Lloyd!

           – E por que eu deveria me importar com isso? Por que ele deveria ter filhos se eu não posso?

           Daisy ficou arrasada. Será que a felicidade lhe seria arrancada bem na hora em que parecia estar ao seu alcance?

           – Boy, você não pode estar falando sério!

           – Nunca falei mais sério em toda a minha vida.

           – Mas Lloyd quer ter filhos! – exclamou Daisy, com a voz angustiada.

           – Ele deveria ter pensado nisso antes de trepar com a mulher de outro.

           – Muito bem então – disse ela, desafiadora. – Eu vou me divorciar de você.

           – Sob que pretexto?

           – Adultério, claro.

           – Mas você não tem provas. – Ela estava prestes a dizer que isso não deveria constituir nenhum problema quando ele abriu um sorriso malicioso e acrescentou: – E tomarei cuidado para que não consiga nenhuma.

           Cada vez mais consternada, Daisy entendeu que ele de fato poderia fazer isso: bastava ser discreto em relação aos seus casos.

           – Mas você me expulsou de casa! – falou.

           – Vou dizer ao juiz que você será bem-vinda se quiser voltar.

           Ela tentou segurar o choro.

           – Nunca pensei que você fosse me odiar tanto – falou, arrasada.

           – Ah, não? – zombou ele. – Bom, então agora você sabe.

 

           Lloyd Williams foi à casa de Boy Fitzherbert em Mayfair no meio da manhã, horário em que Boy estaria sóbrio. Apresentou-se ao mordomo como major Williams, um parente distante. Pensou que valeria a pena tentar uma conversa de homem para homem. Não era possível que Boy quisesse dedicar o resto da vida a uma vingança. Lloyd fez a visita de uniforme, esperando conseguir falar com Boy de militar para militar. Sem dúvida o bom senso iria prevalecer.

           Foi conduzido até a sala íntima, onde Boy estava sentado lendo o jornal e fumando um charuto. Ele levou alguns instantes para reconhecê-lo.

           – Você! – exclamou por fim. – Saia daqui imediatamente!

           – Vim lhe pedir que conceda o divórcio a Daisy – disse Lloyd.

           – Fora daqui! – Boy se levantou.

           – Posso ver que você está cogitando me dar um soco, então, para ser justo, devo lhe avisar que não vai ser tão fácil quanto imagina – disse Lloyd. – Embora eu seja um pouco mais baixo que você, sou meio-médio no boxe e já ganhei várias lutas.

           – Não vou sujar minhas mãos com você.

           – Essa é um decisão sensata. Mas vai reconsiderar a questão do divórcio?

           – De forma alguma.

           – Há uma coisa que você não sabe – disse Lloyd. – Estava imaginando se isso o faria mudar de ideia.

           – Duvido muito – disse Boy. – Mas vamos lá: agora que está aqui, vá em frente.

           Ele se sentou, mas não ofereceu uma cadeira a Lloyd.

           Você nem imagina a bomba que está por vir, pensou Lloyd.

           Tirou do bolso uma fotografia sépia desbotada.

           – Dê uma olhada nesta foto minha, por gentileza.

           Pôs a foto sobre a mesa lateral, junto ao cinzeiro de Boy, que pegou a foto.

           – Este aqui não é você. Parece com você, mas o uniforme é vitoriano. Deve ser seu pai.

           – Na verdade, é o meu avô. Vire a foto.

           Boy leu o que estava escrito atrás.

           – Conde Fitzherbert? – indagou, com desdém.

           – Sim. O último conde, seu avô... e meu também. Daisy encontrou esta foto em Tŷ Gwyn. – Lloyd tomou fôlego. – Você disse a Daisy que ninguém sabe quem é meu pai. Bem, posso lhe dizer quem é. O conde Fitzherbert. Você e eu somos irmãos.

           Ele esperou a reação do outro homem.

           Boy riu.

           – Que coisa mais ridícula!

           – Tive a mesma reação quando me contaram.

           – Bem, devo dizer que você me surpreendeu. Eu esperava algo melhor do que essa fantasia absurda.

           Lloyd estava torcendo para a revelação deixar Boy chocado e fazê-lo mudar de atitude, mas até ali não estava funcionando. Mesmo assim, prosseguiu com seu raciocínio:

           – Pense bem, Boy... Será mesmo tão improvável assim? Acontece o tempo todo nas grandes mansões. Criadas bonitas, jovens nobres cheios de tesão, e a natureza segue seu curso. Quando o bebê nasce, o caso é abafado. Por favor, não finja que não sabia que essas acontecem.

           – Com certeza é bem frequente. – A segurança de Boy havia sido abalada, mas ele continuou arrogante: – Mas muitas pessoas gostam de fingir que têm laços com a aristocracia.

           – Ah, pelo amor de Deus – disse Lloyd com desdém. – Não quero laço nenhum com a aristocracia. Não sou nenhum moleque com delírios de grandeza. Venho de uma importante família de políticos socialistas. Meu avô materno foi um dos fundadores da Federação dos Mineiros de Gales do Sul. A última coisa de que preciso é um parentesco secreto com um deputado nobre e conservador. É muito constrangedor para mim.

           Boy tornou a rir, mas dessa vez com menos convicção.

           – Constrangedor para você! Isso sim é esnobismo às avessas.

           – Às avessas? Tenho mais chances de me tornar primeiro-ministro do que você. – Lloyd percebeu que os dois haviam começado uma disputa para ver quem era o melhor, e não era isso que ele queria. – Mas nada disso importa – disse ele. – Estou tentando convencê-lo de que você não pode passar o resto da vida se vingando de mim... se por nenhum outro motivo, pelo fato de sermos irmãos.

           – Eu ainda não acredito – disse Boy, pousando a foto sobre a mesinha e tornando a pegar o charuto.

           – No começo também não acreditei. – Lloyd continuou tentando: era seu futuro que estava em jogo. – Depois fiquei sabendo que minha mãe trabalhava em Tŷ Gwyn quando engravidou; ela sempre havia se mostrado evasiva em relação à identidade do meu pai; e, pouco antes de eu nascer, arrumara dinheiro para comprar uma casa de três quartos em Londres. Eu a confrontei com minhas suspeitas, e ela confessou a verdade.

           – Isso é risível.

           – Mas você sabe que é verdade, não sabe?

           – Não sei de nada.

           – Sabe, sim. Nem que seja pelo nosso parentesco, não pode agir de forma decente?

           – De jeito nenhum.

           Lloyd viu que não iria ganhar. Ficou desanimado. Boy tinha o poder de fazer frustrar a vida de Lloyd, e estava determinado a usá-lo.

           Pegou a fotografia e tornou a guardá-la no bolso.

           – Você vai questionar seu pai sobre isso. Não vai conseguir se conter. Terá que saber a verdade.

           Boy respondeu com um muxoxo de desdém.

           Lloyd foi até a porta.

           – Acho que ele vai lhe contar a verdade. Adeus, Boy.

           Ele saiu e fechou a porta atrás de si.

             

1943 (II)

            Em março de 1943, na cidade de Kharkov, o coronel Albert Beck foi atingido no pulmão por uma bala russa. Teve sorte: um cirurgião de campanha pôs um dreno em seu peito e salvou sua vida por um triz. Enfraquecido pela hemorragia e pela infecção quase inevitável, Beck foi mandado de volta à Alemanha de trem e acabou indo parar no hospital de Berlim onde Carla trabalhava.

           Era um homem durão, magro e musculoso, de 40 e poucos anos, prematuramente calvo e com um maxilar saliente que lembrava um barco viking. Na primeira vez que falou com Carla, drogado e febril, mostrou-se muito indiscreto.

           – Estamos perdendo a guerra – disse ele.

           Carla ficou alerta na mesma hora. Um oficial descontente era uma fonte de informações em potencial.

           – Segundo os jornais, estamos encurtando a linha de batalha no front oriental – respondeu ela em tom casual.

           O coronel deu uma risada desdenhosa.

           – Isso significa que estamos recuando.

           Ela continuou tentando obter mais informações.

           – E as coisas não vão nada bem na Itália.

           Benito Mussolini, ditador italiano e maior aliado de Hitler, acabara de cair.

           – A senhorita se lembra de 1939 e 1940? – indagou Beck, nostágico. – Uma sucessão de vitórias rápidas e brilhantes. Bons tempos aqueles...

           O coronel obviamente não era um homem de ideologias; talvez nem se interessasse por política. Era apenas um soldado normal e patriota que havia parado de se iludir.

           Carla fez com que ele continuasse falando:

           – Não é possível que esteja faltando de tudo no Exército, de balas até roupa de baixo.

           Esse tipo de conversa levemente arriscada não era raro em Berlim nos últimos tempos.

           – É claro que é. – Beck era bastante desinibido e falava de forma bem-articulada. – A Alemanha simplesmente não consegue produzir a mesma quantidade de armas e tanques que a União Soviética, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos juntos... principalmente sob bombardeios constantes. Além disso, pouco importa quantos russos matamos: o Exército Vermelho parece dispor de um estoque inesgotável de novos recrutas.

           – O que o senhor acha que vai acontecer?

           – É claro que os nazistas nunca vão admitir a derrota. Então mais pessoas vão morrer. Milhões. E pelo simples fato de que eles são orgulhosos demais para ceder. É uma insanidade. Uma insanidade.

           Então ele pegou no sono.

           Era preciso estar doente ou louco para dizer aquelas coisas em voz alta, mas, na opinião de Carla, cada vez mais pessoas pensavam assim. Apesar da propaganda incessante do governo, vinha ficando claro que Hitler estava perdendo a guerra.

           A morte de Joachim Koch não havia gerado nenhum inquérito policial. Fora noticiada no jornal como um acidente de trânsito. Carla tinha superado o choque inicial, mas de vez em quando era atingida pela consciência de ter matado um homem e, em sua mente, revia a morte do rapaz. Isso a deixava trêmula e a obrigava a se sentar. Felizmente, acontecera apenas uma vez durante o plantão, e ela alegara um mal-estar causado pela fome – algo altamente plausível na Berlim da guerra. O estado de sua mãe era ainda pior. Carla achava estranho pensar que Maud houvesse mesmo amado Joachim, por mais fraco e tolo que fosse o tenente. O amor, porém, não tinha explicação. A própria Carla havia se enganado redondamente em relação a Werner Franck, julgando-o forte e corajoso, apenas para descobrir que ele era egoísta e covarde.

           Conversou bastante com Beck antes de o coronel ter alta, a fim de tentar descobrir que tipo de homem ele era. Depois de recuperado, ele nunca mais tornou a falar sobre a guerra com a mesma indiscrição. Contou-lhe que era militar de carreira, que havia perdido a esposa e que a filha, já casada, morava em Buenos Aires. Seu pai fora membro do Conselho Municipal de Berlim: Beck não especificou por qual partido, então obviamente não devia ser o Partido Nazista nem um de seus aliados. Ele nunca dizia nada de negativo sobre Hitler, mas também não falava nada de positivo. Tampouco insultava judeus ou comunistas. Ultimamente, só isso já era sinal de insubordinação.

           Seu pulmão ficaria curado, mas o coronel nunca mais voltaria a ser forte o suficiente para o serviço ativo. Ele contou a Carla que seria transferido para o Estado-Maior. Poderia se tornar uma verdadeira mina de diamantes de segredos importantes. Carla estaria arriscando a própria vida se tentasse recrutá-lo – mas tinha que fazer isso.

           Sabia que ele não se lembraria da primeira conversa que tiveram.

           – O senhor foi bem sincero – disse-lhe ela em voz baixa. Não havia ninguém por perto. – Falou que estávamos perdendo a guerra.

           Um lampejo de medo cruzou o olhar do coronel. Ele não era mais um paciente desorientado, usando a camisola do hospital e com a barba por fazer. Estava de banho tomado, barbeado, sentado ereto na cama, vestido com um pijama azul-escuro abotoado até o pescoço.

           – Imagino que a senhorita vá me denunciar à Gestapo – falou. – Não acho que um homem deva pagar pelas coisas que diz quando está doente e delirando.

           – O senhor não estava delirando – disse ela. – Falou de forma bem clara. Mas não vou denunciá-lo.

           – Ah, não?

           – Não, porque o senhor tem razão.

           Ele ficou surpreso.

           – Agora eu deveria denunciá-la.

           – Se fizer isso, direi que o senhor ofendeu Hitler quando estava delirando e que, quando ameacei delatá-lo, inventou uma história sobre mim para se defender.

           – Se eu a denunciar, a senhorita me denunciará – disse o coronel. – Estamos empatados.

           – Só que o senhor não vai fazer isso – retrucou ela. – Eu o conheço. Cuidei do senhor. É um homem bom. Entrou para o Exército por amor ao seu país, mas odeia a guerra e os nazistas. – Carla tinha 99% de certeza disso.

           – É muito perigoso falar assim.

           – Eu sei.

           – Então isto aqui não é apenas uma conversa casual.

           – Não. O senhor disse que milhões de pessoas vão morrer só porque os nazistas são orgulhosos demais para se render.

           – Eu disse isso?

           – Mas pode ajudar a salvar alguns desses milhões.

           – Como?

           Carla fez uma pausa. Era nesse ponto que poria sua vida em risco.

           – Eu posso passar para as pessoas certas qualquer informação que o senhor obtiver.

           Ela prendeu a respiração. Se estivesse errada em relação a Beck, poderia se considerar uma mulher morta.

           Mas o que viu na expressão do coronel foi assombro. Era difícil imaginar que aquela jovem enfermeira despachada e eficiente pudesse ser uma espiã. Mas Carla viu que Beck acreditava nela.

           – Acho que estou entendendo – disse ele.

           Ela lhe entregou uma pasta verde do hospital, vazia.

           Ele a pegou.

           – Para que serve isto? – perguntou.

           – O senhor é soldado, deve saber o que é camuflagem.

           Ele assentiu.

           – A senhorita está arriscando a vida – falou, e ela viu em seus olhos algo parecido com admiração.

           – Agora o senhor também está.

           – Sim – disse o coronel Beck. – Mas já estou acostumado.

 

           De manhã bem cedo, Thomas Macke levou o jovem Werner Franck até a prisão de Plötzensee, no subúrbio de Charlottenburg, a oeste de Berlim.

           – Você precisa ver isso – falou. – Então poderá dizer ao coronel Dorn como somos eficientes.

           Ele estacionou o carro na Königsdamm e conduziu Werner até os fundos da prisão principal. Os dois entraram num cômodo com oito metros de comprimento e mais ou menos a metade de largura. Ali, à sua espera, estava um homem de casaca, cartola e luvas brancas. O traje peculiar fez Werner franzir o cenho.

           – Este é Herr Reichhart – disse Macke. – O verdugo.

           Werner engoliu em seco.

           – Quer dizer que vamos assistir a uma execução?

           – Sim.

           Com ar casual que podia ser fingido, Werner perguntou:

           – E por que o traje de gala?

           Macke deu de ombros.

           – Tradição.

           Uma cortina preta dividia o cômodo em duas partes. Quando Macke a afastou, Werner viu oito ganchos presos a uma viga de ferro que ia de uma ponta a outra do telhado.

           – São para enforcamentos? – indagou.

           Macke assentiu com a cabeça.

           Havia também uma mesa de madeira equipada com correias para prender pessoas. Em uma das extremidades da mesa via-se um aparato alto, de formato característico. No chão, um cesto pesado.

           O jovem tenente estava pálido.

           – Uma guilhotina – falou.

           – Exatamente – disse Macke. Então olhou para o relógio. – Não teremos que esperar muito.

           Mais homens entraram. Vários deles menearam a cabeça para Macke, indicando que já o conheciam. Macke falou no ouvido de Werner:

           – O regulamento exige a presença de juízes e funcionários do tribunal, e também do diretor e do capelão da prisão.

           Werner engoliu em seco. Macke pôde ver que ele não estava gostando daquilo.

           Não esperava que ele fosse gostar mesmo. O motivo para ter levado o tenente até ali não tinha nada a ver com impressionar o general Dorn. Macke estava desconfiado de Werner. Alguma coisa no rapaz não lhe parecia verdadeira.

           Werner trabalhava para Dorn; quanto a isso não restava dúvida. Acompanhara o general numa visita à sede da Gestapo, após a qual Dorn escrevera um bilhete tecendo elogios rasgados ao esforço de contraespionagem de Berlim no qual citava Macke. Depois disso, o inspetor passara semanas envolto numa áurea cálida de orgulho.

           No entanto, não conseguia esquecer o comportamento de Werner naquela noite, quase um ano antes, quando os dois estiveram prestes a capturar um espião numa fábrica de peles desativada. O rapaz havia entrado em pânico... ou não? Fosse por acidente ou de propósito, dera ao pianista um alerta para que fugisse. Macke não conseguia se livrar da suspeita de que o pânico fora fingido e que Werner, na verdade, o alertara de forma fria e intencional.

           Não tinha coragem de prender e torturar Werner. É claro que isso era possível, mas Dorn poderia criar problemas, e Macke seria interrogado. Seu chefe, o superintendente Kringelein, já não gostava muito dele e pediria provas concretas contra Werner – e a verdade era que Macke não tinha nenhuma.

           Mas aquilo ali deveria revelar a verdade.

           A porta tornou a se abrir, e dois guardas da prisão entraram segurando os braços de uma moça chamada Lili Markgraf.

           Macke ouviu Werner soltar um arquejo.

           – O que houve? – indagou.

           – O senhor não me disse que seria uma moça – respondeu Werner.

           – Você a conhece?

           – Não.

           Lili tinha 22 anos, Macke sabia, mas parecia mais nova. Seus cabelos louros tinham sido cortados naquela manhã e estavam curtos como os de um rapaz. Ela mancava e movia-se curvada para a frente, como se tivesse algum ferimento na barriga. Usava um vestido azul simples feito de algodão grosso, sem gola, com decote redondo. Tinha os olhos vermelhos de tanto chorar. Os guardas a seguravam com firmeza, sem querer correr qualquer risco.

           – Essa mulher foi denunciada por um parente, que encontrou um manual de código escondido em seu quarto – explicou Macke. – O código russo de cinco dígitos.

           – Por que ela está andando assim?

           – Efeitos do interrogatório. Mas não conseguimos nenhuma informação.

           A expressão de Werner se manteve impassível.

           – Que pena – comentou ele. – Ela poderia nos levar a outros espiões.

           Macke não percebeu nenhum sinal de fingimento.

           – Ela só conhecia seu cúmplice como Heinrich, sem sobrenome... de toda forma, ele podia estar usando um codinome. Minha conclusão é que raramente lucramos com a prisão de mulheres. Elas nunca sabem muita coisa.

           – Mas pelo menos agora vocês têm o manual do código.

           – Se é que isso vale alguma coisa. Os russos mudam a palavra-chave com regularidade, portanto continuamos com dificuldade para decifrar suas mensagens.

           – Que pena.

           Um dos homens pigarreou e, em voz alta o suficiente para que todos escutassem, disse que era o presidente do tribunal e em seguida leu a sentença de morte.

           Os guardas conduziram Lili até a bancada de madeira. Deram-lhe a chance de se deitar por livre e espontânea vontade, mas a moça deu um passo para trás, então eles a seguraram para forçá-la. Ela não se debateu. Os guardas a deitaram de barriga para baixo e prenderam-na com as correias.

           O capelão começou a recitar uma prece.

           Lili implorava.

           – Não, não – falou, sem levantar a voz. – Por favor, me soltem. Me soltem. – Ela falava de forma coerente, como se estivesse apenas pedindo um favor a alguém.

           O homem de cartola olhou para o presidente, que fez que não com a cabeça e disse:

           – Ainda não. É preciso concluir a prece.

           A voz de Lili tornou-se mais aguda e urgente:

           – Não quero morrer! Estou com medo! Não façam isso comigo, por favor!

           O verdugo tornou a olhar para o presidente do tribunal. Dessa vez, o homem simplesmente o ignorou.

           Macke ficou estudando Werner. O rapaz parecia achar aquela cena repulsiva, mas o mesmo valia para todos os outros homens presentes. Como teste, não estava dando muito certo. A reação de Werner mostrava que ele era um rapaz sensível, não um traidor. Talvez Macke tivesse que pensar em alguma outra coisa.

           Lili começou a gritar.

           Até Macke se impacientou.

           O pastor terminou a oração às pressas.

           Assim que ele disse “Amém”, Lili parou de protestar, como se soubesse que era o fim.

           O presidente meneou a cabeça.

           O verdugo acionou uma alavanca, e a lâmina suspensa caiu.

           A guilhotina emitiu um ruído semelhante a um sussurro ao cortar o pescoço pálido de Lili. O sangue esguichou quando a cabeça com cabelos curtos rolou para a frente e caiu no cesto com um baque alto que pareceu ecoar pela sala.

           Macke teve um pensamento absurdo: será que a cabeça havia sentido alguma dor?

 

           Carla topou com o coronel Beck no corredor do hospital. Ele estava de uniforme. Ao vê-lo, foi dominada por um medo súbito. Desde que o oficial recebera alta, ela era atormentada pelo medo de que ele a traísse e a Gestapo estivesse a caminho.

           No entanto, Beck sorriu e disse:

           – Vim fazer um exame de rotina com o Dr. Ernst.

           Seria só isso mesmo? Será que o coronel se esquecera da conversa que tiveram? Estaria fingindo ter esquecido? Será que havia um Mercedes preto da Gestapo esperando lá fora?

           Beck carregava uma pasta de cartolina verde do tipo usado no hospital.

           Um oncologista de jaleco branco se aproximou. Enquanto ele passava, Carla perguntou a Beck, com voz alegre:

           – Como vão as coisas?

           – Estou ótimo. Nunca mais vou liderar um regimento em combate, mas, tirando o exercício físico, posso levar uma vida normal.

           – Que notícia boa.

           Mais pessoas continuavam a passar. Carla temeu que Beck nunca tivesse a chance de lhe falar nada em particular.

           Ele, porém, não se deixou abalar.

           – Só gostaria de lhe agradecer por sua gentileza e seu profissionalismo.

           – Não há de quê.

           – Até logo, enfermeira.

           – Até logo, coronel Beck.

           Quando ele foi embora, Carla estava com a pasta nas mãos.

           Seguiu depressa até o vestiário das enfermeiras. Não havia ninguém lá dentro. Ficou parada com o calcanhar encostado bem firme na porta, para impedir que alguém entrasse.

           Dentro da pasta havia um envelope grande feito do mesmo papel pardo barato usado em qualquer escritório. Carla o abriu. Viu várias folhas datilografadas. Leu a primeira sem tirá-la do envelope:

            

           Ordem Operacional no 6

            Código Cidadela

             

           Era o plano de batalha para a ofensiva de verão no front oriental. Seu coração se acelerou. Aquilo valia ouro.

           Tinha que passar o envelope para Frieda. Infelizmente, a amiga não estava trabalhando: era seu dia de folga. Carla cogitou ir embora na mesma hora, no meio do plantão, e passar na casa de Frieda. Mas logo desistiu da ideia. Era melhor se comportar normalmente, para não chamar atenção.

           Guardou o envelope dentro da bolsa a tiracolo que estava pendurada no gancho do casaco. Cobriu-o com o lenço de seda azul e dourado que sempre trazia para esconder coisas. Ficou alguns instantes parada, esperando que sua respiração voltasse ao normal. Então retornou para a enfermaria.

           Trabalhou da melhor forma que conseguiu até o fim do plantão. Depois vestiu o casaco, saiu do hospital e foi a pé até a estação do trem rápido. Ao passar pelo local da explosão de uma bomba, viu que os restos do prédio estavam pichados. Um patriota orgulhoso tinha escrito: “Nossos muros podem ruir, mas não nossos corações.” No entanto, alguma outra pessoa havia reproduzido com ironia o slogan da campanha eleitoral de Hitler em 1933: “Daqui a quatro anos, ninguém mais reconhecerá a Alemanha.”

           Ela comprou uma passagem até a estação Zoo.

           No trem, sentiu-se uma extraterrestre. Todos os outros passageiros eram alemães leais, enquanto ela carregava na bolsa segredos que revelaria a Moscou. Não gostou daquela sensação. Ninguém olhou para ela, mas isso só a fez pensar que todos a evitavam de propósito. Mal podia esperar para entregar o envelope a Frieda.

           A estação Zoo ficava no final de Tiergarten. As árvores agora pareciam anãs ao lado de uma gigantesca torre antiaérea. Havia três torres daquele tipo em Berlim, e aquela era um bloco de concreto com mais de trinta metros de altura. Nos cantos do telhado estavam montadas quatro gigantescas peças de artilharia antiaérea de 25 toneladas cada. O concreto tinha sido pintado de verde, numa tentativa otimista e inútil de fazer aquela monstruosidade destoar um pouco menos do parque.

           Por mais feia que fosse a torre, porém, os berlinenses a adoravam. Quando as bombas caíam, o rugido que ela emitia os reconfortava, dizendo-lhes que alguém estava revidando.

           Ainda muito tensa, Carla caminhou da estação até a casa de Frieda. Era o meio da tarde, então o casal Franck devia estar fora – Ludi na fábrica e Monika visitando alguma amiga, possivelmente a mãe de Carla. Viu a moto de Werner estacionada na frente da casa.

           Um empregado abriu a porta.

           – A Srta. Frieda saiu, mas não vai demorar – informou ele. – Foi à KaDeWe comprar luvas. O Sr. Werner está deitado com uma gripe muito forte.

           – Vou esperar Frieda no quarto dela, como sempre.

           Carla tirou o casaco e subiu, sem largar a bolsa. No quarto de Frieda, tirou os sapatos e deitou-se na cama para ler o plano de batalha da Operação Cidadela. Estava tensa como um relógio no qual se houvesse dado corda demais. Iria se sentir melhor depois que passasse adiante o documento roubado.

           Ouviu soluços no outro quarto.

           Ficou surpresa. Aquele era o quarto de Werner. Carla achou difícil imaginar aquele playboy bem-educado aos prantos.

           Mas sem dúvida era o choro de um homem, que parecia tentar, em vão, contê-lo.

           Carla não pôde reprimir o sentimento de pena. Disse a si mesma que alguma mulher temperamental devia ter rejeitado Werner, provavelmente com razão. Mas foi impossível não se deixar abalar pelo sofrimento genuíno que ouvia.

           Ela desceu da cama, tornou a guardar o plano de batalha na bolsa e saiu do quarto.

           Parou à porta de Werner e ficou escutando. Pôde ouvir o choro com mais nitidez ainda. Tinha o coração bondoso demais para ignorar aquilo. Abriu a porta e entrou.

           Werner estava sentado na beira da cama, com a cabeça apoiada nas mãos. Ao ouvir a porta, ergueu os olhos, espantado. Tinha o rosto vermelho e molhado de lágrimas. Sua gravata estava frouxa; o colarinho, aberto. Ele olhou para Carla com uma expressão de profunda tristeza. Estava transtornado, arrasado, abalado demais para se importar com quem pudesse saber.

           Carla não conseguiu fingir que tinha o coração de pedra.

           – O que houve? – perguntou.

           – Não consigo mais fazer isso – disse ele.

           Ela fechou a porta atrás de si.

           – O que aconteceu?

           – Eles decapitaram Lili Markgraf... E fui obrigado a assistir.

           Carla o encarou, boquiaberta.

           – Que história é essa?

           – Ela tinha só 22 anos. – Tirando um lenço do bolso, ele enxugou o rosto. – Você já está correndo perigo, mas, se eu lhe contar essa história, vai ser muito pior.

           Inúmeras possibilidade incríveis passaram pela mente de Carla.

           – Acho que posso adivinhar, mas conte – pediu ela.

           Ele assentiu.

           – Você logo vai entender mesmo. Lili ajudava Heinrich a transmitir mensagens para Moscou. É bem mais rápido quando outra pessoa lê os blocos de código. E quanto mais rápida for a transmissão, menor a probabilidade de ser pego. Só que a prima de Lili passou alguns dias hospedada em seu apartamento e encontrou os manuais de código. Piranha nazista.

           As palavras dele confirmavam as espantosas desconfianças de Carla.

           – Você sabia sobre a espionagem?

           Ele a fitou com um sorriso de ironia.

           – Sou eu que estou no comando.

           – Meu Deus do céu!

           – Foi por isso que precisei deixar para lá a história das crianças assassinadas. Recebi essa ordem de Moscou. E eles tinham razão. Se eu perdesse o emprego no Ministério da Aeronáutica, não teria acesso a documentos secretos, nem a outras pessoas que pudessem me transmitir segredos.

           Ela precisava se sentar. Deixou-se cair na beirada da cama ao lado dele.

           – Por que você não me contou?

           – Partimos do pressuposto de que todo mundo fala sob tortura. Se você não sabe nada, não pode trair os outros. A pobre Lili foi torturada, mas só conhecia Volodya, que a esta altura já está de volta a Moscou, e Heinrich, mas nunca soube o sobrenome de Heinrich nem qualquer outra coisa a seu respeito.

           Carla gelou até os ossos. Todo mundo fala sob tortura.

           – Sinto muito por ter lhe contado, mas, depois de me ver assim, você estava a ponto de adivinhar, mesmo.

           – Quer dizer que eu estava completamente enganada a seu respeito?

           – Não foi culpa sua. Eu fiz com que você se enganasse de propósito.

           – Mesmo assim, me sinto uma boba. Passei dois anos desprezando você.

           – E durante todo esse tempo eu estava desesperado para lhe explicar tudo.

           Ela passou o braço em volta dele.

           Ele segurou sua outra mão e a beijou.

           – Você me perdoa?

           Apesar de não estar segura em relação a seus sentimentos, ela não queria rejeitá-lo agora que ele estava tão triste, então respondeu:

           – É claro que perdoo.

           – Pobre Lili – disse Werner. Sua voz se transformou num sussurro: – Tinha apanhado tanto que mal conseguiu andar até a guilhotina. Mesmo assim, implorou por sua vida até o fim.

           – O que você estava fazendo lá?

           – Tive que fazer amizade com um agente da Gestapo, o inspetor Thomas Macke. Ele me levou.

           – Macke? Eu me lembro dele... foi ele que prendeu meu pai.

           Carla recordava nitidamente um homem de rosto redondo e bigodinho preto, e tornou a sentir a mesma raiva do poder arrogante que Macke ostentava ao levar seu pai embora, e a mesma tristeza de vê-lo morrer em decorrência dos ferimentos sofridos sob a guarda de Macke.

           – Acho que ele desconfia de mim, e me levar para assistir à execução foi um teste. Talvez achasse que eu fosse perder o controle e tentar intervir. Enfim, seja como for, acho que passei.

           – Mas se você fosse preso...

           Werner assentiu.

           – Todo mundo fala sob tortura.

           – E você sabe tudo.

           – Conheço todos os agentes, todos os códigos... A única coisa que não sei é de onde são feitas as transmissões. Deixo os próprios espiões escolherem os locais, e eles não me informam.

           Os dois permaneceram de mãos dadas, em silêncio. Depois de algum tempo, Carla falou:

           – Vim entregar uma coisa para Frieda, mas acho que posso deixar com você.

           – O que é?

           – O plano de batalha da Operação Cidadela.

           Werner ficou eletrizado.

           – Mas estou tentando pôr as mãos nesse plano há semanas! Onde o conseguiu?

           – Com um oficial do Estado-Maior. Talvez eu não deva dizer o nome dele.

           – É, não diga. Mas o plano é autêntico?

           – É melhor você dar uma olhada. – Ela foi até o quarto de Frieda e voltou com o envelope pardo. Jamais lhe ocorrera que o documento pudesse não ser verdadeiro. – Parece-me de verdade, mas como posso saber?

           Ele pegou as folhas datilografadas. Passou alguns minutos lendo, e então disse:

           – É isso mesmo. Fantástico!

           – Que bom.

           Ele se levantou.

           – Tenho que levar isto aqui para Heinrich agora mesmo. Precisamos codificar os planos e transmiti-los hoje à noite.

           Carla ficou desapontada com o fim precoce do momento de intimidade entre eles, embora não soubesse o que estava esperando. Seguiu Werner porta afora. Pegou a bolsa no quarto de Frieda e desceu até o térreo.

           Enquanto segurava a porta da frente, Werner falou:

           – Estou feliz por sermos amigos outra vez.

           – Eu também.

           – Você acha que vamos conseguir esquecer esse período de afastamento?

           Ela não entendeu o que ele queria dizer. Será que pretendia voltar a ser seu namorado? Ou, ao contrário, estaria lhe dizendo que isso estava fora de cogitação?

           – Acho que podemos deixar isso para trás – respondeu, neutra.

           – Ótimo. – Ele se curvou e deu um beijo rápido nos lábios dela. Então abriu a porta.

           Os dois saíram da casa juntos, e ele subiu na moto.

           Carla desceu o acesso da casa até a rua e tomou o caminho da estação. Instantes depois, Werner passou por ela, buzinou e acenou.

           Agora que estava sozinha, ela podia começar a pensar na revelação que Werner lhe fizera. Como se sentia? Passara dois anos o odiando. No entanto, em todo esse tempo, não tivera nenhum namorado sério. Continuaria apaixonada por ele? Apesar de tudo, tinha conservado ao menos algum sentimento de carinho por ele. E hoje, ao vê-lo tão abalado, toda a sua hostilidade havia desaparecido. Podia sentir o afeto aquecê-la por dentro.

           Será que ainda o amava?

           Não sabia dizer.

 

           Macke estava sentado no banco de trás do Mercedes preto, com Werner a seu lado. Trazia no ombro uma bolsa parecida com uma mochila de colegial, só que a usava na frente do corpo, não atrás. Era pequena o bastante para ser ocultada por um sobretudo abotoado. Um fio fino a ligava a um pequeno fone de ouvido.

           – É de última geração – explicou Macke. – Conforme você vai chegando mais perto do transmissor, o som fica mais alto.

           – E é mais discreto do que uma caminhonete com uma antena enorme no teto – disse Werner.

           – Temos que usar as duas coisas... a caminhonete para identificar a área, e isto aqui para determinar a localização exata.

           Macke estava encrencado. A Operação Cidadela tinha sido um desastre. Mesmo antes do início da ofensiva, o Exército Vermelho atacara os campos de pouso onde a Luftwaffe se concentrava. A operação fora interrompida após uma semana, mas, ainda assim, já era tarde para evitar danos irreparáveis ao Exército alemão.

           Sempre que algo saía errado, os líderes alemães se apressavam em pôr a culpa em conspiradores judeus-bolcheviques. Nesse caso, porém, tinham razão. O Exército Vermelho parecia conhecer de antemão todo o plano de batalha. E isso, segundo o superintendente Kringelein, era culpa de Thomas Macke. Ele era o chefe da contraespionagem em Berlim. Sua carreira estava por um fio. Ele corria o risco de ser demitido, ou coisa pior.

           Sua única esperança era um golpe genial, uma operação de grandes proporções para prender os espiões que estavam sabotando o esforço de guerra alemão. Nessa noite, portanto, havia montado uma armadilha para Werner Franck.

           Se o rapaz se revelasse inocente, não sabia o que iria fazer.

           No banco da frente do carro, um walkie-talkie chiou. O pulso de Macke se acelerou. O motorista pegou o aparelho.

           – Wagner falando. – Ele deu a partida no motor. – Estamos a caminho. Câmbio e desligo.

           Pronto; havia começado.

           – Para onde estamos indo? – perguntou Macke a Wagner.

           – Kreuzberg. – Era um bairro de aluguéis baratos densamente povoado ao sul do centro de Berlim.

           Quando estavam se afastando do meio-fio, um alerta de ataque aéreo soou.

           Aquilo era uma complicação indesejada. Macke olhou pela janela. Os holofotes se acenderam, acenando como as mãos de um gigante. Imaginava que eles às vezes localizassem aviões, mas nunca vira isso acontecer. Quando as sirenes pararam de tocar, pôde ouvir o barulho de bombardeiros se aproximando. Nos primeiros anos da guerra, as missões de bombardeio britânicas eram formadas por algumas dezenas de aeronaves – o que já era bem ruim –, mas agora elas chegavam às centenas. Mesmo antes de as bombas começarem a cair, o barulho era aterrorizante.

           – Acho melhor cancelarmos nossa missão de hoje – disse Werner.

           – De jeito nenhum – retrucou Macke.

           O rugido das aeronaves ficou mais alto.

           À medida que o carro se aproximava de Kreuzberg, sinalizadores e pequenas bombas incendiárias começavam a cair. A atual estratégia da RAF era matar o maior número possível de civis operários de fábrica, e aquele bairro popular era um alvo típico. Com uma hipocrisia espantosa, Churchill e Attlee afirmavam atacar apenas alvos militares, e diziam que as baixas civis eram um lamentável efeito colateral. Mas os berlinenses sabiam a verdade.

           Wagner seguiu dirigindo o mais rápido que pôde por ruas iluminadas pelos clarões das chamas. Com exceção dos encarregados da defesa antiaérea, não havia ninguém à vista: por lei, todos eram obrigados a buscar abrigo. Os únicos outros veículos em circulação eram ambulâncias, carros de bombeiros e viaturas da polícia.

           Macke observava Werner com discrição. O rapaz estava nervoso e não parava quieto, olhando ansiosamente pela janela e batendo com o pé no chão do carro, num gesto inconsciente de tensão.

           O inspetor só compartilhara suas suspeitas com a equipe mais próxima. Seria difícil admitir que havia revelado o funcionamento das operações da Gestapo para alguém que agora acreditava ser um espião. Poderia acabar interrogado na sua própria câmara de torturas subterrânea. Só agiria se tivesse certeza. A única forma de conseguir se safar seria apresentando a seus superiores um espião capturado.

           No entanto, caso suas suspeitas tivessem fundamento, prenderia não apenas Werner, mas também seus parentes e amigos, e poderia anunciar o desmantelamento de uma rede inteira de espiões. Isso reverteria a situação. Ele poderia até ser promovido.

           O ataque prosseguiu, e o tipo de bomba lançada mudou. Macke começou a ouvir o baque surdo de explosivos de alta potência. Depois que o alvo era iluminado, a RAF gostava de lançar uma mistura de grandes bombas de gasolina para deflagrar incêndios e explosivos de alta potência para ventilar as chamas e retardar a ação dos serviços de emergência. Era uma estratégia cruel, mas Macke sabia que os procedimentos de bombardeio da Luftwaffe eram parecidos.

           O ruído em seu fone de ouvido começou quando eles entraram cautelosamente por uma rua de casas de cômodos de cinco andares. A área estava sendo fortemente alvejada e vários prédios haviam acabado de ruir.

           – Pelo amor de Deus, estamos bem no meio da área bombardeada – disse Werner com a voz trêmula.

           Macke não se importava com isso. Para ele, a missão dessa noite já era mesmo uma questão de vida ou morte.

           – Melhor assim – retrucou. – O pianista não vai se preocupar com a Gestapo no meio de um ataque aéreo.

           Wagner parou o carro junto de uma igreja em chamas e apontou para uma rua lateral.

           – Ali – falou.

           Macke e Werner saltaram.

           O inspetor seguiu depressa pela rua, com Werner ao seu lado e Wagner logo atrás.

           – Tem certeza de que é um espião? – perguntou o rapaz. – Não poderia ser alguma outra coisa?

           – Alguma outra coisa emitindo um sinal de rádio? – retrucou Macke. – O que mais poderia ser?

           Ainda podia escutar o ruído no fone, embora precisasse se esforçar, por causa da cacofonia do bombardeio: os aviões, as bombas, a artilharia antiaérea, o estardalhaço de prédios caindo e o rugido das chamas de incêndios de grandes proporções.

           Os três passaram por um estábulo onde cavalos aterrorizados relinchavam, e o sinal ficou ainda mais forte. Werner olhava para um lado e para outro, nervoso. Se fosse espião, agora estaria com medo de que um de seus companheiros fosse capturado pela Gestapo – e perguntando-se o que poderia fazer em relação a isso. Será que iria repetir o mesmo truque da última vez? Ou pensaria em algum outro jeito de dar o alerta? Por outro lado, se Werner não fosse um espião, toda aquela farsa seria perda de tempo.

           Macke tirou o fone do ouvido e o entregou a Werner.

           – Escute – falou, sem parar de andar.

           Werner assentiu.

           – Está ficando mais forte – falou.

           A expressão de seus olhos era quase transtornada. Ele devolveu o fone.

           Acho que peguei você, pensou Macke, triunfante.

           Um estrondo ensurdecedor se fez ouvir quando uma bomba atingiu o prédio pelo qual os três haviam acabado de passar. Quando se viraram, as chamas já lambiam o interior de uma padaria, por trás das janelas quebradas.

           – Meu Deus, essa foi por pouco – comentou Wagner.

           Chegaram a uma escola, um prédio baixo de tijolos, cercado por um pátio de asfalto.

           – Acho que ele está lá dentro – disse Macke.

           Os três subiram um curto lanço de degraus de pedra até a entrada. A porta estava destrancada. Entraram.

           Estavam no começo de um largo corredor. Na outra extremidade, uma porta grande provavelmente conduzia ao refeitório.

           – Em frente – ordenou Macke.

           Ele sacou a pistola, uma Luger 9mm.

           Werner estava desarmado.

           Ouviu-se o barulho de algo se quebrando, um baque, e depois o rugido de uma explosão, tudo assustadoramente próximo. As janelas do corredor se estilhaçaram, e cacos de vidro choveram sobre o chão de lajotas. Uma bomba devia ter caído no pátio.

           – Vamos sair daqui! – gritou Werner. – O prédio vai desabar.

           Macke podia ver que não havia risco algum de o prédio desabar. Aquilo era apenas um subterfúgio do rapaz para alertar o pianista.

           Werner começou a correr, mas, em vez de voltar pelo caminho pelo qual haviam entrado, seguiu pelo corredor em direção ao refeitório.

           Para avisar os amigos, pensou Macke.

           Wagner sacou a arma, mas o inspetor disse:

           – Não! Não atire!

           Werner chegou ao fim do corredor e abriu a porta do refeitório com um safanão.

           – Fujam daqui! – berrou.

           Então parou e ficou calado.

           Dentro do refeitório, Mann, o engenheiro eletricista que trabalhava com Macke, digitava mensagens sem sentido num rádio portátil.

           A seu lado estavam Schneider e Richter, ambos de arma em punho.

           Macke deu um sorriso triunfante. Werner tinha caído direitinho na sua armadilha.

           Wagner deu um passo à frente e encostou a arma na cabeça do rapaz.

           – Você está preso, seu bolchevique sub-humano – disse Macke.

           Werner agiu depressa. Com um movimento brusco, afastou a cabeça da arma de Wagner, segurou o braço do agente e puxou-o para dentro do refeitório. Por alguns instantes, Wagner lhe serviu de escudo, protegendo-o das armas dos outros dois. Então Werner empurrou o agente para longe, fazendo-o cambalear e cair. Um segundo depois, saiu do refeitório correndo e bateu a porta.

           Durante alguns instantes, Macke e Werner ficaram sozinhos no corredor.

           O rapaz avançou na direção do inspetor.

           Macke empunhou a Luger.

           – Pare ou eu atiro!

           – Você não vai atirar – disse Werner, chegando mais perto. – Precisa me interrogar e descobrir quem são os outros.

           Macke apontou a arma para as pernas de Werner.

           – Mas posso interrogá-lo com uma bala no joelho – falou, e atirou.

           Mas não acertou.

           Werner se esticou para a frente e afastou a pistola de Macke com um safanão. O inspetor deixou cair a arma. Quando se abaixou para pegá-la, Werner passou por ele correndo.

           Macke recolheu a pistola do chão.

           Werner chegou à porta da escola. Macke mirou com cuidado em suas pernas e disparou.

           Os três primeiros tiros não acertaram, e Werner conseguiu passar pela porta.

           O inspetor tornou a disparar pela porta ainda aberta. Werner deu um grito e caiu no chão.

           Macke saiu correndo pelo corredor. Atrás de si, ouviu os companheiros vindo do refeitório da escola.

           Então o teto se abriu com um estrondo, ouviu-se outro baque alto e línguas de fogo começaram a brotar, como se fossem um chafariz. Macke soltou um grito de pavor. Quando suas roupas pegaram fogo, começou a urrar de dor. Caiu no chão. Fez-se silêncio, depois escuridão.

 

           Os médicos estavam fazendo a triagem dos pacientes no saguão do hospital. Aqueles que tinham apenas hematomas e cortes eram mandados para a área de espera do ambulatório, onde as enfermeiras menos experientes limpavam suas feridas e lhes davam aspirina para aliviar a dor. Os casos mais graves recebiam tratamento de emergência ali mesmo, no saguão, e depois eram encaminhados para especialistas no andar de cima. Os mortos eram levados para o pátio e deitados no chão frio até que alguém fosse procurá-los.

           O Dr. Ernst examinou uma vítima de queimaduras que não parava de gritar e receitou morfina.

           – Depois tire as roupas dele e passe um pouco de gel nas queimaduras – instruiu o médico antes de se dirigir ao paciente seguinte.

           Carla preparou uma injeção enquanto Frieda removia as roupas carbonizadas do ferido, cortando-as. O homem tinha queimaduras graves em toda a lateral direita do corpo, mas o lado esquerdo não estava tão ruim. Carla encontrou um pedaço intacto de pele e músculo na coxa esquerda. Estava a ponto de aplicar a injeção quando olhou para o rosto do paciente e gelou.

           Conhecia aquele rosto rechonchudo e redondo, aquele bigodinho que parecia uma sujeira debaixo do nariz. Dois anos antes, aquele mesmo homem entrara em sua casa e prendera seu pai. Quando vira o pai novamente, ele estava à beira da morte. Aquele era o inspetor Macke, da Gestapo.

           Você matou meu pai, pensou ela.

           Agora posso matar você.

           Seria simples. Bastava aplicar quatro vezes a dose máxima de morfina. Ninguém iria perceber, principalmente numa noite como aquela. Ele perderia os sentidos na mesma hora e morreria em poucos minutos. Algum médico já exaurido iria supor que a morte fora decorrente de uma falência cardíaca. Ninguém duvidaria do diagnóstico. Não haveria perguntas céticas. Ele seria apenas mais um em meio aos milhares de pessoas mortas num grande bombardeio. Descanse em paz.

           Sabia que Werner tinha medo de que Macke houvesse descoberto seu jogo. A qualquer momento, o jovem tenente poderia ser preso. Todo mundo fala sob tortura. Werner iria entregar Frieda, Heinrich e os outros – além da própria Carla. Ela poderia salvar todos eles, ali mesmo, em apenas um minuto.

           Mas vacilou.

           Perguntou-se o motivo daquela hesitação. Macke era um torturador, um assassino. Merecia morrer mil vezes.

           Carla tinha matado Joachim, ou pelo menos ajudado a matá-lo. Mas aquilo acontecera numa briga. Joachim estava prestes a matar sua mãe a pontapés quando ela o atingira na cabeça com um panelão de sopa. Essa situação era diferente.

           Macke era seu paciente.

           Carla não era muito religiosa, mas ainda assim acreditava que algumas coisas fossem sagradas. Era enfermeira, e os pacientes confiavam nela. Sabia que Macke não hesitaria em torturá-la e matá-la – mas ela não era igual a ele, não era esse tipo de pessoa. Aquilo não tinha nada a ver com o inspetor, mas com Carla.

           Tinha a sensação de que, se matasse um paciente, teria que largar a profissão e nunca mais se atreveria a cuidar de qualquer doente. Seria como um banqueiro ladrão, um político corrupto, ou um padre que acaricia as meninas que vêm fazer aulas de catecismo. Teria traído a si mesma.

           – O que está esperando? – perguntou Frieda. – Não posso passar o gel antes de ele se acalmar.

           Carla espetou Thomas Macke com a agulha e ele parou de gritar.

           Frieda começou a passar gel na pele queimada.

           – Este aqui sofreu apenas uma concussão – disse então o Dr. Ernst, referindo-se a outro paciente. – Mas levou um tiro nas nádegas. – Ele ergueu a voz para se dirigir ao paciente: – Como o senhor tomou esse tiro? Balas são a única coisa que a RAF não está atirando em nós.

           Carla se virou para olhar. O paciente estava deitado de bruços. Sua calça tinha sido cortada, deixando as nádegas à mostra. A pele era muito branca, e pelos finos e louros despontavam da base das costas. Apesar de atordoado, o homem balbuciou alguma coisa.

           – A arma do policial disparou por acidente? Foi isso que o senhor disse? – indagou Ernst.

           O paciente respondeu com mais clareza:

           – Sim.

           – Vou remover a bala. Vai doer, mas temos pouca morfina, e há casos mais graves que o seu.

           – Pode tirar.

           Carla limpou o ferimento. Ernst empunhou um fórceps comprido e estreito.

           – Morda o travesseiro – ordenou.

           O médico inseriu o fórceps dentro do ferimento. O paciente soltou um grito abafado de dor.

           – Tente não tensionar os músculos – recomendou o Dr. Ernst. – Assim fica mais difícil.

           Carla pensou que aquilo era uma coisa estúpida de se dizer. Ninguém conseguia relaxar com uma pinça enfiada numa ferida.

           – Ai, merda! – urrou o homem.

           – Pronto, peguei – disse o Dr. Ernst. – Tente ficar parado!

           O paciente obedeceu, então o médico retirou a bala e a depositou em uma bandeja.

           Carla enxugou o sangue do buraco e fez um curativo no ferimento.

           O paciente ficou de frente.

           – Não – repreendeu Carla. – O senhor tem que ficar de...

           Interrompeu a frase no meio. Era Werner.

           – Carla? – indagou ele.

           – Eu mesma – respondeu ela, alegre. – Fazendo um curativo na sua bunda.

           – Eu te amo – disse Werner.

           Ela o tomou nos braços da maneira menos profissional possível e disse:

           – Ah, meu querido, eu também te amo.

 

           Thomas Macke demorou a recobrar os sentidos. De início, foi como se estivesse sonhando. Então sua consciência voltou, e ele percebeu que estava num hospital, sob efeito de drogas. Também soube por quê: sua pele doía muito, principalmente do lado direito. Entendeu que os remédios deviam estar aliviando a dor, mas não conseguiam eliminá-la por completo.

           Aos poucos, lembrou-se de como tinha ido parar ali. Uma bomba caíra em cima dele. Se na hora não estivesse correndo para longe do local da explosão atrás de um fugitivo, estaria morto. Todos os colegas que estavam atrás dele com certeza haviam morrido: Mann, Schneider, Richter, o jovem Wagner. Sua equipe inteira.

           Mas ele conseguira capturar Werner.

           Seria mesmo verdade? Tinha atirado em Werner, que caíra no chão. Nessa hora a bomba os atingira. Assim como Macke havia sobrevivido, talvez Werner também tivesse escapado.

           O inspetor agora era o único homem vivo a saber que Werner era um espião. Tinha que falar com seu chefe, o superintendente Kringelein. Tentou se sentar na cama, mas constatou que não tinha forças para se mexer. Decidiu chamar uma enfermeira, mas, quando abriu a boca, nenhum som saiu. O esforço o deixou exausto, e ele voltou a dormir.

           Da próxima vez que acordou, sentiu que era noite. O hospital estava silencioso; não havia nenhum movimento. Ele abriu os olhos e viu um rosto pairando acima do seu.

           Era Werner.

           – Você vai embora daqui agora – disse o rapaz.

           Macke tentou pedir ajuda, mas descobriu que não conseguia falar.

           – Vai para um lugar novo – continuou Werner. – Lá não será mais torturador... na verdade, você é que será torturado.

           Macke abriu a boca para gritar.

           Um travesseiro cobriu seu rosto e foi pressionado com força por cima da boca e do nariz. Macke não conseguia respirar. Tentou se debater, mas seus membros não tinham forças. Tentou arquejar, mas não encontrou ar nenhum. Começou a entrar em pânico. Conseguiu mover a cabeça para os lados, mas o travesseiro foi apertado com mais força. Por fim, emitiu um som, mas foi apenas um ganido fraco na garganta.

           O universo se transformou em um disco de luz e foi encolhendo, encolhendo, até virar um pontinho minúsculo.

           Então se apagou.

             

1943 (III)

            – Quer se casar comigo? – perguntou Volodya Peshkov, e prendeu a respiração.

           – Não – respondeu Zoya Vorotsyntsev. – Mas obrigada pelo pedido.

           Zoya era incrivelmente direta em relação a tudo, mas aquela resposta foi rápida demais até mesmo para ela.

           Os dois estavam na cama, no elegante Hotel Moskva. Tinham acabado de fazer amor. Zoya havia gozado duas vezes. Tinha preferência pela cunilíngua. Gostava de ficar reclinada numa pilha de travesseiros enquanto ele se ajoelhava entre suas pernas feito um adorador. Volodya se prestava de bom grado a esse culto, e ela retribuía com entusiasmo.

           Fazia mais de um ano que os dois estavam juntos, e tudo parecia estar correndo maravilhosamente bem. A recusa dela o deixou atônito.

           – Você me ama? – perguntou ele.

           – Amo. Adoro você. Obrigada por me amar tanto a ponto de me pedir em casamento.

           Aquilo era um pouco melhor.

           – Então por que não aceita?

           – Não quero pôr nenhuma criança neste mundo em guerra – respondeu ela.

           – Tudo bem, isso eu entendo.

           – Peça de novo quando tivermos vencido.

           – Nesse dia talvez eu não queira mais me casar com você.

           – Se você for tão inconstante assim, será bom que eu tenha recusado.

           – Desculpe. Por um instante, esqueci que você não entende o conceito de provocação.

           – Preciso fazer xixi.

           Ela se levantou da cama e atravessou o quarto nua. Volodya mal podia acreditar que tivesse o privilégio de ver aquilo. Zoya tinha o corpo de uma modelo ou de uma estrela de cinema. Pele branca como leite, cabelos louros bem claros – o pacote completo. Sentou-se na privada sem fechar a porta, e ele a ouviu urinar. A falta de pudor da namorada era para ele um deleite constante.

           Ele deveria estar no trabalho.

           Toda vez que recebia a visita de um líder Aliado, a comunidade de inteligência moscovita mergulhava no caos, e a rotina de Volodya fora perturbada mais uma vez pela Conferência de Ministros do Exterior iniciada em 18 de outubro.

           Os visitantes eram Cordell Hull, secretário de Estado americano, e Anthony Eden, ministro das Relações Exteriores britânico. Os dois tinham bolado um plano idiota para um pacto de quatro potências que incluía a China. Stalin achava aquilo tudo uma bobagem, e não entendia por que estavam perdendo esse tempo. Hull tinha 72 anos e tossia sangue – seu médico o acompanhara a Moscou –, mas nem por isso se mostrava menos obstinado, e continuava a insistir no pacto.

           Havia tanto a fazer durante a conferência que a NKVD se vira forçada a cooperar com seus odiados rivais da Inteligência do Exército Vermelho, instituição para a qual Volodya trabalhava. Era preciso camuflar microfones em quartos de hotel – havia um ali, mas Volodya o desligara. Os ministros visitantes eram mantidos sob vigilância constante, assim como seus assessores. Sua bagagem tinha que ser aberta e examinada clandestinamente. Seus telefonemas eram gravados, transcritos e traduzidos em russo, lidos e resumidos. Quase todas as pessoas que esses estrangeiros encontravam, inclusive garçons e camareiras, eram agentes da NKVD, mas todos com quem falassem por acaso, fosse no lobby do hotel ou na rua, também tinham que ser verificados, talvez presos e interrogados sob tortura. Era um trabalho insano.

           Volodya estava pisando em nuvens. Seus espiões de Berlim vinham fornecendo informações importantíssimas. Haviam lhe conseguido o plano de batalha da principal ofensiva alemã do verão, a Operação Cidadela, e o Exército Vermelho infligira uma tremenda derrota aos nazistas.

           Zoya também estava feliz. A União Soviética havia retomado as pesquisas nucleares, e ela fazia parte da equipe que tentava criar uma bomba atômica. Estavam muito atrás do Ocidente por causa do atraso provocado pela descrença de Stalin, mas, em compensação, recebiam uma ajuda inestimável dos espiões comunistas na Inglaterra e nos Estados Unidos, entre os quais Wilhelm Frunze, antigo colega de escola de Volodya.

           Ela voltou para a cama.

           – Quando nos conhecemos, você não parecia gostar muito de mim – comentou Volodya.

           – Eu não gostava de homens – retrucou ela. – Continuo não gostando. A maioria não passa de bêbados agressivos e burros. Levei algum tempo para entender que você era diferente.

           – Obrigado... eu acho. Mas os homens são mesmo tão ruins assim?

           – Olhe em volta – respondeu ela. – Olhe para o seu país.

           Ele esticou o braço por cima da namorada e ligou o rádio sobre a mesinha ao lado da cama. Embora houvesse desconectado o microfone atrás da cabeceira, todo cuidado era pouco. Quando o rádio esquentou, ouviu-se uma banda militar tocar uma marcha. Convencido de que ninguém poderia escutá-los, Volodya disse:

           – Você está pensando em Stalin e Beria. Mas eles não vão durar para sempre.

           – Você sabe como meu pai caiu em desgraça? – perguntou ela.

           – Não. Meus pais nunca tocaram no assunto.

           – E com razão.

           – Conte.

           – Segundo minha mãe, houve uma eleição na fábrica do meu pai para escolher um representante que iria comparecer ao soviete de Moscou. Um candidato menchevique se apresentou contra o bolchevique, e meu pai foi a uma reunião ouvi-lo falar. Não apoiou o menchevique nem votou nele, mas todos que assistiram a essa reunião foram demitidos. Algumas semanas depois meu pai foi preso e levado para a Lubyanka.

           Ela estava se referindo à sede e prisão da NKVD na praça Lubyanka.

           – Minha mãe procurou seu pai e implorou ajuda – prosseguiu ela. – Na mesma hora ele foi com ela a Lubyanka. Conseguiram salvar meu pai, mas viram outros operários serem fuzilados.

           – Que horror! – comentou Volodya. – Mas foi Stalin quem...

           – Não. Isso foi em 1920. Stalin não passava de um comandante do Exército Vermelho que estava lutando na guerra entre soviéticos e poloneses. Nosso líder era Lenin.

           – Isso aconteceu no governo de Lenin?

           – Sim. Então você pode ver que o problema não é só Stalin e Beria.

           A visão que Volodya tinha da história do comunismo foi profundamente abalada.

           – Qual é o problema, então?

           A porta se abriu.

           Volodya levou a mão à gaveta da mesinha de cabeceira para pegar a arma.

           No entanto, quem entrou no quarto foi apenas uma moça usando um casaco de pele e, até onde ele pôde constatar, nada mais.

           – Desculpe, Volodya – disse ela. – Não sabia que você estava acompanhado.

           – Que porra é essa? – perguntou Zoya, irritada.

           – Natasha, como conseguiu abrir minha porta? – perguntou Volodya.

           – Você me deu uma chave mestra. Ela abre todas as portas do hotel.

           – Bem, você poderia ter batido!

           – Desculpe. Só vim dar a má notícia.

           – Que má notícia?

           – Entrei no quarto de Woody Dewar, como você me disse para fazer. Mas não tive sucesso.

           – O que você fez?

           – Isto.

           Natasha abriu o casaco e exibiu o corpo nu. Tinha formas voluptuosas e um farto emaranhado de pelos pubianos escuros.

           – Está bem, já entendi, pode fechar o casaco – disse Volodya. – O que ele falou?

           Ela passou a falar em inglês:

           – Ele disse apenas “Não”. Perguntei: “O que você quer dizer com não?” E ele respondeu: “O contrário de sim.” Então simplesmente segurou a porta aberta até eu sair.

           – Que droga! – praguejou Volodya. – Vou ter que pensar em outra coisa.

 

           Chuck Dewar soube que haveria problemas quando o capitão Vandermeier apareceu na seção de territórios inimigos no meio da tarde, com o rosto vermelho depois de um almoço regado a cerveja.

           A unidade de inteligência de Pearl Harbor tinha se expandido. Antes chamada de Estação HYPO, tinha agora a grandiosa denominação de Centro Unificado de Inteligência, Região Oceano Pacífico, ou JICPOA na sigla em inglês.

           Vandermeier estava acompanhado por um sargento da Marinha.

           – Ei, vocês dois, seus frescos – disse Vandermeier. – Receberam uma reclamação de um cliente.

           Com o crescimento das operações, todos tinham começado a se especializar. Chuck e Eddie agora eram peritos no mapeamento dos territórios onde as Forças Armadas americanas iriam desembarcar em sua progressão de ilha em ilha pelo Pacífico.

           – Este é o sargento Donegan – apresentou o capitão.

           O fuzileiro naval era alto e parecia bastante durão. Chuck imaginou que o sexualmente atormentado Vandermeier devesse estar apaixonado.

           Levantou-se para cumprimentar o sargento.

           – É um prazer conhecê-lo, sargento. Suboficial Dewar.

           Tanto Chuck quanto Eddie tinham sido promovidos. Com milhares de alistamentos obrigatórios nas Forças Armadas, houvera uma escassez de oficiais, e os voluntários do pré-guerra que conheciam o trabalho tinham subido de posto depressa. Chuck e Eddie agora podiam morar fora da base e haviam alugado um pequeno apartamento juntos.

           Ele estendeu a mão, mas Donegan não a apertou.

           Chuck tornou a se sentar. Sua patente era ligeiramente superior à de sargento, e ele não seria educado com um subalterno que se mostrara grosseiro.

           – Posso ajudá-lo em alguma coisa, capitão Vandermeier?

           Na Marinha, havia muitas maneiras pelas quais um capitão podia atormentar suboficiais, e Vandermeier conhecia todas. Ajustava os rodízios para Chuck e Eddie nunca tirarem folga juntos. Classificava seus relatórios de “adequados”, embora soubesse muito bem que qualquer conceito diferente de “excelente” era uma mancha negra. Mandava mensagens confusas para o setor de pagamentos, de modo que, quando Chuck e Eddie recebiam o soldo, o valor era sempre menor que o devido, e eles tinham que passar muitas horas reparando o erro. Vandermeier criava todos os problemas possíveis. E agora devia ter bolado alguma nova maldade.

           Donegan tirou uma folha de papel suja do bolso e a desdobrou.

           – Isto aqui é trabalho seu? – perguntou, em tom agressivo.

           Chuck pegou o papel. Era um mapa da Nova Geórgia, uma região do arquipélago das Ilhas Salomão.

           – Vou verificar – falou.

           Ele sabia que era um trabalho, mas estava tentando ganhar tempo.

           Foi até um arquivo e abriu uma gaveta. Pegou a pasta referente à Nova Geórgia e tornou a fechar a gaveta com o joelho. Voltou para sua mesa, sentou-se e abriu a pasta. Lá dentro havia uma cópia do mapa de Donegan.

           – Sim – disse Chuck. – É meu trabalho.

           – Bem, vim aqui lhe dizer que esse mapa está uma merda – disse Donegan.

           – Ah, é?

           – Olhe aqui. O senhor mostra a selva descendo até o mar. Na verdade, há uma praia com quase meio quilômetro de extensão.

           – Lamento saber disso.

           – O senhor lamenta? – Donegan tinha bebido quase tanto quanto Vandermeier, e estava louco para arrumar uma briga. – Cinquenta homens meus morreram nessa praia.

           Vandermeier arrotou e disse:

           – Como pôde cometer um erro desses, Dewar?

           Chuck estava abalado. Se era mesmo responsável por um erro que custara a vida de cinquenta homens, merecia que gritassem com ele.

           – Era isto aqui que tínhamos como base – falou.

           A pasta continha outro mapa inexato das ilhas, talvez da época vitoriana, e uma carta náutica mais recente, que mostrava as profundidades do mar, mas quase nenhum aspecto do terreno. Não havia nenhum parecer em primeira mão ou transcrição de mensagens telegráficas. O único outro item da pasta era uma foto aérea de reconhecimento, em preto e branco, toda borrada. Levando o dedo ao ponto relevante da foto, Chuck falou:

           – Nesta foto parece que as árvores vão até a beira da água. A maré lá varia muito? Caso contrário, a areia talvez estivesse coberta com algas quando a foto foi tirada. Algas podem brotar de repente e morrer com a mesma rapidez.

           – O senhor não estaria tratando o assunto de modo tão casual se tivesse que lutar por esse território – reclamou Donegan.

           Talvez fosse verdade, pensou Chuck. Donegan era agressivo e mal-educado, e estava sendo incitado pelo maldoso Vandermeier, mas isso não significava que estivesse errado.

           – É, Dewar – disse o capitão. – Quem sabe você e seu namorado maricas devessem acompanhar os fuzileiros navais na próxima ofensiva? Para ver como seus mapas são usados durante uma ação.

           Chuck tentava pensar numa resposta inteligente quando lhe ocorreu levar a sugestão a sério. Talvez devesse participar de alguma ação. Era mesmo fácil ter uma atitude blasé sentado atrás de uma mesa. A reclamação de Donegan merecia ser levada a sério.

           Por outro lado, isso significaria arriscar a vida.

           Ele encarou Vandermeier.

           – Parece uma boa ideia, capitão – falou. – Gostaria de me voluntariar para esse serviço.

           Donegan pareceu surpreso, como se estivesse começando a achar que tinha avaliado mal aquela situação.

           Eddie então se manifestou pela primeira vez:

           – Também quero ir.

           – Ótimo – disse Vandermeier. – Vão voltar mais sábios... Se é que vão voltar.

 

           Volodya não estava conseguindo embebedar Woody Dewar.

           No bar do Hotel Moskva, pôs um copo de vodca na frente do rapaz americano e disse, com seu inglês capenga:

           – Você vai gostar... é a melhor que tem.

           – Muito obrigado – disse Woody. E deixou o copo intocado.

           Alto e desengonçado, Woody era tão direto que chegava a parecer ingênuo. Justamente por isso Volodya o tinha escolhido como alvo.

           Com a ajuda do intérprete, Woody falou:

           – Peshkov é um nome russo comum?

           – Não muito – respondeu Volodya em sua própria língua.

           – Sou de Buffalo. Há um empresário conhecido lá chamado Lev Peshkov. Estava imaginando se vocês dois seriam parentes.

           Volodya ficou espantado. O irmão de seu pai se chamava Lev Peshkov, e tinha emigrado para Buffalo antes da Primeira Guerra Mundial. Mas a cautela o fez desconversar.

           – Tenho que perguntar ao meu pai – respondeu.

           – Estudei em Harvard com o filho dele, Greg. Talvez ele seja seu primo.

           – É possível.

           Nervoso, Volodya relanceou os olhos para os espiões da polícia em volta da mesa. Woody não entendia que qualquer vínculo com alguém nos Estados Unidos podia lançar suspeitas sobre um cidadão soviético.

           – Sabe, Woody, neste país é uma ofensa recusar bebida.

           Woody abriu um sorriso agradável e retrucou:

           – Nos Estados Unidos, não.

           Volodya pegou o próprio copo e correu os olhos pela mesa, ocupada por diversos agentes da polícia secreta fazendo-se passar por funcionários públicos e diplomatas.

           – Um brinde! – exclamou. – À amizade entre Estados Unidos e União Soviética!

           Os outros ergueram seus copos bem alto. Woody os imitou.

           – À amizade! – entoaram em coro.

           Todos beberam, menos Woody, que tornou a pousar o copo sobre a mesa.

           Volodya começou a desconfiar que o rapaz não fosse tão ingênuo quanto parecia.

           Woody se inclinou por cima da mesa.

           – Volodya, você precisa entender que não sei segredo nenhum. Sou novato demais.

           – Eu também – retrucou Volodya. O que estava longe de ser verdade.

           – O que estou tentando explicar é que você pode simplesmente me fazer perguntas – prosseguiu Woody. – Eu responderei, se souber. Posso fazer isso porque nada do que eu saiba será segredo. Então não precisa me embebedar nem mandar prostitutas ao meu quarto. Pode me perguntar e pronto.

           Aquilo devia ser algum tipo de truque, concluiu Volodya. Ninguém podia ser tão inocente. Mesmo assim, decidiu fazer o que Woody pedia. Por que não?

           – Está bem – falou. – Preciso saber quais são as suas intenções. Não as suas pessoalmente, claro. Da sua delegação, do secretário Hull e do presidente Roosevelt. O que vocês esperam desta conferência?

           – Que vocês apoiem o Pacto das Quatro Potências.

           Aquela era a resposta-padrão, mas Volodya resolveu insistir:

           – É isso que nós entendemos. – Ele agora estava sendo sincero, talvez mais do que devesse, mas o instinto lhe dizia para correr o risco de se abrir um pouco. – Que importância pode ter um pacto com a China? Nós precisamos derrotar os nazistas na Europa. Queremos sua ajuda para fazer isso.

           – E vamos ajudar.

           – É o que estão dizendo. Mas falaram também que iriam invadir a Europa neste verão.

           – Bem, invadimos a Itália.

           – Não é suficiente.

           – E vamos invadir a França no ano que vem. Já prometemos isso.

           – Então por que precisam do pacto?

           – Bem... – Woody fez uma pausa, botando os pensamentos em ordem. – Temos que mostrar ao povo americano que é do interesse do país invadir a Europa.

           – Por quê?

           – Por que o quê?

           – Por que precisam explicar isso ao povo? Roosevelt é o presidente, não é? Ele deveria simplesmente agir!

           – Ano que vem haverá eleições. Ele quer ser reeleito.

           – E daí?

           – Os americanos não votarão em Roosevelt se acharem que ele os fez participar desnecessariamente da guerra na Europa. Sendo assim, ele quer apresentar a questão como parte de um plano global pela paz mundial. Se assinarmos o pacto para mostrar que estamos falando sério em relação às Nações Unidas, é mais provável que os eleitores americanos aceitem a invasão da França como um passo no caminho para um mundo mais pacífico.

           – Incrível – comentou Volodya. – Roosevelt é o presidente, mas ainda assim ele precisa ficar o tempo todo inventando justificativas para suas ações!

           – Mais ou menos isso – concordou Woody. – É o que chamamos de democracia.

           Volodya teve a leve desconfiança de que aquela história incrível pudesse mesmo ser verdade.

           – O pacto é necessário para convencer os eleitores americanos a apoiarem a invasão da Europa.

           – Exato.

           – Então por que precisamos da China?

           Stalin desdenhava particularmente a insistência dos Aliados para incluir a China no pacto.

           – A China é um aliado fraco.

           – Então vamos simplesmente ignorá-la.

           – Se os chineses ficarem de fora, vão desanimar, e talvez lutem com menos entusiasmo contra os japoneses.

           – E daí?

           – E daí que precisaremos aumentar nosso contingente no Pacífico, e isso vai diminuir nossas forças na Europa.

           Aquilo deixou Volodya alarmado. A União Soviética não queria que as forças Aliadas se desviassem da Europa para o Pacífico.

           – Quer dizer que vocês estão fazendo um gesto de amizade em relação à China simplesmente para poder utilizar mais forças na invasão da Europa?

           – Isso.

           – Você faz tudo parecer tão simples.

           – E é – respondeu Woody.

 

           Nas primeiras horas da manhã de 1o de novembro, Chuck e Eddie comeram bife no café da manhã com a 3a Divisão de Fuzileiros Navais da Marinha americana perto da ilha Bougainville, no mar do Sul.

           A ilha tinha mais ou menos 200 quilômetros de extensão. Abrigava duas bases aéreas da Marinha japonesa – uma no norte, outra no sul. Os fuzileiros navais americanos estavam se preparando para desembarcar no meio da costa ocidental, que tinha defesas leves. Seu objetivo era abrir uma cabeça de ponte na praia e ganhar território suficiente para construir uma pista de pouso da qual pudessem lançar ataques às bases japonesas.

           Chuck estava no convés quando, às 7h26, montes de fuzileiros de capacete e mochila começaram a descer pelas redes de corda penduradas nas laterais do navio e a pular em barcaças de desembarque de bordas bem altas. Levavam consigo alguns cães da raça dobermann, que eram sentinelas incansáveis.

           Quando as barcaças se aproximaram da praia, Chuck pôde ver um primeiro erro no mapa que havia elaborado. Ondas altas quebravam numa praia íngreme. Bem diante de seus olhos, uma das barcaças foi atingida de lado pelas ondas e virou. Os fuzileiros tiveram que nadar até a praia.

           – Temos que indicar a condição das ondas – disse Chuck a Eddie, que estava em pé a seu lado no convés.

           – E como vamos descobrir isso?

           – Aviões de reconhecimento terão que sobrevoar o mar a uma altitude baixa o suficiente para que as ondas apareçam nas fotos.

           – Eles não podem se arriscar a voar tão baixo assim com bases inimigas por perto.

           Eddie estava certo. Mas tinha de haver uma solução. Chuck arquivou a informação: era a primeira questão a ser considerada como resultado daquela missão.

           Para o desembarque desse dia, eles dispunham de mais informações que o normal. Além dos mapas em geral pouco confiáveis e das fotografias aéreas difíceis de interpretar, tinham o parecer de uma equipe de reconhecimento que chegara à ilha de submarino, seis semanas antes. A equipe identificara 12 praias adequadas para desembarque num trecho de costa de 6,5 quilômetros. No entanto, não dera nenhum alerta sobre as ondas. Talvez o mar não estivesse tão agitado no dia do reconhecimento.

           Nos outros aspectos, o mapa de Chuck estava certo, pelo menos até ali. Havia uma praia com cerca de cem metros de largura, seguida por um emaranhado de palmeiras e outros tipos de vegetação. Logo depois dessa faixa, segundo o mapa, devia haver um pântano.

           O litoral não era completamente desprovido de defesas. Chuck ouviu um rugido de artilharia, e um projétil aterrissou na água rasa. Não causou nenhum dano, mas a mira do artilheiro iria melhorar. Com urgência renovada, os fuzileiros saltaram das barcaças para a praia e correram em direção às palmeiras.

           Chuck estava contente por ter decidido participar daquele combate. Nunca fora descuidado ou negligente em relação a seus mapas, mas era bom ver em primeira mão como um mapeamento correto podia salvar a vida dos soldados e como os erros mais insignificantes podiam ser fatais. Mesmo antes de embarcarem, ele e Eddie haviam se tornado bem mais exigentes. Pediam que fotos borradas fossem tiradas outra vez, interrogavam equipes de reconhecimento pelo telefone e disparavam mensagens de cabo para o mundo inteiro em busca de cartas náuticas de melhor qualidade.

           Mas a sua satisfação tinha também outro motivo. Ele estava no mar, algo que amava. Estava a bordo de um navio com outros 700 fuzileiros, e adorava a camaradagem, as brincadeiras, as canções e a intimidade dos alojamentos apinhados e dos chuveiros coletivos.

           – É como ser hétero num colégio interno só de meninas – disse a Eddie certa noite.

           – Só que isso que você falou nunca acontece, e isto aqui é real – respondeu Eddie.

           Ele sentia a mesma coisa que Chuck. Os dois se amavam, mas não gostavam menos de ver marinheiros sem roupa.

           Agora, todos os 700 fuzileiros navais estavam deixando o navio e desembarcando o mais rápido possível. O mesmo acontecia em outros oito pontos daquele trecho de costa. Assim que uma barcaça se esvaziava, não perdia tempo: dava meia-volta e retornava para buscar mais homens. Mesmo assim, o processo todo continuava parecendo extremamente lento.

           Por fim, o artilheiro japonês escondido em algum lugar da selva acertou a mira e, para assombro de Chuck, um projétil acertou em cheio o alvo e explodiu um grupo de fuzileiros, fazendo homens, fuzis e partes de corpos voarem, manchando a areia de vermelho.

           Chuck encarava o massacre com ar horrorizado quando ouviu o rugido de um avião. Ao erguer os olhos, viu um Zero japonês voando baixo, margeando a costa. Os sóis vermelhos pintados nas asas foram como uma punhalada de medo em seu coração. A última vez que os vira fora na batalha de Midway.

           O Zero metralhou a praia. Os fuzileiros que estavam desembarcando foram pegos de surpresa, indefesos. Alguns se deitaram na água rasa, outros tentaram se esconder atrás do casco da barcaça, e houve ainda quem corresse em direção à selva. Por alguns segundos, sangue esguichou e homens caíram.

           Então o Zero sumiu, deixando a praia coalhada de americanos mortos.

           Instantes depois, Chuck o ouviu abrir fogo para metralhar a praia seguinte.

           O avião iria voltar.

           Supostamente, ali também deveria haver aviões americanos, mas ele não via nenhum. O apoio aéreo nunca estava onde você queria que estivesse, ou seja, bem acima de sua cabeça.

           Quando todos os fuzileiros estavam em terra, vivos ou mortos, as barcaças transportaram equipes médicas e maqueiros até a praia. Então começaram a desembarcar suprimentos: munição, água potável, comida, remédios e ataduras. Na volta, conduziam os feridos para o navio.

           Chuck e Eddie, que faziam parte do contingente não essencial, seguiram com os suprimentos.

           A essa altura, os marinheiros que manobravam as barcaças já tinham se acostumado com o mar agitado: a embarcação foi mantida numa posição estável, com a plataforma estendida até a areia e as ondas batendo na popa. Enquanto as caixas eram retiradas, Chuck e Eddie pularam para o meio das ondas e avançaram chapinhando até a praia.

           Os dois chegaram à areia ao mesmo tempo.

           Bem nessa hora, uma metralhadora começou a disparar.

           Os tiros pareciam vir da selva, uns quatrocentos metros adiante. Será que o artilheiro estivera ali desde o início, só esperando o momento de abrir fogo? Ou acabara de ser transferido de outro ponto? Eddie e Chuck se abaixaram e saíram correndo em direção à linha de palmeiras.

           Um marinheiro com uma caixa de munição no ombro deu um grito de dor, soltou a caixa e caiu.

           Então Eddie também gritou. Chuck ainda correu dois passos antes de conseguir se deter. Quando se virou, viu Eddie rolando na areia, segurando o joelho, praguejando aos gritos. Voltou e se abaixou ao seu lado.

           – Está tudo bem, estou aqui! – berrou.

           Eddie tinha os olhos fechados, mas estava vivo, e Chuck não conseguiu detectar nenhum outro ferimento a não ser no joelho.

           Ergueu os olhos. A barcaça que os levara até lá continuava bem perto da praia, sendo descarregada. Poderia levar Eddie de volta ao navio em minutos. Mas a metralhadora continuava a disparar.

           Chuck se agachou.

           – Vai doer – avisou. – Pode gritar quanto quiser.

           Passou o braço direito por baixo do ombro de Eddie e o esquerdo sob suas coxas. Sustentou o peso e se levantou. Quando a perna estraçalhada ficou pendurada, Eddie urrou de dor.

           – Aguente firme, cara – disse Chuck. Então se virou em direção à água.

           De repente, sentiu uma dor insuportável nas pernas, nas costas e na cabeça. Na fração de segundo seguinte, pensou que não podia deixar Eddie cair. Um momento depois, soube que iria deixar. Um clarão de luz o cegou.

           E então o mundo se acabou.

 

           Em seu dia de folga, Carla foi trabalhar no Hospital Judaico.

           O Dr. Rothmann a convencera a fazer isso. Tinha sido liberado do campo – ninguém sabia por quê, só os nazistas, e estes não davam informações a ninguém. Apesar de ter perdido um olho e de agora mancar, ele estava vivo e ainda era capaz de exercer a medicina.

           O hospital ficava em Wedding, bairro de classe operária ao norte do centro da cidade, no entanto não havia nada de proletário em sua arquitetura. Fora construído antes da Primeira Guerra Mundial, quando os judeus de Berlim ainda eram prósperos e orgulhosos. Era formado por sete prédios elegantes situados em meio a um vasto jardim. Os diferentes setores eram interligados por túneis, para que os pacientes e funcionários pudessem transitar entre eles sem ter que enfrentar o clima.

           Era um verdadeiro milagre ainda haver um Hospital Judaico. Restavam pouquíssimos judeus em Berlim. Milhares deles haviam sido presos e deportados em trens especiais. Ninguém sabia para onde tinham ido nem qual fora seu fim. Circulavam boatos espantosos sobre campos de extermínio.

           Quando ficavam doentes, os poucos judeus que continuavam em Berlim não podiam ser tratados por médicos e enfermeiras arianos. Assim, pela lógica deturpada dos nazistas, o hospital pôde continuar em funcionamento. A maior parte de sua equipe era composta por judeus e outros desafortunados que não eram considerados propriamente arianos: eslavos do Leste Europeu, pessoas de origem mestiça ou casadas com judeus. No entanto, não havia enfermeiras suficientes, por isso Carla ia ajudar.

           O hospital vivia sendo importunado pela Gestapo. Faltava material, sobretudo remédios. Havia poucos funcionários e quase nenhum dinheiro.

           Carla estava burlando a lei ao medir a temperatura de um menino de 11 anos cujo pé fora esmagado durante um bombardeio. Também era crime contrabandear remédios do hospital em que trabalhava e levá-los para lá. Mas ela queria provar, ainda que só para si mesma, que nem todo mundo havia se rendido aos nazistas.

           Quando estava terminando sua ronda na enfermaria, viu Werner do lado de fora, usando seu uniforme da Força Aérea.

           Ele e Carla haviam passado vários dias atormentados pelo medo, imaginando se alguém sobrevivera ao bombardeio da escola e iria aparecer para acusá-lo; mas a essa altura estava claro que todos tinham morrido e ninguém mais sabia das suspeitas de Macke. Eles haviam conseguido se safar mais uma vez.

           Werner tinha se recuperado depressa do ferimento.

           Os dois agora estavam juntos. Werner se mudara para a casa grande e quase vazia dos Von Ulrich e passava todas as noites com Carla. Seus pais não haviam protestado: todos sentiam que poderiam morrer a qualquer momento, e as pessoas deviam aproveitar toda a alegria que pudessem ter naquela vida de privações e sofrimento.

           Mas Werner parecia mais solene do que o normal quando acenou para Carla pela pequena janela de vidro na porta da enfermaria. Ela acenou de volta, mandando-o entrar, e o recebeu com um beijo.

           – Eu te amo – falou. Nunca se cansava de repetir isso.

           E ele sempre ficava feliz em responder:

           – Eu também te amo.

           – O que está fazendo aqui? – perguntou ela. – Queria um beijo?

           – Tenho más notícias. Fui transferido para o front oriental.

           – Ah, não!

           Os olhos de Carla se encheram de lágrimas.

           – Na verdade, é um milagre que eu tenha conseguido evitar isso até agora. Mas o general Dorn não pode mais me manter longe da frente de batalha. Metade do nosso Exército agora é composta por velhos e colegiais, e eu sou um oficial de 24 anos em condições de lutar.

           – Por favor, não morra – sussurrou ela.

           – Vou fazer o possível.

           – Mas o que vai acontecer com a rede? – perguntou ela, sussurrando. – É você que sabe de tudo. Quem mais poderia comandá-la?

           Ele a fitou sem dizer nada.

           Carla entendeu o que ele tinha em mente.

           – Ah, não... eu não!

           – Você é a melhor pessoa. Frieda é uma seguidora, não uma líder. Você demonstrou capacidade para recrutar pessoas novas e motivá-las. Nunca teve problemas com a polícia, e não tem registro de atividades políticas. Ninguém sabe o papel que teve na oposição ao Aktion T4. No que diz respeito às autoridades, você é uma enfermeira inocente.

           – Mas, Werner, tenho medo!

           – Não precisa fazer isso, se não quiser. Só que ninguém mais pode.

           Bem nessa hora, eles ouviram uma confusão.

           A enfermaria vizinha era reservada aos pacientes com problemas mentais e não era raro ouvir gritarias, mas aquilo parecia diferente. Uma voz soou alta, zangada. Então ouviram uma segunda voz, dessa vez com sotaque de Berlim e no tom insistente e intimidador que os forasteiros diziam ser típico da capital.

           Carla saiu para o corredor e Werner a seguiu.

           Com uma estrela amarela costurada no paletó, o Dr. Rothmann discutia com um sujeito com uniforme da SS. Atrás deles, a porta dupla que conduzia à ala psiquiátrica – que em geral permanecia trancada – estava escancarada. Os pacientes saíam da enfermaria. Dois outros oficiais da SS e uma dupla de enfermeiras conduziam uma fila irregular de homens e mulheres, a maioria de pijama, alguns caminhando eretos e aparentemente normais, outros cambaleando e balbuciando sons incoerentes enquanto andavam uns atrás dos outros pela escada.

           Imediatamente Carla se lembrou de Kurt e Axel, o filho de Ada e o irmão de Werner, e do suposto hospital de Akelberg. Não sabia para onde aqueles pacientes estavam indo, mas tinha quase certeza de que seriam mortos.

           Indignado, o Dr. Rothmann protestava:

           – Essas pessoas estão doentes! Precisam ser tratadas!

           E o oficial da SS retrucava:

           – Elas não estão doentes. São doidas, e nós vamos levá-las para onde os doidos devem ficar.

           – Para um hospital?

           – O senhor será informado no devido momento.

           – Essa resposta não é suficiente.

           Carla sabia que não deveria intervir. Se descobrissem que ela não era judia, estaria em sérios apuros. Com cabelos escuros e olhos verdes, ela não tinha uma aparência especialmente ariana ou não ariana. Se ficasse calada, não iriam incomodá-la. No entanto, se reclamasse do que a SS estava fazendo, seria presa e interrogada, e então descobririam que ela estava trabalhando ilegalmente. Dessa forma, ela mordeu a língua e se controlou.

           O oficial elevou a voz:

           – Rápido... Ponham esses malditos dentro do ônibus.

           Rothmann continuou a insistir:

           – Preciso saber para onde eles vão. São meus pacientes.

           Na verdade, aqueles pacientes não eram seus – ele não era psiquiatra.

           – Se está tão preocupado assim, pode ir com eles – disse o oficial da SS.

           O Dr. Rothmann ficou pálido. Era quase certo que estaria indo para a morte.

           Carla pensou em Hannelore, esposa do médico; em Rudi, seu filho; e em Eva, a filha que morava na Inglaterra. Seu estômago se revirou de medo.

           O oficial abriu um sorriso e zombou:

           – Perdeu a confiança de repente?

           Rothmann se empertigou.

           – Pelo contrário – disse. – Vou aceitar sua proposta. Muitos anos atrás, prestei um juramento: fazer tudo o que pudesse para ajudar os doentes. Não é agora que vou faltar com minha palavra. Espero morrer com a consciência tranquila. – Ele desceu a escada mancando.

           Uma velha passou vestida apenas com um roupão aberto na frente, expondo sua nudez.

           Carla não conseguiu mais ficar calada.

           – É novembro! – gritou – Eles não têm roupas de frio!

           O oficial a encarou com um olhar duro.

           – Vão ficar bem dentro do ônibus.

           – Vou pegar algumas roupas quentes. – Carla virou-se para Werner. – Venha me ajudar. Pegue cobertores em qualquer lugar.

           Os dois começaram a correr pela enfermaria psiquiátrica vazia, arrancando cobertores das camas e de dentro dos armários. Depois, cada um segurando uma pilha nos braços, desceram depressa a escada.

           O jardim do hospital não passava de terra congelada. Diante da porta da frente havia um ônibus cinza, com o motor ligado e o motorista fumando ao volante. Carla viu que ele estava de sobretudo grosso, chapéu e luvas, o que significava que não havia calefação dentro do ônibus.

           Um pequeno grupo de agentes da Gestapo e da SS observava os procedimentos.

           Os últimos pacientes subiram a bordo. Carla e Werner embarcaram com eles e começaram a distribuir os cobertores.

           O Dr. Rothmann estava em pé no fundo do ônibus.

           – Carla – disse ele. – Por favor... diga à minha Hannelore o que aconteceu. Tenho que ir com os pacientes. Não tenho escolha.

           – Claro. – A voz dela estava embargada.

           – Talvez eu consiga proteger essas pessoas.

           Embora não acreditasse nisso, Carla assentiu.

           – Seja como for, não posso abandoná-las – acrescentou o médico.

           – Vou dizer a ela.

           – E diga também que eu a amo.

           Carla não conseguiu mais conter as lágrimas.

           – Diga a ela que essa foi a última coisa que eu falei – pediu o médico. – Que eu a amo.

           Carla aquiesceu.

           Werner a segurou pelo braço.

           – Vamos.

           Os dois desceram do ônibus.

           Um agente da SS se dirigiu a Werner:

           – Ei, você aí, de uniforme da Força Aérea, o que acha que está fazendo?

           Werner estava tão bravo que Carla temeu que fosse arrumar briga. No entanto, ele respondeu com calma:

           – Entregando cobertores a pessoas velhas e com frio. Por acaso isso é contra a lei?

           – Você deveria estar lutando no front oriental.

           – Vou para lá amanhã. E você?

           – Cuidado com o que diz.

           – Se fizer o favor de me prender antes de eu ir, talvez salve a minha vida.

           O homem virou as costas.

           O ônibus emitiu um ruído ao ter a marcha engatada, e o barulho do motor ficou mais alto. Carla e Werner se viraram para olhar. Em cada janela havia um rosto, todos diferentes: balbuciando coisas desconexas, babando, rindo histericamente, distraído, ou então distorcido por seus próprios tormentos espirituais – insanos, sem exceção. Pacientes psiquiátricos sendo levados pela SS. Loucos conduzindo outros loucos.

           O ônibus se afastou.

 

           – Acho que eu teria gostado da Rússia, se tivesse conseguido vê-la – comentou Woody com o pai.

           – Tenho a mesma sensação.

           – Não consegui nem tirar fotografias decentes.

           Os dois estavam sentados no grande saguão do Hotel Moskva, perto da entrada do metrô, com as malas feitas. Voltavam para casa.

           – Tenho que contar a Greg Peshkov que conheci um rapaz chamado Volodya Peshkov – disse Woody. – Apesar de Volodya não ter ficado muito contente com isso. Acho que qualquer um que tenha vínculos com o Ocidente se torna suspeito.

           – Pode apostar.

           – Enfim, conseguimos o que queríamos. É isso que importa. Os Aliados estão comprometidos com as Nações Unidas.

           – Sim – concordou Gus, satisfeito. – Foi preciso um pouco de esforço para convencer Stalin, mas ele acabou vendo que fazia sentido. Acho que você ajudou com aquela sua conversa franca com Peshkov.

           – Pai, você passou a vida inteira lutando por isso.

           – É, devo admitir que este é um momento muito bom.

           Um pensamento preocupante passou pela cabeça de Woody.

           – Você não vai se aposentar agora, vai? – perguntou ele.

           Gus riu.

           – Não. Em princípio conseguimos um acordo, mas o trabalho está só começando.

           Cordell Hull já tinha ido embora de Moscou, mas alguns de seus assessores continuavam na cidade, e um deles se aproximou dos Dewar. Woody sabia quem era: um rapaz chamado Ray Baker.

           – Senador, tenho um recado para o senhor – disse ele, parecendo nervoso.

           – Você chegou bem a tempo... Estou de partida – respondeu Gus. – O que foi?

           – É sobre o seu filho Charles... Chuck.

           Gus ficou pálido.

           – Qual é o recado, Ray?

           O rapaz estava com dificuldade para falar.

           – A notícia é ruim, senador. Ele participou de uma batalha nas Ilhas Salomão.

           – Foi ferido?

           – Não, senador. É pior.

           – Ah, meu Deus! – exclamou Gus, e caiu em prantos.

           Woody nunca tinha visto o pai chorar.

           – Sinto muito, senador.

             

           Woody estava em pé diante do espelho de seu quarto, no apartamento dos pais em Washington. Vestia um uniforme de segundo-tenente do 501o Regimento de Paraquedistas do Exército americano.

           Apesar de ter sido feito sob medida por um bom alfaiate, o uniforme não lhe caía bem. A cor cáqui o deixava com um aspecto abatido, e as insígnias e os galões da túnica davam uma impressão desalinhada.

           Talvez ele pudesse ter evitado o alistamento obrigatório, mas decidira não fazer isso. Parte dele queria seguir trabalhando com o pai, que ajudava o presidente Roosevelt a planejar uma nova ordem global a fim de evitar outras guerras mundiais. Tinham conseguido uma vitória em Moscou, mas Stalin era um homem inconstante e parecia se comprazer em criar dificuldades. Na Conferência de Teerã, em dezembro de 1943, o líder soviético ressuscitara a ideia intermediária dos conselhos regionais, e Roosevelt precisara dissuadi-lo. Estava claro que as Nações Unidas iriam exigir uma vigilância constante.

           Mas Gus podia fazer isso sem o filho. E Woody sentia-se cada vez pior por deixar outros homens lutarem em seu lugar.

           Apesar de sua aparência não agradá-lo, era a melhor possível com aquele uniforme, então foi à sala mostrá-lo à mãe.

           Rosa tinha visita: um rapaz de uniforme branco da Marinha. Woody levou alguns instantes para reconhecer o atraente e sardento Eddie Parry. Sentado ao lado de sua mãe no sofá, ele segurava uma bengala. Levantou-se com dificuldade para apertar a mão de Woody.

           Rosa tinha uma expressão triste.

           – Eddie estava me contando sobre o dia em que Chuck morreu – falou.

           O rapaz tornou a se sentar e Woody se acomodou em frente a ele e sua mãe.

           – Quero ouvir também – falou.

           – Não é uma história muito longa – começou Eddie. – Fazia uns cinco segundos que tínhamos desembarcado na praia de Bougainville quando um artilheiro abriu fogo de algum lugar no pântano. Corremos para nos proteger, mas fui atingido no joelho. Chuck deveria ter continuado a correr até as árvores. É isso que aprendemos nos treinos: deixar os feridos para trás, para que sejam recolhidos pelas equipes médicas. Mas é claro que Chuck desobedeceu a essa regra. Ele parou e voltou para me buscar.

           Eddie fez uma pausa. Havia uma xícara de café na mesinha à sua frente, e ele a pegou e tomou um gole.

           – Ele me pegou no colo – prosseguiu. – Que tolo... Virou um alvo fácil. Mas acho que ele queria me levar de volta para a barcaça. Essas embarcações têm laterais bem altas e são feitas de aço. Ficaríamos seguros lá, e eu receberia cuidados médicos logo em seguida, no navio. Mas Chuck não devia ter feito isso. Assim que ele se levantou, foi atingido por uma rajada de balas... nas pernas, nas costas, na cabeça. Acho que deve ter morrido antes mesmo de cair na areia. De toda forma, quando consegui levantar a cabeça para olhar, ele simplesmente já havia partido.

           Woody viu que a mãe estava com dificuldade para se controlar. Temia que, se ela chorasse, fosse chorar também.

           – Passei uma hora deitado na praia ao lado do corpo dele – contou Eddie. – Não larguei a mão dele nem por um instante. Então trouxeram uma maca para mim. Eu não queria ir embora. Sabia que nunca mais iria vê-lo. – Ele enterrou o rosto nas mãos. – Eu o amava tanto...

           Rosa passou o braço em volta de seus ombros largos e lhe deu um abraço. Eddie encostou a cabeça em seu peito e soluçou feito uma criança. Ela acariciou seus cabelos.

           – Pronto, pronto – consolou. – Já passou.

           Woody percebeu que a mãe sabia o que Chuck e Eddie eram um para o outro.

           Depois de alguns minutos, o rapaz começou a se recuperar. Olhou para Woody.

           – Você sabe como é isso – comentou.

           Ele estava se referindo à morte de Joanne.

           – Sei, sim – respondeu Woody. – É a pior coisa do mundo... mas a cada dia que passa dói um pouco menos.

           – Assim espero.

           – Você ainda está no Havaí?

           – Sim. Chuck e eu trabalhamos na unidade de territórios inimigos. Trabalhávamos. – Ele engoliu em seco. – Ele achava que era importante termos uma ideia mais clara de como nossos mapas eram utilizados em combate. Foi por isso que acompanhamos os fuzileiros navais a Bougainville.

           – Vocês devem estar fazendo um bom trabalho – disse Woody. – Parece que estamos derrotando os japas no Pacífico.

           – Aos pouquinhos – disse Eddie. Então olhou para o uniforme de Woody. – Onde você está lotado?

           – Estava fazendo o treinamento de paraquedismo em Fort Benning, na Geórgia – respondeu Woody. – Agora estou a caminho de Londres. Parto amanhã.

           Ele olhou para a mãe. De repente, Rosa lhe pareceu envelhecida. Percebeu que seu rosto estava cheio de rugas. Seu aniversário de 50 anos passara sem alarde. No entanto, pensou Woody, falar sobre a morte de Chuck na presença de seu outro filho uniformizado devia ter sido um golpe e tanto para ela.

           Eddie pareceu não notar.

           – Estão dizendo que vamos invadir a França este ano – comentou ele.

           – Talvez por isso meu treinamento tenha sido acelerado – disse Woody.

           – É, você deve participar de alguma ação.

           Rosa abafou um soluço.

           – Espero ser tão corajoso quanto meu irmão.

           – Torço para que você nunca descubra se é ou não – retrucou Eddie.

 

           Greg Peshkov levou Margaret Cowdry, uma bela moça de olhos escuros, para assistir a um concerto sinfônico vespertino. Margaret tinha uma boca larga e generosa que ele adorava beijar. Mas outro assunto ocupava sua mente agora.

           Ele estava seguindo Barney McHugh.

           Um agente do FBI chamado Bill Bicks também seguia o mesmo homem.

           Barney McHugh era um físico jovem e brilhante. Estava de licença do laboratório secreto do Exército americano em Los Alamos, Novo México, e trouxera a esposa britânica a Washington para visitar as atrações turísticas.

           O FBI descobrira com antecedência que McHugh iria ao concerto, e o agente especial Bicks conseguira para Greg dois lugares algumas fileiras atrás do cientista. Uma sala de concerto, com centenas de desconhecidos se aglomerando para entrar e sair, era o local perfeito para um encontro clandestino, e Greg queria saber o que McHugh poderia estar tramando.

           Era uma pena que os dois já tivessem se encontrado antes. Greg havia conversado com McHugh em Chicago, no dia do teste com a pilha nuclear. Isso já fazia um ano e meio, mas talvez McHugh se lembrasse dele. Então Greg precisava garantir que o sujeito não o visse.

           Quando Greg e Margaret chegaram, os lugares de McHugh estavam vazios. De ambos os lados estavam sentados dois casais de aspecto normal: à esquerda, um homem de meia-idade usando um terno barato cinza, de risca de giz, acompanhado pela esposa igualmente malvestida; à direita, duas senhoras de idade. Greg torceu para McHugh aparecer. Se ele fosse um espião, queria pegá-lo.

           O programa do concerto era a Sinfonia no 1 de Tchaikovsky.

           – Quer dizer que você gosta de música clássica? – perguntou Margaret, puxando conversa enquanto a orquestra afinava os instrumentos.

           Ela não tinha a menor ideia do verdadeiro motivo para ele tê-la levado até ali. Sabia que Greg estava trabalhando com uma pesquisa confidencial de armamentos. No entanto, assim como quase todos os americanos, não sabia nada sobre a bomba nuclear.

           – Pensei que só escutasse jazz – completou ela.

           – Adoro os compositores russos... eles são tão dramáticos! – disse Greg. – Acho que deve estar no meu sangue.

           – Fui criada ouvindo música clássica. Meu pai gosta de chamar uma pequena orquestra para os jantares que oferece.

           A família de Margaret era rica o suficiente para fazer Greg se sentir pobre. No entanto, ele ainda não conhecera os pais dela e desconfiava que eles não fossem aprovar o filho ilegítimo de um famoso mulherengo de Hollywood.

           – O que você está olhando? – perguntou ela.

           – Nada. – O casal McHugh havia chegado. – Que perfume é esse?

           – Chichi, da Renoir.

           – Adorei.

           Os McHugh pareciam felizes, um casal brilhante e próspero tirando férias. Greg pensou se teriam chegado atrasados por estarem fazendo amor no quarto do hotel.

           Barney McHugh sentou-se ao lado do senhor de terno de risca de giz. Greg sabia que a roupa era de má qualidade por causa da rigidez pouco natural das ombreiras. O homem não olhou para os recém-chegados. Os McHugh começaram a fazer palavras cruzadas, aproximando as cabeças num gesto de intimidade enquanto examinavam o jornal que Barney segurava. Alguns minutos depois, o regente subiu ao palco.

           A primeira peça era de Saint-Saëns. A popularidade dos compositores alemães e austríacos havia declinado desde o início da guerra, e os amantes de concertos estavam descobrindo novas alternativas. Sibelius tornara a cair nas graças do público.

           McHugh provavelmente era comunista. Greg sabia disso porque J. Robert Oppenheimer lhe dissera. Influente físico teórico da Universidade da Califórnia, Oppenheimer era diretor do laboratório de Los Alamos e chefe científico do Projeto Manhattan. Tinha fortes vínculos comunistas, embora afirmasse jamais ter entrado para o partido.

           – Por que o Exército precisa de tanta gente de esquerda? – perguntara o agente especial Bicks a Greg. – Não sei o que vocês estão tentando fazer lá no deserto, mas será que os Estados Unidos não dispõem de jovens cientistas inteligentes e conservadores suficientes?

           – Não – respondera Greg. – Se dispuséssemos, já os teríamos contratado.

           Os comunistas às vezes eram mais leais à causa do que ao próprio país, e talvez não achassem errado compartilhar os segredos da pesquisa nuclear com a União Soviética. Não era como passar informações para o inimigo. Os soviéticos estavam do lado dos americanos contra os nazistas – na verdade, haviam lutado mais do que todos os outros Aliados juntos. Mesmo assim, era um perigo. As informações destinadas a Moscou podiam acabar indo parar em Berlim. E qualquer um que pensasse por mais de um minuto no mundo pós-guerra podia adivinhar que talvez os Estados Unidos e a União Soviética não fossem continuar amigos para sempre.

           O FBI considerava Oppenheimer um risco e vivia tentando convencer o general Groves – chefe de Greg – a demiti-lo. Mas Oppenheimer era o melhor cientista de sua geração, e o general insistia em mantê-lo.

           Numa tentativa de provar sua lealdade, Oppenheimer tinha citado McHugh como possível comunista. Era por isso que Greg o estava seguindo.

           O FBI, no entanto, se mostrara cético.

           – Oppenheimer só está tentando despistar você – dissera Bicks.

           – Não acredito nisso – retrucara Greg. – Já faz um ano que o conheço.

           – Ele é uma porra de um comunista, assim como a mulher, o irmão e a cunhada.

           – Ele está trabalhando 19 horas por dia para fabricar armas melhores para os soldados americanos... Que traidor faz isso?

           Greg torcia para que McHugh se revelasse mesmo um espião, pois isso diminuiria a suspeita que pairava sobre Oppenheimer, aumentaria a credibilidade do general Groves e melhoraria a situação do próprio Greg.

           Passou toda a primeira metade do concerto observando McHugh, sem querer tirar os olhos do cientista. O físico não olhou para nenhuma das pessoas ao seu lado. Parecia absorto na música, e só desviava o olhar do palco para fitar amorosamente a esposa, uma inglesa típica, de pele bem clara. Será que Oppenheimer havia se enganado em relação a McHugh? Ou sua acusação seria uma distração para desviar as suspeitas de si mesmo?

           Greg sabia que Bicks também observava. Seu colega estava sentado mais acima, no balcão nobre do teatro. Talvez tivesse visto alguma coisa.

           No intervalo, Greg seguiu os McHugh até o lado de fora e postou-se na mesma fila que eles para comprar um café. Nem o casal mal-ajambrado nem as duas senhoras estavam por perto.

           Sentiu-se frustrado. Não soube que conclusão tirar. Será que suas suspeitas eram infundadas? Ou aquele passeio específico dos McHugh era inocente?

           Quando ele e Margaret estavam voltando a seus lugares, Bill Bicks surgiu ao seu lado. De meia-idade e um pouco acima do peso, o agente começava a ficar careca. Usava um terno cinza-claro com marcas de suor nas axilas.

           – Você tinha razão – disse ele, em voz baixa.

           – Como você sabe?

           – O cara sentado ao lado de McHugh.

           – De terno cinza listrado?

           – Isso. O nome dele é Nikolai Yenkov, ele é adido cultural da embaixada soviética.

           – Meu Deus! – exclamou Greg.

           Margaret se virou.

           – O que foi?

           – Nada – respondeu Greg.

           Bicks se afastou.

           – Você está com a cabeça em outro lugar – disse ela quando se acomodavam outra vez. – Acho que não deve ter ouvido nenhum compasso do Saint-Saëns.

           – Estou pensando em trabalho, só isso.

           – Basta dizer que não é outra mulher e eu esqueço o assunto.

           – Não é outra mulher.

           Durante a segunda metade do concerto, ele começou a ficar nervoso. Não detectara nenhum contato entre McHugh e Yenkov. Os dois não se falaram, e Greg não viu nada ser passado de um para o outro: nenhuma pasta, nenhum envelope, nenhum rolo de filme.

           A sinfonia terminou e o regente se curvou para agradecer. A plateia começou a sair do teatro. A caçada ao espião fora um fracasso total.

           No saguão, Margaret foi ao toalete. Enquanto Greg a esperava, Bicks veio falar com ele.

           – Nada – disse Greg.

           – Nem eu.

           – Talvez seja coincidência McHugh ter se sentado ao lado de Yenkov – sugeriu Greg.

           – Coincidências não existem.

           – Então houve algum problema. Uma senha errada, algo assim.

           Bicks fez que não com a cabeça.

           – Eles se comunicaram. Nós é que não vimos.

           A Sra. McHugh também foi ao toalete e, assim como Greg, McHugh ficou aguardando ali perto. Escondido atrás de uma pilastra, Greg o analisou. Ele não carregava uma pasta nem uma capa debaixo da qual pudesse ocultar algum embrulho ou documento. Mesmo assim, algo nele lhe pareceu estranho. O que seria?

           Foi então que Greg percebeu.

           – O jornal! – exclamou.

           – O quê?

           – Quando entrou, Barney estava segurando um jornal. Fez palavras cruzadas com a mulher enquanto esperavam o espetáculo começar. E agora o jornal não está mais com ele!

           – Ou ele jogou fora... ou entregou a Yenkov com alguma coisa escondida dentro.

           – Yenkov e a mulher já saíram.

           – Talvez ainda estejam lá fora.

           Bicks e Greg correram até a porta.

           Bicks abriu caminho pela multidão que ainda passava pelas saídas. Greg ficou logo atrás. Ambos chegaram à calçada em frente ao teatro e olharam para os dois lados. Greg não conseguiu ver Yenkov, mas Bicks tinha olhos de águia.

           – Do outro lado da rua! – gritou.

           O adido cultural e sua esposa malvestida estavam de pé junto ao meio-fio, e uma limusine preta se aproximava lentamente do casal.

           Yenkov estava segurando um jornal dobrado.

           Greg e Bicks atravessaram a rua correndo.

           A limusine parou.

           Greg foi mais rápido do que Bicks e chegou primeiro à outra calçada.

           Yenkov não os tinha notado. Sem pressa, abriu a porta do carro, e então se afastou para deixar a esposa entrar.

           Greg se jogou em cima dele. Os dois caíram no chão. A Sra. Yenkov gritou.

           Greg se levantou com esforço. O motorista já tinha saltado e dava a volta no carro, mas Bicks ergueu a credencial e gritou:

           – FBI!

           Yenkov deixara cair o jornal e estendeu a mão para recuperá-lo. Porém Greg foi mais rápido. Pegou o jornal, deu um passo atrás e o abriu.

           Lá dentro havia um maço de papéis. O de cima era um diagrama que Greg reconheceu na mesma hora: o mecanismo do gatilho de implosão de uma bomba de plutônio.

           – Meu Deus! – exclamou. – Esta informação é quentíssima!

           Yenkov pulou para dentro do carro, bateu a porta e trancou-a por dentro.

           O motorista tornou a assumir o volante e deu a partida.

 

           Era sábado à noite, e o apartamento de Daisy em Piccadilly estava lotado. Devia haver umas cem pessoas lá dentro, pensou ela, satisfeita.

           Daisy havia se tornado líder de um grupo de voluntários da Cruz Vermelha. Todo sábado, dava uma festa para os funcionários americanos da organização e convidava enfermeiras do Hospital St. Bart’s para conhecê-los. Pilotos da RAF também frequentavam essas festas. Todos se esbaldavam com seu estoque ilimitado de uísque escocês e gim, e dançavam ao som dos discos de Glenn Miller tocados em seu gramofone. Sabendo que cada festa daquelas poderia ser a última para alguns dos homens, ela fazia o possível para deixá-los felizes – exceto beijá-los, mas disso as enfermeiras se encarregavam.

           Daisy nunca bebia em suas festas. Tinha muita coisa em que pensar. Casais viviam se trancando no banheiro, e era preciso tirá-los de lá à força, a fim de permitir que o local fosse usado para sua verdadeira finalidade. Se um general realmente importante se embriagasse, tinha que ser levado para casa em segurança. Muitas vezes faltava gelo – ela não conseguia fazer seus empregados britânicos entenderem quanto o gelo era importante numa festa.

           Durante algum tempo após se separar de Boy Fitzherbert, os únicos amigos de Daisy tinham sido a família Leckwith. Ethel, mãe de Lloyd, nunca a julgara. Embora fosse um pilar de respeitabilidade, havia cometido erros no passado, e isso a tornava mais compreensiva. Toda quarta-feira à noite, Daisy ia à casa de Ethel em Aldgate para tomar chocolate quente e ouvir rádio. Era sua noite preferida na semana.

           Ela havia sido rejeitada pela sociedade duas vezes: a primeira em Buffalo, a segunda em Londres. Então ocorreu-lhe o pensamento deprimente de que talvez fosse culpa sua. Talvez seu lugar não fosse naqueles rígidos grupos da alta roda, com suas estritas regras de conduta. Ela era uma boba por se deixar atrair por eles.

           O problema era que adorava festas, piqueniques, eventos esportivos e reuniões nas quais as pessoas se divertiam e se vestiam com elegância.

           Mas Daisy agora sabia que não precisava de aristocratas britânicos nem de americanos de famílias tradicionais e ricas para se divertir. Tinha criado a própria sociedade, muito melhor que a deles. Algumas das pessoas que lhe viraram as costas depois que ela deixara Boy agora viviam lhe dando indiretas para insinuar que gostariam de comparecer a uma de suas famosas noitadas de sábado. E muitos convidados vinham ao seu apartamento relaxar e se divertir depois de algum jantar grandioso e insuportável numa residência palaciana qualquer de Mayfair.

           Aquela era a melhor festa de todas, pois Lloyd estava em Londres de licença.

           Ele agora vivia com Daisy no apartamento às vistas de todos. Ela não se importava nem um pouco com a opinião dos outros: sua reputação nos círculos respeitáveis já era tão ruim que seria impossível prejudicá-la mais. De toda forma, a urgência do amor em tempos de guerra levara muita gente a violar as regras. Em se tratando desses assuntos, os empregados domésticos às vezes podiam ser tão rígidos quanto duquesas, mas todos os funcionários de Daisy a adoravam, então ela e Lloyd nem fingiam dormir em quartos separados.

           Ela adorava ir para a cama com ele. Lloyd não era tão experiente quanto Boy, mas compensava isso com entusiasmo – e disposição para aprender. Cada noite que passavam juntos era uma verdadeira viagem de exploração.

           Enquanto observavam seus convidados conversando, rindo, bebendo, fumando, dançando e se agarrando, Lloyd sorriu para ela e perguntou:

           – Está feliz?

           – Quase – respondeu ela.

           – Quase?

           Ela suspirou.

           – Quero ter filhos, Lloyd. Pouco me importo se não somos casados. Bem, é claro que me importo, mas quero ter um filho mesmo assim.

           A expressão dele ficou séria.

           – Você sabe o que penso sobre filhos ilegítimos.

           – Sim, eu sei. Você já me explicou. Mas quero ter um pedacinho seu para amar se você morrer.

           – Farei o possível para continuar vivo.

           – Eu sei.

           No entanto, se as suspeitas de Daisy estivessem certas e ele estivesse trabalhando disfarçado em território ocupado, corria o risco de ser executado, do mesmo modo que os espiões alemães eram executados na Grã-Bretanha. Ele iria desaparecer, e ela não teria mais nada.

           – Sei que um milhão de mulheres vivem na mesma situação que eu, mas não consigo imaginar a vida sem você. Acho que eu morreria.

           – Se eu pudesse obrigar Boy a se divorciar de você, com certeza faria isso.

           – Bem, isso não é assunto para uma festa. – Ela olhou para o salão. – Ora, vejam só! Acho que aquele ali é Woody Dewar!

           Woody estava usando um uniforme de tenente. Daisy foi cumprimentá-lo. Era estranho vê-lo de novo depois de nove anos – embora ele não estivesse muito diferente, só mais velho.

           – Há milhares de soldados americanos aqui agora – disse-lhe ela enquanto os dois dançavam um foxtrote ao som de “Pennsylvania Six-Five Thousand”. – Devemos estar prestes a invadir a França. O que mais poderia ser?

           – Os generais importantes com certeza não contam seus planos a tenentes recém-recrutados – respondeu Woody. – Mas, assim como você, não imagino nenhum outro motivo para eu estar aqui. Não podemos deixar o combate todo nas costas dos russos por muito mais tempo.

           – Quando você acha que vai ser?

           – As ofensivas sempre começam no verão. Final de maio ou começo de junho, é o que todos estão pensando.

           – Assim tão cedo!

           – Mas ninguém sabe onde.

           – O ponto mais curto da travessia é de Dover a Calais – disse Daisy.

           – E é por isso que as defesas alemãs estão concentradas em torno de Calais. Então talvez tentemos pegá-los de surpresa, desembarcando no litoral sul, por exemplo, perto de Marselha.

           – Quem sabe então a guerra acabe de vez.

           – Duvido. Quando tivermos uma posição consolidada, ainda precisaremos conquistar a França, e depois a Alemanha. É um caminho longo.

           – Ah, meu Deus – murmurou Daisy.

           Woody parecia precisar de diversão. E ela conhecia a garota perfeita para isso. Isabel Hernandez era beneficiária do programa de bolsas de estudos Rhodes e estava fazendo mestrado em história no St. Hilda’s College, na Universidade de Oxford. Era linda, mas os rapazes a achavam chata, por ser intelectual demais. Woody, porém, não ligaria para isso.

           – Venha aqui um instante – disse Daisy, chamando Isabel. – Woody, esta é minha amiga Bella. Ela é de São Francisco. Bella, este é Woody Dewar, de Buffalo.

           Os dois se cumprimentaram com um aperto de mãos. Bella era alta, tinha cabelos escuros e cheios e a pele morena – como Joanne Rouzrokh. Woody sorriu para ela e perguntou:

           – O que você está fazendo aqui em Londres?

           Daisy os deixou a sós.

           A ceia foi servida à meia-noite. Sempre que ela conseguia mantimentos americanos, oferecia presunto com ovos; caso contrário, o menu era sanduíches de queijo. A comida proporcionava uma trégua durante a qual as pessoas podiam conversar, mais ou menos como um intervalo no teatro. Ela reparou que Woody Dewar ainda estava falando com Bella Hernandez, e os dois pareciam muito entretidos. Certificou-se de que todos tinham tudo de que precisavam, e então foi sentar em um canto com Lloyd.

           – Já resolvi o que gostaria de fazer depois da guerra, se ainda estiver vivo – disse ele. – Além de me casar com você, claro.

           – O quê?

           – Vou tentar uma vaga no Parlamento.

           – Que maravilha, Lloyd! – disse Daisy, entusiasmada. Ela envolveu o pescoço dele com os dois braços e lhe deu um beijo.

           – Ainda é cedo para comemorar. Apresentei meu nome em Hoxton, o distrito contíguo ao de Mam. Mas talvez o Partido Trabalhista de lá não me aceite. E, mesmo que aceitem, talvez eu não ganhe. Hoxton no momento tem um deputado liberal muito forte.

           – Quero ajudar você – disse ela. – Poderia ser seu braço direito. Posso escrever seus discursos... aposto que seria boa nisso.

           – Eu adoraria que você me ajudasse.

           – Combinado, então!

           Os convidados mais velhos foram embora depois de comer, mas a música prosseguiu e a bebida não acabou, de modo que o clima da festa ficou ainda mais descontraído. Woody agora dançava uma música lenta com Bella. Daisy se perguntou se aquele seria o seu primeiro romance depois de Joanne.

           As carícias foram ficando mais ousadas, e as pessoas começaram a desaparecer dentro dos dois quartos. Não podiam trancar as portas – Daisy tirava as chaves –, então às vezes diversos casais acabavam juntos no mesmo cômodo, mas ninguém parecia se importar. Certa vez Daisy encontrara duas pessoas abraçadas dentro do armário de vassouras, profundamente adormecidas.

           À uma da manhã, seu marido apareceu.

           Ela não tinha convidado Boy, mas ele chegou acompanhado por dois pilotos americanos. Daisy deu de ombros e os deixou entrar. Ele estava bêbado e simpático, e dançou com várias enfermeiras antes de tirá-la para dançar.

           Daisy se perguntou se ele estaria apenas bêbado ou se teria abrandado sua atitude para com ela. Nesse caso, quem sabe poderia reconsiderar a questão do divórcio?

           Ela aceitou, e os dois dançaram um jitterbug. A maioria dos convidados não fazia ideia de que eles fossem um casal separado, mas os que sabiam ficaram surpresos.

           – Li no jornal que você comprou mais um cavalo de corrida – disse ela, puxando assunto.

           – Lucky Laddie – respondeu Boy. – Custou oito mil guinéus... um preço recorde.

           – Espero que valha a pena.

           Ela adorava cavalos e pensara que os dois fossem comprar e treinar animais de corrida juntos, mas Boy não quisera compartilhar essa paixão com a esposa. Para Daisy, essa fora uma das frustrações de seu casamento.

           Ele pareceu ler seus pensamentos.

           – Eu decepcionei você, não foi?

           – Foi.

           – E você me decepcionou.

           Aquilo era novidade para ela. Depois de pensar um pouco, perguntou:

           – Por não ter fechado os olhos para as suas infidelidades?

           – Exatamente. – Ele estava bêbado o suficiente para ser sincero.

           Ela viu uma oportunidade.

           – Por quanto tempo você acha que precisamos nos punir?

           – Punir? – repetiu ele. – Quem está punindo quem?

           – Nós estamos nos punindo permanecendo casados. Deveríamos nos divorciar, como fazem as pessoas sensatas.

           – Talvez você tenha razão – disse ele. – Mas esta hora de um sábado não é o melhor momento para se ter essa conversa.

           As esperanças de Daisy cresceram.

           – Que tal eu lhe fazer uma visita? – sugeriu ela. – Quando estivermos os dois descansados... e sóbrios.

           Ele hesitou, mas cedeu:

           – Tudo bem.

           Animada, ela tirou ainda mais proveito daquela ocasião:

           – Que tal amanhã de manhã?

           – Tudo bem.

           – Vejo você depois da missa. Ao meio-dia, digamos?

           – Tudo bem – repetiu Boy.

 

           Quando Woody levava Bella até a casa de uma amiga em South Kensington, passando pelo Hyde Park, ela o beijou.

           Ele não beijava ninguém desde a morte de Joanne. No início, gelou. Tinha gostado muito de Bella: era a moça mais inteligente que ele conhecera desde sua falecida noiva. E o modo como havia encostado o corpo contra o dele durante a música lenta lhe dera a entender que podia beijá-la, se quisesse. Apesar disso, ele havia se contido. Não parava de pensar em Joanne.

           Então Bella tomou a iniciativa.

           Ela abriu a boca e ele sentiu sua língua, mas aquilo só fez com que ele se lembrasse de Joanne o beijando da mesma forma. Fazia apenas dois anos e meio que ela morrera.

           Seu cérebro já estava procurando as palavras para dizer não a Bella de forma educada quando seu corpo assumiu o controle. De repente, ele se incendiou de desejo. Começou a retribuir o beijo com sofreguidão.

           Bella reagiu com entusiasmo ao acesso de paixão de Woody. Pegou as duas mãos do rapaz e as levou aos seios, que eram grandes e macios. Ele gemeu, sem conseguir se conter.

           Estava escuro e ele não enxergava quase nada, mas os ruídos abafados vindos da vegetação em volta lhe informaram que havia muitos outros casais ali fazendo coisas parecidas.

           Bella pressionou o corpo contra o seu, e ele soube que ela podia sentir sua ereção. De tão excitado, achou que iria ejacular a qualquer instante. Bella parecia dominada pela mesma excitação louca. Ele a sentiu desabotoar sua calça com dedos frenéticos e depois pôr suas mãos frias no pênis quente. Ela o puxou e então, para espanto e deleite de Woody, ajoelhou-se. Assim que seus lábios se fecharam em volta da glande, ele não conseguiu se controlar e ejaculou em sua boca. Ela reagiu chupando e lambendo com vontade.

           Depois de Woody gozar, Bella ainda continuou beijando seu pênis até amolecer. Então tornou a guardá-lo delicadamente dentro da calça e se levantou.

           – Foi incrível – sussurrou. – Obrigada.

           Era ele que pretendia agradecer. Em vez disso, tomou-a nos braços e a puxou para perto de si. Sentia tanta gratidão por ela que poderia ter chorado. Não tinha percebido quanto necessitava do afeto de uma mulher naquela noite. Era como se uma nuvem negra tivesse sido afastada de cima de sua cabeça.

           – Não sei nem dizer como... – começou ele, mas não encontrou as palavras para explicar o que aquilo significava para ele.

           – Então não diga – interrompeu ela. – Eu já sei, mesmo. Pude sentir.

           Caminharam até o prédio dela. Na porta, ele disse:

           – Será que nós podemos...

           Ela levou um dedo aos seus lábios para impedi-lo de falar.

           – Vá ganhar essa guerra – falou.

           E entrou no prédio.

 

           Agora, quando Daisy ia à missa de domingo, o que não era muito frequente, evitava as igrejas de elite do West End, cujos fiéis a haviam esnobado. Em vez disso, pegava o metrô até Aldgate e ia ao templo do Evangelho do Calvário. As diferenças de doutrina eram grandes, mas não tinham importância para ela. Os cânticos no East End eram melhores.

           Ela e Lloyd chegavam separados à igreja. As pessoas de Aldgate sabiam quem Daisy era e gostavam de ver uma aristocrata rebelde sentada em um de seus bancos baratos. Mas seria pedir demais que tolerassem que uma mulher separada do marido chegasse de braços dados com o amante. Como tinha dito Billy, irmão de Ethel:

           – Jesus não condenou a mulher adúltera, mas lhe disse para não mais pecar.

           Durante a missa, ficou pensando em Boy. Será que suas palavras conciliatórias da noite anterior tinham sido sinceras ou seriam apenas um deslize da embriaguez? Boy chegara até a apertar a mão de Lloyd antes de ir embora. Com certeza isso significava um perdão... ou não? Mas Daisy disse a si mesma que não tivesse muitas esperanças. Boy era a pessoa mais egoísta que ela já conhecera, pior até do que o conde Fitzherbert ou o meio-irmão dela, Greg.

           Depois da missa, Daisy muitas vezes ia almoçar na casa de Eth Leckwith, mas nesse dia deixou Lloyd com a família e partiu depressa.

           Voltou para o West End e bateu na porta da casa do marido em Mayfair. O mordomo a conduziu até a sala íntima.

           Boy entrou na sala aos gritos.

           – Que diabo é isso? – vociferou e jogou um jornal em cima dela.

           Daisy já o vira assim muitas vezes e não tinha medo dele. Numa única ocasião Boy havia levantado a mão para bater nela, que reagira pegando um castiçal pesado e ameaçando acertá-lo. A situação não se repetira.

           Embora não sentisse medo, estava decepcionada. Boy havia se mostrado tão bem-humorado na véspera... Mas talvez ainda pudesse ouvir a voz da razão.

           – O que aconteceu para deixar você assim? – perguntou, calma.

           – Olhe essa maldita manchete.

           Ela se abaixou para pegar o jornal do chão. Era a edição dominical do Sunday Mirror, um tabloide popular de esquerda. A capa trazia uma foto do cavalo novo de Boy, Lucky Laddie, e as palavras:

            

           LUCKY LADDIE

            VALE 28 MINEIROS

             

           A história do preço recorde que Boy pagara pelo cavalo tinha saído na imprensa da véspera, mas nesse dia o Mirror publicou um editorial irado segundo o qual o preço do animal, 8.400 libras, equivalia exatamente a 28 vezes a indenização-padrão de 300 libras paga à viúva de um mineiro morto num acidente de trabalho.

           E a fortuna dos Fitzherbert vinha justamente das minas de carvão.

           – Meu pai está furioso – disse Boy. – Ele tinha esperança de se tornar ministro das Relações Exteriores no governo do pós-guerra. Mas esse artigo provavelmente acabou com suas chances.

           – Boy, você pode me explicar por que isso é culpa minha? – perguntou Daisy, irritada.

           – Veja quem assinou essa droga!

           Daisy viu.

            

           Por Billy Williams

            Membro do Parlamento por Aberowen

             

           – O tio do seu namorado! – exclamou Boy.

           – Você acha que ele fala comigo antes de escrever seus artigos?

           – Por algum motivo essa família nos detesta! – disse Boy, exaltado.

           – Eles acham injusto você ganhar tanto dinheiro com carvão enquanto os mineiros recebem tão pouco. Como sabe, estamos em guerra.

           – Você mesma vive de herança – retrucou ele. – E ontem à noite, naquele seu apartamento de Piccadilly, não vi muitos indícios da austeridade de tempos de guerra.

           – Tem razão – admitiu ela. – Mas dei uma festa para os soldados. E você gastou uma fortuna em um cavalo.

           – O dinheiro é meu!

           – Mas você ganhou com carvão.

           – Você passou tanto tempo na cama com aquele maldito Williams que virou uma droga de uma bolchevique.

           – Isso é mais uma coisa que nos afasta. Boy, você quer mesmo continuar casado comigo? Poderia encontrar alguém que combinasse com você. Metade das moças de Londres adoraria ser a viscondessa de Aberowen.

           – Não vou fazer nada por essa maldita família Williams. Além do mais, ontem à noite ouvi dizer que seu namorado quer ser deputado.

           – Ele vai ser um ótimo deputado.

           – Não com você a tiracolo. Nem vai ser eleito. Ele é um maldito de um socialista. E você é ex-fascista.

           – Já pensei nisso. Sei que é um problema...

           – Problema? É uma barreira intransponível. Espere só até os jornais saberem! Você vai ser crucificada do mesmo jeito que fui hoje.

           – Imagino que você vá contar isso para o Daily Mail.

           – Não vai ser preciso... os adversários dele se encarregarão disso. Ouça bem o que estou dizendo: ao seu lado, Lloyd Williams não tem a menor chance.

 

           Nos primeiros cinco dias de junho, o tenente Woody Dewar e seu pelotão de paraquedistas, junto com cerca de outros mil homens, ficaram isolados num campo de pouso em algum lugar a noroeste de Londres. Um hangar havia sido convertido num gigantesco alojamento, com centenas de catres dispostos em longas fileiras. Enquanto aguardavam, distraíam-se assistindo a filmes e ouvindo discos de jazz.

           Seu objetivo era a Normandia. Por meio de planos complexos para tentar enganar o inimigo, os Aliados haviam tentado convencer o alto-comando alemão de que o alvo seria uns 300 quilômetros mais para nordeste, em Calais. Se os alemães tivessem acreditado na mentira, a força de invasão iria encontrar uma resistência relativamente leve, pelo menos nas primeiras horas.

           Os paraquedistas seriam os primeiros a chegar, no meio da noite. A segunda leva seria a força principal, composta por cinco mil navios com 130 mil homens que iriam desembarcar nas praias normandas ao raiar do dia. A essa altura, os paraquedistas já deveriam ter destruído redutos alemães no interior e assumido o controle de conexões de transporte importantes.

           O pelotão de Woody tinha que conquistar uma ponte sobre um rio numa cidadezinha chamada Église-des-Soeurs, a 16 quilômetros do litoral. Depois de conseguir isso, precisava manter o controle da ponte para impedir a passagem de qualquer unidade alemã enviada para reforçar as defesas da praia até a força principal de invasão os alcançar. Não podiam permitir em hipótese alguma que os alemães explodissem a ponte.

           Enquanto esperavam o sinal verde, Ace Webber promoveu um torneio de pôquer no qual ganhou mil dólares e tornou a perdê-los. Cameron Canhoto limpava e lubrificava obsessivamente sua carabina leve semiautomática M1 modelo paraquedista, de coronha dobrável. Lonnie Callaghan e Tony Bonanio, que não iam com a cara um do outro, iam à missa juntos todos os dias. Pete Schneider, o Furtivo, afiou seu facão comprado em Londres até que fosse possível fazer a barba com ele. Patrick Timothy, que era a cara de Clark Gable e tinha um bigode parecido, tocava sem parar a mesma melodia no ukulele, levando todos à loucura. O sargento Defoe escrevia longas cartas para a esposa, depois as rasgava e começava outra vez. Mack Trulove e Joe “Fumaça” Morgan cortaram e rasparam os cabelos um do outro, acreditando que assim facilitariam o trabalho das equipes médicas caso sofressem ferimentos na cabeça.

           A maioria dos soldados tinha apelidos. Woody descobrira que o seu era Uísque.

           Inicialmente marcado para domingo, 4 de junho, o Dia D foi adiado por causa do mau tempo.

           Na noite da segunda-feira, 5 de junho, o coronel fez um discurso.

           – Homens! – gritou ele. – Esta noite vamos invadir a França!

           Os soldados soltaram rugidos de aprovação. Woody achou aquilo uma ironia. Eles estavam ali, seguros e quentinhos, mas mal podiam esperar a hora de partir, pular de aviões e aterrissar nos braços de tropas inimigas com intenção de matá-los.

           Foi-lhes servida uma refeição especial, com tudo o que eles aguentassem comer: carne de vaca, porco e frango, batatas fritas, sorvete. Woody não se interessou por nada disso. Sabia melhor do que os outros o que o aguardava e não queria enfrentar aquilo de barriga cheia. Comeu uma rosquinha e tomou um café. O café era americano, aromático e saboroso, ao contrário da bebida detestável servida pelos britânicos – isso quando eles tinham algum café para servir.

           Woody tirou as botas e se deitou no catre. Pensou em Bella Hernandez, seu sorriso, seus seios macios.

           Quando se deu conta, uma sirene estava tocando.

           Por alguns instantes pensou que estivesse acordando de um sonho ruim no qual partia para um combate a fim de matar pessoas más. Então percebeu que era verdade.

           Todos vestiram os macacões e juntaram seu equipamento. Tinham muitas coisas para carregar. Algumas eram essenciais: uma carabina com 150 tiros de calibre .30; granadas antitanque; uma pequena bomba conhecida como granada Gammon; comida; pastilhas purificadoras de água; um kit de primeiros socorros contendo morfina. Outras eles poderiam ter dispensado: uma ferramenta para cavar trincheiras, um kit de barbear, um manual de expressões em francês. Estavam tão carregados que os mais baixos tinham dificuldade de andar até os aviões alinhados na pista de pouso escura.

           As aeronaves que iriam transportá-los eram Skytrains C-47. Sob as luzes fracas, Woody constatou, surpreso, que todas elas haviam sido pintadas com listras pretas e brancas bem marcadas. O piloto de seu avião era Bonner, um capitão mal-humorado vindo do Meio-Oeste dos Estados Unidos.

           – É para evitar que os nossos malditos artilheiros nos derrubem – explicou o capitão.

           Antes de embarcar, os homens foram pesados. Donegan e Bonanio levavam bazucas desmontadas dentro de bolsas presas às pernas, o que aumentava seu peso em mais de 35 quilos cada um. Quando subiram a bordo, Bonner se zangou.

           – Vocês estão me sobrecarregando! – vociferou para Woody. – Não vou conseguir tirar esta porra do chão!

           – A decisão não foi minha, capitão – retrucou Woody. – Fale com o coronel.

           O sargento Defoe foi o primeiro a embarcar e avançou até a frente do avião, onde sentou-se junto ao arco aberto que conduzia à cabine de comando. Ele seria o último a saltar. Se na última hora alguém se mostrasse relutante em pular para a escuridão, seria auxiliado por um bom empurrão de Defoe.

           Donegan e Bonanio, com suas bolsas nas pernas contendo as bazucas e todo o restante, precisaram de ajuda para subir os degraus. Como era o líder do pelotão, Woody embarcou por último. Seria o primeiro a saltar e a aterrissar.

           O interior do avião era cilíndrico, com uma fileira de assentos de metal simples de cada lado. Os homens tiveram dificuldade para prender os cintos de segurança em volta do equipamento, e alguns nem se deram o trabalho. A porta se fechou e os motores ganharam vida.

           Woody estava ao mesmo tempo animado e com medo. De forma totalmente irracional, estava ansioso pelo início da batalha. Para sua surpresa, pegou-se impaciente para saltar, encontrar o inimigo e disparar suas armas. Queria que aquela espera acabasse.

           Pensou se algum dia tornaria a ver Bella Hernandez.

           Teve a impressão de sentir o avião penar para avançar pesadamente pela pista de decolagem. Com esforço, ele foi ganhando velocidade. Pareceu prosseguir pelo chão por uma eternidade. Por fim, Woody se perguntou qual seria a extensão daquela maldita pista. Então o avião finalmente decolou. A sensação de estar voando era tão pequena que Woody achou que o avião estivesse a poucos metros acima do solo. Então olhou para fora. Estava sentado ao lado da última das sete janelas, bem junto à porta, e pôde ver as luzes protegidas da base se afastarem aos poucos. Eles estavam no ar.

           Apesar do céu encoberto, as nuvens emitiam uma luz tênue, provavelmente porque a lua havia surgido mais atrás. Na ponta de cada asa brilhava uma luzinha azul, e Woody pôde ver seu avião entrar em formação com outros, desenhando um gigantesco V no céu.

           A cabine era tão barulhenta que, para se fazerem ouvir, eles tinham que gritar no ouvido uns dos outros, e as conversas logo cessaram. Todos se remexiam nos assentos duros, tentando em vão encontrar uma posição confortável. Alguns fecharam os olhos, mas Woody duvidou que alguém de fato estivesse dormindo.

           Estavam voando baixo, a pouco mais de 300 metros, e de vez em quando ele via o cintilar opaco e cinzento de rios e lagos. Em determinado momento, avistou um grande grupo de pessoas: centenas de rostos erguidos para os aviões que rugiam no céu. Sabia que mais de mil aeronaves estavam sobrevoando o sul da Inglaterra ao mesmo tempo e deu-se conta de que isso devia ser uma visão extraordinária. Ocorreu-lhe que aquelas pessoas estavam testemunhando a história ser escrita e que ele fazia parte dessa história.

           Meia hora depois, passaram pelos balneários ingleses e começaram a sobrevoar o mar. A lua brilhou por alguns instantes por uma brecha nas nuvens, e então Woody viu os navios. Mal pôde acreditar em seus olhos. Era uma verdadeira cidade flutuante: embarcações de todos os tamanhos navegando em fileiras irregulares como casas nas ruas de uma cidade, milhares delas, até onde a vista alcançava. Antes que pudesse chamar a atenção dos companheiros para aquela visão admirável, as nuvens tornaram a encobrir a lua e a imagem desapareceu como um sonho.

           Os aviões fizeram uma curva aberta para a direita, a fim de chegar à França a oeste do ponto em que os paraquedistas começariam a saltar. Depois seguiriam para leste pelo litoral, verificando sua posição com a ajuda de marcos em terra, para garantir que os homens aterrissassem onde deveriam.

           As Ilhas do Canal, que apesar de localizadas mais perto da França eram britânicas, tinham sido ocupadas pelos alemães após a batalha da França, em 1940. Portanto, quando a armada sobrevoou o arquipélago, a artilharia antiaérea alemã abriu fogo. Os Skytrains voavam em baixa altitude e estavam muito vulneráveis. Woody percebeu que poderia morrer antes mesmo de chegar ao campo de batalha. Detestaria morrer assim, em vão.

           O capitão Bonner começou a voar em zigue-zague para evitar os tiros. Woody ficou grato por isso, mas o efeito da manobra foi lastimável nos soldados. Todos ficaram enjoados, até mesmo ele. Patrick Timothy foi o primeiro a sucumbir à náusea e vomitar no chão. O cheiro ruim piorou o mal-estar dos outros. Pete Furtivo vomitou em seguida, e depois vários outros ao mesmo tempo. Todos tinham se empanturrado de carne e sorvete e agora botavam tudo para fora. O fedor ficou insuportável, e o chão se transformou numa poça nojenta e escorregadia.

           O curso do avião se estabilizou quando eles deixaram as ilhas para trás. Alguns minutos depois, o litoral da França apareceu. O avião se inclinou e virou à esquerda. O copiloto se levantou da cadeira e foi falar no ouvido do sargento Defoe, que se virou para o pelotão e ergueu os dez dedos. Dez minutos para o salto.

           O avião desacelerou, passando da velocidade de cruzeiro de 250km/h para a velocidade adequada ao salto, cerca de 160km/h.

           De repente, eles entraram no meio de um nevoeiro denso o suficiente para fazer sumir a luzinha azul na ponta da asa. O coração de Woody acelerou. Para aviões voando em formação cerrada, aquilo era perigosíssimo. Que tragédia seria morrer num acidente de avião, e não em combate. No entanto, tudo o que Bonner podia fazer era seguir um curso reto e plano e torcer para que nada acontecesse. Qualquer mudança de direção causaria uma colisão.

           O avião saiu do nevoeiro tão de repente quanto havia entrado. De ambos os lados, como por milagre, os outros aviões permaneciam em formação.

           A artilharia antiaérea abriu fogo quase no mesmo instante e, como se fossem flores mortais desabrochando, tiros começaram a explodir entre os aviões bem próximos uns dos outros. Woody sabia que, naquelas circunstâncias, as ordens do piloto eram manter a velocidade constante e voar direto para a zona-alvo. Bonner, porém, desobedeceu às ordens e saiu da formação. O rugido dos motores atingiu o volume máximo. Ele recomeçou a voar em zigue-zague. O nariz do avião mergulhou quando ele tentou aumentar ainda mais a velocidade. Ao olhar pela janela, Woody viu que muitos outros pilotos haviam sido igualmente indisciplinados. Não conseguiam controlar o impulso de salvar a própria vida.

           A luz vermelha se acendeu acima da porta: quatro minutos para o salto.

           Woody teve certeza de que a tripulação, desesperada para se livrar dos paraquedistas e voar de volta a um lugar seguro, tinha acendido a luz cedo demais. Mas era ela que estava com os mapas, e ele não podia reclamar.

           Levantou-se.

           – De pé, prendam as fitas! – ordenou.

           A maioria dos homens não podia ouvi-lo, mas todos sabiam o que ele estava dizendo. Levantaram-se, e cada um deles prendeu sua fita de abertura automática ao cabo que corria acima de suas cabeças, para não serem acidentalmente jogados para fora do avião. A porta se abriu e o vento entrou na cabine com um rugido. O avião ainda voava rápido demais. Saltar naquela velocidade era desagradável, mas esse não era o maior problema. Eles iriam aterrissar mais afastados uns dos outros, e Woody levaria muito mais tempo para reunir seus homens em terra. A aproximação do objetivo ficaria atrasada. Ele começaria sua missão depois do horário marcado. Amaldiçoou Bonner.

           O piloto continuou inclinando o avião para os lados, tentando se esquivar dos tiros. Os homens se esforçavam para manter o equilíbrio no chão escorregadio por causa do vômito.

           Woody olhou pela porta aberta. Ao tentar ganhar velocidade, Bonner havia perdido altitude, e o avião estava agora a cerca de 150 metros do chão – baixo demais. Talvez os paraquedas não tivessem tempo de se abrir completamente antes de os homens chegarem ao chão. Ele hesitou, então acenou para chamar seu sargento.

           Defoe postou-se ao seu lado e olhou para baixo, em seguida fez que não com a cabeça. Aproximando a boca do ouvido de Woody, gritou:

           – Metade dos nossos homens vai quebrar o tornozelo se saltarmos desta altura. Os que estão carregando as bazucas vão morrer.

           Woody tomou uma decisão.

           – Não deixe ninguém saltar! – gritou para Defoe.

           Então soltou sua fita e avançou, abrindo caminho por entre a dupla fileira de soldados em pé, até chegar à cabine de comando. A tripulação era composta por três homens. Gritando a plenos pulmões, Woody falou:

           – Mais alto! Mais alto!

           – Volte lá para trás e salte! – retrucou Bonner, aos berros.

           – Ninguém vai saltar a esta altitude! – Woody se inclinou e apontou para o altímetro, que indicava 146 metros. – É suicídio.

           – Saia da cabine, tenente. É uma ordem.

           Apesar de hierarquicamente inferior, Woody não cedeu:

           – Só quando o senhor ganhar altitude.

           – Se vocês não saltarem agora, vamos passar da zona-alvo!

           Woody perdeu a paciência:

           – Mais alto, seu imbecil de merda! Mais alto!

           A expressão de Bonner era de fúria, mas Woody não se mexeu. Sabia que o piloto não iria querer voltar para a base com um avião cheio. Seria submetido a um inquérito militar para saber o que dera errado. Bonner havia desobedecido a muitas ordens nessa noite para querer passar por isso. Soltando um palavrão, puxou o manche para trás com um tranco. O nariz empinou na mesma hora, e o avião começou a ganhar altitude e perder velocidade.

           – Satisfeito? – rosnou Bonner.

           – Merda, não! – Woody não estava disposto a voltar lá para trás e dar ao piloto a chance de reverter a manobra. – Nós pulamos a 300 metros.

           Bonner aumentou a aceleração até o máximo. Woody manteve os olhos grudados no altímetro.

           Quando atingiram 300 metros, voltou para a traseira. Abriu caminho entre os homens aos empurrões, chegou à porta, olhou para fora, ergueu os dois polegares e saltou.

           O paraquedas se abriu na mesma hora. Enquanto o pano se inflava, ele despencou depressa pelo ar, e então a queda foi amparada. Segundos depois, caiu na água. Por uma fração de segundo, sentiu pânico, temendo que o covarde Bonner os houvesse feito saltar no mar. Mas então seus pés pisaram em terra firme – ou, mais precisamente, em lama – e ele entendeu que havia pousado num campo inundado.

           A seda do paraquedas se espalhou à sua volta. Ele se desvencilhou do tecido e soltou as correias que o prendiam.

           De pé em mais de meio metro de água, olhou em volta. Ou aquilo era um pasto alagado, ou, o que era mais provável, um terreno que fora inundado pelos alemães para prejudicar o avanço de uma força de invasão. Não viu ninguém, amigo ou inimigo, tampouco nenhum animal, mas a luz estava fraca.

           Olhou para o relógio – eram 3h40 da madrugada –, verificou a bússola e se orientou.

           Em seguida, tirou a carabina M1 do compartimento e desdobrou o cabo. Inseriu um pente de 15 tiros na fenda e acionou o slide para pôr uma bala na câmara. Por fim, girou a alavanca de segurança para soltá-la.

           Levou a mão ao bolso e pegou um objeto metálico pequeno, parecido com um brinquedo de criança. Quando pressionado, ele emitia um clique específico. Objetos como aquele tinham sido distribuídos a todos os homens, para que fossem capazes de se reconhecer no escuro sem ter que recorrer a senhas em inglês que poderiam denunciá-los.

           Quando ficou pronto, tornou a olhar em volta.

           Emitiu dois cliques para testar o sinal. Instantes depois, recebeu outro clique em resposta, logo à sua frente.

           Ele avançou chapinhando pela água. Sentiu cheiro de vômito. Em voz baixa, perguntou:

           – Quem está aí?

           – Patrick Timothy.

           – Tenente Dewar. Venha comigo.

           Timothy tinha sido o segundo a saltar, então Woody calculou que, seguindo na mesma direção, teria uma boa chance de encontrar os outros.

           Uns cinquenta metros mais adiante, trombou com Mack e Joe Fumaça, que já haviam se encontrado.

           Saíram do terreno alagado e chegaram a uma estrada estreita, onde viram as primeiras baixas. O impacto da aterrissagem de Lonnie e Tony, ambos com bazucas presas em bolsas nas pernas, havia sido forte demais.

           – Acho que Lonnie morreu – disse Tony.

           Woody foi verificar. Era verdade. Lonnie não estava respirando. Parecia ter quebrado o pescoço. Tony, por sua vez, não conseguia se mexer, e Woody deduziu que ele tivesse quebrado a perna. Aplicou-lhe uma injeção de morfina, em seguida arrastou-o para fora da estrada até o terreno adjacente. Ele teria que ficar ali esperando socorro médico.

           Woody mandou Mack e Joe Fumaça esconderem o corpo de Lonnie, por medo de que, através dele, os alemães chegassem a Tony.

           Tentou distinguir a paisagem à sua volta, esforçando-se para reconhecer algo que correspondesse a seu mapa. A tarefa lhe pareceu impossível, sobretudo no escuro. Como guiaria aqueles homens até o objetivo se nem sabia onde estava? A única coisa da qual podia ter razoável certeza era que eles não haviam aterrissado onde deviam.

           Ouviu um barulho estranho e, instantes depois, viu uma luz.

           Acenou para os outros se abaixarem.

           Os paraquedistas tinham instruções para não usar as lanternas, e os franceses estavam sujeitos a um toque de recolher, de modo que a pessoa que se aproximava devia ser um soldado alemão.

           À luz débil, Woody viu uma bicicleta.

           Levantou-se e empunhou a carabina. Pensou em atirar logo, mas não conseguiu se forçar a fazer isso.

           – Halt! Arrêtez! – gritou.

           A bicicleta parou.

           – Oi, tenente – disse a pessoa que pedalava.

           Woody reconheceu a voz de Ace Webber e baixou a arma.

           – Onde você arrumou essa bicicleta? – perguntou, incrédulo.

           – Do lado de fora de uma fazenda – respondeu Webber, lacônico.

           Woody conduziu o grupo por onde Webber tinha vindo, imaginando que fosse mais provável os outros estarem naquela direção do que em qualquer outra. Ansioso, foi procurando marcos no terreno que correspondessem ao seu mapa, mas estava escuro demais. Sentiu-se inútil, burro. Era um oficial. Tinha que resolver esse tipo de problema.

           Recolheu outros homens de seu pelotão pelo caminho, e então chegaram a um moinho. Woody decidiu que não podia continuar avançando às cegas, então deu a volta no moinho e esmurrou a porta.

           Uma janela se abriu no andar de cima e um homem perguntou, em francês:

           – Quem é?

           – Americanos – respondeu Woody. – Vive la France!

           – O que vocês querem?

           – Libertá-los – respondeu Woody com seu francês de colegial. – Mas preciso de ajuda com meu mapa.

           O moleiro riu e falou:

           – Já vou descer.

           No minuto seguinte, Woody estava na cozinha, abrindo o mapa de tecido sobre a mesa, debaixo de uma luz forte. O moleiro lhe mostrou onde estavam. Não era tão ruim quanto Woody temia. Apesar do pânico do capitão Bonner, estavam apenas 6,5 quilômetros a nordeste de Église-des-Soeurs. O moleiro indicou o melhor trajeto no mapa.

           Uma menina de uns 13 anos entrou na cozinha de camisola, pé ante pé.

           – Maman disse que vocês são americanos – falou para Woody.

           – Isso mesmo, mademoiselle – respondeu ele.

           – Conhecem Gladys Angelus?

           Woody riu.

           – Por acaso eu a encontrei uma vez, no apartamento do pai de um amigo.

           – E ela é muito, muito linda?

           – Ainda mais linda do que parece no cinema.

           – Eu sabia!

           O moleiro ofereceu vinho a Woody.

           – Não, obrigado – respondeu ele. – Quem sabe depois que ganharmos.

           Então o moleiro o beijou nas duas faces.

           Woody tornou a sair e conduziu seu pelotão para longe dali, em direção a Église-des-Soeurs. Contando com ele próprio, nove dos 18 homens que haviam partido estavam reunidos. Tinham sofrido duas baixas: Lonnie, morto, e Tony, ferido. Sete outros ainda não haviam sido encontrados. Suas ordens eram de não passar muito tempo tentando encontrar todo mundo. Assim que tivesse homens suficientes para dar conta da operação, devia seguir para o alvo.

           Um dos sete sumidos logo apareceu. Pete Furtivo surgiu de dentro de uma vala e juntou-se ao grupo com um “Oi, pessoal” casual, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo.

           – O que você estava fazendo ali dentro? – perguntou-lhe Woody.

           – Pensei que vocês fossem alemães – respondeu Pete. – Estava escondido.

           Woody tinha visto o brilho pálido da seda do paraquedas dentro da vala. Pete devia estar escondido lá dentro desde a aterrissagem. Obviamente havia entrado em pânico. Mas Woody fingiu acreditar na sua história.

           Ele queria mesmo era encontrar seu sargento. Defoe era um soldado experiente e Woody pretendia contar muito com sua ajuda. Mas ele não apareceu.

           Estavam se aproximando de uma encruzilhada quando ouviram um barulho. Woody identificou o som de um motor ligado e duas ou três vozes conversando. Mandou todos se abaixarem, e o pelotão prosseguiu engatinhando.

           Mais à frente, viu que um motociclista conversava com dois homens a pé. Os três estavam de uniforme. Falavam alemão. Havia uma construção na encruzilhada, talvez uma pequena taberna ou uma padaria.

           Woody decidiu esperar. Talvez os alemães fossem embora. Queria que seu grupo avançasse em silêncio e sem ser visto pelo máximo de tempo possível.

           Cinco minutos depois, perdeu a paciência. Virou-se para trás e sussurrou:

           – Patrick Timothy!

           Alguém disse:

           – Pat Vomitão! O Uísque está chamando.

           Timothy se aproximou. Continuava cheirando a vômito e esse agora era seu apelido.

           Woody já tinha visto Timothy jogar beisebol e sabia que ele arremessava com força e precisão.

           – Acerte uma granada naquela moto – falou.

           Timothy pegou uma granada na mochila, puxou o pino e a arremessou.

           Um retinir metálico ecoou.

           – O que foi isso? – perguntou um dos alemães.

           Então a granada explodiu.

           Foram duas detonações. A primeira derrubou os três homens no chão. A segunda foi a explosão do tanque da motocicleta, que projetou no ar uma coroa de chamas que chamuscou os homens, produzindo um cheiro de carne queimada.

           – Fiquem onde estão! – gritou Woody para seu pelotão.

           Observou a construção. Será que havia alguém lá dentro? Durante os cinco minutos seguintes, ninguém abriu nenhuma janela ou porta. Ou o lugar estava deserto, ou os ocupantes estavam escondidos debaixo da cama.

           Woody se levantou e acenou para que o pelotão avançasse. Sentiu-se estranho ao passar por cima dos cadáveres pavorosos dos três alemães. Havia ordenado a morte de homens que tinham mães e pais, esposas ou namoradas, talvez filhos. Agora, os três não passavam de uma horrorosa massa de sangue e carne queimada. Woody deveria ter experimentado uma sensação de vitória. Era o seu primeiro contato com o inimigo, e ele os derrotara. Mas tudo o que sentiu foi uma leve náusea.

           Depois da encruzilhada, impôs um ritmo acelerado e ordenou aos homens que não conversassem nem fumassem. Para manter o nível de energia, comeu uma barra de chocolate militar, que tinha gosto de argamassa com açúcar.

           Meia hora mais tarde, Woody ouviu o barulho de um carro e mandou todos se esconderem nos campos. O veículo andava depressa, com os faróis ligados. Devia ser alemão, mas os Aliados estavam mandando jipes de planador junto com armas antitanque e outras peças de artilharia, então era possível que aquele fosse um veículo amigo. Deitou-se sob uma sebe para vê-lo passar.

           O carro passou depressa demais para Woody identificá-lo. Ele pensou se deveria ter mandado o pelotão atirar. Não, decidiu: pensando bem, era melhor se concentrarem na missão.

           Atravessaram três vilarejos que Woody conseguiu identificar no mapa. Cães ladravam de vez em quando, mas ninguém saiu para investigar. Os franceses deviam ter aprendido a ser discretos sob a ocupação inimiga. Era um tanto sinistro esgueirar-se pelas estradas de um país estrangeiro no escuro, armado até os dentes, passando por casas silenciosas em que as pessoas dormiam sem saber do poder de fogo mortal que havia bem debaixo de suas janelas.

           Por fim, chegaram aos arredores de Église-des-Soeurs. Woody ordenou uma pausa curta para descansar. Eles entraram num pequeno bosque e se sentaram no chão. Beberam água dos cantis e comeram. Fumar ainda estava proibido: a brasa de um cigarro aceso podia ser vista de uma distância surpreendente.

           Segundo a avaliação de Woody, a estrada em que seguiam deveria conduzir diretamente à ponte. Não existia nenhuma informação confiável sobre como a ponte estava sendo protegida. Como os Aliados tinham decidido que ela era um ponto importante, imaginou que os alemães achassem a mesma coisa, então devia haver alguma segurança; mas isso podia significar qualquer coisa, desde um homem armado com um fuzil até um pelotão inteiro. Woody só poderia planejar o ataque quando visse o alvo.

           Dez minutos depois, deu a ordem para avançar. Os homens não precisavam mais ser alertados sobre a necessidade de fazer silêncio: podiam pressentir o perigo. Seguiram pela rua sem barulho, passando por casas, igrejas e lojas, mantendo-se junto às paredes, estreitando os olhos para tentar enxergar na penumbra, sobressaltando-se com qualquer ruído. Uma tosse alta e repentina vinda da janela aberta de um quarto quase fez Woody disparar a carabina.

           Église-des-Soeurs estava mais para um vilarejo grande do que para uma cidade pequena, e Woody viu o cintilar cor de prata do rio antes do que esperava. Ergueu uma das mãos para que todos parassem. A rua principal levemente inclinada descia em direção à ponte, o que lhe proporcionou uma boa visão. O curso de água tinha uns trinta metros de largura, e a ponte era uma estrutura única, em arco. Devia ser uma construção antiga: de tão estreita, seria impossível que dois carros passassem lado a lado.

           A má notícia era que havia uma casamata em cada extremidade: duas cúpulas gêmeas de concreto, com fendas horizontais para atirar. Uma dupla de sentinelas patrulhava a ponte entre as casamatas. Estavam de pé, um em cada ponta. O mais próximo falava junto à fenda da casamata, provavelmente conversando com quem estava lá dentro. Então ambos andaram até o meio da ponte, onde olharam por cima do parapeito para a água negra que passava lá embaixo. Como não pareciam muito tensos, Woody concluiu que ainda não tinham conhecimento do início da invasão. Por outro lado, não estavam à toa. Permaneciam atentos, moviam-se e olhavam em volta com uma atitude relativamente alerta.

           Woody não sabia dizer quantos homens poderiam estar dentro da casamata, nem como eles estariam armados. Haveria metralhadoras atrás daquelas fendas? Ou apenas fuzis? Isso faria uma grande diferença.

           Desejou ter alguma experiência de batalha. Como deveria lidar com aquela situação? Imaginou que havia milhares de homens na mesma situação que ele: oficiais de patente baixa recém-promovidos que simplesmente tinham que improvisar à medida que avançavam. Se ao menos o sargento Defoe estivesse ali...

           O jeito mais fácil de neutralizar uma casamata era se aproximar sem ser visto e atirar uma granada pela fenda. Um homem habilidoso provavelmente conseguiria rastejar até uma delas sem ser notado. Mas Woody precisava eliminar as duas ao mesmo tempo, caso contrário o ataque à primeira alertaria os ocupantes da segunda.

           Como poderia chegar à casamata mais afastada sem ser visto pelas sentinelas?

           Sentiu que seus homens ficavam inquietos. Não gostavam de pensar que seu líder estava inseguro quanto ao próximo passo.

           – Pete Furtivo – chamou Woody –, rasteje até a casamata mais próxima e jogue uma granada pela fenda.

           Apesar de aterrorizado, Pete respondeu:

           – Sim, tenente.

           Em seguida, Woody escolheu os dois melhores atiradores do pelotão.

           – Joe Fumaça e Mack, escolham um sentinela cada um – ordenou. – Atirem assim que Pete lançar a granada.

           Os dois soldados aquiesceram e ergueram as armas.

           Na falta de Defoe, Woody decidiu tornar Ace Webber seu braço direito. Escolheu quatro outros e falou:

           – Vocês vão com Webber. Assim que os tiros começarem, saiam correndo a toda a velocidade pela ponte e invadam a casamata do outro lado. Se forem rápidos o suficiente, pegarão os caras dormindo.

           – Sim, tenente – respondeu Webber. – Os filhos da mãe não vão nem saber o que aconteceu.

           Woody pensou que a agressividade do soldado devia ser para disfarçar o medo.

           – Todos os que não estiverem no grupo de Webber, sigam-me até a casamata mais próxima – acrescentou.

           Woody se sentia mal por delegar a Webber e seu grupo a tarefa mais perigosa e ficar com a relativa segurança de atacar a casamata mais próxima. No entanto, lhe disseram repetidas vezes que um oficial não devia arriscar a vida sem necessidade, pois poderia deixar seus homens sem liderança.

           Eles seguiram em direção à ponte, com Pete na frente. Aquele era um momento perigoso. Dez homens andando juntos por uma rua não passariam despercebidos por muito tempo, nem mesmo à noite. Qualquer um que olhasse com atenção na sua direção poderia detectar movimento.

           Se o alarme fosse dado cedo demais, Pete Furtivo talvez não conseguisse chegar à casamata mais próxima, e o pelotão perderia a vantagem da surpresa.

           O caminho foi longo.

           Pete chegou a uma esquina e parou. Woody imaginou que o soldado estivesse esperando a sentinela mais próxima sair de seu posto junto à casamata e andar até o meio da ponte.

           Os dois atiradores encontraram abrigo e se posicionaram.

           Woody se abaixou sobre um dos joelhos e acenou para que os outros fizessem o mesmo. Ficaram todos observando a sentinela.

           O homem deu um trago fundo no cigarro, jogou-o no chão, pisou na guimba para apagá-la e soltou uma comprida nuvem de fumaça. Então se levantou, ajeitou a correia do fuzil no ombro e começou a andar.

           A sentinela na outra extremidade também se pôs em movimento.

           Pete correu pelo último quarteirão e chegou ao final da rua. Agachou-se no chão e atravessou depressa, engatinhando. Chegou à casamata e se levantou.

           Ninguém percebeu nada. Os dois sentinelas continuaram andando um na direção do outro.

           Pete sacou uma granada e tirou o pino. Então aguardou alguns segundos. Woody deduziu que ele não quisesse que os homens dentro da casamata tivessem tempo de atirar a granada de volta para fora.

           Pete esticou o braço pela curva da cúpula de cimento e deixou a granada cair lá dentro delicadamente.

           As carabinas de Joe e Mack dispararam. A sentinela mais próxima tombou, mas a que estava mais longe ficou ilesa. Corajosamente, não deu meia-volta e saiu correndo, mas abaixou-se sobre um dos joelhos e tirou o fuzil do ombro. No entanto, não foi rápido o suficiente: as carabinas atiraram novamente, quase ao mesmo tempo, e ele caiu sem disparar.

           Então, com um baque abafado, a granada de Pete explodiu dentro da casamata mais próxima.

           Woody já estava correndo a toda a velocidade, com seus homens logo atrás. Em poucos segundos, chegaram à ponte.

           A casamata tinha uma porta baixa de madeira. Woody a abriu e entrou. Três alemães de uniforme jaziam mortos no chão.

           Ele se aproximou de uma das fendas de tiro e olhou para fora. Webber e seus quatro homens estavam correndo pela ponte curta, atirando na casamata mais distante enquanto avançavam. A ponte tinha apenas algumas dezenas de metros, mas a distância se revelou excessiva. Quando os americanos chegaram à metade, uma metralhadora abriu fogo. Eles ficaram encurralados num corredor estreito, sem nenhuma proteção. A metralhadora disparava num ritmo enlouquecedor e, em poucos segundos, todos os cinco caíram. Os tiros continuaram a chover sobre eles por vários segundos, para garantir que estivessem mortos – e, de quebra, certificando também a morte das duas sentinelas alemãs.

           Quando os tiros cessaram, nenhum deles se mexeu.

           Houve silêncio.

           – Ah, meu Pai do céu – disse Cameron Canhoto ao lado de Woody.

           Woody poderia ter chorado. Tinha provocado a morte de dez homens – cinco americanos e cinco alemães – e mesmo assim não alcançara seu objetivo. O inimigo continuava ocupando a outra extremidade da ponte e poderia impedir as forças Aliadas de atravessá-la.

           Restavam-lhe quatro homens. Se tentassem avançar correndo pela ponte, seriam todos mortos. Ele precisava de outro plano.

           Estudou a paisagem do vilarejo. O que mais poderia fazer? Desejou ter um tanque.

           Tinha que agir depressa. Talvez houvesse tropas inimigas em outro lugar da cidade. Elas deviam ter sido alertadas pelos tiros e logo iriam reagir. Se tomasse as duas casamatas, ele poderia resistir. Sem isso, estaria encrencado.

           Se os seus homens não conseguissem atravessar a ponte, pensou, desesperado, talvez pudessem atravessar o rio a nado. Resolveu dar uma olhada rápida na margem. Então falou:

           – Mack e Joe Fumaça, atirem na outra casamata. Vejam se conseguem acertar uma bala pela fenda. Mantenham os caras ocupados enquanto dou uma olhada em volta.

           As carabinas abriram fogo e ele saiu pela porta.

           Conseguiu se abrigar atrás da casamata enquanto olhava por sobre o parapeito da ponte para o trecho mais acima na margem do rio. Então teve que atravessar a rua correndo para ver a outra margem. No entanto, nenhum tiro foi disparado pelos inimigos.

           O rio não tinha muro de contenção. A terra simplesmente descia até a água. A outra margem parecia igual, embora não houvesse luz suficiente para ter certeza. Um bom nadador conseguiria atravessar. Sob o arco, não seria fácil vê-lo da posição inimiga. Ele então poderia repetir na outra ponta o que Pete Furtivo tinha feito na mais próxima: lançar uma granada dentro da casamata.

           Ao examinar a estrutura da ponte, teve uma ideia melhor: abaixo do parapeito, uma saliência de uns trinta centímetros de largura a margeava por fora. Um homem com nervos de aço poderia atravessar por ali, abaixado, sem ser visto.

           Woody voltou para a casamata conquistada. O mais baixo de seus homens era Cameron Canhoto. Era também muito ousado: não costumava ficar nervoso.

           – Canhoto – chamou Woody –, há uma saliência escondida que margeia a parte externa da ponte, logo abaixo do parapeito. Deve ser para operários usarem durante uma eventual reforma. Quero que você rasteje até o outro lado e atire uma granada dentro daquela casamata.

           – Pode deixar comigo – respondeu Canhoto.

           Era uma resposta corajosa para alguém que acabara de ver cinco companheiros serem mortos.

           Woody se virou para Mack e Joe Fumaça e disse:

           – Deem cobertura a ele.

           Os dois começaram a atirar.

           – E se eu cair? – perguntou Canhoto.

           – São só uns cinco metros até a água, seis no máximo – respondeu Woody. – Você vai ficar bem.

           – Certo – respondeu Canhoto. Ele foi até a porta da casamata. – Só que eu não sei nadar – completou, e então saiu.

           Woody o viu atravessar a rua correndo. Ele olhou por cima do parapeito, em seguida passou as pernas para o outro lado e se abaixou até sumir de vista.

           – Muito bem – disse Woody aos outros. – Cessar fogo! Ele está a caminho.

           Todos ficaram observando. Nada se movia. Woody percebeu que a aurora estava chegando: já dava para ver melhor a cidade. Mas nenhum dos moradores apareceu: eles sabiam que era perigoso. Talvez as tropas alemãs estivessem se mobilizando em alguma rua vizinha, mas ele não ouviu nada. Deu-se conta de que estava atento esperando escutar o ruído de um mergulho, com medo de que Canhoto caísse no rio.

           Um cachorro atravessou a ponte correndo: era um vira-lata de porte médio, com um rabo curvo empinado no ar numa atitude atrevida. Depois de farejar os cadáveres com interesse, seguiu em frente, decidido, como se tivesse um compromisso importante em algum outro lugar. Woody o viu passar pela casamata mais distante e seguir rumo ao outro lado da cidade.

           Estava amanhecendo. Isso significava que a força principal estava desembarcando nas praias. Alguém tinha dito que aquele era o maior ataque anfíbio da história da guerra. Ele se perguntou que tipo de resistência os invasores iriam encontrar. Não havia nada mais vulnerável que um soldado carregado de material chapinhando pelo mar raso: o terreno plano da praia à sua frente proporcionava um campo desimpedido para atiradores escondidos nas dunas. Woody sentiu-se grato por aquela casamata de concreto.

           Canhoto estava demorando. Será que tinha caído na água sem fazer barulho? Será que alguma coisa saíra errado?

           Então Woody o viu: uma forma esguia, vestida de cáqui, passando de bruços por cima do parapeito na outra extremidade da ponte. Prendeu a respiração. Canhoto se ajoelhou no chão, engatinhou até a casamata e então se levantou, com as costas grudadas no domo curvo de concreto. Com a mão esquerda, sacou uma granada. Puxou o pino, aguardou alguns segundos e então esticou o braço, lançando a granada pela fenda.

           Woody ouviu o baque da explosão e viu um clarão de luz forte sair das fendas de tiro. Canhoto ergueu os dois braços acima da cabeça, com o gesto de um campeão.

           – Proteja-se de novo, seu babaca – disse Woody, mesmo que Canhoto não pudesse ouvi-lo. Talvez houvesse algum soldado alemão escondido num prédio ali perto, esperando para vingar a morte dos companheiros.

           Mas nenhum tiro ecoou e, depois de uma curta dancinha da vitória, Canhoto entrou na casamata e Woody respirou aliviado.

           No entanto, ainda não estava totalmente seguro. Àquela altura, uma investida súbita de duas dezenas de alemães poderia retomar a ponte. Então tudo teria sido em vão.

           Obrigou-se a esperar mais um minuto para ver se algum soldado inimigo aparecia. Nada se moveu. Estava começando a parecer que não havia alemão nenhum em Église-des-Soeurs além dos que vigiavam a ponte. Eles provavelmente deviam ser substituídos a cada 12 horas por outros soldados vindos de alguma caserna a poucos quilômetros dali.

           – Joe Fumaça, livre-se dos alemães mortos – ordenou. – Jogue-os no rio.

           Joe arrastou os três corpos para fora da casamata e os lançou na água, depois fez o mesmo com as duas sentinelas.

           – Pete, Mack – continuou Woody –, vão até a outra casamata e fiquem com Canhoto. Não baixem a guarda. Ainda não matamos todos os alemães da França. Se virem algum soldado inimigo se aproximando da sua posição, não hesitem, não negociem: simplesmente atirem.

           Os dois homens saíram da casamata e atravessaram a ponte em passo acelerado até a outra ponta.

           A casamata mais distante estava agora ocupada por três americanos. Se os alemães tentassem retomar a ponte, teriam dificuldade, sobretudo com o dia cada vez mais claro.

           Então Woody percebeu que, se alguma força inimiga se aproximasse, os americanos mortos no meio da ponte delatariam a tomada das casamatas. Sem isso, ele poderia conservar o elemento-surpresa.

           Isso significava que também tinha que se livrar dos cadáveres americanos.

           Avisou aos outros o que iria fazer, então saiu da casamata.

           O ar matinal lhe pareceu fresco e limpo.

           Foi até o meio da ponte. Verificou cada corpo em busca de pulsação, mas não restava dúvida: estavam todos mortos.

           Um a um, pegou os companheiros e jogou-os por cima do parapeito.

           O último foi Ace Webber. Quando o corpo do rapaz bateu na água, Woody falou:

           – Descansem em paz, amigos.

           Ficou parado por alguns segundos, de cabeça baixa e olhos fechados.

           Quando se virou, o sol estava nascendo.

 

           O grande temor dos planejadores da invasão Aliada era que os alemães reforçassem rapidamente suas tropas na Normandia e organizassem um forte contra-ataque capaz de repelir os invasores de volta para o mar, numa repetição do desastre de Dunquerque.

           Lloyd Williams estava entre os homens que tentavam garantir que isso não acontecesse.

           Sua tarefa de ajudar prisioneiros foragidos a voltar para casa se tornara de baixa prioridade após a invasão, e ele agora estava trabalhando com a resistência francesa.

           No fim de maio, a BBC transmitira mensagens em código que deram início a uma campanha de sabotagem na França ocupada pelos alemães. Nos primeiros dias de junho, centenas de linhas telefônicas foram cortadas, geralmente em lugares de difícil acesso. Depósitos de gasolina foram incendiados; estradas, bloqueadas por árvores; pneus, cortados.

           Lloyd estava ajudando os ferroviários, que eram comunistas fervorosos e se autodenominavam Résistance Fer, a “resistência férrea”. Durante anos, haviam enlouquecido os nazistas com sua subversão dissimulada. Trens que transportavam soldados alemães iam parar, sabia-se lá como, em linhas secundárias obscuras, a muitos quilômetros de seu destino. Locomotivas quebravam sem explicação, vagões descarrilavam. A situação era tão grave que os ocupantes mandaram buscar ferroviários na Alemanha para administrar o sistema. Mas os problemas só pioraram. Na primavera de 1944, os ferroviários franceses começaram a danificar sua própria malha. Explodiram trilhos e sabotaram os pesados guindastes necessários para remover trens acidentados.

           Os nazistas não aceitaram tudo isso passivamente. Centenas de ferroviários foram executados e milhares deportados para campos. Mas a campanha se intensificava e, quando o Dia D chegou, o tráfego em algumas partes da França havia sido paralisado.

           Agora, no dia seguinte ao Dia D, Lloyd estava no alto do barranco junto à linha principal que seguia para Rouen, capital da Normandia, num ponto em que os trilhos entravam num túnel. Daquela posição, podia ver um trem se aproximando a quase dois quilômetros de distância.

           Estava acompanhado por dois outros homens, cujos codinomes eram Légionnaire e Cigare. Légionnaire era o chefe da Resistência na sua região. Cigare trabalhava na ferrovia. Lloyd trouxera a dinamite. Fornecer armamentos era o principal papel dos britânicos na Resistência francesa.

           Os três estavam parcialmente escondidos pelo mato alto salpicado de flores silvestres. Aquele era o tipo de lugar aonde se poderia levar uma garota num dia bonito como o que fazia, pensou Lloyd. Daisy teria gostado.

           Um trem surgiu ao longe. Enquanto o comboio se aproximava, Cigare o observava. Com cerca de 60 anos, Cigare era musculoso, magro e baixinho, e tinha o rosto enrugado de um fumante inveterado. Quando o trem ainda estava a cerca de meio quilômetro, balançou a cabeça numa negativa. Aquele não era a composição que eles estavam esperando. A locomotiva passou cuspindo fumaça e entrou no túnel. Puxava quatro vagões de passageiros, todos lotados, transportando uma mistura de civis e militares. Lloyd tinha presas mais importantes para capturar.

           Légionnaire olhou para o relógio. Tinha a pele bem morena e um bigode preto, e Lloyd imaginou que devesse ter antepassados africanos. Agora, estava nervoso. Os três encontravam-se muito expostos, ao ar livre, em plena luz do dia. Quando mais tempo ficassem ali, maiores as chances de serem vistos.

           – Quanto falta? – perguntou Légionnaire, preocupado.

           Cigare deu de ombros.

           – Vamos ver.

           – Se quiser, já pode ir – disse Lloyd em francês. – Está tudo pronto.

           Légionnaire não respondeu. Não iria perder a ação. Em nome de seu prestígio e de sua autoridade, queria poder dizer: “Eu estava lá.”

           Cigare ficou mais tenso e, numa tentativa de enxergar ao longe, estreitou os olhos, fazendo a pele em volta deles se enrugar.

           – Então – falou, enigmático. Ergueu-se até ficar de joelhos.

           Lloyd mal conseguia ver o trem, muito menos identificá-lo, mas Cigare estava alerta. Uma coisa Lloyd pôde perceber: aquele trem estava andando bem mais depressa do que o anterior. Conforme a composição foi se aproximando, ele observou também que era mais comprida: 24 vagões no mínimo.

           – É esse – afirmou Cigare.

           O pulso de Lloyd se acelerou. Se Cigare estivesse certo, aquele era um trem militar alemão transportando mais de mil oficiais e soldados para os campos de batalha da Normandia – talvez o primeiro de muitos. A tarefa de Lloyd era garantir que nem aquele, nem qualquer outro que viesse depois dele atravessasse o túnel.

           Foi então que viu outra coisa. Um avião seguia o trem. Enquanto ele observava, a aeronave alinhou seu curso ao do trem e começou a perder altitude.

           Era britânica.

           Lloyd reconheceu o modelo: um caça-bombardeiro Hawker Typhoon, apelidado de Tiffy. Os Tiffies eram tripulados por um homem só e muitas vezes recebiam a perigosa missão de penetrar fundo nas linhas inimigas para perturbar as comunicações. Que piloto corajoso, pensou Lloyd.

           Mas aquele avião não fazia parte de seus planos. Ele não queria que o trem fosse destruído antes de chegar ao túnel.

           – Que merda! – praguejou.

           O Tiffy disparou uma rajada de metralhadora nos vagões.

           – Que diabo é isso? – perguntou Légionnaire.

           – Não faço a mínima ideia – respondeu Lloyd em inglês.

           Podia ver que a locomotiva puxava um misto de vagões de passageiros e de gado. Mas os vagões de animais provavelmente também transportavam pessoas.

           Agora voando mais rápido, o avião sobrevoou o trem e metralhou os vagões. Era equipado com quatro canhões de 20mm alimentados por uma cinta, que produziam um barulho assustador, mais alto que o rugido do motor do avião e que o enérgico resfolegar do trem. Lloyd não pôde evitar sentir certa pena dos soldados presos lá dentro, sem poder se abrigar daquela chuva letal de balas. Perguntou-se por que o piloto não disparava seus foguetes. Embora fosse difícil de mirá-los com precisão, tinham alto poder de destruição quando lançados sobre trens e carros. Talvez já tivessem sido disparados contra um alvo anterior.

           Alguns dos alemães puseram a cabeça corajosamente para fora das janelas com o intuito de disparar, em vão, pistolas e fuzis contra o avião.

           Foi então que Lloyd viu uma bateria antiaérea montada em cima de um vagão plano logo atrás da locomotiva. Dois artilheiros armavam apressadamente a grande peça de artilharia. Ela girou na base e o cano se ergueu em direção à aeronave.

           O piloto parecia não ter visto nada, pois manteve o curso e seguiu sobrevoando o trem, disparando rajadas no teto dos vagões.

           A peça de artilharia disparou e errou.

           Lloyd imaginou se conheceria o piloto. Apenas uns cinco mil homens integravam o serviço ativo da RAF por vez. Muitos deles já tinham ido às festas de Daisy. Lloyd pensou em Hubert St. John, um rapaz brilhante formado em Cambridge com quem, algumas semanas antes, ele conversara, recordando os tempos de estudante; em Dennis Chaucer, caribenho de Trinidad que reclamava muito da insossa comida inglesa, principalmente do purê de batatas que parecia acompanhar todas as refeições; e em Brian Mantel, australiano simpático que Lloyd guiara em sua última travessia dos Pireneus. O corajoso piloto do Tiffy podia muito bem ser alguém com quem ele já tivesse cruzado.

           A bateria antiaérea tornou a disparar e errou de novo.

           Ou o piloto não a tinha visto, ou achava que não pudesse ser atingido, pois não fez nenhuma manobra para se esquivar. Em vez disso, continuou a voar perigosamente baixo e a alvejar sem dó o trem de soldados.

           A locomotiva estava a poucos segundos do túnel quando o avião foi atingido.

           Chamas jorraram do motor do Tiffy, que começou a soltar uma fumaça preta. O piloto se desviou dos trilhos do trem, mas já era tarde.

           A composição entrou no túnel e os vagões foram passando velozes pelo ponto em que Lloyd estava. Ele viu que todos encontravam-se lotados, com centenas de soldados alemães.

           O Tiffy veio voando bem para cima de Lloyd. Por um instante, ele pensou que seria atingido. Embora já estivesse deitado no chão, levou as mãos à cabeça como se esse gesto estúpido pudesse protegê-lo.

           O Tiffy passou rugindo uns trinta metros acima dele.

           Então Légionnaire pressionou o detonador.

           Um rugido semelhante ao de um trovão ecoou dentro do túnel quando os trilhos explodiram, seguido por um terrível guinchar de aço retorcido.

           No início, os vagões cheios de soldados continuaram a passar depressa, mas no instante seguinte seu avanço foi interrompido. As pontas de dois vagões interligados se ergueram no ar, formando um V invertido. Lloyd ouviu os homens lá dentro gritarem. Todos os vagões descarrilaram e tombaram na entrada do túnel, como se fossem palitos de fósforo. Peças de ferro se amassaram feito papel e uma chuva de cacos de vidro atingiu os sabotadores, que assistiam a tudo de cima do barranco. Os três corriam o risco de morrer por causa da explosão que eles mesmos haviam provocado e, sem dizer nada, se levantaram e saíram correndo.

           Quando alcançaram uma distância segura, tudo já havia terminado. Uma coluna de fumaça subia do túnel: no caso improvável de algum dos homens a bordo ter sobrevivido ao acidente, iria morrer queimado.

           O plano de Lloyd tinha sido um sucesso. Ele não apenas matara centenas de soldados inimigos e destruíra um trem como também bloqueara uma ferrovia importante. Em casos de acidentes em túneis, levava semanas para que as vias fossem liberadas. Aquilo dificultaria muito que os alemães reforçassem suas defesas na Normandia.

           Ele estava horrorizado.

           Tinha visto morte e destruição na Espanha, mas nada que se comparasse àquilo. E fora ele o responsável.

           Um novo estrondo ecoou e, quando ele olhou na direção do barulho, viu que o Tiffy tinha caído. Embora o avião estivesse em chamas, a fuselagem não fora afetada. Talvez o piloto estivesse vivo.

           Correu em direção ao avião, com Cigare e Légionnaire em seu encalço.

           A aeronave acidentada havia caído de barriga. Uma das asas se partira ao meio. O motor soltava fumaça. A tampa de acrílico estava escurecida pela fuligem, por isso Lloyd não conseguiu ver o piloto.

           Pisou na asa e soltou o trinco da tampa. Cigare fez o mesmo do outro lado. Juntos deslizaram-na para trás.

           O piloto estava desacordado. Usava capacete, óculos e uma máscara de oxigênio cobrindo o nariz e a boca. Lloyd não soube dizer se era alguém conhecido.

           Perguntou-se onde estaria o tanque de oxigênio e se este já teria estourado.

           Légionnaire teve um pensamento parecido.

           – Temos que tirá-lo daqui antes que o avião exploda – falou.

           Lloyd esticou a mão para dentro do cockpit e soltou o cinto de segurança. Então segurou o piloto pelas axilas e o puxou. O homem estava totalmente inerte. Lloyd não tinha como saber quais eram os seus ferimentos. Nem tinha certeza de que ele estava vivo.

           Arrastou-o para fora do cockpit e carregou-o sobre o ombro como um bombeiro até uma distância segura do avião. Com a maior delicadeza possível, deitou o homem no chão de barriga para cima.

           Ouviu um barulho, um misto de ar se deslocando e pancada, e ao olhar para trás viu que o avião estava em chamas.

           Curvou-se por cima do piloto e, cuidadosamente, tirou os óculos e a máscara de oxigênio. O rosto era tão familiar que Lloyd teve um choque.

           O piloto era Boy Fitzherbert.

           E ele estava respirando.

           Lloyd limpou o sangue de seu nariz e de sua boca.

           Boy abriu os olhos. No início não pareceu haver qualquer sinal de discernimento por trás deles. Então, um minuto depois, sua expressão se alterou e ele disse:

           – Você.

           – Nós explodimos o trem – disse Lloyd.

           Boy parecia incapaz de mover qualquer coisa além dos olhos e da boca.

           – Que mundo pequeno – falou.

           – Não é?

           – Quem é esse? – perguntou Cigare.

           Lloyd hesitou antes de responder:

           – Meu irmão.

           – Meu Deus!

           Boy fechou os olhos.

           – Precisamos de um médico – disse Lloyd a Légionnaire.

           O francês fez que não com a cabeça.

           – Temos que sair daqui. Os alemães vão aparecer em poucos minutos para investigar o acidente com o trem.

           Lloyd sabia que ele tinha razão.

           – Então teremos que levá-lo.

           Boy abriu os olhos e disse:

           – Williams.

           – O que foi, Boy?

           Boy pareceu sorrir.

           – Pode se casar com aquela vadia agora.

           E então morreu.

 

           Daisy chorou ao ouvir a notícia. Boy tinha sido um filho da mãe e a tratara muito mal, mas ela o amara um dia, e ele lhe ensinara muito sobre sexo. Ficou triste com sua morte.

           O irmão mais novo de Boy, Andy, era agora o visconde e herdeiro do título do pai; sua esposa, May, era viscondessa. Segundo as complexas regras da aristocracia britânica, o título de Daisy agora era viúva viscondessa de Aberowen – isso até ela se casar com Lloyd, quando ficaria aliviada em se tornar apenas a Sra. Williams.

           Mas talvez isso ainda fosse demorar muito. Durante o verão, a esperança de um fim rápido para a guerra não se cumpriu. Em 20 de julho, um complô de oficiais alemães para matar Hitler fracassou. O Exército alemão estava agora em franca derrocada no front oriental, e os Aliados conquistaram Paris em agosto, mas Hitler estava decidido a lutar até o terrível fim. Daisy não fazia ideia de quando voltaria a ver Lloyd, quanto mais se casar com ele.

           Numa quarta-feira de setembro, quando foi passar a noite em Aldgate, Eth Leckwith a recebeu radiante.

           – Ótimas notícias! – disse Ethel quando Daisy entrou na cozinha. – Lloyd foi aprovado como pré-candidato ao Parlamento por Hoxton!

           Millie, irmã de Lloyd, estava na casa dos pais com os dois filhos, Lennie e Pammie.

           – Não é maravilhoso? – indagou ela. – Aposto que ele vai ser primeiro-ministro.

           – É – disse Daisy, antes de se sentar, desanimada.

           – Bem, estou vendo que você não ficou muito feliz com a notícia – comentou Ethel. – Como diria minha amiga Mildred, você está com cara de quem chupou limão. Qual é o problema?

           – É que estar casado comigo não vai ajudar Lloyd a ser eleito.

           Justamente porque o amava tanto ela se sentia tão mal. Como poderia prejudicar seu futuro? Por outro lado, como poderia desistir dele? Quando pensava nisso, sentia o coração pesado, e a vida lhe parecia sem graça.

           – Porque você é uma herdeira? – perguntou Ethel.

           – Não só por isso. Antes de Boy morrer, ele me disse que Lloyd jamais seria eleito se estivesse casado com uma ex-fascista. – Ela olhou para Ethel, que sempre dizia a verdade, mesmo que fosse dura. – Ele estava certo, não estava?

           – Não totalmente – respondeu Ethel. Ela pôs a chaleira no fogo para fazer um chá e então se sentou à mesa da cozinha de frente para Daisy. – Não vou dizer que não seja um problema. Mas não acho que você deva se desesperar.

           Você é igualzinha a mim, pensou Daisy. Sempre diz o que pensa. Não é de espantar que Lloyd me ame: sou uma versão mais jovem da mãe dele.

           – O amor tudo vence, não é? – disse Millie. Ela viu que seu filho de 4 anos, Lennie, estava batendo com um soldadinho de madeira na pequena Pammie, de 2 anos. – Não bata na sua irmã! – ralhou. Virando-se novamente para Daisy, continuou: – E o meu irmão é louco por você. Para falar a verdade, acho que ele nunca amou outra pessoa.

           – Eu sei – disse Daisy, com vontade de chorar. – Mas ele está decidido a mudar o mundo, e não consigo suportar a ideia de ficar em seu caminho.

           Pammie estava chorando, então Ethel pôs a menina no colo e ela se acalmou na hora.

           – Vou dizer o que você tem que fazer – falou para Daisy. – Esteja preparada para perguntas, espere hostilidade, mas não fuja da questão nem esconda seu passado.

           – O que devo dizer?

           – Você pode afirmar que foi enganada pelo fascismo, assim como milhões de outras pessoas; mas que trabalhou como motorista de ambulância na Blitz e espera ter pagado as suas dívidas. Ensaie o discurso com Lloyd. Seja confiante, seja você mesma, essa mulher encantadora e irresistível, e não deixe que isso a abale.

           – Vai dar certo?

           Ethel hesitou.

           – Não sei – respondeu, depois de uma pausa. – Não sei mesmo. Mas você precisa tentar.

           – Seria horrível se ele tivesse que desistir do que ama por minha causa. Uma coisa dessas pode destruir um casamento.

           Daisy estava meio que torcendo para Ethel negar isso, mas ela não o fez.

           – Não sei – limitou-se a repetir.

 

1945 (I)

            Woody Dewar logo se acostumou com as muletas.

           Fora ferido no final de 1944, na batalha do Bulge, na Bélgica. Os Aliados que avançavam em direção à fronteira alemã tinham sido pegos de surpresa por um contra-ataque violento. Woody e outros integrantes da 101a Divisão Aerotransportada tinham defendido com firmeza uma cidade chamada Bastogne, situada num cruzamento importante. Quando os alemães mandaram uma carta formal exigindo rendição, o general McAuliffe respondeu com um recado de apenas uma palavra que ficou famoso: “Loucura!”

           A perna direita de Woody foi atingida por tiros de metralhadora no dia de Natal. A dor foi insuportável. Pior ainda: ele levou um mês para conseguir ser removido da cidade sitiada e transferido para um hospital de verdade.

           Os ossos iriam calcificar, e talvez um dia ele até deixasse de mancar, mas sua perna jamais voltaria a ser forte o bastante para saltar de paraquedas.

           A batalha do Bulge foi a última ofensiva do Exército de Hitler no Ocidente. Depois disso, os alemães não contra-atacariam mais.

           Woody retornou à vida civil, o que significava que podia morar no apartamento dos pais em Washington e ser mimado pela mãe. Quando o gesso foi retirado, voltou a trabalhar no escritório do pai.

           Na quinta-feira, 12 de abril de 1945, ele estava no prédio do Capitólio, sede do Senado e da Câmara dos Deputados. Ele caminhava devagar pelo subsolo, mancando, entretido numa conversa com o pai sobre refugiados.

           – Estimamos que cerca de 21 milhões de pessoas tenham sido tiradas de casa na Europa – dizia Gus. – A Administração de Socorro e Reabilitação das Nações Unidas está pronta para ajudá-las.

           – Imagino que isso vá começar a qualquer momento – disse Woody. – O Exército Vermelho já está quase em Berlim.

           – E o Exército americano está a apenas oitenta quilômetros.

           – Por quanto tempo Hitler ainda vai conseguir resistir?

           – Um homem lúcido já teria se rendido.

           Woody baixou a voz:

           – Alguém comentou comigo que os russos encontraram o que parece ter sido um campo de extermínio. Os nazistas matavam centenas de pessoas por dia lá. Um lugar chamado Auschwitz, na Polônia.

           Gus assentiu, com um semblante sombrio.

           – É verdade. As pessoas ainda não sabem, mas vão descobrir mais cedo ou mais tarde.

           – Alguém tem que ser julgado por isso.

           – A Comissão de Crimes de Guerra das Nações Unidas já está trabalhando há uns dois anos, criando listas de criminosos de guerra e reunindo provas. Haverá um julgamento, sim, desde que consigamos manter as Nações Unidas operando depois da guerra.

           – É claro que vamos conseguir – disse Woody, indignado. – A campanha de Roosevelt no ano passado foi baseada nisso, e ele ganhou a eleição. A conferência das Nações Unidas começa em São Francisco daqui a 15 dias.

           Aquela cidade tinha um significado especial para Woody, pois era lá que Bella Hernandez morava, mas ele ainda não tinha falado com o pai sobre a moça.

           – O povo americano quer uma cooperação internacional para nunca mais termos outra guerra como esta – continuou. – Quem poderia ser contra isso?

           – Você ficaria surpreso. Veja bem, a maioria dos republicanos é gente de bem, só que com uma visão de mundo diferente da nossa. Mas existe também um núcleo duro formado por uns loucos de merda.

           Woody se espantou. Seu pai quase nunca falava naqueles termos.

           – Aqueles sujeitos que planejaram uma insurreição contra Roosevelt nos anos 1930 – prosseguiu Gus. – Empresários como Henry Ford, que achava que Hitler fosse um líder forte contra os comunistas. Eles apoiam grupos de direita como o America First.

           Woody não se lembrava de ter visto Gus falar com tanta taiva.

           – Se esses imbecis conseguirem o que querem, haverá uma terceira guerra mundial ainda pior que as duas primeiras – continuou Gus. – Eu perdi um filho na guerra. Se um dia tiver um neto, não quero perdê-lo também.

           Woody sentiu uma pontada de tristeza: se Joanne estivesse viva, poderia ter dado netos a Gus.

           Naquele momento, Woody nem tinha namorada e essa possibilidade estava muito distante – a menos que conseguisse encontrar Bella em São Francisco.

           – Não podemos fazer nada em relação aos imbecis – continuou Gus. – Mas talvez possamos negociar com o senador Vandenberg.

           Arthur Vandenberg era um republicano conservador de Michigan, contrário ao New Deal de Roosevelt. Assim como Gus, fazia parte do Comitê de Relações Exteriores do Senado.

           – Ele é nossa maior ameaça – disse Gus. – Pode ser presunçoso e vaidoso, mas impõe respeito. O presidente tem se esforçado para convencê-lo, e ele agora se dobrou ao nosso ponto de vista, mas pode voltar atrás.

           – Por que ele faria isso?

           – Vandenberg é um anticomunista ferrenho.

           – Não há nada de errado nisso. Nós também somos.

           – Sim, mas ele é bastante rigoroso em relação a isso. Se fizermos alguma coisa que ele considere baixar a cabeça para Moscou, vai se zangar.

           – O quê, por exemplo?

           – Só Deus sabe que tipo de compromisso vamos ter que assumir em São Francisco. Já concordamos em reconhecer a Bielorrússia e a Ucrânia como Estados independentes, o que na verdade não passa de uma forma de dar a Moscou três votos na Assembleia Geral. Temos que manter os soviéticos do nosso lado... Mas, se passarmos dos limites, Vandenberg pode começar a se opor ao projeto das Nações Unidas como um todo. Então talvez o Senado não queira ratificá-lo, exatamente como rejeitou a Liga das Nações em 1919.

           – Quer dizer então que a nossa tarefa em São Francisco é manter os soviéticos felizes sem ofender o senador Vandenberg.

           – Exatamente.

           Eles ouviram passos de alguém correndo, um barulho incomum nos distintos corredores do Capitólio. Olharam em volta. Woody ficou surpreso ao ver o vice-presidente Harry Truman passar às pressas. Estava vestido normalmente, com um terno cinza de abotoamento duplo e uma gravata com estampa de bolinhas, mas não usava chapéu. Estava sem sua escolta habitual de assessores e seguranças do Serviço Secreto. Corria num ritmo regular, ofegante, sem olhar para ninguém, muito apressado para chegar a algum lugar.

           Como todas as pessoas ali presentes, Woody e Gus observaram, pasmos, Truman passar.

           Quando o vice-presidente desapareceu numa esquina, Woody perguntou:

           – Mas que droga está acontecendo?

           – O presidente deve ter morrido – respondeu Gus.

 

           Volodya Peshkov entrou na Alemanha a bordo de um caminhão militar de cinco eixos, um Studebaker US6. Fabricado em South Bend, Indiana, o caminhão fora transportado de trem até Baltimore, atravessara o Atlântico e dobrara o cabo da Boa Esperança até chegar ao golfo Pérsico, de onde prosseguira de trem da Pérsia até a região central da Rússia. Sabia que aquele era um dos 200 Studebakers cedidos ao Exército Vermelho pelo governo americano. Os russos gostavam daqueles caminhões: eram veículos robustos e confiáveis. Segundo os soldados, as letras “USA” pintadas na lateral significavam Ubit Sukina syna Adolf, “matem aquele filho da puta do Adolf”.

           Eles também gostavam da comida que os americanos mandavam, sobretudo das latas de carne prensada chamada Spam, que, apesar da estranha cor rosada, era gloriosamente gordurosa.

           Volodya fora transferido para a Alemanha porque já não recebia de seus espiões em Berlim informações tão atualizadas quanto as que se podia obter interrogando prisioneiros de guerra alemães. O fato de ser fluente naquele idioma fazia dele um interrogador de primeira categoria para a linha de frente.

           Ao cruzar a fronteira, viu um cartaz do governo soviético que dizia: “Soldado do Exército Vermelho, agora você está em solo alemão. Chegou a hora da vingança!” Aquela era uma das peças de propaganda mais leves. Já fazia algum tempo que o Kremlin vinha instigando o ódio aos alemães, pois acreditava que isso faria os soldados lutarem com mais vontade. Os comissários políticos haviam calculado – ou ao menos era o que diziam – o número de homens mortos em combate, de casas incendiadas e civis assassinados por serem comunistas, eslavos ou judeus em cada vilarejo e cidade tomada pelo Exército alemão. Muitos soldados do front sabiam de cor os números relativos às suas regiões de origem e estavam ansiosos para causar o mesmo estrago na Alemanha.

           O Exército Vermelho chegou ao rio Oder, que serpeava pela Prússia de norte a sul: aquele era o último obstáculo antes de Berlim. Um milhão de soldados soviéticos aguardavam a oitenta quilômetros da capital, prontos para atacar. Volodya fazia parte do 5o Exército de Choque. Enquanto esperava o início dos combates, deu uma olhada no jornal do Exército, chamado Estrela Vermelha.

           O que leu o deixou horrorizado.

           A propaganda de ódio aos alemães ia muito além de tudo o que ele já tinha lido. “Se você não matou pelo menos um alemão por dia, pode considerar esse dia desperdiçado.” “Se estiver esperando para lutar, mate um alemão antes do combate. Se matar um alemão, mate outro – não há nada mais divertido do que uma pilha de cadáveres de alemães. Mate o alemão – é o que suplica sua mãe. Mate o alemão – é isso que seus filhos imploram que faça. Mate o alemão – é esse o grito de sua terra russa. Não hesite. Não desista. Mate.”

           Volodya ficou meio enjoado com aquilo. No entanto, a mensagem implícita era ainda pior. O autor do artigo dizia que não havia problema em pilhar: “As mulheres alemãs estarão perdendo casacos de pele e colheres de prata que já foram roubados.” E havia uma piada indireta sobre estupro: “Os soldados soviéticos não recusam os favores das alemãs.”

           Soldados já não eram os homens mais civilizados do mundo. O comportamento dos alemães durante a invasão de 1941 deixara todos os russos enfurecidos. O governo alimentava sua ira com aquele incentivo à vingança. E agora o jornal do Exército deixava claro que eles podiam fazer o que quisessem com os alemães derrotados.

           Aquilo era uma verdadeira receita para o Apocalipse.

 

           Erik von Ulrich estava ansioso para que a guerra acabasse.

           Junto com o amigo Hermann Braun e seu chefe, o Dr. Weiss, montou um hospital de campanha numa pequena igreja protestante. Depois ficaram sentados na nave, sem nada para fazer exceto esperar as ambulâncias puxadas a cavalo chegarem carregadas de soldados terrivelmente mutilados e queimados.

           O Exército alemão havia reforçado as colinas de Seelow, com vista para o rio Oder no ponto em que este passava mais perto de Berlim. O hospital de campanha de Erik ficava a cerca de um quilômetro e meio da linha de combate.

           Segundo o Dr. Weiss, que tinha um amigo na inteligência do Exército, 110 mil alemães defendiam Berlim contra um milhão de soviéticos. Com seu sarcasmo habitual, o médico disse:

           – Mas nosso moral está elevado, e Adolf Hitler é o maior gênio da história militar, então com certeza vamos vencer.

           Não havia nenhuma esperança, mas os soldados alemães continuavam lutando bravamente. Erik achava que isso se devia às histórias que ouviam sobre o comportamento do Exército Vermelho. Prisioneiros eram mortos, casas saqueadas e destruídas, mulheres estupradas e crucificadas em portas de celeiros. Os alemães acreditavam estar defendendo suas famílias da brutalidade comunista. A propaganda de ódio do Kremlin estava produzindo o efeito contrário.

           Erik ansiava pela derrota. Queria que aquela matança terminasse. Tudo o que desejava era voltar para casa.

           Logo teria seu desejo realizado – ou então seria morto.

           Estava dormindo num dos bancos de madeira da igreja quando foi acordado pela artilharia russa, às três da manhã de segunda-feira, 16 de abril. Já ouvira outros bombardeios, mas aquele barulho era dez vezes mais alto que qualquer outro de que se lembrasse. Para os soldados no front, devia ser literalmente ensurdecedor.

           Os feridos começaram a chegar ao amanhecer, e a equipe iniciou o trabalho, desanimada, amputando membros, recolocando ossos quebrados no lugar, extraindo balas, limpando e fazendo curativos em ferimentos. Faltava de tudo, de remédios a água limpa, e eles só aplicavam morfina em vítimas que estivessem berrando de dor.

           Os soldados ainda capazes de andar e segurar uma arma eram mandados de volta para o front.

           Os defensores alemães resistiram por mais tempo do que o Dr. Weiss imaginou. Ao final do primeiro dia, continuavam mantendo a posição e, quando escureceu, o fluxo de feridos diminuiu. Nessa noite, a unidade médica pôde dormir um pouco.

           Bem cedo no dia seguinte, Werner Franck foi levado à igreja, com o pulso direito horrivelmente esmagado.

           Ele agora era capitão e estava encarregado de um setor da frente de combate equipado com trinta peças de artilharia antiaérea de 88mm.

           – Só tínhamos oito projéteis para cada peça – contou ele, enquanto os dedos ágeis do Dr. Weiss trabalhavam lenta e meticulosamente para pôr no lugar seus ossos esmagados. – Nossa ordem era disparar sete deles contra os tanques russos e usar o último para destruir nossa própria peça de artilharia, a fim de impedir que ela fosse usada pelos vermelhos. – Ele estava de pé ao lado de uma das peças quando esta foi atingida diretamente pela artilharia soviética e virou na sua direção. – Tive sorte de ter sido só a mão. Poderia ter sido minha cabeça.

           Quando o curativo foi terminado, perguntou a Erik:

           – Tem tido notícias de Carla?

           Erik sabia que sua irmã e Werner eram um casal.

           – Há muitas semanas não recebo nenhuma carta.

           – Nem eu. Ouvi dizer que a situação em Berlim está muito ruim. Espero que ela esteja bem.

           – Também fico preocupado – disse Erik.

           Surpreendentemente, os alemães ainda demoraram mais um dia e uma noite antes de entregar as colinas de Seelow.

           O hospital de campanha não recebeu nenhum aviso de que a linha de combate tinha sido rompida. Estavam fazendo a triagem de um novo lote de feridos quando sete ou oito soldados soviéticos entraram na igreja. Um deles disparou uma rajada de metralhadora no teto abobadado. Erik e todos os outros que ainda eram capazes de se mexer se atiraram no chão.

           Ao ver que ninguém ali estava armado, os russos relaxaram. Percorreram o recinto recolhendo relógios e anéis, e depois foram embora.

           Erik se perguntou o que aconteceria agora. Era a primeira vez que ficava preso atrás das linhas inimigas. Será que deveria abandonar o hospital de campanha e tentar alcançar seu próprio Exército que batia em retirada? Ou os pacientes estariam mais seguros ali?

           O Dr. Weiss foi enfático:

           – Continuem trabalhando normalmente.

           Alguns minutos depois, um soldado soviético chegou trazendo um companheiro no ombro. Apontando a arma para Weiss, disse algumas palavras rápidas em russo. Ele parecia em pânico, e seu companheiro estava todo ensanguentado.

           Weiss respondeu com calma. Em um russo hesitante, falou:

           – Não há necessidade dessa arma. Ponha seu companheiro em cima desta mesa.

           O soldado obedeceu e a equipe médica começou a trabalhar. O soldado manteve o fuzil apontado para o médico o tempo todo.

           Mais tarde nesse mesmo dia, os pacientes alemães foram conduzidos ou carregados para fora e postos na traseira de um caminhão que partiu para leste. Erik viu Werner Franck desaparecer, agora prisioneiro de guerra. Quando era pequeno, Erik ouvira muitas vezes a história do tio Robert, que fora capturado pelos russos durante a Primeira Guerra Mundial e voltara a pé da Sibéria até a Alemanha, uma viagem de 6.500 quilômetros. Perguntou-se onde Werner iria parar.

           Outros russos feridos foram trazidos e os alemães cuidaram deles como teriam feito com os próprios soldados.

           Mais tarde, antes de cair num sono exausto, Erik se deu conta de que agora também era um prisioneiro de guerra.

 

           À medida que os exércitos Aliados se aproximavam de Berlim, os países vitoriosos começaram a brigar entre si na conferência das Nações Unidas, em São Francisco. Woody teria achado isso deprimente, se não estivesse mais interessado em contatar Bella Hernandez.

           Durante toda a invasão do Dia D e os combates na França, durante o tempo que passara no hospital e se recuperando, a moça não lhe saíra da cabeça. No ano anterior, ela estava terminando os estudos na Universidade de Oxford e pretendia fazer doutorado em Berkeley, São Francisco. Devia estar morando na casa dos pais em Pacific Heights, a menos que tivesse o próprio apartamento mais perto do campus.

           Infelizmente, Woody não estava conseguindo falar com ela.

           Suas cartas ficaram sem resposta. Quando ele ligou para o número indicado na lista telefônica, uma mulher de meia-idade que desconfiou ser a mãe de Bella disse, num tom educado porém frio:

           – Ela não está no momento. Quer deixar recado?

           Mas Bella não retornara a ligação.

           Provavelmente tinha um namorado. Nesse caso, ele preferia que ela lhe contasse. Mas talvez a mãe estivesse interceptando sua correspondência e deixando de transmitir seus recados.

           Woody deveria desistir. Talvez estivesse fazendo papel de bobo. Mas ele não era assim. Lembrou-se de sua longa e obstinada corte a Joanne. Isso já está virando um padrão, pensou. Será que o problema sou eu?

           Enquanto isso, todo dia de manhã ele acompanhava o pai até a suíte no último andar do Hotel Fairmont, onde o secretário de Estado, Edward Stettinius, estava reunido com a delegação americana à conferência. Stettinius substituíra Cordell Hull, que estava hospitalizado. Os Estados Unidos tinham também um novo presidente, Harry Truman, empossado após a morte do grande Franklin D. Roosevelt. Era uma pena, observou Gus Dewar, que num momento tão importante da história mundial seu país fosse liderado por dois novatos inexperientes.

           As coisas haviam começado mal. Numa reunião anterior à conferência realizada na Casa Branca, o estouvado presidente Truman ofendera Molotov, ministro soviético das Relações Exteriores. Consequentemente, Molotov já chegara a São Francisco de má vontade. Ele anunciou que voltaria para casa a menos que a conferência concordasse imediatamente em admitir a Bielorrússia, a Ucrânia e a Polônia como membros.

           Ninguém queria que a União Soviética se retirasse. Sem ela, as Nações Unidas não seriam as Nações Unidas. A maior parte da delegação americana era a favor de um compromisso com os comunistas, mas, com sua onipresente gravata-borboleta, o senador Vandenberg insistia obstinadamente em que nada fosse feito sob pressão de Moscou.

           Numa certa manhã Woody tinha algumas horas vagas e então aproveitou-as para ir à casa dos pais de Bella.

           O bairro elegante em que a família morava não ficava muito longe do Hotel Fairmont, situado em Nob Hill, mas Woody ainda estava usando uma bengala, por isso pegou um táxi. A casa era uma mansão vitoriana pintada de amarelo na Gough Street. A mulher que abriu a porta estava bem-vestida demais para ser uma criada. Recebeu-o com um sorriso de viés igualzinho ao de Bella: com certeza era sua mãe.

           – Bom dia, senhora – disse ele, educado. – Meu nome é Woody Dewar. Conheci Bella Hernandez em Londres no ano passado e gostaria de revê-la, se for possível.

           O sorriso dela desapareceu. A mulher o examinou demoradamente e disse:

           – Então é o senhor.

           Woody não tinha ideia do que ela estava falando.

           – Meu nome é Caroline Hernandez, sou a mãe de Isabel – disse ela. – Entre.

           – Obrigado.

           Ela não lhe estendeu a mão para um cumprimento e se comportava de forma abertamente hostil, embora não desse nenhuma pista do motivo. Mesmo assim, Woody conseguira entrar na casa.

           A Sra. Henandez o conduziu até uma sala de estar espaçosa e agradável, com uma estonteante vista para o mar. Apontou para uma cadeira, indicando-lhe que se sentasse; o gesto beirou a grosseria. Então acomodou-se diante dele e o encarou com o olhar duro.

           – Quanto tempo o senhor passou com Bella na Inglaterra? – perguntou.

           – Só algumas horas. Mas não parei de pensar nela desde então.

           Houve outra pausa cheia de subentendidos e então ela prosseguiu:

           – Quando foi para Oxford, Bella estava de casamento marcado com Victor Rolandson, um rapaz maravilhoso que a conhece desde pequena. Os Rolandson são velhos amigos meus e de meu marido... ou melhor, eram, até Bella voltar para casa e romper o noivado.

           O coração de Woody se encheu de esperança.

           – Ela disse apenas que tinha percebido que não era apaixonada por Victor. Imaginei que tivesse conhecido outra pessoa e agora sei quem foi.

           – Eu não fazia ideia de que ela fosse noiva – disse Woody.

           – Ela usava um anel de brilhante que dificilmente passaria despercebido. Seu fraco poder de observação causou uma tragédia.

           – Sinto muito – desculpou-se Woody. Então disse a si mesmo que deixasse de ser um banana. – Ou melhor, não sinto, não – emendou. – Estou muito feliz por ela ter rompido o noivado, porque eu a considero absolutamente maravilhosa e a quero para mim.

           A Sra. Hernandez não gostou nada disso.

           – O senhor é bem atrevido, meu jovem.

           Woody ficou subitamente ressentido com aquele tratamento arrogante.

           – Sra. Hernandez, foi a senhora que acabou de usar a palavra “tragédia”. Minha noiva Joanne morreu nos meus braços em Pearl Harbor. Meu irmão Chuck morreu metralhado na praia de Bougainville. No Dia D, mandei cinco rapazes americanos para a morte na tentativa de tomar uma ponte numa cidadezinha minúscula chamada Église-des-Soeurs. Eu sei bem o que é tragédia. E um noivado rompido está longe disso.

           O desabafo a deixou espantada. Woody imaginou que ela raramente enfrentasse a resistência dos mais jovens. Ela não respondeu nada, mas empalideceu de leve. Depois de alguns instantes, levantou-se e saiu da sala sem dar nenhuma explicação. Woody não soube muito bem o que deveria fazer, mas ainda não tinha visto Bella, então ficou sentado e aguardou.

           Cinco minutos depois, Bella apareceu.

           Woody se levantou, com o coração acelerado. A simples visão da moça o fez sorrir. Ela usava um vestido simples amarelo-claro que realçava os cabelos escuros lustrosos e a pele morena. Sempre ficaria bonita usando roupas desprovidas de adereços, pensou ele, igualzinho a Joanne. Teve vontade de abraçá-la e apertar aquele corpo macio de encontro ao seu, mas esperou que ela lhe desse algum sinal.

           Bella parecia nervosa e pouco à vontade.

           – O que está fazendo aqui? – perguntou.

           – Vim procurar você.

           – Por quê?

           – Porque não consigo tirá-la da cabeça.

           – Nós nem nos conhecemos.

           – Podemos dar um jeito nisso a partir de hoje mesmo. Quer jantar comigo?

           – Não sei.

           Ele atravessou a sala até onde ela estava.

           Ela ficou surpresa ao vê-lo usando a bengala.

           – O que houve com você?

           – Levei um tiro no joelho, na França. Está melhorando aos poucos.

           – Sinto muito.

           – Bella, acho você maravilhosa. E acredito que também goste de mim. Nenhum de nós dois está comprometido. Qual é o problema?

           Ela deu aquele sorriso de viés do qual ele tanto gostava.

           – Acho que estou com vergonha. Por causa do que fiz naquela noite em Londres.

           – Só isso?

           – Foi muito para um primeiro encontro.

           – Aquele tipo de coisa acontecia o tempo todo. Não comigo necessariamente, mas ouvi falar. Você pensou que eu fosse morrer.

           Ela assentiu.

           – Nunca fiz nada daquele tipo, nem mesmo com Victor. Não sei o que me deu. E no meio de um parque público! Fiquei me sentindo uma prostituta.

           – Eu sei exatamente o que você é – disse Woody. – Uma moça inteligente, linda, com um coração de ouro. Então, por que não esquecemos aquela noite em Londres e começamos a nos conhecer, como os dois jovens respeitáveis e bem-criados que somos?

           Ela começou a ceder.

           – Podemos mesmo fazer isso?

           – Claro.

           – Então tudo bem.

           – Posso buscá-la às sete?

           – Tudo bem.

           Aquilo era uma deixa para ele ir embora, mas Woody hesitou.

           – Você não sabe como estou feliz por tê-la reencontrado – falou.

           Ela o encarou pela primeira vez.

           – Ah, Woody, eu também. Estou muito feliz! – Então o abraçou pela cintura.

           Era o que ele queria. Retribuindo o abraço, afundou o rosto naqueles cabelos volumosos. Passaram vários instantes assim.

           Por fim, ela se afastou.

           – Nos vemos às sete – falou.

           – Sem falta.

           Ele saiu da casa envolto numa aura de felicidade.

           De lá, foi direto para uma reunião do comitê diretivo no Prédio dos Veteranos, ao lado da Ópera. Quarenta e seis representantes estavam sentados em volta da mesa comprida, com assessores como Gus Dewar sentados mais atrás. Woody, que era assessor de um assessor, sentou-se encostado na parede.

           Molotov, ministro soviético das Relações Exteriores, foi o primeiro a discursar. Não era um homem impressionante, pensou Woody. Com os cabelos já rareando na testa, um bigode bem-cortado e óculos, parecia um vendedor de loja, profissão exercida por seu pai. Mas Molotov tinha resistido muito tempo na vida política bolchevique. Amigo de Stalin desde antes da Revolução, era o arquiteto do pacto nazi-soviético de 1939. Trabalhador incansável, as longas horas que passava à mesa de trabalho havim lhe rendido o apelido de “Cu de Pedra”.

           Ele propôs que a Bielorrússia e a Ucrânia fossem aceitas como membros originais das Nações Unidas. Assinalou que essas duas repúblicas soviéticas eram as que mais haviam sofrido com a invasão nazista e que cada uma delas contribuíra com mais de um milhão de homens para o Exército Vermelho. O argumento de que não eram totalmente independentes de Moscou já tinha sido usado, mas o mesmo se podia dizer do Canadá e da Austrália, territórios do Império Britânico que haviam sido aceitos como membros independentes.

           A votação foi unânime. Woody sabia que tudo fora previamente combinado. Os países latino-americanos tinham ameaçado se retirar a menos que a Argentina, que apoiava Hitler, fosse aceita, e essa concessão havia sido feita para garantir seus votos.

           Então veio a bomba: o primeiro-ministro tcheco, Jan Masaryk, levantou-se para falar. Ele era um célebre liberal e antinazista que saíra na capa da revista Time em 1944. Masaryk propôs que a Polônia também fosse aceita nas Nações Unidas.

           Os americanos se opunham à inclusão da Polônia até que Stalin autorizasse a realização de eleições naquele país, e Masaryk, como democrata, deveria ter apoiado essa posição, sobretudo porque ele mesmo também estava tentando criar uma democracia com Stalin olhando o tempo todo por cima do seu ombro. Molotov devia ter pressionado Masaryk sobremaneira para levá-lo a trair seus ideais daquela forma. De fato, quando o tcheco se sentou, tinha a expressão de quem acabara de tomar um remédio amargo.

           Gus Dewar também tinha o semblante sério. Os acordos feitos anteriormente – em relação à Bielorrússia, à Ucrânia e à Argentina – deveriam ter garantido o bom andamento da sessão. Mas agora Molotov tinha usado um golpe inesperado.

           Sentado com a delegação americana, o senador Vandenberg ficou indignado. Sacou uma caneta e um bloquinho e começou a escrever furiosamente. Um minuto depois, arrancou a folha do bloquinho, acenou para Woody, entregou-lhe o recado e disse:

           – Leve isso ao secretário de Estado.

           Woody foi até a mesa, curvou-se por cima do ombro de Stettinius, pôs o papel na sua frente e disse:

           – O senador Vandenberg mandou que eu lhe entregasse isto, secretário.

           – Obrigado.

           Woody voltou para sua cadeira junto à parede. Essa foi minha participação na história, pensou. Tinha dado uma olhada no recado antes de entregá-lo. Vandenberg escrevera rapidamente um discurso curto e arrebatado de recusa à proposta tcheca. Será que Stettinius faria o que o senador estava pedindo?

           Se Molotov conseguisse o que queria em relação à Polônia, Vandenberg poderia sabotar as Nações Unidas no Senado. No entanto, se Stettinius seguisse agora a estratégia de Vandenberg, Molotov poderia se levantar e ir embora, o que também aniquilaria as Nações Unidas.

           Woody prendeu a respiração.

           Stettinius se levantou, com o recado de Vandenberg na mão.

           – Acabamos de honrar nossos compromissos assumidos com a Rússia em Yalta – informou. Ele estava se referindo ao acordo feito pelos Estados Unidos de apoiar as candidaturas de Bielorrúsia e Ucrânia. – Outras obrigações de Yalta também exigem cumprimento. – Ele estava usando as palavras escritas por Vandenberg. – É preciso instaurar um governo provisório novo e representativo na Polônia.

           Um murmúrio chocado percorreu o recinto. Stettinius estava desafiando Molotov. Woody olhou para Vandenberg. O senador não cabia em si de tanta satisfação.

           – Antes que isso aconteça – prosseguiu Stettinius –, esta conferência não pode, em sã consciência, reconhecer o governo de Lublin. – Ele olhou diretamente para Molotov e repetiu as palavras exatas de Vandenberg: – Isso seria uma sórdida demonstração de má-fé.

           Molotov adotou uma expressão enfurecida.

           O ministro das Relações Exteriores britânico, Anthony Eden, empertigou seu corpo longilíneo e levantou-se para apoiar Stettinius. Seu tom foi de uma cortesia impecável, mas suas palavras foram duras:

           – Meu governo não tem como saber se o povo polonês apoia o governo provisório – afirmou –, porque nossos aliados soviéticos não permitem a entrada de observadores britânicos na Polônia.

           Woody sentiu que a reunião estava se virando contra Molotov. Era óbvio que o russo tinha a mesma impressão: ele conversava com seus assessores em voz alta o suficiente para que Woody distinguisse a raiva em sua voz. Mas será que iria se retirar?

           O ministro das Relações Exteriores belga, careca, baixo e gordo, com uma papada avantajada, sugeriu um meio-termo: fez uma proposta expressando a esperança de que o novo governo polonês se organizasse a tempo de estar representado ali, em São Francisco, antes do fim da conferência.

           Todos olharam para Molotov. Ele tinha a possibilidade de sair com dignidade daquela situação. Mas será que aceitaria?

           Apesar da expressão zangada, o russo concordou com um leve mas perceptível meneio de cabeça.

           E foi o fim da crise.

           Ora, pensou Woody, duas vitórias no mesmo dia. As coisas parecem estar correndo bem.

 

           Carla saiu para a fila da água.

           Fazia dois dias que as torneiras estavam secas. Por sorte, as donas de casa berlinenses tinham descoberto que, a cada poucos quarteirões, a cidade dispunha de bombas de rua antiquadas, havia muito sem uso, conectadas a poços artesianos. Por incrível que parecesse, apesar de enferrujadas e meio emperradas, as bombas ainda funcionavam. Assim, todo dia de manhã, as mulheres faziam fila com seus baldes e jarros.

           Os bombardeios aéreos haviam cessado, supostamente porque o inimigo se encontrava às portas da cidade. Mas ainda era perigoso andar na rua, pois a artilharia do Exército Vermelho estava atacando Berlim. Carla não sabia muito bem por que eles estavam se dando esse trabalho. A maior parte da cidade já estava destruída. Quarteirões inteiros e áreas ainda maiores tinham sido completamente destruídos. Todos os serviços de fornecimento estavam interrompidos. Nenhum ônibus ou trem circulava mais. Os desabrigados se contavam aos milhares, talvez milhões. A cidade não passava de um imenso campo de refugiados. Mesmo assim, os projéteis continuavam a cair. A maioria dos habitantes passava o dia nos porões de casa ou em abrigos antiaéreos públicos. Mas todos tinham que sair para buscar água.

           No rádio, pouco antes de a energia ser cortada de vez, a BBC anunciara que o campo de concentração de Sachsenhausen fora libertado pelo Exército Vermelho. Sachsenhausen ficava ao norte de Berlim, o que indicava que os soviéticos, vindos do leste, estavam cercando a capital em vez de entrar direto. A mãe de Carla deduziu que os russos queriam manter afastadas as forças americanas, britânicas, francesas e canadenses, que se aproximavam rapidamente pelo oeste. Maud havia citado Lenin: “Quem controla Berlim controla a Alemanha, e quem controla a Alemanha controla a Europa.”

           Mas o Exército alemão não havia se rendido. Mesmo em desvantagem numérica, com menos armamentos, pouca munição e gasolina, e passando fome, eles perseveravam. Os líderes continuavam mandando soldados para tentar resistir a inimigos mais fortes, e os soldados alemães obedeciam às ordens, lutavam com energia e coragem, e morriam às centenas de milhares. Entre esses soldados estavam os dois homens que Carla mais amava: Erik, seu irmão, e Werner, seu namorado. Ela não tinha a menor ideia de onde eles estavam lutando ou se ainda estavam vivos.

           Carla havia desmantelado a rede de espionagem. O combate estava se transformando em caos, e planos de batalha não significavam quase nada. As informações secretas de Berlim tinham pouco valor para os conquistadores soviéticos. Não valia mais a pena correr riscos para obtê-las. Os espiões tinham queimado seus manuais de código e escondido seus transmissores entre os escombros dos prédios bombardeados. Haviam jurado nunca mencionar seus feitos. Tinham sido corajosos, encurtado a guerra e salvado vidas. No entanto, esperar que o povo alemão derrotado visse as coisas sob essa perspectiva era ser otimista demais. Sua coragem deveria permanecer para sempre secreta.

           Enquanto Carla aguardava sua vez na fila, um esquadrão da Juventude Hitlerista, de ação antitanques, passou em direção ao leste, ao combate. Era composto por dois homens na casa dos 50 anos e uma dezena de adolescentes, todos de bicicleta. Presas na frente de cada bicicleta estavam duas das novas peças de artilharia antitanque de um só tiro chamadas Panzerfäuste. Os uniformes estavam folgados demais nos adolescentes, e seus capacetes largos teriam parecido cômicos não fosse sua situação lamentável. Estavam indo enfrentar o Exército Vermelho.

           Caminhavam para a morte.

           Carla olhou para outro lado quando eles passaram: não queria se lembrar de seus rostos.

           Quando estava enchendo o balde, Frau Reichs, que estava atrás dela na fila, perguntou-lhe em voz baixa, para que ninguém mais ouvisse:

           – A senhorita é amiga da mulher do médico, não é?

           Carla ficou tensa. Frau Reichs obviamente estava se referindo a Hannelore Rothmann. O doutor tinha desaparecido junto com os pacientes psiquiátricos do Hospital Judaico. Rudi, filho de Hannelore, jogara fora a estrela amarela e juntara-se aos judeus que viviam na clandestinidade, conhecidos como “U-Boote”, submarinos, na gíria de Berlim. Mas Hannelore, que não era judia, continuava na velha casa.

           Por 12 anos uma pergunta como a que Carla acabara de ouvir – a senhorita é amiga da mulher de um judeu? – teve o peso de uma acusação. O que representaria agora? Carla não sabia. Frau Reichs era apenas uma conhecida; não podia confiar nela. Carla fechou a torneira.

           – O Dr. Rothmann era médico da nossa família quando eu era pequena – respondeu, cautelosa. – Por quê?

           A outra mulher assumiu seu lugar junto à bica e começou a encher um latão de óleo de cozinha.

           – Frau Rothmann foi levada embora – disse ela. – Achei que a senhorita fosse querer saber.

           Aquilo era muito comum. Pessoas eram “levadas embora” o tempo todo. Quando acontecia com alguém próximo, contudo, era uma punhalada no coração.

           De nada adiantava tentar descobrir o que havia acontecido com eles – na verdade, era até perigoso: quem fazia perguntas sobre desaparecidos costumava sumir também. Ainda assim, Carla teve que indagar:

           – A senhora sabe para onde ela foi levada?

           Dessa vez houve resposta:

           – Para o campo de trânsito da Schulstrasse. – Ao ouvir aquilo, Carla se encheu de esperança. – Fica no antigo Hospital Judaico, em Wedding. Sabe onde é?

           – Sei, sim.

           Carla às vezes trabalhava no hospital, ilegalmente, então sabia que o governo havia ocupado um dos prédios, o laboratório de patologia, e cercado a área com arame farpado.

           – Espero que ela esteja bem – comentou Frau Reichs. – Ela foi boa comigo quando minha Steffi adoeceu.

           A mulher fechou a torneira e se afastou com seu latão cheio d’água.

           Carla seguiu apressada na direção oposta, a caminho de casa.

           Tinha que fazer alguma coisa por Hannelore. Era quase impossível tirar alguém de um campo, mas, agora que tudo estava desmoronando, talvez houvesse um jeito.

           Levou o balde até sua casa e o entregou a Ada.

           Maud tinha ido para a fila de compra de comida. Carla vestiu seu uniforme de enfermeira, pensando que o traje talvez pudesse ajudar. Explicou para Ada aonde estava indo e tornou a sair.

           Teve que ir a pé até Wedding. A caminhada era de uns quatro quilômetros. Perguntou-se se valeria a pena. Mesmo que encontrasse Hannelore, provavelmente não conseguiria ajudá-la. Mas então pensou em Eva, em Londres, e em Rudi, escondido em algum lugar de Berlim: como seria terrível se perdessem a mãe nas últimas horas da guerra. Ela precisava tentar.

           A polícia do Exército estava nas ruas, detendo os passantes e verificando seus documentos. Trabalhavam em grupos de três, formando tribunais sumários, e interessavam-se principalmente por homens em idade de combater. Não incomodaram Carla, vestida com seu uniforme de enfermeira.

           Era estranho ver, naquela paisagem urbana bombardeada, as esplendorosas macieiras e cerejeiras cheias de botões brancos e cor-de-rosa, e ouvir, nos instantes de silêncio entre duas explosões, os pássaros cantarem com a mesma alegria de qualquer primavera.

           Para seu horror, Carla viu vários homens enforcados em postes de rua, alguns de uniforme. A maioria dos cadáveres tinha um cartaz pendurado no pescoço com as palavras “Covarde” ou “Desertor”. Sabia que tinham sido condenados pelos tribunais de três integrantes que coalhavam as ruas. Será que os nazistas ainda não estavam satisfeitos com toda aquela matança? Carla teve vontade de chorar.

           Por causa de bombardeios de artilharia, foi forçada a procurar abrigo três vezes. Na última, a poucas centenas de metros do hospital, pareceu-lhe que soviéticos e alemães lutavam a poucas ruas dali. O tiroteio era tão cerrado que Carla sentiu-se tentada a dar meia-volta. Hannelore provavelmente já estava condenada, talvez até morta. Por que Carla deveria sacrificar a própria vida também? Mas seguiu em frente mesmo assim.

           Quando chegou a seu destino, a noite já havia caído. O hospital ficava na Iranische Strasse, na esquina com a Schulstrasse. As árvores que margeavam as ruas estavam cobertas de folhas novas. O prédio do laboratório, agora transformado em campo de trânsito, estava vigiado. Carla cogitou abordar o vigia e explicar sua missão, mas essa estratégia lhe pareceu pouco promissora. Imaginou se conseguiria entrar pelo sistema de túneis sem ser notada.

           Entrou no prédio principal. O hospital estava funcionando. Todos os pacientes tinham sido removidos para o subsolo e túneis. Os profissionais trabalhavam à luz de lamparinas a óleo. Pelo cheiro, Carla concluiu que a descarga dos banheiros não estava funcionando. A água era trazida em baldes de um velho poço no jardim.

           Para sua surpresa, soldados traziam companheiros feridos para receber tratamento. De repente não se importavam mais com o fato de os médicos e enfermeiras serem judeus.

           Seguiu um túnel que passava por baixo do jardim até o subsolo do laboratório. Conforme imaginava, havia um vigia na porta. No entanto, o rapaz da Gestapo olhou para seu uniforme e acenou para que ela passasse, sem interrogá-la. Talvez não visse mais finalidade alguma naquele trabalho de guarda.

           Carla agora estava dentro do campo. Perguntou-se se conseguiria sair com a mesma facilidade.

           O cheiro ali estava pior, e ela logo entendeu por quê. O subsolo estava abarrotado. Centenas de pessoas se espremiam em quatro depósitos. Estavam sentadas ou deitadas no chão; as mais sortudas se apoiavam nas paredes. Estavam todas sujas, fedidas e exaustas. Olharam para Carla com expressão desinteressada.

           Ela levou apenas alguns minutos para encontrar Hannelore.

           A esposa do médico nunca fora bonita, mas antigamente era uma mulher imponente, de traços fortes. Agora estava macilenta, como a maioria dos outros berlinenses, e tinha os cabelos grisalhos e sem vida. Suas faces estavam encovadas e enrugadas de preocupação.

           Hannelore conversava com uma adolescente que estava naquela fase em que uma menina pode parecer voluptuosa demais para sua idade: seios e quadris de mulher, mas rosto de criança. A menina estava sentada no chão, aos prantos, enquanto Hannelore, ajoelhada ao seu lado, segurava sua mão e falava em voz baixa e tranquilizadora.

           Ao ver Carla, ela se levantou e exclamou:

           – Meu Deus! O que você está fazendo aqui?

           – Pensei que, se eu disser a eles que você não é judia, talvez eles a deixem ir embora.

           – Que coragem!

           – Seu marido salvou muitas vidas. Alguém tinha que salvar a sua.

           Por um instante, Carla pensou que Hannelore fosse chorar. Sua expressão pareceu prestes a desmoronar. Ela então piscou e balançou a cabeça.

           – Esta é Rebecca Rosen – falou, com voz controlada. – Os pais dela morreram hoje na explosão de um projétil.

           – Sinto muito, Rebecca – disse Carla. A menina ficou calada. – Quantos anos você tem? – perguntou Carla.

           – Vou fazer 14.

           – Você vai ter que ser madura agora.

           – Por que não morri também? – lamentou-se a menina. – Estava bem ao lado deles. Deveria ter morrido. Agora estou sozinha.

           – Você não está sozinha – disse Carla depressa. – Nós estamos aqui. – Tornou a se virar para Hannelore. – Quem é o responsável por isto aqui?

           – Walter Dobberke.

           – Vou dizer a ele que precisa deixar a senhora partir.

           – Ele já foi embora hoje. E seu sub é um sargento que tem o cérebro do tamanho de uma ervilha. Olhe, ali vem Gisela. Ela é amante de Dobberke.

           A moça que se aproximava era graciosa, com longos cabelos louros e pele branca e sedosa. Ninguém olhou para ela. Seu rosto exibia uma expressão desafiadora.

           – Eles fazem sexo no leito da sala de eletrocardiograma, no andar de cima – explicou Hannelore. – Em troca, recebe comida a mais. Ninguém fala com ela, só eu. É que eu não acho que possamos julgar os outros pelos acordos que fazem. Afinal, estamos vivendo num inferno.

           Carla não tinha tanta certeza. Não ficaria amiga de uma moça judia que fosse para a cama com um nazista.

           Gisela olhou para Hannelore e se aproximou.

           – Ele recebeu novas ordens – falou, tão baixo que Carla teve que se esforçar para ouvir. Então hesitou.

           – E? – insistiu Hannelore. – Quais são as ordens?

           A voz de Gisela se transformou num sussurro:

           – Fuzilar todo mundo que está aqui.

           Carla sentiu um aperto no peito, como se a mão fria de alguém o tivesse espremido. Todas aquelas pessoas – inclusive Hannelore e a jovem Rebecca.

           – Walter não quer fazer isso – continuou Gisela. – Na verdade, não é um homem mau.

           – Quando ele deve nos matar? – indagou Hannelore com uma calma fatalista.

           – Imediatamente. Mas primeiro ele quer destruir os registros. Hans-Peter e Martin estão pondo as pastas no crematório neste exato momento. É um trabalho demorado, então ainda temos algumas horas. Talvez o Exército Vermelho chegue a tempo de nos salvar.

           – Ou talvez não – disse Hannelore, firme. – Existe algum jeito de o convencermos a desobedecer às ordens? Pelo amor de Deus, a guerra praticamente acabou!

           – Antigamente eu conseguia convencê-lo a fazer qualquer coisa – disse Gisela, triste. – Mas ele está se cansando de mim. Vocês sabem como são os homens.

           – Mas ele deveria pensar no próprio futuro. A qualquer momento, os Aliados estarão mandando aqui. Eles vão punir os crimes nazistas.

           – Se estivermos todos mortos, quem poderá acusá-lo? – indagou Gisela.

           – Eu – respondeu Carla.

           As outras duas a encararam sem dizer nada.

           Então Carla se deu conta de que, mesmo não sendo judia, seria fuzilada para não poder testemunhar.

           Tentando ter alguma ideia, ela disse:

           – Se Dobberke nos poupar, talvez isso possa ajudá-lo com os Aliados.

           – É uma ideia – respondeu Hannelore. – Poderíamos todos assinar uma declaração dizendo que ele salvou nossas vidas.

           Carla olhou para Gisela como quem faz uma pergunta. Apesar da expressão de dúvida, a moça disse:

           – Talvez ele aceite.

           Hannelore olhou em volta.

           – Olhem, ali está Hilde – falou. – Ela serve de secretária para Dobberke. – Ela chamou a outra mulher e explicou-lhe o plano.

           – Posso datilografar os documentos de liberação para todo mundo – disse Hilde. – Então pedimos a ele que os assine antes de lhe entregarmos a declaração.

           Não havia guardas ali no subsolo, apenas no térreo e no túnel, de modo que os prisioneiros podiam se movimentar livremente. Hilde foi até o cômodo que servia de escritório subterrâneo para Dobberke. Primeiro, datilografou a declaração. Hannelore e Carla percorreram o subsolo explicando o plano e fazendo todo mundo assinar. Enquanto isso, Hilde datilografou os documentos de liberação.

           Quando terminaram, já era o meio da noite. Não havia mais nada que pudessem fazer até Dobberke aparecer na manhã seguinte.

           Carla se deitou no chão ao lado de Rebecca Rosen. Não havia outro lugar onde dormir.

           Algum tempo depois, a menina começou a chorar baixinho.

           Carla não soube muito bem o que fazer. Queria reconfortá-la, mas nenhuma palavra lhe ocorreu. O que dizer para uma criança que acabara de ver os pais morrerem? O choro abafado prosseguiu. Por fim, Carla acabou rolando para o outro lado e abraçando Rebecca.

           Soube imediatamente que havia feito a coisa certa. A menina se aninhou junto a ela, com a cabeça em seu peito. Carla afagou-lhe as costas como se ela fosse um bebê. Aos poucos, os soluços se acalmaram, e Rebecca enfim adormeceu.

           Carla não dormiu. Passou a noite inteira proferindo discursos imaginários para o comandante do campo. Ora apelava aos princípios dele, ora o ameaçava com a justiça Aliada, e às vezes ainda argumentava em nome do interesse do próprio comandante.

           Tentou não pensar no processo de fuzilamento. Erik havia lhe contado como os nazistas executavam pessoas na Rússia, 12 de cada vez. Imaginou que eles também fossem ter um sistema eficaz ali. Era difícil pensar nisso. Talvez fosse melhor assim.

           Provavelmente conseguiria escapar ao fuzilamento caso fosse embora do campo agora, ou assim que amanhecesse. Não era prisioneira, não era judia, e seus documentos estavam em perfeita ordem. Poderia sair pelo mesmo lugar por onde entrara, vestida com seu uniforme de enfermeira. Mas isso significaria abandonar tanto Hannelore quanto Rebecca. Não conseguia se forçar a fazer isso, por mais que ansiasse sair dali.

           O combate nas ruas do lado de fora do hospital prosseguiu até as primeiras horas da madrugada, quando houve uma breve pausa. Quando o dia raiou, foi retomado. Agora estava próximo o suficiente para, além da artilharia, Carla poder ouvir também as rajadas de metralhadora.

           Bem cedo de manhã, os guardas trouxeram um panelão de sopa rala e um saco cheio de pedaços descartados de pães velhos. Carla tomou a sopa e comeu o pão, depois, com relutância, foi ao banheiro, cuja imundície era indescritível.

           Então, junto com Hannelore, Gisela e Hilde, subiu ao térreo para esperar Dobberke. Os projéteis haviam voltado a cair, e elas estavam correndo perigo a cada segundo que passavam fora do subsolo, mas queriam falar com o comandante assim que ele chegasse.

           Dobberke não apareceu no horário habitual. Segundo Hilde, ele costumava ser pontual. Talvez estivesse atrasado por causa dos combates nas ruas. Poderia também ter sido morto, é claro. Carla torceu para que não. Seu sub, o sargento Ehrenstein, era burro demais para escutar qualquer argumento.

           Quando Dobberke já estava uma hora atrasado, Carla começou a perder as esperanças.

           Uma hora mais tarde, ele chegou.

           – O que é isso? – perguntou, ao ver as quatro mulheres esperando por ele no saguão. – Uma reunião de mães?

           Foi Hannelore que respondeu:

           – Todos os prisioneiros assinaram uma declaração dizendo que o senhor salvou suas vidas. Esse documento pode salvar a sua vida, se o senhor aceitar nossos termos.

           – Não seja ridícula – retrucou ele.

           – Segundo a BBC, as Nações Unidas têm uma lista com os nomes dos oficiais nazistas que participaram de assassinatos em massa – disse Carla. – Daqui a uma semana, o senhor pode ser julgado. Não gostaria de ter uma declaração assinada afirmando que poupou vidas?

           – É crime escutar a BBC – disse ele.

           – Mas não tão grave quanto assassinato.

           Hilde tinha uma pasta na mão.

           – Já datilografei ordens de soltura para todos os prisioneiros – disse ela. – Se o senhor as assinar, nós lhe daremos a declaração.

           – Eu poderia simplesmente tomá-la.

           – Ninguém jamais acreditará na sua inocência se estivermos todos mortos.

           Dobberke sentia raiva por estar naquela situação, mas não tinha segurança suficiente para simplesmente virar as costas.

           – Eu poderia fuzilar vocês por insolência – ameaçou.

           – A derrota é assim – retrucou Carla, impaciente. – Pode ir se acostumando.

           O semblante do nazista ficou sombrio de raiva, e ela percebeu que tinha ido longe demais. Desejou poder retirar o que acabara de dizer. Ficou encarando a expressão furiosa de Dobberke, tentando não demonstrar medo.

           Nesse exato instante, um projétil caiu em frente ao hospital. As portas sacudiram e uma janela se espatifou. Todos se encolheram instintivamente, mas ninguém se feriu.

           Quando tornaram a se empertigar, a expressão de Dobberke havia mudado. A raiva fora substituída por algo que parecia resignação misturada com repulsa. O coração de Carla acelerou. Será que ele havia desistido?

           O sargento Ehrenstein se aproximou correndo.

           – Ninguém se feriu, comandante – informou.

           – Ótimo, sargento.

           Ehrenstein estava prestes a entrar novamente quando Dobberke o chamou de volta.

           – Este campo está fechado a partir de agora – falou.

           Carla prendeu a respiração.

           – Fechado, comandante? – Além de espanto, a voz do sargento tinha um tom agressivo.

           – Novas ordens. Diga aos homens que eles podem ir... – Dobberke hesitou. – Diga-lhes que se apresentem no bunker ferroviário da estação da Friedrichstrasse.

           Carla sabia que Dobberke estava inventando aquilo, e Ehrenstein também pareceu desconfiar.

           – Quando, comandante?

           – Agora mesmo.

           – Agora mesmo. – Ehrenstein ficou parado, como se aquelas palavras suscitassem maiores esclarecimentos.

           Dobberke sustentou seu olhar.

           – Muito bem, comandante – disse o sargento. – Vou avisar os homens. – E então se retirou.

           Carla sentiu uma onda de triunfo, mas disse a si mesma que ainda não estava livre.

           – Mostre-me a declaração – disse Dobberke a Hilde.

           Hilde abriu a pasta. Esta continha uma dúzia de folhas de papel, todas com as mesmas palavras datilografadas no cabeçalho e o restante do espaço coberto de assinaturas. Entregou-lhe os papéis.

           Dobberke os dobrou e guardou no bolso.

           Hilde então pôs diante dele os formulários de soltura.

           – Assine aqui, por favor.

           – Vocês não precisam de mandados de liberação – disse ele. – Não tenho tempo de assinar meu nome centenas de vezes. – Ele se levantou.

           – A polícia está nas ruas – disse Carla. – Estão enforcando gente nos postes. Precisamos de documentos.

           Ele apalpou o bolso.

           – Se encontrarem esta declaração, eu é que serei enforcado. – Ele se encaminhou para a porta.

           – Walter, leve-me com você! – gritou Gisela.

           O comandante se virou para ela e falou:

           – Levar você comigo? O que minha mulher diria?

           Então saiu e bateu a porta.

           Gisela caiu em prantos.

           Carla foi até a porta, a abriu e ficou olhando Dobberke se afastar. Não havia nenhum outro agente da Gestapo à vista: todos já tinham obedecido às ordens do comandante e abandonado o campo.

           Quando chegou à rua, Dobberke começou a correr.

           Deixou o portão aberto.

           Em pé ao lado de Carla, Hannelore assistia a tudo com uma expressão incrédula.

           – Estamos livres, acho – disse Carla.

           – Temos que contar aos outros.

           – Eu conto – falou Hilde. Ela desceu a escada que conduzia ao subsolo.

           Cheias de medo, Carla e Hannelore percorreram o caminho que separava a entrada do laboratório do portão aberto. Então hesitaram e se entreolharam.

           – Estamos com medo de ser livres – disse Hannelore.

           Atrás delas, uma voz de menina exclamou:

           – Carla, não vá embora sem mim!

           Era Rebecca, que vinha correndo pelo caminho com os seios balançando sob a blusa encardida.

           Carla suspirou. Ganhei uma filha, pensou. Não estou pronta para ser mãe, mas o que posso fazer?

           – Então vamos – falou. – Mas prepare-se para correr.

           Percebeu que não precisava se preocupar com a agilidade de Rebecca: a menina com certeza era capaz de correr mais depressa que Carla e Hannelore.

           Elas atravessaram o jardim do hospital até o portão principal. Ali, pararam e olharam para os dois lados da Iranische Strasse. A rua parecia tranquila. Elas atravessaram e correram até a esquina. Quando Carla olhou para a Schulstrasse, ouviu uma rajada de metralhadora e constatou que mais acima estava havendo um tiroteio. Viu soldados alemães recuarem na sua direção, perseguidos por homens do Exército Vermelho.

           Olhou em volta. Não havia onde se esconder a não ser atrás das árvores, que não proporcionavam quase nenhuma proteção.

           Um obus aterrissou no meio da rua, cinquenta metros mais adiante, e explodiu. Carla sentiu o impacto, mas não foi ferida.

           Sem dizer nada umas para as outras, as três correram de volta para o terreno do hospital.

           Retornaram ao prédio do laboratório. Alguns dos outros prisioneiros estavam em pé junto ao arame farpado, como se não se atrevessem a sair.

           – O subsolo está cheirando mal, mas neste momento é o lugar mais seguro – disse-lhes Carla.

           Ela entrou no prédio e desceu a escada, e a maioria dos outros a seguiu.

           Perguntou-se quanto tempo teria que ficar ali. O Exército alemão seria obrigado a se render, mas quando? De alguma forma, quaisquer que fossem as circunstâncias, não conseguia imaginar Hitler se entregando. Toda a vida daquele homem tinha se baseado em gritos arrogantes de que ele era o chefe. Como alguém assim podia reconhecer que estava errado, que era estúpido e mau? Que havia assassinado milhões de pessoas e feito o país ser devastado pelas bombas? Que iria entrar para a história como o homem mais cruel que já existira? Não, não era possível. Ele iria enlouquecer, morrer de vergonha ou então pôr uma pistola na boca e puxar o gatilho.

           Mas quanto tempo isso levaria para acontecer? Um dia ainda? Uma semana? Mais?

           Gritos se fizeram ouvir no andar de cima.

           – Eles chegaram! Os russos chegaram!

           Carla ouviu botas pesadas descendo a escada. Onde eles tinham conseguido botas tão boas? Com os americanos?

           Então eles entraram: quatro, seis, oito, nove homens de rosto sujo, armados com submetralhadoras de carregador tipo tambor, prontos para matar com a mesma rapidez com que olhavam para você. Pareceram ocupar um espaço enorme. Embora estivessem ali para libertar aquelas pessoas, houve quem recuasse ao vê-los.

           Os soldados avaliaram o ambiente. Viram que aqueles prisioneiros emaciados, em sua maioria mulheres, não representavam perigo algum. Baixaram as armas. Alguns entraram nos cômodos adjacentes.

           Um soldado alto arregaçou a manga esquerda. Usava seis ou sete relógios de pulso. Gritou alguma coisa em russo enquanto apontava para os relógios com a coronha da arma. Carla pensou ter entendido o que ele estava dizendo, mas quase não conseguiu acreditar. Então o homem agarrou uma mulher idosa, levantou a mão dela e apontou para sua aliança de casamento.

           – Eles vão nos levar o pouco que os nazistas não roubaram? – perguntou Hannelore.

           Sim. O soldado alto adquiriu uma expressão frustrada e tentou tirar a aliança da mulher. Ao entender o que ele queria, ela mesma tirou o anel e entregou a ele.

           O russo pegou a aliança, assentiu, então indicou o recinto em volta.

           Hannelore deu um passo à frente.

           – Essas pessoas são prisioneiras! – disse ela, em alemão. – São judeus ou parentes de judeus, perseguidos pelos nazistas!

           Quer tenha entendido ou não, ele não lhe deu atenção, apenas continuou apontando com insistência para os relógios que trazia no braço.

           Os poucos que ainda tinham algum objeto de valor que não houvesse sido roubado nem trocado por comida os entregaram.

           A liberação pelo Exército Vermelho não seria o acontecimento feliz que tantos ansiavam.

           Mas o pior ainda estava por vir.

           O soldado alto apontou para Rebecca.

           Ela se encolheu para longe dele e tentou se esconder atrás de Carla.

           Um segundo homem, baixinho e louro, pegou Rebecca e a arrastou para longe. A menina gritou, e o baixinho sorriu como se aquele som lhe agradasse.

           Carla teve a terrível sensação de que sabia o que iria acontecer.

           O baixinho segurou Rebecca com firmeza enquanto o mais alto apertava seus seios com violência, e então disse algo que fez ambos rirem.

           As pessoas em volta puseram-se a gritar em protesto.

           O mais alto ergueu a arma. Carla se apavorou, com medo de que ele atirasse. Se puxasse o gatilho de uma submetralhadora naquele recinto lotado, deixaria dezenas de mortos e feridos.

           Os outros também perceberam o perigo e se calaram.

           Os dois soldados recuaram em direção à porta levando Rebecca. A menina berrava e se debatia, mas não conseguia se soltar.

           Quando eles chegaram à porta, Carla deu um passo à frente e gritou:

           – Esperem!

           Algo na voz dela os fez parar.

           – Ela é jovem demais – disse Carla. – Tem só 13 anos! – Não teve certeza se eles entenderam. Ergueu as duas mãos para mostrar dez dedos, depois uma só, com três. – Treze!

           O soldado alto pareceu compreendê-la. Abriu um sorriso e disse, em alemão:

           – Frau ist Frau. – Mulher é mulher.

           Para a própria surpresa, Carla se pegou dizendo:

           – Vocês precisam de uma mulher de verdade. – Andou lentamente até eles. – Levem a mim em vez dela. – Tentou dar um sorriso sedutor. – Não sou criança. Sei o que fazer. – Ela chegou mais perto, o suficiente para sentir o cheiro azedo de um homem que não tomava banho havia meses. Tentando ocultar a repulsa, baixou a voz e completou: – Sei do que um homem precisa. – Levou a mão ao próprio seio em um gesto sugestivo. – Deixem a criança em paz.

           O soldado alto olhou outra vez para Rebecca. Os olhos da menina estavam vermelhos de tanto chorar e seu nariz escorria, fazendo-a parecer mais criança e menos mulher.

           Ele tornou a olhar para Carla.

           – Tem uma cama lá em cima – disse ela. – Querem que eu lhes mostre?

           Mais uma vez, não teve certeza se ele havia entendido, mas pegou-o pela mão e o fez segui-la pela escada que conduzia ao térreo.

           O louro soltou Rebecca e foi atrás.

           Agora que tinha conseguido o que queria, Carla se arrependeu de sua bravata. Sua vontade era se desvencilhar dos russos e sair correndo. Mas eles certamente a matariam a tiros, depois voltariam para pegar Rebecca. Carla pensou na menina arrasada que acabara de perder os pais. Ser estuprada no dia seguinte com certeza iria destruí-la para sempre. Carla tinha que salvá-la.

           Isso não vai me destruir, pensou Carla. Posso superar uma coisa dessas. Voltarei a ser eu mesma depois.

           Conduziu os dois soldados até a sala de eletrocardiograma. Sentiu frio, como se seu coração estivesse congelando, e seus pensamentos ficaram embotados. Ao lado da cama havia uma lata do lubrificante que os médicos usavam para melhorar a condutividade dos eletrodos. Depois de tirar a calcinha, pegou uma boa dose de lubrificante e passou na vagina. Talvez aquilo a impedisse de sangrar.

           Precisava manter a farsa. Tornou a se virar para os dois soldados. Horrorizada, viu três outros seguirem os colegas para dentro da sala. Tentou sorrir, mas não conseguiu.

           Deitou-se de costas e abriu as pernas.

           O soldado alto se ajoelhou diante dela. Com um puxão, rasgou a blusa de seu uniforme para expor os seios. Ela pôde ver que ele estava se acariciando para fazer o pênis ficar ereto. Ele se deitou por cima dela e a penetrou. Carla disse a si mesma que aquilo não tinha nenhuma relação com o que ela e Werner tinham vivido juntos.

           Virou a cabeça para o lado, mas o soldado segurou seu queixo e tornou a virar seu rosto de frente, obrigando-a a encará-lo. Carla fechou os olhos. Sentiu que ele a beijava e tentava enfiar a língua em sua boca. Seu hálito cheirava a carne podre. Quando ela fechou a boca, o soldado lhe deu um soco na cara. Ela gritou e abriu a boca ferida para ele. Tentou pensar no quão pior teria sido aquilo para uma menina virgem de 13 anos.

           O soldado soltou um grunhido e ejaculou dentro dela. Carla tentou não deixar o nojo transparecer em seu rosto.

           O homem então saiu de cima dela e o louro baixinho tomou seu lugar.

           Carla tentou fechar a própria mente e transformar o corpo em algo independente, um tipo de máquina, um objeto sem qualquer relação com ela. Aquele não quis beijá-la, mas chupou seus seios e mordeu-lhe os mamilos. Quando ela gritou de dor, pareceu satisfeito e mordeu com mais força.

           O tempo passou, e ele também ejaculou.

           Um terceiro soldado deitou em cima dela.

           Carla percebeu que, quando aquilo tudo terminasse, não poderia tomar um banho, pois não havia água corrente na cidade. Esse pensamento passou a dominar todos os outros. Os fluidos daqueles homens estariam dentro de seu corpo, o cheiro entranhado em sua pele, a saliva em sua boca, e ela não teria como se lavar direito. De alguma forma, isso foi pior do que todo o restante. Toda sua coragem se evaporou, e ela começou a chorar.

           O terceiro soldado se satisfez, e então o quarto se deitou sobre ela.

             

1945 (II)

            Adolf Hitler se matou dentro de seu bunker em Berlim, no dia 30 de abril de 1945, uma segunda-feira. Exatamente uma semana depois, em Londres, às 19h40, o Ministério da Informação anunciou a rendição da Alemanha. Foi decretado feriado para o dia seguinte, terça-feira, 8 de maio.

           Sentada à janela de seu apartamento em Piccadilly, Daisy assistia às comemorações. A rua estava apinhada de gente, tornando o tráfego de carros e ônibus quase impraticável. As moças beijavam qualquer homem de uniforme, e milhares de soldados sortudos tiravam proveito da situação. No início da tarde, muitos já estavam bêbados. Pela janela aberta, Daisy pôde ouvir cantos ao longe e imaginou que a multidão em frente ao Palácio de Buckingham estivesse entoando o hino patriótico “Land of Hope and Glory”, “terra de esperança e glória”. Ela compartilhava aquela felicidade, mas Lloyd estava em algum lugar da França ou da Alemanha e era o único soldado que tinha vontade de beijar. Rezou para que ele não houvesse sido morto nas últimas horas da guerra.

           Millie, irmã de Lloyd, passou no apartamento com os dois filhos. Seu marido, Abe Avery, também estava em algum lugar com o Exército. Millie e as crianças tinham ido ao West End participar das comemorações e foram ao apartamento de Daisy para descansar um pouco da confusão. Havia muito tempo a casa dos Leckwith, em Aldgate, era um refúgio para Daisy, e ela ficou feliz por poder retribuir. Preparou um chá para Millie – os criados estavam na rua comemorando – e serviu suco de laranja para as crianças. Lennie agora tinha 5 anos e Pammie, 3.

           Desde que Abe fora convocado, era Millie quem administrava o negócio deles. Sua cunhada, Naomi Avery, cuidava da contabilidade, mas a responsável pelas vendas do couro era ela.

           – Tudo vai mudar agora – disse Millie. – Nos últimos cinco anos, a demanda foi por couros resistentes para botas e sapatos. Agora precisaremos de couros mais macios, pelica e pele de porco, para bolsas e pastas. Quando o mercado de luxo ressurgir, finalmente poderemos ganhar um bom dinheiro.

           Daisy lembrou que seu pai pensava do mesmo modo que Millie. Lev era um homem que também olhava sempre para a frente, em busca de novas oportunidades.

           Eva Murray apareceu logo depois, com os quatro filhos a tiracolo. Jamie, de 8 anos, organizou uma brincadeira de pique-esconde, e o apartamento ficou parecendo um jardim de infância. Jimmy, marido de Eva, que agora era coronel, também estava em algum lugar da França ou da Alemanha, e Eva vivia a mesma agonia que Daisy e Millie.

           – Teremos notícias deles a qualquer momento – disse Millie. – Então tudo terá acabado de vez.

           Eva também estava desesperada por notícias da família, que ficara em Berlim. Achava, porém, que levaria semanas, ou mesmo meses, até se saber o destino de civis alemães no caos do pós-guerra.

           – Fico me perguntando se meus filhos um dia vão conhecer os avós – disse ela com tristeza.

           Às cinco da tarde, Daisy preparou uma jarra de martíni. Millie entrou na cozinha e, com a rapidez e a eficiência que lhe eram peculiares, arrumou um prato de torradas com sardinha para acompanhar os drinques. Eth e Bernie chegaram bem na hora em que Daisy preparava a segunda jarra.

           Bernie contou que Lennie já sabia ler e Pammie cantava o hino nacional do Reino Unido.

           – Isso é típico dos avôs: eles sempre acham que os netos são as únicas crianças inteligentes do mundo – comentou Ethel, mas Daisy percebeu que, no fundo, estava igualmente orgulhosa das crianças.

           Na metade do segundo martíni, sentindo-se relaxada e feliz, Daisy olhou para o grupo heterogêneo ali reunido. Aquelas pessoas lhe tinham dado a honra de aparecer na sua casa sem convite, sabendo que seriam bem-recebidas. Faziam parte da sua vida agora. Eram a sua família.

           Sentiu-se profundamente abençoada.

 

           Sentado em frente à sala de Leo Shapiro, Woody Dewar examinava uma pilha de fotografias. Eram as imagens que tinha feito em Pearl Harbor na hora anterior à morte de Joanne. O filme permanecera meses dentro da câmera, mas por fim ele mandara revelar e ampliar as fotos. Ficara tão triste ao vê-las que as guardara numa gaveta em seu quarto no apartamento de Washington e as deixara mofando lá dentro.

           Mas agora era uma época de mudanças.

           Jamais esqueceria Joanne, mas estava apaixonado outra vez. E Bella sentia o mesmo por ele. Ao se despedirem na estação de trem de Oakland, perto de São Francisco, ele lhe dissera que a amava, e ela respondera:

           – Também te amo.

           Ele a pediria em casamento. Já poderia ter feito isso antes, mas lhe parecera prematuro – havia menos de três meses que tinham se reencontrado –, e ele não queria dar ao hostil casal Hernandez nenhum pretexto para se opor.

           Além do mais, precisava tomar uma decisão em relação ao seu futuro.

           Não queria entrar para a política.

           Sabia que isso deixaria seus pais chocados. Os dois sempre haviam acreditado que Woody seguiria os passos do pai e se tornaria o terceiro senador Dewar. Ele próprio confirmara essa suposição sem hesitar. Durante a guerra, porém, e sobretudo enquanto estava no hospital, ficara se perguntando o que realmente desejava fazer caso sobrevivesse; e a resposta não fora ser político.

           O momento era bom para ele sair. Seu pai havia realizado a ambição de uma vida inteira. O Senado aceitara discutir as Nações Unidas, que agora se encontravam no mesmo ponto da história em que a antiga Liga das Nações havia naufragado, uma lembrança dolorosa para Gus Dewar. O senador Vandenberg, no entanto, fizera um discurso fervoroso a favor da nova organização, mencionando “o sonho mais caro da humanidade”, e a Carta das Nações Unidas fora ratificada por 89 votos a dois. A missão estava cumprida. Woody não decepcionaria o pai se abandonasse a vida política agora.

           Torcia para que Gus também pensasse assim.

           Shapiro abriu a porta da sala e acenou para ele. Woody se levantou e entrou.

           Shapiro era mais jovem do que Woody imaginava: 30 e poucos anos. Era o chefe do escritório da Agência Nacional de Imprensa na capital. Sentado atrás de sua mesa, perguntou:

           – O que posso fazer pelo filho do senador Dewar?

           – Gostaria de lhe mostrar algumas fotos, se me permitir.

           – Pois não.

           Woody espalhou as fotografias sobre a mesa.

           – Isso é Pearl Harbor? – indagou Shapiro.

           – É. No dia 7 de dezembro de 1941.

           – Meu Deus!

           Woody estava vendo as fotografias de cabeça para baixo, mas ainda assim elas deixaram seus olhos marejados. Viu Joanne, tão linda; e depois Chuck, sorrindo de felicidade por estar com a família e com Eddie. Em seguida viu os aviões se aproximando, as bombas e torpedos sendo lançados, as explosões de fumaça preta nos navios, e os marinheiros se jogando pelas amuradas, caindo no mar e nadando para se salvar.

           – Este aqui é seu pai. E esta é sua mãe – disse Shapiro reconhecendo os dois.

           – E esta aqui era minha noiva, que morreu minutos depois. Meu irmão, que morreu em Bougainville. E o melhor amigo do meu irmão.

           – Que fotos incríveis! Quanto quer por elas?

           – Não quero dinheiro – respondeu Woody.

           Shapiro o encarou, surpreso.

           – Quero um emprego.

 

           Duas semanas depois do Dia da Vitória na Europa, Winston Churchill convocou eleições gerais.

           A família Leckwith foi pega de surpresa. Assim como a maior parte da população britânica, Ethel e Bernie achavam que Churchill fosse esperar a rendição japonesa. O líder trabalhista Clement Attlee havia sugerido eleições em outubro. Churchill pegou todos desprevenidos.

           O major Lloyd Williams foi dispensado do Exército para se apresentar como candidato do Partido Trabalhista à vaga no Parlamento pelo distrito de Hoxton, no East End londrino. O futuro imaginado pelo partido lhe despertava um entusiasmo nervoso. O fascismo fora vencido e agora o povo britânico podia criar uma sociedade que aliasse liberdade e bem-estar. O Partido Trabalhista tinha um plano bem-elaborado para evitar as catástrofes dos últimos vinte anos: um seguro-desemprego universal e abrangente para ajudar as famílias a atravessarem os tempos difíceis, um planejamento econômico para evitar outra Depressão, e uma Organização das Nações Unidas para garantir a paz.

           – Você não tem a menor chance – comentou Bernie na cozinha da casa em Aldgate na segunda-feira, 4 de junho. Seu pessimismo foi ainda mais convincente por ser tão pouco característico. – Como Churchill ganhou a guerra, todos vão votar nos conservadores – prosseguiu ele, desanimado. – Aconteceu a mesma coisa com Lloyd George em 1918.

           Lloyd estava prestes a responder, mas Daisy falou primeiro:

           – Não foram o livre-comércio nem o empreendedorismo capitalista que venceram a guerra – disse ela, indignada. – Foram pessoas trabalhando juntas e dividindo obrigações, cada uma fazendo a sua parte. Socialismo é isso!

           Era nesses momentos arrebatados que Lloyd mais a amava, mas ele foi mais ponderado:

           – Já temos medidas que os velhos conservadores condenariam como bolchevistas: controle público das ferrovias, das minas e do transporte marítimo, por exemplo, tudo implementado por Churchill. Além disso, Ernie Bevin foi responsável pelo planejamento econômico durante toda a guerra.

           Bernie balançou a cabeça, um gesto de mais experiência que irritou Lloyd.

           – As pessoas votam com o coração, não com a cabeça – disse Bernie. – Vão querer mostrar sua gratidão.

           – Bem, de nada adianta ficar sentado aqui discutindo com você – retrucou Lloyd. – É melhor eu falar com os eleitores.

           Ele e Daisy pegaram um ônibus e desceram algumas paradas mais para o norte, no pub Black Lion, em Shoreditch, onde encontraram uma equipe encarregada de fazer campanha porta a porta para o Partido Trabalhista no distrito de Hoxton. Na verdade, como Lloyd bem sabia, esse método não consistia em conversar com os eleitores. Seu principal objetivo era identificar pessoas que já iriam votar nos trabalhistas para que, no dia do pleito, a máquina do partido pudesse garantir que todas elas comparecessem às urnas. Os trabalhistas decididos eram listados; aqueles que fossem votar em outros partidos eram riscados. Apenas quem ainda estivesse indeciso merecia mais do que alguns segundos de atenção: eram esses que tinham a chance de falar com o candidato.

           Lloyd confrontou-se com algumas reações negativas.

           – Major, é? – comentou uma mulher. – Meu Alf é cabo. Segundo ele, os oficiais quase nos fizeram perder a guerra.

           Houve também acusações de nepotismo.

           – O senhor não é filho da deputada por Aldgate? Por acaso isso é uma monarquia hereditária?

           Lembrou-se do conselho da mãe: “Nunca se conquista um voto provando que o eleitor é tolo. Seja encantador, modesto e nunca perca a paciência. Se um eleitor se mostrar hostil e grosseiro, agradeça-lhe por seu tempo e vá embora. Assim ele pensará que talvez o tenha julgado mal.”

           Os eleitores de classe operária eram trabalhistas fervorosos. Muitos elogiaram o trabalho de Attlee e Bevin durante a guerra. A maioria dos indecisos pertencia à classe média. Quando as pessoas diziam que Churchill tinha vencido a guerra, Lloyd citava a suave reprimenda de Attlee:

           – “O governo não foi de um homem só, assim como a guerra não foi de um homem só.”

           Churchill já descrevera Attlee como um homem modesto cheio de motivos para sê-lo. A inteligência de Attlee era menos brutal, e por isso mesmo mais eficaz; ao menos era essa a opinião de Lloyd.

           Alguns eleitores mencionaram o atual deputado por Hoxton, um liberal, e disseram que votariam nele outra vez porque ele os ajudara a resolver algum problema. Os membros do Parlamento muitas vezes eram solicitados por eleitores que sentiam estar sendo tratados de forma injusta pelo governo, ou por algum patrão ou vizinho. Era um trabalho que tomava tempo, mas também angariava votos.

           No fim das contas, Lloyd não soube dizer para que lado pendia a opinião pública.

           Somente um eleitor mencionou Daisy. O homem apareceu na porta com a boca cheia de comida.

           – Boa tarde, Sr. Perkinson – cumprimentou Lloyd. – Soube que o senhor queria me fazer uma pergunta.

           – Sua noiva era fascista – disse o homem, ainda mastigando.

           Lloyd imaginou que aquele senhor tivesse lido o Daily Mail, que publicara um artigo ferino sobre ele e Daisy intitulado O socialista e a viscondessa.

           Lloyd assentiu.

           – Ela foi enganada pelo fascismo por um curto período, assim como muitas outras pessoas.

           – Como um socialista pode se casar com uma fascista?

           Lloyd olhou em volta, viu Daisy e acenou para chamá-la.

           – O Sr. Perkinson está me perguntando sobre o fato de a minha noiva ter sido fascista.

           – Prazer em conhecê-lo, Sr. Perkinson. – Daisy apertou a mão do eleitor. – Entendo bem a sua preocupação. Meu primeiro marido foi fascista nos anos 1930, e eu o apoiei.

           Perkinson assentiu. Ele provavelmente pensava que uma esposa devesse abraçar as opiniões do marido.

           – Como fomos tolos... – prosseguiu Daisy. – Quando a guerra começou, porém, ele entrou para a RAF e lutou contra os nazistas com a mesma coragem de todo mundo.

           – É verdade?

           – No ano passado, ele estava pilotando um Typhoon na França, metralhando um trem de soldados alemães, quando foi abatido e morreu. Portanto, sou viúva de guerra.

           Perkinson engoliu a comida.

           – Lamento muito.

           Mas Daisy ainda não havia terminado:

           – Quanto a mim, passei a guerra toda em Londres. Dirigi uma ambulância durante a Blitz.

           – Que coragem a sua.

           – Bem, só espero que o senhor pense que tanto meu falecido marido quanto eu pagamos nossas dívidas.

           – Isso eu já não sei – retrucou Perkinson, carrancudo.

           – Não vamos mais tomar o seu tempo – disse Lloyd. – Obrigado por compartilhar suas opiniões comigo. Boa noite.

           Quando eles estavam se afastando, Daisy disse:

           – Acho que não conseguimos o voto dele.

           – Você nunca acha – comentou Lloyd. – Mas ele agora ouviu os dois lados da história, o que talvez o faça vociferar um pouco menos sobre o assunto hoje à noite, quando falar sobre nós no pub.

           – Pode ser.

           Lloyd sentiu que não tinha conseguido tranquilizar Daisy.

           Eles terminaram cedo o boca a boca, pois nessa noite começavam os programas eleitorais na rádio BBC, e todos os funcionários do partido estariam ouvindo. Churchill teria o privilégio de fazer a primeira transmissão.

           No ônibus para casa, Daisy disse:

           – Estou preocupada. Sou um problema para sua campanha.

           – Não existe candidato perfeito – respondeu Lloyd. – O que importa é como você lida com as suas fraquezas.

           – Não quero ser a sua fraqueza. Talvez devesse ficar fora do caminho.

           – Pelo contrário: quero que todos saibam sobre você desde o princípio. Se você for um problema, desistirei da política.

           – Nem pensar! Eu detestaria achar que o fiz desistir das suas ambições.

           – Não vai chegar a tanto – disse ele, mas novamente constatou que não conseguira aliviar a ansiedade da noiva.

           Na Nutley Street, a família Leckwith estava sentada em volta do rádio da cozinha. Daisy deu a mão a Lloyd.

           – Vim muito aqui enquanto você estava fora – disse ela. – Nós ficávamos ouvindo swing e falando de você.

           Pensar nisso fez Lloyd se sentir um homem de muita sorte.

           Churchill começou a falar. Sua voz rascante e familiar era animadora. Durante cinco anos sombrios, aquela voz dera às pessoas força, esperança e coragem. Lloyd ficou desanimado: até ele se sentia tentado a votar naquele homem.

           – Meus amigos – disse o primeiro-ministro. – Preciso lhes dizer que a política socialista é abominável para os ideais britânicos de liberdade.

           Aquelas eram as críticas de praxe. Qualquer ideia nova era condenada como importada do estrangeiro. Mas o que Churchill podia oferecer às pessoas? O Partido Trabalhista tinha um plano, mas qual seria a proposta dos conservadores?

           – O socialismo está intrinsecamente ligado ao totalitarismo – continuou Churchill.

           – Não é possível que ele vá fingir que somos iguais aos nazistas – comentou Ethel.

           – Acho que vai, sim – disse Bernie. – Dirá que derrotamos o inimigo no exterior e que agora temos que derrotá-lo no meio de nós. É a tática-padrão dos conservadores.

           – As pessoas não vão acreditar nisso – disse Ethel.

           – Shh! – resmungou Lloyd.

           – Um Estado socialista, uma vez completo, com todos os seus detalhes e sob todos os aspectos, não é capaz de tolerar oposição – afirmou Churchill.

           – Que absurdo! – exclamou Ethel.

           – Porém ouso ir ainda mais longe – prosseguiu Churchill. – Declaro a vocês, do fundo do meu coração, que nenhum sistema socialista pode se estabelecer sem uma polícia política.

           – Polícia política? – repetiu Ethel, indignada. – De onde ele está tirando essas coisas?

           – De certa forma, isso é bom – afirmou Bernie. – Como não consegue encontrar nada para criticar em nosso manifesto, está nos atacando pelas coisas que na verdade não estamos propondo. Que mentiroso.

           – Vamos ouvir! – gritou Lloyd.

           – Eles teriam que recorrer a alguma forma de Gestapo – disse Churchill.

           De repente, todos se puseram de pé e começaram a protestar. Não se conseguiu mais ouvir a voz do primeiro-ministro.

           – Seu maldito! – gritou Bernie, brandindo o punho para o rádio Marconi. – Seu maldito, maldito!

           Quando eles se acalmaram, Ethel perguntou:

           – Será que vai ser essa a campanha deles? Um monte de mentiras a nosso respeito?

           – Droga! É isso mesmo! – disse Bernie.

           – Mas será que as pessoas vão acreditar? – perguntou Lloyd.

 

           No sul do Novo México, não muito longe de El Paso, há um deserto chamado Jornada del Muerto, a Viagem do Morto. Durante todo o dia, um sol inclemente castiga a paisagem feita de arbustos de algarobo e iúcas com suas folhas em forma de lança, habitada por escorpiões e cascavéis, formigas lava-pé e tarântulas. Ali, os integrantes do Projeto Manhattan testaram a arma mais mortífera que a raça humana já criara.

           Greg Peshkov acompanhou os cientistas que iam assistir à explosão a dez quilômetros de distância. Tinha duas esperanças: primeiro, que a bomba funcionasse; segundo, que os dez quilômetros de distância fossem suficientes.

           A contagem regressiva começou na segunda-feira, 16 de julho, nove minutos depois das cinco da manhã, no horário da região das montanhas dos Estados Unidos em vigor durante a guerra. O dia estava começando a despontar, e riscos dourados pintavam o céu a leste.

           O codinome do teste era Trinity, trindade. Quando Greg perguntara o motivo daquele nome, o chefe dos cientistas, um nova-iorquino judeu de orelhas pontudas chamado J. Robert Oppenheimer, respondera citando um poema de John Donne: “Castigue meu coração, ó Deus de três pessoas!”

           “Oppie” era o homem mais inteligente que Greg já conhecera. Além de ser o mais brilhante físico de sua geração, também falava seis idiomas. Tinha lido O capital, de Karl Marx, no original em alemão. Nas horas vagas, aprendia sânscrito. Greg tinha apreço e admiração por ele. A maioria dos físicos era estranha, mas Oppie, assim como o próprio Greg, era uma exceção: alto, vistoso, charmoso, e um verdadeiro sedutor.

           No meio do deserto, Oppie tinha instruído o Corpo de Engenheiros do Exército a construir uma torre de trinta metros de altura feita de vigas de aço fincadas em alicerces de concreto. Em cima da torre havia uma plataforma de madeira. A bomba fora içada até a plataforma no sábado.

           Os cientistas nunca usavam a palavra “bomba”: diziam “o artefato”. O centro era composto por uma esfera de plutônio, metal inexistente na natureza, subproduto das pilhas nucleares. A esfera pesava 4,5 quilos e continha todo o plutônio existente na face da Terra. Alguém havia calculado que valia um bilhão de dólares.

           Trinta e dois detonadores na superfície da esfera seriam disparados ao mesmo tempo, criando uma pressão interna tão forte que a densidade do plutônio aumentaria até ficar crítica.

           Depois disso, ninguém sabia muito bem o que poderia acontecer.

           Os cientistas tinham feito um bolão: por 1 dólar, era possível tentar adivinhar qual seria a força da explosão, medida em toneladas equivalentes de TNT. Edward Teller apostou que seria de 45 mil toneladas. Oppie apostou em 300. A previsão oficial era de 20 mil. Na noite anterior, Enrico Fermi sugerira aceitar apostas paralelas para saber se a detonação iria ou não aniquilar o estado do Novo México inteiro. O general Groves não achara nenhuma graça.

           Os cientistas haviam tido uma conversa muito séria sobre se a explosão iria incendiar a atmosfera da Terra e destruir o planeta, mas chegaram à conclusão de que não. Se estivessem enganados, Greg só torcia para que tudo fosse rápido.

           Inicialmente, o teste fora marcado para o dia 4 de julho. No entanto, sempre que os cientistas testavam um componente, este falhava, por isso a data fora adiada várias vezes. Em Los Alamos, no sábado, uma réplica batizada de Cópia Chinesa não explodira como deveria. No bolão, Norman Ramsey apostara em zero tonelada, prevendo que a bomba seria um fracasso.

           Nesse dia, a detonação estava marcada para as duas da manhã, mas bem nessa hora caíra um temporal – em pleno deserto! A chuva faria os destroços radioativos caírem na cabeça dos cientistas que observavam a explosão, que foi novamente adiada.

           O temporal terminou de madrugada.

           Greg estava dentro de um bunker chamado S-10000, que era a sala de controle. Como a maioria dos cientistas, encontrava-se de pé do lado de fora para ver melhor. A esperança e o medo travavam uma batalha em seu coração. Se a bomba desse errado, o esforço de centenas de pessoas – sem contar cerca de dois bilhões de dólares – de nada teria servido. E, se desse certo, talvez estivessem todos mortos em poucos minutos.

           Ao seu lado estava Wilhelm Frunze, jovem cientista alemão que ele conhecera em Chicago.

           – Will, o que teria acontecido se um raio tivesse atingido a bomba?

           Frunze deu de ombros.

           – Ninguém sabe.

           Um foguete de sinalização verde cruzou o céu, assustando Greg.

           – É o aviso de cinco minutos – explicou Frunze.

           A segurança tinha sido irregular. Santa Fé, a cidade mais próxima de Los Alamos, estava repleta de agentes do FBI bem-vestidos. Recostados casualmente nos muros com seus paletós de tweed e suas gravatas, a presença deles era evidente para os moradores da cidade, que só usavam jeans e botas de caubói.

           O FBI também estava grampeando ilegalmente os telefones de centenas de pessoas envolvidas no Projeto Manhattan. Isso deixara Greg perplexo. Como a mais importante agência de segurança pública do país podia cometer atos ilegais de forma sistemática?

           Apesar de tudo, a inteligência do Exército e o FBI tinham conseguido identificar alguns espiões e afastá-los discretamente do projeto, entre eles Barney McHugh. Mas será que tinham conseguido encontrar todos? Greg não sabia. Groves fora obrigado a correr riscos. Se tivesse demitido todo mundo que o FBI pedira, não teriam sobrado cientistas suficientes para produzir a bomba.

           Infelizmente, a maioria dos cientistas era radical, socialista e liberal. Quase nenhum era conservador. Todos acreditavam que as verdades reveladas pela ciência deveriam ser compartilhadas entre toda a humanidade e nunca mantidas secretas em nome de um determinado regime ou país. Assim, enquanto o governo americano mantinha sigilo absoluto em relação àquele imenso projeto, os cientistas organizavam grupos de discussão sobre o compartilhamento de tecnologia nuclear com todos os países do mundo. O próprio Oppie era alvo de suspeitas: só não pertencia ao Partido Comunista porque não tinha o costume de entrar para clubes.

           Nesse exato momento, Oppie estava deitado no chão ao lado de seu irmão mais novo, Frank, outro físico notável e também comunista. Ambos seguravam pedaços de vidro usado na fabricação de máscaras de soldador através dos quais poderiam observar a explosão. Greg e Frunze seguravam pedaços parecidos. Alguns dos cientistas usavam óculos escuros.

           Outro foguete sinalizador foi disparado.

           – Um minuto – disse Frunze.

           Greg ouviu Oppie dizer:

           – Meu Deus, essas coisas põem mesmo o coração à prova.

           Pensou se aquelas seriam as últimas palavras do cientista.

           Greg e Frunze se deitaram no chão arenoso ao lado de Oppie e Frank. Todos seguraram seus visores de soldador na frente dos olhos e viraram a cabeça em direção ao local do teste.

           Ali, diante da morte, Greg pensou na mãe, no pai e na irmã, Daisy, que morava em Londres. Perguntou a si mesmo se eles iriam sentir sua falta. Pensou, com um leve arrependimento, em Margaret Cowdry, que o havia trocado por um sujeito disposto a se casar com ela. Mas, sobretudo, pensou em Jacky Jakes e em Georgy, agora com 9 anos. Queria muito ver o menino crescer. Percebeu que era ele o principal motivo para querer continuar vivo. Sorrateiramente, Georgy havia entrado na sua alma e roubado o seu amor. A força desse sentimento deixou Greg surpreso.

           Ouviu-se o som de um gongo, que soou estranho no deserto.

           – Dez segundos.

           Greg teve o impulso de se levantar e sair correndo. Por mais bobo que isso fosse – que distância conseguiria percorrer em dez segundos? –, teve que se esforçar para ficar parado.

           A bomba explodiu às 5 horas, 29 minutos e 45 segundos.

           A primeira coisa que se viu foi um clarão impressionante, de um brilho quase inacreditável, a claridade mais intensa que Greg já vira, mais forte até que o sol.

           Então uma estranha cúpula de fogo pareceu brotar do chão. Com uma velocidade aterradora, elevou-se até uma altura monstruosa. Chegou ao mesmo nível das montanhas e continuou a subir, fazendo os picos parecerem minúsculos.

           – Meu Deus do céu... – sussurrou Greg.

           A cúpula se transformou num quadrado. A luz era mais forte que a do sol de meio-dia, e as montanhas ao longe ficaram tão iluminadas que Greg pôde distinguir cada curva, cada fenda, cada pedra.

           Então o formato mudou outra vez. Uma coluna surgiu na parte inferior e pareceu se elevar muitos quilômetros no céu, como o punho fechado de Deus. A nuvem de fogo acima da coluna se espalhou feito um guarda-chuva, até a coisa toda ficar parecendo um cogumelo de 11 quilômetros de altura. As cores da nuvem eram tons infernais de laranja, verde e roxo.

           Greg foi atingido por uma onda de calor, como se Deus houvesse aberto um forno gigante. Ao mesmo tempo, o estrondo da explosão atingiu seus ouvidos como o retumbar do Apocalipse. Mas isso foi só o começo. Um barulho semelhante a um trovão altíssimo rugiu pelo deserto, abafando todos os outros sons.

           A nuvem incandescente começou a baixar, mas o estrondo perdurou, sustentando-se de forma inacreditável, até Greg se perguntar se aquele seria o barulho do fim do mundo.

           Por fim, o rugido foi diminuindo, e a nuvem em forma de cogumelo começou a se dispersar.

           Greg ouviu Frank Oppenheimer dizer:

           – Funcionou.

           – É, funcionou – disse Oppie.

           Os dois irmãos cumprimentaram-se com um aperto de mãos.

           E o mundo continua aqui, pensou Greg.

           Mas agora está mudado para sempre.

 

           Lloyd Williamns e Daisy foram à prefeitura de Hoxton na manhã de 26 de julho para assistir à contagem dos votos.

           Se Lloyd perdesse, ela estava decidida a romper o noivado.

           Ele negava veementemente que ela fosse uma ameaça para sua carreira política, mas Daisy sabia que era. Os inimigos políticos de Lloyd faziam questão de chamá-la de “Lady Aberowen”. Eleitores reagiam a seu sotaque americano com uma atitude indignada, como se ela não tivesse o direito de participar da vida política britânica. Até mesmo os membros do Partido Trabalhista a tratavam de forma diferente, perguntando-lhe se ela preferia um café quando todos estavam tomando chá.

           Conforme Lloyd previra, muitas vezes ela havia conseguido superar a hostilidade inicial das pessoas comportando-se de forma natural e encantadora e ajudando as outras mulheres a lavar as xícaras de chá. Mas será que isso era suficiente? Os resultados da eleição seriam uma resposta definitiva.

           Daisy não iria se casar com Lloyd se isso implicasse que ele teria que abrir mão da carreira à qual dedicara toda a sua vida. Ele se dizia disposto a isso, mas era uma base frágil demais para um casamento. Daisy estremecia, horrorizada, ao imaginá-lo fazendo alguma outra coisa, trabalhando num banco ou como funcionário público, profundamente infeliz e tentando fingir que ela não tinha culpa. Pensar nisso era insuportável.

           Infelizmente, todos achavam que os conservadores iriam ganhar a eleição.

           Durante a campanha, algumas coisas tinham saído como os trabalhistas queriam. O discurso de Churchill sobre a “Gestapo” se provara um tiro no pé. Até mesmo os conservadores tinham se indignado. Clement Attlee, cujo discurso pelo Partido Trabalhista foi transmitido no dia seguinte, reagira com fria ironia:

           – Ontem à noite, quando ouvi o discurso do primeiro-ministro, no qual ele passou uma imagem tão deturpada da política do Partido Trabalhista, percebi na hora qual era o seu objetivo. Ele queria que os eleitores entendessem como era grande a diferença entre Winston Churchill, o grande líder de uma nação unida na guerra, e o Sr. Churchill, líder do Partido Conservador. Temia que aqueles que tinham aceitado sua liderança durante a guerra pudessem ser compelidos, por gratidão, a continuar a segui-lo. Agradeço a ele por ter decepcionado essas pessoas de forma tão plena.

           O altivo desprezo de Attlee fez parecer que Churchill estava querendo provocar uma briga. O povo estava farto de arrebatamento e raiva, pensou Daisy; com certeza, em tempos de paz, os eleitores iriam preferir a ponderação e o bom senso.

           Uma pesquisa da Gallup feita na véspera da eleição indicou vitória trabalhista, mas ninguém acreditou. George Gallup, que era americano, fizera uma previsão equivocada na última eleição presidencial dos Estados Unidos. A ideia de que se podia prever o resultado perguntando a um número pequeno de eleitores em quem eles iriam votar parecia meio estapafúrdia. O News Chronicle, jornal que publicara a pesquisa, previa um empate.

           Todos os outros veículos acreditavam na vitória dos conservadores.

           Daisy nunca havia se interessado pela mecânica da democracia, mas agora seu destino estava em jogo, e ela ficou observando, fascinada, os votos em papel serem retirados das urnas, separados, contados, empilhados e recontados. O supervisor da contagem era conhecido como Returning Officer, “funcionário do retorno”, dando a impressão de que havia passado algum tempo afastado. Na verdade, era um escrevente da prefeitura. Observadores de cada partido vigiavam a operação para garantir que não houvesse nenhum deslize ou trapaça. O processo era demorado e Daisy achou aquele suspense uma tortura.

           Às dez e meia, ouviram o primeiro resultado de outro distrito. Harold Macmillan, protegido de Churchill e membro do Gabinete durante a guerra, acabara de perder a vaga de Stockton-on-Tees para o Partido Trabalhista. Quinze minutos depois, veio a notícia de uma grande vitória trabalhista em Birmingham. Não eram permitidos rádios na prefeitura, por isso Daisy e Lloyd tinham que confiar nos boatos que vinham de fora, e ela não soube muito bem em que acreditar.

           Já era meio-dia quando o supervisor chamou os candidatos e seus assessores até um canto da sala para lhes comunicar o resultado antes de pronunciá-lo publicamente. Daisy quis acompanhar Lloyd, mas não foi permitido.

           O supervisor falou em voz baixa com o grupo reunido. Além de Lloyd e do deputado em exercício, havia um candidato conservador e outro comunista. Daisy analisou o rosto de cada um, mas não conseguiu adivinhar quem tinha ganhado. Então todos subiram ao palanque e o silêncio dominou a sala. Daisy chegou a ficar enjoada.

           – Eu, Michael Davies, na condição de supervisor eleitoral nomeado pela lei no distrito parlamentar de Hoxton...

           Em pé junto com os membros do Partido Trabalhista, Daisy não desgrudava os olhos de Lloyd. Será que estava prestes a perdê-lo? Pensar nisso lhe deu um aperto no peito e a fez ofegar de medo. Em sua vida, por duas ocasiões ela escolhera um homem totalmente errado. Charlie Farquharson era o contrário de seu pai: bondoso, porém fraco. Já Boy Fitzherbert era muito parecido com o dele: decidido e egoísta. Agora, finalmente, ela havia encontrado Lloyd, que era ao mesmo tempo forte e bondoso. Não o escolhera por causa de seu status social nem pelo que ele podia fazer por ela, mas apenas porque era um homem extraordinariamente bom. Era delicado, inteligente, confiável e tinha verdadeira adoração por ela. Daisy levara muito tempo para perceber que ele era o que ela procurava. Que boba tinha sido!

           O supervisor leu o número de votos obtidos por cada candidato. A lista era em ordem alfabética, então o nome Williams foi o último. De tão ansiosa, Daisy mal conseguiu memorizar os números.

           – Reginald Sidney Blenkinsop, cinco mil quatrocentos e vinte e sete...

           Quando o número de votos de Lloyd foi cantado, todos os trabalhistas em volta de Daisy explodiram em comemorações. Ela levou alguns instantes para entender o que isso significava: ele tinha vencido. Então viu sua expressão solene se transformar num largo sorriso. Começou a bater palmas e a gritar mais alto do que todos os outros. Ele tinha ganhado! E ela não precisava deixá-lo! Teve a sensação de que sua vida acabara de ser salva.

           – Declaro, portanto, que o novo membro do Parlamento eleito pelo distrito de Hoxton é Lloyd Williams.

           Lloyd era deputado. Quando ele deu um passo à frente para fazer o discurso de posse, Daisy assistiu, orgulhosa. Notou que havia uma fórmula para esses discursos e ouviu o noivo agradecer de forma tediosa ao supervisor eleitoral e sua equipe, depois aos opositores derrotados em uma luta justa. Estava impaciente para abraçá-lo. Ele terminou dizendo algumas frases sobre a tarefa que tinha pela frente: reconstruir a Grã-Bretanha dilacerada pela guerra e criar uma sociedade mais justa. Ao fim do discurso, novos aplausos ecoaram.

           Ao descer do palanque, ele foi direto até Daisy para lhe dar um abraço e um beijo.

           – Parabéns, meu amor – disse ela, antes de se dar conta de que estava sem palavras.

           Depois de algum tempo, os dois saíram e pegaram um ônibus até a sede do Partido Trabalhista, na Transport House. Lá souberam que os trabalhistas já tinham conquistado 106 assentos no Parlamento.

           Era uma vitória avassaladora.

           Todas as apostas estavam equivocadas, e as expectativas de todos foram contrariadas. Quando os resultados foram divulgados, o Partido Trabalhista havia conquistado 393 assentos, e o Partido Conservador, 210. Os liberais tinham 12 assentos e os comunistas, apenas um – o distrito de Stepney. A maioria trabalhista era acachapante.

           Às sete da noite, Winston Churchill, o grande líder da Grã-Bretanha durante a guerra, foi ao Palácio de Buckingham e renunciou ao cargo de primeiro-ministro.

           Daisy pensou nas piadas que Churchill fizera sobre Attlee. O homem que ele considerava insignificante acabara de lhe dar uma surra.

           Às sete e meia, Clement Attlee foi ao palácio de Buckingham em seu próprio carro conduzido por sua mulher, Violet, e o rei Jorge VI lhe pediu que se tornasse primeiro-ministro.

           Na casa da Nutley Street, depois de todos escutarem a notícia no rádio, Lloyd virou-se para Daisy e perguntou:

           – Bem, é isso. Podemos nos casar agora?

           – Sim – respondeu Daisy. – Quando você quiser.

 

           A recepção do casamento de Volodya e Zoya foi realizada num dos salões de banquete menores do Kremlin.

           A guerra contra a Alemanha havia terminado, mas a União Soviética continuava destruída e empobrecida, e uma celebração suntuosa teria sido vista com reprovação. Zoya usou um vestido novo, mas Volodya se casou de uniforme. A comida foi farta, e vodca foi servida à vontade para todos os convidados.

           Entre os presentes estavam os sobrinhos de Volodya, o casal de gêmeos de sua irmã Anya e de seu desagradável marido, Ilya Dvorkin. Ainda não haviam completado 6 anos. Dimka, o menino de cabelos escuros, ficou sentado quietinho lendo um livro, enquanto Tania, de olhos azuis, corria pelo salão trombando com as mesas e importunando os convidados: uma inversão do comportamento esperado de meninos e meninas.

           Zoya estava tão sexy com seu vestido cor-de-rosa que a vontade de Volodya era ir embora dali imediatamente e levá-la para a cama. É claro que isso estava fora de cogitação. O círculo de amigos de seu pai incluía alguns dos mais importantes generais e políticos do país, e muitos tinham ido brindar à felicidade do casal. Grigori dava indiretas de que um convidado extremamente distinto talvez aparecesse mais tarde. Volodya torceu para que não fosse Beria, o depravado chefe da NKVD.

           Apesar de sua felicidade, não conseguia esquecer por completo os horrores que tinha testemunhado e as profundas dúvidas que passara a ter em relação ao comunismo soviético. A indizível brutalidade da polícia secreta, os erros de Stalin que haviam custado milhares de vidas, a propaganda que incentivara o Exército Vermelho a se comportar como animais enfurecidos na Alemanha – tudo isso o levara a duvidar das coisas nas quais fora criado para acreditar. Preocupado, ele se perguntava em que tipo de país Dimka e Tania iriam crescer. Mas aquele não era um dia para pensar nisso.

           A elite soviética estava de bom humor. O país tinha vencido a guerra e derrotado a Alemanha. O Japão, seu velho inimigo, estava sendo combatido pelos Estados Unidos. O código de honra insano dos líderes japoneses tornava difícil uma rendição, mas isso era apenas uma questão de tempo. Tragicamente, enquanto eles se aferrassem à sua honra, mais soldados japoneses e americanos iriam morrer, e mais mulheres e crianças japonesas teriam que deixar suas casas bombardeadas. O resultado, porém, seria o mesmo. Por mais triste que fosse, não parecia haver nada que os americanos pudessem fazer para acelerar esse processo e evitar mortes desnecessárias.

           Embriagado e feliz, o pai de Volodya fez um discurso:

           – O Exército Vermelho ocupou a Polônia. Esse país nunca mais será usado como plataforma para uma invasão alemã à Rússia.

           Todos os velhos camaradas deram vivas e bateram nas mesas. Ele prosseguiu:

           – Na Europa Ocidental, os partidos comunistas estão apoiados pelas massas como nunca antes. Nas eleições municipais de Paris, em março, o Partido Comunista obteve o maior número de votos. Parabéns aos nossos camaradas franceses!

           Houve mais comemorações.

           – Quando olho para o mundo hoje, vejo que a Revolução Russa, na qual tantos homens de fibra lutaram e morreram... – Grigori se calou, e lágrimas embriagadas lhe subiram aos olhos. Um silêncio pairou no salão. Ele se recompôs. – Vejo que a Revolução nunca esteve tão firme quanto hoje!

           Todos ergueram os copos para brindar.

           – À Revolução! À Revolução!

           Enquanto todos bebiam, as portas se abriram de repente, e o camarada Stalin entrou no salão.

           Todos os convidados se levantaram.

           Stalin tinha os cabelos grisalhos e parecia cansado. Estava com 65 anos e ficara doente recentemente: segundo os boatos, tivera uma série de derrames ou pequenos infartos. Mas nesse dia ele estava muito animado.

           – Vim dar um beijo na noiva! – falou.

           Ele foi até Zoya e levou as mãos a seus ombros. Ela era quase dez centímetros mais alta que ele, mas conseguiu se abaixar discretamente. Ele a beijou nas faces, fazendo o bigode grisalho se demorar apenas o suficiente para deixar Volodya enciumado. Então se afastou dela e disse:

           – Que tal uma bebida para mim?

           Várias pessoas se apressaram em lhe buscar um copo de vodca. Grigori insistiu em ceder a Stalin seu lugar no centro da mesa principal. O burburinho das conversas voltou, embora num tom mais abaixo: todos estavam empolgados com a presença do líder, mas precisavam prestar atenção em cada palavra e em cada movimento. Aquele homem podia mandar matar alguém com um simples estalar dos dedos – coisa que já fizera muitas vezes.

           Mais vodca foi servida, e a banda começou a tocar músicas folclóricas russas. Aos poucos, os convidados relaxaram. Volodya, Zoya, Grigori e Katerina fizeram uma dança de dois pares chamada kadril, cuja intenção era ser cômica e que sempre fazia as pessoas rirem. Depois disso, outros casais dançaram, e os homens começaram a fazer a barynya, na qual tinham que se agachar e dar chutes, e muitos caíram no chão. Assim como todas as outras pessoas presentes no salão, Volodya não parava de observar Stalin pelo canto do olho, e este parecia estar se divertindo, batendo com o copo na mesa ao ritmo das balalaikas.

           Zoya e Katerina dançavam uma troika com Vasili, o chefe da noiva, renomado físico que trabalhava no projeto da bomba, e Volodya estava sentado descansando quando a atmosfera mudou.

           Um assessor usando um terno de civil entrou no salão, margeou o recinto com passo apressado e foi direto até Stalin. Sem a menor cerimônia, inclinou-se por cima do ombro do líder e falou-lhe em voz baixa, porém urgente.

           No início, Stalin pareceu não entender. Em seguida, fez uma pergunta incisiva, depois outra. Então sua expressão mudou. Ele empalideceu e pareceu olhar para os dançarinos sem vê-los.

           – O que pode ter acontecido? – perguntou Volodya entredentes.

           Os dançarinos ainda não tinham percebido, mas os convidados sentados às mesas pareciam assustados.

           Alguns instantes depois, Stalin se levantou. Por respeito, os que estavam à sua volta fizeram o mesmo. Volodya viu que seu pai continuava dançando. Pessoas já tinham sido fuziladas por menos que isso.

           Mas Stalin não estava prestando atenção nos convidados. Ladeado pelo assessor, ele se afastou da mesa. Atravessou a pista de dança em direção à porta. Convidados aterrorizados pularam para não atrapalhar seu caminho. Um casal caiu no chão. Mas Stalin não pareceu notar. A banda parou de tocar. Então, sem dizer nada nem olhar para ninguém, o líder soviético saiu do salão.

           Com ar assustado, alguns dos generais foram atrás dele.

           Outro assessor apareceu, depois mais dois. Cada um deles se encaminhou até seus superiores. Um rapaz de paletó de tweed se aproximou de Vasili. Zoya parecia conhecê-lo e ouviu com atenção o que ele dizia. A notícia pareceu deixá-la chocada.

           Vasili e o assessor saíram do salão. Volodya foi até Zoya e perguntou:

           – Pelo amor de Deus, o que está acontecendo?

           A voz dela tremia:

           – Os americanos jogaram uma bomba nuclear no Japão. – Seu lindo rosto pálido parecia ainda mais branco que o normal. – De início, o governo japonês não conseguiu entender o que acontecera. Levou horas para se dar conta do que tinha sido.

           – Temos certeza disso?

           – Treze quilômetros quadrados de construções foram arrasados. Segundo as estimativas, 75 mil pessoas morreram na hora.

           – Quantas bombas foram?

           – Uma.

           – Uma bomba só?

           – Sim.

           – Meu Deus! Não é de espantar que Stalin tenha ficado branco daquele jeito.

           Ambos se calaram. A notícia se espalhava visivelmente pelo salão. Algumas pessoas pareciam atordoadas; outras se reuniam em grupos e saíam para seus escritórios, telefones, mesas de trabalho.

           – Isso muda tudo – disse Volodya.

           – Inclusive nossos planos para a lua de mel – disse Zoya. – Com certeza minha folga vai ser cancelada.

           – Achamos que a União Soviética estivesse segura.

           – Seu pai acabou de fazer um discurso dizendo como a Revolução nunca esteve tão firme.

           – Agora nada mais está firme.

           – Não – concordou Zoya. – Só quando tivermos a nossa própria bomba.

 

           Jacky Jakes e Georgy estavam em Buffalo, hospedados pela primeira vez no apartamento de Marga. Greg e Lev também estavam lá e, no dia da vitória sobre o Japão – quarta-feira, 15 de agosto –, foram todos ao Humboldt Park. As trilhas do parque estavam cheias de casais eufóricos e centenas de crianças brincavam no lago.

           Greg estava feliz e orgulhoso. A bomba havia funcionado. Os dois artefatos lançados sobre Hiroshima e Nagasaki tinham causado uma devastação nauseante, mas também haviam abreviado a guerra e salvado milhares de vidas americanas. Greg tivera um papel nisso. Por causa do seu trabalho e do de seus colegas, Georgy iria crescer num mundo livre.

           – Georgy já está com 9 anos – disse ele a Jacky.

           Os dois estavam sentados num banco, conversando, enquanto Lev e Marga levavam o neto para comprar um sorvete.

           – Mal consigo acreditar.

           – Fico me perguntando o que ele vai fazer da vida.

           – Com certeza nada tão idiota quanto ser ator ou tocar trompete – respondeu Jacky, arrebatada. – Ele é um menino inteligente.

           – Você gostaria que ele fosse professor universitário como o seu pai?

           – Sim.

           – Nesse caso... – Greg estava mesmo preparando o terreno para abordar essa questão e ficou nervoso, sem saber como Jacky iria reagir. – ...ele deveria estudar numa boa escola.

           – Em que você está pensando?

           – Que tal um colégio interno? Ele poderia estudar na mesma escola em que estudei.

           – Mas ele seria o único aluno negro.

           – Não necessariamente. Quando eu era de lá, tínhamos um colega indiano, de Délhi, chamado Kamal.

           – Um só.

           – Sim.

           – E os outros pegavam no pé dele?

           – Claro. Nós o chamávamos de Camelo. Mas os meninos se acostumaram, e ele fez alguns amigos.

           – E você sabe que fim ele levou?

           – Virou farmacêutico. Ouvi dizer que já tem duas drogarias em Nova York.

           Jacky assentiu. Greg viu que ela não se opunha ao plano. Vinha de uma família letrada. Embora ela mesma houvesse se rebelado e largado os estudos, acreditava no valor da educação.

           – E a anuidade?

           – Eu poderia pedir ao meu pai.

           – E ele pagaria?

           – Olhe só para eles. – Greg apontou para a trilha do parque. Lev, Marga e Georgy estavam voltando da barraquinha de sorvete. Lev e Georgy caminhavam lado a lado, de mãos dadas, cada um comendo um sorvete de casquinha. – Meu pai conservador de mãos dadas com um menino negro num parque público. Acredite em mim: ele vai pagar!

           – Na verdade, Georgy não se encaixa em lugar nenhum – disse Jacky, parecendo preocupada. – É um menino negro com um pai branco.

           – Eu sei.

           – Os vizinhos do prédio da sua mãe acham que eu sou a empregada... você sabia?

           – Sabia.

           – Tomei o cuidado de não corrigi-los. Se eles soubessem que negros estão no prédio como convidados, poderia haver confusão.

           Greg deu um suspiro.

           – É... eu sinto muito, mas você tem razão.

           – A vida de Georgy vai ser difícil.

           – Eu sei – concordou Greg. – Mas ele tem a nós.

           Jacky lançou-lhe um raro sorriso.

           – É – disse ela. – Já é alguma coisa.

             

1945 (III)

            Depois de casados, Volodya e Zoya se mudaram para um apartamento próprio. Poucos russos recém-casados tinham a mesma sorte. Durante quatro anos, toda a potência industrial da União Soviética fora direcionada para a fabricação de armamentos. Quase nenhuma casa fora construída e muitas tinham vindo abaixo. Mas Volodya, que além de major da Inteligência do Exército Vermelho era filho de general, conseguira dar um jeito nisso.

           O apartamento era pequeno: uma sala de estar com mesa de jantar; um quarto tão apertado que a cama ocupava praticamente todo o espaço; uma cozinha que já ficava abarrotada com duas pessoas; um banheiro minúsculo com pia e chuveiro; e um hall diminuto com um armário para as roupas. Se o rádio estivesse ligado na sala, era possível ouvi-lo na casa toda.

           Eles logo deram seu toque pessoal ao novo lar. Zoya trouxe uma colcha amarelo-vivo para cobrir a cama. A mãe de Volodya lhes deu de presente um conjunto de panelas comprado em 1940, prevendo o casamento do filho, que fora conservado durante toda a guerra. Volodya pendurou um quadro na parede: uma foto da formatura da sua turma na Academia de Inteligência Militar.

           Os dois agora faziam amor com mais frequência. Estar a sós fazia uma diferença que Volodya não previra. Nunca se sentira particularmente inibido ao dormir com Zoya na casa dos pais ou no apartamento da família com a qual ela morava; mas agora percebia que isso tinha influência. Era preciso manter a voz baixa, ficar atento para que a cama não rangesse, e havia sempre a possibilidade, ainda que remota, de alguém os surpreender. Era impossível ter intimidade completa na casa dos outros.

           Eles muitas vezes acordavam cedo, faziam amor, depois passavam uma hora na cama, namorando e conversando, antes de se arrumarem para o trabalho. Numa dessas manhãs, deitado com a cabeça na coxa da mulher, ainda com o cheiro de sexo nas narinas, Volodya perguntou:

           – Você quer um chá?

           – Quero, por favor – respondeu ela, se espreguiçando com volúpia, reclinada nos travesseiros.

           Volodya vestiu um roupão e atravessou o minúsculo hall de entrada até a cozinha, onde acendeu o fogo sob o samovar. Ficou contrariado ao ver as panelas e a louça do jantar da véspera ainda empilhadas na pia.

           – Zoya! – gritou. – Esta cozinha está uma bagunça!

           Ela não teve nenhuma dificuldade para escutá-lo no apartamento pequeno.

           – Eu sei – retrucou.

           Ele voltou para o quarto.

           – Por que você não arrumou tudo ontem?

           – E você? Por que não arrumou?

           Ele nunca pensara que a responsabilidade pudesse ser sua. Mas respondeu:

           – Eu tinha um relatório para escrever.

           – E eu estava cansada.

           A sugestão de que aquilo era culpa dele o deixou irritado.

           – Odeio cozinha suja!

           – Eu também.

           Por que ela estava sendo tão teimosa?

           – Se não gosta, limpe!

           – Vamos limpar juntos agora mesmo. – Ela pulou da cama. Passou por ele com um sorriso sexy no rosto e entrou na cozinha.

           Volodya a seguiu.

           – Você lava, eu enxugo – disse Zoya, pegando um pano de prato limpo na gaveta.

           Ela continuava nua. Volodya não conseguiu reprimir um sorriso. O corpo de sua mulher era comprido e esguio, a pele muito branca. Zoya tinha seios pequenos e mamilos rijos, e seus pelos pubianos eram finos e louros. Uma das alegrias de estar casado com ela era seu costume de andar sem roupa pelo apartamento. Ele podia admirar seu corpo quanto quisesse. E ela parecia gostar disso. Quando o surpreendia, não demonstrava vergonha nenhuma, apenas sorria.

           Ele arregaçou as mangas do roupão e começou a lavar a louça, passando-a para Zoya secar. Aquela não era uma atividade muito máscula – Volodya nunca vira o pai executá-la –, mas Zoya parecia pensar que as tarefas domésticas deviam ser divididas. Era um conceito excêntrico. Será que ela simplesmente tinha uma noção muito desenvolvida do que era a justiça num casamento? Ou será que ele estava sendo castrado?

           Pensou ter ouvido alguma coisa do lado de fora. Olhou para o hall. A porta de entrada do apartamento ficava a apenas três ou quatro passos da cozinha, mas ele não viu nada fora do normal.

           Então a porta veio abaixo.

           Zoya gritou.

           Volodya pegou a faca de trinchar que acabara de lavar. Passou por Zoya e postou-se no limiar da porta da cozinha. Um policial de uniforme segurando um martelo estava de pé logo atrás da porta destruída.

           Volodya foi dominado pelo medo e pela raiva.

           – Que porra é essa?

           O policial deu um passo para trás, e um homem baixinho e magro, com cara de rato, entrou no apartamento. Era Ilya Dvorkin, cunhado de Volodya e agente da polícia secreta. Estava usando luvas de couro.

           – Ilya! – exclamou Volodya. – Seu rato de merda!

           – Olhe o respeito – retrucou Ilya.

           Além de zangado, Volodya não estava entendendo. A polícia secreta em geral não prendia agentes da Inteligência do Exército Vermelho e vice-versa. Caso contrário, a situação teria virado uma guerra de gangues.

           – Por que derrubou minha porta? Que merda! Eu teria aberto!

           Dois outros agentes entraram no hall e se posicionaram atrás de Ilya. Apesar do clima ameno de final de verão, estavam usando seus típicos sobretudos de couro.

           O medo somou-se à raiva de Volodya. O que estaria acontecendo?

           – Largue essa faca, Volodya – disse Ilya com a voz trêmula.

           – Não precisa ficar com medo – respondeu Volodya. – Eu estava apenas lavando a louça. – Ele entregou a faca a Zoya, em pé atrás dele. – Por favor, venha até a sala. Podemos conversar enquanto Zoya se veste.

           – Você acha que isto é uma visita social? – perguntou Ilya, indignado.

           – Seja o que for, tenho certeza de que você vai querer se poupar o constrangimento de ver minha mulher pelada.

           – Estou aqui por causa de um assunto oficial!

           – Neste caso, por que mandaram meu cunhado?

           Ilya baixou a voz:

           – Você não entende que seria muito pior se outra pessoa tivesse vindo?

           Aquilo parecia coisa séria. Volodya se esforçou para manter a aparência de coragem.

           – O que exatamente você e esses outros babacas querem?

           – O camarada Beria assumiu a direção do programa de física nuclear.

           Volodya já sabia. Stalin criara um novo comitê para dirigir os trabalhos e nomeara Beria presidente. Beria não sabia nada sobre física e era totalmente desqualificado para organizar um projeto de pesquisa científica. Mas Stalin confiava nele. Era o mesmo problema de sempre no governo soviético: pessoas incompetentes porém leais eram promovidas a cargos para os quais não estavam aptas.

           – E o camarada Beria precisa da minha mulher no laboratório, desenvolvendo a bomba – disse Volodya. – Você veio lhe dar uma carona até o trabalho?

           – Os americanos produziram uma bomba nuclear antes dos soviéticos.

           – É verdade. Será que deveríamos ter dado à pesquisa em física uma prioridade mais alta?

           – A ciência capitalista não pode ser superior à ciência comunista!

           – Que lugar-comum! – Volodya estava intrigado. Aonde aquilo levaria? – Então, qual é a sua conclusão?

           – Que deve ter havido sabotagem.

           Era exatamente o tipo de fantasia absurda que a polícia secreta seria capaz de inventar.

           – Que tipo de sabotagem?

           – Alguns dos cientistas atrasaram deliberadamente o desenvolvimento da bomba soviética.

           Volodya começou a entender e teve medo. Mesmo assim, continuou a responder em tom beligerante: demonstrar fraqueza com aquelas pessoas era sempre um erro.

           – Por que fariam isso?

           – Porque são traidores... E sua mulher é um deles!

           – É melhor você não estar falando sério, seu merda...

           – Vim aqui para prendê-la.

           – O quê? – Volodya estava estupefato. – Mas isso é uma loucura!

           – É a opinião da minha organização.

           – Não há provas.

           – Se quiser provas, vá a Hiroshima!

           Zoya falou pela primeira vez desde que havia gritado:

           – Tenho que ir com eles, Volodya. Não vá ser preso você também.

           Volodya apontou um dedo para Ilya.

           – Você não imagina a porra da encrenca em que se meteu.

           – Estou só cumprindo ordens.

           – Saia da frente. Minha mulher vai até o quarto se vestir.

           – Não há tempo para isso – retrucou Ilya. – Ela tem que vir como está.

           – Deixe de ser ridículo.

           Ilya empinou o nariz.

           – Uma cidadã soviética respeitável não anda pelo apartamento sem roupa.

           Por um breve instante Volodya se perguntou como a irmã se sentia sendo casada com aquele sujeito execrável.

           – A polícia secreta tem alguma objeção moral em relação à nudez?

           – A nudez dela é prova de sua degradação. Vamos levá-la como está.

           – Mas não vão mesmo!

           – Saia da frente.

           – Saia da frente você! Ela vai se vestir. – Volodya saiu para o hall e se pôs diante dos três agentes, estendendo os braços para que Zoya passasse por trás dele.

           Quando ela se moveu, Ilya esticou o braço por trás de Volodya e a segurou.

           Volodya deu um soco na cara do cunhado, depois outro. Ilya gritou e cambaleou para trás. Os dois homens de sobretudo de couro avançaram para cima dele. Volodya mirou um soco no primeiro, mas o agente se esquivou. Então os dois o seguraram, cada um por um braço. Ele se debateu, mas os homens eram fortes e pareciam já ter feito aquilo antes. Jogaram-no contra a parede.

           Enquanto eles o seguravam, Ilya lhe deu dois socos na cara com as mãos enluvadas, depois um terceiro e um quarto, e em seguida começou a esmurrá-lo na barriga, desferindo um golpe após outro até Volodya vomitar sangue. Zoya tentou intervir, mas Ilya acertou-a também, e ela gritou e caiu para trás.

           O roupão de Volodya se abriu na frente. Ilya lhe deu um chute no saco, depois nos joelhos. Já sem forças, Volodya não conseguia mais ficar em pé, mas os dois agentes de sobretudo o seguraram, e Ilya ainda lhe deu mais uns socos.

           Por fim, virou as costas, esfregando os nós dos dedos. Os outros dois soltaram Volodya, que desabou no chão. Mal conseguia respirar e sentia-se incapaz de se mover, mas estava consciente. Pelo canto do olho, viu os dois agentes segurarem Zoya e a carregarem, ainda nua, para fora do apartamento. Ilya os seguiu.

           Conforme os minutos foram passando, a dor deixou de ser uma agonia excruciante e se transformou num latejar fundo e difuso, e a respiração de Volodya começou a voltar ao normal.

           Ele recuperou os movimentos dos membros e se arrastou até ficar de pé. Conseguiu chegar ao telefone e discou o número do pai, torcendo para que ele ainda não tivesse saído para o trabalho. Ficou aliviado ao ouvir a voz de Grigori.

           – Eles prenderam Zoya – contou.

           – Filhos da puta – respondeu seu pai. – Quem?

           – Ilya.

           – O quê?

           – Dê uns telefonemas – pediu Volodya. – Veja se consegue descobrir que merda está acontecendo. Tenho que me lavar para limpar o sangue.

           – Que sangue?

           Volodya desligou.

           Apenas alguns passos o separavam do banheiro. Ele deixou cair no chão o roupão sujo de sangue e entrou no chuveiro. A água morna proporcionou certo alívio a seu corpo machucado. Ilya era cruel, mas não era forte, e não chegara a quebrar nenhum osso.

           Volodya fechou a torneira. Olhou-se no espelho do banheiro. Tinha o rosto coberto de cortes e hematomas.

           Não se deu o trabalho de se secar. Com um esforço considerável, vestiu o uniforme do Exército Vermelho. Queria o símbolo da autoridade.

           Seu pai chegou quando ele tentava amarrar os cadarços dos sapatos.

           – Mas que porra aconteceu aqui? – rugiu Grigori.

           – Eles queriam briga e eu fui idiota o suficiente para cair na armadilha – respondeu Volodya.

           No início, seu pai não se mostrou nada compreensivo.

           – Pensei que você fosse mais esperto.

           – Eles insistiram em levá-la nua.

           – Filhos da puta de merda.

           – Descobriu alguma coisa?

           – Ainda não. Conversei com algumas pessoas. Ninguém sabe de nada. – Grigori tinha um ar preocupado. – Ou alguém cometeu um erro realmente estúpido... ou, por algum motivo, eles têm certeza do que estão dizendo.

           – Me dê uma carona até meu escritório. Lemitov vai ficar uma fera. Não vai deixá-los se safar dessa. Se eles tiverem permissão para fazer isso comigo, vão fazer a mesma coisa com toda a Inteligência do Exército Vermelho.

           O carro e o motorista de Grigori esperavam em frente ao prédio. Eles foram até o campo de pouso de Khodynka. Grigori ficou no carro enquanto Volodya mancava até a sede da Inteligência do Exército Vermelho. Foi direto para a sala do chefe, o coronel Lemitov.

           Bateu na porta, entrou e disse:

           – A porra da polícia secreta prendeu minha mulher.

           – Eu sei – respondeu Lemitov.

           – O senhor sabe?

           – Fui eu que autorizei.

           O queixo de Volodya caiu.

           – Mas que porra é essa?

           – Sente-se.

           – O que está havendo?

           – Sente-se e cale a boca, que vou lhe contar.

           Volodya se sentou com dificuldade numa cadeira.

           – Nós precisamos ter uma bomba nuclear, e rápido – disse o coronel. – Por enquanto, Stalin está bancando o durão com os americanos, porque temos quase certeza de que eles não têm um arsenal de armas nucleares grande o bastante para nos aniquilar. Mas estão fabricando um estoque, e em algum momento irão usá-lo... a menos que estejamos em condições de revidar.

           Aquilo não fazia sentido.

           – Minha mulher não pode projetar a bomba com a polícia secreta lhe dando socos na cara. Isso é loucura!

           – Cale a porra da boca! Nosso problema é que existem vários projetos de bomba possíveis. Os americanos levaram cinco anos para descobrir qual deles iria funcionar. Não temos esse tempo. Precisamos roubar a pesquisa deles.

           – Mesmo assim, ainda vamos precisar de físicos russos para copiar o projeto... E para isso eles terão que estar dentro de seus laboratórios, não trancafiados nos porões da Lubyanka.

           – Você conhece um homem chamado Wilhelm Frunze?

           – Estudei com ele. Na Academia para Meninos de Berlim.

           – Ele nos deu informações valiosas sobre a pesquisa nuclear britânica. Depois se mudou para os Estados Unidos, onde trabalhou no projeto da bomba nuclear. A equipe da NKVD em Washintgon entrou em contato com ele, mas foi tão incompetente que o assustou e arruinou o contato. Precisamos reconquistá-lo.

           – E o que isso tem a ver comigo?

           – Ele confia em você.

           – Não tenho certeza. Faz 12 anos que não o vejo.

           – Queremos que você vá aos Estados Unidos falar com ele.

           – Mas por que prender Zoya?

           – Para garantir que você volte.

 

           Volodya disse a si mesmo que sabia como fazer aquilo. Antes da guerra, em Berlim, despistara a Gestapo, identificara espiões em potencial, recrutara-os e conseguira transformá-los em fontes de informações secretas confiáveis. Nunca foi fácil – principalmente quando ele tinha que convencer alguém a virar um traidor –, mas ele era um especialista.

           Agora, porém, tratava-se dos Estados Unidos.

           Os países ocidentais que ele já visitara, a Alemanha e a Espanha dos anos 1930 e 1940, não tinham nada a ver com aquilo.

           Estava impressionado. Durante toda a vida tinham lhe dito que os filmes de Hollywood passavam uma imagem exagerada de prosperidade e que, na verdade, a maioria dos americanos era pobre. No entanto, desde o dia em que ele pisou nos Estados Unidos, ficou claro que os filmes não exageravam em nada. E era difícil de encontrar alguém pobre.

           Nova York era repleta de carros, muitos dirigidos por pessoas que obviamente não eram funcionários importantes do governo: jovens, homens vestidos para trabalhar e até mulheres indo às compras. E todo mundo se vestia bem. Todos os homens pareciam usar seus melhores ternos. As pernas das mulheres eram cobertas por meias finas. Todos pareciam calçar sapatos novos.

           Ele precisava ficar lembrando constantemente o lado ruim dos Estados Unidos. Havia pobreza em algum lugar. Os negros eram discriminados e não podiam votar no Sul. Havia muitos crimes – os próprios americanos diziam que a criminalidade no país era galopante –, embora Volodya não visse nenhum sinal disso e se sentisse bastante seguro ao andar pelas ruas.

           Passou alguns dias explorando Nova York. Tentou melhorar seu inglês, que não era muito bom, mas isso pouco importava: a cidade estava cheia de pessoas que falavam o idioma mal e com sotaque carregado. Identificou o rosto de alguns dos agentes do FBI destacados para segui-lo e encontrou vários lugares onde poderia se livrar deles.

           Numa manhã ensolarada, saiu do consulado soviético em Nova York sem chapéu, usando apenas uma calça cinza e uma camisa azul, como se fosse cuidar de afazeres corriqueiros. Um rapaz de terno e gravata escuros o seguiu.

           Ele foi até a loja de departamentos Saks, na Quinta Avenida, e comprou uma cueca e uma camisa com estampa marrom pequena. Quem o seguia deve ter pensado que ele estava apenas fazendo compras.

           O chefe da NKVD no consulado lhe dissera que uma equipe soviética iria acompanhá-lo durante sua visita aos Estados Unidos para se certificar de seu bom comportamento. Ele mal conseguiu conter a raiva que sentia pel organização que prendera Zoya, e teve de resistir ao impulso de agarrar o homem pelo pescoço e esganá-lo. No entanto mantivera a calma. Comentara com sarcasmo que, para cumprir sua missão, precisaria escapar da vigilância do FBI e, ao fazer isso, também poderia acabar despistando sem querer a escolta da NKVD; mas desejou-lhes sorte. Na maior parte das vezes, conseguiu despistá-los em cinco minutos.

           Então o rapaz que o seguia provavelmente era um agente do FBI. Seus trajes conservadores e impecáveis denunciavam isso.

           Levando as compras em uma sacola de papel, Volodya saiu da loja por uma porta lateral e chamou um táxi. Deixou o agente do FBI no meio-fio, fazendo sinal. Depois que o táxi virou duas esquinas, lançou uma nota para o motorista e saltou. Entrou depressa numa estação de metrô, tornou a sair por um acesso diferente e ficou esperando cinco minutos na portaria de um prédio comercial.

           O rapaz de terno escuro não voltou a aparecer.

           Volodya seguiu a pé até a Penn Station.

           Ali, checou novamente se não estava sendo seguido, então comprou uma passagem. Subiu a bordo do trem sem bagagem nenhuma a não ser a sacola de papel.

           A viagem até Albuquerque levou três dias.

           O trem atravessou rapidamente quilômetros e mais quilômetros de ricas terras agrícolas, fábricas imponentes que cuspiam fumaça e imensas cidades com arranha-céus arrogantes. A União Soviética era maior, mas, tirando a Ucrânia, praticamente só tinha florestas de pinheiros e estepes congeladas. Volodya nunca imaginara que pudesse existir uma riqueza naquela escala.

           E não era só riqueza. Durante vários dias, alguma coisa o vinha incomodando, algo estranho em relação à vida nos Estados Unidos. Finalmente percebeu o que era: ninguém tinha pedido seus documentos. Depois que passara pela imigração em Nova York, não tornara a mostrar o passaporte. Naquele país, parecia que qualquer um podia entrar numa estação de trem ou terminal rodoviário e comprar uma passagem para qualquer lugar, sem ter que pedir permissão nem explicar para algum funcionário do governo o motivo da viagem. Isso lhe proporcionava uma perigosa euforia de liberdade. Ele podia ir a qualquer lugar!

           Tanta riqueza também fez Volodya ter uma noção mais clara do perigo que seu país estava correndo. Os alemães quase haviam destruído a União Soviética, e os Estados Unidos tinham uma população três vezes maior e eram dez vezes mais ricos. Pensar que os russos pudessem se tornar subalternos, acuados até a subserviência, atenuava as reservas de Volodya em relação ao comunismo, apesar do que a NKVD tinha feito com ele e com sua mulher. Se ele tivesse filhos, não iria querer que crescessem num mundo tiranizado pelos Estados Unidos.

           Passou por Pittsburgh e Chicago sem chamar atenção. Estava usando roupas americanas, e seu sotaque não causava estranheza simplesmente porque ele não falava com ninguém. Comprava sanduíches e café apontando e depois pagando. Folheava os jornais e revistas que outros passageiros largavam no trem, olhando para as figuras e tentando decifrar o significado dos títulos das matérias.

           O último trecho da viagem o fez passar por uma paisagem deserta, de beleza estéril, com picos nevados distantes tingidos de vermelho pelo sol poente, o que provavelmente explicava o fato de aquelas montanhas serem conhecidas como Blood of Christ, “sangue de Cristo”.

           Ele foi ao banheiro, trocou a cueca e vestiu a camisa nova comprada na Saks.

           Imaginou que o FBI ou a inteligência do Exército estariam vigiando a estação de trem de Albuquerque e não se enganou: identificou um rapaz cujo paletó xadrez – quente demais para o clima do Novo México em setembro – não conseguia disfarçar bem a protuberância de uma arma no coldre em seu ombro. O agente, porém, estava interessado em viajantes de longa distância vindos de Nova York ou Washington. Volodya, que estava sem chapéu ou paletó e não trazia bagagem, parecia um morador das redondezas voltando de uma viagem curta. Ninguém o seguiu quando ele foi a pé até a rodoviária e embarcou num ônibus Greyhound com destino a Santa Fé.

           Chegou no fim da tarde. Na rodoviária, deparou com dois agentes do FBI, que o examinaram. No entanto, não podiam seguir todo mundo que descesse dos ônibus, e mais uma vez sua aparência casual os levou a se desinteressar.

           Fazendo o possível para dar a impressão de que sabia aonde estava indo, Volodya pôs-se a percorrer as ruas. As casas baixas de telhado plano em estilo mexicano e as igrejas atarracadas que esturricavam ao sol lembravam a Espanha. Os prédios com lojas na frente avançavam pelas calçadas, criando arcadas onde havia uma sombra agradável.

           Ele evitou o La Fonda, o grande hotel na praça junto à catedral, e pediu um quarto no St. Francis. Pagou em dinheiro e disse que seu nome era Robert Pender, que podia tanto ser americano quanto de uma nacionalidade europeia qualquer.

           – Minha mala será entregue mais tarde – disse ele à bela moça da recepção. – Se eu estiver fora quando ela chegar, pode mandar entregar no meu quarto?

           – Sim, claro, sem problema – respondeu ela.

           – Obrigado – disse ele, e repetiu então uma expressão que ouvira várias vezes no trem. – Fico muito grato.

           – Se eu não estiver aqui, alguma outra pessoa vai se encarregar da mala, contanto que o seu nome esteja nela.

           – Está. – Ele não tinha bagagem, mas a moça nunca saberia disso.

           A recepcionista olhou para o nome do registro.

           – Quer dizer que o senhor é de Nova York, Sr. Pender?

           Sua voz tinha um quê de ceticismo, sem dúvida porque o sotaque dele não era nova-iorquino.

           – Sou suíço – explicou ele, mencionando um país neutro.

           – Ah, por isso o sotaque. Nunca conheci ninguém da Suíça. Como é lá?

           Volodya nunca estivera na Suíça, mas já vira fotos.

           – Neva muito – respondeu.

           – Bem, então aproveite o clima do Novo México!

           – Vou aproveitar, sim.

           Cinco minutos mais tarde, ele tornou a sair.

           Seus colegas da embaixada soviética lhe tinham dito que alguns dos cientistas moravam no laboratório de Los Alamos, que parecia uma favela, com poucas comodidades civilizadas. Sempre que podiam, os cientistas preferiam alugar casas e apartamentos por perto. Will Frunze não tinha qualquer restrição financeira para isso: era casado com uma artista de sucesso que desenhava uma tira de quadrinhos chamada Slack Alice, publicada em jornais do país inteiro. A esposa, que também se chamava Alice, podia trabalhar em qualquer lugar, então o casal morava no centro histórico da cidade.

           Essas informações tinham sido fornecidas pelo escritório da NKVD em Nova York. A agência fizera uma pesquisa minuciosa sobre Frunze, e Volodya tinha seu endereço e telefone, e uma descrição de seu carro, um Plymouth conversível do período pré-guerra com pneus de banda branca.

           No térreo do prédio dos Frunze funcionava uma galeria de arte. O apartamento do andar de cima tinha uma janela grande voltada para o norte, que agradaria a uma artista. Um Plymouth conversível estava estacionado na calçada.

           Volodya preferiu não entrar: talvez o apartamento estivesse grampeado.

           Os Frunze eram um casal abastado, sem filhos, e ele imaginou que não fossem ficar em casa ouvindo rádio numa sexta-feira à noite. Decidiu esperar para ver se eles saíam.

           Passou algum tempo na galeria, olhando os quadros à venda. Gostava de imagens claras, vívidas, e não teria desejado possuir nenhum daqueles borrões confusos. Encontrou um café adiante no quarteirão e sentou-se junto à janela, de onde podia ver a porta dos Frunze. Uma hora depois, saiu de lá, comprou um jornal e, enquanto fingia lê-lo, ficou num ponto de ônibus.

           A longa espera lhe permitiu verificar que ninguém estava vigiando o apartamento dos Frunze. Isso significava que o FBI e a inteligência do Exército não tinham identificado o alemão como uma pessoa de alto risco. Ele era estrangeiro, mas muitos cientistas também o eram, e provavelmente não havia mais nada que o comprometesse.

           Aquele era também o centro comercial da cidade, não um bairro residencial, e as ruas estavam cheias. Mesmo assim, depois de umas duas horas, Volodya começou a se preocupar que alguém pudesse notá-lo zanzando por ali.

           Então os Frunze saíram.

           Will estava mais pesado do que fora 12 anos antes – nos Estados Unidos não havia restrições alimentares. Apesar de ter apenas 30 anos, seus cabelos estavam começando a rarear na frente. Ele ainda tinha a mesma expressão solene. Usava uma camisa esporte e calça de brim cáqui, uma combinação comum nos Estados Unidos.

           A esposa, por sua vez, não estava vestida de forma tão conservadora. Tinha os cabelos presos sob uma boina e usava um vestido de algodão sem corte de um tom indistinto de marrom, mas trazia uma coleção de pulseiras em ambos os braços e vários anéis nos dedos. Volodya se lembrou de que os artistas se vestiam assim na Alemanha antes de Hitler.

           O casal seguiu andando pela rua, e ele foi atrás.

           Perguntou-se qual seria o posicionamento político da mulher e que diferença sua presença faria na difícil conversa que estava prestes a ter com Frunze. Na Alemanha, o cientista tinha sido social-democrata ferrenho, então era improvável que sua mulher fosse conservadora. Essa suposição era corroborada pela aparência da Sra. Frunze. Por outro lado, ela provavelmente não sabia que o marido tinha revelado segredos aos soviéticos em Londres. Era uma incógnita.

           Volodya teria preferido lidar com Frunze sozinho e cogitou ir embora e voltar no dia seguinte. No entanto, a recepcionista do hotel tinha reparado no seu sotaque estrangeiro e talvez no outro dia já houvesse alguém do FBI o vigiando. Poderia lidar com isso, pensou, embora naquela cidade pequena a tarefa não fosse ser tão fácil quanto em Nova York ou em Berlim. E o dia seguinte era sábado, então os Frunze decerto passariam o tempo todo juntos. Quanto mais ele teria que esperar até conseguir encontrar Frunze sozinho?

           Nunca havia um jeito fácil de fazer aquilo. Pesando bem os prós e os contras, resolveu agir naquela noite mesmo.

           O casal Frunze entrou num restaurante.

           Volodya passou em frente ao estabelecimento e olhou pela janela. Era um restaurante barato, com cubículos. Pensou em entrar e sentar-se à mesa com os dois, mas decidiu deixá-los comer primeiro. De barriga cheia, estariam de bom humor.

           Esperou meia hora, observando a porta de longe. Então, muito ansioso, entrou.

           O casal estava terminando de jantar. Enquanto Volodya atravessava o restaurante, Frunze ergueu os olhos e em seguida os desviou, sem reconhecê-lo.

           Deslizou para o assento do compartimento ao lado de Alice e disse em voz baixa, em alemão:

           – Olá, Willi, lembra-se de mim, da escola?

           Frunze o examinou com atenção por vários segundos, e então abriu um sorriso.

           – Peshkov? Volodya Peshkov? É você mesmo?

           Volodya foi tomado por uma onda de alívio. Frunze continuava simpático. Não havia nenhuma barreira de hostilidade a ser superada.

           – Sou eu mesmo – respondeu. Estendeu a mão, e Frunze a apertou. Virando-se para Alice, falou em inglês: – Desculpe, falo muito mal a sua língua.

           – Não precisa tentar – retrucou ela em alemão fluente. – Minha família era de imigrantes da Bavária.

           – Sabe que andei pensando em você? – disse Frunze, muito espantado. – Porque conheci outro homem com o mesmo sobrenome... Greg Peshkov.

           – É mesmo? Meu pai tinha um irmão chamado Lev que veio para cá por volta de 1915.

           – Não, o tenente Peshkov é bem mais jovem. Mas, enfim... O que você está fazendo aqui?

           Volodya sorriu.

           – Vim falar com você. – Antes que Frunze pudesse perguntar por quê, ele prosseguiu: – Da última vez que o vi, você era secretário do Partido Social-Democrata em Neuköln. – Aquele era seu segundo passo. Depois de estabelecer um primeiro contato cordial, estava fazendo Frunze recordar seu idealismo juvenil.

           – Essa experiência me convenceu que a social-democracia não funciona – disse o alemão. – Ficamos totalmente impotentes contra os nazistas. Foi preciso a intervenção da União Soviética para detê-los.

           Era verdade, e Volodya ficou satisfeito que Frunze reconhecesse isso. No entanto, o mais importante era que o comentário mostrava que as ideias políticas do cientista não tinham sido atenuadas pela vida abastada nos Estados Unidos.

           – Estávamos pensando em tomar uns drinques num bar logo aqui na esquina – disse Alice. – Vários cientistas vão lá na sexta à noite. Quer nos acompanhar?

           A última coisa que Volodya queria era ser visto em público com os Frunze.

           – Não sei – respondeu. Na verdade, já fazia muito tempo que estava ali no restaurante com o casal. Era hora do passo três: lembrar a Frunze sua terrível culpa. Ele se inclinou para a frente e baixou a voz: – Willi, você sabia que os americanos iriam jogar bombas nucleares no Japão?

           Houve uma pausa demorada. Volodya prendeu a respiração. Sua aposta era de que o alemão estava torturado pelo remorso.

           Por alguns instantes, temeu ter ido longe demais. Frunze parecia à beira das lágrimas.

           Então ele inspirou fundo e se controlou.

           – Não. Eu não sabia – respondeu. – Nenhum de nós sabia.

           Alice interveio, zangada:

           – Achávamos que as Forças Armadas americanas fossem dar alguma demonstração do poder da bomba, como uma ameaça para fazer os japoneses se renderem. – Aquilo significava que ela sabia sobre a bomba antes, observou Volodya. Não ficou surpreso. Os homens tinham dificuldade para esconder esse tipo de informações das esposas. – Então nós estávamos esperando uma detonação em algum momento, em algum lugar – prosseguiu ela. – Mas imaginamos que eles fossem destruir uma ilha desabitada, ou talvez algum complexo militar com várias armas e poucas pessoas.

           – Isso poderia ter se justificado – retomou Frunze. – Mas... – Sua voz se transformou num sussurro: – ... ninguém imaginou que eles fossem lançar a bomba sobre uma cidade e matar 80 mil homens, mulheres e crianças.

           Volodya assentiu.

           – Achei mesmo que você pensaria assim. – Na verdade, estivera torcendo por isso.

           – E quem não pensaria? – indagou o alemão.

           – Deixe eu lhe perguntar uma coisa ainda mais importante. – Aquele era o passo quatro. – Eles vão fazer de novo?

           – Não sei – respondeu Frunze. – Pode ser. Deus nos livre.

           Volodya disfarçou a satisfação. Tinha feito Frunze se sentir responsável pelo uso de armas nucleares tanto no passado quanto no futuro.

           – É isso que nós pensamos – falou, assentindo.

           – Nós quem? – perguntou Alice, incisiva.

           Ela era esperta e provavelmente mais experiente que o marido. Seria difícil enganá-la, e Volodya decidiu nem tentar. Tinha que correr o risco de lhe dizer a verdade.

           – Uma pergunta justa – respondeu. – E não fiz essa viagem toda para enganar um velho amigo. Sou major da Inteligência do Exército Vermelho.

           O casal o encarou. Aquela ideia já devia ter lhes passado pela cabeça, mas eles ficaram surpresos com a confissão.

           – Preciso lhes dizer uma coisa – prosseguiu Volodya. – Algo muito importante. Existe algum lugar onde possamos conversar em particular?

           Os dois pareceram hesitar.

           – No nosso apartamento? – sugeriu Frunze.

           – Deve estar grampeado pelo FBI.

           Frunze já tinha alguma experiência em operações clandestinas, mas Alice ficou chocada.

           – O senhor acha? – indagou, incrédula.

           – Acho. Podemos sair de carro da cidade?

           – Tem um lugar aonde vamos de vez em quando por volta desta hora para ver o pôr do sol – disse Frunze.

           – Perfeito. Vão para o carro, entrem e esperem por mim. Chegarei um minuto depois de vocês.

           Frunze pagou a conta e saiu do restaurante com Alice, e Volodya os seguiu. Durante o curto trajeto, verificou que não havia ninguém atrás dele. Chegou ao Plymouth e entrou. Os três se acomodaram no banco da frente, ao estilo americano. Frunze saiu da cidade.

           Eles percorreram uma estrada de terra batida até o cume de um morro baixo. Frunze parou o carro. Volodya acenou para que todos descessem e então os fez avançar uns cem metros, só para o caso de o carro também estar grampeado.

           De frente para a paisagem de solo pedregoso e arbustos baixos, com o sol poente ao fundo, Volodya deu o quinto passo:

           – Nós achamos que a próxima bomba nuclear vai ser lançada em algum lugar da União Soviética.

           Frunze assentiu.

           – Que Deus não permita, mas acho que você pode ter razão.

           – E não há absolutamente nada que possamos fazer a respeito – prosseguiu Volodya, insistindo sem dó. – Nenhuma precaução que possamos tomar, nem barreiras que possamos erguer ou qualquer forma de proteger nossa população. Não existe defesa contra a bomba nuclear... a bomba que você criou, Willi.

           – Eu sei – disse Frunze, arrasado.

           Ele obviamente achava que, se a União Soviética fosse atacada com armas nucleares, seria culpa sua.

           Passo seis.

           – A única proteção seria termos nossa própria bomba nuclear.

           Nisso Frunze não quis acreditar.

           – Isso não é defesa – disse ele.

           – Mas é um fator dissuasivo.

           – Pode ser – admitiu ele.

           – Não queremos que essas bombas se espalhem – disse Alice.

           – Nem eu – disse Volodya. – Mas o único jeito seguro de impedir que os americanos arrasem Moscou da mesma forma que arrasaram Hiroshima é a União Soviética ter sua própria bomba nuclear e ameaçar uma retaliação.

           – Ele tem razão, Willi – disse Alice. – Todos nós sabemos disso.

           Volodya viu que ela era o lado mais forte do casal.

           Para o passo sete, baixou a voz:

           – Quantas bombas os americanos têm agora?

           Aquele era um momento crucial. Se respondesse àquela pergunta, Frunze teria cruzado um limite. Até então, a conversa deles era genérica. Mas agora Volodya estava pedindo informações confidenciais.

           Frunze hesitou por muito tempo. Por fim, olhou para Alice.

           Volodya a viu menear a cabeça quase imperceptivelmente.

           – Uma só – disse o alemão.

           O russo disfarçou a sensação de triunfo. Frunze acabara de trair os americanos. Aquele era o primeiro movimento, o mais difícil. Um segundo segredo seria mais fácil de revelar.

           – Mas logo terão outras – acrescentou Frunze.

           – É uma corrida e, se nós a perdermos, vamos morrer – disse Volodya em tom de urgência. – Temos que fabricar pelo menos uma bomba nuclear antes que eles as fabriquem em quantidade suficiente para nos aniquilar.

           – E vocês conseguem?

           Essa era a deixa para o passo oito.

           – Precisamos de ajuda.

           Ele viu o semblante de Frunze se endurecer, e imaginou que o alemão estivesse recordando o que o fizera se recusar a cooperar com a NKVD.

           – E se dissermos que não podemos ajudar? – perguntou Alice a Volodya. – Que é perigoso demais?

           Volodya agiu como mandavam seus instintos. Ergueu as mãos no gesto de quem se rende.

           – Voltarei para casa e direi que fracassei – falou. – Não posso obrigá-los a fazer nada que não queiram. Não iria querer pressioná-los ou coagi-los de forma alguma.

           – Sem ameaças? – perguntou Alice.

           Aquilo confirmou o palpite de Volodya de que a NKVD tentara intimidar Frunze. Eles tentavam intimidar todo mundo: era só o que sabiam fazer.

           – Eu não estou nem tentando convencê-lo – disse Volodya ao cientista. – Estou apenas expondo os fatos. O resto fica a seu critério. Se você quiser ajudar, estou aqui para ser seu contato. Se não quiser, não se fala mais no assunto. Vocês são inteligentes. Mesmo se quisesse, eu não poderia enganá-los.

           O casal tornou a se entreolhar. Ele torceu para que os dois estivessem pensando em quanto ele era diferente do último agente soviético que os abordara.

           O silêncio se prolongou, angustiante.

           Quem finalmente falou foi Alice:

           – Que tipo de ajuda vocês querem?

           Aquilo não era um sim, mas era melhor do que uma recusa e conduzia logicamente ao passo nove.

           – Minha mulher faz parte da equipe de físicos – disse ele, esperando que a informação desse um toque de humanidade bem na hora em que eles corriam o risco de considerá-lo manipulador. – Segundo ela, há vários caminhos para se chegar a uma bomba nuclear, e não temos tempo de testar todos eles. Se soubermos o que deu certo para vocês, podemos poupar anos de pesquisa.

           – Faz sentido – disse Willi.

           Agora o passo dez, o maior de todos:

           – Precisamos saber que tipo de bomba foi lançado sobre o Japão.

           A expressão de Frunze era de pura agonia. Ele olhou para a mulher. Dessa vez ela não meneou a cabeça, tampouco fez que não. Parecia tão dividida quanto o marido.

           Frunze deu um suspiro.

           – Foram dois tipos – respondeu.

           Volodya ficou animado e surpreso.

           – Dois modelos diferentes?

           Frunze assentiu.

           – Em Hiroshima, usaram um artefato de urânio acionado por um projétil também de urânio, como uma bala de revólver. A bomba foi batizada de Little Boy. A outra, Fat Man, lançada sobre Nagasaki, era uma bomba de plutônio com gatilho de implosão.

           Volodya mal conseguia respirar. Aquelas eram informações quentíssimas.

           – Qual das duas é melhor?

           – As duas funcionaram, como ficou claro, mas Fat Man é mais fácil de fabricar.

           – Por quê?

           – É preciso muitos anos para produzir U-235 suficiente para uma bomba. Depois que se constrói uma pilha nuclear, o plutônio é mais rápido.

           – Quer dizer que a União Soviética deveria copiar a Fat Man?

           – Com certeza.

           – Há mais uma coisa que você poderia fazer para ajudar a salvar a Rússia da destruição – disse Volodya.

           – O quê?

           Volodya o encarou.

           – Conseguir os desenhos do projeto da bomba para mim – falou.

           Willi ficou pálido.

           – Sou cidadão americano – disse. – Isso que você está me pedindo é alta traição. A punição é a morte. Eu poderia ir para a cadeira elétrica.

           Sua mulher também, pensou Volodya; ela é cúmplice. Mas ainda bem que você não pensou nisso.

           – Nos últimos anos, pedi a muitas pessoas que arriscassem suas vidas – disse ele. – Pessoas como vocês, alemães que odiavam os nazistas, homens e mulheres que correram riscos terríveis para fornecer informações que nos ajudaram a vencer a guerra. E devo lhes dizer o mesmo que disse a elas: se não aceitarem, muitas outras pessoas vão morrer. – Ele se calou. Aquele era o seu maior trunfo. Não tinha mais nada a oferecer.

           O alemão olhou para a mulher.

           – Willi, você fabricou a bomba – disse ela.

           Frunze então virou-se para Volodya e falou:

           – Vou pensar.

 

           Dois dias depois, ele entregou os desenhos.

           Volodya os levou para Moscou.

           Zoya foi solta. Não estava tão brava com a prisão quanto o marido.

           – Foi para defender a Revolução – disse ela. – E ninguém me machucou. Foi como ficar hospedada num hotel ruim.

           No primeiro dia que passaram em casa, depois do sexo, Volodya disse:

           – Tenho uma coisa para mostrar a você, uma coisa que trouxe dos Estados Unidos. – Ele rolou para fora da cama, abriu uma gaveta e pegou um livro. – É o catálogo da Sears Roebuck. Olhe só.

           Sentando-se ao lado da mulher na cama, abriu o catálogo na seção de vestidos femininos. Os modelos eram bem compridos, mas os tecidos tinham cores vivas e alegres, listras, quadriculados e cores lisas, alguns com babados, pregas e cintos.

           – Que bonito! – comentou Zoya, pondo o dedo sobre um dos modelos. – Dois dólares e 98 cents é muito dinheiro?

           – Na verdade, não – respondeu Volodya. – O salário médio é de uns 50 dólares por semana, e o aluguel custa mais ou menos um terço disso.

           – Sério? – Zoya estava pasma. – Quer dizer que a maioria das pessoas pode comprar esses vestidos?

           – Sim. Talvez não os camponeses. Mas, pensando bem, esses catálogos foram inventados para agricultores que moram a centenas de quilômetros da loja mais próxima.

           – E como funcionam?

           – Você escolhe o que quer, manda o dinheiro e algumas semanas depois o carteiro traz o que você encomendou.

           – É como ser czar, imagino. – Zoya pegou o catálogo da mão do marido e virou a página. – Ah! Veja, aqui tem mais. – A página seguinte mostrava conjuntos de blazer e saia por 4 dólares e 98 cents. – Estes aqui também são elegantes – comentou ela.

           – Continue folheando – disse Volodya.

           Zoya se espantou ao ver páginas e mais páginas de sobretudos, chapéus, sapatos, roupa de baixo, pijamas e meias femininas.

           – As pessoas podem comprar qualquer um desses artigos? – indagou.

           – Isso mesmo.

           – Mas estas páginas têm mais opções do que as lojas normais da Rússia!

           – É verdade.

           Ela seguiu folheando o catálogo. Havia uma gama semelhante de roupas para homens e também para crianças. Zoya pôs o dedo em um sobretudo pesado de inverno para meninos, feito de lã e vendido a 15 dólares.

           – Por este preço, imagino que todos os meninos dos Estados Unidos tenham o seu.

           – Devem ter.

           Depois das roupas vinham os móveis. Era possível comprar uma cama por 25 dólares. Considerando um salário de 50 dólares por semana, era tudo muito barato. E não acabava nunca. O catálogo oferecia centenas de coisas que, na União Soviética, não podiam ser compradas por dinheiro nenhum: brinquedos e jogos, produtos de beleza, violões, cadeiras elegantes, ferramentas elétricas, romances de capa colorida, enfeites de Natal, torradeiras.

           Até mesmo um trator.

           – Você acha que qualquer agricultor americano que queira um trator pode comprar um na hora? – perguntou Zoya.

           – Só se tiver dinheiro para pagar – respondeu Volodya.

           – Ele não precisa pôr o nome numa lista e esperar alguns anos?

           – Não.

           Zoya fechou o catálogo e olhou para o marido com expressão solene.

           – Se as pessoas podem ter tudo isso, por que iriam querer ser comunistas? – indagou.

           – Boa pergunta – respondeu Volodya.

             

1946

            As crianças de Berlim agora tinham uma nova brincadeira chamada Komm, Frau – “Vem, mulher”. Era uma daquelas muitas brincadeiras em que meninos perseguem meninas, mas Carla reparou que havia uma novidade: eles se juntavam e escolhiam uma das meninas. Quando conseguiam pegá-la, começavam a gritar “Komm, Frau!” e a jogavam no chão. Então a seguravam enquanto um deles se deitava por cima dela e simulava o ato sexual. Crianças de 7 ou 8 anos – que não deveriam saber o que era estupro – brincavam disso porque tinham visto o que os soldados do Exército Vermelho faziam com as mulheres alemãs. Todos os russos sabiam falar pelo menos uma coisa em alemão: Komm, Frau.

           Qual era o problema com os russos? Carla nunca conhecera ninguém que houvesse sido estuprada por um francês, um britânico, um americano ou um canadense, embora imaginasse que isso devesse acontecer. Por outro lado, todas as mulheres que ela conhecia entre os 15 e os 55 anos tinham sido curradas por pelo menos um soldado soviético: sua mãe Maud; sua amiga Frieda; Monika, mãe de Frieda; Ada. Todas.

           Mas elas tiveram sorte, pois ainda estavam vivas. Algumas mulheres, violentadas por dezenas de homens durante horas a fio, tinham morrido. Carla ouvira falar numa menina que fora morta a dentadas.

           Apenas Rebecca Rosen havia escapado. Depois que Carla a protegera no dia da liberação do Hospital Judaico, a menina se mudara para a casa dos Von Ulrich. A residência ficava na zona soviética, mas ela não tinha outro lugar para onde ir. Passou meses escondida no sótão como se fosse uma criminosa, descendo apenas à noite, depois de os russos bestiais terem caído num sono embriagado. Sempre que podia, Carla passava algumas horas lá em cima com ela, jogando cartas e dividindo histórias de vida. Queria ser como uma irmã mais velha, mas Rebecca a tratava como mãe.

           Então Carla descobriu que seria mãe de verdade.

           Maud e Monika estavam na casa dos 50 anos e felizmente já não podiam mais engravidar. Ada teve sorte. Mas tanto Carla quanto Frieda ficaram grávidas de seus estupradores.

           Frieda fez um aborto.

           Isso era ilegal e a lei nazista que ameaçava as infratoras com a pena de morte ainda estava em vigor. Dessa forma, Frieda havia procurado uma “parteira” idosa que realizara o procedimento em troca de cinco cigarros. Contraíra uma infecção grave e teria morrido, se Carla não houvesse conseguido roubar um pouco da escassa penicilina do hospital.

           Mas Carla decidiu ter o bebê.

           Seus sentimentos em relação à gravidez variavam violentamente de um extremo a outro. Quando se sentia enjoada pela manhã, maldizia os animais que tinham violentado seu corpo e a deixado com aquele fardo para carregar. Em outros momentos, pegava-se sentada com as mãos na barriga, o olhar perdido, sonhando com roupinhas de bebê. Então imaginava se o rosto da criança a faria pensar em um dos soldados e detestar o próprio filho. Mas com certeza ele também teria alguns traços dos Von Ulrich, ou não? Ela estava ansiosa e amedrontada.

           Em janeiro de 1946, estava no oitavo mês de gestação. Assim como a maioria dos alemães, também estava com frio, com fome e muito pobre. Quando a gravidez se tornou aparente, teve que parar de trabalhar como enfermeira e juntou-se aos milhões de desempregados. Os cupons de racionamento de comida eram emitidos a cada dez dias. A quantidade diária de calorias estipulada para as pessoas com privilégios especiais era 1.500. Além disso seria preciso pagar, claro. No entanto, mesmo para quem tivesse dinheiro e cupons, às vezes simplesmente não havia comida para comprar.

           Carla havia cogitado pedir um tratamento especial aos soviéticos por conta de seu trabalho como espiã durante a guerra. Mas Heinrich tentara a mesma coisa e tivera uma experiência assustadora. A Inteligência do Exército Vermelho queria que ele continuasse espionando para os russos e lhe pedira que se infiltrasse no Exército americano. Quando Heinrich disse que preferia não fazer isso, eles ficaram desagradáveis e ameaçaram mandá-lo para um campo de trabalho. Ele conseguiu se safar dizendo que não falava inglês, portanto não lhes seria útil. Mas o aviso bastou para Carla, que decidiu que era melhor ficar de boca fechada.

           Nesse dia, ela e Maud estavam felizes porque tinham conseguido vender uma cômoda. Era uma peça em estilo Jugendstil, feita de rádica de carvalho, que os pais de Walter haviam comprado ao se casarem, em 1889. Carla, Maud e Ada puseram a cômoda num carrinho de mão emprestado.

           A casa continuava sem homens. Erik e Werner estavam entre os milhões de soldados alemães desaparecidos. Podiam estar mortos. O coronel Beck dissera a Carla que quase três milhões de alemães haviam morrido em combate no front oriental, e que um número ainda maior falecera nas mãos dos soviéticos – vítimas da fome, do frio e de doenças. Mas outros dois milhões ainda estavam vivos, presos em campos de trabalho na União Soviética. Alguns tinham voltado: depois de fugirem dos guardas ou de serem libertados por estarem doentes demais para trabalhar, tinham se juntado aos milhares de pessoas desalojadas que vagavam por toda a Europa tentando encontrar o caminho de casa. Carla e Maud haviam escrito cartas, despachadas aos cuidados do Exército Vermelho, mas nunca receberam resposta.

           Carla estava muito dividida em relação ao eventual retorno de Werner. Ainda o amava e torcia desesperadamente para que ele estivesse vivo e com saúde, mas temia encontrá-lo naquele estado, grávida do filho de um estuprador. Embora não fosse culpa sua, sentia uma vergonha inexplicável.

           As três mulheres saíram pelas ruas empurrando o carrinho de mão. Deixaram Rebecca em casa. O auge aterrador da orgia de estupros e saques do Exército Vermelho tinha passado, e a menina já não morava no sótão, mas ainda não era seguro para uma moça bonita andar na rua.

           Imensas fotografias de Lenin e Stalin estavam agora penduradas na Unter den Linden, outrora passarela da elite alemã da moda. A maioria das ruas de Berlim já tinha sido limpa, e o entulho dos prédios desabados formava pilhas a cada cem metros, pronto para talvez ser reutilizado, se os alemães um dia tivessem autorização para reconstruir seu país. Muitos hectares de construções residenciais tinham sido arrasados, às vezes quarteirões inteiros. Levaria anos para se livrarem de todos os destroços. Milhares de corpos apodreciam nas ruínas, e o cheiro nauseante de carne humana em decomposição havia pairado no ar o verão inteiro. Agora, só surgia depois da chuva.

           Enquanto isso, a cidade fora dividida em quatro setores: russo, americano, britânico e francês. Diversos prédios que continuavam de pé foram requisitados pelas tropas de ocupação. Os berlinenses moravam onde podiam, muitas vezes buscando um abrigo inadequado nos cômodos restantes de imóveis parcialmente destruídos. O fornecimento de água corrente fora normalizado e a energia elétrica era intermitente, mas era difícil encontrar combustível para a calefação e a cozinha. A cômoda talvez valesse tanto cortada para fazer lenha quanto inteira.

           As três levaram o móvel até Wedding, no setor francês, onde o venderam para um charmoso coronel parisiense em troca de um pacote de Gitanes. Como os soviéticos tinham emitido em excesso a moeda da ocupação, esta perdera completamente o valor, então tudo era comprado e vendido em cigarros.

           Agora elas estavam voltando, vitoriosas. Maud e Ada empurravam o carrinho vazio, enquanto Carla caminhava ao lado delas. Estava dolorida do esforço de empurrar o carrinho, mas em compensação as três estavam ricas: um pacote inteiro de cigarros renderia bastante.

           Escureceu e a temperatura caiu drasticamente. O caminho para casa as fez atravessar um curto trecho da zona britânica. Carla às vezes pensava se os britânicos ajudariam sua mãe caso soubessem das dificuldades que ela estava enfrentando. Por outro lado, fazia 26 anos que Maud era cidadã alemã. Seu irmão, o conde Fitzherbert, era rico e influente, mas recusara-se a ajudá-la depois que ela se casou com Walter von Ulrich, e era um homem turrão: provavelmente não mudaria de atitude.

           Elas passaram por umas trinta ou quarenta pessoas vestidas em farrapos, reunidas em frente a uma casa requisitada pela força de ocupação. Detiveram-se para ver o que as pessoas estavam olhando e notaram que dentro da casa havia uma festa. Pelas janelas, puderam observar cômodos muito iluminados, homens rindo e mulheres segurando copos de bebida, além de garçonetes passando entre os convidados com bandejas de comida. Carla olhou em volta. O grupo reunido na rua era composto em sua maioria por mulheres e crianças – não haviam sobrado muitos homens em Berlim, nem na Alemanha como um todo, por sinal – que fitavam com anseio as janelas, como pecadores banidos nos portões do Paraíso. Era uma visão deplorável.

           – Que obscenidade – comentou Maud, subindo a passos decididos o acesso que conduzia até a porta da casa.

           Um vigia britânico barrou sua entrada e disse:

           – Nein, nein. – Devia ser a única palavra em alemão que ele conhecia.

           Maud lhe respondeu no inglês marcado de classe alta que costumava falar quando jovem:

           – Preciso falar com seu superior imediatamente.

           Como sempre, Carla admirou a coragem e a altivez da mãe.

           O soldado olhou com desconfiança para o casaco puído de Maud, mas, depois de alguns instantes, bateu na porta. Esta se abriu e um rosto espiou para fora.

           – Esta senhora é inglesa e quer falar com o oficial – informou o vigia.

           Instantes depois, a porta tornou a se abrir e duas pessoas olharam para fora. Poderiam ter sido caricaturas de um oficial britânico e sua esposa: ele de uniforme de gala e gravata-borboleta preta; ela de vestido longo e colar de pérolas.

           – Boa noite – cumprimentou Maud. – Lamento muitíssimo atrapalhar sua festa.

           Os dois a encararam, espantados ao ouvirem aquelas palavras de uma mulher em andrajos.

           – Apenas achei que vocês deveriam ver o que estão fazendo com essas pobres pessoas aqui na rua – continuou ela.

           O casal olhou para o grupo reunido do lado de fora.

           – Poderiam ao menos ter um pouco de piedade e fechar as cortinas – concluiu Maud.

           Depois de alguns instantes, a mulher falou:

           – Ah, George, será que fomos muito insensíveis?

           – Sem querer, talvez – respondeu o oficial, indelicado.

           – Será que poderíamos nos desculpar mandando trazer um pouco de comida para essas pessoas?

           – Sim – respondeu Maud depressa. – Seria uma gentileza e também um pedido de desculpas.

           O oficial pareceu hesitar. Decerto oferecer tira-gostos a alemães famintos infringia algum tipo de regulamento.

           – George, querido, por favor – suplicou a mulher.

           – Ah, está bem – cedeu o militar.

           A mulher virou-se novamente para Maud:

           – Obrigada por nos avisar. Não era nossa intenção fazer isso.

           – De nada – retrucou Maud, afastando-se outra vez da casa.

           Alguns minutos depois, convidados começaram a surgir pela porta com travessas de sanduíches e bolo, que ofereceram ao grupo esfomeado. Carla sorriu. O atrevimento de sua mãe tinha dado frutos. Pegou um grande pedaço de bolo de frutas que engoliu em poucas mordidas famintas. O bolo tinha mais açúcar do que ela havia comido nos últimos seis meses.

           As cortinas foram fechadas, os convidados voltaram para dentro, e a multidão se dispersou. Maud e Ada seguraram os cabos do carrinho e recomeçaram a empurrá-lo até em casa.

           – Muito bem, mãe – disse Carla. – Um pacote de Gitanes e uma refeição grátis, tudo na mesma tarde!

           Pensando bem, com exceção dos soviéticos, poucos ocupantes eram cruéis com os alemães. Ela achava isso surpreendente. Os soldados americanos distribuíam barras de chocolate. Até os franceses, cujos filhos tinham passado fome durante a ocupação alemã, muitas vezes se mostravam gentis. Depois de toda a infelicidade que nós alemães causamos a nossos vizinhos, pensou ela, é espantoso que eles não nos odeiem mais. Talvez achem que já fomos punidos o suficiente, com os nazistas, o Exército Vermelho e os bombardeios aéreos.

           Já era tarde quando elas chegaram. Devolveram o carrinho de mão aos vizinhos que o haviam emprestado, pagando-os com metade de um maço de Gitanes. Então entraram em casa, que por sorte continuava intacta. A maioria das janelas já não tinha vidraça e a alvenaria estava cheia de buracos, mas o imóvel não sofrera nenhum dano estrutural e ainda as protegia do clima.

           Mesmo assim, as quatro agora moravam na cozinha, onde dormiam em colchões que traziam do hall à noite. Já era bem difícil aquecer aquele cômodo, quanto mais o restante da casa. Antigamente, queimavam carvão no fogão da cozinha, mas agora era quase impossível conseguir carvão. Tinham descoberto, no entanto, que o fogão podia queimar muitas outras coisas: livros, jornais, móveis quebrados, até mesmo cortinas de filó.

           Dormiam duas a duas, Carla com Rebecca, e Maud com Ada. Rebecca muitas vezes adormecia chorando nos braços de Carla, como fizera na noite em que seus pais tinham morrido.

           A longa caminhada deixara Carla exausta, e ela se deitou assim que chegou. Ada acendeu o fogão com velhas revistas que Rebecca trouxera do sótão. Maud acrescentou água às sobras da sopa de feijão do almoço e a aqueceu para o jantar.

           Quando se sentou para tomar a sopa, Carla sentiu uma forte pontada na barriga. Percebeu que não era por ter empurrado o carrinho. Aquilo era diferente. Verificou a data e fez as contas de trás para a frente até o dia da liberação do Hospital Judaico.

           – Mãe – falou, assustada –, acho que o bebê vai nascer.

           – Mas ainda está cedo! – exclamou Maud.

           – Estou com 36 semanas de gravidez e senti uma contração.

           – Então é melhor nos prepararmos.

           Maud subiu para buscar toalhas.

           Ada trouxe uma cadeira de madeira da sala de jantar. Tinha conseguido um pedaço bem útil de aço retorcido num local atingido por uma bomba, e este lhe servia de martelo. Ela quebrou a cadeira em pedaços de tamanho adequado, e aumentou a chama no fogão.

           Carla levou as mãos ao ventre distendido.

           – Você bem que poderia ter esperado um tempo mais quente, bebê – falou.

           Logo começou a sentir tanta dor que nem ligou mais para o frio. Não sabia que algo podia doer daquele jeito.

           Nem que podia demorar tanto. Passou a noite inteira em trabalho de parto. Maud e Ada se revezaram para segurar sua mão enquanto ela gemia e chorava. Rebecca assistia a tudo, pálida e assustada.

           A luz cinzenta da manhã já entrava pelo jornal pregado nas janelas sem vidraça da cozinha quando a cabeça do bebê enfim saiu. Carla foi tomada por uma sensação de alívio maior do que tudo o que já havia experimentado, mesmo que a dor não tenha passado na hora.

           Depois de fazer uma última força, sentindo uma dor lancinante, Carla viu Maud tirar o bebê do meio de suas pernas.

           – É um menino – falou.

           Deu uma soprada no rostinho do bebê, que abriu a boca e chorou.

           Ela entregou o bebê a Carla e ajudou a filha a se recostar em algumas almofadas trazidas da sala de estar.

           Fartos cabelos escuros cobriam a cabeça do menino.

           Maud amarrou o cordão umbilical com um pedaço de algodão e o cortou. Carla desabotoou a blusa e levou o bebê ao seio.

           Estava com medo de não ter leite. No final da gravidez, seus seios deveriam ter inchado e vazado, mas isso não acontecera; talvez porque o bebê fosse prematuro, ou talvez porque a mãe estivesse desnutrida. No entanto, depois de a criança sugar por alguns instantes, ela sentiu uma dor estranha, e o leite começou a fluir.

           O menino logo pegou no sono.

           Ada trouxe uma tigela de água morna e um trapo e, com muita delicadeza, lavou o rosto e a cabeça do bebê, depois o restante do corpo.

           – Como ele é lindo! – sussurrou Rebecca.

           – Mãe, que tal o chamarmos de Walter? – sugeriu Carla.

           Não pretendia ser dramática, mas Maud não se aguentou. Seu queixo caiu e ela curvou o corpo para a frente, sacudida por soluços terríveis. Recobrou-se o suficiente para uma única palavra.

           – Desculpe. – Então tornou a se contorcer de desespero. – Ah, Walter, meu Walter... – dizia ela, aos prantos.

           Depois de algum tempo, seu choro cessou.

           – Desculpe – repetiu ela. – Não tive a intenção de fazer drama. – Ela enxugou o rosto com a manga da blusa. – Só queria que o seu pai pudesse ver o menino. É tudo tão injusto.

           Ada surpreendeu as duas ao citar o Livro de Jó:

           – “O Senhor deu, o Senhor tirou” – disse a empregada. – “Bendito seja o nome do Senhor.”

           Carla não acreditava em Deus – nenhum ser sagrado teria permitido a existência dos campos de extermínio dos nazistas –, mas mesmo assim a citação a reconfortou. A frase falava sobre aceitar tudo o que a vida comportava, inclusive a dor do parto e a tristeza da morte. Maud também pareceu gostar do significado daquelas palavras e se acalmou.

           Carla fitou o bebê Walter com adoração. Jurou cuidar dele, dar-lhe de comer e mantê-lo aquecido, quaisquer que fossem as dificuldades pelo caminho. Era a criança mais maravilhosa que já havia nascido, e ela iria amá-lo e adorá-lo para sempre.

           O menino acordou e Carla tornou a lhe dar o seio. Sob o olhar atento das quatro mulheres, ele mamou com vontade, fazendo barulhinhos de sucção. Durante algum tempo não se pôde ouvir nenhum outro barulho na cozinha quente e mal-iluminada.

 

           O primeiro discurso de um novo membro do Parlamento é conhecido como discurso de estreia, e geralmente é maçante. Determinadas coisas precisam ser ditas, lança-se mão de frases feitas, e o acordo tácito é que o tema não seja controverso. Colegas e adversários parabenizam o recém-chegado, tradições são observadas e quebra-se o gelo inicial.

           Lloyd Williams fez seu primeiro discurso de verdade alguns meses depois, durante o debate sobre a Lei Nacional da Seguridade Social. Foi bem mais assustador que o discurso de estreia.

           Ao prepará-lo, pensou em dois oradores. Seu avô, Dai Williams, usava a linguagem e os ritmos da Bíblia, não só na capela, mas também – e talvez especialmente – ao falar sobre as dificuldades e a injustiça da vida de um mineiro. Gostava de usar palavras curtas e cheias de significado: labuta, pecado, cobiça. Falava sobre o lar, a mina e a morte.

           Churchill fazia o mesmo, mas tinha o humor que faltava a Dai Williams. Suas frases longas e majestosas muitas vezes se encerravam com uma imagem inesperada ou uma inversão de significado. Durante a greve geral de 1926, quando era editor do The British Gazette, o jornal do governo, ele alertara os sindicalistas: “Que não reste nenhuma dúvida na mente de vocês: se algum dia soltarem para cima de nós outra greve geral, vamos soltar para cima de vocês outro British Gazette.” Na opinião de Lloyd, um discurso precisava de surpresas desse tipo; elas eram as passas que davam graça ao bolo.

           Quando se levantou para falar, porém, constatou que suas frases cuidadosamente construídas pareciam irreais. Ficou claro que o público pensava a mesma coisa, e ele pôde sentir que os cinquenta ou sessenta deputados presentes no plenário ouviam sem prestar atenção. Por um instante sentiu pânico: como podia ser maçante falando sobre um assunto que tinha tanta importância para as pessoas que representava?

           No primeiro banco dos deputados do governo, viu a mãe, agora ministra-adjunta da Educação, e seu tio Billy, ministro-adjunto do Carvão. Sabia que Billy Williams tinha começado a trabalhar na mina aos 13 anos. Ethel tinha a mesma idade quando começou a esfregar os pisos de Tŷ Gwyn. Aquele debate não era sobre frases bonitas: era sobre suas vidas.

           Um minuto depois de começar, Lloyd abandonou o roteiro e começou a improvisar. Recordou a miséria das famílias da classe trabalhadora empobrecidas pelo desemprego ou por acidentes de trabalho, cenas que testemunhara em primeira mão no East End londrino e nas minas de carvão de Gales do Sul. Sua voz transmitiu sua emoção e isso lhe causou certo embaraço, mas ele prosseguiu. Constatou que o público começava a prestar atenção. Falou sobre o avô e os outros homens que haviam criado o movimento trabalhista com o sonho de um seguro-desemprego abrangente, que banisse para sempre o temor da privação. Quando se sentou, um rugido de aprovação tomou conta da plateia.

           Na galeria de visitantes, sua mulher Daisy deu um sorriso orgulhoso e ergueu o polegar para ele.

           Lloyd ouviu o restante do debate envolto por uma aura de satisfação. Sentia que havia passado em seu primeiro teste de verdade como deputado.

           Depois da sessão, no lobby, foi abordado por um “chicote” trabalhista, um dos deputados da bancada do partido responsável por garantir que todos votassem como deveriam. Depois de parabenizar Lloyd pelo discurso, o chicote perguntou:

           – O senhor gostaria de ser secretário parlamentar particular?

           Lloyd logo se animou. Cada ministro e ministro-adjunto tinha pelo menos um secretário parlamentar. Na verdade, seu papel muitas vezes era apenas carregar a pasta do ministro, mas em geral o cargo era o primeiro degrau a caminho de uma nomeação ministerial.

           – Seria uma honra – respondeu Lloyd. – Com quem eu iria trabalhar?

           – Ernie Bevin.

           Lloyd mal pôde acreditar na própria sorte. Ministro das Relações Exteriores, Bevin era também o colega mais próximo do primeiro-ministro Attlee. A relação estreita entre os dois era uma prova de que os opostos se atraem. Attlee pertencia à classe média: filho de advogado, formado em Oxford, oficial na Primeira Guerra. Bevin, por sua vez, era filho ilegítimo de uma empregada doméstica, não conhecia o pai, começara a trabalhar aos 11 anos e fundara o gigantesco Sindicato dos Trabalhadores Gerais e dos Transportes. Os dois também eram opostos no aspecto físico: Attlee era esbelto e elegante, discreto, solene; Bevin era um homem imenso, alto, forte e acima do peso, dono de uma sonora risada. O ministro das Relações Exteriores chamava o primeiro-ministro de “pequeno Clem”. Apesar de tudo, eram fortes aliados.

           Bevin era um herói para Lloyd e para milhões de britânicos comuns.

           – Nada me daria mais satisfação – disse ele. – Mas Bevin já não tem um secretário parlamentar?

           – Ele precisa de dois – respondeu o chicote. – Apresente-se no Ministério das Relações Exteriores amanhã às nove horas, e já pode começar.

           – Obrigado!

           Lloyd seguiu apressado pelo corredor revestido de painéis de carvalho em direção à sala da mãe. Tinha combinado encontrar Daisy lá depois do debate.

           – Mam! – falou ao entrar. – Fui nomeado secretário parlamentar de Ernie Bevin!

           Então viu que Ethel não estava sozinha. O conde Fitzherbert estava na sala com ela.

           Fitz encarou Lloyd com uma mistura de surpresa e desagrado.

           Mesmo chocado, Lloyd reparou que o pai usava um terno cinza-claro de corte perfeito, com um colete de abotoamento duplo.

           Tornou a olhar para a mãe. Ethel estava muito tranquila. O encontro não era uma surpresa. Ela própria devia ter planejado aquilo.

           O conde chegou à mesma conclusão.

           – Que diabo é isto, Ethel? – perguntou.

           Lloyd examinou com atenção o homem cujo sangue corria em suas veias. Mesmo naquela situação constrangedora, Fitz continuava altivo e digno. Era bonito, apesar da pálpebra caída por conta de ferimentos na batalha do Somme. Andava apoiado numa bengala, outra sequela da guerra. A poucos meses de completar 60 anos, tinha uma aparência impecável: cabelos grisalhos cortados à perfeição, gravata prateada amarrada com um nó firme, sapatos pretos reluzentes. Lloyd também gostava de andar arrumado. Foi a ele que puxei, pensou.

           Ethel postou-se ao lado de Fitz. Lloyd conhecia a mãe bem o suficiente para entender a manobra. Quando queria convencer um homem, muitas vezes usava seu charme. Mesmo assim, não gostou de vê-la ser tão calorosa com alguém que havia se aproveitado dela e a abandonara.

           – Fiquei muito triste ao saber da morte de Boy – disse ela a Fitz. – Não há nada tão precioso quanto os filhos, não é?

           – Tenho que ir – retrucou Fitz.

           Até aquele momento, Lloyd só tivera encontros passageiros com o pai. Nunca passara tanto tempo assim com ele, nem o escutara dizer tantas palavras. Apesar de pouco à vontade, estava fascinado. Por mais mal-humorado que estivesse, Fitz tinha uma espécie de aura.

           – Por favor, Fitz – pediu Ethel. – Você tem um filho que nunca assumiu... um filho de quem deveria se orgulhar.

           – Ethel, você não deveria fazer isso – disse Fitz. – Um homem tem o direito de esquecer os erros da juventude.

           Lloyd se retraiu de constrangimento, mas sua mãe insistiu:

           – Por que você quer esquecer? Sei que Lloyd foi um erro, mas olhe para ele agora: um deputado que acaba de fazer um discurso empolgante e ser nomeado secretário parlamentar do ministro das Relações Exteriores.

           Fitz fez questão de não olhar para Lloyd.

           – Você quer fingir que nosso caso não teve importância – continuou Ethel –, mas no fundo sabe a verdade. Sim, nós éramos jovens e tolos, e fogosos também... Tanto eu quanto você. Mas nos amamos. Nós nos amamos de verdade, Fitz. Você deveria reconhecer isso. Por acaso não sabe que, quando nega a verdade sobre si mesmo, perde a alma?

           Lloyd viu que a expressão de Fitz agora já não era simplesmente impassível. Ele estava se esforçando para manter o controle. Entendeu que a mãe tinha posto o dedo em sua ferida. O problema principal não era o fato de Fitz sentir vergonha de ter um filho ilegítimo. Ele era orgulhoso demais para aceitar que havia amado uma empregada. Provavelmente amara Ethel mais do que a própria esposa, pensou Lloyd. E isso perturbava todas as suas crenças mais arraigadas em relação à hierarquia social.

           Lloyd então se manifestou pela primeira vez:

           – Estive com Boy nos últimos instantes, senhor. Ele teve uma morte corajosa.

           Pela primeira vez também, Fitz o encarou.

           – O meu filho não precisa da sua aprovação – falou.

           A frase foi como um tapa na cara.

           Até Ethel ficou chocada.

           – Fitz! – exclamou ela. – Como você pode ser tão cruel?

           Nesse momento, Daisy entrou na sala.

           – Olá, Fitz! – disse ela, jovial. – Você deve ter achado que tinha se livrado de mim, mas agora é meu sogro outra vez. Não é engraçado?

           – Estou tentando convencer Fitz a apertar a mão de Lloyd – disse Ethel.

           – Em geral tento evitar apertar a mão de socialistas – retrucou Fitz.

           Ethel estava travando uma batalha perdida, mas não iria desistir.

           – Veja só como ele lembra você! São parecidos, se vestem da mesma maneira, têm o mesmo interesse por política... provavelmente Lloyd vai acabar virando ministro das Relações Exteriores, cargo que você sempre quis ocupar!

           A expressão de Fitz tornou-se ainda mais fechada.

           – Agora é bem improvável que eu algum dia me torne ministro das Relações Exteriores. – Ele foi até a porta. – E não ficaria nada satisfeito se esse grande posto do governo fosse ocupado pelo meu bastardo bolchevique! – Então saiu da sala.

           Ethel começou a chorar.

           Daisy abraçou Lloyd.

           – Sinto muito – falou.

           – Não se preocupe – disse ele. – Não estou chocado nem desapontado. – Não era verdade, mas ele não queria parecer patético. – Já fui rejeitado por ele há muito tempo. – Ele olhou para Daisy com ar de adoração. – Tenho a sorte de ter muitas outras pessoas que me amam.

           – A culpa é toda minha – disse Ethel, chorosa. – Eu não deveria ter pedido a ele que viesse aqui. Deveria saber que o resultado não seria bom.

           – Esqueçam isso – falou Daisy. – Tenho boas notícias.

           Lloyd sorriu para a mulher.

           – Que notícias?

           Daisy olhou para Ethel.

           – Está preparada?

           – Acho que sim.

           – Diga logo – pediu Lloyd. – O que é?

           – Nós vamos ter um filho – disse Daisy.

 

           Erik, irmão de Carla, voltou para casa no verão, à beira da morte. Contraíra tuberculose num campo de trabalhos forçados soviético, e fora liberado depois de ficar fraco demais para trabalhar. Passara semanas dormindo ao relento, viajando a bordo de trens de carga e pegando carona com caminhoneiros. Chegou à casa dos Von Ulrich descalço e com roupas imundas. Seu rosto parecia uma caveira.

           Mas ele não morreu. Talvez tenha sido a companhia de pessoas que o amavam; ou o tempo mais quente à medida que o inverno cedia lugar à primavera; ou apenas o descanso. De todo modo, passou a tossir menos e recuperou força suficiente para fazer alguns serviços na casa: consertar janelas quebradas, arrumar as telhas, desentupir canos.

           Felizmente, no começo do ano, Frieda Franck tinha encontrado uma mina de ouro.

           Ludwig Franck morrera no bombardeio aéreo que destruíra sua fábrica, e durante algum tempo Frieda e a mãe tinham ficado tão pobres quanto o restante da população. Mas então ela arrumou um emprego de enfermeira no setor americano e, pouco depois, como explicou a Carla, um pequeno grupo de médicos lhe pediu que vendesse o excedente de comida e cigarros no mercado negro em troca de uma porcentagem dos lucros. Depois disso, ela aparecia na casa de Carla uma vez por semana com uma cestinha de suprimentos: roupas quentes, velas, pilhas para lanterna, fósforos, sabão e comida – toucinho, chocolate, maçãs, arroz, pêssegos em conserva. Maud dividia a comida em porções e dava a Carla uma porção dupla. Ela aceitava sem hesitar, não em benefício próprio, mas para amamentar o pequeno Walli.

           Sem a comida clandestina de Frieda, o bebê talvez não tivesse sobrevivido.

           Ele estava mudando depressa. Os cabelos escuros com os quais nascera tinham caído e em seu lugar haviam nascido cabelos finos e louros. Aos 6 meses, tinha os incríveis olhos verdes de Maud. À medida que seus traços se definiam, Carla reparou numa dobrinha de pele no canto externo dos olhos que lhe dava um olhar puxado, e imaginou se o pai do menino seria siberiano. Não se lembrava de todos os homens que a haviam estuprado. Mantivera os olhos fechados na maior parte do tempo.

           Não os detestava mais. Por mais estranho que fosse, sua felicidade por ser mãe de Walli era tão grande que ela mal conseguia lamentar o ocorrido.

           Rebecca era fascinada por Walli. Agora que acabara de completar 15 anos, tinha idade suficiente para sentir o princípio do instinto materno, e sempre se mostrava disposta a ajudar Carla a dar banho no bebê e vesti-lo. Brincava com ele o tempo todo, e o menino balbuciava de alegria ao vê-la.

           Assim que Erik se sentiu forte o bastante, filiou-se ao Partido Comunista.

           Carla ficou pasma. Depois de tudo o que ele havia sofrido nas mãos dos soviéticos, como podia fazer aquilo? Logo percebeu que o irmão se referia ao comunismo da mesma forma que costumava se referir ao nazismo uma década antes. Só torcia para que sua desilusão dessa vez não demorasse tanto a chegar.

           Os Aliados estavam ansiosos pela volta da democracia à Alemanha, e eleições municipais para Berlim foram marcadas nesse mesmo ano.

           Carla estava certa de que a cidade não voltaria ao normal até que os próprios habitantes assumissem o controle, então decidiu apoiar o Partido Social-Democrata. Mas os berlinenses logo descobriram que os ocupantes soviéticos tinham um conceito curioso de democracia.

           Em novembro, eles haviam ficado chocados com o desfecho das eleições na Áustria. Os comunistas austríacos esperavam uma disputa apertada com os socialistas, mas tinham conquistado apenas quatro vagas das 165 disponíveis. Os eleitores pareciam culpar os comunistas pela brutalidade do Exército Vermelho. O Kremlin, pouco habituado a eleições lícitas, não previra isso.

           Para evitar um resultado semelhante na Alemanha, os soviéticos propuseram uma fusão entre comunistas e social-democratas, no que chamavam de Frente Unida. Apesar da forte pressão, os social-democratas resistiram. Então os russos começaram a prendê-los no leste do país, da mesma forma que os nazistas tinham feito em 1933. Nessa região, a fusão foi imposta. Mas as eleições em Berlim eram supervisionadas pelos quatro Aliados, e os social-democratas conseguiram sobreviver.

           Quando o tempo esquentou, Carla pôde voltar a se revezar na fila da comida. Levava Walli enrolado numa fronha – não tinha roupas de bebê. Certo dia, de manhã, quando estava a alguns quarteirões de casa, na fila para comprar batatas, ficou surpresa ao ver um jipe americano encostar na calçada com Frieda no banco do carona. O motorista de meia-idade já meio calvo se despediu dela com um beijo na boca, e ela desceu do carro. Estava usando um vestido azul sem mangas e sapatos novos. Afastou-se depressa em direção à casa dos Von Ulrich, levando sua cestinha.

           Carla entendeu tudo numa fração de segundo. Frieda não vendia artigos no mercado negro, tampouco havia grupo de médicos algum. Ela era amante de um oficial americano que a sustentava.

           Isso não era incomum. Milhares de belas moças alemãs tinham sido forçadas a uma escolha: ver a família morrer de fome ou ir para a cama com um oficial generoso. As francesas tinham feito o mesmo durante a ocupação nazista. Ali na Alemanha, as esposas dos oficiais falavam nisso com amargura.

           Mesmo assim, Carla ficou horrorizada. Pensava que Frieda amasse Heinrich. Os dois planejavam se casar assim que a vida recuperasse um mínimo de normalidade. Aquilo deixou Carla enojada.

           Ela chegou ao começo da fila, comprou sua porção de batatas e voltou depressa para casa.

           Encontrou Frieda no andar de cima, na sala de estar. Erik tinha limpado o cômodo e tapado as janelas com jornal, o melhor substituto que havia para o vidro. Havia muito tempo que as cortinas tinham sido transformadas em roupa de cama, mas a maior parte das cadeiras ainda sobrevivia, com o estofado desbotado e gasto. Por milagre, o piano de cauda também continuava ali. Um oficial russo o tinha visto e anunciado que retornaria no dia seguinte com um guindaste para içá-lo pela janela, mas nunca voltara.

           Assim que Carla chegou, Frieda pegou Walli do seu colo e começou a cantar para o menino a canção “A, B, C, die Katze lief im Schnee”. Carla observou que as mulheres que ainda não tinham filhos, Rebecca e Frieda, não se fartavam de brincar com Walli. Já as que tinham sido mães, Maud e Ada, adoravam o bebê, mas o tratavam de forma prática.

           Frieda abriu a tampa do piano e incentivou Walli a bater nas teclas enquanto ela cantava. Havia muitos anos que ninguém tocava o instrumento. Maud não encostava nele desde a morte de seu último aluno, Joachim Koch.

           Depois de alguns minutos, Frieda disse a Carla:

           – Você está séria. O que houve?

           – Sei como você consegue a comida que traz para nós – respondeu Carla. – Não trabalha no mercado negro, não é?

           – É claro que trabalho – respondeu Frieda. – Que história é essa?

           – Eu a vi descendo de um jipe hoje de manhã.

           – O coronel Hicks me deu uma carona.

           – Ele beijou você na boca.

           Frieda olhou para outro lado.

           – Eu sabia que deveria ter descido antes. Poderia ter vindo a pé do setor americano.

           – Mas, Frieda, e Heinrich?

           – Ele nunca vai saber! Vou tomar mais cuidado, juro.

           – Você ainda o ama?

           – É claro! Nós vamos nos casar.

           – Então por que...?

           – Estou farta de passar dificuldades! Quero usar roupas bonitas, ir a boates e dançar.

           – Não é isso – disse Carla, convicta. – Você não pode mentir para mim, Frieda... somos amigas há muito tempo. Diga a verdade.

           – A verdade?

           – Sim, por favor.

           – Tem certeza?

           – Tenho.

           – Fiz isso por Walli.

           Carla soltou um arquejo de choque. Isso nunca havia lhe ocorrido, mas fazia sentido. Acreditou que Frieda estivesse fazendo um sacrifício daqueles por ela e pelo filho.

           No entanto, sentiu-se péssima. Aquilo a tornava responsável pelo fato de Frieda se prostituir.

           – Que horror! – exclamou. – Você não deveria ter feito isso... Nós teríamos dado um jeito.

           Ainda com o bebê no colo, Frieda se levantou da banqueta do piano.

           – Não teriam, não! – exclamou, arrebatada.

           Walli se assustou e começou a chorar. Carla o tomou nos braços e o ninou, afagando suas costas.

           – Vocês não teriam dado um jeito – disse Frieda, dessa vez mais baixo.

           – Como você sabe?

           – Durante todo o inverno bebês foram levados para o hospital nus, enrolados em jornal, morrendo de fome e de frio. Eu mal conseguia olhar para eles.

           – Ah, meu Deus! – Carla apertou Walli em seu colo.

           – Eles ficam com uma cor azul característica quando morrem congelados.

           – Pare.

           – Preciso falar sobre essas coisas, senão você não vai entender o que fiz. Walli teria virado um desses bebês azuis congelados.

           – Eu sei – sussurrou Carla. – Eu sei.

           – Percy Hicks é um homem bom. Tem uma mulher sem graça em Boston, e eu sou a coisa mais sexy que ele já viu na vida. Quando fazemos sexo, ele é carinhoso, rápido e sempre usa preservativo.

           – Você precisa parar com isso – disse Carla.

           – Você não está falando sério.

           – É, não estou mesmo – confessou Carla. – E é essa a pior parte. Sinto-me tão culpada...

           – Mas você não tem culpa. A escolha foi minha. As mulheres alemãs têm que fazer escolhas difíceis. Estamos pagando pelas escolhas fáceis que os alemães fizeram 15 anos atrás. Homens como meu pai, que achou que Hitler seria bom para os negócios; e como o pai de Heinrich, que votou a favor da Lei Plenipotenciária. As filhas têm que pagar pelos pecados dos pais.

           Alguém bateu com força na porta da frente. Instantes depois, elas ouviram os passos rápidos de Rebecca correndo para o andar de cima, para o caso de ser o Exército Vermelho.

           Então Ada falou:

           – Ah! Bom dia, senhor!

           Ela soou surpresa e um pouco preocupada, mas não pareceu estar com medo. Carla se perguntou quem poderia provocar essa mistura específica de reações na criada.

           Passos pesados e masculinos soaram na escada, e então Werner entrou na sala.

           Estava sujo, em frangalhos e muito magro, mas seu rosto bonito exibia um sorriso largo.

           – Sou eu! – disse ele, eufórico. – Voltei!

           Então viu o bebê. Seu queixo caiu, e o sorriso desapareceu.

           – Ah – disse ele. – O que... quem... de quem é esse bebê?

           – É meu, amor – respondeu Carla. – Deixe-me explicar.

           – Explicar? – repetiu ele, zangado. – Que explicação pode haver? Você teve um filho com outro homem! – Ele se virou para ir embora.

           – Werner! – gritou Frieda. – Nesta sala estão duas mulheres que amam você. Não vá embora sem nos ouvir. Você não está entendendo.

           – Estou entendendo tudo perfeitamente.

           – Carla foi violentada.

           – Violentada? Por quem? – indagou Werner, pálido.

           – Não cheguei a saber o nome deles – respondeu Carla.

           – Deles? – Werner engoliu em seco. – Foram... foi mais de um?

           – Cinco soldados do Exército Vermelho.

           A voz dele se transformou num sussurro:

           – Cinco?

           Carla assentiu.

           – Mas... você não poderia ter... Quer dizer...

           – Eu também fui violentada, Werner – disse Frieda. – E mamãe também.

           – Meu Deus, o que está acontecendo nesta cidade?

           – Um inferno – respondeu Frieda.

           Werner sentou-se pesadamente numa poltrona de couro gasta.

           – E eu pensando que o inferno fosse o lugar onde eu estava – falou. Então enterrou o rosto nas mãos.

           Ainda com Walli no colo, Carla atravessou a sala e ficou em pé na frente da poltrona de Werner.

           – Werner, olhe para mim – pediu ela. – Por favor.

           Ele ergueu o rosto; sua expressão estava contorcida de emoção.

           – O inferno acabou – disse ela.

           – Ah, é?

           – É – respondeu ela com firmeza. – A vida está difícil, mas os nazistas foram embora, a guerra terminou. Hitler está morto, e os estupradores do Exército Vermelho foram controlados, de certa forma. O pesadelo acabou. Nós dois estamos vivos... e juntos.

           Ele estendeu a mão e segurou a dela.

           – Tem razão.

           – Temos Walli, e daqui a um minuto você vai conhecer uma menina de 15 anos chamada Rebecca, que de certa forma virou minha filha. Precisamos formar uma nova família com o que a guerra nos deixou, da mesma forma que temos que construir novas casas com o entulho espalhado pelas ruas.

           Ele assentiu.

           – Eu preciso do seu amor – disse Carla. – Rebecca e Walli também.

           Werner se levantou devagar. Ela o encarou com um ar de expectativa. Ele não disse nada, mas, depois de uma longa pausa, passou os braços em volta dela e do bebê, abraçando-os delicadamente.

 

           Com as regras dos tempos de guerra ainda em vigor, o governo britânico tinha o direito de abrir minas de carvão onde quisesse, independentemente da vontade do proprietário das terras. Os donos só eram compensados por perdas de lucros agrícolas ou de propriedades comerciais.

           O ministro-adjunto do Carvão, Billy Williams, autorizou uma mina a céu aberto no terreno de Tŷ Gwyn, a mansão do conde Fitzherbert situada nos arredores de Aberowen.

           Como as terras não tinham uso comercial, nenhuma indenização foi paga.

           Houve indignação nos bancos ocupados pelos deputados conservadores da Câmara dos Comuns.

           – A sua pilha de escória vai ficar bem debaixo das janelas do quarto da condessa! – disse um deputado indignado.

           Billy Williams sorriu.

           – A pilha de escória do conde passou cinquenta anos debaixo da janela da minha mãe.

           Na véspera do dia em que os engenheiros começaram as escavações, Lloyd Williams e Ethel acompanharam Billy até Aberowen. Lloyd relutou em deixar Daisy, que deveria dar à luz em duas semanas, mas aquele era um momento histórico, e ele queria estar presente.

           Seus avós estavam com quase 80 anos. Apesar dos óculos de lentes feitas de cristal de rocha, Granda estava quase cego, e Grandmam andava curvada.

           – Que coisa boa – disse Grandmam quando todos se sentaram em volta de sua velha mesa na cozinha. – Meus dois filhos aqui comigo.

           Ela serviu carne ensopada com purê de nabo e grossas fatias de pão caseiro cobertas de banha. Para acompanhar, grandes canecas de chá doce com bastante leite.

           Lloyd havia comido esse tipo de refeição com frequência quando era criança, mas agora achava a comida tosca. Sabia que, mesmo nos tempos difíceis, as francesas e as espanholas conseguiam servir pratos saborosos, delicadamente temperados com alho e ervas. Sentiu vergonha da própria exigência e fingiu comer e beber com apetite.

           – É uma pena os jardins de Tŷ Gwyn desaparecerem – comentou Grandmam sem qualquer delicadeza.

           Billy se ofendeu.

           – Como assim? As pessoas precisam de carvão.

           – Mas todo mundo ama aqueles jardins. Eles são lindos. Desde que eu era menina, ia lá pelo menos uma vez por ano. É uma pena vê-los desaparecer.

           – Tem um ótimo parque de recreação bem no meio de Aberowen!

           – Não é a mesma coisa – retrucou Grandmam, sem se deixar abalar.

           – As mulheres nunca vão entender de política – comentou Granda.

           – Não – concordou Grandmam. – Imagino que nunca, mesmo.

           Lloyd cruzou olhares com a mãe. Ethel sorriu e não disse nada.

           Billy e Lloyd dividiram o segundo quarto, e Ethel fez uma cama no chão da cozinha.

           – Passei todas as noites da minha vida neste quarto até ir para o Exército – disse Billy quando os dois se deitaram. – E todos os dias de manhã olhava pela janela e via aquela maldita pilha de escória.

           – Fale baixo, tio Billy – disse Lloyd. – Não quero que Grandmam ouça você praguejar.

           – É, tem razão – respondeu Billy.

           Na manhã seguinte, depois do café, todos subiram a colina até a mansão. O tempo estava ameno e não chovia, o que era raro. A grama nova de verão suavizava a linha das montanhas no horizonte. Quando Tŷ Gwyn apareceu, Lloyd não pôde evitar vê-la mais como uma linda casa do que como um símbolo de opressão. As duas coisas se aplicavam, é claro: em política, nada era simples.

           Os grandes portões de ferro estavam abertos. A família Williams entrou na propriedade. Uma multidão já estava reunida: os operários com suas máquinas, uma centena de mineiros e seus familiares, o conde Fitzherbert acompanhado pelo filho, Andrew, alguns jornalistas com bloquinhos e uma equipe de filmagem.

           Os jardins estavam esplendorosos. A aleia de castanheiras ancestrais estava repleta de folhas, cisnes nadavam no lago, e os canteiros de flores reluziam com seus inúmeros matizes. Lloyd imaginou que o conde tivesse se esforçado para deixar o jardim no auge da beleza. Ele queria que, aos olhos do mundo, o governo trabalhista parecesse um destruidor.

           Lloyd se pegou sentindo empatia por Fitz.

           O prefeito de Aberowen estava dando uma entrevista.

           – O povo desta cidade é contra a mina a céu aberto.

           Lloyd ficou espantado: o conselho municipal de Aberowen era trabalhista e devia ser difícil para seus integrantes se opor ao governo.

           – Durante mais de cem anos, a beleza destes jardins consolou a alma de pessoas que vivem numa paisagem industrial sombria – prosseguiu o prefeito. Então deixou de lado o discurso ensaiado para acrescentar uma lembrança pessoal: – Pedi minha mulher em casamento debaixo daquele cedro.

           O prefeito foi interrompido por um barulho metálico muito alto, como os passos de um gigante de ferro. Virando-se na direção do acesso que conduzia à casa, Lloyd viu uma imensa máquina se aproximando. Parecia o maior guindaste do mundo. Tinha uma lança imensa, com trinta metros de comprimento, e uma caçamba que poderia facilmente abarcar um caminhão. O mais espantoso de tudo era que a máquina se movia sobre sapatas de aço giratórias que faziam a terra tremer toda vez que batiam no chão.

           – É uma escavadeira de arrasto da Monighan com tração própria. Consegue pegar seis toneladas de terra por vez.

           A equipe começou a filmar enquanto a monstruosa máquina subia o acesso à casa.

           Lloyd só tinha uma reserva em relação ao Partido Trabalhista: muitos socialistas possuíam uma veia autoritária e puritana. Seu pai era assim, seu tio Billy também. Eles não se sentiam à vontade em relação aos prazeres sensoriais. Preferiam o sacrifício e a abnegação. Desdenhavam a beleza estonteante daqueles jardins, considerando-a irrelevante. Estavam errados.

           Ethel não era assim, nem Lloyd. Talvez a veia desmancha-prazeres tivesse sido erradicada de sua linhagem. Ele torceu para que sim.

           Fitz dava uma entrevista no caminho de cascalho rosado enquanto o operador da escavadeira manobrava sua máquina até a posição certa.

           – O ministro-adjunto do Carvão lhes disse que, quando a mina ficar exaurida, o jardim passará pelo que ele chama de um programa de restauração eficaz – informou ele. – Eu digo a vocês que essa promessa não vale nada. Meu avô e meu pai levaram mais de um século para fazer o jardim chegar ao auge de beleza e da harmonia em que se encontra agora. Seria preciso mais cem anos para restaurá-lo.

           A lança da escavadeira foi baixada até ficar em um ângulo de 45 graus em relação aos arbustos e canteiros de flores do jardim. A caçamba foi posicionada acima do gramado de croquê. Houve um longo intervalo de espera. Todos os presentes se calaram.

           – Vamos logo com isso, pelo amor de Deus – disse Billy bem alto.

           Um engenheiro de capacete soprou um apito.

           A caçamba foi largada no chão, produzindo um forte baque. Seus dentes de aço morderam o gramado verde e plano. O cabo de arrasto se retesou, ouviu-se um rangido alto de esforço mecânico e então a caçamba começou a se mover para trás. Ao se arrastar pelo chão, arrancou um canteiro de imensos girassóis amarelos, o roseiral, arbustos e um pequeno pé de magnólia. Ao final da trajetória, a caçamba ficou cheia de terra, flores e plantas.

           Então foi erguida a uma altura de sete metros, soltando terra e botões de flor.

           A lança girou de lado. Lloyd viu que era mais alta que a casa. Quase pensou que a caçamba fosse quebrar as janelas do andar de cima, mas o operador da escavadeira era experiente e parou bem a tempo. O cabo afrouxou, a caçamba se inclinou e seis toneladas de jardim foram despejadas no chão a poucos metros da entrada.

           A caçamba foi recolocada na posição original, e o processo se repetiu.

           Lloyd olhou para Fitz e viu que ele estava chorando.

             

1947

            No início de 1947, parecia possível que a Europa inteira se tornasse comunista.

           Volodya Peshkov não estava certo se deveria torcer por isso ou não.

           O Exército Vermelho dominava a Europa Oriental, e os comunistas estavam vencendo eleições no Ocidente. Tinham conquistado respeito por seu papel na resistência aos nazistas. Cinco milhões de pessoas votaram no Partido Comunista na primeira eleição francesa do pós-guerra, tornando-o a entidade política mais popular do país. Na Itália, uma aliança entre comunistas e socialistas levou 40% dos votos. Na Tchecoslováquia, os comunistas sozinhos conseguiram 38% dos votos, e passaram a liderar o governo democraticamente eleito.

           Na Áustria e na Alemanha, porém, onde os eleitores tinham sido roubados e violentados pelo Exército Vermelho, a situação foi diferente. Nas eleições municipais de Berlim, os social-democratas conquistaram 63 das 130 vagas, e os comunistas, apenas 26. Mas a Alemanha estava arruinada e faminta, e o Kremlin ainda tinha esperança de que as pessoas recorressem ao comunismo por desespero, assim como haviam feito com o nazismo durante a Depressão.

           A grande decepção foi a Grã-Bretanha, onde apenas um comunista conquistou uma vaga no Parlamento na eleição do pós-guerra. Além disso, o governo trabalhista estava implantando tudo o que o comunismo prometia: bem-estar social, saúde pública gratuita, educação para todos, e até mesmo uma semana de trabalho de cinco dias para os mineiros.

           No restante da Europa, contudo, o capitalismo não conseguia tirar as pessoas da recessão do pós-guerra.

           Até o clima estava do lado de Stalin, pensou Volodya ao ver as camadas de neve se espessarem sobre as cúpulas das igrejas ortodoxas. O inverno de 1946-47 foi o mais frio da Europa em mais de cem anos. Chegou a nevar em Saint-Tropez. As estradas e as ferrovias da Grã-Bretanha ficaram interditadas, e a produção industrial parou – algo que não acontecera nem durante a guerra. Na França, o racionamento de comida caiu a níveis menores do que durante o conflito. A Organização das Nações Unidas calculou que cem milhões de europeus estivessem vivendo com 1.500 calorias por dia – nível no qual a saúde começa a ser prejudicada por desnutrição. À medida que a indústria desacelerava cada vez mais os seus motores, as pessoas começaram a sentir que não tinham nada a perder, e a revolução passou a ser vista como a única saída.

           Quando a União Soviética tivesse a bomba nuclear, nenhum outro país seria capaz de lhe fazer frente. Zoya e seus colegas haviam construído uma pilha nuclear no Laboratório 2 da Academia de Ciências – nome propositalmente vago para o centro de comando da pesquisa nuclear soviética. A pilha entrou em estado crítico no dia de Natal, seis meses após o nascimento de Konstantin, que na ocasião estava dormindo na creche do laboratório. Se o experimento desse errado, dissera Zoya a Volodya, de nada adiantaria ao pequeno Kotya estar a dois ou três quilômetros de distância: todo o centro de Moscou seria aniquilado.

           Os sentimentos conflitantes de Volodya em relação ao futuro se intensificaram ainda mais com o nascimento do filho. Queria que Kotya crescesse como cidadão de um país orgulhoso e forte. Achava que a União Soviética merecia dominar a Europa. Fora o Exército Vermelho que derrotara os nazistas, durante quatro anos cruéis de guerra. Os outros Aliados tinham se mantido na periferia do conflito, travando batalhas menores, e só entraram na briga de verdade nos últimos 11 meses. Todas as suas baixas somadas representavam apenas uma fração das perdas sofridas pelo povo soviético.

           Mas então ele pensava no que o comunismo significava: expurgos arbitrários, tortura nos porões da polícia secreta, soldados vitoriosos instigados a cometer excessos bestiais, todo um país forçado a obedecer às decisões aleatórias de um tirano mais poderoso que um czar. Volodya queria mesmo exportar aquele sistema brutal para o restante do continente?

           Lembrou-se de entrar na Penn Station, em Nova York, e comprar uma passagem para Albuquerque sem pedir permissão a ninguém nem mostrar documento algum, e da empolgante sensação de completa liberdade que isso havia lhe proporcionado. Havia muito tempo que queimara o catálogo da Sears Roebuck, mas não o tirara da lembrança, com suas centenas de páginas de coisas boas disponíveis a todos. O povo russo acreditava que as histórias sobre liberdade e prosperidade ocidentais não passavam de propaganda, mas Volodya sabia que eram verdadeiras. Parte dele ansiava pela derrota do comunismo.

           O futuro da Alemanha – e portanto da Europa – seria decidido na Conferência de Ministros do Exterior a ser realizada em Moscou em março de 1947.

           Volodya, agora coronel, era responsável pela equipe de inteligência que cuidava da conferência. As reuniões aconteciam numa sala bem-decorada no Prédio da Indústria da Aviação, local prático por ser próximo ao Hotel Moskva. Como sempre, os representantes e seus intérpretes ficavam sentados em volta de uma mesa, com os assessores acomodados em várias filas de cadeiras mais atrás. O ministro das Relações Exteriores soviético, Viatcheslav Molotov, o velho Cu de Pedra, exigiu que a Alemanha pagasse dez bilhões de dólares em indenizações de guerra à União Soviética. Os americanos e britânicos protestaram dizendo que isso seria um golpe fatal para a economia alemã depauperada. Provavelmente era isso que Stalin queria.

           Volodya reencontrou Woody Dewar, agora fotógrafo de um jornal, encarregado de cobrir a conferência. Ele também estava casado e mostrou a Volodya a foto de uma linda mulher de cabelos escuros com um bebê no colo. Sentado no banco de trás de uma limusine ZIS 110-B, voltando de uma sessão de fotos oficiais no Kremlin, Woody lhe perguntou:

           – Você sabe que a Alemanha não tem dinheiro para pagar essa indenização, não sabe?

           O inglês de Volodya tinha melhorado e eles conseguiam se virar sem intérprete.

           – Nesse caso, como eles estão alimentando seu povo e reconstruindo suas cidades? – perguntou ele.

           – Nós os estamos ajudando, é claro – respondeu Woody. – Gastamos uma fortuna em auxílio. Qualquer indenização paga pelos alemães na verdade seria dinheiro nosso.

           – E isso é tão errado assim? Os Estados Unidos prosperaram durante a guerra. O meu país foi devastado. Talvez vocês devessem pagar mesmo.

           – Os eleitores americanos não pensam assim.

           – Talvez eles estejam errados.

           Woody deu de ombros.

           – Pode ser, mas o dinheiro é deles.

           De novo o mesmo argumento, pensou Volodya: a deferência à opinião pública. Já tinha reparado nisso antes na conversa com Woody. Os americanos se referiam aos eleitores da mesma forma que os russos se referiam a Stalin: certos ou errados, tinham que ser obedecidos.

           Woody baixou o vidro do carro.

           – Você se importa se eu tirar uma foto da cidade? A luz está incrível.

           O obturador da câmera fez um clique.

           Ele sabia que, em tese, só podia tirar fotos aprovadas. Mas não havia nada de sensível na rua, apenas algumas mulheres retirando neve com pás. Mesmo assim, Volodya disse:

           – Não, por favor. – Ele se debruçou pela frente de Woody e fechou a janela. – Só fotos oficiais.

           Estava prestes a pedir o filme da máquina de Woody quando este perguntou:

           – Você se lembra de quando mencionei um amigo chamado Greg Peshkov?

           Volodya se lembrava perfeitamente. Willi Frunze dissera algo parecido. Devia ser a mesma pessoa.

           – Não, não me lembro – mentiu. Não queria nenhum envolvimento com um possível parente no Ocidente. Esse tipo de vínculo só servia para causar suspeitas e problemas aos russos.

           – Ele é membro da delegação americana. Você deveria conversar com ele. Para ver se são parentes.

           – Farei isso – disse Volodya, decidindo evitar o sujeito a qualquer custo.

           Resolveu não insistir em confiscar o filme de Woody. Uma inofensiva cena de rua não valia tanta confusão.

           Na reunião do dia seguinte, o secretário de Estado americano, George Marshall, propôs que os quatro Aliados abolissem os setores separados da Alemanha e unificassem o país a fim de que este voltasse a ser o coração econômico da Europa, com suas minas e fábricas, suas importações e exportações.

           Essa era a última coisa que os soviéticos queriam.

           Molotov se recusou a discutir a unificação antes de a questão das indenizações ser resolvida.

           A conferência chegou a um impasse.

           E isso, pensou Volodya, era exatamente o que Stalin queria.

 

           O mundo da diplomacia internacional era minúsculo, pensou Greg Peshkov. Um dos jovens assessores da delegação britânica presente na conferência de Moscou era Lloyd Williams, marido de sua meia-irmã, Daisy. À primeira vista, Greg não gostou de Lloyd, que se vestia como um afetado cavalheiro inglês, mas ele acabou se revelando um sujeito normal.

           – Molotov é um babaca – disse Lloyd no bar do Hotel Moskva quando ambos estavam sentados diante de martínis com vodca.

           – Então o que vamos fazer em relação a ele?

           – Não sei, mas esses atrasos são inaceitáveis para o Reino Unido. A ocupação da Alemanha está custando um dinheiro que não temos, e o inverno inclemente transformou o problema em crise.

           – Sabe de uma coisa? – disse Greg, refletindo em voz alta. – Se os soviéticos não quiserem participar, deveríamos simplesmente tocar as negociações sem eles.

           – Mas como?

           – O que nós queremos? – Greg foi enumerando nos dedos: – Unificar a Alemanha e organizar eleições.

           – Nós também.

           – Eliminar o Reichsmark inútil e introduzir uma nova moeda, para que os alemães possam voltar a fazer comércio.

           – Sim.

           – E salvar o país do comunismo.

           – Os britânicos querem a mesma coisa.

           – Não podemos fazer isso no leste porque os soviéticos não deixam. Então eles que se danem! Nós controlamos três quartos da Alemanha... Vamos fazer essas coisas no nosso setor e deixar de lado a parte leste do país.

           Lloyd pareceu refletir.

           – Você conversou sobre isso com seu chefe?

           – Merda, não! Só estou falando da boca para fora. Mas por que não?

           – Eu poderia sugerir isso a Ernie Bevin.

           – E eu a George Marshall. – Greg tomou um gole de martíni. – A única coisa que os russos sabem fazer é vodca – comentou. – Mas como vai minha irmã?

           – Está grávida do nosso segundo filho.

           – E que tipo de mãe ela é?

           Lloyd riu.

           – Você acha que ela deve ser péssima.

           Greg deu de ombros.

           – Nunca achei que ela fosse uma mulher muito caseira.

           – Ela é paciente, calma e organizada.

           – E não contratou seis babás para fazer todo o trabalho?

           – Só uma, para poder sair comigo à noite, em geral para reuniões políticas.

           – Nossa, como ela mudou!

           – Não completamente. Ainda adora festas. E você? Continua solteiro?

           – Tem uma moça chamada Nelly Fordham que estou levando bem a sério. E imagino que você já saiba que tenho um afilhado.

           – Sei, sim – respondeu Lloyd. – Daisy me falou sobre ele. Georgy.

           Pela expressão levemente constrangida no rosto de Lloyd, Greg teve certeza de que ele sabia que Georgy era seu filho.

           – Eu gosto muito dele.

           – Que ótimo.

           Um membro da delegação russa se aproximou do bar, e Greg cruzou olhares com ele. Havia algo muito familiar no homem. Tinha 30 e poucos anos e, tirando os cabelos curtíssimos, estilo militar, era um homem bonito, dono de olhos azuis levemente intimidadores. O russo meneou a cabeça para ele, simpático, e Greg perguntou:

           – Já nos conhecemos?

           – Talvez – respondeu o russo. – Estudei na Alemanha quando criança... na Academia para Meninos de Berlim.

           Greg fez que não com a cabeça.

           – Já foi aos Estados Unidos?

           – Não.

           – Esse é o cara com o sobrenome igual ao seu – disse Lloyd. – Volodya Peshkov.

           – Talvez sejamos parentes – disse Greg. – Meu pai, Lev Peshkov, emigrou em 1914, deixando na Rússia uma namorada grávida que se casou com o irmão mais velho dele, Grigori Peshkov. Será que sou seu meio-irmão?

           A atitude de Volodya mudou na mesma hora.

           – Com certeza não – respondeu. – Queiram me dar licença. – E saiu do bar sem comprar nenhuma bebida.

           – Que reação mais brusca – comentou Greg com Lloyd.

           – Foi mesmo – concordou o inglês.

           – Ele pareceu bem chocado.

           – Deve ter sido alguma coisa que você disse.

 

           Não podia ser verdade, pensou Volodya.

           Segundo Greg, Grigori tinha se casado com uma moça que estava grávida de Lev. Se fosse isso mesmo, o homem que Volodya sempre chamara de pai na verdade era seu tio.

           Talvez fosse só coincidência. Ou então o americano estivesse apenas tentando criar confusão.

           Mesmo assim, Volodya estava completamente tonto de choque.

           Voltou para casa na hora de sempre. Ele e Zoya eram um casal em franca ascensão e tinham ganhado um apartamento no Prédio do Governo, a mesma construção de luxo onde seus pais moravam. Como faziam quase todas as noites, Grigori e Katerina foram ao apartamento do filho na hora do jantar de Kotya. Katerina deu banho no neto, depois Grigori cantou para ele e contou-lhe histórias de fadas russas. Kotya estava com 9 meses e ainda não falava, mas mesmo assim parecia gostar de ouvir histórias na hora de dormir.

           Volodya seguiu sua rotina noturna como se fosse um sonâmbulo. Tentou se comportar normalmente, mas constatou que mal conseguia conversar com o pai ou com a mãe. Apesar de não acreditar na história de Greg, não parava de pensar naquele assunto.

           Depois de Kotya dormir, quando os avós estavam se preparando para ir embora, Grigori perguntou ao filho:

           – Por acaso estou com uma verruga no nariz?

           – Não.

           – Então por que passou a noite inteira me encarando?

           Volodya decidiu contar a verdade:

           – Conheci um rapaz chamado Greg Peshkov. Ele faz parte da delegação americana. Acha que somos parentes.

           – É possível. – O tom de voz de Grigori foi casual, como se aquilo não tivesse muita importância, mas Volodya viu que o pescoço do pai ficou vermelho, um sinal de emoção contida. – A última vez que vi meu irmão foi em 1919. Desde então, não tive mais notícias.

           – O pai de Greg se chama Lev e tem um irmão chamado Grigori.

           – Então esse Greg deve ser seu primo.

           – Ele disse que é meu meio-irmão.

           Grigori enrubesceu mais ainda e não falou nada.

           – Como isso seria possível? – interveio Zoya.

           – Segundo esse Peshkov americano, Lev deixou uma namorada grávida em São Petersburgo, e ela se casou com o irmão dele – explicou Volodya.

           – Que coisa mais ridícula! – exclamou Grigori.

           Volodya olhou para Katerina.

           – Mãe, a senhora não disse nada.

           Houve uma pausa demorada. Só isso já era significativo. Se a história de Greg não tivesse fundamento, por que seus pais precisavam pensar? Um frio estranho se abateu sobre Volodya, como uma névoa gelada.

           Por fim, sua mãe falou:

           – Eu era uma moça volúvel. – Olhou para Zoya. – Não tinha a cabeça no lugar como a sua mulher. – Então suspirou. – Grigori Peshkov se apaixonou por mim à primeira vista... um bobo, coitadinho. – Ela deu um sorriso carinhoso para o marido. – Mas o irmão dele, Lev, tinha roupas vistosas, dinheiro para comprar vodca, amigos gângsteres. Gostei mais de Lev. Fui ainda mais boba.

           – Então é verdade? – indagou Volodya, estupefato. Parte dele ainda esperava desesperadamente ouvi-los negar.

           – Lev fez o que homens desse tipo sempre fazem – disse Katerina. – Me engravidou e depois me abandonou.

           – Então Lev é meu pai. – Volodya olhou para Grigori. – E o senhor é só meu tio! – Teve a sensação de que poderia cair. O chão sob seus pés havia estremecido. Parecia um terremoto.

           Zoya postou-se ao lado da cadeira de Volodya e pôs a mão em seu ombro, como se quisesse acalmá-lo, ou talvez contê-lo.

           – E Grigori fez o que homens como Grigori sempre fazem – continuou Katerina. – Cuidou de mim. Casou-se comigo, me deu amor e sustentou meus filhos e a mim. – Sentada no sofá ao lado de Grigori, ela segurou sua mão. – Eu não o queria e certamente não o merecia, mas mesmo assim Deus o deu a mim.

           – Tive medo de que esse dia chegasse – disse Grigori. – Desde que você nasceu, tive medo.

           – Então por que o segredo? – perguntou Volodya. – Por que vocês simplesmente não me disseram a verdade?

           Grigori engasgara e foi com dificuldade que respondeu:

           – Eu não podia suportar a ideia de lhe contar que não era seu pai. Amo você demais.

           – Deixe eu lhe dizer uma coisa, meu filho amado – interveio Katerina. – Ouça o que vou falar agora, e pouco me importa se nunca mais escutar nada do que sua mãe disser. Esqueça esse desconhecido nos Estados Unidos que há muito tempo seduziu uma menina boba. Olhe para o homem sentado na sua frente com os olhos cheios de lágrimas.

           Volodya olhou para Grigori e viu em seu rosto uma expressão de súplica que tocou seu coração.

           – Este homem alimentou você, o vestiu e durante três décadas nunca deixou de amá-lo – prosseguiu Katerina. – Se a palavra pai tem algum significado, seu pai é ele.

           – Sim – disse Volodya. – Eu sei.

 

           Lloyd Williams se dava bem com Ernie Bevin. Apesar da diferença de idade, os dois tinham muita coisa em comum. Durante os quatro dias de viagem de trem pela Europa coberta de neve, Lloyd confidenciara ao ministro que, assim como ele, também era filho ilegítimo de uma empregada doméstica. Ambos eram anticomunistas ferrenhos: Lloyd por causa da experiência na Espanha, Bevin por ter testemunhado as táticas comunistas no movimento sindicalista.

           – Eles são escravos do Kremlin e tiranos para todos os outros – dizia Bevin, e Lloyd sabia exatamente do que ele estava falando.

           Não tinha ido com a cara de Greg Peshkov, que sempre parecia ter se vestido às pressas: camisa com punhos desabotoados, sobretudo com a gola torta, cadarços desamarrados. Greg era astuto, e Lloyd tentou gostar dele, mas sentia que sob o charme casual do americano havia uma crueldade implacável. Daisy lhe dissera que Lev Peshkov era um gângster, e Lloyd podia imaginar que Greg tivesse os mesmos instintos.

           Mas Bevin adorou a ideia de Greg para a Alemanha.

           – Você acha que ele estava falando em nome de Marshall? – perguntou o corpulento ministro das Relações Exteriores com seu sotaque carregado do sudoeste da Grã-Bretanha.

           – Ele disse que não – respondeu Lloyd. – Mas o senhor acha que poderia dar certo?

           – Acho que é a melhor ideia que ouvi em três semanas nesta maldita Moscou. Se ele estiver falando sério, organize um almoço informal: só Marshall, esse rapaz, você e eu.

           – Farei isso agora mesmo.

           – Mas não conte a ninguém. Não queremos que os soviéticos fiquem sabendo. Eles vão nos acusar de conspirar contra eles, e estarão certos.

           O encontro foi no dia seguinte, no número 10 da praça Spasopeskovskaya, residência do embaixador americano, um extravagante palacete neoclássico construído antes da Revolução. Alto e magro, Marshall tinha porte de soldado; Bevin, por sua vez, era roliço e míope, e muitas vezes trazia um cigarro pendurado na boca. Apesar das diferenças, os dois simpatizaram na hora. Ambos diziam as coisas com simplicidade. Certa vez Stalin acusara Bevin de fazer um discurso descortês, distinção da qual este muito se orgulhava. Debaixo dos tetos pintados e dos lustres, os dois deram início à tarefa de fazer reviver a Alemanha sem a ajuda da União Soviética.

           Concordaram rapidamente em relação aos princípios: a nova moeda, a unificação dos setores britânico, americano e – se possível – francês; a desmilitarização da parte ocidental da Alemanha; eleições; e uma nova aliança militar transatlântica. Então Bevin disse, incisivo:

           – Nada disso vai funcionar, o senhor sabe.

           Marshall se espantou.

           – Então não entendo por que estamos tendo esta conversa – retrucou, ríspido.

           – A Europa está enfrentando uma crise grave. Com as pessoas morrendo de fome, esse plano vai fracassar. A melhor proteção contra o comunismo é a prosperidade. Stalin sabe disso... provavelmente é por isso que quer manter a Alemanha pobre.

           – Concordo.

           – Sendo assim, temos que reconstruí-la. Mas não podemos fazer isso com nossas próprias mãos. Precisamos de tratores, tornos mecânicos, escavadeiras, equipamento ferroviário... e não temos dinheiro para comprar nada disso.

           Marshall viu aonde ele estava querendo chegar.

           – Os americanos não estão dispostos a dar mais dinheiro aos europeus.

           – É justo. Mas deve haver um jeito de os Estados Unidos nos emprestarem o dinheiro necessário para comprarmos equipamentos de vocês.

           Houve silêncio.

           Marshall não era homem de desperdiçar palavras, mas aquela pausa foi longa demais até mesmo para seus padrões.

           Por fim, ele disse:

           – Faz sentido. Vou ver o que posso fazer.

           A conferência durou seis semanas e, quando todos voltaram para casa, nada tinha sido acertado.

 

           Eva Williams estava com 1 ano quando seus molares começaram a nascer. Os outros dentes tinham brotado com relativa facilidade, mas esses doeram. Não havia muita coisa que Lloyd e Daisy pudessem fazer pela menina. Ela ficou exausta, não conseguia dormir e não deixava os pais dormirem, e eles também ficaram exaustos.

           Ainda que Daisy tivesse muito dinheiro, a família vivia sem ostentações. Tinham comprado uma agradável casa geminada em Hoxton, onde eram vizinhos de um lojista e de um empreiteiro. Compraram também um pequeno carro familiar, um Morris Eight modelo novo, com velocidade máxima de quase 100km/h. Daisy ainda adquiria roupas bonitas, mas Lloyd tinha apenas três ternos: uma casaca, um risca de giz para a Câmara dos Comuns e um terceiro, de tweed, para percorrer seu distrito eleitoral durante os fins de semana.

           Certa noite, Lloyd estava de pijama, tentando ninar a chorosa Evie e fazê-la dormir ao mesmo tempo que folheava a revista Life. Reparou numa bela fotografia tirada em Moscou. Mostrava uma velha russa de lenço na cabeça, com o sobretudo amarrado por um barbante, feito um embrulho, e o rosto vincado de rugas, retirando neve da rua com uma pá. Algo na forma como a luz incidia sobre a mulher lhe dava um aspecto atemporal, como se ela estivesse ali havia mil anos. Procurou o crédito do fotógrafo e viu que a foto era de Woody Dewar, que tinha conhecido durante a conferência.

           O telefone tocou. Lloyd atendeu e ouviu a voz de Ernie Bevin:

           – Ligue o rádio – disse o ministro. – Marshall fez um discurso. – Então desligou sem esperar resposta.

           Ainda com Evie no colo, Lloyd desceu até a sala e ligou o rádio. O programa se chamava Comentário Americano. O correspondente da BBC em Washington, Leonard Miall, narrava uma reportagem gravada na Universidade Harvard, em Cambridge, Massachusetts.

           – O secretário de Estado disse aos alunos que a reconstrução da Europa vai levar mais tempo e exigirá mais esforço do que o previsto originalmente – afirmou ele.

           Que promissor, pensou Lloyd, animado.

           – Shh, Evie, por favor – pediu à filha, e, por incrível que pareça, a menina se calou.

           Então Lloyd ouviu a voz grave e sensata de George Marshall:

           – Nos próximos três ou quatro anos, as necessidades da Europa em matéria de alimentos e outros produtos essenciais de países estrangeiros, sobretudo dos Estados Unidos, serão tão maiores que a sua atual capacidade de pagar que ela vai precisar de uma ajuda extra significativa... ou terá que enfrentar uma deterioração econômica, social e política muito grave.

           Lloyd ficou muito empolgado. “Ajuda extra significativa” era justamente o que Bevin tinha pedido.

           – A solução é romper o círculo vicioso e restaurar a confiança do povo europeu no futuro econômico – prosseguiu Marshall. – Os Estados Unidos devem fazer todo o possível para ajudar a recuperar a saúde econômica do mundo.

           – Pronto, está feito! – exclamou Lloyd, triunfante, para sua filhinha incapaz de entender. – Ele disse aos Estados Unidos que eles precisam nos ajudar! Mas com quanto? E como? E quando?

           A voz no rádio mudou, e o repórter disse:

           – O secretário de Estado não expôs um plano detalhado de ajuda para a Europa, mas disse que cabia aos europeus redigirem uma proposta.

           – Quer dizer então que temos carta branca? – perguntou Lloyd a Evie, ansioso.

           A voz de Marshall voltou para dizer:

           – Acho que a iniciativa deve partir da Europa.

           A reportagem terminou, e o telefone tornou a tocar.

           – Você ouviu? – perguntou Bevin.

           – O que isso quer dizer?

           – Não me pergunte! – respondeu Bevin. – Se fizer perguntas, vai ouvir respostas que não quer escutar.

           – Tudo bem – disse Lloyd, sem entender.

           – Pouco importa o que ele quis dizer. A questão é o que nós vamos fazer. Ele disse que a iniciativa deve partir da Europa. Isso significa eu e você.

           – O que posso fazer?

           – Sua mala – respondeu Bevin. – Vamos para Paris.

             

1948

            Volodya fazia parte de uma delegação do Exército Vermelho em visita a Praga para negociações com as Forças Armadas tchecas. Estava hospedado no Imperial, um esplendoroso hotel art déco.

           A neve caía lá fora.

           Sentia saudades de Zoya e do pequeno Kotya. Seu filho tinha agora 2 anos e aprendia palavras novas a uma velocidade estonteante. O menino mudava tão depressa que parecia diferente a cada dia. E Zoya estava grávida outra vez. Volodya não gostou de passar 15 dias longe da família. Para a maioria dos homens do grupo, a viagem era uma chance de escapar das esposas, exagerar na vodca e, quem sabe, se divertir um pouco com mulheres de má reputação. Volodya, porém, só queria voltar para casa.

           As discussões militares eram genuínas, mas o papel de Volodya nelas era uma fachada para sua verdadeira missão: relatar as atividades da truculenta polícia secreta soviética, eterna rival da Inteligência do Exército Vermelho.

           Volodya havia perdido seu entusiasmo pelo trabalho. Tudo em que ele outrora acreditara tinha sido solapado. Já não tinha fé em Stalin, no comunismo nem na bondade intrínseca do povo russo. Nem mesmo Grigori era seu pai de verdade. Se pudesse dar um jeito de levar Zoya e Kotya com ele, teria fugido para o Ocidente.

           Mas estava comprometido com aquela missão em Praga. Era uma chance rara de fazer algo em que acreditava.

           Duas semanas antes, o Partido Comunista tcheco assumira o controle total do governo, expulsando seus parceiros da coalizão. O ministro das Relações Exteriores, Jan Masaryk, herói de guerra e democrata anticomunista, tinha se tornado prisioneiro no último andar de sua residência oficial, o Palácio Czernin. A polícia secreta soviética decerto estava por trás do golpe. Na realidade, Ilya Dvorkin, cunhado de Volodya, também estava em Praga, hospedado no mesmo hotel que ele, e era quase certo que houvesse participado dos acontecimentos recentes.

           O general Lemitov, chefe de Volodya, considerava o golpe uma catástrofe de relações públicas para seu país. Aos olhos do mundo, Masaryk era uma prova de que as nações do Leste Europeu podiam ser livres e independentes à sombra da União Soviética. Ele permitira à Tchecoslováquia ter um governo comunista simpático àquele país e ao mesmo tempo vestir os trajes da democracia burguesa. Esse era o arranjo ideal, pois dava à União Soviética tudo o que esta queria e, ao mesmo tempo, tranquilizava os americanos. Mas esse equilíbrio fora prejudicado.

           Ilya, porém, estava exultante.

           – Os partidos burgueses foram esmagados! – disse ele a Volodya certa noite no bar do hotel.

           – Você viu o que aconteceu no Senado americano? – perguntou Volodya com voz branda. – Aquele antigo isolacionista, Vandenberg, fez um discurso de oitenta minutos a favor do Plano Marshall e foi aplaudido de pé.

           As vagas ideias de George Marshall tinham virado um plano, graças principalmente à esperteza de Ernie Bevin, ministro das Relações Exteriores britânico. Na opinião de Volodya, Bevin era o tipo mais perigoso de anticomunista: um social-democrata de classe trabalhadora. Apesar da corpulência, era um homem ágil. Com uma velocidade espantosa, havia organizado uma conferência em Paris que proporcionara sonoras boas-vindas coletivas ao discurso proferido por George Marshall em Harvard.

           Graças a espiões no Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido, Volodya sabia que Bevin estava determinado a fazer a Alemanha entrar no Plano Marshall e a manter a União Soviética de fora. E Stalin caíra direitinho na armadilha de Bevin quando ordenara aos países do Leste Europeu que repudiassem a ajuda dos Estados Unidos.

           Agora, a polícia secreta soviética parecia fazer todo o possível para ajudar a lei a ser aprovada no Congresso americano.

           – O Senado estava preparado para rejeitar Marshall – disse Volodya a Ilya. – Os contribuintes americanos não querem apoiar a lei. Mas o golpe aqui em Praga os convenceu de que precisam fazê-lo, porque o capitalismo americano corre o risco de sofrer um colapso.

           – Os partidos burgueses tchecos queriam aceitar o suborno americano – retrucou Ilya, indignado.

           – E nós deveríamos ter deixado – rebateu Volodya. – Talvez essa tivesse sido a forma mais rápida de sabotar todo o esquema. O Congresso teria rejeitado o Plano Marshall... Eles não querem dar dinheiro aos comunistas.

           – O Plano Marshall é um truque imperialista!

           – É mesmo – concordou Volodya. – E, infelizmente, acho que está funcionando. Nossos aliados de guerra estão formando um bloco antissoviético.

           – É preciso dar um tratamento adequado a quem quiser impedir o avanço do comunismo.

           – Tem razão.

           A repetição dos erros de avaliação política de pessoas como Ilya era espantosa.

           – E eu tenho que ir para a cama.

           Embora ainda fossem dez da noite, Volodya também se recolheu. Ficou acordado pensando em Zoya e Kotya e desejando poder lhes dar um beijo de boa-noite.

           Então começou a refletir sobre sua missão ali. Dois anos antes, encontrara Jan Masaryk, símbolo da independência tcheca, numa cerimônia no túmulo de seu pai, Tomas Masaryk, fundador e primeiro presidente da Tchecoslováquia. Sem chapéu, apesar da neve que caía, e usando um sobretudo com gola de pele, Jan Masaryk tinha um aspecto derrotado e deprimido.

           Se conseguissem convencê-lo a permanecer como ministro das Relações Exteriores, talvez fosse possível algum compromisso, refletiu Volodya. A Tchecoslováquia poderia ter um governo nacional totalmente comunista, mas, nas relações internacionais, poderia ser um país neutro, ou pelo menos minimizar sua oposição aos Estados Unidos. Masaryk tinha habilidades diplomáticas e credibilidade internacional suficientes para andar nessa corda bamba.

           Ele decidiu sugerir isso a Lemitov no dia seguinte.

           Dormiu mal e acordou antes das seis, ao som de um despertador imaginário. Era algo em relação à conversa que tivera com Ilya na véspera. Volodya repassou mentalmente as palavras que os dois tinham trocado. Ao mencionar quem impede o avanço do comunismo, Ilya estivera se referindo a Masaryk; e, quando um agente da polícia secreta dizia que alguém precisava de um tratamento adequado, em geral queria dizer que a pessoa precisava ser morta.

           Depois disso, Ilya fora para a cama cedo, o que dava a entender que começaria a trabalhar cedo no dia seguinte.

           Mas que idiota eu fui, pensou Volodya. Os sinais estavam todos lá e precisei da noite inteira para percebê-los.

           Pulou da cama. Talvez não fosse tarde demais.

           Vestiu-se depressa e pôs um sobretudo pesado, um cachecol e um chapéu. Não havia táxis em frente ao hotel – era cedo demais. Ele poderia ter mandado chamar um carro do Exército Vermelho, mas o tempo que o motorista levaria para ser acordado e trazer o carro o faria perder quase uma hora.

           Por isso decidiu ir a pé. O Palácio Czernin ficava a apenas três quilômetros do hotel. Ele saiu do belo centro de Praga no sentido oeste, atravessou a ponte São Carlos e subiu depressa a colina em direção ao palácio.

           O ministro Masaryk não estava à sua espera e não era obrigado a conceder uma audiência a um coronel do Exército Vermelho. No entanto, Volodya teve certeza de que o tcheco ficaria curioso o suficiente para recebê-lo.

           Caminhou depressa pela neve. Quando chegou ao palácio, o relógio marcava 6h45. A construção era uma imensa estrutura em estilo barroco, cujos três andares superiores exibiam uma grandiosa fileira de meias-colunas coríntias. Constatou com espanto que o lugar estava muito pouco vigiado. Um guarda apontou para a porta da frente. Volodya atravessou o saguão rebuscado sem que ninguém o interpelasse.

           Esperava encontrar um imbecil da polícia secreta atrás de uma mesa na recepção, mas não viu ninguém. Aquilo era um mau sinal. Ele ficou apreensivo.

           O saguão conduzia a um pátio interno. Ao olhar por uma janela, viu o que parecia um homem adormecido na neve. Talvez tivesse caído por estar embriagado; nesse caso, corria o risco de morrer congelado.

           Volodya testou a porta e descobriu que estava aberta.

           Atravessou correndo o pátio quadrado. O homem de pijama azul de seda estava deitado de bruços no chão. Nenhuma neve o cobria, sinal de que devia estar ali havia poucos minutos. Volodya se ajoelhou ao seu lado. O homem estava imóvel e não parecia respirar.

           Volodya ergueu os olhos. Fileiras de janelas idênticas davam para o pátio, como soldados em um desfile militar. Estavam todas bem fechadas por causa do tempo frio – menos uma, logo acima do homem de pijama, que estava escancarada.

           Como se alguém tivesse sido jogado lá de cima.

           Volodya virou a cabeça sem vida do homem para ver seu rosto.

           Era Jan Masaryk.

 

           Três dias depois, em Washington, o Estado-Maior das três Forças Armadas americanas apresentou ao presidente Truman um plano de guerra emergencial para enfrentar uma invasão soviética à Europa Ocidental.

           O risco de uma terceira guerra mundial era um assunto quente na imprensa.

           – Nós acabamos de ganhar a guerra – disse Jacky Jakes a Greg Peshkov. – Como é possível estarmos à beira de outra?

           – É isso que não paro de me perguntar – respondeu Greg.

           Os dois estavam sentados no banco de um parque. Greg descansava depois de ter jogado bola com Georgy.

           – Que bom que ele é jovem demais para lutar – comentou Jacky.

           – Também acho.

           Ambos olharam para o filho. Georgy estava de pé, conversando com uma menina loura da sua idade. Os cadarços de seu tênis Ked’s estavam desamarrados, a camisa para fora da calça. Tinha 12 anos e estava crescendo. Uma penugem fina despontava no lábio superior e ele parecia quase dez centímetros mais alto do que uma semana antes.

           – Temos trazido nossos soldados de volta o mais rápido possível – disse Greg. – Os britânicos e os franceses fizeram o mesmo. Mas o Exército Vermelho não se mexeu. Resultado: eles agora têm três vezes mais tropas na Alemanha do que nós.

           – Os americanos não querem outra guerra.

           – É claro que não. E Truman espera ser reeleito em novembro, portanto vai fazer de tudo para evitar um conflito. Mas mesmo assim ele pode acontecer.

           – Você vai sair do Exército em breve. O que pretende fazer?

           Um tremor na voz de Jacky o fez desconfiar de que a pergunta não era tão casual quanto ela queria dar a entender. Ele a encarou, mas não conseguiu ler sua expressão. Então respondeu:

           – Supondo que os Estados Unidos não estejam em guerra, vou me candidatar ao Congresso em 1950. Meu pai concordou em financiar a campanha. Vou começar logo depois da eleição presidencial.

           Jacky desviou o olhar e perguntou de forma mecânica:

           – Por qual partido?

           Greg se perguntou se tinha dito alguma coisa que a aborrecera.

           – Republicano, claro.

           – E o casamento?

           Ele ficou espantado.

           – Por que está perguntando isso?

           Jacky então voltou a encará-lo.

           – Você vai se casar? – insistiu.

           – Para dizer a verdade, vou sim. O nome dela é Nelly Fordham.

           – Foi o que pensei. Quantos anos ela tem?

           – Vinte e dois. Como assim? Pensou mesmo?

           – Um político precisa de uma esposa.

           – Estou apaixonado por ela!

           – É claro que está. A família dela é da política?

           – O pai é advogado em Washington.

           – Boa escolha.

           Greg se irritou:

           – Você está sendo bem cínica!

           – Greg, eu conheço você. Ora, transei com você quando era pouco mais velho do que Georgy é agora. Você pode enganar todo mundo, menos sua mãe e eu.

           Como sempre, Jacky estava sendo muito observadora. A mãe de Greg também havia criticado seu noivado. As duas tinham razão: era uma estratégia de carreira. Mas Nelly era bonita, encantadora e adorava Greg. Qual era o problema?

           – Vou encontrá-la para almoçar aqui perto em alguns minutos – disse ele.

           – Nelly sabe sobre Georgy? – perguntou Jacky.

           – Não. E é melhor que continue sem saber.

           – Tem razão. Um filho ilegítimo já é ruim o suficiente; o fato de ele ainda por cima ser negro poderia arruinar sua carreira.

           – Eu sei.

           – É quase tão ruim quanto uma esposa negra.

           Greg ficou tão surpreso que não se conteve e perguntou:

           – Por acaso achou que eu fosse me casar com você?

           A expressão dela foi de amargura.

           – Caramba, Greg, não! Se eu tivesse que escolher entre você e um assassino, pediria um tempo para pensar.

           Ele sabia que era mentira. Por alguns instantes, refletiu sobre a possibilidade de se casar com Jacky. Casamentos inter-raciais eram raros e atraíam bastante hostilidade, tanto de negros quanto de brancos. Mas algumas pessoas enfrentavam o preconceito e aguentavam as consequências. Ele nunca tinha conhecido nenhuma moça de que gostasse tanto quanto de Jacky; nem mesmo Margaret Cowdry, com quem havia namorado por alguns anos até ela se cansar de esperar que ele a pedisse em casamento. Jacky tinha uma língua afiada, mas ele gostava disso, talvez porque sua mãe fosse igual. Havia algo de profundamente atraente na ideia de os três ficarem juntos o tempo todo. Georgy passaria a chamá-lo de pai. Eles poderiam comprar uma casa num bairro onde as pessoas tivessem a mente aberta, um lugar com muitos universitários e jovens professores, talvez Georgetown.

           Então viu a amiga loura de Georgy ser chamada pelos pais, e sua mãe branca zangada agitar um dedo reprovador, e percebeu que se casar com Jacky era a pior ideia do mundo.

           Georgy voltou para o banco onde os pais estavam sentados.

           – Como vai a escola? – perguntou-lhe Greg.

           – Estou gostando mais do que antes – respondeu o menino. – A aula de matemática está ficando mais interessante.

           – Eu era bom em matemática – comentou Greg.

           – Puxa, que coincidência – disse Jacky.

           Greg se levantou.

           – Tenho que ir. – Apertou de leve o ombro de Georgy. – Continue firme na matemática, companheiro.

           – Pode deixar – respondeu Georgy.

           Com um aceno para Jacky, Greg se afastou.

           Sem dúvida ela havia pensado em casamento ao mesmo tempo que ele. Sabia que sair do Exército era um momento decisivo na vida dele. Greg seria obrigado a pensar no futuro. Não era possível que ela realmente tivesse achado que eles fossem se casar, mas mesmo assim devia ter acalentado uma fantasia secreta. Fantasia que ele acabara de despedaçar. Era uma pena. Greg não faria dela sua mulher mesmo que Jacky fosse branca. Gostava dela e amava o filho, mas tinha a vida inteira pela frente e queria uma esposa que pudesse lhe proporcionar relações e apoio. O pai de Nelly era um homem influente na cena política republicana.

           Foi a pé até o Napoli, restaurante italiano a alguns quarteirões do parque. Nelly já estava à sua espera, com os cachos cor de cobre escapando de um chapeuzinho verde.

           – Como você está linda! – disse ele. – Desculpe o atraso. – E se sentou.

           A expressão no rosto da moça era pétrea.

           – Vi você no parque – disse ela.

           Ai, merda, pensou Greg.

           – Cheguei cedo, então fui me sentar lá um pouco – continuou Nelly. – Você não me viu. Então comecei a me sentir uma enxerida e fui embora.

           – Quer dizer que você viu meu afilhado? – perguntou ele com uma alegria forçada.

           – É isso que ele é? Você é uma escolha curiosa como padrinho. Nem frequenta a igreja.

           – Eu o trato bem!

           – Qual é o nome dele?

           – Georgy Jakes.

           – Você nunca falou nele antes.

           – Ah, não?

           – Quantos anos ele tem?

           – Doze.

           – Então você tinha 16 anos quando ele nasceu. Muito jovem para um padrinho.

           – É, acho que sim.

           – E o que a mãe dele faz da vida?

           – É garçonete. Anos atrás, era atriz. Seu nome artístico era Jacky Jakes. Eu a conheci quando era contratada do estúdio do meu pai.

           Tudo isso era mais ou menos verdade, pensou Greg, pouco à vontade.

           – E o pai do menino?

           Greg fez que não com a cabeça.

           – Jacky é solteira. – Um garçom se aproximou. – Que tal um drinque? – perguntou Greg. Talvez uma bebida pudesse aliviar a tensão. – Dois martínis – pediu ao garçom.

           – Pois não, senhor.

           Assim que o garçom se afastou, Nelly perguntou:

           – Você é o pai do menino, não é?

           – Padrinho.

           – Ah, pare de mentir – disse ela, em tom de desdém.

           – Como tem tanta certeza?

           – Ele pode até ser negro, mas é a sua cara. Não consegue manter os cadarços amarrados nem a camisa para dentro da calça, igualzinho a você. E estava todo sedutor conversando com aquela menininha loura. É claro que é seu filho.

           Greg se rendeu. Suspirou e disse:

           – Eu ia lhe contar.

           – Quando?

           – Estava esperando o momento certo.

           – Antes de me pedir em casamento teria sido uma boa hora.

           – Desculpe.

           Apesar de constrangido, ele não estava realmente arrependido. Achava que todo aquele drama era desnecessário.

           O garçom trouxe os cardápios, e ambos puseram-se a examiná-los.

           – O espaguete à bolonhesa daqui é ótimo – disse Greg.

           – Vou querer uma salada.

           Os martínis chegaram. Greg ergueu o copo e disse:

           – Ao perdão no casamento.

           Nelly não pegou sua bebida.

           – Não posso me casar com você – falou.

           – Querida, por favor, não exagere. Já pedi desculpas.

           Ela balançou a cabeça.

           – Você não entende...

           – Não entendo o quê?

           – Aquela mulher que estava ao seu lado no banco do parque... ela é apaixonada por você.

           – É? – Na véspera, Greg teria negado, mas depois da conversa de hoje não tinha tanta certeza.

           – Claro que é. Por que ela não se casou de novo? É bem bonita. A esta altura, se tivesse tentado, já teria conseguido encontrar algum homem disposto a assumir um enteado. Mas ela é apaixonada por você, seu canalha.

           – Não tenho tanta certeza.

           – E o menino adora você.

           – Eu sou o tio preferido dele.

           – Só que não é tio coisa nenhuma. – Ela empurrou o copo para o lado dele da mesa. – Pode tomar o meu drinque.

           – Meu bem, relaxe, por favor.

           – Vou embora. – Ela se levantou.

           Greg não estava acostumado a ser abandonado. Achou aquilo perturbador. Será que estava perdendo o charme?

           – Quero me casar com você! – falou. Sua voz soou desesperada até para ele mesmo.

           – Você não pode se casar comigo, Greg. – Nelly tirou do dedo o anel de diamante e o pôs sobre a toalha vermelha quadriculada. – Você já tem uma família.

           Em seguida, saiu do restaurante.

 

           A crise mundial atingiu o auge em junho, e Carla e sua família estavam bem no meio dela.

           O Plano Marshall fora ratificado pelo presidente Truman e transformado em lei e, para fúria do Kremlin, os primeiros carregamentos de auxílio já começavam a chegar à Europa.

           Na sexta-feira, 18 de junho, os Aliados ocidentais avisaram à Alemanha que fariam um anúncio importante às oito da noite. A família de Carla se reuniu em volta do aparelho da cozinha, sintonizou a Rádio Frankfurt e aguardou, ansiosa. Havia três anos que a guerra acabara, mas eles ainda não sabiam o que o futuro lhes reservava: capitalismo ou comunismo, unidade ou fragmentação, liberdade ou submissão, prosperidade ou miséria.

           Sentado ao lado de Carla, Werner segurava no colo o pequeno Walli, agora com 2 anos e meio. Os dois haviam se casado discretamente um ano antes. Carla voltara a trabalhar como enfermeira. Também fazia parte do Conselho Municipal de Berlim pelo Partido Social-Democrata. Heinrich, marido de Frieda, também era membro do conselho.

           Os russos haviam banido o Partido Social-Democrata na parte oriental da Alemanha, mas Berlim era um oásis situado no meio do setor soviético e governado por um conselho chamado pelos quatro Aliados de Kommandatura, que vetara a proibição. Consequentemente, os social-democratas tinham vencido as eleições, ao passo que os comunistas amargaram um terceiro lugar, atrás dos democratas cristãos conservadores. Os russos ficaram uma fera e fizeram todo o possível para entravar o conselho eleito. Carla achava isso frustrante, mas não podia abrir mão da esperança de independência em relação aos soviéticos.

           Werner havia montado um pequeno negócio. Depois de vasculhar as ruínas da fábrica do pai, conseguira resgatar uma pequena coleção de material elétrico e peças avulsas de rádios. Os alemães não tinham dinheiro para comprar aparelhos novos, mas todos queriam consertar os antigos. Werner entrara em contato com alguns técnicos, ex-funcionários da fábrica, e os pusera para trabalhar consertando rádio quebrados. Trabalhava como gerente e vendedor, indo às casas e apartamentos em busca de mais serviço.

           Maud, que também estava sentada à mesa da cozinha nessa noite, trabalhava como intérprete para os americanos. Era uma das melhores em atividade e com frequência traduzia as reuniões da Kommandatura.

           Erik, irmão de Carla, estava usando um uniforme de policial. Depois de entrar para o Partido Comunista – para consternação da família –, ele conseguira um emprego de agente na nova força policial do leste, organizada pelos ocupantes russos. Segundo Erik, os Aliados ocidentais estavam tentando dividir a Alemanha em duas.

           – Vocês social-democratas são separatistas – afirmou ele, citando a frase comunista da mesma forma que havia repetido feito um papagaio a propaganda dos nazistas.

           – Os Aliados ocidentais não dividiram nada – retrucou Carla. – Eles abriram as fronteiras entre seus respectivos setores. Por que os soviéticos não fazem a mesma coisa? Então voltaríamos a ser um só país.

           O irmão parecia não escutá-la.

           Rebecca tinha agora quase 17 anos. Carla e Werner a haviam adotado oficialmente. Ela ia bem na escola e era boa em idiomas.

           Carla estava grávida outra vez, mas ainda não dissera nada para Werner. Estava muito animada. Seu marido já tinha uma filha adotiva e um enteado, mas agora teria também um filho legítimo. Sabia que ele ficaria felicíssimo quando recebesse a notícia. Apenas estava esperando mais um pouco para ter certeza.

           No entanto, ansiava por saber em que tipo de país seus três filhos viveriam.

           Um oficial americano chamado Robert Lochner começou a se pronunciar no rádio. Criado na Alemanha, falava alemão sem esforço. Ele explicou que, a partir das sete horas da manhã de segunda-feira, a parte ocidental do país teria uma nova moeda, o marco alemão.

           Carla não ficou surpresa. O Reichsmark valia menos a cada dia. A maioria das pessoas, quando tinha emprego, recebia em Reichsmarks, e a moeda podia ser usada para comprar itens básicos como cupons de comida e passagens de ônibus, mas todo mundo preferia receber em víveres ou cigarros. No trabalho, Werner cobrava dos clientes em Reichsmarks, mas oferecia serviços noturnos por cinco cigarros e entregas em qualquer lugar da cidade por três ovos.

           Maud contara a Carla que a nova moeda fora discutida na Kommandatura. Os russos tinham pedido chapas para imprimir o dinheiro. Mas já haviam desvalorizado a moeda anterior imprimindo-a em excesso e, se isso se repetisse, a nova moeda não adiantaria de nada. Assim, o Ocidente recusara as chapas, e os soviéticos fecharam a cara.

           Agora os países ocidentais tinham decidido prosseguir sem o apoio dos soviéticos. Carla ficou feliz, porque a nova moeda seria boa para a Alemanha, mas estava apreensiva com a reação soviética.

           Segundo Lochner, a população da parte ocidental do país poderia trocar sessenta antigos Reichsmarks por três marcos alemães e 90 centavos.

           Então ele disse que nada disso seria aplicado em Berlim, pelo menos no início, o que provocou um grunhido generalizado na cozinha.

           Carla foi para a cama perguntando-se o que os soviéticos iriam fazer. Deitada junto de Werner, manteve parte do cérebro alerta para o caso de Walli chorar no quarto ao lado. Nos últimos meses, os ocupantes soviéticos vinham ficando mais zangados. Um jornalista chamado Dieter Friede fora sequestrado no setor americano e preso pela polícia secreta soviética. No início, os soviéticos negaram saber qualquer coisa a respeito, depois afirmaram que o haviam prendido como espião. Três alunos tinham sido expulsos da universidade por criticar os russos numa revista. E, o pior de tudo, um caça soviético passara muito perto de um avião de passageiros da British European Airways durante o pouso no aeroporto de Gatow, quebrando sua asa e provocando a queda das duas aeronaves e a morte de quatro tripulantes da BEA, de dez passageiros e do piloto do caça soviético. Quando os russos ficavam zangados, alguma outra pessoa sempre sofria.

           Na manhã seguinte, os soviéticos anunciaram que passaria a ser crime usar marcos alemães na parte oriental do país. Segundo o pronunciamento, isso incluía Berlim, “que faz parte do setor soviético”. Os americanos contestaram na mesma hora, dizendo que Berlim era uma cidade internacional, mas os ânimos estavam esquentando, e Carla continuou ansiosa.

           Na segunda-feira, a parte ocidental da Alemanha recebeu a nova moeda.

           Na terça, um mensageiro do Exército Vermelho foi à casa de Carla e a convocou à prefeitura.

           Ela já havia sido convocada antes, mas mesmo assim saiu temerosa. Nada impedia os soviéticos de prendê-la. Os comunistas tinham os mesmos poderes arbitrários que os nazistas haviam tomado para si. Estavam até usando os antigos campos de concentração.

           O famoso prédio vermelho da prefeitura fora danificado pelas bombas, e a sede do governo municipal era agora a Prefeitura Nova, na Parochialstrasse. Ambos os prédios ficavam no bairro de Mitte, onde Carla morava, que fazia parte do setor soviético.

           Ao chegar, ela constatou que a prefeita interina Louise Schroeder e outros funcionários municipais também tinham sido convocados para uma reunião com o agente de ligação do Exército soviético, major Otshkin. Este lhes informou que a parte oriental da Alemanha sofreria uma reforma monetária e que, no futuro, apenas o novo Ostmark seria legal no setor soviético.

           A prefeita interina percebeu de imediato qual era o ponto crucial.

           – Está nos dizendo que isso vai se aplicar a todos os setores de Berlim? – perguntou.

           – Sim.

           Frau Schroeder não era mulher de se deixar intimidar com facilidade.

           – Segundo a constituição da cidade, o poder de ocupação soviético não pode criar uma regra assim para os outros setores – disse ela com firmeza. – Os outros Aliados precisam ser consultados.

           – Eles não vão se opor. – O major lhe entregou uma folha de papel. – Aqui está o decreto do marechal Sokolovsky. A senhora poderá apresentá-lo ao Conselho Municipal amanhã.

           Nesse mesmo dia, à noite, ao se deitar ao lado de Werner, Carla falou:

           – A tática dos soviéticos é óbvia. Se o Conselho Municipal aprovar o decreto, os Aliados ocidentais terão dificuldade em derrubá-lo por causa de sua visão democrática.

           – Só que o conselho não vai aprovar o decreto. Os comunistas são minoria e ninguém mais vai querer o Ostmark.

           – Não mesmo. É por isso que me pergunto qual será a carta que o marechal Sokolovsky tem na manga.

           Os jornais do dia seguinte anunciaram que, a partir da sexta-feira, duas moedas competiriam entre si em Berlim: o Ostmark e o marco alemão. Foi revelado que os americanos haviam mandado trazer em segredo 250 milhões de marcos alemães em caixotes de madeira com os dizeres “Clay” e “Bird Dog”, guardados agora por toda Berlim.

           Durante o dia, Carla começou a ouvir boatos do lado ocidental da Alemanha. Lá, a nova moeda havia provocado um verdadeiro milagre. Da noite para o dia, mais mercadorias haviam se materializado nas vitrines das lojas: cestas de cerejas e maços bem-amarrados de cenouras trazidos de campos próximos, manteiga, ovos e doces, além de luxos havia muito guardados, como sapatos e bolsas novas, ou até mesmo meias finas, vendidas por quatro marcos o par. As pessoas haviam esperado até poderem vender por dinheiro de verdade.

           Nessa tarde, Carla saiu para a prefeitura, onde iria participar da reunião do Conselho Municipal marcada para as quatro horas. Ao se aproximar, viu dezenas de caminhões do Exército Vermelho estacionados nas ruas adjacentes, com os motoristas encostados na lataria, fumando. Quase todos os veículos eram americanos e deviam ter sido cedidos à União Soviética em leasing durante a guerra. Quando começou a ouvir o barulho de uma multidão descontrolada, Carla teve uma ideia do que eles estavam fazendo ali. Desconfiou do que o governador soviético devia ter guardado na manga: um porrete.

           Em frente à prefeitura, bandeiras vermelhas tremulavam acima de um mar de vários milhares de pessoas, a maioria com broches do Partido Comunista. Caminhões com alto-falantes transmitiam discursos irados, e as pessoas entoavam as palavras de ordem: “Abaixo os separatistas!”

           Carla não viu como poderia chegar ao prédio. Um grupo de policiais observava a cena com ar de desinteresse, sem fazer nenhuma tentativa de ajudar os membros do conselho a passar. Isso despertou em Carla uma dolorosa lembrança da atitude da polícia no dia em que os camisas-pardas tinham invadido o escritório de sua mãe, 15 anos antes. Teve quase certeza de que os membros comunistas do conselho já estavam lá dentro e que, se os social-democratas não conseguissem entrar, essa minoria iria aprovar o decreto e depois reivindicar sua validade.

           Respirou fundo e começou a abrir caminho pela multidão.

           Conseguiu dar alguns passos sem se fazer notar. Então alguém a reconheceu.

           – Puta americana! – gritou o homem, apontando para ela.

           Carla seguiu em frente com determinação. Outra pessoa lhe lançou uma cusparada, que sujou seu vestido. Ela prosseguiu, mas começou a entrar em pânico. Estava cercada por pessoas que a odiavam, algo que jamais tinha lhe acontecido antes, e teve vontade de sair correndo. Foi empurrada, mas conseguiu se manter de pé. A mão de alguém segurou seu vestido, e ela se libertou com o barulho do tecido se rasgando. Quis gritar. O que eles iriam fazer, rasgar todas as suas roupas?

           Percebeu que outra pessoa tentava abrir caminho na multidão atrás dela e, ao olhar por cima do ombro, viu que era Heinrich von Kessel, marido de Frieda. Ele a alcançou, e os dois continuaram juntos. Heinrich era mais agressivo, pisando no pé das pessoas e dando cotoveladas vigorosas em quem estivesse ao seu alcance. Isso fez com que avançassem mais depressa. Por fim, chegaram à porta da prefeitura e conseguiram entrar.

           Mas o calvário deles ainda não tinha terminado. Lá dentro também havia manifestantes comunistas, centenas deles. Carla e Heinrich tiveram que lutar para passar pelos corredores. A assembleia estava tomada por manifestantes – não apenas na galeria de visitantes, mas também no nível do plenário. Seu comportamento ali era tão agressivo quanto do lado de fora.

           Alguns social-democratas já estavam presentes e outros chegaram depois de Carla. Parecia incrível, mas a maioria dos 63 que faziam parte do conselho tinha conseguido passar pela turba. Ela ficou aliviada. O inimigo não fora capaz de afugentá-los.

           Quando o porta-voz da assembleia pediu ordem no recinto, um dos membros comunistas do conselho subiu num banco e instou os manifestantes a ficarem. Ao ver Carla, ele gritou:

           – Traidores, fiquem lá fora!

           Tudo lembrava tristemente o ano de 1933: violência, intimidação e a democracia minada por arruaceiros. Carla foi ficando desesperada.

           Ao erguer os olhos para a galeria, consternou-se ao ver seu irmão entre a multidão aos gritos.

           – Você é alemão! – berrou para ele. – Viveu sob o domínio nazista! Será que não aprendeu nada?

           Mas ele pareceu não ouvi-la.

           Frau Schroeder subiu ao pódio e pediu calma. Os manifestantes a receberam com assobios e vaias. Erguendo a voz até praticamente gritar, ela disse:

           – Se o Conselho Municipal não puder ter um debate organizado neste prédio, vou transferir a reunião para o setor americano.

           As vaias se repetiram, mas os 26 membros comunistas do conselho viram que uma mudança desse tipo não atenderia aos seus objetivos. Se o conselho se reunisse fora do setor soviético uma vez, poderia fazê-lo outras vezes, ou até mesmo se mudar definitivamente para fora do raio de ação da intimidação comunista. Após um curto debate, um deles se levantou e pediu aos manifestantes que se retirassem. Eles saíram do plenário cantando a Internacional.

           – Está claro quem manda neles – comentou Heinrich.

           Finalmente fez-se silêncio. Frau Schroeder explicou a demanda comunista e disse que esta não poderia ser aplicada fora do setor soviético de Berlim a menos que fosse ratificada pelos outros Aliados.

           Um representante comunista fez um discurso no qual a acusou de receber ordens diretas de Nova York.

           Acusações e ofensas foram lançadas por ambas as partes. Depois de algum tempo, os membros do conselho votaram. Os comunistas apoiaram por unanimidade o decreto soviético – depois de acusarem os demais de serem controlados por países estrangeiros. Todos os outros membros votaram contra, e o decreto foi derrubado. Berlim não se deixara intimidar. Carla foi dominada por um sentimento cansado de triunfo.

           Mas ainda não havia terminado.

           Quando eles saíram da prefeitura, já eram sete da noite. A maior parte da turba havia sumido, mas um grupo feroz de valentões ainda rondava o prédio. Uma senhora idosa que integrava o conselho levou chutes e socos ao sair. A polícia assistiu a tudo com indiferença.

           Carla e Heinrich saíram por uma porta lateral com alguns amigos, torcendo para conseguirem passar despercebidos, mas um comunista de bicicleta vigiava esse acesso. Ele saiu pedalando depressa.

           Enquanto os membros do conselho se afastavam a passos rápidos, ele voltou à frente de uma pequena gangue. Alguém deu uma rasteira em Carla, que caiu no chão. Levou um chute forte, depois dois, três. Aterrorizada, cobriu a barriga com as mãos. Estava com quase três meses de gravidez – sabia que era nesse período que acontecia a maioria dos abortos espontâneos. Será que o bebê de Werner vai morrer chutado por arruaceiros comunistas numa rua de Berlim?, pensou, desesperada.

           Então eles sumiram.

           Os membros do conselho ajudaram uns aos outros a se levantar. Ninguém estava gravemente ferido. Saíram dali juntos, temendo um segundo ataque, mas os comunistas já pareciam ter batido em pessoas suficientes naquele dia.

           Carla chegou em casa às oito horas. Não havia sinal de Erik.

           Werner ficou chocado ao ver os hematomas e o vestido rasgado.

           – O que houve? – perguntou. – Você está bem?

           Carla desatou a chorar.

           – Você está ferida – disse Werner. – Quer que a leve ao hospital?

           Ela negou com um gesto vigoroso de cabeça.

           – Não é isso – explicou. – São só uns hematomas. Já passei por coisa pior. – Ela se deixou cair numa cadeira. – Meu Deus, como estou cansada...

           – Quem fez isso? – perguntou seu marido, zangado.

           – As mesmas pessoas de sempre – respondeu ela. – Elas agora se dizem comunistas em vez de nazistas, mas são da mesma laia. Parece uma reprise de 1933.

           Werner a envolveu com os braços.

           Mas Carla não conseguiu se deixar consolar.

           – Já faz tanto tempo que os valentões e arruaceiros estão no poder... – lamentou, aos soluços. – Será que isso nunca vai acabar?

 

           Nessa noite, a agência de notícias soviética transmitiu um anúncio. A partir das seis horas da manhã seguinte, todo o transporte de passageiros indo ou vindo da parte ocidental de Berlim – trens, carros, barcas que trafegavam pelos canais – seria interrompido. Nenhum item de abastecimento poderia entrar: fosse comida, leite, remédios ou carvão. Como as estações geradoras de eletricidade seriam fechadas, eles iriam interromper o fornecimento de energia elétrica – apenas nos setores ocidentais.

           A cidade estava sitiada.

           Lloyd Williams encontrava-se na sede das Forças Armadas britânicas em Berlim. Houvera um curto recesso parlamentar, e Ernie Bevin viajara de férias para Sandbanks, no litoral sul da Inglaterra, mas ficara preocupado o bastante para mandar Lloyd à capital alemã a fim de supervisionar a introdução da nova moeda e mantê-lo informado.

           Daisy não havia acompanhado o marido. Davey, seu filho caçula, tinha apenas 6 meses. Além disso, ela e Eva Murray estavam montando em Hoxton uma clínica de controle de natalidade para mulheres que estava prestes a ser inaugurada.

           Lloyd estava apavorado que aquela crise conduzisse a uma guerra. Já havia lutado em duas, e não queria ter que passar por uma terceira. Tinha dois filhos pequenos que torcia para crescerem num mundo de paz. Era casado com a mulher mais bonita, mais sexy e mais adorável do mundo, e queria passar muitas e longas décadas ao lado dela.

           O general Clay, governador militar norte-americano viciado em trabalho, deu ordens a seus subordinados para organizar um comboio de blindados que avançaria pela Autobahn de Helmstedt, na parte ocidental do país, até Berlim, atravessando o território soviético e tirando da frente qualquer obstáculo.

           Lloyd ficou sabendo desse plano ao mesmo tempo que o governador britânico, Sir Brian Robertson, e ouviu-o comentar com sua voz marcada de soldado:

           – Se Clay fizer isso, haverá guerra.

           Porém nenhuma outra coisa fazia sentido. Os americanos ainda fizeram outras sugestões, como Lloyd soube ao conversar com os assessores mais jovens de Clay. O secretário do Exército americano, Kenneth Royal, queria paralisar a reforma monetária. Clay lhe respondeu que esta já tinha ido longe demais para ser revertida. Então Royal propôs evacuar todos os americanos de Berlim. Clay lhe disse que isso era exatamente o que os soviéticos queriam.

           Sir Brian sugeriu criar um corredor aéreo para abastecer a cidade. A maioria das pessoas considerava isso impossível. Alguém calculou que Berlim precisava de quatro mil toneladas de combustível e comida por dia. Será que havia aeronaves suficientes no mundo para transportar tanta coisa? Ninguém sabia. De todo modo, Sir Brian ordenou à RAF que pusesse o plano em prática.

           Na sexta-feira à tarde, Sir Brian se encontrou com Clay, e Lloyd foi convidado a participar da reunião. O britânico disse ao americano:

           – Os russos podem bloquear a Autobahn para que seu comboio não passe e esperar para ver se os tanques terão coragem de atacar; mas não acho que irão abater aviões.

           – Não vejo como poderemos fornecer víveres suficientes por via aérea – tornou a dizer Clay.

           – Nem eu – concordou Sir Brian. – Mas temos que fazer isso até pensarmos em algo melhor.

           Clay pegou o telefone.

           – Ligue para o general LeMay, em Wiesbaden – pediu. Depois de alguns minutos, tornou a falar: – Curtis, você tem algum avião aí capaz de transportar carvão?

           Houve uma pausa.

           – Carvão – repetiu Clay mais alto.

           Outra pausa.

           – Sim, foi isso mesmo que eu disse... carvão.

           Instantes depois, Clay ergueu os olhos para Sir Brian.

           – Ele disse que a Força Aérea americana pode transportar qualquer coisa.

           Os britânicos voltaram para sua sede.

           No sábado, Lloyd arrumou um motorista do Exército e entrou no setor soviético para uma missão pessoal. Foi até o endereço no qual visitara a família Von Ulrich 15 anos antes.

           Sabia que Maud continuava morando na mesma casa. Ela e sua mãe tinham voltado a se corresponder no final da guerra. As cartas de Maud disfarçavam com bravura o que sem dúvida devia ser uma grave privação. Ela não pedira ajuda. De toda forma, não havia nada que Ethel pudesse fazer por ela – a Grã-Bretanha ainda estava enfrentando o racionamento.

           A casa estava muito diferente. Em 1933, era um belo imóvel urbano, um pouco malconservado, mas ainda assim gracioso. Agora parecia abandonada. A maioria das janelas estava fechada por tábuas ou jornais em vez de vidro. Havia buracos de bala na alvenaria, e o muro do jardim tinha desabado. Fazia muitos anos que o madeirame externo não era pintado.

           Lloyd passou alguns instantes sentado dentro do carro, olhando a casa. Na última vez que estivera ali, tinha 18 anos, e Hitler acabara de se tornar chanceler da Alemanha. O jovem Lloyd nem sonhava com os horrores que o mundo iria testemunhar. Nem ele nem ninguém desconfiavam de quão perto o fascismo chegaria de triunfar sobre toda a Europa, e de quanto teriam que sacrificar para derrotá-lo. Seu estado de espírito lembrava um pouco o aspecto atual da casa dos Von Ulrich: maltratada, bombardeada e atingida por tiros, mas ainda de pé.

           Ele subiu o acesso até a casa e bateu.

           Reconheceu a criada que veio abrir a porta.

           – Olá, Ada, lembra-se de mim? – perguntou em alemão. – Lloyd Williams.

           A casa estava melhor por dentro do que por fora. Ada o conduziu até a sala de estar, onde uma jarra de vidro com flores enfeitava o piano. O sofá estava coberto por uma colcha de cores vivas, sem dúvida para esconder os buracos do estofamento. Os jornais que faziam as vezes de vidraças deixavam entrar uma quantidade surpreendente de luz.

           Um menino de 2 anos entrou na sala e examinou o visitante com franca curiosidade. Vestido com roupas visivelmente feitas em casa, tinha um aspecto oriental.

           – Quem é você? – perguntou.

           – Meu nome é Lloyd. E o seu?

           – Walli – respondeu o menino. Então saiu correndo da sala, e Lloyd o ouviu dizer a alguém do lado de fora: – O moço fala esquisito!

           E eu crente que meu alemão era bom, pensou Lloyd.

           Então ouviu a voz de uma mulher de meia-idade:

           – Não fale assim! É falta de educação.

           – Desculpe, vovó.

           No instante seguinte, Maud entrou na sala.

           Sua aparência deixou Lloyd chocado. Ela estava com 50 e poucos anos, mas parecia ter 70. Tinha os cabelos grisalhos, o rosto emaciado, e seu vestido de seda azul estava puído. Ela o beijou no rosto com lábios murchos.

           – Lloyd Williams, que alegria ver você!

           Essa mulher é minha tia, pensou Lloyd com uma sensação meio estranha. Mas Maud não sabia do parentesco: Ethel soubera guardar segredo.

           Ela foi seguida por Carla, irreconhecível, e por seu marido. Quando Lloyd conhecera Carla, ela era uma menina precoce de 11 anos; agora, segundo seus cálculos, estava com 26. Embora tivesse uma aparência semidesnutrida – assim como a maioria dos alemães –, era uma moça bonita e tinha uma atitude confiante que deixou Lloyd surpreso. Algo na sua postura o fez pensar que ela talvez estivesse grávida. Sabia, pelas cartas de Maud, que Carla tinha se casado com Werner. Atraente e sedutor em 1933, o alemão continuava igualzinho.

           Eles passaram uma hora pondo a conversa em dia. A família tinha enfrentado horrores inimagináveis e falava sobre isso com franqueza, mas ainda assim Lloyd teve a sensação de que eles estavam omitindo os piores detalhes. Contou-lhes sobre Daisy e Evie. Durante a conversa, uma adolescente entrou e perguntou a Carla se podia ir à casa de uma amiga.

           – Esta é nossa filha Rebecca – disse Carla a Lloyd.

           A menina devia ter 16 anos. Lloyd imaginou que fosse adotada.

           – Já fez o dever de casa? – perguntou-lhe Carla.

           – Farei amanhã de manhã.

           – Faça agora, por favor – disse Carla com firmeza.

           – Ah, mãe!

           – Sem discussão – insistiu Carla. Então virou-se de novo para Lloyd, e Rebecca saiu da sala pisando firme.

           Eles conversaram sobre a crise. Como membro do Conselho Municipal, Carla estava muito envolvida. Sua visão sobre o futuro de Berlim era pessimista. Segundo ela, os russos simplesmente fariam a população passar fome até o Ocidente ceder e entregar a cidade ao controle total da União Soviética.

           – Deixe eu lhe mostrar uma coisa que talvez faça você mudar de ideia – disse Lloyd. – Podem vir comigo de carro?

           Maud ficou em casa com Walli, mas Carla e Werner acompanharam Lloyd. Ele pediu ao motorista que os levasse até Tempelhof, o aeroporto localizado no setor americano. Quando chegaram, conduziu-os até uma janela alta da qual podiam ver a pista.

           Lá embaixo estava enfileirada uma dezena de aeronaves Skytrain C-47, nariz contra cauda, algumas pintadas com a estrela americana, outras com o símbolo circular da RAF. As portas dos compartimentos de carga estavam abertas, e havia um caminhão parado diante de cada uma. Carregadores alemães e aviadores americanos descarregavam as aeronaves. Havia sacos de farinha, grandes barris de querosene, caixas de material médico e caixotes de madeira contendo milhares de garrafas de leite.

           Enquanto eles assistiam, aviões vazios decolaram, e outros se aproximaram para aterrissar.

           – Impressionante – comentou Carla, com os olhos marejados. – Nunca vi nada igual.

           – Nunca existiu nada igual – retrucou Lloyd.

           – Mas os britânicos e americanos vão conseguir sustentar isso? – perguntou ela.

           – Acho que seremos obrigados.

           – Mas por quanto tempo?

           – Quanto for preciso – respondeu Lloyd com decisão.

           E foi o que fizeram.

             

1949

            Com o século XX já quase na metade, em 29 de agosto de 1949 Volodya Peshkov estava no platô de Ustyurt, a leste do mar Cáspio, no Cazaquistão. Era um deserto pedregoso situado no sul da União Soviética, onde povos nômades criavam cabras praticamente como nos tempos bíblicos. A bordo de um caminhão militar, Volodya avançava sacolejando desconfortavelmente por uma estrada de terra. A aurora despontava na paisagem de pedras, areia e arbustos baixos cheios de espinhos. Um camelo ossudo, sozinho à beira da estrada, espiou o caminhão que passava com ar malvado.

           Ao longe, ainda na penumbra, Volodya viu a torre da bomba, iluminada por uma bateria de canhões de luz.

           Zoya e os outros cientistas tinham fabricado seu primeiro artefato nuclear graças aos desenhos que Willi Frunze entregara a Volodya em Santa Fé. Era uma bomba de plutônio com gatilho de implosão. Havia outros modelos possíveis, mas aquele já funcionara duas vezes: primeiro no Novo México, depois em Nagasaki.

           Portanto, também deveria funcionar nesse dia.

           O codinome do teste era RDS-1, mas eles o chamavam de Primeiro Raio.

           O caminhão de Volodya parou em frente à torre. Ao erguer os olhos, ele viu um grupo de cientistas sobre a plataforma, fazendo alguma coisa com um emaranhado de cabos que conduzia aos detonadores na superfície da bomba. Uma figura vestida com um macacão azul deu um passo atrás, e cabelos louros esvoaçaram: era Zoya. Ele sentiu uma onda de orgulho. Minha mulher, pensou; cientista de primeira linha e mãe de dois filhos.

           Ela conversou rapidamente com dois homens, as três cabeças bem juntas, discutindo. Volodya torceu para que não houvesse nada errado.

           Aquela era a bomba que iria salvar Stalin.

           Tudo o mais dera errado para a União Soviética. A Europa Ocidental optara decididamente pela democracia, temendo o comunismo por causa das táticas truculentas do Kremlin e dos subornos do Plano Marshall. A União Soviética não conseguira sequer assumir o controle de Berlim: depois de o corredor aéreo de abastecimento perdurar incansavelmente por quase um ano, a União Soviética havia cedido e reabrira as estradas e ferrovias. No Leste Europeu, Stalin só conseguira manter o controle por meio da força bruta. Truman, reeleito presidente, considerava-se o líder do mundo. Os americanos tinham estocado armas nucleares e estacionado bombardeiros B-29 na Grã-Bretanha, prontos para transformar a União Soviética num deserto radioativo.

           Mas tudo isso iria mudar nesse dia.

           Se a bomba explodisse como deveria, a União Soviética e os Estados Unidos estariam outra vez em pé de igualdade. Quando a União Soviética pudesse ameaçar os Estados Unidos com a devastação nuclear, o domínio do mundo por parte dos americanos iria acabar.

           Volodya não sabia se isso seria bom ou ruim.

           Se a bomba não explodisse, provavelmente tanto Zoya quanto Volodya seriam expurgados, mandados para campos de trabalho na Sibéria, ou simplesmente fuzilados. Ele já havia conversado com os pais, que tinham prometido tomar conta de Kotya e Galina.

           O mesmo valia para o caso de Volodya e Zoya morrerem no teste.

           Sob a luz cada vez mais forte, Volodya viu, espalhada a distâncias variadas da torre, uma estranha série de construções: casas de tijolo e madeira, uma ponte sobre nada, e a entrada de alguma estrutura subterrânea. Provavelmente o Exército queria medir o efeito da explosão. Ao observar com mais atenção, viu caminhões, tanques e aviões velhos e supôs que estivessem ali pelo mesmo motivo. Os cientistas também iriam avaliar o impacto da bomba em seres vivos: havia cavalos, bois, ovelhas e cães presos em canis.

           A confabulação na plataforma terminou com uma decisão. Os três cientistas assentiram e recomeçaram o trabalho.

           Alguns minutos depois, Zoya desceu para cumprimentar o marido.

           – Tudo bem? – perguntou ele.

           – Achamos que sim – respondeu Zoya.

           – Vocês acham?

           Ela deu de ombros.

           – Nunca fizemos isso antes.

           Os dois subiram no caminhão e se afastaram, passando por um terreno que já era um deserto, até o distante bunker de controle.

           Os outros cientistas foram logo atrás.

           Dentro do bunker, todos puseram óculos de soldador, e a contagem regressiva começou.

           Faltando sessenta segundos, Zoya deu a mão a Volodya.

           Faltando dez segundos, ele sorriu e disse:

           – Eu te amo.

           Faltando um segundo, ele prendeu a respiração.

           Então foi como se o sol houvesse nascido de repente. Uma luz mais forte que a do meio-dia inundou o deserto. Na direção da torre da bomba, uma bola de fogo alcançou uma altura inacreditável, parecendo querer tocar a lua. Volodya ficou espantado com as cores vivas da bola: verde, roxo, laranja, violeta.

           Em seguida ela se transformou num cogumelo cujo chapéu não parava de subir. Por fim, o som chegou até eles: um estrondo tão forte que era como se a maior peça de artilharia do Exército Vermelho tivesse sido detonada a menos de meio metro dali, seguido por uma trovoada que fez Volodya se lembrar do terrível bombardeio nas colinas de Seelow.

           Por fim, a nuvem começou a se dispersar e o barulho diminuiu.

           Houve uma longa pausa de silêncio atônito.

           Alguém disse:

           – Caramba! Por isso eu não esperava.

           Volodya abraçou a mulher.

           – Foi graças a você – disse ele.

           Mas Zoya tinha uma expressão solene.

           – Graças a mim o quê?

           – Graças a você o comunismo foi salvo – respondeu ele.

 

           – A bomba russa foi baseada nos desenhos da Fat Man, a que lançamos sobre Nagasaki – disse o agente especial Bill Bicks. – Alguém entregou o desenho a eles.

           – Como você sabe? – perguntou-lhe Greg.

           – Um desertor nos contou.

           Os dois estavam sentados na sala acarpetada de Bicks em Washington, na sede do FBI; eram nove da manhã. Bicks estava sem paletó. Embora o ar-condicionado desse ao prédio uma temperatura agradável, tinha a camisa manchada de suor nas axilas.

           – Segundo esse cara – prosseguiu ele –, um coronel da Inteligência do Exército Vermelho conseguiu os desenhos com um dos cientistas da equipe do Projeto Manhattan.

           – Ele disse quem foi?

           – Ele não sabe. Por isso chamei você. Precisamos encontrar o traidor.

           – O FBI verificou todos eles na época.

           – E a maioria representava risco! Não havia nada que pudéssemos fazer. Mas você os conhecia pessoalmente.

           – Quem era o tal coronel do Exército Vermelho?

           – Eu já ia chegar a essa parte. Você o conhece. O nome dele é Vladimir Peshkov.

           – Meu meio-irmão!

           – É.

           – Se eu fosse vocês, suspeitaria de mim.

           Greg disse isso com uma risada, mas estava muito incomodado.

           – Ah, nós suspeitamos, pode acreditar – respondeu Bicks. – Você foi submetido à investigação mais completa que já vi nos meus trinta anos de casa.

           Greg lançou-lhe um olhar cético.

           – É mesmo?

           – Seu filho está indo bem na escola, não está?

           A pergunta deixou Greg chocado. Quem poderia ter contado ao FBI sobre Georgy?

           – Meu afilhado, você quer dizer? – indagou.

           – Greg, eu disse completa. Sabemos que ele é seu filho.

           Greg ficou irritado, mas se conteve. Já havia desencavado segredos pessoais de muitos suspeitos durante o tempo em que trabalhara na inteligência do Exército. Não tinha o direito de reclamar.

           – Você está limpo – continuou Bicks.

           – Fico aliviado em saber.

           – De toda forma, nosso desertor insistiu em que os desenhos foram entregues por um cientista, e não por um dos funcionários militares regulares que estavam trabalhando no projeto.

           – Quando encontrei Volodya em Moscou, ele me disse que não conhecia os Estados Unidos – disse Greg, pensativo.

           – Ele mentiu – disse Bicks. – Esteve aqui em setembro de 1945. Passou uma semana em Nova York. Então nós o perdemos por oito dias. Ele reapareceu por um breve período e depois voltou para casa.

           – Oito dias?

           – É. Uma vergonha.

           – É tempo suficiente para ir até Santa Fé, passar um ou dois dias lá e voltar.

           – É. – Bicks se curvou para a frente por cima da mesa. – Mas pense bem. Se o cientista já tivesse sido recrutado como espião, por que não foi contatado pelo intermediário habitual? Por que trazer alguém de Moscou para conversar com ele?

           – Você acha que o traidor foi recrutado durante essa visita de dois dias? Parece rápido demais.

           – É possível que ele já houvesse trabalhado para os russos, mas tivesse desistido. De toda forma, estamos imaginando que os soviéticos precisavam mandar alguém que o cientista já conhecesse. Isso significa que deve haver alguma ligação entre Volodya e um dos cientistas. – Bicks fez um gesto em direção a uma mesa lateral coberta de pastas amarelas. – A resposta está ali em algum lugar. São as nossas pastas sobre todos os cientistas que tiveram acesso aos desenhos.

           – O que você quer que eu faça?

           – Examine as pastas.

           – Esse trabalho não é seu?

           – Já examinamos. Não encontramos nada. Estamos torcendo para que você encontre algo que deixamos passar. Vou ficar sentado aqui lhe fazendo companhia, assim aproveito para arrumar um pouco de papelada.

           – Vai ser um trabalho demorado.

           – Você tem o dia inteiro.

           Greg franziu o cenho. Será que eles sabiam...?

           – Não tem nada marcado para o restante do dia – disse Bicks, seguro.

           Greg deu de ombros.

           – Tem café?

           Ele tomou um café e comeu rosquinhas, depois tomou mais café, comeu um sanduíche na hora do almoço e uma banana no meio da tarde. Já conhecia todos os detalhes sobre a vida dos cientistas, suas esposas e parentes: infância, escolaridade, carreira, amor e casamento, conquistas, excentricidades e pecados.

           Estava comendo o último pedaço de banana quando exclamou:

           – Puta que pariu!

           – O que foi? – indagou Bicks.

           – Willi Frunze estudou na Academia para Meninos de Berlim. – Greg fez a pasta estalar em cima da mesa, com um gesto triunfante.

           – E daí?

           – Volodya também estudou lá... ele me contou.

           Animado, Bicks socou a mesa.

           – Amigos de escola! É isso! Pegamos o canalha!

           – Mas isso não prova nada – disse Greg.

           – Ah, não se preocupe, ele vai confessar.

           – Como pode ter tanta certeza?

           – Esses cientistas acham que o conhecimento deve ser compartilhado com todos, e não mantido em segredo. Ele vai tentar se justificar argumentando que agiu assim pelo bem da humanidade.

           – E talvez ele tenha razão.

           – Seja como for, vai morrer na cadeira elétrica – disse Bicks.

           Greg sentiu um frio na espinha. Willi Frunze lhe parecera um bom sujeito.

           – Vai mesmo?

           – Pode apostar. Ele vai fritar.

           Bicks tinha razão. Willi Frunze foi considerado culpado de alta traição e condenado à morte. Foi executado na cadeira elétrica.

           Sua esposa também.

 

           Daisy observou o marido ajeitar a gravata-borboleta branca e vestir o paletó de sua casaca perfeita, feita sob medida.

           – Você está um espetáculo – comentou, e era verdade. Lloyd deveria ter sido astro de cinema.

           Lembrou-se dele 13 anos antes, usando uma roupa emprestada no baile do Trinity College, e sentiu um agradável calafrio de nostalgia. Lembrou que ele já era bem bonito na época, apesar da casaca dois tamanhos acima do seu.

           Eles estavam hospedados na suíte permanente do pai dela no Hotel Ritz-Carlton de Washington. Lloyd agora tinha um cargo de adjunto no Ministério das Relações Exteriores britânico, e estava em visita diplomática aos Estados Unidos. Seus pais, Ethel e Bernie, tinham ficado encantados em passar uma semana cuidando dos netos.

           Nessa noite, Daisy e Lloyd iriam a um baile na Casa Branca.

           Ela estava usando um vestido deslumbrante de Christian Dior: feito de cetim cor-de-rosa, tinha uma saia rodada composta por infindáveis camadas de tule armado. Depois dos anos de austeridade da guerra, estava encantada em poder comprar vestidos em Paris outra vez.

           Pensou no baile do Iate Clube de Buffalo em 1935, o evento que, na época, acreditava ter arruinado sua vida. A Casa Branca naturalmente tinha muito mais prestígio, mas ela sabia que nada do que acontecesse nessa noite poderia arruinar sua vida. Ficou pensando nisso enquanto Lloyd a ajudava a pôr o colar de diamantes-rosa e os brincos no mesmo feitio que haviam pertencido à sua mãe. Aos 19 anos, Daisy quisera desesperadamente ser aceita pelos membros da alta sociedade. Agora, mal podia se imaginar preocupada com uma coisa dessas. Desde que Lloyd dissesse que ela estava linda, pouco lhe importava o que os outros pensavam. A única outra pessoa cuja aprovação talvez pudesse querer era a sogra, Eth Leckwith, que tinha pouco status social e com certeza jamais usara um vestido de Paris.

           Será que toda mulher olhava para trás e relembrava as tolices cometidas na juventude? Daisy tornou a pensar em Ethel, que sem dúvida tivera um comportamento tolo – afinal de contas, engravidara do patrão –, mas nunca falava sobre isso com arrependimento. Talvez essa fosse a atitude correta. Pensou nos erros que ela mesma cometera: ficar noiva de Charlie Farquharson, rejeitar Lloyd, casar-se com Boy Fitzherbert. Não conseguia olhar para trás e pensar no bem que tinha advindo dessas escolhas. Somente quando decidira rejeitar a alta roda e buscar consolo na cozinha de Ethel em Aldgate sua vida mudara para melhor. Ela havia parado de almejar o status social e aprendera o que significava a verdadeira amizade; desde então, era uma mulher feliz.

           Agora que já não ligava para nada disso, gostava ainda mais de festas.

           – Está pronta? – perguntou Lloyd.

           Ela estava. Vestiu o casaco de noite que Dior criara para combinar com o vestido. Os dois desceram no elevador, saíram do hotel e entraram na limusine que os aguardava.

 

           Na véspera de Natal, Carla convenceu a mãe a tocar piano.

           Fazia muitos anos que Maud não tocava. Talvez o instrumento a deixasse triste por despertar lembranças de Walter: os dois costumavam tocar e cantar juntos, e ela muitas vezes dissera aos filhos como havia tentado, sem sucesso, ensinar a ele o ragtime. Mas ela não contava mais essa história, e Carla desconfiava que, hoje em dia, o piano também fizesse a mãe pensar em Joachim Koch, o jovem oficial que viera ter aulas com ela, a quem ela enganara e seduzira, e que Carla e Ada mataram na cozinha. A própria Carla não conseguia eliminar completamente a lembrança daquela noite de pesadelo, sobretudo quando tivera que se livrar do corpo. Não estava arrependida – fora a coisa certa a fazer –, mas mesmo assim teria preferido esquecer.

           Nessa noite, porém, Maud finalmente concordou em tocar “Noite Feliz” para que todos cantassem juntos. Werner, Ada, Erik e as três crianças – Rebecca, Walli e a bebezinha Lili – reuniram-se na sala de estar em volta do velho Steinway. Carla pôs uma vela em cima do piano e, sob as sombras dançantes que esta lançava, analisou o rosto dos parentes que entoavam a conhecida canção natalina alemã.

           Walli, no colo de Werner, faria 4 anos em algumas semanas e tentava acompanhar a canção adivinhando com inteligência as palavras e a melodia. O menino tinha os olhos orientais do pai estuprador. Carla havia decidido que sua vingança seria criar o filho para que tratasse as mulheres com carinho e respeito.

           Erik cantava com sinceridade a letra da música. Apoiava o regime soviético da mesma forma cega que havia apoiado os nazistas. De início, isso havia provocado em Carla incompreensão e fúria, mas ela agora via uma lógica triste no fervor do irmão. Erik era uma daquelas pessoas inadequadas cujo medo da vida era tão grande que preferiam viver sob uma autoridade dura, ter um governo que lhes dissesse o que fazer e o que pensar, e que não permitisse nenhuma dissidência. Eram tolas e perigosas, mas havia muita gente assim.

           Carla então encarou com ternura o marido. Aos 30 anos, Werner continuava sendo um homem bonito. Lembrou-se de tê-lo beijado, e mais, quando tinha 19 anos, no banco da frente de seu carro estiloso parado na floresta de Grunewald. Ainda gostava de beijá-lo.

           Quando pensava no tempo transcorrido desde então, tinha mil lamentações, mas a maior de todas era a morte do pai. Sentia falta dele o tempo todo, e ainda chorava ao se lembrar de vê-lo caído no hall de casa, espancado tão cruelmente que sucumbiu antes de o médico chegar.

           Mas todos tinham que morrer, e seu pai perdera a vida em nome de um mundo melhor. Se mais alemães houvessem tido a sua coragem, os nazistas não teriam triunfado. Carla queria fazer tudo o que ele fizera: criar bem os filhos, fazer diferença na política de seu país, amar e ser amada. Mais do que tudo, quando morresse, queria que os filhos pudessem dizer, como ela dizia do pai, que sua vida tinha significado alguma coisa, e que o mundo era um lugar melhor por causa dela.

           A canção de Natal terminou. Maud sustentou o último acorde no piano, e o pequeno Walli se inclinou para a frente e apagou a vela com um sopro.

 

                                                                                Ken Follett  

 

                      

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